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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
ANA CAROLINA MONTE PROCÓPIO DE ARAÚJO
A DIALÉTICA ESTADO-DIREITOS HUMANOS:
LIMITES E POSSIBILIDADES
São Paulo
2008
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ANA CAROLINA MONTE PROCÓPIO DE ARAÚJO
A DIALÉTICA ESTADO-DIREITOS HUMANOS:
LIMITES E POSSIBILIDADES
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Direito Político e
Econômico da Universidade
Presbiteriana Mackenzie como
requisito parcial para obtenção do
Título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Ari Marcelo
Solon
São Paulo
2008
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ANA CAROLINA MONTE PROCÓPIO DE ARAÚJO
A DIALÉTICA ESTADO-DIREITOS HUMANOS: LIMITES
E POSSIBILIDADES
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação
“Stricto Sensu” em Direito Político e
Econômico da Universidade
Presbiteriana Mackenzie como
requisito parcial para obtenção do
Título de Mestre.
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Ari Marcelo Solon – Orientador
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dr. Alysson Leandro Mascaro
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dr. Márcio Bilharinho Naves
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
Ao meu amado filho Hermano.
Ao meu companheiro-cúmplice Damião.
Agradeço a todos – e foram tantos – que, com
carinho e paciência, me deram apoio e incentivo
para que eu pudesse levar a cabo este trabalho.
Acima de tudo, agradeço a todos e a cada um
que, pela crítica oportuna, ora até dura, mas
apropriada – como deve ser a amorosa crítica –
me ajudaram a manter direcionado à frente o
lume que eu quis acender.
Caminante, no hay camino.
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás,
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Antonio Machado
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante a liberdade
será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
Thiago de Mello
RESUMO
O estado e os direitos humanos guardam entre si íntima conexão. As várias formas
estatais contemporâneas concordam com o discurso de proteção desses direitos,
mas o próprio Estado é hoje seu principal violador. A era contemporânea é herdeira
do pensamento jurídico e político da modernidade iluminista, em especial de sua
vertente positivista. A desigualdade social do capitalismo, disfarçada pela igualdade
meramente formal, reproduz um processo de reificação do ser humano, equiparado
a mera mercadoria. Nesse contexto, os direitos humanos representam uma forma de
resistência ao sistema mas a mera defesa de direitos estabelecidos, ou a busca
de novos direitos, não deve levar a perder de vista o horizonte mais amplo e
estrutural de busca da igualdade efetiva. Hoje a luta é para impedir o retrocesso dos
direitos humanos, mas sempre dentro dos limites do poder do estado que, retirado o
véu mistificador da institucionalidade supostamente neutra, é o poder das classes
dominantes. Em um futuro contexto social não dividido em classes e caracterizado
por uma vivência social igualitária, a expressão direitos humanos soará como uma
excentricidade antiga e ultrapassada, sem sentido, pois seu desfrute será um dado
do cotidiano e verdadeiramente universal.
Palavras-chave: Estado, Direitos Humanos, Modernidade, Iluminismo, Razão,
Desigualdade Social, Classes Sociais, Neoliberalismo.
ABSTRACT
State and human rights keep close connection between them. The many
contemporary state forms agree with the speech of protection of these rights, but the
State itself is today its main violator. The contemporary age is heiress of the legal
and policitical thought of enlightened modernity, in special of its positivist source.
Capitalistic social inequality, disguised by only formal equality, reproduces a process
of reification of the human being, equalized to mere merchandise. In this context,
human rights represent a form of resistance to the system but the mere defense of
rights already established, or the search of new rights, shall not lead to lose of sight
the amplest and estructural horizon of search of efective equality. Today the fight is
to hinder the human rights retrocession, but always inside the limits of State power
that, removed the mystifying veil of the supposedly neutral institucionality, it is the
power of the ruling classes. In a future social context, not divided in classes and
characterized for an equalitarian social experience, the expression “human rights” will
sound as an old and exceeded eccentricity, meaningless, therefore its enjoyment will
be daily and truly universal.
Keywords: State, Human Rights, Modernity, Enlightment, Reason, Social Inequality,
Social Classes, Neoliberalism.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................11
CAPÍTULO I – Das sociedades comunais primitivas às sociedades de classes.......15
1. Sociedades comunais primitivas. Sedentarização e advento da propriedade
privada. Surgimento do Estado e das classes sociais. .....................................15
2. Estados antigos. Escravismo. ...........................................................................20
3. Nostalgia do Paraíso perdido............................................................................26
CAPÍTULO II – Estado – Origens e Fator de Poder..................................................29
1. Considerações sobre as origens e concepções do Estado...............................29
II.1.a – Metafísica Kantiana ..............................................................................31
II.1.b – Idealismo hegeliano ..............................................................................32
II.1.c – Materialismo de Marx............................................................................34
CAPÍTULO III – Herdeiros da Modernidade ..............................................................39
1. O movimento iluminista.....................................................................................39
2. Do jusnaturalismo ao positivismo jurídico .........................................................44
3. Contratualismo..................................................................................................48
4. Legalidade – Universalidade e individualidade .................................................54
5. Direito, Estado e Ideologia ................................................................................60
6. Saldo da Modernidade ......................................................................................64
CAPÍTULO IV – Evolução dos Direitos Humanos e Cartas de Direitos.....................67
1. Gênese dos Direitos Humanos: Advento das Declarações de Direitos e
Constitucionalização.........................................................................................67
2. Cartas e Constituições – Documentos de Formalização de Direitos.................71
IV.2.a – Declaração de Direitos do Bom Povo de Virginia – EUA, 1776 .......71
IV.2.b – Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – França, 1789 .72
IV.2.c – Revolução Mexicana – México, 1917 ..............................................74
IV.2.d – Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado – Rússia,
1918.................................................................................................74
IV.2.e – Constituição de Weimar – Alemanha, 1919.....................................77
IV.2.f – Declaração Universal dos Direitos Humanos – ONU, 1948.............78
IV.2.g – Declaração de Viena – ONU, 1993 .....................................................82
CAPÍTULO V – Do Estado Liberal ao Estado Neoliberal – Relação com os Direitos
Humanos...................................................................................................................84
1. Liberalismo Econômico .....................................................................................84
2. Do Estado Liberal ao Estado Neoliberal ...........................................................88
3. Perspectivas para os Direitos Humanos – Limites e Possibilidades .................99
CONCLUSÃO..........................................................................................................103
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................108
INTRODUÇÃO
A idéia de lutar por direitos é tão antiga quanto o surgimento da
História e contemporânea do seu segundo modo social de produção
1
, o escravismo.
A expressão e o conceito de direitos humanos, porém, são muito mais recentes.
Surgem a partir das revoluções burguesas que tiveram lugar no mundo ocidental nos
séculos XVII, XVIII e XIX. Tais revoluções mudaram a face do mundo, posto que
assentaram o ponto final do processo de extinção do feudalismo e ensejaram a
implantação definitiva do capitalismo então nascente.
Não é por acaso que os direitos humanos encontraram seu
nascedouro precisamente a partir do movimento revolucionário burguês e no seio da
sociedade capitalista. A conexão, longe de ser contraditória, é evidente e
necessária.
As revoluções burguesas do c. XVIII deixaram como legado,
entre tantas outras coisas, o Estado Moderno. A postulação pelos direitos humanos,
tal como os concebemos hoje, é decorrência lógica desse modelo de estado. Não se
pode entender o conjunto das garantias de direito sem adentrar no contexto histórico
concernente ao período revolucionário, ao surgimento do modelo econômico
capitalista e à conseqüente necessidade de instituição de uma legalidade
homogênea e garantidora de direitos
2
.
O presente estudo centra-se na trajetória e na íntima conexão
entre a prática dos direitos humanos e os diferentes modelos de estados que, não
obstante suas divergências radicais, convergem quanto ao discurso de proteção
àqueles, o que não se estende, na maior parte das vezes, à sua defesa. Ao
contrário, examinar-se-á como o papel do estado tem sido efetivo no que diz
respeito ao enfraquecimento da prática dos direitos humanos em todo o mundo,
inclusive aqueles ditos de primeira geração direitos civis e políticos
1
O primeiro modo social de produção foi o comunismo primitivo.
2
Não obstante o fato de o Estado e os direitos humanos terem suas características atuais firmadas
na Modernidade, a análise do Estado será feita a partir de seu surgimento histórico, com a superação
do comunismo primitivo. Isto para permitir uma visão histórica do ente estatal e do seu papel na
sociedade, uma vez que, malgrado as diferentes aparências que com que se apresentou ao longo do
tempo, mantém o traço essencial de representar e servir aos interesses da classe social dominante,
embora se apresente como instituição universal e neutra.
12
tradicionalmente o baluarte dos países mais desenvolvidos economicamente,
situados no centro do mundo capitalista.
A Filosofia do Direito, por sua vez, tem um claro papel na
trajetória da implantação dos direitos humanos, ora alavancando sua prática, ora
justificando o conservadorismo inibidor da efetivação desses direitos, em prol das
classes dominantes. A concepção de direito natural que prevaleceu no Iluminismo e
que esteve no cerne do movimento revolucionário francês de 1789 cumpriu a função
de legitimar o movimento revolucionário e instaurar a igualdade legal, fruto da
“razão”. Papel muito diverso desempenha a filosofia da práxis, que prega
entendimento e ação. Essa interação filosófica e suas implicações com o estado e
as lutas por conquistas de direitos estão também presentes neste estudo.
A idade contemporânea, pelo menos quanto ao direito, é herdeira
do pensamento da modernidade. Várias categorias e institutos que permanecem
ordenando a sociedade hoje têm suas raízes na modernidade iluminista.
A universalização da legalidade, por exemplo, não teve o condão
de tornar os seres efetivamente iguais, mas apenas de garantir que a lei os trataria
assim (o que também não se revelou verdadeiro, basta ver o problema do voto
censitário, da negação de voto à mulher por longo tempo, isso para falar apenas em
exemplos de direitos políticos).
Como as garantias políticas não implicam de fato em libertação
humana, conforme o confirma o histórico da sociedade nos últimos trezentos anos, a
luta pela implementação dos direitos humanos é tão atual quanto o foi a luta pela
positivação desses direitos a partir da era das revoluções burguesas.
O ente estatal é o palco onde se desenrolam os conflitos entre a
supremacia de classes e tentativa de libertação, daí sua importância para a
compreensão do tema. A opção pela visão de conjunto deveu-se ao entendimento
de que as realidades cio-cultural, econômica e filosófica estavam de tal modo
imbricadas que a exposição dos problemas atinentes à efetivação deficiente dos
direitos humanos e à atuação do estado na sociedade, ontem e hoje, seria mais
clara se mais abrangente, dada a indivisibilidade dos fenômenos sociais.
O olhar para a instituição estatal alongado no tempo revela sua
indissociável ligação com o desenrolar histórico. Daí suas modificações do Estado
teocrático ao Estado liberal, do Estado social ao Estado autoritário; a História
justifica o porquê de cada um deles. Do comunismo primitivo das sociedades sem
13
classe e sem estado, pautadas pela solidariedade e pelo igualitarismo social ao
modelo contemporâneo de Estado Neoliberal, passando pelo Estado Moderno
individualista e liberal, as transformações coincidem com as formas de predomínio
social presentes nos diferentes modos de produção e com as circunstâncias
históricas.
Por outro lado, embora de forma majoritária a luta por mudanças
sociais diga respeito aos problemas derivados das desigualdades sócio-econômicas,
outras lutas em andamento que não se relacionam, ao menos de forma imediata,
com essa realidade. É o caso das lutas de gênero, raciais e das homoafetivas, por
exemplo.
3
Nesse contexto, importa perquirir qual é o real papel dos direitos
humanos. Por um lado, configuram resistência à dominação e não se pode
desconsiderar suas conquistas desejadas e necessárias, fruto de lutas contra o
sistema. Por outro lado, se se entender que as lutas sociais devem se restringir à
conquista de novos direitos positivados, perde-se de vista o horizonte mais amplo,
de busca da igualdade efetiva.
É possível entender que a luta pela implementação dos direitos
humanos cujo rol não é estanque, mas sofre modificações determinadas pelas
necessidades históricas alavancam a mobilização popular e sustentam a
resistência à exacerbação capitalista. Mas não é menos verdadeira a consideração
de que essa luta por pequenos espaços pode levar ao conformismo e à acomodação
que perpetua a situação atual ao deixar de enfrentar o problema maior,
determinante, que reside na desigualdade social e no predomínio de uma classe que
se serve do estado como instrumento para realização de seus interesses.
Daí a atualidade do problema do estado em confronto com os
direitos humanos, que o reconhecidos e deveriam ser garantidos por esse
mesmo ente. um papel dúplice do estado que pode ser compreendido tendo
em vista a correlação das forças sociais em conflito em cada momento, a qual
permite ou veda a conquista e a efetivação de novos direitos. Não se pode ter,
contudo, a ilusão de que a realização dos direitos humanos hoje reconhecidos e dos
que ainda estão em busca do reconhecimento legal ainda que houvesse essa
3
Embora não se possa afastar, mesmo nessas questões, vestígios ou evidências mais fortes de
diferenças classistas em sua base.
14
efetivação plena em algum lugar, resolveria em definitivo a questão da convivência
social.
O tema se presta aos mais acalorados debates, a depender da
visão de mundo por que se lhe olhe. Para debatê-lo com a abrangência que lhe é
própria, optou-se por uma análise transdisciplinar a fim de procurar inserir vários dos
aspectos que compõem o problema, bem como realçar aspectos que facilitem sua
investigação.
CAPÍTULO I – Das sociedades comunais primitivas às sociedades
de classes
1. Sociedades comunais primitivas. Sedentarização e advento
da propriedade privada. Surgimento do Estado e das classes
sociais
4
.
O estado não é, ao contrário do que pode parecer nos tempos
atuais, uma instituição eterna, que sempre tenha existido
5
. Houve um tempo em que
os grupamentos sociais regiam-se de acordo com regras próprias que não eram
ditadas e impostas por um ente externo àqueles. Nesses tempos mais recuados da
história, as relações de troca, no sentido econômico, inexistiam ou eram o-
somente esporádicas, pois a produtividade do trabalho humano era tão precária que
cada pessoa mal conseguia produzir o indispensável para a sua sobrevivência e a
de seu núcleo familiar. Essa precariedade fez com que as inúmeras tarefas
imprescindíveis para assegurar os meios de sobrevivência se tomassem viáveis
mediante a cooperação e a solidariedade grupal. Conseqüentemente, clãs, tribos e
grupos nômades eram organizados de modo igualitário a partir da apropriação
coletiva dos recursos da natureza – em especial, das fontes de água e das áreas de
coleta e caça; o trabalho e o seu fruto eram divididos de acordo com a tradição e as
necessidades de cada um, o e eventual excedente do fruto do labor constituía um
fundo de reserva que não era ainda propriedade de uma classe dominante
6
. De tudo
isso resultava a harmonia social no interior de cada grupo.
A alvorada da História do homem sobre a Terra aponta o caráter
coletivo da sociedade e das relações humanas então vigentes. Essa foi a fase do
4
Este item 1 referencia-se majoritariamente na obra de Engels “A Origem da Família, da Propriedade
Privada e do Estado”. Conquanto várias das assertivas de Morgan, nas quais se baseia o livro de
Engels, sabem-se revistas pela moderna antropologia marxista, procurou-se o essencial do que
descrito pela obra acima: a existência de uma sociedade comunal primitiva em que inexistiam classes
sociais e Estado e a passagem desse modelo ao regime patriarcal, masculino, de divisão da
sociedade em classes e do governo de todos por uma autoridade superior, na realidade, um
instrumento para a consolidação e mantença da dominação de classes.
5
MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. 2ª edição – Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 128.
6
BLOCH, Ernest. Natural Law and Human Dignity. Cambridge: MIT Press, 1988, p. 268.
16
comunismo primitivo
7
, do matrimônio por grupos
8
e do direito materno
9
.
10
Em tal
momento histórico, das antigas sociedades tribais gentílicas, desconhecia-se a
propriedade privada e a divisão das pessoas em segmentos sociais distintos
11
. Da
mesma forma, eram desconhecidos o Estado e o direito. O poder era exercido
diretamente pela própria comunidade, que contava com um chefe por ela escolhido,
cuja autoridade assentava-se principalmente em sua respeitabilidade moral.
Essa época foi o matriarcado, momento histórico caracterizado
pela igualdade entre os seres humanos em convívio, especificamente uma igualdade
axiológica (que é a de que importa tratar), que as funções na tribo eram divididas
de forma diferenciada entre seus integrantes. Em tal ambiente, imperavam a paz e a
segurança, posto que fundado no princípio da solidariedade social e no qual inexistia
uma autoridade superior e destacada dos integrantes da comunidade. Bloch refere-
se a essa época como “primordial era humana anterior à divisão do trabalho, em que
‘meu’ e ‘seu’ ainda não haviam aparecido.”.
12
Tal fase, que passou a habitar o imaginário humano como
símbolo de uma era de paz e justiça, é associada às figuras da mãe e da mulher. O
matriarcado coincide com a época dos cultos às deusas primordiais Gaia, Ísis,
Ceres –, da reverência à Mãe Terra
13
. O feminino é nascimento, alimento, vida, e por
isso a figura da mulher é cultuada e respeitada.
Esse poder feminino, contudo, não constituía uma ginecocracia no
sentido político, mas apenas no religioso. Todo o respeito era devido à mulher, mas
as tribos eram dirigidas pelos homens e as associações entre eles existiram durante
o matriarcado
14
, o que confirma que este não foi uma organização política, mas um
modo de organização social baseado na convivência entre iguais, no acolhimento,
na fartura e na eqüidade.
Da mesma forma que os mitos refletiram esse sistema de
produção e organização da sociedade, também um correspondente mitológico
7
ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 2ª edição – São
Paulo: Centauro Editora, 2004, pp. 51/52.
8
idem,p. 36.
9
ibidem ,p. 45.
10
Concordamos com a restrição que Engels faz à expressão direito materno, visto que naquele
momento não havia ainda propriamente um sistema jurídico tal como o entendemos hoje.
11
ENGELS, F. op. cit., pp. 170/172.
12
BLOCH, E., op. cit., p. 4.
13
idem, op. cit., p. 101.
14
ibidem, pp. 99/100.
17
para a transição do matriarcado para o patriarcado, marcando o fim da forma
comunal primitiva da existência. Bloch retoma o mito de Orestes
15
, relacionando-o
com o ocaso da predominância feminina e a consolidação do poder masculino.
Orestes representa a lei nova, o poder do homem que se afirma
sobre a vida da própria mãe. As Eumênides e sua busca de vingança representam o
respeito à lei antiga, matriarcal, e a decisão dos deuses absolvendo o homicida da
própria mãe dizem respeito ao advento do poder patriarcal, a nova lei.
Esse mito reflete o momento em que a velha ordem matriarcal
deu lugar a um novo regime e a um novo modo de produção social em que,
superada a eqüidade, instalou-se em seu lugar a desigualdade e a exploração.
Tão logo os meios de sobrevivência experimentaram
aperfeiçoamentos submissão de animais para tração ou carga, controle da
produção do fogo, invenção do arco e flecha, desenvolvimento de técnicas agrícolas
não tão rudimentares, entre outros a produtividade individual expandiu-se. Surgiu
a figura do excedente econômico possível de ser acumulado para consumo
posterior. Com ele, as relações de trocas deixaram de ser eventuais, surgindo,
inclusive, a especialização do trabalho humano
16
. A primitiva divisão do trabalho foi
se expandindo e esse foi um dos fatores fundamentais da divisão da sociedade em
classes - processo agudizado pela consolidação estatal como instrumento de
predomínio de um grupo social.
Com a sedentarização propiciada pelo desenvolvimento da
agricultura, o excedente produzido
17
foi o germe da noção de propriedade privada.
Fez-se sentir nesse momento a conveniência da escravização humana porque
15
Orestes era filho de Agamenon e Clitemnestra. Ao ir para a Guerra de Tróia a fim de resgatar
Helena, Agamenon matou uma corça da deusa Ártemis e esta exigiu-lhe o sacrifício de sua filha
Ifigênia para reparar a ofensa. Agamenon concordou em matar sua filha Ifigênia, mas a deusa
Artêmis resgatou-a na hora do sacrifício e salvou-a da morte, levando-a para seu templo. O pai e
todos os demais, contudo, acharam que Ifigênia havia sido morta no sacrifício. Sua mãe, ao saber da
desgraçada notícia, juntou-se a Egisto, de quem se fez amante, e tramou a morte de Agamenon,
tendo sucesso na empresa. Electra, outra de suas filhas, enviou seu irmão Orestes para ser criado na
corte do rei Estrófio, seu tio, a fim de que este fosse poupado por Egisto, que temia-se viesse matar
aquele que poderia vingar a morte do pai. Orestes cresceu em segurança e efetivamente vingou-se
do padrasto e da mãe, matando-os, por orientação do deus Apolo e com o apoio de sua irmã Electra.
Ao fazê-lo, passou a ser perseguido pelas Erínias ou Eumênides, as deusas da vingança que exigiam
punição para o matricida, pois a lei de então determinava que os crimes de sangue entre familiares
fossem punidos com a morte. Orestes é, então, submetido a julgamento pelos deuses do Olimpo e
por fim absolvido, a partir do voto da de desempate da deusa Atena, irmã de Apolo.
Cfr. SCHWAB, Gustav. As mais belas Histórias da Antiguidade Clássica – Vol. II. Rio de Janeiro:
Editora Paz e Terra, 2002, pp. 28/38 e 255/278.
16
ENGELS, F., op. cit., pp. 166/170 e 176.
17
idem, p. 57.
18
propiciava maior produção e apropriação privada de excedentes à custa de trabalho
alheio. Em decorrência, aos poucos aquele modo comunal-primitivo de organização
social foi sendo substituído pelo escravismo. Isto porque, no modelo anterior, dada a
baixa produtividade do trabalho humano, não faria qualquer sentido a captura e
submissão de pessoas à condição de escravos. A grandeza do regime da gens e
também a sua limitação é que nele não cabiam a dominação e a servidão.
18
.
Surgiam, portanto, pela primeira vez na história da humanidade, sociedades
baseadas na divisão em classes sociais (escravos e senhores de escravos),
conectadas inevitavelmente à neófita noção de propriedade privada dos meios de
produção: propriedade de escravos, propriedade da terra para os escravos
trabalharem.
À pergunta sobre o motivo da ruína das sociedades tribais
primitivas e do seu modo comunal de produção social pode ser respondida, segundo
Bloch, com uma expressão: desigualdade na propriedade dos meios de produção
19
.
Nesse momento, as relações sociais tinham seu curso
definitivamente modificado. Impossível voltar ao regime da gens diante da produção
individual e da exploração do homem por seu semelhante
20
. O curso das
modificações tornou-se incessante: desapareceu o matrimônio por grupos e o
matrimônio sindiásmico
21
e foi instituída a monogamia (na prática somente para as
mulheres) a fim de que os homens pudessem ter certeza da paternidade e, assim,
transmitissem seu patrimônio apenas aos seus filhos sangüíneos
22
. O casamento e
as relações amorosas deixaram de ser de âmbito exclusivamente privado para
assumirem uma feição pública, sujeitos à intervenção legal
23
. Por fim, instaurou-se o
Estado.
A coincidência entre a forma de família monogâmica submetida
ao poder masculino e a formação da instituição estatal não se deveu ao acaso; foi,
18
ENGELS, F., op. cit., p. 165.
19
BLOCH, E., op. cit., p. 270.
20
Importa notar também que nesse momento da história humana não se poderia sequer imaginar a
idéia de “direitos humanos”. Tal noção soaria absurda no seio das sociedades comunais primitivas,
uma vez que ali praticava-se a igualdade substancial, sem divisão entre classes, entre ricos e pobres,
entre intelectuais e trabalhadores manuais, sem opressão de gênero. Todos tinham os mesmos
direitos e deveres. Como poderiam entender a luta por direitos humanos? Essa só vai surgir e fazer
sentido a partir do momento em que se inicia a opressão humana e os que sofrem com esse estado
de coisas rebelam-se e lutam para serem tratados como ... humanos.
21
ENGELS, F. op. cit., pp. 56 e 83, 49/50.
22
idem, pp. 59/61.
23
BLOCH, E., op. cit., p. 267.
19
antes, conseqüência do mesmo fator o surgimento da propriedade privada e,
conseqüentemente, da apropriação individual de riquezas. O homem
(especificamente os seres do sexo masculino) passou, a partir desse momento, a
assumir o poder privado e a dominar também o espaço público
24
. Entrou em cena o
patriarcalismo. Suas características e conseqüências fogem ao escopo deste
trabalho, justificando-se sua citação apenas para localizar as circunstâncias que
propiciaram o surgimento do ente estatal, ainda que em sua forma embrionária, que
somente atingiu seu estágio mais acabado a partir das revoluções burguesas
iniciadas no século XVII.
A partir da primeira forma de dominação, que foi a do homem
sobre a mulher nos tempos imemoriais do início da era civilizada
25
, com o fim do
direito materno e sua substituição pelo direito paterno
26
, a história social do ser
humano tem se mantido como uma história de opressão. A cisão em classes e a
dominação de umas sobre outras é uma constante da História.
Resumindo: a riqueza passa a ser valorizada e respeitada como bem
supremo e as antigas instituições da gens são pervertidas para justificar-se
a aquisição de riquezas pelo roubo e pela violência; faltava apenas uma
coisa: uma instituição que não assegurasse as novas riquezas
individuais contra as tradições comunistas da constituição gentílica, que não
consagrasse a propriedade privada, antes tão pouco estimada, e fizesse
dessa consagração santificadora o objetivo mais elevado da comunidade
humana, mas também imprimisse o selo geral do reconhecimento da
sociedade às novas formas de aquisição da propriedade, que se
desenvolviam umas sobre as outras a acumulação, portanto, cada vez
mais acelerada, das riquezas –; uma instituição que, em uma palavra, o
perpetuasse a nascente divisão da sociedade em classes, mas também
o direito da classe possuidora explorar a não-possuidora e o domínio da
primeira sobre a segunda. E essa instituição nasceu. Inventou-se o
Estado.
27
O surgimento da instituição estatal, desde os seus primórdios até
o modelo complexo da modernidade – que permanece até hoje –, observou o
antagonismo entre classes sociais
28
. Sobre tal base foi fundada e se mantém, posto
24
ENGELS, F. op. cit., pp. 58/60.
25
idem, p. 70.
26
Para Bloch, “até hoje o casamento burguês contém resíduos do poder patriarcal, patronal sobre a
mulher e, ainda mais, sobre as crianças” (tradução livre), op. cit., p. 267.
27
ENGELS, F. op. cit., pp. 111/112.
28
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996,
p. 43.
20
que a diferença entre os integrantes dos diversos segmentos na sociedade
29
é
pressuposto da idéia de Estado como instrumento de atuação do poder político do
grupo social predominante
30
. Portanto, ao invés de representar a força superior ao
homem individual que permite e regula a ordem social, como os estudos jurídicos
costumam pregar, o Estado é a resultante de vetores antagônicos em luta na
sociedade, sendo a expressão de poder do grupo mais forte.
2. Estados antigos. Escravismo.
Ainda no tempo das gens, cujos vestígios encontram-se em todo
o mundo antigo, tanto no Oriente, como no Ocidente (assim como, atualmente, em
pequenos grupos humanos ainda isolados encontrados na Amazônia, Sibéria, África
Central etc.), a formação social era fundamentada no grupo familiar (considerado de
maneira extensa). Naquela fase, não existia ainda uma autoridade pública geral e
superior aos grupos humanos reunidos em torno da origem familiar. Portanto, eram
as regras estabelecidas pelas famílias que conduziam as relações sociais. Em tal
momento histórico, direito e religião estavam fundidos e sua vivência era
administrada pelo chefe da família em cada lar. Pela própria organização
comunitária, explicava-se esse regime social. Familiares eram os deuses, o culto e a
religião, bem como a moral e a justiça, de índole restrita a esse pequeno grupo. A
família englobava todas as necessidades da vida humana, materiais e espirituais. As
normas sociais seguidas advinham desse modo de vida, tais como a propriedade
coletiva e familiar da terra
31
.
Todo esse regime ruiu com o advento do Estado e a necessidade
de reordenação da vida social
32
. O enfraquecimento das gens e de seu modelo
familiar cedeu espaço ao crescimento de uma autoridade pública e unitária, a fim de
disciplinar as relações sociais que se mostravam antagônicas a partir do
29
Bloch afirma que “a instituição do Estado como tal é mantida graças à divisão econômica dos
homens, a qual foi estabelecida logo após o comunismo primitivo.” (tradução livre), op. cit., p. 274).
30
ENGELS, F. op.cit, p. 176.
31
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1981, pp. 115/116.
32
É claro que tal processo deu-se paulatinamente, à medida que foram se alterando as bases sociais.
21
escravismo. O patriarcado havia superado o matriarcado
33
. Considerando, porém,
que as transformações históricas ocorrem, primeiro, como processos cumulativos
(havendo, certamente, “saltos de qualidade”, mas apenas nos momentos de ruptura
revolucionária entre modos de produção), remanesceram, mesmo no patriarcado
escravista regido pelo Estado, condutas religiosas oriundas do antigo sistema
familiar. Assim, por exemplo, os escravos passavam a fazer parte da família do seu
senhor e, nessa condição, tinham que render culto aos deuses domésticos destes.
Eram integrados, portanto, na religião familiar, ao preço de não terem sua liberdade
e identidade anteriores. Sua vida passava a ser, inclusive espiritualmente, ligada à
do seu senhor
34
.
Essa “miscigenação” de regimes refletia-se na sociedade: o
regime familiar ia progressivamente se abrindo ao espaço social, mas velhas
práticas continuavam e continuariam por muito tempo em vigor. Assim é que a
religião, antes praticada no seio doméstico e prestada aos deuses familiares, ganha
uma dimensão geral, abrangendo toda a sociedade com a concentração de poder no
Estado.
Toda a estrutura social foi modificada, mas a base da orientação
das pessoas seguiu sendo a religiosa. A idéia religiosa foi, entre os antigos, o sopro
inspirador e organizador da sociedade.
35
Daí porque as primeiras formações
estatais caracterizaram-se pelo escravismo e pela teocracia. Os Estados antigos
exerciam seu poder e sua autoridade sobre os habitantes do seu território
36
aplicando-lhes a lei temporal e atuando também como instância religiosa.
Todas as grandes civilizações da Antigüidade basearam-se, em
graus maiores ou menores, no trabalho escravo ou semi-escravo. Roma
universalizou em seus vastos domínios esse modo de organização da sociedade e
da economia e até a Grécia, conhecida como berço da democracia, também foi uma
33
Veja-se o que disse o historiador Fustel de Coulanges, op. cit.,p. 92: “Graças à religião doméstica,
a família era um pequeno corpo organizado, uma pequena sociedade com o seu chefe e o seu
governo. Coisa alguma, na nossa sociedade moderna, nos dá uma idéia deste poder paternal. Nesta
antigüidade, o pai não é somente o homem forte protegendo os seus e tendo também a autoridade de
fazer-se obedecer: o pai é, além disso, o sacerdote, o herdeiro do lar, o continuador dos avós, o
tronco dos descendentes, o depositário dos ritos misteriosos do culto e das fórmulas secretas da
oração. Toda a religião reside no pai.” E todo o sistema social residia na religião. O senhor, o pai e
marido era, portanto, o centro da autoridade das sociedades patriarcais primitivas.
34
COULANGES, F., op. cit., pp. 117/118.
35
idem, p. 137.
36
Deixamos de usar o termo ‘cidadão’ porque tem conotação restrita, que não se aplicava a todos os
habitantes das Cidades ou Estados antigos.
22
sociedade escravista.
Havia uma verdadeira fusão entre as dimensões civil e
transcendental. A vida cotidiana era marcada pelos ritos e obrigações religiosas e
isso determinava o convívio social. Segundo Fustel de Coulanges:
O Estado antigo não obedecia a um sacerdócio, mas à sua própria religião,
que era quem o sujeitava. Este Estado e esta religião achavam-se tão
inteiramente confundidos um no outro que se torna impossível não fazer
uma idéia de conflito entre ambos, como até diferençá-los entre si.
37
Esse modelo civilizatório em que o Estado e a religião estão
interligados teve o condão de penetrar em todas as esferas da vida humana, do que
adveio um modelo de Estado forte, ao qual tudo e todos se subordinavam e que
representava a totalidade, a autoridade, a onipotência. O cidadão (e também
aqueles que não eram cidadãos) estava em tudo sujeito às ordens estatais, de
natureza a um só tempo laica e mística.
A autoridade estatal antiga afigurar-se-nos-ia hoje insuportável,
tamanha a sua ingerência na esfera individual. Por isso mesmo, não se concebia a
idéia de direitos ou liberdades individuais na Antigüidade. O imperioso era obedecer
ao Estado, que detinha um poder absoluto acima dos seus integrantes; poder sobre
suas vidas, inclusive.
Dois exemplos ilustram esse poder ilimitado:
- Quando Herodes recebeu a notícia de que havia nascido um rei
entre os judeus e tendo ficado receoso de perder o poder, estimou
aproximadamente a data em que tal fato deveria ter ocorrido e determinou a morte
de todas as crianças de até dois anos em seu reino, a fim de eliminar o possível
futuro rei dos judeus
38
. Sua ordem foi cumprida, com a morte de milhares de
crianças em nome do poder e da autoridade do chefe de Estado.
- Outra passagem histórica notável é a do julgamento de
Sócrates. Acusado de corromper a mocidade, foi condenado à morte e, mesmo
sabendo-se inocente, acatou a decisão que o ordenou suicidar-se mediante a
ingestão voluntária de cicuta. Sócrates tinha consciência da injustiça da sua
condenação, mas aceitou-a e recusou-se a fugir, como lhe haviam aconselhado
37
COULANGES, F., op. cit., p. 175.
38
Mt, 2: 1-18.
23
alguns amigos, em respeito à autoridade do Estado, em observância justamente às
normas que ele havia sido acusado de desprezar.
A noção de liberdade dos povos antigos difere, pois, radicalmente
da atual, pautada pela Modernidade
39
. Tal liberdade antiga seria vista, hoje, como
submissão ao despotismo. Seu caráter coletivo contrapõe-se frontalmente à noção
individualista da liberdade moderna e não comporta a idéia de garantia ou de direitos
fundamentais individuais
40
. Não havia um núcleo básico de direitos ínsitos ao ser
humano. Ao contrário, lícito era tudo o que emanado do Estado, autoridade
suprema. A moral era o que ditado pela autoridade pública.
Também os conceitos de felicidade e de justiça encontravam
significado se considerados na coletividade. A felicidade individual e a medida do
justo eram aferidas pela medida do bem-estar geral. Somente no meio social o
indivíduo se tornava pleno. A liberdade antiga, portanto, era um atributo de natureza
política
41
, não individual.
Esta liberdade grega, medida pela polis e que atrela os homens à própria
polis, faz entender, como preceito fundamental da liberdade antiga, a
igualdade. A liberdade antiga se exerce na polis, pela política, mas políticos
são homens iguais entre si. A igualdade, no fundo, é a balança da liberdade
antiga, é seu alicerce. Os diferentes escravos, mulheres, estrangeiros
não são livres e, pode-se dizer, o o são porque são diferentes. (...) O
virtus in medium que os medievais extraem como bordão aristotélico quer
também dizer respeito à impossibilidade de justiça, de virtudes e de
liberdade nos extremos, nos desiguais. A liberdade é para os que não
destoam, os que não estão nos extremos, mas estão no mesmo meio.
42
Entre os antigos, a noção de direito era vinculada à prática da
eqüidade, amparada no senso de justiça (segundo o entender das classes
dominantes) a ser aplicado a cada caso. A Régua de Lesbos significava o uso de
medidas diversas a depender das circunstâncias
43
. Privilegiava-se a justiça (do
mesmo ponto de vista acima) in casu em desfavor da aplicação técnica das normas,
pois a compreensão de direito ligava-se ao justo, não ao legal.
39
Examinar-se-á com mais vagar, adiante, essa diferença entre a liberdade dos antigos e a dos
modernos.
40
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. edição, tiragem São Paulo:
Malheiros Editores, 2004, p. 147.
41
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Política – a Justiça é possível. São
Paulo: Editora Atlas, 2003, p. 43.
42
idem, p. 44.
43
MASCARO, Alysson Leandro. Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro. São Paulo: Quartier
Latin, 2003, p. 37.
24
Os Estados antigos que formam a base da civilização ocidental,
Grécia e Roma especialmente, legaram à contemporaneidade instrumentos que até
hoje se mantêm em vigor, com a contradição interna a eles inerente.
É lugar-comum a afirmação de que a democracia nasceu na
Magna Grécia, que concebeu e praticou o governo do povo pelo povo. É preciso,
porém, observar os limites e as circunstâncias de tal prática.
À época da democracia ateniense, uma parte, minoritária, dos
seus habitantes eram considerados cidadãos
44
; portanto somente estes tinham
direito a voz e voto no que diz respeito à condução dos negócios públicos. O berço
da democracia praticava-a de forma restrita, pois as mulheres, os escravos e os
estrangeiros estavam excluídos das deliberações sobre os negócios públicos, o que
limitava as discussões da Ágora apenas aos atenienses que fossem livres (logo,
proprietários) e do sexo masculino.
Para poderem dedicar-se ao exercício da condução da Cidade, os
gregos relegavam aos escravos a realização dos trabalhos manuais, pesados,
considerados ocupação inferior. Ao homem educado, proprietário, ao senhor, enfim,
estava reservado o trabalho intelectual, especialmente a organização da polis.
Essa radical separação entre os cidadãos e os não-cidadãos,
sendo apenas àqueles permitido o exercício e a deliberação sobre a vida na polis
permite a conclusão de que a concepção grega de democracia era a de um governo
feito pelo povo, (leia-se: pelo conjunto dos membros masculinos das classes
dominantes), mas não para o povo em geral (idéia, aliás, que somente irá aparecer
séculos mais tarde no pensamento ocidental
45
), mas sim segundo os interesses
daquela pequena parcela dominante.
Com os gregos inaugurou-se o pensamento racional e uma teoria
também racional do Estado
46
. Não obstante o afirmado acerca da imbricação entre
Estado e religião, é certo que os gregos puseram-se a pensar sobre o Estado e sua
relação com o indivíduo, o que não quer dizer que todas essas teorias racionais
44
ARISTÓTELES, A Política. 2ª edição, 3ª tiragem – São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002, pp.
41/47.
45
MERQUIOR, José Guilherme. Da Democracia entre os antigos e modernos. O Estado de o
Paulo, São Paulo, 25 jan.1981. Disponível em: http://jgmerquior.motime.com/. Acesso em 26
mai.2008.
46
CASSIRER, Ernst. O Mito do Estado. São Paulo: Códex, 2003, p. 75.
25
tivessem encontrado lugar na prática, ou que o pensamento mítico e gico tivesse
sido deixado de lado
47
.
Os romanos, também escravistas, tinham uma sociedade que
guardava muitas semelhanças com a grega no que diz respeito à organização
social, inclusive quanto à divisão social de trabalho. Curioso, contudo, observar que
os romanos, à exceção do direito, poucas contribuições deixaram na esfera
intelectual
48
. Voltada para o exercício da dominação de outros povos e conquista de
territórios, Roma produziu, por esse motivo, instituições jurídicas refinadas e grandes
obras de engenharia civil. Tal fato não deve ser visto como mera coincidência; ao
contrário, a relação é clara e auto-explicativa. O Estado romano era escravista e
imperialista, empenhado na conquista de mais territórios para o saque, o comércio e
o recolhimento de tributos, numa sociedade marcada por profundas diferenças
sociais (escravos e senhores; patrícios e plebeus; cidadãos e estrangeiros) e de
gênero, refletidas no exercício (limitado) da cidadania. Por caracterizar-se como um
Estado em que o comércio estava razoavelmente desenvolvido, fazia-se
necessário construir estradas, pontes e realizar obras de infra-estrutura, além de
regular as relações comerciais, tudo a fim de assegurar as complexas relações de
troca que desenvolveram em escala global (a seu tempo). Ou seja: como sói
acontecer, a superestrutura intelectual produzida por uma sociedade corresponde,
em última instância, às necessidades suscitadas pela infraestrutura das relações
sócio-econômicas nela predominantes.
A relação Estado-indivíduo na Antigüidade, em síntese, foi
marcada pela forte presença do ente estatal e pelo sentido coletivo da vivência
social. Não obstante a exclusão da maior parte da população e, portanto, da limitada
concepção de democracia e algo restrita noção mesmo da liberdade entre os
antigos, é de se realçar o aspecto mais significativo nesse momento histórico: era a
coletividade (das classes dominantes), e não a individualidade, que se afirmava
como medida axiológica.
47
CASSIRER, E., O Mito..., op. cit., p. 78.
48
BEER, Max. História do Socialismo e das Lutas Sociais. 1ª edição, 2ª reimpressão – São Paulo:
Editora Expressão Popular, 2007, p. 17.
26
3. Nostalgia do Paraíso perdido
As classes subalternas das primeiras sociedades organizadas sob
o poder de mando do Estado lembravam com nostalgia os velhos tempos, ainda
preservados pela cultura oral, em que se vivia de forma coletiva e tribal, a
propriedade não era privada e os negócios comuns, coletivos, eram decididos
diretamente pelo povo. Falava-se numa perdida Idade de Ouro
49
, marcada pela
liberdade e pela igualdade entre os homens.
A concepção primeira de direito natural remete a essa fase da
convivência humana igualitária, concepção criada pela razão humana de acordo
com um estado da natureza ditado por inspiração divina, em que reina o bom e o
justo. Quando existente a instituição estatal, tal doutrina voltava ao passado,
buscando reaver a ordem natural das coisas, livre de órgãos superiores a ditar
normas.
50
Em que pese o fato da concepção metafísica e meramente cerebrina
dessa teoria de direito natural, o que é preciso destacar é a consciência da
desigualdade social reinante, bem como do desejo da volta a uma sociedade
comunal.
Esse desejo nostálgico de retorno a uma espécie de paraíso
perdido, encontrado nos judeus antigos
51
, bem como nos gregos
52
e romanos
53
,
fazia-se acompanhar por uma condenação moral do seu tempo, ao lado de uma
exaltação dos tempos idos.
No relato bíblico, a expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden
acompanhada da condenação divina: “ganharás o teu pão com o suor do teu
rosto!”
54
parece estar em paralelo à idéia do comunismo-paraíso perdido e ao
momento em que o trabalho passa a ser visto como maldito, indigno e opressivo.
Não por acaso, a escravização do homem pelo homem remete ao fim das
sociedades comunais gentílicas e introduz a idéia do trabalho como maldição,
castigo. Não é mais a faina que satisfaz as necessidades e com isso liberta e
desenvolve o homem, mas o fardo que escraviza.
49
BEER, M., op. cit., p. 15.
50
idem, p. 20.
51
ibidem, p. 27.
52
ibidem, p. 45.
53
ibidem, pp. 105/107.
54
Gn, 3: 1-24.
27
A cisão entre a força pública e o indivíduo, bem como a
hierarquização do meio social com suas assimetrias daí decorrentes, produziram
um inconformismo constante e não foram poucas as tentativas, na Antigüidade e
mesmo na Idade Média, de recriação de sociedades comunais e de revolta contra o
Estado.
Destaca-se, entre as experiências de volta a um meio social
eqüitativo, a dos primeiros cristãos. Muitos deles viveram em comunidades
igualitárias, nas quais não existia propriedade privada ou autoridade central superior.
Seguindo várias das exortações de Cristo
55
, eles procuraram colocar em prática a
vida comunal em que tudo era de todos e não havia diferenças entre os indivíduos,
cabendo a todos trabalhar e receber o fruto do trabalho coletivo segundo sua
necessidade. A experiência, contudo, o resistiu por muito tempo. O
enriquecimento de alguns dentre eles e a assunção do cristianismo à condição de
religião oficial do Império Romano, entre outros fatores, minaram a experiência
coletivista e comunal dos primeiros cristãos.
Segundo aponta Rosa de Luxemburgo, ao tempo do Império
Romano os proletários não viviam da força do seu trabalho (já que não se tratava de
um regime capitalista, mas escravista), e sim da caridade pública. Entre tanta
miséria, foi natural aos despossuídos aderirem à proposta da nova religião cristã,
que acenava com a posse de tudo para todos, com a partilha dos bens, com a
igualdade entre as pessoas – em suma, um verdadeiro comunismo
56
.
E assim foi feito e praticado por um tempo (séculos I e II)
57
. As
riquezas eram distribuídas entre todos, a propriedade era comum ao grupo e, a
exemplo do comunismo primitivo, a noção familiar era alargada: eles faziam as
refeições juntos e “sua vida familiar era portanto abolida: todas as famílias cristãs,
numa sociedade, viviam juntas, como uma única grande família.”
58
Até quanto à
família, pois, voltou-se ao regime humano original, sem a preocupação patrimonial a
55
De acordo com os Evangelhos, Cristo ensinou e exortou várias vezes aos que o ouviam a não
valorizar a posse das coisas terrenas e fez a condenação moral da riqueza: “Então, disse Jesus a
seus discípulos: Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no reino dos céus. E ainda vos
digo que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que entrar um rico no reino de
Deus.” (Mt, 19; 23-24). Em outra passagem, quando um jovem rico pergunta a Jesus o que deve
fazer para segui-Lo, Ele responde: “Vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro
no céu; então, vem e segue-me.” (Mc, 10; 17, 21).
56
LUXEMBURGO, Rosa de. Socialismo e as Igrejas. Disponível em: www.mra.org.br, pp. 2/3.
Acesso em 2 dez.2007.
57
idem, p. 4.
58
idem, p. 4.
28
forjar e limitar os seus laços apenas ao núcleo diminuto que engloba pais, mães e
filhos.
Tais comunidades, entretanto, não conseguiram prolongar a
experiência comunal. É que, na sociedade escravagista, os trabalhadores que não
fossem escravos viviam da esmola blica, nada possuindo de seu, e a
coletivização dos bens no seio das comunidades cristãs o abrangia os meios de
produção, mas apenas os bens de consumo, de maneira que a verdadeira fonte da
riqueza continuava em mãos dos proprietários. Assim, aos poucos, e com o
crescimento e dispersão territorial dos cristãos, a vivência comunal com partilha de
bens não conseguiu mais se manter. As refeições comuns deixaram de ser feitas
entre todos, permanecendo o hábito apenas entre os mais pobres; os que haviam
enriquecido deixaram de dividir os seus bens de consumo (porque os meios de
produção não haviam sido divididos) e passaram a dispensar apenas o supérfluo ao
grupo. A desigualdade social impôs-se; a fratura foi inevitável.
Enfim, a experiência falhou por não ter atentado para a
necessidade da coletivização dos meios de produção de riquezas, ao invés da
divisão apenas dos seus frutos. Da maneira como praticado o comunismo entre os
cristãos, os escravos continuaram a sustentar a sociedade por meio de seu trabalho,
inclusive a comunidade cristã, e esse modelo foi, por óbvio, incapaz de reformar a
sociedade, pois não atacou as bases do seu modelo produtivo. Assim é que
no coração do comunismo cristão, apareceu a diferença análoga à que
reinava no Império Romano e contra a qual os primeiros cristãos tinham
combatido. (...) Os pobres viviam das esmolas atiradas pelos ricos e a
sociedade tornou-se outra vez naquilo que tinha sido. Os cristãos não
tinham mudado a vontade dos ricos.
59
Todas as tentativas teóricas ou práticas de resgate de um
passado áureo, contudo, não conseguiram extinguir ou alterar a natureza da
instituição estatal, que manteve suas características fundantes, pois a estrutura
social baseada na divisão em classes sociais, malgrado as diferenças históricas com
que se apresente, permaneceu e permanece ainda vigente.
59
LUXEMBURGO, R., op. cit., p. 4.
CAPÍTULO II – Estado – Origens e Fator de Poder
1. Considerações sobre as origens e concepções do Estado
A gênese do estado deveu-se à necessidade, por parte do grupo
social dominante, da criação de um ente superior às classes em antagonismo,
pretensamente neutro, a fim de “pacificar” o meio social, mas na realidade atuando
em prol daquele
60
.
Com ser assim, o estado tem também a característica de ser uma
força destacada da maioria da população, pois supostamente encontra-se distante
das paixões sociais, pairando acima delas. É um poder superior à população e, no
mais das vezes, contrário à maioria subalterna. A passagem do modelo gentílico
para o patriarcal marcou o fim do exercício direto do poder e, também, do uso das
armas pela comunidade admissível apenas em um meio social homogêneo –, que
foi substituído pela força armada: exército, polícia, militares, etc., encarregados de
proceder à segurança pública interna e externa. Outrora, esta era exercida
diretamente pela população, mas o modelo o mais se revelou possível em uma
sociedade cindida internamente, sob pena de guerra civil entre os diferentes setores
sociais.
Essa conformação estatal como poder autônomo e destacado do
povo tem relação com a gênese dos direitos humanos, na medida em que os direitos
humanos ditos de primeira geração
61
dirigiam-se contra o estado, na forma das
chamadas liberdades negativas que requeriam apenas a abstenção deste a fim de
permitir o exercício das liberdades individuais dos cidadãos.
O que importa aqui fixar é que o estado, como expressão da não-
conciliação entre classes sociais antagônicas, reflete e expressa os interesses do
60
Afirma Lênin: “Para Marx,o Estado não poderia surgir nem subsistir se a conciliação das classes
fosse possível. (...) Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de
submissão de uma classe por outra; é a criação de uma ‘ordem’ que legalize e consolide essa
submissão, amortecendo a colisão das classes.” . V. LÊNIN, Vladimir. O Estado e a Revolução. São
Paulo: Editora Expressão Popular, 2007, p. 25.
61
O uso da classificação dos direitos humanos em gerações é aqui utilizado apenas por ser
facilmente identificável, por já consagrado. Não concordamos, porém, que haja distintas gerações de
direitos humanos, em face de sua indivisibilidade, universalidade e interdependência, o que será visto
com mais vagar adiante.
30
grupo dominante e se enfeixa numa força que se volta, com o aparato das armas e
da autoridade pública, contra as outras parcelas sociais submetidas àquele
62
. Daí
porque as primeiras lutas por direitos humanos, encetada sob o comando da
burguesia ascendente, voltaram-se não diretamente contra as classes dominantes,
mas contra o ente institucional que as representava e agia por elas.
O estudo contemporâneo do estado, especialmente nos bancos
das faculdades de direito, repete geralmente o mesmo mantra: estado é povo, poder
e território soberanos. As críticas a esse discurso não são o objetivo imediato aqui,
mas sim a observação do liame entre esse conceito ainda transmitido no século XXI
e as origens da forma estatal.
Vejam-se os três elementos: o poder estatal é o braço que atua
como instrumento nas mãos das classes dominantes para legitimar e manter tais
relações (de dominação
63
escravidão antiga, servidão feudal ou trabalho
assalariado, que se sucederam ao longo do tempo); é a longa manus dos detentores
de riqueza e dos meios de produção.
O povo (leia-se: os que não possuem meios de produção) é a
parcela da população que sofre os efeitos da ação do estado, a que tem que ser
contida, mas serve aos anseios e necessidades da classe superiormente colocada,
especialmente quanto à produção.
Por fim, o território é o elemento estatal que explica seu
surgimento no contexto do advento da propriedade privada. Ora, os primeiros
proprietários, ao se apropriarem da terra, cercando-a e delimitando-a, verificaram
que, para produzirem os excedentes a fim de trocá-los, necessitavam de mão-de-
obra para nela trabalharem. Diante disso, passaram à escravização dos seus
semelhantes, fosse mediante o uso direto da força (escravização de prisioneiros de
guerras ou de membros seqüestrados de tribos rivais), fosse mediante a instituição,
muito conhecida na Antigüidade, da perda da liberdade pessoal por dívidas.
Com a fixação do homem à terra, fez-se necessária a
regulamentação da atividade produtiva. O estado encarregou-se de tal tarefa e, para
62
“Poderes visíveis são menos temidos que os invisíveis. O Estado está entre os últimos,
especialmente depois que os fantasmas desapareceram. Ele se mostra na suprema claridade na
polícia, nas prisões e soldados, mas nenhum desses é o Estado; eles apenas o representam. Eles
emprestam peso ao Estado; atrás deles um comitê da classe dominante está em ação, que o
enquadra como o representante universal.” (tradução livre) Cfr. Ernst Bloch, op. cit., pp.267/268.
63
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado.1ª edição. Buenos Aires: B de F Editor, 2005, pp. 251
e 254.
31
ser efetivo o seu poder de mando, imperioso era que sua autoridade abrangesse as
unidades territoriais dos proprietários, submetidas às regras impostas. Assim, em
conseqüência da privatização da propriedade (que a aquele momento fora
comunal), é que o território passou a (e precisou) ser elemento constitutivo do
estado.
Determinado de uma manera más concreta el Estado, diríamos que
consiste em relaciones de voluntad de uma variedad de hombres. Forman el
substrato de este Estado hombres que mandan y hombres que obedecen,
pero el Estado posee además um territorio; mas si se considera el fondo de
las cosas, se vendrá a reconocer que este territorio es um elemento que va
adherido al hombre. La propriedad de ser sedentario es algo que va unido
ao hecho de vivir los hombres en un Estado, y todos los efectos jurídicos del
territorio (...) tienen su raiz em la vida interna de los hombres: por
conseguiente, prescindiendo del sujeto humano, no hay territorio, sino sólo
una parte de superfície de tierra.
64
A idéia de estado foi construída a partir de necessidades muito
concretas e finalidades também específicas, já vistas. Longe de ser um dado natural,
inevitável, atemporal ou ideal, o estado é uma realidade histórica e concreta que
encontrou e encontra o fundamento de sua existência porque as razões que lhe
justificaram o surgimento se mantêm. Alteradas essas circunstâncias, naturalmente
alterar-se-á também a forma de organização do poder político que lhes corresponde
ou o próprio poder “político” classista perderá a razão de ser. Contudo, esta
forma de compreender o Estado afloraria no embate com as concepções
idealistas prevalentes até o século XIX, como ver-se-á adiante.
II.1.a – Metafísica Kantiana
Kant formulou uma teoria em que procurou mesclar a metafísica
com a racionalidade iluminista, e o fez dando um passo à frente do jusnaturalismo
difundido em sua época, pois substituiu a idéia transcendental calcada na Revelação
pela noção de uma verdade universal e eterna, a ser conhecida pelos homens
65
. A
partir dos imperativos categóricos, considerou que cada indivíduo, fazendo uso de
64
JELLINEK, G., op. cit., p. 250.
65
MASCARO, Alysson Leandro. Introdução à Filosofia do Direito. 2ª edição – São Paulo: Editora
Atlas, 2005, p. 63.
32
sua própria razão (em um processo subjetivo e pessoal) atingisse um critério
universal, válido para todos. Diante da difícil questão de uniformizar o que seria
apreendido por todas as pessoas, isoladamente, em nome de razões individuais,
Kant aduziu que o resultado dependia da boa vontade. Esta, em última análise, seria
a responsável pela construção, por todos ao mesmo tempo, mas de forma pessoal,
de uma moral universal e de uma legislação a todos aplicável
66
.
O pensamento kantiano está impregnado da idéia de
universalidade. Se a Razão superior irá ditar a todos os homens as mesmas leis
se todos tiverem boa vontade então as leis serão iguais para todos e pode-se
pensar em uma sociedade universal. Seguindo esse raciocínio, Kant via no estado o
espaço determinado pelo acordo entre os componentes da sociedade civil
67
. Nesse
ponto, foi influenciado por Rousseau, e acreditava no contratualismo como
fundamento do estado. Assim, pode-se compreender as seguintes considerações de
Kant:
Um ensaio filosófico que procure elaborar toda a história mundial segundo
um plano da Natureza, em vista da perfeita associação civil no gênero
humano, deve considerar-se não só como possível, mas tamm como
fomentando esse propósito da Natureza
.
68
II.1.b – Idealismo hegeliano
Essa concepção idealista atinge seu apogeu em Hegel, que
concebeu o estado como realidade última e autônoma, como síntese final do
movimento histórico, capaz de se sobrepor aos indivíduos, mas a serviço deles.
O idealismo hegeliano que prega o estado como o modelo final e
perfeito da razão humana, a realidade da Idéia moral, não subsiste diante do teste
da prática. Se a sociedade se organizar de outra maneira, o estado não teessa
conformação que tem, posto que fundado em bases relacionadas a essa
organização. Desaparecida a divisão das pessoas em grupos sociais de interesses
conflitantes e extinta a propriedade privada se e quando isso ocorrer –, não haverá
66
MASCARO, A., Introdução..., op. cit., pp. 59/63.
67
idem, p. 69.
68
ibidem, p. 67.
33
condições de sobrevivência do estado, pelo menos não da forma e com a natureza
com que hoje é conhecido.
A concepção a-histórica do estado, da qual decorre idêntico
entendimento quanto ao direito, não é neutra. Ao fim e ao cabo, afirmar que o estado
e o direito representam a organização social em nome do bem comum, ou do
interesse público, significa prender-se a uma concepção idealista de ambas as
instituições, entendendo-as como manifestações de uma idéia superior voltada para
a realização de um mundo justo e equilibrado.
Se essa Idéia é a base e a direção, o princípio e o fim, então nada
mais resta aos cidadãos que esperar que se cumpra o que está predestinado a
ocorrer a seu tempo: o advento do bem comum encarnado na Idéia. Nessa
concepção, estado e direito parecem fundar um conjunto atemporal. O estado
existiria para ordenar o meio social comunitário e o direito seria o seu instrumento
para tanto, o que aconteceria de forma inevitável, de maneira a implementar a razão
uma “razão” igualmente universal e impermeável a interesses e contradições de
classes. Em ambos estaria presente o intuito de efetivação do interesse público,
pairando acima dos interesses individuais considerados isoladamente.
O pensamento hegeliano guarda profundas afinidades com o de
Aristóteles, de quem sofreu influências. A descrição aristotélica da cidade grega, em
que a dimensão coletiva da vida determinava o ser individual
69
, o zoon politikon, é
retomada por Hegel de maneira que, para ambos, o todo precede as partes, ou seja,
a totalidade representada pelo estado antecede a concepção do indivíduo, e a idéia
de felicidade tem lugar na relação com os demais sob a autoridade do estado
70
.
A idéia de um estado forte, ordenador da sociedade e promotor do
bem comum acabou sendo deturpada historicamente por correntes políticas que
fizeram da teoria hegeliana a expressão do horror que seu criador certamente
rejeitaria. O estado forte, fim último da História, foi utilizado por fascistas e nazistas
para o autoritarismo centralizado e a supressão do indivíduo, interpretação
certamente não prevista e não almejada por Hegel.
Por mais que pretendesse manter-se vinculado à prática – o real é
racional, e o racional é real –, o pensamento de Hegel era, ainda, profundamente
idealista, pois o estado final, o ponto alto da racionalidade, correspondia à
69
VILLEY, Michel. Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003, pp. 166/169.
70
ARISTÓTELES, op. cit., p. 1.
34
plenificação da Idéia, ainda que, para atingir tal ponto, a síntese última, tivesse que
ser percorrido o caminho dialético
71
.
Essa concepção hegeliana de estado ajustou-se perfeitamente ao
modelo social e político do capitalismo triunfante. A idéia do estado como ente
eqüidistante dos conflitos sociais, teoricamente neutro e superior à realidade terrena
não mantém a cisão entre a ordenação política e a sociedade real, de todo
conveniente ao modelo de legalidade universalista burguês, como também coloca o
estado burguês no lugar desse ente superior e justo, dotado de toda eticidade
72
.
Hegel percebeu com mais profundidade do que suas contrapartes francesas
e inglesas as tarefas políticas e ideológicas fundamentais que o Estado
deveria desempenhar na nova sociedade, tarefas que não podiam ser
cumpridas nem pelos mercados nem pela sociedade civil. A lógica
destrutiva do capitalismo, baseada na potenciação dos apetites individuais e
do egoísmo maximizador de lucros, requer um Estado forte, não por acaso
presente em todos os capitalismos desenvolvidos, para evitar que tal lógica
termine sacrificando a sociedade toda em função do lucro do capital. Hegel
é, precisamente, quem teoriza sobre essa necessidade absolutamente
passada por alto pelos clássicos do liberalismo político. Por isso Hegel é, tal
como coloca Hans-Jürgen Krahl, “o pensador metafísico do capital [...] o
disfarce idealista e metafísico do regime capitalista de produção” (Krahl,
1974: 27).
73
É verdade que Hegel enxergou com clareza a existência de
classes sociais antagônicas na sociedade capitalista, e denunciou sua
irreconciliabilidade nesse modelo econômico-social
74
, mas apontou como forma de
solucionar o conflito a atuação do estado da forma como descrita; solução
completamente inadequada para resolver o problema, pois que é parte indissolúvel
do próprio problema.
II.1.c – Materialismo Histórico de Marx
71
MASCARO, A., Introdução..., op. cit., pp. 79/80.
72
BORON, Atilio A. Filosofia Política e Crítica da Sociedade Burguesa: O legado teórico de Karl Marx.
In: BORON, Atilio (org.). Filosofia Política Moderna de Hobbes a Marx. Buenos Aires/São Paulo:
Editora CLACSO, 2006, pp. 295/296.
73
idem, p. 296.
74
ibidem, p. 304.
35
Em Marx, o idealismo cede lugar à prática. Apropriando-se da
dialética hegeliana, mas tirando-a do curso determinado pela Idéia, Marx concebeu o
materialismo histórico, que é a dialética materialista posta a serviço da compreensão
da História, do mundo real e de seus antagonismos. Ou seja, não mais tendente a
fazer cumprir um destino traçado superiormente que representa o bom e o justo,
mas calcada sobre os percalços, conflitos e limites históricos.
Marx fez a crítica da filosofia do direito de Hegel, combatendo o
conceito de estado como ponto alto da ética e da racionalidade bem como a
representação do altruísmo universal, para onde convergiriam os interesses gerais
da sociedade. Denunciou, ainda, o caráter irremediavelmente classista daquele
75
. A
inversão que Marx efetuou no pensamento hegeliano afastou a idéia do estado
como resultante da vontade comum e depositário da ética e da moral e o apresentou
como instrumento alienante em favor da manutenção da exploração de uma classe
social pela classe dominante. Marx retirou todos os atributos nobres e sublimes,
quase religiosos, conferidos ao estado, e desnudou sua verdadeira atuação e
finalidade
76
.
A filosofia assumiu o caráter temporal, livrando-se das categorias
e das idéias que se pretendiam eternas e universais. O materialismo histórico põe
também a filosofia nos vagões que correm nos trilhos da História e, portanto, da
impermanência. A compreensão histórico-filosófica marxiana revela apenas uma
perenidade: a do movimento, do eterno devir. O materialismo dialético encarrega-se
de demonstrar o caráter precário e datado dos fenômenos históricos e das
instituições e categorias sociais: por mais duradouros que sejam ou que possam ter
sido, o certo é que não serão eternos.
Para Marx, a História é antes de tudo, embora não
exclusivamente a história da luta de classes, e o estado é o espaço onde se
enfrentam os antagonismos sociais e a expressão desses antagonismos.
Eis, expressa com toda a clareza, a idéia fundamental do marxismo no que
concerne ao papel histórico e à significação do Estado. O Estado é o
produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O
Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não
podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do
Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis.
77
75
BORON, A., op. cit., p. 298/300.
76
idem, p. 310.
77
LÊNIN, V. op. cit., p. 25.
36
De acordo com a concepção marxista, o estado se tornará inútil e
desnecessário, uma vez atingido o estágio superior de uma sociedade sem classes,
o que daria início à história humana, que se seguiria à pré-história que compreende
todo o período em que a humanidade se dividiu em classes distintas. Segundo
Lênin, “um Estado, seja qual for, não poderá ser livre nem popular”, afirmação
repetida diversas vezes por Marx e Engels
78
.
Desaparecidas as divisões internas do grupo social, e não
havendo mais, no terreno econômico, graves conflitos de interesses entre
segmentos distintos, então o estado, enquanto aparato de domínio sobre a
sociedade, iria, aos poucos, tornando-se dispensável, passando mesmo a cumprir
função de entrave ao livre desenvolvimento dessa sociedade igualitária. Assim, a
concepção de História e de sociedade predominantes no pensamento marxista
conduz, à força da lógica, para a futura eliminação do estado
79
, não para sua
adaptação a uma sociedade comunista. Como fazê-lo permanece sendo o grande
desafio em aberto.
O jurista soviético Eugeni Pachukanis debruçou-se sobre o estudo
da questão do direito
80
e do estado, tais como existentes hoje, e concluiu tratarem-
se de instrumental típico de um modo de produção econômica, o capitalismo. Ao
lado de uma legalidade universalizante o direito –, o Estado atua como terceiro
supostamente imparcial e neutro, de forma fetichizada.
Pachukanis insistiu no ponto da formulação do estado como
expressão da classe dominante e lançou uma questão desafiadora
81
: se assim é,
por que a dominação não se mostra abertamente, por meio da sujeição privada,
pessoal e direta, como nos anteriores modos de produção conhecidos no Ocidente
(escravismo e feudalismo), mas utiliza-se de um aparelho de poder público
impessoal?
A resposta não está, no entender de Pachukanis, na questão
ideológica, o que não significa que ele não reconheça a utilização também
ideológica do poder do estado. A resposta, para ele, tem um sentido mais
78
LÊNIN, V. op. cit., p. 37.
79
idem, pp. 56/58.
80
O problema da legalidade será objeto de análise em capítulo posterior.
81
PACHUKANIS, Evgeni Bronislanovich. A teoria geral do direito e marxismo. Rio de Janeiro: Editora
Renovar, 1989, p. 115.
37
profundo.
Em uma sociedade mercantil, onde tudo pessoas e coisas
são mercadorias, a “vontade autônoma” dos negociantes é indispensável. Dessa
forma, a coação privada seria completamente incompatível com a “lei do mercado”.
A igualdade jurídico-formal entre todos é, pois, condição sine qua non para o
funcionamento desse mecanismo de trocas a partir da relação de equivalência. Por
isso a coação tem que ser mascarada e provir de uma pessoa coletiva e abstrata,
não personificada
82
.
Além de permitir a reprodução do sistema capitalista sob a forma
de mediação impessoal, o estado não se afigura, externamente, como expressão
de classe, mas como o espaço da construção do coletivo, do bem comum. Se o
estado é formalmente “neutro”,
o acesso à esfera do Estado pode ser franqueado pelos indivíduos
despojados de sua condição classista - posto que a condição de pertencer
a uma classe social não pode ser reconhecida pelo Estado -, e
qualificados por uma determinação jurídica: o acesso ao Estado só é
permitido aos indivíduos na condição de cidadãos.
83
.
A partir desse “despojamento” do ser humano de sua condição
de integrante de uma classe social, seus interesses e suas lutas desvanecem-se
no espaço indistinto do cenário estatal e da disputa política. Com isso, o estado
firma-se como espaço de expressão da classe dominante e cumpre esse papel, ao
argumento de defesa dos interesses gerais. “Tudo se passa, portanto, como se o
Estado, anulando as classes, anulasse com isso a própria contradição, se erigindo
em lugar da não-contradição, onde se realiza o ’bem comum’.”
84
Daí a esperança-exortação de Marx para que o modelo estatal
fosse abolido, e não simplesmente apropriado por uma futura sociedade comunal,
posto que somente adequado às formações sociais cindidas em classes
economicamente antagônicas.
A contemporaneidade mantém o elemento estatal e seus
instrumentos legais, materiais e ideológicos. É nesse contexto histórico que os
conflitos de interesses são diuturnamente travados. E se é verdade que não
82
PACHUKANIS, E., op. cit., pp. 118/119.
83
NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito - um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2000, p. 82.
84
idem, pp. 83/84.
38
infinitude em nenhuma instituição humana, entre as quais o estado, por outro lado
não se pode negar o aparato de poder nele concentrado. E é com vistas nessa
realidade do estado como fator de poder
85
que suas relações com o direito, e mais
especificamente, com os direitos humanos, têm que ser examinadas.
Assim, se é falha e estéril a idéia de que é impossível mudar a
estrutura vigente ao argumento de que “sempre foi assim e assim sempre será”,
também é certo que o estado é dotado de coerção e exerce um papel na sociedade.
Por isso, por ser a mais forte estrutura de poder vigente, é no seu âmbito de poder,
porém contra ele, que têm que se concentrar, em princípio, as ações de resistência.
85
Naturalmente, somente os tolos alheios ao mundo poderiam pôr em dúvida a realidade do Estado
burguês enquanto fator de poder.V. LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe – estudos
sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 471.
CAPÍTULO III – Herdeiros da Modernidade
Nosso tempo deve muitas de suas instituições à Modernidade. O
modelo de estado e de sociedade hierarquizada ali firmado, e o nascedouro dos
direitos humanos também naquele tempo histórico, fazem imprescindível o
conhecimento, ainda que em linhas gerais, das características da modernidade,
especialmente no quadro jusfilosófico e político.
1. O movimento iluminista
86
A ênfase no conhecimento do mundo material esboçada a partir
do Renascimento encontrou seu ponto alto no Iluminismo, e significou o abandono
da teologia como porta-voz de verdades absolutas em favor da razão, ou melhor,
daquilo que ela fosse capaz de apreender. O homem racional, portador da
consciência esclarecida a respeito de si mesmo e da sociedade, seria o artífice do
primado da ordem e do desenvolvimento humanos, livre das amarras do
obscurantismo, da ignorância e do preconceito. O pensamento iluminista depositou
na razão todas as esperanças no futuro de uma humanidade auto-reconciliada
87
.
A ruptura com o momento anterior deu-se também pelo abandono
da transcendência em favor da prática
88
. No Iluminismo vicejou a exortação ao agir;
era necessário fazer, transformar o mundo e as instituições humanas. Se
imperfeitas, é porque nelas ainda não haviam soprado os ventos da razão. Com
esta, o mundo caminharia diretamente para uma ordem justa e adequada a todos.
A crença iluminista na racionalidade era tanta que enxergava em
toda a marcha histórica um caminho rumo ao desenvolvimento do ser humano a
86
A menção ao Iluminismo não tem a pretensão de esgotar o tema, por óbvio, nem apresentar o
movimento em todas as suas nuances, até porque fugiria ao escopo deste trabalho. A inclusão do
tema deve-se à conexão que tem com o ente estatal e com a concepção de direitos humanos, cuja
origem lhe é contemporânea. Assim é que o movimento será tratado de maneira geral, exatamente
naquilo que tem de fundamental, portanto comum a todas as correntes internas, muitas vezes
contraditórias entre si. É na generalidade do Iluminismo, pois, que iremos nos ater.
87
FALCON, Francisco José Calazans. Iluminismo. 4ª edição – São Paulo: Editora Ática - série
Princípios, 2004, pp. 42/43, 45.
88
idem, p. 67.
40
partir da sua tomada de consciência. Importa fixar o caráter uno e imutável, a-
histórico e não condicionado socialmente com que era concebida a razão
89
, de
forma a representar uma continuidade, e não uma ruptura ou superação, do sentido
metafísico, embora racionalista, do seiscentismo europeu, apenas com o vetor
modificado. O primado da razão, pois, fundamentou a sociedade no
antropocentrismo e atribuiu ao próprio homem a missão de conduzir-se em direção à
civilização e ao progresso
90
. Para tanto, fazia-se necessário abrir as mentes, educar
as pessoas, incutir-lhe os sentidos e valores imanentes, que não admitem acima de
sua própria racionalidade nenhuma autoridade superior.
À razão foram confiadas ilimitadas esperanças. Para o homem
racional não haveria obstáculos à possibilidade de transformação social. O simples
fato de agirem os seres humanos de acordo com seus intelectos e conhecimentos
seria capaz, por si só, de alcançar o progresso e de transformar o mundo,
eliminando dele o sofrimento e o mal. Tudo seria possível, pois tudo estava ao
alcance da razão humana.
91
A afirmação de que, no Iluminismo, Deus foi substituído pelos
recursos do raciocínio, do conhecimento e da ciência que florescia não é uma
hipérbole. De fato, o Iluminismo criou uma espécie de fé racional e científica, uma
religião secular, cujo deus é a razão e onde a razão é Deus.“
92
Essa simples substituição de “divindades” do absoluto abstrato
ao cienfico demonstrável pode ter significado uma simples troca de altares, não
de postura. que se perquirir até que ponto o homem simples (não os luminares
do Iluminismo, os filósofos esclarecidos e aqueles poucos que tinham acesso ao
conhecimento, à universidade etc.) enxergou com tanto otimismo a nova era de
“iluminação” quanto os seus mentores intelectuais. O fato é que, mesmo algo
distante e mal compreendido pela maior parte da população iletrada
93
, o movimento
iluminista está no nascedouro das revoluções burguesas, especialmente da
Revolução Francesa e, por esse motivo, teve o poder de influenciar diretamente um
movimento que acarretou profunda alteração na ordem social, política e humana do
Ocidente e, a longo prazo, de todo o mundo.
89
CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. 3ª edição – Campinas: Editora da Unicamp, 1997, p.
23.
90
FALCON, F. op. cit., pp. 59/61.
91
idem, p. 76.
92
ibidem, p. 40.
93
ibidem, p. 26.
41
O novo no Iluminismo não foi, propriamente, a criação de uma
corrente filosófica que primasse pela originalidade, mas uma nova maneira de
pensar e analisar o mundo
94
, um método a partir do qual se podia chegar mais longe
do que até então fora possível no conhecimento do mundo material. Esse método foi
o utilizado para o conhecimento das ciências da natureza. O método analítico
newtoniano percorria caminho inverso ao dos sistemas filosóficos do século XVII: em
vez de partir dos princípios gerais a priori formulados para, por meio da dedução,
enquadrar o fenômeno, iniciava-se pela análise do fato para descobrir os princípios
fundamentais desse fato
95
.
Esse espírito de análise, de observação, de perquirição em busca
da verdade foi eleito o sistema por excelência do Iluminismo, e transposto para as
ciências sociais
96
. A naturalização da sociedade, vista sob uma espécie de
microscópio social, sujeita à observação e análise daquilo que é, como são os fatos
e elementos da natureza, o é isenta de conseqüências sobre essa mesma
sociedade, nem sobre o conhecimento que, com semelhante método, sobre ela vier
a ser adquirido.
O exame dos fenômenos naturais deve-se fazer sem paixão ou
embate de valores, uma vez que se presta a revelar efetivamente as coisas como
são, sempre foram e sempre serão. Assim é que se com as leis da natureza.
Transposto o método para a análise da vida social, surge de imediato a idéia da
imutabilidade da ordem posta. Se a sociedade é analisada sem qualquer conotação
axiológica, finalística ou moral, isso significa que seu exame limitar-se-á ao
conhecimento do que é, de forma estática, como se, também aí, se estivesse na
presença de leis imutáveis concernentes a uma realidade atemporal. A diferença
entre natureza e sociedade não foi levada em conta quando da mera transposição
do método analítico para as ciências sociais. Ao reduzir o mundo do humano ao
puro fisicalismo com que se olhava para o mundo natural método que Augusto
Comte sistematizou e chamou de positivismo limitou aquele a uma única
dimensão, empobrecendo-o por retirar-lhe “a riqueza da subjetividade humana, que
se efetiva historicamente na práxis objetiva da humanidade.”
97
.
94
CASSIRER, E. A Filosofia..., op. cit., p. 32.
95
idem, pp. 24/25.
96
ibidem, p. 270.
97
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. 2ª edição – Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1976, pp.
24/25.
42
O positivismo, portanto, extravasou os limites da investigação
científica do mundo natural e passou também a ser o modelo epistemológico
utilizado para o desvendar do mundo social.
Que o diga o próprio Auguste Comte:
Entendo por Física Social a ciência que tem por objeto próprio o estudo dos
fenômenos sociais, considerados com o mesmo espírito que os fenômenos
astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos, isto é, como submetidos a leis
naturais invariáveis, cuja descoberta é o objetivo especial de suas
pesquisas. (...) Considerando sempre os fatos sociais, não como objetos de
admiração ou de crítica, mas como objetos de observação, ocupa-se ela
unicamente em estabelecer suas relações mútuas e apreender a influência
que cada um exerce sobre o conjunto do desenvolvimento humano. Em
suas relações com a prática, afastando das diversas instituições qualquer
idéia absoluta de bem ou de mal, encaradas como constantemente relativas
ao estado determinado da sociedade, e com ele variáveis, ao mesmo tempo
que as concebe como podendo se estabelecer espontaneamente pela única
força dos antecedentes, independente de qualquer intervenção política
direta. Reduzem-se, pois, suas pesquisas de aplicação, a colocar em
evidência, segundo as leis naturais da civilização, combinadas com a
observação imediata, as diversas tendências próprias de cada época.
98
A efervescência filosófico-cultural do século XVIII encontrou eco
na agitação da sociedade. O capitalismo ascendente convivia com as velhas leis do
feudalismo, garantidoras de privilégios à nobreza e ao clero, e era com elas
incompatível. O povo era chamado a assumir seu papel na transformação da ordem
das coisas. Nesse quadro de desigualdade jurídica, a “neutralidade iluminista
quanto ao estudo da sociedade já portava uma tendência transformadora, na medida
em que a neutralidade do exame buscaria contrapor-se ao regime de privilégios
99
.
Os conflitos sociais decorrentes do declínio feudal e da
consolidação do capitalismo foram recrudescendo. A nova classe social que surgia
como expoente social, a burguesia, reivindicava o fim dos regimes jurídicos
diferenciados que beneficiavam nobreza e clero que, por sua vez, resistiam à perda
do status. O povo, excluído das classes privilegiadas, compunha o chamado
Terceiro Estado, integrado também pela burguesia. Como a diferença social era
então, em primeiro lugar, determinada pelo status de nascimento e não pela renda
ou condição econômica, os donos da nova riqueza (advinda das novas atividades
98
COMTE, Auguste. Opúsculos sobre a filosofia social. Apêndice ao 4º volume da obra de sua autoria
Sistema de Política Positiva. In: Comte. Seleção de textos e tradução de Evaristo de Moraes Filho.
São Paulo: Ática, 1983, p. 53. v. 4.
99
TRINDADE, José Damião de Lima. História Social dos Direitos Humanos. São Paulo: Editora
Peirópolis, 2002, p. 111.
43
econômicas em substituição à antiga propriedade fundiária, especialmente: bancos,
manufatura em expansão, comércio interno e internacional e tráfico negreiro)
estavam, juridicamente, na mesma condição dos artesãos urbanos, aprendizes
assalariados, trabalhadores livres, artesãos e camponeses.
No desejo de extinguir os privilégios feudais e o Antigo Regime, a
classe burguesa ascendente utilizou-se das bases da revolução científica e filosófica
iluminista, tanto como visão de mundo legitimadora da necessidade da mudança da
ordem, quanto como discurso mobilizador das forças sociais capazes de impulsioná-
la. O pensar racional, o combate ao obscurantismo, à tradição e à autoridade, o uso
da razão como instrumento condutor do homem individual e da sociedade rumo ao
progresso, o uso da análise como método objetivo de aquisição do conhecimento
foram esgrimidos como armas revolucionárias e de incitação ao povo para que
lutasse contra tais instrumentos anacrônicos de organização social, posto que a
razão não se coadunava com a existência de privilégios
100
.
Essa rejeição à discriminação entre indivíduos pelo só fato do seu
nascimento constituía um dos caracteres do direito natural. Além da eleição da razão
como fonte e fundamento da vida em sociedade e do direito, por conseguinte –, a
escola jusnaturalista (como o próprio nome indica) buscava na natureza exemplos
de um perfeito funcionamento social. A natureza, considerada perfeita e imaculada,
tornou-se objeto de verdadeiro culto, à moda de uma espécie de religião natural.
Para a classe social em ascensão, tal pensamento era de todo conveniente e
conforme aos seus interesses, pois na natureza não desigualdades intrínsecas
entre os seres da mesma espécie, de forma que o mundo social deveria seguir-lhe o
modelo, expurgando as diferenças artificiais decorrentes do nascimento existentes
no regime feudal
101
.
A crença iluminista nas possibilidades da razão conferia ao direito
papel de grande relevo. Acreditava-se que a mente racional produziria as melhores
leis
102
, capazes de garantir a melhor vida possível ao homem em sociedade. A
ordem nascente, porém, ainda teria que se bater contra dois “inimigos” para que
pudesse, enfim, produzir as leis ditadas pela razão. O primeiro era a teologia e o
assédio religioso, ainda muito fortes no período; o segundo era o absolutismo
100
TRINDADE, J., História..., op. cit., p. 38.
101
BLOCH, E., op. cit., pp. 56,58/59.
102
FALCON, J., op. cit., pp. 68/69.
44
estatal. Contra tais obstáculos impunha-se ao direito natural afirmar-se como
expressão de base racional das leis emanadas diretamente da Razão
103
, ou “a
necessária transcrição de uma Idéia do Direito”, significando que, acima do direito
posto e do homem racional, pairaria um direito ideal
104
.
Se o direito (nessa concepção) é o correspondente do ideal a ele
transcendente, reveste-se então de características universais e eternas. Novamente
a metafísica aqui se revela. Disso decorre a convicção de que alguns direitos são
“naturais, inalienáveis e sagrados, ‘porque todo o homem os possui pelo próprio
facto de existir, e que ele os pode, pois, reivindicar contra uma ordem social e
política que os menosprezasse’”
105
. Não-historicidade, nenhum condicionamento ou
determinismo social eis o triunfo da metafísica. Mas a realidade social precisava
de mais do que idéias, precisava implementá-las:
O século XVII tinha sido um século metafísico e criara uma metafísica da
natureza e uma metafísica da moral. O período do Iluminismo tinha perdido
o interesse nessas especulações metafísicas. Toda a sua energia se
concentrava em outro ponto, e era o tanto uma energia de pensamento
quanto uma energia de ação. As ‘idéias’ já não eram consideradas como
‘idéias abstratas’. Transformavam-se em armas para a grande batalha
política. O problema nunca foi descobrir se essas armas eram novas, mas
se eram eficazes. E na maioria dos casos provou-se que as mais velhas
armas eram as mais poderosas.
106
2. Do jusnaturalismo ao positivismo jurídico
Apesar de seu viés predominantemente metafísico, o direito
natural experimentou significações diversas e não coincidentes ao longo da história.
É preciso um olhar mais cuidadoso sobre esse fenômeno jusfilosófico e político.
Inicialmente, o que os pensadores da Antiguidade chamaram de
direito natural era o direito equivalente ao justo, baseado na ética e realizado na
prática social e na dimensão coletiva do homem, o que se realizava na efetiva
prestação do direito. Direito era agir, fazer, promover a justiça, termo do qual era
103
CASSIRER, E., A Filosofia..., op. cit., pp. 321/323.
104
MIAILLE, M., op. cit., p. 247/248.
105
idem, p. 248.
106
CASSIRER, E., A Filosofia... op. cit., p. 211.
45
sinônimo (dikaion)
107
. Para os antigos, o direito natural era o direito extraído da
natureza de forma a realizar o justo. O termo realizar é aqui empregado no seu
sentido literal: os gregos não concebiam um direito que simplesmente enunciasse
discursos; era preciso a prática para realizar o direito, o que se fazia de modo
eqüitativo (entre os “iguais”, ressalte-se). A observação da natureza, de que
derivaria o direito natural era voltada não somente ao mundo natural stricto sensu,
mas ao conjunto do mundo exterior, físico e social
108
.
Na Idade Média a teologia cristã concebeu o direito natural como
emanado também da natureza, entendida esta como símbolo da criação divina. Não
houve, portanto, ruptura entre o pensamento jusnaturalista medieval e o
antecedente, mas apenas sua “sacralização”.
A escola do direito natural moderna alterou a fonte da ordem
jurídica. A natureza a fundamentar o direito não era mais o mundo exterior, mas a
natureza do próprio homem. A partir desse desvendar, o direito natural seria tornado
em positivo a partir do consentimento dos homens em sociedade. Houve uma
subjetivação do jurídico.
A duplicidade de sentidos encontrou os primeiros tempos do
Iluminismo e verificou-se que havia duas posições a respeito do que era o direito
natural. A primeira, de inspiração aristotélica, buscava captar na natureza a essência
das coisas, de forma a revelar as relações necessárias entre elas. A segunda
corrente considerava natural o que advinha da razão humana e esta é que
constituiria a fonte do direito que se materializa após acordo de vontades.
Essa segunda concepção acabou por mostrar-se predominante e
esteve no seio do movimento revolucionário francês de 1789
109
. Será, portanto, o
objeto das considerações a seguir.
O jusnaturalismo trouxe noções jurídicas novas, tais como: o
direito subjetivo e a transformação do direito em “garantia”, e não mais a realização
do bom e do justo na coletividade. Ao contrário da expressão do direito como
medida ética da inserção do homem em sociedade (pois somente assim se concebia
o atributo da cidadania entre os antigos), o antropocentrismo iluminista influenciou a
concepção jurídica na medida em que também “individualizou” a noção de direito.
107
CASSIRER, E., A Filosofia... op. cit., p. 255.
108
idem, p. 256 e 260.
109
Os três parágrafos anteriores e este referenciam-se em MIAILLE, M., op. cit., pp. 257/259.
46
Não mais sopesado em sua dimensão social, o jusnaturalismo, como concepção
jurídica, voltou-se ao ser humano considerado como invididualidade
110
, fora das
relações com os demais, e na universalidade, vendo-os todos de forma homogênea,
indistinta. Calcada na metafísica e na racionalidade, a filosofia da consciência funda-
se na Revelação dada aos homens e na salvação a ser alcançada por cada um.
O individualismo conferido ao cidadão burguês é marca jurídica
típica do liberalismo, e a filosofia refletiu esse aspecto. A luta contra os privilégios da
aristocracia e do clero feudais redundou no estandarte da liberdade individual
portado pela classe burguesa ascendente. A liberdade jurídica necessária para a
assunção de contratos, a consideração do homem per si, o império da razão como
expressão de iluminação individual despiram o homem do caráter coletivo. Esse é o
tom da filosofia moderna individualista kantiana.
O caminho revolucionário da burguesia foi traçado a partir do
desenvolvimento econômico do capitalismo e do terreno propício da racionalidade
humana no contexto sócio-cultural do Iluminismo. O regime de privilégios justificava-
se por uma suposta outorga divina e amparava-se nos dogmas teológicos, que
dispensavam explicações. Nada mais eficaz contra isso que suscitar a questão da
igualdade de todos, como informava a razão iluminada e como exigia o mercado.
Sem privilégios, todos deveriam ser igualmente tratados e considerados. Esse era o
principal lema esgrimido pela classe burguesa a fim de derrubar os obstáculos à livre
expansão do comércio e do capital. Daí a eficácia insurreicional da tríplice bandeira:
“liberdade, igualdade, fraternidade”.
Dessa forma, a aposição do indivíduo como centro da filosofia
está intrinsecamente ligada à realidade social, econômica e cultural da modernidade.
Por tal motivo é que a burguesia, ao promover revoluções nos séculos XVII e XVIII,
defendeu amplamente as idéias da liberdade e da igualdade. Contra o modelo social
estratificado, garantidor de privilégios à minoria da população nobreza e clero e
excludente da maioria, a burguesia lançou o do direito natural haurido da razão
individual para justificar o combate a essa estratificação “irracional” e propôs a
elaboração de uma nova constituição.
110
Para Bloch, “a lei natural clássica é a ideologia de uma economia individualista e de relações
capitalistas entre comerciantes, que requerem que tudo deveria ser calculável e que, então, põem no
lugar dos diversos direitos de privilégios encontrados na Idade Média a igualdade formal e a
universalidade legal.” (tradução livre, op. cit., p. 54). A idéia de que tudo deveria ser calculável, bem
exposta por Bloch, traduz-se na decantada apelação à segurança jurídica como base para a
assunção e o cumprimento dos contratos, ícone jurídico do individualismo capitalista.
47
A conseqüência desse direito natural de inspiração racional é a
sua imutabilidade. Se os homens extraem das próprias razões individuais a essência
das leis, pode-se enxergar o caráter estático dessa ordenação, ao menos quanto ao
seu núcleo estruturante:
O direito, que era o equilíbrio e portanto o justo, passa a ser ‘o conjunto das
normas ou das regras tiradas da natureza do homem’. Válida
intemporalmente, esta ordem da razão está subtraída aos movimentos da
história. Daí a Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789 que
na sua conclusão se declara simultaneamente universal e eterna: imagem
perfeita de uma Razão a-histórica.
111
Uma vez feita a Revolução e derrubados os privilégios do
Primeiro e do Segundo Estados, interessava aos promotores da nova ordem social
conservar o que estava feito. Assim, tendo o modo social de produção capitalista
conseguido se libertar das anteriores amarras jurídicas e políticas, estava
conquistado o ambiente propício à sua expansão e, portanto, tratava-se de defender
a permanência da nova ordem, sem mais mudanças. A burguesia despe-se de seu
caráter revolucionário e, quanto ao direito, passa-se ao positivismo
112
.
Essa nova ‘escola’ do direito concebe-se em si mesma, apartada
do mundo real e das contingências históricas. O positivismo jurídico encerra-se em
um hermetismo surdo às vozes vindas da sociedade e restringe-se ao poder legal e
ao seu conteúdo. “De fato, o discurso positivista pode (e deve) fazer economia de
todo posicionamento ético ou político sobre o estado de coisas existente: ‘sem
admirá-lo’, ele se limita a constatar que este estado é natural, necessário, inevitável,
e é produto de ‘leis invariáveis’.”
113
. (grifo do autor).
Apartado da mais remota idéia de justiça, o direito deve apenas
ser cumprido tal é a meta positivista que, além de desconsiderar a realidade,
fortalece a autoridade do poder central, operação que, no caso do capitalismo, nada
tem de ingênua ou neutra. A necessidade, após as revoluções e o fim do feudalismo,
de manter o status e as regras da sociedade da forma como conquistadas levaram à
adoção plena do positivismo.
111
MIAILLE, M., op. cit., p. 261.
112
As características dessa nova maneira de conceber o mundo social, inspirado no modelo das
ciências da natureza, já foram objeto de estudo anterior. Aqui se coloca o problema apenas quanto ao
direito, examinando-se as faces e implicações do positivismo jurídico.
113
LÖWY, Michael. As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen. 9ª edição – São
Paulo, Cortez Editora, 2007, p. 25.
48
Os motivos dessa troca residem na convicção de que o direito
natural cedo ou tarde apontaria os desvios no novo regime e a fragilidade da mera
proclamação legal da igualdade entre as pessoas, pois se a consciência insurgiu-se
contra um estado de coisas injusto, poderia fazê-lo de novo. Assim é que o
positivismo foi adotado valorizando o cumprimento da lei por ser lei, não por
corresponder aos ditames da razão sobre as consciências individuais. “Iniciava-se, a
partir daí, um duradouro divórcio entre Direito e Moral.”
114
115
. Restou ao direito
apenas o atributo da força. Com isso, fechou-se o caminho para novas ações
revolucionárias e passou-se ao império da lei.
3. Contratualismo
Os iluministas subverteram o conhecimento vigente à sua época e
procuraram-lhe um novo fundamento: a razão humana, em lugar do transcendental.
Com a consolidação do sistema capitalista, o direito natural calcado em uma idéia de
moral subjacente foi substituído pelo positivismo e a investigação racional desprezou
a exegese histórica, limitando-se à busca da essência das coisas, da sua razão de
ser
116
.
Tal forma de pensar aplicada ao estado tem um sentido preciso:
deixando-se de lado sua origem histórica como instrumento de dominação de
classe, sua análise e justificação são procedidas livremente, analisadas em sua
objetividade, como se se tratasse de uma construção natural e não jungida a
circunstâncias específicas que lhe deram nascedouro.
Concebido como uma criação estática e atemporal, o estado
passou a representar o papel de autoridade consentida e necessária, presente em
toda e qualquer sociedade humana. Essa visão meramente analítico-descritiva do
estado priva-o de toda dialética. A pretensão de conferir um caráter puramente
racional ao estado, considerando-o em si, pela sua face visível, o poderia
desaguar senão em uma operação racional de “esvaziamento” de sua função de
114
Terá o Direito do Trabalho chegado a seu esgotamento histórico?. In: Direitos Humanos: Essência
do Direito do Trabalho. São Paulo: Editora LTr, 2007, p. 55.
115
Ainda que consideradas apenas no contexto limitado do universo burguês.
116
CASSIRER, E., O mito..., op. cit., pp. 206/207.
49
dominação; no entendimento de que se trata de uma invenção da razão humana e,
para fechar o raciocínio, na atribuição de uma origem consensual para ele, ou mais
exatamente, contratual – mediante o contrato social.
Assim metamorfoseou-se a opressão em consenso. Essa foi uma
das mais bem-sucedidas operações ideológicas do individualismo racionalista,
somente possível a partir da consideração da igualdade formal entre os homens e
de sua liberdade. O sistema tem uma lógica interna: se todos são livres e iguais,
nada impede que pactuem a melhor forma de se auto-governarem. Seria perfeito se
fosse verdadeiro, mas a História, naquele momento (e, por isso, desprezada),
apontava em um outro sentido.
Ademais, a própria idéia da associação de cidadãos para a
formação da entidade maior que os congregue o Estado –, não é oriunda do
Iluminismo, porém. Os clássicos já a tinham. Aristóteles, ao iniciar sua obra A
Política, onde discorre sobre a origem do estado, assim se pronuncia:
Como sabemos, todo Estado é uma sociedade, a esperança de um bem,
seu princípio, assim como de toda associação, pois todas as ações dos
homens têm por fim aquilo que consideram um bem. Todas as sociedades,
portanto, têm como meta alguma vantagem, e aquela que é a principal e
contém em si todas as outras se propõe à maior vantagem possível.
Chamamo-la Estado ou sociedade política.
117
A idéia aristotélica de que os homens se juntam para formar um
estado na forma de uma associação em que todos procuram o Bem (como um dado
eterno, imutável, que só precisa ser apreendido) ignora completamente o fato de que
havia escravos entre eles. Como inseri-los nesse contexto? O bem para eles
também estava incluído nesse ‘bem maior’? Ou, mais logicamente, eles o
compunham essa associação? À luz da História, essa é a hipótese verdadeira, pois
os escravos (e não somente eles) não integravam o conjunto dos homens (e aqui
usa-se o termo “homens” em sentido próprio, literal, masculino, não como conjunto
dos seres viventes), dos cidadãos que se juntaram em busca do bem comum. Esse
bem era bastante restrito, como se pode ver, e pressupunha a exclusão da maior
parte da população, dos que não tinham o atributo da cidadania.
Além da concepção de associação humana que vemos
presente no pensamento grego clássico, outra característica daquele estado que é
117
ARISTÓTELES. op. cit., p. 1.
50
revisitada na modernidade é a da sua existência para a realização de um fim maior.
Os gregos buscavam, apesar da cidadania restrita, a realização da felicidade de
todos (de todos os iguais, ou seja, os cidadãos deliberantes), sendo a felicidade de
cada um parte da vida perfeita da polis. Para tanto, acreditavam que a sociedade
deveria ser regida por leis derivadas de desígnios eternos que estabeleciam o justo
e o diferenciavam do injusto (ao que parece, os deuses do Olimpo compactuavam
com o escravismo!!), o que constituía o seu direito natural. Importa frisar que esse
sistema de normas acreditava-se fundado em princípios atemporais, encarnados na
idéia de Deus, justiça ou natureza, mas não na vontade humana, pois assim o
seriam imitação do mundo superior e perfeito
118
.
O iluminismo racionalista reavivou a idéia do contratualismo, de
todo abandonada na Idade Média, porque não fazia sentido para o sistema
econômico, social e jurídico medieval. De fato, o feudalismo, centrado na produção
para o consumo local, produzia apenas um reduzido excedente econômico que era
absorvido por um mercado pequeno e estável. Conseqüentemente, não eram as
relações mercantis (ou melhor, contratuais) que imperavam na sociedade.
A partir do advento da concepção burguesa capitalista da
mercantilização das coisas e das pessoas a idéia contratual renasceu como
adequada aos novos tempos de igualdade de todos perante a lei.
Entre os contratualistas, abordaremos sinteticamente Hobbes e
Rousseau que, de formas muito diferentes, entenderam a gênese da sociedade a
partir de um acordo de vontades.
Segundo Hobbes, o homem é um ser egoísta movido por um
desejo inesgotável de poder, mas que não se encontra sozinho no mundo. A soma
dos diversos ‘egoísmos’ individuais causa um estado de guerra permanente – efetiva
ou potencial de todos contra todos, em um meio social em que “o homem é o lobo
do homem”. Para compatibilizar vontades semelhantes de poder mas conflitantes
em busca desse espaço de poder incompatíveis com a convivência humana, seria
necessário um pacto em que cada um renunciasse à vivência de suas possibilidades
e direitos absolutos em prol da harmonia grupal. Tendo em vista a natureza humana
por ele considerada, Hobbes, contudo, enxergou a fragilidade de tal acordo se
deixado na dependência apenas da vontade individual.
118
SOLON, Ari Marcelo. Teoria da Soberania como problema da Norma Jurídica e da Decisão. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, pp. 20/21.
51
Diante de tal risco, afirmou a necessidade de um poder superior a
todos, forte, coercitivo que constrangesse a totalidade dos integrantes do grupo
social à observância do pacto coletivo
119
. Partindo de um homem naturalmente mau
e egoísta, Hobbes considera a renúncia ao poder individual e sua entrega a um ente
superior, a única forma de viabilizar a vivência social. O Leviatã, o todo-poderoso,
surge, pois, como uma verdadeira condição de sobrevivência de cada um no meio
hostil da convivência humana.
Em decorrência de tal raciocínio, esse ente superior, o estado,
teria poder absoluto sobre os súditos, pois igualmente absoluta havia sido a entrega
do poder individual. Assim, ao entregar todos os direitos e o poder de se auto-
conduzir, ao indivíduo cabe somente acatar as ordens e decisões emanadas do
Homem-Artificial, o estado, que detém presumivelmente toda a legitimidade, e por
isso Hobbes afirmou a impossibilidade de uma lei ser injusta, sustentando a
observância da lei apenas por ser emanada da autoridade central superior,
supostamente procuradora de todos os integrantes da sociedade
120
. Com ser assim,
Hobbes conferiu armas simultaneamente ao absolutismo e ao positivismo
121
.
Entender que a lei o pode ser injusta significa acatá-la e
cumpri-la pelo simples fato de possuir a forma legal, não importando seu conteúdo.
Por outro lado, entender que fora da lei não injustiça é o reverso de uma mesma
moeda: a completa dissociação entre a norma e qualquer vestígio de eqüidade.
Rousseau, um dos mais representativos arautos do
contratualismo, acreditava, por sua vez, na possibilidade de que a convivência social
viesse a assentar-se no consenso, e de que este teria o condão de eliminar os
conflitos sociais. O pensador suíço percebia a desigualdade entre as classes e se
insurgia contra isso, mas acreditava poder equilibrar a sociedade por meio da
entrega do poder ao povo (rechaçava a democracia representativa e a
oligarquização do poder) e do acordo entre os segmentos sociais antagônicos. Além
de ter revivido a idéia associacionista de Estado, Rousseau também tinha uma
concepção do homem inserido em sociedade, mais próxima dos antigos e em
convivência freqüentemente difícil com o individualismo que vicejou no florescer do
Estado Moderno.
119
CHEVALIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. 4ª edição –
Rio de Janeiro: Editora Agir, 1989, pp. 68/71.
120
idem, p. 73.
121
ibidem, p. 74.
52
Considerado no contexto dos seus contemporâneos, Rousseau foi
o mais “igualitarista de todos os pensadores iluministas, na medida em que
compreendeu e criticou a desigualdade social assentada na igualdade jurídica e
propôs a efetiva participação popular, ou melhor, a distribuição homogênea de poder
entre os membros da sociedade, como meio de garanti-la justa e igualitária. Alguns
aspectos de sua teoria, porém, revelam fragilidades.
No início d’O Contrato Social, Rousseau aduziu ser a família a
primeira e mais antiga instituição natural
122
. Entretanto, na segunda metade do
século XIX
123
, o estudo das sociedades primitivas demonstraria que, no
matriarcado, não existia a noção da família fechada como se tem hoje. Ao contrário,
havia uma grande comunidade onde todos eram tomados como filhos de todos
não biologicamente, claro, mas social e afetivamente imperava a noção de um grupo
familiar extenso. A família patriarcal monogâmica que Rousseau conheceu é um
dado histórico, uma construção social que, como o estado, não adveio da natureza.
Posteriormente, Rousseau imaginou diversos seres humanos
sozinhos, isolados, que, “cansando-se” das agruras da vivência no estado de
natureza, “decidiram” unir-se e abrir mão de uma parcela de sua liberdade, a fim de
compor uma associação civil que os congregasse e permitisse a todos viverem
juntos, na intenção do benefício comum. Para tanto, Rousseau considerou a
elaboração de um contrato social em que cada integrante põe em comum sua
pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e recebemos,
coletivamente, cada membro como parte indivisível do todo.
124
.
Contudo, o sonho da livre associação de homens que se
encontrariam num hipotético estado de natureza marcado pelo isolamento ignorava
o fato de que a História mostra exatamente o contrário: até pela fragilidade individual
122
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1989, p. 10.
123
J. P. Morgan publicou, em 1877, a obra Ancient Society, or Research in the lines of Human
Progress from Savagery through Barbarism to Civilization, que analisou em profundidade a família e a
forma de produção social das comunidades primitivas, pré-históricas. Essa obra serviu de base para
o livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Engels, já citado. Antes disso,
em 1861, Bachofen havia publicado o livro Direito Materno, considerado por Engels o trabalho
precursor no estudo da história da família. Posteriormente, o sr. Mac Lennan também deu sua
contribuição aos estudos da família pré-histórica, publicando seu trabalho Studies in Ancient History,
Comprising a Reprint of Primitive Marriage em 1886 (tais dados encontram-se em ENGELS, F., As
Origens, op. cit., pp. 9/10, 14/15, 17/20). Estes são alguns dos estudos que se fizeram naquele
momento histórico (2ª metade do século XIX) e que demonstraram a verdadeira natureza da família
primitiva, diversa da que considerada por Rousseau. Este, no entanto, havia falecido em 12 de julho
de 1801, e não pôde, portanto, acompanhar tais descobertas e estudos que desautorizaram a
concepção de família por ele considerada.
124
ROUSSEAU, J., op. cit., p. 20.
53
dos homens e por sua infância muito prolongada em comparação com a dos demais
mamíferos, as comunidades humanas, mesmo reduzidas e nômades, existiram
desde sempre, e com regras mutáveis de região para região, de época para época,
de cultura para cultura. Salvo em situações muito excepcionais, como a do
náufrago
125
, por exemplo, não se tem notícia de pessoas vivendo em completo
isolamento e em liberdade, “dispostas” a se associarem, assim como nunca
existiram regras sociais “naturais e imutáveis”, que seriam, no dizer de Rousseau,
(...)
de tal modo determinadas pela natureza do ato que a menor
modificação as tornaria inúteis e sem efeito, de sorte que, embora talvez
jamais tenham sido formalmente enunciadas, são em toda parte as
mesmas, em toda parte tacitamente admitidas e reconhecidas; até que,
violado o pacto social, cada qual retorna aos seus primeiros direitos e
retoma a liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual
renunciara àquela.
126
Portanto, Rousseau, tanto no seu individualismo filosófico
(anterioridade axiológica do homem em relação à sociedade), quanto no seu
“igualitarismo” político, também não escapou da matriz metafísica de seu tempo, ao
admitir, como fundantes do estado, regras atemporais e perenes. A idéia da
imposição da ordem natural das coisas, tal como admitida, não comporta a abertura
de espaço para a concepção histórica e mutável daquele ente.
O problema prático de maior envergadura da proposta
rousseauniana consiste em saber como teria se dado esse acordo, que envolveria a
concessão de todos os integrantes do espaço social. Além da boa-vontade (que não
pode ser imposta), como se poderia imaginar a realização do pacto social?
Por mais bem-intencionado que fosse, por mais que acreditasse
na realização do homem a partir de sua inserção social e por mais sincero na
intenção de contribuir para a criação de uma sociedade politicamente igualitária, o
fato é que Rousseau, ao afastar-se da historicidade e ancorar-se na metafísica,
supôs o indemonstrável ou propôs o irrealizável, formulando uma hipótese que, sem
embargo do seu mérito anti-absolutista e politicamente nivelador, não poderia
efetivamente embasar uma mudança social substantiva.
125
Aliás, não foi à toa que Robinson Crusoé tornou-se um ícone, a representação maior das fábulas
individualistas.
126
ROUSSEAU, J., op. cit., p. 20.
54
O contratualismo desconsiderou as diferenças existentes entre os
homens inseridos em suas realidades, optando pela visão idealizada de um grande
pacto firmado entre todos os iguais para o bem comum ou, ao menos, para que
fosse possível a convivência social. Como se poderia entender, contudo, a assunção
de um pacto por grupos socialmente distintos e rivais? Como o escravo poderia
pactuar com o senhor, e o trabalhador com o patrão, de forma mutuamente
satisfatória?
Na verdade, pode-se extrair dos contratualistas uma tentativa de
explicação do mundo que, na verdade, não o queria modificar e que partia, em
última instância, da vontade de satisfação de interesses próprios. Pois a hipotética
assunção de um pacto não se destinava a permitir a vivência em sociedade? Então,
no fundo, essa visão permite o entendimento de que, se algum pacto houvesse
ocorrido (o que se admite apenas para efeito de argumentação), teria sido
primordialmente apenas para a salvação e/ou para o bem-estar individual, em
primeiro lugar.
Essa tentativa de explicação do mundo esconde, em seu
‘nivelamento cidadão’, o que efetivamente pode explicá-lo: o movimento das classes
sociais antagônicas, que é o contrário da idéia da pactuação sobre um querer
homogêneo.
4. Legalidade – Universalidade e individualidade
O escravismo antigo e o feudalismo vigeram em civilizações
marcadas pela imobilidade social, especialmente no segundo caso
127
. No regime
feudal, a regra era de que a origem marcava o indivíduo definitivamente,
determinando a classe/estamento à qual pertenceria e dentro de cujas normas
deveria pautar-se; salvo, pois, exceções muito pontuais, não era possível “mudar” de
127
A condição de escravo na Antigüidade podia ser transitória, a depender, por exemplo, das favores
da sorte na guerra, da alforria concedida pelo próprio senhor ou do vencimento do prazo de trabalho
escravo correspondente ao pagamento de dívida. Os escravos de hoje podiam ser os senhores de
amanhã. A determinação da classe dava-se por mérito, conquistas, confronto de forças e podia-se
alterar. Não se tratava o escravismo antigo, pois, de um regime de imobilidade social absoluta.
55
classe/estamento social
128
. Entre as raras exceções, tem-se notícia, por exemplo, da
extinção do vínculo da servidão por decurso de prazo: Os servos da gleba, que
logravam residir mais de ano e dia num burgo novo, desvinculavam-se de pleno
direito das peias feudais: era uma espécie de usucapião da liberdade, calcado no
regime possessório dos bens materiais
129
.
Dessa forma, o nascimento imprimia a cada pessoa um certo
status que regia toda a sua vida. Nota-se que, nesse regime, as diferenças de classe
e de condição social eram óbvias, claras. Servo era servo e senhor era senhor, sem
que, em geral, houvesse possibilidade de mudança.
A passagem do feudalismo para o capitalismo alterou essa
situação. Ao invés da “marca” de nascimento, foi instaurada a universalidade legal,
segundo a qual todos são iguais perante a lei. São inúmeras as implicações dessa
mudança. O que parecia ser equalização foi, na verdade, consagração da diferença
real.
Entre o conceito antigo de liberdade pautado pela dimensão
política do ser humano e o entendimento moderno de cunho individual, cumpre
observar a concepção da liberdade como opção pessoal, haurida do mundo
teológico da Idade Média.
Para os antigos, querer significava poder. Não se concebia uma
vontade sem sua realização, pois entendia-se que esta somente surgiria quando
adequada à natureza do ser que desejou.
Na Idade Média, por influência da concepção religiosa de mundo,
distinguiu-se entre querer e poder, admitindo-se a existência de uma faculdade sem
o concurso concomitante da outra, ou seja, podia-se querer sem poder e poder sem
ter a vontade. Essa separação entre a vontade e o ato tornou o fazer uma questão
voluntária. A essa possibilidade de opção chamou-se liberdade, uma liberdade de
natureza interna, pessoal
130
.
Essa distinção aparentemente irrelevante concentra reflexos
importantes, inclusive sobre a concepção individualista moderna, senão vejamos:
transferida para o âmbito interno e referida apenas à vontade, a liberdade torna-se
128
TRINDADE, J., História..., op. cit., p. 18.
129
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva,
1999, p. 35.
130
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. In:
Estudos de Filosofia do Direito. 2ª edição – São Paulo: Editora Atlas, 2003, pp. 87/88.
56
um atributo indissociável do indivíduo. Mas ele é livre apenas para querer, o que não
significa que efetivamente possa fazer ou ter o que quer. Ainda assim, segundo a
concepção teológica medieval, não importa o status exterior desse indivíduo, como,
por exemplo, sua condição de escravo ou servo essas distinções residem na
esfera política, estranha ao locus da liberdade –, o que importa é o seu querer, seu
móvel interior, e esse é sempre livre
131
.
O deslocamento da liberdade da esfera pública para a interior tem
o efeito prático de conservação da ordem e de conformismo quanto a ela, ao
proclamar livres os que têm vontade ou seja, todos, posto que ontologicamente
iguais –, mesmo os que não a possam realizar. “Daí, mais tarde, a idéia de que
ninguém, nem o soberano, nem o Estado, pode constranger a liberdade, o seu
exercício.”
132
Essa noção reduz a liberdade a um diálogo do homem consigo próprio,
não com o outro, o semelhante, retirando-lhe o caráter dialógico, interpessoal. Por
outro lado, esse discurso sobre a liberdade, descolando-a de sua efetividade,
conduz ao seu esvaziamento.
Sob a modernidade, a concepção de liberdade de matriz
individualista prestou-se para manter as amarras de fato sob o lio do contrato
supostamente firmado entre iguais, mas a desigualdade efetiva impedia que a parte
contratante não-possuidora de bens, exceto sua força de trabalho, firmasse um
pacto baseado em um acordo de vontades. O resultado dessa assimetria
institucionalizada é conhecido: a História demonstra que a condição humana e social
dos trabalhadores assalariados e de suas famílias no regime capitalista nascente
manteve, por vezes, identidade com a servidão
133
e, em muitos casos, chegou
mesmo a degradar-se em relação à situação dos servos no feudalismo
134
, não
obstante todas as pesadas e humilhantes obrigações devidas por esses ao senhor
feudal e à nobreza.
Não se pode esquecer que a escravidão também esteve (e ainda
está) presente no modelo liberal capitalista
135
e não apesar deste, mas por sua
131
FERRAZ JR., T., Estudos..., op. cit., p. 88.
132
idem, p. 91.
133
LOSURDO, Domenico. Contra-História do Liberalismo. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2006, pp.
79/80.
134
TRINDADE, J., História..., op. cit., pp 85/88.
135
“No interior da fábrica, os trabalhadores são submetidos ao despotismo do capitalista e de seus
prepostos, como se estivessem em um quartel industrial. Nessa verdadeira organização militar, os
operários são como ‘soldados da indústria [...] sob a vigilância completa de oficiais e suboficiais’. O
proletariado converte-se, assim, em ‘escravo’ da burguesia, do Estado burguês, da máquina, do
57
causa. Na expressão de Domenico Losurdo, A escravidão não é algo que
permaneça não obstante o sucesso das três revoluções liberais: ao contrário, ela
conhece o seu máximo desenvolvimento em virtude desse sucesso”
136
. A
“liberdade” concedida aos antigos servos da gleba no continente europeu não
encontra paralelo nas colônias de que são matrizes os mesmos países da Europa
Ocidental.
A França, por exemplo, que em 1794, na fase de maior influência
popular no processo revolucionário, havia abolido a escravidão nas suas colônias,
restabeleceu-a menos de uma década depois, em 1802, quando aquela influência
havia sido afastada. Os Estados Unidos da América ainda demorariam cem anos
após a guerra civil de 1860, que aboliu a escravatura, para começar a reconhecer
direitos civis aos negros. Sem falar nas eleições com voto censitário, socialmente
excludente e alicerce das “democracias” oligárquicas, que foram o modelo político
predominante no mundo até o final do século XIX.
O direito concebido pela modernidade, pois, alterou
substancialmente a noção que lhe davam os antigos: de ato e de medida do justo.
Em seu lugar, foi colocada a força da lei, que “garante”, mas não concede. Assim, a
idéia de direito deixou de ser algo realizável, exigível, concreto, para passar a um
plano abstrato, ideal e “assecuratório”. O direito moderno não confere aos
legislados, necessariamente, uma prestação substantiva, mas simplesmente
empresta sua proteção a esta, quando existir, nada se importando com a
efetivação do que descrito como um direito.
A legalidade universalizante cumpre duas funções muito
importantes na manutenção do status quo: despersonaliza o oponente (sem “rosto”,
sem nome, o inimigo é o Estado, o governo, a lei – entes despersonalizados,
portanto, difíceis de enxergar e combater) e o distancia. A lei é oponente por demais
vago e inacessível para que se possa enfrentá-la. O sistema se mantém e se
esconde atrás do manto da legalidade. Em tal contexto, a consagração formal de
direitos não significa sua efetivação.
Sob outra ótica, ao declarar abstratamente que todos são iguais, o
direito atua na sociedade como se o fato concreto da desigualdade não lhe dissesse
contramestre e do dono da fábrica.” In NAVES, Márcio Bilharinho. Marx – Ciência e Revolução
(Coleção Logos). São Paulo: Editora da Universidade de Campinas, 2000, p. 51.
136
LOSURDO, D., op. cit., p. 47.
58
absolutamente respeito ou como se tal fato dependesse das vontades ou de
circunstâncias meramente individuais
137
; enfim, como se a instância jurídica não
pudesse fazer nada sobre o problema. O silêncio jurídico positivista é, na realidade,
uma opção pela conservação do status quo; é a aprovação do modelo social.
A noção de que o meu direito é pleno e, para sê-lo, é necessário
que o do meu semelhante também seja, contém uma essência igualiria, a qual não
se encontra no direito burguês, em que a igualdade é meramente formal, não
substancial. Em sendo assim, assume a forma de uma ilusão jurídica que se
manifesta em todas as áreas da vida social (direito ao voto, à liberdade, etc.).
A noção de liberdade moderna encontra lugar em uma
concepção individualista de mundo, em que o homem isolado, e não o grupo
humano, é a referência valorativa. Dessa forma é que a modernidade erige um altar
para o sucesso individual – inevitavelmente conectado ao acúmulo de propriedade, à
capacidade de consumo publicamente exibida e ao “poder” social daí derivado.
Embora entre os antigos a noção de liberdade ligada à polis
tivesse que conviver com o instituto da escravidão, o fato é que, dentro dos limites
de classe em que era praticada, a liberdade tinha uma conotação coletiva,
basicamente política
138
.
De fato, os antigos exerciam sua liberdade quando exerciam sua
cidadania. Liberdade e vivência política, eno, se equivaliam, e os que a praticavam
tinham-se como iguais. Assim é que essa liberdade pública era praticada pelos
cidadãos, excluídos os escravos, estrangeiros e mulheres. Entre aqueles, porém,
imperava uma idéia de igualdade, uma consideração comum e o reconhecimento de
um mesmo status, o que formava a base da concepção antiga de liberdade
139
. Os
cidadãos se auto-regulavam a partir de sua participação na vida social, por eles
construída diretamente e de maneira isonômica. Governo pelo povo significava, por
sua vez, deliberação na ecclesia ou assembléia, em condições de livre expressão
(parrhesia) como direito igualitariamente distribuído (isegoria).
140
A experiência de liberdade vivenciada pelos antigos,
especificamente pela (limitada) “democracia” grega, relaciona-se com a
137
ALVES, Alaor Caffé. A Função Ideológica do Direito. In: Fronteiras do Direito Contemporâneo.
São Paulo: Diretório Acadêmico João Mendes Júnior Faculdade de Direito Universidade
Mackenzie, 2002, p.27.
138
MASCARO, Alysson. Filosofia do Direito..., op. cit., p. 42.
139
idem, pp. 43/44.
140
MERQUIOR, José Guilherme, op. cit.
59
possibilidade da construção do espaço público entre os que se tinham como iguais,
o que não se confundia com o locus privado, aí fortemente moldado pelos costumes,
pelas tradições e pela crença religiosa. De forma que essa liberdade não tem
nenhuma semelhança com a noção de prerrogativas individuais, com o
encerramento de cada ser em um casulo isolado.
Para os modernos, ao contrário, a liberdade nada tem de igual,
encerrando-se em uma perspectiva meramente individual. Perdeu a modernidade a
dimensão coletiva da liberdade, transformando-a em mera garantia para o ser
isoladamente considerado, fruto do liberalismo econômico. À prática política dos
antigos seguiram-se a inação e a não-participação modernas. A liberdade passou a
ter um caráter negativo ao invés do cunho ativo que teve entre os antigos; passou a
ter o significado de mera permissão para o exercício da vontade individual (não mais
da prática política) garantida pelo Estado, o qual passa a encarnar o papel de ente
de poder público, sendo tal poder exercido por meio de representação do povo.
A questão da liberdade envolve, pois, as noções de autonomia,
independência e, do outro lado, interdependência, convivência. Se o ser humano é
gregário, social, somente inserido na coletividade é que a sua complexidade pode
ser apreendida. A concepção individualista do homem e sua correspondente noção
de liberdade são, portanto, contrárias à natureza social do próprio homem.
A base igualitária (evidentemente desconsiderando os ‘diferentes’)
distingue a liberdade antiga da liberdade moderna de forma a praticamente
impossibilitar o reconhecimento de tão distintos institutos enfeixados em uma
mesma palavra.
Liberdade real pressupõe, pelo menos, uma forte e efetiva
tendência à igualdade. Sem igualdade, ou com igualdade meramente formal, a
liberdade seefetiva para uns e não o será para outros. Liberdade implica sempre
opção, qualquer que seja a definição que se lhe dê. Qualquer dicionário, ao definir
liberdade, traz implícita ou explicitamente a noção de escolha. Ser livre é poder
escolher. A carência parcial ou total de recursos materiais implica impossibilidade de
opção, ou seja, ausência de liberdade. Sem poder decidir por qual via deseja seguir,
o indivíduo vê-se condenado a um caminho que não foi por si escolhido. Repete,
assim, o destino de Sísifo, condenado por Zeus a empurrar eternamente uma pedra
montanha acima e, chegando, deixá-la rolar montanha abaixo, num movimento
incessante e sem fim. O oprimido de hoje, sem poder escolher, é obrigado a rolar
60
pedras não mais por imposição do Olimpo, mas em decorrência do jogo de forças
que rege a sociedade.
5. Direito, Estado e Ideologia
O conceito de liberdade na sociedade burguesa é apenas uma
parte do quadro representado pela instância jurídica nessa sociedade, mas é um
passo importante para sua análise crítica.
A burguesia, como classe social ascendente, precisava da
instituição da igualdade formal entre todas as pessoas e, com isso, rompia os laços
de servidão que ligavam pessoas à propriedade e ao senhor feudal. A razão dessa
necessidade foi amplamente desvelada por Marx, que demonstrou a equivalência
entre a mercadoria e a norma jurídica e entre pessoas e coisas no capitalismo.
Essa nova ordem jurídica atendia assim a dois imperativos da
burguesia e dos novos capitalistas: garantir o funcionamento da nova ordem
econômica e manter, sob palavras bonitas liberdade, igualdade -, o controle da
sociedade, realizando a dominação ideológica em favor da burguesia ascendente ao
poder. Mas essas idéias dominantes não aparecem como sendo a expressão de
interesses de classe determinados, e sim como ‘idéias puras’, provindas de
pensadores desvinculados daqueles interesses.
141
.
A necessidade econômica da decretação da igualdade e da
liberdade estava em que o sistema produtivo capitalista nascente precisava de mão-
de-obra livre para trabalhar nas suas manufaturas, o que era incompatível com a
servidão feudal. A liberdade, além disso, fazia-se necessária para que os homens
“livres” pudessem efetuar contratos sem impedimentos legais.
Se os trabalhadores nada tinham de seu, se a propriedade estava
em mãos de poucos e os meios de produção eram do capitalista, os trabalhadores
nada tinham a vender senão sua força de trabalho. Como esta é indissociável de
suas personalidades, na prática eles se alienavam a si próprios sob o manto jurídico
do contrato entre iguais.
141
NAVES, Márcio Bilharinho. Marx – Ciência e Revolução ( Coleção Logos). São Paulo: Editora da
Universidade de Campinas, 2000, p. 37.
61
Ocorre que tal mecanismo não se mostrava abertamente como o
que de fato era: uma necessidade da ordem de produção capitalista. Ao contrário, o
direito apregoava-se como emanado da razão humana em nome do bem-estar
coletivo, encobrindo o fato de que apenas enunciava como jurídicas normas que
estavam fixadas pelo imperativo da produção e da circulação econômicas; o direito
apenas as reproduzia e legalizava: O direito designa e desloca ao mesmo tempo os
verdadeiros problemas. (...) Ao realizar-se, o direito não diz pois o que deve ser, diz
já ‘aquilo que é’ ”.
142
Ao apresentar o direito como derivado da razão e dotado de
universalidade, brandindo a régua niveladora sobre os desiguais, a classe
dominante faz passar a defesa dos seus interesses como se fossem da totalidade
social
143
, como se o houvesse conflitos e desejos distintos e antagônicos. Não
bastasse, ainda exerce o controle social que pacifica tais embates e legitima a
desigualdade
144
por meio da ideologia, que transmite uma falsa aparência da
realidade.
Na verdade, a igualdade efetiva nunca esteve e continua a não
estar na intenção dos possuidores. Ao contrário! A desigualdade real e o discurso da
igualdade formal são igualmente necessários ao funcionamento do sistema
produtivo, são as duas faces de uma mesma moeda que se combinam e se
necessitam, em relação dialógica.
Para o perfeito funcionamento do mecanismo, necessitava-se de
um ente que, servindo aos vencedores, se posicionasse acima da sociedade e de
seus conflitos e assumisse uma posição pretensamente neutra a fim de, no interesse
daqueles, “pacificar” os conflitos sociais
145
e funcionar como uma instância
desvinculada e imparcial. Nesse cenário veio à tona o Estado Moderno.
Porque a troca de mercadorias à escala da sociedade e no seu pleno
desabrochar, favorecida notadamente pela concessão de empréstimos e de
créditos, engendrava complexas relações contratuais recíprocas e exigia,
por isso, regras de validade geral que não podiam ser editadas senão pela
coletividade normas jurídicas fixadas pelo Estado –, imaginava-se que
142
MIAILLE, M., op. cit., p. 95.
143
NAVES, M., Marx ..., op. cit., p. 37.
144
ALVES, Alaor C., op. cit., p. 20.
145
A criminalização dos movimentos sociais, de grevistas, de índios, negros, mulheres e
trabalhadores, ontem e hoje, bem demonstram os métodos e fins por trás dessa “pacificação social”.
62
essas normas jurídicas o tinham por origem os fatos econômicos, mas
que era a sua codificação formal pelo Estado que as fazia nascer.
146
No entender de Bloch, o capitalismo, longe de ser alheio ao
estado, é na verdade seu ponto alto, e é apenas nele que o estado implementa sua
mais importante função ideológica: servir não apenas como instrumento dos mais
poderosos, mas também como seu disfarce (e nesse ponto o Estado Moderno
diferencia-se das experiências anteriores, nas quais as relações de dominação de
classe eram expressas e transparentes). Apresentando-se como um poder universal,
o qual aparentemente paira acima da sociedade e equaliza o que encontra, o
estado assegura os interesses da classe burguesa e age contra os espoliados
147
.
Dessa forma, a ideologia não é simples conseqüência do mecanismo da economia
na sociedade burguesa, mas também um pressuposto do seu funcionamento
pacífico
148
.
A igualdade formal entre os seres humanos os fez cidadãos (os
homens, apenas, e mesmo assim os que superavam a barreira da restrição
censitária) e, portanto, esses tinham, hipoteticamente, igual direito à participação na
vida pública. Com isso, o debate nessa seara não poderia portar um caráter
classista, posto que, perante a lei, todos eram iguais. A equalização retirou dos
trabalhadores o espaço público para a defesa de sua situação de inferioridade.
O Estado é compreendido, agora, como a forma de domínio pela qual a
classe dominante faz prevalecer os seus interesses comuns de classe. O
caráter comum desse poder cumpre dois papéis: em primeiro lugar, ele
permite que o Estado possa defender os interesses do conjunto da classe
dominante, mesmo que tenha, em determinadas circunstâncias, para
alcançar esse objetivo, de sacrificar o interesse particular, seja de alguma
fração, seja de algum membro da classe dominante; em segundo lugar, ele
permite que os interesses da classe dominante sejam apresentados como
sendo os interesses do conjunto da sociedade, como uma comunidade de
interesses gerais e, portanto, que não adquiram um caráter privado, mas, ao
contrário, um caráter público, isto é, o exercício do poder político pela classe
dominante pode aparecer como o domínio impessoal de uma pessoa
jurídica, ao qual a idéia mesma de dominação de classe é um impensado.
149
Essa atuação do estado mostra os seus traços básicos e o seu
posicionamento quanto à questão das classes sociais. O estado garantidor o é
146
ENGELS, Friedrich. Socialismo de Juristas. In Crítica do Direito, vol. 1. São Paulo: Livraria Editora
Ciências Humanas, 1980, p. 2.
147
BLOCH, E., op. cit., p.270.
148
LUKÁCS, G., op. cit., p. 473.
149
NAVES, M., Marx..., op. cit., p. 38.
63
quanto à segurança do empreendimento capitalista, não quanto à promoção de
bem-estar para o conjunto da sociedade.
O papel do estado desdobra-se em duas frentes: uma direta, ou
“poder centralizado manifesto” e outra indireta, ou “poder centralizado latente”. Não
se pode ter dúvidas quanto ao fato de que o estado efetivamente atua nas duas,
mas de formas diversas. Na primeira forma, a intervenção na sociedade é direta, dá-
se por meio da organização do poder e de sua gestão; é a face do direito público.
Por outro lado, no seio da sociedade civil onde aparentemente o estado não está a
intervir e as relações se dão no plano privado, ainda sua “mão” está presente, ao
conferir, por meio do direito positivo, as regras de direito privado que regulam o
funcionamento das instituições e das negociações privadas de forma a atender aos
reclamos da ordem produtiva e assegurá-la. Dessa maneira, de uma ou de outra
forma, o estado está sempre presente na ordenação social e nas relações entre
indivíduos, seja quanto à sua presença ostensiva nas relações de direito público -,
seja de forma latente quando se trata de relações privadas
150
.
A neutralidade aparente das instituições jurídicas e do estado
disfarça as relações sociais e pessoais realmente existentes na sociedade, de
maneira a disfarçar a vivência conflitiva sob várias máscaras: a do primado da ordem
racional, a da liberdade, a da igualdade perante a lei
151
, a do direito à livre
propriedade, entre outras. Estas “máscaras” não permitem ver o verdadeiro sentido
da exploração que se faz mediatizada pelo “livre” acordo de vontades, pela liberdade
contratual. Eis o caráter fetichista da ordem judica, segundo Marx. Sob tais
postulados ilusórios, a forma jurídica esconde “o fundamento violento comum a
todas as instituições das sociedades de classe”
152
sobre o qual foi formada e ainda
se mantém.
Essa dominação, contudo, somente pode ser exercida enquanto
encontrar um
reflexo ideológico correspondente no pensamento e no sentimento dos
homens envolvidos no campo dominado pela força. Isso significa que as
organizações autoritárias harmonizavam-se de tal forma com as condições
(econômicas) de vida dos homens ou lhe parecem ser tão insuperáveis e
150
ALVES, Alaor C., op. cit., pp. 28/29.
151
A esse respeito, reforça Engels: “E porque a concorrência, que é a forma fundamental das
relações entre livres produtores de mercadorias, é a maior niveladora que existe, a igualdade diante
da lei tornou-se o grande grito de guerra da burguesia.” in Socialismo de Juristas, op. cit., p. 3.
152
LUKÁCS, G., op. cit., p. 442.
64
superiores que estes as consideram como poderes naturais, como ambiente
necessário para sua existência e, por conseguinte, subordinam-se a elas
voluntariamente. (O que de modo algum significa que estão de acordo elas
[sic])
.
153
O disfarce ideológico mantém a idéia de que a ordem das coisas
é a única possível; que os estatutos dessa ordem são inalteráveis, estendendo-se do
passado ao presente e ao futuro; que suas verdades são imutáveis e eternas. Com
isso, camufla a historicidade do estado – e do direito, bem como de todas as
instituições humanas – e seu papel como fator de poder. Na realidade, toda a
estrutura do capitalismo está calcada na desigualdade, na diferença praticamente
intransponível entre o patronato e subordinados, e as instituições do direito e do
estado, seu garantidor, utilizam-se dos conhecidos instrumentos jurídico-formais
para dissimulá-la e, assim, legitimá-la
154
.
6. Saldo da Modernidade
Em que pese o fato de tantos institutos da modernidade ainda
fazerem escola na contemporaneidade, é preciso cultivar um olhar crítico sobre eles
para procurar o sentido real do movimento histórico, e não se perder entre
concepções de mundo que a ele não se ligam.
As idéias de estado como associação ou contrato social
assentam-se em bases muito frágeis, como visto, desconsiderando a realidade da
desigualdade entre pessoas que, no mundo real, certamente não firmariam um pacto
consentindo um modelo que contempla exploradores e explorados. Estes, ao
menos, a rejeitariam. Também a assertiva que tem o estado como fim último da
racionalidade humana não subsiste, dada a impossibilidade de definir qual é essa
razão, na medida em que inexiste uma única e absoluta Verdade supranatural,
existindo, em seu lugar, verdades históricas determinadas pelas relações entre os
seres humanos. Resta a concepção de Estado como fruto do exercício do poder
pela classe dominante e, portanto, como instrumento de dominação.
153
LUKÁCS, G., op. cit., pp. 466/467.
154
ALVES, Alaor C., op.cit., p. 34.
65
A preponderância da classe burguesa sobre o conjunto da
sociedade não se dá, certamente, somente pelo uso da força armada do aparato
estatal: ela tornou-se muito mais complexa, sofisticou-se, e é exercida também por
meio da dominação ideológica geradora do consenso social. Os meios sociais de
produção e reprodução ideológica alcançaram um grau muito grande de eficiência,
havendo conseguido convencer multidões de que o capitalismo é o modo “natural”
portanto, definitivo de existência humana, assim como o egoísmo dos indivíduos
também é um dado da natureza portanto, imutável. Assim, o exercício da violência
estatal fica reservado para os momentos ou situações em que esse consenso
ideológico induzido não conseguir mais dar conta de sua tarefa socialmente
conformista.
A ideologia é, pois, ferramenta indispensável à reprodução
capitalista. Daí o apelo ao mundo das verdades eternas e universais ou ao império
da norma, válida por si mesma, dissociada do mundo e das necessidades reais.
Com ser assim, a possibilidade e/ou a tentativa de transformação
da ordem posta deve, necessariamente, passar pelo desvelamento do oculto sob o
manto ideológico, o mundo dos sistemas ou das representações. Como fazê-lo não
será apontado pelos institutos da modernidade, justamente a criadora de tal
ocultação em favor do sistema econômico então e ainda vigente.
É necessário destruir esse olhar sobre meras aparências a fim de
possibilitar um contato direto com a essência das coisas, ou coisas-em-si, que revela
sua transitoriedade e, portanto, a possibilidade de sua superação. Por outro lado, o
conhecimento do mundo permite ao ser humano a constatação de que a realidade é
por ele criada
155
, e por isso pode ser modificada, descartando-se uma idéia de
perenidade ou de absoluto na ordem das coisas humanas.
Por outro lado, a crença em uma razão absoluta, universal, uma e
a-histórica mostrou-se uma aposta vazia, posto que o Iluminismo o conseguiu
transformar em ato sua potencialidade universal nela fundada. A crença de que o
homem racional poderia construir uma sociedade melhor para todos e conduzir a
humanidade ao reino da felicidade o se confirmou.
As promessas da razão não foram cumpridas, em verdade,
porque não poderiam mesmo sê-lo. É que a concepção de que a razão seria o motor
155
KOSIK, K., op. cit., p. 22.
66
de uma nova civilização e de um novo estágio no desenvolvimento humano, tão
presente entre os iluministas, tem natureza idealista e prende-se à crença de que as
idéias podem mudar o mundo. A realidade demonstrou e continua a demonstrar o
contrário. A inteligência humana não é a origem do modo de ser da sociedade. Ao
invés, é o modo de produção social, é a apropriação e divisão das forças produtivas
e do seu resultado, com os conflitos de interesses a ele inerentes, que determina o
modus vivendi da sociedade e que, em última análise, acaba por moldar também as
idéias e consciências
156
.
Ou seja, não uma razão iluminada, única e verdadeira. Em
uma sociedade cindida em classes sociais diferentes e reciprocamente conflitivas,
os interesses são igualmente diferentes e divergentes e, portanto, é impossível a
existência de uma única “razão” a unir todos os seus integrantes.
Dessa forma, é perfeitamente explicável pelo materialismo
histórico o fato de que as promessas da razão não se cumpriram na Europa
iluminista e também não se cumpriram depois; somente a resultante das forças
antagônicas em conflito pode determinar o resultado da forma e do modo de
funcionamento de qualquer sociedade.
156
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª edição – São Paulo: Editora Martins
Fontes, 1983, p. 24.
CAPÍTULO IV – Evolução dos Direitos Humanos e Cartas de
Direitos
1. Gênese dos Direitos Humanos: Advento das Declarações
de Direitos e Constitucionalização
Os movimentos revolucionários burgueses levantaram a bandeira
dos direitos humanos a fim de granjear o necessário apoio popular para a derrubada
dos privilégios legais do clero e nobreza então dominantes. o se pode esquecer,
contudo, que essa plataforma de direitos humanos somente tinha, de
verdadeiramente universalizantes, a igualdade jurídico-formal e a liberdade
individual abstratamente considerada. Os direitos humanos exigidos e conseguidos
naquele momento eram apenas os que interessavam à classe ascendente
revolucionária – e somente dentro deste limite.
Os direitos humanos civis e políticos têm sua gênese, portanto,
nas revoluções burguesas, são filhos diretos da modernidade iluminista. A
legalização de direitos é também contemporânea da edição das primeiras
constituições (consideradas como as contemplamos hoje).
É preciso atentar, porém, para o fato da mutabilidade do rol
desses direitos. As três primeiras Constituições posteriores à Revolução Francesa
as cartas de 1791, 1793 e 1795 bem o demonstram, na medida em que variaram
de intensidade revolucionária de acordo com o quadro histórico-social de cada um
desses momentos
157
.
Os primeiros direitos humanos a serem reconhecidos estavam
diretamente ligados ao movimento revoluciorio burguês dos séculos XVII e XVIII,
e basicamente foram liberdade contratual individual, igualdade formal, segurança e
propriedade privada este considerado um direito sagrado pela Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
157
Cfr. TRINDADE, José Damião, História..., op. cit., pp. 53/77, em que são analisadas detidamente
as circunstâncias que deram origem a cada uma das três cartas constitucionais citadas, o que
determinou os avanços e recuos nelas verificadas.
68
A afirmação inicial dos direitos humanos deu-se a partir do
rompimento com a legalidade feudal-monárquica e com o firme posicionamento
contrário à ordem então em vigor. Ou o foi rompendo as amarras com os laços
feudais, no caso da Revolução Francesa, por exemplo, que as proclamações de
direitos foram efetuadas? Os direitos humanos têm, pois, em sua origem, um caráter
transgressor das regras postas. É de se ressaltar, no entanto, que somente no
nascedouro, e apenas quanto a direitos de caráter individual que visaram a
consolidação do capitalismo e a extinção dos privilégios feudais, é que os direitos
humanos foram fruto de processos revolucionários. Uma vez instalada a legalidade
jurídica do novo regime, a burguesia instalou-se no poder e não teve mais qualquer
necessidade de alterar a ordem posta, razão porque abandonou de vez qualquer
projeto revolucionário – ao contrário, tornou-se extremamente conservadora.
Já os direitos econômicos e sociais decorreram de longa luta
social oriunda do início do século XIX, no qual ocorreram algumas conquistas.
Portanto, no caso desses direitos de prestação e em todos os demais processos
subseqüentes de conquistas de direitos humanos a obtenção de novas condões
não adveio de um processo revolucionário, mas simplesmente reformador, dentro da
própria ordem capitalista, não envolvendo qualquer ruptura no tecido institucional. As
revoluções russa, principalmente, e a mexicana fortaleceram esse processo de
conquista dos direitos sociais.
Conquanto tenha-se tratado a francesa e a russa de duas
revoluções que derrubaram a antiga ordem, há, porém, diferenças fundamentais
entre elas. No primeiro caso, o movimento francês revolucionário foi feito por muitos
em nome de poucos, a minoria dos novos produtores capitalistas. Na revolução
russa, ao contrário, a maioria impôs-se sobre a minoria e elegeu os direitos que
correspondiam às suas necessidades.
Assim, pela primeira vez na história, a apropriação do poder não se no
curso de um movimento dirigido por uma minoria e para o seu exclusivo
benefício. A revolução do proletariado constitui-se no ‘movimento
independente da imensa maioria em proveito da imensa maioria’.
158
Nos dois casos, malgrado suas diferenças radicais, mormente
quanto aos fins opostos perseguidos, a ilegalidade transgressora impôs-se sobre a
158
NAVES, M., Marx..., op. cit., p. 53.
69
velha legalidade, derrubando-a e colocando uma nova ordem em seu lugar. Pôs-se,
então, o problema do reconhecimento da legitimidade dos processos revolucionários
e de uma outra ordenação político-social que conquistou o poder
159
. Acerca do curso
do processo revolucionário russo, afirmou Lukács que
O proletariado russo conduziu sua revolução vitoriosamente não porque
circunstâncias felizes colocaram o poder em suas mãos (...), mas porque
ganhou força em longas lutas ilegais, compreendeu claramente a essência
do Estado capitalista e ajustou suas ações à realidade efetiva, e não a
ilusões ideológicas.
160
As revoluções burguesas e a consolidação do capitalismo em
escala global sedimentaram os modelos do Estado moderno, da democracia
representativa burguesa, das garantias de direitos e sua positivação, da concepção
do direito como garantia e não como efetividade, da produção de cartas
constitucionais e da adoção do positivismo como parâmetro para a instância judica
bem como para as demais ciências sociais. Essa (então) nova caracterização
política, econômica, jurídica e social firmou as bases do modelo político-estatal até
hoje exercido, ao menos no Ocidente.
A esse marco histórico seguiu-se a prática da
constitucionalização. A instituição de uma carta fundamental que congregasse a
organização fundamental do estado, seu delineamento e objetivos gerais e, ainda,
os direitos assegurados ao seu povo passou a ser prática corrente, ao menos no
mundo ocidental. O Estado de Direito pressupõe necessariamente uma carta de
direitos que deve garantir, e tais direitos precisam da intervenção estatal para sua
efetivação, daí porque se pode falar em um nexo entre constituição e direitos
fundamentais.
161
Inicialmente, no que se refere aos direitos contemplados, as
Constituições abarcavam apenas os direitos fundantes do liberalismo: os direitos
civis e políticos, instituidores das garantias individuais. Posteriormente, a partir da
Guerra Mundial, passaram a ser abrangidos também os chamados direitos sociais,
ou direitos de prestação, dependentes do estado para sua efetivação e ligados a
159
A questão do poder e da sua legitimação social escapam aos limites deste trabalho, mas a
menção foi feita apenas para firmar a origem dos direitos humanos e de seus processos criadores.
160
LUKÁCS, G., op. cit., p. 487.
161
LUÑO, Antonio Enrique Perez. Los Derechos Fundamentales. Temas Clave de La Constituición
Española. 8ª edição – Madrid: Editorial Tecnos, 2005, p. 19.
70
reclamos de igualdade material
162
. Além do rol de direitos, as constituições
passaram a contar também com dispositivos sobre sua ordem econômica, nos quais
se estabelece a participação do estado quanto à forma de atendimento das
prestações constitucionais previstas
163
.
Com ser assim, alterou-se também a expectativa quanto à
atuação do poder público com relação aos chamados direitos fundamentais: de uma
prestação negativa, ou não-agir quanto aos direitos civis e políticos –, os direitos
sociais, econômicos e culturais passaram a reclamar do estado uma prestação
positiva, uma ação. Atente-se, porém, para o fato de que nem todos os direitos civis
e políticos vigem apenas com a inação do estado e nem todos os direitos sociais
dependem de recursos para sua efetivação
164
(veja-se o respeito ao direito de greve,
por exemplo, que reclama apenas uma inação do estado, um deixar fazer, à moda
dos direitos civis e políticos).
O Estado de Direito encontra seu fundamento jurídico na sua
Constituição, que prevê o rol de direitos vigentes em determinado país. Segundo
esse documento, a instituição estatal é chamada a efetivar os direitos contemplados
na carta constitucional que institui juridicamente cada estado. O problema é que a
mera positivação não se traduz em efetividade, pois as prestações estatais não se
prendem à previsão constitucional, mas à realidade do estágio da correlação das
forças sociais – daí a discrepância entre o extenso rol de direitos e o cotidiano brutal
e desumano da realidade social desigual em todos os tempos, a partir da cisão da
sociedade em classes sociais antagônicas.
Assim é que os chamados direitos de liberdade civis e políticos
têm sido “respeitados”, de forma geral, ao menos no mundo ocidental
165
(pelo
menos para os integrantes das camadas sociais superiores), embora até estes
estejam experimentando forte retrocesso. os direitos sociais e econômicos têm
um histórico muito mais tumultuado e carregado de inefetividade, salvo em alguns
162
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento – Uma leitura a partir da
Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 11.
163
idem, pp. 25/26.
164
Essa distinção é importante porque a alegação da necessidade de mobilizar recursos estatais para
o atendimento dos direitos sociais, econômicos e culturais foi historicamente utilizada para não os
implantar, e ainda em nossos dias há quem assim o defenda, de forma a negar sua implementação.
165
Não obstante várias vacilações em sua aplicação, entre as quais, por exemplo, a demora em
conceder o direito de voto às mulheres o que, na “civilizada” Suíça somente se deu em 1971. Em
outras vezes, ocorreu verdadeira negação dos direitos civis e políticos mesmo nos países centrais do
liberalismo, com a efetiva discriminação quanto à concessão de tais direitos, presumivelmente,
segundo o pensamento moderno e “racional”, universais.
71
momentos históricos, o que se discutirá adiante. Por fim, os direitos de toda a
comunidade, como o direito ao meio-ambiente sustentável e equilibrado e ao
desenvolvimento, este reconhecido recentemente pela Convenção de Viena de
1993, estão a depender não mais apenas de um estado, mas de uma ação
concertada entre eles, visto que são temas da órbita internacional.
2. Cartas e Constituições Documentos de Formalização de
Direitos
IV.2.a – Declaração de Direitos do Bom Povo de Virginia
EUA, 1776
Sob inspiração das idéias iluministas foram produzidas todas as
cartas de direitos da época moderna, sendo considerada a primeira a Declaração de
Direitos do Bom Povo de Virgínia, de 1776. Esse documento falava em igualdade
natural entre todos os homens e existência de direitos a ele inatos, os quais não lhe
poderiam ser negados, tais como: o gozo da vida e da liberdade; meios de adquirir e
possuir propriedade e obter felicidade e segurança; soberania popular; governo para
o bem comum sob pena de ser substituído se assim o fizesse; separação de
poderes, entre outros. Posteriormente, a Declaração de Independência dos Estados
Unidos da América, também de 1776, proclamava, em seu art. 2°., a igualdade entre
os homens e a existência de direitos que lhes são inalienáveis, entre os quais: a
vida, a liberdade e a busca de felicidade. Afirmava ainda que os governos são
estabelecidos entre os homens para assegurar esses direitos e atribuía ao povo o
direito de alterar ou abolir qualquer forma de governo que se tomasse ofensiva a
esses fins.
Foi a consagração, na antiga colônia inglesa, dos direitos civis e
políticos porém de forma restrita, pois diferenças de gênero, raça, cor e classe
social ainda constituíam obstáculos para o exercício dos direitos consagrados os
wasp (White, anglo-saxon, protestant) gozavam da totalidade dos direitos civis e
políticos, enquanto que aos negros escravos nenhum direito era reconhecido. Nada,
72
contudo, foi escrito acerca de direitos sociais, como convinha ao credo liberal da
classe burguesa promotora do movimento independentista na América.
166
IV.2.b – Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
França, 1789
Enquanto isso ocorria além-mar, na Europa também se
verificavam agitações sociais. Na França crescia o movimento anti-absolutista,
agravado pelas crises fiscal, econômica, financeira e social que enfraqueciam o
país. O movimento levado a cabo pelo Terceiro Estado – povo e burguesia – acabou
servindo para que essa classe atingisse seus objetivos com o fim dos privilégios da
aristocracia e do poder absoluto dos reis.
A igualdade e liberdade de todos os cidadãos serviam como pano
de fundo ideal para a exploração de trabalhadores que, conquanto legalmente livres,
eram na verdade completamente carentes economicamente – portanto, desiguais de
fato , necessitando do trabalho como única ferramenta para permitir sua
sobrevivência e a manutenção de sua família. Diante da necessidade, não lhes
restava outra opção senão a de aceitar o que lhes era oferecido, sem qualquer
possibilidade de reivindicação – o que lhes custaria o emprego e o próprio sustento.
A intenção da burguesia vitoriosa quanto às condições a serem
aplicáveis à mão-de-obra após a Revolução era tão inequívoca que uma das
primeiras e mais célebres leis revolucionárias foi a Lei Le Chapelier, de 1791, que
extingüiu as corporações de ofício (que, bem ou mal, asseguravam uma paga
mínima aos aprendizes e propiciavam alguma proteção aos artesãos na doença e
na velhice), proibiu a criação de associações operárias em geral e criminalizou
quaisquer movimentos de trabalhadores que tivessem o propósito de reivindicar
melhores salários
167
.
Mal se iniciou o período revolucionário francês, foi produzida, em
agosto de 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Merece análise
166
TRINDADE, J., História..., op cit., pp. 96/98.
167
O liberalismo é de tal modo hostil ao movimento organizado dos trabalhadores que essa lei Le
Chapelier, que criminalizava o movimento operário, somente foi revogada em 1887.
73
esse documento tão emblemático.
O artigo 1º. da Declaração assevera que todos são "livres e iguais
em direitos". A liberdade assegurada, note-se, foi a judica. O artigo 2°. consagrou
como direitos naturais e imprescindíveis do homem a liberdade, a propriedade, a
segurança e a resistência à opressão. Desses direitos, apenas a propriedade foi
considerada direito "inviolável e sagrado". Da igualdade não se falou entre os quatro
direitos enunciados como naturais e imprescritíveis muito menos, então, como
direito inviolável e sagrado, a exemplo da propriedade e a resistência à opressão
não recebeu nenhuma outra referência. Outras ausências sentidas referiram-se ao
sufrágio universal, à igualdade entre os sexos
168
e a crítica à escravidão, entre
outros temas relevantes
169
.
Segundo José Damião de Lima Trindade, "tão importantes quanto
as idéias que a Declaração contém são as idéias que ela não contém e que, a
julgar pela acumulação filosófica existente no final do século XVIII, a "Razão"
esperaria que fossem acolhidas nesse texto.”
170
A revolução burguesa cuidou de garantir 'direitos' na medida em
que esses aproveitavam à sua classe e aos seus interesses econômicos. Não se
pode perder de vista essa realidade a ponto de considerar que a revolução francesa
e o seu documento de direitos humanos tenham tido verdadeiramente um caráter
libertário. Ao contrário, a revolução promovida pela burguesia visava legitimar uma
nova forma de dominação social, e sua principal arma para isso era a assegurada
igualdade formal
171
.
As condições difíceis de trabalho e de vida da população pobre,
surgidas principalmente a partir da Revolução Industrial na Inglaterra,
desencadearam a consciência de classe entre os explorados e o seu conseqüente
desejo de luta. Foram criados os primeiros sindicatos e entidades associacionistas e
desencadeados movimentos de resistência, como a greve. Tais movimentos
sofreram forte repressão estatal, mas consolidaram a união dos trabalhadores em
tomo de suas bandeiras de luta e de seus direitos. A partir dessa tomada de
consciência e do recrudescimento da luta dos trabalhadores urbanos e rurais, várias
168
Ver TRINDADE, J., História..., op cit,, p. 77, sobre o saldo da Revolução Francesa para as
mulheres: nada lhes foi concedido. As que mais defenderam as causas feministas acabaram
guilhotinadas.
169
TRINDADE, J., História..., op cit., pp. 54 e segs.
170
idem, p. 55.
171
ibidem, pp. 76 e 117.
74
revoluções populares tiveram lugar ao longo dos séculos XIX e XX, em várias partes
do mundo.
IV.2.c – Revolução Mexicana – México, 1917
No México, a partir de 1910, foi vitoriosa a primeira revolução
popular do século XX, da qual resultou a Constituição Mexicana de 1917 pioneira
quanto à instituição e ao alargamento de certos direitos humanos, por dispor pela
primeira vez, de modo consistente, sobre direitos sociais e econômicos e, via de
conseqüência, por restringir o direito à propriedade, atribuindo-lhe uma função
social
172
. Merece destaque a concepção de democracia ali exposta: "não somente
uma estrutura jurídica e um regime político, mas também um sistema de vida
fundado na constante promoção econômica, social e cultural do povo". Outros
avanços restaram consignados, como a proibição de monopólios econômicos, a
abolição de privilégios tributários, a autorização de funcionamento de sindicatos e
associações cooperativas, a concessão de direito de voto também às mulheres e,
por fim, a previsão de extenso rol de direitos sociais dos trabalhadores. Essa
Constituição foi, até o momento de sua edição, o mais avançado documento no que
tange ao rol de direitos previstos. No entanto, quase tudo com que acenou em
termos de avanços permaneceu apenas no papel, em decorrência do
enfraquecimento das forças populares que a produziram
173
.
IV.2.d – Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e
Explorado – Rússia, 1918.
Quando o regime liberal encontrava-se firmemente instalado no
mundo ocidental, uma nova ordem de idéias tomou corpo no leste europeu. Na
172
No Brasil, apenas em 1988, com a promulgação da Constituição de 05 de outubro, foi estabelecida
a função social da propriedade, como se verifica em seu art. 5°., inciso XXIII.
173
TRINDADE, J., História..., op. cit., pp. 151/154.
75
Rússia, a dinastia Romanov, que completava 300 anos no comando do país, foi
destronada pela revolução democrático-burguesa de fevereiro de 1917. O governo
provisório que ascendeu ao poder (liberais e social-democratas em aliança) tinha
como meta a formação de uma república parlamentar nos moldes ocidentais, que
preservasse a propriedade privada dos meios de produção e favorecesse o
desenvolvimento do capitalismo.
Contudo, o recrudescimento dos conflitos sociais na Rússia fez
eclodir, em seguida, uma revolução socialista, a primeira no mundo. Em outubro de
1917, o mundo assistiu à vitória de uma revolução operário-camponesa, que tomou
o poder a fim de fazer a transição do regime capitalista para o socialista. Operários
urbanos, camponeses e soldados, organizados em "soviets" (comitês populares de
natureza legislativo-executiva, eleitos exclusivamente por trabalhadores em vilas,
bairros, cidades etc.), ascendiam ao poder no mais extenso país do planeta, e um
dos mais atrasados da Europa. A instalação do primeiro regime socialista no
continente causava preocupação e temor compreensíveis nos pses capitalistas
liberais.
O enredo e o desenlace dessa história são bem conhecidos,
mas aqui nos ateremos ao documento produzido pelo corpo revolucionário, naquilo
que dizia respeito aos direitos humanos. Poucos meses após a vitória da
insurreição, em janeiro de 1918, os revolucionários, reunidos no Primeiro Congresso
Pan-russo de Soviets, produziram a "Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e
Explorado", uma tentativa de ser o "contraponto" socialista à Declaração burguesa
de 1789.
A Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado inaugurou uma
ótica completamente nova da abordagem tradicional dos direitos humanos.
Em vez da perspectiva individualista de um ser humano abstrato, contida na
Declaração francesa de 1789, a Declaração russa de 1918 elegia como
ponto de partida o ser humano concretamente (isto é, historicamente)
existente, o ser humano que vive em sociedade, em relação contínua com
outros homens, e que, portanto, poderá desenvolver (ou não desenvolver)
suas potencialidades humanas conforme a posição que ocupar nessa
sociedade, ou conforme o modo de organização dessa sociedade venha a
favorecer ou a dificultar esse desenvolvimento. Em vez da sociedade
hipoteticamente uniforme (isto é, juridicamente igualitária), dissolvida
idealmente em cidadãos supostamente iguais, a Declaração russa partia do
reconhecimento cautelosamente evitado desde 1789 de que a
sociedade capitalista está mesmo cindida em classes sociais com
interesses conflitantes, alguns deles irremediavelmente antagônicos.
Portanto, em vez da ideação liberal de "neutralidade" social do Estado, a
nova Declaração tomava partido, desde logo e abertamente, dos
76
explorados e oprimidos, alijando explicitamente do poder econômico e
político os exploradores.
174
A ssia pós-revolucionária, na tentativa de implantar o
socialismo e caminhar para o comunismo, segundo a via traçado por Marx, optou
deliberadamente por um grupo social: os trabalhadores e os explorados. Importa
fazer essa ressalva para trazer à tona um entre tantos exemplos históricos que
demonstram a total ausência de neutralidade do Estado e do poder público. A
diferença deste marco histórico está em que, dessa vez, o Estado inclinou-se em
favor do proletariado e dos oprimidos em geral, expurgando a classe dominante dos
seus antigos privilégios e favorecimentos, enquanto buscava caminhar para uma
sociedade comunista, sem Estado. Assim é que, ao contrário do voto censitário
baseado na renda e/ou no patrimônio a Rússia instituiu, no capítulo IV do referido
documento, a vedação de participação política à classe burguesa. Foi a
discriminação a contrario, em que o pertencimento à camada social superior deixou
de ser causa de inclusão e passou a ser motivo de impedimento ao exercício da
vida pública
175
.
Se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,
caracterizou-se por consagrar os direitos ligados ao liberalismo econômico
individualista, notadamente a propriedade, a liberdade (contratual) e a igualdade
meramente formal, a Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Oprimido tentou
avançar na busca da igualdade material. Para tanto, determinou a socialização dos
meios de produção, a instituição do trabalho como um dever para todos, o
desarmamento das antigas classes proprietárias dos meios sociais de produção, a
outorga do poder aos grupos populares formados por aqueles que exercessem
“trabalho produtivo ou socialmente útil”, entre outras medidas efetivamente
niveladoras
176
.
174
TRINDADE, J., História..., op. cit., p. 156.
175
idem, p. 157.
176
ibidem, pp. 156/159.
77
IV.2.e – Constituição de Weimar – Alemanha, 1919
Não se pode deixar de mencionar, entre os textos de declarações
e constituições marcantes de direitos humanos, a Constituição Alemã de 1919,
conhecida como Constituição de Weimar.
A derrota na Primeira Guerra Mundial trouxe à Alemanha grandes
danos e baixas: além de arrasada, foi excluída da mesa de negociação de
Versalhes em 1919 pela primeira vez o país derrotado não participava das
negociações do pós-guerra – e foram-lhe impingidas obrigações que não tinha como
suportar
177
. Com o país destruído econômica e socialmente, as taxas de inflação e
desemprego em níveis muito altos e com o recrudescimento do movimento operário,
a burguesia alemã viu-se forçada a ceder em alguns pontos ao apelo popular, para
evitar que se configurasse uma nova situação revolucionária no país (uma situação
assim já fora derrotada pela social-democracia alemã em novembro de 1918).
O documento enfim produzido expressou uma correlação de
forças “sem maiorias claras, em um contexto político cujo equilíbrio era precário e
instável.”, constituindo um “compromisso politicamente aberto de renovação
democrática na Alemanha.”
178
. No aspecto político, estendeu o direito de voto
também às mulheres; do ponto de vista dos direitos civis, garantiu a conhecida
igualdade perante a lei, e vários direitos relativos às relações familiares, à prática
religiosa e à educação.
A grande concessão, porém, encontrava-se na seção V, e
intitulava-se "Da vida econômica". Nessa parte restou assentado que a economia
deveria proporcionar a todos uma existência digna, sendo esse o limite para a
atividade econômica individual. A propriedade foi garantida, mas com observância
de sua função social, e o Estado foi incumbido de regulamentar o uso e
parcelamento do solo, bem como de intervir na economia. A liberdade assegurada o
foi como faculdade individual balizada pela primazia da coletividade, protegendo-se
os direitos pessoais enquanto cumprissem seu papel social
179
. Foi ainda previsto um
177
KEYNES, John Maynard. As conseqüências econômicas da paz. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2002, p. 139 e segs.
178
BERCOVICI, G., Constituição e Estado de Exceção Permanente – Atualidade de Weimar. Rio de
Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 26.
179
idem, p. 27.
78
direito do trabalho uniforme e um sistema geral de saúde e previdência social,
garantida a liberdade de associação trabalhista, reconhecido o direito ao trabalho e,
em sua falta, à assistência social e, dizia ainda a Carta de 1919, que seria buscada
regulamentação internacional para assegurar aos trabalhadores de todo o mundo
um mínimo de direitos sociais
180
.
A Constituição de Weimar foi, ao mesmo tempo, esperança e
frustração, na medida em que não realizou suas aspirações, posto que, fruto de
conciliação entre forças sociais antagônicas, não conseguiu uma unidade
conceitual, permitindo que fosse apropriada por forças que estavam longe de aceitar
a efetivação do conteúdo dos direitos nela previstos
181
.
IV.2.f – Declaração Universal dos Direitos Humanos ONU,
1948
O outro grande documento de caráter universal que dispôs sobre
os direitos humanos – e o mais importante de todos – foi a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, de 1948, que foi a resposta dos vencedores da Segunda Guerra
Mundial ao horror perpetrado pelos vencidos (contudo nada se disse quando aos
horrores de responsabilidade dos próprios vencedores
182
). O morticínio deliberado e
massivo de seres humanos por atributos raciais e ideológicos estarreceu o mundo
inteiro. O sistema de extermínio humano criado por Hitler firmava-se como o não-
modelo, a contra-referência.
Com o fim da Segunda Guerra e a retomada da preocupação
acerca dos direitos humanos em nível mundial, passou o indivíduo, singularmente
considerado, a figurar na agenda internacional como objeto de preocupação e de
proteção – dos Estados.
Urgia que se colocassem novamente e com mais veemência os
180
TRINDADE, J., op cit,, pp. 160/162.
181
BERCOVICI, G., Constituição e Estado..., op. cit., pp. 26/27.
182
O Tribunal de Nuremberg, instituído para punir os crimes de guerra nazistas não teve um
equivalente para julgar, por exemplo, os morticínios de Dresden e de Hiroshima e Nagasaki, atos
gratuitos como estratégia militar, mero exercício de guerra e, no caso do Japão, também estratégia
de intimidação do bloco soviético.
79
direitos humanos na ordem do dia, e desta vez em nível verdadeiramente universal.
O fato de o Holocausto ter ocorrido dentro das fronteiras nacionais evidenciou a
necessidade de se conferir proteção internacional e universal aos direitos humanos,
que não mais poderiam ficar apenas sob o âmbito da soberania estatal. Fazia-se
inadiável a garantia de direitos humanos em nível internacional.
Pode-se dizer que esse documento teve o condão de instaurar o
Direito Internacional dos Direitos Humanos, dada a atribuição aos homens e
mulheres da condição de sujeitos de direito internacional (status que até então era
prerrogativa apenas dos Estados)
183
e a profundidade e abrangência conferidas ao
tema, pela primeira vez na História. O fenômeno da internacionalização dos direitos
humanos é, pois, historicamente muito recente, datando do pós-Segunda grande
Guerra, precisamente a partir da Declaração Universal de 1948.
Inicialmente, não se pode olvidar que a Declaração Universal dos
Direitos do Homem não era um tratado internacional a ser firmado pelos Estados
signatários que por ele se obrigariam. A Declaração foi aprovada sob a forma de
Resolução, que não apresenta força de lei, sendo tão-somente um protocolo de
intenções, um compromisso moral a ser observado globalmente. Ainda assim, não
se pode descartar sua importância como documento inaugural da concepção
contemporânea de direitos humanos, pelo seu alcance e, especialmente, por
constituir-se em referência axiológica sobre o assunto.
A Carta é precedida de sete “considerandos”. O primeiro deles
lança a premissa fundamental que embasa toda a doutrina e prática dos direitos
humanos em nível internacional: o reconhecimento da dignidade humana. Tal
reconhecimento é feito de maneira universalizante
184
e igualitária, extensivo a todos
os seres humanos. O artigo primeiro da Carta reafirma a igualdade entre os seres
humanos e prega a interação entre as pessoas segundo um espírito de fraternidade.
É importante ressaltar esse pensamento que permeia toda a Carta, principalmente
se levarmos em conta as circunstâncias em que foi produzida.
183
ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global. 2ª edição revista e
ampliada – São Paulo: Editora Perspectiva, 2003, p. 37.
184
Essa universalidade, contudo, teve um alcance limitado, posto que ao tempo em que firmada a
Declaração, a Assembléia Geral da ONU contava com 56 países apenas e, desses, 8 abstiveram-se
de votar. Dessa forma, o sentido de universalidade foi muito mais proclamado do que
verdadeiramente consentido em caráter universal. Cfr. ALVES, José Augusto Lindgren. Os Direitos
Humanos na Pós-Modernidade.o Paulo: Editora Perspectiva, 2005, p. 9.
80
A Carta instituiu também o direito à auto-determinação dos povos,
isso em um momento histórico em que o colonialismo estava consolidado. Outro
marco significativo desse documento foi ter colocado a proteção aos direitos
humanos em patamar acima dos Estados, ou seja, acima da soberania estatal, isso
pelo menos no plano teórico.
O momento da realização da Declaração Universal dos Direitos
Humanos é o de um mundo que entrava na Guerra Fria, dividido entre distintas
concepções sociais e políticas de mundo, e a Carta de Direitos tinha também a
missão de buscar compatibilizar os temas mais diretamente ligados a cada um dos
blocos em “conflito”: os direitos civis, de caráter individualista, mais caros ao bloco
capitalista, e os direitos sociais e econômicos, fundamentais para o lado
socialista
185
. A Declaração de 1948 tentou refletir essas forças, mas não o fez
equilibradamente, senão vejamos: dos seus trinta artigos, vinte e um contemplam os
direitos civis e políticos – garantias individuais; sete são dedicados aos direitos
econômicos, sociais e culturais; um contempla as responsabilidades do indivíduo e a
forma de exercitar seus direitos e, por fim, o último dispositivo trata de rejeitar
qualquer interpretação aos dispositivos da Carta que signifiquem a não observância
dos direitos nela previstos.
Sob outra ótica, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
fundou a concepção contemporânea de direitos humanos no que diz respeito à
fusão dos direitos de cunho individualista e os de natureza social. Esse
entendimento tem importância porque, a partir dele, surgiu a concepção de que os
direitos humanos são universais, além de indivisíveis, interrelacionados e
interdependentes
186
e mais, iguais em valor, insuscetíveis de hierarquização. Essa é
a concepção atual sobre direitos humanos, não obstante o problema do
multiculturalismo, que tem representado dificuldades para a uniformização e
definição sobre os direitos humanos no mundo contemporâneo. Apesar disso,
permanece a compreensão da universalidade e indivisibilidade como características
desses.
185
Ao aduzir ao lado ou bloco socialista, não queremos expressar nossa concepção sobre os regimes
estabelecidos no leste europeu: se foram ou não efetivamente socialistas ou se não passaram de um
modelo de capitalismo de Estado. Seja como for, o uso da expressão “socialista” aqui se justifica por
ser consagrada e facilmente identificável, e também porque os países aos quais se refere assim se
nomeavam e consideravam
.
186
ALVES, José A., Os direitos humanos como tema global, op. cit., p. XII.
81
Voltando à Declaração Universal dos Direitos Humanos, por se
tratar de um documento não obrigatório, restou decidido pela ONU que deveria ser
produzido, desta vez com força obrigatória, um outro documento que representasse
um grande pacto sobre direitos humanos. Dadas as diferenças de pontos de vista
sobre a definição e a forma de proteção desses direitos, os países do bloco
capitalista conseguiram firmar o entendimento de que os direitos civis e políticos
seriam desde logo exigíveis portanto, auto-aplicáveis –, enquanto que os direitos
sociais, políticos e econômicos teriam aplicação progressiva, como se dotados de
caráter meramente programático. se apresentava aí uma estratégia de divisão de
direitos, com a pretensão de atribuição de “valores” diferentes aos direitos
pertencentes a cada um dos grupos.
A divergência representada pelos blocos conflitantes determinou,
apenas após dezoito anos de discussões, a produção do documento. que, em
vez de ser um pacto, foram elaborados dois, aprovados pela Assembléia Geral da
ONU em dezembro de 1966: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A divisão deveu-se
a pressões dos países ocidentais que argumentavam que os direitos civis e políticos
eram de aplicação imediata, e com relação a eles poderia ser criado um Comitê
encarregado de examinar denúncias de suas violações, enquanto que os direitos
sociais somente poderiam ser aplicados progressivamente. Apesar de rebatidas tais
argumentações pelo bloco socialista que apontava a possibilidade de
enfraquecimento dos direitos econômicos e sociais se feita a divisão proposta e que
propunha um documento único –, a proposta ocidental saiu-se majoritária na
Assembléia Geral da ONU.
Não obstante sua aprovação pela Assembléia em 1966, os dois
pactos somente entraram em vigor em 1976, quando conseguiram o número mínimo
necessário de ratificações, o que demonstra a dificuldade quanto ao
comprometimento com o tema. Por outro lado, o país hegemônico e declaradamente
vinculado às premissas do liberalismo, os EUA, não assinaram ahoje o Pacto dos
Direitos Sociais, Econômicos e Culturais (em que acabou por prevalecer a idéia da
aplicação progressiva) e, mesmo o outro Pacto, o dos direitos civis e políticos,
somente ganhou sua adesão em 1992
187
.
187
ALVES, José A., Os Direitos Humanos como tema global, op. cit., p. 7.
82
A diferença entre os pesos conferidos a cada um dos grupos de
direitos ecoa ainda hoje, no sistema hegemônico neoliberal. A exaltação da
liberdade e da defesa da propriedade individual encontra-se antes da
implementação dos direitos econômicos e sociais, difusos e coletivos na ordem de
prioridades estatais e mesmo aquelas, a julgar pelo exemplo e pela prática da
grande potência hegemônica, estão fadadas ao desprestígio.
IV.2.g – Declaração de Viena – ONU, 1993
Se o caráter universal dos direitos humanos, considerado quanto
ao aspecto do número de Estados que firmaram sua adesão aos documentos
internacionais, ainda era claudicante, a Declaração de Viena reafirmou esse
princípio fundamental e, desta vez, em nível verdadeiramente global. A conferência
de que resultou o documento reuniu o maior número de estados até então a tratar do
tema – 171
188
, contra 56 quando da elaboração da Declaração de 1948, texto
aprovado por apenas 48 participantes.
O cenário político mundial, no entanto, havia se transformado
completamente. No contexto que se seguiu após o fim da Guerra Fria e a queda do
Muro de Berlim, com suas decorrências, imperava um tom de vitória do modelo
capitalista liberal ocidental como modelo definitivo de Estado e de convivência
humana. A Conferência de Viena realizou-se nesse momento histórico de suposta
definitividade daquele modelo.
Novas demandas postas no cenário internacional, contudo, cedo
a desmentiram. Foram postas na mesa renovados problemas em termos de direitos
humanos, não mais limitados apenas à dicotomia direitos civis e políticos x direitos
sociais, econômicos e culturais (que, entretanto, continuaram atuais). Questões
envolvendo universalismo x regionalismo, multiculturalismo e relativismo cultural,
demandas quanto ao desenvolvimento, refugiados e movimentos migratórios, entre
outras, ampliaram o leque de discussão e de compreensão da natureza dos direitos
humanos na contemporaneidade.
188
ALVES, José A., Os Direitos Humanos como tema global, op. cit., pp. 23/24.
83
É de se lembrar que, um ano antes da Conferência de Viena foi
realizada no Rio de Janeiro a Conferência Eco-92, que discutiu o tema ambiental,
cuja proteção constitui também um direito humano dos povos.
Essa diversificação refletiu-se no texto aprovado na conferência.
A Declaração de Viena reafirmou a universalidade dos direitos humanos (que
encontrou dificuldades para ser aprovada em face dos reclamos quanto ao
reconhecimento do relativismo cultural ou religioso); instituiu o direito ao
desenvolvimento por consenso universal, atendendo a reivindicações dos países de
Terceiro Mundo; enfatizou os direitos da mulher; condenou e exigiu punição aos
genocídios, aos quais equiparou as práticas de limpeza étnica e estupro em massa;
vinculou os conceitos de democracia, desenvolvimento e direitos humanos
189
, entre
muitos outros temas aprovado.
A ampliação do conceito dos valores protegidos juridicamente em
nível internacional na condição de direitos humanos é inegável. Ao menos
formalmente houve um comprometimento global dos Estados, acima de suas
diferenças culturais e históricas, no sentido de admitir os direitos humanos como
universais e de promover ações para efetivá-los. Veremos a seguir se o
conseguiram.
189
ALVES, José A., Os Direitos Humanos como tema global, op.cit.,pp. 27/30.
CAPÍTULO V – Do Estado Liberal ao Estado Neoliberal – Relação
com os Direitos Humanos
1. Liberalismo Econômico
Do ponto de vista econômico, antes mesmo da Revolução
Francesa se encontrava presente a idéia do liberalismo. A concepção do livre
mercado era defendida pelos fisiocratas, o assim chamado grupo de economistas
franceses que propugnavam a xima laissez faire, laissez passer
190
. O slogan
significava o afastamento do estado das relações econômicas vigentes no seio
social, conforme a aspiração burguesa, a fim de que o mercado pudesse atuar sem
amarras.
A partir da Revolução Francesa, triunfou a idéia existente do
Estado Moderno, de cunho liberal, fundado na proposição da igualdade perante a lei
meramente formal e do livre funcionamento do mercado, cabendo-lhe
simplesmente garantir as regras para que a circulação de moeda e mercadoria
pudesse fluir desembaraçadamente. Era a idéia do estado mínimo que veio ao
encontro do pensamento da classe social ascendente.
Não obstante as garantias legais quanto às liberdades civis e a
igualdade, o sistema econômico capitalista surgiu e se fundamentou na
desigualdade real. “O capitalismo surgiu como ‘a civilização das desigualdades’.”
191
.
A Revolução Industrial serviu-se da mão-de-obra operária como
de uma mercadoria a força de trabalho sujeita aos termos de contrato firmado
entre as partes subjetivamente iguais. Durante todo o século XIX e ao início do
século XX o modelo não havia sido questionado no Ocidente. A Europa Ocidental e
os Estados Unidos adotavam o receituário liberal, cujo espírito Adam Smith tão bem
traduziu em sua obra "A Riqueza das Nações" e que foi, não por acaso, um recorde
de vendas nos fins do século XVIII e início do século XIX
192
.
190
TRINDADE, J., História..., op. cit., pp. 38/39.
191
NUNES, Antônio José Avelãs. Neoliberalismo &Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Editora
Renovar, 2003, p. 29.
192
TRINDADE, J., História..., op. cit., p. 39.
85
Importa conhecer melhor as idéias de Adam Smith, porque isso
permite entender o que o papel que o liberalismo dispunha ao Estado e aos seus
cidadãos. Smith expôs suas idéias com clareza e sem disfarces, de forma que hoje
chegam a causar espanto de tão explícitas, o que já justificaria revisitá-lo.
A respeito da fixação de salários, Smith afirmou que, antes do
advento da propriedade privada e da acumulação de capital, o trabalhador era dono
de todo o produto de seu trabalho situação que, se mantida, teria causado o
aumento do valor do trabalho, ou salário, de par com o aumento da produtividade
originado da divisão do trabalho. Entretanto, com a apropriação da terra, os
proprietários passaram a exigir dos trabalhadores uma parcela de tudo o que
produziam. Essa renda constituiu a primeira apropriação do produto do trabalho. A
segunda dedução veio do lucro auferido pelo proprietário, em troca do fato de ter
investido capital no empreendimento, bem como pelo adiantamento, em favor do
trabalhador, de recursos necessários ao seu sustento enquanto o produto do
trabalho encontrava-se em elaboração. Quanto ao lucro, sua fonte é a apropriação
pelo empregador ou proprietário do valor acrescido à matéria-prima pelo trabalho
prestado.
Esclarecidas as partes em que se decompõe o valor do trabalho,
bem como suas destinações, Adam Smith profere sentença certamente incômoda
no regime liberal fundado na igualdade formal:
É pelo contrato celebrado habitualmente por essas duas pessoas
(empregado e proprietário), cujos interesses de maneira nenhuma são os
mesmos, que se determinam, em todos os lugares, os salários correntes do
trabalho. Os operários desejam ganhar o mais possível, e os patrões, a
pagar o menos que possam; os primeiros estão dispostos a se unir para
elevar os salários do trabalho, e os últimos para rebaixá-los.
193
É admirável a franqueza com que se pronuncia o grande teórico
da economia liberal. Ainda com relação às duas partes em oposição na relação de
trabalho, asseverou o autor que era cil prever qual das duas partes levaria
vantagem na disputa: os patrões. E isso porque o sistema legal não os proibia de se
unirem, ao passo que o fazia quanto aos empregados; porque não havia leis no
Parlamento contrárias à redução de salários, mas as havia contra o seu aumento;
porque o patronato poderia sobreviver por muito mais tempo sem o trabalho dos
193
SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003, vol. 1, p. 82.
86
seus empregados do que o contrário, graças ao capital acumulado
194
.
Em seguida, Smith aduz que, quando os patrões decidem, em
coalizão, reduzir os salários para um nível abaixo da taxa natural, os trabalhadores
reagem com estardalhaço e violência, ao tempo em que os patrões, também com
barulho, apelam em altos brados para a magistratura pedindo a execução rigorosa
das leis promulgadas com severidade contra as coligações
195
de criados, operários
e jornaleiros. Em decorrência, os trabalhadores normalmente nada recebem, seja
em função da intervenção do magistrado, seja pela maior capacidade de resistência
dos patrões, restando como saldo àqueles apenas as punições e a queda dos
líderes do movimento de insurgência
196
.
Smith foi o grande teórico do Estado liberal no que diz respeito ao
aspecto econômico. Ao emprestar cientificidade ao funcionamento da economia da
sociedade, Smith justificou e legitimou o (então) novo regime.
Outro economista liberal, David Ricardo, pôs-se também a estudar o
mecanismo econômico e chegou a duas conclusões desconhecidas por Smith.
Primeira, a de que somente o trabalho é o fundamento do valor de troca de todas as
coisas. Essa assertiva permitiu a conclusão de que o capitalista explora o
trabalhador o verdadeiro produtor da riqueza que, no entanto, vive em regime de
escassez –, na medida em que se apropria, em forma de lucro, do valor excedente
conferido pelo trabalho à mercadoria. Segunda, a de que o capitalismo tenderia a
caminhar para a estagnação e a ocorrência de crises ser-lhe-ia inerente. A análise
efetuada por Ricardo revelou-se insuficiente para explicar os reais motivos das
crises cíclicas do capitalismo, mas serviu como alarme contra a concepção vigente
do modelo capitalista como conducente a um desenvolvimento harmônico e
ininterrupto
197
, em que o mercado sempre se auto-regularia por suas “leis” próprias.
Thomas Malthus, por sua vez, escreveu seu nome na história ao
debater o tema da alegada superpopulação mundial. Após afirmar que, em não
sendo controlada, a população cresceria em progressão geométrica enquanto que a
produção de alimentos seguiria uma progressão aritmética, o pastor inglês fez recair
194
SMITH, A., op. cit., pp. 80 a 83.
195
Não se pode deixar de realçar a posição – ativa – do Estado em relação ao sistema econômico e à
exploração do trabalhador. Que não se pense, pois, na neutralidade do regime liberal, fundado,
relembre-se, na igualdade de todos perante a lei. Já se pôde verificar que sequer a lei era igualitária,
portanto, nem mesmo juridicamente a igualdade foi implantada.
196
SMITH, A. op cit., p. 84.
197
TRINDADE, J., História..., op. cit., pp. 107/110.
87
sobre os mais pobres a responsabilidade por tal estado de coisas, ao aduzir que os
trabalhadores vivem na miséria porque se casam cedo e procriam demais. A análise
malthusiana partiu de premissas erradas, como comparar a taxa de natalidade
elevada – nos Estados Unidos com a taxa de aumento da produtividade – lenta – na
Inglaterra e desconsiderar a existência de uma superpopulação relativa produzida
pelas próprias engrenagens do capitalismo que gera um excedente humano o
aproveitável na produção, principalmente em virtude da mecanização do processo
produtivo. Ao apresentar suas idéias, Malthus justificava e absolvia o modelo
excludente, transformando as vítimas em culpadas por sua situação de miséria.
198
Muitos outros teóricos debruçaram-se sobre a sociedade liberal e
capitalista e reconheceram a diferença entre ricos e pobres, entre os donos dos
meios de produção e o proletariado, “dono” apenas de sua força de trabalho.
Entretanto, suas conclusões não eram de repúdio ao modelo, mas de confirmação
deste, na medida em que consideravam, por fim, natural a diferença entre os
homens, segundo diferentes argumentos. muito mais sobre os pensadores
liberais, mas não seria oportuno prosseguir no tema, sob pena de estender
indefinidamente uma digressão que visou apenas demonstrar, ainda que
minimamente, a ausência de ingenuidade do liberalismo
199
assentado na igualdade
formal.
Os fundamentos do liberalismo foram amplamente estudados e
questionados de maneira abrangente e científica por Karl Marx
200
, que demonstrou
em minúcias a formação do capital e o funcionamento do capitalismo. Suas idéias
batiam de frente com a ordem das coisas e sua proposta incluía mudanças radicais
na sociedade e no estado.
A atualidade de Marx, para desgosto dos seus detratores e dos
198
TRINDADE, J., História..., op. cit., pp. 105/107.
199
Veja-se a seguinte declaração de Simon N. H. Linguet, jurista conservador do século XVIII, em sua
obra Teoria das Leis Civis (1767): “A justiça é a vontade eterna e voluntária de dar a cada um o que,
por direito, lhe cabe. Assim falam os juristas. Mas, na verdade, aquele que é pobre nada tem senão a
pobreza. E as leis nada poderão lhe dar porque elas têm por finalidade única defender os que vivem
na abundância contra os ataques dos que não têm sequer o necessário para viver. As leis são
ditadas pelos ricos. São eles, evidentemente, que delas se aproveitam. Podem ser comparados a
fortalezas, pelos ricos construídas em território inimigo. As guerras são causadas pelas leis, porque
as guerras têm por causa o amor à propriedade. E em que se baseia a propriedade, a não ser nas
leis? A finalidade da sociedade burguesa é libertar os ricos de todo e qualquer trabalho. A situação do
operário livre é pior do que a do escravo. Porque o escravo sabe o que comerá, mesmo quando não
tiver trabalho. E, que acontece com o operário livre, quando não encontra trabalho? Quem dele cuida,
quando se vê condenado a morrer de fome e de miséria?” apud Max Beer, História do Socialismo e
das Lutas Sociais, op. cit., p. 345.
200
BONAVIDES, P., op. cit., p. 166.
88
grandes teóricos liberais e neoliberais, é inegável e sua superação não decorre,
agora ou no futuro, de melhores argumentos ou novos olhares sobre a sociedade
que a decifrem com mais acuidade. O marxismo será superado quando igualmente
superada for a civilização capitalista e a divisão da sociedade em classes sociais
antagônicas, na praxis, e não na teoria
201
. Até lá, cabe a Marx o mérito de haver
desvendado em minúcias o funcionamento do modo de produção capitalista,
retirando-lhe os véus convenientemente postos pela ideologia da classe dominante.
2. Do Estado Liberal ao Estado Neoliberal
A ordem capitalista que produziu o estado burguês, um estado de
classe calcado na violência e não na ética
202
, distinguia entre política e economia,
como se esta nada tivesse a ver com aquela, e com isso procurava afastar a
máquina estatal da realidade sócio-econômica, a partir da cisão entre as relações de
produção e a exploração de classe
203
. A “neutralidade” do estado burguês
corresponderia ao respeito à liberdade individual e à propriedade privada, sempre
visando a proteção e a tutela do indivíduo
204
, considerando-se intervenção indevida
em tais “direitos fundamentais” a do estado no domínio econômico.
Assim é que o Estado Liberal é, em essência, absenteísta, exceto
quando se trata de garantir a livre fluência das relações capitalistas, resguardando
os proprietários dos meios de produção e protegendo-os das oscilações e incertezas
do “mercado” quando assim se faz necessário. Ou seja, o chamado estado mínimo
é, na realidade, um estado forte, o qual se encerra em seu casulo onde lida com
conceitos tais como justiça, democracia, vontade do povo, representação dos
interesses gerais, respeito à lei, entre outros conceitos fetichizados, e despreza a
vivência no solo do mundo real sob o capitalismo
205
.
Por outro lado, não se pode esquecer que a própria formação da
sociedade sob o modelo capitalista não prescinde da atuação do estado para, além
201
BORON, A., op. cit., p. 292.
202
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica da Constituição de 1988. 12ª edição – São Paulo:
Malheiros Editores, 2007, p. 18.
203
BORON, A. op. cit.,p. 290.
204
BONAVIDES, P., op. cit., p. 268.
205
BORON, A., op. cit., p. 298.
89
de garantir a fluência do mercado, realizar a infra-estrutura necessária para tanto. O
estado, no mundo capitalista, é a outra face do poder econômico da sociedade, e
existe para defender, em última análise, a propriedade privada
206
.
Cumpre enfatizar, de toda sorte, a circunstância de que, embora o
capitalismo reclame a estatização da economia, o faz tendo em vista a sua
própria integração e renovação (modernização). Essa estatização jamais
configurou qualquer passo no sentido de socialização/coletivização; pelo
contrário, o Estado, no exercício de função de acumulação, sempre se
voltou à promoção da renovação do capitalismo.
207
O estado e o mercado estão intrinsecamente relacionados, e
ambos participam da estrutura de poder da sociedade capitalista; ambos
representam construções humanas e históricas a serviço da burguesia, bem como o
direito. A “mão invisível” do mercado não é tão invisível assim, e a suposta
racionalidade deste depende não de seu regular funcionamento, mas da atuação do
estado que, como ente ordenador da sociedade, regula-o de modo a preservar a
reprodução do capitalismo.
208
O Estado Liberal, pois, nunca faltou ao papel de ordenador
econômico da sociedade nos limites dos interesses da classe político-econômica
dominante. É nesse sentido que se pode afirmar a existência de Constituições
Econômicas desde os séculos XVIII e XIX, entendidas estas como as cartas
fundamentais que disciplinavam a ordem econômica (não obstante o discurso liberal
de defesa do estado mínimo), preservando os fundamentos econômicos do sistema
capitalista
209
.
Dizendo-o de outro modo: o mercado exige, para satisfação do seu
interesse, o afastamento ou a redução de qualquer entrave social, político
ou moral ao processo de acumulação de capital. Reclama atuação estatal
para garantir a fluência de suas relações, porém, ao mesmo tempo, exige
que essa atuação seja mínima.
210
A Grande Depressão mundial dos anos 30 do século passado
forçou o Estado Liberal a ceder lugar a um novo modelo estatal, que pudesse atuar
de forma mais efetiva a fim de minorar os efeitos danosos da depressão sobre a
206
GRAU, E., A Ordem..., op. cit., p. 18. Cfr., por oportuno, transcrição de Pimenta Bueno sobre o
direito de propriedade feita na p. 19.
207
idem, op. cit., p. 29.
208
ibidem, pp. 30/31.
209
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica..., op. cit., p. 32.
210
GRAU, E., A Ordem..., op. cit., p. 37.
90
economia e a população e, com isso, garantir sua sobrevivência.
Em decorrência da crise econômica planetária surgiu, pois, o
Estado do Bem-Estar Social, o welfare state. Sem ingressar no aspecto histórico-
político, o estado do bem-estar social caracterizou-se pela forte intervenção do
estado na economia e pelas concessões feitas aos trabalhadores – majoração
salarial, redução da jornada de trabalho, adoção de leis trabalhistas e
previdenciárias, dentre outras medidas distributivas.
Quando a crise capitalista aguda demandou, o Estado teve que
sair de sua posição abstencionista (nos limites apontados) e passou a interferir
ostensivamente no funcionamento da economia, concordando com a emergência
dos direitos sociais a fim de acomodar a luta de classes, evitando assim o perigo de
uma revolução operária. Dessa forma, “as imperfeições do liberalismo [...]
associadas à incapacidade de auto-regulação dos mercados, conduziram à
atribuição de novas funções ao Estado
211
.
Atente-se, contudo, para o fato de que as concessões feitas pela
burguesia pressionada pelas forças sociais, a maior atuação do estado no seio da
sociedade, a instituição de novos direitos e garantias para os trabalhadores, tudo
isso é feito não para caminhar em direção ao socialismo ou a uma efetiva
equalização social. Ao contrário, foi justamente para manter-se que os capitalistas
“entregaram os anéis para não perderem os dedos”.
Observe-se enfaticamente que, embora a estatização e o intervencionismo
estatal no domínio econômico possam aqui ou ali contrariar os interesses
de um ou outro capitalista, serão sempre adequados e coerentes com os
interesses do capitalismo.
[...]
No desempenho do seu novo papel, o Estado, ao atuar como agente de
implementação de políticas públicas, enriquece suas funções de integração,
de modernização e de legitimação capitalista.
Essa sua atuação, contudo, não conduz à substituição do sistema
capitalista por outro. Pois é justamente a fim de impedir tal substituição
seja pela via da transição para o socialismo, seja mediante a superação do
capitalismo e do socialismo que o Estado é chamado a atuar sobre e no
domínio econômico.
212
Depois da experiência do Estado do Bem-Estar Social, e de forma
mais visível a partir dos anos 1980 com os governos Thatcher e Reagan (e até
antes, no Chile de Pinochet, mas não de forma tão expressiva no cenário mundial),
211
GRAU, E., A Ordem..., op. cit., pp. 21/22.
212
idem, pp. 44/45.
91
operou-se um gradual retorno aos cânones liberais, uma reação teórica e política ao
welfare state. “O discurso neoliberal postula o rompimento da concepção do Estado
do bem-estar.”
213
. Mas algumas diferenças significativas marcam o neoliberalismo.
Apesar do discurso hegemônico apregoado pelo autodenominado
neoliberalismo e corrente desde as duas últimas décadas do século XX, quanto à
necessidade de “encolhimento” do Estado, a realidade mostra que, além de suas
tradicionais funções de garantir o funcionamento do sistema produzir direito e
prover a segurança –, continua a somar-se a função de intervir na economia. Tal
afirmação pode ser comprovada, no ordenamento positivo brasileiro, pela simples
leitura do capítulo dedicado à ordem econômica na Constituição Título VII Da
Ordem Econômica e Financeira. Não se discute mais a função comissiva do Estado
sobre a economia. “Há evidente conexão entre a tendência à acumulação de capital
e a extensão das funções do Estado; a ação pública, desta sorte, é condição
necessária do desenvolvimento econômico.”
214
A função e a presença do Estado são necessárias para a
manutenção do sistema capitalista neoliberal, donde se pode concluir que existe
uma opção estatal quanto à sua forma de agir em privilégio do capital. Ou, segundo
Eros Grau, "o mercado é uma instituição jurídica."
215
Dispiciendo ressaltar que a
produção do direito é função típica de estado.
Além de jurídica, o mercado também pode ser considerado uma
instituição social e política:
A nosso ver, a história das sociedades humanas mostra que o mercado não
é um puro mecanismo natural de afectação eficiente e neutra de recursos
escassos e de regulação automática da economia. O mercado deve antes
considerar-se, como o estado, uma instituição social, um produto da
história, uma criação histórica da humanidade, que surgiu em determinadas
circunstâncias económicas, sociais, políticas e ideológicas. Uma instituição
que veio servir (e serve) os interesses de uns (mas não os interesses de
todos), uma instituição política destinada a regular e a manter determinadas
estruturas de poder que asseguram a prevalência dos interesses de certos
grupos sociais sobre os interesses de outros grupos sociais. "Longe de
serem 'naturais', os mercados são políticos", sustenta David Miliband. Quer
dizer: o mercado e o "estado são ambos instituições sociais, que não
coexistem como são interdependentes, construindo-se e reformando-se um
ao outro no processo da sua interacção.
216
213
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª edição – São Paulo: Malheiros
Editores, 2003, p. 127.
214
GALGANO, Francesco, apud GRAU, E., in A Ordem..., op. cit., p. 28.
215
GRAU, E., O direito..., op. cit., p. 272.
216
NUNES, A., op cit, p. 64.
92
Independente de se considerar o mercado uma instituição jurídica
ou político-social, importa reconhecer nele e no estado sua ausência de
neutralidade, bem como a identificação de seu modo de atuar como intencional e
voltado à consecução de determinados fins. Tal assertiva é importante para
fazermos a conexão, mais adiante, com os rumos que vêm tomando os direitos
humanos no quadro atual. Examinemos agora o que efetivamente caracteriza o
neoliberalismo.
Seus traços distintivos o as transformações decorrentes da 3ª.
Revolução Industrial que modificaram a face do mundo no que diz respeito aos
avanços tecnológicos, de informática e de comunicação, do que resultou possível a
globalização financeira
217
.
Esta diz com a remoção das barreiras comerciais e integração
das economias nacionais. Para Stiglitz, a globalização
é a integração mais estreita dos países e dos povos do mundo que tem sido
ocasionada pela enorme redução de custos de transporte e de
comunicações e a derrubada de barreiras artificiais aos fluxos de produtos,
serviços, capital, conhecimento e (em menor escala) de pessoas através
das fronteiras.
218
A lógica declarada do capitalismo neoliberal é a redução de
salários e da proteção ao trabalhador em troca de maior margem de lucro às
grandes empresas, o que, supostamente, permitiria a criação de novos postos de
trabalho diante da disponibilidade financeira para o investimento na produção. Esse
é o argumento propalado. Na realidade, o que se não é o reinvestimento dos
lucros na produção, e sim, a concentração cada vez maior de renda.
Voltemos um pouco às idéias de Keynes e de seus opositores
para aclarar as bases do pensamento econômico neoliberal.
John Maynard Keynes foi um opositor das idéias liberais clássicas
objetando, quanto ao presumido equilíbrio proporcionado pelo Mercado, que "as
situações de equilibro com desemprego involuntário (são) inerentes às economias
que funcionam segundo a lógica do lucro e não segundo a lógica da satisfação das
necessidades.”
219
217
GRAU, E., O direito..., op. cit., p. 271.
218
STIGLITZ, Joseph. A Globalização e seus malefícios - a promessa não cumprida de benefícios
globais. São Paulo: Editora Futura, 2003, p. 36.
219
KEYNES, John Maynard, apud António José de Avelãs Nunes in Neoliberalismo..., op. cit., p. 4.
93
Keynes entendia por "desemprego involuntário" as situações em
que pessoas sem emprego desejavam trabalhar, e aceitavam fazê-lo por salário
inferior ao praticado, e considerava que o nível de emprego estava ligado a um outro
conceito, o de "procura efetiva", que se traduz no valor que a sociedade deseja
gastar, tendo capacidade de arcar com o custo. Keynes concluiu, portanto, que não
era o jogo da oferta e da procura que determina o nível de emprego, mas a procura
efetiva, que significa o quanto a sociedade estava disposta a consumir e, ainda, que
o nível dos salários estava atrelado ao volume de emprego, e não o contrário, como
acreditavam os economistas liberais clássicos.
220
Para combater as situações de insuficiência da procura efetiva e
de desemprego involuntário, Keynes propunha uma intervenção do Estado no
sentido de promover o crescimento econômico com geração de empregos e
distribuição de renda
221
.
em 1924, em conferência denominada The End of laissez-
faire, Keynes defendia a intervenção estatal na economia sob o argumento, entre
outros, de que "não se pode sem inconvenientes abandonar à iniciativa privada o
cuidado de regular o fluxo corrente do investimento". Ele propunha ainda a extensão
das funções do Estado com a coordenação econômica feita por órgãos centrais e a
"socialização do investimento"
222
.
Correntes de pensamento econômico keynesianas dedicaram-se
a provar a correlação entre inflação e taxa de emprego. Quanto mais alta a primeira,
maior a segunda. Ou seja, o crescimento da inflação também traria um índice maior
de empregos
223
.
No início da década de 1970, porém, começaram a verificar-se situações
caracterizadas por um ritmo acentuado de subida dos preços (inflação
crescente), a par de (e apesar de) uma taxa de desemprego relativamente
elevada e crescente e taxas decrescentes (por vezes nulas) de crescimento
do PNB. Começava a era da estagflação
.
224
A partir desse momento, com uma aparente confusão dos que
seguiam as idéias de Keynes em explicar a concomitância das altas da inflação e da
220
KEYNES, John Maynard, apud António José de Avelãs Nunes in Neoliberalismo..., op. cit.,idem,
pp. 4/5.
221
ibidem, p. 5.
222
ibidem, p. 6.
223
ibidem, pp.
6/8.
224
NUNES, A., op. cit., p. 9, grifo do original.
94
taxa de desemprego, ganharam corpo novamente as idéias monetaristas, segundo
as quais a inflação era o principal problema a ser vencido; o desemprego seria
sempre voluntário (posto que as economias tenderiam sempre para uma situação de
emprego pleno a partir do funcionamento livre do mercado) e o fator determinante
para a inexistência do desemprego seria a taxa salarial, ou seja, quando a oferta de
mão-de-obra estivesse maior que a de empregos, isso se deveria ao fato de que os
salários seriam muito altos. Uma baixa no nível salarial 'animaria' os empregadores
a voltar a contratar, eliminando o desemprego quando encontrado o equilíbrio entre
os fatores acima; melhor explicando, equilíbrio quando os salários estivessem
suficientemente baixos
225
. Mas não é só.
Mesmo com todas as concessões feitas aos direitos dos
trabalhadores na vigência do Estado do Bem-Estar Social, ainda assim persistia
uma certa taxa de desemprego, desmentindo a afirmação de que o mercado
manteria em equilíbrio a oferta de trabalho e a demanda por mão-de-obra.
Todo esse arcabouço teórico keynesiano, todavia, atuava em
favor da manutenção do sistema capitalista, o qual não visava combater, apenas
arejar para permitir-lhe a sobrevivência sobre novas bases. Por mais bem-
intencionado que possa ter sido, Keynes foi um pensador e economista da ordem,
propondo meras reformas no sistema, nunca sua transformação ou substituição.
Foi nesse cenário de crise do capitalismo e da economia em
escala mundial que ganharam corpo as idéias gestadas desde o fim da Segunda
Guerra, tendo como ponto de partida a publicação da obra O Caminho da Servidão,
de Friedrich Von Hayek, em 1944. Essa obra expôs o ataque ao Estado do Bem-
Estar social e à intervenção do Estado na economia
226
, considerando-a um atentado
à liberdade individual, política e econômica atingindo inclusive a concorrência.
Hayek entendia que tais fenômenos liberdade absoluta e abstencionismo estatal
eram imprescindíveis à prosperidade social e conduziriam a uma nova servidão
comparável à da Alemanha nazista. Em 1947, Hayek fundou a Sociedade de Mont
Péléerin, da qual fazia parte Milton Friedmann, Karl Popper, Michael Polanyi, entre
outros ideólogos liberais duros, destinada a combater as idéias de Keynes e a
solidariedade social ainda praticada, bem como divulgar idéias destinadas ao
225
NUNES, A., op. cit., pp. 10/12.
226
idem, pp. 50/51.
95
estabelecimento de um novo modelo capitalista, livre de regras estatais
227
.
Esses pensadores entendiam que o problema da crise capitalista
estava no gasto excessivo feito pelos Estados para sustentar a estrutura social e no
poder que detinham os sindicatos que, a partir do atendimento de suas
reivindicações, contribuíam para corroer as bases de acumulação capitalista em
face desses custos sociais
228
. A solução proposta para resolver o problema da crise
seria simples: ausência do Estado da economia e sua presença apenas para romper
o poder sindical
229
, conter as despesas públicas e garantir a estabilidade
econômica
230
. Argumentavam que era preciso romper com a intervenção estatal e
com a regulação de mercado, bem como com a implantação de práticas
equalizadoras (de efeito bastante restrito, como se sabe), posto que tais medidas
atentavam contra a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência,
pressuposto da prosperidade geral. Defendiam, ainda, a desigualdade social como
valor positivo, posto que necessário às sociedades ocidentais. Para eles, o estado
deveria ser forte, sim, para romper o poder dos sindicatos e efetuar o controle da
moeda, com vistas à estabilidade monetária, meta suprema de todo governo.
231
Com a crise econômica mundial ocorrida na década de 70, surgiu
o espaço para aplicação dessas idéias a partir da eleição de Thatcher, na Inglaterra,
em 1979, das quais seu governo era partidário, e, posteriormente, com Reagan, nos
EUA, em 1980. A partir de então, sucessivos governos na Europa assumiram o
poder e rapidamente disseminou-se o modelo neoliberal ortodoxo, caracterizado
pela total liberdade ao mercado, desmonte da estrutura social do Estado e
participação ativa deste apenas no que diz respeito à repressão e desmobilização
sindical o que nem precisaria ser feito, tendo em vista os altos índices de
227
MOREIRA, Alexandre Mussoi, A Transformação do Estado – Neoliberalismo, Globalização e
Conceitos Jurídicos. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2002, p. 88.
228
Os monetaristas entendem que a responsabilidade pelo desemprego é atribuível apenas aos
sindicatos, na medida em que, enquanto houver desemprego, esses devem incentivar os
trabalhadores a aceitar os salários mais baixos, e não lutar para aumentá-los – ou mantê-los. Afirma
Hayek: “é necessário que a responsabilidade de estabelecer um nível de salários compatível com
nível de emprego elevado e estável seja de novo firmemente colocada onde deve estar: nos
sindicatos.” (in Neoliberalismo e Direitos Humanos, António José de Avelãs Nunes, p. 25).
229
O ataque aos sindicatos é nota essencial do pensamento monetarista. Hayek chega a entender
que a atividade sindical é o principal fator de desencorajamento do investimento privado no setor
produtivo. (in Neoliberalismo e Direitos Humanos, António José de Avelãs Nunes, p. 26).
230
MOREIRA, A., op. cit., pp. 88 e 89.
231
ANDERSON, Perry. O Balanço do Neoliberalismo. Disponível em:
www.socialismo.org.br/portal/filosofia/155-artigo/302-balanco-do-neoliberalismo. Acesso em: 28
mai.2008.
96
desemprego que se seguiram
232
, o que, por si só, exauriu o poder de luta dos
sindicatos.
Para os monetaristas (expressão que designa os defensores das
idéias acima, os quais acreditavam que a estabilidade da moeda seria a forma de
manter o mercado estável e este bastaria para regular a economia), não houve
problema em explicar o porquê da existência da taxa de desemprego temporário.
Esta seria a representação do número de trabalhadores que deixaram seus
empregos e estariam em busca de outro melhor. Assim, o desemprego seria sempre
voluntário e temporário. Se não o fosse, tal dever-se-ia apenas à escolha do
trabalhador de não aceitar emprego com salários mais baixos que o desejado ou de
preferir o lazer ao trabalho.
Para sintetizar, os trabalhadores sempre encontrariam emprego
se estivessem dispostos a receber salários mais baixos, e o desemprego devia-se à
sua insurgência contra o baixo nível salarial ou à sua vontade de optar por períodos
de "férias" mais ou menos prolongadas. Por isso o ataque aos sindicatos, que
deveriam ser neutralizados a fim de que não representassem obstáculo à
deterioração do nível salarial e das condições de trabalho. Com isso, os
monetaristas resolviam teoricamente o problema do desemprego e centravam sua
preocupação no combate à inflação, que passava a ser o principal problema
econômico a ser enfrentado
233
.
Apesar de aplicadas tais receitas em nível praticamente global,
com o avanço do neoliberalismo ao redor do mundo, os resultados prometidos não
se concretizaram. Ao contrário, o desemprego, a dívida blica e os gastos sociais
aumentaram (considerando-se os países da OCDE durante os anos 80), estes
devido ao elevado montante dos gastos sociais com o desemprego e o aumento do
número de aposentados na população. Pode-se concluir que o neoliberalismo,
social e economicamente, fracassou, não tendo efetuado uma revitalização do
capitalismo. Por outro lado, e paradoxalmente, o ideário neoliberal firma-se cada vez
mais como via única, hegemônica, à qual não existiriam alternativas possíveis, não
obstante a multidão de inconformados com os seus efeitos e os resistentes ao
232
Nos anos 80 do século XX o desemprego quadriplicou nos países da OCDE – dado colhido em
Alexandre Mussoi Moreira, ob cit, p. 92.
233
NUNES, A., op. cit, pp. 13/15.
97
modelo teórico e prático neoliberal.
234
Viviane Forrester, no livro O Horror Econômico
235
, desmistifica
toda essa construção teórica pela simples constatação de que não uma crise na
civilização, mas uma mudança propriamente de civilização
236
. O fato é que o modelo
econômico atual não comporta e não prevê empregos em números suficientes para
a população que dele necessita para sobreviver. Trata-se de notar que há um
número imenso de seres humanos aos quais se atribui a qualificação de excluídos
porque estão, exatamente, fora de todo o quadro social. Simplesmente não lugar
para todos no modelo econômico em vigor. A desigualdade social que se verificou
em toda a História está convivendo com exclusão social crescente. Disso, infere-se
a atualidade e necessidade (apesar de sua eficácia insuficiente) das medidas de
inclusão, que têm que ser patrocinadas pelo estado, e das lutas por direitos
humanos.
A observância da cartilha neoliberal somada à internacionalização
do capital possibilitada pela globalização não transformou o crescimento dos lucros
em aumento de investimentos produtivos em razão da volatilidade do capital e da
desregulamentação econômica, o que produziu um mecanismo de especulação
financeira, mais lucrativo e fácil, e não de reinvestimento na cadeia produtiva.
Ademais, a proposta aceita pelos governos neoliberais de
redução do Estado não atingiu os fins prometidos em razão, principalmente, dos
custos com o desemprego e com a previdência. Curioso é observar que o exigido
desmonte do poder dos “monopólios sindicais”, no dizer de Hayek, não é igualmente
defendido quanto aos monopólios empresariais. A desarticulação dos trabalhadores
é necessária para permitir, segundo os neoliberais, a livre fluência das forças
produtivas, mas igual providência não é imprescindível quando se trata de
desmontar os conglomerados transnacionais, o que permite concluir que duas
regras para duas forças distintas em atuação na sociedade. Mas esse pensamento
não representa uma novidade: Adam Smith admitia que os patrões teriam mais
força de pressão nos embates com seus empregados, entre outras razões, por não
234
ANDERSON, Perry. op. cit.
235
FORRESTER, Viviane. O Horror Econômico. São Paulo: Editora da Universidade Estadual
Paulista, 1997.
236
Com isso, pretende a autora referir-se não ao fim do capitalismo como modelo civilizatório, ou ao
fim da civilização sob o sistema capitalista, mas ao fim de um modelo que contemplava a figura do
desempregado por outro que mostra a substitui pela figura dos excluídos do meio social porque, na
verdade, não há empregos para todos. Muitos tornaram-se supérfluos...
98
lhes ser vedado o direito de associação, ao passo que o era para aqueles.
Assim é que, alterados os contornos sociais do Estado no sentido
do desmonte de garantias mínimas do povo em favor da regulação pelo mercado, o
saldo é um sistema voltado para a capitalização dos lucros, sem que para tanto
constitua obstáculo a exclusão social ou o declínio do padrão de vida da maior parte
da população mundial. Na verdade, a proposta abstencionista do Estado não tem
nada de omissiva; ao contrário, representa um papel necessário a ser
desempenhado a fim de que esse modelo de capitalismo “de mãos livres” possa
cumprir seu papel e manter as estruturas produtivas destinada a preservar o status
quo.
O neoliberalismo contempla uma postura “libertária”
nominalmente, porque, de fato, baseia-se deliberadamente na exclusão. Sob o
nome sedutor, esconde-se um regime fundado no totalitarismo econômico global,
em favor de uma minoria privilegiada e em detrimento da maioria absoluta da
população mundial. Para se ter uma idéia das distorções nunca antes
experimentadas na História a que chega o neoliberalismo, uma pesquisa da ONU
demonstrou que, em 1993, as 358 pessoas mais ricas do mundo possuíam renda
superior à soma da renda de muitos países, nos quais residiam 2,3 bilhões de
pessoas, 45% da população mundial
237
então. Esse é um dado estarrecedor, que
bem demonstra o grau de despotismo do regime ecomico que, ironicamente, diz
basear-se na liberdade absoluta.
Os neoliberais voltam, assim, as costas à cultura democrática e igualitária
da época contemporânea, caracterizada não pela afirmação da
igualdade civil e política para todos, mas também pela busca da redução
das desigualdades entre os indivíduos no plano econômico e social, no
âmbito de um objectivo mais amplo de libertar a sociedade e os seus
membros da necessidade e do risco, objectivo este que está na base da
criação dos sistemas públicos de segurança social.
238
Sobre a questão do Estado no contexto do neoliberalismo e da
globalização, tem-se que sua atuação reduz-se cada vez mais, mostrando-se
incapaz de proceder à implantação de projetos conducentes à redução de
desigualdades e de garantia dos direitos e liberdades públicas, especialmente. A
237
MANCE, Euclides André. Globalização, Subjetividade e Totalitarismo. Disponível em:
http://www.solidarius.com.br/mance/. Acesso em 5 jun.2008.
238
NUNES, A., op. cit, p. 42.
99
instância estatal vê-se esvaziada ante o poder de fato que lhe é superior e
determina suas ações, tornando-se refém do capital financeiro transnacional que
não conhece limites humanos, políticos, sociais ou mesmo fronteiras para a
realização de seus intentos.
Nesta sociedade, se não interrompermos essa marcha em direção à
insensatez e ao colapso, o antigo “exército industrial de reserva” terminará
englobando, muito em breve, a maioria dos humanos e apontando, no
limite, para esta situação paradoxal e estúpida: de um lado, toda a
produção massiva sendo realizada por máquinas desenvolvidíssimas,
quase auto-operadas, sob mera supervisão de decrescente grupo de
controladores; mas, de outro lado, a maioria da humanidade
desempregada, vegetando no limite mais abjeto de sobrevivência, sem
qualquer poder aquisitivo para adquirir as mercadorias produzidas pelas
máquinas maravilhosas. As máquinas de propriedade privada deter-se-iam
ante o “esgotamento” planetário do mercado consumidor e às multidões
marginalizadas só restaria comportarem-se como na metáfora sombria de
Marx: a natureza nos ensina o que acontece quando um osso e dois
cães.
239
3. Perspectivas para os Direitos Humanos Limites e
Possibilidades
O que se pode entender, hoje, pela expressão direitos humanos?
De tão repetida pelas mais diversas linhas e ações políticas com seu sentido ligado
a uma idéia universal de justiça, de cunho abstrato e generalizante, mas muito
freqüentemente mal utilizada
240
, a denominação ‘direitos humanos’ tem servido para
a defesa de qualquer argumento, prestando-se muitas vezes ao uso meramente
discursivo, e tem sido utilizada para as mais torpes manipulações. Seu conteúdo,
portanto, deve ser precisado para que não reste esvaziado de sentido, para que sua
invocação não acabe significando coisa nenhuma
241
.
O que de concordância quanto ao conceito de direitos
humanos é a idéia (ainda eivada de jusnaturalismo) de que todos os seres humanos
239
TRINDADE, J., Terá o Direito do Trabalho..., op. cit., p. 62.
240
Lembre-se, por exemplo, que foi em nome da defesa dos direitos humanos do povo iraquiano que
os Estados Unidos invadiram o Iraque e já exterminaram, até o momento, aproximadamente, 500.000
pessoas, além de terem destruído importantes sítios arqueológicos que continham memórias
ancestrais da humanidade, entre outros tantos danos à comunidade iraquiana e à própria história
humana.
241
ATIENZA, Manuel e MANERO, Juan Ruiz. Marxismo y Filosofia del Derecho. 1ª edição, 2ª
reimpressão – Cidade do México: Fontamara, 2004, p. 22.
100
têm direito a um rol de garantias e prestações, em nome da dignidade da pessoa
humana cuja proteção se almeja. Essa idéia genérica, presente na generalidade dos
documentos sobre direitos humanos a partir das primeiras declarações de direitos,
de inspiração iluminista, é ainda a forma geral referida nos discursos sobre os
direitos humanos atualmente. Sua efetivação e particularização, contudo, constituem
motivo para as mais veementes discordâncias. Garantidos de maneira universalista,
na prática os direitos humanos carecem de atenção, pois encontram-se em franco
retrocesso em todo o mundo
242
.
A luta pelos chamados direitos humanos das três últimas
chamadas “gerações” a segunda, direitos econômicos, sociais e culturais; a
terceira, direitos coletivos e difusos e a quarta, direitos de solidariedade encontra
uma barreira no capitalismo neoliberal. De fato, a defesa do meio ambiente, a
reivindicação ao desenvolvimento (reconhecido pela Declaração de Viena, à
unanimidade, como um dos direitos humanos), o direito à educação, à saúde e à
cultura envolvem a adoção de políticas públicas, de inclusão social e participação do
estado, enfim, envolvem o próprio modelo econômico em si. Na verdade, até mesmo
os direitos clássicos do modelo liberal – os chamados de primeira geração, de cunho
civil e político – estão regredindo a patamares impensáveis há apenas meio século.
O mundo pós 11 de setembro experimenta acelerado recuo
quanto às garantias individuais. Os direitos civis em países tidos como ‘civilizados’ e
‘democráticos’, como os Estados Unidos, Inglaterra e Espanha sofreram e sofrem
ainda tantas ingerências e excepcionalidades que dificilmente se reconheceriam nos
padrões clássicos. Tais países, e especialmente a potência hegemônica, têm
patrocinado drástico retrocesso no respeito e prática dos direitos humanos
243
.
No contexto da institucionalidade, os direitos humanos sociais,
econômicos, coletivos e de solidariedade dependem, em sua imensa maioria, da
vontade do estado para que sejam estabelecidos e implementados. Mesmo os
242
O informe da Anistia Internacional do ano de 2008, relativo ao período de janeiro a dezembro de
2007, denuncia o que chamou de “o fracasso de 60 anos em direitos humanos”. Segundo a secretária
geral da Organização, Irene Khan, “a injustiça, a desigualdade e a impunidade são hoje as marcas
distintivas do nosso mundo.”. De acordo com o documento, por exemplo, 81 países no mundo
atualmente praticam a tortura e 54 têm juízos de exceção, sem falar nos índices relativos à saúde e à
educação ao redor do planeta.
http://www.elpais.com/articulo/internacional/Amnistia/denuncia/anos/fracaso/derechos/humanos/elpep
iint/20080528elpepiint_5/Tes, pesquisado em 28 de maio de 2008.
243
Segundo Thomas Friedman, colunista do The New York Times, o mundo passa por um período de
recessão democrática e, para tanto os Estados Unidos têm significativa parcela de responsabilidade.
Cfr. em http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/nytimes/2008/05/08/ult574u8451.jhtm
101
direitos civis e políticos estão a sofrer atentados por parte do estado em nome da
‘segurança’. Curioso que esse termo, tão caro ao liberalismo e ao neoliberalismo,
seu sucessor, encontre hodiernamente um significado tão diverso do que teve para
os próceres do sistema.
A segurança, inicialmente, estava ligada ao funcionamento do
‘mercado’ de forma calculável e às garantias de direitos individuais contra o estado.
Hoje o mesmo termo ganha novo sentido, quando sua invocação é utilizada para
deixar a descoberto o indivíduo frente ao poder desse, em nome, teoricamente, da
paz e da segurança coletiva. O estado usou o mesmo expediente nos dois casos,
apenas com sinais invertidos: em ambas as situações, está-se a proteger os
interesses economicamente preponderantes, ontem e hoje. Na verdade, segundo as
palavras de José Augusto Lindgren Alves, “segurança será sempre uma noção
ilusória nas condições desumanas da globalização sem valores.”
244
A discussão sobre os direitos humanos deve ser elaborada em
um contexto generalizante no sentido de abranger a totalidade da vida social, não
apenas recortes estanques –, posto que sua discussão fragmentária entre itens
diversos de uma “agenda” social e jurídica redunda em ocultação da verdadeira
razão da ausência/insuficiência dos chamados direitos humanos. Enquanto as
causas e bandeiras dispersam-se e grupos distintos no seio social lutam por
reconhecimentos ou garantias específicas que os amparem, a desigualdade social
entre os seres humanos em um mesmo estado, entre diferentes estados, entre
pessoas de procedências estatais diversas, entre humanos, enfim, vai ficando
obscurecida como elemento primordial e verdadeiro gerador dos conflitos sociais.
A implementação dos direitos humanos, pois, ganha impulso a
partir das lutas populares, mas pode ser realmente efetivada a depender da ação
estatal. Paradoxalmente, apesar das origens antagônicas do poder do estado e da
força popular impulsionadora da luta pelos direitos humanos, o espaço institucional
representado e dominado por aquele é o cenário desse embate e da implementação
daqueles. Isso porque, em sendo esse ente o poder dominante, é a ele que se
devem dirigir as pressões sociais com vistas à preservação/promoção dos interesses
populares.
244
ALVES, José A., Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade, op. cit.,p. 203.
102
Cada vez mais, a idéia de direitos humanos funde-se à do estado,
sendo indissociáveis as duas existências, posto que somente em um modelo de
dominação de classe faz sentido lutar por direitos que, conquanto se proclamem
universais, estão desde sempre assegurados à classe dominante enquanto são
negados para os dominados. É em favor desses e por suas mãos, em verdade, que
se luta e se tem lutado por direitos humanos.
As conquistas de direitos humanos obtidas não podem ser
olvidadas nem desconsideradas, mas também não indicam que o caminho se
cumpriu, pois mesmo quando reconhecidos, os direitos humanos somente o são até
a medida em que não ameaçam a manutenção do status quo. Daí porque o discurso
sobre os direitos humanos, numa realidade de profunda desigualdade real, pode
exercer um papel meramente mistificador.
Os direitos humanos [...] são, efetivamente, um recurso magro, quase
etéreo. Mas são ainda um recurso que existe dentro do sistema. Ainda que
não possamos romper com este, dos direitos humanos podemos dispor
como instrumento legítimo para, pelo menos, encaminhar o status quo em
direção positiva. Até porque a denúncia de seu desprezo ainda tem eco nos
media, essenciais para se produzir aquilo que se deseja real na massa de
simulacros típicos de nossa era.
245
(grifos do original)
À contemporaneidade, os modernos legaram suas instituições,
seu disfarce ideológico, suas relações sociais assimétricas e baseadas na
dominação e seus sistemas jusfilosóficos, todos necessários ao funcionamento do
modo de produção capitalista.
Com a exacerbação deste modelo, o tecido social está cada vez
mais esgarçado, mas não se enxerga no horizonte visível possibilidades claras de
transformação, o que não quer dizer que o seja válido percorrer um caminho
inverso ao do sistema dominante a fim de encontrar novas vias.
245
ALVES, José A., Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade, op. cit., p. 246.
CONCLUSÃO
O surgimento do Estado ensejou, por si só, a luta por direitos e
melhores condições de vida. A história mostra desde os mais antigos estados
clássicos exemplos de revolta de escravos e tentativas de implementação de leis
mais justas (no sentido de distributivas) a fim de humanizar a vivência social. O
comunismo primitivo, exemplo histórico de vivência coletiva igualitária e livre da
opressão de classe e do estado foi um farol que iluminou durante muitos séculos
uma nostálgica vontade de retorno a um tempo que ganhou contornos míticos na
forma de um paraíso perdido.
O Renascimento, enquanto renovação artística, e o Iluminismo,
enquanto movimento filosófico, voltaram-se igualmente em direção à luz da razão
humana. O humanismo clássico, mormente o grego, foi redescoberto, após um
milênio de pensamento teológico. A razão substituiu Deus, buscou-se o
conhecimento racional e científico no mundo da natureza e formularam-se hipóteses
explicativas da sociedade fundadas no mundo dos homens.
Essa abertura do espírito não foi capaz, contudo, de modificar
efetivamente a maneira de entender o mundo. O pensamento idealista permaneceu
em vigor, com a diferença de que Deus foi substituído pela razão ou pela natureza.
Dessacralizou-se a Idéia, mas não se a eliminou. Dessa forma, o fundamento e fim
últimos dos atos humanos continuava a ser a realização de um ditame a-histórico
(caso da natureza) ou abstrato (caso da razão) e, portanto, ambos metafísicos.
Com olhos distanciados da realidade, a sociedade dos modernos,
supostamente ancorada na razão, deu uma nova roupagem à velha exploração,
instituindo a legalidade universalizante que a todos iguala apenas no plano jurídico
(e com reservas), enquanto a desigualdade de fato se mantém dissolvida sob o
discurso equitativo da lei válida e igual para todos. Essa concepção de igualdade é
tipicamente orwelliana: todos são iguais, mas uns são mais iguais que os outros.
Esses “mais iguais”, no caso do Estado Moderno, são os
burgueses, os donos da riqueza e dos meios de produção no sistema capitalista.
Para eles, como classe dominante, todos os favores e garantias da lei. Para os
demais, os despossuídos, os rigores da mesma lei.
104
Marx sacudiu e modificou irreversivelmente a história da filosofia
ao vinculá-la à história e à realidade social, desnudando o mundo verdadeiro outrora
escondido sob os véus do idealismo, do misticismo, da teologia, do positivismo,
enfim, de artefatos ideológicos vários que dissimulavam o mundo real e as forças
sociais que o determinavam (Atílio Boron, 2006, p. 331).
Outro ponto fundamental da filosofia marxista foi retirá-la do
mundo meramente teórico e inscrevê-la na vivência prática a filosofia da práxis.
Daí é que assume crescente importância, nos dias de irracionalismo pós-moderno, a
exortação constante da 11ª Tese sobre Feurbach: Os filósofos se limitaram a
interpretar o mundo de diferentes maneiras; mas o que importa é transformá-lo.
E é precisamente de transformação que se trata o desafio posto
na atual quadra histórica: ou conseguimos implementá-la ou ingressaremos na
barbárie prevista por Rosa Luxemburgo, cujos delineamentos são visíveis aos
nossos olhos.
A dominação sob o capitalismo atingiu formas refinadas de
dissimulação, o que lhe permitiu obter uma espécie de consenso social que permite
até hoje sua manutenção e reprodução, mesmo com o elevadíssimo grau de
conflitos e assimetrias sociais verificados atualmente.
Nesse modelo, o estado aparece inevitavelmente como o mais
importante instrumento de dominação de classe, pautando-se como ente neutro e
universal que considera a todos como iguais, desconsiderando a desigualdade
efetivamente existente. Ao assim fazer, atua para manter e legitimar a cisão social
entre classes em conflito.
Hegel entendeu o problema da divisão da sociedade em grupos
sociais distintos a partir do que chamou de A Dialética do Senhor e do Escravo.
Segundo essa concepção, exposta e comentada por Alexandre Kojéve, o que
diferencia os humanos dos animais é a consciência-de-si. Os animais têm apenas o
sentimento-de-si, mas não a consciência, atributo exclusivamente humano. Tal
atributo, porém, somente se efetiva a partir do reconhecimento feito por um outro de
igual humanidade. Manifesta-se então o desejo de ser reconhecido. Em busca da
satisfação do desejo de reconhecimento, os adversários lutam entre si e os
vencedores dessa luta subjugam os vencidos que os reconhecem, enfim, como
humanos. O contrário, ou seja, o reconhecimento dos vencidos pelos vencedores,
105
todavia, não ocorre. O senhor não reconhece o subjugado como igual, retira-lhe a
humanidade e desconsidera-o.
Sinteticamente, eis o que pondera Hegel acerca da dialética do
senhor e do escravo. A análise hegeliana continua atual. A supressão dialética do
outro não implica tirar-lhe a vida, mas o atributo da humanidade.
Em que pese o fato de Hegel não enfrentar, na dialética do senhor
e do escravo, o problema das diferenças de classes determinadas pelo modo social
de produção em cada sociedade, deixando de lado, pois, o fator principal que
determina os vencedores e os vencidos, nem levar em conta a historicidade de cada
situação, é certo que a desconsideração do outro permanece como um dado real até
os nossos dias.
O não-reconhecimento do vencido, do menor, teve e tem reflexos
na atuação do estado, configurando páginas de horror na História passada e
contemporânea. Esse aspecto ideológico de não enxergar o outro como igual, bem
descrito por Hegel (embora não explicado quanto às suas causas reais) tem o
significado da anulação daquele como ser humano na mente dos opressores,
coisificando-o e nulificando-o. Daí os extremos registrados pela História, como o
Holocausto, a prisão desfundamentada dos afegãos em Guantánamo, a bestialidade
imperante em Abu Graib, a passividade internacional quanto a genocídios como o
dos armênios e o de Ruanda, a invasão do Iraque pela potência maior, entre tantos
outros casos de negação do mínimo respeito ao ser humano.
A dialética do senhor e do escravo nada mais é que o retrato
psicológico da opressão – esta, evidentemente, fruto da realidade material. Em
outros termos, José Augusto Lindgren Alves refere-se à “Desumanização do
Humano” ao tratar da incapacidade de se enxergar o outro em sua inteireza e em
sua paridade axiológica com o observador. As lutas por direitos humanos, no
contexto estatal, mesmo sendo impotentes para superar o capitalismo, reproduzem
essa busca de reconhecimento do vencido.
A trajetória histórica da luta pelos direitos humanos demonstra
sua indissociável ligação com a balança das forças sociais em cada momento
histórico. Foi somente por meio de lutas que avanços sociais, por mínimos ou
grandes que fossem, foram conseguidos. Reduzi-los à mera dimensão jurídica
significa ignorar que o problema não reside na presença ou ausência de norma
assecuratória de direitos, mas em torná-los reais. Para que isso se dê, é preciso
106
caminhar em direção a uma igualdade efetiva, não turvada pela existência de
classes sociais distintas. Somente então, pode-se imaginar uma comunidade de
homens fruindo dos bens da vida livres do jugo da dominação econômica.
Por isso é que a bandeira dos direitos humanos também é
transitória, pois em uma sociedade que não esteja fraturada internamente entre
possuidores e despossuídos, entre exploradores e explorados, não será preciso lutar
por direitos para a imensa maioria da população (já que a pequena minoria
dominante os têm em abundância).
No que diz respeito aos direitos humanos, não se pode deixar
iludir pela mera positivação ou constitucionalização de direitos: atualmente, quase
todos os estados do mundo possuem constituição e, nelas, previsão de direitos
fundamentais. No plano internacional, dezenas de documentos tratados,
declarações, resoluções, tribunais internacionais de direitos humanos foram
firmados e instituídos, em especial no século passado e neste próprio.
Isto, no entanto, nada tem a ver com a realidade social, e o olhar
para o mundo contemporâneo bem o demonstra. O discurso do estado de direito
prende-se justamente a tentar convencer que conquistas foram efetuadas somente
porque constantes de um documento legal. Nada mais mistificador da realidade! É
patente a distância entre intenção e gesto, na expressão de Chico Buarque; entre
positivação e efetivação. Aos bilhões de excluídos mundo afora sem-teto, sem-
terra, imigrantes forçados, desempregados, famintos, desassistidos de toda ordem
é de pouca valia a inscrição em papel de que são portadores de direitos, de que são
todos iguais, de que merecem uma vida livre e o atendimento, no mínimo, de suas
necessidades vitais básicas. A estes, somente a efetividade conta, ainda mais
quando está em jogo a própria sobrevivência.
Nos tempos atuais, os pleitos e as eventuais obtenções de
reconhecimento de direitos humanos configuram resistência à dominação, à
opressão, à desigualdade, à desumanização do ser humano em escala global, mas
têm âmbito e alcance limitados, pois não têm o condão de mudar a estrutura social,
ou o modo de produção que a determina. Assim é que colocar-se ao lado dos
direitos humanos significa pôr-se contra o pior da condição humana no capitalismo,
significa buscar meios melhores de vida para todos, mas não pode e não deve
obscurecer a verdadeira luta contra os motivos de fundo que permitem e respaldam
a exploração do homem pelo homem.
107
A luta por direitos humanos, por valiosa que seja em tempos que
se avizinham da barbárie, encontra-se presa ao modelo e ao momento histórico da
sociedade capitalista que tem como expressão do poder dominante a classe social
burguesa e seu aparato de poder, entre os quais – e principalmente, o estado.
Assim, essa luta é limitada a avanços pontuais destinados a
garantir (em alguns casos apenas o mínimo) de condições de vida dignas para a
humanidade missão que não obteve sucesso até o momento. Na verdade, hoje se
luta para impedir o retrocesso em termos de direitos humanos, mas sempre dentro
dos limites do poder do estado que, retirado o véu mistificador da institucionalidade,
é o poder da classe dominante. Por isso a ligação indissociável entre Estado e
Direitos Humanos.
Em um contexto futuro e eventual que tenha superado a divisão
social em classes e, portanto, a exploração e/ou dominação de umas sobre outras;
em meio a uma vivência igualitária, a expressão “direitos humanos” soará como uma
excentricidade antiga e ultrapassada, sem sentido, pois que o desfrute do que
outrora assim se designava já se terá tornado verdadeiramente universal, cotidiano e
considerado como “natural” na consciência das pessoas.
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