Download PDF
ads:
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
CLÁUDIA CRISTINA MÁRIO DOS SANTOS
CONHECIMENTO PRÉVIO, INTERTEXTUALIDADE E
PRESSUPOSIÇÃO NA LEITURA DE CRÔNICAS
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
SÃO PAULO
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
CLÁUDIA CRISTINA MÁRIO DOS SANTOS
CONHECIMENTO PRÉVIO, INTERTEXTUALIDADE E
PRESSUPOSIÇÃO NA LEITURA DE CRÔNICAS
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre
em Língua Portuguesa, sob a orientação
da Professora Doutora Sueli Cristina
Marquesi.
SÃO PAULO
2007
ads:
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
______________________________________
______________________________________
DEDICATÓRIA
A Deus, meu criador e conforto nas horas
difíceis;
Ao meu esposo, Ronaldo, por ter compartilhado
comigo cada momento deste trabalho e pelo
incentivo, dedicação, compreensão e constante
prova de amor.
A meus pais, Daniel e Ângela, por minha
existência e por todo amor e carinho que
sempre dispensaram a esta filha, eternamente
grata.
AGRADECIMENTOS
À Neusa Candiles Holgado Ribeiro, Diretora da E.E. Vila Ercília Algarve, pelo
incentivo, apoio, compreensão e constante prova de sincera amizade durante
todo o percurso deste trabalho;
À Professora Dª. Sueli Cristina Marquesi, pela confiança e crédito depositados
em mim, mas, principalmente, pela dedicação, incentivo, amizade e paciência
com que me orientou ao longo de toda pesquisa;
À Profª. Drª. Ana Lúcia Tinoco Cabral pela amizade, incentivo e por todas as
valiosas sugestões na revisão deste trabalho;
À banca examinadora presidida pela Profª. Drª. Sueli Cristina Marquesi e
composta pela Profª. Drª. Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos e Profª. Drª.
Irenilde Pereira dos Santos, pelas significativas contribuições ao trabalho, no
exame de qualificação;
Aos professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua
Portuguesa, pela dedicação e pelos valiosos ensinamentos que contribuíram
nesta etapa de minha formação;
Aos colegas do Programa de Pós-Graduação, pela troca amiga e produtiva;
À Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, pela bolsa parcial
concedida.
A maioria das pessoas não tem idéia do
poder e do impacto da linguagem no mundo
contemporâneo. Conseqüentemente, a
formação relativa ao uso de textos e sua
interação com o contexto onde ocorrem deve
se tornar uma prioridade na escola.
Fairclough
RESUMO
A presente dissertação situa-se na linha de pesquisa Leitura, Escrita e Ensino
de Língua Portuguesa e tem como tema a construção de sentidos na leitura de
crônicas, investigando a importância, para esse processo, dos conhecimentos
prévios, do princípio de intertextualidade e dos conteúdos pressupostos.
Partindo do pressuposto de que tais elementos constituem estratégias
facilitadoras da construção de sentidos na leitura, e tendo como corpus quatro
crônicas, o trabalho teve como objetivo a realização de um estudo sobre a
intertextualidade, os conhecimentos prévios e os conteúdos pressupostos nesse
gênero de texto, verificando como eles atuam no processo de interação entre o leitor
e o texto.
O trabalho se justificou pela importância conferida pelos PCN ao trabalho com
a diversidade de gêneros textuais, entre os quais destacamos a crônica, enfocando
a participação ativa do leitor, enfatizando a formação de um leitor crítico conforme
preconizam os PCN.
Para o desenvolvimento do trabalho, fundamentamo-nos na Lingüística
Textual, especialmente nos estudos de Beaugrande & Dressles (1981), Beaugrande
(1987), van Dijk (2002) e Koch & Travaglia (2003); fundamentamo-nos também nos
postulados de Ducrot (1977; 1980; 1987) acerca do conceito de pressuposição.
A metodologia aplicada na análise do corpus consistiu em identificar
elementos que instituem as relações entre texto e leitor, analisando como eles atuam
na construção de sentidos. Para tanto, estabelecemos inicialmente as categorias de
análise, considerando o três elementos gerais, conhecimentos prévios,
intertextualidade e conteúdos pressupostos. Em seguida, identificamos esses
elementos no corpus e, depois, os analisamos, verificando sua função na construção
dos sentidos dos textos eleitos.
A pesquisa realizada possibilitou explorar os conhecimentos prévios exigidos
pelas crônicas, o princípio de intertextualidade e os conteúdos pressupostos,
evidenciando que esses fenômenos constituem estratégias importantes para a
construção de sentidos na leitura de crônicas.
Palavras-chave: conhecimento prévio, intertextualidade, pressuposição, construção
de sentidos e leitura.
ABSTRACT
The present dissertation is situated in the line of research “Escrita e Ensino de
Língua Portuguesa” and its theme is the construction of meanings for the chronicle
reading, investigating the importance, for this process, of the previous knowledge, of
the beginning of Intertextuality and of the presupposed contents.
Starting from the presupposed that such elements form strategies which
facilitate the construction of meanings for the reading, and having as corpus four
chronicles, the essay’s objective was the carrying out of a study about the
Intertextuality, the previous knowledge and the presupposed contents in this sort of
text.
The essay justified itself by the importance confronted by the “PCN” to the
work with diversity of textual kinds, among which we spotted one chronicle, focusing
the active reader’s participation, emphasizing the formation of a critic reader
accordingly the “PCN” suggest.
In order to develop the essay the base was textual linguistics, especially the
studies of Beaugrande & Dressles (1981), Beaugrande (1987), van Dijk (2002) and
Koch & Travaglia (2003); also the postulates of Ducrot (1977; 1980; 1987)
concerning the presumption concept.
A methodology applied on the corpus consisted in identifying the elements
which institute the relation between text and reader, analyzing how they act in the
construction of the meanings. Therefore, at first we establish the analysis categories,
considering the three general elements, previous knowledge, Intertextuality and
presupposed contents. Afterwards, we identify these elements in the corpus and,
then, we analyze them, verifying what their function in the construction of the
meanings of the elected texts is.
The carried out research made it possible to explore the previous knowledge
demanded by the chronicles, the beginning of Intertextuality and the presupposed
contents, evidencing that these phenomena constitute important strategies for the
construction of the meanings in the reading of chronicles.
Key-words: previous knowledge, Intertextuality, presumption, construction of
meanings and reading.
ERRATA
Folha Linha Onde se lê Leia-se
12 18 conhecimentos prévios envolvidos
na leitura; elementos de
intertextualidade, exigindo certo
conhecimento do leitor; e
conteúdos de pressuposição. Além
disso, a crônica constitui
conhecimentos prévios
envolvidos na leitura, os
elementos de
intertextualidade e os
conteúdos de pressuposição,
constitui
49 32 Estudiosos da Análise do Discurso
estudaram a intertextualidade
como condição de existência do
próprio discurso, encarando,
portanto, a intertextualidade num
sentido amplo.
Nos estudos da Análise do
Discurso, a intertextualidade
é compreendida como
condição de existência do
próprio discurso, encarada,
portanto, num sentido amplo.
63 10 da Teoria da Computação e
Informática,
da Teoria da Computação e
da Informática,
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................11
Capítulo I – Os PCN e o Ensino de Leitura...........................................................18
1.1 – A importância de um referencial curricular para o ensino nacional.................18
1.2 – Objetivos gerais e conteúdos de Língua Portuguesa para o Ensino
Fundamental.......................................................................................................21
1.3 – Objetivos e conteúdos do Ensino da Leitura...................................................25
1.4 – Gêneros textuais e leitura................................................................................28
1.4.1 – O Gênero Crônica...................................................................................31
Capítulo II – Leitura e Construção de Sentidos.....................................................35
2.1 – Concepções de linguagem, sujeito e texto........................................................35
2.2 – Interação texto e leitor.......................................................................................38
2.3 – Conhecimento Prévio........................................................................................40
2.4 – Princípio de Intertextualidade............................................................................48
2.5 – Conteúdos Implícitos.........................................................................................53
2.5.1 – A Pressuposição.......................................................................................58
2.6 – A construção de sentidos na leitura..................................................................62
Capítulo III – Conhecimento Prévio, Intertextualidade e Pressuposição: um
exemplo de análise...................................................................................................66
3.1 – Situando o corpus..............................................................................................67
3.2 – Conhecimentos Prévios.....................................................................................68
3.2.1 – Conhecimento Textual..............................................................................69
3.2.2 – Conhecimento Lingüístico.........................................................................71
3.2.2.1 – Conhecimento do Léxico....................................................................71
3.2.2.2 – Conhecimento do funcionamento das estruturas lingüísticas............73
3.2.3 – Conhecimento de Mundo..........................................................................75
3.2.4 – Conhecimento Social................................................................................78
3.3 – Elementos de Intertextualidade.........................................................................80
3.3.1 – Intertextualidade Explícita.........................................................................81
3.3.2 – Intertextualidade Implícita.........................................................................81
3.4 – Conteúdos de Pressuposição............................................................................83
3.4.1 – Verbos de mudança ou permanência de estado......................................83
3.4.2 – Verbos factivos e contrafactivos...............................................................87
3.4.3 – Expressões adverbiais iterativas e aspectuais.........................................88
Conclusão.................................................................................................................90
Referências Bibliográficas......................................................................................93
Anexo I – Crônica 1: Policiais paulistanos.................................................................97
Anexo II – Crônica 2: Cursinho de motorista.............................................................99
Anexo III – Crônica 3: Loucas por bisturi.................................................................102
Anexo IV – Crônica 4: A idade das palavras...........................................................105
11
INTRODUÇÃO
É fato rotineiro ouvirmos dos professores que seus alunos não sabem ler,
mas, por outro lado, também é praxe nos depararmos com docentes despreparados
para promover condições na sala de aula que possibilitem um adequado
desenvolvimento da competência leitora dos estudantes. Esse despreparo tem a ver
com o fato de muitos professores ainda embasarem seu trabalho em uma
concepção mecanicista em relação às atividades de leitura, encarando o ato de ler,
de modo geral, apenas como uma atividade de decodificação de signos lingüísticos.
Diante de uma nova concepção de leitura que considera o ato de ler como um
processo de interação entre texto e leitor, em 1998, com a finalidade de auxiliar
professores a buscarem novas metodologias de ensino, foram publicados, os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa. Os PCN propõem
que o ato de ler constitui uma atividade humana, histórica e social. Desse ponto de
vista, em aulas de leitura, de acordo com as diretrizes dos PCN, o aluno deve ser
capaz de, entre outros fatores, analisar criticamente os diferentes discursos,
inclusive o próprio, desenvolvendo a capacidade de avaliação de textos,
contrapondo sua interpretação da realidade a diferentes opiniões.
Conforme preconizam os PCN, o sentido do texto escrito é construído em um
processo dialógico entre autor, texto e leitor. O texto, desse ponto de vista, é um
lugar de interação e os leitores são seus interlocutores, sujeitos ativos que –
dialogicamente – nele se constroem e são construídos (KOCH, 2003b, p.17). Nessa
concepção o texto contém toda uma gama de implícitos, dos mais variados tipos,
somente detectáveis quando se tem, como pano de fundo, o contexto sociocognitivo
dos participantes da interação (sequentia).
A compreensão deixa assim de ser considerada como simples atividade de
decodificação e passa a ser encarada como uma atividade social de produção de
12
sentido no interior de um evento comunicativo. Corroborando com essa idéia,
Brandão (1998, p.198) destaca que o leitor, sendo um dos sujeitos da atividade de
linguagem, institui-se no texto em duas instâncias:
- no nível pragmático, o texto, enquanto objeto veiculador de uma
mensagem, está atento em relação ao seu destinatário, mobilizando
estratégias que tornem possível e facilitem a comunicação. [...] o
outro-destinatário se instala no próprio movimento de produção do
texto, na medida em que o autor orienta sua fala tendo em vista o
público-alvo selecionado;
- no nível lingüístico-semântico, o texto é uma ‘potencialidade
significativa’ que se atualiza no ato da leitura, levado a efeito por um
leitor instituído no próprio texto, capaz de reconstruir o universo
representado a partir das indicações, pistas, que lhe são fornecidas.
É o movimento da leitura, o trabalho de elaboração de sentidos que
dá concretude ao texto.
Em outras palavras, o processo interacional que se estabelece na atividade
de leitura constitui-se por meio de estratégias utilizadas pelo autor e pelo leitor do
texto, no intuito de construírem o sentido. Acreditamos que o conhecimento de tais
estratégias pelo professor pode auxiliá-lo a aprimorar sua prática pedagógica em
salas de aula de leitura.
Sendo assim, consideramos que, ao recorrer à intertextualidade, aos
conhecimentos prévios, e aos conteúdos de pressuposição, o leitor pode acionar
meios pelos quais ele completa a informação, utilizando as suas competências
lingüística e comunicativa. A Intertextualidade proporciona um diálogo com outros
textos, os conhecimentos prévios constituem toda uma gama de conhecimentos
(lingüístico, textual, de mundo, social e pragmático) e os conteúdos pressupostos
dependem do domínio de um repertório lingüístico para a sua compreensão. Por
conseguinte, temos como pressuposto de pesquisa que tais estratégias constituem
elementos facilitadores da construção de sentidos na leitura.
Com respeito à atividade de leitura, destacamos o gênero crônica, que, além
de propiciar uma instigante análise textual por meio da qual podemos observar
conhecimentos prévios envolvidos na leitura; elementos de intertextualidade,
exigindo certo conhecimento do leitor; e conteúdos de pressuposição. Além disso, a
crônica constitui elemento mobilizador para a reflexão e discussão de temas
13
transversais como trabalho, cidadania, ética e pluralidade cultural, promovendo
também a aproximação de diferentes áreas do saber, possibilitando o
desenvolvimento de projetos interdisciplinares com professores das diversas áreas
de estudo.
Temos, portanto, como pergunta de pesquisa o seguinte questionamento:
como explorar a intertextualidade, os conhecimentos prévios e os implícitos
(elementos de pressuposição) na leitura de crônicas?
Apoiadas nessas idéias e em nossa experiência como professora de Língua
Portuguesa (LP) em salas de aula de 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental e 1ª a 3ª
séries do Ensino Médio – nas quais constatamos a dificuldade do aluno em relação
à leitura de textos escritos – procuramos desenvolver este trabalho com o qual
esperamos contribuir para o processo de ensino e aprendizagem da leitura.
Assim, a pesquisa tem como objetivo central verificar como ocorrem a
intertextualidade, os conhecimentos prévios e os conteúdos pressupostos no gênero
crônica e como eles atuam no processo de interação entre o leitor e o texto. A fim de
cumprir o objetivo central, utilizando como corpus quatro crônicas, temos três
objetivos específicos:
analisar os conhecimentos prévios que o texto exige para a construção de
seus sentidos;
analisar os elementos de intertextualidade presentes nas crônicas
selecionadas;
analisar as marcas de pressuposição presentes no corpus.
Para o desenvolvimento do trabalho, buscamos os fundamentos da
Lingüística Textual, especificamente, sobre texto e os fatores que o constituem
(Beaugrande & Dressler, 1981 e Beaugrande, 1997); na perspectiva socio-
interacional cognitiva da Lingüística Textual postulada por van Dijk (2002) e seus
seguidores, (Koch & Travaglia, 2003) e nos conceitos postulados por Ducrot (1977;
1980 e 1987) acerca de conteúdos implícitos, notadamente os conteúdos
pressupostos.
14
Para compreendermos melhor o fenômeno da produção de textos escritos
importa entendermos previamente o que caracteriza o texto, escrito ou oral, unidade
lingüística comunicativa básica, uma vez que o que as pessoas têm para dizer umas
às outras não são palavras nem frases isoladas, são textos. Podemos definir texto
ou discurso como ocorrência lingüística falada ou escrita, de qualquer extensão,
dotada de unidade sociocomunicativa, semântica e formal.
É importante ressaltar que o texto é uma unidade de linguagem em uso,
cumprindo uma função identificável num dado jogo de atuação sócio-comunicativa.
Uma série de fatores pragmáticos contribui para a construção de seu sentido e tem
papel determinante em sua produção e compreensão.
Desse modo, o que é pertinente numa situação pode não o ser em outra. O
contexto sociocultural em que se insere o texto também constitui elemento
condicionante de seu sentido, na produção e na recepção, na medida em que
delimita os conhecimentos partilhados pelos interlocutores.
A segunda propriedade básica do texto é o fato de ele constituir uma unidade
semântica. Uma ocorrência lingüística, para ser texto, precisa ser percebida pelo
leitor como um todo significativo. Finalmente, o texto se caracteriza por sua unidade
formal, material. Seus constituintes lingüísticos devem se mostrar reconhecíveis e
integrados, de modo a permitir que ele seja percebido como um todo coeso.
Desse ponto de vista, apoiados em Koch (2003a), podemos afirmar que um
texto será bem compreendido quando avaliado sob três aspectos:
a) o pragmático, que tem a ver com seu funcionamento enquanto atuação
informacional e comunicativa;
b) o semântico-conceitual, de que depende sua coerência;
c) o formal, que diz respeito à sua coesão.
15
Relacionando os conceitos de texto e textualidade, podermos dizer, em
princípio, que a unidade textual se constrói, no aspecto sócio-comunicativo, por
fatores pragmáticos, como a intertextualidade e os conhecimentos prévios e as
inferências; no aspecto semântico, pela coerência; e, no aspecto formal, pela
coesão. É possível, no entanto, repensar esse arranjo, se considerarmos que a
intertextualidade e os conhecimentos prévios dizem respeito, também, à matéria
conceitual do discurso, na medida em que lidam com conhecimentos partilhados
pelos interlocutores. Ao mesmo tempo em que contribuem para a eficiência
pragmática do texto, conferindo-lhe interesse e relevância, esses dois fatores
também se colocam como constitutivos da unidade lógico-semântico-cognitiva do
discurso, ao lado da coerência.
Segundo Kleiman (2004), é mediante a interação de diversos níveis de
conhecimento, como o conhecimento lingüístico, o textual, o conhecimento de
mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto. E porque o leitor utiliza
justamente diversos níveis de conhecimento que interagem entre si, a leitura é
considerada um processo interativo.
Com respeito aos diversos conhecimentos envolvidos na leitura de textos,
vale lembrar que, segundo Beaugrande e Dressler (1981), o princípio de
intertextualidade é aquele que concerne aos fatores que fazem a utilização de um
texto dependente do conhecimento de outros textos. Inúmeros textos só fazem
sentido quando entendidos em relação a outros textos, que funcionam como seu
contexto. Isso é verdade tanto para a fala coloquial, em que se retornam conversas
anteriores, quanto para os pronunciamentos políticos ou o noticiário dos jornais, que
requerem o conhecimento de discursos e notícias já divulgadas, que são tomados
como ponto de partida ou são respondidos.
Consideramos o princípio de intertextualidade, os conhecimentos prévios e o
reconhecimento e a compreensão de conteúdos pressupostos como estratégias de
leitura e, como meio de verificação desses fenômenos, elegemos o gênero crônica,
que trata de fatos cotidianos, que podem ser facilmente resgatados pelos alunos.
Assim sendo, desenvolvemos o presente trabalho a fim de verificar como essas
estratégias se realizam na leitura.
16
Para o cumprimento do objetivo proposto, adotamos os seguintes procedimentos:
revisão das diretrizes dos PCN que se referem ao ensino de leitura, uma vez
que esta pesquisa é de caráter pedagógico;
revisão de teorias que tratam da peculiaridades lingüísticas do gênero
crônica;
revisão da literatura sobre intertextualidade, conhecimentos prévios,
considerando, principalmente, os estudos de Beaugrande & Dressler (1981);
Koch (2003a; 2003b; 2003c e 2004); (Koch & Travaglia, 2003)
respectivamente;
revisão da literatura sobre implícitos (pressuposição), principalmente os
estudos desenvolvidos por Ducrot (1977; 1980 e 1987) e seus seguidores;
construção do capítulo de fundamentação teórica;
estabelecimento das categorias de análise, de acordo com a fundamentação
teórica;
análise de quatro crônicas, a título de exemplificação.
Quanto a sua estrutura, esta dissertação, além da introdução, das
considerações finais, das referências bibliográficas e dos anexos, está organizada
em três capítulos.
No primeiro capítulo, apresentamos as concepções que subjazem às
diretrizes dos PCN voltadas para o ensino de leitura em salas de aula do Ciclo II (5
a
a 8
a
séries), enfocando a necessidade de proporcionar ao aluno o contato com
diversos gêneros textuais. Na seqüência, privilegiamos o gênero crônica,
considerando seus elementos constitutivos.
No segundo capítulo, apresentamos a base teórica do trabalho, enfocando a
natureza interacional da linguagem, à luz dos estudos de Koch (2003 e 2004), a
noção de conhecimento prévio como procedimento interpretativo (Koch & Travaglia,
2003); o princípio da intertextualidade (Beaugrande & Dressler, 1981; Koch, 2003a;
2003b; 2003c e 2004); e os aspectos relacionados ao fenômeno de pressuposição,
conforme estudos de Ducrot (1977; 1980 e 1987).
17
No terceiro capítulo, apresentamos, a título de exemplificação, a análise de
quatro crônicas: Policiais paulistanos, Loucas por um bisturi, Cursinho para motorista
e Idade das palavras, de Walcyr Carrasco retiradas da revista semanal Veja,
considerando os princípios teóricos tratados no capítulo 2, ou seja, os
conhecimentos prévios; o princípio da intertextualidade; e os pressupostos.
18
CAPÍTULO I
OS PCN E O ENSINO DE LEITURA
Como o foco desta pesquisa é leitura em aulas de Língua Portuguesa (LP),
consideramos oportuno resgatar alguns aspectos relevantes nos PCN (BRASIL,
1998), já que suas diretrizes representam um avanço considerável nas políticas
educacionais brasileiras em geral e, em particular, nas políticas lingüísticas a fim de
contribuir para o sucesso do ensino de leitura, em favor da formação de cidadãos
críticos e conscientes do papel que devem exercer no desenvolvimento social,
político e econômico do Brasil.
Sendo assim, este primeiro capítulo tem por objetivo abordar os PCN, quais
os seus objetivos e quais os seus propósitos em relação à leitura.
1.1 – A importância de um referencial curricular para o ensino nacional
No despertar do novo milênio, em que fenômenos como a globalização, os
progressos científicos e os avanços tecnológicos regem uma veiculação contínua de
informações, o papel da escola ampliou-se. Nesse contexto, é necessário preparar o
aluno para exercer plenamente seus direitos de cidadão, tornando-o capaz de
desenvolver habilidades lingüísticas para ler, analisar e interagir com a realidade em
que vive.
Entretanto, a garantia de vagas nos bancos escolares não é suficiente para o
alcance desse objetivo. É necessário oferecer ao estudante um ensino de qualidade,
com professores capazes de incorporar ao seu trabalho os avanços das pesquisas
nas diferentes áreas do conhecimento, atentos às dinâmicas sociais e suas
implicações no âmbito escolar.
19
No intuito de atender as demandas da sociedade contemporânea, foram
elaborados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), com o propósito de, por
um lado, respeitar diversidades regionais, culturais e políticas existentes no País e,
por outro, considerar a necessidade de construir referências nacionais comuns ao
processo educativo em todas as regiões brasileiras.
Dessa forma, com base na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN – Lei Federal nº. 9.394, de 20/12/1996), que estabelece por finalidade o
pleno desenvolvimento do educando, os PCN pretendem propiciar aos estudantes
brasileiros melhores condições de acesso ao conjunto de conhecimentos
socialmente elaborados e reconhecidos como necessários ao exercício da
cidadania.
Por conseguinte, os Parâmetros, apoiados em normas legais, procuram
contribuir, entre outros fatores, para a busca de respostas a problemas identificados
no ensino fundamental, como, por exemplo, a evasão e a repetência escolar,
objetivando uma transformação desse ensino que atenda às demandas da
sociedade brasileira atual:
O Plano Decenal de Educação, à luz da Constituição de 1988,
reafirma a necessidade e a obrigação do Estado de elaborar
parâmetros claros, no campo curricular, capazes de orientar o
ensino fundamental de forma a adequá-lo aos ideais democráticos e
à busca da melhoria da qualidade do ensino nas escolas brasileiras.
Também a Lei Federal nº. 9.394, Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, determina como competência da União
estabelecer, em colaboração com estados, distrito federal e
municípios, diretrizes que nortearão os currículos e seus conteúdos
mínimos, de modo a assegurar uma formação básica comum.
(BRASIL, 1998, p. 49)
Com relação à Língua Portuguesa, os PCN consideram seu processo de
ensino e aprendizagem como sendo o resultado da articulação de três variáveis:
o aluno, que é o sujeito da ação de aprender, aquele que age com e sobre o
objeto de conhecimento;
20
os conhecimentos discursivo-textuais e lingüísticos implicados nas práticas
sociais de linguagem;
a mediação docente, já que é a prática educacional do professor e da escola que
organiza a mediação entre sujeito e objeto do conhecimento.
De acordo com os PCN de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998), um dos
aspectos a serem levados em consideração pela escola é o fato de o sujeito ser
capaz de utilizar a língua de modo variado para produzir diferentes efeitos de sentido
e de adequar o texto a diferentes situações de interlocução oral e escrita. Assim,
toda educação comprometida com o exercício da cidadania precisa criar condições
para que o aluno possa desenvolver sua competência discursiva
1
.
Nesse contexto, entende-se que a importância e o valor dos usos da
linguagem são determinados historicamente, segundo as demandas sociais de cada
momento. Os PCN defendem que, atualmente, exigem-se níveis de leitura e de
escrita diferentes dos que satisfizeram as demandas sociais até há bem pouco
tempo, pois as necessidades da vida contemporânea são outras, e tudo indica que a
exigência tende a crescer.
Em outros termos, fundamentado pela necessidade de atender as exigências
sociais da atualidade, o documento ressalta a importância de uma revisão
substantiva na constituição de práticas que possibilitem ao aluno ampliar sua
competência discursiva na interlocução, pois não é mais possível tomar como
unidades básicas do processo de ensino e aprendizagem aquelas que decorrem de
uma análise de estratos – letras/fonemas, sílabas, palavras, frases – que,
descontextualizados, são normalmente tomados como exemplos de estudo
gramatical e pouco têm a ver com a competência discursiva.
1
Competência discursiva refere-se a um “sistema de contratos semânticos” responsável por
uma espécie de “filtragem” que opera os conteúdos em dois domínios interligados que
caracterizam o dizível: o universo intertextual e os dispositivos estilísticos acessíveis à
enunciação dos diversos discursos. (PCN de Língua Portuguesa, 1998, p.23)
21
A partir desse ponto de vista, de acordo com os PCN, a unidade básica do
ensino de língua portuguesa só pode ser o texto, levando-se em conta a diversidade
de gêneros textuais existentes.
Desse modo, é necessário contemplar, nas atividades de ensino, a
diversidade de gêneros e textos, não apenas pela relevância social que apresentam,
mas também pelo fato de que textos pertencentes a diferentes gêneros são
organizados de diferentes formas.
Em suma, os PCN adotaram, como objeto de ensino e de aprendizagem na
área de Língua Portuguesa, o conhecimento lingüístico e discursivo com o qual o
sujeito opera ao participar das práticas sociais mediadas pela linguagem, conceito
que vem ao encontro do pensamento de muitos estudiosos e pesquisadores na área
da Lingüística Textual, como Beaugrande & Dressler (1981), Koch (2003a; 2003b;
2003c e 2004), van Dijk (2002), entre outros.
1.2 – Objetivos gerais e conteúdos de Língua Portuguesa para o Ensino
Fundamental
No processo de ensino e aprendizagem dos diferentes ciclos do ensino
fundamental, espera-se que o aluno amplie o domínio ativo do discurso nas diversas
situações comunicativas, sobretudo nas instâncias públicas de uso da linguagem, de
modo que se consolide sua inserção efetiva no mundo da leitura e da escrita e se
ampliem suas possibilidades de participação social no exercício da cidadania.
Para tanto, os PCN enfatizam que a escola deverá organizar um conjunto de
atividades que, progressivamente, possibilitem ao aluno utilizar a linguagem para:
atender as necessidades sociais e responder aos diferentes propósitos
comunicativos e expressivos; compreender as diversas áreas do conhecimento; ter
acesso e fazer uso de informações; ser capaz de operar sobre o conteúdo
representacional dos textos; aumentar e aprofundar seus conhecimentos cognitivos
e semânticos com o objetivo de ampliar seu repertório lexical; analisar criticamente
os diferentes discursos, inclusive o próprio, desenvolvendo a capacidade de
22
avaliação dos textos; conhecer e valorizar as diferentes variedades do Português,
procurando combater o preconceito lingüístico; reconhecer e valorizar a linguagem
de seu grupo social como instrumento adequado e eficiente na comunicação
cotidiana; expandir sua capacidade de monitoração das possibilidades de uso da
linguagem, ampliando a capacidade de análise crítica.
Considerando os objetivos propostos pelos PCN, compreendemos que o
ensino da leitura deve compreender o ato de ler como um processo interacional, em
que os sujeitos, por meio do texto, comunicam-se para, juntos, construírem sentidos.
No que diz respeito aos conteúdos apropriados para o ensino de língua
portuguesa, eles devem, conforme preconizam os PCN, ser baseados em
pressupostos teóricos que considerem a dimensão de como os sujeitos aprendem e
de como desenvolvem sua competência discursiva. O ensino de Língua Portuguesa
deve, portanto, ocorrer em um espaço no qual o uso da linguagem seja
compreendido em sua dimensão histórica e social e no qual a análise e a
sistematização teórica dos conhecimentos lingüísticos decorram dessa
compreensão.
Os PCN, fundamentados nessa concepção discursiva, sugerem que se
trabalhe a língua a partir de gêneros discursivos. O trabalho com os gêneros na
escola, conforme sugerem os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), objetivam o
aprimoramento do ensino de Língua Portuguesa para adequá-lo às modificações
sociais e culturais. Os estudos referentes aos gêneros discursivos promovem a
integração e compreensão de diferentes meios sociais em que eles ocorrem. Por
meio do estudo de diferentes gêneros textuais, em sala de aula, o aluno terá, por
conseguinte, mais subsídios para desenvolver a sua capacidade de expressão
lingüística nas diversas situações comunicativas de que participa em seu dia-a-dia e
irá respeitar mais as diversidades culturais.
Por isso, acredita-se que, para uma maior eficácia do estudo da Língua
Portuguesa, é pertinente que se aborde a variedade sociocultural dos gêneros
textuais nas atividades didáticas da disciplina.
23
Nessa perspectiva, é importante que as atividades de leitura no espaço
escolar levem em conta as dimensões discursiva e pragmática implicadas em
qualquer atividade de comunicação, de modo a permitir a construção de categorias
explicativas de seu funcionamento. Desse ponto de vista, acreditamos que a
reflexão sobre o funcionamento da língua, incentivada pelo professor, pode propiciar
ao sujeito o desenvolvimento de sua competência discursiva para falar, escutar, ler e
escrever nas diversas situações de interação.
Corroborando tais observações, os PCN articulam os conteúdos de Língua
Portuguesa em torno de “dois eixos básicos: o uso da língua oral e escrita e a
reflexão sobre a língua e a linguagem”, conforme representado no seguinte
diagrama:
(BRASIL, 1998, p.34)
Os conteúdos indicados para as práticas do eixo do uso da linguagem são
eminentemente enunciativos e envolvem aspectos como historicidade da linguagem
e da língua; contexto de produção dos enunciados em leitura e produção de textos
orais e escritos; implicações do contexto de produção na organização dos discursos
(gêneros e suportes) e implicações do contexto de produção no processo de
significação.
USO
de
LÍNGUA ORAL
e
ESCRITA
REFLEXÃO
sobre
LÍNGUA
e
LINGUAGEM
24
Já os conteúdos indicados para as práticas do eixo da reflexão sobre a língua
e a linguagem abrangem aspectos ligados à variação lingüística, organização
estrutural dos enunciados, processos de construção da significação, léxico e redes
semânticas e modos de organização dos discursos.
Conforme explicam os PCN, ao se trabalharem os conteúdos de Língua
Portuguesa em torno do eixo uso/reflexão/uso, estarão sendo levados em conta os
usos efetivos da linguagem, socialmente construídos nas múltiplas práticas
discursivas.
A perspectiva é formar alunos que saibam produzir e interpretar textos de uso
social – orais e escritos – e que saibam adequar a linguagem nas várias situações
comunicativas que permitem plena participação no mundo letrado.
Esse objetivo implica colocar o aluno em contato sistemático com o papel de
leitor e escritor, compartilhando a multiplicidade de propósitos que a leitura e a
escrita possuem: ler por prazer, para se divertir, para buscar alguma informação
específica, para compartilhar emoções com outros, para contar para os outros, para
recomendar; escrever para expressar as idéias, para organizar os pensamentos,
para aprender mais, para registrar e conservar como memória, para informar, para
expressar sentimentos, para comunicar-se à distância, para influenciar os outros.
Como propõem os PCN, para formar usuários competentes da língua, é
preciso planejar situações didáticas em que a leitura e a escrita façam parte da vida
do aluno. É preciso que ele ocupe sistematicamente a posição de leitor e escritor
para praticar e construir o hábito de ler e escrever, para se sentir empolgado pelo
prazer da autoria, para vivenciar as surpresas das metáforas poéticas, para se
divertir com os ritmos das palavras, para se sentir contagiado pela imaginação, para
poder ser arrebatado pelo conhecimento.
Assim, esse contexto escolar, que os PCN classificam de letramento, representa
uma abertura de possibilidades, um exercício do direito de aprender na escola as
práticas de leitura e escrita tal como acontecem na vida. É dessa forma que se pode
favorecer a plena participação dos alunos no mundo da cultura escrita.
25
1.3 – Objetivos e conteúdos do Ensino da Leitura
Como o cerne desta pesquisa são estratégias de leitura, importa-nos revisar
as diretrizes dos PCN que orientam o ensino de leitura em aulas voltadas para o
ensino fundamental. De acordo com o documento, o aluno deve, entre outros
fatores, ser capaz de:
ler, de maneira autônoma, textos de gêneros e temas com os
quais tenha construído familiaridade;
selecionar procedimentos de leitura adequados a diferentes
objetivos e interesses e às características do gênero e suporte;
desenvolver sua capacidade de construir um conjunto de
expectativas (pressuposições antecipadoras dos sentidos, da forma
e da função do texto), apoiando-se em seus conhecimentos prévios
sobre gênero, suporte e universo temático, bem como sobre
saliências textuais - recursos gráficos, imagens, dados da própria
obra (índice, prefácio etc.);
confirmar antecipações e inferências realizadas antes e durante
a leitura;
ser receptivo a textos que rompam com seu universo de
expectativas, por meio de leituras desafiadoras para sua condição
atual, apoiando-se em marcas formais do próprio texto ou em
orientações oferecidas pelo professor.
(BRASIL, 1998, p.50)
Diante de tais objetivos, observamos que a atividade de leitura, segundo a
concebem os PCN, apóia-se nos conhecimentos prévios do leitor, contempla o
reconhecimento de elementos de intertextualidade, e inclui em suas estratégias a
identificação dos implícitos, o que vem ao encontro do objetivo central da presente
pesquisa, que é o de verificar, no gênero crônica, os conhecimentos prévios exigidos
do leitor e a ocorrência de intertextualidade e implícitos, observando como estes
elementos contribuem para o processo de interação entre o leitor e o texto.
Os PCN, ao tratarem da elaboração de conteúdos para o ensino fundamental
no terceiro e no quarto ciclos, preconizam que eles devem estar baseados em
alguns fatores, entre os quais encontram-se os conhecimentos prévios, os
elementos de intertextualidade e os implícitos.
26
Assim sendo, segundo os PCN, o trabalho no ensino fundamental deve
apoiar-se na articulação entre conhecimentos prévios e informações textuais,
inclusive as que dependem de pressuposições e inferências (semânticas,
pragmáticas) autorizadas pelo texto, para dar conta de ambigüidades, ironias e
expressões figuradas, opiniões e valores implícitos, bem como das intenções do
autor. Deve ainda contemplar o estabelecimento de relações entre os diversos
segmentos do próprio texto, entre o texto e outros textos diretamente implicados
pelo primeiro, a partir de informações adicionais oferecidas pelo professor ou
conseqüentes da história de leitura do sujeito.
Como podemos observar, nos PCN, a leitura é considerada um processo no
qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto, com
base em seus objetivos e seu conhecimento prévio sobre o assunto, e de ordem
geral, sobre outros textos, seu raciocínio, permitindo que ele elabore e preencha as
lacunas deixadas pelos implícitos. Trata-se de uma atividade que implica utilizar
estratégias como seleção, antecipação, inferência e verificação no processo de
construção de sentidos.
Para os PCN, o terceiro e o quarto ciclos têm papel decisivo na formação de
leitores, pois é nesse período que muitos alunos ou desistem de ler por não
conseguirem responder às demandas de leitura exigidas pela escola, ou passam a
utilizar os procedimentos construídos nos ciclos anteriores para lidar com os
desafios postos pela leitura, com autonomia cada vez maior.
Diante do desafio de fazer com que o maior número de alunos se enquadre
na segunda alternativa acima apresentada, é importante que a leitura, na escola,
contemple os processos cognitivos múltiplos – o conhecimento lingüístico, o
conhecimento textual, o conhecimento de mundo, constituído pelo passado,
lembranças e experiências. Cabe aos professores e à escola, em parceria com a
sociedade, encontrar caminhos para que eles sejam ativados ao longo do processo.
Assim, a tarefa de formar leitores impõe à escola e aos professores a
responsabilidade de organizarem-se em torno de um projeto educativo
comprometido com o aprimoramento da competência discursiva do aluno. Nesse
27
sentido, destaca-se a importância da diversidade das práticas de recepção dos
textos: não se lê uma notícia da mesma forma que se consulta um dicionário; não se
lê um romance da mesma forma que se estuda. O contato dos estudantes com
diferentes gêneros textuais lhes permite, portanto, ampliar sua competência leitora e
o seu senso crítico diante da realidade em que se insere.
É no mesmo sentido que destacamos a importância de os alunos perceberem
que os sentidos do texto são resultados da articulação entre as informações do texto
e os conhecimentos ativados pelo leitor no processo de leitura, ou seja, o texto não
está pronto quando escrito, pois o leitor tem seu papel na construção dos sentidos.
A contínua reflexão sobre a funcionalidade dos elementos lingüísticos e sua
relação com o contexto em que se inserem torna-se fundamental para a ampliação
das competências do leitor, pois a partir dessa reflexão se ampliam os
conhecimentos lingüístico dos alunos, dando-lhes condições de perceberem o papel
da língua nos diferentes contextos de uso, de acordo com as intenções do produtor
do texto.
Essa visão justifica que se tomem como ponto de partida obras que se
relacionem ao cotidiano do aluno, como a crônica, por exemplo, a fim de construir
pontes entre textos de entretenimento e textos mais complexos, estabelecendo as
conexões necessárias para criar o interesse do educando em relação a outras
formas culturais.
1.4 – Gêneros textuais e leitura
A questão dos gêneros textuais, desde a década de 80, vem atraindo a
atenção de lingüistas, independente de filiação a correntes determinadas. Esse
interesse, relativamente recente, justifica-se porque, ao pensar a língua como
possibilidade de interação e atuação, a Lingüística percebe de que não pode mais
restringir seu objeto de estudo a enunciados desvinculados de seu contexto, de suas
condições de produção e de suas situações de interlocução. Parte, então, para o
estudo, ou análise, de unidades maiores e chega ao texto. Chegando ao texto,
28
depara-se com uma variedade de tipos, com uma diversidade de formas de
textualização; assim, em meio à heterogeneidade dos textos com que se defronta no
campo da linguagem, a lingüística vai em busca de uma classificação, uma
tipologização, com o objetivo de compreender seu material de análise (Brandão,
2003).
Embora a questão dos gêneros venha atraindo a atenção de vários
pesquisadores, a definição do que é um gênero e seus limites de constituição
continua sendo problemática, posto que, em alguns casos, não é possível precisar
se se trata de um ou de outro gênero, ou de gêneros entrecruzados. Como bem
adverte Bonini (2001, p. 8), o conceito está em formação, de modo que as lacunas
teóricas ainda são muitas e os resultados de pesquisas, parcos. Não obstante os
percalços enfrentados, vários pesquisadores continuam investindo no estudo dos
gêneros e alguns resultados (SWALES, 1990; ADAM, 1992; MARCUSCHI, 2000;
2003; 2005; BONINI, 2002; MEURER, 2002; entre outros) – muitos dos quais
consensuais – têm-se revelado bastante relevantes para o estudo da linguagem.
À medida que os estudos avançam, novos desafios vão se interpondo no
caminho. Um deles diz respeito a aspectos que se mostram tão imbricados no
contexto de realização das práticas discursivas, que se torna difícil precisar limites
entre uma e outra categoria de análise. Assim, conceitos como gênero, veículo,
suporte, meio de difusão emaranham-se e a sua destrinça muitas vezes parece não
deixar suficientemente clara e inequívoca o que vem a ser cada um.
Observar a língua como um processo que permite formas de realizações
variadas, heterogêneas e múltiplas é fundamental para a compreensão do conceito
de gênero textual. De acordo com Bakhtin (2003), nas diversas atividades sociais
das quais participa, o ser humano vai servir-se da língua e, conforme o interesse, a
intenção e a finalidade, os enunciados serão realizados de maneiras diversas. A
essas diferentes formas de incidência dos enunciados, o autor denomina de gêneros
do discurso.
29
Bakhtin (2003) caracteriza os gêneros como sendo eventos comunicativos
relativamente estáveis, uma vez que, considerando-se a dinamicidade da língua,
podem ocorrer modificações relacionadas ao desenvolvimento social, à influência de
outras culturas ou a outros tantos fatores com que a língua tem relação direta, como
o próprio passar do tempo. Sendo assim, torna-se impossível definir
quantitativamente os gêneros, pois o uso propicia a possibilidade de transformação.
Para Bakhtin (2003, p.261),
Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao
uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e
as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da
atividade humana, o que, é claro, não contradiz a unidade nacional
de uma língua. O emprego da língua efetua-se em forma de
enunciados [...] Esses enunciados refletem as condições específicas
e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo
(temático) e pelo estilo de linguagem, ou seja, pela seleção dos
recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima
de tudo, por sua construção composicional.
Marcuschi (2005) entende que os gêneros correspondem textos da vida diária
com padrões sócio-comunicativos característicos definidos por sua composição,
objetivos enunciativos e estilo, realizados por forças históricas, sociais, institucionais
e tecnológicas. Os gêneros constituem uma listagem aberta, são entidades
empíricas em situações comunicativas e se expressam em designações tais como:
sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem, aula
expositiva, notícia jornalística, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de
compras, cardápio de restaurante, resenha editorial de concurso, piada,
conversação espontânea, e-mail, chat e assim por diante.
Um dos aspectos mais marcantes dos gêneros, que alude de forma direta à
questão do “uso”, é o fato de que devemos considerá-lo como um meio social de
produção e de recepção do discurso. Para classificar determinado enunciado como
pertencente a um dado gênero, é necessário que verifiquemos suas condições de
produção, circulação e recepção. É também de extrema relevância observar que o
gênero, como fenômeno social, só existe em determinada situação comunicativa e
30
sócio-histórica, e cada uma dessas situações é que o determina, pois, com
características temáticas, composicionais e estilísticas próprias.
A grande diversidade de gêneros impede que a escola trate todos eles como
objeto de ensino, o que implica, conseqüentemente, a necessidade de uma seleção.
Nesse sentido, os PCN sugerem alguns gêneros como referência básica para se
trabalhar com os textos, priorizando aqueles cujo domínio é fundamental à efetiva
participação social. Eles encontram-se agrupados, em função de sua circulação
social, em gêneros literários, de imprensa, publicitários e de divulgação científica,
comumente presentes no universo escolar.
O documento deixa claro, no entanto, que não devemos considerar a relação
apresentada como exaustiva. Ao contrário, em função do projeto da escola, do
trabalho em desenvolvimento e das necessidades específicas do grupo de alunos,
outras escolhas poderão ser feitas. Destacamos, entre as opções de escolha, o
gênero crônica, um material acessível, rico e contemporâneo. Geralmente, as
crônicas apresentam linguagem simples, espontânea, situada entre a linguagem oral
e a literária. Suas peculiaridades lingüísticas, ligadas à situação de uso, contribuem
também para que o leitor se identifique com o cronista, que acaba se tornando o
porta-voz daquele que lê. Assim é que elegemos para o presente trabalho o gênero
crônica.
1.4.1 – O Gênero Crônica
A palavra crônica deriva do Latim chronica, que significava, no início da era
cristã, o relato de acontecimentos em ordem cronológica, isto é, a narração de
histórias segundo a ordem em que se sucedem no tempo. Era, portanto, um breve
registro de eventos.
No século XIX, com o desenvolvimento da imprensa, a crônica passou a fazer
parte dos jornais. Ela apareceu pela primeira vez em 1799, no Journal de Débats,
publicado em Paris.
31
Esses textos comentavam, de forma crítica, acontecimentos que haviam
ocorrido durante a semana. Tinham, portanto, um sentido histórico e serviam, assim
como outros textos do jornal, para informar o leitor. Nesse período, as crônicas eram
publicadas no rodapé dos jornais, os “folhetins”.
Essa prática foi trazida para o Brasil na segunda metade do século XIX; nessa
época, as crônicas brasileiras eram muito semelhantes aos textos publicados nos
jornais franceses. Com o passar do tempo, a crônica brasileira foi, gradualmente,
distanciando-se daquela crônica com sentido documentário originada na França e
passou a ter um caráter mais literário, fazendo uso de linguagem mais leve e
envolvendo poesia, lirismo e fantasia.
Diversos escritores brasileiros de renome escreveram crônicas: José de
Alencar, Machado de Assis, João do Rio, Rubem Braga, Rachel de Queiroz,
Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Henrique Pongetti, Paulo Mendes
Campos, Alcântara Machado e outros.
Ainda hoje há diversos escritores que desenvolvem esse gênero, publicando
textos em jornais, revistas e sites.
A crônica é, primordialmente, um texto escrito para ser publicado no jornal.
Este, como se sabe, é um veículo de informação diária e, portanto, veicula textos
efêmeros. Um texto publicado no jornal de ontem dificilmente receberá atenção por
parte dos leitores de hoje.
O mesmo tende a acontecer com a crônica. O fato de ser publicada no jornal
já lhe determina vida curta, pois à crônica de hoje seguem-se muitas outras nas
próximas edições.
Assim sendo, há certas semelhanças entre a crônica e o texto exclusivamente
informativo. Como o repórter, o cronista se alimenta dos acontecimentos diários, que
constituem a base da crônica. Entretanto, há elementos que distinguem um texto
do outro. Após cercar-se desses acontecimentos diários, o cronista dá-lhes um
32
toque próprio, incluindo em seu texto elementos como ficção, fantasia e criticismo,
elementos que o texto essencialmente informativo não contém.
Com base nesses dados, podemos afirmar que a crônica situa-se entre o
Jornalismo e a Literatura, podendo ser o cronista considerado o poeta dos
acontecimentos do dia-a-dia.
Em relação à crônica como um gênero jornalístico, Sá (1999) relata-nos que a
aparência de simplicidade não quer dizer desconhecimento das artimanhas
artísticas. Ela decorre do fato de que a crônica surge primeiro no jornal, herdando a
sua precariedade, esse seu lado efêmero de quem nasce no começo de uma leitura
e morre antes que se acabe o dia, no instante em que o leitor transforma as páginas
em papel de embrulho, ou guarda os recortes que mais lhe interessam num arquivo
pessoal.
Por haver uma proximidade maior entre as normas da língua escrita e da
oralidade, sua sintaxe lembra alguma coisa desestruturada, solta, mais próxima da
conversa entre dois amigos do que propriamente o texto escrito, mas o narrador não
perde de vista o fato de que o real não é meramente copiado, e em si recriado. O
cronista apóia-se em fatos do cotidiano, para, a partir deles, fazer ficção. O
coloquialismo, portanto, deixa de ser a transcrição exata de uma frase ouvida na rua,
para ser a elaboração de um diálogo entre o cronista e o leitor, a partir do qual a
aparência simplória ganha sua dimensão exata.
Com respeito à interação que se estabelece entre cronista e leitor, vale
ressaltar as observações de Marquesi (2005, p.35 e 36), que, ao tratar do gênero
crônica, afirma:
Na interação imprescindível entre leitor e texto, por meio do diálogo
entre competências cognitivas, sociais e interacionais, na relação
mais estreita entre texto e contexto para a busca da construção de
sentidos de cada texto lido, a leitura de crônicas pode configurar-se
como estratégia extremamente adequada a uma metodologia de
ensino de leitura. Ao lermos uma crônica, envolvemos-nos, pelo
prazer da leitura e pela proximidade com o gênero, o que nos
permite ampliar nosso universo de conhecimento, pois somos
instigados à interpretação e, assim, avançamos como leitores.
33
As observações da autora deixam clara a importância dos conhecimentos
prévios do leitor, das ligações intertextuais que este deve ser capaz de operar e dos
conhecimentos lingüístico-pragmáticos que lhe permitirão desvelar os conteúdos
implícitos do texto.
Tais considerações em torno das características do gênero crônica justificam
nossa escolha de análise neste trabalho. Fundamentados em Marquesi (2005),
acreditamos que a crônica, por ser um texto curto e tratar de assuntos relacionados
à realidade, portanto mais próximo do universo de conhecimento de nossos alunos,
pode constituir um gênero adequado para o desenvolvimento de um trabalho de
construção de sentidos de um texto explorando a ativação de conhecimentos
prévios, as relações intertextuais e os elementos de pressuposição.
Quanto à linguagem empregada nesse gênero, observamos que a crônica,
normalmente, apresenta construções não rebuscadas, o que, conforme Marquesi
(2005), “torna-a mais próxima da vida real”. Além disso, ela é escrita
predominantemente em primeira pessoa, fato que pode desencadear mais
facilmente a interação entre autor e leitor, pelo caráter subjetivo que essa estratégia
confere ao texto. Desse modo, a subjetividade é uma forte marca da crônica. A
impessoalidade não só é desconhecida como rejeitada pelos cronistas: é sua visão
das coisas que lhes importa.
Como texto é montado em torno de muito pouco ou quase nada, é o estilo
relativamente despojado do cronista que a sustenta. Devemos entender aqui estilo
como a linguagem, o idioleto e não apenas como um arranjo sintático. Sendo assim,
a linguagem ‘simplória’ faz com que haja maior proximidade entre as normas da
língua escrita e da falada, pois o cronista elabora o seu texto à semelhança de um
diálogo entre ele e o leitor. Nesse sentido, Cândido (1992, p.16) argumenta que
É que nelas parece não caber a sintaxe rebuscada, com inversões
freqüentes; nem o vocabulário ‘opulento’, como se dizia, para
significar que era variado, modulando sinônimos e palavras tão raras
quanto bem soantes. Num país como o Brasil, onde se costuma
identificar superioridade intelectual [...] a crônica operou milagres de
simplificação e naturalidade.
34
Tal afirmação demonstra que o autor de uma crônica busca a aproximação da
oralidade na escrita e, desse modo, o coloquial e o formal se equilibram, fazendo,
por meio do texto escrito, com que o espontâneo e o sensível provoquem outras
observações sobre o tema, como ocorre em nossas conversações diárias.
Neste capítulo, por meio da exploração do texto dos PCN, buscamos verificar
como a leitura, de acordo com esse documento, deve ser encarada na escola e com
base nele, justificamos a escolha do gênero crônica como corpus para esta
dissertação. No próximo capítulo, trataremos especificamente de leitura como um
processo de construção de sentidos, focalizando os conhecimentos prévios, o
princípio de intertextualidade e os implícitos, especialmente o fenômeno de
pressuposição.
35
CAPÍTULO II
LEITURA E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS
Neste capítulo, resgatamos alguns pressupostos teóricos que embasam as
práticas e os estudos na área de leitura. Em um primeiro momento, apresentamos
algumas concepções de linguagem, enfocando, principalmente, sua natureza
interacional (KOCH, 2003a; 2003b; 2003c; TRAVAGLIA, 2005), e explicitamos o
texto como lugar de interação. Na seqüência, trazemos à tona algumas
considerações sobre aspectos cognitivos e contextuais que envolvem a
compreensão de textos escritos (VAN DIJK, 2002), priorizando os conhecimentos
prévios e o princípio de intertextualidade (KOCH & TRAVAGLIA, 2003;
BEAUGRANDE & DRESSLER, 1981), bem como o reconhecimento de implícitos
(DUCROT, 1977; 1980; 1987), especialmente a pressuposição. Todos esses
elementos podem ser considerados como estratégias de interação entre texto e
leitor na construção de sentidos de um texto.
2.1 – Concepções de linguagem, sujeito e texto
No percurso dos estudos lingüísticos, a linguagem tem sido concebida de
diversas maneiras. Nesta seção, apresentamos a concepção de linguagem que
norteia nossa pesquisa e, por conseguinte, as concepções de sujeito e texto que
dela decorrem. Para tanto, traçamos com Koch (2003a; 2003b; 2003c) e Travaglia
(2005) algumas considerações que permeiam os estudos sobre texto.
36
Koch (2003a) esclarece que as concepções de sujeito e de texto derivam da
concepção de linguagem adotada. A autora apresenta as principais concepções
desses elementos do discurso, conforme explicitado a seguir.
A primeira concepção considera a linguagem como representação do
pensamento: o homem representa o mundo para si por meio de linguagem e,
também por meio dela, transmite essa representação para o outro. Assim, a
expressão se constrói no interior do pensamento e sua exteriorização é apenas uma
tradução (TRAVAGLIA, 2005).
A concepção de sujeito que decorre dessas idéias é a de sujeito psicológico,
que se caracteriza por ser individual no ato de se expressar. Ele constrói uma
representação mental por meio da linguagem e deseja que ela seja captada pelo
interlocutor da maneira como foi mentalizada, considerando-se o único responsável
pelo sentido de seus textos. O texto, nessa ótica, é compreendido como um produto
lógico do pensamento. Na verdade, trata-se apenas da materialização em palavras
de uma representação mental.
A segunda concepção compreende a linguagem como estrutura, ou seja,
como um código, um conjunto de signos que se combinam segundo algumas regras
(TRAVAGLIA, 2005). Desse modo, o código lingüístico, por si só, é capaz de
transmitir mensagens, desde que os sujeitos da comunicação o dominem.
Nessa concepção, o sujeito é considerado de um ponto de vista de
assujeitamento diante do sistema. Ele é caracterizado por uma espécie de não-
consciência e não é dono de seu discurso ou de sua vontade. Sua consciência,
quando existe, é produzida pelo mundo exterior. Conforme explica Koch (2003c,
p.14), quem fala, na verdade, é um sujeito anônimo, social, em relação ao qual o
indivíduo que, em dado momento, ocupa o papel de locutor é dependente, repetidor.
O texto, desse modo, é considerado como um simples produto da codificação de um
locutor a ser decodificado por um interlocutor.
37
A terceira concepção trata a linguagem como processo de interação. Nessa
perspectiva, Travaglia (2005, p.23) destaca que
o que o indivíduo faz ao usar a língua não é tão-somente traduzir e
exteriorizar um pensamento, ou transmitir informações a outrem,
mas sim realizar ações, agir, atuar sobre o interlocutor
(ouvinte/leitor). A linguagem é pois um lugar de interação humana,
de interação comunicativa pela produção de efeitos de sentido entre
interlocutores, em uma dada situação de comunicação e em um
contexto sócio-histórico e ideológico.
Na concepção interacional da linguagem, o sujeito é compreendido como uma
entidade psicossocial que participa ativamente do evento comunicativo em que se
insere. Em outros termos, os sujeitos (re) produzem o social na medida em que
participam ativamente da definição da situação na qual se acham engajados, e são
atores na atualização das imagens e das representações sem as quais a
comunicação não poderia existir (KOCH, 2003b, p.15).
O texto, por sua vez, é o lugar da interação, e sua compreensão deixa de ser
considerada como mera captação de representações mentais ou como simples
decodificação de mensagens. A produção de sentidos constitui, por conseguinte,
uma atividade altamente complexa, na qual o produtor do texto tem um projeto de
dizer e se vale de estratégias para concretizar sua intenção comunicativa. O
interpretador, por outro lado, tem uma participação ativa nesse processo e parte de
pistas e sinalizações que o texto oferece. Para Koch (2003b, p.17),
o sentido de um texto é, portanto, construído na interação texto-
sujeitos (ou texto-co-enunciadores) e não algo que preexista a essa
interação. Também a coerência deixa de ser vista como mera
propriedade ou qualidade do texto, passando a dizer respeito ao
modo como os elementos presentes na superfície textual, aliados a
todos os elementos do contexto sociocognitivo mobilizados na
interlocução, vêm a constituir, em virtude uma construção dos
interlocutores, uma configuração veiculadora de sentidos.
Neste trabalho, adotamos a concepção de língua como lugar de interação, por
entendermos que tanto as atividades de produção textual quanto as de leitura
dependem do diálogo que se estabelece entre autor e leitor em um determinado
38
evento de comunicação. Especificamente em relação à leitura, consideramos que o
ato de ler se constitui em um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de
construção de sentido, considerando, nesse momento, algumas estratégias para
estabelecer os sentidos do texto. Dessa forma, ele também se torna um sujeito, um
co-autor no texto.
2.2 – Interação texto e leitor
A concepção de língua e texto que adotamos no presente trabalho nos
permite afirmar que há uma interação entre o leitor e o texto. A interação que se
estabelece entre o texto escrito e o leitor é, no entanto, diferente daquela
estabelecida entre duas pessoas quando conversam. Nessa última situação, estão
presentes, além das palavras, outros elementos, como gesticulação, expressão
facial, entonação da voz, que dão sentido à fala. No texto escrito, o autor não está
presente para completar as informações e, por isso, é natural que o leitor faça uso
de estratégias para, a partir do que o texto traz, complementar, enquanto lê,
informações não explícitas nele.
Diante de tais constatações, Brandão (1998) argumenta que o processo de
leitura é abrangente e complexo; nele se privilegia a capacidade de interação do
leitor, ou seja, sua capacidade de dialogar com o outro por meio da palavra.
Conseqüentemente, a leitura de um texto não pode ser compreendida, conforme
mencionamos, como um ato passivo, já que seu autor escreve pressupondo a
presença de alguém que o lerá. Dessa forma, o sentido de um texto só se concretiza
no momento em que o lemos e, nesse sentido, a autora pondera:
O texto, na sua superfície lingüística, não diz tudo objetivamente.
Em graus diferentes de complexidade, um texto é sempre lacunar,
reticente. Segundo Iser, apresenta ‘vazios’ – implícitos,
pressupostos, subentendidos – que, enquanto espaço disponível
para o outro, devem ser preenchidos pelo leitor. A operação do leitor
para pôr em funcionamento o texto é, portanto, uma atividade
cooperativa de recriação do que é omitido, de preenchimento de
lacunas, de desvendamento do que se oculta nos interstícios do
tecido textual. (BRANDÃO, 1998, p.198-199)
39
Brandão também destaca que o trabalho de recriação realizado pelo leitor se
configura dentro de alguns limites e fundamenta-se em alguns fatores, tais como:
- um sistema lingüístico comum ao locutor e ao interlocutor;
- a existência de conhecimentos relevantes para a compreensão do texto;
- a pressuposição de que há uma coerência temática presidindo a construção
do texto;
- o reconhecimento de contextos situacionais.
A compreensão de um texto somente é possível, portanto, se o leitor já
possuir previamente algum conhecimento do qual partir para processar as
informações contidas no texto. Assim, para compreender um texto, como observa
Kintsch (apud Cabral 2005), o leitor precisa estabelecer relações entre elementos de
informação diferentes: o conteúdo expresso pelo texto e seus conhecimentos
prévios.
A leitura é o resultado da interação entre o que o leitor já sabe e o que ele
retira do texto. Desse ponto de vista, os conhecimentos prévios do leitor assumem,
por conseguinte, a mesma importância que as informações contidas no texto.
No que se refere à compreensão textual, decorrente da interação texto e
leitor, enfatizamos que, para que ela se estabeleça, o leitor lança mão de algumas
estratégias, tais como: ativação de conhecimentos prévios, estabelecimento de
intertextualidade e reconhecimentos de aspectos relacionados aos implícitos que se
configuram no texto. Essas estratégias têm a ver com os conhecimentos do leitor,
lingüísticos, gerais e de outros textos, com o reconhecimento do contexto que
envolve a situação comunicativa e com raciocínio baseado nesses elementos. É por
isso que dizemos que, na leitura, estão envolvidas estratégias lingüísticas e
cognitivas, utilizadas na construção de sentidos.
Com o propósito de compreender a interação texto e leitor, vários estudiosos
dedicaram-se ao estudo do texto e do discurso. Entre eles, destacamos Beaugrande
e Dressler (1981), que postularam a existência de alguns fatores para que o texto
cumpra seu papel social, que é o de propiciar a comunicação entre sujeitos
40
envolvidos no processo de leitura. Tais fatores, mais tarde, foram repropostos por
Beaugrande (1997) como princípios de textualidade e compreendem: a coesão, a
coerência, a intencionalidade, a aceitabilidade, a informatividade, a situacionalidade
e a intertextualidade.
Neste trabalho, tratamos apenas dos conhecimentos prévios e do princípio de
intertextualidade, que se vale dos conhecimentos do leitor, ou seja, dos
conhecimentos prévios para a sua realização. Além desses dois princípios,
cuidamos também do reconhecimento de implícitos, sobretudo dos elementos de
pressuposição.
2.3 – Conhecimento prévio
Para Kleiman (2004), a compreensão de um texto somente é possível se o
leitor já possuir previamente algum conhecimento do qual parta para processar as
informações. A autora ressalta que só se compreende o que não se conhece
partindo-se do que já é conhecido. Em conseqüência disso, como ressalta Cabral
(2005) o leitor precisa estabelecer relações entre elementos de informação contidas
no texto com os conhecimentos armazenados em sua memória, pois são essas
relações entre o já conhecido e o novo que o texto traz que permitirão a construção
de sentidos.
Kleiman (2004) assevera que o conceito de conhecimento prévio engloba
diferentes tipos de conhecimento: a) os que se referem à língua e seu
funcionamento, aos textos e suas estruturas, ao mundo em geral e à especificidade
da situação de comunicação e b) os que se referem aos conhecimentos adquiridos
por meio das experiências pessoais do leitor. A ativação de todos eles permite ao
leitor transformar uma estrutura isolada e fragmentada na memória numa entidade
mais completa e coerente.
Van Dijk (2002) propõe um modelo estratégico de processamento de discurso,
de base interdisciplinar, que parte de pressupostos cognitivos e contextuais.
41
Consideramos que esse modelo pode auxiliar na compreensão das estratégias
utilizadas pelo leitor no processo de interação com o texto, uma vez que, assim como
aspectos lingüísticos, aspectos cognitivos e contextuais também são fundamentais na
construção de sentidos.
No que se refere aos pressupostos cognitivos, o autor os classifica em
pressupostos: construtivista, interpretativo, on-line, conjetural e estratégicos.
O pressuposto construtivista parte da idéia de que construímos
representações na memória com base em informações visuais e lingüísticas. Então,
tanto as pessoas que presenciaram determinado fato quanto àquelas que apenas
ouviram o relato desse mesmo fato são capazes de construir representações mentais
acerca dele. Elas também são capazes de ativar essas representações durante a
leitura de um texto. Nesse sentido, o pressuposto construtivista constitui um
conhecimento prévio.
O pressuposto interpretativo, por sua vez, considera que as pessoas não
apenas representam os dados visuais e verbais, mas também os interpretam. Van
Dijk destaca que, nessa ótica, são considerados, principalmente, os aspectos
semânticos do discurso.
O pressuposto on-line fundamenta-se na idéia de que a construção da
representação de um fato qualquer e, em particular, de seu significado, ocorre
simultaneamente ao processamento da informação.
Já o pressuposto conjetural enfatiza que nossas experiências prévias são
importantes para o processamento de informações. Nesse caso, para que o processo
de interpretação se efetive, considera-se necessária a ativação de informações mais
gerais sobre os fatos, bem como de informações cognitivas que são relacionadas às
crenças, opiniões ou atitudes. Esse pressuposto constitui também um conhecimento
prévio a ser ativado durante a leitura.
42
Por fim, o pressuposto estratégico leva em conta que processamos as
informações de forma estratégica, de acordo com nossas intenções ou objetivos.
Desse modo, o autor argumenta que os acontecimentos não são compreendidos in
vácuo, mas como parte de situações ou contextos sociais mais complexos (VAN
DIJK, 2002, p.15). Por conseguinte, a construção de sentidos implica o
estabelecimento de relações entre os acontecimentos e as situações em que eles se
inserem.
No que diz respeito aos pressupostos contextuais, Van Dijk classifica-os em
pressupostos da funcionalidade, pragmático, interacionista e situacional.
O pressuposto da funcionalidade estabelece que o discurso não se constitui
apenas em um evento cognitivo; sua compreensão configura-se em processos
funcionais dentro de um contexto social, baseados na intenção de um locutor e no
objetivo de um interlocutor. Nesse sentido, podemos afirmar que informações dos
acontecimentos, da situação ou do contexto, além de informações das
pressuposições cognitivas, são elementos que o leitor ativa e combina para a
construção da representação mental dos fatos, visto que, conforme mencionamos,
eles não ocorrem isolados de uma dada situação, mas sim em contextos sociais
complexos.
Por seu turno, o pressuposto pragmático considera não apenas objetos
lingüísticos, mas também os efeitos de sentido provenientes das intenções e dos
objetivos dos sujeitos que participam de uma cena enunciativa. A esse respeito, Van
Dijk (2002, p.17) ressalta que, como intenções estão envolvidas no discurso, estamos
lidando não só com objetos lingüísticos como também com os resultados
provenientes de algum tipo de ação social. Podemos estabelecer relação entre o
pressuposto pragmático e a compreensão de conteúdos implícitos.
O pressuposto interacionista consiste na generalização do pressuposto
pragmático: as intenções e os objetivos são partes essenciais de uma situação de
43
interação. Em outros termos, a interpretação de um trexto só se consolida na
interpretação de todo o processo interacional entre os participantes de um evento
comunicativo. Transferindo esse conceito para o âmbito da leitura, na compreensão
de um texto, precisamos levar em conta os objetivos do leitor ao entrar em contato
com um determinado texto e também o contexto que se instaura no texto, a que o
texto faz referência.
Finalmente, o pressuposto situacional enfatiza que as funções pragmáticas do
discurso devem ser relacionadas a um contexto. Dessa maneira, os participantes em
uma situação de comunicação
podem ter certas funções ou papéis; pode haver diferenças de local
ou contexto, além de poder haver regras específicas, convenções ou
estratégias que determinem as possíveis interações em tal situação.
Não se pode dizer qualquer coisa que nos venha à cabeça em
qualquer situação. Possíveis ações e, conseqüentemente, possíveis
objetivos e, conseqüentemente, possíveis discursos são restringidos
pelas várias dimensões das situações. (VAN DIJK, 2002, p.18)
Com base nesses pressupostos, compreendemos com Van Dijk que a
compreensão que se dá por meio da interação texto-leitor não envolve apenas
processos cognitivos, pois ela não se constitui somente em construções de
representações de um discurso. Assim como ele, acreditamos que compreender
significa também interpretar ações em um processo interacional.
Consideramos importante esclarecer que a classificação de van Dijk serve
para fins operacionais de análise e que, durante a leitura, esses pressupostos agem
de forma imbricada, interligada. Enfatizamos que, no processo de interação texto e
leitor, há todo um jogo de intenções que, dependendo do contexto enunciativo,
determinam um tipo de ação social do produtor do texto sobre o leitor e também
podem ter a função de nortear a compreensão. Dessa forma, o contexto determina a
compreensão textual.
44
Conforme explicitado anteriormente, o processo de compreensão é amplo, e
envolve não só a construção de representações, mas todo um processo interacional
entre os interlocutores de uma situação comunicativa. Em situação de leitura, esse
processo se completa quando o leitor participa ativamente, interpretando e
construindo sentidos no texto. Desse ponto de vista, precisamos considerar também
as diferenças que caracterizam os usuários da língua. Em outras palavras, os leitores
possuem conhecimentos diferentes, tanto de ordem lingüística quanto pragmática e
essas diferenças influenciam a compreensão. Para além das diferenças de
conhecimento, precisamos considerar ainda diferenças de idade, de gênero, e de
credos, o que implica que os sentidos de um texto são construídos também
dependendo dos interesses do leitor.
Podemos afirmar, por conseguinte, que o tema de um texto não é extraído
unicamente da compreensão de cada uma de suas frases. O indivíduo lança mão,
antes de tudo, de hipóteses e expectativas a respeito de seu sentido global e, para
isso, faz apelo a elementos que lhe permitem criar expectativas, como, por exemplo,
o título e a área em que se insere o texto e o entorno da leitura, suas experiências
pessoais, suas expectativas. Além disso, ele lê um texto com um propósito, mesmo
que seja simplesmente o de fazer o tempo passar e distrair-se.
Desse modo, o contexto manifesta-se como um dado a ser considerado, uma
vez que as atividades envolvidas na compreensão textual não se limitam, como
dissemos, a aspectos lingüísticos. O contexto engloba os elementos que não fazem
parte do texto nem dizem respeito diretamente aos processos de leitura, porém
exerce influência em tais processos e, por conseguinte, na construção de sentidos.
De acordo com Van Dijk (2002), o contexto é anterior ao processamento, mas se
enriquece com ele e se reelabora, passando a exercer novas influências sobre ele.
Koch (2003b) explica que não há consenso sobre o que é contexto e de que
modo ele afeta a compreensão. Entretanto, há consenso sobre a sua importância
para a compreensão e sobre o fato de que um texto pode ser interpretado de
maneiras bastante diferentes em contextos diferentes. Isso vem ao encontro da
45
afirmação de que o sentido de um texto, qualquer que seja a situação comunicativa,
não depende tão somente da estrutura textual em si mesma.
A autora destaca os seguintes tipos de contexto:
- contexto como entorno verbal (co-texto) – o contexto é resgatado apenas pelo
nível lingüístico;
- contexto de situação – refere-se apenas a algo dado no mundo real: lugar
real, espaço fisicamente delimitado, situação mediata em que o discurso se
manifesta;
- contexto social – refere-se a situação, cenário, lugar, sujeitos, intenção do
autor, bagagem do falante, forma da mensagem, gênero textual;
- contexto cultural – leva em conta, de forma mais ampla, o entorno cultural que
envolve a mensagem (crenças e valores culturais);
- contexto cognitivo – considera os conhecimentos partilhados dos sujeitos.
Nessa perspectiva, é importante destacar que ao analisarmos uma
mensagem, devemos partir do princípio de que, para atribuirmos sentido em um
evento comunicativo, os falantes devem estar inseridos em contextos cognitivos
semelhantes; é necessário que elas partilhem o mínimo de conhecimentos.
Koch (2003b) destaca, ainda, que, na comunicação escrita, as lacunas podem
ser preenchidas por meio de estratégias de sinalizações textuais
(contextualizadores). O texto fornece pistas para a identificação da necessidade de
preenchimento de lacunas. O contexto situa, portanto, o leitor, auxiliando a ativar os
conhecimentos prévios.
Com respeito à relação entre os conhecimentos prévios e leitura, Cabral
(2005) apresenta cinco tipos de conhecimentos prévios que participam de forma
ativa da compreensão em leitura.
O primeiro tipo de conhecimento prévio, que engloba conhecimentos gerais
sobre a língua, ativados já na percepção do texto, diz respeito não apenas às
palavras, mas também à ordem das palavras no texto, à forma como os parágrafos
46
se organizam, à estrutura textual global. Assim, conforme observa Cabral (2005), os
conhecimentos lingüísticos participam da percepção, mas são, evidentemente,
conhecimentos já armazenados na memória do leitor ativados por ele no momento
da percepção e cuja ativação se mantém durante as demais operações do processo
de compreensão.
O segundo tipo, que constitui o conhecimento textual, é definido como o
conjunto de noções e conceitos sobre o texto. Faz parte desse conhecimento o
domínio das estruturas textuais próprias a cada tipo ou gênero textual. A esse
respeito, Kleiman (2004) observa que quanto maior for o conhecimento textual do
leitor, melhor será a compreensão daquilo que ele lê.
O terceiro tipo, que consiste no conhecimento de mundo, corresponde aos
conhecimentos que o leitor adquiriu em seu processo de aprendizado formal e
informal, incluindo-se aí suas experiências. Em outras palavras, as experiências
acumuladas ao longo da vida permitem a construção de esquemas, scripts e frames,
que ficam armazenados na memória e podem ser ativados durante a leitura para
complementar informações que não aparecem no texto.
O conhecimento de mundo desempenha um papel decisivo no
estabelecimento da coerência e no estabelecimento dos sentidos de um texto, pois
se o texto tratar de assuntos que não conhecemos, será difícil calcularmos o seu
sentido e ele nos parecerá destituído de coerência. Adquirimos esse conhecimento à
medida que vivemos, tomando contato com o mundo que nos cerca e
experienciando uma série de fatos.
Conforme observa Cabral (2005), o conhecimento de mundo é decisivo para
o estabelecimento do sentido de um texto, pois é necessário que haja
correspondência entre os conhecimentos ativados no texto e o conhecimento de
mundo do leitor, armazenado em sua memória de longo prazo. Se essa
correspondência não se efetiva, isto é, se o leitor não possui os conhecimentos
necessários para que ela ocorra, o texto não faz sentido para ele. Por isso, é
importante que o professor, antes de trabalhar um texto em classe, tenha clareza
47
dos conhecimentos que o texto exige para a sua compreensão e os trabalhe com
seus alunos antes da leitura ou durante ela.
O quarto tipo, que consiste no conhecimento social, diz respeito aos
conhecimentos sobre a realidade social. Trata-se de um tipo de conhecimento
construído pela sociedade e partilhado pelos seus integrantes. Van Dijk e Kintsch
(1983) ressaltam a importância do grupo social e da cultura para se compreenderem
as representações e destacam, ainda, a importância do entorno no qual o indivíduo
está interagindo. Esse conhecimento diz respeito não apenas a crenças e valores
sociais, mas também a comportamentos estereotipados relativos a determinados
grupos, ou, simplesmente, a conceitos que dizem respeito ao modo como as coisas
acontecem no contexto social. O conhecimento social entra em jogo para a
decifração de implícitos, pois muitos conteúdos implícitos justificam-se por regras
sociais e delas dependem para que sejam compreendidos.
O quinto tipo, que consiste no conhecimento pragmático, refere-se à relação
entre texto e contexto isto é, diz respeito aos conhecimentos que o sujeito possui a
respeito do funcionamento dos princípios discursivos.
Também com relação aos conhecimentos prévios, é importante observar que
a divisão por nós apresentada, baseada em Cabral (2005), tem função de análise
apenas; o limite entre um tipo e outro de conhecimento não é definido. Além disso,
devemos considerar o imbricamento que há entre eles.
O fato de os conhecimentos prévios terem a ver com as experiências
individuais de cada participante da interação não quer dizer que esses
conhecimentos sejam totalmente diferentes em cada sujeito. É importante, para a
compreensão que o leitor de um texto tenha algum conhecimento em comum com o
escritor de um texto, caso contrário, a compreensão estaria inviabilizada. Esse
conhecimento comum entre os participantes da interação chama-se conhecimento
partilhado. Com respeito aos conhecimentos partilhados, Koch e Travaglia (2003)
afirmam ser impossível que duas pessoas partilhem exatamente o mesmo
48
conhecimento de mundo. É preciso, no entanto, que elas possuam, ao menos, uma
boa parcela de conhecimentos comuns.
Em situação de leitura, quanto maior for essa parcela, menor será a
necessidade de explicações no texto, uma vez que o leitor será capaz de suprir as
lacunas, por exemplo, por meio de inferências. Os elementos textuais que remetem
ao conhecimento partilhado entre os interlocutores constituem, segundo Koch e
Travaglia (2003), a informação velha ou dada, ao passo que tudo aquilo que for
introduzido a partir dela constituirá a informação nova trazida pelo texto. Para que
um texto seja coerente, é preciso haver um equilíbrio entre essas informações.
2.4 – Princípio de Intertextualidade
Olhar um texto nas relações que ele mantém com outros textos é concentrar a
atenção no fenômeno chamado intertextualidade, outro importante princípio de
textualidade, pois, para a construção dos sentidos de um texto, recorremos também
ao conhecimento prévio que temos de outros textos.
A palavra intertextualidade foi uma das primeiras, consideradas como
bakhtinianas, a ganhar prestígio no Ocidente. Foi introduzida na década de 1960
pela crítica literária francesa Julia Kristeva (apud Fiorin, 2006), que defende a idéia
de que a elaboração de um texto ocorre com base em outros textos já existentes, ou
seja, o texto é construído como um mosaico de citações, do que decorre que
qualquer texto é, na verdade, a absorção e a transformação de um outro texto.
A autora também defende que toda produção cultural nasce da interação de
uma série de textos em intersecção com textos anteriores. Dessa forma, Kristeva
questiona a noção que estabelece o autor como única fonte do texto, por afirmar que
um texto não existe como um todo separado e auto-suficiente. As idéias de Kristeva
inspiram-se de Bakhtin (2003, p.309):
49
O texto como enunciado incluído na comunicação discursiva (na
cadeia textológica) de dado campo. O texto como nômade original,
que reflete todos os textos (no limite) de um campo de sentido. A
concatenação de todos os sentidos (uma vez que se realizam nos
enunciados). As relações dialógicas entre os textos e no interior de
um texto. [...] Não há nem pode haver textos puros. Portanto, por
trás de cada texto está o sistema da linguagem. A esse sistema
corresponde no texto tudo o que é repetido e produzido e tudo o que
pode ser repetido e reproduzido, tudo o que pode ser dado fora de
tal texto (o dado).
Na perspectiva bakhtiniana, e também na de Kristeva, o texto é um fator de
mudança, porque se insere de modo ativo e dialético na sociedade, reproduzindo e,
ao mesmo tempo, transformando seus dados ideológicos num contínuo “diálogo
textual”. Portanto, apoiados nesses autores, podemos afirmar que a intertextualidade
é um fator de construção social.
Fairclough (2001) defende a visão de que a intertextualidade está ligada a
uma historicidade inerente aos textos, ou seja, o texto absorve e ao mesmo tempo é
construído por textos passados. Nessa perspectiva, os textos são os maiores
artefatos que constituem a história. Para Fairclough (2001, p.135), essa historicidade
inerente aos textos permite-lhes desempenhar os papéis centrais que têm na
sociedade contemporânea no limite principal da mudança social e cultural.
Também para Barthes (1997, p. 49), não há textos puros; qualquer texto é um
novo tecido de citações passadas e todo texto é um intertexto; outros textos estão
presentes nele, em diversos níveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis. O
autor se refere à leitura como sendo um ato lexicográfico, ou seja, quando lemos
estamos escrevendo nossa leitura, portanto, encontrando sentidos que nos levam a
outros sentidos.
Estudiosos da Análise do Discurso estudaram a intertextualidade como
condição de existência do próprio discurso, encarando, portanto, a intertextualidade
num sentido amplo. Assim é que Maingueneau (1996) afirma que um discurso não
vem ao mundo numa “inocente solicitude”, mas sendo construído por meio de um
“já-dito” em relação ao qual toma uma posição. Segundo o autor, o intertexto é um
componente importante para as condições de produção, justamente porque – sendo
50
a leitura um processo cognitivo, resultado de informações fornecidas pelo texto –
decorre de fundamentos inter e multidisciplinares.
Tudo isso evidencia a característica circulante da linguagem e o caráter
interativo da comunicação. A intertextualidade aproxima os homens, as culturas e os
tempos: tudo o que produzimos está inserido num grande patrimônio em contínua
evolução. Seguindo esse raciocínio, cada homem contém em si toda a comunidade
humana.
De certa forma, a intertextualidade corrobora a afirmação do Velho
Testamento que nada há de novo debaixo do sol. Há alguma coisa de que se possa
dizer: Vê, isto é novo? Já foi nos séculos passados, que foram antes de nós. (Ecl 1,
9-10)
Cumpre observar que a intertextualidade não se limita ao texto em si, por
referências explícitas ou implícitas a outros textos previamente existentes, mas pode
ser construída socialmente pela relação que os leitores estabelecem entre um texto
e outro(s), que já tenham lido ou ouvido, no percurso de sua interação verbal, daí a
importância dos conhecimentos prévios para o reconhecimento dos elementos de
intertextualidade.
Segundo Beaugrande e Dressler (1981), o sentido de um texto depende do
conhecimento prévio de outros textos com os quais se relaciona; em outras
palavras, o princípio de intertextualidade compreende as diversas maneiras pelas
quais a produção e a compreensão de um texto dependem do conhecimento de
outros textos por parte dos interlocutores. Koch (2003c) comunga dos postulados
desses autores; para ela,
(...) todo texto é um objeto heterogêneo, que revela uma relação
radical de seu interior com seu exterior; e, desse exterior,
evidentemente, fazem parte outros textos que lhe dão origem, que o
predeterminam, com os quais dialoga, que retoma, a que alude, ou
a que se opõe.
( KOCH, 2003c, p.59)
51
Koch, entretanto, amplia essa noção, atribuindo à intertextualidade um sentido
amplo e um sentido restrito. Em sentido amplo, a intertextualidade ocorre sempre
implicitamente e corresponde à interdiscursividade
2
, uma vez que constitui condição
de existência do próprio discurso. A autora busca respaldo em Maingueneau (1976),
que postula a teoria da heterogeneidade do discurso, entendendo o discurso
também como uma prática social em interdiscursividade com outros campos
discursivos. Para ele, qualquer discurso se estrutura a partir de uma relação
interdiscursiva, de modo que seja colocado em relação com o seu “outro”.
A intertextualidade em sentido amplo nada mais é do que a condição de
existência do próprio discurso; ocorre sempre de maneira implícita, ou seja, está
presente em todos os tipos de texto. A intertextualidade no sentido amplo vai, por
conseguinte, muito além da relação de um texto com outro texto, ela é a própria
cultura. Koch (2003c) sugere o termo interdiscurso para a intertextualidade em
sentido amplo.
Koch (2003c) também atribui um sentido restrito à intertextualidade. Neste
caso, o fenômeno intertextual ocorre tanto implícita quanto explicitamente e
corresponde à relação efetiva de um texto com outros textos previamente existentes.
Segundo a autora, há quatro tipos de intertextualidade em sentido restrito: a de
forma e conteúdo; a explícita ou implícita; a das semelhanças ou das diferenças; a
que ocorre com intertexto alheio, com intertexto próprio ou com intertexto atribuído a
um enunciador genérico
3
.
Segundo Koch e Travaglia (2003), a intertextualidade de forma ocorre quando
o produtor de um texto repete expressões, enunciados ou trechos de outros textos.
A de conteúdo refere-se a textos de uma mesma época, de uma mesma área de
conhecimento, de uma mesma cultura, que dialogam uns com os outros. Os autores
afirmam que a noção de conteúdo está relacionada ao conhecimento de mundo,
2
O conceito de interdiscursividade é considerado, aqui, no que se refere à intertextualidade, ou seja,
tanto um fenômeno quanto outro concernem à presença de vozes num mesmo segmento discursivo
ou textual. De fato, ao se referir a um texto, o enunciador também se refere ao discurso que o texto
manifesta.
3
A intertextualidade que ocorre com intertexto alheio corresponde a intertextualidade propriamente
dita, a que ocorre com intertexto próprio corresponde à intertextualidade e a que ocorre com intertexto
atribuído a um enunciador genérico corresponde à auto textualidade. (cf. KOCH, 2003, p 48-50)
52
conforme apresentam, a título de exemplificação, o caso de uma série de matérias
jornalísticas sobre um determinado fato, elaboradas durante alguns dias. A cada
novo artigo produzido, o jornalista pressupõe que seu leitor tenha um mínimo de
conhecimento do assunto que está sendo abordado e, por isso, não repete todas as
informações anteriores relacionadas ao assunto. O jornalista pode, assim, limitar-se
apenas a uma síntese das matérias.
Para Koch e Travaglia (2003), a intertextualidade de conteúdo pode ocorrer
de maneira explícita ou implícita. Ocorre de maneira explícita, quando indica a fonte
do texto inserido, como, por exemplo, em trabalhos de cunho científico, resumos,
resenhas etc. Ocorre de forma implícita, quando não há informações sobre a fonte,
exigindo do leitor conhecimentos suficientes para recuperá-la. Este, no caso de não
conseguir, terá a compreensão textual prejudicada.
Os autores abordam, também, outro tipo de intertextualidade, a tipológica,
que diz respeito aos conhecimentos armazenados na memória. Tais conhecimentos
são armazenados em forma de blocos, que são modelos cognitivos globais
(superestruturas ou esquemas textuais), os quais permitem identificar e diferenciar
uma narrativa de um texto dissertativo ou descritivo. Segundo Beaugrande &
Dressler (1981), é pela comparação dos textos a que se acham expostos os
falantes, no meio em que vivem e pela subseqüente representação na memória de
tais características, que eles constroem modelos mentais tipológicos específicos, a
que Van Dijk e Kintsch (1983) denominam superestruturas, as quais vão lhes
permitir construir e reconhecer as seqüências dos diversos tipos de textos.
Beaugrande & Dressler (1981), por sua vez, afirmam que
a intertextualidade compreende as diversas maneiras pelas quais a
produção e a recepção de dado texto dependem do conhecimento
de outros textos por parte dos interlocutores, isto é, diz respeito aos
fatores que tornam a utilização de um texto dependente de um ou
mais textos previamente existentes.
Para os autores, há uma necessidade de se evidenciar que os textos estão
em constante convergência, interação e diálogo. É justamente pela relação que se
53
estabelece entre o texto e textos anteriores que os interlocutores acionam
fragmentos de sentidos já conhecidos por eles e que estão relacionados com a
informação nova. Segundo Beaugrande & Dressler (1981), a interdependência entre
a produção e a recepção de um determinado texto e o conhecimento que os
participantes do processo de comunicação têm de outros textos ocorre por meio de
um processo de mediação que está intimamente ligado à atividade de elaboração do
texto e sua relação com textos procedentes.
Assim, podemos afirmar que todo texto é considerado um intertexto, já que
nele há a presença, em grau maior ou menor, de outros textos.
2.5 – Conteúdos Implícitos
Até meados do século XX, os estudos semânticos, seguindo a tradição
formal, detinham-se no sentido literal e excluíam aspectos que eram vistos na época
como extralingüísticos Até aquele período, o não-dito não era considerado como
passível de estudos lingüísticos. A significação construía-se na perspectiva
referencial-veritativa.
A partir dos postulados propostos por Benveniste (1989 e 1995), no final da
década de 50, o referencial de língua passou a incluir elementos como a intenção do
sujeito, a relação entre sujeito e língua e a ação entre sujeitos. A perspectiva passou
a ser menos referencial-veritativa e mais discursiva e pragmática.
Na década de 70, os estudiosos ainda tendiam a fixar o foco de atenção na
língua como entidade abstrata e ideal; a significação era buscada em uma língua
cuja lógica se aparentava à lógica matemática, sendo, portanto, passível de ser
explicada exclusivamente na e pela língua. O conceito de pressuposição lingüística
de então aparentava-se ao conceito de implicação lógica.
Ducrot (1977, 1980), já no início da década de 70, estudando a questão da
pressuposição na língua, destacou as limitações de se considerar a pressuposição
lingüística ligada fortemente à lógica e postulou a existência de uma natureza
54
discursiva para o fenômeno da pressuposição, sem deixar de atrelá-lo a sua
natureza lingüística.
A partir dos postulados de Ducrot, ampliaram-se os estudos sobre
pressuposição, e o conhecimento extralingüístico partilhado pelos falantes nos
processos de interação verbal passou a ser reconhecido como inerente às
possibilidades de construção dos sentidos.
Assim, foi com Ducrot que o não-dito passou a fazer parte dos estudos
lingüísticos
4
. Embora reconhecendo a importância do extra-lingüístico, devemos
frisar que o objetivo de Ducrot era introduzir na língua o fenômeno da
pressuposição, o qual, anteriormente, era relegado à fala (segundo a dicotomia
saussuriana). Segundo Guimarães (1995), incluir o não-dito na língua representa
considerar como parte dos estudos lingüísticos certa memória do dizer, que conduz
ao próprio dizer.
Ducrot (1977), em seus estudos, defende que a língua não se reduz à simples
transmissão de informações. Para ele, admitir como fato único e verdadeiro que a
língua se limita à função de informar implica considerar que todos os conteúdos
veiculados nos textos são expressos de maneira explícita.
É com base nessa afirmação que ele desenvolve sua tese acerca dos
implícitos na língua, pois muitas vezes temos necessidade de, ao mesmo tempo,
dizer certas coisas e de poder fazer como se não as tivéssemos dito; de dizê-las,
mas de tal forma que possamos recusar responsabilidade de tê-las dito. (DUCROT,
1977, p.13)
Segundo o autor, as informações implícitas em um texto podem ser geradas
por diversos fatores. Entre eles, chama a atenção para os seguintes:
4
Autores importantes que procuram trazer para a esfera da língua aspectos que, após Saussure,
foram considerados como domínio da fala, mas que ao mesmo tempo não abandonam a
especificidade da interioridade lingüística, são: Bally, Benveniste, Bréal, Pêcheux e Authier.
55
- a existência de tabus lingüísticos, que são relacionados não só a algumas
palavras, mas também a temas interiores. Nesse caso, o locutor pode se
defrontar com diferentes tipos de informação que ele não tem o direito de dar,
uma vez que o ato de dá-las se constituiria em uma atitude passível de
repreensão;
- a explicitação de tudo o que é dito que fica sujeita a contradições, tornando-se
tema de discussões possíveis.
Ducrot (1977, p.14) argumenta que as formas implícitas de falar mostram a
existência de certa utilização da linguagem que não pode ser compreendida como
uma codificação, isto é, como a manifestação de um pensamento, escondido em si
mesmo, através de símbolos que o tornam acessível.
Podemos dizer que o não-dito, segundo Ducrot (1977, p.20), consiste em
[...] saber como se pode dizer alguma, coisa sem contudo aceitar a
responsabilidade de tê-la dito, o que, com outras palavras, significa
beneficiar-se da eficácia da fala e da inocência do silêncio. [...] A
significação implícita, por sua vez, pode, de certo modo, ser posta
sob a responsabilidade do ouvinte: este é tido como aquele que a
constitui, por uma espécie de raciocínio, a partir da interpretação
literal, da qual, em seguida, ele tiraria, por sua conta e risco, as
conseqüências possíveis.
Não se pode, portanto, decidir se um enunciado é verdadeiro ou falso
examinando-o isoladamente de seu contexto de uso, pois essa é mais uma questão
de discurso do que de linguagem, isto é, diz respeito aos usos efetivos da linguagem
entre determinados sujeitos para a produção de efeitos específicos.
Ducrot (1977) define dois tipos de implícitos: os pressupostos e os
subentendidos. Propõe que o subentendido do discurso consiste no implícito que
está no ato da enunciação. Dessa forma, podem-se caracterizar os subentendidos
56
como insinuações não marcadas lingüisticamente, dependem de um raciocínio do
interlocutor a respeito das intenções do locutor.
A elaboração de sentidos subentendidos são, portanto, de responsabilidade
do leitor, pois o conteúdo subentendido não é dito, mas deduzido a partir do que é
enunciado; eles induzem e responsabilizam o co-enunciador a chegar a uma
interpretação do que foi dito, embora evidentemente manipulada pelo locutor.
Os pressupostos, ao contrário dos subentendidos, encontram-se no próprio
enunciado, apresentando uma informação estabelecida como indiscutível tanto para
o produtor quanto para o leitor, já que decorrem necessariamente de algum
elemento lingüístico da frase. É nesse sentido que os pressupostos diferem dos
subentendidos: enquanto os pressupostos fazem parte do conteúdo do enunciado,
o subentendido é apenas sugerido, cabe ao co-enunciador construí-lo.
Entretanto, precisamos atentar para a importância do contexto nos dois
casos, conforme observa Ducrot (1987), ao distinguir componente semântico e
componente retórico:
Um primeiro componente, isto é, um conjunto de conhecimentos
(descrição semântica lingüística de L ou, abreviadamente,
componente lingüístico) atribuiria a cada enunciado,
independentemente de qualquer contexto, uma certa significação. [...]
Caberia ao segundo componente (o componente retórico),
considerando a significação A’ ligada a A e as circunstâncias X nas
quais A é produzido, prever a significação efetiva de A na situação X.
(DUCROT, 1987, p.15)
Nas obras do autor, quando é apresentada a diferença entre pressupostos e
subentendidos, os enunciados trazem como evidente a separação. O enunciado
mais comum nesta apresentação, criado para que o leitor compreenda as
categorizações, é Pedro parou de fumar. Ducrot (1987) destaca que parou de fumar
pressupõe que Pedro fumava anteriormente ao momento do dizer e põe que não
fuma atualmente, no momento do dito.
57
Já o subentendido segundo o autor, está relacionado à maneira como
determinado interlocutor interpretaria tal enunciado. Assim, dirigido a um amigo que
está com problemas pulmonares e continua fumando apesar disso, o amigo pode
interpretar como uma crítica em relação a sua falta de perseverança para não fazer
algo prejudicial a sua saúde.
De acordo com nossos estudos, podemos afirmar que dizer nem sempre é
dizer de modo explícito, visto que em uma atividade discursiva muitas vezes
enunciamos algo explicitamente, mas deixamos entender um implícito nas formas de
pressupostos e subentendidos. Assim, esses dois modos de dizer entrelaçam-se no
discurso.
2.5.1 – A Pressuposição
Conforme postula Ducrot (1977), a pressuposição parte do conteúdo implícito
considerado como necessário para que valha o enunciado explícito. Assim,
pressuposto, como o nome sugere, é o significado suposto antes daquilo que foi
posto no enunciado. Trata-se de uma espécie de condição de validade deste.
Segundo o autor, pressupor não é dizer o que o ouvinte sabe ou o que se pensa que
ele sabe ou deveria saber, mas situar o diálogo na hipótese de que ele já soubesse.
Nessa mesma direção, Koch (2004) explica que pressupostos são elementos
lingüísticos que, quando presentes no enunciado, introduzem nele conteúdos
semânticos adicionais. As marcas que os introduzem são chamadas de marcadores
de pressuposição. Os pressupostos são, assim, idéias não expressas de maneira
explícita que decorrem do significado de palavras ou de expressões contidas na
frase.
Segundo Ducrot (1977, p.15), a propaganda e a publicidade fazem uso de
pressupostos ao apresentarem um raciocínio que comporta, como premissa
58
necessária, mas não formulada, a tese objeto da afirmação implícita. Nesse caso, o
uso de algumas conjunções conclusivas como, por exemplo, o logo e o portanto tem
o propósito de fazer com que o leitor, por meio do raciocínio dedutivo, entenda aquilo
que não foi apresentado no enunciado. Apresenta-se, assim, uma premissa menor
seguida de uma conclusão para que o leitor chegue à premissa maior, o raciocínio de
natureza formal, um silogismo, como lembra Ducrot.
Além do raciocínio de natureza formal, há também o de natureza menos
formal, cujas relações dizem respeito às convenções. É o caso de afirmações cuja
fórmula é composta por duas preposições, em que a primeira exprime um conselho e
a segunda, a justificativa para tal conselho. O autor considera que existem, então,
duas premissas nesse tipo de enunciado: a primeira, explícita na segunda
proposição, e a segunda, implícita. Essa segunda proposição é considerada o
conteúdo efetivo do enunciado.
Em outros termos, o pressuposto apresenta-se como evidência ou acordo
entre os interlocutores, não por uma necessidade lógica ou empírica, mas por uma
necessidade que o locutor cria por sua própria fala, pela sua escolha lingüística,
instaurando, a partir dela, um discurso de que o pressuposto constitui a regra.
Ducrot (1987) explica que pressuposto põe em jogo uma deontologia
lingüística: a recusa ou a crítica dos pressupostos aparece necessariamente como
polêmica e agressiva, pois ameaça o sucesso ou a realização ilocucionária do ato de
discurso. Tal fato, em muitas situações, faz com que o destinatário o evite. No não-
dito, o discurso assume o papel de um “presente de grego”, pois, na medida em que
iniciamos uma seqüência discursiva, como “dom simbólico”, obrigamos o destinatário
a aceitar e retribuir, como forma de manutenção do laço social estabelecido.
O autor também postula ainda que o reconhecimento do pressuposto não
está ligado a uma reflexão individual do falante, mas inscrito na língua, ligado ao
próprio enunciado, o que vale dizer que as circunstâncias da elocução só entram em
jogo, para explicar o sentido real da ocorrência particular de um enunciado, depois
59
de atribuir-se uma significação ao próprio enunciado, independentemente de
qualquer contexto. O pressuposto pertence, segundo Ducrot (1987), ao sentido
literal e está no componente lingüístico.
Ducrot (1977; 1980 e 1987) ressalta que o fenômeno da pressuposição
parece ter uma forte ligação com construções sintáticas, o que fornece uma primeira
razão para tratá-lo como parte do componente lingüístico. Em vista disso, propõe
restrições de caráter sintático para a determinação do pressuposto:
os pressupostos de um enunciado se mantêm afirmativos na negação
e na interrogação;
a ligação de subordinação não atinge o pressuposto, mas somente o
posto.
Conforme observa Cabral (2000), o que contribui para a identificação de um
conteúdo pressuposto é o fato de ele estar ligado ao componente lingüístico. A
autora, baseando-se em Ducrot, lembra que o pressuposto é transmitido da frase ao
enunciado na medida em que o enunciado deixa entender as condições de emprego
da frase da qual ele é a representação. O pressuposto pertence, por conseguinte, ao
nível semântico da significação e sua determinação decorre de uma análise anterior
à que descobre os subentendidos, por exemplo.
Os postulados de Ducrot deixam claro que o pressuposto é parte integrante
do sentido dos enunciados, enquanto o subentendido diz respeito à maneira como
esse sentido deve ser decifrado pelo interlocutor. Mas pressuposto e subentendido
têm um ponto em comum: a possibilidade dada ao locutor de se retirar da fala,
eximindo-se da responsabilidade dela. Conforme observa Cabral (2000), na
pressuposição, essa possibilidade reside no fato de que a informação pressuposta
fica à margem do discurso; o locutor não pode ser atacado sobre ela, uma vez que o
diálogo ulterior (projetado) não tratará dela. Cabral (2000) lembra que, desse ponto
de vista, o apelo a conteúdos pressupostos constitui uma forte arma nas interações
verbais.
60
Contrariando o postulado de Ducrot, que limita a pressuposição ao
componente lingüístico, Levinson (1983), lingüista americano, sustenta que muitos
pressupostos não se mantêm em contextos específicos. Entretanto, admite que as
inferências provenientes dos pressupostos parecem estar diretamente ligadas a
certos aspectos da estrutura de superfície das expressões lingüísticas, o que
permite manter o fenômeno da pressuposição ligado ao componente lingüístico.
Levinson (1983) apresenta uma listagem bastante extensa de apoios
lingüísticos dos pressupostos. Dessa lista, apresentamos os índices de
pressuposição que contemplaremos em nossa análise:
Verbos factivos ou contrafactivos – são aqueles que pressupõem a
verdade (factivos) ou a mentira (contrafactivos) de sua completiva objeto;
Verbos de mudança de estado;
Iterativos.
Maingueneau (1996, p.99), por sua vez, analisando o estatuto do pressuposto
em textos literários, apresenta uma lista semelhante à de Levinson, embora mais
restrita. Dos apoios selecionados em Levinson (1983), encontramos em
Maingueneau:
verbos factivos ou contrafactivos;
verbos ou os marcadores aspectuais.
Koch (2003a), também sugere uma lista de elementos lingüísticos
introdutores de pressupostos, que a autora denomina marcadores de pressuposição,
entre os quais podemos citar:
verbos que indicam mudança de estado ou permanência de estado,
como: ficar, começar a, passar a, deixar de, continuar etc.
verbos factivos – que são complementados pela enunciação de um
fato;
61
Por fim, Moura (2006) também apresenta uma lista, que segundo o autor
corresponde a expressões que ativam os pressupostos. Entre elas destacamos:
Verbos factivos – São verbos que introduzem orações subordinadas que
representam um fato que é pressuposto. Conforme Moura (2006), os
factivos introduzem fatos que são dados como certos.
Verbos de mudança de estado – Exemplo: João deixou de fumar. / João
fumava.
Iterativos – Pressupõem que a ação indicada pelo verbo já tenha
acontecido anteriormente.
À listagem apresentada acima, Moura (2006) acrescenta, entre outros, as
Expressões temporais, que consideramos bastante úteis para situar o leitor na
construção de sentidos de um texto, por organizarem a temporalidade. Entretanto,
vale observar que nem todas as expressões de valor temporal trazem conteúdos
pressupostos; é preciso que ao valor temporal acrescente-se um valor aspectual, de
mudança ou de reiteração em relação ao conteúdo expresso pelo verbo com os quais
as expressões adverbiais se ligam.
Dessa observação decorre, por conseguinte, que o enunciado Pedro não veio
ontem aqui, por exemplo, não traz nenhum conteúdo pressuposto; em contrapartida,
o enunciado Pedro ainda não veio aqui afirma que Pedro não veio e pressupõe que
Pedro deve vir, isto é, que a sua vinda está prevista para acontecer.
Consideramos, com Ducrot, o pressuposto como uma decorrência do
significado do enunciado, marcado lingüisticamente. O conteúdo pressuposto tem
estreita conexão com as construções sintáticas gerais, pois resiste à negação e à
interrogação. Ele se apresenta como uma evidência, um quadro incontestável no
interior do qual a conversação deve necessariamente inscrever-se, ou seja, como
um elemento do discurso. Locutor e interlocutor não podem deixar de aceitá-lo. Já o
subentendido não se encontra no sentido literal, é apresentado de tal forma que o
interlocutor deve exercer um ato de raciocínio para captá-lo. O subentendido permite
62
acrescentar algo sem o dizer. Trata-se de um importante recurso de linguagem que
utilizamos para obter certos efeitos de sentido que nos permitem exercer ação sobre
os outros.
2.6 – A construção de sentidos na leitura
A continuidade de sentidos entre os conhecimentos ativados pelas
expressões do texto garante, segundo Beaugrande e Dressler (1981), a unidade de
sentido no todo do texto. Essa continuidade diz respeito ao modo como os
componentes do mundo textual, ou seja, o conjunto de conceitos e relações
subjacentes à superfície lingüística do texto, são acessíveis e relevantes. Desse
ponto de vista, a construção dos sentidos de um texto, à qual costumamos associar
a construção da coerência, depende vários fatores interligados, como, por exemplo,
a ativação de conhecimentos prévios, o estabelecimento de relações de
intertextualidade e o reconhecimento de implícitos.
Para Beaugrande & Dressler (1981) e Koch & Travaglia (2003), a coerência é
um dos princípios responsáveis pelo estabelecimento da interação entre produtor e
leitor e, dessa forma, está diretamente ligada à possibilidade de se estabelecer um
sentido para o texto. Assim, deve ser compreendida como um princípio de
interpretabilidade, ligada à inteligibilidade do texto em uma situação de comunicação
e à capacidade que o receptor tem para calcular o sentido desse texto. Esse
sentido, evidentemente, deve ser do todo, pois a coerência é global. Portanto, para
haver coerência dos sentidos de um texto, é preciso que haja possibilidade de
estabelecer alguma forma de unidade ou relação entre seus elementos.
Nessa perspectiva, devemos considerar que, em um texto, as relações
estabelecidas não são apenas de ordem semântica, são também de ordem
pragmática; e que a leitura constitui um processo ativo de interação entre o leitor e o
texto. O leitor pressupõe uma coerência textual e procura meios para estabelecer
sentidos para o texto; por isso, se o texto lhe parece a princípio incoerente, ele
procura adicionar informações que faltam, por meio da ativação de seu
63
conhecimento prévio, pela construção de conteúdos implícitos, o que nos permite
afirmar que o leitor constrói a coerência do texto. Dessa maneira, conforme observa
Cabral (2005), um texto que se apresenta inicialmente incoerente pode tornar-se
coerente, ou seja, passar a ter sentido.
Koch e Travaglia (2003) explicam que os processos e mecanismos utilizados
no estabelecimento dos sentidos de um texto sofrem restrições que obedecem a
determinações psicológicas e cognitivas, socioculturais, pragmáticas e lingüísticas.
Por isso, o estudo da compreensão tornou-se um campo inter e pluridisciplinar,
recebendo contribuições da Psicologia, da Sociologia, da Filosofia, da Teoria da
Computação e Informática, além da Lingüística em geral e de alguns de seus ramos
em particular. Cada uma dessas disciplinas fornece elementos indispensáveis a uma
compreensão global da interação comunicativa realizada por meio de textos
lingüísticos.
Esses autores, com base nos estudos de Charolles, destacam que, em
relação aos estudos da compreensão, cabe à lingüística
delimitar, na constituição e composição textuais, qual é a parte
e a natureza das determinações que resultam dos diferentes
meios que existem nas diferentes línguas, para exprimir a
continuidade ou a seqüência do discurso. O lingüista deve,
assim, fazer a análise das marcas de relação entre unidades
de composição textual que a língua usa para resolver, o
melhor possível, os problemas de interpretação que seu uso
possa gerar. Isto para além da generalidade dos processos
psico e sociocognitivos que intervêm na interpretação do
discurso. (KOCH & TRAVAGLIA, 2003, p. 70)
Conforme o que foi estudado, fica evidente que a construção dos sentidos de
um texto decorre de uma multiplicidade de fatores. Dessa forma, embora não seja
possível construir o sentido de um texto com base apenas nas palavras que o
compõem e na sua estruturação sintática, é indiscutível a importância dos elementos
lingüísticos do texto para o estabelecimento da coerência e a construção de
sentidos. Na concepção dos autores, tais elementos servem como pistas para a
ativação dos conhecimentos armazenados na memória e constituem o ponto de
64
partida para a elaboração de inferências, para o estabelecimento de relações entre
as partes do texto, tão importantes para a coerência e a construção de sentidos.
Nessa perspectiva, Koch & Travaglia (2003) definem alguns princípios e
fatores que subjazem aos elementos lingüísticos e que devem ser considerados no
estabelecimento da coerência textual e na construção de sentidos: conhecimento de
mundo; conhecimento partilhado; inferências; fatores de contextualização;
situacionalidade; informatividade; focalização; intertextualidade; intencionalidade e
aceitabilidade; consistência e relevância.
Os elementos considerados por Koch e Travaglia acima citados vão ao
encontro dos princípios de textualidade postulados por Beaugrande (1997),
apresentados neste capítulo no item 2.2, entre os quais se encontra a coerência.
Isso mostra que a construção da coerência e dos sentidos de um texto depende de
outros princípios de textualidade e da interação do leitor com o texto.
Neste capítulo, tratamos de resgatar alguns estudos teóricos que tratam da
compreensão em leitura e dos princípios de textualidade, priorizando os
conhecimentos prévios, o princípio de intertextualidade e os elementos de
pressuposição. No próximo capítulo, apresentaremos, a título de exemplificação, a
análise de quatro crônicas, considerando os conhecimentos prévios, o princípio de
intertextualidade as marcas de pressuposição como estratégias para a construção
dos sentidos do texto.
65
CAPÍTULO III
CONHECIMENTO PRÉVIO, INTERTEXTUALIDADE E
PRESSUPOSIÇÃO: UM EXEMPLO DE ANÁLISE
No presente capítulo, apresentaremos, a título de exemplificação, a análise de
quatro crônicas, explorando os conhecimentos prévios que elas exigem do leitor
para a sua compreensão, os elementos de intertextualidade e os conteúdos
pressupostos.
Mostramos no Capítulo I, por meio de um estudo dos PCN de Língua
Portuguesa, subsídios para o aprimoramento do ensino e da aprendizagem da leitura
bem como a importância do trabalho com a diversidade de textos e gêneros com os
quais os alunos operam em suas práticas sociais. Observamos que essa diversidade
contribui para o desenvolvimento lingüístico e discursivo do educando e abordamos o
gênero crônica, eleito como corpus de análise.
No Capítulo II, discorremos sobre algumas estratégias utilizadas no processo
de leitura de textos. Entre elas, verificamos que há aquelas utilizadas
conscientemente pelo produtor para contribuir com o processo de compreensão do
leitor, como, por exemplo, a intertextualidade, e aquelas que, apesar de serem
introduzidas pelo produtor, dependem do leitor para que possam se constituir, como
os conhecimentos prévios e os conteúdos pressupostos, cuja compreensão depende
do amadurecimento do leitor e das representações cognitivas que possui.
Estabelecemos, nos dois primeiros capítulos, as bases para as análises que
apresentaremos neste, cujo objetivo é analisar como se processam o princípio de
intertextualidade, os conhecimentos prévios e os elementos de pressuposição na
66
leitura de crônicas, uma vez que nosso pressuposto de pesquisa é de que tais
estratégias constituem elementos facilitadores da construção de sentidos na leitura.
3.1 – Situando o corpus
O corpus de análise deste trabalho constitui-se de quatro crônicas retiradas
da revista Veja São Paulo. Veja é uma revista semanal brasileira publicada pela
Editora Abril, com uma tiragem superior a um milhão de exemplares, sendo a revista
de maior circulação no Brasil, e a quarta maior no Mundo. Assim sendo, justificamos
a escolha por constituir-se de uma revista de conhecimento de um grande número
de brasileiros. As crônicas selecionadas foram escritas por Walcyr Carrasco, que é
cronista de Veja São Paulo desde abril de 1992; Carrasco é, também, autor teatral,
jornalista e novelista. A periodicidade de publicação das crônicas na revista é
quinzenal.
Optamos por analisar as crônicas de Walcyr Carrasco, escritor da atualidade,
porque esse autor apresenta, em suas crônicas, um texto leve e bem-humorado que
retrata o cotidiano da cidade, o que permite ao professor propor uma reflexão sobre
a opinião do autor em relação a fatos políticos e sociais de uma sociedade
capitalista e democrática, proporcionando, assim, caminhos para a formação do
leitor crítico mencionado pelos PCN. Os textos escolhidos para análise são: Policiais
paulistanos, Cursinho para motorista, Loucas por um bisturi e Idade das palavras.
Vale ressaltar que a escolha foi aleatória, entre vários textos da coluna de Carrasco
na Veja.
As crônicas estão assim identificadas:
Crônica 1: Policiais paulistanos
Crônica 2: Cursinho para motorista
Crônica 3: Loucas por um bisturi
Crônica 4: Idade das palavras
67
Partindo do objetivo mais amplo deste trabalho, que é o de contribuir para o
aprimoramento das aulas de leitura, procuramos, por conseguinte, verificar os
conhecimentos prévios exigidos para a leitura das crônicas que compõem o corpus,
as ocorrências de intertextualidade e os conteúdos de pressuposição.
3.2 – Conhecimentos Prévios
Como observamos no Capítulo II, o ato de ler não se dá linearmente, como
um processo contínuo, tranqüilo e sem interrupções; ao contrário, é uma operação
mental complexa marcada por tensões, porque envolve ativamente o indivíduo.
Quem lê está em contato com quem escreveu o texto, com os conhecimentos de
uma ou de várias pessoas, recorrendo aos próprios conhecimentos para
compreender o texto, podendo criticar ou concordar com o autor. Desse ponto de
vista, a leitura de um texto só desperta interesse quando, interagindo com o leitor,
faz sentido e traz conceitos que se articulam com os conhecimentos que o leitor já
possui.
Esses conhecimentos são chamados de conhecimentos prévios, que auxiliam
o leitor na compreensão do que está lendo e facilitam a construção de sentidos do
texto. Ao tratar do conceito de conhecimento prévio, Cabral (2005, p. 84) apresenta
uma tabela de classificação de tipos de conhecimentos prévios que consideramos
úteis a nossa análise:
68
CONHECIMENTOS PRÉVIOS
Conhecimento Textual
Conjunto de noções e conceitos
sobre o texto, referente às
estruturas textuais próprias a cada
tipo ou gênero textual.
Conhecimento Lingüístico Conhecimentos gerais sobre a
língua e seu funcionamento.
Conhecimento de Mundo Conhecimentos adquiridos no
processo de aprendizagem formal
e informal, também nas
experiências.
Conhecimento Social Conhecimento sobre a realidade
social; construído em sociedade e
partilhado pelos seus integrantes.
Conhecimento Pragmático Conhecimentos referentes à
relação entre texto e contexto;
ligado à noção de competência
pragmática.
Para nossa análise, dentre as cinco categorias apresentadas por Cabral
(2005), deixaremos de lado os conhecimentos pragmáticos, que têm mais a ver com
contextos de interação verbal oral ou com contextos institucionais em que circulam
determinados tipos de gêneros. Não é esse o caso de nosso corpus.
69
3.2.1 – Conhecimento Textual
Com respeito ao conhecimento textual, cumpre retomar as peculiaridades do
gênero crônica, apresentadas no Capítulo I deste trabalho, verificando em que
medida os textos em análise correspondem a elas.
O primeiro ponto a ser observado nos textos constitui o fato de o cronista se
alimentar de acontecimentos do cotidiano. Nas quatro crônicas de Carrasco, o autor
se inspira em fatos da vida real rotineira para construir a base da crônica.
A Crônica 1 tem inspiração no lançamento de uma coleção de romances
policiais de autores brasileiros, uma coleçãozinha de capa preta da Companhia das
Letras, editora paulistana; a Crônica 2, inspira-se em um fato novo envolvendo o
processo na renovação da carteira de habilitação para motorista, pelo qual passam
milhares de brasileiros: a obrigação de fazer um cursinho sobre trânsito durante
quinze horas. A Crônica 3 toma como tema a cirurgia plástica, refletindo sobre o fato
de que existem pessoas viciadas em plástica. A Crônica 4, partindo de um fato
comum, gente madura usando gíria para parecer jovem, apresenta uma reflexão
bem humorada sobre gírias e seu uso.
Como vemos nos exemplos acima apresentados, as quatro crônicas tratam
de assuntos relacionados à realidade cotidiana, portanto mais próximos do universo
de conhecimento de nossos alunos.
Além da inspiração em fatos do cotidiano, o autor de uma crônica busca a
aproximação da oralidade na escrita. Assim, como observa Marquesi (2005), a
crônica é um texto curto que apresenta construções não rebuscadas, e e escrito
predominantemente em primeira pessoa:
70
Crônica 1: Sempre fui fã (...)
Crônica 2: Fui renovar a carteira de motorista. (...)
Crônica 3: A mãe de um amigo (...). Refleti (...)
Crônica 4: Já cansei de ver gente madura falando gíria (...)
Vale ressaltar que o fato de a crônica ser escrita em primeira pessoa,
segundo Marquesi (2005), pode desencadear mais facilmente a interação entre
autor e leitor, pelo caráter subjetivo que essa estratégia confere ao texto.
As peculiaridades levantadas nos textos analisados nos permitem caracterizá-
los como crônicas. Cumpre-nos observar, no entanto, que apenas um trabalho
prévio do professor, no sentido de fornecer aos alunos conhecimentos em torno das
peculiaridades do gênero crônica, permitirá que eles utilizem esse conhecimento na
identificação do gênero durante a leitura de crônicas.
3.2.2 – Conhecimento Lingüístico
Conforme observamos no capítulo de fundamentação teórica, o conhecimento
lingüístico diz respeito aos conhecimentos gerais sobre a língua e seu
funcionamento. Incluem-se nesses conhecimentos desde o conhecimento do léxico,
das variações lingüísticas (gírias, expressões próprias de uma comunidade ou
região), até o funcionamento das relações entre as partes de uma frase, entre os
períodos, parágrafos e de cada um desses elementos no texto como um todo. O
conhecimento lingüístico diz respeito, portanto, à compreensão da materialidade
lingüística do texto.
71
3.2.2.1 – Conhecimento do léxico
Com respeito ao conhecimento prévio que corresponde ao léxico,
destacamos que as crônicas do corpus apresentam algumas palavras cujo
significado pode ser de difícil entendimento para um adolescente, entre as quais
destacamos alguns exemplos:
Crônica 1:
Em vida pregressa e informações sobre a vítima, mostra outros
policiais (...)
Há corrupção, e muitas vezes o limite entre o crime e a lei é
tênue.
Também não nego, é sintomático, o desabrochar da ficção
policial tão fortemente aqui, em São Paulo. (...)
Crônica 2:
Justamente, o professor falava da confraria dos que não
acreditam em placas.
Crônica 3:
Uma amiga faz em média uma intervenção por mês.
Crônica 4:
Gíria é volátil.
Alguns a consideram um dialeto capaz de estraçalhar a língua.
O desconhecimento de palavras ou expressões como as destacadas acima
pode impedir que o leitor construa adequadamente os sentidos do texto, daí a
necessidade de recorrer ao dicionário como estratégia para ampliar o conhecimento
prévio relativo ao léxico.
72
Vale ressaltar, no entanto, que a crônica caracteriza-se pelo emprego de
linguagem simples, razão pela qual não encontramos muitos exemplos de
dificuldades de vocabulário no corpus.
Ainda com respeito ao léxico, as crônicas do corpus apresentam algumas
palavras e expressões empregadas em sentido metafórico, e algumas gírias – que
trataremos no item 3.3.2 –, cujo entendimento pode ser difícil para um adolescente.
Vejam-se alguns exemplos de uso metafórico:
Crônica 1:
Até agora fãs de mistério como eu eram obrigados a deglutir
penhascos ingleses.
Há algum tempo surgiu uma safra de romances policiais
Crônica 2:
Eram do tipo que navega calmamente no asfalto, enquanto rôo
as unhas atrás.
– As pessoas acham que podem negociar com o limite de
velocidade (...)
Apesar do sono, dos resmungos e dos bocejos, gostei de ter
feito o curso. Achava ser mais um espasmo burocrático para
arrecadar dinheiro.
Engatei a primeira e aumentei a velocidade para 40, como
autorizava a placa, enquanto ele rugia ao meu lado.
Crônica 3:
Lifting completo, tirou bolsas, puxou e repuxou.
Muita gente me pergunta por que alguns atores famosos somem
da telinha.
Crônica 4:
Gíria velha denuncia a idade mais do que um festival de rugas!
73
Ressaltamos que, para o trabalho de leitura, é importante a mediação do
professor no sentido de explicar para os alunos os sentidos metafóricos, as gírias
em desuso, sempre recorrendo ao contexto que viabiliza a construção de sentidos.
3.2.2.2 – Conhecimento do funcionamento das estruturas
lingüísticas
Com respeito ao conhecimento lingüístico, ressaltamos, ainda, a importância
do conhecimento do funcionamento das estruturas lingüísticas que permitem ao
leitor reconstruir o tecido textual, estabelecendo as relações coesivas. Entre as
estratégias lingüísticas de coesão, destacamos a elipse, da qual apresentamos
alguns exemplos retirados do corpus. Nos excertos abaixo, grifamos a expressão
retomada por elipse e assinalamos a elipse pelo símbolo ø.
Crônica 1:
Há algum tempo surgiu uma safra de romances policiais cujo
cenário é São Paulo, com seus bairros e topos humanos. O último ø
é Morte nos Búzios, de Reginaldo Prandi.
Estranhei. Intelectuais em geral não confessam sequer que lêem
histórias de detetives. Quanto mais escrever ø! Assim que saiu ø,
enviou para a minha casa.
Não é só uma questão geográfica. Todos os livros - incluindo o ø de
Bellotto - tem um tom bem brasileiro.
Crônica 2:
Fui renovar minha carteira de motorista. Surpresa! Devido a uma lei
mais ou menos recente, eu deveria fazer um cursinho sobre trânsito
durante quinze horas. Podia optar por um exame direto, mas o que
lembrava do assunto? Horrorizei-me. Principalmente porque o ø
intensivo começava às 8 da manhã, sábado e domingo.
Muita gente, como eu, cresce com a impressão de que o trânsito é
uma guerra, na qual quem anda devagar é perdedor. Correr,
ultrapassar, dirigir com ferocidade é sinônimo de macheza. Para
muitas mulheres, ø de auto-afirmação feminina.
74
Apesar do sono, dos resmungos e dos bocejos, gostei de ter feito o
curso. Achava ser ø mais um espasmo burocrático para arrecadar
dinheiro. Fiquei a favor ø.
Crônica 3:
Algumas colocam tanto silicone nos seios que se arriscam a andar
encurvadas para agüentar o peso ø.
Agora surgiu a bioplastia. É um método que desenha a estrutura de
um rosto, por exemplo, por meio de aplicações milimétricas de um
produto. Um conhecido não suportava o queixo pontudo. Saiu das
sessões ø com o rosto quadrado.
Agora, submete-se a novas aplicações para "derreter" o produto
anterior. Depois, é claro, colocará ø novamente.
Foi-se o tempo das avozinhas que depois de viúvas botavam roupa
escura e não saíam mais de casa. As ø modernas querem namorar,
ir a festas, viajar. Viver!
Crônica 4:
Assim como as variações para falar de homem bonito. Houve época
em que ø era "pão", lá pelos anos 80 virou "lasanha". Agora se usa
gato ø, se não estou atrasado.
É o conhecimento do funcionamento da língua que permite ao leitor
estabelecer a substituição por elipse das palavras em itálico nos exemplos acima.
3.2.3 – Conhecimento de Mundo
Como destacamos acima e no capítulo de fundamentação teórica, o
conhecimento de mundo engloba os conhecimentos adquiridos no processo de
aprendizagem formal e informal e também nas experiências. Assim, tudo o que
aprendemos faz parte de nosso conhecimento de mundo, incluindo-se aí nossos
conhecimentos em torno de outros textos, outras obras.
75
Considerando que o conhecimento de outros autores, obras e textos
corresponde ao princípio de intertextualidade de que trataremos adiante, não
cuidaremos desses conhecimentos aqui, fixando-nos em conhecimentos de mundo
mais gerais, dos quais apresentamos alguns exemplos retirados do corpus:
Crônica 1:
Até agora fãs de mistérios como eu eram obrigados a deglutir
penhascos ingleses ou correrias por Los Angeles e Nova York.
Para compreender a referência a penhascos ingleses, Los Angeles e Nova
York e a relação desses lugares com os livros de mistério, é importante que o leitor
tenha conhecimento de que a maioria dos livros de mistério é de origem inglesa ou
americana.
Para mim, sempre foi o tipo acabado do intelectual. Professor titular
de sociologia da USP, passou anos estudando as religiões afro-
brasileiras. Fez teses. Há uns meses, encontrei-me com ele em um
evento literário.
Esse excerto exige do leitor o conhecimento da instituição USP, das
implicações de ser um professor titular que passa anos estudando e faz tese. Esses
conhecimentos permitem identificar o personagem descrito a um intelectual,
conforme descreve Carrasco.
Crônica 2:
– Vou fazer o curso – respondi, bocejando por antecipação.
O conhecimento em torno de cursos do tipo referido no texto, que
costumeiramente são maçantes e cansativos, permite ao leitor compreender o uso
do verbo bocejar: cursos maçantes provocam sono e nos fazem bocejar.
Crônica 3:
Lembrei-me de Gisele Bündchen. Olha só o nariz da número 1!
76
O leitor precisa ter algum conhecimento sobre quem é Gisele Bündchen para
compreender o sentido que assume a citação de seu nome. Precisa saber que ela é
considerada a modelo número 1 do mundo, por ser a mais requisitada das modelos
da atualidade, e que ela é considerada a mulher mais bonita do mundo apesar de ter
nariz grande.
Algumas colocam tanto silicone nos seios que se arriscam a andar
encurvadas para agüentar o peso. Muitas contrabalançam botando
no traseiro, para equilibrar. Eu não me atreveria a acender um palito
de fósforo perto delas. Podem pegar fogo!
O conhecimento de que silicone é um produto inflamável permite a
compreensão da referência a fósforos como perigo para pessoas que colocaram
silicone.
Está à beira da loucura. O detalhe: sempre foi um rapaz muito
bonito. Para que tanto sofrimento? Agora, submete-se a novas
aplicações para "derreter" o produto anterior. Depois, é claro,
colocará novamente. A qualquer momento seu rosto pode se
transformar em uma versão humana da Torre de Pisa!
O leitor precisa conhecer a peculiaridade da torre de Pisa, que é inclinada,
para compreender que uma versão humana da Torre de Pisa refere o fato de a
pessoa ficar com o rosto desalinhado, torto.
Crônica 4:
O tempo passa. Fica difícil mudar o modo de falar. Às vezes ainda
ouço um "é uma brasa, mora", usado por Roberto Carlos nos
tempos do programa Jovem Guarda, início dos 60.
Apenas a referência à data (anos 60) não permite ao leitor compreender o
que foi o movimento da Jovem Guarda. É importante também que o leitor conheça o
cantor Roberto Carlos e seu percurso de vida para associá-lo ao movimento e às
gírias próprias da época.
77
Observamos que a crônica 4 constitui um exemplo de exercício de ampliação
dos conhecimentos do leitor. O autor, ao introduzir cada expressão ou gíria,
apresenta sua explicação contextualizando-a à época; assim, ao ler a crônica, o
leitor amplia seu repertório de gírias, sobretudo de gírias em desuso.
3.2.4 – Conhecimento Social
O conhecimento social engloba o que membros de uma comunidade sabem
sobre a realidade social, ou seja, sobre a maneira como as pessoas se comportam
socialmente, sobre o que é aceito socialmente como adequado ou considerado
inadequado, sobre como as coisas acontecem de modo geral na sociedade. Esse
conhecimento é construído em sociedade e partilhado pelos seus integrantes.
Crônica 1:
Estranhei. Intelectuais em geral não confessam sequer que lêem
histórias de detetives.
A compreensão desse excerto passa pelo conhecimento do comportamento
social: as pessoas em geral não admitem fazer aquilo que pode macular a sua
imagem perante a sociedade, perante seus pares. Intelectuais são socialmente
associados a leituras consideradas sérias, das quais se excluem os romances
policiais, estigmatizados como romances de categoria inferior. Sem esse
conhecimento de ordem social, o leitor poderia sentir dificuldade para compreender
porque os intelectuais não confessam que lêem histórias de detetives.
Gosta de arroz, feijão e saladinha.
Faz parte do gosto alimentar da sociedade brasileira o arroz, o feijão e
saladinha. É preciso ter conhecimento da peculiaridade desse hábito associado à
cultura brasileira para estabelecer a relação entre o gosto do personagem ao fato de
ele ser brasileiro, tornando essa uma peculiaridade que identifica sua nacionalidade.
78
Têm nosso jeitão. Em Morte nos Búzios, por exemplo, um dos
personagens freqüenta o terreiro e uma igreja pentecostal, onde
ajuda a exorcizar exus!
Apenas quem conhece a peculiaridade social brasileira, que mistura credos
com naturalidade, recorrendo a vários rituais simultaneamente, pode compreender e
não considerar contraditória a combinação de ritos apresentada na crônica.
Ressaltamos, ainda, a necessidade do conhecimento em torno das duas correntes
religiosas, o candomblé e a igreja pentecostal, para compreender a contradição que
normalmente separa as duas.
Crônica 2:
Inscrevi-me. Ficava no Jabaquara. Ao chegar, cadastraram
meu dedo indicador.
– Para quê?
– Na entrada e na saída das aulas, você confirma a digital.
Para evitar fraudes.
Oh, céus! Teria de assistir às aulas!
O conhecimento social de que as pessoas costumam não freqüentar cursos
obrigatórios do tipo referido no texto, bastando apenas pagar por eles, permite ao
leitor compreender a surpresa do personagem ao tomar conhecimento do controle
de presença.
Ainda na crônica 2, vale ressaltar os hábitos socialmente admitidos na cultura
brasileira, e até valorizados, como dirigir acima da velocidade permitida e dirigir
alcoolizado. O leitor que não tem o conhecimento dessa peculiaridade de nossa
sociedade pode estranhar tais referências. Esse conhecimento permite compreender
também o estranhamento que a mudança no comportamento do personagem
causou em seus amigos:
O único problema é que meus amigos criaram horror de carona
comigo. Se a placa diz 30, ando a 30. Se não pode virar, não viro. E
assim por diante. Aos seus olhos, é incompreensível.
79
Crônica 3:
Todos botavam a taça de vinho nos lábios, rapidamente. Dizer o
quê?
É preciso ter o conhecimento social de que as pessoas, quando não querem
dizer algo que possa magoar o interlocutor, sobretudo em eventos sociais em que
são servidas bebidas, em vez de dizer, levam o copo à boca, como se tivessem
impossibilitados de dizer algo pelo fato de estarem bebendo. Fica implícito que o que
diriam desagradaria a personagem que pediu a opinião dos demais.
Crônica 4:
Já cansei de ver gente madura falando gíria para parecer jovem.
Como pudemos perceber, a Crônica 4 inicia-se com o apelo a um consenso
social de que o uso de gíria é próprio de gente jovem. Esse conhecimento social
perpassa o texto todo:
Esse é o mal das gírias. Marcam a juventude de cada um.
A crônica faz ainda referência ao hábito socialmente aceito de procurar
“esconder” a idade, envolvendo também o conhecimento de mundo relativo às
estratégias utilizadas pelas pessoas que procuram disfarçar a idade que têm:
Não há corte de cabelo, Botox ou plástica que resista. Gíria velha
denuncia a idade mais do que um festival de rugas!
A construção dos sentidos de um texto exige a ativação de diferentes tipos de
conhecimento prévio, que se sobrepõem compondo o arcabouço de conhecimento
exigido pelo texto para a sua leitura. Também ligado ao conceito de conhecimento
prévio, temos o princípio de intertextualidade, próxima categoria de nossa análise.
80
3.3 – Elementos de Intertextualidade
Verificamos, no segundo capítulo deste trabalho, que o princípio de
intertextualidade constitui uma das estratégias que propiciam a interação entre texto
e leitor. A intertextualidade se dá quando o texto remete, de alguma forma, a outros
textos. Ela se dá explicitamente quando há referência clara à fonte; ela acontece
implicitamente quando não há referência à fonte, o que exige, conforme ressalta
Koch (2004), conhecimento prévio do leitor.
3.3.1 – Intertextualidade Explícita
Na crôncia 1, que trata de um gênero textual, ou seja, o romance policial, há
muitos exemplos de intertextualidade explícita, isto é, referência a personagens ou
obras com explicitação da obra ou do autor da obra referida:
A inesquecível cadela baleia de Vidas Secas surgiu na saga dos
imigrantes nordestinos.
A emocionante Ana Terra, de O Tempo e o Vento, só poderia ter
sido criada em terras gaúchas.
A começar pela série do investigador Bellini, de Tony Bellotto, que
virou até filme.
A crônica 3 traz também um exemplo de intertextualidade explícita:
Refleti: "Só se for Chuck, o brinquedo assassino".
A crônica 4 traz um exemplo de intertextulidade explícita ao citar Roberto
Carlos, associando-o à Jovem Guarda:
Às vezes ainda ouço um “é uma brasa, mora”, usado por Roberto
Carlos nos tempos da Jovem Guarda, início dos anos 60.
81
3.3.2. Intertextualidade Implícita
Na intertextualidade implícita, conforme observa Koch (2004), não há
explicitação da fonte intertextual. É o que acontece, por exemplo, na crônica 1,
quando o cronista faz referência à nacionalidade habitual dos romances policiais,
sem, no entanto, citar nenhum autor que confirme sua afirmação, apenas faz
referência a uma personagem famosa dos livros policiais ingleses. Ele conta com o
conhecimento do leitor em torno desse tipo de romance para estabelecer a relação:
Até agora fãs de mistério como eu eram obrigados a deglutir
penhascos ingleses ou correrias por Los Angeles e Nova York.
Adolescente, já era fã de Sherlock Holmes.
Ainda na crônica 1, o cronista faz referência à personagem de Jorge Amado,
sem citar a fonte, confiando no conhecimento prévio do leitor de que dona Flor é
personagem do romance homônimo daquele autor baiano:
Quem melhor que dona Flor para fala da pimenta baiana?
São também exemplos de intertextualidade implícita as gírias. Elas constituem
expressões próprias de uma época, cujas origens são desconhecidas. Citamos a
seguir alguns exemplos de gírias presentes nas crônicas, especialmente na crônica
3, cujo tema é o uso de gírias:
Eu sou prafrentex!
Ai, que pão!
Lembro de meu irmão mais velho dizendo “que carro jóia”! E “olha o
broto”!
Vão para a balada, para a “night”.
Eu deletei aquele sujeito da minha vida.
Ou que alguém é “fashion”, para dizer que está “nos trinques”.
A partir da observação da análise do princípio de intertextualidade nas
crônicas que compõem o corpus, podemos afirmar que a leitura é um processo que
82
envolve o uso de informações externas, como a situação de comunicação e os
conhecimentos prévios, e que são esses conhecimentos que permitem ao leitor
estabelecer relações com outros textos e compreender um texto com maior ou menor
grau de dificuldade.
3. 4 – Conteúdos de pressuposição
De acordo com nossos estudos, verificamos que dizer nem sempre é dizer de
modo explícito, visto que em uma atividade discursiva muitas vezes enunciamos algo
implicitamente. Entre as formas implícitas de dizer, priorizamos os pressupostos, que
nossa análise contemplará mostrando como eles se manifestam nos textos do
corpus.
Estabelecemos, para a análise dos conteúdos de pressuposição, as seguintes
categorias:
3.4.1 verbos de mudança ou permanência de estado;
3.4.2 verbos factivos e contrafactivos;
3.4.3 expressões adverbiais iterativas e aspectuais.
Cumpre observar que seguimos o procedimento de análise adotado por Ducrot
(1977; 1980 e 1987), que consiste em afirmar que um dado enunciado põe
determinado conteúdo e pressupõe outro. Assim, exemplificando, ao analisar o
clássico exemplo Pedro deixou de fumar, dizemos que esse enunciado põe que
Pedro não fuma e pressupõe que Pedro fumava anteriormente.
83
3.4.1 – Verbos de mudança ou permanência de estado
A crônica 1 apresenta o verbo surgir que abarca em seu significado “passar a
existir”; põe a existência de algo e pressupõe a sua não existência anteriormente.
Há algum tempo surgiu uma safra de romances policiais cujo cenário
é São Paulo, com seus bairros e topos humanos.
Entre os significados apresentados pelo dicionário (HOUAISS e VILLAR, 2001)
para o verbete surgir, temos:
9 tornar-se realidade, passar a existir; acontecer, aparecer, ocorrer
Surgir, portanto, põe que alguma coisa existe e pressupõe que essa mesma
coisa não existia antes: fica pressuposto que anteriormente ao tempo mencionado
pelo cronista não havia romances policiais cujo cenário fosse São Paulo.
No excerto abaixo, retirado da crônica 2, encontramos dois verbos de
mudança de estado, que grifamos:
Achava ser mais um espasmo burocrático para arrecadar dinheiro.
Fiquei a favor. No mínimo, tomei
consciência de que leis são leis.
Não foram feitas para eu fingir que não existem.
Ao dizer que ficou a favor, o cronista põe que é a favor, e pressupõe que não
era antes. O mesmo acontece com tomei, que põe que o enunciador tem consciência
de que leis são leis, e pressupõe que essa consciência não existia antes do curso.
O mesmo acontece no seguinte enunciado, também retirado da crônica 3, que
põe que os amigos do personagem têm horror de pegar carona com ele, e pressupõe
que esse horror não existia antes:
84
O único problema é que meus amigos criaram horror de carona comigo.
A crônica 3 traz dois exemplos do verbo ficar indicando mudança de estado:
A testa ficou mais alta.
Tudo pode cair, e você ficará idêntico a um buldogue.
O verbo ficar pode indicar uma mudança de estado, conforme atesta o
dicionário (HOUAISS e VILLAR, 2001):
27 converter-se em; mudar, transformar(-se), fazer-se
Assim, no primeiro exemplo, o verbo ficar põe que a testa está mais alta e
pressupõe que ela não estava alta anteriormente; da mesma forma, no segundo
exemplo, o verbo ficar põe que “você” será idêntico a um bulldogue, e pressupõe
que “você” não é idêntico a um buldogue. Ressaltamos o emprego do verbo no
futuro, que reforça o conteúdo pressuposto pelo verbo.
Na crônica 3 temos ainda o verbo perder, de mudança de estado:
– Mas veja! – garantiu minha acompanhante. – Fez plástica no nariz,
com certeza. O rosto perdeu as proporções. Isso pode prejudicar
sua carreira.
O enunciado acima põe que o rosto não tem proporções e pressupõe que ele
as tinha anteriormente.
A crônica 4 também apresenta exemplos de verbo de mudança de estado,
como criar e descobrir, destacados abaixo:
85
Lembro do sucesso de "boko moko", criado por uma marca de
refrigerante para identificar quem era cafona e não tomava a tal
bebida.
Descobri que "comer à tripa forra" tinha a ver com o período da
escravidão.
Todos os significados para o verbete criar trazem a idéia de mudança de
estado: algo que não existia e passa a existir (HOUAISS e VILLAR, 2001). Entre eles,
o que mais se encaixa no exemplo é:
2 imaginar, inventar, produzir (original, novo)
Podemos, por conseguinte, afirmar que criar, no exemplo, põe a existência de
uma expressão e pressupõe a sua não existência anterior.
O mesmo acontece com o verbo descobrir do exemplo acima.
8 dar a conhecer (alguma coisa) até então ignorada
12 tomar conhecimento de (algo); perceber, notar
Descobrir põe que comer à tripa forra tinha a ver com o período da escravidão
e pressupõe que essa informação era desconhecida do cronista.
Cumpre observar ainda algumas expressões verbais de mudança de estado,
como no caso do exemplo abaixo retirado da crônica 4:
O tal "caderninho" correspondia à agenda telefônica. Só passou a
ser comum quando o aparelho se tornou mais popular.
A expressão passou a põe que o caderninho é comum, e pressupõe que ele
não era comum antes da popularização do telefone.
86
O mesmo acontece no seguinte exemplo retirado da crônica 1, em que a
expressão verbal começar a põe que algo acontece e pressupõe o não
acontecimento desse fato anteriormente:
Aos poucos, o delegado Tiago Paixão começa a descobrir suspeitas
entre os freqüentadores do terreiro.
3.4.2 – Verbos factivos e contrafactivos
Conforme vimos na fundamentação teórica, os verbos factivos pressupõem a
verdade do conteúdo expresso pela completiva objeto e os contrafactivos
pressupõem a não verdade do conteúdo expresso por ela.
Na crônica 1, encontramos o verbo confessar, que pressupõe a verdade do
conteúdo confessado:
Estranhei. Intelectuais em geral não confessam sequer que lêem
histórias de detetives.
O enunciado acima põe que os intelectuais não confessam alguma coisa, que
lêem histórias de detetives, e pressupõe que é verdade que eles as lêem.
Na crôncia 4, no enunciado
Descobri que comer à tripa forra tinha a ver com o período da
escravidão.
O verbo descobrir, além do caráter de mudança de estado já apontado
anteriormente, no item 3.4.1, traz pressuposta a verdade do conteúdo enunciado na
87
completiva objeto. O mesmo acontece com o verbo deduzir no enunciado que vem
logo a seguir:
Deduzi que significava comer à vontade.
Na crônica 2, encontramos um exemplo de verbo contrafactivo, o verbo achar
usado no sentido de ter uma crença equivocada:
– As pessoas acham que podem negociar com o limite de
velocidade – ele explicou. – Mas placa é placa.
No exemplo acima, o verbo achar põe que as pessoas acreditam ser possível
negociar com o limite de velocidade e pressupõe que essa crença é falsa.
3.4.3 – Expressões adverbiais iterativas e aspectuais
As expressões de sentido iterativo pressupõem que a ação indicada pelo
verbo a que elas se ligam já tenha acontecido anteriormente, repete-se, portanto; as
aspectuais marcam uma mudança de estado, a finalização de um processo ou o seu
caráter continuativo.
A crônica 1 se inicia com o seguinte enunciado:
Sempre fui fã de romances policiais.
No enunciado acima, o advérbio sempre pressupõe a permanência da ação
indicada pelo verbo com o qual ela ocorre.
Na crônica 3, encontramos o seguinte exemplo de expressões iterativas:
88
Entrei no bisturi de novo! Desta vez, fiquei parecendo uma
menininha!
A expressão de novo pressupõe que a ação indicada pelo verbo entrar
tenha acontecido anteriormente, e a expressão desta vez pressupõe que da outra
vez foi diferente, ou seja, que a personagem não ficou parecendo uma menininha.
Com respeito às expressões aspectuais, observemos o seguinte exemplo:
Nos meus tempos de repórter, certa vez entrevistei um cirurgião
plástico que exibiu, orgulhosamente, uma cabeça de gesso.
A expressão temporal nos meus tempos de repórter, na crônica 3, põe que o
cronista foi repórter, e pressupõe que ele não é repórter, marcando o fim de um
estado.
A análise dos conhecimentos prévios necessários à leitura das crônicas que
compõem o corpus de pesquisa, dos elementos de intertextualidade que os textos
estabelecem e dos conteúdos de pressuposição que eles apresentam nos permite
afirmar que esses três fenômenos se imbricam para a construção de sentidos de um
texto.
Embora tenhamos, por questões metodológicas, realizado a análise de cada
uma das categorias por vez, ficou claro para nós que, na leitura de crônicas, ou de
outro gênero textual, em situação de sala de aula, é importante explorar os três
fenômenos em conjunto, observando que os conhecimentos de mundo dão respaldo
para a construção de relações intertextuais, assim como os conhecimentos
lingüísticos permitem a compreensão de conteúdos pressupostos.
89
O trabalho do professor na mediação em leitura torna-se, pois, fundamental
para o desenvolvimento da competência leitora dos alunos, uma vez que esse
processo de construção e ampliação de conhecimentos dará condições para que eles
se tornem leitores ativos.
90
CONCLUSÃO
Ao longo deste trabalho, procuramos enfatizar a importância da interação
entre o texto e o leitor, buscando uma forma de contribuir para o ensino da leitura.
Para tanto, em nossos estudos, apresentamos, dentro de uma abordagem
pragmática da linguagem, o texto como um evento discursivo, cuja constituição é
influenciada por fatores de ordem lingüística, cognitiva e social. Nesse sentido, a
compreensão do texto depende da sintonia entre o universo comunicativo dos
sujeitos envolvidos no processo de leitura e de uma atitude ativa do leitor em busca
de elementos que lhe auxiliem na construção de sentidos.
Concebemos o texto como um ato de comunicação constituído por fatores
lingüísticos e cognitivos, apresentando uma manifestação verbal, visto que é
composto por elementos lingüísticos, e com uma manifestação discursiva, uma vez
que se consideram fatores contextuais.
Conseqüentemente, a compreensão de um texto exige do leitor competências
textual e discursiva. Elas permitem que ele compreenda, respectivamente, as
informações internas, co-textuais e as informações contextuais, que são expressas
nos textos por meio de recursos lingüísticos.
De acordo com os estudos realizados, observamos que a adequação desses
aspectos torna o texto uma unidade capaz de estabelecer a interação com o leitor,
permitindo a construção de sentidos, processo para o qual concorrem os
conhecimentos prévios do leitor, o princípio de intertextualidade e os conteúdos
pressupostos.
91
Tivemos o objetivo específico de verificar como ocorrem esses fenômenos
lingüístico-textuais – conhecimentos prévios, princípio de intertextualidade e
conteúdos pressupostos – os quais o produtor do texto utiliza para propiciar essa
interação.
Tendo como pressuposto de pesquisa que o apelo a conhecimentos prévios,
o recurso ao princípio de intertextualidade e a compreensão de conteúdos
pressupostos constituem estratégias facilitadoras da construção de sentidos na
leitura, a pesquisa buscou analisar esses elementos, a fim de aprofundar os
conhecimentos que respaldam a nossa prática docente. Fundamentamos nossa
pesquisa na Lingüística Textual e na Teoria do Processamento do Discurso, que
trata de fatores que constituem o texto, como a intertextualidade.
Nossas análises mostraram-nos que, de fato, os textos são produções
discursivas resultado do conhecimento lingüístico e do conhecimento de mundo do
produtor; observamos que esses conhecimentos materializam-se no texto por meio
dos recursos lingüísticos no estudo teórico realizado. Como defendemos neste
trabalho, esses conhecimentos propiciam a interação entre leitor e texto e,
conseqüentemente, contribuem para o processo de leitura e produção de sentidos.
Dessa forma, constatamos que a construção de sentidos se dá nos textos
apresentados à medida que o leitor, ativando seus conhecimentos estocados na
memória, consegue identificar a intertextualidade presente no texto e relacioná-la ao
seu universo de conhecimento.
Os conteúdos pressupostos exercem também um importante papel na
produção de sentidos, pois permitem que o leitor busque informações que não foram
ditas de modo explícito no texto. Conforme comprovamos em nossa análise, para a
compreensão das informações implícitas, o leitor necessita ativar seus
conhecimentos prévios. Para compreensão dos conteúdos pressupostos, ele
precisa, sobretudo, de conhecimentos lingüísticos.
92
Desse modo, os estudos realizados nos mostram que a leitura é um processo
dinâmico que resulta da relação entre fatores não só lingüísticos, mas também
cognitivos e sócio-interacionais. Para que ela seja bem sucedida, a leitura depende
de estratégias interacionais utilizadas pelo produtor do texto, e também dos
conhecimentos do leitor. O leitor utiliza todos esses elementos conjuntamente, uns
interferindo nos outros, uns determinando mudanças nos demais.
A partir dessas considerações, ressaltamos a necessidade de o professor,
nas aulas de leitura, auxiliar a identificação das pistas textuais deixadas pelo
produtor, fornecendo aos alunos informações que ampliem seus conhecimentos,
especialmente aqueles envolvidos na construção dos sentidos do texto tomado para
leitura, ressaltando as relações intertextuais, observando os conteúdos
pressupostos, propiciando, enfim, situações de leitura em que os alunos possam
desenvolver sua competência lingüística e textual.
Considerando o estudo realizado, podemos afirmar que aprimorar a
capacidade de leitura do educando significa auxiliá-lo a construir as bases para uma
reflexão do seu próprio saber, tornando-o apto a formular e reformular hipóteses,
aceitar ou rejeitar conclusões e, assim, tornar-se mais acessível a mudanças, a
transformar-se em agente ativo na sociedade em que vive, a tornar-se ator e
protagonista da própria história.
Não tivemos a intenção, nesta pesquisa, de propor uma metodologia de
ensino da leitura, nem de dar conta de todos os elementos envolvidos no processo
de construção de sentidos no ato de ler. Acreditamos, entretanto, que, ao privilegiar
uma postura dialógica entre o texto e o leitor, trouxemos contribuições para o
processo de ensino e de aprendizagem da leitura e, assim, nosso trabalho abre
perspectivas para novos estudos sobre a interação entre o texto e o leitor.
93
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADAM, J. M. (1992). Les textes: types et prototypes. Paris: Nathan.
BARTHES, R. (1997). Aula. 6. ed. São Paulo: Cultrix.
BAKHTIN, M. (1992). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes.
BEAUGRANDE, R. A. & DRESSLER, W. U. (1981). Introduction to Text
Linguistics. London, Longman.
___________________. (1987). New foundations for a science of text and
discourse: cognition, communication and freedom of access to
knowledge and society. Norwood, New Jersey: Ablex Publishing Corporation.
BENVENISTE, E. (1995). Problemas de lingüística geral I. Trad. Maria da Glória
Novak e Maria Luisa Néri. Campinas, Pontes.
_______________. (1989). Problemas de lingüística geral II. 4. ed. Trad. Eduardo
Guimarães Campinas: Pontes.
BÍBLIA (2000). Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. São
Paulo: Geográfica.
BRANDÃO, H. N. (1998). Leitura, produção e circulação de textos. In: BASTOS,
Neusa Barbosa (Org.). Língua portuguesa – história, perspectivas e ensino.
São Paulo: Educ.
_______________. (2003). Texto, gêneros do discurso e ensino. In: CHIAPPINI,
Lígia (Coord.). Gêneros do discurso na escola: mito, conto, cordel,
discurso político, divulgação científica. 4. ed. São Paulo: Cortez.
BRASIL. (1998). Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa —
Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental. Brasília, DF: MEC/SEF.
94
BONINI, A. (2001). Ensino de gêneros textuais: a questão das escolhas teóricas e
metodológicas. Trabalhos em Lingüística Aplicada. Campinas, n. 37, p. 7-23,
jan/jun.
___________. (2002). Gêneros textuais e cognição: um estudo sobre a
organização cognitiva da identidade dos textos. Florianópolis: Insular.
CABRAL, A. L. T. C. (2000). Modalização e Interação da Linguagem: a
subjetividade em processos civis. Dissertação de Mestrado. PUC-SP.
________________. (2005). Interação leitura e escrita: processos de leitura de
perguntas de exame revelados pela escrita das perguntas. Tese de
Doutorado. PUC-SP.
CÂNDIDO, A. (1992). A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações
no Brasil. Campinas, São Paulo: Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de
Rui Barbosa.
CARRASCO, W. (2006). Policiais Paulistanos. Veja São Paulo. 1974 ed. São
Paulo, set.
_____________. (2006). Loucas por um bisturi. Veja São Paulo. 1976 ed. São
Paulo, out.
_____________. (2007). Cursinho para motorista. Veja São Paulo. 1992 ed. São
Paulo, jan.
_____________. (2007). A idade das palavras. Veja São Paulo. 1998 ed. São
Paulo, mar.
DUCROT, O. (1977). Provar e dizer: leis lógicas e leis argumentativas. São
Paulo: Global.
___________. (1980). Dizer e não dizer: princípios de semântica lingüística. 2.
ed. São Paulo: Cultrix.
___________. (1987). O dizer e o dito. Campinas: Pontes.
95
FAIRCLOUGH, N. (2001). Discurso e mudança social. Brasília: Editora
Universidade de Brasília.
FÁVERO, L. L. (2004). Coesão e coerência textuais. 9. ed. São Paulo: Ática.
FIORIN, J. L. (2006). Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática.
GUIMARÃES, E. (1995). Os limites do sentido: um estudo histórico e
enunciativo da linguagem. Campinas: Pontes.
HOUAISS. A. e VILLAR, M. S. (2001). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Rio de Janeiro: Objetiva.
KLEIMAN. A. (2004). Oficina de leitura. 10. ed. Campinas: Pontes.
KOCH, I. G. V. & TRAVAGLIA. L. C. (2003). A coerência textual. 2. ed. São Paulo:
Contexto.
____________. (2003a). A inter-ação pela linguagem. 8. ed. São Paulo: Contexto.
____________. (2003b). Desvendando os segredos do texto. 2. ed. São Paulo:
Cortez.
____________. (2003c). O texto e a construção dos sentidos. 7. ed. São Paulo:
Contexto.
____________. (2004). Introdução à lingüística textual: trajetória e grandes
temas. São Paulo: Martins Fontes.
LEVINSON, S. (1983). Pragmatics. Cambridge Press University.
MAINGUENEAU, D. (1996). Pragmática para o discurso literário. Trad. Marina
Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes.
MARCUSCHI, L. A. (2000). Gêneros textuais: o que são e como se constituem.
Recife. (Não publicado)
96
_________________. (2003). A questão do suporte dos gêneros textuais. Língua,
lingüística e literatura, João Pessoa, v. 1, n.1, p. 9-40.
_________________. (2005). Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In:
DIONÍSIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Orgs.). Gêneros
textuais & ensino. 3. ed. Rio de Janeiro: Lucerna.
MARQUESI, S. C. (2005). Lendo crônicas: perspectivas para a formação de leitores
críticos. In: ANDRADE, C. A. B.; ROSSATTO, E. (Orgs.). Prática de Escrita: A
Crônica – um estímulo à percepção e à criatividade. São Paulo: Andross.
MEURER, J. L. (2002). Uma dimensão crítica do estudo de gêneros textuais. In:
______; MOTTA-ROTH, Desirée (Orgs.). Gêneros textuais e práticas
discursivas: subsídios para o ensino da linguagem. Bauru: EDUSC, p. 17-29.
MOURA, H. M. de M. (2006). Significação e Contexto: uma introdução a
questões de semântica e pragmática. 3. ed. Florianópolis: Insular.
SÁ, J. (1999). A Crônica. 6. ed. São Paulo: Ática.
SWALES, J. M. (1990). Genre analysis: English in academic and research
settings. Cambridge University Press.
TRAVAGLIA, L. C. (2005). Gramática e interação: uma proposta para o ensino
de gramática. 10 ed. São Paulo: Cortez.
VAN DIJK, T. A. & KINTSCH, W. (1983). Strategies of Discourse Comprehension.
New York: Academic Press.
_____________. (2002). Cognição, discurso e interação. 4. ed. In I. G. V. Koch
(org). São Paulo: Contexto.
97
ANEXO I
CRÔNICA 1
POLICIAIS PAULISTANOS
Por Walcyr Carrasco
Sempre fui fã de romances policiais. Conheço pessoas para quem a leitura só pode
ser séria, para quebrar a cabeça. Penso o contrário. Um bom livro também ajuda a
relaxar. Até agora fãs de mistérios como eu eram obrigados a deglutir penhascos
ingleses ou correrias por Los Angeles e Nova York. Há algum tempo surgiu uma
safra de romances policiais cujo cenário é São Paulo, com seus bairros e tipos
humanos. O último é Morte nos Búzios, de Reginaldo Prandi. Não nego. Conheço o
Reginaldo há uns... puxa, trinta anos! (É nessas horas que vejo como o tempo
passa.) Para mim, sempre foi o tipo acabado do intelectual. Professor titular de
sociologia da USP, passou anos estudando as religiões afro-brasileiras. Fez teses.
Há uns meses, encontrei-me com ele em um evento literário.
– Vou lançar um policial! – contou-me.
Estranhei. Intelectuais em geral não confessam sequer que lêem histórias de
detetives. Quanto mais escrever! Assim que saiu, enviou para minha casa. Não
nego, sou exigente. Adolescente, já era fã de Sherlock Holmes. Mas adorei Morte
nos Búzios. Reginaldo misturou seu conhecimento sobre as religiões afras com a
imaginação. Os crimes acontecem a partir das previsões de uma mãe-de-santo da
Freguesia do Ó. Aos poucos, o delegado Tiago Paixão começa a descobrir
suspeitos entre os freqüentadores do terreiro. Bem... se eu falar um pouco mais
98
acabo contando quem é o culpado! Para um paulistano, é muito diferente
acompanhar uma trama que se passa em lugares conhecidos, como a própria
Freguesia do Ó, Indianópolis, Vila Formosa, Bela Vista. Enquanto eu lia, visualizava
os bairros. Ao terminar, pensei: São Paulo chegou lá!
Essa coleçãozinha de capa preta da Companhia das Letras já lançou outros policiais
paulistanos. A começar pela série do investigador Bellini, de Tony Bellotto, que virou
até filme. Outro autor, menos conhecido, é Joaquim Nogueira. Delegado
aposentado, também cria tramas ambientadas na cidade – com conhecimento de
causa, por sinal. Seu detetive, Venício, circula principalmente pela Zona Norte.
Gosta de arroz, feijão e saladinha. Em Vida Pregressa e Informações sobre a Vítima,
mostra outros policiais, bicheiros, quarentonas mal-amadas, prostitutas, milionários.
Não é só uma questão geográfica. Todos os livros – incluindo os de Bellotto – têm
um tom bem brasileiro. Os investigadores e os delegados ganham mal. Há
corrupção, e muitas vezes o limite entre o crime e a lei é tênue. Não se trata de
cópias da ficção americana e da inglesa simplesmente transportadas para cá. Têm
nosso jeitão. Em Morte nos Búzios, por exemplo, um dos personagens freqüenta o
terreiro e uma igreja pentecostal, onde ajuda a exorcizar exus! E não vê nisso
nenhuma contradição! O investigador de Vida Pregressa se vira em um Fusca!
Ninguém demonstra um respeito exagerado pelos policiais, que trabalham
pressionados pela falta de verbas. Sintomaticamente, em Informações sobre a
Vítima, após o assassinato de um investigador, um dos personagens pergunta:
– Onde é que nós estamos? A bandidagem não respeita mais a polícia?
Frase que dispensa comentários.
Também, não nego, é sintomático o desabrochar da ficção policial tão fortemente
aqui, em São Paulo. A inesquecível cadela Baleia de Vidas Secas surgiu na saga
dos migrantes nordestinos. A emocionante Ana Terra, de O Tempo e o Vento,
poderia ter sido criada em terras gaúchas. Quem melhor que Dona Flor para falar da
pimenta baiana? A nós, paulistanos, revelaram-se os policiais com investigadores
mal pagos, assassinatos, corrupção, gente entregue ao deus-dará. Sem querer ser
chato, reconheço: cada lugar tem a literatura que merece.
99
ANEXO II
CRÔNICA 2
CURSINHO PARA MOTORISTA
Por Walcyr Carrasco
Fui renovar minha carteira de motorista. Surpresa! Devido a uma lei mais ou menos
recente, eu deveria fazer um cursinho sobre trânsito durante quinze horas. Podia
optar por um exame direto, mas o que lembrava do assunto? Horrorizei-me.
Principalmente porque o intensivo começava às 8 da manhã, sábado e domingo.
Lamentei-me com um amigo:
– Que injustiça! Tenho carta há séculos!
– Olha, eu soube de um amigo de um primo do vizinho de uma tia de um
despachante que quebra o galho. Você renova sem fazer o curso.
Não gosto de certo tipo de coisa. Como reclamar contra a máquina do governo se na
primeira oportunidade...
– Vou fazer o curso – respondi, bocejando por antecipação.
Inscrevi-me. Ficava no Jabaquara. Ao chegar, cadastraram meu dedo indicador.
– Para quê?
– Na entrada e na saída das aulas, você confirma a digital. Para evitar fraudes.
100
Oh, céus! Teria de assistir às aulas! O curso começou. Minhas pestanas batiam mais
que leque de chinesa, para ficar acordado. O professor explicou sua história. De
origem indígena, saíra da tribo para estudar sociologia. Mais tarde, sua irmã e seu
sobrinho morreram atropelados por um motorista imprudente. Dedicou-se então ao
estudo do trânsito. Suspirei, pensando: "Nunca imaginei que alguém tivesse tal
vocação!".
A certa altura, ele perguntou:
– Alguém aqui nunca teve multas?
Duas senhoras ergueram as mãos. Dirigiam havia 25 anos. Eram do tipo que
navega calmamente no asfalto, enquanto rôo as unhas atrás. Lembrei-me de dois
amigos que se consideram melhores motoristas que eu. Ambos com a carta
suspensa, por excesso de multas. Justamente, o professor falava da confraria dos
que não acreditam em placas.
– As pessoas acham que podem negociar com o limite de velocidade – ele explicou.
– Mas placa é placa.
Dias antes, um dos sem-carta andava furioso. Esbravejava:
– Levei a multa a 40! O limite era 30, mas alguém anda a 30?
Por que tantos de nós não costumam acreditar nas leis? Não conheço ninguém
capaz de bater uma carteira. A maioria acha normal passar pelo vermelho ou entrar
na contramão. Outro amigo costuma dirigir após uma dúzia de cervejas, com o
argumento:
– Ooo aaalllcoooooooooooolll nãããooo meee afeeeta!
– Nesse caso, você deve ser estudado num laboratório! – respondo. – Pois está
sendo contra tudo o que a ciência já descobriu sobre bebida e coordenação motora.
Muita gente, como eu, cresce com a impressão de que o trânsito é uma guerra, na
qual quem anda devagar é perdedor. Correr, ultrapassar, dirigir com ferocidade é
sinônimo de macheza. Para muitas mulheres, de auto-afirmação feminina.
101
Apesar do sono, dos resmungos e dos bocejos, gostei de ter feito o curso. Achava
ser mais um espasmo burocrático para arrecadar dinheiro. Fiquei a favor. No
mínimo, tomei consciência de que leis são leis. Não foram feitas para eu fingir que
não existem.
Renovei a carta.
O único problema é que meus amigos criaram horror de carona comigo. Se a placa
diz 30, ando a 30. Se não pode virar, não viro. E assim por diante. Aos seus olhos, é
incompreensível. Quando um deles reclamou demais do meu estilo, reagi:
– Quero lembrar que eu tenho carta e você está suspenso.
– Isso não significa que você seja bom motorista! – retrucou.
– Não, de fato. Só significa que eu posso dirigir e você não.
Engatei a primeira e aumentei a velocidade para 40, como autorizava a placa,
enquanto ele rugia ao meu lado.
102
ANEXO III
CRÔNICA 3
LOUCAS POR UM BISTURI
Por Walcyr Carrasco
A mãe de um amigo já fez bem umas dez plásticas. Lifting completo, tirou bolsas,
puxou e repuxou. As orelhas foram para trás. A testa ficou mais alta. Outro dia
anunciou, feliz:
– Entrei no bisturi de novo! Desta vez, fiquei parecendo uma menininha!
Refleti: "Só se for Chuck, o brinquedo assassino". Eu acho que plástica vale a pena,
para dar uma aparência melhor. Mas nenhuma senhora de 64 se transforma em
uma garota. No caso, a mãe de meu amigo está com traços idênticos aos de um
pequinês. Olhos puxados, o nariz semelhante a uma cereja sobre o rosto. (Sim, ela
também mexeu na napa!) O nariz, aliás, é uma questão séria. Nos meus tempos de
repórter, certa vez entrevistei um cirurgião plástico que exibiu, orgulhosamente, uma
cabeça de gesso.
– Este é o nariz que ofereço a minhas clientes! – declarou.
Não importava se o rosto era estreito, largo, comprido ou minúsculo. Resultado:
cada cliente ficava parecendo uma bolacha com uma azeitona superposta. Uma vez
eu estava ao lado de uma grande conhecedora de moda em um desfile. Passou uma
modelo. Exclamei:
– Que linda!
103
– Mas veja! – garantiu minha acompanhante. – Fez plástica no nariz, com certeza. O
rosto perdeu as proporções. Isso pode prejudicar sua carreira.
Lembrei-me de Gisele Bündchen. Olha só o nariz da número 1!
Recentemente me dei conta de um fenômeno. Existem pessoas viciadas em
plástica. Uma amiga faz em média uma intervenção por mês. Já botou até maçãs no
rosto. Silicone nos lábios. Não faz muito tempo, apareceu em uma festa.
– Quem é aquele travesti? – perguntou alguém.
Pobres travestis, não mereciam a comparação. Pior: ela se aproximava dos
convidados louca por um elogio. Se ninguém abrisse a boca, puxava o assunto.
– Fiz uma plástica no mês passado. Não ficou ótima?
Todos botavam a taça de vinho nos lábios, rapidamente. Dizer o quê?
Algumas colocam tanto silicone nos seios que se arriscam a andar encurvadas para
agüentar o peso. Muitas contrabalançam botando no traseiro, para equilibrar. Eu não
me atreveria a acender um palito de fósforo perto delas. Podem pegar fogo!
Muita gente me pergunta por que alguns atores famosos somem da telinha. Pois
bem. É tanto puxa-daqui-e-dali que não podem mais fazer papel de pais, e muito
menos de filhos! Ganham idade indefinível.
Agora surgiu a bioplastia. É um método que desenha a estrutura de um rosto, por
exemplo, por meio de aplicações milimétricas de um produto. Um conhecido não
suportava o queixo pontudo. Saiu das sessões com o rosto quadrado. Exibiu-se
alguns meses. Agora chegou à conclusão de que está quadrado demais. Quer lixar.
Não se trata exatamente de lixar as unhas, mas o osso. Correu a outro profissional,
que advertiu:
– Há um problema na aplicação anterior. Tudo pode cair, e você ficará idêntico a um
buldogue.
Está à beira da loucura. O detalhe: sempre foi um rapaz muito bonito. Para que tanto
sofrimento? Agora, submete-se a novas aplicações para "derreter" o produto
104
anterior. Depois, é claro, colocará novamente. A qualquer momento seu rosto pode
se transformar em uma versão humana da Torre de Pisa!
Nada tenho, repito, contra as pessoas buscarem uma aparência melhor. O mundo
mudou. Foi-se o tempo das avozinhas que depois de viúvas botavam roupa escura e
não saíam mais de casa. As modernas querem namorar, ir a festas, viajar. Viver! É
correto cuidarem da aparência. Nem falo de quem tem um defeito. Mas plástica é
uma operação. Por menor que seja, exige anestesia, cuidados. E vira um problema
quando se transforma em vício.
105
ANEXO IV
CRÔNICA 4
A IDADE DAS PALAVRAS
Por Walcyr Carrasco
Já cansei de ver gente madura falando gíria para parecer jovem. O trágico é que, em
geral, a gíria é velha! Verbos, adjetivos e substantivos possuem maior permanência.
Gíria é volátil. Terrível ver uma senhora madura e plastificada dizendo:
– Eu sou prafrentex!
O termo foi usado lá pela década de 60 para dizer que alguém aceitava
comportamentos mais ousados, tipo viajar no fim de semana para a praia com um
grupo de amigos, o máximo de liberdade imaginável até então. É passado. Assim
como as variações para falar de homem bonito. Houve época em que era "pão", lá
pelos anos 80 virou "lasanha". Agora se usa gato, se não estou atrasado. Volta e
meia noto uma cinqüentona exclamar à passagem de algum atleta:
– Ai, que pão!
Esse é o mal das gírias. Marcam a juventude de cada um. O tempo passa. Fica
difícil mudar o modo de falar. Às vezes ainda ouço um "é uma brasa, mora", usado
por Roberto Carlos nos tempos do programa Jovem Guarda, início dos 60. Lembro
do sucesso de "boko moko", criado por uma marca de refrigerante para identificar
106
quem era cafona e não tomava a tal bebida. Caiu na boca do povo. Cafona vale? Ou
devo dizer "out", como na década de 90?
As palavras expressam sua época. Certa vez estava escrevendo uma novela
passada nos anos 20 e coloquei a expressão "vou tirar você do meu caderninho".
Meu pesquisador me orientou:
– Naquele tempo poucas pessoas tinham telefone em casa. Não se falava assim.
O tal "caderninho" correspondia à agenda telefônica. Só passou a ser comum
quando o aparelho se tornou mais popular.
Para escrever outra novela de época, passada no século XVIII, eu recorria ao
raciocínio puro e simples para definir o modo de falar. Descobri que "comer à tripa
forra" tinha a ver com o período da escravidão. O negro liberto era "forro". Deduzi
que significava comer à vontade.
Outro dia, vendo uma reportagem de televisão, observei uma família simples com o
telefone de teclas. Todo mundo tem. Até algum tempo atrás se discava o telefone.
Hoje se tecla um número.
Reconheço. Tenho saudade de certos termos. Lembro de meu irmão mais velho
dizendo "que carro jóia!". E "olha o broto!". Ou dos amigos nos anos 70, quando fiz
faculdade. Freqüente era ouvir "tou numas com ela", equivalente, guardadas
algumas proporções, ao "ficar" de hoje em dia.
Que adolescente aceitaria hoje ir a um "mingau dançante"? Vão para a balada, para
a "night". Aliás, a maioria foge de mingau e de qualquer delícia que engorde!
Muita gente odeia gíria. Alguns a consideram um dialeto capaz de estraçalhar a
língua. Esquecem-se de que, no seu tempo, também a usavam. Não é fácil
acompanhar sua evolução. Outro dia ouvi:
– Eu deletei aquele sujeito da minha vida.
É a versão mais atual para "tirei do meu caderninho". No computador, deletar é
eliminar. Apagar. Também se fala tranqüilamente:
107
– Eu estava casado, mas não estou mais.
Não tem nada a ver com casamento formal, necessariamente. Significa que o rapaz
em questão viveu um relacionamento forte. Possivelmente, nem moravam sob o
mesmo teto.
Eu me confundo: não sei se ainda se fala "hype" para indicar algo que no passado
foi "in". Ou que alguém é "fashion", para dizer que está "nos trinques" como nos
anos 80. Falar com um jeito antigo é pior do que botar calça boca-de-sino, ícone dos
anos 60.
Não há corte de cabelo, Botox ou plástica que resista. Gíria velha denuncia a idade
mais do que um festival de rugas!
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo