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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
CONDUTAS EXPLICATIVAS/JUSTIFICATIVAS NO DISCURSO DA
CRIANÇA EM JOGO DE FICÇÃO COM FANTOCHES
TEREZINHA DE JESUS COSTA
São Paulo
2005
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA E SEMIÓTICA
CONDUTAS EXPLICATIVAS/JUSTIFICATIVAS NO DISCURSO DA CRIANÇA
EM JOGO DE FICÇÃO COM FANTOCHES
Terezinha de Jesus Costa
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Lingüística do Departamento de Lingüística da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, como parte dos pré-requisitos,
para obtenção do título de Mestre em Lingüística.
Orientadora: Prof.ª Drª Lélia Erbolato Melo
São Paulo
2005
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A imaginação, como a inteligência ou a sensibilidade, ou é
cultivada, ou se atrofia. Pensamos que a imaginação de uma
criança deve ser alimentada, que existe uma pedagogia do
imaginário... . Seria preciso apenas desenvolvê-la.
(Jacqueline Held, 1980:46)
Ao meu filho, Lucas José da Costa, que me promove a
aprendizagem da complexa arte de renascer a cada dia.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho nasceu de uma paixão, paixão pelo ser humano e, em especial, pela
criança.
Poder entendê-la, saber que seu mundo está repleto de ricos conteúdos, outrora,
ignorados por mim, faz-me agradecer todas as pessoas que estiveram, direta ou
indiretamente, envolvidas neste processo de crescimento acadêmico e profissional:
À Profª Drª Lélia Erbolato Melo, pela orientação, incentivo, dedicação e respeito
oferecidos ao longo desses anos no curso de pós-graduação;
Às Professoras Doutoras Silvia Valeria Vieira e Ana Paulo Mac-Kay, pelas
sugestões e indicações que me ofereceram no momento do Exame de Qualificação;
À amiga Benedita Aparecida Costa dos Reis, pela sua presença em momentos
sempre importantes;
Às colegas de equipe do Grupo de Pesquisa em Psicolingüística, GPPL, pelas
contribuições teóricas apresentadas e discutidas em reuniões mensais;
À minha família, em especial minha mãe, Maria do Céu, e minha irmã, Maria de
Lourdes, pela ajuda incansável;
Às crianças, pela oportunidade de poder conhecê-las.
Deus abençoe a todos
RESUMO
Autores neopiagetianos como, por exemplo, Stambak et al. (1990), Verba (1999),
Gardner (1994), Flavell (1999), Astington (2003) não têm medido esforços para mostrar
o percurso e a importância do jogo simbólico para o desenvolvimento integral da
criança.
Nesta linha de raciocínio, o presente trabalho enfatiza o papel do jogo de ficção
(Stambak et al. e Verba) nas produções discursivas infantis (Veneziano e Hudelot,
2002), reiterando a tese da força motriz do imaginário no e para o desenvolvimento da
linguagem na criança.
Considerando, portanto, que é pela manifestação de suas ações, sentimentos e
emoções que o indivíduo atua sobre o outro, estamos admitindo que a linguagem
assume um papel de destaque no processo de comunicação, pois garante diferentes
operações intelectuais, e possibilita a criação de mundos e, conseqüentemente, de
perspectivas. É ainda por meio da linguagem que o pensamento se organiza, que a
criança se identifica como pessoa, argumenta, explica e/ou justifica, quando interage
com o meio em que vive. Logo, seu estudo não pode estar desvinculado de suas
condições de produção.
Com este propósito, e no quadro de uma abordagem funcional e interacional,
observamos as condutas explicativas e justificativas (CEJs), que aparecem durante o jogo
de ficção com fantoches, onde os espectadores da animação são a própria criança, o
boneco e o adulto, na construção do imaginário, na prática do “querer-fazer” e do “fazer-
fazer”.
Assim, os resultados apontam para um número significativo de CEJs motivado
pela linguagem e pelo prazer lúdico. O real e o imaginário aliam-se e criam um cenário
onde a criança conquista, forma e domina novos territórios, promovendo o seu
crescimento individual e coletivo.
Palavras-chave: linguagem, explicação, imaginação, ficção
ABSTRACT
Authors as Stambak et al. (1990), Verba (1999), Gardner (1994), Flavell (1999),
Astington (2003) they have not been measuring efforts to show the course and the
importance of the symbolic game for integral child development.
For this reason, the present work emphasizes the paper of the fiction game
(Stambak et al. and Verba) in the child discursive productions (Veneziano and Hudelot,
2002), reiterating the thesis of the imaginary force for the language development.
Considering it is for the manifestation of actions, feelings and emotions that the
person acts to the other, we are admitting that the language assumes a prominence paper
in the communication process because it guarantees different intellectual operations,
and it makes possible the creation of worlds and consequently perspectives. It is still
through the language that the thought is organized, that the child identifies as person,
she argues, she explains and/or she justifies, when she interacts with the environment
she lives. Therefore, the investigation cannot be disentailed of the production conditions.
With this purpose, and in the picture of a functional approach and interacional, we
observed the explanation and justification conducts (EJCs), that appear during the fiction
game with puppets, where the spectators of the animation are the own child, the puppet
and the adult in the imaginary construction.
The results appear for a significant number of EJCs motivate by the language and
by the pleasure to play. The real and the imaginary ally and they create a scenery where
the child conquers, she forms and she dominates new territories and she promote her
individual and collective growth.
Keywords: language, explanation, imagination, fiction
SUMÁRIO
Apresentação ................................................................................................................ 08
Introdução .....................................................................................................................09
Capítulo I – Os caminhos da dimensão simbólica e a linguagem na criança
1.1 A metarepresentação e o faz-de-conta......................................................................18
1.2 A utilização “informativa” da linguagem na criança: a conduta
explicativa/justificativa (CEJ).........................................................................................24
1.3 Emergência e efeitos da explicação/justificação na atividade lúdica .......................38
Capítulo II – Interação e Comunicação
2.1 O acordo tácito entre narrar e representar.................................................................44
2.2 Aspectos da conivência nas produções teatrais da criança: o espetáculo de
fantoche...........................................................................................................................54
Capítulo III – Origens e formação da imaginação
3.1 Considerações e implicações do brinquedo e da brincadeira para a educação
escolar..............................................................................................................................61
3.2 O papel do brinquedo e da brincadeira na socialização da criança..........................68
3.3 O jogo de ficção: uma ponte entre a realidade e a fantasia.......................................80
3.4 O fantoche no jogo teatral ........................................................................................86
Capítulo IV – Material e Método
4.1 A escolha dos sujeitos e do material..........................................................................92
4.2 Procedimentos adotados na coleta e transcrição dos dados......................................96
4.3 As categorias de análise ...........................................................................................99
Capítulo V – Análise e interpretação dos resultados................................................103
Conclusões.....................................................................................................................135
Bibliografia....................................................................................................................139
Anexo 1 – Normas para transcrição dos exemplos .......................................................145
Anexo 2 – Fantoche de saco de pipoca .........................................................................146
Anexo 3 – Elaboração de fantoches..............................................................................147
Anexo 4 – Dedoches .....................................................................................................148
APRESENTAÇÃO
A linguagem não é só importante apenas porque possibilita comunicação e
inserção social, mas também porque faz parte da constituição de diferentes operações
intelectuais; a linguagem pode criar mundos, perspectivas; é forma de ação, ela
informa, influencia, expressa subjetividade, cria laços.
Enfim, poderíamos tecer uma grande rede adjetivando a linguagem, pois é
através dela que podemos compreender a magnitude da comunicação, em particular da
criança.
Graduada em Letras, trabalhando com crianças e adolescentes, uma das minhas
maiores preocupações e indagações sempre foi a comunicação verbal: o que poderia
efetivamente contribuir para um processo de aquisição e desenvolvimento. O que
ampliaria o saber formal, presentes em livros e na cabeça do professor.
Na seqüência, ao ingressar no Programa de Pós-Graduação em Lingüística, área
de Psicolingüística, surgiu nosso interesse de, sob a orientação da Profª Lélia Erbolato
Melo, realizarmos um estudo sobre a conduta explicativa/justificativa em situação de
interação entre adulto-criança e criança-criança, durante o jogo de ficção com
fantoches pois, além de uma abordagem interacional, poderia contribuir também para a
compreensão de alguns caminhos norteadores do desenvolvimento cognitivo da
criança.
Paralelamente, estaríamos conhecendo um pouco mais a respeito do universo
infantil, rico por excelência e permeador na edificação de um bom cidadão.
Enfim, e parafraseando Fayga Ostrower (2004),
O homem cria, não apenas porque gosta, e sim porque
precisa; ele só pode crescer, enquanto ser humano,
coerentemente e ordenado, dando forma, criando.
INTRODUÇÃO
[...] a linguagem enquanto discurso é interação, é um modo de
produção social; ela não é neutra, inocente (na medida que está
engajada numa intencionalidade). Como elemento de mediação
necessária entre o homem e sua realidade e como forma de engajá-
lo na própria realidade, a linguagem é lugar de conflito, de confronto
ideológico,
não podendo ser estudada fora da sociedade uma vez
que os processos que a constituem são histórico-sociais
Helena
Brandão
A linguagem é lugar de desenvolvimento cognitivo e comunicativo, em
especial, na criança, na medida em que interage com seus interlocutores e
estabelece relações interindividuais, que toma posse dos significados e os
aplica a seu universo de conhecimento sobre o mundo, a seu modo particular
de recortar sua experiência.
Gardner (1994) comenta que a aprendizagem de uma primeira
linguagem é o comportamento mais impressionante de nossa espécie cujo
sistema simbólico, que domina o período inicial escolar da criança – onde é
chamada pelo autor de capacidade simbólica, favorece o conhecimento, o
desenvolvimento e evoca o prazer, e acrescenta que é uma aquisição
universal da primeira infância, particularmente importante durante o período
em que a aquisição do alfabeto e dos conceitos formais está em jogo.
Esclarece ainda que:
[...] sejam quais forem os cerceamentos que prevaleçam com
respeito à linguagem, elas irão afetar largos segmentos da
educação formal, abrangendo desde os tipos de significados que os
estudantes atribuem a novos termos, até os modos nos quais eles
dominam uma linguagem matemático-formal ou uma segunda
linguagem natural (op. cit.: 60).
Vygotsky (1991) pontua que a linguagem se desenvolve graças à
interação do sujeito com seu meio. E, é por meio e com a linguagem que o
pensamento se organiza, que a criança se identifica como pessoa, argumenta,
explica, e/ou justifica.
Neste trabalho, serão observadas as condutas de explicação /
justificação que aparecem em situações de interação entre adulto/ criança e
criança/ criança(s), durante o jogo de ficção com fantoches.
Os espectadores da animação, aqui, são a própria criança, o boneco e
o adulto, na construção do imaginário, do faz-de-conta, na prática do “querer-
fazer” e do “fazer-fazer”. Neste sentido, para melhor entender o
comportamento da criança pré-escolar, bem como a importância de sua
competência comunicativa e fase simbólica, retomaremos Piaget (1999),
Vygotsky (1991), Wallon (1989), Astington (2003), Veneziano e Hudelot (2002),
entre outros, quando estes autores tratam do comportamento comunicativo e
psicolingüístico da criança.
Levando-se em conta que o desenvolvimento da criança depende do mundo em
que vive, para Piaget (op. cit.) esse desenvolvimento passa por fases, a saber: sensório-
motora, de 0 a 18/24 meses, que precede a linguagem; pré-operatória, de 1 ano e meio/2
anos a 7/8, fase das representações, dos símbolos; operatório-concreta, de 7/8 a 11/12
anos, estágio da construção da lógica; e a operatório-formal, de 11/12 anos em diante.
As idades podem variar de uma sociedade a outra, dependendo de um equilíbrio de
fatores tais como a hereditariedade, experiência física, transmissão social.
Aqui, particularmente o que importa, para nós, é a fase das representações dos
símbolos, do faz-de-conta, que envolvem uma semelhança entre um objeto qualquer
presente, ou significante, e um objeto ausente/ representado cujo significado é fonte de
prazer para a criança que, pela ajuda do imaginário, os transformam em signos
lingüísticos.
Gardner (op. cit) afirma, ainda, que se o título “sensório-motor” reflete os
primeiros dezoito meses de vida, o título “simbólico” é tão adequado quanto àquele para
cobrir os anos pré-escolares restantes – diga-se o período dos dois aos seis ou sete anos
de idade. Durante este período, todas as crianças normais chegam natural e prontamente
a dominar toda uma gama de símbolos e sistemas de símbolos.
Elas aprendem a falar e compreender a linguagem natural,usando-a
não apenas para fazer pedidos ou obedecer ordens, mas para contar
histórias e brincadeiras, tagarelar, insultar, e para ampliar sua compreensão
do mundo físico e social. Na época de sua entrada na escola, crianças de
cinco, seis ou sete anos de idade são criaturas plenamente simbólicas
(Gardner, op.cit.: 53).
Segundo Lier (1998), o estágio simbólico coincide, também, com o estágio
egocêntrico: a criança prefere trabalhar, produzir de forma individual, porque ainda tem
dificuldade de interagir com o outro, em uma situação de discurso. Ela não se preocupa
se está sendo clara, audível, comunicando-se. Fala por meio de frases curtas, usa pausas
prolongadas, usa palavras de outra criança, imita ações, preenche espaços gramaticais
na construção de suas narrativas, inserindo experiências pessoais trazidas por
lembranças de eventos passados.
Por isso, observando-se a fala egocêntrica e a fase simbólica, compreendemos
melhor o discurso da criança.
Galvão (2002) lembra que a criança, na fase pré-escolar, tem de fabular, e que
este mecanismo está próximo da simples digressão. A criança usa a fabulação para
explicar. Isto está misturado com os seus desejos, suas reminiscências, sua rotina. Suas
explicações são a justificação e a ilustração, que podem operar como fonte
argumentativa no discurso, muitas vezes usadas para persuadir.
Assim, nos discursos produzidos pelas crianças entre 4 anos e 5 anos de idade,
durante o jogo de ficção com fantoches, é necessário estudarmos também a questão da
'conivência' (Salazar Orvig, s/d).
Contudo, introduzir a teatralização no ato de contar histórias, criadas ou
reproduzidas pelas crianças, constitui parte funcional do ato de comunicação. Neste
sentido, como os recursos não-verbais são os ingredientes da dramaturgia e, por
extensão, da atividade narrativa, não poderiam estar ausentes nesta atividade lúdica,
uma vez que a intenção da criança deverá ser observada, ou seja: reconhecer o ponto de
vista da criança, tentar compreender o que ela pensa e como ela chega a uma conclusão,
em que ela crê.
Nesta direção, Oliveira (1994) aponta que a interação verbal é uma atividade que
ocorre em três níveis de comportamento: verbal (discurso, fala), paraverbal (gestos
sonoros: entonação, pausa...), e não-verbal (gestos), e fazem parte da teatralização no
ato de produção.
A autora afirma ainda que ninguém fala sem demonstrar uma atitude em relação
à mensagem e à atividade de fala. E, com efeito, até mesmo o ato de se ficar em silêncio,
dentro de um certo quadro de interação, comunica alguma coisa.
As abordagens interpretativas dos atos comunicativos objetivam não somente
distinguir o significado comunicativo do significado lingüístico, mas também enfatizar a
funcionalidade desses aspectos no processo interativo.
Para nós, os elementos comunicativos não podem deixar de ser levados em
conta, na medida em que estamos trabalhando com fantoches, brinquedo com poder de
usar a comunicação não-verbal pela sua excelência teatral e de excitar, nas crianças, a
produção discursiva.
Neste quadro de interação, a explicação, que surge no interior do jogo com
fantoche, caracteriza-se pela intenção de fazer alguém compreender alguma coisa
(fatos, fenômenos, ações). O objetivo desta explicação é de: (a) solucionar um
problema de compreensão; (b) explicitar uma evidência; (c) esclarecer um paradoxo;
(d) desvendar um enigma.
A literatura, freqüentemente, aponta a existência de pergunta implícita ou
explícita como condição inicial da explicação. Além disso, para planificar uma
explicação exige-se competência comunicativa; lingüística que, no caso da criança, é
empírica; discursiva-textual e competência conversacional.
Em resumo, explicar não é simplesmente dizer o que se sabe, mas saber dizer
de forma a fazer-se compreender (Passegi, 1998).
Halté (1988) lembra que explicar é compreender e fazer compreender na e pela
linguagem, que o discurso explicativo nasce de um obstáculo comunicacional de ordem
cognitiva e/ou linguageira, a ser superado em situação de interação. Este espaço
discursivo é, segundo ele, sustentado por dois eixos: o dos modelos linguageiros e de
intelecção, e o de interlocução, que geram uma diversidade de discursos explicativos,
tendo como pólos de referência o discurso científico (ou dos “saberes”), que privilegia o
eixo dos modelos, e o microdiscurso explicativo cotidiano, que se apóia na interlocução.
Este último nos interessa particularmente pelo que concerne à sua aplicabilidade e
estudos com crianças de pré-escola durante o jogo de ficção.
Segundo Vygotsky (1982), no jogo de faz-de-conta, a linguagem é sustentada
pelas criações no plano do imaginário.
Paralelamente, Ostrower (1987: 20-21) coloca que a fala é um modo de
concretizarmos a imaginação, ou seja, a imaginação é aspecto inerente ao próprio
desenvolvimento da linguagem, do discurso e da conduta humana.
[...] muito do que imaginamos é verbal, ou torna-se verbal, traduz-
se em nosso consciente por meio de palavras. Pensamos através da fala
silenciosa. (...) cada um de nós pensa imagina dentro dos termos de sua
língua, isto é, dentro de sua cultura. Usamos palavras. Elas servem de
mediador entre nosso consciente e o mundo. Quando ditas, as coisas se
tornam presentes para nós.
Assim, em se tratando de criança, na presente pesquisa, o foco de nosso
interesse é a explicação que brota da interlocução, em situação de produção teatral com
fantoches.
Diante das justificativas apresentadas, levantamos as seguintes hipóteses, que
serão confirmadas, na medida do possível, ao longo do desenvolvimento do trabalho:
1) a linguagem, enquanto fonte de informação, meio de expressão e forma de
ação, favorece a produção de explicações/justificações;
2) a criança utiliza a explicação para justificar e/ou argumentar com a intenção
de promover uma situação favorável para ela, de domínio, de persuasão, no momento
da troca de conhecimentos;
3) o jogo de ficção, com o intercâmbio social de papéis, promove o imaginário e
a comunicação, impulsionando o desenvolvimento da linguagem, no que se refere à
cognição.
A seguir, e dentro do contexto apresentado, formulamos e respondemos a
algumas questões.
1) Por que e quando as crianças explicam?
2) Como as crianças produzem suas explicações no jogo de ficção, isto é, qual é
o seu potencial pragmático?
3) A interação em situação lúdica, no jogo de ficção com fantoches, favorece o
desenvolvimento e/ou a produção discursiva?
Considerando as questões levantadas, nosso propósito é de realizar um estudo
transversal em torno das condutas explicativas/justificativas que permeiam o discurso
da criança pré-escolar entre 04 e 05 anos de idade, de ambos os sexos, observando seu
comportamento verbal e não-verbal na metarepresentação e/ou no jogo de faz-de-conta
com fantoches.
Para tanto, temos em vista três objetivos a serem atingidos em nosso estudo:
a) verificar os momentos em que a criança sente necessidade de, durante os
eventos de jogo com fantoches, conceber e formular um explanans, ou seja :
componente que fornece a causa, a razão ou a motivação do explanandum ;
b) observar a dimensão pragmática das condutas de explicação/justificação, quer
dizer, a maneira como o sujeito falante fornece explicações para o outro, visando
observar sua competência comunicativa e cognitiva, sejam elas produções espontâneas,
ou resultantes da solicitação do adulto;
c) observar os momentos em que a brincadeira e a conivência favorecem a
produção teatral da criança, em contexto verbal e/ou não-verbal.
Diante do exposto, pretendemos apresentar nosso trabalho através de um passeio
pela imaginação e pelos discursos produzidos pela criança durante o jogo de faz-de-
conta com fantoches.
Assim, no primeiro capítulo, apresentamos os pressupostos teóricos que
norteiam o jogo simbólico da criança na atividade lúdica , bem como as CEJs que
brotam durante o processo discursivo.
No segundo capítulo, a intenção é apresentar algumas teorias que servem de
base para tratar dos aspectos lingüísticos e discursivos que estão intrinsecamente
relacionadas ao processo de interação e comunicação da criança.
A seguir, no terceiro capítulo, o propósito é mostrar algumas considerações
sobre a imaginação e a realidade, traçando um paralelo com o brinquedo e a brincadeira
presentes no desenvolvimento cognitivo e social da criança.
No quarto capítulo, são descritos os procedimentos metodológicos adotados,
no que diz respeito à escolha dos sujeitos e ao material utilizado e os fios condutores de
análise.
No quinto capítulo, a atenção se volta para a análise dos dados e para a
discussão dos resultados obtidos.
Enfim, nas conclusões, retomamos os pontos mais relevantes do presente estudo,
ressaltando a importância de se realizar novos trabalhos no que se refere à linguagem da
criança, em especial as CEJs, e ao seu relacionamento intrínseco com a brincadeira, com
o brinquedo, com vistas ao fornecimento de possíveis contribuições ao processo de
ensino/aprendizagem de uma língua e ao seu próprio desenvolvimento.
CAPÍTULO I
OS CAMINHOS DA DIMENSÃO SIMBÓLICA E A LINGUAGEM NA
CRIANÇA
1.1 A metarepresentação e o faz-de-conta
A linguagem não é importante apenas porque possibilita comunicação e inserção
social, mas também porque faz parte da constituição de diferentes operações intelectuais
e da memória. E, é na expressão “pela linguagem” que o pensamento se organiza e toma
corpo, auxiliando a criança a identificar-se como pessoa.
Astington (2003), afirma que os bebês e as crianças, em idade pré-escolar, são,
em primeiro lugar, criaturas muito diferentes, em particular, na maneira em que elas
compreendem o pensamento. Os bebês são perfeitamente capazes de pensar as coisas
que estão ao seu redor, pensar a realidade; mas, em contrapartida, são incapazes de
pensar outras realidades possíveis ou outros universos hipotéticos.
Uma mudança fundamental se produz em direção da metade do segundo ano,
quando começam a pensar alternativas para a realidade. Eles não são, então, mais
limitados a pensar a respeito do seu mundo sob a forma em que lhes é apresentado. Eles
podem igualmente pensar em situações ausentes ou hipotéticas.
É nesse momento que se vê a que ponto elas são capazes de criar os
mundos possíveis ou imaginários, capacidade que se manifesta por volta da
idade de vinte e oito meses e que se desenvolve de maneira considerável ao
longo dos anos seguintes. Crianças de dois anos são já capazes de se iniciar
nos cenários fictícios mais complexos, diz Astington (op. cit).
Entre três e quatro anos de idade, esses jogos em que as crianças fazem de
conta tornam-se mais e mais complexos e criativos e podem ser a essência de seus
jogos. As crianças representam papéis e cenários complexos e os situam em seus
lugares imaginários. As crianças de dois anos de idade também podem assim jogar e,
de certo modo, elas estão freqüentemente acompanhadas de outras de mais idade. O
adulto também pode ajudar e participar na construção do simbólico.
A observação dos jogos e as propostas das crianças, na visão de todos essas
circunstâncias, têm sido confirmadas por trabalhos experimentais realizados
recentemente por Paul Harris e Robert Kavanaugh (apud Astington: 52). Os autores
puderam controlar as situações, demonstraram que as crianças de dois anos de idade
compreendem muito bem que uma pessoa faz de conta. Se o experimentador faz-de-
conta pegar um cubo amarelo por uma banana e um cubo vermelho por um bolo, e diz
à criança de dois anos de idade que o porquinho quis o bolo, ou que o pato quis uma
banana, a criança dá aos animais de brinquedo os cubos correspondentes que ela tenha
na pilha de cubos.
Piaget (1978) confirma que fazer de conta mostra o desenvolvimento da
faculdade de representação simbólica da criança, quer dizer, de sua atitude em utilizar
uma coisa no lugar de outra. Os primeiros objetos que uma criança pequena utiliza
nesse tipo de jogo, segundo o autor, são os símbolos pessoais. Assim, primeiro, as
crianças jogam sozinhas, o faz-de-conta, mais tarde, o jogo torna-se social e os
símbolos são partilhados.
Alan Leslie (apud Astington: 56) sustenta o contrário: desde cedo, quando as
crianças começam a fazer de conta, elas são capazes de compreender que os outros
fazem de conta. O que é importante nesta primeira manifestação, segundo Leslie (op.
cit.), diz respeito ao primeiro signo claro da capacidade das crianças de compreender
os estados mentais de uma outra pessoa. Leslie (op. cit.) pretende explicar como as
crianças muito pequenas adquirem essa compreensão. Ele se pergunta por que as
crianças de dois anos de idade não estão íntimas para esta simulação. Elas estão numa
idade em que começam somente descobrir o mundo e o sentido das palavras e poderia
se pensar que o fato de fazer de conta introduz uma distorção no seu universo. Ele nos
convida, por exemplo, a observar uma criança de dois anos de idade que olha sua mãe
falando no telefone. A criança não compreende para que serve e nem como funciona,
mas ela acumula um saber que servirá para construir esta compreensão. Em seguida, a
mãe faz-de-conta que toma uma banana como telefone. Leslie se pergunta o que
aconteceria se a criança tratasse esta informação tão seriamente, fato que poderia lhe
sugerir estranhas idéias e conferir-lhe perturbações graves. A mãe entrega a banana à
criança dizendo: “toma, pega o telefone”. Não é, então, a aprendizagem da linguagem
que é perigosa? Leslie propõe uma explicação: o cérebro conteria um mecanismo
inato bem particular, que ele denomina, “módulo da teoria do espírito” e que permite a
criança isolar essas simulações do mundo real.
Nossos sistemas perceptuais e cognitivos são evoluídos para nos permitir
formar as representações corretas, quer dizer, as crenças exatas sobre o mundo que
nos rodeia: bastante fácil de os formular, extremamente difíceis de descrever e de
explicar.
O sistema cognitivo forma representações primárias desde cedo (um bebê é
capaz de ver a banana amarela e curva). Mas, nós não temos somente as
representações primárias, as crenças sobre o mundo: nós temos também as crenças
sobre nossas próprias crenças e sobre as dos outros (e sobre as esperanças, medos,
desejos, intenções e as simulações). As crenças, o que Leslie chama de representações
secundárias, diferem sensivelmente das representações primárias, pois as crenças são
opacas, elas não são submissas à prova da realidade. Contrariamente às
representações primárias, elas não implicam nem verdade, nem existência. Para Leslie,
o módulo da teoria do espírito é precisamente o mecanismo cognitivo que realiza o
encaixe do que é real e do que é faz-de-conta.
Uma vez incluso desta forma, a representação primária é isolada da realidade,
e ela não é nem verdadeira nem falsa.
Leslie afirma que os jogos em que a criança faz de conta são as primeiras
manifestações que esse sistema está operando. Eles permitem formar as
representações secundárias do tipo: “Jean faz de conta que é papai” ou “ eu faço de
conta como se esta banana fosse um telefone” sem que o sistema cognitivo da criança
confunda para tanto as prerrogativas dos pequenos meninos e as dos pais, nem as
bananas com o telefone. Eles “olham entendem e sorriem”. Neste sentido, Piaget
enfatiza que os gestos exagerados ou a voz um pouco forçada que nós adotamos são
igualmente os sinais sociais para assinalar que nós estamos fazendo de conta, mas para
Leslie, o mecanismo cognitivo subjacente é inato. Mais tarde, ele permitirá formar
outras representações secundárias utilizando, por exemplo, o verbo “pensar”. Assim:
“eu penso que é uma mensagem”, ”você pensa que não sou eu”. Leslie (op. cit.)
considera que se trata de metarepresentações. Ele utiliza o prefixo meta para indicar
sua natureza reflexiva: trata-se de representações secundárias de representações
primárias.
Para Astington (op. cit.), esta questão é extremamente importante, pois as
crianças de dois anos de idade são incapazes de compreender uma representação
errônea, mas são capazes de compreender que se pode fazer de conta.
Se as crianças pequenas dispõem de uma compreensão representacional do que
significa fazer de conta, pode-se dizer que sejam igualmente capazes de compreender
representações errôneas, o que requer igualmente uma compreensão representacional.
Caso elas não consigam, antes da idade de quatro anos, não se deveria pensar em
compreensão metarepresentacional antes desta idade.
Contudo, o autor coloca que a representação tem duas significações: uma
representação é uma entidade mental, como uma crença, mas ela é também atividade
do espírito quando forma as crenças, e outros estados mentais, ou seja: no sentido dado
por Leslie, as metarepresentações, são as representações das entidades
representacionais, como as crenças em propósito das crenças.
No sentido dado por Perner (apud Astington: 62), a metarepresentação é uma
compreensão da atividade representacional, não muito sobre a maneira de um
neurofisiologista, mas da maneira que a criança possa considerar os estados mentais
como das representações.
Harris e Kavanaugh (apud Astington, op. cit.: 62) nos propõem uma outra
direção. Eles estão de acordo com Leslie quando diz que a criança deve ajustar seus
atos ao fingir de faz-de-conta para a outra pessoa, e não ao que ela fez efetivamente.
Mas, eles não estão de acordo acerca de que as crianças compreendem os estados
mentais do outro. Eles estimam que a criança reconheceria “uma forma de ação
distinta e não uma atitude mental distinta, própria à simulação”. Poderia ser possível
que as crianças de dois anos de idade pensem que o faz-de-conta é uma forma
particular de atividade, sem ter a questão da atividade mental envolvida, que se
tratasse de representações, de situações imaginadas ou de qualquer outra coisa. Harris
e Kavanaugh (op. cit.) propõem um modelo de que compreender que o outro faz de
conta é análogo a compreender uma história.
Nos dois casos, a compreensão é uma construção que se repousa sobre um
saber geral, sobre uma referência ao contexto imediato, e de sua referência aos
episódios anteriores do jogo ou da história. Eles pensam que a criança “fixa”
mentalmente os dados do jogo, por exemplo: o cubo é um colchonete. São, portanto
pequenos ícones que são afixados à medida que o jogo se desenvolve e o colchonete
será molhado se vertemos o chá sobre ele. Esses ícones são decifrados quando uma
ação é necessária e que, por exemplo, o colchonete deve estar seco. A questão mais
importante é: o que é que as crianças consideram, esses ícones pertencem ao mundo
real ou ao espírito? Dito de outra maneira, pensam que se um estranho surgiu durante
o desenrolar do jogo, ele saberá o que está acontecendo (que o cubo, por exemplo, é
um colchonete?) e poderá participar do jogo?
Para Piaget (1999), a função simbólica implica em representação, e a criança
torna-se capaz de representar um significado (objeto ou acontecimento) através de um
significante único e diferenciado e evocar os significados graças aos significantes. A
linguagem está subordinada à função simbólica. Com o aparecimento da linguagem
observa-se mudança nas condutas. Tais modificações na ação levam a transformação da
inteligência sensório-motora prática em pensamento propriamente dito influenciado pela
linguagem e pela socialização, pois a troca e a comunicação entre os indivíduos se
intensificam. Com a linguagem, a criança é capaz de reconstituir suas ações passadas
sob forma de narrativas e de antecipar suas ações futuras pela representação verbal.
Com a formação do símbolo na criança, a ação é considerada evidência do
egocentrismo de pensamento. Na situação de brincadeira é que aparecem as ocorrências
de fala egocêntrica. Dessa forma, é o jogo simbólico e não mais a linguagem que o autor
enfatiza o egocentrismo da criança. O jogo é uma tendência geral do comportamento
das crianças.
A linguagem tem, portanto, o papel de instrumento expressivo do pensamento, a
origem do pensamento não se encontra na linguagem e sim, na função simbólica. Para o
autor é a ação que é estruturante do pensamento, pois as ações precedem a linguagem e
antes da linguagem as ações se coordenam. Pensamento e linguagem participam de um
processo mais geral que consiste na construção da função simbólica.
Como quer que seja, desde uma idade muito precoce, as crianças se lançam
com prazer em jogos deste gênero, e podem-se manifestar com uma certa
compreensão. Elas tornam-se conscientes do que é real e do que é simulado. Elas
sabem que o tecido não é uma orelha, que a banana não é um telefone. Elas são
capazes de separar o que é simulado do que é real. Elas não confundem as coisas e os
pensamentos.
Assim, conhecendo, de forma não exaustiva, alguns aspectos da trama que
envolve o comportamento simbólico da criança, veremos, a seguir, condutas
explicativas/justificativas em um quadro de comunicação
1.2 A utilização “informativa” da linguagem na criança: conduta
explicativa/justificativa (CEJ)
Nossa pesquisa abordará pontos de vista e trabalhos de alguns autores acerca do
explicativo, no quadro de uma abordagem funcional e interacional, a fim de identificá-lo
nas produções orais de crianças de pré-escola, assinalando, também, suas marcas
lingüísticas.
Paralelamente, verificaremos a explicação como movimento discursivo,
apontando a argumentação, a demonstração de saberes, uma vez que o sentido da
explicação pode ser visto em duas dimensões: uma, interacional, que está ligada à
comunicação, pois só funciona dentro de um contexto; a outra, cognitiva, que está
ligada à racionalidade, ao “saber-fazer” (Borel, 1981:25-26).
A respeito da comunicação verbal, Halté (1988) afirma que é uma interação
subjetiva circunstancial, sócio-culturalmente situada, e situante pelos próprios
protagonistas que integram, em diferentes graus, com marca comum de simbolização
que a mediatiza e a orienta.
A competência de comunicação - termo entendido aqui como integrador do
conjunto de competências lingüísticas, textuais, discursivas classicamente marcadas,
mas também das competências culturais, sociais, ideológicas... se forma geneticamente,
ou seja: nasce no desenrolar da história de cada indivíduo.
Sabe-se que os elementos situacionais, contextuais, o espaço institucional, o
momento, a circunstância social, o número de participantes..., têm importância decisiva
sobre a ocorrência do que pode ser dito ou feito em uma ocasião determinada e
determinam uma situação favorável para o discurso (Halté, op. cit.).
Assim sendo, entendemos que o discurso explicativo extrapola o lingüístico e
tem também na comunicação não-verbal seu alicerce para a sua construção.
O discurso explicativo constitui um gênero de discurso, que surge diante da
interação entre os interlocutores, e que mantêm relação com outros gêneros. Para
Bakhtin, haverá tantos gêneros de discurso quanto atividades humanas. Deste ponto de
vista, os gêneros se caracterizam por aquilo que se faz com a linguagem: mostrar,
descrever, explicar (Melo, in Beth Brait, 1997: 190).
Halté (1988), explica que a comunicação comum, a fala, o discurso constitui
uma das formas possíveis de mediação da interação. Apoiando-se em um código verbal
feito de unidades lingüísticas, a fala, mais eficaz para certos objetivos que outras formas
de comunicação, é utilizada para orientar a interação e de acordo com os objetivos dos
protagonistas. Neste quadro, o Discurso Explicativo (DE) surge quando um
disfuncionamento ligado à compreensão de um fenômeno qualquer aparece na interação
e a perturba. Então, a interação, engajada com seus próprios objetos e jogos (riscos), é
suspensa. O DE toma por objeto novo o fenômeno que formou o obstáculo - de
qualquer natureza que seja – e põe em jogo o restabelecimento da interação primeira.
Por esta razão, pode-se qualificar de “metacomunicacional” pois toma por objeto um
fenômeno de comunicação, e de metafuncional, pois toma por jogo (risco) a
funcionalidade primeira da interação.
Enfim, DE trata o obstáculo em questão, de maneira objetiva, visando instaurar
(ou restaurar) uma compreensão falha. Distingue-se por este traço, da argumentação -
que visa convencer que é necessário mudar de crenças – e da informação – que se
contenta em propor os dados.
No que se refere à argumentação, por sua vez, a distinção nem sempre é tão
simples. Na argumentação, o enunciado conduz o interlocutor em direção a uma ou
mais conclusões possíveis; isto quer dizer que, se o enunciado não leva a uma conclusão,
então não se trata de um argumento.
De acordo com Brandt (1988), os argumentos são as razões explicitas, uma
espécie de prova dada pelas pessoas, inclusive pelas crianças que estão sempre tentando
convencer o adulto ou outra criança, explicitando aquilo que as impulsionaram a optar
por uma coisa em detrimento de outra. Essa necessidade de justificar está ligada ao fato
de que a decisão é tomada diante de outras pessoas, precisa ser esclarecida, justificada,
para obter a adesão do outro.
Esta idéia, de certo modo, retoma a proposta de Perelman (1997), segundo a qual
se está no campo da argumentação quando se indicam razões em favor da aceitação ou
da recusa de uma prova demonstrativa (tese). Para o autor, trata-se de falar bem com o
objetivo de persuadir e convencer – obter a adesão – um auditório que esteja disposto,
conivente a escutar.
A título de curiosidade, Piaget identificou que, na fase pré-escolar, a criança
sente necessidade de estar se justificando a qualquer preço:
[...] há portanto na imaginação infantil, uma capacidade surpreendente de
responder a todas as questões por uma hipótese ou uma razão inesperada
que afasta todas as dificuldades (...), há uma exuberância de fabulações nas
justificativas das crianças
(Piaget, 1999:186).
Poderíamos inferir que nestes momentos a criança também procuraria
convencer seu interlocutor para obter adesão, confirmação para algum fato de seu
interesse.
O DE, em suma, forma uma rede (trama) uma espécie de parênteses em uma
interação em curso. Dada sua inserção no fluxo comunicacional e a sua função, o DE,
mais especificamente talvez que outros discursos, faz-se de objeto de negociação entre
os protagonistas. Supõe tanto sobre os turnos de fala, os temas (objetos) e a maneira de
os tratar, que sobre a oportunidade mesma do DE: em virtude das leis de conversação,
não se suspende impunemente uma interação em curso, arriscando a digressão e a
impertinência comunicacional. Concretamente, o locutor controla a boa interpretação de
seus dizeres e, segundo a natureza das retroações, a qualidade de seu cálculo, antecipa
um obstáculo possível de seu alocutor ou responde a suas solicitações.
Em suma, a função explicativa de um discurso não é inerente a sua forma, e o
discurso explicativo não forma necessariamente o todo de um discurso: “Um discurso
explicativo”, diz Borel (1981) não é uma realidade tomada isoladamente, quer dizer,
fora de seu contexto, de seu intercâmbio com outros discursos, da situação que o
determina e ao qual ele tem seus efeitos.
Tal qual a narração, pode servir a uma intenção, um objetivo, uma visão...
explicativa.
Logo, como sugere Halté (1988:3), explicar é compreender e fazer compreender
na e pela linguagem, e considera que o discurso explicativo nasce de um obstáculo
comunicacional de ordem cognitiva e/ou linguageira e visa superar este obstáculo.
De um modo geral, a explicação caracteriza-se pela intenção de fazer alguém
compreender fatos, fenômenos ou noções, com vistas a solucionar um problema de
compreensão, explicitar uma evidência, esclarecer um paradoxo ou desvendar um
enigma. Daí a existência de uma pergunta implícita ou explícita, como condição inicial
da explicação (Coltier, 1986).
Além destas considerações a cerca do DE, gostaríamos de definir a explicação
do ponto de vista funcional. Trata-se do processo de interação com o investigador cujo
objetivo é o “fazer-fazer”, ou seja: através de perguntas explícitas do investigador,
conduzir a criança a uma explicação, permitindo que ela se mostre em relação aos seus
saberes psicossociais, psicolingüísticos, lingüísticos etc., sendo esta, como já visto
anteriormente, outra faceta do discurso explicativo, como também promover a interação
entre os indivíduos, sustentando a comunicação através da tutela do investigador e da
conivência da criança.
Como nosso corpus foi obtido a partir do jogo com fantoches, e precisamos dos
movimentos discursivos, optamos, então, por usar dois termos que facilitarão a
condução de nossa pesquisa e análise: explanandum e explanan (Veneziano: 1990;
Veneziano e Hudelot: 2002): este é o que explica; aquele é o que deve ser explicado.
Tanto no explanandum quanto no explanan, pretendemos observar a comunicação
verbal e a comunicação não-verbal, simultaneamente com a conivência.
Por este motivo, focaremos, mais de perto, o trabalho recente desses autores a
respeito das condutas de explicação e justificação em crianças pequenas, pois nos
mostram a utilização da linguagem de tipo informativa na produção de
justificativas/explicações, delimitando teoricamente o quadro do fenômeno explicativo,
e correlacionando-o ao aspecto pragmático com ênfase na situação interacional.
Os autores acreditam que locutores competentes utilizam a linguagem para falar
daquilo que não está evidente para o interlocutor, apropriando-se de conhecimentos
pragmáticos implícitos na enunciação e expressos de forma mais informativa. Por
exemplo, eles a utilizam para falar de acontecimentos passados e futuros, para ligar
acontecimentos entre si, expressar suas apreciações e seus pontos de vista acerca das
situações, fazer conjeturas, hipóteses ou ainda para falar de situações imaginárias.
Ao contrário, a criança pequena, quando na aprendizagem de uma língua, e seu
parceiro adulto tendem a falar do que está presente e até mesmo dentro de seu centro de
atenção. Quando a criança começa a utilizar a linguagem de maneira mais informativa,
deixando sua produção comunicativamente interessante e captando assim uma de suas
funções pragmáticas essenciais, afirmam Veneziano e Hudelot (op. cit)
O estudo do desenvolvimento destas utilizações da linguagem é interessante para
compreender como se instaura este conhecimento pragmático de base.
No entanto, é pertinente fazer algumas considerações sobre condutas
comunicativas e a compreensão implícita da mente.
A teoria da mente propõe-se a estudar o estado do conhecimento que a criança
possui do “mental” de si mesma e do outro, estabelecendo em que medida o sujeito
compreende que estados mentais existem (como intenções, vontade, crenças e
conhecimentos) e que influenciam os comportamentos dos indivíduos.
Veneziano & Hudelot (op. cit.) apontam que este tema tem sido investigado pela
psicologia do desenvolvimento. E, estudos diversos nesta área sugerem que por volta de
4 – 5 anos de idade, as crianças podem imaginar a ação do outro em função de seu
estado de conhecimento e não de seu estado de mundo e se apresentam com vertentes
diferentes: a) alguns estudos procuram índices de uma ação explicita dos estados
mentais do outro na utilização de termos que expressem estados internos; b) outros
estudos observam os comportamentos comunicativos das crianças que servem de índice
para compreender se elas podem considerar estados internos do interlocutor; ainda c)
alguns trabalhos procuram índices da ação implícita dos estados internos do outro na
utilização da linguagem em situações comunicativas espontâneas, estudando sua
mudança evolutiva e/ou comparando os comportamentos da criança em situações de
contraste. Vários estudos mostram que as crianças pequenas (abaixo dos três anos)
podem adaptar a forma e o conteúdo da mensagem em função do estado de
conhecimento suposto de seus interlocutores, de sua identidade e de certos parâmetros
do contexto; elas podem modificar suas condutas face à incompreensão do parceiro, e
argumentar seu ponto de vista em situação em que o parceiro contesta. Conforme Dunn
(1991), estes comportamentos indicam que as crianças compreendem a conexão entre
estados internos e comportamentos e que é necessário, portanto, influenciar os primeiros
para poder mudar os segundos: hipótese sustentada pelo fato de que, alguns meses mais
tarde, as crianças que argumentavam mais em situações de conflito eram, igualmente, as
que tinham maior êxito em situação padrão de falsa crença (jogo simbôlico).
Informação e explicação
Seguindo esta abordagem, Veneziano e Hudelot (op. cit) se interessaram pelo
surgimento e pelo desenvolvimento de diferentes tipos de utilizações da linguagem,
ditas informativas, que permitem trazer à atenção ou ao conhecimento de seu
interlocutor acontecimentos ou aspectos não diretamente perceptíveis em situação de
enunciação. É na criança, sobretudo entre 18 e 24 meses, que pesquisas relacionam as
primeiras utilizações descontextualizadas e informativas da linguagem tais como as
referências a acontecimentos passados, e a produção linguageira de significações
subjetivas que o locutor atribui aos objetos e às ações, como é o caso das
transformações simbólicas do jogo de “faz-de-conta” (Veneziano, 2002). O surgimento
quase simultâneo de utilizações informativas da linguagem, após um período em que
estavam ausentes ou muito raras, traz uma sustentação suplementar à hipótese de que,
por volta de 18-24 meses, haja uma mudança qualitativa na capacidade da criança em
considerar os estados internos de seu interlocutor: a criança começa a perceber, no nível
prático da ação: a) que seu interlocutor possui estados internos do tipo atenção, intenção,
e estados de conhecimento que podem ser diferentes dos seus; e b) que a linguagem
pode ser um meio útil para influenciar estados internos e mudar, desta forma, seu
comportamento.
Trataremos de uma dessas utilizações de tipo informativo, a que consiste em
produzir para seu interlocutor justificações/explicações. Com efeito, esta conduta ilustra
o duplo interesse destas utilizações da linguagem: o interesse pragmático no estudo do
surgimento e do desenvolvimento de uma conduta central em trocas conversacionais; e
o interesse enquanto conduta reveladora da ação dos estados internos, intencionais e
cognitivos do outro.
Segundo Veneziano e Hudelot (op. cit.), por um lado, quando se explica ou se
justifica, compartilha-se, com o interlocutor, relações que se estabelecem mentalmente
entre acontecimentos; por outro lado, trata-se de condutas comunicativas de potencial
persuasivo, que são, portanto, claramente dirigidas ao interlocutor que é levado, deste
modo, a acreditar, a fazer, a querer alguma coisa (Grize, 1996: 8), a aceitar o
comportamento, a intenção ou o ponto de vista do locutor. Além disso, trata-se de uma
conduta que propõe prevenir uma eventual atitude negativa da parte do interlocutor (por
exemplo, uma recusa, uma negativa, uma insistência) produzida, portanto, para se
precaver contra certas expectativas por antecipação.
Em se tratando de argumento e persuasão, encontramos em Grize a confirmação
a respeito do que foi dito sobre a finalidade da argumentação por Perelman e Brandt.
Veneziano (1990) aborda o componente negativo da explicação em sentido
amplo: a) seja no nível do que deve ser explicado - explanandum (uma falta ou um
problema sentido pelo sujeito suscitaria nele a necessidade de recorrer a uma explicação)
b) ou no nível da própria explicação - explanans (uma incapacidade ou uma dificuldade
poderia, por exemplo, servir de justificativa). Veneziano e Hudelot (op. cit) propõem,
também, que além disso, as justificações, que venham em apoio às solicitações,
desacordos ou ainda afirmações, são produzidas para se opor a obstáculos de natureza
interna, uma vez que, nestes atos comunicativos, não se confrontam nem as
propriedades do mundo nem as intenções e crenças do outro. Deste ponto de
vista, a conduta explicativa se apresenta, ainda mais claramente que as condutas
comunicativas das quais falamos acima, como uma utilização da linguagem que visa
agir sobre os estados internos de seu interlocutor.
Para Veneziano e Hudelot (op. cit.), definir a explicação, como, aliás, todo
outro discurso complexo, apresenta um conjunto de dificuldades proveniente tanto da
variedade de condutas que este termo recobre quanto de uma certa arbitrariedade na
escolha dos critérios que servem para identificá-la.
Uma primeira dificuldade aparece no fato de que a explicação é, mais do que um
fenômeno estritamente lingüístico sustentado somente pela morfossintaxe, uma conduta
linguageira de tipo discursivo. Mesmo que existam marcas lingüísticas específicas deste
tipo de atividade: léxico metalingüístico - “eu vou te explicar...”; marcadores de
causalidade - “porque”, “já que”; fraseologias específicas - “como se faz para...”,
“enquanto que...”, etc., estes elementos não são necessários para a realização de uma
explicação, e até mesmo sua produção não garante a presença de uma conduta
explicativa. Não há, portanto, sistematicamente, índices morfossintáticos para
determinar, de maneira biunívoca, as condutas explicativas. Também a identificação
destas condutas requer que se estabeleçam critérios semânticos e pragmáticos
dependentes da interpretação.
Uma segunda dificuldade provém do fato de que o termo explicar é bastante
polissêmico. Do conhecimento de Veneziano e Hudelot, Grize é um dos que mais
claramente resumiu os diferentes sentidos, distinguindo, pelo menos, seis acepções do
termo:
Comunicar: eu vou te explicar minha idéia; desenvolver: explique esta
máxima da Rochefoucauld; ensinar: ele me explicou a regra do bridge;
interpretar: este livro explica bem a obra de Kafka; motivar: explique tua
desistência; dar conta de: o mau tempo explica o atraso do trem
(Grize,
1990:104).
Estes diferentes sentidos podem ser agrupados em três tipos fundamentais
respondendo às questões: “o que é?” (o que isso significa), “como?” (como isso
funciona ou como se faz) e “por quê?” (qual é a causa, qual é a razão ou o motivo de
fazer ou de dizer). Na classificação de Grize, somente motivar e dar conta de
respondem à questão “por que”.
No entanto, estas distinções ainda não eliminam uma outra ambigüidade devida
ao fato de que estes diferentes sentidos podem se aplicar tanto a um tipo particular de
texto ou de discurso quanto a um movimento discursivo que se exprime em uma
simples predicação, ou na relação entre dois enunciados.
Portanto, é desejável, por um lado, dispor de termos específicos para designar os
diferentes sentidos de explicação mencionados e, de outro lado, distinguir o nível
textual, referindo-se ao gênero explicativo, do nível de seus constituintes. Tentaremos,
então, delimitar, ao máximo, a noção utilizada aqui, especificá-la em relação às noções
conexas, e precisar os critérios que presidiram sua identificação.
A Conduta Explicativa/Justificativa (CEJ)
Assim, no quadro de uma abordagem funcional e interacional, denominaremos
aqui Conduta Explicativa/Justificativa (CEJ) todo ato comunicativo complexo que
comporta um explanandum – isto é, um acontecimento, uma ação ou um ato
comunicativo (expresso de maneira verbal ou não-verbal, ou podendo ficar implícito)
que oferece ou que poderia colocar problema para seu interlocutor atual – e um
explanans – o componente que fornece a causa, a razão ou a motivação do explanandum,
podendo responder ao “por que” ou não, solicitado de maneira implícita ou explícita por
este.
A CEJ se define como o estabelecimento da relação recíproca entre o
explanandum e o explanans, o primeiro se qualificando como tal por sua relação com o
segundo; o explanans, não sendo caracterizado como tal senão na relação com o
explanandum. A presença do explanandum, mesmo se implícita, é indispensável desde
o início da CEJ, pois é ele que permite dar a um enunciado assertivo um sentido e um
objetivo comunicativo específicos. Esta conduta é chamada explicativa/justificativa
porque ela pode ser ora uma justificação ora uma explicação, inclusive os dois, ao
mesmo tempo. Trata-se de uma conduta justificativa quando o explanans encadeia o que
os lingüistas denominam enunciação, ou mais geralmente um ato comunicativo, seja
verbal ou não-verbal. Nesse caso, o explanans recai sobre a razão o cumprimento do ato
mesmo de dizer ou fazer: “ela entrou porque eu a vi” ou “abra a porta, eu tenho o nenê
nos braços”. Trata-se de uma conduta explicativa quando o explanans baseia-se no
conteúdo do explanandum, como em “eu me apresso porque eu estou atrasado”.
Justificação e explicação podem, todavia, se encontrar reunidas em uma única CEJ.
A distinção diz respeito, pois, ao alcance da relação e não à sua natureza. Assim,
justificando um ato comunicativo, pode-se fornecer explanantia de natureza diferente.
Para justificar, por exemplo, um diretivo, o locutor pode fazer referência a uma
motivação psicológica (“eu não gosto de fazê-lo”), a uma causa física (“eu quebrei o
braço”), a um julgamento (“você sabe fazê-lo melhor”), a uma regra social (“cada um a
sua vez”) etc.; ou ainda, uma afirmação pode ser justificada em diferentes níveis:
daquele do simples conhecimento próprio (“eu sei que é desse jeito”) ou de uma
autoridade (“minha mãe me disse isso”) àquele que pede um raciocínio lógico (“há
cinco bombons aqui porque havia seis e você comeu um”); do mesmo modo os
acontecimentos podem ser ligados evocando causas físicas (“isso não se sustenta
porque está ventando”) ou finais (“a tesoura, por favor, eu tenho que cortar aqui”), mas
também causas de ordem psicológica (“isso não encaixa porque não quer”). Todavia,
deve ficar claro que a presença de uma CEJ não depende da natureza e da adequação
dos explanantia fornecidos, mas somente de sua produção em um quadro de
relacionamento da relação do tipo “porque” entre um explanandum e um explanans.
Com efeito, as CEJs podem estar diretamente vinculadas ao faz-de-conta, ao
relato, à fabulação, ao jogo sócio-dramático da criança, nos momentos de brincadeira
em que participa da interlocução.
Assim, em se tratando de criança, não podemos tratá-la como comunidade
isolada, a sua brincadeira, o seu discurso oferecem elos entre ela e seu mundo social.
Desprezar esta visão, poderíamos correr o risco de não entendemos suas produções
discursivas. (Benjamin, 2002; Vygotsky, 1991).
A CEJ e seu liame com a argumentação, a explicação e a explicação causal
Na maneira de se apresentar no discurso, a CEJ se aparenta à argumentação do
tipo “retroativo” (“regressive mode” na literatura de língua inglesa) que começa pelo
“que o locutor avaliou poder ter colocado em dúvida” (um tipo de explanandum), e
prossegue pelo que pode apoiá-lo, reforçá-lo, sustentá-lo, dar conta de, para convencer
(Grize, 1996: 15-16), fazendo uso de um explanans.
Neste sentido, pode-se dizer que a justificação constitui uma das figuras da
argumentação, ao lado, por exemplo, da concessão, da exemplificação ou da analogia. O
que difere é, de um lado, a orientação discursiva: lá, onde a argumentação pode existir,
graças à única orientação argumentativa de um enunciado que dirige o interlocutor em
direção a uma ou várias conclusões possíveis (Ascombre & Ducrot, 1983, apud,
Veneziano e Hudelot, op. cit: 221), o explanandum deve existir desde o início no
contexto interacional para que uma CEJ possa se realizar, mesmo se ele permanecer
implícito na troca.
De outro lado, na CEJ, a relação entre o explanandum e o explanans é somente
do tipo “por que – porque”, enquanto que na argumentação, como na relação de tutela,
ela é mais ampla. O mesmo se passa na relação explanandum-explanans em geral, da
qual fazem parte também as explicações as quais, orientadas para o interlocutor, e se
apoiando em um acontecimento-problema, visam desenvolver e a tornar mais claro o
explanandum, sem fornecer forçadamente causas ou motivos.
Finalmente, a CEJ se distingue também da simples explicação causal. Mesmo se
a explicação causal (eficiente ou final), que a grande maioria dos autores vê como típica
da expressão de explicação, faça parte das relações do tipo ”por que”, próprias à CEJ, há
diferenças entre as duas. De um lado, a CEJ não fornece somente causas ou razões sobre
os fenômenos, mas diz respeito a relações justificativas, fornecendo razões ou
motivações psicológicas do dizer, da ação ou de atos comunicativos em geral.
As CEJ têm a função pragmática, que se produzem num contexto interativo
(comunicação) caracterizado pela divergência de opinião entre interlocutores, num
contexto no qual existe um objeto de interesse comum a respeito do qual foi possível
desenvolver pontos de vistas diferentes (Pontecorvo, 1990), ou, simplesmente, a criança
pode ser levada, pelo interlocutor adulto, a produzir explicações, proporcionando um
encadeamento dialógico no qual, com base na colocação de um contraste
“perigo/resolução”, se estabelece uma relação pseudo-causal.
Por outro lado, explicações espontâneas são da alçada de um dialogismo que se
inscreve ao mesmo tempo no circuito da comunicação e no diálogo que a criança
instaura entre o mundo, sua cultura, os enunciados que ela retoma deslocando-os
necessariamente, tanto os seus como os dos outros.
1.3 Emergência e efeitos da explicação/justificação na atividade lúdica
Os primeiros estudos sobre o surgimento da expressão da explicação são
centrados na produção do conector porque e demonstraram que este aparece na
produção da criança entre 2 anos e 6 meses e 3 anos.
Pesquisas baseadas nos conflitos e nas disputas entre crianças, ou entre um
adulto e uma criança, têm revelado que as crianças pequenas produzem justificações
para gerar a interação e para que seu próprio ponto de vista seja mais facilmente aceito
pelo interlocutor.
Na dinâmica interacional, em situação de oposição, uma justificação tem o
objetivo, muitas vezes, de persuadir o interlocutor.
A evolução, a partir das primeiras manifestações das CEJs, não apresenta
certamente uma direção única, mas parece levar a diferentes aspectos. No início, as
CEJs são essencialmente justificativas, elas se tornam igualmente explicativas, inclusive
justificativas e explicativas ao mesmo tempo. Os explanantia que começam simples,
vão ficando complexos e apresentam relações de encaixe em que um primeiro
explanans torna-se explanandum de um segundo explanans; sua natureza vai também se
diversificar e começar a se relacionar com as propriedades objetivas dos objetos, com as
conseqüências, assim como com os antecedentes dos explananda; eles podem também
ser introduzidos, com mais freqüência, por marcadores lingüísticos específicos, embora
fosse errôneo pensar que o progresso linguageiro possa ser considerado apenas pela
utilização de marcadores gramaticais, independentemente da participação dos
fenômenos morfossintáticos de significação discursiva, a qual se relaciona tanto com as
implicações situacionais quanto lexicais.
As condutas não resultam, portanto, unicamente de um desenvolvimento de
saberes sobre o mundo físico ou de saberes especificamente lingüísticos, e sua evolução
não pode ser medida por índices de superfície, tais como o número e a natureza das
palavras das quais dispõe a criança. A CEJ é uma conduta eminentemente social,
amplamente dependente das condições de comunicação e de interlocução, e ela é,
portanto, igualmente tributária de um desenvolvimento de saber-fazer e de saberes
sociocognitivos, afirmam Veneziano e Hudelot (op. cit).
Assim, tendo a criança como personagem fundadora das condutas de
explicação/justificação, cujo desenvolvimento de seu potencial comunicativo pode se
realizar, principalmente, em uma atividade que dá prazer, em uma atividade lúdica,
firmamos nosso trabalho em torno do jogo sócio-dramático, cuja atividade criadora da
imaginação traz, para o discurso, as CEJs, as quais ilustramos a seguir:
Situação 1 - C5 e C1 (meninos); A (investigadora)
21. A: mas vocês não vão falar nada... um pro outro ... perguntam o nome ... o
que gostam de faZER::: ((sugere, também, que contem uma historinha))
22. C5: É ... não
23. C1: Você conta ((riso))
24. C5: eu não vou contá/ ((riso))
25. A: ninguém vai contá/ uma historinha .. então fala o nome um do outro
26. C5: qual é o seu nome ? ((tom de voz diferente, como se estivesse, realmente,
falando o personagem, aproximando-se de C2))
27. C1: meu ... ( )
28. C5: o meu é ( ) que faz xixi nas calças (( risos))
29. A: por que faz xixi nas calças o seu amiguinho
30. C5: não... é meu nome ((risos)) ((olhando para A))
31. A: e o Raphael ... fala o que o do Raphael gosta de fazê/
32. C5: o que você gosta de fazê/ ? ((muda tom de voz))
33. C1: ( ) ((risos))
(( os fantoches começam a brigar novamente))
34. A: estão brigando ... por quê?
((C5 aproxima-se de A))
35. C5: você é a mãe ... você tem dois filhos .... ( ) então ... e VO-CÊ tem que
resolvê/ a briga ... é isso
36. A: a mãe resolve a briga Lucas... ah mas a mamãe saiu ...
As CEJs surgem por ocasião da primeira tentativa de dramatização. A, aos
poucos, vai tentando conduzir o discurso das crianças.
Após a elaboração de fantoches, o adulto convida duas crianças, sugerindo dois
meninos, C1 e C5 para apresentarem seus amiguinhos fantoches para todos da sala. Já,
de pé, um de frente para o outro, batem um fantoche no fantoche do outro, como se
estivessem encenando uma briga, brincando.
Contudo, podemos perceber que no turno 35, C5 constrói CEJs para tentar
persuadir o adulto à participar do jogo.
Situação 2 - C2 (menina) está com a mão dentro do copo, o qual tem dois
braços talhados, também, pelo adulto; A (investigadora).
1. A: como é que chama sua bonequinha?
2. C2: débila ((olhando para o copo))
3. A: débila ... vamos falar com a débila ... o que você gosta de fazer DÉ:::bila
4. C2: éh:::... ela gosta de abuSÁ/
5. A: de abuSÁ:::
6. C2 éh
7. A: o que..que é abusa/
8. C2: abusa / os Oto
9. A: abusa/ os otros ... isso é bom ou é ruim?
10. C2 :é ruim ... ela gosta de abusa/ os Oto e dumí/
Depois das apresentações, pois a criança participa do jogo de ficção solicitado
por A. A partir do turno (11), parece haver a teatralização: a criança muda o tom de voz,
como se fosse a boneca – personagem – falando, embora A já tivesse feito essa tentativa
no turno (3), com um pergunta dirigida à boneca ‘débila’, mas quem responde é C2, que
usa o pronome de terceira pessoa “ela”.
Na tentativa de tornar mais claro o explanandum do turno (4), ou seja: do termo
empregado pela criança (“abusá”), A faz surgir dois explanantia em C2 nos turnos (8) e
(10), a criança consegue produzir a CEJs através do termo que parece ser um verbo
transitivo direto e de ação, e, ainda em (10), C2 faz neste turno um encadeamento
monológico, pois afirma que é “ruim”, e em seguida justifica sua afirmação: “ela gosta
de abusá os oto e dumí”.
11. A: ah::: então vamos conversar um pouquinho com a débila ... débila o que é
abusa/
12. C2: ah::: éh... Abusá os oto
13. A: debilá por que você não gosta de brinca/ ... você gosta de brincar?
14. C2: gosto
15. A: por que você quer brincar agora
16. C2: Éh:::...brinca/ de ... brinca de carrinho
17. A: bébila ... você gosta de brinca/ de carrinho? Por quê?
18. C2: porque ela tem carrinho ((aqui, os papeis misturam-se, não é mais a
boneca que se expressa, e sim a criança, o adulto tenta trazer a personagem; assim
estaria, através da tutela de linguagem, ensinando a função do fantoche – comunicar-se))
19. A: ah ... então vamos falar para ela falar comigo ... você passou batom hoje
débila? ((a boca da boneca estava vermelha))
20. C2: passou
21. A: que cor você gosta?
22. C2 : de laranja
23. A: por que você gosta de laranja
{ não, rosa
24. C2: puque ela ... ela tem baton laranja
(( embora o adulto tentasse fazer a personagem falar, quem fala é a criança –
“passou”; “ela tem”))
25. A: éh:::... então vamos ver se ela está bonitinha .... faz ela andar
(( C2 pega o copo e simula a boneca andando, gesticulando com as mãos para os
lados))
Vários dos enunciados se articulam com as ações, na construção da
situação imaginária, envolvendo cenários representados, com encenações
ligadas aos diálogos e a alguns segmentos de ação, que, inclusive não são
acompanhados de fala ( como risos, gestos). Podem ser notados, também,
acontecimentos incluídos sem apoio em objetos e sustentados pelos
enunciados (situação 1; turno 35, por exemplo).
Assim, neste jogo, que instancia uma situação lúdica, onde o
imaginário é concretizado pela linguagem, temos as CEJs com diversas
funções, que podem proporcionar um exercício pragmático e sociocognitivo.
CAPÍTULO II
INTERAÇÃO E COMUNICAÇÃO
2.1 O acordo tácito entre narrar e representar
Considerar a comunicação não-verbal como um dos possíveis elementos
desencadeadores da explicação é que nos faz abordá-la com um pouco mais de atenção.
Assim, dentro desse amplo processo de interação e comunicação, podemos
pensar que um olhar e um movimento podem dizer mais que 1000 palavras, mas que
são necessárias mais que 1000 palavras para abordar um assunto tão amplo que
contemple a comunicação dita não-verbal.
Essa área salienta dois aspectos importantes: (a) o aspecto da comunicação
verbal e (b) o aspecto do conjunto de meios não-verbais que os indivíduos vivos
utilizam para se comunicarem.
Ressaltando a importância, na história, deste aspecto (não-verbal), podemos
dizer que os primeiros estudos realizados no âmbito dos gestos eram ligados à retórica
clássica e, desde Cícero, levavam em conta – além dos gestos – a voz e a postura do
corpo.
No fim do século XIX, os estudos passaram a se preocupar em provar que a
origem da palavra estava nesses gestos, mas foi no século XX, após a Segunda Guerra
Mundial, que um interesse, na área da comunicação, conduziu à teoria da informação e
cibernética, que posteriormente postularam modelos de análise de processos de
comunicação.
Estudos mais recentes, como, por exemplo, o de Corraze (1982), mostram que a
comunicação se efetua através da transferência de informação, sob duas condições
principais: a primeira é a presença de dois sistemas – um receptor e um emissor; a
segunda é a transmissão de mensagens, fato relevante para a concretização da
explicação.
A produção da mensagem tem início em organizações interiores (conscientes ou
não), até atingir a exteriorização; pode atravessar uma série complexa de operações em
nível cognitivo, afetivo e social.
O comportamento interativo implica em enviar uma mensagem a um parceiro, o qual se
manifesta de maneira típica na relação; o comunicativo está vinculado ao emprego de
um código e envolve elementos comportamentais e o informativo apenas informa ou
esclarece determinados aspectos de alguém que está sendo observado por outra pessoa
(Saussure, 1969).
Entre os lingüistas, a mais conhecida das propostas de “ampliação” dos modelos da
teoria da informação é a de Roman Jakobson (1969). Para o autor, na esteira dos estudos
sobre a informação, há na comunicação um remetente que envia uma mensagem a um
destinatário, e essa mensagem, para ser eficaz, requer um contexto (ou um “referente”) a
que se refere, apreensível pelo remetente e pelo destinatário, um código, total ou
parcialmente comum a ambos, e um contato, isto é, um canal físico e uma conexão
psicológica entre o remetente e o destinatário, que os capacitem a entrar e a permanecer
em comunicação.
A literatura permite, ainda, constatar que a semiologia apresenta duas tendências
distintas: a semiologia da significação e a semiologia da intencionalidade. De acordo
com a análise de Buyssens (1972), na semiologia da intencionalidade qualquer
manifestação só pode ser considerada como comunicação se tiver uma significação
premeditada ou intencional, portanto, o critério da comunicação é a intencionalidade e é
considerada como ato social. Por outro lado, na semiologia da significação proposta e
assim denominada por Barthes (1971), o importante é o processo de semiose, ou seja, o
ato sêmico que é a atribuição de significação tanto do lado do emissor (codificação)
quanto do receptor (decodificação), independente da intenção ou não de comunicar.
Embora Buyssens (op. cit.) delimite a matéria-prima da semiologia ao ato comunicativo,
ele aborda, também, um aspecto interessante no que diz respeito à interpretação da
maioria dos comportamentos dos seres humanos e dos animais. Afirma que a questão da
interpretação desses comportamentos deu origem à idéia de uma pretensa linguagem
natural, pois através desta linguagem pode-se identificar o estado psicológico de certo
indivíduo segundo as manifestações desse estado, isto porque, determinados
comportamentos podem estar associados a estados psicológicos de um modo
suficientemente natural ou regular para que o fato sensível (gesto, mímica, atitude)
permita ao interlocutor reconhecer aí a manifestação de um estado psicológico.
Seja no nível da comunicação ou da expressão, a comunicação humana é um fenômeno
interindividual e individual-coletiva e está evidente que a comunicação não-verbal não
pode se ausentar do processo.
Oliveira (1994) diz que os aspectos não verbais – tom de voz, numa determinada
velocidade, com alguma expressão ou falta de expressão na voz ou na face do falante
(amimia), acompanhado ou não de algum movimento do corpo (cinésica), revelam os
propósitos do falante em relação à atividade da fala, funcionando, em geral, como
elementos que permitem interpretar o que está sendo comunicado.
A autora nos coloca que as abordagens interpretativas dos atos comunicativos objetivam
não somente distinguir o significado comunicativo do significado lingüístico
(gramatical), mas também enfatizar a funcionalidade desses aspectos no processo
interativo, considerando que: a) a interação verbal é uma atividade multicanalizada que
ocorre em três níveis de comportamento - verbal, paraverbal e não-verbal; b) a
interpretação na interação resulta da combinação de variados tipos de dados – o êmico,
o ético, o icônico, entre outros; c) uma multiplicidade de interpretações é sempre
possível, dado o caráter redundante da informação e a possibilidade que o receptor tem
de criar expectativas em relação ao conteúdo de uma mensagem.
Rector &Trinta (1995) abordam o fato de que é difícil identificar, descrever e analisar
movimentos do corpo, porque representam, via de regra, procedimentos largamente
inconscientes, tanto para quem os apresenta, quanto para quem os capta. Donde, em
caso de “má compreensão” da mensagem, há a sensação imediata de desconforto ou de
perplexidade. Todavia, também afirmam que há forte vínculo cultural, por exemplo, os
meneios de cabeça – para os árabes, quando balançam a cabeça para os lados, estão
querendo dizer “sim”.
Considera-se que a comunicação não-verbal possui valor significativo equivalente ao
das unidades do léxico de uma língua. Até porque têm em comum as mesmas
características: intenção de significar, vontade de comunicação explícita, graus variáveis
de consciência, pertencimentos a sistemas, convencionalidade etc. E desempenham
papel de idêntica importância na esfera das relações sociais.
P. Ekman e W. Friesen (1969, apud Rector & Trinta, op. cit.: 61) apresentam cinco
categorias diversas, em uma classificação hierárquica, para os gestos, o que não
significa que um gesto, por figurar numa categoria, esteja excluído das demais. A seguir
apresentamos e comentamos alguns tipos de gestos:
1) os emblemas: gestos como “dar uma banana” ou fazer “uma figa”;
2) os ilustradores: quando o pescador diz: “peguei um baita peixe” e mostra com as
mãos o tamanho do peixe;
3) os reguladores: atos não-verbais que sugerem ao emissor que continue, repita, elabore,
dê a oportunidade a outro para falar etc.; consistem sobre tudo em meneios de cabeça e
movimentos dos olhos. Há diferenças de uso conforme o nível social dos interagentes e
suas características culturais.
Rector & Trinta (op. cit) acrescentam ainda que existe uma tendência de os movimentos
corporais seguirem a pontuação da frase. Cada vez que há uma pausa breve ou vírgula
na fala, muda-se a posição da cabeça ou da mão; e, quando ocorre uma pausa longa,
muda-se a posição do corpo ou da perna;
4) as manifestações afetivas são configurações faciais que assinalam estados afetivos.
Uma vez que a manifestação tenha ocorrido, o emissor tem consciência do que fez, mas
tal gesto também pode realizar-se inconscientemente (é o caso de fazermos cara feia,
quando encontramos alguém com quem antipatizamos).
Oliveira (op. cit.) lembra que a face, em todo o seu conjunto, por causa da sua complexa
musculatura, não constitui apenas o lugar mediante o qual percebemos as mais variadas
emoções (ansiedade, vergonha, constrangimento, medo, dor, alegria). É também, no
nível interacional, uma importante fonte a partir da qual o recebedor da mensagem pode
inferir variadas atitudes do falante, como, por exemplo, disposição e indisposição;
acrescentemos aí a disposição para a conivência. Ainda, acrescenta que o olhar faz parte
do comportamento facial, visto em termos de movimento dos olhos, direção do olhar ou
contato ocular, pode promover comunicação deliberadamente ou não.
5) os adaptadores são gestos mais difíceis de definir porque decorrem de situações que
exigiram adaptação. São uma espécie de “muleta”, isto é, partes de nosso corpo que
usamos para “apoiar” nossa insegurança, quando não conseguimos dizer o que sentimos
ou não temos um interlocutor presente: é a unha que roemos, o cabelo que manipulamos
em forma de cacho etc.
Definida como proximidade tátil, já que a proximidade total se configura no toque, a
tacêsica tem estudado a problemática do toque sob vários aspectos: diferença de cultura,
significado, simpatia, relação social, influência sobre os outros, acesso a pessoas e
atitudes em relação ao toque.
Ao nos referirmos a um conjunto de códigos de natureza variada (audíveis, visíveis e
sensíveis) que fazem parte de um outro sistema de linguagem, veiculada pelo corpo por
oposição àquela veiculada pelo aparelho fonador e pertencente a um sistema lingüístico,
pretendemos chamar a atenção para o fato de que, no ato comunicativo, os códigos
verbal e não-verbal funcionam como contrapartes, que não podem-se dissociar. Não
podemos entender a comunicação não-verbal se não a considerarmos em relação à
própria língua, sendo o inverso também verdadeiro. Para entender a língua é preciso
considerar os componentes não-verbais que combinados aos elementos verbais
manifestam-se como supra-segmentos, ambos fazendo parte de um só ato comunicativo.
É nesse sentido que julgamos importante valorizar a função dos elementos não-verbais
como ingredientes constitutivos do discurso e da dramaturgia, especificamente no jogo
de ficção e, por extensão, na atividade discursiva da criança, uma vez que contribuem
também para uma maior percepção da outra pessoa, durante ou no processo de interação,
para que efetivamente haja ou possa haver comunicação.
E, considerar a comunicação também como um ato representativo, para
Huizinga (1993), representar significa mostrar, e isto pode consistir simplesmente na
exibição, perante um público, de uma característica, denominada pelo autor de natural.
O evento narrativo pode ser uma atividade que, na presença de uma audiência, é
uma técnica de construção de unidades que recapitulam a experiência na mesma ordem
dos eventos originais e mostram que a seqüência temporal é sua prioridade definidora.
Assim, podemos considerar que o ato de narrar pode ser visto como uma forma de
representação (Goffman, 1989).
Nessa situação, o narrador é alguém que se apresenta sob a máscara de um
personagem para representar outros personagens da estória, constituindo-se a audiência
como um terceiro elemento da correlação.
A noção de que uma representação apresenta uma concepção idealizada da
situação, conduz o narrador a revelar, sobretudo, a crença no papel que está
representando, ou seja, quando o narrador se propõe ou aceita contar uma história, ele,
implicitamente, solicita de sua audiência que leve a sério a impressão que ele tenta
sustentar perante ela.
Para atingir tal propósito, a preocupação maior do narrador é contar uma estória
que realmente ele saiba; é reportar-se a fatos sobre os quais ele tem domínio das
informações a serem transmitidas, não devendo ocorrer, por exemplo, lapsos de
memória e do comportamento expressivo.
É no contraponto – do que pode representar a história na interação e do efeito
que o narrar da história pode ter sobre o ouvinte – que a tarefa do narrar se mostra
complexa. Se, por um lado, no ato de narrar o narrador tem a oportunidade de mostrar
sua competência para controlar uma gama de habilidades lingüísticas e sociais; por
outro lado, a mesma situação se apresenta repleta de oportunidades para falhar, o que é
dramático para o narrador porque evidencia a sua incapacidade para produzir algo
interessante para quem lhe ofereceu atenção e lhe cedeu a palavra.
Essas restrições de ordem social revelam que contar, elaborar uma
estória se apresenta como uma ameaça potencial à face do narrador (Polanyi,
1982), o que quer dizer que se a situação do contar é construída socialmente,
o narrador se preocupa com a propriedade da estória e a valorização do seu
desempenho, entendendo-se este último como a imagem positiva ou negativa
que o ouvinte pode atribuir ao narrador e ao narrado.
Podemos observar tal feito, no momento em que as crianças já estão
elaborando seu teatrinho, pois procuram agradar a platéia, procuram a adesão
do público e estabelecem a conivência.
Se a atividade do narrador tem de se tornar significativa ou relevante para o
ouvinte, aquele precisa mobilizá-la de modo que não só expresse, na interação, o que
ele quer transmitir, ou seja, o objeto (a estória), mas também a si mesmo, isto é, seus
sentimentos, emoções, crenças, valores. Tal expressividade se tece de forma integrada,
recorrendo o narrador a aspectos simultâneos na veiculação da mensagem. Estamos nos
referindo às partes audível e visível da mensagem que correspondem, respectivamente,
aos recursos de ordem paraverbal, tais como: acentuação, entonação, pausas, fluência.
O narrador na qualidade de ator, visto que se coloca na perspectiva de
quem está envolvido no fato narrado ou regula as impressões que se formam
a seu respeito, coloca o evento em cena e o representa até o fim (Oliveira,
1994).
A autora aborda o fato de que no processo de encenação ou
teatralização de estória, o narrador, sob a máscara de um personagem, faz
uso de variados recursos cênicos. A voz, o rosto, o corpo vão constituir o seu
equipamento expressivo, através do qual imprime realidade ao que conta e
exprime a si mesmo.
Neste sentido, Huizinga (op. cit) diz que a Arte é uma forma de o
homem entender o contexto ao seu redor e relacionar-se com ele. O
conhecimento do meio é básico para a sua sobrevivência, e representá-lo faz
parte do próprio processo pelo qual o ser humano amplia seu saber.
Tal processo de conhecimento pressupõe o desenvolvimento de
capacidade de abstração da mente, tais como identificar, selecionar,
classificar, analisar, sintetizar e generalizar. Acrescenta que tais habilidades
são ativadas por uma necessidade intelectual existente na própria
organização humana.
Para Bruner (2001:43): “a narrativa, a invenção de estórias, é o modo de pensar
e sentir que ajuda as crianças e as pessoas a criar uma versão do mundo na qual,
psicologicamente, elas podem vislumbrar um lugar para si – um mundo pessoal.”
O autor entende a narrativa como um modo de pensamento e como um veículo
de produção de significado. Para ele existem duas formas pelas quais os seres humanos
organizam e estruturam seu conhecimento do mundo: uma está mais voltada para tratar
as coisas físicas (pensamento lógico científico); a outra, para tratar de pessoas e de suas
condições (pensamento narrativo). Bruner (op. cit) acredita que como são características
universais, apesar de se manifestarem de formas diferentes em diferentes culturas, têm
suas raízes no genoma humano.
Melo (1997) observa que crianças de cinco anos ou seis anos, geralmente, são
capazes de isolar “os elementos centrais” da narrativa (anúncio do tema, apresentação
de personagens, das circunstâncias, problema, solução e conclusão), e que recontar
engloba vários subgêneros (apresentar personagens, descrever, qualificar, introduzir
discursos reportados, manifestar as intenções ou sentimentos dos personagens), pois
trata-se de relatar os “atos mentais e as atitudes”. Ainda, acrescenta que não há apenas
uma competência textual, mas várias.
Logo, podemos cruzar as observações de Melo (op. cit) com as observações de
Huizinga (op. cit), quando o autor nos coloca o processo de conhecimento enquanto
capacidade de abstração da mente e inferir que as crianças, de cinco anos ou seis anos,
têm um grande potencial de abstração.
A criança, ao narrar, mistura o mundo real com o mundo criado, o que
equivaleria às fabulações, ao sincretismo, ao pensamento tautológico, estudados por
Wallon (1989) no discurso da criança.
[...] as exibições das crianças mostram, desde a mais tenra infância,
um alto grau de imaginação. A criança representa alguma coisa diferente,
ou mais bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é .
Finge ser um príncipe, um papai, uma bruxa malvada ou um tigre. A criança
fica literalmente transportada de prazer, superando-se a si mesma a tal
ponto que quase chega a acreditar que realmente é esta ou aquela coisa, sem
contudo perder inteiramente o sentido da ‘realidade habitual’. Mais do que
uma realidade falsa, sua representação é a realização de uma aparência: é
‘imaginação’, no sentido original do termo
(Huizinga, op. cit.: 17).
Em todas as abordagens feitas sobre narrativa, o importante é registrar o seu
caráter dramático que, por extensão, engloba todo o processo de comunicação, em
particular, ao que concerne às produções teatrais realizadas, pelas crianças, com
fantoches.
Assim sendo, a função dialógica dos sinais não-verbais diz respeito ao
relacionamento social entre os participantes e à regulação das contribuições de cada
participante na atividade narrativa. Postura do corpo, qualidade de voz, gestos podem
constituir pistas que revelem não apenas relações de simpatia, de envolvimento, de
colaboração, de intimidade, de aprovação, de cumplicidade ou de controle, mas também
de poder e distanciamento.
Os comportamentos verbal e não-verbal podem atuar paralelamente na interação
narrativa, de acordo com os propósitos comunicativos e com as expectativas daqueles
que participam de um determinado evento.
2.2 Aspectos da conivência nas produções teatrais da criança: o espetáculo
de fantoche
Embora o fenômeno de conivência possa ser identificado com uma certa
facilidade na relação entre interlocutores, ele não parece ter recebido especial atenção
nos estudos sobre diálogo. Por mais simples que possa parecer, abordá-la não é uma
tarefa muito fácil, principalmente se levarmos em consideração o tom, a maneira ou
espírito no qual um ato de fala é realizado. E, considerando–a como parte funcional da
explicação e da realização das produções teatrais da criança com fantoches, faremos
algumas abordagens a esse respeito.
Comparando algumas definições de conivência existentes nos dicionários de língua
portuguesa: Michaelis (1998) e Aurélio (1986), é possível notar que a maioria deles se
restringe a tratá-la como uma espécie de cumplicidade baseada na abstenção –
propositada ou dissimulada – de prevenir ou denunciar o ato delituoso. A idéia que se
tem daquele que é conivente é de alguém que finge não ver o mal que o outro pratica,
ou seja, ela traz, de um modo geral, uma conotação pejorativa que parece ter se fixado
ao longo do tempo.
De acordo com o Dictionnaire Historique de la Langue Française, a partir de
1796, o sentido do termo conivência parece ter ido em direção a um acordo tácito, ainda
de cumplicidade, mas que indicava também uma qualidade psicológica de harmonia ou
sintonia espontânea (sorriso de conivência). E é justamente esta noção de conivência
que nos interessa particularmente neste trabalho e que encontramos também em dois
dicionários de língua portuguesa: no primeiro, Dicionário Brasileiro de Língua
Portuguesa (1971), está presente a idéia de conivência como colaboração e no segundo,
Dicionário Contemporâneo do Português (1992), identificamos o termo como sendo
‘entendimento’, ‘conchavo secreto’, e ‘acordo tácito’.
Partindo dessas noções mais recentes (de sintonia, entendimento e acordo tácito),
associadas à idéia de comunidade restrita, de implícito comum, código particulares,
saber compartilhado , podendo também haver a exclusão de terceiros, a idéia de
conivência também estaria ligada a uma certa empatia entre os interlocutores e a uma
jubilação, conforme Salazar Orvig ( s/d ).
Embora ainda existam controvérsias, no que se refere à idéia à qual o termo está
ligado – por exemplo, Morel e Danon Boileau (s/d) associam-no a um tipo de saber
partilhado, e outros, como André Larochebouvy (1984) à noção de cumplicidade -, para
Salazar Orvig (op.cit.), a conivência pressupõe a diferença entre os interlocutores; não é
um gênero ou um tipo de interação e pode surgir em qualquer momento da relação
dialógica; ela é procurada pelos interlocutores e deve ser confirmada. Trata-se da
cristalização de um conjunto de fatores em um determinado momento da relação (de
sintonia tácita e jubilatória) entre os interlocutores (F. François, 1990). Seria uma forma
do que Auchlin (1995, 1996) chama de bonheur conversationnel – felicidade
conversacional.
Certamente, e de acordo com F. François, a conivência seria o que ele chama de
significação atmosférica, não localizável e não analisável, mais percebida do que uma
significação explicitável, sendo então, resultado de uma configuração particular de
discurso. Mas, diríamos que a caracterização do diálogo como conivente, valoriza em
primeira estância a maneira pela qual nós recebemos, da experiência que nós fazemos
disso enquanto observadores e intérpretes. No entanto, estas significações que ressoam
em nós mesmos, são produto dos jogos de palavras, dos encadeamentos que
encontramos no discurso explicativo, dos movimentos discursivos efetuados pelos
locutores. Portanto, através das caracterizações desses movimentos, é que se pode tentar
objetivar nossa impressão.
O locutor orienta muito a tonalidade na qual se desenvolve a troca, ele instala
uma certa atmosfera e define a qualidade da relação. Isso se realiza entre as vozes: a
escolha do tema e do gênero, a gestão dos saberes partilhados e os apelos à conivência
que poderá ocorrer ou não.
Quaisquer que sejam os fatores envolvidos para a obtenção deste tom de
conivência, pressupõe-se que os interlocutores se encontrem no domínio do íntimo para
então compartilharem experiências ou falarem de uma terceira pessoa (tema);
difamarem ou fazerem fofocas (gênero); tratarem de um fato dramático com humor
(tom); e falarem em meias palavras (savoir partagé: algumas coisas não precisam ser
explicitadas, são subentendidas, como a utilização de nomes próprios, expressões,
referência temporal, gestos, olhares, etc.).
Complementando, a conivência resulta igualmente de movimentos que visam
desencadear no outro um certo tipo de adesão. Observam-se cinco grandes tipos de
apelos para a obtenção de conivência:
(a) no engajamento, isto é, na intenção do locutor em compreender, implicar o
outro no discurso;
(b) nas brincadeiras (zombar do outro sem criar divergências; denegrir a
própria imagem, etc);
(c) nas diferentes formas de riso: o riso do próprio discurso, que pode ser
interpretado como uma marca de intimidade ou como um sinal de solicitação de
consenso, de conivência ou cumplicidade, o riso que denigre a própria imagem e
convida o interlocutor a compartilhar a avaliação, o riso acompanhado de um enunciado
alusivo, que incita o outro a evocar acontecimentos esquecidos.
E, em se tratando de riso, podemos considerá-lo como sendo uma das expressões
faciais mais conhecidas dos seres humanos e que parece estar associado com a emoção.
Todos nós sorrimos; há, porém, distintos tipos de sorriso, que são sempre peculiares a
esta ou àquela cultura.
No Brasil, há vários tipos de sorriso: cordial, amável, simpático, amarelo, sorriso
sem graça, cujos significados todos conhecemos em função dos contextos em que se
dão.
Em algumas culturas, o sorriso é mais “largo” do que em outras, sempre que, por
exemplo, duas pessoas se encontram em uma ocasião social. Os que não sorriem muito
podem parecer “sisudos”, “frios”, “insensíveis”. Sorrir é assentir. Quando se trata do
“riso”, também podemos encontrar vários tipos, segundo Rector & Trinta (1995):
“sardônico”, “sarcástico”, se nos irrita é um “risinho”.
Quanto a sua articulação, o riso admite pelo menos sete tipos: o sorriso simples,
o riso articulado à expressão facial; o riso com todo o rosto; a risada compassada: a
gargalhada prolongada; o riso convulsivo ou histérico; e o riso que leva às lágrimas.
Birdwhistell (1973) considera o riso como um gesto aprendido e culturalmente
determinado, que não se vincula apenas à expressão de prazer, o que quer dizer que,
dependendo do contexto, o riso pode traduzir constrangimento, humor, dúvida, ironia,
subordinação.
Embora haja pesquisadores treinados para identificar o sorriso verdadeiro do
falso, para nós o importante é saber se o riso provocou a conivência;
(d ) nas indicações de implícito – como as alusões, as elipses nos enunciados, os
conectores – e nas avaliações (reação dos receptores).
E a conivência, também, depende da recepção dos enunciados alusivos. Desse
modo, as marcas de adesão podem ser recuperadas através das aprovações (reações de
apoio como “ah sim é verdade”, “ah é claro”, que se encadeiam e até se sobrepõem aos
enunciados que respondem e dos risos que seguem as brincadeiras no faz de conta ou as
avaliações).
Na verdade, tudo faz parte de um processo de repercussão emocional: o acordo
no dinamismo interlocutor-receptor, que se manifesta por movimentos de avaliação
compartilhada e retomadas (a função de retomadas – cópia da modalidade e/ou da
verbalização do outro – é garantir a intersubjetividade enquanto constituição da díade
como unidade: duas pessoas falam de uma mesma opinião e marcam, assim, sua
proximidade), e a empatia (se aproxima da idéia de intersubjetividade, de partilha de
representações de afetos e de ações).
É nesse sentido que a conivência é freqüentemente evocada para caracterizar a
natureza das relações entre os interlocutores e uma certa qualidade do diálogo. Ela não
deve ser entendida a partir de uma única categoria de índices, mas deve ser abordada, na
dinâmica da troca que se constrói no decorrer do diálogo e só existe se for provocada,
atualizada e confirmada, a partir de um feixe convergente de movimentos e de traços
linguageiros e não-verbais. É nesse sentido que ela pode ser considerada um
acontecimento dialógico. Trata-se, portanto, mas especificamente, de supor
instrumentos de análise que permitam dar conta dessas configurações dinâmicas e
colocar a conivência no conjunto das formas de convergência dos interlocutores no
diálogo.
Assim, não se pode falar em traços específicos da conivência, mas em um
conjunto de índices [de significações atmosféricas (François, 1996)] que marcam o
implícito, a partilha de saberes, a convergência, o consenso, o alinhamento, a
proximidade, a interação. São esses índices verbais e não-verbais dos locutores e dos
receptores, que são estudados a fim de fornecer algumas pistas a respeito do brotar da
conduta explicativa, presente nas produções da criança. Contudo, cabe-nos falar em
duas situações de conivência, haja vista a brincadeira que os fantoches proporcionam, e
a necessidade de compartilhar os saberes para a adesão do ato: (a) a conivência global –
estabelecido pelo próprio clima imposto pelos bonecos; (b) conivência do discurso
(dados presentes no enunciado que mostram a presença da conivência entre os
interlocutores), e que exemplificamos a seguir:
1. D: cadê o moranguinho? ((perguntando para a platéia)) ... eu vô procurá/ ((cai
da cadeira de propósito e a platéia ri muito))
((retorna para a cadeira))
2. D: ((olhando para L)) quem comeu o moranguinho aquí?
3. Platéia: Eu::: CO:::MI ... eu também ((a platéia responde no lugar do
fantoche leão))
No turno (1), vemos a conivência global instaurando-se, com os risos
da platéia, percebemos a confirmação no turno (3), quando D, em (2) implica
a platéia no discurso.
1. A: como é que chama sua bonequinha?
2. C2: débila ((olhando para o copo))
3. A: débila ... vamos falar com a débila ... o que você gosta de fazer DÉ:::bila?
4. C2: éh:::... ela gosta de abuSÁ/
5. A: de abuSÁ:::
6. C2 éh
7. A: o que..que é abusá/
8. C2: abusá / os Oto
Neste exemplo, a conivência dá o movimento de continuidade no
discurso, sem o qual não seria possível ocorrer as CEJs. C2 responde às
indagações de A.
A conivência mistura elementos verbais (“ah”, “sim”, “é verdade”, “ah”,
“éh” etc.) e não-verbais (tonalidade, riso, sorriso, olhar etc.).
CAPÍTULO III
ORIGENS E FORMAÇÃO DA IMAGINAÇÃO
3.1 Considerações e implicações do brinquedo e da brincadeira para a
educação escolar
Desde os primórdios da educação greco-romana, com base nas idéias de Platão e
Aristóteles, utilizava-se o brinquedo na educação. Associando a idéia de estudo ao
prazer, Platão sugeriu ser, o primeiro ele mesmo, uma forma de brincar.
Na antiguidade, utilizavam-se dados, assim como doces e guloseimas em forma
de letras e números, para o ensino das crianças.
A brincadeira, como atividade dominante da infância, tendo em vista as
condições concretas da vida da criança e o lugar que ela ocupa na sociedade, é,
primordialmente, a forma pela qual esta começa a aprender. Secundariamente, é onde
tem início a formação de seus processos de imaginação ativa e, por último, onde ela se
apropria das funções sociais e das normas de comportamento que correspondem a certas
pessoas.
Malrieu (1996), afirma que o imaginário, no domínio do conhecimento, constitui
uma forma elementar de representação dos possíveis, indispensáveis ao
desenvolvimento da inteligência.
Neste perfil, crianças, brincar, e particularmente fantoches fazem parte do
mundo da imaginação, fantasia e criatividade do pequeno. Deixar de entender o mundo
do imaginário, seria sucumbir o prazer de conhecer alguns motivos de devaneio, de
aprendizagem, se não todos, da criança, bem como ignorar seu universo mágico e
lingüístico.
Não podemos discutir linguagem e explicação, considerando esta e aquela como
norteadoras dos intercâmbios sócias que surgem durante a brincadeira, sem conhecer
este universo.
Logo, cabe-nos, inicialmente, fazer algumas considerações introdutivas sobre o
assunto.
Nos dicionários filosóficos e nas enciclopédias, as palavras 'imaginação' e
'fantasia' pertenceram, por muito tempo, exclusivamente à história da filosofia. A jovem
psicologia começou a ocupar-se delas há poucas décadas. Não é, portanto, de se admirar
que a imaginação nas nossas escolas, ainda seja tratada como a parente pobre, em
desvantagem com a atenção e com a memória; que escutar pacientemente e recordar
escrupulosamente constituam até agora as características do modelo escolar, o mais
cômodo e maleável.
Os antigos, de Aristóteles a Santo Agostinho, não dispunham em suas línguas de
duas palavras para distinguir entre "imaginação" e "fantasia", e nem para assinalar as
suas diferentes funções. Foi preciso chegar ao século dezessete – com Wolff – para
iniciar-se uma primeira distinção entre a faculdade de produzir percepções das coisas
sensíveis e a “facultas fingendi”, que consiste em “produzir mediante a divisão e a
composição das imagens, a imagem de uma coisa nunca perceptível ao sentido”. Sobre
este ponto trabalharam Kant, catalogando uma “imaginação reprodutiva” e uma
“imaginação produtiva”, e Fichte (apud Rodari, 1982: 137) , privilegiou
desmensuradamente as funções da segunda.
Mas devemos a Hegel a implantação definitiva da distinção entre “imaginação”
e “fantasia”. Ambas são, para ele, determinações da inteligência: mas a inteligência
como imaginação é simplesmente reprodutiva; como fantasia é, ao contrário, criativa.
Hoje, nem a filosofia nem a psicologia chegam a diferenciar a imaginação da
fantasia.
A função criativa da imaginação pertence ao homem comum, ao cientista, ao
técnico; é essencial para descobertas científicas bem como para o nascimento da obra de
arte; é realmente condição necessária da vida cotidiana.
Para Postic (1993), a força do imaginário, sobre a criança, faz com que
encontre vínculos entre o mundo e ela mesma, interiorizando significados, construindo
sua personalidade. Contudo, para o autor, imaginar não é pensar, não significa
relacionar fatos, analisar uma situação para dominá-la, para retirar-lhe um significado.
Imaginar é penetrar, explorar fatos dos quais se retira uma visão. Esta só poderá ser
comunicada ao outro através de símbolos, que provocam harmônicos e estabelecem a
comunhão.
Vygotsky (1991, 1982) indica a relevância de brinquedos e brincadeiras como
indispensável para a criação da situação imaginária. Revela que o imaginário só se
desenvolve quando se dispõe de experiências que se reorganizem. O acervo de
brincadeiras constituirá o banco de dados de imagens culturais utilizados nas situações
interativas. Dispor de tais imagens é fundamental para instrumentalizar a criança para a
construção do conhecimento e sua socialização. Ao brincar a criança movimenta-se em
busca de parceria e na exploração de objetos; comunica-se com seus pares; expressa-se
através de múltiplas linguagens; descobre regras e toma decisões.
O autor acentua, ainda, que germes da imaginação criativa manifestam-se nas
brincadeiras dos animais: assim, manifestam-se ainda mais na vida infantil. A
brincadeira, o jogo, não é uma simples recordação de impressões vividas, mas uma
reelaboração criativa delas, um processo através do qual a criança combina entre si os
dados da experiência no sentido de construir uma nova realidade, correspondente às
suas curiosidades e necessidades.
Assim, podemos ver a brincadeira, na perspectiva sócio-histórica e antropológica,
como um tipo de atividade cuja base genética é comum à arte, ou seja, trata-se de uma
atividade social, humana, que supõe contextos sociais e culturais, a partir dos quais a
criança recria a realidade através da utilização de sistemas simbólicos próprios. Ao
mesmo tempo, é uma atividade específica da infância e adaptada na fase adulta.
Todavia, exatamente porque a imaginação trabalha apenas com materiais
colhidos na realidade, é preciso que a criança, para nutrir sua imaginação e aplicá-la em
atividades adequadas que lhe reforçam as estruturas e alongam os horizontes, possa
crescer em um ambiente rico de impulsos e estímulos, em todas as direções, inclusive
no da escola.
O livre uso de todas as possibilidades da língua não representa senão uma das
direções em que a criatividade pode expandir-se.
Segundo Rodari (op. cit), “criatividade” é sinônimo de “pensamento divergente”,
isto é, de capacidade de romper continuamente os esquemas da experiência.
Para Winnicott (apud Hisada, 1998), o indivíduo só se realiza na medida em que
cria e que tenha possibilidade da capacidade de criar, salientando, também, a
importância e necessidade de despertar a criatividade e estimulá-la.
Nesta direção, podemos pensar que o fantoche parece constituir um elemento
ideal para despertar a criatividade da criança, podendo considerá-lo, assim, como o
teatro, “um gênero visionário ou espetacular. ... um mundo imaginário” (Ortega Y
Cassete, 1991: 33, 36).
Logo, tendo em vista que nossa imagem do mundo é criada a partir do
desenvolvimento das formas simbólicas. Esta imagem é o produto da conversão do
conteúdo perceptivo da realidade, da própria apreensão da realidade, em conteúdo
simbólico.
Como sabemos, a função simbólica substitui os objetos reais por símbolos,
signos, palavras e representações que evocam na sua ausência. Esta ausência é a
situação onde existem “objetos ausentes”, é o pensar ou relacionar-se com eles através
do pensamento.
As crianças têm a capacidade de detectar e armazenar características
abstratas. E para que elas consigam armazenar estes traços e depois usá-los para
compreender e produzir enunciados, é necessário ter desenvolvido a capacidade
perceptiva e de memorização. Só a partir do desenvolvimento perceptivo e da apreensão
da realidade é que a criança amplia a sua capacidade de abstração, a sua capacidade de
chamar os objetos ausentes em sua memória.
O ser humano, principalmente a criança, tem uma capacidade perceptiva muito
grande. A cada momento ele enfrenta uma situação nova e às vezes oposta uma a outra
já vivenciada. Isto favorece a posterior discriminação das experiências.
Resumindo, a criança parte da percepção da realidade concreta e através das imagens
elaboradas a partir do seu contato com o meio, ela é capaz de assimilar este conceito,
para que num momento posterior descubra novas propriedades e possa discriminar
novas variáveis no seu mundo, conduzindo-se a um processo de aquisição de conceitos,
agora semi-abstratos e, posteriormente, abstratos.
Portanto, passar de um processo simbólico-perceptivo, chegar a uma
concretização, e depois à abstração é um caminho lento e que necessita de uma
interação com o meio.
O caráter cognitivo da linguagem é defendido por Jean Piaget (1978), quando
ele propõe a função simbólica da linguagem, a qual inclui o jogo de imagens simbólicas,
pois o pensamento é provido de simbologias e conceitos profundos. É impossível para
uma criança entender uma expressão verbal enquanto não dominar o conceito
subjacente. Logo, seria a precedência da compreensão sobre a produção.
Nota-se que as crianças procuram várias maneiras de discriminar aquilo que lhes
chama mais atenção, aquilo que elas concebem como mais relevantes na descrição.
Vygotsky (op. cit.) defende uma função primária da linguagem humana. A palavra,
segundo ele, tem uma função: chamar a atenção para as coisas significativas que
rodeiam o falante. A visão de mundo de cada um, a sua realidade próxima é que vai
definir o seu objeto.
A função de atrair a atenção para os elementos significativos está também
diretamente relacionada com a função simbólica da linguagem, tratada por Piaget
(op.cit.).
Partindo da concepção de que a formação do símbolo na criança (Piaget, op. cit.)
começa a ocorrer mesmo antes da criança falar uma única palavra, e que este
pensamento conceitual desenvolver-se-á mais quando se inicia o processo de
verbalização, podemos admitir que este processo será a ponte que ligará aqueles
conceitos já internalizados na mente à impressão e à visão de mundo de cada criança.
Estudando-se o desenvolvimento cognitivo de crianças até 12 anos, estudiosos,
como Piaget, Vygotsky, Wallon, Bruner etc, observam que existe uma precedência de
compreensão de conceitos sobre sua produção.. Fato que vem corroborar a posição
piagetiana (Piaget, 1999), que defende o ponto de vista da maturação cognitiva da
criança como responsável pelo maior ou menor desempenho no processo de
compreensão e produção de conceitos.
A aquisição da linguagem é um processo lento que segue um nível crescente de
complexidade. Não é um desenvolvimento simples, há um aperfeiçoamento, e um
conseqüente aprofundamento mental.
Verba (1999) acentua o fato de que, para Piaget (1978), o jogo simbólico, das
brincadeiras de criança, constitui a manifestação de uma função mais geral no
desenvolvimento cognitivo, que é a função semiótica. A identificação dessa função no
comportamento da criança necessita de duas condições: a aplicação de esquemas a
objetos inadequados e a evocação para o prazer, o prazer de brincar.
Nesses jogos a criança estabelece as ligações entre o objeto presente – o
“significante” - e o objeto ausente – o “significado”. É a partir do lugar de descoberta da
significação que formas variadas de representação podem se desenvolver.
Dentro desta perspectiva, podemos inferir que se desejamos formar seres
criativos, críticos e aptos para tomar decisões, um dos requisitos é o enriquecimento do
cotidiano infantil, com a inserção de brinquedos, brincadeiras etc.
Portanto, não podemos deixar de confirmar que a brincadeira e, em particular,
o faz-de-conta estimulam e promovem o desenvolvimento e a aprendizagem da criança.
3.2 O papel do brinquedo e da brincadeira na socialização da criança.
Em primeiro lugar, apenas a título de uma breve apresentação, faremos algumas
abordagens sobre a história cultual do brinquedo.
A Alemanha era o centro geográfico no terreno do brinquedo, aponta Benjamin
(2002), Nuremberg era a pátria dos soldadinhos de chumbo e da reluzente fauna da arca
de Noé; a mais antiga casa de bonecas de que se tem notícia provém de Munique.
O autor acrescenta-nos que, no início, tais brinquedos não foram invenções de
fabricantes especializados, mas surgiram originariamente das oficinas de entalhadores
em madeira, de fundidores de estanho etc. Assim, podia-se encontrar animais talhados
em madeira com o marceneiro, soldadinhos de chumbo com o caldeireiro, figuras de
doce com o confeiteiro, bonecas de cera com o fabricante de velas.
Inicialmente os brinquedos eram pequenos, a partir da segunda metade do século
XIX, tornam-se maiores e vão perdendo aos poucos o elemento discreto, minúsculo,
sonhador.
Uma emancipação do brinquedo põe-se a caminho; quanto mais a
industrialização avança, tanto mais decididamente o brinquedo se subtrai ao controle da
família, tornando-se cada vez mais estranho não só às crianças, mas também aos pais,
diz o autor.
Benjamim (op. cit.) afirma que, hoje, talvez se possa esperar uma superação
efetiva do equívoco básico que acreditava ser a brincadeira da criança determinada pelo
conteúdo imaginário do brinquedo, quando, na verdade, dá-se o contrário. A criança
quer puxar alguma coisa e torna-se cavalo, quer brincar com areia e torna-se padeiro,
quer esconder-se e torna-se bandido.
No entanto, não chegaríamos certamente à realidade ou ao conceito do
brinquedo se tentássemos explica-lo tão somente a partir do espírito infantil.
Pois se a criança não é nenhum Robson Crusoé, assim também as crianças
não constituem nenhuma comunidade isolada, mas antes fazem parte do
povo e da classe a que pertencem. Da mesma forma, os seus brinquedos não
dão testemunho de uma vida autônoma e segregada, mas são um mudo
diálogo de sinais entre a criança e o povo
(Benjamim , op. cit: 93-94).
Há alguns instrumentos de brincar, que o autor considera como sendo autênticos
brinquedos, pois desprezam toda máscara imaginária (possivelmente vinculados na
época a rituais): bola, arco, roda de penas, pipa, denominados por ele de autênticos
brinquedos.
Contudo, brincadeira e imaginação não se dissociam, mesmo através do tempo,
pois a criança é o ingrediente principal desse processo de criação.
Em segundo lugar, é necessário fazermos algumas diferenciações
sobre a palavra jogo, apontadas por outros autores.
Conforme explica Kishimoto (1994), o que oferece dificuldade para a
conceituação de jogo é o emprego de vários termos como sinônimos. Jogo,
brinquedo e brincadeira que têm sido utilizados com o mesmo significado.
A autora coloca que para evitar essa indiferenciação, a palavra
brinquedo será destinada ao objeto, suporte de brincadeira; brincadeira como
a descrição de uma conduta estruturada com regras; e jogo infantil para
designar tanto o objeto bem como as regras do jogo da criança (brinquedo e
brincadeiras).
Brougère (2004) observava: o que caracteriza a brincadeira é que ela
pode fabricar seus objetos, em especial, desviando de seu uso habitual os
objetos que cercam a criança; além do mais é uma atividade livre, que não
pode ser delimitada. Criar um brinquedo é propor uma imagem que vale por si
mesma e que dispõe de um potencial de sedução, que permite ações e
manipulações, em harmonia com as representações sugeridas.
Segundo o autor, e confirmado anteriormente, o brinquedo pode ser
uma representação da realidade, mas trata-se de uma realidade selecionada,
isolada e, na maior parte das vezes, adaptada e modificada, nem que seja
pelo seu tamanho.
Certos universos de objetos e de seres são desse modo privilegiados
como o universo doméstico (em particular para os brinquedos destinados às
meninas), o universo do automóvel, do transporte (para os meninos), certos
aspectos do mundo natural (animais), certas épocas do passado etc...
Assim, à infância, são associadas, por tradição cultural, representações
privilegiadas do masculino e do feminino. O universo do brinquedo feminino,
coloca o autor, é, nesse aspecto, muito interessante por tratar-se daquele
considerado como tal pela sociedade, pelas crianças, pelos pais, pelos
comerciantes, independentemente das brincadeiras efetivas mais abertas à
diversidade: privilegia o espaço familiar da casa, o universo “feminino”
tradicional em detrimento do externo, do universo do trabalho.
A partir de uma modificação, o brinquedo deixa o realismo para entrar
na esfera da produção de um universo imaginário específico. Os principais
processos de modificação podem ser enunciados: a simplificação e, também,
os acréscimos fantasiosos, em particular aqueles que tomam a forma do
animismo para as coisas do antropomorfismo para os animais.
O brinquedo parece afastado da reprodução do mundo real
constantemente evocado por ele. É um universo espelhado que, longe de
reproduzir, produz, por modificação, transformações imaginárias. Portanto,
manipular brinquedos remete, entre outras coisas, a manipular significações
culturais originadas numa determinada sociedade.
Em todas as dimensões evocadas, o conteúdo simbólico do objeto é
essencial para dar sentido à relação que se estabelece. Portanto, ela, é, ao
mesmo tempo, relação com um objeto e relação com as imagens dos
discursos (produzidos pelos adultos ou pelas crianças) que individualizam e
redobram as significações.
Rodari (1982) e Bomtempo (2002) salientam o fato de que brincar
pode aumentar certos tipos de aprendizagem, em particular, aqueles que
requerem processos cognitivos mais elevados e automotivação. Através da
imaginação e exploração, as crianças desenvolvem suas próprias teorias do
mundo, que permitem a negociação entre o mundo real e o imaginado por
elas. Um ponto importante é que essas experiências tomam uma forma
simbólica, que é relevante para a construção da linguagem.
Assim, dando tempo para brincar, um ambiente para explorar e
materiais que favoreçam a brincadeira de faz-de-conta, os adultos estarão
promovendo a aprendizagem das crianças.
Didaticamente, Lillard (apud Bomtempo: 2002) aponta que, na
simulação de uma situação, que envolve o jogo, há cinco aspectos que
podem ser considerados necessários e suficientes:
1 – um faz-de-conta;
2 – uma realidade;
3 – uma representação mental que é diferente da realidade;
4 – uma camada de representação sobre a realidade, de forma que ela
exista no mesmo espaço e tempo;
5 – ter consciência desses elementos acima representados.
Bomtempo (op. cit) coloca que há um sexto elemento que
freqüentemente acompanha o faz-de-conta - a ação, a atividade corporal, que
pelo menos em dois casos se mostra central nesse tipo de brincadeira:
a. na imitação: o único meio de imitar uma ação seria fazê-la. O
desempenho da ação exige subordinação ao objeto;
b. quando o faz-de-conta é destinado a uma audiência, ele exige algum
tipo de manifestação externa. Exemplo: se eu estou tentando comer um bloco
de papéis, porque acredito que é um bolo, sem dúvida, eu não estou fazendo
de conta, eu estou enganado. Por outro lado, se eu desempenhar o mesmo
papel, sabendo muito bem que eu estou representando, que um bloco é um
bloco, então eu estou fazendo de conta. Para se configurar, verdadeiramente,
como brincadeira de-faz- de conta é necessário compreender a situação em
dois níveis: como situação real (o bloco) e como situação simulada (o bolo).
A autora ainda afirma que simbolização através dos objetos funciona
como precondição para o aparecimento do jogo de papéis ou jogo
sociodramático, considerado por Piaget (1978) como a mais alta expressão do
jogo simbólico.
Kishimoto (2002) aborda as características do jogo infantil discutidas
por Christie (1991b: 4), e elaborou os critérios para identificar seus traços.
1 ) Não-literalidade: as situações de brincadeira caracterizam-se por
um quadro no qual a realidade interna predomina sobre a externa. O sentido
habitual é substituído por um novo. São exemplos de situações em que o
sentido não é literal, como o ursinho de pelúcia servir como filhinho e a
criança imitar o irmão que chora.
2 ) Efeito positivo: o jogo infantil é normalmente caracterizado pelos
signos do prazer ou da alegria, entre os quais o sorriso. Quando brinca
livremente e se satisfaz, a criança o demonstra por meio do sorriso. Esse
processo traz inúmeros efeitos positivos aos aspectos corporal, moral e social
da criança. Esse efeito é, particularmente, interessante para nós, na medida
em que contribui para a existência da conivência.
3 ) Flexibilidade: as crianças estão mais dispostas a ensaiar novas
combinações de idéias e de comportamentos em situações de brincadeira que
em outras atividades não-recreativas.
Estudos como o de Bruner (1976) demonstram a importância da
brincadeira para a exploração de diversos meios para o desenvolvimento
cognitivo. A ausência de pressão do ambiente cria um clima propício para
investigações necessárias à solução de problemas. Assim, brincar leva a
criança a tornar-se mais flexível e buscar alternativas de ação.
4 ) Prioridade do processo de brincar: enquanto a criança brinca, sua
atenção está concentrada na atividade em si e não em seus resultados ou
efeitos. O jogo infantil só pode receber esta designação quando o objetivo da
criança é brincar. O jogo educativo, utilizado em sala de aula, muitas vezes,
desvirtua esse conceito ao dar prioridade ao produto, à aprendizagem de
noções e habilidades.
5 ) Livre escolha: o jogo infantil só pode ser jogo quando escolhido livre
e espontaneamente pela criança. Caso contrário, é trabalho ou ensino.
6 ) Controle interno: no jogo infantil, são os próprios jogadores que
determinam o desenvolvimento dos acontecimentos. Quando o professor
utiliza um jogo educativo em sala de aula, de modo coercitivo, não oportuniza
aos alunos liberdade e controle interno. Predomina, neste caso, o ensino, a
direção, a tutela do professor, do adulto.
Contudo, Kishimoto (op. cit.) ainda coloca que os indicadores mais úteis
e relativamente confiáveis do jogo infantil podem ser encontrados nas quatro
primeiras características. Os dois últimos (livre escolha e controle interno)
seriam usados para auxiliar pesquisadores na tarefa de discriminar se os
professores concebem atividades escolares como jogo ou trabalho.
Bruner & Ratner (1978) lembram que a brincadeira do bebê em parceria com a mãe auxilia a aquisição da linguagem, a
compreensão de regras, e colabora com o seu desenvolvimento cognitivo. O autor, ainda, considera que a brincadeira permite uma
flexibilidade de conduta e conduz a um comportamento exploratório. Da mesma forma, em outras pesquisas com pré-escolares,
conclui que o jogo infantil contribui para a solução de problemas.
Para Vygotsky (op. cit.), o brinquedo não é uma atividade que dá prazer à criança, pois
existem muitas atividades que trazem experiências muito mais prazerosas do que o
brinquedo, como, por exemplo, chupar chupeta. No entanto não se pode ignorar o fato
de que o brinquedo preenche necessidades da criança. A tendência de uma criança
muito pequena é satisfazer seus desejos imediatamente, mas na idade pré-escolar surge
uma grande quantidade de tendências e desejos não realizáveis imediatamente e, para
resolver essa tensão, a criança envolve-se num mundo imaginário onde os desejos não
realizáveis podem ser realizados, e, para ele, esse mundo é denominado de brinquedo.
A partir dessa perspectiva observa-se que o prazer derivado do brinquedo, na idade pré-
escolar, é controlado por motivações diferentes daquelas de chupar chupeta, porém, isso
não quer dizer que todos os desejos não satisfeitos dão origem a brinquedos. O
brinquedo difere substancialmente do trabalho e de outras formas de atividades, pois
nele a criança cria uma situação imaginária, que não é uma idéia nova, na medida em
que ela é sempre reconhecida, afirma o autor.
De acordo com o autor, se todo brinquedo é, realmente, a realização na
brincadeira das tendências que não podem ser imediatamente satisfeitas, então os
elementos das situações imaginárias constituirão uma parte da atmosfera emocional do
próprio brinquedo.
Vários pesquisadores que tratam desse assunto, seguindo Marx, concluíram que
o brinquedo envolvendo uma situação imaginária é um brinquedo baseado em regras.
Assim, a criança que está representando o papel da mãe na brincadeira, obedece às
regras de comportamento maternal. Da mesma forma que uma situação imaginária tem
que conter regras de comportamento, todo jogo com regras contém uma situação
imaginária.
O comportamento de uma criança muito pequena é limitado em todas as ações
pela restrição situacional, os objetos têm uma força motivadora inerente nessas ações e
determinam o comportamento da criança, pois a percepção é um aspecto integrado de
uma reação motora.
Vygotsky (op. cit.) analisa que a ação, numa situação imaginária, ensina a
criança a dirigir seu comportamento pelo significado dessa situação. É impossível para
uma criança muito pequena separar o campo do significado do campo da percepção
visual, já que há uma fusão entre o significado e o que é visto.
Já na idade pré-escolar ocorre uma divergência entre os campos do significado e
da visão. No brinquedo, o pensamento está separado dos objetos e a ação surge das
idéias e não das coisas – a criança não consegue ainda separar o pensamento do objeto
real, por exemplo, para imaginar um cavalo, ela precisa definir sua ação usando um
“cavalo-de-pau” como pivô.
No brinquedo, a criança opera com significados desligados dos objetos e ações
aos quais estão habitualmente vinculados, mas ela também inclui ações e objetos reais;
espontaneamente a criança usa sua capacidade de separar significado do objeto sem
saber que o está fazendo. Assim, ela atinge uma definição funcional de conceitos ou de
objetos, e as palavras passam a se tornar parte de algo concreto.
Continuamente, a situação de brinquedo exige que a criança haja contra o
impulso imediato – o atributo essencial do brinquedo é que uma regra torne-se um
desejo e, essa regra é algo interno de auto-contenção e autodeterminação e não uma
regra que a criança obedece à semelhança de uma lei física. Segundo Piaget, o
brinquedo cria na criança uma nova forma de desejos e as maiores aquisições que no
futuro tornar-se-ão o nível básico de ação real e moralidade de uma criança, são
conseguidas através do brinquedo.
No início do desenvolvimento, a ação predomina sobre o significado. Na idade
pré-escolar o significado passa a ser determinante. A criança quer e realiza seus desejos
permitindo que as categorias básicas da realidade passem através de sua experiência. Se
operar com o significado de coisas leva ao pensamento abstrato, observa-se que o
desenvolvimento da vontade, a capacidade de fazer escolhas, ocorre quando a criança
opera com o significado de ações.
Segundo o autor, o brinquedo não é aspecto predominante da infância, mas é um
fator importante do desenvolvimento, pois ele fornece ampla estrutura básica para
mudanças das necessidades e da consciência: a ação na esfera imaginativa, a criação das
intenções voluntárias, a formação dos planos da vida real e motivações volitivas
aparecem no brinquedo, que se constitui no mais alto nível do desenvolvimento pré-
escolar.
O autor também demonstra o significado da mudança que ocorre no
desenvolvimento do próprio brinquedo, de uma predominância de situações imaginárias
para a predominância de regras, em que o correr simplesmente, sem propósito ou regras,
não tem atrativo para a criança.
Vygotsky (op. cit) cria um conceito para explicar o valor da experiência social
no desenvolvimento cognitivo. Segundo ele, há uma “zona de desenvolvimento
proximal”, que se refere à distância entre o nível de desenvolvimento atual –
determinado através da solução de problemas pela criança, sem ajuda de alguém mais
experiente – e o nível potencial de desenvolvimento medido através da solução de
problemas sob a orientação de adultos ou em colaboração com crianças mais
experientes.
E por último expõe as transformações internas no desenvolvimento da criança
que surgem em conseqüência do brinquedo, pois a essência deste é a criação de uma
nova relação entre o campo do significado e o campo da percepção visual, ou seja,
entre situações do pensamento e situações reais.
Winnicott (1971:63) concretiza sua idéia sobre a brincadeira: é a brincadeira
que é universal e que é própria da saúde: o brincar facilita o crescimento, e portanto, a
saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser forma de
comunicação ... .
O autor afirma que na tenra infância começa a surgir os fenômenos transicionais
cuja importância relaciona-se diretamente com o nascimento e crescimento do potencial
criativo do ser humano, onde o brincar seria considerado sua extensão.
Estes fenômenos começam a surgir por volta dos quatro e seis aos oito e doze
meses de idade. No processo, são observados vários eventos, que se interpreta como
sendo prazeroso para a criança: colocar o punho na boca, agarrar-se a um ursinho, a um
pano macio, etc, funcionam como defesa contra a ansiedade, especialmente a ansiedade
de tipo depressivo.
O autor (op. cit) acrescenta que a possessão do bebê daquilo que seja ‘não-eu’,
os objetos transicionais, além da satisfação que proporciona, outros fatores são
relevantes para serem estudados, como por exemplo a capacidade do bebê de criar,
imaginar, inventar, originar, produzir um objeto
O objeto transicional é gradativamente descaracterizado, de maneira que, com
o curso dos anos, torne-se não tanto esquecido, mas deixado de lado: não é esquecido e
não é pranteado, perde o significado. E, isso se deve ao fato de que os fenômenos
transicionais se tornaram difusos, se espalharam por todo o território intermediário entre
a ‘realidade psíquica interna’ e ‘o mundo externo, ou seja: entre o eu individual e o
ambiente’, isto é, por todo o campo cultural. É nesse ponto que o tema amplia-se para o
do brincar, fazendo parte, também, do espaço potencial, espaço do jogo e da ilusão,
origem de todas as atividades sócio-criativo-culturais, afirma o autor.
Algumas das qualidades do brincar as quais Winnicott (op. cit.) deu importância
primordial são as seguintes: (1) ao brincar, a criança manipula fenômenos externos a
serviço do devaneio e investe fenômenos externos escolhidos com significados e
sentimentos oníricos; (2) o jogo é essencialmente satisfatório; (3) o brincar ajuda na
relação com outros; (4) há uma evolução direta dos fenômenos transicionais para o
brincar, e do brincar para o brincar compartilhado, e disto para experiências culturais,
etc.
Freud (1987) tenta relacionar e procurar na infância os primeiros traços de
atividade imaginativa. Salienta que a ocupação favorita e mais intensa da criança é o
brinquedo ou os jogos. Acaso não poderíamos dizer que, ao brincar, toda criança se
comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta
os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade. Para Freud (apud
Hisada, 1998: 27), ao crescer, as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao
prazer, mas na verdade o adulto busca encontrar substitutos e, então, “constrói castelos
no ar”, cria os devaneios, os sonhos, uma forma de livrar-se da pesada carga da vida.
Resumindo, temos: educadores, filósofos e psicólogos que apresentam
concepções diversas do jogo infantil, considerando-os favoráveis para o crescimento e
desenvolvimento da criança, do ser.
O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998) completa a
importância do brincar para construção do conhecimento quando nos informa que é nas
brincadeiras que crianças transformam os conhecimentos que já possuíam anteriormente
em conceitos gerais com os quais brincam. Por exemplo, para assumir um determinado
papel numa brincadeira, a criança deve conhecer alguma de suas características. Seus
conhecimentos provêm da imitação de alguém, ou de algo conhecido, de uma
experiência vivida na família ou em outros ambientes, do relato de um colega ou de um
adulto, de cenas assistidas na televisão, no cinema ou narradas em livros etc. A fonte de
seus conhecimentos é múltipla, mas estes encontram-se, ainda, fragmentados.
É no ato de brincar que a criança estabelece os diferentes vínculos entre as
características do papel assumido, suas competências e as relações que possuem com
outros papéis, tomando consciência disto e generalizando para outras situações.
3.3 O jogo de ficção: uma ponte entre a realidade e a fantasia
A participação da linguagem na constituição no jogo de faz-de-conta, nas
brincadeiras que envolvem situações imaginárias permitem à criança uma crescente
libertação das condições perceptuais ou situacionais imediatas, tendo em vista que as re-
significações de objetos e as ações de faz-de-conta implicam um predomínio do campo
do significado sobre o da percepção.
Apesar da relativa liberdade frente ao campo perceptual, as ações que
constituem o jogo imaginário mostram uma subordinação às regras da realidade, em
termos do que é pertinente a um papel social, do que é apropriado ao agir com as coisas
e de como os acontecimentos podem se organizar. O que constitui a matéria da
situação imaginária origina-se do diretamente vivenciado, observado ou conhecido.
A criança começa com uma situação imaginária, que é uma reprodução da
situação real, sendo a brincadeira muito mais a lembrança de alguma coisa que
realmente aconteceu, do que uma situação imaginária nova. À medida que a brincadeira
se desenvolve, observa-se um movimento em direção à realização consciente do seu
propósito. Finalmente, surgem as regras, que irão possibilitar a divisão de trabalho e o
jogo na idade escolar. Nesta idade a brincadeira não desaparece, mas permeia a atitude
em relação à realidade, afirma Vygotsky (1982)
Entretanto, não se trata de mero espelhamento das experiências, pois o faz-de-
conta passa a se caracterizar, também, pelas possibilidades de operar com a
recombinação de elementos da realidade, criando situações ficcionais que são virtuais,
não correspondentes às coisas e acontecimentos da realidade, afirma o autor.
Esse destaque parece-nos muito apropriado porque um aspecto fundamental do
funcionamento lúdico-imaginário está, justamente, nas instâncias em que a criança, ao
recriar suas vivências, matizadas pelo afeto, pelo meio, pode ultrapassar a “lógica do
real” e, com a complexidade das brincadeiras, imaginar um plano de ocorrências
virtuais com crescente independência das condições situacionais imediatas.
Logo, podemos entendemos que, na atividade lúdica, a elaboração de situações
imaginárias se transforma e se refina em várias vertentes. Desde o faz-de-conta inicial,
quando a criança brinca de dormir, meramente encostando a cabeça no travesseiro,
ocorrem muitos desdobramentos. Ampliam-se as composições em que os
acontecimentos se organizam de forma convencional e aquelas mais guiadas pelo
ficcional. Em termos da dependência do campo de objetos e das vivências, a criança
torna-se mais e mais propensa a compor seqüências de acontecimentos em que é
evidente sua capacidade de manter a verossimilhança da situação (quando, por exemplo,
são respeitados passos detalhados e são usados muitos dos “equipamentos” requeridos
para dar banho no bebê, com materiais “de verdade” – sabonete, água, toalha etc.). Por
outro lado, ela também constrói situações em que os objetos substitutivos são inseridos
de forma bastante flexível ou são dispensados (como na utilização de materiais pouco
específicos, sem qualquer demanda de semelhança, para compor toda uma encenação de
pescaria, além da inclusão de objetos sugeridos apenas por gestos ou palavras, sem
apoio material).
Pesquisas sobre o brincar, já abordadas anteriormente, mostram que
as falas das crianças atendem a uma diversidade de propósitos no jogo que
envolve o faz-de-conta e o desempenho de papéis. Ademais, nos
desdobramentos do brincar, a palavra passa a permitir que a criança configure
cenas imaginárias, dispensando o apoio no objeto pivô, ou dando existência a
personagens, que não são encarnados em participantes ou bonecos/objetos
físicos presentes.
As brincadeiras de faz-de-conta são a superposição intencional de uma
situação suposta a uma situação real, com um espírito de diversão mais do
que sobrevivência (Lillard, 1991, apud Flavell, 1999: 69). Em suas
brincadeiras, as crianças pequenas nos oferecem muitas pistas de que
compreendem que certas entidades podem representar objetos reais. Elas
tratam os brinquedos como se fossem seus referentes reais, mas podem lhe
dizer que não são (podem fazer de conta que a banana é um telefone, mas
sabem que é, quando indagadas, uma banana; podem chamar a banana de
telefone).
O faz-de-conta, acrescenta Flavell (op. cit.) está confinado à faixa etária entre 2
e 6 anos . Crianças com menos de 1 ano de idade não são capazes de brincar de faz-de-
conta; crianças com mais de 6 anos ou por volta desta idade já desistiram quase
totalmente dele, embora alguns jogos de fantasia e representações de papéis atraiam
algumas delas. O faz-de-conta também é interessante porque o ímpeto para seu
desenvolvimento parece vir principalmente de dentro da criança. A criança evoca a
imaginação e o pensamento criativo no faz-de-conta, cria metáforas, transforma
mentalmente objetos e sentidos de palavras.
O faz-de-conta também pode consistir na criança fingir que é outra pessoa, que
um amigo também é outra pessoa e que estas duas pessoas fantasiadas estão interagindo.
Este brinquedo sócio-dramático, como também é chamado o faz-de-conta, pode
oferecer uma prática valiosa em diferenciar o self dos outros, em assumir a perspectiva
dos outros, em experimentar papéis sociais ( por exemplo, pai, mãe, vendedor) e em
interagir socialmente com os outros. Portanto, ele pode auxiliar no desenvolvimento
social e sócio-cognitivo, bem como no crescimento cognitivo mais estrito.
Por último, o faz-de-conta pode ser um precursor para o entendimento da
natureza da mente. As crianças pequenas fazem de conta que as bonecas estão tristes,
cansadas, felizes e famintas imbuindo-as, assim, de estados mentais causais que as
levam a chorar, a dormir, a rir e a comer. O faz-de-conta também pode envolver um
entendimento precoce de que as pessoas têm representações mentais da realidade.
Para Flavell (op. cit.) o desenvolvimento do faz-de-conta consiste, em parte, em
retirar as rotinas comportamentais e os objetos de seus contextos situacionais e
motivacionais costumeiros da vida real, e usá-los de forma lúdica.
Na análise de Lillard (1991, apud Flavell, op. cit.: 70) as crianças podem fingir
quanto à identidade ou propriedade de um objeto, quanto a si mesmas, outra pessoa, um
evento, uma ação ou uma situação.
O faz-de-conta, com freqüência, envolve a substituição de objetos. O fato
melhor documentado a respeito do desenvolvimento das brincadeiras de faz-de-conta
talvez seja o de que a criança se torna progressivamente menos dependente destes
acessórios concretos e realistas com a idade.
Assim, inicialmente um objeto deve estar presente em sua forma familiar para
ser usado no faz-de-conta.
Flavell (op. cit.) destaca o seguinte percurso para o faz-de-conta:
a) o novato na brincadeira finge com a colher real ou com algo muito parecido;
b) a criança no nível intermediário pode usar qualquer objeto que possa
ir até a
boca (ex.:uma vareta);
c) o especialista no faz-de-conta (03 anos) – usa o gesto de comer sem colher;
d) desenvolvimento adicional – “Olha mamãe”, sem objeto;
e) uso do self e de outro como ator ou recipiente:1º ) – no início a criança é
agente e recipiente das ações de faz-de-conta – Ela (agente) finge comer e se
lavar (recipiente); 2º) - mais tarde a criança pode usar outras pessoas ou
objetos em episódios de sua brincadeira, primeiro como recipientes depois
como agentes.
Werner e Kaplan (1963, apud Flavell:71) chamaram de “distanciamento”
progressivo ou diferenciação da criança entre símbolo e referente (substituições de
objetos), e entre pessoa e referente (substituições self-outro) as substituições b e c.
O entendimento infantil do faz-de-conta
Crianças de 2 a 3 anos supostamente são realistas presas à percepção, relutantes
ou até mesmo incapazes de dar dois nomes ou duas descrições diferentes ao mesmo
objeto. Entretanto, estas crianças prontamente tratam um objeto como tendo uma
segunda identidade de faz-de-conta na brincadeira.
Para testar se as crianças pequenas entendem que o faz-de-conta envolve um
estado representacional, Lillard (1991, apud Flavell: 72) criou situações do seguinte tipo
Ela mostrava o boneco de um monstro e dizia às crianças:
Este é o Moe. Ele é da terra dos monstros. O Moe está pulando por aí, mais ou menos
do jeito que os coelhos pulam. Moe não sabe que os coelhos pulam assim, ele não sabe nada sobre
coelhos. Mas ele está pulando como um coelho. Ele sabe que os coelhos pulam assim? Ele está
pulando como um coelho? Você diria que ele está fazendo de conta que é um coelho ou não?
A maioria das crianças de 4 anos, e muitas de 5 anos, afirmaram que Moe estava
realmente fazendo de conta que era um coelho. Elas ignoraram o fato de que ele não
poderia ter uma representação de um coelho sem nunca ter visto um. Portanto, as
crianças pequenas, aparentemente, pensam que o monstro pode fazer de-conta mesmo,
sem uma representação mental; ele só precisa agir como o referente.
Lillard e Flavell (1992, apud Flavell et al, 1999) descobriram que as crianças se
saíam melhor em tarefas de faz-de-conta quando elas eram acompanhadas de uma ação,
em vez de somente um estado representacional. Isto não significa necessariamente que
as crianças não entendam a representação mental em geral, mas que, simplesmente, ela
não é necessária no seu conceito de faz-de-conta.
Em resumo, as representações pictóricas, de modelos e de faz-de-conta das
crianças demonstram, ao mesmo tempo, as aquisições positivas e as limitações
importantes de seu pensamento. Mas estas representações não continuam muito simples
por muito tempo.
Logo, o faz-de-conta se torna cada vez mais socializado no curso de seu
desenvolvimento na primeira infância. Primeiro com papéis padronizados ou
convencionais, “os bebês tomam amadeira, choram e acomodam-se para dormir”.
Segundo, o faz-de-conta solitário dá lugar ao brinquedo sócio-dramático social. Eu
papai, diz um menino de 2 anos para seu irmão mais velho. Por volta de 2 anos e meio
de idade, a criança faz o papel do nenê em uma brincadeira de nenê e mamãe com sua
irmã mais velha. Por volta dos 5 anos os papéis tornam-se mais complexos, as crianças
devem se tornar co-dramaturgos, co-diretores, co-atores e atores substitutos, sem
ficarem confusas. Dessa maneira, estabelecem um laço, uma ponte entre a realidade e a
fantasia.
3.4 O fantoche no jogo teatral
A arte é considerada parte de um sistema de representações construídas pelo
indivíduo. Nesta direção, o faz-de-conta pode ser considerado uma das expressões
artísticas da criança.
O que afinal estamos entendendo por “fantoche”?
Segundo o novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, “fantoche” significa:
(Do francês. Fantoche) S M. 1. Boneco que tem a cabeça de massa
de papel, ou de meia gessada, etc., mãos geralmente de feltro, e em cujo
corpo, formado pela roupa, o operador esconde a mão que movimenta por
meio do dedo indicador a cabeça, e com o polegar e o médio os braços
[ Sinônimo (no N.E.): mamulengo]. 2. Designação comum aos bonecos do
teatro de fantoches, seja qual for a maneira pela qual são feitos ou movidos.
[ Sin: boneco de engonço, bonifrate, marionete, títere e (brs.): bringuela,
mamulengo, mané-gostoso].
Rodari (1982) pontua que muito ligado às marionetes e aos fantoches está a
palavra teatrinho. Se não levarmos em conta os detalhes filológicos, chegaram às
crianças por uma dupla “queda”. Seus ancestrais mais antigos são as máscaras
ritualísticas dos povos primitivos. Primeira queda, do sagrado ao profano, do rito ao
teatro. Segunda queda, do teatro ao mundo dos brinquedos.
O papel que estes teatrinhos tiveram na cultura popular foi muito
importante e fica-se espantado percorrendo os títulos dos manuscritos que
eram representados até o século retrasado, dada a vasta gama de interesses
que cobriam, encontramos textos extraídos de argumentos bíblicos,
mitologias, reduções de célebres obras teatrais e literária de todo o mundo,
reconstruções históricas, comédias de fundo social, etc
(Rodari, op.
cit.:.94).
A linguagem própria dos fantoches e das marionetes é o movimento. Eles não
foram feitos para grandes monólogos, nem para os diálogos longos.
O ganho do teatrinho de fantoches sobre o de marionetes está na maior
amplitude de movimentos do primeiro. O ganho do segundo está na cenografia e na
decoração. Os recursos típicos dos teatros se aprendem só com a prática.
Segundo o autor, o fantoche proporciona não só contato afetivo com a criança,
mas, também, funciona como um tipo de instrumento que estimula a imaginação,
criando, entre outras coisas, educação lingüística nas crianças.
Amaral (1996), acrescenta-nos que boneco é o termo usado para designar um
objeto que, representando a figura humana, ou animal, é dramaticamente animado
diante de um público. (p.71)
Nos últimos anos, convencionou-se suar a palavra boneco como um termo
genérico que abrangesse suas várias técnicas. Assim, marionete é o boneco movido a
fios; fantoche, ou boneco de luva, é o boneco que o bonequeiro calça ou veste, afirma a
autora (op. cit).
A manipulação de um boneco é sempre ao vivo, ou seja, é feita no ato da
apresentação, esteja o ator visível ou não. Hoje, o diálogo, o conflito são ingredientes
desta dramaturgia. Distingue-se também de boneca, objeto lúdico infantil, pois no jogo
infantil a animação que ocorre é uma relação íntima existente entre a criança e o seu
objeto, e independente de público.
Contudo, em se tratando de criança, o fantoche torna-se um objeto que promove
o lúdico, o jogo de faz-de-conta, onde a criança representa cenas de sua realidade, do
seu cotidiano, traçando um diálogo com o imaginário, portanto, torna-se promovedor de
linguagem.
Amaral (op.cit), confirma que a criança naturalmente dá vida a tudo que toca.
Relaciona-se igualmente com o mundo vegetal, mineral, animal ou material. Anima
objetos e se comunica com a natureza. É naturalmente animista. É como se o seu
pensamento, ou a sua consciência, estivesse ainda ligada a uma vida anterior.
O teatro de bonecos tem uma relação direta com o pensamento animista infantil,
tem todas as condições para satisfazer os anseios de transformação que a criança tem de
tornar os seus sonhos de poder. Torna fantástico o mundo real, conclui a autora.
É a criança que cria o brinquedo. Mesmo que o brinquedo já tenha sido
confeccionado, é ela que irá animá-lo, quem lhe dará vida conforme suas vontades e
necessidades.
Benjamin (2002), reflete que os objetos de culto que o adulto oferece, como a
bola e o papagaio, acabam por transformar-se em brinquedos graças à força da
imaginação infantil: (...) para a criança que brinca sua boneca ora é grande, ora
pequena, com mais freqüência pequena, pois se trata de um ser subordinado.
Assim, a criança é autora e atora na sua brincadeira, ela cria, dá forma a sua
imaginação, constrói metáforas no jogo de faz-de-conta.
Ostrower (1987) conceitua a criação como o ato de dar forma nova a algo, e
que essa é uma atividade da imaginação. Por sua vez, imaginar é um pensar específico
sobre um fazer concreto.
(... ) o pensar só poderá tornar-se imaginativo através da
concretização de uma matéria, sem o que não passaria de um divulgar
descompromissado, sem rumo, sem finalidade. Nunca chegaria a ser um
imaginar criativo. Desvinculado de alguma matéria a ser transformada, a
única referência do imaginar se centraria no próprio indivíduo cujos
conteúdos pessoais não são suscetíveis de participação por outras pessoas .
Seria um pensar voltado unicamente para si, suposições alienadas da
realidade externa, não contendo propostas de transformação interior, da
experiência, nem mesmo para o indivíduo em questão
(p. 32-33).
Segundo a autora, associações que, provindo de áreas inconscientes do nosso ser,
ou talvez pré-conscientes, compõem a essência de nosso mundo imaginativo. São
correspondências, conjeturas evocadas à base de semelhanças, ressonâncias íntimas em
cada um de nós com experiências anteriores e com todo um sentimento de vida. E,
grande parte das associações liga-se à fala, pois muito do que imaginamos é verbal, ou
torna-se verbal, traduz-se em nosso consciente por meio de palavras. Pensamos através
da fala silenciosa cada um de nós pensa e imagina dentro dos termos de sua língua, isto
é, dentro das propostas de sua cultura. Usamos palavras. Elas servem de mediador entre
o nosso consciente e o mundo. Quando ditas, as coisas se tornam presentes para nós.
Deste modo, podemos inferir que como o fantoche foi feito também para
comunicar-se oralmente - falar, ele obriga as crianças a estarem desenvolvendo ou
usando sua capacidade lingüística.
O homem usa palavras para representar as coisas. Nessa
representação, ele destitui os objetos das matérias e do caráter sensorial que
os distingue, e os converte em pensamentos e sonhos, matéria-prima da
consciência. Representa ainda as representações. Simboliza não só objetos,
mas também idéias e correlações. Forma do mundo de símbolos uma
realidade nova, novo ambiente tão real e tão natural quanto o do mundo
físico. Na percepção de si mesmo o homem pode distanciar-se dentro de si e
imaginativamente colocar-se no lugar de outra pessoa
. (Ostrower, op. cit:
22)
Logo, o jogo com fantoche, além de provocar um exercício lingüístico, pode
auxiliar a criança na sua descentração, quando esta reconhece a sí mesma e o outro nos
papeis que representa.
O fantoche, antes inanimado, ganha vida, conteúdo, emprestando corpo /matéria
aos desejos humanos. É um símbolo, é o representante de uma figura. Ao brincar com
um fantoche, manipulando-o, a criança lhe dá vida, provendo-o de sentimentos e
atitudes, logo, ele torna-se uma ponte entre o real e a imaginação.
A autora afirma que, nas crianças, a criatividade se manifesta em todo o seu
fazer solto, difuso, espontâneo, imaginativo, no brincar, no sonhar, no associar, no
simbolizar, no fingir da realidade e que no fundo não é senão o real. Criar é viver, para a
criança, é um interessante jogo de experimentação do mundo.
Enfim, não há quem deixe de considerar o papel significativo do jogo para o
desenvolvimento cognitivo, moral e social, da criança.
Entre os representantes da psicologia cognitiva, o fenômeno jogo assume os
seguintes significados: (a) Piaget, tendo como princípio básico a noção de equilibração
como mecanismo adaptativo da espécie, admite a predominância na brincadeira, de
comportamento de assimilação sobre a acomodação; (b) Vygotsky, por sua vez, entende
a brincadeira como uma situação imaginária criada pelo contato da criança com a
realidade social; (c) Bruner atribui ao ato lúdico o poder de criar situações exploratórias
propícias para a solução de problemas; (d) Winnicott relaciona o brincar com o
crescimento sadio da criança.
Para uns, o jogo representa a possibilidade de eliminar o excesso de energia
represada na criança. Para outros, prepara a criança para a vida futura ou, ainda,
funciona como elemento fundamental para o seu equilíbrio emocional, constitui força
inesgotável nos mais diferentes domínios.
No domínio da interação facilita e satisfaz as necessidades dos contatos, dos
afetos, dos sorrisos, dos reforços positivos; no domínio cognitivo ajuda a criança a
desenvolver as capacidades de abstração, simbolização, imaginação e criatividade,
assim como possibilita o exercício da concentração e memorização; no domínio da
linguagem possibilita a aquisição de novos conceitos e palavras, desenvolve
capacidades de percepção, nomeação e verbalização, aumenta capacidades lingüísticas
(fonéticas, fonológicas, semânticas, morfossintáticas); no domínio da socialização,
possibilita a interação, facilita a assimilação da noção de grupo, promove capacidades
de ouvinte ativo, desenvolve potencialidades de interiorização e cumprimento de regras.
CAPÍTULO IV
METERIAL E MÉTODO
4.1 A escolha dos sujeitos e do material
Este trabalho foi desenvolvido a partir de uma pesquisa transversal, realizada
com oito (08) crianças brasileiras, entre quatro (04) e cinco (05) anos de idade, sendo
quatro (04) meninas e quatro (4) meninos, para observar as produções verbais e não
verbais, uma vez que a intenção da criança deverá ser também levada em conta, bem
como seu desempenho dramático, em prol das produções de condutas
explicativas/justificativas no jogo de ficção com fantoches.
Tendo em vista que se trata de um estudo com crianças em idade pré-escolar, os
corpora foram coletados em uma escola de educação infantil.
Para tanto, dividimos nossa coleta em duas etapas, a saber:
a) primeira etapa: foi solicitado a 8 crianças, meninos e meninas, entre quatro
e cinco anos de idade, que freqüentavam um estabelecimento educacional particular, na
cidade de São Paulo, a construção de fantoches;
b) segunda etapa: foram selecionadas, entre as oito crianças da primeira etapa,
4 crianças, duas meninas e dois meninos, para participarem das gravações.
Assim, após algumas explicações sobre o projeto de pesquisa para a diretora da
escola e professora, e algumas conversas a respeito das crianças e métodos de
aprendizagem utilizados pela escola, os sujeitos foram então selecionados com base em
alguns critérios:
a) inexistência de comprometimento e/ou distúrbios de linguagem;
b) autorização prévia dos pais;
c) disponibilidade das crianças no horário sugerido pela diretora – dia em que
não consta no programa da escola atividades extra-curriculares;
d) crianças com idade entre 4 e 5 anos, e no mínimo duas meninas e dois
meninos;
e) o nível sócio-econômico-cultural não foi considerado.
Então, a diretora definiu a classe que deveria ser desenvolvido o trabalho, mas
fez a exigência de não excluir, dentro das características acima apresentadas, nenhuma
criança da sala. Logo, as oito crianças participaram da filmagem. Na segunda etapa,
embora todos tenham participado, apenas algumas crianças foram gravadas, em dupla
ou sozinhas, interagindo com a platéia, ou com o adulto. Essas crianças não
obedeceram a um critério pré-estabelecido, houve uma seleção, se assim podemos dizer,
natural. Participaram aquelas que pareciam estar muito dispostas, pois estavam sempre
brigando para serem as primeiras.
Para promover e desenvolver o trabalho com fantoches foram utilizados vários
tipos de materiais.
Na primeira etapa, usamos materiais recicláveis, a saber:
saco de pipoca;
uma bola pequena de isopor, simbolizando cabeça de boneco, um palito de
churrasco, um pedaço de tecido;
saco de pipoca e tirinhas de papel marrom, simbolizando cabelos;
copo plástico.
Durante o percurso desta etapa, as crianças construíram cerca de 4 tipos de
bonecos. Durante a construção, promoveu-se movimentos dialógicos entre as crianças e
o adulto - interlocutores, bem como o ensinar a fazer através do exemplo, pois o adulto
construía, junto com as crianças, seu próprio boneco.
Além disso, essa etapa colaborou não só para promover e estimular os
movimentos – a coordenação, mas também para a comunicação oral. As crianças
mexiam com as mãos, mas de forma desordenada, como se não tivessem um enredo, ou
coordenação dos movimentos, bem como não colocavam a voz nos seus personagens.
Pouco a pouco foram descontraindo e o processo colaborou para o desempenho da
segunda etapa.
Na segunda etapa, usamos bonecos industrializados, a saber:
animais confeccionados de espuma;
personagens de menino e menina confeccionados de tecidos;
dedoches de animais e pessoas, confeccionados de espuma e tecido.
O primeiro problema, a ser enfrentado nesta etapa por nós, foi o de saber se a mão da
criança poderia manusear o fantoche, pois como já visto é com a mão que ela articula
os movimentos dos bonecos. Logo, primeiramente, tivemos que verificar o tamanho da
mão da criança, para, só então, buscar o tamanho apropriado de fantoche. Por exemplo,
se comprarmos um calçado com tamanho não apropriado para os nossos pés, este não
desempenhará sua função com qualidade: escorregará, apertará, em fim, dificultará os
nossos movimentos. O mesmo problema, podemos perceber que acontece com os
fantoches nas mãos das crianças. Não basta ser lindo, colorido, tem que se adequar ao
tamanho da mão, caso contrário a criança não consegue manipulá-lo.
Paralelamente, percebemos que os fantoches confeccionados com espuma
proporcionavam maior agilidade aos movimentos com as mãos. Assim, não é necessário
preocupação com o tamanho do boneco, todos se adaptam à mão do pequeno, além de
favorecer a expressão e o motor.
Os dedoches, talvez por serem menores e com pouca possibilidade de movimentação,
pois são colocados e manipulados nos dedos das mãos, não despertaram à atenção das
crianças, pois quase não foram utilizados por elas.
Nossa intenção de usar esses dois tipos de material, nas duas etapas da pesquisa,
foi (a) promover uma aproximação entre o adulto e as crianças, (b) bem como fazê-las
conhecer e gostar de fantoches, uma vez que a escola não dispunha desse tipo de
material lúdico-pedagógico, logo as crianças não demonstravam saber manuseá-los e
utilizá-los, e a partir de uma visão vygotskyana, não queríamos que os bonecos fossem
vistos apenas como qualquer brinquedo, que se não houvesse o interesse, não
participariam. Mas que houvesse uma inter-relação entre linguagem, pensamento,
cognição e prazer. Afinal, não é muito fácil utilizar as técnicas de brincar com fantoches,
principalmente falando para um público.
Paralelamente, pareceu-nos necessário destacar, nesta ótica sócio-construtivista,
o papel relevante das interações sociais, já apontadas em 3.2, tendo em vista que elas
favorecem as ações recíprocas entre os parceiros (adulto - criança, criança – criança), no
que diz respeito à manifestação de saberes já adquiridos, e à construção de saberes
novos.
Assim sendo, este processo, que poderíamos qualificar de auto-avaliação reguladora,
permitiu-nos observar também um processo de co-construção de saberes novos pelas
crianças, em dois níveis: a) entre os parceiros ao longo da construção dos bonecos e dos
espetáculos; b) entre os diferentes personagens criados pelas crianças com a ajuda dos
fantoches.
4.2 Procedimentos adotados na coleta e transcrição dos dados
A coleta dos dados, filmada em fita de vídeo VHS, compreendeu 16 sessões, perfazendo
um total de 270 minutos de gravação, distribuídos ao longo de 4 meses (de fevereiro a
maio de 2003). Cada sessão variava entre 30 a 40 minutos de duração cada uma, uma ou
duas vezes por semana.
Esclarecemos também que o tempo total de cada sessão era de 60 minutos
impreterivelmente, compondo um horário de aula na escola, interrompida com
ocorrências diversas: organização da sala, quando as crianças iam ao banheiro, alguém
chorava ou discutia com outro colega, ou quando crianças de outra turma apareciam,
para ver o que estava acontecendo etc.
Este estudo foi realizado em uma escola pequena que trabalha com educação
infantil, do maternal até o pré. Além do trabalho de alfabetização que se faz com as
crianças, existe um trabalho religioso.
Ao chegar à sala, elas já estavam organizadas, em pares, sentadas em mesinhas
separadas umas das outras. A professora já havia estabelecido esse tipo de organização,
observando a compatibilidade, afinidade, ou colocando juntas uma mais extrovertida
com uma menos extrovertida, a fim de promover um melhor equilíbrio na sala, explicou
a professora.
Além das salas de aula, o único espaço lúdico disponível é a presença de um
grande parque no último andar, onde são realizadas, também, as aulas de Educação
Física e festinhas, em geral.
O nível sócio-econômico-cultural é bem heterogêneo: docente, comerciante,
pedreiro, etc. Embora essas diferenças possam se refletir nas produções das crianças,
elas não serão levadas em consideração nesta pesquisa, como já mencionadas nos
critérios, visto que não é nosso objetivo analisar as influências desse fator, nas
produções das crianças, nem estar fazendo qualquer tipo de comparação.
Um outro ponto a ser ressaltado diz respeito à empolgação das crianças durante
os meses de trabalho. Elas se apresentavam sempre dispostas. A professora e as crianças,
organizadas (sentadas em suas mesinhas), sempre estavam esperando os nossos
encontros. No início do trabalho sempre havia uma “musiquinha”, uma saudação de
“boa tarde” carinhosa, por parte das crianças, além de muitos beijos e doces, que
presenteavam a pesquisadora . Era a conivência pré-estabelecida que se instaurava por
conta dos fantoches. Segundo a professora, as crianças perguntavam, com freqüência, se
aquele seria ou não o dia do fantoche.
Na seqüência, descrevemos os procedimentos adotados, em cada etapa, para o
desenvolvimento da pesquisa:
primeira etapa (cerca de 15 a 20 minutos cada cena)
No primeiro encontro (17/02/2003), após uma breve apresentação em sala de
aula, que foi registrado também em videotape, as crianças responderam perguntas feitas
pelo adulto como: nome, idade e o que gostavam de fazer. Seria uma prévia para nos
conhecermos e gravá-las em vídeo, a fim de verificarmos se ocorreria, por parte das
crianças, algum tipo de constrangimento, ou qualquer tipo de inibição na presença da
filmadora.
Após essa primeira tentativa, com sucesso, cujo objetivo era estabelecer uma
certa identidade com as crianças, e instalar um clima de conivência global, partimos
para a primeira construção de fantoche e para o surgimento das primeiras CEJs..
segunda etapa (cerca de 10 minutos cada cena)
Nesta fase, o interesse convergiu para jogos de ficção específicos. Ter que
inventar histórias, dramas, com a ajuda de fantoches, espetáculos que retenham a
atenção de um público composto de crianças da mesma idade. É uma tarefa que
responde a regras sociais bem precisas. Tal atividade difere sensivelmente dos jogos de
ficção “livres”. A liberdade criativa existe, certamente, mas ela é enquadrada pelas
coerções inerentes a esta tarefa. Assim, em um jogo de ficção partilhado há, sem dúvida,
a improvisação comum de espetáculos de fantoches, pois as crianças não têm um roteiro
a seguir, o que permite igualmente caracterizar seu universo social. Para nós, o
interesse maior diz respeito às condutas comunicativas da explicação e justificação
vindas do jogo de ficção e da conivência.
Ressaltamos, ainda, que a organização das apresentações foi realizada
progressivamente, através das iniciativas e das tentativas sucessivas de cada uma das
crianças, com ou sem a ajuda do adulto.
Os dados coletados foram transcritos, tendo como referência bibliográfica as normas do
Projeto NURC/SP – Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta de São
Paulo (Preti e Urbano, 1990); (anexo 1).
As cenas transcritas foram organizadas em situações, para facilitar o trabalho.
4.3 As categorias de análise
Neste tópico propomos uma análise descritiva, perceptiva e analítica dos dados que leve
em consideração os aspectos pragmáticos e lingüísticos uma vez que, no teatro de
bonecos, a relação que se estabelece, entre os participantes, geralmente é de natureza
verbal e não-verbal, especialmente quando se trata da identificação das condutas
explicativas/justificativas utilizadas durante o jogo de ficção.
Assim, para a escolha das categorias de análise elegemos como autores nucleares Verba,
Veneziano e Hudelot.
Dentro deste contexto, seguiremos os seguintes critérios operacionais: (a) identificação
das CEJs; (b) identificação dos tipos de encadeamentos promovidos entre explanandum
e explanans, ilustrados a seguir:
Quadro 1
Elementos que norteiam a identidicação das condutas explicativas /
justificativas
Identificação das CEJs
Significado
Identificação de um explanandum Uma ação, acontecimento, enunciado, ato
de linguagem que podem ser considerados
como alguma coisa a ser explicada para
seu alocutário.
Identificação ao menos de um explanans O que, do ponto de vista semântico, é
interpretável como a causa, a motivação, a
razão do explanandum, e não como sua
explicitação.
Apresentação da ordem do explanans e
explanandum
Por definição, o explanandum deve estar
no início da CEJ, a relação deve ir do
explanandum para o explanans, mesmo se,
do ponto de vista enunciativo, o explandum
possa ser enunciado antes do explanans,
possa ser expresso não verbalmente ao
mesmo tempo em que o explanans, ou
ainda estar implícito na verbalização deste.
Comunicação verbal ou não-verbal Tanto o explanans quanto o explandum
podem ser marcados de maneira verbal ou
não-verbal, ou ficar implícito e ser somente
percebido no contexto de comunicação.
Quadro 2
Tipos de encadeamentos promovidos entre explanandum e explanans
Tipos de encadeamentos entre
explanandum e explanans:
Significado
Explanandum e explanans divididos entre
os interlocutores
a) Em resposta a questões apresentando o
morfema “por que”;
b) em resposta a questões que não
apresentam o morfema “por que”;
Auto-encadeamento Explanandum e explanans produzidos por
um mesmo interlocutor.
Encadeamentos reativos Justificações de oposição (protesto, recusa,
negação), de apoio ou concordância com o
parceiro.
Encadeamentos monológicos Quando a criança afirma alguma coisa e
sente, tão logo, a necessidade de justificar,
pensando que o interlocutor poderia colocá-
la em dúvida.
É no processo de interação com o adulto que se concretiza a idéia de tutela
[Bruner(1991), Vygotsky ( 1991), F. François (1990, 1996), Veneziano e Hudelot
(2002), Verba (1999), etc] . Logo , o adulto detém papel privilegiado nesse
funcionamento por sua participação social, afetiva e cognitiva, e suas raízes estão nos
jogos simbólicos da tenra infância (Verba, op. cit.: 15).
Nesta linha, a autora elaborou, para as dinâmicas interativas no jogo simbólico com o
adulto, considerando que este pode promover a qualidade do jogo (Verba, op. cit.), os
seguintes aspectos tutelares:
a) Sustentação da atividade da criança: neste modo de elaboração, é a
criança que constrói o jogo, faz substituições do objeto e/ou propõe as
ideais, coordenando-as por ações de fazer de conta ou comentários. O
adulto mantém a atividade simbólica colocando questões, confirmando
ou interpretando o fazer e o dizer da criança, mas não leva idéias
novas ao jogo.
b) Co-elaboração: o adulto e a criança contribuem ambos para a
elaboração do jogo levando idéias e substituições simbólicas
coordenadas e contribuindo para a compreensão mútua. O adulto
reforça às vezes as produções da criança. A dinâmica é mais aquela
das interações igualitárias que caracterizam as relações simétricas,
cada um dos parceiros tem um papel construtivo no desenvolvimento
do cenário e na gestão da interação.
c) Conduta-participação: nesta forma de tutela, o adulto guia a criança,
propondo ou modelizando uma idéia, explicando e/ou facilitando a
atividade. A criança participa da interação e responde às solicitações
do adulto. Portanto, o jogo é gerado mais por este último e a criança se
apropria das significações e eventualmente relança o jogo.
d) Conduta estrita: constitui uma forma de modelização na qual o adulto
propõe e coordena as substituições e as idéias, sem buscar
particularmente a participação da criança. Geralmente, trata-se do
desenvolvimento individual de um script, de uma mise em scène, ou de
ações de fazer de conta, como se tratasse de fazer um espetáculo ou de
contar uma história. Aqui, a criança participa enquanto observadora e
manifestando seu interesse.
e) Negociação de tema: dinâmica interativa onde há acordo ou não por
um tema ou uma significação proposta. A negociação aparece nas
díades onde a criança está entre o mais velho. Ela manifesta seu
desacordo ao adulto, na medida em que ele tenta se ajustar à idéia de
seu parceiro.
Quadro 3
Tipos de intervenção do adulto no jogo simbôlico
Intervenção do adulto Significado
Sustentação da atividade da criança Adulto mantém a atividade simbôlica da
criança
Co-elaboração Adulto e criança contribuem juntas o jogo
simbôlico
Conduta-participação O adulto guia a criança no jogo simbôlico
Conduta-estrita O adulto controla as substituições e as
idéias
Negociação do tema Acordo ou não sobre o tema ou uma
significação proposta entre o adulto e a
criança
Assim sendo, cabe-nos, neste momento, descrever, comentar e ilustrar
situações, que obedecem a uma ordem cronológica crescente de produções teatrais das
crianças com bonecos.
CAPÍTULO V
ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS
Para identificar os encadeamentos dialógicos no jogo de ficção, que fazem brotar
as condutas explicativas/justificativas, em nosso trabalho, as crianças serão designadas
de C1 até C8 e o adulto por A, sendo que C1, C3, C5 e C7 (meninos) e C2, C4, C6,
C8 (meninas).
Primeira etapa
Situação 1: a conivência (19.02.2003)
Neste exemplo, mostraremos as CEJs que brotam dos pedidos de conivência.
O boneco mais simples foi apresentado para as crianças, elaborado com
saquinho de pipoca. Nesta ocasião, colocamos as mesas, em que as crianças estudam,
juntas, formando uma única mesa retangular para facilitar o processo de construção dos
bonecos. O adulto sentou-se em uma cadeira, na ponta da mesa para melhor conduzir a
interação.
As crianças, 08 no total, receberam, cada uma, um saco de pipoca, e uma
canetinha. A professora (Tia Tamines) gravou a sessão:
1. A: então ... eu vou ensinar a vocês uma coisa mágica ... eu vou paSSAR um ...
um cartãoZI:::nho ... vocês só vão olhar .... então eu vou ensinar a vocês do que a gente
vai brincar .... é só o começo .... eu vou dar pra vocês uma canetinha .... a canetinha ...
eu não sei se ela é MÁgica ... mas ela vai ter que ser ... vou dar uma pra cada um ...não
importa a cor ....tá bom ... então é assim ... eu vou começar ... então o que nós vamos
fazer ... (( faz seu fantoche e mostra para as crianças)) olha que bonitinho... todo
mundo passa a mão nele .... ((solicita que cada criança passe a mão no seu fantoche)) ...
sente assim na pele ((acaricia o fantoche no rosto)) ... oh :::: que gostosinho ... não é
gostosinho? ((gostosinho refere-se ao fantoche que foi produzido com o saco de pipoca))
2. C1: é gelado
3. A: tá gelado ... por que ta geLADO ?
4. C2: tá gelado e quente
5. A: NO::ssa por que tá gelado e quente ... tá gelado por quÊ ((dirigindo o olhar
para outra criança – não a C2))
6. C3: porque sim
7. A: porque sim ... bom eu vou fazer um amiguinho que eu vou brincar com
vocês ... e voCÊ:::s vão brincar comigo ((desenha no saco de pipoca uma boca com
expressão de sorriso, e diz que este será seu amiguinho e explica que todos deverão
fazer o seu amiguinho para poderem brincar – passo a passo coloca nariz, olhos)) ... o
meu amiguinho está feliz ou triste ((mostrando o fantoche, já produzido e encaixado na
mão, para as crianças))
8. Todas as crianças: FE:::li:::z ((olhando para o fantoche de A))
9. A: por que feliz?
10. C4: porque sim ...
11. A: porque sim não é resposta
12. C5: É::: ....É porque ele foi no parcão brincá / ((aproximando-se de A))
13. A: porque ele foi no parcão brincá / por quê? o par:::cão ... é gosTOSO?
14. Todos: É:::
15. A: tá bom ...((termina o fantoche, colocando cabelo, e mostra para todos))
16. C5: põe aqui pra nois vê /
17. A: CALma ... este é o meu amiguinho ... meu amiguinho vai falar com
vocês ...TÁ ... e eu vou embora ((coloca o saco de pipoca na mão e simula o fantoche –
agora é o fantoche que está falando com as crianças e não mais o adulto))
18 A: OI:::: TU:::DO BEM::::
19. Todos: TU:::DO
(( as crianças aceitam a brincadeira e de imediato começam a produzir, da
mesma forma, conforme modelo apresentado por A; embora ainda não saibam,
exatamente, como brincar com os fantoches, já os colocam na mão – pedem ajuda,
mostram o que fizeram))
20. C3: é mágica mesmo ... essa caneta ((ouve-se a voz de uma criança
confirmando o que o adulto havia dito no turno 1))
Comentários:
Nos turnos (1) e (7), o adulto leva, passo a passo, as crianças a construírem o seu
primeiro fantoche. Aconselha, mostra como elas devem proceder. Paralelamente, neste
quadro de tutela de conduta-participação, onde a comunicação verbal e não-verbal (tato)
se processam, a conivência vai sendo praticada por A, pois esta vai implicando as
crianças no discurso (tá bom; todo mundo passa a mão no seu fantoche; sente assim na
pele; não é gostosinho?).
Segundo Rector e Trinta (1995), o tato é a capacidade de tocar e sentir objetos
externos. O toque físico permite um aumento do fluxo e do refluxo das emoções e pode
ajudar no processo de interação.
Temos, então, através da relação de conivência com o comportamento não-
verbal, o surgimento das primeiras CEJs (condutas explicativas/justificativas) nos
turnos (2), (4), e (6) que, embora não respondam a pergunta de A, revelam o saber
promovido pela experiência. Logo, devemos considerar que cada resposta da criança
deva também ser analisada pela adequação de seu conteúdo à realidade do mundo físico,
que ela deve explicar. Nos turnos (2) e (4), temos o argumento tautológico,
característico no discurso da criança (Wallon, 1989).
Segundo Castro (1996), respostas do tipo “porque sim”, encontrada no turno (6),
são respostas circulares, pois mostram a (re)assunção de intenções. Isso porque não há
nelas a retomada explícita de elementos dos turnos precedentes. Há, sim, uma resposta
que apresenta como evidência o próprio fato de ‘estar dizendo’. O ‘dizer’ constitui-se
como argumento do “dito”, ocupando o lugar da justificativa com um “porque eu, ele
disse x, implícito em toda resposta circular.
Em (12), encontramos, novamente, a tutela de conduta-participação, que diante
da recusa de A em aceitar “porque sim”, C5 toma o turno, aproxima-se de A, e cria um
explanans, que justifica o motivo de felicidade do fantoche, fabulando o argumento
utilizado, trazendo para o discurso sua experiência de felicidade, de momento agradável
(“brincar no parcão”), o verbo no passado (“foi”) mostra bem uma manifestação de suas
experiências empíricas, e também não deixa de ser uma resposta egocêntrica, pois está
centrada no prazer lúdico da criança.
Observamos que o discurso promove-se pelo apoio no objeto (personagem
fantoche) e pelas instâncias imaginativas da criança, não havendo encenação.
Curiosamente, no turno (20), quando C3 confirma o ‘poder mágico da caneta’,
dito por A, no turno (1) (que estava no momento procurando a conivência de forma
tácita ou jubilatória com a tutela de conduta-participação e/ou conduta estrita) surge um
caso explícito de confirmação de conivência, pois a criança reitera a fabulação do
adulto, com a sua confirmação e participação.
Situação 2: tentativa de um acordo entre o adulto e as crianças
Aqui, as CEJs surgem por ocasião da primeira tentativa de dramatização com os
fantoches produzidos com o saco de pipoca. A, aos poucos, vai tentando conduzir o
discurso das crianças com a tutela de negociação de tema.
Após esta primeira confecção de fantoches, o adulto convida duas crianças,
sugerindo dois meninos, C1 e C5 para , de pé, apresentarem seus amiguinhos fantoches
para todos da sala. Aceitam sem qualquer revelia – confirmando a conivência. Já, em pé,
um de frente para o outro, em um canto da sala, começam a rir (riso de conivência),
embora pareça não saber o que fazer exatamente, pois é uma situação inusitada para
eles. Embora as crianças brinquem de faz-de-conta constantemente, geralmente não são
observadas por uma platéia. Elas iniciam a cena batendo um fantoche no fantoche do
outro, como se estivessem encenando uma briga.
1. A: mas vocês não vão falar nada... um pro outro ... perguntam o nome ... o que
gostam de faZER::: ((sugere, também, que contem uma historinha))
2. C5: É ... não
3. C1: Você conta ((riso))
4. C5: eu não vou contá/ ((riso))
5. A: ninguém vai contá/ uma historinha .. então fala o nome um do outro
6. C5: qual é o seu nome ? ((tom de voz diferente, como se estivesse, realmente,
falando o personagem, aproximando-se de C2))
7. C1: meu ... ( )
8. C5: o meu é ( ) que faz xixi nas calças (( risos))
9. A: por que faz xixi nas calças o seu amiguinho
10. C5: não... é meu nome ((risos)) ((olhando para A))
11. A: e o Raphael ... fala o que o do Raphael gosta de fazê/
12. C5: o que você gosta de fazê/ ? ((muda tom de voz))
13. C1: ( ) ((risos))
(( os fantoches começam a brigar novamente))
14. A: estão brigando ... por quê?
((C5 aproxima-se de A))
15. C5: você é a mãe ... você tem dois filhos .... ( ) então ... e VO-CÊ tem que
resolvê/ a briga ... é isso
16. A: a mãe resolve a briga Lucas... ah mas a mamãe saiu ... quem está no lugar
é o passarinho ... ele vai ... está/ chorando aqui ... piu ... piu ((risos))
((A sugere chamar outro amiguinho para participar da historinha))
Comentários:
Mesmo diante da recusa das crianças em contar uma historinha, os risos
proporcionam um momento agradável de conivência, pois nenhuma delas se opôs em
ficar em pé, para participar do jogo. E, nos turnos (5), (9), (11) A se manifesta,
tentando estimular a comunicação verbal das crianças com a tutela de negociação do
tema, procurando reação, conivência através de suas solicitações; o que é confirmado,
pois as crianças interagem com A, como mostra o exemplo nos turnos (6), (7), (8)..
Apesar da troca mútua de réplicas, observa-se a ausência de um acordo entre
elas, pois continuam a briga no turno (13). Logo, torna-se necessário, novamente, a
interferência de A no turno (14) com a tutela de conduta-participação, apresentando
uma pergunta com o morfema “por quê”. Como conseqüência, há uma tomada de
consciência por parte de C5, no turno (15), que lhe permite controlar melhor a situação
e resolver a problemática de realização do teatro. Neste momento, surge seu explanans
com encadeamento monológico (justificações de apoio) sob a forma de uma brilhante
construção argumentativa, em que se somam orações coordenadas.
Paralelamente, vale observar que há várias pausas na construção deste
explanans que, segundo a hipótese de Karmiloff-Smith (apud Brandão, 1996:166), são
indicativos de um momento de descentração da criança, tão necessário para a
construção do objeto de conhecimento.
Continuando, ainda que C5 não explique o motivo da briga, tenta criar um
enredo, na medida em que usa o operador argumentativo “então”, provavelmente
(quem sabe !) como um exercício parafrástico mais amplo, indicativo de um momento
no aprendizado ou na construção dos enunciados do tipo conclusivo.
Isto mostra como a criança negocia, através desta atividade lingüístico-cognitiva
(explanans), com o objetivo de conseguir a conivência e a adesão do adulto, chamando-
o a participar da trama.
Dessa forma, vemos os enunciados sendo sucessivamente sustentados pelo
imaginário da criança, como em (15), por exemplo.
Situação 3: conivência sem interação
Nesse episódio, após produção de
fantoches com bola de isopor, foram chamados
dois meninos (C3 e C7), por mais que A
tentasse envolvê-los na trama, a única cena
apresentada era a de luta e, por causa do tom,
não foi possível ouví-los. O mesmo aconteceu,
quando foram chamadas duas meninas (C6 e
C8), e só não houve cena de luta. O que
caracteriza a não descentração das crianças ou,
talvez, a falta de preparação para este tipo de
tarefa e interesse.
Situação 4: (auto-encadeamento) explanandum e explanans produzidos por
um mesmo interlocutor
Para facilitar o início da interação e conivência para uma próxima cena, as
crianças estão produzindo seus personagens fantoches em copos plásticos. Quem
participa, aqui, da filmagem é C3, que produz seu fantoche, onde se nota alguns
detalhes desenhados nos braços do boneco, resultado de alguns talhes feitos pelo adulto.
1. A: o que você está fazendo?
2. C3: ( ) ((alguém diz o nome)) (mackstill)
3. A: o que o seu boneco faz?
4. C3: esse é uma arma ... esse é uma corrente ((apontando para os braços
representados no copo))
5. A: por que ele tem uma corrente?
6. C3: -- porque ele ... pra ... prender o pescoço dos home ... cortar e jogar
quando luta/ ... ele é um lutador do bem
7. A: por que você gosta dele?
8. C3: eu gosto ... porque todo dia eu vejo o filme dele
9. A: muito bem
Comentários:
Neste fragmento, como forma de conferir ou elaborar as CEJs de C3, A procura
a interação através de perguntas do tipo o que no turno (1) e (3), e com perguntas do
tipo por que nos turnos (5) e (7), que, paralelamente, instauram processos dialógicos
sob forma de explanantia produzidos por C3 nos turnos (2), (4), (6) e (8).
Sendo que, no turno (3) A, por não obter resposta de C3, insiste, usando a
mesma pergunta. Logo, consegue, no turno (4), a produção de uma CEJ através de um
encadeamento monológico, embora não explique exatamente o que o boneco faz,
utiliza-se da “metarepresentação” para responder a pergunta de A, imaginando objetos
(corrente, arma) no boneco. No turno (6), faz, novamente, um encadeamento
monológico, justificando o uso do termo “corrente”, pois não consegue responder
usando o conectivo porque. No entanto, mesmo omitindo o conectivo, parece que,
finalmente, a resposta ao por que surge quando explica: “ele é um lutador do bem”.
Enunciados x porque y mostram a linguagem na criança como atividade capaz de
instaurar uma perspectiva que possibilita, entre outras coisas, a interpretação de uma
situação como causa e efeito, o que é exemplificado e confirmado no turno (8) com a
presença, também, de um encadeamento monológico.
Situação 5: a presença das CEJs na tentativa de teatralização
C2 (menina) está com a mão dentro do copo, o qual tem dois braços talhados,
também, pelo adulto.
1. A: como é que chama sua bonequinha?
2. C2: débila ((olhando para o copo))
3. A: débila ... vamos falar com a débila ... o que você gosta de fazer DÉ:::bila?
4. C2: éh:::... ela gosta de abuSÁ/
5. A: de abuSÁ:::
6. C2 éh
7. A: o que..que é abusá/
8. C2: abusá / os Oto
9. A: abusá/ os otros ... isso é bom ou é ruim?
10. C2 :é ruim ... ela gosta de abusa/ os Oto e dumí/
Depois das apresentações, e a conivência global uma vez instaurada, a criança
participa do jogo de ficção, estimulada por A.
No entanto, somente a partir do turno (11), parece haver a teatralização: a
criança muda o tom de voz, como se fosse a boneca, isto é, o personagem falando,
embora A já tivesse feito essa tentativa no turno (3), com uma pergunta dirigida à
boneca ‘débila’, fazendo uso da tutela de sustentação da atividade. Mas quem responde
é C2, que usa o pronome de terceira pessoa “ela”.
Dentro deste contexto, surge o liame entre o jogo de faz-de-conta e as CEJs.
Na tentativa de tornar mais claro o explanandum do turno (4), ou seja, do termo
empregado pela criança (“abusá”), A faz surgir dois explanantia em C2 nos turnos (8) e
(10). Assim, a criança consegue produzir as CEJs, através do termo que parece ser um
verbo transitivo direto e de ação.
Observamos em (10), um encadeamento monológico: “ela gosta de abusá os oto
e dumí”.
11. A: ah::: então vamos conversar um pouquinho com a débila ... débila o que é
abusá/?
12. C2: ah::: éh... Abusá os oto
13. A: debilá por que você não gosta de brinca/ ... você gosta de brincar?
14. C2: gosto
15. A: por que você quer brincar agora
16. C2: Éh:::...brinca/ de ... brinca de carrinho
17. A: bébila ... você gosta de brinca/ de carrinho? Por quê?
18. C2: porque ela tem carrinho ((aqui, os papeis misturam-se, não é mais a
boneca que se expressa, e sim a criança, o adulto tenta trazer a personagem; assim
estaria ensinando a função do fantoche, comunicar-se))
19. A: ah ... então vamos falar para ela falar comigo ... você passou batom hoje
débila? ((a boca da boneca estava vermelha))
20. C2: passou
21. A: que cor você gosta?
22. C2 : de laranja
23. A: por que você gosta de laranja
{ não, rosa (( platéia ))
24. C2: puque ela ... ela tem baton laranja
(( embora o adulto tentasse fazer a personagem falar, quem fala é a criança –
“passou”; “ela tem”))
25. A: éh:::... então vamos ver se ela está bonitinha .... faz ela andar
(( C2 pega o copo e simula a boneca andando, gesticulando com as mãos para os
lados))
Comentários:
Os encadeamentos entre explanandum e explanas contribuem para evocar a
presença da personagem fantoche da criança no discurso com as tutelas de co-
elaboração e de conduta participação.
No turno (11), A faz a mesma pergunta, mas dirigindo-se sempre à personagem
(“débila”). Os explanantia produzidos por C2, por sua vez, estão relacionados com o
mundo social que a rodeia, na medida em que descreve um evento da vida cotidiana
((brincar de carrinho, porque ela tem um carrinho, ela tem baton laranja)), característica
típica dos jogos simbólicos não teatrais, destacados por diversos autores, citados no
quadro teórico.
Contudo, verificamos que a criança reitera o pronome “ela” nos turnos (18) e
(24), quem volta a falar é C2. No turno (25), observamos a conivência de A, marcada
pela avaliação (eh).
A encerra o turno fazendo uma solicitação à criança, que aceita. Estamos diante,
novamente, da metarepresentação e da tutela de co-elaboração, que configuram a
conivência da criança: C2 faz o copo andar, sem qualquer constrangimento, imitando
uma pessoa, no caso a boneca.
Constatamos também a ocorrência das primeiras tentativas de encenações
dramáticas, nessa forma de elaboração imaginária, em que se mostram cenários
tangíveis, isto é, há a presença de elementos materiais disponíveis e parceiros presentes
que, muitas vezes, se tornam cenários virtualizados, na medida em que a linguagem
entrelaça a imaginação e a realidade, e expande a plasticidade e a diversidade das
composições imaginárias.
Cabe-nos ressaltar, ainda, o fato de que essa primeira etapa despertou o interesse
da criança por fantoches, uma vez que ela foi contextualizada.
A tarefa se apresentou rica em sentido, principalmente o de brincar fazendo, e o
de brincar com o que a criança criou. Embora a maioria dos bonecos apresente um
padrão comum e sejam personagens criados por cada uma, exercem papéis sociais
diferentes (filha, lutador, criança etc).
Nessa fase, percebemos que o personagem começa a vir à mente, alguns traços
vão se configurando, pela escolha e colocação de cada detalhe: ora temos personagens
de algum desenho, novela, ora uma boneca que se contextualiza com a experiência de
vida da criança, desejos, fantasias. Há também a identificação do sujeito com o
personagem quando ele está sendo confeccionado, ou quando está falando, através do
fantoche.
Lembrando, mais uma vez, Astington (2003) utiliza o nome metarepresentação
quando a criança já tem consciência e já sabe que está fazendo de conta. Pois, nesse
momento, a presença da “metarepresentação” é extremamente forte. A elaboração dos
bonecos e o brincar com eles proporcionam um clima de conivência global,
aproximando o adulto do mundo infantil. Portanto, não tivemos quaisquer problemas
em criar um ambiente estimulante.
É também nessa primeira etapa que percebemos, na manipulação, no contato
com a expressão corporal da personagem, de acordo com suas particularidades
específicas: se é um guerreiro, o fantoche luta; se é uma boneca, conversa com a colega.
É interessante observar que a criança faz o fantoche se mexer, ela sabe que ela
não precisa sair do lugar para movimentá-lo, tendo já uma atitude consciente do ator-
manipulador, mesmo porque é, no movimento com as mãos, que se encerra a expressão
corporal do fantoche, e a criança assimila muito bem e rapidamente essa técnica, sem
que lhe tenha sido explicada anteriormente a função de um fantoche.
Assim, podemos inferir que a criança é um ser criador em sua essência,
conforme Ostrower (1987:9, 130):
Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo. Em
qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse ‘novo’, de novas
coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos
relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador
abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua vez, a de
relacionar, ordenar, configurar, significar. [...] A criatividade infantil é uma
semente que contém em si tudo o que o adulto vai realizar.
Segunda etapa
Situação 6 (16/04/03): capacidade de interagir com o outro na
dramatização
As crianças, aos pares, estavam sentadas junto às suas mesinhas de estudo, quando o
adulto lhes apresentou os diversos fantoches que trazia em uma grande mala, mostrando
como deveriam ser manipulados.
Foi solicitado a duas crianças a realização do primeiro espetáculo. Um deles já
sabia que deveria existir um biombo, cenário específico para este tipo de trabalho, pois
disse que tinha ido ao parque da Mônica e lá tinha assistido à apresentação dos
fantoches, embora nunca tivesse participado efetivamente da realização, e que
deveriam se esconder, para que só os bonecos aparecessem. Mas, na ausência do
biombo, sugeriu que se abaixassem, para que aparecessem só as mãos, movimentando
os bonecos sobre uma mesa.
Nesta situação, a questão foi de como fazer para que as crianças inventassem
historinhas, dramas, por conta própria. Então, lhes foi solicitado que criassem
“palavrinhas mágicas”, lembrando-se do encadeamento de palavras para a formação de
histórias, segundo Rodari (1982). Esse processo consiste em se dizer qualquer palavra e,
a partir dela, criar-se uma história. O adulto sugeriu, então, que as crianças dissessem
quaisquer palavras. Elas escolheram borboleta, sapo e tubarão.
Nos primeiros momentos, houve o completo encantamento das crianças pelos
bonecos.
C3 e C5 foram chamados para fazer o espetáculo, “a palavra mágica” escolhida
pela platéia foi borboletinha, que esperava ansiosa pelo show, em silêncio.
C5 escolheu o fantoche leão; C3 escolheu o fantoche dinossauro.
1. C3: onte eu vi uma borboleti:::nha
2. C5: aonde ?
3. C3: lá::: ... no canteiro da minha mãe
4. C5: então vamo/ lá
5. C3: tá bom .... mas você tem ... é :::: mas ... a borboletinha foge se você pega/
ela
6. C5: deixa comigo
7. C3: então pega uma vara
8. C5: (( desaparece da cena))
9. C3: ah::: mas por que ele foi embora? ... por quê? ... por quê? ... por quê?
((as crianças mudam de fantoche, C5 pega o rinoceronte, C3 pega a Emília – o
adulto se manifesta, pois as crianças estão demorando para retornarem à história))
10. A: cadê a borboletinha que vocês estavam procuRANdo ?
11. C3: tava no canteiro de minha avó ... ei ... você não repete ((bate na Emília
com o dinossauro, bravo, como se a personagem Emília estivesse imitando, repetindo a
fala do dinossauro))
12. C5: Éh... você não repete ((bate com o rinoceronte na Emília))
13. C3: é ... ela tava no canteiro de minha avó... quando eu fui pegá/ ... ela foi ...
emBORA
14. A: ah::: mas por que ela foi embora?
15. C3: porque sim - - e você gorducho ... o que você ta fazendo ai embaixo?
((C5 estava mudando de fantoche, aparece com o leão, e bate com o leão no
dinossauro))
16. C3: tá bom gorduchão ... desculpa ... o que você come gorduchão?
17. C5: eu só vi que eu quero faze/ xixi
18. C3: ((dirige seu fantoche para a platéia)) ei ... quem viu a borboleta?
19. Todas: EU:::
20. Alguém da platéia: eu sei ... ela ta lá na casa da Luana ... você não sabe ...
mas ela morreu
21. C3: eu não vi nada dela morri
22. Alguém da platéia: mas ela ta lá na casa dela
23. C3: eu não vi NADA
((nesse momento a sala fica barulhenta, o adulto vê-se obrigado a interferir))
24. A: oh seu leão ... o que é borboletinha?
25. C5: borboleta voa
26. A: borboleta voa ... qual a diferença de borboletinha e de leão?
27. C5: ah::: eu não sei não
28. A: seu rinoceronte ... qual a diferença de borboletinha e::: e... e::: rinoceronte?
29. C3: borboletinha vua
((C3 pega o fantoche Emília e começa a gritar, C5 não consegue falar))
Comentários:
As crianças aceitaram imediatamente o tema sugerido pela platéia
(“borboletinha”). O que surpreende, sobretudo, é a rapidez com a qual as duas crianças
se põem de acordo sobre o tema a ser desenvolvido.
Dada sua pouca idade, elas não preparam o espetáculo, como fariam as crianças
mais velhas: elas não anunciam o conteúdo do teatro que vão apresentar.
É no modo de improvisação, trocando as primeiras réplicas, que encontram a
inspiração necessária, que lhes permite desenvolver o tema proposto.
Assim sendo, é C3 que inicia a dramatização, ao mesmo tempo em que C5
aceita a afirmação dada pelo seu personagem dinossauro, quando indaga, no turno (2),
“aonde” estava a borboletinha, faz elipse da oração, que também pressupõe a conivência
de C5.
No turno (3) C3 participa e esclarece que a borboleta estava no canteiro da avó
dele, e C5 propõe irem até o canteiro da avó.
Estamos diante da primeira CEJ presente na dramatização das crianças, que foi
desencadeada pelo explanandum no turno (2), indispensável para a realização de um
explanans, conforme propõem Veneziano e Hudelot (op. cit).
Diante dos acontecimentos, no turno (5), através do operador argumentativo
mas, que antecipa uma conduta explicativa/justificativa, C3 tenta explicar que não dá
para pegar a borboleta.
O jogo dramático é realizado, as CEJs então presentes no desenrolar da história,
haja vista que elas só aparecem diante de um contexto, e são marcadas pelo empirismo
das crianças, pelo faz-de-conta, nos encadeamentos dialógicos, tornando a dramatização
viva.
Piaget (op. cit: 205) observou que os primeiros por que parecem de ordem mais
afetiva que intelectual, isto é, em lugar de manifestar uma curiosidade verdadeira,
atentam mais a decepção que produz a ausência de um objeto desejado ou a não
realização de um acontecimento esperado; no turno (9), quando a criança repete “por
que” três vezes, parece-nos que está mostrando seu descontentamento pela ausência de
seu colega na cena, e essa reiteração lexical não seria para saber a causa, ou motivo do
desaparecimento de C5.
E, lembrando Vygotsky: quando a criança toma posse dos significados
expressos pela linguagem, os aplica a seu universo de conhecimentos sobre o mundo, a
seu modo particular de recortar sua experiência. (Oliveira, 1993: 49), o que pode ser
visto nos turnos (11), (13), (20), (22).
Enfim, as CEJs aparecem no jogo de ficção para informar seu interlocutor,
partilhando com ele a significação de sua ficção, e fazendo-o, assim, participar da
encenação teatral, da qual o adulto só é um expectador.
A partir do turno (24), A interfere, tutela de conduta-participação, fazendo uma
espécie de desafio cognitivo para as crianças e perguntando aos personagens animais “o
que é borboletinha” Neste caso, as crianças justificam com explanantia, que podemos
inferir como sendo aquisições referentes às suas experiências empíricas.
Situação 7 (28.04.2003): compartilhando o “espaço potencial”
Nesta apresentação, C5 escolheu dois fantoches: Dinossauro e Leão. Ele anima
os dois, e consegue fazê-los representar dois papéis, como se fossem dois colegas
conversando naturalmente. C5 está sentado em uma cadeira, em frente das outras
crianças, que estão sentadas no chão, esperando o espetáculo começar. A encenação
teatral foi feita com uma criança animando dois bonecos, um em cada mão, por
solicitação delas mesmas.
Dois fantoches foram escolhidos ao acaso, e se tornaram um “binômio
fantástico”, nesta representação teatral, que atraiu a atenção da platéia, e motivou sua
participação no espetáculo.
Na escola, as crianças estavam vivendo a semana das frutas, elas estavam
conhecendo cheiro e formato através de desenhos e pinturas, bem como comendo-as em
saladas feitas por elas mesmas, sob orientação da professora.
É muito importante observamos que, nesta etapa, as crianças parecem estar
prontas para produzir espetáculos com fantoche, como assinalamos na situação 5. Agora,
as solicitações do adulto dão lugar às de outras crianças.
Portanto, usaremos D para representar o personagem dinossauro, e L para
representar o personagem leão.
Produção teatral de C5: “o caso do moranguinho”
1. D: cadê o moranguinho? ((perguntando para a platéia)) ... eu vô procurá/ ((cai
da cadeira de propósito e a platéia ri muito))
((retorna para a cadeira))
2. D: ((olhando para L)) quem comeu o moranguinho aquí?
3. Platéia: Eu::: CO:::MI ... eu também ((a platéia responde no lugar do
fantoche leão))
4. D: vai dá/ dô/ de barriga
5. Platéia: não ... depende ... poque ... oh dinossauro ... dinossauro ... ta/ qui no
meu coração
6. D: então me devolve
7. Platéia: não::: não ... NÃO
8. D: então eu vou procura/ Oto ... chauzinho
((esconde os fantoches em baixo da cadeira e cai no chão, todos riem; retorna
com o rinoceronte e o dinossauro))
9. R: o que ... você comeu?... você sim ((olhando para o dinossauro))
((o personagem “dinossauro” bate no personagem rinoceronte, e C5 cai no chão
novamente provocando risos, retorna para a cadeira e diz para a platéia “fim”))
Comentários:
Em primeiro lugar, como coloca Melo (op. cit), as crianças sabem aplicar a
estrutura da narrativa dentro do padrão: início, meio, e fim. Podemos verificar que C5
faz uso desta estrutura: procura a fruta, cria um conflito a cerca do desaparecimento do
“moranquinho”, descobre quem o comeu, e termina o enredo, utilisando o léxico “fim”.
Em segundo lugar, a brincadeira elaborada, através do faz-de-conta, do aparecer
e desaparecer dos personagens, do cair no chão, instaura o riso, o riso de conivência da
platéia. Como afirma François (op. cit), há, neste determinado momento da interação,
uma sintonia tácita e jubilatória entre os interlocutores promovida pela comunicação
verbal, não-verbal e paraverbal e, porque não dizer, pelo compartilhar do “espaço
potencial” (Winnicott, op. cit.) de cada criança que está brincando de contar histórias.
Além disso, um tipo de comunhão afetiva aparece também entre as crianças,
suas atitudes exprimem a alegria que sentem em participar da brincadeira com
fantoches. Poder-se-ia dizer que essas encenações teatrais traduzem um estado de
cumplicidade emocional.
Quanto à criação das histórias, Hisada ( op. cit.: 35) relata-nos que:
[...] o importante não é o fato de serem histórias novas ou não, mas de
ganharem vida através da presença do ser humano contador de histórias e
da arte de contá-las. O fundamental é a presença do ser humano, narrador,
em contato com outros seres humanos. É uma experiência comunicável que
pode enriquecer a experiência do indivíduo no mundo, pois o contar
histórias resgata uma das formas mais antigas de transmissão da experiência
humana, através do encontro entre o contador e o ouvinte. É a presença da
comunicação na presença de outro ser humano.
Paralelamente, temos também, neste contexto, as CEJs cambiadas entre os
fantoches e a platéia, provocando encadeamentos entre explanandum e explanans,
deixando-nos claro que houve comunicação entre as crianças, que elas se entenderam,
mesmo sem terem tido qualquer tipo de ensaio, ou terem combinado algo, por
antecipação, antes da realização do evento. Podemos inferir também que elas souberam
reconhecer estados internos da outra criança, fazendo com que a dramatização ocorresse,
até mesmo, com coerência, através da partilha dos pontos de vista e das concepções.
Assim, ao observarmos os encadeamentos, constatamos que, no turno (3), temos
um explanandum que provocou a realização de um explanans no turno (4) que, por sua
vez, é também um explanandum que, no turno (5), desencadeou uma explicação causal
fornecida por alguém da platéia.
Situação 8 (05/05/03) – CEJs em vista de um acordo sobre o tema no faz-de-
conta
Quem participa do espetáculo são as crianças C5 com o fantoche leão (L) e com
o fantoche dinossauro (D) e C4 com o fantoche rinoceronte (R) e Emília (E). As
crianças estão ajoelhadas atrás de uma mesinha.
1.R: você viu a dona Emília?
2.L: eu não ... eu só quero ... eu só quero que eu sei ... eu só quero faze/ xixi
3.R: ah::: então eu vou lá procurá/ ela (( C4 se abaixa))
4. L: e... eu vou fazê/ xixi (( C5 vai para debaixo da mesa))
5.R: ((aparece novamente)) cadê? ((fica andando com o fantoche pela mesa,
como se estivesse realmente procurando Emília))
6. A: cadê a palavrinha má:::gica ... SA:::po seu Rino ... cadê o SA:::po ...
porque o senhor vai contar a historinha do sapo para nós
((nesse momento, A interfere para trazer as crianças novamente para o teatro; faz
uso do léxico sapo, pois antes do show começar, as crianças já haviam decidido acerca
do tema))
7. R: o sapo saiu ... ele ta lá na água nadando na piscina DE:::lê
8. A: mas o sapo nada na piscina?
9. R: não ... ele nada .... ele nada na lagoa dele
((C5 aparece com o fantoche dinossauro e começa a bater no rinoceronte))
10. C5: pá ... pá
11. C4: [ pá .... pá
12. A: seu rino ... vocês não vão contar a historinha do SA:::po?
13. R: que?
14. A: a historinha do Sapo
15. L: eu não vou contá/ nada não
16. R: eu vou vê/ se... se a dona Emília chegou .... tcha:::u
17. L: tchau
((C4 diz para C5 que ele tem que falar, ela pega o fantoche Emília e coloca-a em
cima da mesa))
18. C4: olha a dona Emília alí:::
19. A: oh::: dona Emília... você não vai falá/ dona Emília?
20. E: VO::: ... espera
21. L: eu que vou falá/
22. E: hoje eu não to bo:::a ... to::: morrendo de dô/ de cabe:::ça ... eu não tô/
agüentando mais
23. L: então deixa eu falá/
24. E: tchau ... tchau ((Emília e o leão brigam pela vez de falar, mas quem se
despede é Emília. C4 sai com a Emília, mexendo a mão para lá e para cá, como se a
boneca estivesse andando))
((C4 volta com dois fantoches animas um deles é o jacaré (J) para continuar sua
brincadeira de faz-de-conta e pede para o fantoche de C5 sair))
25. L: eu não vou sair nada
26. J: tá bom ... eu vou fazê xixi... tchau gen:::te ((C4 abaixa o fantoche e diz
que voltou))
27. [ voltei
((C4 pede para C5 continuar))
28. D: oi Zé Mané ((C5 está com o dinossauro))
29. A: oi seu dinossauro... cadê seu filhinho?
30. D: eh::: foi embora
31. A: NO:::ssa ... mas por que ele foi embora?
32. D: eu ... ... morreu
33. A: morreu ... e você não está triste?
34. D: eu não
35. A: então levanta para eu ver você direito ... levanta para todos o dinossauro
((nesse momento a mão de C5 está caída com o fantoche na mesa, então A solicita que
C5 retorne a posição do jogo, muitas vezes as crianças esquecem de deixar a mão
ereta)) ... você não vai contar uma historinha para todo mundo?
36. D: ah::: eu não vou não
37. Platéia: é do jacaré tia
((C5 recusa fazer o show, a contar a historinha))
38. Platéia [ vai ...
(( a platéia solicita a C5 a continuação da brincadeira, mas C5 não conta
histórias, fica brincando de lutar com os fantoches))
39. Platéia: borboletinha tá na cozinha prá fazê ( )
((então, diante da postura de C5, as crianças da platéia começam a cantar uma
música))
Comentários:
Durante este breve episódio, o que A parece buscar é o entendimento entre as
crianças para representarem, com seus fantoches, uma dramatização acerca do tema
proposto.
Nestes termos, as crianças se mostram coniventes, para trabalharem juntas, ao
partilharem movimentos cúmplices, com retomada das mesmas ações e das mesmas
réplicas, mas não se mostram coniventes acerca do tema a ser tratado (sapo), como
podemos observar nos turnos (6), (7), (8), (9), (12), (13), (14), (15), onde vislumbramos
a tutela de negociação de tema.
Assim, explanandum e explanans são utilizados pelos interlocutores em
resposta a questões que não apresentam o morfema “por que”, como por exemplo nos
turnos (7), (9), (13), (15).
Sendo que, ainda nos turnos (7) e (9) temos encadeamentos monológicos com
apoio em ações de cenas, que podemos chamar de virtuais (nadando na piscina dele ;
ele nada na lagoa dele). A imaginação concretiza-se através do léxico ‘nadar’, sem o
apoio em qualquer cenário real. É o que Flavell (op. cit.) coloca-nos como sendo o
estágio mais complexo do jogo de faz-de-conta.
As réplicas continuam dentro do jogo. Nos turnos (21), (23), (25) L parece tentar
dominar a cena, mas quem se coloca é E nos turnos (20), (22), (24), (26), Sendo que no
turno (22) temos um encadeamento monológico e em (23) um encadeamento reativo.
Em (27), C4 passa o turno para C5, e quem interage, no decorrer do evento, é A,
que faz uso da tutela de conduta-participação.
As crianças brincam, dentro de um cenário imaginário, e concretizam o
pensamento através da linguagem verbal e não-verbal, mostrando-nos suas CEJs, suas
estratégias de persuasão.
Enfim, elas mostram-nos os resultados das dinâmicas interativas observadas nos
encadeamentos seqüenciais de comportamentos e nas produções lingüísticas/simbólicas
e, segundo Garvey e Berndt (1977), os jogos de ficção coletivos exigem dos seus
participantes competência comunicativa e representações sociais comuns.
Diante dos dados analisados, retomamos aqui, no quadro 4, as intervenções do
adulto (A) no jogo simbólico:
Quadro 4
Tipos de tutela simbôlica do adulto no jogo de ficção
Tutela simbólica 1ª etapa
nº de ocorrência %
2ª etapa
nº de ocorrência %
Sustentação da atividade da
criança
10 28% 06 40%
Co-elaboração 03 8% 0 0%
Conduta-participação ou
ampla
18 50% 06 40%
Conduta-estrita 02 6% 0 0%
Negociação do tema 03 8% 03 20%
Nº total de ocorrências 36 100% 15 100%
De maneira geral, notamos que nos dois momentos de coleta de dados, as CEJs
aparecem durante o processo de interação: criança-adulto, criança-criança, criança-
boneco, boneco-boneco e mostrou-nos que a intervenção do adulto, no jogo simbólico, é
muito maior na primeira etapa do que na segunda etapa ( 36 ocorrências na 1ª etapa e 15
ocorrências na 2ª etapa), o que nos leva a inferir que tenha funcionado mais como
estímulo e exercício de uma série de atividades reflexivas na criança, no momento da
descentração, isto é, da passagem da ficção para o real.
No quadro seguinte, temos as CEJs que brotam da primeira e segunda etapas.
Quadro 5
CEJs que brotam da primeira e segunda etapas
Tipos de CEJs
Primeira etapa
Segunda etapa
meninos e meninas Nº de ocorrência % nº de ocorrência %
explanandum e explanans
divididos entre os
interlocutores (adulto-
criança; criança-criança)
25 62%
Auto-encadeamento 02 5% 03 6%
encadeamento reativo 07 18% 18 36%
encadeamento monológico 06 15% 09 18%
nº total de ocorrências 40 100% 49 100%
Ao refletirmos sobre a teoria de (1) Piaget (1999), que defende o ponto de vista
da maturação cognitiva da criança como responsável pelo maior ou menor desempenho
no processo de compreensão e produção de conceitos, concluímos que é através da
ação que a criança constrói seu pensamento, seu conhecimento; (2) Vygotsky (1991),
admite que o social desempenha um papel no desenvolvimento da criança, um papel
enfatizado, quando o autor propõe as noções de “mediação e zona de desenvolvimento
proximal”, isto é, quando a criança aprende inicialmente em cooperação com outro,
depois sozinha; e (3) a teoria de Wallon (1989), que defende o fato da gênese da
inteligência ser genética e organicamente social, ou seja, o ser humano é
organicamente social e sua estrutura orgânica supõe a intervenção da cultura para se
atualizar (conforme Dantas, 1990). Logo, podemos inferir que o desenvolvimento da
criança é resultado tanto da maturação quanto das condições oferecidas pelo ambiente ,
em que ela vive.
Nesta direção, podemos perceber que o número de CEJs é relevante nas duas
etapas. Contudo, as CEJs espontâneas aparecem em maior número na segunda etapa,
quando considera-se que explanandum e explanans, divididos entre os interlocutores,
destacam-se na primeira etapa.
No quadro 6, retomanos as CEJs resultantes da conivência.
Quadro 6
A conivência
conivência
CEJs – meninos e meninas
Nº de ocorrências %
conivência
com o
adulto
10 53%
conivência
com outra
criança
09 47%
Nº total de
ocorrências
19 100%
Os resultados mostram a conivência presente, no momento de partilha do prazer
conversacional, tanto entre criança-adulto, quanto entre criança-criança.
Nesta atividade, as crianças mostram que podem realizar experiências comuns,
partilhar emoções e sentimentos, compreender e entrar em negociação com o outro. É,
através desta cumplicidade mútua com o adulto e com outra criança, que vão se
construindo as CEJs.
No quadro 7, retomamos as CEJs observadas durante o jogo simbólico.
Quadro 7
As CEJs que brotam das CSs
Condutas simbólicas (CSs)
CSs
____________________
nº de ocorência %
CEJs
_________________
nº de ocorrências %
substituição: atribuição de
significações a um objeto.
06 8% 06 10%
Idéia de ficção ou idéia
teatral: evento ou estado
expresso pela ação e/ou
pela linguagem constitutiva
da história.
49 66%
46 77%
coordenação intra ou
interindividual: condutas
simbólicas sucessivas
religadas em relação ao
tema (fazer o boneco cair,
sair de cena, brincar, andar
etc)
19 26%
08 13%
Nº total de ocorrências 74 100% 60 100%
Aquí, os resultados mostram-nos que o jogo simbôlico tem uma contribuição
muito expressiva para o surgimento das CEJs.
A dramatização constitui, assim, mais do que um objeto da própria atividade,
mas um expressivo gesto acompanhado pela fala.
CONCLUSÕES
Este é o momento de (re)afirmar ou (re)pensar as intenções e comentar o
resultado de nossa pesquisa.
Um caminho possível seria retomar as questões que nortearam o
desenvolvimento de cada capítulo.
1ª questão: inicialmente faremos uma reflexão sobre o porquê e quando as
crianças explicam.
(a) Verificamos que a etapa de construção de fantoches é importante para o
aprendizado, no que diz respeito ao compartilhar e desenvolver saberes, onde temos
mais explicações do tipo não espontâneas: o adulto induz as produções de explanantia
nas crianças, quando este introduz múltiplas questões, que configuram a organização
dominante do discurso e estão ligadas à exploração dos personagens pela criança,
proporcionando um exercício cognitivo e exercitando habilidades comunicativas.
(b) Na etapa de utilização de fantoches industrializados, a intervenção do adulto
no jogo de ficção é menor, as CEJs espontâneas aparecem, entre as crianças, durante o
processo de teatralização, mostrando-nos sua capacidade de interagir, improvisar, criar,
enfim, de mostrar seu mundo simbólico e seu imaginário através da linguagem.
(c) Os encadeamentos do tipo monológico, reativo e os auto-encadeamentos
identificados no discurso dos sujeitos, acabam desencadeando um contexto reflexivo, no
sentido de busca de solução de algum impasse criado, seja pelo adulto ou pela criança.
Paralelamente, o tipo ou a maneira de desenvolvimento da segunda etapa,
conciliada com o processo de desenvolvimento e interação, observado na primeira etapa,
favorece a presença menor da intervenção do adulto, e contribuem para o florescimento
de um número maior de CEJs do tipo espontâneo no discurso da criança.
Portanto, neste contexto, não podemos valorizar uma etapa em detrimento da
outra. A CEJ é uma conduta eminentemente social, amplamente dependente das
condições de comunicação e interlocução, igualmente tributária de um desenvolvimento
de saber-fazer e de saberes sociocognitivos.
2ª questão: em seguida, somos levados a pensar no potencial pragmático das
CEJs., isto é, como as crianças agem sobre a linguagem, quando fornecem explicações
para o outro. É neste momento que repensamos as condutas simbólicas, com base em
três itens.
(a) O processo de imaginar, criar uma dramatização, onde os personagens
animais se tornam protagonistas de uma história livre, em que a criança é convidada a
colocar-se diante de outras crianças e a usar os fantoches, exige muito mais delas, na
medida em que precisam ter um certo controle sobre a encenação narrativa, para que
possa ocorrer efetivamente o jogo teatral. Ela está diante de uma platéia, buscando a
convivência com seu parceiro de atuação ou com seu público.
(b) O uso de personagens “fantoches” possibilita e permite o exercício de
fantasias e favorece a prática de liberdades, uma vez que elementos da trama são
extraídos da história pessoal da criança e são vividos no plano do imaginário.
(c) Paralelamente, constatamos também que a criança através do imaginário,
além de ampliar suas possibilidades de interação e de partilhar significações com o
outro, acaba criando vínculos entre o mundo e ela.
Este conjunto de fatos nos mostra como é importante que, no currículo escolar, o
engajamento ativo seja solicitado à criança no processo de aquisição de conhecimentos.
Nestes termos, longe de propor uma metodologia de aprendizado de forma meramente
tradicional, estamos preocupados com o aluno vivo, que possa estar preparado para a
vida e não para o mero acúmulo de informações, que experiências na escola tenha
significações no mundo da criança, e que esse mundo também seja visto e praticado
dentro da escola.
Assim, a postura acadêmica do professor deve garantir a agilidade do aluno.
Algo deve ser feito para que possa ampliar seus referenciais de mundo e trabalhar,
simultaneamente, com todas as linguagens (escrita, sonora, dramática, corporal, etc).
Neste sentido, defendemos a idéia de que os jogos de ficção são instrumentos
estruturantes no desenvolvimento das crianças pequenas, levando-as a refletir sobre o
mundo social e a adquirir um certo número de conhecimentos psicossociais e
lingüísticos. Além disso, sabemos que a atividade simbólica partilhada enriquece o
imaginário, e permite à criança aguçar o raciocínio, aprimorar sua comunicação, no
confronto com o outro, etc.
Como sugere Flavell (1999: 71), “o faz-de-conta pode auxiliar no
desenvolvimento social e sócio-cognitivo, bem como no crescimento no sentido mais
amplo. (...) pode ser um precursor para o entendimento da mente (...)”.
Sem dúvida, este trabalho servirá como ponto de partida para a abertura de
outras trilhas. Assim, na seqüência, são vislumbradas algumas questões pertinentes, em
termos de engajamento com pesquisas futuras:
a) os encadeamentos monológicos, ou auto-encadeamentos, fornecem
pistas valiosas para compreendermos a mente da criança;
b) no jogo de ficção, a criança é encorajada a exprimir suas intenções,
crenças e seus desejos.
Finalmente, na 3ª questão, constatamos que a situação de interação no jogo com
fantoches favorece sim o desenvolvimento e/ou a produção discursiva infantil, na
medida em que se instaura uma conivência global ou discursiva , ou melhor, uma
interação entre sujeito/discurso/explicação.
Portanto, a atividade lúdica praticada pela criança reúne forças inesgotáveis nos
mais diferentes domínios. O exame atento das produções infantis no jogo de ficção e no
quadro de conivência confirma a aptidão teatral da criança.
Ainda no que concerne à linguagem oral, e de acordo com Melo (2003), quanto
mais a criança puder falar em situações diferentes, como contar o que lhes aconteceu em
casa, contar histórias, explicar um jogo, por exemplo, mais poderá desenvolver sua
capacidade comunicativa de maneira significativa.
Enfim, o presente trabalho nos leva a fazer algumas projeções de caráter prático
sobre a utilização da CEJ em jogo de ficção pela criança em idade pré-escolar.
Uma primeira projeção é de que ela deve ter significado para essas crianças, ou
melhor, deve ser algo de que necessitam para o desenvolvimento geral e deveria ser
praticada nas escolas.
Uma segunda projeção é de que os jogos teatrais entre crianças e adulto,
deveriam ser um componente curricular permanente nas escolas.
Uma terceira projeção é a necessidade de haver mais trocas intersubjetivas no
processo educativo, com o olhar voltado para o incentivo da imaginação e do imaginário.
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Imago, 1971:63, 1975.
ANEXO 1: Normas para transcrição dos exemplos
OCORRÊNCIAS SINAIS EXEMPLIFICAÇÃO
Incompreensão de palavras ou
segmentos
( )
Do nível de renda...( )
nível de renda nominal...
Hipótese do que se ouviu (hipótese)
(estou) meio preocupado (com o
gravador)
Truncamento (havendo
homografia, usa-se acento
indicativo da tônica e/ou timbre)
/ e comé/ e reinicia
Entoação enfática maiúscula
porque as pessoas reTÊM
moeda
Prolongamento de vogal e
consoante (como s, r)
:: podendo aumentar para ::::
ou mais
Ao emprestarem os... éh::: ...o
dinheiro
Silabação - por motivo tran-sa-ção
Interrogação ? Eo Banco... Central... certo?
Qualquer pausa ...
são três motivos... ou três
razões... que fazem com que se
retenha moeda... existe uma...
retenção
Comentários descritivos do
transcritor
((minúsculas)) ((tossiu))
Comentários que quebram a
seqüência temática da
exposição; desvio temático
-- --
... a demanda de moeda --
vamos dar essa notação --
demanda de moeda por motivo
Superposição, simultaneidade
de vozes
{ ligando as linhas
A. na [ casa da sua irmã
B. sexta-feira?
A. fizeram [ lá...
B. cozinharam lá?
Indicação de que a fala foi
tomada ou interrompida em
determinado ponto. Não no seu
início, por ex.
(...) (...) nós vimos que existem...
Citações literais ou leituras de
textos, durante a gravação
" "
Pedro Lima... ah escreve na
ocasião... "O cinema falado em
língua estrangeira não precisa
de nenhuma baRREIra entre
nós"...
Observações:
1. Iniciais maiúsculas: só para nomes próprios ou para siglas (USP etc.)
2. Fáticos: ah, éh, eh, ahn, ehn, uhn, tá (não por está: tá? você está brava?)
3. Nomes de obras ou nomes comuns estrangeiros são grifados.
4. Números: por extenso.
5. Não se indica o ponto de exclamação (frase exclamativa).
6. Não se anota o cadenciamento da frase.
7. Podem-se combinar sinais. Por exemplo: oh:::... (alongamento e pausa).
8. Não se utilizam sinais de pausa, típicos da língua escrita, como ponto-e-vírgula, ponto final, dois
pontos, vírgula. As reticências marcam qualquer tipo de pausa.
ANEXO 2: Fantoche elaborado com saco de pipoca – Lucas (4;9)
ANEXO 3: Crianças elaborando fantoches
ANEXO 4: Dedoches
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