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Universidade da Amazônia
Casa de Pensão Casa de Pensão
de Aluísio Azevedode Aluísio Azevedo
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal
CEP: 66060-902
Belém – Pará
Fones: (91) 210-3196 / 210-3181
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Casa de Pensão
de Aluísio Azevedo
CAPÍTULO I
Desconfia de todo aquele que se arreceia da verdade.
Seriam onze horas da manhã.
O Campos, segundo o costume, acabava de descer do almoço e, a pena
atrás da orelha, o lenço por dentro do colarinho, dispunha-se a prosseguir no
trabalho interrompido pouco antes. Entrou no seu escritório e foi sentar-se à
secretária.
Defronte dele, com uma gravidade oficial, empilhavam-se grandes livros de
escrituração mercantil. Ao lado, uma prensa de copiar, um copo d’água, sujo de pó,
e um pincel chato; mais adiante, sobre um mocho de madeira preta, muito alto, via-
se o Diário deitado de costas e aberto de par em par.
Tratava-se de fazer a correspondência para o Norte. Mal, porém, dava
começo a uma nova carta, lançando cuidadosamente no papel a sua bonita letra,
desenhada e grande, quando foi interrompido por um rapaz, que da porta do
escritório lhe perguntou se podia falar com o Sr. Luís Batista de Campos.
— Tenha a bondade de entrar, disse este.
O rapaz aproximou-se das grades de cedro polido, que o separavam do
comerciante.
Era de vinte anos, tipo do Norte, franzino, amornado, pescoço estreito,
cabelos crespos e olhos vivos e penetrantes, se bem que alterados por um leve
estrabismo.
Vestia casimira clara, tinha um alfinete de esmeralda na camisa, um brilhante
na mão esquerda e um grossa cadeia de ouro sobre o ventre. Ao pés, coagidos em
apertados sapatinhos de verniz, desapareciam-lhe casquilhamente nas amplas
bainhas da calça.
— Que deseja o senhor, perguntou o Campos, metendo de novo a pena
atrás da orelha e pousando um pedaço de papel mata-borrão sobre o trabalho.
O moço avançou dois passos, com ar muito acanhado; o chapéu. de pêlo
seguro por ambas as mãos; a bengala debaixo do braço.
— Desejo entregar esta carta, disse, cada vez mais atrapalhado com o seu
chapéu e a sua bengala, sem conseguir tirar da algibeira um grosso maço de papéis
que levava.
Não havia onde pôr o maldito chapéu, e a bengala tinha-lhe já caído no chão,
quando o Campos foi em seu socorro.
— Cheguei hoje do Maranhão, acrescentou o provinciano, sacando as cartas
finalmente.
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As últimas palavras do moço pareciam interessar deveras o negociante,
porque este, logo que as ouviu, passou a considerá-lo da cabeça aos pés, e
exclamou depois:
— Ora espere...O senhor é o Amâncio!
O outro sorriu, e, entregando-lhe a carta, pediu-lhe com um gesto que a lesse.
Não foi preciso romper o sobrescrito, porque vinha aberta.
— É de meu pai...disse Amâncio.
— Ah! é do velho Vasconcelos?...Como vai ele?
— Assim, assim...O que o atrapalha mais é o reumatismo. Agora está em uso
da Salça-e-caroba, do Holanda.
— Coitado! lamentou o Campos com um suspiro. — Ele sofre há tanto
tempo!...
E passou a ler a carta, depois de dar uma cadeira a Amâncio, que já estava
para dentro das grades.
— Pois , sim, senhor! disse ao terminar a leitura . — Está o meu amigo na
Corte, e homem! Como corre o tempo!...
Amâncio tornou a sorrir.
— Parece que ainda foi outro dia que o vi, deste tamanho, a brincar no
armazém do seu pai.
E mostrou com a mão aberta o tamanho de Amâncio naquela época.
— Foi há seis anos, observou o moço, limpando o suor que lhe corria
abundantemente pelo rosto.
Fez-se uma pequena pausa e em seguida o Campos falou do muito que
devia ao falecido irmão e sócio do velho Vasconcelos; citou os obséquios que lhe
merecera; disse que encontrara nele “um segundo pai “e terminou perguntando
quais eram as intenções de Amâncio na Corte. — Se vinha estudar ou empregar-se.
— Estudar! acudiu o provinciano.
Queria ver se era possível matricular-se esse ano na Escola de Medicina .Não
negava que se havia demorado um pouquito nos preparatórios...mas seria dele a
culpa?... Só com umas sezões que apanhara na fazenda da avó, perdera três anos.
Campos escutava-o com atenção. Depois lhe perguntou, se já havia
almoçado.
Amâncio disse que sim, por cerimônia.
— Venha então jantar conosco; precisamos conversar mais à vontade .Quero
apresentá-lo à minha gente.
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O rapaz concordou, mas ainda tinha que entregar várias cartas e varias
encomendas que trouxera. O Campos talvez conhecesse os destinatários.
Mostrou-lhe as cartas; eram quase todas de recomendação.
— O melhor é tomar um carro, aconselhou o negociante. — Olhe, vou dar-lhe
um moço, aí de casa, para o guiar.
E, pelo acústico , que havia a um canto do escritório, chamou um caixeiro.
Daí a pouco, Amâncio saía, acompanhado por este, prometendo voltar para o
jantar.
A casa de Luís Campos era na Rua Direita. Um desses casarões do
tempo antigo, quadrados e sem gosto, cujo ar severo e recolhido está a dizer no seu
silêncio os rigores do velho comércio português.
Compunha-se do vasto armazém ao rés-do-chão, e mais dois andares; no
primeiro dos quais estava o escritório e à noite aboletavam-se os caixeiros, e no
segundo morava o negociante com a mulher — D. Maria Hortênsia, e uma
cunhada- D. Carlotinha.
A mesa era no andar de cima .Faziam-se duas : uma para o dono da casa ,a
família, o guarda-livros e hóspedes, se os havia, o que era freqüente ;e a outra só
para os caixeiros, que subiam ao número de cinco ou seis.
Apesar de inteligente e de brasileiro, Campos nunca logrou espantar de sua
casa o ar triste que a ensombrecia. À mesa, quando raramente se palestrava, era
sempre com muita reserva ;não havia risadas expansivas, nem livres exclamações
de alegria. Os hóspedes, pobre gente de província, faziam uma cerimônia espessa ;
o guarda-livros poucas vezes arriscava a sua anedota e, só se determinava a isso,
tendo de antemão escolhido um assunto discreto e conveniente.
Campos não apertava a bolsa em questões de comida: queria mesa farta
;quatro pratos ao almoço, café e leite à discrição ; ao jantar seis , sopa e vinho .Os
caixeiros falavam com orgulho dessa generosidade e faziam em geral boa ausência
do patrão, que, entretanto, fora sempre de uma sobriedade rara: comia pouco, bebia
ainda menos e não conhecia os vícios senão de nome.
Aos domingos, e às vezes mesmo em dias de semana, aparecia para o jantar
um ou outro estudante comprovinciano do Campos ou algum freguês do interior,
que estivesse de passagem na Corte e a quem lhe convinha agradar.
Luís Campos era homem ativo, caprichoso no serviço de que ser encarregava
e extremamente suscetível em pontos de honra; quer se tratasse de sua
individualidade privada, que de sua responsabilidade comercial.
Não descia nunca ao armazém, ou simplesmente ao escritório, sem estar bem
limpo e preparado. Caprichava no asseio do corpo :as unhas, os cabelos e os
dentes mereciam-lhe bons desvelos e atenções.
Entre os companheiros, passava por homem de vistas largas e espírito
adiantado ; nos dias de descanso dava-se todo ao Figuier, ao Flammarion e ao Júlio
Verne, outras vezes, poucas, atirava-se à literatura; mas os verdadeiros mestres
aborreciam-no e entreturbavam-no com os rigorismos da forma.
— È um bom tipo! diziam os estudantes à volta do jantar, e seguinte
domingo lá estavam de novo. O “bom tipo” tratava-os muito bem, levava-os com a
família para a sala, oferecia-lhes charutos, cerveja, e nunca exigia que lhe
restituíssem os livros que lhes emprestava.
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Quanto à sua vida comercial, pouco se tem a dizer. Até aos dezoito anos,
Campos estivera no Maranhão, para onde fora em pequeno de sua província natal, o
Ceará. No Maranhão fez os primeiros estudos e deu os primeiros passos no
comércio, pela mão de um velho negociante, amigo de seu pai.
Esse velho foi seu protetor e o seu guia; só com a morte dele se passou o
Campos para o Rio de Janeiro, onde, graças ainda a certas relações da família de
seu benfeitor, consegui arranjar-se logo, como ajudante de guarda-livros, em uma
casa de comissões. Desta saiu para outra, melhorando sempre de fortuna, até que
afinal o admitiram, como gerente, no armazém de uns tais Garcia, Costa & Cia.
O Garcia morreu, Campos passou a ser interessado na casa; depois morreu o
Costa, e Campos chamou um sócio de fora, um capitalista, e ficou sendo a principal
figura da firma.
Por esse tempo encontrou D. Maria Hortênsia, menina de boa família,
sofrivelmente ajuizada e com dote. Pouco levou a pedi-la e a casar-se.
Nunca se arrependera de semelhante passo. Hortênsia saíra uma excelente
dona-de-casa, muito arranjadinha, muito amiga de poupar, muito presa aos
interesses de seu marido, e limpa, “limpa ,que fazia gosto!”
O segundo andar vivia, pois, num brinco; nem um escarro seco no chão. Os
móveis luziam, como se tivessem chegado na véspera da casa do marceneiro ;as
roupas da cama eram de uma brancura fresca e cheirosa ;não havia teias de aranha
nos tetos ou nos candeeiros e os globos de vidro não apresentavam sequer a nódoa
de uma mosca.
E Campos sentia-se bem no meio dessa ordem, desse método. Procurava
todos os dias enriquecer os trens de sua casa, já comprando umas jardineiras, que
lhe chamaram a atenção em tal rua; já trazendo uma estatueta, um quadro, uma
nova máquina de fazer sorvetes, ou um sistema aperfeiçoado para esta ou aquela
utilidade doméstica.
Gostava que em sua casa houvesse um pouco de tudo. Não aparecia por aí
qualquer novidade, qualquer novo aparelho de bater ovos, gelar vinho, regar plantas,
que o Campos não fosse um dos primeiros a experimentar.
A mulher, às vezes, já se ria, quando ele entrava da rua abraçado a um
embrulho.
— Que foi que se inventou?...perguntava com uma pontinha de mofa.
O marido não fazia esperar a justificação do seu novo aparelho, e, tal
interesse punha em jogo, que parecia tratar de uma obra própria, de cujo sucesso
dependesse a sua felicidade. E, logo que encontrasse algum amigo, não deixava de
falar nisso; gabava-se da compra que fizera, encarecia a utilidade do objeto e
aconselhava a todos que comprassem um igual.
Campos, depois do casamento, principiou a prosperar de um modo
assombroso; dentro de três anos era, o que vimos, — rico, muito acreditado e
seguro na praça.
E, contudo, não tinha mais do que trinta e seis anos de idade.
— É um felizardo! resmungavam os colegas, com olhar fito.
— É um felizardo! Quem o viu, como eu, há tão pouco tempo!...
— Mas sempre teve boa cabeça!...
— São fortunas, homem! Outros há por aí, que fazem o dobro e não
conseguem a metade!
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— Não! ele merece, coitado! É muito bom moço, muito expedito e
trabalhador!
— Homem! Todos nós somos bons!...O que lhe afianço é que nunca em
minha vida consegui pôr de parte um bocado de dinheiro!
E o caso era que o Campos ,ou devido à fortuna ou ao bom tino para ao
negócios, prosperava sempre.
Às quatro da tarde apareceu de novo Amâncio.
Vinha esbaforido. O dia estava horrível de calor. Campos foi recebê-lo com
muito agrado.
— Então? disse-lhe. Está livre das cartas?
— Qual! respondeu o moço. — tenho ainda cinco para entregar...Uma estafa!
No Maranhão nunca senti tanto calor!...
— Falta de hábito! observou o outro. Daqui a dias verá que isto é muito mais
fresco!
— Estou desta forma!...queixava-se Amâncio, quase sem fôlego, a mostrar o
colarinho desfeito e os punhos encardidos.
— Suba, volveu o Campos, empurrando-o brandamente. — tome qualquer
coisa. Vá entrando sem cerimônia.
E, já na escada do segundo andar, perguntou de súbito: — É verdade!e a
sua bagagem?...
— Está tudo na Coroa de Ouro. Hospedei-me lá.
— Bem.
E subiram.
Amâncio deixou-se ficar na sala de visita; o outro correu a prevenir a mulher.
— Neném!disse ele. Sabes? hoje temos ao jantar um moço que chegou do
Norte, um estudante. É preciso oferecer-lhe a casa.
Hortênsia respondeu com um gesto de má vontade.
— Não! replicou o negociante. É uma questão de gratidão!...Devo muitos
obséquios à família deste rapaz! Lembras-te daquele velho, de que te falei, aquele
que foi que me deu a mão lá no Norte?...Pois este é o sobrinho, é filho do
Vasconcelos. Não nos ficaria bem recebê-lo assim ,sem mais nem menos!...
— Mas, Lulu, isto de meter estudantes em casa é o diabo! Dizem que é uma
gente tão esbodegada!
— Ora ,coitado!ele até me parece meio tolo! Além disso, não seria o primeiro
hóspede!...
— Queres agora comparar um estudante com aqueles tipos de Minas que
se hospedam aqui!...
— Mas se estou dizendo que o rapaz até parece tolo...
— Manhas, homem! Todos eles parecem muito inocentes, e depois...Enfim, tu
farás o que entenderes!... Só te previno de que esta gente é muito reparadeira!
— Não há de ser tanto assim!...
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E Campos voltou à sala.
Amâncio soprava, estendido em uma cadeira de balanço, a abanar-se com o
lenço.
— Muito calor, hein? perguntou o Campos, entrando.
— Está horroroso, disse aquele.
E resfolegou com mais força.
— Venha antes para este lado. Aqui para a sala de jantar é mais fresco.
Venha! Eu vou dar-lhe um paletó de brim.
Amâncio esquivava-se, fazendo cerimônia ; mas o outro, com o segredo da
hospitalidade que em geral possui o cearense, obrigou-o a entrar para um quarto e
mudar de roupa.
O jantar, como sempre, correu frio e contrafeito. Amâncio não tinha apetite,
porque pouco antes comera mães-bentas em um café; Campos, porém, desfazia-se
e empregava todos os meios de lhe ser agradável.
— Vá, mais uma fatia de pudim, insistia ele a tentá-lo.
— Não, não é possível, respondia o hóspede, limpando sempre o rosto com
o lenço.
À sobremesa falou-se no velho Vasconcelos e mais no irmão. O negociante
lembrou ainda as obrigações que devia à família de Amâncio, citou pormenores de
sua vida no Maranhão; elogiou muito a província; disse que havia lá mais
sociabilidade que no Rio de Janeiro, e acabou brindando a memória de seu
benfeitor, de seu segundo pai.
Maria Hortênsia parecia tomar parte no reconhecimento do marido e, sempre
que se dirigia ao estudante, tinha nos lábios um sorriso de amabilidade.
Carlotinha não dera uma palavra durante o jantar. Comia vergada sobre o seu
prato e só ergueu a cabeça na ocasião de deixar a mesa.
Amâncio, todavia, não a perdera de vista.
Às sete horas da tarde, quando se despediu, estava já combinado que no
dia seguinte ele voltaria com as malas, para hospedar-se em casa do Campos.
É melhor...disse este — é muito melhor! Ali o senhor não pode estar bem
;sempre é vida de hotel! Venha para cá ;faça de conta que minha família é a sua.
Amâncio prometeu, e saiu, reconsiderando pelo caminho todas as impressões
desse dia.
Mais tarde, deitado na cama do Coroa de Ouro, com o corpo moído, o
espírito saturado de sensações, procurava recapitular o que tinha a fazer no dia
seguinte ; e, bocejando, via de olhos fechados, o vulto amoroso de Hortênsia a sorrir
para ele, estendendo-lhe no ar os belos braços, palpitantes e carnudos .
CAPÍTULO II
No dia seguinte mudava-se Amâncio para a casa do Campos. Seria por
pouco tempo, — até que descobrisse um “cômodo definitivo”.
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Deixou com algum pesar o hotel. Aquela vida boêmia, com os seus almoços
em mesa-redonda, o seu quartinho, uma janela sobre os telhados, e a plena
liberdade de estar como bem entendesse, tinha para ele um sedutor encanto de
novidade.
Nunca saíra do Maranhão ;vira de longe a Corte através do prisma
fantasmagórico de seus sonhos. O Rio de Janeiro afigurava-se-lhe um Paris de
Alexandre Dumas ou de Paulo de Kock, um Paris cheio de canções de amor, um
Paris de estudantes e costureiras, no qual podia ele à vontade correr as suas
aventuras, sem fazer escândalo como no diabo da província.
Há muito tempo ardia de impaciência por tal viagem : pensara nisso todos os
dias; fizera cálculos, imaginara futuras felicidades. Queria teatros bufos, ceias
ruidosas ao lado de francesas, passeios fora de horas, a carro, pelos arrabaldes.
Seu espírito, excessivamente romântico, como o de todo maranhense nessas
condições, pedia uma grande cidade, velha, cheia ruas tenebrosas, cheia de
mistérios, de hotéis, de casas de jogo, de lugares suspeitos e de mulheres
caprichosas :fidalgas encantadoras e libertinas, capazes de tudo, por um momento
de gozo. E Amâncio sentia necessidade de dar começo àquela existência que
encontrara nas páginas de mil romances. Todo ele reclamava amores perigosos,
segredos de alcova e loucuras de paixão.
Entretanto, o seu tipo franzino, meio imberbe, meio ingênuo, dizia justamente
o contrário. Ninguém, contemplando aquele insignificante rosto moreno, um tanto
chupado, aqueles pômulos salientes, aqueles olhos negros, de uma vivacidade
quase infantil, aquela boca estreita, guarnecida de bons dentes, claros e alinhados,
ninguém acreditaria que ali estivesse um sonhador , um sensual um louco.
Sua pequena testa, curta e sem espinhas, margeada de cabelos crespos, não
denunciava o que naquela cabeça havia de voluptuoso e ruim. Seu todo acanhado,
fraco e modesto não deixava transparecer a brutalidade daquele temperamento
cálido e desensofrido.
Amâncio fora muito mal-educado pelo pai, português antigo e austero, desses
que confundem o respeito com o terror. Em pequeno levou muita bordoada; tinha
um medo horroroso de Vasconcelos; fugia dele como de um inimigo, e ficava todo
frio e a tremer quando lhe ouvia a voz ou lhe sentia os passos. Se acaso algumas
vezes se mostrava dócil e amoroso, era sempre por conveniência : habituou-se a
fingir desde esse tempo.
Sua mãe, D. Ângela, uma santa de cabelos brancos e rosto de moça, não
raro se voltava contra o marido e apadrinhava o filho. Amâncio agarrava-se-lhe à
saias, fora de si, sufocado de soluços.
Aos sete anos entrou para a escola. Que horror!
O mestre, um tal Antônio Pires, homem grosseiro, bruto, de cabelo duro e
olhos de touro, batia nas crianças por gosto, por um hábito do ofício. Na aula só
falava a berrar, como se dirigisse uma boiada. Tinha as mãos grossas, a voz áspera,
a catadura selvagem ; e quando metia para dentro um pouco mais de vinho, ficava
pior.
Amâncio, já na Corte, só de pensar no bruto, ainda sentia os calafrios dos
outros tempos, e com eles vagos desejos de vingança. Um malquerer doentio
invadia-lhe o coração, sempre que se lembrava do mestre e do pai. Envolvia-os no
mesmo ressentimento, no mesmo ódio surdo e inconfessável.
Todos os pequenos da aula tinham birra do Pires. Nele enxergavam o
carrasco, o tirano, o inimigo e não o mestre; mas, visto que qualquer manifestação
de antipatia redundava fatalmente em castigo, as pobres crianças fingiam-se
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satisfeitas; riam muito quando o beberrão dizia alguma chalaça e afinal, coitadas!
iam-se habitualmente ao servilismo e à mentira.
Os pais ignorantes, viciados pelos costumes bárbaros do Brasil, atrofiados
pelo hábito de lidar com escravos, entendiam que aquele animal era o único
professor capaz de “endireitar os filhos”.
Elogiavam-lhe a rispidez, recomendavam-lhe sempre que “não passasse a
mão” pela cabeça dos rapazes e que, quando fosse preciso, “dobrasse por conta
dele a dose de bolos”.
Ângela, porém, não era dessa opinião :não podia admitir que seu querido
filho, aquela criaturinha fraca, delicada, um mimo de inocência e de graça, um
anjinho, que ela afagara com tanta ternura e com tanto amor, que ela podia dizer
criada com os seus beijos — fosse lá apanhar palmatoadas de um brutalhão
daquela ordem “Ora! isso não tinha jeito! ”
Mas o Vasconcelos saltava-lhe logo em cima: Que deixasse lá o pequeno
com o mestre!... Mais tarde ele havia de agradecer aquelas palmatoadas!
Assim não sucedeu. Amâncio alimentou sempre contra o Pires o mesmo ódio
e a mesma repugnância. Verdade é que também fora sempre tido e havido pelo pior
dos meninos da aula, pelo mais atrevido e insubordinado. Adquiriu tal fama com o
seguinte fato :
Havia na escola um rapazito, implicante e levado dos diabos, que se
assentava ao lado dele e com quem vivia sempre de turra.
Um dia pegaram-se mais seriamente .Amâncio teria então oito anos. Estava a
coisa ainda em palavras, quando entrou o professor, e os dois contendores tomaram
à pressa os seus competentes lugares.
Fez-se respeito. Todos os meninos começaram a estudar em voz alta, com
afetação. Mas, de repente, ouviu-se o estalo de uma bofetada.
Houve rumor. O Pires levantou-se, tocou uma campainha, que usava para
esses casos, e sindicou do fato.
Amâncio foi o único acusado.
— Sr. Vasconcelos! — gritou o mestre — porque espancou o senhor aquele
menino?
Amâncio respondera humildemente que o menino insultara sua mãe.
É mentira! protestou o novo acusado.
Amâncio repetiu o insulto que recebera. Toda a escola rebentou em
gargalhadas.
— Cale-se, atrevido!berrou o professor encolerizado, a tocar a campainha.—
Mariola! Dizer tal coisa em pleno recinto de aula!
E, puxando a pura força o delinqüente para junto de si, ferrou-lhe meias dúzia
de palmatoadas. Amâncio, logo que se viu livre, fez um gesto de raiva.
Ah! ele é isso?! Exclamou o professor. — Tens gênio, tratante?! Ora
espera! isso tira-se!
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E voltando-se para o rapazito que levou a bofetada, entregou-lhe a férula e
disse-lhe que aplicasse outras tantas palmatoadas em Amâncio.
Este declarou fortemente que se não submetia ao castigo. O professor quis
submetê-lo à força; Amâncio não abriu as mãos. Os dedos pareciam colados contra
a palma.
O professor, então, desesperado com semelhante contrariedade, muito
nervoso, deixou escapar a mesma frase que pouco antes provocara tudo aquilo.
Amâncio recuou dois passos e soltou uma nova bofetada, mas agora na cara
do próprio mestre. Em seguida deitou a fugir, correndo.
Um “Oh “ formidável encheu a sala. O Pires, rubro de cólera, ordenou que
prendessem o atrevido. A aula ergueu-se em peso, com grande desordem. Caíram
bancos e derramaram-se tinteiros. Todos os meninos abraçaram sem hesitar a
causa do mestre, e Amâncio foi agarrado no corredor quando ia alcançar a rua.
Mas, quatro pontapés puseram em fugida os dois primeiros rapazes que lhe
lançaram os dedos. Dois outros acudiram logo e o seguraram de novo, depois
vieram mais três, mais oito, vinte, até que todos os quarenta ou cinqüenta
estudantes o levaram à presença do Pires, alegres, vitoriosos, risonhos, como se
houvessem alcançado uma glória.
Amâncio sofreu novo castigo ;serviu de escárnio aos seus condiscípulos e,
quando chegou à casa, o pai, informado do que sucedera na escola, deu-lhe ainda
uma boa sova e obrigou-o a pedir perdão, de joelhos, ao professor e ao menino da
bofetada
Desde esse instante, todo o sentimento de justiça e de honra que Amâncio
possuía, transformou-se em ódio sistemático pelos seus semelhantes. Ficou fazendo
um triste juízo dos homens.
— Pois se até seu próprio pai, diretamente ofendido na questão, abraçara a
causa do mais forte!....
Só Ângela, sua adorada, sua santa mãe, à noite, ao beijá-lo antes de dormir,
depois de lhe perguntar se ficara muito magoado com o castigo, segredara-lhe
entre lágrimas que “ele fizera muito bem ...”
Como aquele, outros fatos se deram na meninice de Amâncio. Todas as
vezes que lhe aparecia um ímpeto de coragem, sempre que lhe assistia um assomo
de dignidade, sempre que pretendia repelir uma afronta ,castigar um insulto, o pai ou
o professor caía-lhe em cima, abafando-lhe os impulsos pundonorosos.
Ficou medroso e descarado.
No fim de algum tempo já podiam na escola, insultar a mãe quantas vezes
quisessem, que ele não se abalaria; podiam lançar-lhe em rosto as ofensas que
entendessem porque ele se conservaria impassível. Temia as conseqüências de
desafronta. “ Estava domesticado”, segundo a frase do Pires.
Todavia, esses pequenos episódios da infância, tão insignificantes na
aparência, decretaram a direção que devia tomar o caráter de Amâncio. Desde logo
habituou-se a fazer uma falsa idéia dos seus semelhantes ;julgou os homens por
seu pai, seu professor e seus condiscípulos. — E abominou-os. Principiou a
aborrecê-los secretamente, por uma fatalidade do ressentimento; principiou a
desconfiar de todos, a prevenir-se contra tudo, a disfarçar, a fingir que era o que
exigiam brutalmente que ele fosse.
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Nunca lhe deram liberdade de espécie alguma: Se lhe vinha uma idéia própria
e desejava pô-la em prática, perguntavam-lhe “a quem vira ele fazer semelhante
asneira?
Convenceram-no de que só devemos praticar aquilo que os outros já
praticaram. Opunham-lhe sempre o exemplo das pessoas mais velhas; exigiam que
ele procedesse com o mesmo discernimento de que dispunham seus pais.
E os rebentões da individualidade, e o que pudesse haver de original no seu
caráter e na sua inteligência , tudo se foi mirrando e falecendo, como os renovos de
uma planta, que regassem diariamente com água morna.
À mesa devia ter a sisudez de um homem. Se lhe apetecia rir, cantar,
conversar, gritavam-lhe logo: “Tenha modo, menino! Esteja quieto! comporte-se!”
E Amâncio, com medo da bordoada, fazia-se grave, e cada vez ia-se
tornando mais hipócrita e reservado. Sabia afetar seriedade, quando tinha vontade
de rir; sabia mostrar-se alegre, quando estava triste; calar-se, tendo alguma
recriminação a fazer; e , na igreja, ao lado da família, sabia fingir que rezava e sabia
agüentar por mais de uma hora a máscara de um devoto.
Como o pai o queria inocente e dócil, ele afetava grande toleima, fazia-se
muito ingênuo, muito admirado das cosas mais simples.
— É uma menina!...dizia a mãe, convicta — Amancinho tem já dez anos e
conserva a candura de um anjo!
Vasconcelos nunca o puxava para junto de si, nem conversava com ele, nem
o interrogava ;e, quando a infeliz criança, justamente na idade em que a inteligência
se desabotoa, ávida de fecundação, fazia qualquer pergunta, respondiam-lhe com
um berro: “ Não seja bisbilhoteiro, menino!”
Amâncio emudecia e abaixava os olhos, mas, logo que o perdiam de vista, ia
escutar e espreitar pelas portas.
Com semelhante esterco, não podia desabrochar e melhor no seu
temperamento o leite escravo, que lhe deu a mamar uma preta da casa.
Diziam que era uma excelente escrava: tinha muito boas maneiras ;não
respingava aos brancos, não era respondona: aturava o maior castigo, sem dizer
uma palavra mais áspera, sem fazer um gesto mais desabrido. Enquanto o chicote
lhe cantava nas costas, ela gemia apenas e deixava que as lágrimas lhe corressem
silenciosamente pelas faces.
Além disso — forte, rija para o trabalho. Poderia nesse tempo valer bem um
conto de réis.
Vasconcelos a comprara, todavia, muito em conta, “uma verdadeira
pechincha! ” porque o demônio da negra estava então que não valia duas patacas
mas o senhor a metera em casa, dera-lhe algumas garrafadas de laranja-da-terra, e
a preta em breve começou a deitar corpo e a endireitar, que era aquilo que se podia
ver!
O médico, porém, não ia muito em que a deixassem amamentar o pequeno.
— Esta mulher tem reuma no sangue ...dizia ele — e o menino pode vir a
sofrer no futuro.
Vasconcelos sacudiu os ombros e não quis outra ama.
— O doutor que se deixasse de partes!
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A negra tomou muita afeição à cria. Desvelava por elas noites consecutivas
e, tão carinhosa, tão solícita se mostrou, que o senhor, quando o filho deixou a
mama, consentiu em passar-lhe a carta de alforria por seiscentos mil-réis, que ela
ajuntara durante quinze anos. Mas a preta não abandonou a casa de seus brancos
e continuou a servir, como dantes ;menos ,está claro, no que dizia respeito aos
castigos, porque a desgraçada, além de forra ia já caindo na idade.
Amâncio dera-lhe bastante que fazer. Fora um menino levado da breca ;só
não chorava enquanto dormia e, quando se punha a espernear, não havia meio de
contê-lo.
Era muito feio em pequeno. Um nariz disforme, uma boca sem lábios e dois
rasgões no lugar dos olhos. Não tinha um fio de cabelo e estava sempre a fazer
caretas.
A princípio — muito achacado de feridas, coitadinho! Os pés frios, o ventre
duro constantemente.
Levou muito para andar e custou-lhe a balbuciar as primeiras palavras
:Ângela adorava-o com entusiasmo do primeiro parto ;por duas vezes supôs vê-lo
morto e deu promessas aos santos da sua devoção.
Conseguiram fazê-lo viver, mas sempre fraquinho, anêmico, muito propenso
aos ingurgitamentos escrofulosos.
Quando acabou as primeiras letras, não era, entretanto, dos rapazes mais
débeis da aula do Pires. Para isso contribuíram em grande parte uns passeios que
costumava dar, pelas férias, à fazenda de sua avó materna, em São Bento.
Esses passeios representavam para Amâncio a melhor época do ano. A
avó, uma velha quase analfabeta, supersticiosa e devota, permitia-lhe todas as
vontades e babava-se de amores por ele. O rapaz escondia-lhe o cachimbo, pisava-
lhe os canteiros da horta, divertia-se em quebrar a pedradas as lamparinas dos
santos, suspensas na capela, e, à vezes, quando não estava de boa maré, atirava
com os pratos nos escravos que serviam à mesa.
A avó ralhava , mas não podia conter o riso .O netinho era o seu encanto, o
fraco de sua velhice; só um pedido daquele diabrete faria suspender o castigo dos
negros e desviar do serviço da roças algum dos moleques — para ir brincar com
Nhozinho. Estava sempre a dizer que se queixava ao genro e que o devolvia para a
cidade; mas, no ano seguinte, se Amâncio não aparecia logo no começo das férias,
choviam os recados da velha em casa de Vasconcelos, rogando que lhe
mandassem o neto.
— Mande! mande o pequeno! aconselhava o médico.
E lá ia Amâncio.
Só aos doze anos fez o seu exame de português na aula do Pires.
Houve muita formalidade. A congregação era presidida pelo Sotero dos Reis;
havia vinte e tantos examinandos. Amâncio tremia naqueles apuros. Não tinha em si
a menor confiança.
Foi, contudo, “aprovado plenamente” .Mas não sabia nada, quase que não
sabia ler. Da gramática apenas lhe ficaram de cor algumas regras, sem que ele
compreendesse patavina do que elas definiam. O Pires nunca explicava: — se o
pequeno tinha a lição de memória, passava outra, e, se não tinha, dava-lhe algumas
palmatoadas e dizia-lhe que trouxesse a mesma para o dia seguinte.
Mas, enfim, estava habilitado a entrar para o Liceu onde iria cursar as aulas
de francês e geografia.
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O Liceu, que bom! — Oh! Aí não havia castigos, não havia as pequenas
misérias aterradoras da escola!Não poderia faltar às aulas , é certo! mas, em todo o
caso, estudaria quando bem entendesse e, lá uma vez por outra, havia de “fazer a
sua parede”.
E, só com pensar nisso, só com se lembrar de que já não estava ao alcance
das garras do maldito Pires, o coração lhe saltava por dentro, tomado de uma alegria
nervosa.
* * *
O Vasconcelos quis festejar o exame do filho, com um jantar oferecido aos
senhores examinadores e aos velhos amigos da família.
À noite houve dança. Amâncio convidou os companheiros do ano
compareceram somente os pobres, — os que não tinham em casa também a sua
festa.
O pai, por instâncias de Ângela, fizera-lhe presente de um relógio com a
competente cadeia tudo de ouro. A avó, que se abalara da fazenda pra assistir ao
regozijo do seu querido mimalho, trouxera-lhe um moleque , o Sabino.
Amâncio, todo cheio de si, a rever-se na sua corrente e a consultar as horas
de vez em quando, foi nesse dia o alvo de mil felicitações, de mil brindes e de mil
abraços.
Alguns amigo do pai profetizavam nele uma glória da pátria e diziam que o
João Lisboa, o Galvão e outros não tinham tido melhor princípio.
Lembraram-se todas as partidas engraçadas de Amâncio, vieram à baila os
repentes felizes que o diabrete tivera até aí. Na cozinha, a mãe preta , a ama,
contava às parceiras as travessuras do menino e, com olhos embaciados de ternura,
com uma espécie de orgulho amoroso, referia sorrindo os trabalhos que lhe dera ele,
as noites que ela desvelara.
— Já em pequeno, diziam — era muito sabido, muito esperto!enganava os
mais velhos; tinha lábias, como ninguém, para conseguir as coisas, e sabia
empregar mil artimanhas para obter o que desejava! — Não!definitivamente não
havia outro!
Ângela, a um canto da varanda, assentada entre as suas visitas, seguia o
filho com um olhar temperado de mágoa e doçura.
— O que lhe estaria reservado?...o que o esperaria no futuro?...cismava a
boa senhora, meneando tristemente a cabeça — Oh! Às vezes cria-se um filho com
tanto amor, com tantas lágrima, para depois vê-lo andar por aí aos trambolhões,
nesse mundo de Cristo!...E a idéia de que, talvez, nem sempre o teria perto de si,
que nem sempre o poderia obrigar a mudar a camisa, quando estivesse suado;
obrigá-lo a tomar o remédio, quando estivesse doente; obrigá-lo a comer, a dormir
com regularidade; a evitar, enfim tudo que pudesse-lhe prejudicar a saúde; oh! a
idéia de tudo isso lhe ent6rava no coração, como um sopro gelado, e fazia tremer a
pobre mãe.
— Ai! ai! disse ela.
— Que suspiros são esses, D. Ângela? perguntou o Dr. Silveira, que estava
ao seu lado. Homem íntimo da casa e figura conhecida na política da terra.
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— Malucando cá comigo, respondeu a senhora .E como o outro estranhasse
a resposta:— Quem tem filho, tem cuidados ,senhor doutor!...
— Oh! Oh! Exclamou este, com um gesto autorizado, abrindo muito a boca e
os olhos. — A quem o diz, Sra. D. Ângela, a quem o diz!...Só eu sei o que me
custam esses quatro pecados que aí tenho!...
E para provar que dizia a verdade, teria falado nos seus cabelos brancos, se
não os pintasse.
— Quando Ângela se afligia daquele modo, sendo rica ;quanto mais ele—
pobre jurisconsulto, com pequenos vencimentos e uma família enorme!...
— Ah! Os tempos vão muito maus...
Puseram-se logo a falar na ruindade dos tempos. “ Estava tudo pela hora da
morte! — Comia-se dinheiro! “
Mas o Silveira voltara-se rapidamente, para dar atenção a Amâncio, que
acabava de aproximar-se, em silêncio, com ar presumido de quem tinha consciência
de que toda aquela festa lhe pertencia.
— Então, meu estudante! — disse o jurisconsulto, empinando a cabeça — Já
escolheu a carreira que deseja seguir?
— Marinha, respondeu Amâncio secamente.
A farda seduzia-o. Nada conhecia “tão bonito” como um oficial de marinha.
A mãe riu-se com aquela resposta, e olhou em torno de si, chamando a
atenção dos mais para o desembaraço do filho.
À meia-noite foram todos de novo para a mesa. O Vasconcelos era muito
rigoroso quando recebia gente em casa ;queria que houvesse toda a fartura de
vinhos e comida. Os brindes reapareceram. Abriram-se as garrafas de Moscato
d’Asti, Chateau Yquem e Champagne.
Conversou-se a respeito dos vinhos de Vasconcelos. “O Maranhão era
incontestavelmente uma das províncias onde melhor se bebia!”
Do meio para o fim da ceia, Amâncio sentiu-se outro.
Em uma ocasião, que o pai se afastara da mesa, ele pediu um brinde e
cumprimentou as “pessoas presentes”.
Este fato causou delírios. O próprio pai não se pôde conter e disse
entredentes, a rir :
— Ora o rapaz saiu-me vivo!
Ângela abraçou o filho, chorando de comovida.
— Que lhe disse eu?...resmungou delicadamente o Silveira ao ouvido dela —
Este menino promete! Dêem-lhe asas e hão de ver ...dêem-lhe asas!...
Amâncio foi coberto de ovações. Batiam-lhe no copo, faziam-lhe saúdes. Ele
a todos respondia, rindo e bebendo.
Daí a uma hora recolheram-no à cama da mãe, porque lhe aparecera uma
aflição na boca do estômago; mas vomitou logo e adormeceu depois,
completamente aliviado.
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Foi a sua primeira bebedeira.
* * *
Aos quatorze anos prestou exame de francês e geografia e matriculo-se nas
aulas de gramática geral e inglês.
Já eram válidos, felizmente, os exames do Liceu do Maranhão, e com as
cartas que daí houvesse, podia entrar nas academias da Corte.
Amâncio, de[pois da escola do Pires, nunca mais voltou a passar férias na
fazenda da avó. Preferia ficar na cidade :tinha namoros, gostava loucamente de
dançar, já fumava, e já fazia pândegas grossas com os colegas do Liceu.
Como o pai não lhe dava liberdade , nem dinheiro, e como exigia que ele às
nove horas da noite se recolhesse a casa, Amâncio arranjava com a mãe os cobres
que podia e, quando a família já estava dormindo, evadia-se pelos fundos do quintal.
Era Sabino quem lhe abria e fechava o portão.
O moleque gostava muito dessas patuscadas. O senhor – moço levava-o à
vezes em sua companhia. Amigos esperavam por eles lá fora, reuniam-se; tinham
um farnel de sardinhas, pão, queijo, charutos e vinho. Era pagodear até pela
madrugada!
Se havia chinfrim - entravam, ou então iam tomar banho no Apicum ou cear
ao Caminho Grande. Em noites de luar faziam serenatas ;aparecia sempre alguém
que tocasse violão ou flauta ou soubesse cantar chulas e modinhas. Aos sábados o
passeio era maior; no dia seguinte Amâncio estava a cair de cansaço, aborrecido,
necessitando de repouso.
Mas não deixava de ir. — Era tão bom passear pela rua, quando toda a
população dormia; fumar, quando tinha certeza de que nenhum dos amigos de seu
pai o pilharia com o charuto no queixo ;era tão bom beber pela garrafa, comer ao
relento e perseguir ima ou outra mulher, que encontrassem desgarrada, a vagar
pelos becos mal iluminados da cidade!
Tudo isso lhe sorria por um prisma voluptuoso e romanesco.
Às vezes entrava em casa ao amanhecer. Não podia dormir logo ;vinha
excitado, sacudido pelas impressões e pela bebedeira da noite. Atirava-se à rede,
com uma vertigem impotente de conceber poesias byronianas, escrever coisas no
gênero de Álvares de Azevedo, cantar orgias, extravagâncias, delírios.
E afinal adormecia, lendo Mademoiselle de Maupuin, Olympia de Clèves ou
Confession d’un enfant du siècle.
Não penetrava bem na intenção deste último livro, mas tinha-o em grande
conta e, visto conhecer a biografia de Musset, embriagava-se com essa leitura;
ficava a sonhar fantasias estranhas, amores céticos, viagens misteriosas e paixões
indefinidas.
As criadas da casa ou as mulatinhas da vizinhança já o enfaravam :era
preciso descobrir amores mais finos, mais dignos, que, nem só lhe contentassem a
carne, como igualmente lhe socorressem as ânsias da imaginação.
Por esse tempo leu a Graziella e o Raphael de Lamartine .Ficou possuído
de uma grande tristeza; as lágrimas saltaram-lhe sobre as páginas do livro. Sentiu
necessidade de amar por aquele processo, mergulhar na poesia, esquecer-se de
tudo o que o cercava, para viver mentalmente nas praias de Nápoles, ou nas ilhas
adoráveis da Sicília, cujos nomes sonoros e musicais lhe chegavam ao coração
como o efeito de uma saudade ,amarga e doce, de uma nostalgia inefável, profunda,
sem contornos, que o atraía para outro mundo desconhecido, para uma existência,
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que lhe acenava de longe, a puxá-lo com todos os tentáculos de seu mistério e da
sua irresistível melancolia.
Uma ocasião, deitado ao pé da janela de seu quarto, pensava em “Graziella”.
A tarde precipitava-se no crepúsculo e enchia a natureza de tons plangentes
e doloridos. A um canto da rua um italiano tocava uma peça no seu realejo. Era a
Marselhesa.
Amâncio conhecia algumas passagens da revolução de França :lera os
Girondinos de Lamartine. E a reminiscência do sentimentalismo enfático dessa obra,
coada pela retórica poderosa da música de Lisle, trouxe-lhe aos nervos um
sobressalto muito mais veemente que das outras vezes.
Julgou-se infeliz, sacrificado nas suas aspirações, no seu ideal. Precisava
viver, gozar sem limites!...Não ali, perto da família, estudando miseráveis lições do
Liceu, mas além, muito além, onde não fosse conhecido, onde tudo para ele
apresentasse surpresas de que sua imaginação mal podia delinear.
Por isto estimou deveras ter de seguir para o Rio de Janeiro. A Corte era “um
Paris”, diziam na província, e ele, por conseguinte, havia de lá encontrar boas
aventuras, cenas imprevistas, impressões novas, e amores, — oh! amores
principalmente!
E, com efeito, desde que pôs o pé a bordo, principiou a gozar de novidade,
produzida no seu espírito pela viagem.
A circunstância de achar-se em um paquete, sozinho, ouvindo o ronrom
monótono da máquina e sentindo, como nos romances, as vozes misteriosa dos
elementos sussurrarem à volta de seus ouvidos — encantava-o .Prestava muita
atenção aos mais pequeninos episódios de bordo: olhava interessado para a grossa
figura dos marinheiros que baldeavam pela manhã o tombadilho, a dançar com a
vassoura aos pés; estudava o tipo dos outros passageiros, procurando descobrir
em cada qual um personagem de seus livros favoritos; ao abrir e fechar das portas
dos camarotes, espiava sempre, e às vezes lobrigava de relance, ao fundo do
beliche, uma figura pálida , ofegante, toda descomposta na imprudência do enjôo.
Ele é que nunca enjoava. À noite ia fumar para a tolda, estendido sobre um
banco, as pernas cruzadas, os olhos perdidos pelo oceano.
Vinham-lhe então as nostalgias da província; o coração dilatava-se por um
sentimento morno de saudade. Via defronte de si o vulto carinhoso de sua mãe, a
chorar, com o rosto escondido no lenço, o corpo sacudido pelos soluços.
Quanto não custou à pobre mulher separar-se do filho?...Que violência não
foi preciso para lho arrancarem dos braços!foi como se pela Segunda vez lho
tirassem a ferro das entranhas.
Antes mesmo da partida de Amâncio, muito sofrera a mísera com a idéia
daquela separação. Pensava nisso a todo instante, sem se poder capacitar de que
ele devia ir, atirado a bordo de um vapor, tão sozinho, tão em risco de perigos. “Oh!
era muito duro! Era muito duro!... ”Mas Vasconcelos opunha-lhe argumentos
terríveis: — O rapaz precisava fazer carreira, Ter uma posição! Não seria agarrado
às saias da mãe que iria pra diante! Há muito mais tempo devia Ter seguido — o
filho de fulano fora aos quinze anos; o de beltrano com vinte e três, e Amâncio já
tinha vinte. Ia tarde! Ângela que se deixasse de pieguices. Justamente por estimá-
lo é que devia ser a primeira a querer que ele fosse, que se instruísse, que se
fizesse homem! Além disso o rapaz a poderia visitar pelas férias, nem sempre, mas
de doeis em dois anos.
Ângela parecia resignar-se com as palavras de Vasconcelos; fazia-se forte
jurava que “não era egoísta “ que “não seria capaz de cortar a carreira de seu
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filho”; mal, porém o marido lhe dava as costas, voltava-lhe a fraqueza: vinham-lhe
as lágrimas, tornavam as agonias. Por vezes, no meio do jantar, enquanto os outros
riam e conversavam, ela, que até aí estivera a pensar, abria numa explosão de
soluços e retirava-se para o quarto, aflita, envergonhada de não poder dominar
aquele desespero. Outras vezes acordava por alta noite, a gritar, a debater-se, a
reclamar o filho, a disputá-lo contra os fantasmas do pesadelo.
No dia da viagem não se pôde levantar da cama, tinha febre, vertigens; a
cabeça andava-lhe à roda. E não queria mais ninguém perto de si, além do filho, só
ele! “Não a privassem de Amâncio ao menos naquele dia! “E tomava-o nos braços,
procurava agasalhá-lo ao colo, como fazia dantes, quando ele era pequenino.
Afagava-lhe a cabeça beijava-lhe de novo as mãos, os olhos, o pescoço, envolvia-o
todo em mimos, como, se, na santa loucura de seu amor, imaginasse que eles lhe
preservariam o filho contra os escolhos da jornada e contra os futuros perigos que o
ameaçavam.
— Minha pobre mãe!...suspirava Amâncio no tombadilho, derramando o olhar
lacrimoso pela inconstante planície das águas. — Minha pobre mãe!...
E vinham-lhe então fundas saudades de sua terra, de sua casa e de seus
parentes. As palavras de Ângela palpitavam-lhe em torno da cabeça, com uma
expressão de beijos estalados. Lembrava-se dos últimos conselhos que ela lhe dera,
das suas recomendações, das suas pequeninas previdências; de tudo isso, porém, o
que mais lhe ficara grudado à memória foi o que lhe disse a boa velha muito em
particular, a respeito de dinheiro. “Se não te chegar a mesada, ou se te vierem a
faltar os recursos, escreve-me logo duas linhas, que eu te mandarei o que
precisares. Mas não convém que teu pai saiba disso...”
Para as primeiras despesas na Corte e para os gastos nas províncias, juntou
ao que dera Vasconcelos ao filho, mais quinhentos mil-réis; não achava bom,
entretanto, que Amâncio saltasse em todos os portos. “ Era muito arriscado!Ele não
se deveria expor de semelhante forma!”
E a lembrança do dinheiro puxou logo outros consigo e arremessou-o no
frívolo terreno de seus devaneios tolos e voluptuosos. Vieram as recordações
começou a desenfiar mentalmente o rosário dos amores que acumulara dos quinze
anos até ali.
Era um rosário extravagante; havia contas de todos os matizes e de todos os
feitios.
Entre elas, porém, só três se destacavam, três belas contas de marfim:— a
filha mais velha do Costa Lobo, a mulher de um comendador, amigo de seu pai, e
uma viúva de um oficial do Exército.
E só. Todas as outras suas conquistas não valiam nada ;de algumas tinha,
contudo, bem boas recordações: a Francisca de Vila do Paço. Por exemplo, — uma
caboclinha, que se apaixonou por ele e vinha persegui-lo até a cidade; uma
espanhola, mulher de um tipo barbado e calvo, que andava a mostrar figuras de cera
pelas províncias do Norte, uma senhora gorda. Amasiada com um boticário, da qual
elogiavam muito as virtudes, mas que um dia atirou-se brutalmente sobre Amâncio,
dizendo que o amava e trincando-lhe os beiços. E como estas, outras e outras
recordações foram-se enfiando e desenfiando pelo espírito sensual e mesquinho do
vaidoso, até deixá-lo mergulhado na apatia dos entes sem ideais e sem aspirações.
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Mas, já não queria pensar nesses amores da província; tudo isso agora se lhe
afigurava ridículo e acanhado. A Corte, sim! é que lhe havia de proporcionar boas
conquistas. “Ia principiar a vida!”
E, nessa disposição chegou ao Rio de Janeiro.
CAPÍTULO III
Estava hospedado há dois dias em casa do Campos; esse tempo levara ele a
entregar cartas e encomendas. À noite, fatigado e entorpecido pelo calor, mal tinha
ânimo para dar uma vista de olhos pelas ruas da cidade.
Entretanto, a vida externa o atraía de um modo desabrido; estalava por cair
no meio desse formigueiro, desse bulício vertiginoso, cuja vibração lhe chegava aos
ouvidos, como os ecos longínquos de uma saturnal. Queria ver de perto o que vinha
a ser essa grande Corte, de que tanto lhe falavam ;ouvira contar maravilhas a
respeito das cortesãs cínicas e formosas, ceias pela madrugada, passeios ao Jardim
Botânico, em carros descobertos, o champanha ao lado, o cocheiro bêbado; — e
tudo isso o atraía em silêncio, e tudo isso o fascinava, o fisgava com o domínio
secreto de um vício antigo.
— Mas, por onde havia de principiar?...Não tinha relações, não tinha amigos
que o encaminhassem! Além disso, o Campos estava sempre a lhe moer o juízo
com as matrículas, com a entrada na academia, com o inferno de obrigações a
cumprir, cada qual mais pesada, mais antipática, mais insuportável!
— Olhe, seu Amâncio, que o tempo não espicha — encolhe!...É bom ir
cuidando disso!... Repetia-lhe negociante, fazendo ar sério e comprometido. — Veja
agora se vai perder o ano! Veja se quer arranjar por aí um par de botas!...
Amâncio fingia-se logo muito preocupado com os estudos e falava
calorosamente na matrícula.
Mexa-se então, homem de Deus! Bradava o outro. — Os dias estão correndo.
Afinal, graças aos esforços de Campos, consegui matricular-se na academia, duas
semanas depois de ter chegado ao Rio de Janeiro.
O medo às matemáticas levara-o a desistir da Marinha e agarrar-se à
Medicina, como quem se agarra a uma tábua de salvação; pois o Direito, se bem
que, para ele, fosse de todas a mais risonha, não lhe servia igualmente, visto que
Amâncio não estava disposto a deixar a Corte e ir ser estudante na província.
A medicina, contudo longe de seduzi-lo, causava-lhe um tédio atroz. Seu
temperamento aventuroso e frívolo não se conciliava com as frias verdades da
cirurgia e com as pacientes investigações da terapêutica. Pressentia claramente
que nunca daria um bom médico, que jamais teria amor às sua profissão.
Esteve a desistir logo nos primeiros dias de aula: o cheiro nauseabundo do
anfiteatro da escola, o aspecto nojento dos cadáveres, as maçantes lições de
Química, Física e Botânica, as troças dos veteranos, a descrição minuciosa e
fatigante da osteologia, a cara insociável dos explicadores; tudo isso o fazia vacilar
tudo isso lhe punha no coração um duro sentimento de má vontade, uma antipatia
angustiosa, um não querer doloroso e taciturno.
Às vezes, no entanto, pretendia reagir: atirava-se ao Baunis Bouchard e ao
Vale, disposto a ler durante horas consecutivas, disposto a prestar atenção, a
compreender; mal, porém, ele se entregava aos compêndios, o pensamento, pé
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ante pé, ia-se escapando da leitura, fugia sorrateiramente pela janela, ganhava a
rua, e prendia-se ao primeiro frufru da saia que encontrasse.
E Amâncio continuava a ler a estranha tecnologia da ciência, a repetir
maquinalmente, de cor, os caracteres distintivos das vértebras, ou a cismar abstrato
nas propriedades do cloro e do bromo, sem todavia conseguir que patavina daquilo
lhe ficasse na cabeça.
— Não haver uma academia de Direito no Rio de Janeiro!lamentava ele,
bocejando, a olhar vagamente a sua enfiada de vértebras, que havia comprado no
dia anterior.
Porque, no fim de contas, tudo que cheirasse a ciência de observação o
enfastiava: “Deixassem lá, que a tal osteologia e a tal Química nada ficavam a dever
às matemáticas!...”
Ah! o Direito, o Direito é que , incontestavelmente, devia ser a sua carreia.
Preferia-o por achá-lo menos áspero, mais tangível, mais dócil, que outra qualquer
matéria. E esse mesmo...Valha-me Deus! tinha ainda contra si o diabo do latim, que
era bastante para o tornar difícil.
E lembrar-se Amâncio de que havia por aí criaturas tão dotadas de paciência,
tão resignadas, tão perseverantes, que se votavam de corpo e alma ao cultivo das
artes!...das artes, que, segundo várias opiniões, exigiam ainda mais constância e
mais firmeza do que as ciências!...Com efeito! Era preciso ter muita coragem, muito
heroísmo, porque as tais belas-artes, no Brasil, nem sequer ofereciam posição
social, nem davam sequer um titulozinho de doutor!
Qual! Não seria com ele!...Fosse gastando quem melhor quisesse a
existência na concepção de um bom quadro, de uma boa estátua, de uma ópera
genial ou de um bom livro de literatura, que ele ficava cá de fora — para apreciar. O
mais que podia fazer, era — aplaudir; aplaudir e pagar! — E já não fazia pouco!...
Isso justamente ouviu, por mais de uma vez, da boca de seu pai. O velho
Vasconcelos nunca tomou a sério os artistas “Uns pedaço-d’asnos!” qualificava ele,
e, de uma feita em que o Franco de Sá lhe comunicou os seus projetos de estudar
pintura na Europa, o negociante fez uma careta e exclamou, batendo-lhe no ombro:
“Homem, seu Sazinho!não seria eu que lhe aconselhasse semelhante cabeçada.
.porque, meu amigo, isto de artes é uma cadelagem! Procure meios de obter cobres,
e o senhor terá à sua disposição os artistas que quiser!”
E nisto tinha o velho toda a razão, pensava Amâncio. Acho apenas que devia
estender a sua teoria até o estudo de certas ciências...como a Medicina...Sim!
porque, afinal, com o dinheiro também obtemos os médicos de que precisamos, e
não vale a pena, por conseguinte, gramar seis anos de academia e curtir as
maçadas que estou suportando, sabe Deus como!
— Mas ,neste caso, a questão muda muito de figura! dizia-lhe em resposta
uma voz que vinha de dentro de seu próprio raciocínio Não se trata aqui de fazer
um “médico”, trata-se de fazer um “doutor”, seja ele do que bem quiser!Não se
trata de ganhar uma “profissão”, trata-se de obter um “título”. Tu não precisas de
meios de vida, precisas é de uma posição na sociedade.
— Visto isso, porém, objetava Amâncio, — quero crer que o mais acertado
seria comprar uma carta na Bélgica ou na Alemanha ,e mandar ao diabo, uma vez
por todas, aquela peste de Medicina!
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Ora, Medicina, Medicina servia para algum moço pobre que precisasse viver
da clínica; ele não estava nessa circunstâncias. Era rico! só com o que lhe tocava
por parte materna, podia passar o resto da vida sem se fatigar!...Por que, pois, sofrer
aquelas apoquentações do estudo? Por que razão havia de ficar preso aos livros,
entre quatro paredes, quando dispunha de todos os elementos para estar lá fora, em
liberdade, a se divertir e a gozar?!...
Mais uma idéia sustinha-lhe o vôo do pensamento; o vulto angélico de sua
mãe vinha colocar-se defronte dele, abrindo os braços, como se o quisesse proteger
de um abismo.
Ah! quanto empenho não fazia a pobre velha em vê-lo formado às direitas,
numa faculdade do Brasil! ... Vê-lo doutor!...
— Doutor, hein?! repetia Amâncio, meio animado com o prestígio que ao
nome lhe daria o título.
E ligava-os mentalmente, para ver o efeito que juntos produziam:
— Doutor Amâncio! Doutor Amâncio de Vasconcelos! Não fica mal! não fica!
A mãe tinha razão: — Era preciso ser doutor!...
E quanto ao gosto, que prazer, não sentiria nisso a querida velha!...Oh! ele
agora pensava em Ângela com muito mais ternura; nela resumia toda a família e
tudo que houvesse de bom no seu passado. Só com a ausência pôde avaliar o muito
que a respeitava e o muito que a estremecia. Ele, que não chorara ao despedir-se
da mãe; ele, que, algumas vezes chegou até a se aborrecer de seus desvelos e da
insistência de seus carinhos — agora não a podia ter na memória, sem ficar com
coração opresso e os olhos relentados de pranto. Pungia-lhe a consciência uma
espécie de remorso por não se ter mostrado mais afetuoso e mais amigo, enquanto
a possuiu perto de si, por não ter melhor aproveitado essa ocasião para deixar bem
patente que sabia ser “bom filho”.
E punha-se então a mentalizar planos de melhor conduta para quando
voltasse ao lado de Ângela; considerava os mimos que teria com ela, os afagos
que lhe havia de dispensar, os beijos que lhe havia de pedir.
— Ah! Se naquele momento ele a tivesse ali , o que não lhe diria!
E, por uma necessidade urgente de expansão, levantou-se da cadeira em que
estava e correu à secretária, disposto a escrever uma carta, longa, a sua mãe.
Precisava queixar-se do isolamento em que vivia, contar-lhe as suas tristezas; as
suas contrariedades, justamente com o fazia dantes, em pequeno, ao voltar da aula
do Pires. Sua alma tornava atrás , fazia-se infantil, muito criança, muito ingênua e
carecida de amparo.
A mãe, enquanto esteve ao lado dele, foi sempre um coração aberto para lhe
receber as lágrimas e os queixumes.
Também, só elas, só as mães, podem servir a tão delicado mister. O que se
lança ao peito da amante desde logo arde e se evapora, porque aí o fogo é por
demais intenso; o que se atira ao de um estranho gela-se de pronto na indiferença e
na aridez; mas, tudo aquilo que um filho semeia no coração materno — brota,
floreja e produz consolações. Neste não há chama que devore, nem, frio que
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enregele, mas um doce amornecer, suave e fecundo, como a trepidez de um seio
intumescido e ressumbrante de leite.
E escreveu : “Mamãe ”
Hesitou logo. Aquele modo de tratar não lhe pareceu conveniente; queria uma
carta de efeito, com estilo, uma carta a primor, que desse idéia de seu talento e ao
mesmo tempo de sua afeição :
“Minha querida mãe.
Eis-me na grande Corte, que aliás me parece estúpida e acanhada por achar-
me longe de vossemecê...”
Vinham, em seguida, muitos protestos de amor filial e depois uma extensa
descrição da cidade, a qual ocupava duas laudas da carta. Na terceira escreveu o
seguinte:
“ Desde que vim daí, o Sabino só me tem dado maçadas; a bordo vivia a
brigar com os outros criados; aqui nunca me aparece; sai pela manhã e já faz muito
quando volta à noite. Pilhou-se sem castigo e abusa desse modo. Ainda não lhe
consegui arranjar a matrícula no Tesouro e nem sei como isso se obtém; o Campos
é que há de ver.
“ Como sabe, há mês e meio que me acho hospedado em cada deste. Aqui
nada me falta, é certo, mas igualmente nada me satisfaz, porque estou muito isolado
e aborrecido. A família é atenciosa o quanto pode ser comigo; eu, porém , apesar
disso , não deixo de ser para eles um estranho e , como tal, apenas recebo cortesias
e hospitalidade. D. Maria Hortênsia é amável, mas por uma simples questão de
delicadeza; da irmã, D. Carlotinha, nem é bom falar!Esta, se já me dispensou duas
palavras, foi o máximo, parece até que tem medo de olhar para mim; talvez com
receio de desagradar ao guarda-livros, que, pelos modos, é lá o seu namorado. Do
que não resta dúvida é que o tal guarda-livros é de todos o mais antipático e difícil
de suportar. Um hipócrita! Está sempre com a carinha n’ água e já, por várias vezes,
se tem querido meter a espirituoso cá para o meu lado. — São ditinhos, indiretas
de instante a instante. Eu, qualquer dia destes, o chamo à ordem! Ainda não há uma
semana, veja isto! fui a um espetáculo dramático no São Pedro de Alcântara e à
volta, quando cheguei à casa, quis acender a vela para estudar. Quem disse?...o
fogo não se comunicava ao pavio. Verifico : — no lugar da torcida haviam posto um
prego; fiquei com os dedos queimados. E esta graça não foi de outro senão o tal
cara de mono!
“Já me lembrou mudar-me; o Campos, porém, acha que o não devo fazer
enquanto não descobrir por aí um bom cômodo, em alguma casa de pensão.”
E no mesmo teor ia por diante, até encher duas folhas de papel marca
pequena. Amâncio narrava à mãe todos os seus passos e todos os seus desgostos,
sem lhe confessar, todavia, que o principal motivo daquele descontentamento
estavas em não poder recolher de noite às horas que entendesse; em ter por único
companheiro de passeios o Luís Campos, cuja sobriedade nos gestos e costumes,
discrição nos termos, cujo aspecto repreensivo e pedagógico, de mentor, faziam-no
já perfeitamente insuportável aos olhos do estudante.
— Ora adeus! considerava este, deveras enfiado. — Não foi para a me fazer
santo, que vim ao Rio de Janeiro!
Boas! Podia lá estar disposto a sofrer aquele ele maçante do Campos!...Mas
também não seria muito divertido andar sozinho pela cidade, a trocar pernas, sem
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um companheiro, sem um amigo. Além disso temia do seu provincialismo, receava
“fazer figura triste”; ainda não conhecia o preço das coisa e o nome das ruas. No
Maranhão falavam com tanto assombro dos gatunos da Corte! — os tais capoeiras!
E Amâncio sobressaltava-se pensando num encontro desagradável, em que lhe
cambiassem o dinheiro e as jóias por uma navalhada.
Seu maior desejo era ter ali um dos amigos da província, a quem confiasse as
impressões recebidas e com quem pudesse conversar livremente, à franca, sem
medir palavras, nem tomar as enfadonhas reservas e composturas, que lhe impunha
a censória presença do negociante.
Por isso, numa ocasião, em que atravessava pela manhã o Beco do
Cotovelo, sentiu grande alegria ao dar cara a cara com o Paiva Rocha. O Paiva era
seu comprovinciano e fora seu condiscípulo; pertenceram à mesma turma de
exames na aula do Pires e matricularam-se juntos no Liceu. Mas, enquanto o filho do
Vasconcelos estudou as três primeiras matérias, o outro fez todos os preparatórios.
Abraçaram-se. Houve exclamações de parte a parte.
— Ora o Paiva! disse Amâncio afinal, encarando o amigo com um olhar muito
satisfeito. — Não te fazia aqui na Corte!
— Estou na Politécnica.
— Ah! exclamou Amâncio, com interesse. — Que ano?
— Terceiro.
— Bom. Estás quase livre!
— Qual! resmungou o Paiva, mascando o cigarro. — tenho ainda muito que
aturar!
E passaram então a falar de estudos. Amâncio fazia recriminações: “Só
encontrara dificuldades”. Disse a sua antipatia pelas ciências práticas; queixou-se de
alguns veteranos, que por serem mais antigos na escola, se julgavam com direito de
maltratar os outros. “Era estúpido! simplesmente estúpido!”
— Tradições! respondeu o Paiva, com a indiferença de quem não preocupam
tais bagatelas. — Isso há de acabar...A natureza não dá saltos!
Amâncio, como qualquer provinciano que ainda não tivesse ocasião de
apreciar o Rio de Janeiro, julgava-se tão desiludido a respeito dele, quanto a
respeito de estudos.
— Sempre imaginei que fosse outra coisa!...disse. — A tal Rua do Ouvidor,
por exemplo!...
Paiva já não o ouvia, era todo atenção para um cartaz de teatro, que um
sujeito pregava na parede defronte.
Amâncio prosseguiu, declarando que, até ali, nada encontrara de
extraordinário na Corte.
— Com franqueza — antes o Maranhão! Com franqueza que antes! Não
achas?...perguntou.
— É! respondeu o outro, distraído.
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Mas Amâncio precisava desabafar e não se contentou com aquela resposta.
Insistiu na pergunta; chamou a atenção do Paiva, agarrando-se-lhe à gola
esgarçada do fraque.
— Não, filho, deixa-te disso, retorquiu o interrogado. — A Corte sempre é
Corte!...
— Ora qual!
— É porque ainda não estás acostumado, ainda não conheces o Rio! Hás de
ver depois!...
Amâncio duvidava.
— Verás! repetia o Paiva.— Daqui a um ou dois anos é que te quero ouvir.
E passaram de novo a falar de estudos, matrícula e de exames.
Paiva bocejou; o outro estava “caceteando’’. Quis safar-se.
— Espera! implorou Amâncio, apoderando-se-lhe de novo da gola do fraque
— Espera!
— Onde vais tu?... Conversa mais um pouco! suplicava ele com a voz infeliz
de quem pede uma esmola. Não te vás ainda! Que pressa!
Paiva tinha de ir almoçar com um amigo. Estava muito ocupado! “Naquele dia
não dispunha de um momento seu ” Depois, depois se encontrariam!
— Não! Vem cá! Espera!
O Paiva levantou as sobrancelhas, impacientando-se.
— Mas, vem cá, dize-me uma coisa: o que é que tanto tens hoje a
fazer?...inquiriu o outro.
— Filho, questões de interesse! respondeu aquele, procurando abreviar
explicações. Veio-lhe, porém, um ímpeto de raiva e começou a falar alto sobre
dinheiro; havia brigado na véspera com o seu correspondente.
— Um burro! exclamava, — um vinagre! Imagina tu que o malvado sabe
perfeitamente que não tenho ninguém por mim aqui no Rio, e põe-se com dúvidas
para me dar a mesada! ...Como se aquele dinheiro lhe saísse do bolso! Diabo da
peste!
— Ele então não te quis dar a mesada?...perguntou Amâncio muito
espantado.
— É o costume aqui!retrucou o Paiva desabridamente.— Eles julgam que
nos fazem grande obséquio em dar-nos aquilo que nos pertence!
E, olhando para Amâncio com os olhos apertados:
— Mas também, filho, disse-lhe meia dúzia de desaforos, como ele nunca
ouviu em sua vida! Cão!
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E expôs a descompostura por inteiro, na qual as palavras galego ,ladrão,
cachorro entravam repetidas vezes.
— De sorte que, terminou o estudante mais tranqüilo, como se houvesse
despejado um peso nas costas, — não tenho lá ido! Questão de capricho, sabes?
olha, estou assim!
E bateu nas algibeiras.
— Isso arranja-se...disse Amâncio timidamente, receoso de humilhar o
colega. E depois, com um vislumbre: Vamos almoçar a um hotel?!
O Paiva concordou, sacudindo os ombros. E, como Amâncio perguntasse
onde deviam ir, começou a citar os melhores hotéis; já sem deixar transparecer o
menor indício de pressa.
Fazia-se grande conhecedor da Corte, muito carioca, saboreando muito
voluptuosamente o efeito de pasmaceira, que a sua superioridade causava no
amigo. Deu-se logo ares de cicerone; mostrou-se habituadíssimo com tudo aquilo
que pudesse causar admiração a um provinciano recém-chegado; fingiu desdém por
umas tantas coisas, que à primeira vista pareciam boas e falou de outras, menos
conhecidas, com entusiasmo, com interesse pessoal e com orgulho.
Amâncio escutava-o em recolhido silêncio, mas, como estivesse a cair de
apetite, voltou logo à idéia do almoço: lembrou que poderiam ir ao Coroa de Ouro.
Paiva fitou-o espantado, e espocou depois uma risada falsa:
— Aquela era mesma de quem vinha do Norte! Almoçar no Coroa de Ouro
Vade retro!
Amâncio não teve ânimo de defender a sua proposta, e seguiu o companheiro
que pusera a andar com ímpeto.
Entram na Rua do Carmo, atravessaram a de São José e, ao caírem na da
Assembléia, Paiva, que ia a pensar, voltou-se de súbito para Amâncio e perguntou-
lhe decisivamente:
— Tu queres almoçar bem?!
E feriu a última palavra.
— É! respondeu o outro.
— Pois então vamos ao Hotel dos Príncipes!
E seguiram pela Rua Sete de Setembro até o Rocio.
* * *
Ao penetrarem no largo, uma menina italiana, de alguns dez anos de idade,
toda vestida de luto, morena, o ar suplicantemente risonho e cheio de miséria
,abraçou-se às pernas de Amâncio, pedindo-lhe dinheiro — para levar à mãe que
estava em casa morrendo de fome.
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— Sai! gritou-lhe o Paiva, procurando arredá-la.
Mas a pequena ajoelhou-se, sem largar as pernas do calouro, de uma de
cujas mãos já se tinha apoderado e cobria de beijos
— Então, papai! papaizinho bonito! uma esmolinha, sim?...dizia ela, voltando
para o moço seus belos olhos de crianças, rindo com uns dentes muito brancos que
se lhe destacavam vivamente da cor morena do rosto.
— Coitadinha! lamentou Amâncio, fazendo-lhe uma festa no queixo e
procurando dinheiro na algibeira das calças..
Puxou um maço grosso de cédulas.
— Não sejas tolo! gritou-lhe o companheiro. – Isto é especulação de algum
vadio! Vestem por aí essas bichinhas de luto e mandam-nas perseguir a
humanidade! É uma esperteza, não sejas tolo!
A pequena lançou ao Paiva um gesto de raiva e sorriu para Amâncio,
suplicando.
— Em todo o caso faz dó, coitada! murmurou este, dando-lhe uma cédula de
dois mil-réis.
A italianinha agarrou-se ao dinheiro e olhou surpresa para o calouro. Depois
beijou-lhe novamente as mãos, e fugiu, atirando-lhe beijos.
— Coitada! repetiu ele.
— Ainda está muito peludo! resmungou o Paiva. — Olha que isto por cá não é
o Maranhão!
E pôs-se logo a falar nas especulações do Rio de Janeiro. Contou fatos
horrorosos de cinismo e gatunagem. “Amâncio que se acautelasse: no caminho em
que ia, lhe haviam de arrancar até os olhos. — Ali, a ciência de cada um consistia
em fazer com que o dinheiro passasse das algibeiras dos outros para as próprias
algibeiras”. Estava indignado! “Não podia, a sangue — frio, ver assim se atirar à rua
– dois mil-réis! Ah! se o outro soubesse quanto o dinheiro custava a ganhar, não
teria as mãos tão rotas!”
E mostrava-se extremamente empenhado nos interesses do colega: dava-lhe
conselhos; havia de abrir-lhe os olhos, indicar-lhe o verdadeiro caminho a segui.“
Não! Que ele não era desses, que só querem desfrutar!... Quando simpatizava com
um rapaz, sabia ser amigo!
Amâncio o veria no futuro!...
— Olha! segredou-lhe ,passando-lhe um braço nas costas, — Hás de
encontrar por aí muito artista! Acautela-te, filho!acautela-te, que os cabras sabem
levar água ao seu moinho! Digo-te isto, porque te estimo, porque sou teu amigo,
percebes?
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Amâncio percebia e jurava ser muito grato àquela dedicação. Tiveram .
porém, de interromper o diálogo :dois outros estudantes acabavam de parar defronte
deles.
Eram amigos do Paiva. Houve logo novas exclamações e cumprimentos
rasgados.
— Meus senhores, exclamou aquele, apresentando Amâncio. O nosso
colega, Amâncio de Vasconcelos, estudante de medicina. Escuso dizer que é muito
talentoso e um caráter excelente.
Os dois apertaram a mão de Amâncio com solenidade, e afiançaram que
tinham imenso gosto em conhecê-lo.
— João Coqueiro e Salustiano Simões!nomeou o Paiva, indicando os dois.—
São ambos da Politécnica. E acrescentou em voz baixa, ao ouvido de Amâncio,
mas de modo que fosse ouvido por todos:
— Muito distintos!...
O Coqueiro observava em silêncio o novo colega ;enquanto o Paiva e o
Salustiano reatavam um velho colóquio, interrompido à última vez que estiveram
juntos; saiu do seu recolhimento para indagar de que província era Amâncio, como
ia-se dando nos estudos e onde estava hospedado. Entretanto, o Simões afrouxava
lentamente na conversa com o outro e caía aos poucos na sua habitual
concentração; já respondia apenas por monossílabos e só despregava o cigarro dos
dentes para bocejar. Afinal, sem conter a impaciência, quis dissolver o grupo; mas
Amâncio tolheu-lhe a idéia perguntando-lhe e mais ao Coqueiro se já tinham
almoçado e, visto que não, pediu-lhes que lhe fizessem companhia.
Aceitaram, depois de alguma resistência por parte do último; e os quatro
rapazes seguiram imediatamente caminho do hotel, a rir e dar de língua, como se
fossem todos amigos de muito tempo.
Paiva Rocha pediu um gabinete particular e aí se instalou com os outros.
Amâncio estava maravilhado. O aspecto daquelas salas afestoadas, cheias
de espelhos, de cortinas e douraduras, no gênero pretensioso dos hotéis, ar
parisiense dos criados, vestidos de preto e avental branco; a cor estridente do
gabinete; o perfume das flores que guarneciam jarras de proporções luxuosas; o
alvoroço palavroso e alegre dos que faziam a sobremesa; o crepitar do riso das
mulheres, cujos penteadores branquejavam sobre o escuro dos tapetes; a
reverberação dos cristais; a expectativa de um bom almoço, que seria devorado com
apetite, e finalmente a circunstância de que Amâncio, havia muito não gozava uma
pândega; tudo isso lhe refrescava o humor e o fazia feliz naquele momento
Garçon! Gritou o Paiva, entrando no gabinete com um ar sem
cerimônia— La carte!
O criado disparou.
— Tu falas francês?...inquiriu Amâncio, já com admiração na voz.
— Ora! respondeu o Paiva, levantando os ombros. Aqui na Corte será difícil
encontrar alguém que não fale francês!...
— Pois eu ainda não sei...disse aquele tristemente..
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— Questão de prática! observou o outro.
Coqueiro, que acabava nesse momento de entrar no gabinete, conversando
com Simões, propôs que se despissem os paletós.
Principiaram a comer.
O Paiva encarregara-se do menu. Estava radiante; parecia empenhado na
direção do almoço, como se tratasse de um trabalho difícil e glorioso. Escolhia
pratos esquisitos e determinava os vinhos que os deviam acompanhar.
— Este Paiva é terrível para um menu! observou o Simões em ar de troças.
— Não! disse aquele. — Não admito que ninguém dirija um almoço melhor do
que eu!
— Sim, considerou o Coqueiro — mas vais ver por que preço sai tudo isso!...
— Não faz mal!...apressou-se Amâncio a declarar. — Sinto-me tão bem entre
os senhores...há tanto tempo não tinha um momento livre, que...
— Bem, de acordo, respondeu Coqueiro — mas é preciso deixar esse
tratamento de “senhor”.
Entre rapazes não deve haver cerimônias, mal-entendidos; somos colegas,
temos de ser amigos, por conseguinte tratemo-nos desde já por “tu ”! Não és da
mesma opinião, ó Paiva?
In totum! respondeu este, abraçando Amâncio pela cintura. – Nós cá somos
camaradas velhos! vem de longe!
E parecia querer provar que seus direitos sobre o comprovinciano eram muito
mais legítimos que os dos outros dois; que Amâncio lhe pertencia quase
exclusivamente, como um tesouro, como uma fortuna que se traz do berço. E, para
deixar isso bem patente, fazia-se muito íntimo com ele: batia-lhe nas pernas;
evocava recordações; lembrava-lhes as correrias das província:
— Ah! Nós éramos muito camaradas! Lembras-te Amâncio daquele passeio
que fizemos ao Portinho?...
Em que o Malheiros tomou uma bebedeira de charuto, perguntou o
interrogado a rir. — Naquele dia do barulho no Liceu; quando o Chico moleque foi
expulso!...
— É verdade! que fim levou esse rapaz! Quis saber o Paiva. — Era um
bom tipo. Inteligente!
— Morreu, coitado! de bexigas. Ultimamente estava no comércio.
— E aquele pequeno, o ...
— Qual?
— Aquele bonito, de cabelos grandes ...ora, como se chamava ele? ... o ...
— Ah! exclamou Amâncio, soltando uma risada — o Dominguinhos?
— Isso! isso! Dominguinhos justamente! Que fim levou?
— Não sei, não! Creio que seguiu para Manaus com a família. Um bobo!
Lembras-te da troça que lhe fizemos no convento?...
E os dois riram-se muito com a mesma idéia.
Simões, que até ali parecia pouco disposto à pândega, foi-se animando na
proporção das garrafas que se enxugavam. O almoço aquecia. João Coqueiro
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propôs um brinde a Amâncio e declarou, depois de lhe fazer muitos elogios, que
folgaria imenso com ser recebido no rol de seus amigos.
Amâncio abraçou-o e prometeu que o iria visitar no primeiro Domingo.
— Vá feito! sustentou o Coqueiro. Ali não há cerimônia, minha família é muito
despida dessa coisas.
— Ah! mora com a família? interrogou o provinciano.
— Sou casado, respondeu o outro. — Isso, porém, nada quer dizer. Apareça.
Ficou decidido que Amâncio iria sem falta no próximo Domingo.
Simões principiou então a falar sobre o casamento; daí passou às mulheres:
descreveu a sua indiferença por elas. Só lhes conhecia dois gêneros: “a mulher
cínica e a mulher hipócrita”.
Paiva Rocha protestava: — Havia muita mulher honesta, verdadeiros anjos de
virtude! E que deixassem de falar! em certas ocasiões uma boa rapariga tinha o seu
cabimento! Sim! Quem não gostava da estética?...
Amâncio era da mesma opinião, e queixou-se de sua infelicidade no Rio a
esse respeito.
— Ainda é cedo! elucidou o Salustiano. — Quando te começarem as
aventuras, hás de ver o quer vai por essa sociedade!
— Não é tanto assim! opôs o Coqueiro. — Vocês são todos homens dos
extremos!
E voltando-se confidencialmente para Amâncio :
— O doutor, decerto, encontrará uma mulher perigosa, de quem deve fugir
como o diabo da cruz; mas terá também ocasião de ver algumas raparigas bem
educadas, honestas e inteligentes. Não as vá procurar na alta sociedade, não, que
aí se escondem as piores! mas indague-as por baixo, na mediocracia, que as há de
descobrir. E olhe, se quer aceitar um conselho de amigo, case-se! Não há melhor
vidinha! Estou casado há três anos e ainda não tive um segundo de arrependimento!
...Ao menos conserva-se a saúde, desenvolve-se o espírito e trabalha-se mais ...O
método, homem! o método é o segredo da existência.
E, puxando a cadeira par mais perto de Amâncio, falou-lhe em voz baixa.
Que no Rio de Janeiro era preciso ter um amigo sincero, não que “primasse nos
menus ”, mas que fosse capaz, que tivesse imputabilidade mora! — Amâncio estava
defronte de duas estradas; uma que conduzia à verdadeira felicidade e outra que
conduzia à desordem, ao vício e à completa desmoralização! Que se não deixasse
levar pelos pândegos!... (E olhava à esconsa os dois outros companheiros). Aquilo
era gente sem nada a perder!... Amâncio, enfim, que aparecesse no Domingo e
teriam ocasião de falar mais de espaço. Não deixasse de ir: havia muito que dizer e
conversar.
Amâncio prometeu de novo.
O almoço chegara ao ponto em que todos os comensais falam todos ao
mesmo tempo e em voz alta. Havia agitação; afogueavam-se as faces ao reflexo
vermelho das paredes do gabinete. Simões discutia com o Paiva a incompetência
dos professores da Politécnica.
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— Uma súcia! uma cambada! sintetizava ele. — Se fosse preciso despedir
dali os que não prestam, não ficaria nenhum!
O outro protestava, gritando e batendo punhadas sobre a mesa. Havia já dois
copos quebrados.
O criado trouxera a sobremesa, – uma salada russa.
Paiva pediu gelados e quis que lhe dessem uma omelette au rhum. “Não
podia passar sem isso ao almoço!”
Suavam.
Amâncio tornava-se expansivo: falou de seus amores na província; contou as
suas intenções a respeito da mulher do Campos.
Ela parece que o que tem é medo, dizia. – Mas eu sou perseverante!
Espero!
— Menino, segredou-lhe o Paiva. — Vai aproveitando, porque é isso o que se
leva deste mundo!
— E o mais são histórias!...concluiu o filho de Vasconcelos.
E fazia-se muito fino, perigoso, e continuava a parolar com embófia, loquaz
um pouco sacudido pelo almoço.
Coqueiro estudava-o de socapa, a seguir-lhe os gestos, a fariscar-lhe as
intenções. Dos quatro era o único que não estava tonto: seus olhos, pequenos e de
cor duvidosa, conservavam a mesma penetração e a mesma fixidez incisiva de ave
de rapina; sua boca estreita, bem guarnecida e quase sem lábios, tinha o mesmo
riso arqueado, mal seguro e frio, de quem escuta e observa.
Era de altura regular, compleição ética, rosto comprido, de um moreno
embaciado, pouca barba, pescoço magro , nariz agudo, mãos pálidas e secas, voz
doce e cabelo muito crespo, de colorido incerto, entre castanho e fulvo. Tinha vinte e
sete anos, mas aparentava, quando muito, vinte e dois.
O Paiva erguera-se para fazer um bestialógico, e soltava de enfiada frases
sonoras e ocas de sentido: ouvia-se falar em “gazofiláceos, camelos da Patagônia e
constelações híbridas do mapa-múndi”. Simões, o macambúzio, derreara a cadeira
contra a parede e jazia a palitar a boca, estendido para trás, em uma posição de
homem farto: barriga ao vento, braços moles e um olhar muito pando, que se lhe
entornava por todo o rosto em sorrisos de preguiça. Amâncio reatava a sua conversa
com o Coqueiro.
— É como lhe digo, recapitulava este. — Aquilo não é um hotel, é uma –
casa de família! Não temos hóspedes, temos amigos! Minha mulher é quem toma
conta de tudo!...E dando à voz um tom grave: — Ela é muito asseada, muito
exigente em questões de comida! Você não imagina!...Ao almoço temos três pratos,
a escolher, leite, chá ou café, e vinho ;pelo almoço pode calcular o que não será o
jantar! — E depois é preciso observar a qualidade dos gêneros!...enfim, só mesmo
você indo ver!
Amâncio reprometia.
— Fica-se muito melhor em uma casa de família, continuava o outro. A vida
em hotel ou a vida em república é o diabo: estraga-se tudo, — o estômago, o
caráter, a bolsa; ao passo que ali você tem o seu banho frio pela manhã, torradas à
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noite e, se cair doente (o que lhe não desejo), há quem o trate, quem lhe prepare um
remédio, um caldo, um suadouro, um escalda-pés...Olhe! até, se você quiser eu...
Mas a porta abriu-se com violento empuxão, e uma mulher loura, gorda,
vestida de seda amarela, precipitou-se no gabinete, espavorida, a soltar gritos.
Vinha-lhe no encalço um sujeito idoso, cheio de corpo, o chapéu a ré, o olhar
desvairado e convulso.
— Podes ir para onde quiseres, que eu não te deixo! berrava ele em fúria, a
dardejar o guarda-chuva sobre as costas da perseguida; esta corria de um lado
para outro, procurando escapar-lhe, mas o sujeito agarrou-a pelos cabelos e
consegui trazê-la contra si, levando os dois aos trambolhões tudo o que
encontravam no caminho.
Em menos de um segundo era completa a desordem no gabinete. Caíram
cadeiras; a mesa estremeceu com um encontrão, e a saleira e duas garrafas
perderam o equilíbrio e tombaram, varrendo copos e esmagando pratos. O tal
guarda–chuva havia num dos golpes espatifado os globos do candeeiro, e um dos
fragmentos do vidro fora de encontro ao espelho e o fizera em pedaços.
— Isto não tem jeito! Gritou o Paiva ao homem. — O senhor faz mal em
invadir desta forma um gabinete ocupado!
Mas o invasor já não ouvia coisa alguma e acabava de sair aos pescoções
com a sujeita.
Paiva atirou-se-lhe à pista, armado de uma garrafa. O gerente do hotel
apareceu, porém, cortando-lhe o passo e pedindo-lhe, por amor de Deus que não
fizesse caso, que deixasse lá os dois se esbordoarem à vontade!
— Era o costume! Acabariam por entender-se perfeitamente!.
— O senhor então acha que isto é razoável?! perguntou o Paiva furioso.
— Não, decerto!
E o gerente dava aos rapazes toda a razão: Deviam estar maçados, mas que
tivessem paciência! que desculpassem! Não fora possível evitar tão grande
sensaboria: O Brás, em questões de mulheres, perdia sempre a cabeças! E ele não
sabia que diabo de rabicho tinha o basbaque pelo demônio da Rita Baiana, que, de
vez em quando, era aquilo!
— Pois que se vá enrabichar para o diabo que o carregue!
— Decerto, decerto! apoiava o gerente, procurando acalmar o estudante.
— Ajuste as contas onde quiser, menos nos gabinetes ocupados pelos outros!
Arre!
— É exato! Os senhores têm todo o direito, mas por quem são, não façam
caso! Não façam caso.
— E esta! insistia o Paiva. – Pois se a gente paga muito mais para ficar em
liberdade, como diabo há de se admitir isto?!...
— Tem toda a razão! Tem toda a razão!...repetia o gerente, erguendo as
cadeiras e apanhando do tapete os cacos de vidro.
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Só então intervieram os outros rapazes. Amâncio, até aí, parecia colado à
cadeira .Estava lívido e as pernas tremiam-lhe.
O gerente ia responder a todos, quando a porta se tornou a abrir, e o Brás,
ainda transformado pela comoção da briga, ofegante e pálido, quase sem poder
falar, entrou, dizendo, — que ia pedir desculpa da grosseria por ele praticada há
pouco.
— Mas estava possesso! justificava-se ele. — Aquela não-sei-que-diga lhe
fazia perder as estribeiras! Que o desculpassem, porque um homem em certas
ocasiões nem se podia conter! Uma mulher, com quem já havia gasto para mais de
dez contos de réis!...exclamava ele fora de si. Uma mulher que erguera da lama
podia assim dizer! Uma desgraçada que antes de o conhecer, não podia ir a parte
alguma por não ter um vestido capaz!...Uma miserável, que dantes, para matar a
fome, precisava aviar encomendas de costura e se andar alugando na casa de
modistas!...Era duro! Pois não achavam?!
Os estudantes meneavam a cabeça ,afirmativamente.
— Ah! continuou o Brás. — Aquelas contas tinham-se de ajustar na primeira
ocasião em que ele a encontrasse com o tal troca-tintas! Ah! Já não podia! Era
demais! Uh!
E passeava no gabinete, a empurrar com o pé os cacos esquecidos no chão,
e a sorver o ar em grandes haustos, consoladamente, como se acabasse de alijar
um peso da consciências.
As palavras do Brás tranqüilizaram os rapazes, cuja embriaguez parecia ter
fugido com o susto. O Simões chegou mesmo a rir do fato, jactando-se mais uma
vez da sua eterna indiferença pelas mulheres. — Com ele é que nunca haveria de
suceder semelhante coisa!...afirmava.
Amâncio convidou o Brás a beber, e vazou-lhe vinho num copo.
— Aquela descarada! resmungava o ciumento, examinando uma arranhadura
que vinha de descobrir na mão direita. — Ela, porém, comigo está iludida! — ou me
anda muito direitinha ou há de me ficar debaixo dos pés! Pedaço de uma ingrata!
E, voltando-se para o gerente que acabava de entrar;
— O sujeitinho foi-se, hein?
— Ora!...respondeu aquele com um riso servil. — Ganhou logo a rua e...por
aqui é o caminho! Ela é que pelos modos, ficou bem convidada! Meteu-se no quarto
a chorar.
— Pois que chore na cama que é lugar quente! Não fosse ordinária! Faça lá
o que bem entender, mas, com os diabos! não enquanto estiver comigo! Vá
divertir-se com o boi! Sebo!
E passado logo em seguida pra um tom de voz calma e amiga. disse baixo ao
gerente:
— Veja de quanto foi o prejuízo e faça uma conta a parte.
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Pediu ainda uma vez desculpa aos rapazes, afiançou que eles tinham um
criado na Ladeira da Glória, número tantos, e saiu, sempre às voltas com a sua
arranhadura da mão direita.
Amâncio quis condenar o fato, mas o Paiva observou-lhe que aquilo se dava
todos os dias no Rio de Janeiro.
— Eu já não estranho! disse.— Falta de educação!...
— Bem, meus senhores, são horas de eu me ir também chegando, advertiu
Coqueiro, erguendo-se enfiando o paletó.
O Simões fez igual movimento e declarou que o acompanhava.
— Então, que é isto já? Exclamou Amâncio, querendo detê-los.
— É. Está se fazendo tarde, respondeu Coqueiro, a consultar o relógio. —
Três horas.
— Impossível!negou Amâncio.
— Era exato.
E Coqueiro, já de chapéu na cabeça e guarda-chuva debaixo do braço,
apertou-lhe a mão com as duas, dizendo que folgava em extremo haver travado
relações com ele e que o esperava, sem falta, no Domingo. Simões fez igualmente
as suas despedidas, e os dois saíram a conversar sobre o quanto poderia custar a
Amâncio aquele almoço.
— Também, que diabo, ficamos nós fazendo aqui? lembrou o Paiva, quando
se viu a sós com o amigo. — Paga isso e vamo-nos embora. Queres tu ir até lá a
casa?...
— Mas eu já estou a tanto tempo na rua ...considerou Amâncio.
— E o que tem isso?!...Deves contas de ti a alguém?! Ora essa!
— É que o Campos pode reparar!...
— Pois que repare! Manda plantar batatas ao tal de Campos! Tu não és
nenhum caixeiro dele...Eu, no teu caso, nem ficava ali mais um dia! Que
necessidade tens agora de passar às sopas de um negociante, e sujeitares-te a
regulamentos comerciais? É de mau gosto estar hospedado em casa de negócio!
Olha! Se quiseres, muda-te lá para a república. Sempre é outra coisa morar com
rapazes! Aprende-se!
O criado, a quem já tinham pedido a conta, entrou com uma pequena salva na
mão e foi, instintivamente, depô-la em frente de Amâncio.
— Espere, disse este, tirando dinheiro do bolso. E entregou-lhe uma nota de
cem mil — réis.
O moço saiu correndo.
— Quanto foi? desejou saber o Paiva.
Oitenta e cinco mil-réis, respondeu o outro.
— Oitenta e cinco mil-réis! Oh! Que grande ladroeira!
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E logo que o criado voltou com o troco:
– Homem, faça o favor de dizer em que se gastou aqui oitenta e cinco mil-
réis!.. Salvo se vossemecês metem também na conta o que quebrou o Brás!
— Não senhor! Eu só cobrei os copos, que já estavam partidos antes do rolo.
— Que enorme ladroeira! insistia o Paiva, a sacudir a cabeça.
– Deixa lá! aconselhou Amâncio, puxando-o para fora.
Precisava andar e tomar fresco. Aquele gabinete era um forno — sentia-se
mal.
— É que não posso ver extorquir desta forma o dinheiro a ninguém! disse
o Paiva indignado.
E principiou a fazer as contas pelo que se lembrava de ter vindo à mesa.
Amâncio o puxou de novo:
— Deixa lá isso ,homem!
— Nada! Pelo menos hei de vingar-me aqui em alguma coisa!
O criado havia saído. Paiva Rocha principiou a derramar o resto das garrafas
no açucareiro, a emporcalhar o damasco da cortina e a cuspir dentro das chávenas.
Amâncio ria-se formalmente, mas, no íntimo aborrecido:
— Agora podemos ir! disse afinal o outro. — Ao menos deixo-lhe um
prejuízo!
E ainda meteu no bolso um paliteiro e duas colheres.
– Lá na república, precisava-se daqueles objetos! acrescentou rindo. Já na
rua, Amâncio reparou que a cabeça lhe estava muito pesada e queixou-se de
suores frios. Paiva chamou um carro, e, uma vez dentro com o colega, mandou
tocar par a Rua de Mata- Cavalos.
— Esqueceste aquilo de que falamos? perguntou em viagem ao companheiro.
Amâncio já não se lembrava.
Paiva respondeu, fazendo um sinal com os dedos .
— Ah! Quanto Queres?
— Dá cá uns cinqüenta ou sessenta, depois tos pagarei.
— Pois não! gaguejou Amâncio, passando-lhe três notas de vinte mil-réis.
CAPÍTULO IV
Amâncio chegou à república muito indisposto.
Quase que não dava conta dos quatro lances de escada, que a precediam.
Também foi só chegar e atirar-se à primeira cama, gemendo e resbunando
ao peso de uma grande aflição. Estava mais branco do que a cal da parede; o suor
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escorria-lhe por todo o corpo; respirava com dificuldade; a abrir a boca e a retorcer
os olhos.
— Então! disse o Paiva, batendo-lhe no ombro. — Mal! respondeu Amâncio,
sem levantar a cabeça, que deixara cair sobre o peito. E com um gesto pediu água.
— Isso passa! afiançou o colega, entregando-lhe o púcaro cheio. Estás é
com um formidável pifão.
E riu-se.
— Eu quero vomitar! exclamou Vasconcelos, apressado pela agonia, e mal
teve tempo de erguer o rosto.
— És um fracalhão! Ponderou o companheiro, amparando-o pela testa. —
Que diabo! Quem não pode com o tempo não inventa modas!
— Amâncio não respondia: Os engulhos vinham-lhe uns sobre os outros.
— Ai! ai! gemia oprimido .
— Ora que tipo! disse o Paiva, atirando-o sobre os travesseiros. — Vê se
consegues dormir! Isto não é nada!
E narrou um caso idêntico, que experimentara.
Amâncio sentia-se um pouco mais aliviado, continuava, porém, a suar frio;
tinha a cabeça completamente ensopada e não dispunha de forças para coisa
alguma. Os olhos fechavam-se-lhe com um entorpecimento pesado de sono. Pediu
mais água. E, depois de a tomar , deu a entender que era preciso que o despissem
e descalçassem .
Paiva entrou a tirar-lhe a roupa, safou-lhe com dificuldade as botinas, porque
as meias estavam suadas.
Amâncio, muito prostrado, mole, a virar-se de uma para outra banda, aiava
sempre. Afinal sossegou, parecia adormecido; mas, ergueu-se logo, com ímpeto, e
começou a vomitar de novo, sem dizer palavras.
— Que pifão! reconsiderava o colega, encarando-o com as mãos cruzadas
atrás.
— Homem! Vê-se lhe dás um pouco de amônia! lembrou do fundo do quarto
uma voz arrastada e um pouco fanhosa.
Só então Amâncio percebeu que ali, a seis ou sete passos distante dele,
estava um rapaz magro , muito amarelo, em ceroulas e corpo nu, estendido numa
cama, a ler, todo preocupado, um grosso volume que tinha sobre o estômago.
Parecia deveras ferrado no seu estudo, porque até aí não dera fé do que se lhe
passava em derredor.
— Olha! disse ao Paiva.— Creio que está acolá, sobre a banca, por detrás
do Comitê. É um frasquinho quadrado, com rolha de vidro.
Dito isto, recolheu-se de novo à leitura, como se nada houvesse sucedido.
Amâncio serenou de todo com algumas gotas de amoníaco em um copo
d’água , e afinal pegou no sono profundamente.
Só acordou no dia seguinte, quando o sol já entrava pela única janela do
quarto.
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Sentia a boca amarga e o corpo moído. Assentou-se na cama e circunvagou
em torno os olhos assombrados, com a estranheza de um doido ao recuperar o
entendimento.
O sujeito magro da véspera lá estava no mesmo sítio; agora, porém dormia,
amortalhado a custo num insuficiente pedaço de chita vermelha.
Do lado oposto, no chão, sobre um lençol encardido e cheio de nódoas, a
cabeça pousada num jogo de dicionários latinos, jazia o Paiva, a sono solto, apenas
resguardado por um colete de flanela. Mais adiante, em uma cama estreita de lona,
viam-se dois moços, ressonando de costas um para o outro, com as nucas unidas, a
disputarem silenciosamente o mesmo travesseiro.
O quarto respirava todo um ar triste de desmazelo e boêmia. Fazia má
impressão estar ali: o vômito de Amâncio secava-se no chão, azedando a ambiente;
a louça, que servira ao último jantar, ainda coberta de gordura coalhada, aparecia
dentro de uma lata abominável, cheia de contusões e comida de ferrugem. Uma
banquinha , encostada à parede, dizia com o seu frio aspecto desarranjado que
alguém estivera aí a trabalhar durante a noite, até que se extinguira a vela, cujas
últimas gotas de estearina se derramavam melancolicamente pelas bordas de um
frasco vazio de xarope Larose, que lhe fizera as vezes de castiçal. Num dos cantos
amontoava-se roupa suja; em outro repousava uma máquina de fazer café, ao lado
de uma garrafa de espírito de vinho. Nas cabeceiras das três camas e ao comprido
das paredes, sobre jornais velhos e desbotados, dependuravam-se calças e fraques
de casimira: em uma das ombreiras da janela havia umas lunetas de ouro,
cuidadosamente suspensas de um prego. Por aqui e por ali pontas esmagadas de
cigarro e cuspalhadas ressequidas. No meio do soalho, com o gargalo decepado,
luzia uma garrafa.
A luz franca e penetrante da manhã dava a tudo isso um relevo ainda mais
duro e repulsivo: o coração de Amâncio ficou vexado e corrido, como se todos os
ângulos daquela imundície o espetassem a um só tempo. Ergueu-se
cautelosamente, para não acordar os outros, e foi à janela. O vasto panorama lá de
fora estremulhou-lhe os sentidos com o seu aspecto.
A república era muito no alto, sobre três andares, dominando uma grande
extensão. Viam-se de cima as casa acavaladas uma pelas outras, formando ruas,
contornando praças. As chaminés principiavam a fumar; deslizavam as carrocinhas
multicores dos padeiros; as vacas de leite caminhavam com o seu passo vagaroso,
parando à porta dos fregueses, tilintando o chocalho; os quiosques vendiam café a
homens de jaqueta e chapéu desabado; cruzavam-se na rua os libertinos retardios
com os operários que se levantavam para a obrigação; ouvia-se o ruído estalado
dos carros d’água, o rodar monótono dos bondes. Mais para além pressentiam-se
cordilheiras, graduando planos esfumados de neblina. O horizonte rasgava-se à luz
do sol, num deslumbramento de cores siderais. E lá muito ao longe, quase a perder
de vista, reverbava a baía, laminando as águas na praia.
Embaixo, na área da casa, uma ilhoa, de braços nus, a cabeça embrulhada
em um lenço de ramagens, lavava a um tanque de cimento romano; um homem, em
mangas de camisa, varria as pedras do chão, cantarolando com os dentes cerrados,
para não deixar cair a ponta do cigarro. Numa janela, um sujeito, de óculos azuis,
areava os dentes e com a boca atirava duchas sobre um papagaio, cuja gaiola
pousava no balcão. Dentro de um cercado cacarejavam galinhas, mariscando na
terra; e o homem do lixo entrava e saia, familiarmente, com o seu gigo às costas.
Um relógio da vizinhança bateu seis horas.
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Amâncio reparou que estava com muita sede, mas não descobria a talha
d’água. Afinal encontrou-a, num sótão que havia ao lado do quarto e onde só se
entrava vergando o corpo.
Bebeu até à saciedade.
Depois lavou o rosto e a boca. E, com a idéia de sair antes que os mais
acordassem, vestiu-se apressado, contou o dinheiro que lhe restava, lamentando
interiormente o que na véspera esbanjara; viu no chão uma escova de fato,
apanhou-a, escovou a roupa, e, todo cautela e ponta de pé, abriu a porta e ganhou a
escada.
Entre o primeiro e o segundo andar encontrou uma rapariguita de alguns
dezesseis anos, que subia com dois copos de leite, um em cada mão, fazendo mil
esforços para não os entornar. Ao ver Amâncio ela emperrou, cosendo-se à parede,
a fim de lhe dar passagem, e olhou-o de esguelha, com medo de afastar a vista dos
copos.
Era bonitinha, corada, os cabelos castanhos apanhados na nuca. Parecia
portuguesa.
Amâncio ao passar por ela, estacou também, à fitá-la. De repente lançou-lhe
as mãos.
A pequena, muito contrariada fez uma cara de raiva e gritou — que a
soltasse! que não fosse atrevido!
E desviava o corpo, querendo defender-se mas sem se descuidar dos copos.
Mau! mau! siga o seu caminho e deixe os outros em paz!
Amâncio não fez caso e conseguiu beijá-la à pura força. Derramaram-se
algumas gotas de leite.
— Maus raios te partam! clamou a rapariga, assim que o viu pelas costas.—
Peste ruim de um estudante!
* * *
A peste ruim do estudante saiu, e só interrompeu a caminhada para entrar
num botequim, onde pediu café. Então, defronte do espelho, pôde admirar o belo
estado em que se achava.
— Como diabo havia de apresentar-se naquele gosto em casa do
Campos?... Também que triste idéia a sua — de se enterrar numa casa comercial?
Não! Com certeza estava mal hospedado... nem lhe convinha permanecer ali! —
Oh! Bastava já de ser governado, de ser vigiado a todo instante! — Já era tempo
de gozar um pouco de liberdade.
E, enquanto sorvia compassadamente o café, recapitulava na memória todo
o seu passado de terror e submissão: — Antes de entrar para a escola de primeiras
letras, nunca lhe deixaram transpor a porta da rua ou a porta do quintal; os outros
meninos de sua idade tinham licença para empinar papagaios, brincar entrudo,
queimar fogos pelo tempo de São Pedro; — ele não! depois caiu nas garras do
professor, — aquela fera! Nunca saia de casa, sem levar atrás de si um escravo
para o vigiar, para impedi-lo de fazer travessuras e obrigá-lo a caminhar com modo,
direito, sério como homem. Afinal escapou ao professor, sim! mas continuou sob a
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dura vigilância do pai, do tio e das tias; todos rondavam; todos o traziam “num
cortado”. Só na fazenda da avó conseguia desfrutar alguma liberdade, mas essa
mesma não era completa e, ai! durava tão pouco tempo!...
Agora compreendia a razão pela qual, no mês de férias que passava aí, se
tornava tão maligno, — é que naturalmente queria desforrar o resto do ano, que
levava coagido em casado pai. De sua infância eram aqueles meses privilegiados a
coisa única que lhe merecia verdadeira saudade; ao mais estrangulavam tristes
reminiscências de castigos, de sustos, apoquentações de todo o gênero.
A própria idéias de sua mãe nunca lhe vinha só; havia sempre ao lado da
venerada imagem alguma recordação enfadonha e constrangedora. — As poucas
vezes em que estavam juntos, o pai chegava no melhor da intimidade e Ângela se
retraía, cortando em meio as carícias do filho, como se as recebera de um amante,
em plena ilegalidade do adultério.
E a memória desses beijos a furto e medrosos, a memória desses carinhos
cheios de sobressalto, relembravam-lhe as vezes que ele em pequeno se metia no
quarto dos engomados, de camaradagem com as mulatas da casa que aí
trabalhavam conjuntamente.
Era quase sempre pelo intervalo das aulas, ao meio-dia, quando o calor
quebrava o corpo e punha nos sentidos uma pasmaceira voluptuosa.
Em casa do velho Vasconcelos havia, segundo o costume da província,
grande número de criadas; só no “quarto da goma”, como lá se diz, reuniam-se
quatro ou cinco. Umas costuravam; outras faziam renda, assentadas no chão,
defronte da almofadas de bilros; outras, vergadas sobre a “tábua de engomar”,
passavam roupa a ferro.
Amâncio ,quando criança, gostava de se meter com elas, participar de suas
conversas picadas de brejeirice, e deixar correr o tempo, deitado sobre saias,
amolentando-se ao calor penetrante das raparigas, a ouvir, num êxtase mofino, o
que elas entre si cochichavam com risadinhas estaladas à socapa. Por outro lado, as
mulatas folgavam em tê-lo perto de si, achavam-no vivo e atilado, provocavam-lhe
ditos de graça, mexiam com ele, faziam-lhe perguntas maliciosas, só para “ ver o
que o demônio do menino respondia” .E, logo que Amâncio dava a réplica, piscando
os olhos e mostrando a ponta da língua, caíam todas num ataque de riso , a olharem
umas para as outras com intenção.
De resto, ninguém melhor do que ele para subtrair da despensa um punhado
de açúcar ou de farinha, sem que Ângela desse por isso.
O demoninho era levado!
E assim se foi tornando mulherengo, fraldeiro, amigo de saias.
A mãe, quando ouvia da varanda as risadas da criadagem, gritava jogo pelo
filho.
— Já vou mamãe! respondia Amâncio.
Lá estava o diabrete do menino às voltas com as raparigas no quarto da
goma! Oh! que birra tinha ela disso!...
Mas Amâncio não se corrigia. É que ali ao menos não chegaria o pai.
As vezes ,quando ia passear à casa de alguma família conhecida, arranjava-
se com as moças, gostava de acompanha-las por toda parte, fazendo-se muito dócil
e amigo de servir. Como era ainda perfeitamente criança e bonitinho, elas lhe faziam
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festa e davam-lhe doces, figurinos de papel recortado e caixinhas vazias. Algumas
lhe perguntavam brincando se ele as queria para mulher, se queria “ser seu noivo”.
Amâncio respondia que sim com um arrepio. E daí a pouco ficavam as moças muito
surpreendidas quando o demônio do menino lhes saltava ao colo e principiava a
beijar-lhes sofregamente o pescoço e os cabelos ou a meter-lhes a língua pelos
ouvidos.
— Credo! disse uma delas em situação idêntica..— Que menino! Vá para
longe com as suas brincadeiras.!
Outras, porém, lhe achavam muita graça e eram as primeira s a puxar por ele.
De todos os brinquedos o que Amâncio mais estimava era o de “fazer casa”.
A casa fazia-se sempre debaixo de uma mesa, com um lençol em volta, figurando as
paredes. Uma de suas primas, filha do protetor de Campos, ou alguma menina que
estivesse passando o dia com ele, representava de mulher; Amâncio de marido. A
menina ficava debaixo da mesa, enquanto ele andava por fora, “a ganhar a vida ” até
que se recolhia também a casa, levando compras e preparos para o almoço.
Amarravam um lenço em duas pernas da mesa, fingindo rede, e aí metiam uma
boneca, que era o filho.
Gostava infinitamente dessa brincadeira. Mas um belo dia veio abaixo o lençol
que servia de parede, e desde então Ângela não consentiu que o filho se divertisse a
fazer casa.
Muitos anos depois, aos quinze anos, notou-se incomodado por um
padecimento estranho. Não disse nada à família e procurou um homem que havia
na província com grande habilidade para curar moléstias, viessem elas até do mau-
olhado e do feitiço.
Santo homem! O mal do nosso estudante desapareceu como por milagre; o
que, aliás, não impediu que tivesse daí a pouco de voltar à cama, debaixo de um
novo e mais formidável carregamento que o ia varrendo ao cemitério. Foram esses
três anos de sezões a que se referia, quando pela primeira vez falou ao Campos.
E Amâncio ,quanto mais rememorava tudo isso, quanto mais remexia no
cinzeiro do passado, tanto mais impacientes lhe rosnavam os sentidos e tanto mais
desabrida lhe vinha a necessidade de gozar, de viver em liberdade, de recuperar o
tempo que levou sopeado e preso.
— Enfim! concluiu ele, erguendo-se distraído e abandonando o café — a
casa do Campos não me convém! não me convém de forma alguma!
Mas a idéia de Hortênsia, que, para se apresentar, só esperava o termo
daquelas considerações, invadiu-lhe o espírito e foi a pouco e pouco se estendendo
e se esticando por todo ele, até ocupá-lo inteiramente com a sua imagem branca e
palpitante, como uma bela mulher que desperta e, entre voluptuosos
espreguiçamentos , alonga pela cama os seus membros entorpecidos de sono.
E ele, quando deu por si, estava a fazer conjeturas sobre o amor de Hortênsia :
— Seria ardente ou calmo? Meigo ou arrebatado? Que atitude tomaria a bela
mulher nos momentos supremos de ventura? Quais seriam as suas palavras, as
frases do seu delírio?...
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E, aguilhoado pelos sentidos, perdia-se em cálculos infames, em degradantes
suposições; tentando, embalde, adivinhar-lhe os pensamentos, penetrar-lhe nos
escaninhos do coração e devassar-lhe todos os segredos do corpo.
— Oh! Como seria?...
E seu desejo vil começava a despi-la, peça por peça, até deixá-la
completamente nua.
— Mas não! não havia possibilidade! contrapunha-lhe a razão. — Tudo aquilo
era loucura, simples loucura! Hortênsia não podia ser mais séria, mais amiga do
marido! Qual fora a palavra, o gesto, que lhe dera a ele o direito de pensar em
semelhante coisa?... Sim! que fizera a pobre senhora para autorizá-lo a tanto?...
Onde estava o fundamento daqueles sonhos, pelos quais queria trocar a sua
liberdade, os seus prazeres, tudo, e ficar encurralado em uma casa comercial, com
obrigação de entrar às tantas, comer às tantas e guardar todas as conveniências ao
lado de uma gente impossível?!...Ora! que se deixasse de asneiras! Não fosse tolo!
Hortênsia Campos aparecia-lhe então como em verdade o era: carinhosa e
altiva, afável para todos igualmente, sem dar a nenhum o direito de supor uma
preferência. Amâncio já não a tinha descompostas defronte dos olhos mas
respeitosamente restituída ao seu vestidinho de chita, à suas botinas de duraque,
quase sem salto, e às tranças honestamente penteadas.
— Mudava-se! Que dúvida! Sim! Uma vez que Hortênsia nada mais era do
que uma senhora virtuosa, que diabo ficava ele fazendo ali?...Não seria decerto
pelos bonitos olhos do Campos!
* * *
As oito horas, quando entrou em casa tinha já resolvido não ficar ali nem mais
um dia. — Era fazer as malas e bater quanto antes a bela plumagem!
Mas também, se por um lado não lhe convinha ficar em companhia do
Campos: por outro, a idéia de se meter na república do Paiva não o seduzia
absolutamente. Aquela miséria e aquela desordem lhe causavam repugnância.
Queria liberdade, a boêmia, a pândega — sim senhor! tudo isso, porém, com um
certo ar, com uma certa distinção aristocrática. Não admitia uma cama sem
travesseiros, um almoço sem talheres e uma alcova sem espelhos. Desejava a bela
crápula, — por Deus que desejava!mas não bebendo pela garrafa e dormindo pelo
chão de águas - furtadas! — Que diabo! — não podia ser tão difícil conciliar as duas
coisas!...
Pensando deste modo, subiu ao quarto. Sobre a cômoda estava uma carta
que lhe era dirigida; abriu-a logo:
“Querido Amâncio.
Desculpe tratá-lo com esta liberdade; como, porém, já sou seu amigo, não
encontro jeito de lhe falar doutro modo. Ontem, quando combinamos no Hotel dos
Príncipes a sua visita para Domingo, não me passava pela cabeça que hoje era dia
santo e fazíamos melhor em aproveitá-lo; por conseguinte, se o amigo não tem
compromisso, venha passar a tarde conosco, que nos dará com isso grande prazer.
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Minha família, depois que lhe falei a seu respeito, está impaciente para conhecê-lo e
desde já fica à sua espera.”
Assinava “João Coqueiro” e havia o seguinte post-scriptum: “Se não puder vir,
previna-mo por duas palavrinhas; mas venha. Resende n...”
Amâncio hesitou em se devia ir ou não. O Coqueiro ,com a sua figurinha de
tísico, o seu rosto chupado e quase verde, os seus olhos pequenos e penetrantes,
de uma mobilidade de olho de pássaro, com a sua boca fria, o seu nariz agudo, o
seu todo seco egoísta, desenganado da vida, não era das coisa que, mais o
atraíssem. No entanto, bem podia ser que ali estivesse o que ele procurava, — um
cômodo limpo, confortável, um pouquinho de luxo, e plena liberdade. Talvez
aceitasse o convite.
— Esta gente onde está? perguntou, indicando o andar de cima a um
caixeiro que lhe apareceu no corredor, com a sua calça domingueira, cor de
alecrim, o charuto ao canto da boca.
— Foram passear ao Jardim Botânico, respondeu aquele, descendo as
escadas.
— Todos? Ainda interrogou Amâncio.
— Sim, disse o outro entre os dentes, sem voltar o rosto. E saiu.
— Está resolvido!pensou o estudante. — Vou à casa do Coqueiro. Ao menos
estarei entretido durante esse tempo!
E voltando ao quarto :
— Não! É que tudo ali em casa do Campos já lhe cheirava mal!.. Olhassem
para o ar impertinente com que aquele galeguinho lhe havia falado!...Em tudo o mais
era pelo mesmo teor. — Uma súcia d’ asnos!
Começou a vestir-se de mau humor, arremessando a roupa, atirando com as
gavetas. O jarro vazio causou-lhe febre, sentiu venetas de arrojá-lo pela janela ;ao
tomar uma toalha do cabide, porque ela se não desprendesse logo, deu-lhe tal
empuxão que a fez em tiras.
— Um horror! Resmungava, a vestir-se furioso, sem saber de quê.
Um horror!
E, quando passou pela porta da rua, teve ímpetos de esbordoar o caixeiro,
que nesse dia estava de plantão.
CAPÍTULO V
João Coqueiro era fluminense e fluminense da gema. Nascera na Rua do
Parto em uma das casas de seus pais, quando estes eram ricos.
Que o foram. Viera-lhes a fortuna do avô materno, um português ambicioso e
econômico, que a conquistara no tráfico dos negros africanos; ao morrer legou à
filha, ainda criança, para cima de quinhentos contos de réis. Esta, mais tarde, foi
solicitada em casamento pelo homem a que pertenceu para sempre, — Lourenço
Coqueiro, os maiores bigodes que nesse tempo negrejavam na Corte do Império.
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Lourenço, todavia, era já um destroço quando casou. Do que fora e do que
possuíra, apenas lhe restava, além do bigode, o hábito de não fazer coisa alguma;
nos melhores grupos citava-se, entretanto, o seu ar distinto de fidalgo e falava-se
Dom boa vontade de seus dotes pessoais e do seu belo espírito eternamente
galhofeiro.
O casamento representou para ele uma tábua de salvação. A mulher
adorava-o; tinha-o na conta de um ente superior; jamais vira homem tão lindo de
rosto, tão insinuante no falar, tão delicado de maneiras.
Mas, pouco depois de casado, Lourenço começou a desgostá-la: era um
nunca terminar de festas; a casa vivia num rebuliço constante; os intervalos das
pândegas não davam sequer para a trazer arrumada e limpa. Quando não fossem
bailes, eram passeios, piqueniques , manhãs no campo, dias passados na Tijuca ou
no Jardim Botânico. Lourenço, às vezes, voltava ébrio, a cachimbar no fundo do
carro, e a fazer carícias piegas à mulher, que, ao lado, chorava silenciosamente. Ela,
coitada! Tinha muito medo sempre que o via nesse gosto, porque o demônio do
homem dava então para brigar, mexia com quem passava, metia a bengala nos
cocheiros e quebrava com os pés tudo que encontrasse no caminho.
Tiveram o primeiro filho — Janjão. Criancinha feia, dessangrada, cheia de
asma. Até aos cinco anos parecia idiota; passava os dias a babar-se debaixo da
mesa de jantar, ao pé de um moleque encarregado de vigiá-lo.
A mão desfazia-se em mil cuidadozinhos com a criança; era esta o seu
enlevo, a sua vida. Mas o pai não estava por isso: — temia que o rapaz lhe saísse
um maricas. Desejava-o — forte, decidido!
E, com enormes sobressaltos da mulher, tomava-o pelas perninhas magras e
suspendia-o no ar.
— Os homens assim é que se fazem, minha filha! Dizia ele a rolar o pequeno
entre as mãos.
E não admitia igualmente que o menino tivesse outra cama que não fosse um
enxergão. Não o queria calçado, nem vestido e, em vez de estar ali a babar-se
defronte do moleque, seria muito melhor que fosse correr para a chácara.
— Ele pode se machucar, Lourenço, cair! Observava a esposa timidamente.
— Pois deixa-o cair! Deixa-o machucar-se! Quanto mais trambolhões levar
em pequeno, melhor depois se agüentará nas pernas!
— Mas ele é tão fraquito, coitadinho!
— Por isso mesmo! Por isso mesmo precisamos torná-lo forte! E previno-te
de que já é mais que tempo de acabar com esse insuportável tratamento de
Janjão”! Aqui não há janjões! Meu filho chama-se — João! Tem o nome do avô,
um herói, um fidalgo! Não desses que hoje se fazem aí a três por dois, mas dos
legítimos, dos bons! Entendes tu? — dos bons!
E inflamava-se, como sempre que se referia à sua procedência. Vinha, com
efeito, de fidalgos: era sobrinho bastardo de um conde português.
À mesa exigia que o filho lhe ficasse ao lado e obrigava-o a comer bifes
sangrentos e tomar vinho sem água.
Um dias a esposa revoltou-se:
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— Pois tu vais dar conhaque ao menino, Lourenço?! exclamou ela
escandalizada.
— Deixa-o cá comigo, senhora! Eu sei o que faço!
— Olha que isso pode sufocá-lo, homem de Deus!
— Qual sufocar o quê! Por essas e outras é que, para os estrangeiros, não
passamos de “uns macacos”!
A mulher que se desse ao trabalho de saber como se fazia na Europa a
educação física das crianças! Queria que ela visse a criação que tiveram D. Pedro e
D. Miguel! E eram príncipes! — Entendia? — eram príncipes legítimos!
E voltando-se para o filho, gritou, arregalando os olhos e soprando os
bigodes, que já então se faziam cinzentos:
— Tu não queres ser um homem forte, João?! Queres ser um descendente
degenerado de teus avós?!
Janjão olhou o pai com medo, e abriu a chorar.
— Aí tens o que procuravas! disse a mulher, correndo para junto do filho. —
Assustar desse modo a pobre criança!
Janjão chorava mais.
— Isso! Isso é que o há de pôr pra diante! Berrou Lourenço encolerizando-
se. Beba já esse conhaque, menino!
— Deixa a criança! ...suplicava a mãe. — Olha como treme o pobrezinho!... o
coração parece que lhe quer saltar! ...
— E tomou-o no colo.
— É melhor mesmo que leves daí esse mono! Rira-mo dos olhos! Já estou
vendo a boa lesma que isso há de dar!
— Mães ignorantes!..
Quando Janjão principiou a crescer, o pai levava-o a toda a parte, dava-lhe
charutos, obrigava-o a tomar cerveja nos cafés. Foi, porém, uma campanha
conseguir uma vez que o pequeno se assentasse por dois minutos na dela de um
cavalo em que Lourenço havia chegado do seu passeio favorito a Botafogo.
Janjão, trêmulo da cabeça aos pés, agarrava-se com ambas as mãos nas
crinas do animal e berrava pela mãe com toda a força de que era capaz. Tiveram de
desmontá-lo para não o verem rebentar ali mesmo.
— Ora, como diabo me havia de sair este mono! Lamentava o pai
desesperado. — Ninguém acreditaria que aquele choramingas era seu filho!
Não foram mais felizes com as primeiras tentativas de natação ou as
primeiras experiências de atirar ao alvo: Janjão, só com a vista do mar ou a
presença de um revólver , desatava a soluçar e a berrar pela mãe.
— Não! Isso agora hás de ter paciência! resmungava Lourenço.
— Tu ao menos ficarás sabendo dar um tiro! Sou eu quem to assegura!
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E, com muita sutileza, comprou para o filho uma bela pistolinha de brinquedo,
que estalava fulminantes, e depois uma outra, mais séria, que admitia carga de
pólvora.
Janjão era, porém, cada vez mais refratário a tudo isso. Preferia ficar a um
canto da sala, entretido a vestir os seus bonecos ou a fazer de cozinheiro. A mãe por
esse tempo dava-lhe uma irmãzinha, que se ficou chamada Amélia, e desde aí o
maior encanto do menino era tomar conta do caixão em que estava a pequerrucha
toda envolvida em panos, e não consentir que as moscas lhe pousassem na
moleira.
Um dia, o pai, descendo ao quintal, encontrou-o muito empenhado com o
moleque a armar um oratório. Iam fazer procissão: o andor e o santo estavam
prontos; uma sombrinha, enfeitada de franjas, faria as vezes de pálio.
Lourenço ficou desesperado, e com dois pontapés reduziu tudo aquilo a
frangalhos.
— Era o que lhe faltava! — que o basbaque do filho, além de tudo, lhe
saísse carola!
E, quando subiu, disse terminantemente à mulher que não admitia que o filho
corrompesse o espírito com patacoadas daquela ordem.
— Se me constar, bradou ele ao pequeno, — que me tornas a fazer
igrejinhas, racho-te de meio a meio, pedaço de uma lesma! Ora vamos a ver! Cai
noutra, e terás uma sapeca que te deixe a paninhos de sal! Experimenta e verás!
Ele queria lá filhos devotos! Era só o que lhe faltava! Era só! Aquele menino
parecia o seu castigo! Parecia a sua maldição!
Aos doze anos Janjão entrou para o internato de Pedro II. A princípio custou-
lhe bastante compreender as lições, mas, como era muito estudioso e muito
paciente, os professores em breve o elogiavam. Tinham - no em boa estima pelo seu
espírito católico, pela docilidade de seu gênio e pelo irrepreensível de sua conduta.
João Coqueiro, de fato, fora sempre um menino sossegado, metido consigo,
respeitador dos mestres e dos preceitos estabelecidos, devoto e extremamente
cuidadoso de seus livros e de suas obrigações. Ninguém lhe ouvia palavra mais
áspera ou gesto menos conveniente, e às vezes entrava pela hora do recreio
grudado aos livros sem os querer deixar.
O pai via-o então com orgulho. Profetizava já que ali estivesse um sábio.
Tirou distinção nos primeiros exames. A mãe quase morre de alegria.
Lourenço quis solenizar o acontecimento com um banquete correlativo; mas as
suas condições de fortuna já não eram as mesmas; o dinheiro ia minguando de um
modo assustador. Se lhe viesse a falhar uma especulação, em que se havia lançado
ultimamente, como recurso extremo — Adeus! estaria tudo perdido! A ruína seria
inevitável!
Fez-se a festa, não obstante, e o menino voltou aos estudos.
Mas Lourenço principiava a sofrer gravemente de uma lesão cardíaca. Tinha
ataques nervosos, sufocações, e caía de vez em quando em fundas melancolias,
durante as quais se enterrava no quarto, sem poder suportar a presença de
ninguém, muito frenético, cheio de apreensões, com grande medo de morrer.
A mulher assustava-se: o marido não lhe parecia o mesmo homem. Estava
acabado; crescera-lhe o ventre, o nariz tomara uma vermelhidão gordurosa, o
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cabelo encanecera totalmente, a cabeça despira-se, a pele do rosto fizera-se opaca
e suja. Comprazia-se, agora, a ir à noite pelas igrejas, embrulhado na sua
sobrecasaca russa, apoiando-se à grossa bengala de cana da Índia, os pés à
vontade em sapatos rasos. Ajoelhava-se a um canto da nave, em cima das pedras,
e aí permanecia longamente, a ouvir os sons lamentosos do órgão, com o rosto
descansado sobre as mãos que se cruzavam no castão da bengala.
Às vezes chorava.
Seu estômago irritado já não queria os alimentos; era preciso enganá-lo de
instante a instante com um pouco de noz-vômica ou carbonato de magnésia. Não se
lhe podia suportar o hálito.
Quando recebeu a notícia de que a sua especulação falhara, estava no
quarto, não conseguiu sair do lugar em que se achava. Uma onda vermelha subira-
lhe à cabeça :os objetos principiaram a dançar-lhe em torno dos olhos; o chão fugia-
lhe debaixo dos pés. Tentou ainda dar alguns passos, mas cambaleou e caiu afinal
sobre as pernas embambecidas, — como uma trouxa.
Morreu no dia seguinte.
* * *
A família ficou pobre. Foi preciso vender o melhor de dois prédios que
restavam, para saldar as dívidas do defunto.
A viúva principiou então a tomar encomendas de costura e de engomagem.
Isso, porém não bastava; era necessário, a todo o transe, que o menino
continuasse nos estudos. Em tal aperto, lembrou-se a pobre mãe de admitir
hóspedes; a casa que ficou tinha bastante cômodos e prestava-se admiravelmente
para a coisa.
Vieram os primeiros inquilinos; arranjaram-se fregueses para o almoço e o
jantar, e o órfão prosseguiu nas sua aulas.
Dentro de pouco tempo, o sobrado da viúva de Lourenço era a mais estimada
e popular casa de pensão do Rio de Janeiro.
Foi nela que Janjão se fez homem. Aí o viram bacharelar-se e aí se
matriculou na Escola Central. A irmão respeitava-o como a um pai.
Amélia, por conseguinte, cresceu em uma casa de pensão. Cresceu no meio
da egoística indiferença de vários hóspedes, vendo e ouvindo todos os dias novas
caras e novas opiniões, absorvendo o que apanhava da conversa de caixeiros e
estudantes irresponsáveis; afeita a comer em mesa-redonda, a sentir perto de si , ao
seu lado, na intimidade doméstica, — homens estranhos, que se não preocupavam
com lhe aparecer em mangas de camisa, chinelas e peito nu.
Ainda assim deram-lhe mestres. Aprendera a ler e a escrever, tocava já o seu
bocado de piano e, — se Deus não mandasse o contrário — havia de ir muito mais
longe.
Um novo desastre veio, porém, alterar todos esses planos: a viúva de
Lourenço, depois de dois meses de cama , sucumbiu a uma pneumonia.
João Coqueiro estava então no segundo ano da Politécnica; Amélia a fazer-se
mulher por um daqueles dias; parentes — não os tinham ... capitais — ainda
menos...Como pois sustentar a casa de pensão? ...Oh! Era preciso despedir os
hóspedes, alugar o prédio, abandonar estudos e obter um emprego.
Arranjou-o de fato — na estrada de ferro de Pedro II. Coqueiro dissolveu logo
a casa de pensão e foi mais a irmã residir em companhia de uma francesa, muito
antiga no Brasil e que durante longo tempo se mostrou amiga íntima da defunta.
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Chamava-se Mme. Brizard.
Era mulher de cinqüenta anos, viúva de um afamado hoteleiro, que lhe
deixara muitas saudades e dúzia e meia de apólices da dívida publica.
* * *
Estava ainda bem disposta, apesar da idade. Gorda, mas elegante e com uns
vestígios assaz pronunciados de antigas formosura. Tinha os olhos azuis e os
cabelos pretos, no tipo peculiar ao meio-dia da França. Carne opulenta e quadril
vigoroso.
Notava-se-lhe a boca, com um desses lábios superiores que formam como
que duas camadas; o que aliás não obstava a que Mme. Brizard tivesse um sorriso
gracioso, e ainda tirasse partido da brancura privilegiada de seus dentes. Mas a sua
riqueza e a sua vaidade era o pescoço, um grande pescoço pálido, cheio de
ondulações macias e fartas.
Nascera em Marselha.
Depois de certa idade tornara-se muito caída para o romantismo; desde então
apreciava uma noite de luar; dava-se à leitura prolongada de poetas tristes; fazia-se
mais infeliz do que era de fato, e contava a todos a sua história. — Um romance!
“Aos quinze anos saíra da família pelo braço de um diplomata russo, que a
idolatrava; — ia casada. O russo tresandava a genebra e rescendia a sarro de
cachimbo; ela abominou-o logo, abominou-o entre uma enorme corte de adoradores
fascinados por sua beleza e sequiosos por um de seus sorrisos; era, porém,
honesta: — conservou-se pura e fiel ao marido.”
Mme. Brizard, quando chegava a este ponto do romance, abaixava os olhos,
levando lentamente o leque à boca para disfarçar um suspiro.
“Enviuvou aos vinte anos; o russo não lhe deixara filhos;— voltou à família. Aí
lhe apareceu então Mr. Brizard, homem de talento, político e escritor, grande
republicano. A subida de Luís Felipe ao trono atirou com ele ao Brasil, onde se fez
hoteleiro.
Tiveram aqui três filhos: duas mulheres e um homem. Este era o último e
muito se distanciava das irmãs em idade; quando lhe faltou o pai tinha apenas sete
anos.
A filha mais velha representava a glória da família: unira-se a um ministro
plenipotenciário; a outra, coitada, não casou mal, porém com a morte do marido, e
de um filhinho que lhe ficara, tornou-se muito nervosa, histérica, e até, meio
pateta; agora vivia e mais o irmão em companhia da mãe”
* * *
Nessas condições, a proposta de João Coqueiro pareceu vantajosa a Mme.
Brizard. — Ele que trouxesse a irmã a bela Amelita, e tudo se arranjaria prelo
melhor.
Juntaram-se Mme. Brizard revelou pronto interesse pelos dois hóspedes,
principalmente pelo “Coqueirinho” como lhe chamavam em família. Fazia-se mito
carinhosa com ele, queria ser a sua “segunda mãe”, apreciava-lhe o talento, e
andava a mostrar os versos do rapaz a todas as pessoas que apareciam à noite,
para as torradas.
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Reuniam-se em volta da mesa de jantar; iam buscar o loto e jogavam.
Coqueiro lia a um canto, ou ficava no quarto, a cachimbar soturnamente, olhando o
fumo e cismando na vida.
Mme. Brizard fazia perfeitamente as honras da casa; dava-se por mulher de
muito espírito e de uma educação peregrina. Se havia então alguém que a visitasse
pela primeira vez — a coisa ia mais longe. Desenfiava os seus melhores ditos,
contava como por incidente, as suas anedotas de mais efeito, falava gravemente de
sua filha casada com o ministro e exibia todos os seus conhecimentos literários.
Que os tina, inegavelmente. Lamartine lá estava no quarto dela ,sobre o
velador, encadernado com esmero. Mas não desdenhava os poetas brasileiros e lia
Camões. Uma sua amiga, muito chegada, dizia que lhe ouvira páginas inéditas de
um livro sobre o Brasil, — livro para fazer “sensação”!
Mme. Brizard confirmava este boato, sorrindo com modéstia.
João Coqueiro, esse, não sorria,. Ao contrário, parecia cada vez mais triste;
passava tempos sem aparecer a ninguém, depois que largava o trabalho. Por mais
de uma vez houver que lhe visse lágrimas nos olhos.
A francesa, que se achava então no seu período mais agudo de
sentimentalismo, respeitava muito as melancolias do pobre moço, falava a respeito
dele com a voz baixa, cheia de um acatamento religioso. Só lhe passava pelo
quarto na pontinha dos pés, e, quando o triste hóspede saía para o emprego, ela
corria a lhe arrumar a mesa, com desvelo, ordenando os livros, reunindo os papéis
esparsos, lendo, sobre a pasta, os versos começados na véspera.
Uma tarde, acharam-se os dois um defronte do outro, assentados sozinhos na
varanda da sala de jantar, que dava para um lugar plantado de bananeiras. O sol
descia lentamente no horizonte por uma escadaria de fogo; as cigarras estridulavam
no fundo da chácara; a noite ia emanando.
Coqueiro olhava à toa para isso, absorto e mudo; depois suspirou e escondeu
o rosto nas mãos. Mme. Brizard passou-lhe um braço no ombro.
— Coqueirinho! que é isso?...
Queria saber o motivos daquelas tristezas. Começou a interrogá-lo, com a voz
untuosa, cheia de amor.
Ele então falou abertamente de suas aspirações, de seus estudos
interrompidos, de sua incompatibilidade com o emprego que exercia.
— Sou muito caipora! Exclamava. — Sou muito caipora!
E chorava.
Mme. Brizard procurou consolá-lo, falou do futuro, lembrou a idade de
coqueiro e aconselhou-o a que não desanimasse.
Foi daí que lhes veio a idéia de casamento.
Mme. Brizard era muito mais velha do que ele, mas, talvez, por isso mesmo,
fosse a esposa que melhor lhe convinha.
— Ah! ela estava no caso de fazê-lo feliz, porque o amava! Oh! Se o amava!
Seria talvez uma loucura; talvez viessem a censurá-la; — ela mesma não sabia
explicar o que aquilo era, como aquilo acontecera! Mas, dava a sua palavra de
honra, jurava pela memória de seu pai — em como nunca sentira por ninguém o
que então sentia por Coqueiro! Ah! sabia perfeitamente que bem poucos
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compreenderiam a sua paixão! Sabia que muitos haveriam de ridicularizá-la,
haveriam de escarnece-la; ela própria, até ali, nunca imaginara que se pudesse
amar tanto!... Durante a sua vida , nunca se sentiu possuída por uma idéia, tão
escrava, tão vencida, como naquele instante! Contudo, se desejava o casamento
não era decerto pelo fato de possuir um homem. — Oh, não! — deixava isso para
as almas grosseiras... e Coqueiro bem sabia o quanto seu coração tinha de espiritual
e de puro!... Desejava aquele enlace para licitamente [pode aplicar todo o seu
esforço, toda a sua coragem, todas as sua diligências, na conquista de um bom
futuro para o esposo. Queria casar-se, porque entendia que isso se tornava
necessário à felicidade de Coqueiro. Toda a sua vida, todos os seus recursos dela,
seriam empregados para o mesmo fim: — facultar ao marido os meios de estudar,
os meios de crescer, desenvolver-se, luzir. Alcançasse ele um nome, uma posição
brilhante, uma atitude gloriosa, e tudo o mais lhe seria indiferente. Que lhe importava
o resto?... Se ela, porventura, fosse esquecida, fosse desprezada, se viesse mesmo
a falecer daí a pouco tempo — que valia tudo isso, se o objeto de seus extremos era
ditoso e vivia cercado de admiração e aplauso?...
E Mme. Brizard , depois de lhe falar na posteridade e depois de convencer ao
Coqueiro de que aquele casamento era um dever sagrado, pois que não realizá-lo
eqüivalia a privar o Brasil de uma de suas glórias futuras e ao século um de seus
vultos talvez mais grandiosos, Mme. Brizard, depois disso, entrou nos pormenores
de seu plano.
— Uma vez casados, ressuscitariam a antiga casa de pensão. Ela dispunha
de algum dinheiro; o outro dispunha de um prédio: — era restaurá-lo e dar começo à
vida! Coqueiro abandonaria o emprego e voltava de novo aos estudos;” ela
encarregava-se da gerência da casa e, nesse ponto, deitando de parte a modéstia,
supunha-se mais habilitada que ninguém.
Até já tinha projetos, já tinha asa suas idéias sobre a instalação da
casa!...Sentia-se de disposta a trabalhar por vinte!...Coqueiro havia de ver! Seu
estabelecimento seria uma casa de pensão modelo! Coisa para dar “uma fortuna e
render à Amelinha um bom casamento. Um casamentão!” Ah! Ela , a francesa,
sabia perfeitamente como tudo isso se arranjava no Brasil.
E concluiu , jurando inda uma vez, que — para si não queria nada! Que só
desejava a felicidade do Coqueiro e de sua irmã dele.
Era assim que entendia o amor!
Três meses depois estavam casados.
Boquejou-se alegremente sobre isso na Escola Politécnica . Os amigos do
Coqueiro acharam ocasião de rir, e a tal mulher do ministro plenipotenciário, a gloria
da família, escreveu à mãe uma carta carregada de recriminações, declarando que
nunca lhe perdoaria semelhante loucura — Loucura , de que para o futuro haveria
Mme. Brizard de se arrepender muito seriamente.
Os recém-casados fecharem , porém ,ouvidos a tais palavras e cuidaram de ir
pondo em prática os seus novos planos de vida
Meteram mãos à obra. Coqueiro deixou o emprego, contratou um empreiteiro
para restaurar o seu velho prédio da Rua do Resende, e a casa de pensão de Mme.
Brizard (como teimosamente insistiam em lhe chamar a mulher) surgiu ameaçadora,
escancarando para a população do Rio de Janeiro a sua boca de monstro.
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CAPÍTULO VI
Foi justamente três anos depois disso que Amâncio chegou ao Rio de
Janeiro.
A casa de Mme. Brizard estava então no seu apogeu; de todos os lados
choviam hóspedes, entre os quais se notavam pessoas de importância. Pelo tempo
das câmaras reuniam-se ali alguns deputados da província, homens sérios, em geral
gordos, o ar discreto, um sorriso infantil à superfície dos lábios e um fraseado
imaginoso, cheio de poesia. Fazia-se política no salão, depois da comida, em
chinelas de tapete, ao remansado soprar do fumo da Bahia.
A dona da casa gozava para eles de muita consideração; só um ou outro,
mais atirado à pilhéria, ousava atribuir a algum dos seus “nobres colegas ”os
sorrisos de Mme. Brizard.
Outros entusiasmavam-se por ela.
— Não! diziam. — Aquela mulher devia ter sido um pancadão no seu tempo!
Tudo que era pescoço e ombros ainda se podia ver! Quem dera a muitas novas um
colo daqueles!
De uma feita, um deputado de Minas, criatura baixa, socada, rosto curto,
poucas palavras e muita barba, empalmou-lhe a cintura, quando a pilhou sozinha na
sala de jantar.
A francesa abaixou os olhos, afastou-se dignamente e foi logo dizer ao marido
que era necessário pôr aquele homem na rua.
— O Moura! Por quê?
— Não te posso dizer por que...mas afianço que o Moura não nos convém!...
— Fez-te alguma?
— Faltou-me ao respeito!
— Hein?!
— Agarrou-me a cintura e ter-me-ia beijado o pescoço ,se eu lho permitisse.
Esta última parte da queixa fazia mais honra ao espírito inventivo de Mme.
Brizard do que ao seu espírito de verdade; ela, porém, não resistia ao gostinho de
falar no seu rico pescoço, sempre que se oferecia a ocasião.
E o Moura teria posto os ossos na rua, se a própria Mme. Brizard não
intercedesse por ele no dia seguinte, alegando que o pobre homem havia na
véspera carregado um pouco mais no virgem.
Também foi só. Nunca mais, que constasse palpitou ali sombra de escândalo,
e a famosa casa de pensão continuava a sustentar a melhor aparência deste
mundo. Até se dizia à boca cheia que, por mais de uma vez, já se hospedaram
verdadeiras celebridades, e eram todos de acordo que no Rio de Janeiro ninguém
fazia espetadas de camarão tão saborosas como as da simpática irmãzinha do João
Coqueiro, a Amelita. Uma verdadeira especialidade. Constava até que vinha gente
de longe ao cheiro daqueles camarões.
A casa tinha dois andares e uma boa chácara no fundo. O salão de
visitas era no primeiro.
— Mobília antiga, um tanto mesclada; ao centro, grande lustre de cristal,
coberto de filó amarelo; três largas janelas de sacada, guarnecida de cortinas
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brancas, davam para a rua; do lado oposto, um enorme espelho de moldura dourada
e gasta inclinava-se pomposamente sobre um sofá de molas; em uma das paredes
laterais, um detestável retrato em óleo de Mme. Brizard, vinte anos mais moça,
olhava sorrindo para um velho piano, que lhe ficava fronteiro; por cima dos consolos
vasos bonitos de louça da Índia, cheios de areia até à boca.
Imediato à sala, com uma janela igual àquelas outras, havia uma gabinete,
comprido e muito estreito, onde Coqueiro tinha a sua biblioteca e a sua banca de
estudo. Via-se aí uma pasta cheia de papéis, um tinteiro e um depósito de fumo,
representando o busto de um barbadinho; ao fundo, uma conversadeira de palhinha,
encostada à parede, por debaixo de um pequeno caixilho de madeira com o retrato
de Victor Hugo em gravura.
Seguia-se o aposento de Mme. Brizard e mais do marido, onde também
dormia o menino César, que teria então doze anos; logo depois estava o quarto de
Amelinha e da tal viúva histérica, Leonie, a quem a família só tratava por “Nini”.
Vinha depois a grande sala de jantar, forrada de papel alegre; nas paredes
distanciavam-se pequenos cromos amarelados, representando marujos de chapéu-
de- palha, tomando genebra, e assuntos de conventos, frades muito nédios e —
vermelhos refestelados à mesa ou a brincarem com mulheres suspeitas. Um
guarda-louça expunha, por detrás das vidraças, os aparelhos de porcelana e os
cristais; defronte — um aparador cheio de garrafas, ao lado de outro em que
estavam os moringues.
Ainda havia um corredor, a despensa, a cozinha, uma escada que conduzia ‘a
chácara, outra ao segundo andar, e mais três alcovas para hóspedes, todas do
mesmo tamanho e numeradas.
A numeração dos quartos principiava aí nesses três par continuar em cima.
Em cima é que estava o grande recurso da casa, porque Mme. Brizard dividira todo
o segundo pavimento em oito cubículos iguais; ficando quatro de cada lado e o
corredor no centro. Os da frente davam janelas para a rua e os do fundo para a
chácara. As paredes divisórias eram de madeira e forradas de papel nacional.
* * *
João Coqueiro, quando saiu do Hotel dos Príncipes na manhã do almoço, ia
preocupado; o Simões, que caminhava à sua esquerda um pouco sacudido pelos
vinhos, em vão tentou, repetidas vezes, puxá-lo à palestra; o outro respondia apenas
por monossílabos e, na primeira esquina, despediu-se e correu logo para casa.
Ao chegar foi direito à mulher, dizendo-lhe em voz baixa, antes de mais nada:
— Olha cá, Loló...
E encaminhou-se para o quarto. Mme. Brizard largou o que tinha entre as
mãos e segui-o atentamente.
— Sabes? Disse ele, sem transição, assentando-se ao rebordo da cama. — É
preciso arranjarmos cômodo para um rapaz que há de vir por aí Domingo.
— Um rapaz! Mas tu sabes perfeitamente que os quartos acham-se todos
ocupados. Se tivesses prevenido... o n° 2 ainda ontem estava vazio...Mas quem é?
— Há de se arranjar, seja lá como for! Disse o Coqueiro.
— Mas quem é?...insistiu Mme. Brizard.
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— É um achado precioso! Ainda não há dois meses que chegou do Norte,
anda às apalpadelas! Estivemos a conversar por muito tempo: — é filho único e tem
a herdar uma fortuna! Ah! Não imaginas: só pela morte da avó, que é muito velha,
creio que a coisa vai para além de quatrocentos contos!...
Mme. Brizard escutava, sem despregar os olhos de um ponto, os pés
cruzados e com uma das mãos apoiando-se no espaldar da cama.
— Ora , continuou o outro gravemente. — Nós temos de pensar no futuro de
Amelinha... ela entrou já nos vinte e três!... se não abrirmos os olhos... adeus
casamento!
— Mas daí ... perguntou a mulher, fugindo a participar da confiança que o
marido revelava naquele plano.
— Daí — é que tenho cá um palpite! explicou ele. — Não conheces o
Amâncio!... A gente leva-o para onde quiser!... Um simplório , mas o que se pode
chamar um simplório!
Mme Brizard fez um gesto de dúvida.
— Afianço-te, volveu Coqueiro, – que, se o metermos em casa e se
conduzirmos o negócio com um certo jeito, não lhe dou três meses de solteiro!
* * *
Nessa mesma tarde Mme Brizard entendeu-se com a cunhada. Falou-lhe
sutilmente no “futuro”, disse-lhe que “uma menina pobre, fosse quanto fosse bonita,
só com muita habilidade e alguma esperteza poderia apanhar um marido rico”.
E tocando lhe intencionalmente no queixo:
— Anda lá , minha sonsa, que sabes disso tão bem como eu!...
Amélia riu, concentrou-se um instante e prometeu fazer o que estivesse no
seu alcance, para agradar ao tal sujeitinho.
Ardia, com efeito por achar marido, por se tornar dona de casa. A posição
subordinada de menina solteira não se compadecia com a sua idade e com as
desenvolturas do seu espírito. Graças ao meio em que se desenvolveu, sabia
perfeitamente o que era pão e o que era queijo; por conseguinte as precauções e as
reservas, que o irmão tomava para com ela, faziam-na sorrir.
Às vezes tinha vontade de acabar com isso. ”Que diabo significavam tais
cautelas?...Se a supunham uma toleirona, enganavam-se — ela era muito capaz de
os enfiar a todos pelo ouvido de uma agulha!”
— Agora, por exemplo, neste caso do tal Amâncio, que custava ao Coqueiro
explicar-se com ela francamente?...Por que razão, se ele precisava de seu auxílio,
não a procurou e não lhe disse às claras: “Fulana, Domingo vem aqui um rapaz,
nestas e nestas condições; vê se o cativas, porque ali está o noivo que te convém!”
Mas, não senhor! — meteu-se nas encolhas e entregou tudo nas mãos da mulher!
— Ora! Disse consigo a rapariga. — Isto até nem sei que me parece! Ou bem
que somos, ou bem que não somos!...Se Janjão queria alguma coisa de mim, era
falar com franqueza e deixar-se de recadinhos por detrás da cortina!
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E Amélia, quanto mais refletia no caso, tanto mais se revoltava contra a
reserva do irmão:
— Ele já a devia conhecer melhor! Pelo menos já devia saber que aquela que
ali estava era incapaz de cair em qualquer asneira; aquela não “dava ponto sem nó
”Outra que fosse, quanto mais — ela, que conhecia os homens, como quem
conhece a palma das próprias mãos! — Ela, que viu de perto, com os seus olhos de
virgem, toda a sorte de tipos! — ela, que lhes conhecia as manhas, que sabia das
lábias empregadas pelos velhacos para obter o que desejavam e o modo pelo qual
ser portam depois de servidos! Ela! tinha graça!
— Ela, que até ali dera as melhores provas de sagacidade e de esperteza; já
“convencendo” tal freguês remisso que não queria pagar, nem a mão de Deus
Padre, o aluguel do quarto pelo preço cobrado; já respondendo a tal credor, que, em
tal época, veio receber tal conta; já sofismando tal compromisso; já resolvendo tal
aperto, uma vez em que nem a própria Mme. Brizard sabia que fazer! E ainda a
suporiam criança?...ainda teriam medo de qualquer asneira sua parte?...Pois então
que se lembrassem da questão do Pereirinha!
O Pereirinha foi um dos primeiros hóspedes do Coqueiro. Rapaz bonito,
perfumado, muito prosa. Amélia representava para ele a mesma inocência em
pessoa, só lhe falava de olhos baixos, voz sumida, o ar todo candura e vexame.
Pereirinha jurava-lhe uma paixão sem bordas, fazia-lhe versos, tocava-lhe nos pés
por baixo da mesa, e, depois do jantar, quando os mais se alheavam no egoísmo da
saciedade, ele a fitava tristemente, pedindo, com os olhos fosse lá o que fosse. Pois
bem, ela a tudo isso correspondia com muito agrado, submetia-se resignadamente a
todos esses requisitos do namoro vulgar, mas...um belo dia em que o pedaço de
asno do Pereirinha quis ir adiante, Amélia aconselhou-o sorrindo a que primeiro a
fosse pedir em casamento ao irmão.
E, quando se convenceu de que o tipo não queria casar, disse-lhe
abertamente: “ Ora, meu amigo, outro ofício!”
E Coqueiro sabia de tudo isso, tão bem como a própria Amélia — para que
pois aqueles escrúpulos ridículos e amoladores?.
* * *
Só à noite,, à acostumada palestra em torno da mesa de jantar, lembraram-se
de que o dia seguinte era de grande gala.
— Ó diabo! considerou Coqueiro.— E eu que podia ter dito ao Amâncio para
vir amanhã! Escusávamos de esperar até domingo.
— Ora, senhores! Onde diabo tinha a cabeça!...
— Queres saber de uma coisa? Disse, tomando a mulher de parte. — Vai tu e
mais Amelinha arranjar o gabinete, que eu escrevo uma carta ao nosso homem;
pode ser que amanhã mesmo o tenhamos por cá. Anda, vai! O segredo das grandes
coisas está às vezes nesta pequenas deliberações!
E, enquanto Mme. Brizard aprontava com Amélia o gabinete, escreveu ele a
carta que Amâncio encontrou sobre a cômoda.
Não descansaram mais um instante. Desde pela manhã do dia seguinte
andava a casa em grande alvoroço. Foi preciso varrer, escovar, remover do gabinete
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os móveis que o atravancavam. Preparou-se uma bela caminha, coberta de lençóis
claros e cheirosos; estendeu-se um tapete no chão; colocou-se a um canto o
lavatório, encheu-se o jarro que ficou dentro da bacia, ao lado das toalha. E feito
isto, puseram-se todos à espera de Amâncio.
Ele, até aquelas horas, não havia declarado por escrito se iria ou não, logo -
era provável que fosse.
E com efeito, pela volta do meio-dia, um tílburi parou à porta, e Amâncio,
muito intrigado com a numeração das casa, entrou no corredor, a olhar para todos
os lados.
Um moleque, que ficara de alcatéia à espera dele, correu logo ao primeiro
andar, gritando que “o moço já estava aí”
— Cala a boca, diabo! Respondeu Mme. Brizard em voz abafada e discreta.
Coqueiro ergueu-se prontamente do lugar onde se achava e atirou-se com
espalhafato para o corredor, alegre e expansivo, como se recebera, depois de longa
ausência, um velho amigo da infância.
— Bravo! Exclamava, sacudindo os braços e correndo ao encontro de
Amâncio. — Bravo! Assim é que entendo os amigos! Não te perdoaria se faltasses!
E com muita festa ,a apressá-lo:
— Vem entrando para a sala de jantar! Estás em tua casa! Entra! Entra!
Amâncio deixava-se conduzir, em silêncio. Já não tinha o mesmo tipo mal
ajeitado com que se apresentara ao Campos; agora, um terno de casimira cinzenta,
comprado nessa mesma manhã a um alfaiate da Rua do Ouvidor. Dava-lhe ares
domingueiros de janotismo. Vinha de barba feita, as unhas limpas, os dentes
cintilantes, o cabelo dividido ao meio, formando sobre a testa duas grandes pastas
lustrosas e do feitio de uma borboleta de asas abertas. Os olhos não denunciavam
os incômodos da véspera, e de todo ele respirava um cheiro ativo de sândalo
— Estimei bem que me escrevesses... disse atravessando o corredor, ao lado
do Coqueiro. Não tinha para onde ir hoje. O Campos está de passeio com a família
lá para o tal Jardim Botânico..
— Pois eu estimei ainda mais que viesses. Entra!
Penetraram na sala de jantar. Estava tudo bem arrumado e muito limpo; não
se podia desejar melhor aspecto de felicidade caseira; em tudo - a mesma aparência
austera e calma de uma velha paz inquebrantável e honesta. Mme. Brizard,
assentada à cabeceira da mesa, parecia ler atentamente um livro que tinha aberto
defronte dos olhos; mais adiante trabalhava Amelinha em uma máquina de costura,
a cabeça vergada, os olhos baixos, numa expressão tranqüila de inocência.
Logo que Amâncio apareceu na varanda, Mme. Brizard desviou os olhos do
livro, deixou cair as lunetas do nariz e foi recebê-lo solicitamente; a outra limitou-se a
cumprimentá-lo com um modesto e gracioso movimento de cabeça.
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— O Dr. Amâncio de Vasconcelos! Gritou o Coqueiro, empurrando o colega
para junto das senhoras. E acrescentou, designando-as:— Minha mulher e minha
irmã...O amigo já sabe que são duas criadas que aqui tem às suas ordens!
Amâncio agradecia, desfazendo-se em reverências e apertando as mãos de
ambas, todo vergado para a frente, as faces incendiadas pela comoção daquela
primeira visita.
— Põe-te à vontade, filho! Disse-lhe o Coqueiro, em ar quase de censura.—
Olha uma cadeira. Senta-te!
E tirando-lhe a bengala e o chapéu : — Aqui estás em tua casa! Minha gente
não é de cerimônias!
Entretanto Mme. Brizard o tomava a si com perguntas: — Há quanto tempo
havia chegado; de que província era filho; se tinha saudades da família; se gostava
do Rio de Janeiro; que tal achava as fluminenses, e se já estava embeiçado por
alguma.
E vinham os risos exagerados e sem pretexto, de quando se deseja agradar
as visitas.
O provinciano respondia a tudo, inclinando a cabeça, procurando armar bem
a frase e fazendo esforços para se mostrar de boa educação. Ia-lhe já fugindo o
primitivo acanhamento e as palavras acudiam-lhe à ponta da língua, sonoras e
fáceis.
— Não tenho desgostado da Corte, dizia a brincar com a sua medalha da
corrente, - mas, confesso, esperava melhor...Lá de fora, sabe V. Ex.ª a coisa parece
outra! Fala-se tanto do Rio!...Pintam-no tão grande, tão bonito, que o pobre
provinciano, ao chegar aqui, logo sofre uma terrível decepção!...Pelo menos comigo
foi assim!
— O Sr. Vasconcelos já visitou os arrabaldes?...perguntou Mme. Brizard
muito delicadamente.
— Ainda não, minha senhora. Apenas fui a Botafogo, de passagem, para
entregar uma carta; mas tenciono percorrê-los todos, na primeira ocasião.
E Amâncio olhava a espaços para Amélia, que parecia muito preocupada com
o trabalho.
— Pois suspenda esse juízo a respeito do Rio, até que conheça os
arrabaldes, acrescentou a dona da casa. — Só por eles se poderá julgar do quanto
é bela e grandiosa esta cidade! Oh! A natureza do Brasil! Não há coisa nenhuma
que se lhe possa comparar!...
E fitando-o, depois de um gesto de entusiasmo: — Para um espírito
contemplativo e apaixonado, essa esplêndida natureza vale por todas as maravilhas
da Europa!
— V. Ex.ª parece gostar muito do Brasil...
— Habituei-me a isso com o meu segundo marido...ele era louco por este
país! Quantas vezes, depois que caiu doente e que os médicos lhe recomendaram
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que viajasse, quantas vezes não o aconselhei a que liquidasse aqui os seus
negócios e fôssemos viver para a Europa...Já não havia sombra de perseguição
política, (porque foi uma perseguição política que o atirou ao Brasil), não havia
razões por conseguinte para não voltar à pátria, não havia razões para se deixar
morrer aqui, como morreu!...Pois bem; sabe o senhor o que ele me respondia
sempre? Dizia-me: “Bebê”.(era assim que me tratava.) “Bebê, compreendes um
homem apaixonado por uma mulher, a ponto de não a poder deixar um só instante?
Compreendes um escravo, um cão?... assim sou eu por esta natureza. Não a posso
abandonar! — estou apaixonado, louco! ” Entretanto, — veja o Dr.! — Hipólito, aqui,
nunca foi devidamente apreciado e compreendido; nunca recebeu a mais
insignificante prova de gratidão do governo deste País, que ele idolatrava daquele
modo! Trabalhou muito para o Brasil, e de graça! Estão aí as empresas, os jornais,
as sociedade que fundou! Pois o governo, — nem uma palavra, nem uma
consideração, nem um “muito obrigado!” Se o pobre homem não tivesse posto de
parte algum dinheiro, ficava eu na miséria, perfeitamente na miséria!
Amâncio principiava a desconfiar que aquela francesa era nada menos que
um formidável “cacete”.
— Uma verdadeira paixão!...insistiu ela. — Uma paixão que o prendia aqui!
Porque, senhores, Hipólito, se quisesse, podia representar um invejável papel na
Europa! Tinha lá o seu lugar seguro, e...Foi interrompida pelo César que entrara de
carreira, mas estacara de repente ao dar com Amâncio. Coqueiro havia se afastado
para mandar servir alguma coisa.
— Este é o meu César, meu último filho, elucidou Mme. Brizard. E gritou logo:
— Vem cá, César! Vem falar com este moço!
César aproximou-se, vagarosamente, com o silêncio de quem observa um
estranho. — Lindo menino! Considerou Amâncio, puxando-o para junto de si.
— E não calcula o senhor que talento! afirmou a mãe, em voz baixa e grave,
estendendo a cabeça para o lado da visita :Uma coisa extraordinária!
— Já fez uma poesia! acrescentou João Coqueiro, que, nessa ocasião, junto
ao aparador, enchia copos de cerveja.
— Mas, coitado! prossegui Mme. Brizard — não se pode puxar por ele; sofre
muito do peito! O médico recomendou que não o fatigassem por ora; é preciso
esperar que ele se desenvolva mais um pouco.
— É pena! disse Amâncio com tristeza, afagando a cabeça de César.
— Nunca vi uma criatura para aprender as coisas com tanta facilidade! Nada
vê , nada ouve, que não decore logo! que não repita — tintim por tintim!
— Sim?... perguntou Amâncio , com um gesto cerimonioso de pasmo.
— E então para a música?...Aprendeu a escala em um dia! E já toca
variações de piano...tudo de ouvido!
— É admirável! Repetia Amâncio, para dizer alguma coisa. Deve estar muito
adiantado nos estudos!...— Ah! estaria decerto, se pudesse estudar, mas, coitado,
ainda não sabe ler!
— Ah! fez Amâncio, sem achar uma palavra.
— Mas, também, quando principiar...
— Irá longe! concluiu Amâncio, satisfeito por ter enfim uma frase. — Deve ir
muito longe!
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E afiançava que, pela fisionomia de César, logo se lhe adivinhava a
inteligência.
— Esta fonte não engana! Dizia a suspender-lhe o cabelo da testa. — E é
travesso?...
Mme. Brizard soltou uma exclamação: — Não lhe falassem nisso! Só ela
sabia o capetinha que ali estava!
César abaixou o rosto com uma risada, e Amâncio declarou que “a travessura
era própria daquela idade!”
E, porque o moleque se aproximava com uma bandeja na mão, cheia de
copos, ergueu-se para oferecer um a Mme. Brizard e outro a Amélia.
— Muito agradecida, disse esta, sorrindo. — Sou um pouco nervosa; a
cerveja faz-me mal.
— Ah! V.Ex.ª é nervosa?
— Um pouco. E quem neste mundo não sofre mais ou menos dos nervos?...
E riu de todo, mostrando a sua dentadura provocadora.
Amâncio considerou intimamente que a achava deliciosa. – Um mimo!
E, de fato, Amélia nesse dia estava encantadora. Vestia fustão branco,
sarapintado de pequeninas flores cor-de-rosa. O cabelo , denso e castanho, prendia-
se-lhe no toutiço por um laço de seda azul, formando um grande molho flutuante,
que lhe caía elegantemente sobre as costas O vestido curto, muito cosido ao corpo,
enluvava-lhe as formas, dando-lhe um ar esperto de menina que volta do colégio a
passar férias com a família.
Era muito bem feita de quadris e de ombros. Espartilhada, como estava
naquele momento, a voltas enérgica da cintura e a suave protuberância dos seios
produziam nos sentidos de quem a contemplava de perto uma deliciosa impressão
artística.
Sentia-se-lhe dentro das mangas do vestido a trêmula carnadura dos braços;
e os pulsos apareciam nus muito brancos, chamalotados de veiazinhas sutis, que se
prolongavam serpeando. Tinha as mãos finas e bem tratadas, os dedos longos e
roliços, a palma cor-de-rosa e s a unhas curvas como um bico de papagaio.
Sem ser verdadeiramente bonita de rosto, era muito simpática e graciosa. Tez
macia de uma palidez fresca de camélia; olhos escuros, um pouco preguiçosos, bem
guarnecidos e penetrantes; nariz curto, um nadinha arrebitado, beiços polpudos e
viçosos, à maneira de uma fruta que provoca o apetite e dá vontade de morder.
Usava o cabelo cofiado em franjas sobre a testa, e, quando queria ver ao longe,
tinha de costume apertar as pálpebras e abrir ligeiramente a boca.
Amâncio, bebendo aos goles distraídos a sua cerveja nacional, via e sentia
tudo isso, e, sem perceber, deixava-se tomar das graças de Amélia. Já lhe preava a
carne o mordente calor daquele corpo; já o invadiam o perfume sombroso daquele
cabelo e a luz embriagadora daqueles olhos; já o enleava e cingia a doce
sensibilidade elástica daquela voz , quebrada, curva, cheia de ondulações, como a
cauda crespa de uma cobra.
E, enquanto palavreava abstraído com Mme. Brizard e com o Coqueiro,
percebia que alguma coisa se apoderava dele, que alguma coisa lhe penetrava
familiarmente pelos sentidos e aí se derramava e distendia, à semelhança de um
polvo que alonga sensualmente os seus langorosos tentáculos. E, sempre dominado
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pelos encantos da rapariga, alheava-se de tudo o que não fosse ela; queria ouvir o
que lhe diziam os outros, prestar-lhes atenção, mas o pensamento libertava-se à
força e corria a lançar-se aos pés de Amélia, procurando enroscar-se por ela, à
feição do tênue vapor do incenso, quando vai subindo e espiralando, abraçado a
uma coluna de mármore.
Coqueiro fazia não dar por isso e, ao topar com os olhos da mulher, entre eles
corria um raio de satisfação, mais ligeiro que um telegrama.
Amâncio, entretanto, quase nada conversou com Amélia; apenas trocaram
palavras frias de assuntos sem interesse. Mas seus olhares também se encontravam
no ar, e logo se entrelaçavam, prendiam-se e confundiam-se no calor do mesmo
desejo.
Naquela mulher havia incontestavelmente o que quer que fosse, difícil de
determinar, que, não obstante, se entranhava pela gente e, uma vez dentro, crescia
e alastrava. O seu modo de falar, as reticências de seus sorrisos, o langor pudico e
ao mesmo tempo voluptuoso de seus olhos que espiavam, inquietos, através do
franjado das pestanas; a doçura dos seus movimentos ofídios e preguiçosos, o
cheiro de seu corpo; tudo que vinha dela zumbia em torno dos sentidos, como uma
revoada das cantáridas.
Os instintos mal-educados de Amâncio latejavam.
Vinham-lhe preocupações. Começava a imaginar como seria a sua existência
naquela casa, se ele, porventura, resolvesse a mudança; calculava situações:
encont4ros inesperados com Amélia nos corredores desertos; manhãs frias de
chuva, em que fosse preciso gazear as aulas e deixar-se ficar ali a “prosar” naquela
varanda, ao lado dela, a encher o tempo, a dizer “tolices”.
— Que tal seria tudo isso?...Seria tão bom que valeria a pena suportar as
caceteações de Mme. Brizard e sofrer a convivência do tal Coqueiro?...Seria tão
bom que mereceria a renúncia de sua liberdade, tão sacrificada ali quanto em casa
do Campos? Não! não valia a pena!... Mas... Amélia?... quem sabe lá o que daria de
si aquele ladrãozinho?...
E, pensando deste modo, ergueu-se disposto a acompanhar Coqueiro, que
insistia em lhe mostrar a casa.
Principiaram pela chácara.
— Olha. Isto aqui é como vês!... dizia o proprietário. – Boa sombra,
caramanchões de maracujá, flores, sossego!...Bom lugar para estudo! E vai até o
fundo. Vem ver!
Amâncio obedecia calado.
— Parece que se está na roça!... acrescentou o outro. — De manhã é um
chilrear de passarinhos, que até aborrece! Quando aqui não houver fresco, não o
encontrarás em parte alguma! Cá está o terraço — Sobe!
Subiram três degraus de pedra e cal.
— Vês?!... exclamou Coqueiro, parando em meio do pequeno quadrado de
velhos tijolos. E, depois, com as pernas abertas e um braço estendido:
— Creio que não se pode desejar melhor!
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Desceram, em seguida, para visitar o banheiro, o tanque, o repuxo e outras
comodidades que havia no quintal, e a cada uma dessas coisas – novas
exclamações e novos elogios.
Subiram outra vez ao primeiro andar, pela cozinha. Um preto, de avental e
boné de linho branco, à moda dos cozinheiros franceses, trabalhava ao fogão.
Coqueiro exigiu que o amigo olhasse para aquele asseio; atentasse para a nitidez
das caçarolas de metal areado , para a limpeza das panelas, para a fartura de água
na pia.
— A Madame, dizia ele a rir-se, com ar interessado de que deseja convencer,
— a Madame traz isto num brinco! Pode-se comer no chão!
E continuaram a revista da casa. Amâncio, porém, ia distraído, tinha a cabeça
cheia de Amélia.
— Que dentes! Pensavas, — e que cintura!, que olhos!...
— É excelente! Segredou-lhe o Coqueiro, pondo mistério na voz. – Um
serviço admirável!
— Hein?! Exclamou o provinciano, voltando-se rapidamente para o colega.
— Cozinheiros daquela ordem encontram-se poucos no Rio! Respondeu este
ainda em segredo.
— Ah! o cozinheiro...disse Amâncio. — Divino! Acrescentou o outro.
E mudando logo o tom :
— Cá está a despensa. Compramos tudo em porção, do mais caro, mas
também podes ver a fazenda! Tudo de primeira! Ah! Eu cá sou assim, — um
monstro! Meus hóspedes não se podem queixar!
E destapava vivamente a lata das farinhas e dos feijões, mostrava o vinho
engarrafado em casa, as mantas de carne-seca ressumbrando sal , o arroz ,o café, e
o resto.
Tudo de primeira! — repetia com entonações mercantis, a passar ao colega
um punhado de feijões. — Tudo de primeira!
Ë exato, resmungou Amâncio, sem ver.
Isto agora são quartos de hóspedes, enunciou Coqueiro seguindo adiante. —
Aqui embaixo só temos três. Neste, disse mostrando o n° 1, está o Dr. Tavares, um
advogado de mão-cheia; caráter muito sério!
No segundo declarou que morava o Fontes:
— Não era mau sujeito, coitado! Fora infeliz nos negócios: quebrara havia dos
anos e ainda não tinha conseguido levantar a cabeça.
E abafando a voz:
— Dizem que ficou arranjado...não sei!...Paga pontualmente as suas
despesas, mas é um “unha-de–fome”, regateia muito, chora — vintém por vintém-
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o dinheiro que lhe sai das mãos! Está sempre com uma cara muito agoniada,
sempre se queixando. E agora, vão ver:
furão como ele só; especula com tudo; tem o quarto cheio de fazendas, fitas e
tetéias de armarinho; vende essas miudezas pelas casas particulares, e dizem que
faz negócio. A mulher, uma francesa coxa, é empregada na Notre Dame e só vem a
casa para dormir.
E, indicando o n° 3 :
— Aqui é o Piloto.
— Que Piloto? Perguntou logo Amâncio.
O Piloto, homem! Aquele repórter da Gazeta!
Amâncio não conhecia.
— Ora quem não conhece o Piloto! Um rapaz tão popular. Um que anda
sempre ligeiro, olhando para os lados, como um calango. Não conheces?!
Amâncio disse que sabia quem era, - para acabar com aquilo.
— Bom hospede! Acrescentou o outro. — Também só aparece à noite; não
incomoda pessoa alguma.
— Bem.... disse Amâncio com bocejo. São horas de ir-me chegando.
— Que?! Bradou Coqueiro. —Tu jantas conosco! Minha gente conta contigo...
não te dispensamos! E, demais, quero mostrar-te o resto da casa. Vem cá ao
segundo andar.
O provinciano lembrou timidamente que isso podia ficar para outra ocasião;
mas o Coqueiro respondeu puxando-o pelo braço na direção da escada:
— Venha para cá! Não seja preguiçoso!
Depois de subir, acharam-se em um corredor estreito e oprimido pelo teto. Ao
fundo uma janela de grades verdes coava tristemente a luz que vinha de fora. Lia-
se nas portas em algarismos azuis, pintados sobre um pequeno círculo branco, os
números de 4 e 11.
— Aquilo tinha aspectos de casa de saúde... pensou Amâncio, com tédio.—
Não devia ser muito agradável morar ali. Todos os quartos, entretanto, estavam
tomados.
Coqueiro principiou logo, em voz soturna, a denunciar os competentes
moradores: — N°4 — O Campelo, um esquisitão, porém bom sujeito, do
comércio; não comia na casa senão aos domingos e isso mesmo só de manhã. N.°
5 — o Paula Mendes e a mulher; casal de artistas, davam lições e concertos de
piano e rabeca; muito conhecidos na Corte. N.° 6 — Um guarda-livros; bom moço,
tinha o quarto sempre asseadinho e à noite, quando voltava do trabalho, estudava
clarinete. O N.° 7 era de um pobre rapaz português; doente: vivia embrulhado em
uma manta de lã, por cima do sobretudo, e saía todas as manhãs a passeio para as
bandas da Tijuca.
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A porta do N.° 8 estava aberta e Amâncio viu de relance, a cauda de uma saia
que fugia para o interior do quarto. E logo uma voz aflautada, de mulher, gritou:
— Cora! Fecha essa porta.
— É uma tal Lúcia Pereira... segredou o Coqueiro — mora ai com o marido,
um tipo!
Estavam na casa há muito pouco tempo. Coqueiro não podia dizer ainda que
tais seriam, porque só formava o seu juízo depois de paga a primeira conta.
O N° 9 era do Melinho — uma pérola! Empregado na Caixa de Amortização;
não comia em casa; mas, as vezes, trazia frutas cristalizadas para Mme. Brizard e
Amelinha. Belo moço!
Coqueiro não se lembrava como era ao certo o nome do sujeito que ocupava
o N° 10 : “Lamentosa ou Latembrosa, uma coisa por ai assim!” ele tinha o nome
escrito lá embaixo. — Mas que homem fino! Delicadíssimo! Um verdadeiro
gentleman! E tocava violão com muito talento.
O n.° 11, que ficava justamente encostado à janela do corredor, pertencia a
um excelente médico, o Dr. Correia; estava, porém ,quase sempre fechado, visto
que o doutor só se utilizava do quarto para certos trabalhos e certos estudos, que,
por causa das crianças, não podia fazer em casa da família. Vinha às vezes com
freqüência e às vezes não aparecia durante um mês inteiro; mas pagava sempre e
bem.
Esse quarto, como o outro que ficava na extremidade oposta do corredor,
tinha saída para a chácara.
Amâncio propôs ao Coqueiro que descessem por aí.
— De sorte que, foi-lhe dizendo este pela escada, — à mesa só temos
diariamente os seguintes: Dr. Tavares, o Paula Mendes e a mulher, a Lúcia e o
marido, e o tal sujeito de nome esquisito. Só! Aos domingos, então, fica-se em
completa liberdade, porque jantam fora quase todos. — Vês, pois, que em parte
alguma estarias melhor do que aqui!...
— Mas, filho, observou Amâncio — teus quartos estão todos ocupados!...
O outro respondeu com um risinho. E, depois de ligeiro silêncio, passando-lhe
um braço nas costas:
— Tu, aqui, não quero que sejas um hóspede, mas um amigo, um colega, um
filho da família, uma espécie de meu irmão, compreendes? São dessas coisas que
se não explicam — questão de simpatia! Conhecemo-nos de ontem e é como se
tivéssemos sido criados juntos; em mim podes contar com um amigo para a vida e
para a morte!
E, estacando defronte de Amâncio, olhou para ele muito sério, dizendo em
tom grave:
— E acredita que isto em mim é raro! Pergunta aí aos meus colegas se sou
de muitas amizades; todos eles te dirão que ninguém há mais concentrado e metido
consigo. Mas, quando simpatizo deveras com uma pessoa é assim, como vês,
trago-a para o seio de minha família e trato-a como irmão!
E, descaindo no tom primitivo da conversa:
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— Se ficares aqui, como espero, verás com o tempo as sinceridade do que te
estou dizendo! É que gostei de ti, acabou-se.
Amâncio jurava corresponder àquela amizade, mas, no íntimo, ria-se do
Coqueiro, que agora lhe parecia tolo, e cujo casamento com a francesa velhusca o
tornava, a seus olhos, cada vez mais ridículo.
Ao passarem pelo salão concordaram que aquilo era um excelente lugar para
uma “boa prosa”.
Amâncio teria tudo isso às suas ordens; podia dispor!...acrescentou o outro.
E, abrindo cuidadosamente a porta do gabinete que ficava ao lado, disse, com a
entonação de um guarda de museu que vai mostra uma raridade:
— Eis o ninho que te destino! É o lugar mais catita de toda a casa: isto,
porém, não quer dizer que os outros cômodos não estejam à tua disposição!...Se,
mais tarde, te apetecer trocar de quarto...
E, logo que entraram, foi-lhe mostrando a caminha cheirosa, o pequeno
lavatório de pedra-mármore; fê-lo notar o bom estado da cômoda, a elegância do
velador, o artístico das escarradeiras.
— E, ali, o grande mestre! Clamou com ênfase, apontando para a gravura da
parede.
— “Victor Hugo”, leu Amâncio debaixo do retrato — Bom poeta! Acrescentou.
— Creio que não ficarás mal , hein?...disse o outro.
— Ah! não! respondeu o provinciano, assentado-se fatigado em uma cadeira.
E o preço?
— Ah! Isso depois ...minha mulher é quem sabe dessas coisas, mas não
havemos de brigar!...
E riu.
— Ficas aqui muito bem! Serás tratado como um filho; quando precisares de
qualquer cuidado, numa moléstia, numa dor de cabeça, hás de ver que te não faltará
nada! Além disso — podes entrar e sair à vontade, livremente, às horas que
entenderes; se gostas de teu chazinho à noite, com torradas, hás de encontrá-lo,
abafado, à tua espera sobre aquela mesa. De manhã, se quiseres o café na cama,
também terás o teu café e quando estiveres aborrecido do quarto, tens o salão, tens
a sala de jantar, a chácara, o jardim; finalmente tens tudo às tuas ordens!
— Agora, quanto a certas visitas...concluiu João Coqueiro, fazendo-se muito
sisudo e abaixando a voz, — isso, filho, tem paciência... Lá fora o que quiseres, mas
daquela porta para dentro...
— Decerto! Apressou-se a declarar o outro, com escrúpulo.
— Sim! Sabes que isto é uma casa de família e, para a boa moral...
— Mas certamente, certamente! Repetiu Amâncio.
E acendeu um cigarro.
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CAPÍTULO VII
Dos hóspedes de cama e mesa só três compareceram ao jantar, — Lúcia, o
marido e o tal gentleman de nome difícil. Paula Mendes estava de passeio com a
mulher em casa de um artista.
Amâncio foi apresentado àqueles três pelo João Coqueiro. Trocaram-se
bonitas palavras de etiqueta; fizeram-se os mentirosos protestos da cortesia e cada
um tomou à mesa o seu lugar competente. Mme. Brizard, como era de costume,
ocupou a cabeceira, defronte de uma pilha enorme de pratos fundos, os quais ia
enchendo de sopa , um a um, paulatinamente, depois de rodar a concha três vezes
no fundo da terrina; e, à proporção que os enchia, passava-os ao marido que nesse
dia lhe ficara à esquerda, visto que a direita, seu lugar favorito, cedera-a ele ao novo
hóspede.
Na ocasião de conferir-lhe semelhante honra, bateu-lhe carinhosamente no
ombro e disse-lhe baixinho: — Ficas bem! Ficas junto a Loló!
Mme. Brizard, que ouvira estas palavras, acrescentou sorrindo:
— O Sr. Vasconcelos preferia talvez ficar entre as moças...
— Ó minha senhora!... balbuciou Amâncio, vergando-se para o lado da
francesa. — Estou muito bem aqui; não podia desejar melhor vizinhança!...
E voltou o olhar a sua direita, onde Lúcia acabava de tomar assento.
Examinou-a logo, à primeira vista, sem o dar a conhecer, e a impressão
recebida não foi das melhores. Achou-a esquisita, um tanto feia, um ar pretensioso,
de doutora.
Era de estatura regular, tinha as costas arqueadas e os ombros levemente
contraídos, braços moles, cintura pouco abaixo dos seios, desenhando muito a
barriga. Quando andava, principalmente em ocasiões de cerimônia, sacudia o corpo
na cadência dos passos e bamboleava a cabeça com um movimento de afetada
languidez. Muito pálida, olhos grandes e bonitos, repuxados para os cantos
exteriores, em um feitio acentuado de folhas de roseira; lábios descorados e cheios
mas graciosos. Nunca se despregava das lunetas, e a forte miopia dava-lhe aos
olhos uma expressão úmida de choro.
Em seguida via-se o marido. Um homenzinho gordo, de barba por fazer e
pequeno bigode castanho, em parte lourejado pelo fumo. A fronte abria-lhe para o
crânio em dois semicírculos constituídos na ausência do cabelo. Fisionomia
inalterável, de uma tranqüilidade irracional e covarde. Fechava de vez em quando os
olhos, por um sestro antigo, e então parecia dormir profundamente.
Percebia-se que ele e a mulher estiveram, antes de vir para a mesa,
empenhados em alguma discussão desagradável, porque, mal se furtaram às
apresentações e aos cumprimentos da chegada, Lúcia pôs-se a falar-lhe em voz
baixa, com azedume disfarçado. Ele, porém, não dava resposta, e, quando a mulher
insistia, cerrava os olhos como se fugira para dentro de si mesmo.
César, ao lado, acompanhava-lhe os movimentos com persistência tão
grosseira que a outro qualquer constrangeria.
Defronte perfilava-se o gentleman. Teso, o pescoço imobilizado no rigor de
uns grandes colarinhos; as sobrancelhas franzidas diplomaticamente; o olhar grave,
de que medita coisa de alta importâncias; a boca engolida por um farto bigode
grisalho; o queixo escanhoado, formando largas pregas, sempre que Lambertosa
voltava o rosto com amabilidade para responder ao que lhe diziam da direita ou da
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esquerda. Bonita figura, bem apessoado, fronte espaçosa, cabelo branco , puxado
de trás sobre as orelhas.
Entre ele e o Coqueiro, Amelinha, cheia de piscos de olhos e de gestozinhos
passarinheiros, recebia do irmão os pratos de sopa e passava-os adiante.
— E Nini?...perguntou Mme. Brizard com interesse.
E, como Amâncio a fitasse, quando lhe ouviu aquela pergunta, ela explicou
que Nini era uma filha sua, “muito doente, coitadinha...!” E contou logo toda a
história da pobre menina — a viuvez, a dolorosa morte do filhinho “que lhe havia
ficado como extrema consolação”, e, afinal, falou daquela “maldita moléstia que
sobreviera a tantas calamidades e que parecia disposta a não abandonar mais a
infeliz”.
— Não dá idéia do que foi! Disse após um suspiro. – Era uma beleza e tinha
o gênio mais alegre deste mundo! Ah! Está muito mudada! Muito mudada!
Impressiona-se com tudo, tem exigências pueris, caprichos, coisas de uma
verdadeira criança! E ninguém a contraria, que aparecem as crises, os ataques!
Uma campanha! — Ainda outro dia, porque não lhe deixaram ver um desenho que
meu marido achou na chácara...
E, voltando-se rapidamente para Amâncio:
— O Sr. Vasconcelos não se serve de vinho?...— Um desenho indecente;
pois ficou prostrada e eu tive sérios receios de a ver perdida para sempre! Desde
então está nervosa que se lhe não pode dizer nada! É preciso não insistir com ela
em coisa alguma: se a chamam duas vezes para a mesa, começa a chorar e não
vem; se a querem constranger a pôr um vestido melhor, um penteado mais decente,
são gritos, soluços, repelões, e agarra-se à cama, que não há meio de tirá-la! Eu já
não sei que faça!...
— Por que, Madame, não experimenta os banhos de mar? Perguntou o
gentleman, limpando energicamente o seu grosso bigode no guardanapo que atara
ao pescoço.
— Qual! Não produzem efeito nenhum! Ela já tomou quarenta seguidos. Acho
até que ficou pior.
É estranho!... volveu o gentleman, franzindo o sobrolho e passando a Lúcia a
corbelha de farinha. — É estranho porque, segundo Durand Fardel, não há
enfermidades nervosas que resistam a um bom regime de banhos marítimos; mas
aconselha também o uso interno de água salada, e prova que a mineralização desta
é muito mais rica em cloreto de sódio do que a das águas minerais da fonte.
— Não sei Sr. Lamber...
Mme. Brizard não se lembrava do nome dele.
— Lambertosa, Mme., Lambertosa!
Não sei, Sr. Lambertosa, não sei...O caso é Nini não consegue melhorar.
—Temos experimentado de tudo, tudo!
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E, mudando de tom, bateu no braço de Amâncio, segredando-lhe com um
sorriso:
— Não se esqueça de provar daqueles camarões. São especiais!...E
descreveu uma olhadela entre ele e Amélia.
— O casamento talvez a restabelecesse!...observou o provinciano, servindo-
se dos afamados camarões. — Dizem que há muitos exemplos de ...
Amélia afetou um sobressaltozinho, e olhou para ele, procurando disfarçar o
mau efeito de sua proposição, citou Le Bom.
— O doutor acha então que o histerismo se pode curar com o
casamento?...perguntou Lúcia da direita.
— Parece, minha senhora, a dar crédito aos fisiologistas...
A sonoridade desta palavra consolou-o.
— E é exato...confirmou o Pereira, marido de Lúcia.
— Tu mesmo entendes disto!...respondeu-lhe a mulher desdenhosamente.
O Pereira fechou os olhos e não deu mais palavra.
Lambertosa havia já limpado o bigode para emitir a sua conceituosa opinião,
mas teve de renunciar a essa idéia, porque Nini acabava de assomar à porta do
quarto, arrastando-se dificilmente ao peso de suas inchações.
Vestia uma bata de lã parda, enxovalhada e se cinta. A gordura balofa e
anêmica tirava-lhe o feitio do corpo; as suas costas formavam-se de uma só curva e
os quadris pareciam duas grandes almofadas.
Contudo ainda se lhe reconhecia a mocidade e ainda se alcançavam os
vestígios desbotados dos encantos, que a moléstia foi pouco a pouco devastando
Só de pois de assentada, Nini desmanchou o ar aflito que fazia, pelo esforço
de andar.
— Ah! respirou, quase sem fôlego. E coreu os olhos em torno de si,
abstratamente, como se despertasse de um desmaio. Ao dar com Amâncio, ficou a
encará-lo com insistência de criança; depois, contraiu os músculos do rosto e
espalhou a vista, vagarosamente, a tomar longos sorvos de ar.
Um silêncio formou-se em torno de sua chegada; percebia-se que pensavam
nela.
— Queres sopa, Nini? Perguntou afinal Mme. Brizard, com ternura. E, como
as filha fizesse um movimento afirmativo de cabeça, passou-lhe um prato cheio.
Nini sorveu-o todo, a colheradas seguidas, e pediu mais
A mãe aconselhou-a a que comesse antes outra qualquer coisa.
Nini largou a colher no prato, sem dizer palavra, e pôs-se de novo a encarar
para Amâncio, com um olhar tão dolorido e tão persistente, que o rapaz ficou
impressionado.
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E não lhe tirou mais a vista de cima. O estudante remexia-se na cadeira,
importunado por aqueles dois olhos grandes, rasos, de um azul duvidoso, que se
fixavam sobre ele, imóveis e esquecidos.
Disfarçava, procurava não dar por isso, nada, porém, conseguia. Os dois
importunos lá estavam, sempre assentados sobre ele, a lhe queimar a paciência,
como se fossem dois vidros de aumento colocados contra o sol.
— Que embirrância! Dizia consigo o provinciano.
Entretanto o jantar esquentava. A conversa explodia já de vários pontos da
mesa com mais freqüência; ouviam-se tinir os garfos de encontro à louça, e os
copos esvaziavam-se e de novo se enchiam, sem ninguém dar por isso.
Mme. Brizard não se descuidava um segundo de Amâncio. Apontava-lhe os
pratos preferíveis, puxava as garrafas para junto dele, sempre a falar da salubridade
da casa, do bem que se ficava ali, da simpatia que toda a família parecia lhe dedicar,
desde o primeiro momento em que o viu.
— Pois se até a pobre Nini não se fartava de olhar para o Sr. Vasconcelos!...
Amâncio sorriu.
O Lambertosa atirou-lhe diretamente a palavra sobre o Maranhão. Tratou com
respeito dessa “judiciosa província, a qual merecia de justiça o honroso título que lhe
fora conferido de — Atenas Brasileira!” E, depois de citar nomes ilustres, dispôs-se
a contar as façanhas de um tal Maranhense, célebre pelas suas espertezas.
— Perdão! Acudiu Amâncio.— Esse cavalheiro de indústria, além do nome,
nada tem de comum com a minha província!
— Ah! fez o gentleman — Pois eu o julgava filho de lá...
— Felizmente não é, respondeu o outro, ferido no seu bairrismo.
— E ainda que fosse!...observou Lúcia — que mal havia nisso?
— Certamente , confirmou Coqueiro a encher o prato.
— Pois meu amigo, volveu o Lambertosa, dirigindo-se a Amâncio, — eu o
felicito! E levou o copo à boca. Eu o felicito, porque, francamente, considero um
padrão de glória ver a luz do dia em uma província tão...
Faltou-lhe o termo.
— Tão, tão gigantesca! Estude, caminhe, caminhe, que tem uma grande
estrada aberta defronte de si!
E engrossando a voz:
— Assiste-lhe uma responsabilidade enorme! É caminhar e caminhar firme!
Ah! terminou ele com um gesto lamentoso. — Quem me dera a sua idade, meu
amigo! Quem me dera a sua idade!
Continuou a falar sobre o Maranhão. Lúcia quis informações; Amâncio voltou-
se logo para ela, solicitamente, e na febre de falar de sua terra, começou, sem
reparar que mentia, a pintar coisas extraordinárias. O Maranhão segundo ele dizia,
era um viveiro de talentos; os grêmios e os jornais literários brotavam ali de toda a
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parte; cada indivíduo representava um gramático de pulso; as senhoras
ilustradíssimas; os homens — poços de instrução; as crianças saíam da escola
bons poetas e prosadores.
Coqueiro afetava acompanhá-lo naquele entusiasmo, mas ria-se por dentro.
O outro lhe parecia cada vez mais tolo.
Lúcia perguntou se Amâncio tinha algumas produções dos seus
comprovincianos, que lhe pudesse emprestar. Ele prometeu que traria as que
tivesse em casa. E recomendou Entre o Céu e a Terra de Flávio Reymar.
— Há em sua província um poeta que eu adoro, disse ela, cortando em
pedacinhos os uma fatia de carne assada que tinha no prato.
O Franco de Sá perguntou o maranhense.
— Não, refiro-me ao Dias Carneiro.
Amâncio sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. Nunca em sua vidas
ouvira falar de semelhante nome.
— É, disse entretanto, — É um grande poeta!
Enorme! Corrigiu Lúcia, levando à boca uma garfada. — Enorme! Conhece
aquela poesia dele, o…
Novo calafrio, desta vez, porém , acompanhado de suores. E não lhe acudia
um título para apresentar, um título qualquer, ainda que não fosse verdadeiro.—
Ora, como é mesmo? Insistia a senhora. – Tenho o nome debaixo da língua!
E, voltando-se com superioridade para o marido: — Como se chama aquela
poesia, que está no álbum de capa escura, escrita a tinta azul?
O Pereira abriu os olhos e disse lentamente:
— O Cântico do Calvário.
És um idiota!respondeu a mulher.
A resposta do Pereira provocou hilaridade. Amâncio consultou logo a opinião
de Lúcia sobre o Varela. Mme. Brizard falou então dos versos do marido, prometeu
que os mostraria depois do jantar.
Amâncio soltou uma exclamação de espanto:
— Ignorava que o Coqueiro também fizesse versos!
— Faço-os, confirmou este — mas só para mim, publiquei já alguns com
pseudônimo. Receio a convivência dos literatos que formigam por aí, esfarrapados e
bêbados. Não me quero misturar com eles! Faço versos, é verdade, mas tenho a
presunção de escrevê-los como devem ser e não acumulando extravagâncias e
disparates para armar ao efeito! Faço versos, mas não tomo parte nessas
panelinhas de elogio mútuo e nesses grupos de imbecis escrevinhadores!
E, com muito azedume, com durezas de inveja, principiou a dizer mal dos
rapazes que no Rio de Janeiro se tornavam mais conhecidos pelas letras.
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— Pedantes! Resmungava. — Súcia de idiotas! Hoje, todos querem ser
escritores; sujeitinhos que não sabem ligar duas idéias, arrogam-se, da noite para o
dia, os foros de literatos! Uma cambada!
E ria-se com um gesto amargo de desgosto.
Lúcia e Lambertosa defendiam timidamente alguns nomes.— Ora o quê,
senhores! Replicava Coqueiro furioso e pálido. — Qual é aí o tipo da tal “geração
moderna” que se possa aproveitar?...Não me apontam nenhum! São todos umas
bestas!
— Coqueiro!...repreendeu Mme. Brizard em voz baixa.
— São todos umas nulidades, uns zeros!...
Era a primeira vez que Amâncio via o colega sair de si. Não o supunha capaz
daquelas explosões.
Mme. Brizard compreendeu o pensamento do provinciano e apressou-se a
dizer-lhe ao ouvido:
— Também é só o que o faz sair do sério...a literatura!
Amélia indagou se Amâncio também, escrevia. Ele disse que sim, a sorrir, a
desculpar-se com os outros.
— Quem neste mundo não rabiscava mais ou menos?...
Ela mostrou logo empenho em lhe conhecer as produções.
— Não vale a pena! Disse o moço. — Não vale a pena!
— Ai, ai! suspirou Nini, que parecia adormecida com olhos abertos.
Mme. Brizard que já conhecia o alcance daquele suspiro, perguntou à filha o
que desejava. Nini apontou melancolicamente para uma prato, onde fatias
transparentes de abacaxi nadavam em calda de vinho.
— Não senhora, volveu a mãe, — isso não pode ser, faz-te mal.
Nini suspirou de novo e ficou a olhar para Amâncio, resignadamente, o
semblante muito pesaroso, a cabeça vergada para o lado.
— Serve-te antes de doce, aconselhou Mme. Brizard.
O Lambertosa apressou-se a passar a Nini a compoteira.
— Pouco, Sr. Lambertosa, dê-lhe pouco!
Veio o café. César levantou-se da mesa e foi brincar a um canto da sala.
Mme. Brizard queria saber se estavam todos satisfeitos; ela, quanto a si, — jantara
perfeitamente, confessava.
E, com um aspecto regalado, deixava-se ficar prostrada na cadeira,
entorpecida no bem-estar do seu estômago.
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O copeiro, um preto alto de pernas compridas, levantou a toalha, acendeu o
gás e trouxe curaçau e conhaque. Amélia bebericou o seu cálice de licor e levantou-
se logo para ir à janela. Afastaram-se as cadeiras da mesa, e a conversa reapareceu
com mais força.
O Lambertosa, Mme. Brizard e Coqueiro formaram grupo, a discutir o preço
excessivo e a falsificação dos gêneros alimentícios.. O gentleman reclamava uma
junta de higiene, rigorosa, que mandasse lançar à praia todos os gêneros
deteriorados que encontrasse. “Era assim que se fazia na Europa!”
Lúcia, do outro lado da mesa, continuava a falar com Amâncio sobre
literatura. Já estavam em Theóphile Gautier, Theodore de Banville e Baudelaire,
depois de haverem tocado de passagem em alguns escritores de Portugal. Agora
sentia-se mais eloqüente o provinciano; acudiam-lhe opiniões e juízos perfeitamente
armados; percebia que as suas palavras causavam bom efeito; ia bem.
Pereira e Nini conservavam-se um defronte do outro, igualmente
concentrados e mudos; ela, porém com os olhos muitos abertos sobre Amâncio. O
outro, afinal ergueu-se, atravessou, lentamente, como um sonâmbulo, a sala de
jantar, e foi e foi estender-se em uma preguiçosa que ficava junto à janela
Vibrou então o piano no salão de visitas.
— É melhor irmos todos para lá, alvitrou a dona da casa.
O marido e o Lambertosa aceitaram logo a idéia, e Amâncio, sem interromper
a sua conversa com a mulher do Pereira, a esta deu o braço e segui o exemplo
daqueles.
Lúcia caminhava toda reclinada sobre ele, falando-lhe em tom mui vagaroso,
com acentuações finas de boa educação.
A sala iluminada tinha um caráter imponente. O gentleman encaminhou a
conversa geral para a música, aconselhou a Amâncio que solicitasse da Sr.ª D.
Lúcia um pouco do Guarani, que ela tocava admiravelmente.
Lúcia queixou-se de que ultimamente sofria de certa fraqueza nos dedos e
não tocava com a mesma expressão , mas sempre foi pelo braço de Lambertosa
tomar ao piano o lugar que Amélia deixara nesse instante. E logo as primeiras notas
da introdução do Guarani encheram a sala com a sua corajosa e dominadora
solenidade.
Fizeram silêncio.
Ela tocava bem, com muita energia e destreza. Amâncio encostara-se
sozinho ao canto de uma janela e sentia-se ir a pouco e pouco arrastando pela
irresistível corrente daquelas frases musicais Seu estômago, perfeitamente
confortado, dava-lhe ao corpo um bem-estar beatífico e predispunha-lhe o espírito
para as vagas concentrações e para os místicos arrebatamentos da fantasia. Um
profundo langor, muito voluptuoso, apoderava-se de todo ele, e os vapores
duvidosos de um princípio de embriaguez, acamavam-se em torno de sua cabeça,
anuviando-lhe os objetos exteriores.
E ali, da janela suspenso ainda pelas novas impressões que lhe deparavam
os novos aspectos de sua existência, abstrato e perdido em cismas indefinidas,
enxergava, por entre as névoas do seu enlevo, o vulto melancólico de Lúcia,
assentada defronte do piano, a picar o teclado com os dedos, num frenesi delicioso.
Depois da música principiou a simpatizar com ela; já gostava de a ver,
misteriosa e pálida, arrastando a vida com a languidez de uma convalescente.
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Estava todo embevecido a pensar nesta simpatia, quando voltou por acaso o
rosto e deu com os olhos de Nini, que o fitavam sem pestanejar. – É birra, não tem
que ver! Pensou ele aborrecido..
Duas horas depois tornavam à sala de jantar. Serviam-se as torradas.
Pereira, com o César adormecido sobre as pernas, ressonava profundamente na
mesma preguiçosa em que o tinham deixado.
Mme. Brizard chamou o copeiro e ordenou-lhe que recolhesse o menino.
Pereira espreguiçou-se, abriu vagarosamente os olhos, mas tornou a fechá-los,
bocejando.
Já estavam à mesa, quando os hóspedes principiaram a chegar.
Veio o Paula Mendes e mais a mulher. Ele de pequena estatura, grosso, os
movimentos acanhados, a voz branda e a fisionomia triste; ela muito alta, cheia de
corpo, despejada de maneiras e com feições de homem.
Chamava-se Catarina, estava sempre a implicar com as coisas e tinha muita
força de gênio. Entrou como uma fúria; o marido atrás. Cumprimentou a todos com
um — ”boas-noites” terrível, e, atirando-se a uma cadeira, declarou , a bater com a
mão na mesa, que vinha desesperada! — Pois, se em vez de piano, lhe haviam
dado um tacho, um verdadeiro tacho, para executar um noturno de Chopin!
Dificílimo!
— Pouca vergonha! Exclamava ela, rangendo os dentes. — canalhas!
E voltando-se para o marido com um furor crescente: — Mas o culpado foste
tu, lesma de uma figa! — já devias conhecer melhor aquela súcia!
Mas... ia responder o marido.
Cale-se, berrou ela.— Não me dê uma palavra, que não estou disposta a lhe
ouvir a voz! Diabo do basbaque
Fez uma pausa, estava arquejante, mas continuou logo:
— Também ali, acabou-se! Cruz na porta! Nunca mais! Nunca mais! Nem
admito que me falem na rua! Corja!
E, levantando-se com ímpeto, cumprimentou a todos com um arremesso, e
subiu para o segundo andar, levando o marido na frente, aos empurrões
Safa, disse Amâncio consigo.
O Dr. Tavares é que vinha satisfeito. Estivera em casa de um amigo, pessoa
de muita consideração, onde se reunia a mais fina sociedade.
E, necessitado de expandir o seu bom humor, entabulou conversa com
Amâncio. Falou-lhe a um só tempo de mil coisas diferentes; tratou muito de si; das
suas pretensões na Corte que apenas conhecia de alguns meses; das suas
esperanças de obter o que desejava; do que lhe dissera tal ministro; do que
prometera tal conselheiro ,e, afinal , da sua profissão de advogado, profissão que
ele exercia com entusiasmo, com delírio, porque, desde pequeno, toda a sua queda
fora sempre para falar em público, para dominar as massas.
E, esquentando-se ao calor de suas próprias palavras, discursava, como se já
estivesse no tribunal. Armava posições; recorria aos efeitos da tribuna, vergava para
trás. a cabeça, ameaçando espetar o auditório com a ponta de sua barba triangular.
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Sentia-se radiante por ver que todos os mais não abriam a boca, enquanto ele
estivesse com a palavra.
Seu tipo indeciso, de cearense do interior, uma dessas fisionomias confusas e
duvidosas, nas quais o fulvo castanho dos cabelos quase que não se distingue do
moreno da pele e do pardo verdoengo dos olhos, seu tipo transformava-se na febre
da eloqüência e parecia acentuar-se por instantes.
E, já de pé, com uma das mãos apoiada nas costas da cadeira, jogava
freneticamente com a outra, ora espalmando-a em cheio sobre o peito, ora
apontando terrível para o teto, ora indicando o chão, horrorizado, como se ai
estivesse um abismo, ora dando com o indicador ligeiras e repetidas facadinhas no
ar; ao passo que a voz, pelo contrário, se lhe arrastava em trêmulos prolongados,
como as notas graves de um harmonium.
Enquanto ele parolava, outros hóspedes se recolhiam aos competentes
quartos, atravessando a varanda pelo fundo na ponta dos pés, com medo da
“caceteação”.
Aquele homem era o terror da casa. Às vezes, depois do jantar, quando ele
abria as torneiras da loquacidade, iam todos, um por um, fugindo sorrateiramente,
até deixá-lo a sós com o Pereira que, afinal, adormecia.
Amâncio principiava a sentir cansaço. Quis retirar-se; não lho consentiram.
— Passava já de meia-noite; a casa do Campos devia estar fechada àquela
hora. — O melhor seria ficar, observou a francesa.
— Que diabo, acudiu Coqueiro. — Fica, não incomodarás ninguém...Estás
tudo providenciado; a cama feita. Além disso, olha! E mostrando o céu pela janela:
— Vamos ter chuva!
Com efeito sopravam os ventos do sul. Amâncio ainda opôs algumas razões,
mas finalmente cedeu.
* * *
Era mais de uma hora quando se dispersou a roda e cada um, depois de
novos protestos e oferecimentos se recolheu à competente alcova.
Mme. Brizard recomendou muito a Amâncio que ficasse à vontade; que não
tivesse escrúpulos em reclamar qualquer coisa de eu sentisse falta. Supunha,
porém, não haver ocasião disso, porque fora ela própria e mais a Amelinha quem
lhe arranjara o quarto.
Coqueiro acompanhou-o até a cama, examinou rapidamente se estava tudo
no seu lugar e depois, dando mais luz aso bico de gás, e tirando um folheto da
algibeira disse-lhe com um sorriso: Sempre te vou mostrar os versos...
Amâncio, já meio despido, estremeceu, mas não opôs a menor consideração,
e meteu-se debaixo dos lençóis.
O outro em pé ao lado da cama, folheava amorosamente o seu caderno de
versos, à procura do que deveria ler em, primeiro lugar
Descobriu afinal e, com a voz clara e sonora , principiou:
“ Estamos em plena Roma. Os Césares devassos...”
CAPÍTULO VII
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70
Amâncio sentiu um grande alívio, quando se achou afinal inteiramente só; a
porta do quarto bem fechada e a luz do bico de gás quase extinta.
Estava morto de fadiga.
As enfadonhas conversas de Coqueiro e Mme. Brizard, o jugo inquisitorial das
cerimônias, a pândega da véspera, tudo isso dava àquela caminha fresca, de lençóis
limpos, um encanto superior ao que houvesse de melhor no mundo. Seu corpo
quebrado de impressões diversas e na maior parte consumidoras e lascivas, bebia
aquele repouso por todos os poros, voluptuosamente, como um sequioso que se
metesse dentro da água..
Aninhou-se , encolheu-se, abraçado aos travesseiros, ouvindo com uma certa
delícia esfuziar o vento nas portas e, lá fora, desencadear-se o temporal,
arremessando água aos punhados contra telhas e paredes.
E deixava-se arrebatar pelo sono, como se deslizasse por uma ladeira
interminável de algodão em rama.
Os acontecimentos d dia começaram a desfilar em torno de sua cabeça, em
procissões fantásticas de sombras duvidosas e fugitivas. Dentre estas, era o vulto de
Lúcia o que melhor se destacava, com o seu andar quebrado e voluptuoso, a
remexer os quadris, atirando a barriga para frente. Chegava a distinguir-lhe
perfeitamente os grandes olhos amortecidos e a sentir-lhe o perfume que ela trazia
essa tarde no lenço e nos cabelos. Em seguida, vinha a outra, a Amelinha, mas não
com a lucidez da primeira. E logo depois Mme. Brizard, com o seu todo pretensioso;
Nini, a fitá-lo, muito aflita, as mãos inchadas e sem tato, o cabelo escorrido sobre a
cabeça, cheirando a pomada alvíssima, bata e lã, escura e sinistra como um burel.
E, depois, numa confusão vertiginosa, — o Coqueiro a berrar versos, dançando no
ar e a sacudir em uma das mãos um punhado de feijões pretos; e o Paula Mendes a
jogar os murros com a mulher; e o Dr. Tavares a discursar com os braços erguidos
para ao ar; e o César, o menino prodígio, a esgarafunchar o nariz freneticamente; e
o Pereira, de olhos fechados, a andar como sonâmbulo; e o ...
Mas os vultos de todos se confundiam e desfibravam, como nuvens que o
vento enxota. Amâncio já os não distinguia.
Acordou às oito horas do dia seguinte, meio inconsciente do lugar onde se
achava. Logo, porém, que caiu em si, levantou-se de um pulo e abriu a janela de par
em par. Um jato de luz dourada invadiu-lhe a alcova.
Olhou a ,manhã, que estava de uma transparência admirável. A chuva da
véspera limpara a atmosfera; corria fresco. Os bondes passavam cheios de
empregados públicos; viam-se amas-de-leite acompanhando os bebês; senhoras
que voltavam do banho de mar, o cabelo solto, uma toalha no ombro.
Aquele movimento era comunicativo. Amâncio sentiu vontade de sair e andar
à toa pelas ruas. Todo ele reclamava longos passeios ao campo, por debaixo de
árvores, em companhia de amigos.
Foi para o lavatório cantarolando; o sono completo da noite fazia-o bem
disposto e animado.
Mal acabara de se preparar quando bateram de leve na porta. Era uma
mucamazinha, que já na véspera lhe chamara por várias vezes a atenção durante o
jantar.
Teria quinze anos, forte, cheia de corpo, um sorriso alvar mostrando dentes
largos e curtos, de uma brancura sem brilho.
Vinha saber se o Dr. Amâncio queria o café antes ou depois do banho.
Amâncio, em vez de responder, agarrou-lhe o braço com um agrado violento
e grosseiro.
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71
Ela pôs-se a rir aparvalhadamente.
* * *
Às dez horas, ao terminar o almoço, estava já resolvido que o rapaz, naquele
mesmo dia, se mudava definitivamente para a casa de pensão.
Com efeito, pouco depois, no escritório do Campos, dizia a este, cheio de
maneiras de pessoa ajuizada, “que afinal descobrira em casa da família de um
amigo o cômodo que procurava”. Agradeceu muito os obséquios recebidos das
mãos do negociante, desculpou-se pelas maçadas que causara naturalmente e
pediu licença para despedir-se de D. Maria Hortênsia.
O Campos, logo que soube qual era a casa de pensão de que se tratava,
aprovou a escolha, citou pessoas distintas que lá estiveram morando por muito
tempo, e recomendou ao estudante — que lhe aparecesse de vez em quando; que
não se acanhasse de bater àquela porta nas ocasiões de apuro, porque seria
atendido, e, afinal, perguntou se Amâncio queria receber a mesada, já ou mais
tarde.
— Como quiser... respondeu o provinciano, sem ter aliás a menor
necessidade de dinheiro. E foi embolsando a quantia.
D. Maria Hortênsia recebeu-o com muito agrado. A irmã não estava em casa.
Conversaram.
Ela sentia que Amâncio se retirasse assim tão depressa; — mas, quem
sabe? Talvez não se desse bem ali; não fosse tratado como merecia...
O estudante protestava, jurando que não podia ambicionar melhor tratamento
do que lhe dispensaram; reconhecia, porém, que já causava muito incômodo, e por
conseguinte devia retirar-se. Não queria abusar.
Hortênsia afiançava e repetia que ele não dera incômodo de espécie
alguma.— Tudo aquilo era feito com muito gosto!
Agora parecia mais familiarizada com o provinciano. Chegou a dirigir-lhe
gracejos; disse, com um sorriso de intenção, que “sabia perfeitamente o que aquilo
era!... O que eram rapazes! — Não se queriam sujeitar a certo regime; só lhes servia
pagodear à solta! Enfim!...tinham lá a sua razão... Se ela fosse rapaz faria o mesmo,
naturalmente!”
Amâncio estranhou que tais palavras viessem de quem vinham, e, não
querendo perder a vaza, retorquiu com febre: “Que Hortênsia estava enganada a
respeito dele, que não o conhecia! Se, à primeira vista ele parecia um pândego ou
um sujeito mau, não o era todavia no fundo! Ninguém amava tanto a família;
ninguém desejava o lar com tanto ardor e com tanto desespero! Oh! Que inveja não
tinha do Campos!...que inveja não tinha de todo homem, a cujo lado enxergava uma
esposa bonita e carinhosa!...”
Hortênsia agradeceu com um sorriso.
— Oh! Quanto fora injusta!...prosseguiu Amâncio, como rosto esfogueado de
comoção. — Quanto fora injusta! O seu ideal, dele, era justamente o casamento; era
possuir uma mulherzinha, cheirosa e meiga, com quem passasse a existência,
ditosos e obscuros no seu canto, vivendo um para o outro, ignorados, egoístas, não
cedendo nenhum dos dois, a mais ninguém a menor particularzinha de si,— um
sorriso que fosse, um olhar amigo, um aperto de mão!
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— Que rigor! Exclamou Hortênsia, tomando certo interesse pelo que dizia o
estudante. — Que rigor! Não o supunha assim, seu Amâncio!...
— Oh! Era assim que ele entendia o verdadeiro amor!...,
E, cada vez mais quente:
— Era assim que ele amaria! Era assim que ele cercaria de beijos o anjo
estremecido que o quisesse recolher à tepidez consoladora de suas asas! Era
assim que sonhava a existência de duas almas gêmeas, soltas no azul, gozando a
voluptuosidade do mesmo vôo!...
— Pois é casar-se, meu amigo... aconselhou a mulher do Campos, pasmada
de ouvir Amâncio falar daquele modo. — Não o fazia tão prosa!...
E, como era preciso dizer qualquer coisa, acrescentou muito amável:
— Quem sabe se alguma fluminense já não lhe voltou o miolo!...
Ele confessou que sim, sacudindo tristemente a cabeça. E, de tal modo
exprimiu o seu amor por “essa fluminense”, tão ardente e tão apaixonado se
mostrou, que Hortênsia instintivamente se ergueu, a olhar para os lados,
sobressaltada como se tivesse cometido uma falta.
Não quis saber de quem se tratava.
Deu uma volta pela sala, foi ao aparador, tomou alguns goles de água e,
procurando mudar de conversa, falou do baile que havia essa noite em casa do
Melo. — Devia ser muito bom, constava que havia quinze dias se preparavam para
a festa. Era em Botafogo. O Campos, logo que recebeu o convite, lembrou-se de
levar Amâncio consigo, este, porém, tão raramente aparecia em casa, e agora, com
esta mudança...
— Não. O Campos falou-me, disse o estudante.
— Ah! sempre chegou a lhe falar?
— Há três ou quatro dias; mas eu não tencionava ir...
— Por quê? O senhor é moço, deve divertir-se.
A senhora vai?
— Sim, vou.
— Nesse caso irei também.
E Amâncio ligou tão expressiva entonação àquelas palavras, que Hortênsia
abaixou os olhos, já impaciente, sem mais vontade de conversar.
— Seria possível, pensava ela – que aquele estudante lhe quisesse fazer a
corte?... Não! não seria capaz disso, e, se fosse, ela saberia desenganá-lo! Ah!
com certeza que o desenganava!
Campos subiu daí a um instante, e Amâncio, depois de combinar com ele que
voltaria à noite para irem juntos à casa do Melo, entregou as suas malas a um
carregador e saiu.
Sentia-se alegre; a nova atitude de Hortênsia dava-lhe um vago antegosto de
prazeres; previa com delícia os bons momentos que o esperavam.
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— E agora é que vou deixar a casa!...pensava ele já na rua. — Que tolo fui!
Abandonar a empresa, justamente quando me sorri a primeira esperança! “Mas
pedaço de asno, argumentava com seus botões — não calculaste logo que aquela
mulher mais dia menos dia, havia de escorregar? Porque diabo então não esperaste
um pouco?...”Ora! mas que caiporismo o meu! Sair nesta ocasião! Perder uma
conquista tão boa! Agora também que remédio lhe ei de dar? O que está feito, está
feito! A este momento minhas malas talvez já tenham chegado à casa do Coqueiro!
E com este nome assaltaram-lhe logo o espírito as imagens de Lúcia e Amelinha.
Bem me dizia o Simões, pensou ele. — Bem me dizia o Simões: “Quando te
começarem as aventuras, hás de ver o que vai por esta sociedade!”
E Amâncio, que não conseguia reter na cabeça as palavras dos seus
professores, Amâncio, que era incapaz de guardar na memória um fato, um
algarismo, uma fórmula científica, conservava, entretanto, com toda a inteireza
aquela frase banal, pronunciada por um pândego em um almoço de hotel, depois de
meia dúzia de garrafas de vinho.
— O Simões tinha toda a razão... principiavam as aventuras! Diabo era
aquela asneira de abandonar tão intempestivamente a casa do Campos! Fora uma
triste idéias, que dúvida! Mas, ele também não podias adivinhar quais seriam as
intenções de Hortênsia!... O melhor por conseguinte era não se apoquentar - o que
lhe estivesse destinado havia de chegar-lhe às mãos!...
E já nem pensava nisso quando subiu as escadas da casa de pensão.
Sorrisos amáveis de Amelinha e Mme.Brizard o receberam desde a entrada.
Coqueiro estava na rua.
Veio a conversa do baile dessa noite. Amâncio, pela primeira vez, ia conhecer
uma sala da Corte. As duas senhoras profetizavam que ele voltaria cativo por
alguma carioca.
— Duvido! Respondeu o estudante, a rir.
— É! Disse a francesa — vocês do Norte são todos uns santinhos! Eu já os
conheço! Nunca vi gente tão assanhada.
Amelinha abaixou os olhos, depois de lançar à outra um gesto repreensivo.
Mme. Brizard não fez caso e acrescentou:
— Os demônios não podem ver um rabo-de-saia!
Loló! Censurou Amelinha em voz baixa.
— Também não é tanto assim!...contradisse o provinciano.
Mme. Brizard citou logo os exemplos de casa, até ali entre todos os seus
hóspedes, só os nortistas davam sorte em questão de amor. — Um deles, um tal
Benfica Duarte, chegara a raptar com escândalo uma crioula, e crioula feia!
Amelinha, bem contra a vontade, soltou uma risada, que lhe desfez por
instantes o ar inocente da fisionomia; mas recuperou-o logo, e lembrou à cunhada
“que não deviam estar ali a roubar o tempo a seu Amâncio. Ele tinha que cuidar das
malas que já o esperavam no quarto!”
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— Nós podemos ajudá-lo nesse trabalho, acudiu a velha. — Certas coisas só
ficam bem feitas por mão de mulher!
O estudante aceitou oferecimento, e os três seguiram para o gabinete,
sempre a rir e a conversar.
— Amelinha, enquanto Amâncio estrava no quarto, observou, em voz baixa a
Mme. Brizard, que não achava conveniente que esta arriscasse em sua presença
pilhérias como as de ainda há pouco. — O rapaz, por muito ingênuo que fosse,
podia desconfiar com aquilo e persuadir-se de que ela, Amelinha, não daria uma
noiva bastante séria e digna dele! Que, às vezes, por estas e outras indiscrições,
desmanchavam-se casamentos!
— Como te enganas! Respondeu a velha — já compreendi bem esse sujeito:
a sua corda sensível são as mulheres! Gosta que lhe falem nisso! Tu, do que
precisas, é opor-lhe dificuldades, sem que o desenganes por uma vez; nega, mas
promete, que obterás a vitória. Quando ele te pedir um beijo, dá-lhe um sorriso; e,
quando quiser muito mais, dá-lhe então o beijo, contando que te mostres logo
arrependida, envergonhada, chorosa, inconsolável, disposta a não lhe ceder mais
nada, e disposta a nunca lhe pertenceres, a nunca lhe perdoares aquele
atrevimento. E, se ele insistir, repele-o, insulta-o, jura que o desprezas e fá-lo
acreditar que amas a outro. — É dessa forma que o hás de agarrar, percebes? Lá
quando às minhas chalaças de ainda há pouco, descansa que por aí não irá o gato
às filhoses.
Nesse momento, o rapaz acabava de abrir as malas. As duas senhoras
apareceram no quarto.
Ele tinha muita roupa branca, e tudo bom. Camisas finas de linho, ricas
toalhas de renda marcadas cuidadosamente por sua mãe, fronhas bordadas,
mostrando o seu nome entre labirintos e desenhos caprichosos.
Sentia-se o amor, o desvelo, com que tudo aquilo fora arrumado; cada objeto
parecia conservar ainda a marca da mão carinhosa que o acondicionara a um
canto da arca. Alguns denunciavam o trabalho paciente de longos tempos, traziam
à idéia calmos serões à luz do candeeiro. Adivinhava-se, pelo completo daquele
enxoval, a providência de um coração materno; nada faltava.
À proporção que se iam tirando as peças de roupa, uma tepidez
embalsamada respirava dentre elas; parecia que um perfume ideal de beijos se
exalava ao desdobrar dos brancos lençóis de linhos; percebia-se que muita lágrima
e muito soluço ficaram abafados no fundo daquelas arcas.
Vieram ao provinciano novas e mais vivas saudades de Ângela. Uma vaga
tristeza apoderou-se dele, ficou distraído, a olhar silenciosamente para as roupas
que as duas mulheres empilhava no chão e sobre a cama. Sentiu, compreendeu,
que ele próprio, à semelhança daquelas arcas, havia também de ir perdendo,
pouco a pouco, todas as ilusões, todos os perfumes, com que saíra impregnado dos
braços de sua mãe.
E afastou-se do quarto para limpar as lágrimas. As lágrimas, sim, que o fato
de sua primeira viagem, as impressões da Corte, a saudade, as aventuras
amorosas, as ceatas pelos hotéis, davam-lhe ultimamente uma sensibilidade muito
nervosa e feminil. Elas acudiam-lhe agora com extrema facilidade; chorava sempre
que se comovia. Às vezes no teatro, assistindo à representação
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De qualquer drama de efeitos, ficava envergonhado por não poder impedir
que os olhos se lhe enchessem de água; a simples descrição de uma desgraça
perturbava-o todo; a música italiana o entristecia; a idéia de um feito erótico ou de
um rasgo de perversidade era o bastante para lhe agitar a circulação do sangue e
formar-lhe godilhões na garganta.
Quando voltou ao quarto, já os baús estavam despejados.
Mme. Brizard não se fartava de elogiar a boa qualidade das fazendas, o bem
cosido das roupas, a pachorra e asseio com que tudo fora feiro. Apreciava o trabalho
das marcas; chamava a tenção de Amélia para os bordados, para os labirintos e
para as rendas.
— Olha! Disse-lhe, mostrando um pano de crochê, — o desenho é
justamente como aquele da toalha do oratório. Só faltam aqui as duas borboletas do
canto.
E arrumava tudo, com muito cuidado, nas gavetas da cômoda. Tomava
religiosamente sobre os braços os pesados lençóis, os maços de ceroulas em folha,
os pacotes intactos de meias listradas, os de lenços barrados de seda, os
colarinhos de todos os feitios, as gravatas de todas as cores. E não acondicionava
uma peça sem afagá-la, sem lhe passar por cima as mãos abertas.
— O rapaz estava provido de tudo! Disse em voz baixa. E, depois
acrescentou alto, rindo: — Podia até se casar se quisesse!
— Falta o principal... respondeu ele.
— Que é? Acudiu logo Amélia.
— A noiva! Explicou o moço, olhando intencionalmente para a rapariga.
— Deve estar à sua espera no Maranhão... volveu ela.
E abaixou os olhos com um movimento de inocência, muito bem feito.
— Não vê! Exclamou a velha. — Então um rapaz desta ordem deixava as
meninas da Corte para amarrar-se a uma provinciana?... Seria de mau gosto!
— Não sei por que, retorquiu Amâncio, ligeiramente escandalizado. — Na
província há senhoras bem educadas, muito chiques!
— Sei, sei, perfeitamente, disse Mme. Brizard, evitando contrariá-lo. Sei que
as há ... mas é que o Sr. Vasconcelos tem elementos para desejar muito melhor!
Seria pena que um rapaz tão perfeito não escolhesse uma noivinha comme il faut.—
Bonita, instruída, que soubesse entrar e sair numa sala, conversar, fazer música,
recitar, servir um almoço, dirigir uma soirée. Além de que, meu caro senhor, as
provincianas, em geral, saem muito mais exigentes do que as filhas da Corte.
E, como Amâncio fizesse um ar de espanto:
— Sim, porque a fluminense, habituada como está na capital e familiarizada
com os bailes, com os espetáculos do lírico, com os passeios, já se não se preocupa
com essas coisas e, uma vez casada, dedica-se exclusivamente ao lar, ao marido e
aos filhinhos; ao passo que com as outras, as provincianas, sucede justamente o
contrário, visto que ainda não conhecem aqueles gozos e só desejam o casamento
para conhecê-los. Daí as suas exigências; nada as satisfaz, porque tudo fica muito
aquém dos seus sonhos da província; o que para as outras é tudo, para elas não é
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nada. Bailes e teatros toda a noite, carruagens, lacaios, vestidos de seda, dez ou
vinte criados, nada as contenta, nada corresponde ao que elas ambicionam. E o
marido, o pobre marido de semelhante gente, depois de arruinado e depois de
passar uma existência sem amor e sem aconchegos de família, ainda terá de
suportar as queixas e os ressentimentos de uma mulher desiludida e blasé.
— Perdão! Replicou o estudante. — Isso prova simplesmente que toda a
mulher, seja da província ou da Corte, apresenta sempre certa dose de ambições.
Com a diferença, porém, de que a provinciana, por isso mesmo que o Rio de Janeiro
é o seu ideal, é o seu sonho dourado, contenta-se com ele; enquanto que a outra,
visto que o supradito Rio de Janeiro para ela nada mais é que o comum, estende
naturalmente a sua ambição — e quer Paris. O Passeio Público já não a satisfaz, é
preciso dar-lhe Bois de Boulogne; já não lhe chegam carruagens, criados e teatros;
quer tudo isso e mais um título, de baronesa pelo menos!
E, encantado com a clareza do seu argumento, continuou a discutir,
chegando à conclusão de que seria loucura desejar uma mulher isenta de ambições
e caprichos, e que ele já se daria por muito satisfeito se encontrasse alguma, cujo
ideal não fosse além do Rio de Janeiro.
Amélia era precisamente dessa opinião, mas entendia que, mesmo na Corte,
se encontravam meninas bem educadas e aliás muito modestas.
Amâncio declarou que não argumentava com exceções. — Sabia perfeitamente
que nem todas as fluminenses calçavam pela mesma forma, e não tinha a pretensão
de dizer “desta água não beberei, deste pão não comerei!” apenas não admitia
aquela razão, que apresentava Mme. Brizard, para provar que as provincianas eram
mais dispendiosas do que as filhas da Corte. Isso não! que o desculpassem, mas
não podia admitir!
Sempre queria vê-lo casado com uma provinciana!... observou a francesa,
tomando a roupa que lhe passava a outra. — Então sim! Aposto que não teria a
mesma opinião!
Amâncio não respondeu logo, porque estava muito ocupado a apanhar do
chão uma grande pilha de camisas engomadas, que Amelinha deixara cair. Mme.
Brizard acudiu também a ajudá-los, e, na precipitação com que todos três,
agachados um defronte dos outros, queriam ao mesmo tempo recolher a roupa
espalhada no soalho, as mãos do estudante encontraram-se com umas mãozinhas
finas que não eram certamente as de Mme. Brizard.
Mas todas as vezes que ele tentou retê-las entre as suas, as tais mãozinhas
fugiam tão ligeiras, como se lhes houvessem chegado uma brasa
ICAPÍTULO IX
O baile em casa do Melo esteve bom. Este, muito magro, de suíças negras,
olhos fundos e movimentos rápidos, não descansava um instante; tão depressa o
viam conduzindo senhoras pela escada, como a receber apresentações na sala de
jantar, como a formar quadrilhas; voltando-se para todos os lados e atendendo a
todas as pessoas.
O Melo tinha boas relações e alguns bens adquiridos no comércio; nunca se
envolveu diretamente com a política, mas prezava o monarca e esperava , com
resignação, um hábito que há dez anos lhe haviam prometido pingar sobre a lapela
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da casaca. A mulher, que já não era criança, ainda metia muita vista e passava por
bonita; homens, que envelheceram com ela, citavam-na como um tipo de formosura.
Amâncio foi recebido com especial agrado, graças a Luís Campos que era
íntimo do dono da casa.
A circunstância de que ali se achava só, no meio de tanta gente estranha,
como que apertava o círculo de suas relações com a família do correspondente.
Fazia-se muito deles, muito aparentado; não dispunha de mais ninguém para
desabafar as suas impressões e para conversar um pouco mais à vontade.
Assim, quando saltamos num porto pela primeira vez, sentimos estreitarem-se
de repente nossas relações com os companheiros de bordo, ainda mesmo que os
conheçamos de poucos dias.
Até Carlotinha parecia mais expansiva, principalmente depois que Amâncio se
revelou insigne dançador de valsa. Ela era louca pela dança. Maria Hortênsia notara
igualmente que o provinciano tinha um certo talento coreográfico muito peculiar, e
não ficou isolada nesse juízo, porque várias senhoras se declararam a mesma
opinião.
Não tardou muito a que semelhante julgamento se estendesse pelas outras
salas. E em breve estavam todas as damas de acordo em que Amâncio era o melhor
par daquela noite.
Com efeito, se ele em outra qualquer coisas não conseguiu a perfeição , na
dança ao menos nada se lhe tinha a desejar; dançava admiravelmente, por vocação,
por índole, por um jeito especial do corpo, e com um amaneirado gracioso que sabia
dar aos braços, à cabeça e às pernas. Pode-se dizer que na valsa dispunha de um
estilo próprio, original.
Quando, sacudido pela música, os olhos meio cerrados, a boca meio aberta,
arremessava-se com a dama no turbilhão da sala, tinha alguma coisa de pássaro
que desprende o vôo. Ficava até mais bonito; os cabelos crespos tremiam-lhe
romanticamente sobre a testa; o cansaço dava ao moreno de suas faces uma
palidez misteriosa e doce. E, com o braço direito engranzado à cintura do par, o
esquerdo repuxando nervosamente a mão que a dama estendia sobre a sua, ele
empertigava-se todo com delícia, a fechar os olhos e a rodar extasiado, embevecido
como se fora arrebatado por entre nuvens de arminho.
No seu temperamento, excessivamente lascivo, gozava com sentir ligado ao
corpo precioso de uma mulher de estimação; comprazia-se em beber-lhe o hálito
acelerado pela dança, embebedava-se com respirar-lhe os perfumes agudos do
cabelo e o infiltrante cheiro animal da carne.
Afinal, depois de uma valsa, estonteado e ofegante, atirou-se ao canto do divã
em que estava Hortênsia.
Confessava-se prostrado, a limpar o suor do pescoço e da fronte. Fora
imensa a valsa e ele cansara três pares, que se abateram inúteis, como as espadas
de Ney na batalha de Waterloo.
Apre! Disse.
As senhoras olhavam-no já com respeito, acompanhavam-lhe os menores
movimentos com enorme interesse.
— Muito bem! Muito bem! Cochichou-lhe a mulher do Campos. - Ignorava que
o senhor fosse tão forte na valsa!
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E começaram a conversar sobre o mal que se dançava ultimamente. Ela
declarou que uma das coisas que mais apreciava era uma boa valsa. Isso desde
criança; no colégio, às vezes, as meninas passavam a hora do recreio dançando
umas com as outras.
— Ninguém o diria...considerou Amâncio, fazendo-se muito seu camarada.–
A senhora hoje só tem querido dançar quadrilhas.
Ela respondeu com um risinho significativo.
— Quer uma valsa comigo?.. perguntou o rapaz, em segredo, requebrando os
olhos.
Não posso! Disse ela, quase com um suspiro. — Aceitaria de bom grado, mas
não posso...
— Valha-me Deus! Por quê?
Porque...
Hortênsia sorriu de novo, sem ânimo de confessar a verdade. — o marido não
gostava de a ver valsar. Também não se podia desculpar, dizendo que não sabia,
porque ainda há pouco dissera justamente o contrário; afinal sem fazer empenho de
ser acreditada acrescentou gracejando.
— Porque... porque me faz mal...
Amâncio prometeu que a conduziria devagar e que não dançaria longo tempo
seguido; aceitava todas as condições, contanto que desfrutasse a suprema ventura
de lhe merecer uma valsa.
Hortênsia não respondeu; tinha o olhar esquecido sobre um grande quadro
que lhe ficava defronte suspenso da parede. E abanava-se, lentamente, como
seguindo o vôo de um vago pensamento voluptuoso.
O quadro representava uma cena de Fausto e Margarida, no jardim (um longo
beijo apaixonado que parecia soluçar entre a folhagem do painel. O encantado
filósofo tomava nas mãos brancas a loura cabeça de sua amante, e sorvia-lhe alma
pelos lábios. O sol morria ao longe, dourando a paisagem, e um casal de pombos
arrulhava à sombra azulada de uma planta).
Hortênsia olhava para isso, enquanto, ao gemer das rabecas, cruzavam-se
na sala os pares, marcando contradanças. O aroma das flores, que se fanavam em
grandes vasos japoneses, misturava-se ao cheiro das mulheres, e penetrava a carne
com a sutilidade de um veneno lento e delicioso como o fumo do charuto. Os ombros
lácteos das senhoras, expunha-se nus à grande claridade artificial do gás; as jóias
faiscavam; os olhos desfaleciam, e um calor gostoso ia infirmando os sentidos e
entorpecendo a alma.
— Então?...pediu Amâncio, pondo doçura na voz, — dance comigo,
sim?...Faça-me a vontade. Eu sentiria nisso tanto gosto...
E todo ele suplicava aquele obséquio, com o empenho apaixonado de que
pede uma concessão de amor.
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Ela dizia que não, meneando a cabeça; mas, um sorriso que se lhe escapava
dos lábios, dizia o contrário.
— Então!...sim?...sim? um bocadinho só! Insistia o estudante, a devorá-la
com os olhos.
Estava ainda cansado; a voz não lhe vinha inteira, mas quebrada, como por
um espasmo; os olhos dele arqueavam-se luxuriosamente; as pernas principiavam-
lhe a tremer
— O que lhe custa à senhora dançar um pouquinho comigo?
E, vendo que ela não respondia, balbuciou em tom magoado, de criança
ressentida:
— Bem, bem, não lhe peço mais nada, não a importunarei de hoje em diante.
Desculpe!
Hortênsia voltou-se para ele, ia talvez desenganá-lo; mas a orquestra, que
havia emudecido depois da quadrilha, deu sinal par a “valsa”. Era o Danúbio de
Strauss.
O rapaz ergueu-se como um soldado que ouvisse tocar a rebate.
Ela não resistiu, levantou-se de um salto e entregou-lhe a cintura.
Dançaram. A princípio vagarosamente: depois, como a música se acelerasse,
Amâncio arrebatou-a. Ela deixou-se levar, a cabeça descansada nos ombros dele,
as mãos frias, a respiração doida.
A música redobrou de carreira.
Foi então um rodar convulso, frenético: a casa, os móveis, as paredes, tudo
girava em torno deles.
Hortênsia dançava tão bem como o rapaz. Os dois pareciam não tocar no
chão; os passos casavam-se como por encanto; as pernas gravitavam em volta uma
das outras com precisão mecânica.
Encheu-se a sala de pares. Amâncio fugiu com Hortênsia, sem interromper a
valsa; pareciam empenhados numa conjuntura amorosa. Ela arfava sacudindo o colo
com a respiração; os seus braços nus tinham uma frescura úmida; os olhos
amorteciam-se defronte dos dele; não podia fechar a boca, e seu hálito misturava-se
ao hálito fogoso do estudante.
De repente, Amâncio parou exausto. Ouvia-se-lhe de longe as respiração.
— Não! não! balbuciava ela, quase sem poder falar. — Ainda! Mais um pouco!
E abraçaram-se e novo, freneticamente.
Quando parou a música Hortênsia caiu sobre um divã pelos braços de
Amâncio.
Não podia dar uma palavra; não podia abrir os olhos. Sua respiração parecia
longos suspiros contínuos e estalados.
Vários cavalheiros se aproximaram.
— Ficou muito fatigada?...Perguntou Amâncio, inclinando-se sobre ela, a mão
apoiada nas costas do divã.
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80
Hortênsia não respondeu. Cobriu o rosto com o lenço de rendas e continuou
recostada. Foi a voz do marido que a despertou.
— Que loucura e esta, Neném?...Perguntou ele sorrindo com o seu bom ar de
homem honesto.
Ela sorriu também, e pediu desculpas com o olhar.
— Sabes que te faz mal, para que valsas?...
Hortênsia soltou uma risadinha de intenção e disse baixo: — Não é o mal que
me faz que te dá cuidado...
— Como assim?...
— Ora, é que tu não gostas muito de me ver valsar...
Porque te faz mal, filha!...
— É só por isso? Afianças que não tens outro motivo?
Campos respondeu com um movimento de ombros.
—Olha lá!...ameaçou a bonita senhora, sacudindo um dedinho da mão
direita.. — Olha que sou capaz de ,hoje em diante, não perder uma só valsa!...
Ele repetiu o movimento de ombros, e acrescentou:
—Isto é lá contigo, filha; a saúde é tua, faze o que entenderes, ora essa!
Algumas pessoas perceberam o seu mal humor e riram com disfarce.
Nessa ocasião, Amâncio encostado ao bufete, pedia que lhe servissem um
grogue à americana
* * *
— Está retemperando a fibra? Perguntou-lhe um sujeito magrinho, elegante,
meio calvo, a bater-lhe amigavelmente no ombro.
O estudante voltou-se apressado e, logo que viu o outro, exclamou:
— Oh! O Dr. Freitas? Como passou? Não sabia que estava também por cá!
Freitas respondeu com a sua voz gasta- que chegara havia pouco; não lhe
fora possível vir antes; tivera que acompanhar o enterro de um parente. — Coitado!
cacete até depois de morto, três necrológios de hora e meia cada um!...Ah! os
parentes! Os parentes eram uma desgraçada invenção, principalmente se não
deixavam alguma coisa!
E, depois de retesar o peito e puxar a gola da casaca: — Mas então como ia
o Sr. Amâncio de Vasconcelos?...Pela fisionomia jurava-se que tinha saúde para dar
e vender, e, pelos atos, não parecia menos disposto, porque o Freitas presenciara a
conversa do amigo com Hortênsia.
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81
E rindo: — Homem, faz você muito bem! Aproveite enquanto está no tempo!
Se eu tivesse a sua idade, com a experiência de que disponho hoje, não havia de
proceder como procedi! Oh! Aquele aforismo tem muito fundo! Si Jeunesse
savait...”
E a olhar para os pés, com um gesto cheio de tédio: — Gostei de o ver na
valsa, gostei seriamente! Ah! Eu é que já não sou homem para estas coisas! Aceito
tudo, menos o que me obrigue à fadiga!..
Amâncio fez-se modesto; negava que dançasse bem; mas o outro, em vez de
insistir nos elogios, como esperava ele, perguntou-lhe muito descansadamente por
que razão não lhe apareceu depois da primeira visita?
O estudante desculpou-se com a falta de empo e o excesso de estudo. Havia
,porém, de aparecer, mais tarde.
As suas relações com o Dr. Freitas procediam de uma carta de
recomendação, que um amigo do velho Vasconcelos lhe arranjara. Freitas era uma
excelente amizade para qualquer estudante pouco escrupuloso; dispunha de ótimas
relações, que podiam servir de empenho nas épocas apertadas de exame.
Tinha alguma coisas, gostava de ir à Europa de vez em quando, e o seus
quarenta não espantavam a ninguém; ao contrário, ainda havia muito olho esperto
de mulher que se arregalava para o ver. Isso sem falar nas senhoras que se foram
aposentando, enquanto ele parecia eternamente empalhado nos seus fraques
irrepreensíveis, nos seus chapéus à moda e nos seus enormes sapatos à inglesa,
de um elegantismo feroz. Em consciência, ninguém o poderia qualificar senão de
rapaz. As mulheres eram o seu fraco, o seu vício mais acentuado; várias anedotas
suas, inspiradas neste assunto, corriam de boca em bocas há vinte anos.
Amâncio ficou muito seu camarada, desde a primeira visita. Em menos de
uma horas de conversação, falavam já sobre as cocotes mais conhecidas na Corte;
e , alguns dias depois, quando se encontraram na Fênix, o Freitas apresentou-lhe
uma espanholona de buço louro, a qual nessa ocasião passava pelo corpo mais
bonito do mundo equívoco.
— Pois você já está um fluminense acabado! Disse o elegante, a medir
Amâncio de alto a baixo. — Não imaginei que andasse tão depressa...
E, porque voltasse à conversa sobre mulheres, continuou o que dizia há
pouco: — Infelizmente só chegamos a conhecê-las quando vamos caindo na idade;
de sorte que é preciso aproveitar o espaço que medeia dos trinta aos quarenta anos;
antes disso — não sabemos, depois — não podemos. Ah! se aos vinte já se
conhecesse a mulher... se então já se soubesse quais são os seus gostos e suas
preferências...se tal acontecesse, nem uma só se conservaria virtuosa!...Mas, nesse
período doas sonhos e das ilusões, no período em que está o senhor, meu amigo,
ninguém é capaz de ma audácia! Para chegar a fazer qualquer coisa é preciso ser
provocado, mas muito provocado!
Amâncio protestava com um sorriso pretensioso.
— Oh! Oh! Exclamou o outro, cheio de experiência, a calcar o monóculo
sobre o olho. — Já tive a sua idade, meu amigo, já tive a sua idade Pensava então
que , para agradar mulheres , era indispensável fazer-me bonito, meigo, romântico,
atencioso, que sei eu!...Engano! puro engano! Elas aborrecem tudo isso, e só
exigem três coisas num homem: A primeira — muita audácia; a Segunda — um
pouco de inteligência; a terceira — algumas relações na boa sociedade! E... ainda
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temos uma de que me esquecia e que entretanto é a base de todas as outras:—
Não ser seu marido!...Com estas quatro habilidades, desde que se tenha mocidade
e boa disposição, não há mulher que resista! Quanto à beleza, boas maneiras e bom
caráter — histórias, homem! histórias! Elas, ao contrário, detestam os tipos
afeminados e não morrem de amores pelos sujeitos rigorosamente honestos, e bem
comportados. Qual! Querem o seu bocado de vício; o belo do deboche de vez em
quando, para variar!...
E, metendo as mãos nos bolsos da calça, e jogando o corpo com ar canalha:
Lá para a seriedade basta-lhe o marido! É boa!
Amâncio ria-se, abarrotado de intenções. O Freitinhas foi nesse momento
apreendido pelo dono da casa: “As damas reclamavam as sua presença, dele, nas
salas! Era preciso não se meter pelos cantos!”
O Dr. Freitas deixou-se levar, sempre muito enfastiado; mas, antes de ir,
bateu no ombro de Amâncio e segredou-lhe com a sua voz de tuberculoso:
Aproveita, menino, aproveita! Não mandes nada ao bispo!
* * *
Iam já desaparecendo os convidados. Os pais de família toscanejavam
encostados às ombreiras das portas, esperando, com os braços carregados de
capas e mantas, que as mulheres e as filhas se resolvessem a seguir para casa.
Havia um vago tom de cansaço nas fisionomias; entretanto, alguns cavalheiros
jogavam ainda, em um quarto próximo, à luz trêmula das velas de estearina. O melo
conduzia senhoras pelo braço à porta da rua, agradecendo-lhes muito o obséquio de
aceitarem o seu convite.
Foi Amâncio que ajudou Hortênsia a entrar na carruagem. O Campos parecia
contrariado com a demora. — há duas horas que desejava se retirar.
Encurtaram-se as despedidas. O horizonte principiava a franjar-se com os
galões prateados da aurora, e , do lado das montanhas desciam tons matutinos da
natureza que desperta.
Hortênsia, muito embrulhada na sua capa de casimira branca e guarnecida de
arminhos, atirou-se com impaciência sobre as almofadas do carro, levantando um
luxuoso farfalhar de sedas que se amarrotam. Logo, porém, que o cocheiro sacudiu
as rédeas, ela chegou o rosto à portinhola, e gritou para fora:
— Aparece Domingo! Vá jantar conosco. Adeus!
Amâncio, perfilado na calçada, o chapéu suspenso na mão direita, em atitude
de quem faz um cumprimento respeitoso, disse, agitando o braço: — Adeus, minha
senhora. Hei de ir.
O carro do Campos tomou a direção da Praia de Botafogo; o rapaz ainda o
acompanhou com a vista; depois, levantando os ombros e abotoando melhor o
sobretudo, meteu-se num tílburi que se aproximava lentamente e mandou tocar para
a casa de pensão.
O animal disparou, sacudindo as crinas ao vento fresco da manhã.
* * *
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Amâncio acendeu um charuto e, com os olhos meio cerrados, derreou-se
para p fundo do tïlburi.
Naquele momento fazia gosto em se fazer muito farto, muito cansado de
amores. Sua últimas impressões enchiam-lhe o cérebro de uma espécie da vapor
azotado, que asfixiava todos os outros pensamentos.
—A continuarem as coisas daquele modo, dizia ele consigo, chupando o
charuto aos solavancos do carro, — em breve o tempo será pouco para tratar só
dos namoros!
A cada passo que dera na sua inútil existência, rasgara com o pé uma página
do livro das ilusões. Mas, a presença deste raciocínio, longe de afligi-lo, dava-lhe à
vaidade um certo prazer doentio e picante.
— Como poderia acreditar agora nas tais virtudes femininas?...Pois se até
falhara a própria mulher do Campos!...
Quando poderia ele imaginar que Hortênsia, tão severa e tão grave ainda há
pouco, uma criatura por quem todos “ metiam a mão no fogo”, fosse assim leviana e
fácil, com as outras?...
E Amâncio saboreava esta convicção, porque, a despeito do que dissera aos
amigos no Hotel dos Príncipes , sua consciência, por conta própria, tomara sempre
a defesa de Hortênsia e insistia em mostrá-la cercada de um grande prestígio
venerando e respeitável.
— A consciência agora que falasse!
E refocilava-se todo com o seu triunfo. — Agora é que ele queria saber quem
tinha razão; sim, porque enquanto procurava se convencer de que deveria esperar
de Hortênsia aquilo mesmo, a rezingueira da consciência saltava-lhe em cima com
um nunca terminar de razões e apresentava-lhe a “excelente senhora” cada vez
mais pura e menos acessível! E eis que, de supetão, quando menos se esperava, os
fatos se erguiam brutalmente para desmentir a impostura.
E ele sorria ,vendo as asas do anjo baquearem a seus pés, murchas e
retraídas , como os galhos de uma árvore arrancados pelo nordeste.
— Bem dizia o Simões: “Quando te começarem as aventuras...”E melhor
ainda o Dr. Freitas: “Para conquistar as mulheres são apenas quatro coisas
necessárias: audácia, boas relações, um pouco de inteligência e não ser seu
marido!”
E os fatos, como disciplinados por estas palavras, formavam ala e
começavam a cantar as vitórias do estudante.. Na sua lógica indiscutível afirmavam
eles que Hortênsia, o tal modelo de severidade e pureza, morria de amores por
Amâncio, que o desejava ardentemente, que se entregaria na primeira ocasião,
fazendo loucuras, dando escândalos, que nem uma heroína de romance!
— Está segura! Exclamou o rapaz, sacudido por estas idéias. O sangue
saltava-lhe no corpo; aquela aventura se lhe afigurava a melhor de sua vida; seu
orgulho pueril, de namorador vulgar, espinoteava qual potro que se pilha às soltas
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no prado verdejante e proibido. As outras conquistas vinham logo chamadas por
aquela, e todas as vítimas de sua sensualidade, ou as cúmplices de seu
temperamento e da sua má educação, enfileiravam-se defronte dele, como um
submisso batalhão de prisioneiros.
Chegou a casa ao amanhecer e não dormiu logo. Os pensamentos revoavam-
lhe no cérebro com o frenesi de folhas secas, redemoinhadas pelo vento.
CAPÍTULO X
Dormiu mal ; os sonhos não o deixaram em paz. A princípio, todavia, foram
agradáveis: ternos episódios de amores fáceis que se encadeavam confusamente, e
nos quais a sensações vinham e fugiam de um modo incerto e deleitoso; depois
chegavam os sonhos maus, os pesadelos.
Neste, as mulheres entravam por incidente, sempre duvidosas; vultos
sinistros, e cabelos desgrenhados, rostos lívidos, surgiam em torno dele e iam-se
aproximando, até lhe ficarem cara a cara, num contato frio e incômodo de carne
morta. Depois sonhava-se em casa da família, voltando, porém, justamente do bile
do Melo; tinha muita necessidade de repouso, queria continuar a dormir, mas a voz
ríspida do pai berrava por ele da porta do quarto: “Anda daí, mandrião!, Basta de
cama! Vê se queres que eu te vá buscar!” E aquela voz terrível dava-lhe a todo o
corpo tremor de medo, e, ao estrondo que ela fazia, vultos cor-de-rosa, de cabelos
louros, fugiam espavoridos, como rãs que se atiram n’água, assustadas pela
presença de um boi.
Amâncio queria também fugir, mas suas pernas pareciam troncos de árvores
seguros ao chão; queria gritar, mas a língua inchava-lhe na boca.
Acordou muito fatigado e aborrecido às duas horas da tarde.
Logo que apareceu na sala de jantar, Mme. Brizard fez-lhe entrega de um
belo ramilhete, que lhe haviam remetido, a ele, com um cartão. Amâncio apressou-
se a ler. O escrito dizia simplesmente: “Ao Dr. Vasconcelos – uma sua amiga”.
Cruzaram-se os penetrantes risos adequados ao fato. O rapaz, intimamente
lisonjeado, fingiu não se impressionar com aquela manifestação; leu, porém, o
bilhete mais duas, três, quatro vezes.
Era letra de mulher, de Hortênsia sem dúvida. Estava ali a sua alma, o fogo
de seus olhos. Ele cheirou o pequeno pedaço de papel, e pensou sentir o mesmo
perfume que, na véspera, durante a valsa, o tinha penetrado até à medula.
Achavam-se presentes o Dr. Tavares, o Pereira, o gentleman e Lúcia.
Disseram alguma coisa sobre aquelas flores, menos a última, que, junto à janela,
parecia preocupada com um livro da capa roxa. O gentleman falou de Botânica a
propósito de uma dália vermelha que havia no ramo. Afiançou que esta flor possuía
em si tantas outras flores quantas eram as pétalas de que constava.
— Flores perfeitas, com todos os órgãos, Sr. Amâncio — estames, cálice,
tudo!
Amâncio, enquanto o Lambertosa discorria sobre a dália, leu ainda uma vez o
cartão, e, ao levantara vista, reparou que Nini o fixava, cada vez mais insistente.
Amélia dera-se por incomodada e não vira à mesa.
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O jantar correu, pois, muito frio e constrangido ao princípio; pouco se
conversava e quase ninguém tinha vontade de rir. Dir-se-ia que só Amâncio a todos
comunicava o seu fastio e o seu cansaço.
Só pela sobremesa o Dr. Tavares narrou, como de costume, algumas
anedotas jurídicas que presenciara na província. Uma delas tinha referência a ma
certa velha que fora aos tribunais por haver desancado as costelas do genro.
Mme. Brizard tomou a defesa das sogras, e aproveitou a ocasião para falar no
marido de sua filha mais velha.
Vai muito da educação e também um pouco do costume em que a gente os
põe!...acrescentou ela autoritariamente. — Mas, genro, não queria que houvesse
outro como o defunto marido de Nini.. — Era um perfeito cavalheiro! Mme. Brizard
nunca lhe vira a cara fechada, nem lhe surpreendera um gesto mais arrevesado. Ele
só a chamava, a ela, de “mãezinha”; sempre lhe trazia guloseimas da rua, e, aos
domingos, pela manhã, dava-lhe um beijo na testa , impreterivelmente! — Ah! Era
uma santa criatura!
Nini suspirou e pôs-se a chorar em silêncio.
— Agora temos choro!...pensou Amâncio com tédio.
Nini, como se adivinhara tal pensamento, olhou para ele e pediu perdão com
um sorriso, ainda mais triste que o choro.
— Eu sou aqui da opinião do Ser. Amâncio de Vasconcelos...disse o
gentleman a Mme. Brizard, em tom discreto.
Mme. Brizard não sabia, porém, do que tratava o Lambertosa.
— Ah! volveu este. — Refiro-me ao que avançou anteontem o nosso ilustre
companheiro, e indicou Amâncio com um gesto, que avançou a respeito da
vantagem que um novo casamento traria, sem dúvida ,à senhora sua filha.
— Ah! fez Mme. Brizard já não me lembrava disso. O Sr....
Lambertosa, minha senhora, Lambertosa...
O Sr. Lambertosa é então de opinião que o casamento convém às
enfermidades nervosas?...
O gentleman concentrou a fisionomia, limpou o bigode ao guardanapo,
ergueu uma faca, e principiou a emitir o seu judicioso e meditado parecer.
Surgiram logo as contendas. Lúcia marcou a página do livro de capa roxa e
olhou muito séria para os outros, pronta a dar a sua réplica. Mme. Brizard, enquanto
os mais discutiam, tamborilava com os dedos sobre a mesa, afitar um queijo de
Minas, com um gesto profundo e repassado de filosofismo. O Pereira comia
consecutivos pedaços de pão, sem abrir os olhos, e Amâncio procurava uma
evasiva para se escafeder.
Afinal, o Coqueiro, que havia já formado um grupo à parte com o Dr. Tavares,
quis fechar a discussão; mas o advogado ergueu-se de súbito, segurou as costas da
cadeira, arregalou os olhos, e desencadeou a sua eloqüência .
Em pouco, só ele falava, esquecido, como de costume, do lugar e da
situação. Imaginava-se já num tribunal, em pleno exercício de suas funções.
Pintou floreadamente o lamentável estado de Nini. Qualificou-a de “vítima
inocente dos impenetráveis caprichos de Deus”; descreveu a dolorosa expressão
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do semblante da “’infeliz moça”; disse que os olhos dela falavam a misteriosa
linguagem do amor, e, quando se dispunha a dar afinal a sua esperada opinião
sobre o casamento, a pobre enferma, muito vendida com o que vociferava o tagarela
a seu respeito, abriu a soluçar estrepitosamente.
A francesa ergueu-se, de mau humor, para pedir ao Dr. Tavares que se
deixasse daquilo, “por amor de Deus!” Doutro lado o Coqueiro também lhe
suplicava que se calasse.
Mas o demônio do homem já se não podia conter. As palavras borbotavam-
lhe da língua, como o sangue de uma facada. Fez imagens poéticas sobre o
casamento , citou nomes históricos, e jurou, à fé de suas convicções,, “que aquela
desventurada criatura precisava de um esposo, mais do que as flores carecem do
orvalho, mais do que as aves carecem do ar; mais do que os cérebros carecem de
luz!”
E, erguendo as mãos trêmulas, recuou dos passos e foi dar de encontro ao
copeiro que, por detrás dele, embasbacado, o escutava atentamente, com a bandeja
do café nos braços, à espera de uma ocasião para apresentar as xícaras.
Mme. Brizard assustou-se, o gentleman deu um salto para não sujar as
calças; rolou ao chão uma garrafa, e César, o menino sublime, vendo que os mais
velhos faziam tanta bulha, também se pôs a berrar.
Coqueiro gritava que se acomodassem por piedade.
— Aquilo não tinha jeito! Parecia haver ali uma súcia de doidos! Oh!
A mucama acudiu da cozinha, e Amélia, com um lenço amarrado na cabeça,
apareceu na porta de seu quarto, muito intrigada com o motim. Só o Pereira
continuava, inalteravelmente, a comer pedaços de pão; é verdade que abriu os olhos
duas vezes. Mas tornou logo a fechá-los e, segundo todas as probabilidades,
adormeceu.
Amâncio tratou de aproveitar a confusão para fugir da varanda.
– Que espécie de gente tão esquisita!... dizia ele em caminho do quarto. –
Nada! Aqui ainda estou pior do que na casa do Campos!
Antes de chegar ao gabinete, percebeu que alguém o seguia com dificuldade.
A sala de visitas estava já totalmente às escuras. Voltou-se, e, sem ter tempo de
dizer palavra, sentiu cair sobre ele um corpo gordo e mole.
Era Nini.
Amâncio, surpreso e contrariado, quis arredá-la, mas a histérica passou-lhe
os braços em volta do pescoço e desatou a chorar, com o rosto escondido no seu
colo.
Hein?! Disse Amâncio. — Que história é esta?!
Mas lembrou-se logo das recomendações de Mme. Brizard: “qualquer
contrariedade poderia provocar à infeliz rapariga uma crise perigosa!”
— Ora esta!... pensou ele aborrecido. – Ora esta!... e procurou afastar Nini,
brandamente. E, como a teimosa não quisesse obedecer e continuasse a chorar, ele
disse-lhe palavras amigas, pediu-lhe, quase com ternura, que voltasse à varanda;
lembrou que não era prudente ficarem ali, sozinhos e no escuro. — Podiam ser
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surpreendidos! Esta idéias o aterrava mais pelo ridículo do que pela
responsabilidade daquela situação.
Nini, entretanto, parecia não ouvir coisa alguma e continuava a abraça-lo
freneticamente, com ímpetos nervosos.
Amâncio perdeu de todo a paciência e arrancou-se violentamente dos braços
dela.
— Deixe-me! Gritou, e correu para o quarto.
Nini acompanhou-o chorando, e conseguiu agarrá-lo de novo, pelo paletó.
Estava muito nervosa e dispunha agora de uma força extraordinária.
— Isto não será um inferno?!... exclamou o rapaz, puxando a roupa das
mãos de Nini. E, vendo que ela não o largava: — Solte-me, com a breca! Ora essa!
Que diabo quer a senhora de mim?! Solte-me! Arre!
A enferma não fez caso e apertou-lhe os pulsos; seus dedos pareciam
tenazes. Amâncio debatia-se brutalmente, ouvindo-a bufar, muito agoniada, e
sentindo-lhe de vez em quando o suor do pescoço e do rosto.
Na sala de jantar serenara a discussão; só a voz do Tavares ainda se
destacava. De repente puseram-se todos a chamar por Nini.
— Olhe, disse-lhe Amâncio. — Lá dentro a estão chamando! Vá! Vá!
Ela, nem assim.
— Ora pílulas! Resmungou o estudante, desprendendo-se com um empurrão.
E ganhou o quarto, puxando a porta sobre si.
Ouviu-se então o baque surdo do corpo pesado de Nini, que foi por terra; em
seguida gritos muito agudos.
Correram todos par a sala de visitas; acenderam-se os candeeiros. Nini
escabujava no chão, a gritar, esfrangalhando as roupas e mordendo os punhos.
Coqueiro e Mme. Brizard apoderaram-se logo da infeliz. Amâncio apareceu
com o seu frasquinho de vinagre; o Lambertosa receitou uma dose homeopática e
correu ao quarto em busca da botica (a homeopatia era uma de suas paixões); Lúcia
voltou para a varanda. “Que a desculpassem, mas não podia assistir, a sangue-frio,
cenas daquela ordem... Não estava mais em suas mãos!”
* * *
O Pereira já se havia levantado da mesa e ressonava na costumada
preguiçosa.
Lúcia, ao passar por ele, atirou-lhe um olhar de tédio e disse consigo:
— Olha que estafermo!... ela às vezes tomava-lhe grande nojo, não o podia
ver com aquele ar mole, de mulher grávida, com aquelas pálpebras descaídas, a
comerem-lhe os olhos, com aquele sorriso apalermado, aquela voz derramada pelos
cantos da boca , que nem um caldo frio e seboso.
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De quando em quando sofria de insônias, e, justamente nessas ocasiões, nas
horas compridas da noite em claro, é que mais detestava o Pereira. Punha-se a
contemplá-lo longamente, com asco, fartando-se de olhar para aquele “pamonha”,
aquele “coisa inútil”, que ali, ao seu lado, dormia todo encolhido, com as mãos entre
as coxas. Vinham-lhe frenesis de enchê-lo de pescoções. Já lhe não podia suportar
o cheiro doentio do corpo; não lhe podia sentir a umidade pegajosa do suor e a
morna fedentina do hálito.
A sua ligação àquele mono era uma história muito triste e muito sensaborona.
Poucos, bem poucos a sabiam, porque Lúcia se esforçava quanto lhe era possível
por escondê-la, como quem esconde uma chaga vergonhosa.
Ela “a mísera senhora”, vinha, entretanto, de gente honesta e bem
conceituada, se bem que muito pouco escrupulosa em pontos de educação. deram-
lhe professores de francês, de música, de desenho; entregaram-lhe enfiadas de
romances banais e livros de maus versos; e, todavia, não lhe deram moral, nem
trataram de lhe formar o caráter. A desgraçada percorreu bailes desde pequena;
ouviu o primeiro galanteio aos dez anos de idade; teve a primeira paixão aos doze;
aos quinze julgava-se desiludida e sonhava com o túmulo; aos vinte, como é
natural, sucumbiu ao palavreado de um primo em segundo grau e bacharel pelo
Pedro II.
O primo, assim que a viu pejada, azulou para o Rio Grande do Sul, onde tinha
a família, e nunca mais lhe deu sinal de si.
Foi então que surgiu em Lúcia a idéias de utilizar-se do Pereira. Entre as
pessoas que freqüentavam a casa de seus pais, era ele o único aproveitável para
casamento. Nesse tempo vivia o dorminhoco às sopas de um tio suspeito de
riqueza aferrolhada, e de quem mais tarde, diziam, havia de herdar o dinheiro. Lúcia
meteu as mãos à obra, mas, por pouco que não desanimou; Pereira não dava de si
coisa alguma, parecia não compreender as provocações. Era quase impossível tirar
algum partido daquele animalejo! Ela, porém, não se quis dar como vencida, e lutou.
Lutou, empregando os meios mais ardilosos, para injetar nos nervos daquele
sonâmbulo uma faísca magnética de amor. Trabalho inútil! Afinal, vendo que o
pedaço de asno era incapaz de qualquer ação ou reação, tomou ela a parte
agressiva; e a coisa resolveu-se no mesmo instante.
Depois, como não havia tempo a perder e porque já conhecia bem a pachorra
do seu homem, foi pessoalmente ao encontro dele, meteu-se-lhe em casa e
protestou que faria um escândalo dos diabos, se o “sedutor” não tratasse, quanto
antes, de tomar uma resolução muito séria a respeito de casamento.
Pereira não tratou de tomar coisa alguma desta vida e nem se abalou com a
presença de Lúcia. Aceitou-a, como aceitaria outra qualquer imposição, porque ele
era dos tais que, às maçadas da cura, preferem os incômodos da moléstia. Só no
fim de quatro dias de lua-de-mel, como Lúcia insistisse nas suas idéias matrimoniais,
o pachorrento declarou, com toda a calma, que lhe não podia fazer a vontade nesse
ponto, em virtude de que, desde os dezoito anos, o haviam casado com uma velha,
um fúria, que o Pereira não sabia, nem queria saber, por onde andava.
Lúcia perdeu os sentidos; esteve à morte. Os pais, envergonhados com o
procedimento indigno da filha, tinham-se ido refugiar na cidade de Campos. Foi o tio
do Pereira, o tal das riquezas aferrolhadas, que a salvou; era um velho ainda bem
forte e muito mais esperto que o sobrinho. Deu –lhe casa, comida, roupa e dinheiro.
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Uma irmã dele, senhora de inveterado amor a crianças, solteirona, de
quarenta a cinqüenta anos e que, com o olho no testamento, desejava a todo o
transe ser agradável ao mano, encarregou-se do filho do bacharel.
Correram quatro anos. Lúcia não viu mais a família, apenas visitava o filho, de
quando em quando.
O Pereira continuava às sopas do tio, indiferentemente, como se tudo aquilo
não lhe dissesse respeito. Acordava, quer dizer. Levantava-se às dez horas, tomava
no quarto o seu banho morno, depois um copo de leite fervido, almoçava às onze,
fazia as digestão estendido no sofá da sala; às duas horas dormia, depois passeava
pela chácara à espera do jantar, cujo quilo era de rigor ser feito a sono solto em
uma rede que ele tinha no quarto.
À noite, quando conseguia levantar-se, jogava o gamão com o tio.
Cochilavam ambos, até que se servia o chá , e cada um se retirava para a cama.
— A noite fez-se para dormir! Sentenciava um deles.
— E o dia para se descansar, resmungava o outro espreguiçando-se.
E recolhiam-se.
O velho morreu de repente; uma congestão que lhe sobreveio ao encontrar
Lúcia no fundo do jardim às voltas com um estudante da vizinhança.
— Bom! Dissera Lúcia, alijada afinal daquela obrigação que já lhe ia pesando
demais. E fariscou o testamento. Mas o velhaco apenas deixava algumas dívidas à
praça e dois terrenos hipotecados ao Banco Predial. A coisa única que ela
aproveitou foi Cora, mulatinha de criação, cuja matrícula e cuja escritura de compra
estavam em seu nome.
Era preciso, pois, deixar a casa; os credores reclamavam tudo que pudesse
dar dinheiro. Pereira sacudia os ombros; dir-se-ia que não houvera a menor
alteração na sua vida. Continuava a dormir tranqüilamente, como se as sopas do tio
ainda o fossem procurar às horas da refeição.
Lúcia compreendeu que não devia contar com ele, e tratou em pessoa em
cômodo para os dois, num hotel de arrabalde. Sentia-se resoluta e forte; era ela
agora o cabeça do casal; tinha belos projetos de trabalho: daria lições de piano, de
desenho e de francês, até que aparecesse um homem para substituir o estafermo do
Pereira.
O homem, porém, não aparecia, como não apareciam os discípulos.
Principiou então para eles um viver perfeitamente de boêmios. Sem trates,
nem dinheiro, nem futuro, nem relações constituídas, andavam aquelas duas almas
perdidas e mais a Cora, que andava a senhora, a percorrer as casa de pensão:
sempre sobressaltados, sempre perseguidos pelos credores que iam deixando atrás
de si.
Em cada lugar se demoravam o maior tempo que podiam, dois, três, quando
muito quatro meses; até que lhe suspendiam o crédito e dos dois levantavam
novamente o vôo, deixando a dívida em aberto e o dono da casa lívido, colérico,
sem saber ao menos que direção tomavam os vagabundos.
Nesse peregrinar, Lúcia teve uma contrariedade mais profunda — achou-se
grávida de novo. Cora deu-lhe conselho, trouxe-lhe remédios para fazer abortar;
nada, entretanto, produziu efeito. O demônio da criança parecia disputar o seu
quinhão de vida com uma persistência desesperadora.
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Nasceu afinal, no quarto de um português na Fábrica de Chitas, entre os
cuidados mercenários do locandeiro e o obséquio de alguns amigos, que Lúcia fora
conquistando com as simpatias de seu talento musical,.
O diabinho pouco durou, felizmente. Desapareceu uns trinta dias depois de
ter vindo ao mundo. Morreu mesmo na rua, quando os pais, dentro de um carro de
aluguel, fugiam aflitos da Fábrica de Chitas para uma casa de pensão na Rua do
Catete.
Cora encarregou-se de atirá-lo ao mar. Ninguém viu. Seriam duas horas da
madrugada e as brisas marinhas pulverizavam no ar um chuvisco miúdo, de
fevereiro.
O menino fora muito franzino e muito mole; saíra ao pai, o Pereira. Durante o
seu pobre mês de vida só abriu os olhos uma vez, ao expirar.
A casa de pensão era a Sexta que Lúcia percorria com o suposto marido.
Apresentavam-se sempre como casados; ele muito tranqüilo de sua vida, feliz; ela
inquieta, sôfrega pelo tal sujeito, que com tanto empenho procurava.
Quando constou a Lúcia que Amâncio era rico e atoleimado, uma nova
esperança radiou-lhe no coração.
É agora!... disse.
E preparou-se para o combate.
* * *
Foi por isso que o estudante recebeu , no dia seguinte ao baile do Melo,
aquele ramilhete, tão falsamente atribuído a Hortênsia., e porque, uma semana
depois, outro ramo, bastante parecido com o primeiro, se achava às onze horas da
noite no do rapaz, sobre a cômoda.
— Olé!, disse ele.
E, satisfeito com a intriga, principiou a fazer conjeturas.
— De quem viriam aquelas flores!...Ah! exclamou, descobrindo um bilhetinho,
escondido entre duas rosas.
E leu:
“Não saibam nunca espíritos indiferentes, nem mesmo tu, adorado fantasista,
quem te envia essas pobres flores. Não o procures descobrir; deixa que o meu
segredo viceje e cresça na tepidez do mistério, ‘semelhança das plantas
melancólicas que reverdecem nas sombras ignoradas dos rochedos. Eu te amo!”
— Seria de Amélia, seria de Lúcia, ou seria de Hortênsia? De Nini é que não
poderia ser, porque a desgraçada, com certeza, não sabia escrever coisas daquela
ordem!
Não dormiu essa noite; as palavras do ramilhete voejavam-lhe dentro da
cabeça, como um bando de mariposas.
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— De quem seria?...De Amélia não, não era de supor; pois que a bonita
menina, longe de o provocar, fugia sempre que ele tentava se abrir com ela em
questões de amor; de Hortênsia também não, não era natural que fosse, porque, em
tal caso, Mme. Brizard, ou qualquer outra pessoa de casa, teria visto o portador.
Além disso, a mulher do Campos não seria capaz daquilo; estava caidinha — é
certo! Mas não levaria a leviandade ao ponto de lhe escrever e enviar semelhante
declaração. O que, porém, não sofria dúvida é que os ramos tinham a mesma
procedência.
E Lúcia?...É verdade! E Lúcia? Com certeza não era de outra! Sim! Tudo
estava a dizer que o tal bilhetinho saíra de suas mãos!...aquelas frases poéticas,
aquele mistério, aquela franqueza de confessar o seu amor em duas palavras...Não
tinha que ver! Era da mulher do Pereira!
E um palpite brutal, inadiável, substituiu logo a calma simpatia que lhe
inspirara Lúcia.
Desde que se capacitou de que eram dela os ramilhetes, desejou-a com
urgência; queria que ela surgisse ali, naquele mesmo instante, na silenciosa
escuridão daquele quarto.
E voltava-se de um para outro lado da cama, sem conseguir pegar no sono.
Esperar até o dia seguinte o momento de estar com ela afigurava-se-lhe um
sacrifício enorme, quase invencível. Como podia lá descansar, dormir, com
semelhante preocupação a remexer-se-lhe por dentro, como um feto doido que lhe
mordesse as entranhas?
Definitivamente não conseguia adormecer. Levantou-se, acendeu um cigarro,
abriu a janela, e pôs-se a olhar para a lua que estava boa essa noite. Vieram-lhe
logo as conjeturas sobre o como seria a situação, no caso que Lúcia aparecesse ali,
naquele instante ”Que sucederia?...Que fariam eles?...”
Duas horas bateram na sala de jantar.
— Diabo! Resmungou Amâncio, sentindo arrepios por todo o corpo. — Desta
forma perco a noite inteira, e amanhã estou impossibilitado de ir à academia!...
A idéia do estudo apresentava-se-lhe sempre com um sabor muito amargo de
sacrifício. Lembrou-se, todavia, de aproveitar a insônia para correr uma vista de
olhos pela lição; acendeu a vela, corajosamente, assentou-se à mesinha que havia
no quarto e abriu um compêndio. Mas não conseguia prestar atenção à leitura;
percorreu distraído duas ou três páginas e ficou a olhar a chama trêmula da vela,
cada vez mais abstrato e mais febril.
Sentiu vontade de beber. — Se não estava enganado — a garrafa de
conhaque ficara sobre o aparador, na varanda.
Ergueu-se, enfiou o sobretudo e saiu da alcova.
O sangue não lhe queria ficar quieto. A continuar daquele modo, o remédio
que tinha era pôr-se ao fresco e vagar pelas ruas, até encontrar sossego.
O conhaque não estava no aparador. Amâncio, contrariado, desceu à
chácara, e foi assentar-se a um banco de pedra. — Naquele momento comeria
alguma coisa, se houvesse, pensou ele, resolvido a organizar no dia seguinte um
bufete no seu próprio quarto.
A lua escondia-se agora entre nuvens; as árvores rumorejavam; tudo parecia
concentrado e adormecido.
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Debaixo viam-se as janelas dos quatro cômodos do segundo andar, que
davam para a chácara. Lá estava o n.° 8, o 9 o 10 e o 11. Começou a pensar nos
hóspedes daqueles quartos: o 11 era do tal Correia o médico que só aparecia ali de
quando em quando, “para fazer uns trabalhos que os filhos não lhe permitiam em
casa da família”; o 10 era do gentleman — Bom maçante! Amâncio lembrou-se de
que lhe prometera acompanhá-lo uma qualquer noite ao Passeio Público. — Havia
de ir, disseram-lhe que às vezes se encontravam aí bem boas coisas!...
O 9 é que ele não se lembrava a quem pertencia...Ah! era do tal Melinho, “ a
pérola”, como o qualificava João Coqueiro constantemente.
E o de Lúcia! da misteriosa Lúcia!
Ela estava ali!...fazendo o quê?...pensando nele talvez...talvez
dormindo...talvez até nem dela fossem o bilhetinho amoroso e os dois
ramilhetes!...Quem sabia lá!...
E esta dúvida o apoquentava.
— Ora adeus! disse. — A ocasião havia de chegar!...
Veio-lhe, porém uma tentação aguda de subir ao n.° 8.
— Que mal podia vir daí?...O marido com certeza estava dormindo!...Que
poderia acontecer?...
Levantou-se resolvido; mas as vidraças do quarto do tal médico, que só
aparecia de quando em quando, acabavam de se iluminar.
— Olá!... considerou Amâncio, detendo-se. Ë o n. °11!
Por detrás dos vidros havia cortinas de cassa; nada se podia ver para dentro,
apenas duas sombras difusas projetavam-se na cambraia, ora aumentando, ora
diminuindo. Amâncio deixou-se ficar onde estava , mordido já de curiosidade.
Daí a uns dez minutos, pela escadinha do fundo, desciam cautelosamente,
um sujeito alto, todo de escuro, e mais uma mulher gorda, de enorme chapéu, cujas
abas lhe caíam sobre os olhos, ensombrando-lhe o rosto.
Vinha um atrás do outro, porque a escada era estreita. Atravessaram a
chácara, falando em voz baixa, e entraram no corredor.
Amâncio acompanhou-os, de longe, e tripetrepe.
A porta da rua estava aberta, como de costume; um carro esperava pelos
dois lá fora; o cocheiro dormia na boléia. O sujeito do n.° 11 deu a mão à mulher das
grandes abas, ajudou-a a entrar na carruagem e, seguida, entrou também. O
cocheiro fechou sobre eles a portinhola, sem lhes dar palavra, depois saltou para o
se posto e tocou os animais.
— E que tal?...interrogou Amâncio de si para si, quando os viu partir.
Lembrou-se então do que lhe dissera o velhaco do Coqueiro por ocasião de
mostrar-lhe a casa: “Quanto a certas visitas...isso tem paciência... lá fora o que
quiseres, mas, daquela porta para dentro...”
— Hipócritas! pluralizou o estudante.
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E encaminhou-se para o segundo andar.
* * *
Subiu pela escadinha do fundo, não a do médico, mas pela outra do lado
oposto; porque havia duas.
O primeiro andar continuava em completo silêncio; no segundo apenas se
ouvia, de espaço a espaço, um tossir seco e agoniado, que vinha naturalmente do
n.° 7 onde morava o tal moço doente. O pobre-diabo piorava à falta absoluta de
meios.
Amâncio entrou às apalpadelas no corredor que dividia os oito quartos. O luar
filtrava-se a custo pelas venezianas e pelas vidraças da janela e sarapintava o chão
de pequeninos pontos brancos.
O n. ° 5, onde residia o Paula Mendes com a mulher, era o único que tinha
luz; uma forte claridade rebentava por cima da porta fechada e ia projetar-se na
parede do n.°10 que lhe ficava fronteiro. Mas ainda assim o corredor estava bem
escuro.
Amâncio parou defronte do n.° 8. — Era ali!
Encostou o ouvido à fechadura; nem sinal de vida - Lúcia com certeza dormia
profundamente.
— Dormia! Pensou o estudante. — Dormia, sem preocupações nem
cuidados; ao passo que ele, por não encontrar descanso, errava pelos corredores
desertos, como uma alma penada!. — Para que então se lembrara aquela mulher
de ir mexer com ele?!... Se a sua intenção era dormir, para que o foi provocar? Para
que lhe foi bulir com o sangue? Oh! Aquele silêncio do n.° 8 o irritava! Aquela
indiferença afigurava-se-lhe uma afronta ao seu amor-próprio, um atentado contra o
seu orgulho
E, quanto mais se convencia da impossibilidade de falar essa noite a Lúcia,
mais e mais os seus sentidos se assanhavam! Afinal, já não fazia grande questão de
ser com ela própria; aceitaria qualquer outra que o arrancasse daquela ansiedade
em que se via entalado, como se estivesse dentro de uma armadura em brasa.
— Que inferno! Dizia ele consigo, rangendo os dentes. — Que inferno!
E, sem ânimo de ir embora, permanecia encostado à porta do n.° 8, deixando
–se comer aos bocadinhos pela febre do seu desejo; ao passo que o corpo inteiro
arfava com o resfolegar aflitivo dos pulmões.
— Todavia, pensou ele - quantas mulheres não o desejariam Ter junto de si
naquele momento?...Donzelas até, quantas, naquele instante, não se estorceriam no
leito e não morderiam os travesseiros, desvairadas pela isolação?
E saborosas lembranças de amores extintos, que o tempo e a ausência
tornavam, mais perfeitos e mais desejáveis, acudiam-lhe simultaneamente ao
espírito, para lhe aumentar as torturas da carne. As suas amantes do passado eram
agora ainda mais atraentes e formosas; em todas elas não havia um lábio sem
sorriso, um olhar sem fogo; era tudo opulento de graças e de meiguices, era tudo
encantador e completo
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Pôs-se a arranhar devagarinho a porta, dizendo quase em segredo o nome de
Lúcia. Nada, porém respondia; o mesmo silêncio compacto enchia as trevas do
corredor.
Seu desejo, estimulado e tonto, evocava então todos os meios de saciar-se;
descobria hipóteses absurdas, inventava possibilidades que não existiam. Amâncio
chegou a pensar em Amélia, em Mme. Brizard, na mucama, e até, que horror! Em
Nini!.
— Ai , meu Deus, gemeu nesse instante o doente do n. ° 7.
O estudante deixou a porta de Lúcia e segui em ponta de pés pelo corredor.
Ao passar defronte do quarto do Paula Mendes, suspendeu o passo; a luz
continuava com a mesma intensidade; o curioso não resistiu a uma tentação e
espiou pela fechadura.
O pobre homem trabalhava, vergado sobre ma mesinha estreita e todas
coberta de papéis de música. Ao lado, pelas cadeiras e sobre um sofá de couro
negro encostado a um biombo havia folhas esparsas e cadernetas empilhadas.
Recebera nessa tarde a encomenda de organizar uma sinfonia, que tinha de
ser executada daí a quatro dias em uma festa fora da cidade. O Imperador prometeu
que iria.
Mendes estava ainda organizando as partes cavadas. Ouviam-se o ranger da
pena no papel grosso de Holanda, o tique-taque de um despertador de metal
branco, pousado sobre a cômoda, e o grosso ressonar da mulher, que dormia por
detrás do biombo. O rabequista parecia menos triste naquela ocasião do que nas
outras em que o vira Amâncio.
É porque a mulher está dormindo, calculou este, lembrando-se do mal gênio
de Catarina. E considerou sobre a existência ordinária que levariam ali, encurraladas
no mesmo cubículo, aquelas criaturas tão opostas.
O Mendes, sem desprender a pena do papel, começou a solfejar em voz
baixa o que escrevia; mas, como lá dentro cessaram os roncos da mulher e esta
remexeu na cama, resmungando, ele incontinente calou a boca e prosseguiu em
silêncio no seu trabalho.
— Ainda estás com isto?! Perguntou ela, afinal, depois de uma pausa.
O marido respondeu afirmativamente.
— Pois, homem, vê se acabas com essa porcaria! Bem sabes que, enquanto
houver luz no quarto, não posso pregar olho!
E, fazendo ranger as tábuas da cama, virou-se de um lado para outro;
acrescentando com a sua voz de homem:
— Deixa isso! Anda! E apaga o diabo dessa luz!
— Não , filha, respondeu o artista brandamente. – É preciso que este serviço
fique pronto amanhã...
E, depois de um muxoxo da mulher:
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— Sabes o quanto precisamos deste dinheiro...A diretora do colégio ainda
ontem protestou que despediria a pequena, se seu não lhe arranjasse alguma coisas
por conta do que devemos; o Joãozinho, coitado, há quase dois meses pediu-me
que lhe levasse um sobretudo, porque lá no trapiche onde ele agora está
trabalhando, faz pela manhã um frio de rachar; Mme Brizard, você não ignora, tem-
nos apoquentado e...
— Ë isto! interrompeu a mulher. — Ë sempre a mesma cantiga! — De tudo
você se lembra, menos do que eu preciso!
— Ah! se me lembro , filha! Mas é que nem sempre a gente pode fazer o que
deseja...Descansa, porém, que as coisa hão de endireitar e tu possuirás de novo o
teu piano de cauda! Tem um pouco de paciência...
— Já me tardava essa música! Já me tardava a “paciência”! A paciência
inventou-se para consolar os tolos! Farte-se você com ela! De conselhos estou
cheia, meu amigo! Quero obras e não palavras!
Mendes não respondeu e continuou a trabalhar meneando a cabeça
resignadamente. Catarina remexeu-se com mais agitação e rangidos da cama e, daí
a pouco levantou-se de um salto, gritando:
— Arre, com os diabos! Que nem se pode dormir!
— Olha os vizinhos, filha!...arriscou o marido. — Lembra-te de que são três
horas da madrugada...
— Os vizinhos que se fomentem! Berrou ela, embrulhando-se na colcha e
fazendo tremer o soalho com seus passos de granadeiro. — Não como em casa
deles, não preciso deles para nada!
E, depois de ir beber um copo d’água ao fundo do quarto:
— Tinha graça! Que eu, além de tudo, não pudesse falar à minha vontade!
Melhor seria, nesse caso, que me amarrassem uma bala aos pés e mandassem,
atirar comigo ao mar!
— Estás de mau humor, filha! Vê se descansas.
— Não é de espantar, levando a vida que eu levo! Sempre numas porcarias
de quartos! Se precisa de qualquer coisa, é um “ai Jesus” Nunca há dinheiro! O
almoço é aquilo que se sabe; o jantar pior um pouco! Se fico doente, se tenho uma
debilidade, não há quem me traga um caldo! não há quem me dê um remédio!
Arrenego de tal vidas, diabo!
— Ö Catarina!...disse o Mendes ressentindo-se — Pois eu não estou
aqui?...Algum dia já me afastei de teu lado, ao te sentires incomodada?
— E antes se afastasse, creia! Porque já me custa a suportá-lo quando estou
de saúde, quanto mais doente! Casca! — atirar-me em roto uns miseráveis serviços
que qualquer um faria!...Pois não os faça!, que até é favor! Passo muito melhor
sem eles!
— Está bom, senhora, está bom! Não precisa se arreliar! Veja se descansa,
que eu agora tenho que fazer!
— Descansada queria você me ver, mas era no Caju, por uma vez, seu
malvado! Pensa que encontraria o demônio de alguma tola que caísse na asneira
em que eu caí de se amarrar a um homem de sua laia? Um pingas! Que anda
sempre com a sela na barriga!
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E, avançando para o marido de olhos arregalados e um punho no ar:
— Mas, podes perder as esperanças, que eu não morro antes de ti, Mané
Bocó! Primeiro hás de ir tu, entendeste?! — Ah! Supunhas que eu levaria a roer
uma vida de chifre e depois rebentava pra aí, enquanto ficavas por cá a te lamberes
de contente! — Um sebo! Hei de ir, sim, mas depois de te haver feito amargar
também um bocado, meu burro velho!
— Ó mulher! cala essa boca do diabo! Gritou, afinal, o Mendes, arrojando a
pena e empurrando os papéis que tinha defronte de si. — Arre! Ë muito! Arre!
O moço do n.° 7 expectorou com mais força e pôs-se a gemer.
Ora, com um milhão de demônios! Gritou o guarda-livros, morava no n.° 6 —
Não é possível sossegar neste inferno! Quando não é a tosse e o gemido da direita,
é a rezinga e a briga da esquerda! Apre! Antes morar num hospital de doidos!
Mendes levantou-se ,segurando a cabeça com uma das mãos, e começou a
passear agitado pelo quarto .
Catarina continuava a serrazinar, atirando com os pés o que topava no meio
das casa. O marido parou de súbito, sacudiu a cabeça, depois foi-se chegando para
a mulher e correu-lhe a mão pela espádua nua e lustrosa, timidamente, como se
afagasse anca de uma égua bravia
— Então, filha?...disse com ternura. — Vai deitar, vai!...Estamos aqui a
incomodar os outros... Anda, vai!
— Os incomodados são os que se mudam! gritou ela.
— E é o que vou tratar de fazer amanhã mesmo! Berrou o guarda-livros. —
Estou farto! Quem trabalha durante o dia, precisa da noite para descansar! Arre!
— Não faça caso, senhor!...Disse o Mendes, e encaminhou-se para a porta.
Amâncio, assim que o sentiu aproximar-se, fugiu pé ante pé, com ligeireza.
Nesse momento, o Campelo, o tal esquisitão do n.° 4, que até aí não dera
sinal de si, levantou-se tranqüilamente, tomou o seu clarinete, e começou por acinte,
a tirar do instrumento as notas mais estranhas e atormentadoras que se podem
imaginar. O guarda-livros respondeu-lhe batendo com a bengala nas paredes de
tabique e berrando, como um doido, o Zé Pereira.
— Ai, meu Deus!, ai, meu Deus!, continuava a gemer arrastadamente o pobre
sujeito do n.° 7.
Já pelas escadas, Amâncio ouviu as vozes do gentleman , do Melinho e de
Lúcia, que acordaram espantados, e em gritos reclamavam contra semelhante
abuso. No andar de baixo, o Piloto, o Dr. Tavares, o Fontes, e a mulher, abriam as
portas dos competentes quartos, para indagar que diabo queria aquilo dizer. Só o
dorminhoco do Pereira não se deu por achado.
Amâncio já estava enter os lençóis, quando o Coqueiro percorreu toda a casa,
de robe-de-chambre e um castiçal na mão.
CAPÍTULO XI
O guarda-livros, no dia seguinte pela manhã, declarou a Mme. Brizard que se
retirava da casa de pensão.
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— Oh! Disse. — Não estava disposto a suportar por mais tempo aquele
zungu! Os seus vizinhos eram uma gente impossível! — Não se passava uma noite
em que não houvesse chinfrinada!...Não! definitivamente não podia ficar! De mais —
O tísico do n.° 7 não lhe dava um momento de descanso com o diabo de uma
tosse, que parecia aumentar todos os dias! Nada! Antes tomar um quarto no inferno!
Mme. Brizard e o marido procuravam dissuadi-lo de tal resolução. Não lhes
convinha perder um hóspede tão bom.
O guarda-livros, com efeito, era muito pontual nos pagamentos e não
incomodava pessoa alguma, porque só queria o quarto para dormir; verdade é que
não fazia o gasto da comida, mas em compensação estava sempre a encomendar
ceiatas e jantares que deixavam bem bom lucro.
A ter por conseguinte, de sair alguém, antes fosse o tal rabequista, o tal Paula
Mendes, que, sobre possuir uma mulher insuportável, achava-se já atrasado nas
suas contas, e os donos da casa não viam muito certo o recebimento.
Catarina, assim que soube de semelhantes considerações, desceu em três
pulos ao primeiro andar e, atravessando-se defronte do Coqueiro, com as mãos nas
ilhargas, gritou-lhe, refilando as presas:
— Repita você o que teve o atrevimento de dizer a meu respeito e a
respeito de meu marido! Repita aí, se for capaz, que lhe mostro já para quanto
presto, seu cara de fome!
João Coqueiro, muito pálido e com o lábio superior a tremer, exclamou que
“sua casa não era Praia do Peixe”; que ele não estava habituado “àqueles banzés”!
Quem quisesse dar escândalos que fosse lá para o meio da rua, que se fosse
entender com as regateiras!
— Regateiras e regateiros são vocês, corja de gatunos! Replicou a outra.
Mme. Brizard, que por essa ocasião, ainda no quarto, enfiava as botinas,
acudiu logo, um pé calçado e outro não, e, com tal fúria avançou contra a mulher do
Paula Mendes, que Amélia, o Coqueiro e Nini não a puderam conter
As duas atracaram-se.
Os hóspedes, que estavam em casa, acudiram todos igualmente. Houve
bordoada, gritos, palavrões. Nini teve um ataque de nervos.
O ilustre Lambertosa teve vários empurrões e caiu contra uma cesta de ovos,
que o copeiro acabava de pousar no chão, para socorrer as senhoras
E, no meio de toda esta desordem, destacava-se a voz sibilante do advogado
Tavares.
— Calma, senhores! Calma! Bradava ele. — Calma por quem sois! Esquecei-
vos de que a única arma do homem civilizado deve ser a palavra, escrita ou falada, a
idéia, enfim?! Esquecei-vos de que cada um de vós possui um cérebro, onde reside
uma partícula da sabedoria divina, e que só com esse cabedal podeis cruzar as
vossa opiniões, sem que seja necessário vos agatanhardes como animais selvagens
ferozes?!...Virgílio, meus senhores, o imortal Virgílio, o verdadeiro fundador da
eloqüência, diz muito acertadamente na sua Eneida, Livro IV, com referência à
desditosa Dido — Pendet que iteram narrantis ab ore! Se podemos, pois, convencer
com palavras, para que havemos de recorrer aos murros?!
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E , loco do costumado . entusiasmo, dava punhadas frenéticas na mesa e
perguntava em torno com os olhos enviesados e as cordoveias intumescidas:
— E o que dizia Salomão?! E o que dizia Salomão, na sua inquebrantável
sabedoria?! Salomão, meus senhores...
Mas o orador foi interrompido violentamente pelo Coqueiro, que desejava
saber se ele podia dispensar o seu quarto ao guarda –livros e mudar-se para o n.° 6
do segundo andar.
Haviam combinado essa mudança enquanto o tagarela discursava.
— Salomão! Sr. Dr. Coqueiro, Salomão foi um prodígio!
— Pois bem, já sabemos disso, e agora o que nos convém saber é se V. S.a
cede ou não cede o seu quarto...
Mas não foi necessário tal assentimento, porque Amâncio, depois de um sinal
de Lúcia, declarou que cederia o seu gabinete por qualquer um dos quartos do
segundo andar.
Coqueiro espantou-se. — Querer trocar o gabinete por um quarto do
segundo andar!...Ora, seu Amâncio!
— Faz-me conta, respondeu secamente o provinciano. E, chegando-se para o
locandeiro, acrescentou-lhe ao ouvido: — Logo mais te direi a razão por que...
Ficou resolvido que o guarda-livros passaria a ocupar o gabinete de
Amâncio; este iria para o n.° 6, e o Paula Mendes e mais mulher deixariam de comer
à mesa de Mme. Brizard, continuando, porém no n.° 5, até que liquidassem as suas
contas.
* * *
Na tarde desse mesmo dia, como fizesse bom tempo, as senhoras
combinaram em tomar o café na chácara. Mme. Brizard, Amelinha, Lúcia e Nini, mal
acabaram de jantar, desceram ao terraço. Coqueiro e Amâncio já iriam também para
o cavaco. — Tinham primeiro que dar dois dedos de conversa.
Os dois rapazes meteram-se no vão de uma janela da sala de visitas, e
Amâncio, com acentuações de quem detesta imoralidades, disse ao outro, sem
transição:
— Coqueiro, estou aqui há pouco tempo, mas estimo tua família, como se
fosse a minha própria, e, por conseguinte, entendo que é do meu dever me abrir
contigo, sempre que nesta casa descobrir qualquer coisa que possa Ter
conseqüências graves...
— Mas que há? Perguntou o outro a fitá-lo, com muito empenho.
— Trata-se de Nini, disse o provinciano em voz soturna.
Coqueiro remexeu-se no canto da janela.
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— Sabes, continuou aquele, — que a pobre menina sofre horrivelmente dos
nervos, e creio até que tem qualquer desarranjo na cabeça...
— Sim, por quê?
— Ë uma enferma, que, e não tivermos muito cuidado com ela, pode vir a dar
sérios desgostos a ti e tua família...Mas, desembucha, o que é que houve?...
— Ë que ela, naturalmente em conseqüência da moléstia, coitada, às vezes
faz certas coisas que para mim ou qualquer outro rapaz de bons princípios não
valem nada, mas que, se caírem nas mãos de um desalmado...sim! Tu sabes que
hás homens para tudo neste mundo!...
E, Amâncio, inflamado pelos princípios morais que ele só cultivava
teoricamente, parecia mais que ninguém preocupado com a pureza dos costumes.
— Mas, afinal, que fez ela? Perguntou o Coqueiro, impacientando-se.
— Ora, disse o colega , desgostosamente, — tem feito o diabo...Ainda ontem,
quando me levantei da mesa , segui-me até à sala e...
— E...
— Principiou a fazer tolices. A pobrezinha estava como não calculas!...Tive
que recorrer à violência para contê-la; o resultado foi aquele ataque!...
E, vendo o ar de espanto que fazia o Coqueiro:
— Digo-te isto, porque me parece que tenho obrigação de to dizer se, porém
faço mal, desculpa!...
— Mal? Ao contrário! Decerto que ao contrário! Fico-te muito grato!
E abraçando-o:
— Acabas de provar que és um homem de bem! A tua ação é de um
verdadeiro amigo: não imaginas o quanto eu a aprecio.
— Cumpri com o meu dever...observou o provinciano modestamente.
— Obrigado! Muito obrigado! Fico prevenido. De hoje em diante não
acontecerá outra!
— E agora, compreendes por que não me convinha ficar embaixo, no
gabinete?...concluiu Amâncio.
— Oh!...Isso, porém, não era motivo para que deixasses o teu
gabinetezinho... Eu daria as providências necessárias!...
— Não, filho, nesta questões de família sou muito rigoroso. E agora, o que
está feito, está feito! Vou para o segundo andar; é até mais fresco!...
E, depois de algumas ligeiras considerações sobre o mesmo assunto, os dois
rapazes trocaram comovidos um enérgico aperto de mão e desceram juntos à
chácara, onde, debaixo das latadas de maracujá, os esperavam as senhoras,
palestrando em familiar camaradagem.
* * *
Dias depois, quando Amâncio já estava transferido para o n.° 6 do segundo
andar, chegaram-lhe às mãos duas cartas; uma de sua mãe, outra de seu pai.
Era a primeira vez que o velho Vasconcelos se dirigia ao filho em carta
especial.
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Abriu logo a de Ângela, sofregamente, e a imagem da santa, que as últimas
agitações da vida do rapaz haviam nublado por instantes, como nuvens que
escondem uma estrela guiadora, mal começou a leitura, ressurgiu inteira e lúcida à
memória dele.
A boa mãe queixava-se de que o filho, ultimamente, já lhe não escrevia com
a mesma assiduidade e com a mesma expansão: “Que significava semelhante
mudança? Donde vinha aquela reserva? Por que aqueles bilhetes tão apressados,
quase telegráficos?...”perguntava ela com a sua letra redonda e um pouco trêmula.
“Por que não me escreves mais amiúde e mais extensamente?” insistia a carta, “por
que, meu querido filho, não me contas toda a tua vida; não me dizes como passas, e
em que te ocupas? Desejo saber se o Campos continua a ser teu amigo, se na casa
dele continuas tratado como dantes. Quero que me relates tudo, que te diga
respeito, meu Amâncio. Se soubesses a falta que tu me fazes, os cuidados que me
dá a tua ausência, com certeza serias melhor para tua mãe.”
E, sempre a mesma, sempre extremosa, sempre com o filho na idéia,
enviava-lhe conselhos, recomendava-lhe certas precauçõezinhas; as medidas que
devia tomar contra tais e tais perigos; o modo pelo qual devia proceder em tais e tais
perigos; o modo pelo qual devia proceder em tais e tais situações.
Amâncio releu várias vezes o que lhe dizia Ângela, e respirou largamente,
como quem sai de um quarto apertado para um grande ar livre. Mas, se a carta
materna o impressionou, a outra o surpreendeu, porque, de tão afável e
condescendente, não parecia derivar daquele terrível Vasconcelos, que até em
sonhos o aterrava, e sim das mãos amigas de um velho camarada dos bons tempos
da infância.
Estranhou-o logo, desde as primeiras palavras.
“Meu filho”.
Até então, nunca recebera de seu pai esse carinhoso tratamento. O
Vasconcelos nem ao menos o tratara por tu; nunca lhe dera a beijar a mão ou a
face, nunca lhe abrira, enfim o coração, quando este se achava ainda brando e
maleável, para depor aí as sementes de ternura, que desabrochariam mais tarde
produzindo os bons sedimentos do homem..
Como exigir de Amâncio que tivesse agora as virtudes que, em estação
propícia, lhe não plantaram na alma? Como exigir-lhe dedicação, heroísmo,
coragem, energia, entusiasmo e honra, se de nenhuma dessas coisas lhe
inocularam em tempo o germe necessário?
Ele, coitado, havia fatalmente de ser mau, covarde, e traiçoeiro. Na
ramificação de seu caráter a sensualidade era o galho único desenvolvido e
enfolhado, porque de todos só esse podia crescer e medrar sem auxílios exteriores.
Vasconcelos, por conseguinte, chegou tarde; encontrou já enrijado e duro o
coração do filho.
E, no entanto, toda a sus carta, fazia o que, por inépcia nunca fizera de perto,
— dirigia-se amorosamente ao rapaz. Contava-lhe novidades da província,
comentava certos fatos escandalosos, falava sem reservas de umas tantas coisas,
das quais até aí nunca se permitira tratar na presença de Amâncio.
O tópico seguinte levou o provinciano ao cúmulo da admiração:
“Não digo que te faças um santo, mas também não te afogues no torvelinho
dos prazeres. Goza, meu filho, por isso que és moço, goza, porém, com prudência e
com juízo; diverte-te, mas evitando sempre tudo aquilo que te possa prejudicar.
Lembra-te de que saúde só tens uma, e moléstias há muitas. O mundo não se
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101
acaba! Adeus. Nunca deixes de me escrever e, quando te vires aí em qualquer
apuro, fala-me com franqueza.”
Tudo isso vinha tarde. Muita coisa, à semelhança do leite materno, só nos
aproveitam até certa época. Depois, em vez de fazerem bem, fazem mal.
As palavras de Vasconcelos que, aplicadas no tempo competente, dariam
ótimos resultados em benefício do filho, eram agora para este um simples pretexto
de galhofa. Amâncio sorriu da aparente transformação de seu pai.
— Ora para que havia de dar o velho!...
Não obstante, um vago sentimento, ao mesmo tempo amargo e agradável,
apoderou-se dele. Desfrutava um certo gosto em merecer aquela intimidade paterna;
mas, por outro lado, doía-lhe a consciência por não ter sido melhor filho; como se o
pobre rapaz de qualquer forma contribuíra para semelhante falta.
E, então, acudiu-lhe à memória uma circunstância de que jamais se havia
lembrado, — a despedida do pai. Vasconcelos estava bastante comovido nesse
momento e abraçava-o chorando. Amâncio nunca lhe tinha visto o rosto com aquela
simpática expressão de sofrimento; mas, bem pouco se impressionou na ocasião; os
olhos conservavam-se-lhe enxutos e o coração quase alegre com a idéia da
liberdade que ia principiar
Só agora, depois da carta, depois que soube que era amado pelo velho, uma
grande tristeza invadiu-o todo, e as lágrimas rebentaram-lhe com explosão.
Assim sucede sempre aos filhos educados à portuguesa, cujos pais como
que sentem vexame de lhes patentear o seu amor.
Pobres pais! Quantas vezes não estarão morrendo por afagar o filho e,
todavia, em vez de lhe darem um sorriso carinhoso, um beijo, uma palavra de
doçura, fingem-se indiferentes e afastam-se para que o pequeno não lhes perceba a
comoção.
Néscios! Julgam que com isso estabelecem uma corrente de respeito entre
eles e os filhos; julgam que isso é indispensável para o bom êxito da educação;
quando toda essa anomalia só pode servir para lhes roubar a confiança e a estima
dos entes predestinados a dedicar-lhes todas as primícias de sua ternura.
Os pais dessa espécie levam a tal exagero a sua convencional rispidez, que,
se acham graça em alguma coisa feita pelo filho, sufocam o riso, medrosos de que
qualquer expansão acarrete uma quebra ao respeito filial.
Foi tudo isso, ao justo, que se deu com Vasconcelos a respeito de Amâncio.
Amou-o, mas com disfarce; fingiu-se diretor inflexível, quando era simplesmente um
pai como qualquer outro. Muita vez chorou de ternura, mas sempre às escondidas;
muita vez sentiu o coração saltar para o filho, mas sempre se conteve, receoso de
cair no ridículo.
E não se lembrava, o imprudente, de que o amor de pai é bem contrário ao
amor de filho; não se lembrava de que aquele nasce e subsiste por si e que este
precisa ser criado; que aquele é um princípio e que este é uma conseqüência; que
um vem de dentro para fora e que o outro vem de fora para dentro. Não se
lembrava, o infeliz, de que o primeiro existirá fatalmente, por uma lei indefectível da
natureza; ao passo que o segundo só aparecerá se lhe derem elementos da vida.
Foi desses elementos que Amâncio nunca dispôs para poder amar o pai
* * *
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102
O fato é que , depois da leitura da carta, o estudante sentiu, pela primeira
vez, algum desejo de dar notícias suas a Vasconcelos; até aí só o fazia por honra da
firma.
Campos, que lhe apareceu em seguida, veio transformar esse desejo em
vontade, falando-lhe da correspondência extraordinária que, pelo mesmo paquete,
recebera do Maranhão. O velho Vasconcelos também lhe havia escrito, e, com tanto
interesse lhe falara de Amâncio, tão inconsolável se mostrara e tão saudoso pelo
filho, e com tal insistência pedira ao negociante para olhar pelo rapaz, que o bom
homem não hesitou em correr logo à casa de pensão de Mme. Brizard.
O estudante carregou com ele para o quarto. — Aí conversariam mais à
vontade.
— Pois, meu nobre amigo, disse o marido de Hortênsia, assentando-se
defronte de Amâncio , e batendo-lhe uma palmada na coxa, — seu pai não se cansa
de falar a seu respeito. São as saudades, coitado!
E tirando uma carta do bolso para entregar ao outro:
— Leia, leia e veja como está triste o pobre velho! Ah! meu amigo, acredite
que — possuir um pai é a maior fortuna que se pode ambicionar neste mundo!
Amâncio, entre outras coisas, leu o seguinte:
“Não imagina o Sr. Campos os cuidados em que eu e a minha boa Ângela
nos temos visto por cá com a ausência do rapaz. Nunca pensei que nos fizesse
tanta falta. Ela, coitada, leva a chorar desde que amanhece, e à noite é aquela
certeza dos sonhos ruins a mais não ser! Acho-a muito magra e abatida de tempos a
esta parte. Então quando não recebe cartas do filho, o que já se observa há três
vapores consecutivos, fica prostrada de tal modo que se não pode levantar da cama.
“Veja, por conseguinte, se alcança que o nosso estudante nunca nos deixe de
escrever; duas palavras que sejam , dizendo como está de saúde e que vai bem nos
seus estudos. Isso, que a ele não custará muito, poupa todavia cá por casa muitas
horas de sofrimento e de desgosto.
“Até já me lembrou providenciar no sentido de fazê-lo vir no fim do ano passar
as férias conosco, não sei, porém, se tal coisa será conveniente ainda tão no
princípio da carreira. O amigo dispensar-me-á o obséquio de escrever a esse
respeito.
“Em todo o caso, a idéia de que o senhor está aí, perto dele, e que , pelo que
tem mostrado, é deveras nosso amigo, tranqüiliza-nos em grande parte. Conto, pois
, que olhará sempre por Amâncio. Tenha paciência, sei que o importuno com estas
coisas , mas que hei de fazer? Dizem tanto dessa Corte; falam de tal forma do clima
e dos mil perigos a que aí esta sujeita a mocidade, que, só a lembrança de uma
tísica galopante ou de um desses desvios, uma dessas loucuras que às vezes
acometem aos rapazes e inutiliza-os para o resto da vida; uma dessas desgraças,
Sr. Campos, que lhes sucedem facilmente, quando eles não dispõem de um bom
amigo que os encaminhe e aconselhe; só a lembrança de tudo isso, meu caro
senhor, é o bastante para me tirar o sossego do espírito.
“Tenha a bondade, sempre que falar ao meu rapaz, de lembrar-lhe as
obrigações e dizer-lhe com franqueza a responsabilidade que agora lhe assiste. Ele
está se fazendo homem e precisa prepara futuro. Sirva-lhe de pai; acompanhe-o e
proteja-o com o mesmo desvelo de que usou meu irmão para guiar a sua mocidade.”
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— Vê, disse o Campos, abalado com as palavras do irmão de seu protetor.—
São estes os desejos de seu pai; ao senhor compete agora, como bom filho, fazer-
lhe o gosto, e dar-lhe a felicidade de que ele precisa para o resto da vida. O que
estiver em minhas forças está à sua disposição mas o senhor também deve fazer
por si, já não é tão criança para não ver o que lhe fica bem e o que lhe fica mal!
Enfim, tenho toda a confiança no senhor, seu Amâncio, e estou convencido de que
não me desmentirá!
Amâncio, que até aí ouvia o Campos em silêncio e com os olhos presos a um
ponto, agradeceu-lhe muito aquele interesse e jurou que todo o seu empenho era
corresponder à expectativa de seus pais e ser agradável o mais possível aos
verdadeiros amigos de sua família.
E a conversa, tomando novas direções, descaiu em assuntos menos
circunspectos. Veio então à bulha o baile do Melo, e Campos se queixou de que
Amâncio, depois disso, nunca mais lhe aparecera em casa.
— Já tinha a intenção de lá ir domingo.
— Não, contradisse o negociante. — Vá antes sábado, amanhã, que é
aniversário de meu casamento. Não há festa, mas reúnem-se alguns camaradas e
toca-se um bocado de piano. Adeus. Não deixe de ir. Olhe, se quiser pode levar
seus amigos. Adeusinho.
Amâncio acompanhou-o até a porta da rua e voltou ao quarto.
Estava preocupado; não mais com as cartas da família, mas com a deliciosa
intenção de reatar no dia seguinte o namoro de Hortênsia. Só uma pequena
circunstância lhe mareava o antegozo desses sonhados momento s de ventura: era
a idéia dos seus compromissos como estudante; sentia-os agravados perante a
confiança que lhe depositavam, e agora, mais que nunca, a consciência do seu
relaxamento, a lembrança da haver faltado às aulas tantas vezes e de não ter aberto
livro durante a última semana, agonizavam-no desabridamente.
— Oh! Os estudos! Os estudos eram o ponto negro de sua vida, o seu
desgosto, o terrível espectro de todos os seus sonhos! As regalias que daí viessem
mais tarde, fossem elas quais fossem, nunca poderiam compensar aquela profunda
tristeza, aquele aborrecimento invencível, que o devoravam.
Semelhante preocupação tirava-lhe o gosto para tudo, azedava-lhe todos os
melhores instantes de sua vida. Cada minuto, que se escoava na ociosidade, era
mais uma gota de remorso caída no sombrio pélago de seu tédio.
E, contudo, os minutos, os dias e as semanas iam escapando, sem que
Amâncio lograsse vencer a sua antipatia pelo trabalho.
Olhava com repugnância para os melancólicos compêndios da faculdade, e,
quando teimavam muito em os conservar abertos defronte dos olhos, quase sempre
adormecia.
Um verdadeiro tormento!
* * *
Amâncio obteve de João Coqueiro que o acompanhasse à soirée do
Campos.
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Foi uma noite cheia para ambos; se bem que Hortênsia ,de tão preocupada
com os arranjos da casa, muito pouco se dera às visitas.
Carlotinha, sim, mostrava-se alegre e comunicativa que nem parecia a
mesma. Chegou-se muito para Amâncio, meteu-se com ele de palestra,, a fazer
pilhéria, a criticar das outras senhoras, com visagens disfarçadas e pequeninos risos
estalados por detrás do leque.
O estudante ficou pasmo, quando descobriu que toda essa intimidade
procedia do namoro dele com Hortênsia. À primeira indireta da rapariga, o rapaz
corou e respondeu titubeando. Carlotinha, porém, o tranqüilizou, dando a entender
que era discreta e interessada nos segredos da irmã.
E, já sem indícios de gracejo, aconselhou-o a que freqüentasse a casa com
mais assiduidade; um Domingo sim, outro não, para jantar. Seria muito bem
recebido, alguém fazia questão dessas visitas...
Amâncio, no seu papel de inocente, quis saber quem era esse alguém , mas a
rapariga negou os esclarecimentos e pediu-lhe em segredo que se calasse,
piscando o olho para o lado esquerdo, onde acabava de se assentar um sujeito
gordo, de barba toda raspada.
— É o Costa! Nada lhe escapa!... soprou ao estudante por debaixo do leque.
E depois em voz alta, disfarçando:
— Pois o baile do Melo esteve muito bom!...
— Muito...confirmou Amâncio. — Há longo tempo não me divirto assim!...Mas,
para a senhora creio que ainda seria melhor, as lá estivesse certa pessoa!...
— Quem? O guarda-livros?...Ora!...
E, com ar desdenhoso, declarou que há quinze dias ficara tudo acabado.
— Seriamente? perguntou o estudante.
— Sério! E não me sinto com isso, até estimo! No fim de contas aquilo é um
tipo impossível; tão depressa está para o norte como para o sul!
— Mas a senhora parecia gostar dele tanto...
— Pensei que fosse outra coisa...respondeu Carlotinha, franzindo os lábios. –
Quando, porém descobri o que ali estava, dei tudo por acabado! Foi muito bom;
antes assim do que depois do casamento!...
E, para mostrar a sinceridade daquela indiferença, ria com exagero e dava a
sua palavra de honra em como não tinha paixão por homem nenhum deste mundo.
Havia de casar sim, porque isso era necessário, mas não que preferisse este ou
aquele. Todos eles eram a mesma coisas uns tipos!
Amâncio defendia o seu sexo, experimentando já pela rapariga uma nascente
repugnância instintiva.
Quando, às três horas da madrugada, os dois estudantes se despediram,
Campos, entre muitos oferecimentos, pediu ao “Sr. Dr. João Coqueiro” que voltasse
qualquer dia, mas com a família. Ele tinha nisso muito bom gosto.
Coqueiro prometeu fazer-lhe a vontade e retirou-se com o amigo.
* * *
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105
Quase nada conversaram pelo caminho. Amâncio parecia aflito por se meter
na cama; uma vez, porém , recolhido ao seu novo quartinho do segundo andar, não
sentia as menor disposição para dormir.
A circunstância de saber que Lúcia estava ali tão perto, a quatro ou cinco
passos, mas inteiramente fora do seu alcance, o indispunha como se fosse uma
pirraça levantada com o fim único de o afligir.
Não resistiu ao desejo de ir, como da outra vez, espreitar pela fechadura do
quarto em que ela morava, e encaminhou-se sorrateiramente para o n.° 8. Nesta
tentativa, porém, foi ainda mais infeliz do que da primeira, porque a janela do
corredor ficara aberta, e Amâncio principiou a espirrar , constipado.
O doente do n.° 7 tossicava, de vez em quando.
Amâncio voltou ao quarto, muito aborrecido. Abriu um livro, mas repeliu-o
logo, com tédio. Lembrou-se de fazer café. (Na véspera comprara uma
maquinazinha e os apetrechos necessários para isso.) — O melhor, porém, seria
melhor tomar o café depois de um banho Deu lume à máquina e desceu ao primeiro
andar, já despido e rebuçado no lençol.
Queria passar pelo quarto da mucama, que ele agora sabia ao certo onde era;
mas, na ocasião em que entrara na sala de jantar, deteve-se cautelosamente com a
presença de um vulto que acabava de aparecer do lado oposto. A custo reconheceu
Coqueiro; do lugar onde se achava podia observar sem ser visto. O dono da casa
atravessou a pé a varanda e, encaminhando-se para o fundo do corredor, sumiu-se
no tal sítio, por onde justamente queria passar o outro.
— Será possível?...considerou Amâncio, que se adiantara precatamente para
certificar-se do que vira.
— Que grande velhaco!
E era aquele tipo que, “por moralidade não admitia em casa certas visitas!...”
— Ah!, meu pulha! Pensou o estudante.
— Como podia agora tomar a sério a casa de Mme. Brizard?...Que juízo devia
fazer de toda aquela gente? E Amelinha? o que vinha a ser aquela Amelinha?...
Dois espirros cortaram-lhe a teia dos raciocínios, e em seguida um calafrio
muito penetrante lhe percorreu o lombo. Sentiu-se indisposto; não obstante, desceu
ao banheiro. — Aquilo desapareceria com um pouco d’água pela cabeça.
Mas, quando voltou ao quarto, já lhe doía o corpo e tinha as pernas
entorpecidas levemente.
Tomou uma chávena de café, bebeu um gole de conhaque, e meteu-se na
cama, tiritando.
Não se pôde erguer no dia seguinte. Coqueiro apresentou-se-lhe no quarto,
logo pela manhã, muito sobressaltado com os incômodos do querido hóspede.
Estava mais inquieto do que se tratasse de salvar a vida de um parente
insubstituível.
Perguntou se Amâncio queria médico; se precisava de alguma coisa. — Que
diabo! Dispusesse com franqueza. Ele estava ali às suas ordens!...
O doente apenas desejava que o amigo desse um pulo à agência dos
vapores e trouxesse o constante de um conhecimento , que lhe pediu para procurar
nas algibeiras do fraque.
Coqueiro obedeceu prontamente.
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106
Era um pacote de doces que lhe enviava a mãe. Havia frasco de bacuris em
calda. Muricis, cajus cristalizados e buritis em massa para refresco. Amâncio , logo
que o colega voltou com o presente, fez acondicionar tudo sobre a mesa, defronte
de sua cama.
Nesse instante, Mme. Brizard e Amelinha invadiam-lhe o quarto, ávidas de
informações.
— Que tinha o Sr. Vasconcelos? — Que sentia? Como lhe aparecera febre?
E a francesa, depois de consultar o pulso ao rapaz, afiançou que aquilo não
valia nada. Ele que tomasse um suadouro, que se deixasse ficar na cama e havia
dever que no dia seguinte estava pronto.
Lambertosa, chegando logo em seguida, pediu ao doente que aceitasse uma
dose de acônito e deixasse o resto por sua conta.
Mas a febre recrudesceu depois do almoço. Amâncio queixava-se de dores
na cabeça, na espinha e nos quadris.
— Tudo isto é ar! Afirmou o gentleman autoritariamente. — Acônito! Dê-lhe
com o acônito!
Foi Amelinha a encarregada de ministrar ao doente, de hora em hora, uma
colher do remédio.
Mme. Brizard falou muito da inconstância do clima do Rio de Janeiro, das
precauções que se deviam tomar contra as umidades; do risco que havia em comer
certas frutas e, afinal, retirou-se, tendo apalpado ainda uma vez o pulso e a testa do
hóspede.
Amelinha revelava-se extremamente solícita. Andava no bico dos pés, a
borboletear pelo quarto, arrumando os livros sobre a mesa, apanhando a roupa
espalhada pelo chão, acudindo a qualquer movimento do estudante, que dormia
entanguecido de baixo dos lençóis. Ele, coitado, parecia cada vez pior. Ardiam-lhe
os olhos desabridamente; o hálito queimava; não podia suportar o cheiro do fumo e
queixava-se de muita sede e comichão pelo corpo.
Amelinha, sempre irrequieta e passarinheira, preparava-lhe copos d’água com
açúcar. Agachava-se à borda da cama, mexia e remexia com a colher o sacarífero
calmante e, depois de o provar com a pontinha da língua, passava-o às mãos de
Amâncio. Este, porém, mal bebia, voltava-se de novo para a parede, gemendo de
olhos fechados.
Pelas duas horas da tarde, Lúcia pediu licença para lhe fazer uma visita.
Entrou cheia de cerimônia, e assentou-se gravemente em uma cadeira, à cabeceira
do leito.
O doente voltou-se logo e agradeceu aquela fineza com um olhar muito triste
e injetado de sangue.
Ela mostrava-se interessada; pedia informações a respeito da moléstia.
Amâncio respostava com dificuldade. Parecia moribundo.
Mas, quando Amélia saiu e desceu ao primeiro andar, ele tomou rapidamente
as mãos da outra e cobriu-as de beijos que a febre tornava mais ardentes e mais
queimosos.
— Eu te amo! Eu te amo! dizia ele.
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— Bem, mas fique quieto! Isso lhe pode fazer mal! Retrucava a suposta
mulher do Pereira. — Nada de tolices! Deite-se! Deite-se!
Amâncio libertou os braços do cobertor, apoderou-se da cabeça de Lúcia , e
começou a beijar-lhe os olhos, a boca e os cabelos, numa sofreguidão irracional.
As lunetas da “ilustrada senhora” haviam caído, e ela encarava o rapaz , sem
dizer palavra, a lhe cravar os seus grandes olhos de míope, alterados pelo abuso do
vidro de graduação.
Tiveram de disfarçar, porque alguém se aproximava.
O enfermo voltou logo aos lençóis e pôs-se novamente a gemer.
Era o Coqueiro quem vinha. Desde a entrada mostrou-se contrariado com a
presença de Lúcia. Transpareciam-lhe no rosto os sintomas da desconfiança. Dir-se-
ia um ciumento a penetrar de chofre nas recâmaras da amante.
— Aquela mulher não podia estar ali com boas intenções!...
E foi de mau humor que o Coqueiro respondeu a uma pergunta dirigida por
ela a respeito da moléstia.
Lúcia, também não deu mais palavra e, logo depois saiu muito enfiada.
* * *
À noite apresentou-se o Campos, a quem o Coqueiro, de passagem,
prevenira dos incômodos de Amâncio; trazia consigo um médico.
Este declarou incontinente que o rapaz tinha bexigas; mas antes que
fizessem espalhafato, afiançou que eram benignas. “Bexigas doídas, cataporas,
como vulgarmente chamavam por aí. Ficassem tranqüilos , que o caso não era
grave; convinha , porém, ter algum cuidado com o doente: — evitar a ação do vento
e muita limpeza com a roupa da cama.”
Receitou e saiu, prometendo voltar no dia seguinte. Campos seguiu-o até à
escada do e tornou ao segundo andar.
A mulher do Paula Mendes, que abrira a porta do quarto para escutar o que
dizia o médico, rompeu logo a falar dobre o abuso de consentirem ali “um bexigoso!”
Daquela forma, em breve a casa se transformava num hospital! Já lá tinham
um tísico, que à noite não a deixava dormir com o gogo; agora era um bexiguento;
amanhã seria a febre amarela e depois a lepra! – Arre! Em chegando o marido
havia de mostrar o que faria!
Lambertosa, a pretexto de que sentia muito calor, empacotou o que tinha no
quarto e lá se foi moscando à francesa.
— Nada! segredou ele embaixo ao Fontes, que jogava o dominó com a
mulher na sala de jantar. — Tenho medo disto que me pélo; em pequeno vi morrer
três sujeitos de pancada com as tais cataporas! Vou para a chácara de um amigo
nas Laranjeiras! E, se a madame não tratar de pôr fora o doente, eu também aqui
não porei mais os pés!
E, vendo que o Fontes parecia impressionado com as suas palavras:
— Pois não acha o amigo que não tenho razão?...Pode-se lá admitir um
varioloso dentro de uma casa como esta, cheia de hóspedes?...
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— Está claro! Disse a mulher do Fontes, empurrando as pedras do dominó. –
Eu também aqui não fico! Ou o doente se mudas ou então mudo-me eu! E logo o
quê! — bexigas! Deus nos defenda! Até parece que já sinto um formigueiro por todo
o corpo...Credo!
— Sim, disse o marido, — mas não acredito que Mme. Brizard esteja
disposta a ficar com ele dentro de casa!
O gentleman havia desaparecido, como se levasse uma fera atrás de si; os
dois outros ergueram-se conversavam assustados sobre o grande fato; enquanto
Nini, que, desde às cinco horas jazia estendida em uma cadeira ao canto da
varanda, com um lenço amarrado na cabeça, escutava-os silenciosamente, os olhos
pendurados no vago
Depois daquela cena violenta com Amâncio, a pobre criatura se quedara mais
apreensiva e mais triste. Eram suspiros sobre suspiros e nem uma palavra durante o
dia inteiro; às vezes dava-lhe para chorar e não havia meio de a conter.
Em cima o Campos tomou o chapéu e o guarda-chuva, mas, antes de sair,
consultou a opinião do Coqueiro e de Mme. Brizard sobre o que melhor convinha
fazer a respeito do varioloso. “Talvez fosse mais acertado levá-lo para uma boa casa
de saúde!...— Eles que se não constrangessem: se era inconveniente ficar ali o
rapaz, falassem com franqueza, porque tudo se podia arranjar perfeitamente.
Mas os locandeiros protestaram logo, com energia: — Longe de ficarem
constrangidos, tinham muito gosto em ser úteis ao Dr. Amâncio. — Que o já
estimavam tanto, que não teriam ânimo de o desamparar, justamente quando o
pobre moço, longe da família, mais precisava de cuidados!
– Verdade é que as bexigas não são das más...considerou o negociante,
alisando o pêlo de seu chapéu alto. — Mas os outros hóspedes talvez não pensem
como a senhora e seu marido...E daí, quem sabe?...queiram deixar a casa e...
Mme. Brizard declarou que por esse lado estava sossegada. “Os bons
hóspedes não desertariam por tão pouco, e quanto aos maus, se fossem não fariam
falta.”
Campos agradeceu pelo recomendado aquela boa vontade; tornou a dizer
que não poupassem despesas com a moléstia e, quando porventura houvesse
alguma dívida ou alguma dificuldade, era mandar imediatamente um recadinho à
Rua Direita, que ele lá estava sempre às ordens.
E ainda voltou ao quarto do rapaz para lhe rogar mis uma vez que não tivesse
receio de importuná-lo em qualquer ocasião e, outrossim, para saber se, por
enquanto, ele não precisava de mais alguma coisa.
Amâncio desejava unicamente que o amigo procurasse por onde andava o
Sabino, que agora lhe fazia falta; e, caso o encontrasse, tivesse a bondade de
remeter-lho; pois seria um grande favor.
Veio à questão o quanto madraceavam os escravos ultimamente. Mme.
Brizard jurou que não havia melhor vida do que a deles; disse que Amâncio fizera
mal; em consentir que um negro de sua propriedade andasse por aí tanto tempo,
sem lhe prestar contas; quando, alugado, lhe podia dar de rendimento pelo menos
quarenta mil-réis mensais. E, de sua parte recomendou de Campos que fizesse
diligências para descobrir o tratante e o deixasse ali, que ela mostraria se punha ou
não a bom caminho.
O negociante retirou-se afinal, entre novos protestos e novos oferecimentos.
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Mme. Brizard, o Coqueiro e Amelinha não abandonaram o quarto do doente
até mais de meia-noite; ora um, ora outro, acompanhavam-no sempre. Lúcia
também aparecia de quando em quando; ao passo que o marido, sem jamais
acordar completamente, nem dera pelo reboliço em que ia a casa.
Por toda a parte sentia-se já o cheiro de alfazema queimada. O esquisitão do
n.° 4, muito comprido no seu poncho de brim pardo, que lhe batia desairosamente
nas tíbias mal compostas, espaceava no corredor, cantarolando, em voz soturna o
De Profundis .
Olha que agouro! Resmungou a mulher do Paula Mendes ao vê-lo passar e,
já encolerizada pela demora do marido, fechou a porta do quarto com um pontapé.
— Logo aquela noite é que o diabo do homem entendia de se demorara mais tempo
na rua! Raios o partissem, diabo!
O Melinho, a pérola do n.° 9 , também aparecera; e o Piloto, a saber ,ainda na
porta da rua, que havia um bexigoso no segundo andar, fez uma careta, benzeu-se
comicamente, desgalgou pelo mesmo caminho que trazia, afetando trejeitos
exagerado de medo. O guarda-livros é que bem pouco se incomodou com a notícia,
tinha lá o seu gabinete ao lado da sala de visitas, e aí com certeza não chegariam os
miasmas.
Estava em cima o Coqueiro a discutir com a família sobre quem devia
acompanhar o enfermo durante o resto das noite, quando entro o Paula Mendes,
estranhamente alegre, a cantar em voz alta. O dono da casa correu logo ao seu
encontro e lhe pediu que não fizesse bulha. — O hóspede do n.° 6 estava de cama!
Mendes respondeu com descostumada grosseria, arrastando a voz. Catarina ao vê-
lo naquele estado, fechou bruscamente a porta do quarto, que nesse mesmo
instante havia aberto, e gritou-lhe de dentro “Que fosse cozinhar para longe a
bebedeira! Que voltasse para onde se tinha emborrachado! Era só também o que
faltava! — que, além de tudo, tivesse de aturar bêbados! Estavam bem servidos!”
E, todos, com grande espanto , se convenceram de que efetivamente o Paula
Mendes vinha ébrio, logo que o viram principiar a bater, como um possesso, na porta
do quarto, berrando pela mulher, sem se poder agüentar nas pernas.
— Pois senhores, disse Mme. Brizard, que acudira com o barulho, — estou
pasma! Desde que o rabequista mora aqui é a primeira vez que o vejo assim!...
— Naturalmente isto foi coisa que lhe fizeram... opinou Coqueiro. — Ele,
coitado, é até homem de bons costumes!...
Todos concordaram nesse ponto, e o hoteleiro, uma vez capacitado de que a
peste da Catarina não abria a porta ao marido, carregou com este para o quarto que
o Lambertosa acabava de despejar.
— Diabo! Resmungou, deixando-o cair sobre a cama. — Hóspedes que só
dão de lucro estas maçadas!
Resolveu-se que seria o copeiro quem acompanharia o enfermo durante o
resto da noite. O médico recomendara que dessem o remédio de três em três horas.
Lúcia lamentou que, justamente nessa ocasião, a sua Cora estivesse em Cascadura
ajudando a uma amiga a morrer, porque ao contrário Amâncio não teria outra
enfermeira. “Ah! não havia como aquela mulata para tratar de um doente!...”
Mas o copeiro assumiu o posto que lhe designaram, e cada um se recolheu
ao competente dormitório. Catarina ainda rabujou sozinha por algum tempo; o Paula
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Mendes caiu num sono de chumbo, e a casa foi a pouco e pouco se atufando nas
brumas silenciosas da noite.
Só então , de tão fracos que eram , ouviam-se os bufidos cavernosos do tísico
que, no triste abandono de sua miséria, continuava a gemer, sufocado pela
dispnéia.
O desgraçado já não tinha forças par sair à rua. A sua moléstia entrara no
segundo período; cresciam-lhe as dores do peito e apareciam-lhe agora, pela
madrugada, acessos febris, acompanhados de suores frios e gordurosos.
A magreza desnudara-lhe os ossos, e o alimentos faziam-lhe repugnância.
Como era muito pobre, ninguém se interessava por ele; os criados serviam-no mal e
a más horas. Traziam-lhe a comida e depunham-na sobre o velador.” bodega lá que
se arranjasse!”
Mme. Brizard, por mais de uma vez dissera:
— Também aquele estafermo não ata nem desata!...
* * *
Por volta das quatro da madrugada, Amâncio sentiu passarem-lhe
brandamente a mão pela testa, e despertou estremunhado.
Um candeeiro de azeite derramava no quarto a sua meia claridade trêmula e
duvidosa. Era tudo silêncio e quietação.
— Lúcia! disse ele, reconhecendo-a e tentando passar-lhe o braço na cintura.
— Psiu! Fez a ilustrada senhora com um dedo nos lábios.— Tenha modo! O
copeiro está dormindo e, como o médico recomendou que não deixassem de lhe dar
de hora em hora uma colherada do remédio, eu ...
— Meu amor!
— Nada de bulha! Tome o remédio e trate de dormir, que você está doente.
Amâncio bebeu a tisana e com um gemido arrastado pousou de novo a
cabeça nos travesseiros.
— Como se acha ensopada esta camisa! Observou Lúcia, apalpando-lhe as
costas solicitamente. E perguntou logo onde estava a roupa branca.
O rapaz apontou com dificuldade para a gaveta inferior da cômoda, e
acrescentou careteando:
— No fundo, ao esquerdo.
Ela foi abrir o gavetão, muito de mansinho, para não acordar o copeiro que
dormia a sono solto sobre um enxergão no soalho, e reveio, toda desvelos, com uma
camisa aberta nos braços.
— Vamos! mude essa roupa. O remédio está produzindo efeito. É preciso não
resfriar.
O estudante despiu a camisa suada e vestiu a outra.
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111
— Agora, sente-se melhor? Perguntou a mulher do Pereira.
Estava assim, assim... Ainda lhe doía o corpo, e a comichão não tinha
diminuído. Parecia que lhe passeavam formigas pelas pernas.
— Trate de repousar. Adeus. Eu voltarei de manhã, para lhe dar outra dose
do remédio. Até logo.
Amâncio pediu-lhe que se demorasse mais um pouco, que se assentasse um
instante ao seu lado; ela, porém, muito senhora de si, negou-se formalmente,
dizendo com a cabeça que não e recomendando-lhe com um gesto que se
acomodasse.
— Ao menos um beijinho... pediu ele.
A outra não respondeu e saiu na ponta dos pés.
Voltou pela manhã, como prometera, mas o copeiro já havia dado o remédio
ao doente.
— Então! Como passou? Perguntou ela, indo apertar-lhe a mão.
— Ora, mais incomodado com a sua ausência do que com a minha moléstia...
respondeu o moço, fazendo um ar infeliz.
— Impressões de momento... retorquiu Lúcia, sorrindo. — Daqui a pouco não
se lembrará mais de mim...
E logo, que viu sair o preto:
— Para só pensar na Amelinha...
Amâncio fez um gesto de repugnância.
— Tem toda a razão!... prosseguiu ela — toda! Amelinha é moça, é bonita, e
pode casar!
— Comigo, nunca!... afirmou o rapaz.
— Não poria a mão no fogo... insistiu Lúcia. — Agora eu, sim, já sou papel
queimado, e estou velha...
— Velha? Dê-me então a sua bênção...
Lúcia sorriu e estendeu-lhe a mão, que ele beijou avidamente, ficando depois
a examiná-la, como se contemplasse uma obra de arte.
— É feia... disse a senhora — é comprida demais e magra.
– É adorável! Desmentiu o estudante. E tornou a beijar, com exagerado
transporte, a mãozinha que conservava entre as suas.
— Está bom. Chega! Para bênção já basta! E ela puxou o braço. — Deve
estar a surgir o batalhão de seus enfermeiros! Adeus.
— Eu os trocaria a todos por ti, minha santa!
— Isso é o que havemos de ver! Replicou ela intencionalmente. E saiu do
quarto.
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112
O Coqueiro, que chegou logo depois, percebeu que Lúcia acabava de estar
ali, mas não deixou transparecer a sua contrariedade.
— Então?! perguntou.
O doente fez uma careta de desânimo.
— Tiveste alguma novidade durante a noite?
— Nenhuma, respondeu Amâncio.
— O remédio, tomaste-o?
— Tomei.
Coqueiro deu uma volta pelo quarto, para demorar um pouco mais a visita, e
disse frouxamente:
— Bem, tenho que ir pr’as aulas. Até já! — Loló e Amelinha não tardam por
aí.
E retirou-se, a gritar desde cima pela mucama: — Que viesse arrumar o
quarto do Sr. Dr. Amâncio!
Mme. Brizard e Amelinha , com efeito, não tardaram a aparecer, falando muito
sobre o terror que a moléstia de Amâncio produzia nos outros hóspedes,
confessando as maçadas que tiveram as duas na véspera; e, por fim, a mais velha
desceu para cuidar da casa e a menina ficou para tratar do enfermo.
* * *
João Coqueiro, à volta da academia, chamou a mulher ao quarto e
perguntou-lhe, cruzando os braços e sacudindo a cabeça:
— E o que me dizes tu da Sr.ª D. Lúcia?...
Mme. Brizard respondeu com um movimento de ombros.
— Bem desconfiava eu!...Ajuntou o especulador, depois de uma pausa.
Acredita, Loló, que desde a chegada do Amâncio, tive cá um palpite de que aquela
mulher seria um estorvo para os nossos projetos!
A francesa fez um esgar de dúvida. E o esposo acrescentou com raiva:
— Pois se ela não o larga um só instante! Leva a escorá-lo, o demônio!
— Não credites que Amelinha se deixe codilhar assim só!...observou a
esperta locandeira.
— Ora qual! Volveu o outro zangado. — Ninguém me tira da cabeça que esta
mudança do rapaz para o segundo andar, foi coisa arranjada por aquela sirigaita!
E, tendo percorrido três vezes o quarto, parou de repente, muito agitado:
— Mas comigo, bradou — Está enganada! Tenho a faca e o queijo na mão!
Posso despachá-los, quando bem entender, a ela mais o bolas do tal marido! E nem
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preciso inventar pretextos para os pôr na rua, porque eles já devem aí perto de dois
meses!
— Pois nós havemos de perder esse dinheiro?! Interrogou Mme. Brizard
assustando-se.
— Sim, mas é que eu não os deixo ir, sem ficar garantido! E se quiserem
fazer de espertos, confisco-lhes a mulatinha! Não! Aqui para o meu lado é que não
se arranjam!
E, recaindo nos projetos a respeito de Amâncio:
— Uma ocasião tão boa para a Amelinha o cativar, se o diabo da intrusa não
se metesse entre eles no melhor da coisa! Ah! peste!
Mme. Brizard, que se havia assentado, meditava de cabeça baixa.
— Eu até o acho agora mais reservado e mais frio! ... prosseguiu o hoteleiro
estudante. — Já não me consulta quando quer dar algum passo ... já não se abre
comigo!
E aproximando-se da mulher, exemplificou em voz de mistério:
— Sabes, aquele doce que ele recebeu do Maranhão? Foi quase todo para
ela! A mim deu unicamente um frasco do tal bacuri (por sinal que não lhe acho
graça); para si, creio que guardou uma latinha de geleia, e tudo mais lambeu a gata
arrepiada!
— Que! Pois ele lhe fez presente de todo o doce que recebeu do Norte?...
— Ora! Se te estou a dizer!
— Não! exclamou a Brizard escandalizada.— Isso agora não lhe perdôo! A
gente aqui a se matar, a desfazer-se em carinhos, e ele a socar no bandulho
daquela bicha os mimos que recebe da família! Não! Isto não se faz!
— Pois fez! Sustentou Coqueiro. — E, se não abrirmos os olhos, ela é capaz
de arrancar-lhe até a última camisa!
— Dar todo o doce àquela criatura!... repisava a francesa. — É quanto pose
ser!...
— Pois deu!
— Sempre o supunha outra espécie de gente!...
— Não é pelo doce, explanou o marido - mas sim pelo alcance do fato! Nós,
o que devemos fazer e, quanto antes, tomar medida muito seria a respeito de tudo
isto!
E, fitando a mulher com resolução:
— Vamos a saber! Achas que os devemos pôr no olho da rua?!
— Mas, filho, sem pagarem?! ...
— Ainda que não paguem, ora essa! Dos males o menor! Lembra-te de que o
Amâncio não inventou a pólvora e pode, muito bem, ser visgado por aquela
lambisgóia!... A cabra não tem nada de tola!... Que achas tu?!
— Sim, mas também par deixá-los ir com o nosso cobre...
— Fica-se com um documento selado e podemos perseguí-los a todo o
tempo!
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— Isso é asneiras!
— Asneiras é perdermos o futuro de Amelinha por causa de alguns mil-réis
Mme. Brizard ainda hesitou.
— Então? insistiu Coqueiro. — A termos de tomar esta resolução, deve ser já
e já, que a oportunidade é magnífica; talvez até nunca mais pilhemos um ensejo tão
favorável! — Minha filha, nem sempre há cataporas!...
— A outra, afinal, consentiu, e ficou deliberado que o Pereira e Lúcia seriam
postos na rua, se não saldassem imediatamente as suas contas.
— Estão ali, estão fora!... profetizou o locandeiro, esfregando as mãos.
* * *
Algumas horas depois, quando o Pereira descrevia tropegamente a sua órbita
consuetudinária entre a mesa do jantar e a preguiçosa, Coqueiro, entrepondo-se-lhe
no caminho, meteu-lhe na mão uma folha de papel dobrada sobre o comprido, e
disse-lhe em tom seguro e repassado de urgências:
— É uma nova continha de suas despesas. O amigo desculpe, mas, se me
pudesse pagar isto até amanhã, não seria nada mau, porque tenho de satisfazer os
fornecedores.
— Havemos de ver... balbuciou o hóspede, correndo pelo papel os olhos
meio fechados.
O credor advertiu-o em voz baixa de que havia já esperado muito e que o Se.
Pereira, pelos modos, não se lembrara dele.
— Tem toda a razão... concordou o dorminhoco. — Juro-lhe, porém, que me
não esqueci do senhor. Ainda não recebi dinheiro, sabe?
Sim , retorquiu o outro — mas o senhor também sabe que eu preciso fazer
face aos gastos da casa e ...
— Tenha paciência ... bocejou o Pereira. — Tenha um pouco de paciência.
Hei de cuidar disso.
— Mas é que não posso esperar mais, Sr. Pereira!
— Não há novidade! Pode ficar descansado, que não há novidade, respondeu
aquele espreguiçando-se, já importunado com o transtorno de não se poder estirar
na cadeira. E entregou a conta a Lúcia, que se aproximava em ar de curiosidade.
Feiro isto, deixou-se cair na preguiçosa, inalteravelmente, com nos outros dias. Daí a
pouco ressonava.
A mulher leu a conta de princípio a fim, sem um gesto, nem uma palavra;
depois, ainda em silêncio, dobrou-a de novo e meteu-a no seio.
No dia seguinte pela manhã o copeiro, apresentava-se-lhe no quarto,
exigindo, em nome do patrão, a resposta do pedido que este na véspera fizera ao
Sr. Pereira.
Lúcia, molestada com semelhante pressa, respondeu de mau humor que —
mais tarde daria uma resposta... O marido ia sair para buscar dinheiro!
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O criado retirou-se, e ela foi logo, muito zangada, despertar o Pereira com um
violento empuxão.
— Você é uma lesma! Exclamou. — Põe-se a dormir desse modo, e cá fico
eu para me haver com as contas!
—Que contas?... perguntou o homem, esfregando os olhos pachorrentamente
e escancarando a boca.
— Que contas! Você sempre é um traste muito inútil!
— Deixa disso, nhanhã...
— Que contas! A conta da casa! A conta do que você e eu comemos!
— Havemos de ver isso...
— Havemos de ver, não! que é preciso resolver qualquer coisa! O homem
quer dinheiro; não me larga a porta!
E, puxando-o por um braço: — Ande! Mexa-se!
Pereira não fez caso e tornou aninhar-se na cama, encolhendo as pernas e os
braços.
— Você não ouve?! Berrou a mulher, desfechando-lhe um murro nas costas.
— Ë preciso que lhe dê com os pés para o acordar, seu burro?!
— Não me amole! Tartamudeou ele, sem voltar o rosto. Lúcia, que já se não
podia conter, saltou-lhe ao gasganete e encheu-lhe a cara de bofetões.
— Pereira ergueu-se num pulo, e, muito estremunhado, olhou sério para a
mulher:
— Ora , vamos lá!... disse, e começou a espreguiçar-se, retesando os braços.
— Diabo do sem préstimo! Resmungou a outra com desprezo, enviesando a
boca e cuspindo o olhar por cima do ombro. — Não têm um vislumbre de brio
naquela cara!
— Já trouxeram o café?... perguntou o sem préstimo, cuidando de lavar o
rosto e os dentes.
Lúcia respondeu-lhe com uma injúria e saiu do quarto arremessando a porta;
mas reveio logo e gritou em tom de ordem:
— Vista-se já e ponha-se em caminho, que é preciso arranjar dinheiro!
Pereira vestiu-se demoradamente, sempre abrir a boca, depois seguiu para o
primeiro andar no seu passo miúdo, os braços a jogarem-lhe num movimento
pendular, como se os tivesse seguros à omoplata apenas por um atilho. Tomou o
seu café com leite e o seu pão com manteiga e foi espaçar para a chácara, à espera
do almoço.
A mulher segui-o e, logo que o alcançou, bateu-lhe no ombro:
— Então você não se avia, criatura?! Você não vê que o homem quer dinheiro
e que estamos ameaçados de ir para o olho da rua, seu Pereira?!
— Mas, que hei de eu fazer, nhanhã?...
— Ponha-se em movimento! Vá aos seus parentes, vá aos seus amigos, vá
ao inferno! Contanto que arranje alguma coisa para tapar a boca daquele judeu!
Não me volte de mãos abanando, porque não lhe abro a porta do quarto, percebe?!
Você bem sabe que, se bem o digo, melhor o faço!
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E, vendo que Pereira não se mexia:
— Então!
— Mas eu hei de sair sem almoçar, nhanhã?...
— Pois vá lá! Almoce. Mas é engolir e pôr-se a andar!
— E dinheiro para o bonde?
— Que? Você já gastou os cinco mil-réis que lhe dei anteontem?!
Pereira explicou que os havia gasto contra a vontade, porque uns sujeitos o
obrigaram a pagar cerveja e doces numa confeitaria.
— Você é um palerma! Disse a mulher. — Tome lá mil e quinhentos. Mas veja
agora se também os vais comer de doce!
* * *
Desde a véspera, entretanto, que Amelinha não se despregava do lado de
Amâncio, senão quando este dormia ou quando precisava ficar só; levou a costura
para o segundo andar, e pôs-se a coser no corredor, assentada à porta do quarto do
seu doente.
Uma esposa não se mostraria mais afetuosa; ao menor gemido do enfermo,
corria logo para ele, sempre meiga, sempre desvelada. Procurava ajudá-lo a
suportar a monotonia da moléstia; procurava animá-lo, distraí-lo, fazendo por Ter
graça, recorrendo, para o entreter, ao que sabia de mais espírito. Seu pézinho, leve
e calçado de duraque, parecia não tocar no chão; seu rostinho, mimoso e fresco
como um jambo, não se contraía ao fartum insalubre das variolóides.
E dir-se-ia que tudo aquilo não visava ouro interesse que não fora a mesma
caridade e a mesma dedicação. Nem uma queixa, nem um suspiro, nem um olhar,
nem um gesto, que traíssem a esperança de recompensas futuras, era o bem pelo
bem.
O provinciano, muito desvigorizado com a moléstia, sentia perfeitamente que
os lúbricos impulsos, que dantes lhe inspirava a graciosa rapariga, iam-se agora
destecendo e dissipando à luz de um novo sentimento de gratidão e respeito. A
primitiva Amélia desaparecia aos poucos, para dar lugar àquela extremosa criança,
àquela irmãzinha venerável, que lhe enchia o quarto com o frescor balsâmico de sua
virgindade e rociava-lhe o coração com a trêfega mimalhice de sua ternura.
Nos momentos da comida é que se podia ver. Amâncio tinha grande
inapetência e torcia o nariz aos alimentos; mas a pequena metia-o em brios,
chamando-lhe piegas, fracalhão, dizendo que ele “parecia um neném e que
precisava levar uns petelecos para tomar juízo”.
E atava-lhe ao pescoço o guardanapo, esfriava-lhe a canja, soprando
amorosamente as colheradas, e, para lhe provar o apetite, paparicava também o
que vinha e, com estalinhos de língua, dizia e repetia que estava tudo muito bom e
muito gostoso.
Ele, às vezes, já se fazia mais doente e mais carecido de cuidados, só para
desfrutar os mimos da enfermeira.
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CAPÍTULO XII
Dias depois, o médico declarou que Amâncio estava livre do maior perigo. —
As bexigas foram boas e secariam prontamente, sem quase deixar sinal na pele.
Dentre em pouco abria-se a janela do n.o 6 , recolhia-se a ultima roupa que
servira à moléstia, defumava-se o quarto pela última vez, e o mimalho entrava afinal
na convalescença.
Logo porém, que deixou a cama , apareceram-lhe dores reumáticas na caixa
do peito e nas articulações de uma das pernas. Era o sangue de sua ama - de- leite
de leite que principiava a rabear. Bem dizia outrora o médico a seu pai, quando este
a encarregou de amamentar o filho.
E, pois, vieram os remédios para a nova enfermidade, e Amâncio, a despeito
de sua impaciência para ganhar a rua, continuou encurralado na casa de pensão e
submetido a uma dieta rigorosa. Sabino, que o Campos lhe remetera na véspera,
tomou conta do lugar que o copeiro exercia durante a noite.
Nesses dias, Lúcia muito pouco se chegou para o estudante, receava com
isso provocar. da parte do Coqueiro alguma violência contra si.— Ah! ela bem sabia
que era guardada à vista; toda aquela família já nem ao menos disfarçava a
vigilância em que a trazia; andavam todos eles, desde a velha até ao pequeno, a lhe
fariscar os passos, descaradamente empenhados em afastá-la o mais possível de
Amâncio. — Súcia de bandidos!
Com efeito, nunca mais lhe foi possível até aí fazer ao rapaz uma ou outra
visita noturna. Mas, justamente no dia em que se arejou o quarto, estava Amâncio
estendido na cama, a reler um esfacelado volume do Alencar, quando de repente se
abriu a porta e Lúcia surgiu , aflita e apressada, correndo para ele num formidável
alvoroço.
Seriam mais de onze horas da noite e a família do Coqueiro estava já
recolhida.
Amâncio assustou-se com a visita, mas nem por isso a estimou menos.
Quis, antes de tudo, saber que terrores eram aqueles.
— Que diabo havia acontecido? — Mas se alguma coisas ruim acabava de
suceder a Lúcia, era, com certeza, por castigo, que ela estava uma ingrata muito
grande; já não aparecia aos pobres; naturalmente tinha medo das bexigas!...
— Oh! não! não! vozeou a ilustrada senhora, agarrando-lhe ambas a mãos
com transporte. — Não! Tudo que vier de ti, Amâncio, tudo que te pertence e diz
respeito é bom e sublime para mim!
E correu de novo à porta, certificou-se de que a casa estava bem sossegada,
e tornou para junto do estudante, apalpando dos lados e circunvagando olhares
inquietos.
Sabino já se havia esgueirado discretamente pelo corredor; enquanto o
senhor-moço, ainda meio aturdido com a agressão melodramática de que fora
vítima, apanhava, uma por uma, as folhas do Alencar, que se tinham espalhado aos
pés da cama.
— Pois olhe, ninguém o acreditaria!... disse ele voltando afinal, do seu
espanto e pousando o livro sobre o velador.
— Porquê? Interrogou Lúcia muito séria e muito dura defronte do rapaz.
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— Ora, Porquê!...Porque já não há quem a veja! Porque a senhora arribou
deste quarto, como se aqui alguém lhe quisesse fazer mal!
Ela respondeu com um sorriso de tristeza e um resignado sacudimento da
cabeça.
— Os fatos, pelo menos, assim o acrescentou o doente.
— Mas, valha-me Deus! Tornou a outra. - Pois não vês a perseguição que
sofro aqui por tua causa? Não vês que sou espiada, seguida e vigiada a todos os
instantes?! Não vês o ciúme que Mme. Brizard, o Coqueiro, a tal Amélia, Nini, o
diabo! Afetam por ti?!
O ciúme?...perguntou Amâncio , deveras espantado. — Mas o ciúme, como?
Por quê?
— Criança!...disse ela. E passou a mão na testa.— Estás na aldeia e não vês
as casas!
— Eu?!
— Sim, tu!
E, assentando-se à beira da cama, para lhe ficar mais perto, continuou,
diminuindo o tom da voz:
— Pois não percebes, filho, que toda esta gente quer fazer de ti uma
propriedade sua; que esta gente te considera um tesouro precioso e teme que lho
furtem? Não percebes, meu Amâncio, que há aqui um plano velho, tramado para te
fazer casar com Amelinha, isso porque és rico e, na tua qualidade de homem de
espirito, pouca importância ligas ao dinheiro?!...
— Não! Dou-te a minha palavra em como, até aqui nada percebia de tudo
isto!...
— Pois fica, então sabendo que há uma grande conspiração contra ti ou, por
outra, contra os teus bens!
— Ora essa! disse ele em voz baixa.
— Todos esses carinhos que eles ostentam, todos esses cuidados e desvelos
artísticos, são laços armados à tua ingenuidade!
— Estão bem arranjados!...respondeu Amâncio, — se esperam que eu case
com Amelinha!
— Não sejas hipócrita!...acudiu a outra. — Tu gostas dela; não negues.
— Ah! gosto, não nego. Mas gosto, sem intenção de espécie alguma; gosto,
coitada, porque ela nunca me fez mal, porque até lhe sou grato aos seus obséquios!
Mas daí para casar!...
E, depois de um assovio de grande esperteza:
— Não é o meu tipo, o meu ideal! Demais, ainda não penso em casamento,
nem sei se algum dia pensarei nisso!
— Por quê?
— Ora, respondeu ele — não vale a pena a gente se casar! Há por aí tanta
desgraça, tanta decepção que, para falar com franqueza, não tenho ânimo...
— Julgas assim tão mal as mulheres?...
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— Com franqueza é exato, filha! Não digo que não haja mulheres virtuosas;
isto, porém, é raro!...Prefiro não arriscar!...
— Desconfio de tanto ceticismo na tua idade!
Ele agitou os ombros.
— Um homem com esses princípios é incapaz de amar...ajuntou ela.
— Tens em mim a prova do contrário...retorquiu Amâncio sorrindo.
— Em ti?...
— Sim, e sabes disso perfeitamente!
— Disso, o quê?
— Que te amo...
— Não creio...
— Nesse caso, o cético não sou eu!
— Se me amasses, já mo terias provado...
— Provado?
— Está claro. Não acredito nesse amor cauteloso e metódico, que de tudo se
arreceia, que se não quer expor, que tem calma para medir todas as conveniências,
que teme os olhares, os ditos, as considerações de todo o mundo, quer vem
finalmente muito mais da cabeça que do coração!
— Não acreditas, então , que eu te ame?...
— Não, decerto! Nem te crimino por isso!...És ainda muito criança, para
sentires o verdadeiro amor, a verdadeira paixão. Essa que não conhece obstáculos;
que tudo pode e tudo vence; que é capaz de todos os sacrifícios, sejam do bem ou
sejam do mal; essa que levanta os grandes crimes ou os grandes heroísmos! Amar,
tu! E porventura saberás ao menos o que é o amor?! Algum dia experimentaste, por
acaso, o ciúme, o desespero, a loucura, a que nos conduz o objeto amado? Não!
Não queiras amesquinhar o único sentimento que até hoje se tem conservado puro!
Não queiras amesquinhar a coisa única respeitável que resta sobre a terra! Para que
possas falar a esse respeito, primeiro é necessário que ames! É preciso que dês
alma, vida, futuro, esperanças, tudo, a uma mulher! é preciso primeiro que te
esqueças de teus sonhos mais queridos, de tuas melhores aspirações, para só
cuidares nelas, viveres delas e para ela! Então, sim! eu acreditaria em ti!
E Lúcia apoderou-se novamente das mãos de Amâncio, e as palavras
borbulharam-lhe com mais febre:
— Amor é o que sinto por ti, entendes?! Amor é o que me faz esquecer a
minha responsabilidade, o meu destino, o meu dever, para estar aqui a teus pés,
alheia a tudo, esquecida do passado, descuidosa do futuro; só para te ver , só para
te ouvir, só para me saturar toda de tua presença!..
Entretanto... disse Amâncio, procurando afinar a voz pelo tom enfático com
que falava a outra, — entretanto, nunca me permitiste fruir contigo os verdadeiros e
mais saborosos proveitos do amor! Tiveste a cruel habilidade de transformar um
manancial de gozos em fonte perene de tormentos e dissabores! Se me amas, digo-
te eu agora, por que evitas a todo transe que eu vá além dos nossos beijos?... Se
me amas, por que impões o suplício do teu rigor? Ah! eu só acreditaria na
sinceridade de tais protestos se fosses generosa comigo....
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— Não! não! contrapôs ela abraçando-o . Nunca faltarei aos meus deveres!
Nunca trairei meu marido! Serei capaz de uma loucura; não, porém de uma infâmia!
Seria capaz de fugir contigo, abandonar tudo por tua causa; mas introduzir-te
covardemente na minha alcova, nunca! Aceitaria um crime, sim! mas havia de
aceitá-lo sob todas as responsabilidades, com todas as conseqüências que ele
viesse a produzir! Seria tua, mas não enganando a um outro; seria tua, mas toda,
inteira, lealmente! Abandonaria por tua causa meu marido; antes, porém de o fazer,
dir-lhe-ia com franqueza: “Fulano! Amo um outro Não posso continuar ao teu lado,
sem que te engane todo os dias e a todos os instantes! Por isso — vou! Amaldiçoa-
me , se quiseres, mas não te perturbes a minha felicidade” Deixaria de ser esposa,
para ser concubina! Trocaria meu nome, minha posição, por algumas horas de
delírio, por algumas horas de sonho; mas, em todo o caso, a consciência nunca me
acusaria, o coração jamais se teria de maldizer!
— Vês?! Disse ela, esfolegando cansada de falar. — É por isso que até hoje
me tenho portado deste modo contigo; é por isso que domo os meus impulsos e os
meus arrebatamentos! — Sou de outro, não me possuo, não posso dispor disto!
E sacudia todo o corpo, com uma obstinação provocadora e canalha.
Amâncio olhava para ela , mordendo os beiços.
— Se é verdade que me queres possuir...disse a intransigente, depois de
uma pausa em que se ouvia a respiração dos dois. — Arranca-me das mãos de meu
marido e leva-me para onde bem quiseres, faze de mim o que entenderes! Serei tua
amante, tua companheira, tua escrava; serei tudo que ordenares, contanto que eu já
não pertença a nenhum outro, contanto que eu tenha comprado com o risco de
minha vida a felicidade de nós ambos!
E Lúcia, agitando romanticamente os cabelos, que ela por cálculo trazia soltos
essa noite, perguntou com ímpeto:
— Compreendes agora a minha reserva?! Compreendes que, apesar de
minhas recusas, eu te adoro, meu Amâncio, meu amor, minha vida?!
Entretanto, acrescentou ela, quando se convenceu de que Amâncio não
queria cair no laço — tenho fatalmente de abafar todos os meus sentimentos, tenho
de calcar todos os meus desejos, porque amanhã nos separamos.
Amâncio ergueu-se, pasmado.
— Como nos separamos?...interrogou.
— Eu amanhã me retiro desta casa...esclareceu Lúcia, sem erguer os olhos.
— Vou, e ainda nem sei para onde! Mas, não poso deixa de ir: manda-me a
dignidade que aqui não fique nem mais um instante!
— Como assim? Explica-te!
— Oh! não me perguntes nada! Não me perguntes nada, porque, só o que te
posso afirmar é que esta súcia...E indicava o andar de baixo com um gesto
trágico.— Esta súcia, receosa de que eu te dispute a Amelinha, obriga-me a sair,
obriga-me a separa-me de ti! Ah! os miseráveis sabem o quanto eu te amo, meu
Amâncio! Temem que eu seja um estorvo ao teu casamento com ela.
— Mas, filha, como te podem eles constranger a sair?...
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— Não me obrigues a falar, por amor de Deus! Eu não quero, não devo dizer
mais nada!
— Oras! Isso não é generoso de tua parte! Se não podes usar de franqueza,
para que então me excitas deste modo a curiosidade?
— Não! Não te poso dizer mais nada! Repele-me, se assim entendes, manda-
me embora, mas, por piedade, não me obrigues a corar em tua presença!..
— Corar em minha presença?...Não te entendo, filha! Fala por uma vez. Abre
o coração!
— Nunca! Nunca!
— Mas é que tu me torturas Lúcia!
E acariciando-a:
— Vamos! Não sejas criança, fala com franqueza...Dize o que te fizeram! Não
acreditas então que sou teu amigo? teu amiguinho? Não crês que representas em
minha vida uma preocupação constante, um sonho, uma esperança?...
— Sim, sim, acredito, meu amor, mas não me obrigues a tratar de coisas, nas
quais ainda não tenho o direito de falar!...
— Ora! Que segredo pode ser esse, tão negro, tão repugnante, que não mo
queiras dizer?...É preciso que eu mereça muito pouco a tua confiança!..
— Não, não é isso, mas é eu me falta o ânimo para confessá-lo...Mudemos
de conversa....
— Não queres dizer? Bem! Acabou-se!
— Oh! não me fales desse modo, meu querido!
— Então dize o que é.
— E prometes que não me acharás ridícula?...prometes que a revelação do
que te vou dizer não me amesquinhará aos teus olhos?...
— Juro!
Lúcia tirou uma carta do seio e entregou-a ao estudante
Logo que este principiou a leitura, ela cobriu o rosto com as mãos, como para
esconder a vergonha.
Amâncio leu o seguinte em voz baixa:
“Sr.ª D. Lúcia Pereira.. Há quatro dia que entreguei a seu marido uma
Segunda conta do mês passado e deste mês, e, visto que até agora não tenho
recebido senão desculpas e promessas, tomo a liberdade de participa-lhes que, de
hoje em diante, não posso continuar a lhes fornecer comida e que preciso
urgentemente do cômodo ocupado pela senhora e seu marido. Espero, pois, que até
amanhã esteja o quarto n.º 8 desembaraçado e a minha conta selada e assinada
pelo Sr. Pereira; sem o que, pesa-me dizê-lo, não consinto que V.S.as levem
consigo a sua mulata, que é o único bem de que posso lançar mão para garantir a
dívida ”
Estava assinado por extenso o nome de João Coqueiro.
Amâncio dobrou a carta silenciosamente, ao passo que Lúcia continuava a
esconder o rosto.
— Em quanto importa?...perguntou ele depois.
Ela, conservando uma das mãos nos olhos, tirou com a outra a conta do seio,
e passou-lha, sem dizer nada.
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— “Quatrocentos e sessenta mil-réis”, leu o moço para si. E fez um trejeito
com os olhos.
Lúcia, ao lado, soluçava, sempre com o rosto coberto.
Amâncio pensou um instante, e disse:
— Não te aflijas...Eu poso, se quiseres, arranjar o dinheiro para amanhã...
Ela, então , descobriu a cara e, sem uma palavra, abraçou-se ao rapaz e
começou a chorar.
— E hoje, perguntou ele, quando Lúcia já se dispunha a sair — hoje mereço
um beijo?...
Ela correu para Amâncio, sorrindo, e com os olhos fechados, estendeu-lhe os
lábios.
O estudante, com as duas mãos abertas, segurou-lhe a nuca e principiou a
sorver o “seu beijo”, demoradamente, voluptuosamente, como se estivesse bebendo
por um canjirão.
Lúcia, porém, ao perceber que a coisa se demorava muito, arrancou a cabeça
das mãos do rapaz e fugiu.
* * *
As nove horas da manhã subseqüente, voltava o Sabino da casa do Campos
com a resposta de uma carta em que o senhor-moço pedia o dinheiro necessário
para satisfazer as dívidas de Lúcia.
João Coqueiro ficou assombrado quando recebeu a quantia; correu logo em
busca da mulher.
— Sabes? Disse assim que a viu. — Pagaram?
— Hein?! Fez Mme. Brizard, com espanto. — Pagaram?! Tudo?!...
— Integralmente! Cá está o cobre!
E, depois do silêncio da admiração:
— E que te parece, a ti, hein, Loló?!..
— Parece-me bom... a metade está feito; agora já não se trata de receber-lhe
a conta, é só de os pôr fora de casa?
— Sim ... mastigou o marido. — mas agora também é mais difícil fazê-lo
desarvorar! Já não temos um pretexto para isso!...
— Pretextos não faltarão... respondeu a francesa, e acrescentou: — O que
me faz cismar é este dinheiro arranjado assim à última hora... porque eles, ainda
ontem, estavam bem apertados e o Pereira não arredou o pé de casa durante o dia!
O marido refletiu um instante, e depois exclamou, com vislumbres de quem se
sente roubado:
— Ora, querem ver que aquela raposa arrancou estes cobres ao Amâncio?!...
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123
Mme Brizard confirmou alvitre com um gesto de cabeça.
— E olha que não é outra coisa! Repetiu o Coqueiro. — Que hoje o Sabino,
desde muito cedo, tinha já que fazer à rua!
— Ora essa!... resmungou a Brizard, indignada e ressentida, como se aquele
desfalque na carteira do estudante lhe trouxesse um prejuízo imediato.— Ora
essa!... sempre se vêem coisas neste mundo!...
— Mas deixa estar que hei de saber de tudo!... Prometeu o locandeiro.
E , com efeito, daí a pouco o próprio Sabino lhe confessava que fora pela
manhã à casa do Campos levar uma carta e que voltara com outra, recheadinha de
dinheiro em papel.
O locandeiro revoltou-se, mas a usa indignação subiu verdadeiramente ao
cúmulo, foi quando lhe constou que o bom do Amâncio para ter ocasião de estar
mais tempo com Lúcia recorria a todos os meio e modos de afastar Amélia do
quarto.
— Diz que não quer ser importuno ,contou a rapariga, — Que já basta os
incômodos que me tem dado, que não se acha com o direito de fazer de mim uma
irmã de caridade, e de obrigar-me a suportar as suas amolações! E que eu viesse
aqui para baixo rir e conversar com os outro, que ele teria nisso muito mais prazer.
— E tu, que lhe disseste? Perguntou o irmão.
— Eu disse que sentia o maior gosto em prestar ao Sr. Amâncio aquelas
insignificâncias de serviços; que, se os fazia, era por motu próprio!
— E ele?
— Ele disse que não, que não admitia, e que ficava até muito contrariado, se
eu não viesse embora!
— Vês?! Perguntou João Coqueiro à esposa, apontando para a irmã.— Vês?!
Tudo isso é obra da Sra. Lúcia!.
E, depois de uma pausa aflita:
— Aquela mulher não nos pode ficar em casa! Haja o que houver é preciso
que ela se vá daqui quanto antes!
E deu a sua palavra de honra em como havia de pôr cobro a semelhante
patifaria.
Não sossegou essa noite. Enquanto os mais dormiam, andava ele lá por
cima, a farejar nas trevas, grudando-se contra as paredes e escondendo-se pelos
cantos.
Passou assim algumas horas; mas afinal, viu Lúcia sair do quarto, pé ante
pé, atravessar a medo o corredor e sumir-se às apalpadelas, na porta do n.º 6 .
A sua primeira idéia foi a de chamar o Pereira e mostrar-lhe a mulher no
latíbulo do amante, mas considerou que o homem seria capaz de romper com ela e,
nesse caso, a ligação de Lúcia com o provinciano tornar-se-ia inevitável. — Nada!
pensou ele .Deixemo-nos disso.
Mas, também, não convinha esperdiçar uma ocasião tão boa para
desmascarar a tal sujeira.
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Encaminhou-se, pois, na direção do quarto do estudante. Lúcia, ao sentir que
alguém se aproximava, correu a fechar a porta por dentro, e fez sinal de silêncio ao
enfermo.
Coqueiro parou defronte do n.º 6 e bateu.
— Quem é? Perguntou Amâncio, no fim de pequena pausa, com a voz
levemente alterada.
— Sou eu, disse o outro. Precisava dar-te duas palavras... como vi luz no
quarto...
— Desculpa! respondeu o doente. — Mas agora não me posso levantar. Até
logo!
— Boa noite! Resmungou o dono da casa, e afastou-se.
Lúcia fingiu-se muito assustada com aquilo: — O Coqueiro, se veio ali, foi
para mostrar que sabia de tudo! Naturalmente espiara pela fechadura!
E pendurou logo uma toalha na chave.
— É o que se chama ter fama sem proveito!... Observou Amâncio, a quem
as negaças da mulher do Pereira já impacientavam.
— Está em tuas mãos!... Volveu ela. — Já expus com franqueza as
circunstâncias...
— Tirar-te do marido...
— Está claro!
— Isso por ora é impossível!... Mais tarde, não digo que não, mas por
enquanto...
— É porque não me amas, disse a ilustrada senhora, abaixando os olhos.
— Se te amo, minha vida! Se te amo!...
E ameigava-a, procurando beijá-la.
Ela fugia com o rosto, dizendo aflitivamente que preferia nunca o ter visto.
“Antes de conhecê-lo, ainda conseguia suportar o marido abominável a que a
prendera o destino, mas, depois que fantasiara a possibilidade de viver com
Amâncio, de possuí-lo, todo, sem que outra o disputasse, não mais podia entestar
com a miserável existência que levava e com os dilacerantes sacrifícios que lhe
cumpriam!”
Dito este fraseado, foi-se do quarto, como das outras vezes, a fazer-se
rogada, a medir os beijos que dava, a prometer que não voltaria mais, se Amâncio
persistisse nas costumadas exigências.
— Ora bolas!... praguejou este, quando se achou só. — Desta forma é
melhor mesmo que não venha! Põe-me neste estado e afinal musca-se, ainda por
cima emburrada! Gaitas!
Mas a idéia de que aquela resistência talvez não durasse mais do que o
tempo da moléstia o consolava em parte.— Sim, porque, em ficando bom, as coisas
seriam de outro feitio! Tinha graça que ele estivesse a pagar contas de quatrocentos
e tantos mil-réis, só para desfrutar a certeza de que a Sra. D. Lúcia o amava com
todo ardor de que é capaz uma alma pura e apaixonada! Qual! Por semelhante
preço preferia não ser amado!
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E adormeceu, impaciente por sair da moléstia, e entrar no gozo da felicidade
que ele acabava de pagar adiantado, como se abrisse para todo o ano uma
assinatura de amor.
A ilustrada senhora conseguira o que esperava: as suas negaças faziam-na
mais desejada pelo rapaz e davam-lhe, aos olhos deste irresistíveis fascinações de
coisas proibida.
Certas mulheres, quando se negam, estão recuando para melhor armar o
salto sobre a presa.
* * *
Logo pela manhã do dia seguinte, já o Coqueiro se apresentava no quarto do
provinciano, mas com o aspecto muito ressentido, os gestos duros, o olhar cheio de
recriminações.
— Então, ontem à noite, tinhas aqui a Lúcia?...inquiriu de chofre, depois de
cumprimentar Amâncio secamente.
O interrogado fez uma cara de espanto.
— Não podes negar! Eu a vi sair!...
— Ë exato, respondeu o doente, franzindo as sobrancelhas.
— Hás , porém de permitir que eu te diga que andaste muito mal!...repontou o
Coqueiro. — Tens de concordar que eu não posso, nem devo consentir em casa
semelhante coisa!
E foi até a janela, olhou a rua pelas vidraças. Amâncio não dava uma palavra
O outro voltou, muito comprometido.:
— Isto aqui é uma casa de família! Sabes perfeitamente que temos conosco
uma menina solteira, — uma virgem! Não é por mim, nem por ti, nem tampouco pela
Lúcia; mas é por ela, sebo! por - minha irmã! — a quem sirvo de pai! É por minha
mulher, é por minha enteada e pelo menino, é pelos hóspedes, enfim!...
— Pois acredita que não houve nada demais!...balbuciou Amâncio.
— Não, filho, tem paciência! Lá fora o que quiseres, mas daquela porta para
dentro, não admito, nem posso admitir!...E passeando pelo quarto com as mãos nas
algibeiras: - Que diabo! Eu te preveni!...
— Ora o quê! Resmungou Amâncio , indignado com a hipocrisia do colega,
mas sem coragem para dizer o que sabia a respeito dele e dos costumes da casa.—
Não abro o exemplo!...acrescentou.
— O que queres dizer com isso?
— Quero dizer que sei, tão bem como tu, que aqui nem todos são santos!...
— Não te percebo...
— E é melhor mesmo justamente que não percebas.
Mas , como o outro ainda se quisesse fazer de desentendido, ele declarou,
frisando as palavras, que nem sempre ficava a dormir no quarto durante a noite e
que então enxergava, às vezes...,melhor do que mesmo de dia...E falou
indiretamente nas entrevistas do médico do n.º 11 e no que sabia do próprio
Coqueiro com referência à mucama.
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— Olha! Concluiu: — O que te posso afiançar é que a mulher do Pereira só
vem aqui ao quarto depois que me acho doente, e, longe de ser com mau fim,
coitada, é até com muito boa intenção! — Entra, cavaqueia um pouco, dá-me a
tomar o remédio e assim como veio se vai embora, entendes tu?!
— Não há dúvida...gaguejou o hoteleiro, cuja fúria se esvaziara de repente às
bicadas do outro, que nem um balãozinho de borracha. — Não há dúvida que tu és
incapaz de cometer qualquer leviandade dentro de uma casa de família; mas, a
questão são as aparências, são as más línguas, são os outros hóspedes! Não os
conheces, filho! Nenhum deles acreditará que Lúcia venha ao teu quarto só para te
dar o remédio e meio dedo da palestra!...Sei perfeitamente que isso é exato, basta
que o digas; eles , porém, não terão a mesma boa — fé! Muito mais sabendo, como
sabem, de quanto é capaz aquela sujeita! Logo quem!...
— Oh! interjeicionou Amâncio. — Uma senhora casada!...
— Casada o quê!...Da missa não sabes nem a metade!
— Então ela não é casada com o pereira?...
— Nunca o foi! Com ele, nem com pessoa alguma! Conheço até a mulher do
Pereira, a legítima, — uma velhusca, de óculos, gorda, com um olho agachado,
cheio d ‘água. Mora na Rua da Pedreira.
Amâncio estava tão pasmo quanto indignado; aquela denúncia do colega
produzia-lhe o mau efeito que experimentamos ao dar por falta do relógio. — Pois o
demônio da mulher nem ao menos era casada?!...Ele, então, que diabo de papel
representara?!...
— Cínica! Disse em voz alta.
— Ora! Fez o outro. — Não trates de abrir os olhos e dir-me-ás depois as
conseqüências!...
No Rio de Janeiro, prossegui- havia muito artista daquela força! Amâncio
precisava acautelar-se, se não queria ser esfolado completamente. Lúcia o que
desejava era agarrá-lo para amante: farejava-lhe os cobres! Ele, porém, que não
fosse tolo! Que se não deixasse visgar por uma tipa de tão baixa espécie!
O provinciano jurava que , até ali, jamais conseguira coisa alguma das mãos
dela.
— Isso sei eu!...Tornou o Coqueiro, com um riso de velha experiência, — isso
não é necessário que me digas, porque já conheço a tática das Lúcias! Negam-se,
fingem-se difíceis, para valer mais! Quer obrigar-te a cair, toleirão!
— Está bem aviada! Exclamou Amâncio, justamente como ainda na véspera
havia respondido à Lúcia, quando esta lhe falou a respeito de Amélia.
Ainda nesse dia o Coqueiro aproveitou a ocasião em que o Pereira fazia a
sesta e foi se entender com a Lúcia.
Disse-lhe o que sabia a respeito das visitas noturnas ao quarto de Amâncio e
declarou terminantemente que não estava disposto a consentir em casa
semelhantes escândalos. Ela que tivesse paciência, mas fosse tratando de fazer as
malas e cuidando de pôr-se ao fresco, se não queria sofrer alguma decepção maior!
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A ilustrada senhora ficou lívida, e disparou sobre o locandeiro o mais terrível
dos seus olhares. Uma cólera massuda principiou a entupir-lhe a garganta. — Não
queria acreditar em tamanho atrevimento!
— Ë, gritou por fim, trincando as palavras. — Você põe-me fora de casa,
porque tem medo que eu lhe tome o amante da irmã!
— Insolente! Bradou o Coqueiro, avançando um passo.
— Não te tenho medo, ordinário! Retrucou Lúcia empinando o peito contra
ele. — Sairei daqui se bem quiser! Não te devo nada, entendes tu?! Nada!
— Ah! Não deve porque ele pagou!
— E que tem você com isso?! Que tem você com o dinheiro dos outros?! Ou,
quem sabe se a donzela da irmã passou-lhe procuração!...
Seja lá pelo que for! Eu é que não a quero aqui, nem mais um instante. É
fazer a trouxa e — rua!
— Também não preciso ficar nesse bordel! Exclamou ela, e rabanou com
direção ao segundo andar.
— Que diz você, sua aquela?! Assistiu Mme. Brizard, cortando-lhe o caminho.
— É isso mesmo! Respondeu Lúcia, escarrando no chão com desdém. E as
duas mulheres ficaram alguns segundos a olhar em silêncio uma para a outra, de
mãos nas cadeiras.
Coqueiro e Dr. Tavares meteram-se entre elas.
Lúcia subiu ao n.º 8, aprontou as malas num abrir e fechar de olhos, em
seguida vestiu-se para sair, e já de chapéu, a sombrinha na mão, o indispensável
enfiado no braço, correu ao quarto de Amâncio.
— Sabes? Bradou logo ao entrar, empurrando a porta com fúria. — Aquela
bêbada e o marido acabam de me enxotar daqui por tua causa! Têm medo que eu te
coma! Não posso ficar nem mais um instante! Desejo que me emprestes o Sabino!
— O Sabino estava às ordens, mas para onde se atirava ela com tanta
precipitação?
— Não sabia! Havia, porém , de encontrar um canto, onde se metesse! Havia
de descobrir um buraco, ainda que fosse no cemitério!
E Lúcia levantou os punhos até às fontes como para se esmurrar, mas cobriu
o rosto com as mãos e abriu num pranto muito nervoso. Era a reação que chegava.
Amâncio saltou da cama e correu para ela. Desembaraçou-a do chapéu, da
bolsa e da sombrinha e puxou-a depois sobre si.
— Não te consumas...disse - não te mortifiques desse modo.
— Sou uma desgraçada! respondeu a mulher, assoando as lágrimas. — Nada
se cumpre do que eu desejo! Nada! O melhor é dar cabo desta vida miserável!
E soluçava com o rosto escondido no peito do rapaz.
Na febre daquele choro agitado, os seus movimentos transformavam-se em
carícias. Amâncio sentia-lhe as lágrimas quentes e o contacto carnal dos lábios, que
elas ensopavam. Os desejos assanhavam-se-lhe de novo pelo corpo, como insetos
que voltam com o calor.
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— E tornava a cobiça-la com os mesmos ardores primitivos.
Não me queria separar de ti...queixou-se ela, afinal, virgulando as sua frases
com soluços suspirados. — Em ti havia firmado todas as minhas esperanças de
ventura, todos os sonhos de minha vida! Amava agora a existência, só porque
alguma coisa me fazia acreditar que ainda um dia seríamos felizes!
— E porque não havemos de ser?...perguntou Amâncio condolentemente.
— Ora!...prosseguiu ela, — tudo me persegue, tudo me sai contrário...Foi
bastante que eu te amasse, foi bastante pensar que poderíamos ser um do outro,
para que aqui se levantassem todos contra mim e ferissem a guerra que tens visto!
E, desagarrando-se de Amâncio, para segurar de novo a cabeça, num
movimento de embaraço doloroso:
Mas, imagina tu, que estou inteiramente sem recursos!...Tenho que fazer a
mudança e ainda não sei como pagar o carreto das malas!...Vê tu que situação!
Amâncio beijou-a na boca e perguntou se ela não lhe dava uma
esperançazinha para depois que se mudasse.
Lúcia respondeu que dava, não uma esperança, mas uma certeza”. E sem
desprender os lábios dos lábios do rapaz, afiançou - que lhe mandaria dizer por
escrito o lugar onde seria encontrada; e que ele fosse por lá as vezes que
entendesse. — Aí ao menos estariam livres do Coqueiro e das outras pestes! —
prometes então?...insistiu ele , procurando garantir o compromisso.
— Prometo, prometo o que quiseres, tudo! Disse ela, ainda chorosa.
Amâncio foi à algibeira do fraque, abriu a carteira. Havia trezentos mil-réis,
tomou uma nota de cem e entregou-a a Lúcia, dizendo com pesar que era o único
dinheiro que possuía na ocasião.
— Talvez te façam falta...considerou ela escrupulosamente, sem querer tocar
na cédula.
Não! não! apressou-se a declarar o rapaz. — Desculpa não te poder ser
mais agradável.
Lúcia beijou-o de novo, e desceu enfim ao primeiro andar, acompanhada pelo
Sabino que já estava à sua disposição.
Ordenou ao moleque de buscar, num pulo, uma carrocinha, e logo que esta
chegou fez embarcar as malas e mandou chamar uma carruagem.
Enquanto esperava, reclamou a sua conta, atirou com o dinheiro sem olhar
para quem o recebia, embolsou o troco e, em seguida, foi acordar o Pereira.
— Onde vamos? Perguntou este entre dois bocejos, assim que a viu em
trajes de sair.
— Venha daí, homem! E deixe-se de perguntas!
Pereira levantou-se espreguiçando-se e acompanhou a mulher.
Esta o fez entrar na carruagem que já havia chegado, assentou-se junto dele
e disse ao cocheiro que tocasse par a Tijuca. Deu-lhe o número.
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Era o número de uma outra hospedaria nas mesmas condições da que
deixavam. Lúcia, que já pressupunha aquelas rápidas mudanças, tinha, por cautela,
uma lista das principais casa de pensão da Corte e, à medida que se servia de cada
uma, riscava-a da coleção. A do Coqueiro era no rol a Sexta inutilizada com o traço
enérgico de seu lápis.
Entretanto, ia o Pereira silenciosamente se atufando nas almofadas e, aos
balanços monótonos do carro, procurava reatar o sono interrompido
CAPÍTULO XIII
A casa de pensão de Mme. Brizard sofreu muito com as variolóides de
Amâncio. Desmanavam-se hóspedes que era uma coisa por demais.
O gentleman, o Piloto e a pérola do n.º 9, “o estimável Melinho”, desde a fatal
noite das cataporas, não davam notícias suas; Fontes e a mulher sumiram-se logo
no dia imediato, e, por conseguinte, não metendo o tal médico do n.º 11, que já não
aparecia há bastante tempo, apenas seis hóspedes restavam dos quatorze
primitivos.
E ainda mesmo destes seis nem todos eram aproveitáveis; porque o Paula
Mendes e mais a mulher levantariam o vôo, assim que lhes chegasse uma
aragenzinha de dinheiro, e o estafermo do n.º 7 também estava a se despedir por
um daqueles dias, não da casa, mas do mundo.
Certos, só Amâncio, o guarda-livros, e o esquisitão do Campelo que, fugindo
ao pigarro do tísico, mudara-se para o andar de baixo, mal pilhara um cômodo
desocupado.
Mme. Brizard estava, pois, inconsolável. — Em sua vida de hospedeira jamais
tivera um mês tão ruim!
E azoinada por essas contrariedades e já de natureza um tanto supersticiosa,
agora em tudo descobria sinais de agouro e motivos para desconfiança. — Pois se
até o ilustre Sr. Lambertosa, “o respeitável gentleman, a flor dos homens finos, uma
criatura tão cheia de circunspeção”, quem diria?...aproveitar ao ensejo das bexigas
para lhe passar a perna!
E o Melinho? “estimável Melinho! A pérola do n.º 9, o homem das frutas
cristalizadas!” também não deixara as suas contas em aberto?...
Só o Piloto, o estúrdio, aquele de quem menos se esperava, aparecera três
dias depois da fugas, perguntando, ainda muito escabreado, de quanto era a sua
dívida.
— É mesmo caiporismo! Gemia a francesa.
O marido, porém, soprava-lhe a coragem: Ela que não desanimasse por tão
pouco! Nem tudo se perdera! Enquanto tivessem o Amâncio não se podiam queixar
da sorte; este valia por todos os outros!
Mas o precioso Amâncio não estava também muito satisfeito com a casa,
talvez desconfiado que a esta coubesse em parte a responsabilidade daquele
maldito reumatismo que, ora parecia extinto e ora o obrigava a guardara cama,
tolhido de dores.
A noite, quando lho permitiam as pernas, descia a cavaquear na varanda com
os senhorios. Agora os serões tinham um caráter mais íntimo e eram
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freqüentemente animados com a presença de uma família, que voltara às relações
de Mme. Brizard depois de seis meses de inimizade.
Tocava-se de piano, jogava-se a víspora quase todos os dias e, às vezes, se
dançava
A casa de pensão nunca ofereceu aos seus hóspedes um aspecto tão
divertido; menos para o rabequista, o Paula Mendes, que parecia cada vez mais
triste e apoquentado da vida. A circunstância de já não comer à mesa do Coqueiro
obrigava-o a desperdiçar muito tempo com o restaurante e dificultava-lhe a
subsistência da mulher, cujo mau humor ia azedando ao peso da tanta necessidade
e de tanta humilhação. O infeliz marido conseguiu afinal que ela fosse passar alguns
meses na companhia dos parentes em Niterói.
Mme. Brizard, ao vê-la partir, receou a premeditação de uma fuga e exigiu
logo que o Mendes, para garantir a dívida, hipotecasse o piano que tinha no quarto
O pobre homem consentiu, sem dizer palavra, mas, de envergonhado, deixou
de aparecer nos serões da sala de jantar.
E desde então, por alta noite, quando toda a casa era silêncio, Amâncio ouvia
no corredor o som de passos trôpegos e um vozear confuso de alguém quer
monologava..
* * *
A casa de pensão, definitivamente, ia se tornando insuportável ao estudante.
Não podia sair à rua; o médico, havia quase um mês, jurara pô-lo pronto em quatro
dias, se Amâncio não fizesse alguma extravagância; as conversa de toda a família
Coqueiro, à exceção de Amelinha, o enfastiava; a leitura muito pouco o distraía, e,
para complemento do enjôo, o maldito tossegoso do n.º 7, o qual por caridade
entregara ele ultimamente ao seu médico, parecia morrer de cinco em cinco minutos
e não lhe dava um momento de sossego.
Mas a causa principal desse tédio era, sem dúvida, a ausência de Lúcia.
Desde que ela se foi, o coração do rapaz turgia de saudade; longe de esquecê-la,
cada vez a desejava com mais sofreguidão.
As trevas da ausência faziam-na destacar melhor e mais linda, como um
fundo negro a uma estátua de mármore.
Sentiu sobressaltos deliciosos quando recebeu a primeira carta das mãos
dela. Era extensa, cheia de imagens poéticas e figuras de grande alcance amoroso;
terminava dizendo que” Amâncio, logo que pusesse os pés na rua, a fosse procurar”.
O endereço vinha à parte, num pedacinho de papel.
E não poder ir quanto antes!...Que espiga!, considerou ele, sinceramente
penalizado.
E cresciam-lhe os enjôos.
Só Amélia, com os estiletes da sua perceptibilidade feminina, consegui
penetrar no âmago daquelas tristezas, mas não se deu por achada e redobrou de
desvelos e meiguices para com ele.
Amâncio, por mais de uma vez, beijou-lhe as mãos suspirando que ela era o
seu bom anjo, a sua consolação única no meio de “tantos dissabores”!
Assim se passaram quinze dias. O apaixonado já a tratava por tu, por você e
raras vezes por senhora.
Era a piedosas Amelinha quem lhe arrumava o quarto, quem lhe cuidava da
roupa, e, já por fim,. Era até quem lhe levava o cafezinho pela manhã. Mas não
entrava, apenas metia o braço pela abertura da porta que ficava sempre encostada,
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depunha cautelosamente a xícara sobre soalho, e, se Amâncio ainda dormia,
gritava-lhe no seu falsete aprazível:
— Preguiçoso, acorde! São horas!
Depois, apanhava novamente as saias e descia a escada, ligeira e sem
rumor.
Outras vezes, ao anoitecer, subia para lhe pedir um livro emprestado, para
saber se ele queria chá no quarto ou se preferia descer à sala de jantar. Sempre
havia um pretexto para lá ir e, depois de lá estar, sempre arranjava um motivo de
demora. Entretinha-se a ver o que se achava sobre a mesas; examinava tudo; lia a
lombada dos livros, e brincava com um esqueleto que jazia pendurado a um canto
do quarto.
Amâncio, de uma feita, não pôde deixar de rir, quando a encontrou muito
espantada a examinar as gravuras de um tratado fisiológico de Vernier.
Estava ,porém , mais e mais convencido de que toda aquela familiaridade e
toda aquela confiança da rapariga procediam do modo e das maneiras respeitosas e
fraternais com que ele, até ali, a tratara. E então fazia por domar os seus impulsos
luxuriosos, receoso de cair-lhe em desagrado.
Verdade é que , em grande parte, contribuía para esse estranho heroísmo do
garanhão, não só a moléstia, como a ilimitada confiança que, muito propositalmente
depositavam nele o Coqueiro e a mulher.
Se Amélia e Lúcia trocassem os papéis, isto é, se aquela se negasse e esta
se oferecesse, é de supor que Amâncio desdenhasse a última e ambicionasse a
primeira.
Mas o Sr. João Coqueiro, apesar de tão fino, não calculou que, em naturezas
viciadas como a de Amâncio, o mais forte estímulo para o amor é a proibição.
Embalde deixavam o rapaz horas e horas no salão, às voltas com a menina;
embalde Mme. Brizard lhe dava a perceber o quanto era ele amado pela cunhada;
embalde lhe chamava “coração de gelo”; embalde lhe preparava todos os laços.—
Nada produzia o efeito desejado; Amâncio tornava-se cada vez mais respeitoso e
mais frio em presença de Amélia.
Era para desesperar!
Uma ocasião, todavia, estava ele no quarto, de costas para a porta e muito
entretido a ler defronte o gás, quando Amélia, pé ante pé, entrou sem ser sentida e,
encaminhando-se contra o moço, tomou-lhe a cabeça nas mãos e cobriu-lhe o rosto
de beijos.
Amâncio quis prendê-la, mas a rapariga não se deixou enlear, e fugiu, como
um pássaro assustado.
* * *
O rapaz, então, nunca mais receou lhe cair em desagrado. Mas o demônio do
reumatismo lá estava erguido entre ele e a provocadora menina. A despeito do
tratamento, as dores recrudesciam-lhe de vez em quando e assanhavam-lhe a bílis.
Amâncio principiou a emagrecer, tomado de uma estranha prostração, muito
assustadora. O médico aconselhou-o, logo a que se mudasse para um arrabalde de
bons ares, como Santa Tereza, por exemplo, e esta notícia produziu enormes
sobressaltos na família dos locandeiros.
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Mme. Brizard parecia ter um filho em risco de vida; Coqueiro declarou, cheio
de dedicação, que não deixaria o “pobre amigo ” ir assim desamparado para uma
casa de saúde ou para um hotel; Amelinha choramingava ao lado da cama do
enfermo, e, quando se achava a com este, beijava-lhe as mãos, afagava-lhe os
cabelos e soluçava palavras de ternura.
Nesses dias Amâncio era o assunto obrigado das conversas da casa. À mesa
e durante os serões não se falava noutra coisa. Lembravam-se todos os
expedientes: - uma mudança geral da família; alugar fora uma casinha e levá-lo de
passeio até que se restabelecesse; abandonar a casa de pensão ou entregá-la aos
cuidados de alguma pessoa de confiança.
Nada, porém, ficava resolvido. A conversa turbinava em volta do mesmo
assunto, sem descobrir uma saída.
Nini era a única que parecia não se importar com tudo aquilo; de olhos muito
abertos, sonâmbula, ouvia em silêncio as conversas da família, apenas suspirando
de espaço a espaço.
Não obstante, já uma noite estava a casa recolhida, quando despertaram
alarmados com o baque de um corpo que, entre medonhos gritos , rolava pela
escada do segundo andar.
Acudiram todos, num levante.
— Que acontecera?! Que acontecera?!
Nini, coberta de sangue, jazia estendida sem sentidos ao sopé da escada.
Rolara vinte degraus e partira a cabeça em dois lugares.
Ia fazer uma visita ao seu esquivoso enfermo, mas no patamar da maldita escada,
perdera o equilíbrio e baqueara desastradamente.
Tomaram-lhe as feridas a pontos falsos, friccionaram-lhe o corpo inteiro com
aguardente canforada e deram-lhe a beber cerveja preta.
Supunham, todavia, que amanhecesse morta. Foi o contrário: Nini melhorou
muito de seus antigos padecimentos e apresentou uma inesperada lucidez de idéias,
como há muito não possuía. — O choque fizera-lhe bem e não menos o sangue que
derramou da cabeça, afiançou o médico.
Aquele trambolhão era uma providência!
À noite, conversou-se bastante a esse respeito; vieram as amigas de Mme.
Brizard; choveram os comentários sobre Nini; citaram-se as anedotas correlativas ao
fato, e Amâncio, que se achava então mais desembaraçado das pernas, entendeu
de sua obrigação fazer uma visita à pobre criatura.
Nini estava melhor que nunca, tranqüila; havia comido regularmente e
mostrava-se até mais satisfeita e mais comunicativa; ao dar, porém, com Amâncio,
que entrara no quarto com o seu risinho de boa amizade, abriu de repente a
estrebuchar na cama, bramindo impropérios e atassalhando as roupas.
Para sossegar um pouco foi preciso que o rapaz fugisse o mais depressa de
sua presença. E, desde então, a desgraçada não o podia ver, que lhe não voltassem
logo as insânias e os frenesis
Estabeleceu-se um cuidado enorme para evitar que os dois se encontrassem.
Já não era permitido a Amâncio dar um passo fora do quarto, sem se precaver e
indagar se Nini estava por ali perto.
O médico declarou que um novo encontro exacerbaria os padecimentos da
enferma e talvez lhe produzisse a loucura absoluta.
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Mme. Brizard pranteava-se toda, quando lhe falavam na filha. — Era uma
desgraçada, dizia, com os olhos epispados pelo esforço que faziam — era uma
grande desgraça! Antes Deus a levasse logo para si, coitada!
Um encontro, que Amâncio não pudera evitar, a despeito de suas
precauções, deixou Nini em tal excitação nervosa, que o doutor proibiu que a
consentissem fora do quarto. Ficou presa desde esse dia.
Malgrado a felicidade prevista ao lado de Amélia, o provinciano sentia já
bastante desejo de se tirar dali. — Assim estivesse bom!
Campos, em uma visita que lhe fez por essa ocasião, falou muito na
generosidade com que se portara a família do Coqueiro durante a moléstia do rapaz.
— Que aquilo era uma fortuna que nem todos abichavam! Citou principalmente as
canseiras de Amelinha e concluiu declarando que, segundo o seu fraco modo de
pensar, Amâncio tinha obrigação de fazer à menina um qualquer presente de valor.
Sim! porque, no fim de contas. Era muito difícil encontrar daquilo nas casa de
pensão! Outros foram eles, que Amâncio teria de Pôr os quartos na rua! — Não.
Inquestionavelmente, era preciso dar o presente!
E, depois de se concentrar numa pausa:
— Aí uma jóia de uns cem mil-réis...Que diabo! Esse dinheiro não o faria
pobre...
Mas o estudante, em voz discreta e abafada, confessou ao Campos que a
brincadeira não lhe havia saído tão de graça, como parecia à primeira vista: Só no
mês passado gastara perto de seiscentos mil-réis, sem contar que o Sabino vivia
numa dobadoura, de casa para a botica e da botica para a casa, e eram remédios
para Nini, remédios para o tísico do n.º 7, água de flor de laranja para Mme. Brizard,
xaropes para o Coqueiro; um inferno!...E que toda essa droga caía na sua conta! —
E os dinheiros emprestados?...E as fitas, os botões, as linha, as tiras bordadas, que
Amelinha estava sempre a lhe pedir que mandasse buscar nos armarinhos sem
nunca dar dinheiro para isso?...Não! O Sr. Luís Campos não lhe podia calcular o que
havia! — Hoje cinco mil-réis, amanhã vinte! E, no tirar das contas, parecia que tudo
isso, em vez de ser descontado, era aumentado nas suas despesas!...Que tal?!-
Recebera obséquios, sim senhor! mas também puxara muito pela bolsa!
Campos ignorava aquelas particularidades!...Mas entendia que Amâncio, nem
menos por isso devia menos obrigações à família do Coqueiro.
E ofereceu a “sua modesta choupana”, caso o estudante não quisesse
continuar ali.
Amâncio rejeitou, um tanto por se lembrar das esperanças que embalava a
respeito de Amélia, um tanto por se não querer sujeitar ao regime do negociante e
um tanto por mera cerimônia.
— Enfim, disse o marido de Hortênsia, despedindo-se- acho que o senhor
deve fazer o presente e tratar logo de sair daqui; já não digo pela questão da
despesa, mas porque lhe convém à saúde.
Escolha um arrabalde de bons ares ou então dê um passeio a Petrópolis; o
médico afiançou-me que o senhor tem ameaços de uma febre paludosa, e isso é o
diabo na época que atravessamos: a febre amarela grassa por aí que não é
brinquedo!
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* * *
Logo que constaram as novas disposições de Amâncio a respeito de
mudança, houve uma grande consternação por toda a casa.
— Deixar-nos?! Exclamou Mme. Brizard em sobressalto. — Não consentimos!
Se para o seu completo restabelecimento é necessário um arrabalde, vamos todos
para o arrabalde! Só - isso é que não! Seria até uma falta de humanidade, coitado!
E formou-se um zunzum de opiniões. Cochichava-se pelos cantos, em
magotes, discreteando-se projetos em voz de mistério, como se tratasse de um
moribundo. O Coqueiro andava de um para outro lado, coçando desesperadamente
a cabeça, gesticulando, à procura de um meio de conciliar os seus interesses.
Amélia, afinal, subiu ao quarto do doente, e, com uma aflição a quebrar-lhe a
voz, toda a tremer, os olhos úmidos, perguntou se ele tencionava deixar a casa.
Amâncio, ignorando o que ia por baixo a seu respeito, trejeitou uns momos de
indiferença e respondeu: “que não sabia ainda ao certo...havia de ver!...mas o
médico lhe ordenara que fosse...”
Como se só esperasse por aquelas palavras, o pranto da menina irrompeu
violentamente.
Ele, meio surpreso, a tomou nos braços, indagando com ternura “o que
significava aquilo?...”
Amélia não respondeu logo, mas depois, levantando a cabeça, que lhe havia
pousado no colo, exclamou entre soluços angustiados: - Não! não! não hás de ir!
peço-te que não vás!
O provinciano quis saber por quê.
— Eu te amo! disse ela, escondendo de novo o rosto. — Eu te amo e não
posso me separar de ti! Vejo a sua indiferença! percebo que me detesta, mas que
hei de eu fazer?! Adoro-te, meu amor!
Ah! se eu não estivesse tão doente!...suspirou Amâncio.
CAPÍTULO XIV
O tísico do n.º 7 há dias esperava o seu momento de morrer, estendido na
cama, os olhos cravados no ar, a boca muito aberta, porque já lhe ia faltando o
fôlego.
Não tossia; apenas, de quando em quando, o esforço convulsivo para
atravessar os pulmões desfeitos sacudia-lhe todo o corpo e arrancava-lhe da
garganta um a ronqueira lúgubre, que lembrava o arrulhar ominoso dos pombos.
Contavam que expirasse a todo o instante. Amâncio cedera o seu moleque
para lhe fazer companhia, e dos brancos da casa era o único que lhe aparecia lá
uma vez por outra.
Não é que o espetáculo daquele aniquilamento lhe tocasse o coração, mas
porque lhe mordiscava a curiosidade com esse frívolo interesse de pavor, que nos
espíritos românticos provocam os loucos e os defuntos.
Uma noite, seriam duas horas da madrugada, o tísico gemeu com tal
insistência que acordou o estudante. Amâncio levantou-se, tomou uma vela e foi até
o quarto dele.
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Ficou impressionado. O homem estava muito aflito, debatendo-se contra os
lençóis, no desespero da sua ortopnéia A cabeça vergada para trás, o magro
pescoço estirado em curva, a barba tesa, piramidal, apontando para o teto; sentiam-
se-lhe por detrás da pele empobrecida do rosto os ângulos da caveira; acusavam-
se-lhe os ossos por todo o corpo; os olhos, extremamente vivos e esbugalhados, de
uma fixidez inconsciente, pareciam saltar das órbitas, e, pelo esvazamento da boca
toda aberta, via-se-lhe a língua dura e seca, de papagaio, e divisavam-se-lhe as
duas filas de dentadura.
Não podia sossegar. O seu corpo, chupado lentamente pela tísica, nu e
esquelético, virava-se de uma para outra banda, entre manchas excrementícias, a
porejar um suor gorduroso e frio, que umedecia as roupas da cama e dava-lhe à
pele, cor de osso velho, um brilho repugnante.
Faltava-lhe o ar e, todavia, pela janela aberta para o nascente, os ventos
frescos da noite entravam impregnados da música de um baile distante, e punham
no triste abandono daquele quarto uma melancolia dura, um áspero sentimento de
egoísmo; alguma coisa da indiferença dos que vivem pelos que se vão meter
silenciosamente dentro da terra.
O médico recomendara que lhe dessem todo o ar possível e lhe fizessem
beber de espaço a espaço uma porção do calmante que lhe receitara. Uma
lamparina de azeite fazia tremer a sua miserável chama e cuspia o óleo quente.
Havia um cheiro enjoativo de moléstia e desasseio.
Sabino dormia a sono solto no corredor. Amâncio acordou-o com o pé.
— É dessa forma que velas pelo homem? perguntou.
O moleque ergueu-se estremunhado e deu alguns passos, esbarrando pelas
paredes, sem cair em si.
— Vamos! Desperta por uma vez e dá-lhe o remédio! Ele parece que tem
sede!
O tísico, ao ouvir a voz de Amâncio, principiou a agitar os braços, como se o
chamasse, grugulejando sons roucos e ininteligíveis.
O estudante não quis atender, mas o doente insistia com tamanho desespero,
que ele, afinal, vencendo a repugnância, se aproximou, a conchear a mão contra a
língua trêmula da vela.
Apesar de seus fracos estudos de medicina, fazia-lhe mal aos nervos aquela
figura descarnada, que se exinania na impudência aterradora da morte; faziam-lhe
mal aqueles membros despojados em vida, aquele esqueleto animado, que, na sua
distanasia, parecia convidá-lo para um passeio no cemitério.
E o tísico rouquejava sempre, agitando os braços.
O moleque, ao lado, derramava-lhe colheradas de remédio na boca; mas o
líquido voltava em fios pelo canto dos lábios do moribundo e escorria-lhe ao
comprido do pescoço e pela aridez escalavrada do peito.
Amâncio tomou-lhe um dos pulsos. O contacto pegajoso e úmido fez-lhe
retirar-lhe logo a mão com um arrepio.
— Creio que não deita esta noite! Disse ao moleque, afetando tranqüilidade,
mas com a voz sumida e alterada.
— Qual, nhô, ele está assim a um ror de dias! Leva nisto e não decide!...
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— Não! Creio que agora está morrendo...
E olhou para o doente.
Este espichou a cabeça e respondeu que não, com um movimento demorado.
— Ele ouviu?...Perguntou Amâncio, impressionado com a intervenção
inesperada do moribundo.
A caveira tornou a agitar-se nos travesseiros para dizer que sim.
— Olha!...fez o estudante arregalando os olhos. E aproximou-se da porta,
recomendando ao Sabino que se não descuidasse da pobre criatura; que se não
pusesse a dormir como ainda há pouco!
O tísico, que havia serenado alguma coisa com a presença do rapaz,
principiou de novo a espolinhar-se, rilhando os dentes e agitando os braços e as
pernas.
Amâncio, porém, não atendeu desta vez e saiu. O tísico rosnou com mais
ânsia, procurando lançar-se fora do leito, numa aflição crescente.
— Fica quieto! Gritou Sabino, obrigando-o a deitar-se.
* * *
Logo que o estudante se afastou com a vela, o quarto recaiu na sua dúbia
claridade modorrenta. Os ventos frios da madrugada continuavam a soprar. O
moleque foi até a janela, olhou a rua em silêncio, acendeu um cigarro e, quando viu
que o seu homem parecia serenado, tratou de reassumir o sono.
O senhor é que não podia sossegar, com a idéia naquele pobre rapaz, que ali
morria aos poucos, sem família, nem carinhos de espécie alguma; sem ter ao menos
quem o tratasse, nem dispor de um amigo que se compadecesse dele.
— Infeliz criatura! Pensava .— Além do mais, longe da pátria, longe de tudo
que lhe podia ser caro!
E, sacudido de estanhas condolências, imaginava o pobre desterrado saindo
de sua aldeia em Portugal, atravessando os mares, atirado no convés de um navio,
afinal no Brasil, neste país-sonho, a trabalhar dia a dia durante uma mocidade, e
economizar, e sofrer privações; depois - falir, perder tudo de repente, achar-se em
plena miséria e com a ladra da tísica a comer-lhe os pulmões! Oh! cortava a alma!
Não se podia esquecer do desespero com que o desgraçado o chamava,
como se lhe quisesse pedir alguma coisa, fazer alguma revelação: — Talvez, quem
sabe? Até o tomasse, no seu delírio, por algum amigo: porque Amâncio se não
enganava, chegara a distinguir-lhe balbuciar o nome de alguém. — Não podia ser
outra coisa, o mísero chama v apor um amigo!
— Mas, também, que idéia, a sua, de andar por aquelas horas a visitar
moribundos! Que diabo tinhas ele, no fim de contas, com o tal tísico?...Ora essa!
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O vulto esquelético não lhe saía. porém, de defronte dos olhos, com a sua
ronqueira lúgubre, sempre a lhe estender os longos braços sem músculos e a rolar
nas órbitas, convulsivamente, aqueles dois bugalhos luminosos.
Fechou a porta do quarto, despiu o sobretudo que havia enfiado, apagou a
vela e recolheu-se à cama.
* * *
Era inútil; o sono não vinha; o quarto às escuras fazia-lhe mal aos nervos. No
fim de meia hora, ergueu-se novamente, tentou acender um bico de gás, haviam
fechado no registro; recorreu à vela e assentou-se à mesinha diante de um livro.
O tísico gemia.
— Que maçada! resmungou Amâncio, sem se poder safar da impressão que
trouxera do quarto “daquele diabo”! E cansava os olhos contra as páginas do livro,
lendo sem compreender.
Vinham-lhe bocejos repetidos, ardiam-lhe os olhos.— Agora talvez dormisse.
O importuno parecia sossegado, pelo menos não se lhe ouvia gemer.
Amâncio voltou à cama, sem ânimo de apagar a vela.
Quando estava quase adormecido, passos agitados no corredor o
despertaram em sobressalto e uma pancada em cheio na porta fê-lo erguer-se de
pulo e precipitar-se para ela.
Sabino e o tísico vieram-lhe à memória. Ouriçaram-se-lhe os cabelos, enlixou-
se-lhe a pele, e o coração bateu-lhe com mais força.
— Que teria sucedido? A mão tremia-lhe ao forçar o trinco.
A porta afinal cedeu, e Amâncio sentiu cair desamparadamente no chão o
corpo comprido e nu do héctico.
Estava horrível. Queria erguer-se, e em vão agitava as pernas e os braços.
Amâncio tentou ajudá-lo, gritando ao mesmo tempo pelo Sabino. Os membros do
tísico pareciam quebrar-se-lhe nas mãos, que escorregavam com a gordura fria do
suor, e no soalho manchas de umidade desenhavam-lhe já o feitio do corpo.
O estudante desejava chamar por alguém. — O Sabino dormia com certeza!
— Peste! Fez um movimento para sair; mas o esqueleto agarrou-lhe violentamente
os pulsos e pediu-lhe com uns vagidos dolorosos que ficasse.
De seus olhos corriam duas lágrimas compridas.
Depois de um esforço terrível, conseguiu falar. Eram sons apenas
murmurados, fracos, quase imperceptíveis
Amâncio tinha razão: O desgraçado, no delírio de sua fraqueza, o tomara por
algum bom amigo. Suas palavras vinham-lhe aos lábios roxos impregnadas de
confiança e de amor. Falava de coisas estranhas ao outro; perguntava-lhe por
indivíduos desconhecidos para Amâncio e reprochava-lhe a culpa de não ter vindo
mais cedo.
Depois referiu-se dolentemente à sua terra; tratou da infância, rindo, com
os olhos cheios d’água. Pediu que Amâncio, logo que lá voltasse, fosse à procura
do senhor padre, e encomendasse-lhe três missas.
Em seguida, fez um esforço para chegar ao ouvido do rapaz e começou, em
ar de mistério, a ensinar-lhe um caminho longo, muito longo... Explicava-lhe ruas,
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as voltas que era necessário fazer para chegar lá; afinal, dava-se com uma
choupana. Uma velhinha entrevada fazia meia a um canto da casa. Amâncio que
se aproximasse dela e lhe dissesse em segredo que o João, o seu querido filho...
Uma agonia violenta tolheu-lhe a fala. Ele ainda tentou dizer alguma coisa,
mas o sangue purulento já lhe golfeava da boca e caía-lhe um jorro pelo corpo.
Estirou-se todo, dobrou a cabeça para trás e, depois de entesar num
estremecimento os membros rechupados, foi pouco a pouco cerrando os lábios e
empenando o corpo com um gemido longo e sentidíssimo.
Lá fora, a música duvidosa continuava, ao longe, entristecendo.
Amâncio teve um assomo de cólera; seu temperamento nervoso e egoísta
revolucionava-se com o choque daquele incidente desagradável, que lhe não dizia
respeito e vinha-lhe todavia roubar despoticamente o sossego.
Logo que o tísico expirou, correu a acordar Sabino com um murro. O
moleque levantou-se, como da primeira vez, e correu à cama do tísico. A
lamparina bruxuleava sobre o velador, projetando em volta, pelas paredes,
sombras que se iam dobrar no teto.
Sabino abismou-se ao dar com o leito vazio, olhou em torno, muito pasmo,
chegou a levantar a colcha e a espiar para debaixo da cama; depois correu à
janela e interrogou a solidão fria da rua.
— Ué! disse .
— És uma peste! Gritou-lhe Amâncio. — Por tua causa o tísico foi morrer
no meu quarto! Ande! Vá chamar o Dr. Coqueiro ou alguém que trate do corpo!
Aqui em cima, creio que não há ninguém, nem sequer o Paula Mendes.
O rabequista, com efeito, havia ficado essa noite em companhia da mulher
em Niterói .
A notícia levantou embaixo um rebuliço. À exceção do Campelo e do
guarda-livros, ninguém mais se conservou na cama.
Mme. Brizard arrepelava-se, praguejando contra o maldito caiporismo que a
perseguia ultimamente.— Até já lhe vinham os tísicos morrer em casa! Era demais!
Causou grande impressão a narrativa de Amâncio sobre os últimos momentos
do homem. O Dr.Tavares desfez-se em altas considerações a esse respeito.
Coqueiro proibiu à irmã que subisse ao segundo andar, enquanto o cadáver não
estivesse convenientemente amortalhado e deposto no sofá que às pressas se
carregou para cima. Por toda a casa distribuíram-se fogareiros de incenso e
alfazema. Sabino fora, de um pulo, buscar à botica uma garrafa de labarraque , e
o copeiro saíra para lançar à primeira praia o colchão, os lençóis e os travesseiros
que serviam ao defunto.
Descarregou-se o quarto. A francesa quis abrir um velho baú de folha, que
jazia a um canto e que era o único objeto deixado pelo morto; mas o Dr. Tavares
opôs-se-lhe energicamente, citando artigos do código criminal e dizendo em tom
de autoridade que o falecido era um súdito português e, por conseguinte, só ao
cônsul de sua nação competia fazer-lhe o espólio dos bens!
— E o que nos ficou ele a dever?! E mais a despesa dos lençóis, do colchão
e do diabo?! Perguntou Mme. Brizard.
— Recebe-se do consulado português ou não se recebe de pessoa alguma,
apressou-se a explicar o Coqueiro, que já sabia perfeitamente não haver dentro do
tal baú coisa alguma de valor.
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* * *
O corpo saiu no dia seguinte, em um carro da misericórdia. E Amâncio
declarou positivamente que não estava disposto a ficar na casa de pensão em
mais um dia.
— Pois então vamos todos para um arrabalde! — deliberou Mme. Brizard,
em conseqüência dos repetidos conchavos que fizera com o marido.
Diabo era o estado de Nini, a pobrezita achava-se agora completamente
desarranjada. Comia encostando a boca ao prato, como um bicho; não trocava
palavra com pessoa alguma e nem mais podia ficar em liberdade , porque de vez
em quando lhe acometiam frenesis, que lhe davam para morder os outros e
espatifar as roupas, até ficar nua.
O médico entendia, porém, que, com um bom regime hidroterápico, ela ainda
podia se restabelecer. Citou exemplos animadores, “bonitos casos”, disse os belos
resultados que ultimamente se obtinham por meio das duchas de água fria no
tratamento das enfermidades nervosas, e terminou declarando que, só por esse
meio, havia esperança de uma cura radical.
E o doutor, logo que esteve a sós com Amâncio, confidenciou-lhe, rindo:
— Já toquei à velha sobre aquilo que falamos; creio que desta vez fica o
senhor livre da histérica!
Venceram-se, com efeito, os escrúpulos de Mme. Brizard, e Nini foi para a
casa de saúde do Dr. Eiras. A mãe teria notícias dela todos os dias e havia de lhe
aparecer em pessoa duas vezes por semana.
— Aquela rapariga era o tormento de sua vida! Antes Deus a tivesse
chamado para si! Agora, o que não seria necessário gastar com a tal casa de
saúde?... talvez uns vinte mil-réis diários, se não foram mais! Onde iria tudo aquilo
parar? Era caiporismo, definitivamente!
Como desejavam, descobrir-se uma casa em Santa Teresa. O Dr. Tavares e
o guarda-livros acompanhariam a família; Campelo, o esquisitão, é que não estava
pela mudança. Logo que lhe falaram nisso, pediu secamente a nota de suas
despesas, pagou-a, e retirou-se muito calmo, assoviando, de mão no bolso, cabeça
erguida, na mesma fleuma inalterável com que costumava sair todas as manhãs
para o trabalho.
Todo ele ia como a dizer no seu silêncio indiferente e egoísta: “A mim tanto
se me dá seis como meia dúzia ...morar com Pedro ou morar com Paulo, tudo
para mim é a mesma coisa, desde que, em troca do — meu dinheiro — , me
apresentem um quarto limpo e a comida a horas certas. Se dez anos continuasse
aqui Mme. Brizard, dez anos ficaria eu na Rua do Resende; mas, uma vez que se
muda para Santa Teresa — Adeus! vou bater a outra freguesia... o que por aí
não faltam são casas de pensão.”
O Paula Mendes, ao entra pouco depois, recebeu em cheio a notícia de a
família Coqueiro ia deixar a casa e que por conseguinte era preciso que ele
saldasse as suas contas.
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Mas o rabequista não tinha dinheiro na ocasião. — Logo que o tivesse havia
de pagar integralmente.
Os locandeiros não estavam por isso, já lhes bastavam os calos do
gentleman e do Melinho! E , depois de uma troca agitada de palavras, Mendes
propôs deixar o piano, ficando-lhe o direito de resgatá-lo mais tarde com a devida
importância.
Mme. Brizard queria do dinheiro e não instrumentos de música! O Sr. Paula
Mendes que vendesse o piano e liquidasse depois as suas contas!
Assim foi. O rabequista saiu, e, quando à tarde voltou à casa de pensão,
trazia consigo um homenzinho de barbas compridas, que fechou o negócio por
quatrocentos mil réis. Mendes pagou o que devia, fez tristemente as suas malas,
e afinal se retirou de cabeça baixa e mãos cruzadas par trás.
César, que o fora espreitar ao corredor, voltou à varanda, dizendo espantado
que ele chorava ao descer as escadas.
— Deixa-o lá, menino! Resmungou a locandeira, e tocou a sineta, chamando
para a mesa.
* * *
O jantar já não tinha o caráter de uma refeição de hotel, em mesa-redonda.
Agora compareciam apenas cinco pessoas: Amâncio, Amelinha, Mme. Brizard,
Coqueiro, César e o Dr. Tavares. O guarda-livros, esse continuava a não comer em
casa.
Mme. Brizard suspirava à vista dos lugares vazios.— Oh! que aperto de
coração lhe fazia aquilo! Não podia resistir a tanta contrariedade ao mesmo
tempo!...
Pelo corredor do jantar, falou a respeito de Nini, queixou-se de saudades. Já
à sobremesa, recrudesceram-lhe as ternuras maternais, vieram-lhe nostalgias, uma
lágrima saltou-lhe do olho esquerdo.
Chamou César para junto de si, abraçou-o e beijou-o repetidas vezes e
ficou a passar-lhe a mão pela cabeça. Um silencioso constrangimento se apoderou
das pessoas presentes; depois, ainda com a voz quebrada de comoção, ela pediu
ao Coqueiro que se não descuidasse de cobrar o que o Lambertosa e o Melinho
ficaram a dever. - Agora precisavam muito e muito de dinheiro!...
Mudaram-se no dia seguinte. Amâncio ia muito incomodado, amanhecera
pior, quase que não podia mexer com as pernas; todos lhe profetizavam, entretanto,
rápidas melhoras em Santa Teresa. O cômodo que lhe destinaram era da casa o
mais espaçoso e arejado.
Amelinha não o desamparava, já não escondia até os seus carinhos,
chegava-se abertamente para o rapaz, como se fora casada com ele. Às vezes
dizia-lhe segredos na presença do irmão ou da francesa; prestava-lhe pequeninos
serviços amorosos: levantar-lhe, por exemplo, a gola do fraque, se fazia frio;
abotoar-lhe o colarinho, se estava desabotoado; atar-lhe a gravata, se o laço se
desmanchava; chegar-lhe para junto a escarradeira se Amâncio queria fumar.
Em Santa Teresa esses desvelos multiplicaram-se, aí já era a menina quem
lhe metia os botões na camisa e as fivelas no colete, quem lhe escovava a roupa e
o chapéu, quem lhe punha o perfume no lenço e lhe dava corda ao relógio, e,
quando fazia bom tempo e o rapaz tentava um passeio pelo morro, era ela quem
corria a lhe trazer a bengala ou o chapéu-de-sol, perguntando muito solícita se ele
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não se esquecera dos charutos e dos fósforos, sem já tinha lenço, se levava
dinheiro.
Mas, às vezes, rezingava, quase que ralhava com o estudante. Fazia-lhe
censuras, tomava-lhe contas de umas muitas coisas: se Amâncio passara por tal
rua, se estivera durante a ausência a passear sempre ou se encontrara alguém
porventura em alguma parte; quando lhe sentia cheiro de álcool queria saber o que
o rapaz bebera.
Amélia, enfim, se derramava por todo ele, sem Amâncio dar por isso; invadia-
o sutilmente, como um bicho que entra na carne.
A nova residência punha-os muito mais juntos, muito mais unidos do que a
da Rua do Resende. Os quartos eram pequenos, chegados uns dos outros; havia
um sótão com escadaria para a sala de jantar. Amâncio morava aí, sozinho.
Tinha de seu uma alcova e um pequeno gabinete de trabalho; janelas para
o nascente e para o ocaso, despejando sobre o jardim.
Embaixo, então, era a sala de visitas, a de jantar e mais quatro cômodos,
sem meter os quartos da criadagem, a cozinha, a despensa e o banheiro. Num
daqueles cômodos ficou o João Coqueiro com a mulher; noutro Amelinha; noutro o
guarda-livros, e o Dr. Tavares no último.
A respeito de mobília, só se carregou da Rua do Resende a que era de todo
indispensável. Não se vendeu sequer um objeto; o casarão renderia muito mais com
os trastes e, além disso, Mme. Brizard contava, mais dia, menos dia, reabilitar a
sua antiga e afamada casa de pensão. — Porque, dizia ela — era impossível que
as coisas não voltassem ao estado primitivo!...
Coqueiro é que parecia, como nunca, satisfeito de sua vida. Cuidava da nova
casa com muito interesse; falava em melhoramentos e aconselhava a Amâncio a
que comprasse uma mobiliazinha catita para ver como “ficava então naquele sótão
melhor que um príncipe no seu castelo”.
A casa, de fato, convidava às fantasias do gosto, porque era perfeitamente
nova e bem feita; o papel das paredes estava imaculado, o chão limpo e os tetos
virgens ainda de moscaria
Amâncio experimentou rápidas melhoras; quis logo descer à cidade, mas o
Coqueiro não lhe permitiu ir só.
Aproveitaram o passeio par comprar a mobília. O provinciano recebera nesse
mês dinheiro do Norte e retirara mais algum da casa do Campos; João Coqueiro
levou-o a uma loja de trastes e escolheu ele próprio o que podia convir ao outro;
isto é, uma cômoda, um lavatório, uma boa cama de casados, uma secretária, duas
estantes, um velador, e seis cadeiras; tudo de mogno e trabalhado a gosto
moderno.
Estes arranjos pediam outras coisas; escolheram-se também dois quadros
para o intervalo das portas, um belo espelho de parede, um relógio de pêndulo,
tapetes, capachos e escarradeiras.
* * *
O Coqueiro, muito empenhado na condução dos trastes, havia-se afastado
alguns passos de Amâncio, quando este sentiu baterem-lhe no ombro.
Era o Paiva Rocha.
— Oh! exclamou, satisfeito com o encontro.— Como vais tu? Há quanto
tempo não nos vemos!... Que é feito de ti?
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— Ai, filho apoquentado! Respondeu o Paiva. Ultimamente tem sido uma
enfiada de coisas más!...Há dois meses que não recebo dinheiro do correspondente;
tinha aí um lugar de revisor numa folha e os ladrões passaram-me a perna em mais
de duzentos mil-réis; além de que, a besta do diretor lá da escola lembrou-se agora
do exigir uma infinidade de maçadas e obrigar-nos a despesas impossíveis! O diabo!
E, mudando de tom, perguntou como ia Amâncio; onde se metera, que ninguém o
via?
O outro prestou contas de sua vida, expôs os pormenores de sua moléstia,
falou nos incômodos que dera à família do Coqueiro, principalmente a D. Amélia,
que, por sinal, era uma excelente menina.
— Maganão!... disse o comprovinciano, esbarrando-lhe intencionalmente no
braço.
Amâncio repeliu com febre aquela insinuação. O colega fazia uma tremenda
injustiça, tanto a ele, Amâncio, como à pobre rapariga!
— Ora, filho! Queres tu agora dizer a mim o que é a gente do Coqueiro!...
Amâncio abriu grandes olhos.
— Morde aqui! Acrescentou o outro, apresentando-lhe o dedo.
E em troca de um gesto negativo do amigo:
— Não queres falar por ora, e fazes tu muito bem! Mas é impossível que a tua
ingenuidade chegue ao ponto de tomares a sério a irmão do Coqueiro, — a Amélia
dos camarões!...
— Juro-te que, até aqui, só a tenho tratado com todo o respeito!
O outro soltou uma risada.
— É fato! Insistiu Amâncio, aborrecido já com aquela troça do companheiro,
mas ao mesmo tempo feliz por imaginar que as suas esperanças sobre a rapariga
eram perfeitamente justificáveis.
— Pois, se é fato, acredita que tens representado um papel de tolo! Fazem-te
a barba, filho!
Amâncio, então, para provar a pureza de sua conduta, pintou o estado em
que se achara ultimamente, entrevecido de reumatismo, sem préstimo para nada.
E contou o que sofrera com as bexigas.
— Ora, dize-me cá...volveu o outro em tom de segredo. — O Coqueiro já te
não tem dado algumas facadinhas...Confessa...
Amâncio, nem só confessou, como disse até o dinheiro que por várias vezes
emprestara ao senhorio.
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— Hein?! Bradou o Paiva, fazendo-se muito fino. — Queres mais claro?...E
ainda tens escrúpulos, criança! Pois olha que te não fazem nenhum favor — tu
pagas, filho, e pagas bem!
E lembrou que não seria mau tomarem alguma coisa num botequim próximo.
O outro declarou que estava ali à espera do Coqueiro.
— Deixa lá o Coqueiro, homem! Tens medo de ir só para casa?...
— Mas é que não sei se me fará mal beber alguma coisa. Ainda estou em uso
de remédios.
— Não sejas idiota! Exclamou o Paiva, puxando-o pelo braço.
Amâncio deixou-se levar, não tanto pelo prazer da companhia, como pela
circunstância de se livrar do Coqueiro, o que lhe dava esperanças de ver Lúcia ainda
essa tarde.
No café, defronte dos copos, a conversa voltou de novo à gente de Mme.
Brizard.
— Gentinha! qualificou o Paiva, atirando a palavra com o desprezo de quem
lança fora o sobejo de um copo.
E, depois, entornando os lábios, numa obstinação torpe:
— A questão está no pagamento!
Amâncio riu. Sentia-se feliz; aquele dia de liberdade, depois de tamanho
recolhimento, os cálices de xerez, as palavras degotadas do Rocha; tudo isso lhe
picava o espírito com uma pontinha de alegria devassa. Seus gostos, suas
tendências luxuriosas, volviam-lhe em revoada, como pássaro de arribação. Ficou
expansivo, disposto aos desabafamentos da vaidade. Em breve, contava tudo o que
se passara com ele na casa de Mme. Brizard, descrevia as maneiras de Amelinha
com sua pessoa, os pequenos cuidados amorosos, as pequeninas frases
significativas; narrou minuciosamente as cenas com Lúcia e disse que, ao sair do
café, iria visitá-la à Tijuca.
— Está claro! Trejeitou o outro, cuspilhando a areia branca do chão de pedra
e batendo com a ponta da bengala sobre os pés cruzados. — Eu, no teu caso, já
teria desforrado melhor os cobres!
— Achas então que eu devo?...
— Ora, filho, é o que se leva deste mundo! A respeito de virtudes temos
conversado! Eu cá só acredito numa castidade — a da velhice!... tirando daí... e
concluiu a sua idéia com um gesto feio.
Amâncio já recorria à moléstia para justificar aos olhos do amigo a atitude
respeitosa que ocupara ao lado de Amélia — o colega que não o julgasse um tolo!...
Mas que diabo havia ele de fazer, tolhido de dores, como estava, numa cama?...
Quando se despediram, o Paiva deu a entender que precisava de dinheiro;
mas Amâncio negou-o, apesar de bem provido, dizendo com voz triste que “sentia
muito não poder servir naquela ocasião”.
O outro, sem mais querer ouvir coisa alguma, retirou-se logo.
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* * *
Amâncio, assim que se viu livre, correu a tomar um tílburi e bateu para a casa
de pensão, onde estava Lúcia.
Era um palacete, com magnífica aparência. Janelas de sacada, grande
corredor ladrilhado de mármore e velhas escadarias encentradas de tapete de
oleado, preso a cada degrau por um fio de metal amarelo.
Foi recebido cerimoniosamente no salão por uma mulheraça muito gorda, de
luneta, extremamente degotada, mostrando entre as almofadas do peito
ramificações de veiazinhas escarlates, que pareciam miniaturas de árvores secas
desenhadas a bico de pena. Em um dos braços luzia-lhe uma jóia e, por debaixo do
vestido de cambraia, aparecia-lhe o pé quase redondo e empantufado de veludo
azul.
Tinha a voz grossa, cheia de uu, e o lóbulo do queixo coberto de penugem
negra.
Ai saber que Amâncio não ia com a intenção de tomar algum cômodo, mas
sim para falar com Lúcia, retirou-se sacudindo os rins; e da sala o estudante lhe
ouviu gritar ao criado “que fosse prevenir à senhora do Sr. Pereira de que aí estava
um cavalheiro que lhe desejava falar”.
Lúcia mostrou-se no fim de meia hora, a pedir mil perdões por se haver
demorado mais um pouco. Fizera toilette especial para recebê-lo e parecia muito
lisonjeada com a visita.
Declarou, logo, que o achava mais gordo, de melhor fisionomia.—
Abençoada moléstia, a dele!
E, em resposta ao que o rapaz lhe perguntava sobre aquela nova residência,
elogiou muito a casa, o serviço. “Sempre era outra coisa! Nem havia termo de
comparação entre esta e a de Mme. Brizard!”
Amâncio voltou-se todo na cadeira, considerando a sala. Uma rica sala,
apesar de velha, — grande , espelhada, cortinas de ramagem, consolos cobertos de
jarras com flores artificiais de pena. A um dos cantos um piano antigo e no centro do
teto de estuque, no lugar donde espipava o lustre, um grande escudo de cores,
rebentando em cabecinhas de anjos.
Falaram logo sobre as novidades da casa de pensão do Coqueiro: a saída
dos hóspedes, a morte do tísico, a mudança para Santa Teresa.
— Você ali está seguro!... disse Lúcia.
O estudante protestou com um gesto, em que já havia alguma coisa das
revelações que pouco antes lhe fizera o Paiva Rocha.
E, discutindo os amores de Amelinha, foram pouco e pouco empurrando a
conversa para o verdadeiro motivo da visita, até que Amâncio conseguiu tratar de si,
das suas saudades do quanto desejava Lúcia, do quanto sofria por causa daquela
ingrata que ali estava!
— Mais baixo! Olha que te podem ouvir!... ele então chegou-se mais para a
ilustrada senhora, tomando-lhe as mãos que cobria de beijos, e, no seu ardor, com a
voz abafada, os olhos acendidos, procurava arrancar-lhe uma resposta definitiva,
uma palavra qualquer que o restituísse por uma vez à tranqüilidade.
— Está quieto! Respondeu a tirana. — Está quieto!
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E, vendo que o demônio não a escutava, em risco de comprometê-la aos
olhos de quem por acaso entrasse na sala, propôs mostrar-lhe a chácara enquanto
esperavam pelo jantar. — Que ela já o não deixava sair sem ter jantado!...
Havia duas descidas; uma pelo corredor e outra pela varanda. Tomaram por
resta.
Lúcia, muito disfarçada, ia-lhe apontando os cômodos e as benfeitorias da
casa, com tanto empenho e gosto como se fora mesma a proprietária; mostrou-lhe o
banheiro, os tanques para a lavagem de roupa, o coradouro, o cercado das galinhas
e por último o jardim.
Colheu logo uma rosa e, por suas próprias mãos enfiou-a na gola do fraque
de Amâncio.
Em seguida atravessaram a hora.
Canteiros grandes, cobertos de verdura, saturavam o ar de um cheiro de
hortaliças. As alfaces brilhavam ao sol dourado de julho. Mais para adiante havia um
sombrejar melancólico e deliciosos de árvores grandes; era a chácara; viam-se no ar
as folhas largas e recortadas da fruta-pão faiscarem, como lâminas de metal
brunido; ao passo que as bojudas mangueiras se debruçavam sobre a terra numa
concentração pesada de sono.
Os dois prosseguiram de braço dado por entre o murmurejar tristonho
daquelas sombras. E lentamente, e sem trocarem uma palavra, se deixaram ir até a
espalda de um morro, que servia de limite à chácara.
Havia um grosseiro banco de pau meio escondido entre bambus e trepadeira.
Assentaram-se. Um fio de água corria da montanha e os passarinhos remigiavam
trilando na mole embalsamada das estevas.
Amâncio passou um braço na cintura de Lúcia e chamou-lhe o corpo para
junto do seu. Ela deixou-se arrebatar, bambeando a cabeça, num encontro
apaixonado de lábios.
O rapaz parecia louco no seu desejo.
— Não! Isso não! dizia a outra. — Mostra que é um homem de espírito! Não
se queira confundir com esses materialões que há por aí!
Ele opunha as razões que lhe vinham à cabeça para justificar os seus rogos:
“Lúcia que não quisesse desvirtuar o amor, o verdadeiro amor, fazendo de um
sentimento real e fecundo uma pieguice romântica e desenxabida”. Lembrou-lhe o
que ela própria dissera, quando pela primeira vez estiveram juntos.
E, num esfolegar febril e ruidoso, suplicava-lhe um pouco de compaixão, ao
menos; que não o torturasse daquele modo; que não o obrigasse a sucumbir ao
desespero de sua paixão!
Lúcia não entendeu. — Ele que deixasse a casa de Mme. Brizard e viesse
tomar um cômodo ali na Tijuca. Assim ... bem! Mas, naquele momento e naquelas
circunstâncias... Não! não! e não!
Apesar de enérgica recusa, Amâncio insistia sempre.
— Não seja teimoso, repreendeu ela, arrancando-lhe as saias da mão.— Oh!
ele, porem, não se desenganava e até já recorria à violência.
— Pior! Disse a mulher, notando que o estudante lhe desgrenhava os cabelos
e machucava-lhe as roupas. — Já não vou gostando muito da brincadeira!
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E, a um movimento desabrido do rapaz:
— Ora pílulas! Isso agora também já é estupidez!
Amâncio ao lado bufava, imóvel, emitindo sobre ela olhares de cólera.
— O senhor faz-se desentendido! Exclamou Lúcia, afinal, endireitando o
penteado e armando as lunetas. — Há muito devia compreender que nada
alcançará de mim, enquanto eu estiver com meu marido!
— Marido o quê! Desmentiu o provinciano, com a voz sufocada. —Tão marido
como eu!
Lúcia olhou para ele, apertando os olhos.
— É isso! Sustentou aquele. — Sei de tudo! A senhora quer fazer de mim um
tolo, pois fique sabendo que não faz! Trate de arranjar outro, porque comigo perde o
seu tempo!
Ela o mediu de alto a baixo, levantou desdenhosamente o lábio superior, e
afastou-se com um grande ar emproado e senhoril, murmurando entredentes.
— Ordinário!
Amâncio calcou o chapéu sobre os olhos, e, de cabeça baixa e passos lentos,
retomou pelo caminho andando, a fustigar com a bengala as ervínculas da estrada.
Saiu pelo portão da chácara.
Já na rua, sacudia os ombros e disse a meia voz:
— Que a leve o diabo!
CAPÍTULO XV
O rapaz acordou muito bem disposto no outro dia, estava, ou pelo menos
parecia, restabelecido completamente. Os ares tonificantes da Santa Teresa
produziram-lhe efeitos miraculosos.
— Até que enfim podia mandar ao diabo os xaropes e as tisanas que, de
tempos a essa parte, lhe melancolizavam a vida e relaxavam o estômago. E, ainda,
metido entre os lençóis, na matinal preguiça das sete e meia, dispunha-se a filosofar
sobre o ridículo episódio da véspera, quando um leve rumor na porta do quarto lhe
desviou o curso das idéias. Era a menina que trazia o café.
Viu-lhe a pálida mãozinha medrosamente surdir por entre a fisga da porta mal
cerrada, para depor no chão, como era de costume, a chávena de porcelana.
Amâncio. porém, desta vez saltou da cama e, correndo da gatinhas, a empolgou nas
suas.
A mãozinha quis fugir, ele não consentiu, e com ela veio um braço que as
folhas da porta arremangavam.
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Começou a beijá-lo sofregamente, desde a ponta dos dedos até os bíceps;
enquanto Amélia, sempre escondida ia consentindo, toda ela arrepiada em cócegas.
— Um beijinho...pediu ele mostrando o rosto.
— Logo!
— Com certeza?...
— Com certeza!
E a pequena desapareceu muito ligeira, — tique, tique, tique, pela escada.
Pouco depois combinaram a primeira entrevista. Ela subiria ao sótão, logo
que a casa estivesse completamente recolhida. Amâncio que a esperasse no escuro
e com a porta do quarto apenas cerrada.
O rapaz não pôde ficar tranqüilo mais um instante.
As horas nunca lhe pareceram tão longas e as conversas tão intermináveis.
Um sobressalto feliz perturbava-o todo, tirava-lhe o apetite e não lhe permitia um
pensamento que não fosse cair aos pés de Amélia.
Por maior caiporismo, o Dr. Tavares tinha essa noite uma visita que parecia
disposta a não largá-lo. Era um velho de sua província, muito falador de política,
apaixonado pelas eleições, pelos conservadores, mas que, nem à mão de Deus
Padre, pronunciava os rr e os ss e dizia: “Os partido liberá, os senadô”, e outras
barbaridades.
— Quando se irá este cacete?...pensava Amâncio, trêmulo de impaciência.
E o Tavares a puxar pelo demônio do homem, a fazer-lhe perguntas sobre
perguntas e a despejar contra ele a sua retórica inexaurível.
Até o guarda-livros que às vezes passava dias e dias sem dar uma palavra,
estava essa noite disposto a falar pelos cotovelos. Ainda pilhara o chá e,
repimpando na cadeira, com um brilhante a luzir num dedo, o ar satisfeito, os punhos
bem engomados, taramelava a respeito dos seus projetos de casamento. “Sim, que
ele, havia coisas de ano e meio, estava para desposar uma linda menina e de
educação esmeradíssima. Já há tempos a pedira!... Só esperava que a casa, onde
trabalhava desde os seus quinze anos, lhe desse sociedade, como aliás, havia já
prometido. — Ah! Toda a sua ambição era fazer família! Que vidinha melhor que a
do casado?...o matrimônio era um complemento do homem...A gente enquanto
moça não sentia a falta da esposa, mas depois?...quando chegasse a velhice?...Aí é
que seriam elas! Não! não podia admitir um eterno celibato!...A vida do solteiro tinha
seus encantos, tinha, para que negar?...os espinhos, porém, eram em maior
número; se eram!...
E citava os casos.
Amâncio retirou-se da varanda, sufocado de raiva. Preferia esperar no quarto.
Deram onze horas. Amelinha pediu licença e também se recolheu. Mme.
Brizard, à cabeceira da mesa, já bocejava, entretendo os dedos, a fazer pílulas das
migalhas de pão que ficaram do chá; o marido, ao lado dela, estudava mecânica
racional.
Veio finalmente o copeiro levantar a mesa e buscar o César para a cama. O
guarda-livros apertou as mãos de todos e sumiu-se; o sujeito dos partido liberá , a
despeito das insistências do amigo, despediu-se igualmente e, quando o advogado,
que o fora acompanhar até o portão da chácara voltou à varanda, já não encontrou
ninguém.
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Em pouco a casa era todo silêncio e trevas. Então, Amelinha, deixou o quarto
sorrateiramente, tirou as botinas, apanhou as saias e galgou a escada do sótão.
Amâncio, que a esperava na porta, logo que a teve ao alcance da mão,
puxou-a para dentro, e deu uma volta à fechadura.
* * *
Desde esse momento, a vida em casa de Mme Brizard tornou-se para ele
uma coisa muito agradável. Ninguém mostrava desconfiar, ao menos, de suas
intimidades com Amélia, que pelo seu lado parecia satisfeita com o estado de
coisas.
Só uma ligeira circunstâncias covardemente o arreceava: É que a pequena
não lhe exibira em quarta ou quinta edição, como dizia o Paiva, mas em
comprometedoras primícias, com todos os cruentos requisitos de uma estréia.
Fugiu o primeiro mês de lua-de-mel, sem o menor eclipse. Contudo, ele
agora puxava um pouco mais pela bolsa: a família estava em crise; a pensão de Nini
absorvia os proventos que se obtinham do Tavares e do guarda-livros; o casarão da
Rua do Resende apenas se conseguira alugar em parte; os gêneros de primeira
necessidade eram mais caros em Santa Teresa.
Mas que valia tudo isso posto em confronto aos gozos que lhe proporcionava
a deliciosa rapariga?
Ela parecia viver exclusivamente para lhe dar carinhos e afagos. Era como se
fora sua esposa; deixava tudo de mão para só cuidar do amante. — Ele estava em
primeiro lugar! Agora a pequena lhe fazia a cama; levava-lhe ao quarto o moringue
d’água, penteava-lhe os cabelos, e exigia que o rapaz lhe dissesse os passos que
dava, por onde estivera, com quem falara e o dinheiro que gastara. Revistava-lhe
conjugalmente as algibeiras, lia-lhe as cartas e, sempre desconfiada, cheirava-lhe as
roupas.
Amâncio sorria de tais ciúmes, com o ar seguro de quem desfruta em paz
uma felicidade legítima e abençoada por todos. Já não furtava beijinhos assustados
por detrás das portas; não roçavam os joelhos por debaixo da mesa, e não se
serviam das mãos como instrumentos de amor; guardavam-se para as liberdades da
noite, para a independência do quarto. Na ocasião, porém, em que ele saia para as
aulas ou à noite para o passeio, beijocavam-se, sempre, como dois bons casados.
Entretanto, as épocas de exame batiam à porta. Amâncio vivia em
desassossego com os seus estudos tão mal apercebidos; mas o Coqueiro dava-lhe
coragem, ensinando-lhe como devia proceder, dizendo-lhe o que devia estudar de
preferencia, aconselhando-o a que não tivesse medo. “Amâncio que se
apresentasse de cabeça erguida: o bom êxito nos exames dependia quase sempre
do desembaraço mais ou menos atrevido do concorrente!” E citava exemplos:
“Fulano que apenas conhecia dois pontos de tal matéria, chimpara distinção, só
porque era de um descaramento imperturbável; ao passo que sicrano, apesar de
muito bem preparado, não conseguira passar com a sua vozinha trêmula e o seu
todo raquítico e assustado!”
Um novo acontecimento veio, porém, desviar Amâncio daquela preocupação:
por telegrama de sua província, constou-lhe que o velho Vasconcelos morrera de
beribéri fulminante.
Os pormenores chegaram no primeiro vapor: “Vasconcelos fora atacado como
hoje e morrera como depois de amanhã. Ia pela rua, muito senhor de si, quando, de
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repente, sentiu afrouxarem-se-lhe as pernas e teria desabado no chão, se dois
homens que passavam não o socorressem prontamente.
“Foi recolhido à primeira casa, que era felizmente de um amigo. Meia hora
depois já lhe principiava a faltar a respiração: a moléstia subia, ameaçando-lhe o
estômago. Fez-se uma junta de médicos; ficou resolvido que o doente devia seguir,
sem perda de tempo, para qualquer parte, — Caxias, Rosário, mesmo Alcântara, a
Vila do Paço, que fosse; contanto que saísse da cidade, quanto antes, até aparecer
um vapor que o levasse para mais longe.
“Partiu nesse mesmo dia, dentro de uma rede, com direção à Vila do Paço.
Mas o terrível beribéri subia sempre; os membros por onde ele atravessava iam
ficando paralisado e frios como membros de defunto. A onda maldita galgara
finalmente a caixa torácica, Vasconcelos não pôde respirar de todo e morreu”.
Amélia, ao receber a inesperada notícia, rebentou num berreiro e tratou de
cobrir-se de luto fechado.
O irmão também se vestiu de preto, fez cerrar as portas e as janelas da casa
por sete dias e, durante esse tempo, andou tristonho e anojado.
* * *
Amâncio perturbou-se deveras com a morte do pai. Há bastante tempo
mentalizava projetos de , em voltando à província, tratá-lo de modo tão carinhoso e
tão amigo, que sua consciência ficasse, por uma vez, tranqüila a esse respeito.
Havia no segredo de tal intenção o sabor inefável de um voto religioso. E seus
planos, assim malogrado de repente, enchiam-lhe agora o coração de tristeza e as
noites de sonhos tormentosos.
Mas Amelinha lá estava para o consolar, para lhe reprimir os gemidos com a
polpa vermelha de seus lábios, e espantar-lhe os negrumes do desgosto com a luz
voluptuosa de seus olhos e com a doçura cristalina de suas palavras.
Veio o Campos. Trataram longamente do “triste acontecimento”: Amâncio
queria dar um pulo ao Norte: a mãe com certeza precisava dele as seu lado, quando
mais não fosse para tratar do inventário.
O negociante já não compreendia assim: “ Estavam a chegar os exames;
Amâncio, ase saísse da Corte naquele momento, perderia o ano; o melhor, por
conseguinte, seria esperar pelas férias. Pois então! eram mais alguns dias de
demora que não prejudicavam a ninguém!...”
Coqueiro pensava do mesmo modo. “Nem o colega encontraria alguém com
um bocadinho de juízo que lhe aconselhasse uma semelhante viagem antes do ato.
Era até loucura pensar nisso!”
Cruzaram-se cartas entre o Rio de Janeiro e Maranhão. Amâncio foi
considerado maior pelo Juiz de órfãos, podia receber o que lhe tocavas na herança.
Mas a firma liquidante ofereceu-lhe sociedade em comandita; ele aceitou, a conselho
de Campos, e insti5tuiu na província um advogado de confiança para lhe curar os
bens. Escolheu-se o Dr.Silveira, o dos cabelos pintados, aquele mesmo que, no dia
do exame de português, se mostrara tão entusiasmado pelo rapaz.
Até que enfim estava Amâncio livre e senhor de sua bolsa; podia gastar à
farta, sem sofrer daí em diante as peias da mesada. E não o amedrontava
igualmente o risco de cair na penúria, porque ainda havia para reserva o que tinha a
herdar da mãe e da avó.
Os carinhos e as solicitudes da família Coqueiro inflamaram-se, já se vê, com
os últimos acontecimentos. O estudante era cada vez mais adulado e em
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compensação mais explorado. Agora, o irmão de Amélia não punha o menor
escrúpulo lhe aceitar os obséquios e a casa ia ficando a pouco e pouco às costas do
provinciano.
Era sempre por intermédio de Amélia que ele sofria a cardadura. Hoje tratava-
se do aluguel da casa, amanhã seria a conta do Eiras, depois a dos fornecedores;
se entrava um barril de vinho para a despensa, ou um saco de feijão; se aparecia um
novo aparelho de porcelana à mesa do almoço ou do jantar, Amâncio ficava à
espera da fatura que, à noite, impreterivelmente, passava as mãos da rapariga para
as suas.
Amelinha, essa então, já não procurava rodeios para lhe arranjar as coisas.
Quando precisava de um vestido, de uma jóia, de um chapéu, dizia-lhe secamente:”
Deixe-me tanto, que amanhã tenho de fazer compras”.
E as despesas das casa recrudesciam, à proporção que minguavam os
lucros. O guarda-livros despedira-se, porque afinal chegara a época do seu
casamento, e ninguém o substituiu; só ficou advogado que deixaria por mês, quando
muito, uns duzentos mil-réis.
Amâncio ia suportando a carga silenciosamente, certo de que não encontraria
dificuldade em despejá-la, assim que a coisa lhe cheirasse mal.
Todavia, o dinheiro era já o único recurso de que dispunha para fazer calar a
amante, quando esta lhe falava em casamento. Em tais ocasiões, a rapariga chorava
quase sempre; dizia-se infeliz; queixava-se da sorte. “Que Amâncio fora a sua
perdição! Que ela cedera aos rogos dele na persuasão de que era amada e de que
mais tarde seria sua esposa!”
— Ora, filha! Nós, antes de cairmos na asneira em que caímos, não tocamos
uma só vez em casamento! E , se queres que te diga com franqueza, eu até nem
supunha ser o primeiro com quem tivesses relações!...
Ela irritava-se ao ponto de ameaçá-lo com um escândalo. Amâncio que se
não enganasse, pois que havia um João Coqueiro sobre a terra! Ele que não caísse
no descoco de querer desampará-la, porque então as coisas lhe sairiam mais
atravessadas!
Estas rezingas terminavam sempre por uma nova exigência de Amélia. E já
não se contentava com um chapéu ou com um par de botinas, queria vestidos de
seda, jóias de valor e dinheiro para gastar.
Uma noite, Amâncio ficou abismado por lhe ouvir falar na compra de um chalé
nas Laranjeiras.
— Sim! reforçou ela, ao perceber que o rapaz não tomava a sério suas
palavras. — Despedia-se o Tavares e ficaríamos à vontade por uma vez! Eu não
estou satisfeita aqui!...
Ele tornou a sorrir. — Amélia com certeza estava gracejando...
Mas a rapariga jurou que não, recorrendo a todos os segredos de sua ternura.
Afinal, vendo que o amante não cedia, zangou-se como de costume.
—Tu assim o queres; disse arrancando-se dos braços dele, — pois bem, tu
assim o terás! Amanhã hás de ver o que sai nesta casa!
Amâncio encolheu os ombros.
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Não te importas?! Pois veremos quem tem razão!
E limpando os olhos:
— Ingrato! Por que sabe que a gente o estima, abusa deste modo! Tola fui eu
em me deixar seduzir!...
— Eu não a seduzi! Ora essa!
— Até fez mais, replicou ela - Desonrou-me!
— Pois desonrada ou seduzida, não tenho dinheiro para comprar casas!
Amélia saiu essas noite do quarto do estudante ameaçando fazer estourar a
bomba no dia seguinte.
E, pela manhã, quando Amâncio , ao seguir para as aulas, lhe foi dar o beijo
favorito... ela muito amuada, voltou o rosto, resmungando “que a deixasse”.
O rapaz prometeu que “ia pensar” e à noite daria uma resposta.
Mas nessa noite, Amélia, pela primeira vez, depois do seu novo estado, não
se apresentou às horas habituais no quarto do estudante.
Amâncio, sem perder as esperanças de a ver surgir de um momento para
outro e precipitar-se-lhe nos braços, não conseguira ficar tranqüilo. Aquele
procedimento, vindo de quem vinha, o revoltava como a mais infame das
ingratidões!
—Ouviu dar três horas, quatro, cinco. Não se conteve, levantou-se, pisando
forte, desceu à varanda e foi bater à porta de Amélia.
Nada.
Bateu mais rijo.
— Que é?! Perguntou ela asperamente.
— Preciso falar-lhe.
Não são horas para isso!
— Ouça! Quero dizer-lhe uma coisa...
— Não tenho negócios! Entenda-se com meu irmão!
Amâncio voltou ao quarto, desesperado. Não que o acovardassem as
ameaças da rapariga, bem percebia que as suas relações com ela não eram em
casa nenhum segredo e, além disso, desde que aceitavam o pagamento, — ora
adeus! nada podiam dizer! Mas apoquentava-se com a falta que já fazia o diabrete
da pequena. Habituara-se a dormir ao calor perfumado daquele corpinho branco,
ajeitara-se ao cômodo amor daquela mulherzinha nova e palpitante e, agora, não
podia voltar, assim sem mais nem menos, às suas tristes noites desacompanhadas
do outro tempo.
Acordou muito tarde no dia seguinte. Amélia , quando ele saiu do quarto, não
lhe deu palavra; estava arrumando uma caixa de retalhos, e arrumando ficou. Mme.
Brizard havia saído para ver Nini. — O Coqueiro e os hóspedes se achavam
também na rua.
— Então o senhora não me quer falar? Perguntou Amâncio, fitando-lhe as
costas.
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Ela interrompeu o que cantarolava e, sem se voltar, disse friamente:
— A culpa é sua ...
E continuou a cantarejar, muito embebida nos seus retalhos de fazenda.
Aquele desdém, namorado e artístico, a tornava ainda mis desejável aos
olhos do rapaz.
Parecia-lhe até mais vela esse dia; como se os seus encantos, intervindo na
perrice, florejassem caprichosamente durante aquela noite de soledade.
Amâncio nunca lhe achou a pele tão fina, os dentes tão brancos, os olhos tão
vivos e tão formosos. O pálido e ondulante pescoço da menina jamais lhe pareceu
tão misterioso: a sua garganta, macia e doce, jamais o cativara tão despoticamente.
Ele, enfim, nunca a sentira tão necessária, tão indispensável.
E as cenas venturosas dos seus primeiros dias de amor lhe perpassaram
vertiginosamente diante dos olhos, derramando-lhe por todo o corpo um apetite
brutal de readquirir, no mesmo instante, aquela riqueza, que lhe fugia por entre os
dedos, como um vinho precioso que se derrama.
— Então a culpa é minha?...disse ele, afinal, apalpando com a vista a carne
esperta dos quadris e dos braços da amante.
— Pois você não vê, respondeu ela, voltando-se espevitada — que as coisas
não podem continuar como até aqui?! É uma canseira insuportável! Quase que já
não durmo! Preciso esperar de olho aberto que toda a casa ser recolha e recolher-
me ao quarto antes que os mais se levantem! O resultado é que não descanso; ando
tresnoitada; estou enfraquecendo! Já tenho até uma dor do lado. Quem pode com
esta vida?! Ah! você não sente, bem certo! Porque muita vez o encontro a dormir, e
dormindo o deixo quando saio! Mas eu?! Se quero que não aconteça como outro dia
(que nem sei como não deram pela coisa!) o remédio que tenho é ficar alerta e não
deixar que o dia me surpreenda a dormir no seu quarto! Vê você?!
— Mas daí?...perguntou Amâncio, no fundo compenetrado de que “a pobre
menina” não deixava de ter o seu bocadinho de razão.
— Daí...esclareceu Amélia, — é que nessa tal casa de que lhe falei, e que
está para se vender muito em conta, há, além dos cômodos necessários para Loló e
Janjão, dois quartos magníficos, com entradas independentes e comunicáveis entre
si por uma pequena alcova. Ora, um dos quartos dá para a sala de visitas e o outro
para a sala de jantar; no caso de que arranjássemos o negócio, você ficaria com um
e eu ficaria com o outro, e dessa forma acabavam-se os sustos e as canseiras;
porque durante o dia abriam-se as portas do lado de fora e fecham-se as de dentro,
mas à noite praticava-se justamente o contrário, e ficávamos nos em completa
liberdade! Compreende você agora?...
— Sim, Amâncio compreendia e até achava o plano muito bem lembrado,
mas a questão é que não via necessidade d comprar a casa, era bastante alugá-la...
— Sim, sim! mas é que o dono não a aluga, quer vendê-la. E onde ia você
encontrar outra casa nessas condições?...
— Hei de passar por lá...
— Não. Vamos hoje mesmo, à tarde. Loló já prometeu que nos acompanha.
— Pois sim.
E Amâncio puxou Amélia pelo braço, para lhe dar um beijo.
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— Deixe-me...rezingou ela, ainda com um restinho do arrufo. Você só cuida
de si e das suas comodidades...Egoísta!
— Não digas isso, meu bem!
— Pois não é assim?! Qual foi a vontade séria que você já me fez? É
bastante que eu mostre gosto numa coisa, para você fazer justamente o
contrário...Entretanto, eu, por sua causa, sacrifiquei tudo que possuía!
E começou a chorar, muito infeliz, a dizer que Amâncio tinha razão!
Ninguém lhe mandara ser tola! Ela nunca deveria ter-se entregado senão depois do
casamento!
E as suas lágrimas enxugavam-se nos lábios dele.
E assim ficaram alguns minutos, até que Amélia, de repente, se lhe tirou dos
braços e, abrindo distancias, declarou de longe, em plena atração de seus encantos,
que “não faria nenhum caso de Amâncio enquanto não possuísse o chalé”.
Nessa mesma noite ficou assentado que o rapaz, em nome da amante,
compraria a casa das Laranjeiras.
* * *
Com efeito, umas semana depois, tratava-se da escritura de compra. O
negócio correu a galope, visto que a propriedade era de um pândego sequioso por
dinheiro.
Podiam cuidar logo da nova mudança; Amélia, porém, não consentiu em tal,
sem que se realizassem umas tantas benfeitorias que a “sua” casa reclamava;
substituir, por exemplo, o papel da sala de visitas, que era de mau gosto; meter-lhe
água, que não havia, e fazer esteirar os aposentos destinados para si junto com seu
homem.
Mas Amâncio não podia distrais tempo com essas coisas: andava muito
absorvido pela idéia dos exames que se aproximavam.
Ultimamente viera-lhe uma febre de formatura, queria a todo o custo “passar
“no primeiro ano. — Também era só do que fazia questão, “passar no primeiro”,
porque, quanto aos outros, tinha certeza de se preparar melhor e com mais
antecedência. agora, lamentava o tempo perdido na preguiça e na moléstia; dava ao
diabo os seus amores, e vivia numa dobadoura a arranjar empenhos e cartas de
proteção. Agarrou-se ao Campos; agarrou-se àquele Dr. Freitinhas (do baile do
Melo) que era unha com carne de um dos examinadores. E furou, e virou, e
percorreu amigos e desconhecidos, até se julgar “garantido”. Então, pagou a
Segunda matrícula e entregou-se de olhos fechados a destino. “Seria o que Deus
quisesse!”
Era, pois, o Coqueiro quem dirigia as obras da casa da irmã. O metódico
rapaz sempre tivera paixão por esse gênero de trabalho.
— Se fosse rico, afirmava ele, — muito prédio havia de fazer, só pelo gostinho
de acompanhar as obras!
CAPÍTULO XVI
Chegou, finalmente a véspera do amaldiçoado exame.
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Que ansiedade! Que de angústias para o pobre Amâncio! que noite, a sua!—
Não descansou um segundo; apenas, já quase ao amanhecer, conseguiu passar
pelo sono; antes, porém, não dormisse, tais eram os pesadelos e bárbaros sonhos
que o perseguiam.
Via-se entalado num enorme rosário de vértebras que se enroscava por ele,
como uma cobra de ossos; grandes tíbias dançavam-lhe em derredor, atirando-lhe
pancadas nas pernas; as fórmulas mais difíceis da química e da físicas
individualizavam-se para o torturar com a sua presença; os examinadores surgiam-
lhe terríveis, ríspidos, armados de palmatória, todos com aquela feia catadura do seu
ex-professor de português no Maranhão.
Pelo incoerente prisma do sonho, o concurso acadêmico amesquinhava-se às
ridículas proporções do exame de primeiras letras. Era a mesma salinha do mestre-
escola, a mesma banca de paparaúba manchada de tinta, o mesmo fanhoso Sotero
dos Reis presidindo a mesa, João Coqueiro, o Paiva e o Simões, vestidos de
menino, fitavam o examinando com um petulante riso de escárnio. Amâncio sentia
corre-lhe o suor por todo o corpo e agulhas invisíveis penetrarem-no até à medula. O
professor, transformado em juiz e ostentando as feições do falecido Vasconcelos,
inquiria-o com asperezas de senhor; mas as suas perguntas, em vez de concernirem
às matérias do ato, só se referiam a Amélia.
— Por que matou você a pobre menina?! Bramia o pai cravando-lhe olhares
de fogo: — Responda, seu canalha! Responda! Ah! Pensa que ainda não sei de que
você, para melhor a seduzir, lhe havia prometido casamento e jurado olhar sempre
para ela, seu cachorro?!
O Coqueiro ,lá do canto, sacudia a cabeça afirmativamente e enviava a
Amâncio caretas de vingança. Ao lado deste, o cadáver de Amélia fazia-se todo
vermelho com o sangue que lhe gotejava golpeava de golpejava de um dos seios
rasgados de alto a baixo
O réu queria responder, justificar-se, expor a verdade; eram, porém, baldados
os seus esforços: não consegui articular uma palavra; gelatinava-se-lhe a voz. na
garganta ,empacando-lhe a fala.
— Bem! Gritou o velho Vasconcelos à meia dúzia de soldados que
escoltavam Amâncio. — Conduzam esse miserável ao cepo e cortem-lhe a cabeça!
O estudante atirou-se de joelhos, com as mãos postas, chorando, suplicando
que o não matassem. mas os soldados apoderaram-se dele com violência e ataram-
lhe os braços. O Juiz, Coqueiro, Simões, o Paiva, sumiram-se de repente, soltando
gargalhadas. Amâncio foi conduzido por um corredor muito escuro e apertado; os
soldados, quando o percebiam vacilar, batiam-lhe no ombro com a coronha das
espingardas. Chegou a um pátio lajeado e úmido, onde milhares de homens
armados formavam alas; no centro, sobre um toro de madeira conspurcada de
sangue, reluzia um machado à sua espera; e, de joelhos, abraçado a um crucifixo,
um padre velho, de longos cabelos brancos, engrolava latins
Fizeram silêncio.
No meio das respirações abafadas, só se ouviam os passos trôpegos e o
aflitivo resfolegar do condenado que, à ponta de baioneta, subia os degraus do
cadafalso.
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Veio o carrasco, despiu-lhe a camisa, tosou-lhe os cabelos, e empunhou o
ferro.
Amâncio não se resolvia a entregar o pescoço, mas o velho Vasconcelos, que
surgira por detrás dele, atirou-lhe um murro à nuca e fê-lo cair de bruços contra o
cepo.
Então, para lhe abafar os gemidos, romperam todos os soldados num rufo
estridente de tambores.
Amâncio sentiu o aço frio entrar-lhe na carne do toutiço, espipar o sangue, e o
corpo, de um salto, arrojar-se às lajes.
* * *
Havia saltado, com efeito, mas da cama. E o despertador, que ficara de
véspera com toda a corda para as seis da manhã, continuava o rufo penetrante dos
tambores.
O estudante abriu os olhos e passou em sobressalto a mão pela testa; os
dedos voltaram ensopados de suor.
Com a perceptibilidade das coisas foi aos poucos saindo daquele estado de
excitação, mas voltando lentamente à taciturna agonia da véspera.
Vestiu-se quase sem consciência do que fazia; esqueceu-se até de escovar
os dentes, porque, mal voltou a si, correu aos livros, sem aliás, conseguir firmar a
atenção sobre coisa alguma.
E Amâncio tremia todo só com a idéia de sua inabilidade. À medida que as
horas se esgotavam e o momento fatal se lhe antepunha, um langor covarde e
mulheril crescia dentro dele, produzindo-lhe arrepios que principiavam na ponta dos
pés e iam-se estendendo pela espinha dorsal, até lhe interessar a cabeça, depois de
percorrer as regiões abdominais.
Mas embaixo, na varanda, em presença de Amélia e Mme. Brizard, fazia-se
forte, a despeito da palidez que lhe alterava as feições. Nem de leve falou nos
sonhos dessa noite, e o Coqueiro, a título de metê-lo em brios, contou várias
anedotas de examinandos ridículos.
Os dois tomaram café e por fim saíram. O trajeto de casa à escola foi um
martírio para Amâncio, afigurava-se-lhe, como no sonho, que se dirigia ao patíbulo.
Chegou às dez horas. Alguns companheiros de ato já lá estacionavam em
magotes de quatro e cinco pelos corredores ou à porta da secretaria; fumavam-se
cigarros consecutivos, discreteavam-se os assuntos da ocasião. Amâncio
cumprimentou os conhecidos, parando aqui e ali falando sobre os pontos do exame;
— qual preferia que saísse, em qual se presumia menos fraco e capaz de fazer
figura.
Agora, sim, estava mais animado; a presença dos colegas o robustecia com
um vago espírito de coletividade. Sentia-se maios forte e resoluto ao lado dos
companheiros de perigo, como se a vitória dependesse do número de combatentes.
Entretanto, faziam-se horas. Os examinadores estavam já reunidos na sala de
exames, em torno da sua mesa forrada de pano verde. Amâncio lobrigava-os pela
frincha da porta entreaberta e ouvia-lhes o murmurar descuidoso da conversa,
intercaladas de risotas e baforadas de charuto
À vista daqueles homens resfriaram-lhe de novo as mãos e voltaram-lhe os
calafrios do terror, algum resto de confiança, que ainda teria em si, evaporou-se de
todo.
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E, para não sucumbir, procurava acreditar na eficácia dos empenhos que
arranjara; seu espírito, como o náufrago que braceja nas agonias da morte, já não
escolhia os pontos a que se agarrava; tudo ser ia naqueles apuros, tudo era pretexto
de esperança; mas a consciência da verdadeira situação vinha meter-se-lhe de
permeio, arrancando, uma por uma, todas as tábuas de salvação.
E Amâncio arquejava, desorientado, perdido.
— Que diabo viera fazer ali?! Para que se apresentara? por que não se
guardou para o ano seguinte ou, quando menos para março? Antes não tivesse
pago a Segunda matrícula! Oh! se o arrependimento salvasse!...
E, proporção que se avizinhava o momento supremo, mais e mais imprudente
lhe parecia a sua temeridade.
— Naquela ocasião, pensava ele, — bem podia estar na província, à testa
dos seus negócios, ao lado de sua querida mãe, passeando, rindo, gozando, como
nos outros tempos!...Era rico, era já tão estimado antes da academia, para que
então sofrer semelhantes torturas, passar por aqueles maus quartos de hora, que ali
estava curtindo?...
E vinham-lhe venetas de fugir, abandonar tudo aquilo, sem dar satisfações a
ninguém, correr à casa do Campos, encher-se de dinheiro e arribar para a Europa,
para o inferno! Contanto que se livrasse da obrigação de expor uma ciência que não
tinha, escrever idéias de que não dispunha!
Mas o bedel havia surgido e principiava a “chamada”, e, a cada nome,
recitado pausadamente, o seu olhar mórbido, de funcionário público no cumprimento
de um velho dever enfadonho, consultava a multidão de estudantes, que em
sussurros se apinhava pelo esvazamento das portas, empurrando-se uns aos outros,
impacientes, curiosos, o pescoço espichado, a boca aberta, o calcanhar suspenso.
— Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos, disse aquele arrastando a voz.
Amâncio sentiu uma pontada no coração e tartamudeou:
— Presente.
Os companheiros, que lhe ficavam por diante, arredaram-se logo, dando-lhe
passagem, e ele foi ocupar uma das banquinhas que havia na sala.
A chamada ainda durou algum tempo, porque Amâncio era dos primeiros;
afinal, o bedel mastigou o último nome; fecho-se a porta da sala; e um silêncio
formalista espalhou-se entre a turma dos estudantes e o grupo dos examinadores.
O presidente da mesa tomou a lista dos examinandos, arranjou os óculos, tossicou
e, com um bocejo, chamou pelo que estava em primeiro lugar.
Um rapazote louro, de buço, ergueu-se e foi ter com ele. O presidente, com
um segundo bocejo e um gesto de cabeça, ordenou-lhe que tomasse um dos pontos
da urna.
Amâncio ofegava. — Ia decretar-se o ponto!
— Qual seria?... E se, por caiporismo, fosse justamente um dos mais crus?
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E o sangue trepava-lhe à cabeças, pondo-lhe latejos nas fontes.
O rapazote louro meteu enfim a mão na urna e tirou com a ponta dos dedos
trêmulos uma pequena torcida de papel, que passou ao presidente
Este desenrolou-a e leu: “Hidrogênio”.
Amâncio respirou: o ponto não podia ser melhor para ele do que era! Talvez
fosse até entre todos o menos mal sabido; ainda essa manhã lhe passara uma vista
de olhos. Contudo, uma vez imposto o Hidrogênio, quis lhe parecer vagamente que
havia outros pontos preferíveis..
Estava mais tranqüilo, que era o principal; já quase nada lhe tremia a mão ao
receber das do bedel uma folhas de papel almaço, rubricada pelos lentes, das que
ia aquele distribuindo por todas banquinhas dos examinandos.
— Ali, naqueles miseráveis dois vinténs der papel, tinha ele de determinar o
seu futuro, a sua posição na sociedade, talvez a própria vida de sua mãe, dizendo o
que sabia a respeito do tal Hidrogênio!...
Experimentou a pena, endireitou-se na cadeira, e escreveu, caprichando na
letra e procurando obter estilo.
A areia da ampulheta esgotava-se defronte da calva e dos bocejos do senhor
presidente. Correu meia hora; Amâncio ergueu-se afinal, entregou a sua prova e
saiu das sala, a esfregar, muito preocupado, os dedos das mão direita contra a
palma da esquerda.
À porta, mal acendera sofregamente o cigarro, contava já aos seus amigos o
que havia exposto pouco mais ou menos. — Ah! com certeza pilhava uma — nota
boa! — Não era por querer falar, mas a sua prova saíra limpa. “Assim não fosse o
ponto tão ingrato!...”
E ficaria a prosar sobre o caso, se o Coqueiro, aguilhoado pela ausência do
almoço, não o arrancasse dali.
* * *
A nota foi boa, efetivamente.
Soube-o Amâncio no dia seguinte, logo que correu à secretaria. Não contava,
porém ficar tranqüilo, senão depois do resultado de sua provas oral.
Novos sobressaltos foram se agravando durante os dias que era preciso
esperar. Votavam-lhe as aflições; no fim de algum tempo já não podia comer, não
podia ligar duas idéias sobre qualquer coisa e não conseguia repousar duas horas
seguidas. Ficou ainda mais desnorteado que da primeira vez.
Amelinha, então, o estimulava com as suas garrulices e pomba que já fez
ninho. Puxava por ele, tentando arrancá-lo daquele estado, mas não conseguia lhe
despertar um só dos antigos momentos de bom humor, nem lhe merecer uma de
suas primitivas caricias
O rapaz andava tonto, cheio de pressentimentos e de sustos. Tornou-se até
supersticioso. — Não podia ver entrar no quarto uma borboleta de cor mais escura;
não podia suportar o grunhir dos cães, nem queria que a amante prognosticasse
“um bom resultado nos exames”
— É melhor não falar!...dizia ele, muito esmalmado.
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Mas que prazer o seu ao voltar pronto da escola! Jamais tivera um
contentamento tão agudo. Ria sem motivo, sentia ímpetos de abraçar a toda gente,
pulava, cantava, parecia doido..
Soubera do resultado no mesmo dia da prova oral, por intermédio de um dos
professores. — Saíra aprovado plenamente.
Vencera!
Colegas o acompanharam até a casa. Lá ia o Paiva, sempre com o seu
olhinho irrequieto e mexeriqueiro, o seu todo enfrenesiado e farto “desta porcaria de
mundo”. Lá ia o triste Salustiano Simões, encasmurrado no seu ar incrédulo e
bamba, a mascar o cigarro, a aba do chapéu encostada à gola sebosa do fraque
Abriram-se garrafas de champanha; fizeram-se brindes. João Coqueiro
desmanchava-se em sorrisos, como se partilhasse diretamente de todas aquelas
manifestações.
Foi muito elogiado o exame de Amâncio, tocaram-se os copos, entre
fervorosas palavras de animação; falou-se em “filhos diletos da ciência”, em
“liberdade”. Em “geração nova”, em “mineiros do progresso”.
Todavia, Amâncio, em ar feliz e pretensioso, confessava o pouco que
estudara e gabava-se de sua fortuna. — Podia dar a palavra de honra em como mal
havia tocado nos livros durante o ano. — O Coqueiro e a família estavam ali, que
dissessem!...
E basofiava a respeito de sua presença de espírito particularizando
circunstâncias comprobativas de uma sagacidade a toda prova.
— Cá o menino não se aperta! Dizia ele, muito satisfeito consigo.
Expediu-se um telegrama para o Maranhão, dando noticia do grande
“acontecimento”. O Simões e o Paiva ficaram para jantar. Já estavam todos à mesa,
quando apareceu o copeiro com uma carta que um portuguesito acabava de trazer.
Era do Campos. O bom negociante queria festejar o êxito feliz do — jovem
acadêmico — com “uma pequena reunião familiar. Pena era que o Dr. Amâncio
estivesse de luto”.
“Não há festa”, explanava a carta, “apenas se reúnem alguns amigos para
lhe beber à saúde; e o doutor bem pode trazer em sua companhia mais alguns”.
Amâncio declarou logo que não dispensava o Simões e o Paiva Rocha e
exigiu que o Coqueiro levasse consigo a família.
Pois iriam, iriam todos, até o César. Mas o festejado teve de franquear o seu
guarda-roupa àqueles dois colegas que não queriam apresentar-se mal amanhados
em uma casa, onde entravam pela primeira vez.
O Coqueiro, em particular, exprobrou-lhe essa franqueza:
— Foge da boêmia!... disse-lhe, no seu diapasão de homem sério. — Foge
da boêmia, rapaz! Esses tipos não merecem que se lhes faça a menor coisa!...
metem os pés — sempre! Já os conheço; não seria eu quem os convidara para a
casa de ninguém! É gentinha que só está habituada a cafés e botequins, não
respeitam família! Para eles as mulheres são todas iguais!...
Amâncio sorriu.
— Ora Deus queira que não tenhamos de nos arrepender!... acrescentou o
outro.- E, àquela roupa, podes rezar-lhe por alma... o ali cai, fica!
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O provinciano afastou-se sem responder e lamentando interiormente que,
logo nessa tarde, não estivesse em casa o eloqüente Dr. Tavares, que seria uma
excelente perna dos brindes da sobremesa.
Mandaram-se vir dois carros. Num iria o Coqueiro mais a família e no outro
Amâncio com os dois amigos.
Partiram às oito horas, alegremente, num alvoroço gárrulo de festa. Mme
Brizard dera toda força à sua elegância: atirou-se ao decote, pôs a pedraria ainda
do tempo do primeiro marido, e exibiu aquele rico pescoço, “que ela não trocava
pelo de ninguém”!
Amelinha estreou um belo vestido de escumilha azul que lhe dera o amante.
No seu colo, cor de camélia fanada, assentavam muito bem as pérolas e os rubis;
seus braços, levemente dourados de penugem, sabiam, no meio da confusão
caprichosa das rendas valencianas, fazer tilintar com graça os braceletes que se
enroscavam nas compridas e transparentes luvas de retrós.
A cunhada, ao vê-la sair do quarto, dissera:
— Não parece uma brasileira!... Tão linda está!
* * *
Foram recebidos com transportes de júbilo por toda a família do negociante.
Campos entregou a casa ao festejado, “que a este competia, naquela noite,
obsequiar às pessoas presentes; fazer as honras da copa e da mesa; promover
quadrilhas e prender as moças até pela manhã. Era o dono da festa, que se
arranjasse!”
Amâncio tomou posse do cargo, sem caber em si de contente. Muito o
sensibilizava tudo aquilo que, de qualquer modo, lhe pudesse afagar o amor-
próprio.
E em suas mãos a festa tomou um caráter assustador: o pianista não tinha
tempo para fumar um cigarro; os convidados eram constrangidos a beber nos
intervalos da dança e a dançar nos intervalos das libações. Paiva Rocha e o
Salustiano, a despeito de todas as suas garantias de filósofos, intransigentes e
péssimos dançadores, tiveram de entrar, por mais de uma vez, nas intermináveis
contradanças.
Ao inverso do que pressagiara o Coqueiro a respeito destes dois, tanto um
como o outro se houveram admiravelmente. Ninguém melhor que eles para respeitar
senhoras; um espesso acanhamento os encascava e tolhia, que nem a concha ao
molusco. Salustiano, principalmente, estava mais tenro e inofensivo que uma
criança; na quadrilha, mal ousava erguer os olhos para sua dama e, querendo ser
muito delicado, apenas lograva, com os exageros da cortesia, trair a sua nenhuma
freqüência nas salas.
Para os intimidar bastava as cerimoniosa presença de senhoras de boa
sociedade. Aqueles dois pândegos, tão céticos em teoria a respeito da mulher, ali,
governados pelo meio, eram os homens mais tolerantes deste mundo; seriam
capazes de defender a existência de Deus ou do diabo, se elas o entendessem.
Fato é que o dono da casa gostou deles em extremo e pediu-lhes que aparecessem
aos domingos, uma vez por outra, para jantar.
A festa correu sempre animada até as três horas da manhã, quando Amâncio
convidou as senhoras a tomar lugar na mesa. Ao desrolhar do champanha, ergueu-
se este resolutamente e exigiu que o acompanhassem num brinde.
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Abstiveram-se da bulha, e o estudante grupou em torno do nome inteiro do
Campos todo o velho arsenal de retórica aplicável à situação. Em substância nada
afirmou, mas a sua palavra sonora e cheia; as frases gorgolhavam-lhe dos lábios
com essa verbosidade oca e retumbante que se observa nos filhos do Norte do
Brasil, e que, aliás, tem valido a muitos posição eminente na política. Aquela voz,
estalada e aberta, ferindo as vogais, tinha um sabor muito picante de ironia, vibrava
no ar como uma flecha selvagem e feria os tímpanos como um insulto inverso.
As damas interessaram-se pelo discurso e alguns homens o ouviram sem
pestanejar. E todos eram de acordo que Amâncio estava talhado para o Direito e
que havia de fazer “uma brilhante figura”, quer na advocacia, quer na política, se por
acaso abraçasse uma dessas carreiras.
— É rapaz de talento!... diziam já as senhoras cochichando.
— A mim comoveu tanto o demônio do moço, que chorei!... segredou uma
quarentona de chinó, que passava entre os conhecidos por mulher de maus bofes.
E principiaram a olhar com uma certa submissão para o esperançoso
Amâncio.
E, com efeito o seu tipo nervoso e moreno de nortista, o seu modo sem-
cerimônia de abrir muito a boca, mostrando num gesto de pasmo a dentadura, o
desembaraço de sua gesticulação, sempre que entornava para dentro um pouco
mais de vinho, e principalmente o metal daquela voz enfática e encrespada pelo tal
sotaque da província; tudo isso, sem dúvida alguma agradava depois de uma boa
ceia, quando cada um não exige de ninguém senão que lhe deixem tomar me paz o
seu café e lhe permita acender o seu charuto.
O caso é que Amâncio se converteu numa espécie de presidente da mesa.
Era a ele que se dirigiam os que propunham novos brindes; era para ele que mais se
voltavam durante o discurso, e, tal e qual no jantar de seu pai por ocasião do célebre
exame de primeiras letras, ainda era ele o alvo das melhores felicitações; com a
diferença de que, neste agora, em vez de consultar de instante a instante o famoso
relógio alcançado naquele dia, o que Amâncio consultava eram os olhos de
Hortênsia, nele igualmente presos mas por uma cadeia doutra espécie.
E, ainda como na primeira festa, o estudante abusou um pouco dos licores;
mas, agora, em vez de pegar no sono, deu-lhe a bebedeira para abrir às francas
com a dona da casa, logo que a pilhou sozinha no terraço, ao fundo do segundo
andar.
Hortênsia não se indignou com isso, mas também não se mostrou satisfeita;
não repeliu com energia as palavras do sedutor, mas não se pode dizer que as
acolhesse de boa cara; não lhe deu enfim, os beijos que ele pedia, mas por outro
lado não retirou a mão que o rapaz agarrara entre as suas.
— Eu te adoro, meu amor, minha vida! dizia-lhe o velhaco, cheirando-lhe os
grossos braços revestidos de filó. — Não to disse há mais tempo por falta de
coragem, juro-te, porém, que é verdade! Amo-te, minha Hortênsia, amo-te com todo
o entusiasmo, com toda a paixão de que sou capaz!
Ela o ouvia em silêncio, a pensar, os olhos ferrados a um ponto, o ar todo
caído e acabrunhado como por uma espécie de desgosto; não se mexia, apenas,
quando Amâncio teimava muito em querer beijá-la, desviava o corpo, sem voltar a
cabeça.
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— Mas, então?...perguntou ele.
— Então, o quê?...fez a outra como interrompendo um longo pensamento.
— Não aceita o meu amor?..
— Não, decerto, não posso aceitar semelhante coisa!
— Por que, minha santa?...
— Não tenho esse direito; conheço os meus deveres e a minha
responsabilidade .O mais que lhe posso dar é uma afeição de irmã, de amiga, uma
afeição sagrada e pura!
Amâncio declarou que pensava desse modo justamente, mas agora queria
um beijo, um só! O primeiro e último! — nada mais sagrado e puro do que um
beijo!...
— Nunca! Disse ela, fugindo com o rosto.
Ele a tomou à força e a senhora ficou ressentida, chegou a ter um gesto de
impaciência e teria fugido, se o estudante não a segurasse pela cintura.
— Solte-me!
— Perdoa, perdoa, meu amor! Segredava ele, quase ajoelhado .— Bem
quisera ser para contigo o mais respeitoso dos homens, mas não me pude
dominar...Perdoa!
— E jura que , de hoje em diante, não cairá noutra?...
— Juro! Juro! Mas não te revoltes contra mim!
— E que nunca mais me faltará ao respeito?...
Amâncio fez um gesto afirmativo, em o qual seus olhos, agora mais
estrábicos sob a influência do vinho e do desejo, luziam suplicantes, como os olhos
de um cão que tem fome.
— Pois bem, murmurou ela, meio compadecida. — vá lá por esta vez! Está
perdoado, mas fique prevenido de que, se repetir a graça não, respondo pelas
conseqüências.
Amâncio ia fazer novos protestos, quando sentiu que alguém se aproximava;
ergueram-se ambos, instintivamente, e ,fugindo ao rumor, seguiram de braço dado
para a sala.
Tocava-se uma valsa. Ele, sem consultar Hortênsia, enlaçou-lhe a cintura, e
puseram-se os dois a rodar, a rodar, tão certos e tão leves, que prendiam a atenção
de quantos lá s achavam. E o Coqueiro, encostado à ombreiras de uma porta,
acompanhava-os com um sorriso de felicidade, no qual havia alguma coisa de
orgulho de pai que se revê num filho prodigioso.
Mas o querido estudante, para o fim da festa, já não pareci o mesmo: as
bebidas e o cansaço davam-lhe um ar grosseiro e desalinhado; já se lhe não via o
colarinho, nem os punhos; a roupa empastava-se-lhe com o suor e a cabeleira
desguedelhava-se sobre a testa. E vinham-lhe então pilhérias de mau gosto; tratava
Amelinha quase licenciosamente e regamboleava as pernas e os braços no meio da
quadrilha, como se estivesse num baile público. Já não dava excelência a ninguém e
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queria, por força ,que o Simões e o Paiva, depois da festa, o acompanhassem a um
passeio ao alto da Tijuca.
— Que diabo! Rosnava ele, cuspilhando para os lados.— Ou bem que a
gente se mete na pândega ou bem que se não mete!
Só se retiraram ao despontar da aurora. César, que adormecera desde as
onze horas da noite, ficou para passar o dia com a família do Campos. Amâncio pôs
um carro à disposição do Paiva e do Simões e seguiu no outro com as duas
senhoras e o Coqueiro.
Este toscanejava durante a viagem, ao lado da mulher que se sumia na
abundância de uma formidável capa de lã; enquanto que Amâncio, a charutar
derreado para um canto da carruagem, adormecia com a mão direita esquecida
entre as de Amélia
CAPÍTULO XVIII
Recebeu no dia seguinte uma carta de Ângela; era a segunda que ela
escrevia ao filho depois da morte do marido.
Já na primeira lhe suplicava que a fosse ver, logo ao entrar das férias, pois
agora estava muito só e acabrunhada de desgostos; além disso, os seus
padecimentos se agravavam. Amâncio que se não demorasse; a infeliz tinha para
si que a presença do filho substituiria com vantagem todos os remédios da botica.
Na segunda carta ainda se mostrava mais impaciente e mais aflita pelo
rapaz. Falava até no receio de morrer sem abraçá-lo, caso Amâncio não se
apressasse a ir em seu socorro.— A presença dele tornava-se precisa , mesmo com
referências aos interesses do inventário; por quanto D.Ângela começava a
desconfiar do Silveira, que não fazia outra coisa senão lhe pedir dinheiro e mais
dinheiro para as tais custas.— Enfim, por todos os motivos, era urgente que
Amâncio desse, quanto antes, um pulo ao Maranhão.
Amelinha, que já não ficara muito tranqüila com a primeira carta, assustou-se
deveras quando o amante lhe mostrou a segunda .
— Eu não consinto nesta viagem! Disse-lhe terminantemente.
— Mas não vês que se trata de um caso urgente, que se trata de defender
meus interesses, que se trata de salvar a vida de minha mãe?...Ou queres tu que eu
a mate, hein?...
— Amélia não tinha nada quer ver com isso!...A sua questão resumia-se no
seguinte: “Dera-se a um homem, porque o amava e porque se supunha amada por
ele; esse homem a possuiu como bem quis, gozou-a como muito bem entendeu, e,
um belo dia, talvez por já estar farto, resolvia meter-lhe os pés e pôr-se ao fresco!...”
Boas! Não havia de ser com ela! Amâncio que não caísse em semelhante asneira,
porque então veria o bom e o bonito! Quem o afiançava era “a Amelinha dos
camarões”!
— Mas, filha, que queres tu que eu faça?...Bem vês que esta viagem ao
Norte é inevitável!
— Pois então vamos juntos...Casa-te primeiro comigo!
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A idéia foi tão intempestiva que o estudante respondeu com uma gargalhada.
Mas o demônio da rapariga, tornando às boas de repente, saltou-lhe ao pescoço e
disse-lhe, entre beijos:
— E por que não?...Por que não te casa logo comigo, meu amor?...
— Porque era impossível!...explicava ele. “Casar não é casaca” Era muito
cedo para cuidar nisso!...Primeiro tinha de formar-se, praticar algum tempo em Paris,
e depois então...sim senhor, não dizia o contrário e havia de ser o mais empenhado
em que a coisa se realizasse! Mas por ora...”Deus nos acuda!” era até loucura
pensar em semelhante história!...
Amélia fez-se logo de mau humor; vieram os remoques e o s reviretes do
costume, houve palavras duras de parte a parte e, afinal, como estabelecido imposto
de reconciliação, ficou assentado que Amâncio arranjaria mobília nova para o
chalezinho das Laranjeiras.
E o rapaz lá foi comprar os trastes.
Dois dias depois, realizava-se a terceira mudança. O Dr. Tavares, o último
hóspede da famigerada Mme. Brizard, pagou a sua última conta e recebeu da
francesa um abraço de despedida.
— Ah! suspirou elas. — Até que enfim se podia descansar um pouco! Já não
era sem tempo!
O chalezinho de Amélia ficou muito catita; parecia um ninho de noivos. Estava
a pedir lua-de-mel!
A cachorra da pequena tinha gosto. Exigiu tapetes, espelhos, cortinas de chita
indiana para a sala de jantar, cortinas de renda para a salas de visitas; quis moldura
dourada nos quadros, estatuetas pelas paredes; não dispensou nos aparadores e
nos consolos jarras de porcelana das mais à moda; jardineiras aqui e ali, vasos
caprichosos com begônias e tinhorões sobre a mesa de jantar; cestinhas artísticas,
com para sitas, para dependurar nas janelas; e ainda fez substituir na cozinha, nos
arranjos da comida e no arranjo dos quartos, tudo aquilo que lhe parecia em
condições de reformas.
E só com essas coisas e só com a satisfação de tanta exigência é que
Amâncio conseguia paliar as revoltas da amante. O desgraçado já não tinha ânimo
de contrariá-la, porque bem conhecia o preço das rezingas e, sem achar meio de
reagir, via claramente que as reconciliações se tornavam mais caras de dia para dia.
* * *
Entretanto, depois da mudança, o amor dos dois tomou um caráter mais digno
e decente. Já não era necessário que a rapariga andasse à noite em ponta de pés
pela casa, tateando a escuridão para ir ter com o seu homem. agora dormiam à
vontade, com as portas bem fechadas por dentro.
E só se despregavam do lado um do outro, quando tinham que abandonar o
quarto. Então, cada um se servia da porta competente: Amélia tomava a da varanda
e Amâncio a da sala de visitas!
Não podiam desejar melhor!
Melhor, bem certo para o descanso do corpo e repouso do espírito; não,
porém, para garantia do amor, essa estranha função psicológica que só alimenta
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asa suas raízes nos sobressaltos e no perigo. Tamanha segurança e tamanha
liberdade de ação deviam fatalmente levantar a pontas do tédio, cujo novelo existe,
mais ou menos escondido, no fundo de todas as coisas.
Não vinha longe a saciedade; Amâncio já lhe ouvia o bocejar. Iam-se-lhe
pouco a pouco amornecendo os primitivos arrebatamentos do desejo; os dois
tinham-se já frouxamente, sem lumes de entusiasmo, sem os esforçadores auxílios
da imaginação. Assuntos práticos, positivos, agora se lhes intercalavam nas carícias,
puxando-os grosseiramente à calma realidade da vida.
Amelinha já lhe não surgia no quarto com aquele trêfego ruçar-se de pomba
assustada, o que lhe enchia as feições e os movimentos de uma graça tão maliciosa
e provocadora; agora se apresentava com um ar muito tranqüilo, de casada, a
arrastar os chinelos, o roupão desabotoado e solto, num farto abandono de alcova.
Despia-se defronte de Amâncio, coçando negligentemente as partes do corpo
que estiveram comprimidas durante o dia, como a cinta, o lugar das ligas e dos
canos das botinas. Despenteava-se ali mesmo, alado da cama do rapaz, sacudindo
o cabelo com ambas as mãos, num movimento de braços erguidos que lhe mostrava
a grenha das axilas; ele, também, parecia não dar por isso, eras todo do livro que lia
à luz de uma vela pousada no criado-mudo.
E os assuntos de suas conversas materializavam-se completamente. Já só
discutiam interesses práticos, arranjos de vida e conveniências domésticas: “Era
preciso arranjar um jardineiro, que viesse uma vez por semana cuidar das plantas e
limpar os tanques. — Era preciso chamar o homem do gás para consertar tal
candeeiro que não dava boa luz. — Era conveniente alugar uma criada que
soubesse lavar; porque a ladra da lavadeira trocava as camisas e encardia a roupa,
que fazia lástima!”
E, à vezes, na intimidade dessas conversas, criticavam os atos de Mme.
Brizard e do Coqueiro; censuravam-lhes umas tantas coisas, como, por exemplo: a
negligência destes para com o César. “O pequeno ia por um tal caminho, que, se
não abrissem os olhos, havia de amargar mais tarde! — Que diabo custava ao
Janjão arranjá-lo aí em qualquer casa de comércio ou, pelo menos, fazê-lo aprender
um ofício?...Em casa mesmo já lhe podiam ter metido nas unhas a carta do ABC e já
lhe podiam ter ensinado alguma coisa...Mas Loló não se queria incomodar! E senão,
vissem o que se passava a respeito de Nini; outra fosse a boa da mãe, que as pobre
rapariga não levaria semanas e semanas lá na casa de saúde, sem ter uma pessoa
que olhasse por ela.”
Eram sempre deste teor os motivos de sua conversa. Amélia, não obstante,
fazia-se muito ligada aos menores interesses do amigo: queria saber o que ele
gastava por fora, com quem estivera; reprovava-lhe certas relações, certas
companhias “que não punham ninguém pra diante”, e aconselhava-o a que se não
descuidasse de outras que lhe podiam ainda vir a servir; pregava-lhe sermões a
respeito de economias. “O mundo estava cheio de espertos: ele que desconfiasse
de todos; cada um só procurava chamar a brasa para a sua sardinha!” Queria estar
a par de como iam os negócios do amante na província. “Se o dinheiro ficara em
boas mãos; se não havia risco de uma quebra ou de alguma ladroeira”. E muito
egoísta, muito mulher, muito agarrada ao que lhe pertencia, desde Amâncio até ao
pó de suas gavetas, fazia justamente como fazem os sócios comerciais que
parecendo tratar dos interesses abstratos de uma firma, estão mas é tratando dos
próprios interesses.
Outras vezes boquejavam sobre os conhecidos, sobre as pessoas de
amizade. Uma noite, em que , durante o serão da varanda, se conversou muito a
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respeito de Hortênsia, Amélia, já no quarto, em fralda, com um joelho dobrado em
cima da cama, enquanto tirava grampos da cabeça e os arremessava para o
velador, disse, como se continuasse um pensamento:
— Ela, fim de contas, não passa de uma mulher como as outras!...Loló e
Janjão. É que, quando gostam de uma pessoa tiram tudo dos outros para enfeitá-la!
— Quem? D. Maria Hortênsia? Perguntou Amâncio, procurando num livro o
lugar em que na véspera deixara a leitura. E, depois de um movimento afirmativo da
rapariga:
— Não, o Coqueiro tem razão — a mulher do Campos é uma excelente
senhora. Muito honesta!
— Ora! É uma mulher como as outras...sustentou Amélia, galgando a cama
por cima do amante, para se aninhar ao lado da parede.
— Como as outras, como? Em que sentido?
— Não é lá essas purezas que a querem fazer! Não é nenhuma santa!
— Estás enganada, filha! A Hortênsia é uma mulher muito séria!...
— Quando não se ri...
— Pelo menos até aqui, que me conste, ninguém ainda se animou a dizer
nada de sua conduta!
Amélia, então, possuída de um rancor instintivo de classe, de uma surda
antipatia de mulher suspeita por mulher honesta, desencadeou os seus argumentos
e as suas razões. Trouxe a lume conversas inteiras, que bispara na tal noite do
exame. “Amâncio via caras e não via corações!...Aquele — meu bem pra cá, meu
bem pra lá, — que todos notavam entre o Campos e a mulher, era só dos dentes
para fora! No íntimo, Hortênsia detestava o marido! Achava-o muito bom homem, é
verdade, muito generoso, não podia se queixar de que lhe faltasse nada, — boa
mesa, boa casa, criados pra servir, teatros, bailes, seu bom carro, seu vestido de
preço, — sim senhor! Mas só! Quanto a carinhos — nicles! A respeito de certos
confortos de que uma mulher precisas, — era uma miséria! Às vezes, passavam-se
meses e meses sem que o marido a procurasse! O pobre homem andava lá com os
seus negócios, coitado! E a doida, em lugar de conformar-se com a sorte, punha a
boca no mundo e eram queixas e mais queixas pra frente! Que ela, Amélia, não
soubera de tudo isso, por parte deste ou daquele — escutara com seus próprios
ouvidos!”
— Pois bem, ainda me ajudas!...volveu Amâncio, tomando extremo interesse
pela conversa, — ainda me ajudas, porque, se é como dizes, o bom comportamento
de D. Hortênsia torna-se muito mais digno de admiração!...
— Sim!...Retrucou a rapariga ironicamente. — Também acho bom, mas moro
longe! — De um, quando mais não seja, sei eu, por quem o tal “anjo de pureza” seria
capaz de dar uma perna ao diabo! E olha que, se ainda não a deu, foi porque ainda
não teve ocasião para isso! Vontade não lhe falta! Ele que se apresentasse e
veríamos!
Amâncio quis logo saber quem era o sujeito.
— Um tipo! Não o conheces.
— Mas como se chama?
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Amélia, depois de alguma hesitação, confessou. — Era o Sousa Antunes...Aí
tinha!
— Que Antunes? Interrogou Amâncio, já mordido.
— O Antunes, homem! Aquele sujeito da Câmara. Alto, de cavanhaque,
aquele de castor branco, que uma vez encontramos nas regatas, em Botafogo.
— Ah!...Já sei, já sei...
E Amâncio procurou disfarçar a sua contrariedade, fingindo que se abismava
na leitura. E parecia muito preso à página, enquanto aliás o seu pensamento
buscava descobrir no tipo de Sousa Antunes os atrativos que cativaram a mulher do
Campos. — Impossível! O tal Antunes era um viúvo talvez de quarenta anos, pai de
filhos, e vulgar, sem talento de espécie alguma, vivendo de um ordenado oficial de
secretaria, nem tendo, ao menos, qualidades físicas que inspirassem paixão a
qualquer mulher, quanto mais àquela! aquela que não pôs dúvida em lhe atirar com
uma recusa pelas ventas!...
— Não! Isso deve ser história!...considerou ele em voz alta.
— Qual história, o quê! Retorquiu logo Amélia. — É louca por ele! Quando o
avista, fica tonta! Eu vi! ( e arregalou um dos olhos com o dedo). Ainda outro dia, no
São Pedro- que escândalo! Não lhe tirava o binóculo de cima! O que a cegou, sei
eu...
— Mas como viste tu a saber disto?...
— Ora! Loló é toda das Fonsecas, que estão agora de cama e mesa com a
Hortênsia!...
— Fonsecas?...
— Aquelas moças esquisitas, aquelas que foram à soirée!... Lembras-te?...Ó
homem! as Fonsecas...as de Catumbi!...
A Amâncio pouco lhe importavam as Fonsecas, o quer ele desejava eram
mais algumas informações a respeito do escândalo. Não podia suportar a idéia de
que Hortênsia, a mesma Hortênsia que lhe repelira os beijos, tivesse um fraco pelo
Antunes, o Antunes do cavanhaque! — Que horror!
* * *
E, depois dessa conversa, principiou a freqüentar a casa do Campos com
mais assiduidade. Aparecia regularmente duas vezes por semana e quase sempre
se demorava até as horas do chá.
— Mas Hortênsia — qual! Não atava, nem desatava. Era sempre a mesma
criatura incompreensível; sempre aquela mesma ambigüidade, a mesma dúvida, o
mesmo querer e não querer! Hoje — Um sorriso de esperanças; amanhã — uma
frieza esmagadora; depois — ora muito coloridos de ternura, ora lulados de orgulho;
tão depressa altiva e sobranceira, como suplicante e humilde; tão depressa risonha
como triste, generosa como sovina, dando com uma das mãos para tomar logo com
a outra.
O rapaz impacientava-se: — Fossem lá compreender semelhante mulher! Um
dia — toda condescendência, toda interesse por ele, no outro — gestos desabridos,
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ameaças, palavras duras . — Sebo! — Já passava a debique! No fim de contas não
valia a pena!
Mas o ladrão da mulher tinha uns olhos tão doces, uns decentes tão brancos,
uma pele tão viçosa!...”Não senhor! Era preciso acabar com aquilo! Ele estava
fazendo um papel ridículo!...”
E deliberava não pensar mais na mulher do Campos. “Que diabo! Se queria
divertir, comprasse um boneco de engonços!...” Quando , porém , dava por si no dia
imediato, já os passos o tinham conduzido para a casa do negociante.
Entraria, mas lá dentro havia de ser forte, inabalável! E trepava pelas
escadas, imaginando o improvisar um namoro com a Carlotinha, estudando os
assuntos de que teria de usar na conversa, calculando os efeitos que a sua afetada
indiferença devia produzir no espírito da caprichosa. Bastava, porém, um sorriso de
Hortênsia, uma palavra mais terna, um gesto mais amoroso, para o fazer ficar caído,
desarmado, seguro como nunca.
— Era o diabo!
Voltava para casa furioso, atirando com as portas, respondendo de má
vontade às perguntas que lhe dirigiam.
Amélia o estranhava, sem dar contudo, a perceber coisa alguma. Apenas lhe
perguntava, aliás como sempre, onde estivera e, quando o rapaz dizia secamente
“Com o Campos”, ela fazia:
— Ah!...
E não tocava mais em semelhante coisa.
Uma noite ele entrou ainda pior que das outras. Não quis ir à varanda, meteu-
se no quarto, abriu um livro e aí ficou, junto à secretária, com a fisionomia fechada
sobre a página.
Todavia, seu pensamento trabalhava: “Era preciso acabar com aquilo,
custasse o que custasse! Era preciso definir as posições! — Ou a mulher do
Campos se explicava, ou ele não poria lá mais os pés!”
E resolveu que o melhor seria escrever-lhe uma carta enérgica, decisiva,
exigindo um “sim” ou um “não”. Fosse a resposta qual fosse, contanto que viesse,
contanto quer Hortênsia desembuchasse por uma vez!
Mas não queria escrever enquanto Amélia não pegasse no sono. — Ele bem
sabia o quanto era a rapariga desconfiada e fina. Só quando a pilhou quieta e
presumiu que já estivesse dormindo, foi que se animou a minutar a carta.
Frases e frases desesperadas e cheias de fogo acavalavam-se umas pelas
outras, falando em martírios infernais, em suplícios dantescos e terríveis
aniquilamentos. E Amâncio, no seu epicurismo estrepitoso e brutal, declarava que “já
não podia suportar as meias promessas, os dúbios sorrisos e as lentas torturas que
ao sangue recalcado lhe impunham as atitudes perplexas de Hortênsia. Preferia a
dor por inteiro, completa, de um só golpe. Ela que tomasse uma resolução, que
despachasse! Se lhe não convinha o amor que ele propunha, declarasse-o com
franqueza: — ficaria o dito por não dito! E, assim, escusavam de prosseguir naquele
encarniçamento desabrido, de cujo oscilante resultado as dúvidas e incertezas o
acabrunhavam e consumiam, mais dolorosamente do que tudo que pudesse haver
de terrível e cruel em uma solução desfavorável!”
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Quando deu por coreto e limado o que escrevera, tirou a limpo uma cópia,
sobrescritou-a e, para que Amélia não descobrisse nada, escondeu todos os corpos
de delito no fundo de uma das gavetas da secretária. Depois, como se tivesse
alijado um novelo da garganta, respirou desafrontadamente, amorteceu o bico da
gás e, abafando os passos e desfazendo-se em cautelas, foi meter-se nos lençóis,
muito empenhado em não acordar a amante.
Não levou dez minutos a cair no sono.
Então, Amélia, ergueu-se, ainda com mais cuidado do que ele se recolhera,
foi pé ante pé à secretária, tirou a carta e, depois de guardá-la em lugar seguro,
tornou de novo à cama, e desta vez adormeceu deveras.
* * *
Leu-a precatadamente no banho, às oito horas da manhã, enquanto esperava
que o tanque de mármore se enchesse.
Amâncio ainda ficara no quarto.
Ela, já despida, encostada ao rebordo da banheira, os ombros curvos, uma
perna sobre a outra, a cabeça descaída molemente para os combros polposos do
seio, tinha em uma das mãos a pequena folha de papel e, de tal modo a fitava, que
parecia disposta a consumi-la com o brilho de seu olhos.
Aquela carta a revoltava muito; não por ele, mas por si mesma; não pelo afeto
que teria ao estudante, mas pelo ressentimento de seu amor-próprio ofendido. Não
lhe podia sofrer a vaidade que um homem, a quem, por merecer, ele fizera tudo que
estava em suas mãos; um homem por quem lançar em juízo jogo todos os recursos
de sua feminilidade; um homem por quem barateara todo o valimento do seu corpo,
tivesse ânimo de desprezá-la por outra mulher!
E, com o olhar imóvel sobre a nudez oriental de seus membros, a boca
entreaberta, o colo palpitante, Amélia se concentrava toda na idéia de uma vingança
completa, tão completa, tão grande que lhe atulhasse o rombo cavado no seu
orgulho e mulher traída.
A água, que escorria da torneira com um trapejar monótono, punha no
ambiente desagasalhado do banheiro uma impressão ainda mais fria de umidade e
desconforto; e aquele nu destacava-se ali como uma bela estátua desprezada. Sua
carne tersa e maciça contraía-se, empinando os lóbulos do peito e enrijando a
vermicular protuberância dos quadris.
Nisto, uma abelha voejou à roda da cabeça de Amélia, tentando pousar-lhe
nos cabelos; ela agachou-se toda, fugindo logo num movimento medroso de caça
que se assusta. Em seguida, puxou a toalha do cabide e pôs-se a dardejá-la contra
o dourado importuno.
Foi uma luta. O inseto fugia; ela trepava-se à borda do tanque, equilibrando-
se, ora num pé , ora no outro, segurando-se à parede, vindo, recuando, a despedir
para todos os lados golpes perdidos da toalha.
Mas a abelha não se deixava prender. Ia e revinha no ar, zumbindo, a sacudir
as sua trêmulas asas de escumilha; até que o sol, por uma frincha do telhado, veio
buscá-la numa aresta de luz, ainda mais dourada do que ela.
* * *
Nessa ocasião, Amâncio, no quarto, perdia a cabeça, à procura da carta.
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— Pois se eu a guardei aqui, com estas minutas!...resmungava ele sozinho,
depois de ter já desarrumado toda a gaveta.
Imaginar que Amélia desse com ela, não! não era possível! Não descobriria o
lugar, onde Amâncio, tão previdentemente, sepultara a maldita carta; além disso,
quando ele se meteu na cama, já a pequena dormia a bom dormir e, pela manhã
bem a viu acordar e escafeder-se para banho...Que diabo teria então mexido
ali?...As portas ficavam sempre fechadas por dentro!...Supor que tivesse guardado o
demônio da carta em outra parte...mas como? Se a deixara justamente dentro das
minutas, e as minutas lá estavam?...
Mas Amélia vinha de entrar no quarto ao pé.
— Ó Amelinha! Viste por acaso por aí alguma carta?...perguntou o rapaz indo
ao seu encontro.
— Que carta? Fez ela com o ar mais calmo e mais natural deste mundo.
— Uma carta que nem é minha!...Guardei-a naquela gaveta,
desapareceu!...agora não sei que contas preste ao dono! É uma entalação! Uma
verdadeira entalação! Queixava-se o rapaz convictamente.
— Mas , onde a puseste?
— Na gaveta da secretária; estou-te a dizer!
— Então deve estar lá. Procura bem.
— Já vi. Não está!
— Pois aqui não entra mais ninguém...Eu cá por mim, não mexo nunca nos
teus papéis, e ainda nem abri, uma vez sequer, qualquer dessas gavetas...Se
puseste a carta aí, aí deve estar por força!
— Qual está o quê! Já despejei a gaveta! Já remexi tudo.
E a desordem em que se achava o quarto dizia isso mesmo.
— Então não sei...concluiu Amélia, sacudindo os ombros. E continuou
tranqüilamente a enxugar os cabelos, cujo serviço havia interrompido para atender
às perguntas do amante.
— Mas a carta também não podia voar! Declarou este em tom áspero.
— Sei lá! Replicou a outra. — Comigo que não a tenho...isso afianço! Diabo!
Praguejou Amâncio, sem se poder dominar. Pois, nem uma miserável carta posso
ter nessa casa?! Arre! Que inferno!
— Inferno são esses modos que tens ultimamente! De certo tempo para cá é
esta boniteza! Parece que falas ao Sabino! Outra que sabe!...quem sabe se tenho
aqui algum senhor?!...
— Está bom! Basta!
— Basta vá ele! Seu atrevido! Quero saber que culpa têm os mais com os
sumiços que levam as cartas, para ouvir impropérios destra ordem!
— Eu não me dirigi a ninguém! Sebo! Falo cá comigo! Creio que ao menos
tenho o direito de zangar-me quando entender!
— Sim, mas é que os outros também não estão dispostos a aturar esses
repelões a todo o instante!
— Pois que não aturem!
— Malcriado! Agora, por qualquer coisinha é isso que se vê!
— Qualquer coisinha, não! berrou Amâncio. — É que ontem pus aqui uma
carta (soltou um murro na secretária) e a carta desapareceu! Irra!
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— Mas quem é que te podia vir aqui tirara a carta, criatura de Deus?!
Perguntou Amélia mais branda, encaminhado-se para o amante, a modos de querer
chamá-lo à razão.
— Não sei! O fato é que a pus aqui, e ela cá não está!
— Há de estar, homem! Não a encontras agora porque já não tens cabeça,
mas, logo que te acalmes, hás de descobri-la...
— Mas onde?! Já corri tudo!
— Deixas estar; eu me encarrego de procurá-la assim que saíres.
— Mas é quer eu precisava levá-la comigo! É negócio urgente!
Amélia, como em resposta à última frase do rapaz, abaixou-se sobre os
papéis espalhados no chão e começou a examiná-los, um por um.
— Não está aí! Observou Amâncio zangado, a passear de um lado para
outro. — Já revistei tudo isso mais de cem vezes! Furtaram a carta, não tem que ver!
Amélia já não respondia e continuava, muito afoita, a esquadrinhar o que havia pelo
quarto.
— Se me lembro perfeitamente que a meti naquela gaveta, ao fundo, dentro
destas minutas!...Acrescentou Amâncio, depois de um silêncio colérico.
— Mas quando a trouxeste?...disse Amélia, sem tirara os olhos do que
rebuscava.
— Ontem à noite.
— Mas eu não te vi com ela...
— Já estavas dormindo, quando a pus na gaveta.
— Quem sabe se ficou naquela algibeira?...
E a manhosa, com um vislumbre, largou tudo de mão para correr a examinar
a roupa do cabide.
— Ó filha! Eu não estrava bêbado quando me recolhi! observou Amâncio.
E saiu para se lavar, traçando furioso lençol em volta do corpo, num gesto
melodramático.
Quando tornou ao quarto, Amélia já havia arrumado as gavetas e dispunha
sobre a cama a roupa que o rapaz devia vestir à volta do banho.
— Então?...perguntou ele , ao entrar.
— Nada! volveu elas, com admiração na voz.
— Com efeito! Isto contado não se acredita!...Rosnou Amâncio, enfiando as
meias.
E gritou para fora:
— Ó Sabino! Olha essas botas, moleque!
Amélia, ao lado, metia-lhe os botões numa camisa engomada.
E depois , a escovar-lhe o paletó no corpo, quando o estudante já estava
pronto:
— E a carta, de quem era?...
— Do Campos, respondeu ele, sem hesitar.
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E saiu. Amélia acompanhou-o pelas costas com um riso de asco.
* * *
E logo que se viu só, tirou do seio o seu furto e releu-o mais uma vez.
— Que devia fazer daquela carta?...como se devia servir daquela
arma?...Denunciar o infame? — atirar-lhe à cara a prova de sua vilania e nunca
mais o procurar para nada, ou devia simplesmente fingir que não sabia de coisa
alguma, e, em segredo, tomar a vingança que lhe parecesse melhor?
Despedi-lo por uma vez — não convinha! Isso nem por sonhos! Ficar, porém,
eternamente resignada e submissa, também seria asneira!
Seu amor-próprio estava mordido e sangrava. O procedimento desleal de
Amâncio assumia no tribunal egoístico de seu espírito ignorante e mal-educado as
proporções jurídicas de um crime, de um monstruoso abuso de confiança, um
estelionato. Não podia conformar com a idéia daquela tremenda injúria, lançada
contra os seus direitos de mulher nova e bonita.
— Canalha! Murmurava consigo, a esmoer o fato. — Bem me dizia o
coração!...Agora, o que precisavas que te fizesse, sei eu! Ah! Mas descansa que hás
de pagar com língua de palmo! Para não seres cão, meu safardana!
Foi-se porém, todo o dia, sem que Amélia deliberasse o destino que deveria
dar à carta. Só na manhã seguinte apareceu-lhe uma resolução.
Foi ter com o mano, chamou-o de parte e entregou-lha.
— Vê isto, disse.
Coqueiro abismou-se logo desde as primeiras palavras: “Minha adorada e
incompreensível Hortênsia”.
— Que vem a ser isto?...Perguntou ele intrigado.
— Lê! Respondeu ela.
E, enquanto o irmão devorava o que vinha escrito:
— Vê tu só a hipocrisia daquele sonso!...
— Ele já sabe que esta carta está em teu poder? Interrogou Coqueiro depois
da leitura.
— Qual! Nem pode descobrir!
— Ainda não deu pela falta?
— Já. Zangou-se um bocado, arrepelou-se, mas afinal creio que se
convenceu de que a tinha perdido.
— E agora o que tencionas fazer disto?
— Não sei...Que achas tu?...
— Acho que por ora não convém fazer nada!
— Calar-me?!
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— Por ora, decerto! Esta carta pode vir a servir-te de muito , mas é preciso
que, em primeiro lugar, apareça a ocasião. Se quiseres, deixa-a comigo, que eu sei
o destino que lhe devo dar.
E guardou-a no bolso, depois de um gesto aprobativo da irmã:
— Ele a teria escrito de novo e feito chegar às mãos de Hortênsia, sabes?...
— Não sei, mas posso ver.
— Bem. Em todo o caso, não te dês por achada! Nem uma palavra a este
respeito! Precisamos dar tempo ao tempo...podes, todavia, ficar desde já tranqüila,
que o que tem de ser — traz força! A justiça não se fez para os cães!...
— É por isso mesmo que eu não confio muito na tal justiça! Observou a
rapariga.
CAPÍTULO XVIII
Mas, no fundo, João Coqueiro principiava a “cismar com o negócio”. Segundo
os seus cálculos, a irmã, por aquela época, já deveria estar pejada: circunstância
esta que daria oportunidade a um escândalo, de antemão, preparado, forçando
Amâncio a “reparar sua falta”.
E, no entanto, Amelinha “nada de aviar”! O bom irmão sentia até como um
peso na consciência por haver contribuído diretamente para aquela situação.
— Era sempre assim!...pensava ele enraivecido. — Se não precisássemos de
um filho, é que os pestinhas haviam de aparecer aí de enfiada!
E o receio amargo de ter sacrificado a menina, talvez sem os belos resultados
que esperava para si e para ela, invadia-lhe o coração e punha-lhe momentos maus
na vida.
Mme. Brizard já não pensava do mesmo modo. Aquela existência pronta,
inteiramente desocupada, lhe viera muito a propósito. “Ela, coitada de si! Bem
precisava de um bocado de descanso!”
As coisas, de fato, iam-lhe agora admiravelmente: Tinha a sua mesa boa e
farta, um bom quarto de dormir, a mucama para lavar-lhe e engomar-lhe a roupa, um
camarote no teatro de quando em quando, aos domingos um passeio à cidade, e lá
uma vez por outra uma soirée em casa de alguma amiga. “Ah! Não se podia
comparar a existência que levava agora com a peste de vida que curtira na Rua do
Resende!”
‘E que então não havia a menor folga; não se podia arredar pé do serviço! E
todo o dia reclamações! E todo o dia - o banho morno de fulano! O chocolate de
beltrano! Este queria ir sem pagar a conta ; o outro se entendia no direito de dizer
desaforos porque pagava! Apre! Assim também não era viver! Seu corpo há muito
tempo pedia aquele repouso! Se continuasse a labutar como dantes, — credo! —
estourava por aí um dia, esfalfada!
E, com medo de perder a “pepineira” cercava Amâncio de adulações. Tinha-o
na conta de um patrão, de uma amo; com direito a todos os carinhos e desvelos.
Assim, jamais o contrariava, nunca lhe opunha censuras. — Aquilo que o rapaz
fizesse estava sempre muito bem feito!
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173
No seu entendimento mercantil de locandeira, Amâncio não aparecia “como
isto ou com aquilo” representava pura e simplesmente “um bom arranjo”. Ali não
havia favores, havia negócio, ninguém ficava a dever obrigações. – Ele despendia
tanto em dinheiro, mas recebia em carícias e bom trato um valor correspondente.—
Estavam quites!
Apenas, como o negócio era rendoso e agradava a boa mulher, esta fazia o
que estava ao seu alcance por agüentá-lo o maior tempo possível, como de resto,
qualquer um procederia com referência a um bom emprego. Quanto à posição de
Amélia, Mme. Brizard a dava por natural e coerente. Não via na cunhada uma vítima
ou coisa que o valha, mas tão-somente um membro solidário naquela empresa,
enviando os esforços de sua competência para o comum interesse da associação.
Isto, já de deixa ver, era o que pensava a francesa, mas não o que ela
expunha; de sorte que o marido ficou muito espantado, quando, falando sobre a
necessidade de tratar do casamento de Amélia com o hóspede, lhe ouviu dizer:
— Homem...para falar com franqueza...acho que o melhor é deixar seguir o
barco como vai!...
— Como vai!...
E o Coqueiro engoliu a frase indignado:
— Ora essa! Tu, com certeza, não estás falando sério!
— Às vezes, quem tudo quer, tudo perde!...sentenciou a mulher.
— Mas que diabo quero eu?! Retrucou aquele. — Eu não quero senão o que
é de justiça! Quero apenas que eles se casem!
A outra, para quem o casamento de Amélia não trazia vantagens imediatas e
podia, aliás, comprometer o estado feliz das coisas, saltou logo com uma bateria de
opiniões contrárias:” Coqueiro faria muito mal em precipitar os acontecimentos!
Naquela situação o mais razoável e o mais prudente era sem dúvida esperar! A
natureza não dava saltos! As coisas haviam de atingir a um bom resultado, sem ser
preciso lançar mão de meios violentos!...
— Mas é que ele nos pode escapar!...argumentou Coqueiro.
— Não creias! Retorquiu a velha com um gesto arraigado na experiência.
— Mas filha, vem cá! - Não vês como o Amâncio está ultimamente? Já não é
o mesmo! Amelinha já não tem sobre ele domínio de espécie alguma! O maroto já
não pensa nela, é todo da Hortênsia!
— E que tem isso! O que tem que ele farisque a Hortênsia?! Está no seu
direito! — é moço, tem dinheiro!
— Ora essa!...exclamou de novo o Coqueiro, ainda mais indignado que da
outra vez. — O que em isso?!...
E cruzando os braços:
— É muito boa!...
Mas tornou logo :
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174
— Tem, que ele deve uma reparação à minha irmã! Tem, que ele, apaixonado
pela Hortênsia, pode virar as costas à pobre menina e abandoná-la no estado em
que a pôs! — Desonrada, perdida! “Que tem isso?! “Ora faça-me o favor!
— Tolo! Disse a francesa com um riso cheio de filosofia, cuja tranqüilidade
contrastava com as irritações do marido. — Tolo! Bem se vê que não conheces os
homens!...pois acreditas lá que o Amâncio despreze a rapariga por ter agora um
capricho pela outra?...Não sabes que a únicas mulher capaz de prender o homem é
aquela com quem ele convive dia e noite; aquela com quem ele se habituou; aquela
que já lhe conhece as fraquezas, os ridículos, as pequeninas misérias da
intimidade?! Abandoná-la!...Digo-te mais: — Hortênsia é até necessária! Deixa que
ele a persiga, que ele a conquiste à força de mil sacrifícios e de mil sofrimentos;
deixa que ele a possua, que a tenha inteira na mão! Deixa, porque ele há de voltar, e
voltar farto!...Meu amigo, paixão é fogo de palha! — não dura! Nas ocasiões de
fadiga e abatimento é com o amorzinho de casa que a gente se acha! E fica então
sabendo que, para um homem amar deveras uma mulher, é preciso que ele se
tenha já desiludido com muitas outras! Tristes de nós, se assim, não fosse! Há
maridos que, ao voltar de suas correrias, apaixonam-se pelas mesmas esposas, a
quem dantes só chegavam por obrigação!
E a francesa velha, saboreando o silêncio que cavara no adversário, concluiu
depois de tomar fôlego:
—O rapaz quer, por graça, dar cabeçadas?...pois deixe-as dar! Que ele,
quando partir a cabeça, há de fazer justiça à tua irmã. Este fato da mulher do
Campos, crê tu, foi uma providência, foi um atalho que se abriu nos teus planos!
* * *
E o fato é que o Coqueiro acabou por concordar com a mulher. “Amélia,
desde que se convertesse numa necessidade para a vida de Amâncio, este, com
certeza, seria o mais interessado em fazer dela sua esposa; por conseguinte, agora
o que convinha era que a rapariga também ajudasse de sua parte, empregando
todo o jeito e boa vontade de que pudesse dispor; devia mostrar-se cordata, simples
nos seus gostos, bem arranjadinha, amiga do asseio, honesta, digna, enfim, de um
marido!”
E dominado por esta idéia, aconselhou logo à irmã que se fizesse meiga com
o “noivo”, dócil, boa companheira e fiel principalmente, fiel quanto possível, que todo
o futuro dela, bom ou mau, só disso dependia!
Mas a rapariga, com um a pontinha de desânimo, contrapunha-lhe o feio
procedimento de Amâncio para com ela naqueles últimos tempos. Apontou as cenas
de altercação que mais a humilharam; disse as frases grosseiras que ouvira do
amante, as ameaças que recebera, as palavras que lhe escaparam, a ele, na febre
das contendas; palavras, onde se enxergavam claramente o fastio e a má vontade!
— Não faças caso! Discreteou o irmão. — Isto não vale nada!...Fecha por
enquanto os olhos a todas essas coisas! Não convém o menor espalhafato antes
que o tenhas seguro de pés e mãos! Nada de espantar a caça!... Lembra-te, minha
rica, de que, no estado em que te achas, só ele te poderá proporcionar uma posição
legítima e definida!
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175
Depois desta conferência, o Coqueiro ficou mais tranqüilo. Agora, a sua maior
preocupação era o sobrado da Rua do Resende. — Já lá se iam meses, sem que o
conseguisse alugar; o diabo do prédio era grande demais para a família e, na
disposição em que estavam os quartos, só mesmo podia servir para casa de
pensão.
Nesta conjuntura, resolveu alugá-lo a varias pessoas; mas, para isso, tinha de
fazer obras e faltava-lhe um homem de confiança, que estivesse disposto a ir para lá
e tomar conta de tudo. — Ah! Se não fora a família!...ninguém mais se encarregava
disso senão o próprio Coqueiro! E fá-lo-ia até por gosto!
Encontrou, porém, o seu homem num velho conhecido, empregado no
correio e que, já em algum tempo, tomara a seu cargo, nas mesmas condições, a
casa de um outro amigo. Chamava-se Damião — bom rapaz, ativo e zeloso. Estava
talhado para a coisa.
O Damião, mediante a faculdade de não pagar a parte que ocupasse na casa,
comprometia-se a cobrar o aluguel dos outros inquilinos e entregá-lo pontualmente
ao senhorio; ite, obrigava-se a fiscalizar a conservação do prédio a pregar escritos
quando houvesse cômodos desabitados e administraria enfim o serviço da pessoa
que se encarregasse de fazer a limpeza dos quartos, de varrer os corredores,
encher os jarros e moringues, tomar conta da chavaria e ter olho sobre quem
entrasse e que saísse.
Para estes últimos cuidados arranjou-se um homenzinho meio corcunda,
português, esperto e rafeiro como um rato um pouco falador, mas muito
experimentado naqueles serviços. Coqueiro dar-lhe-ia alguma coisa por mês e um
canto da casa para dormir. “Uma pechincha!”
Fechado o negócio, tratou o proprietário de dividir a sala de visitas e a
varanda do sobrado em pequenos repartimentos de tabique, forrados de papel
nacional. É inútil dizer que neste ponto foi indispensável a intervenção pecuniária de
Amâncio, que ficou por conseguinte com direito sobre uma parte dos rendimentos do
prédio.
E também não é menos inútil declarar que o provinciano, nem de longe,
sentiu jamais o cheiro da tais rendimentos.
* * *
Mas o certo é que as obras se fizeram, e a célebre casa de pensão de Mme.
Brizard, outrora tão animada e concorrida, transformou-se num desses melancólicos
sobradões de alugar quartos, que se observam a cada canto do Rio de Janeiro e
onde, promiscuamente, se aninha toda a sorte de indivíduos, mas de indivíduos que
já foram alguma coisa ou de indivíduos que ainda não são nada.
Aí, as mais belas e atrevidas ilusões vivem paredes-meias com o mais denso
a absoluto ceticismo. Velhos boêmios, curtidos nos venenos e todos os vícios e no
segredo de todas as misérias, encontram-se diariamente, ombro a ombro, com os
visionários estudantes de preparatórios.
É nessas praias desamparadas à ventania da sorte que a sociedade costuma
arrevessar o destroço dos que naufragaram nas suas sua águas, mas é daí também
que ela pesca às vezes novas pérolas para p o seu diadema. Há de tu — homens de
todas as nacionalidades, sujeitos devida misteriosa, solteirões libertinos e
neutralizados pelo venéreo, artistas completamente desconhecidos que se imaginam
vítimas do meio, e supostos talentos que vivem para amaldiçoar a fortuna dos que
conseguiram vencer na vida.
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176
Quase todos eles têm na sua vida um fato, uma época, uma coisa
extraordinária, para contar: um, apresenta a honra de lhe haver morrido nos braços
tal homem célebre; outro, diz que foi amante da senhora condessa de tal; outro
afiança e jura ser o verdadeiro , se bem que obscuro, promotor e tal acontecimento
histórico; outro, revela um romance de amor que lhe cortou a carreira, mas que o
imortalizará em vendo a luz da publicidade; outro, confia numa invenção, “é o seu
segredo”, um projeto mecânico, ou industrial ou econômico — político; outro, não
aceita emprego nenhum do atual governo, e espera a ocasião de “pegar numa
espingarda e fuzilar as velhas instituições de seu miserando país”; outro, enfim, ( e
são os menos raros) têm apenas para exibir em honra própria a circunstância de
algum parentesco ilustre.
Ah! Não se encontram aí notabilidades de nenhuma espécie, mas sim
parentes. Este , é sobrinho de tal poeta ilustre; aquele ,é irmão do ministro tal, que
deu o nome a tal rua; estoutro, cunhado ou primo em terneiro grau do glorioso artista
Fulano dos anzóis.
E os tipos, quando lhe tocam nisso, enchem-se de orgulho, como se
participassem das glórias do festejado parente; pelo menos, ninguém os apresenta a
qualquer pessoa, sem acrescentar logo, com assombro: “Ó senhor! Por quem
é...não me confunda!...”
É também desses viveiros sombrios e malcheirosos que surgem certas figuras
que, às vezes, nos espantam na rua, — tossicar dentro de um sobretudo enorme,
um xale — manta em volta do pescoço, um bengalão entre os dedos e na fisionomia
um ar melancólico e ao mesmo tempo irritado.
É daí, desses quartos silenciosos, úmidos e tristonhos, como sepulturas
vazias, que surgem com o seu passo inalterável e pousado os sinistros aranhões,
que vemos passear estranhamente pelos jardinas públicos, ao sol das boas manhãs
de inverno.
Coitados! São em geral homens sem meios de vida, protegidos por algum
figurão qualquer, de quem, ou foram colegas na academia, ou ainda continuam a ser
parentes com a mais cruel pertinácia. Quando falam desse protetor feliz e rico não
se animam a dizer mal, mas à sua fisionomia acode invencível sorriso cheio de velha
bílis acumulada e sôfrega por transbordar. Uns vão regularmente comer a certas
casas comerciais, outros se arranjam pelas impossíveis casas de pasto da Cidade –
Nova, os “fregues”, onde as refeições não passam de duzentos réis. Alguns têm o
almoço seguro à mesa de um velho amigo de melhores tempos, o jantar em casa
doutro; às sextas – feiras são infalíveis nas comezainas gratuitas dos frades de São
Bento. Uns, passam a noite na jogatina, percorrendo espeluncas, tomando café nos
quiosques às quatro e meia da manhã e então, durante o dia seguinte, dormem a
fartar; outros, recebem donativos de alguma irmandade religiosa, à qual se filiaram
em épocas de prosperidade.
São sempre vistos, em horas determinadas, no jardim do Rocio, no Passeio
Público, assentados nos bancos de pedra, lendo jornais à sombra das amendoeiras,
às vezes têm ao lado a botina que descalçaram por amor dos calos; são vistos
igualmente nos edifícios públicos em construção, acompanhando as obras com
interesse, como se estivessem encarregados disso, fazendo perguntas, ralhando
com os operários, numa necessidade irresistível de aplicar, seja como for, a sua
atividade desocupada e vadia. Não há motim, não há incinere de rua, por mais
ligeiro, em que eles não intervenham, tomando logo a parte principal na coisa,
repreendendo o agressor, conciliando o agredido, fazendo enfim acreditar que ali
está uma autoridade civil em pleno exercício de suas funções.
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São violentos quando lhes falam de política e só se referem aos homens do
poder com palavrões brutais e desabridos; a alguns nomeiam sempre com alcunhas
determinadas e todos os outros, que ainda não receberam o batismo de sua cólera
invejosa, são indistintamente “os ladrões, os patoteiros, os vis, os traidores, os
capachos do rei”! Através dos cerrados negrumes daquela miséria e daquele
ressentimento, nada enxergam de bom e de legítimo
O Coqueiro, não obstante, se mostrava satisfeito com os seus inquilinos e
dizia ter encontrado no Damião o “homem que lhe convinha”.
Aparecia por lá constantemente; gostava de ver como ia o prédio, gostava de
dar uma vista de olhos pelos cantos da casa, em silêncio, de mãos no bolso, e sentia
um verdadeiro prazer sempre que encontrava alguma coisinha par consertar, —
algum pedaço de papel solto da parede, alguma régua despregada, alguma tábua
fora do lugar.
A existência nunca lhe parecera tão corredia e tão fácil; só faltava, para
complemento das ventura, que o maçante do colega desembuchasse por uma vez
com aquele maldito casamento.
— Ah! então é que seriam elas!...
* * *
Mas o “maçante do colega” estava bem longe de pensar em casamento; todo
ele era pouco para sofrer a cáustica impassibilidade de Hortênsia.
A caprichosa continuava no seu terrível sistema de não aviar nem desaviar.
Amâncio fizera-lhe ir ter às mãos uma segunda cópia da carta subtraída, e ela em
resposta aconselhou-o a que não escrevesse outra, sob pena de entregá-la ao
marido.
— Pois que vá para o diabo que a carregue! Pensou o estudante, furioso, e
resolveu dar o negócio por acabado.
Com efeito, durante um mês inteiro, nas poucas vezes em que teve de falar
ao Campos sobre questões de interesses materiais, não passou do escritório.
— Homem! dizia-lhe o negociante. — Você só aparece aqui por fruta, e faz
visitinhas de médico! Não há meios de apanhá-lo lá em cima! Neném até já se
queixou!
Amâncio defendia-se com os seus estudos e com os sobressaltos em que
andava depois das últimas cartas do Norte.
— Por quê? Há alguma novidade?!... perguntou o amigo cheio de solicitude.
— A velha não está boa!... explicou o rapaz. — Desde que morreu meu pai, a
pobre de Cristo ainda não levantou a cabeça! Confesso-lhe que tenho meus receios,
tenho!...
E quedava-se abstrato, a fitar o chão, com a fisionomia paralisada por uma
tristeza vidente e ao mesmo tempo irresoluta.
O outro não sem animava a interromper aquele silêncio doloroso e
respeitável, mas, por fim, lembrou discretamente, com delicadeza, que não seria má
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uma viagem à província; talvez com isso se evitasse um desgosto maior.. Amâncio
era a menina dos olhos de D. Ângela...bem podia ser que, só com a presença dele,
a pobre senhora melhorasse!...
O estudante mostrou-lhe a última carta da mãe; e os dois, tendo ainda
conversado com o mesmo recolhimento, vieram a concordar em que era
indispensável um passeio ao Maranhão; Amâncio retirou-se, fazendo já os planos
da viagem.
— Oh! exclamava ele por dentro. — Vou! Não tem que ver! Vou
definitivamente! E provo àquela mulher que não ligo a menor importância ao que ela
me fez! Hei de provar-lhe que o seu procedimento em nada me alterou. Que até
sigo muito satisfeito e muito satisfeito e muito senhor de mim.
E via-se já na ocasião da despedidas — frio, indiferente, sorrindo às lágrimas
de Hortênsia . e sua fantasia, gozando do efeito desses devaneios, armava-lhe, ao
sabor da vaidade, cenas muito espetaculosas, nas quais representava ele sempre o
papel mais brilhante e mais elevado.
Via Hortênsia a seus pés, lacrimosa e mísera, suplicando-lhe por piedade que
não se fosse, que a perdoasse, que se compadecesse de tamanho desespero. “Ela
ali estava submissa e arrependida, pronta a cumpri de olhos fechados as ordens de
seu querido Amâncio, do seu senhor, do seu Deus, do seu tudo!”
Ele, então, com um riso cruel, voltando-lhe o rosto e acendendo um charuto:
“Não , filha, tem paciência! E se insistes, vai tudo às mãos do Campos!...”
Hortênsia, ao ouvir estas palavras, estorcia-se numa aflição teatral, e logo que
Amâncio se dispunha a partir, desabava de costa, quase morta, justamente como as
heroínas dos romances que ele devorara aos quinze anos.
Mas a terrível concupiscência do nortista, sobrepujando logo a fantasia do
vaidoso, não resistia à tentação de possuir, ao menos em sonho, aquele belo corpo
desfalecido e, como dantes, começava mentalmente a despi-lo, peça por peça, até
deixá-lo em pleno escândalo da carne.
* * *
Entrou em casa resolvido a levantar o vôo, custasse o que custasse.
— Sim, era preciso ir! Por Hortênsia, por sua mãe, por Amélia, por mera
distração, por tudo! Precisava afastar-se daquele inferno, onde duas mulheres, como
duas sombras, o torturavam; uma fugindo e a outra o perseguindo. Desde que
recebeu a tremenda resposta de Hortênsia, sentia-se muito nervoso e irascível;
Amélia suportava-o, sabe Deus como, fazendo milagres de paciência para não se
afastar dos conselhos que lhe dera o irmão. Quase que já se não podiam sofrer um
ao outro. Além disso, as cartas de Ângela repetiam-se agora desesperadamente.
“Estaria a pobre mãe com efeito em risco de vida?...”pensava Amâncio. “Dependeria
dele o salvá-la? ... E os seus interesses que havia tanto tempo o reclamavam?... E
as saudades da pátria? E os prazeres que encontraria à volta do primeiro ano
acadêmico?”
Os prazeres, sim, que Amâncio, pelo derradeiro paquete, recebera em uma
das principais folhas diárias de sua província a seguinte notícia:
“Maranhense Distinto. Acaba de fazer brilhantemente o primeiro ano de seu
curso na Escola de Medicina na Corte o nosso talentoso comprovinciano Amâncio
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da Silva Bastos e Vasconcelos, filho de há pouco falecido e sempre chorado
Comendador Manoel Pedro de Vasconcelos, um dos mais estimados negociantes
que foi desta praça, enquanto não podemos pessoalmente abraçar o digno jovem e
esperançoso discípulo de Hipócrates, apressamo-nos a enviar-lhe daqui os nossos
sinceros parabéns, futurando em S.S, a mais uma glória legítima para a nossa
Atenas, já tão rica, aliás, em talentos privilegiados!”
Ninguém poderá imaginar o efeito que produziram tais palavras no espírito
presunçoso de Amâncio. era a primeira vez que ele via o seu nome em letra
redonda, seguido de alguns adjetivos laudatórios.
Por detrás daquela notícia pressentia o rapaz um paraíso de novas
considerações que o esperava na província; antevia o sorriso das damas, a
reverência dos pais de família e a inveja dos ex-colegas do Liceu.
— Não! não podia deixar de ir. O Maranhão, naquele momento, e por todos
os motivos, representava para ele uma necessidade urgente. — Havia de meter a
cabeça e varar por quantos obstáculos se lhe antepusessem.
* * *
Amélia ficou estonteada quando o amante lhe deu parte dos seus projetos de
viagem, tão calmo e resoluto foi o tom em que o fez; mas, voltando do primeiro
choque, rompeu num grande pranto e atirou-se de bruços na cama, soluçando muito
aflita. “Que era uma desgraçada! Que Amâncio a queria abandonar, depois de a ter
desonrado e perdido!”
—Eu volto, filha! Disse ele, procurando fazer-se meigo. — Vou tratar de meus
interesses, ver minha mãe, e volto para o teu lado! Não tenhas receio de que te
engane! Eu ainda se quisesse, não podia ficar por lá, já não digo por ti, mas, que
diabo! Pelos meus estudos. Pois acreditas que eu cairia na asneira de abandoná-
los, agora que estou tão bem encaminhado?...
— Não sei! Respondeu a rapariga, erguendo-se rapidamente, com as feições
sumidas na vermelhidão do choro. — Você, é impossível que não tenha no
Maranhão alguém à sua espera!... E essa com certeza não há de ser pobre como
eu, não terá a boa-fé que eu tive!...com essa você não porá dúvidas nenhuma para
casar!...
E voltaram-lhe os soluços, como um temporal que recresce.
— Estás a dizer tolices, filha! Dou-te a minha palavra de honra em como
nunca me esquecerei de ti! Que mais queres?!
— Pois então casemo-nos e partirás depois!...
— Isso é impossível! Já te disse um milhão de vezes! Oh! – Minha mãe
espera-me há quatro vapores seguidos! Imagina tu como não estará ela, coitada,
com a morte do velho! não hei de agora, em vez de minha pessoa, lhe apresentar
uma carta pedindo licença para casar!... Que espécie de filho seria eu nesse caso?!
Enquanto a pobre viúva se desfaz em lágrimas; enquanto na família tudo é luto e
desgosto, o bom do filho pensa em casamento e, sem dúvida, prepara as festas do
noivado!” Não! gritou ele energicamente. — Isso não faria eu, nem se me cosessem
a facadas! Pelo menos, enquanto estiver com esta roupa sobre o corpo...
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E sacudiu com força a aba de seu fraque de lustrina.
— Enquanto estiver com esta roupa, não penso em mulher! nada! antes de
tudo, sou filho! Percebes?! Antes de tudo, tenho de olhar por minha pobre mãe, que
é muito capaz de morrer se não me ver ao seu lado!
E foi, cheio de excitação, debruçar-se no peitoril da janela, fitando as plantas
do jardim, a roer as unhas.
Houve um silêncio. Amélia já não chorava; imóvel, apoiando-se ao espaldar
da cama, entontecia a vista contra as ramagens cruas do tapete.
— Nesse caso, ele que venha ter contigo... disse, afinal, sem erguer os olhos.
— Ora! Resmungou Amâncio, voltando-se vivamente na janela.
— Ou então iremos nós... acrescentou a rapariga, fazendo um biquinho de
enfado. E depois, com pieguice: — Tenho muito medo das maranhenses!...
O estudante não respondeu, foi ter com ela, tomou-lhe meigamente a cabeça
entre as mãos.
— Esta cabecinha!... — disse — esta cabecinha não sei quando terá juízo!...
E, passando a falar em tom sério, protestou que era até injustiça supô-lo
capaz de cometer uma perfídia daquela ordem! Amélia já devia estar perfeitamente
convencida de que ele a amava deveras; de que ele não seria tão mau que a
abandonasse, depois de receber tantos carinhos. Ela que não estivesse a descobrir
perigos, onde nem sombras disso havia!... A tal viagem ao Norte, no fim de contas,
era uma questão de dois ou três meses, e ele deixaria uma mesada regular e
escreveria por todos os vapores!...
— Não acreditas ainda que te estou falando com sinceridade?... concluiu, a
beijá-la nos olhos. — Que precisão tinha eu de te enganar?...
— Sim, creio, creio que por ora assim seja, não há dúvida! Mas também estou
persuadida de que, logo que passes a barra, tudo muda de figura!... Nos primeiros
dias ainda te lembrarás da infeliz que aqui deixaste, mas depois... com a presença
de outras, com os novos passatempos que te esperam... até hás de perguntar aos
teus botões “como foi que em algum dia chegaste a pensar a sério neste
casamento?...”
— Bem se vê que não me conheces!... retorquiu o rapaz.
— Não! não! não irás! Sustentou Amélia. — Adoro-te, és meu, não te quero
perder! Ora essa!
— Mas, filha, observou Amâncio impacientando-se, — lembra-te de que é
mais decente fazermos a coisa por bons modos... afinal, tu não me podes
constranger a ficar, e, eu, em vez de ir, deixando um compromisso de cavalheiro,
sou capaz de ir, sem deixar coisa alguma! Ora aí tens!
— Hein?! Bradou ela, transformando-se a contragosto.— Cai nessa!
Experimenta só, para veres o gosto que lhe achas!
Amâncio respondeu com um gesto desabrido, enterrou o chapéu na cabeça, e
saiu à toa, sem destino, com uma fúria surda a espezinhar-lhe o coração.
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* * *
Mas, ao voltar, encontrou Amélia no mesmo estado. E a questão reapareceu
à noite, reapareceu na manhã seguinte, e todos os dias, tomando um caráter de
rezinga permanente.
Amâncio perdeu de todo a paciência.
— Era demais! Sebo! Ele, no fim de contas, não tinha obrigação nenhuma de
aturar semelhante gaita nos ouvidos! Que mastigação! Arre! Amélia que fosse
atenazar o pai!
Ela respondeu possessa, deixando escapar palavrões, “Supunha ter
encontrado um homem, mas encontrara um quidam, um canalha, um desfrutador!”
— Desfrutadores são vocês todos! Percebes tu?! Berrou ele, colérico.–
Desfrutadores — é teu irmão, — é tua madrasta e és tu! Que só faltam me
arrancar a pele! Súcia de filantes!
E lembrou o que até aí gastara com eles, o que lhes dera, o que comprara e o
que lhe desaparecia dos algibeiras.
— Não me estás de graça, não! exclamou, saindo afinal do quarto como da
outra vez.
Desta, porém, quando voltou à casa, vinha com o ar mais despreocupado que
se pode desejar. E, logo que Amélia lhe falou na questão da viagem, ele respondeu
tranqüilamente que já não havia nada a esse respeito. “Resolvera ficar.”
A rapariga compreendeu o disfarce e, no dia seguinte, tratou de prevenir o
irmão de que abrisse os olhos, se não queria ver o Sr. Amâncio escapar-lhe por
entre os dedos.
João Coqueiro ficou de orelha em pé.
CAPÍTULO XIX
A pequena tinha toda a razão; Amâncio, se parecia resolvido a desistir da
viagem, era porque nessa mesma tarde encontrara o Paiva e, na sua necessidade
de expansão, levou-o para o fundo de um café e abriu-se com ele. Contou-lhe as
dificuldades que o afligiam, e pediu-lhe conselhos.
— Não há que saber!...disse o consultado. — Não há que saber!...Aí só vejo
dois partidos a tomar: — Ser tolo — ou — não ser tolo!
E, como o outro fizesse um trejeito de má compreensão:
— Tolo, se ficares e — não tolo — se te puseres ao fresco!
— Mas, Paiva, você então que devo ir?...perguntou Amâncio, hesitando, a
morder as unhas.
— Homem! volveu aquele, — se precisas ir ao Norte, prepara-te caladinho e
vai! Que necessidade tens tu de que a gente do Coqueiro saiba disso?...Deves-lhe
satisfação de teus atos?...Se não deves, é aprontar as malas e...por aqui é o
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caminho! Olha! Deixa-lhe uma carta, muito delicada, já se vê, muito cheia de
promessas. “Que voltas, que hás de fazer, que hás de acontecer!” E, no entanto,
vai-te raspando...Porque estas coisas, filho, assim é que se decidem. E, quanto aos
arranjos da viagem...cá estou eu para te ajudar!...
Calaram-se por alguns instantes. Paiva Rocha pediu um novo cherry – cobler
e prosseguiu enquanto o amigo, muito pensativo, fitava o mármore da mesa:
— Agora, se estás tão embeiçado pela sujeita, que não tenhas ânimo de a
deixar, isso é outra coisa!...Neste caso, o melhor é escrever à velha, dizendo-lhe que
venha, arranjar um novo advogado de confiança que se encarregue de teus
negócios no Maranhão, — e faze a vontade à pequena — casa-te!
Amâncio torceu o nariz com enfado:
— Qual!
— Então, filho, que esperas?...É perder o amor aos objetos que lá tens, e
fazer o que já te disse!
— Mas o Coqueiro não poderá toma r alguma vingança?...
— Não sejas parvo! Resmungou o outro, bebendo de um trago o que ainda
tinha no copo; e ergueu-se disposto a sair. — Amanhã, às mesmas horas, cá estou!
Traze o cobre e deixa o resto por minha conta!
Separaram-se concordes de que no dia seguinte ficariam depositados na
república do Paiva os apetrechos da fuga.
Em casa do Coqueiro. Todos, à semelhança de Amelinha, nem de leve
mostravam suspeitar de coisa alguma; pareciam até mais tranqüilos e satisfeitos.
Nem um gesto de ressentimento, nem uma palavra indiscreta que os denunciasse.
Tudo era paz e bem-aventurança.
Reapareceram as primitivas noites de amor, como boa estação que volta
carregada de flores. Os dois amantes nunca se possuíram tão satisfeitos um do
outro e nunca se patentearam tão convictos da mesma felicidade. No empenho
comum de se enganarem, cada qual redobrava de carinhos e meiguices; enquanto
por dentro os corações lhes bocejavam, aborrecidos e fatigados.
O dia da viagem chegou sem novidade alguma. Amâncio levantou-se como
das outras vezes, apenas um pouco mais cedo. Olhou por um momento Amélia que
ainda dormia, toda sumida nos lençóis, vestiu-se cautelosamente para não a
acordar; depois foi varanda, bebeu café e saiu em ar de passeio.
No Largo do Machado tomou um carro e bateu para a república do Paiva.
Não encontrou o colega, havia já saído. — Devia estar à sua espera com a
bagagem, no cais Pharoux.
Amâncio mandou tocar o carro para lá. E, à proporção que se aproximava do
mar, crescia-lhe por dentro um vago sobressalto de impaciência e de medo.
— Anda! Gritou ao cocheiro, espiando repetidas vezes pela portinhola e
apalpando de instante a instante o bilhete da passagem que tinha no bolso.
Estava comovido, principiava a sentir pena de deixar a Corte; apareciam-lhe
saudades das boas noites com Amélia, das patuscadas com os amigos. E um
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mundo de recordações formava-se e transformava-se atrás dele, fugindo,
desaparecendo como sombras que se esbatem.
Para disfarçar a impressão desagradável de tais mágoas, procurava
embriagar-se com a idéia das aventuras que o esperavam na província, grupando na
fantasia tudo aquilo que o pudesse interessar de qualquer modo; e compunha, e
construía, inventava episódios, cenas, dramas inteiros, nos quais lhe cabia sempre a
principal figura. E, depois de bem mergulhado nos seus devaneios, depois de bem
envolvido na alacridade de seus sonhos de glória, o Maranhão aparecia-lhe risonho
e brilhante como a última expressão do que há de melhor sobre a terra
Mas, na ocasião em que se apeava, um tipo mal – encarado, olhando por
cima dos óculos, a barba grisalha, um tom geral de porcaria no seu velho fato de
pano preto, nas sua botas alcacanhadas, no seu chapéu de pêlo cheio de manchas
amarelas, aproximou-se dele e, com voz enxuta e morfanha, intimou-o “a
comparecer imediatamente em presença do delegado de semana na secretaria de
polícia”. Era um oficial de justiça.
— Mas que desejam de mim?...perguntou o estudante, empalidecendo e
procurando o Paiva com os olhos.
— Eu não tenho nada com a polícia!
E recuou dois passos.
— O senhor está intimado! Repetiu secamente o outro, e, em voz baixa, disse
a dois sujeitos que se haviam adiantado: - Cerca! Cerca o homem!
Então aqueles avançaram logo, jogando o corpo num pé só, o chapéu para
trás, um grosso porrete na mão.
— Comigo é onze! Exclamou um deles, muito canalha, a cuspilhar para os
lados.
— Mas por que me prendem?!...perguntou o estudante, sentindo-se tolhido.
— São coisas!... responderam-lhe, fazendo-o entrar no carro.
Amâncio ainda procurou descobrir o Paiva; depois, azoinado pela gentalha
que se reunia em torno dele, saltou para a almofada, perseguido sempre pelos três
sujeitos.
O oficial segredou alguma coisa ao cocheiro, e o carro deu volta e rodou em
sentido contrário aso cais.
Amâncio cobriu o rosto com o lenço e principiou a soluçar.
* * *
Coqueiro, desde a prevenção que lhe fez a irmã, não se descuidou mais um
instante de vigiar a sua presa: segui-lhe os passos, farejando, até o momento em
que Amâncio tomou o bilhete de passagem para o Norte.
Então, correu para à casa do Dr. Teles de Moura.
O Teles era um advogado velho, muito respeitado no foro; não pelo caráter,
que o não mostrava nunca, nem pela sua ciência, que a não tinha; nem tampouco
pelos seus cabelos brancos, que a estes nem ele próprio respeitava, invertendo-lhes
a cor; mas sim pela sua proverbial sagacidade, pelas suas manhas de chicanista,
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pela sua terrível figura de raposa velha, pelos sues olhinhos irrequietos e matreiros,
pelo seu nariz à bico de pássaro e pela sua boca sem lábios, donde a palavra saía
seca e penetrante como uma bala.
O passado do Teles era toda uma legenda de vitórias judiciais; atribuíam-lhe
anedotas mais antigas de que ele; muito processo se anulou naquelas unhas
aduncas e tamanduá; muito criminoso escapou às penas da lei por entre as malhas
das sua astúcia; muito inocente foi parar à cadeia ensarilhado nas pontas de seus
sofismas.
Para ele não havia causas más; em suas mãos qualquer processo se
enformava ao capricho dos dedos como uma bola de miolo de pão.
E o irmão de Amélia sabia de tudo isso perfeitamente quando lhe foi bater à
porta.
Seriam então nove horas da manhã, a raposas almoçava.
Coqueiro esperou um instante e, só terminado o barulho dos pratos, animou-
se a tocar a campainha.
Apareceu um moleque, tomou o recado no corredor e pouco depois trouxe a
resposta. “O amo estava muito cheio de ocupações naquele dia, não falava com
pessoa alguma. Coqueiro que voltasse noutra ocasião.”
Mas Coqueiro recalcitrou. “Esperaria...Tinha que falar ao Dr. Teles, custasse o
que custasse. Tratava-se de uma causa importantíssima!”
Veio afinal o doutor, palitando os dentes, o ar muito ocupado, os movimentos
de quem tem pressa.
— Que era? O que desejavam?
Coqueiro, com a voz alterada, os gestos dramaticamente desesperados, disse
que ia ali buscar proteção e justiça. “Era pobre, sim, mas estudioso e trabalhador.
Sua vida aí estava, — limpa! Podia até servir de modelo! — Casara-se na idade em
que os rapazes em geral só pensam nos prazeres e nas loucuras!...Adorava a
família; sim! adorava, porque a família era o bem único de que ele dispunha na terra!
Tinha uma irmã, inocente e indefesa, a quem até aí servira de pai e de tutor...”
O advogado deixou escapar uma tossezinha de impaciência.
— Pois bem, senhor doutor! Exclamou o outro, puxando com ambas as mãos,
contra o peito, o seu chapéu de feltro. — Pois bem! Essa menina, que era todo o
meu orgulho, que era como o documento vivo do bom cumprimento de meu
dever...essa menina, que eduquei sob os maiores sacrifícios...essa pobre menina...
— Que fez? Perguntou o velho muito calmo. — Arribou de casa?...
Não senho, acaba de ser vítima da maior traição, da mais degradante
maldade, que...
— Mas, afinal, o que houve?...interrogou o doutor, fugindo às preliminares.
— Foi desvirtuada por um rapaz, um colega meu, que , há coisa de um ano,
hospedei, por amizade, debaixo de minhas telhas!...
— E ele? Perguntou o advogado, sem se comover.
— Ele já está de passagem comprada para o Maranhão e foge amanhã
mesmo, se não houver uma alma reta e caridosa que lhe embargue a viagem.
— Ela ficou pejada?
— Não senhor.
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— É menor?
— Tem vinte e três anos, respondeu o queixoso, triste porque sua irmã não
tinha menor idade.
— Está o diabo!...Resmungou a raposa; espetando os dentes com o palito. —
E ele?
— Ele tem vinte e um.
— Feitos?
— Feitos, sim senhor.
— Bem.
E acendeu um cigarro que levara a preparar lentamente.
— É o diabo!...repisava. — Não se pode fazer nada, sem a verificação do
fato...É o diabo!!
E calaram-se ambos. O velho a pensar; o outro, de cabeça baixa, o aspecto
infeliz, a choramingar baixinho.
— Ele tem recurso? Perguntou aquele afinal.
— É rico, bastante rico, respondeu o Coqueiro, sem tirara os olhos do chão.
— Emancipado?...
— Totalmente. órfão de pai! É até sócio comanditário de uma importante casa
comercial. Tem para mais de quatrocentos contos de réis.
— Bem. Arranja-se a queixa – crime. Olhe! Deixe-me aí o seu nome, o dele, o da
vítima, o dos competentes pais, se os tiverem, as respectivas moradas, profissões,
etc., etc. Enfim a substância da queixa...
— O senhor doutor acha então que...
— Veremos! Veremos o que se pode fazer!...Não perca tempo — escreva.
Coqueiro escreveu prontamente, interrompendo-se de vez em quando o para
pedir informações.
— Está direito! Sussurrou o advogado, correndo os olhinhos pelas folha de
papel que o outro lhe acabava de passar. — Pode ir descansado. Vá.
E seu todo impaciente estava a despedir a visita. Esta, porém, fazia não dar
por isso e desejava mais esclarecimentos; queria saber ao certo o tempo que
deitaria aquela questão. “Se era de esperar que Amâncio cassasse com a vítima; se
havia recursos na lei para o perseguir, etc., etc. ”
O velho palitou os dentes mais vivamente. — “Que diabo! Um processo era
um processo! Tinha de percorrer todos os competentes sacramentos! Não se
chegava ao fim, sem passar pelos meios!...Amâncio podia furtar-se à citação,
esconder-se; os oficiais de justiça eram tão fáceis de ser comprados!...tão
ordinários!...vendiam-se por qualquer lambujem, por um relógio, por um pouco de
dinheiro!...”
E principiou a encarecer a causa, grupando termos jurídicos, apontando
dificuldades. Sua voz transformava-se ao sabor daquela terminologia especial. “Em
primeiro lugar tinham de apresentar uma queixa perante o Juiz de Direito do distrito
criminal. Deferida a petição, intimar-se-ia o indiciado para a audiência que se
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designasse”. — E os interrogatórios? E a pronúncia? E os recursos?...Enfim havia
de se fazer o que fosse possível!...
— E por enquanto...acrescentou o chicanista, consultando apressado o
relógio — não tenho de meu nem mais um segundo!
E despedindo o outro com um aperto de mão:
— Olhe! Procure-me logo mais na polícia, ao meio-dia. Estou lá à sua espera.
— Pode ir descansado. Adeus!
E empurrando-o brandamente:
— Não deixe de ir, hein?...Meio-dia em ponto! Adeus! Desculpe!
Coqueiro saiu, mastigando agradecimentos.
Estava agora mais tranqüilo; — a fama do Dr. Teles de Moura enchia-o de
esperanças radiosas. “Sua causa não podia cair em melhores mãos!”
* * *
E a verdade é que ele, industriado pela raposa velha, obteve um mandado de
notificação, obrigando Amâncio a comparecer na polícia, imediatamente, para
investigações policiais, e peitou o oficial de justiça e arranjou dois secretas e, afinal,
o amante da irmã foi conduzido à presença do delegado de semana e daí levado à
detenção, donde só sairia para responder ao primeiro interrogatório..
O advogado requereu corpo de delito na ofendida e, para a seguinte
audiência, o comparecimento dos outros dois inquilinos que, por ocasião do crime,
moravam na casa de pensão, — O Dr. Tavares e o guarda-livros.
No inquérito, duas testemunhas fizeram-se ouvir contra Amâncio; um
taverneiro das Laranjeiras — bicho gordo, cabeludo, a pele cor de telha e dono de
uma venda que encostava os fundos com os da casa de Amélia, e um alferesinho de
polícia, noutro tempo vizinho do queixoso em Santa Teresa e agora morador do
casarão da Rua do Resende,— Homenzinho magro, pobre de sangue, olhos fundos
e a boca devastada por uma anodontia horrorosa.
Amâncio , que ainda não conhecia de perto o que vinhas a ser “um processo”
e estava longe de imaginar as tricas e os ardis de que costumam lançar mão os
litigantes para defender ou acusar um pobre – diabo que a justiça lhe atira às unhas,
ficou pasmo, quando, na ocasião de assinar os atos e termos, leu a matéria do fato
criminoso que lhe argüíam.
O alferes declarou em substância que: “na noite de 16 de julho do ano tal,
pela uma hora da madrugada, estando em Santa Teresa, no sótão que então
ocupava, (o qual era místico ao sótão de uma outra casa onde, viera a saber mais
tarde, residira Amâncio ), ouviu daí partirem gemidos angustiados e uma voz fraca,
de mulher, a dizer: Solte-me! Solte-me! Não me force! E que tomado de curiosidade,
trepara-se ao muro do quintal e pusera-se a espreitar para a casa do vizinho, e,
então, percebera distintamente que um homem violentava uma rapariga; e que
depois cessaram as vozes e só se ouviram suspiros e soluços abafados”.
O taverneiro depunha que: “naquela mesma noite, estando casualmente de
passeio em Santa Teresa, ouvira, ao passar pela casa onde então residia João
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Coqueiro com a família, uma altercação de duas vozes, na qual se destacava uma
de mulher que chorava, implorando piedade e suplicando, por amor de Deus, que a
não desonrassem” .
E tudo isso estava perfeitamente de acordo com que já havia declarado o
Coqueiro. Dissera este que: “nessa mesma noite se recolhera às três horas da
madrugada, pois estivera até então em Botafogo, na companhia de seu colega
Firmino de Azevedo, e que, ao entrar em casa, ouvira leves gemidos no quarto da
irmã e, chamando por esta da varanda e perguntando-lhe o que tinha, ela
respondera que — não era nada, apenas havia acordado às voltas com um
pesadelo; mas que ele, Coqueiro, apesar dessa explicação, ficou muito
sobressaltado e ainda mais, quando, depois de acordar a esposa, que dormia
profundamente, e perguntar-lhe se houvera em casa alguma novidade durante a sua
ausência, lhe ouvira dizer que — até às nove horas da noite podia afiançar que
nada acontecera, mas que, daí em diante, não sabia, visto que, sentindo-se àquela
hora muito incomodada, se havia recolhido ao quarto com seu filho
César e, como usava água de flor de laranja para os padecimentos nervosos,
supunha ter essa noite medido mal a dose e tomado demais o remédio, em virtude
do estranho e profundo sono que se apoderou dela até o momento em que o marido
a chamara. — Por conseguinte, das nove horas da noite às três da madrugada,
Amâncio e Amélia haviam ficado em plena liberdade”.
E mais: “que, no dia seguinte àquela noite fatal, Amélia não quis sair do
quarto e que ele, indo ter com a irmã e perguntando-lhe se sofria de alguma coisa e
se precisava de médico, notou-lhe certa perturbação, certo constrangimento e um
grande embaraço na resposta negativa que deu; e que ela, todas as vezes que era
interrogada, fugia com o rosto para o lado contrário e abaixava os olhos, como
tolhida de vergonha; e que, examinando-a melhor, lhe descobrira sinais roxos nos
lábios, nas faces, e pequenas escoriações no pescoço, nas mãos e nos braços; e
que, então fulminado por uma suspeita terrível, exigiu energicamente a revelação de
tudo que ase passara na véspera durante a sua ausência, e que ela,
empalidecendo, abrira a chorar e, só depois de muito resistir, confessou que fora
violentada por Amâncio , mas que este prometera, sob palavra de honra, em breve
reparar com o casamento a falta cometida”.
Mme. Brizard confirmou o que disse o marido a seu respeito.
Amâncio, porém, logo que foi novamente interrogado, negou: 1.º — Que
conhecesse as duas testemunhas deponentes contra ele;2.º — Que em tempo
algum houvesse sucedido o que elas afirmavam; 3.º — Que tivesse empregado
violência contra Amélia; 4.º — Que fizesse promessa de casamento a quem quer
que fosse e debaixo de quaisquer condições. E confirmou: 1.º —Que em a noite,
não de 16, mas de 2
o
de julho daquele ano, estabelecera relações carnais com a
queixosa; 2.º— Que nessa noite, permanecendo de pé o conchavo de uma
entrevista combinada entre eles, Amélia, logo que a casa se achou de todo
recolhida, apresentara-se-lhe no quarto e aí ficara até às cinco horas da manhã, sem
mostrar durante esse tempo o menor indício de contrariedade, e parecendo, aliás,
muito satisfeita e feliz com o que se dera, como se alcançara a realização do seu
melhor desejo; 3.º— Que de tudo isso nada absolutamente terias sucedido, se
Amélia não o perseguisse com os seus repetidos protestos amorosos, com as suas
provocações de todo o instante, chegando um dia a surpreendê-lo à banca do
trabalho com uma aluvião de beijos! Que não teria sucedido, se todos os de casa,
todos!- o irmão, a cunhada, ela, o César, os fâmulos, não concorressem direta ou
indiretamente para aquilo, armando situações, preparando conjunturas arriscadas
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para ambos, explanando ocasiões escorregadias, nas quais fora inevitável uma
queda!
E Amâncio acrescentou, arrebatado pela correnteza de suas palavras:
— Nada disso teria acontecido, senhor Juiz, se me não desafiassem, se me
não sobressaltassem os instintos, atirando-a a todo momento contra mim; se nos
não empurrassem um para o outro, com insistência, com tenacidade, deixando-nos a
sós horas e horas consecutivas, fazendo-a enfermeira ao lado de minha cama;
pespegando-a todos os dias, todas as noites, diante de meus olhos, ao alcance de
minhas mãos, — enfeitada, perfumada, preparada, como uma armadilha, com uma
tentação viva e constante!
O delegado observou discretamente que Amâncio se excedia nas suas
declarações; mas o auditório, na maior parte formado de estudantes, protestava,
atraído por aquela setentrional verbosidade que enchia toda a sala.
Rebentavam já daqui e dali, algumas exclamações de aplauso. E a voz do
nortista, irônica e crespa no seu sotaque provinciano, ainda se fez ouvir por alguns
instantes, em meio do quente rumor que se alevantava.
— Ah! Por Deus! Por Deus, que bem longe estava ele de imaginar um fim tão
dramático àquela comédia! Bem longe estava de imaginar que, depois de o
escodearem por tantas maneiras; já o fazendo chefe de uma família que não era a
sua; já lhe exigindo a compra de uma casa, exigindo vestidos, jóias, carros, dinheiro
para despesas diárias, dinheiro para a botica, dinheiro para o açougue, para o
médico, para tudo! — ainda se lembrassem de extorquir-lhe a coisa única que até aí
não haviam cobiçado — seu nome! — o nome que herdara de seus pais!
— Bravo! Bravo! Muito bem!
E a matinadas dos estudantes rebentou com entusiasmo, sufocando os novos
protestos que apareciam. O delegado reclamava silêncio, e Amâncio, muito pálido, a
resta luzente de suor, tinha os braços cruzados, a cabeça baixa, numa atitude
dramática de altiva resignação.
Findo o inquérito e dada a queixa, o sumário caminhou sem mais incidente.
Todavia, o provinciano, sempre que era interrogado, deixava-se arrebatar como da
primeira vez.
As testemunhas, com mais ou menos tergiversação, reproduziam as suas
patranhas; concederam-se os dias da lei ao indiciado, para que juntasse a sua
defesa escrita e os seus documentos; e, afinal, subiram os autos à Relação, onde foi
sustentada a pronúncia, e o processo esperou que designassem a sessão em que
Amâncio teria de entrar em julgamento.
CAPÍTULO XX
O acidente de Amâncio causou enorme impressão nos seus conhecidos.
Campos, ao receber a notícia, ficou fulminado e atirou-se no mesmo instante para a
casa de correção, sem mais se lembrar de que nesse dia estava cheio de serviço até
os olhos.
Seu primeiro ímpeto foi de repreender severamente o culpado, verberar-lhe
com energia a “ação indigna” que acabava de praticar; mas pouco depois, veio-lhe
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uma grande comiseração. “Porque, enfim, coitado, o pobre moço era ainda uma
criança...naturalmente fraco...e daí...Quem sabia lá o que teriam feito para o
precipitar naquele crime?...
“Sem saber por que, afigurava-se-lhe que o papel de vítima cabia mais a
Amâncio do que ao Coqueiro. Este surgia-lhe agora à imaginação, como um
Satanás de mágica que deixou fugir de repente, pelo alçapão do teatro, a sua túnica
de bom velho peregrino.
Seria até capaz de jurar que, a despeito do disfarce, já de muito lhe havia
bispado a saliência dos cornos diabólicos por debaixo do religioso capuz. E
pequeninos fastos, que até aí jaziam dispersos e abandonados no seu espírito ,
vinham, acordando de repente, justificar semelhante transformação.
— Sim! Já em certa época descobrira no Coqueiro tais e tais sintomas de
hipocrisia; ouvira-lhe tais e tais frase que o fizeram desconfiar de seu caráter!... não
tina que ver! - Já lá estavam as tais pontas diabólicas a espetar o capuz!
E arrependia-se de não haver em tempo desviado o pobre Amâncio daquele
perigo: – Andara mal! Devia preveni-lo!...devia ter dado qualquer providência a esse
respeito!...
E voltando-se contra si:
— Mas, onde diabo tinha eu esta cabeça, para não ver logo que um homem,
— que se casa especulativamente com uma velha do feitio de Mme. Brizard; um
homem que consentir à irmã receber presentes e mais presentes de um estranho;
um homem que especula com tudo e com todos, um maroto! — Não se mostraria tão
agarrado ao rapaz, senão com o propósito firme de lhe pregar alguma?!...Oh! andei
mal! Andei mal, como um pedaço de asno!...
E apressou-se a socorrer a ‘Pobre vítima”.
—Ainda se houvesse a hipótese de uma fiança...reconsiderava ele, já em
caminho das detenção. — Mas qual! O Dr. Tavares, que lhe levara ao escritório a
notícia do escândalo, dissera-lhe que ”o crime era inafiançável e que por
conseguinte não se podia evitar a prisão ” Infeliz moço! Infeliz moço! Resmungava o
Campos, quase chorando. — Antes nunca ele viesse ao Rio de Janeiro! — Que
demônio hei de eu agora escrever à família?...E a pobre D.Ângela?! Coitada, como
ficará, quando, em vez do filho, receber a notícia de tanta desgraça?!...Valha-me
Deus!
E foi nesse estado que o Campos chegou à Rua do Conde.
Hortênsia não ficou menos impressionada; ao saber do caso empalideceu
extraordinariamente e começou a tremer toda. Desde então se tornou apreensiva e
nervosa de um modo lastimável; tinha pesadelos, ataques de choro, ameaças de
febre e um fastio enorme.
Carlotinha, que se achava nessa ocasião de passeio em casa das Fonsecas
de Catumbi, foi logo reclamada a lhe fazer companhia.
Em casa do negociante quase que se não falava de outra coisa que não fosse
o processo de Amâncio; pareciam todos empenhados com o mesmo ardor na sorte
do “pobre rapaz” Os caixeiros murmuravam pelos cantos do armazém e os criados,
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sempre desejosos de merecer a atenção dos amos, traziam da rua os cometrários
que ouviam ou que inventavam sobre o fato.
E o escândalo, como um líquido derramado, ia escorrendo pelas ruas, pelos
becos, penetrando por aqui e por ali, invadindo as repartições públicas, os escritórios
comerciais, as redações das folhas e as casa particulares.
Os jornais começavam a explorá-lo.
Na Academia de Medicina e na Escola Politécnica levantavam-se partidos.
João Coqueiro bem poucos colegas tinha se seu lado; nem só porque lhe cabia na
questão o papel, sempre mais antipático, de agressor, com em virtude de seu gênio
insociável e seco. Antigos ressentimentos, que pareciam esquecidos, ressurgiam
agora, aproveitando a ocasião para tirar vinganças; daí, — opiniões mal
intencionadas; comentários atrevidos sobre a conduta de Amélia, sobre o caráter
mercantil de Mme. Brizard, sobre as velhas brejeirices da Ruas do Resende. Uns se
contentavam em fazer conjeturas, outros, porém, tiravam conclusões, e alguns iam
ainda mais longe, contando fatos: “Em tal baile do Mozart”, dizia um quartanista de
medicina, “estivera com a irmã do Coqueiro, dançara com ela duas valsas e desde
então ficara sabendo de quer força era a tal bichinha!...”E seguiam-se pormenores
degradantes e revelações descaradas.
Este, sustentava que o João Coqueiro sabia perfeitamente de tudo que lhe ia
por casa e que era até o primeiro a mercadejar com a irmã, como seria capaz de
fazer com a própria mulher, se houvesse um homem de bastante coragem para
afrontar aquele dragão! Estouro, afirmava que lhe não se lamberia com a proteção
do carola Teles de Moura, se não foram as legendária relações de Mme. Brizard
com o falecido cônego Muniz, ex - redator de um jornal católico.
E choviam as insimulações, as denúncias “Coqueiro era um hipócrita, um
jesuíta! — Fingia-se muito devoto na escola para agradar ao professor fulano;
defendia a escravidão e a monarquia para lisonjear Beltrano; — Se entrava numa
pândega com os companheiros, no outro dia punha-se a dizer que só ele não se
embebedara e não fizera papel triste! — se lhe tocavam mulheres, o velhaco
abaixava os olhos e ficava todo estomagado, e debaixo da capa de santarrão, ia
fazendo das suas! — Era um cão! Um tartufo!
Toda essa má vontade contra o João o coqueiro redundava em benefício de
Amâncio, por quem alguns estudantes pareciam sentir verdadeiro entusiasmo. Na
faculdade de Medicina não se encontrava um sé rapaz em favor daquele; ao passo
que este tinha por si quase toda a Politécnica. Nas duas escolas falava-se muito em
“exploração, em roubo, em piratagem”. A cifra dos bens de Amâncio, à medida que
passava de boca em boca, ia tomando proporções fabulosas, faziam-na de mil,
quatro mil, dez mil contos de réis. O Paiva era agora requestado pelos colegas,
como um boletim sanitário que traz os últimos telegramas da guerra. Por saberem de
sua intimidade com o réu e das visitas cotidianas que ele fazia à casa de correção,
não o largavam um só instante; cercavam-no, cobriam-no de perguntas “Como
estava Amâncio, se triste, abatido, desesperançado, ou se alegre, indiferente,
risonho?!...E a tal Amelinha dos camarões?...que fazia/ como se portava no
negócio? — ia visitar o amante? Escrevia-lhe? aparecia a algum! Comprazia-se com
desdita do preso ou era solidária nos sofrimentos dele?”
Paiva respondia para todos os lados, não tina mãos a medir; os espíritos,
porém, longe de se acalmarem com isso, mais se sofregavam e acendiam. A
impaciência tomava o lugar da curiosidade; um sobressalto febril, de jogo, preava o
coração dos estudantes; os ânimos palpitavam na expectativa de um, desfecho
escandaloso. Previam-se, com arrepios de gozo antecipado, o impudico espetáculo
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dos depoimentos , as brutais declarações dos médicos e todo o cortejo descomposto
de um, júri de desfloramento.
O artigo 222 do Código Criminal lá estava pairando nos ares, cínico e
espetaculoso como o flammeum de Nero no banquete de Tigelino.
* * *
O Campos, entretanto, não podia descansar com a idéia daquela desgraça.
Abandonava tudo, esquecia os próprios interesses para correr às bancas dos
advogados, consultando, propondo defesas; mais tonto, mais aflito do que se
tratasse de salvar um filho.
A situação relacionara com o Dr. Tavares. O qual, um pouco em represália ao
Coqueiro por havê-lo despedido de casa, sem as explicações devidas ao seu alto
merecimento, e um, pouco talvez na esperança de lucros pecuniários, mostrava-se
ferozmente empenhado na questão. Nunca esteve tão verboso, tão cheio de
entusiasmo e tão fecundo em citações latinas. Viam-no, a cada passo, em todos os
grupos da Rua do Ouvidor, berrando., gesticulando sobre o assunto, como se tudo
aquilo lhe trocasse diretamente.
— É incontestável, exclamava ele a quem lhe caía nas garras, — é
incontestável que Amâncio foi vítima de uma arbitrariedade esse delegado das
dúzias que, sem mais nem menos, o mandou recolher à prisão, – prevaricou!
Prevaricou, principalmente porque Amâncio nada mais fez do que desflorar mulher
virgem maior de dezessete anos, o que, perante a nossa lei, não constitui crime! Por
cons3efguinte, a prisão preventiva não devia ser efetuada!
E a sua voz, aguda e sistemática, repetindo a palavra friamente obscena da
lei, causavas no auditório o efeito vexativo que nos produz um cadáver nu.
Hortênsia já se escondia no quarto, quando o maçante se lhe pespegava em
casa.
— Ah! Ele havia de mostrar a esses advogadozinhos de meia- tigela, os
quais, mal surge um processo andam se oferecendo como protetores de qualquer
uma das partes e comprometendo a causa!- Ele havia de mostrar o que é dignidade
e retidão na justiça! E, se não tivesse outro meio, escreveria uma série de artigos,
que os poria a todos na rua da amargura! Campos havia de ver!
E, chegando-se para este, em atitude misteriosa:
— Mas o senho, justamente, é que me podia ajudar se quisesse!...
— Ajudá-lo?
— Sim! Nós dois, brincando, dávamos cabo da panelinha do Coqueiro! Que
julga? Sei de tudo! — Vi com estes olhos! Sei, melhor que ninguém, como se
arrumou a cilada ao pobre moço!
Campos declarou que , em benefício de Amâncio, estava pronto a fazer o que
fosse preciso.
— Encarrega-se da publicação dos artigos?! Exclamou o advogado.
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— Pago-os até quem os fizer...disse o Campos — contanto que isso
aproveitar ao rapaz! Todo o meu desejo é livrá-lo o mais depressa possível! É uma
questão de consciência!
— Pois então, meu caro amigo, pode escrever que, ou o seu protegido não
sofrerá menor desgosto ou leva o diabo a caranguejola desta justiça de borra! Sou
eu quem o afirma! amanhã mesmo trago-lhe o primeiro artigo! Verá!
— Está dito!
Mas, nesse mesmo dia, quando o Campos se dispunha a sair de casa, para
se entender com o Saldanha Marinho, que parecia resolvido a tomar a causa de
Amâncio, entregaram-lhe uma carta.
Era o Coqueiro e dizia simplesmente: “Para que V. S. ª não continue iludido e
não se sacrifique por quem não lhe merece mais do que o desprezo, junto remeto-
lhe um documento que nos torna quase companheiros de infortúnio e que lhe dará
uma idéia justa do caráter desse moço perverso, cuja intenção aso lado de sua
família era desonrá-la como desonrou a minha!”
O negociante desdobrou, a tremer, o papel que vinha incluso, e leu aquela
célebre carta subtraída por Amélia, alguns tempos antes.
Não quis logo acreditar no que via escrito. Uma nuvem passara-lhe diante dos
olhos. “Mas não havia dúvida! Era a letra de Amâncio, era a letra daquele miserável,
por quem ele ultimamente passara dias tão penoso!
— Que ingratidão! E o Campos que o tinha na conta de um rapaz
honesto!...Como vivera iludido!...Agora, dava toda a razão ao Coqueiro! Calculava já
o que não teria feito o biltre na casa de pensão!
As tais pontas de Mefistófeles iam desaparecendo da cabeça do irmão de
Amélia para se revelarem na cabeça de Amâncio.
— E Hortênsia?! Gritou-lhe de surpresa o coração.
— Ah! por esse lado estava tranqüilo!...Por ela meteria a mão no fogo!—
Demais, o teor da carta bem claro mostrava que o infame não conseguira seus
lúbricos desígnios! — no desespero brutal daquelas palavras via-se
indubitavelmente que a “virtuosa senhora” fechara ouvidos ao malvado!
Mas, como se podia conceber tanta perversidade e tanta hipocrisia em uma
criatura de vinte anos?!...E lembrar-se o Campos de que, ainda naquela manhã, nem
conseguira almoçar direito, de tão preocupado que estava com o destino de
semelhante cachorro!...
Agora, nem de longe queria ouvir falar de Amâncio ou do que a estie se
referisse. As sua boas intenções sobre o rapaz fugiram de um só vôo e o coração
esvaziou-se-lhe de repente, como um pombal abandonado.
Mas ainda lá ficou uma idéia branda e compassiva que respeitava ao ingrato;
ainda lá ficou uma mesquinha pomba esquecida, que já não tinha forças para
acompanhar as revoada das companheiras, - era a comiseração inspirada pela mãe
do criminoso. Essa ficou.
— Que desgraça da infeliz senhora! Possuir um filho daquela espécie!
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E o Campos, com as mão cruzadas atrás, encaminhou-se lentamente para o
segundo andar, em busca da mulher.
Não a acusou; não lhe fez de leve ima pergunta de desconfiança; apenas
disse, pondo-lhe a carta defronte dos olhos:
— Mira-te neste espelho.
Hortênsia ficou lívida.
— Vê tu em que eu me metia!...acrescentou ele. — Defender aquele
miserável! Calculo quanto não te incomodaste, minha santa!
E beijou-a na testa.
Ela sacudiu os ombros numa expressão de confiança na própria virtude: - O
marido a conhecia bem, para que pudesse recear uma deslealdade de sua parte!
Logo, porém, que lhe escapou da presença, sentiu uma grande vontade de
chorar. Correu ao quarto, fechou-se por dentro, e atirou-se à cama, abafando os
soluços com os travesseiros que se inundavam.
* * *
Era um desespero nervoso, uma estranha mágoa por alguma coisa que ela
não podia determinar o que fosse, mas que só se abrandava com aquela orgia de
lágrimas. Sentia gosto em vertê-las, abundantes, fartas, como se as derramasse no
fogo que a devorava.
Não obstante, ao receber aquela carta, ainda lhe sobejara coragem para
responder, sem afrouxar nos seus princípios de honestidade; mas, agora, uma
súbita transformação ganhava-lhe os sentidos e parecia chamar-lhe à cabeça as
ondas quentes de seu sangue revolucionado.
— E quem não se revoltaria, pensava Hortênsia, — defronte da sorte tão
contrária do lastimável moço, cujo grande crime consistia apenas no muito amor que
ela lhe inspirara?...Ah! Era isso decerto o que a enchia de aflição e desalento! —
era desgraça dessa pobre criatura, contra a qual tudo parecia conspirar, como se
um gênio fantástico e mau a perseguisse! Que seria agora do mísero, sem a
proteção do Campos?...Que seria do desgraçado, sem esse último companheiro que
lhe restava no meio de tamanhas lutas?...
Violou uma donzela, é verdade! Mas deveriam responsabilizá-lo por
isso?...Seria ele o verdadeiro culpado ou simplesmente uma vítima?...Falava-se
tanto nos costumes de toda aquela gente do Coqueiro!...rosnavam com tanta
insistência sobre os planos, os cálculos, as armadilhas tramadas ao dinheiro do
rapaz!...De que lado estaria a razão?...E, quando se revoltassem toso contra o
infeliz, teria ela, Hortênsia, o direito de fazer o mesmo?...Não lhe caberia grande
parte na culpa de que o acusavam? Não poderias ela, só ela, ter evitado aquilo tudo
com um simples palavra de amor?...Por que , afinal o que lançou Amâncio nos
braços da tal rapariga?...Foi a paixão? foi a beleza? Foi o talento? — não! foi
unicamente o despeito! Foi o delírio, o desespero de um coração repudiado! - Sim!
sim! Tudo aquilo sucedera, porque ela o repelira; porque ela, a imprudente, fechara-
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lhe os braços, quando o desgraçado, louco de paixão, lhe suplicava por um bocado
de amor, um pouco de caridade!...
Antes tivesse cedido!...
E embravecia-lhe o pranto. — Antes tivesse, porque, se assim fosse, o pobre
moço, com certeza, não pensaria na outra! — Mas o infeliz, coitado! viu-se aflito,
enraivecido, sofrendo, saber Deus o quê! E sucumbiu, ora essa! Sucumbiu como
aconteceria a qualquer nas mesmas condições! Sucumbiu por desalento, talvez por
vingança, talvez por não ter outro remédio — Não! definitivamente sentia muita pena
daquele desditoso rapaz!
Amava-o agora. Seu espirito atrasado e muito brasileiro descobria nele uma
vítima da fatalidades amorosas, e esse prisma romântico emprestava ao estudante
uma irresistível simpatia de tristeza, uma deliciosa atração de desgraça.
Hortênsia sonhava-o “pálido, melancólico, desprezado no fundo de umas
prisão, tendo por leito — um catre abominável, por única luz — uma trêmula aresta
do sol que se filtrava pelas grades negras do cárcere”.
E aquela encantadora figura de prisioneiro, com a cabeça languidamente
apoiada nas mãos, os olhos úmidos de pranto, os cabelos em desalinho sobre a
fronte, — a penetrava toda, enchia-lhe o coração, num aflitivo trasbordamento de
lágrimas.
— Oh! Aquela adorável figura de vinte anos sofria tudo aquilo porque a
amava! - porque uma paixão insensata lhe entrara no peito; sofria porque Hortênsia
recusaras os beijos que o desventurado lhe pedira com tanta ansiedade.
Pobre moço! Pobres vinte anos! Dizia ela quase com as mesma frases do
marido. — Mas por que se haviam de ter visto?...por que se haviam de amar?...
E a mulher do Campos, que até aí não sentira dificuldade em resistir às
seduções do estudante, agora, fascinada pela dramatização daquela catástrofe que
o heroificava, via-o belo, indispensável, grande na sua situação especial, conhecido
das mulheres, temido e odiado dos homens, vivendo na curiosidade do público,
percorrendo todas as fantasias, sobressaltando todos os corações.
E o contraste da sofredora condição em que o vias presentemente com as
atitudes brilhantes que ele outrora estadeara naquela própria casa, quando, de taça
em punho, espargia a sua bela palavra quente e sonora, prendendo a atenção de
velhos e moços, dominando, conquistando, — esse contraste ainda mais a
arrebatava para ele com toda a violência de uma alucinação.
Não mais se possuiu, — um desgosto mofino apoderou-se dela; ficou
insociável e muito triste; entregou-se a longas leituras místicas, acompanhando com
interesse amores infelizes, lentos martírios da alma, que só terminavam no
esquecimento da morte ou do claustro. Decorou entre lágrimas a carta do réu.
— Como ele me amava! Dizia soluçando, — como ele sofrias, quando
arrancou do coração estas palavras , ainda quentes do seu sangue!
De sorte que, ao lhe comunicar o marido a resolução de escrever a Amâncio,
remetendo-lhe a terrível carta denunciador prevenindo-o de que lhe retirava a sua
amizade, ela, com uma agonia a sufocá-la, resolveu também escrever ao moço uma
carta que servisse, ao menos, para suavizar o golpe da outra.
* * *
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O estudante, no dia seguinte, recebia na prisão as duas cartas.
Não se pode determinar qual delas o surpreendeu mais; notando-se, porém,
que a do Campos produziu completo o efeito a que se propunha; ao passo que a
outra, em vez de o consolar, enraiveceu-o
— Pois aquela mulher ainda não estava satisfeita e queria insistir nas
provocações?...Ela talvez fosse a culpada única de tudo que de mau lhe acontecera!
— As coisas não tomariam decerto o mesmo caminho, se a maldita não lhe fizesse
as negaças que fez e não lhe acordasse desejos que se não podiam saciar! — E
agora?...além de perder a amizade do Campos, justamente quando mais precisava
dela, havia de suportar a prosa lírica da Sra. D.Hortênsia!...”Que estava arrependida,
que o adorava, que seria capaz de tudo por lhe dar um momento de ventura e que o
esperava de braços abertos, logo eu ele se achasse em liberdade.”
Fosse para o inferno com as suas adorações! Diabo da pamonha! “Que o
esperava de braços abertos!” Era quanto podia ser! Aquilo até lhe cheirava a
debique! Aquilo parecia um insulto à sua desgarra, à sua terrível posição!
E chorava, o infeliz chorava como se quisesse vingar nas lágrimas.
Depois da carta de Hortênsia, a vida se lhe fazia mais escura e mais
apertada entre as paredes da sua prisão. Quase que já não podia agüentar a
presença do Paiva, do Simões e de alguns outros colegas que lá iam. No meio das
sombras, progressivamente acentuadas em torno dele, só a imagem tranqüila e
doce de sua mãe permanecia com a mesma consoladora suavidade; sempre aquela
mesma carinhosa figura de cabelos brancos. Aquele corpo fraco, vergado e tão
mesquinho que parecia pequeno demais para sustentar tamanho amor.
— Minha mãe! Minha santa mãe! Exclamava o preso, quando seu espírito,
esfalfado pelas desilusões, precisava remansear ao abrigo morno e quieto de um
bom pensamento.
Minha santa mãe!
CAPÍTULO XXI
Três meses depois, a Escola Politécnica e a Escola de Medicina
apresentavam o quente aspecto de uma sedição. — Amâncio fora absolvido.
Os estudantes formigavam assanhados como se acabassem de ganhar uma
vitória. O nome do nortista era repetido com transporte; um grupo enorme de
rapazes, capitaneado pelo Paiva Rocha e pelo Simões, aguardava o colega à saída
do júri, para o conduzir em triunfo ao Hotel Paris, onde havia à sua espera um
almoço e a banda de músicos alemães.
Fora muito extenso o último júri, quarenta horas seguidas; a defesa de
Amâncio principiou à meia – noite e acabou às seis da manhã. O advogado, que
“estava feliz como nunca”, ainda aproveitou engenhosamente essa circunstância
para afestoar o remate de seu pomposo discurso ; ”Não queria que o rei dos astros
se envergonhasse com aquele nojento espetáculo de pequenas misérias! Não
queria que o sol tivesse de corar defronte de semelhante tolina! Pedia que se
varressem de pronto as consciências; que se descarregassem os espíritos, para que
limpamente recebessem a esplêndida visita da aurora! — Aí chegava o dia! Aí
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chegava a luz, enxotando os fantasmas tenebrosos da noite e precipitando-os em
debandada pelo espaço!”
“Pois bem! Pois bem, meus senhores! Se ainda permanece nos vossos
espíritos alguma sombra, alguma dúvida, alguma opinião vacilante sobre a inocência
daquele pobre mancebo...(e mostrava Amâncio com um gesto supremo) — que essa
dúvida se apague! Que essa opinião vacilante se resolva na luz que nos assalta!
Que essa última sombra se retire espavorida de envolta com as últimas sombras da
noite que foge!”
Bravo! Bravo! Apoiado! Muito bem!
E, no conflito da luz fresca, que entrava pelas janelas do edifício, com a luz
vermelha do gás que amortecia, as palavras retumbantes do orador tomavam uma
expressão de trágica solenidade. E os rostos lívidos e tresnoitados iam se esbatendo
nas sombras da sala, como pálidas manchas brancas que se dissolvem.
Ninguém saíra antes de terminar a defesa; um empenho nervoso os prendia
ali; as palavras do advogado eram aplaudidas com febre; — todos queriam a
absolvição de Amâncio.
Às nove horas da manhã a cidade parecia ter enlouquecido. Interrompeu-se
o trabalho; os empregados públicos demoravam-se na rua; os cafés enchiam-se com
a gente que vinhas do júri. À porta das redações dos jornais não se podia passar
com o povo que se aglomerava para ler as derradeiras notícias do processo,
pregadas na parede à última hora.
Por toda a parte discutia-se a brilhante defesa de Amâncio de Vasconcelos:
“Estivera magnífica! — Surpreendente! — Uma verdadeira obra- prima! Uma glória
para o advogado Fulano! “Repetiam-se frases inteiras do imenso discurso; faziam-
se comparações “Maître Lachaud não e sairia melhor!”
A Rua dos Ourives estava quase intransitável com a multidão que se
precipitava freneticamente para ver sair o absolvido. Á porta do júri, o tal grupo de
estudantes capitaneado pelo Paiva, esperava-0 formando alas ruidosas. Tudo era
impaciência e sofreguidão.
Afinal, apareceu o homem. Vinha muito pálido e um pouco mais magro.
Ouviu-se então um rugido formidável que se prolongava por toda a rua. Os chapéus
agitaram-se no ar.
— Viva Amâncio de Vasconcelos!
— Vivô! repetiram os colegas.
— Morram os locandeiros
— Morram os piratas!
Amâncio passava de braço a braço, afagado. Beijado, querido, como uma
mulher formosa.
Mas o Paiva e Simões apoderaram-se dele, e, seguidos pelo enorme grupo
de estudantes, puseram-se a caminho para o hotel, entre as contínuas exclamações
de entusiasmo, que rompiam de todos os pontos.
Entraram na Rua do Ouvidor. {Por onde passava o bando alegre dos rapazes,
um rumor ardente, ancho de vida, enchia a rua num delírio de vozes confundidas.
As portas das casa comerciais atulhavam-se de gente; pelas janelas os
dentistas, das costureiras e dos hotéis, surgiam com o mesmo alvoroço, cabeças
femininas de todas as graduações: - senhoras que andavam em compras, raparigas
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que estavam no trabalho, professoras de piano, atrizes, cocotes; e, em todas igual
sorriso de pasmo, olhares incendiados, bocas entreabertas a balbuciar o nome de
Amâncio. Baraços de carne branca apontavam para ele num tilintar nervoso de
braceletes.
— É aquele! Diziam. - Aquele moreno, de cabelo crespo, que ali vai!
— Mamãe! mamãe! Gritavam doutro lado, — venha ver o moço rico que saiu
hoje da prisão!
E flores desfolhadas choviam-lhe sobre a cabeça, e os lenços de renda
borboleteavam e iam cair-lhe aos pés, como uma provocação, e olhares de amor
entornavam-se das janelas entre o ruidoso e pitoresco catassol das mulheres em
grupo.
E Amâncio, tonto de prazer, caminhava no meio dos amigos, abraçado a um
grande ramo de flores naturais, que um preto lhe acabava de entregar e em cuja
larga fita pendente via-se o nome dele em letras de ouro. Era uma lembrança de
Hortênsia.
E o bando crescia sempre. O Largo de São Francisco já estava cheio e ainda
a Rua do Ouvidor não se tinha esvaziado.
Ao passar pela Escola Politécnica, ouviram-se estalar foguetes e os vivas a
Amâncio e à Liberdade reproduziram-se com mais veemência. Os músicos alemães
responderam da porta do hotel com a Marselhesa. — A vertigem chegou então ao
seu cúmulo, inflamada pela vibração corajosa dos instrumentos de metal. A Rua do
Teatro, o Rocio e todos os becos e travessas circunvizinhas já se achavam tolhidas
de povo; as janelas do Hotel Paris destacavam-se embandeiradas e cheias de
gente, como nos dias de carnaval.
E aquela festa, ali, no coração da cidade, tomava um largo caráter de
manifestação pública.
Já ninguém se entendia com o estardalhaço das vozes, da música e dos
foguetes. Amâncio, carregado em triunfo nos ombros dos colegas, entrou no hotel
ao som do grande hino, chorando de emoção e agitando freneticamente o seu velho
chapéu de feltro, desabado e boêmio.
Francesas de cabelo amarelo desciam com espalhafato ao primeiro andar do
Paris , para ver de perto o “tipo da ordem do dia”, o belo moço de que todo o Rio de
Janeiro se ocupava naquele momento, — o herói daquele romance de amor que
havia meses apressava tantos espíritos e sobressaltava tantos corações.
Ele, que até ali parecia sufocado e não dera palavra, como que despertou às
primeiras notas da Marselhesa recobrou de súbito a sua equatorial verbosidade de
brasileiro nortista; acenderam-se-lhe repentinamente as faces; os olhos luziram-lhe
como duas jóias, e a sua voz era já segura e vibrante quando ao teto voaram as
primeiras rolhas de champanha.
E, de pé, dominando a extensas mesa coberta de iguarias, — a taça erguida
ao alto, o corpo torcido em uma posição teatral, desencadeou o seu verbo
apaixonado e brilhante.
* * *
Entretanto, a essas horas, Coqueiro se dirigia tristemente para casa. As mão
cruzadas atrás, a cabeça baixa, as sobrancelhas franzidas, com o ar trágico de um
herói vencido.
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Vira e ouvira tudo!
Oculto num botequim, vira passar o bando fogoso dos colegas que festejavam
o amante de sua irmã; ouvira os “morra ao locandeiro! Ao pirata!” ouvira as galhofas,
os risos de escárnio, que lhe atiravam como a um inimigo de guerra. E uma raiva
negra, um desespero surdo e profundo entraram-lhe no corpo, que nem um bando
de corvos, para lhe comer a carniça do coração. Um duro desgosto pela vida o
levava a pensar na morte, revoltado contar o mundo, contra a sociedade, contra sua
família, contra a hora em que nascera.
— Maldito fosse tudo isso! Malditos seus pais! Sua pátria! Sua convicções!
Malditas as leis todas que regiam aquela miserável existência!
Chegou lívido, sombrio, com os lábios a tremer na sua comoção mortífera.
Um silencio fúnebre enchia a casa; dir-se-ia que acabava de sair dali um enterro.
Amélia chorava fechada no quarto e Mme. Brizard, estendida na preguiçosa, tinha a
cabeça entre as mãos e meditava soturnamente. Sobre a mesa o almoço há que
horas esfriava, esquecido e às moscas.
É que já sabiam do terrível desfecho do júri: — Amâncio estava livre, senhor
de si por uma vez! Podendo ir para a província quando bem quisesse, porque, além
de tudo, nem o dinheiro lhe faltava!...
— E eles que ali ficassem, a roer um chifre! - sem recursos, e obrigados a
ocupar aquela casa, que era o preço de sua desonra comum.
— Mas, o culpado foste tu e só tu! Berrou de supetão Mme. Brizard,
erguendo-se da cadeira com um movimento de cólera. — Se me tivesses ouvido,
não ficarias agora com essa cara de asno. “Que tudo quer, tudo perde!” Foi bem
feito! Foi muito bem feito, para que, de hoje em diante, prestes mais atenção ao que
te digo! — Agora- pega-lhe com trapos quentes!
O marido deixou cair a cabeça sobre o peito e quedou-se a fitar o chão. Mme.
Brizard, depois de voltear agitada pela sala acrescentou:
— Se fosses o único a sofrer as conseqüências de tuas cabeçadas, vá! Mas é
que nós todos temos de as agüentar! agora só quero ver como te arranjas! Onde
vais tu descobrir dinheiro para sustentar a casa! É preciso ser muito cavalo, para ter
a fortuna nas mãos e atirá-la pela janela fora! Agora é que eu quero ver! Anda! Vai
arranjar hóspedes! Vê se descobres um novo Amâncio! ou quem sabe se contas
viver do que der o cortiço da Rua do Resende?! Fizeste-a bonita; os outros que
amarguem!..
Calou-se por um instante, arquejando, mas repinchou logo:
— Olha! Por estes três meses já podes avaliar o que não será o resto! —
Não há mais um punhado de farinha em casa; a companhia já ontem nos cortou o
gás, porque não lhe pagamos o trimestre vencido; o último criado que nos restava
foi-se há mais de quatro semanas, dizendo aí o diabo; só nos fresta a mucamas, que
é aquele estafermo que sabemos; o Eiras reclama todos os dias o tratamento de
Nini! — E tu!...tu! — sem um emprego, sem um rendimento, sem nada! — Então?!
(E pôs as mãos nas cadeiras, com um riso abominável de ironia). Então?! Estamos
ou não estamos arranjadinhos?!...O que te afianço é que não me sinto nada disposta
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a tornar a inferno da existência que curti na Rua do Resende! Vê lá como te
arranjas!
Coqueiro fugiu para o quarto, sem responder à mulher. “Tinha medo de fazer
um despropósito!
— “Que miséria de vida, a sua! Refletia ele. — Nem ao menos a própria
família o consolava! Por toda a parte a mesma perseguição, o mesmo ódio, a
mesma luta! — Que seria de si?! Que fim poderia ter tudo aquilo?! Onde iria cavar
dinheiro para manter os seus?! — E as custas do processo, e as despesas que
fizera?! — O alferes e o homem da venda exigiam o pagamento do que depuseram
contra Amâncio, a quem mal conheciam de vista; aquele o ameaçava com um
escândalo, se Coqueiro não lhe “cuspisse pr’ali os cobres “, o outro o abocanhava
pela vizinhança, fazendo acreditar que o devedor era, nem só um caloteiro, como um
bêbado!
E não havia dinheiro para nenhuma dessas coisas!
— Um inferno! Um verdadeiro inferno! — Os moradores da Rua do Resende
há que tempos que não pingavam vintém; — O Damião estava já pelos cabelos para
arriar a carga: “Não podia mais aturar semelhante corja!” dizia e contava até que um
dos inquilinos lhe tentara chegar a roupa ao pêlo por questões de aluguéis.
E o Coqueiro viu arrastar-se todo aquele mau dia na mesma inferneira.
À noite, foi preciso acender velas em substituição do gás suprimido. Amélia
não comera desde a véspera e queixava-se agora de muitas dores de cabeça,
náuseas, tonturas de febre e um fastio mortal; apareciam-lhe por todo o corpo0
pequenas manchas roxas. Mme. Brizard só abria a boca para fazer novas
recriminações e praguejar; na sua cólera chegara alguns tabefes ao filho, e este
rabujava a um canto, embesourado e casmurro.
— Antes morresse! Antes, mil vezes antes! Repisava o Coqueiro, sentindo-se
esmagar debaixo daquele desmoronamento. —Que faria agora de uma irmã
prostituída, e de uma mulher desesperada?!...
E as horas arrastavam-se pesadas como cadeias de ferro. A casa mal
esclarecida tinha uma tristeza lúgubre de igreja deserta.
Afinal, Mme. Brizard foi para a cama com o filho, Amélia parecia mais
tranqüila; só o Coqueiro velava, só ele, com o seu desespero a triturá-lo por dentro.
Não podia sossegar um minuto — era deixar-se ir consumindo pelo sofrimento, até
que a dor cansasse de doer e os tais bichos negros do coração lhe comessem o
último bocado de carniça. Sentia, porém, uma espécie de volúpia pungente em reler
as cartas anônimas que lhe enviaram durante o dia; encolerizava-se com isso, mas
não podia deixar de as ler, como quem não resiste a tocar numa parte dorida do
corpo.
Três, nada menos do que três cartas anônimas, e cada qual a mais insultuosa
e mais perversa; não lhe poupavam coisa alguma: — a vergonha real da situação, o
ridículo que havia de o acompanhar para sempre, a ojeriza que o público lhe votava
espontaneamente; tudo lá estava; tudo vinha descrito com uma minuciosidade cruel,
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e com pequeninas considerações ultrajantes, com o terrível cuidado de quem se
vinga.
E, para o efeito ser mis completo, falavam intencionalmente, com entusiasmo,
nas conquistas e nas simpatias do outro, do querido, do “feliz”! Não se esqueciam da
menor circunstância lisonjeira para Amâncio: — o modo pelo qual o receberam ao
sair da prisão — os vivas, – as flores desfolhadas sobre ele, – os oferecimentos, —
as declarações de amor, — os ramilhetes que lhe deram, — os brindes; tudo, tudo
fora metido ali, para ferir, para danar, para moer.
Reconheceu logo quer uma das cartas era de Lúcia; as outras deviam ser de
seus próprios colegas ou, quem sabe?...de algum velho inimigo já esquecido por ele!
—Tanta gente saíra despeitada da sua casa de pensão!...Ser credor é ser
algoz!...exigir pagamento de uma conta a quem não tem dinheiro é exigir a sua
inimizade eterna! Além disso, com os seu modos secos e retraídos, ele sempre fora
tão pouco estimado na academia!...não tinha, como o “prosa” do Amâncio, gênio
para agradar a todo o mundo; não tinha as lábias do outro: não sabia fazer”
discursatas e falações” a propósito de tudo!...Era um infeliz, que todos evitavam —
um leproso! um lazeiro!
E a dor, sem se resolver nas lágrimas que lhe faltavam, encaroçava-se-lhe
por dentro, numa grande aflição.
— Agora, como se apresentar nas aulas?!...Com que cara suportar o riso
sarcástico dos colegas?!...Como resistir à curiosidade brutal do público que o
esperava impaciente por cuspir-lhe no rosto?!...Como passar debaixo daquelas
mesmas janelas que despejaram flores à cabeça de Amâncio?!...— Amâncio! o
homem que dormiu com sua irmã!...
E, maquinalmente foi à secretária e tirou o velho revólver que fora do pai.
Que estranhas recordações à vista daquela arma! Daquela arma que na sua
infância o fizera chorar tantas e tantas vezes!...Belos tempos que não voltam!...
E contemplava distraído os bonitos do revólver — os arabescos de prata e
madrepérolas com o brasão do velho Lourenço Coqueiro em ouro.
Rica peça! Artística, bem trabalhada; não se lhe enxergava sinal de ferrugem,
nem desarranjo nas molas. — Também, que havia nisso para admirar se o dono
tinha por ela uma espécie de fetichismo e andava sempre a bruni-la e a azeitá-la! Q
Era o único objeto que lhe falava ainda das extintas grandezas do pai: Quantas
vezes ele não ouvira o pobre velho cavaquear sobre as alegorias daquele rico
brasão!...E quantas vezes, a tremer de medo, não o vira descarregar aquela mesma
arma contra uma laranja que um escravo segurava com a mão erguida!
— Ah! bem que se recordava de tudo isso!...Parecia-lhe ouvir ainda gritar o
pai, quando lhe metia à força o revólver entre os dedos. “Não! Isso agora hás de ter
paciência! Tu, ao menos, ficarás sabendo dar um tiro!”.
E todavia, não fiquei sabendo...balbuciou o filho de Lourenço, a experimentar
nos lábios o contacto frio do cano de aço. — Não fiquei sabendo dar um tiro, que, se
o soubesse, acabaria aqui mesmo com esta vida estúpida e miserável!...
Se eu tivesse ânimo...pensou ele, estremecido com a idéia da morte
amanhã encontravam o meu cadáveres e não ficariam naturalmente fazendo de mim
um juízo tão triste e tão ridículo! — Talvez até chegassem a amaldiçoar o outro e
erguessem em volta de meu nome uma legenda respeitosa e compassiva...
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Foi à gaveta, havia lá algumas balas, carregou a arma.
— Não há dúvida, é a melhor coisa que eu poderias fazer...reconsiderava
Coqueiro, imóvel, a olhar indeciso para o revólver que tinha na mão.
Mas era bastante chegá-lo contra a boca ou contra um dos ouvidos, para que
os seus dedos logo se paralisassem e para que um arrepio muito agudo lhe corresse
pela espinha dorsal.
Faltava-lhe a coragem.
Duas vezes ergueu-o à altura da cabeça, duas vezes o desviou, com as mãos
trêmulas e o corpo entalado numa agonia insuportável.
— É horrível! Resmungava ele. — É horrível!
Ia principiar de novo as tentativas, quando da rua uma forte matinada lhe
prendeu a atenção. Um grupo se aproximava, entre cantarolas e algazarras de risos.
Eram dez ou doze dos últimos convivas de Amâncio; haviam passado todo o dia e
grande parte da noite a folgazar no Paris; muitos, como o autor da pândega, lá
ficaram prostrados pela bebida, mas aqueles tiveram a fantasia de um passeio
matinal ao Jardim Botânico e meteram-se barulhosamente no bonde.
Já no Largo do Machado, um deles, um, que de há muito trazia o Coqueiro
atravessado na garganta, lembrou que seria mais divertido apearem-se ali e
seguirem a Rua das Laranjeira. “A casa do velhaco era a alguns passos – bem lhe
podiam cantar uma serenata debaixo das janelas!”
A idéia foi bem acolhida, e a ruidosa farândola despejou-se pelo caminho das
Laranjeiras numa hilaridade pletórica de bêbados.
Só pararam defronte da porta de João Coqueiro. Através das vidraças e das
cortinas de uma das janelas, viram transparecer dubiamente a trêmula morte — cor
de uma luz avermelhada.
— Estás dormindo, ó Joãozinho dos camarões?! Berrou cambaleando o que
tivera a idéia daquela romaria. — Dorme, dorme! É assim que fazem os sem —
vergonhas de tua espécie! — vendem a irmã e põem-se a descansar no colchão
que lhe deixou o amante!
Seguiu-se um estrupido de gritos e risos:
— Fora! Fora!
— Fiau, fiau!
— Larga essa casa que não é tua, gritou aquele. — É da outra! Ganhou-a
com o suor de seu rosto! — Sai, parasita!
— Sai! Sai!
E espocavam gargalhadas no grupo, e os guinchos sibilantes iam até o fim
da rua :
— Fora!
— Fora!
— Fiau
— Sai, cão!
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— Deixa a casa, que não é tua! — Fora!
— Fora o cáften!
— Fiau!
Os vizinhos chegavam às janelas, vozeando furiosos contra semelhante
berraria.
— É o que sucede a quem mora perto de um João Coqueiro! Bradou um da
turma.
— Quem mora junto ao chiqueiro sente o fedor da lama! Gritou um segundo.
— Queixe-se à Câmara Municipal! Acudiu outro.
E formidável matacão foi de encontro à vidraça iluminada do chalé de Amélia.
Um dos vizinhos apitou e outro despediu um jarro de água sobre os
desordeiros
Ouvi-se logo o estardalhaço impetuoso dos gritos, das descomposturas e do
crepitar dos vidros que se partiam sob um chuveiro de pedras.
— Morra!
— Morra o infame! bramia a malta, já de carreira para o Largo do Machado.—
Morra o cáften!
* * *
João Coqueiro presenciara tudo aquilo, grudado a um canto da janela,
mordendo os nós da mão, os olhos injetados, o sangue a saltar-lhe nas veias.
— Oh! Era demais, pensava ele desesperado. — Era demais tanta injúria! —
Se Amâncio estivesse ali, naquela ocasião, por Deus que o estrangulava!
Abriu a janela. O dia repontava já, mas enevoado e triste. Não havia azul;
céu e horizontes formavam uma só pasta cor de pérola, onde vultos cinzentos se
esfumavam.
O homem da venda abria também as sus portas. Coqueiro cumprimentou-o,
ele respondeu com um risinho insolente, acompanhado de pigarro.
Uma caleça rodejava lentamente ao largo da rua, o cocheiro vergado sobre as
rédeas, o seu casquete sumido na gola do capotão. Coqueiro fez-lhe sinal que
esperasse, embrulhou-se no sobretudo, enterrou o chapéu na cabeça, meteu o
revólver no bolso e saiu.
— Hotel Paris! Disse ao da boléia, atirando-se no fundo da carruagem. O
cocheiro endireitou-se sobre a almofada, espichou o pescoço, sacudiu as rédeas e
os animais dispararam, assoprando grossamente contra o ar frio da manhã.
* * *
Coqueiro enfiou pela escadaria do hotel.
Estava tudo deserto e silencioso; apenas, no salão principal, viam-se um
preto velho e um caixeiro desdormido que, entre bocejos, se dispunha a principiar a
limpeza da casa.
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Dir-se-ia que ali passara um exército de bêbados. Por toda a parte vinho
derramado, copos partidos, cacos de garrafa e destroços do vasilhame que servira à
mesa; o oleado do chão escorregava com uma crusta gordurosa de restos de
comida e vômito pezinhado; um espelho ficara em fanicos e um aquário desabara,
fazendo-se pedaços e alagando o pavimento, onde peixinhos dourados e vermelhos
jaziam, uns mortos e outros ainda estrebuchando.
O preto, de gatinhas, em manga de camisa e calças arregambiadas,
procurava desencardir o sobrado com um esfregão de coco, que ia embeber ao
canto da sala numa tina cheia d’ água; enquanto o caixeiro, a jogar o corpo, muito
esbodegado, erguia o que estava pelo chão e empilhava as cadeiras sobre as
mesinhas de mármore, ao comprido das paredes.
— Onde é o quarto do Amâncio? perguntou-lhe João Coqueiro.
— Amâncio?...repetiu aquele, emperrando no meio da sala para fitar o
interlocutor com um olhar morto de sono! - Ah! bocejou. — O tal moço do pagode de
ontem?...
Coqueiro sacudiu a cabeça perpendicularmente.
— É cá, no número dois, mas escusa bater, que ele aí não está. Ficou lá em
cima, no onze, com a Janete.
E, voltando ao serviço: — Se não é coisa de pressa, o melhor seria procurá-lo
mais logo...Deve de estar agora ferrado no sono, que levou na pândega até as
quatro e meia!...
Coqueiro voltou-lhe as costas e dirigiu-se para o segundo andar. Bateu à
porta no n.º 11.
Ninguém respondeu.
Tornou a bater.
Bateu de novo.
— Qui est là!...perguntou na rouquidão do estremunhamento uma voz de
mulher.
— Preciso falar a esse rapaz que aí está, o Amâncio!
Ouviu-se um farfalhar de panos, chinelas arrastaram, e em seguida a porta
abriu-se cautelosamente, mostrando pela fisga um rosto gordo, de olhos azuis.
— Qui est là...
Mas o Coqueiro, em vez de responder, afastou a porta com um murro e
atirou-se para dentro do quarto; ao passo que a Jeanete, esfandogada de medo,
desgalgava em fralda o escadarão que ia ter ao primeiro andar.
Amâncio, em uma cama muito cortinada e muito larga, dormia
profundamente, de barriga para o ar, pernas abertas e braços atirados sobre a
desordem das colchas e dos lençóis. No chão, ao lado do escarrador, um travesseiro
caído, e em torno, por todo o desarranjo da alcova, roupas espalhadas.
O Coqueiro olhou um instante para ele, sem pestanejar; depois, sacou
tranqüilamente o revólver da algibeira e deu-lhe um tiro à queima – roupa.
Amâncio soltou um ai.
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A segunda bala já o não pilhou, mas o irmão de Amélia, abstrato, pateta,
continuava a disparar os outros tiros até que a arma lhe caiu das mãos.
Nisto, como se acordasse de uma vertigem, saiu a correr tropeçando em tudo.
No primeiro andara um polícia lançou-lhe as garras aos cós das calças e o foi
conduzindo à sua frente, sem lhe dizer palavra.
Entretanto, Amâncio despertou com um novo gemido e levou ao peito as
mãos que se ensoparam no sangue da ferida. Olhou em torno, à procura de
alguém; mas o quarto estava abandonado.
Então, fechou novamente os olhos estremecendo, esticou o corpo — e uma
palavra doce esvoaçou-lhe nos lábios entreabertos, coimo um fraco e lamentoso
apelo de criança: – Mamãe!..
E morreu.
CAPÍTULO XXII
Começou logo a reunir povo na porta do hotel. Faziam-se grupos; os
repórteres andavam num torniquete; via-se o Piloto por toda a parte, irrequieto,
farisqueiro; e o fato ia ganhando circulação, com uma rapidez elétrica. Pânico
sobressalto quebrava violentamente a plácida monotonia da Corte; mulheres de toda
a espécie e de todas as idades empenhavam-se com a mesma febre na sorte
dramática do infeliz estudante, e o Coqueiro, alado pela transcendência de seu
crime, principiava a realçar no espírito público, sob a irradiação simpática e brilhante
de sua corajosa desafronta.
Às dez horas da manhã já se não podia entra facilmente no necrotério, para
onde fora, sem perda de tempo, conduzido o cadáver de Amâncio, entre um cortejo
imenso de curiosos.
Choviam as interpretações, os comentários sobre o fato; todos queriam dar
esclarecimentos, explicar os pontos mais obscuros do grande sucesso. “A bala
atravessara-lhe as regiões torácicas e fora cravar-se num osso da espinha”,
afirmava um homem alto, elegante, de cabelos brancos, cujo ar empantufado
prendia a atenção dos mais.
Esse homem, que alguns tomavam por um médico, outros por qualquer
autoridade policial; outros por um jornalista, outros por um dos professores da
faculdade, onde estudava o defunto, não era senão o Lambertosa — o ilustre –
gentleman da casa de pensão da Mme. Brizard.
E, sempre distinto, sempre viajado, pronto sempre a explicar as coisas
cientificamente, agitava a bengala afagando a barriga bem abotoada, e de pernas
abertas, pescoço duro, ia estadeando a sua “grande intimidade” com o célebre
morto; citando fatos, contando magníficas anedotas que se deram entre os dois.
Ah! Era um moço de invejável talento! — Boa memória, compreensão fácil e
gosto cultivado. Para a retórica ainda não vi outro...Não, minto — em Londres, em
Londres, confesso que encontrei um outro nessas condições!...
E punha-se a falar de Londres, e passava depois à França, à Itália, à Europa
inteira, e chegaria até aos pólos, se alguém quisesse acompanhá-lo na viagem.
Muitos outros dos antigos inquilinos de Mme. Brizard também apareceram no
necrotério. Lá esteve a pálida
Lúcia, cheia de melancolia, a fitar o cadáver, em silêncio, com os seus belos
olhos alterados pelo abuso das lunetas. Agora morava ela com o seu Pereira em
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Niterói, numa casa de pensão de um italiano, educador de cães e macacos. Era a
terceira que percorria depois da Rua do Resende.
Lá esteve, de passagem, o Fontes, com as suas amostras de renda debaixo
do braço; lá esteve o triste Paula Mendes, para fazer a vontade à mulher, que exigira
ver a “vítima daquele grande cão!’; lá esteve o Dr. Tavares que parecia tomar cada
vez mais interesse no “escandaloso assassínio”. E, quem diria? Até lá esteve o
esquisitão do Campelo que muito dificilmente se abalava com as questões alheias.
Por toda a cidade só se pensava no “crime do Hotel Paris”; os jornais saíam
carregados de notícias e artigos sobre ele, esgotavam-se as edições da defesa e da
acusação de Amâncio; vendia-se na rua o retrato deste em todas as posições, feitios
e tamanhos; moribundo, em vida, na escola, no passeio. E tudo ia direito para os
álbuns, para as paredes e para as coleções de raridades.
Hortênsia, quando lhe constou o terrível desfecho daquele episódio que, na
sua fantasia romântica, tomava as proporções de um poema, caiu sem sentidos e
ficou prostrada na cama por uma febre violenta. Durante esse tempo, o marido
procurava na prisão o assassino para lhe oferece os seus serviços e pôr à
disposição dele o dinheiro de que precisasse. “Coqueiro podia ficar tranqüilo — nada
lhe havia de faltar à família, nem mesmo a pensão de Nini.”
E foi em pessoa dar as providências para o enterro do outro.
* * *
O funeral atingiu dimensões gigantescas; parecia que se tratava das morte de
um grande benemérito das Pátria.
Por influência do advogado de Amâncio, que era político e bem relacionado,
compareceram muitos figurões e até alguns homens do poder. Houve senadores,
ministros em vigor, titulares de vários matizes, altos funcionários públicos, artistas de
nome, doutores de toda a espécie, clubes de todas as ordens, ordens de todas as
devoções, jornalistas, negociantes, empresários, capitalistas e estudantes;
estudantes que era uma coisa por demais.
A cidade inteira abalou-se, demoveu-se, para deixar passar aquela estranha
procissão de um magro cadáver de vinte anos.
Veio muita gente dos arrabaldes. De todos os cantos do Rio de Janeiro
acudia povo e mais povo a ver o enterro. As ruas, os largos, por onde ele ia, ficavam
acogulados de gente; os garotos grimpavam-se aos muros, escalavam as árvores,
subiam às grades das chácaras; as janelas regurgitavam, como num domingo de
festa.
O caixão foi carregado a pulso , coberto de coroas; no cemitério ninguém se
podia mexer com a multidão que afluía.
Um delírio!
E no dia seguinte, descrições e mais descrições jornalísticas; necrológios,
artigos fúnebres, notícias biográficas e poesias dedicadas à “triste morte daquelas
vinte primaveras”.
E, o que é mais raro, o fato não caiu logo no esquecimento , porque aí estava
o novo processo do assassino para lhe entreter o calor, à feição de um banho-maria.
Continuavam, pois, as notícias jurídicas; Coqueiro ia se popularizando, ia
conquistando opiniões e simpatias; ia aos pouco se instalando no lugar vago pelo
desaparecimento do outro. Mitos colegas se voltavam já a favor dele; até o Simões -
até o Paiva!
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O Paiva, sim! que agora , completamente restaurado com as roupas herdadas
de Amâncio , deixava-se ver a miúdo nos pontos mais concorridos da cidade e, entre
as palestras dos amigos, mostrava-se todo propenso a justificar o ato do irmão de
Amélia.
— Não!, dizia ele, quando lhe tocavam nesse ponto não! O Coqueiro andou
bem!...Eu, se tivesse uma irmã, fosse ela quem fosse, faria o mesmo
naturalmente!...
* * *
Entretanto, pouco depois do enterro, no meio do burburinho de passageiros
chegando no vapor do Norte, uma senhora já idosa, coberta de luto, saltava no cais
Pharoux.
Vinha acompanhada por uma mulata, que trazia constantemente os braços
cruzados em sinal de respeito, e por um velho gordo e bem vestido, cujas maneiras
faziam adivinhar que ele ali não passava de um simples companheiro de viagem.
Como se já tivessem resolvido no escaler o que deviam fazer logo que
saltassem, o velho, mal se viu em terra, chamou por um carroceiro, deu a este a sua
bagagem com o competente endereço, fez sinal à mulata que seguisse a carroça e,
depois de ajudar a senhora a sair do bote, perguntou, solicitamente, se ela queria
tomar um carro.
A senhora, muito inquieta, respondeu que preferia ir a pé, e os dois, de braço
dado, puseram-se a andar na direção da Rua Direita.
Essa senhora era D. Ângela.
O Campos já lhe havia escrito, comunicando a prisão do filho. A princípio, não
se achou com ânimo de falar nisso à pobre mãe; mas seus escrúpulos fugiram
totalmente, desde que lhe chegou às mãos aquela terrível denúncia do Coqueiro.
Ângela não esperava pelo golpe e ficou a ponto de perder a cabeça. “Como?!
Seria crível?...Seu filho, seu querido filho na prisão, com um processo às costas e
sem ter quem lhe valesse!...Ó Santo Deus! Santo Deus! Que isso era demais para
um pobre coração de mãe! – Que mal teria ela feito para merecer tão grande
castigo?!”
E resolveu seguir para a Corte, imediatamente, no mesmo vapor. Sentia-se
corajosa, capaz de todas as lutas, de todas as violências, para salvar seu filho.
Esqueceu-se s de seus achaques, do estado melindroso de seu peito, para só cuidar
dele; só pensar nessas criatura idolatrada que valia mais, no fanatismo de seu afeto,
do que todas as grandezas da terra, todos os esplendores do mundo e todas a
potências do céu.
— Oh! Haviam de restituir-lhe o filho!...Estava resolvida a atirar-se aos pés
dos juizes, das autoridades, do Imperador, se preciso fosse, para resgatá-lo! — Não
era possível que só encontrasse corações to duros, que resistissem a tanta lágrima,
a tamanha dor e a tamanho desespero!
No primeiro paquete achava-se abordo, apenas seguida de uma escrava que,
entre as suas, lhe merecia mais confiança.
Mas, agora, pelo braço de um estranho que a não desamparava por mera
delicadeza, ou talvez por compaixão; agora, no grosseiro tumulto do cais,
estremunhada no meio daquela gente desconhecida — a infeliz sentia-se fraquear.
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Não sabia que fazer, — se ir em busca do Campos ou correr à toa por aquelas ruas,
a gritar pelo filho, a reclamá-lo daquele mundo indiferente que formigava em torno de
sua perplexidade.
E, por mais que se quisesse fingir forte, uma aflição crescia-lhe dentro e
tomava-lhe a garganta. Tremiam-lhe as pernas e os olhos marejavam-se-lhe de
lágrimas.
— Mas V. Ex.ª não disse que seu filho morava nas Laranjeiras?...perguntou o
velho, compreendendo a perturbação de Ângela.
— Sim, foi para aí que ele me mandou dirigir as cartas...Tenho até aqui
comigo o número da casa, mas, depois disso, já recebi a tal notícia da prisão , e...
— Bem, interrompeu o outro — o mais certo é irmos até lá. — Se não
encontrarmos o rapaz, havemos de achar alguém que nos dê informações. É mais
um instante! Eu ainda posso acompanhá-la ; não tenho pressa; o melhor, porém,
seria tomarmos um carro.
— Não, não! respondeu a senhora, sempre inquieta, a olhar para todos os
lados, como se esperasse, por um acaso feliz, descobrir Amâncio, de um momento
para outro.
Estavam já na Rua Direita. Ela, de repente, estacou e pôs-se a fitar a vidraça
de um armarinho.
— Algum conhecido? Perguntou o velho.
— Não. É que estes chapéus...tenha a bondade de ver se consegue ler
aquele nome...eu, talvez me enganasse...
O velho leu distintamente ”Amâncio de Vasconcelos”. — É o título! Disse. —
Eles agora batizam as mercadorias com os nomes que estão na moda. Algum tenor!
— É singular!...balbuciou a senhora.
— Por quê?
— É esse justamente o nome de meu filho.
— Oh! não há só uma Maria no mundo!...
Mas D. Ângela fugira-lhe outra vez do braço para correr a uma nova vidraça.
Eram agora bengalas e gravatas “à Amâncio de Vasconcelos” que lhe prendiam a
atenção.
Acabavam de entrar na Rua do Ouvidor.
— Vê?...interrogou ela, muito preocupada e procurando esconder a comoção.
— Ainda!
— Ah! fez o companheiro, já impaciente. — V. Ex.ª vai encontrar o mesmo
nome por toda parte. — É o costume! Olhe! Se me não engano, lá está o retrato do
tal Amâncio! Tenha a bondade de ver!
D. Ângela aproximou-se do retrato, correndo, e soltou logo uma exclamação:
— Mas é ele! O meu Amâncio!
E começou a rir e a chorar muito perturbada.
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O velho, meio comovido e meio vexado com aquela expansão em plena Rua
do Ouvidor, principiava talvez a arrepender-se de ter sido tão cavalheiro Ângela,
quando esta, que estivera até aí a percorrer, como uma doida, outros mostradores,
arrancou do peito um formidável grito e caiu de bruços na calçada.
Tinha visto seu filho, representado na mesa do necrotério , com o tronco nu, o
corpo em sangue.
E por debaixo, em, letras garrafais:
Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro no Hotel Paris, em
tantos de tal.”
FIM
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