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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
INSTITUTO DE LETRAS E LINGÜÍSTICA
MARIA APARECIDA CONTI
CALABAR, O ELOGIO DA TRAIÇÃO:
Drama da memória ou trama na história?
UBERLÂNDIA-MG
2007
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MARIA APARECIDA CONTI
CALABAR, O ELOGIO DA TRAIÇÃO:
Drama da memória ou trama na história?
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Lingüística – Curso de
Mestrado em Lingüística – do Instituto de
Letras e Lingüística da Universidade Federal
de Uberlândia, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Lingüística.
Área de Concentração: Estudos em Lingüística
e Lingüística Aplicada.
Linha de Pesquisa: Estudos sobre Texto e
Discurso.
Orientador: Prof. Dr. Cleudemar Alves
Fernandes.
UBERLÂNDIA - MG
2007
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
C762C
Conti, Maria Aparecida, 1952-
Calabar, o elogio da traição : \b drama da memória ou trama na
história? / Maria Aparecida Conti. - 2007.
119 f.
Orientador: Cleudemar Alves Fernandes.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Uberlândia,
Programa de Pós-Graduação em Lingüística.
Inclui bibliografia.
1. 1. Análise do discurso - Teses. 2. Buarque, Chico, 1944- - Calabar: o
elogio da traição – Crítica e interpretação. 3. Guerra, Ruy, 1931- Cala –
bar: o elogio da traição – Crítica e interpretação. I. Fernandes,
Cleudemar Alves. II. Universidade Federal de Uberlândia. Programa de
Pós-Graduação em Lingüística. III. Título.
CDU: 801
Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogação e Classificação/
mg – 01/07
MARIA APARECIDA CONTI
CALABAR, O ELOGIO DA TRAIÇÃO:
Drama da memória ou trama na história?
Data da defesa: 27 de fevereiro de 2007.
Banca Examinadora:
______________________________________________
Prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes (Orientador – UFU)
_____________________________________________
Profª Drª Maria do Rosário de Fátima Valencise Gregolin (UNESP-CAr)
_____________________________________________
Profª Drª Marisa Gama Khalil (UFU)
DEDICATÓRIA
Aos meus amores:
Rodrigo, Raphael e Rachel.
AGRADECIMENTOS
Lembra da crônica “A outra noite”
1
, de Rubem Braga? Como o motorista da crônica, eu
também ganhei um presente de rei e quem me deu esse presente foi a Professora Drª Maria
do Rosário Gregolin. Foi no GELCO (Grupo de Estudos Lingüísticos do Centro-Oeste), no
dia 10 de outubro de 2003. Eu procurava uma direção entre os caminhos que a Lingüística
oferece, quando ouvi, pela primeira vez, a professora Gregolin falando sobre Análise de
Discurso e Ensino. Foi puro fascínio. Para ela, minha gratidão primeira.
Agradeço também
À FESG/FAFICH (Fundação de Ensino Superior de Goiatuba e Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas) pela liberação da minha licença para estudo e pesquisa.
Aos meus alunos e alunas da graduação, por serem a principal motivação dos meus
estudos.
À Diretoria do ILEEL, em especial ao Prof. Dr. Waldenor Barros de Moraes Filho.
À Coordenação do Curso de Mestrado em Lingüística, na pessoa do Prof. Dr. Ernesto
Sérgio Bertoldo.
1
A OUTRA NOITE (Rubem Braga)
Outro dia fui a São Paulo e resolvi voltar à noite, uma noite de vento sul e chuva, tanto lá como aqui. Quando
vinha para casa de táxi, encontrei um amigo e o trouxe até Copacabana; e contei a ele que lá em cima, além
das nuvens, estava um luar lindo, de lua cheia; e que as nuvens feias que cobriam a cidade eram, vistas de
cima, enluaradas, colchões de sonho, alvas, uma paisagem irreal.
Depois que o meu amigo desceu do carro, o chofer aproveitou o sinal fechado para voltar-se para mim:
-O senhor vai desculpar, eu estava aqui a ouvir sua conversa. Mas, tem mesmo luar lá em cima?
-Confirmei: sim, acima da nossa noite preta e enlamaçada e torpe havia uma outra - pura, perfeita e linda.
-Mas, que coisa...
Ele chegou a pôr a cabeça fora do carro para olhar o céu fechado de chuva. Depois continuou guiando mais
lentamente. Não sei se sonhava em ser aviador ou pensava em outra coisa.
-Ora, sim senhor...
E, quando saltei e paguei a corrida, ele me disse um "boa noite" e um "muito obrigado ao senhor" tão
sinceros, tão veementes, como se eu lhe tivesse feito um presente de rei.
(
http://www.eeagorajose.kit.net/estilos/croanoitebraga.htm) Consultado no dia 03/12/2006.
A Eneida Aparecida Lima de Assis, a Maíza Maria Pereira, a Maria Solene do Prado e
demais funcionários do MEL/ILEEL.
Aos professores Dr. João Bosco e Drª Eliane Silveira, pela leitura e contribuições valiosas
no exame de qualificação.
Aos professores, Cleudemar Alves Fernandes, Carmem Agustini, João Bosco, Fernanda
Mussalim, Alice Cunha, Osvaldo Freitas de Jesus, pelas aulas e generosidade com que
dividem seu saber.
Aos amigos, Alan e Sissília, pelo impulso que me lançou nessa aventura.
Ao Niguelme, pelos projetos e sonhos partilhados, pela leitura deste trabalho, pela alegria
que nos contagia quando estamos juntos, pela amizade sincera.
A Zê e “Foucault” (André), pelo convívio fraterno, pelo incentivo e conversas
intermináveis sob o “Fim de tarde”.
A Ju, pela aventura de tornar-se parte da minha família e compartilhar das angústias.
A Betinha e Cléo, pela generosidade da acolhida.
A Mara Rúbia, minha amiga e companheira nas batalhas pela realização de nossos sonhos.
A Cirlana, pela amizade e bolo de fubá.
A Carol, por compartilhar comigo de sua sabedoria nas nossas tardes de estudo.
A Patrícia, Marília, Aninha, Nélio, Luis Fernando, Renata, Luis Henrique, Ana Carolina,
Ana Júlia, Judith, Rosely, Suely e Vanderléia, pelos momentos felizes em sala de aula.
Ao Tony F., pela acolhida carinhosa e “dicas” inestimáveis.
A Walleska, Regina, Sônia, Karla, Maria Helena, Júnia, Eduardo e Luiz Eduardo, pelas
descobertas semânticas, que juntos fizemos.
Ao GEADA GOGO, em especial ao Niltin e Tutu, que me ensinam e moram no meu
coração.
À Profª Drª Marisa Gama Khalil, pela amabilidade em aceitar ser banca na defesa deste
trabalho.
Em especial
Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes, por uma série de
coisas –, por ter-me acolhido como orientanda, por acreditar no meu projeto, por
incentivar-me, possibilitando participações em trabalhos acadêmicos, por tranqüilizar-me,
por ensinar-me que o mais importante de tudo é ser feliz. Agradeço pelo seu sorriso franco,
pela generosidade de sua alma, que encanta e faz um bem enorme. O meu orientador é tudo
de bom!
Enfim, agradeço à força motriz que movimenta o mundo e que muitos, como eu, chamam
de Deus. A Ele, meu muito obrigada, por possibilitar a realização deste sonho.
RESUMO
Esta pesquisa analisa o texto escrito da peça de teatro “Calabar: o elogio da traição”,
produzida por Chico Buarque e Ruy Guerra, em 1973. A análise pauta-se em postulados da
Análise do Discurso de linha francesa (doravante AD) e segue uma linha de pesquisa
teórico-analítico. A escolha dessa obra literária como objeto de estudo deve-se ao fato de
que uma obra literária, considerada obra de arte, expressa a realidade e ao mesmo tempo
cria uma realidade própria que não existe fora nem antes da obra. Como elemento da
estrutura social, uma obra expressa um produto advindo desse meio. Existe uma relação
constitutiva entre essa produção e a realidade social e entre o autor e seu produto (o texto).
Uma vez que a AD trabalha com o discurso produzido no ponto de articulação entre os
fenômenos lingüísticos e sócio-históricos, a obra “Calabar, o elogio da traição”
oportunizou o desenvolvimento desta investigação que procura analisar como uma questão
socioideológica pode irromper no (inter)discurso de um texto literário. Estabelecida a
hipótese de que a mudança nas condições de produção do texto produz deslocamentos de
sentido na construção significativa da traição de Calabar, analisa-se, nesse sentido, os
elementos da história e da memória constitutivas do texto, com intuito de compreender, a
partir dos efeitos de memória presentes na obra, como o sentido dos enunciados são
determinados pela condição sócio–histórica em que é produzido e não somente pela
associação à sua estrutura. Observa-se, também, em que medida sujeitos e discursos são
constituídos no texto literário e estabelece um paralelo entre o episódio histórico (cuja
discursivização posta pela história social promoveu Calabar à personificação da traição) e
o período histórico em que se deu a produção da obra, para daí realizar uma leitura
possível dos sentidos de “traição”. Dada a pluralidade do interdiscurso que atravessa toda a
trama discursiva de “Calabar, o elogio da traição”, este trabalho centra-se na análise de
alguns recortes que evidenciam a irrupção de questões socioideológica, na obra, revelando
o conflituoso jogo das relações sociais reproduzido no discurso e imerso no texto. Dessa
forma, o texto em questão, considerando sua discursividade, apresentou-se como objeto
relevante para este estudo, que, descartando qualquer pretensão de totalidade, aponta
caminhos possíveis para trabalhos futuros que ensejem contribuir para melhor
entendimento do funcionamento dos discursos, bem como das relações humanas, no
sentido socioideológico do uso da linguagem.
Palavras-chave: Calabar; Traição; Memória Discursiva; Sujeito; Interdiscurso
9
RESUMÉ
Cette recherche analyse le texte écrit de la pièce de théâtre nommée « Calabar : o elogio da
traição », produite par Ruy Guerra, en 1973. L’analyse se fonde sur les postulats de
l’Analyse du Discours d’orientation française (donéravant AD) et poursuit une ligne de
recherche théorico-analitique. Le choix de cette œuvre littéraire comme objet d’étude s’est
basé sur l’œuvre littéraire entendue comme œuvre d’art, qui expresse la réalité et à la fois
crée une réalité elle-même que n’existerais pas soit au dehors soit avant l’œuvre. Comme
élément d’une structure sociale, une œuvre implique un produit qui advient de ce milieu. Il
y a un rapport constitutif entre cette production et la réalité sociale, entre auteur et son
produit (le texte). Vu que l’AD s’occupe du discours produit au point d’articulation entre
les phénomènes linguistiques et socio-historiques, l’œuvre « Calabar, o elogio da traição »
a possibilité le développement de cette investigation qui analyse comment une question
socio-idéologique peut faire son irruption dans le (l’inter)discours d’un texte littéraire.
Donc, le changement dans les conditions de productions du texte produit des déplacements
de sens concernant la construction significative de la trahison de Calabar. Dans ce sens, on
analyse les éléments de l’histoire et de la mémoire constitutifs du texte, visant à la
compréhension, a partir des effets de mémoire présents dans l’œuvre, par laquelle le sens
des énoncés sont déterminés à travers la condition socio-historique sur laquelle elle se
construit, à part son association à la structure. On observe dans quelle mesure des sujets et
des discours sont constitués dans le littéraire, établissant un parallèle entre l’épisode
historique (dont la discursivisation construite par l’histoire social a lancé Calabar à la
personification de la trahison) et la période historique dans laquelle s’est donnéé la
production de cette œuvre, afin de la réalisation d’une lecture possible des sens de
« trahison ». Donnée la pluralité de l’interdiscours qui traverse toute la trame discursive de
« Calabar, o elogio da traição », cette étude focalise l’analyse de quelques recoupages qui
mettent en évidence l’irruption de questions socio-idéologique, donnant à voir le
conflictuel enjeu des rapports sociaux reproduits dans le discours et plongés dans le texte.
Ainsi, le texte étudié, entendu sa discursivité, nous est présenté comme objet relevant
d’une discussion qui ne se veut pas totalisante, considérant, par contre, les chemins
possibles qui amèneront à des recherches futures visant la compréhension du
fonctionnement des discours et les relations humaines, au sens socio-idéologique de
l’usage du langage.
Mot-clés: Calabar; Trahison; Mémoire Discursive; Sujet; Interdiscours.
10
SUMÁRIO
Prefácio ............................................................................................................................12
1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................14
2 DOS ACONTECIMENTOS E DAS DISPERSÕES...................................................19
3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS....................................................................................24
3.1 Preliminares ................................................................................................................24
3.2 Um olhar para o sujeito – um sentido para uma teoria ..........................................28
3.3 O sujeito na Análise do Discurso...............................................................................33
3.4 Do sujeito discursivo ao princípio da autoria...........................................................42
3.5 Do sujeito ideológico em Pêcheux ao sujeito de poder em Foucault......................48
3.6 Discurso, História e Memória: No princípio era o verbo?......................................54
3.7 Da Babel para o discurso: memória, uma questão da interdiscursividade...........60
4 DESLOCAMENTO DE SENTIDOS...........................................................................64
4.1 História e Memória no (inter)discurso de uma canção...........................................64
4.2 A autoria: uma relação entre Freis...........................................................................77
4.3 Tal como a cobra-de-vidro?.......................................................................................85
4.4 Por que traição? Traição por quê?...........................................................................100
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................109
11
6 REFERÊNCIAS............................................................................................................113
ANEXOS...........................................................................................................................118
12
PREFÁCIO
Como professora, busco constantemente conhecimentos que ajudem a me constituir
profissionalmente, uma vez que a habilitação que o curso de licenciatura me conferiu foi,
para mim, apenas o primeiro passo para uma formação elementar e necessária para
empreender um trabalho no sistema de ensino. Com o passar do tempo, fez-se necessário
especializar-me e dar continuidade aos estudos.
Desde a primeira especialização emngua Portuguesa (1984), na UFMS-CEUD,
quando tive meu primeiro contato com questões significativas acerca da Lingüística, senti-
me atraída pela idéia de aprofundar meus estudos nessa área do conhecimento humano. Em
2002, ao ingressar em uma especialização em Lingüística, na mesma instituição
anteriormente mencionada, decidi que esse era o caminho que eu iria percorrer.
Permear conhecimentos tão significativos como o saber lingüístico, aprender que
modelos produzidos pela Lingüística produzem um saber sobre a língua, epistemológico,
que é o discurso da ciência e que tem o poder de fazer saber, fascinou-me. Essa experiência
foi para mim um verdadeiro convite para reflexões mais profundas, ansiava por respostas a
questões referentes ao texto, em especial, ao discurso e ao procedimento de análise
discursiva.
Assim, ingressar em um curso de Mestrado, poder dedicar-me aos estudos e à
pesquisa em busca de respostas para tantos questionamentos que foram se acumulando ao
longo dos anos em exercício no magistério, apresentou-se para mim como uma
oportunidade ímpar.
Determinada em minha busca por conhecimentos que me levassem à compreensão
dos funcionamentos discursivos, inscrevi-me no concurso do Mestrado em Lingüística na
Universidade Federal de Uberlândia. Inicialmente a idéia era pesquisar o discurso em
13
livros didáticos. Foi minha proposta para o projeto com o qual ingressei no curso. Porém,
ao desenvolver um estudo para executar um trabalho na disciplina “Discurso, História e
Memória” apaixonei-me pela possibilidade de desenvolver um projeto de pesquisa que
analisasse o discurso literário da peça teatral “Calabar, o elogio da traição”, de Chico
Buarque e Ruy Guerra. Propus para o professor da disciplina e para o meu orientador e
ambos concordaram com essa possibilidade
2
. Assim, guardei o projeto anterior e mergulhei
nessa nova idéia.
Agora, conhecendo um pouco mais sobre a Análise do Discurso, projetei
desenvolver uma pesquisa visando ao conhecimento de como uma questão socioideológica
irrompe no discurso da literatura e em que medida sujeitos e discursos são constituídos
textualmente no literário. A escolha dessa obra deve-se ao fato de que, para a análise do
discurso de linha francesa, o discurso apresenta-se como o ponto de articulação entre os
fenômenos lingüísticos e sócio-históricos na linguagem do texto. Assim, fatores como a
época conturbada em que o texto foi escrito e o posicionamento socioideológico dos dois
escritores da peça pesaram na minha escolha, já que, dentre as funções da literatura, a
função político-social sempre chamou minha atenção.
2
Devido à linha de pesquisa na qual meu projeto inicial se inseria, meu orientador era o Prof. Dr. Ernesto Sérgio
Bertoldo. Nessa oportunidade, o professor Cleudemar Alves Fernandes, responsável pela referida disciplina,
passou, oficialmente, a ser meu orientador.
14
1 INTRODUÇÃO
Tu sabes,
Conheces melhor do que eu
A velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
E roubam uma flor
Do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
Pisam as flores, matam nosso cão,
E não dizemos nada.
Até que um dia,
O mais frágil deles
Entra sozinho em nossa casa,
Rouba-nos a luz, e,
Conhecendo nossos medos,
Arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Eduardo Alves da Costa
Uma obra literária, considerada obra de arte, expressa a realidade e ao mesmo
tempo cria uma realidade própria que não existe fora nem antes da obra. Como elemento
da estrutura social, uma obra expressa um produto advindo desse meio. Existe uma relação
constitutiva entre essa produção e a realidade social e entre o autor e seu produto (o texto).
Dessa forma, chamou nossa atenção uma obra escrita nos conturbados anos de 1970,
conhecidos como o período mais difícil da ditadura militar, denominado “anos de
chumbo”. Dentre as discussões sobre os efeitos inibidores da censura nas criações e
expressões artísticas e do uso dessa desculpa como álibi para a escassez de produção
intelectual nesse tempo, consideramos importante a declaração de Antônio Cândido
3
, em
uma conferência em 1972, nos Estados Unidos, para situar a posição dos autores de
“Calabar, o elogio da traição”:
O atual regime militar no Brasil é de natureza a despertar o protesto
incessante dos artistas escritores e intelectuais em geral, e seria impossível
que isto não aparecesse nas obras criativas (...). Por outro lado, este tipo de
manifestação é extremamente dificultado pelo regime, que exerce um
3
O texto dessa conferência foi publicado posteriormente sob o título “A literatura brasileira em 1972” em “Arte
em Revista”, nº 1, em 1979, p. 25.
15
controle severo sobre os meios de comunicação. Controle total na televisão
e no rádio, quase total nos jornais de maior circulação, muito grande no
teatro e na canção; nos livros e nos periódicos de pouca circulação a
repressão é mais branda, porque está na razão direta do alcance dos meios
de comunicação. Além disto, existe em escala nunca vista antes a repressão
sobre os indivíduos (...). É claro que isso afeta a atividade intelectual e
limita as possibilidades de expressão. Mas é difícil dizer se influi na
natureza e sobretudo na qualidade das obras criativas.
No entanto, mesmo acreditando que os textos literários refletem o momento
histórico, condicionados que estão pelos acontecimentos, não podemos afirmar
categoricamente que é o poder estatutário que determina a produção artística (apesar de
desejar/tentar controlá-la). Dessa forma, ainda que sofrendo a pressão do poder de tentar
controlá-la, não podemos nos esquecer que a literatura é, também, uma forma de poder, já
que tem em si a capacidade de promover o homem em sua essência. Portanto, admirados
pelo teor corajoso do texto, pusemo-nos na expectativa de desenvolver um trabalho com a
enunciação da obra literária “Calabar, o elogio da traição” pela inquietação de investigar
um assunto que vem ao encontro dos interesses que essa obra despertou-nos,
particularmente, uma vez que nos preocupa o papel do texto literário na construção de uma
sociedade.
Além do exposto, a escolha dessa obra como objeto de pesquisa deve-se ao fato de
que, para a Análise do Discurso de linha francesa, doravante AD, a linguagem do texto
possibilita a análise discursiva porque nela o discurso é o ponto de articulação entre os
fenômenos lingüísticos e sócio-históricos. Sendo assim, oportuniza desenvolver um estudo
que investigue lingüisticamente como uma questão socioideológica pode irromper no
(inter)discurso de um texto literário.
Assim, levantamos questões ao propósito de uma pesquisa teórico-analítica, com a
finalidade de direcionar nosso trabalho. Como o sentido do texto literário pode ser
determinado pela condição sócio-histórica em que é produzido? Como uma questão
16
socioideológica irrompe em um discurso literário? Em que medida sujeitos e discursos são
constituídos no literário? Que relação pode ser estabelecida entre a “traição” de Calabar
e as outras traições propostas pelo texto?
As perguntas de pesquisa foram trabalhadas a partir da hipótese de que a mudança
nas condições de produção do texto produz deslocamentos de sentido na construção
significativa da traição de Calabar.
Diante dos questionamentos levantados e da hipótese traçada, fixamos como
objetivo geral verificar como uma questão socioideológica irrompe em um discurso
literário. A esse objetivo, instituímos alguns objetivos específicos que estão intimamente
articulados ao objetivo geral:
Analisar os elementos da história e da memória constitutivos da obra “Calabar: o
elogio da traição” com intuito de compreender, a partir dos efeitos de memória
presentes no texto, como o sentido dos enunciados, em uma obra, são determinados
pela condição sócio–histórica em que é produzido e não somente pela associação à
sua estrutura;
Observar em que medida sujeitos e discursos são constituídos no literário;
Estabelecer um paralelo entre o episódio histórico cuja discursivização posta pela
história social promoveu Calabar à personificação da traição e o período histórico em
que se deu a produção da obra para daí realizar uma leitura possível dos sentidos de
traição.
Para atingir os objetivos propostos, buscamos analisar os elementos da história e da
memória constitutivos do texto, bem como aspectos constitutivos do sujeito discursivo,
conforme se mostraram materializados lingüisticamente, controlados pela ordem do discurso:
17
aspectos relacionados aos procedimentos exteriores de controle e de delimitação do
discurso ( especificamente a interdição e a vontade de verdade
4
);
aspectos relacionados aos procedimentos internos de controle e delimitação do
discurso (em especial ao princípio de autoria).
Como já foi dito, este trabalho se sustenta em argumentos teórico-analíticos com base
epistemológica proveniente da Análise do Discurso de linha francesa. Portanto, de acordo com
os objetivos propostos, foram mobilizados os conceitos necessários para a efetuação da análise,
notadamente os conceitos de discurso, sentido, sujeito e ideologia formalizados por Pêcheux;
noção de heterogeneidade discursiva elaborada por Authier-Revuz e conceitos de função autor,
formação discursiva, memória discursiva, poder e resistência discutidos por Foucault.
Na primeira seção dessa dissertação, encontram-se os argumentos explicativos dos
acontecimentos e das dispersões que provocaram o discurso em “Calabar, o elogio da traição”.
Para a sustentação da análise, encontram-se, na segunda seção, os pressupostos teóricos
que fundamentaram a pesquisa. Sob o tópico “Preliminares”, apresentamos algumas
considerações acerca das noções de literatura e do “ser” literário, bem como do gênero
“teatro”, uma vez que nosso objeto foi produzido no campo da literatura. Para a discussão do
sujeito, utilizamos os tópicos como se seguem: “Um olhar para o sujeito, um sentido para uma
teoria”, para discutir a construção do sujeito sob o olhar pecheuxtiano; “O sujeito na Análise do
Discurso”, para o estabelecimento do sujeito na análise; “Do sujeito discursivo ao princípio de
autoria”, para situar o sujeito da Análise do Discurso na função autor conforme estabelecido
por Foucault; e “Do sujeito ideológico em Pêcheux ao sujeito de poder em Foucault”, para
polemizar a questão da constituição do sujeito na Análise do Discurso.
4
Segundo Foucault (1996, p. 15), a nossa vontade de saber foi historicamente constituída na separação entre o
que é considerado falso e o que é considerado verdadeiro. O autor exemplifica o deslocamento da verdade que,
do “ato ritualizado, eficaz e justo, de enunciação”, é transferida “para o próprio enunciado”. Comenta também
que as grandes mudanças científicas, ou resultam de novas descobertas, ou do aparecimento de novas formas na
vontade de verdade.
18
Ainda na segunda seção, direcionado à fundamentação teórica, encontram-se os
tópicos: “Discurso, História e Memória: No princípio era o verbo?” e “Da Babel para o
discurso: memória, uma questão da interdiscursividade”, para pontuar epistemologicamente
elementos constituintes da análise.
Na terceira seção, para tratar dos deslocamentos de sentidos do texto, ou seja, da análise
propriamente dita, centrada em recortes (do texto) escolhidos para a abordagem dos segmentos
teóricos anteriormente referenciados, topicalizamos da forma como se seguem: “História e
Memória no (inter)discurso de uma canção”, em que pontuamos os efeitos da história e da
memória na produção de sentidos; “Uma relação entre Freis”, para analisar, comparativamente
o sujeito na função autor; “Tal como a cobra-de-vidro?”, em que discutimos unidade e
dispersão do texto no embate resistência/poder; e “Por que traição? Traição por quê?, para
analisar a re-semantização da traição.
Após essas considerações, procederemos a nosso trabalho antecipando que estaremos
nos movendo continuamente entre a materialidade discursiva de “Calabar, o elogio da traição”
e os dispositivos teórico-metodológicos da Análise do Discurso, a fim de dar cumprimento ao
nosso propósito.
19
2 DOS ACONTECIMENTOS E DAS DISPERSÕES
Nos anos 1970, as censuras política e moral imprimidas pelo regime militar
reafirmaram o esquema de qualquer ditadura: a aliança da repressão política com a
repressão sexual. Os censores, mais que prejudicar autores, pretendiam manter o povo
alienado, sem acesso a qualquer instrumento ou material veiculador de informações que
pudessem, de alguma forma, contribuir para o aprimoramento intelectual da população,
tentando manipular, dessa forma, o processo de formação de opinião do público. Para
driblá-los, um grupo de artistas, entre os quais Chico Buarque de Holanda, que se utiliza de
seu poder em lidar com as palavras, recorrendo a recursos muito particulares para estar em
contato com o público expondo suas idéias, conhecidas, no meio artístico, como
“linguagem da fresta”
5
. A respeito do potencial de Chico Buarque no trato com as palavras,
pode-se dizer que, assim como no contexto musical, também no literário, sua produção tem
sempre fornecido material interessante para analistas tanto da teoria literária, quanto da
análise do discurso e estudiosos da linguagem em geral. Considerado um autor
politicamente engajado, Chico Buarque, em seu trabalho, tem demonstrado preocupação
com a condição humana, principalmente com a sociedade brasileira.
Na peça teatral “Calabar: o elogio da traição”, escrita em parceria com Ruy Guerra,
deparamo-nos com um texto ativador da memória nacional, da memória histórica. De
acordo com depoimento do próprio Chico Buarque, os autores demoraram um ano
pesquisando e escrevendo a peça. O tema histórico e a preocupação com a traição, num
período em que havia uma verdadeira caça a quem se manifestasse contra o regime
governamental, foram, segundo depoimento dos autores
6
, os elementos que serviram como
mote para a escrita do texto. Nesse sentido, utilizando-se do já-dito, o texto apresenta um
5
Termo criado por Caetano Veloso para designar a linguagem do malandro (BOLLE, 1980, p. 7).
6
Entrevista editada pelo DCE-PUC do Rio de Janeiro em 1973, publicada na 13ª edição de “Calabar, o elogio da
traição” da Editora Civilização Brasileira S.A. em 1980, p. IX a XI.
20
discurso atravessado por discursos outros (interdiscursos) que se configuram como
fundamentais para o desenvolvimento de uma análise interessada em averiguar como o
contexto social influencia no processo de criação de um texto literário.
A contextualização desse período histórico se faz necessária, uma vez que esse
passado não é tão recente assim para dispensar comentários. Além do que, sendo o assunto
do texto em questão determinado, reconhecidamente, pelo contexto sócio-histórico em que
foi escrito, torna-se de fundamental importância situar esse momento.
Em 1964, a democracia brasileira sofre um golpe militar. A justificativa
apresentada pelos militares foi a da “necessidade de defender o país das garras do
comunismo”. Foi um tempo de muitas perdas. Os movimentos contrários ao regime militar
foram reprimidos com violência extrema. Muitos brasileiros morreram, “desapareceram”,
foram exilados. Intelectuais, políticos, artistas, estudantes, qualquer um que ousasse
manifestar-se a favor da democracia sofria sérias conseqüências. Nos anos 70, a juventude
vivia a experiência “hippie” da paz e amor. Protestando contra os governos (nos Estados
Unidos, contra a guerra do Vietnam, nos países sul-americanos, contra as ditaduras, por
exemplo), os jovens se rebelavam contra as imposições. No Brasil, também havia um
movimento de jovens inquietos com a repressão. Foi nesse cenário que Chico Buarque e
Ruy Guerra escreveram o texto para teatro: “Calabar, o elogio da traição”.
Para se compreender o texto de Chico Buarque e Ruy Guerra, fez-se necessário que
nos arremetêssemos no tempo e nos detivéssemos no episódio em que a personagem
Calabar se constituiu em monumento na história do Brasil.
Quem foi Calabar? Para uns, foi um patriota; para outros, um desertor; para muitos,
um traidor. Com a peça “Calabar”, escrita em 1973, os autores empreendem uma
reconsideração do papel histórico desse personagem, estigmatizado, na historiografia
nacional, como traidor por excelência. Não se trata, no entanto, de uma reabilitação no
21
sentido de fazê-lo passar de bandido a herói. É apenas uma tentativa de rever os fatos com
olhos colonizados, livre da óptica de Portugal, que, por ter sido o vencedor da guerra, foi
quem orientou a interpretação histórica.
Segundo Guerra (1977), Domingues Fernandes Calabar foi um militar brasileiro
nascido em Porto Calvo, Alagoas, no ano 1600. Mulato, educado por jesuítas, prosperou
muito, chegando a possuir três engenhos. Foi um dos primeiros a se apresentar para a
resistência aos holandeses, sendo ferido na defesa do Arraial de Bom Jesus, em 1630.
Em 1632, ao tomar conhecimento de que Maurício de Nassau, chefe dos invasores
holandeses, propunha um tipo de colonização que lhe era conveniente (Nassau era contra a
monocultura e a favor do liberalismo econômico e religioso; era também impulsionador do
desenvolvimento artístico e científico), passou a lutar ao lado dos invasores, quando os
esforços desses estavam sendo frustrados.
Grande conhecedor do terreno, geograficamente falando, sua colaboração mudou os
rumos da luta, ampliando a penetração holandesa e recuando a resistência brasileira de
Recife e Olinda para o Porto Calvo. Atingiu o posto de major do exército holandês.
Em 1635, chegando a Porto Calvo com reforços para o governador Picard, foi
aprisionado e enforcado. Sabe-se também que seu corpo foi esquartejado e exposto em
varas, por três dias.
No texto, a personagem que representa a esposa de Calabar, Bárbara, conduzirá a
trama até o final. Com o propósito de entender o seu homem, Bárbara mergulha
intensamente no mundo da traição. Para isso, vive a traição de uma maneira muito
concreta: mantém relações com Anna de Amsterdã, a prostituta que veio com as tropas
holandesas para o Brasil e acaba se apaixonando por ela. E, na sua busca angustiada e
apaixonada pelo sentido das coisas, Bárbara acaba se entregando a Sebastião Souto, o
homem que traiu Calabar, denunciando-o aos portugueses, pois, “estar com o homem que
22
traiu Calabar talvez seja uma maneira de estar mais perto dele”, diz ela, na peça. Essas
inter-relações com “traição” despertaram nosso interesse em estabelecer um paralelo entre
o episódio histórico que promoveu Calabar à personificação da traição e o período
histórico em que se deu a produção da obra para, daí, extrair a re-significação pretendida
pelo texto.
Passados mais de 30 anos desde a sua escrita, o texto nos chama a atenção tanto
pela engenhosidade artística de sua construção, quanto pelos elementos discursivos
materializados lingüística e historicamente, que se configurou em relevante objeto para
análise, pois a AD, trabalhando com as relações de contradição que se estabelecem entre a
Lingüística e as Ciências das formações sociais, caracteriza-se como uma disciplina de
entremeio (ORLANDI, 2003), por repensar os conceitos dessas disciplinas.
O texto em questão, considerando-se sua discursividade, apresentou-se como objeto
relevante para os estudos dessa área. A partir de uma leitura instrumentalizada pelos
suportes epistemológicos da AD, sua análise traz contribuições para melhor entendimento
do funcionamento dos discursos, bem como das relações humanas no sentido
socioideológico do uso da linguagem.
Pelo entendimento que essa teoria postula de que o discurso é a unidade de sentido
da materialidade lingüística, efeito dos dizeres, das falas, dos textos que se dá a partir de
um acontecimento enunciativo, cuja materialidade demonstra a articulação da língua com a
história, essa análise objetiva compreender, no (inter)discurso do texto, como o sentido de
um enunciado, determinado pela condição sócio–histórica em que é produzido e não
somente pela associação à sua estrutura, se constitui em um efeito de sentido da
enunciação entre interlocutores, conforme explicitado por Pêcheux (1997b, p. 82), que
prefere o termo discurso à mensagem, por considerar que não se trata de uma transmissão
de informações entre A e B, mas de um “efeito de sentido” entre A e B:
23
Os elementos A e B designam algo diferente da presença física de organismos
humanos individuais. [...] A e B designam lugares determinados na estrutura de
uma formação social, lugares dos quais a sociologia pode descrever o feixe de
traços objetivos característicos. [...] O que funciona nos processos discursivos é
uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem
cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do
lugar do outro.
Vemos, portanto, que a noção de sentidos depende da inscrição ideológica da
enunciação, do lugar sócio-histórico em que os interlocutores, produtores dos enunciados,
se encontram. São as posições dos sujeitos envolvidos em uma interlocução, que
determinarão os sentidos.
Pela importância da obra “Calabar: o elogio da traição”, produzido em um período
marcadamente conturbado da história brasileira, consideramos necessário verificar os
sentidos (inter)discursivos do texto para entender em que medida sujeitos e discursos são
constituídos no texto literário; a abrangência e o valor do texto literário para a formação
ideológica de uma sociedade, bem como a importância do estudo lingüístico que constitui
o texto, levando-se em conta que é na emergência do interdiscurso no discurso que a
materialidade discursiva se concretiza.
24
3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Nesta seção, fazemos um estudo bibliográfico objetivando uma revisão teórico-
empírica da literatura publicada sobre o nosso tema.
3.1 Preliminares
Analisar o fato literário em termos de discurso requer esforços no sentido de
produzir uma investigação que busque, nos aspectos sociais e ideológicos impregnados nas
palavras do texto, elementos que revelem não apenas as posições dos sujeitos discursivos
no embate lingüístico em que se colocam, mas também as interligações que os saberes
produzidos contêm.
Na trama textual, ou seja, na materialidade lingüística, são revelados os lugares que
os sujeitos ocupam e suas posições socioideológicas. Como os sentidos se produzem de
acordo com as posições dos sujeitos em interlocução, em um texto literário é preciso levar
em conta os lugares em que os sujeitos discursivos se inscrevem historicamente, para
refletir sobre suas ações discursivas.
Trabalhar com Literatura, nesse sentido, implica um entendimento de que há um
interdiscurso literário que deve ser levado em consideração ao se fazer uma análise
discursiva. O texto Literário conduz o leitor/intérprete para uma gama de inúmeras
possibilidades de leitura, uma vez que é feito “de algo que deve e pode ser dito; uma fábula
que, todavia, é dita em uma linguagem de ausência, assassinato, duplicação, simulacro”
(FOUCAULT, 2001c, p. 141).
Não encontramos consenso nos estudos que buscam uma definição para o ser
literário. Muitos estudos apontam para o caráter movediço da noção de Literatura.
Considerando este fato, pautamo-nos em trabalhos que apontam para uma possibilidade de
25
análise discursiva como em Todorov (1980), que, em sua obra “O gênero do Discurso”,
dedica um capítulo para discorrer sobre a literatura. Nesse trabalho, concluiu que o caráter
funcional da noção de literatura predomina sobre o estrutural. Também assinalou que
diferentes gêneros de discurso devem ser focalizados para o estudo e a compreensão do
literário. Da mesma forma, Compagnon (1999, p. 44-45) afirma que “a definição de um
termo como literatura não oferecerá mais que o conjunto das circunstâncias em que os
usuários de uma língua aceitam empregar esse termo”. No entanto, admite ser essa
definição “mínima”, incômoda:
Tudo o que se pode dizer de um texto literário não pertence, pois, ao estudo
literário. O contexto pertinente para o estudo literário de um texto literário
não é o contexto de origem desse texto, mas a sociedade que faz dele um
uso literário, separando-o de seu contexto de origem.
Aprofundando essa discussão, Foucault (2001a, p. 147) acresce que “não há ser da
literatura, há simplesmente um simulacro que é todo o ser da literatura”. Recorrendo às
figuras do simulacro, da repetição da biblioteca e da transgressão, o autor expõe sua tese
sobre o literário na modernidade. Para Foucault (2001, p. 160) “escrever, no sentido
literário, é situar a repetição no âmago da obra”. Essa repetição da linguagem, proveniente
de um sistema de signos que faz parte de uma rede de outros signos lingüísticos ou não
(econômicos, monetários, religiosos, sociais...), faz a literatura. E acrescenta que, “para
saber, por conseguinte, como a literatura se significa, seria preciso saber como ela é
significada, onde se situa no mundo dos signos de uma sociedade” (FOUCAULT, 2001,
p.163). Daí a ênfase na importância da análise espacial considerando o ser da linguagem
literária e não a sua função que é temporal por funcionar no tempo.
Espaço porque cada elemento da linguagem só tem sentido em uma rede
sincrônica. Espaço porque o valor semântico de cada palavra ou de cada
expressão é definido por referência a um quadro, a um paradigma. Espaço
porque a própria sucessão dos elementos, a ordem das palavras, as flexões,
a concordância entre as palavras ao longo da cadeia falada obedecem, mais
ou menos, às exigências simultâneas, arquitetônicas, por conseguinte
espaciais de sintaxe. Espaço, enfim, porque, de modo geral, só há signos
26
significantes, com seu significado, por leis de substituição, de combinação
de elementos, portanto, por uma série de operações definidas em um
conjunto, por conseguinte em um espaço.[...] E o que permite a um signo
ser signo não é o tempo, mas o espaço. (FOUCAULT, 2001a, p. 168).
Assumimos, portanto que o fato literário, em termos de discurso, não é a instância
criadora, autônoma, sem comunicação com o exterior - a apreensão do fato literário deve
considerar sua diversidade histórica e geográfica, como explica Maingueneau (2005, p. 17-
18), ao argumentar que
No espaço aberto pelo romantismo e até os anos 60, o centro do estudo era
direta ou indiretamente, o autor. Diretamente quando estudávamos sua
vida; indiretamente quando estudávamos o ‘contexto’ de sua criação. E
quando fazíamos uma análise estilística, o objetivo era ler ‘sua visão de
mundo’. Em um certo sentido, com o estruturalismo, não houve mais
centro, mas a literatura ainda se encontrava em seu lugar, nas fronteiras do
Texto. Ao falar, hoje, de discurso literário, renunciamos à definição de um
centro ou lugar consagrado. As condições do dizer atravessam o dito, que
investe suas próprias condições de enunciação (o estatuto do escritor
associado ao seu modo de posicionamento no campo literário, os papéis
ligados aos gêneros, a relação com destinatário construída através da obra,
os suportes materiais, os modos de circulação dos enunciados...).
Nesses termos, a palavra, na literatura, deve ser considerada na sua limitação (ao
representar uma realidade) e na sua capacidade de gerar sentidos (quando situada como
elemento de intermediação entre seus interlocutores: narrador, personagens, escritor,
leitor). Dessa forma, analisar um texto literário no gênero teatro, como “Calabar, o elogio
da traição”, reclama nosso esclarecimento para o leitor deste trabalho: não trataremos aqui
da dimensão cênica nem dos aspectos não verbais próprios do Teatro. Não por
considerarmos esses aspectos irrelevantes, ao contrário; mas apenas porque, neste trabalho,
delimitamos nosso enfoque ao escrito. Ainda assim, falaremos um pouco desse gênero uma
vez que a complexidade de definirmos o literário nos leva a pensar na complexidade maior
desse gênero, que se endereça para leitores/espectadores, cuja sensibilidade, ao se utilizar
de vários recursos, se pretende atingir. A respeito de uma definição para o que seja teatro,
encontramos em Mello (2004, p. 190) um resumo das características desse gênero:
27
Teatro é arte. Arte múltipla, complexa e paradoxal, formada por duas
substâncias contraditórias, porém intrínsecas, a literária e a cênica: ao
mesmo tempo produção literária – texto dramático, e representação cênica
concreta. Arte que se repete sem jamais ser a mesma. Real e imaginária.
Por um lado, eterna e ‘imutável’ [...] e, por outro, efêmera (o tempo de uma
apresentação) e ‘instantânea’ (cada apresentação é única). Representação da
vida social e auto-representação. Feita de linguagem verbal e não verbal.
Arte de um só - o autor, e de muitos – cenógrafos, atores, diretores; leitores,
espectadores... Destinada ao leitor/espectador sem, na grande maioria das
vezes, ser dirigida diretamente a eles.
Por constituir-se em um modo de enunciação, o texto para teatro pode e deve ser
analisado como tal, embora se deva considerar que a enunciação literária, em especial o
texto teatral, tem específicas condições de produção. O diálogo, o discurso direto, as
réplicas, as didascálias, a dupla enunciação, a polifonia, a ausência do autor e do narrador,
as marcas tipográficas com a distribuição dos papéis e as modificações de enunciadores,
etc., são fatores que, quase sempre, marcam a especificidade desse tipo de texto.
Nesse caso específico, a análise do texto “Calabar, o elogio da traição”, utilizando o
arcabouço teórico da AD, não descarta as implicações estéticas que implicam a
constituição do objeto em questão, porém considera, a priori, as condições de produção da
discursividade que constitui o texto. Por isso mesmo, a imposição de algumas decisões
teórico-epistemológicas para orientar o desenvolvimento deste trabalho. Que categorias de
análise utilizar para trabalhar as questões problematizadas? Optamos por utilizar as noções
de sujeito no/do discurso, em especial a função de autoria de Foucault para trabalhar os
sentidos socioideológicos e as relações de poder; e de noções de discurso e interdiscurso
para trabalhar história e memória.
28
3.2 Um olhar para o sujeito – um sentido para uma teoria
Dentre os quesitos necessários para o entendimento de um discurso literário na
perspectiva da AD, o conhecimento teórico sobre a constituição do sujeito, do sentido e da
autoria se torna de fundamental importância. Por esse motivo, propomos, neste trabalho,
um breve mergulho na história da língua(gem) na tentativa de recuperar conhecimentos
que sedimentem nossa pesquisa e fundamentem nossa análise. As questões que colocamos
dizem respeito à presença do sujeito discursivo na ausência do autor intencional e o
conhecimento que procuramos tem por finalidade possibilitar a análise de um recorte
temático do texto literário escrito, ora tomado como objeto da investigação que aqui se
desenvolve.
Em busca de respostas, fizemos primeiramente um percurso histórico nos estudos
sobre a linguagem e a sua relação ideológica com o sentido (questão semântica), com
intuito de direcionar o assunto do texto para a questão em foco – a constituição do sujeito
discursivo na/pela linguagem e sua relação ideológica com o sentido.
Tomamos como ponto básico para essa reflexão uma leitura do livro “Semântica e
Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio”, de Michel Pêcheux, fundador da AD
francesa
7
, detendo-nos no tópico “sujeito centro e sentido”, que integra o II capítulo, e no
anexo “Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma
retificação”, para pontuar as mudanças conceituais referentes ao sujeito na construção de
um sentido para uma nova teoria.
7
Embora o dicionário de Análise do Discurso de Charadeau e Maingueneau (2004) apontem o nº 13 da revista
Langages (Analyse du discours) juntamente com o livro Analyse automatique do discours (1969), como marco
que coroava as pesquisas realizadas desde a metade da década de 60, Courtini (2005, p. 28) rebate essa
afirmativa dizendo: “o que se encontrava na Langages 13 era a enunciação dos pressupostos de base da AD, tal
como Jean Dubois dela havia concebido o projeto. Parece-me que se pode reconhecer posteriormente, sem nada
tirar de Dubois, nem seu papel nem seus méritos, que disso resultava bem pouca coisa: o discurso era
essencialmente a seqüência do enunciado, pensada sob o modo do distribucionalismo harrissiano e das condições
de produção. A teorização dessas últimas, assim como a concepção de sua articulação com as seqüências
lingüísticas, estavam inteiramente por serem feitas. É, em contrapartida, no trabalho de Pêcheux, e em nenhum
outro lugar, que a AD recebeu sua verdadeira função teórica, no conjunto de textos que ele publicou de 1969 à
1975”.
29
Michel Pêcheux, filósofo francês, é um desses pesquisadores preocupado com o
papel da linguagem na constituição dos modos de ser do homem e do mundo. Por esse
motivo, sedimenta seu estudo lingüístico em Saussure, diretamente no princípio de
subordinação da significação ao valor, ponto em que se fixa para investigar a questão
semântica por ter constatado que as palavras podem mudar de sentido segundo as posições
tomadas por aqueles que as empregam. Assim, questiona o oportunismo filosófico que
relaciona o psicologismo à cibernética, à semiótica, à aplicação da Lógica Formal, à Teoria
da Linguagem e à Semântica. Luta contra a concepção stalinista da predestinação em nome
do materialismo dialético/ ou leis da história.
Fundamentado em Althusser (materialismo marxista), Lacan (psicanálise) e
Saussure (lingüística), Pêcheux investiga como processos materiais e objetos podem (sob
circunstâncias definidas) funcionar como signos, ou seja, adquirir significações definidas.
Para isso, faz distinções entre Semiótica (ciência dos signos) introduzida por J. Locke na
filosofia da linguagem
8
, Semiologia, “introduzida por Saussure para definir o objeto da
Lingüística no interior de um quadro mais amplo” (PÊCHEUX, 1997a, p. 12) e Semântica
(ciência do sentido), introduzida por Bréal em 1897
9
, na qual nos deteremos para uma
distinção mais direcionada ao propósito deste trabalho.
Para Pêcheux (1997a, p. 12-13), a Semântica parece derivar da Lingüística e da
Lógica, isso porque “o que ela designa remete tanto às preocupações mais antigas dos
filósofos e gramáticos quanto às pesquisas lingüísticas recentes”, embora houvesse
(metade do século XX, mais ou menos) muitos lingüistas que não a reconheciam como
8
Desenvolvida por Charles Sanders Peirce (1839-1914), nos EEUU, por meio das distinções entre o icônico
(signo que substitui algo por semelhança – ex: desenho); o
indicial (signo que substitui algo por ostenção –
fumaça/fogo ) e o
simbólico (signo que substitui algo por convenção – signos lingüísticos).
9
A obra de Michel Bréal “Ensaio de Semântica” é um dos marcos para a constituição da semântica como
disciplina. Anteriormente (1883), o autor utilizou pela primeira vez o termo semântica em um artigo: Les Lois
Intelectuelles du Langage. Fragment de Sémantique.
30
parte da Lingüística. Por algum tempo, devido ao chomskysmo
10
(semântica interpretativa
ou gerativa), essa disciplina apresentou-se, como ainda se apresentava na época em que foi
escrita “Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio”, segundo Pêcheux, como
o “ponto nodal” das discussões entre lingüistas.
Apontando o “oportunismo filosófico” responsável pelos equívocos autorizados
pela coexistência marxista do pavlovismo, da cibernética, da Semiótica, das aplicações da
Lógica Formal à teoria da linguagem e à Semântica, Pêcheux também se posiciona
contrário à concepção stalinista voluntarista que, em nome do materialismo dialético ou
das leis da História possibilitaria ao marxismo ditar antecipadamente seus princípios e seus
resultados a uma ciência (predestinação).
Pêcheux questiona as evidências fundadoras da semântica a partir dos estudos da
“Ideologia alemã” de K. Marx, realizados por Adam Schaff, filósofo marxista polonês, que
vê uma reconciliação possível entre a Semântica e o marxismo. Para esse autor, a inclusão
da Semântica na Lingüística a estende para duas direções: à Lógica (matemática) e à
Retórica (política). Desse resultado Schaff extrai a noção de função comunicativa da
linguagem (relacionada a situação-signo), o que resulta em uma lista de evidências:
- há coisas e pessoas (sujeitos dotados de intenção de se comunicar);
- há objetos que se tornam signos;
- há ciências humanas (entroncamento interdisciplinar).
A essa lista Pêcheux (1997a, p. 2) acrescenta:
10
É importante ressaltar que “Semântica e Discurso, uma crítica à afirmação do óbvio” teve sua primeira
edição lançada na França em 1978 e que, desde 1965, havia, no interior do gerativismo, conflitos em relação à
semântica gerativa, dada a apresentação de alto grau de abstração, a que Chomsky reage propondo, em 1967,
alterações na teoria-padrão para impedir o abstracionismo desenfreado. Chomsky insiste no argumento do
papel privilegiado da explicação científica para a investigação de fenômenos empiricamente investigáveis,
embora os estudos da ciência e da epistemologia tenham evidenciado a relatividade e a incompletude das
teorias.
31
“- há uma oposição entre o emocional e o cognitivo (...);
- (...) o pensamento e o conhecimento têm caráter subjetivo”
Diante dessas evidências, Pêcheux questiona sua base fundadora propondo uma
consideração da Semântica com base materialista. Para atingir seu propósito, o autor se
dispõe a mostrar as contradições encobertas pelas tendências, escolas, direcionamentos;
bem como o envolvimento da Lingüística com a Filosofia nesse ponto nodal que é a
Semântica para a Lingüística. Dessa forma, identifica as três tendências principais dos
estudos lingüísticos: (a) a tendência formalista-logicista (desenvolvimento crítico do
estruturalismo através das teorias gerativas); (b) a tendência histórica (da lingüística
histórica para as teorias da variação e da mudança lingüística - geo, etno, sócio lingüístico);
e (c) a tendência lingüística da fala (da enunciação, da performance, da mensagem, do
texto, do discurso, etc. que reativam preocupações da Retórica e da Poética – crítica ao
primado lingüístico da comunicação).
As tendências se opõem, se combinam e se subordinam umas às outras e Pêcheux
apresenta a proposta da Análise do Discurso, que visa a intervir para contribuir com o
desenvolvimento dessa contradição sobre uma base material no interior do materialismo
histórico.
A tese fundamental da posição formalista na Lingüística pode ser resumida da
seguinte forma: o fato de a língua não ser histórica na medida em que é um sistema, é que a
faz, portanto, o objeto teórico da Lingüística. Nesse aspecto, Foucault contrapõe dizendo
que a história não deve ser identificada com o sucessivo, já que ela tanto é simultânea
quanto sucessiva. Dessa forma, por ter privilegiado a sincronia, a lingüística não
abandonou a história como muitas vezes ouvimos dizer, “longe de ser anti-histórica, a
análise sincrônica nos parece muito mais profundamente histórica, já que ela integra o
32
presente e o passado, permite definir o domínio preciso em que poderá repetir uma relação
causal, possibilitando passar finalmente à prática” (FOUCAULT, 2000c, p. 168).
A proposta de Pêcheux, em relação à Lingüística, parte da referência à história, do
efeito das relações de classes para as práticas lingüísticas. Assim, a análise materialista,
tendo como referência a história, verificaria, nas práticas lingüísticas inscritas, o
funcionamento dos aparelhos ideológicos de uma formação econômica e social dada.
Desse estudo, resultaria uma contribuição para a transformação, não repetindo as
contradições, mas tomando-as como efeitos derivados da luta de classes.
Portanto, todos os estudos mantêm uma historicidade, mas a proposta de Pêcheux
toma a historicidade diferentemente dos historicistas. Para o autor, uma abordagem
histórica “só se justifica na perspectiva de uma análise materialista do ‘efeito das relações
de classe’ sobre o que se pode chamar ‘práticas lingüísticas’ inscritas no funcionamento
dos aparelhos ideológicos de uma formação econômica e social dada” (PÊCHEUX, 1997a,
p. 24). Isso para interferir na mudança do sistema social.
Por conseguinte, podemos dizer que as questões lingüísticas se inscrevem nas
questões filosóficas e nessa esteira podemos afirmar que o conhecimento é descontínuo, as
teorias não estão complementando uma às outras. A ruptura se dá justamente porque a
idéia nova dialoga com o que já está posto. Para Pêcheux, uma ruptura epistemológica
deve abrir a possibilidade a outros questionamentos, uma vez que a finalidade maior de
uma teoria é a abertura que ela proporciona para a realização de outros trabalhos. E o
sujeito, nessa perspectiva, deixa de “aparecer como sendo uma forma-sujeito autônoma, ao
mesmo tempo interioridade do indivíduo-sujeito e seu fundamento na ordem do
conhecimento” (PAUL HENRY, 1992, p.142), para situar-se, de acordo com a psicologia e
a sociologia (exteriores epistemológicos do campo da complementaridade), naquilo que as
teorias lingüísticas, situadas entre o universal, o individual e o social, constituem e
33
fundamentam a forma-sujeito. Esta, por sua vez, é historicamente determinada e, de
alguma forma, regula o dizer conforme as diferentes posições do sujeito discursivo.
Feitos esses apontamentos, podemos entrar no tópico seguinte, tendo em vista que o
ponto nodal da questão lingüística relaciona-se intimamente com a questão do sujeito. Será
a noção do sujeito discursivo que trabalharemos em seguida.
3.3 O sujeito na Análise do Discurso
Focalizando o discurso como novo objeto de estudo lingüístico, Pêcheux mobiliza
conceitos originários do marxismo e da psicanálise freudiana, com base em releituras
feitas, respectivamente, por Althusser e Lacan. Dessa forma, revê a língua como proposto
por Saussure e se coloca ao lado desses cientistas que subvertem epistemologicamente a
ordem humana como sendo biossocial, reconhecendo a castração simbólica como
característica da estrutura do humano. Assim, o sujeito (ser simbólico) e a língua (matéria
simbólica) constituem-se em noções fundamentais para o desenvolvimento das teorias de
acordo com o enfoque dos seus pesquisadores
11
.
É válido dizer que, sendo uma disciplina de entremeio, principalmente na
contradição em relação às ciências sociais e à lingüística, com quem se avizinha e se
debate no campo da interseção, a AD se mostra atravessada pela teoria do sujeito advinda
da psicanálise. Os estudos lacanianos postulam que o inconsciente é estruturado como uma
linguagem (não por fantasias que um analista compreenderia e traduziria). Jacques Lacan,
estudioso das teorias freudianas, foi quem focalizou os registros do imaginário, simbólico e
real, e é a partir das noções por ele exemplificadas que se passou a entender, a partir da
linguagem, muitas das articulações realizadas pelo sujeito.
11
Faziam parte dessa nova corrente filosófica, epistemológica e politicamente heterogênea, os autores Lévi-
Strauss (formado em Filosofia, interessa-se pela Antropologia), Lacan (psicanalista), Althusser (filósofo),
Foucault (psicólogo e filósofo, com preocupação pela descrição da História) e Derrida (crítico literário, filósofo).
34
Subvertendo os conceitos saussurianos de significante e significado, Lacan
considera o conceito de significante essencial para o entendimento do conceito de sujeito.
Em Saussure, o significante é a imagem acústica do signo e tem, em relação ao significado
(conceito, conteúdo semântico), absoluta independência, aparecendo como um par
associado, mas estanque e fixo. Em Lacan o significante, mais que autônomo em relação
ao significado, tem importância essencial: os significantes dialogam entre si, revelando
sempre um sentido expresso e outro latente, sendo que o sentido latente só é parcialmente
claro pela emergência de um outro significante. E, a partir dessa noção de significante,
podemos entender que, na psicanálise lacaniana, o sujeito não é o indivíduo biológico, mas
o resultado do efeito da linguagem na relação entre significantes. Importa o
desconhecimento que o sujeito tem daquilo que fala, do que está no inconsciente, “o
inconsciente é o discurso do Outro
12
”, preconiza Lacan.
Althusser (1985), por seu turno, leitor de Freud e Lacan, estabelece que não há
como compreender a ideologia sem reconhecer a importância da linguagem no
entendimento lacaniano da castração simbólica
13
. Visando ao sujeito da ideologia, afirma
que a ideologia interpela indivíduos como sujeito. E, por meio do mecanismo denominado
pelo pesquisador como interpelação, a ideologia, funcionando nos aspectos materiais da
vida cotidiana, vai operar a transformação de indivíduos em sujeitos. Isso ocorre quando,
inseridos em determinados contextos, indivíduos executam práticas reguladas por
aparelhos ideológicos. Esse reconhecimento, não sendo da ordem do consciente e sim do
12
É o termo utilizado por Jacques Lacan para designar um lugar simbólico – o significante, a lei, a linguagem, o
inconsciente, ou, ainda, Deus – que determina o sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intra-
subjetiva em sua relação com o desejo. Pode ser simplesmente escrito com maiúscula, opondo-se então a um
“outro”, com letra minúscula, definido como “outro” imaginário ou lugar da alteridade especular. Mas pode
receber a grafia grande “Outro” ou grande A, opondo-se então quer ao pequeno “outro”, quer ao pequeno a,
definido como objeto (pequeno) a. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 558).
13
Em nota (FINK, 1995, p. 228), Lacan diz: “Castração significa o gozo que deve ser recusado a fim de ser
alcançado sobre a escala inversa da Lei do desejo”. Fink (1995, p. 125) explica que, nas obras de Lacan, “a
castração está intimamente relacionada à alienação e à separação. [...] na alienação o ser falante emerge e é
forçado a renunciar a alguma coisa na medida em que ele vem a ser na linguagem”.
35
inconsciente, vai demonstrar - pela ideologia e pelo inconsciente - a duplicidade da
determinação do sujeito.
Por sua vez, Pêcheux, não aceita a evidência do sujeito e a transparência da
linguagem senão como efeitos. Tendo o discurso como objeto, observa que, em seu
funcionamento, opera a ligação entre o inconsciente e a ideologia; ou seja, a língua,
enquanto materialidade discursiva, produz as ilusões que colocam o sujeito no centro e na
origem de seus pensamentos e de suas intenções e, na opacidade do que é dito, o real da
língua
14
irrompe, porque ele existe, embora irrepresentável. Dessa forma, sujeito e
ideologia tornam-se elementos fundamentais para discutir questões referentes à língua,
pois ambos são inseparáveis nos processos de constituição do sujeito pela linguagem. É na
compreensão do sujeito dividido, compreendido como efeito de linguagem, que Michel
Pêcheux vai desenvolver sua teoria da Análise do Discurso.
Pêcheux postula que, ao compreendermos a língua como sistema, mas não como
sistema abstrato (ou seja, como ordem significante que se inscreve na história para fazer
sentido), chegamos também à compreensão do sujeito constituído historicamente, pois, é a
partir do funcionamento da língua na história que podemos depreender a materialidade do
ideológico.
Para Pêcheux, o sujeito é o efeito resultante de duas instâncias materiais: a língua e
a história. Não tem o domínio absoluto de si, nem pode ser totalmente determinado por
14
De acordo com o Glossário de termos do discurso (FERREIRA, 2001, p. 21-22), o real da língua consiste na
“impossibilidade de se dizer tudo na língua, séries de pontos do impossível, lugar do inconsciente de onde o
sujeito fala o que não pode ser dito. O termo real da língua é designado em francês como lalangue, o que
corresponde, em português, a alíngua . Essa distinção terminológica expressa de um modo singular, já na grafia,
a diferença existente entre a noção de língua, que é da ordem do todo, do possível, e a noção do real da língua
(alíngua), que é da ordem do não todo, do impossível, inscrito igualmente na língua. Esse termo veio da
psicanálise, traduzido por Lacan, e foi desenvolvido na lingüística, sobretudo por Milner (1987), numa tentativa
de nomear aquilo que escapa à univocidade inerente a qualquer nomeação, apontando para o registro que, em
toda a língua, a consagra ao equívoco. Na perspectiva teórica do discurso, torna-se fundamental uma concepção
de língua afetada pelo real, pois isso vai permitir operar com um “conceito de língua que reconheça o equívoco
como fato estrutural constitutivo e implicado pela ordem do simbólico” (Pêcheux, 1988)”.
36
mecanismos exteriores a ele. Assim, sujeito e sentido de um discurso só podem ser
analisados, nesse aspecto, enquanto efeitos do funcionamento discursivo, partindo da
observação das diferentes ideologias presentes no discurso, uma vez que ideologia não é
um conjunto de idéias (idealismo), nem emana do sujeito. Nesse sentido ela é constituinte
do sujeito. Não uma única ideologia, mas várias ideologias o constituem.
Observando que o “obstáculo idealista fundamental” estava na noção de sujeito
pleno, dono de suas vontades como ponto de partida e de aplicações de operação, Pêcheux
(1997a, p.131) diz que: “uma teoria materialista não pode, para se constituir, contentar-se
em reproduzir, como um de seus objetos teóricos, o ‘sujeito’ ideológico como ‘sempre-já-
dado’”. Afirma ainda que o idealismo impossibilita o entendimento da prática política, da
prática de produção dos conhecimentos (inclusive a prática pedagógica), que fazem com
que “a necessidade cega”, conforme Engels, se torne necessidade pensada e modelada
como necessidade na vida dos indivíduos. E assim, critica as leituras funcionalistas que
reduzem os ensinamentos de Althusser no que diz respeito a sua definição de que a
História é um processo sem sujeito nem fim, dizendo que o referido filósofo mata a
História e a ação do sujeito na história. A esse respeito cabe considerar a resposta que
Althusser lhes dá. Em “Resposta a John Lewis” (p. 26), L. Althusser, citado por Pêcheux
(1997a p.130), explica que as massas não são um sujeito,
pode-se ainda considerar [a propósito das massas] que estamos tratando de
um “sujeito”, identificável pela unidade de sua “personalidade”? Ao lado do
“sujeito” de J. Lewis, o “homem”, simples e frágil como um belo caniço de
pesca ou uma gravura de moda, que se pode segurar pela mão ou apontar
com o dedo, o “sujeito” massas põe sagrados problemas de identificação.
Um sujeito é também um ser do qual se pode dizer: “é ele!”. Diante do
“sujeito” massas, como poderemos dizer “é ele?
Althusser propunha o anti-humanismo teórico e, dentre suas polêmicas propostas,
“o corte epistemológico” operado por Marx com o “materialismo histórico”, exposto em
37
“O Capital”, é apontado como um dos grandes eventos da história do saber. Nessa obra,
Marx, esvaziando o sujeito como categoria filosófica, critica radicalmente o humanismo.
Ao propor uma releitura de Marx, Althusser propõe uma leitura sintomal (termo
tomado de uma fusão das idéias de Lacan e Foucault e que está relacionado “àquilo que
não é visível e que se refere à falta, à ausência” (GREGOLIN, 2004, p. 39). Nessa
proposta, “a realidade mais essencial é mais escondida, não se situando nem na ausência do
discurso, nem no explícito deste, mas no entremeio de sua latência, necessitando, portanto,
de uma escuta ou leitura particular a fim de o revelar a si mesmo” (DOSSE, 1993, p. 336).
Destarte, o gérmen da AD quanto à formulação de um conceito de sujeito discursivo vai se
delineando: o anti-humanismo teórico de Marx, derivando a proposta althusseriana de
ideologia, traz no conceito de interpelação, uma nova concepção de sujeito.
Ex-aluno de Althusser, Pêcheux se encaixa no mesmo tipo de estruturalismo
althusseriano, pela orientação ideológico-filosófica de suas teses, e, juntamente com
Foucault, diferenciam-se dos outros estruturalismos pelo enfoque da historicização das
estruturas, além de, conforme aponta Gregolin (2004, p.25), “estabelecer uma relação tensa
com os conceitos e métodos da lingüística saussureana, problematizando o corte entre
língua/fala e dessa forma fazendo retornar o sujeito e a história – que haviam ficado em
suspenso na definição do objeto saussureano (langue)”.
No anexo escrito para a tradução inglesa de “Semântica e Discurso, uma crítica à
afirmação do óbvio”, em 1978, cujo título rememora Lacan: “Só há causa daquilo que
falha ou o inverno político francês: início de uma retificação”, Pêcheux retifica a tese da
interpelação ideológica. A tese althusseriana da interpelação é, para Pêcheux, teórica e
política, conforme explica Gregolin (2004, p.139): “teoricamente, ela coloca o marxismo
em relação com os conceitos psicanalíticos; politicamente, ela leva a entender, no interior
do próprio movimento operário, que não é possível escapar das injunções da ideologia
38
dominante”. Nesse ponto, Pêcheux (1997a, p. 294) faz suas considerações acerca do
trabalho desenvolvido em “Discurso e Semântica”:
a luta filosófica (luta de classes na teoria) é um processo sem fim de
retificações coordenadas, que se sustentam pela urgência de uma posição a
ser defendida e fortalecida frente ao que podemos chamar a adversidade no
pensamento. E é assomado a essa ‘linha de maior inclinação’ que a filosofia
toca especificamente o real.
Ao dizer que “é o retorno idealista de um primado da teoria sobre a prática”
(PÊCHEUX, 1997a, p. 299) que está inadequado em seu trabalho em referência ao
marxismo-leninismo, o autor constata que essa conclusão se deve à percepção que tem sobre
a forma-sujeito, pois, tal como teorizada, remetia ao entendimento de uma forma única a ser
tomada pelo sujeito, ou seja, a existência de um ego-sujeito pleno é ilusão, e essa é a grande
falha em “Discurso e Semântica”.
Assim, ficava contornado, com toda a obstinação filosófica possível, o fato
de que o non-sens do inconsciente, em que a interpelação encontra onde se
agarrar, nunca é inteiramente recoberto nem obstruído pela evidência do
sujeito-centro-sentido que é seu produto, porque o tempo da produção e o
do produto não são sucessivos como para o mito platônico, mas estão
inscritos na simultaneidade de um batimento, de uma ‘pulsação’ pela qual o
non-sens inconsciente não pára de voltar no sujeito e no sentido que nele
pretende se instalar. (PÊCHEUX, 1997a, p. 300).
O inconsciente, marcado pelo Outro, é a causa que vem a determinar o sujeito
exatamente onde o efeito de interpelação o captura e provoca a falha. A falha são os lapsos,
o ato falho, etc. que se manifestam no sujeito, “pois os traços inconscientes do significante
não são jamais ‘apagados’ ou ’esquecidos’, mas trabalham, sem se deslocar, na pulsação
sentido/non-sens do sujeito dividido” (PÊCHEUX, 1997a, p. 300). Para Lacan, a causa é
aquilo que interrompe o funcionamento ditado pelas leis, é o que excede a cadeia simbólica
embora seja por ela produzido. Assim, pode-se considerar que o sujeito tanto é
determinado pela ordem simbólica (significante), quanto pela sua relação com um objeto
de gozo.
39
Essa “divisão do sujeito, inscrita no simbólico” (PÊCHEUX, 1997a, p. 302) é
sustentada pela ordem da heterogeneidade que impõe um redirecionamento teórico
metodológico na AD pecheuxtiana. Nesse sentido, Authier-Revuz que, em sua tese de
doutorado, investiga a problemática da heterogeneidade do discurso, contribui com seus
estudos de forma fundamental para o estabelecimento do sujeito discursivo na AD.
Adquirindo “status” de categoria conceitual na AD, o conceito de heterogeneidade
contribui com a análise do corpus porque ao tomar a formação discursiva no interior da
heterogeneidade, ela não mais se refere a um exterior ideológico e passa a ser buscada na
dispersão dos lugares enunciativos do sujeito. Daí o entendimento das várias posições-
sujeito representando as diferentes formações discursivas em um mesmo texto. No trabalho
dedicado a realizar essa descrição, Authier-Revuz (2004, p. 69) comenta que
Todo discurso se mostra constitutivamente atravessado pelos “outros
discursos” e pelo “discurso do Outro”. O outro não é um objeto (exterior,
do qual se fala), mas uma condição (constitutiva, para que se fale) do
discurso de um sujeito falante que não é fonte-primeira desse discurso.
A questão da heterogeneidade enunciativa leva à tematização das formas
lingüístico-discursivas do discurso-outro, conforme nos aponta Pêcheux (2001, p. 316-
317):
- discurso de um outro, colocado em cena pelo sujeito, ou discurso do
sujeito se colocando em cena como um outro (cf. as diferentes formas de
“heterogeneidade mostrada”);
- mas também e sobretudo a insistência de um ‘além’ interdiscursivo que
vem, aquém de todo autocontrole funcional do ‘ego-eu’, enunciador
estratégico que coloca em cena ‘sua seqüência, estruturar esta encenação
(nos pontos de identidade nos quais o ‘ego-eu’ se instala) ao mesmo tempo
em que a desestabiliza (nos pontos de deriva em que o sujeito passa no
outro, onde o controle estratégico de seu discurso lhe escapa).
A percepção da heterogeneidade do sujeito torna-se de fundamental importância para
o avanço nos estudos da AD. Para dar continuidade às pesquisas, a atenção da AD volta-se,
então, para a questão da constituição do sujeito discursivo. Os estudos revelam que o sujeito
40
discursivo, constituído na interação social é polifônico, isto é, constitui-se de uma
heterogeneidade de discursos produzidos num espaço social e ideológico historicizado. Na
voz do sujeito discursivo são encontradas diferentes vozes provenientes de diferentes
discursos a que denominamos polifonia
15
, de onde provém a noção de heterogeneidade
discursiva.
A contribuição do círculo de Bakhtin com a noção de dialogismo (relação
estabelecida entre o “eu” e o “outro” nos processos discursivos historicamente instaurados
pelos sujeitos) e a releitura de Freud por Lacan foram fundamentais para o estabelecimento
do conceito de heterogeneidade
16
discursiva.
Partindo do princípio de que o sujeito discursivo não é o centro do seu dizer, que é
descentrado e que sob suas palavras se encontram outras palavras, podemos inferir que há
um “Outro”, compreendido como exterioridade social, do qual o sujeito se esquece
17
. A
ilusão de ser a fonte do seu dizer faz parte do sujeito. Ele precisa crer nisso para sustentar
uma estabilidade psíquica necessária para a sua existência
Nesse sentido, o indivíduo, interpelado ideologicamente em sujeito do dizer, tem
na ideologia sua própria condição de sobrevivência. Na AD, ideologia não é a relação do
sujeito com um determinado conjunto de idéias que assume, é a relação do sujeito com o
mundo. O sujeito é um suporte da ideologia, porque não há ideologia sem sujeito e não há
sentido sem ideologia. No entanto, não se pode sobrepor ideologia e sentido porque essa
15
De acordo com Charadeau; Maingueneau (2004, p. 388), “A polifonia lingüística se situa no nível da língua,
tornando-se, então, uma noção puramente abstrata; a polifonia da análise do discurso é um fenômeno da fala e,
nesse sentido, concreto”.
16
Para Authier-Revuz (2004), a heterogeneidade discursiva é compreendida em heterogeneidade constitutiva,
condição da existência dos discursos e do sujeito, visto que o sujeito é constituído por meio da interação social
realizada com diferentes sujeitos; e heterogeneidade mostrada (marcada ou não marcada), quando a voz do
outro é identificada por aparecer explícita ou implicitamente.
17
Sobre esquecimento, Pêcheux e Fuchs (1997c) nos ensinam que há dois tipos de esquecimentos: no
esquecimento número 1 o sujeito tem a ilusão de controlar os sentidos de seu dizer. No esquecimento número 2 o
sujeito tem a ilusão de controlar o que diz, de ser a fonte original do que diz. São esquecimentos necessários,
mas nem por isso tornam o sujeito o centro organizador do seu enunciado.
41
sobreposição acarretaria uma relação direta entre uma posição ideológica em um sentido
específico.
Devemos, por conseguinte, levar em consideração as contradições constitutivas,
ou seja, ter ciência de que no retorno do “mesmo” há sempre o diferente posto pelo sujeito
do inconsciente, pela constituição histórica do sujeito e pelas condições de produção do
discurso. Daí, concordarmos com Ferreira (2004, p. 43), ao afirmar que “sujeito,
linguagem e discurso poderiam ser concebidos como estruturas às quais se têm acesso
pelas falhas”, pois, a constituição do sujeito discursivo se dando entre o “eu” e o “outro”,
resultado de uma ligação do ideológico no inconsciente, emergindo para manifestar um
desejo, traz o “Outro” (conforme Lacan) sob a forma de linguagem. Conseqüentemente,
esse deslocamento teórico da noção de estrutura, afastando-se da
concepção cunhada pelo estruturalismo e inscrevendo-se como um novo
paradigma no seio das ciências da linguagem, constitui-se numa das
grandes e revolucionárias contribuições de Pêcheux para os estudos da área.
E isso, certamente, tem a marca da Psicanálise. (FERREIRA, 2004, p. 44).
Após esse breve percurso pela história da AD para discutir sobre o sujeito,
podemos concluir que, por fazer parte das disciplinas de interpretação, a AD objetiva
construir procedimentos de leitura que exponha o leitor a níveis de opacidade do texto, em
que a percepção desse “outro”, emerso da falha lingüística, possa trazer ao discurso,
concretizado no texto, elementos que contribuam para a construção de interpretações que
não sejam neutras, que localizem o lugar ideológico sócio-histórico do sujeito enunciativo.
A partir da mudança na concepção de documento histórico, fundamentada na tese do
“arquivo” de Foucault, ocorre uma transformação dos objetos de análise do discurso,
provocando discussões a respeito do sujeito da enunciação, sobre o objeto discursivo e sua
relação com a história. Do assujeitamento do sujeito à máquina discursiva, Pêcheux (1977)
insere as categorias da contradição e das falhas do ritual ideológico (PÊCHEUX, 1978).
Depois de 1980 não restará nenhum argumento que sustente a proposta inicial. A concepção
42
de sujeito não totalmente assujeitado à interpelação ideológica fica estabelecida no
entendimento de que o discurso é um fenômeno ligado ao mesmo tempo à estrutura e ao
acontecimento
18
(PÊCHEUX,1988):
A posição de trabalho que aqui evoco em referência à análise do discurso
não supõe de forma alguma algum cálculo dos deslocamentos de filiação e
das condições de felicidade ou infelicidade evenemenciais. Ela supõe
somente que, através das descrições regulares de montagens discursivas se
possam detectar os momentos de interpretações enquanto atos que surgem
como tomadas de posição, reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de
identificação assumidos e não negados ( PÊCHEUX, 2002, p. 57)
Na tentativa de delinear um quadro epistemológico que explicitasse o trajeto histórico
da constituição do “sujeito discursivo” para introduzi-lo na posição autor, podemos dizer que,
nesse sentido, o sujeito-autor se constitui como autor no acontecimento do sujeito constituir
um texto. Dessa forma, podemos dar continuidade ao nosso trabalho, levantando questões a
propósito da autoria do texto.
3.4 Do sujeito discursivo ao princípio da autoria
Recorremos à leitura de “O Que é um Autor”, de Michel Foucault, apresentado em
uma conferência no Collége de France, no dia 22 de fevereiro de 1969. Ao propor uma
análise que retira do sujeito o papel de fundador originário de uma obra, Foucault (1992, p.
267-268) estabelece que o sujeito-autor deve ser considerado como uma função variável e
complexa do discurso. Reportando-se a Beckett para referir-se ao desaparecimento do
autor em prol das formas próprias do discurso (“que importa quem fala, alguém disse que
importa quem fala”), o filósofo acrescenta que, nesse ponto, se firma o princípio ético
“talvez o mais fundamental” da escrita contemporânea, caracterizada por dois grandes
temas: a transgressão e a morte.
18
“A noção de acontecimento é central como irrupção de uma singularidade única e aguda, no lugar e no
momento de sua produção” (CARDOSO, 1995, p. 55).
43
É próprio da escrita o desaparecimento do autor (sujeito indivíduo). A autoria vista
como expressão de originalidade que permite a identificação da obra como invenção
individual ou criação original, não mais carece de crédito: “a marca do escritor não é mais
do que a singularidade de sua ausência; é preciso que ele faça o papel do morto no jogo da
escrita” (FOUCAULT, 2001a, p. 269).
Em uma perspectiva foucaultiana, podemos dizer que, ao explicitar o princípio de
autoria, estamos desvelando o que produz o apagamento do sujeito. Se o sujeito se marca
no discurso por um mecanismo enunciativo, o discurso se inscreve no sujeito resultando,
como efeito, o apagamento do mesmo, ou seja, de acordo com Orlandi (2001), aquele que
fala é material empírico bruto, aquele que enuncia é o sujeito dividido em suas várias
posições no texto, já o autor, sem ser divisão, é diferença, originalidade. Assim, a função-
autor apaga o sujeito produzindo uma unidade que resulta de uma relação de determinação
do sujeito pelo discurso, demonstrando a ação do discurso sobre o sujeito. Assim sendo,
podemos apreender na relação entre discurso e sujeito o jogo entre a liberdade do sujeito e
a responsabilidade do autor.
Ao retirar do sujeito seu papel de fundamento originário para analisá-lo como uma
função variável e complexa do discurso, Foucault considera que sua proposição a respeito
da função-autor é apenas uma das especificações possíveis da função sujeito. E resume
dessa forma os quatro traços característicos da função-autor:
A função autor está ligada a ao sistema jurídico e institucional que contém,
determina, articula o universo dos discursos: ela não se exerce
uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as
épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida pela
atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série
de operações específicas e complexas; ela não remete pura e simplesmente
a um indivíduo real, ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos, a
várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem vir a
ocupar, (FOUCAULT, 2001a, p. 280).
44
Partindo do princípio de autoria estabelecido por Foucault, não podemos deixar de
pensar que a autoria, de certa forma (nem pura, nem simplesmente), passa primeiro pelo
processo da produção do texto
19
e por esse motivo procuraremos verificar como isso
ocorre. Para Pêcheux (1997a), a passagem do enunciador a autor exige a inserção do
sujeito em uma realidade na qual o mesmo capta os movimentos culturais e a fusão de suas
manifestações. Assumindo uma posição de responsabilidade pelo que captou, o sujeito se
coloca como origem de seu dizer. Essa percepção, no entanto, é ilusória, uma vez que a
forma-sujeito é sempre historicamente determinada com a formação discursiva e sua
relação com a língua(gem) é ideológica. Ou seja, o sujeito do discurso, identificando-se
com a forma-sujeito (que regula o que pode e deve ser dito, o que não pode ser dito e
também o que pode, mas não convém que seja dito no âmbito de uma certa formação
discursiva), tem a ilusão de ser fonte do seu dizer, mas, na verdade, retoma sentidos
preexistentes já inscritos nas formações discursivas determinadas; esses sentidos
preexistentes não se repetem.
O modo de inscrição histórica permite definir a dispersão de textos como um
espaço de regularidades enunciativas e é essa organização da dispersão, num todo coerente,
que possibilita às diversas representações do sujeito, enquanto enunciador, apresentar-se
como autor de seu discurso.
o autor é a função que o eu assume enquanto produtor de linguagem.
Sendo a dimensão discursiva do sujeito que está mais determinada pela
relação com a exterioridade (contexto sócio-histórico), ela está mais
submetida às regras das instituições. Nela são mais visíveis os
procedimentos disciplinares. (ORLANDI, 2001, p. 77).
Essa passagem enunciador/autor tem para Orlandi (2001, p. 80) mecanismos que
podem ser controlados: a) mecanismos do domínio do processo discursivo (no qual o
19
Nesse caso, estamos nos referindo apenas à autoria de texto escrito, mais propriamente, literário, embora
tenhamos conhecimento de que o termo “autoria” possa ser distendido à pintura, canções, cálculos, técnicas,
invenções, enfim, uma infinidade de objetos.
45
sujeito se constitui como autor; e b) mecanismos do domínio dos processos textuais (nos
quais ele marca sua prática de autor). Por estarmos tratando de texto escrito, ater-nos-emos
aos aspectos referentes à função-autor-escritor e isso quer dizer que, para o sujeito
enunciador se tornar sujeito-autor, é necessário que ele tenha domínio da língua escrita e
responsabilidade histórico-social. É responsabilidade do autor dar unidade ao texto, não do
enunciador. O enunciador pode ser incoerente, mas o autor é cobrado pelos elementos que
esclarecem e compõem um texto: unidade, clareza, não contradição, correção, etc., do
texto.
O conceito de sujeito autônomo e responsável, característico do nosso contexto
histórico-social, tem, para Orlandi (2001, p. 77), fundamentada em Harouche (1984), uma
construção histórica localizada entre o período que vai do século X ao século XIII e é
definido como sujeito-jurídico, que tem direitos e deveres, considerado responsável por
seus feitos e gestos. Nesse sentido a autoria é uma função institucionalizada, o autor
precisa assumir seu “status” diante das instituões, pois o papel social que lhe cabe a partir
de sua relação com a linguagem e o mundo lhe exige coerência, respeito aos padrões
estabelecidos pela forma do discurso e pelas formas gramaticais bem como: explicitação,
clareza, conhecimento das regras textuais, originalidade, relevância, unidade, progressão,
etc. Dessa forma, podemos dizer que o sujeito-autor deve ter o domínio dos mecanismos
lingüístico-discursivos necessários para representar esse papel na sociedade em que está
inserido.
Juridicamente, existe uma regra que impõe um patenteamento para toda forma de
invenção, criação e/ou produção, determinando o pertencimento por meio de regras que
regulamentam a apropriação. Em seus estudos, mais propriamente em “A ordem dos
livros”, Chartier (1998, p. 38) comenta o contexto da aparição da propriedade da obra
literária na Inglaterra e que foi distendida a outros países:
46
longe de nascer de uma aplicação particular do direito individual de
propriedade, a afirmação da propriedade literária deriva diretamente da
defesa da livraria que garante um direito exclusivo sobre um título ao
livreiro que o obteve. Essas são, com efeito, as tentativas da monarquia
para abolir a perspectiva tradicional dos privilégios que levam os livreiros-
editores a ligar a irrevocabilidade de seus direitos ao reconhecimento da
propriedade do autor sobre sua obra.
Nesse sentido, era a propriedade do escritor que fundamentava a legitimidade do
privilégio concedida ao livreiro, assim como era a imprescritibilidade do livreiro que
poderia garantir o direito do autor. Esse entendimento, no entanto, se enraíza em outras
determinações, diz Foucault (2001a): os textos, os livros começaram a ter autores reais
(sem ser personagens míticos ou sacros), na medida em que o autor podia ser punido. E sua
proposta é que se faça uma investigação retrospectiva, observando a condição de produção,
dispersão e apropriação dos textos. Os três dispositivos: jurídico, repressivo e material, se
colocam como fundamentais para o entendimento da invenção da autoria: “Essa noção do
autor constitui o momento crucial da individualização na história das idéias, dos
conhecimentos, das literaturas, e também na história da filosofia, e das ciências.”
(FOUCAULT, 2001a, p. 267).
Libertando-se do tema da expressão (noção de texto espontâneo, nascido da
criatividade individual) e assumindo o desaparecimento do sujeito que escreve, essa
questão da autoria vai adquirindo uma complexidade com a qual a crítica literária não tem
se envolvido por se ocupar mais da análise das estruturas, no jogo de suas relações
internas, que em destacar as relações da obra com o autor ou a reconstituição de um
pensamento ou de uma experiência.
Para Foucault (2001a), o princípio de autoria faz parte dos processos internos
20
de
controle e delimitação do discurso. Esses processos disciplinarão a dimensão do
20
Foucault, em “A Ordem do Discurso” (dezembro de 1970), estabelece três procedimentos para análise do
discurso: 1- exteriores “de controle” e delimitação do discurso (proibição de certos discursos, segregação de
outros, imposição da vontade de verdade), e 2- internos “de controle” e delimitação do discurso (descrição do
comentário, do autor e da repartição em disciplinas) e 3- da rarefação do sujeito.
47
acontecimento e da eventualidade do discurso. Não sendo o discurso um conjunto de textos
e sim uma prática, para encontrar sua regularidade, analisam-se os processos de sua
produção. Também assinala que o princípio de autoria estabelece o autor como princípio
de agrupamento do discurso, unidade e origem de suas significações e acrescenta que
considera esse princípio inconstante e nem sempre válido para qualquer discurso.
O nome do autor não está localizado no estado civil dos homens, não está
localizado na ficção da obra, mas na ruptura que instaura um certo grupo de
discursos e seu modo singular de ser. Conseqüentemente, poder-se-ia dizer
que há, em uma civilização como a nossa, um certo número de discursos
que são providos da função ‘autor’, enquanto outros são dela desprovidos.
Uma carta particular pode ter um signatário, ela não terá um autor; um
contrato pode ter um fiador, ele não é um autor. Um texto anônimo que se
lê na rua em uma parede terá um redator, não terá um autor.
A função autor
é, portanto, característica do modo de existência, de circulação e de
funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade.
21
(FOUCAULT, 2001a, p. 274)
Tendo em conta as diferentes posições-sujeito que classes diferentes de indivíduos
podem ocupar no discurso, ocasionando o desaparecimento do autor, Foucault menciona a
necessidade de se localizar esse espaço deixado vago pela desaparição do autor para se
fazer a análise do discurso que compõe uma obra. Menciona, ainda, que nas análises
discursivas sejam colocadas as questões: “Como, segundo que condições e sob que formas
alguma coisa como um sujeito pode aparecer na ordem dos discursos? Que lugar ele pode
ocupar em cada tipo de discurso, que funções exercer, e obedecendo a que regras?”
(FOUCAULT, 2001a, p. 287).
A partir da postulação foucaultiana quanto ao estabelecimento do sujeito
discursivo em relação à autoria de que a “função-autor é característica do modo de
existência, circulação e de funcionamento dos discursos no interior de uma sociedade”
(FOUCAULT, 2001a, p.274), este trabalho pretende analisar a constituição da função-
21
Grifo nosso
48
autor na obra literária “Calabar, o elogio da traição” contrapondo-a à autoria do texto “O
valeroso lucideno”, colado na obra.
Na perspectiva de uma abordagem foucaultiana acerca da constituição do sujeito
nas relações de poder e na interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia, conforme
trabalhado por Pêcheux, passamos para o tópico seguinte.
3.5 Do sujeito ideológico em Pêcheux ao sujeito de poder em Foucault
Inicio essa reflexão partindo da expressão dita por Lênin – “a língua vai sempre
onde o dente dói” – para dizer que o ponto problemático de uma questão nunca fica
totalmente encoberto; em um momento ou outro, sempre acaba vindo à tona, ao que
Pêcheux (1977a, p.88) explicita, colocando o exemplo da Lingüística quando solicitada
fora de seu campo para esclarecer questões semânticas.
Se a Lingüística é solicitada a respeito destes ou daqueles pontos exteriores
a seu domínio, é porque, no próprio interior de seu domínio (em sua prática
específica), ela encontra, de um certo modo, essas questões, sob a forma de
questões que lhe dizem respeito (‘você não me procuraria se já não me
tivesse encontrado’). A Lingüística não seria afetada por exigências em
direção à Semântica se ela já não tivesse se encontrado, de algum modo,
com essas questões... no seu interior.
Pêcheux aponta para o fato de que é sobre as bases internas (objeto da lingüística)
que se desenvolvem os processos discursivos e que todo processo discursivo se inscreve
numa relação ideológica de classes.
Inicialmente, sobre as condições ideológicas da reprodução/transformação das
relações de produção, Pêcheux (1997a, p. 148) comenta que
na realidade, a reprodução, bem como a transformação, das relações de
produção é um processo objetivo cujo mistério é preciso desvendar [...]. Já
fizemos, várias vezes, alusão à tese central adiantada por L. Althusser: A
Ideologia interpela os indivíduos em sujeitos. Chega agora o momento de
examinar como essa tese ‘desvenda o mistério em questão, e
especificamente, examinar como a maneira pela qual ela desvenda esse
mistério se abre para a problemática de uma teoria materialista dos
49
processos discursivos, articuladas com a problemática das condições
ideológicas de reprodução/transformação das relações de produção.
Declarando ser necessário aprofundar a tese althusseriana de que a Ideologia
interpela os indivíduos em sujeitos, para estabelecer uma teoria materialista dos processos
discursivos, Pêcheux investe nessa proposta. Dedica-se a desenvolver uma teoria em que a
ideologia aparece, discursivamente, como o trabalho simbólico/político operado pela/na
língua sobre a vida humana. Sua eficácia parece resultar do fato de seu funcionamento ser
da ordem do inconsciente.
Para Pêcheux, a ideologia é o elemento determinante do sentido no discurso, está
no seu interior e se reflete na sua exterioridade. É constitutiva da prática discursiva do
sujeito e é o que permite sua identificação com a formação discursiva dominante do seu
discurso. Assim, as evidências do sujeito (como origem e causa de si) e do sentido (colado
na linguagem) provêm, a seu ver, de um efeito ideológico e observa que
O caráter comum das estruturas-funcionamentos designadas,
respectivamente, como ideologia e inconsciente é o de dissimular sua
própria existência no interior mesmo do seu funcionamento, produzindo um
tecido de evidências ‘subjetivas’ devendo entender-se este último adjetivo
não como ‘que afetam o sujeito’, mas ‘nas quais se constitui o sujeito’.
(PÊCHEUX, 1997a, p. 152-153)
O sujeito do discurso (forma-sujeito
22
) constituído pelo esquecimento daquilo que o
determina, produz seu enunciado sob a aparência da autonomia. Ou seja, na ilusão de ser
senhor do que diz, o falante pensa que seu interlocutor entende o que diz, da mesma forma
que ele, e que, aquilo que fala, carrega consigo o sentido que imagina dar ao que diz.
Pêcheux (1997) pontua que as palavras, expressões, proposições são re-significadas
de acordo com as posições sustentadas pelos interlocutores. Dessa forma, os sentidos são
22
Expressão introduzida por L. Althusser refere-se à forma de existência histórica de qualquer indivíduo nas
suas práticas sociais. “Todo indivíduo humano, isto é, social, só pode ser agente de uma prática se se revestir da
forma de sujeito”. (Em nota apud PÊCHEUX, 1997a, p. 183)
50
depreendidos em consonância com as formações ideológicas em que essas posições foram
inscritas.
Frente às questões políticas e teóricas em que se envolveu nos anos 70 do século
passado
23
, Pêcheux retoma e reelabora questões relacionadas ao discurso, sujeito, história,
ideologia...., influenciado pelas colocações de Foucault. Por sua vez, Foucault não trabalha
com as categorias clássicas do marxismo: ideologia, luta de classes, etc., (o que leva
Pêcheux a criticá-lo). Apesar das polêmicas existentes entre um e outro, os dois trabalham
o discurso a partir das propostas althusserianas.
Posteriormente, em 1978, re-situando noções e conceitos em “Só há causa daquilo
que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação”, Pêcheux reelabora a
concepção althusseriana de ideologia considerando-a como mediadora entre o homem e
sua condição material de existência. Pêcheux introduz a idéia de descontinuidade, da não-
coincidência entre a ordem natural e a ordem humana: “A ordem do inconsciente não
coincide com a da ideologia, o recalque não se identifica nem ao assujeitamento nem à
repressão, mas isso não significa que a ideologia deva ser pensada sem referência ao
registro inconsciente”. (PÊCHEUX, 1997a, p. 301)
A importância desse estudo para o nosso trabalho se configura na observação de
que o diferencial da AD está no conceito de ideologia porque é nesse conceito que se
articulam as proposições teóricas que descrevem os processos de constituição dos sentidos
e dos sujeitos do dizer. Daí buscarmos essa fundamentação para entendermos os processos
formadores dos sujeitos discursivos em “Calabar, o elogio da traição” e dos sentidos que se
encontram ideologicamente constituídos no texto.
Enquanto objeto simbólico constitutivo do discurso literário, o texto em questão nos
remete a Foucault (1995a, p. 28), para quem
23
Gregolin (2005) explica esse percurso em seu livro “Pêcheux e Foucault - Diálogos & Duelos”.
51
Todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um já-dito; e que
esse já-dito não seria simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já
escrito, mas um ‘jamais-dito’, um discurso sem corpo, uma voz tão
silenciosa quanto um sopro, uma escrita que não é senão o vazio de seu
próprio rastro.
É na irrupção do acontecimento da escrita do texto “Calabar, o elogio da traição”
que buscamos analisar nosso objeto. Observamos que no dito “jamais-dito” da obra escapa
uma resistência a um poder. Interessa-nos analisar como se dão os confrontos
resistência/poder. Para isso, fundamentamo-nos em Foucault, que teoriza e analisa as
questões envolvendo lutas cotidianas dos sujeitos.
Em “A Arqueologia do Saber”, Foucault analisa como os saberes aparecem e se
transformam. Para este autor, as condições favoráveis ao aparecimento dos saberes
estariam ligadas às relações de poder.
Sendo algo que se exerce ou que se efetua, que funciona como uma maquinaria em
que seus operadores se revezam, não sem um embate, o poder não possui uma localização
específica, está espalhado por todo lado, por todo o corpo social. Presente em todos os
pontos da sociedade, o poder é exercido em vários níveis, podendo ser integrado ou não ao
Estado.
O poder não é uma essência, nem uma coisa que pode ser apoderada, mas uma
prática social que se constitui historicamente. Seu funcionamento equipara-se ao de uma
rede que, não estando localizada em nenhum ponto específico, atravessa toda uma estrutura
social, não deixando ninguém de fora. O poder não tem linhas limítrofes, não possui
fronteiras. “São micro-lutas, já que não há um centro único do Poder, pois ele se espalha
por toda a topografia social – e, sendo micro-lutas, elas transcendem a clássica noção de
‘lutas de classe’” (GREGOLIN, 2004, p.133).
Para se fazer uma análise microfísica do poder deve-se fazer um deslocamento do
espaço de análise e levar em consideração as relações de força cotidianas no espaço
52
privado e igualmente no Estado. A relativa autonomia em relação ao Estado faz com que
as relações de força cotidianas se constituam em micropoderes, eliminando, assim, a idéia
de que o Estado, unicamente, é retentor dos poderes que imperam em uma sociedade.
Na luta contra as evidências totalizadoras, Foucault (1995b) afirma interessar-se
pelo estudo do modo pelo qual um ser humano torna-se sujeito. Refletindo sobre a evidente
relação entre a racionalização e os excessos do poder político, sugere analisar
racionalidades específicas (doença, morte, sexualidade...) e “usar as formas de resistência
contra as diferentes formas de poder como ponto de partida” (FOUCAULT, 1995b, p.
234). Enumerando o que as lutas cotidianas têm em comum, afirma que o objetivo dessas
lutas é atacar uma forma de poder e é nessa tensão poder/resistência que o indivíduo
age/reage e se torna sujeito:
Esta forma de poder aplica-se à vida cotidiana imediata que categoriza o
indivíduo, marca-o com sua própria individualidade, liga-o à sua própria
identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que
os outros têm que reconhecer nele. É uma forma de poder que faz dos
indivíduos sujeitos. Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a
alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por
uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de
poder que subjuga e torna sujeito a. (FOUCAULT, 1995b, p. 235).
Descartando o “sujeito-desde-sempre-aí”, caro à teoria do sujeito ideológico,
Foucault propõe analisar as relações entre o sujeito e o poder centralizando nas formas de
resistência; verificar onde elas se inscrevem, quais são seus pontos de aplicação e que
métodos utilizam; analisar as lutas que os indivíduos vivenciam para se colocarem como
“sujeitos de direito”: o direito à diferença, que provoca a individualização do sujeito e o
combate a qualquer coisa que possa isolar o indivíduo da sociedade. Em sua análise,
Gregolin (2004, p.137) pontua:
Essas lutas não são exatamente por ou contra o ‘indivíduo’, mas elas se
opõem àquilo que se pode designar como ‘governo pela individualização’.
Elas opõem uma resistência aos efeitos de poder que estão ligados aos
saberes, à competência e à qualificação. Esse poder – contra o qual os
sujeitos se digladiam em micro-lutas cotidianas – classifica os indivíduos
53
em categorias, designa-os pela individualidade, liga-os a uma pretensa
identidade, impõe-lhes uma lei de verdade que é necessário reconhecer e
que os outros devem reconhecer neles. É uma forma de poder que
transforma os indivíduos em sujeitos, mas que só existe porque esses
‘sujeitos’ se defrontam contra ela.
Para nosso trabalho, as colocações de Foucault são importantes porque nelas
lidamos com a noção de sujeito subjetivado pelas identidades culturais de um determinado
período histórico, de uma determinada época. A formação do sujeito subjetivado pela
identidade cultural é resultado das práticas discursivas que se inscrevem nas relações de
saber/poder e pelos processos de interdições e sujeições (técnicas de si). Como explica
Foucault (1995b, p. 249),
O que torna a dominação de um grupo, de uma casta ou de uma classe, e as
resistências ou as revoltas às quais ela se opõe um fenômeno central na
história das sociedades é o fato de manifestarem, numa forma global e
maciça, na escala do corpo social inteiro, a integração das relações de poder
com as relações estratégicas e seus efeitos de encadeamento recíproco.
Interessa-nos, particularmente, realçar a positividade do poder por entendermos que
ela tem como propriedade a produção de alguma coisa, que “motiva” o indivíduo a
transformar-se em sujeito pelo/do poder. Na análise de “Calabar, o elogio da traição”,
podemos depreender, na trama da história, o drama da memória discursiva na luta
encadeada pelas relações de poder e que aparecem no texto como marcas de um discurso
que é central na historia das sociedades.
Para nos situarmos, na tentativa de obter algumas respostas às questões colocadas
por Foucault, dedicamo-nos ao estudo do discurso, da história e da memória, uma vez que
os processos discursivos que queremos analisar na obra em estudo devem preponderar em
detrimento de uma análise do pensamento e/ou das estruturas. Mesmo abordando o assunto
de forma escatológica, constante nas concepções metafísicas da existência, interessamo-
nos pelas práticas discursivas como acontecimentos históricos. Daí nosso interesse pelo
desenvolvimento dos conceitos no tópico seguinte.
54
3.6 Discurso, História e Memória: No princípio era o verbo?
Na complexidade do discursivo, língua, sujeito e história se confluem para se
constituírem em fundamentos para o desenvolvimento de uma análise discursiva. Para que
as questões teórico-interpretativas a esse respeito não se tornassem ambíguas, Pêcheux e
Fuchs (1997, p.163-164) apresentaram, em 1975, um quadro epistemológico geral para
orientar as pesquisas nessa disciplina. Para os autores, a AD reside na articulação de três
regiões de conhecimentos científicos:
(1) o materialismo histórico como a teoria das formações sociais e de suas
transformações, aí compreendida a teoria das ideologias; (2) a lingüística,
como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação ao
mesmo tempo; (3) a teoria do discurso como teoria da determinação
histórica dos processos semânticos. (...) essas três regiões são, de um certo
modo, atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade, de
natureza psicanalítica.
Enquanto a Lingüística se constitui pela afirmação da não transparência da
linguagem, a AD procura mostrar que a relação entre linguagem, pensamento e mundo não
é direta. Ela pressupõe que o homem ao fazer história, não a faz de forma transparente, há
materialidade na forma lingüístico-histórica que produz sentidos. A linguagem não é
compreendida somente como uma estrutura, mas também como acontecimento. Se a AD
engloba três regiões de conhecimento: Psicanálise, Lingüística e Marxismo, não o faz de
modo subserviente. Pelo contrário, trabalha uma noção de discurso não reduzida ao objeto
da Lingüística, não se deixa absorver pela teoria marxista e nem corresponde ao que
teoriza a psicanálise. Distingue-se da Lingüística, porque re-introduz a noção de sujeito e
de situação na análise da linguagem; distingue-se do marxismo, porque os fatos histórico-
materialistas analisados em um discurso reivindicam sentidos; e da psicanálise, distingue-
se porque o sujeito discursivo é constituído histórica e socioideologicamente pela
linguagem (é efeito-sujeito), ao passo que o sujeito da psicanálise é efeito da linguagem.
55
A apreensão dos aspectos ideológicos e históricos inscritos no texto perpassa os
estudos lingüísticos. Na dispersão dos acontecimentos e transformação de outros discursos
que se modificaram, sem deixar, contudo, de guardar as marcas dos enunciados que o
precederam e que o sucedem, caracterizados pela contradição, encontramos elementos que
contribuem para nos esclarecer acerca dos princípios formadores do discurso. Nessa
direção, Pêcheux (1997b, p. 314), reportando-se a Foucault, no que concerne ao conceito
de formação discursiva (FD), comenta que
o dispositivo da FD está em relação paradoxal com seu “exterior”: uma FD
não é um espaço estruturalmente fechado, pois é constitutivamente
“invadido”por elementos que vêm de outro lugar (isto é, de outras FD) que
se repetem nela, fornecendo-lhes suas evidências discursivas fundamentais.
Percebemos, então, que a formação discursiva se faz num continuum, isto é, está
sempre num circuito tensivo. Todo discurso é resultado de um dito anterior, não percebido
porque foi apagado e que é sempre um nunca dito. É no interior desse dito/não-dito, que a
unidade e a dispersão se constituem, sem se oporem e se forma uma regularidade pela
constância de unidades bem formadas.
Realizar uma análise discursiva, nesse sentido, é penetrar na profundidade dos
enunciados, pois um discurso sempre diz muito mais que os sentidos expressos pelo que as
palavras aparentam dizer. Para Foucault (1995a, p. 31),
trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua
situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites
da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros
enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de
enunciação exclui.
Na visão de Foucault (1995a, p.143), a análise discursiva visa a definir um
conjunto de condições de existência e não uma análise do sentido, pois, o discurso como
prática, é uma instância da linguagem que relaciona a língua com outra coisa, a qual não é
lingüística e que se chama “prática discursiva”.
56
Não a podemos confundir com a operação expressiva pela qual um
indivíduo formula uma idéia, um desejo, uma imagem; nem com a
atividade racional que pode ser acionada num sistema de inferência; nem
com a "competência" de um sujeito falante quando constrói frases
gramaticais; é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre
determinadas no tempo e no espaço, que definiram, numa dada época, e
para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as
condições de exercício da função enunciativa. (FOUCAULT, 1995a, p.
136).
Ao inscrever-se no textual, a história adquire uma materialidade lingüística que está
inscrita na ordem do discursivo, uma vez que o discurso não é a fala, simplesmente, nem a
prática dessa fala, no sentido pragmático (praticar atos de fala), mas na prática da
linguagem que produz sentidos transformando ou intervindo na realidade.
As vozes da história são audíveis e visíveis nas formas cristalizadas nos
gêneros discursivos. Os textos literários, os políticos, os religiosos, os da
mídia etc. são lugares de produção de sentidos. Cada um deles é
determinado pelas coerções genéricas, por um modo de dizer; e, ao mesmo
tempo, é determinado historicamente pelas formações discursivas que
regulam o que se pode e se deve dizer em certa época. (GREGOLIN, 2000,
p. 10).
Nessa concepção, a língua é articulada com a história e o sujeito discursivo não é
responsável pelo engendramento do discurso, assim como o sentido não vem fixado nas
palavras, somente pode ser estabelecido por meio da interação entre os interlocutores.
Nesse caso, o sujeito fala de um lugar discursivo marcado por uma formação discursiva
interligada a uma formação ideológica. Ou seja, é pela e na história que o sujeito
discursivo se constitui e se significa e dessa forma podemos compreender que é na/pela
ideologia que fazemos relações entre as palavras e as coisas.
Não havendo sentido sem interpretação, fica atestada a presença da ideologia que
se materializa na linguagem por fazer parte do seu funcionamento. A compreensão que a
AD tem da ideologia (seu funcionamento imaginário e sua articulação material com o
inconsciente por meio da linguagem) nos leva a ter uma maior compreensão sobre a
constituição dos sentidos. Levando em conta que, para Michel Pêcheux, a significação é
57
pensada como uma relação que a língua tem com o inconsciente, de um lado, e com o
interdiscurso (a ideologia), de outro, Orlandi (1998, p. 63) expõe que
Esta ligação material se faz pela relação comum com a língua. Em outras
palavras, a compreensão do lugar da interpretação nos esclarece a relação
entre ideologia e inconsciente, tendo a língua como lugar em que isso se dá
materialmente. A ordem simbólica, configurada pelo real da língua e pelo
real da história, faz com que tudo não possa ser dito e, por outro lado, haja
em todo dizer uma parte inacessível ao próprio sujeito.
A conjunção da língua com a história se dá unicamente pelo funcionamento da
ideologia, segundo Gadet e Pêcheux (2004, p. 64), que trabalha a história como lugar
contraditório onde os equívocos se materializam.
O que afeta e corrompe o princípio da univocidade na língua não é
localizável nela: o equívoco aparece exatamente como o ponto em que o
impossível (lingüístico) vem aliar-se à contradição (histórica); o ponto em
que a língua atinge a história. A irrupção do equívoco afeta o real da história.
O projeto da AD concentrou-se arduamente no trabalho conceitual do fato da
ideologia e inconsciente encontrarem-se materialmente ligados na ordem do significante da
língua. Pêcheux (1997a, p. 301) particulariza essa relação dizendo que “a ordem do
inconsciente não coincide com a da ideologia, o recalque não se identifica nem com o
assujeitamento nem com a repressão, mas isso não significa que a ideologia deva ser
pensada sem referência ao registro inconsciente”.
Para ampliar a reflexão sobre o discurso em “Calabar, o elogio da traição”, fez-se
necessário rever as condições históricas em que foram inseridos os acontecimentos
inscritos e materializados em uma memória discursiva, pois o assunto em questão, a
produção de sentidos na análise do discurso, requer que se busquem as condições de
produção como causa do fato externo que se quer interpretar. Assim, o texto histórico que
se buscou contextualizar na análise não teve outro propósito, senão o de assinalar o
acontecimento que desencadeou no monumento histórico. Nesse caso, o texto que fala
58
sobre a personagem histórica “Calabar” é um atestado do fato histórico ao qual nos
remetemos. Ou seja, nas palavras de Achard (1999, p. 16),
na hipótese discursiva [...] o atestado constitui um ponto de partida, não o
testemunho da possibilidade de uma frase, e a memória não restitui frases
escutadas no passado, mas julgamentos de verossimilhança sobre o que é
reconstituído pelas operações de paráfrase.
Para a efetivação da análise que nos dispomos a fazer, a importância da história se
dá justamente porque as mudanças sociais se fundam no contexto histórico e estão
intimamente ligadas às mudanças que ocorrem na língua. A volta ao passado para
reatualização dos acontecimentos por meio dos documentos impressos nos permite
sistematizar lingüisticamente os dados que desejamos investigar.
Salientamos, no entanto, que a proposta deste trabalho aponta para um conceito de
história em que a produção de sentidos se define por sua relação com a linguagem. Não
está ligada à cronologia, mas às práticas sociais. É determinada por meio das relações de
poder e é no discurso que deixa de ser entendida como evolução, apenas. É no discurso que
todo fato histórico significa e é passível de interpretação. Na busca pela compreensão de
como os sentidos são produzidos num discurso, a historicidade (modo como a história se
inscreve no discurso) se apresenta como a relação constitutiva entre a linguagem e a
história. Recorremos a Orlandi (2003, p. 68) para melhor compreensão desse fator:
Quando falamos em historicidade, não pensamos a história refletida no
texto, mas tratamos da historicidade do texto em sua materialidade. O que
chamamos historicidade é o conhecimento do texto como discurso, o
trabalho dos sentidos nele. Sem dúvida, há uma ligação entre a história
externa e a historicidade do texto (trama de sentido nele), mas essa ligação
não é direta, nem automática, nem funciona como uma relação de causa-e-
efeito.
Na interpretação do texto “Calabar, o elogio da traição”, busca-se na memória
suposta pelo discurso reconstruído na enunciação, não a forma colocada pelo enunciador,
59
mas como a operação que o autor
24
faz do “já dito” um “jamais dito” em um outro dito.
Ou seja, buscam-se, na memória histórica do discurso, os elementos que possibilitaram o
sujeito enunciador exteriorizar um discurso outro em que o sentido se produziu no espaço
da interlocução, descentrada do “eu” e do”outro”.
Concepções teóricas de natureza filosófico-lingüística, como as apresentadas por
Bakhtin (1995), também contribuem para pesquisas como esta, no sentido de fornecer
elementos para uma reflexão e análise da ideologia circunscrita nas duas épocas, visto que
o conceito de signo ideológico apregoado por Bakhtin (1995) diz respeito à significação
realizada socialmente na interação entre indivíduos, nas relações dialógicas entre o
indivíduo e a sociedade. A comunicação verbal, sendo um processo ativo de interação
entre seus interlocutores, é dinâmica, fazendo com que o discurso possua significações
diversas, refletindo as diferentes ideologias nela demarcadas. A esse respeito,
Maingueneau (1997, p. 38) se pronuncia, argumentando que “um enunciado ‘livre’ de
qualquer coerção é utópico”. Outrossim, podemos dizer que o discurso é uma das
instâncias em que a materialidade ideológica se concretiza. Tendo-se noção de base
lingüística e do processo discursivo-ideológico que se desenvolve sobre a base das leis
internas do sistema lingüístico, pode-se reconhecer que a língua constitui, assim, a
condição de possibilidade do discurso. Pode-se reconhecer, também, que os processos
discursivos constituem a fonte da produção dos efeitos de sentido no discurso que se
materializam na língua.
A língua não é um sistema de etiquetas que se presta a nomeações, embora esse
pensamento tenha atravessado a história do pensamento ocidental. As coisas existentes no
24
Conforme noção de autor resumida dessa forma por Foucault (2001a, p. 279-280) “a função do autor está
ligada ao sistema jurídico e institucional que contém, determina, articula o universo dos discursos; ela não se
exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de
civilização; ela não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de
operações específicas e complexas; ela não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode dar lugar
simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem vir a
ocupar”.
60
mundo preexistem à linguagem e essa, por sua vez, produz o sujeito discursivo que por
meio de suas práticas lingüísticas constrói “versões públicas do mundo” (MONDADA &
DUBOIS, 2003, p.17). Dessa forma, os discursos vão produzindo uma verdade ao longo do
tempo e para compreendê-la, recorremos à metáfora da arqueologia de Foucault: é preciso
escavar nossa história para conhecer como nosso saber se constitui por meio dos
enunciados produzidos historicamente. Tentaremos encontrar meios para essa escavação
estudando aspectos da memória e da interdiscursividade no próximo tópico.
3.7. Da Babel para o discurso: Memória, uma questão da interdiscursividade
Buscamos, nesse espaço, tornar claro alguns pontos obscuros da nossa exposição,
até mesmo para fazer jus ao título que colocamos nesse segmento. Em “as palavras e as
coisas”, Foucault (2000a, p. 51-52) assevera que
Há uma função simbólica na linguagem: mas desde o desastre de Babel,
não devemos mais buscá-la – senão em raras exceções – nas próprias
palavras, mas antes na existência mesma da linguagem, na sua relação total
com a totalidade do mundo, no entrecruzamento de seu espaço com os
lugares e as figuras do cosmo.
Retomamos a questão da história em Foucault (2000b, p. 75),
Porque em nossa cultura, pelo menos há vários séculos, os discursos se
encadeiam sob a forma de história: recebemos as coisas que foram ditas
como vindas de um passado no qual elas se sucederam, se opuseram, se
influenciaram, se substituíram, se engendraram e foram acumuladas. As
culturas “sem história” não são evidentemente aquelas nas quais não
haveria acontecimento, evolução, nem revolução, mas nas quais os
discursos não se acumularam sob a forma de história; eles se justapõem;
eles se substituem; são esquecidos; transformam-se. Pelo contrário, em uma
cultura como a nossa, todo discurso aparece sobre um fundo de
desaparecimento de qualquer acontecimento.
O aparecimento de um discurso, como mostra Foucault, não decorre do nada.
Existe uma memória histórico-social na qual se insere e que só entra em funcionamento
quando é reenquadrada por formulações em um discurso concreto. A representação da
memória tem sido feita por meio das narrativas mítica e histórica e, subjacentes a essas
61
formas de se narrar o passado, estão três tipos de memória: a memória mítica, a memória
social e a memória construída pelo historiador. A respeito da memória social, que é a mais
pertinente para esta pesquisa, Gregolin (2000, p. 21-22), com base em Pêcheux, nos
esclarece que
A memória social, inscrita nas práticas de uma sociedade, constrói-se no
meio-termo entre a atemporalidade do mítico e a forte cronologia do
histórico; isto porque, apesar de determinada pela ordem do histórico, não
chega a ser, como esta, uma memória construída, ordenada e sistematizada.
Para enxergá-la é necessário buscar os signos de auto-compreensão da
sociedade para posteriormente interpretá-la. Por isso, trata-se, antes, de um
estatuto social que a memória adquire no corpo da coletividade e que
produz as condições para o funcionamento discursivo e, conseqüentemente,
para a interpretabilidade do texto.
Dessa forma, o enunciado de um discurso qualquer provém de uma exterioridade a
que chamamos memória discursiva. Mas não da mesma forma como lá fora colocado:
retorna sob a forma do pré-construído; vem ressignificado, pois que é outro momento,
outro lugar na história e por isso mesmo possível de ser compreendido. Segundo Ricoeur
(1988), conseguimos nos entender socialmente porque essa inteligibilidade é “o maior
desvio, o da grande memória que retém o que se tornou significante para o conjunto dos
homens”. Não dizemos o que dizemos de qualquer forma, para qualquer pessoa e em
qualquer lugar. Um discurso se forma de maneira regrada no interior de um interdiscurso.
É importante esclarecer que o termo “interdiscurso” é aqui tomado no sentido que lhe dá
Courtine (1999, p. 18):
série de formulações, marcando, cada uma, enunciações distintas e
dispersas, articulando-se entre elas formas lingüísticas determinadas
(citando-se, repetindo-se, parafraseando-se, opondo-se entre si,
transformando-se...). É nesse espaço discursivo, que se poderia denominar,
seguindo Michael Foucault, ‘domínio de memória’, que se constitui a
exterioridade do enunciável para o sujeito enunciador na formação dos
enunciados pré-contruídos, de que sua enunciação se apropria.
Dessa forma, o interdiscurso é compreendido como o conjunto das formações
discursivas e intervêm na constituição e organização do discurso, determinando
62
materialmente o efeito de encadeamento e articulação, aparecendo como o já-dito. No
caso, a análise do texto inserido em um discurso marcado socioideologicamente tem, no
interdiscurso, o objeto de onde se buscou apreender a interação entre formações
discursivas, pois, segundo Maingueneau (1997, p. 120): “Dizer que a interdiscursividade é
constitutiva é também dizer que um discurso não nasce como geralmente é pretendido, de
algum retorno às próprias coisas, ao bom senso, etc., mas de um trabalho sobre outros
discursos”. Outrossim, ao pretender analisar as possibilidades dos sentidos de traição nos
enunciados de “Calabar, o elogio da traição”, buscamos no conceito de formação
discursiva em Foucault (1995a, p. 43), o entendimento necessário para o cumprimento de
nossa empreitada:
No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,
semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os
tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir
uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação
discursiva.
Assim, ao nos referirmos à traição em “Calabar”, estaremos falando sobre a
formação discursiva referente à época da ditadura militar, pois, conforme Fernandes (2005,
p. 53), “ao falarmos sobre formação discursiva, referimo-nos ao que se pode dizer somente
em determinada época e espaço social, ao que tem lugar e realização a partir de condições
de produção específicas, historicamente definidas”.
Ao afirmarmos que todo discurso provém de uma memória discursiva, poderíamos
imaginar o caos instalado nesse simbólico lugar. Porém, conforme vamos discorrendo
sobre a teoria, percebemos que há uma estrutura nessa rede que propicia o discurso.
Podemos dizer, portanto, que a memória discursiva não designa uma torre de Babel, mas o
espaço de memória como condição do funcionamento discursivo
constituída de um corpo-sócio-histórico-cultural. Os discursos exprimem
uma memória coletiva na qual os sujeitos estão inscritos. Trata-se de
acontecimentos exteriores e anteriores ao texto, e de uma
63
interdiscursividade, refletindo materialidades que intervêm na sua
construção. (FERNANDES, 2005a, p. 60-61).
Podemos, dessa forma, partir para o trabalho das análises no próximo segmento,
buscando, nos deslocamentos de sentidos, os saberes e poderes que as escavações poderão
mostrar.
64
4 DESLOCAMENTO DE SENTIDOS
Nesta seção, analisamos alguns recortes da obra “Calabar, o elogio da traição”,
segundo proposta metodológica da AD.
4.1 História e Memória no (inter)discurso de uma canção
Como já foi mencionado anteriormente, a peça, ora em estudo, é uma tragicomédia
alegórica referente à história da invasão holandesa no Brasil, no século XVII. Abordando a
questão da traição de Calabar, o texto remete ao estado político do país, naquele momento
em que foi escrita: o ano de 1973. Devido à censura e à repressão desse período, o
emprego da alegoria histórica se configurou em um interessante campo representativo para
uma análise discursiva, uma vez que a linguagem empregada representa, estrategicamente,
nesse texto, uma forma de luta contra a censura federal.
Na peça de teatro em análise, a personagem que representa a mulher de Calabar,
Bárbara, conduzirá a trama até o final. Visando a entender o seu homem, ela mergulha
intensamente no mundo da traição. Para isso, vive a traição de uma maneira muito
concreta: mantém relações com Anna de Amsterdã, a prostituta que veio com as tropas
holandesas para o Brasil e que se apaixonou por Bárbara; acaba se entregando também a
Sebastião Souto, o homem que traiu Calabar, denunciando-o aos portugueses, pois, “estar
com o homem que traiu Calabar talvez seja uma maneira de estar mais perto dele”
(BUARQUE; GUERRA, 1973, p. 93) diz ela.
Após a morte de Calabar, Bárbara se reencontra com Souto, em Recife, no lado dos
holandeses. Admirada, pergunta-lhe por que está se expondo, do lado de seus inimigos.
Souto diz-lhe que viera buscá-la. Os dois têm um diálogo tenso e acabam se amando. Após
o ato, Bárbara o obriga a dizer o nome de Calabar, e o chama de delator, alcagüete... É
neste momento que principia a entoar a canção cuja letra ora se analisa:
65
“Ele era mil
Tu és nenhum”
No texto, uma anáfora pronominal (categoria lingüística selecionada para a análise)
representa a referenciação que se faz a Calabar, figura ausente que se faz presente como
construto cultural alimentado pela atividade lingüística (MONDADA; DUBOIS, 2003).
Assim, em um processo de construção discursiva do referente, a anáfora assegura uma re-
atualização. Silenciando o que não pode ser dito, proporciona uma cumplicidade entre os
interlocutores (personagens, leitores e espectadores) que, na conjuntura da apresentação da
peça (que foi proibida nos anos 70 do século XX), podem re-semantizar “ele” como aquele
que luta pela liberdade, que enfrenta a milícia e não se intimida frente às opressões
psicológicas e agressões físicas. O texto oportuniza essa interpretação por deixar
vislumbrar em seu interdiscurso o “diálogo” entre momentos diferentes da História. Assim,
a recorrência ao passado para dizer o presente reitera o entendimento de discurso como a
materialização do processo enunciativo em cuja materialidade lingüística irrompe a
articulação da língua com a História. Em sua emergência, o acontecimento enunciativo
promove o estabelecimento de relações discursivas com outros discursos e o evento de seu
retorno não vale pela repetição, como afirma Foucault (1999, p. 26): “O novo não está no
que é dito, mas no acontecimento de sua volta”.
A evocação do nome “Calabar”, anaforizado na canção, mostra como formações
imaginárias resultam de processos discursivos anteriores, pois ninguém fala a partir do
nada, existe sempre o fator histórico determinando a fala e uma memória discursiva
possibilitando a atualização dos dizeres no momento da enunciação. Assim, pode-se dizer
que a anáfora pronominal “ele” possibilita a ressignificação da personagem histórica
“Calabar” e que a menção à sua figura, não remete propriamente à figura de um traidor,
embora, como já foi dito quando se mencionou que a peça trata de uma tentativa de rever
66
os fatos com outros olhos, não se trata também de uma de reabilitação da personagem, mas
o que nos parece mais pertinente em nossa leitura é a tentativa de mostrá-la, comparando-a
ao seu delator, “Souto”, o interlocutor que, no caso, bem poderia ser o público do teatro.
O elemento que nos possibilita fazer essa interpretação encontra-se no próprio
contexto da peça, quando a personagem Bárbara, logo na abertura, entra encarando o
público, pedindo-lhe a atenção: “Não a atenção que costumais prestar aos charlatães, aos
intrujões e aos bobos da rua”. Deste enunciado pode-se depreender que a atenção desejada
era a atenção dos espertos, dos que não se deixam enganar. A chamada para a atenção do
que não era sacramentado se deve, possivelmente, ao fato de que não era o sagrado o que
importava ser questionado, ou ao fato de o sacro ter sempre sido ouvido como verdade
incontestável por muitas pessoas. Naquele momento importava chamar a atenção para a
realidade mundana e não para o etéreo. Por esse motivo, a atenção requerida pode ser
interpretada como a atenção que nos coloca em alerta contra os falsários, contra os que nos
iludem, que nos enganam.
O tempo presente do verbo coincidente com o momento da enunciação dirigida ao
interlocutor e o emprego do verbo no pretérito ao referir-se à anáfora pronominal vem
confirmar como a construção do sentido no que se refere à temporalidade é produzida pela
enunciação, como podemos verificar em Benveniste (2001, p. 25): “Da enunciação procede
a instauração da categoria do presente, e da categoria do presente nasce a categoria do
tempo”. Nesse sentido, ao recorrer à categoria verbal no pretérito para trazer a presença de
Calabar, o locutor re-atualiza o passado, não é o passado que volta, mas o seu significado
re-semantizado. Era preciso que as pessoas percebessem o que estava acontecendo na vida
sociopolítica do país e aquela forma de chamar a atenção preparava o espectador/leitor do
texto para o entendimento.
67
Uma leitura possível da ideologia imersa no texto vem revelar-se na análise
discursiva, pois, dadas as circunstâncias históricas no momento da produção, o texto
permite interpretar a materialidade discursiva como um apelo para o espectador/leitor
tomar uma atitude (BOLLE, 1980, p. 98). Afinal, se “ele” (Calabar), pela ousadia, era mil
(termo caracterizado como aquele ou aquilo que em uma série de mil, ocupa o último
lugar), o interlocutor “tu” (Solto ou o espectador/leitor) és
nenhum (indefinido, nem um
és), por estar indiferente, por se deixar manipular.
A figura de Bárbara, nesta canção, atua como a de uma intermediária daquilo que
os autores não podem dizer explicitamente. O lugar histórico-social em que os sujeitos
enunciadores se encontram no momento da produção envolve um contexto de repressão. A
ditadura militar encontrava-se no auge das proibições e as ações sociais, aqui
compreendidas como manifestações públicas que envolvessem atos ou manifestações
políticas, principalmente quando referentes à memória nacional, eram terminantemente
censuradas. Daí que os sentidos do texto somente serão apreendidos se houver
entendimento do contexto histórico em que o mesmo é produzido.
“Na guerra és vil
Na cama és mocho”
A vileza atribuída ao interlocutor por meio da condição morfossintática do verbo
relacional, já que liga o predicativo ao interlocutor, e o fato do verbo “ser” encontrar-se no
modo indicativo, aponta para o entendimento de uma certeza daquilo que está sendo
afirmado, ou seja, na movência dos sentidos daquilo que está sendo dito para o
interlocutor, na peça. Assim como Souto traiu a confiança de Calabar, denunciando-o aos
portugueses o enunciado pode estar ao mesmo tempo sendo dirigido aos ditadores, por
traírem a confiança do povo brasileiro e também aos espectadores/leitores, grande parte da
68
sociedade que a tudo assiste e aceita sem questionar. Portanto, “mocha”, desprovida de
“cornos”, desarmada, sem argumentos para um embate.
O refrão: Tira as mãos de mim
Põe as mãos em mim...
No primeiro verso, o verbo “tirar” no modo imperativo, em oposição ao verbo
“pôr”, traz o sentido de ordem em seu conteúdo morfológico e produz efeitos de sentido
que podem ser interpretados pela sensualidade do movimento de uma cópula sexual
(tira/põe), quando relacionamos o enunciado a Souto que, amante, pode estar sendo
provocado pela amada que o rejeita. Também podemos significar esse refrão a um
confronto que se quer mostrar ao leitor/espectador, da reação cabível a um cidadão que luta
contra um governo ditador. Se o relacionarmos aos agentes opressores, que invadiam
ambientes e tentavam impor pela violência uma “ordem” idealizada pelo governo militar
dos anos 70, principalmente aos intelectuais da época, o sentido do imperativo “
tira as
mãos de mim” parece uma ordem para os censores, guardiões da ideologia militar, deixar
os intelectuais fazerem o seu papel (pensar e discutir a sociedade).
Vendo-se livres dos agressores, continuariam a levar os seus leitores/espectadores a
refletirem sobre os acontecimentos, pois os autores sabem, e isso podemos dizer pela
reconhecida formação intelectual que possuem, que é na desinformação que a consolidação
de um regime ditatorial se fortalece. Como num jogo em que adversários se encontram e se
defrontam em uma disputa pelo poder, a ordem, dirigida aos agentes do governo militar,
tenta demovê-los da ação e ao mesmo tempo, na seqüência dos versos seguintes, tenta
provocá-los para que possam sentir que também eles estão sendo manipulados ao
executarem ordens sem refletir no que elas significam. O lugar sócio-histórico-ideológico
dos interlocutores do texto permitirá (ou não) o entendimento dos sentidos deslocados,
dirigidos a interlocutores diversos e, ao mesmo tempo, transmutáveis, pois em um
69
momento o “tu” é Souto, ao mesmo tempo em que pode ser o espectador/leitor. Em outro
momento, o “tu” é Souto, mas pode ser também o opressor.
No segundo verso do refrão: “põe as mãos em mim”, o sentido é completado pela
seqüência nos versos seguintes e o verbo “pôr”, também no modo imperativo, já não
aparece como ordem, mas como uma súplica, pois urge a necessidade de se fazer algo e o
imperativo, em forma de súplica, apela para o ouvinte/leitor tomar uma atitude imediata.
“E vê se o fogo dele
Guardado em mim
Te incendeia um pouco”
A metáfora, no contexto histórico em que se insere, possibilita ser interpretada
como um convite direcionado ao espectador/leitor da canção a animar-se, a rever sua
situação de oprimido e rebelar-se com o que está estabelecido como correto na sociedade
vigente. Ao mesmo tempo em que é a voz de Bárbara falando com o amante assassino de
seu marido, é a voz dos autores (Chico e Ruy) intermediada pela sua atuação como
protagonista, estimulando o espectador/leitor a inflamar-se ao menos um pouco com a
idéia sugerida por meio daquele texto. A expressão “o fogo dele guardado em mim” mostra
a sensualidade de uma paixão guardada em um corpo desejoso de/saudoso por sexo. Ao
mesmo tempo, a fala de Bárbara parece dizer que ela é a guardiã do fogo da ousadia de
Calabar que não quis submeter-se às ordens da coroa portuguesa (embora estivesse se
submetendo a um outro colonizador). O “fogo dele” pode ser entendido como uma força
entusiástica que pode ser transmitida para todos que quiserem se lançar na luta pela
liberdade de escolher por quem deseja ser governado e contra a opressão ditatorial. Daí
podermos considerar a ordem de Bárbara, seguida de súplica, como um alerta para uma
nova forma de pensar sobre o que está sendo imposto e como um propósito de sensibilizar
o leitor/ouvinte para contribuir com aqueles que já haviam dado ou que estavam dando
70
suas próprias vidas, lutando pela democracia. Quem sabe se os leitores/espectadores
refletissem sobre a história de Calabar, narrada conforme o olhar de quem a registrou, do
seu tempo, seu “status” social, da sua ideologia, não pudessem atribuir outros sentidos,
pois, de acordo com De Certeau (2002, p. 56), “a história atesta uma autonomia e uma
dependência cujas proporções variam segundo os meios sociais e as situações políticas que
presidem à sua elaboração”.
Para os historiadores tradicionais, a História é tida na sua essência, como uma
exposição dos acontecimentos, já na história nova, a preocupação dos historiadores está
centralizada na análise das estruturas. Ou seja, a história, considerada anteriormente
imutável, é agora vista como construção cultural, que pode variar tanto no tempo quanto no
espaço, conforme Burke (1992, p. 11), ao afirmar que “a base filosófica da nova história é
a idéia de que a realidade é social ou culturalmente constituída”.
Na letra da canção:
“Éramos nós
Estreitos nós
Enquanto tu
És laço frouxo”,
o emprego da antanáclise, jogo de palavras homônimas (pronome x substantivo ou sujeito
x predicativo), estabelece uma relação semântica em que o significado do substantivo se
mistura com o significado do pronome (união, ligação, vínculo, eu + ele). “Nós éramos
estreitos nós” revela uma forte ligação anterior, agora desfacelada pela situação atual.
Havia entre nós (o povo) uma fusão de forças e agora, “tu” (vocês todos), em relação aos
interlocutores (personagem/leitor e espectador), és “laço frouxo”, sem compromisso, que
não tem resistência, fácil de ser comandado. O pronome pessoal “nós” é inclusivo, mas não
71
inclusivo do todo, uma vez que exclui o pronome “tu” que, sendo o elemento da
referenciação nessa interlocução, participa mudo.
Tanto a personagem Souto, quanto o espectador/leitor encontram-se fora do círculo
em que se estreitam os ideais do enunciador. O antes, sinalizado pelo verbo no pretérito,
proporciona a leitura de que os movimentos revolucionários dos estudantes e intelectuais
não temiam o enfrentamento e eram solidários e unânimes na defesa radical e até mesmo
desesperada, que os levaram a se lançarem à luta armada por falta de alternativas. A
resistência engajada se fortalecia no desejo de que a população pudesse se unir contra a
ditadura militar e a censura imposta pelo governo ditatorial contribuiu para uma formação
discursiva como a do texto que se analisa. Muitos escritos foram produzidos sinalizando
esse período. Neles, o medo é uma constante e é dessa forma que podemos perceber o
interlocutor (Souto, leitor/espectador) quando Bárbara dirige-lhe a palavra, agora
identificada pelo verbo ser no tempo presente: “tu és laço frouxo”. O pronome “tu”
dicotomizou-se e não está incluído no “nós”. E sós (Souto, espectador/leitor) tornam-se
frouxos, medrosos.
A forma encontrada para a interlocução com o espectador/leitor não mostra o fato
que está ocorrendo no presente do texto, não é uma tradução do fato histórico ocorrido. O
discurso utilizado embute outra história, outro dito, jamais dito, que se ocupa do fato
histórico fornecido pela história tradicional de forma intradiscursiva, fazendo irromper o
não dito. Para nos esclarecer a respeito do acontecimento histórico, Foucault (1995a, p. 8)
diz que
A história, em sua forma tradicional, se dispunha a “memorizar” os
momentos do passado, transformá-los em documentos e fazer falarem estes
rastros que, por si mesmos, raramente são verbais, ou que dizem em silêncio
coisa diversa do que dizem; em nossos dias, a história é o que transforma os
documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros
deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que
tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados,
tornados pertinentes, inter-relacionados, organizado em conjuntos.
72
É correto afirmar, portanto, que um acontecimento histórico pode se tornar um
acontecimento discursivo e que, na análise do discurso, a novidade não está no
acontecimento, mas na sua volta. O caso Calabar, nos anos 1970, passa a monumento
histórico no discurso dessa repressiva época. Segundo Pêcheux (1999, p. 49-50), “um
acontecimento histórico (um elemento histórico descontínuo e exterior) é suscetível de vir
a se inscrever na continuidade interna, no espaço potencial de coerência própria de uma
memória”.
A inscrição material, em uma memória discursiva, do verbal exposto nos versos, ou
seja, do significante da imagem no palco, a nomeação, implica uma interpretação dos
implícitos que, ausentes, se fazem presentes na leitura.
O acontecimento histórico (o caso Calabar) absorvido pela memória é deslocado para
um novo acontecimento (a repressão política), desregulando os implícitos associados ao
sistema de regularização porque foi considerado traidor da pátria. Reunidos, esses
elementos possibilitam uma leitura de que na situação da atualidade do texto analisado, ser
traidor é ser patriota, é não deixar que a liberdade seja destruída. É uma outra ideologia,
diferente daquela que ressoa na memória histórica e social sobre “Calabar”.
Na repetição do refrão, o segundo verso – “põe as mãos em mim” – tem o seu
sentido completado pela seqüência nos versos seguintes: “E vê se a febre dele/ guardada
aqui/ te contagia um pouco”, como uma provocação para o receptor, ou seja, a análise nos
aponta para uma leitura possível de que é preciso contaminar o leitor/espectador para que
ele sinta a urgência de tomar uma atitude. Para Santos (2004, p. 110), “trata-se de uma
representação específica do plano enunciativo em que o analista se coloca. Essa
representação, por sua vez, evidencia uma captação da imagem do “um” no enquadre do
“outro” e vice-versa”. No caso, os efeitos de sentido do texto em que os sujeitos-autores se
inscrevem refletem significações sincrônicas em acontecimentos singulares, isto é, em
73
acontecimentos com uma referência única, que se instaura na dialética que há entre o
simbólico (significação do inconsciente) e a realidade (a ordem dos sentidos). Para De
Certeau (2002, p. 77),
[..] a história se define inteira por uma relação da linguagem com o corpo
(social) e, portanto, também pela sua relação com os limites que o corpo
impõe, seja à maneira do lugar particular de onde se fala, seja à maneira do
objeto outro (passado, morto) do qual fala.
Ao se utilizar de um fato histórico ocorrido em um momento em que o interesse da
nação, do ponto de vista dos colonizadores, se encontrava em jogo, para mostrar uma outra
visão deste fato em um momento em que os interesses nacionais também se encontram em
situação de perigo, agora do ponto de vista do “colonizado”, os autores do texto
conseguem instaurar uma relação de sentido em que o modo enunciativo utilizado permite
organizar a colocação em cena dos protagonistas da enunciação, suas construções
identitárias e suas relações, com auxílio dos procedimentos de modalização, igualmente
denominados “papéis enunciativos”
25
, os quais possibilitam distinguir as operações
linguageiras.
“Por três tostões
Ganhaste um par”.
Souto, platéia/leitores do texto, localizados pela desinência do verbo na segunda
pessoa do singular recebem dessa forma a crítica pelo seu comportamento. Para se
apreender um dos efeitos de sentido desse enunciado, temos que fazer uma relação entre
discurso e história, em especial ao conceito de descontinuidade da história, marcada pela
dispersão de acontecimentos, como nos aponta Foucault (1995a, p. 29): “é preciso estar
pronto para acolher o discurso em sua irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade e
dispersão temporal”. O enunciado, em sua unidade e dispersão não é apreendido em sua
completude. A compreensão da existência desse enunciado provém do entendimento de
25
De acordo com Charadeau e Maingueneau (2004, p. 338) a respeito do modo de organização do discurso.
74
enunciados efetivamente produzidos em épocas determinadas, das formações discursivas
historicamente marcadas que esses enunciados integram. O sentido cristalizado da
“traição” de Judas, simbolizada por “três tostões”, refere-se ao fato de Judas Iscariotes ter
recebido “trinta moedas de prata”
26
para entregar Jesus Cristo aos judeus.
“Hoje estás só,
Eunuco e coxo”
O valor persuasivo da metáfora empregada transfere analogicamente para a
personagem/leitor/espectador, representados pela desinência verbal, o poder decisório para
a adesão à proposta que se quer seja aceita. O impedimento de agir livremente produz um
desequilíbrio sócio/cultural que qualquer sociedade humana deve rejeitar, principalmente
se souber que os direitos sociais são construções discursivas dadas histórica e
ideologicamete e, por isso mesmo, passíveis de adequações que favoreçam a comunidade
social e não que a prejudiquem. Finalmente, após o refrão:
“Vendeste um teu amigo
Até o fim.”
O nome “Calabar”, apontado historicamente como sinônimo de traição, é
substituído na penúltima estrofe por “amigo”. Se pensarmos na dimensão significativa do
radical desse termo, relacionado ao pronome “nós” como unidade inclusiva, podemos
inferir que em outro momento histórico havia relações de estreita comunhão de idéias entre
enunciador e interlocutor, ou seja, o(s) interlocutor(es) estava(m) incluso(s) e no momento
dessa interlocução havia(m) se dispersado e na dispersão dos acontecimentos, a inversão
dos valores nominais fez surgir um discurso outro que esta análise tentou mostrar.
Diferentes momentos históricos são colocados em diálogo no enredo da peça teatral
“Calabar”. Os acontecimentos elevados (ou não) a monumentos históricos vão formando o
26
Conforme Evangelho segundo Mateus 26, 15.
75
tecido discursivo e o fio discursivo somente será compreendido se o relacionarmos ao
interdiscursivo, ao que, não estando presente no enunciado, se faz presente no enunciável
exterior ao sujeito enunciador, conforme nos aponta Courtine (1999, p.19), seguindo M.
Foucault: “É nesse espaço discursivo, que se poderia denominar [...] ‘domínio de
memória’, que se constitui a exterioridade do enunciável para o sujeito enunciador na
formação dos enunciados pré-construídos, de que sua enunciação se apropria”.
Observamos, ao investigar os dados discursivos dos fatos históricos que, quando
analisamos lingüisticamente os processos históricos e as condições de produção dos
enunciados; quando definimos os personagens históricos sob o constructo teórico da
análise discursiva de linha francesa, descobrimos que os efeitos de sentidos produzidos
foram determinados por enunciados efetivamente produzidos em épocas e lugares
determinados, ideologicamente marcados. Como conseqüência, ao trazer o fato histórico
“Calabar”, em que a tradição tornou sinônimo de traidor, o texto trouxe também outras
implicações que a palavra “traição” pode evocar.
Da mesma forma que o efeito de sentido que a palavra “Judas” evoca em uma
cultura cristianizada, a memória interdiscursiva do texto, recorrendo ao passado histórico, à
memória de outros discursos, constitui-se, fundamentalmente, na alusão que se faz a um
cálculo simbolicamente transcrito: Calabar:Judas::Judas:traição, isto é, Calabar está para
Judas, assim como Judas está para traição. Nesse cálculo, a heterogeneidade constitutiva
do discurso dominada pelo interdiscurso no texto de Chico Buarque e Ruy Guerra
demonstra que os sentidos possíveis, apontados, mostraram a inscrição ideológica existente
e os efeitos de sentido produzidos a partir das condições de produção. Os aspectos
lingüísticos materializados no texto indicaram que os sentidos foram extrapolados,
inscritos ideologicamente conforme as formações discursivas percebidas no interdiscurso,
ou seja, no todo complexo do espaço discursivo e ideológico em que se desenvolvem as
76
formações discursivas em função de relações de dominação, subordinação e contradição.
No fio do discurso, o aparecimento do discurso outro evidencia a importância da
perspectiva histórica na constituição do sujeito enunciador.
Na voz da personagem Bárbara dirigida a Souto, além da linguagem amorosa, o
texto, considerando-se sua historicidade, faz também um convite ao leitor/espectador para
que o mesmo reflita sobre sua posição omissa diante dos fatos provocados pela forma de
governo na época, anos 1970. De forma atrevida e provocativa, a personagem dirige-se a
seu amante, mas nele encontra-se o espectador/leitor, povo brasileiro. Dessa forma, no
momento da enunciação do discurso, atualizam-se dizeres emersos em uma memória
coletiva produzindo sentidos. Assim, a historicidade do texto, entendida como a relação
constitutiva entre linguagem e história, nos leva a compreender como os sentidos do texto
foram produzidos, pois a noção de história na AD não está relacionada à cronologia e sim,
às práticas sociais. Ou seja, “todo fato ou acontecimento histórico significa, precisa ser
interpretado, e é pelo discurso que a história deixa de ser apenas evolução” (FERREIRA,
2001, p. 17). Para quantos quiseram entender, “traição” já não era “traição”, pelo menos
naquele momento e circunstância.
Seguindo o pensamento de Pêcheux (1988), de que é na Ideologia (no sentido geral)
que se articulam as propostas teóricas descritivas dos processos de constituição dos
sentidos e dos sujeitos no discurso, articulando-se simultaneamente pela interpelação
ideológica, podemos dizer que é no funcionamento ideológico da língua que os enunciados
do texto dizem o que mascaram as palavras em sua transparência. Analisar as evidências
lingüísticas do funcionamento ideológico da língua em um processo discursivo como o do
texto analisado nos leva a refletir sobre a questão discursiva e o sentido das palavras que,
aparentemente, guardam sentidos outros que as semânticas não têm conseguido explicar.
Em outros termos: “Os frios espaços da semântica exalam um sujeito ardente” (Pêcheux,
77
1997a, p. 30). Tamanha provocação fez com que a peça fosse censurada e a imprensa
impedida de notificar o fato em 1973
27
.
Em suma, para se fazer esse tipo de análise, é necessário romper com as estruturas
lingüísticas, procurar, na exterioridade do discurso materializado no texto, elementos de
uma memória histórico-social constituídos lingüisticamente para trazer à tona o conflituoso
jogo das relações sociais nele (re)produzidos e que se encontram submersos. É o que se
procurou fazer com a análise do texto da canção.
4.2 A autoria: uma relação entre Freis
Tendo em vista as proposições da função-autor fornecidas por Foucault e o
esclarecimento da forma como atua a dispersão dos sentidos, partimos para a análise
retomando as questões colocadas por Foucault (2001a, p. 287): “como, segundo que
condições e sob que formas alguma coisa como um sujeito pode aparecer na ordem dos
discursos? Que lugar ele pode ocupar em cada tipo de discurso, que funções exercer, e
obedecendo a que regras?”, com intuito de seguir-lhe as instruções.
A partir de nossos questionamentos para os questionamentos sugeridos por
Foucault, analisaremos o jogo das dispersões dados pela função-autor na obra literária
escrita para teatro “Calabar: o elogio da traição”, de Chico Buarque e Ruy Guerra.
Delimitaremos essa análise às condições de produção do texto e à sua exterioridade
constitutiva, para refletir sobre a função-autor do texto literário. Utilizando recortes da obra
que focalizam o personagem “Frei Manuel do Salvador”, faremos comparações, em alguns
momentos, dos trechos da obra analisada com a produção de Calado: “O valeroso lucideno
e triunfo da liberdade”, doravante “O valeroso lucideno”.
27
A peça somente foi encenada nos anos 80 - época da abertura política no Brasil.
78
O frei Manuel do Salvador Calado (doravante “Frei” para a personagem do texto
“Calabar, o elogio da traição” e “Calado” para o autor de “O valeroso lucideno”) fez o seu
registro na História. Autor de “O valeroso lucideno”, narrou sua própria versão dos fatos
ocorridos no período da invasão holandesa no Brasil, contribuindo para a construção
mitológica da traição de Calabar. Seu texto foi utilizado para a maior parte das falas da
personagem que o representou, na peça. Seu texto também foi utilizado na construção de
outras personagens (o conde Maurício de Nassau, o governador Mathias de Albuquerque e
o Holandês, figura representativa dos diversos líderes militares holandeses, como major
Picard e Johan Lictard) e de cenas e episódios da peça (a ponte, o boi voador, a morte de
Sebastião do Souto, que traiu Calabar, e outros).
A título de curiosidade, assinalamos que, dentre os textos citados como fonte de
pesquisa para a escrita da obra, Bárbara, a mulher de Calabar, somente é mencionada de
relance, ou seja, são feitas rápidas referências sobre ela. No entanto, no texto de teatro, é a
personagem que vai mediar o discurso entre o sujeito na função autor e leitor/espectador.
No texto de Calado, Bárbara aparece apenas quando Calabar é introduzido na sua
narrativa:
Neste tempo se meteu com os flamengos um mancebo mameluco, mui
esforçado, e atrevido, chamado Domingos Fernandes Calabar, o qual entre
eles, em breves dias, aprendeu a língua flamenga, e travou grande amizade
com Sigismundo Vandscope, governador da guerra, ao qual tomou por
compadre de um filho que lhe nasceu de uma manceba mameluca chamada
Bárbara, a qual levou consigo, e andava com ela amancebado. (CALADO,
1985, p. 55).
A obra “O valeroso lucideno” foi referência fundamental para Chico Buarque e Ruy
Guerra escreverem “Calabar, o elogio da traição”. Apesar de criticado por alguns
historiadores, a obra de Calado é considerada a fonte primária do discurso histórico oficial
luso-brasileiro sobre a invasão dos holandeses. Como o próprio nome indica – o valoroso
lusitano – visa ao engrandecimento dos portugueses que lutaram nas batalhas travadas
79
contra os holandeses. Quanto a Calabar, Calado não o aponta como o único traidor, mas
também não revela o nome de nenhum dos muitos traidores mais influentes e importantes
que dissera haver.
Na construção do texto para teatro “Calabar, o elogio da traição”, foi utilizada a
técnica de colagem, ou seja: trechos, episódios, personagens dos textos históricos foram
recortados e posteriormente remontados para representarem, numa outra linguagem, o
enunciado do sujeito autor, como podemos observar nesse exemplo, em comparação com o
texto de Calado citado anteriormente:
Nesse tempo estava metido com os holandeses um mestiço mui atrevido e
perigoso chamado Calabar. Conhecedor de caminhos singulares nesses
matos, mangues e várzeas, levou o inimigo por esta terra adentro,
rompendo o cerco lusitano, para desgraça de humilhação do comandante
Mathias de Albuquerque. Esse Calabar carregava consigo uma mameluca,
chamada Bárbara, e andava com ela amancebado. (CHICO BUARQUE;
RUY GUERRA, 1973, p. 11)
Dessa forma, parodiando carnavalescamente os textos históricos, vamos entrever no
interdiscurso do texto, um discurso outro promovido pelo sujeito na função-autor.
Buscando na Literatura entendimento dos aspectos da estética pós-moderna, encontramos
em Hutcheon (1991, p. 50) explicações que nos levam a entender que o pós-modernismo
retoma o modernismo e ao mesmo tempo a sua contestação, ou seja, incorpora o
modernismo e critica o passado. Nesse sentido, o emprego da paródia se mostra eficiente:
A paródia parece oferecer, em relação ao presente e ao passado, uma
perspectiva que permite ao artista falar para um discurso de dentro desse
discurso, mas sem ser totalmente recuperado por ele. Por esse motivo, a
paródia parece ter tomado a categoria daquilo que chamei de ‘ex-cêntrico’
daqueles que são marginalizados por uma ideologia dominante.
(HUTCHEON, 1991, p. 58)
Podemos, então, perceber que o sujeito discursivo de “Calabar, o elogio da traição”
assume a postura pós-modernista, não apenas pelo aspecto formal que imprime ao texto,
80
mas também pelo conteúdo expresso da obra, como nos mostra Rocha (2003, p. 27), ao
falar dos requisitos estéticos do pós-modernismo:
recursos como a colagem, a paródia, o pastiche, a alegoria, o
questionamento de conceitos mistificadores através da revisão histórica, a
ausência de teleologia, a invocação do leitor/espectador como interlocutor
da obra, o destronamento de heróis, a problematização dos limites entre
texto e contexto, a relativização da dualidade ficção/realidade, a
simultaneidade e a pluralidade, a fragmentação discursiva, enfim, todos
esses procedimentos se devem na contemporaneidade, sobretudo, a uma
consciência da desreferencialização na sociedade.
Vamos percebendo, ao longo da análise, que não há uma reconstituição do texto de
Calado. Segundo Nunes (2002, p. 40), que pesquisou as obras históricas que
fundamentaram Chico Buarque e Ruy Guerra, Calado assume em sua obra uma visão
teocêntrica. Tudo para ele, o domínio de Portugal pelos espanhóis, a invasão dos
holandeses no Brasil, têm como causa a cobiça, e, do seu ponto de vista, somente uma
intervenção divina resolveria. Em “Calabar, o elogio da traição”, a voz do “Frei” condensa
a voz da elite, e sua volubilidade, como podemos verificar nessa fala de Bárbara: “Como é
que o senhor faz para ser sempre o mesmo... com os portugueses... depois com os
holandeses, com os portugueses, outra vez com os holandeses... Como é que faz com a sua
consciência?” (BUARQUE; GUERRA, 1973, p. 128).
O questionamento feito ao Frei em “Calabar, o elogio da traição” é o
questionamento do sujeito na função autor para o leitor/espectador que, na situação política
dos anos 1970, se preocupava consigo mesmo, com seu bem estar, com o proveito que
poderia obter da situação. Pode ser interpretado, também, pela cobrança de
posicionamento, em relação ao governo militar, da igreja que, historicamente, com raras
exceções, sempre ficou ao lado do poder. Dessa forma, a escolha da figura do único
historiador testemunha-ocular do fato ocorrido para participar como personagem da peça,
provavelmente não aconteceu pela história que contou, mas, principalmente pela dubiedade
81
de seu caráter, uma vez que passou a ser amigo dos holandeses, obtendo privilégios e
usando Deus como escudo para atingir seus propósitos.
A esse respeito, o próprio Calado nos conta que, ao ser ameaçado de excomunhão
pelo bispo baiano, o frei assegurou que só permanecia no meio dos hereges porque “ali
naquele sítio avançado fez mais serviços a Deus, e foi de mais proveito às almas de muitos,
do que o fazia morando fora, e no campo” (CALADO, 1985, p.111). Ao comentar o texto
de Calado, Nunes (2002, p. 44) nos afirma que
Calado dedica uma grande parte de sua narrativa a Nassau. Como no seu
esquema narrativo a dominação holandesa representa o ápice do castigo
divino, o governo nassoviano só pode ser descrito como uma era de
provações. Por outro lado, como o próprio frei declara-se um dos melhores
amigos de João Maurício, algumas qualidades ele precisa encontrar no
conde. Conseqüentemente, o julgamento do frei sobre Nassau é bastante
ambíguo.
Ao trazer a figura de Calado para compor o quadro das personagens como “Frei”,
as palavras adquirem sentidos de acordo com as posições daqueles que as empregam (tanto
na locução quanto na interlocução). O sentido é determinado pelas diferentes formações
discursivas às quais os interlocutores se inscrevem. Assim, as palavras, ainda que sendo as
mesmas, vão adquirir sentidos diferentes.
Calado estava lá e narrou a sua versão de acordo com seu posicionamento, sua
interpretação dos fatos. Entendendo com Orlandi (2003, p. 47) que “é o gesto de
interpretação que realiza essa relação do sujeito com a língua, com a história, com os
sentidos”, podemos inferir que o sujeito, marcado ideologicamente pelas memórias
discursivas que o constitui, ao se colocar na posição da função-autor, re-produz no texto a
relação que tem da ordem simbólica com o mundo. A língua, enquanto efeito lingüístico
materializado na história, produz a discursividade.
Como o sujeito discursivo é constituído por uma interpelação que se dá
ideologicamente pela sua inscrição em uma formação discursiva, produzindo um sujeito de
82
direito, essa forma-sujeito do sujeito discursivo marca o diferencial entre as autorias. Em
“Calabar, o elogio da traição”, temos um fato histórico mostrado numa perspectiva
discursiva contraposta às descrições do fato em “O valeroso lucideno” e nos demais textos
que descreveram o mesmo episódio, conforme Nunes (2002). O discurso do sujeito-autor,
materializado na obra, fornece indícios de ter sido interpelado por uma formação
ideológica que o possibilitou a posicionar-se contrariamente aos interesses políticos da
época.
Um dos indícios que pode ser interpretado como posicionamento contrário ao
governo é a utilização feita do texto de Calado e da transformação de Calado em
personagem da peça, identificado por “Frei”. Como personagem do texto, cabe-lhe o papel
de mostrar como o representante da fala oficial é visto; ou melhor, como a fala oficial não
é digna de crédito (pelo menos naquele momento histórico). Isso podemos verificar na fala
do “Frei”: “Quem trai a Holanda protestante, não trai o Papa” , “traidor é quem trai
Castela” (BUARQUE; GUERRA, p. 42). Tais falas parecem demonstrar que o
teocentrismo e o apego ao governo conduzem sua definição de traição. Por se inscrever em
uma formação discursiva própria do catolicismo, para ele, trair é ir contra o que o
catolicismo prega, contra aquilo que julga correto, devido sua inscrição socioideológica.
A forma como utiliza o já-dito para transformá-lo em um outro dito jamais dito
confere ao sujeito que exerce a função-autor de “Calabar...” transformar a obra em um
acontecimento, uma vez que se estabelece na relação com um discurso anterior apontando
para outro, de modo singular, diferenciado.
Em outros dizeres do “Frei”, na peça teatral, vamos depreendendo sua facilidade
em mudar de lado: “Viva Dom Felipe, rei de Portugal e Castela!” (BUARQUE;
GUERRA, 1973, p. 40) no período em que a Espanha domina Portugal; “Que pessoa
maravilhosa! O sangue real de onde provém o inclina ao bem...(para Nassau)”
83
BUARQUE; GUERRA, p. 70), quando foi convidado por Nassau para morar no palácio;
”Viva... Dom João Quarto, rei de Portugal!” (BUARQUE; GUERRA, p. 98), quando
Portugal se livra do jugo espanhol e o novo rei é coroado.
Em “O valeroso lucideno”, as mudanças de posicionamento do frei são,
demoradamente, explanadas com justificativas. Em “Calabar, o elogio da traição”, os
episódios são recortados e colados próximos uns aos outros, sem as justificativas. Esse
procedimento faz com que o caráter dúbio do “Frei” apareça numa maior dimensão,
fortalecendo a hipótese interpretativa de que a fala oficial não diz a verdade, que ela
encobre interesses outros que não podem ou não devem ser mostrados.
Outro aspecto que a técnica de colagem utilizada nos permite abordar a respeito da
composição do texto “Calabar...” é a utilização do mesmo discurso, em que alterações
sutis, provocam uma outra leitura. Ao ser convidado para morar no palácio holandês,
Calado recusa dizendo:
Lhe convinha viver fora de sua casa [de Nassau] aonde todos notassem seu
modo de proceder, e grandes, e pequenos, fossem fiscais de sua vida, e
costumes, o que não se podia conseguir morando de suas portas adentro,
porque ali ainda que ele comesse meninos, tudo se lhe encobriria por seu
respeito, e ninguém se atreveria a condenar seus erros vendo-o tão chegado
à sua sombra. (CALADO, p. 102-103)
Em “Calabar, o elogio da traição” o “Frei” se desmoraliza ao dizer: “Convém que
eu viva fora de sua casa, onde todos notem meu modo de proceder e sejam todos fiscais de
minha vida e costumes, porque ainda que eu ande a comer meninos...” (BUARQUE;
GUERRA, 1973, p. 84).
Na materialidade lingüística, verificamos que a mudança do tempo verbal do
imperfeito do subjuntivo para o presente do subjuntivo, alterando o sentido do texto, não é
um processo intencional simplesmente, ou seja, não é porque o sujeito quer fazer
determinada coisa que ele o faz. A bem dizer, o sujeito tem a ilusão de fazer o que quer.
Existem formações discursivas constituindo o ideológico do sujeito discursivo que o faz re-
84
produzir o texto dando-lhe outra significação. É a constituição do sujeito na história de sua
memória discursiva que lhe permite esse dizer. Também o emprego das reticências vão
favorecer um entendimento malicioso da colocação do “Frei”, uma vez que ele não conclui
o pensamento, deixando a complementação da idéia por conta do leitor/espectador. Ao
utilizar esse recurso, o discurso do texto aponta para a questão da imoralidade que ocorre
no meio religioso e que volta e meia é assunto da mídia. E esse problema fica exposto em
“Calabar, o elogio da traição”. Quem sabe para alertar os leitores/expectadores a
desconfiarem da falsa moralidade que muitos religiosos pregam em seus discursos?
Certamente existem muitos outros aspectos da língua(gem) do texto que poderiam
ser mencionados acerca desse tema recortado para falar da autoria. No entanto, como a
linguagem é um assunto sem fim, não poderíamos colocar um ponto final sem antes nos
lembrarmos que “a linguagem estendida ao infinito é sempre retirada do jazigo, é
duplicada e reduplicada, e a ele retorna para as suas reduplicações ao infinito, em um
indefinido jogo de entrecruzamento de discurso e de sentido” (FERNANDES, 2005b, p. 8).
Diremos que falar de questões relacionadas ao sujeito, sentido e função-autor é
tarefa assaz melindrosa, no sentido dos cuidados que o assunto requer. A constatação da
ausência do sujeito autor na obra, como preconizado por Barthes (a morte do autor),
possibilita-nos empenhar em uma busca pela localização do espaço vago que o
desaparecimento do autor deixou “seguir atentamente a repartição das lacunas e das falhas
e espreitar os locais, as funções livres que essa desaparição faz aparecer” (FOUCAULT,
2001a, p. 271). Ao percorrermos esse caminho, várias presenças (indícios de presença) vão
se assomando e assim vamos fazendo ligações, tecendo outros discursos, num processo
infindável (pelo menos é o que a teoria nos possibilita pensar, no momento).
Como vimos nessa breve exposição, em todo o percurso histórico-lingüístico
encontramos a preocupação dos teóricos com o sujeito e sua função na produção de
85
sentidos. Em razão do exposto e consciente de que essa história não pode acabar por aqui,
também teço minhas próprias conclusões: o homem estará sempre em busca de sua origem
e razão de ser e, no sentido que lhe dá Paul Henry (1992), a linguagem é a ferramenta de
fundamental importância para que o sujeito continue se deslocando em busca desse elo
(que se diz perdido, se é que em algum tempo ele existiu).
Sendo imperfeita, a língua(gem) continuará dando ao sujeito a ilusão de que ele
pode (ou não) avançar em seu propósito, tanto na vida cotidiana, quanto no terreno político
ou no da cientificidade. No que concerne à autoria, muito há que se fazer. Principalmente
pelo avanço tecnológico que tem permitido aumentar o número de internautas, produtores
de verdadeiras obras no computador (apesar de toda problemática que existe pela definição
do termo, uma vez que, segundo Foucault, “a teoria da obra não existe” (FOUCAULT,
2001a, p. 270). Mas, como o próprio Foucault (2001a, p. 287) diz: “Tendo em vista as
modificações históricas ocorridas, não parece indispensável, longe disso, que a função
autor permaneça constante em sua forma, em sua complexidade, e mesmo em sua
existência. (...)”. Afinal, em vez da questão inicial colocada por Foucault reportando-se a
Beckett sobre o desaparecimento do autor (“que importa quem fala?”), melhor seria a
pergunta: Quanto importa quem fala?
4.3 Tal como a cobra-de-vidro?
Se quisermos investigar as formas de resistência na literatura, necessariamente
teremos que refletir sobre a função da literatura na constituição do texto literário enquanto
acontecimento histórico, ou seja, enquanto ponto em que o enunciado rompe com
estruturas vigentes, estabelecendo um novo processo discursivo. Dessa forma, a
acontecimentalização da escrita do texto estudado, singularizada sob o “status” de
86
literatura e de acordo com as condições de produção, deve conter indícios que nos levem a
considerar o seu discurso resistente a uma forma de poder.
Nosso intuito é desenvolver essa proposta analisando um recorte do drama
tragicômico, focalizado na letra da canção “Cobra-de-vidro”. Inicialmente, esse recorte foi
selecionado porque o associamos à idéia de unidade e dispersão, uma vez que, no
conhecimento popular, tanto o réptil cobra-de-vidro, como a personagem histórica da
invasão holandesa, Calabar, ao serem esquartejados, não são eliminados, pois se
multiplicam: o primeiro, fisicamente; o segundo, ideologicamente. Posteriormente,
centralizar-nos-emos nos conceitos de heterogeneidade, de Authier-Revuz (2004), e de
resistência, de Foucault (1979; 1995), por percebermos que o texto fornece elementos
interessantes para uma discussão envolvendo esses dois aspectos.
No reconhecimento de que um discurso é constituído na dispersão de textos
produzidos socialmente, verificamos que o mesmo mantém uma interdiscursividade com
outros discursos, que o interpenetram, interferindo na sua produção de sentido. Dessa
forma, podemos observar que a noção de interdiscurso, ligada às noções de
heterogeneidade, formação discursiva e pré-construído, com as quais buscaremos
desenvolver nossa proposta, é de fundamental importância, uma vez que essa noção,
compreendendo o conjunto de FDs, está inscrita na esfera da constituição do discurso,
operando a ressignificação do sujeito na repetição do que já foi dito, determinando os
deslocamentos que o sujeito faz nas bordas de uma FD.
Há, no discurso do texto em questão, um atravessamento de outros discursos
(heterogeneidade constitutiva do discurso), entre os quais assinalamos o discurso histórico
que registrou o episódio “Calabar”, a “invasão holandesa, no Brasil”, a “colonização
87
lusitana”, o folclore “cobra-de-vidro” e os atos violentos do governo militar contra a
população e a economia do país
28
, que emergem no discurso da canção.
Relacionando a letra da canção utilizada para essa análise com outras canções do
texto ou com o I e II atos da obra, ou ainda com outras produções escritas nos anos da
ditadura militar, encontraremos, no discurso dessas produções, vestígios de uma formação
ideológica que especifica o momento dessas enunciações, pois, “o que é dito de um sujeito
singular sob um conceito particular não é separável do que pode ser dito em circunstâncias
empíricas dadas” (GUILHAUMOU, 2006, p.34).
Ao situarmos essa obra em uma formação discursiva dada historicamente, visto
que, ainda em Guilhaumou (2006, p. 34), “o discurso procede ao mesmo tempo da
particularidade dos indivíduos falantes e da generalidade de sua produção linguageira
comum”, podemos verificar que é essa FD, designada por Guilhaumou (2006, p. 34) como
“conjunto regulado de nomes particulares ligados à generalidade de um discurso”,
regulador daquilo que o sujeito pode e deve dizer, bem como o que não pode e não deve
ser dito e, até mesmo, o que poderia dizer e não diz. Assim, estudando essa formação
discursiva, teremos permissão (porque estaremos nos aprofundando nos acontecimentos
que constituíram essa formação) para, a partir da análise do seu discurso, identificar o
estabelecimento da resistência, haja vista as relações de conflito aparentes nos enunciados.
Por ser o “causo” da cobra-de-vidro (hisria popular passada de geração a geração
contando de um réptil que, se cortado, rapidamente se refaz) amplamente conhecido, a
formulação desse já-dito, formulado em outro lugar, permite sua incorporação como pré-
construído à formação discursiva do texto que recortamos para estudo.
28
Há muitos trabalhos publicados a esse respeito; para exemplificar, citamos algumas obras, dentre outras
escritas nesse ou sobre esse período: “Meu depoimento sobre o esquadrão da Morte”, de Hélio Bicudo,
publicado em 1976; “A década de 70: Apogeu e crise da ditadura militar brasileira”, de Nadine Habert; “1968 o
ano que não terminou: a aventura de uma geração”, de Zuenir Ventura.
88
Considerando o discurso como uma série de acontecimentos, podemos inferir que,
na obra de Chico e Ruy, os acontecimentos desencadeadores do discurso não são os
mesmos que constam nos documentos registrados pela historiografia nacional. O texto da
peça teatral traz outro acontecimento discursivo. Agora, como um rompimento com a
estrutura do enunciado anterior, instaurando um novo processo discursivo: a obra escrita
para teatro, marcada pelos acontecimentos anteriores (todas as circunstâncias que
envolveram o episódio da invasão holandesa e seus personagens históricos, em especial
“Calabar”), traz, nessas marcas, um sentido outro produzido em conformidade com as
condições de produção daquele momento.
Os registros históricos descreveram o episódio da invasão holandesa sob o ponto de
vista do colonizador português e as leituras desses registros produzem efeitos de sentido de
acordo com o lugar e o momento histórico da interpretação em relação ao da descrição.
Nossa leitura percebe no (inter)discurso desse texto uma chamada de atenção para o
leitor/espectador sobre a questão política que se vivenciava nos anos 1970. O texto
“Calabar, o elogio da traição” traz a canção “Cobra-de-vidro”, que reporta o
leitor/espectador ao ocorrido com “Calabar” por ocasião de sua morte: “Calabar” é
enforcado, e, segundo alguns historiadores, esquartejado, tendo suas partes espetadas e
colocadas em varas para que a população local do Arraial do Bom Jesus (e do Brasil)
aprendesse a lição de que devia obediência aos seus colonizadores. E, se não fosse assim,
poderiam receber o mesmo tratamento dado ao traidor.
É a lembrança dessa figura de “Calabar” que a letra da canção ”Cobra-de-vidro”
traz, mesmo sem mencionar o seu nome. O silenciamento do nome grita a presença
simbólica da personagem encarnada como traidora mor da história. Essa interpretação se
justifica se pensarmos que a ordem simbólica, configurada pelo real da língua e da história,
89
faz com que não seja possível dizer tudo que se queira dizer, e que há, em cada dizer, uma
parte inacessível ao próprio sujeito enunciador.
Nesse caso, o referente, simbolizado pelos pronomes possessivos (seu, seus, suas),
mais um predicativo (corpo, quartos, cacos-de-vidro, veneno...), misturam a figura do
homem “Calabar” à do réptil “cobra-de-vidro”, não representando, somente, a pessoa de
“Calabar”, mas a mistura que as duas “coisas” significam: uma idéia que não morre, que se
multiplica e que passa através dos tempos.
O depreendimento desse sentido se dá, justamente, pelo conhecimento que se tem
da história de “Calabar” e do caso folclórico da “cobra-de-vidro”. A presença desses
elementos no texto se justifica pelo momento histórico resgatado em sua composição: é
preciso falar que as idéias não morrem, que não adianta exilar a “elite pensante” do país,
representada por intelectuais (artistas, escritores, políticos, jornalistas...). Quaisquer que
fossem as atividades exercidas - denúncia das arbitrariedades do governo militar e/ou a luta
pela democracia -, o motivo pelo qual essas pessoas estavam sendo banidas já havia se
infiltrado na memória discursiva. Ao insuflar ao espectador/leitor/ouvinte que a canção
canta/conta uma história que não foi esquecida, os sujeitos discursivos trazem, no
interdiscurso do texto, outras histórias que o regime da ditadura e toda a repressão por ela
representada nos fazem interpretar como a um apelo para o espectador/leitor/ouvinte
refletir sobre os acontecimentos daquele momento histórico.
Tomemos o texto da canção “Cobra-de-vidro”. Em termos discursivos, a resistência
nesse texto se configura pela possibilidade do enunciado poder ocupar o lugar de outros –
possíveis e prováveis –, deslocando sentidos. Há uma ressignificação no ritual enunciativo
que conta a história de “Calabar” e também no que conta a história da “cobra-de-vidro”.
Tal fato provoca um deslocamento nos processos interpretativos já existentes. Já não é uma
nem outra história, mas “uma outra”, confirmando a explicação dada por Fernandes e
90
Santos (2004, p. 7) ao argumentarem que “a unidade discursiva do texto encontra-se no
conjunto dos enunciados efetivamente produzidos na dispersão dos acontecimentos
discursivos”.
Já no título da canção, podemos perguntar: por que “Cobra-de-vidro”?, e
remetermo-nos ao questionamento de Foucault (1995a, p. 31), ao elaborar o método
arqueológico: “como apareceu um determinado enunciado e não outro em seu lugar?” Em
busca de respostas, reportamo-nos para o contexto da obra de Chico e Ruy e verificamos
que o texto “Cobra-de-vidro” está inserido na parte final da peça de teatro, no espaço que
acena para a finalização, um pouco antes de se abaixarem as cortinas. Recordamos o teor
do texto para explicitar a localização da canção analisada: a obra teatral trata da “traição”
de Domingues Fernandes Calabar, o personagem historicamente conhecido por traidor,
maldito, que protagoniza toda a trama, embora não apareça fisicamente. Sua presença
transita na memória coletiva, rememorando assuntos relacionados entre o Brasil e o capital
estrangeiro
29
, entre outras coisas. O texto da canção “Cobra-de-vidro” representaria um
pedido de que a idéia difundida no texto como um todo fosse levada e disseminada. Era um
último apelo chamando insistentemente a atenção do espectador/leitor/ouvinte para tudo
que foi apresentado no conjunto da obra. E o título da canção, sobrepondo o nome “cobra-
de-vidro” ao nome “Calabar”, reproduziria um desejo de dispersar tudo o que foi
apresentado, ou seja, que o dito/não-dito contidos nos enunciados do texto fossem levados
pelos indivíduos, para que cada um pudesse refletir e dar vida àquela idéia, fazer aquela
idéia crescer, tomar corpo.
29
Conforme episódio político (Discurso de Brizola ao Diretório Regional do PDT-RJ em 11/02/2000) em que
Leonel Brisola refere-se ao então Presidente da Reblica Fernando Henrique Cardoso nesses termos: “Agora,
vocês sabem, nós temos um Calabar nos tempos modernos. Que é como comparo o papel que o Senhor Fernando
Henrique Cardoso faz. Ele está entregando o Brasil! É um governo que vende a pátria”. Isso aí não há a menor
dúvida...” (acessado em 17/08/2006 www. pdt.org.br/personalidades/bz110200.htm
91
Foucault (1995b, p. 242-243) nos fala que quando definimos o exercício do poder
como um “modo de ação sobre as ações dos outros”, quando as caracterizamos pelo
“governo” dos homens – uns pelos outros –, no sentido mais extenso da palavra, incluímos
um elemento importante: a liberdade. Só há relações de poder se houver sujeitos livres.
Assim, por desejar a liberdade, os indivíduos lutam e, porque lutam, conseguem manter as
relações de poder em contínua tensão. Aqui tratamos da resistência a uma ação com um
misto de poder e violência. Nesse caso, não seria uma relação “saudável”, no sentido de o
poder ser necessário para a subjetivação do sujeito que se constitui pela resistência e que
pode, por isso mesmo, romper por meio de seus atos, com os códigos estabelecidos. Seria,
no nosso ponto de vista, mais um caso de ‘doenças do poder’, conforme explicita Foucault
(1995b, p.232), ao referir-se aos casos patológicos da racionalidade política na história: o
fascismo e o estalinismo.
O mesmo autor (1995b, p. 244) nos explica que “o exercício do poder consiste em
‘conduzir condutas’ e em ordenar a probabilidade. O poder, no fundo é menos da ordem do
afrontamento entre dois adversários, ou do vínculo de um com relação ao outro, do que da
ordem do ‘governo’”, entendendo “governo” como parte dos cuidados de uns para com os
outros nas relações humanas, no sentido de direcionamento e organização social - “modo
de ação sobre as ações dos outros”. Contudo, mesmo sabendo que nosso caso se trata de
um afrontamento, em nossa análise buscamos pelo posicionamento do sujeito na luta que
está sendo travada contra o poder, para daí tentar extrair sentidos sobre a sua constituição
e, assim, refletir sobre as formas de resistência/poder no discurso e a importância de seu
estudo para a formação humana. Podemos perceber, no texto, que no embate dessa luta há,
potencialmente, um sujeito discursivo não subjetivado pelo discurso ditatorial e
entendemos seu esforço em se manifestar-se contrário ao poder, na resistência observada
na análise que ora apresentamos:
92
“Aos quatro cantos o seu corpo
Partido, banido.
Aos quatro ventos os seus quartos,
Seus cacos de vidro”
30
.
Considerando as heterogeneidades discursivas do texto, encontramos “um
mesmo” para dizer “um outro”, que não é um sentido inverso, nem uma denegação do
dizer, mas efetivamente, um outro sentido que “passa a significar pelo avesso, por seu
‘duplo’”. (ORLANDI, 1995, p. 116)
Voltando nosso olhar para as condições de produção do texto, vamos nos deparar
com um quadro sinistro: na década dos anos 1970, o medo da tortura e da morte rondava a
população brasileira. Cada um, a seu modo, limitava seu dizer, impondo-se a si mesmo
uma censura que promoveria uma resistência. Nesse quadro, os autores do texto buscam,
no campo enunciativo da traição, fundamentos que corroborassem a manifestação em
oposição ao regime, já que não podiam fazê-lo abertamente. Isso, de certa forma, contribui
para compreendermos as continuidades e descontinuidades históricas na explicação do que
seja um campo enunciativo:
a configuração de um campo enunciativo compreende também formas de
coexistência. Estas delineiam inicialmente um campo de presença [...] todos
os enunciados já formulados em alguma outra parte e que são retomados em
um discurso a título de verdade admitida, de descrição exata, de raciocínio
fundado ou de pressuposto necessário, e também os que são criticados,
discutidos e julgados, e os que são rejeitados ou excluídos); [...]. Finalmente,
o campo enunciativo compreende o que se poderia chamar domínio de
memória (trata-se dos enunciados que não são mais nem admitidos nem
discutidos, que não definem mais, em conseqüência, nem um corpo de
verdades nem um domínio de validade, mas em relação aos quais se
estabelecem laços de filiação, gênese, transformação, continuidade e
descontinuidade histórica). (FOUCAULT, 1995a, p. 64-65)
30
Os grifos são nossos.
93
Na relação estabelecida com a memória discursiva, para burlar a censura, os
sujeitos dizem o que têm a dizer com “outro dito”. O sentido fica circunscrito no silêncio
do que não foi dito e aparente no avesso do que foi dito. Assim, podemos interpretar os
versos da página anterior dizendo que muitos dos “resistentes” tiveram seus corpos
partidos, feridos pela tortura (como a personagem histórica “Calabar”), cujas marcas
encontram-se registradas na história – reflexo do Ato Institucional número 5 (AI-5), que
decretava a supressão das liberdades individuais e políticas. A esse respeito, Habert (2001,
p. 29) diz que “o uso permanente de instrumentos como o AI-5, e outros decretos que
ampliavam o alcance da censura, combinava-se a vários outros mecanismos de repressão,
coerção e vigilância permanente que criou um clima de terror e autocensura”. A
“comunidade de informação”, encabeçada e centralizada pelo SNI (Serviço Nacional de
Informações), ocupava-se em impedir e desarticular qualquer manifestação de oposição ao
regime.
O governo, dizendo combater a subversão, praticava atos opressivos contra a
sociedade. Vários órgãos foram criados com este propósito, como atesta Habert (2001, p.
28).
Ser preso por qualquer um desses órgãos significava, invariavelmente, a
tortura e, para muitos, a morte. Os assassinos eram encobertos com versões
falsas de ‘atropelamentos’ ou ‘morte em tiroteio’ que eram divulgadas
pelos meios de comunicação. Ou simplesmente as autoridades negavam ter
feito as prisões. Ainda hoje, pais e parentes procuram seus familiares
‘desaparecidos’, mortos e enterrados em locais ignorados.
A sociedade brasileira se viu fragmentada pelo flagelo do regime ditatorial que
assolou o país, açoitando vidas que, como um vidro estilhaçado, viram-se em cacos. Vale
lembrar que muitos foram os banidos da pátria, exilados em países distantes, sem contato
com familiares. Quantas personalidades se viram, de repente, despersonalizadas, sem
nenhum direito, sem voz.
94
Ao tomarmos a letra dessa canção como um texto que possui um discurso de
resistência, vamos descobrindo que nele não há representação de sentidos, no sentido de
repetição do mesmo. Aludindo ao réptil, numa comparação em que a cobra-de-vidro ao ser
esquartejada continua a mover seus pedaços, também “Calabar”, referido pelo pronome
“seu”, traz nos predicativos (corpo, quartos, cacos de vidro, veneno), lembranças
incômodas ao interlocutor do enunciado que, acomodado a uma obediência irrefletida ao
poder ditatorial, parece não querer perturbar-se com o que está acontecendo. Fatos
envolvendo prisões arbitrárias, abuso de poder, torturas, perseguições políticas e outros,
não são noticiados, porque o silenciamento dos atos governamentais que afetam a
integridade dos cidadãos que ousam discordar faz parte do processo de repressão. Por
conseguinte, a maior parte da população não consegue perceber o que está acontecendo
verdadeiramente, uma vez que as notícias que lhes chegam, quando lhes chegam, são
maquiadas, ou seja, são transformadas pela mídia, que era manipulada pelo governo.
O seu veneno incomodando
A tua honra, o teu verão,
(com coro) Presta atenção!
Presta atenção!
O jogo com a terceira pessoa (seus, seu), referindo-se ao efeito de sentido que a
junção/comparação Calabar/cobra-de-vidro (fato histórico do passado e lenda nacional)
reflete no texto, provoca o interlocutor (leitor/espectador/ouvinte) referido pelos pronomes
tua/teu e pelo verbo imperativo na segunda pessoa, repetidamente, ordenando “prestar
atenção” ao que está sendo dito. Assim, pede-se para o interlocutor ficar atento para os
sentidos exteriores e também para os sentidos interiores do texto.
A evocação do fato passado, referido pelos pronomes na terceira pessoa, parece
contrastar com os pronomes de segunda pessoa. Trazendo o passado para o presente do
95
interlocutor, o texto chama a atenção deste para a realidade, para os acontecimentos
(factuais e discursivos) que têm engolido o interlocutor sem que ele se aperceba.
O fato historicizado tomado como referência, reaviva na memória o drama
acontecido e reativa a atenção para a trama do texto. Há, na trama que tece o texto em
questão, uma insistência em alertar o leitor/espectador/ouvinte para os sentidos que
poderão ser construídos (se assim o quiserem) sobre os registros da história, assim como
pelo que uma traição poderia significar naquele momento.
Na tensão entre o que pode/não-pode, deve/não-deve ser dito surge um discurso
outro que, resistindo a um poder, diferencia-se, não importando se a luta travada
lingüisticamente terá vencedores ou vencidos. Em “Microfísica do Poder” (1979), Foucault
nos fala que a resistência configurada lingüisticamente não é anterior ao poder que ela
enfrenta, porque não há anterioridade lógica ou cronológica da resistência. O par
resistência/poder não é o par liberdade/dominação. Para que se efetive, a resistência deve
ser como o poder: “tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele. Que, como ele,
venha de ‘baixo’ e se distribua estrategicamente” (FOUCAULT, 1979, p. 241).
No caso em tela, “Calabar/cobra-de-vidro” são argumentos simbólicos renomeando
a ação do não consentimento à obediência cega. A coragem/ousadia de “Calabar”
misturam-se ao veneno da cobra e, de figura exemplar à sua traição, incomodam a honra e
o tempo “verão”, perturbando as funções vitais do cotidiano paralisado, corrompido
moralmente, estagnado pelo congelamento que o discurso governamental daqueles dias
impunha aos cidadãos. O “Calabar” evocado naquele momento deveria servir para derreter
o gelo, reativar os cidadãos.
O refrão imperativo “presta atenção!”, chamando a atenção do interlocutor para a
associação do caso “Calabar” com o da “cobra-de-vidro”, grita no silêncio. Há um dizer
interditado pela imposição daquele poder político naquele momento. É uma súplica feita ao
96
interlocutor para que capte, nas palavras ditas anteriormente, o que nelas não está, mas que,
ao mesmo tempo, aparece no interdiscurso do enunciado.
Toda a segunda estrofe fala dos acontecimentos nefastos que aquele governo
provoca. Por todo o país, “aos quatro cantos”, cidadãos são escorraçados, mutilados,
desfigurados, mortos à toa, “de graça”, sem mais, nem por quê, “de sobra”. Por toda parte,
os desmandos, perseguições, prisões arbitrárias: mostras de um governo violento, que
arruinava o país e sua população.
A esse respeito, convém lembrar que, nesse tempo, em vários países do mundo, os
jovens reagiam inconformados contra os sistemas sociais (políticos, educacionais,
financeiros, culturais...). A voz, ao vento, desses discursos, num movimento mundial,
rompeu barreiras oceânicas para chegar aqui no Brasil e em vários países latino-
americanos, deparando-se com a imposição de um governo militar, em que a luta dos
jovens pela mudança social (na escola, na família, em todos os setores da sociedade)
confrontavam-se com ideais político-repressores.
Houve, nesse sentido, uma conjunção de histórias inconjugáveis. Por um lado,
havia um governo tentando impetrar uma ordem de imposição; por outro lado, havia uma
contaminação ideológica pairando no ocidente, de que aquele era o momento jovem da
emancipação. Talvez, por isso mesmo, podemos depreender que há nesse enunciado um
discurso conclamando “uma idéia libertária” para liberar os filhos da pátria crescendo
oprimidos por um regime governamental que visava a cegar todos, principalmente a
infância e a juventude, estabelecendo um sistema educativo profissionalizante (lei 5692)
que mais limitava que acrescia saber. A criação das disciplinas: Educação para o Trabalho
(EPT); Educação Moral e Cívica (EMC); e Organização Social e Política Brasileira
(OSPB), como subterfúgios para sedimentar o pensamento do governo, alienava jovens e
adultos que aprendiam, nos manuais e com os professores adestrados pelos cursos de
97
reciclagem promovidos pelas secretarias de ensino, a ver um país inventado por uma utopia
falaciosa.
Não podemos nos esquecer que “filha e plantação” seriam os bens mais preciosos
dos cidadãos brasileiros, uma vez que nossa cultura é marcadamente patriarcal e rural. Os
filhos e a lavoura significavam/significam a riqueza do país. Ao dizer “O seu veneno
arruinando/ a tua filha e plantação” seria o lado traidor do “Calabar” incorporado ao
governo, destruindo os interesses dos interlocutores, tanto no sentido familiar quanto no
financeiro, uma vez que o Brasil é caracterizado como um país agrícola. Ao passar a idéia
de prosperidade, o governo militar afundava-se em dívidas, principalmente, com os
Estados Unidos, que financiavam os governos militares, no Brasil e em outros países da
Américas do Sul, para manter o controle sobre as nações latino-americanas. Enquanto o
resto do mundo sofria uma turbulência e um declínio na economia promovido pela alta no
petróleo,
A ditadura brasileira, contudo, preferiu uma política de fuga para frente.
Lançou o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), com metas
ambiciosas: perfazer uma autonomia semiconstruída no processo do
milagre. O país era figurado como uma ilha de prosperidade e de paz em
um mundo de crise e de convulsões. Havia de caminhar para a frente.
(REIS, 2000, p. 63)
Dessa forma, vamos percebendo, no desenvolvimento da análise, que todo discurso
resulta de um já-dito sempre jamais-dito. Na dispersão temporal, nada é como antes: a
palavra, mil vezes proferida, nunca é a mesma. Traz lembranças de um acontecimento, mas
acontece sempre em outro momento, em outro lugar, com outros sentidos, porque nunca
comporta um sentido único, exato.
Aos quatro cantos seus ganidos,
Seu grito medonho.
Aos quatro ventos os seus quartos,
Seus cacos de sonho.
98
O seu veneno temperando
A tua veia e o teu feijão!.
Na canção “Cobra-de-vidro”, podemos inferir que “ganidos”, “grito medonho” não
são produzidos por “Calabar”. (Des)figurado pela história e por seus algozes, o referente é
outro: são todos aqueles torturados que, como “Calabar”, vêem seus sonhos despedaçados.
Poucos ficam sabendo o que acontece nos porões dessa história que alardeava o “país do
futuro”, ufanicamente cantando: “Eu te amo meu Brasil” ou “Pra frente Brasil”. Slogans e
adesivos como: “Ninguém segura este país”, “Brasil - ame-o ou deixe-o”, simbolizavam os
argumentos ideológicos que o regime militar utilizava para potencializar o sentimento de
brasilidade e retrair os mais afoitos que insistiam em resistir ao governo imposto. Porém,
seus “quartos” (como pedaços das imagens de seus feitos) e seus “cacos de sonhos” (como
idéias que constituiriam um ideal de vida) são levados pela dispersão dos discursos e
(res)guardados na memória coletiva para serem recuperados quando a fome de lutar pela
liberdade apertar. Também emo seu veneno temperando/ a tua veia e o teu feijão”, temos
a resistência fortificando o indivíduo produzindo uma vitalidade, alimentando uma vontade
de reagir.
Ao usar como referente “Calabar/cobra-de-vidro” para dizer da história que não
tem fim (porque seus sentidos se movem em muitas direções e, nessa dispersão, portam
efeitos que irrompem em discursos diversos), o texto vai construindo sua unidade em torno
de um enunciado que resiste ao poder, conclamando seus interlocutores a uma tomada de
atitude ante ao acontecimento histórico que estão vivenciando. O ponto estratégico da
canção, no final da peça, e a insistência no refrão “Presta atenção!” significam-se naquilo
que não dizem. Para entender essa colocação, buscamos em Girard et al (1980, p. 86) um
pouco do conhecimento de Brecht sobre a música no teatro. Dizem os autores que
Em Brecht, a música revela-se autônoma em relação às palavras; de modo
algum tautológica, entra, pelo contrário, em relação dialética com um texto
99
que pode ser contradito por ela, uma vez que uma música arrebatadora
contrasta significativamente com uma cena entristecedora. Em vez de se
situar num único registro afectivo, pode desentoar e constituir um apelo à
inteligência crítica do espectador.
Funcionando como um apelo à inteligência crítica do leitor/espectador, a letra da
canção cobra-de-vidro, lembrando a lenda nacional, traz “Calabar” consigo, não para
desviar a atenção, mas para sugerir, na repetição do coro, que, se prestarmos atenção,
perceberemos outros sentidos naquilo que está sendo enunciado.
A tensão poder/resistência existe nas possibilidades geradas entre poder/saber,
saber/poder. Um não existe sem o outro e, na tensão existente entre um e outro, enunciados
são produzidos, discursos são formados, sujeitos são singularizados, unidades discursivas
são criadas. Tudo em movimentos histórico-espaciais, como um Big Bang atravessando
eras, formando estrelas, constelações, ecoando um passado, construindo novas gerações.
Dessa forma, lembramos que existe, nas materialidades discursivas, um regime
estruturante na produção dos signos lingüísticos que, talvez por serem limitados (o que é
compreensível, uma vez que existe uma política de economia lingüística para facilitar a
vida humana), circulam nos enunciados, sem se repetirem, infinitamente, como assevera
Foucault (2001b, p. 58): “mesmo o infinito da linguagem se multiplica ao infinito,
repetindo-se nas figuras desdobradas do Mesmo”.
Assim, do drama (acontecimento discursivo) à trama (desenvolvimento textual), e
vice-versa, vai se constituindo o discurso no texto, seu sujeito, seu saber, seu poder, sua
unidade, sua dispersão... “Cobra-de-vidro” é prova (e exemplo)!
100
4.4 Por que traição? Traição por quê?
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
(Chico Buarque de Holanda)
Encontramos em “Encomium moriae” (Elogio da Loucura, 1509), escrito por
Erasmo de Roterdã, filósofo do século XVI, um trabalho em que o autor holandês critica a
corrupção eclesiástica, o dogmatismo da filosofia escolástica e a superstição por meio de
uma aparente crítica da razão. Percebemos que o diálogo entre o texto de Chico e Ruy e a
obra do filósofo holandês não se prende somente ao título, mas também ao modo de
criticar o comportamento social diante das evidências, no caso, da omissão ante a repressão
imposta pelo governo ditatorial.
Esse diálogo evidencia-se mais fortemente, quando mostrado na colagem
encontrada na obra de teatro “Calabar, o elogio da traição”, para chamar a atenção dos
leitores/espectadores, como feito em “Elogio da Loucura”:
Sabereis por que à vossa presença compareço hoje em vestes tão esquisitas,
se não vos cansardes de me ouvi. Não penseis, porém, que de vós exijo a
atenção com a qual honrai habitualmente os vossos pregadores. Não!
Escutai-me como escutais, os bufões, os intrujões, os charlatães, os bobos
das praças públicas, ou como o nosso amigo Midas escutava a música de
Pã. [...] Imitarei os antigos que, para evitarem o nome de sábios, preferiam
chamar-se sofistas, e, usando a arma do elogio, se esforçavam por celebrar
heróis e deuses. Portanto, eu também quero fazer um elogio. Mas não será
nem o de Hércules nem o de Sólon: será o meu, será o Elogio da Loucura.
(ROTERDÃ, 1986, p.14)
Em “Calabar, o elogio da traição”, logo no início do primeiro ato, Bárbara, a esposa
de Calabar, sob as luzes do palco, levanta-se e canta “Cala a boca Bárbara”, canção que
não toca no nome “Calabar”, mas que o faz presente na condensação do refrão “CALA” a
boca “BÁR”bara. Terminada a canção, encara o público e diz:
101
Se fazeis questão de saber por que motivo me agrada aparecer diante de vós
com uma roupa tão extravagante, eu vo-lo direi em seguida, se tiverdes a
gentileza de me prestar atenção. Não a atenção que costumais prestar aos
oradores sacros. Mas a que prestais aos charlatães, aos intrujões e aos
bobos da rua. (BUARQUE; GUERRA, 1973, p.13)
Poderíamos dizer que a técnica de colagem dos textos de Erasmo e de outros
autores na obra de Chico e Ruy se configuraria em uma traição, não fosse a ressignificação
que essas colagens adquirem ao serem inseridas na obra de teatro. Ou quem sabe a
ressignificação é uma traição porque não apresenta originalidade, pela necessidade que a
própria (língua)gem tem de repetir-se eternamente?
Relacionando a epígrafe com o assunto em foco, vemos, na seqüência da peça, a
personagem de Frei Manuel do Salvador falando da entrada do pecado nessa terra e
rememorando passagens bíblicas. São as imagens que essas passagens evocam que
Courtine (apud MILANEZ, 2006, p. 168-169) conceitua de intericonicidade
31
, que nos
permitem relacionar o tema “traição” com a epígrafe extraída da canção “Apesar de
você”
32
que introduz esta análise.
Se em “O Elogio da Loucura”, Erasmo de Roterdã satirizou o obscurantismo
conservador da pseudo-religião, em “Calabar, o elogio da traição”, a personagem histórica
“Calabar” emerge num discurso que discute a traição da personagem referencial dessa
história, não no sentido de redimi-la, mas no sentido de reconsiderar a história vista de um
outro ângulo que não o do colonizador. Discute, ainda, as ações traiçoeiras que são
colocadas pelas outras personagens, levantando a problematização acerca da “traição”.
31
“A intericonicidade supõe as relações das imagens exteriores ao sujeito como quando uma imagem pode ser
inscrita em uma série de imagens, uma genealogia como o enunciado em uma rede de formulação, segundo
Foucault. Mas isso supõe também levar em consideração todos os catálogos de memória da imagem do
indivíduo. De todas as memórias. Podem ser até os sonhos, as imagens vistas, esquecidas, ressurgidas e também
aquelas imaginadas”. (COURTINE, apud MILANEZ, 2006, p. 168-169)
32
Chico Buarque de Holanda escreveu essa canção ao retornar da Itália, em 1970. Nesse período a tortura e o
desaparecimento de pessoas que não concordavam com o regime político era uma constante. O general Médice
protagonizava um ufanismo desmedido e Chico enfrentou a censura, pensando que a música não seria liberada.
Naquele momento ela foi, até que um jornal insinuou que ela fora escrita para o presidente Médice. Então a
gravadora foi invadida e as cópias do disco foram destruídas. Num interrogatório quiseram saber de Chico quem
era o VOCÊ. "É uma mulher muito mandona, muito autoritária", respondeu. (Humberto Werneck
http://chicobuarque.uol.com.br/letras/notas/n_apesarde.htm) acessado dia 09/10/2006.
102
Ao trabalhar essa questão, o texto conduz o leitor/espectador a uma reflexão sobre o
que seria traição naquele momento histórico. E nos perguntamos: o que seria “traição”? Na
impossibilidade de se chegar à totalização de um sentido, partimos dos versos da epígrafe
para refletir sobre a traição e sua ressemantização em “Calabar, o elogio da traição”.
Quando pensamos na “invenção do pecado” (qualquer expressão contrária ao
governo era considerada “traição”), da memória discursiva nos vem uma imagem criada
pela tradição judaico-cristã da criação do mundo e, ao interpretar essa imagem, podemos
perceber que ela se refere a um conhecimento que nos permite recriá-lo. Iniciamos, dessa
forma, buscando na mitologia elementos que nos ajudem a compreender o drama da traição
na formação social do homem ocidental.
Dentre os mitos da criação, temos, na mitologia greco-latina, argumentos para
refletir sobre nosso modo de pensar e agir, uma vez que na Grécia se encontra o berço da
civilização ocidental. Consideramos, com base em estudos mitológicos (BULFINCH,
2002), que a dominação dos romanos sobre os gregos contribuiu para que os mitos desses
povos se misturassem em função da semelhança existente entre alguns deles. Assim, a
partir da contribuição mitológica de ambas as civilizações, podemos fazer nossas
considerações sobre a traição. Principia pela traição da Terra (Gaia) a seu esposo Céu
(Urano) que infligia aos próprios filhos o castigo de viverem eternamente na terra. Por não
querer tal sofrimento para seus filhos, a mãe pede a Saturno, filho mais novo do casal, para
que a ajude a se livrar do esposo. A pedido da mãe, Saturno corta os testículos do pai.
Caídos no mar, seu sêmen chega à Terra e a fecunda, originando Vênus, que foi levada em
uma concha ao Olimpo...., e assim vão se sucedendo traições e mais traições.
Na bíblia, Lúcifer trai a Deus e é expulso do céu. Adão e Eva, por traírem a
confiança de Deus, são expulsos do paraíso. Outras tantas traições, no antigo e novo
testamento, sendo umas menos outras mais conhecidas, como a traição de Pedro e a de
103
Judas Iscariotes a Jesus, por exemplo (BÍBLIA tradução ecumênica, 1994), vão
construindo imagens do dilema humano sobre sua forma de ser e agir.
Embora não tenhamos a pretensão de fazer uma busca genealógica das origens da
traição, buscamos mostrar que a questão “traição” relaciona-se com o problema existencial
da humanidade. É um drama do próprio “ser” humano. Esse foi o enfoque de toda a obra
“Calabar, o elogio da traição”. Em entrevista, Ruy Guerra (apud BUARQUE; GUERRA,
1980, p. X) nos diz que
Antes de Calabar, a gente se preocupou com a traição; parece que Calabar
veio com a preocupação da traição. E a traição é um negócio que a gente
pode bater em muitos níveis. Pode bater num nível inteiramente metafísico.
Pode bater num nível inteiramente circunstancial. Pode bater num nível
ideológico. E é evidente que, para nós, não interessa discutir a traição de
uma forma absoluta, porque a traição é um tema filosófico. Eu acho que a
traição é um negócio que está patente no mundo moderno...
No Brasil do século XVII, mais precisamente entre 1630 a 1654, período da
invasão holandesa, ainda não havia amadurecimento suficiente do ponto de vista
socioeconômico e político para um luta de libertação nacional. Os nativos brasileiros que
aqui habitavam (índios, negros, brancos, mulatos, mamelucos ou mestiços) lutavam tanto
de um lado quanto de outro. Defender Portugal ou Holanda era trair o Brasil. E essa
consciência não havia. Portugal dizia lutar em defesa do catolicismo e Holanda dizia lutar
em nome da libertação. Porém, a batalha é travada pelo lucro e poder, como registra
Peixoto (apud BUARQUE; GUERRA, 1980, p. XVI): “Por trás das motivações da luta,
freqüentemente disfarçadas como disputas religiosas, está o objeto básico da pilhagem: o
açúcar – o lucro da produção dos engenhos e canaviais, e o lucro da distribuição nos portos
europeus”.
Calabar, nem delator, nem mercenário, optou por um lado que acreditou poder fazer
do Brasil um país “mais livre e mais humano, menos opressivo e escravizador que a
colonização portuguesa” (PEIXOTO apud BUARQUE; GUERRA, 1980, p. XVIII). Não
104
foi o único a acreditar, mas foi o bode expiatório. Traidor, para os portugueses e herói para
os holandeses, Calabar é trazido para o teatro desmistificando o conceito de traidor da
história oficial e sendo via de reflexão do conceito vago e abstrato de traição.
No texto, a traição começa pela técnica de colagem empregada pelos autores. Fora
de seu contexto, as partes coladas em “Calabar, o elogio da traição” assumem outra
posição, são ressemantizadas. Ao longo da peça, as ações tidas como traiçoeiras imperam.
Os personagens traem e são traídos a cada momento. A traição se dá em todos os níveis:
nas relações pessoais, interpessoais, conjugais. Traem-se coisas, alguém, idéias e ideais.
Traem-se a si e aos outros.
Bárbara procura vivenciar a traição buscando obsessivamente compreender o que é
a traição, que, para ela, foi causa “mortis” de seu homem e, por esse motivo, se entrega de
corpo e alma nos meandros da “trairagem” na tentativa de desvendar esse mistério que é a
traição. Ao estar com Souto diz: “É a traição. Por que estar com o homem que traiu
Calabar talvez seja uma maneira de estar perto dele” (BUARQUE; GUERRA, 1973, p.
93). Conta que traiu um pelo outro, misturando as traições, os corpos, se sentido feliz por
isso. Diz: “De um certo modo eu estava feliz e me sentia mesmo vaidosa de estar traindo
Calabar e a sua traição, como mulher, de todo jeito, de estar dentro da traição, de viver
dentro da traição e de amar dentro, se tudo o que me davam era traição...” (BUARQUE;
GUERRA,1973, p. 125). Quando Souto é assassinado, diz sentir orgulho da traição de
Calabar e repugnação pela traição de Souto. Não acha que toda traição seja igual. Nesse
sentido, observando o modo de produção de sentidos na constituição dos sujeitos,
verificamos que as evidências estão sempre já-lá quando relacionamos a materialidade
lingüística com a ideologia. Dessa forma, o discurso que constrói a traição de Calabar,
mostra a diferença entre essa e a traição autoproclamada de Sebastião Souto.
105
Sebastião de Souto, personagem que, embora fosse amigo de Calabar, entrega-o aos
portugueses, também lutou dos dois lados. Da traição mesquinha, invejosa, passa à traição
conscientizada e ao mesmo tempo louca.
Eu também sou traidor, Bárbara. Desde pequenininho, sabe? Eu já durmo
traindo, sonho com a traição da manhã seguinte... Gosto de atirar pelas
costas... gosto de fazer intriga. Gosto muito de emboscada. Também adoro
jurar, que morra meu pai e minha mãe, só pra quebrar a jura e daí morrer a
família inteira. Traio por trinta dinheiros. Traio por convicção. Traio por
todos os lados. Traio por trair. Sou traidor de nascimento. Nasci na Baía da
traição, Paraíba. (
BUARQUE; GUERRA, 1973, p. 96)
Ao morrer diz: “... E se morro sem poder trair no meu último instante, ainda assim
eu não me desmereço, e morro me traindo, porque morro dizendo que te amo, Bárbara.
(BUARQUE; GUERRA, 1973, p. 117). Para Souto, Bárbara o trai porque o atrai para a
morte.
Frei Manuel, personagem e autor de várias partes “coladas” no texto de Chico e
Ruy, escreveu o depoimento mais antigo (emngua portuguesa) da invasão holandesa no
Brasil. Testemunha ocular do acontecimento, tem seu texto publicado em 1648. O autor
Cabral de Mello nos informa que “O valeroso lucideno”, obra de Calado, foi encomendada
e patrocinada por João Antônio Vieira, juntamente com mais duas outras obras
33
, que o
descrevem como o herói da restauração. Figura controvertida, Frei Calado circula ora ao
lado dos portugueses, ora dos holandeses e diz estar sempre o mesmo (e com Deus).
Bárbara lhe pergunta como fazia para ser sempre o mesmo: primeiro com os portugueses,
depois, com os holandeses e, novamente, com os portugueses e, mais uma vez, com os
holandeses. Ela queria saber como ele fazia com a consciência dele. (BUARQUE;
GUERRA, 1973, p. 128).
33
“Castrioto lusitano” de Frei Rafael de Jesus e “Nova Lusitânia ou história da guerra brasílica” de Francisco
Brito Freire. Essas obras foram, segundo Cabral de Mello, mais divulgadas, mas foram quase decalcadas do
texto de Calado que acaba sendo importante fonte para o discurso histórico oficial acerca da presença dos
holandeses no Brasil.
106
Na atitude do Frei, pensamos no princípio de alteridade. Não da noção derivada da
filosofia que “serve para definir o ser em uma relação que é fundada sobre a diferença: o
eu não pode tomar consciência do seu ser-eu a não ser porque existe um não-eu que é
outro, que é diferente” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 34), mas no sentido
lacaniano que explica o “eu” não como uma forma fechada em si, mas que tem relação
com um exterior que o determina. O sujeito descentrado não é uno, um mesmo sujeito é
outro, também. Assim podemos entender que são as posições tomadas historicamente pelo
frei que determinam seu discurso.
A traição vai bailando no texto, do princípio ao fim. E nós vamos seguindo seus
passos na tentativa de significá-la discursivamente. Mathias de Albuquerque, governador e
comandante das quatro capitanias nordestinas: de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio
Grande, faz promessas a Calabar para que volte a servir d’El rei. Não se conforma com a
traição de Calabar, porém confessa-se ao frei que sente a tentação de trair a coroa
portuguesa por amor à terra em que nasceu.
Em Foucault (2000a), o homem é um ser vivente que fala, trabalha e é subjetivado.
Há, no sujeito discursivo desse homem, uma alteridade exterior que lhe funda enquanto ser
e os modos de produção discursiva não lhe garantem centralidade existencial. É, ao mesmo
tempo, sujeito e objeto do conhecimento. Talvez, por isso, contraditório com os dizeres e,
ao mesmo tempo, coerente com os discursos que o constituem. Assim, podemos entender
Mathias em suas posições: como representante do governo Português/Espanha, deve agir
de um modo; como nativo do Brasil, amando a sua terra natal, deseja agir de outra forma,
vivendo um dilema.
Já Felipe Camarão, em nome da religiosidade, trai os costumes de sua raça: “Minha
graça é Camarão./ Em Tupi, Poti me chamo,/ Mas do novo Deus cristão/ Fiz minha rede e
meu amo “. (BUARQUE; GUERRA, 1973, p.21).
107
Também o Holandês (personagem representante do poder da Holanda) revela sua
traição após brindar em um cálice destinado ao ritual da missa. Recriminado pelo Frei,
confessa que oculta ser católico para preservar seu posto e porque tem soldo atrasado para
receber.
Anna de Amsterdã, figura fictícia, porém representando as prostitutas que vinham
para o Brasil sonhando em se casar, também fala da traição que sem culpa comete: “Eu
cruzei um oceano/ na esperança de casar./ Fiz mil bocas pra Solano,/ fui beijada por
Gaspar./ Sou Anna de cabo a tenente,/ Sou Anna de toda patente, das Índias/ Sou Anna do
oriente, ocidente, acidente, gelada./ Sou Anna, obrigada”. ( BUARQUE; GUERRA, 1973,
p. 46).
Henrique Dias, o escravo que conquistou sua liberdade pelo seu desempenho na
guerra trai sua raça e a si mesmo, na ilusão de ser senhor e ter algum poder: “Meu nome é
Henrique Dias, Governador dos pretos, Crioulos e Mulatos”. (BUARQUE; GUERRA,
1973, p. 58).
Finalmente, Nassau: o visconde holandês trai a Companhia das Índias e por ela é
traído.
E se mais não me foi dado criar, é porque atrás de um homem de visão há
sempre no mesmo reino podre dez generais e mil burocratas. Um grande
império e estreita mentalidade são maus companheiros. Eu continuo um
homem de armas. E um humanista. E essa combinação é difícil em
qualquer século. E porque conquistei, mas não fui cego no exercício do
poder, porque das armas e da repressão não fiz a minha última paixão,
dizem agora que errei. A mesma companhia que me trouxe, me leva.
Talvez as mesmas intrigas. E porque nem tudo o que fiz cabe nos seus
cofres, e nem todos esses horizontes.... foram trocados em florins [....]
De tudo, podemos concluir que o discurso que demanda a traição em “Calabar, o
elogio da traição” apresenta uma multiplicidade de sentidos. As traições, em cada caso
apresentado, e certamente nos que também não foram apresentados, comportam
significações que, não apresentando um sentido único, também não constituem evidências
108
em si. O efeito de sentido resulta dos modos de produção, das formações discursivas e
conseqüentemente das formações ideológicas que interpelam em sujeitos os enunciadores
dos discursos analisados. O que ocasiona a ressemantização é o momento histórico em que
cada personagem (inclusive os autores) estão inseridos. Buscar a vontade de verdade
acerca da traição de “Calabar” e os recortes discursivos que constroem as mais variadas
traições no texto para questionar quem seriam os traidores da/na história nos conduz ao que
ensina Foucault em “A ordem do discurso” (1996, p. 22): "vontade de verdade, esta que se
impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de
mascará-la”. Assim, o que deixa evidente, traz escondido em suas dobras a vontade de
poder que a anima. Dessa forma, desmistificando o conceito de traição continuamos com
Foucault, agora em “A microfísica do poder” (1979, p.180): "afinal, somos julgados,
condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo
de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos
específicos de poder".
109
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
“A história é uma colcha de retalho. Em
lugar de epílogo, quero vos oferecer uma
sentença: odeio o ouvinte de memória
fiel demais”. (Personagem Bárbara, da
obra “Calabar, o elogio da traição”)
Quando iniciamos, tínhamos algumas questões para as quais gostaríamos de obter
respostas com a pesquisa. E, realmente, obtivemos. Mas, certamente, elas não preenchem o
espaço destinado às respostas, mesmo porque esse espaço não é limitado e nem poderia
ser. Por se tratar de uma análise do discurso da obra “Calabar, o elogio da traição”, os
sentidos revelados nas análises não se fecham nelas próprias, uma vez que na Análise de
Discurso de linha francesa buscamos detectar “os momentos de interpretações enquanto
atos que surgem como tomadas de posição, reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de
identificação assumidos e não negados” (PÊCHEUX, 2002, p.57).
Vimos que as condições sócio-históricas determinam o sentido de um texto
literário, uma vez que sujeito e sentido resultam de práticas discursivas estabelecidas em
um tempo, em algum lugar. Tentamos estabelecer como isso acontece no desenvolvimento
das análises que fizemos. Buscamos, desde o início, centrar-nos em um objetivo geral, cuja
pretensão pautou-se na verificação de como uma questão socioideológica irrompe em um
discurso literário. Instituindo alguns objetivos específicos articulados ao objetivo geral,
analisamos elementos da história e da memória; observamos a constituição dos sujeitos no
literário; estabelecemos um paralelo entre os acontecimentos histórico/discursivos que
colocaram a “traição” como tema da obra.
Na terceira seção, intitulada “Deslocamento de sentidos”, fizemos uma subdivisão
em tópicos. No primeiro tópico, intitulado História e memória no (inter)discurso de uma
canção, focalizamos nosso olhar nos processos históricos e nas condições de produção dos
110
enunciados contidos na canção “Tira as mãos de mim” e encontramos efeitos de memória
presentes no texto, constituindo sentidos. A questão socioideológica irrompe no texto por
meio da alusão ao movimento do ato sexual sugerido pelo texto da canção, juntamente com
outras questões provocadas pela repressão política da época (ditadura militar),
reafirmando, dessa forma, o que dissemos anteriormente acerca da repressão política e
sexual em tempos de censura por parte de atos governamentais.
Observamos, na análise intitulada A autoria: uma relação entre Freis (segundo
tópico), como sujeitos e discursos se constituem no literário e nos deparamos com a
circunscrição socioideológica dos sujeitos-autores irrompendo da materialidade lingüística
do texto. Da mesma forma, no tópico Tal como a “Cobra-de-vidro” verificamos a
posição do sujeito discursivo na tensão poder/resistência e encontramos a questão
socioideológica configurada nessa tensão discursiva, sinalizando continuidade de história e
também dispersão dos sentidos.
No último tópico, intitulado Por que traição, traição por quê?, realizamos uma
leitura (dentre outras possíveis) da traição – na obra e, por extensão, na história humana.
Mais uma vez a questão socioideológica se mostra. Agora, na ressemantização de
“traição”. Trair não é um ato, apenas. No texto, o ato de trair mostra a contradição do
sujeito, a alteridade constitutiva do sujeito discursivo e isso, conseqüentemente, marca as
posições socioideológicas das personagens, inclusive do signo lingüístico, em especial, o
que foi colado, que, deslocado de um texto para um outro, trai duplamente: por
ressignificar nesse enunciado outro, diferentemente do que significava em um enunciado
anterior, e por não expressar o real da língua.
Essa “ferramenta imperfeita” (Paul Henry, 1992) que mostra sentidos e não os
representa, nos fez refletir, com Pêcheux (2002, p. 51), sobre o objeto da lingüística:
111
O objetivo da lingüística (a própria língua) aparece assim atravessado por
uma divisão discursiva entre dois espaços: o da manipulação de
significações estabilizadas, normatizadas por uma higiene pedagógica do
pensamento, e o de transformação do sentido, escapando a qualquer norma
estabelecida a priori, de um trabalho do sentido sobre o sentido, tomados no
relançar indefinido das interpretações.
Por termos feito opção pela análise do discurso, partimos para o nosso trabalho
sabendo de antemão que os sentidos por nós procurados não seriam encontrados na
transparência lingüística do texto. Escavamos nosso objeto, a obra de teatro “Calabar, o
elogio da traição”, na expectativa de encontrar na confluência do real da língua com o real
da história, os sentidos do texto, uma vez que “a interpretação nasce da relação do homem
com a língua e com a história” (GREGOLIN, 2003, p. 11).
Na regularidade de alguns enunciados, nas condições de produção dos mesmos e
nas práticas discursivas que marcaram o momento histórico da produção da obra
encontramos subsídios comprovadores da nossa hipótese: à medida que as condições de
produção são colocadas, os sentidos se deslocam e a traição de Calabar é re-semantizada.
Pudemos observar que, em “Calabar, o elogio da traição”, a questão
socioideológica parece irromper no texto ao longo de toda a obra, configurando, ao nosso
ver, a marcação ideológica de uma filosofia que entendemos ir além de um pensamento
libertário. Ao analisarmos “Cobra-de-vidro”, tivemos, amparados pelo suporte teórico
fornecido por Foucault (Sujeito e Poder, A Microfísica do Poder e outros), a possibilidade
de adentrar no texto, examinando como se davam as relações de poder. Fundamentados
nesses conhecimentos, verificamos que o saber gera poder e que as relações de poder
perpassam por toda a sociedade, proporcionando as possibilidades de lutas. O que importa
ressaltar é que precisamos estar conscientes de que as lutas que travamos criam novos
vínculos, portanto, novos domínios do poder. Entendemos que não há lutas completamente
libertárias. O que condiz com a epígrafe, visto que a história é uma colcha de retalho; há
112
em tudo uma inter-relação, não é possível quebrar-se as cadeias que ligam um fato ao
outro. Também não se fecha um círculo histórico, nem se delimita um acontecimento até o
esgotamento, por isso um epílogo é ilusório. O final está sempre para ser construído,
indefinidamente. E memória fiel, para quê? Se temos visto que a língua não consegue ser
fiel ao que tenta representar.
Enfim, esperamos que os recortes efetuados para as análises tenham propiciado
esta visão (e muitas outras), que animem trabalhos futuros. De nossa parte, damos por
finalizada essa tarefa. O que nos conforta, nessa obrigatoriedade do ponto final, é saber
que esse final é transitório, que esses resultados podem ser superados, sem jamais serem
esgotados. Sentimo-nos satisfeitos por termos embrenhado nesses caminhos e, ao
colocarmos este ponto finalizando esta empreitada, vislumbramos um sinal marcando o
início de uma outra busca, quiçá mais profunda, neste mesmo sítio arqueológico da
língua(gem) literária que, do drama da memória à trama na história, ou vice-versa, abre
espaço para quem queira interagir com o presente e tentar transformá-lo por meio de ações,
ainda que timidamente, como esta dissertação, por exemplo.
113
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WERNECK,H.
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09/10/2006.
118
ANEXO 1:
TIRA AS MÃOS DE MIM
Chico Buarque e Ruy Guerra
Ele era mil,
Tu és nenhum.
Na guerra és vil
Na cama és mocho.
Tira as mãos de mim,
Põe as mãos em mim,
E vê se o fogo dele,
Guardado em mim,
Te incendeia um pouco.
Éramos nós,
Estreitos nós,
Enquanto tu
És laço frouxo.
Tira as mãos de mim,
Põe as mãos em mim!
E vê se a febre dele
Guardada aqui
Te contagia um pouco.
Por três tostões
Ganhaste um par
Hoje estás só,
Eunuco e coxo.
Tira as mãos de mim,
Põe as mãos em mim.
Vendeste um teu amigo
Até o fim.
119
ANEXO 2:
Cobra-de-vidro
Aos quatro cantos o seu corpo
Partido, banido.
Aos quatro ventos os seus quartos,
Seus cacos de vidro
O seu veneno incomodando
A tua honra, o teu verão,
(com coro)Presta atenção!
Presta atenção!
Aos quatro cantos suas tripas
De graça, de sobra.
Aos quatro ventos, os seus quartos,
Seus cacos de cobra.
O seu veneno arruinando
A tua filha e plantação.
(com coro) Presta atenção!
Presta atenção!
Aos quatro cantos seus ganidos,
Seu grito medonho.
Aos quatro ventos os seus quartos,
Seus cacos de sonho.
O seu veneno temperando
A tua veia e o teu feijão!
(coro) Presta atenção!
Presta atenção!
Presta atenção!
Presta atenção!
Presta atenção!
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