80
característicos de períodos específicos na história da música erudita, delineando momentos
distintos no arranjo. Como exemplo desse tipo de procedimento, podemos citar: “Nuvens” e
“A morte de um deus de sal”. Nos primeiros compassos de “Nuvens”, o piano faz
exposição do tema tocando a melodia na mão direita e executando na mão esquerda um
acompanhamento tipo ‘baixo de Alberti’
88
e, a partir do oitavo compasso, a melodia
continua no piano, porém ‘vira’ um samba-canção, com acompanhamento de contrabaixo,
bateria e cordas. Em “Nuvens”, o caráter de fricção de musicalidades é muito evidente:
basta ouvir os primeiros 16 compassos e podemos perceber claramente o ‘momento
clássico’ e o ‘momento samba-canção’. Em “A morte de um deus de sal’, também existem
dois momentos muito distintos. Trata-se de um tema originalmente em compasso ternário,
cuja letra narra a estória de um pescador - João- que foi para o mar e não voltou. No
arranjo, utilizaram piano, contrabaixo, bateria, violão, flauta e o vocal. No final da música
cantam a cappella
89
, num arranjo vocal que remete à linguagem de escrita musical do
barroco, especificamente para órgão de tubo. Nesse trecho, dentre os elementos que
colaboram para essa associação, podemos destacar: o tipo de condução de vozes, os
ornamentos, bem como a presença do contrabaixo tocado com arco, funcionando como uma
voz adicional sustentando as notas graves.
Em “Berimbau” ainda notamos outros recursos bastante empregados em outros
arranjos do grupo: quebra de continuidade na levada do samba; uso do texto da canção
como gerador de ideias para arranjo instrumental ou vocal; improvisação sobre estrutura
harmônica e/ou formal diferente da proposta pela composição original; arranjo vocal
utilizando pequenos intervalos entre as vozes.
88
“Baixo de Alberti Na música para teclado, uma figuração de acompanhamento para a mão esquerda,
consistindo de tríades arpejadas, habitualmente com as notas tocadas na seguinte ordem: mais baixa, mais
alta, central, mais alta; o nome vem de Domenico Alberti (c.1710-1740), o primeiro compositor a utilizá-la
com regularidade.” (SADIE, 1994, p. 67). Esse tipo de acompanhamento era largamente utilizado em peças
escritas para teclado no período do classicismo. No arranjo de “Nuvens”, embora Luiz Eça não utilize
exclusivamente notas das tríades, o acompanhamento arpejado que ele executa remete diretamente à
sonoridade do baixo de Alberti.
89
“a cappella (...)Expressão que designa a música coral cantada sem acompanhamento instrumental.”(SADIE,
1994, p. 4). No arranjo vocal de “A morte de um deus de sal” do trecho a cappella o contrabaixo participa,
porém executando uma linha com arco que poderia ser considerado como 4ª voz.