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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
Bruno de Vasconcelos Cardoso
Todos os Olhos
Videovigilâncias, videovoyeurismos e (re)produção
imagética na tecnologia digital
Rio de Janeiro
Maio de 2010
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II
Bruno de Vasconcelos Cardoso
Todos os Olhos
Videovigilâncias, videovoyeurismos e (re)produção
imagética na tecnologia digital
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas
(Antropologia Cultural).
Orientador: Prof. Dr. Michel Misse
Rio de Janeiro
Maio de 2010
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III
Bruno de Vasconcelos Cardoso
Todos os Olhos. Videovigilâncias, videovoyeurismos e (re)produção
imagética na tecnologia digital
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural).
Aprovada por:
Presidente, Prof. Dr. Michel Misse, IFCS/UFRJ
Prof
a
. Dr
a
. Laura Graziela Fernandes Gomes, PPGA/UFF
Prof
a
. Dr
a
. Fernanda Bruno, ECO/UFRJ
Prof
a
. Dr
a
. Brígida Renoldi, UNAM, Argentina
Prof. Dr. Peter Fry, IFCS/UFRJ
Prof. Dr. Marco Antônio Gonçalves, IFCS/UFRJ
Prof
a
. Dr
a
. Els Lagrou, IFCS/UFRJ (Suplente)
Prof
a
. Dr
a
. Joana Vargas, NEPP-DH/UFRJ (Suplente)
Rio de Janeiro
Maio de 2010
IV
SUMÁRIO
Agradecimentos 1
Introdução 5
Estrutura do texto 7
Ts etnografias, três posicionamentos 11
Sobre redes e agenciamentos 12
Questão de forma: a polissemia incidental 13
I Tudo ver, tudo prevenir: (in)segurança, lei e controle 17
I.1 Ecos de (in)segurança 17
I.2 Câmeras legislativas 24
I.2.1 Estado 26
I.2.2 Município 35
I.2.3 União 37
I.3 - Disciplina, poder e controle: um longo debate teórico 40
I.3.1 - O sonho/pesadelo Panóptico 41
I.3.2 - Um mundo planejado, em ordem e sem crime: ciência e política 43
I.3.3 Olho, logo apreendo: sobre sentidos e arquivos 46
I.3.4 - Big Brothers: de Orwell à Endemol 48
I.3.5 Foucaultiando 51
I.3.6 Desfoucaultiando 54
II De cima da torre: a central de câmeras da polícia 62
II.1 - Chegando ao Centro de Comando e Controle 62
II.1.1 Permissões 62
II.1.2 - Conhecendo o coordenador: chegada oficial 63
II.1.3 - ―Algo assim, meio Foucault 64
II.1.4 Parcerias 66
II.1.5 COBAT 68
II.1.6 - E, finalmente, câmeras e imagens de vigilância! 70
II.1.7 - Ver sem ser visto 72
II.1.8 - Sobre números, impressões e ilhas 73
II.1.9 - Foucault? 74
II.2 - Freqüentando o Centro de Comando e Controle 75
II.2.1 - O Centro de Comando e Controle 77
II.2.2 - Distintos, mas interpenetráveis: discursos e observações 79
V
II.2.3 - Extra-tecnicidades 82
II.2.4 - Flagra, prova, evidência, testemunho 86
II.2.5 - Não tem flagrante, porque a fumaça já subiu pra cuca! 92
II.2.6 - Sacanagem 94
II.2.7 - Dinâmicas do monitoramento 97
II.2.7 - Casos concretos 98
II.2.9 - Tédio com um T bem grande pra você 104
II.2.10 - As câmeras da SENASP 106
II.2.11 - Indiscretas 109
II.2.12 - O “fator humano” e a necessidade de fiscalização 110
II.2.13 - X-9 e a jocosidade ambiente 113
II.2.13 - Outro lado 118
III - A Princesinha vista do alto: videomonitoramento no “bairro do Brasil” 119
III.1 - Razões estratégicas e discursos oficiais 120
III.1.1 - Extensão e densidade demográfica 121
III.1.2. - O perigo em cada esquina 122
III.1.3 - Superbacana e CopaBacana: de Caetano a Cabral, passando pelo Vieux Lyon 124
III.2 - Chegada: cenário e recepção 128
III.3 - Encontros: reflexões etnográficas 131
III.3.1 - Personagens 134
III.4 - Localização das câmeras 147
III.5 - Primeira ocorrência 151
III.6 - Controle (do) policial 153
III.7 - Manda quem pode, obedece quem tem juízo‖ 155
III.8 - Tem também o colírio!: sexualização do olhar vigilante 161
III.9 - Problemas Técnicos 165
III.10 Automatismos 166
III.11 - Suspeição à brasileira: racismo e preconceito envergonhado 168
III.12 Dinâmicas 171
III.13 - Trabalho (des)coordenado: sobre a fragmentação dos sentidos 183
III.14 - Sobre homens e máquinas 188
III.15 Dramas 196
III.15.1- Visita das psicólogas: auto-análise de uma relação 197
III.15.2 Remanejo 201
III.15.3 Rusgas 204
III.15.4 - Vigilante ou voyeur? 208
III.16 - Imagens de arquivo 213
VI
III.17 - Paradoxo do flagrante 217
IV- De dentro da sala: paranóias teóricas e realismo prático 223
IV.1 - Outras experiências, outros contextos, outros medos 223
IV.2 - Máquina, demasiado humano 227
IV.3 - Olhar maldoso: seletividade e suspeição 232
IV.4 - Reagindo descoordenadamente 234
IV.5 - Moralizando o espaço público? 235
IV.6 - Vontade de punição frustrada: pulso fraco 237
IV.7 - Espaço público e dessexualização do olhar: sobre privacidade e pudor 239
IV. 8 - Exibicionistas e voyeurs: a arte de ser discreto 245
IV.9 Públicos 247
IV.10 - Ver ou não ver.. 249
IV.11 - Fluxos incontroláveis 252
V- De todos os lados: produção e circulação de imagens no contexto de
superabundância digital 255
V. 1 - Descentralização privada das imagens de vigilância: enclaves e favelas 255
V.2 Videovigilâncias 261
V.3. Videovoyeurismos 262
V.4 - Estéticas da vigilância e do flagrante 267
V.5 - YouTube, devir tecnológico e voyeurismo digital: já não se fazem mais imagens como
antigamente... 271
V.6 - Nativos e imigrantes: exibicionismo como categoria de acusação 279
V.7 Aluga-se 286
V.8 - O que mostram os flagrantes? 288
V.8.1 - A retroalimentação celebridades-paparazzi 289
V.8.2 - Imagens (anti)criminais e de denúncia 291
V.8.3 - Espetáculos da realidade e da fofoca 292
V.8.4 - Intimidade (de)flagrada: os flagrantes quentes 296
V.9 - “Teatralização do real” ou as multiplicidades da “realidade” imagética 299
V.10 - Duplos imagéticos e a circulação de dividualidades 303
Conclusão 310
Diálogos e devires 310
Por queo? 311
Multiplicidade, descentralização e reequilíbrios 313
A ilusão da técnica 315
VII
Não necessariamente 317
Bons e maus 319
Duplicação 320
Exposições e visibilidades 321
(Sem) Vergonha e (Não) Imagem 322
Referências Bibliográficas 324
Anexo: Links 336
Aos meus pais, Dulce e José Carlos, pela dedicação e amor com
que se empenham, de forma incansável, em seus filhos e netos.
Sem eles, em todos os sentidos possíveis, não estaria aqui.
À Maria, para e por quem palavras não traduzem, com cada vez
mais amor e estupefação.
E, por fim, à memória saudosa
daqueles que iniciaram esta tese ao meu lado, mas que
partiram antes de seu fim: Dulcinéa, minha querida avó, e
Taffa, para sempre o melhor amigo.
1
Agradecimentos
Muitas são as dividualidades que compõem essa tese, às quais tentarei, num
esforço de reconstrução imperfeito, apesar de louvável, fazer jus formalmente. Esse
trabalho não pode, de forma alguma ser compreendido senão como resultado da
interação de uma rede materialmente heterogênea, da qual, como autor principal,
ocupo, decerto, posição de destaque, mas, e não falo isso apenas para me eximir
das fraquezas e incongruências que esta tese pode conter (e certamente contém),
não posso considerá-la um trabalho meu individual. Sem mais, delongas, então,
passemos à incipiente retribuição simbólica que me cabe, aqui, realizar.
Comecemos institucionalmente. tenho a reiterar minha gratidão ao
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais e à Universidade Federal do Rio de Janeiro,
do qual, após mais de dez anos de ligação, me sinto parte constituída e
constituinte, e ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, pela
confiança e apoio ao longo dessa (dupla) jornada. O NECVU, núcleo do qual sou
pesquisador, também foi sempre um ponto de apoio e, principalmente de debates,
sugestões e dilemas: é um prazer e orgulho fazer parte desse grupo. Na França, fui
muito bem recebido pelos funcionários e professores da École de Hautes Études en
Sciences Sociales, assim como do Centre d‟Études des Mouvements Sociaux,
instituição de ensino e centro de pesquisa que me acolheram durante o estágio
doutoral em Paris. Importantíssimo também (fundamental mesmo) foi o apoio das
instituições de fomento acadêmico, CNPq e CAPES, por me possibilitarem esse
doutoramento.
Das instituições passemos aos professores, disciplina e hierarquia o
recomendam. Em primeiro lugar, como não poderia deixar de ser, agradeço ao meu
orientador, professor Michel Misse, interlocutor cuja amizade é dos maiores
orgulhos que carrego nessa iniciante carreira acadêmica. No PPGSA, agradeço às
2
valiosas e gratificantes ajudas e sugestões que recebi de grande parte de seu corpo
docente, em especial de Marco Antônio Gonçalves, Peter Fry, Els Lagrou, José
Reginaldo Gonçalves, Yvonne Maggie, José Ricardo Ramalho, Mirian Goldenberg e
Pedro Paulo Oliveira. Na UERJ, devo agradecer às professoras Maria Cláudia Coelho
e Helena Bomeny, que me acolheram em seu curso. Além disso, sou imensamente
grato àqueles que tiveram oportunidade de, em diferentes ocasiões, comentar e
oferecer importantes sugestões para o presente trabalho: Fernanda Bruno, Antônio
Rafael, Ana Paula Mendes de Miranda, Marco Antônio da Silva Mello, Scott Head e
Joana Vargas. Na França, tive a honra de ser orientado pelo professor Louis Quéré,
e de contar com o acolhimento, a ajuda e a generosidade intelectual de Daniel Cefaï,
além de sua providencial insistência na importância do material empírico e das
relações etnográficas. Aos professores que me receberam em seus séminaires e
ateliers, Cédric Terzi, Baudouin Dupret, Michel Barthélémy e Jocelyne
Arquembourg, também gostaria de deixar aqui expressos meu obrigado.
Dentre meus colegas, felizmente, abundam as amizades, e com elas e o que
proporcionam, mais dividualidades foram sendo incorporadas a este trabalho. De
forma especial, devo agradecer a Brígida Renoldi, cujas críticas e broncas me
empurraram para o trabalho de campo. Seu ―sincericídio‖ foi estímulo decisivo para
a aventura etnográfica. Também no NECVU, pude contar com a gratificante e
qualificada ajuda de Alexandre Werneck, César Teixeira, Natasha Neri, Vivian Paes,
Carolina Grillo, Andreia Ana do Nascimento, Antônio Luz e Arthur Bezerra, além da
incansável Heloísa Duarte. Júlio Naves, Mylene Mizrahi, Roberta Guimarães, Diogo
Lyra, Marisol Goia, Roberto Marques, Jonas Oliveira, Tatiana Bacal, Fernando Lima
Neto, Lênin Pires, David Aguiar, Leonardo Couto, Paola Lins, Luiz Augusto Campos,
Kiko Neto, Erick Bessa e Márcio Geraes também se encontram, de muitas e
importantes maneiras, participando dessa tese. Em Paris, a amizade e a ajuda de
3
Rodrigo Digeon, Dominique Papou, Soares, Mário Câmara e Jayminho Moreira
fizeram com que, mais ainda, pudesse me sentir em casa.
Agradeço especialmente àqueles que, durante todo o(s) percurso(s) dessa(s)
tese(s) (e dissertações), mantiveram-se mais próximos e dialogando, compartilhando
dúvidas, angústias, esperanças e expectativas: Ana Gabriela Morim de Lima, Ana
Carolina Nascimento, Frederico Policarpo, Nina Vincent e Tiago Coutinho.
Minha família sempre me apoiou e acreditou em mim, e sem isso seria difícil
imaginar como poderia ter conseguido. Meus pais, irmãos, cunhados e sobrinhos
foram e continuam sendo meu pilar de sustentação. Muito obrigado. Gostaria
também de agradecer pelas conversas e riqueza do ponto de vista, a meu primo
Fábio Andrade, firme na batalha por um mundo mais seguro‖. Aos meus nativos
digitais Victor, Carol, Gabriel, João Ariel, Lucas e Bia -, - na esperaa de que
saibam desfrutar dos benefícios e proteger-se dos perigos desse universo sócio-
técnico que se abre. Mantenho-me constantemente inebriado pela felicidade de ver a
vida se renovando e se transformando, atras de vocês‖.
Não posso deixar de louvar àqueles que, mais do que ninguém, participaram
da construção desse trabalho, os operadores de meras da polícia, no CCC, mas
especialmente “os guerreiros sem descanso” do 19º BPM. Agradeço também a todos
aqueles que proporcionaram meu acesso ao campo: coordenador, supervisores e
demais componentes do sistema de videovigilância policial. Sou grato também à
atenção e generosidade do Almirante Oscar Moreira da Silva, auxílio inestimável
com o qual pude contar.
E, mais do que tudo e todos, à Maria Raquel Passos Lima, companheira na
vida, nas idéias, nos planos, no amor, em tudo.
4
Uma seqüência de palavras tem um sentido,
uma seência de imagens tem mil.
Um amálgama de palavras (mot-valise) pode ter fundo duplo ou até triplo,
mas suas ambivalências são descritíveis em um dicionário,
exaustivamente enumeráveis: é possível ir até o fim do enigma.
Uma imagem é para sempre e definitivamente enigmática,
sem “resposta correta” possìvel.
Ela tem cinco bilhões de versões em potencial
(tantas quanto são os seres humanos),
logo nenhuma pode ter autoridade (a do autor não mais do que qualquer
outra). Polissemia inesgotável. Não se pode fazer com que um texto diga
aquilo que se quer com que uma imagem, sim.
(Debray, 1992: 58-59)
5
Introdução
Ao iniciar o Doutorado, no ano de 2006, me propunha a estudar o fenômeno
da cada vez mais comum vigilância por câmeras no espaço público urbano, que
começava a ser oficialmente empregada como parte de uma nova política pública de
segurança, sendo a tarefa atribuída à Polícia Militar. O discurso de inauguração da
então governadora Rosinha Garotinho, em junho do ano anterior, anunciava que o
investimento em tal aparato técnico marcaria o início de uma nova fase de combate
à criminalidade, dando provas da integração cada vez maior ao mundo moderno
das polícias inteligentes
1
. Tinha a chance então de pesquisar a implementação de
uma idéia inovadora
2
, confrontar o discurso ideal com a realidade material, e foi
com esse espírito que iniciei esta caminhada. Apesar de muitas idas e vindas,
percalços e mudanças de direção, pistas esvaziadas e certezas desfeitas, imagino
ter, em algum grau, operado essa confrontação. Entretanto, como fica evidenciado
no texto que se segue, não me concentrei sobre questões de eficiência ou avaliação
de políticas públicas, até por não me considerar capaz de fa-lo. A videovigilância
policial, além de um fenômeno recente, está longe de ser algo fixo. As experiências
que me propus a estudar, até por estarem baseadas essencialmente em inovações
tecnológicas, ainda buscam a melhor forma de adaptar a ação e o contingente
humano a essas inovações. Ou ao menos deveriam, e esse sim é um assunto a ser
debatido ao longo do texto.
De qualquer modo, estudos semelhantes têm por característica a
possibilidade mais que concreta de serem rapidamente suplantados por uma
reviravolta qualquer, seja na elaboração das políticas de segurança, na sua
1
Opinião exposta na reportagem ―Inaugurando o Centro de Comando e Controle de câmeras da
Secretaria de Segurança (http://www.ssp.rj.gov/noticia.asp?id=1459), veiculada pelo site da
Secretaria de Segurança Pública.
2
Como veremos ao longo do presente trabalho, as idéias não são tão inovadoras assim, e já povoavam,
em diferentes graus, práticas e imaginários recorrentes.
6
execução, ou por um desenvolvimento insuspeito dos meios técnicos. Assim, é
preciso adiantar, não tenho pretensões de proferir grandes verdades, desvendar
algum tipo de realidade ou fazer previsões. Busco apenas refletir sobre alguns
aspectos do mundo no qual vivo (e me interconecto) cotidianamente, e que vêm
algum tempo me chamando a atenção e despertando a curiosidade. Em especial
transformações na forma de nos relacionarmos com as imagens, com os outros e
com o espaço urbano, através dessas imagens e dos meios técnicos que
possibilitam essas relações, da maneira em que ocorrem.
Apesar de buscar inserir a discussão em um contexto muito maior, fora do
qual seria impossível compreen-la e perceber a riqueza que traz em si
3
, é em
experiências locais e concretas que a presente tese mantém-se ancorada. A inserção
dessas experiências nesse contexto, assim como desse contexto amplo e difuso
nessas experiências reduzidas, são os principais objetivos que me propus. Longe da
simplicidade que à primeira vista pode aparentar tal tarefa, além de extenuante,
revelou-se pródiga em armadilhas e dotada de consideráveis propriedades
labirínticas. Policiamento, (in)segurança, tecnologia, imagem, comunicação,
informação, poder, crime, violência, espaço público, controle, voyeurismo, criação,
exibicionismo... A difícil locomoção por esses diversos percursos pode ser
realizada com a adoção do olhar como “fio de Ariadne”. Como preconizam os
cânones acadêmicos, o olhar
4
é o tema dessa pesquisa, a unidade que perpassa
todo o trabalho, conferindo-lhe coerência (isto é, se alguma coerência nele houver),
sem em nenhum momento adquirir grande destaque ou centralidade no texto.
3
Até porque, como veremos adiante, o fenômeno da videovigilância é mundial.
4
O singular aqui não indica de modo algum a existência de um só modo de olhar, mas a unidade da
problemática do olhar, da qual pretendo me ocupar.
7
Estrutura do texto
A possibilidade técnica para a instalação de extensos circuitos de vigilância
por câmeras nos espaços públicos, apesar de essencial, não pode ser considerada
como única razão para a adoção massiva desse dispositivo de segurança em
inúmeras cidades no mundo inteiro. O discurso da insegurança - causada pelo
terrorismo, crime organizado ou delinqüência juvenil - indubitavelmente surge
como importante fator de legitimação para essas políticas. É bastante factível que
essa seja uma das principais razões para a ausência completa, ou quase completa,
de qualquer questionamento a respeito da crescente instalação de meras de
vigilância nas ruas e prédios no Rio de Janeiro. As promessas de um controle mais
rigoroso das atividades criminosas e de uma maior segurança nos espaços públicos
monitorados se sobrepuseram amplamente sobre qualquer voz que pudesse se
levantar contra a política de segurança que estava sendo implantada.
Exemplo claro disso é minha própria aproximação do tema videovigilância.
Quando trabalhava na dissertação de mestrado (Cardoso, 2005), atento à cobertura
da imprensa de casos de violência envolvendo jovens de classe média, classificados
pelos meios de comunicação como pitboys, e sua influência na ação policial, do
Legislativo e Judiciário estaduais, uma lei proposta e votada em tempo recorde pela
Assembléia Legislativa fluminense, despertou vivamente minha atenção, deixando-
me a impressão de que algo de realmente novo começava ali a se desenhar. Como
resposta à pressão exercida pela opinião pública, foi discutida uma legislação que
obrigaria tanto a instalação de circuitos internos de vídeo no interior das casas
noturnas no estado, como também a adoção de uma lista que, por meio de um
cadastro eletrônico, identificaria e vetaria a entrada em boates, bares e restaurantes
de pessoas tendo anteriormente se envolvido em briga(s) em algum desses
8
estabelecimentos. Os dois projetos foram analisados com rapidez e ambos
receberam parecer favorável, sendo no mesmo ano transformados em lei. Longe de
ser um caso único, ou mesmo precursor, a utilização de câmeras de vigilância tem
sido nos últimos anos tema recorrente de legislação brasileira, nos âmbitos
municipal, estadual e federal. Da obrigatoriedade de instalação de circuito interno
de vídeo em unidades neonatais ou em bailes funk e raves, à proibição de câmeras
particulares em escolas, cresce a cada dia a regulamentação do uso desse meio
técnico, fator que demonstra não somente o papel estratégico que lhe é atribuído
formalmente, mas também o poder que nossos legisladores imaginam que possui.
Uma reflexão a propósito da discussão legislativa no que diz respeito às
videovigilâncias
5
, assim como à (in)segurança e aos discursos teóricos em torno da
disciplina e do controle social, é o tema do primeiro capítulo.
A passagem ao plano empírico, no entanto, se fazia necessária, sob o risco de
me perder nos discursos alarmistas ou apologistas da videovigilância, que na maior
parte das vezes falam a uma relativa distância das realizações práticas destas. A
partir dessa necessidade, em maio de 2008 fui autorizado a realizar a pesquisa no
Centro de Comando e Controle da Polícia Militar, uma sala no 13º andar da torre da
Central do Brasil, onde as imagens de todas as câmeras operadas pela polícia no
Rio de Janeiro são reunidas. Nesse espaço, policiais passam o dia de trabalho
diante de um fluxo contínuo de imagens, tendo como função principal
supervisionar o trabalho realizado pelos operadores locais de câmeras, lotados nos
batalhões da PM espalhados pelo estado (além da capital também em Niterói,
Alcântara, Nova Iguaçu, Duque de Caxias e Queimados). O auxílio ao trabalho
destes operadores locais também era citado como uma das funções ali
desempenhadas. se localizava o escritório do Supervisor de Comando e Controle,
5
Ao longo do texto, muitas vezes opto pelo termo videovigilâncias, no plural, quando falo de variados
tipos de vigilância através de câmeras.
9
o coronel
6
, como todos falavam, que se revelou uma figura fundamental na
pesquisa, como informante e também como mediador. Até agosto foi no CCC que o
trabalho etnográfico foi realizado. Sentava-me atrás de todos os operadores, numa
bancada superior, junto com alguns outros policiais que realizavam outra função
(rádio e telefone), e os via o tempo todo, por detrás, sem ser visto por eles na maior
parte do tempo. Sabiam que eu estava ali, pois logo que eu chegava a minha
presença era notada, e alvo de comentários jocosos (sempre me “acusavam” de
jornalista e de “X9”
7
). Apesar do teor das brincadeiras, nunca senti animosidade:
minha presença não parecia intimidatória, ainda mais se comparada com a do
coronel, bem ao centro da sala, num escritório de vidro. Provavelmente, logo pensei,
uma arquitetura de inspiração benthamiana (Bentham, 2000). A inserção no CCC é
o tema do segundo capítulo.
A partir do final de agosto passei a freqüentar a sala de monitoramento do
19º Batalhão de Polícia Militar, e acompanhar de perto o trabalho realizado pelos
operadores das meras no bairro pioneiro do monitoramento, e onde, segundo o
coronel, teria havido uma redução mais drástica da criminalidade. Copacabana era
sempre apontada por meus interlocutores no CCC, como um exemplo positivo do
funcionamento do sistema. Pude acompanhar atentamente o trabalho, sentando-me
na mesma bancada que os operadores. Eu os observava, mas era também
constantemente observado. A minha observação era forçosamente participante,
controlada, agente. O efetivo dos monitoradores era formado por ex-policiais e ex-
bombeiros aposentados ou reformados, todos eles com idade avançada, entre
sessenta e oitenta anos. Essa questão, como fica evidente no terceiro capítulo, onde
6
Era, na verdade, tenente-coronel da Polícia Militar, mas por (in)formalismos da caserna, no falar
corriqueiro diz-se apenas “coronel”.
7
Gíria para delator.
10
trato do tempo que passei no 19º BPM, até novembro, é fundamental para entender
a realização do trabalho de videovigilância.
No quarto capítulo, relaciono esses trabalhos de campo no CCC e no
batalhão de Copacabana com o material que foi produzido internacionalmente,
discutindo a videovigilância em diferentes contextos. Percebem-se então melhor as
especificidades e generalidades das experiências que presenciei, através das
discussões que vêm sendo realizadas sobre o assunto ao redor do mundo. Além
desse esforço relacional, aproveito para também tratar de forma mais cuidadosa e
aprofundada algumas das questões que surgiram nos dois capítulos anteriores,
além de tentar relacioná-los um pouco melhor.
Deixo para o quinto e derradeiro capítulo a discussão sobre outras formas do
que poderíamos chamar de videovigilâncias privadas, através de câmeras de
segurança particulares, mas também (e especialmente), por meio de câmeras - ou
telefones - pessoais ressignificados como câmera de vigilância, ou melhor, de
flagrantes. São apresentadas e pensadas formas de apropriação de imagens que, em
contraponto à funcionalidade declarada da videovigilância policial, se pretendem
estéticas: não intentam o controle, mas o gozo. Inclui-se também nele o trabalho
etnográfico que vem sendo realizado mais tempo, iniciado sem pretensões
acadêmicas, apenas como uma forma de viver a contemporaneidade e agir através
dos meios técnicos por ela oferecidos. Ao perceber o valor e o peso dessa experiência
para a reflexão e o trabalho que vinha desenvolvendo de forma paralela no
doutorado, decidi incorporá-la formalmente ao corpo empírico da tese, no qual sua
presença podia ser sentida de modo informal. Junto então a questão constante
da captação de imagens, através das meras, à sua (re)produção e circulação,
através dos computadores, da Internet e de plataformas características e
importantes de disponibilização de vídeos: o YouTube, principalmente, mas também
11
uma outra, um pouco mais “quente”, o X Videos. Opero uma tentativa de análise
antropológica do regime presencial criado pela comunicação online, e que pode
ser captado através das interações homens-máquinas-web, pois somente nelas
existe. Discorrendo sobre essas outras formas, ainda “mais contemporâneas que a
videovigilância policial, é feita a reaproximação com algumas das questões teóricas
anunciadas e iniciadas no primeiro capítulo.
Três etnografias, três posicionamentos
Se considero a discussão teórica presente em todo o trabalho de suma
importância, é, entretanto, a pesquisa etnográfica que lhe confere vida, alma,
anima. A, não, as pesquisas etnográficas, pois são três. Duas delas são clássicas,
nas quais o antropólogo se insere no ambiente a ser estudado, interage, observa,
questiona, perscruta “seus nativos”, amparado pela “autoridade etnográfica” a ele
conferida pelo diploma universitário, pelo saber antropológico que personifica
8
; a
outra, um pouco menos ortodoxa e com preocupações diferentes, na qual uma
figura híbrida, o etnógrafo-nativo, inserido no ambiente a ser estudado, interage,
observa, questiona, perscruta “seus co-nativos”, co-antropólogos
9
e “co-
observadores
10
, amparado pela conjugação de sua experiência prática e saber
8
Numa questão que depende mais de “legitimidade” institucional do que de “conhecimento”
propriamente dito.
9
O que acontece se recusarmos ao discurso do antropólogo sua vantagem estratégica sobre o discurso
do nativo? O que se passa quando o discurso do nativo funciona, dentro do discurso do antropólogo, de
modo a produzir reciprocamente um efeito de conhecimento sobre esse discurso? (...) O que sucede se,
insatisfeitos com a mera igualdade passiva, ou de fato, entre os sujeitos desses discursos,
reivindicarmos uma igualdade ativa, ou de direito, entre os discursos eles mesmos? Se a disparidade
entre os sentidos do antropólogo e do nativo, longe de neutralizada por tal equivalência, for
internalizada, introduzida em ambos os discursos, e assim potencializada? Se, em lugar de admitir
complacentemente que somos todos nativos, levarmos às últimas, ou devidas, conseqüências a aposta
oposta que somos todos ‗antropólogos‘ (Wagner, 1981: 36), e não uns mais antropólogos que os
outros, mas apenas cada um a seu modo, isto é, de modos muito diferentes?‖ (Viveiros de Castro, 2002:
115).
10
"(...) tudo que é dito é dito por um observador a outro observador, que pode ser ele mesmo. Um
observador é um ser humano que pode fazer distinções e especificar o que ele distingue como uma
unidade, como uma entidade diferente dele mesmo. Um observador pode fazer distinções em atos e
12
antropológico. Uma observação participante, mas principalmente uma participação
observante.
Em cada uma dessas inserções etnográficas, eu observava de um lugar
diferente. Meu ponto de vista não era o mesmo, e em cada um deles isso
proporcionava olhares diversos e relações específicas. Se no CCC olhava,
principalmente do escuro, discretamente, por sobre os ombros dos observados, no
19º Batalhão, sentava-me ao lado dos operadores, interagia com eles o tempo todo,
nunca passava incógnito. E no terceiro contexto, o da etnografia digital, ao dar
atenção a um fenômeno contemporâneo e cotidiano, do qual inegavelmente tomo
parte, meu ponto de vista é até certo ponto o do nativo. Ponto de vista nativo, mas
tentando ao menos olhar a cena através de um espelho, tentar se ver em ação
estando na ação, tão membro dela quanto os outros. Uma tentativa, válida penso,
porém sem ambição de resolver tão importante problema, mas levantar e iluminar
questões. O texto que se segue, como um todo, segue um tom mais ensaístico, e
isso ocorre de maneira proposital: nada mais longe dos objetivos que me propus do
que escrever algo que se aproximasse de um tratado sobre videovigilância e olhares
contemporâneos.
Sobre redes e agenciamentos
Fator em comum entre as “três etnografias” é que cada uma delas trata de
relações que eu estabelecia, principalmente, com três “elementos”: pessoas,
computadores e câmeras. Em todos os três contextos, eles estavam presentes de
modo imbricado, embora em graus diferentes e criando híbridos (Latour, 2005) a
pensamentos, recursivamente, e é capaz de operar como se fosse externo (distinto) à circunstância na
qual ele se encontra. Cada vez que fazemos referência a algo, explícita ou implicitamente, estamos
especificando um critério de distinção que indica aquilo de que falamos e especifica suas propriedades
como ente, objeto, unidade ou sistema. Todas as distinções sustentadas, conceitualmente ou
concretamente, são feitas por nós, enquanto observadores" (Maturana, 1997).
13
cada vez específicos. Importante fator de convergência, eram todos atravessados
pela “tecnologia digital” de captação e transmissão de dados (no caso, imagens),
onipresente e responsável pela junção dos três elementos em questão em
agenciamentos sócio-técnicos (Callon, 2003), redes materialmente heterogêneas de
homens e objetos, que constituem algumas formas do que poderíamos chamar de
“videovigilâncias da contemporaneidade. E cada um desses agenciamentos é
peculiar, não apenas em função do contexto em que está inserido e que por sua
vez ajuda a moldar -, mas também de acordo com as características dos humanos
que os compõem, todos diferentes entre si.
Essas determinações metodológicas
11
são centrais para o desenvolvimento do
tema, ao longo de toda a tese. Assim como a não aceitação da fixidez desses
agenciamentos sócio-técnicos, ou dos contextos nos quais estavam inseridos e
faziam parte: ambos, agenciamentos e contextos, estão em constante mudança e
transformação, vão se autoconformando mútua e constantemente.
Os pedaços nas redes não eso dados na ordem das coisas. Pelo contrário,
eles são efeitos relacionais. Isso significa que sua forma, seu conteúdo e suas
propriedades não são fixos. Antes disso, sua identidade emerge e muda no
curso da interação. A lição metodológica é essa: objetos como, por exemplo,
pessoas e textos são processos de transformação, compromisso e
negociação (Callon & Law, 1997: 171).
Questão de forma: a polissemia incidental
Não se pode ignorar o problema intrínseco de uma reflexão sobre imagens
baseada apenas em palavras e linguagem escrita. Como lembra a epígrafe de
Debray, não tradução possível (ou certa) entre as duas formas de comunicação,
por mais que os esforços nesse sentido nunca sejam mal-vindos e com freqüência
produzam ricos resultados reflexivos. No intuito de minimizar, mesmo que de modo
incompleto, essa intradutibilidade, valho-me das possibilidades tecnológicas que
11
E até certo ponto éticas.
14
estudo e a respeito das quais discorro repetidamente ao longo das páginas que se
seguem. Sempre que me pareceu possível e proveitoso para a discussão, indico
através de um link na nota de rodapé um vídeo, na maior parte das vezes no
YouTube, mas também, por razões que explico adiante, do site X Videos. E sobre
eles, é preciso fazer importante ressalva. Esses links não compõem o presente texto
apenas de forma ilustrativa, mas - ao menos era essa minha pretensão - como
importante componente da narrativa, um modo não de exemplificar o que dizia
através da escrita, mas um convite à reflexão em conjunto, a ambição de trazer
parte do material de estudo para o contato direto com o leitor, a fim de que parte do
sentido do texto seja construída através dessa relação. Além da intraduzibilidade da
imagem em palavras, outra característica do recurso narrativo que uso me obriga a
buscar um tratamento mais abertamente polissêmico da parte imagética do
presente trabalho. Uma questão mais prática do que epistemológica, que busco
explicar adiante.
Boa parte do material etnográfico que é transformado em texto está
“domesticado” pelo etnógrafo: retirado do seu contexto de origem, é pensado,
“analisado” e, após esse processo, imortalizado em texto escrito, virtualmente em
luz e cristal líquido ou de forma “material”, em papel. A mediação entre o que foi
observado e aquilo que foi redigido provoca o congelamento de um momento ou de
uma relação na forma de texto. Um instante do devir, do constante vir a ser das
relações etnográficas, é captado a partir de um ponto de vista, que se torna
“oficial” - e materializado em palavras. Faz parte do próprio processo de escrita, e é
difícil imaginar como, ou por que, evitar isso. Assim acontece também no presente
trabalho, ou melhor, na parte escrita do presente trabalho. Com sua parte
imagética ocorre um processo diferente. E não apenas por se tratar de imagens,
pois uma foto ou um filme, por mais que, como disse Debray, possam ser muito
15
mais polissêmicos que um texto apenas escrito, também capturam um ou uma
seqüência de momentos e o fixam no texto, que imagético. E por mais que essas
imagens possam dizer coisas a determinados “leitores” que escapem mesmo ao
“autor”, este ao menos mantém ainda o domìnio sobre o que escolheu, ou o,
incluir na narrativa composta que construiu. As características das plataformas de
compartilhamento de imagens como o YouTube, no entanto, impedem esse
movimento de “domesticação” do material utilizado. Este, mesmo após ser anexado
ao texto, continua se modificando, se recriando de forma incontrolável e
imprevisível, pois eminentemente aberta e coletiva. Estar em constante
transformação é uma das mais interessantes, marcantes e inovadoras
características dessa forma contemporânea de criar e circular imagens. E estas não
estão ali sozinhas, mas formando uma composição com diversos outros elementos,
sejam links, comentários, avaliações ou mashups
12
, criações que utilizam a própria
imagem de origem como uma das matérias primas do produto audiovisual final.
Cada atualização dos links inclusos pode trazer (e provavelmente trará) um texto
diferente, em decorrência da intervenção constante de usuários desses sites na
apresentação das imagens um comentário pode provocar transformações
significativas na experiência da visualização das imagens.
Através dessa parte do trabalho alocada fora dele próprio, no ciberespaço
(Lévy, 1999), o domínio sobre o material se perde a tal ponto, que este pode
simplesmente deixar de existir. Isso acontece com muitas das imagens e páginas do
YouTube, que são retiradas “do ar”. A Internet funciona como grande depositório de
informações, o que sem dúvida “traz de volta à vida” rias imagens e “cenas
esquecidas”, mas estas também podem, uma vez reavivadas, de um segundo ao
outro, ser apagadas. As imagens em si obviamente continuarão existindo, e
12
―Mashup: arquivo digital que contém mais de um ou todos tipos de arquivos, criando uma nova obra
derivada. Textos, desenhos, áudio, vídeo etc.‖ (Burgess & Green, 2009: 189).
16
provavelmente poderão ainda ser encontradas em outros pontos no ciberespaço,
porém não mais daquela forma específica. A Internet é, assim, um processo de
(des)criação constante, as formas são fácil e intrinsecamente mutáveis. E essa
mutação cada vez menos causa desconforto e apreensão, e cada vez mais é
“naturalizada”. Ao invés de combatê-la sem fim e sucesso possíveis, aprende-se a
lidar com ela, tirando proveito de seu modo de funcionamento inovador. Imagens
sendo retiradas, na maior parte das vezes por censura relativa ao sexo, violência ou
copyright, também é um fato a ser considerado no trabalho, e ao reler esse trabalho,
poucos meses após o início de sua redação, alguns dos vídeos aqui indicados
haviam sido retirados do ar, o que se é um problema real, não chega a ser insolúvel:
muitos vídeos similares são produzidos e introduzidos nesses sites a cada dia,
basta procurar, pelo título, imagens semelhantes e substituir a que foi retirada.
Antes de terminar essa introdução, porém, um último alerta, ou melhor,
recomendação. o pode ser esquecido que a cibercultura (Lévy, 1999) promete
uma construção da leitura em hiperlinks: assim sendo, o impulso de continuar a
visualização indicada escolhendo, dentre as opções automaticamente, mas não de
forma aleatória, oferecidas pelos próprios sites, o link “que der vontade”, longe de
ser motivo para autorepressão disciplinar, é prática fortemente recomendável. Uma
participação mais ativa do leitor no texto não tem como ser evitada. Não restam,
então, opções a não ser lidar com essa participação como um problema, cujos
efeitos devem ser constantemente “controlados”, ou como algo desejável, uma forma
de falar mais do que se é capaz, e sempre no movimento de iniciar uma conversa,
que precisa ser a cada vez atualizada, e não de se concluir algo com o que se deve
concordar ou discordar. Optei por essa última alternativa.
17
I Tudo ver, tudo prevenir: (in)segurança, lei e controle
I.1 Ecos de (in)segurança
Para quem vive o cotidiano do Rio de Janeiro, ou mesmo para aqueles que
apenas o acompanham à distância, a experiência da inseguraa é incontestável.
Ainda mais significativo, o sentimento amplamente difundido de que esta vem
aumentando progressivamente também aparece de forma generalizada e a seu
respeito não é admitida qualquer contestação. Apesar da ligação intrínseca com a
idéia de um crescimento da violência e da criminalidade urbana, não acho que
poderíamos falar de uma relação direta entre elas e a inseguraa. A força dessa
percepção não reside em um aumento proporcional da violência, e muito menos
pode ser considerada como um fenômeno contemporâneo. era possível observar
discursos semelhantes desde o século XIX no Rio de Janeiro, sempre sendo
apontado como contraponto um passado idealizado, no qual a violência era mais
rara e os crimes menos graves.
A idéia de que no passado o Rio de Janeiro era uma cidade pacífica também
se repete ciclicamente, desde meados do século passado (XIX), alternando-se
com os fluxos e refluxos da repressão policial e das sucessivas “pacificações”
e “restabelecimentos da ordem pública” na cidade (Neder, 1994; Bretas, 1997;
Holloway, 1997). Mesmo a idéia de que antes havia gatunos e agora há
mais vioncia, repetiu-se pelo menos em três ou quatro conjunturas, neste
século (XX), acumulando-se a apreensão de que a cada nova conjuntura a
coisa piorasse (Misse, 2006: 140).
Essa imagem de uma cidade que, num passado o tão remoto, era um local
seguro onde as pessoas saiam às ruas sem se preocupar com a violência só foi
construída a posteriori, sendo possível perceber isso nos jornais de outras épocas. É
assim que ao lermos um editorial do Dia de 1960, podemos perfeitamente imaginar
que se trata de um texto atual, tamanha é a semelhança dos discursos (excluindo,
obviamente, a comparação com o gangsterismo, um tanto datada, até mesmo para a
época):
18
O Rio de Janeiro se transforma em cidade do crime. O gangsterismo, que deu
triste celebridade a Chicago, começa a exibir-se nessa outrora pacífica
metrópole o Governo tem o grave dever de dotar a Polícia de meios
suficientes para defender a população. Diante da pressão da opinião blica
impressionada com a onda de crimes que vem alarmando a população da
cidade, as autoridades eso cogitando lançar uma campanha enérgica de
prevenção e repressão. O povo não quer mais promessas, o que se exige é
ação. A população não pode continuar à mercê dos criminosos, que vêem no
Rio o paraíso para as suas atividades.
13
Ora, se cinqüenta anos o Rio já era considerado o “paraìso dos
criminosos”, que deixavam a população da cidade à sua mercê, e se as
representações públicas afirmam que desde então a criminalidade e a violência
fazem crescer descontroladamente, a simples persistência de um Estado
democrático poderia ser considerada um milagre. Uma vez que análises
socioantropológicas baseadas em argumentos tão místicos não costumam gozar de
grande credibilidade, creio ser necessário buscar outra explicação para a aparente
contradição entre o discurso atual, que um aumento exponencial da insegurança
como um fator recente que surge para macular a vida na “cidade maravilhosa”, e
que seria explicado por outros fatores também recentes como o descaso de
governos passados com a segurança pública
14
ou o crescimento do tráfico de drogas
-, e o discurso do passado, que pelo menos meio século logo, antes dos
acontecimentos apontados como responsáveis pelo aumento da violência
“repetia” a mesma coisa. No passado, os que nele viviam adotavam a mesma
retórica atual, de um “hoje violento” em oposição a um “ontem pacìfico. O que nos
levaria a concluir que o “paraìso perdido”, livre da criminalidade teria ocorrido, na
realidade, anteontem”. E é possìvel que esse movimento se repita indefinidamente.
Sempre no tempo presente as pessoas projetariam a imagem de um estado pacífico,
idílico, para um tempo passado, que é mítico, que nunca, de fato, teria existido.
13
Manchete principal de O Dia, de junho de 1960 (apud Misse, 2006: 167)
14
Em especial o argumento, repetido a exaustão mais de duas décadas, de que “no governo de
Leonel Brizola a polícia não podia subir o morro, o que fez com que a criminalidade proliferasse de
forma descontrolada”. A reação interna e o boicote (”greve branca”) das forças policiais às novas
diretrizes, pós-ditadura militar, da segurança pública instituídas por Brizola são assuntos tratados
por Kant de Lima em seu estudo sobre a Polícia Civil do Rio de Janeiro (1995).
19
A comparação com os discursos sobre a violência em outros países e outros
contextos indica que tal fenômeno não é exclusivo do Rio de Janeiro ou do Brasil. A
oportunidade que me foi concedida de realizar parte do Doutorado no exterior
ofereceu uma rica possibilidade de comparação entre o cotidiano e os discursos em
torno da insegurança no Rio de Janeiro e na região parisiense, cujas taxas de
criminalidade e violência são muito mais baixas que as cariocas. A disparidade dos
números
15
tem fraca influência sobre a intensidade do discurso relativo ao aumento
vertiginoso da insegurança e da criminalidade. Pouco importa a taxa de vitimização
ou a gravidade dos delitos mais corriqueiros; entre a população, a imprensa e o
governo, poucos questionam essa pretensa realidade.
Jean-Claude Monet identifica a mesma tendência de idealização de um
passado pacato nos discursos europeus, assim como justificativas relativamente
recentes para a mudança do quadro.
Na realidade (...), a história da violência contradiz essas representações
espontâneas. O tema recorrente de uma Belle Époqueque teria ignorado a
violência é uma quimera. Mas se os discursos apocalípticos resistem às
demonstrações científicas, é que, por serem retomados pelas autoridades
políticas, eles adquirem credibilidade e legitimidade. Como a polícia, a política
se alimenta do tema da insegurança (Monet, 2001: 213-214).
É interessante atentar para o fato de que na década de 1980, em meio a um
discurso alarmista de recrudescimento da violência na França, as estatísticas
criminais mostravam que o número de assassinatos na época era inferior ao do
século anterior. Fenômeno semelhante ocorria na Alemanha e na Grã-Bretanha.
16
15
Para uma comparação relativa aos países, de acordo com o United Nations Office on Drugs and
Crime, a taxa de homicídios no Brasil era, em 2008, de 22 pessoas a cada 100 mil, enquanto na
França era de 1,4. Em relação às regiões metropolitanas, também em 2008, a de Île-de-France, onde
está localizada a região parisiense e suas cidades periféricas, registrou 501 homicídios e tentativas de
homicídio em uma população de aproximadamente 11,6 milhões de pessoas (fonte: INSEE). Apenas na
capital do Rio de Janeiro foram contabilizados 2.069 homicídios e 1.612 tentativas de homicídio (3.681
homicídios e tentativas), em uma população estimada de 6,2 milhões de moradores (fontes: ISP e
IBGE). Em proporcionalidade, na região da capital francesa foram 59,37 a cada 100 mil habitantes,
contra 4,318 no Rio, um número 13 vezes maior de casos.
16
Da mesma forma, Misse mostra que a polícia carioca dos anos 1950 registrava uma taxa de lesões
intencionais produzidas em conflitos interpessoais maior que as de hoje (embora provavelmente menos
graves e com menor sub-registro que agora) (Misse, 2006: 212).
20
A sensibilidade à violência dos europeus do fim do século XX faz esquecer que
a história da Europa moderna e contemporânea é pontuada de motins,
revoltas, rebeliões e revoluções. (...) Em todas as épocas, os oprimidos se
mobilizaram em nome da justiça, os privilegiados em nome da ordem, e os
que estão entre os dois para pôr um fim nos conflitos de uns e de outros
(Monet, 2001: 216).
17
Diversos autores atribuem um papel fundamental à imprensa na
consolidação desses discursos sobre a insegurança na França, lembrando o
sensacionalismo com que tal tema é comumente abordado, sempre insistindo no
“aumento vertiginoso da criminalidade nos tempos atuais” (Monet, 2001;
Mucchielli, 2002; Macé, 2002). Essa seria uma importante pista a ser seguida no
caso carioca, se levarmos em conta a recorrência diária do tratamento
sensacionalista na imprensa da cidade. Mesmo se, como foi apontado
anteriormente, a idéia de um aumento da violência o é estranha ao carioca ao
menos desde o século XIX, a partir da década de 1970 uma transformação mais
consistente nas representações dos habitantes da cidade sobre a violência urbana
pode ser percebida. Em parte tal mudança, se deve ao fato de que é somente no
final da década anterior (1960) que a temática do banditismo urbano ganha as
páginas dos “jornais da elite” da cidade (Jornal do Brasil e O Globo), tendo antes
estado restrita às publicações destinadas às classes populares (como O Dia e O
Povo). Passam também a fazer sucesso folhetins policiais que versam sobre as
relações entre bandidos e esquadrões da morte ou grupos de extermínio
18
. Assim,
talvez mais importante do que um aumento incontrolável da violência, a maior
visibilidade dada à criminalidade violenta existente na cidade - e parcialmente
invisível para as classes economicamente privilegiadas - colabora definitivamente
para a instauração e consolidação da inseguraablica no Rio de Janeiro.
17
Outro fator que torna inaceitável a argumentação de um aumento da violência na Europa a partir da
segunda metade do século XX é o simples fato de que na primeira metade duas guerras mundiais
arrasaram o solo do continente e provocaram a maior carnificina da história.
18
Esquadrão da Morte, de Amado Ribeiro e Pinheiro Jr., cio Flávio, o passageiro da agonia, de José
Louzeiro e A República dos Assassinos, de Aguinaldo Silva, por exemplo.
21
A própria noção de insegurança, entretanto, não pode ser compreendida em
separado da idéia de seguraa, a promessa, ou a certeza, de que nada de
extraordinário acontecerá. Mesmo se reduzirmos o sentido mais amplo da palavra
segurança à idéia exclusiva de uma garantia de inviolabilidade do corpo e dos bens
de uma pessoa, seja através de agressão física ou apropriação indébita de algo que
lhe pertence, é possível que ela não passe de uma noção abstrata, impossível de ser
concretizada na vida real. E é mesmo difícil imaginar que alguma civilização, em
qualquer época ou lugar, tenha efetivamente experimentado a ausência completa de
riscos ou de imprevisibilidade, ou se sentido ao abrigo de inimigos, predadores,
“forças da natureza” ou castigos divinos. Diante desse panorama, não seria absurdo
afirmar que a segurançapode ser relativa, sempre havendo maior ou menor grau
de insegurança na vida, coletiva ou individual.
A quimera de uma vida segura e isenta de perigos é provavelmente originária
da promessa moderna de um mundo controlável, do qual a violência pudesse ser
efetivamente extirpada, e a natureza domesticada. Seria mesmo o caminho
“natural” a ser percorrido na modernidade, culminando em uma sociedade segura
baseada no aumento constante do conhecimento e no aperfeiçoamento da ciência e
das tecnologias, sempre se movimentando em direção ao progresso e eliminando um
a um seus problemas e desvios, através do trabalho criterioso, competente (e, em
teoria, moralmente neutro) de técnicos especialistas (Bauman, 1999).
A análise histórica processual de Norbert Elias sobre a sociedade de corte e o
processo civilizador (Elias, 1993; 2001) é um interessante indicador de o quanto as
idéias gêmeas de segurança e insegurança públicas são recentes e estariam
indissociavelmente ligadas à emergência da noção do Estado como detentor do
monopólio do uso legítimo da força, e da conseqüente mudança (também lenta e
22
processual) da própria relação estabelecida com a violência
19
. Ainda assim o
caminho ao sonho de uma sociedade totalmente pacífica precisa de um bom par
de séculos para ser percorrido, da emergência da corte absolutista até os sonhos de
uma sociedade perfeitamente segura. Foram necessárias tanto a crença na política
pura quanto na ciência pura (Latour, 2005), para acreditarmos no advento de um
Estado (governo) completamente racional e detentor de um domínio técnico nunca
antes visto, capaz de eliminar todos os problemas sociais, em especial a violência,
além de neutralizar os conflitos cotidianos da vida em sociedade.
20
Não interessa para a questão aqui desenvolvida a prolífica discussão em
torno das razões do sentimento de insegurança e da onipresença do risco na
percepção do “homem contemporâneo”, tema explorado exaustivamente por autores
como Bauman (2003), Giddens (1991; 2002), Beck (2008), Roché (1993; 1994),
Mary Douglas (Douglas & Wildavski, 1982), Lianos (Lianos & Douglas, 2000) e
muitos outros. Até por pensar que a única causa identificável é mesmo a existência
do conceito de segurança, e mais especificamente de segurança pública, e a
pressuposição de que cabe aos governantes garantir a proteção ao corpo e aos bens
dos cidadãos. Mas sendo essa (in)segurança interligada ou não ao aumento da
violência e da criminalidade, efeito de uma modernidade líquida (Bauman, 2003) ou
da impunidade histórica, ontológica (Giddens, 1991) ou circunstancial, sua
realidade é incontestável, mesmo que supervalorizada por um processo de
19
Por ts dessa evolução legislativa, é em realidade toda a nossa sociedade que opera há umas três
décadas uma verdadeira mutação em sua relação com a violência, transformando o estatuto da
violência, cada vez mais estigmatizada e deslegitimada. Daí o paradoxo aparente: o sentimento geral do
aumento dos comportamentos violentos pode perfeitamente acompanhar um movimento de aceleração de
sua denúncia, mas também de estagnação, ou mesmo recuo, de sua freqüência real‖ (Mucchielli, 2008:
105-106).
20
Vale lembrar que a própria categoria “violência” carrega consigo, mais do que uma descrição de um
ato ou comportamento, uma acusação, estabelecendo uma relação entre diferentes atores sociais.
“Violento é sempre o outro, aquele a quem aplicamos a designação. O emprego da palavra é, assim,
performativo, isto é, ao empregá-la nós agimos socialmente sobre outrem seja denunciando uma ação
ou uma pessoa, seja acusando um evento ou um sujeito. Ao usá-la, nós aceitamos entrar em conflito.
Violência o é uma expressão apenas descritiva ou neutra, ela toma partido, se engaja na própria
definição do ato ou do ator‖ (Misse, 2006: x).
23
retroalimentão positiva, cumulativa e constante. Ela é factível e age sobre os
indivíduos. Sua existência para as pessoas que a sentem, a partir dela constroem
representações simbólicas e em sua função planejam e realizam as atividades
práticas diárias, é perfeitamente concreta.
A questão diz respeito a um momento do esquema classificatório de uma
sociedade, pois essas categorias são partilhadas, mesmo se todos os seus
membros o se sentem em insegurança: isso contribui a dar força à
problemática securitária. Ela ordena o mundo ao redor, mesmo para as
pessoas que não têm medo ou não o vítimas de nenhuma violência (Roché,
1993: 11).
A força dessa categoria de pensamento e a ampla visibilidade da violência e
da delinqüência teriam o poder de deturpar sua dimensão real, generalizando a
impressão de seu aumento exponencial. Proliferam-se então o que Mucchielli (2002)
chama de ideologias securitárias
21
: o poder público promete, apoiado pelos eleitores,
recrudescimento da força no combate ao crime (Rigouste, 2008), “tolerância zero”
contra pequenos delitos, críticas à rede de proteção aos menores (Lazerges, 2008;
Franco, 2008), aumento das taxas de encarceramento (Aubusson de Cavarlay,
2008), radicalização dos discursos normativos (Roché, 1993)... Esta situação é
comum à França, aos Estados Unidos, mas também ao Brasil, e a muitos outros
países e metrópoles ocidentais. Sem dúvida, os atentados de 11 de setembro de
2001 radicalizaram ainda mais essa tendência, porém de modo algum podem ser
considerados como um marco de seu início. O terrorismo se adapta perfeitamente
ao discurso da ideologia securitária (e acentua a criminalização penal e moral da
delinqüência oriunda de jovens de origem árabe e islâmica, especialmente na
Europa), mas não o cria. A associação com o terrorismo no mundo
contemporâneo, é preciso estar claro tem o poder de justificar qualquer medida de
21
―Uma sociedade securitária, é uma sociedade na qual a repressão penal é utilizada como meio único
de resolver os problemas sociais, educacionais, sanitários, ou mais ainda, de evitar que esses problemas
até mesmo sejam colocados‖ (Franco, 2008: 54).
24
retaliação e combate, e de deslegitimar qualquer simpatia ou compreensão pelos
inimigos da civilização nessa dura guerra a ser travada.
Para tão duro combate, toda a engenhosidade da razão é bem-vinda:
legisladores, pesquisadores e industriais, ícones da racionalidade moderna, unem
suas forças contra o inimigo comum. Helicópteros blindados, armas mais letais,
radiotransmissores, aparelhos de escuta telefônica, tasers, bancos de dados... Os
exemplos são infindáveis e necessitam de constante “atualização”. Diante desse
quadro, a instalação de sistemas de videovigilância policial em ruas das principais
cidades brasileiras não apenas teve pouquíssima contestação pública, mas foi
regularmente saudada, pelo discurso oficial e também pela imprensa, como uma
importante arma na luta diária do Estado para proteger a população. A tecnologia
havia sido adotada em outros paìses (“mais prestigiosos que o nosso”), e dados de
fontes nunca especificadas afirmavam tratar-se de incontestável sucesso. A adoção
da videovigilância foi até certo ponto naturalizada, uma nova tecnologia que cedo ou
tarde seria incorporada pela polícia, como outrora as impressões digitais e os
bancos de dados informáticos. Uma situação corriqueira e nada surpreendente,
tanto no contexto das técnicas policiais quanto da informatização da vida
contemporânea.
É preciso reconhecer que se nós aceitamos facilmente a ideologia securitária
ambiente, é também porque somos os primeiros a participar dela. Diante de
uma existência ansiogênica, entretida por um fluxo contínuo de informações
umas piores que as outras, as tecnologias nos envolvem, nos asseguram (De
Blomac & Rousselin, 2008: 165).
I.2 Câmeras legislativas
A última década do século XX testemunhou a popularização da Internet,
assim como a avassaladora conquista de terreno da tecnologia digital. Em um curto
25
período, a junção dessas duas inovações técnicas transformou por completo a
comunicação, e conseqüentemente a vida social em todas as partes do mundo
atingidas por tal revolução. Passado o deslumbramento inicial e decorrido um
tempo minimamente suficiente para a absorção dessas mudanças e das novas
possibilidades abertas por elas, os mais diferentes setores da sociedade passaram a
vislumbrar modos de utilizar essas tecnologias em proveito próprio. Lojas cada vez
mais passaram a efetuar vendas online, pesquisadores criaram e usaram bancos de
dados mais e mais extensos disponibilizados em rede, publicitários fizeram-se ainda
mais presentes nos lares conectados à Internet, artistas passaram a expor e
divulgar seus trabalhos em sites especializados, ou através de programas de
compartilhamento de arquivos, fóruns de discussão foram criados em torno de
todos os assuntos imagináveis... Se nos anos 1990 era possível identificar com
clareza essa tendência, a partir da primeira década do culo XXI, a decisão de não
segui-la praticamente podia ser apontada como uma opção deliberada pela
obsolescência. Ou uma escie de saudosismo crônico.
Embalado pela retórica da violência e do medo, a indústria da segurança logo
passa a investir na inovação tecnológica para criar e comercializar sistemas cada
vez mais sofisticados e, em teoria, menos custosos, cujas promessas de proteção
contra a violência e os riscos em geral têm o poder de rapidamente seduzir
consumidores amedrontados e dispostos a cada vez mais investir em sua própria
segurança
22
. Consumidores privados, e também públicos.
É nesse contexto que surgem as primeiras apropriações oficiais da
videovigilância no Brasil. Revolução tecnológica, sentimento de insegurança e, em
boa dose, forte crença no poder da visão e das imagens, foram os principais
ingredientes da intensa atividade legislativa em torno do assunto que já podemos
22
Ver, por exemplo, Heilmann (2005).
26
observar a uma década, e que se analisada a seguir. A vigilância eletrônica
policial, campo empírico do presente trabalho, apesar de o regulamentada por
legislação, surge dentro do mesmo movimento, como indica a, até agora, única lei
federal sobre o assunto, que prevê a obrigatoriedade da utilização de parte dos
investimentos do Fundo Nacional de Segurança Pública em inovações tecnológicas,
dentre as quais a videovigilância é explicitamente citada. No Rio de Janeiro, a
Secretaria Nacional de Segurança Pública investiu soma considerável na aquisição
e instalação de câmeras e salas de controle, em especial no período dos Jogos Pan-
Americanos (2007). Como esses sistemas foram desativados após a realização do
torneio, sua incorporação pela estrutura maior de “comando e controle” da Polìcia
Militar parecia óbvia. E de fato começa a ser discutida mais seriamente mas sem
uma decisão final -, na metade final de 2009, com o projeto de instalação de
câmeras em comunidades ocupadas por UPPs
23
, tendo como projeto-piloto o Morro
Santa Marta, em Botafogo. Durante esses dois anos ficaram armazenadas, nem
sempre em condições adequadas, em salas como a que pude ver no 19º BPM, em
Copacabana. Porta permanentemente fechada - condição garantida por um lacre da
SENASP -, “pegando poeira e maresia”, história que mais de uma vez me foi contada
pelos operadores de câmeras do batalhão.
I.2.1 - Estado
A esfera estadual foi o palco da maior parte das propostas legislativas com
alguma implicação na cidade do Rio de Janeiro. A Assembléia Legislativa do
Estado
24
, do final de 1998 até o meio de 2009, havia aprovado sete leis autorizando,
regulamentando ou estabelecendo a instalação de câmeras de segurança em novos
23
Unidades de Polícia Pacificadora.
24
Todas as informações referentes ao Poder Legislativo fluminense foram retiradas do site da Alerj:
www.alerj.rj.gov.br .
27
lugares, além de uma oitava proibindo a utilização de máquinas fotográficas em
estabelecimentos de ensino da rede estadual. “Berçários”, “unidades de terapia
intensiva neonatal”, “casas noturnas”, “praças de pedágio”, “estabelecimentos
financeiros”, “transporte metroviário”, “bailes do tipo funk”, “eventos de música
eletrônica (festas rave)”, caixas eletrônicos”, “instituições carcerárias”... Cada um
desses lugares foi, mediante legislação estadual, dotado de sistema de
videovigilância, sempre com o intuito declarado de “aumentar a segurança” dos
cidadãos. As duas primeiras leis instituem seu uso nos espaços bancários
25
(agências ou terminais de auto-atendimento), enquanto as outras buscavam
responder diretamente a acontecimentos amplamente midiatizados, como “ataques
de pitboys(Cardoso, 2005; 2008a) ou altas taxas de falecimento em algumas
maternidades. Seja qual for o alvo dos deputados, o que mais interessa é o recurso
recorrente ao artifício da captação e armazenamento de imagens como forma de
combate a diversos problemas, da criminalidade à violência, do consumo de drogas
à mortalidade neonatal.
As justificativas dos deputados autores das leis - por um imperativo da forma
sempre presentes nos projetos de lei apresentados - são indicativos do discurso em
torno da utilização de câmeras de vigilância, ou de segurança, e de sua ação
esperada. Por exemplo, em 24 de março de 2004, durante um período marcado pelo
grande destaque na imprensa carioca do que estava sendo chamado de “ataques de
pitboys”, o deputado Coronel Jairo (PSC) apresenta em plenário o projeto de lei
1.389/2004, que em dois meses é transformado na lei 4.331, obrigando as “casas
noturnas” a instalarem “circuito interno de TV” em seu interior. Em sua justificativa
apresenta seus intuitos:
O funcionamento de casas noturnas deve ser permitido sem prejuízo,
incômodo e lesões físicas a seus freqüentadores e vizinhança. Ocorre que
25
Leis 3.162, de dezembro de 1998, e 3.663, de outubro de 2001.
28
brigas, confusões nessas casas noturnas têm sido estimuladas pela certeza
da impunidade ocasionada pelo anonimato dos brigões na falta de suas
identificações, ora por impossibilidade de reconhecimento face à confusão e
tumulto ocasionados, ora pela intimidação psicológica e até física das vítimas
e testemunhas. É por tais razões que venho procurar inibir essa insegurança
ao público freqüentador de boate e propor a obrigatoriedade de instalação de
câmeras de deo com o fim de filmar seus freqüentadores durante o horário
de funcionamento, para uso exclusivo de ordem e segurança pública e a vir
persuadir, prevenir e reprimir as possíveis brigas e confusões no interior do
estabelecimento.
Visando ―inibir a insegurança‖, e para ―uso exclusivo de ordem e segurança
pública, o ―circuito interno de TV‖ teria o poder de, aparentemente por si só,
―persuadir, prevenir e reprimir‖ possíveis brigas e confusões, garantindo que
nenhuma utilização indevida do sistema seja realizada. Na explicação sobre o
comportamento dos brigões”, oferecida pelo próprio deputado, é possìvel identificar
a fonte de tanto poder conferido às câmeras: a ―certeza da impunidade‖, ou
objetivamente, o anonimato, falta de identificações e impossibilidade de
reconhecimento, seja em função da confusão criada, seja por meio de intimidações
físicas e psicológicas às testemunhas. O olhar eletrônico da videovigilância, além de
capaz de captar e armazenar tudo, seria também um meio técnico objetivo,
inintimidável, posto que não testemunha, mas elemento de prova, pièce à conviction
(Derrida; Stiegler, 1996). Se, no entanto, imaginarmos qualquer outra causa de
briga que não a apontada pelo Coronel Jairo (―certeza da impunidade‖), é bastante
provável que as capacidades de prevenção, persuasão e repressão ficassem um
tanto prejudicadas.
Apenas seis dias depois dessa proposta de lei logo, em resposta à mesma
onda de “ataques de pitboys” -, outro deputado, Domingos Brazão (PMDB),
apresenta um novo projeto (1.408/2004), posteriormente incorporado a essa
mesma lei 4.331 (mas não aprovado), tornando obrigatória a instalação de ―câmeras
filmadoras na parte interior das casas de shows, boates, restaurantes, bares e
similares afins‖, afirmando que ―estas câmeras instaladas nos estabelecimentos que
29
mencionam (sic), muito nos facilitará (sic) sua (sic) identificação desses agressores,
permitindo inibi-los antes de qualquer ato de vandalismo‖. No caso é o trabalho de
prevenção operado pelas câmeras que é ressaltado como uma importante arma
contra os vândalos, sem que demais explicações fossem transmitidas sobre como
esse efeito seria conseguido.
O projeto de lei 2.186, também de 2004
26
, e que mais tarde se transformou
na lei 4.917, de 8 de dezembro de 2006 (logo, após mais de dois anos de
tramitação), e que tornava obrigatória a instalação de câmeras de vídeo em praças
de pedágio, nos oferece uma justificativa diferente, dada por seu autor, o deputado
Flávio Bolsonaro (PTB):
Temos assistido à divulgação, pela mídia, de inúmeros casos de contrabando
de armas, drogas e outras mercadorias no âmbito de nosso Estado. Ocorre
que, na grande maioria dos casos, esse transporte é feito pelas principais
rodovias, sendo difícil a sua fiscalização, seja pela falta de efetivo e recursos
de que dispõem nossas polícias, seja pelo grande fluxo de veículos, o que
torna inviável a revista de todos eles.
Da mesma forma, é expressivo o número de seqüestros onde as vítimas são
transportadas em seus próprios veículos, seja em seu interior sob ameaça de
armas ou nas malas, amarradas e amordaçadas.
Também é válido o argumento para justificar a presente iniciativa o fato de
inúmeros crimes terem sido desvendados pelo Estado em virtude de filmagens
efetuadas em estacionamentos e no interior de shopping centers,
supermercados, lojas de conveniências e outros estabelecimentos comerciais
ou de lazer.
Assim sendo, a presente iniciativa é de grande valia para que nossas polícias
possam mapear as rotas de contrabando pelas rodovias e demais vias de
nosso Estado, monitorando o movimento de veículos suspeitos e facilitando o
combate ao crime organizado. Dispondo desse recurso nas praças de pedágio,
fica impossível que um veículo e seu condutor, ao ingressar ou trafegar em
território estadual, passe desapercebido (sic) pelas autoridades policiais.
Certo de estar colaborando em disponibilizar um importante instrumento de
investigação para nossas polícias, conto com o apoio de todos meus pares
nessa Casa Legislativa.
Aqui os efeitos planejados pelo legislador parecem mais ambiciosos ainda do
que na lei examinada anteriormente. Fica clara a idéia recorrente de que a
26
De toda a última década (quando ganhou força a própria idéia de videovigilância na legislação
brasileira), é no ano de 2004 que foi apresentado o maior número de projetos de lei relativos a câmeras
de segurança (nove). Em 1999 foram sete, em 2000, 2001, 2005 e 2009 apenas um, em 2003 e 2007
três e em 2006 dois. No ano de 2008 foram seis, enquanto, surpreendentemente, nenhum projeto foi
encontrado no ano de 2002.
30
instalação de câmeras passaria imediatamente a significar a realização de um
trabalho vasto, tecnicamente complicado e extenuante, de monitoramento completo
de todo o fluxo de veículos circulando pela malha rodoviária estadual do Rio de
Janeiro. Contrabando, seqüestro, tráfico, organização em quadrilha, todos esses
crimes seriam mais bem prevenidos ou investigados com o simples artifício da
câmera de vigilância nas praças de pedágio, ignorando todas as outras etapas do
monitoramento em si, da manutenção diária dos computadores ao efetivo humano
que lidaria com essas câmeras. O deputado imaginava uma capacidade de controle
absoluta, suficiente para impossibilitar ―que um veículo e seu condutor‖ passassem
pela rede viária estadual ―desapercebidos (sic) pelas autoridades policiais‖. O mais
curioso é que, ao lermos as disposições da lei, é mencionado que as imagens
ficariam arquivadas pelas concessionárias de rodovias pelo período de um ano, e
que mediante autorização judicial, ou requerimento de autoridade policial
competente, elas podem ser solicitadas, sem que nada, entretanto, seja dito sobre
monitoramento em tempo real, único modo de impedir que carros e seus motoristas
percorram as estradas praticamente incógnitos. Além do mais é difícil conceber
como os veículos e rotas seriam mapeados e monitorados apenas com circuitos de
câmeras nas praças de pedágio, por mais que as estradas tenham cada vez mais
pedágios
27
.
De um modo ou de outro, a tarefa é vultosa. No único posto de pedágio da
RJ-124 (Via Lagos), por exemplo, no ano de 2008 passaram 4,7 milhões de
veículos
28
, enquanto na ponte Rio-Niterói foi registrada a passagem de mais de 51
milhões de veículos
29
. Realizar buscas no arquivo anual ou monitorar o fluxo diário
27
Atualmente são 24, nas seguintes estradas: BR-040(2), BR-101 (5), Ponte Rio-Niterói (1), BR-116 (7),
BR-393 (3), RJ-116 (4), RJ-124 (1) e Linha Amarela (1). Fonte:
http://www.emsampa.com.br/pedrj.htm
28
http://www.rodoviadoslagos.com.br/concessionaria/sobrea/numerosrodovias.cfm
29
http://www.ponte.com.br/concessionaria/sobrea/numerosrodovias.cfm
31
de carros, caminhões, ônibus e motocicletas, ambos os trabalhos requerem grande
quantidade de funcionários e olhos humanos, fator nunca levado em conta pelos
legisladores das câmeras de segurança.
Um olhar ainda mais atento sobre a atividade legislativa no Rio de Janeiro -
levando em conta os projetos de lei rejeitados ou ainda em tramitação - traz
também à tona aspectos significativos do imaginário que envolve a videovigilância.
Foram pelo menos 35 projetos de lei nos últimos dez anos, resultando nas sete leis
anteriormente citadas. Versam sobre sua instalação em locais de divertimento (de
casas noturnas a restaurantes), agências bancárias ou terminais de auto-
atendimento, ônibus, estádios, unidades hospitalares, escolas, shopping centers,
museus, postos de gasolina, viaturas policiais, delegacias. Até mesmo uma proposta
preconizando o monitoramento em tempo real das cozinhas de restaurantes por
seus próprios clientes que, sentados no salão, acompanhariam em uma tela de TV a
preparação dos alimentos, assim justificada por seu autor, o deputado Pedro
Fernandes (PFL)
30
:
O estado das cozinhas, o modo como os alimentos o acondicionados e
preparados, as condições de higiene, são elementos com implicações diretas
na saúde pública.
Tornar visível aos clientes o que ocorre nas cozinhas, sem dúvida, fará com
que haja um maior cuidado dos estabelecimentos, hoje mais preocupados
com a beleza do salão.
A vigilância nesse caso seria realizada pelos próprios fregueses do
estabelecimento, cujos olhos seriam - literalmente tele-transportados da “região
de fachada para a dos bastidores”, como um modo de controlar todos os “segredos
do espetáculo” (Goffman, 2002)
31
, certificando-se que nenhuma regra sanitária
fosse descumprida no preparo de sua refeição. A visão é revestida de demasiado
30
Projeto de Lei 1.213/2007.
31
“Uma região pode ser definida como qualquer lugar que seja limitado de algum modo por barreiras à
percepção. As regiões variam, evidentemente, no grau em que são limitadas e de acordo com os meios
de comunicação em que se realizam as barreiras à percepção” (Goffman, 2002: 101). Curiosamente o
exemplo da cozinha do restaurante (de um hotel, no caso) é citado por Erving Goffman para explicar
os conceitos acima.
32
poder, ignorando as conseqüências da fragmentação dos sentidos (a câmera
proporciona uma transposição parcial da visão, mas não, do olfato e da audição) na
construção de sentido necessária à fiscalização pretendida (esse assunto mostra-se
importante ao longo da pesquisa, e será tratado mais detidamente no capítulo 3). A
possibilidade real de instalação de sistemas de câmeras em praticamente qualquer
lugar é associada ao poder técnico de desempenhar múltiplas tarefas, quase sempre
relativas ao controle ou à segurança. Assim, vemos dois projetos de lei praticamente
iguais, mas com justificativas e efeitos imaginados diametralmente opostos. A
instalação de câmeras em viaturas policiais, proposta pelo deputado Albano Reis
(PMDB) em 2004, e quatro anos depois por Gilberto Palmares (PT), é um exemplo
bastante característico disso. Vejamos as duas justificativas:
Considerando que a violência está quase que absolutamente fora de controle,
e que a marginalidade, não poupa ninguém, e tem seu alvo principal voltado
para o extermínio de policiais, tanto sejam, da PM, Civis ou Militares, para
eles é indiferente, pois tem como objetivo só, o de matar, matar e matar, e
depois roubar o que podem. E nós como ou enquanto parlamentares, temos
por dever de ofício e também como cidadãos, tentar de todas as maneiras ser
uma linha auxiliar neste combate.
Em assim, sendo, entendemos que municiar as viaturas das Policias Militar e
Civil, com câmeras de vídeo, que vem a ser um serviço monitorado por
câmeras, que girarão em torno de trezentos e sessenta graus, colocadas no
teto dessas viaturas, que terão um alcance máximo, para que, quando esta se
aproximarem onde existam criminosos agindo, poderiam estar preparadas.
Lembremo-nos que em algumas ruas de nossa cidade, existe este tipo de
monitoramento, e que o crime foi diminuído.
Levando em conta que esta Casa de Leis, tem a mesma preocupação que
aflige a todos os que vivem em nossa cidade, rogamos para que este Projeto
de Lei seja aprovado, para que assim, possamos, mais uma vez deixar
consignado o quanto os representantes do legislativo fluminense se
empenham para minimizar a ação dos criminosos.
32
Trata-se de projeto de lei que "DETERMINA A IMPLANTAÇÃO DE SISTEMA
DE VÍDEO E ÁUDIO NAS VIATURAS AUTOMOTIVAS QUE MENCIONA.”
33
As polícias desempenham funções essenciais à manutenção da ordem
pública, à preservação das liberdades individuais e dos direitos humanos.
Caso aja mal, a polícia, por deter o monopólio estatal da violência legítima, é
capaz de causar danos graves e irreparáveis, como o espancamento e a
tortura de investigados, a falsa incriminação e o homicídio disfarçado de ato
em legítima defesa. Exemplos de cometimento de abuso de poder por policiais
não faltam. Ainda, a confiança da população nos policiais é extremamente
32
Projeto de Lei 1896/2004, de autoria do deputado Albano Reis.
33
Grifos no original.
33
tênue. Por esses motivos, as polícias devem, mais do que outras instituições
públicas, ser submetidas a rígido controle.
A previsão constitucional da fiscalização da polícia não foi feita à toa. O risco
de os policiais se utilizarem de suas armas e de seu poder para perpetrarem
abusos, obterem vantagens pessoais e intimidarem inimigos é o fundamento
da norma. A autonomia dos órgãos públicos é desejável, mas não pode se
travestir em argumento para que agentes e instituições se escusem do
controle.
Neste sentido, pelo acima exposto o presente Projeto de Lei visa criar mais um
mecanismo de controle externo da polícia, razão pela qual conclamamos
todos os parlamentares a aprovarem o presente Projeto de Lei.
34
Os meios técnicos e a tecnologia são, em teoria, moralmente neutros.
Entretanto, fato de extrema importância para o presente trabalho, a técnica se
constitui como real apenas através da ação humana, e esta desconhece a
neutralidade moral (Arendt, 1964; Bauman, 1998). No caso, a instalação de
câmeras pode responder aos anseios dos dois grupos que décadas se colocam
em posições antagônicas na discussão sobre segurança pública no Rio de Janeiro,
os que pregam constantemente mais poder para as forças policiais e os que pedem
cada vez maior controle de sua atuação.
Experiências semelhantes às que pregam esses projetos de lei, em outros
lugares, indicam que mesmo que inicialmente as imagens obtidas tenham o intuito
de combater determinados comportamentos policiais, isoladamente são incapazes
de fazê-lo. Nos Estados Unidos, por exemplo, como indica Christopher Stone (2003),
as alegações de conduta indevida por parte de agentes fizeram com que câmeras
fossem instaladas em algumas viaturas e delegacias de determinados estados
35
,
contudo o exame das gravações, por superiores, não teria, sido incorporado à rotina
34
Projeto de Lei 1625/2008, de autoria do deputado Gilberto Palmares.
35
Repetidas vezes imagens oriundas dessas câmeras em viaturas americanas acabam sendo utilizadas
em programas televisivos que enaltecem o pprio trabalho da polícia, ou sendo difundidos pela
Internet, notadamente pelo YouTube, maior site do gênero (Ver, por exemplo,
http://www.youtube.com/watch?v=ibSwITK4jjQ (Police Brutality),
http://www.youtube.com/watch?v=eOiHUyNyCNE (Police OOPS!!!),
http://www.youtube.com/watch?v=Yf_wXHFATeM (Drunk women streak for police),
http://www.youtube.com/watch?v=fOk6B8DLLCg&feature=channel (Cocaine thrown onto highway) e
http://www.youtube.com/watch?v=ZQkKkTJbqx8&feature=channel (Naked drunk driver)) tendo sua
significação mantida em aberto, realizada através de cada visualização das imagens na Internet, a
cada nova vez incorporando os comentários e avaliações das visualizações anteriores. Esse assunto,
entretanto, será abordado de forma mais detalhada no quinto capítulo desse trabalho.
34
de trabalho policial, impossibilitando à iniciativa de surtir o efeito esperado por
seus elaboradores
36
. Situação semelhante foi encontrada por Paes (2008) em seu
trabalho sobre o programa Delegacia Legal, de modernização da Polícia Civil no Rio
de Janeiro. Os policiais, no caso, continuam a se apropriar dos novos
procedimentos de registro eletrônico das ocorrências e informações, de forma a não
perder o domìnio sobre “as regras do jogo” e impedindo que o objetivo de oferecer
mais accountability ao trabalho da Polícia Civil seja alcançado.
Um ponto que nunca é ressaltado pelo discurso dos legisladores é que
tamanha quantidade de câmeras requer um número considerável de pessoas as
observando, seja incluindo-as, adaptando-as em uma rotina de trabalho
existente, ou criando novos postos especializados
37
. E se levada às últimas
conseqüências essa incorporação dificilmente seria possível, dada a quantidade de
informação disponível que deveria ser analisada diariamente
38
. E mesmo que o
contingente de pessoas bastasse, a centralização de todas as informações é tarefa
de execução complexa, e a criação de um grande banco de dados imagético uma
promessa, ou ameaça, desejada e imaginada desde o século XIX (Sekula, 1986),
porém ainda longe de se concretizar.
36
Na Inglaterra, visando reduzir o número de mortes de pessoas sob custódia da polícia, foram
colocadas câmeras nos lugares em que suspeitos e presos ficavam custodiados e em algumas celas
policiais (Graham, 2003). O caso inglês, no entanto, é especial, por ser o país onde a videovigilância se
tornou mais corriqueira e praticamente onipresente. No Estado do Rio de Janeiro também foi
apresentado um projeto de lei (920/1999, do deputado Paulo Melo) preconizando a instalação de
circuito interno de filmagem no interior das delegacias, com a justificativa de “garantir a integridade
fìsica de presos, policiais, advogados, visitantes e circunvizinhança das unidades carcerárias.”
37
Algo que é mais complicado ainda se levarmos em conta o discurso atual do comando da Polícia
Militar, anunciando um aumento do número de agentes atuando “nas ruas”, com a conseqüente
diminuição do efetivo ocupado com a realização diária de “encargos administrativos” (“Comandante da
PM quer mais mil policiais nas ruas do Rio”, notìcia publicada no dia 08/07/2009 no site da
Secretaria de Segurança, http://www.seguranca.rj.gov.br/ ).
38
Também na Austrália tal problema se apresenta como indica o texto do sargento de polícia John
Klepckzarek (2003). Em países como a Grã-Bretanha, o monitoramento é operado por firmas
terceirizadas, escolhidas mediante concorrência pública, embora com canais de ligação rápida e direta
com a polícia (McCahill; Norris, 2002). Este também foi, com algumas consideráveis particularidades
locais e sem a concorrência pública -, o modelo adotado no Rio de Janeiro.
35
I.2.2 Município
Nos âmbitos municipal e federal a atividade legislativa em torno das meras
de vigilância, apesar de não desprezível, é bastante inferior à encontrada entre os
deputados estaduais fluminenses (que apresentaram 35 projetos, aprovando 7 leis).
A Câmara Municipal do Rio de Janeiro
39
, entre os anos de 2001 e 2009, votou
“apenas” seis projetos de lei preconizando a instalação de sistemas de
videovigilância, sendo que somente a metade foi aprovada, tendo se tornado lei. O
mais curioso, entretanto, é o fato que duas dessas leis foram vetadas pelo prefeito
(César Maia - PFL), tendo este se tornado assim uma voz dissonante quanto ao
crescente uso de tal dispositivo. Contudo nos dois casos os vetos foram quebrados
pelos vereadores e as leis promulgadas, mesmo diante da rejeição do Executivo.
Se em relação à primeira das leis vetadas
40
a argumentação apontava para
sua inconstitucionalidade, por implicar aumento de gastos e interferência na esfera
decisória do Poder Executivo, na segunda delas
41
sua justificativa é bastante
diferente, e de elevado interesse para a discussão que pretendo realizar. Vejamos
então como o prefeito justificou seu veto:
A obrigatoriedade na utilização de detectores de metais e de circuito interno
de câmeras de filmagens em boates, casas noturnas e similares tem por
finalidade aperfeiçoar os mecanismos de controle e identificação de pessoas
que têm deixado rastro de violência nas noites do Rio de Janeiro, buscando-
se, assim, salvaguardar a incolumidade física e a segurança dos cariocas. (...)
Resta clara, portanto, a existência de conflito de dois direitos fundamentais,
igualmente tutelados pela Carta Magna: o direito à segurança e o direito à
intimidade e à vida privada. (...)
Assim sendo, o uso obrigatório de detectores de metais e de circuito interno
de câmeras de filmagens, como meios restritivos do direito à intimidade e à
vida privada, não se justificam no momento em que outras maneiras,
igualmente eficientes e menos gravosas à intimidade, para a preservação da
39
Todas as informações relativas à Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro foram retiradas de seu
site oficial: www.camara.rj.gov.br.
40
Lei 4.133, de 2005, inicialmente Projeto de Lei 1.394 de 2003, que autoriza o Poder Executivo a
implantar, nas unidades da rede municipal de ensino, Sistemas de Monitoramento por Câmeras de
Vídeo, e dá outras providências”, de autoria do vereador Jorge Mauro (PT do B).
41
Lei 3790, de 2004, inicialmente Projeto de Lei 1943, também de 2004, que “Institui o uso obrigatório
de detectores de metais e circuito interno de meras de filmagem, nos estabelecimentos que menciona,
e dá outras providências‖, de autoria do vereador Rodrigo Bethlem (PMDB).
36
segurança dos cidadãos, tais como o reforço na equipe de segurança, ou o
cadastro do documento de identidade dos freqüentadores de casas noturnas.
Nesse sentido, torna-se cristalino que a implementação da medida proposta
no projeto em tela não observa o princípio da proporcionalidade, porquanto
como preservar a segurança dos cidadãos sem que seja necessário limitar
tão intensamente o seu direito à intimidade e à vida privada. Há, então, meios
eficientes e menos onerosos para tutelar o mesmo fim, que, como corolário do
princípio da proporcionalidade, afastam a proposição em análise.
Apesar de reconhecer o valor da videovigilância no combate à violência em
casas noturnas, assunto que tinha considerável destaque na imprensa carioca
naquele momento (Cardoso, 2005), César Maia afirma achá-la problemática por
conflitar dois direitos fundamentais. Um exagero totalitário, uma resposta
desmedida ao perigo dos pitboys, enfim, uma rajada de controle em um momento e
local em que o descontrole, mesmo que não absoluto, é socialmente tolerado, ou
mesmo esperado. Ao se filmar tudo o que todos fazem em todas as casas noturnas e
boates da cidade, muitos atos que deveriam ser efêmeros e quase invisíveis ganham
a possibilidade de não somente serem vistos, mas também eternizados, seja em
grandes bancos de dados de segurança ou através e na Internet, o grande banco de
dados coletivo e mundial. A lógica securitária, embora não contradita, é pesada,
relativizada, sendo considerada pelo alcaide como ferindo o princípio da
proporcionalidade e limitando intensamente o direito dos cidadãos à intimidade e
à vida privada, sem que tal medida seja absolutamente necessária na preservação
da segurança destes. Um argumento em consonância com a principal crítica em
relação à videovigilância, sua caracterização como uma violadora em potencial da
intimidade e privacidade daqueles captados pelas lentes de suas câmeras. Uma
idéia cuja popularidade se em muito deve à capacidade literária de George Orwell
(em 1984) e do imaginário criado em torno de seu Big Brother, já era embrionária há
muito tempo no pensamento ocidental, embora com as devidas adaptações
tecnológicas, como lembra Foucault (2003).
37
I.2.3 - União
Na Câmara Federal, por sua vez, somente um projeto de lei, de 2007, relativo
à instalação de câmeras de segurança foi aprovado, e o como uma nova lei, mas
como alteração de uma pré-existente, versando sobre a aplicação dos recursos do
Fundo Nacional de Segurança Pública. É acrescentado que, dentre outras
aplicações em tecnologia, o investimento em “sistemas de vigilância monitorada por
câmeras em locais de alto fluxo de pessoas” e “sistemas de vigilância eletrônica em
áreas residenciais”, deveria ser prioritário. É pouco, ainda mais se tivermos em
conta que onze projetos de lei foram apresentados desde 2003, todos tendo sido
rejeitados ou ainda tramitarem em alguma comissão. A leitura dos pareceres
negativos apresenta indícios que ajudam a esclarecer a razão dessa taxa de
aprovação de projetos relativos à videovigilância, muito inferior à encontrada nos
legislativos municipal e federal. Nem mesmo de forma paralela, por exemplo,
argumentos como os encontrados na justificação de veto do prefeito do Rio
aparecem nos votos e recomendações de votos dos relatores. O direito à privacidade
e à intimidade não é em momento algum lembrado ou mencionado
42
. Os custos,
tanto de instalação quanto de operação diária e de manutenção, dominam as
justificativas de votos negativos, sendo possível igualmente perceber que a vastidão
do âmbito legislativo federal por vezes faz com que a aplicação prática da lei pareça
exagerada, e que o projeto tenha menores possibilidades de “vingar”. É o que
podemos ver no parecer dado pelo deputado Airton Roveda (PR-PR), rejeitando o
projeto que previa a obrigatoriedade da instalação de sistema de câmeras e GPS em
ônibus e microônibus do país inteiro
43
:
42
Uma hipótese plauvel seria a de que tais questões teriam maior importância para os moradores de
grandes cidades, pela própria origem e disseminação maior de tais categorias na vida do cidadão
urbano.
43
Projeto de Lei 6.649, de 2006, de autoria do deputado Mário Negromonte (PP-BA).
38
nota-se que o ente federativo que conhece com mais propriedade as
características de seu sistema de transporte poderá instituir quaisquer
medidas de segurança que julgar adequadas à sua realidade, sem
necessidade de uma regulação federal única. Por que motivos haveríamos de
impor a qualquer município, por menor que seja e mesmo que não tenha
maiores problemas de segurança pública, a utilização de veículos mais caros,
por serem dotados de circuitos internos de TV?
Da mesma forma, ao justificar sua rejeição ao Projeto de Lei 3.279
44
, de
2008, que previa a obrigatoriedade da instalação de meras de vigilância em todos
os condomínios, residenciais ou comerciais, do país, o deputado Paulo Maluf (PP-
SP) atenta para a amplidão da proposta, assim como para a variedade de locais
implicados por ela:
Há, por exemplo, condomínios em cidades do interior, onde a criminalidade é
bastante baixa e a instalação desse tipo de sistema é completamente
desnecessária. Por sua vez, condomínios de casas em regiões litorâneas
onde a instalação desse tipo de sistema pode adquirir um custo
desproporcional, em razão da extensão do terreno. Há, por outro lado,
condomínios em regiões pobres, que simplesmente não teriam condições de
cumprir a lei. Há casos onde pode ser mais benéfico a instalação de grades ou
cercas do que a instalação desse tipo de sistema ou situações onde o
condomínio acredite ser mais benéfico investir em mais treinamento para
seus funcionários.
No entanto, mais interessante é o questionamento, encontrado no discurso
de alguns relatores à pretensa eficácia indiscutível da videovigilância. Essa postura
vai de encontro à justificativa encontrada no veto do então prefeito do Rio, assim
como à crença no poder das câmeras, responsável pela avalanche de projetos e leis
surgidas na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Nem mesmo os atos
criminosos, cujo combate justifica a instalação das meras, seriam ameaçados
seriamente por elas; a intimidade e a privacidade nem mesmo mereceram a
preocupação dos relatores. As meras não constituiriam ameaça de controle sobre
a vida privada simplesmente por não serem consideradas capazes de controlar e
impedir nem os comportamentos criminosos. Vejamos o que dizem os próprios
deputados:
44
De autoria do deputado Vic Pires Franco (DEM-PA).
39
Pior ainda é que, caso seja implantado o sistema, a relação custo x benefício
será fia, no que concerne aos benefícios. A instalação de câmeras apenas
indicarão (sic) o número de assaltantes, se eles estiverem usando dispositivos
que impeçam a visualização de seus rostos. E, ainda que a identificação
visual seja possível, câmeras não impedem assaltos e os moradores terão que
depender da disponibilidade de recursos humanos e materiais da polícia
para a realização de investigações que levem à prisão dos criminosos. Isso, se
a qualidade da imagem ou o ângulo de filmagem permitir a identificação. Em
caso contrário, a polícia acabará localizando os criminosos usando os
métodos tradicionais de investigação que já dispõe.
45
É necessário que seja melhor avaliada a eficácia da medida proposta, uma
vez que não foram apresentados dados conclusivos sobre o fato de que a
colocação de câmeras inibe, por si só, a ação de meliantes. Se assim o fosse,
não existiriam mais assaltos a bancos, estabelecimentos comerciais e
condomínios que possuem sistema de vigilância monitorada por câmeras de
vídeo.
46
Mesmo se levados em conta todos os fatores e interesses externos à atividade
parlamentar, de influência decisiva nos lobbies que circundam os deputados e nos
processos decisórios dos quais estes participam (situação encontrada em diversos
contextos legislativos, e aparentemente incontornável em todos eles, como é
amplamente documentado e discutido pela literatura sociológica
47
), os argumentos
apresentados não devem ser ignorados. A videovigilância não é incontestável, e a
persistência de crimes e atos violentos em áreas dotadas de tais sistemas é um
dado que não deve ser descartado. Fato também lembrado pelos parlamentares, o
alto custo de manutenção e instalação de circuitos de meras de vigilância
desnecessários, e possivelmente inúteis, fariam deles muitas vezes um transtorno
maior para as pessoas que deveriam proteger do que para quaisquer outras que por
ali circulam. Até por estarem previstas sanções restritivas de liberdade para aqueles
que não cumprirem a regulamentação estabelecida nas leis que se tentava aprovar.
Propõe-se a criação de um contexto de criminalização da não-videovigilância. Na
maioria das vezes uma lei que obriga tem maior ingerência sobre a vida das pessoas
45
Parecer do deputado Alexandre Silveira (PPS-MG), ao Projeto de Lei 3.604, de 2008, autoria do
deputado Vic Pires Franco.
46
Parecer do deputado Airton Roveda (PR-PR), ao Projeto de Lei 6.649, de 2006, de autoria do
deputado Mário Negromonte (PP-BA).
47
Por exemplo ver Beck (2008) e Latour (2005).
40
que uma que “apenas” proìbe. Sua fiscalização, no entanto, é mais extensa e difìcil,
acarretando freqüentemente, em conseqüência, maior frouxidão e tolerância por
parte dos fiscais responsáveis. De qualquer modo, a obrigatoriedade da
videovigilância em todos os prédios e condomínios do Brasil foi rejeitada por todos
os relatores e comissões pelas quais o projeto passou, numa indicação de que, ao
menos por enquanto, parece longe de ser vista como uma alternativa aplicável no
combate à insegurança.
I.3 - Disciplina, poder e controle: um longo debate teórico
Conseqüência direta dessa proliferação de leis e medidas anti-insegurança
centradas no uso de câmeras é a multiplicação quase imediata de grupos anti-
videovigilância. As ruas das metrópoles o apontadas pela sociologia e
antropologia urbana como locais por excelência da invisibilidade relativa e do
relaxamento moral que esta propicia, com o afastamento dos laços sociais mais
estreitos permitindo toda uma série de desinibições graças à impossibilidade factual
de todos prestarem atenção em tudo, tendo por conseqüência um elevado grau de
indiferença das pessoas que se cruzam ou interagem brevemente em um contexto
urbano qualquer (ver, especialmente, Georg Simmel (1979), e Machado da Silva &
Velho (1977)). A captação permanente de imagens em tais espaços rapidamente
alarmou, mobilizou e vem mantendo mobilizado um grande número de ativistas
anti-videovigilância. Desde grupos como os Surveillance Camera Players
48
, nova-
iorquinos que fazem pequenas encenações diante de câmeras de vigilância da
polícia, aos grandes coletivos organizados em inúmeras frentes no combate às
―câmeras de segurança e à tecnologia repressiva, como os franceses do ―Souriez,
48
http://www.notbored.org/the-scp.html.
41
vous êtes filméEs‖
49
, ou os ingleses do No CCTV- Anti-CCTV
50
, todos são unanimes
em apontar o aumento do controle oficial sobre a vida privada dos indivíduos como
a nefasta conseqüência imediata da instalação maciça desses sistemas.
O fantasma da vigilância e do controle, que tanto desperta preocupação, não
surgiu com as câmeras de segurança, inclusive o precede de muito. A sua rápida
mobilização e a força com que esta contou são explicadas pela pré-existência de um
“imaginário” teórico, “cientìfico” e ficcional, bem fundamentado em torno do tema,
ao qual rapidamente e sem dificuldades podia-se remeter. Para melhor
compreender as idéias e medos em questão, é necessária uma recapitulação de sua
história. Uma história na qual mais de dois séculos os sonhos de uns são vistos
como os maiores pesadelos de outros.
I.3.1 - O sonho/pesadelo Panóptico
O mito de origem” da videovigilância remete a uma invenção arquitetônica
de Jeremy Bentham, o Paptico, do final do culo XVIII (Bentham, 2000
51
). Em
Vigiar e Punir, Michel Foucault (2003) faz da máquina benthamiana a ilustração
exemplar da emergência da sociedade disciplinar
52
, dos sonhos e mecanismos de
recriação planejada dos indivíduos - simultaneamente muitos e também de cada
um. O Panóptico é o símbolo mais claro do sonho da disciplinarização radical dos
comportamentos, da xima docilização dos corpos, além da promessa do fim do
desvio, do crime, da violência e de comportamentos indesejáveis em geral. A solução
final para os conflitos na sociedade seria promovida por essa inovação tecnológica,
49
http://souriez.info/.
50
http://www.no-cctv.org.uk/default.asp.
51
As cartas por meio das quais a idéia do Panóptico foi pela primeira vez apresentada foram
publicadas em 1787.
52
Foucault, apesar de ressaltar a importância e influência do Panóptico na formação da sociedade
disciplinar, deixa claro que este mesmo só foi possível por se enquadrar em um diagrama que previa e
possibilitava a disciplina, através dos princípios da inspeção e do exame: a invenção de Bentham seria
―a figura arquitetural dessa composição‖ (2003: 165).
42
capaz de ampliar o poder de vigilância através da multiplicação do olhar do vigia. O
quadro utilitarista um desperdício mínimo de pessoal e energia amplamente
assimétrico e concentrador de poder, é baseado inteiramente no princípio do ver
sem ser visto, fazendo com que os vigiados nunca soubessem ao certo se estavam
ou não sendo observados.
Do ponto central, o espaço fechado é visível de parte a parte, sem
esconderijos, a transparência é perfeita. Nos pontos situados sobre a
circunferência das celas tudo se inverte: impossível olhar para fora,
impossível se comunicar com o ponto vizinho, impossível distinguir o ponto
central.
Esta configuração instaura então uma dissimetria brutal da visibilidade. O
espaço fechado é sem profundeza, planificado, oferecido a um olho único,
solitário, central. Es banhado de luz. Nada, ninguém, ali se dissimula,
senão o próprio olhar, onividente invisível. A vigilância confisca o olhar à sua
fruição, apropria-se do poder de ver e a ele submete o recluso.
No edifício opaco e circular, é a luz que aprisiona. (Miller, 2000: 77-78)
Para Jeremy Bentham o Panóptico era uma máquina de produzir a imitação
de Deus, uma maneira de recriar os indivíduos, não à sua imagem e semelhança,
mas ao seu desejo e necessidade (Miller, 2000). O que pressupõe a possibilidade de
reengenharia do homem pelo próprio homem, a dominação do racionalismo sobre
as paixões e a irracionalidade. Mudanças significativas realizadas apenas por um
golpe de mestre da engenhosidade. O mais notável é que o controle da população
não se daria através dos métodos tradicionais da força, mas simplesmente da
transformação dos indivíduos em seres incapazes de transgredir, ou mesmo de
imaginar uma ação “inadequada”: estar incessantemente diante dos olhos de um
inspetor é perder de fato o poder de fazer o mal e quase a idéia de desejá-lo‖ (Perrot,
2000: 117).
A moral reformada; a saúde preservada; a indústria revigorada; a instrução
difundida; os encargos públicos aliviados; a economia assentada, como deve
ser, sobre uma rocha; o górdio da Lei sobre os Pobres não cortado, mas
desfeito tudo por uma simples idéia de arquitetura! (...) tratava-se de um
novo modo de garantir o poder da mente sobre a mente, em grau nunca antes
43
demonstrado; e em grau igualmente incomparável, para quem assim o
desejar, de garantia contra o exagero (Bentham, 2000: 15)
53
.
O poder da mente sobre a mente viria a substituir o poder do corpo sobre o
corpo. A racionalidade e o espírito seriam muito mais eficazes e menos custosos do
que a força física. Um novo poder, não mais se resumindo à ameaça imediata de
uso da força, mas se mantendo por todo o tempo, atingindo cada um de forma
muito mais profunda, operando a dominação e transformação da natureza pelo
social. O próprio homem se transformado em objeto de uma ciência, que
pretende não somente estudá-lo, mas recriá-lo de outra forma, de acordo com um
planejamento racionalista. O Leviatã
54
agradece: a batalha da ordem contra o caos
ganhava um importante reforço.
I.3.2 - Um mundo planejado, em ordem e sem crime: ciência e política
Mesmo que o Panóptico não tenha sido amplamente disseminado como
Bentham imaginara, o princípio da inspeção e a idéia de que a disciplina
possibilitaria uma reconstrução racional e planejada dos homens teve, como aponta
Michel Foucault (2003), papel fundamental na formação do indivíduo moderno.
Fosse ela alcançada mediante um simples mecanismo arquitetônico ou com o
auxílio de complexas teorizações biológicas, a crença na prevenção do crime através
dos meios e do conhecimento conferido pela ciência parecia uma realidade cada vez
mais próxima. Um exemplo disso são os estudos de criminologia da “escola italiana
de direito penal” do fim do século XIX, cujos maiores expoentes foram Lombroso,
53
O nome original, um tanto monárquico pela forma, do texto publicado por Bentham através de
cartas, no final do culo XVIII é: O Panóptico; ou, A Casa de Inspeção: contendo a idéia de um novo
princípio de construção aplicável a qualquer sorte de estabelecimento, no qual pessoas de qualquer tipo
necessitem ser mantidas sob inspeção; em particular às casas penitenciárias, prisões, casas para
pobres, lazaretos, casas de indústria, manufaturas, hospitais, casas de trabalho, hospícios, e escolas:
com um plano de administração adaptado ao princípio: em uma série de cartas, escritas no ano 1787, de
Crecheff, na Rússia Branca, a um amigo na Inglaterra.
54
Hobbes (1989).
44
Ferri, Garófalo e Morselli
55
. Esses autores defendiam a idéia da existência da
predeterminação biológica para diferentes tipos de comportamentos desviantes
56
,
possibilitando a identificação, através da análise de características físicas
individuais, dos criminosos e degenerados antes que estes se tornassem
efetivamente malfeitores (seriam, então, malfeitores em potencial que, mais cedo ou
mais tarde, terminariam por incorrer em alguma atividade criminosa ou
moralmente condenável ou perigosa).
A influência das idéias da escola italiana no Brasil, tanto na antropologia
quanto na medicina e no direito, foi considerável, em especial através da “Escola
Nina Rodrigues” (Corrêa, 1998), responsável pela instituição no país da medicina
legal, da criminalística e da polícia técnica - além dos primeiros estudos
etnográficos dos cultos afro-brasileiros -, assim como a popularização da idéia de
que a existência do crime e da violência seriam “anormalidades” que o progresso da
ciência e a racionalidade técnica política controlariam, ou se possível, levariam à
extinção. A própria categoria de pensamento “prevenção do crime”, hoje totalmente
incorporada pelos mais diversos setores da sociedade, foi introduzida no discurso
político e policial através dos membros do grupo, influenciados duplamente pelos
criminólogos italianos, e pelos dicos sanitaristas (a noção revolucionária de
higiene havia sido recém-criada). É o que indica a declaração de Leonídio Ribeiro,
diretor do Instituto de Identificação do Rio de Janeiro, durante o I Congresso Latino
Americano de Criminologia, ocorrido em Buenos Aires em 1938 (apud Corrêa, 1998:
226 -227):
55
É preciso salientar, no entanto, que ao mesmo tempo em que os estudos desses
sociólogos/criminólogos italianos colaboraram na elaboração da idéia de controle social, eles foram
possíveis dentro de um panorama no qual essas idéias pareciam gramaticalmente possíveis e corretas.
Ou seja, dentro do próprio contexto de emergência da promessa moderna.
56
Vale lembrar que a categoria comportamento desviante não era utilizada pelos autores em questão,
ganhando notoriedade nos estudos sociológicos apenas cerca de meio século depois, especialmente
com Merton (1971) e Becker (1977; 1985), autores que, entretanto, tratavam a questão de modo
bastante diverso.
45
Isso (a prevenção do crime) seria, a nosso ver, possível desde que se lograsse
classificar biotipologicamente, desde a primeira infância, todos os indivíduos,
especialmente aqueles que, pela sua constituição e tendências, pudessem ser
consideradas como “pré-delinqüentes” e, por isso, passìveis de medidas
especiais de tratamento e educação, capazes de corrigir ou atenuar suas
anomalias e conseqüentes reações anti-sociais.
A prevenção do crime, no entanto, se caracteriza como uma importante
faceta da busca obsessiva pela ordem, central na obra dos pensadores sociais desde
Hobbes. A própria divisão hobbesiana entre ordem, artificial e relacionada à
intervenção humana racional e planejada, e desordem, ou caos, decorrente da
realidade natural das coisas, pressupõe um poder central organizador e forte,
levando a ordem ao corpo social. Na modernidade
57
, contudo, a noção de
planejamento social centralizado toma amplitude inédita, impulsionada por fatores
técnicos e políticos.
Podemos dizer que a existência é moderna na medida em que é produzida e
sustentada pelo projeto, manipulação, administração, planejamento. A
existência é moderna na medida em que é administrada por agentes capazes
(isso é, que possuem conhecimento, habilidade e tecnologia) e soberanos. Os
agentes são soberanos na medida em que reivindicam e defendem com
sucesso o direito de gerenciar e administrar a existência: o direito de definir a
ordem e, por conseguinte, pôr de lado o caos como refugo que escapa à
definição (Bauman, 1999: 15).
As muitas e importantes descobertas científicas e tecnológicas ocorridas
durante o século XIX e no princípio do século XX transformaram a modernidade em
uma luta constante pela classificação, intervenção e ordenação do mundo
(Bauman, 1999). Alguns dos cruciais acontecimentos históricos que marcaram esta
época, como a Revolução Bolchevique, a I
a
Guerra Mundial e a Grande Depressão
Econômica, certamente influenciaram no fato de que, a partir da década de 1930
tenham sido muitas vezes adotados modelos de Estados Jardineiros, isto é aqueles
que organizam e tratam de manter a sociedade sempre bem cuidada, na metáfora
do homem agindo sobre a desordem da natureza e criando um espaço organizado e
57
Ao falar em modernidade, refiro-me à “sociedade ocidental” que, desde o século XIX, crê no
sonho/crença moderno(a) do qual falam Latour (2005) e Bauman (1999).
46
disposto de acordo com princípios racionais. Ou, nas palavras de Bauman (1998:
37): divide as plantas entre aquelas ―cultivadas‖, de que se deve cuidar, e as ervas
daninhas a serem exterminadas‖
58
. Alguns dos exemplos mais óbvios o a
Alemanha de Hitler, a URSS de Stalin, a Itália de Mussolini, a Espanha de Franco e
o Brasil de Vargas. Mas mesmo os Estados Unidos, com o New Deal de Roosevelt,
experimentavam um momento inédito de intervencionismo estatal no planejamento
e na organização social
59
.
I.3.3 Olho, logo apreendo: sobre sentidos e arquivos
A própria emergência da racionalidade moderna está relacionada
intimamente com a valorização dos sentidos, como argumenta Norbert Elias ao falar
da importância de Descartes e do seu ―penso, logo existo‖ para o desenvolvimento
não da metafísica, mas também da ciência como atualmente a conhecemos. Na
época pré-cartesiana as questões filosóficas mais importantes não podiam ser
descobertas e exploradas apenas pela observação sensorial, devendo se apoiar
exclusivamente nas fontes legitimadas de revelação (e esta era forçosamente divina,
extraída da palavra de Deus).
Uma das precondições do pensamento de Descartes foi um certo
afrouxamento, uma perda de poder por parte das instituições sociais que
tinham sido guardiãs dessa tradição intelectual. Seu pensamento reflete a
crescente conscientização, em sua época, de que as pessoas eram capazes de
58
A existência e a coexistência humanas viraram objeto de planejamento e administração; como
plantas num jardim ou um organismo vivo, não podiam ser abandonadas à própria conta, do contrário
seriam infestadas de ervas daninhas ou destruídas por tecido cancerígeno. A jardinagem e a medicina
o formas funcionalmente distintas da mesma atividade de separar elementos úteis destinados a viver
e prosperar, isolando-os de elementos perigosos e mórbidos que devem ser exterminados (Bauman,
1998: 93).
59
Essa conjuntura faz com que políticas e códigos penais inspirados em teorias como as dos
criminólogos italianos atinjam seu auge. No Brasil, mesmo se desde o final do século XIX a “Escola
Nina Rodrigues” vinha conseguindo seus primeiros êxitos, é durante o “Estado Novo”, e mais
precisamente na Constituição de 1937 e no Código Penal de 1940, que seus membros adquirem maior
influência. O contexto politicamente autoritário em que muitos países estavam mergulhados, sem
dúvidas colaborou para que as idéias relativas ao controle social fossem apoiadas pelo governo. No
caso brasileiro, menos no intuito de livrar a sociedade dos criminosos, ou “doentes sociais”, do que
para assegurar a ordem política instituída por Getúlio Vargas.
47
decifrar os fenômenos naturais e dar-lhes uma utilização prática
simplesmente com base em sua própria observação e pensamento, sem
invocar autoridades eclesiásticas ou vetustas. (...) Foi o redescobrimento de si
mesmos como seres capacitados a chegar por seu próprio pensamento e
observação à certeza sobre os acontecimentos, sem terem de recorrer às
autoridades. E isso deslocou a atividade mental reificada pelo termo “razão
e os poderes de percepção para o primeiro plano da auto-imagem do homem
(Elias, 1994; 83-84).
A emergência da razão é indissociável da idéia dos sentidos (percepção) como
forma por excelência de apreensão do mundo. A ciência moderna - e o pensamento
moderno em geral - dependem desse dualismo entre corpo e mente, sendo esta
última a mais eficaz fonte do poder político e do conhecimento legítimo da natureza
e do mundo social.
E mesmo que Bentham procure afirmar que o Panóptico estabelece o poder
da mente sobre a mente, efetivamente o que ocorre no plano prático é o controle dos
corpos pelo Olho. Essa seria a maior ligação entre sua invenção e a idéia das
câmeras de vigilância, porque é a visão especializada do técnico, seja ele um
inspetor na torre central ou um operador de câmeras em sua sala, e a assimetria de
visibilidade entre este e os vigiados, que os aproximaria de forma definitiva. Assim
como ocorre atualmente em relação às escutas telefônicas, que se multiplicam em
escala de filme de espionagem, o investimento e o discurso em torno de uma polícia
inteligente tende a valorizar os métodos investigativos amparados nos sentidos
humanos. Olhos e ouvidos com efeitos potencializados pela tecnologia.
(...) mais e mais atividades que originalmente implicavam a pessoa inteira,
com todos os seus membros, são concentradas apenas nos olhos, embora, é
claro, esse tipo excessivo de restrição possa ser compensado por atividades
como a dança ou os esportes. Com a crescente supressão dos movimentos
corporais, aumenta a importância do ver. (...) Os prazeres do olhar e da
audição tornam-se mais ricos, mais intensos, mais sutis e mais gerais. (...)
percebemos muito e nos movimentamos pouco. Pensamos e observamos sem
sair do lugar. A parábola das estátuas pensantes exagera, mas produz o efeito
esperado. As estátuas vêem o mundo e formam concepções dele, mas lhes é
negado o movimento dos membros. (...) Elas olham de fora para o interior de
um mundo, ou de dentro para um mundo fora como quer que se prefira
formulá-lo um mundo sempre separado delas (Elias, 1994; 99-100).
48
Essa conjunção entre sentidos no caso, a visão - e tecnologia,
potencializando e conferindo “novos poderes” à nossa forma principal de apreensão
do mundo, está presente nas tentativas de controle e ordem desde os primórdios da
fotografia, como mostra Sekula (1986). A utilização das imagens fotográficas como
apoio no combate ao crime e à desordem foi central na modernização da polícia
ocorrida a partir do final do século XIX, através de trabalhos como os de Bertillon e
Galton. E estes trabalhavam e dialogavam com os “modernos” princìpios cientìficos
da criminologia da época, os mesmos que as escolas italiana e Nina Rodrigues, suas
contemporâneas, com a especificidade de recorrer à moderníssima tecnologia óptica
da captação de imagens que ainda consistia em controversa novidade cujas
potencialidades ainda começavam a ser descobertas, criadas e exploradas. Sem
dúvida, faziam todos parte de um mesmo projeto, disciplinar, arquivista e acerto
ponto panopcista.
I.3.4 - Big Brothers: de Orwell à Endemol
No segundo quarto do culo XX, começa a ganhar força um imaginário
crítico aproximando esses projetos de planejamento social, disciplina e ordem
totalitária, com a publicação e popularização de obras literárias cujos exemplos
mais significativo são 1984, de George Orwell, referência explícita ao stalinismo, em
seu ápice no pós-guerra de 48 (84 invertido), ano em que o livro foi escrito e
Admirável mundo novo, onde os projetos se realizam através do desenvolvimento
científico
60
. A figura do Big Brother, ou Grande Irmão, de 1984, a partir de então
60
Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, escrito em 1932, é algumas vezes associado às sociedades
de controle ou disciplinares, tendo também considerável importância na elaboração de discursos anti-
controle. No entanto, menos sobre a vigilância, assunto tratado de forma mais direta por 1984, razão
pela qual me detenho aqui sore ele. A propósito de Admirável mundo novo e sua relação com os
Estados Jardineiros publiquei anteriormente um artigo onde trato do assunto de forma mais
cuidadosa (Cardoso, 2008b).
49
passa a simbolizar o princípio da vigilância, assim como a estruturar as
representações acerca desta. Orwell cria um personagem que unifica em si as mais
notáveis categorias da sociedade disciplinar, ao mesmo tempo em que passa a agir
efetivamente nas idéias posteriores sobre controle, vigilância e, claro,
videovigilância. A denúncia do totalitarismo e o tom eminentemente pessimista do
livro pautam boa parte do medo e das estratégias adotadas pelos ativistas anti-
vigilância contemporâneos. O coletivo norte-americano Surveillance Camera Players,
por exemplo, teve sua maior e mais midiatizada apresentação interpretando cenas
de 1984 diante das câmeras da polícia nova-iorquina.
Também deve ser destacado que Big Brother é igualmente o título do mais
conhecido dos reality shows - criado pela empresa holandesa Endemol e logo
vendido para canais de televisão do mundo inteiro no qual pessoas são confinadas
em uma casa e filmadas por dezenas de câmeras 24 horas por dia. O que por sua
vez, como veremos a seguir, também passa a ter agência sobre o mundo
estruturante e estruturado pela nova e poderosa significação de Big Brother, que em
si carrega elementos da figura orwelliana, ressignificada no contexto cultural e
tecnológico contemporâneo, o qual também ajuda a criar e consolidar, através de
uma massiva e entusiasmada audiência midiática. A agência dessa obra de ficção
sobre as representações posteriores da videovigilância não é de modo algum
negligenciável, não somente por influir diretamente na constituição do imaginário
em torno do assunto, mas também por criar expectativas” que dificilmente teriam
possibilidade de se concretizar.
Além do reality show, outra apropriação do famoso personagem de 1984 foi a
criação, pelos fundadores da organização Privacy International
61
, em 1998, do Big
61
http://www.privacyinternational.org/.
50
Brother Awards
62
, importante e conceituada premiação internacional atualmente
ocorre em 16 países onde são laureados os maiores promovedores e combatentes
da vigilância contemporânea. Para os primeiros são distribuídos os prêmios
Orwell
63
, enquanto os que se destacam na “luta pela liberdade” concorrem ao
prêmio Voltaire. A referência a 1984 é tão forte que o nome de seu autor passa a ser
associado ao “liberticìdio” (Rajsfus, 2008) - por oposição a Voltaire, engrandecido
pela relação direta com a liberdade - numa ironia quase cruel com o autor de 1984
e A Revolução dos Bichos, um dos mais importantes elementos na luta contra a
vigilância e o totalitarismo. Para os organizadores da premiação denunciatória, fica
patente a comparação da atualidade com o contexto pós-apocalíptico do livro, sendo
ela reafirmada em diversos momentos além das óbvias referências nos nomes. A
compreensão da realidade atual se dá através das lentes de uma obra de ficção
científica de sessenta anos atrás, que muito mais do que realizar prognósticos sobre
o futuro, remetia ao contexto presente de então, o auge do stalinismo na União
Soviética. A influência é de grande importância, sendo negada à contemporaneidade
a capacidade de criar um universo simbólico e diagramas de poder renovados e
exclusivos, incompatíveis com os antigos modelos de dominação que vêm sendo
alardeados e denunciados desde a metade do século passado. A associação ao
diagrama disciplinar e totalitário é tão forte que as gigantescas diferenças de
contexto são ignoradas.
A leitura desse primeiro relatório anual do Big Brother Awards França os
deixará talvez a impressão de que a sociedade na qual vivemos é bem pior do
que a imaginada em 1984 de George Orwell. Não seuma falsa impressão.
Descobri esse livro bem tarde, nos anos 1960: eu o li, reli, e mais tarde
comprei todos os exemplares de bolso que encontrava para oferecer a
amigos... Hoje, não vivemos exatamente no que se pode chamar um “Estado
policial”, pois podemos ainda nos revoltar e dizer forte e claro o que trazemos
62
http://www.bigbrotherawards.org/.
63
Divididos nas subcategorias “Estado/Governo”, “Localidades”, “Empresas” e Novilìngua”, os
prêmios Orwell são descritos como conferidos a instituições, sociedades ou pessoas tendo se
distinguido por seu desprezo do direito fundamental à vida privada ou por sua promoção da vigilância e
do controle dos indivíduos‖ (Big Brother Awards, 2008).
51
no coração. É mais sutil. O que se impôs foi uma “sociedade policial”, no
sentido da aceitação do cidadão do estar sujeito ao controle permanente de
seus feitos, gestos e opiniões. Acho que 1984 é em si complementar com o
que descreve Admirável mundo novo de Aldous Huxley. Juntas essas duas
visões descrevem uma situação bem próxima da nossa sociedade atual
(Rajsfus, 2008: 8).
De forma bastante característica dos discursos anti-vigilância e controle
contemporâneos, os representantes dos diversos coletivos como o Privacy
International ou o Souriez, vous êtes filméEs, centram sua argumentação na
reedição tecnologicamente “turbinada” de um totalitarismo passado, ou
simplesmente no aperfeiçoamento de um totalitarismo que nunca deixou de
permear a modernidade até os dias de hoje, passando de sistemas de poder tão
díspares como o stalinismo soviético ao neoliberalismo atual.
Esses promotores de um totalitarismo new look não agem sozinhos, pois
estão ligados com os predadores insaciáveis de um capitalismo novamente
tornado selvagem por falta de um contrapeso político. Para sufocar as
revoltas que ele próprio suscita e que não deixarão de se multiplicar,
restou, para uns e para os outros, um recurso: instaurar um estado de
exceção permanente e uma vigilância generalizada (Rajsfus, 2008: 9).
I.3.5 - Foucaultiando
Contudo, outras idéias e obras também influenciam na elaboração e
agrupamento de discursos anti e p-vigilância, dentre as quais a de maior alcance
e importância é provavelmente a teoria da normalização e formação do indivíduo
moderno, de Michel Foucault
64.
Em Vigiar e punir, o autor analisa a passagem do
diagrama punitivo, onde o poder era personalizado na figura do soberano, para o
diagrama disciplinar, um tipo de poder que não pode ser identificado com pessoas,
indivíduos ou aparelhos, que atravessa todas as espécies de aparelhos e
64
A origem dos textos e idéias foucaultianas não impediu sua disseminação por meios externos à
academia e aos círculos universitários e intelectuais, mesmo que muitas vezes a descontextualização
de sua teoria e conceitos fique patente, influenciando sobremodo sua compreensão e a visão que se
tem da obra e do autor. Ou mesmo alimentando mitos e mistérios, como pude observar em minhas
idas ao Centro de Comando e Controle, assunto que será tratado adiante, ao apresentar e discutir o
trabalho etnográfico que realizei.
52
instituições para reuni-los, prolongá-los, fa-los convergir, fazer com que se apliquem
de um novo modo‖ (Deleuze, 1988: 35). Esse processo é concomitante às mudanças
políticas e intelectuais na Europa, ao surgimento do capitalismo e do racionalismo
modernos, propiciando e sendo propiciado por essas transformações. Foucault
retoma o Panóptico de Bentham para ilustrar a idéia da normalização disciplinar,
sendo responsável assim pela notoriedade da obra após quase dois culos de
considerável ostracismo. O poder que emerge então se torna difuso, automatizando-
se e atualizando-se dentro e através de cada indivíduo sobre o qual ele foi exercido.
Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado
consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento
automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus
efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda
a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural
seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente
daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem presos numa
situação de poder de que eles mesmos são os portadores (Foucault, 2003:
166).
A ligação intrínseca entre ver e poder, fração panopcista da consonância
entre saber e poder, uma das idéias centrais na matriz de pensamento do autor,
tem grande importância para as teorias e discursos sobre a videovigilância
baseados na obra de Foucault (ver, por exemplo, Lyon (1994; 2001), Whitaker
(1999) e Gray (2003)). A dissociação do par ver-ser visto implicaria obrigatoriamente
o estabelecimento de uma assimetria de poder aumentada entre observadores e
observados, resultando em ainda mais controle disciplinar. O acesso às imagens
dos indivíduos, que além de visualizadas em tempo real também são gravadas e
arquivadas, contribuiria para que cada vez mais informações sobre cada um
estejam disponíveis ao poder disciplinar, permanentemente fortalecido através
desse processo. A videovigilância constituiria um passo a mais em direção à
disciplinarização observada e teorizada por Foucault, juntando-se aos bancos de
53
dados e aos exames, “entidades” características desse processo de fabricação dos
indivíduos.
A disciplina fabrica indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que
toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de
seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso,
pode-se fiar em seu próprio superpoderio; é um poder modesto, desconfiado,
que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente. (...) O
sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos
simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num
procedimento que lhe é específico, o exame (Foucault, 2003: 143).
Ao contrário da distopia literária de George Orwell, prenhe de crítica e
denúncias, as análises de Foucault, podem tanto ser apropriadas pelos
elaboradores de políticas públicas e estratégias de segurança, como pelos
manifestantes, teóricos e ativistas anti-controle. E foram. E postas à prova,
mostraram suas virtudes, mas também deixaram claras suas limitações. A
normalização e a docilização dos corpos, por mais que efetivamente sejam
características do processo que culminou no indivíduo contemporâneo, não
constituem leis da sociedade ou regras inerentes à vida social, mas retratam
processos ocorridos ao longo e em decorrência da modernização, e são
características de um determinado diagrama. Assim sendo, a emergência de teorias
pós-foucaultianas não indica especialmente um desejo de invalidação das
perspectivas do autor, mas a tentativa de estabelecer uma reflexão que levasse em
conta não somente suas idéias, mas também as mudanças sociais posteriores
àquelas sobre as quais Foucault se debruçou.
Seguindo suas idéias, Gary Marx (2004), por exemplo, indica o surgimento de
uma nova vigilância, caracterizada pela extensão técnica dos sentidos vigilantes, em
especial, mas não de forma exclusiva, através do olho eletrônico das câmeras, aliado
ao cumprimento involuntário de atividades rotineiras de coletas e informações de
dados. O indivíduo vigiado, por outro lado, tem cada vez menos consciência dos
momentos em que pode estar sendo observado ou controlado direta ou
54
indiretamente, mesmo estando ciente de muitos dos mecanismos de controle que
permeiam sua vida cotidiana. Para este autor, no entanto, não há dúvidas quanto à
realidade da sociedade de vigilância na qual vivemos.
Enquanto isso, para autores como Clive Norris (2002), o tão alardeado
panopcismo contemporâneo, contudo, teria menos relação com a visão e as
tecnologias da imagem, do que com o processamento de dados informáticos, através
do cruzamento de informações digitalmente captadas de forma não
intencionalmente controladora
65
. Entretanto, mais uma vez, é grande a diferença
em relação ao panopcismo assujeitador da disciplina, pois a coleta fragmentada
desses dados, e a forma como são reunidos e cruzados eletrônica e
automaticamente, impossibilitam qualquer tentativa de construção de um relato
coerente a propósito de subjetividades individuais. O panopcismo informático,
mesmo se o desejasse, não possibilitaria o assujeitamento, pois estruturalmente é
incapaz de captar indivíduos, apenas dividualidades independentes, apreendidas
através dos diferentes duplos digitais (Bruno, 2006)
66
de cada um.
67
I.3.6 - Desfoucaultiando
A sociedade disciplinar não é apontada por Foucault como uma realidade
inescapável, um destino último do mundo ocidental ou um diagrama de poder
65
―É o computador não a câmera o expoente da panopcização do espaço urbano. Corpos anônimos
podem ser transformados em sujeitos digitais, identificados e ligados a suas personas digitais
residentes em bancos de dados‖ (Norris, 2002; 278).
66
O duplo digital seria constituído pelas informações disponibilizadas e cruzadas de bancos de dados
eletrônicos, que são, tanto por razões de segurança quanto de marketing, reagrupadas visando a
formação de um perfil do indivíduo. ―Nota-se que essa nova maquinaria identitária dispensa pouca
atenção à interioridade dos sujeitos que ela visa, ressaltando o processo de exteriorização das
subjetividades contemporâneas. É da exterioridade das ações, comportamentos e transações eletrônicas
que se extrai ou se projeta a subjetividade, com uma identidade que não estava plenamente presente‖
(Bruno, 2004: 157).
67
O que não quer dizer de forma alguma que a apropriação de informações pessoais via informática
não ocorra, como o combate à pedofilia e a fraudes digitais indica. Nesse sentido, e aproveitando uma
das mais correntes metáforas da Internet, De Blomac e Rosselin alertam de forma bem humorada que
se o computador é uma janela para o mundo, é bom ter em mente sua falta de cortinas (2008: 95).
55
insubstituível. Pelo contrário, esta decorre de uma formação histórica específica,
que por sua vez substituía outra formação histórica, e outro diagrama de poder
(punitivo). Sendo assim, o advento de transformações sociais posteriores àquelas
analisadas em Vigiar e punir (séculos XVIII e XIX), necessariamente implicaria
mudanças no diagrama de poder. Gilles Deleuze (1992) propõe um modelo de
sociedade de controle em oposição à sociedade disciplinar, cuja substituição
progressiva se acentuou após a Segunda Guerra Mundial. Para compreender essa
diferenciação, é preciso ter em mente que o significado de controle não é aquele que
parece mais óbvio em português, e que versa sobre a dominação, de si, do outro ou
de uma situação qualquer, mas a utilização mais comum em francês
68
(contrôle),
indicando fiscalização, verificação, sendo, por exemplo, sinônimo de exame escolar
(a nossa prova), ou da incerta e temida conferência de bilhetes nos vagões e
estações de metrô parisienses o agente que o realiza é chamado contrôleur.
Significativo dessa alteração, o controle substitui a identidade e a assinatura,
pólos obrigatórios da disciplina, pela senha (ou simplesmente o cartão magnético),
como representação social e tecnicamente aceita de uma determinada pessoa, da
qual se tornaria uma parte independente e divisível. O próprio conceito de indivíduo
perde força, em detrimento da constante formação contemporânea de divíduos,
“compósitos de vários códigos e identificadores de grupo, que podem ser
estruturados e localizados com base em um pedaço particular de informação
estruturante” (Cameron, 2004).
A linguagem numérica
69
do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à
informação, ou a rejeição. Não se esmais diante do par massa-indivíduo.
Os indivíduos tornaram-se "dividuais", divisíveis, e as massas tornaram-se
amostras, dados, mercados ou "bancos" (Deleuze, 1992: 233).
68
Língua materna e dos originais de Deleuze.
69
A palavra francesa numérique pode tanto indicar numérico, como aqui traduzido, como o equivalente
à noção de digital, em português.
56
Ao contrário da disciplina, infinita e de longa duração, o controle teria curto
prazo e rotação pida, apesar de contínuo e ilimitado, não mais buscando moldar
os indivíduos, mas se moldando a eles (Ibid.: 232):
os diferentes modos de controle, os controlatos, são variações inseparáveis,
formando um sistema de geometria variável cuja linguagem é numérica
70
(o
que não quer dizer necessariamente binária). Os confinamentos o moldes,
distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma
moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou
como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro.
Michalis Lianos realiza um extenso trabalho teórico analisando a
contemporaneidade sob um prisma pós-foucaultiano, apontando para a emergência
de um novo controle social, em substituição à disciplina, identificada como controle
social (Lianos, 2003)
71
. Esse novo controle é involuntário, e surge como um efeito
secundário do gerenciamento de atividades principais das inúmeras instituições
72
que permeiam a vida contemporânea (num contexto denominado tela institucional) e
que é integrado a um ato ou atividade precisa, normalmente burocrática, do qual faz
parte do sentido e da finalidade‖ (2003: 433). O novo controle social não intenta
dominar, apenas servir ao melhor funcionamento da instituição que representa:
a maior parte do que se pode chamar controle não se refere nem a práticas de
coerção, nem a atividades opressoras do comportamento e da expressão, mas
à organização e à contextualização do que é freqüentemente opcional, ou
mesmo desejado por um sujeito soberano (2001: 197).
Como contraponto ao processo de assujeitamento descrito por Foucault,
Lianos afirma que em função da participação de cada um na inescapável tela
institucional, o contexto contemporâneo promoveria um desassujeitamento do
indivíduo, constituído de forma fragmentada enquanto usuário múltiplo de diversas
70
Ver nota anterior.
71
Observamos uma diferença de terminologia importante com o modelo deleuziano, embora conserve
significantes semelhanças com este.
72
A instituição não é propriamente oficial ou governamental, podendo ser um meio de transporte, uma
loja, um supermercado, etc, sendo definida como ―toda estrutura que centraliza o comportamento
humano em torno de sua própria existência e de seus próprios projetos, e nesse sentido, configura
inevitavelmente os fragmentos da ação e do pensamento a ela consagrados, com impacto sobre a vida
interna, íntima e social dos sujeitos desses fragmentos‖ (2001: 16).
57
instituições, com as quais entra em contato através de mediadores o-humanos
73
(catracas, cartões magnéticos, senhas...) e sempre no interior de um espaço-tempo
específico (físico ou virtual) de atuação e sob responsabilidade institucional. Esse
novo controle não permitiria a negociação entre sujeitos, aplicando direta e (em
teoria) inequivocamente sua lógica binária, cujas repostas possíveis se resumem a
autorizado e recusado. A decorrente limitação da intersubjetividade implica uma
modificação na própria elaboração das normas que, assim como a difusão das
mesmas, ocorre majoritariamente em contextos de interação com o outro -, cada vez
mais formalizadas e destacadas dos valores internalizados que as sustentavam.
Surge então uma normalidade formal e hiper-regular em que é mais importante
“parecer normal” do que ser normal”. O inverso da sociedade disciplinar, onde a
recriação dos indivíduos era parte fundamental do processo de normalização.
A descentralização do poder e do controle criam um contexto bastante
diverso do orwelliano, apesar do prestígio de que goza o Grande Irmão entre teóricos
da videovigilância e ativistas anti-vigilância. O novo controle social não tem
nenhuma semelhança com o sombrio panorama traçado em 1984, apesar da força
que tal representação ainda conserva.
Um “Big Brotherism” teórico seduz tanto sem vida por sua simplicidade e
sua capacidade de marcar os espíritos do que por sua tradução do controle
em dominação. Entretanto, se desejamos arranhar a superfície, descobrimos
rapidamente os limites dessas orientações analíticas: vemo-nos diante de um
“Big Brotherism” sem “Big Brother”. Isto nos diz mais sobre a necessidade de
submeter o desenvolvimento de um ambiente técnico a esquemas que dizem
respeito a sociedades pré-modernas ou no limiar da modernidade, do que
sobre a compreensão técnica em si mesma e a aplicações precisas das quais
os efeitos são diversos, ou mesmo concorrentes (Lianos, 2003: 436).
O olhar eletrônico proporcionado pelas meras de vigilância também não é
capaz de instaurar um contexto de controle totalitário e dominador, que as
73
O que o autor chama de ASTEs (Automated Socio-Technical Environments), ou seja, ―contextos de
interação de base tecnológica que regulam, organizam ou monitoram o comportamento humano o
integrando em um ambiente pré-preparado, construído sobre uma concepção de ―normalidade‖ ou
―regularidade‖ que todos os sujeitos devem supostamente reproduzir‖ (Lianos & Douglas, 2000: 264).
58
imagens captadas pelos múltiplos sistemas, assim como as informações por eles
angariadas, não são reunidas e organizadas em um único banco de dados, nem são
capazes de gerar os precisos relatórios individuais que a ficção muitas vezes
imagina. Na contemporaneidade a vigilância é realizada por múltiplos observadores
que, a menos que um acontecimento excepcional provoque uma mobilização e
coordenação extraordinária (e sempre posterior), mantêm-se incomunicáveis
(mesmo entre as diversas salas de operações) e impossíveis de serem identificados,
sem rosto, nome ou identidade (ao contrário do inspetor de Bentham, cuja relação
com os inspecionados deveria necessariamente ser mais profunda).
O observador é proteiforme, distante e disperso no arquipélago institucional,
não podendo então ser constituído para o indivíduo visado. O olhar de
vigilância não é somente trans-espacial e trans-temporal, mas trans-pessoal e
trans-intencional também. (...) é impossível associar esse olhar terceiro a uma
pessoa, uma instituição ou um feixe de normas, ou seja, situar suas
exigências em um contexto social (Lianos, 2001; 125).
Hille Koskela (2003, 2004) realiza uma crítica diferente no que concerne à
ampla utilização da teoria foucaultiana na explicação do contexto contemporâneo
de multiplicação do uso de câmeras nos espaços públicos e particulares - trata da
videovigilância, mas também de outros fenômenos concorrentes, como as webcams
privadas, os reality shows e a utilização de meras em celulares por amadores.
Mais do que indicar uma incompatibilidade entre o poder disciplinar e a sociedade
pós-industrial, como fazem Deleuze e Lianos, a autora procura desconstruir duas
relações tomadas como intrínsecas por Foucault e seus seguidores.
A primeira dessas relações é entre o par ver-poder. Utilizando o exemplo do
exibicionismo
74
, a autora argumenta que ser (mais) visto não implica
necessariamente ser menos poderoso, da mesma forma que não podemos falar de
uma relação direta entre ver mais e exercer um poder assimétrico sobre aquele que
é visto. Para aqueles que transmitem partes da própria vida através de webcams
74
O exibicionismo, apesar da sexualização da palavra, não tem necessariamente ligação com
pornografia ou nudez.
59
pela Internet para qualquer um que desejar assistir, um número cada vez maior de
espectadores poderia muito bem conferir poder
75
. Assim como para as celebridades
e os participantes de reality shows
76
, ser constantemente observado não provocaria
assujeitamento, muito pelo contrário, a visibilidade é a fonte principal de seu mana
(e, mais ainda, a visibilidade qualificada, em que além de visto, se é reconhecido e
olhado, passando a merecer a atenção dos anônimos). Ao optarem pela
superexposição, recusando a tomar parte no regime de vergonha, fundamental na
internalização da disciplina, os indivíduos deixam de estar submetidos ao poder
disciplinar:
(...) exibicionismo pode realmente funcionar como uma forma de
empowerment. A liberação da vergonha e da necessidade de esconder leva
ao empowerment. Conceitualmente, quando se mostra “tudo” torna-se “livre”:
ninguém mais pode “capturá-lo”, já que nada sobrou para capturar (Koskela,
2004: 208).
No quadro do empowering exhibitionism identificado por Koskela, ser visto
significa ter poder sobre aqueles que o vêem, sem que este, no entanto, seja
traduzível em dominação. Esta é a segunda das relações intrínsecas à teoria
foucaultiana a ser desafiada, a do par poder-controle
77
. Equação muitas vezes
negligenciada pela discussão a prosito da vigilância, diferentes formas de poder
estabelecem diversas relações com o desejo de controlar
78
. Longe de proporcionar
um aumento vertiginoso da vigilância, a proliferação de imagens da realidade tem
por efeito, intencional ou não, borrar e misturar as linhas de controle‖ (2004: 210).
Uma questão que vem merecendo certo destaque da mídia
79
e causando
preocupação entre pais de adolescentes é o que se convencionou denominar
75
Há na Internet uma profusão de home webcams, não sendo difícil encontrá-las através dos
mecanismos de busca mais populares. Ver por exemplo, http://justin.tv, onde muitos broadcasters
podem ser encontrados e mantêm canais com seguidores fixos, fãs e clipes, e onde a classificação
automática realizada pelo site tem como base o número de espectadores no momento em que a busca
interna é realizada pelo motor de procura do site. Sobre o assunto ver também Jimroglou (2001).
76
Cujo destino mais usual é tornar-se, em maior ou menor grau, celebridade.
77
Controle no sentido mais usual em português, como sinônimo de dominação.
78
Situação explícita na distinção entre dominating power e resisting power (Koskela, 2004: 210).
79
E que será discutida com mais cuidado no quinto capítulo.
60
sexting, ou seja, a captação e envio por telefone celular de imagens com teor erótico
ou sexual, prática descrita como cada vez mais popular entre adolescentes (mas
não somente entre estes). A geração nascida na última década do século XX
desenvolveu uma relação bastante diferente com a própria imagem e
conseqüentemente com a noção de direito de imagem -, banalizada e multiplicada
ao extremo pela tecnologia digital e pela Internet (Margulis, 2009), inovações
tecnológicas com as quais esses jovens cresceram e que aprenderam a naturalizar,
do mesmo modo que, por exemplo, a televisão colorida na década de 1970 ou o
forno de microondas no decênio seguinte. Com a assimilação da rede mundial e da
passagem da imagem fotográfica convencional à digital, para a primeira geração
genuinamente pós-Internet o regime de vergonha de seus pais e avós em muitos
sentidos revela-se não gramatical. Ainda que ao longo do último século fenômenos
semelhantes não constituam novidade, a ruptura impulsionada pelas revoluções em
tecnologias da imagem e da comunicação, popularizadas nos anos 1990, opera
mudanças especialmente radicais em curtíssimo espaço de tempo. Para os mais
jovens, um mundo pré-conectado é muitas vezes de difícil concepção, tão exótico e
remoto quanto o sistema de reprodução fonográfica, com agulha e LP de vinil ou a
câmera fotográfica analógica, com luz e filme. Essas alterações nos regimes
imagético e de vergonha o fundamentais para a compreensão da videovigilância
contemporânea, por esta ser estruturada de acordo com o olhar, o ver e também o
mostrar em nossos tempos.
E foi buscando melhor compreender essas e outras questões relativas aos
sistemas de vigilância eletrônica que, em junho de 2008, iniciava o trabalho de
campo na central de câmeras da Polícia Militar do Rio de Janeiro, levando como
bagagem as elucubrações teóricas e distopias tecnológicas constitutivas da
bibliografia dominante, e de maior “visibilidade” sobre o assunto. Todas - como
61
manda o figurino antropológico - prontas a cair, uma a uma, diante da experiência
da pesquisa etnográfica, tema dos dois próximos capítulos.
62
II De cima da torre: a central de câmeras da polícia
II.1 - Chegando ao Centro de Comando e Controle
II.1.1 - Permissões
Quando comecei a me interessar pela videovigilância e a vislumbrar a
pluralidade de questões por ela suscitadas, o sistema de monitoramento por
câmeras da Polícia Militar do Rio de Janeiro havia sido há pouco instalado e
funcionava ainda de modo claudicante e embrionário. Contudo a magnitude e o
caráter de política de segurança pública fazem da videovigilância policial um
elemento fundamental na discussão do presente trabalho. Assim sendo, a central
de câmeras da polícia me parecia o locus ideal para a realização do trabalho
etnográfico. Além do mais, do projeto de tese à inserção no campo, o
monitoramento oficial passara de política experimental a estratégia consolidada de
policiamento.
Como em todas as pesquisas realizadas em ambientes oficiais e fechados ao
público, o caminho do desejo de pesquisar aa permissão para fazê-lo passa pelo
pedido de autorização a algumas autoridades. Para poder entrar e permanecer no
Centro de Comando e Controle (CCC), observando e conversando com aqueles que
trabalhavam, inicialmente precisei solicitar ao Subsecretário de Planejamento e
Integração Operacional, a quem me dirigi acompanhado do meu orientador,
reforçando a inegável chancela institucional da Universidade, e mais
especificamente da UFRJ
80
. Após uma xícara de ca e breves explicações, fomos
embora com a promessa de que me seria concedida a permissão, e que
aguardássemos contato por e-mail. Em pouco tempo a solicitação foi atendida e a
autorização enviada pelo coordenador do CCC ao professor Michel Misse, que
80
Vale notar que os dois se conheciam, o que insere ainda como elemento a mediação das relações
pessoais.
63
prontamente me transmitiu. Marquei uma data para a primeira visita, logo na
semana seguinte, e comecei a pensar nas possíveis perguntas que faria. Nesse
contato inicial, meu intuito seria ter uma visão mais geral do funcionamento do
sistema, da disposição do ambiente e da estrutura do trabalho.
II.1.2 - Conhecendo o coordenador: chegada oficial
Pouco antes da hora acordada, eu me apresentava na portaria do prédio da
Secretaria de Segurança Pública (SSP), localizado na Central do Brasil, maior
estação ferroviária da cidade e do estado. Após apresentar minha documentação e a
autorização enviada pelo tenente-coronel (coordenador do CCC), fui encaminhado
ao 13º andar, devendo subir um lance de escadas e atravessar um ambiente
elegante, porém decadente, com paredes descascadas e esburacadas, e um vão no
meio dando para a entrada da estação de trem. Passei por ela e fui para o elevador
que levava à torre, diferente daquele que havia pegado nas outras vezes em que
estivera naquele prédio. Ao descer no 13º andar, tive a certeza de que o CCC estava
simbolicamente muito bem localizado: grandes janelas apontavam diretamente para
a cidade do Rio de Janeiro, vista de cima, com toda área da Central (e suas muitas
favelas) imediatamente abaixo, e um campo de visão amplo e desimpedido através
do qual mesmo a cidade de Niterói era vista como se próxima fosse. Visão
privilegiada, sem dúvida, para aqueles cuja missão é vigiar e policiar de longe e do
alto as atividades nos espaços públicos da cidade. Precisei me identificar
novamente, dessa vez para uma policial sentada numa cadeira na porta do CCC,
desempenhando a função de secretária
81
. Enquanto ela anotava meus dados e
telefonava ao coordenador, pude pela primeira vez vislumbrar, através de uma
81
É interessante notar que as relações tradicionais de gênero se sobrepõem à estrutura militarizada
da polícia. Durante todo o tempo que visitei o centro, as policiais femininas, independente da
graduação, desempenhavam funções tradicionalmente femininas, como secretária e telefonista.
64
porta de vidro transparente, o serviço dos operadores de câmeras, assim como a
estrutura de trabalho de que dispunham.
Logo o próprio coordenador veio me buscar na porta, sem farda e com um
largo e amistoso sorriso, convidou-me a acompanhá-lo até sua sala. O cômodo em
si é bem pequeno, contando apenas com uma mesa na qual fica um computador,
telefones, uma grande impressora, uma imponente cadeira diante dessa mesa e
mais duas cadeiras, bem mais modestas, reservada aos visitantes. Bem no espírito
da visibilidade total e transparência administrativa (accountability), as paredes da
sala do coordenador o translúcidas, envidraçadas, para que possa supervisionar
por completo o trabalho realizado pelos operadores das câmeras. O posicionamento
normal destes, virados para as telas e de costas para a sala do coordenador, fazia
com que este último pudesse observá-los constantemente, sem que fosse,
normalmente, observado por eles. Tudo no CCC é feito para convergir as atenções
para as imagens projetadas na grande tela central e nos televisores de LCD
dispostos de seus dois lados. As bancadas onde sentam os operadores reproduzem
a curvatura da tela, e a de seus supervisores imediatos é localizada bem no centro
da sala, que da entrada às telas apresenta um ligeiro declive, como num cinema. A
sala do coordenador fica no alto, à esquerda da tela principal (ver figura 1, na
página 67). No caminho entre o olhar do coordenador e as telas, ficam os
operadores, por conseguinte vigiados, ou constantemente sujeitos à possibilidade
de fiscalização por parte do chefe. Ao menos na arquitetura da sala da central de
monitoramento, a presença do panóptico é inegável.
II.1.3 - ―Algo assim, meio Foucault‖
Indagado sobre meu interesse no CCC, expliquei que o monitoramento por
câmeras era o tema de minha pesquisa de doutorado, e que gostaria de abordar a
65
relação da polícia e dos policiais com os novos investimentos em inteligência e
tecnologia. O tenente-coronel pareceu satisfeito e emendou, com um sorriso
sarcástico: - Sua pesquisa é, assim, algo meio Foucault, né?”. E realmente era,
sem dúvidas. Ele passou então a me apresentar a estrutura de funcionamento do
sistema de videovigilância (ali chamado de monitoramento), as diferentes partes que
o compunham, inserindo-o no contexto mais amplo da política de segurança
pública do estado. Explicou-me que, apenas em fevereiro de 2007 o centro de
monitoramento começou a operar efetivamente, apesar de sua existência remontar
a junho de 2005, quando foi inaugurado com pompa pelo governo anterior,
responsável por sua idealização. No momento em que conversávamos, a região
metropolitana do Rio de Janeiro (que contempla também alguns municípios
vizinhos, como São Gonçalo, Niterói, Duque de Caxias, o João de Meriti,
Queimados, etc.) tinha 220 meras instaladas nas vias públicas, numa média de
10 câmeras por cada batalhão da PM inserido na política de videomonitoramento
(esse número não é exato: Ipanema, por exemplo, possuía apenas seis câmeras,
todas na orla, enquanto Copacabana quatorze). A partir do mês seguinte, mais
quatro batalhões seriam integrados ao sistema, passando a 260 o número de
câmeras na cidade
82
. Apesar de me mostrar a localização e as imagens de algumas
câmeras, o coordenador me disse que não poderia dizer sua exata localização por
questão estratégica. O posicionamento de cada uma delas havia sido determinado
em função de estudos realizados pela Polícia Militar nas principais zonas criminais
da cidade, buscando identificar em quais locais o recurso técnico complementaria
de modo adequado o policiamento ostensivo.
82
Em novembro de 2009, pouco menos de um ano e meio após essa visita inicial ao CCC, o site de
uma das principais empresas envolvidas no sistema de videovigilância policial no Rio de Janeiro,
anunciava seu trabalho: monitoramento da região metropolitana do Rio (Rio e Grande Rio), sistema com
um total de 295 meras sendo destas 268 câmeras Dome instaladas em áreas públicas e 27 câmeras
tipo Fixa fazendo o monitoramento das centrais de monitoramento
(http://comtex.com.br/comtex/clientes.htm).
66
II.1.4 - Parcerias
Além da Polícia Militar, trabalhavam diretamente no monitoramento três
empresas contratadas pela Secretaria de Segurança Pública: a Embratel,
responsável pela tecnologia comunicacional, ou seja, pela transmissão constante
dos dados de todas as meras através de conexão banda larga via rádio, além de
seu armazenamento pelo período de 30 dias
83
em grandes servidores localizados
nos batalhões, e também no CCC; a Comtex, apresentada em seu site
84
como uma
empresa ―especializada no desenvolvimento de soluções de vídeo-monitoramento e
segurança eletrônica, é ―a primeira indústria nacional de câmeras‖, ―sendo
responsável pelo desenvolvimento de projetos de monitoramento urbano de
importantes cidades‖; e a Assegura, uma fundação assistencial que tinha
inicialmente como o de obra policiais e bombeiros reformados, alguns deles
cadeirantes, mas que com a expansão da videovigilância passou também a oferecer
trabalho para aqueles que tinham se aposentado normalmente por tempo de
trabalho e desejavam complementar sua renda
85
. Estes últimos são os responsáveis
pelo trabalho de vigilância propriamente dita, operando, na maior parte do tempo,
as câmeras e observando suas imagens.
83
Como me explicou o coordenador, se nas imagens algo de interessante houver, esse período pode
ser prorrogado.
84
www.comtex.com.br.
85
Recebi essa informação dos funcionários da Assegura lotados no 1 BPM, onde pude mesmo
conferir sua veracidade, por ter conhecido alguns operadores que tinham se aposentado por tempo de
serviço.
67
Figura 1 - Centro de Comando e Controle (projeto)
Os policiais ali no CCC seriam (teoricamente) os responsáveis por “monitorar
o monitoramento” realizado nos batalhões pelos contratados da Assegura, vendo o
que eles viam, os vendo vendo o que viam e acompanhando suas ações diante do
que viam. Tanto os operadores do centro quanto os dos batalhões teriam passado
obrigatoriamente por um curso de “técnicas de monitoramento”, que consistiria em
instruções sobre melhores formas e estratégias de realizar o trabalho, mas também
ensinando a lidar com o software utilizado pela empresa responsável pela instalação
do sistema. a supervisão geral conta com um representante de cada elo da
estrutura: um sargento ou subtenente da polícia, um funcionário da Comtex, outro
da Embratel e um último da Assegura. Estes quatro têm lugar fixo na bancada
central vista na Figura 1
86
.
86
Onde aparecem identificados duas cadeiras, com as indicações “coordenador” e assistente”, na
verdade existem quatro lugares, em teoria, ocupados por esses quatro supervisores. Tal discrepância
deve-se ao fato de a ilustração que apresento ser o projeto original do Centro de Comando e Controle,
que me foi gentilmente cedido por seu idealizador, o Contra-Almirante Oscar Moreira da Silva, na
68
II.1.5 - COBAT
Um dos primeiros pontos da exposição do coordenador foi a apresentação
dos COBATs (Centro de Operações dos Batalhões), considerados como “células
base” do Projeto Estratégico que incorporou o monitoramento por câmeras à
estrutura de funcionamento da Polícia Militar. Esses centros de operação
estavam em funcionamento nos batalhões das 20 AISPs (Área Integrada de
Segurança Pública)
87
que dispunham de monitoramento eletrônico. E o sistema de
monitoramento por meras, juntamente com o setor de despacho de unidades
operacionais, integra a ―conjunção do COBAT‖. As imagens captadas ao vivo na sala
de operações de um dos batalhões me foram então mostradas pelo tenente-coronel,
que ia ao mesmo tempo explicando a organização espacial da sala e como se dava a
coordenação do trabalho entre os operadores e os policiais despachadores com
quem dividiam a sala. Se os operadores observam alguma situação suspeita ou de
perigo, avisam aos despachadores que entram em contato com a unidade policial
que se encontrar mais próxima do local. Por outro lado, se um dos despachadores
recebe a informação de uma ocorrência dentro do campo de visão de alguma das
câmeras, esta é imediatamente acionada e a ação passa a ser acompanhada por
vídeo. ―A integração entre informação e ação, entre tecnologias e pessoas, essa é a
época Diretor Geral de Telecomunicações e Informática da Secretaria de Segurança Pública. Atrás das
telas centrais fica a zona de manutenção técnica do sistema.
87
De acordo com o site do Instituto de Segurança Pública, mais que uma nova divisão geográfica das
áreas de atuação das Polícias Civil e Militar, as AISP foram criadas em 1999, por meio de resolução do
secretário de Segurança Pública, para estreitar as relações entre as corporações e, assim, melhor assistir
à população. Em todo o estado são 40 AISP, cada qual representada pelos comandantes dos batalhões
da Pocia Militar e delegados titulares das delegacias distritais. As AISP também instituíram um
Conselho Comunitário de Segurança que, juntamente com a força policial, fica responsável pela
avaliação por área da dinâmica criminal, observando ainda a incidência criminal, elucidação de delitos e
qualidade do serviço prestado pela polícia. Numa gestão participativa, a sociedade é convidada a
identificar os crimes mais comuns, discutindo soluções integradas e acompanhando os resultados das
medidas adotadas. Mensalmente, cada AISP promove, ainda, um Café Comunitário para avaliações do
policiamento local com representantes da sociedade‖
(http://www.isp.rj.gov.br/Conteudo.asp?ident=45).
69
conjunção do COBAT‖, declarou o coordenador. O COBAT consiste numa rede
materialmente heterogênea de humanos e objetos (Law, 1992).
O desdobramento etnográfico deste trabalho, três meses após essa primeira
visita ao CCC, consistiu na inserção em um COBAT, sendo então mais propício
88
apresentar sua dinâmica de funcionamento ao relatar esse outro “processo de
campo”. No entanto, uma breve apresentação de sua estrutura é essencial para
compreendermos o CCC, e o sistema de monitoramento como um todo. Para tanto
recorro, principalmente, às explicações que me foram dadas pelo ex-Diretor Geral
de Telecomunicações e Informática (que ocupava o cargo quando da implantação do
sistema), assim como ao projeto e ao material que ele gentilmente me cedeu.
O COBAT é uma experiência recente, ainda em expansão. Faz parte do
processo de “modernização” da segurança pública fluminense, assim como a
Delegacia Legal, por exemplo,
89
sendo, como este projeto, baseado em inovações
tecnológicas relativas às áreas da comunicação e informação. Com a criação dos
COBATs, as principais apostas da Secretaria de Segurança Pública são a maior
presteza do atendimento (em resposta à solicitação), a capacidade de agir
“proativamente” e a possibilidade de fiscalização do próprio trabalho policial.
No modelo que essendo substituído, o COPOM
90
(Centro de Operações da
Polícia Militar), criado em 1996,
atende o chamado 190, faz a triagem do telefonema, e se confirmar como um
problema de atendimento policial de emergência, à vista do mapa digital na
tela e do geo-posicionamento das viaturas da PM dotadas de GPS, o
despachador, escolhendo, entre as disponíveis, a mais próxima da ocorrência,
88
E também fidedigno com a realidade de pesquisa, pois somente ao freqüentar a sala de operações do
19º BPM pude ter uma idéia mais exata do que se tratava.
89
Lembrando que o Delegacia Legal, ao contrário dos COBATs, é um programa da Polícia Civil (sobre o
assunto, ver Paes, 2008).
90
Que ―tem como objetivo primordial o atendimento às chamadas de emergência de cunho policial, pelo
telefone 190. É constituído, basicamente, por um centro de atendimento para as chamadas (Call Center)
190 e um Centro de Despacho exclusivo para viaturas da PMERJ dotadas de GPS (Global Position
System). Como periféricos o COPOM possui os sistemas: de identificação automática de chamadas
(telefone e endereço do chamador); um sistema de geo-posicionamento de viaturas com GPS; outros dois
para a gravação de voz (entre telefonistas e usuários e entre despachadores e viaturas da PM)‖ (Moreira
da Silva, 2004: 3).
70
determina ao comandante da viatura que se dirija ao local onde o
atendimento se faz necessário.
A partir do atendimento telefônico, inicia-se uma gravação da troca de
mensagens entre o atendente e o usuário chamador, que termina quando o
usuário desliga o seu telefone.
Todos os dados da ocorrência, entre o despachador e as viaturas de
atendimento, nos dois sentidos, são registrados e gravados digitalmente até
que a tarefa tenha sido concluída e os dados dessa ocorrência são arquivados
num banco de dados para uso estatístico. O despachador tem ainda a tarefa
de supervisionar o atendimento em todo o seu curso (Moreira da Silva, 2004:
3).
A principal mudança concerne à descentralização do atendimento, que passa
do Call Center 190 e do Disque-Denúncia para os COBATs, cujos “despachadores”
atuam no interior dos batalhões, numa “sala de operações” de onde podem contatar
não apenas as viaturas dotadas de GPS, mas todas as “unidades” de polìcia dotadas
de sistema de rádio, sejam elas humanas (agentes), móveis (viaturas e quadriciclos
de patrulhamento da praia) ou estáticas (postos ou cabines). E sentados à frente do
policial que recebe essas informações ficam quatro operadores de câmeras
contratados pela Assegura (e diante de cada um deles um monitor de LCD 17”).
Dessa forma, além das chamadas provenientes do 190, a polícia também pode agir
motivada por flagrantes ou suspeitas decorrentes do videomonitoramento e, do
mesmo modo, através das câmeras o atendimento ou ação policial podem ser
coordenados, acompanhados e, também, fiscalizados.
II.1.6 - E, finalmente, câmeras e imagens de vigilância!
Foi através da demonstração do coordenador que pela primeira vez pude
verificar o funcionamento das câmeras da polícia. Para isso ele dispõe de um
programa em seu computador cuja tela principal apresenta links para todos os
batalhões e conseqüentemente suas câmeras - conectados ao CCC, dentre os
quais escolhe o do 23º BPM, de Ipanema. Segundo informou, todas as seis câmeras
no bairro estavam localizadas na orla, tendo conectado a uma ao lado do Arpoador,
71
que posteriormente identifiquei como sendo no telhado do Colégio São Paulo. Ele
mostra então toda a área de alcance lateral das câmeras, além da capacidade do
zoom, focalizando um carro consideravelmente distante, aproximando a imagem até
ser possível visualizar a placa. Diante da dificuldade em reconhecer os números, ele
se apressa em dizer que ainda um software utilizado por eles que trata as
imagens, o que possibilitaria assim a identificação dessa placa. Entretanto não
pude verificar esse fato. Na demonstração seguinte, o coordenador abre as imagens
de outra câmera (nomeada de Arpoador Inn, em função de sua localização no alto
desse hotel), e passa a acompanhar um jovem, que caminha sozinho pelas areias da
praia. No intuito de explicar melhor a ação da polícia, me diz:
está vendo esse jovem? Se ele parar e começar a fazer um movimentozinho
com as mãos, e tirar um papel, passar na língua e acender um cigarro, não
pra ver, não pra saber que vai fumar maconha? E fumar maconha é
crime, pode não ser mais em breve, mas ainda é! Então a gente vai lá e
manda algum policial verificar, averiguar pra ver se é isso. Se for, é levado
para a delegacia. É assim que funciona.
Tentou também me mostrar alguns vídeos de flagrantes que tenham gerado
(e filmado) uma ação policial coordenada a partir do sistema de monitoramento.
Entretanto, após uma longa procura por uma pasta, foi informado por seu
computador da impossibilidade de reprodução do arquivo, por falta de programa
que suportasse seu formato. Embaraçado, me explica que deve ter, sem querer,
excluído o programa na semana anterior. Chama um técnico em sua sala, que
rapidamente verifica a veracidade dessa informação. Não deixa de ser um fato
significativo essa falta de intimidade com a informática do coordenador do centro,
assim como a impossibilidade em assistir aos vídeos armazenados em seu
computador.
72
II.1.7 - Ver sem ser visto
Perguntado sobre qual a principal função do CCC, sem titubear o
coordenador responde: ―a defesa social. O trabalho de monitoramento teria como
objetivo inicial e constante a prevenção do crime, podendo passar rapidamente à
repressão quando algum delito fosse percebido. O plano de ação teria, assim,
elementos de três aspectos distintos: intimidação, repressão, e, quando possível, a
investigação. Explicou também que era fundamental para a obtenção dos
resultados desejados, que a localização das câmeras fosse mantida em segredo, e
que sua instalação e manutenção fossem realizadas com o máximo de discrição. De
maneira bastante benthamiana, esclareceu que
assim o cara vai pensar que ela pode estar em qualquer lugar. O objetivo
maior não seria criar “ilhas de segurança”, naqueles lugares onde têm placa
dizendo que a pessoa está sendo filmada, mas fazer uma cidade segura como
um todo.
Parte dessa mesma “estratégia disciplinar” da Secretaria de Segurança
Pública é a divulgação periódica para a imprensa de flagrantes capturados pelas
câmeras de segurança, mostrando aos criminosos (e também aos ―cidadãos de bem‖
ainda não convencidos das benesses do videomonitoramento) o trabalho bem
sucedido do CCC, fazendo com que este seja respeitado e temido. A contradição
iminente entre o desejo de erradicar o crime e a violência, que move
intrinsecamente as políticas oficiais de segurança pública, e a constante
necessidade de flagrantes de comportamentos violentos ou criminosos capturados
pelas câmeras, pôde ser observada de modo agudo durante o tempo que freqüentei
a sala de monitoramento do 19º Batalhão da PM, e será tratada no próximo
capítulo. Contudo essa questão começava a despontar nessa primeira
apresentação, apesar de inicialmente parecer menos importante do que se revelou.
73
II.1.8 - Sobre números, impressões e ilhas
Comentei com o coordenador que fora divulgado na imprensa
91
que uma
suposta queda nos índices de criminalidade nas áreas cobertas poderia ser
atribuída à instalação do sistema de monitoramento, no que respondeu que era
verdade, mas até aquele momento não estavam disponíveis dados que pudessem
refutar ou corroborar informações relativas a esse fato. O Instituto de Segurança
Pública (ISP) estaria empenhado em realizar as medições necessárias, mas a
comparação não seria imediata nem fácil, que anteriormente não havia recursos
tecnológicos para gerar tais informações.
Hoje, em tempo real (delay de 30 minutos) o 190 pode catalogar localmente
todas as chamadas, via banco de dados. O ISP então compara com o XY da
câmera (localização exata, uma espécie de longitude e latitude), identificando
se ocorreu na área de alcance de alguma delas.
Perguntado sobre a sua impressão pessoal, ancorada na experiência de
policial, o coordenador afirma que houve uma diminuição, e apesar da inexistência
dos dados oficiais a respeito, é possível verificar uma redução dos índices de
criminalidade nas áreas monitoradas, com a criação involuntária de “ilhas de
segurança”
92
. Mas com a tendência à expansão dos investimentos em tecnologia
(segundo ele, atualmente o mais complicado seria a adequação de recursos
humanos ao trabalho, problema que estaria sendo resolvido), as ilhas acabarão
constituindo, por fim, uma cidade globalmente mais segura. Em seu entendimento,
a expansão do CCC seria uma certeza e uma aposta acertada da Secretaria de
Segurança Pública, que o monitoramento potencializa o trabalho do policial (um
operador pode ver várias câmeras ao mesmo tempo), e a tecnologia de softwares
91
Dentre outras reportagens ver, por exemplo, “Câmeras reduzem a criminalidade na orla: Estado
aponta uma queda de 52% em Copacabana”, em O Globo, 27/01/2006.
92
Em Copacabana o coronel afirmou ser notável a redução da criminalidade (que seria em torno de
70%), tendo também tido como efeito uma série de mudanças comportamentais. Como exemplo citou
a migração de travestis para ruas transversais da praia, ou para a Barra da Tijuca, nas imediações da
Praça do Ó (o que fez relembrando a confusão, então recente, envolvendo o jogador Ronaldo e a
travesti Andrea Albertini).
74
permite uma otimização ainda maior desse trabalho (citou programas, em
utilização em outros lugares, que alertam para imagens onde uma ruptura com
a normalidade, como pacotes abandonados ou presença de pessoas em locais
estranhos, ou identificação de determinados indivíduos na multidão através da
análise de dados biométricos). Apostas na multiplicação de um olhar que, segundo
ele, se tornava cada vez mais poderoso e bem direcionado.
II.1.9 - Foucault?
Após esse primeiro contato encontrei o coordenador mais umas poucas
vezes, este sempre estando ocupado com visitas ou trabalho. Em um desses
encontros, três meses após minha primeira ida ao CCC, o tenente-coronel me
indicou que queria ―tirar, digamos uma dúvida acadêmica, relativa ao Foucault‖,
sem, no entanto dizer o que era, dizendo que depois falaríamos com calma.
Posteriormente, por e-mail, revelou a pergunta: ―Qual seria o embasamento teórico
para a vigilância das pessoas? ouvi dizer que Michel Foucault trata do assunto.
Poderia me dar uma ajuda acadêmica? Gostaria de saber um pouco mais sobre isto.‖
Como não podia deixar de ser, ainda mais diante da acolhida que recebi no CCC,
escrevi um pequeno texto resumindo algumas das principais idéias de “Vigiar e
Punir” e do “Panóptico” de Bentham e enviei, deixando-o aparentemente satisfeito
com nossa “troca simbólica”. No entanto, o que mais me chamou a atenção nela foi
que havia sdo da primeira visita ao centro com a firme impressão de que o
coordenador tinha associado meu estudo ao Foucault como uma forma de “marcar
seu território”, mostrar que eu não estava lidando com um policial embrutecido,
mas com um alto oficial instruído, que inclusive conhecia o autor que é um clássico
incontornável para aqueles que falam de vigilância. Contudo, após a ―dúvida
acadêmica‖ percebi que mesmo se a referência existia e estava correta, seu
75
conteúdo permanecia vago, e provavelmente devia mais ao recente sucesso do filme
Tropa de Elite, onde o autor francês é bastante citado, do que a alguma leitura
teórica. O que de maneira nenhuma impedia o coordenador de estar muito distante
de um policial embrutecido.
Seu próprio interesse tardio por Foucault, apesar de -lo “citado” para
mim, e a posição-chave que ocupa na política de videovigilância do estado, dão
pistas de que não há, ao menos de forma explícita entre seus principais dirigentes,
um projeto de controle disciplinar. A tecnologia cria uma possibilidade de se vigiar,
mas não oferece de brinde uma base teórica que justifique a vigilância. Nas
justificativas e debates parlamentares em torno da instalação de sistemas de
vigilância em lugares como edifícios, shoppings, hospitais, fica patente que o poder
político é levado, com a mesma autonomia com que uma criança é arrastada
silenciosamente por sua mãe, pela tecno-ciência (Beck, 2008: 408):
Em razão da cientifização crescente das decisões políticas, as instâncias
políticas (no âmbito da política ambiental, por exemplo, mas também na
escolha de grandes tecnologias e sua localização) só se conformariam às
expertises científicas.
93
O mais importante, porém, é que nessa primeira visita recebi do tenente-
coronel a autorização para freqüentar o CCC, nos dias úteis três vezes por semana,
pela manhã ou à tarde, o que fiz pelos três meses e meio que se seguiram, podendo
observar a rotina de trabalho dos operadores, ouvi-los conversando entre si e
também, é claro, conversar com eles.
II.2 - Freqüentando o Centro de Comando e Controle
Mesmo depois de algumas semanas, quando as funcionárias responsáveis
pela identificação já sabiam que eu era pesquisador, que ia para a torre e deixavam-
93
Sobre o assunto ver também Latour, em especial o primeiro capítulo de Jamais fomos modernos
(2005), ou a introdução à La société du risque (2008a), de Ülrich Beck.
76
me subir sem precisar avisar pelo telefone interno, para entrar no CCC precisava
ser autorizado diretamente por alguma autoridade. Como não convinha, por
questão tão miúda para a segurança pública do estado, incomodar o coordenador
do centro - comandante daquela unidade da PM - todas as vezes que um
pesquisador quisesse entrar para -los trabalhando, fui instruído a procurar o
coordenador substituto, tenente Almir
94
. Sua sala ficava no 11º andar, um local em
nada parecido com o CCC, seus aparatos de tecnologia e salas envidraçadas.
Lembrava a representação clássica da repartição pública, com muitas mesas e
pessoas, sentadas ou em pé, umas fardadas e outras “a paisana”, quase todas em
algum tipo de conversa. Na primeira vez que fui ali e me apresentei ao tenente, a
animação dos assuntos e a descontração do ambiente me chamaram a atenção de
imediato, realçada pelo contraste com a imagem de um jovem solitário, concentrado
diante do monitor e com fone no ouvido, numa atitude que remetia à idéia que eu
tinha de um centro de inteligência da polícia, o que de fato era a sala. Era o único
que aparentava estar trabalhando em todo o recinto, alheio ao barulho causado por
todas as conversas paralelas que ocorriam. O coordenador substituto, apesar de
cordial, se comportou de forma um tanto menos calorosa que o coordenador, e em
pouco tempo me indicou um policial à paisana
95
, Gustavo, para me acompanhar até
o 13º andar. Ele, porém me acompanhou por mais de duas horas, e voltou à sua
sala depois que parti do CCC, tendo me colocado muitas perguntas e sendo prolixo
em suas próprias respostas. Tive a clara impressão de estar sendo, de modo não tão
discreto, investigado, medido. Contudo, mesmo “marcado em cima”, começava
então o trabalho de campo propriamente dito.
94
Como todos os outros nomes relativos à pesquisa no CCC e no 19º BPM, este também foi trocado,
sendo escolhido um fictício. A função e o posto, entretanto, são reais, ou ao menos eram no momento
da pesquisa etnográfica.
95
Pude logo perceber que o uso da farda na PM é muito mais flexível do que nas Forças Armadas, de
onde provinha basicamente meu contato até então com o mundo militar.
77
II.2.1 - O Centro de Comando e Controle
Como havia indicado, a entrada da sala se dá por uma porta de vidro,
localizada após uma mesa, ocupada sempre por uma policial mulher (realizando a
“função feminina” de secretária). Na parede, imediatamente acima dessa mesa,
podemos ver dois quadros explicativos: um mostrando todo o sistema de
interconexões eletrônicas, mediadas por humanos
96
, que formam o
videomonitoramento da polícia; e o outro a localização de todos os batalhões que
integram as imagens do CCC. Ultrapassando a porta de vidro, a primeira visão é a
da parede frontal tomada por imagens das câmeras de monitoramento espalhadas
pela cidade. No centro vemos uma grande tela
97
, que pode conter uma imagem,
em tamanho bastante grande, ou ser dividida em inúmeras telas menores (a
configuração utilizada era da divisão por oito, mas cheguei a ver também por quatro
e até por trinta e dois). De cada lado dessa tela, estão pregadas na parede cinco TVs
de LCD de 32”, cada uma delas com as imagens captadas por uma das câmeras.
Logo em frente ao painel de imagens, está localizada uma bancada, num nível mais
baixo do que o da entrada, dividida em 10 baias. Elas são equipadas com dois
computadores e grandes monitores de plasma (de 17”), cada um reproduzindo
imagens de um dos vinte batalhões que realizam o monitoramento por meras.
Como cada baia é, em teoria, ocupada por um policial, cada um deles é responsável
por dois batalhões. Décio, policial que trabalhava no 11º andar e que por algumas
vezes me acompanhou até o CCC, explicou que habitualmente colocam na ponta
esquerda o policial com maiores conhecimentos de informática, capaz de resolver os
96
Como prova do caráter híbrido do agenciamento sócio-técnico (Callon, 2003), poderíamos
igualmente e sem problemas falar de um sistema de interconexões humanas, mediado por objetos
tecnológicos.
97
Trata-se de uma superfície plana e branca onde são projetadas imagens como num cinema.
78
pequenos problemas surgidos no turno.
98
Como pude observar, não havia uma
proximidade obrigatória dos batalhões dispostos numa mesma baia. Nas laterais da
sala, ficavam duas bancadas, mais altas que as centrais, fazendo com que vejam
melhor estas do que são vistos pelos que estão. Em cada uma delas estão
dispostas cinco baias, assim como as centrais um pouco curvadas, acompanhando
as próprias paredes da sala. As bancadas laterais traseiras são mais altas que as
centrais, fazendo com que seus ocupantes vejam melhor estas do que são vistos
pelos que estão. A da esquerda, onde me posicionei para acompanhar o trabalho
dos operadores, permanece praticamente vazia, com uma baia ocupada por um
computador e, as vezes, também por um policial. Posicionava-me na ponta, de onde
tinha um ângulo de visão melhor, mas de onde mesmo assim ficava difícil enxergar
as telas de plasma colocadas à direita da grande tela central, assim como os
operadores nas baias mais ao canto. Já a bancada traseira da direita estava toda
ocupada, por pessoas também constantemente ao telefone, bem mais velhos que os
operadores. Décio me informou que eram funcionários (policiais, bombeiros, civis)
―responsáveis por acionar a polícia quando algum acontecimento de vulto ocorria na
cidade, para ela não ser informada pela imprensa‖. Atrás desses funcionários ficava
um televisor ligado ininterruptamente (em telejornais). Outra função que
realizariam era a ―busca pelos registros de meros de placas de veículos, quando
estes estão envolvidos em crimes, delitos ou acidentes‖, também segundo a
explicação de Décio.
As imagens são tipicamente as de câmeras de segurança, distantes, com as
cores pouco diferenciadas, e habitualmente mostrando cenas cotidianas comuns,
que não chamam de imediato a atenção. Na parte superior esquerda da tela
98
Certa feita, escutei comentários sobre o curso de especialização que o “ponta-esquerda” do dia havia
feito, e que lhe rendia atualmente uma gratificação. Este fala para o companheiro: “Viu, quando eu fui
fazer aquele curso você achou que era merda...”
79
podemos ver uma seqüência de quatro dígitos, na qual os dois primeiros indicam o
batalhão (ou a AISP) de origem das meras, e os dois últimos a identificam. Ao
lado dessa seqüência de quatro dígitos aparece escrito alguma informação aludindo
à localização, como o nome da rua
99
em que está localizada, da construção que
serve de apoio à sua instalação
100
, uma esquina
101
ou apenas uma menção mais ou
menos vaga à região
102
.
II.2.2 - Distintos, mas interpenetráveis: discursos e observações
Nas primeiras vezes que fui ao CCC para observar o trabalho realizado
naquele local, não sei se por simpatia ou curiosidade, prestatividade ou precaução,
sempre alguém se sentia na obrigação de me acompanhar, vir conversar comigo,
perguntar se eu tinha alguma dúvida sobre o funcionamento, ou apenas vinha me
dizer o que achava do monitoramento por câmeras, fato que sem dúvida me ajudou
muito na inserção naquele lugar. Após algumas visitas, comecei a despertar menos
interesse, e pude passar muito tempo sentado na bancada traseira esquerda da
sala, praticamente desocupada. Nas vezes em que me colocava nessa posição, o
trabalho de campo voltava-se basicamente para o acompanhamento do serviço dos
policiais, sem fazer praticamente nenhuma pergunta e por muitos momentos, tendo
certeza de tornar-me invisível. A própria estrutura física da sala proporcionava isso.
A bancada em que me posicionei ficava interposta entre a parede da sala e as baias
onde os operadores trabalhavam. Estes ficavam, normalmente, de costas para mim,
e de frente para os monitores na baia, e também para as telas colocadas na parte
99
Como, por exemplo: 1209 Joaquim Távora; 2401 Av. Irmãos Guinle; 0111 Haddock Lobo.
100
1801 Igreja da Penha; 0406 Prédio da Ypiranga; 0610 Shopping 344.
101
0207 Mena Barreto x São João Batista; 1301 Pres. Vargas x Sant‟anna; 2202 Av. Brig.
Trompowsky x Av. Brasil.
102
0405 Barreira do Vasco; 1706 Cocotá; 0707 - Rodoviária Alcântara.
80
frontal da sala
103
. E como me colocava numa parte mais alta e escura, além de
lateral da sala, tinha um campo de visão ampliado e pouco descortinado, me
sentindo inclusive bastante à vontade para escrever em meu caderno de campo,
sem com isso parecer que estava espionando os policiais
104
. Tecnicamente estava
diante das telas, vendo as imagens das câmeras de vigilância, apesar de estar o
tempo todo tendo uma visão privilegiada da movimentação entre os operadores.
Essa dinâmica involuntária acabou dividindo o trabalho de campo em dois
momentos distintos - porém de forma alguma estanques: o primeiro sendo o
momento “dos discursos”, e o segundo o “da observação”. Por mais que participasse
da negociação dos assuntos e significados, e atuasse nas conversas, mesmo se
majoritariamente como ouvinte, nas primeiras visitas a absorção das informações
se dava de modo mais passivo, em relação às visitas posteriores, marcadas pela
intensa reflexividade solitária e silenciosa da observação no estilo “mosca na
parede”, do documentário verdade de Robert Drew. Apesar dessa “mosca na
parede” etnográfica ser apenas uma situação hipotética e de concretização, por
diversos motivos, extremamente complicada, creio que a figura de linguagem se
encaixa de modo satisfatório no contexto do qual após a terceira ou quarta semana
de campo, me vi participando. Assim sendo, o trabalho foi “naturalmente” se
construindo como uma comparação entre o que me disseram e o que pude
constatar depois, olhando e escutando “voyeuristicamente” (levando sempre em
consideração que muito da minha impressão sobre o serviço no CCC foi
indubitavelmente influenciada por esses discursos iniciais). E anterior aos
discursos nativos e a observação in loco é a reflexão e pesquisa dos discursos
103
Colocava-me do lado esquerdo, logo também fora do alcance da sala do coordenador, localizada no
fundo à direita. Somente os supervisores sentados na bancada central traseira podiam me enxergar
melhor, mas mesmo assim quase todo meu corpo ficava encoberto pela lateral da bancada.
104
A porque o caderno despertava desconfiança e atenção, como me disseram mais de uma vez os
operadores. Por vezes, quando da minha chegada, minha presença era alardeada, normalmente pelas
brincadeiras de um operador específico, o soldado Manhães. Quando ia ao CCC fora de seu turno de
trabalho, minha entrada na sala também se dava de forma discreta.
81
acadêmicos e “cientìficos” sobre controle e vigilância, sempre uma presença de
fundo que, embora macule a pureza etnográfica de um primeiro contato virginal
com o campo, tenho certeza de que não o desvirtuou com o pecado da determinação
teórica. A prova prática da experiência (James, 1974; Dewey, 1974) deixou clara a
existência de um abismo entre fantasia e paranóia intelectuais de um lado, e
realidades situacional, humana e (sócio)técnica de outro.
É preciso também ressaltar que, de acordo com o policial que me
acompanhava, a dinâmica de inserção mudava de forma radical. Gustavo fazia
questão de opinar sobre tudo, sempre como forma de defender o ponto de vista da
―polícia contra a vagabundagem‖, reafirmando a necessidade de truculência e com
freqüência ironizando minha posição de acadêmico ―Não conheço você, mas
sociólogo, pesquisador, sempre fala de direitos humanos pra vagabundo, mas pro
policial que defende ele na rua, aí não fala nada‖. Mas se a provocação era
constante, parecia sinceramente gostar de conversar comigo, e se de início
mantinha uma postura inquisitorial, até certo ponto agressiva, com o tempo
apaziguou-se, e dava a impressão de vir falar comigo pelo prazer da conversa ou por
simpatia. Gostava de explicar as coisas e tinha a capacidade de agregar pessoas em
suas conversas, sempre chamando alguém que saberia explicar alguma coisa
melhor. Gustavo atuava como um excelente “quebra-gelo”, e nos momentos em que
o encontrava havia um inegável favorecimento ao discurso, tanto o dele, quanto o
meu e o dos outros que passavam e eram trazidos para o “papo”.
Décio era aparentemente tímido, falava baixo e pouco, respondendo
sempre laconicamente às minhas perguntas. Com ele a espera do elevador e o
trajeto do 11º ao 1 andar transcorria em um constrangedor silêncio, algo
impensável se em companhia de Gustavo, que sempre aproveitava o espaço de
liminaridade entre sua sala e o CCC para fazer algumas perguntas. Décio me levava
82
à bancada traseira, e rapidamente se despedia deixando o CCC, que parecia
interessá-lo menos do que a seu colega. Com ele, sem dúvida, entrava de modo
mais silencioso no centro, algumas vezes nem sendo notado pela maior parte dos
operadores. Lembro bem, porém, da primeira vez que vi um deles, mais atento,
alertando a um colega sobre minha chegada. Não tenho, entretanto, como saber se
todas as vezes que estive lá minha presença foi notada por todos os operadores.
II.2.3 - Extra-tecnicidades
Se o coordenador havia me indicado que a localização das meras dava-se
em função de estudos realizados para esse fim especifico e que a ausência de
identificação das áreas sob monitoramento visava evitar a criação de “ilhas de
segurança”, entre os operadores fui informado que tanto a localização quanto o
sigilo são modos também de proteger a integridade das câmeras. Estas precisam
ficar em um local ―onde vagabundo não pode alvejar, porque seo eles fazem
isso‖. Como me contou Cleiton
105
,
pra você ver a preocupação que tem que ter com onde vai botar é que se
ficar ao alcance, vagabundo quebra. A gente pegou um vídeo aqui que na
época era um sucesso, passamos até pra televisão. A câmera esfilmando
direitinho, uma rua, sei lá, entra um vagabundo na imagem, com o rosto
todo coberto com uma camisa, só o olho de fora. Aí de repente... puf... fora do
ar. Quer dizer, vagabundo escalou o poste, com um pau, marreta, sei o
quê, só pra quebrar a câmera! Tem que pensar na localização, por no alto,
lugar inacessível, senão já era...
Para resolver o problema da “segurança das câmeras de segurança”, elas
contam com amplo ângulo de visão e um zoom potente, capaz de aproximar a
imagem até chegar perto de onde (e o que) interessa, conforme especificaram.
105
Operador de câmeras ponta esquerda”, o que indicava que era o maior conhecedor de informática
do turno e aquele que melhor dominava a relação homem-máquina, constituída e constitutiva do
trabalho de videovigilância. Essa relação será tratada de modo mais cuidadoso à frente.
83
Exemplificando o que explicava, Cleiton mostrou-me uma cena gravada
106
, do
final de semana anterior, na qual um grupo de rapazes passeava por uma rua em
Vigário Geral com armamento pesado, um deles usando uma touca ninja. A câmera
ficava a 800 metros dali, do outro lado da linha do trem, e os acompanhou por
algumas dezenas de segundos, antes que sumissem nas ruas da favela. Perguntei
qual a ação que caberia aos policiais, e me disseram que nenhuma, que os
“vagabundos” seriam abordados se descessem ao “asfalto”, então os policiais
iriam revistá-los e prendê-los, tendo sido anteriormente alertados de que o grupo
estava armado
107
. Mas a importância maior daquelas imagens seria conferida pelo
uso que delas poderiam fazer os policiais civis do DCOD
108
e os PMs do serviço
reservado (P2) que atuam em cada batalhão, responsáveis pelo setor de inteligência.
Perguntei então se eles enviavam as imagens para o DCOD ou alguma delegacia da
Polícia Civil, no que me responderam que sim, se essas fossem solicitadas, o que a
meu ver não fazia nenhum sentido, já que a Polícia Civil não tinha conhecimento da
existência dessas imagens
109
. Enfim, de qualquer modo a utilidade delas seria mais
investigativa do que propriamente para a ação imediata. No intuito de mostrar a
real distância da câmera (que ele próprio havia estipulado como 800 metros),
Cleiton voltou a dar um zoom no mesmo local, para que eu ―visse direito onde era,
ao vivo‖. Lá estava um rapaz sentado, logo “identificado” por eles como olheiro”,
com um radiotransmissor ao seu lado, lendo o jornal. A gozação foi imediata: ―pô,
que olheiro bom hein! Se o patrão isso tá demitido... Está preocupado com o
Flamengo, quando tinha que estar atento!‖.
106
E para isso teve que buscar no computador do supervisor, localizado na bancada traseira central.
107
O que não explicou, no entanto, é como eles seriam presos pelos agentes próximos, se eram um
grupo de uns cinco ou seis homens com fuzis e submetralhadoras.
108
Delegacia de Combate às Drogas.
109
Perguntado sobre a questão, Cleiton não respondeu, olhando-me ironicamente.
84
Do planejamento à execução, das promessas ao resultado, da situação
idealizada sempre hipotética à realidade empírica, do discurso à ação, um longo e
tortuoso caminho deve ser seguido, e em casos excepcionalmente raros o é sem
desvios imprevistos ou acidentes de percurso que o alterem, transformem ou
mesmo inviabilizem. Com a videovigilância, ou monitoramento por câmeras, como
preferem chamar os responsáveis pelo serviço, não é diferente. Outros fatores extra-
técnicos tiveram que ser levados em conta na determinação do ponto exato de
instalação das câmeras, evidenciando uma realidade prática muito menos racional
e planejada do que aquela que me havia sido apresentada pelo coordenador,
complexificando a realização e os efeitos esperados, ou prometidos, pelo
videomonitoramento. O fato de boa parte das câmeras instaladas na Zona Sul do
Rio de Janeiro estar em hotéis ou prédios comerciais não é de modo algum fortuito,
e se inicialmente pode ter sido estratégico, tal característica não pôde perdurar
muito além dos passos iniciais. Quando foi criado o projeto-piloto de câmeras, em
Copacabana, a Secretaria de Segurança Pública imaginou ser mais simples explicar
e negociar a instalação de câmeras nos hotéis da orla, que por serem numerosos, e
muitos deles altos, proporcionariam as condições estruturais e estratégicas
perfeitas para a realização do monitoramento. Entretanto nem todos os hotéis
teriam aceitado, e muitos haviam demonstrado consideráveis reticências em relação
à idéia de ter seu nome associado à vigilância das pessoas. Aos argumentos da
invasão da intimidade dos hóspedes, e dos excessos de um controle constante da
entrada e saída da portaria pela polícia, levantados por representantes de alguns
hotéis, a Secretaria de Segurança retrucara que as câmeras significariam um ganho
incontestável e que o setor hoteleiro só teria a lucrar com a diminuição da violência
e dos assaltos na orla, que tanta aflição causam aos turistas em férias na cidade.
Por fim alguns hotéis recusaram a permissão, mas os que aceitaram foram
85
suficientes para constituir a “coluna vertebral do primeiro esquema de
videovigilância policial da cidade. E tanto os operadores do CCC quanto o
coordenador citaram em primeiro lugar o assalto aos turistas como o principal
exemplo de delito cujo combate pelo CCC foi bem sucedido. O que não deixa de
conferir um aspecto de parceria à instalação de câmeras da PM no alto dos hotéis
na Avenida Atlântica. É importante também ressaltar que os turistas são um alvo
fácil tanto para a ação de autores de pequenos assaltos e furtos quanto dos
operadores de câmeras, que assim agem de maneira preventiva, observando com
mais cuidado a movimentação em torno deles. O fato da areia da praia, ao contrário
da maior parte do espaço público controlado por câmeras na cidade, não ser um
ponto majoritariamente de circulação, mas de deleite estático, também implica uma
melhor possibilidade de monitoramento das pessoas que ali estão
110
.
O contexto particularmente favorável à estratégia de monitoramento
encontrado em Copacabana não se repetiria, ou melhor, só poderia ser repetido de
forma mais ou menos semelhante na orla oceânica da Zona Sul, que mesmo na
Barra da Tijuca, onde também havia monitoramento na orla, a extensão desta e a
menor quantidade de hotéis impediriam que todo o espaço da praia ficasse dentro
do campo de visão das câmeras
111
, e nas praias de Botafogo e do Flamengo a
quantidade de câmeras (e hotéis) era bem inferior. Essa questão me foi exposta pelo
Diretor Geral de Telecomunicações e Informática da SSP na época do planejamento
e implantação do monitoramento:
em Copacabana teve estudo, a localização das câmeras foi pensada, eu
mesmo participei dessa escolha. Mas para outros bairros não tiveram o
mesmo cuidado. Eu na época falei, que não tava da maneira certa, em
Ipanema, por exemplo, seis câmeras e todas na praia, não adianta nada,
não cobre nada. Na Ilha do Governador também, foi tudo sem critério, um
bairro daquele tamanho, para adiantar, monitorar mesmo, dar segurança,
110
Essas questões serão tratadas de modo mais acurado no próximo capítulo.
111
―Do Leme ao Leblon, areia e calçadão, pra ver tudo, até seguir se for o caso‖, explicou-me o
subtenente Ênio, supervisor da PM com quem me encontrei muitas vezes no CCC.
86
tem que ser muito bem pensado ou ser como na Inglaterra, onde tem câmera
em todos os lugares. Aí sim funciona!
II.2.4 - Flagra, prova, evidência, testemunho
As pessoas com quem conversei que trabalhavam no sistema de
videovigilância tanto no CCC quanto no 19º BPM , em todas as oportunidades
que foram questionadas ou se sentiram impelidas a falar sobre ele, sempre o
fizeram de forma elogiosa. Era também normal me contarem histórias dos sucessos
proporcionados pelas câmeras de segurança, ou, o que apesar de mais raro
aconteceu algumas vezes, mostravam-me algum flagra captado pelo sistema de
vigilância. Afinal as imagens ilustrativas, reais ou imaginárias, eram o cerne e
também a comprovação daquele trabalho
112
.
Como revelou Gustavo no meu primeiro dia de acompanhamento do serviço,
as câmeras, para a sociedade, têm uma benécia (sic) gigante, é algo muito
bom, pois elas cercam por todos os lados, inibem a vagabundagem e ajudam
nos fatos já consumados.
O uso em investigações é uma possibilidade bastante aventada, seja numa
tentativa de captar imagens do ocorrido em si, ou que ao menos forneçam pistas
sobre possíveis suspeitos
113
. No exemplo dado por ele, alguém é assassinado e
próximo à cena do crime, circulam determinadas pessoas. A imagem dessas
pessoas é então submetida à análise, inicialmente pelos próprios policiais, em
seguida podendo ser mostrada a parentes e conhecidos da vítima, e, por fim, se
houver a imagem certa do culpado, ―é divulgar no jornal que rapidinho alguém
liga pro Disque-Denúncia, dizendo quem é e o paradeiro‖. Finalizando sua análise, e
112
« A capacidade expressiva e transmissiva da imagem passa por vias diferentes das da ngua
(natural ou artificial). Mostrar nunca será dizer » (Debray, 1992: 58). No caso, quando não podiam
mostrá-las, descreviam as imagens minuciosamente, o que, entretanto, não é a mesma coisa.
113
Como lembra Éric Heilmann (2007: 305), ―a exploração da imagem para fins de investigação e de
identificação é o antiga quanto a máquina fotogfica, mas jamais, até um período recente, ocupou um
lugar central nos dispositivos disciplinares explorados pelas instituições encarregadas da manutenção
da ordem‖.
87
para confirmar a declaração relativa aos benefícios do monitoramento, me propôs
que olhasse para o antes e o depois dos locais filmados, para ver a diferença.
Foi também lembrando uma história que Cleiton, orgulhoso, enfatizou que
atualmente jurisprudência na imagem, ela pode ser considerada numa
investigação mesmo antes de passar por perícia: isso não quer dizer que
vagabundo vai ficar preso, porque você sabe que entra advogado, é pedido
de habeas corpus, aquilo tudo que a gente já sabe, mas o importante é que já
pode ir preso. Ficar preso já é outro problema.
Pedi para me explicarem como funcionava isso, e me disseram que a imagem
pode ser usada como prova
114
, só que posteriormente deve ainda passar pela
perícia
115
. Perguntei se uma imagem poderia configurar um flagrante, e me
disseram que não, só a imagem em si não, a menos que do momento do delito até a
prisão do criminoso este se mantivesse dentro do campo de visão das câmeras, e
toda ação policial se desenrolasse sob sua mira. Mas em casos como de consumo de
drogas ou porte de armas, a presença material do objeto de crime/delito
configuraria o flagrante. Nesses casos a mera ajudaria somente se captasse um
momento em que esse material é escondido ou largado, e mesmo assim, apenas se
for encontrado dentro de uma ação contínua. Ao que parece, existiriam regras
legais para o uso inequívoco da imagem em processos, contudo estas estavam
parcialmente fora da alçada de conhecimento dos policiais. Contaram um exemplo:
um cara foi flagrado pelos colegas roubando a câmera fotográfica de um
turista. Um policial que estava perto foi alertado e foi correndo atrás dele na
areia, mas o vagabundo, magrinho, correu pela areia uns 5 km, e o policial de
boot teve dificuldades em acompanhar. Chegando bem antes num lugar que
ele já sabia, o bandido foi embaixo de um coqueiro, tirou a blusa e a bermuda
(ele tava com um short por baixo), enterrou o objeto roubado, colocado dentro
de uma sacola, e foi tomar banho de mar. Ajudado pelas informações dos
114
O que ocorre é que as imagens podem ser, e são amplamente, utilizadas em julgamento ou
investigação, mas como uma evincia material, e daí, dependendo da qualidade destas, do que
mostram, da capacidade de reconhecimento, e de muitos outros fatores, pode ou não ser considerada
uma prova.
115
Em trabalho do qual participei junto à polícia técnica (Instituto de Criminalística Carlos Éboli), tive
a oportunidade de verificar, em especial nas entrevistas que realizei no SPAV (Serviço de Perícia em
Áudio e Vídeo), que o processo de perícia em material de deo é um tanto demorado, e leva bastante
tempo até que um vìdeo gere um laudo, passando então a “existir juridicamente”. Em uma fila cada
vez maior, esse tipo de material vem se acumulando no ICCE, muito em função das mudanças
tecnológicas e da revolução digital, que geram cada vez mais material (Misse; Renoldi, Paes; Cardoso;
Giovanelli, 2008).
88
operadores que viram tudo do batalhão, o policial conseguiu prender o
vagabundo, tendo inclusive encontrado a câmera e ficado constituído o
flagrante, mas isso só foi possível porque tudo aconteceu em área contínua de
câmera, e isso só tem mesmo na praia.
Em outra ocasião, Manhães, um “ponta esquerda” brincalhão e
comunicativo, falou também sobre a questão:
nem sempre pra fazer alguma coisa, às vezes fica para outra parte do
serviço da polícia, a P2 mesmo. Até porque vai fazer o quê? Tu pode ver o
vagabundo por horas aqui, passeando de fuzil na o, até dando tiro se der
mole, mas vai provar o quê? O vagabundo, às vezes tem até advogado, vai
dizer que era arma de brinquedo, que era tiro de chumbinho, festim, espoleta,
vai falar o cacete... E nesse lado a justiça também não está certa, protege os
caras, acaba protegendo eles... mesmo se todo mundo aqui viu, está todo
mundo cansado de saber o que é um fuzil, sem apreender o material não é
nada, não é crime andar de fuzil de uso exclusivo, mesmo se a gente
testemunhou aqui! Com droga é a mesma coisa, diz que tava cheirando
açúcar, vendendo talco, fumando orégano... nossa palavra não vale nada, o
que vale é o flagrante
116
.
Dessa forma, a possibilidade das imagens configurarem um flagrante”, se
constituírem como prova, é bastante limitada. No entanto seu papel como evidência
material é significativo, tendo potencialmente grande importância como elemento
investigativo, fato que pode ser constatado sem dificuldade pelo acompanhamento
diário das notícias criminais. Numa breve digressão espaço-temporal e teórica, vale
a pena rememorar um dos primeiros e mais importantes casos criminais onde a
gravação de imagens em vídeo
117
teve papel fundamental na composição do
processo: o do espancamento, em março de 1991, do jovem negro Rodney King, por
um grupo de policiais brancos de Los Angeles, filmado por um cinegrafista amador
(George Holliday) na janela de sua casa, próxima ao estacionamento onde ocorre a
agressão. O caso é conhecido como um marco da contra-vigilância, tendo inspirado
a adoção de meras em viaturas policiais em vários estados, além de culminar na
criação de dois novos mecanismos locais de controle externo‖ sobre a polícia
116
O termo “flagrante” é utilizado não como um flagra captado pelas câmeras, significado que, no
entanto, não será estrangeiro a este trabalho, mas como uma prova material ligando um sujeito a um
crime ou delito.
117
Muitas reproduções dessas imagens podem ser encontradas facilmente na Internet, como por
exemplo, em http://www.youtube.com/watch?v=ROn_9302UHg&feature=related (Rodney King).
89
(Lemgruber; Musumeci; Cano, 2003: 26). No julgamento do caso (Corte da
Califórnia), o uso e o estatuto das imagens se constituíram em fatores de ampla
discussão por todas as partes envolvidas, tendo importância central no veredito
final e em sua devastadora recepção pela comunidade negra da Califórnia
118
.
Essa questão é levantada por Jacques Derrida em um diálogo com Bernard
Stiegler, discorrendo sobre as possibilidades das imagens atuarem como
testemunhos, provas ou evidências materiais, no plano jurídico e da produção da
verdade.
E de uma hora para a outra isso se tornava intolerável, a cena parecia
insustentável, a responsabilidade coletiva ou delegada se revelava
insuportável. Isso não impedia tanto os advogados dos policiais quanto o
procurador de analisar a seqüência filmada, de tentar, fragmentando a coisa
segundo a segundo, as demonstrações mais opostas (...) houve, no entanto,
debates, análises extremamente sofisticadas do filme, para fazê-lo dizer isto
ou aquilo. Em todo caso, a lei o tomou o filme por um testemunho, no
sentido estrito e tradicional do termo. É uma pièce à conviction (evidência
material) a ser interpretada, mas o testemunho poderia ser o do
cinegrafista, o jovem que segurava a câmera, e que, ele, vinha diante do júri,
dizendo de viva voz, após ter declinado sua identidade e falando sem
representante, na primeira pessoa: Eu juro dizer a verdade...” Ele
testemunhava então (ao menos é o que deveria fazer) sobre o que pensava de
boa fé ter visto, ele próprio, uma câmera, um dispositivo técnico impessoal
não podendo servir de testemunho...
119
(Derrida & Stiegler, 1996: 105).
Para alguns dos defensores da videovigilância, no entanto, as imagens
trariam consigo uma incontestabilidade ausente nos testemunhos, sendo capazes
de representar de forma perfeita uma verdade visualizada. O elemento humano,
testemunhal e interpretativo é, no entanto, indispensável para a compreensão e
contextualização das imagens, que ao contrário do que muitos repetem, não falam
por si próprias. Koskela (2003) lembra que a imagem é supervalorizada, num
118
Entre o final de abril e início de maio de 1992, várias ruas de Los Angeles foram tomadas por
motins e quebra-quebras, com um saldo de, em 3 dias, 53 mortos, 2.383 feridos, mais de 7.000
incêndios, danos a 3.100 lojas e negócios e aproximadamente 1 bilhão de dólares de prejuízo
financeiro. Ver algumas das imagens dos conflitos e depredações em
http://www.youtube.com/watch?v=Kw2pRnBgeBU&feature=related (L.A. Riots).
119
As imagens eram paralisadas e tomadas quadro a quadro e não de modo seqüencial, onde a cena
podia ser contextualizada. ―O júri do caso Rodney King terminou por se interrogar se as partes do vídeo
que estavam ―fora de foco‖ poderiam ser usadas como evidência ou não(Koskela, 2003: 305).
90
movimento que mascara sua condição de produto social, tratando-a como se
constituísse meros elementos descritivos. Como atenta Cameron (2004: 137):
O vídeo não reproduz fielmente o mundo, apesar das alegações de que o faz. A
videovigilância em sistemas de CCTV difere da observação visual direta em
muitos pontos importantes, incluindo o áudio, a tridimensionalidade, cor,
tempo e enquadramento. Imagens em vídeo não contam uma verdade final, se
é que contam alguma verdade. Elas identificam um momento, não descrevem
um tema.
E muitas vezes as imagens não descrevem absolutamente nada, quando
desconectadas de explicações e interpretações. Isso se tornou ainda mais claro para
mim quando numa noite, após ter passado a tarde no CCC, vi no noticiário pela
Internet imagens de uma das câmeras de segurança da polícia que mostravam o
deslocamento, às seis horas da manhã, de um “bonde de traficantes” escoltados por
motociclistas
120
. Tive grande dificuldade em enxergar qualquer coisa de anormal
nas imagens que via, e pensei na velha premissa antropológica de que para se ver
ou ouvir algo não é preciso só boa vontade e atenção, mas também a capacidade de
identificar coisas que para os destreinados podem ser completamente invisíveis ou
inaudíveis; é preciso que o estímulo seja minimamente classificável como categoria
de pensamento
121
. É necessário um conhecimento minimamente aprofundado da
“realidade sensìvel” em questão para que diante do caos desorganizado,
fragmentado e imprevisível de estímulos visuais seja possível captar um fluxo de
ação passível de ser reconstruído em um relato coerente e posteriormente
“verificável”. E da mesma forma, as imagens e o olhar são partes importantes do
processo de compreensão e ordenamento do mundo.
Não existe de um lado a imagem, material único, inerte e estável, e de outro o
olhar, como um raio de sol móvel que viria animar a página de um livro
aberto. Olhar não é receber, mas ordenar o visível, organizar a experiência. A
imagem tira seu sentido do olhar, como o escrito da leitura, e esse sentido
não é especulativo, mas prático (Debray, 1992: 41).
120
http://www.youtube.com/watch?v=bssrxSGqjYc (Bonde de traficantes no Rio de Janeiro).
121
De Boas (1999) à Foucault (2003), passando por vi-Strauss (1970) e Mauss (1999), com sua
noção central de “categoria de pensamento, essa questão foi largamente pensada pelas ciências
sociais.
91
Na semana seguinte, conversando com Manhães, querendo prolongar a
reflexão, comentei a cena e minha dificuldade em ver o que havia sido descrito, fato
que o deixou visivelmente animado. Segundo disse, num relato cheio de detalhes,
foi um esquema de batedores, com motos na frente e carros cheios de fuzis. Uma
cena bastante comum das madrugadas cariocas, mas que desta vez havia sido
flagrada pelas câmeras da polícia. Seriam seguranças de aluguel, voltando de um
serviço em alguma favela da mesma facção (segundo ele disse, muitas vezes eram
os ―angolanos que combatem de preto, uma espécie de Bope de aluguel).
Perguntei-lhe então se numa situação dessas uma das pessoas armadas for
reconhecida, um flagrante estaria com isso caracterizado. Disse-me que não, e que
isso seria mais um reflexo da impunidade existente em todos os níveis no Brasil.
Queixou-se de que o Direito não teria se adaptado ainda à inovação tecnológica,
faltando uma legislação que trate de forma mais especificada a imagem e o
monitoramento por câmeras. Mas acreditava que em breve isso mudaria, e citou
como exemplo os casos de crimes de informática, que de início o eram
enquadráveis dentro das categorias então existentes do Direito Penal
122
.
Indaguei então se ele sabia se aquela movimentação identificada como
“bonde de traficantes” havia sido percebida no CCC ou no batalhão, no que
respondeu que não sabia, mas que muitas vezes isso não é percebido em nenhum
dos dois lugares. Sua explicação se mostrou muito esclarecedora em relação à
questão do treinamento e conhecimento prático permitindo a captação de uma
“realidade sensìvel” qualquer, que desde a semana anterior havia despertado minha
atenção.
Mas pode ter sido também alguém que viu na rua e falou, policial ou
qualquer um mesmo, viu e ligou pro 190, Disque-Denúncia, e pedem pra
122
Segundo me disse, ―antigamente não era crime o cara enriquecer tirando décimos de centavos da
conta de todo mundo no banco, isso foi feito. Hoje a legislação e o Código Penal tiveram que se
adaptar a essas novas possibilidades‖.
92
ver se nas áreas com câmeras perto do local, naquela hora, teve alguma coisa
gravada. Porque tem muita coisa que a gente não vê, ningm vê, mas lá
gravado, se procurar lá. Eu sei que aqui às vezes a gente tem que
procurar, não posso falar do batalhão, porque não conheço mesmo. Mas acho
que eles também devem fazer isso. Até porque são dois fazendo, é mais
fácil.
Vi que o trabalho realizado ali não dependia somente das câmeras e dos
operadores, mas que fazia parte de um sistema maior
123
e coordenado, como eu
tinha ouvido do tenente-coronel e de outros policiais dali. Mas pude ver também
que havia romantizado” o monitoramento, ou videovigilância, e que mesmo olhos
treinados, atentos e marcados pelo conhecimento nativo, dificilmente enxergariam
determinadas coisas. A possibilidade de armazenamento, em casos como esses, tem
importância tão grande ou até maior do que a vigilância em tempo real. Volta-se às
imagens já com informações complementares que permitem, senão preenchê-las de
sentido, ao menos conferir-lhe algum, possibilitando sua contextualização em um
fluxo de ação. Uma das funções centrais do CCC é a formação de um grande banco
de dados imagético temporário, que a maioria absoluta das imagens permanece
armazenada por apenas 30 dias.
II.2.5 - Não tem flagrante, porque a fumaça já subiu pra cuca!
Uma das vezes em que, com Gustavo ao meu lado, circulava pelo CCC, um
dos operadores nos chamou a atenção para uma cena interessante que acontecia
nas areias de Ipanema, em frente à Rua Farme de Amoedo. Duas mulheres, uma
com aproximadamente 30 anos e outra um pouco mais jovem, são flagradas pelas
câmeras do batalhão de Ipanema, em close, fumando, como levavam a crer todos os
indícios, um cigarro de maconha. Todos na sala se voltam para a cena, felizes e
animados, emendando seguidas piadas. Gustavo pergunta de onde as meras
123
Que, em última instância, pode contar com qualquer um na rua que veja alguma cena e decida
comunicá-la à polícia.
93
estavam sendo operadas, e o operador responde que do batalhão, dando a certeza
de que no COBAT estavam vendo a cena tão claramente quanto nós. Agir, seria
então, questão de tempo, me disseram. ―Eles com certeza estão mandando bem, já
deve estar chegando‖, disparou o operador que nos alertara. ―O buggy já deve estar
chegando! Tem que ser rápido, estão queimando o dedinho‖, fala Gustavo. Alguns
minutos se passam e nada acontece, o baseado termina, elas continuam
conversando um pouco, depois levantam e vão andando com certa velocidade.
―Chegaram, elas levantaram porque chegaram!‖, exclamou um dos policiais. Nesse
momento a câmera recua, buscando um plano mais amplo, mas nenhum policial
ou buggy é visto. As duas continuam caminhando em direção ao calçadão a o
momento em que desaparecem sob a copa das amendoeiras. Para a frustração dos
policiais do CCC, nada aconteceu. Frustração, mas nada que os fizessem entrar em
contato com o batalhão ou tomar qualquer atitude para que o desfecho da cena
fosse diferente.
Era só usuária, era pra fim recreativo, dava pra ver. Se fosse tráfico, se eles
verificassem, ou a gente, que um deles estava com uma bolsa, uma mochila, e
estava vendendo, iam agir. Melhor ainda, com o monitoramento eles
podiam ficar observando a movimentação e agir no momento mais
conveniente,
me explicou o chefe do serviço naquele turno, sargento Ênio.
Após esse episódio, tornou-se claro para mim que, diante da capacidade
técnica das câmeras e da amplitude do consumo de maconha em determinados
pontos da orla - com várias pessoas fumando, “desberlotando”, apertando,
“passando a goma”, acendendo, enfim, em total explanação” -, alguns delitos são
“deixados de lado”, não sofrem a repressão possibilitada, teoricamente, pelo sistema
de monitoramento. Ou então somente o sofrem em situações excepcionais, como me
foi explicado e ilustrado quando visitava o 19º BPM, assunto do qual tratarei no
próximo capítulo. O mais curioso, no entanto, é que na minha primeira visita ao
94
CCC, o exemplo dado pelo coordenador sobre como funcionava o sistema de
monitoramento integrado com a intervenção policial nas ruas foi exatamente o de
alguém na praia, naquela mesma câmera, preparando um cigarro de maconha e
consumindo-o. Conforme explicou posteriormente, era também esse o conteúdo do
vídeo que pretendia me mostrar quando descobriu ter excluído de seu computador
o programa necessário para tal.
II.2.6 - Sacanagem
um grande cuidado no CCC, e notei rapidamente isso nos discursos, para
que o trabalho de monitoramento não seja associado ao voyeurismo, nem que as
câmeras sejam apropriadas sexualmente. O tenente-coronel havia dito, de
maneira jocosa, mas franca, que uma das funções mais importantes a ser realizada
era ―supervisionar não só se estão trabalhando, mas o que estão olhando, senão iam
passar o dia inteiro vendo mulher na praia!‖. O sargento Ênio também afirmou que a
supervisão (ele era chefe dos operadores, principal policial supervisor) era
necessária,
senão todo mundo ficava olhando mulher na rua, imagina, chegava uma
visita - a gente sempre recebendo visitas - e ia ter bunda na tela. Na
praia então, não ia dar outra mesmo...
Perguntado outro dia se em seu turno já tinham visto alguma “sacanagem”,
respondeu, secamente:
não, a gente não pode ficar aqui vendo isso, a polícia não pode ficar se
preocupando com gente que está se divertindo. Tem que ver mais coisa
séria...
No que Gustavo, bem ao seu estilo, emendou:
nos Estados Unidos, o policial tem moral pra chegar e prender mesmo:
atentado ao pudor! Aqui não, ridicularizam o policial, dizem que não tem que
se meter...
95
Não era incomum, no entanto, que algumas câmeras se demorassem um
pouco mais, e de forma um tanto incisiva, na contemplação de figuras femininas,
em especial quando trajando saia, short curto, ou roupa de banho. E, pelo que
podia verificar, nenhum comportamento ou atitude suspeita ou inabitual delas
justificava um monitoramento tão dedicado. Assim, anotei em meu caderno de
campo enquanto observava as imagens projetadas nas grandes telas do CCC de
forma duplamente solitária, por estar sozinho atrás de todos, os olhando olhar, e
porque muitas vezes tinha a nítida impressão de ser o único ali interessado no que
as telas exibiam
124
:
I
Parada diante da faixa, uma bunda feminina envolta em uma calça branca,
em close, espera com impaciência que o sinal abra. Vejo então um operador
localizado mais para o centro da bancada dianteira sorrindo e,
matreiramente, alertando seu colega ao lado, que por sua vez também sorri.
O sinal abre, a bunda se vai e a câmera se afasta quando as pessoas
começam a atravessar a rua.
II
A câmera 1203 (na saída da Estação das Barcas, em Niterói) passa alguns
minutos acompanhando algumas mulheres que atravessavam a praça. Com a
distância e a rapidez dos caminhares, contudo, não é possível ver muita
coisa, passando a impressão de a câmera estar sendo usada como uma
extensão do olhar masculino habitual, em que um virar de pescoço ou uma
observação um pouco mais prolongada ganha ares de galanteio, mesmo se
solitário.
III
Através das imagens da câmera 0606 (cruzamento das ruas Uruguai e Conde
de Bonfim, na Tijuca), pude ver uma mulher de vestido branco ser seguida
durante ao menos 3 minutos. Durante a maior parte do tempo ela estava no
interior de uma loja, ou uma lanchonete, não foi possível esclarecer. A visão é
boa, a câmera certamente não está a uma grande distância. De início é
focalizada de costas, mas como a imagem vem do alto (provavelmente de um
poste ou um prédio), sua cabeça fica de fora do campo de visão, sendo
124
Vale lembrar que a grande maioria das imagens ali projetadas era oriunda de monitoramento por
câmeras operadas não dali, mas dos batalhões.
96
perceptível apenas a ponta dos cabelos louros, no meio das costas. Dentro
do estabelecimento ela fica quase todo o tempo de frente para o balcão
(iluminado pela luz do sol) e de costas para a rua (e conseqüentemente para a
câmera), mas após poucos minutos lá dentro se vira e sai, sendo ainda
acompanhada enquanto espera o sinal abrir e atravessa, depois sai do campo
de visão da câmera.
IV
Uma das câmeras que considero “mais ativas” (2301, localizada no topo do
hotel Arpoador Inn) focalizava a praia, tendo inclusive passado um tempo
maior do que o normal observando uma mulher de biquíni, deitada de
bruços. A imagem é aproximada e afastada lentamente, num claro esforço
para ajustar seu foco. Por alguma razão, sem que antes tenha apresentado
qualquer problema técnico ou saído do ar, é trocada, inicialmente para a
2305 (que fica na praça do 23º BPM, no Leblon), que aparentemente não
funcionava, e depois para a 0201 (instalada no prédio do BPM, em
Botafogo), que durante todo o tempo que passei lá esse dia se manteve
imóvel.
V
Na câmera 2402 (Rua Elói Teixeira, em frente à linha do trem, em
Queimados), a imagem passa longo tempo fixada numa vendedora de sorvete
de mini-saia jeans. Parte do tempo ela parece ler uma revista, depois se
levanta, atende um cliente, e depois passa a conversar com um homem de
colete azul e amarelo escrito “Apoio e Fiscalização”, e que fica bastante tempo
por lá, escrevendo e fazendo anotações em um bloquinho que tem nas os.
Após mais de dez minutos, a câmera passa a se mover e volta a fazer o
mesmo percurso que fazia antes de “descobrir” a vendedora de saiote.
VI
A câmera localizada na Rua Coronel Agostinho, no calçadão de Campo
Grande, está “frenética” no zoom em cima de mulheres na rua. Primeiro vi
uma loira de branco parada na calçada, seu rosto é olhado de perto, e depois
a câmera vai para baixo, realizando um “reconhecimento geral” de todo o
corpo. Em seguida segue por algum tempo os movimentos de uma
funcionária uniformizada dentro de uma lanchonete, aproximando a imagem
de modo a preencher a tela com sua presença.
Apesar das descrições acima, e de algumas outras cenas que presenciei, não
era comum no CCC, ou no 19º BPM, a prática de um voyeurismo ostensivo. Nas
câmeras da praia, local mais propício para essa prática, como vim a confirmar
posteriormente freqüentando o batalhão de Copacabana, é exercida uma supervisão
mais atenta, para evitar tal comportamento. No entanto tinha a convicção, intuitiva
97
e também instigada por comentários de alguns policiais, que à noite a relação seria
um pouco diferente. Mas também é um assunto que será retomado no capítulo
relativo ao 19º BPM, pois a visão a partir dessa outra perspectiva é fundamental
para compreender um pouco melhor a complexidade envolvendo a questão.
II.2.7 - Dinâmicas do monitoramento
Logo pude reparar que não havia um padrão para o monitoramento, com
muitas câmeras estáticas durante todo o tempo, filmando vias expressas, praças ou
cruzamentos. Nesses casos os operadores do CCC não pareciam estar tendo
nenhum trabalho ou interesse pelas imagens das câmeras. Outras vezes as via num
movimento excessivamente veloz, que parecia, ao menos aos meus olhos,
inviabilizar a visualização, prevenção ou coerção de qualquer ato, crime ou delito.
Fui compreender freqüentando o COBAT de Copacabana que nesses casos as
câmeras têm sua movimentação programada anteriormente, funcionando depois de
forma automática, possibilidade conferida pelo software de monitoramento da
Comtex.
A questão da mobilidade das câmeras me intrigava por vários motivos,
especialmente porque das 220 que estavam instaladas em vários pontos da região
metropolitana do Rio de Janeiro, apenas 18 tinham suas imagens projetadas na
parede principal da sala. Em teoria, pelo menos, deveriam ser câmeras que
estivessem realizando algum monitoramento, ou então que fossem operadas de lá
mesmo pelos policiais do CCC. Ali, pelo menos, o desinteresse era nítido. Nem a
curiosidade, ou o tédio, os faziam operar ou mesmo trocar uma mera inutilizada
ou com a imagem parada em coisas tão pouco suspeitas quanto um poste, ou uma
árvore. As câmeras entram e saem do ar sem que ninguém tome conhecimento, o
98
que pude observar por diversas vezes. Os problemas técnicos são constantes, além
da perda de nitidez muito grande quando há uma aproximação (zoom) rápida.
II.2.7 - Casos concretos
Uma exposição de algumas das situações de monitoramento que vi no CCC
enquanto observava as telas é importante para uma melhor compreensão da
dinâmica do trabalho de vigilância: em torno de alguns desses casos teci as
primeiras reflexões sobre esse sistema e seu funcionamento.
I
Pela câmera 0208, localizada na Rua Voluntários da Pátria em frente ã
Cobal, vi um menino negro sendo monitorado efetivamente, por pelo menos 10
minutos. Ele estava sentado sobre uma soleira e vestido com roupas largas. O
suspeito olhava constantemente para os lados e aparentava nervosismo. Era como
se um assalto fosse eminente, e os policiais tivessem certeza disso, mas com o
decorrer do tempo foi possível compreender que se tratava de um pedinte, e o olhar
que acompanhava os passantes seria parte da estratégia de mendicância. Antes
disso, por um momento, o menino levantou-se e andou rapidamente para o lado
direito. Nesse ponto foi possível perceber a dificuldade dos operadores em perseguir
um suspeito. Logo de saída, ao virar para o lado, a câmera se depara com um poste,
não sendo possível ver mais nada, e logo após a copa das árvores deixa o
acompanhamento de algum passante uma tarefa muito difícil de ser executada.
Quando o operador, perdido por pelo menos 30 segundos, volta a câmera para a
soleira encontra o menino sentado, como se nunca tivesse saído de lá. Qualquer
coisa que ele possa ter feito no momento em que saiu correndo, se perdeu, não foi
registrado pela câmera que o acompanhou atentamente durante mais de dez
99
minutos. Pelo que pude observar, as técnicas de monitoramento utilizadas eram
pouco eficazes, e o acompanhamento de carros ou sujeitos ocorria com grandes
dificuldades e de modo falho.
Por mais que nada tenha sido captado no comportamento desse jovem, foi
possível perceber uma situação na qual tanto o operador do batalhão quanto o do
CCC se mostravam atentos em relação a um tipo suspeito. Poucas vezes o
responsável pelas imagens no CCC prestava atenção no que se passava. E em
nenhum momento percebia qualquer movimentação no sentido de entrar em
contato com o batalhão, avisar de alguma ocorrência, ou mesmo interferir no
trabalho de monitoramento realizado pelos COBATs. No entanto, na sala de
operações do 19º BPM, fui informado, e pude verificar também in loco, que existia
sim uma comunicação regular, mas que esta não partia nunca dos operadores do
CCC, mas dos quatro supervisores gerais, que se sentavam na bancada central
traseira.
O monitoramento parece ser mais simples, ou pelo menos mais comum,
sobre indivíduos estáticos, como o jovem na soleira, ou outro que se sentou no
banco de um ponto de ônibus. É possível, que na praia, por ser um local em que as
pessoas costumam ficar paradas, a atenção maior seja despertada pelas pessoas
em movimento. Nesse caso seria a anormalidade o principal fator de atenção,
sublimando a dificuldade de monitorar indivíduos em movimento. Com grande
freqüência, o monitoramento é realizado sobre pessoas estáticas ou sobre lugares.
Fora da praia, pessoas em movimento eram raramente monitoradas, tendo visto
poucas situações em que isso ocorria. Como fala Lianos (2001), a quebra da
regularidade nos comportamentos mais facilmente visíveis desperta a atenção da
vigilância, mesmo ao não constituírem nenhum comportamento suspeito, apenas
diferente da maioria hiper-regular.
100
II
Através da câmera 1804 (Praça CDD
125
), acompanhei o monitoramento
prolongado de uma cena, envolvendo várias pessoas e ocorrida no meio da rua.
Imagens que, descontextualizadas pela distância e pequena quantidade de
informações disponíveis
126
, pareciam fazer parte de um trabalho investigativo
realizado pelo vigilante. Uma cena que se desenrolou por quase 20 minutos: a lenta
movimentação de um taxi pela rua, assim como a conversa entre o taxista e um
pedestre, e o desembarque da carga de um caminhão baú - que passou longo
período aberto sem que ninguém, aparentemente, tomasse conta - foram
minuciosamente acompanhados, sem que, no entanto, qualquer ação aparente da
polícia (decorrente do monitoramento) pudesse ser percebida por mim.
III
Uma câmera que não consegui identificar
127
manteve-se fixa em três jovens
negros
128
sentados numa praça, onde após algum tempo outros se reúnem a eles. A
câmera detém-se ali por longos minutos. A imagem é aproximada, de modo a ser
possível observá-los de perto. Aparentemente conversavam, sentados em uma
mesa de cimento com quatro bancos do mesmo material em volta. Depois de algum
tempo parada, a câmera retoma sua mobilidade intensa.
IV
A câmera 1310 (na esquina das avenidas Rio Branco e Almirante Barroso)
por muito tempo ficou fixada, em uma das tardes que passei no CCC, em
125
Cidade de Deus.
126
E interpretadas de maneira única pelo meu olhar, diferente do olhar do operador da câmera, por
sua vez diferente do olhar do supervisor e mais ainda do olhar de um curioso que olhasse a cena.
127
As imagens projetadas nos televisores colocados à direita da tela central eram visíveis para mim,
mas devido à distância não conseguia diferenciar os dígitos de identificação da câmera.
128
Havia claramente um recorte relativo à cor da pele no monitoramento, que se tratado no próximo
capítulo.
101
vendedores ambulantes de softwares piratas. Depois de aproximadamente meia
hora chegaram alguns agentes da Guarda Municipal, dando tempo, entretanto,
para que os camelôs deixassem o local antes. Não foi possível saber se a ação
contra estes teve alguma relação com as imagens que eu observava no CCC, mas
diante da freqüência desses confrontos
129
e da falta de canais de comunicação entre
a Polícia Militar e a Guarda Municipal, eram grandes as chances de que essa ação
não estivesse relacionada ao monitoramento por câmeras.
V
Uma das câmeras localizada em Queimados (2401 Av. Irmãos Guinle),
provavelmente instalada em um poste, fica ao lado da linha e da estação de trem, e
quando este passa a imagem treme e o foco é perdido por alguns segundos. Não são
raras as ocasiões em que por conta da própria movimentação do monitoramento, ou
mesmo diante de condições metereológicas adversas, a visibilidade das câmeras
torna-se bastante prejudicada em função do desfocamento da imagem. No caso das
câmeras localizadas na proximidade dos trilhos da Supervia, a reputada
qualidade do serviço reduz tal problema, que a freqüência baixa de passagem do
trem faz com que a perda do foco da imagem se repita menos vezes do que
desejariam os usuários do transporte ferroviário. De tal forma, pude sem problemas
acompanhar o monitoramento de proximidade realizado sobre um indivíduo que, no
interior da estação de trem, a poucos metros daqueles que, assim como ele,
esperavam seu transporte, aproxima-se de uma pilastra e urina. Do CCC a cena
não parecia estar sendo notada, mas na sala de operações do 24º BPM, tudo
indicava que a cena era acompanhada com atenção, que a câmera seguiu a
movimentação toda, com deslocamentos e aproximação da imagem.
129
Fato que pôde ser amplamente confirmado pela minha experiência pessoal de aluno do IFCS,
prédio da UFRJ incrustado no meio da zona principal dessa batalha, o centro do Rio de Janeiro.
102
VI
Numa das minhas últimas visitas ao CCC, pude presenciar o desenrolar de
uma colisão entre dois veículos, exatamente diante do prédio da Central do Brasil,
sede do CCC. De início pude ver os dois motoristas conversando, ao lado dos carros
parados e do tráfego que começava então a se intensificar em função do acidente.
As imagens são aproximadas, fixando-se nas placas dos dois veículos. Durante
mais de uma hora a mera acompanha os dois motoristas sentados no meio-fio,
enquanto um grande engarrafamento se formava na Avenida Presidente Vargas,
uma das principais artérias do centro da cidade. Não houve qualquer tipo de ação
da polícia, da CET-Rio
130
ou de reboques, fato que não pode de maneira nenhuma
ser associado à ignorância da polícia em relação ao que acontecia, que a cena foi
acompanhada de perto pelas meras de vigilância desde o princípio do
engarrafamento, e estas visivelmente operadas por humanos. E, de forma
surpreendente, nem mesmo a ocorrência de um fato atípico parecia capaz de
despertar a atenção dos operadores no CCC. Muito tempo depois do acidente,
quando eu deixava o prédio da Central do Brasil, pude presenciar, ao vivo, o nó que
aquela simples colisão automobilística causou no trânsito do Centro, após mais de
uma hora de espera para que os veículos pudessem ser movimentados.
O coordenador, um dos supervisores e pelo menos dois operadores, haviam
dito que uma das principais funcionalidades das câmeras de vigilância seria a
interconexão direta com o Corpo de Bombeiros, auxiliando assim em atendimentos
a feridos ou resgates no mar, no caso das câmeras da praia. Em situações de
acidentes automobilísticos esse papel seria igualmente desempenhado pelas
câmeras da CET-Rio, da Lamsa
131
e da Ponte-SA
132
, cuja função inicial é o
130
Companhia de Engenharia de Tráfego do Rio de Janeiro.
131
Linha Amarela S.A., concessionária que administra a Linha Amarela.
132
Concessionária que administra a Ponte Rio-Niterói.
103
gerenciamento de trânsito. Foi-me mostrado um vídeo, em local que não cheguei a
identificar, mas composto de uma via em o dupla com fluxo intenso de veículos,
em que num determinado momento ocorre uma colisão frontal entre uma picape e
uma kombi branca. Logo sai alguém da Kombi e se atira no chão, aparentemente
bastante ferido, e várias pessoas se aproximam: aquelas que andavam a pé e outras
que desceram de seus carros. Nesse caso o socorro foi chamado por policiais que
vigiavam o local através de câmeras, me contaram, mas a exibição das imagens não
foi até o ponto em que chegasse uma ambulância
133
. Não tive como saber se o
atendimento foi agilizado, mas a presteza em chamar o atendimento é uma
vantagem inegável, ao menos teórica, trazida pelo monitoramento por câmeras.
Uma razão a mais para ser enfatizada como exemplo.
Pelos flagras que me foram mostrados, ainda mais se correlacionados com o
monitoramento que acompanhei do CCC e de Copacabana, penso que por gerar
uma reação imediata nas vítimas, o assalto, ou furto percebido, tem uma
visibilidade maior para a câmera proporcionando já uma possível ação coordenada
com os homens nas ruas. Mais difícil seriam casos como consumo e tráfico de
drogas, furto a veículos, ação de batedores de carteira, que dependem de uma
observação muito mais atenta, por serem atividades que, na maior parte das vezes e
quando tudo “se passa bem”, gozam de um desejo de discrição por parte de todos os
voluntariamente envolvidos. As imagens são apenas fragmentos de uma ação,
sendo que possíveis atos infracionais costumam durar apenas alguns segundos.
Ocorre uma descontextualização completa dos eventos. Sem o acompanhamento
mais demorado das cenas, esses fragmentos que surgem parecem sempre
incompreensíveis.
133
Tratava-se, como a maior parte das imagens de arquivo, de um deo editado, com duração
limitada para a exibição ilustrativa, como no presente caso.
104
II.2.9 - Tédio com um T bem grande pra você
Antes de tudo, é preciso admitir que o trabalho realizado pelos policiais no
CCC é, embora muito leve e fácil para o padrão da polícia, extremamente entediante
(e, ao menos é a impressão que passam os rostos e atitudes dos operadores,
também tedioso). Tirando os raros momentos em que alguma cena é acompanhada
por mais tempo, o serviço consiste em olhar para imagens vazias e
descontextualizadas que dificilmente poderiam fazer sentido para aquelas pessoas
sentadas no CCC. Por isso, muito pouco interesse é despertado pelas imagens, não
tendo notado nem mesmo preocupação em não demonstrar esse desinteresse. Tive
por diversas vezes a impressão de ser ponto pacífico para todos ali a
impossibilidade de uma atenção constante naquele serviço. Na maioria absoluta do
tempo que estive lá, nada era feito. Ocorria uma observação de um número imenso
de imagens de forma completamente passiva.
Questionava-me com freqüência se a postura de passividade diante das
imagens não consistiria algo semelhante ao que fala Simmel (1979) em relação à
vida mental na metrópole, saturada de estímulos nervosos, com a necessidade do
indivíduo de se refugiar no olhar blasé, numa grande indiferença que acaba por
salvá-lo dos problemas psíquicos que seriam inevitáveis diante a abundância
colossal de estímulos. E, por ironia, de forma oposta à onipotência do Big Brother, a
impressão que tinha ao ver o trabalho do CCC é a de uma impotência completa
diante do mundo intangível de imagens infinitas. Infinitas e na maioria absoluta do
tempo regulares, o que aumentava a sensação de nada mostrarem.
A impressão constante que tinha era de que o serviço, ou o turno de serviço,
representava simplesmente passar oito horas naquela sala, preferencialmente na
mesma cadeira, e não realizar algum tipo de trabalho. O padrão observado é o tédio,
com cochilos, fones de ouvido, monitores desligados ou ignorados, conversas
105
animadas, lugares vazios, operadores fazendo Sudoku. Nem mesmo se
preocupavam em fingir que realizavam o trabalho para o qual haviam sido
designados, ou algum sinal de intimidação diante da presença de um pesquisador
universitário, visto pelos de mais baixa patente como “inimigos em potencial”, como
me evidenciaram comentários de Gustavo e do soldado Manhães.
Mesmo nos momentos em que flagrava um operador olhando para um dos
monitores, era com aparente passividade. Era um olhar de tédio, um olhar que
pouco via, ou talvez que tivesse desistido de ver. O fato concreto é que eles
pareciam raramente operar as câmeras de lá. Até porque mal olhavam para as
imagens. Nenhum interesse parecia ser despertado por elas. Eu, no entanto, não
parava de olhá-las e olhá-los as (não) olhando, e dessa observação partia a
convicção de que, no interior de alguns batalhões, era tentado um monitoramento
mais ativo dos locais. Apesar da movimentação constante das meras, parecia
muito difícil flagrar uma ocorrência qualquer, pois uma área muito abrangente é
coberta por cada uma delas. Na maior parte do tempo são imagens pouco claras,
onde é difícil entender o que se passa. São recortes descontextualizados de cenas
habituais cotidianas, milhares de fragmentos ininteligíveis sendo transmitidos ao
mesmo tempo, imagens comuns misturadas e multiplicadas ao infinito, seja de
maneira real ou virtual
134
. A possibilidade criada, inclusive pela capacidade
tecnológica das câmeras - como zoom e ampla mobilidade -, cria uma infinidade de
possibilidades de imagens, amplamente superior ao efetivo humano disponível para
a realização da tarefa.
134
Com isso quero dizer não apenas as imagens efetivamente captadas pelas meras, mas também
aquelas que estariam acontecendo ao mesmo tempo dentro do campo de visão de uma mesma câmera,
mas que acabam, por razões nem sempre racionais ou estratégicas, sendo preteridas, permanecendo
não filmadas, tendo sido, no entanto, potencialmente filmáveis. Virtualidade não significa o oposto de
concretude ou materialidade, como se costuma usar ao falar de Internet, mas uma constante
possibilidade de atualização (Lévy, 1999).
106
Algumas vezes os via comentando entre si, mesmo indiretamente, sobre esse
desinteresse entediado. Uma tarde em que o ambiente estava descontrdo por
conta das brincadeiras dos operadores, um deles, irritado por estar sendo a algum
tempo alvo das chacotas, profere bem alto, para todos escutarem:
por isso que policial nunca vai ter apoio nenhum. Passa o tempo todo aqui
fazendo gracinha porque tem que passar oito horas sentado aqui sem fazer
nada. Tinha mesmo era que ficar olhando, fazendo o serviço.
Em outra ocasião, quando o assunto entre os policiais era um aumento
salarial que havia sido anunciado, e os computadores eram usados para fazer
conta, ou então eram ignorados, (creio poder dizer sem nenhum problema que,
naquele dia e horário, nenhum monitoramento, fiscalização ou supervisão foi
realizada pelos operadores do CCC) ouvi um deles dizer, em tom de seriedade: ―eu
o sei fazer nada direito fora, aqui, ganhando mil reais pra ficar nessa sala
sentado, acho que to ganhando benzão!‖.
II.2.10 - As câmeras da SENASP
Foi anunciado pela Secretaria de Segurança Pública durante a época em que
eu freqüentava o CCC, o recebimento de mais 500 câmeras doadas pela Secretaria
Nacional de Segurança Pública (SENASP) (que existiam, mas estavam, por
questões burocráticas, desativadas desde os Jogos Pan-Americanos de 2007). Mais
de um ano após o fim do evento, as câmeras instaladas pela SENASP voltariam a
operar, através de um convênio a ser assinado entre os governos federal e estadual.
Por todo esse tempo as câmeras e o background tecnológico do qual necessitam
permaneciam desativados e sem uso. Segundo o sargento Ênio, essas câmeras
seriam agora instaladas em outros locais
135
, provavelmente sendo distribuídas entre
135
Inicialmente estavam localizadas em pontos de interesse direto aos jogos, como na proximidade da
Vila Olímpica e ao longo dos acessos tanto a esta quanto às praças esportivas utilizadas. Após o final
107
os batalhões já integrados ao CCC. Com isso, me explicou, não haveria necessidade
de um aumento do efetivo, pois onde os operadores ficavam responsáveis por dez
câmeras, passariam a ficar por vinte. No CCC aconteceria algo semelhante, e o
mesmo número de policiais seria capaz de dar conta do trabalho. Indaguei se, a seu
ver, isso não prejudicaria o serviço de monitoramento, mas ele se mostrou
irredutível quanto a esse ponto, repetindo o argumento de que o aumento seria
repartido entre todos os operadores, aumentando um pouco o trabalho
individual de cada um e multiplicando o trabalho de monitoramento da polícia.
Pela observação que vinha realizando, guardava, e ainda guardo, a impressão
de que um aumento do efetivo de câmeras, se não acompanhado de um aumento do
efetivo humano, terá como efeito dissolver ainda mais um olhar que, no CCC, já tem
muita dificuldade em manter-se atento, diante da quantidade avassaladora de
imagens que chegam. Sem um aumento proporcional do efetivo humano,
cresceria ainda mais o fosso entre a infinidade de eventos, real ou virtualmente
capturados pelas imagens das meras de monitoramento, e o reduzido número de
vigilantes humanos para complementar esse monitoramento. A grande quantidade
de câmeras faz com que, por um lado, não seja criado um laço mais consistente
homem-câmera, dando origem a inúmeros fragmentos do que chamo de híbrido
“vigilante eletrônico”, já que as câmeras por si só são incapazes de realizar qualquer
monitoramento. Por outro lado, instaura-se uma pressão para a contratação de
mais operadores, o que acarretaria muitas outras despesas constantes
(manutenção, energia, conexão, reposição de peças, salários, adicionais por serviço
noturno, instalação de COBATs em novas AISPs, etc), impulsionando a expansão
da competição elas foram retiradas e guardadas, à espera de um acordo entre a SENASP e a Secretaria
de Segurança Pública para que voltassem a funcionar.
108
“quase natural” do monitoramento
136
. É também quase “natural” a necessidade da
escolha entre atender a todas as demandas orçamentárias e tecnológicas da
expansão do monitoramento, ou tentar adaptar o orçamento existente a um
trabalho mais extenso, ainda que isso signifique condições menos adequadas para
sua melhor realização.
Para que o monitoramento funcionasse realmente, como pregam seus
apologistas e temem seus adversários, seria preciso um número bastante elevado de
operadores. De forma ideal, um para cada câmera, a fim de estabelecer um vínculo
sólido homem-máquina, conferindo continuidade e substância ao trabalho de
monitorar determinados espaços, que para isso precisam ser dominados”, estar
“bem mapeados”, “esquadrinhados”. Por mais que tal idéia guarde semelhanças
com a conhecida história do cartógrafo que, ao tentar criar o mais fiel e perfeito dos
mapas, o fez exatamente na mesma escala que a área que queria representar,
colocar um operador numa sala olhando apenas uma determinada câmera não
equivale a pôr um policial no local onde a câmera está instalada. E isso por diversas
razões, dentre as quais se destaca a diferença essencial entre o olhar humano do
vigilante e o olhar humano-maquínico do vigilante eletrônico. Aproximação, rápido
deslocamento, capacidade de armazenamento de imagens, descontextualização,
fragmentação dos sentidos, outras vantagens, outros problemas. Mas como o
contemporâneo ato do zapping mostra a cada dia a milhões de pessoas, o excesso
de imagens (e de possibilidades de imagens) e a velocidade na qual podemos
transitar entre elas (maior do que nossa capacidade de retê-las) (Sarlo, 2006), acaba
136
A imagem de uma “expansão natural” do sistema de monitoramento foi utilizada tanto pelo
coordenador quanto por Gustavo, e revela além de suas expectativas futuras, também a percepção do
processo do qual vêm participando.
109
por esvaz-las, ou ao menos transformá-las radicalmente, todavia as matando para
o meticuloso e paciente trabalho do monitoramento
137
.
II.2.11 - Indiscretas
Por diversas vezes pude reparar que algumas câmeras, a menor parte delas,
é preciso deixar claro, estão colocadas em pontos que têm janelas ou varandas de
apartamentos em seu campo de visão. É importante ressaltar tanto que em
nenhum momento vi qualquer observação mais demorada desses locais, quanto o
fato de que, ao menos durante o dia, as imagens no interior de apartamentos têm
péssima visibilidade, em função da ausência de luminosidade. A autorização para
que eu freqüentasse o centro era apenas nos dias de semana e no período diurno,
por essa razão não pude verificar se com o cair da noite e a tendência maior a
estarem acesas as luzes dentro das moradias, essa situação se invertia, como
acontece normalmente ao olharmos da janela de nossa casa para os prédios
vizinhos.
No Largo da Cancela, em São Cristóvão, nos hotéis Arpoador Inn e Lancaster
(Copacabana), na Avenida Princesa Isabel, nas ruas Gustavo Sampaio (Leme) e
Mena Barreto (Botafogo), e muitos outros locais, os moradores têm seus
apartamentos sob a constante ameaça de monitoramento, na maior parte das vezes
sem ter a mais tenra idéia disso, em função da política de confidencialidade a
respeito do posicionamento das câmeras.
137
Nesse mesmo sentido, Heilmann chama a atenção para a incongruência de um aumento
exponencial no número de meras como estratégia de combate ao terrorismo: ―De um ponto de vista
operacional, a estratégia policial antiterrorista não seria automaticamente reforçada por uma cobertura
muito extensa do território. Muitas imagens matam, senão as imagens, ao menos a possibilidade de
explorar de maneira inteligível um fluxo de imagens superabundante(Heilmann, 2008; 119).
110
II.2.12 - O “fator humano” e a necessidade de fiscalização
Por mais que sejam tomadas medidas para evitar o voyeurismo por parte dos
vigilantes, e essa é realmente uma preocupação que cerca a operacionalidade do
sistema, a sua abrangência técnica e limitação humana tornam as falhas na
fiscalização, mais do que factíveis, prováveis. E, sobretudo, não se deve ignorar a
grande parcela de responsabilidade do “fator humano” no desenrolar, “correto” ou
não, do monitoramento. Por desleixo, distração, curiosidade ou uma mistura desses
e de outros fatores, são muitas as conjunturas em que a tênue fronteira entre o
monitoramento e o voyeurismo, uma abstração teórica dificilmente reprodutível em
contextos práticos, é transposta.
O primeiro relatório avaliativo inglês sobre o uso da CCTV (Gill; Spriggs,
2005) apontou o não cumprimento das metas e dos objetivos da videovigilância,
identificando três principais pontos problemáticos: a realidade prática técnica, a
desmesura dos objetivos propostos pelo sistema e “o fator humano” (Le Blanc,
2008). A importância deste último tende a ser negligenciada por boa parte do
discurso sobre a utilização da tecnologia
138
, mesmo se a autogestão ou autocriação
maquínica independente de sujeitos ainda não transpôs a fronteira entre as
páginas/telas de ficção científica e a vida prática. Humanos e seus objetos, ou
meios técnicos são constantemente vistos como elementos estanques do mundo
social (Latour, 2000; 2005; Bauman, 1998; 1999), num movimento que faz parte da
crença na sociedade na qual vivemos, não sendo de modo algum extensiva a outros
meios sociais, ou modos de pensamento.
O sistema de monitoramento, de modo específico, e o background tecnológico
que o possibilita, de modo mais geral, são referidos algumas vezes como dados
138
Sobre o mascaramento do fator humano, ou a impossibilidade de enxergá-lo, na análise de riscos
ambientais ou nucleares, ver Ülrich Beck (2008).
111
objetivos, por si dotados de um poder cujo uso praticamente se impunha à
polícia moderna. A sua limitação, para que não ultrapasse os limites do desejável e
extrapole aquilo que foi planejado, seria garantida pelo trabalho zeloso de
supervisores com maior poder sobre as meras do que o operador. O trabalho de
supervisão é levado às últimas conseqüências, ao menos como o coordenador me
explicou, e confirmaram em parte a observação e conversas com os operadores,
tendo o seguinte esquema geral:
1- As meras são geralmente operadas pelos funcionários contratados pela
Assegura, lotados nas salas de monitoramento dos batalhões da PM
(COBATs);
2- Estes primeiros são supervisionados pelos operadores do CCC, que além
de terem acesso às imagens das câmeras de segurança instaladas em
cada uma das AISPs, têm sobre estas um controle maior, podendo
trancar a imagem‖ para o COBAT, passando a operar as câmeras do
Centro;
3- Acima destes, sica e hierarquicamente falando, estão os supervisores do
CCC - um representante de cada elo formador da parceria (Comtex,
Assegura, Embratel e Polícia Militar) -, que além de assistirem às imagens
das câmeras de segurança, têm acesso às câmeras instaladas dentro dos
COBATs, que vigiam o trabalho dos vigilantes, e vêem de perto o trabalho
dos operadores do CCC. Seu acesso às imagens é superior em um nível,
tendo maior poder de bloqueio e operacionalidade das câmeras do que os
operadores do CCC;
4- O coordenador, alto oficial (tenente-coronel) da Polícia Militar, da mesma
forma realiza a supervisão imediatamente superior à dos supervisores do
CCC. Tem também acesso às meras que monitoram constantemente o
112
CCC, e capacidade superior de operar de seu computador qualquer uma
das câmeras da cidade;
5- Acima do coordenador, algumas outras pessoas têm acesso às câmeras e,
sempre de forma progressiva, com capacidade maior de operá-las e de
“trancar a imagem” dos nìveis inferiores. No entanto, pude
acompanhar essa supervisão em camadas até o nível do CCC. Para além
dali, são informações informais, o sistema abarcaria o comandante da
PM, o subsecretário de Planejamento e Integração Operacional, o
secretário de Segurança Pública, o governador, etc.
Junto com o aumento do poder fiscalizador
139
de cada um desses níveis de
supervisão, vem a diminuição do efetivo. Nos COBATs a média é de quatro
operadores para dez câmeras, ou um para cada duas câmeras e meia, o que é
bastante razoável. No CCC, cada operador se ocupa em média de vinte meras
140
,
e cada supervisor de setenta e cinco. A partir do coordenador, a proporção é a mais
baixa possível, uma pessoa para todas as câmeras. O nível máximo de poder de
fiscalização é aquele que tem a menor chance de ver alguma coisa. Poder ver tudo,
não significa poder saber tudo, mas praticamente não conseguir descobrir nada
através, apenas, de seus próprios olhos.
Pelo modo de relacionarmo-nos com os objetos e as técnicas, é normal
transitarmos entre regimes discursivos senão opostos, ao menos bastante
diferentes entre si. Num desses regimes, objetos agem e têm eficácia por si só, pela
sua simples existência material. A instalação das câmeras em determinados pontos
da cidade facom que esses lugares tornem-se mais seguros, por serem lugares
139
Assim como a cada vel vai aumentando também o poder do fiscalizador (que vai do policial
reformado ao governador).
140
Em teoria, porque na prática nunca vi mais de oito baias ocupadas, muitas vezes apenas seis ou
cinco, o que aumenta muito essa média. Mas o que ocorre realmente é que algumas AISPs ficam
abandonadas, sem a supervisão dos operadores do CCC, não havendo redistribuição final de câmeras
disponíveis entre trabalhadores presentes.
113
vigiados, onde o criminoso não vai agir porque está, ou pode estar, sob a mira do
olhar eletrônico da câmera. Ou como preconizava o projeto do videomonitoramento:
As câmeras, devidamente instaladas, apresentam um salto de qualidade nos
atendimentos às ocorrências de qualquer natureza, dando uma nova
dimensão nas componentes preventiva e pró-ativa da polícia, pela redução
mais ainda do tempo de reação e de atendimento, permitindo o
acompanhamento das ões tanto dos COBAT, como do CCC. As gravações
de imagens (...) servirão como provas irrefutáveis das ocorrências e como
ferramenta no ensino e no adestramento policial (Moreira da Silva, 2004: 11).
de acordo com o outro discurso, a ação e o planejamento humanos têm a
capacidade de reduzir os perigos da utilização técnica, de dominar, domesticar
os objetos, controlando seu uso. Através de nenhuma das câmeras se nada
dentro dos apartamentos em seu campo de vio, pois os agentes que as comandam
são instruídos a não olharem, a manter essas áreas privadas - que por acidente se
encontram perto de uma câmera de monitoramento - como se fossem invisíveis.
Essa mudança situacional de discursos, mesmo se útil institucionalmente e com
grande capacidade argumentativa, não deve ser tomada como um ardil oportunista
ou mal intencionado dos responsáveis pelo funcionamento e elaboração do sistema.
É dessa forma que, em maior ou menor grau, nos relacionamos simbólica e
concretamente com nosso meio técnico e os objetos que o compõem, também assim
nos compondo.
II.2.13 - X-9 e a jocosidade ambiente
O local de trabalho era calmo e tranqüilo, com pouquíssimo barulho e
temperatura amena. A mais comum das formas de driblar o tédio era, sem dúvida,
através das constantes brincadeiras, pequenas implicâncias e do humor, conferindo
ao ambiente de trabalho, eminentemente masculino, ares de colégio. As piadas
eram, na maior parte das vezes, depreciativas entre eles ou girando em torno do
homossexualismo ou da maconha. quando uma das policiais que desempenhava
114
função de secretária adentrava o CCC, o local era tomado por uma torrente de
trocadilhos e frases de duplo sentido, sempre de conotação sexual
141
.
Em meio ao bom humor e às brincadeiras que dominavam o ambiente de
trabalho do CCC, minha presença constante ali também se tornou uma razão para
escárnio
142
. Inicialmente as piadas concentravam-se no uso do caderno de notas
por mim: ―tu o é jornalista disfarçado não ? Porque pesquisador a gente ainda
agüenta, mas jornalista é foda, sabe meter o pau na polícia‖, a pergunta que
Gustavo me fez na segunda vez que pisava ali, foi repetida por pessoas diferentes
pelo menos mais duas vezes, embora com menor hostilidade. Ficou mais ou menos
tácito que, enquanto conversava com eles, não deveria fazer anotações. A
manutenção de um contato visual com o interlocutor permite que a conversa ganhe
em fluidez, e se torne menos reflexiva, e por isso mesmo mais reveladora
143
, menos
marcada pelo discurso institucional. O caderno de campo e o gravador
144
, nossos
meios técnicos básicos de trabalho, objetos de apropriação do mundo e das idéias
que simbolizam e institucionalizam nossa posição de pesquisadores universitários
mas que facilmente se confundem com as marcas dos representantes de outra
grande instituição com a qual os policiais mantêm estreita e turbulenta relação, a
imprensa -, agem efetivamente na interação estabelecida, modificando a relação
interpessoal da qual fazem parte. As marcas institucionais reforçam as fronteiras,
os papéis sociais e muitas idéias p-concebidas, de ambas as partes (nesse
sentido, é importante ressaltar que durante quase todo o tempo de campo, tanto no
CCC quanto no 1BPM, tive pouquíssimo contato com policiais fardados, marca
141
É de se ressaltar que a policial feminina era sargento, logo de patente superior aos operadores,
soldados. Nem por isso havia qualquer constrangimento por parte deles.
142
O riso e o humor são formas clássicas de aproximação de pessoas e constituição de relações entre
elas. O riso aproxima, permitindo a transposição de certas barreiras.
143
O autocontrole verbal do nativo é por vezes um dos maiores adversários do etnógrafo.
144
Em nenhum momento da pesquisa lancei mão do gravador, até por achar que criaria uma
sensação de desconfiança que pretendi a todo custo evitar.
115
maior do pertencimento à corporação da Polícia Militar). O uso de caderno e
gravador tem como contrapartida recorrente (o que de modo algum signifique direta
ou obrigatória, podendo mesmo ter o efeito contrário) um reforço à atividade do
superego nativo, obstáculo a ser transposto pelo etnógrafo. Foram-me muito mais
proveitosas as conversas do que as entrevistas, que tendiam a apresentar um
padrão mais repetitivo. Reservava as anotações no caderno para os momentos em
que observava o monitoramento sem conversar com nenhum deles, ou para o
tempo que se seguia à transposição das portas do CCC, numa tentativa frenética e
irrealizável de recuperar e fixar, objetivamente, as palavras que ouvira, as idéias
que me haviam sido expostas, as brincadeiras que vira e das quais muitas vezes
fizera parte. As primeiras frases eram rabiscadas ainda no elevador da torre da
Central do Brasil, num movimento que se alongava pelo trajeto do ônibus até
minha casa, e continuava provocando irrupções de pequenas e importantes
lembranças
145
ao longo do dia.
O sargento Ênio também falou bem alto um dia, aparentemente satisfeito
com minha chegada no CCC
146
: ―esse já monitorando a gente aqui‖! Na época
tive a impressão de ter sido mais um boas vindas” do que um “tome cuidado”,
indicando até certo ponto minha aceitação naquele ambiente. Havia sido
formalmente incluído por ele, quem mais havia se mostrado arredio à conversa num
primeiro momento, na rede de “gozaçõese piadas através da qual quase todas as
relações ali pareciam passar.
145
Em Copacabana acontecia algo semelhante, mas em escala maior, que me mantinha todo o
tempo fisicamente próximo aos operadores, tornando o caderno ainda mais visível, constante alvo de
comentários e curiosidade. Este ponto será melhor explorado no próximo capítulo.
146
A interação inicial com o sargento Ênio, supervisor que mais vezes encontrei no CCC, era tensa
para mim, pois ele respondia tudo muito baixo, e sempre com poucas palavras, aparentando timidez e
fugindo das minhas perguntas. Depois de uma manhã que passei pouco menos de meia-hora na
bancada central, conversando com ele, que me mostrou algumas imagens interessantes, passamos a
conversar com mais fluência e ele foi progressivamente parecendo menos desconfiado e tímido.
116
Contudo, foi de Manhães que ganhei um apelido, X-9, e o privilégio de ter
minha chegada na sala, quando minha ida ao CCC coincidia com seu turno de
trabalho, anunciada sempre pela mesma piada, sofrendo cada vez pequenas
variações. Falava alto, mas direcionado a quem estivesse ao seu lado
147
, frases
como:
Esse que é aquele cara que eu te falei, que cagüetou aquela parada da
gente!
Ih, chegou o X-9! Morreu aquele assunto hein...
Esse aí é jornalista, daqueles que falam mal da polícia, precisando levar
uma prensa.
A linguagem escrita, no entanto, endurece sobremodo a fala e as palavras.
Não parecia querer me intimidar ou ameaçar com suas brincadeiras, ao menos em
nenhum momento tive essa impressão. Talvez uma piada com um conselho
implícito, ao fundo, mas o mais do que isso. Sempre comunguei da opinião que,
para estabelecer uma relação pessoal, não basta aceitar de bom grado a gozação,
sendo preciso retribuí-la, mantendo vivo o fluxo da jocosidade e colaborando para
eliminar barreiras e diminuir distâncias. Uma vez que cheguei um pouco mais
descontraído, provoquei-o, respondendo que não era jornalista não, “era dos
direitos humanos”, repetindo uma categoria que tinha ouvido do próprio Manhães.
Piorou então!‖, retrucou, ―não quer só cagüetar a gente não, quer é botar na cadeia”.
O tratamento por apelidos era bastante comum, nem todos fixos, algumas
vezes durando apenas pouco tempo após um acontecimento qualquer que o tenha
provocado. Pude ver dois pequenos entreveros provocados por implicâncias um
pouco mais agudas, ou demoradas, sendo que na principal delas assisti não
somente o momento em que o policial que estava sendo alvo das gozações reclama
acintosamente da situação, da qual visivelmente não achava graça, mas também o
147
O que variava constantemente já que mantinha o hábito de se deslocar bastante pela sala, indo de
mesa em mesa, inclusive na dos supervisores, tanto para mexer nos computadores como ponta
esquerda” era qualificado para isso -, quanto para conversar, atividade que desempenhava com
excelência.
117
momento em que este vai almoçar e sua conduta é durante quase todo seu almoço,
o principal tema de assunto. A questão havia começado quando Palhares, o soldado
em questão, passou muito tempo conversando com um major fardado que havia
adentrado a sala. Percebo um crescente burburinho entre os outros operadores, e
após a saída do oficial o clima da sala fica rapidamente animado, e o apelido,
conhecido e debatido pelos colegas de Palhares, é formalmente anunciado a este:
―Tu é mesmo um baba ovo, hein!‖. Muitas risadas e uma pequena discussão foi
iniciada, entre o alvo das brincadeiras e seus colegas, capitaneados por Manhães.
Mas Palhares estava atrasado para o almoço, e logo deixa a sala, desgostoso e
irritado. Os comentários são imediatos:
Perdeu meia-hora de almoço só pra ficar puxando-saco.
Até dever de casa do filho do major dizem que ele tá fazendo.
Faz voz de veado e cara de babaca na hora de “babar ovo”.
É o tipo do cara que vai trabalhar em seção de servir cafezinho.
Com a gente fala grosso, com o major... é hipócrita igual a sobrinha da
Gretchen.
Durante os quarenta minutos seguintes o assunto dominou a atenção dos
operadores do CCC, que durante esse tempo mal olhavam para as telas, ou o
faziam de modo ainda mais rápido e desinteressado que o habitual. Manhães
diagnosticou que o problema do colega era ―homossexualidade enrustida‖,
provocando gargalhadas e ganhando a aprovação dos operadores que estavam mais
próximos. Finalizando a questão, ele profere, quando Palhares volta do almoço:
Baba, tava te monitorando, se você se atrasasse mais um minuto ia ser obrigado a
escrever aqui: ―se atrasou do almoço porque ficou puxando-saco‖. Aparentemente
tinha sido o único monitoramento que realizara desde a entrada do major na sala,
cerca de uma hora e quinze minutos antes daquele momento.
118
II.2.13 - Outro lado
Com o passar das semanas e dos meses, o cotidiano do CCC foi se
mostrando bastante repetitivo, e o tédio que dominava o serviço dos operadores
começava também a se apoderar do pesquisador. Além disso, a cada dia podia
perceber melhor que o trabalho de monitoramento era realizado de forma mais
incisiva dos batalhões da PM do que da central de câmeras que eu vinha
freqüentando. Ficava a impressão sempre mais clara que para captar melhor o que
podia revelar a videovigilância, ou videomonitoramento, oficial no Rio de Janeiro,
seria preciso observar e conversar com os operadores de câmeras de um COBAT,
onde a relação direta com a câmera era estabelecida. No CCC o serviço era
supervisionar a interação homem-câmera realizada nas vinte salas de operações
espalhadas pela capital e sua região metropolitana, na maior parte das vezes
interagindo muito pouco, ou nada, com as meras, a não ser de modo
absolutamente passivo, através das imagens captadas e escolhidas por outros, ou
pela simples automação maquinal de um software de monitoramento.
Desta forma, entrei em contato com o coordenador e pedi-lhe a autorização
para passar a freqüentar a sala de monitoramento do 19º BPM, em Copacabana, e
em cuja AISP também está incluído o bairro do Leme. A autorização final deveria
ser dada pelo comandante do batalhão, o que não tardou, visto que uma semana
depois recebi a resposta do coordenador, contendo anexado o ofício autorizando
minha pesquisa, além de instruções para que me apresentasse ao subcomandante
em um dia e hora pré-definidos por ele. E assim interrompia as visitas ao CCC,
iniciando uma nova e reveladora fase da pesquisa de campo no videomonitoramento
policial na cidade.
119
III - A Princesinha vista do alto: videomonitoramento no “bairro
do Brasil”
Várias razões me fizeram optar pela 19ª Área Integrada de Segurança Pública
para continuar a pesquisa sobre o sistema de monitoramento, que havia iniciado no
Centro de Comando e Controle. Por um lado, havia sido escolhida pela própria
Secretaria de Segurança como local da experiência-piloto da videovigilância policial
dos espaços públicos, logo era onde esta funcionava a mais tempo, facilitando a
criação de um padrão de serviço a ser observado por mim. E essa escolha oficial,
por sua vez, foi baseada em levantamentos técnicos e questões práticas que faziam
da região uma área privilegiada para a experimentação da nova política de
segurança. E por outro lado, um critério de objetividade pessoal, e pouco
“cientìfico”, também influiu na decisão de observar o monitoramento nesses dois
bairros (Leme e Copacabana): durante mais de vinte anos morara ali, tendo passado
parte considerável da minha infância e adolescência. Durante o doutorado voltara a
morar lá, depois de curta ausência. Dessa forma, a área que é monitorada da sala
de operações do 19º BPM é aquela que conheço melhor dentro da minha própria
cidade, tendo percorrido-a um sem número de vezes, e, mais importante, tendo sido
em suas ruas socializado no medo e nas precauções da violência urbana. Não
apenas recorro sem dificuldades à memória para o mapa do bairro, como tenho
uma idéia bastante precisa dos seus pontos mais violentos, ou ao menos, reputados
como mais perigosos. Em meu caso específico, ao realizar um trabalho etnográfico
que trate do espaço público do Leme e de Copacabana, mesmo de forma indireta,
tornava-se impossível ignorar que não deixava de ser um nativo, usuário contumaz
desse espaço. E em relação ao monitoramento, era um dos moradores e passantes
constantes do bairro que, com freqüência considerável, circulava pelo campo de
120
visão das câmeras de vigilância. De diversos modos me inseria naquela situação
que pretendia analisar, ou ao menos compreender melhor. E nenhum deles era, ou
iludia-me em ser, como um cientista neutro e puramente objetivo, é preciso deixar
claro.
III.1 - Razões estratégicas e discursos oficiais
Os critérios de escolha da 19ª AISP como ponto de partida do
videomonitoramento, como pude verificar diante do material
148
que me foi cedido
pelo diretor de telecomunicações responsável pela implantação do sistema, são
bastante reveladores de suas ambições e objetivos. Tais critérios são:
- área pequena: 5,47 km
2
;
- alta densidade demográfica: 29.465,81 habitantes por km
2
;
- diversidade de classes sociais;
- existência de favelas;
- comunidades carentes;
- todas as classes sociais e econômicas;
- concentração de atrações turísticas;
- presença de rede hoteleira;
- concentração de população de rua;
- índices criminais: tráfico, prostituição...;
- vitrine e cartão-postal do Brasil;
É possível identificar ao menos três grupos de questões que justificariam a
instalação do sistema de videomonitoramento na região: no primeiro deles estão as
dimensões relativamente reduzidas dos dois bairros e sua alta densidade
demográfica; no segundo, as questões diretamente relacionadas ao perigo, medo ou
insegurança; e no terceiro, aquelas que ligam a região ao seu papel simbólico na
construção da imagem da cidade e do país, em especial frente aos turistas que
visitam o Rio de Janeiro
149
.
148
Material de palestra do ex-diretor, realizada no III CONSEG Sudeste, na Firjan, em 19 de abril de
2004.
149
Essa é apenas uma das divisões possíveis, de certo modo arbitrária, outras podendo ser também
realizadas. No entanto imagino que tal arbitrariedade não tenha grande influência na análise aqui
proposta.
121
III.1.1 - Extensão e densidade demográfica
Os dois bairros que formam a 19ª AISP, apesar de vizinhos e separados
apenas por uma avenida, sem nenhuma fronteira geográfica identificável
150
, se
mostram bastante diferentes se andamos por suas ruas ou mesmo se apenas
observarmos os números do último recenseamento (2000). Enquanto Copacabana
contava com 147.021 moradores espalhados por seus 4,57 km
2
, numa densidade
demográfica bastante elevada, de
32.170,9 habitantes por km
2
, o Leme, com
aproximadamente um quinto da área do bairro vizinho (0,90 km
2
), tem pouco
menos de um décimo de sua população (14.157), o que lhe confere uma densidade
demográfica bem mais baixa, de 15.730 habitantes por km
2
.
Copacabana é também o bairro com o maior número de aposentados no Rio
de Janeiro, fator que representa, ao menos no discurso policial, preocupação extra
para os responsáveis pela segurança pública, que os idosos são
reconhecidamente alvo preferencial e constante de assaltantes e “pivetes”. Ao longo
dos muitos anos que morei na região presenciei por várias vezes a ação rápida e
agressiva de ladrões contra “velhinhos”, além de ter escutado numerosos relatos a
esse respeito.
A escolha por uma AISP de área relativamente reduzida e densidade
populacional elevada significa, grosso modo, a possibilidade de monitorar mais
pessoas em menor espaço, conferindo, por conseguinte, uma alta densidade de
monitoramento, fator que se num primeiro momento pode parecer positivo, se
mostrou ser um dos pontos mais sensíveis do trabalho concreto dos vigilantes,
como pude verificar freqüentando a sala de operações do 19º BPM.
150
A separação desses dois bairros de Botafogo e de Copacabana para a Lagoa, por exemplo, regiões
que também são vizinhas, se através da transposição de morros, seja por meio de túneis ou
ladeiras.
122
Outro ponto que deve ser levado em conta na questão demográfica é que a
aglomeração de pessoas e o excesso de contatos e encontros com desconhecidos,
situação normal em Copacabana, para muitos representa risco e perigo, em
oposição aos ambientes familiares em que todos se conhecem e cujas relações são
baseadas na confiança interpessoal
151
. Nesse sentido, um grande número de
pessoas convivendo em uma área reduzida por si constituiria uma razão para tratar
a região a 19ª AISP como potencialmente uma região de risco.
III.1.2. - O perigo em cada esquina
Foram também apontados como motivos que teriam levado a essa escolha,
fatores relativos à composição sócio-econômica do bairro. A diversidade de classes
sociais que vemos no Leme e em Copacabana atravessa todas as camadas
econômicas encontráveis na cidade, reproduzindo e refletindo toda a desigualdade
que marca a metrópole carioca. Desde os muito ricos habitantes da Avenida
Atlântica e seus imensos apartamentos com vista para o mar, aos inúmeros
moradores de rua, passando por toda a miríade de estratos sociais presentes na
estrutura da cidade, qualquer pessoa pode circular e morar na 19ª AISP.
Oficialmente são encontradas ali seis favelas, que podem ser agrupadas em três
pequenos complexos, cada um deles criando em seu entorno “áreas sensìveis”, em
especial nas ruas que lhes dão acesso. Um desses complexos, Babilônia-Chapéu
Mangueira, está localizado no Leme, enquanto os outros dois ficam em
Copacabana, em regiões fronteiriças com os bairros de Botafogo (Morro dos
Cabritos-Ladeira dos Tabajaras), e Ipanema e Lagoa (Pavão e Pavãozinho-
151
É preciso deixar claro que o espaço público também é freqüentemente palco de situações e
encontros familiares, entre conhecidos ou pessoas que trabalham diretamente na rua, que acabam
“familiarizando” um ambiente habitualmente impessoal, entretanto mesmo assim este espaço favorece
constantes contatos superficiais com estranhos.
123
Cantagalo). As favelas são, no imaginário e na realidade concreta cariocas, o
símbolo máximo da violência urbana, além de indubitavelmente ser onde esta se faz
sentir de forma mais dramática. A geografia carioca e o histórico de ocupação
urbana da cidade fazem com que a divisão entre centro e periferia, bastante comum
nas grandes metrópoles, faça muito pouco sentido, apesar de notarmos uma clara
diferenciação entre os bairros, além de uma forte concentração de renda na Zona
Sul da cidade, mais próxima ao mar. Por isso, mesmo se os moradores das favelas
dos bairros não o vistos como estrangeiros ou invasores muitas famílias
ocupam as encostas há algumas gerações -, e participam ativamente da vida social
e econômica dos bairros, essa presença maciça e próxima gera um sem mero de
tensões diárias, de menor porte, ou, o que é um pouco menos freqüente, de maiores
proporções.
A histórica e tradicional concentração de atividades e comportamentos
desviantes, assim como de indivíduos estigmatizados no bairro (Velho, 1974), é
outro aspecto que foi levado em conta na elaboração do projeto e na escolha de
onde implantá-lo como experiência. Assim, a praia de Copacabana foi o primeiro
local da cidade a ser completamente monitorado por câmeras integradas ao
batalhão da Polícia Militar, não tendo a videovigilância ainda hoje sido repetida de
forma tão intensa em nenhuma outra parte da cidade
152
. Qualquer um que já tenha
caminhado por suas areias, ou mesmo pelo calçadão, à noite, teve a
oportunidade de verificar ser aquele local amplamente utilizado para a prática de
sexo, tanto para homo quanto para heterossexuais. Mesmo o fato de ser um local
no qual, à luz do dia, pessoas expõem seus corpos, vestidas com módicas roupas de
banho, pode fazer com que a captação de imagens possa causar indesejáveis
constrangimentos. Além do mais, aquela região é um dos principais pontos de
152
A orla de Ipanema e do Leblon, apesar de monitorada em toda sua extensão, o é com uma
densidade muito menor de câmeras por quimetro.
124
prostituição da cidade do Rio de Janeiro, com dezenas de mulheres e travestis
diariamente na calçada a espera de carros que param para fazer “a escolha”. Nas
areias de Copacabana se localiza também o mais importante point gay das praias
cariocas, onde, à luz do dia, se encontram michês e clientes que os procuram
(Parker, 2002). Sem contar o fato de que a praia é tradicionalmente na Zona Sul, o
principal local de sociabilidade utilizado pela comunidade canabista. O bairro surge
como um microcosmo onde estão representadas de forma clara algumas das
principais atividades desviantes da cidade que, mesmo se bastante estigmatizadas,
gozam de relativa tolerância tanto por parte da população quanto da polícia
153
. Mais
ainda, são atividades que ninguém ignorava a existência, mas que todos faziam
questão de não ver (ou então de ver, mas não enxergar).
III.1.3 - Superbacana e CopaBacana: de Caetano a Cabral, passando pelo Vieux
Lyon
Ser o principal local de hospedagem dos turistas que vêm à cidade, e que
diariamente circulam aos milhares por suas ruas, calçadão e areias, além de ser
também um de seus principais cartões postais, é uma das razões apontadas
oficialmente para a escolha daqueles bairros como uma área de atenção especial,
ponto de partida tanto para inovadoras políticas de segurança, como para um dos
“choques de ordem” que tanto fascinam os governantes do estado e de sua capital.
A região é por excelência um mbolo da cidade, orgulho dos cariocas e
cenário de inúmeros filmes, novelas, cartões-postais e outras formas de divulgação.
Copacabana pode ser considerada, inclusive, como uma das principais imagens da
cidade para o resto do país, e do país para o resto do mundo. Um dos operadores
153
A caracterização de Copacabana como um bairro de moralidade “mais frouxa”, principal exemplo
carioca da metrópole de Simmel (1979), vem sendo ressaltado pela antropologia urbana desde o estudo
seminal de Gilberto Velho, A Utopia Urbana (1978).
125
(Heleno), inclusive, comentando sobre a importância da região que deveria vigiar,
afirmou que ―Copacabana é o bairro do Brasil!‖ Significativo dessa atenção é a
operação policial “CopaBacana”, sìmbolo do “choque de ordem” propalado pelo
governador Sérgio Cabral Filho, iniciada no dia 19/04/2007. Vejamos algumas
informações disponibilizadas pela Secretaria de Segurança Pública:
Mais de 40 pessoas removidas das ruas, cinco caminhões apreendidos,
cargas interditadas e diversas multas aplicadas. Este é o balanço parcial da
operação “CopaBacana”, iniciada na manhã desta quinta-feira (19/04). O
mutirão da ordem pública formado por 50 agentes de órgãos estaduais e
municipais de segurança, fiscalização e assistência social continua, até
segunda ordem, o trabalho diário em dois turnos, das 9 às 13 e das 22 às 2
horas. Semanalmente, os delegados de Polícia Civil das áreas envolvidas o
enviar relatórios ao subsecretário Geral de Segurança, Márcio Derenne.
O centro das varreduras foi a Avenida Atlântica, um dos principais pontos
turísticos do Rio de Janeiro.
154
O balanço da operação após sua primeira semana indica algumas das
principais diretrizes e dos principais alvos da ação, assim como os “problemas” que
mais preocupam, ou incomodam, aqueles que utilizam o serviço telefônico de
disque-denúncia:
Mais de 120 pessoas recolhidas das ruas, 75 menores encaminhados a órgãos
de assistência, 20 veículos irregulares rebocados, 17 caminhões multados,
dezenas de produtos falsificados apreendidos. Estes dados fazem parte do
balanço semanal da operação CopaBacana”, ação de ordem urbana iniciada
no dia 19 de abril através da integração das secretarias de Estado de
Segurança e de Governo com a Prefeitura do Rio de Janeiro. Desde o fim de
semana, a população tem o “Disque CopaBacana(2299-5300 e 2299-5770)
para fazer denúncias sem precisar fornecer a identificação. O trabalho
intensivo no mais famoso bairro carioca não tem data para acabar.
A avaliação é muito positiva. Continuaremos o cerco integrado em dois
turnos: manhã e noite. Na próxima semana, vamos fazer uma reunião com os
delegados de Polícia Civil e o comandante do batalhão da área para fortalecer
o trabalho também durante a tarde declarou o subsecretário Geral de
Segurança, Márcio Derenne.
Houve abordagem de 215 moradores de rua e 121 destes foram levados para
a Fundação Leão XIII. Cerca de 75 menores de idade receberam assistência
social em órgãos do setor. A Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente
(DPCA) recolheu quatro menores infratores, na Avenida Atlântica. Outros
quatro estavam se prostituindo em frente à danceteria Help e receberam
ajuda da Fundação para a Infância e Adolescência (FIA).
154
Matéria publicada no site da Secretaria Estadual de Segurança Pública, no dia 19/04/2007, com o
título Começa o Choque de ordem da operação “CopaBacana”: Forças integradas limpam Avenida
Atlântica no primeiro dia da operação
(http://www.seguranca.rj.gov.br/content.asp?id=2212&tc=&cc=12&descricaocc=Notícias").
126
Vinte kombis e carros velhos, utilizados como depósitos de mercadorias de
camelôs, foram rebocados e levados para depósitos do Detran. Dezessete
caminhões receberam multa e tiveram a carga apreendida por
estacionamento irregular e falta de respeito às normas sanitárias. Entre os
produtos inutilizados, estão 93 kg de pescado e 4 kg de requeijão. Dezenas de
camisas falsificadas da Seleção Brasileira de Futebol foram apreendidas na
feira de artesanato de Copacabana. O problema mais denunciado pelo
“Disque-CopaBacana”, com mais de 20% dos telefonemas, é a presença de
moradores de rua. Logo em seguida, vêm camelôs e flanelinhas com 8% das
ligações.
155
Uma interessante pista para compreender tanto a importância desse “choque
de ordem” ocorrer no mais famoso bairro carioca”, quanto o fato de o problema
mais denunciado” (um quinto das reclamações) ser a “presença de moradores de
rua”, é o estudo realizado por Joan Stavo-Debauge (2003) no bairro histórico Vieux
Lyon, na França. A autora é contratada pela prefeitura de Lyon para realizar uma
pesquisa sobre a “forte presença de marginais” no bairro. Ao longo das imersões de
campo, ela percebe que o discurso sobre os “marginais” repetido por residentes e
comerciantes do local tinha menos a ver com acontecimentos concretos de
violência, criminalidade ou distúrbios do que com a simples presença de mendigos,
bêbados, desocupados e todo tipo de personagem que transita, freqüenta ou habita
as ruas das regiões centrais de grandes cidades. O incômodo para além do habitual
nesse caso estaria relacionado com dois aspectos que se interconectam na figura do
turista.
O primeiro deles teria relação com a recente eleição do quartier como
“Patrimônio Cultural da Humanidade”, pela UNESCO, após uma longa campanha
travada, em conjunto, por seus moradores, comerciantes e pela prefeitura: o bairro
passa a encarnar, para esses usuários legais”, o a imagem da cidade, mas
também a da própria França. Os turistas que o visitavam diariamente imaginariam,
decerto, que aquela população degradada era representativa dos franceses e do
155
Matéria publicada no dia 27/04/2007, com o título ―CopaBacana recolhe mais de 120 e tem novo
canal de atendimento: Os números 2299-5300 e 2299-5770 recebem denúncias e sugestões dos
moradores‖.
(http://www.seguranca.rj.gov.br/content.asp?id=2221&tc=&cc=12&descricaocc=Notícias").
127
próprio país. Era preciso que o espaço estivesse impecável, como a própria França
por eles desejada
156
. O outro aspecto também decorreria da recente
patrimonialização do local, que acaba por colocar o turista numa posição central,
passando a personagem principal e mais importante da região, símbolo por
excelência da apropriação oficial daquele espaço. O deleite estético deste na relação
com o patrimônio material, cultural e histórico - as grandes atrações turísticas -
adquire status de prioridade entre as preocupações locais.
A simples presença corporal das pessoas da rua (“marginais”) poderia vir a
incomodar a feliz realização das provações (épreuves) emocionais buscadas
pelos turistas, perturbando a disponibilidade atencional necessária à
felicidade do contato com um objeto estético o “estado de turista” se
descrevendo como um “estado de disponibilidade” (Girard, 1999; 3-5). Tal
estado é apropriado para uma relação com o ambiente fundada sobre um
“contato” sensìvel e estético com as coisas a se ver”: as pessoas engajadas
em uma atividade turìstica buscando “impressões” suscetìveis de serem
constituìdas em “lembranças” (Ibid.) (Stavo-Debauge, 2003: 361).
O problema dos “marginais” não seria decorrente de práticas que
efetivamente realizassem (ou de atitudes que tivessem), mas do próprio fato de
serem visíveis. Mais ainda, sua visibilidade eclipsaria a visibilidade do que deveria
ser realmente visto (choses à voir) e admirado, constituindo a experiência estética
adequada. o que pedem os moradores e comerciantes do Vieux Lyon, assim
como os denunciantes do CopaBacana”, é que esses “marginais”
157
se tornem, ou
sejam tornados, invisíveis.
Em Copacabana e no Leme, a grande presença de turistas impulso ainda
maior à prática e disseminação de delitos, crimes e comportamentos desviantes. A
condição de turista, o estar num lugar estranho, ser um desconhecido, por curto
período de tempo, em férias, tem muitas vezes como conseqüência um considerável
relaxamento moral, numa busca intensa pelo prazer estético e sensível. Além disso,
156
Essa retórica do bairro com uma “imagem internacional da França” apareceu de forma repetida nas
entrevistas e conversas realizadas pela autora, sendo recorrente em políticas de patrimônio em geral e,
mais especificamente em suas apropriações turísticas.
157
Em Copacabana “moradores de rua”, “menores infratores”, “carros e kombis abandonadas, etc.
128
a imagem do Rio de Janeiro como uma cidade orgiástica, do sexo e da festa, é
amplamente divulgada e conhecida, tanto no Brasil quanto no exterior, além de ser
um dos principais destinos mundiais do “turismo gay”. Dessa forma, Copacabana é
um dos principais pontos de prostituição na cidade
158
, seja em suas ruas,
apartamentos, termas ou boates, que além de atender aos fregueses locais,
movimentam um vasto e lucrativo mercado de turismo sexual.
Outro fator a ser levado em conta é que o turista constitui muitas vezes um
alvo privilegiado para a ação de ladrões, tanto porque normalmente carrega consigo
dinheiro suficiente para as despesas da viagem, quanto, principalmente, por ser
desconhecedor da maioria dos códigos em vigência nas ruas, em especial relativos
às situações e locais de perigo. Não é por acaso que no mesmo pdio do 19º BPM,
funciona também o BPTur (Batalhão de Policiamento em Áreas Turísticas). havia
verificado no CCC a importância do combate aos crimes contra turistas no discurso
afirmador do monitoramento: na sala de operações do batalhão em Copacabana
esse assunto esteve diversas vezes em pauta, dando mostra da centralidade.
III.2 - Chegada: cenário e recepção
A visita inicial ao 19º BPM ocorreu de modo completamente diferente da
primeira vez que fui ao CCC, desde a inserção no local de trabalho até a atenção do
oficial superior que autorizou minha estada dentro do prédio, acompanhando o
serviço realizado. Fui imediatamente encaminhado à sala de operações, e a partir
de então comecei a conversar com os operadores, com muito menos formalidades
que no Centro de Comando. Minha relação com estes também se deu em termos
próprios, de forma mais próxima e aberta, com o estabelecimento real de vínculos
158
Juntamente com a Vila Mimosa e a Praça Mauá.
129
pessoais. Sentava-me entre eles, a pela organização espacial da sala, e desse
modo participava o tempo todo de suas conversas, tendo me tornado mais um
personagem do ambiente do serviço. Esse fator foi primordial no decorrer do
trabalho de campo, e será explorado com atenção ao longo deste capítulo.
O interior do batalhão de Copacabana tem muito pouco a ver com a torre da
Central do Brasil, onde havia feito a primeira parte do trabalho de campo. O prédio
é bem mais novo, mas a quantidade de policiais fardados circulando, inclusive com
armamento pesado e coletes à prova de balas, um clima mais pesado ao
ambiente. o conseguimos esquecer nem por um momento que estamos em uma
instituição policial, ao contrário do que ocorria no CCC.
Depois de me apresentar na portaria e passar brevemente pela sala do
subcomandante, pessoa que o coordenador do CCC me havia mandado procurar,
fui encaminhado por um tenente à sala que me interessava de fato, onde o
monitoramento é realizado. Esta era um pouco diferente do que eu havia
imaginado, com uma linha de frente numa bancada com quatro computadores,
onde os funcionários da Assegura olham as imagens das meras. Atrás tem outra
bancada, onde PMs fardados recebem ligações e chamadas por rádio e também se
comunicam com os homens trabalhando nas ruas. À frente de todos ficam duas
telas retráteis, moles, usadas em casos nos quais todos devem ver as imagens,
como em uma perseguição ou algum outro evento que necessite da comunicação
entre os policiais atrás e os operadores à frente. Segundo o supervisor dos
operadores, eles evitavam ligar o projetor (datashow) ―porque se queimasse uma
lâmpada daquelas, era meses para trocarem, além de ser caríssima‖.
Dos quatro computadores, apenas três funcionavam. O outro estava
desativado em função de um problema técnico. Deste modo sempre sobrava um
operador, pois os turnos continuavam sendo compostos por quatro deles. Estes são
130
policiais ou bombeiros reformados, ficando imediatamente patente sua idade mais
avançada tanto em relação aos PMs que dividem a sala com eles, quanto aos
operadores que trabalham no CCC. Em alguns minutos de observação, parece
evidente que ali se fazia um monitoramento diferente daquele que eu havia visto
sendo realizado. Uma relação com as câmeras e com as imagens era perceptível, e
um interesse maior pelo que está sendo visto era inevel
159
. Mesmo se não chegam
a passar muito tempo sem conversar, os operadores não deixam de realizar o
monitoramento da região de Copacabana. A não fragmentação da visão em uma
multiplicidade de câmeras por toda a cidade permite que as coisas sejam vistas de
outro modo. A comunicação constante com os policiais da rua também faz com que
as imagens ganhem muito mais vida do que no CCC, sejam mais contextualizadas,
tornem-se menos entediantes e monótonas. Ainda que continuem se constituindo
de fragmentos da realidade, estes aparecem como um pouco mais contextualizados,
ou contextualizáveis.
Logo que cheguei fui rapidamente apresentado aos que lá estavam pelo
tenente, sendo “empurrado” para o responsável pelo serviço
160
, embora tenha
percebido um interesse ou curiosidade comum em relação à minha presença na
sala. O oficial disse então para ele que me mostrasse ―aqueles vídeos de flagrantes‖,
desse uma explicação básica sobre o funcionamento, e me deixasse à vontade.
Minha acomodação na sala foi beneficiada pelo não funcionamento de um dos
computadores, deixando assim vago o lugar imediatamente ao lado do ocupado pelo
responsável, pois sempre um dos operadores ficava livre para “circular” pela sala ou
resolver algum problema na rua.
159
Um interesse maior não significa, de modo algum, um grande interesse, visto o quadro do
monitoramento realizado no CCC descrito no capítulo anterior.
160
Operador que se senta à esquerda, ficando diante do telefone de comunicação com o CCC, além de
ter a função de preencher o livro de ocorrências, chamado por eles de “brochura”.
131
Depois de uma dezena de minutos na sala, dois dos policiais que estavam na
bancada traseira, com idade mais próxima à minha, me chamaram para ver, no
notebook que ficava atrás deles, uma cena capturada pelas câmeras de segurança
(em outro ponto da cidade) de um ―bonde de vagabundos‖ passando às cinco da
madrugada, num grande comboio. Era a mesma imagem que havia visto no CCC,
gravada, e também na Internet, reproduzido no capítulo anterior
161
. ―Este aqui está
no YouTube‖, me disse o mais jovem dos dois. Depois começou a mostrar outro
vìdeo policial “clássico”, um PM matando dois assaltantes na Praça Nossa Senhora
da Paz, em 1998
162
. Antes de voltar à conversa com o operador temia que o
responsável perdesse o entusiasmo indiquei-os o PMTube
163
, uma de minhas
recentes descobertas no domínio da Internet. Pareceram entusiasmados e foram
logo ver o site.
III.3 - Encontros: reflexões etnográficas
O problema é que o nativo certamente pensa, como o antropólogo; mas,
muito provavelmente, ele não pensa como o antropólogo. O nativo é, sem
dúvida, um objeto especial, um objeto pensante ou um sujeito. Mas se ele
é objetivamente um sujeito, então o que ele pensa é um pensamento
objetivo, a expressão de um mundo possível, ao mesmo título que o que
pensa o antropólogo. Por isso, a diferença malinowskiana entre o que o
nativo pensa (ou faz) e o que ele pensa que pensa (ou que faz) é uma
diferença espúria. É justamente por ali, por essa bifurcação da natureza do
outro, que pretende entrar o antropólogo (que faria o que pensa). A boa
diferença, ou diferença real, é entre o que pensa (ou faz) o nativo e o que o
antropólogo pensa que (e faz com o que) o nativo pensa, e são esses dois
pensamentos (ou fazeres) que se confrontam
(Viveiros de Castro, 2002: 119)
164
.
Uma breve, porém central reflexão sobre o processo de campo deve ser
realizada. Este se deu em condições particulares, e a partir dele não intenciono
comprovar ou refutar qualquer das teorias sobre controle, disciplina ou vigilância.
161
http://www.youtube.com/watch?v=bssrxSGqjYc .
162
http://www.youtube.com/watch?v=EsEEJNYMoX0 (1 POLICIAL mata 2 Assaltantes ao vivo sem cortes
no Rio de Janeiro - Jornal Nacional)..
163
www.pmtube.com.br
164
Grifos no original.
132
Apenas discuti-las, inserir-me num debate a partir de uma experiência pessoal com
um sistema de vigilância eletrônica. Nem creio ter saído do processo etnográfico
com uma imagem constituída “do” operador de câmeras da polìcia, ou “o” vigilante
eletrônico. As fronteiras e singularidades o muito mais tênues e complexas do
que isso. O método dominante na produção do conhecimento etnográfico continua
sendo a observação participante malinowskiana, através da qual a imersão
profunda do antropólogo no campo seria capaz de, após um longo período, fazer
com que este seja capaz de desvendar mais e mais a sociedade (ou cultura) nativa.
A experiência de pesquisador (muitas vezes associada a uma “sensibilidade”
especial), aliada com a do campo, é tomada como a fonte da autoridade
antropológica, capaz de captar e descrever objetivamente a realidade observada e
vivida. Essa preocupação aparece na introdução de Os argonautas do Pacífico
Ocidental, onde Malinowski (1976) tenta convencer os leitores de que os fatos ali
documentados não eram criações subjetivas, mas que haviam sido objetivamente
coletados (Clifford, 2002). Como afirma Geertz, esse discurso faz parte da própria
estratégia de legitimação do discurso antropológico (2005: 29),
Os etnógrafos precisam convencer-nos (...) não apenas de que eles mesmos
“estiveram lá”, mas também (...) de que, se houvéssemos estado , teríamos
visto o que viram, sentido o que sentiram e concluído o que concluíram.
Entretanto, o conhecimento etnográfico assim produzido não é de modo
algum isento da interpretação do pesquisador, e esta é orientada por suas
convicções e subjetividades. Sua presença na obra é marcante, e por vezes torna-se
mais central e determinante na etnografia, do que aquilo que foi dito pelos próprios
nativos. No processo de captação, interpretação (freqüentemente com ajuda de
modelos teóricos abstratos) e redação, a voz nativa acaba por desaparecer ou
tornar-se quase inaudível, e o trabalho por adquirir contornos monográficos, fato
que, aliado às características próprias do formato literário acadêmico, acaba por
133
tornar a interpretação do texto mais fechada, menos sujeita a ambigüidades e
contradições. O autor/antropólogo “esteve lá”, compreendeu e analisou para
aqueles que não estiveram e que, por isso, não possuem autoridade etnográfica.
(...) o etnógrafo transforma as ambigüidades e diversidades de significado da
situação de pesquisa num retrato integrado. É importante, porém, assinalar o
que foi deixado de lado. O processo de pesquisa é separado dos textos que ele
gera e do mundo fictício que lhes cabe evocar. A realidade das situações
discursivas e dos interlocutores individuais é filtrada. Mas os informantes
juntamente com as notas de campo - são os intermediários cruciais, são
tipicamente excluídos de etnografias legítimas. Os aspectos dialógicos,
situacionais, da interpretação etnográfica tendem a ser banidos do texto
representativo final (Clifford, 2002; 42).
Tentei, e continuo tentando, estabelecer uma relação diferente com o campo
e com a escrita, não ambicionando realizar análises conclusivas sobre “a”
videovigilância, “o” trabalho de monitoramento, ou mesmo sobre “os” operadores de
câmeras de segurança da polícia. Tenho plena convicção que se os seis meses que
passei freqüentando duas das instalações do sistema de vigilância eletrônica oficial
no Rio de Janeiro me ensinaram muito sobre todas as questões tratadas, o
permitem de forma alguma uma generalização sobre a videovigilância, ou a
proclamação de uma “descoberta cientìfica”, “lei sociológica” ou “estrutura da
videovigilância”. Até porque não posso relatar mais do que os encontros
165
, em
situações de trabalho
166
, diante de imagens de um videomonitoramento que está
sendo ali realizado. Pessoas diferentes entre si, que realizam, compreendem e
transformam seu serviço em coisas diferentes, e que vêm participando ativamente
da construção de uma videovigilância policial que, longe de ser um elemento
estanque a ser desvendado, encontra-se em permanente devir, formado pelas
relações e interações entre os diversos agenciamentos sócio-técnicos (homens-
máquinas) que integram o sistema de câmeras da polícia, e do qual, ao menos
durante o período que estava no campo, também fiz parte.
165
Parafraseando Vinícius de Moraes, diria que assim como a vida, a etnografia é a arte do encontro...
166
Tanto eu quanto eles estávamos trabalhando.
134
(...) nem a experiência nem a atividade interpretativa do pesquisador científico
podem ser consideradas inocentes. Torna-se necessário conceber a etnografia
não como a experiência e a interpretação de uma “outra” realidade
circunscrita, mas sim como uma negociação construtiva envolvendo pelo
menos dois, e muitas vezes mais, sujeitos conscientes e politicamente
significativos. Paradigmas de experiência e interpretação estão dando lugar a
paradigmas discursivos de diálogo e polifonia (Clifford, 2002; 43).
III.3.1 - Personagens
No livro I dos Ensaios, publicado em 1580, Montaigne discorre sobre a
amizade, especialmente sobre aquela que nutria com Étienne de la Boétie, tratando
da excepcionalidade, predestinação e inefabilidade da relação que os ligava. Após a
publicação do livro, seu autor continuou, até a morte, a reler e adicionar
comentários ao texto, tendo estes sido reunidos e publicados em edição póstuma,
de 1595. Um desses comentários, que encerra o principal parágrafo da
argumentação, tornou-se a mais célebre frase do capítulo, resumindo de forma
definitiva as razões da singular amizade: ―Porque era ele, porque era eu
167
.
Sem querer esgotar a questão, longe disso, gostaria de me apropriar da frase
de Montaigne como mote desse trabalho de campo e das relações que estabeleci e
nas quais me envolvi ao longo de sua realização. Tenho, e tinha quando estava
freqüentando a sala de operações, a convicção de não estar ali como representante
de um conhecimento neutro e objetivo, nem de me relacionar com objetos de estudo
de modo imparcial. Ali éramos todos sujeitos: os espaços, a “naturalidade” e a
indiscrição, como todo o resto, não eram simplesmente captados ou percebidos pelo
pesquisador, mas também negociados entre as pessoas singulares que interagiam
naquela situação específica de pesquisa. Em outras palavras,porque eram eles,
167
Se me pressionarem a dizer por que o amava, sinto que só pode ser expresso se responder:Porque
era ele, porque era eu‖ (Montaigne, 1972; 269).
135
porque era eu‖. E, acrescentaria, porque estávamos ali, naquele contexto específico,
e naquele momento particular.
Muito mais do que enfraquecer a análise científica esperada de um trabalho
acadêmico, a explicitação dessa eminente intersubjetividade e da importância das
individualidades em questão têm por objetivo um tratamento menos indireto (e
generalizante) das informações e situações relatadas, num esforço de esquiva de
interediários metodológicos, tais como os tipos ideais” e a neutralidade acadêmica,
úteis em análises macro-sociais e macro-históricas, mas esvaziadores da
complexidade presente em contextos de relações diretas. É preciso levar em conta o
que Znaniecki (1936; apud Turner, 2008; 28) chama de coeficiente humanìstico”
na formação de “sistemas culturais” como o do monitoramento por câmeras:
Sistemas culturais (...) dependem da participação de agentes humanos
conscientes e volitivos e das relações continuadas e potencialmente
cambiantes dos homens uns com os outros, não somente quanto ao seu
significado, mas também para sua própria existência. Znaniecki tinha seu
próprio rótulo para essa diferença. Ele a chamava de “coeficiente
humanìstico” e foi este conceito que separou nitidamente sua abordagem
daquela da maioria de seus contemporâneos no cenário americano. Em todas
as partes de sua obra, ele enfatizou o papel de agentes ou atores conscientes
uma ênfase que seus oponentes estavam inclinados a criticar como o ponto
de vista “subjetivo”. Entretanto, são as pessoas como objeto da ação de
outrem, e não como sujeitos, que se enquadram em seu critério para dados
sociológicos.
Tentando resolver essa questão, proponho centralizar o recito, como no
capítulo anterior, em torno de tópicos temáticos, mas também de eventos que, em
maior ou menor grau, podem ser constituídos como dramas sociais, incluindo-se aí
aqueles que deles participaram, contribuindo para as peculiaridades de seu
desenrolar. Desse modo, uma breve apresentação das principais pessoas com quem
tive a oportunidade de interagir durante os meses que freqüentei o 19º BPM é
central para uma melhor compreensão do panorama, e das cenas aqui descritas.
136
Saulo
Saulo foi bombeiro por 23 anos, tendo sido reformado e depois contratado
pela Assegura. É diabético, mas não ficou claro se havia sido reformado por conta
da doença ou se havia se aposentado por tempo de serviço. Contou-me que resolveu
voltar a trabalhar por conta das dívidas que havia contraído com bancos de
empréstimo, impossíveis de saldar com o que sobrava da renda mensal familiar.
Essa situação não era exclusiva dele, as dívidas e os bancos de empréstimo são
assuntos recorrentes nas conversas diárias. Alguns deles haviam trabalhado
como vigias anteriormente, mas haviam passado da idade para desempenhar tal
função, tendo encontrado na função de operador de câmeras um modo substitutivo
de complementar a aposentadoria.
Conhecia bem seu serviço e era reconhecidamente sério em sua realização,
sendo o único que eu via constantemente chamar a atenção dos colegas em razão
da postura de trabalho. Em seu turno desempenhava a função de responsável,
tendo especial zelo e cuidado pelo preenchimento da “brochura”, além de carregar
um curioso caderninho, onde anotava informações que “pescava” nas chamadas
policiais, placas de carros que lhe pareciam suspeitos ou nomes que lhe
despertavam a atenção. De todas as pessoas que vi trabalhando, tanto no CCC
quanto no 19º BPM, Saulo era o que o fazia com maior empenho, demonstrado de
várias formas, seja pela preocupação com o horário, a fiscalização que impunha aos
companheiros, as constantes anotações ou a forma como operava as câmeras
enquanto conversava comigo.
Suas opiniões eram das mais moderadas entre os operadores, tendo me
confiado ser ―eleitor do Lula‖, e contrário ―à brutalidade dos policiais, à maneira
como eles acham que favelado e pobre tem que levar porrada‖. Morava em área sob
137
domínio de milícias, e sempre que possível demonstrava estar em completo
desacordo com estas:
no meu bairro, se souberem que é ex-bombeiro ou ex-policial eles instalam
Gatonet
168
de graça na sua casa. Agora eu não, nem digo nada, porque vão te
dar isso, mas um dia também podem pedir alguma coisa, e aí? Se envolver
nisso não vale a pena, por causa de TV a cabo ainda. Sempre vivi sem,
minhas filhas até queriam, mas não vou ficar me sujando por causa de
televisão. Não concordo, acho errado e pronto! Não tem diferença nenhuma
para bandido, eu acho que é até pior, porque bombeiro e policial era para ser
exemplo de gente honesta.
Heleno
Logo que comecei a freqüentar a sala de operações, Heleno estava de licença
médica, e só o conheci após três semanas de trabalho de campo. Figura controversa
e imponente, também é sempre responsável pelo serviço em seu turno, e logo no
primeiro contato já foi mostrando suas credenciais: ―na época da revolução
169
,
trabalhei na repressão me informou ele, para logo em seguida deixar claras suas
idéias: ―o que es faltando é pulso firme, naquela época o tinha nada disso que
tem agora, a gente agia, não deixava.‖ Prega soluções violentas e definitivas para os
problemas, conserva idéias firmes, como o pulso que tanto fala. Contou que seu
filho - ―o mais novo, é advogado, passou em primeiro no concurso da OAB‖ dizia
cheio de orgulho paterno - sempre discutia com ele tentando transformar sua
maneira de pensar, mas não surtia efeito, sua experiência de vida o levava a
concluir que tudo aquilo de ―direitos humanos‖ era uma perversão.
Devíamos era ter matado todos esses caras, esses políticos, na época da
revolução. Gabeira, Brizola... esse voltou pra ser governador e mandou a
polícia não subir o morro, não prender traficante... aí é que ficou assim, como
está hoje. O outro é um veado e maconheiro, precisa dizer mais alguma
coisa?
Sua trajetória é tortuosa, mas surpreendentemente não foi policial. Havia
sido do Exército por pouco tempo, depois foi bombeiro, tendo trabalhado mais de
168
Sistema de TV a cabo clandestino, no Rio de Janeiro controlado pelas milícias. Conta com esquema
bem organizado e vasta clientela.
169
Ditadura militar sob a qual viveu o Brasil de 1964 a 1985.
138
duas décadas no GMAR
170
. Trabalhou também, depois de tudo isso, muitos anos
nos Anjos do Asfalto, na Serra das Araras. Seu discurso, sempre pontuado de
assassinatos e violência, contrasta curiosamente com suas atividades de
praticamente toda a vida, realizando salvamentos. Faz questão também de contar
suas histórias de juventude, seu gosto pelas mulheres, suas muitas aventuras na
vida. Apesar de o concordar com ele em praticamente nada, tenho que confessar
que é uma figura cativante e fascinante. Sem dúvida um exemplo de liderança
carismática entre os operadores.
171
Teodoro
Policial reformado, Teodoro substituía Heleno como responsável nas
primeiras vezes que visitei a sala de operações, tendo passado então bastante
tempo conversando comigo. Sempre tentava me mostrar vídeos de arquivo, ou
procurava na “brochura” se alguma cena interessante havia sido captada
recentemente. Tinha grandes dificuldades no manejo do computador, sendo, no
entanto, bastante insistente e decidido, e parecia sempre saber o que fazer, apesar
da falta de presteza. Assim como Saulo, era um dos mais cuidadosos no
preenchimento da “brochura”, e sempre identificava falhas de colegas que o faziam
de modo menos atento e competente, ou apenas mais relapso.
Teodoro era muito grato à Assegura, como teve a oportunidade de me revelar
em duas ocasiões distintas, não somente pelo posto de operador e o pagamento que
recebia, mas principalmente por estar enfrentando problemas sérios de saúde e
170
Grupamento Marìtimo do Corpo de Bombeiro, vulgarmente chamados de “salva-vidas”.
171
Uma reflexão posterior sobre a relação que estabeleci com Heleno, e sobre sua própria figura, foi a
de que a velhice, assim como a infância, acaba por humanizar as pessoas. As idades mais tenras e as
mais avançadas guardam mesmo grandes semelhanças...
139
contar com o apoio psicológico e material da fundação
172
. Ao final de meu trabalho
de campo, às vésperas da viagem para cumprir parte do doutorado no exterior,
Teodoro estava com delicada operação na próstata marcada para o mês seguinte.
Waldemar
Waldemar era um policial não reformado, mas aposentado por tempo de
serviço. Inicialmente se mostrou muito desconfiado com a minha presença e
desconfortável diante do meu caderno de campo. Com o tempo conquistei um pouco
mais sua confiança, e tivemos boas conversas. Uma vez que resolvi anotar uma
idéia que tinha me parecido interessante ele não se conteve, perguntando o que
estava anotando e pedindo para ver o caderno: mostrei-o, entretanto de modo
rápido demais para que minha “caligrafia de campo” fosse decifrada, ainda mais por
um senhor de aproximadamente setenta anos. Mas depois disso achei melhor
deixar as anotações para quando saísse da sala.
Contou que seu pai era muito rigoroso, e como era funcionário da Light, batia
nos filhos com corda de bonde, e que ―a por isso, quando eu trabalhava como
polícia, na rua, eu era o cão!‖ Mais de uma vez conversamos sobre o policiamento, e
num tom eminentemente nostálgico, reclamava da postura dos policiais que
trabalhavam no 19º BPM dizendo que não conhecia mais a polícia hoje, e que tudo
tinha mudado.
Quando me inscrevi para entrar na polícia foram até a minha casa investigar,
perguntar pros vizinhos, ver a família. Hoje qualquer um, qualquer um
mesmo, entra, é querer... também, com o salário que pagam não para
exigir muita coisa...
A mudança veio com o Brizola, perderam o respeito pela polícia. Antes a
gente chegava botando moral, ele entrou e a gente tinha que pedir “por
favor” pra mostrarem os documentos. A polìcia prendia, botava no camburão,
levava pro batalhão e fazia parte do serviço lá, interrogava. Quando levava
para a delegacia tava com mais da metade do trabalho feito, muitas vezes
172
Precisava de remédios caríssimos e os obtinha gratuitamente por meio da assistência social da
Assegura.
140
já entregava prontinho pra polícia civil. Antes era como se fosse uma polícia,
uns fardados e os outros paisanos, mas estava todo mundo junto. Hoje não...
Gil
Ex-bombeiro hipertenso, muito falante e simpático, tinha especial apreço por
contar casos e histórias. Seu grande senso de humor versava constantemente sobre
a velhice, a homossexualidade e doenças, além do sempre presente tema da
impotência sexual, a mais constante brincadeira entre eles. Fazia questão de
afirmar muitas vezes que adorava História, tendo tentado vestibular para a UFRJ e
iniciado duas vezes o curso em faculdades particulares. Seu interesse por História,
ciência e cultura o diferenciava dos demais, levando os colegas especialmente
Charles - a gozarem-no cada vez que decidia usar um exemplo mais distante da
realidade prática imediata, o chamando de veado, fato que o divertia ainda mais:
―se pra vocês ser veado é ter cultura, não ser esses velhos rabugentos e broxas que
só entendem de polícia, eno sou veado mesmo.‖
Sua filha estava terminando o mestrado em microbiologia, fato que me
contou de forma repetida, ressaltando que por isso entendia meu trabalho, sabia o
que era escrever uma tese.
Agenor
Também bombeiro reformado, tinha uma grande cicatriz no braço esquerdo,
estando seus movimentos ligeiramente prejudicados, provavelmente em função de
um acidente. Havia chegado ao posto de primeiro sargento, com isso sendo o “mais
antigo” na hierarquia militar entre os operadores. Poucas vezes o vi demonstrando
atenção no monitoramento, sendo muito disperso, sempre se oferecia para ir à
padaria buscar um “lanche” para os colegas (bolo de fubá e pão doce eram, na
maior parte das vezes, o cardápio), ocasião que sempre aproveitava para apostar em
141
alguma loteria. Também aceitou o trabalho porque precisava de dinheiro, mas
conforme me contou, teve sua motocicleta roubada pouco depois de deixar o
batalhão, ao atravessar o túnel que liga Copacabana a Botafogo, complicando ainda
mais sua situação financeira (―tinha acabado de comprar, semi-nova, mas sem
seguro...‖).
Era com freqüência responsável pelo serviço em seu turno, e seus constantes
erros no preenchimento da brochura” eram sempre comentados, em especial por
Teodoro, mas também presenciei Saulo tocando no assunto.
Xavier
Ex-policial militar, um dos mais velhos entre os operadores aproximava-se
seguramente dos oitenta anos - tinha opiniões firmes quanto à necessidade de
repressão, e constantemente criticava a Secretaria de Segurança Pública por
interferir em excesso no trabalho de monitoramento dos operadores. Era um dos
que eu considerava mais atentos na observação das imagens, e mais ativos na
operação das câmeras, que procurava comandar ao invés de colocar no modo
automático, como muitos de seus colegas.
Nélson
Meu contato com ele ocorreu apenas no último mês e meio de pesquisa,
ocasião em que começava no serviço de monitoramento. Havia sido colega de Saulo
no Corpo de Bombeiros, tendo também trabalhado como segurança junto com
Teodoro. Não tinha nenhum conhecimento de informática, nunca antes tendo
mexido em um computador, seu treinamento limitou-se às instruções mais básicas
dadas pelos colegas. Como me disse uma vez:
nem nisso aqui (mostrou o mouse do computador, que tinha nas mãos)
nunca peguei, até comprei um daqueles pequenos pra minha filha, que
142
precisava para a faculdade, mas nunca mexi. E é difícil, tem que ter
paciência. Para você ver, não estava me acertando com esse troço (o mouse)
de jeito nenhum, até que o Teodoro, que é canhoto como eu, deu umas dicas.
Aí melhorou 100%!
Contou que tinha aceitado o emprego para cobrir o empréstimo que pegou
para pagar a formatura da filha em Pedagogia. Esta parece ser seu grande orgulho,
falando nela com freqüência. É o único que mora na Zona Sul, na Rua Álvaro
Ramos, em Botafogo, parecendo ser, entretanto, da mesma classe econômica que os
outros. Tabagista, sempre sai para fumar, no meio do expediente ou após o almoço,
despertando queixas e comentários irônicos por parte de Saulo, ele próprio ex-
fumante. Não estava mais trabalhando alguns anos, o que o deixava com
dificuldades em seguir os horários:
estava acostumado a acordar sempre às sete da manhã, e a dormir depois do
almoço, então essa hora sinto muito sono, a cabeça quase não responde. Mas
estou me reacostumando.
Charles
De idade mais avançada que a maioria de seus colegas (aparentava ter
passado dos oitenta anos), nunca soube seu verdadeiro nome, que por todos era
chamado por seu jocoso apelido, Charles Broxa, oriundo da semelhança física que
guardava com o ator americano Charles Bronson, em junção com a onipresença das
troças em torno da impotência sexual. Ex-policial militar, ele era o principal
parceiro, e alvo, de Gil nas constantes piadas e brincadeiras que fazia do turno
deles sempre o mais animado e engraçado. Tinha especial predileção por
comentários depreciativos em torno da velhice, e grande implicância com as
demonstrações de erudição de Gil. Apesar da descontração, o vi com freqüência
monitorando algum suspeito de perto e de forma atenta.
143
Chirriú
Não consegui descobrir se havia sido bombeiro ou policial, pois apesar de
encontrá-lo diversas vezes nunca conversamos. Nosso único contato se resumiu a
uma pergunta desconfiada: ―o que você tanto anota nesse caderninho?‖. Respondi
que não era nada demais, apenas material para minha tese, resposta que se não lhe
satisfez ao menos bastou para que desistisse de alongar o diálogo.
Sua aparência destoava consideravelmente da de seus colegas. Utilizava
roupas excêntricas, além de cabelos tingidos, o que provocava sempre a reação bem
humorada dos companheiros de serviço. Passei bastante tempo a observá-lo,
interessado por sua falta completa de concentração no trabalho: passava
longuíssimos minutos trocando mensagens por celular, tinha o tempo todo um fone
nos ouvidos e por vezes cochilava, o que pelo menos uma vez lhe rendeu uma forte
repreensão por parte de Saulo. Nesse dia, Chirriú manteve-se o resto da tarde com
expressão fechada, porém desperto.
Salgado
Subtenente da PM ainda na ativa, Salgado não era operador de câmeras, mas
despachador, encarregado de receber as ligações do COPOM e transmiti-las aos
policiais nas ruas e aos operadores do monitoramento. Corpulento e calvo, ele faz o
tipo brincalhão, aplicando constantemente pequenos trotes nas pessoas, ou apenas
botando apelidos nada simpáticos em todos, como “boca de moréia”, “sexta-feira
13”, “cabeça de cenoura”. Em minha primeira visita, chamou-me ao telefone,
dizendo que queriam falar comigo. Atendi e, obviamente, estava mudo. Risada
generalizada, e a frase de consolação de Saulo: ―não liga não, é porque você é novo
aqui, tem que passar por essas brincadeiras‖. Depois me chamou para sentar ao
seu lado (―é pra gente se conhecer melhor!‖, disse imitando um olhar afeminado).
144
Após algum tempo sem saber como reagir e diante de sua insistência, acabei indo
sentar na cadeira ao seu lado, na bancada traseira. As indagações habituais
surgiram: quem eu era, de onde eu vinha, qual meu interesse ali. Perguntou se eu
conhecia o pessoal do Instituto de Segurança Pública no que respondi que apenas
alguns sociólogos. Ele trabalhou lá por anos, conhecia os acadêmicos e seu
discurso. Parecia até ser bastante simpático a eles. Falou-me, com argumentos
estatísticos, sobre o absurdo que considerava a política de enfrentamento armado
nas favelas. Suas palavras em nada me lembravam os estereótipos policiais que
por vezes encontramos, tampouco refletia o que alguns chamam de ethos ou cultura
policial. Elogiou a antiga diretora do ISP, Ana Paula Mendes de Miranda: entendia
tudo de psicologia, antropologia, estatística... Mas por fim confessou que gostava
mesmo era das duas sociólogas com quem havia trabalhado diretamente: ―lindas,
você precisa ver‖! O subtenente Salgado, como não podia deixar de ser, implicou
com meu caderno de campo, e me comparou a alguma personagem de novela que
estava sempre anotando tudo
173
. Quis ver o que eu tanto escrevia, mas como não
podia deixar de ser, mostrei meio de gozação, de longe e rápido. Outra polêmica em
que me envolveu foi a do “lanche”, que acabei me comprometendo a levar da
próxima vez que fosse. Desde então, sempre levei algum petisco para que eles
lanchassem, por mais que tenham me dito que não precisava e que era apenas
gozação de Salgado. Não via problemas, apenas um ato de reciprocidade de um
pesquisador que invadia o ambiente de trabalho daquelas pessoas e passava a se
interessar por elas. Além de ser, como pude comprovar, um passo infalível em
direção à simpatia dos operadores, cujo lanche era a principal distração durante o
turno de serviço.
173
Como pude perceber, Salgado é grande apreciador de novelas: “sou casado, tenho filha, tenho
que assistir todas elas. Se não gostasse estava ferrado”.
145
O subtenente tinha especial apreço por histórias pornográficas e
escatológicas, mostrando sempre muito entusiasmo em revelá-las e, como Gustavo
no CCC, com a capacidade de aglutinar e implicar pessoas em suas conversas.
Barnabé
Cabo também da ativa, sempre implicava comigo, e por algumas vezes
buscava deos na Internet para me mostrar. Era, com Ceará e com o técnico de
informática, Fábio, um dos mais jovens dentre os que trabalhavam no COBAT do
19º BPM, e era considerado por Saulo um dos melhores despachadores (junto com
Salgado, com quem dividia o turno do serviço na maior parte das vezes), pois
sempre passava com detalhes as informações aos operadores.
Ceará
Única policial feminina que trabalhava na sala de operações, ela era
constantemente alvo de galanteios por parte dos operadores, sempre recebendo
“presentes” quando um destes retornava da padaria onde compravam lanches no
meio da manhã ou da tarde. Passava muito tempo conversando ao telefone, e
parecia não ter constrangimentos em palestrar alto com amigas, comumente
assuntos relativos a relacionamentos, com seu namorado ou com familiares.
Quando está presente na sala o ambiente toma ares diferentes, dominado por sua
voz ao telefone e pelo teor eminentemente feminino de suas conversas.
Amiguinho
O simpático sargento que habitualmente dividia o serviço com Ceará era por
todos chamado de Amiguinho. Magro, baixo e calvo, em pouco tempo pude
perceber o porquê: ele chamava a todos que adentravam a sala ou ligavam para o
146
telefone ou central de rádio da polìcia de “amiguinho”. Não parece ter vergonha, e
a impressão de gozar do respeito dos colegas. Saulo, no entanto, reclamava com
freqüência do desinteresse, que marcava tanto ele como sua colega de turno, em
passar as informações recebidas por telefone ou rádio aos operadores de câmeras.
“Brochura”
A “brochura”
174
merece também certo destaque, e mesmo se não chega a se
constituir efetivamente como um personagem, deve ser tratada como um objeto com
agência, nos moldes em que estes vêm sendo discutidos pela bibliografia
antropológica contemporânea
175
.
Mesmo dispondo dos mais avançados recursos tecnológicos da polícia
militar, todo o registro do serviço é feito de forma “artesanal”, com o preenchimento
cuidadoso de um livro de atas, com informações sobre possíveis ocorrências, sobre
o estado dos computadores, a movimentação externa dos operadores (quando um
dos computadores está inoperante, um dos quatro sempre está liberado de ficar
“monitorando”). O responsável pelo serviço deve “fechar a brochura” e assi-la ao
final de cada turno. Ao término de cada semana o supervisor geral da Assegura vai
a todos os batalhões, confere as “brochuras” e “dá visto” em todas as informações e
abaixo de cada encerramento de serviço. Ao fim do mês as imagens são apagadas
dos arquivos e as “brochuras” são levadas ―pela Assegura. Os operadores não
souberam especificar o destino final de cada brochura, tendo Agenor respondido
genericamente que ―devem ficar guardadas com eles‖.
174
Vi repetidas vezes um tom irônico no pronunciamento da palavra brochura, com referências à
impotência sexual, piada constante entre eles, idosos, diabéticos, hipertensos...
175
Para Alfred Gell (1998), por exemplo, os objetos são agentes secundários, atuando em conjunção
com associados humanos específicos, os agentes primários. Os artefatos adquirem tal agência
secundária uma vez imiscuídos nas relações sociais. Assim, os agentes primários são seres
intencionais categoricamente distintos de meras coisas, enquanto os agentes secundários são
constitdos por objetos, através dos quais os agentes primários distribuem sua agência no meio
causal, tornando-a deste modo eficaz.
147
É curioso notar a recorrência da tradição cartorária no meio policial
brasileiro, questão constantemente ressaltada por Kant de Lima, fazendo que as
informações tenham menor circulação e sejam mais facilmente apropriadas de
forma pessoal. A prática usual de apagar imagens que haviam sido gravadas e
armazenadas como significativas, assim como o desconhecimento do destino
daquelas informações, também são significativas disso. Nem mesmo os processos
de informatização dos bancos de dados da polícia (como o Programa Delegacia Legal
ou o processo que pude acompanhar de perto da modernização do banco de laudos
periciais) parecem capazes de mudar esse panorama, fazendo com que o
videomonitoramento oficial mantenha a tendência de apropriação pessoal de
informações, ou ao menos de falta de accountability.
III.4 - Localização das câmeras
Logo na minha primeira visita, Saulo, ao contrário do que ocorrera no
encontro com o coordenador no CCC, foi me mostrar no mapa, e depois ao vivo
através de imagens, a localização das catorze câmeras instaladas na 19ª AISP. São
elas:
- 1901 (Leme Palace) posta no alto do hotel Leme Palace, na Avenida
Atlântica;
- 1902 (Iberostar) - localizada na parte de baixo do hotel, na época
desativado, mais conhecido pelo seu nome anterior, Le Méridien. A câmera fica na
Avenida Atlântica, logo após a esquina com a Rua Princesa Isabel;
- 1903 (Praça do Lido Lancaster) localizada no topo do hotel Lancaster,
passa a maior parte do tempo voltada para a Praça do Lido, local tradicionalmente
reconhecido como “dos mais perigosos” de Copacabana, tendo considerável
148
concentração de boates de strip tease e sendo notório ponto de prostituição,
contando assim com presença constante de turistas;
- 1904 (Copa D‘Or) instalada no alto do hospital Copa D‘Or, na Rua Siqueira
Campos, esta câmera tem vista frontal para a Ladeira dos Tabajaras, e lateral para
o Morro dos Cabritos, duas das favelas de Copacabana. Monitora também uma das
fronteiras entre Copacabana e Botafogo;
- 1905 (California Othon) localizada na parte frontal superior do hotel que
nome à mera, também na Avenida Atlântica, quase na esquina com a Rua
Santa Clara;
- 1906 (Rio Othon) colocada no alto do hotel Othon Palace, na esquina com
a Rua Xavier da Silveira. Fica a poucos metros da boate Help, conhecida como um
dos principais pontos de prostituição da cidade, voltado notadamente para os
turistas estrangeiros
176
;
- 1907 (Leme Palace) posicionada ao lado da mera 1901, com o
diferencial de ficar na esquina com a Rua Anchieta, conseguindo captar imagens
das favelas no bairro do Leme. As imagens, entretanto, são muito pouco nítidas,
pois a distância e os muitos obstáculos no caminho quase sempre impediam o
ajuste do foco no interior da comunidade;
- 1908 (Raul Pompéia) essa câmera fica no topo do prédio da Universidade
Estácio de Sá, logo após a saída do Túnel Freire Alvim, cruzamento das ruas
Souza Lima e Raul Pompéia. A favela do Pavão-Pavãozinho fica bem na frente,
ocupando parte considerável de seu campo de visão, sendo possível visualizá-la de
forma detalhada, em função da proximidade.
- 1909 (Lancaster) - posta ao lado da câmera 1903, permite a visualização da
praia na área do mais célebre hotel carioca, o Copacabana Palace, tradicional point
176
E que, ao longo da redação do presente trabalho foi fechada, para dar origem ao novo Museu da
Imagem e do Som.
149
gay do bairro. A entrada do hotel, contudo, não pode ser visualizada, devida às
frondosas amendoeiras que a escondem.
- 1910 instalada na sala de operações do batalhão, estava posicionada
atrás dos operadores, e me foi apontada por Saulo com um leve movimento do
pescoço e um sorriso irônico. Suas imagens não o transmitidas para eles, por ser
apenas um instrumento de fiscalização do trabalho ali realizado;
- 1911 (Cantagalo) esta câmera, localizada na Praça Eugênio Jardim, junto
à saída da estação de metrô Cantagalo, permite a visualização da parte superior da
favela de mesmo nome, e foi instalada em um prédio residencial. Monitora a
fronteira de Copacabana com a Lagoa. Waldemar me informou que era possível
enxergar toda a movimentação de uma das bocas de fumo da favela. Durante as
três primeiras semanas de trabalho ela esteve fora do ar;
- 1912 (Iberostar) localiza-se exatamente ao lado da câmera 1902;
- 1914 (Gustavo Sampaio) esta câmera foi colocada no topo de um prédio
residencial na principal rua do Leme, Gustavo Sampaio, no cruzamento desta com
a Rua Aurelino Leal. Imagino que seu intuito deveria ser o monitoramento da favela
Chapéu Mangueira, porém, após instalada, nenhum ângulo permitia sua
visualização, ficando seu campo de visão bastante restrito a uma rua estreita e com
muitas árvores, e grande quantidade de apartamentos em prédios
consideravelmente próximos.
- 1916 (Princesa Isabel/ Túnel) última câmera a ser colocada no bairro, era
considerada um exemplo de bom posicionamento, por ser capaz de cobrir um
campo de visão vasto e estratégico para a 19ª AISP, uma das fronteiras desta com a
2ª AISP, em Botafogo. A Avenida Princesa Isabel é uma das ruas com maior
movimento, sempre com intenso fluxo de veículos, terminando em um túnel (que
por si só, como um ponto de liminaridade e impureza, é capaz de representar perigo
150
e ameaça). No Túnel Novo (nome pelo qual é conhecido) já presenciei alguns
assaltos, tendo ouvido ao longo da vida repetidos relatos nesse sentido. Além desta
rua também é possível visualizar o início da Rua Barata Ribeiro, um das artérias
principais de Copacabana, e o trecho da praia onde termina, no lado oposto ao do
túnel, a avenida que nome à mera. Esta foi instalada no alto do Best Western
Rio Copa Hotel.
O posicionamento e a localização das meras era constantemente
comentado por Saulo. Em sua opinião, a escolha deveria ser feita por eles, ou ao
menos após consultá-los. ―Quem escolhe o lugar de colocar a câmera nunca sentou
aqui pra saber como é, a gente é que sabe onde vale ter mera‖. Perguntei
posteriormente a Heleno e Teodoro se achavam que deveriam ser ouvidos em
relação às novas câmeras a serem instaladas, mas estes não pareceram concordar,
dizendo ser assunto de outras pessoas, que faziam pesquisa e usavam métodos
científicos para tal decisão. Saulo também costumava reclamar da falta de poda das
árvores, que prejudicavam o monitoramento -―só favorece quem quer se esconder,
além de ser bom para a árvore: se a poda é bem feita dá força‖ – reforçando a
relação intrínseca entre luminosidade e segurança (ao mesmo tempo em que elogia
a câmera 1916, que é ―bem colocada, tem excelente visibilidade‖, reclama a poda
das árvores na Rua Barata Ribeiro). Perguntei a ele se costumava haver assaltos ali
na Princesa Isabel, no que retrucou que não, por ser uma área muito iluminada,
muito clara. Repetiu algumas vezes que à noite é tudo escuro, ―que eles não
deveriam economizar com luz numa cidade perigosa como o Rio de Janeiro‖. Assim
como no Panóptico de Bentham, o poder decorre da luz, a luminosidade aprisiona.
O escuro é invisível, portanto inseguro. Como disse Saulo, se referindo aos
bandidos: ―eles são que nem ratos, quando acende a luz todos se escondem‖.
151
III.5 - Primeira ocorrência
Estava na sala aproximadamente duas horas, quando uma chamada do
rádio da polícia informou ter sido encontrado um homem sangrando com um
revólver no colo, no banco do motorista de um veículo estacionado em frente à
Praça do Lido. Imediatamente as duas câmeras nas proximidades (1903 e 1909)
passaram a ser operadas, mostrando o local exato da ocorrência. Os dois telões do
meio passam a exibir essas imagens, e todos na sala se ocupam diretamente com
aquilo, querendo saber o que tinha acontecido. Boatos começavam a surgir. O
primeiro deles é que se trataria de uma tentativa de suicídio. O segundo é que a
vítima seria um policial. Enquanto isso o carro onde o ferido se encontrava era
cercado por policiais, que chegavam de todos os lugares, e por curiosos em geral,
que buscavam imagens ou informações sobre o que estava ocorrendo. A cena do
crime estava completamente desfeita, maculando desde o princípio as
possibilidades de trabalho da perícia legal (seria obrigação dos policiais militares na
área acautelar o local e iso-lo, “preservando a cena do crime”).
As imagens foram retransmitidas para a Secretaria de Segurança (todos na
sala de operações se referem ao CCC dessa forma), e essa informação, quase como
um aviso, foi repetida muitas vezes para os policiais que estavam na área, através
do rádio. Saulo, o responsável daquele serviço, havia dito, antes dessa
ocorrência, que era
uma forma também de controlar a ação policial, que o monitoramento era dos
dois lados. Não podia agredir, e muitas vezes os vagabundos provocam, pra
poder dizer que houve desrespeito dos direitos e essa história toda.
Não custava relembrá-los que essas imagens estavam sendo visualizadas ao vivo
por muitas pessoas e que a conduta deveria ser exemplar.
O clima de excitação na sala era visível, todos buscando informações e
comentando sobre o ocorrido. Uma viatura policial estava estacionada horas no
152
local, e mesmo assim nenhum tiro foi ouvido ou não sabiam precisar em que
momento o Gol da cor prata com o ferido havia chegado ali. Comentaram que os
dois policiais iriam ter problemas, provavelmente não estavam no local, tendo
apenas deixado o carro estacionado onde deveriam estar a postos. Eram da BPTUR.
O local foi isolado com a chegada da supervisão, um oficial da polícia cuja
presença é obrigatória em tais situações. Sua chegada foi comentada por todos.
Logo um engarrafamento começou, em parte devido ao número de pessoas
no local, mas também em função da grande quantidade de carros de polícia
parados na lateral da pista. Em instantes a Guarda Municipal precisou aparecer,
tentando organizar o fluxo. Mas davam a impressão de também estarem mais
atentos ao objeto da curiosidade geral do que ao tráfego que deviam regular.
A ambulância tardou mais do que imaginei, e quando enfim chegou foi para
constatar que a vítima já não mais vivia. Os operadores comentaram: pelo jeito que
o bombeiro olhou está morto‖. Provavelmente um olhar de experiência. Chega a
informação de que o carro é de Minas Gerais, e logo em seguida é confirmado que o
cadáver também. Sua família já estava a par do ocorrido, recebera uma ligação. A
versão que surge, diante do espanto generalizado com a rapidez da notícia, é a de
que antes de se suicidar ele teria ligado para a família. Depois começam a
conjecturar se não foi enquanto estava agonizando. Teria pedido socorro? Se assim
fosse, os policiais que deveriam estar parados no carro em frente estariam
―seriamente enrolados‖...
Uma ocorrência desse vulto certamente animava o ambiente. As brincadeiras
começaram rapidamente, e invariavelmente recaíam sobre mim. ―Que cara frio
(ou pé quente!), no primeiro dia aqui matou um!‖, falou o Cabo Barnabé,
encarregado de receber as chamadas telefônicas. ―Estou aqui há quatro meses e não
tinha visto nada, ele no primeiro dia...‖, divertiu-se Fábio, técnico de informática.
153
Num momento posterior surge a notícia de um turista morto (argentino), sem, no
entanto, proporcionar qualquer interesse dos operadores (não pude escutar, mas é
possível que fosse em uma área não monitorada). Barnabé vai então mais longe:
porra, o cara é o do Caixão, já matou dois no primeiro dia!”. “O doutor Bruno aí já
puxou dois cadáveres... estava aqui há um mês e nada!, comentou com outro
policial que havia adentrado a sala.
Em nenhum momento percebi qualquer inclinação para usar as imagens das
câmeras como elemento de investigação. Era possível obter algum dado, embora
com grau reduzido de precisão, sobre o momento em que o veículo havia chegado,
até porque algum tempo antes Saulo havia me mostrado uma viatura da polícia ali
ao voltar a câmera para aquele lugar. Ao sugerir isso a outro operador, a idéia lhe
pareceu interessante, tendo me revelado que as câmeras podem ser postas no
automático, fazendo constantemente uma varredura (escaneamento) do seu campo
de visão. Transmitida a idéia a Saulo, que lanchava, sua reação foi dizer que era
boa, e depois iria ver. Mas imagino que tenha esquecido o assunto em poucos
segundos, pois terminou seu serviço e não procurou ver nada.
III.6 - Controle (do) policial
Os repetidos alertas dados pelos policiais da sala de operações àqueles que
estavam nas proximidades de que a cena estava sendo gravada e que as imagens
eram transmitidas para a Secretaria de Segurança Pública, fornecem pistas sobre
uma das possíveis formas de utilização das câmeras de vigilância: o controle do
comportamento dos próprios policiais. A integração entre telefone, rádio e câmeras
na mesma sala, faz com que todas as ocorrências ou chamadas na área da AISP
passem pelo COBAT. Assim sendo, sempre que um policial é convocado a atuar
154
numa região que se encontre dentro do campo de visão das câmeras, sua atuação é
- ou deveria ser - acompanhada pelos operadores. O responsável pelo serviço tem a
obrigação de relatar essa movimentação na “brochura”, com o horário exato em que
o monitoramento da cena começou a ser realizado e foi encerrado.
A conseqüência imediata disso é um maior controle sobre a atividade policial,
dificultando, embora sem eliminar, práticas amplamente difundidas, como a
extorsão e a brutalidade nas abordagens a suspeitos. Contudo, esse controle opera
sob um regime diferente daquele que me havia sido apresentado no CCC e também
no projeto do Diretor de Telecomunicações (Moreira da Silva, 2004). Enquanto para
estes, um dos fatores de eficácia do monitoramento era o sigilo em torno da
localização das câmeras, na ocorrência que presenciei nesse primeiro dia, os
monitorados eram avisados de forma repetida e veemente que estavam sendo
observados, um recado indireto para que “se comportassem corretamente. São
então criadas “ilhas” de policiamento fiscalizado, nas áreas inclusas no campo de
visão das meras de monitoramento. Teodoro me mostrou uma vez um vídeo em
que dois rapazes eram revistados e presos na altura da Rua Figueiredo Magalhães
após terem sido flagrados fumando maconha pelas câmeras de vigilância,
encostados numa balisa de madeira, próxima à calçada. Comentou comigo então
que os policiais haviam sido alertados pelos operadores, ―então já chegam ali
sabendo que o podem deixar pra lá, nem pedir dinheiro. É uma situação em que
tem que levar para a delegacia”.
Contudo, continuam havendo maneiras de burlar, ou esvaziar, essa
fiscalização. Acompanhava com Waldemar a longa espera de dois motoristas
envolvidos em um acidente na Avenida Princesa Isabel pela chegada de uma viatura
com os policiais para que o boletim de ocorrência pudesse ser preenchido e os
veículos saíssem da posição perigosa na qual se encontravam. Quando esta
155
finalmente chegou, o “local foi desfeito”, e os carros levados para o lado da calçada,
à direita. Prosseguiram por alguns metros até pararem em um local em que a copa
carregada de folhas de uma amendoeira tornava impossível a visualização da rua.
Waldemar, com um meio-sorriso no rosto, me perguntou: ―sabe por quê? Para tirar
um dinheiro dele e você não ver daqui‖.
Existem, porém, formas menos sutis de fugir do olhar potencialmente
fiscalizador das câmeras, de impedir que os operadores, e todos os que se
encontram na sala de operações, vejam determinadas cenas, ou melhor, que
tenham a possibilidade de ver cenas virtuais em determinados lugares. Assim,
desde os primeiros dias no 19º BPM fui informado, e pude constatar, que as
câmeras voltadas para as favelas do bairro tinham utilização restringida por ordens
superiores e também por bloqueios provenientes das instâncias maiores de
fiscalização (ver capítulo anterior para a hierarquia da vigilância).
III.7 - ―Manda quem pode, obedece quem tem juízo‖
Das catorze câmeras instaladas na 19ª AISP, quatro estão localizadas de
modo que torne possível a visualização do interior das favelas dos dois bairros. Com
freqüência a conversa recaía sobre as constantes recomendações e alertas para que
essas câmeras fossem utilizadas com moderação, ou ao menos que evitassem a
observação direta dos morros. Quando essas diretrizes eram desrespeitadas, não
era raro que a câmera saísse do controle dos operadores no batalhão e passassem a
ser movimentada por mãos misteriosas, de quem nunca souberam ser - mas que
classificavam genericamente como ―o pessoal da Secretaria de Segurança‖ -, nem
que suas imagens deixassem de ser transmitidas. Com freqüência também
passavam horas sem movimentação nenhuma, congeladas sobre pontos neutros,
156
como telhados, paredes externas de edifícios ou placas de ruas. Dos operadores era
exigida, mais do que a capacidade de tudo ver, a capacidade de operar com um
olhar seletivo. ―Isso vocês podem olhar, isso o podem. Isso vocês podem ver, e isso
é melhor que ninguém veja
.
A razão era controversa, pois nunca havia sido explicada oficialmente, o que
fazia com que cada um deles trouxesse consigo a sua própria verdade oficial,
vislumbrável por detrás do silêncio dos superiores e graças aos anos de experiência
acumulada pelo trabalho policial, ou pelo contato próximo com este, no caso dos
ex-bombeiros.
No dia de minha chegada, Saulo explicou que parte do trabalho realizado ali
era o monitoramento de comunidades carentes”. Mostrou-me imagens da câmera
1908, de onde pude concluir que propiciavam boa visibilidade das localidades. Um
grupo de jovens fumando maconha e vigiando a subida da Ladeira Saint-Roman foi
localizado em menos de um minuto, merecendo seu comentário:
eles eso todo dia, em cima do túnel, eso sempre aí... usando drogas e
vigiando. Mas não pra fazer nada, não vai mandar o policial subir pra
pegar eles, não dá. Não pra ter enfrentamento, é triste pra quem é da
comunidade, mas o melhor que a gente faz é deixar os vagabundos em
cima.
Em um momento posterior, ele mesmo confessa que acha besteira a
colocação de câmeras monitorando as favelas, pelo fato de os policiais não poderem
agir dentro delas. Expressou opiniões contraditórias sobre o assunto, dando a
impressão de não ter uma posição formada.
Agenor me explicou que quando as imagens de uma determinada câmera
aparecem com algumas letras brancas, é porque elas estavam bloqueadas pela
Secretaria de Segurança‖, e a câmera estava com seus movimentos travados.
havia visto quando estava no CCC e na sala de operações tornei a encontrar uma
câmera assim, a 1911. Esse fato se repetiu diversas vezes. Agenor revelou que
157
desconhecia a razão oficial, mas deveria ser porque o Secretário de Segurança
Pública estava olhando e não queria que o atrapalhassem. Parecia-me pouco crível
que ele tivesse interesse em observar essa câmera por tanto tempo, pois enquanto
eu observava suas imagens, nenhum movimento foi realizado, nem nada de
interessante pôde ser visto (apenas veículos em um cruzamento, mas com um zoom
excessivo, tornando impossível uma visualização que servisse para alguma coisa).
Sobre a recomendação de não utilizar essas câmeras, Agenor respondeu que
provavelmente se devia às incursões policiais nas favelas, para depois balbuciar de
forma confusa:
senão a gente ia expor muito os policiais, porque a gente ia ver e eles iam ter
que entrar, se recebe a chamada nossa tem que ir, aí vai ter enfrentamento e
vamos expor nossos homens.
Teodoro uma vez quis me mostrar as imagens da câmera 1916, revelando
então que mais cedo a Secretaria de Segurança havia ligado pedindo para que não a
utilizassem, pois o secretário iria acompanhar suas imagens diretamente. Segundo
me disse, é comum receberem tais avisos de que determinadas câmeras estão sendo
observadas diretamente da Secretaria. ―Não custa nada avisar‖, concluiu ele.
Após o primeiro mês, fui percebendo que as versões foram se modificando, e
a preservação física dos policiais foi substituída pela necessidade de esconder
comportamentos desviantes por parte destes. E este fato gerava queixas por parte
dos operadores, pois seriam pagos para olhar, mas não podiam ver “as coisas
interessantes. Saulo, Waldemar e Teodoro um dia resolveram me mostrar o que
diziam. Focalizaram, através da 1908, a favela do Pavão-Pavãozinho, dando um
apanhado rápido de toda a visibilidade da região até aproximarem bem da escada
onde eles disseram que funcionava a “boca de fumo”. Com efeito, em poucos
segundos, a câmera sai do controle deles e passa a ser operada pelo ―pessoal da
Secretaria‖. Eles me disseram que tal procedimento é bastante freqüente, ―eles
158
sempre fazem isso quando a gente focaliza mulheres na praia ou as imagens
proibidas, quer dizer, da favela‖. Perguntei qual seria a opinião deles a respeito da
proibição de filmar a favela, no que riram, dizendo que eu devia ser muito inocente:
―com certeza tem esquema daqui‖, disse Waldemar. Saulo contou então uma
história que acontecera com ele:
você não entende porquê hein, vou te explicar então. Eu quase não fui
demitido porque flagrei uma ocorrência? O cara ligou para mim no meio do
serviço e mandou eu parar de filmar! Depois cheguei aqui no dia seguinte, e
cadê as imagens? Sumiram!
Este caso específico foi de um flagra na Praça do Lido, ao qual ele sempre se
refere como ―tráfico grande, até arma envolvida, gente importante...
177
‖. Contou
também nesse mesmo dia, de um caminhão roubado das Casas Bahia, que ele
identificou descarregando em algum ponto do Pavão-Pavãozinho, e cujas imagens
no dia seguinte já haviam desaparecido.
E de fato, numa tarde em que conversava com Saulo, entrou um policial do
serviço reservado (P2) na sala, e foi conversar com os PMs que estavam sentados na
fileira de trás. descobri que era um P2 porque foi anunciado: ―Saulo, esse aqui é
o Wando, do serviço reservado, quer saber sobre aquele negócio, daqueles pacotes
que você viu na praça‖. Saulo pareceu meio desconcertado, gaguejou e terminou por
dizer (enfatizando o que dizia com gestos de mãos): ―Aquilo esquece. Falaram que
era pra esquecer.‖ O entendimento foi tácito e ninguém insistiu no assunto. O P2
falou algo com o cabo que estava atrás e partiu. Muito tempo depois, quando as
atenções estavam voltadas para outro assunto, Saulo voltou a falar do assunto:
aqui a gente vê, mas não pode fazer nada, depende deles. A gente e
reporta, se vai fazer alguma coisa ou o, é com eles. Esse negócio do passa-
passa que eu vi pela câmera, na praça. Era tráfico, com certeza, deu pra ver
tudo, todas as pessoas. Mas esse do serviço reservado falou pra deixar pra
lá, não sei se vão fazer investigação, não dá pra saber.
177
Imagino, pelo que subentendi das insinuações de Saulo (em especial por ele ter abaixado muito o
tom de voz para falar, ficando quase inaudível), que se tratava de alguém da polícia, e o uma
personalidade pública. Mas não tenho certeza.
159
O caso escapava de sua alçada, tanto podendo se perder no emaranhado de
corrupção policial quanto proporcionar uma investigação que desbaratasse um
esquema maior. O desânimo demonstrado por ele me deu a impressão de que
desconfiava que a primeira opção era a mais crível. ―Essas coisas passam por muita
gente, se perdem...‖
De todos, entretanto, aquele que demonstrava maior indignação com a
recomendação oficial era Xavier. Para ele não fazia nenhum sentido colocarem as
câmeras, se não podiam olhar. Haviam flagrado no início movimentações
interessantes em escadarias, pessoas trafegando armadas em bocas de fumo,
policiais em ação suspeita. Começaram então a surgir as proibições.
Eles não deixam filmar, mandam ficar na praia, na praia. Pra que na
praia, me diz? A gente olha e eles logo vêm de gracinha, dizer que não pode
olhar... por quê? Devem ganhar dinheiro...
Disseram-lhe que a razão primordial das câmeras era proteger as pessoas
nas ruas, sendo o caso que mais imediatamente vinha à cabeça era o assalto.
A gente cansava de ver o pessoal fumando maconha e cheirando aqui no
morro (mostra os lugares, em cima do túnel, numa terra e numa espécie de
praça logo acima), eles falavam que não era para ver isso, era pra ver
assalto. Agora me diz, não é esse pessoal que fica cheirando que, quando
acaba a grana, tá de cuca e vem roubar pra comprar mais pó.
A câmera 1911, que estava novamente fora do ar nesse dia, teria uma visão
muito boa da favela do Cantagalo, diretamente de uma boca de fumo. Era bastante
utilizada no início, até que começaram a surgir as ordens para não olhar mais.
Durante o tempo que durou o trabalho de campo a câmera estava quase sempre
bloqueada ou fora do ar. Xavier dissera, contrariado, que era melhor fazerem isso
logo com a 1908 e a 1904 também, já que eles não podiam mais usá-las. No final
daquele dia a 1908 também estava fora do ar, merecendo o seguinte comentário de
Xavier: ―podem cair à vontade, já estão ―cortadas‖ mesmo! Qualquer dia vão cortar a
1904 também, dá pra ver favela!‖, disse ironicamente.
160
Gil havia trabalhado anteriormente no 4º BPM, e lembrou que lá duas
câmeras que vigiavam favelas haviam sido destruídas (na Barreira do Vasco e no
Tuiuti). Segundo ele, não podiam ficar assistindo muito aquelas imagens também
por causa disso, ―você acha que ninguém vai bater pros vagabundos e eles o lá,
destruir a câmera?
Em uma ocasião em que todos foram almoçar, restando na sala apenas eu e
Waldemar, este veio me dar uma opinião diferente daquela que proferira
anteriormente, na frente dos colegas. A proibição seria, nessa nova versão, para não
atrapalhar o trabalho da polícia, tanto nas investigações quanto no serviço
reservado, o que justificaria a visita e a conversa que presenciara do P2 com Saulo.
Aqui faz parte do serviço de inteligência também, mas tem sempre muita
informação em jogo, que é confidencial. Eles têm que ter cuidado para não
vazar, porque sempre tem gente pra fazer vazar. Se a gente ficasse vendo
sempre, eles ou iam atirar nas câmeras ou iam para outro lugar.
Em sua argumentação lançava mão de seus muitos anos de serviço nas
forças policiais, que em sua opinião o tornavam mais apto para compreender os
mecanismos em operação do que os colegas que haviam sido bombeiros quando
jovens.
Eu entendo a polícia porque estive lá, não estou querendo defender ninguém
não. É que esses caras não sabem nada, ficam apagando fogo e agora m
insinuar que não deixam filmar as favelas porque recebem dinheiro. Não é
nada disso!
A centralidade dessa questão é patente tanto por sua recorrência quanto pela
seriedade com que era sempre abordada. Essa impressão é ainda mais reforçada
pelo fato de todos os operadores terem estado durante a carreira profissional
submetidos ao regime hierárquico militar, onde as relações entre superiores e
subalternos é mais rígida e inegociável que no regime civil. Ao conversar numa
tarde com Nélson, enquanto este operava com grandes dificuldades e esforço a
câmera 1904, o vi fixando a imagem na Ladeira dos Tabajaras, o que o deixou
bastante nervoso, fazendo com que na tentativa nervosa de não infringir a
161
recomendação da Secretaria de Segurança ele apontasse a câmera para o céu.
Aparentemente aliviado, virou para mim e se justificou:
Posso ser novo aqui no serviço, não sei mexer direito aqui nesse troço, mas
uma coisa eu aprendi muito bem, é que a gente o pode ficar olhando
para favela, as áreas proibidas. Fazer o quê? Manda quem pode, obedece
quem tem juízo.
III.8 - ―Tem também o colírio!‖: sexualização do olhar vigilante
Além da recomendação para que as favelas não fossem observadas,
também um cuidado por parte da ―Secretaria de Segurança no sentido de impedir,
ou minimizar, a sexualização do olhar vigilante. Por mais que essa questão
tivesse surgido enquanto pesquisava o CCC, foi somente na sala de operações do
19º BPM que pude ter idéia de sua importância e amplitude.
O primeiro a “quebrar o gelo” foi Heleno, que operava a câmera 1902 e num
determinado momento aproxima a imagem de uma mulher parada de biquíni na
praia e comenta: ―aqui a gente não assalto não, tem também o colírio!‖. Não
parecia nem um pouco constrangido, além de bastante habituado àquilo.
Perguntado sobre a possibilidade de captação de imagens de sexo, Heleno se
mostrou empolgado e à vontade: ―antes, no início, a gente via muita sacanagem de
noite na areia, muita mesmo, era uma beleza. Agora está tudo escuro, não para
ver mais nada‖. Falou então que a perda de luminosidade ocorreu quando da
mudança do serviço da Telemar para a Embratel. ―Tinha era que voltar como era
antes. Até pela segurança!‖ Ele mesmo, como confessou, já tinha muitas vezes tido
relações sexuais na praia, ―quando estava duro, ou quando a mulher o valia um
motel‖. Falou que por essa razão o serviço noturno ―era animado, o pessoal o
reclamava de passar a noite aqui não. Era café e sacanagem na praia!‖.
162
Gil contou-me que quando trabalhava no batalhão de São Cristóvão
costumava olhar, na hora do almoço, o banho de sol das meninas da Vila Mimosa.
Segundo disse, era um hábito bastante conhecido entre os operadores, e muitas
vezes flagravam as mulheres completamente despidas, mas na maior parte das
vezes estavam apenas com os seios descobertos, trajando a parte de baixo dos
biquínis. Como estava muito trabalhando em Copacabana, não sabia se
continuava sendo uma prática corriqueira. Desconhecia também se atualmente o
controle sobre esse tipo de observação estava mais rígido, ou se Copacabana
contava com maior fiscalização sobre os operadores. Concluiu que provavelmente
as duas opções estavam corretas.
Apesar de todas as recomendações e medidas de controle por parte do CCC,
parece ser muito difícil impedir a sexualização do olhar dos vigilantes. O fato de ser
um trabalho desenvolvido exclusivamente por homens, em um ambiente na maior
parte do tempo exclusivamente masculino (com a exceção da presença bissexta de
Ceará, mulher policial que desempenha a função de despachadora na sala de
operações) muito provavelmente colabora para essa situação. As conversas com
freqüência giram em torno de assuntos relativos à sexualidade, seja por meio das
constantes troças em torno da homossexualidade e da impotência sexual,
especialmente dos operadores, bastante mais idosos que os policiais, ou através de
assuntos “mais sérios”, como casos de aventuras sexuais extraconjugais,
planejamento de visitas a prostíbulos, ou histórias da juventude. Gil, Heleno e
Charles, por parte dos operadores, e Salgado e Barnabé, dentre os PMs, eram
aqueles que constantemente puxavam o assunto e mais divertiam os colegas com
seus relatos. Em um dia que estava especialmente animado, Salgado passou mais
de uma hora contando histórias de sua juventude, de quando entrou na polícia e
era ainda soldado. Disse que teve muitos amantes gays e travestis, de quem
163
acumulara presentes e por vezes tirara dinheiro
178
. Contou ser prática comum
entre policiais e bombeiros ―mas isso eu o fazia não, achava já demais!‖ ter
relações sexuais com moradoras de rua: levavam pro batalhão ou pro quartel,
davam um banhozinho antes e depois comiam‖. Confessou ter se dado muito mal
uma vez, em que pegou uma doença venérea de uma enfermeira do Jacaré‖
179
que
teria acabado com seu casamento, deixado um ―clima ruim pra sempre com sua
esposa (com quem continuava, apesar disso, casado). Terminou seu rol de histórias
pré-almoço, com a seguinte reflexão:
trabalho é sempre assim, na polícia, no escritório ou no Senado. O homem é
igual em qualquer lugar, e a mulher também. Sem falar sacanagem o tempo
todo, ninguém consegue trabalhar. A diferença é que (no Senado) eles
comem lagosta, e aqui a gente, quando muito, carne assada.
Falou isso e partiu para comer sua carne assada.
Perguntei também a Saulo, Teodoro e Waldemar, quando conversávamos
sobre a proibição de filmar as favelas, se havia o mesmo tipo de controle em relação
à observação de mulheres na praia, no que o trio respondeu de forma veemente que
ultimamente tem havido um controle mais forte sim, mas que ainda dava para ―de
vez em quando tirar uma casquinha‖. ―Vamos tentar!”, conclamou Saulo dando
início a uma rápida e animada busca. Era um dia de sol, e a praia estava
medianamente cheia, fazendo com que pouco tempo decorresse até que ele achasse
o que classificou como ―uma bunda enorme, linda. Agora vamos dar aquele zoom...‖
Após alguns minutos a câmera é travada, e em seguida a imagem é congelada. O
178
De acordo com o modelo tradicional de masculinidade brasileiro, sem vida aquele que regia as
concepções dos operadores como as histórias de Salgado indicam -, o conceito moderno de
homossexualismo não faz muito sentido. As relações sexuais não ocorreriam entre dois homens, mas
entre um homem, que “come”, desempenha o papel ativo, e uma bicha, personagem feminino
encarnado pelo homossexual passivo. Desde que não seja penetrado, um homem pode manter relações
sexuais com outro homem sem que isso afete sua masculinidade. Continua sendo macho (Fry, 1982;
Fry & MacRae, 1985). Salgado, esse dia, afirmou: ―mas não sou fresco não, eu comia as bichas, nunca
dei pra nenhuma. Teve uma que até queria, um dia me arranhou todo, mas quebrei ela na porrada e
nunca mais tentou nada‖. Sua preocupação em tornar claro os papéis sexuais das relações que
mantinha com outros homens, deixa transparecer de forma clara o estigma do passivo sexual (Misse,
2005).
179
―Você acha que enfermeira é toda saudável, toda limpinha... tá lascado amizade!‖
164
programa de visualização precisou ser reiniciado, o que não causou espanto nos
operadores, que disseram ser um procedimento comum da Secretaria de
Segurança‖.
Contudo, existiam maneiras hábeis de burlar minimamente a fiscalização
dos superiores. Waldemar me contou que na semana anterior, num fim de tarde
com chuva fina, tinha flagrado através da câmera instalada no Hotel Lancaster um
casal mantendo relações sexuais embaixo de um coqueiro, não se importando com
as poucas pessoas que passavam, sempre observando a cena com curiosidade.
Explicou-me sua tática:
Foi durante o dia, mesmo, flagrei e chamei o Heleno para ver. Botamos no
cantinho da tela e ficamos só observando... não pode é botar no meio da tela,
aproximar, dar na pinta do que esfazendo. Se é um negócio discreto eles
não reclamam não, ou de repente nem vêem nada.
Através dessa mesma câmera pude observar ao vivo o acompanhamento de
um grupo de quatro mulheres que sambavam em um quiosque, tendo em sua
companhia dois homens, aparentemente turistas estrangeiros. Charles e Waldemar
se mostraram bastante animados com o pagode”, e passaram a conjecturar
histórias a partir das cenas que vislumbravam. Declaravam que não restava a
menor dúvida que se tratava de uma relação entre prostitutas e seus clientes, fato
que se confirmaria em razão dos trajes curtos que usavam as mulheres
180
, e da
aparência dos homens. Sem nenhuma razão que aparentemente justificasse isso,
decidiram gravar a cena, que já estava sendo observada há alguns minutos. ―Vamos
mostrar isso aqui para o Heleno depois!‖, disse Charles olhando para mim e
sorrindo, descontraído. Porém a tentativa não foi bem sucedida e diante da
impossibilidade de gravar a cena, os dois logo concluíram tratar-se de censura
partindo da Secretaria de Seguraa, deixando-os imediatamente apreensivos.
180
É preciso chamar a atenção para o fato de que estávamos no mês de novembro e a temperatura da
cidade era bastante elevada, próxima dos 40º C, o que fazia com que boa parte das mulheres na
cidade utilizasse roupas curtas e com pouco pano.
165
Fábio, o técnico de informática, foi chamado e logo que começou a verificar o que
houvera, uma mensagem de erro surge na tela do computador e o software é
encerrado automaticamente. ―Não é de lá não, foi problema aqui mesmo‖, proferiu,
trazendo alívio e devolvendo a descontração ao ambiente. Após a reinicialização do
programa, outros dois policiais que estavam na sala se juntaram a mim, e aos
operadores na apreciação do ―pagode‖. ―Hoje a sessão da tarde está boa!, disse
Charles, no que completou Waldemar: ―vamos ter que cobrar ingresso agora...‖
III.9 - Problemas Técnicos
Nessa tarde, bio, após breve examinada no computador, concluiu que o
problema que causara o travamento do programa de visualização das imagens
devia-se a um mau-contato no cabo de transmissão de dados. Ligou então para a
Comtex reportando a necessidade de trocar o material defeituoso. Foi então
informado que, por questões burocráticas
181
, todo material de informática era
comprado em São Paulo, e que após ser enviado para o Rio de Janeiro seria
encaminhado ao 14º BPM, localizado em Bangu, onde ficava o responsável pelo
setor de informática, aproximadamente a 52 km do batalhão de Copacabana. O
funcionário da Comtex não deu nenhum prazo, apenas disse que avisaria quando
chegasse, e que Fábio deveria buscá-lo.
Não me surpreendi dessa vez com o procedimento, que logo que comecei a
freqüentar a sala de operações do 19º BPM havia visto algo semelhante acontecer.
Nas primeiras semanas de campo apenas três dos quatro computadores estavam
operantes, que um deles permanecia desligado por conta de um problema na
181
O contrato oficial é com uma empresa de São Paulo, que por sua vez contrata uma assistência
técnica, terceirizada, no Rio de Janeiro. Esta, no entanto, não pode comprar as peças de que
necessita, apenas fazer o pedido, que deve ser atendido pela empresa oficialmente contratada, em São
Paulo, que posteriormente as enviará para o Rio.
166
placa de vídeo. Também tiveram que esperar um longo tempo para que a peça
faltante fosse enviada de São Paulo e pudesse ser instalada pelo técnico. Por essa
mesma razão Saulo havia sido orientado a somente utilizar o projetor (data show)
se houvesse real necessidade, ―porque se queimasse uma lâmpada daquelas, era
meses para trocarem, além de ser caríssima‖, como disse antes.
Outra questão técnica importante é relativa à transmissão das imagens aos
computadores instalados na sala de operações. Os dados das câmeras são enviados
através de ondas de rádio, o que na maior parte do tempo não representa um
problema na 19ª AISP, que quase todas estão instaladas no topo de edifícios
altos. Entretanto, quando da instalação dos sistemas de monitoramento em outros
bairros da cidade, muitas vezes essa tecnologia de transmissão de dados se
mostrou pouco eficiente. De acordo com Fábio, o problema seria facilmente
solucionável através da mudança do meio de transmissão para a fibra ótica, o que,
contudo, encareceria o sistema. No entanto, viabilizaria a implementação de
câmeras em locais que hoje uma dificuldade maior em obter boas imagens, ao
mesmo tempo em que reduziria de modo significativo as constantes panes que
acometem atualmente as câmeras da polícia no Rio de Janeiro.
Porém, mesmo nos bairros do Leme e de Copacabana, quando chove forte é
normal que as câmeras saiam do ar, voltando de forma intermitente, sempre por
apenas alguns minutos, até que o tempo melhore. A transmissão das imagens por
ondas de rádio seria a causa desses problemas: ―quando tem tempestade então, com
raios, é que não dá pra ver nada, fica sumindo o tempo todo‖, explicou Agenor.
III.10 - Automatismos
Desde as visitas ao CCC podia observar que algumas das câmeras se
movimentavam, ou eram movimentadas, de modo excessivamente rápido e
167
aparentemente aleatório, não apenas impedindo um monitoramento mais atento,
como praticamente inutilizando-a para qualquer tipo de observação, mesmo a mais
distraída. Com o tempo passei a desconfiar que as câmeras estivessem sendo
operadas de outro modo que o por mãos humanas, que muitas vezes uma
determinada seqüência de lugares era visualizada em intervalos de tempo regulares,
de duração variável.
O videomonitoramento, trabalho apenas recentemente atribuído à polícia, vai
aos poucos estabelecendo suas micro-práticas cotidianas, seus padrões relacionais
e de operacionalidade que determinam em que realmente ele se constitui. Chegando
à sala de operações do 19º BPM, logo pude observar que o funcionamento das
câmeras de modo automático é uma prática comum, e que recorrer a esse
expediente era mais usual do que não o fazê-lo. E pude então compreender com
clareza o efeito que essa possibilidade técnica operacional impunha à dinâmica do
monitoramento realizado e que vem se consolidando como parte constituinte do
trabalho policial, com seus hábitos e tradições sendo formadas.
No dia em que conheci Teodoro, este me disse que iria ―me explicar como
funciona o monitoramento‖. Passou então à explanação do mecanismo de
funcionamento automático das câmeras, com a programação prévia da trajetória
que estas deveriam percorrer a cada vez e o tempo que devem ficar paradas em
cada ponto. Uma vez realizada essa programação, bastará um clique do mouse
sobre o ícone automático para que o percurso volte a se repetir indefinidamente.
Cada câmera pode passar o dia inteiro sendo movimentada sem que ninguém
preste atenção em suas imagens ou mesmo olhe para o monitor.
Agenor afirmou que o importante do sistema era ―manter sempre as câmeras
no automático, elas ficam rodando e para ver um pouco de tudo ao mesmo tempo.
Se a gente vê alguma coisa acontecendo, aí para e monitora. Deveriam então apenas
168
observar se surgiam aglomerões, confusões: ―ver alguma ocorrência é uma dádiva,
muito difícil mesmo!‖ Assim que algo de interessante é identificado eles congelariam
a câmera para que esta não fosse mais movimentada automaticamente. Essa
proposta de utilização, a meu ver, é impossível de ser posta em prática. Primeiro
porque o mecanismo de funcionamento automático permite movimentações muito
lentas - que podem demorar muitos minutos para se completar, o que faz com que
a possibilidade de algo ser captado por acaso pelas câmeras seja muito pequena -
ou por demais ligeiras, tornando difícil seu acompanhamento pelo foco da câmera.
Na maior parte das vezes, entretanto, o automático está programado para cobrir
uma pequena área apenas, fazendo movimentos mais curtos e demorando menos
tempo em cada ponto, o que faz também com que o campo de visão da câmera seja
amplamente subutilizado. Quando juntamos essa mesma situação em treze
câmeras, a confusão e o volume de imagens o tão grandes que não se nada. A
observação de apenas uma câmera no automático já fragmenta significativamente
todas as cenas captadas, prejudicando muito a concentração no que deveria ser
monitorado. Esse fenômeno é facilmente observável na sala de operações, entre os
operadores. Quando não estão eles mesmos comandando as câmeras, dificilmente
prestam atenção nas imagens.
III.11 - Suspeição à brasileira: racismo e preconceito envergonhado
Em meu primeiro dia, Saulo resolveu me explicar o serviço enquanto
mostrava o funcionamento das câmeras. Abriu a imagem da 1906, indo diretamente
a um grupo de homens (todos negros) sentados à beira do mar, com um deles, o
que estava em e de costas para o mar, virado para a câmera, segurando uma
lata que parecia ser de cerveja. O operador comenta que os homens na praia
169
normalmente estão bebendo, mas muitas vezes também usando drogas. Nesses
casos eles devem avisar aos policiais que estiverem mais próximos, motorizados ou
a pé, fardados ou a paisana, para que intervenham. Porém confessou que na maior
parte das vezes, os próprios PMs dizem para os operadores ―deixarem pra lá, eso
fumando maconha, nem dá em nada... Esse fato pareceu desagradá-lo: ―Eu
vejo, não posso descer daqui e prender ninguém”. Depois disso passa a acompanhar
um negro descalço e sem camisa no calçadão, bastante magro. O homem estava
catando latinhas nas lixeiras, mas segundo Saulo isso não é razão para não
desconfiar dele:
o nosso olhar tem que ser sempre maldoso. A praia está cheia de vagabundos,
e também de turistas. Eles vão logo se aproveitar. É uma bolsa, uma câmera,
um relógio... Se virem dando sopa vão pegar... E não é porque é preto, é
branco, pode ser qualquer um... A gente percebe pela atitude, pelo modo de
estar ali...
Vale, no entanto, ressaltar que na grande maioria das vezes os homens
negros despertam maior atenção no monitoramento, mesmo se o discurso oficial
nunca o admite. No primeiro caso, alguns outros grupos de pessoas estavam na
praia, entretanto o alvo do olhar vigilante foi o único deles composto exclusivamente
por homens negros. Saulo, apesar de ressaltar que não era a cor da pele que
influenciava na decisão de vigiar ou não o comportamento de uma pessoa na rua,
havia suspeitado do comportamento apenas de homens jovens e negros. Pude
perceber que o se tratava de uma coincidência, e mesmo entre os operadores
negros, como Teodoro, Waldemar e Maxwell, o recorte “racial”, recorrente nas
abordagens e no processo de suspeição, policial ou cidadã, é reproduzido, ou
mesmo reforçado pela implantação da videovigilância nos espaços públicos.
Essa questão surgiu diretamente também em outros discursos, sempre com
o cuidado, bastante característico do tratamento à brasileira do assunto, de
ressaltar o não racismo das opiniões racistas. Para Heleno, por exemplo, o trabalho
170
ali era mais de prevenção e acompanhamento do que de acaso, pela dificuldade de
obter algum flagrante dessa forma. Ao falar isso, passou a acompanhar também um
catador de latas na praia, negro, dizendo que ele estava ali, aparentemente
trabalhando, mas na primeira oportunidade roubaria alguém. Por isso precisava ser
acompanhado, estava na eminência de cometer um crime. Expôs-me uma série de
idéias que culminavam na ligação intrínseca entre pobreza e propensão à
criminalidade, numa visão bastante depreciativa ―dos pobres‖ de maneira geral, e
em especial dos moradores da favela ou de rua. Encerra o raciocínio dizendo não
ser preconceituoso, mas realista. Cita então a Lapa, no fim da madrugada:
não sou racista não, mas é uma crioulada de dar nojo. Minha família tem um
apartamento ali na Augusto Severo, defronte a Praça Paris. comi muita
mulher ali, mas hoje tenho vergonha, está um negócio horrível.
Além do aspecto relativo à cor da pele, outra questão que se pode inferir
desses exemplos é a do preconceito contra os catadores de lata. Estes são vistos
como ladrões em potencial disfarçados, o gozam do status de trabalhadores,
estariam ali esperando apenas um descuido para cometer um crime. E pude através
da observação perceber que além dos catadores, outras ocupações informais, como
guardador de carros (quando não uniformizados), também despertam maior
atenção dos operadores mais atentos. Além dos meninos de rua, também facilmente
enquadrados como um dos principais “objetos” da vigilância. Em contrapartida, a
atividade informal mais praticada da cidade, a de camelô, é classificada como
trabalho
182
, como disse Saulo, criticando a atuação da Guarda Municipal: eles
querem perseguir trabalhador, que sustenta a família com suor igual a eles‖. Os
ambulantes da praia, tanto nas areias quanto no calçadão, também não apareciam
como alvo específico do monitoramento.
182
Sobre a difundida classificação dicotômica entre bandido e trabalhador, ver Zaluar (2000).
171
Sobre os ―gringos‖ também as opiniões são marcadamente fortes. Eles me
foram descritos por Saulo como “otários”,
estes a gente conhece até pelo jeito de andar, de olhar mesmo. No outro
dia, um chegou no meio de um grupo de pivetes, deu a câmera e pediu para
tirarem uma foto. Até devem ter tirado, mas ele nunca vai ver. Fugiram com a
máquina, né... Mas ele pediu!
As estatísticas, a vivência e a observação de Copacabana não deixam dúvidas
de que os turistas são alvos fáceis para os ―vagabundos‖ do bairro. Mas pude logo
notar que também o são para as câmeras. A prioridade dada à proteção aos
estrangeiros na cidade desagrada visivelmente a alguns operadores, porém a
possibilidade maior de constituir um flagrante - em função de sua ignorância dos
códigos e locais de perigo no bairro e também por serem visados por ladrões faz
com que seu monitoramento seja realizado com freqüência. Mesmo por aqueles que
criticavam a prioridade dada à proteção do turista. Isso vale tanto para a
constituição na prática do trabalho dos operadores, quanto para as recomendações
e decisões estratégicas dos elaboradores e executores dessa política de segurança.
Heleno reclamava da quantidade exagerada de câmeras na orla, por vezes com duas
no mesmo hotel, e de sua ausência nas principais artérias do bairro onde maior
circulação de pessoas, e em especial dos muitos idosos também alvo de ladrões e
pivetes - que constituem a população mais vulnerável de Copacabana e do Leme:
onde precisa mais, na (Avenida) Nossa Senhora (de Copacabana), na (Rua)
Barata Ribeiro, não tem câmera. tem na (Avenida) Atlântica, porque a
preocupação é com o turista, não com os aposentados que vivem no bairro
183
.
III.12 - Dinâmicas
Apesar de muito recorrente, o monitoramento automático é apenas uma das
possíveis dinâmicas de realização do trabalho pelos operadores. Também presenciei
183
Aporque sua perspectiva também é a do idoso aposentado, o que influi sem dúvida na própria
percepção e interpretação do sistema de videovigilância do qual faz parte.
172
observações interessadas de imagens, acompanhamentos demorados de cenas e
suspeições diante de determinados comportamentos ou figuras. Por vezes
intervinha e tentava fazer perguntas, e por outras preferia apenas observar atenta e
discretamente o monitoramento enquanto era realizado, sem distrair ou atrapalhar
o monitorador. E acontecia também com certa freqüência de ser chamado por
algum operador para acompanhar uma cena de maior interesse ou que despertasse
alguma suspeita. Em qualquer dessas situações etnográficas, para mim ficava
patente a importância da capacidade, interesse e dedicação individual para o
estabelecimento de um monitoramento mais efetivo ou eminentemente burocrático.
I
Em dias de sol e calor intenso, bastante comuns no Rio de Janeiro na época
em que realizei o trabalho de campo no 19º BPM, o monitoramento se concentrava
na praia
184
. Quando esta estava cheia, a dificuldade em ver qualquer coisa,
tamanho era o número de pessoas, era marcante e impossível de ser ignorada.
Waldemar me explicou que naquela situação o monitoramento deve ser feito mais à
distância, pois de perto não daria pra ver nada. mais de longe, me explicou,
―qualquer coisa abre logo um clarão, começa a correr gente, a gente manda
alguém‖. A maioria dos crimes ou delitos que ocorrem na praia (furto, consumo de
drogas), contudo, permanecem invisíveis aos olhos da vigilância eletrônica. Uma
invisibilidade relativa criada pela multidão, situação que dificilmente poderia ser
invertida pelo monitoramento por câmeras. Se os dias de praia atraem as atenções
dos operadores para esta, nos dias não tão quentes, ou de tempo nublado, o
monitoramento praiano tem a capacidade de ser mais atento e efetivo, diante do
184
E Teodoro repetia para os outros: ―com esse calorão, hoje é praia. Monitora a praia que é lá que
pode acontecer alguma coisa.‖
173
menor número de pessoas nas areias, circulando ou paradas, sozinhas ou em
grupo.
II
Como Saulo havia indicado no primeiro dia, a questão do consumo de
maconha nas praias é controversa na relação entre policiais e operadores, e na
coordenação do trabalho entre eles. É comum que os próprios policiais lotados no
COBAT desestimulem o envio de agentes para combater o uso de cannabis na praia
(Saulo apontou Salgado como ―um dos que falam para deixar para lá, não vai dar
em nada mesmo...‖). Uma conversa que presenciei entre Agenor e Charles ilustrou
bem a polêmica em torno do proceder em relação aos maconheiros. Ao flagrar um
grupo de homens e mulheres compartilhando um mesmo cigarro na praia (imagem
captada pela câmera localizada no hotel Lancaster), Agenor mostra ao colega e diz
ironicamente, iniciando assim o diálogo:
- Esses caras estão fumando uma coisa estranha...
- Vê se você sente o cheiro.
- Nem podemos fazer nada, porque se você manda a viatura lá, quando chega
já não tem mais nada.
- Não importa ora! Esse é o trabalho da polícia mesmo, não tem sempre
flagrante não! Tem que ir lá e revistar, bandido não tem escrito na testa!,
finaliza Charles, ele mesmo ex-policial militar.
III
Nos dias chuvosos, em que a praia fica praticamente vazia, as
movimentações e comportamentos podem ser observados de modo mais
consistente. Em uma conversa entre Gil e Charles, constatei que o monitoramento
poderia os tornar capazes de identificar e passar a (re)conhecer determinadas
pessoas, ao contrário do que havia imaginado no CCC. Comentando o quanto o dia
chuvoso e frio estava desagradável, e como a praia estava vazia, Gil disse, olhando
174
as imagens da câmera localizada no hotel Iberostar, que ―nem o maconheirinho es
na praia hoje, hein!‖. Imaginei ser uma referência impessoal ao hábito amplamente
difundido de consumo de cannabis nas areias, mas descobri se tratar de um
personagem real, pois Charles retrucou: ―há muito tempo que ele não vem lá no
banquinho dele‖. Com um misto de curiosidade e sarcasmo, Gil se questionou: ―o
que será que aconteceu com ele?‖. Perguntei então do que falavam, e me contaram
que um rapaz costumava todos os dias na mesma hora, no final da tarde, sentar em
um banco de madeira na areia, mais próximo ao mar, enrolava e fumava um
cigarro de maconha. Divertiram-se durante muito tempo com a recorrência da cena,
que, no entanto, não se repetira nas últimas semanas
185
. Nesse caso podemos ver
reunidos no mesmo exemplo os principais fatores que favorecem o monitoramento
atento e minimamente contextualizável, com menor teor de fragmentação: uma
mesma pessoa que freqüenta um local com regularidade e em um horário
determinado, sozinha, realizando uma atividade estática, num momento em que
menos pessoas circulam por ali. Por mais que possamos imaginar algumas
situações em que tais condições se reproduzam, é preciso admitir que na maior
parte das atividades criminosas ou delituosas quadro tão favorável dificilmente se
repetiria.
IV
Uma dessas situações foi Xavier quem me mostrou: uma família de
moradores de rua dormindo na saída do túnel Freire Alvim, localizada pela
câmera 1908. Fui informado que essa mesma família morava anteriormente em
cima do túnel, tendo sido retirada pela polícia de algumas semanas antes, e
185
É interessante notar que Charles, que apregoara que a polícia deveria, nas situações de consumo
de maconha, “fazer seu trabalho”, acompanhou durante muitos dias uma mesma pessoa nessa
situação e nada fez, a não ser divertir-se com seu colega de trabalho.
175
voltado agora para esse novo lugar, bem próximo do anterior. Segundo Saulo era
uma situação complicada, porque os pais ficavam ―usando droga‖ e não cuidavam
dos filhos, que eram pequenos e ficavam vagando sozinhos naquele local perigoso,
correndo constantemente o risco de serem atropelados. Apesar da constatação do
perigo e do discurso em prol da proteção às crianças, nenhum dos operadores
entrou em contato com os policiais para informar sobre a situação.
V
Os moradores de rua também são alvo constante de monitoramento, sendo
explicitamente classificados pelos operadores como um ―perigo eminente‖,
merecendo assim acompanhamento preventivo. Presenciei por algumas ocasiões
isso se repetindo, seja no monitoramento de um mendigo sentado ao pé de uma
estátua numa praça (câmera 1916), ou no acompanhamento demorado de um
grupo de seis pessoas aparentemente moradores de rua, divididas em dois bancos
de pedra vizinhos no calçadão da praia, perto do Posto 2, que falavam e se
locomoviam de forma bastante agitada, com muitas idas e vindas entre os bancos,
sem no entanto aparentarem nenhum comportamento agressivo entre si ou
ameaçador aos passantes. Saulo explicou, a respeito do monitoramento dos
moradores de rua:
Não é só por causa de roubo, assalto, que a gente tem que ficar de olho.
Muitos deles não roubam nada, se roubassem de repente o estavam na
rua, nessa miséria toda, não é mesmo? O problema que a gente tem que
tomar cuidado é porque muitos deles são alienados mentais, e podem ter uma
atitude amalucada, atacar alguém, jogar pedra, a gente nunca sabe.
E também, completo eu, como vimos no tópico relativo ao “choque de ordem”
no bairro, porque os moradores de rua e mendigos, por sua própria presença no
bairro que habitam, perturbam o bem estar daqueles que se empenham na
ordenação do espaço público. Vale lembrar que 20% dos telefonemas para o
176
Disque-CopaBacana denunciavam a presença dos moradores de rua no bairro, sem
que nenhuma ligação com comportamentos criminosos tenha sido mencionada.
Eles simplesmente incomodam aos seus vizinhos mais ricos, ou apenas menos
despossuídos, que habitam os variados prédios e circulam por suas ruas. A
resolução dos graves problemas dessa população amplamente marginalizada é o
seu afastamento, sua retirada do campo de visão dos “cidadãos de bem”.
Não é em sua qualidade de estrangeiro que o “marginal” é ameaçado de ser
desalojado, é precisamente porque habita o ambiente do bairro e que o utiliza
de maneira excessivamente pessoal, sem se preocupar com as mise en formes
públicas que sustentam as atividades daqueles que se inquietam com sua
presença. Quando ele aparece nas queixas, é como vetor de atentados à
atenção (Stavo-Debauge, 2003: 365).
VI
Em outra ocasião presenciei um longo monitoramento em que as pessoas
observadas, com bastante atenção, ganharam dos operadores apelidos e supostas
personalidades, em que um relato foi criado em cima das imagens mudas e
descontextualizadas. Waldemar chama a atenção minha e dos colegas para as
imagens de um boteco, completamente cheio às 10 da manhã, localizado na Praça
Demétrio Ribeiro, bem no início da Rua Barata Ribeiro, uma das principais artérias
do bairro. A questão que logo se instala é se eles estavam ou não “tecando
186
. Para
Xavier, era óbvio que sim, tinha certeza mesmo de que a fila no banheiro devia estar
imensa, porque é sempre assim, eles não iam agüentar ficar até essa hora
bebendo‖. Heleno achava inicialmente que eles estavam apenas se embriagando,
que o bar era um clássico inchado‖ de Copacabana, onde os últimos boêmios
esticavam a noite. Com o tempo passou também a achar que deveriam estar ali
cheirando cocaína. A observação demorou muito tempo, e chamou a atenção
praticamente de todos que estavam na sala, dando origem a rias conjecturas em
186
Consumindo cocaína.
177
torno dos personagens envolvidos e os atos observáveis destes (foram identificados
travestis, prostitutas, um passador de drogas, ―o aba‖, o ―dono do pedaço‖, alguns
dos tipos ideais da boemia carioca). O comentário generalizado era de que ali estava
―a um passo de acontecer uma ocorrência. Por isso, e pelo divertimento que aquelas
cenas e conjecturas despertavam, houve um efetivo monitoramento daquele local
por um tempo considerável.
VII
A observação do bar foi interrompida por uma chamada de rádio, que alertou
para um acidente recém-ocorrido na Avenida. Princesa Isabel, dentro do campo de
visão dessa mesma câmera (1916). Dois carros se chocaram, sem nenhum ferido
grave, nas pistas centrais da via, sem, entretanto, provocar congestionamento. Os
motoristas ficaram esperando a polícia (para fazer o Boletim de Ocorrência) por um
longo período, ficando colocados em uma posição muito perigosa, entre os dois
carros, no meio da rua. Esse fato mereceu comentário geral, ressaltando que
estavam colocando seriamente a vida em risco, que nem mesmo tinham colocado
o triângulo de segurança atrás do acidente, para avisar aos motoristas que iam se
aproximando do local. Mesmo tendo essa situação de risco sido constatada,
nenhum esforço no sentido de evitar outra colisão ou um atropelamento foi
realizado. Não foi feita qualquer movimentação ou tentativa de comunicação para
evitar o perigo que viam como real. Pelo contrário, a demora da chegada dos
policiais foi alvo de “comentários maldosos” de Waldemar, insinuando que em
muitos casos a polícia age de vontade, fazendo com que os motoristas acabem
desistindo de esperar e chegando a um acordo que dispense o BO: ―fala que furou o
pneu, que isso, que aquilo, até que eles desistem‖.
178
VIII
Outro caso de vigilância atenta que acompanhei foi em um dia de muito calor
e praias cheias, em que logo que entrei Saulo me mostra que estavam monitorando
uma filmagem que ocorria na Av. Atlântica, na altura da Praça do Lido. Uma
repórter, um entrevistado, um cinegrafista e alguns aparatos de gravação eram
observados por eles, sendo colocado esse fato na brochura. A Kombi na qual eles
haviam chegado também era monitorada, desde o momento em que haviam
desembarcado. O veículo estava naquele instante parado no estacionamento da
praia, com a porta traseira lateral aberta. Pude ler a inscrição Rádio MEC
187
,
informando esse fato a Saulo, que me disse: ―não sei o que eso fazendo, mas a
gente ta monitorando pra descobrir‖.
Dois computadores eram usados no monitoramento dessa filmagem, o
terceiro transmitia imagens da LOC 1916 (Princesa Isabel- Túnel), sempre muito
usada, considerada por eles como uma das melhores câmeras, enquanto o quarto
computador esperava por uma peça para conserto, estando desativado. A atenção
dada à filmagem valeu mesmo uma ligação da Secretaria de Seguraa, buscando
esclarecimentos. Não sei se o interesse era pelo que estava acontecendo na rua ou
pela falta de mobilidade das câmeras. Contudo, pelo que pude perceber pela
conversa travada ao telefone, o questionamento era relativo à não movimentação
das câmeras, fato que me surpreendeu, pois havia notado que tal imobilidade das
câmeras era bastante usual, tendo sido observada um sem número de vezes
quando visitava o CCC. Tive a impressão de que minha presença na sala,
perceptível através das imagens da mera 1910, transmitidas diretamente para o
CCC, poderia ter gerado alguma inquietação em relação a uma possível ociosidade
dos operadores do 19º BPM.
187
Imagino que fosse uma reportagem da TV Brasil, pois rádio não necessita de cinegrafista.
179
IX
Em apenas uma ocasião vi um monitoramento investigativo sendo realizado,
tendo ficado surpreso, pela dificuldade implicada em tal ação. Saulo, num modo de
agir bastante seu, observou estacionado na rua um veículo da mesma marca e cor
que o da sua vizinha, que havia sido furtado dois dias. Um Fiat Uno creme, e
ainda por cima com um adesivo parecido
188
com o que ela tinha, e na mesma
janela. O operador saca então da bolsa seu caderninho e anota a placa, pedindo
minha ajuda para diferenciar um algarismo menos nítido. De posse da matrícula,
liga para casa e pede para perguntarem a placa do veículo furtado, esperando
alguns minutos até que chega a resposta, informando ser um número diferente.
Saulo reage com decepção, mas parece também orgulhoso por sua sagacidade, ao
realizar seu trabalho de forma sofisticada e inabitual entre os operadores.
Em outra vez, porém, vimos um carro parado em local proibido na Avenida
Princesa Isabel, e pergunto a Saulo se as câmeras podem ser usadas para aplicar
multas em casos semelhantes
189
, e ele me respondeu que sim, que eles avisariam a
um guarda de trânsito próximo que iria até e multaria o carro. Insisti,
perguntando se um policial poderia multar o carro à distância, dali ou de outro
local em que as imagens estivessem sendo vistas, e me respondeu que achava que
não. A idéia pareceu nunca lhe ter ocorrido.
X
Constantemente via dois operadores olhando para a mesma câmera.
Também não era raro observar algum completamente distraído, e por longos
períodos de tempo mirando imagens fixadas em pontos sem nenhum interesse,
188
Não foi possível visualizar com exatidão o adesivo, apenas podíamos ver que de fato havia algo
colado no vidro traseiro do carro.
189
É bom lembrar que as multas aplicadas por excesso de velocidade têm por base de prova imagens
(fotográficas) capturadas por câmeras da CET-Rio, chamadas de “pardal”.
180
como uma parede ou um poste. Uma tarde em que Nélson observava distraído a
pista de automóveis da praia, com a imagem próxima demais para que a dinâmica
do tráfego pudesse ser vislumbrada, vi Saulo chamar sua atenção com veemência:
―foca na calçada, na areia e na calçada, na rua não, não tem nada pra ver na rua!‖
XI
Numa tarde em que Saulo, apesar de terminado seu turno, resolvera esperar
o fim do trabalho de outro técnico em informática, que havia vindo resolver o
problema do computador quebrado, para que ele próprio terminasse de preencher a
brochura, chega por rádio a informação de um incêndio cuja fumaça era visível da
Av. Atlântica, possivelmente em um dos prédios do endereço mais caro do bairro. A
conversa estava animada com a troca de turno, e apenas Saulo parecia prestar
atenção nas informações que chegavam à sala, mesmo antes que fossem passadas
aos operadores. Ele assume então novamente o controle do computador do
responsável e passa a buscar as imagens do incêndio, conseguindo descobrir uma
cortina de fumaça subindo na altura da Rua Souza Lima. Com grande dificuldade
consegue chamar a atenção de seus colegas, que distraidamente olham para a
cena, sem para tanto interromper a conversa. O turno se divide entre dois ex-
bombeiros, Agenor e Gil, e dois ex-policiais, Charles e Aderbal. Os primeiros talvez
tenham se ocupado com um pouco mais de interesse do incêndio, mas menos do
que eu poderia imaginar. Antes de partir, Saulo ainda recomenda a Agenor: ―presta
aí atenção nesse incêndio, que pode acontecer alguma coisa‖. Palavras vãs: nem
aconteceu mais nada, nem prestaram qualquer atenção. Depois de algum tempo
estranharam que os bombeiros não haviam aparecido, mas um policial informou
que era um supermercado que tinha entrada pela Rua Souza Lima, devendo ter
sido nesta rua que o caminhão parou. Depois, quase me pedindo desculpa por ter
181
interrompido a conversa que estávamos tendo para realizar seu trabalho, Agenor
explicou: ―é que tudo nós temos que colocar na brochura‖.
XII
No dia em que conheci Heleno
190
, passamos horas conversando
animadamente, não apenas nós dois, mas também os outros operadores. Na hora
em que eu partia, ele tenta me convencer de que normalmente estavam atentos o
tempo todo na sala, trabalhando. Naquele dia teria sido diferente, ―porque tinha
visita, estavam todos distraídos, conversando‖. As visitas éramos eu e Fábio, o
técnico de informática, que estava por três vezes por semana. Segundo Heleno,
normalmente eles ficavam ali o tempo todo monitorando, dividiam as câmeras em
grupos de três, e cada um deles se ocupava de um grupo. No entanto nunca vi tal
divisão em prática ali, e, como já disse, era mesmo bastante comum ver dois
operadores observando ou comandando a mesma câmera, fato que poderia gerar a
suspeita em cada um de que a câmera também era operada da Secretaria de
Segurança.
XIII
Teodoro e Heleno se divertiram bastante numa manhã olhando um homem
fazendo ginástica na areia, comentando sua dificuldade em realizar os exercícios,
provavelmente excessivos para suas forças. Quando este desceu da barra onde
estava e se deitou para fazer abdominais, os dois ex-bombeiros foram unânimes em
afirmar que ele não tinha a menor noção do que fazia, não exercitava nenhum
músculo e ainda iria sofrer com as dores que o exercício errado o proporcionaria.
Os dois ficaram pelo menos uma dezena de minutos ―monitorando o atleta‖.
190
É bom lembrar que freqüentava a sala de operações algumas semanas quando isso ocorreu,
já que Heleno estava de licença médica quando iniciei o trabalho de campo no 19
o
BPM.
182
XIV
Numa manhã chuvosa, através da câmera 1901 Nélson identifica uma
pessoa caída no chão, em meio à ciclovia no Leme, tendo ao seu lado uma
mulher com roupa de ginástica acenando para alguém. Em poucos minutos chegam
dois salva-vidas e a mulher segue sua caminhada, dando a entender que não
conhecia a pessoa acidentada e tinha apenas visto a cena e alarmado aos
bombeiros do GMAR. Como o socorro já estava sendo prestado, os operadores
ficaram apenas observando a cena, sem buscar contato com os policiais na rua. O
desenrolar do atendimento, no entanto, foi bastante surpreendente para todos nós
que acompanhávamos o que acontecia. Quando a mulher que alertou sobre a
pessoa caída se afastou, os dois salva-vidas, numa postura completamente
contrária a que seria esperada de sua parte, passaram a desferir leves chutes sobre
a pessoa caída no chão, atitude que aparentemente os divertia. Foi então possível
identificar que se tratava de um morador de rua, de meia idade, que possivelmente
estaria embriagado.
A cena causou grande consternação e revolta em Saulo e Nélson, ex-
bombeiros, enquanto Waldemar e Xavier, embora também não contentes com o que
viam, aproveitavam o absurdo da cena para jocosamente provocá-los. ―Bombeiro
gosta de falar que salva vidas, que isso que aquilo, olha aí só como eles o
bonzinhos!‖ Saulo pede então para que Amiguinho, policial que estava de serviço,
entrasse em contato com uma patrulha que estivesse próxima do local para
proceder ao socorro, ouvindo como resposta: ―deixa isso aí pros bombeiros, é menos
um pepino para a gente‖. O operador responsável se mostra então bastante
contrariado, vira-se para mim, depois olha para os policiais que compõem com eles
o COBAT e acaba por se calar. Seu olhar, no entanto, disse mais do que seria capaz
com palavras.
183
III.13 - Trabalho (des)coordenado: sobre a fragmentação dos sentidos
Quando realizava o trabalho de campo no CCC, fui informado pelo
coordenador que o fator mais importante do serviço de monitoramento realizado
nos COBATs era a integração entre informação e ação e entre pessoas e tecnologia,
sendo indispensável a coordenação entre todos esses elementos para que o serviço
fosse realizado de forma eficaz e correta. O esquema de comunicação entre
operadores e policiais despachadores é que permitia que o espaço público fosse
realmente monitorado, colaborando para maior presteza no atendimento e
securização das áreas sob vigilância eletrônica. O acompanhamento do trabalho na
sala de operações do 19º BPM mostrou o quanto o discurso oficial estava descolado
da realização prática do serviço.
Logo que comecei a freqüentar o batalhão fui apresentado novamente a esse
discurso oficial louvando a excelência do monitoramento e lembrando a importância
para este da coordenação entre o trabalho de diferentes pessoas (operadores,
despachadores e policiais nas ruas). A ação conseguia ser integrada, proclamou
Saulo me apresentando ao videomonitoramento, devido ao enorme efetivo de
policiais da área, fardados, de uniforme de praia, disfarçados, em viaturas, cabines,
quadriciclos, a pé, fazendo ronda... provavelmente se tratava da região mais
policiada da cidade. Utilizando-se da câmera localizada no hotel Lancaster, ele me
mostrou uma viatura estacionada bem em frente à Praça do Lido, assim como em
outros locais estratégicos de Copacabana e do Leme. O bairro estava, em tese,
muito bem vigiado.
Com o tempo os próprios policiais e operadores foram me mostrando as
falhas consideráveis desse esquema. O primeiro deles foi Barnabé, que num
determinado dia em que eu adentrava a sala, me chamou em sua mesa e disse que
184
tinha uma coisa que poderia me interessar. Contou então a história de uma
ocorrência acontecida naquela manhã, porém fora da área de cobertura das
câmeras. Uma “vias de fato”, entre o sìndico de um prédio e um morador. O que ele
queria que eu soubesse era que houve a necessidade de duas viaturas policiais para
levar os dois para a delegacia, pois se recusavam a entrar no mesmo carro. Com
isso, me mostrou no mapa, uma área enorme que usualmente ficava bem
guarnecida, foi deixada descoberta. Se durante esse tempo algo importante
acontecesse ali, o atendimento policial levaria muito mais tempo do que deveria.
No início, porém, não tinha idéia de como funcionava na prática o trabalho
dos policiais da sala de operações, por ter me concentrado nos operadores, desde
sempre os meus objetos (sujeitos) de estudo. compreendi melhor esse trabalho,
assim como o agenciamento formado entre o despachador e a aparelhagem que eu
escutava o tempo todo em funcionamento, quando Heleno me chamou junto à
bancada traseira e me apresentou a estrutura material de recebimento e envio de
informações via rádio. A comunicação era toda feita através de um software, que
serve tanto para receber as chamadas quanto para entrar em contato com os
homens trabalhando na rua. O policial na sala de operações clica sobre o ícone
correspondente a um local pré-determinado, onde os policiais da rua deveriam estar
localizados e a comunicação com eles é estabelecida. Depois ele me mostrou o
mapeamento do bairro, esquematizado em um papel “surrado” que fica sobre a
mesa dos policiais, e reproduzido em maior escala no grande mapa com imagens de
satélite do bairro, que ficava pregado na parede da sala. O mapa ao qual os
despachadores recorriam usualmente estava rasgado em diversas partes, e por se
tratar de uma fotocópia tinha trechos em que a legibilidade do nome das ruas e das
referências parecia bastante prejudicada.
185
Dificultando ainda mais a realização do trabalho dos operadores e
despachadores, surgia o desconhecimento do bairro que deviam monitorar, e de
seus pontos referenciais mais significativos. Percebi quando, logo nas primeiras
semanas, um policial precisou saber a localização de um hotel na orla (Porto Bay), e
ninguém na sala sabia informar (vale lembrar que ali estão lotados policiais do 19º
BPM e também do BPTUR, cujo conhecimento dos hotéis do bairro deveria ser parte
indispensável do serviço). Pude perceber outras vezes a grande dificuldade que
tinham em saber a localização dos hotéis, que mudam constantemente de nome,
que o grande quadro na sala não estava atualizado, nem mesmo por meio de
etiquetas (as etiquetas que podiam ser vistas provavelmente decorriam ainda de
atualizações desatualizadas). Nesse dia, fui o único na sala capaz de indicar a
esquina onde estava localizado o hotel, fazendo que a partir de então sempre
buscassem meu auxílio quando surgia uma dúvida semelhante: ―fala aí com o
doutor Bruno, que é rato de Copacabana‖, disse uma vez Barnabé quando queriam
saber em que altura ficava o posto de gasolina da praia do Leme.
Porém, o maior problema de funcionamento daquele COBAT dizia respeito à
fragmentação descoordenada do trabalho. Na mesa dos operadores ficam alguns
telefones, para a comunicação com o CCC, a Comtex e os supervisores da Assegura,
compondo com a câmera que monitora constantemente a sala de operações o
sistema de vigilância aos próprios vigilantes
191
. As informações mais importantes
para o monitoramento, entretanto, não passam por esses telefones nem pela mesa
dos operadores, chegando a eles através dos policiais despachadores. E como
pude perceber diversas vezes, estes nem sempre as repassam para os responsáveis
diretos pelo monitoramento. Foi Saulo quem primeiro me alertou para essa
questão, com sua insistência em reclamar da fragmentação do seu trabalho. Era ele
191
Quando visitava o CCC percebi que supervisores e representantes dessas empresas falavam
constantemente em telefones iguais a esses.
186
quem tinha que operar as meras e ver as coisas, mas não era ele quem passava,
ou recebia, as informações aos agentes nas ruas. Da mesma forma, quando há uma
perseguição ou a captura de alguma imagem imediatamente utilizável para policiais
que estão nas ruas, são os operadores que comandam as câmeras, mas a
comunicação por rádio é feita pelos policiais. A estrutura do trabalho de
monitoramento estabelece uma separação definitiva entre olhos de um lado e
ouvidos e boca do outro. ―Esse grupo aqui é bom de trabalhar, mas tem uns que não
fazem nada direito, não falam direito, não passam pra gente o que chega...‖, disse ele
no dia em que o suicida foi encontrado ensangüentado em seu carro.
Durante todo o tempo que freqüentei o 1BPM, Saulo parecia ser o único
dos operadores a se preocupar com isso, demonstrando sempre grande interesse
nas informações que eram passadas aos policiais da sala. Quando chegava uma
chamada, ele se desligava momentaneamente da conversa, passando a prestar
atenção no que era dito. Mesmo quando os elementos não diziam respeito a locais
onde havia monitoramento eletrônico, eu o via anotando alguns dados principais
(como a roupa de um indivíduo que assaltou um taxista na Rua Santa Clara, ou as
características de um veículo utilizado no assalto a um posto de gasolina no
Leme
192
) no caderno que mantinha sempre à sua frente. Fazia isso de maneira
muito discreta, procurando não chamar a atenção de ninguém, nem mesmo a
minha. A dificuldade em obter informações dos policiais fazia com que tivesse que
ficar todo o tempo juntando elementos isolados para o monitoramento. Quando ele
não estava presente havia sempre a possibilidade de uma situação de
monitoramento se perder. Numa dessas tardes ouvi uma chamada de rádio
192
Exemplo clássico: logo que ouviu o chamado pelo rádio acionou a câmera da Princesa Isabel e
buscou um carro semelhante passando. Depois, desanimado, me disse: ―com certeza ele foi já pra
Botafogo, passou o túnel e foi pra Botafogo. já fica mais difícil perseguir, mas era só falar com esse
PM que está aqui parado no carro na beira do túnel que ele bloqueia a saída e pega. Era fácil se
tivessem rapidez e boa vontade‖.
187
indicando que um senhor idoso havia tombado na Avenida Atlântica e estava
bastante machucado. Apesar de ser a única via do bairro integralmente contida no
campo de visão das câmeras, tal informação não foi passada aos operadores, que
por sua vez também não procuraram escu-la, ou não prestaram nenhuma
atenção às palavras que chegavam aos policiais despachadores (não era o turno de
serviço de Saulo).
Além disso, o próprio sistema de comunicação funcionava nos moldes da
brincadeira infantil de ―telefone sem fio‖, e as informações chegavam modificadas e
ainda mais fragmentadas. Atentei para isso diversas vezes. Numa delas uma
chamada por rádio chegou à sala de operações chamando a atenção para uma
ocorrência em frente ao hotel Copacabana Palace. Com muito custo, e contando
com a minha ajuda, eles conseguiram direcionar a câmera mais próxima para a
parte frontal do hotel, mas as árvores diante deste tornavam impossível a
observação de qualquer coisa naquela área. No entanto, após algum tempo, e
apenas por acaso, descobriram que a ocorrência na verdade era do outro lado do
calçadão, junto à areia. Uma informação básica que deveria ser dada desde o início
da ação. Apenas foi possível ver um aglomerado de pessoas, em sua maioria jovens
e negros, e alguns policiais. A ação já havia terminado, tendo sido classificada pelos
policiais da sala de operações como um conflito normal de saída de praia‖.
Aparentemente ninguém fora preso e nada de mais grave acontecera, tendo a
polícia apenas dissolvido a confusão.
Outro caso semelhante ocorreu diante do Hotel Iberostar, mas também foi
percebida depois de tudo encerrado. A falta de coordenação era completa entre os
policiais e os operadores de câmera, com nenhuma das informações que chegavam
sendo passada dos primeiros para os segundos, ou sendo passada de forma
imprecisa (com visível -vontade). Via os operadores fazendo perguntas
188
ignoradas pelos policiais, da mesma forma que era possível ouvir informações
cruciais para a localização e compreensão do evento chegarem por rádio e não
serem transmitidas. Nos dias em que Saulo não trabalhava, eu era o único na sala
que percebia, e parecia me importar, com a descoordenação entre os diferentes
sentidos do monitoramento (visão, audição e fala, três agenciamentos sócio-técnicos
menores que, se integrados e coordenados, formariam o agenciamento sócio-técnico
maior da vigilância eletrônica).
A estrutura formal do monitoramento inclui essa fragmentação dos sentidos,
estabelecendo uma especialização de funções que depende de um trabalho
coordenado difícil de ser posto em prática em pequenas ações cotidianas. E a
postura profissional daqueles que estão responsáveis pela realização desse trabalho
especializado e fragmentado colabora para agravar ainda mais essa situação de
integração descoordenada que pude verificar no 19º BPM.
III.14 - Sobre homens e máquinas
Assim como o esqueleto se prolongou na ferramenta, as funções humanas
se prolongaram através do ajuntamento de uma série de próteses,
inclusive o sistema nervoso central nas máquinas eletrônicas. A
motricidade assim se exteriorizou na domesticação animal e na máquina
simples, a memória nos suportes materiais (nossas memórias artificiais), o
cálculo nas máquinas de calcular e a imaginação, enfim, nas diversas
imageries mecânicas
(Debray, 1992: 135).
Além da integração entre informação e ação, que, como vimos, funciona de
maneira um tanto claudicante em função da falta de coordenação entre os policiais
e os operadores, o coordenador do CCC também apontou a integração entre pessoas
e tecnologia como a conjunção inovadora que conferia força ao modelo de
monitoramento eletrônico do COBAT. E esta se mostrou tão, ou ainda mais
problemática do que a forma de integração relativa apenas às pessoas.
189
Por mais que as câmeras constituam a parte mais visível da estrutura
técnica do monitoramento, em todo o trabalho dos operadores o contato prático e
imediato é com os microcomputadores instalados em sua bancada. A interação com
as meras é indireta, e sempre mediada pelo computador, estabelecendo uma
relação diferente tanto da filmagem comandada por um cinegrafista, quanto das
imagens de segurança tradicionais (isto é, pré-revolução digital), estáticas e não
controláveis à distância.
O comando das câmeras pelos operadores podia ser feito de duas formas:
através de um joystick como o dos antigos videogames, com um manche central, ou
através do mouse, clicando sobre setas dispostas ao lado da tela cuja imagem é
assistida. Segundo Teodoro me explicou, inicialmente a operação das câmeras era
toda realizada através do joystick, mas com o tempo foi sendo substituída pelo
mouse, por também permitir utilizar as outras funcionalidades, não do software
de monitoramento (como programação do módulo automático, gravação de imagens,
busca de arquivo, etc.), mas do computador como um todo. Esse fator vem
reforçar a semelhança entre a operação das câmeras e a utilização convencional do
computador, numa relação direta com o conceito de unimídia, utilizado por Pierre
Lévy (1999) em detrimento à categoria amplamente difundida da multimídia. De
acordo com esse autor estaríamos em um processo de unificação dos meios e
suportes para os mais diversos tipos de dados. Som, imagem, texto, tudo pode ser,
e cada vez mais é, criado, armazenado, circulado e reproduzido em formato digital,
utilizando-se de computadores ou telefones portáteis que cada vez mais
complementam sua utilização e preenchem os vãos espaciais e periódicos em que a
utilização destes era dificultada
193
.
193
Como durante os momentos de liminaridade espacial, como as viagens e deslocamentos cotidianos,
em que o computador é substituído por iPhones ou palm tops.
190
Se essa semelhança com a utilização do computador tornaria, para aqueles
acostumados à sua utilização, a operação prática das câmeras de vigilância uma
experiência consideravelmente habitual, para aqueles que devem comandá-las a
situação é diferente. Tanto o recorte geracional quanto o econômico fazem com que
os operadores de câmera da Secretaria de Segurança Pública estejam excluídos das
faixas populacionais com maior domínio da informática e da tecnologia digital. Ou
mesmo com um mínimo de intimidade com o suporte material do trabalho que
realizam, por terem sido socializados em outro contexto tecnológico
194
, e por, em
sua maioria, não disporem de computadores em casa, nem terem contato mais
próximo com a Internet. As exceções eram Gil, único dentre os operadores que tinha
endereço de e-mail, e Chirriú, que passava longos períodos de tempo trocando
mensagens de texto através de seu telefone celular.
Teodoro, por exemplo, sempre buscava imagens de arquivo para me mostrar,
flagrantes ou decorrentes de chamadas por rádio, seja em pastas específicas do
computador mais à esquerda, utilizado habitualmente pelo responsável do turno,
ou cuja indicação de câmera e horário constavam na brochura” (o que indicava
tratar-se de imagens recentes, que ao final do mês esta era retirada da sala de
operações e do alcance dos operadores). Em sua busca, sempre parecia pouco à
vontade, visivelmente não possuindo grande intimidade com os computadores, e
embora sempre soubesse como agir, demorava muito tempo para realizar as
simples operações que desejava. Na man que o conheci, ele procurou na
brochura uma ocorrência para me mostrar, tombando no vídeo de um
194
Ver, no capítulo quinto, a discussão a propósito de nativos e imigrantes digitais, de Prensky (2001),
quando a questão geracional será abordada pelo prisma inverso, o dos jovens com domínio das
ferramentas digitais e com fluência na cibercultura.
191
monitoramento realizado em uma passeata (“a favor de grupo rebeldes”)
195
. Depois
de algumas tentativas frustradas, surgiu uma mensagem em inglês na tela, cuja
leitura não foi nem cogitada. O que fazer então? Desligar e ligar o computador
novamente, processo que dura mais uns cinco minutos. Entretempos ele também já
havia desistido de mostrar a passeata, e buscava algo mais emocionante para que
eu visse. Diante da dificuldade em encontrar algo, o responsável do dia me
confirmou o que havia percebido, era muito raro que alguma ocorrência se
passasse por ali.
Vi Saulo, em uma ocasião em que nossa conversa o havia desviado do
trabalho, fazendo com que passasse bastante tempo sem utilizar o mouse do
computador, utilizar a mesma “metodologia de atuação diante de uma situação
com a qual não sabia lidar. O computador entrou em “modo de espera”, e o monitor
se apagou para economizar energia: no que me pareceu ser uma reação habitual,
pela rapidez e falta de questionamento a respeito, o operador “resolveu o problema”
desligando e religando a máquina. O desligamento indevido ainda gerou uma
mensagem, em inglês, na tela do computador, que em seguida iniciou o processo de
escaneamento do disco rígido, em busca do erro que provocou a interrupção de seu
funcionamento, processo que durou ao menos mais uma dezena de minutos. Não
encontrou nenhum erro grave, obviamente, pois o erro não era interno à máquina,
mas decorria de sua utilização falha pelos humanos que trabalhavam com ela.
Em outro dia que Teodoro seguia na busca por algum vídeo antigo para me
mostrar, vi nos arquivos do computador uma pasta denominada “Réveillon 2007”,
assim como várias outras com arquivos de vídeo. Mas a falta de conhecimento
técnico do então responsável pelo serviço fez com que não conseguisse assistir
195
Como estava escrito “grupo rebeldes”, e como não consegui ver as imagens, persiste a dúvida se se
tratava de uma passeata subversiva a favor de grupos rebeldes, ou se eram inofensivos adolescentes
fãs do grupo mexicano RBD (Rebeldes).
192
nada, passeando de pasta em pasta incapaz de executar algum vídeo. Nesse dia,
minha vontade quase incontrolável era assumir o comando do computador e ver
todas aquelas imagens que estavam ali disponíveis. Sabia, no entanto, que não
poderia fazer isso, já que a própria dificuldade deles em operar a tecnologia era um
importante dado etnográfico para minha pesquisa. Nunca pude assistir a essas
imagens, por mais que tenha pedido mais de uma vez. Essas pastas não mais foram
encontradas pelos operadores que se dispuseram a procurá-las para exibi-las para
mim.
Se percebia com freqüência maneiras inadequadas, ou apenas pouco
dinâmicas, de lidar com o computador da parte de Teodoro, estou certo que tal fator
não se deve de modo algum a uma maior inaptidão sua para lidar com as máquinas
informáticas. Muito pelo contrário, ele era reputado entre os colegas como um dos
que tinha mais conhecimento de sua operacionalidade. Pude perceber melhor essas
questões quando interagindo com ele exatamente por ser talvez o operador que
menos evitava lidar com o computador - e especialmente com o software utilizado
no monitoramento - para além de suas funcionalidades básicas de controle
imediato das câmeras. Sem dúvida, os conhecimentos parcos em informática
impõem um ritmo muito lento ao serviço, prejudicando consideravelmente o
monitoramento. Esse difícil relacionamento com as máquinas cria certo
constrangimento entre eles, como pude perceber quando nessa mesma semana
Teodoro pediu para Waldemar me mostrar algumas imagens e este disse que seria
melhor se o próprio Teodoro o fizesse: ―é melhor você, que conhece melhor como
funciona... eu ainda estou arranhando aqui, então pode ficar meio devagar.‖ ―Ainda
mais devagar‖, pensei eu...
Um fator observado e que serve evidentemente para dificultar sobremodo o
árduo trabalho de domesticação dos computadores, é que o idioma no qual as
193
mensagens do programa de visualização das câmeras aparecem é o inglês. Não é
preciso um esforço dedutivo muito grande para chegar à conclusão de que os
operadores não dominam essa língua, longe disso. Pela sua idade média e classe
social estariam num estrato cujo número de pessoas que fala inglês é muito
reduzido, e em nenhum momento isso foi mencionado como um pré-requisito para
o desempenho do trabalho (era preciso de início ser um PM reformado, depois
entraram também os bombeiros reformados, e depois PMs e bombeiros aposentados
por idade). Além disso, se nem o conhecimento ou um curso de informática
aparecem como obrigatórios, não seria o domínio, ou mesmo conhecimentos
básicos em uma língua estrangeira que o seriam.
Assim sendo, várias funcionalidades do programa de monitoramento são
desconhecidas ou não compreendidas. Notei, quando buscava ocorrências no
arquivo com Teodoro, que durante a visualização das imagens gravadas, é possível
saber todos os momentos em que as câmeras foram controladas por mãos
humanas, e não apenas reproduziram alguma programação prévia. Na linha do
tempo na parte inferior da tela, esses momentos apareciam destacados em
vermelho. Um modo de localizar com mais facilidade alguma cena que tenha sido
oriunda da observação dos monitoradores, mas também uma forma de controlar o
trabalho destes. Após entender essa particularidade do software que utilizavam,
tentei explicá-los, curioso pela reação diante da possibilidade ignorada de
fiscalização do próprio serviço, mas acabei por desistir da empreitada. Os
conhecimentos de informática eram por demais escassos para que minhas
explicações fizessem sentido, e a exclusividade das opções do programa em inglês
apenas tornavam o que eu dizia mais vago incompatibilidade de categorias de
linguagem e de pensamento, decorrente da socialização em contextos sócio-técnicos
bastante diversos.
194
À inabilidade motora em lidar com o mouse, como no caso de lson, e ao
panorama generalizado de desconhecimento do funcionamento elementar de um
computador, somava-se um problema que acometia a todos os operadores: a
dificuldade de enxergar, própria da idade avançada. Constantemente os via
ajeitando os óculos, afastando com o braço papéis que precisavam ler, apertando os
olhos diante das imagens, aproximando o rosto da tela... As letras e imagens do
computador o menores do que a da maioria das TVs, criando assim um
verdadeiro problema no momento de preencher qualquer coisa na tela (como a data
e o horário da gravação, para as imagens em arquivo) ou de clicar sobre algum novo
comando
196
. Apenas a simples movimentação das câmeras não apresenta problema
para os operadores mais experimentados, por serem os comandos mais utilizados
sua localização é rapidamente assimilada pela repetida realização prática. Com
freqüência, porém, pensava o quanto era cômica a imagem que via - de um
monitoramento visual por computadores, realizado por pessoas com problemas de
visão e sem os mais básicos conhecimentos de informática - e o quanto estávamos
distantes das teorias alarmistas sobre controle e vigilância, assim como das
distopias de ficção-científica do século XX.
Cabe ressaltar que o conhecimento de informática e a dificuldade de lidar
com a máquina não era de modo algum um elemento estrangeiro ao trabalho dos
policiais operadores do CCC. Havia uma maior intimidade com o computador no
CCC, sem dúvida, mas nada que pudesse ser classificado como domínio do seu
funcionamento. Longe disso. Em compensação vi no 19º BPM operadores, mesmo
se não todos e não todo o tempo, realizando o monitoramento de forma muito mais
efetiva, interessada e paciente do que no Centro de Comando e Controle. A falta de
196
A esse respeito havia atentado Volkoff: A evolução tecnológica, na indústria e nos transportes,
assim como nos serviços, é acompanhada de uma proliferação de suportes visuais (...) cujas
características nem sempre são bem adaptadas à evolução da vista com a idade‖ (1995).
195
conhecimento dos princípios elementares da informática seria compensada pela
experiência de trabalho daquelas pessoas, pela malícia e paciência de uma
observação mais qualificada, de um olho que aprendeu a ver com o tempo, mesmo
se através de diferentes meios. Ao menos seria esse o discurso oficial a respeito da
utilização daquelas pessoas na realização daquele serviço. E saí da sala de
operações com a certeza de haver algo de bem real nesse discurso. Mas estava certo
também de que as diferenças individuais e de biografia o importantes pontos a
serem considerados, pois o que é o sistema de monitoramento passa por como ele é
realizado na prática por cada um dos envolvidos - pessoas ou objetos
197
. Dentre os
humanos, uns o mais atentos e compenetrados, outros mais dispersos, menos
concentrados no trabalho a ser realizado. E sempre as conversas, múltiplas e
animadas, contribuindo para que a concentração absoluta seja muito improvável. E
não me restaram dúvidas de que para um bom trabalho de monitoramento, atenção
e paciência são quesitos absolutamente essenciais.
Entretanto, o saber que aqueles vigilantes “voluntários” carregavam,
adquirido através de experiências acumuladas ao longo de toda uma vida
profissional, apesar de valioso e de maneira alguma negligenciável, era intraduzível
para a linguagem das câmeras, da tecnologia, dos híbridos homem-máquina que
constituíam. O olhar deles era inadaptável àquele modo técnico de olhar. Na
elaboração e implementação da política de vigilância eletrônica, a revolução dos
meios de comunicação é minimizada, assim como é desconsiderada a especificidade
do olhar que criam. Fator que ganha ainda mais interesse quando confrontado com
a supervalorização desses mesmos meios técnicos, onipresente tanto nos discursos
quanto nos mitos sobre o sistema de monitoramento por câmeras, assim como em
sua própria concepção. Minimizar ou supervalorizar são duas faces da mesma
197
Computadores, antenas de rádio, softwares, câmeras, modems, roteadores, etc.
196
moeda: ambas as posturas ignoram a necessidade intrínseca da interação sujeito-
objeto, para a existência objetiva tanto de um quanto do outro. O vigilante não
existe sem a câmera, e esta não tem nenhuma função sem o seu olhar. Nem homem
nem meio técnico existem em seu estado puro na vigilância eletrônica.
III.15 - Dramas
Durante o período em que realizava minhas observações na sala de
operações testemunhei a ocorrência de situações extra-cotidianas que muito
esclareceram sobre alguns aspectos do videomonitoramento. Assuntos cuja
abordagem através da conversa simples, ou das perguntas diretas, não havia dado
frutos, foram falados de maneira aberta e verborrágica. Por vezes se estabelecia um
pequeno conflito, e por outras apenas uma questão era levantada e sua discussão
se tornava obrigatória, descortinando parcialmente áreas dos bastidores (Goffman,
2002) do trabalho que usualmente eram mantidas ao abrigo da minha curiosidade.
Assim, mesmo se em escala reduzida, me valho da metáfora do drama social
(Turner, 2008)
198
para analisar tais momentos de ruptura na “normalidade”
cotidiana do serviço.
Apresento quatro pequenos dramas - bem pouco dramáticos, é verdade -
alguns independentes, outros diretamente relacionados, todos de algum modo
entrelaçados nas questões constituintes do trabalho que os operadores realizavam.
Questões através das quais ia se formando o sistema de videovigilância do Rio de
Janeiro, arestas iam sendo aparadas, modelos sugeridos, práticas negociadas e
padrões estabelecidos.
198
(O conflito) ―se manifestava em episódios de irrupção pública de tensão que chamei de ―dramas
sociais. Os dramas sociais ocorriam no que Kurt Lewin teria chamado de fases anarmônicas‖ do
processo social em andamento. Quando os interesses e atitudes de grupos e indivíduos encontram-se em
óbvia oposição, os dramas sociais me pareceram constituir unidades do processo social isoláveis e
passíveis de uma descrição pormenorizada‖ (Turner, 2008; 28).
197
III.15.1- Visita das psicólogas: auto-análise de uma relação
Ao final de uma manhã onde o trabalho transcorria de forma bastante
animada (com o “monitoramento” do boteco na Praça Demétrio Ribeiro), os
operadores receberam, de surpresa, a visita de duas psicólogas da Assegura.
Segundo disseram, elas vêm com certa freqüência. Compreendi depois que essas
visitas fazem parte do próprio serviço que desempenham.
Logo percebi que se sentiam um tanto desconfortáveis com a presença delas,
talvez pela impressão de estarem sendo avaliados. A minha presença não parece
causar nenhum incômodo neles, o que só pude notar claramente quando a primeira
psicóloga chegou. A reação imediata de Waldemar foi, discretamente, esconder
embaixo da mesa os amendoins que eu havia trazido, me dizendo em seguida: ―não
é que não pode, é pra ficar mais arrumadinho, dar boa impressão‖
199
. Após a
chegada da segunda psicóloga, bem mais velha, esta explicou que haviam ido
para conversar um pouco com eles e fazer um questionário, e que era parte do
trabalho rotineiro delas, nenhuma situação especial as trouxera até ali.
Assim como eu, as psicólogas também observavam atentamente o que
acontecia na sala, com os operadores. Uma delas perguntou sobre o computador
quebrado, mostrando preocupação pela demora em resolverem esse problema.
Indagou-os a respeito da ―carinha de desânimo‖, querendo saber se tinha
acontecido alguma coisa. Foi engraçado, pois alguns segundos antes de sua
chegada a sala estava com um clima muito animado, e todos conversavam e riam
bastante. Sua presença os deixou acuados, sendo que a primeira reação de todos
foi interromper a conversa e passar a olhar com atenção e sisudez para a tela do
computador, passando a fingir que estavam trabalhando.
199
Algumas horas antes, quando eu chegara à sala com os amendoins, Heleno repetiu para todos a
mesma piada: esse cara tá querendo matar a velharada aqui com esse amendoim todo!‖. E tentou
comer com moderação.
198
A partir dessa reação imediata à chegada delas, tive uma melhor
compreensão da relação que eu próprio estabelecera com os operadores. Apesar de
uma pequena desconfiança inicial, e do visível desconforto diante de meu
caderninho de notas, notava que se sentiam bastante à vontade ao meu lado, com
muitas brincadeiras, pausas, lanches e todo tipo de subterfúgios encontráveis em
ambientes de trabalho para “matar o tempo”. Não penso ter sido visto por eles como
um fiscalizador do serviço, ao contrário das psicólogas. Ser homem também era um
fator incontestável para uma mais fácil assimilação àquele ambiente
eminentemente masculino, uma interseção quase inequívoca entre nossos mundos,
que nos permitia estabelecer conversas interessantes cuja presença de uma mulher
provavelmente inibiria (ainda mais se tivermos em consideração o contexto
geracional dos operadores, no qual as relações inter-gêneros eram muito mais
marcadas).
Apresentei-me a elas, que haviam pensado que eu era o técnico em
informática. A mais velha escutou atentamente e comentou que tinha certeza de
que seria um trabalho muito interessante. Perguntei se poderia continuar na sala e
ela diz que sim, que seria bom eu ouvir aquilo e que não havia nada demais no que
ela iria dizer.
A primeira coisa que falou foi que o contrato assinado pela Assegura com a
PM estava para vencer no início do próximo ano (2009), e ela não sabia ainda o que
iria acontecer depois. Estavam trabalhando para renovar, mas essas coisas
dependiam de muitos fatores, e infelizmente a qualidade do trabalho desempenhado
não era o mais importante deles, como deveria ser. Segundo ela, em quatro
batalhões esse trabalho era realizado por outra empresa, não sendo mais ex-
policiais e ex-bombeiros os responsáveis por ele, o que era uma pena‖. Falou
também da grande importância para a Assegura de manter esse trabalho, que
199
era o único programa gerador de qualquer tipo de renda para a fundação, sendo
todos os outros exclusivamente assistenciais.
Elas apresentaram em seguida alguns desses programas, como seguro
saúde, hospedagem, remédio, auxílio funerário e outros do gênero. Tive a impressão
de que tal trabalho assistencial é realmente importante diante das muitas seqüelas
que o trabalho policial e dos bombeiros pode deixar, e também em função da
baixíssima remuneração dos praças. Além do mais a velhice, a doença e a invalidez
podem ser muito traumáticos para aqueles que desempenhavam trabalhos tão
ativos e corporais.
Como não poderia faltar no discurso das psicólogas, a mais velha acentuou
que o objetivo maior da fundação, no entanto, o era apenas prestar assistência
nesses casos de necessidade, mas também
contribuir para a qualidade de vida e o bem estar dos ex-policiais e
bombeiros. Esse bem-estar não é no setor financeiro, mas tamm no
setor emocional, pois utilizaria os muitos conhecimentos que acumularam ao
longo da carreira em um trabalho de grande utilidade para todos, fazendo
com que se sintam colaborando com a sociedade.
200
Sua abordagem foi bastante direta. Em seguida indagou se eles já conheciam
os programas da fundação e se tinham algum comentário para fazer. Teodoro,
emocionado, disse que conhecia, pois tinha precisado da fundação e era muito
agradecido a ela. Waldemar, meio sem graça, comentou que a possibilidade
constante de saírem dali gerava muita angústia, porque precisavam daquele
dinheiro. Heleno, sempre falante e seguro, não abriu a boca.
Após essa apresentação, as psicólogas os levaram para o corredor (onde
algumas cadeiras deslocadas podiam ser encontradas) em grupos de dois para
200
A preocupação com que os aposentados e reformados não se sentissem inúteis ou improdutivos é
freqüente no que diz respeito aos discuros daqueles que trabalham com assistência social a idosos,
como indica Peixoto (200: 55): ―(...) ao se apoiar na idade biológica ou no tempo de serviço,a
aposentadoria libera do trabalho indiduos ainda produtivos e lhes atribui o estatuto de inativos. Se
considerarmos que a ideologia do trabalho e a apologia da produtividade são bastante enfatizadas nas
sociedades industriais, a aposentadoria representa, para alguns, a deterioração da pessoa (...)A
aposentadoria simboliza, assim, a perda de um papel social fundamental, aquele de indivíduo produtivo,
e passa a constituir um sintoma social de envelhecimento‖.
200
aplicarem questionários de rotina. No primeiro grupo vão Waldemar e Heleno, que
explicou que precisava ser o primeiro, porque tinha que ir ao centro, fazer alguma
coisa relacionada com a própria Assegura. Antes de deixar a sala, a psicóloga mais
velha me perguntou se eu estava realizando o trabalho em Copacabana, ou se
iria também percorrer outros batalhões. Expliquei que havia sido autorizado a
freqüentar apenas esse, e que para o tipo de trabalho que realizava era melhor uma
freqüentação mais prolongada em um local do que poucas visitas em muitos
lugares diferentes. Ela me respondeu que era ―uma pena porque o são todos
assim, aqui tem praia. No início, porque foi o primeiro, fazia sentido. Mas você
precisava mesmo era ir ao de Olaria‖. Retruquei que em Copacabana e no Leme
também existiam favelas, mas que eles recebiam a recomendação de não olhá-las,
no que ela respondeu que sabia disso, mas que era ―assim mesmo, não há o que
fazer‖. Ficou visivelmente decepcionada por eu ir ao 19º BPM (parecia não
apreciar muito as equipes desse batalhão). Por fim me disse, como para deixar claro
que o trabalho deles (da Fundação Assegura) era melhor do que o que eu via: ―bom,
mas saiba que não é assim em todo lugar‖.
Se não percebia entre os operadores o temor de que eu os estivesse
avaliando, com as psicólogas a questão foi diferente. Não em relação ao trabalho
delas, mas o da fundação que estavam ali representando, e mais ainda para aquele
serviço específico do monitoramento, que como o discurso que acabara de escutar
havia indicado, estava realmente ameaçado. De qualquer modo, ela repetiu a
mesma expressão que eu ouvira várias vezes a propósito do monitoramento na 19ª
AISP: ―aqui é praia‖. Havia escutado isso em diversos contextos e entonações
distintas, ora reclamando, ora explicando como deveriam agir. A cobertura de toda
a extensão da praia pelas câmeras era apontada como um fator positivo, a
visibilidade de suas ações era ampla e o monitoramento era bem mais simples de
201
ser realizado do que nas ruas, havendo o benefício de ter menos pdios,
marquises, escapes, sombras e outros fatores que dificultam a visualização das
imagens ou o acompanhamento de cenas. A concentração do monitoramento na
praia inclusive com a recomendação de não olharem para as favelas- se parece
agradar ao comando do sistema de monitoramento, como foi evidenciado pelo
coordenador, para as funcionárias da Assegura era um fator de desabono ao
trabalho realizado naquele batalhão.
III.15.2 Remanejo
No dia da visita das psicólogas soube o quanto aquele “emprego” era
importante para os operadores, e como a sua instabilidade era uma fonte de
angústia para aqueles homens. Mesmo anteriormente às palavras de Waldemar e à
reação tensa ao anúncio do fim do contrato entre a Polícia Militar e a Assegura.
Aproximadamente uma hora antes da chegada da primeira psicóloga, Heleno
recebera um telefonema cujo teor os havia deixado apreensivos. Thiago, o
encarregado da fundação que sempre entrava em contato com eles (é também quem
vem dar o visto na brochura toda semana), ligara marcando uma reunião para o dia
seguinte às 2 horas, explicando que precisava contar com a presença de todos os
operadores. Pelos comentários pude perceber que o medo maior que tinham era o
da “demissão”
201
.
Na minha visita seguinte, três dias depois, logo que cheguei percebi que não
estavam animados como de habitual, e Saulo estava especialmente carrancudo e
numa impaciência e mau-humor que eu ainda não presenciara. Foi me dizendo que
tinham novidades, e que a Assegura iria cortar oitenta pessoas. Repetiu para mim o
201
Embora tecnicamente não possam ser demitidos, que o contrato que têm assinado está como
“voluntário”, e é assim que são chamados pelas psicólogas, além de ser a função que consta no crac
(vem também escrito “Projeto Vida com Qualidade”).
202
que dissera a psicóloga, que atualmente existem quatro batalhões onde o
monitoramento vem sendo realizado por outra empresa. Segundo ele, um pessoal
que não tem traquejo nenhum, estão lá desde o início do ano e ainda não pegaram
nada!‖ Realizou o trabalho de forma muito dispersa aquele dia, conversando
constantemente, e num determinado momento, em que reclamava da postura
distraída de alguns colegas, passou a me perguntar de onde eu era realmente e o
que anotava tanto no caderninho: você o está aqui de X-9 o, né? Deixa eu ver
esse caderninho! Você não pode anotar essas coisas que a gente te fala não! você
trabalha para quem?‖. Expliquei calmamente outra vez todo o percurso que fizera
até aquele local, que fazia pesquisa para mim mesmo, escreveria uma tese para a
UFRJ, e me preparava para me tornar doutor. Ele pareceu satisfeito com a
repetição da minha trajetória e aparentemente retomou a confiança em mim.
Entretanto esteve bastante estranho por alguns dias.
Nessa mesma semana uma conversa entre Agenor e Gil revelou outra visão
do futuro do monitoramento, além de uma interpretação de um operador para mim
desconhecida sobre o serviço deles e a relação estabelecida com a Assegura. Tudo
começou quando Gil comentava sobre a Copa do Mundo de 2014:
- Até antes da Copa, no máximo até 2012, essa cidade vai ter que estar toda
monitorada, todas as grandes ruas, de todos os batalhões...
- Deve ser por isso que estão mandando oitenta da gente embora... retrucou
Agenor ironicamente.
- Mas é por isso mesmo, voque não entende nada. Monitorador vai ter que
ser emprego, uma carreira, com carteira assinada. Tinha que ter até curso no
SENAI, no SENAC, tudo isso, o vai poder ser igual à gente. Tem que
aprender de informática, de computador. A gente o é contratado, aparece
como “voluntário”, nós somos chamados de “voluntários”. Voluntário porra
nenhuma, que todo mundo está aqui porque está duro, cheio de dívida. E não
vai mais ter fundação nenhuma, que fundação é coisa só pra velho ou então
pra menor carente, criança de rua. Tem que ser emprego com treinamento
específico!
Agenor se manteve em silêncio, convencido ou indisposto a enfrentar a verborragia
argumentativa de seu colega.
203
Durante pouco mais de uma semana muito se falou nas demissões que
ocorreriam, e a preocupação passou a ser com os critérios adotados para mandá-los
embora. Reuniões pouco esclarecedoras, boatos, informações desencontradas.
Todos sabiam que uma mudança estava prestes a ocorrer, e esperavam com temor
a lista que ia sair. Nélson chegou a me confessar que estava resignado com a
dispensa, pois era novato e nem tinha tido tempo de aprender o serviço.
Dez dias após a reunião com as psicólogas, chega uma nova informação,
aparentemente definitiva
202
, a respeito da tão temida mudança. Alguns dos
operadores daquele batalhão iriam embora de lá, mas não seriam dispensados,
apenas substituiriam os policiais que desempenhavam essa função no CCC,
aqueles que fiscalizavam seu trabalho. Em decorrência da pressão por mais agentes
nas ruas, e do conseqüente processo governamental de esvaziamento das funções
internas desempenhadas por policiais, o posto de operador de câmeras da central
de monitoramento passaria também a ser ocupado por “voluntários” da Assegura.
Mais precisamente, oitenta seriam remanejados de todos os batalhões para a
Secretaria de Segurança, categoria que continuaram utilizando para denominar o
CCC. Dentre eles estavam selecionados Gil e Agenor, que já no mês seguinte
deveriam estar no novo local de trabalho.
Apesar da notícia reconfortante diante do panorama esperado, como nenhum
dos operadores, a não ser Heleno, tinha estado no CCC, persistia certa
apreensão. Ao menos em Agenor, que veio me perguntar como era o local, pedindo
que descrevesse a sala e o ambiente de trabalho. Depois confessou: ―é muito
rigoroso o ambiente lá? Porque trabalhar direto junto com o chefão (o coordenador,
tenente-coronel) sempre medo. Muito rigor, não pode errar.‖ Tranqüilizei-o,
dizendo que o ambiente do CCC era também descontraído, e não achava nem um
202
Antes, porém, do remanejamento ser concretizado, tive que encerrar as atividades de campo, não
podendo então precisar qual a resolução final a esse respeito.
204
pouco rigorosa a disciplina de trabalho. Não contei do tédio que via em
praticamente todas as faces e comportamentos, porém é provável que em pouco
tempo descobrisse isso sozinho.
III.15.3 - Rusgas
Desde a chegada de lson no serviço, e de sua inegável dificuldade no
manejo das câmeras (do computador, na prática), Saulo demonstrava bastante
impaciência com este, sentindo-se responsável por ensiná-lo e repreendê-lo a cada
deslize, numa postura certas vezes um tanto agressiva.Com o aumento da tensão
provocado pelos rumores de uma grande demissão, o ambiente passou a ficar ainda
mais propenso a desentendimentos, em especial de Saulo a quem os colegas se
referiam como “caxias” - com outros operadores, em decorrência do desleixo de
alguns deles na execução do serviço.
Na terceira semana de Nélson - que coincidiu com o início dos rumores da
demissão - logo após este voltar do almoço dez minutos atrasado por ter ido fumar
um cigarro, Saulo o repreendeu de forma veemente, e passou a dizer que o cheiro
de cigarro era tão forte que nem se podia ficar perto dele. O novato, resignado com
as queixas de que era alvo, sentou em seu lugar e pegou discretamente o jornal
Meia-Hora para ler. Essa atitude indignou o colega, que passou a dizer que eles
seriam repreendidos pela Assegura: ―já já vão ligar para e me dar um esporro‖.
Explicou a Nélson que os fiscalizadores viam tudo, gravavam e davam as fitas para
a Assegura. Justificou-se explicando que achava muito chato ficar chamando a
atenção de homem feito‖, mas que iam chamar a dele se o fizesse nada. Mostrou
seu próprio jornal embaixo da mesa, e disse:
eu também queria ler, mas não dá. Quando todo mundo aqui, um ainda
pode, discretamente, dar uma lidinha... Mas aqui estamos só eu e você, e tu
quer tirar o jornal pra ler... não dá!
205
Na visita seguinte, chegando na sala antes do almoço, perguntei a Saulo se
alguma ocorrência tinha sido registrada aquele dia, no que me respondeu,
aparentemente contrariado: ―só uma senhora débil mental perdida, mas a gente não
achou não‖. Em seguida mudou o teor da conversa, porém mais tarde voltou a tocar
no assunto, falando comigo, mas numa altura que permitia que os colegas também
ouvissem, que com a necessidade de procurar uma pessoa que precisa de cuidados,
o novato não fizera nada direito. Nélson se defendeu, dizendo que era apenas sua
terceira semana de trabalho, não tinha nenhuma experiência de mexer em
computador, era impossível que fosse capaz de desempenhar corretamente a função
em tão pouco tempo. Saulo, mais calmo, concluiu: ―esse outro computador tem é
que voltar logo a funcionar, para incentivar mais a gente aqui‖. Nessa ocasião um
dos computadores estava desativado há mais de um mês, à espera de uma peça que
deveria vir de São Paulo.
Após voltar do almoço, ele vem falar diretamente comigo sobre sua crescente
insatisfação com Nélson. O motivo, novamente naquele momento, era que este,
terminando de almoçar desceu para fumar um cigarro, e teria com isso atrapalhado
o horário de almoço dos colegas. Saulo é ex-fumante e parecia ser intolerante em
demasia com o novato, apesar de já o conhecer anteriormente ao trabalho de
monitoramento (os dois haviam sido colegas quando bombeiros). Explicou também
que estava de mau humor por causa da história da ―senhora débil mental. Revelou-
se impressionado com a falta de profissionalismo dos colegas, que não teriam
procurado a senhora com o afinco que poderiam. Ressaltou também a importância
do trabalho deles, e a necessidade de ser bem realizado:
isso aqui é Copacabana, tem sempre gente mal intencionada querendo
roubar, matar... e tem gente indefesa, turistas, idosos, gente de fora... a gente
aqui tem que, deveria pelo menos (apontou com os olhos para as cadeiras
vazias, normalmente ocupadas pelos outros operadores), prestar atenção em
tudo, ter paciência, observar...
206
Saulo também contou que tinha se aborrecido com Chirriú, que teria
cochilado abertamente no horário do trabalho.
De noite, quando o cara tá mal, a gente ainda deixa encostar ali no canto, um
de cada vez, e tirar um cochilo, pô, mas de manhã já é sacanagem...
Nesse mesmo dia, quando me preparava para ir embora, ele me mostrou,
discretamente, a distração de Nélson, e também como mexia as pernas, parecendo
estar ansioso para ir embora
203
, e falou, com um sorriso mais condescendente no
rosto: ―está aí numa impaciência danada, vamos ver se com o tempo melhora‖.
Após esse dia, confundida com a apreensão decorrente da ameaça de serem
demitidos, pude perceber uma relativa tensão nas relações entre Saulo e seus
colegas, mesmo se em especial com Nélson, também em relação a Chirriú e Xavier,
que nessa época dividiam o serviço com ele. O tom rude das repreensões fazia com
que a comunicação entre eles ficasse mais escassa e ressentida. E da mesma forma
que Saulo vinha se queixar a mim dos colegas, estes passaram a reclamar dele e se
defender das acusações em conversas diretas comigo. Na situação de tensão que
enfrentavam, era quase convidado a proceder a uma arbitragem entre os lados em
disputa, tendo sido pressionado a me posicionar, fato que consegui por fim evitar,
não sem consideráveis dificuldades
204
. Enquanto Nélson apenas se defendia, Xavier
vinha me dizer que Saulo era muito ―cri-cri‖, e que por mais que pudesse estar certo
algumas vezes, não deveria falar daquela maneira com os colegas de trabalho, pois
―ali todo mundo é homem igual a ele‖. Depois complementou que ele era uma
excelente pessoa, e sempre ajudava a todos ali, mas estava muito nervoso com a
possibilidade de demissão, e devia também estar enfrentando problemas em casa.
203
Vale lembrar que o próprio Nélson me confessou que sentia grande dificuldade em trabalhar após o
almoço, porque estava habituado já há anos a ”tirar uma sesta”.
204
Essa situação etnográfica é bastante comum, decorrendo muitas vezes da relativa posição de
prestígio ocupada pelo pesquisador universitário frente aos nativos pesquisados, fazendo com que
estes por vezes busquem seu apoio em querelas internas ou como busca de algum “poder simbólico”.
Ver, por exemplo, Foote-Whyte (1943), Maggie (2001) ou Zaluar (2000).
207
O nervosismo generalizado agravou-se depois de um episódio no qual os
operadores não tiveram participação, e que ocorreu fora do turno de Saulo. Tudo
estava aparentemente calmo na sala quando o telefone do responsável do turno
(Agenor) toca, e este adquire imediatamente tom mais sério do que o habitual ao
atender. A ligação dura apenas alguns segundos, e ao fim desta o operador levanta-
se e diz, num tom grave, para Ceará, a policial feminina que sentava na bancada de
trás e desempenhava a função de despachadora: ―era o (tenente-)coronel, chefe do
monitoramento, ligou e mandou fechar o joguinho‖. No caso, o aplicativo com o qual
ela se distraía quando não falava ao telefone, e que foi visto pelo coordenador direto
do CCC através da câmera localizada ao fundo da sala de operações. O espanto,
principalmente dos policiais, foi imenso, demonstrando que para estes a câmera
1910 parecia ter estado, a aquele momento, invisível. Todos ficaram
impressionados com a seriedade do coordenador, tendo esse acontecimento
provavelmente tido influência no temor que Agenor demonstrou posteriormente de
ir trabalhar no CCC, tão perto do “chefe”.
Muitos comentários e brincadeiras surgiram após a ligação, tendo a sala
ficado animada posteriormente, com exceção de Ceará, que se manteve calada pelo
resto do tempo que estive lá. ―Não nem para dormir‖, brincou um deles, ―e se à
noite a gente entortasse essa câmera?‖, completou outro. ―Mas isso não tem
microfone não, né?‖, este volta a perguntar. Gil, com orgulho, declarou que assim os
policiais viam como o trabalho deles era importante, ―conseguia até fazer aquele
pessoal ali trabalhar!‖ Pelas horas seguintes a história foi contada a todos os
conhecidos que entravam na sala de operações, e algumas piadas foram feitas em
torno da repreensão por parte do tenente-coronel. Em uma comunicação por rádio
com um policial que estava na rua, Amiguinho fala alto, de maneira que todos na
sala ouviram: ―você vai sair daí, e quem vai ficar olhando seu setor?‖. No segundo
208
seguinte, um policial grande e de bigodes brancos que sempre freqüentava a sala,
emendou, para a gargalhada geral: ―ah, isso vopede pro coronel que ele olha, está
craque nisso!‖
Outro dia, quando conversava com Saulo, este veio me dizer, demonstrando
preocupação, porém com um leve sorriso no rosto, que tinha razão em chamar a
atenção dos colegas. Sem saber que eu estivera na sala no momento exato do
ocorrido, contou-me outra versão da história que presenciara:
no outro dia o coronel da Secretaria ligou pra e deu um esporro ferrado,
espanou todo mundo porque estavam brincando no computador. Por isso que
sou chato, porque acho que o trabalho tem que ser feito direito, é importante,
mas também porque não quero levar bronca, nem ver um colega desses ser
mandado embora, porque aqui está todo mundo precisando desse trocado
que a gente recebe da Assegura.
Demonstrava estar satisfeito com a ligação do coordenador, tendo dito que
―servia para o pessoal ver que eu não sou tão chato assim não , é que eso de
olho na gente‖. E, o que o alegrava ainda mais, a repreensão parecia ter surtido
efeito, e por algum tempo o trabalho, tanto dos policiais quanto dos operadores foi
realizado de forma menos dispersa. Mesmo que para isso a história que presenciei
tenha sido consideravelmente aumentada, virando ―um esporro ferrado‖, e não o
breve telefonema que vi Agenor receber e cuja mensagem foi de forma simples
passada por ele às outras pessoas na sala: ―o coronel ligou e mandou fechar o
joguinho‖.
III.15.4 - Vigilante ou voyeur?
Quando ainda visitava o CCC já havia reparado que muitas câmeras tinham
em seu campo de visão janelas de espaços privados, mas que no horário em que me
era permitido visitar o local era muito difícil enxergar qualquer coisa num desses
espaços, que com as luzes apagadas tornavam-se demasiado escuros para as
209
câmeras posicionadas do lado externo, sob a luminosidade do dia. Contudo, sempre
imaginei que durante a noite, quando esse contexto de iluminação fosse invertido, a
observação dessas áreas privadas deveria se tornar perfeitamente plausível. E
duvidava muito que aqueles que moravam dentro do campo de visão das câmeras
estivessem cientes dessa situação. Planejava descobrir isso freqüentando o 1
BPM. E rapidamente percebi que muitos são os locais nos quais esse problema es
posto, por vezes criando grandes dificuldades para os operadores na utilização das
câmeras.
A mera 1915, por exemplo, tem pelo menos sessenta por cento de seu
campo de visão constituído por janelas de apartamentos na Rua Gustavo Sampaio,
e também na Rua Aurelino Leal. Apenas uma pequeníssima parte da área
visualizável por essa câmera pode ser oficialmente considerada como ponto de
interesse do monitoramento, já que da área restante mais da metade era composta
pelas copas das muitas árvores presentes nas ruas do Leme
205
. Através dessa
câmera pude ver pela primeira vez, claramente, o interior de um apartamento,
mesmo estando este com a luz apagada. No caso, a proximidade e o ângulo de visão
da câmera, coincidindo com a iluminação do interior do apartamento pelo sol,
desvelavam claramente aos meus olhos um sofá, uma mesinha, e sobre ela uma
televisão. O ambiente estava aparentemente sem ninguém, mas quem sentasse no
sofá para assistir TV, naquele horário do dia, poderia ser observado através das
câmeras de vigilância da polícia do Rio de Janeiro, fenômeno que provavelmente se
repetia à noite. Não sei se mais alguém viu, pois a mera estava colocada no
automático, e a tela do computador no qual eu assistia estava dividida em imagens
de quatro diferentes câmeras. Posteriormente pude verificar que através da câmera
205
O Leme é o bairro com maior proporção de câmeras da cidade. São ao todo seis ao longo de um
percurso de aproximadamente mil metros, que pode sem dificuldade ser feito em menos de quinze
minutos.
210
1915, na parte da manhã, um número considerável de apartamentos se encontra
nessa mesma situação. Porém nunca vi alguém observando diretamente nenhum
deles, que essa câmera era evitada pela maioria dos operadores, por ter sido
muito mal colocada, como foi comentado, em dias diferentes e de forma
independente, por Gil e Saulo. Porém, as áreas que ficavam realmente expostas,
todo o tempo, ao olhar eletrônico das câmeras eram as coberturas localizadas em
um ponto mais baixo do que aquele em que estava colocada a mera. A começar,
de forma para mim bastante surpreendente, pela cobertura do próprio prédio no
qual a câmera está instalada. Mas também a de alguns prédios vizinhos.
Percebi também, quando uma das câmeras colocadas no hotel Lancaster
funcionava no automático, que era possível ver o interior de um apartamento bem
próximo, do mesmo lado da rua. Nesse dia a câmera passou todo o tempo
realizando um percurso que incluía uma parada de aproximadamente quinze
segundos nessa janela, sem que ninguém parecesse perceber, ou se importar com
isso. Depois observei o local da praia, e percebi que se tratava de um quarto do
hotel ao lado (Ouro Verde).
No entanto, nas vezes que tentei falar sobre o assunto com os operadores,
recebi sempre como resposta negando com veemência que alguém ficasse ali
pudesse ficar olhando o interior do apartamento de alguém. ―Aqui tem velho,
ninguém é mais moleque não pra ficar fazendo uma coisa dessas!‖, falou Gil, bem ao
seu jeito. ―A propriedade é inviolável, todo mundo aqui sabe que não pode fazer uma
coisa dessas”, disse Heleno, cheio de gravidade, enquanto Saulo lembrou que se
algum deles fosse surpreendido ―pelo pessoal da Secretaria fazendo isso, não vai ser
moleza a bronca não‖, o que fazia com que tal comportamento não fosse nem
mesmo cogitado por eles.
211
No dia em que se falava que a Assegura demitiria oitenta operadores, fazendo
com que as conversas todas girassem em torno desse assunto, adentra a sala um
policial (soldado) que eu nunca vira antes, se dirige ao responsável pelo serviço,
Saulo, e pede para ver uma coisa na câmera perto do túnel, na Avenida Princesa
Isabel (1916, a preferida dos operadores). Explicou que na sala ao lado estava uma
mulher com seu marido, reclamando que a câmera estava colocada logo acima do
terraço de sua cobertura, e que a privacidade de sua família estava sendo invadida.
Enquanto dizia isso, Saulo fazia a varredura do campo de visão da câmera,
rapidamente verificando que a reclamação procedia e uma visão bastante próxima e
nítida do terraço era inegável. Surpreso, o policial que já classificara os reclamantes
de ―casal paranóico‖ permaneceu sem saber como reagir. Entra então um sargento
na sala e inicia com ele e Saulo a seguinte conversa:
- E aí, dá para ver mesmo alguma coisa? pergunta o sargento.
- Se dá, grudado... responde o soldado.
- Mas como é que eles souberam, quem foi que disse que a câmera é nossa?
indaga Saulo.
- Foi o pessoal do hotel, parece que o cara chegou acusando o hotel de
estar espionando a mulher dele e eles empurraram o abacaxi pra gente
esclareceu o sargento.
- Tinha que inventar qualquer coisa, menos dizer que é nossa. E agora, a
gente faz o que? quer saber o soldado.
- Qualquer coisa, sei enrola eles... não deixa entrarem aqui de jeito
nenhum. Fala que não pra ver nada, que a câmera gira pro outro lado.
Ela não tem um vidro todo preto? - diz o sargento.
- Peraí também! Se for assim vai ter que tirar todas as câmeras, porque de
todas dá pra ver apartamento, varanda, cobertura.... revolta-se Saulo.
- Mas olha, para ver varanda, como invasão de privacidade? Se ela
estiver pelada na varanda é atentado ao pudor, errada esela! emendou,
meio brincando, meio sério, Heleno
206
, mostrando a famosa varanda mais
uma vez através da câmera.
Depois que os policiais deixaram a sala, o assunto continuou movimentando
as conversas na sala de operações. Saulo e Heleno explicavam que o controle era
também da Secretaria, e que eles não olhavam mesmo, não podiam olhar de jeito
nenhum, sabiam muito bem disso, e que se constituía em falta muito grave no
206
Que excepcionalmente, por uma mudança de horário, dividia o turno com Saulo.
212
trabalho que desempenhavam. Mas revelaram que o problema não era inédito, e
que a mera que havia sido colocada no hotel Trocadero, fora retirada depois que
hóspedes teriam reclamado achando que estavam sendo olhados. A gerência do
Trocadero teria então ido e feito o pedido para que retirassem a câmera, afinal
―para funcionar ali precisa da autorização do hotel, ou do condomínio se for
residencial‖.
As gozações em torno do fato também não tardaram. Um policial que havia
visto o casal na outra sala comenta que a mulher ―já é meio coroa, mas deve se
achar gostosa!‖. Para Heleno aquilo era para ―se valorizar e fazer ciúmes no
marido‖. Apenas Saulo admite se tratar de uma situação muito chata‖, afirmando
que se fosse em sua casa, não gostaria nem um pouco. Porém ressaltou que a única
coisa que poderiam fazer, eles fazem, que é não deixar ninguém olhar. Em seguida
passou a mostrar como em praticamente todas as meras era possível ver
varandas e terraços de apartamentos, uma situação a seu ver incontornável, a não
ser pela fiscalização constante e o bom senso que não deveria faltar nos operadores.
A seu ver, se algum deles fosse pego ―bisbilhotando a casa de alguém, deveria ser
caso de suspensão imediata, ou até de mandar embora mesmo‖.
Entretanto, não é esse o discurso veiculado pela pula do monitoramento
através da imprensa. Em matéria publicada na Revista
207
, suplemento dominical do
jornal O Globo, esse assunto é tratado, e em relação a ele o coordenador dá algumas
explicações pouco condizentes com a realidade empírica que encontrei.
É realmente um olho de qualidades sobrehumanas. Move-se em 360 graus na
horizontal e 210 na vertical. Enxerga com nitidez numa disncia de até um
quilômetro. Por ser tão detalhista, a câmera pode ser inconveniente, ao
estimular a bisbilhotice. Mas o coronel informa que o equipamento tem um
dispositivo eletrônico que bloqueia a imagem em lugares privados. Um
software é programado para identificar quando a câmera está posicionada em
207
―Sorria, você está sendo filmado: câmeras de segurança se multiplicam nas ruas do Rio, gerando
polêmica‖, de 12 de outubro de 2008, por Fellipe Awi.
213
coordenadas que a ponham na direção das janelas de um prédio residencial,
por exemplo.
- Tomamos o maior cuidado. Não podemos cair em descrédito afirma.
A reportagem tinha saído menos de duas semanas, e um exemplar da
revista era mantido sob a bancada dos operadores, e exibido com orgulho por estes.
No dia em que o casal esteve no 19º BPM reclamando da câmera, lembrei das
palavras do coordenador, e mostrei o trecho a Saulo, Heleno e Xavier, que após a
leitura disseram unanimemente que aquilo não existia. ―Nem mesmo nessa, que é a
câmera mais nova tem, imagina nas outras‖, falou o primeiro se referindo à 1916,
“pivô” da questão na qual se viam envolvidos.
Nos serviços seguintes o assunto foi aparentemente esquecido, deixando de
ser mencionado. Saulo, quando perguntei sobre isso, me disse que não deve ter
dado em nada, nunca mais falaram nisso‖. Já Agenor, que não estava presente no
momento da reclamação, mostrou-se surpreso com o fato, afirmando não ter ouvido
nada a respeito, limitando-se a dizer que ―de vez em quando aparece alguém para
reclamar dessas coisas aqui, até hóspede de hotel já veio‖.
III.16 - Imagens de arquivo
Desde as primeiras vezes que freqüentei o batalhão, me foram mostradas
imagens de arquivo do monitoramento, por vezes no intuito de ilustrar alguma
explicação, porém normalmente apenas como uma forma de driblar a falta de
emoção nas imagens normais do cotidiano. A captação de algum flagrante ou
ocorrência, por mais que acontecesse de fato, não era tão freqüente quanto se
poderia imaginar, ou ansiar. Assim sendo, sempre que alguma era registrada dentro
do campo de visão de uma das câmeras, os operadores se apressavam em me
mostrar quando de minha visita seguinte. E, quando não o faziam, Teodoro ou
214
Saulo buscavam na ―brochura alguma anotação de outro turno que pudesse
indicar um acontecimento interessante. Parecia lógico que se eu estudava as
câmeras de segurança, deveria querer assistir a imagens de flagrantes, bem mais
interessantes que as cenas corriqueiras que víamos o tempo todo na rua, do lado de
fora daquele prédio. E por mais que fossem interessantes, a maneira com a qual
lidavam com as imagens banais da vida do bairro também eram fundamentais para
a compreensão de como o monitoramento era realizado. Como foi também de
grande interesse observar a maneira como lidavam com os computadores, suas
memórias e arquivos, na tentativa de recuperar imagens de flagrantes ou ocorrência
registradas na brochura.
Como parte da apresentação do sistema de monitoramento como um todo,
Saulo abriu no dia de minha chegada uma pasta nomeada Demonstração, e dela
selecionou três vídeos para me mostrar. Não pude, no entanto, distinguir se haviam
sido escolhidos propositalmente ou ao acaso, apenas que havia muitos outros na
pasta. Trechos de dois deles eu já havia visto pela Internet
208
: o de um furto
praticado por um homem negro, na beira do mar, a uma mulher distraída; e uma
perseguição que vai até o lado dos prédios na Atlântica, a um homem exaltado (―um
comediante‖, de acordo com Saulo), nomeado ―ação enérgica‖. Ambos o bastante
interessantes e merecem ser analisados detidamente.
O primeiro deles, dividido em duas partes, é um clássico exemplo do
monitoramento bem realizado. Um rapaz negro, sem camisa
209
(apelidado pelo
operador de ―atleta) se alonga na areia, perto de uma mulher sentada numa canga.
Ele olha para os lados com freqüência, e em determinado momento pega,
208
http://www.youtube.com/watch?v=brCzpUfmjNg (Flagrantes de uma cidade vigiada). Neste deo do
YouTube, só de flagrantes das câmeras de vigilância do 19º BPM, estão algumas das melhores
imagens de arquivo da Secretaria de Segurança, sendo algumas delas utilizadas como demonstração
para pesquisadores como eu, ou em reportagens sobre o sistema, como tive oportunidade de assistir
em duas redes de televisão diferentes.
209
Como vimos, facilmente enquadrado como suspeito.
215
discretamente, a bolsa da mulher, retira de dentro algo, e a devolve em seguida,
sem que a vítima perceba o que aconteceu. Em seguida levanta-se e começa a
correr em direção ao posto seis, sendo acompanhado constantemente pela câmera.
Em menos de dois minutos vemos na tela os quadriciclos da PM, em grande
velocidade, o alcançando e abordando. Ele nega. O resto da história é Saulo quem
conta:
ele disse que não tinha feito nada, e não estava com nenhum flagrante, e era
verdade, porque dinheiro não é flagrante. Os policiais disseram que tava tudo
filmado e trouxeram ele pra cá. Ele viu as imagens e não teve como negar.
Depois deram um pau nele. saiu inclusive, dizem, o sei se é verdade,
que largou essa vida, tava arrependido. É lá do Chapéu Mangueira.
O segundo deo mostrava um homem magro, com um pano, atravessando a
rua e xingando (―estava ofendendo todo mundo, pessoal da rua, desacatou polícia,
fez tudo‖), perseguido por vários policiais. Após atravessar para o lado dos prédios,
passa a correr, fugindo, até ser atropelado por uma caminhonete blazer verde
aparentemente estacionada na calçada (segundo Saulo era do serviço reservado). A
ação, enérgica como o próprio título do vídeo dizia, até excessiva, era diferente do
vídeo anterior. Se antes a cena tinha sido flagrada pelas câmeras de
monitoramento, esta última só foi vista após comunicação através do rádio.
As imagens do terceiro vídeo eram para mim inéditas. Tratava-se de um
salvamento no mar, realizado “com todo o aparato dos bombeiros”, proferiu um
orgulhoso Saulo. Vemos no mar, bem distante, os salva-vidas chegando a nado, e
depois o resgate pelo helicóptero. O homem sai da água auxiliado, aparentando
estar muito debilitado. Grande número de populares se aglomera em torno dele, ao
ser deitado na areia. Isso ninguém fala. Nosso trabalho é muito importante, a gente
que salvou esse cara, que ia se afogar. Mas esse trabalho não aparece‖.
Contudo, se nesse primeiro dia Saulo passou algum tempo me mostrando
essas imagens de arquivo, era Teodoro quem mais freqüentemente o fazia, sempre
216
buscando na brochura o que podia me interessar. No mais das vezes encontrava
erros no preenchimento desta, constantemente atribuídos a Agenor
210
(como, por
exemplo, a descrição da ocorrência sem o horário ao lado), contudo também
descobria alguns flagrantes, ou cenas extra-cotidianas de monitoramento. Numa
dessas vezes, ele encontra escrito na brochura ―homem passa mal e é socorrido
(câmera 1903):
6:36‖, e, com certa dificuldade, reproduz através do software
LiveView, as imagens desse exato minuto. Vimos um homem completamente vestido
sendo monitorado na areia. Durante muito tempo nada aconteceu, o que leva
Teodoro e Waldemar a pensarem que a ocorrência deve ter sido registrada com a
hora errada.
Foi o Agenor, errou de novo... daqui pouco vai ter problemas. Acho que
está errado, porque ele marcou aqui 6:36 e o serviço dele começava só as
sete.
Contudo, após meia hora
211
(adentrando então o horário de serviço de
Agenor), chegou ali um quadriciclo da PM e pudemos então compreender o que
acontecera: o homem vestido que aparentemente estava sendo monitorado era na
verdade um policial, que estava de ao lado de alguém deitado na areia. Ele
provavelmente viu a cena e ligou pelo rádio para a sala de operações, de onde
passou a ser monitorado. O que chama a atenção no caso é o imenso tempo
decorrido entre esse momento e a chegada de socorro, sendo que até a remoção
para a ambulância dos bombeiros mais quinze minutos se passaram.
Outro vídeo que tive a oportunidade de assistir
212
, dessa vez retirado de uma
pasta de seu computador, um homem vestido era monitorado na areia em atitude
suspeita. Tive a impressão de que usava alguma substância
210
Apenas os responsáveis preenchiam a brochura, logo, dentre os que trabalhavam de dia, apenas
Saulo, Heleno, Teodoro e Agenor.
211
Os intervalos de tempo, assim como os horários, são precisos, já que sempre que as imagens estão
sendo visualizadas o horário fica visível na parte de baixo da tela, e depois de gravadas podem ser
assistidas em alta velocidade.
212
Cujo título, composto só pela data (abril de 2008), não trazia pistas sobre a classificação policial do
evento.
217
entorpecente/alucinógena, possivelmente cola de sapateiro ou thinner. Víamos a
cena sem uma exata noção do que acontecia, mas todas as pessoas que passavam
caminhando junto a ela observavam com atenção. Teodoro achou inicialmente que
era um casal, com o que não concordei: ―acho que está usando entorpecente‖,
arrisquei-me a palpitar, com o que ele concordou após observar atentamente por
mais alguns minutos. Uma hora e dez minutos depois do início do monitoramento,
a pessoa pareceu desmaiar, permanecendo então desacordada, enquanto tinha
alguns “espasmos”. Mais uma dezena de minutos se passaram sem que nada
acontecesse, sem que nenhum socorro fosse enviado. É possível que o fato de estar
aparentemente fazendo uso de um entorpecente tìpico dos “meninos de rua” pode
ser uma importante pista para a negligência com a qual o caso fora tratado, não
tendo sido enviado nenhum socorro para uma pessoa que aparentava necessitar
bastante de um.
III.17 - Paradoxo do flagrante
Os vídeos arquivados são de grande importância para a consolidação do
monitoramento como política pública de segurança, com o uso das imagens e seu
poder argumentativo e explanatório como forma de demonstração de sua eficácia,
mesmo sem o respaldo pretensamente objetivo das estatísticas criminais. A
publicização dos resultados práticos da videovigilância, através de flagrantes, é de
suma importância para a justificação dessa política de segurança, tanto em função
de sua eficácia quanto no que diz respeito à sua legitimidade, buscando tornar
irrelevantes, ou reduzir a males menores necessários (e particulares) a um bem
maior e público, os possíveis (e até certo ponto bastante prováveis) conflitos com
218
aqueles cujo espaço privado é virtualmente invadido pela vigilância eletrônica, todo
o tempo.
Essa busca por visibilidade dos casos de monitoramento bem sucedido, ao
mesmo tempo em que legitima e transmite uma idéia positiva do monitoramento,
utilizando para isso o alcance da imprensa, estabelece com ela uma relação na qual
os flagrantes de videovigilância tornam-se material habitual jornalístico,
contribuindo para mudanças estéticas e de conteúdo no telejornalismo
213
. E, num
movimento notável de reapropriação dessas imagens, elas podem ser vistas,
gravadas, montadas, utilizadas como matéria prima, de qualquer computador
ligado à rede, ad infinitum. Em sites como o YouTube, podemos encontrar centenas
delas, provenientes do mundo inteiro, criando, estabelecendo e satisfazendo a cada
vez mais presente estética do flagrante (Bruno & Lins, 2007), que também colabora
para que nos acostumemos com a videovigilância e, mais ainda, a vejamos como
um fato positivo e incontornável. O que significa, logicamente, que cria uma
demanda por imagens de videovigilância, que acabam se tornando objetos de desejo
e fetiche para a imprensa e para os responsáveis pelo monitoramento, e também
para todos aqueles que as buscam na Internet
214
.
Essa conjuntura produz o que chamo de paradoxo do flagrante. O objetivo
maior do sistema de monitoramento é tornar mais seguros os bairros em que está
instalado, porém simultaneamente torna-se cada vez maior a necessidade de
flagrantes, em especial relativos a crimes ou comportamentos violentos. Se a 19ª
AISP, como proclamam o coordenador e a imprensa, sofreu uma redução
substancial da criminalidade com a instalação das câmeras de segurança, é
213
Ver, por exemplo: http://www.youtube.com/watch?v=NBdOJBC4Cw0 (Flagrante - Câmeras flagram
ataque a policiais militares na Cidade Nova), http://www.youtube.com/watch?v=foaewCi1WUI (Flagrante
Crueldade na Cidade do Rio de Janeiro) ou http://www.youtube.com/watch?v=Esdxg-6JdFw (Vídeo
flagra violência da milícia).
214
Esse ponto, entretanto, será explorado no quinto capítulo, onde desenvolvo com mais cuidado a
discussão que aqui apresento por alto.
219
perfeitamente normal que cada vez menos crimes sejam potencialmente flagráveis,
simplesmente por estes estarem mais escassos. A diminuição da violência geraria
menos imagens em potencial da violência. Os operadores sofrem constante pressão
por parte da Secretaria (do CCC) por imagens que comprovem a eficácia da
videovigilância na promoção da segurança pública, contudo a verdadeira eficácia
significa uma cada vez maior dificuldade de obter tais imagens. O paradoxo está
formado: a diminuição de ocorrências não é bem visto pelo comando, por engendrar
automaticamente a diminuição de flagrantes. No entanto, a própria exibição mais
ampla desses flagrantes, e a propaganda securitária em torno das câmeras, faz com
que a localização delas seja conhecida, e que os crimes e comportamentos
desviantes tendam a migrar para áreas sem câmeras, ou ao menos sem a certeza da
presença destas.
Não pretendo com isso afirmar que Copacabana e Leme tenham se tornado
locais mais seguros, ou experimentado uma diminuição radical dos crimes. Mas,
como ocorre constantemente, diferentes dinâmicas comportamentais e criminosas
se desenvolvem enquanto exploram e se adaptam a novas formas de repressão
215
,
assim como ao surgimento de novas vítimas em potencial (como o recente aumento
no número de turistas que anos o Rio de Janeiro vem conhecendo). Tão logo se
tornam públicos novos mecanismos ou procederes policiais seja pela publicização
na imprensa ou através de êxitos concretos que ganhem notoriedade - começam a
ser pensadas e postas em prática maneiras de escapar deles. E durante os períodos
onde a transição transcorre de forma mais radical, podem ocorrer aumentos ou
diminuições bruscos da violência. Até porque o mesmo processo ocorre
constantemente com as forças policiais, que têm sempre que adaptar estratégias e
comportamentos às dinâmicas criminais.
215
Fenômeno que remonta, provavelmente, a tempos imemoriais.
220
O fato é que naquela região sucedera uma mudança que chamara a atenção
de todos os operadores: os assaltos e furtos, especialmente a turistas, que eram
constantemente vistos no início do monitoramento (a maior parte das imagens de
arquivo que vi era de 2005), tornaram-se cada vez mais raramente flagrados. Da
mesma forma, a prostituição de travestis diminuiu na orla de Copacabana e
migrou, seja para a Barra, seja para as ruas transversais, não monitoradas.
Provavelmente mais como uma forma de não constranger a clientela do que como
proteção da própria imagem: a possibilidade de ser filmado, ou ter a placa do carro
filmada, negociando programa com um travesti poderia gerar um constrangimento
do qual eles teriam preferido se precaver. Pelo menos o próprio coordenador
deduzira isso, afirmando não ter havido nenhuma redução visível na prostituição
desse tipo, apenas uma adaptação (realocação).
Quase todos os operadores me disseram ter havido uma diminuição global da
criminalidade no bairro, contudo, em conversas informais, são unânimes em
afirmar que o posicionamento das câmeras se tornou conhecido dos ―vagabundos‖.
Teria ocorrido rapidamente, como me confidenciou um desanimado Gil: ―os
vagabundinhos todos sabem onde tem mera. Quando botou, andamos pegando
um ou outro, e logo eles se ligaram‖. Teodoro ressaltava que continuavam
acontecendo coisas, só mudava o perfil médio da ocorrência, que deixava de ser o
assalto, passando a situações de acaso ou de perda involuntária, não calculada, do
autocontrole, como brigas entre namorados, e ―pessoas malucas fazendo
algazarra‖.
O coordenador, no entanto, continuava cobrando maior número de
flagrantes, como me confessou Saulo, dizendo que nem mesmo o fato de ter uma
das melhores médias entre os operadores o livrava da pressão do superior. ―O
coronel pressiona a gente, parece que ele é muito exigente. Está dizendo que nossa
221
área está com pouca ocorrência, acha que a culpa é nossa, mas não é não, está difícil
mesmo‖.
Heleno me confirmou que numa reunião entre os operadores responsáveis e
o representante da Assegura eles teriam sido cobrados em relação ao pequeno
número de “flagrantes” naquela AISP. No entanto, via a questão como insolúvel:
é, parece que a gente vai ter que armar um cinema para mostrar serviço.
Neguinho está mesmo fugindo da câmera, já sabe onde está, não faz nada ali.
Também nada é sigiloso na polícia, isso não existe. A Globo já divulga logo,
qualquer nova tentativa da polícia de coibir o crime sai logo na imprensa e
estraga tudo. Porque sempre teve e continua tendo de tudo em Copacabana,
não está mais acontecendo muita coisa nessa área aqui não (disse
apontando para o computador, indicando genericamente as áreas
monitoradas).
Quando visitava o CCC, ao me explicar as razões da confidencialidade da
localização das câmeras, o coordenador mencionara que o objetivo do
monitoramento era criar uma cidade globalmente mais segura, e não apenas ilhas
de segurança nas áreas no campo de visão das câmeras. Porém, a ampla divulgação
dos flagrantes ocorridos na orla, além da publicidade feita pela Secretaria de
Segurança Pública sobre a instalação de câmeras nesse local (quando da
inauguração do sistema de monitoramento de Copacabana esse fato foi pauta na
maioria dos noticiários), acabou por criar esse efeito. Que, embora menos
espetacular que os flagrantes exibidos pelos programas televisivos e vídeos do
YouTube, não deixam de atestar a eficácia do monitoramento no combate a
determinados tipos de crimes. E, não custa reforçar, antes a criação de algumas
“ilhas de segurança”, que uma subsistência de um “continente de insegurança”. Até
porque a conversão de uma política pública de videovigilância em uma cidade
globalmente mais segura exigiria uma cobertura muito mais ampla de câmeras,
ainda assim apenas se acompanhada de um acréscimo ainda mais substantivo no
número de operadores, o que geraria gastos consideráveis e com tendência de
222
expansão. Ou então apenas encheria a cidade de olhares eletrônicos cegos, na
busca desesperada por flagrantes fortuitos.
O paradoxo do flagrante é inseparável da videovigilância policial, tal como ela
é posta atualmente, por tentar juntar oposições inconciliáveis: a necessidade de
exibir as imagens ao mesmo tempo em que a incognitude das câmeras precisa ser
mantida; e ver cada vez mais, o que se tenta fazer com que exista cada vez menos.
Afinal, as gicas do espetáculo e da eficiência nem sempre podem coabitar um
mesmo projeto, sem se prejudicarem mutuamente.
223
IV- De dentro da sala: paranóias teóricas e realismo prático
IV.1 - Outras experiências, outros contextos, outros medos
Acompanhei um projeto de segurança pública em implantação, cujo pouco
tempo de funcionamento poderia perfeitamente maximizar alguns de seus
problemas ou virtudes, assim como não permitir que outros se consolidassem.
Entretanto, o sistema de videovigilância dos espaços públicos vem sendo testado
mais tempo em outros países e metrópoles, o que acaba resultando na constituição
de um considerável corpus bibliográfico sobre o assunto tanto textos acadêmicos
ou jornalísticos quanto relatórios avaliativos. Especialmente na Grã-Bretanha, onde
o maior número de câmeras nas ruas (a CCTV Closed Circuit Television),
operando há mais tempo, que pelo menos uma década e meia o assunto vem
recebendo status prioritário do Home Office. E há, em parte dessa bibliografia,
pontos em comum com o que observei tanto no CCC quanto no 1BPM, o que me
leva a crer que o sistema de videovigilância no Rio de Janeiro, por mais que
conserve peculiaridades bastante brasileiras - e muito deva à personalidade e
atitudes daqueles que nele trabalham, o constituindo -, guarda elementos em
comum com padrões internacionais, estabelecidos em contextos bastante diversos.
Entretanto, são consideráveis as diferenças que separam as conjunções do
videomonitoramento em cada país ou região
216
. Na Grã-Bretanha, como explicam
McCahill, Norris e Wood (2004: 121),
O contexto legal era, e ainda é, extremamente permissivo. Isto se mantém,
mesmo se a CCTV agora explicitamente esteja sob os auspícios do Data
Protection Act de 1998. Na Grã-Bretanha, sem constituição escrita e, até a
incorporação do Human Rights Act na British Law não havia simplesmente
nenhuma, disposição legal para a proteção da vida privada, nenhuma base
legal ou constitucional que pudesse tanto inibir desenvolvedores do sistema
216
O tamanho, a densidade demográfica e as características das redes sociais, como visto
anteriormente, também criam especificidades em cada contexto.
224
em potencial quanto dar aos detratores da CCTV uma arma para desafiar sua
implantação (ver Sharpe, 1989; Taylor, 2002).
Na França, apesar do acelerado desenvolvimento dos sistemas de câmeras no
espaço público, este se deu de forma bastante diferente da britânica. Para a
implantação inicial do sistema, foi necessária a promulgação de uma lei em janeiro
de 1995
217
, em vigor 17 anos, onde era regulamentada a construção de arquivos
informatizados sobre os indivíduos (que dera origem ao CNIL, Comission nationale
de l‘informatique et des libertés
218
). E seguindo a tradição burocrática francesa
oposta à inglesa, a vigilância eletrônica nos espaços públicos é alvo de
regulamentação restritiva, visando a proteção das “liberdades individuais”. Dentre
as quais:
a proibição da visualização dos espaços privados, com a colocação de
sistemas de ocultação nas câmeras de vigilância; a limitação da duração de
conservação das gravações: para os lugares públicos ou abertos ao público,
as gravações devem ser destruídas no prazo de conservação fixado pela
autoridade municipal, que não pode exceder um mês; um direito de acesso às
imagens: toda pessoa filmada tem o direito de interrogar o responsável
pelo sistema para saber se é fichada, e caso seja, de saber em que arquivo;
uma obrigação de informação do público quanto à existência do sistema de
videovigilância e a identidade do organismo que o gerencia. Essa informação
deve ser assegurada de modo claro e permanente (Le Goff; Fonteneau, 2008)
219
.
Estudos comparativos internacionais (McCahill; Norris; Wood, 2004; Hempel;
Töpfer, 2002) apontam uma diferença significativa entre países onde, assim como
no Reino Unido, o desenvolvimento da videovigilância do espaço público foi rápido e
inconteste, como Hungria (Molnar, 2003), República Tcheca e China (Walton, 2001),
e aqueles onde não foi tomada, ao menos de icio, como uma política oficial de
segurança, como Áustria, Alemanha, Dinamarca e Suécia. As explicações apontam
para uma relação com a existência ou o de legislação de proteção de dados
individuais, direitos humanos e regulamentação do espaço público. Os Estados
217
Ver Lorant (1995).
218
http://www.cnil.fr/
219
Grifos no original.
225
Unidos constituem um caso especial, em que apesar do grande mercado e da larga
utilização de câmeras de segurança, não houve uma apropriação destas como
instrumento policial: a vigilância é, em sua maioria esmagadora, privada, o que
também é significativo da estrutura sócio-política norte americana.
Apesar destas diferenças entre contextos particulares, dentro da extensa
bibliografia produzida sobre o tema, podemos observar que em sua maior parte, a
videovigilância continua sendo tratada sob os prismas do controle e da disciplina
panopcista, retomando essencialmente Bentham (2000), Orwell (1979) e Foucault
(2003). O surgimento de sistemas de câmeras de vigilância foi tratado como a
emergência de uma “sociedade da vigilância” (Lyon, 1993; 1994; Fyfe & Bannister,
1996; Reeve, 1998; Norris & Armstrong, 1999). Isso se deve em muito à forma como
grande parte desses trabalhos foi produzida, distante das realizações práticas do
videomonitoramento, em elucubrações teóricas invariavelmente baseadas na crença
no “poder supremo” da tecnologia, e nos discursos daqueles que promovem tais
políticas de segurança. A sobredeterminação técnica borra as fronteiras entre
realidade e ficção científica, entre modelos teóricos e realizões práticas, e entre
promessas e concretizações. Os textos que apontam um pretenso fim da privacidade
(Whitaker, 1999; Sewell & Barker, 2001), que teria sido golpeada mortalmente pela
proliferação das câmeras de vigilância no espaço público citadino, também se
baseiam na premissa de um supercontrole sobre a vida individual, mantendo
considerável distância das reais possibilidades do sistema técnico em questão, além
de uma idéia bastante peculiar e simplista da própria privacidade. Como ressalta
Cameron (2004), a propósito da alta tecnologia de vigilância:
Apesar do marketing hype das firmas de segurança, existem problemas
técnicos ainda maiores para identificar de maneira confiável pessoas em
condições de campo, que estão se movendo e não cooperando ativamente com
a captura em vídeo pelas câmeras. Isso se deve à necessidade de maior
luminosidade, de um ângulo específico da face para a câmera, captura em
226
vídeo de alta resolução para permitir a um algoritmo facial ser alcançado
(Cameron, 2004: 137).
as pesquisas baseadas no acompanhamento do trabalho prático de
monitoramento por câmeras, tendem a se distanciar dessas visões mais radicais e
alarmistas, e também a desconfiar das propaladas “virtudes milagreiras” da
videovigilância para a segurança pública. Exemplos importantes são os estudos
etnográficos de Gavin Smith (2004; 2007), ou a análise do ―sistema sócio-técnico‖
realizada por Keval e Sasse (2006), cientistas da computação, que trazem uma visão
bastante diferente da questão. O mesmo ocorre com as avaliações acadêmicas
(Heilmann & Mornet, 2001; Fonteneau & Le Goff, 2008) e oficiais, inclusive a mais
importante delas, realizada pelo próprio Home Office britânico (Gill & Spriggs,
2005), cujo forte teor das críticas não deixa de ser surpreendente se tivermos em
conta que partem do principal promotor da CCTV.
A simples observação do trabalho de videomonitoramento evidencia que não
são apenas questões técnicas que impedem a vigilância ao estilo do Big Brother
menos o ditador do que o programa -, esta sendo imaginável mesmo se de
difícil execução - em contextos de reduzidíssimo contingente populacional, no qual
as redes sociais fossem “multiplex”
220
(Mitchell, 1969), ou de malhas estreitas
(Bott, 1976), com maior possibilidade da construção de um discurso coerente sobre
o outro observado através das câmeras. Nas situações de monitoramento que tive a
oportunidade de acompanhar uma experiência essencialmente metropolitana -, a
observação recaía na maioria esmagadora do tempo sobre anônimos
descontextualizados e durante curtos períodos, enquanto se mantinham no campo
220
―Ao contrário das pequenas comunidades e das sociedades tribais, marcadas por relações multiplex,
ou seja, onde há sobreposição de papéis (ligações entre mesmos indivíduos se dariam em ltiplos
planos família, amizade, vizinhança, trabalho, etc constituindo-se redes sociais mais estreitas), nas
sociedades complexas as relações uniplex, na qual a ligação entre os diferentes indivíduos dentro da
rede social (social network) se apenas através de um foco de interação (Mitchell, 1969). A
fragmentação de papéis decorrente dessas relões uniplex torna a demanda por coerência de papéis e
de identidade, na prática, impossível de ser satisfeita(Cardoso, 2005: 36).
227
de visão da câmera. Esse fator impossibilitava a constituição de narrativas
minimamente estruturadas, capazes de despertar o interesse dos próprios
vigilantes. Na maior parte do tempo a fragmentação radical das imagens as tornava
dificilmente interessantes tanto para o combate ao crime em geral quanto para um
possível excesso de atenção sobre a vida pessoal dos observados, o que enfraquece
as maiores paranóias em torno do supercontrole estatal sobre os indivíduos e
também de um avanço predatório sobre a vida íntima e privada das pessoas. Como
lembra Lianos (2001), a “liberdade interna” é provavelmente maior hoje que durante
praticamente a totalidade do século anterior: o novo controle social o se
importaria com a intimidade dos controlados, apenas com o respeito impessoal a
regras desnormatizadas. Pelo que pude constatar através da videovigilância, mesmo
que esse controle sobre a vida íntima das pessoas fosse um objetivo,
definitivamente não seria através de câmeras no espaço púbico que ele seria
alcançado. No máximo renderia alguns flagrantes esparsos, que longe de controlar,
serviriam apenas para divertir os operadores, como acontecia no serviço noturno do
19º BPM, quando as câmeras ainda captavam alguma coisa na beira do mar, antes
da mudança na prestação de serviço.
IV.2 - Máquina, demasiado humano
No entanto, não o quesitos relativos às medições de eficiência do
videomonitoramento que evidenciam a inadequação das teorias que pregam uma
“sociedade da vigilância” ou o “fim da privacidade” para falar da videovigilância. A
simples observação do trabalho dos operadores de meras basta para lembrar-nos
que estamos diante de um serviço executado por humanos, com as habituais
limitações e estratégias de “contra-trabalho”. Mesmo que a estrutura técnica
228
oferecida proporcionasse uma vigilância controladora total, seria necessário um
corpo de trabalhadores extremamente treinados e preparados, desempenhando o
serviço com afinco e dedicação absolutos e atenção redobrada. Situação muito
distante da encontrada por todos que freqüentaram as salas de monitoramento,
tendo em vista o que Gavin Smith chamou de fator tédio (boredom factor) (2004:
388):
O boredom factor surge, principalmente, da visualização de horas de
monótonas e rotineiras imagens televisivas, sem que nada aconteça. Durante
a semana, os operadores são utilizados para controlar e monitorar as
câmeras durante oito horas: “Minha tarefa durante a semana é prestar
atenção nelas de 12 as 8 ... É horrìvel “ (George). Contudo, como logo percebi,
mesmo 60 minutos passados na sala de controle são suficientes para fazer a
mente vagar. Em todo o tempo que as minhas observações duraram, nenhum
incidente foi capturado pelas câmeras. Como Jim salientou, “95 por cento do
tempo nada acontece por aqui... você está desperdiçando seu tempo se está
procurando por ação. Nós não pegamos um único incidente nas últimas três
semanas”. Como se pode bem imaginar, este é um tempo muito longo para
ficar sentado olhando essencialmente nada. Na verdade, os turnos longos e a
sala aprisionante pareciam às vezes frustrar os homens: ―Eu não posso
esperar para sair daqui e ir até ao pub... Odeio estar enfiado aqui o dia todo‖
(Andy).
O fator tédio, embora pudesse também ser observado no 19º BPM
especialmente em Chirriú -, era impossível de ser ignorado no CCC. Possivelmente a
idade avançada dos “voluntários” da Assegura os tornava menos propensos ao
tédio. Mas além disso, o ambiente de trabalho na torre da Central do Brasil também
colaborava indubitavelmente para esse tédio, diferindo dos outros espaços policiais,
onde se conversa alto, as luzes eso constantemente acesas e a circulação é mais
intensa (como o COBAT do 19º BPM ou a sala do tenente Almir, onde devia me
identificar quando chegava ao CCC). Nesse sentido, como salienta Cameron (2004:
139):
Teorias psicanalíticas sobre filmes chamam a atenção para a similaridade
entre a experiência do cinema e a hipnose. A sala de cinema é normalmente
escura e outras experiências sensoriais são minimizadas (i.e. som externo
reduzido, temperatura constante, odores limitados, assentos confortáveis)
com o intuito de permitir ao expectador que relaxe para se identificar com os
personagens na tela.
229
Aliada ao tédio hipnótico, a baixa remuneração dos operadores de câmeras
contribui ainda mais para o desestímulo presenciado - não apenas por mim, mas
também por Smith (2004; 2007) -, ainda mais se a tomarmos em conjunto com a
preparação insuficiente para aquele serviço. Pois também essencial - e poucas vezes
levado em conta - é que para um monitoramento mais eficiente, seria necessária
uma mão-de-obra mais qualificada e eis o maior dos problemas -, bem melhor
remunerada. Vale lembrar a frase, citada anteriormente, do policial do CCC,
indicando simultaneamente sua desqualificação para qualquer serviço, a maneira
relapsa com que desempenha seu trabalho e a sua falta de ambição diante da
remuneração baixa que recebe: ―eu não sei fazer nada direito aí fora, ganhando mil
reais pra ficar aqui sentado acho que to ganhando benzão!‖.
Também deve ser levado em conta que os sistemas de videovigilância
representam consideráveis gastos financeiros, incluindo a infra-estrutura, a
manutenção e os custos com pessoal, o monitoramento propriamente dito. Em toda
a G-Bretanha, por exemplo, estima-se que entre 1994 e 2004 tenham sido gastos
entre quatro e cinco bilhões de libras esterlinas
221
em sistemas de CCTV
222
, apenas
em estrutura e manutenção, dentre os quais mais de 250 milhões
223
de dinheiro
público (McCahill; Norris; Wood, 2004), representando mais de três quartos do
orçamento destinado à prevenção criminal (Welsh; Farrington, 2004). E, como foi
percebido nos contextos no qual foram instalados, os sistemas de videovigilância
tendem a se “retroalimentar”: uma vez o sistema estabelecido a demanda tem
tendência a crescer no interior da organização em questão‖ (Le Goff; Fonteneau,
2008: 38). Diante desse panorama de custos elevados em investimento técnico (e na
221
Aproximadamente entre 11 e 14 bilhões de reais.
222
Heilmann (2007: 313) lembra ainda que ―segundo os profissionais, para cada 10.000 euros
investidos na instalação de uma câmera, 3.000 a 5.000 euros devem ser mobilizados cada ano para
assegurar a sua exploração (salário dos operadores, manutenção, etc.).‖
223
Aproximadamente 690 milhões de reais. Vale lembrar que o sistema britânico funciona com
parcerias co-financiadas entre poder público e iniciativa privada.
230
manutenção destes), indispensáveis para instalação e funcionamento mínimo do
sistema, somente nas despesas com pessoal é possível cortar gastos. E é realmente
com a mão-de-obra, tratada como um elemento de menor importância no
monitoramento por câmeras, que a economia foi feita. A ausência de regras
trabalhistas os operadores eram classificados pela Assegura como “voluntários”,
―nem contrato assinado tinham‖, como enfatizou Gil e a situação de dificuldade
financeira que muitos deles atravessavam, numa idade avançada, fazia com que
o nível de qualificação e remuneração fosse ainda mais baixo: constituíam-se num
dos últimos níveis do que Marx (1998) chamava de exército industrial de reserva.
Recebiam “auxìlio”, e não salário, enquanto os policiais que trabalhavam no CCC
continuavam recebendo apenas seu soldo habitual, não gerando nenhum gasto
adicional para a Polícia Militar.
E, bastante significativo dessa “economia com pessoal”, os encarregados
diretos pela videovigilância mostravam desconhecimento quase total do
instrumento de trabalho, o computador. Os conhecimentos de informática eram
parcos, mesmo entre os policiais, mais jovens que os operadores do 19º BPM, não
habituados à linguagem e recursos dos computadores, objeto com o qual
interagiam diretamente todo o tempo em que estavam ali. Comandos e ações que
para grande parte dos jovens do Rio de Janeiro
224
são simples e banais ganham
ares de grande desafio para os operadores, tomando-lhes muito mais tempo do que
deveriam e fazendo o trabalho tornar-se muito menos dinâmico do que seria
preciso. E diante de tal falta de intimidade, pouquíssimo auxílio e nenhuma
formação específica complementar eram conferidos a eles.
224
Mesmo os de classe baixa, capazes de pagar R$ 1 por uma hora de Internet numa das muitas lan
houses que proliferam por toda a cidade, inclusive nas favelas.
231
A relação dos humanos com os mediadores técnicos
225
- agenciamento
constituinte dos vigilantes eletrônicos - é negligenciada pelos formuladores e
apologistas do videomonitoramento, assim como pelos inimigos da videovigilância,
anti-totalitaristas e defensores da privacidade. Os elementos que a formam
homens e máquinas - são tomados em separado, cada um guardando suas
virtudes, que se complementam num policresto
226
contemporâneo, a “câmera de
segurança”. A experiência e o olhar maldoso dos operadores são lembrados pelos
“voluntários” do 1 BPM, policiais do CCC e pelo supervisor (representando os
“discursos oficiais” da Polìcia Militar e da Secretaria de Segurança Pública), como
valorosas armas no desempenho do monitoramento. No entanto, sem os objetos
técnicos, esse olhar maldoso nada veria além das paredes da sala e da
movimentação dos colegas, e teriam que guardar as imagens apenas na memória
(humana). as câmeras e o aparato tecnológico que as sustentam, são louvadas
pelas amplas possibilidades de deslocamento espacial e de eternização do
visualizado, fatores responsáveis pela especificidade da vigilância eletrônica.
Contudo, estes apenas captam informações, que codificam e transmitem em
linguagem numérica, cuja recomposição em imagens e em cenas depende dos
mediadores humanos, seu olhar e sua capacidade interpretativa
227
. A relação
(negligenciada) entre os dois tipos de elementos pessoas e tecnologia - é o âmago
225
Em especial o computador, mas também as câmeras, a rede, o modem e etc.
226
Policresto é um instrumento de múltiplos usos, conceito muito caro aos utilitaristas ingleses,
dentre os quais se destaca Jeremy Bentham: ―cada elemento benthamiano é um nó em que se
entrecruzam várias redes. Toda causa tem ali vários efeitos. Inversamente, cada efeito é produzido por
várias causas. Cada peça da montagem é um cruzamento de utilidades, atravessado por ltiplas
cadeias causais‖ (Miller, 2000: 82).
227
Uma imagem pode ser transformada em pontos ou pixels (picture elements). Cada um desses pontos
pode ser descrito por dois números que especificam suas coordenadas sobre o plano e por outros três
números que analisam a intensidade de cada um dos componentes de sua cor (vermelho, azul e verde
por ntese aditiva). Qualquer imagem ou seqüência de imagens é portanto traduzível em uma série de
números‖ (Lévy, 1999: 50). Acrescento que essa série de números só pode realizar o caminho
contrário, completando o ciclo que leva fragmentos descontextualizados da vida das ruas para a sala
de operações, se retraduzida, reconstituída como imagem através do olhar e da interpretação
humanas. Sem isso são apenas informações digitais dispostas em um suporte adequado a elas,
portanto inúteis à vigilância.
232
da videovigilância, mas também sua parte mais problemática, e menos levada em
conta. Ao manterem na penumbra a relação entre os elementos humanos e
maquínicos é possível, estratégica e discursivamente, que as vantagens do sistema
sejam enaltecidas e ressaltadas, enquanto suas fraquezas são mascaradas.
IV.3 - Olhar maldoso: seletividade e suspeição
O olhar maldoso, do qual Saulo e Heleno falaram, pôde ser constatado com
freqüência nos operadores de Copacabana e do Leme, seja no “monitoramento do
boteco”, ou no acompanhamento dos catadores de latas no calçadão, do pagode no
quiosque, dos contatos entre policiais e motoristas de veículos acidentados. Quando
uma cena despertava algum interesse, o olhar maldoso se fazia presente, sempre
buscando nas imagens indícios de ocorrências em potencial, personagens
desviantes, comportamentos ilícitos, malandragens... Tal postura, sem dúvida,
decorria em muito da experiência
228
de trabalho e de vida - que traziam com eles,
e que, contudo, mesclava-se a inegáveis doses de preconceito e estereotipagem que
marcam, principalmente, a cultura policial. Muito mais do que em função de
atitudes ou comportamentos, como seria esperado, as suspeitas eram guiadas pela
aparência dos indivíduos monitorados. Apesar das constantes afirmações em
contrário, era impossível ignorar, por exemplo, os recortes racial (negros tinham
muito maior incidência de suspeita sobre si) e ocupacional (aqueles que não se
enquadravam no perfil do trabalhador especialmente os moradores de rua e
catadores de lata) na constituição do processo de suspeição. E ainda mais
significativo, apesar de ser muito propalada a capacidade das câmeras de agilizar o
atendimento àqueles que necessitam socorro, em pelo menos duas ocasiões
verifiquei o quanto essa assistência era também desigual e seletiva. Quando
228
Não à toa era chamado pelo supervisor do CCC de olhar da experiência.
233
acompanhei por mais de uma hora um vídeo no qual o que parecia ser um menino
de rua entorpecia-se com uma garrafa de cola de sapateiro ou solvente até desmaiar
e ter convulsões na areia, sem que nenhuma atitude fosse tomada, nem a câmera
desviada; e na ocasião em que um morador de rua caído na ciclovia é chutado pelos
salva-vidas que deveriam auxiliá-lo, sem que os operadores conseguissem fazer
nada da sala de controle (nesse caso, em função da recusa do policial despachador
em entrar em contato com a patrulha mais próxima: ―deixa esse pepino para os
bombeiros‖). Era claro que o trabalho de videomonitoramento era realizado de forma
que determinadas categorias de pessoas (idosos, turistas, cidadãos de bem) fossem
protegidas de outras (mendigos, pivetes, vagabundos). E estas, por sua vez, eram
mantidas ao largo da “rede de proteção” das meras de segurança.
O problema da seletividade dos suspeitos é inerente ao trabalho policial
229
,
porém com a videovigilância radicaliza a centralidade do elemento visual, e a
aparência, por ser a informação que chega aos operadores de forma menos
prejudicada pela fragmentação dos sentidos que marca seu trabalho, é aquilo que
realmente leva-se em conta
230
. Porém, se tal situação não difere tanto das
necessidades práticas do cotidiano policial, um aspecto torna os dois trabalhos
bastante dessemelhantes: ao contrário dos agentes que trabalham nas ruas, que
podem estabelecer diferentes formas de contato direto com os suspeitos a mais
óbvia delas sendo a abordagem para revista -, o operador de câmeras deve percorrer
um longo caminho, intermediado por homens e máquinas, até formas mais
229
Como apontava Harvey Sacks, de forma excessivamente racional e contemplando apenas um
aspecto do problema, a suspeição policial deveria ―maximizar a probabilidade de que aqueles que
sejam criminosos e passem sob os olhos sejam selecionados, minimizando a probabilidade de que
aqueles que não sejam criminosos e passem sob os olhos não sejam selecionados‖ (Sacks, 1978: 190
apud Norris & Armstrong, 1999b).
230
Problema semelhante acomete os operadores de meras na Inglaterra, como indica o texto de
Bulos e Sarno (1996: 24): ―a parte do treinamento mais negligenciada consiste em como identificar um
comportamento suspeito, quando rastrear indivíduos ou grupos e quando aproximar a imagem de
incidentes ou pessoas. Isto era assumido como autoevidente ou senso comum‖. O que, sabidamente não
funciona e provoca grandes erros e problemas, como no caso do brasileiro Jean Charles de Menezes,
executado pela polícia londrina no metrô ao ser confundido com terrorista prestes a um atentado.
234
próximas de contato com o alvo da suspeição. Transpondo a questão para uma
consideração prática, enquanto o PM na rua depende apenas de si (percepção,
disposição, intuição) para completar o ciclo suspeição-apuração-averiguação-
“providência”, o vigilante eletrônico deve convencer o despachador (o que, como
vimos, nem sempre é uma tarefa simples), que por sua vez deve entrar em contato
com algum policial que esteja guarnecendo a área, para explicar a situação e
descrever o suspeito que deve ser abordado. E essa abordagem deve, idealmente,
ser orientada pelas câmeras de vigilância, retornando novamente o foco de ação
para os operadores, passando mais uma vez pelos despachadores, e voltando ao
policial na rua, que estabelecerá o contato direto com o indivíduo que teria
despertado a suspeita do operador na sala do batalhão. O mais simples e sico
trabalho de seletividade e suspeição policial é tornado muito menos dinâmico,
agregando múltiplos mediadores ao que tradicionalmente é feito de forma direta e
pessoal (intuição e ação unificadas no mesmo agente). A conseqüência imediata é
que a maioria absoluta dos casos de suspeição resulta apenas no acompanhamento
visual, distante e descontextualizado, de cenas e figuras, sem que praticamente
nada possa ser inferido das imagens. É raro que o olhar maldoso vertido pelos
operadores de câmera se converta em algo além de conjecturas que, na maioria das
vezes, servem principalmente para animar o ambiente e passar o tempo,
combatendo o tédio inerente à realização daquele serviço.
IV.4 - Reagindo descoordenadamente
A impossibilidade de contato direto entre vigilante eletrônico e suspeitos, que
dificulta as abordagens preventivas, e a ausência física de policiais, cujo efeito
dissuasivo é óbvio, tornam o trabalho dos operadores, no que diz respeito à
235
segurança pública, dependente dos flagrantes que possam ser capturados pelas
câmeras. E estes não constituem o quadro ideal - diminuição da criminalidade em
uma cidade tornada mais segura - apenas propiciam à polícia uma reação mais
qualificada e rápida aos atos criminosos ou violentos cometidos, ou somente
elementos para uma investigação posterior. O sempre citado papel preventivo das
câmeras de vigilância, por todo o tempo que acompanhei o trabalho dos operadores,
não foi presenciado ou apareceu como central nos discursos e exemplos, ao
contrário do papel reativo, associado aos flagrantes e lembrado nos casos que me
relatavam.
Não se discute que a videovigilância também possui potencialidades que
auxiliam e facilitam o trabalho de monitoramento urbano, como a rapidez de
deslocamento, a aproximação das imagens e, sobretudo, uma maior capacidade de
manter o observador oculto; nem por isso se pode ignorar as muitas dificuldades
relativas à cooperação e à integração entre as partes constituintes da vigilância
eletrônica. Incompetência, desinteresse, má-vontade, desconhecimento técnico,
muitas são as possíveis causas do funcionamento deficitário de um sistema tão
cheio de mediadores e cuja necessidade de coordenação entre eles é tão central. A
falta de treinamento das partes envolvidas e de diretrizes claras sobre
comportamento e ação também prejudicam a fluidez e eficácia do trabalho.
IV.5 - Moralizando o espaço público?
Uma das questões que eram colocadas pelos primeiros trabalhos britânicos
de avaliação dos sistemas de videovigilância, era se as câmeras teriam um efeito
maior na diminuição das taxas criminais, com a constituição de uma área mais
segura, ou de aumento dos delitos, tornados mais visíveis com o advento dos olhos
236
eletrônicos. O que se vê em algumas dessas primeiras avaliações é uma explosão
nas estatísticas criminais de ocorrências classificadas como “atentados à ordem
pública”, em função de casos que apenas chegaram ao conhecimento da polìcia
através de imagens das câmeras
231
. A necessidade de flagrantes podia ser satisfeita
com cenas onde incidentes menores fossem capturados, não significando por isso
uma redução nas taxas criminais ou no sentimento de insegurança. E alguns dos
mais lebres feitos da videovigilância em especial relativo aos ataques terroristas
de 2003 em Londres não tinham capacidade preventiva, apenas fornecendo
imagens à investigação e à imprensa dos acontecimentos.
No contexto carioca não parece ter havido registro de um grande aumento de
ocorrências menores, anteriormente existentes, porém invisíveis, ou dificilmente
perceptíveis, à polícia. A fragmentação da ação, inerente aos muitos mediadores no
caminho desde o monitoramento realizado à distância da sala de operações, é um
dos fatores que explicam não ter havido fenômeno semelhante no Rio de Janeiro.
Principalmente, como veremos, devido a uma questão prática, relativa ao combate
ao uso de drogas, e outra moral, no que tange a possìveis acusações de “atentado
ao pudor”
232
.
231
Por exemplo, em Airdrie, na Escia, como indica o estudo de Ditton e Short (1996), nos primeiros
anos de videovigilância foi registrado um aumento de 133% nos casos de “atentado à ordem pública”.
Outras cidades avaliadas, como Brighton (Squires & Measor, 1996), Glasgow (Ditton & Short, 1999) e
Doncaster (Skinns, 1998) apresentaram tendências semelhantes, embora com taxas menos
espetaculares (a diferença entre as estatísticas provavelmente se deve a especificidades dos operadores
de Airdrie).
232
É preciso salientar que a divisão entre uma questão prática e outra moral é, senão arbitrária e
aleatória, ao menos não tão estanque quanto pode parecer. As duas situações abarcam elementos
tanto práticos quanto morais, assim como prática e moral se influenciam constantemente e se
constroem tendo a outra como referência inescapável.
237
IV.6 - Vontade de punição frustrada: pulso fraco
A coincidência entre a instalação do sistema de videomonitoramento no Rio
de Janeiro e a aprovação da lei 11.343, que passava a excluir de penas restritivas
de liberdade os indivíduos flagrados com quantidade de drogas apenas suficiente
para consumo próprio, teve bastante influência na forma como o trabalho do
COBAT foi sendo realizado. Essa mudança legislativa, assim como o controle
exercido sobre os policiais na abordagem, dificultando o recebimento de propina, fez
com que uma dos delitos que com maior freqüência é capturado pelas câmeras da
polícia, o uso de maconha, raramente desembocasse em alguma ação policial. O
primeiro obstáculo a ser transposto eram os próprios despachadores, que
costumavam dizer aos operadores de câmeras para ―deixar para lá, pois não ia dar
em nada mesmo‖. Em mais de um contexto e oportunidade, tanto no CCC quanto
no 19º BPM, ouvi de policiais e operadores, que um dos maiores problemas
relativos ao crime era a dificuldade em manter as pessoas presas. Gustavo e
Cleiton, no CCC, insistiam que ―a justiça desestimula a polícia, pois a gente prende
a vagabundagem e eles soltam todos‖, e que o trabalho o se fazia sentir mais
porque ―qualquer vagabundo tem advogado agora, eles entram com habeas corpus e
sei lá o que e eles vão soltos quase na mesma hora‖. No batalhão de Copacabana,
Waldemar, Xavier (ex-policiais) e Heleno, exprimiram sua discordância com o
descaso dos policiais com o consumo de drogas na praia. A ligação intrínseca entre
drogas e violência, que para muitos é indiscutível, é propriamente resumida na
frase de Xavier, ao se queixar da recomendação oficial, de ―ver só assalto. Agora me
diz, não é esse pessoal que fica cheirando que, quando acaba a grana, de cuca
e vem roubar pra comprar mais pó!‖ Os operadores sabiam que o consumo de drogas
238
não estava entre as prioridades da Secretaria de Segurança, o que consistia em um
erro estratégico, segundo Heleno:
Tá tudo uma zorra assim porque o pessoal tá afrouxando muito, dando muita
liberdade, tratando bandido de coitado. Agora a gente o pessoal usando
droga e nem faz mais nada, nem adianta, leva pro juizado e o juiz passa a
mão na cabeça e solta logo. Tá faltando pulso firme nisso aí!
Em um texto reflexivo sobre a obra de Foucault
233
, Michel Misse (2006)
identifica, no imaginário da violência carioca, o que chama de vontade de punição.
Esta apareceria como uma reação socialmente exigida contra comportamentos
criminosos ou indesejáveis, sendo a ambição final daqueles envolvidos, como
acusadores, nos processos acusatórios. A impossibilidade de exercê-la de modo
satisfatório no caso dos usuários de cannabis, ou seja, com a intervenção policial
resultando em sua prisão ou indiciamento criminal, provavelmente tem papel
crucial na costumeira inação diante de cenas de consumo de maconha na praia.
Em meu primeiro encontro com o supervisor, o exemplo primeiro de monitoramento
que o próprio me deu foi o de uma pessoa preparando e fumando um baseado na
praia. Nesse mesmo dia tentou me mostrar
234
um vídeo no qual um rapaz era
flagrado na Avenida das Américas, na Barra da Tijuca, fazendo o mesmo, sendo em
seguida abordado e levado por policiais. Lembrou então que, apesar das recentes
mudanças em direção contrária, o consumo de maconha ainda era criminalizado, e
seria dever da polícia coibi-lo, com o auxílio do videomonitoramento. Um discurso
vão, como pude perceber na sala de operações, assim como no próprio CCC, bem
próximo dos olhos do supervisor.
233
―O Final da Cadeia: interpretações da Violência no Rio‖, em Misse (2006).
234
Tendo sido impedido por um problema técnico”, pois havia apagado o software de reprodução dos
vídeos.
239
IV.7 - Espaço público e dessexualização do olhar: sobre privacidade e pudor
Vemos então que não são apenas limitações técnicas que vêm de encontro
com as mais alarmistas teorias do controle e da sociedade de vigilância. Mesmo com
perfeitas possibilidades tecnológicas para tal, não houve um aumento considerável
dos pequenos delitos e atentados à ordem pública, como foi visto em algumas
cidades da Grã-Bretanha. A estrutura de funcionamento da vigilância eletrônica
carioca, fragmentada, é um fator explicativo, mas também se relaciona com outras
peculiaridades contextuais e culturais, como a lei 11.343, em relação ao consumo
de maconha, e também no que concerne, por exemplo, a casos de “atentado ao
pudor”. Diferem tanto as noções de moralidade e pudor quanto as apropriações
socialmente esperáveis e aceitáveis do espaço público. Significativo disso é o fato
recentemente noticiado da mãe expulsa de um ônibus na Inglaterra por estar
amamentando sua filha
235
, ato, no Brasil, destituído de sexualização, tornando
vazias acusações de “atentado ao pudor”. Da mesma forma, o custa lembrar que
em 2001 uma mulher chegou a ser presa sob a mesma acusação no Rio de Janeiro
por estar fazendo topless na praia
236
, prática comum e direito inquestionável das
mulheres em muitos outros países. A sexualização do olhar e dos espaços segue
diferentes padrões nos diversos contextos culturais, sempre se constituindo em um
ponto com o qual os responsáveis pela videovigilância precisavam lidar.
No Rio de Janeiro, a questão era oficialmente tratada de forma a não permitir
que os vigilantes tornassem-se voyeurs, o que incluìa não poder olhar para “cenas
picantes” mesmo se ocorridas no espaço público. Outra diretriz de segurança
pública poderia recomendar, por exemplo, numa possível cruzada moral, que as
235
http://www.metro.co.uk/news/814837-breastfeeding-mother-thrown-off-bus ou
http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI123889-15546,00-
MAE+BRITANICA+E+EXPULSA+DE+ONIBUS+E+ACUSADA+DE+INDECENTE+POR+AMAMENTAR+A+F
I.html
236
http://www.jornalolhonu.com/jornais/olhonu_n_044/entrev.html
240
práticas sexuais nas areias de Copacabana sejam flagradas por câmeras e
reprimidas por agentes, criando um contexto de desenvolvimento de
videomonitoramento bastante diferente do visto atualmente
237
. No entanto o
caminho escolhido é controlar o operador, resguardando minimamente a
“privacidade” no espaço público. O que seria uma saìda possìvel para o mesmo
problema que levou ao veto do prefeito sar Maia à instalação de câmeras em
boates e casas noturnas, considerada por ele como uma forma de limitar (...)
intensamente o (...) direito à intimidade e à vida privada‖. Problema causado pela
conjunção de dois fatores: uma determinada apropriação dos espaços públicos e
coletivos, tidos muitas vezes como locus propício para a invisibilidade e o anonimato
relativo, que por sua vez o confundidas com intimidade e privacidade; e uma
tolerância “cultural” a esse fato, com a aceitação dessa apropriação, procurando
resguardá-la da intromissão eletrônica das câmeras de segurança.
Essa escolha foi expressa por inúmeras pessoas, em momentos diferentes,
ficando evidente que o que se busca é dessexualizar o olhar do vigilante, e não o
espaço público, tradicional e turisticamente sexualizado
238
. No CCC, de início o
supervisor me explicou que o principal trabalho ali era controlar o olhar dos
operadores nos batalhões, senão estes passariam todo o tempo observando
mulheres, situação que seria agravada na praia, onde as roupas de banho
tornariam as cenas ainda mais atrativas. Porém, mais interessante foi a conversa
que tive como sargento Ênio
239
e Gustavo, na qual o primeiro após ser por mim
237
Tal expediente foi adotado pela prefeitura do Rio de Janeiro, através da Secretaria Especial da
Ordem Pública, no carnaval de 2010, no combate ao habitual ato de urinar nas ruas. Escolhida como
prioridade na moralização do espaço blico (“choque de ordem”), a ―caça aos mijões‖ teve grande
destaque na imprensa, resultando na detenção de 342 pessoas, encaminhadas à delegacia e
formalmente acusadas de “atentado ao pudor”.
238
Sobre a sexualização dos espaços públicos no Rio de Janeiro, em especial a apropriação
(homo)sexual da praia de Copacabana ver Parker (2002).
239
Vale lembrar que o sargento Ênio me disse também um dia que, dentre outras coisas, a
preocupação em dessexualizar o olhar vigilante também se explica pela freqüência de visitantes que
241
questionado se havia visto alguma “sacanagem”, visivelmente incomodado
proclamou que não podiam ―ficar aqui vendo isso, a polícia não pode ficar se
preocupando com gente que está se divertindo. Tem que ver mais coisa séria‖, no
que o segundo lamentou ―a falta de moral da polícia brasileira, lançando mão da
corrente comparação com os policiais americanos, que teriam ―moral pra chegar e
prender mesmo: atentado ao pudor! Aqui o, ridicularizam o policial, dizem que o
tem que se meter‖. Contudo, como descrevi no capítulo II, muitas vezes, quando na
central de câmeras, pude ver filmagens de teor nitidamente voyeurístico, com a
observação atenta e não disfarçada de mulheres na rua ou dentro de lojas.
Ironicamente era a praia, apesar da exposição de corpos e sexualização do
ambiente, o local onde a observação sofria maior censura, chamando sempre a
atenção dos fiscais no CCC para o que estava sendo visto. Numa situação que
parece paradoxal, é, assim como a favela, onde o olhar é mais controlado,
exatamente pela dificuldade em operar uma observação discreta.
No 19º BPM abordei a questão diretamente com os operadores, que não
demonstraram constrangimento em assumir a recorrência do olhar direcionado
àquilo que Heleno chamou de ―colírio‖, as mulheres na praia. O problema único era
a recente censura da qual eram alvo, de forma indireta, intermediada pelas
máquinas e meras, misteriosamente travadas ou retiradas do ar pelo pessoal da
Secretaria de Seguraa. Mesmo Saulo, o caxias, reputado por ser o mais sério dos
operadores, lamentou não poderem mais observar como antes, consolando-se que
―de vez em quando ainda dá tirar uma casquinha‖.
Em relação a cenas de teor explícito, disseram-me que inicialmente eram
vistas com bastante freqüência, especialmente à noite, mas que com a mudança do
serviço da Telemar para a Embratel teria havido uma conseqüente perda de
recebe o CCC, para que não fossem surpreendidos em uma apreciação voyeurística: senão ―ia ter
bunda na tela. Na praia então, não ia dar outra mesmo...‖
242
luminosidade, prejudicando a visibilidade noturna das areias. Nas palavras de
Heleno, ―antes era uma beleza, e agora estava ―tudo escuro‖, sendo necessário, a
seu ver, que o serviço voltasse a ser como antes. ―Até pela segurança! De dia,
porém, as mais raras cenas de sexo eram de difícil observação, e para tanto era
necessário, com jeitinho, driblar a fiscalização da Secretaria de Segurança, por
exemplo, não aproximando demais a imagem nem a colocando no centro da tela,
como explicou Waldemar: ―se é um negócio discreto eles não reclamam não, ou de
repente nem vêem nada‖. A intervenção policial não parecia ser uma possibilidade
aventada entre os operadores, as discussões concentravam-se em como observar,
nunca havendo questionamento sobre agir ou não. Como afirmou o sargento Ênio,
o videomonitoramento deveria se preocupar com problemas mais sérios, como a
segurança dos turistas que passeiam no calçadão, além de observar
comportamentos, e elementos, suspeitos (como os catadores de lata). Não podemos
também ignorar que, mesmo que a prática de atos sexuais em espaços públicos
conste como interdita no código penal, se consentido entre as partes e,
principalmente, de forma discreta - longe dos olhos “das famìlias
240
-, não parecia
ser uma atividade que gozasse de grande reprovação moral, ao menos para os
operadores com quem convivi. Alguns deles, em momentos diferentes, confessaram
ter, no passado, “aprontado” em alguma praia, até mesmo naquelas mesmas areias
que hoje vigiavam. Em um ambiente eminentemente masculino, e tomado por
piadas e conversas onde o humor e os pontos de vista deixavam clara a
centralidade de categorias relativas ao sexo/sacanagem (impotência, prostitutas,
homossexualismo...), e diante do panorama de Copacabana, um casal ―se
240
Família é tomada aqui como uma categoria nativa, com a qual me deparei muitas vezes, e que
associo a uma imagem personalizada da própria “moral e bons costumes”. Família era utilizado em
oposição à outra categoria importante e recorrente, a sacanagem.
243
divertindo‖ na beira do mar definitivamente não parece ser uma situação
criminalizável, ou que mereça ser criminalizada.
No entanto, as mesmas características que fazem esse espaço blico ermo
ser apropriado sexualmente a possibilidade de relaxamento do autocontrole, em
especial das pulsões sexuais e ausência de controle externo (polícia ou da ―família‖),
são igualmente as ideais para torná-lo um locus de atividades violentas e
criminosas. Assim como a libido, a agressividade foi objeto, ao longo do processo
civilizador (Elias, 1993), de intensa normatização (Foucault, 2003). E tanto quanto
para as interações eróticas, determinadas práticas violentas ou criminosas
dependem da possibilidade de relaxamento seguro do autocontrole, que não
acarrete grandes riscos ou problemas imediatos. Não afirmo com isso que a praia de
Copacabana seja um lugar especialmente violento, apenas que coisas sérias
também podem ter como palco os mesmos lugares onde as pessoas estão se
divertindo. E estas mesmas pessoas podem mesmo ser alvo dessas coisas sérias.
Por isso, um efetivo monitoramento por câmeras deveria contemplar esses locais.
Até pela seguraa...
241
No 19º BPM apenas uma vez foi aventada a possibilidade de lançarem mão
da categoria “atentado ao pudor”, quando o casal de moradores da Avenida Princesa
Isabel foi ao batalhão reclamar da câmera (1916) colocada bem acima do terraço de
sua cobertura. O contexto era bastante específico, e a acusação surgiu como um
modo de resolver o problema que traziam aqueles cujo espaço privado fora
concretamente ameaçado pelo sistema de videovigilância. Quando todos na sala de
operações se preocupavam em não deixar que o casal visse as imagens da câmera, e
discutiam sobre o que dizer a eles diante da reclamação, Heleno parece encontrar a
241
É preciso ressaltar, no entanto, que o monitoramento por câmeras constitui apenas uma das
possibilidades de policiamento da área, sendo comum a circulação de quadriciclos com agentes pelas
areias, mesmo no período noturno. Os casais, entretanto, não costumam ser abordados por eles.
244
saída para o que estava ocorrendo: ―olha, para ver varanda, como invasão de
privacidade? Se ela estiver pelada na varanda é atentado ao pudor, errada está ela!‖
A tentativa de reverter o quadro acusatório, no qual aqueles que
conclamavam ter a privacidade invadida passariam a ser denunciados por expor
indevidamente sua intimidade”, baseia-se na posição liminar do espaço sico
“varanda/terraço”, como apontada por DaMatta (1987). As palavras de Turner
(1974: 117) são bastante reveladoras a esse respeito:
Os atributos de liminaridade, ou de personnae (pessoas) liminares
necessariamente o ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas
furtam-se ou escapam à rede de classificações que normalmente determinam
a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades
liminares o se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições
atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial.
A estratégia de Heleno é questionar o estatuto do espaço visualizável,
aproveitando-se de seu caráter ambíguo e liminar pertence ao apartamento, mas é
a céu aberto, o possui janelas paredes ou teto que delimitem claramente interior
e exterior, apenas uma mureta. Dessa forma, a situação se inverte: aqueles que
acusavam ter seu espaço privado espionado, passam a ser acusados de se exibirem
indevidamente no espaço blico. Com isso, simplesmente nega-se a realidade
prática da instalação das meras: apesar de voltadas para a rua, não foi possível
em todos os casos encontrar uma posição que favorecesse a sua observação ao
mesmo tempo em que eliminasse do campo de visão a totalidade das casas
(DaMatta, 1987). Um problema concreto e não desprezível que, no entanto, é
contornado parcialmente pelas políticas de sigilo quanto à localização das câmeras,
que dificulta a descoberta do estar no campo de visão; de negação do fato,
impedindo que a reclamante possa comprovar sua desconfiança; e de
supervalorização dos meios técnicos, na mentira do supervisor à imprensa
relatando a existência de um software de preservação dos espaços privados,
inexistente no sistema de videovigilância da polícia fluminense.
245
IV. 8 - Exibicionistas e voyeurs: a arte de ser discreto
Além da liminaridade do espaço em questão, torna-se patente também a
fluidez entre as categorias voyeurismo e exibicionismo, circunstanciais e cambiantes
de acordo com a perspectiva do olhar e do discurso. A questão não se resume
apenas ao espaço (se é blico ou privado), mas também à agência daqueles que
observam ou mostram. Destes infere-se que se buscam esconder-se, distanciar-se
dos olhos dos passantes, estavam apenas se divertindo; se, ao contrário, não se
preocupam em ocultar, ou demonstram desejo explícito de mostrar, configuram-se
como exibicionistas. E os voyeurs, que buscam descuidos e imprudências espiando
em segredo, também agem, transformando as situações nas quais tomam parte. A
nudez, por exemplo, se se constitui em erotismo diante de um voyeur, poderia, em
outras situações, não passar de uma “ausência de roupas”. Voyeur indica, na
maioria das vezes, invisibilidade, mas nunca passividade, ausência. Sem sua
presença ativa afinal ver é agir não voyeurismo possível. Assim, os principais
quesitos que denotam o cunho voyeurístico ou não do olhar são a clandestinidade: o
objeto de observação não tem ciência da relação estabelecida com o observador (os
exibicionistas, por sua vez não ignoram a relação estabelecida com o observador,
mesmo que este seja uma figura genérica); e a intencionalidade da procura, a busca
por ver, mais importantes manifestações da ancia do voyeur, que o diferenciam
do incauto cidadão que, por acaso, pode se encontrar em situação de observação
alheia, ou que se depara com um(a) ou mais exibicionistas. Entretanto, em muitas
das situações concretas as fronteiras entre os comportamentos são difíceis de
delimitar, e fatores como desejo, intencionalidade, acaso, imprudência não se
246
prestam facilmente a critérios de mensuração e definição exatas, dependem de
subjetivações e interpretações pessoais e não uniformes ou objetificáveis
242
.
Existe uma margem de negociação das práticas e dos sentidos nelas
envolvidos, como a artimanha proposta por Heleno nesse caso indica, assim como a
não repressão aos casais nas areias da praia, ou o jeitinho de Waldemar para
continuar vendo um casal fazendo sexo na praia de tarde: para continuar a ver
deveria fingir que não estava olhando. A discrição é central tanto para aqueles que
querem se divertir, quanto para quem quer apenas tirar uma casquinha. A única
cena, de arquivo, que assisti onde houve efetiva repressão contra usuários de
maconha é um exemplo contumaz dessa centralidade. Quando Teodoro abriu a
pasta do computador, o nome do deo me chamou desde o princípio a atenção,
pelo ineditismo da situação: “abordagem a elementos fazendo uso de
entorpecentes”. A cena foi capturada pela câmera 1905, num domingo (ou
feriado)
243
de sol e praia cheia. Os dois “elementos” em questão estavam fumando
maconha encostados a uma balisa de futebol, onde algumas crianças jogavam. A
câmera os focaliza durante um curto período, ficando óbvio o delito que cometiam.
Dentro de poucos minutos chegam dois quadriciclos em velocidade, fazendo com
que os elementos se levantassem, passando a jogar com as crianças. Os policiais,
informados pelo rádio da localização dos dois, os abordam e revistam,
inicialmente despertando grande atenção e curiosidade nas crianças, que cercavam
a cena. Curiosidade que, no entanto, se esgota antes da abordagem policial, que
prossegue com a chegada de um terceiro policial, terminando com os jovens sendo
levados pelos agentes da lei. Teodoro riu da falta de discrição dos “elementos” e
242
As interpretações e subjetivações pessoais são também culturais e sociais, na medida em que o
processo cognitivo e de aprendizado individual é factível em um contexto cultural, dentro do qual
seja gramaticalmente compreensível. Para uma discussão mais qualificada e aprofundada das
questões relativas à subjetivação ver especialmente Georg Simmel (2005) e Edward Sapir (1986).
243
Pista da Av. Atlântica estava fechada para os carros.
247
comentou: ―você também que as pessoas abusam. Num dia de praia cheia, vai
fazer isso perto do calçadão e do lado de criança... tavam pensando o que?‖
IV.9 - Públicos
As questões do sexo em blico e do “atentado ao pudor” foram discutidas
legalmente na Grã-Bretanha quando, em 2006, um morador de rua (Keith Rose) foi
processado por ―outraging public decency‖
244
(literalmente, ultraje à decência
pública, que pode ser, sem problemas, traduzido para nosso “atentado ao pudor”)
após terem sido gravadas imagens suas e de sua namorada fazendo sexo oral na
rua. As imagens não foram vistas ao vivo, mas apenas no dia seguinte, quando a
gerente do banco que instalara as câmeras observava o arquivo. Ela então os
denunciou, e eles foram julgados e considerados culpados, devendo pagar uma
multa de, no total, 125 libras esterlinas
245
.
O defensor público que cuidava do caso recorreu à High Court,
argumentando que a decência pública o poderia ser sido ultrajada, pois não
havia público para ser ultrajado‖, que os dois acusados estavam sozinhos na rua.
Argumento que foi aceito pelo Supremo Tribunal, com uma justificação que em
muito lembra a discussão de Derrida em relação ao caso Rodney King:
Peter Mahy, procurador do Sr. Rose em Howells, disse: ―a Suprema Corte
aceitou o recurso e anulou a condenação, com base na necessidade de que,
para a ocorrência deste delito, ele deve ser testemunhado, devendo haver
outras pessoas realmente presentes que possam ver o ato.
O tribunal ainda levanta dúvidas sobre se a gerente do banco foi ou o uma
testemunha, por ter visto a filmagem em arquivo, enquanto a essência do
evento é ser cometido em público‖.
244
Lei que, desde 1663, regulamenta a moralidade no espaço público, ao mesmo tempo incumbindo os
governantes de zelar por ela.
245
Informações sobre esse caso retirado das seguintes reportagens:
http://business.timesonline.co.uk/tol/business/law/columnists/article2825918.ece (“The Law
Explored: where the law says you can have sex”, de Gary Slapper, 2007)
e (http://business.timesonline.co.uk/tol/business/law/article703653.ece (“CCTV Sex is not an
Outrage”, de Frances Gibb, 2006))
248
Ele acrescentou: "O caso é juridicamente importante, pois esclarece os
elementos desta ofensa à common-law. O efeito prático é que a intimidade
consentida entre parceiros e, especialmente, pessoas sem teto, não é um crime,
a menos que feito na presença ou diante da visão de dois ou mais membros do
público, dos quais pelo menos um testemunhar, ou se for feito com a intenção
de causar espanto ou sofrimento para outrem" (Gibb, 2006).
É difícil imaginar a mesma situação sendo repetida no Brasil: duas pessoas
fazendo sexo na porta de um banco, de madrugada, as imagens gravadas sendo
vistas no dia seguinte pela gerente do estabelecimento, que as reconhece e
denuncia, iniciando um processo judicial. Porém, a questão principal reside nas
diferentes concepções de público. As duas estão corretas e se complementam, cada
uma delas sendo, possivelmente, mais enfatizada em cada um dos contextos.
Quando é tomado por oposição a privado ou particular, como é o caso das obras de
Freyre (1996), DaMatta (1987), Mello (2001; Mello & Vogel, 1985), os espaços físicos
são privilegiados: espaço público e privado são pensados de acordo com a lógica da
casa e da rua, que, como mostrou Heleno ao discutir o estatuto da varanda, tem
recorrência e centralidade como categorias de pensar e organizar a cidade. O que é
rua é público. Ou melhor, estar na rua é estar em público. No debate jurídico inglês
em questão, público é tomado de forma diferente, não como oposto a privado, mas
remetendo à idéia de audiência, ou de testemunho, como nas obras de Dewey
(2003), Lippman (2008), Quéré (2002). Uma questão menos de espaço e mais de
relação, interação. O que é assistido é público. Ou melhor, estar diante de outros é
estar em público. Na Grã-Bretanha, estar diante de uma câmera, mesmo que por
trás dela alguém possa estar observando, não é estar em público. No Brasil, em
tese, sim
246
.
246
Ao mesmo tempo, tomando por base o texto de Norris e Armstrong, temos a impressão de que na
Grã-Bretanha há uma preocupação muito menor, e fiscalização menos intensa que aquela que
encontrei na polícia carioca em relação à observação de cenas de sexo (por exemplo, circulavam CDs
com cenas de um estacionamento onde prostitutas e clientes habitualmente se encontravam) (Norris;
Armstrong, 1999b: 174).
249
No CCC e no 19º BPM, as diferentes significações de público se misturavam
durante o desenrolar prático do serviço, através da idéia de que certas coisas são
toleradas no espaço público, desde que realizadas de forma discreta, ou seja, que
não procure atrair, ou configurar, um público. Isso diz respeito tanto aos
observados, quanto aos observadores. Como exemplo e também metáfora, podemos
dizer que não se pode ser nem abertamente voyeur, nem explicitamente
exibicionista. Esses “papéis” devem ser desempenhados com discrição, sem
―abusar‖.
Dessa forma, guardadas as devidas peculiaridades e proporções, a
deliberação jurídica da corte inglesa se aproxima funcionalmente da deliberação
prática da cúpula da videovigilância no Rio de Janeiro, ao menos em um sentido,
pois se constituem como salvaguardas, mesmo que imperfeitas, em relação a alguns
dos mais factíveis riscos do sistema de videovigilância: a sexualização/voyeurização
do olhar vigilante, ou seja, a suplantação de sua funcionalidade técnica pela fruição
estética; e a explosão de pequenos delitos de atentado à moral pública nas áreas
monitoradas, cuja fiscalização mais fácil e prazerosa tornar-se-ia o cerne do
sistema.
IV.10 - Ver ou não ver...
Em um sistema totalmente baseado no olhar, o ver e o não ver tornam-se
categorias centrais e determinantes do trabalho. E, de modo para mim
surpreendente, por parte dos promotores da videovigilância a insistência é maior
sobre o que não deve ser visto do que sobre aquilo que deve. Mais ainda do que nos
casos de observação voyeurística, isso fica claro no que se refere às recorrentes
recomendações para que algumas câmeras aquelas em cujo campo de visão se
250
inclui alguma das comunidades pobres da 1 AISP - tenham sua utilização
evitada. E que, se usadas, não sejam apontadas para o interior dessas favelas,
chamadas ironicamente pelos operadores de locais ou áreas proibidas. Emblemático
dessa maior insistência no que o deveria ser olhado, ao invés do que deveria ser
visto, foi quando presenciei Nélson nervoso por, sem querer, ter direcionado a
câmera 1904 para a Ladeira dos Tabajaras, e o comentário aliviado que fez para
mim, após conseguir desviá-la, explicando que, por ser novato ainda não sabia
desempenhar o trabalho corretamente, mas havia sido instruído da proibição
oficial de filmar as ―áreas proibidas‖: ―manda quem pode, obedece quem tem juízo!‖.
Sem ter nenhum treinamento para desempenhar a função e receber apenas poucas
dicas de como operar as câmeras
247
, e principalmente interagir com o
computador
248
, principal mediador entre eles, aos operadores era indicado
principalmente como não agir, sendo inferido que a intuição, a experiência
profissional e de vida e as dicas dadas pelos colegas mais antigos os ajudariam a
descobrir como agir, como aquele trabalho para eles inédito deveria ser
desempenhado. O problema maior é que também os colegas mais antigos tinham
grande dificuldade no manejo técnico de computadores e câmeras, além de serem
igualmente guiados apenas pelo bom senso e olhar maldoso, oriundos de
estereótipos e experiências anteriores de trabalho dificilmente traduzíveis para
aquele novo contexto além de parcas instruções práticas sobre os instrumentos
tecnológicos com os quais deveriam lidar. A partir disso desenvolviam um
conhecimento prático sobre o trabalho que, mesmo se bastante deficiente em
relação aos meios técnicos, os guiava bravamente no complexo mundo tecnológico e
das ruas e areias do ―bairro do Brasil.
247
Uma única vez vi Saulo instruí-lo a não ficar olhando a movimentação dos carros na pista da
Avenida Atlântica: ―foca na calçada, na areia e na calçada, na rua não, não tem nada pra ver!‖
248
Foi só após as primeiras semanas de trabalho que Nélson, que nunca havia utilizado um
computador, aprendeu a mexer no mouse, instruído por Teodoro, canhoto como ele.
251
Numa demonstração da importância das regras do não olhar, seu
cumprimento não se restringia à obediência dos operadores àquela recomendação,
e os fiscalizadores de seu trabalho (o pessoal da Secretaria de Segurança)
intervinham tecnicamente todas as vezes que a recomendação superior o era
seguida, passando a comandar as meras, apenas interrompendo a transmissão
das imagens, ou mesmo ligando para chamar a atenção dos operadores que
insistissem na desobediência. A razão oficial não foi nunca anunciada e o ―manda
quem pode, obedece quem tem juízo‖ proferido por Nélson deixa clara a relação
estabelecida entre superiores e subalternos, marcada de cima para baixo - pela
falta de transparência, explicações e justificativas. É bastante significativo desta
relação que os operadores não tivessem o conhecimento da estrutura de trabalho
na qual estavam inseridos, e apenas soubessem vagamente que lidavam com ―o
pessoal da Secretaria de Seguraa‖. Apenas Heleno tinha ido ao CCC, e por
vezes me perguntaram com curiosidade (Agenor e Gil) como era por lá, quem
trabalhava, como era o serviço. Possivelmente o status de reformados ou
aposentados tem um pouco a ver com isso. Percebi no 19º BPM uma diferença
hierárquica informal entre os operadores e os despachadores, com estes últimos
visivelmente valendo-se de -vontade para não dar prosseguimento ao serviço de
videomonitoramento dos primeiros que, com isso, acabavam se inibindo e
desestimulando.
Os operadores, contudo, mesmo se não contestavam as ordens superiores, as
questionavam constantemente, e supriam a falta de explicações oficiais com as
suas próprias, na maioria das vezes desconfiando das intenções e da lisura da
Secretaria de Segurança. Para a maioria dos operadores, era inquestionável a
relação com a corrupção: seja como uma forma de exercê-la sem gerar provas, ou
de se proteger dela, evitando vazamento de informações que pudessem prejudicar o
252
trabalho policial. Desconfiança reforçada pela recorrência com que imagens
gravadas desapareciam (nas palavras do técnico de informática do 1 BPM,
―sempre tem um fantasma que vem aqui e apaga os vídeos‖), e pelas visitas que
recebiam de policiais do serviço reservado, pedindo para ―esquecerem‖ algo que
tivessem visto. Além das diretrizes sobre o não-olhar, havia uma tentativa, seja da
PM ou da Secretaria de Segurança Pública, de controlar (e manipular) tanto as
evidências materiais quanto as testemunhas
249
. Todos esses expedientes constituem
uma tentativa de conter o fluxo de informações imagéticas, mas também verbais
ou escritas - gerado pela videovigilância.
IV.11 - Fluxos incontroláveis
Uma câmera capta tudo o que entra em seu campo de visão,
sem atenção a uma causa específica, e a coleta é prolífica:
um aparelho que trate 25 imagens por segundo,
quer dizer, mais de 2 milhões em 24 horas,
num espaço que conte com uma vintena de câmeras,
um sistema captura várias dezenas de milhões de imagens
ao longo de um dia! A visualização traz sempre informações excedentes
em relação à finalidade do dispositivo.
O que, na prática, coloca sérios problemas para os investigadores
ou os operadores postados diante das telas
(Heilmann, 2008).
No sistema brasileiro um duplo problema é colocado
250
, pois o fluxo de
informações deve ser controlado em dois sentidos, relativos àquilo que se deve
tentar ver, e ao que não se pode correr o risco de que seja visto. A superabundância
de informações precisa ser duplamente controlada, sob o risco de voltar o trabalho
contra a própria polícia, mais do que a seu favor. A proibição de visualizar as
favelas era uma forma de tentar exercer esse controle, contudo criava
249
Conceitos tomados aqui de forma concomitante à de Derrida (Derrida & Stiegler, 1996).
250
Não pretendo inferir uma especificidade absoluta ao sistema brasileiro, aquele que pesquisei, e
imagino que em muitos outros lugares essa mesma questão seja colocada.
253
imediatamente outra faixa de exclusão social. Os alardeados benefícios do
videomonitoramento estariam restritos ao asfalto, local onde os moradores e
transeuntes têm sua proteção auxiliada por câmeras de segurança, enquanto as
favelas continuavam a ser áreas mantidas na obscuridade, e tomadas como
elementos externos ao bairro, e não como constituintes de sua diversidade e
especificidade. A não interferência da polícia naquele espaço é um dado que não
chegava a ser questionado. Tratava-se de uma zona que as forças de segurança
pareciam ter oficialmente decidido abandonar. A assertiva conformista de Saulo é
um exemplo perfeito dessa situação: ―é triste pra quem é da comunidade, mas o
melhor que a gente faz é deixar os vagabundos lá em cima‖. O videomonitoramento,
além de proteger determinadas categorias de pessoas de outras, o fazia apenas em
determinadas partes da 1AISP. Ambos os critérios, mesmo se contaminados por
deliberações preconceituosas e elitistas, funcionavam como tentativas de guiar
minimamente o olhar vigilante em meio ao caos decorrente do excesso absoluto de
informações que são transmitidas ou apenas possibilitadas pelo sistema. Servem
para limitar o espectro de imagens potencialmente visíveis, e tal limitação, cujo teor
é arbitrário, passa então a influenciar o desenvolvimento prático da videovigilância
policial no espaço público do Rio de Janeiro. Como dizia Lévi-Strauss (1970),
qualquer ordem é melhor do que o caos.
O que mais chama a atenção no caso carioca é a ausência de regras formais
e limites externos à videovigilância policial, e, principalmente, de qualquer debate
ou discussão pública sobre o sistema a ser instalado. Algumas reportagens
apresentavam a inovação, imagens eram constantemente mostradas pela imprensa,
entretanto ao contrário de países como França e Inglaterra, o monitoramento
254
eletrônico não se tornou uma questão pública
251
- o segundo tipo de público, como
audiência -, não tendo suscitado nenhuma mobilização coletiva capaz de fiscalizar,
regulamentar ou tentar impor limites à utilização das câmeras. Não há nada
parecido com o CNIL francês, ou os coletivos anti-videovigilância internacionais. Isso
não significa, como vimos, a ausência de normas e de fiscalização, apenas que a
imposição dos limites práticos e legais é de responsabilidade da própria polícia,
advindo do “bom senso” dos operadores e supervisores. O mesmo bom senso
policial que impediu os moradores da cobertura na Avenida Princesa Isabel de ver
as imagens da câmera acima de sua casa, e que faz com que imagens
comprometedoras desapareçam ou que o supervisor do CCC invente para a
imprensa um software que resguardaria os espaços privados dos olhos das
câmeras, inexistente em nosso sistema de monitoramento eletrônico. O mesmo bom
senso que vem, desde sempre, perigosamente guiando parte considerável do
comportamento e as deliberações da polícia do Rio de Janeiro.
251
O público consiste no conjunto de todos aqueles que são tão afetados pelas conseqüências indiretas
de transações que julgam necessário zelar sistematicamente sobre essas conseqüências‖ (Dewey, 2003).
Para uma questão mais aprofundada sobre a publicização de questões, formação do público e
mobilizações coletivas ver também Cefaï (2007; 2009) e Quéré (2003).
255
V- De todos os lados: produção e circulação de imagens no
contexto de superabundância digital
V. 1 - Descentralização privada das imagens de vigilância: enclaves e favelas
A maioria absoluta das imagens de câmeras de segurança é oriunda de
sistemas de videovigilância privados. A revolução proporcionada pela tecnologia
digital, capaz de reduzir sensivelmente o custo das câmeras e da estrutura
tecnológica que apóia seu funcionamento, cria uma nova realidade em relação aos
métodos de vigilância. É lembrarmos que uma fita grande de VHS filmava no
máximo 8 horas e era necessária uma interconexão por fios para que as imagens
fossem reunidas em uma sala de comando. Atualmente as câmeras operam à
distância e ininterruptamente sem que seja necessário repor os meios de
armazenamento (fitas). Na prática, em qualquer ponto do mundo com cobertura de
rede é possível ver em tempo integral imagens de determinadas câmeras de
segurança.
252
E isso acontece efetivamente. Sem muito esforço é possível encontrar
na Internet anúncios como este:
Com o GA-SE004 você tem um sistema de vigilância com toda a segurança
para sua residência ou escritório e com toda a versatilidade que a alta
tecnologia pode fornecer. O GA-SE004 possui 4 canais de entrada para
câmeras de segurança e é fácil de instalar, indicado para uso em residências,
lojas e escritórios. Fornecido com software de controle simultâneo ou
independente por câmera, em tempo real, incorpora detecção de movimento,
som, gravação com gerenciamento e backup, alarme via e-mail, acesso remoto
via web, inclusive para IP dinâmico com senhas multi-level. Requer
computador equipado com USB, CD-Rom ou CDR-W, processador a partir de
800 Mhz, mínimo com 256 Mbytes de memória RAM, HD com 20Gb mínimo e
sistema operacional Windows 98/ME/2000 ou XP.
Um simples botão permite que se capture a imagem.
Conecta-se a câmeras de segurança com sinal de vídeo analógico.
Auto alimentação de energia.
Auto-detecção de movimento com regulagem de sensibilidade por câmera.
252
No site da Companhia de Engenharia do Tráfego do Rio de Janeiro,
(http://transito.rio.rj.gov.br/),por exemplo, podemos ver imagens ao vivo de todas as câmeras
espalhadas na cidade para controlar o trânsito. O mesmo acontece com outras cidades, e com outros
tipos de câmeras (como, por exemplo, câmeras colocadas em jardins zoológicos, através das quais
podemos ter imagens 24 horas por dia da jaula que desejarmos).
256
Ajuste de brilho, contraste, saturação independente por câmera.
Gravação de áudio (1 canal).
Utiliza compressão e descompressão de alta velocidade para armazenamento
de imagem em MPEG4.
Gravação de 24 horas, com agenda, backup e reciclagem da gravação
programável.
Multitarefa: Monitora, filma, grava, detecta e transmite informações ao
mesmo tempo.
Monitoração remota em tempo real.
Acesso via Internet com senhas de segurança.
Notifica em caso de alarme por e-mail inclusive celulares (que tenham recurso
de e-mail).
Acesso via rede Lan, ISDN, ADSL, PSTN, cable modem e Internet.
Compatível com Windows 98/ME/2000 ou XP.
Permite 4 câmeras por computador
253
.
Sistemas semelhantes podem ser adquiridos por pouco mais de 200 reais no
Mercado Livre, grande bazar de compra e venda de mercadorias na Internet
brasileira. Sem precisar se deslocar de casa, qualquer pessoa que tenha acesso à
rede, cartão de crédito e dispuser dessa quantia para investir, pode dotar sua
residência de um moderníssimo sistema de vigilância, que detecta movimentos e, se
programado para fazê-lo, envia mensagens para o seu celular lhe avisando dessa
movimentação. Se a polícia se ocupa da vigilância do espaço público, cada um pode
desempenhar papel semelhante e monitorar seu espaço privado
254
. Diante desse
quadro nem chega a ser surpreendente a proliferação de empresas privadas de
segurança
255
, tornando as câmeras de vigilância cada dia mais habituais em
elevadores, portarias, escolas (inclusive em salas de aula), escritórios, hospitais,
condomínios, estádios e etc. Cada um desses contextos produz agenciamentos
sócio-técnicos únicos, havendo grande diferença entre o trabalho de um homem
que vigia, à distância, seu lar e sua família e um operador de câmeras da polícia,
observando desconhecidos descontextualizados em um espaço público. Tratá-los
como se fossem semelhantes é enfatizar o determinismo técnico. E esse
253
Anúncio disponível no site http://www.labramo.com.br/50856.htm
254
Não deixa de ser curioso encontrar à venda na Internet, por menos de 10 reais, falsas câmeras de
segurança para serem instaladas em muros e paredes. Um truque que possivelmente encheria Jeremy
Bentham de orgulho. Pode-se conferir no site http://lista.mercadolivre.com.br/camera-falsa-
seguran%C3%A7a.
255
Em sua maioria, fato amplamente sabido, geridas por ex-policias ou policiais.
257
determinismo alimenta todo um imaginário em torno das câmeras de vigilância e
movimenta um rentabilíssimo mercado
256
, assim como promove intensa atividade
legislativa, como visto no capítulo I. As videovigilâncias privadas ou públicas, de
iniciativa legal ou pessoal, compartilham, entretanto, motivações primordiais: a
supervalorização dos meios técnicos e a experiência da insegurança.
Esse fenômeno da explosão da segurança privada é documentado por Teresa
Caldeira (2000) em São Paulo, maior e mais rica cidade do país, mas pode também
ser observado no Rio de Janeiro, mesmo se em escala um pouco menor. Além do
crescimento de empresas especializadas nesse tipo de serviço, instalando complexos
sistemas tecnológicos que prometem tornar seguros, isentos de riscos, os espaços já
existentes, atualmente é quase imprescindível a existência de uma infra-estrutura
de tecnologias de segurança em qualquer empreendimento imobiliário comercial
ou residencial em construção, se destinado às classes médias e alta. Uma nova
tendência de habitação se consolidou no Brasil, num modelo que havia se tornado
célebre em outras partes do mundo, notadamente, como indica Caldeira, em Los
Angeles: os condomínios fechados, por ela chamados de enclaves fortificados. A
fórmula é bastante significativa do mundo contemporâneo: a concentração de
serviços e de lazeres em um espaço independente da cidade e vendido como
“seguro”, cuja entrada é estritamente controlada. Prima-se pra que no interior deste
a homogeneidade seja preservada, com o acesso do estranho, da alteridade e do
perigo que estes representam se resumindo aos empregados e prestadores de
serviço. O espaço público, como uma categoria historicamente construída
(Habermas, 1984; Merlin-Kaiman, 2003; Quéré, 2003), estaria num contínuo
processo de ressignificação, no qual as mudanças relativas às preocupações com a
(in)segurança representariam um outro momento nesse fluxo.
256
O mercado de videovigilância, segundo Heilmann (2005), teria passado de um volume de negócios
de 224,4 milhões de euros em 1993 a 490,3 milhões em 2003 (+118%).
258
A preocupação com a segurança e a vigilância, contudo, não está somente no
espraiamento dos enclaves fortificados, adaptando também espaços que antecedem
essa superabundância de sistemas de segurança. Qualquer passeio atento pela
cidade nos mostra a quantidade de meras instaladas ao lado de fora dos prédios,
cujo monitoramento é realizado pelo porteiro. Todas essas câmeras também podem
gerar imagens do espaço público, em especial daquele que circunda o espaço
privado a ser resguardado pelo monitoramento eletrônico. E essas imagens, têm o
controle muito mais difícil e descentralizado do que aquelas captadas pelo sistema
da polícia, não estando passíveis aos telefonemas, recomendações e intervenções
técnicas do pessoal da Secretaria de Segurança. E suas apropriações o múltiplas
e não intencionais, podendo servir a qualquer propósito, mesmo os mais opostos às
políticas de segurança oficiais.
É o que podemos ver no texto de João Vargas (2006), a propósito da
instalação de portões e câmeras de vigilância nas entradas da favela do
Jacarezinho, em julho de 2001. O controle visual das diferentes entradas da
comunidade, assim como a captação e o armazenamento de imagens da conduta
policial, indubitavelmente inferem sobre o padrão de “invasão de favelas”, através
da possibilidade concreta de constituição de evidências materiais contra os
policiais. Tanto como forma de proteger os moradores da brutalidade das
abordagens, quanto como uma forma de resguardar os traficantes locais de
“investidas-surpresa” por parte das “forças da ordem” (não diferindo
substancialmente do trabalho realizado pelos olheiros e fogueteiros na estrutura do
tráfico carioca). A ligação entre os criminosos que dominavam a localidade e o
sistema com portões e câmeras mediada pela associação de moradores,
responsável pela instalação -, teria sido a principal razão para a intervenção rápida
e veemente da imprensa, políticos e autoridades de segurança.
259
Segundo o autor, a dessemelhança essencial entre a favela do Jacarezinho e
os enclaves fortificados onde tais procedimentos são tidos como um direito de
proteção dos moradores seria de cunho racial: os brancos podem se proteger, os
negros o. Fica logo claro um problema argumentativo elementar, já que ele ignora
a diferença fundamental entre um condomínio, espaço privado, mesmo se de uso
restritivamente coletivo, e uma favela, que mesmo se desigual em relação ao asfalto
é um espaço público, cuja privatização e fechamento mediante portões é bem mais
rara que a construção de um enclave privado, não deixando, no entanto, de
acontecer. É o caso da Selva de Pedra, no Leblon (Mello, 2001), ou de algumas ruas
“sem saìda” por toda a cidade. Mas ainda assim é bastante diferente de fechar por
portões e controlar os acessos de todo um bairro dotamanho do Jacarezinho, com
mais de 60 mil habitantes. E o videomonitoramento, nas AISPs que dispõem do
sistema, é realizado por intermédio de órgãos oficiais, seja pela Polícia Militar ou
pela Companhia de Engenharia de Trânsito. A não problematização do efeito
(auto)segregacionista e ilegal de iniciativas semelhantes, advém de uma
compreensão - semelhante à da polícia - da favela como essencialmente diferente
do espaço público urbano, como uma entidade à parte da cidade, uma comunidade
fechada. E, pelo contrário, as centenas de favelas cariocas são parte integrante do
Rio de Janeiro, que não pode de maneira alguma ser compreendido sem elas, com
toda a diversidade e complexidade que acrescentam ao espaço urbano
257
.
257
Além disso, o autor parte de uma sobredeterminação racial, que o leva a concluir aquilo que seu
próprio argumento já tomava como um pressuposto: a segurança blica, a ocupação espacial
urbana, a cobertura da imprensa e todas as demais coisas obedecem a uma lógica binária e
antagônica de dominação de brancos sobre negros. Nada é pensado ou feito, nenhuma reação é
racialmente inocente, tudo é opressão e reforço da dominação. Dentre outras coisas ignora a
diversidade econômica social e étnica das favelas cariocas (quem mora na Rocinha tem, normalmente,
melhores condições financeiras do que aqueles que moram em favelas de ocupação recente: muitas
delas têm população negra ínfima ou minoritária, sendo constituídas em maioria por migrantes e
descendentes de nordestinos (Rio das Pedras, por exemplo). Como pude verificar no acompanhamento
do trabalho dos operadores, é inegável que a videovigilância, assim como a atividade policial de forma
generalizada, possui componentes racistas e pratica sistematicamente a estereotipagem, porém
reduzir tais elementos a simples relações de força e dominação, é perder de vista a complexidade
moral e as dificuldades práticas da realização do serviço.
260
Vargas, entretanto, observa de maneira interessante que a pretensa ligação
entre a instalação de meras e o fortalecimento do tráfico é mais problemática do
que pareceu para meios de comunicação, políticos e chefes da segurança pública,
não se resumindo apenas a possíveis laços entre a associação de moradores e as
atividades criminosas. Mais uma vez, os alarmes soam em função da
supervalorização dos meios técnicos, imaginário que dota as câmeras de poderes
extraordinários ao mesmo tempo em que minimiza a participação humana na
videovigilância. Toma-se como um dado que a instalação de um sistema de
monitoramento traz como conseqüência imediata o acréscimo de poder daquele que
o utiliza
258
.Os portões e meras, se certamente criariam um obstáculo para a
polícia, poderiam de forma perfeitamente plausível, ter como efeito um
enfraquecimento do movimento, causando apreensão naqueles que negociam drogas
exatamente por produzirem incessantemente evidências materiais de
comportamentos ilícitos e moralmente condenáveis.
Muito mais significativo do que um pretenso poder conferido pelas câmeras
de vigilância aos criminosos, ao menos para a polícia, é o descontrole do fluxo de
informações, em áreas nas quais há um esforço oficial tão grande para controlá-lo.
A Secretaria de Segurança Pública tem algum poder apenas sobre uma parte ínfima
das imagens de câmeras de segurança produzidas no cotidiano. Essas informações
podem ser apropriadas de inúmeras maneiras, inclusive como contra-vigilância
privada das atividades policiais, ou como material jornalístico. Os meios técnicos
são moralmente neutros, os agenciamentos sócio-técnicos não.
O contexto, entretanto, mudou e quase dez anos após a instalação desse
“aparato de segurança” privada no Jacarezinho, a popularização da informática e
da Internet nas classes populares cariocas faz com que seja muito difícil uma
258
Não custa lembrar que também o sistema de câmeras policial tinha a visualização restrita em
relação às favelas, impedindo a produção de evidências materiais concernentes àquelas áreas.
261
fiscalização policial relativa a sistemas de videovigilância privados nas áreas
proibidas para o videomonitoramento policial.
V.2 - Videovigilâncias
Apesar das semelhanças, especialmente técnicas, entre a videovigilância
policial que estudei e as múltiplas videovigilâncias particulares espalhadas por
espaços privados e públicos, não se trata absolutamente da mesma coisa.
Principalmente por duas razões, além da distância habitualmente menor entre
câmera e local vigiado: os vigilantes particulares de modo geral não se encontram
absolutamente separados da ação como acontece na polícia, reduzindo os
mediadores entre observação e intervenção; os “vigiados” nos espaços privados são,
no mínimo, menos anônimos do que os passantes dos espaços públicos. Parece
evidente, o porteiro do meu prédio tem maior possibilidade de me “vigiar” do que o
operador de câmeras da AISP onde moro o que não quer dizer que possa
efetivamente me controlar, apenas, no ximo, ver o que faço no elevador e
corredores do edifício. Para os operadores de câmeras que vigiam à distância
desconhecidos, a possibilidade de que a observação diária possa constituir um
banco de dados sobre alguns desses observados é inegavelmente remota. Como
lembra Koskela (2003: 304),
O vídeo (...) não é o melhor equipamento possível para categorização. Ao
contrário da prisão panóptica, no espaço urbano, a maioria daqueles que são
vistos permanecem não identificados e, portanto, não podem ser ligados a
informações que poderiam ser utilizadas para a codificação e a classificação.
Ainda mais significativo, muitas vezes os espaços de videovigilância
particular são fechados, ou seja, suas entradas e saídas são controladas, seja
apenas por um portão a ser aberto pelo vigia/porteiro, ou mesmo pela
obrigatoriedade de identificação com documentos e foto.
262
As relações constituídas entre observadores e observados são completamente
diversas nos dois contextos, normalmente tratados como diferindo apenas em grau,
em função da recorrente sobredeterminação técnica que ignora o caráter relacional
entre humanos e objetos, característico do circuito da videovigilância. Entretanto,
como outros elementos aos quais pretendo me referir no presente capítulo, os
sistemas privados de câmeras de segurança têm importância crucial na
compreensão e imaginário em torno dos sistemas públicos (inclusive em relação às
suas promessas e seus temores). Como ressalta Gonçalves (2008: 119), ―é
interessante pensar o imaginário enquanto fazendo parte da ―realidade‖ ou pelo
menos um discurso sobre a realidade‖.
Assim, o videomonitoramento policial, do CCC à CCTV, não se resume à sua
execução prática sendo também constituída, mesmo se negativamente, pelos
universos material e simbólico que estruturam os discursos analíticos,
premonitórios e alarmistas sobre a vigilância por câmeras. Esse imaginário,
popular e acadêmico, também é em grande parte alimentado pela intensidade do
fluxo de informações e sua circulação, impulsionados pela tecnologia digital de
captação de imagem e transmissão de dados, e pela Internet.
V.3. - Videovoyeurismos
Parte considerável da responsabilidade pela intensificação exponencial do
fluxo de informações cabe à indústria de telefonia móvel e à popularização de
aparelhos celulares com câmeras integradas
259
, e muitas vezes também com acesso
259
Segundo a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), no Brasil eram usadas 7,37 (4,5)
milhões de linhas veis em 1998, passando a 46,37 milhões (26,2) em 2003, e atingindo 150,6
milhões em 2008. A proporção para cada 100 habitantes no mesmo período passa de 4,5 para 26,2
chegando por fim a 78,1 (fonte: http://www.anatel.gov.br/Portal/exibirPortalInternet.do#). Não é
possível, entretanto, saber quantos aparelhos com meras circulam no país, mas provavelmente são
algumas dezenas de milhões.
263
à Internet (que, devido a sua importância e disseminação merece a honra de um
neologismo os camerafones). A produção e circulação de imagens de forma
amadora abastece uma demanda que também cresce, sendo possibilitadas e se
organizando através da Internet e da imprensa, e impulsionadas por uma revolução
tecnológica. A combinação entre um aparelho de comunicação onipresente e de um
meio de captação de imagens, além de um bem-sucedido policresto, é também uma
forte metáfora de um tempo marcado pela intensa e constante transmissão de
informações de forma imageticamente saturada.
Pode parecer exagerado afirmar que o papel das imagens circuladas
privadamente por indivíduos irá mudar drasticamente com as câmeras de
celular, já que a maioria das pessoas já têm câmeras (tradicionais). No
entanto, um conjunto de câmera com telefone celular faz diferença em muitos
aspectos. Primeiro, a natureza de um telefone celular pressupõe que seja
sempre "mantido por perto". As câmeras seo carregadas por seus
proprietários para lugares onde anteriormente muitas vezeso estariam
presentes aos lugares mundanos cotidianos e a incidentes inesperados. Em
segundo lugar, um conjunto de câmera e celular é muito menos visível do que
uma câmera tradicional. O ato de fotografar uma imagem não
necessariamente vai diferir visualmente do ato de enviar uma mensagem de
texto. A lente também pode ser rotatória, o que torna difícil perceber quando
e o que está sendo fotografado: uma câmera de telefone celular não tem "a
aparência de intencionalidade" (Mann 1998). E terceiro, as câmeras de
telefone celular pode ser ―wired‖. São muito mais eficientemente ligadas a
outros fluxos de informação do que uma câmera tradicional. As imagens
podem ser imediatamente enviadas para um amigo (ou a um jornalista), e em
modelos com a função WAP diretamente à Internet (Koskela, 2003: 202-203).
A vigilância virtualmente realizada através de todas essas câmeras portáteis,
realmente em muito pouco se assemelha àquela praticada pelos sistemas de
videomonitoramento. Muito pela descentralização do olhar, o que o deixa muito
mais incontrolável, mas também por serem captadas de forma presencial, logo em
situações que permitem maior contextualização das cenas e menor fragmentação
dos sentidos do observador. Ao contrário das câmeras da polícia, aquelas
empunhadas por amadores pressupõem a presença de uma testemunha, e as
imagens que captam compõem, com esse testemunho, uma narrativa, enquanto as
cenas mudas e não presenciais das câmeras de vigilância são a totalidade de uma
264
narrativa a ser interpretada por cada observador, não contendo mais nenhum
elemento em si. A circulação restrita daquelas imagens fazia com que fossem ainda
mais dependentes da interpretação
260
e da capacidade de enxergar dos operadores,
prejudicada pelas limitações técnicas e físicas
261
comuns aos da mesma faixa
etária-, perdendo muito em dinamismo. Ao mesmo tempo, a experiência profissional
daqueles ex-bombeiros e ex-policiais e seu olhar maldoso, mais do que lhes dar a
capacidade de perceber ou desvendar comportamentos criminosos, “viciava” o
monitoramento, sempre zeloso dos mesmos crimes, sempre preocupado com os
“mesmos” suspeitos
262
.
As visibilidades não se definem pela visão, mas o complexos de ações e de
paixões, de ações e de reações, de complexos multissensoriais que vêm à luz.
Como diz Magritte numa carta a Foucault, o que se vê, e pode ser descrito
visivelmente, é o pensamento. (Deleuze, 1988: 68).
A “vigilância” através de meras amadoras e camerafones reverte o maior
problema prático enfrentado pelos operadores de videomonitoramento, a baixa taxa
de humanos para cada um dos dispositivos técnicos. A maior parte das câmeras de
monitoramento passa a maioria do tempo gerando imagens que ninguém está
vendo. Se logo ao se popularizar a videovigilância passou a ser interpretada como
um instrumento essencialmente panopcista, em relação à proliferação de olhares
trazida pelas câmeras portáteis, chegou se a falar de um omnicom(Groombridge,
2002), contexto no qual qualquer um pode vigiar qualquer um, a qualquer hora, em
qualquer lugar. Ao contrário das meras oficiais, onde a vigilância é a função
principal, as câmeras amadoras a tem apenas como uma potencialidade, uma
“virtualidade” que, na maior parte das vezes, não é “atualizada”. os
agenciamentos sócio-técnicos formados por “amadores” e seus camerafones têm por
260
Produzida com recursos do repertório cultural e simbólico de cada observador: diferentes
indivíduos vêem diferentes cenas. Isto se tornou bastante claro na interação com os operadores. Não
apenas divergiam as interpretações, mas também as capacidades de enxergar determinadas coisas,
tanto deles entre si como também a minha em relação a eles.
261
Especialmente uma piora na visão, sentido mais importante para o serviço que realizavam.
262
Refiro-me a estereótipos semelhantes, e não aos mesmos indivíduos, obviamente.
265
característica a produção de olhares descentralizados e imprevisíveis, engajados ou
passivos, compartilhando ou se apropriando particularmente das imagens que
captam. Mais do que de videovigilâncias, ou para além delas, poderíamos falar em
videovoyeurismos ou videovigilâncias voyeurísticas.
A captação de som também confere caráter diferencial às imagens captadas
in loco, câmera(fone) em punho. E muitas são as possíveis maneiras de agir dos
vigilantes ocasionais, inclusive porque seus olhares o mais livres também, o
restringidos por deliberações superiores sobre o não-ver. Esse olhar, embora
também maldoso, o é de forma mais heterogênea, sujeito a uma miríade de
diferentes maldades, que podem tomar as mais diversas formas. E, principalmente,
as imagens que captam estão mais sujeitas a ser inseridas no crescente fluxo
informacional e imagético da Internet. E uma vez isso feito, as imagens tornam-se
independentes dos seus captadores e produtores, passando a circular no
ciberespaço, definido como
o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores
e pela memória dos computadores. (...) Insisto na codificação digital, pois ela
condiciona o caráter plástico, fluido, calculável com precisão e tratável em
tempo real, hipertextual, interativo, e, resumindo, virtual da informação que
é, parece-me, a marca distintiva do ciberespaço. Esse novo meio tem a
vocação de colocar em sinergia e interfacear todos os dispositivos de criação
de informação, de gravação, de comunicação e de simulação (Lévy, 1999: 92-
93).
Apesar de recentes, tais mudanças se fazem sentir de modo intenso,
causando impactos tão ou mais significativos nos usos e relações com as imagens
do que o advento, por exemplo, da televisão, cuja popularização se inicia após a
Segunda Guerra Mundial, tornando-se um importante e central elemento cultural
da última metade do século XX. As câmeras digitais, assim como a TV, contudo,
não têm o poder de sozinhas provocarem mudanças tão profundas, necessitando do
apoio impulsionador de uma tecnologia de transmissão de dados: ontem os
satélites, hoje a Internet.
266
Colocar ênfase excessiva nas inovações tecnológicas da revolução digital, no
entanto, é incorrer no mesmo erro de sobredeterminação técnica que os paranóicos
e apologistas da videovigilância. Se a forma geral de uma sociedade em crescente
interconexão e produzindo e circulando informações de modo superabundante é
majoritariamente dada pelo aparato tecnológico, o conteúdo que a preenche
depende de fatores mais complexos e imateriais. Os meios técnicos conferem a
estrutura de troca, mas são fatores culturais que influenciam no que vai ser
trocado. É preciso deixar claro, mais uma vez, que os meios técnicos são elementos
culturais, e que a cultura é constituída e moldada, também, por esses elementos.
(...) as máquinas são sociais antes de serem cnicas. Ou melhor, uma
tecnologia humana antes de haver uma tecnologia material. Os efeitos desta
atingem, é certo, todo o campo social; mas, para que ela mesma seja possível,
é preciso que os instrumentos, é preciso que as máquinas materiais tenham
sido primeiramente selecionadas por um diagrama, assumidas por
agenciamentos (Deleuze, 1988: 49).
A conversão dessa estrutura material e tecnológica virtualmente ou não
em instrumentos de vigilância, não pode ser atribuída de maneira integral apenas
às possibilidades técnicas. O desdobramento específico que presenciamos não
ocorreu de modo automático e inapelável, devendo muito de suas características ao
background cultural sobre o qual se desenvolveu, utilizando-se de categorias de
pensamento e ação que não foram criadas pela tecnologia. A idéia da videovigilância
independe de sua realidade material, tanto que a precede (o 1984 de Orwell é um
bom exemplo disso) e, como pude verificar no campo, a suplanta em muito. A
realidade material incorpora esse imaginário, ao mesmo tempo em que o modifica:
os camerafones adquiriram contornos de instrumentos de vigilância, porque a
videovigilância tornou-se parte do repertório cultural contemporâneo, como bem
observa Groombridge (2002: 30), mas a partir de sua materialidade repetem,
ressignificam e criam (novas) práticas, apropriações e discursos sobre ela.
267
V.4 - Estéticas da vigilância e do flagrante
As meras de segurança e as imagens de vigilância vêm sendo ultimamente
bastante utilizadas como tema, e também como recurso estético-narrativo em
muitos filmes e programas televisivos, colaborando para a constituição do que
autoras chamam de uma estética da vigilância (Bruno & Lins, 2007), ou estética do
flagrante (Bruno, 2008). Se já há pelo menos quarenta anos fala-se de uma “estética
da vigilância” no cinema, a que conhecemos hoje difere consideravelmente do
“modelo clássico”, sendo muito mais popular, espontânea e difundida do que os
experimentalismos conceituais das décadas passadas
263
.
São esses modelos estéticos que fazem dos camerafones potenciais e
recorrentes instrumentos de vigilância, o que por sua vez reforça a consolidação e
extensão desses padrões de apropriação das imagens, inserindo uma diferenciação
importante no que diz respeito à sua perspectiva. As imagens oriundas de meras
de segurança, mesmo se para seu funcionamento dependem do agenciamento com
os operadores que as comandam, aparentam mais impessoalidade e menos
intencionalidade que as filmadoras portáteis, empunhadas diretamente por uma
pessoa. Dão origem a vigilâncias diferentes, subvertendo também a figura daquele
que “vigia”:
um reposicionamento do observador que merece ser considerado. Este
não apenas assiste ao espetáculo da dinâmica urbana e suas representações
visuais como um ponto na massa, mas produz e distribui com suas câmeras
portáteis e conectadas um micro-espetáculo do cotidiano, sendo ao mesmo
tempo testemunha individual e difusor global da vida urbana. O olho munido
do clique instantaneamente disparado e conectado é, ao mesmo tempo, um
ponto de observação e de difusão. Eis porque, dentre outros fatores
apontados, as imagens que daí derivam podem não ser apenas o registro de
um olhar que casualmente testemunha algo, como podem se tornar ou ter o
263
―A emergência desse ―estágio clássicose , no campo das artes plásticas, no final dos anos 60
com as instalões de Michael Snow e Bruce Nauman; os traços estéticos e políticos mais marcantes dos
trabalhos das décadas de 70 e 80 o, por um lado, a reorganização e modificação dos parâmetros dos
dispositivos de vigilância e, por outro, a retomada e subversão das suas características plásticas (fixidez
da câmera, automatismo da gravação, imagem de baixa qualidade em preto e branco)‖ (Bruno & Lins,
2007: 38).
268
efeito de uma imagem de vigilância, não muito diferente das imagens policiais
ou midiáticas (Bruno, 2008: 12).
Apesar da relação entre si, não podemos perder de vista a diferença entre
vigilância e flagrante. Enquanto a primeira pressupõe intencionalidade e vigília
constante e sistemática, o segundo pode ser fruto tanto desse trabalho de
observação vigilante, casos do videomonitoramento
264
ou do voyeur
265
, ou do
acaso
266
. E um flagra pode ser planejado (exemplo clássico é o da câmera
escondida
267
), ou espontâneo um escândalo na porta de seu prédio, a
madrugada
268
-, intencional
269
ou fortuito um acidente
270
, ou um tombo
271
. O
flagrante é uma possibilidade da vigilância, que na maioria absoluta do tempo
mantém-se apenas como uma virtualidade: imperam as imagens regulares e
desinteressantes, fazendo com que a observação rotineira seja uma atividade
extremamente maçante
272
. E essas imagens do tédio também podem integrar uma
narrativa, como é o caso, por exemplo, de filmes como Gigante, Caché ou Edifício
Master
273
. Sobre este último, explica Lins (2004: 153-154):
Não é à toa que a primeira imagem do filme é a de uma das câmeras de
vigilância. (...) A equipe é desde o início colocada também sob o olhar dos
outros. Estamos filmando, diz o filme, mas também somos filmados,
indicando ao espectador uma espécie de circuito fechado, uma perda de
264
http://www.youtube.com/watch?v=HzhzKdvqdLw&feature=fvsr (Brasil Urgente - Flagra!! pessoas
ateiam fogo em mendigo) e http://www.youtube.com/watch?v=TGax8rgepMw (Câmera flagra acidente
incrível em posto de gasolina).
265
http://www.youtube.com/watch?v=PvQLXoYkGpE (Show de vizinha (flagra da madruga)) e
http://www.youtube.com/watch?v=Pt4eEVepkEY (VIZINHA).
266
“O lugar certo, na hora certa”. http://www.youtube.com/watch?v=q6a_V2qUEDQ (Flagra Briga por
causa de Discuso de trânsito acaba em pancadaria em Curitiba).
267
, http://www.youtube.com/watch?v=1EfkoJfE-Ok (Flagra de empregada roubando) e
http://www.youtube.com/watch?v=ysgPziWddxo&feature=related (Corrupção no GDF - Governador
Arruda recebe dinheiro de propina).
268
http://www.youtube.com/watch?v=EWC_B1u0hBE (Me meu Chip Pedro. Manda meu Chip Pedro.
Joga meu CHIPE) e http://www.youtube.com/watch?v=PSW2bDMydWI (Travestis e o cliente | Briga
na Lapa).
269
http://www.youtube.com/watch?v=K6Wz6JeN_mo (FLAGRA PUNHETEIROS).
270
http://www.youtube.com/watch?v=1Y_ULm0GdSU (flagra acidente em trecho da BR-040).
271
Muito populares em televisões de todo o mundo são as quedas e pequenos acidentes engraçados,
no Brasil conhecidas como videocassetadas, em países de língua inglesa como bloopers, e na França
como vidéo gags. http://www.youtube.com/watch?v=24ddm0URXVc&feature=fvsr (Flagras na praia) e
http://www.youtube.com/watch?v=IGm33mba3XY (Estabaco de Caetano Veloso em Brasília).
272
O ―fator tédio‖ do qual fala Gavin Smith, e que percebi mais no CCC, mas também no 19º BPM.
273
Gigante (2009), de Adrian Biniez, Caché (2005), de Michael Hanecke e Edifício Master (2002), de
Eduardo Coutinho.
269
mundo em favor unicamente das imagens e isso marcaEdifício Master de
diferentes maneiras. (...)
Além das imagens captadas diretamente dos monitores das câmeras de
controle, grande parte dos planos inseridos entre os depoimentos é
impregnada pelo olhar de vigilância: planos do corredor escuro; planos fixos
de apartamentos mobiliados, anônimos, vazios, vistos do mesmo ângulo;
planos fixos das janelas; imagens que parecem ter sido registradas
automaticamente por uma câmera parada, sem a presença do operador. Se
há algo que surge diante dessa câmera um garoto, um gatinho, uma
mulher, uma criança -, ela apenas registra a passagem desses “elementos”,
sem acompanhar o movimento.
As imagens de videomonitoramento, foco etnográfico da presente tese,
representam o mais imediato exemplo da estética da vigilância, porém é com grande
dificuldade que produzem flagrantes. A área inclusa no campo de visão das
câmeras é bastante vasta, fator que se num primeiro momento parece uma
vantagem adicional de seu funcionamento, o desempenho prático deixou claro
rapidamente que o mais notável dos efeitos que provoca é uma maior dissolução do
olhar vigilante. Se tratarmos o espaço como homogêneo (o que ele, definitivamente
não é), probabilisticamente fica muito difícil que a câmera esteja, no momento em
que um fato passível de ser flagrado ocorre, direcionada exatamente para o ponto
onde este “flagrante virtual” se passa, e mais difìcil ainda, que alguém esteja
olhando e prestando atenção naquelas imagens. Em teoria, o conhecimento pelos
operadores da área monitorada e sua experiência em vigilância, serviriam como
contraponto a essa dissolução do olhar. Na realidade, contudo, as coisas acontecem
de outro modo: a região monitorada não é reconhecida por eles, nem os
comportamentos criminosos ou delituosos tinham sido mapeados. Como os
comentários dos operadores deixavam claro, foi mais fácil para os flagrados em
potencial compreender e se esquivar do monitoramento do que para os
monitoradores descobrir “os atalhos da videovigilância” na 1AISP. As técnicas de
esconder superaram as de encontrar.
270
a estética do flagrante indica uma mensagem direta, o que é mostrado
deve conter todos os elementos explicativos em si, sendo um resultado bem
sucedido de vigilância, voyeurismo ou acaso. O flagrante não é uma coisa, ou um
comportamento, em si. É um conjunto de relações estabelecido entre dois ou mais
agentes, quem flagra e quem é flagrado. Relações que criam um testemunho e
transmutam um fato em evento, por serem materializadas, embodied (corporificada)
em material (variavelmente) durável (Law, 1992)
274
. Por exemplo, um fato tão
corriqueiro quanto uma mulher andando de vestido torna-se um evento quando um
voyeur, armado de engenhoso aparato técnico, consegue, de baixo para cima,
captar imagens de sua calcinha. E ao disseminá-las em sites como o YouTube,
amplia o alcance real e virtual desse evento produzido (Cardoso, 2009).
Os eventos flagrados abastecem em abundância os noticiários televisivos - de
todos os acontecimentos dignos de atenção midiática são buscadas imagens à
exaustão, de preferência de diferentes pontos de vista, sejam elas ilustrativas ou
elucidativas -, e também as múltiplas plataformas de divulgação e
compartilhamento de vídeos da Internet. E, intensificando ainda mais esse fluxo, as
imagens mostradas na TV, tão logo exibidas passam a circular no ciberespaço, em
diferentes versões, apropriadas, transformadas e incorporadas aos programas
que as transmitiram. As mesmas imagens podem então constituir diversos vídeos.
Para compreender melhor essa produção e circulação intensa de imagens de
flagrante, e sua influência sobre o imaginário da videovigilância, é preciso um olhar
sobre alguns dos fatores que as constituem: como e onde elas são compartilhadas e
mostradas; quem são os principais envolvidos nessas atividades; e quais os
274
―() a durabilidade também é um efeito relacional, não algo dado na natureza das coisas. Se
materiais se comportam de maneiras duráveis isso também é um efeito interacional(Law, 1992: 6).
271
principais conteúdos encontráveis nessas imagens
275
. Nesse sentido, é também
interessante rediscutir duas categorias que foram tratadas nos capítulos
anteriores, exibicionista e voyeur, recontextualizadas através do uso da Internet.
V.5 - YouTube, devir tecnológico e voyeurismo digital: já não se fazem mais
imagens como antigamente...
Muito venho falando sobre a possibilidade criada pela tecnologia digital e
pela Internet de produção e compartilhamento de imagens em uma escala nunca
antes vista. Com o desenvolvimento progressivo da rede mundial de computadores,
essa possibilidade foi sendo aprimorada através do trabalho interdependente e
descentralizado de um sem mero de desenvolvedores de softwares e plataformas
digitais e de usuários desses recursos, mais ou menos conscientes e familiarizados
com o que estavam realizando e com as possibilidades que abriam. O mais
emblemático e (até o momento) bem sucedido produto dessas relações é sem dúvida
o YouTube, que fundado em fevereiro de 2005, contabilizava em abril de 2008
mais de 85 milhões de vídeos - cifras que não param de crescer exponencialmente -,
sendo um dos dez sites mais visitados no mundo inteiro (Burgess & Green, 2009:
18).
Se, ao longo deste trabalho, alguns de seus vídeos vêm sendo utilizados,
conforme salientado na introdução, como um importante elemento narrativo e não
apenas como ilustração do que era dito através da linguagem escrita -, uma
discussão mais direcionada e aprofundada dessa plataforma participativa faz-se
275
As categorias examinadas ao longo desse capítulo, por mais que correspondam a ícones da
cibercultura e mais precisamente da estética do flagrante, não pretendem, de forma alguma, esgotar a
multiplicidade de contextos e a diversidade de atores possivelmente envolvidos. Estou certo, no
entanto, que essa fraqueza confessa da análise realizada no capítulo não chega a invalidá-la nem a
mutilá-la.
272
agora necessária para melhor situar a questão da videovigilância, especialmente a
amadora. Primeiro, vejamos as informações disponibilizadas no próprio site
276
:
Fundado em fevereiro de 2005, o YouTube é o líder no setor de vídeos on-line
e o principal destino dos internautas para assistir e compartilhar vídeos
originais com todo o mundo por meio da web. O YouTube permite que as
pessoas enviem e compartilhem facilmente videoclipes no br.YouTube.com e
na Internet por meio de sites, celulares, blogs e e-mail.
Qualquer pessoa pode assistir a um vídeo no YouTube. As pessoas podem ver
relatos de eventos atuais em primeira o, localizar vídeos sobre seus
passatempos prediletos e assuntos de interesse, e até descobrir algumas
pérolas. Cada vez mais pessoas estão capturando momentos especiais em
vídeo e o YouTube está cuidando de transformá-las nos criadores da televisão
do futuro.
Uma imensa gama de vídeos pode ser encontrada no YouTube. Desde
imagens televisivas antigas
277
, de arquivos pessoais ou das próprias emissoras, até
shows gravados em celulares
278
, passando por “melhores momentos” de partidas de
futebol
279
(ou qualquer outro esporte), resumos diários das telenovelas
280
ou,
conforme explicitado no próprio site, ―relatos de eventos atuais em primeira mão‖
281
,
de tudo se encontra no site. Ou melhor, de quase tudo. Algumas coisas são
proibidas, dentre elas a exploração comercial do espaço, a difamação de terceiros, o
desrespeito às leis de copyright e a pornografia
282
. No entanto, é em relação a
esta última que a proibição funciona efetivamente, com o controle sendo exercido
pelos próprios usuários, através de um mecanismo disponibilizado pelo site que
permite que qualquer um reporte à administração essas violações de conduta. Esse
problema, contudo, foi rapidamente contornado, de maneira um tanto espirituosa,
inclusive, pela pronta invenção de forma independente - de rias versões mais
276
http://www.youtube.com/t/company_history.
277
http://www.youtube.com/user/7desetembro.
278
http://www.youtube.com/watch?v=jWBBHkvuugk&feature=related (Céu Espaçonave).
279
http://www.youtube.com/watch?v=Y3Zsv0XxLcE&feature=related ("Aí ele é terrível" diz Galvão).
280
http://www.youtube.com/watch?v=iDsDhoieK98 (Novela Viver a Vida 16-10-09 Parte 3).
281
http://www.youtube.com/watch?v=t3byaW_ZACg&feature=related (Incêndio no centro do Rio de
Janeiro - 18-03-2010 vídeo desse Flagrante enviado).
282
São vetados deos de sexo explícito, mas permitidas cenas sensuais, de sexo softcore ou discreta
nudez, mediante a confirmação da data de nascimento do usuário (este precisa ter mais de 18 anos
para ter acesso à área restrita do site, mas o controle é inexistente, dependendo apenas da
autodeclaração individual de cada um). Nos “termos de uso” é dito que o YouTube pode ser
“freqüentado” por maiores de 13 anos, sem que haja qualquer tipo de controle em relação a isto.
273
quentes do modelo da plataforma de compartilhamento de deos do YouTube, com
pequenas variações (YouPorn, PornoTube, RedTube, AmadorasTube, RedPorn,
XVideos, etc.). Como essas imagens de nudez ou conteúdo sexualmente explícito
são centrais nos discursos e imaginários sobre videovigilância e estética do
flagrante não poderiam ser ignoradas, destaco de maneira relativamente aleatória o
X Videos, cujo funcionamento participativo é bastante semelhante ao do YouTube
com avaliação, comentários e sugestões de deos aos usuários, que servirá para
compor a narrativa nos pontos em que este último, por razões de censura, não
puder ser utilizado.
Algumas das características fundamentais do YouTube nos levam a vê-lo
como uma comunidade virtual estruturada em torno do compartilhamento de
imagens e da conformação destas à idéia de ciberarte, novo modelo de criação
surgido na esteira da tecnologia digital, como parte constitutiva da cibercultura de
que fala Lévy (1999: 135-136):
Uma das características mais constantes da ciberarte é a participação nas
obras daqueles que as provam, interpretam, exploram ou lêem. Nesse caso,
não se trata apenas de uma participação na construção do sentido, mas sim
uma co-produção da obra, que o “espectador” é chamado a intervir
diretamente na atualização (a materialização, a exibição, a edição, o
desenrolar efetivo aqui e agora) de uma seqüência de signos ou de
acontecimentos.
Um fato que colabora para despertar o interesse ainda maior no site em
relação à produção e ao compartilhamento de imagens, é que ambos se dão
simultaneamente. O mecanismo disponibilizado aos usuários
283
, que os permite
avaliar positiva ou negativamente os vídeos, e também comentá-los e postar
respostas igualmente imagéticas, acaba se tornando parte do seu próprio processo
de produção, conferindo sentidos, estabelecendo fóruns de debate, enfim, ajudando
283
Para se tornar um usuário são necessários apenas alguns minutos, gastos no preenchimento de
um cadastro com alguns de seus dados, como e-mail, sexo e pseudônimo (ou, “nome do usuário”). As
informações pessoais são, em teoria, mantidas na confidencialidade. O cadastro é rápido, gratuito e
indolor.
274
a criar o texto final, num misto de imagens, ícones e palavras. Em suma, o usuário
é potencialmente, ao mesmo tempo, “produtor”, “autor”, “crìtico”, “espectador”,
“colaborador”, etc.
Ao entrar no site as imagens perdem a autoria
284
e passam a fazer parte de
um domínio coletivo de autores, formado potencialmente por todos os usuários, e
efetivamente por todos os que interagiram diretamente com ele, através das notas
ou comentários. Outros indicadores, como o número de pessoas que viram aquele
vídeo e que o favoritaram
285
, também colaboram para a constante (re)criação
daquelas imagens, embora de maneira mais indireta. As categorias autor e receptor
perdem muito do sentido que habitualmente carregavam, assim como a imagem,
que ao incorporar os fóruns de discussão como parte constitutiva sua, ganha vida
para além do momento em que foi captada, tornando-se um vídeo. Vídeo este que
pode ser gravado e servir de base para inúmeros outros vídeos. Sua prodão passa
a ser, através da relação que se estabelece no site, aberta e interativa ad
infinitum
286
.
Essa característica o é restrita ao YouTube, e reflete uma tendência da
contemporaneidade e das interfaces de relacionamento mais populares da Internet,
no que vem sendo identificado como a emergência de uma “cultura participativa”
287
.
O conceito proposto por John Hartley (2008), tentando dar conta desse aspecto de
284
Apesar dos constantes acordos e disputas judiciais em relação aos direitos de propriedade das
imagens disponibilizadas pelo site. Alguns dos detentores desses direitos julgaram benéfica a
exposição constante e relativamente organizada do material, conferindo-lhe maior visibilidade e
reconhecimento. Para uma discussão mais aprofundada ver Burgess & Green (2009) e Hildebrand
(2007).
285
Favoritar também é uma categoria nativa dos internautas, e mais especificamente dos usuários do
YouTube, indicando que um determinado vídeo foi marcado como favorito.
286
Ver, por exemplo, os clássicos: http://www.youtube.com/watch?v=87xcp4FeQSI (Jeremias) e
http://www.youtube.com/watch?v=2MVZjCAjxro&feature=related (Funk do Jeremias).
287
De acordo com a definição de Burgess e Green (2009: 28), ―cultura participativa é um termo
geralmente usado para descrever a aparente ligação entre tecnologias digitais mais acessíveis, contdo
gerado por usuários e algum tipo de alteração nas relações de poder entre os segmentos de mercado da
mídia e seus consumidores‖. Para Jenkins, um dos criadores do conceito, “os fãs e outros consumidores
são convidados a participar ativamente da crião e circulação do novo conteúdo” (Jenkins, 2006: 290
apud Burgess & Green, 2009: 28).
275
co-produção interativa, é o de redaction, a produção de novo material através da
edição aditiva (sem redução de conteúdo) de material existente e previamente
incluìdo no fluxo redacional. A “construção do significado” teria migrado
junto com a “cadeia de valores” dos segmentos de mercado culturais: do
“autor”, “produtor” e do texto para o “cidadão-consumidor”, de maneira que o
“consumo se tornou uma fonte de criação de valores e não somente seu
ponto de chegada. O consumo de mídia, de acordo com esse modelo, se
distanciou da identidade de somente leitura” para se tornar um modelo leia
e escreva” (Hartley, 2008; apud Burgess & Green, 2009: 72).
Apesar dos problemas que pode conter essa abordagem (busca de uma
“origem primeira do significado”, por exemplo), é uma útil ferramenta para
compreender as relações estabelecidas pela Internet. Nesse sentido, ao entender o
YouTube como um sistema redacional, o processo de upload se converte em um
processo gerador de significado‖ (Burgess & Green, 2009: 74), o ponto de partida de
um novo e imprevisível processo de criação coletiva. Além de ser regido pela lógica
da redaction o próprio YouTube, assim como parte considerável dos sites e
comunidades virtuais da Internet é um hipertexto, um texto estruturado em rede,
constituído por nós
288
, organizado por links, indicando as possíveis passagens entre
um e outro (Lévy, 1999). O site constituiria um desses nós dentro do
incomensurável hipertexto no qual consiste a própria World Wide Web, tendo por
sua vez seus próprios nós que nos permitem criar infinitos percursos em seu
interior. Cada vez que selecionamos um vídeo somos defrontados com inúmeros
links (que nos levam a usuários e suas videotecas e canais, a outros vídeos que
contenham uma mesma palavra-chave, para caminhos que outros usuários que
viram aquele vídeo percorreram em seguida, etc.).
Esses nós interligados formam a grande rede (WWW), que por sua vez une
todos os híbridos homem-máquina que a formam. Cada um desses agenciamentos
288
Nós é aqui utilizado como plural de , e não como plural de eu, como pode parecer numa primeira
leitura. É uma variação da própria metáfora da rede, que acompanha e explica a Internet desde seus
primeiros momentos.
276
sócio-técnicos individuais
289
lida de forma específica com a incalculável
possibilidade de informações e com os fluxos multidirecionais com os quais se
defronta na Internet. Ou, para usar a metáfora de Roy Ascott (apud Lévy, 1999: 15),
navega em sua própria Arca de Noé no dilúvio informacional contemporâneo. Ao
contrário do que acontece no bíblico
290
, as conseqüências desse dilúvio de
informações não implicam qualquer pretensão totalizante, mas uma universalidade
sem totalidade, vários mundos (ou arcas) intercomunicáveis e permanentemente
influenciados e fecundados um pelo outro, em um constante devir, tendo por meio a
tecnologia digital de compactação e compartilhamento de informações (sons,
imagens, textos...), e o incomensurável hipertexto da World Wide Web, reescrito e
ressignificado a cada leitura. Um universal rizomático (Deleuze & Guattari, 1995)
em rápida e permanente (re)construção. Ao construírem constantemente suas
pequenas “totalidades intotalizáveis”, cada um trabalha também pela construção da
“totalidade intotalizável” de todos os outros, num infinito movimento de devir
tecnológico.
Assim, o espaço virtual da Internet (ciberespaço) aparece não somente como
um novo e recriado espaço público, explorando novas formas de opinião pública,
mas também como um instrumento para a constante recriação de cada um dos que
dele participa. Ou melhor, de cada um dos híbridos homem-computador ou Noé-
arca, decorrentes da cibercultura. Assim como rapidamente pode recriar e
ressignificar práticas, valores, moralidades, pudores, regimes de vergonha. E, fator
289
A noção de agenciamento sócio-técnico individual é uma simplificação analítica (leva em conta
apenas o homem e a máquina através da qual se conecta à Internet computador, telefone, palm
top...), que ignora em grande parte a complexidade estrutural imprescindível à navegação (modem,
cabeamento, servidor, satélites, etc.).
290
Antes do dilúvio, Noé foi chamado a reconstruir, dentro do microcosmo de sua Arca, uma
totalidade destinada a constituir a totalidade do macrocosmo que surgiria depois. E se ao mesmo
tempo Noé opera uma salvação, conservando aqueles que prosseguirão vivendo no mundo pós-dilúvio,
opera também um extermínio, pois escolhe também aqueles que, tendo seu ingresso na Arca vetado,
estariam fadados a perecer. Para garantir a condição hermética dessa totalidade, Jeová tranca a Arca
por fora (Gênesis 7, 16), só reabrindo-a após estar pousada no topo do monte Ararat, para reconstruir
assim o mundo tendo por base o microcosmo conservado por Noé.
277
primordial, a superabundância de informações, dentre as quais destaco as
imagens, cerne do presente trabalho, não pára de estabelecer novas maneiras de
relacionarmo-nos com elas, que se não são mais o que eram, têm tudo para em
breve não serem mais o que são.
No que diz respeito particularmente às imagens de flagrante, diferenças
essenciais entre os dois contextos sistemas de videovigilância e Internet
merecem também destaque. Ao contrário das imagens captadas pelas câmeras de
monitoramento policiais, que só existem efetivamente na relação com o vigilante, na
constituição do híbrido homem-câmera, no YouTube, os vídeos têm existência
assegurada. Ao serem carregados (ou uploadados), adquirem uma autonomia
relativa, passando a não estar em nenhum lugar específico, mas a estar
potencialmente em qualquer lugar. São imagens já consolidadas, já captadas, vistas
e transformadas em vídeos. Em sua maioria foram capturadas por pessoas
munidas de câmeras, e não de câmeras fixas colocadas em determinados pontos a
serem vigiados.
Entretanto - fator que mais nos importa aqui - as imagens são assistidas de
maneiras diferentes nos dois contextos. Enquanto para os vigilantes são apenas
imagens, e seu trabalho é olhá-las, para os usuários do YouTube surgem como
vídeos, e vê-los é seu prazer. Quando esses vídeos se constituem essencialmente de
imagens da realidade enquanto acontece, captadas no melhor estilo “mosca na
parede”
291
as câmeras de vigilância constituiriam um de seus exemplos mais
291
Definição do mecanismo de filmagem de Robert Drew, documentarista e ícone da vertente
americana do cinema-verdade, que consistia na eliminação ao máximo da presença da mera na
filmagem, se possível não se fazendo absolutamente notar.
278
radicais
292
- os usuários que participam de sua construção se convertem não em
vigilantes, como os responsáveis pelas câmeras de segurança, mas em voyeurs
293
.
Esse voyeur digital (no caso o usuário do YouTube), contudo, diferente do
voyeur clássico, sempre olhando pelo buraco da fechadura ou por janelas e cortinas
entreabertas, não precisa se esconder, nem se limita a ver o que o acaso, ou a
proximidade física, o permite. A tela do computador se torna um passaporte para
milhões de fechaduras e janelas, penetrando vestiários, cabine de roupas em lojas,
alcovas onde câmeras escondidas gravam cenas da intimidade, seguindo pernas na
rua, biquínis na praia, enfim, uma infinidade de situações. Até mesmo imagens
extraídas de câmeras de segurança. O site reúne, separa, classifica milhões de
flagras da realidade, captados em imagens e disponibilizados para todos que
quiserem ver.
Estas (novas) práticas, apropriações e discursos imagéticos contemporâneos,
ao invés de colaborarem para a emergência de um controle totalitário, disciplinador
e intrusivo, como supunham os mais alarmistas, tiveram por conseqüência uma
transformação bem mais profunda. A possibilidade quase ilimitada de produção de
imagens muda radicalmente a própria imagem, mesmo aquela gerada para
controlar ou a que incidentalmente pode fa-lo. Na metrópole, a quantidade de
imagens de segurança acaba por diluir o controle, ocorrendo um gradativo
desinteresse por pequenos flagras, crimes ou incivilidades menores, que ―não
dariam em nada mesmo‖. E como se ao longo da história da representação
pictográfica, assim como da própria “moralidade ocidental”, as imagens com o
292
As câmeras (e cinegrafistas) escondidos são outra possível radicalização da idéia.
293
É importante, entretanto, notar que vigilante e voyeur não são diferentes facetas de um indivíduo,
mas se desfazem, se misturam e se recombinam de diversas formas na sua complexa e contínua
constituição. Voyeur e vigilante existem de forma separada como tipos ideais. Estabelecem, em
teoria, diferentes formas de se olhar; na prática, apenas diferentes contextos nos quais o olhar se
insere. Nada impede que o voyeur vigie e que o vigilante fetichize.
279
tempo vão se tornando mais ou menos chocantes
294
e interessantes. Se os
camerafones contribuem para a aceleração desse processo de transformação,
também provocam um “esvaziamento relativo” das imagens: para cada imagem de
vigilância amadora que alcançou alguma notoriedade, muitos milhões foram, sem
dúvida, produzidas e fadadas à não publicização, permanecendo essencialmente
não-vistas. A compulsão imagética contemporânea e a facilidade de apresentação
fornecida pelo ciberespaço configuram um contexto superexpositório, que se
assemelha ao quadro da vida mental do habitante da metrópole‖, descrito por
Simmel (1979), cuja ―intensificação dos estímulos nervosos‖ obrigava os indivíduos a
uma apreensão do mundo mais “indiferente”, “impessoal”, desenvolvendo, na maior
parte do tempo, uma ―atitude blasé‖. As imagens contemporaneamente são, na
maior parte das vezes, vistas com “olhar bla”, de forma apressada e pouco
aprofundada. Efeito da incrível intensidade dos fluxos, de imagens e de estímulos
nervosos as quais estamos submetidos e nos submetemos constantemente.
V.6 - Nativos e imigrantes: exibicionismo como categoria de acusação
Essas capacidades criativas e participativas, assim como os meios de
“navegação de cada arca”, porém, não estão distribuídas de modo equitativo,
havendo grandes disparidades de acesso às plataformas e tecnologias, e também de
conhecimento. No primeiro caso trata-se em grande parte dos famosos excluídos
digitais, especialmente por razões econômicas, mas também por restrições relativas
à censura (por exemplo, China, Coréia do Norte e Cuba)
295
ou a isolamento
294
Exemplos óbvios são as revistas de nu diante do surgimento da Internet, com um acesso muito
maior e simples à nudez e à pornografia. E materiais como “os catecismos” de Carlos Zéfiro tornam-se,
definitivamente (ou não?) fetiches saudosistas e retrôs de colecionador, sendo difícil imaginar que hoje
pudessem causar escândalo, ou movimentar um mercado negro.
295
Vale lembrar que nesses casos não uma exclusão, mas uma inclusão controlada, ou uma
tentativa de controlar a inclusão.
280
geográfico (locais onde não há a estrutura material necessária para o acesso à rede).
Embora tais limitações se imponham a parte não negligenciável da população
mundial, os recursos digitais e da Internet estão cada vez disponíveis a mais
pessoas e lugares, com o barateamento dos mediadores técnicos, a popularização
dos cibercafés e lan houses
296
ou programas oficiais ou privados de inclusão
tecnológica de comunidades tradicionais
297
.
Contudo, grandes disparidades também são encontradas no seio de grupos e
classes sociais onde o acesso à Internet faz parte do repertório técnico cotidiano.
Para dar conta daquele que talvez seja o mais evidente fator de desigualdade, a
questão geracional, Prensky (2001) recorre a uma distinção (parcialmente)
metafórica entre nativos e imigrantes digitais
298
. Os primeiros são aqueles nascidos
a partir da década de 1990
299
, quando já estava em pleno curso a “revolução
digital”, e em cuja socialização o contato com essas novas tecnologias foi
incorporada prática e culturalmente, crescendo como ―falantes nativos‖ da
linguagem digital, estando acostumados a receber informações de modo realmente
rápido‖, ―preferindo acesso aleatório
300
(como o hipertexto)‖ e ―funcionando melhor
quando conectados em rede‖ (Prensky, 2001: 2).
296
No Brasil isso pode ser observado sem grandes dificuldades, tanto em viagens pelo interior quanto
nas grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, além da popularização sem precedentes de
sites de relacionamento como o Orkut, programas de bate-papo (MSN, ICQ) e do próprio YouTube
entre as classes populares (Pereira, 2008). Em outros países pobres e com acesso mais reduzido à
tecnologia, tais locais de uso coletivo de computadores e da Internet também podem ser encontrados e
têm grande importância na sociabilidade. Ver Miller & Slater (2004) para o caso de Trinidad e Tobago.
297
Ver, por exemplo, De Largy Healy (2004).
298
Nativo é usado em relação a estrangeiro ou imigrante, e não a etnógrafo, como é mais habitual nos
discursos e textos antropológicos.
299
Para Gradim (2009), no entanto, os nativos digitais seriam aqueles nascidos após 1982, que teriam
conhecido a Internet e tecnologia digital a partir do início da adolescência. Não concordo, porém, com
essa classificação, por esvaziar a ligação essencial entre nativo e nascimento. Aqueles que
nasceram na era digital, não chegaram a conhecer o mundo anterior a ela, logo têm diferenças muito
mais significativas do que aqueles que passaram sua infância em um mundo desconectado, tendo
posteriormente conhecido a Internet e suas possibilidades (apoio esse raciocínio em minha própria
experiência nascido em 1980, sinto-me muito mais consciente das mudanças e particularidades da
revolução digital do que aqueles que nasceram dez anos depois).
300
Random acces‖.
281
Hartley compara a situação com outra diferenciação geracional ocorrida
pouco mais de um século antes:
Os novos alunos que estão entrando agora no colégio aqueles que io se
aposentar por volta de 2060 se parecem quase como uma espécie diferente
dos modernistas que espelhavam a imagem da indústria. Claramente, os
adolescentes não vêem os computadores como tecnologia. É como se tivessem
desenvolvido uma habilidade inata para mensagens de texto, uso de iPods,
videogames e comportamento multitarefas em plataformas múltiplas (Hartley,
2009; 169-179).
Os ―imigrantes digitais‖ são definidos por Prensky como aqueles que
presenciaram as mudanças da revolão digital, tendo sido socializados e se
recordando de um mundo pré-Internet e camerafones:
Mesmo se aprendem uns melhor que outros a se adaptar a seu ambiente,
conservam sempre, em certa medida, o seu “sotaque”, ou seja, seu pé no
passado (...). Os que hoje são mais velhos foram “socializados” diferentemente
de seus filhos, e agora estão em processo de aprender uma nova língua
(Prensky, 2001: 2).
E, como no aprendizado de qualquer língua, quanto mais cedo (em idade) é
realizado, melhores e mais ligeiros são os resultados. Essas diferenças entre nativos
e imigrantes digitais se faz sentir de múltiplas maneiras, e não apenas através do
manuseio e exploração das ferramentas tecnológicas. Ser fotografado, filmado ou ter
sua imagem exposta são experiências que sofreram transformações radicais nos
últimos quinze anos. E são mudaas cujo entendimento nem sempre é óbvio, pois
na maior parte das vezes não é levado em conta o caráter fluido e metamórfico das
imagens e, principalmente, das relações que estabelecemos com elas, tanto as
nossas próprias quanto as dos outros. Tomando por base os padrões de moralidade
e pudor que mediavam essas relações anteriormente às transformações em questão,
não é difícil chegar à conclusão de que a geração dos nativos digitais, de forma
inocente, se exporia em excesso, estando com freqüência envolvida em práticas
como o “sexting”
301
, ou sujeita à ação perversa de um dos grandes “monstros
301
Inúmeros são os exemplos desses discursos e temores, entre mìdia e “especialistas”. Alguns
exemplos podem ser encontrados em
282
públicos” da era digital, o pedófilo
302
. A exposição de corpos especialmente
femininos em situações ou trajes sensuais deve ser pensada também como uma
forma de transformar (ou o resultado de uma transformação concretizada) os
regimes de vergonha e visibilidade, por definição sempre em constante mutação
(Koskela, 2004). E quando os processos de produção e difusão dessas imagens são
bem sucedidos, elas se tornam instrumentos de poder sobre aqueles que olham, e
não apenas formas de capturar a persona retratada (Taussig, 1993; Freedberg,
1989). Ao invés de submeter esta última à vergonha pública da exibição pela
Internet, podem “enfeitiçar” a audiência, os voyeurs digitais, e esse aspecto da
relação intermediada pela imagem pode ser mais significativo para os envolvidos do
que os supostos malefícios da exposição pessoal erotizada.
Para algumas pessoas que se debruçaram sobre o assunto
303
, essas novas
práticas imagéticas, confessionais e comportamentais de cunho sexualizado,
representam uma continuidade singularizada pelas apropriações contemporâneas
dos meios técnicos em relação à “revolução sexual” que marcou a segunda metade
do século XX. E, da mesma forma que esta, vem sendo incompreendida e rejeitada
com veemência pelas gerações dos pais e avós. E não custa lembrar, como faz
Manach (2010), que a maioria dos crimes sexuais ocorre não com estranhos e por
intermédio da Internet - apesar da grande visibilidade de tais casos mas no
ambiente familiar, com pessoas próximas. As relações com as imagens, vistas como
imorais e pornográficas por muitos adultos, podem ter sentido bastante diferente
para os nativos digitais, nascidos num contexto em que a captação das imagens
está imiscuída de forma intensa na experiência social (presencial ou não) cotidiana.
http://oglobo.globo.com/tecnologia/mat/2009/05/25/americano-prega-consciencia-sobre-perigos-
do-mau-uso-da-tecnologia-756015422.asp,
302
É bom salientar que a pedofilia é um problema real e não pretendo, longe disso, diminuir sua
importância, apenas lembrar que muitas vezes os adolescentes são vistos como menos conscientes de
seus atos e mais vulneráveis do que realmente o são.
303
Vink (2009), Margulis (2009) ou Maya Ganesh (2009), por exemplo.
283
Que muitas dessas imagens sejam interpretadas de forma erótica, não parece
constituir uma ameaça tão grave quanto gostam de dizer os adultos: a sensualidade
pode ser vivida com menos culpa e vergonha
304
, reduzindo então de forma
significativa os efeitos nocivos que a exposição das imagens pessoais pudesse vir a
ter.
Os adolescentes que utilizam a lógica das telas para ser vistos estão
construindo um novo código de conduta. Similar talvez, guardadas as
proporções, ao boom da minissaia nos anos 1960, que remou contra a
corrente dos critérios puritanos de sua época. Antes lúdicos que
pornográficos, munidos de forte cultura tecnológica e nascidos sob o hábito
de ser fotografados, inclusive quando estavam no útero de suas mães (quando
as primeiras ecografias fizeram furor, em meados dos anos 1990), estes
adolescentes vivem” o fato de aparecer na Internet com toda a naturalidade.
Indiferentes ao preconceito adulto, seja de que ordem for, sua ilusão consiste
em receber a maior quantidade de comentários de seus pares (...)
Não os preocupa o voyeurismo ansioso daqueles que gostam de consumir
imagens de corpos jovens, e muito menos que alguém, sempre à espreita e
aparentemente pronto a localizá-los e causar-lhes algum mal, se excite
observando-os (Margulis, 2009).
O pretenso exibicionismo juvenil, apontado como um misto de inocência e
irresponsabilidade, partiria em grande parte de uma visão estereotipada e marcada
pela desconfiança generalizada em relação ao próprio modelo de interconexão e
circulação “livre” de dados e informações, muitas delas pessoais. Além do temor
provocado pela incompreensão de um universo sócio-técnico que cada vez mais lhes
escapa do controle, ao mesmo tempo em que é dominado de forma natural pelos
nativos digitais, seus filhos e netos. O exibicionismo, que como vimos está longe
de ser um conceito objetivo a não ser em casos extremos
305
-, pode e deve em tais
casos ser visto como uma categoria de acusação, rotulando determinados
comportamentos e regimes de vergonha como sexualmente desviantes ou anormais
(Foucault, 2006). Como diz Becker (1985), tais rótulos o sempre relacionais, e
oriundos de sistemas de acusação, revelando por vezes tanto sobre acusadores
304
http://www.youtube.com/watch?v=Ci59DHuGw_s&feature=related (Duas novinhas dançando
funk), http://www.xvideos.com/video30181/dancing_funk_public (Dance funk public).
305
http://www.xvideos.com/video263611/hot_maria_naked_in_public (Hot Maria Naked in Public),
http://www.xvideos.com/video223613/flash_in_public_bikova_3 (Flash in Public - bikova 3).
284
quanto sobre os acusados. Isso tange tanto as questões relativas à moralidade e
pornografia (pedofilia), quanto ao controle e à vigilância. É possível que, como
aponta Boyd (2008), o excesso de informações pessoais em circulação, a
superexposição imagética e a publicização de conversas através de blogs e fotologs,
não seja simplesmente visto como uma questão para os nativos digitais
306
, e que
isso pode significar tão somente que deixarão de ser uma questão tout court, a não
ser para os mais arraigados imigrantes digitais. E como a superexposição vem
tornando-se regra, são desenvolvidos mecanismos para lidar de forma adequada
com ela, desde o falseamento proposital de informações (muitas vezes de contornos
surrealistas
307
) a a simples aceitação do caráter superexpositório do (cada vez
mais) cyborg homem-máquina da cibercultura.
As mudanças no tratamento judicial que vêm ocorrendo em casos de sexting,
nos Estados Unidos
308
, nos ajudam a vislumbrar e melhor entender essas supostas
transformações nos regimes de vergonha e visibilidade. Em resposta a alguns casos
de compartilhamento de imagens sensuais e pornográficas, que supostamente
culminaram no suicídio dos jovens expostos, a justiça norte-americana vinha
tratando com pulso firme, como diria Heleno, os casos de sexting, em especial
aqueles que incluíam menores de idade, classificados como pornografia infantil. Os
acusados passavam a figurar na temida lista de criminosos e predadores sexuais
(National Sex Offenders List)
309
, cujos dados pessoais e endereço estão disponíveis
306
Não apenas para eles, mas também para muitos adultos que se inseriram e contribuem
constantemente com sites relacionais como Orkut, MySpace, YouTube e Facebook.
307
Sobre uma discussão mais detalhada do assunto, ver a tese de Danah Boyd (2008), em especial o
quarto capìtulo “Writing Oneself into Being”.
308
Informações retiradas de
http://www.nytimes.com/2010/03/21/us/21sexting.html?pagewanted=2&sq=sexting&st=cse&scp=1,
reportagem do New York Times, 20 de março de 2010: Rethinking Sex Offender Laws for Youth
Texting”, de Tawar Lewin.).
309
http://www.nsopw.gov/.
285
na Internet para que todos possam estar precavidos contra a presença de um deles
em sua vizinhança
310
.
No entanto, um fator vinha sendo considerado problemático nesse proceder
jurídico: a maior parte das pessoas que estavam sendo processadas e incluídas na
lista eram também menores de idade. Ficou evidente a incongruência desse
tratamento quando os próprios menores cujo corpo era capturado e divulgado como
imagem começaram a ser acusados de sexual offenders or predators‖, e incluídas
nesse registro geral nacional. As próprias “crianças” que em tese estavam sendo
protegidas passavam a estar marcadas com a inclusão em uma das mais
estigmatizantes e comprometedoras listas públicas disponíveis na web, figurando ao
lado de pedófilos e estupradores. Em março de 2010, porém, pela primeira vez foi
aceito um recurso em corte federal anulando uma sentença contra três garotas de
12-13 anos cujas fotos “em uma festa do pijama” foram descobertas, pela direção
da escola, nos telefones celulares de alguns colegas de turma, e que foram
acusadas de disseminar pornografia infantil
311
. A tendência é que tenha sido criada
uma jurisprudência para que, a partir de então, busquem-se novas maneiras,
menos incongruentes e prejudiciais aos menores envolvidos, muitas vezes como
“vìtimas”, de lidar com casos semelhantes.
A lei sobre pornografia infantil era para proteger crianças de pedófilos (...) Não
faz então nenhum sentido que em muitas situações de sexting, o pornógrafo e
a vítima sejam a mesma pessoa. (...) Ninguém discute que o sexting pode ter
conseqüências ruins, e nenhum pai quer seus filhos enviando suas imagens
sem roupa. Mas e se tivermos milhares de crianças e jovens fazendo isso,
vamos criminalizar a todos eles? (Lewin, 2010).
Fica claro não apenas o despreparo das leis vigentes para lidar com essas
novas práticas, mas também que essas questões ainda são tratadas sob uma
perspectiva que não leva em conta, não compreende o alcance ou, simplesmente,
310
http://www.familywatchdog.us/.
311
O detalhe que mostra o exagero e clima de intolerância e puritanismo que cerca a questão, é que
em nenhuma das fotos as meninas estavam despidas ou em qualquer atividade sexual, apenas
enroladas em toalhas de banho ou trajando roupas de baixo.
286
tenta lutar contra as mudanças na vergonha, no exibir-se e no próprio estatuto das
imagens. Os que continuarem insistindo nisso, correm o risco de, rapidamente,
soarem como os “moralistas” que outrora, em nome da decência e da “famìlia”,
protestavam contra a mini-saia, o divórcio ou a pílula anticoncepcional.
Da mesma forma, o medo do controle disciplinar e da invasão de privacidade,
da maneira como é manifesto pelos militantes da anti-vigilância apresentados no
primeiro capítulo, refletiriam preocupações de outrora, sustentadas por alguns dos
remanescentes que, ao ouvirem falar de Big Brother, pensam antes em Orwell do
que no programa televisivo. O mundo pós-apocalíptico e totalitário descrito pelo
romancista e jornalista britânico em 1948, tende a se tornar uma curiosidade
erudita da proto-história dos reality shows. Se a função de aumento da segurança
reputada às câmeras suplanta o suposto acréscimo de vigilância nos espaços
públicos e privados de uso coletivo, a possibilidade de ter sua intimidade violada
parece menos assustadora do que pode parecer excitante ter sua personalidade
admirada. Além do próprio fato de comunicar especialmente mostrar e ver -, que
vem ganhando centralidade nas relações e no “estar no mundo” contemporâneo, e
que “naturaliza” essas práticas a ponto de desproblematizá-las.
V.7 Aluga-se
Outro fator, que também pode ser pensado através do YouTube, revela um
aspecto que igualmente influi nas transformações nos regimes de vergonha e
visibilidade. E, dessa vez, por razões, como veremos, mais pragmáticas.
Quando a Google Inc. comprou o YouTube por mais de 1 bilhão e meio de
dólares, em 2006, seus executivos ainda não tinham idéia do que fazer com o site,
apesar da intuição de que poderiam, com ele, obter grandes lucros. O processo de
287
decisão foi lento, diante da necessidade percebida de equilibrar os fatores que
conferiam sua especificidade, sua aura, que é a liberdade de participação, e sempre
sob o risco de, se mercantilizá-lo em excesso, perder as características de
convergência e cooperação, responsáveis por boa parte de sua popularidade.
Complicadas questões em torno, principalmente, de copyright e participação nos
lucros, puderam ser minimamente sanadas e dois anos após sua compra passou a
operar um sistema de publicidade anexada às páginas ou vídeos, onde lucros
proporcionais às visualizações são divididos entre a Google e aqueles que tiverem
postado o vídeo no YouTube
312
.
Assim, ser muito visto, além do empowering exhibitionism (Koskela, 2004) do
qual falamos, também pode gerar retorno financeiro de modo relativamente simples
para essas pessoas vistas. Ser, ou parecer, “interessante” pode, ademais o poder
simbólico que confere, se transformar em rentável negócio. Essas propagandas
podem ser transpostas para outras páginas (blogs, flogs, sites de relacionamento,
twitter, etc.), levando consigo a lógica da “mercantilização da popularidade”. E
expor-se sensual ou sexualmente, pode ser das maneiras mais fáceis e certas de
angariar o olhar alheio, de um outro que é desconhecido, distante e invisível um
outro que pode ser virtualmente qualquer um, e todos.
Isso nos mostra algumas coisas: a primeira delas é que a cultura participativa
na Internet não pode ser vista e tratada romanticamente como uma experiência
dinâmica e desinteressada da convergência criativa de pessoas e meios técnicos em
constante interação; ela também tem uma inegável dimensão mercadológica. Mas
igualmente, e talvez isso seja o mais interessante, não se constitui em uma
experiência elaborada ou conduzida pelo mercado. Para que esse pudesse ser
introduzido nesse experimento coletivo, foi preciso, não sem dificuldades,
312
Para isso baste ter postado um vídeo popular (com muitas visualizações), e criar uma conta
(gratuitamente) no gerenciador de publicidades da própria empresa (Google AdSense).
288
compreender seu funcionamento e elaborar um meio de inserir-se “discretamente”,
sem descaracterizar seu modo bem-sucedido de funcionamento. E passa a gerar um
tipo diferente de renda, onde nenhum produto, força de trabalho ou serviço é
diretamente produzido e comercializado, apenas espaços o são. Tanto
comercializados quanto produzidos, pois estes não são sicos, mas ciberespaços,
que podem ser (re)criados infinitamente por, em tese, qualquer um. O que os
diferencia e confere valor - é o número de visitas que cada um deles recebe. De
fato, então, não se alugam espaços, mas visibilidades.
V.8 - O que mostram os flagrantes?
Cada época no Ocidente teve sua maneira de ler as imagens da
Virgem Maria e de Cristo, como teve sua maneira de
estilizá-las. Estas leituras nos dizem mais sobre a época
considerada do que sobre os quadros.
São tanto sintomas quanto análises (Debray, 1992: 58).
Como foi dito anteriormente, os flagrantes podem ser de diversos tipos, e
mostrar situações bastante diferentes. A disparidade entre essas imagens que
circulam me leva a propor uma extensão do conceito de Fernanda Bruno (2008), de
uma estética do flagrante no singular, para estéticas do flagrante, no plural. Mesmo
que estas se confundam e interpenetrem na formação dos imaginários sobre
vigilância, voyeurismo e sociedades de controle ou do espetáculo. Sendo assim,
identifico em caráter típico ideal (Weber, 1982) quatro categorias de imagens de
flagrante mais comumente encontradas na televisão e também na web (lembrando
sempre que parte considerável das imagens que vão ao ar na TV é posteriormente
inserida também na Internet).
289
Vejamos então quais são elas e algumas de suas características, para melhor
compreendermos como e até que ponto constituem e o constituídas por e através
desses imaginários.
V.8.1 - A retroalimentação celebridades-paparazzi
A profissão de paparazzo, fotógrafo ou cinegrafista informal de celebridades,
assim com a de operador de câmera de vigilância, é uma das que mais se
desenvolveu em decorrência das possibilidades imagéticas da revolão digital
313
.
Nesse caso particular, mais do que a capacidade de captação, são as características
contemporâneas de sua reprodutibilidade técnica (Benjamin, 1975) que têm maior
influência. Uma imagem pode em pouco tempo ser negociada com a imprensa em
especial a imprensa digital e ser colocada no ciberespaço. A facilidade com que
pode ser digitalizada e colocada na Internet acaba com o comércio de imagens
baseado na exploração exclusiva de seus direitos, padrão que durante décadas
norteou a relação entre fotógrafos e imprensa impressa. Agora, apenas a primeira
divulgação pode ser negociada e controlada: uma vez na rede, elas ganham vida
independente de seu produtor e divulgador oficial, são gravadas e recolocadas por
usuários em sites, blogs, flogs, ou em comunidades de compartilhamento de vídeos,
como o YouTube.
E muitas vezes os próprios paparazzi mantêm sites ou “espaços próprios” em
comunidades virtuais onde publicam e fazem circular “seu trabalho”
314
. Trabalho
este que carrega fortes elementos de vigilância, seja realizada sobre pessoas e seus
espaços privados, ou sobre determinados espaços públicos com considerável
313
Vale lembrar que em La Dolce Vita, de Federico Fellini (1960), é possível um personagem
chamado apenas de Paparazzo, interpretado pelo ator Walter Santesso, demonstrando que tal
profissão é talvez tão antiga quanto a imprensa de fofocas e celebridades.
314
http://www.mrpaparazzi.com/, http://www.youtube.com/user/mrpaparazziuk,
http://www.youtube.com/user/PaparazziSA#p/u.
290
freqüência de celebridades
315
, a “cara-metade” por excelência do paparazzo - muitas
vezes em momentos de autocontrole (Elias, 1993) reduzido
316
. No primeiro caso,
concentram-se sobre indivíduos de um tipo específico, propensos ou afeitos a
“bons” flagrantes
317
. Quando a vigília é realizada sobre espaços coletivos, não
usualmente um alvo em especial.
Se para algumas das pessoas que têm a imagem captada por paparazzi, estes
representam um estorvo
318
, outras desenvolvem com eles uma relação simbiótica,
da qual ambos saem fortalecidos: quem precisa de exposição constante para se
manter famoso e trabalhando
319
e quem trabalha expondo imagens de famosos. Não
são raras histórias dando conta de celebridades que contratam paparazzi que
acabam fazendo as vezes de assessores de imprensa, ao tratar da circulação das
imagens em busca da necessária divulgação midiática. São armados “falsos
flagrantes” ou situações de espontaneidade forjada, num processo de encenação da
relação tradicional entre o “caçador de imagens” e sua “presa”.
Apesar da visibilidade de seu trabalho e da força do personagem paparazzo,
deve ser salientado que a vigilância que estes realizam majoritariamente recai sobre
315
Como certos trechos da praia (http://www.youtube.com/watch?v=Iy_SQ-e1Paw - PAPARAZZO
FLAGRA EX-RONALDINHA NA PRAIA - Atualíssima), aeroportos (http://www.youtube.com/watch?v=0XEz-
jww8AE - João Gordo soco em paparazzo), shoppings
(http://www.youtube.com/watch?v=XUsvbjMOhP4 - Carolina Dieckmann flagrada em momento fofo com o
filho José - HD), casas noturnas da moda (http://www.youtube.com/watch?v=apx91au940A - Gisele
Bundchen atacada por paparazzi).
316
http://www.youtube.com/watch?v=VDXih9qNmes&feature=related (cabeção da malhação: perdeu
a linha!).
317
Exemplos bastante conhecidos são os da cantora inglesa Amy Winehouse
http://www.youtube.com/view_play_list?p=D6F37D59D6C34547&search_query=paparazzi+amy e da
milionária norte-americana Paris Hilton
http://www.youtube.com/view_play_list?p=68F4CC33B1072515&search_query=paparazzi+paris+hilto
n.
318
http://www.youtube.com/watch?v=ePepd8snq7c (Luana Piovani & paparazzo).
319
http://www.youtube.com/watch?v=LSU0ZKFAOHU (Nana Gouvêa gostosa curtindo praia no Rio Tv
fama)
e http://www.youtube.com/watch?v=NtQCMUw4tB8&feature=related (Nicole Bahls - Praia - Site TV
Fama).
.
291
figuras públicas, podendo apenas colateralmente incluir pessoas que as
acompanham.
V.8.2 - Imagens (anti)criminais e de denúncia
A estética do flagrante também é alimentada por imagens que têm como
objetivo declarado algo mais do que abastecer a imprensa de fofoca e
sensacionalista, como no caso dos paparazzi. o imagens apresentadas
principalmente por noticiários e de teor denuncista, visando fornecer evidências
materiais de culpa
320
ou clamar por uma cruzada moral
321
(Becker, 1985). o
flagras que na maior parte das vezes não decorrem de vigilância, mas do recurso a
uma câmera oculta
322
gravando interações nas quais o “captador-denunciador”
toma parte ativamente, conduzindo de forma consciente a “vìtima” a se auto-
incriminar (como ocorre normalmente em casos de suborno ou de serviços
oferecidos de forma ilegal), ou em situações que, pela recorrência, foi dada ao
cinegrafista amador a idéia e a possibilidade prática do flagra
323
. E por vezes são
imagens comprometedoras que simplesmente ―caíram em mãos erradas‖
324
.
Outra possibilidade é o de um flagrante acidental como o do espancamento
de Rodney King, que, numa demonstração do caráter fluido e em constante
transformação dos agenciamentos sócio-técnicos, teve influência na criação da
utilização planejada e em múltiplos contextos de câmeras de vídeo como
instrumento de resistência e denúncia, como aponta Henry Jenkins (2009: 158-
320
http://www.youtube.com/watch?v=U3DoHCx0TUw&feature=related (Prudente esconde dinheiro na
meia).
321
http://www.youtube.com/watch?v=K5numKlskqI (Traficantes da Ladeira dos Tabajaras).
322
http://www.youtube.com/watch?v=DGhMpu_Rdzo (Tentativa de suborno em Teresina).
323
http://www.youtube.com/watch?v=f1ukwB_8tXE&feature=related (Aluno registra venda e consumo
de maconha na Universidade Federal Rural de PE)
. Para uma versão bem-humorada das mesmas cenas, reapropriadas, ver
http://www.youtube.com/watch?v=TBnA4Jrw7uo&feature=related (Reportagem flagra consumo livre de
drogas no campus da UFRPE Vídeos Polícia Tráfico).
324
http://www.youtube.com/watch?v=80qcVucc_BY&feature=related (Vídeo da Festa do PCC).
292
159). Inspirado na repercussão do caso, o músico Peter Gabriel funda a organização
de direitos humanos Witness,
como meio de expandir o acesso à tecnologia de produção de vídeos,
permitindo que pessoas oprimidas no mundo todo pudessem responder ao
poder imposto. Como explica o ativista da Witness, Sam Gregory (Jenkins,
2008), as mudanças na infraestrutura técnica, incluindo o surgimento do
YouTube, expandiram dramaticamente a capacidade de resposta da
organização aos abusos contra os direitos humanos: “(...) E nos últimos três
anos vimos as possibilidades de aumento de colaborações na edição e
produção, distribuição on-line e para filmagem mais ágil e abrangente tudo
isso facilitado por uma juventude digitalmente alfabetizada, pela tecnologia
celular com capacidade de fotografar e gerar vídeos e por novas ferramentas
on-line‖.
V.8.3 - Espetáculos da realidade e da fofoca
Em paralelo, observamos a consolidação de uma tendência nas emissões
televisivas em focar sobre a “realidade”. Não que esta estivesse ausente da grade
programacional brasileira, mas o novo formato estabelece uma clara diferença tanto
em relação à estrutura narrativa dos programas declaradamente ficcionais, por um
lado, como filmes, novelas, seriados etc., e por outro em relação aos que
costumavam se apropriar da “realidade”, como, por exemplo, noticiários,
reportagens e minisséries históricas
325
. O que poderia ser chamado de “crise da
ficção” ou “estética da realidade” consistiria não no abandono da primeira em
detrimento da segunda, mas em um processo muito mais intricado de hibridização,
de desaparecimento/deslocamento das fronteiras entre “realidade” e “ficção”, ao
menos da maneira como eram postas. É provável que esteja ocorrendo uma
evidencialização da incongruência e artificialidade dessa divisão, do fato de que ela
nunca ocorreu “realmente”. Voltarei a esse ponto posteriormente.
325
Mesmo essa divisão é muito incerta e cheia de “buracos”, como mostram os textos de Alzira Alves
de Abreu, sobre o jornalismo econômico durante a ditadura militar (Abreu, 2003), e o de Mônica
Almeida Kornis, sobre a minissérie Anos Dourados (Kornis, 2003). Realidade e ficção se interconectam,
muitas vezes dentro de um mesmo discurso potico.
293
Mesmo que alguns desses programas de “realidade” se ocupem de famosos
(celebridades), a maior parte deles tem como foco indivíduos comuns, que, ao
menos teoricamente, não difeririam dos telespectadores médios. O exemplo mais
conhecido é o Big Brother, programa no qual pessoas inicialmente não famosas e
logo transformadas em grandes celebridades nacionais - são confinadas por longos
períodos em uma casa e têm seu cotidiano inteiramente filmado por dezenas de
câmeras, que podem ser acessadas 24 horas ao dia por assinantes. Além disso,
uma seleção de imagens (montadas, naturalmente) é veiculada diariamente na TV
aberta, num processo de criação narrativa parcialmente espontânea e coletiva (os
“roteiros” dependem de muitas pessoas, inclusive aquelas que interagem
diretamente, na casa, diante das câmeras).
A proliferação de reality shows é um dos principais fatores responsáveis pelo
fortalecimento das estéticas do flagrante e da vigilância. A combinação entre esta e
diversas provações (épreuves) práticas e psicológicas, tem abertamente o intuito de
provocar a ocorrência de flagrantes, clímax das emissões
326
. Apesar de
representarem de forma apenas marginal e peculiar a realidade que estampam no
nome, esses programas têm influência decisiva nas representações socialmente
difundidas do videomonitoramento. Fora dos círculos acadêmicos, quando se
menciona uma “sociedade do Big Brother” – como percebi através das muitas
conversas que se seguiram ao habitual questionamento a propósito do meu tema de
pesquisa quase sempre é ao programa televisivo, e não ao ditador totalitário, que
se faz referência.
326
Para alguns flagras, ver http://www.youtube.com/watch?v=vXyrsrdOQlk (Flagra no BBB7
Siririca da Bruna), http://www.youtube.com/watch?v=eVDT6pDY9I8&feature=related (BBB8 Thati
pelada), http://www.youtube.com/watch?v=jZRI1334pGg&feature=related (BBB7- Festa Mexicana - Fani
dança sem (??) calcinha).
.
294
Assim, muitas das representações sobre a vigilância tomam de empréstimo
elementos e características próprias dos reality shows, e completamente
estrangeiras ao videomonitoramento do espaço público. A impossibilidade
praticamente total de construção de narrativas minimamente duráveis e
estruturadas sobre os “monitorados”, além da separação entre som e imagem, típica
das câmeras de segurança, dificultam o bom funcionamento, na videovigilância
policial que acompanhei, de um dos principais motores desse estilo de programas (e
da vigilância que os constituem): a fofoca.
O falar da vida alheia é hábito provavelmente tão antigo quanto a vida em
sociedade, tendo sido objeto de reflexões sócio-antropológicas em contextos e
situações bastante diferentes (Elias & Scotson, 2000; Epstein, 1969; Cardoso,
2005). A fofoca é um dos mais importantes modos de socialização e transmissão de
padrões morais e comportamentais, informações e preconceitos. Além de ser, como
ressaltam os autores que discorrem sobre o tema, uma forma de dizer sobre si
mesmo falando sobre os outros, reforçando sua própria perspectiva como correta,
em consonância ou detrimento com a de quem se fala. E por mais que a ausência
de assunto para se fofocar não constitua dos maiores ou mais corriqueiros
problemas com que se defrontam coletivos humanos, os flagrantes sejam vistos ao
vivo, montados e inseridos na TV aberta, ou reunidos e disponibilizados para a
reprodução e recriação ad infinitum na Internet
327
mostram-se poderosos
catalisadores de atenção e fofoca, maiores indicadores de sucesso e audiência das
emissões.
A videovigilância, na prática, não favorece o bom funcionamento de canais de
fofoca. Mais do que em função da separação entre visão e audição, isso se deve à
impossibilidade de serem criados personagens com um grau mínimo de
327
http://www.youtube.com/watch?v=9R42l9aUmMI (Priscila lokinha que coloquem na garagem
dela).
295
profundidade que provoque interesse e movimente os canais de comunicação.
Entretanto, como não poderia deixar de ser, os locais de trabalho dos operadores
não se encontrava liberto do hábito de fofocar. Mas esta não girava em torno do que
era observado pelas telas de monitoramento, mas das questões práticas e
interacionais do ambiente que partilhavam. Vi e escutei isso em vários momentos:
no CCC enquanto espectador como no “caso do Baba” -, e no 19º BPM, muitas
vezes como interlocutor, um mediador cuja opinião era para eles valiosa
328
. Os
exemplos mais contundentes foram as rusgas entre Nélson e Saulo, e os rumores
que antecederam a notícia do remanejamento.
Apesar de concordar com a importância do (programa) Big Brother na
concepção de um imaginário sobre a videovigilância, divirjo frontalmente de David
Bell quando diz:
Como a reality TV se tornou um elemento proeminente da programação
televisiva, os participantes, realizadores do programa e espectadores passam
a entender a lógica da vigilância através do Big Brother. Ele nos ensina tudo
sobre como se comportar diante de uma câmera sempre vigilante, e sobre o
poder das imagens captadas (flagradas) pelas câmeras. Ele também nos
ensina que ainda é possível, mesmo sob condições de hiper-vigilância
voluntária, se “esquecer” da exposição pública, além de lembrar-nos da
sobrevida eterna das imagens acima de nosso controle websites como o
YouTube estão cheios de clipes de Big Brothers do mundo todo (Bell, 2009:
209).
O Big Brother não nos ensina sobre a relação com as câmeras, e se refere
apenas a uma das múltiplas possibilidades de utilização destas. O contexto de
hiper-vigilância artificialmente armado e mantido, com muito custo e regras (como
o da obrigatoriedade do uso do microfone), dificilmente é repetido em situações
cotidianas de videomonitoramento, e tem por efeito apenas alimentar fantasmas e
medos infundados. Acreditar que programas semelhantes nos ensinem algo sobre a
videovigilância e sobre a relação que pessoas, em contextos práticos, estabelecem
com as câmeras, significa, mais uma vez, incorrer na sobredeterminação técnica.
328
Devo, no entanto, ressaltar que por questões éticas, lhes frustrei as expectativas nesses casos,
tentando me eximir de alimentar os canais de fofoca nativos.
296
Conjunturas completamente diversas que, em razão da presença de um
determinado instrumento técnico, o tidas como semelhantes. Porque, além da
presença das câmeras numa distribuição que em nada lembra a do
videomonitoramento nos espaços públicos nenhum dos outros elementos
encontrados se assemelham. Formam agenciamentos sócio-técnicos completamente
diversos, que têm em comum alguns de seus mediadores, e nada além disso.
V.8.4 - Intimidade (de)flagrada: os flagrantes quentes
Num outro conjunto de imagens, a estética do flagrante é
carregada de uma libido do instante cuja atenção recai sobre o
inesperado e o incomum no fluxo mesmo da vida regular,
ordinária e comum. O gozo do instante não é apenas o do
clique e da captura do agora, já familiar desde a fotografia
instantânea, mas tamm, e talvez até principalmente, o da
distribuição e divulgação imediatas, fazendo do instante
capturado um instante partilhado, ubíquo, conectado. Aqui, os
olhares são mobilizados por um tipo de atenção que visa flagrar
cenas picantes da vida urbana, sacando suas câmeras ágeis
em registrar e distribuir. O flagrante é carregado de um
erotismo e de um voyeurismo que se mesclam a uma atitude
policial e/ou jornalística (Bruno, 2008: 9).
Mesmo se utilizado em diferentes contextos e situações, o termo voyeurismo
possui inegável conotação sexual, se consolidando como das fantasias eróticas mais
conhecidas e reproduzidas culturalmente. A invasão clandestina da privacidade
alheia através de pontos de liminaridade por excelência janelas e buracos de
fechadura -, es presente nos filmes pornográficos, por exemplo, desde seus
primórdios: a olho nu ou formando agenciamentos sócio-técnicos com aparelhos
óticos, como aponta Nuno Abreu
329
(2002).
329
Leite Júnior (2006: 89), ao falar sobre os filmes de sexo explícito produzidos nas duas primeiras
décadas do século XX, ressalta que: ―O caráter de voyeurismo, a intenção de mostrar o que a princípio
está oculto no corpo e nos atos sexuais humanos já é uma constante. Assim, é comum a cena inicial
apresentar lunetas, buracos de fechadura ou binóculos, através dos quais o espectador invade algum
ambiente íntimo com toda a segurança que a distância permite (Abreu, 1996: 45)‖. Ver, por exemplo,
http://www.xvideos.com/video311035/voyeur_en_el_bosque,
http://www.xvideos.com/video270229/fantastic_french_vintage_porn ou
http://www.xvideos.com/video261353/vintage_porn.
297
Em conseqüência, o voyeurismo torna-se o maior temor e como vimos no
capítulo III, mais concreto - relativo à videovigilância: que as câmeras sejam usadas
para invadir espaços privados em busca da captura de flagrantes de cunho
sexualizado - como a própria nudez -, aos quais todos estariam virtualmente
sujeitos. Entretanto, da ampla estética de flagrantes sexuais que se desenvolve
sensivelmente impulsionada pela Internet, apenas uma parte ínfima passa por
câmeras de segurança. A imensa maioria é captada por cinegrafistas amadores,
com câmeras ou telefones portáteis. E algumas das modalidades mais populares,
como os flagras por baixo das saias de mulheres em espaços coletivos
330
, em
provadores de loja
331
ou em banheiros públicos
332
, deixam claro que nem sempre os
flagrantes fixam-se sobre comportamentos exibicionistas, ilegais ou imorais.
Como havia atentado no capítulo anterior, por vezes é bastante tênue a
linha de separação entre o voyeurismo e o exibicionismo tendo como conseqüência
uma constante imiscuidade entre esses dois tipos ideais do erotismo,
complexificando sua classificação, por depender de fatores subjetivos como
intencionalidade e excitação. Além disso, como foi discutido neste mesmo capítulo,
exibicionismo pode, e muitas vezes o é, ser usado como uma categoria de acusação,
como crítica a um comportamento que, ao acusador, aparece como imoral ou
sexualmente ostensivo.
Para compreender melhor o contexto da estética do flagrante em sua
dimensão mais sexualizada, assim como algumas das principais questões
envolvidas nas relações voyeur/exibicionista e invasão/exposição da intimidade, é
de grande valia recorrer a uma breve historicização analítica do que Dovey (2000)
330
Faço uma análise mais cuidadosa do assunto em artigo sobre voyeurismo digital (Cardoso, 2009).
Para um exemplo, ver http://www.youtube.com/watch?v=m4oQuZk6Ll4 (Por baixo da saia).
331
http://www.youtube.com/watch?v=pYjhFEqnSes&feature=related (gostosa trocando de roupa no
provador parte 2).
332
http://www.xvideos.com/video32391/camera_escondida_no_banheiro2.
298
chama de fetiche da realidade
333
(apud Barcan, 2002), e do ganho de centralidade
de um novo par classificatório, organizador da realidade pornô: profissional, de um
lado, e amador (ou caseiro), do outro. O encenado, dirigido e artificial é visto em
oposição ao espontâneo, sincero e real, este sim digno de ser flagrado.
O surgimento de uma estética pornográfica caseira/amadora (homemade
porn), como aponta Ruth Barcan (2002), se consolida na última década do século
XX, mas tem seu impulso inicial alguns anos antes, com a popularização do
sistema de deo VHS
334
, que tornou muito mais simples e barata a produção e
filmagem de cenas de sexo sem a utilização de profissionais (cinegrafistas,
iluminadores, atores, etc), e também sua distribuição. Em suma, com a câmera de
vídeo, as fitas e o videocassete, foram criados novos agenciamentos sócio-técnicos,
que, se mantinham a função anterior (a gravação de cenas pornôs), o fazia com
número bem mais reduzido de mediadores humanos ou não
335
, transformando a
estrutura dos filmes e, de forma mais lenta, criando novas opções e formas
estéticas. Essa inovação tecnológica teve grande impacto na indústria
cinematográfica “para adultos”, provocando a decadência dos grandes realizadores e
o aparecimento e sucesso de uma miríade de videoproduções de orçamento
reduzido
336
, e mais fácil distribuição, feita através de lojas especializadas (sex-
shops), envios postais e videolocadoras (O'Toole, 1999; Abreu, 1996). E, a partir da
década seguinte, outras duas inovações sócio-técnicas radicalizaram ainda mais
essas mudanças, incrementando ainda outros importantes fatores: a tecnologia
digital de captura de imagens e a Internet.
333
"Um fetiche é um substituto de algo que o somos capazes de captar inteiramente. O argumento de
Dovey é que as imagens da realidade podem nos dar a iluo de que temos algum controle sobre a
realidade inapreensível; a reality porn, então, erotiza a própria idéia de realidade" (Barcan, 2002).
334
Lançado no mercado pela JVC em 1976, tendo chegado ao Brasil apenas na década de 1980. A
sigla quer dizer Video Home System (Sitema de Vídeo Caseiro).
335
Como produtor, roteirista, estúdio de filmagem, iluminador, luzes, donos de cinema, etc.
336
Esse momento é retratado no filme Boogie Nights (1997), de Paul Thomas Anderson. O principal
exemplo do novo modelo é o do ator/diretor/realizador/cinegrafista John Stagliano, criador da série
Buttman.
299
O videocassete alimentou o advento do vídeo pornô feito comercialmente
como uma grande indústria de massa, fazendo-o mais barato, mais acessível
e mais facilmente consumido em casa do que qualquer pornografia
cinematográfica ou as formas domésticas anteriores, como fotografias
caseiras ou filmes em Super-8. (...) A recente explosão do pornô real deve-se à
Internet e a outras tecnologias digitais (como scanners e câmeras digitais),
que permitem que as pessoas enviem imagens de si para o mundo
rapidamente e de forma anônima (Barcan, 2002).
E essa expansão rapidamente gera uma superabundância de imagens
amadoras e caseiras, de pessoas comuns
337
, em situações não roteirizadas e sem
direção, alimentando um vasto ramo de sexo “real”, no qual o voyeurismo e as
imagens de videovigilância representam o grau máximo de “realidade e
espontaneidade”: o fato dos atores envolvidos na atividade sexual o saberem que
estão sendo observados seria a garantia maior de que não estariam atuando. Estar
diante de uma câmera, mais do que ser observado por um cinegrafista muitas
vezes a câmera é colocada sobre um tripé ou um móvel -, é ser virtualmente
observado por inúmeros espectadores, maculando de forma indelével a
“naturalidade” do ato
338
. A câmera oculta significaria a potencialização máxima do
caráter libidinal das estéticas do flagrante e da vigilância, dos quais fala Fernanda
Bruno (2008).
V.9 - “Teatralização do real” ou as multiplicidades da “realidade” imagética
“É manipulado ou é real?” é como se, novamente, o
trabalho manual, a manipulação cuidadosa, a mediação
humana, devessem ser colocados em uma coluna, e a verdade,
a exatidão, a mímese, a representação fiel, em outra. Como se o
que fosse adicionado como crédito em uma coluna tivesse de
ser deduzido da outra (Latour, 2008b: 143).
337
A aparência dos “atores” é bastante importante para o conceito de real sex, sendo dada preferência
ao que é chamado em inglês de the girl next door, ou aquela garota que pode ser a vizinha ao lado, fora
dos padrões da maior parte do star system pornô. Para Barcan (2002), esta é uma forma de provocar
identificação dos espectadores com a cena, levando-os a pensar que poderiam factivelmente estar
fazendo aquilo, com aquela pessoa. Uma opção estética, que pode ser desafiadora culturalmente, mas
também mercadologicamente orientada.
338
Os atores/performers não estão apenas fazendo sexo, mas sim fazendo sexo para alguém olhar,
ambas as partes tendo consciência disso‖ (Leite Júnior, 2006: 99).
300
A experiência individual urbana se mistura ao
imaginário coletivo da população urbana. As infinitas (re-re-re-)
representações de material de vigilância borram a linha entre
realidade e fantasia, original e simulação (Koskela, 2003: 305).
Se apenas o flagrante clandestino seria capaz de garantir a “realidade” do
que é visto, só a inconsciência da presença da câmera por todas as pessoas
filmadas
339
garantiria a autenticidade do flagra
340
. Entretanto, por ter se tornado
algo valorativo e buscado, mas de captação mais rara, a gigantesca demanda criada
pela Internet não pode ser provida sem grandes dificuldades. Além disso, outro
problema se interpõe à satisfação do mercado pornográfico de imagens da realidade
flagrada: na maior parte das vezes os dois principais fatores constituintes do flagra
acaso e clandestinidade não colaboram com as condições ideais de filmagem
341
.
Dificilmente o sexo pode ser exposto tanto quanto o gênero pornô tem por padrão
mostrar detalhes dos corpos nus e das relações sexuais que estes mantêm. Até
porque quando essas imagens são captadas no espaço público, a discrição e a
preocupação com mostrar o mínimo possível é recorrente.
A principal maneira de burlar esse artifício, não chega a ser uma novidade no
ramo, como mostravam os primeiros filmes de sexo: a realidade é falseada,
teatralizada, reproduzindo artificialmente o efeito desejado do flagrante, inclusive
com recursos estéticos como pedaços de janela, galhos e outros obstáculos que
simulam um observador escondido e incógnito
342
. A diferença primordial é que
339
São comuns vídeos em que um dos parceiros (habitualmente do sexo masculino) camufla uma
câmera para filmar o ato sexual sem o conhecimento e consentimento da(s) outra(s) pessoa(s)
envolvida, sendo classificado como câmera escondida (hidden cam)
(http://www.xvideos.com/video177647/flagra_camera_escondida_garota_faz_boquete). Não se pode
ignorar, no entanto, que o expediente da câmera pretensamente escondida também pode muitas vezes
ser usado como um recurso estético inspirado nos vídeos denunciatórios de cunho jornalístico, e cuja
inconsciência de alguma das partes envolvida é dificilmente crível
(http://www.xvideos.com/video66009/hidden_cam_home_teacher).
340
Ver, por exemplo, http://www.xvideos.com/video219215/spycam_sex_video,
http://www.xvideos.com/video230034/security_cam_fucking_outside_part_2.
341
Como ângulo, iluminação, visibilidade, nitidez, distância, etc.
342
http://www.xvideos.com/video65129/caught_my_sister_masturbating e
http://www.xvideos.com/video92453/night_time_spying_on_chick.
301
tradicionalmente o estatuto de recurso estético de uma narrativa ficcional era
explícito e esse fato não era em nenhum momento problematizado - os filmes
pornôs do início do século XX, como os que vimos acima tinham nomes que
sugeriam claramente essa posição (La voyeuse, Voyeur en el Bosque e Keyhole
Portraits). O que ocorre atualmente é uma indefinição mais ou menos sustentada
de acordo com a qualidade da simulação a respeito do status da realidade
apresentada, sempre a ser posta à prova, subjetivamente analisada e julgada pelos
espectadores, discutida através dos comentários e notas dos visualizadores - parte
essencial da constituição dos vídeos em sua inserção no ciberespaço. Os recursos
contemporâneos de reprodutibilidade técnica, as estéticas do flagrante e o fetiche
da realidade, formam um contexto no qual as fronteiras entre realidade e ficção,
espontaneidade e encenação, não são declaradas, potencialmente se tornando
ainda mais fluidas e de difícil delimitação. O real (e, por conseguinte, a realidade)
passa a ser colocado em oposição ao falsificado a categoria utilizada é fake,
mesmo para aqueles que comentam em português e não à ficção, ou ao
imaginário, seus possíveis pares dicotômicos em diferentes contextos (no cinema e
nas ciências humanas, por exemplo). O que está em jogo aqui é a autenticidade da
relação estabelecida entre o agenciamento voyeur, aqueles que são filmados e o
agenciamento espectador (a aura da qual fala Benjamin (1975)). Muitas vezes a
sinceridade dessa relação é mais importante do que a cena em si, a aparência dos
atores ou o detalhamento da anatomia íntima dos flagrados, na fetichização da
realidade da qual fala Dovey (2000).
O aprimoramento da edição de imagens (popularmente chamado de
photoshop), tornado muito mais simples e com resultados bem mais “realistas”, em
função do formato digital, também age sobre os regimes de realidade. Se as imagens
fílmicas ou fotográficas nunca puderam ser classificadas completamente como
302
reproduções confiáveis ou verossímeis da realidade, essas possibilidades novas de
edição e trucagem, ao alcance de amadores, vêm complicar ainda mais a equação
entre o momento e a imagem desse momento
343
. E o mais curioso é que esse
processo ocorre de forma paralela à utilização cada vez mais freqüente das imagens
em investigações e julgamentos.
A discussão a propósito da possibilidade de captar em imagens o “real” é
muito anterior à revolução digital - remetendo, pelo menos, ao início do uso da
fotografia no trabalho policial, em meados do século XIX (Sekula, 1986) - sendo
central nas discussões que vem sendo realizadas em torno do cine-documentário e
dos filmes etnográficos, ao menos desde Nanook of the North, de Robert Flaherty
(1922), tendo ocorrido em consonância com as tentativas também da antropologia
de captar a “realidade etnográfica”
344
(Grimshaw, 2001). Como aponta Gonçalves, a
propósito do cinema etnográfico de Jean Rouch, o debate que este suscita e a
relação que subverte, entre realidade e ficção:
(...) a captação de imagens cria uma relação entre filmados e quem filma de
plena consciência, embora nunca deixe completamente de produzir um
encantamento. É sobre esse não desencantamento total do mundo, isto é,
mesmo quando se tem consciência da filmagem, a chamada realidade como
proposta por Lévi-Strauss seria impossível de ser captada. Para Lévi-
Strauss parece que um pressuposto de que existe uma realidade do filme
que representa a realidade ou a coisa filmada (Gonçalves, 2008: 122).
A presença da câmera, assim como do observador acadêmico e seu caderno
de campo, poderia, como no caso do homemade porn, ser visto como um empecilho
para a captação autêntica da realidade, por explicitar as questões da apresentação
de si e da representação do outro no contexto da filmagem . Como lembra Louis
Quéré (2003: 114), o desvio pela ficção é com freqüência um recurso necessário
para acessar à realidade (adquirir identidade, organizar um mundo dotado de
sentido): e, fator de grande importância, a irréalisation que produz o desvio pela
343
http://www.youtube.com/watch?v=hsiQptl_Y9E&NR=1 (Photoshop: Virtual Weight Loss (HD)).
344
A coincidência de data entre o lançamento do filme de Flaherty e Os Argonautas do Pacífico
Ocidental, de Malinowski, acrescenta um elemento de interesse a mais a essa discussão.
303
ficção é também fator de transformação da realidade. A representação ficcional e a
fabulação diante da câmera, sempre produzem uma realidade fílmica (Gonçalves &
Head, 2009), senão a realidade do encontro apenas entre os que estão sendo
captados, ao menos a realidade do encontro concreto entre estes e aquele que
empunha a câmera (ou a coloca sobre uma mesa), estendida a todos os
espectadores virtuais, sua audiência invisível (Meyrowitz, 1985).
Assim, as categorias real e fake estão longe de ser óbvias e facilmente
delimitadas, mesmo em contextos nos quais fica patente a teatralização do
flagrante. Um ato sexual filmado sem cortes e sem direção não seria
necessariamente menos real por causa da consciência da presença da câmera,
ainda mais se ocorrido no espaço público, onde não é possível controlar o fluxo de
passantes e muito menos o olhar libidinoso de algum observador curioso algum
público - podendo inclusive propocionar doses extras de excitação para aqueles
diretamente envolvidos, conferindo ainda mais realidade sexual à cena. A
teatralização inicial do flagrante desdobra-se em uma multiplicidade de flagras em
potencial, através de todos os sujeitos e agenciamentos sócio-técnicos
345
virtualmente no campo de visão da cena, que por sua vez são estrangeiros ao
falseamento em andamento e livres para estabelecer seus próprios flagras,
autênticos e não combinados.
V.10 - Duplos imagéticos e a circulação de dividualidades
Entretanto, a consciência por parte dos filmados de que a presença das
câmeras instituiria a criação de duplos imagéticos independentes, apesar de ligados
indexalmente a eles, faria com que passassem a “atuar” numa tentativa de
345
Sejam pessoas munidas de câmeras ou camerafones ou vigilantes eletrônicos, através das câmeras
de segurança e computadores.
304
controlar, ou ao menos direcionar, essa criação, se protegendo tanto do voyeurismo
digital quanto da vigilância eletrônica. Afinal, ao existirem, tais duplos passam a ter
agência, podendo influenciar de modo significativo suas vidas. Muitos o os
exemplos, como o de pessoas flagradas em atos de corrupção que vão presas, ou de
jovens que teriam cometido suicídio após terem tido suas imagens, de cunho sexual
ou vexatório, divulgadas entre seu grupo de pares e na Internet, ou mesmo o caso
famoso da apresentadora Xuxa Meneghel, que durante anos conseguiu impedir a
comercialização e locação de um filme seu com cenas polêmicas (alegando assim
“preservar sua imagem”), esforço que se esvaiu com a revolução digital e a
Internet
346
.
No entanto, na conjuntura contemporânea, em especial no que diz respeito
aos nativos digitais, é constante a criação e circulação de duplos, especialmente nas
redes sociais como Orkut, Facebook e Myspace (Boyd, 2008), mas também em
comunidades virtuais como o YouTube ou em jogos de simulação de vida, como The
Sims ou Second Life
347
, e até mesmo nos bancos de dados eletrônicos de grandes
empresas especializadas em publicidade direcionada na web. Cada um de nós que
usa habitualmente a Internet ou esses sites põe de forma voluntária ou não - em
circulação vários duplos digitais (Bruno, 2006), dos quais muitas vezes nunca
chegaremos a estar cientes, mas que, além de independentes, passam também a
346
Para as cenas em questão, do filme Amor Estranho Amor, de Walter Hugo Khoury, ver
http://www.xvideos.com/video370017/erotic_film.
347
E antes de tais simulações de vida, já eram populares os Role Players Game, ou RPG, jogos onde os
participantes tornavam-se personagens e os comandavam por uma duração considerável:
http://www.youtube.com/watch?v=MNI0Q9_a_Ww (Creating myself as a Sim in The Sims 3).
305
nos constituir no ciberespaço. Podem agir sobre a “matriz”, conferir-lhe poder
348
ou
mesmo torná-la vulnerável de inúmeras maneiras
349
.
Se a disciplina da qual fala Foucault “fabrica indivìduos” e dociliza corpos, a
proliferação de duplos digitais e imagéticos possibilita uma infinita e constante
fabricação de corpos
350
e agenciamentos, e “naturaliza” a produção de divíduos dos
quais fala Strathern (2006), ou seja, a noção de pessoa não tomada como um todo
indivisível, individual, mas disseminável através de objetos e reagrupável em
diferentes agenciamentos, ao invés de encerrada em um corpo ou uma
subjetividade.
Na Melanésia a troca de valores e bens significa a objetificação de relações
entre pessoas e grupos de pessoas e implica na concepção divisível da pessoa:
pessoas são feitas de partes de outros seres humanos e dos produtos das
ações destas pessoas. O conceito de divíduo alude ao caráter divisível da
pessoa, a pessoa pode circular partes de si entre outras pessoas, ajudando
desta forma a criar novos seres e objetos. (...)
As idéias implicadas nos conceitos de divíduo e pessoal fractal
351
para dar
conta da especificidade do conceito de pessoa na Melanésia ressoam muito
bem com o material ameríndio, onde a pessoa é igualmente concebida
enquanto ser relacional, processual e divisível, tendo em vista que partes de
si que passam para outras pessoas continuam mantendo relação com a
pessoa que as emitiu, ao mesmo tempo em que ajudam na produção de novos
seres. A literatura, no entanto, chama a atenção para uma ênfase diferente
na construção da pessoa ameríndia onde a incorporação do outro segue a
lógica do acúmulo em vez da divisão (Lagrou, 2007: 25-26)
352
.
A produção e circulação incessante e incontrolável de duplos digitais e
imagéticos geradas pelas novas tecnologias de comunicação e suas apropriações e
sua incorporação ao “estar no mundo” contemporâneo -, evidencia o caráter de
construto social analítico da concepção moderna de indivíduo, assim como da
348
Como acontece, por exemplo, com a atriz veterana Maria Alice Vergueiro, após a divulgação do
famoso “tapa na Pantera” no YouTube, http://www.youtube.com/watch?v=6rMloiFmSbw (Tapa na
Pantera VERSÃO OFICIAL), ou com importantes blogueiros da Internet, como a hoje também famosa
prostituta e atriz pornô Bruna Surfistinha http://naonaopara.virgula.uol.com.br/brunasurfistinha/.
349
http://www.youtube.com/watch?v=7fY99b2zO_c (Vanucci Bêbado LEGENDADO!!) ou
http://malcriadomudo.blogspot.com/2006/09/menina-de-plstico.html.
350
http://www.youtube.com/watch?v=ltvKlUcu9Mw (Segredo da Beleza) e
http://www.youtube.com/watch?v=ZooUIgDxMlA (Sims 3 Creating a Sim).
351
Wagner (1991).
352
Por exemplo, o assassinato do inimigo, incorpora a alma deste a seu matador, que adquire então
poder ao tornar-se simultaneamente eu-outro, igualdade e alteridade (Viveiros de Castro, 1986; apud
Lagrou, 2007).
306
separação entre sujeitos e objetos que a sustenta (Latour, 2005). A pretensa
especificidade do individualismo das sociedades complexas é fruto da concepção
modernista da grande divisão entre nós/ocidentais/a escrita/a ciência, de um lado,
e eles/primitivos/o oral/ a divinação, do outro, como ressaltam Goldman e Lima
(1998) (apoiados na reflexão sobre a “great divide” de Jack Goody (1977)). O
indivíduo, como aponta Elias (1994), é uma construção histórica processual, e
consistiria numa das maiores especificidades da “sociedade ocidental moderna”, por
oposição a todas as outras pré-existentes ou que existem em paralelo. No entanto,
gostaria de ressaltar, este se constitui em uma das principais crenças e “mitos de
origem” da modernidade, sendo um construto social e cultural não apenas por ter
sido resultado de figurações (Elias, 2006) específicas e historicamente
constituídas
353
, mas também por ser um dos principais requisitos para a
experiência moderna. E a crença na individualidade, apesar de importante fator
estruturante dessa experiência, não significa a existência concreta desses
indivíduos indivisíveis. Como aponta Law (1992: 4):
analiticamente, o que conta como pessoa é um efeito gerado por uma rede de
materiais heterogêneos, interagindo. (...) As pessoas são quem elas o,
porque são uma rede padronizada de materiais heterogêneos. Se me tirarem
meu computador, meus colegas, meu escritório, meus livros, minha mesa,
meu telefone, eu não seria um sociólogo escrevendo artigos, fazendo palestras
e produzindo “conhecimento". Eu seria algo muito diferente e o mesmo é
verdade para todos nós. Portanto, a questão analítica é essa. Um agente é um
agente principalmente porque ele ou ela habita um corpo que carrega
conhecimentos, habilidades, valores e todo o resto? Ou um agente é um
agente porque ele ou ela habita um conjunto de elementos (incluindo,
naturalmente, um corpo) que se estende para a rede de materiais, somática e
o que mais seja, que envolve cada corpo?
Humanos não existem “em estado puro”, sendo sempre compostos por uma
série de objetos
354
- formando híbridos quase-humanos (Latour, 2005) ou
353
Por diversos fatores, muitos deles assincrônicos, como o Iluminismo, o monopólio legítimo da força
pelo Estado (2001), o autocontrole das pulsões (Elias, 1993), a normalização disciplinar (Foucault,
2003) e o Romantismo (Viveiros de Castro & Benzaquem de Araújo, 1977).
354
Que, por também o existirem, geralmente, em seu estado puro, isentos de “humanidade
(criação ou significado apenas através da ação humana) são chamados de quase-objetos (Latour,
2005).
307
agenciamentos sócio-técnicos (Callon, 2003) através dos quais circulam, entram
em contato e interagem, formando redes heterogêneas com outros quase-humanos
e quase-objetos. Os processos de escrita e leitura, literária (Lima, 2009) ou
acadêmica (Law, 1992), e a criação artística autoral são talvez os exemplos mais
contundentes dessa circulação criativa contemporânea e autofecundante das
dividualidades no contexto “urbano”, que, embora mascarada (ou rejeitada) pelas
crenças modernistas, nunca deixou de ocorrer. Desse modo, se o indivíduo e o
individualismo têm importância central para a reflexão antropológica pós-
modernista (inclusiva aquela que pretendi desenvolver nos capítulos 2 e 3 da
presente tese), ocorre uma ressignificação dos termos: a ênfase na indivisibilidade e
no assujeitamento é deslocada para a criatividade e capacidade de transformação
(Gonçalves & Head, 2009; 26):
A ênfase atribuída ao indivíduo não seria uma corroboração ao sentido de sua
construção ocidental, do individualismo, pois, se o individualismo é fruto do
modernismo e da antropologia clássica, a aposta na individuação seria
justamente um afastamento de uma determinada concepção sociológica da
sociedade. Entretanto, se faz necessário esclarecer que quando tratamos de
individuação criativa estamos justamente apontando para uma outra
percepção da individualidade que se afasta das formas de individuação que se
elaboram através dos efeitos normalizantes, como àqueles que têm se
tornado componentes fundamentais da diferenciação social, da vigilância e
controle social, ao assumirem formas de demarcações identitárias
individualizantes, como nomes próprios, impressões digitais e retratos faciais.
Assim, divíduos, pessoas fractais ou pessoas compostas
355
, são conceitos
que, mesmo se elaborados em contextos etnográficos muito distantes daquele que
analiso, podem ser usados para pensá-lo em seus dois aspectos principais: a
captação de imagens, e sua circulação. Os muitos milhões de pessoas envolvidas
direta ou indiretamente nesse circuito de produção e trocas de duplos imagéticos,
constituem-se através deles e das relações que eles estabelecem entre si e com
outras pessoas, assim como das relações que estabelecem com outras pessoas
através de seus duplos. Imagens e pessoas são incorporadas a perfis e identidades
355
McCallum (2002).
308
virtuais
356
, numa circulação de dividualidades em permanente devir, sempre em
processo aberto e interdependente de constituição.
E a inegável realidade desse fluxo de duplos em circulação evidencia a
impossibilidade de gerenciar sua produção em praticamente todos os lugares
encontramos pessoas portando câmeras ou camerafones -, assim como sua
incorporação por outras pessoas
357
, em contextos e agenciamentos independentes.
A mais factível forma de lidar com isso parece ser a aceitação da superabundância
imagética e o desenvolvimento de estratégias para minimizar seus efeitos deletérios,
sem que isso implique a exclusão voluntária do mundo digital e das redes de
exposição, troca e circulação de imagens. Até porque tal medida o adiantaria,
visto a expansão das captações involuntárias por videovigilâncias particulares e
públicas.
A participação em redes ou comunidades virtuais públicas (networked
publics), no Brasil chamado de sites de relacionamento e programas de bate-papo,
ou a manutenção de blogs, fotologs e videologs, algumas das mais apreciadas
possibilidades da cibercultura, introduzem na experiência da Internet a onipresença
da audiência invisível, como aponta Boyd (2008: 34-35):
Em espaços não mediados, é comum ter-se consciência de quem está
presente e pode testemunhar uma performance particular. Através da
persistência, replicabilidade, escalabilidade e buscabilidade, os networked
publics introduzem a possibilidade de audiências que estão, para todos os
efeitos e propósitos, invisíveis. Pode não ser possível ver quem realmente está
presente naquele momento, seja porque estão à espreita e não se mostrando,
ou porque a tecnologia o faz sua presença visível. Além disso, pelo fato de
as audiências com freqüência assistirem às performances de modo
assincrônico, ela o precisa estar presente no momento da performance. Ao
realizar uma performance em networked publics, as pessoas são forçadas a
lidar com audiências invisíveis e se envolver em atos de gerenciamento de
impressões, mesmo quando não tem idéia de como sua performances vêm
sendo assistidas.
356
É só pensarmos na disposição e possibilidades de apresentação do self em sites de relacionamento
como Orkut e Facebook, caracterizada por muitas fotos e links para outros perfis. E estes, única
interface de contato com várias pessoas que um dia integraram de algum modo sua rede social,
passam a ser o único canal de representação pessoal para elas (Boyd, 2008).
357
http://www.youtube.com/watch?v=pLT261vlVZI (A vida de Amy Winehouse em The Sims 2).
309
Para os nativos digitais, assim como para parte considerável dos imigrantes,
ter que constantemente lidar com a possibilidade de audiências não é visto como
um problema a ser transposto, mas como uma característica intrínseca à
experiência cotidiana. E por isso, além das transformações relativamente lentas e
processuais - perceptíveis nos regimes de vergonha, vamos aprendendo a trafegar e
nos recriar criativamente no contexto de superabundância de imagens e duplos no
qual vivemos atualmente, sem que, até o momento, nenhuma das previsões
pessimistas preconizando o futuro sombrio da “sociedade imagética” tenha dado
sinais de concretude.
310
Conclusão
Diálogos e devires
Após percorrer diferentes aspectos e videovigilâncias contemporâneas,
através das desventuras dos cinco capítulos do presente trabalho, chega o momento
de, ao finalizá-lo, tecer o que tradicionalmente na ciência, chama-se de conclusão.
Mesmo sentindo-me incapaz de cumprir tarefa tão ingrata, curvo-me às obrigações
formais e lanço-me, de maneira um pouco atabalhoada, nessa empreitada. Se,
porém, desde o princípio afirmei não pretender escrever um tratado, nem traçar
panoramas avaliativos sobre as políticas de segurança pública em questão, não foi
absolutamente como uma maneira de fugir à responsabilidade de concluir alguma
coisa, mas por dificuldades reais e características intrínsecas ao próprio
funcionamento dos sistemas que estudei. Estes, além de estarem inseridos em um
recente e amplamente maleável processo de desenvolvimento tecnológico, estão
longe de terem sua forma fixada, ainda buscam, com dificuldade, a melhor ou mais
concreto modo de funcionar, como os remanejamentos e mudanças nas diretrizes
de monitoramento indicam. É mesmo muito provável que em poucos anos, o
sistema que vi operando, e do qual também fiz parte durante seis meses, tenha
tomado outras direções, e se distanciado daquilo que observei. Nesse sentido, as
conclusões tornam-se ainda mais fluidas, por estarem submetidas ao processo que
caracteriza e afeta tudo que tem relação com a tecnologia digital (inclusive as teses),
a obsolescência a curto prazo.
As videovigilâncias oficiais que estudei não o objetos a ser desvendados,
mas devires em (auto)constituição, e o máximo que pude fazer foi tentar captar e
descrever, dialogicamente, e o de forma expositória, minha inserção nesses
311
devires, as relações que estabeleci e das quais fiz parte. Relações materialmente
heterogêneas, ou agenciamentos, como disse antes.
Com as videovigilâncias não oficiais ou videovoyeurismos -, o problema é
ainda mais gritante, devido ao seu caráter rizomático, sem centro e raiz, em todos
os lugares ao mesmo tempo, e o tempo todo se autoconformando, se fecundando e
tendo essa plasticidade e falta de forma não apenas como característica, mas como
meta. Ao terminar a revisão desta tese, o YouTube apresentava diversas
mudanças em sua disposição visual, avaliação dos vídeos e exposição dos
comentários. Lutar contra isso, como dizem na gíria policial, é enxugar gelo. é
possível entender e captar alguma coisa das plataformas tecnológicas
contemporâneas se aceitarmos que sua essência é a transformação constante, a
constituição em fluxo, é “já não ser mais o que pouco era”. a mutação é
perene, todo o resto tem curta duração.
Diante dessas dificuldades conclusivas, não me restam escolhas a não ser
relembrar por vezes relacionando - alguns dos pontos que foram apresentados ao
longo do texto, tentando dar continuidade aos diálogos que foram inaugurados, os
quais não tenho, de modo algum, a pretensão de esgotar ou encerrar.
Por que não?
Uma questão fundamental para compreender o crescente uso da tecnologia
de captação de imagens, de forma pública ou privada, pode ser resumida de forma
simplificada através da pergunta “por que não?”. Até o momento, por mais que se
tenha alardeado bastante a esse respeito, não foram produzidas respostas
contundentes, ou ao menos que tenham sido convincentes. Os discursos anti-
vigilância, como vimos, com freqüência apóiam-se em imaginários que pouco ou
312
quase nada têm a ver com a videovigilância contemporânea, em especial no
Panóptico (de Bentham) e no Big Brother (de Orwell) “e por que não?”, no Vigiar e
Punir, de Foucault. Mantêm-se presos à concepção de vigilância disciplinar fazendo
com que enxerguem e interpretem o videomonitoramento apenas pelo prisma da
ramificação de um poder radicular, apesar de policentrado, e através de instituições
disciplinares por excelência, como a polícia. Contudo, as câmeras de vigilância
operadas e centralizadas por esta constituem apenas uma fração mínima de todas
as que estão em funcionamento na cidade o que inclui tanto os sistemas de
videomonitoramento privados quanto as câmeras portáteis e camerafones,
reapropriados como câmeras ―de vigilância‖ ou, melhor, de flagrantes. As
videovigilâncias são muitas e em rizoma, crescem e se espalham, sem centro:
A estes sistemas centrados, os autores opõem sistemas a-centrados, redes de
autômatos finitos, nos quais a comunicação se faz de um vizinho a um
vizinho qualquer, onde as hastes ou canais o preexistem, nos quais os
indivíduos são todos intercambiáveis, se definem somente por um estado a tal
momento, de tal maneira que as operações locais se coordenam e o resultado
final se sincroniza independente de uma instância central (Deleuze &
Guattari, 1995: 27).
Diante da possibilidade aberta pela tecnologia e da sua adoção
indiscriminada em espaços privados (muitos de uso coletivo) ou por
vigilantes/voyeurs amadores, não parece fazer nenhum sentido tentar impedir a
polícia de fazer o mesmo no espaço público, até porque a polícia costuma ter grande
liberdade de ação no campo do “combate à insegurança”. Videovigiar já faz parte do
repertório básico desse combate, assim como deixou de ter a ver com resultados
efetivos ou com uma real contribuição para a segurança pública. A imagem é um
poderoso elemento ilustrativo, e poucos exemplos são suficientes para causar
impacto e construir uma reputação de eficiência. Por essa razão o supervisor dava
tanta importância aos flagrantes, pressionando constantemente os operadores no
sentido de obtê-los. Não para convencer os delinqüentes de que transgressões
313
seriam punidas de que ―o crime não compensa‖ teoricamente tornando a cidade
menos perigosa, mas para convencer governantes e contribuintes/eleitores (opinião
pública) de que ―o videomonitoramento compensa‖.
E um dos principais papéis que as videovigilâncias vêm desempenhando é o
abastecimento da imprensa com imagens de flagrantes, através da TV e da Internet.
Um círculo vicioso: a videovigilância alimenta a imprensa, ávida por satisfazer a
demanda estética por flagrantes; e a imprensa promove a videovigilância,
oferecendo ao público as provas de seu incontestável valor. A espetacularização dos
flagrantes de vigilância também colabora, assim, para tornar ainda mais inaudíveis
as campanhas e manifestações anti-videovigilância. E a instalação de câmeras
oficiais, ao que tudo indica, continuará se expandindo, sendo de vez incorporada à
rotina e ao aparato básico de funcionamento da polícia como aconteceu com a
viatura, o rádio, o GPS e etc.
Multiplicidade, descentralização e reequilíbrios
Através dessas múltiplas e descentralizadas videovigilâncias pode ser
exercido um poder de alcance muito maior do que o centralizado. Poder ainda
multiplicado pela circulação descontrolada dessas imagens, em oposição à
constante e incansável tentativa de controle do fluxo de informações no
videomonitoramento policial. E este, em meio a essa descentralização dos olhares
vigilantes, torna-se apenas mais um dos pontos de observação e criação de
imagens. Com a desvantagem de que as imagens oficiais costumam ser as com
314
maiores restrições à circulação
358
, comprometendo mais ainda qualquer
centralidade que desejassem lhe imputar. Muitas vezes, é a própria polícia o alvo
desse vigilante fragmentado
359
; a vigilância e a multiplicação da (re)produção
imagética, ao invés do aumento do poder “liberticida” de uma sociedade policial
(Rajsfus, 2008), pode introduzir novos poderes, e, possivelmente, novos equilíbrios
(como nos lembra o próprio caso de Rodney King).
O caráter rizomático das diferentes videovigilâncias que constituem o
panorama contemporâneo, pressupõe uma não-hierarquia, já que esta implica
centro(s). Não uma primazia da videovigilância policial sobre as amadoras, todas
oferecem pontos de vista válidos, e nada garante que as imagens oficiais são mais
fidedignas, ou mostram algo mais verdadeiro, ou mesmo que sejam capazes de
exercer poder maior ou mais efetivo do que os flagrantes captados por amadores. E
o acompanhamento prático do monitoramento deixou evidente o quanto é longo e
incerto o caminho que leva do ver ao poder. E por mais que essa relação possa
efetivamente ser estabelecida (como indicam as histórias e imagens de ações bem
sucedidas), ela não necessariamente o é. Por vezes acontece mesmo o contrário,
como no caso das favelas, em que o ver tornava-se claro indício da impotência
policial. Movimentadas bocas de fumo, grupos com armamento pesado,
impossibilidade completa, na maior parte das vezes de agir. E, principalmente, os
vigias, irremediavelmente separados da ação, e dependendo da disposição e boa
vontade (artigos raros) dos policiais que trabalham em consonância com eles, seja
na própria sala de operações, ou na rua, encontravam-se destituídos de
358
Cheguei a encontrar no YouTube, em 2006, uma seleção importante de flagras (sexuais e de
consumo de drogas) das câmeras de segurança do 2BPM (Ipanema e Leblon). Estes vídeos, porém,
estavam protegidos contra gravação, e em pouco tempo foram retirados do YouTube. Nunca mais
consegui encontrá-los, nem descobrir quem os havia postado.
359
http://www.youtube.com/watch?v=sxGJxo1vDnM&feature=related (Agressão Policial em
Torcedora).
315
praticamente qualquer grau de poder. Eram mais vigiados e fiscalizados do que
aqueles que eles próprios observavam nas ruas.
A ilusão da técnica
Mesmo sem pretender efetuar avaliações sobre a videovigilância policial, não
posso deixar de apontar alguns pontos de seu funcionamento que me chamaram
bastante a atenção. O mais evidente de todos é que, tanto no CCC quanto nos
batalhões, uma inegável carência de mão de obra minimamente qualificada.
Problema que, possivelmente, em poucos anos se resolverá “naturalmente”, com a
inserção gradual dos nativos digitais no mercado de trabalho, inclusive na polícia e,
quem sabe, também em substituição aos voluntários da Assegura, exemplos quase
caricaturais de imigrantes digitais presos à “cultura de origem”. A utilização destes
no trabalho de videomonitoramento, se carregada das cores da assistência social, é,
e isso não se pode perder de vista, uma forma da Secretaria de Segurança Pública
evitar altos gastos suplementares: não recebem salários, mas auxílio, nem trazem
consigo os nculos e encargos do mercado de trabalho formal são voluntários -,
sendo uma mão de obra, em todos os aspectos, muito mais barata do que seriam
monitoradores profissionais. Mais importante, sempre, do que o discurso de uma
reinserção no trabalho como forma de “trabalhar a auto-estima”, aparecia entre eles
a questão das dívidas (com bancos de empréstimo) e da falta crônica de dinheiro. O
trabalho como operador de meras é uma forma de manterem-se na lógica do
“bico”, da complementação da renda realizada através de um trabalho extra
desempenhado preferencial ou exclusivamente por (ex)policiais e (ex)bombeiros:
trabalham hoje que acumulam certa idade - como operadores de meras, mas
trabalhavam ontem fazendo segurança privada. E dessa forma os policiais e
316
bombeiros, da ativa ou aposentados, vão equilibrando-se economicamente entre
dois empregos, ambos sensivelmente sub-remunerados. Como “bico” não confere
aposentadoria, o obrigados a continuar trabalhando, ou aceitar redução drástica
dos rendimentos mensais, mesmo após atingirem a idade xima para parar de
trabalhar.
No CCC ocorre algo semelhante, e a função é desempenhada por policiais
com mínimo ou nenhum treinamento suplementar, e incluídos na folha salarial
da Polícia Militar. Economiza-se com pessoas o que dificilmente pode se deixar de
gastar e despesas constantes com a tecnologia e sua manutenção. A
videovigilância é um sistema que tende a se reproduzir: uma vez instalada a infra-
estrutura que a possibilita, sua expansão e continuidade é extremamente cil e
quase óbvia. Assim como a constante substituição tecnológica, ou atualização: um
mercado poderoso e de crescimento tão espetacular quanto o da videovigilância não
cessa de fazer pressão e promessas em relação a novas e ainda mais
impressionantes tecnologias a ser adotadas, capazes de tornar esse mundo de
insegurança crescente, ainda mais videovigiado, mais protegido e melhor equipado
para a guerra da segurança pública
360
.
Mais do que à -vontade ou corrupção, creio poder atribuir essa opção
deliberada pela redução de gastos com a mão de obra (e procurei ressaltar bastante
esse ponto) à sobredeterminação técnica que marca parte considerável dos
discursos alarmistas ou apologéticos dos usos e possibilidades das tecnologias de
militantes, legisladores ou responsáveis pela segurança pública. Não se faz um
sistema de videovigilância apenas com câmeras, computadores e a estrutura
material que precisam para operar. O olhar e a percepção humanas não são meras
360
Não é preciso muita perspicácia para chegar à conclusão de que a indústria de materiais de
segurança precisa, desesperadamente, do sentimento de insegurança e, talvez até mais, da promessa
da segurança.
317
formalidades. O vigilante eletrônico é um agenciamento sócio-técnico (grosso modo
operador-computador-câmera) que, por sua vez, é parte constituinte de um
agenciamento maior, o sistema de videomonitoramento, que põe em relação, de
maneira não presencial, observador(es) e observado(s). Esse sistema depende da
coordenação do trabalho de uma série de mediadores rádios, telefones,
despachadores, policiais nas ruas que acabam fragmentando tanto o
monitoramento quanto, principalmente, os sentidos do vigilante.
Não necessariamente
Se fosse para usar a metáfora societária
361
, ao invés de falar de uma
“sociedade de vigilância”, diria que, nesse sentido, o contexto atual tem muito mais
de “sociedade do flagrante”. A confusão entre os dois termos é central nos
discursos, desejos, promessas e temores dos sistemas de videomonitoramento. A
vigilância é maçante, entediante, enquanto o flagra excita. E este não
necessariamente advém daquela, sendo ltiplas e crescentes suas fontes cuja
mobilidade, não fragmentação dos sentidos e possibilidade de contextualização,
podem fazer com que se tornem muito mais “poderosas” do que os sistemas oficiais
de videovigilância. E, o que é mais importante para o presente trabalho, não apenas
o flagrante não é necessariamente fruto da videovigilância, como a videovigilância
não produz necessariamente flagrantes. Estes, como apontei no quinto capítulo,
não são comportamentos ou coisas em si, mas um conjunto de relações
estabelecidas entre dois ou mais agentes, quem flagra e quem é flagrado,
observador(es) e observado(s) e, no caso dos sistemas de videomonitoramento,
intermediado por câmeras, computadores, etc. E o estabelecimento dessa relação
depende de alguns fatores, dentre os quais a imponderabilidade do acaso, mas
361
―A sociedade é o ópio do povo‖ (Latour, 2008c: 39).
318
também alguns diretamente relacionados com a ancia humana, como, por
exemplo: treinamento e preparação qualificada dos operadores, ou seja, a
constituição de uma mão de obra mais qualificada; a diminuição da proporção de
câmeras para cada operador, permitindo a constituição minimamente duradoura
dos híbridos homem-máquina que chamei de vigilantes eletrônicos; um melhor
planejamento dos locais de instalação das câmeras; uma menor fragmentação dos
sentidos do observador, com, por exemplo, a possibilidade de comunicação direta
com os policiais na rua, podendo compensar parcialmente a descontextualização
inerente ao acompanhamento apenas visual e realizado à distância de um
determinado espaço ou evento qualquer... O importante é salientar, mais uma vez,
que não basta colocar as câmeras e esperar que os flagrantes surjam. É preciso,
além de um pouco de sorte, saber favorecer essas relações, através de uma
observação mais ativa, mais participante. O olhar passivo, em especial no CCC,
onde o fator tédio transbordava no corpo, na expressão e no discurso dos
operadores, certamente o as favorece. O olhar maldoso dos operadores do 19º
BPM, debilitado pela conjunção entre idade avançada e desconhecimento técnico,
se tinha o mérito de ao menos tentar ordenar de alguma forma o caos de
visibilidades criado pelo sistema de videovigilância, o fazia reproduzindo conhecidos
preconceitos: apesar da videovigilância do espaço público ser teoricamente
democrática e igualitária, na prática - ao menos no que diz respeito à19
a
AISP a
vigilância recai seja sobre os mesmos comportamentos, ou sobre as “mesmas
pessoas”, tendendo assim a reproduzir, através de (bons) flagrantes (argumentos
imagéticos), o olhar maldoso e seus preconceitos.
319
Bons e maus
Complexificando sobremodo a questão para a Secretaria de Segurança, esse
olhar maldoso também deve ser controlado, evitando o constante estabelecimento
do que poderia ser chamado de “maus flagrantes”, em especial aqueles de cunho
sexual/voyeurístico - mas também imagens da favela ou cenas comprometedoras
envolvendo ―gente grande‖, como a que um policial do serviço reservado veio pedir a
Saulo para ―esquecer que havia visto‖
362
.
A existência desses “maus flagrantes” e sua possìvel circulação pode
representar mais perigo para a política de segurança, do que a própria produção de
“bons flagrantes” seria capaz de lhe conferir poder. Isso se percebe no tratamento
dado à reclamação do casal de moradores da cobertura na Avenida Princesa Isabel:
a preocupação no batalhão era não deixá-los, de modo algum, ter acesso às
imagens e comprovar suas suspeitas. Ao policial que lidava com a queixa, foi
sugerido, por um superior, que ‖inventasse uma história, desse um jeito‖. E também
pode ser percebido pelo caso da informação falsa veiculada pelo coordenador,
dando conta de um software programado para impedir a visualização de áreas
privadas; ou mesmo pela recomendação de não utilizarem determinadas câmeras,
mais propensas a esses “maus flagrantes”. Se sua obtenção não fosse controlada e
sujeita a tantas restrições (inclusive a falta de luminosidade da câmera de noite), é
muito provável que houvesse uma profusão de flagrantes desse tipo, até pelo que
contavam os operadores em relação aos primeiros anos de monitoramento, o que
poderia desacreditar publicamente o videomonitoramento, ou até conferir
362
Ou ainda, como o flagrante do caminhão das casas Bahia sendo “descarregado” no
Pavão/Pavãozinho, imagens que, misteriosamente, desapareceram do 19º BPM no dia seguinte à sua
captura.
320
argumentos àqueles que falam de uma intromissão excessiva do Estado na vida
íntima e privada das pessoas.
Duplicação
O mesmo, entretanto, não pode ser feito em relação às outras
videovigilâncias, e a profusão de todos os tipos de flagrante é um fator com o qual
deve-se aprender a lidar, sendo parte constitutiva da experiência contemporânea de
estar no mundo. Como, por exemplo, desconfiar de telefones celulares, ou bolsas
colocadas no chão perto de provadores de roupa.
Contudo, a quantidade de imagens que estão constantemente sendo
produzidas transforma o próprio estatuto da imagem, cuja produção e captação
passa a ser cada dia mais comum. Ocorre uma desproblematização parcial e
adaptativa da constante criação, composição e circulação de duplos e
dividualidades, através das trocas e das exposições de imagens. Diante desse
processo massivo de duplicação imatica, a videovigilância passa a ter destaque
muito menor do que outrora. A porque surgem novas apropriações muito mais
ameaçadoras e invasivas do que ela, como as câmeras escondidas em banheiros ou
perseguidores de mulheres de saia em escadas rolantes, ou mesmo a multiplicação
de videovoyeurs amadores, como vizinhos ou co-freqüentadores de uma praia, por
exemplo. Em parte dos locais onde se pratica naturismo, busca-se proibir ou
constranger o uso de câmeras, como forma de tentar controlar a fabricação e
circulação de duplos desnudos. O que, diante da acentuada busca e do inegável
valor libidinal destes, obviamente é contornado através do mesmo recurso dos
banheiros e provadores: a câmera escondida. O ocultamento da câmera, por sinal -
321
seja a escondendo em alguma bolsa, armário ou no meio das roupas, ou
dissimulando em camerafones cada dia mais discretos ameaça, e muitas vezes
atinge, de modo muito mais significativo e concreto àqueles cuja imagem é captada,
do que a maior parte dos sistemas de videovigilância seria capaz.
Exposições e visibilidades
Aliás, num mundo onde a captação e a circulação de imagens é tão intensa e
central na constituição das pessoas que nele vivem, as especificidades da
videovigilância - impessoal, distante e descontextualizada não parecem representar
riscos muito substantivos. As informações, imagéticas ou não, circulam em
abundância pela Internet em mecanismos de busca semi-automáticos como o
Google e nos múltiplos bancos de dados nos quais estamos incluídos, mas também
disponibilizadas por nós mesmos, (em blogs, fotologs ou sites de relacionamento
como Orkut, Facebook ou MySpace, etc.) Não seriam, então, as câmeras de
vigilância que consistiriam uma ameaça à vida privada e íntima dos indivíduos.
Novos regimes de visibilidade e novas moralidades - que ficam evidentes diante das
acusações de exibicionismo e da multiplicação de casos de sexting envolvendo
nativos digitais
363
, ou no comércio de visibilidades em operação na Internet -
surgem, introduzindo mudanças nas relações de poder e nas formas aentão em
voga de exercê-lo. Afinal ser apenas visto, mesmo se em uma situação
constrangedora, é um problema se nos importarmos com isso. Se simplesmente
pararmos de nos importar, o problema deixa de existir. De uma geração a outra,
complicados dilemas e tabus morais podem ser completamente esvaziados. E é
363
Que m provocando inclusive debate jurídico nos Estados Unidos sobre mais adequada forma de
lidar com tais comportamentos, mais e mais comuns entre adolescentes.
322
possível que, do mesmo modo que perder a virgindade antes do casamento deixou
de ser um problema grave para contingentes cada vez maiores de mulheres, a
circulação e exposição de imagens hoje ainda consideradas imorais ou vexatórias,
sigam caminho semelhante. Fenômenos desse tipo são “perfeitamente comuns”, e
vivem se repetindo ao longo dos tempos.
(Sem) Vergonha e (Não) Imagem
E, para além das transformações da imagem, essenciais para este trabalho,
as mudanças tanto na auto-apresentação quanto na auto-representação imagética
ajudam a constituir importantes mutações também nas relações ver-poder
disciplinares, centrais no processo de docilização dos corpos e sujeição individual.
O poder disciplinar é internalizado pelo indivíduo, através do processo de
normalização (Foucault, 2003) ou autocontrole das pulsões (Elias, 1993), e operado
em grande parte pelo regime de vergonha. A ligação entre ver e poder reside também
nessa visibilidade vergonhosa.
As características dos regimes imagéticos contemporâneos subvertem essa
relação sob vários aspectos: o primeiro deles diz respeito à distância entre quem
e quem é visto, que impede a sanção normalizadora disciplinar, assim como a
vergonha decorrente do se ver sendo observado. A censura do observador não chega
até o observado, que, assim, não se vê afetado pela interação estabelecida mas não
tornada consciente, assim como perde-se o elo direto entre transgressão e punição,
fundamental à disciplina.
Além disso, o projeto de arquivo, com a organização e catalogação de todas
as informações captadas, sonho moderno que, se marcou o início da utilização de
323
câmeras pela polícia (Sekula, 1986), no contexto da videovigilância contemporânea
foi completamente abandonado, tornando-se claro que não é a maneira mais
adequada, e muito menos a mais cil, de compor bancos de dados. Praticamente a
totalidade dos videovigiados não tem em nenhum momento seu anonimato
ameaçado, na maioria das vezes nunca sentindo qualquer efeito da observação da
qual foi alvo.
Assim como praticamente a totalidade das imagens se perde, existe
materialmente em arquivo digital por trinta dias, às vezes até menos, e
desaparecem sem deixar nenhum traço dessa existência, sem ter mesmo,
majoritariamente, sido vista uma única vez. Um imenso contingente de duplos
imagéticos são criados e destruídos cotidianamente, sem terem nunca sido
atualizados através do olhar humano, ou seja, nunca tendo existido realmente,
apenas como virtualidade. São imagens latentes que, se não vistas durante o breve
período durante o qual podem ser atualizadas, e assim transformadas em imagens
reais, são destruídas, transformadas em não-imagem, em uma possibilidade não
concretizada de imagem. A superabundância imagética gerada pela videovigilância
faz com que esta produza uma quantidade sempre muito superior de não-imagens
do que de imagens
364
. Afinal, se é verdade incontestável que mais e mais imagens
digitais o produzidas a cada dia, também o é que mais e mais imagens digitais
o são vistas a cada dia. Parafraseando Simmel (sempre irrequieto diante dos
excessos de estìmulos da modernidade), a “tragédia contemporânea das imagens”
e mais ainda das imagens de vigilância - é sempre, e cada vez mais, suplantar, em
muito, nossa capacidade, desejo e paciência de vê-las.
364
Em compensação, os videovoyeurismos produzem apenas imagens, pois sempre dependem de
cinegrafistas/voyeurs humanos.
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ZNANIECKI, Florian. 1936. The method of Sociology. Nova York; Farrar and Rinehart.
336
ANEXO: Vídeos
Capítulo I
http://www.youtube.com/watch?v=ibSwITK4jjQ (Police Brutality).
http://www.youtube.com/watch?v=eOiHUyNyCNE (Police OOPS!!!).
http://www.youtube.com/watch?v=Yf_wXHFATeM (Drunk women streak for police).
http://www.youtube.com/watch?v=fOk6B8DLLCg&feature=channel (Cocaine thrown onto highway).
http://www.youtube.com/watch?v=ZQkKkTJbqx8&feature=channel (Naked drunk driver).
Capítulo II
http://www.youtube.com/watch?v=ROn_9302UHg&feature=related (Rodney King).
http://www.youtube.com/watch?v=Kw2pRnBgeBU&feature=related (L.A. Riots).
http://www.youtube.com/watch?v=bssrxSGqjYc (Bonde de traficantes no Rio de Janeiro).
http://www.youtube.com/watch?v=EsEEJNYMoX0 (1 POLICIAL mata 2 Assaltantes ao vivo
sem cortes no Rio de Janeiro - Jornal Nacional).
Capítulo III
http://www.youtube.com/watch?v=brCzpUfmjNg (Flagrantes de uma cidade vigiada).
http://www.youtube.com/watch?v=NBdOJBC4Cw0 (Flagrante - Câmeras flagram ataque a
policiais militares na Cidade Nova).
http://www.youtube.com/watch?v=foaewCi1WUI (Flagrante Crueldade na Cidade do Rio
de Janeiro).
http://www.youtube.com/watch?v=Esdxg-6JdFw (Vídeo flagra violência da milícia).
Capítulo V
http://www.youtube.com/watch?v=HzhzKdvqdLw&feature=fvsr (Brasil Urgente - Flagra!!
pessoas ateiam fogo em mendigo)
http://www.youtube.com/watch?v=TGax8rgepMw (Câmera flagra acidente incrível em posto de
gasolina).
http://www.youtube.com/watch?v=PvQLXoYkGpE (Show de vizinha (flagra da madruga))
http://www.youtube.com/watch?v=Pt4eEVepkEY (VIZINHA).
http://www.youtube.com/watch?v=q6a_V2qUEDQ (Flagra Briga por causa de Discussão de
trânsito acaba em pancadaria em Curitiba).
http://www.youtube.com/watch?v=1EfkoJfE-Ok (Flagra de empregada roubando).
337
http://www.youtube.com/watch?v=ysgPziWddxo&feature=related (Corrupção no GDF -
Governador Arruda recebe dinheiro de propina).
http://www.youtube.com/watch?v=EWC_B1u0hBE (Me meu Chip Pedro. Manda meu
Chip Pedro. Joga meu CHIPE).
http://www.youtube.com/watch?v=PSW2bDMydWI (Travestis e o cliente | Briga na
Lapa).
http://www.youtube.com/watch?v=K6Wz6JeN_mo (FLAGRA PUNHETEIROS).
http://www.youtube.com/watch?v=1Y_ULm0GdSU (flagra acidente em trecho da BR-040).
http://www.youtube.com/watch?v=24ddm0URXVc&feature=fvsr (Flagras na praia).
http://www.youtube.com/watch?v=IGm33mba3XY (Estabaco de Caetano Veloso em
Brasília).
http://www.youtube.com/watch?v=jWBBHkvuugk&feature=related (Céu Espaçonave).
http://www.youtube.com/watch?v=Y3Zsv0XxLcE&feature=related ("Aí ele é terrível" diz
Galvão).
http://www.youtube.com/watch?v=iDsDhoieK98 (Novela Viver a Vida 16-10-09 Parte 3).
http://www.youtube.com/watch?v=t3byaW_ZACg&feature=related (Incêndio no centro do
Rio de Janeiro - 18-03-2010 vídeo desse Flagrante enviado).
http://www.youtube.com/watch?v=87xcp4FeQSI (Jeremias)
http://www.youtube.com/watch?v=2MVZjCAjxro&feature=related (Funk do Jeremias).
http://www.youtube.com/watch?v=Ci59DHuGw_s&feature=related (Duas novinhas
dançando funk).
http://www.xvideos.com/video30181/dancing_funk_public
http://www.xvideos.com/video263611/hot_maria_naked_in_public
http://www.xvideos.com/video223613/flash_in_public_bikova_3
http://www.youtube.com/watch?v=Iy_SQ-e1Paw (PAPARAZZO FLAGRA EX-RONALDINHA NA
PRAIA Atualíssima).
http://www.youtube.com/watch?v=0XEz-jww8AE (João Gordo soco em paparazzo).
http://www.youtube.com/watch?v=XUsvbjMOhP4 (Carolina Dieckmann flagrada em momento
fofo com o filho José HD).
http://www.youtube.com/watch?v=apx91au940A (Gisele Bundchen atacada por paparazzi).
http://www.youtube.com/watch?v=VDXih9qNmes&feature=related (cabeção da malhação:
perdeu a linha!).
http://www.youtube.com/watch?v=ePepd8snq7c (Luana Piovani & paparazzo).
http://www.youtube.com/watch?v=LSU0ZKFAOHU (Nana Gouvêa gostosa curtindo praia
no Rio Tv fama).
http://www.youtube.com/watch?v=NtQCMUw4tB8&feature=related (Nicole Bahls -
Praia - Site TV Fama).
338
http://www.youtube.com/watch?v=U3DoHCx0TUw&feature=related (Prudente esconde
dinheiro na meia).
http://www.youtube.com/watch?v=K5numKlskqI (Traficantes da Ladeira dos Tabajaras).
http://www.youtube.com/watch?v=DGhMpu_Rdzo (Tentativa de suborno em Teresina).
http://www.youtube.com/watch?v=f1ukwB_8tXE&feature=related (Aluno registra venda e
consumo de maconha na Universidade Federal Rural de PE).
http://www.youtube.com/watch?v=TBnA4Jrw7uo&feature=related (Reportagem flagra
consumo livre de drogas no campus da UFRPE Vídeos Polícia Tráfico).
http://www.youtube.com/watch?v=80qcVucc_BY&feature=related (Vídeo da Festa do PCC).
http://www.youtube.com/watch?v=vXyrsrdOQlk (Flagra no BBB7 Siririca da Bruna)
http://www.youtube.com/watch?v=eVDT6pDY9I8&feature=related (BBB8 Thati pelada)
http://www.youtube.com/watch?v=jZRI1334pGg&feature=related (BBB7- Festa Mexicana -
Fani daa sem (??) calcinha).
http://www.youtube.com/watch?v=9R42l9aUmMI (Priscila lokinha que coloquem na
garagem dela).
http://www.xvideos.com/video311035/voyeur_en_el_bosque
http://www.xvideos.com/video270229/fantastic_french_vintage_porn
http://www.xvideos.com/video261353/vintage_porn.
http://www.youtube.com/watch?v=m4oQuZk6Ll4 (Por baixo da saia).
http://www.youtube.com/watch?v=pYjhFEqnSes&feature=related (gostosa trocando de
roupa no provador parte 2).
http://www.xvideos.com/video32391/camera_escondida_no_banheiro2.
http://www.xvideos.com/video177647/flagra_camera_escondida_garota_faz_boquete.
http://www.xvideos.com/video66009/hidden_cam_home_teacher.
http://www.xvideos.com/video219215/spycam_sex_video.
http://www.xvideos.com/video230034/security_cam_fucking_outside_part_2.
http://www.xvideos.com/video65129/caught_my_sister_masturbating.
http://www.xvideos.com/video92453/night_time_spying_on_chick.
http://www.xvideos.com/video370017/erotic_film.
http://www.youtube.com/watch?v=MNI0Q9_a_Ww (Creating myself as a Sim in The Sims
3).
http://www.youtube.com/watch?v=6rMloiFmSbw (Tapa na Pantera VERSÃO OFICIAL).
http://www.youtube.com/watch?v=7fY99b2zO_c (Vanucci Bêbado LEGENDADO!!).
http://www.youtube.com/watch?v=ltvKlUcu9Mw (Segredo da Beleza)
http://www.youtube.com/watch?v=ZooUIgDxMlA (Sims 3 Creating a Sim).
http://www.youtube.com/watch?v=pLT261vlVZI (A vida de Amy Winehouse em The Sims
2).
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