58
Mas, apenas a vi, fiquei tremendo
Qual fraco passageiro, quando avista,
Em deserto lugar, pintadas onças.
Contudo, Doroteu, criei esforço
40 – E fui atravessando pelo meio,
Rezando sempre o credo e, por cautela,
Fazendo muitas cruzes sobre o peito.
Apenas me salvei daquele risco,
Um suspiro soltei, que encheu os ares,
45 – E, voltando o semblante para o sitio,
Em que os tais\mariolas se assentavam,
Meneando a cabeça um par de vezes
E soltando um sorriso, em ar de mofa,
Dentro do meu discurso, assim lhes falo:
50 – "Vocês, meus mariolas, meus tratantes,
Estão contando histórias das pessoas
De quem não são afetos, por que as levem,
Aos ouvidos do chefe, os seus lacaios;
Pois eu também já vou contar verdades,
55 – Em que possam falar os homens sérios
Inda daqui a mais de um cento de anos.
Recolhi-me à choupana e, de repente,
Sem tirar a gravata do pescoço,
Entrei a pôr em limpo esta cartinha,
60 – Que já, pelo caminho, vim compondo.
Entendo, Doroteu, que as nossas almas
Não são todas iguais; que o grande Jove
Fez umas de matéria muito pura,
Fez outras de matéria mais grosseira,
65 – Por não perder as borras que ficaram.
Entendo, ainda mais, que o dispenseiro,
Quando lhe vão pedir algumas almas,
Vai dando aquelas que primeiro encontra.
Por isto, às vezes, nascem os mochilas
70 – Com brios de fidalgos, outras vezes
Os nobres com espíritos humildes,
Só dignos de animarem vis Lacaios.
O nosso Fanfarrão, prezado amigo,
Vos dá mui boa prova: não se nega
75 – Que tenha ilustre sangue, mas não dizem,
Com seu ilustre sangue, as suas obras.
Apenas, Doroteu, a noite chega,
Ninguém andar já pode, sem cautela,
Nos sujos corredores de palácio,
80 – Uns batem com os peitos noutros peitos;
Outros quebram as testas noutras testas;
Qual leva um encontrão, que o vira em roda;
E qual, por defender a cara, fura,
Com os dedos que estende, incautos olhos.
85 – Aqui se quebra a porta e ninguém fala;
Ali range a couceira e soa a chave;
Este anda de mansinho, aquele corre;
Um grita que o pisaram, outro inquire
"Quem é? " a um vulto, que lhe não responde.
90 – Não temas, Doroteu, que não é nada,
Não são ladrões que ofendam, são donzelas
Que buscam aos devotos, que costumam
Fazer, de quando em quando, a sua esmola.
Chegam-se, enfim, as horas, em que o sono
95 – Estende, na cidade, as negras asas,