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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO
A DONA DA HISTÓRIA
Origens da Globo Filmes
e seu impacto no audiovisual brasileiro
PEDRO BUTCHER
Rio de Janeiro
2006
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ii
A DONA DA HISTÓRIA
Origens da Globo Filmes
e seu impacto no audiovisual brasileiro
PEDRO BUTCHER
Dissertação de mestrado apresentada à Coordenação do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura
da Escola de Comunicação da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Comunicação e Cultura.
Orientador: Consuelo Lins
Rio de Janeiro
2006
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iii
PEDRO BUTCHER
A DONA DA HISTÓRIA
Origens da Globo Filmes
e seu impacto no audiovisual brasileiro
Prof: ______________________________________________ Orientador
Consuelo Lins, doutor
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. ______________________________________________
Ismail Xavier, doutor
Universidade de São Paulo
Prof. ______________________________________________
Ivana Bentes, doutor
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2006
iv
FICHA CATALOGRÁFICA
Butcher, Pedro
A dona da história: Origens da Globo Filmes e seu impacto
no audiovisual brasileiro / Pedro Butcher. Rio de Janeiro: UFRJ,
Escola de Comunicação, 2006.
114 f; il.
Orientador: Consuelo Lins
Dissertação (mestrado) – UFRJ / Escola de Comunicação,/
PPGCOM, 2006.
Referências bibliográficas:
1. Comunicação. 2. Cinema brasileiro 3. Televisão brasileira
4. Novas mídias. – Tese I. Lins, Consuelo (Orient.). II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação. III. Título.
CDD: XXXXX
v
Agradecimentos
Agradeço em primeiro lugar a Consuelo Lins, que me orientou nessa nova aventura
acadêmica com paciência e segurança.
Agradeço, imensamente, à toda equipe do Filme B, em especial a Elizabeth Ribeiro, que me
ajudou na formulação das tabelas, e também a Paulo Sérgio Almeida, Cristina de Castro, José
Roberto Monteiro Gifford, Denise do Egito, Guilherme Bussinger, Carlos Lyra, Francisca
Nogueira, João Cândido Zacharias, Alice Gomes, Ana Alkimin, Renata Emmanuelle
Vasconcelos Anhos e Bruno Safeno.
Agradeço à minha família, muro de arrimo para as horas boas e más, especialmente à minha
mãe Bernardette, que fez a revisão final, e às minhas irmãs Isabel e Beatriz, ao meu pai
Rodolfo, e às minhas avós Bernardina e Aparecida.
Agradeço aos amigos Eduardo Valente e Fernando Veríssimo pelas leituras atentas e
observações certeiras, e ao professor Hernani Heffner, pelas dicas preciosas.
Agradeço a Silvana Arantes e Márcio Rodrigo, colegas jornalistas que me ajudaram na
pesquisa e coleta de informações.
Agradeço aos professores Janice Caiafa, Ilana Strozenberg, Katia Maciel, André Parente,
Henrique Antoun, Milton Pinto e Vera Follain (PUC-Rio), que, durante seus cursos, também
me guiaram com sugestões de leitura e orientações de trabalho.
Agradeço à alegria do meu afilhado Bento e à paciência infinita de meus amigos eternos
Paulo Mattos, Marcelo Carneiro, Ricardo Bairos, Hugo Sukman, Paula Miller, Anna Luiza
Müller, George Moura, Tereza Gonzales, Marta Reyes, Jayme Carvalho e Maria Helena
Nascimento.
Agradeço a Gustavo Souza, que esteve ao meu lado e me aturou durante boa parte dessa
travessia, e a Lucia Santa Cruz e Fernanda Martineli, novos amigos queridos das turmas da
Eco.
vi
“Nós acreditamos no sonho
e construímos a realidade”
Roberto Marinho, no discurso
de inauguração do Projac
(2 de outubro de 1995)
vii
RESUMO
BUTCHER, Pedro. A dona da história: Origens da Globo Filmes e seu impacto no
audiovisual brasileiro. Orientador: Consuelo Lins. Dissertação de mestrado (Pós-graduação
em Comunicação e Cultura). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Comunicação. Rio de Janeiro, 2006.
Estudo sobre a criação da Globo Filmes, divisão voltada para a produção e co-produção de
longas-metragens para cinema da TV Globo. A entrada da Globo Filmes no cenário
audiovisual brasileiro, em 1998, marcou o início de uma nova etapa da relação entre cinema e
televisão no país. Sua criação está inserida em uma nova estratégia potica da emissora, que
tem como tônica a defesa do conteúdo nacional”, e que por sua vez está relacionada à crise
econômica e estrutural que se impôs às Organizações Globo a partir das transformações
tecnológicas no campo da comunicação, surgidas nas últimas décadas do século 20. Nesse
novo panorama, o discurso nacionalista se apresenta como elemento comum ao cinema e à
TV, na forma de um ingrediente potico que se pretende um elemento de afirmação no
cenário de globalização.
Palavras-chave: comunicação, cinema brasileiro, televisão brasileira, novas tecnologias.
viii
ABSTRACT
BUTCHER, Pedro. A dona da história: Origens da Globo Filmes e seu impacto no
audiovisual brasileiro. Orientador: Consuelo Lins. Dissertação de mestrado (Pós-graduação
em Comunicação e Cultura). Universidade Federal do Rio de Janeiro/Escola de Comunicação,
Rio de Janeiro, 2006.
This is a study about Globo Filmes, a division created by TV Globo to produce and co-
produce feature length movies. The introduction of Globo Filmes in Brazilian’s audiovisual
scenery, in 1998, indicated the beginning of a new stage of the relationship between cinema
and television in the country. At the same time, it is part of a new strategy perpetrated by TV
Globo, with a political motivation, in which the key is the “defense of the national audiovisual
content”, deeply related to the crises faced by the Globo Organizations regarding the
technological transformations in the field of communications that appeared in the last decades
of the 20
th
century. In this new panorama, the nationalist discourse presents itself, both to
cinema as to TV, as a political component with the intention to be an element of affirmation
in the process of globalization.
Key-words: communications, Brazilian cinema, Brazilian television, new technologies.
ix
SUMÁRIO
Introdução............................................................................ ....................................................10
1. Aspectos da relação cinema-tv e seu desenvolvimento no Brasil.........................................18
2. Trajetórias dos discursos nacionalistas no cinema e na televisão.........................................27
3. Formação da hegemonia da TV Globo e seus discursos de legitimação..............................39
4. Mutações do paradigma televisivo e a crise das organizações Globo..................................54
5. A crise do cinema brasileiro e a influência da TV nos primeiros filmes da “retomada” (pré-
Globo Filmes)...........................................................................................................................61
6. Origens e formas de atuação da Globo Filmes.....................................................................69
7. “Padrão Globo Filmes de Qualidade”...................................................................... ...........94
Conclusões..............................................................................................................................102
Anexo I...................................................................................................................................107
Anexo II..................................................................................................................................108
Anexo III.................................................................................................................................109
Anexo IV.................................................................................................................................110
Referências..............................................................................................................................111
10
Introdução
Negligenciada pela mediação do Estado e atravessada por uma desconfiança mútua de ambas
as partes, a relação entre cinema e televisão no Brasil sempre foi caracterizada pelo
distanciamento. Enquanto a TV se erguia no cenário audiovisual, não houve, por parte dos
profissionais de cinema, esforços significativos para uma aproximação efetiva. Por sua vez, a
emissora de televisão que se firmou como hegemônica no país – a TV Globo – não investiu na
produção de longas-metragens nem incorporou de maneira sistemática filmes brasileiros à sua
grade de programação, com raras e breves exceções
1
. Por isso, em 1998, quando a TV Globo
anunciou, depois de mais de 30 anos de existência, que estava criando uma divisão voltada
para a co-produção de filmes para cinema, evidenciou-se que uma nova etapa da relação entre
cinema e TV no Brasil havia começado.
De imediato, o surgimento da Globo Filmes no cenário audiovisual brasileiro suscita três
perguntas básicas: 1) o que levou a TV Globo a se aproximar do cinema depois de ter se
mantido tanto tempo afastada, 2) qual é o caráter dessa aliança tardia e a que interesses ela
atende e 3) qual é o efeito dessa nova relação no interior e no exterior dos filmes brasileiros
(ou seja, em sua estética e em sua relação com o público). Para além dessas questões, faz-se
necessário, ainda, desenhar o pano de fundo ideológico que costura essa aproximação: as
noções de “nacionalismo” assumirão papéis preponderantes nos discursos construídos tanto
pelo cinema brasileiro como pela TV Globo no momento da formulação dessa nova aliaa.
A pesquisa que segue procura apontar algumas razões que levaram a TV Globo a criar a
Globo Filmes. A criação de um departamento voltado para a produção de longas-metragens
no corpo da emissora está ligada, em primeiro lugar, ao próprio campo de forças gerado pelo
desenvolvimento histórico da cadeia audiovisual brasileira, no qual a TV firmou-se como um
poderoso elo ecomico e institucional, enquanto o cinema brasileiro,o. Mas está
relacionada, também, aos desafios econômicos e estruturais que se impuseram à TV Globo a
1
As exceções serão analisadas mais detalhadamente adiante: por um curto período, nos anos 1970, a TV Globo
chegou a participar da produção de filmes brasileiros para cinema; e em alguns momentos de sufoco em relação
à concorrência, recorreu a filmes nacionais para elevar a audiência, mas quase sempre confinados a uma semana
de programação especial.
11
partir das transformações tecnológicas no campo da comunicação surgidas nas últimas
décadas do século 20.
As tecnologias de informação e comunicação (TIC) – TV paga, celulares, internet, câmeras
portáteis, TV digital – multiplicaram a demanda por conteúdo audiovisual e estabeleceram
novas possibilidades de produção e difusão da informação, além de apontarem para uma
possível diminuição do peso da televisão tradicional no cotidiano dos cidadãos. Todos esses
fatores começaram a desenhar um cenário que poderia abalar as bases de sustentação da
hegemonia da TV Globo, cujo pilar central está na produção concentrada, em suas próprias
estruturas, do conteúdo que leva ao ar, e a dependência constante de altos índices de audiência
para gerar receitas suficientes para cobrir seus custos.
Mas o potencial de transformação gerado pelo surgimento das novas tecnologias ultrapassa o
campo da comunicação e atinge a própria essência do capitalismo industrial. Como explicam
Antonio Negri e Michael Hardt, as TIC possibilitaram um novo modo de acumulação de
capital no qual o “papel da mão-de-obra industrial foi restringido e, em seu lugar, ganhou
prioridade a mão-de-obra comunicativa e cooperativa”
2
. De acordo com o conceito proposto
por Antonella Corsani, seguindo esta mesma linha de raciocínio, o mundo, em meio ao
complexo processo de globalização, estaria assistindo à emergência de um “capitalismo
cognitivo
3
definido por novos regimes de produção, embasado no trabalho imaterial e nas
possibilidades produtivas das redes de cooperação.
Ainda que essas transformações estejam em pleno curso e se desenvolvam de forma
particularmente lenta no Brasil, é difícil não relacioná-las à nova estratégia política
empreendida pela TV Globo a partir do fim dos anos 1990 – e da qual a Globo Filmes é parte
integrante. O movimento da emissora em direção ao cinema se insere em um leque de ações
de caráter bem mais amplo, cujo lema comum é uma defesa ampla e irrestrita do “conteúdo
nacional”. Tais ações se apresentam, basicamente, como respostas às “ameaças” que a
globalização estaria impingindo à cultura brasileira – sendo que a globalização é vista, no
caso, como uma nova forma de imperialismo cultural, que busca impor modelos estrangeiros
e destruir a produção cultural nacional.
2
HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 13.
3
GALVÃO, Alexander Patez, SILVA, Gerardo e COCCO, Giuseppe (org.). Capitalismo cognitivo: trabalhos,
rede e inovão. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 8.
12
A estratégia da TV Globo guarda um duplo caráter. O primeiro, mais imediato, divide-se em
dois vetores: a busca por uma ampliação de uma base de legitimidade, que permitisse a
superação do atolamento financeiro que atingiu o grupo desde meados dos anos 1990, e a
formulação de possíveis respostas antecipadas à revisão da potica audiovisual que começou
a se desenhar a partir da abertura democrática, salientada nos dois mandatos do presidente
Fernando Henrique Cardoso (1995-1998; 1999-2002) e intensificada a partir da eleição de
Luis Inácio Lula da Silva, em 2002. Esses dois governos foram os primeiros a tentar reformar
a legislação do setor audiovisual no país, procurando firmar uma articulação entre os setores
cinematográfico e televisivo sob a supervisão de uma agência específica
4
. A médio e a longo
prazo, no entanto, essas medidas têm um caráter potico mais profundo, no sentido de
retardar certas alterações no modelo da comunicação social no Brasil ou, pelo menos, de
ganhar tempo para que se torne possível uma melhor adaptação da empresa ao novo modelo
que se esboça.
Ações
A nova agenda político-institucional da TV Globo, posta em prática a partir do fim dos anos
1990, inclui um sólido conjunto de ações articuladas. Entre elas, destacam-se:
a criação da Globo Filmes, divio da TV Globo estruturada na gestão de Marluce Dias da
Silva. O novo empreendimento foi oficialmente anunciado em dezembro de 1997, mas só
passou a atuar efetivamente no mercado cinematográfico no fim de 1998. A primeira
formação de executivos da Globo Filmes contou com Daniel Filho (direção geral e artística),
Tom Flórido (planejamento) e Marco Aurélio Marcondes (distribuição e comercialização);
a fundação, em setembro de 1998, do Canal Brasil, canal da TV paga que é resultado de
uma joint-venture entre a Globosat (divisão de TV por assinatura das Organizações Globo) e
o Grupo Consórcio Brasil, formado pelos produtores e cineastas Luiz Carlos Barreto, Zelito
Viana, Marco Altberg, Aníbal Massaini e Roberto Faria;
4
A Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), que pouco antes de sua efetivação, em 6 de
setembro de 2001, teve a televisão aberta totalmente excluída de suas atribuições, caracterizando-se apenas como
Agência Nacional do Cinema (Ancine).
13
a implantação, em dezembro de 2002, do projeto Brasil Total, desenvolvido pela atriz
Regina Casé e pelo antropólogo Hermano Vianna, com o objetivo de incorporar prodões
regionais independentes ao Fantástico e a outros programas jornalísticos e ficcionais;
a intensificação do chamado merchandising social, estimulando a divulgação de
informações e a realização de campanhas consideradas de interesse nacional no interior dos
programas ficcionais da emissora
5
;
a veiculação, entre novembro de 2003 e março de 2004, de uma ampla campanha
institucional composta por 12 anúncios de 30 segundos, com depoimentos de políticos e
artistas sobre a importância da TV Globo na vida social e cultural do Brasil
6
;
a realização da exposição de fotografias Brasil: a gente vê por aqui, registrando a presença
da TV no cotidiano brasileiro, que circulou por vários shoppings no primeiro semestre de
2004
7
;
5
No fim de 2003, a TV Globo distribuiu aos à sua equipe de autores o documentoPolítica para o
merchandising social: sistematização de projeto”. O texto, não assinado, define a emissora como “a única fonte
de informação e entretenimento para milhões, o que justificaria sua “especial responsabilidade na difusão de
conhecimentos”. Os tópicos do documento continham instruções espeficas para os autores intensificarem
campanhas de caráter social no corpo dos programas. Cf. MATTOS, Laura. Globo faz operação para ter fama do
bem. Folha de São Paulo, São Paulo, 21 mar. 2004. Ilustrada, página E-4.
6
O formato de todos os anúncios era o mesmo: a tela, dividida em dois, exibia de um lado a cena de um
programa da emissora, enquanto do outro surgia o rosto de uma personalidade, em close, dizendo um texto
relacionado à cena em questão. Um dos spots da campanha, por exemplo, trazia uma cena da novela Mulheres
apaixonadas com a personagem de Carolina Dieckman, que sofria de leucemia. Sobre essa imagem o deputado
do PT de São Paulo, João Paulo Cunha, comentava que “as novelas da Globo dão uma grande contribuição para
a recuperação da cidadania dos brasileiros”. Em outro comercial, o ator Antônio Fagundes afirmava, sobre a
imagem do filme Deus é brasileiro (protagonizado por ele próprio), que “a entrada da TV Globo no processo
cinematográfico, não na prodão como na divulgão de filmes, está fazendo grande diferença”. Os outros
filmes incluíam participões, entre outros, do senador do PT do Rio Grande do Sul Paulo Paim, e da
coordenadora nacional do programa beneficente Pastoral da Criança, Zilda Arns, entre outros.
7
O anúncio da exposição, publicado no suplemento cultural do jornal Folha de S. Paulo do dia 27 de abril deste
mesmo ano (ver anexo I), é formado por uma fotomontagem que une duas imagens: a da esquerda mostra um
ambiente interno, decorado com um vaso de flores, onde uma senhora vista de perfil ajusta um pequeno aparelho
de televisão; a da direita exibe um ambiente ao ar livre, onde um menino negro aparece diante de um aparelho de
TV do mesmo tamanho. Os dois televisores estão sintonizados em um jogo de futebol da seleção brasileira e a
montagem feita de maneira que a linha divisória entre uma imagem e outra desapareça sobre o visor do aparelho
de TV, que se torna o elemento comum às duas. Os personagens das fotos estão sintonizados no mesmo canal,
assistindo ao mesmo programa, na mesma emissora. O título da exposição (“Brasil: a gente vê por aqui”) é uma
variação em torno do slogan publicitário da Globo (“A gente se vê por aqui), sugerindo, ao mesmo tempo, que
cada brasileiro se vê representado nos programas da Globo, e que a emissora funciona como um “ponto de
encontro” para os brasileiros a partir do momento em que cria um espaço comum, acentuando o sentido de
“pertencimento a um país”.
14
o apoio à criação, em novembro de 2004, do Fórum Brasileiro do Audiovisual, entidade
que reúne mais de 120 organizações representativas do setor e que foi instituída com objetivo
de responder à tentativa de transformação da Agência Nacional do Cinema (Ancine) em
Agência Nacional de Cinema e do Audiovisual (Ancinav), empreendida pelo governo de Luis
Inácio Lula da Silva no começo de 2004. A transformação da Agência previa, entre outras
medidas, a incorporação da TV à sua regulamentação, o que acabou, mais uma vez, não se
concretizando;
a organização do seminário Conteúdo Brasil, realizado em parceria com a PUC de São
Paulo em fevereiro de 2004, com a participação de setenta intelectuais e artistas. A palestra de
abertura, não por acaso, foi ministrada pelo dramaturgo Ariano Suassuna – apaixonado
defensor da cultura nacional e ferrenho opositor à incorporação de elementos estrangeiros
pelos artistas brasileiros. Do evento, foi retirado um documento com as conclusões dos cinco
grupos de trabalho, entregue ao presidente Lula em julho do mesmo ano por uma comissão
que incluía o ator Tony Ramos, a atriz Regina Casé, a autora de telenovelas Gloria Perez e o
produtor de cinema Luiz Carlos Barreto. O texto afirmava que,ao fim do evento, o que se
passou foi um momento raro no Brasil. Em vez de uma babel, um pensamento convergente: a
certeza de que é preciso agir logo para rechaçar um perigo real, concreto e iminente; o perigo
de que o Brasil se transforme em Brazil”. Entre as várias recomendações do documento,
dividido em capítulos como “Globalização e cultura nacional” e “Convergência tecnológica”,
sobressai-se a defesa da necessidade de “estender o disposto na Constituição (capítulo V)
8
a
todas as atividades de comunicação social voltadas para brasileiros, independentemente dos
meios de transmissão
9
. Essa defesa tem como alvo principal a transmissão de conteúdo
audiovisual pelo telefone celular e a internet, algo que é visto pela TV Globo como uma das
principais ameaças à sua hegemonia, pelo simples fato de que esses novos meios de
circulação audiovisual não dependem de seu conteúdo.
***
A criação da Globo Filmes, portanto, está articulada a um conjunto de ações bastante
complexo, de fundo potico, em que a produção de longas-metragens torna-se apenas uma
8
O capítulo V do título VIII da Constituição Brasileira é dedicado à Comunicação Social.
9
Conteúdo Brasil: seminário de valorização da produção cultural brasileira. Documento disponível no endero
http://www.tvpuc.com.br/conteudoDestaque_conteudo_brasil.htm
.
15
peça de uma engrenagem bem mais ampla. Mas o fato é que, por intermédio da Globo Filmes,
a TV Globo passaria a atuar diretamente sobre um produto do qual encontrava-se ausente,
apesar de já vir exercendo sobre ele influência significativa. Ao mesmo tempo, passou a
contar com a capacidade de organização política do cinema brasileiro em seu favor,
desmobilizando a indiferença e/ou oposição que, no passado, marcaram as posições do setor
em relação à televisão. Essa movimentação, não por acaso, se deu no momento em que a
produção nacional saía de mais uma de suas mais graves crises institucionais e produtivas e
começava a marcar presença, novamente, em seu próprio mercado, predominantemente
ocupado pelo cinema norte-americano. A partir dessa situação, a TV Globo arregimentou
setores da produção e passou a interferir com firmeza no sentido de tornar alguns filmes
brasileiros produtos competitivos em relação ao produto americano, o que seria uma oportuna
demonstração de força em um campo dominado pelo produto estrangeiro.
Nesse panorama, o nacionalismo se apresenta como um ingrediente potico que se pretende
elemento de afirmação em um cenário da globalização. Tanto o cinema brasileiro como a TV
Globo reativarão fortemente aspectos do discurso nacionalista ao construir suas falas em torno
da “retomada do cinema nacional” (por parte do cinema) e “defesa do conteúdo nacional”
(por parte da TV Globo). Mas é interessante como esse discurso não coincide de todo com a
prática. Nos dois casos, a noção de nacionalismo entrará como um elemento de fundo
essencialmente ideológico, como uma palavra que nos faz acreditar na existência das
coisas”, com função semelhante às “grandes noções da história”, tal como foram definidas
pelo historiador Paul Veyne ao comentar Michel Foucault: “um estilo vago, próprio a
idealizar as práticas sob a aparência de descrevê-las (...), como um drapeado que dissimula os
contornos diferentes das práticas reais”
10
. Nacionalismo e identidade nacional, no discurso da
TV Globo, são “noções eternas” utilizadas para dar unidade ao que não tem.
Os conceitos de “nacionalismo” e “identidade nacional” são, justamente, os que mais se
abalam diante do processo de globalizaçãonão a globalização vista como uma espécie de
luta antiimperialista anacrônica, mas o processo de “dupla face”, como explica Ivana Bentes:
A cultura digital pós-industrial em todo o planeta vem deslocando de forma
radical a idéia de uma “identidade nacional” fossilizada e arraigada, em nome
10
VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Brasília: Editora UNB, 1998. p.
251.
16
de uma diversidade cultural bem mais complexa, perturbadora e nômade que
todo o velho ideário nacionalista. Mais do que isso, a dupla face da
globalização não aponta apenas para um diagnóstico apocalíptico, “a
globalização tendendo a uniformizar idéias e modos de vida”, mas também
para uma outra globalização, das redes de cooperação e produções
heterogêneas e diversas, criando novas linguagens e comportamentos.
11
A recorrência à afirmação de uma identidade única contra a ameaça da dominação estrangeira
costuma omitir, entre outros aspectos, o fato de que, internamente, essa mesma noção tende a
reproduzir o eixo vertical de um poder cultural, ecomico e potico estabelecido. Em
contextos específicos, os conceitos de “nação” e de “identidade nacional” podem de fato
servir como armas de proteção contra um discurso dominante exterior, mas, ao mesmo tempo,
tendem a desempenhar um papel inverso em relação ao interior que protegeriam, como
explicam Michael Hardt e Antonio Negri em Império:
O lado interior da estrutura que resiste a potências estrangeiras é, ele próprio,
um poder dominante que exerce igual opressão interna, reprimindo diferenças e
oposições em nome da identidade, da unidade e da segurança nacional. Neste
caso, pode ser muito difícil distinguir proteção de opressão.
12
Ao tomar a frente da produção audiovisual brasileira e reivindicar para si o papel de produtora
de uma “identidade nacional”, a TV Globo também se faz excludente e reprodutora das
estruturas socioculturais do país. Formula-se uma espécie de batalha jamais explicitada para a
manutenção de seus poderes, em detrimento de outras possibilidades de produção e difusão do
audiovisual, assim como de uma multiplicidade de expressões culturais. Em última instância,
entra em questão a centralidade do próprio conceito de nação como “comunidade imaginada”
(neste caso específico, “imaginada” pela Globo). Mais uma vez, as palavras de Negri e Hardt
podem ser elucidativas, na medida em que observam o papel da noção de nacionalismo na
construção do conceito de comunidade nos países de Terceiro Mundo:
Pode ser verdade, como diz Benedict Anderson, que uma nação deva ser
entendida como uma comunidade imaginada – mas, aqui, devemos reconhecer
que a alegação parece invertida, de modo que a nação passa a ser a única
forma de se imaginar uma comunidade! Toda fantasia de comunidade torna-se
sobrecodificada como nação, e assim nossa concepção de comunidade fica
severamente empobrecida (...). Mais uma vez, o poder unificador da nação
subalterna é uma faca de dois gumes, a um tempo progressista e reacionária.
13
11
BENTES, Ivana. O estado novo da cultura. Folha de S. Paulo, São Paulo, 19 set. 2004. Caderno Mais, p. 6.
12
HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2002, pp. 123-124.
13
Ibidem, p. 124.
17
Para compreender a diferença entre o discurso e a prática efetiva dos seus agentes em relação
ao nacionalismo, bem como suas implicações na evolução histórica da relação entre cinema e
TV no Brasil, parece necessário, em primeiro lugar, conhecer as poucas tentativas de se
estabelecer um elo entre cinema e TV no país. Em seguida, analiso as transformações do
discurso nacionalista ao longo da história do cinema e da televisão no Brasil, para depois me
deter nas condições históricas que permitiram o estabelecimento da hegemonia da TV Globo e
o discurso que foi criado para lhe dar sustentação. O capítulo seguinte mergulha nas causas da
crise que vem abalando a estrutura da Globo, e que, indiretamente, a levaram a criar um
departamento voltado para a produção de cinema. Em seguida, analiso a crise do cinema
brasileiro e o tipo de influência que a televisão já vinha exercendo nas produções pré-Globo
Filmes. Por fim, entro em uma descrição detalhada das origens e dos modos de
funcionamento da Globo Filmes, bem como as características principais de suas produções.
18
1. Aspectos da relação cinema-tv e seu desenvolvimento no Brasil
Toda análise que envolva a produção de imagens na sociedade contemporânea se confronta
com a questão da hierarquia da cadeia audiovisual, um dos aspectos mais marcantes da
atividade. Essa hierarquia é evidente do ponto de vista comercial, em que a exploração de
cada produto obedece a uma ordem rigorosa (as chamadas “janelas”), sendo que o cinema
costuma ser a primeira ponta dessa cadeia e a televisão aberta, a última. Mas há, também, uma
hierarquia de valoração. Apesar de a televisão ter se tornado o meio audiovisual hegemônico
por excelência a partir da segunda metade do século 20, em termos de prestígio o cinema
ainda é considerado uma expressão artisticamente mais nobre, enquanto a TV, em geral, é
vista como um veículo de massa marcado pela redundância e pela pobreza estética.
Arlindo Machado chama atenção para os preconceitos que costumam permear a análise da
televisão, lembrando que o meio é e será aquilo que nós fizermos dele. Nem a TV nem
qualquer outro meio estão predestinados a ser qualquer coisa fixa”. E completa:
Televisão é um termo muito amplo, que se aplica a uma gama de possibilidades
de produção, distribuição e consumo de imagens e sons eletnicos,
compreende desde aquilo que passa nas grandes redes comerciais, estatais ou
intermediárias, sejam elas nacionais ou internacionais, abertas ou pagas, até o
que acontece nas pequenas emissoras locais de baixo alcance, ou o que é
produzido por produtores independentes e por grupos de intervenção em canais
de acesso público.
14
É fato que, como qualquer outro meio de expressão, a televisão tem uma função estética
potencial, mas, como aponta Gilles Deleuze, não foi essa que preponderou em seu
desenvolvimento histórico:
A televisão, apesar das tentativas importantes e em boa parte vinda dos grandes
cineastas, não buscou sua especificidade numa função estética, mas numa
função social; função de controle e de poder, onde reina o plano médio que
recusa toda aventura da percepção, em nome do olho profissional. O cinema,
apesar de todos os poderes que ele serviu (e até instaurou), sempre conservou
uma função estética e noética, mesmo que essa função fosse frágil ou mal
14
MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003. p. 12.
19
apreendida. A comparação, portanto, não deve ser feita entre tipos de imagem,
mas entre a função estética do cinema e a função social da televisão.
15
Esse processo é bastante claro no Brasil, onde a televisão cresceu de maneira exponencial,
ocupando um espaço híbrido entre o privado e o público, e onde a diversidade à qual se refere
Arlindo Machado jamais se estabeleceu por completo.
Desterritorialização
Quando a TV surgiu no cenário audiovisual, nos anos 50, o cinema sofreu um forte processo
de desterritorialização. Sabe-se que um meio de expressão não exclui o outro: a fotografia não
acabou com a pintura, o cinema não acabou com a fotografia, a televisão não acabou com o
cinema – mas todos esses meios precisaram se readaptar a uma nova configuração, a um novo
território de ação.
Para Marshall McLuhan, os meios de expressão não disputam entre si apenas mercados
consumidores, mas competem, também, “biologicamente”, defendendo territórios e nichos.
Quando surgem (em geral amparados pelo poder econômico) buscam aglutinar o outro meio
tornando-o apêndice de sua rede de operações. Esse aspecto se evidencia nas modificações
que o cinema sofreu depois do surgimento da televisão – tanto do ponto de vista de sua
viabilidade financeira como de sua sobrevivência estética. Dois países podem ser
considerados paradigmáticos nesse aspecto: nos Estados Unidos, o cinema inicialmente entrou
em conflito com a TV, mas aos poucos a legislação e as forças econômicas em jogo
redesenharam a cadeia audiovisual de forma que TV e cinema passaram a fazer parte de um
mesmo complexo, sem que perdessem certo grau de autonomia; na França, por sua vez, onde
a TV foi majoritariamente pública até os anos 80, a forte intermediação do Estado levou os
canais a se tornarem os principais meios financiadores do cinema, fato que se intensificou,
principalmente, com o surgimento da TV paga (mais especificamente o Canal Plus).
Tentativas
O Brasilo seguiu nenhum desses caminhos. O surgimento da TV não provocou reação
imediata do setor da produção cinematográfica e, como esse não tinha formado um sistema
15
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. p. 94
20
industrial perene, nem montado uma infra-estrutura de produção sólida, a TV também o
recorreu ao cinema como modelo ou parceiro para fixar suas estruturas.
Em 1948 – dois anos antes, portanto, de inaugurar a TV Tupi – o empresário Assis
Chateaubriand tentou investir na produção cinematográfica, mas apenas dois filmes saíram de
seus Estúdios Cinematográficos Tupi: Chuva de estrelas, de 1948, e Quase no céu, de 1949,
dirigidos por Oduvaldo Viana. Ambos foram movimentos lógicos da expansão de
investimentos do magnata da comunicação no Brasil, concebidos como veículos para explorar
a popularidade dos astros das rádios Difusora e Tupi que pertenciam ao empresário. Quase no
céu, em particular, ganhou ampla divulgação nos jornais e revistas da Diários Associados.
Mas, segundo Arthur Autran, os poucos registros que existem a respeito da iniciativa não
explicam exatamente porque Chateaubriand desistiu do cinema, apesar do sucesso dos dois
filmes. Uma hipótese provável, segundo o autor, estaria nos obstáculos impostos pelos
exibidores, tendo em vista que, em 1949, o empresário passaria a veicular em suas
publicações uma intensa campanha de caráter visivelmente revanchista contra as maiores
companhias de exibição do Brasil (Severiano Ribeiro e o circuito Serrador).
16
Nos anos 50, a implantação da televisão no Brasil e o crescimento mundial do novo meio
parecem “ter passado despercebido a todo mundo”, como apontam Maria Rita Galvão e Jean-
Claude Bernardet no ensaio “Cinema: repercussões em uma caixa de eco ideológica”. A única
exceção foi o produtor, diretor e crítico Fernando de Barros, que defendeu com veemência,
em sua coluna na revista Fundamentos, uma aliança entre cinema e TV.
Fernando de Barros percebe que o público cinematográfico em São Paulo está
diminuindo, fica sabendo que uma nova lei poderá permitir a instalação de 292
estações de TV no Brasil (26/11/1952), vai às lojas e se impressiona com o
aumento de venda de aparelhos receptores (26/12/1952). Trata-se, segundo ele,
de uma “radical transformação, a primeira em toda a história do cinema,
provocada pelo fato de que a TV manda imagens gratuitas para dentro das
casas” (8/6/1954). (...) Fernando de Barros é contra que se faça guerra à TV: “É
o que se fez nos Estados Unidos e não deu certo para o cinema. Os homens de
cinema devem se unir à TV e já, porque, por enquanto, os homens de TV ainda
não estão fortes. Há um dirigente de TV que aceitaria fazer um convênio com
um grande estúdio, para ele seria preferível, pois não teria de empatar dinheiro
16
AUTRAN, Arthur. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. Tese (Doutorado em Multimeios) –
Instituto de Artes da Universidade de Campinas, São Paulo, 2004. p. 26.
21
em máquinas. Mas os homens de cinema não querem saber de nada, parece que
eles têm o rei na barriga” (26/11/1952).
17
Uma das tentativas de associação entre cinema e TV no Brasil mais interessantes se deu no
começo dos anos 60, quando a TV Excelsior se juntou aos produtores Alfredo Palácios e Ary
Fernandes (que tinham grande experiência em cinema e publicidade) para a realização da
primeira série nacional de televisão, O vigilante rodoviário. O projeto previa a realização de
39 episódios, em película, para veiculação exclusiva na TV, e o programa piloto obteve apoio
da agência de publicidade Norton e patrocínio da Nestlé. Mas, apesar do grande sucesso de
público, a continuidade da série foi comprometida pelas dificuldades de se cobrir os custos. O
vigilante rodoviário foi interrompido no 38º episódio e os produtores precisaram vender os
equipamentos para cobrir os prejzos.
18
Em 1960, quando ainda estava na direção da TV Rio, o ex-publicitário e homem de rádio
Walter Clark (que se define em sua autobiografia como “louco por cinema e um rádio-ouvinte
aplicado”
19
) tentou desenvolver uma carreira paralela como produtor de longas-metragens.
Mas o esforço na época limitou-se a um projeto que não chegou a se concretizar. Zum zum
zum contaria a história de seu amigo Eduardo de Oliveira, figura lendária da boemia carioca e
piloto da Pan Air do Brasil, morto em um acidente de avião em Santa Catarina, em 1952.
Clark afirma, porém, que sua paixão pelo cinema o levou a ajudar, via TV Rio, vários
cineastas, e que a experiência frustrada serviu para lançar seu nome como produtor
cinematográfico – um antigo sonho e uma função que ele retomaria mais tarde, depois de ter
permanecido mais de onze anos como um dos principais executivos da TV Globo.
Eu ajudava muito todos os diretores, promovendo seus filmes nos noticiários
da TV Rio e fazendo publicidade em troca de uma percentagem ínfima da
bilheteria. Eram acordos extremamente generosos, na base de cinco por cento
da receita líquida dos filmes, por um volume de publicidade muitas vezes mais
caro.
20
17
GALVÃO, Maria Rita e BERNARDET, Jean Claude. O nacional e o popular na cultura brasileira. Cinema:
repercussões em caixa de eco ideogica. São Paulo: Brasiliense/Embrafilme, 1983. p. 96.
18
Ibidem. p. 215.
19
CLARK, Walter. O campeão de audiência: uma autobiografia. São Paulo: Best Seller, 1991. p. 10.
20
Ibidem. p. 316-317.
22
Globo Repórter
Já na direção da TV Globo, em 1971, enquanto trabalhava firme em uma potica de
contratações e na construção de uma grade de programação que agradasse a todos os
segmentos da audiência, Walter Clark resolveu criar um programa informativo semanal para o
horário das 23h, em que o público, segundo informação do Departamento de Análises e
Pesquisas, era majoritariamente formado por homens e universitários. Assim nasceu o Globo
Shell Especial que, mais tarde, se transformaria no Globo Repórter.
Clark chamou o cineasta Paulo Gil Soares para coordenar os trabalhos. Pela equipe passaram
diretores como Walter Lima Júnior, João Batista de Andrade, Maurice Capovilla, Hermano
Penna, Sylvio Back, Jorge Bodansky e Eduardo Coutinho, todos “homens de cinema”. A
estrutura inicial do programa (que depois se abriu para outros tipos de reportagem) era
formada por pequenos documentários sobre assuntos nacionais, filmados em película, muitos
deles tendo como cenário o Nordeste, alguns commera de Dib Lutfi, um dos mais
importantes diretores de fotografia e câmeras do Cinema Novo. Apesar da ditadura e da
censura oficial, alguns desses documentários são hoje reconhecidos como exemplos
singulares na história do documentário no país, como Wilsinho da Galiléia, de João Batista de
Andrade (1978), proibido pela censura, Theodorico, o imperador do sertão (1978) e Exu,
uma tragédia sertaneja (1979), ambos de Eduardo Coutinho, entre outros.
Graças a circunstâncias específicas, ligadas principalmente ao modo de produção não-
convencional e ao espaço à margem que esse núcleo de produção ocupava dentro da própria
Globo, o trabalho dos diretores era menos controlado que as outras áreas do jornalismo da
emissora, como explica Eduardo Coutinho:
Até 1981, o programa era feito com película reversível, um filme sem negativo,
obrigando que a montagem fosse feita no próprio original. Isso complicava o
visionamento freqüente do material por parte da direção do telejornalismo. E
mais: a equipe não trabalhava na sede da emissora, mas em uma casa próxima,
o que dificultava o controle mais assíduo da produção.
21
21
LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2004. p. 19.
23
Coutinho admite, no entanto, que “a opção de trabalhar na televisão naquele momento
significava afastar-se do universo cinematográfico, porque as pessoas de cinema viam esse
meio de comunicação com desprezo, tanto ética quanto politicamente”. Mas o diretor
reconhece, também, que o trabalho na televisão, onde permaneceu por nove anos, foi uma
escola onde ele aprendeu a fazer documentário e exercitou sua relação com o outro. “Foi uma
experiência extraordinária. Aprendi a conversar com as pessoas e a filmar, aprendendo as
técnicas da televisão, de filmar chegando, de filmar em qualquer circunstância, pensando em
usar depois de uma forma diferente. Além disso, pela primeira vez na vida eu recebia um
salário bom e pago em dia”.
22
Para Coutinho, a experiência dentro da Globo, nos anos 1970, trazia dois tipos de repressão
marcantes: a potica, que se relacionava diretamente aos temas abordados, e a de linguagem,
relacionada ao emergente padrão visual da emissora. “Porque linguagem, não podemos
esquecer, é potica”.
23
Coutinho conta que havia uma diferença entre as reportagens, que
seguiam o padrão global em formação, e os documentários, que eram mais livres. Para se
conseguir realizar esses filmes, era necessário uma negociação diária com a diretoria da
emissora. Muitos programas ruins e documentários estrangeiros eram reprisados para cobrir
os espos:A gente só mudava o nome dos episódios. A libélula e o gafanhoto foram
reprisados dezenas de vezes”.
24
Para Coutinho, a grande questão era mesmo a “ocupação das brechas”. Antes que se tivesse
consolidado com tanta força um padrão estético na TV Globo, havia alguma possibilidade de
experimentação. “Quando, nos anos 80, o modelo do Globo Repórter passa a ser o 60 Minutes
da TV norte-americana, a figura do repórter herói entra em cena e passa a minar o trabalho
dos cineastas”.
Curiosamente, quando se abrandou a censura, os pedidos de veto partindo da própria emissora
começam a ser cada vez mais comuns. Em 1983, foi decretado o fim do “modelo autoral” do
programa para dar lugar a um projeto maior, a interligação entre os três núcleos de jornalismo
da Rede Globo. Jornal Nacional, Globo Repórter e Fantástico passaram a fazer parte de um
só departamento, obedecendo à mesma identidade visual e ao mesmo formato. Coutinho
22
Ibidem, p. 20.
23
BRAGANÇA, Felipe. A TV desconhecida: Globo Repórter/Globo Shell Especial. Revista eletrônica
Contracampo, maio de 2002 (http://www.contracampo.com.br/39/tvdesconhecida.htm
).
24
Ibidem.
24
conclui: “Aquilo não era o céu nem o inferno, vivíamos de brechas: o problema hoje é que
não mais brechas na TV brasileira”.
25
Indústria Cinematográfica Brasileira
Mas o movimento mais importante de Walter Clark no sentido de envolver a televisão na
produção cinematográfica se deu em 1972, quando a TV Globo, já constituída como rede
nacional e detentora de 70% da audiência, resolveu diversificar seus negócios. O primeiro
passo foi em direção à música. Com o sucesso das telenovelas, surgiu uma grande demanda
pelas trilhas sonoras. Num primeiro momento, as trilhas eram produzidas pela gravadora
Philips (mais tarde Polygram, depois comprada pela Universal), dirigida por André Midani. A
gravadora produzia os discos, usando o nome da novela da Globo, que recebia cinco por cento
da receita. “Evidentemente, com o tempo, percebemos que era muito mais negócio para a
Globo ter seu próprio selo. Foi aí que surgiu a idéia da Sigla e da Som Livre, uma editora e
uma gravadora musical”.
26
Walter Clark, José Ulisses Alvarez Arce, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, Joe Wallach,
José Otávio de Castro Neves, Otacílio Pereira e Luís Eduardo Borgerth, todos executivos da
diretoria da Globo, formaram uma empresa chamada Cantagalo e propuseram a Roberto
Marinho uma sociedade de 75% para a Cantagalo e de 25% para a Globo. Segundo Clark, o
contrato acabou sendo fechado em 51% para a Globo e 49% para a Cantagalo, pois Roberto
Marinho recusava-se a ter participação minoritária em qualquer negócio. Para comandar a
nova empresa foi chamado João Araújo, que antes trabalhava na RGE e, na Som Livre, levou
a gravadora a conquistar 30% do mercado fonográfico.
O segundo passo foi em direção ao cinema. Em 1972, a Cantagalo e a Globo se associaram
em uma nova empresa, com a participação de mais dois empresários (Aloísio Ferreira de
Salles e Horácio de Carvalho). Com o nome de Indústria Cinematográfica Brasileira (ICB), a
parceria apresentava um modelo de negócios diferente do modelo da Som Livre. Na ICB,
Roberto Marinho não entrou com dinheiro nem tinha a palavra final. “Ele apenas entrava com
a divulgação dos filmes na Globo e tinha sua participação através disso”, explica Walter
25
Ibidem.
26
CLARK, Walter. Op cit., pp. 265-266.
25
Clark.
27
O produtor Luiz Carlos Barreto foi contratado para tocar o negócio, mas sem
participação na sociedade.
A ICB tinha como objetivo entrar com força na produção e, eventualmente, na distribuição. A
empresa chegou a realizar cinco longas-metragens – A estrela sobe, de Bruno Barreto (1974),
Guerra conjugal, de Joaquim Pedro de Andrade (1975), O flagrante, de Reginaldo Farias
(1975), Isto é Pelé, de Luiz Carlos Barreto (1975), e O crime do Zé Bigorna, de Anselmo
Duarte (1977) – e lançou pelo menos três – O casal, de Daniel Filho (1975), Marília e
Marina, de Luiz Fernando Goulart (1976), e Os Doces Bárbaros, de Jom Tob Azulay (1977).
Em 1974, expandiu sua atuação por intermédio de um acordo com a Gaumont para distribuir
filmes franceses no Brasil.
No entanto, em 1974, no momento em que Walter Clark negociava com Luiz Carlos Barreto a
participação da ICB na produção de Dona Flor e seus dois maridos (que viria a se tornar um
dos maiores sucessos de público da história do cinema brasileiro, com mais de 10 milhões de
espectadores), Roberto Marinho resolveu, nas palavras de Clark, retirar a participação da
Globo: “Um belo dia, num domingo (...) fui chamado para uma reunião às pressas com Luiz
Eugênio Miller, advogado de Roberto. Estranhei a urgência, mas quando cheguei, até me
surpreendi”. Miller trouxe o recado de que Roberto Marinho não queria fechar negócio com
Barreto. Clark completa:
Argumentei que era tolice, e que iríamos perder dinheiro se não entrássemos.
Mas ele foi inflexível. (...) Eu não entendi na hora e não posso afirmar com
certeza, mas acho que o Roberto tomou a decisão para não desagradar seus
amigos Severiano Ribeiro (maior exibidor do Brasil) e Harry Stone
(representante da Motion Pictures Association, associação que representa os
interesses dos grandes estúdios de Hollywood fora dos Estados Unidos), que
dominavam o mercado cinematográfico brasileiro e, evidentemente, não
gostariam de um concorrente do porte da Globo invadindo sua praia. Os dois
eram amigos íntimos de Roberto e mandavam a ele, toda semana, uma cópia
novinha de algum filme que estivesse para estrear. Roberto tinha uma sala de
projeção em casa e as sessões especiais de cinema eram um dos programas que
ele oferecia com o maior prazer a seus convidados. (...) Pode até não ser esse o
motivo da desistência, mas sem dúvida é muito curioso que um homem com a
ambição de Roberto Marinho (...) tenha desistido do cinema”.
28
27
CLARK, Walter. Op cit. p. 266.
28
_____________. ibidem. p. 267.
26
O recuo de Marinho, segundo Walter Clark, “esfriou” o ICB, que continuou fazendo algumas
produções, mas agora “sem a ambição de construir no Brasil uma indústria cinematográfica
tão poderosa quanto a da televisão”.
Dois aspectos precisam ser ressaltados nessas iniciativas. O primeiro é a omissão do Estado
como figura de mediação. O segundo é que, pelo menos as iniciativas descritas por Walter
Clark guardam muitas semelhanças à forma de atuação da Globo Filmes, principalmente no
que diz respeito ao oferecimento de espaço midiático no lugar do financiamento direto – algo
que ele pôs em prática na base da amizade, quando ainda estava na TV Rio, e que seria o
fundamento lógico da constituição da ICB na produção de cinema.
27
2. Trajerias dos discursos nacionalistas no cinema e na TV
O processo de estabelecimento do cinema e da televisão no Brasil será permeado pela questão
nacionalista. Temas ligados à identidade e à integração nacional, à necessidade de subvenção
do Estado para a implantação de bases industriais para o cinema e a TV e, também, à busca de
uma originalidade da visão brasileira atravessam de forma oblíqua discussões poticas,
econômicas e culturais que, ao longo dos anos, buscarão justificativas para a existência e a
expansão do cinema e da televisão no país.
Renato Ortiz relaciona essa recorrência ao nacionalismo e à identidade brasileira ao fato de
sermos um país de Terceiro Mundo com passado colonial – fator determinante para que
autores de tradição diferentes e politicamente antagônicos se encontrem ao formular uma
resposta do que seria uma cultura nacional”.
29
Ainda que recorrente, porém, o nacionalismo
não gerou uma unidade de pensamento. Ao contrário, formou um campo de tensões em que a
luta pela definição do que seria uma identidade “autêntica” se configurou como uma “forma
de delimitar as fronteiras da política que procura se impor como legítima”.
30
Em 1873, Machado de Assis publicou em uma revista nova-iorquina um artigo intitulado
“Instinto de nacionalidade”, em que constatava na literatura brasileira um desejo de vestir-se
com as cores do país”. O autor se propunha a examinar as características dessa literatura:
Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas
acharão ali farto material de inspiração e irão dando fisionomia própria ao
pensamento nacional. Esta outra independência não tem sete de setembro nem
campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais
duradoura; não será obra de uma geração nem de duas, muitas trabalharão para
ela, até perfazê-la de todo. (...) Reconhecido o instinto de nacionalidade que se
manifesta nas obras desde os últimos tempos, conviria examinar se possuímos
todas as condições e motivos históricos de uma nacionalidade literária; esta
investigação (ponto de divergência entre literatos), além de superior às minhas
forças, daria em resultado levar-me longe dos limites desse escrito. Meu
29
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2003. p. 7.
30
Ibidem. p. 9
28
principal objeto é atestar o fato atual. Ora – o fato é o instinto de que falei, o
geral desejo de criar uma literatura mais independente.
31
Machado associa a busca pela nacionalidade, portanto, à busca por uma visão de mundo
independente, original e diferenciada, ao mesmo tempo em que recusa qualquer tipo de
limitação doutrinária de uma concepção de país.
Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve
principalmente alimentar-se de assuntos que lhe oferece a sua região, mas não
estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir
do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo que o torne homem de seu
tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no
espaço. (...) Um poeta não é nacional porque insere nos seus versos muitos
nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de
vocabulário, e nada mais.
32
A partir do século 19, a questão nacional ligada à originalidade brasileira intensifica-se como
questão da literatura e da produção cultural do país – preocupação essa que, ao longo do
século 20, se adaptará à entrada do país na era da comunicação de massas.
No caso do cinema, a questão nacionalista ganha um fator complicador. Quando o
cinematographo” se instalou no país, pouco depois das primeiras exibições públicas da
imagem em movimento, em 1895, o nacionalismo ainda não se apresentava como problema.
Nessa fase inicial, o novo meio era visto como uma invenção tecnogica do mundo moderno
com ampla vocação universal, e o “cinematographo”, um dispositivo científico capaz de
captar e reproduzir imagens do mundo em movimento. Mesmo em um segundo momento,
quando entra em cena a produção de narrativas, algumas características atávicas do cinema
mudo, como sua necessidade de contar histórias por meio de imagens (em que a palavra e a
língua seriam elementos secundários), reforçavam essa vocação universal.
Como observam Maria Rita Galvão e Jean-Claude Bernardet, até cerca de 1910 a palavra
“nacional” aplicada ao cinema indicava apenas a origem do filme e não era associada a
31
MACHADO DE ASSIS, Instinto de nacionalidade. In: COUTINHO, Afrânio. Caminhos do pensamento
crítico, volume 1. Rio de Janeiro: Palllas Editora e Distribuidora, 1980, p. 355-356.
32
Ibidem. p. 357.
29
questões de mérito ou políticas. Sua problematização só começaria a aparecer a partir da
segunda década do século 20.
33
Essa transformação coincide com o início das estratégias mais agressivas de penetração dos
filmes norte-americanos nos mercados externos. Foram elas que estimularam o surgimento de
discursos nacionalistas em defesa dos cinemas locais, a partir da década de 1910. O primeiro
texto de que se tem notícia no Brasil a falar da necessidade de um cinema brasileiro “de
inserção comercial” e “calcado em questões nacionais” data de 1915 e foi escrito pelo
produtor e cinegrafista português Antonio Leal, justamente quando as grandes companhias
distribuidoras americanas começam a se estabelecer definitivamente no país e a produção de
filmes locais sofreu sua primeira redução mais drástica. Mas a primeira campanha sistemática
em defesa do cinema brasileiro surgiria quase dez anos depois, em 1924, capitaneada pelo
cineasta Adhemar Gonzaga e pelo crítico Pedro Lima nas revistas Para Todos, Selecta e
Cinearte.
Em 1928, Pedro Lima escreveria, por exemplo, que o cinema já não poderia ser visto como
pura “distração”, mas como “culto à pátria” e “obra do nacionalismo”:
Os filmes exigem, mostram, provam e fazem sentir as afinidades e vinculam a
mesma consciência de unidade e fortificam o mesmo ideal, reunindo todos os
sentimentos num sentimento de nacionalismo, unificando todos os hábitos
que fazem um só povo, uma só nação, um só país, embora ele seja grande
como o Brasil, e seus habitantes de diferentes nacionalidades (...).
34
Vê-se, portanto, uma insistência na necessidade de se proteger o cinema produzido aqui,
conjugada à iia de que o cinema, por ser um veículo de massa, poderá ser o instrumento
ideal para a criação de uma identidade nacional. No bojo do desenvolvimento industrial de
cunho nacionalista de Getúlio Vargas, o cinema tentará se integrar à visão desenvolvimentista
dominante reproduzindo o modelo dos estúdios norte-americanos (o “studio system”).
A idéia da urgência da industrialização do país foi um poderoso agente
ideológico na construção dos discursos nacionalistas dos mais variados setores
do arco político. Discursos cujo dado comum era a promessa de que o
33
GALVÃO, Maria Rita e BERNARDET, Jean- Claude. O nacional e o popular na cultura brasileira. Cinema:
repercussões em caixa de eco ideológica. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 17.
34
LIMA, Pedro. Cinema Brasileiro. Cinearte. V. III, n. 136, Rio de Janeiro, 3 de outubro de 1928. Apud:
AUTRAN, Arthur. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. Tese (doutorado em multimeios) –
Instituto de Artes da Universidade de Campinas, São Paulo, 2004, p. 46.
30
desenvolvimento econômico industrial representaria a superação do atraso do
país inclusive no que concerne à diminuão das desigualdades sociais. (...) O
setor cinematográfico, portanto, esteve longe de ser o único a empolgar-se com
o industrialismo, estando inserido num quadro ideológico bem mais amplo que
pautou a sociedade brasileira entre as décadas de 1930 e 1970.
35
A vontade de estabelecer modelos de produção auto-sustentáveis para a fabricação de filmes
nacionais envolvidos em um discurso de “qualidade artística”, buscando alcançar o grande
público, e que pudessem competir com o cinema estrangeiro, será o princípio regente das
experiências da Cinédia, Vera Cruz e Maristela. Mas todas essas tentativas se revelarão
precárias e problemáticas na medida em que os empreendimentos careciam de uma real
perspectiva comercial, ao mesmo tempo em que encontravam um mercado já ocupado pela
produção norte-americana e de dimensões ainda insuficientes para lhe garantir a
autosustentabilidade.
No início dos anos 1950, os estúdios cinematográficos brasileiros entram em crise, o que gera
os primeiros questionamentos mais profundos em torno da adoção do modelo industrial.
Nesse período, o meio cinematográfico, “atônito com a inviabilidade da Vera Cruz, Maristela
e Multifilmes”, começou a movimentar-se. “Emergem as reivindicações que procuram
estabelecer uma confluência entre os rumos do país em termos ecomico-sociais e as
aspirações do setor cinematográfico”.
36
O início dessa mobilização potica gera, em 1952 e 1953, dois importantes congressos de
cinema. Pouco depois, sob a influência desenvolvimentista do governo de Juscelino
Kubitschek, serão criadas as Comissões de Cinema. Diante dos fracassos sucessivos das livres
iniciativas, passou-se a buscar de forma mais sistemática a participação do Estado no campo
da produção cinematográfica – o que se tornaria uma postura dominante do setor da produção.
A mobilização potica rendeu frutos, ainda que relativos: em 1958, o governo criou o Grupo
de Estudos da Indústria Cinematográfica, subordinado do Ministério da Educação, mas sem o
mesmo estatuto dos Grupos Executivos montados pelo modelo desenvolvimentista de JK,
concentrados na formulação de estratégias para a instria de base e de bens duráveis. Em
1961, foi a vez da criação do Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica (Geicine),
35
AUTRAN, Arthur. Op cit.. p. 234.
36
RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema, estado e lutas culturais: anos 50, 60, 70. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1983. p. 15.
31
quando surgiu e foi aprovada a Lei de Remessa de Lucros, permitindo que até 40% do valor
do imposto sobre remessas para o exterior de rendimentos de filmes estrangeiros pelas
chamadas majors (grades distribuidoras de filmes americanos) poderiam ser aplicados na
produção de filmes nacionais
37
(uma lei que, aliás, é bastante semelhante ao artigo 3º da Lei
do Audiovisual, que nos anos 1990 se transformaria em um dos pilares da “retomada”).
Cosmopolitas x nacionalistas
A formulação das poticas cinematográficas refletia uma divisão interna dos profissionais do
setor: de um lado, os chamadoscosmopolitas” (tendo a frente o cineasta e produtor Flavio
Tambellini e o crítico Moniz Vianna), procuravam viabilizar a produção de filmes brasileiros
por intermédio de uma aliança com os estrangeiros, opondo-se à criação de medidas para
inibir a presença dos filmes americanos no Brasil; já os “nacionalistas” pretendiam uma ação
mais contundente contra o monopólio do cinema americano e uma interveão mais ampla do
governo no setor cinematográfico.
Nenhuma das duas correntes, porém, conseguiu formular propostas que mobilizassem todos
os pilares da indústria (produção, distribuição e exibição) em torno de uma aliança pela
afirmão do cinema brasileiro. Ao mesmo tempo, os esforços para atrair o Estado se
mostraram precários na medida em que o cinema nunca se tornou de fato prioritário entre as
medidas de estímulo ao desenvolvimento econômico. O foco no setor da produção e a
preocupação obsessiva em se viabilizar os filmes, sem pensar na sua distribuição, são fatores
indicativos de como o cinema não construiu uma visão industrial consistente, que tivesse em
mente todos as fases de seu desenvolvimento industrial. Essa inconsistência de projeto se
refletia no momento de convocação do Estado. Tanto na época de Getúlio como na época de
Juscelino, o cinema jamais extrapolou os âmbitos da Educação (no caso de Getúlio) e da
Cultura (no caso de JK) para chegar ao campo econômico e industrial.
Outro fator que não pode ser ignorado é o conjunto de forças poticas e econômicas
mobilizadas pelos Estados Unidos no sentido de manter sua produção hegemônica fora de seu
próprio terririo, o que implica reações intransigentes a medidas que possam inibir a
presença de seus filmes no exterior. Qualquer passo nesse sentido é motivo de ameaças de
37
Ibidem. p. 30.
32
sanções ecomicas que, por sua vez, preocupam os governos desenvolvimentistas, tornando
o cinema uma espécie de “terreno minado” para as relações diplomáticas dos governos
brasileiros. Assim, sempre foi mais confortável para o Estado patrocinar a produção e aplacar
as reivindicações do setor, adiando, ad infinitum, a questão do escoamento.
Nos anos 1950, as críticas ao modelo industrial do cinema ganham tom mais radicalmente
nacionalista por intermédio de um grupo de cineastas ligados ao PCB – entre eles Nelson
Pereira dos Santos, Alex Viany, Carlos Ortiz, Rodolfo Nanni –, que se opunham aos modelos
de produção de estúdios e defendiam a realização de filmes de cunho ideológico nacional-
popular. Nelson Pereira falava, por exemplo, de um processo sistemático de
despersonalização do povo brasileiro” em função “do donio dos monopólios estrangeiros
sobre o nosso mercado”, defendendo a adoção de medidas para impedir esse monopólio.
38
Mas a novidade dessa vertente crítica está no fato de que ela se estenderia ao interior dos
próprios filmes, ou seja, à sua temática e linguagem. Em 1951, Nelson Pereira publica uma
crítica à produção da Vera Cruz, Ângela, enxergando no filme o sentido “antinacional” e
cosmopolita” que estaria tomando conta da indústria de cinema no Brasil: “Basta um rápido
balanço das produções da Vera Cruz e Maristela para se chegar a esta conclusão. Os temas
que nela encontramos são farrapos dos temas surradíssimos do cinema internacional e,
especialmente, de Hollywood. Tem havido da parte das duas maiores produtoras do país um
desprezo absoluto pela realidade em que vive o povo de nossa terra”.
As idéias defendidas pelos “cosmopolitas” eram associadas, assim, à subordinação aos
modelos impostos pelo processo de dominação cultural. Se a perspectiva de criar uma
indústria auto-sustentável revelou-se inalcançável, partia-se para a afirmação da necessidade
de um cinema nacional independente, que negasse modelos anteriores. Essa proposta, porém,
não descartava uma perspectiva industrial. Viany e Nelson Pereira defendiam a produção
independente nacional como uma etapa para se chegar à “verdadeira indústria” do cinema
brasileiro, acreditando que, se os filmes trouxessem uma representação fiel do povo nas telas
e abordassem os assuntos que lhe interessassem, esse se identificaria e passaria a prestigiar em
peso o cinema nacional, o que viabilizaria sua sustentação. Defendia-se a equivalência entre
povo” e “público” e atribuía-se ao cinema americano e aos seus processos de dominação
38
Apud: ibidem, p. 41
33
(incluindo, aí, a vontade de imitá-lo) o fator preponderante para o fracasso do cinema
brasileiro.
Em cena, a televisão
Esse período coincide, exatamente, com a entrada da televisão no Brasil. Ainda em seu
período embrionário, porém, alguns detalhes interessantes se revelam indicadores em relação
ao futuro da TV e do cinema no país. Como, por exemplo, o próprio interesse do empresário
Assis Chateaubriand em investir na produção cinematográfica, que se limitou a duas
tentativas. Chateaubriand teria desistido do cinema justamente em função das dificuldades em
afirmar seus produtos na ponta da exibição.
A postura de Chateaubriand, para Arthur Autran, deve ser comparada à de Franco Zampari, o
empresário que tentou estabelecer no Brasil a Vera Cruz. Zampari instalou seu estúdio de
cinema no país entusiasmado com suas perspectivas culturais e artísticas, mas negligenciando
por completo seus aspectos industriais e comerciais. Chateaubriand, por sua vez, ao voltar
suas energias para a abertura da TV Tupi, aplicaria ao seu novo empreendimento a
mentalidade empresarial dominante nos jornais e rádios. Ele encomendou a agências
americanas pesquisas sobre o mercado potencial para a TV no Brasil
39
, enquanto Zampari
não se preocupou em conferir quais seriam as perspectivas para a afirmação econômica de sua
empreitada. Se Chateaubriand mobilizou anunciantes, buscou apoio financeiro de bancos
privados e de bancos estatais e garantiu o apoio político de autoridades estaduais e federais,
Zampari “acreditava que as qualidades técnicas e estéticas indiscutíveis dos filmes seriam
suficientes para levar a Vera Cruz à lucratividade”.
40
É claro que, para além da visão empresarial, a grande força potica da televisão como meio
de comunicação exercerá um papel determinante em sua afirmação no cenário brasileiro,
principalmente a partir do golpe de 64, quando o Estado, pela primeira vez, assumirá para si
um projeto cultural de âmbito nacional, no qual a televisão será a grande beneficiada.
39
Na verdade, ele contrariou um diagnóstico negativo, em função de um mercado publicitário ainda incipiente.
40
RAMOS, José Mário Ortiz. Op. cit. pp. 24 e 25.
34
Não à indústria
Ainda no começo dos anos 1960, porém, o cinema se afastou mais radicalmente das
perspectivas industrializantes ao aprofundar as críticas iniciadas por Alex Viany e Nelson
Pereira dos Santos. O projeto nacionalista dos idealizadores do Cinema Novo, Glauber Rocha
à frente, foi marcado por uma postura radicalmente antiindustrial e anti-hollywoodiana.
Glauber, em especial, seria enfático ao afirmar a impossibilidade de coexistência do cinema-
idéia e do cinema-comércio, defendendo uma contraposição radical entre autoralidade e
indústria. Se cabia a Hollywood fazer o cinema industrial, a única saída para o cinema
brasileiro seria o cinema de autor, assumindo sua precariedade e radicalizando na sua
independência de visão.
Na introdução de Revisão crítica do cinema brasileiro, publicado pela primeira vez em 1963,
Glauber Rocha propunha que o cinema brasileiro se filiasse definitivamente ao movimento
mundial que, a seu ver, estaria minando as grandes indústrias cinematográficas do mundo:
A nouvelle vague francesa, os autores italianos, os independentes americanos,
ingleses e mesmo a nova geração rebelde sovtica jogam abaixo, com luta
persistente, os mitos enraizados por Hollywood. A indústria de autor, síntese
desta nova dialética da história do cinema, é um grande capítulo do futuro. No
Brasil, vivendo a pré-história, essa dialética se precipita. Não há outro
problema se não este: na medida em que o cinema de autor é um cinema
político e na medida em que o cinema comercial reflete as idéias evasivas do
capitalismo reformista, os problemas da nossa indústria, em nosso atual
período histórico, é igual a todos os outros que vivem as demais classes
produtoras e trabalhadoras do Brasil.
41
Glauber prossegue, considerando os trabalhos do Grupo Executivo da Indústria
Cinematográfica (Geicine) como “ilusórios”, apontando para o perigo das “legislações
improvisadas em benefícios das produtoras nacionais” e concluindo que “a missão única dos
autores brasileiros é (...) lutar contra a indústria antes que ela se consolide em bases
profundas”.
42
O discurso de Glauber volta-se contra a instalação de uma indústria no cinema,
41
ROCHA, Glauber. Revisão ctica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 40.
42
Ibidem, p. 40.
35
mas, por sua vez, pelo menos nesse momento, ignora outra indústria que se instala com força
– a da televisão.
43
Mas esse é apenas um dos aspectos do livro de Glauber. Para além de uma desmistificação do
discurso industrialista e de uma oposição radical à perseguição obsessiva de uma indústria que
parecia eternamente inalcançável, o cineasta propõe um novo caminho estético no mapa da
história do cinema brasileiro. Ao valorizar o cinema de autor e recuperar a obra de Humberto
Mauro, por exemplo, a proposta de Glauber mostra afinidades com a visão de nacionalismo
de Machado de Assis, para quem seria mais importante um “sentimento íntimo” do escritor
que “o torne homem de seu tempo e do seu país” do que qualquer outro aspecto doutrinário de
nacionalidade.
Dentro do movimento cinemanovista, o pensamento nacionalista também seria multifacetado
e divergente. Duas das mais fortes influências desse pensamento foram as correntes
desenvolvidas no interior do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e a problemática
nacionalista do conturbado processo de descolonização dos países africanos – principalmente
a luta argelina. Nesse novo contexto, o conceito de cultura e o papel do artista e do intelectual
sofriam uma transformação essencial: “cultura” passou a ser um conceito longe do
tradicionalismo e do folclore para se tornar um elemento de transformação social, e seus
produtores, por sua vez, passariam a ser agentes ativos, engajados politicamente. Para os
militantes do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE),
responsável pela produção de um dos marcos do movimento (Cinco vezes favela, com
episódios dirigidos por Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Miguel
Borges e Marcos Farias), por exemplo, a idéia preponderante era a visão do intelectual como
porta voz das questões do “povo” – visão que seria profundamente questionada mais adiante
(principalmente em Terra em Transe, de Glauber, em 1967) e que seria definitivamente
desmistificada por Rogério Sganzerla e Julio Bressane, sobretudo nos filmes da produtora Bel
Air, em 1970.
43
Aqui é fundamental lembrar que no fim dos anos 1970 Glauber Rocha estaria à frente de um dos programas
mais interessantes da televisão brasileira, o Abertura, de Fernando Barbosa Lima, que foi ao ar nos estertores da
TV Tupi, entre fevereiro de 1979 e julho de 1980. Glauber comandou um quadro de entrevistas durante oito
meses, entre fevereiro e outubro, com quatro inserções semanais. O formato era aparentemente simples:
entrevistas feitas na rua ou na casa de personalidades, diante de uma câmera nao, com uma lógica o muito
diferente de qualquer outro programa de TV. A diferença estava na presença do próprio Glauber como
entrevistador, aproximando sua atuação de um happening, uma antientrevista que driblaria todos os clichês da
aproximação televisiva.
36
O fundamental, porém, é que jáo se via mais o subdesenvolvimento do Brasil (e as
deficiências do cinema brasileiro) como uma etapa a ser superada, mas como uma condição
que precisava ser assumida e desestruturada em suas raízes para que houvesse alguma
mudança. Paulo Emílio Salles Gomes iria além ao não admitir a postura ressentida de
cineastas e produtores em relação a pressões estrangeiras contra o cinema brasileiro,
afirmando que, no fundo, o que se estava fazendo era “projetar na força dos estrangeiros a
nossa própria fraqueza”.
44
Nessa primeira fase, pré-golpe de 1964, o Cinema Novo encontrou respaldo em setores
empresariais que simpatizavam com a visão nacionalista dominante. Alguns filmes do
movimento, por exemplo, foram financiados por empresários que enxergavam no cinema um
investimento em uma possível futura carreira potica, caso o governo Jango prosperasse.
45
Mas tudo ficaria muito mais difícil após o golpe e, principalmente, após a decretação do Ato
Institucional número 5, em 1968. Aos poucos, o projeto cinemanovista seria minado pela
repressão e pela censura, ao mesmo tempo em que seu discurso nacionalista seria absorvido
pelo próprio regime, servindo como “base” tanto para a criação da Embrafilme, em 1969,
como para os altos investimentos na formão de uma rede nacional de televisão.
Curiosamente, um dos últimos momentos de reconhecimento externo do Cinema Novo se deu
exatamente em 1969, um ano depois do AI-5, e, também, no mesmo ano em que a televisão
brasileira iniciava seu processo definitivo de afirmação, com a modernização de seu produto
mais popular, a telenovela. Como bem observa Eduardo Escorel em seu livro Adivinhadores
de água, no ano de 1969 Glauber Rocha recebeu o prêmio de melhor diretor no Festival de
Cannes por O dragão da maldade contra o santo guerreiro, enquanto a novela Beto
Rockfeller, que foi ao ar pela TV Tupi, era consagrada como marco da televisão brasileira.
No mês de maio, a capa da revista Veja estampou a fotografia de Glauber recebendo seu
prêmio; duas semanas antes, a capa fora do ator Luiz Gustavo – o Beto Rockfeller”.
46
Criada
por Cassiano Gabus Mendes e escrita por Bráulio Pedroso, Beto Rockfeller, segundo Daniel
Filho, transformou o padrão da teledramaturgia brasileira ao definir como protagonista um
44
GOMES, Paulo Emílio Salles. “A indústria cinematográfica brasileira e a conquista do mercado interno”,
Revista de Informação Legislativa, Brasília, março de 1966, ano III, n. 9. Apud: RAMOS, José Mário Ortiz.
Cinema, estado e lutas culturais. São Paulo, Paz e Terra, 1983. p. 34.
45
RAMOS, José Mário Ortiz. Op. cit. p. 161.
46
ESCOREL, Eduardo. Adivinhadores de água: pensando no cinema brasileiro. São Paulo, Cosac Naify, 2005.
p. 27.
37
personagem do cotidiano. “O público começaria a ver na televisão coisas mais próximas de
sua realidade”.
47
O Cinema Novo não sobreviveria à ditadura militar, mas o cinema não foi um projeto
abandonado. Com a criação da Embrafilme, em 1969, que em parte é também o resultado de
uma longa luta política do setor cinematográfico, o Estado toma para si a total
responsabilidade pela produção e, mais adiante, pela distribuição dos filmes brasileiros (o que
levou, inclusive, à fancia de algumas distribuidoras independentes). Nesse processo, o
discurso nacionalista é absorvido pela ditadura e por setores da burguesia que, de alguma
forma, se beneficiaram com seu projeto de poder (a TV Globo incluída aí). Um processo de
transformação donacional como problema” no “nacional como mercadoria”
48
: a questão
passou a ser a necessidade de se “vender” determinada idéia de país – o que implica na
construção de uma nova identidade, ligada ao consumo e à propagação de certos modos de
vida.
Embrafilme e TV Globo
Portanto, o crescimento do cinema brasileiro no período da Embrafilme (que representou um
dos peodos comercialmente mais bem sucedidos de sua história) e o crescimento da TV
Globo como rede nacional se situam no bojo do mesmo projeto nacionalista do Estado
autoritários-golpe de 64. Nesse período, a racionalização e o planejamento das políticas
governamentais se estenderam, pela primeira vez no caso brasileiro, para a área da cultura, e,
assim, no mesmo período em que a economia criava um mercado de bens materiais, de forma
correlata desenvolveu-se um mercado de bens simbólicos. No entanto, nem a Embrafilme
nem a TV Globo tornaram-se meros elementos unívocos de difusão de ideais da ditadura, em
um processo complexo que incluiu a absorção de contradições culturais no seio dessa
estrutura centralizada de produção e difusão.
Mas é importante notar como esses crescimentos se dão de forma absolutamente inarticulada.
No projeto cultural da ditadura militar persiste uma clara divisão entre a “cultura de massa” e
a cultura popular e “artística” – sendo que a televisão se insere no primeiro grupo, e o cinema,
47
FILHO, Daniel. O circo eletrônico: Fazendo TV no Brasil Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 35.
48
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro dos anos 90. Entrevista à revista Praga – Estudos Marxistas, número 9.
o Paulo: Editora Huitec, 2000. p. 107.
38
no segundo. E o tratamento dado aos dois grupos é completamente diferenciado. O projeto do
governo de estímulo à cultura de massa significou um alto investimento na montagem de uma
infra-estrutura de telecomunicações, mas a tarefa de administrar os meios de comunicação foi
repassada às empresas privadas. Já o cinema, sob as asas da Embrafilme, encontrava-se no
mesmo grupo do teatro (com o Serviço Nacional de Teatro), do livro ditico (com o Instituto
Nacional do Livro) e das artes e do folclore (Funarte).
Esse fator contribuiu para que o cinema se expandisse sempre sob forte tutela estatal, sem
alcançar autonomia ou legitimidade que lhe garantissem sobrevida fora dessa tutela. A
televisão, por sua vez, cresceu como um empreendimento empresarial, ainda que dentro de
um estranho espaço híbrido entre o público e o privado. À televisão foi dado o caráter de livre
iniciativa, sem que se deixasse escapar seu caráter público, pelo menos do ponto de vista
potico-ideológico. Para além das intervenções diretas caracterizadas pela censura, o Estado
estimulou o crescimento da televisão sob a condição de que essa apresentasse um projeto de
“identidade nacional” adequado à modernização capitalista empreendida no plano econômico,
e que pudesse manter para si (o Estado) o controle sobre o processo de concessão de canais,
beneficiando congressistas e uma rede de empresários ligados ao poder. Garantia-se, assim,
um crescimento autônomo do ponto de vista ecomico, mas ainda profundamente vinculado
às estruturas políticas brasileiras.
Dessa forma, o desenvolvimento e a regulamentação do cinema e da TV no Brasil correram
paralelos. Apesar de a Embrafilme ter montado sua estrutura assumindo a interferência do
Estado sobre o cinema, inclusive do ponto de vista econômico (já que a distribuição de filmes
brasileiros foi praticamente monopolizada e as fontes de recursos provinham do próprio setor
cinematográfico, por meio, principalmente da taxação sobre o preço dos ingressos), não houve
qualquer trabalho no sentido de vincular o cinema à TV – ao contrário do que aconteceu em
tantos outros países como França ou mesmo Estados Unidos, onde cada inovação tecnológica
na área audiovisual foi acompanhada de uma reformulação da legislação.
39
3. Formação da hegemonia da TV Globo e seus discursos de legitimação
Uma das questões que se impõem a qualquer trabalho que se proponha a refletir sobre o papel
da TV Globo no Brasil refere-se às condições históricas que possibilitaram seu crescimento e
que, evidentemente, não se limitam à competência de seus administradores ou a uma
capacidade especial de compreender o país e o “brasileiro médio”. Mas o crescimento
exponencial da TV Globo a partir o fim dos anos 1960 foi acompanhado da elaboração
gradual de um discurso para justificar seu papel dominante – discurso esse amparado em dois
pilares: a competência empresarial (isto é, a capacidade de se firmar em um mercado de livre
concorrência) e o nacionalismo (a função social da emissora na construção e na solidificação
da identidade nacional, contra a penetração da cultura estrangeira). A análise das
características desse discurso e sua desconstruçãoo importantes porque, anos mais tarde,
com algumas adaptações, as mesmas argumentações servirão como fundamento do texto de
legitimação da Globo Filmes.
Papel do Estado e configurações políticas
A raiz da relação entre os discursos nacionalistas e os meios de comunicação de massa vem
dos anos 1930. No processo de modernização capitalista nos territórios latino-americanos,
jornais e rádios desempenharam um papel fundamental na integração e formação de mercados
nacionais, estabelecidosem função de seus ajustes às necessidades e exigências do mercado
internacional”.
49
Esse processo se faz refletir na estruturação dos modelos de regulação dos
meios de comunicação no Brasil, em que a defesa do nacionalismo confunde-se, o tempo
todo, com a defesa de interesses específicos.
Com o objetivo de permitir a fácil identificação dos proprietários de jornais, rádios e
televisões (um sinal, portanto, de que havia pelo menos a pressuposição da possibilidade de
um controle de conteúdo), e sob o argumento de proteger uma área considerada estratégica
para o país, a legislação brasileira, durante mais de 50 anos, não permitiu ou limitou a
propriedade das empresas jornalísticas e de radiodifusão por parte de pessoas jurídicas,
49
MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2003. p. 225.
40
sociedades anônimas e não-brasileiros. Em graus diferentes, essas restrições estiveram
presentes nas constituições de 1946, 67, 69 e 88
50
, e a principal conseqüência disso foi o
controle histórico do setor por um pequeno grupo de pessoas físicas, notadamente empresas
familiares. Situação que persistiu: em 1995, estimava-se que 90% das empresas de dia
brasileiras eram controladas por apenas quinze grupos familiares.
51
O processo de industrialização que mudaria radicalmente o Brasil a partir dos anos 30 ganhou
novo impulso nos anos 50, durante o governo Juscelino Kubitschek, mas um dos “gargalos”
da administração JK esteve justamente na construção de uma infra-estrutura e na regulação
desse setor. Processo retomado no governo João Goulart, com a aprovação, em 1962, do
digo Brasileiro de Telecomunicações, de forte cunho nacionalista.
Mas esse processo só será acelerado após a instauração do regime militar, em 1964. Depois do
golpe, o Estado se encarregou dos investimentos mais pesados na construção da infra-
estrutura, estimulando dois lados da indústria da TV. Por intermédio do Sistema Nacional de
Telecomunicações, levou o sinal de televisão aos recantos mais remotos do país, com a
instalação de canais de microondas e estações repetidoras. E, por meio do estímulo ao crédito,
contribuiria para a própria compra de aparelhos de TV, como explica Muniz Sodré:
Não foi por acaso que em 1968 se deu o grande boom das vendas de aparelhos
receptores de TV no país. Graças à instituição do crédito direto ao consumidor,
as vendas de aparelhos tiveram naquele ano um aumento de 48% em relação a
1967, num total de 700 mil unidades
52
.
Trata-se, portanto, de um volume de recursos indiretos de valor incalcuvel e que jamais
beneficiou, por exemplo, os empresários do setor de exibição cinematográfica. Dizer,
portanto, que a TV Globo jamais dependeu do Estado e que foi exclusivamente sua
competência que determinou sua liderança é algo altamente questionável.
Por outro lado, o modelo do processo de expansão das telecomunicações estabelecido pelo
governo militar se sustenta na exploração privada daquilo que é considerado uma concessão
pública – sendo que a escolha da empresa que terá direito a administrar essa concessão é
50
CAPARELLI, Sérgio e LIMA, Venâncio A. de. Comunicação e televisão: desafios da pós-globalização. São
Paulo: Hacker, 2004. pp 27-28.
51
Ibidem. p. 28.
52
SODRÉ, Muniz. O monopólio da fala. Função e linguagem da televisão no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1984.
p.91.
41
determinada pelo poder executivo, mais precisamente pelo próprio presidente da República, o
que transformou as concessões de meios de comunicação em uma valorizada moeda de troca
potica. Ao mesmo tempo, o sistema de afiliação possibilitou contornar a limitação legal
referente ao número de concessões a uma mesma pessoa no território nacional, uma vez que o
beneficiário de uma concessão pode montar sua TV regional como repetidora de outra
emissora. Esse detalhe, fundamental, permitirá, de um lado, a criação de um espaço público
de “integrão nacional” e, de outro, “a construção de um oligopólio altamente concentrado,
presente em todo o país, encabeçado pela Rede Globo”.
53
Não é por acaso, portanto, que os
concessionários das empresas de televisão costumam pertencer à família ou ao grupo político
local hegemônico, que em geral também estão devidamente representados no Congresso
Nacional.
Capital estrangeiro
A ideologia nacionalista que cerca o desenvolvimento dos meios de comunicação durante o
regime militar entrou em contradição com outros setores da economia brasileira, que na época
vivenciavam, justamente, o movimento contrário, em função da grande abertura ao capital
estrangeiro promovida pelo governo. Mas há também uma contradição interna, e que faz parte
da própria constituição da TV Globo como empresa: sua associação com o grupo norte-
americano Time-Life.
Roberto Marinho ganhou a concessão para montar o canal 4 do Rio de Janeiro em 1957
(portanto, ainda no governo JK), mas só inaugurou a TV Globo oito anos depois, em 1965 –
ou seja, um ano depois do golpe militar. Nesse período, o artigo 160 da Constituição
determinava que o direito à propriedade, participação acionária ou mesmo a responsabilidade
e orientação intelectual e administrativa das empresas de comunicação só seriam permitidos a
brasileiros natos. Mas esse impedimento legal não afastou o assédio de grupos estrangeiros
aos grupos de dia nacionais (sabe-se que, além de Roberto Marinho, Júlio Mesquita, do
Grupo Estado de S. Paulo, e Roberto Civita, do Grupo Abril, receberam propostas). Esse fato,
somado à demora para a TV Globo montar sua estrutura e começar suas transmissões, leva a
se especular sobre duas possibilidades: ou se estaria confiando numa mudança na legislação
53
BOLAÑO, Carlos. O mercado de televisão durante o regime militar. IN: SIMIS, Anita (org.). Cinema e
televisão durante a ditadura militar: depoimentos e reflexões. Araraquara: Laboratório Editorial FCL/Unesp;
São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2005. p. 51.
42
em função da iminência do golpe, ou se estaria acreditando na possibilidade de se estabelecer
contratos “silenciosos” que permitissem a sociedade velada com o capital estrangeiro.
Segundo Roberto Marinho, as propostas das empresas norte-americanas vieram em meados de
1961, quando a emissora já tinha pago quase a totalidade de seu equipamento eletrônico e
começava a construir a base de seu primeiro prédio, na rua Von Martius, Zona Sul do Rio de
Janeiro. Nesse momento, a National Broadcasting Corporation (NBC) e o grupo Time-Life
procuraram o empresário, com interesse em participar do empreendimento. “Embora os dois
grupos tivessem chegado quase simultaneamente, nossas preferências se voltaram para a
organização Time-Life, não só porque se tratava de um grande organismo jornalístico, mas
também porque se lançara alguns anos, com grande êxito, na televisão”.
54
No dia 16 de julho de 1962, a TV Globo recebeu da Time-Life Incorporated a quantia de US$
1,5 milhão. No dia 23 (sete dias depois, portanto), dois contratos foram assinados em Nova
York. O primeiro firmava uma conta de participação (joint-venture); o segundo, um acordo de
assistência técnica. O contrato principal estabelecia uma “sociedade por cotas de
responsabilidade limitada”, o que dispensa a publicação de atos constitutivos, alterações
contratuais, balanços, decisões administrativas e atos que impliquem distribuição de lucros a
terceiros (facilitando, portanto, a omissão de informações no caso de questionamentos legais).
Pelos seus termos, a TV Globo se comprometia instalar o equipamento de transmissão de
televisão e completar a construção do prédio da rua Von Martius até 1º de março de 1963,
iniciando suas operações até outubro desse mesmo ano. A Time-Life, por sua vez, se
comprometia a oferecer treinamento especializado na área de televisão, troca de informações
sobre direção administrativa e comercial, assessoramento de engenharia e orientação para a
aquisição de filmes e programas produzidos no estrangeiro, comprometendo-se a pagar à TV
Globo uma quantia de até CR$ 220 milhões (na época, um valor equivalente a uma
participação de 30% no capital total).
Foi a promiscuidade entre a potica e o sistema de telecomunicações no Brasil que levou a
um questionamento legal dos contratos efetuados. No fim de 1964, surgiram as primeiras
denúncias sobre as irregularidades do acordo Globo-Time Life, que deram início a uma
campanha liderada pelos deputados Carlos Lacerda e João Calmon pela criação de uma
54
HERZ, Daniel. A história secreta da Rede Globo. Porto Alegre: Tchê, 1987. p. 94.
43
Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o caso. Calmon, não por acaso, era
presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e diretor dos
Diários Associados de Assis Chateaubriand, do qual fazia parte a TV Tupi – um concorrente,
portanto.
Em janeiro de 1965, a Globo e a Time-Life assinaram um novo contrato em Nova York e
anularam os de 1962, acertando o arrendamento do prédio da rua Von Martius (sendo que, na
ocasião, o prédio sequer havia sido vendido ao grupo Time-Life). Em março de 1966, depois
de um verdadeiro duelo potico, uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi proposta por dez
deputados da Arena (Aliança Renovadora Nacional) e cinco deputados do MDB (Movimento
Democrático Brasileiro). A CPI chegou ao fim em agosto deste mesmo ano, com o parecer de
que o contrato era ilegal, mas em março de 1967 o presidente Castelo Branco ignoraria o
relatório, decretando o encerramento do inquérito sob a alegação de que as acusações eram
infundadas. Como Lacerda e Calmon não desistiram, em setembro de 1968 o caso foi
reaberto, e dessa vez o presidente Costa e Silva consideraria os acordos ilegais, forçando a TV
Globo a ser definitivamente “nacionalizada”. A empresa terminou de pagar suas dívidas com
o grupo estrangeiro sete anos depois, em 1975.
O tempo em que os dois grupos estiveram associados, porém, foi mais do que suficiente para
uma injeção de capital substanciosa (estima-se que tenham sido cerca de US$ 6 milhões) e,
sobretudo, para a transmissão de um know how indispensável de tecnologia e de
conhecimento de seu modo de operação. Nesse período, passou a fazer parte do quadro
administrativo da TV Globo o empresário Joseph Wallach, enviado pelo grupo Time-Life, e
que, mesmo quando a sociedade se desfez, naturalizou-se brasileiro e foi definitivamente
incorporado aos quadros da emissora. Wallach se tornou um dos pontos de apoio do novo
tripé” executivo responsável pelo estabelecimento da hegemonia da TV Globo, ao lado de
Walter Clark e José Bonifácio de Oliveira Sobrinho.
55
Vê-se, portanto, que a competência empresarial da TV Globo fundamenta-se em uma
estrutura interna calcada em formatos estrangeiros e, sobretudo, na importação de know-how
técnico e tecnológico. Enquanto durou o acordo, a Globo teve acesso à tecnologia mais
avançada e, o que talvez seja mais importante, ao conhecimento de seu modo de operação.
55
KEHL, Maria Rita. Eu vi um Brasil na TV. In: SIMÕES, Inimá Ferreira et alli. Um país no ar: história da TV
brasileira em três canais. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 181.
44
Essa estrutura conferiria os meios para que a emissora se tornasse produtora de seu próprio
conteúdo e, mais adiante, estabelecesse seu famoso “padrão de qualidade”. Se Roberto
Marinho previa ou não esse desfecho, não podemos afirmar, mas é interessante observar que
uma ação potica que num primeiro momento era contra a emissora terminou trazendo
benefícios determinantes para sua afirmação.
Competência e concorrência
É preciso frisar, no entanto, que não foram apenas condições exteriores à Globo que
permitiram o estabelecimento de sua hegemonia. Houve, de fato, a visão empresarial
necessária, embasada por uma mentalidade de planejamento de longo prazo, e a preocupação
de efetuar uma modernização nas formas de obtenção de receita, seguida de um investimento
pesadíssimo no desenvolvimento de uma teledramaturgia interna e na atualização de
equipamentos. Segundo o próprio Roberto Marinho, a TV Globo teria reinvestido em si
mesma 100% dos lucros durante 14 anos.
56
Para César Bolaño, o grande acerto de Roberto Marinho foi ter implantado um sistema mais
moderno de arrecadação publicitária em relação ao anterior, em que a concorrência se dava
em mercados particulares, e não no conjunto do mercado nacional. “Antes, a concorrência era
localizada em cada mercado separadamente e as situações de controle eram altamente
instáveis, de modo que as mudanças de posição hegemônica eram muito freqüentes”.
57
Nos
primeiros anos da TV no Brasil, as emissoras eram muito mais dependentes dos anunciantes,
e esses, por sua vez, detinham um poder muito maior sobre o conteúdo dos programas que
patrocinavam. Boa parte deles incorporava o patrocinador em seu próprio nome, como o
Repórter Esso, por exemplo. O grupo Colgate-Palmolive, grande anunciante das telenovelas,
era responsável pelos textos e pela aprovação de tudo que ia ao ar. Nessa época, o preço e a
posição dos anúncios eram negociados com cada anunciante e todo o interesse estava
concentrado no chamado horário nobre.
No início, a Globo seguiu esse modelo, mas a partir de 1966 seu perfil administrativo
começou a mudar radicalmente, quando a empresa deixou de ser gerida por jornalistas e
56
Apud KEHL, Maria Rita. Eu vi um Brasil na TV. In: COSTA, Alcir da, SIES, Inimá e KEHL, Maria Rita.
Um país no ar: história da TV brasileira em três canais (p. 162-323). São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 177.
57
BOLAÑO, César. Op. cit. p. 54.
45
artistas e passou a ser comandada por profissionais com grande experiência de rádio e TV,
ligados à publicidade e ao marketing. Entre eles estavam Walter Clark e José Bonifácio de
Oliveira Sobrinho, que não serão apenas os principais responsáveis pela transformação da TV
Globo em uma bem sucedida rede nacional, mas também ideólogos de seu discurso. Segundo
José Bonifácio, o primeiro pdio da TV Globo tinha esdios pequenos, pois fora planejado
para abrigar uma emissora que exibiria filmes estrangeiros e faria apenas jornalismo – a
dramaturgia estava fora de cogitação.
A estréia da Globo, no Rio, foi muito abaixo da expectativa. A performance era
para abater o ânimo de qualquer empresário. Em 1966, Roberto Marinho
trouxe da TV Rio Roberto Montoro e Walter Clark. Em 1967, fui trabalhar
com eles. As mudanças foram radicais. (...) Do conceito de emissora local,
partimos para o ambicioso projeto de montar uma rede nacional. Sabíamos que
isso levaria tempo. Mas ele soube esperar, sem nos cobrar.
58
A partir da gestão de Walter Clark e José Bonifácio, a Globo consolidou um novo modelo em
que o controle do conteúdo passou para o interior da emissora, cabendo aos anunciantes o
espaço do intervalo comercial. Com a introdução de um sistema “rotativo”, os anúncios
passaram a ser negociados em pacotes de horários que permitiam o preenchimento do tempo
dos horários “não-nobres”, e assim inverteu-se o eixo do poder, que saiu das mãos dos
anunciantes e passou para os departamentos comerciais das emissoras. Foi nesse momento
que a Globo passou a determinar a potica dos preços e a promover uma “limpeza” no padrão
visual dos comerciais, rejeitando aqueles que eram considerados de baixo nível.
Porém, antes que a TV Globo implantasse essa modernização financeira, uma outra emissora,
a TV Excelsior, já havia tentando se fixar no mercado modernizando suas estruturas. Mas a
sobrevivência da Excelsior foi profundamente prejudicada pelo golpe militar, pois se tratava
de um grupo fortemente vinculado ao governo João Goulart, e que por isso passou a enfrentar
obstáculos incontornáveis. Como explica Bolaño, a Excelsior vinha tentando se estabelecer
com uma estratégia de prejuízo planejado, respaldada por fontes de financiamento que foram
cortadas pela ação da política ecomica do governo, “de maneira que o grupo se viu
completamente estrangulado”.
59
58
SOBRINHO, José Bonifácio de Oliveira. Condenado ao êxito. Isto É Gente, edição 211.
59
BOLAÑO, César. Op. cit. p. 54.
46
A afirmação da hegemonia da TV Globo, portanto, não se deu sem uma ajuda significativa na
eliminação da concorrência, e a partir do momento em que conseguiu consolidar essa
hegemonia, baseada em um modelo concentrado de produção sem igual, ficou difícil o
surgimento de outro capital em condições de efetiva competitividade, uma vez que “o nível
dos investimentos e de conhecimento exigido pelo pado Globo é o elevado que as outras
empresas não têm cacife para alcançá-lo, e o Estado não tem interesse em realizar”.
60
“Padrão Globo de qualidade”
A fabricação do “padrão Globo de qualidade” partiu da estruturação de uma grade de
programação alternando jornalismo (local e nacional) e ficção (telenovela e minissérie) no
horário noturno, quando a audiência atinge seus pontos mais altos. Essa grade foi amplamente
testada, inclusive regionalmente, até que sua aceitação se solidificasse.
Na área da ficção, em especial, houve um investimento pesado em uma potica de
contratações, destinada a empregar os melhores profissionais do texto, que atuariam na
afirmação de uma teledramaturgia brasileira. Em plena ditadura militar, essa potica trouxe
para a TV Globo autores teatrais comprometidos com a esquerda como Dias Gomes, Paulo
Pontes, Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho, Gianfranceso Guarnieri e Ferreira Gullar,
todos com alguma relação com os Centros Populares de Cultura, o grupo Opinião, ou o
Partido Comunista e suas ramificações.
Esses autores estarão à frente de um processo que Tânia Pellegrini chama de “modernização
sem ruptura”
61
, na medida em que as telenovelas e minisséries da TV Globo passariam a
absorver grandes temas de interesse nacional e tocariam em problemas sociais, incorporando
inclusive o conteúdo nacional-popular herdado do ideário de esquerda dos anos 60, mas na
condição de lhes dar uma interpretação própria, submetida a determinado “padrão”: o povo e
seus problemas, vistos na tela por meio de uma imagem limpa, bonita e atual”.
62
Essa
modernização se estende para o campo da linguagem, que se desliga da tradição teatral e
adota traços “naturais” como o estilo ágil e inteligível por todas as faixas de público.
60
Ibidem, p. 55.
61
PELLEGRINI, Tânia. A próxima atração: telenovela e ditadura. IN: SIMIS, Anita (org.). Cinema e televisão
durante a ditadura militar: depoimentos e reflexões, p. 133.
62
Ibidem, p. 128.
47
Essa “naturalidade” na representação corresponde ao caráter realista dos
folhetins-eletrônicos, entendendo-se “realismo” aí como a dose adequada de
aproximação da “realidade nacional”, daquilo que se queria veicular como
“vida brasileira”, vale dizer, a reiteração do real naquilo que ele contém de
senso-comum, ancorado nos valores e perspectivas da ideologia dominante,
bem como nas estruturas clássicas do gênero, calcadas no melodrama. Assim,
até hoje, as telenovelas e minisséries absorvem tendências e expectativas
emergentes, revisitam necessidades residuais e tentam controlar questões
dominantes por meio de soluções ficcionais, desenvolvendo elementos
identificáveis pelo público como conhecidos e familiares, próprios do
“brasileiro médio”, habitante das cidades, porém um pouco mais limpos,
organizados e condizentes com suas aspirações conscientes ou inconscientes do
consumo e de ascensão social.
63
Esse fato é extremamente revelador do modo de atuação da Globo em sua tendência
aglutinadora, absorvente, que tudo quer incorporar para tudo dissolver. A potica de
contratação de profissionais envolvidos com a esquerda e a decisão de levar ao ar temas
polêmicos reiteram o papel da emissora de aglutinar contradições brasileiras e “apaziguá-las”
– adquirindo, assim, contradições internas próprias. Walter Clark, por exemplo, descreve
inúmeros problemas que teve com Dias Gomes, que ele batizou de “rei do contrabando
ideológico”. Certa vez, na novela Bandeira 2, Gomes pôs na boca de um de seus personagens,
o bicheiro Tucão, a seguinte frase: “Televisão tem que estatizar mesmo! Televisão que tem
Ibrahim Sued no ar não merece moleza do governo!” (sendo que o programa de Ibrahim Sued
era veiculado na própria Globo). Depois desse episódio, Clark contratou um ex-diretor do
Departamento de Censura da Guanabara, que ficou encarregado de ler todos os textos da
dramaturgia e fazer a censura mais rigorosa possível. Eu preferia decidir o que ia ao ar a
ouvir isso dos censores do regime”.
64
A postura de autocensura, no entanto, afetou de maneira mais profunda o setor jornalístico,
atingindo não só o conteúdo das informações veiculadas, mas a própria forma de narrar as
notícias. Segundo Walter Clark, sob sua própria orientação e a de Armando Nogueira, as
ordens eram para que se agisse com extremo cuidado, “de modo a não atrair a repressão e
acabar sendo punido por um castigo maior do que a falta cometida”. As atenções se voltavam
principalmente para o Jornal Nacional, carro-chefe de uma grade de programação
nacionalizada e “menina dos olhos” de toda a diretoria da emissora.
63
Ibidem, p. 129.
64
CLARK, Walter. Op. cit. p. 258.
48
Uma das coisas fundamentais de nossa estratégia era nãoeditorializar” a
televisão. Operávamos na faixa do entretenimento e da informação fria, hard
news, sem comentários. Se déssemos um pequeno passo no sentido da opinião,
da crítica, tombaríamos ou com o regime, ou com Roberto Marinho. Era muito
melhor manter uma linha estritamente informativa do que arriscar o Jornal
Nacional a engolir aqueles editoriais chatérrimos e reacionários, como os de O
Globo. Ainda assim, muitas vezes não escapamos deles.
65
Até hoje, o JN é considerado o programa com a maior e mais estável audiência da televisão
brasileira, o que se explica por vários fatores, mas sobretudo pelo seu horário e tipo de
inserção (entre duas novelas). Nos primeiros anos, o jornal durava 15 minutos – máximo que
o espectador “médio” brasileiro agüentaria de informação, segundo o julgamento da direção
da emissora –, tempo que foi aumentando gradualmente, até chegar aos cerca de 45 minutos
de hoje. No começo da década de 1970, a audiência média do Jornal Nacional era de 69% (ou
seja, cerca de 30 milhões de pessoas)
66
, e, justamente por isso, as maiores pressões da
censura, de fato, recaíam sobre ele.
O “padrão Globo” que foi imposto à confecção e à exibição das reportagens teve um caráter
ainda mais rigoroso que o padrão da teledramaturgia. Uma de suas características centrais é a
fragmentação da informação. Um depoimento de quarenta segundos no ar, por exemplo, já era
considerado extremamente longo – trinta segundos era o máximo tolerado. Havia também um
padrão de imagem. Pessoas com defeitos físicos, de ar miserável, sem dentes na boca ou
mesmo com roupas rasgadas deveriam a todo custo ser evitadas no vídeo.No JN, o povo era
bonito e bem alimentado. A imagem que o principal telejornal do país deveria alimentar era
de otimismo, a idéia de um Brasil Grande e decididamente unificado, riscado da lista dos
países subdesenvolvidos e agora encabeçando, graças aomilagre brasileiro’, o bloco dos
países intermediário, na descrão da jornalista Elizabeth Carvalho.
67
Armando Nogueira, diretor de jornalismo, certa vez enumerou os ensinamentos básicos de um
bom jornalista da TV Globo: usar recursos tecnológicos a serviço da informação; adaptar-se
às imposições do veículo (períodos curtos, frases curtas, ordem verbal direta); capacidade de
trabalhar sob tensão e de transformar, sem problemas éticos, uma entrevista de 30 minutos em
uma fala de 30 segundos; prestar informação balanceada ouvindo os dois lados da questão;
65
Ibidem. p 255.
66
CARVALHO, Elizabeth. Anos 70: Televisão. Rio de Janeiro: Gráfica Europa, 1979. Apud: KEHL, Maria
Rita. Eu vi um Brasil na TV, in SIMÕES, Inimá Ferreira et alli. Um país no ar: história da TV brasileira em três
canais. São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 266.
67
Ibidem. p. 265.
49
saber que a televisão não é formadora de opinião porque não tem opinião própria; tornar-se
um editor polivalente capaz de fazer, sozinho, as edições de imagem e som.
68
Também foi no campo do jornalismo que a TV Globo veiculou um dos programas mais
associados ao regime militar. Conduzido pelo jornalista Amaral Netto, o Amaral Netto,
Repórter era formado por reportagens glorificantes sobre turismo, natureza e projetos do
governo como a Transamazônica, verdadeiras propagandas do projeto de “Brasil Grande”
difundido pelo governo (que, aliás, cedia aviões da FAB e navios da marinha para transportar
a equipe). Walter Clark também afirma – não sem culpa – que foi ele o responsável pela
contratação de Netto, “para afagar o regime e evitar que ele nos pressionasse demais”.
69
Assim, uma das características centrais do “padrão Globo” será uma produção de
teledramaturgia relativamente livre e rica, apesar de toda a autocensura, ao lado de um
jornalismo altamente controlado e empobrecido, até hoje realizado sob o um rígido formato
não-editorializado e de pretensões objetivas.
Mesmo que não tenha sido mero veículo de propaganda do regime militar e que tenha sofrido
uma série de enfrentamentos com o governo ditatorial, a base da expansão da TV Globo foi
pavimentada pelo governo autoritário, que, por sua vez, respirava os temores da Guerra Fria, e
tinha como principal objetivo a solidificação da ideologia do capitalismo “moderno” em toda
a extensão do terririo brasileiro. Para Walter Clark, a versão de que a TV Globo foi “garota-
propaganda” da ditadura é “fácil e redutora”, mas ele reconhece que seria estupidez negar o
fato de que a TV Globo teve sua imagem confundida com o regime:
Mesmo sem querer, na medida em que ela apurava seu padrão de qualidade
(...), isso coincidia com a euforia “do milagre brasileiro”. (...) O padrão de
qualidade e o fortalecimento de uma imagem de modernidade e tecnologia
acabaram se colando, mesmo sem querer, à imagem do Brasil Grande que tanto
interessava ao governo da ditadura.
70
Talvez nem tão “sem querer” assim. De alguma forma, a TV Globo foi ao mesmo tempo
produto e ferramenta de construção da “bolha de prosperidade” que se expandiu nos anos 70,
68
Depoimento de Armando Nogueira à revista Senhor, em reportagem sobre os 15 anos da TV Globo. Apud:
KEHL, Maria Rita. Eu vi um Brasil na TV. In: SIMÕES, Inimá Ferreira et alli. Um país no ar: história da TV
brasileira em três canais. São Paulo, Brasiliense, 1986. p. 268.
69
KEHL, Maria Rita. Op cit. p. 260.
70
CLARK, Walter. Op. cit. p. 252-253.
50
para explodir nos anos 80. Na medida em que o estabelecimento desse “padrão de qualidade”
toma como referencial a classe média, que cresce e se fortalece durante os anos do “milagre
ecomico, a TV Globo forja um campo simbólico que se baseia nessa demanda, ou nesse
gosto apurado periodicamente por meio de pesquisas mercadológicas. Esse campo
simbólico se cristalizou e se mantevelido mesmo após a ruína do milagre.
Tal “gosto” passou a ser apurado e detalhado mais sistematicamente a partir de 1971, quando
José Bonifácio de Oliveira Sobrinho criou o Departamento de Pesquisas da emissora, que se
constituiria como uma forma alternativa de medição do desempenho dos programas para além
da medição tradicional da audncia. A função do Departamento de Pesquisas é fornecer
elementos às áreas de produção e programão por intermédio da análise (em geral
qualitativa) de comportamentos, tendências e demandas dos espectadores, sempre baseado em
amostragens de grandes cidades brasileiras, principalmente São Paulo. O caráter dessa
pesquisa, no entanto, não pretende apenas auferir o gosto do espectador no momento – ela
visa, também, descobrir as expectativas do público e seus desejos não-preenchidos, de
maneira a antecipar-se às necessidades de reformulação na programação.
Paralelamente, do ponto de vista comercial, a TV Globo monta uma grande estrutura com o
intuito de atender os mercados regionais em sua diversidade.
A Central Globo de Comercialização realiza um mapeamento do país e
continuamente verifica se os comerciais locais estão entrando na região certa,
transmitidos pela afiliada ou retransmissora certa, etc. Para os critérios de
eficiência publicitária, o Brasil volta a ser um país de grandes diferenças
regionais – e a Globo toma todo o cuidado para que um comercial que deve
atingir as cidades do nordeste do Paraná se diferencie, em linguagem e
elementos motivacionais, de um outro s vezes do mesmo produto) que visa às
cidades do sudoeste de São Paulo.
71
Assim, a rede de cobertura nacional sempre está aberta a negociações regionais (como os
telejornais locais), ainda que nunca abandone a uniformização. Mais importante é que toda
essa estrutura age efetivamente no sentido de forjar determinada idéia de país. Em um artigo
escrito para o jornal O Globo em maio de 1975, Walter Clark enaltecia o fato de a Globo ter
nacionalizado a maior parte da sua programação, que, naquela época, no horário entre 18h e
71
KEHL, Maria Rita. Op cit. p. 205
51
23h, já tinha chegado a 84% de produção própria. A relação de custos da emissora, segundo
Clark, era de 8% para os “enlatados” estrangeiros e 92% para a produção nacional.
A televisão brasileira já atingiu um nível de amadurecimento a ponto de sua
programação já ser solicitada no exterior. (...) A televisão encontrou seu papel
depois de superada a fase de improvisação e de falta de estrutura administrativa
a partir de 1968, quando seus organizadores passaram a admitir o Brasil como
uma verdade integrada, fazendo uma programação nacional.
72
Em julho de 1976, em um congresso em Minas Gerais, Clark relacionaria esse projeto a um
“sistema de comunicação produtivo”:
Esta é a importância maior de um sistema de comunicação produtivo:
transformar a população em mercado ativo de consumo, gerando a disposição
ao consumo, relacionando cada bem, produto ou serviço ao extrato social a que
está destinado, atingindo simultaneamente a todos os extratos e imprimindo
maior agilidade ao mecanismo produtivo.
73
Existe, portanto, uma identificação quase plena entre o projeto da TV Globo e a essência do
projeto da ditadura militar e seu Plano Nacional de Desenvolvimento (que gerou a bolha do
milagre econômico”), e que teve seu equivalente no plano simbólico no Plano Nacional de
Cultura (PNC).
Não diretamente controlada, mas viabilizada pelo Estado, a televio é a
grande cadeia de supermercados de bens simbólicos que realizou o sucesso do
PNC não pelos índices (ou pela qualidade da produção cultural), mas pelo seu
consumo. Foi a grande “distribuidora de renda simbólica” desse país. Foi a
concretizadora, no nível do imaginário, dos sonhos e promessas do milagre
brasileiro, que concretamenteo se cumpriram.
74
Passadas as ilusões do “milagre”, uma relação perversa se fixou no Brasil. Se a TV assumiu
com sucesso a função da “integração nacional” no plano simbólico, realizando a inclusão de
subculturas isoladas entre si e distantes dos centros de produção cultural em numa visão de
mundo clara e unificada, essa mesma inclusão não se dá no plano econômico. Como explica
Maria Rita Kehl:
72
Ibidem. p. 252.
73
Ibidem. p. 229.
74
Ibidem. p. 173.
52
Assim se cria uma nação esquiide: enquanto um terço de sua população se
integra de fato em uma ordem capitalista dominante e tem condições de
participar, bem ou mal, da distribuição de bens produzidos por essa ordem,
dois terços se integram apenas no nível do imagirio. São os consumidores
potenciais das imagens, mas não dos bens concretos, de um país “em
desenvolvimento”. Assim se cria uma realidade política também esquizóide: se
os objetivos dos pretensiosos Planos Nacionais de Desenvolvimento não foram
alcançados, e o milagre brasileiro há muito deixou de existir, por outro lado os
objetivos poticos da Potica Nacional de Cultura, traçados no governo
Geisel/gestão Ney Braga (pós-milagre, portanto), estão sendo cumpridos, com
a contribuição fundamental da maior rede de televisão do país.
75
A concentração elevada da renda veta às camadas pobres o acesso aos produtos básicos e
incita as frações favorecidas ao consumo conspícuo. “O estímulo para o crescimento
econômico passa a ser, desse modo, a diversificação sofisticada dos bens e serviços de luxo,
que atendem apenas a um setor restrito da população. Este modelo tem conseqüências
radicais, de ordem não só econômica, mas social e cultural”.
76
O discurso que vincula a atuação da TV Globo à formação de uma identidade nacional
encontrou sua legitimação maior no trabalho do sociólogo francês Dominique Wolton, que no
livro Elogio do grande público, publicado pela primeira vez na França em 1990 (e traduzido
no Brasil em 1996), faz um ataque à TV fragmentada e realiza uma ampla defesa do que
chama a “televisão geralista”, tomando como exemplo a televisão brasileira:
Nela encontramos, com efeito, o sucesso e o papel nacional de uma grande
televisão que é vista por todos os meios sociais, e que pela diversidade de seus
programas constitui um poderoso fator de integração social. Ela contribui
também para valorizar a identidade nacional, o que constitui uma das funções
da televisão geralista.
77
Em sua análise, Wolton chega ainda a afirmar que “no Brasil, a televisão amorteceu os efeitos
poticos da ditadura” e que “uma grande parte da tradição pública da televisão brasileira e do
seu papel de serviço público provém, na realidade, da hegemonia dessa televisão privada (a
TV Globo). Criada em 1965, a Globo é um dos símbolos da identidade brasileira”.
78
Análise
que omite evidentemente a dominação que a TV Globo exerce no panorama midiático do país.
75
Ibidem. pp. 171, 172
76
SODRÉ, Muniz. O monopólio da fala. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 86.
77
WOLTON, Dominique. Elogio do grande público.o Paulo: Ática, 1996. p. 86.
78
Ibidem. p. 88.
53
Anos mais tarde, quando a TV Globo cria a Globo Filmes, a base do discurso de sua criação
terá bases muito semelhantes. Em primeiro lugar, a competência: a Globo Filmes teria sido
criada com a função “ensinar” o cinema brasileiro a se superar nos aspectos em que ele foi
incompetente, ou seja, em uma capacidade de compreender efetivamente o gosto do público e
criar uma a base comercial capaz de gerar a sua própria sustentabilidade. Em segundo lugar, o
nacionalismo: a Globo Filmes teria entrado em campo como mais um elemento da emissora
em defesa da identidade nacional (elementos que vamos trabalhar com mais detalhes adiante,
no catulo sobre a Globo Filmes).
54
4. Mutações no paradigma televisivo e a crise das Organizações Globo
A crise que atingiu as Organizações Globo e que, indiretamente, acabou impulsionando a
emissora em direção ao cinema está ligada à transformação do próprio “locus” da televisão no
panorama audiovisual global e à crise geral que, na verdade, atingiu a todos os grupos
empresariais da área de comunicação brasileiros a partir da segunda metade dos anos 1990.
Entre os anos 1970, período em que firmou sua hegemonia, e os anos 1990, quando enfrentou
sua mais grave crise estrutural, a TV Globo não promoveu reformas substanciais em sua grade
de programação – mas também não atravessou incólume as mutações que redefiniram o papel
da televisão nesse mesmo peodo.
A liderança quase absoluta da TV Globo sofreu alguns fortes abalos no começo dos anos
1990, quando a ação da concorrência fez com que a emissora perdesse audiência em alguns
horários, forçando-a a providenciar respostas emergenciais. Em 1990, por exemplo, a novela
Pantanal, levada ao ar pela TV Manchete entre 27 de março e 10 de dezembro, no horário das
21h30 (logo depois, portanto, da “novela das oito” da Globo), tornou-se um grande sucesso de
audiência, alcançando picos de até 40 pontos. Assinada por Benedito Ruy Barbosa, Pantanal
havia sido recusado pela própria Globo, que queria transformar a novela em minissérie ou
transferir a ação para uma fazenda paulista, para baratear os custos de produção. Mas o autor
recusou as mudanças e aceitou o convite da TV Manchete, onde Pantanal permaneceu no ar
por longos 216 capítulos, que deram imensa dor-de-cabeça à Globo. Carregada de
sensualidade, a história de Juma Marruá, uma mulher que se transformava em onça, chegou a
ser criticada por Roberto Marinho pelos seus apelos à nudez e à sensualidade. Durante o
tempo em que Pantanal esteve no ar, o cinema brasileiro – especificamente, filmes brasileiros
de forte apelo sensual – foi uma das armas da Globo para recuperar a audiência.
Outros exemplos de programas da concorncia que causaram preocupação foram o jornal
diário Aqui agora, que estreou no SBT em 1991, às 18h30, e o Domingo Legal, comandado
pelo apresentador Gugu Liberato, também no SBT, nas tardes de domingo. O primeiro
atacava diretamente a novela das 18h, como a linha editorial de um jornal popular, exibindo
reportagens sobre violência que usavam o tomurgente da câmera na mão em longas
55
seqüências sem cortes. O segundo, concorrente direto do Domingão do Faustão, alcançou
uma de suas maiores audiências com o quadro “banheira do Gugu”, em que homens e
mulheres, em trajes de praia, lutavam para pegar sabonetes em uma banheira. Essas crises de
audncia, no entanto, foram pontuais, e invariavelmente geravam um debate na mídia
impressa sobre a “baixaria” na TV e o apelo ao grotesco, em que a Globo saía-se
invariavelmente como defensora do “bom gosto” e da qualidade na televisão.
Houve, no entanto, a necessidade de adaptações mais profundas, relacionadas à própria
sofisticação do aparelho de TV, que deixou de ser apenas um ponto de difusão de programas
para se tornar um “terminal de relações” – como define Alain Ehrenberg – em que o
espectador foi adquirindo um perfil cada vez menos passivo
79
. Esse processo começou em
meados dos anos 1980, com a entrada em cena de novos dispositivos técnicos (como o
controle remoto) e a possibilidade de outras formas de input de conteúdo além da antena
tradicional. O deo, os jogos eletrônicos, as câmeras digitais portáteis, a TV por assinatura e
o DVD transformam a tela da televisão em um suporte multifacetado.
Interatividade
O primeiro elemento que se ims nesse processo de reconfiguração da programação de TV
foi a interatividade. As grades formatadas segundo preceitos clássicos da cultura de massas,
baseadas principalmente nos programas de dramaturgia e variedade, aos poucos começaram a
ceder lugar aos espetáculos de realidade”. Nos reality shows, o público tem sempre “voz
ativa” e “decide” o futuro dos participantes de cada programa. Segundo Ehrenberg, os reality
shows expressam, a partir dos anos 90, uma nova articulação do individualismo com o
popular” em que a televisão passa a percorrer os territórios do cotidiano e da intimidade. Mas
mudanças de ordem sócio-cultural também exigiram uma nova postura da televisão quanto ao
seu conteúdo representativo.
Até o começo dos anos 80, a TV era concebida quase que exclusivamente para a família,
ocupando um lugar muito específico no espaço doméstico. O aparelho de TV era o elemento
em torno do qual o grupo familiar se reunia, símbolo de adesão à modernidade urbana e fator
de integração nacional. A partir dos anos 90, no entanto, a TV precisou responder às
79
EHRENBERG, Alain. L'individu incertain. Paris: Hachette, 1995.
56
modificações que se empreenderam no seio da própria família, à erosão do Estado-nação e ao
deslocamento das hierarquias fundadas no pertencimento de classes sociais - transformações
que foram fruto, de um lado, dos movimentos pós-68, e, de outro, do processo de
globalização. A luta pela afirmação de uma identidade pessoal no espaço público deu
visibilidade a grupos minoritários (movimento negro, gay, feminismo) e trouxe novas
possibilidades de luta potica não mais restritas ao campo da família e das classes sociais
tradicionais.
Essas transformações foram absorvidas pela televisão, ainda que de forma muito lenta e,
invariavelmente, protegidas de suas possibilidades transgressoras. A questão do “acesso à
imagem”, curiosamente, passou para o outro lado da câmera: o público passou a reivindicar o
direito de estar “dentro” da tela, e a TV dos espetáculos de realidade acabou criando um novo
“espaço comum”, ao oferecer ao espectador a possibilidade de transformar seus problemas
pessoais em programas “úteis” porque compartilhados por outros espectadores. Nesse
aspecto, é interessante notar como a TV se movimenta para realizar parte do projeto político
do Cinema Novo e de tantas utopias pós-68: dar a palavra aopovo”, transformar a imagem
em um elemento com poder sobre a vida cotidiana. Trata-se, porém, do reverso da utopia, na
medida em que esse “dar a palavra” é concebido dentro de um campo de representações muito
específico e de regras muitogidas do espetáculo – entendendo-se o “espetáculo”, aqui, na
concepção de Guy Debord, ou seja, como o principal elemento de propagação e reiteração do
capitalismo em sua era informacional/cognitiva.
Todo o projeto de hegemonia da TV Globo se montou a partir da fórmula clássica da cultura
de massas. A bem sucedida grade de programação elaborada na gestão de Walter Clark e Jo
Bonicio de Oliveira Sobrinho [telenovela + jornal local + telenovela + jornal nacional +
telenovela] possibilitou a incorporação das necessárias negociações regionais sem que se
descaracterizasse o modelo centralizado e com fortes tendências à homogeneização da
produção que representa sua característica central. O elemento mais importante deste formato,
porém, é que ele cria a possibilidade de uma grande influência em determinadas camadas do
imaginário coletivo ao estabelecer uma inter-relação entre jornalismo e telenovela, fato e
fantasia. Um tipo de controle que é possível em países onde a produção está radicalmente
centralizada, como é o caso do Brasil. E será justamente essa característica que tornará
posvel a chamada cross media, o recurso mais eficaz utilizado pela Globo Filmes para a
promoção de suas produções cinematográficas em programas da própria emissora.
57
Engessamento
Tão importante para a manutenção da hegemonia da Globo, esse modelo de programação
continua quase intacto, com uma ou outra abertura para mudanças que se fizeram valer em
outras televisões do mundo. Na verdade, a cristalização dessa programação e o imenso
aparato produtivo que ele exige prejudicam a própria renovação e adaptação da Globo.
Segundo Luiz Eduardo Potsch, o excesso de centralização leva a Globo a uma rigidez dentro
da qual ela só pode evoluir no aspecto formal da programação, e não mais em aspectos
estratégicos. O autor cita uma frase de Walter Clark – “A Globo cresceu tanto que tem medo
de errar” – para concluir que
[...] a despeito do muito que se tem escrito sobre as virtudes da estrutura da
Globo, extremamente eficaz para o período em que ela foi implantada, ela traz
pontos bastante negativos relacionados à rigidez e centralização que passam a
refletir na lucratividade, quando a diversidade de atividades torna-se grande.
80
Talvez, por isso, a maior parte das movimentações da TV Globo se dê na área do lobby
potico, no sentido de retardar as implantações de regulação ou mesmo de novas tecnologias
que possam ameaçar esse seu formato altamente influente. As mudanças que a TV Globo
imprimiu no corpo de sua programação foram pontuais, muitas vezes recursos emergenciais
para enfrentar um ou outro programa de sucesso das emissoras concorrentes, mas, de uma
maneira geral, a fórmula do horário nobre (telenovela + jornal) manteve-se firme e sobreviveu
a todos os anúncios alarmantes que decretaram sua falência (principalmente da telenovela,
que continua tendo uma imensa força cultural no Brasil).
BBB
Fora desse horário, no entanto, algumas modificações importantes podem ser apontadas.
Vários reality shows foram gradualmente incorporados à programação em versões adaptadas
para o Brasil, produzidas pela própria TV Globo, que firmou um acordo com a Endemol,
empresa baseada na Holanda que detém os direitos autorais da maior parte dos formatos desse
tipo de programa. O primeiro reality show a ser testado foi No limite, em que um grupo de
80
POTSCH, Luiz Eduardo. Estratégia empresarial e estrutura organizacional das emissoras de TV brasileiras
(1950-1982). Tese de mestrado. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 1983. p. 351.
58
pessoas é isolado em um ambiente inóspito e submetido a um grupo de tarefas. O programa
estreou em 2000 e foi ao ar nos domingos à noite, após o Fantástico. Em seguida vieram o
Big Brother Brasil (BBB) – que, curiosamente, sofreu aqui uma espécie de processo de
“novelização”, com uma aplicação altamente dramatúrgica da situação original proposta, de
um grupo de pessoas convivendo em uma casa vigiada por câmeras 24 horas por dia –, Fama
– que acompanha um grupo de candidatos a cantores em uma academia de canto –, e
Acorrentados – exibido como parte do programa do apresentador Luciano Huck.
Paralelamente, houve um grande esforço para reduzir o tempo em que as telenovelas
permaneciam no ar, na tentativa de diminuir seus custos de produção. Em 1984, a produção
de uma hora de uma novela da TV Globo custava de US$ 20 mil a US$ 30 mil. Em 2000, já
custava de US$ 80 mil a US$ 100 mil.
81
Esse projeto, no entanto, foi abandonado depois que
uma suposta crise de audiência foi superada e o gênero se confirmou de imensa popularidade.
Ainda hoje as telenovelas podem ficar até oito meses no ar, quando bem sucedidas.
Paralelamente, a TV Globo investiu em um formato próximo das sitcoms da televisão norte-
americana, por meio deries semanais, algumas totalmente novas (como Os normais, A
diarista, Sob nova direção), procurando incorporar novos talentos de dramaturgia e elenco ao
seu quadro de funcionários, e outras recicladas a partir de sucessos de décadas anteriores
(como A grande família e Carga pesada).
Prejuízos
Apesar das tentativas de se adaptar às mudanças do paradigma televisivo, a Rede Globo não
escapou do agravamento da crise que se instalou de forma mais drástica a partir da segunda
metade dos anos 1990, e que afetou as empresas de comunicação no Brasil como um todo.
Nesse período, os grandes grupos de dia brasileiros “apostaram no crescimento da
economia e na estabilidade do câmbio e se endividaram em dólar, para diversificar os
negócios e aumentar a capacidade de produção”.
82
Acreditando em uma rápida convergência
entre a mídia tradicional e as telecomunicações e temendo a dominação do mercado pelas
companhias telefônicas (que passavam pelo processo de privatização, o que representou a
81
CARARELLI, Sérgio e LIMA, Venício A. de. Comunicação e televisão: desafios da pós-globalização. São
Paulo: Hacker, 2004. p. 93.
82
LOBATO, Elvira. Mídia nacional acumula dívida de R$ 10 bi. Folha de S. Paulo, São Paulo. 15 fev. 2004. p.
B6.
59
entrada de grandes investimentos do capital estrangeiro), os empresários do setor
despenderam altas somas em tentativas de modernizar seus negócios.
Em 2002, o prejuízo acumulado pelas empresas de comunicação brasileiras já chegava a R$ 7
bilhões, dos quais R$ 5 bilhões foram registrados pela Globopar, holding das Organizações
Globo que, até aquele momento, não incluía a totalidade dos negócios do grupo, deixando de
fora a Infoglobo (que edita os jornais O Globo e Extra, entre outros) e as emissoras de rádio e
TV aberta. Em 2004, a dívida total atingiu R$ 10 bilhões e a Globopar respondia por cerca de
60% (US$ 1,9 bilhão, ou cerca de R$ 5,6 bilhões). O grupo entrou em moratória e deixou de
pagar aos credores em outubro de 2002. Não por acaso, a Globo havia abandonado sua
posição contra a entrada do capital estrangeiro nos meios de comunicação, passando a
defender a emenda constitucional que permitiria a participação do capital estrangeiro em até
30% das ações de televisões abertas, rádios e jornais, bem como a possibilidade de
transformar esses veículos em sociedades anônimas. Essa emenda foi aprovada e, em
dezembro de 2002, o Congresso passou uma lei regulamentando esse dispositivo.
No dia 11 de dezembro de 2004, três fundos de investimentos norte-americanos entraram com
ação na Corte de Falências do Distrito Sul de Nova York pedindo a intervenção da justiça dos
Estados Unidos na renegociação dasvidas da Globopar. O endividamento da Globo veio
dos investimentos feitos a partir de 1995 em TV a cabo (Net Serviços), TV por satélite (o
projeto Sky, em parceria com Rupert Murdoch, do conglomerado News Corp) e na Globosat.
A abertura do mercado de telecomunicações e o fim do monopólio estatal da telefonia
provocaram uma euforia de investimentos nesse setor que se prolongou até a privatização da
Telebrás, em 1998.
“Durante o boom, havia dinheiro sobrando. Todos os investidores estrangeiros queriam
aplicar no Brasil, sem questionar os projetos”, contou o diretor de Planejamento e Controle da
Globopar, Jorge Nóbrega, à Folha. As empresas que arriscaram investir em TV por assinatura
dizem que o governo, os bancos, os consultores, os investidores e elas próprias
superestimaram o potencial do mercado brasileiro. A Anatel (Agência Nacional de
Telecomunicações), responsável pela venda das concessões, previa 10,1 milhões de assinantes
de TV por assinatura em 2003, quando o número real é de 3,5 milhões. Roberto Civita,
presidente do Grupo Abril, diz que os investimentos feitos em TV por assinatura foram a
principal razão do endividamento da empresa, que fechou o balanço financeiro de 2002 com
60
uma dívida de R$ 926 milhões. “Fiz um esforço para esquecer o quanto investimos nessa área,
mas foi bem mais do que a nossa dívida”, resume o empresário. A Abril é acionista
majoritária da TVA (sistema de TV paga com transmissão por cabo e por microondas) e foi
acionista da DirecTV, via satélite. Civita diz que o endividamento se deve ao custo do capital
no Brasil, e não a erros estratégicos. “A dívida da Abril, comparada ao tamanho da empresa,
seria pequena em qualquer país com custo financeiro razoável. Estamos sendo punidos pela
ousadia, pela confiança e pela fé. Mas a gente vai sair da crise e voltar a crescer”.
83
Em 2005, o grupo Globo passou por uma profunda reestruturação com o objetivo de viabilizar
o pagamento da dívida. A Globopar (da qual fazia parte a empresa de TV a cabo do grupo em
que se encontrava a maior parte da dívida – a Net) deixou de existir como empresa
independente e se uniu à TV Globo e à Globo.com, que estavam bem mais saudáveis
economicamente, para formar uma empresa única. Globosat, Som Livre, Editora Globo e
Globo Cochrane passaram a ser subsidiárias integrais desta nova empresa, enquanto a
Infoglobo, responsável pela publicação dos jornais O Globo, Extra e Diário de S. Paulo, e o
Sistema Globo de Rádio, tiveram suas gestões unificadas.
84
A reestruturação permitiu a venda
de parte da participação da Net para o grupo mexicano Telemex (dono da Embratel e da
empresa de telefonia celular Claro), que ficou com 37% das ações. Em novembro de 2005,
como fruto dessa reestruturação, o grupo Globo anunciou o pagamento antecipado de US$
300 milhões em papéis de dívidas com recursos que vieram do fluxo de caixa operacional do
grupo e da venda de ativos realizada no começo do ano.
85
83
Ibidem. página B-6.
84
Globopar reestruturavida de US$ 1,3 bilhão. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 23 jul 2005. p. 7.
85
Tela Viva News, 3 nov 2005.
61
5. A crise do cinema brasileiro e a influência da televisão nos primeiros filmes da
“retomada” (pré-Globo Filmes)
No mesmo período em que as Organizações Globo eram afetadas pela pior crise financeira de
sua história, o cinema brasileiro começava a sair, ele mesmo, de uma de suas mais graves
crises. Uma crise que não se limitou a um abalo financeiro na produção e na distribuição,
provocado pela retirada abrupta do Estado do setor. É certo que a decretação do fim da
Embrafilme pelo governo Collor, em 1990, teve conseqüências decisivas para a paralisação
quase total da realização e da circulação de longas-metragens nos primeiros anos da década,
mas esse foi apenas um dos lados de um abalo mais profundo, de caráter, sobretudo,
institucional. Pairava, na dia, um questionamento radical – “cinema brasileiro para quê?”
por meio da publicação sistemática de artigos e reportagens, denunciando que os cineastas
“mamavam nas tetas do Estado” e realizavam filmes de péssima qualidade.
A decisão do governo Collor encerrou brutalmente toda uma etapa do cinema brasileiro que já
vinha dando sinais de desgaste incontornável. Durante pelo menos um período da era”
Embrafilme (1969-1990), os filmes nacionais conseguiram de fato se impor comercialmente
no mercado, mas a Embrafilme acabou degringolando até chegar ao seu fim abrupto, sem que
qualquer outro projeto de política cinematográfica a substituísse.
Modelos falidos
A passagem de Fernando Collor de Mello pelo governo, porém, foi curta e traumática.
Começou com um choque ecomico que abalou a população – movido pelo confisco das
contas bancárias – e terminou com o afastamento do presidente em outubro de 1992, após
uma série de denúncias de corrupção. Durante esse período, o país foi tomado por um
sentimento de profunda desilusão potica, o que gerou, entre muitos outros efeitos, um
movimento de emigração de jovens em busca de trabalho e oportunidades em outros países.
Quando a produção cinematográfica começou a se reerguer, a partir do funcionamento das
leis de incentivo fiscal, instaladas em 1993, os primeiros filmes brasileiros de sucesso
refletiram, de uma forma ou de outra, essa recusa de identificação com um modelo potico e
62
social falido. Uma série de filmes da dita “retomada da produção” teve como tema principal a
deterioração da relação dos brasileiros com seu país.
Carlota Joaquina: Princesa do Brazil, por exemplo, que se transformou no primeiro grande
sucesso de público da retomada, em 1995, se valeu de recursos da chanchada e da comédia
burlesca para satirizar o passado e, indiretamente, falar do presente, transformando em
heroína uma personagem que odiava o Brasil. A princesa espanhola que dá título ao filme
veio para cá forçada, em 1808, acompanhando o marido Dom João VI (visto como um glutão
patético) e a corte portuguesa, todos fugidos das invasões napoleônicas. O filme termina com
Carlota embarcando de volta para a Europa, jogando os sapatos no mar enquanto diz a célebre
frase: “Dessa terra não quero nem o!”. O sentimento generalizado de desgosto e desprezo
pelo país era, assim, fielmente traduzido, ao mesmo tempo em que era jogado em um
confortável tempo tico do passado, uma vez que neste filme histórico a própria história
ganha uma narração em off em inglês, como se fosse uma fábula contada para uma criança,
em distantes terras escocesas.
Nesse mesmo ano, Terra estrangeira, de Walter Salles e Daniela Thomas, retratou o
movimento de emigração que marcou esse período de desilusão, contando a história de um
jovem que opta pelo auto-exílio e viaja para Portugal, pouco depois do confisco das contas
bancárias anunciado nos primeiros dias do governo Collor, em 1990, simultaneamente ao fim
da Embrafilme. O registro, no entanto, é bastante diferente: o riso cede lugar à melancolia, e
as cores são substituídas por um preto-e-branco contrastado. Sob o disfarce dos filmes de
gênero, Terra estrangeira abriga temas urgentes e recorrentes nesta nova fase do cinema
brasileiro, como a maternidade perdida, a procura do pai, o desenraizamento e a sensação de
impotência e desilusão.
Outros filmes do peodo e mesmo alguns mais recentes abordaram essa mesma problemática,
quase sempre de forma indireta, por intermédio da utilização de personagens estrangeiros.
Eles surgem em obras dos mais diversos autores e estilos situadas em épocas diferentes como
O quatrilho (1995), de Fabio Barreto (sobre imigrantes italianos estabelecidos no Sul na
virada do século 19 para o século 20); Como nascem os anjos (1996), de Murilo Salles (sobre
uma família de americanos feita refém por um homem e duas crianças no Rio de Janeiro de
hoje); Baile perfumado (1997), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (narrando a trajetória do
fotógrafo libas Benjamim Abrao, que registrou o bando de Lampo no sertão nordestino
63
dos anos 1930); O que é isso, companheiro? (1997), de Bruno Barreto, que recria os quatro
dias do seqüestro do embaixador americano Charles Elbrick por militantes da luta armada
durante o período da ditadura militar; For All, o trampolim da vitória (1997), de Luiz Carlos
Lacerda (comédia situada no período da Segunda Guerra em que os Estados Unidos
montaram uma base aérea em Natal); Bossa nova (2000), de Bruno Barreto (que tem como
personagem central uma professora de inglês morando no Rio), ou Amélia (2000), de Ana
Carolina (ficção inspirada na visita real da atriz francesa Sarah Bernhardt ao Brasil, em 1905).
Todos eles refletem uma óbvia dificuldade de representar o país e a incapacidade de
reconhecimento em modelos fixados.
Para o pesquisador André Parente, essa constância dos personagens estrangeiros seria como o
retorno de um antigo “recalque” analisado pelo crítico Paulo Emílio Salles Gomes em seu
texto Cinema: trajetória no subdesenvolvimento:
Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de
cultural original. Nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa
construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o
não ser e o ser outro. O filme brasileiro participa desse mecanismo e o
altera através de nossa incompetência criativa em copiar.
86
Na análise de Parente, não são apenas os personagens ou a língua estrangeira que causam
estranheza, mas, muitas vezes, a própria mise-en-scène que, na maior parte desses filmes,
ignoraria propostas de busca de originalidade, apresentando-se como uma reprodução de
modelos e gêneros do passado
87
. Viria daí, portanto, a tenncia em se produzir filmes de
época ou comédias românticas.
Modo de produção
Essa característica pode ser, primeiramente, resultado do próprio modo de produção gerado
pelas leis de incentivo fiscal. O sistema formado pela Lei do Audiovisual e pela Lei Rouanet,
ao mesmo tempo em que abriu portas, revelou-se também de tendências conservadoras. Boa
parte da decisão sobre quais filmes estariam aptos a receber financiamento transferiu-se para
86
GOMES, Paulo Elio Salles, Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
p. 88.
87
PARENTE, André, Ensaios Sobre o Cinema do Simulacro, Rio de Janeiro: Pazulin, 1998. p. 57.
64
os departamentos de marketing das empresas, e como conseqüência lógica, os projetos de
filmes – de forma até subentendida – passaram a se constituir de maneira a não ferir a imagem
das marcas que se associariam a ele. Em segundo lugar, havia o medo subjacente de
desagradar ao público e de afastá-lo ainda mais do filme brasileiro. Os anos que se seguiram
ao fim da Embrafilme foram marcados por um grande vazio e pela disseminação da idéia de
que os filmes feitos no Brasil seriam de baixa qualidade. Era preciso provar capacidade
competitiva com o produto estrangeiro, esse sim o “verdadeiro” cinema. “Nem parece filme
brasileiro” passou a ser uma frase corrente na saída das sessões de produções nacionais.
Nesse contexto, sintomaticamente, o reconhecimento internacional ganhou imporncia
desmesurada e se fez acompanhar por uma espécie de febre nacionalista. Em seus primeiros
anos, os filmes da “retomada” lutaram para reconquistar o mercado interno e recuperar o
prestígio internacional – assumindo para si o fardo de representar o país e se auto-atribuindo
uma missão semelhante à do futebol. Quando O quatrilho, de Fabio Barreto, recebeu uma
indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro, em 1996, o diretor chegou a posar para uma
revista enrolado na bandeira brasileira. A cada cerimônia do Oscar com participação brasileira
– o que se repetiu em 1998, com O que é isso, companheiro?, e em 1999, com Central do
Brasil – espalhavam-se torcidas país afora. Era como uma Copa do Mundo, em que a derrota
seria vista de forma devastadora.
Antes da Globo Filmes
Mas talvez o elemento mais importante dessa nova fase da produção cinematográfica seja a
influência que a própria televisão já exercia sobre o filme brasileiro, mesmo antes da criação
da Globo Filmes. Se existe um elemento possível que seja comum a tantos filmes da
retomada” (que, como se sabe, é marcada por uma imensa variedade de estilos e temas), ele
está no estabelecimento do referencial televisivo, marcando uma diferença essencial em
relação aos ciclos anteriores do cinema brasileiro. Não se trata da televisão, simplesmente,
mas da constituição de uma rede nacional e da transformação de um canal específico (a TV
Globo) em potência audiovisual mundial, que empreendeu uma transformação profunda e
redefiniu a imagem hegemônica do Brasil.
A reconfiguração que o surgimento da TV ims a tantas cinematografias do mundo ganhou,
no Brasil, características particulares, em função da concentração da produção em um único
65
grupo midiático, tanto no campo narrativo (ficção) como no campo da informação
(jornalismo). Ao menos uma parte – se não a maioria – dos filmes para cinema feitos no
Brasil a partir da década de 1990 adotarão esse novo referencial, e podem ser observados,
tanto na ficção como no documentário, como adesões ou reações à nova hegemonia formada
no campo audiovisual brasileiro, o “padrão Globo de qualidade”.
Com o estabelecimento do poderio do conteúdo audiovisual da TV Globo e de sua bem
sucedida audiência, o cinema brasileiro contemporâneo precisou se reerguer da crise diante de
um enorme desequilíbrio em termos de capacidade produtiva e, sobretudo, de alcance de
público. Se, no passado, os filmes nacionais moldavam-se segundo modelos estrangeiros
(fossem eles hollywoodianos ou europeus), esse modelo transferiu-se para dentro do Brasil
mesmo, morando, agora, no “pado Globo”.
É preciso notar que os efeitos da expansão da TV no Brasil se refletiam em filmes já no fim
da década de 1970. Bye Bye Brazil (1979), de Carlos Diegues, descrevia a decadência de uma
trupe de artistas mambembes (a Caravana Rolidei), que perde seu público nas profundezas do
país para a televisão. Se substituirmos a trupe Rolidei pelo próprio cinema brasileiro,
podemos vê-lo contemplando sua perda de espaço para outro meio. Dez anos depois, em
1989, o mesmo diretor assinou Dias melhores virão, em que sua personagem principal,
Marialva (Marília Pera), dubla programas de TV importados. O filme ficou pronto no mais
grave momento da crise da Embrafilme e enfrentou dificuldades de distribuição. Carlos
Diegues optou, então, por exibi-lo na TV Globo antes de sua estréia nos cinemas – decisão
que provocou imensa polêmica entre produtores e cineastas.
Dias melhores virão já apontava para um cinema feito sob essa nova perspectiva (a TV),
dialogando com sua presença na cultura brasileira e incorporando elementos de sua estética.
Para Ismail Xavier, essa influência pode ser identificada ainda antes, em Dona Flor e Seus
Dois Maridos (1976), de Bruno Barreto, filme que se fez valer da estratégia de deslocar para o
cinema a fórmula consagrada na TV, da grande produção voltada para temas nacionais.
88
Como vimos, Dona Flor contaria com a co-produção da TV Globo, por intermédio da ICB,
até pouco antes do início de sua realização. E de fato, no início da década de 1970, deu-se o
processo de “midiatização” definitiva do Brasil, com o funcionamento em plena capacidade
88
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro dos anos 90. Entrevista à revista Praga – Estudos Marxistas, número 9.
o Paulo: Editora Huitec, 2000. p. 106.
66
da rede nacional de TV, a expansão do departamento de produção da TV Globo e a
consolidação dopadrão Globo de qualidade”.
No campo da dramaturgia, a formatação desse padrão tem como característica central um
elemento constante nas novelas escritas por Janete Clair e Dias Gomes (autores que foram
fundamentais no estabelecimento desse padrão): a absorção imediata de fatos correntes nas
tramas das novelas, criando um espelho ficcional das notícias veiculadas no Jornal Nacional,
e contribuindo, assim, para criar um “vínculo” entre a teledramaturgia e a “realidade”. Irmãos
coragem, de Janete Clair, por exemplo, que foi ao ar em 1970, era uma elaborada fusão de
folhetim, épico e faroeste situada em Goiás, tendo como pano de fundo o garimpo. Uma de
suas tramas centrais narrava a ascensão de um jogador de futebol, enquanto o Brasil se
consagrava tricampeão na Copa do Mundo do México. Em 1973, a mesma Janete Clair
escreveu um dos maiores sucessos de audiência da história da Globo, Selva de pedra, folhetim
rasgado de cenário urbano que teve, segundo os jornais da época, índice máximo de audiência
no capítulo 152 da trama, quando Rosana Reis (Regina Duarte) revelou a Cristiano (Francisco
Cuoco) que de fato era Simone, sua ex-mulher, dada como morta anos antes, em um acidente
de carro.
89
Também em 1973 foi ao ar O bem-amado, primeira novela em cores da TV brasileira, marco
de consolidação do “padrão Globo” no que tange a exportação. Esta foi a primeira novela
comercializada na íntegra no mercado externo – antes, a Globo vendia apenas os textos. Em O
bem-amado, Dias Gomes adaptou sua própria peça, que por sua vez teve como inspiração um
fait-divers ocorrido no Espírito Santo. Seu personagem central é o potico Odorico Paraguaçú
(Paulo Gracindo), que se elege prefeito graças à promessa de construir um cemitério na
cidade. Mas, como ninguém morre em Sucupira, ele não consegue inaugurar a obra. A
prosódia pseudo-rebuscada do personagem, inspirado em tantoscoronéis do interior do
Brasil, gerou bordões que passaram a ser repetidos pelos espectadores, como “vamos botar de
lado os entretantos e partir para os finalmente”. Até mesmo o escândalo do caso Watergate,
que levou à rencia do presidente Nixon nos Estados Unidos, foi parodiado na novela,
quando o personagem Dirceu Borboleta (Emiliano Queiz) instalou um microfone no
confessionário da igreja para saber os segredos de seus inimigos.
89
Dicionário da TV Globo – Volume 1: programas de dramaturgia e entretenimento. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2003. p. 36.
67
Em 1975 – um ano antes do lançamento de Dona Flor e seus dois maridos, portanto – foi ao
ar Gabriela, a primeira telenovela adaptada de uma obra de Jorge Amado, com direção de
Walter Avancini e produção de Daniel Filho. No papel principal estava a jovem estrela Sônia
Braga, que seria a mesma protagonista de Dona Flor e, a partir de então, seria considerada
uma espécie de encarnação da sensualidade brasileira.
A influência da TV, portanto, faz-se ver já no ápice do período da Embrafilme e aparecerá de
forma mais ou menos intensa no cinema brasileiro a partir de então.
No peodo da retomada, mais especificamente, ela se faz mais presente, de formas distintas,
logo em seus primeiros filmes. Capitalismo selvagem (1994), de André Klotzel, por exemplo,
faz uma sátira explícita à linguagem das telenovelas e à sua predominância no Brasil. Carlota
Joaquina (1995), em muitos de seus aspectos, também reproduz elementos da TV como a
grande agilidade de produção, ou o elenco de atores popularizados pelas telenovelas e
seriados (Marieta Severo, Marco Nanini, Marcos Palmeira). Não é mera coincidência que a
Globo tenha retomado o mesmo tema e os mesmos personagens, com um tom semelhante, na
minissérie O quinto dos infernos, de Carlos Lombardi, exibida em 2002.
Outros filmes marcantes como O quatrilho, Pequeno dicionário amoroso (1997), de Sandra
Werneck, ou, claro, todas as produções estreladas pelas estrelas de TV Xuxa e Renato
Aragão, que sempre alcançaram sucesso de público nos cinemas, demonstravam a inevivel
influência da TV Globo sobre a produção cinematográfica. Em 1997 – um ano antes, portanto,
da entrada da Globo Filmes na produção –, Guerra de Canudos, de Sérgio Rezende, épico de
2h50, foi comprado pela Globo e exibido como minissérie o muito tempo depois de ter
saído de cartaz dos cinemas. Não foi preciso sequer fazer modificações substanciais além da
necesria divisão em catulos: Canudos já havia sido concebido dentro de um padrão
perfeitamente adequado ao da TV.
Para Ismail Xavier, parte dos filmes da retomada” expressa o fim da utopia do cinema
moderno brasileiro, que teria sido reforçada, justamente, com a incorporação do discurso
nacional-popular à retórica da TV Globo:
Conhecemos os rumos da cultura e da potica nos últimos anos, que
resultaram, para o cineasta brasileiro, nesse sentimento de perda do
68
mandato, de fim da utopia do cinema moderno. Como decorrência, há
um deslocamento da própria auto-imagem do cineasta que vive ainda a
potica da identidade nacional, da necessidade de um cinema brasileiro,
mas não traduz em seus filmes, com raras exceções, a mesma convicção
de ser um porta-voz da coletividade, terreno esse muito mais
incorporado, hoje, à retórica da Rede Globo, com sua versão
industrializada e mercadológica do nacional-popular, bem estampada
nas novelas e minisséries.
90
90
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro nos anos 90 (entrevista). IN: Praga: estudos marxistas, número 9. São
Paulo: Huitec, 2000. p. 99.
69
6. Origens e formas de atuação da Globo Filmes
Em um primeiro momento, a Globo Filmes foi pensada para acumular as funções de co-
produtora e distribuidora de longas-metragens nacionais. A primeira tentativa nesse sentido
ocorreu em 1995, quando as leis de incentivo começaram a surtir efeitos mais sólidos, a
quantidade de projetos cinematográficos aumentou substancialmente e despontaram os
primeiros sucessos de público da “retomada”.
A iniciativa de estabelecer uma parceria com a TV Globo partiu de Marco Aurélio
Marcondes, ex-cineclubista e ex-superintendente de comercialização da Embrafilme que, em
1990, montou um consórcio de distribuição com o exibidor Luiz Severiano Ribeiro (o
Consórcio SR&M). A partir de 1994, a distribuidora começou a investir em lançamentos
nacionais da nova safra e montou uma cartela de co-produções, estimulada pelas
possibilidades das leis de incentivo.
Em 1995, Marco Aurélio conheceu João Roberto Marinho (filho de Roberto Marinho, então
vice-presidente das Organizações Globo) e, numa conversa informal, apresentou a iia de
firmar uma parceria com a TV Globo. Alguns dias depois, foi convidado para um almoço com
a diretora geral da emissora, Marluce Dias, em que propôs oficialmente uma associação.
Nessa época ainda não falamos de produção, só de distribuição de filmes brasileiros. Expus o
que poderia ser feito e expliquei que a associação traria benefícios para ambos”.
91
Em outubro desse mesmo ano, pouco depois do bem sucedido lançamento de O quatrilho, o
Consórcio SR&M ampliou sua cartela de distribuição com oito novos projetos (entre eles,
Menino Maluquinho e Central do Brasil) e, mais uma vez, insistiu em uma parceria com a
Globo. Como a resposta não vinha, Marco Aurélio convidou Daniel Filho para ser um dos
diretores do Consórcio e se ofereceu para co-produzir o projeto que marcaria a volta de Daniel
à direção cinematográfica, depois de mais de dez anos: a adaptação da peça A partilha, de
Miguel Falabella.
91
Entrevista de Marco Aulio Marcondes à revista Ver Vídeo, edição número 81 (fevereiro de 2003).
70
Nesse momento, Marluce Dias da Silva voltou à cena e pediu que Daniel Filho não aceitasse o
convite de Marco Aulio Marcondes, revelando os planos de montar uma divio
cinematográfica na emissora, e que gostaria de contar com Daniel como diretor da nova
empreitada. Nessa mesma ocasião, ela convidou Marco Aurélio para integrar o staff da Globo
Filmes como responsável pela montagem de sua estrutura de distribuição.
Correções de rumo
Os primeiros anos de estruturação da Globo Filmes foram marcados pela cautela e por uma
indecisão quando a suas formas de atuação no mercado. A apresentação oficial da Globo
Filmes à imprensa, por exemplo, estava marcada para 17 de dezembro de 1997, no Projac,
mas foi adiada para março do ano seguinte, sob a alegação de que seria “inconveniente
oficializar o negócio em pleno mês de dezembro”.
92
Nesse período, na verdade, as primeiras
co-produções da Globo Filmes firmaram contratos com outras distribuidoras, o que
evidentemente minou o projeto de se montar uma estrutura própria de distribuição. “A Globo
optou por esse caminho. No momento em que se verificou que o desejo da companhia era
cuidar da produção, concluímos de que não teria sentido eu ficar ali”, explicou Marco Aurélio
Marcondes em entrevista à Folha, pouco depois de ter deixado a empresa. Luiz Gleiser, que
em setembro de 1998 substituiu Tom Flórido na direção de planejamento da Globo Filmes,
confirmou a desistência: “Somos produtores de conteúdo, essa é a nossa prioridade”.
93
Informalmente, outro motivo alegado foi que a montagem de uma distribuidora exigiria um
investimento alto em infra-estrutura (transporte de cópias, fiscalização dos resultados, etc),
além de uma administração delicada, fora da experiência de uma emissora de TV
(planejamento de circuito, marcação de filmes e um bom relacionamento com exibidores). A
Globo Filmes foi concebida com um orçamento enxuto e não havia previsão de grandes
investimentos diretos.
Mas é importante observar que essa decisão da Globo se deu exatamente no momento em os
produtores consolidavam o uso mais sistemático do artigo 3º da Lei do Audiovisual. Por meio
desse dispositivo, as distribuidoras de filmes que remetem dinheiro para o exterior (ou seja,
92
Nota publicada no caderno TV Folha, da Folha de S. Paulo, em 14 dez 1997.
93
, Nelson. Globo Filmes começa bem, mas desiste de sua distribuidora. Folha de S. Paulo, São Paulo, 3 mar
1999. Ilustrada, página 4.
71
principalmente as companhias americanas instaladas no Brasil, mas também as independentes
de grande e médio porte) podem utilizar recursos equivalentes a até 70% de seu imposto sobre
a remessa para lançar filmes brasileiros. Apesar de todo o discurso nacionalista da TV Globo
e dos produtores de cinema, não seria interessante abalar essa possibilidade de aliança, risco
que certamente se apresentaria caso fosse criada uma distribuidora exclusivamente nacional,
com inegável capacidade midiática. Essa opção poderia significar uma indisposição com
conseqüências poticas, além de ser, de fato, um movimento empresarialmente arriscado. Por
fim, atuar na distribuição dispersaria o foco central da defesa do “conteúdo nacional”, como
afirmou Luiz Gleizer.
94
A questão central estava na influência sobre a produção do conteúdo
– eo, pelo menos diretamente, na difuo.
Primeiros testes
Em sua nova conformação, a Globo Filmes passaria a atuar principalmente como produtora e
co-produtora, adotando três modalidades diferentes de participação nos projetos: transformar
minisséries em longas-metragens; desenvolver veículos cinematográficos para as estrelas da
emissora, ou, ainda, apostar em “filmes de qualidade”, com potencial comercial, apresentados
por outros produtores. O objetivo da direção era equilibrar essas três modalidades em uma
cartela anual, contendo, em média, de seis a oito títulos.
O primeiro filme a contar com o selo Globo Filmes foi Simão, o fantasma trapalhão, que
estreou nos cinemas em dezembro de 1998. De certa forma, representou um caminho híbrido
entre o desenvolvimento de um produto para uma estrela da emissora e uma associação com
um produtor de fora, na medida em que foi realizado pela produtora do próprio Renato
Aragão. Tratava-se, de qualquer forma, de um produtocerto”, concebido para a temporada
de férias e voltado para o público infantil. À sua frente estava um comediante de grande
popularidade que, desde 1977, com algumas poucas interrupções, comanda um programa
humorístico semanal na própria TV Globo.
Na verdade, no mesmo ano em que estreou na televisão – em 1966, na TV Excelsior, já como
líder do quarteto Os Trapalhões – o comediante iniciou uma bem-sucedida carreira
94
Um discurso que, é importante frisar, vem sempre acompanhado de ressalvas à livre iniciativa e à não-
interferência do Estado na economia e na liberdade criativa do setor, e que nesse sentido está em plena
consonância com o discurso das majors norte-americanas.
72
cinematográfica, produzindo e estrelando longas-metragens de freqüência praticamente anual,
quase sempre por intermédio de sua própria produtora. Renato Aragão e seu personagem Didi
Mocó tornaram-se exemplo raro no Brasil de conjugação de popularidade em cinema e em
televisão por um longo prazo. Os filmes d’Os Trapalhões atingiram seu ápice durante os anos
da Embrafilme, que por sua vez coincidiram com os primeiros anos do grupo na TV Globo,
depois de passagens pela Record e Tupi. Na época, porém, não houve qualquer relação direta
entre os dois meios – os filmes apenas se beneficiavam indiretamente da exposição de seus
atores na TV, mas eram empreendimentos separados.
95
Simão, o fantasma trabalhão teve um lançamento de peso, de 245 cópias, realizado pela
Columbia Pictures, alcançando um total de 1,6 milhão de espectadores e deslanchando, com
força, a participação da Globo Filmes no mercado.
Em janeiro de 1999, um mês depois de Simão, o fantasma trapalhão, estreou Zoando na TV,
filme concebido como veículo para a apresentadora Angélica e produzido com recursos
próprios da TV Globo, com diretor (José Alvarenga) e roteiristas (Carlos Lombardi e Mauro
Wilson) “da casa”. Mais uma vez, a distribuição foi da Columbia Pictures, que lançou o filme
em proporções mais modestas, mas, ainda assim, robustas (142 cópias). Trabalhou-se, aqui,
em um registro seguro, em que o próprio universo da TV é motivo de uma brincadeira lúdica,
e a montagem do filme é ditada pelo zapping de um controle remoto. Inspirado no livro Ludi
na TV, de Luciana Sandroni, o roteiro narra as aventuras de Angel (personagem de Angélica)
e seu namorado Ulisses (Márcio Garcia). Tragados pela televisão, eles precisam descobrir
como sair de lá. Zoando na TV teve um resultado considerado positivo na época, com 911,3
mil espectadores e uma renda total de R$ 3,4 milhões, mas, na verdade, esses números, tendo
em vista que o filme foi realizado com recursos próprios da Globo, muito provavelmente
representaram prejuízo – o que talvez explique porque essa modalidade só seria retomada no
ano de 2006, como veremos adiante.
95
Caminho semelhante foi traçado pela apresentadora Xuxa Meneghel, que no auge de seu programa infantil da
TV Globo (Xou da Xuxa), no fim dos anos 1980, produziu seu primeiro longa-metragem (Super Xuxa contra o
Baixo-astral, de 1988). Em 1990 – antes daretomdada”, portanto – ela se associou ao produtor Diler Trindade e
fez Lua de Cristal, que atraiu mais de cinco milhões de espectadores e estabeleceu o nome de Diler como
produtor de cinema. Eles só voltariam a realizar filmes em 1999 (com Xuxa Requebra), já beneficiando-se dos
mecanismos de incentivo fiscal, e só se associariam à Globo Filmes a partir de 2001, com Xuxa e os duendes.
73
Três meses depois, em abril de 1999, chegou aos cinemas Orfeu, de Carlos Diegues, primeiro
teste de associação da Globo com um produtor de fora. Com distribuição da Warner, o filme,
inspirado no musical de Vinicius de Moraes, atraiu um público de 961 mil espectadores, bem
próximo ao de Zoando na TV.
O público total dos filmes brasileiros neste primeiro ano de atuação da Globo Filmes foi de
5,7 milhões de espectadores. Os filmes com o selo da Globo (incluindo Simão, o fantasma
trapalhão, Zoando na TV, Orfeu e o filme de Renato Aragão que estreou em dezembro deste
mesmo ano, O Trapalhão e a luz azul), somaram 3,6 milhões, o equivalente a 63% do total.
Já se esboçava, neste momento, a concentração do público dos filmes nacionais nas co-
produções da emissora.
O Auto da Compadecida
A primeira grande demonstração de força da Globo Filmes coincidiu com a primeira aposta
na transformação de uma minissérie em longa-metragem. O auto da Compadecida, de Guel
Arraes, adaptação da peça homônima de Ariano Suassuna, foi inicialmente levado ao ar em
quatro capítulos, com grande audiência e aplauso da crítica, em janeiro de 1999.
Paralelamente à edição para a TV, o próprio Guel preparou uma versão mais curta, de 1h44,
pensando em um possível lançamento cinematográfico. Na época do lançamento, Guel
declarou que o orçamento do filme teria sido de R$ 400 mil – valor que, evidentemente,
desconsidera os custos de produção da minissérie e contabiliza apenas a finalização e a
transferência para pecula.
A versão para o cinema d’O auto estreou em 95 salas (um lançamento de porte considerado
mediano), com distribuição da Columbia Pictures, no dia 10 de setembro de 2000. Apesar da
substanciosa campanha de mídia, pairava no ar um certo ceticismo quanto à sua repercussão.
Não se acreditava que um produto já conhecido, e que tinha obtido altos índices de audiência,
pudesse funcionar nos cinemas. Mas O auto atraiu mais de 2,1 milhões de espectadores. Foi o
filme brasileiro mais visto do ano e, até aquele momento, líder de público da “retomada”,
mostrando que ineditismo não era condão sine qua non para um bom desempenho comercial
nos cinemas e confirmando o potencial da Globo Filmes para posicionar seus produtos no
mercado cinematográfico brasileiro.
74
O sucesso d’O auto assustou produtores de cinema – afinal, desenhava-se ali a possibilidade
de uma concorrência acirrada com produtos já pagos e testados pela máquina televisiva – e
incentivou Guel Arraes a reforçar uma antiga proposta, de montar dentro da TV Globo um
núcleo especializado na conversão em película de programas já prontos e exibidos. Para Guel,
o projeto era mais interessante do que a estrutura montada pela Globo Filmes por estar
inserido no contexto de convergência de mídias. “O núcleo de cinema já poderia existir na TV
Globo há muito tempo.rios trabalhos, como Grande Sertão: Veredas (minissérie adaptada
do livro de Guimarães Rosa, com direção de Walter Avancini, levada ao ar em 1985),
poderiam ter sido transformados em longa-metragem”, disse o diretor em entrevista ao jornal
Folha de S. Paulo.
96
No entanto, o fracasso das duas tentativas seguintes de se converter” para o cinema produtos
pré-existentes levou a Globo a esfriar esse modo de atuação. Em dezembro de 2000, a Fox
lançou com 153 cópias a comédia Um anjo trapalhão, versão em longa-metragem de um
especial de Natal com Renato Aragão exibido quatro anos antes, com o título de Visita de
Natal. Mas apenas 125 mil espectadores pagaram ingresso para vê-lo nos cinemas, o pior
desempenho de um filme de Renato Aragão em todos os tempos. Em 2001, foi feita uma nova
tentativa com Caramuru, a invenção do Brasil, minissérie de Jorge Furtado produzida pelo
núcleo de Guel Arraes, levada ao ar um ano antes, para as comemorações dos 500 anos do
descobrimento do Brasil. O filme fez o mesmo caminho de O auto da Compadecida
(lançamento pela Columbia, mas em dimensões ainda maiores – 170 cópias –, e grande
espaço de mídia), mas seu público no cinema não chegou a 250 mil espectadores.
Assim, O Auto da Compadecida revelou-se uma exceção, o que levou o próprio Guel a mudar
sua forma de atuação, optando por associar-se a uma produtora independente (a Natasha
Filmes de Paula Lavigne) e a Globo Filmes para levar às telas projetos que já havia dirigido
na TV, caso de Lisbela e o prisioneiro (2003) e de O coronel e o lobisomem (2005),
respectivamente uma minissérie e um especial de TV que foram completamente refilmados,
com novo roteiro e novo elenco, para suas versões cinematográficas (O coronel e o
lobisomem, na verdade, foi produzido por Guel Arraes e dirigido por Maurício Farias).
96
MATTOS, Laura. Globo pode formar núcleo de cinema. Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 out 2000. Ilustrada,
p. 7.
75
Capital virtual
Em pouco tempo, a modalidade de associação com projetos apresentados por produtores de
fora da TV Globo acabou predominando sobre as outras, mostrando-se extremamente eficaz
para os objetivos da emissora e gerando alguns dos maiores sucessos da Globo Filmes. Nela
se incluem, inclusive, os três tulos mais vistos da retomada”
97
.
Entre dezembro de 1998 e dezembro de 2005 (em sete anos de atuação, portanto), a Globo
Filmes participou de 36 longas-metragens nacionais, sendo que em apenas quatro sua marca
figura como produtora exclusiva nos créditos de apresentação: Zoando na TV, de Jo
Alvarenga (1999), O auto da Compadecida, de Guel Arraes (2000), Um anjo trapalhão
(2000), de Alexandre Boury e Marcelo Travesso, e Caramuru – A invenção do Brasil, de
Jorge Furtado (2001). Todos os outros, mesmo os que contavam com estrelas contratadas
como Xuxa, Renato Aragão, a dupla de cantores Sandy & Júnior, o grupo humorístico Casseta
& Planeta, foram realizados por produtores de fora.
Ao longo desses anos, a Globo Filmes associou-se a 14 produtoras diferentes, sendo que os
parceiros mais constantes foram Diler & Associados, de Diler Trindade (oito filmes, a maior
parte deles com Xuxa Meneghel), Conspiração Filmes (quatro), Total Entertainment (três),
Natasha Filmes, de Paula Lavigne (três), Lereby Filmes, de Daniel Filho (três), Rio Vermelho
Produções, de Carlos Diegues e Renata de Almeida Magalhães (três), O2 Filmes, de Fernando
Meirelles e sócios (dois), e LC Barreto, de Lucy e Luiz Carlos Barreto (dois).
Nesse tipo de associação, o modo de operação sistematizado pela empresa adquiriu
características peculiares, e que lembram bastante o apoio dado aos filmes brasileiros por
Walter Clark, quando ele ainda estava na TV Rio, e a estruturação da Indústria
Cinematográfica Brasileira, a tentativa frustrada da TV Globo de produzir cinema nos anos
70, também comandada por Clark.
Ao se associar a um projeto, a Globo Filmes não desembolsa recursos próprios para financiar
a produção, preferindo oferecer espaço em mídia no momento do lançamento. O capital
97
Dois filhos de Francisco, de Breno Silveira (Conspiração Filmes, 2005, 5,3 milhões de espectadores),
Carandiru, de Hector Babenco (HB Filmes, 2003, 4,6 miles de espectadores) e Cidade de Deus (O2 Filmes,
2002, 3,3 milhões de espectadores).
76
oferecido, portanto, não é dinheiro, mas um capital virtual” que só se concretiza no momento
da distribuição. Na verdade, esse espaço em dia não sai completamente sem custos para o
produtor, mas é bastante reduzido por meio de descontos. Dependendo da percentagem da
participação da Globo Filmes no contrato – e também das intenções do distribuidor, que
investirá em número de cópias e terá as outras despesas de lançamento –, o espaço em mídia
pode ser mais ou menos amplo. O importante é a certeza de que o filme contará com a
estrutura nacional da emissora para sua promoção tanto nos formatos tradicionais (ancios e
spots de TV) como na chamada cross media (citação e promoção nos programas). Este
segundo item – que analisaremos detalhadamente adiante – é ainda mais decisivo por permitir
que, segundo a orientação da emissora, os filmes sejam citados nas novelas e em programas
de variedades (Domingão do Faustão, Videoshow), ou mesmo se tornem pauta de reportagens
e entrevistas nos programas jornalísticos.
Esse sistema gera uma grande flexibilidade deão, permitindo à Globo Filmes aderir a um
projeto em qualquer uma de suas fases de realizaçãoinclusive a um filme já pronto. O caso
de Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, é exemplar nesse sentido. O diretor
apresentou o projeto a Daniel Filho ainda na fase do roteiro, mas o contrato não foi
assinado pois, “na Globo Filmes, Daniel era o único entusiasmado nessa fase inicial”, como
explica o próprio diretor:
Mesmo assim, Daniel Filho visitou o set pouco antes do início das filmagens
para ver o elenco. Quase no fim da montagem, veio a São Paulo e passamos
horas assistindo ao filme, enquanto ele dava toques de roteiro ou montagem.
Usei muitas de suas idéias, mas ele ouve também. Daniel sugeriu, por exemplo,
que a voz do narrador fosse a de um adulto, alguém contando a história nos
dias de hoje. Argumentei que poderia deixar o filme nostálgico e ele
concordou.
98
O contrato com a Globo Filmes foi efetivado quando o filme estava praticamente pronto,
mas Cidade de Deus foi um dos filmes que mais recebeu apoio de mídia, em todos os seus
formatos, no momento de seu lançamento.
98
Depoimento ao autor.
77
Desenvolvimento de projeto
O caso de Cidade de Deus, porém, é exceção. A preferência da Globo Filmes está no
estabelecimento de parcerias ainda na fase do roteiro, para que se possa acompanhar de perto
o desenvolvimento dos projetos e estabelecer uma relação próxima com o produtor e o diretor.
Carlos Eduardo Rodrigues, diretor geral da Globo Filmes desde 2002, explica:
Quando se fala da participação da Globo Filmes em um sucesso, só se presta
atenção na dia, enquanto o processo é bem mais abrangente. Temos
participação ativa desde o momento em que escolhemos o projeto até hora do
lançamento. Estamos interessados em obras de conteúdo nacional, de qualidade
e com potencial popular. (...) A parceria que a gente propõe ao cinema é essa:
desenvolver projetos que aproximem o público brasileiro do nosso cinema,
criem o hábito de ver filmes nacionais, assim como a TV aprendeu a
acompanhar e entender o gosto dos brasileiros
99
.
Essa interferência se dá em vários níveis. Ainda nas palavras de Carlos Eduardo Rodrigues:
Uma equipe avalia os roteiros que chegam à Globo Filmes seguindo uma
metodologia que leva em conta conceito, desenvolvimento, personagens,
diálogos, valores sociais, etc. Os que são aprovados ganham uma avaliação
detalhada de Daniel Filho. Depois, o conselho artístico (formado por mim, por
Guel Arraes e por Juarez Queiróz, coordenador de projetos de cross media da
Globo) se reúne e discute a grade de filmes. Então, esses projetos são
apresentados à alta direção da Globo, para dar o ok e discutir os parâmetros de
negociação. Passamos então à supervisão artística, que inclui acompanhamento
do roteiro, apoio à produção, escolha do elenco e muito mais (...). Na minha
opinião, atestada pela vivência prática dos resultados, a supervisão artística é a
melhor contribuição que a Globo Filmes pode dar a um projeto. Mal
comparando, desempenhamos o papel do produtor americano adaptado à
realidade brasileira”.
100
Trata-se, portanto, de uma espécie de “transferência de know how”, ou de uma “pedagogia” da
visão industrial/comercial dos produtos audiovisuais, que é traduzida em uma intervenção
direta na formatação do projeto do filme, para sua futura aceitação pelo público. É claro que
essa atuação terá conseqüências estéticas intimamente ligadas ao próprio “padrão Globo de
qualidade”.
99
Entrevista ao boletim Filme B número 284. 22 abr 2003, p. 1.
100
Ibidem, p. 2.
78
Quando o contrato com o filme é assinado em seu estágio inicial, Carlos Eduardo Rodrigues,
Daniel Filho e a equipe da Globo Filmes sugerem alterações de roteiro, adequações de
orçamento e, em muitos casos, a escalação do elenco. A medida em que essas sugestões são
aceitas, ou não, afetará o grau do apoio conferido pela emissora no momento do lançamento.
O caso do desenvolvimento de Sexo, amor e traição (2004), de Jorge Fernando, é um bom
exemplo de (re)formatação de um projeto. A produtora carioca Total Entertainment comprou
os direitos de refilmagem de Sexo, pudor e lágrimas, grande sucesso do cinema mexicano de
1999, escrito e dirigido por Antonio Serrano, para fazer uma refilmagem no Brasil. O roteiro
original aproveita a estrutura de um vaudeville amoroso, envolvendo dois casais de amigos e
um terceiro casal, mas inseria nesta fórmula altas doses de melodrama.
A Total Entertainment firmou contrato com a Globo Filmes desde o início da produção, e, sob
a orientação do produtor associado Daniel Filho e do diretor Jorge Fernando (contemporâneo
de Guel Arraes na TV Globo e especialista em telenovelas cômicas como Guerra dos sexos,
realizando aqui seu primeiro longa-metragem), várias modificações foram impressas. Para
começar, do título original caíram as palavras “pudor” e “lágrimas” e entraram “amor” e
traição”. Uma decisão que já muda o tom do projeto, retirando o melodrama e transformado-
o em uma comédia de costumes. Os diálogos foram completamente reescritos por roteiristas
com experiência em TV (Denise Bandeira e Emanuel Jacobina), o atropelamento com morte
do filme original foi substitdo por um acidente grave, mas de fundo cômico (em que o
personagem reaparece todo enfaixado), e o elenco foi montado com estrelas de telenovelas,
com um detalhe importante. Quando o filme estreou, em janeiro de 2004 (posicionando-se,
portanto, como um “filme de verão”), a dupla de protagonistas, Malu Mader e Fábio
Assumpção, estava no ar com a novela Celebridade, de Gilberto Braga.
O grau de interferência da equipe da equipe da Globo Filmes nos projetos é extremamente
variável e não está necessariamente condicionado à quantidade de apoio em mídia que um
filme receberá. Cidade de Deus, por exemplo, recebeu exposição maciça na Globo (e fora da
Globo, na medida em que se tornou um fenômeno de repercussão nacional) apesar da
interferência na produção ter sido pouca. Carandiru e Dois filhos de Francisco também
receberam grande aporte sem que houvessem intervenções evidentes na linguagem ou no
elenco. Ao mesmo tempo, um filme como O homem que copiava, de Jorge Furtado, recebeu
um grau de exposição menor (e também foi lançado em proporção menor pela distribuidora,
79
Columbia Pictures) em função de um detalhe narrativo do qual o diretor não abriu mão: a
longa narração em off que marca o começo do filme, que dura mais de dez minutos. A decisão
do diretor de não diminuí-la, se não foi decisiva, certamente pesou no momento de se definir
qual seria o “tamanho” do lançamento, que recebeu o tratamento de um filme “médio” (70
pias).
Os normais
A modalidade de associação com produtores independentes trouxe os maiores sucessos da
Globo Filmes, mas também causou seu primeiro embaraço legal. Em 2002, uma denúncia
pública questionou a autorização dada pelo ministério da Cultura para a captação de R$ 3
milhões em recursos incentivados para o longa-metragem Os normais, baseado em um seriado
da TV Globo no formato de uma sitcom, com Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães, e
que foi ao ar entre 2001 e 2003. O projeto foi inscrito no ministério tendo como produtora
responsável a Missão Impossível Cinco Produções Artísticas (MI5), cujo sócio-titular é
Eduardo Figueira, executivo da TV Globo. Houve a forte suspeita de que a MI5 havia sido
criada como um mero artifício para que a Globo Filmes tivesse acesso a recursos do benefício
fiscal, reservados por lei a produtoras independentes não ligadas a empresas de radiodifusão.
Em agosto de 2002, o ministério suspendeu a autorização para captação de recursos, alegando
que os direitos autorais da obra haviam sido cedidos pelos autores Alexandre Machado e
Fernanda Young com exclusividade à TV Globo – e que, portanto, a MI5 não poderia ter
apresentado o projeto. Em setembro de 2003, a decisão foi revertida depois que um novo
projeto foi apresentado à Agência Nacional de Cinema (Ancine), no qual os autores cediam os
direitos à MI5, enquanto a Globo Filmes aparecia em um contrato de associação. Os normais
estreou nos cinemas sem obstáculos no mês seguinte, com distribuição da Lumière, com 246
pias, tornando-se um dos filmes mais bem sucedidos da “retomada” (2,9 milhões de
ingressos vendidos).
O episódio remete ao lobby da TV Globo para que as emissoras de televisão tenham acesso
aos incentivos fiscais para a produção de todo o seu “conteúdo nacional”, incluindo, portanto,
telenovelas e minisséries. Em maio de 2000, o então ministro da Cultura Francisco Weffort
chegou a propor ao presidente Fernando Henrique Cardoso a abertura da Lei do Audiovisual
às empresas de radiodifusão, o que provocou uma reação imediata do setor cinematográfico,
80
já que os produtores independentes (mesmo de grande porte) teriam que competir na captação
de recursos com a televisão. Nesse ponto, portanto, houve uma rara colisão de interesses, mas
que não chegou a abalar a atuação da Globo Filmes, que não levou esse lobby à frente e
preferiu manter sua associação com produtoras de fora como sua principal forma de atuação.
Cross-media
Grande parte do poder de influência da Globo Filmes não está no espaço tradicional de mídia,
ou seja, os comerciais e spots de TV que vão ao ar nos intervalos da programação. Seu maior
poder de fogo no momento de potencializar uma campanha de marketing encontra-se na
chamada cross media.
A cross media é um exemplo de como a concentração da produção sob um mesmo teto
permite uma cuidadosa manipulação do conteúdo de programas jornalísticos e ficcionais no
sentido de se “produzir fatos” que possam interessar à emissora. Desde o começo da Globo
Filmes, a cross media tem sido intensamente utilizada para promover os filmes co-produzidos
pela empresa, e representam o diferencial mais importante, por exemplo, em relação às
campanhas dos blockbusters americanos. Seu formato mais simples é a citação do filme por
um personagem de novela identificado com a temática ou, ainda, uma reportagem em um
programa jornalístico que apresente um tema afim ao do filme (na época do lançamento de
Cidade de Deus, por exemplo, o Jornal Nacional levou ao ar, durante uma semana, uma série
de reportagens sobre a violência nas favelas cariocas).
Mas a cross media também pode assumir formas mais sofisticadas, e que em geral são usadas
quando o filme está em cartaz algum tempo, funcionando assim como uma ferramenta de
sustentação e renovando seu fôlego no mercado.
Por exemplo: o filme Cazuza, de Sandra Werneck e Walter Carvalho, estreou no dia 11 de
junho de 2004 com cerca de 150 cópias distribuídas pela Columbia Pictures. Em seu primeiro
fim de semana, atraiu quase 300 mil espectadores, o que, desde o início, o caracterizou como
um grande sucesso de público. O único senão estava na classificão indicativa estabelecida
pelo Ministério da Justiça, determinando a inadequação do filme para menores de 16 anos, o
que afastava uma parcela do público jovem das salas de cinema.
81
No dia 2 de julho de 2004, o ministério publicou uma portaria modificando as regras de
entrada de menores e adolescentes aos cinemas. A decisão foi fruto de um processo de
reforma no sistema de classificação etária que vinha se arrastando há tempos, passando a
permitir “o acesso de crianças e adolescentes a obras audiovisuais classificadas como
inadequadas à faixa etária no limite na qual se inserem quando na companhia dos pais ou
responsáveis expressamente autorizados”.
101
Pois bem: alguns dias depois do anúncio da
portaria, a nova medida foi tema de uma reportagem no Jornal Nacional que terminava com
depoimentos de um grupo de adolescentes na porta de um cinema, comemorando o fato de
que, enfim, eles poderiam assistir a Cazuza. O filme estava entrando em sua quinta semana
em cartaz, e o público deste fim de semana apresentou uma queda de apenas 5% em relação
ao fim de semana anterior – quando o normal, nessa etapa, seria uma queda entre 20% e 25%.
Outros exemplos de fortes ações de cross media eso em Dois filhos de Francisco, de Breno
Silveira, que estreou no dia 19 de agosto de 2005 para se tornar a produção brasileira de maior
público da retomada (5,3 milhões de espectadores). No dia 1º de setembro, o filme, que narra
a infância dos cantores sertanejos Zezé Di Camargo e Luciano e o esforço de seu pai para
transformá-los em uma dupla de sucesso, ganhou uma sessão especial para os jogadores da
seleção brasileira, o técnico Carlos Alberto Parreira e o coordenador técnico Zagallo, na
granja Cromary. A sessão foi motivo de uma longa reportagem no programa dominical
Fantástico. Em seus depoimentos, os jogadores se derramavam em elogios ao filme, mas,
principalmente, afirmavam ter se identificado profundamente com os personagens centrais.
Também fui criado com muitas dificuldades, em uma família de sete iros. Muita coisa do
filme me lembrou a história da minha vida, que é também a de muitos jogadores”, afirmou,
por exemplo, o capitão Cafu.
102
Esse tipo de ação, por sinal, amplifica a repercussão do filme
para além dos limites da TV Globo, já que a exibição do filme para a seleção brasileira se
tornou pauta de vários jornais impressos, agências de notícia e sites da internet.
Outra ação produzida pela TV Globo para o mesmo filme foi uma aparição surpresa da dupla
Zezé Di Camargo e Luciano em uma sessão normal de Dois filhos de Francisco em um
cinema paulista. Uma câmera capaz de captar imagens no escuro mostrou a reação
emocionada da platéia durante a projeção, e quando as luzes se acenderam, Zezé Di Camargo
101
Portaria 1.597 de 2 de julho de 2004 (disponível no link
http://www.mj.gov.br/classificacao/legislacao
).
102
Notícia da agência AN (http://www.an.com.br/2005/set/03/0esp.htm).
82
e Luciano entraram cantando na sala de cinema, para comoção dos espectadores. A
“reportagem” sobre a sessão foi ao ar no Fantástico.
Descompassos
Mas a forte ação midiática não é suficiente, por si só, para garantir a afluência do público.
Muitas vezes, filmes que tiveram grande exposição de mídia simplesmente não apresentaram
os resultados esperados. Assim, o quadro de atuação da Globo Filmes no mercado desenhou-
se com contornos complexos e, em várias ocasiões, surpreendentes. Alguns filmes que eram
dados como blockbusters certos fracassaram; projetos convencionais que obedeciam à suposta
demanda de um público mais elitizado e freqüentador de shopping centers obtiveram bons
resultados, mas nada excepcionais, enquanto outros, que geraram insegurança muito maior,
superaram todas as expectativas.
Os dois exemplos mais significativos de co-produções da Globo Filmes que fracassaram em
relação à exposição de mídia que receberam foram Casseta & Planeta – A taça do mundo é
nossa, de Lula Buarque de Holanda, produzido pela Conspiração, e Acquaria, de Flávia
Moraes, produzido pela Spectra Mídia.
Casseta & Planeta – A taça do mundo é nossa foi o primeiro longa-metragem com o célebre
grupo de humoristas que possui um programa semanal na TV Globo. Chegou aos cinemas no
dia 21 de novembro de 2003, com 250 cópias distribuídas pela Warner e a expectativa de
alcançar 2,5 milhões de ingressos vendidos. Semanas antes de o filme entrar em cartaz, o
grupo colocou no ar em seu programa o irônico quadro “Especial merchandising”, que só
falava do filme, e os humoristas se dividiram em dois grupos que freqüentaram programas
como Fantástico, Domingão do Faustão, Vídeo show, Altas horas e o Jornal Hoje. A ação do
Fantástico foi particularmente intensa: no domingo anterior à estia os humoristas abriram o
programa e durante cerca de dez minutos entrevistaram jogadores de futebol sobre um dos
temas centrais da história (o roubo da Taça Jules Rimet). Mas A taça do mundo é nossa não
estreou bem e seu público total estacionou em 690 mil espectadores.
Acquaria, por sua vez, apresentou-se como uma das produções mais caras dessa nova fase do
cinema brasileiro, com orçamento em torno de R$ 7 milhões. Sua campanha de lançamento
articulou, pela primeira vez no período da “retomada”, uma grande distribuidora (a Fox), uma
83
gravadora (a Universal Music) e a Globo Filmes. A direção marcava a estréia no cinema de
uma estrela da publicidade, Flavia Moraes, e o elenco era capitaneado pela dupla de cantores
Sandy & Júnior, que na época tinha um programa de boa audiência na TV Globo. A Fox
confeccionou nada menos que 340 cópias e gastou cerca de R$ 3 milhões na campanha, mas o
filme realizou uma curta carreira e fez 837 mil espectadores, quando a expectativa era superar
a casa dos três milhões de ingressos vendidos.
A análise genérica dos profissionais do mercado apontou erros de projeto e de estratégia de
marketing para a má repercussão dos filmes. Acquaria optou por usar comedidamente o maior
apelo da dupla de protagonistas (a música) e até mesmo por esconder do público de que se
tratava de um filme de Sandy & Júnior. Partiu-se do pressuposto que esse segmento (os fãs
dos cantores) já estava automaticamente conquistado e que era preciso vender a história para
aqueles que não eram fãs. O filme, assim, foi “vendido” como uma aventura ecológica de tons
futuristas em que os nomes de Sandy & Júnior mal apareciam. Alguns boatos deram conta,
ainda, de que a renovação do contrato da dupla com a Globo foi feita próxima ao lançamento
do filme, e que a cross media havia sido significativamente reduzida em função de das
dificuldades impostas pelo empresário para a renovação.
Casseta & Planeta, por sua vez, optou por um roteiro situado nos anos da ditadura militar, um
assunto que até pode ser adequado para o humor politicamente incorreto do grupo, mas que,
na prática, se revelou absolutamente distante do universo do público que assiste ao seu
programa de humor, essencialmente calcado em paródias de telenovelas da própria TV Globo.
Cidade de Deus
No outro lado da moeda – o caso das expectativas superadas –, mais uma vez o caso de
Cidade de Deus chama atenção, principalmente por ter quebrado um certo paradigma do que
se convencionou ser a demanda do público do cinema brasileiro contemporâneo.
O projeto de Cidade de Deus foi desenvolvido por mais de cinco anos pela empresa de
Fernando Meirelles, a O2 Filmes, que nos anos 1990 tornou-se uma das maiores produtoras
de filmes publicitários do país. Adaptado do livro homônimo de Paulo Lins, o roteiro
descreve o surgimento de uma das maiores favelas do Rio de Janeiro e narra como o tráfico de
drogas se implantou ali, entre o fim dos anos 60 e o começo dos anos 80.
84
O histórico deste filme em relação à busca de financiamento é singular. Com o projeto já
adiantado e o roteiro em mãos, Fernando Meirelles partiu em busca de parceiros via Lei do
Audiovisual, mas não conseguiu nada. A alegação principal era de que nenhuma empresa
gostaria associar seu nome a uma história violenta. As grandes distribuidoras americanas
também não abraçaram o projeto, que ficou com uma distribuidora independente de grande
porte (a Lumière). Como é um realizador paulista, Fernando Meirelles sabia da necessidade
de uma ampla base de apoio no Rio, e para tanto procurou a Videofilmes de Walter e João
Moreira Salles. Pela parceria com a Videofilmes, Fernando chegou a um possível distribuidor
internacional (a Miramax), que se interessou, mas, apesar das promessas, não chegou a se
comprometer antes que a obra estivesse pronta. Sem outras opções, Fernando bancou os quase
R$ 3 milhões de orçamento com recursos próprios, acumulados em anos de publicidade.
Só quando Cidade de Deus ficou pronto e foi selecionado para o Festival de Cannes é que
começaram, de fato, a aparecer investidores concretos (Fernando Meirelles esclarece que
recuperou cada centavo investido). Na ocasião do lançamento, a Lumière e a Globo Filmes
montaram uma estratégia de divulgação e marketing bastante ampla, mas, pelo menos em
termos de números de cópias (100), era relativamente tímida se considerados os maiores
lançamentos da época (que já ultrapassavam 300 cópias). Isso porque o sentimento geral era
de apreensão. Apesar da confiança no impacto do filme, havia sérias dúvidas de como o
público brasileiro reagiria a uma história de teor extremamente violento, interpretada por
atores desconhecidos, quase todos jovens negros vindos das favelas cariocas. Parte do
vaticínio dos profissionais do mercado apontava para um fracasso retumbante. Outros, menos
pessimistas, chegaram a apostar em 600 mil espectadores. A Lumière acreditava em um
milhão.
Cidade de Deus estreou em agosto de 2002 para se tornar um fenômeno de público,
triplicando as estimativas da distribuidora e chegado a 3,3 milhões de espectadores. Seu
sucesso quebrou um certo pensamento estabelecido de que “filmes de mercado” seriam
apenas aqueles mais obviamente relacionados à estética televisiva, como as histórias infantis,
produções históricas ou comédias de costume e comédias românticas. Cidade de Deus
instaurou-se no centro de um debate nacional que certamente foi gerado e amplificado pela
Globo, mas que a certa altura contaminou todos os outros veículos de comunicação, tornando-
85
se tema de debates inflamados em relação a questões estéticas e sócio-culturais ligadas,
principalmente, à representação da violência carioca e das minorias sociais.
Por outro lado, o filme também es ligado a um movimento inverso bastante raro no
audiovisual brasileiro, principalmente na TV aberta – a geração de um novo produto
televisivo a partir do longa-metragem
103
. Em 2001, um ano antes da estréia de Cidade de
Deus, a TV Globo procurou cinco produtoras independentes brasileiras pedindo propostas de
programas para serem realizados em regime de co-produção. A Conspiração Filmes, a
Videofilmes, a Trama, a Casa de Cinema de Porto Alegre e a O2 (pelo menos duas com farta
experiência em publicidade) foram contatadas, mas apenas a O2 e a Casa de Cinema de Porto
Alegre levaram adiante seus projetos. As outras produtoras preferiram não seguir com suas
propostas, em função de prazos curtos e orçamentos apertados. O projeto de Cidade dos
homens retomava os personagens Laranjinha e Acerola, do curta Palace II, que foi realizado
como uma espécie de “laboratório” para testar o elenco e as possibilidades estéticas de Cidade
de Deus. Palace II circulou como curta-metragem nos cinemas e foi exibido pela TV Globo
em 2001, como um dos episódios da série Brava Gente. Nas palavras de Fernando Meirelles:
o os mesmos criadores, a mesma equipe, os mesmos atores, mas podemos
dizer que um é o avesso do outro: Cidade de Deus é um drama com toques de
comédia sobre traficantes no Rio; Cidade dos Homens é uma comédia com
toques de drama sobre uma comunidade carioca, mas os traficantes só
aparecem como pano de fundo. Um projeto complementa o outro
104
.
A primeira temporada de Cidade dos homens foi ao ar pouco mais de três meses depois da
estréia de Cidade de Deus na Semana da Criança, entre 15 e 18 de outubro, no horário de
22h30. Foram quatro episódios que obtiveram excelentes índices de audiência para o horário
(superiores à média de 20 pontos), garantindo a realização de uma segunda temporada em
2003. Em 2004, mais cinco episódios foram produzidos, e, aos poucos, Cidade dos homens
tornou-se um megaprojeto: houve uma quinta e última temporada, em 2005, e, em 2006, o
material será transformado em um novo longa-metragem, contando a história do crescimento
dos protagonistas Laranjinha e Acerola até completarem 18 anos.
103
Em 1999, o canal de TV paga Multishow exibiu o seriado Como ser solteiro, inspirado no longa-metragem de
mesmo nome, escrito e dirigido por Rosane Svartman, lançado nos cinemas um ano antes.
104
Depoimento publicado no DVD da primeira temporada de Cidade dos homens.
86
No quadro geral da programação da TV Globo, Cidade dos homens chamou atenção pela
representação inédita da pobreza e a visibilidade de atores negros. Em contraste com o próprio
filme Cidade de Deus, Cidade dos homens não apresentou a favela como um meio quase
exclusivamente de propagação da violência e da brutalidade. Houve uma preocupação (ora
mais bem sucedida, ora menos) de se falar do cotidiano, de amizade, de namoro, de luta pela
sobrevivência, de diversão. Quatro episódios se destacaram nesse sentido: Uolace e João
Vitor, da primeira temporada, Sábado, da segunda temporada (sobre uma noite no baile funk),
e Foi sem querer e Pais e filhos, da quarta temporada.
Blockbusters nacionais
De uma maneira geral, a associação da Globo Filmes com setores da produção foi interessante
para ambos. Apesar de ter abraçado o papel de produtora e de ter refutado a função da
distribuição, a atuação da Globo foi toda voltada (mesmo no sentido de “intervenção
artística”) para gerar efeitos no momento do lançamento. É lá, na contagem do público e da
renda, que a presença da marca Globo faz sua maior diferença – apesar de não ser, por si só,
garantia absoluta de sucesso.
A entrada da Globo Filmes no cenário audiovisual trouxe de volta a figura do blockbuster
nacional e jogou alguns títulos nacionais nas alturas dos rankings de filmes mais vistos do
ano, ao lado dos blockbusters norte-americanos. Dessa maneira, ajudou a capitalizar alguns
produtores, ocupar brechas de mercado enchendo cinemas em datas “vazias” – e assim,
portanto, agradando aos exibidores –, além de ter trazido de volta aos cinemas um público que
estava completamente afastado das salas. Essa eficácia numérica termina, enfim, reforçando o
discurso de uma suposta “luta com o inimigo estrangeiro”:Quando lançamos um filme,
estamos disputando com o produto estrangeiro, pelo market share do cinema nacional. Minha
briga é com Homem-aranha, minha ambição é alcançar Titanic”, afirma Carlos Eduardo
Rodrigues
105
.
Essa demonstração de força atingiu seu ápice em 2003, quando o número total de
espectadores que assistiram a prodões nacionais chegou a 22 milhões, um aumento de
202% em relação a 2002, equivalente uma ocupação de mercado inédita para o período da
105
Entrevista ao boletim Filme B número 284. 22 abr 2003, p. 2.
87
retomada (de 21,4%). Outros seis títulos co-produzidos pela emissora, além de Carandiru,
alcançaram marcas excepcionais: Lisbela e o prisioneiro, de Guel Arraes (3,1 milhões de
espectadores); Os normais, de Jo Alvarenga (2,9 milhões), Maria, mãe do filho de Deus, de
Moacyr Góes (2,3 milhões); Xuxa e os duendes 2, de Paulo Sérgio Almeida e Rogério Gomes
(2,3 milhões); Didi – O Cupido Trapalhão, de Paulo Aragão e Alexandre Boury (1,7 milhão),
e Deus é Brasileiro, de Carlos Diegues (1,6 milhão).
Carandiru, de Hector Babenco, repetiu e expandiu a idéia do filme-evento iniciada por
Cidade de Deus. Nas 30 semanas consecutivas que ficou em cartaz, atraiu mais de 4,6
milhões de espectadores, superando o recordista anterior. Dois anos depois, também foi
transformado em série de TV (Carandiru – Outras histórias). As origens dos dois filmes
guardam pontos em comum. Como Cidade de Deus, Carandiru é a adaptação de um livro
“inspirado em fatos reais”, que na tela assumiu a forma um épico moderno, urbano, ligado à
questão da violência. Sem ter provocado uma polêmica tão intensa, Carandiru também gerou
discussões. Houve, primeiro, a reação da polícia à encenação do massacre dos presos, que
teria sido parcial em favor das vítimas (o filme, em seu desfecho, assume essa parcialidade
com uma cartela que afirma estar sendo reproduzido o relato dos sobreviventes). Falou-se
também dos principais aspectos narrativos. Ao se pretender um épico, o filme ignoraria a
violência real do cotidiano da prisão, com seus tempos mortos, e a opção por uma descrição
naturalista dos acontecimentos contribuiria para o esquecimento dos aspectos produtores da
violência, privilegiando exclusivamente seus efeitos.
Foi, no entanto, o conjunto de filmes nacionais que chegou aos cinemas em 2003 que permitiu
essa explosão de público. É preciso ter cuidado para não enxergar, nesses resultados, um
aspecto progressivo ou evolutivo da participação do filme nacional no mercado (o chamado
market share) nesse período. O crescimento exponencial de 2003 foi resultado da combinação
de uma safra privilegiada em termos de posicionamento de mercado, mas também guarda
forte relação com um processo bem mais amplo, que tem como âncora o fortalecimento do
cinema no Brasil como um todo.
É verdade que, a partir de 1999, quando a Globo Filmes passou a atuar de fato, a presença do
filme brasileiro apresentou crescimento significativo em relação aos anos anteriores – mas
essa alta foi flutuante e inconstante. Entre 1995 e 1998 (até, portanto, um ano antes da entrada
definitiva da Globo Filmes em cena) o número de espectadores dos filmes brasileiros oscilou
88
entre 2,5 milhões e 3,5 milhões, equivalentes a uma fatia de mercado entre 3% e 5%. Em
1999, quando estrearam Orfeu e Zoando na TV, esse número saltou para cerca de seis milhões
(+66%), com um market share de 5%. Os três anos seguintes (2000, 2001 e 2002) foram
marcados por certa estabilidade (cerca de sete milhões de espectadores e uma ocupação de
mercado variando entre 7% e 10%), até o salto de 2003.
Ainda que a Globo Filmes tenha desempenhado um papel preponderante nesse processo, não
foi apenas a sua ação que gerou a alta doblico. Sua entrada em cena potencializou a
posição do produto nacional em um contexto maior de crescimento do mercado
cinematográfico, do qual se beneficiou, também, o filme estrangeiro. A “retomada” do cinema
brasileiro, a partir de 1995, coincidiu com um período de recuperação geral do mercado de
cinema no Brasil, depois da forte retração causada, justamente, pela penetração da TV no
país.
Outra retomada
Entre o fim dos anos 1970 e o começo dos anos 1990, o número de salas de exibição
brasileiras foi reduzido em cerca de um terço, caindo de 3 mil (em 1977) para cerca de mil
(em 1995)
106
. Sofreram, principalmente, as salas do interior, que não resistiram à
concorrência do entretenimento gratuito oferecido pelas “espinhas de peixe” (as antenas que
levaram a programação da TV para praticamente todos os municípios), e como conseqüência
o total de público de cinema caiu de aproximadamente 250 milhões de espectadores por ano
para 70 milhões (-72%).
O público do filme brasileiro, especificamente, reduziu-se de maneira mais drástica. Entre o
fim da década de 1970 e começo dos anos 80, quando a política cinematográfica centralizada
da Embrafilme, somada ao sucesso popular das pornochanchadas, levou a um dos períodos
mais fortes do cinema brasileiro em seu próprio mercado, as marcas chegaram a mais de 60
milhões de ingressos vendidos para os filmes nacionais (em 1978) e percentuais de market
share de até 30%. Esse número foi diminuindo gradativamente a partir de meados da década
de 1980, conforme a crise da Embrafilme e a crise do setor da exibição se agravavam,
106
Dados extraídos do CD-rom Database Brasil 2004, da editora Filme B.
89
reduzindo-se a quase zero nos primeiros anos da década de 1990, depois que a Embrafilme foi
sumariamente extinta pelo presidente Fernando Collor de Mello.
107
Para o cinema brasileiro, o quadro começou a se reverter lentamente a partir de 1993, com a
entrada em cena das leis de incentivo fiscal. Para o cinema em geral, a recuperação começou
em 1997, quando grupos estrangeiros do setor da exibição entraram no país e o número de
salas de cinema voltou a aumentar depois de anos de decnio. A partir desse ano, os totais de
telas e de espectadores voltaram a apresentar crescimento até que, em 2003, mesmo ano
“histórico” do cinema nacional, oblico total de cinema no Brasil retornou à casa dos 100
milhões (na verdade, foram 102,9 milhões) – marca que não era atingida desde o fim da
década de 1980.
O crescimento do filme brasileiro, portanto, não teria sido possível sem a retomada geral do
crescimento do setor da exibição, a regularização da oferta da produção e, principalmente, os
novos investimentos feitos na área da comercialização – em que se destacam a participação
das grandes distribuidoras e da Globo Filmes. Em linhas gerais, a presença mercadológica do
cinema brasileiro da retomada se torna efetiva a partir de uma recuperação geral do cinema
como lazer e de uma aliança de setores da produção com as grandes distribuidoras
estrangeiras e independentes e, a partir de 1998, com a maior emissora de TV do país.
A ação da Globo Filmes, nesse ponto, se deu principalmente no sentido de mobilizar um
público que se encontrava afastado do entretenimento cinematográfico. A partir da entrada do
multiplex no Brasil, o cinema sofreu um processo de elitização em conseqüência da
transferência das salas para os shopping centers e do encarecimento do preço do ingresso. A
TV firmou-se como o entretenimento audiovisual gratuito para a maior parte da população de
baixa renda, enquanto o cinema, segundo conceitos dos próprios profissionais do mercado,
seria um lazer destinado principalmente às classes A e B. No entanto, a configuração de
femenos como Cidade de Deus, Carandiru ou mesmo um filme de visível apelo popular
como Maria, a mãe do filho de Deus mostraram que os grandes sucessos de público só
poderiam se constituir na medida em que conseguiam extrapolar os multiplex. Todos esses
filmes apresentaram um desempenho considerado superior à média nos chamados “cinemas
107
Cinema brasileiro: um balanço dos cinco anos da retomada do cinema nacional. Brasília,
Ministério da Cultura, 1999.
90
de rua” (que, apesar de terem sido drasticamente reduzidos, ainda respondem por 50% do
circuito exibidor brasileiro) e nos multiplex das áreas mais populares.
Concentração de público
Os resultados de 2003 evidenciaram um fator que já vinha se desenhando anteriormente –
uma alta concentração do público nas co-produções com a marca da Globo. Em seus três
primeiros anos de ação, entre 1999 e 2001, os filmes produzidos pela emissora não passaram
de três por ano, mas, ainda assim, responderam por mais de 50% do total de ingressos
vendidos para filmes nacionais em cada um desses anos. Em 2002 (ano de Cidade de Deus),
essa marca pulou para 69% (com três títulos lançados); em 2003, foi para 88% (11 títulos
lançados), e, em 2004, ficou em 85% (10 títulos). Enquanto isso, cerca de 70% dos
lançamentos brasileiros (ou mais) não conseguem atingir a marca de 100 mil espectadores.
Vê-se, portanto, que essa concentração aumenta na mesma proporção que a Globo Filmes
aumenta sua participação na agenda de estréias, o que significa que foi precisamente a sua
ação que alargou o espectro dos filmes brasileiros. Esse efeito de concentração, portanto, é
resultado de um aumento efetivo do público que vai aos cinemas assistir a filmes nacionais,
mas essa afluência é praticamente com exclusividade para as produções da Globo Filmes. Não
houve um deslocamento de público de um tipo de filme para outro, mas sim a adesão de um
novo público, que não se distribuiu pela diversidade de títulos nacionais ofertados a cada ano.
Na medida que as produções da Globo Filmes foram se impondo com força avassaladora,
instalou-se um imediato mal-estar nos setores da produção “sem Globo Filmes” – ao que a
emissora reagiu com rapidez. Em 2004, criou um sistema de apoio para alguns títulos
considerados “menores”, sem que se caracterizasse um compromisso de co-produção.
Entre os títulos que receberam esse apoio estão Cabra cega, de Toni Venturi, Jogo
subterrâneo, de Roberto Gervitz, Filhas do vento, de Joel Zito Araújo, Doutores da alegria,
de Mara Mourão, Gaijin – Ama-me como sou, de Tizuka Yamasaki, e Cinema, aspirinas e
urubus, de Marcelo Gomes. A maior parte deles, porém,o conseguiu romper a barreira de
público dos 100 mil espectadores. Para Carlos Eduardo Rodrigues, isso representa uma
ratificação de sua tese: não basta mídia, é preciso que o filme tenha características comerciais
determinadas para que encontre uma resposta do público. É claro que esse aspecto tem um
peso real, mas é preciso lembrar, também, que essa modalidade de apoio exclui a cross media,
91
que na verdade é o principal elemento de persuasão utilizado pela Globo em favor de seus
filmes. Aliás, a partir do momento em que a Globo Filmes foi criada, criou-se um grande
espaço de exclusão dentro da própria programação da TV Globo em relação aos outros filmes,
na medida em que passaram a ser interditadas ou, pelo menos, pouco incentivadas, as
menções de títulos que não tivessem a marca da emissora (ou mesmo de títulos estrangeiros)
nos programas da TV aberta, mesmo como divulgação espontânea na forma de entrevistas ou
pautas de programas culturais.
Mais TVs no cinema
A posição de “líder do mercado” ocupada pela TV Globo muitas vezes faz com que as outras
emissoras de TV aberta sigam seus passos. A “resposta” à criação da Globo Filmes levou
tempo, mas se fez ver em 2005, quando chegaram aos cinemas os primeiros longas-metragens
com os selos da SBT Filmes, Record Filmes e Band Filmes (da TV Bandeirantes). Todas
reproduziram a principal modalidade de parceria estabelecida pela Globo: associação com
produtores independentes e um investimento indireto, na forma de espaço em dia no
momento da estréia do filme.
No dia 14 de janeiro, a Record Filmes lançou Eliana e o segredo dos golfinhos, aventura
ecológica quase toda rodada no México, produzida e estrelada pela apresentadora Eliana, que
comanda programas de variedades na emissora desde 1998. Com direção de Eliana Fonseca
(autora de curtas como Frankenstein Punk e A revolta dos carnudos e diretora assistente de
rios filmes da Xuxa), o filme foi lançado pela Fox, com 100 cópias, e atraiu 330 mil
espectadores.
No dia 18 de fevereiro, chegou aos cinemas Garrincha: estrela solitária, biografia do jogador
de futebol brasileiro adaptada do livro de Ruy Castro, dirigida por Milton Alencar, com co-
produção da Band Filmes. O lançamento, realizado pela pequena Polifilmes, de São Paulo,
contou com apenas 20pias, e oblico final não passou de 7,8 mil espectadores.
No dia 2 de setembro, por fim, chegou aos cinemas Coisa de mulher, produção de Diler
Trindade e primeiro longa-metragem da SBT Filmes. Na estia dessa comédia sobre a
sexualidade feminina, escrita e estrelada pelo grupo Grelo Falante e também dirigida por
Eliana Fonseca, Diler chegou a apostar em um público de 600 mil. Mesmo contando com
92
participações especiais de Hebe Camargo e de Adriane Galisteu, apresentadoras do SBT que
reproduziram, em seus programas, o sistema da cross media da TV Globo, Coisa de mulher
não chegou a 100 mil espectadores (estacionou em 98,6 mil).
As primeiras e por enquanto únicas experiências cinematográficas de outras emissoras
abertas, portanto, obtiveram resultados muito abaixo das co-produções da Globo, o que
compromete a continuidade de seus projetos, defendida por vários cineastas como forma de
aumentar a parceria entre cinema e televisão no Brasil. Mas esses números, na verdade,
apenas reproduzem a concentração que existe no próprio cenário da TV aberta no país, e que
se reflete no grau de influência que essas emissoras têm na decisão do público.
A volta da produção própria
Em novembro de 2005, a Globo Filmes anunciou que retomaria o investimento direto na
realização de longas-metragens para cinema, modalidade que havia sido praticamente
abandonada desde a experiência com Zoando na TV, o primeiro filme da emissora. Dois
projetos foram divulgados: um novo filme com o grupo Casseta & Planeta, que de fato
começou a ser filmado em janeiro de 2006 – Casseta & Planeta: Seus problemas acabaram –,
e uma versão para o cinema do seriado cômico A grande família, com Marieta Severo e
Marco Nanini, que por sua vez é um remake do seriado de Oduvaldo Vianna Filho, previsto
para ser rodado em abril deste mesmo ano. Ambos totalmente bancados com recursos da
emissora, utilizando a infra-estrutura do Projac.
É curioso que o retorno a essa modalidade de produção tenha se dado justamente com o grupo
de humoristas que, em 2003, lançou um filme mal-sucedido junto ao público. O roteiro deste
novo longa, de custo estimado em R$ 4 milhões, inclui personagens com que o público está
familiarizado – ao contrário do anterior –, e a direção foi entregue a José Lavigne, que é
também, há mais de 15 anos, o diretor geral do programa de TV. Ou seja, diminuíram-se os
riscos e amarraram as características do projeto em torno de elementos conhecidos dos
espectadores.
Para a distribuição desses dois filmes, foi assinado um acordo com o consórcio Europa/Marco
Aurélio Marcondes, uma distribuidora independente de grande porte, especializada em
93
homevideo, cuja divisão voltada para a distribuição cinematográfica é comandada por Marco
Aurélio Marcondes, um dos primeiros executivos da Globo Filmes.
Segundo Carlos Eduardo Rodrigues, a emissora planeja desenvolver entre um e dois projetos
por ano com investimentos diretos.
É um modelo que nos interessa. Depende ainda de conciliar interesses da TV
Globo, a disponibilidade de recursos artísticos para fazer os filmes sem
prejudicar os trabalhos da TV e a possibilidade de adaptação para cinema com
algo diferente do que o telespectador já vê.
108
108
BIAGGIO, Jaime. O cinema em casa do Casseta & Planeta. O Globo, Rio de Janeiro, 7 fev 2006. Segundo
Caderno, página 8.
94
7. “Padrão Globo Filmes de qualidade”
É difícil definir com precisão quais seriam características comuns às produções da Globo
Filmes. O sistema de associação com produtores de fora gerou um modo de funcionamento
semelhante ao da emissora, permitindo a incorporação da diferença, desde que “domesticada”,
ou seja, retrabalhada e inserida em determinados padrões.
Na cartela montada pela Globo Filmes, há uma evidente preferência por alguns gêneros – a
comédia, principalmente. Seja ela de tom rico como nos filmes de Guel Arraes (O auto da
Compadecida, Lisbela e o prisioneiro), ou a comédia de costumes para adultos com temas
suavemente sexuais (Os normais, Sexo amor e traição, Se eu fosse você), ou mesmo a
comédia romântica clássica (Bossa Nova, O casamento de Romeu e Julieta). Os filmes
infantis, estrelados por Xuxa Meneghel e Renato Aragão, são outro produto de evidente
preferência, enquanto as apostas de maior peso voltadas para o público adulto se
concentraram em adaptações teatrais (A partilha, A dona da história, A máquina, e mesmo O
auto da Compadecida) e em narrativas biográficas (Olga, Cazuza e Dois filhos de Francisco).
Nesse panorama, chama atenção o fato de que, até 2004, duas grandes produções urbanas
sobre a questão da violência – Carandiru e Cidade de Deus – tenham se imposto como seus
filmes de maior sucesso, até a explosão de Dois filhos de Francisco, em 2005.
Mesmo Cidade de Deus e Carandiru, porém, não trabalham fora do que se pode chamar de
um certo “senso comum em torno dos temas que abordam. O dinamismo e o caráter de
grande painel histórico que garantem o impacto de Cidade de Deuso aliviam o fato de que
a representação da favela, do tráfico, e da vioncia armada – ainda que sejam temas
praticamente ausentes da teledramaturgia – não fuja dos códigos que se estabeleceram em
torno do assunto. O mesmo pode-se dizer de Carandiru, que vai trabalhar suas diferenças
dentro de características familiares do grande público ou vai gerar efeitos de estranheza a
partir do deslocamento de papéis (como, por exemplo, escalar o ator Rodrigo Santoro para
viver um travesti).
95
“Com cara de TV”
Uma das características principais de vários projetos desenvolvidos sob a orientação próxima
da Globo Filmes será a passagem do comando artístico do projeto (ou seja, a direção) para
profissionais que se desenvolveram na empresa. Se, no passado, a TV Globo incorporou
profissionais de cinema em seu quadro de funcionários (como, por exemplo, Silvio de Abreu,
Carlos Manga, Roberto Farias, Antonio Calmon), a partir da criação da Globo Filmes o
caminho inverso será comum. Assim, a “retomada” passaria a contar, principalmente depois
de 1999, com vários diretores estreantes em longa-metragem saídos da Globo, notadamente
José Alvarenga (Zoando na TV, Os normais), Jorge Fernando (Sexo, amor e traição), Moacyr
es (Xuxa e os duendes 2, Xuxa Abracadabra) e Jayme Monjardim (Olga).
Olga, aliás, pode ser tomado como o exemplo mais evidente de uma certa tendência que
representa uma adesão praticamente total aos códigos televisivos. Antigo projeto da produtora
Rita Buzzar, a direção de Olga foi entregue a Jayme Monjardim pouco depois do grande
sucesso da minissérie A casa das sete mulheres, que foi ao ar em 2003, depois de sair das
mãos de Luiz Fernando Carvalho. Monjardim, aliás, foi contratado pela Globo depois do
imenso sucesso da novela que dirigiu na TV Manchete (Pantanal), estabelecendo-se como um
dos principais diretores da emissora.
Quando estreou, Olga foi motivo de uma grande polêmica em torno das características
televisivas do filme. Uma reportagem no jornal Folha de S. Paulo confrontou críticos e
cineastas em ataques e defesas à obra: “Retratado na telona pelo diretor Jayme Monjardim, o
romance de Olga Benario e Luiz Carlos Prestes reacendeu a discussão sobre o casamento
(estético) do cinema com a TV e escreveu um novo capítulo no divórcio entre crítica e
público”.
109
Ainda que tardiamente, Olga instalou no Brasil um debate público sobre as
diferenças de linguagem entre cinema e televisão.
Trata-se de uma questão complexa. O crítico francês Serge Daney buscou definir com
cuidado a diferenciação dos meios. “Não existe razão séria para acreditar que um filme
deixará de ser grande quando exibido na televisão. (...) Com o passar do tempo, os filmes que
poderiam justificar essa nostalgia dos grandes cinemas e o mito da projeção perfeita tornam-
109
ARANTES, Silvana. Olga casa com o público e se divorcia dos críticos. Folha de S. Paulo, São Paulo, 5 set
2004. Ilustrada, p.1.
96
se cada vez mais raros”.
110
Para Daney, não é porque vemos as cataratas do Iguaçu em A
missão ou o rosto em close de um ator em Jean de Florette que eles deixam de ser,
fundamentalmente, telefilmes. O que distingue um filme de um telefilme é que, em um filme,
até as cenas de grande intimidade são cinema, enquanto em um telefilme mesmo as cenas
mais espetaculares são televisão. O cinema, nesse sentido, seria a arte de determinar espaços e
proporções – uma característica que se perderia na maior parte dos produtos televisivos.
O raciocínio de Daney chama atenção para o fato de que o dispositivo de exibição
cinematográfica, no processo histórico de “invenção” do cinema, foi apenas aquele que se
tornou hegemônico em meio a tantos outros que foram preteridos. A própria história oficial do
cinema constitui-se por mitos, uma vez que a câmera e o projetor foram objetos de
experiências múltiplas simultâneas em diversos países, produtos de uma demanda social que
se alongou por décadas. O mesmo pode ser dito a respeito do estabelecimento da narrativa
clássica, um conjunto de códigos que se tornou dominante em meio a uma infinidade de
possibilidades estéticas. Hoje, a questão do cinema como dispositivo se ime não apenas em
sua relação com outro meio hegemônico (a televisão), mas também na multiplicação das
possibilidades tecnológicas da produção da imagem, na utilização de imagens por artistas
plásticos, na quebra dos formatos tradicionais de fruição do audiovisual e na multiplicação
das possibilidades de produção geradas pela tecnologia digital. Não por acaso, um número
significativo do que surgiu de mais interessante no cinema brasileiro recente foi realizado com
câmeras digitais, sobretudo os documentários (como os filmes de Eduardo Coutinho Santo
forte e Edifício Master, ou o documentário de Sandra Kogut Passaporte húngaro, para citar
dois exemplos).
Esses filmes, no entanto, apesar de terem sido produzidos “em vídeo”, são radicalmente
antitelevisivos se tomarmos como modelo o padrão da TV Globo, enquanto um filme como
Olga representa uma adesão completa a esse padrão. O filme de Monjardim opta pela
alternância entre o “plano médio” e o “close nos enquadramentos, pelos cenários
reproduzidos em estúdio e pela trilha sonora onipresente, utilizada no sentido de evitar os
silêncios, mais do que acentuar a dramaticidade – três das características mais fortes de um
produto televisual.
110
DANEY, Serge. Du grand au pétit écran. Libération, 16 nov 1987.
97
Daniel Filho, Guel Arraes
Dentro do quadro geral de produções da Globo Filmes, vêm-se duas correntes majoritárias
que se alternam. De um lado, os projetos com influência maior de Daniel Filho; de outro, os
influenciados por Guel Arraes. Apesar de pertenceram a gerações diferentes, os dois são
donos de uma trajetória singular na televisão e guardam em comum vasta cultura
cinematográfica, “credencial” para seus papéis determinantes no funcionamento interno do
departamento de cinema da Globo.
Daniel Filho nasceu em 1937 em uma família de artistas de circo e começou a carreira ainda
adolescente, em 1952, na companhia de teatro de revista de Walter Pinto. Estreou na televisão
em 1957, na TV Rio, como ator de teleteatro. Em 1959, foi contratado pela TV Tupi, em
seguida passou pelas TVs Paulista e Excelsior, e também foi ator de vários filmes para
cinema, incluindo três títulos importantes do Cinema Novo: Os cafajestes (1961), de Ruy
Guerra, Boca de Ouro (1962), de Nelson Pereira dos Santos, e Os herdeiros, de Carlos
Diegues (1963). Em 1966, foi contratado pela TV Globo, onde dirigiu dezenas de novelas
(entre elas Dancin’ Days, em 1978), seriados (Malu Mulher, em 1979), e minisséries (Quem
ama não mata, em 1982), até se tornar diretor da Central Globo de Produção e, mais tarde,
diretor de crião da TV Globo. Em cinema, dirigiu O impossível acontece (1969), A cama ao
alcance de todos (1969) e O casal (1975) e O cangaceiro trapalhão (1983). Quando a Globo
Filmes foi criada, assumiu sua direção artística e, pouco depois, retomou também sua carreira
como diretor de cinema.
Não por acaso, Daniel foi um dos artífices do “padrão Globo de qualidade”. Como diretor
artístico da Globo Filmes, ele é, ainda hoje, o principal responsável pela escolha de projetos.
Em entrevista à revista Forbes, em setembro de 2005, Daniel disse: “Posso afirmar que
existe hoje um ‘pado Globo Filmes para o cinema
111
.
Guel Arraes nasceu em 1953 e, na juventude, foi morar na Argélia, quando seu pai, o político
Miguel Arraes, foi exilado pela ditadura militar. Nos anos 1970, estudou cinema na França,
onde trabalhou com Jean Rouch, cineasta que ajudou a transformar a linguagem do
111
Profissão: Midas multimídia. Revista Forbes, edição 117, setembro de 2005.
98
documentário com o “cinéma vérité”. Voltou para o Brasil no começo dos anos 80 e, depois
de algumas experiências em sets de filmes nacionais, iniciou carreira na TV Globo.
Influenciado pelo cinema moderno, Guel ajudou a renovar as características do “padrão de
qualidade” da emissora em programas como Armação ilimitada e TV Pirata. Ao mesmo
tempo, foi o principal responsável pela absorção ao quadro da emissora de novos talentos da
dramaturgia e do teatro, principalmente depois de ter se tornado diretor de núcleo (assumindo,
assim, a responsabilidade por um corpo de programas).
Em seu livro O circo eletrônico: Fazendo TV no Brasil, Daniel Filho faz um paralelo entre o
modo de funcionamento da TV Globo e o modo de produção de Hollywood, comparando a
emissora a uma major e José Bonifácio de Oliveira Sobrinho (que o levou para a Globo) a
dois produtores do cinema norte-americano, David O. Selznick e Darryl Zanuck. No livro,
Daniel explica também como ele vestiu “dois chapéus” na emissora, o de diretor e de
produtor, duas funções que, segundo ele, “não podem se chocar ou se confundir”.
112
Tanto Daniel Filho como Guel Arraes assumirão esses dois “chapéus também na Globo
Filmes, dirigindo e supervisionando a criação de produtos audiovisuais que refletem suas
visões. Esses produtos serão extremamente fiéis aos “padrões” que cada um desenvolveu na
TV. Em comum, guardam a extrema agilidade da produção, característica essencial da
televisão que foi transferida para o modo de produção de seus filmes.
Daniel Filho dirigiu três longas no período da retomada: A partilha (2001), A dona da história
(2004) e Se eu fosse você (2006). Os dois primeiros são adaptões de textos teatrais (de
Miguel Falabella e João Falcão, respectivamente), e o último, a versão de uma peça de Carlos
Gregório que, na verdade, nunca foi encenada, sendo diretamente transformada em argumento
e roteiro de cinema. Os conflitos de personagens de classe média predominam nas três
histórias. Em A partilha, quatro irmãs se reúnem após a morte da mãe para dividir seus bens
em um velho apartamento de Copacabana. Em A dona da história, uma mulher faz um
balanço de sua vida de casada, imaginando outras possibilidades caso ela tivesse tomado
decisões diferentes. Se eu fosse você, por sua vez, opera numa chave estritamente cômica a
partir de uma trama explorada porrios filmes americanos: um casal de classe média alta
(ele, publicitário; ela, professora de canto), com a relação desgastada, vê-se diante de uma
112
FILHO, Daniel. O circo eletrônico: Fazendo TV no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 77.
99
situação inusitada quando um acorda no corpo do outro. Todos os filmes foram
majoritariamente rodados em estúdio, em ambientes que lembram os cenários de novelas,
com elencos treinados e popularizados pela televisão. Essas características se repetem em
filmes como Sexo, amor e traição e Cazuza – O tempo não pára, por exemplo, que foram
projetos diretamente supervisionados por Daniel.
Guel Arraes, por sua vez, também trouxe para o cinema o “padrão de qualidade” que ele
havia imprimido à televisão. Guel é um árduo defensor de que a produção audiovisual de
escala industrial no Brasil se transferiu para a TV e nela encontrou um espaço legítimo, apesar
deste ser considerado culturalmente inferior ao cinema. Sempre foi sua bandeira a valorização
da TV e da necessidade de se produzir programas de qualidade, em respeito aos seus
espectadores. O papel que ele assumiu dentro da Globo foi justamente esse, uma espécie de
guardião” da qualidade da TV e da produção de alternativas internas ao modo de
dramaturgia dominante das telenovelas. Sua vontade de forçar um caminho contrário ao
habitual no cenário audiovisual, ao levar um produto da TV para o cinema, como fez com O
auto da Compadecida e A invenção do Brasil, foi um gesto para reafirmar essa crença.
O próprio gosto de Guel Arraes pela comédia lírica brasileira vai ao encontro da proposta de
defesa do conteúdo nacional levada à frente pela TV Globo. Tanto O auto da Compadecida
como Lisbela e o prisioneiro são adaptações de peças teatrais de autores pernambucanos
(respectivamente Adriano Suassuna e Osman Lins) que narram aventuras de anti-heróis
tragimicos, vítimas da situação social brasileira, mas também capazes de subverter sua
condição. A “marca registrada” de Guel na formatação desse estilo é tão forte que, quando ele
resolveu apenas produzir O coronel e o lobisomem (2004), baseado no romance de Jo
Cândido de Carvalho, e entregar a direção a Maurício Farias, mal se percebia a mão de outro
diretor por trás do projeto.
Um dos parceiros mais próximos de Guel Arraes em vários projetos da TV Globo é Jorge
Furtado, diretor e roteirista do Rio Grande do Sul que despontou como diretor de curtas-
metragens na década de 1980 (incluindo o consagrado Ilha das Flores, de 1989) e foi um dos
fundadores da Casa de Cinema de Porto Alegre. A partir dos anos 1990, Furtado realizou
vários projetos para a TV Globo, sempre para o núcleo de Guel Arraes. Em 1995, por
exemplo, transformou Anchietanos, um roteiro de longa-metragem (que teve financiamento
recusado em um concurso público) em um especial de uma hora para a série Comédia da vida
100
privada. Até hoje, Furtado considera Anchietanos e Luna Caliente, minisrie que ele
escreveu e dirigiu em 1999, como seus “primeiros filmes”. Ambos trazem um forte
componente potico. Anchietanos conta os dilemas de um grupo de amigos de cogio que, na
juventude, fez parte de movimentos de esquerda, e na maturidade passaram a trabalhar na
campanha de poticos de direita. Luna caliente, por sua vez, narra a história de um advogado
de 40 anos que volta ao país depois de oito anos de exílio na França. Numa visita à fazenda de
amigos, ele se envolve com a adolescente Elisa, que, anos atrás, não passava de uma criança.
Anchietanos é meu primeiro longa, foi escrito para ser um longa. A diferea é
que meu primeiro longa de verdade, que está em cartaz, vai ser visto, com
otimismo, por 200 mil pessoas muito atentas. E Anchietanos foi visto por 40
milhões de distrdos. Luna caliente foi a primeira grande produção que dirigi,
com uma equipe de mais de cem pessoas, filmado em 35 milímetros. Acho que
foi o meu segundo longa.
113
Na verdade, Furtado compartilha com Guel Arraes a visão de que as linguagens de cinema e
TV são muito próximas. Para ele, a diferença essencial está na recepção: “São a mesma
linguagem, com os mesmos signos, a mesma força da fotografia, músicas, palavras, luz e
movimento. A diferença não é como se faz, é como se vê”. É evidente, porém, que essa
diferença afeta profundamente o produto final. O “como se vê” incide fortemente sobre o
“como se faz”. “O cinema, como disse Jean-Claude Carrière, ama o silêncio. (...) A televisão
odeia o silêncio. A imagem na televisão precisa constantemente da muleta do som e da
palavra”
114
, entre tantas outras diferenças.
Guel Arraes e Jorge Furtado acreditam ser possível uma “estratégia de ocupação”, buscando
desenvolver, dentro da televisão, um trabalho que seja ao mesmo tempo comunicativo e
sofisticado, recorrendo à metalinguagem em uma tentativa de explodir os signos televisivos.
Essa seria uma característica comum à comédia Lisbela e o prisioneiro, de Guel, e a todos os
filmes dirigidos por Furtado (principalmente O Homem que Copiava e Meu Tio Matou um
Cara, que foram co-produzidos pela Globo Filmes).
Recentemente, o crítico Luc Moullet, da revista Cahiers du Cinéma, que assistiu aos filmes de
Furtado durante o Ano do Brasil na França, escreveu um artigo em que se pergunta por que o
cinema de Furtadoo teria conseguido o reconhecimento internacional que julga merecido e
113
Entrevista a Maria do Rorio Caetano, na Revista de Cinema, edição número 27.
114
FURTADO, Jorge. Cinema e televio. www.nao-til.com.br.
101
aponta, como um dos fatores possíveis, o fato de Furtado ter escolhido trabalhar a comédia e,
principalmente, os signos da telenovela (“pequenos conflitos familiares do brasileiro dio”,
como ele define). Mas, conclui Moullet, Furtado subverte esses signos de forma divertida,
“dinamita” o gênero.
115
115
MOULLET, Luc. L’orfèvre de Porto Alegre. Cahiers du Cinéma, n. 608, jan 2006. p. 76-77.
102
Conclusões
Em abril de 2005, quando comemorou 40 anos de existência, a TV Globo inundou sua
programação com eventos comemorativos. No dia 4 de abril, o Domingão do Faustão foi
quase todo dedicado à efeméride, contando com a participação de vários artistas contratados.
Coube à atriz Regina Duarte descrever os feitos superlativos da emissora: 113 afiliadas
cobrindo 99,84% do território brasileiro; 35 anos de liderança de audiência, “fato inédito na
televisão mundial”; e, por fim, uma produção anual equivalente, em horas de programação, a
2,2 mil filmes de longa-metragem. “É para botar Hollywood no chinelo!”, disse a atriz.
Durante todo o programa, a Globo Filmes sequer foi mencionada. O que mostra o papel
estratégico, porém periférico, que o cinema assumiu nos planos da emissora. Todo o discurso
da Globo sempre foi direcionado à demonstração de que sua produção já atende às
necessidades audiovisuais do Brasil, sendo volumosa, auto-suficiente e de qualidade.
Do ponto de vista potico, a Globo Filmes representa dois movimentos paralelos: o de
antecipação (tomar a iniciativa da abertura à produção independente, da regionalização da
produção e da co-produção de longas para cinema antes que tais medidas sejam
regulamentadas) e o de intervenção (controlar, na medida do possível, a produção audiovisual
e o cinema brasileiro, tanto do ponto de vista de contdo como do ponto de vista estético,
caso a parceria com outros produtores se torne obrigatória e caso, também, seja estabelecida
uma cota de tela para a exibição de longas-metragens nacionais na televisão aberta).
Do ponto de vista econômico, a Globo Filmes é um empreendimento que não es voltado
para o lucro imediato – o que só reforça seu papel potico. A partir do momento em que se
associa à maior parte dos filmes como co-produtora, a Globo passa a ser uma das últimas
parceiras a receber dividendos, uma vez que cerca de 50% da receita obtida fica com o
exibidor, cerca de 25% com o distribuidor (ou até cobrir os altos custos de P&A, ou seja,
pias e publicidade, que são altíssimos), e os outros 25% (depois de cobertos os custos de
P&A) são repartidos entre os produtores e co-produtores.
No entanto, a Globo Filmes contabiliza o equivalente ao valor investido no espaço
publicitário cedido aos filmes como uma espécie de “dívida” subentendida. Em 2004, chegou
103
a circular a notícia de que a Globo Filmes teria investimentos não recuperados da ordem de
mais de R$ 40 milhões. Como resposta, a Central Globo de Comunicação divulgou uma nota
oficial, publicada no jornal Folha de S. Paulo:
A Globo Filmes não recupera os investimentos em dia que faz (a hoje de
R$ 45 milhões), mas este valor não é considerado uma dívida, uma vez que seu
papel é estratégico e, desde seu lançamento, em 1997, seu objetivo é fomentar
a indústria audiovisual. Quanto ao faturamento, este ano (2004) temos a nossa
melhor receita e, pela primeira vez, cobrimos os custos que temos, excluindo
os investimentos emdia.
116
Fábrica x empresa
Ao longo de seus 40 anos de história, a TV Globo constituiu-se como uma fábrica de
imagens. Sua estruturação é extremamente híbrida: o modelo de produção em muitos aspectos
se assemelha ao modelo da indústria de bens materiais (15 mil funcionários, uma linha de
montagem capaz de gerar 80% de sua programação, mão-de-obra contratada, estúdios e
equipamentos próprios), enquanto, por outro lado, sua lógica de funcionamento absorve
elementos importantes daera da empresa (o marketing como elemento central e a produção
de bens simbólicos).
Sob o aspecto da difusão, o modelo adotado pela TV Globo é o de uma rede oligopolista, ou
seja, um sistema que possui um ponto fixo de emissão e vários pontos de recepção, que na
descrição de Antonio Negri e Michael Hart se caracteriza pela “produção centralizada, pela
distribuição em massa e pela comunicação de mão única. (...) É uma estrutura em forma de
árvore, que subordina seus galhos à raiz central”.
117
A partir do advento das novas
tecnologias comunicacionais, esse modelo é posto em xeque. Paralelamente, o processo de
globalização possibilita uma visão mais complexa da diversidade cultural, em que o
sentimento de pertencimento a uma nação deixa de ser o fator identificatório primordial –
abalando o conceito base do discurso ideológico da TV Globo.
Diante desse novo cenário, a própria estrutura gigantesca da TV Globo torna-se um empecilho
para sua modernização interna, bem como para a modernização do país. A centralização da
116
A nota acompanhou a entrevista de Daniel Filho concedida à repórter Silvana Arantes e publicada no caderno
Ilustrada de 30 de setembro de 2004.
117
NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. Império. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 320.
104
produção e do conhecimento no interior de uma empresa oligopolística se torna hoje “um
fator extremamente limitador para o desenvolvimento de uma indústria de televisão
efetivamente competitiva em termos sistêmicos”.
118
A alternativa mais cil para a TV Globo
é agir no sentido de evitar ou contornar os efeitos dessas tecnologias, muitas vezes exercendo
sua influência potica para protelar decisões e adiar a adoção de medidas regulatórias.
A lei da TV a cabo não chegou a materializar-se concretamente na existência
de um sistema forte de TVs universitárias, comunitárias, etc, porque a
capacidade técnica e econômica e a socialização do conhecimento produtivo na
área foi impedida devido ao controle oligopólico do mercado brasileiro.
119
Foi assim também na tentativa de estabelecimento da Agência Nacional do Cinema e do
Audiovisual e, mais uma vez, em todo o processo de discussão da adão dos padrões da TV
digital no Brasil. A Globo depende, portanto, de um novo pacto político capaz de, por
exemplo, trazer a liberação de empréstimos do governo, além da aliança com o capital
estrangeiro. A luta da Globo é para que, nesse processo, não perca sua autonomia em relação
ao Estado (ou, talvez, sua luta é para que o Estado não perca sua dependência da TV Globo
como instrumento ideológico de penetração nacional), bem como sua capacidade de
investimento em prodão – principalmente em telenovelas, minisries, telejornais e
programas jornalísticos em geral, que representam, basicamente, a sustentação de sua
hegemonia no campo audiovisual.
De certa forma, a Globo se tornou o símbolo do Brasil moderno e industrial ao ter se
constituído como a grande fábrica de imagens do país, geradora de consumidores unidos em
torno da tela de televisão, clamando para si o papel de disciplinadora e formadora do espaço
público do país. Mas torna-se cada vez mais difícil sustentar tais idéias quando a própria
tecnologia trabalha para a sua dissolução. A cultura digital aponta para uma era pós-industrial
e abala as estruturas do capitalismo nacional e oligopolista, tornando cada dia mais obsoletos
conceitos como “identidade”, “nacionalidade”, “massa” e “povo”.
Para Antonio Negri, “massa epovo” são conceitos irmãos que servem a um mesmo sistema
de dominação da sociedade disciplinar: enquanto a massa corresponderia ao capital, o povo
corresponderia à soberania.
118
SOLANO, Carlos. Op cit. p. 55.
119
Ibidem, p. 53.
105
Os indivíduos, no momento em que alienaram poder, tornaram-se povo, isto é,
tornaram-se um conjunto de portadores de direitos reconhecidos pelo soberano.
Eis que o conceito de povo aparece na modernidade como uma produção do
Estado. “Povo” entendido como um conjunto de cidaos proprierios, que
abdicariam de sua liberdade tendo como compensação a garantia da
propriedade.
120
Equivalente ao conceito de povo seria o de “massa”, mas aqui voltado para o capital e o
consumo. Para o filósofo alemão Peter Sloterdijk, um dos grandes projetos da modernidade
foi “desenvolver a massa como sujeito”. Diz ele:
A massa a ser desenvolvida como sujeito surge na tribuna dos tempos
modernos na figura de uma multidão de súditos, sob um soberano estatal e
tecnicamente modernizado. Sua primeira característica é a submissão racional
em interesse próprio ou a passividade voluntária no Estado.
121
Para Sloterdijk, este projeto alcança seu estágio críticotão logo pronunciemos a regra de que
todas as diferenciações devem ser realizadas como diferenciações de massa”. Segundo ele, a
massa diferencia “sempre e sem titubear a seu favor”, anulando todos os critérios que se
prestem à manifestação de suas limitações: “Ela estilhaça todos os espelhos que não lhe
assegurem ser ela a mais bela em todo o país”.
122
O imenso crescimento de uma empresa como a Globo se deu sobre a afirmação da
modernidade brasileira e a formatação dos conceitos de “massa” e povo”. A emissora se
desenvolveu apropriando-se de um “espaço público”, assumindo o papel de geradora de
palavras de ordem disciplinadoras, que buscaram modelar determinado projeto de país.
Espelho em que “o povo” se converteu em “massa” ao refletir-se na tela da TV, em um
espetáculo de características narcisistas e de autocontemplação”, como define Guy Debord em
sua obra A sociedade do espetáculo.
Mas, no novo paradigma em formação, a rede de difusão centralizada cede espaço a uma rede
de estrutura não-hierárquica e não-centralizada, cujo modelo, horizontal e desterritorializado,
traz embutido a capacidade de produção livre de bens imateriais e simbólicos, criando um
120
NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre Império. Rio de Janeiro: DPA Editora, 2003. p. 143.
121
SLOTERDIJK, Peter. O desprezo das massas. Ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna. São
Paulo: Estação Liberdade, 2002. p. 42
122
Ibidem, p. 105-106.
106
contexto em que “é cada vez menor o número de bens que podem ser possuídos e usados
exclusivamente”. Para este modelo já não cabe a massa – mas a multidão, que é “a
multiplicidade o esmagada pela massa, capaz de desenvolvimento autônomo, independente,
intelectual”. Na multidão, “as singularidades mantêm força própria, mas a mantêm dentro de
uma dinâmica relacional que permite construir, ao mesmo tempo, a si mesmas e ao todo”.
123
Assim, uma enorme vantagem do conceito de multio é que ele afasta todos
os argumentos modernos baseados no “medo das massas” e também aqueles
relativos à “tirania da maioria”, argumentos que com freqüência serviram como
uma espécie de chantagem para obrigar-nos a aceitar (e muitas vezes, inclusive,
a pedir) a nossa própria escravidão.
124
De certa forma, durante anos e, principalmente, neste momento de crise, a TV Globo vem
apelando para justificativas semelhantes, que sempre levam à argumentão de que existe
uma suposta grande aprovação da maioria do povo brasileiro como critério maior para a
permanência deste modelo concentrador. Como questionar uma empresa geradora de cultura e
de empregos que só trabalha para o desenvolvimento do Brasil? Não raro, como vimos,
artistas contratados são arrebanhados para projetos de forte conotação política, como
aconteceu no seminário Conteúdo Brasil, que contou com a participação de vários autores e
atores da empresa, e mais recentemente na reunião do Fórum Brasileiro do Audiovisual, que
recebeu ampla cobertura no jornal O Globo e na TV Globo, questionando a criação da
Ancia Nacional do Cinema e do Audiovisual como um projeto “autoritário” que, segundo
Arnaldo Jabor, não teria paralelo “nem mesmo durante os anos da ditadura militar”.
Para o economista Ls Nassif, no entanto, a convergência dedias tem o potencial de
“acabar com a herança getulista da reserva de mercado que caracteriza o atual sistema de
concessões para rádio e televio. Cria o risco real da invasão dos gigantes mundiais, mas
abre a oportunidade para o florescimento de uma indústria cultural independente no país.
Como nos protegermos dos riscos, sem abrir mão das novas possibilidades?”
125
É essa, enfim, a questão.
123
NEGRI, Antonio. Op. cit. p. 143.
124
Ibidem, p. 166.
125
Apud BENTES, Ivana. O estado novo da cultura. Folha de S. Paulo, São Paulo, 19 set 2004. p. 7.
107
ANEXO I
Anexo 1: Anúncio da exposição Brasil. A gente vê por aqui”. Publicado no jornal Folha de
S. Paulo em 27 abr 2004. Caderno Ilustrada, página E5.
108
ANEXO II
Fonte: distribuidoras. Pesquisa: www.filmeb.com.br
Ranking Globo Filmes (por público)
título distrib. prod. lançam cópias público renda
1 DOIS FILHOS DE FRANCISCO COLUMBIA CONSPIRAÇÃO 2005 290 5.319.677 36.728.278,00
2 CARANDIRU COLUMBIA HB FILMES 2003 247 4.693.853 29.623.481,00
3 CIDADE DE DEUS LUMIÈRE O2 FILMES 2002 100 3.370.871 19.066.087,00
4 LISBELA E O PRISIONEIRO FOX NATASHA 2003 218 3.174.643 19.915.933,00
5 CAZUZA: O TEMPO NÃO PÁRA COLUMBIA LEREBY 2004 152 3.082.522 21.230.606,00
6 OLGA LUMIÈRE NEXUS 2004 263 3.075.749 20.361.067,00
7 OS NORMAIS LUMIÈRE MI5 2003 246 2.996.467 19.874.866,00
8 XUXA E OS DUENDES WARNER DILER 2001 311 2.657.091 11.691.200,00
9 MARIA: A MÃE DO FILHO DE DEUS COLUMBIA DILER 2003 303 2.332.873 12.842.085,00
10 XUXA E OS DUENDES 2 WARNER DILER 2002 297 2.301.152 11.485.979,00
11 SEXO, AMOR E TRAIÇÃO FOX TOTAL 2004 154 2.219.423 15.775.132,00
12 XUXA ABRACADABRA WARNER DILER 2003 305 2.214.481 11.677.129,00
13 O AUTO DA COMPADECIDA COLUMBIA
GLOBO
FILMES
2000 95 2.157.166 11.496.994,00
14 DIDI: O CUPIDO TRAPALHÃO COLUMBIA DILER 2003 135 1.758.579 8.984.535,00
15 SIMÃO, O FANTASMA TRAPALHÃO COLUMBIA R.A. FILMES 1998 245 1.658.136 6.118.522,00
16 DEUS É BRASILEIRO COLUMBIA
RIO
VERMELHO
2003 150 1.635.212 10.655.438,00
17 A PARTILHA COLUMBIA LEREBY 2001 155 1.449.411 8.797.925,00
18 XUXA E O TESOURO DA CIDADE PERDIDA WARNER DILER 2004 300 1.331.652 7.108.730,00
19 A DONA DA HISTÓRIA
BUENA
VISTA LEREBY 2004 261 1.271.415 9.025.423,00
20 DIDI QUER SER CRIAA COLUMBIA DILER 2004 154 982.175 5.583.242,00
21 O CASAMENTO DE ROMEU E JULIETA
BUENA
VISTA LC BARRETO 2005 215 969.103 7.303.111,00
22 ORFEU WARNER
RIO
VERMELHO 1999 147 961.961 4.455.409,00
23 ZOANDO NA TV COLUMBIA
GLOBO
FILMES
1999 142 911.394 3.463.297,00
24 ACQUARIA FOX SPECTRA 2003 340 837.695 4.466.393,00
25 TAINÁ 2: A AVENTURA CONTINUA COLUMBIA TIETÊ 2005 164 788.442 4.612.264,00
26 O TRAPALHÃO E A LUZ AZUL LUMIÈRE R.A. FILMES 1999 239 771.831 2.947.356,00
27 CASSETA & PLANETA: A TAÇA... WARNER CONSPIRAÇÃO 2003 250 690.709 4.346.394,00
28 O HOMEM QUE COPIAVA COLUMBIA CASA DE CIN 2003 70 664.651 4.692.436,00
29 O CORONEL E O LOBISOMEM FOX NATASHA 2005 163 654.983 4.678.543,00
30 MEU TIO MATOU UM CARA FOX CASA DE CIN 2004 121 573.773 4.050.407,00
31 BOSSA NOVA COLUMBIA LC BARRETO 2000 156 520.614 3.165.333,00
32 REDENTOR WARNER CONSPIRAÇÃO 2004 81 247.893 1.880.401,00
33 CARAMURU: A INVENÇÃO DO BRASIL COLUMBIA
GLOBO
FILMES 2001 170 246.023 1.500.740,00
34 O CAMINHO DAS NUVENS
BUENA
VISTA LC BARRETO 2003 73 214.830 1.705.750,00
35 VIVA VOZ
BUENA
VISTA
O2 FILMES 2004 79 206.568 1.522.763,00
36 CASA DE AREIA COLUMBIA CONSPIRAÇÃO 2005 35 187.296 1.557.698,00
37 UM SHOW DE VERÃO WARNER DILER 2004 111 137.507 741.047,00
38 UM ANJO TRAPALHÃO FOX R.A. FILMES 2001 153 125.913 513.632,00
atualizado até 5/1/2006
109
ANEXO III
Evolução do market share do filme nacional
12,0%
14,0%
21,4%
8,0%
9,3%
10,6%
7,8%
5,4%
4,6%
4,1%
3,7%
0,4%
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005
Fonte: Sindicato dos Distribuidores do Rio de Janeiro. Pesquisa: www.filmeb.com.br
Obs: Entrada da Globo Filmes em 1999
110
ANEXO IV
blico do filme brasileiro ano a ano (em
milhões)
ano
Público dos
filmes
brasileiros
Público
Globo
Filmes
Público
sem Globo
Filmes
Market share
da Globo
Filmes
1990 10,0 0 0 0
1991 3,0 0 0 0
1992 0,03 0 0 0
1993 0,04 0 0 0
1994 0,27 0 0 0
1995 2,9 0 0 0
1996 1,2 0 0 0
1997 2,4 0 0 0
1998 3,6 0 0 0
1999 5,7 3,6 2,1 63%
2000 7,2 5,2 2,0 72%
2001 6,9 3,9 3,0 56%
2002 7,8 5,4 2,4 69%
2003 21,4 18,8 2,6 88%
2004 16,4 13,9 2,5 85%
2005 10,7 9,1 1,6 87%
Fonte: Sindicato dos Distribuidores do Rio de Janeiro. Pesquisa: www.filmeb.com.br.
111
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