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FREUD
SIGMUND
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Ministério da Educação | Fundação Joaquim Nabuco
Coordenação executiva
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier e Isabela Cribari
Comissão técnica
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier (presidente)
Antonio Carlos Caruso Ronca, Ataíde Alves, Carmen Lúcia Bueno Valle,
Célio da Cunha, Jane Cristina da Silva, José Carlos Wanderley Dias de Freitas,
Justina Iva de Araújo Silva, Lúcia Lodi, Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero
Revisão de conteúdo
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier, Célio da Cunha, Jáder de Medeiros Britto,
José Eustachio Romão, Larissa Vieira dos Santos, Suely Melo e Walter Garcia
Secretaria executiva
Ana Elizabete Negreiros Barroso
Conceição Silva
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FREUD
SIGMUND
Bernard Jolibert
Tradução e organização
Elaine Terezinha Dal Mas Dias
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ISBN 978-85-7019-555-5
© 2010 Coleção Educadores
MEC | Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana
Esta publicação tem a cooperação da UNESCO no âmbito
do Acordo de Cooperação Técnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a
contribuição para a formulação e implementação de políticas integradas de melhoria
da equidade e qualidade da educação em todos os níveis de ensino formal e não
formal. Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos
neste livro, bem como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as
da UNESCO, nem comprometem a Organização.
As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo desta publicação
não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO
a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região
ou de suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites.
A reprodução deste volume, em qualquer meio, sem autorização prévia,
estará sujeita às penalidades da Lei nº 9.610 de 19/02/98.
Editora Massangana
Avenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540
www.fundaj.gov.br
Coleção Educadores
Edição-geral
Sidney Rocha
Coordenação editorial
Selma Corrêa
Assessoria editorial
Antonio Laurentino
Patrícia Lima
Revisão
Sygma Comunicação
Revisão técnica
Sandra Francesca Conte de Almeida
Jeanne Marie Claire Sawaya
Ilustrações
Miguel Falcão
Foi feito depósito legal
Impresso no Brasil
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Fundação Joaquim Nabuco. Biblioteca)
Jolibert, Bernard.
Sigmund Freud / Bernard Jolibert; tradução: Elaine Teresinha Dal Mas Dias.
Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.
120 p.: il. – (Coleção Educadores)
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7019-555-5
1. Freud, Sigmund, 1856-1939. 2. Educação – Pensadores – História. I. Título.
CDU 37
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SUMÁRIO
Apresentação, por Fernando Haddad, 7
Ensaio, por Bernard Jolibert, 11
Uma vida, uma obra, 12
A educação, 14
O real, 20
A educabilidade, 25
Os fins, 29
Textos selecionados, 33
Uma breve descrição da psicanálise, 33
O inconsciente, 55
A consciência e o que é inconsciente, 56
O ego e o id, 61
Repressão, 70
A sexualidade infantil, 83
O descaso para com o infantil, 83
Amnésia infantil, 84
O período de latência
sexual da infância e suas rupturas, 86
As manifestações da sexualidade infantil, 88
O alvo sexual da sexualidade infantil, 91
As manifestações sexuais masturbatórias, 93
A investigação sexual infantil, 101
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6
As fases de desenvolvimento
da organização sexual, 104
As fontes da sexualidade infantil, 107
Cronologia, 115
Bibliografia, 117
Obras de Sigmund Freud em português, 117
Obras sobre Sigmund Freud em português, 117
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7
O propósito de organizar uma coleção de livros sobre educa-
dores e pensadores da educação surgiu da necessidade de se colo-
car à disposição dos professores e dirigentes da educação de todo
o país obras de qualidade para mostrar o que pensaram e fizeram
alguns dos principais expoentes da história educacional, nos pla-
nos nacional e internacional. A disseminação de conhecimentos
nessa área, seguida de debates públicos, constitui passo importante
para o amadurecimento de ideias e de alternativas com vistas ao
objetivo republicano de melhorar a qualidade das escolas e da
prática pedagógica em nosso país.
Para concretizar esse propósito, o Ministério da Educação insti-
tuiu Comissão Técnica em 2006, composta por representantes do
MEC, de instituições educacionais, de universidades e da Unesco
que, após longas reuniões, chegou a uma lista de trinta brasileiros e
trinta estrangeiros, cuja escolha teve por critérios o reconhecimento
histórico e o alcance de suas reflexões e contribuições para o avanço
da educação. No plano internacional, optou-se por aproveitar a co-
leção Penseurs de l´éducation, organizada pelo International Bureau of
Education (IBE) da Unesco em Genebra, que reúne alguns dos mai-
ores pensadores da educação de todos os tempos e culturas.
Para garantir o êxito e a qualidade deste ambicioso projeto
editorial, o MEC recorreu aos pesquisadores do Instituto Paulo
Freire e de diversas universidades, em condições de cumprir os
objetivos previstos pelo projeto.
APRESENTAÇÃO
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8
Ao se iniciar a publicação da Coleção Educadores
*
, o MEC,
em parceria com a Unesco e a Fundação Joaquim Nabuco, favo-
rece o aprofundamento das políticas educacionais no Brasil, como
também contribui para a união indissociável entre a teoria e a prá-
tica, que é o de que mais necessitamos nestes tempos de transição
para cenários mais promissores.
É importante sublinhar que o lançamento desta Coleção coinci-
de com o 80º aniversário de criação do Ministério da Educação e
sugere reflexões oportunas. Ao tempo em que ele foi criado, em
novembro de 1930, a educação brasileira vivia um clima de espe-
ranças e expectativas alentadoras em decorrência das mudanças que
se operavam nos campos político, econômico e cultural. A divulga-
ção do Manifesto dos pioneiros em 1932, a fundação, em 1934, da Uni-
versidade de São Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em
1935, são alguns dos exemplos anunciadores de novos tempos tão
bem sintetizados por Fernando de Azevedo no Manifesto dos pioneiros.
Todavia, a imposição ao país da Constituição de 1937 e do
Estado Novo, haveria de interromper por vários anos a luta auspiciosa
do movimento educacional dos anos 1920 e 1930 do século passa-
do, que só seria retomada com a redemocratização do país, em
1945. Os anos que se seguiram, em clima de maior liberdade, possi-
bilitaram alguns avanços definitivos como as várias campanhas edu-
cacionais nos anos 1950, a criação da Capes e do CNPq e a aprova-
ção, após muitos embates, da primeira Lei de Diretrizes e Bases no
começo da década de 1960. No entanto, as grandes esperanças e
aspirações retrabalhadas e reavivadas nessa fase e tão bem sintetiza-
das pelo Manifesto dos Educadores de 1959, também redigido por
Fernando de Azevedo, haveriam de ser novamente interrompidas
em 1964 por uma nova ditadura de quase dois decênios.
*
A relação completa dos educadores que integram a coleção encontra-se no início deste
volume.
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9
Assim, pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estágio da
educação brasileira representa uma retomada dos ideais dos mani-
festos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com o
tempo presente. Estou certo de que o lançamento, em 2007, do
Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), como mecanis-
mo de estado para a implementação do Plano Nacional da Edu-
cação começou a resgatar muitos dos objetivos da política educa-
cional presentes em ambos os manifestos. Acredito que não será
demais afirmar que o grande argumento do Manifesto de 1932, cuja
reedição consta da presente Coleção, juntamente com o Manifesto
de 1959, é de impressionante atualidade: “Na hierarquia dos pro-
blemas de uma nação, nenhum sobreleva em importância, ao da
educação”. Esse lema inspira e dá forças ao movimento de ideias
e de ações a que hoje assistimos em todo o país para fazer da
educação uma prioridade de estado.
Fernando Haddad
Ministro de Estado da Educação
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10
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11
Em um ensaio publicado em 1925, intitulado Um estudo autobio-
gráfico
3
, Sigmund Freud nos indica, expressamente, que sua vida,
sua obra e o acolhimento que estas receberam não devem jamais
ser dissociadas entre si, se deseja-se compreender sua descoberta
da psicanálise, ao mesmo tempo como prática terapêutica e como
teoria metapsicológica. Nessa estreita ligação, um elemento irá
dominar, a ponto de se constituir o verdadeiro projeto existencial:
a vontade de compreender a única coisa que importa, o homem.
Um estudo autobiográfico, diz o autor,
mostra como a psicanálise torna-se o conteúdo de minha vida e se
conforma, seguidamente, ao princípio justificado que nada do que
me ocorre pessoalmente merece interesse ou vigilância, em compara-
ção com minhas relações com a ciência.
4
O elemento dominante, nessa estreita ligação entre existência,
projeto científico e relação com o mundo, é o projeto intelectual
que conduz à descoberta da psicanálise, entendida indissoluvelmente
SIGMUND FREUD
1
(1856-1939)
Bernard Jolibert
2
1
Este perfil foi publicado em Perspectives: revue trimestrielle d’éducation comparée.
Paris, Unesco: Escritório Internacional de Educação, v. 22, n. 3-4, pp. 467-479, 1993.
2
Bernard Jolibert (França) é professor de Ciências da Educação e de História do Pensa-
mento Educativo na Universidade de La Réunion. Autor de L’enfance au XVIIe siècle
(1981); L’éducation: l’idée de raison dans l’histoire de la pensée éducative (1987);
L’éducation contemporaine (1989); Fundador da coleção Philosophie de l’éducation das
Éditions Klincksieck (Paris, França); traduziu e publicou De Magistro, de Santo Agostinho,
assim como a Grande Didactique, de Comênio e De Pueris, de Erasmo.
3
Tradução para o francês: Sigmund Freud présenté par lui-même, Paris, Gallimard, 1991.
4
Idem, pp.121 e 122, post-scriptum de 1935.
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12
como terapêutica e como modelo hipotético de compreensão dos
comportamentos humanos. Qual foi o itinerário de Freud?
Uma vida, uma obra
Para ser fiel a Freud, o melhor é seguir seu próprio relato
autobiográfico, que poderíamos intitular, à maneira de Allan, “a
história de minhas ideias”, tanto pelas descobertas científicas prin-
cipais como pelas etapas essenciais sobre o caminho da vida.
O primeiro grande período corresponde aos anos de apren-
dizagem. Nascido em Freiberg, em 6 de maio de 1856, na Moravia
(atual República Checa), Freud diz ter de sua origem judaica três
qualidades que o auxiliaram muito nessa luta: veneração pelo co-
nhecimento em geral, sobretudo pelas ciências; espírito crítico bas-
tante livre; e grande resistência à hostilidade. Quanto à sua situação
familiar, ele parece deixar como exemplar o complexo de Édipo:
um pai que se casa com uma jovem mulher, pouco mais velha que
os filhos do primeiro casamento.
A sede de saber vai orientar desde o início o jovem Freud
para a medicina, a botânica, a química, a anatomia patológica e
também para a filosofia e para a história. Como escreveu, justa-
mente, M. Robert:
Materialista, positivista… firmemente convencido de que as causas
das doenças devem ser procuradas no organismo e que a opinião
contrária não passa de uma ilusão ou um pré-julgamento, o Freud
anterior a Freud poderia, sem dúvida, ser um desses pesquisadores
eminentes no estreito círculo de sua especialidade, mais ou menos
distante do grande público.
5
Uma nova experiência médica introduziu uma mudança de
orientação e abriu um novo período que Freud chamou com hu-
mor a “pré-história catártica da psicanálise”
6
. Confrontando os
pacientes, injustamente qualificados de “simuladores” ou de “ner-
5
Robert, M. Artigo Sigmund Freud, in Encyclopaedia Universalis, Paris, 1980, v. 7, p.384.
6
Sigmund Freud: autobiografia, op. cit. p.93.
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13
vosos”, ele começa a dedicar-se à delicada questão da histeria. No
contato com Charcot, em Paris, com Liebault e com Bernheim,
em Nancy, depois com Janet, ele descobre, pela hipnose e pela
sugestão médica, que poderiam existir “processos psíquicos po-
derosos que não se subtraem da consciência do homem”
7
e o
impulsionam a agir sem saber por quê. Rapidamente, compreen-
de que os sintomas histéricos se ligam a experiências esquecidas. A
crise catártica mostra que o sintoma nasce da retenção de um afeto
e que esse afeto é, frequentemente ligado à sexualidade. Contrari-
amente ao que pensa Janet, o histérico não sofre de uma fraqueza
constitucional que leva a uma clivagem psíquica; deve se falar de
um verdadeiro conflito “psíquico inconsciente”, ainda que essa
expressão possa parecer monstruosa
8
. A desventura de Breuer com
Anna confirma que, na experiência catártica, o histérico não é si-
mulador, mas um doente que busca a expressão de algo a que
habitualmente não tem acesso.
Freud mesmo admitiu que o período histórico da psicanálise se
inicia com a comprovação de que a ab-reação não é suficiente para
curar o doente. Existem resistências e recalques que devem ser trazi-
dos à luz para que sejam substituídos por “atos de juízo que condu-
zam à aceitação ou à rejeição”
9
daquilo que foi anteriormente repri-
mido. A livre expressão do paciente impedirá recaídas que duram
muito tempo, coisa que a simples catarse não permitia.
Inicia, então, o período analítico propriamente teórico, que
deve ser entendido como a “tentativa de se representar o apare-
lho psíquico com base em determinado número de instâncias ou
de sistemas, e de se conhecer as relações existentes entre eles”
10
.
As doutrinas da resistência e do recalcamento, do inconsciente,
da significação etiológica da vida sexual e a importância das ex-
7
FREUD, 1991, p.30.
8
Id., ib., p.54.
9
Id., ib., p.51.
10
Id., ib., p.55.
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14
periências vividas na infância são os principais elementos do edi-
fício teórico da psicanálise”
11.
A partir dessa época, Freud não estava mais sozinho; seus cola-
boradores e seus discípulos adquirem importância crescente, com o
risco de deformar e de trair a inspiração de sua busca. Parece inútil
entrar nas querelas de doutrina que irão assombrar a velhice do pai
da psicanálise. Seu trabalho se orientou para o aprofundamento e a
generalização dos resultados obtidos em outros domínios do co-
nhecimento (antropologia, história, religião, sonhos, provérbios, ar-
tes etc.). A glória alcançará Freud ao mesmo tempo em que o des-
gosto, com a ascensão do nazismo na Alemanha:
É em 1929 que Thomas Mann, um dos autores com maior vocação
para porta-voz do povo alemão, atribuiu-me um lugar na história do
pensamento moderno, com frases benevolentes e ricas de conteúdo.
Pouco tempo depois, minha filha Anna foi festejada na prefeitura de
Francfort-sur-le-Main, no momento em que recebeu, em meu lugar, o
prêmio Goethe que me foi conferido em 1930. Esse foi o ponto
culminante de minha vida social; pouco tempo depois nossa pátria foi
confinada em sua estreiteza e a nação não mais quis saber de nós.
12
Em 1938, um ano antes de sua morte, Freud deixou Viena,
onde havia passado toda sua vida, obrigado ao exílio pela chegada
do nazismo.
A educação
O que se pode dizer da aplicação da psicanálise à pedagogia?
Freud diz que, pessoalmente, não contribuiu em nada, deixando
para Melanie Klein e Anna Freud, sua filha, o cuidado de uma
aplicação do modelo metapsicológico ao campo da educação
13
.
Contudo, a infância está presente em toda reflexão freudiana.
Raras são as notas analíticas que não fazem referência a ela. Da teoria
11
Id., ib., p.67.
12
Idem p.124.
13
Idem, p.118.
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15
das fases ao conceito de “sedução precoce”, da ideia de sexualidade
infantil ao complexo de Édipo, o conjunto da obra repousa sobre
uma teoria da infância e de seu desenvolvimento. A infância aparece
como um período determinante para a formação da pessoa.
Assim, a influência de Freud sobre a reflexão educativa do
século XX é decisiva, e são raros os autores contemporâneos que
tenham abordado a pedagogia sem fazer referência direta ou indi-
reta a Freud. Alguns se apoiam explicitamente em sua doutrina
para justificar uma concepção, outros se limitam a tomar empres-
tados certos conceitos. Não é certo, contudo, que esse sucesso in-
contestável não esteja ligado a certa flutuação na interpretação, pois
aqueles que o veem como denunciador da assimilação (educação
– autoridade – neurose) o consideram partidário da não diretivi-
dade, enquanto outros recorrem a ele em apoio à autoridade adul-
ta. Os intérpretes de Freud dividem suas postulações em visões
contraditórias acerca do papel e dos limites da educação.
Talvez isso se deva ao fato de Freud não ter deixado nenhum
tratado específico sobre a questão educativa. De fato, Freud jamais
redigiu um trabalho tendo como objeto esse problema, o que não o
impediu, contudo, ao longo de sua obra, de pesquisar, examinar,
criticar, se necessário, o papel dos professores, dos pais, ou seja, a
autoridade adulta sobre a criança. Não há obra de Freud, em um
momento ou outro de seu desenvolvimento, em que não seja cote-
jada a questão educativa. Desde Três ensaios sobre a teoria da sexualidade
(1905) até Mal-estar na civilização (1930), as referências à educação são
constantes. Se conservadores e revolucionários defendem suas teses,
significa que essa reflexão dispersa, que responde a questões tão di-
versas quanto as que se encontram em Totem e tabu e no Caso do
pequeno Hans, em Cinco lições de psicanálise, é essencial. Talvez, entre-
tanto, pudesse parecer ambígua em uma leitura superficial.
Na realidade, o pensamento de Freud sobre a educação, como
veremos, sobre a questão da adaptação da criança à realidade, ao
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16
mesmo tempo natural e social, testemunha uma unidade, uma con-
tinuidade e uma firmeza indubitável. Sua coerência deriva, sem
dúvida, do fato de a psicanálise não se reduzir a uma simples
metodologia terapêutica, mas ser encarada como um ponto de
vista global sobre a existência, no qual a vida da criança é um
momento primeiro e fundador.
O ponto de partida do pensamento de Freud sobre a educação
situa-se na confluência de dois questionamentos: um questionamento
biológico e um questionamento histórico. A biologia, primeira disci-
plina de Freud, permitiu-lhe descobrir a imaturidade da criança ao
nascer. Comparado com outras espécies animais, o pequeno ho-
mem parece inacabado. Não somente ele nasce nu e incapaz de se
nutrir, como esse estado dura muito tempo. Essa debilidade nativa
o condena a uma proteção e, por conseguinte, uma influência muito
longa e muito importante da parte dos adultos. A história individual
infantil é marcante e seus traços subsistem, indeléveis, no homem
adulto. Essa primeira intuição foi sistematizada por Freud em seus
trabalhos iniciais ao rejeitar sucessivamente a explicação “nervosa”
dos transtornos mentais
14
e ao refutar a suposição da neurose pela
hereditariedade
15
. Ele vê nas transformações da infância a origem
dos transtornos dos adultos. Como, então, não considerar a questão
educativa como essencial? Se o adulto é filho da criança, como dei-
xar de lado a questão da infância e sua educação?
A cultura pessoal de Freud o conduziu a perceber, para além das
diferenças históricas, das divergências culturais, da variedade dos fatos
da civilização, uma mesma problemática: a condição do homem como
ser cultural. Por toda parte há, certamente, uma porção da natureza,
do biológico, dos instintos, mas o homem se torna homem porque
esse instinto passa pelo outro, pela disciplina da cultura. Essa passa-
gem, cujo protótipo é o Édipo, é que define a condição humana. O
14
Freud, S. e Breuer, J.. Estudo sobre a histeria, Paris, PUF., 1956.
15
Freud, S. Neurose e psicose.
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17
encontro do desejo natural e da cultura se faz, inicialmente pela inter-
dição do incesto, qualquer que seja a forma que ele adote. Essa lei
primordial do desenvolvimento, analisada do ponto de vista filogenético
em Totem e tabu, e do ponto de vista ontogenético em Inibição, Sintoma
e Angústia, marca o modelo pelo qual a cultura se institui em nós.
Compreende-se, então, que partindo desse duplo ponto de vista,
Freud foi conduzido, desde o início de sua pesquisa sobre a histeria e
a etiologia das neuroses, a uma interrogação sobre o sentido e os
valores dessa prática, que não tem outra finalidade senão fazer com
que a criança passe do imediatismo do desejo à realidade social. A
educação se define como uma ação do adulto sobre a criança, ação
da passagem do prazer à realidade, quer dizer, do desejo bruto ao
desejo socializado, integrado a um universo inter-humano regrado.
Como se faz essa integração?
É importante notar que Freud não recorreu, para explicar a soci-
alização do indivíduo, a hipóteses como a maturação, que supõe uma
espécie de aptidão vazia que os costumes sociais viriam preencher.
Freud evita o debate entre o inato e o adquirido. Para explicar a soci-
alização da criança, Freud invoca a necessidade de uma ação repressi-
va. A educação começa impedindo a livre expressão de certas tendên-
cias pulsionais espontâneas. Assim, a função repressiva da educação
não é, por si mesma, uma função anexa, parasitária, passível de su-
pressão; a interdição constitui a essência da ação socializante.
É durante o período da latência, total ou parcial, que se constitu-
em as forças psíquicas que, mais tarde farão obstáculos às pulsões
sexuais que, semelhantes à maneira de diques, limitarão e estreitarão
seus cursos (o asco, o pudor, as aspirações morais, estéticas). Frente à
criança nascida em uma sociedade civilizada, se tem o sentimento de
que a construção desses diques é obra da educação.
16
16
Freud, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Paris, Gallimard, 1962, p.69 e 70.
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18
A psicanálise do pequeno Hans confirma essa concepção. A
conclusão do comentário de Freud recorda
17
que até o momento
presente, a tarefa da educação se apresenta como uma tarefa de
“dominação ou, mais especificamente, de repressão dos instintos”.
Ele acrescenta, imediatamente, que na educação mais suave, a que
tenta evitar que a interdição degenere a um estado mórbido, subsiste
um mínimo necessário de proibição. Para se fazer um indivíduo
“capaz de cultura”, para se fazer um ser “socialmente utilizável”, é
exigido um mínimo de sacrifício de sua atividade pulsional imediata.
Devemos deduzir que a ação da educação consiste em substi-
tuir o desejo pela regra social, em instaurar novo princípio de
regulação psíquica no lugar do prazer? O princípio de realidade
substituiria o princípio do prazer. Freud seria, então o inspirador
das doutrinas educativas totalitárias. Se o desprazer é o único meio
educativo eficaz, o princípio do prazer e o princípio de realidade
aparecem como radicalmente inconciliáveis. O conjunto do apare-
lho psíquico do indivíduo obedeceria ou bem a um ou a outro
princípio, em uma alternativa sem combinação possível. Se educar
é substituir o prazer pela realidade, o instinto pela sociedade, o
desejo pela regra, a socialização é uma substituição pura e simples.
À obediência interna ao prazer, derivado da descarga imediata de
energia, se substitui à regra exterior, natural (dureza da realidade)
ou cultural (leis, princípios morais, costumes que preexistem soci-
almente à vinda de uma criança ao mundo).
A educação seria, então, a prática (técnicas, procedimentos, mé-
todos, conteúdos pedagógicos) pela qual os adultos imporiam às
crianças, mais ou menos rigorosamente, a renúncia ao imediatismo
do prazer instintual, substituindo-o pela obediência à realidade. Essa
substituição implicaria sofrimento corretivo que seria necessário cui-
dar para que não degenerasse em um estado mórbido.
17
Freud, S. O caso do pequeno Hans, Paris, PUF., 1954, p.197.
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19
De fato, se Freud não parece jamais renunciar à sua ideia de que
um mínimo de repressão instintual é necessário na educação, ele é
muito menos categórico quanto à alternativa que ela parece implicar.
Vê-se rapidamente, então, que se a finalidade da educação é
instaurar o princípio de realidade como princípio regulador das
condutas individuais, essa instauração não implica de maneira al-
guma uma substituição. Na realidade, não se trata de renunciar ao
prazer, mas ao seu caráter imediato. Assim mesmo, não se trata de
rejeitar a vida pulsional, de negá-la (Freud sabe bem que essa rejei-
ção equivale a uma negativa sem eficácia), mas de adaptá-la, de
ajustá-la a uma realidade natural e social incontornável, realidade
na qual deve encontrar sua expressão.
Vê-se que a educação, segundo Freud, não visa a uma substi-
tuição ingênua ou ilusória, mas uma espécie de adaptação que per-
mita conservar na realidade, sob uma forma modificada, aceitável
pela realidade, todo ou parte desse prazer regulador necessário ao
aparelho psíquico. Se quisermos compreender como é possível
chegar a um acordo entre realidade e prazer, é necessário delimitar
esses dois princípios.
O princípio do prazer é um princípio na medida em que regula
repentinamente a atividade global do indivíduo em estado bruto.
Poderíamos defini-lo dizendo que ele fornece uma regra principal,
segundo a qual nossas ações, nossos sentimentos, nosso pensamento
em geral são governados pela busca do prazer e pela evitação do
desprazer:Aparentemente, o conjunto do nosso aparelho psíquico
tem o propósito de procurar o prazer e evitar o desprazer; ele é
regido automaticamente pelo princípio do prazer”
18
. “Os homens
querem ser felizes e assim permanecer. Essa aspiração tem duas
faces, um propósito negativo e um propósito positivo: de um lado
evitar a dor e de outro buscar um gozo intenso”
19.
18
Freud, S. Essais de Psychanalyse Appliquée, Paris, Gallimard 1933, p.13.
19
Freud, S. O mal-estar da civilização, Paris, PUF., 1971, p.20.
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20
Freud acrescenta imediatamente que esse princípio determina
não somente o propósito da existência, mas governa desde a ori-
gem todas as operações do aparelho psíquico.
Poder-se-ia dizer que a neurose, em sua integralidade, provém
da interdição. A instituição educativa seria patológica, por essência,
pois prejudica a expressão de um princípio natural. A verdadeira
educação consistiria, ao contrário, em reconhecer esse princípio
como regulador. A pedagogia sem frustração nem repressão seria
possível numa espécie de harmonia espontânea dos prazeres e dos
desejos inter-humanos.
O real
Por que Freud não retém essa hipótese? Não disse ele que “o
homem primitivo era privilegiado, já que não conhecia nenhuma
restrição de seus instintos?”
20
. Às vezes, pode-se observar alguns
traços de nostalgia da inocência perdida nas críticas que Freud di-
rige à educação desmedidamente repressiva de seu tempo. Por
que, todavia, é impossível conceber uma educação não repressiva?
As causas são diversas e múltiplas.
Primeiramente, o princípio do prazer não pode se constituir
em um objetivo. Por essência, o prazer existe no desequilíbrio. E
esse desequilíbrio entra em conflito com o mínimo de estabilidade
que necessita toda civilização. A conjunção entre tensão progressi-
va e estabilidade é impossível. Ademais, se o princípio do prazer
explica bem os movimentos humanos, seu objetivo de uma felici-
dade perfeita, infinita, eterna, é irrealizável. Essa crítica centra-se na
insuficiência interna do princípio do prazer:
O que se nomeia felicidade, em sentido mais restrito, é resultado de uma
satisfação repentina de necessidades que alcançaram alta-tensão e que,
por sua própria natureza, só é possível sob a forma de fenômeno
episódico. Toda persistência desse estado procurado pelo princípio do
20
Idem, p.69.
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21
prazer gera apenas um bem-estar um tanto superficial… Dessa maneira,
nossas faculdades de felicidade estão limitadas pela nossa constituição.
21
Nesse sentido, o prazer não é suficiente para definir um obje-
tivo, já que passa seu tempo afastando-se de si mesmo.
Ademais, o prazer está vinculado, indissoluvelmente e estrutu-
ralmente, à dor. O desprazer nos é muito mais familiar do que o
prazer, e sua experiência provoca angústia. Nosso próprio corpo,
em sua decadência e sua dissolução, nos convida a reduzir nossa
pretensão à felicidade absoluta. O mundo exterior, com suas for-
ças inexoráveis naturais, trabalha para nossa aniquilação; os outros
seres humanos nem sempre desejam nosso bem. Todos esses fe-
nômenos nos convidam a limitar nossa pretensão de colocar o
princípio do prazer no lugar à posição de arquétipo educativo.
Mas a impossibilidade de uma educação não repressiva não
repousa somente na análise interna do mecanismo do prazer. Freud
ligou a necessidade da educação a uma crítica severa ao estado do
“homem primitivo”, estado de um ser voltado somente para o
livre gozo de suas pulsões. Esse homem, certamente, possui um
número de instintos fundamentais, mas a ausência da regulação
inter-humana faz com que, mesmo que ele possa gozar, esse gozo
não é nem garantido nem desejável.
Os desejos instintivos são os mesmos do ponto de vista
filogenético e ontogenético. Idênticos na história da espécie e na
história individual; e reaparecem em cada criança que nasce: “Os
desejos instintivos que sofrem as consequências da cultura renas-
cem com cada criança… Esses desejos primitivos são aqueles do
incesto, do canibalismo e assassinato”.
22
Da mesma maneira que a civilização começou a afastar-se do
“estado primitivo” graças à “frustração”, à “privação” e à “inter-
dição”, a educação individual, como constrangimento, é uma ne-
21
Idem, pp.20 e 21.
22
Freud, S. O futuro de uma ilusão, Paris, PUF., 1971, p.16.
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22
cessidade que permite que a criança passe do desejo primitivo ao
desejo dominado.
Essa necessidade repousa sobre a impossibilidade real de gozar
livremente de seus instintos, num estado primitivo. Há como uma
liberdade para nada, liberdade sem realização possível devido à du-
reza da natureza, à violência imprevisível das relações sem regra en-
tre os homens. As pulsões agressivas, conflituosas e destrutivas tor-
nam-se autodestrutivas pela ausência de normas.
Essa tendência à agressão “que podemos detectar em nós mes-
mos e que supomos a existência em outro”
23
é a que impõe a passa-
gem a outra ordem de coexistência possível. O desejo, o instinto,
qualquer que seja a forma espontânea com que ele se expresse, não
oferece nenhuma garantia de conduzir ao prazer possível se ele se
contenta em obedecer ao imediatismo que o governa. Uma liberda-
de infinita equivale à negação da liberdade.
O homem primitivo estava em melhores condições, já que não co-
nhecia nenhuma restrição aos seus instintos. Em contrapartida, sua
certeza de gozar durante muito tempo um tal estado de felicidade era
mínima. O homem civilizado fez a troca de uma parte de felicidade
por uma parte de segurança… Informações atuais mais exatas sobre
os costumes dos selvagens nos fazem saber que não temos de inve-
jar, de maneira alguma, a liberdade de sua vida instintiva. De fato,
esses selvagens estão submetidos a restrições de outra ordem, mais
severas, talvez, que as do civilizado moderno. Se censuramos,
justificadamente, nossa civilização atual, que realiza de modo tão
insuficiente a ordem vital de nos fazer felizes – e que exigimos dela –
e que deixa subsistir tantos sofrimentos, provavelmente evitáveis;
se, de outra parte, nos esforçamos, por uma crítica impiedosa, em
descobrir as fontes de sua imperfeição, estamos exercendo nosso
direito sem nos declararmos seus inimigos. É também nosso direi-
to esperar dela, pouco a pouco, mudanças suscetíveis de melhor
satisfazer nossas necessidades, corrigindo assim aquilo que foi criti-
cado. No entanto, poderemos, talvez, nos familiarizar com a ideia de
23
Freud, S. O mal-estar da civilização, op. cit., p.65.
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23
que algumas das dificuldades existentes estão intimamente ligadas à
sua essência e não se renderiam a nenhuma tentativa de reforma.
24
Essa essência é o mínimo de repressão que impõe a disciplina
dos instintos. Essa repressão tem por instrumento a educação. A
educação começa com o desprazer provocado pela autoridade. A
interdição pertence à cultura, ou seja, “esta pela qual a vida humana
ascendeu acima da condição animal”
25
. É por seu intermédio que
o homem consegue reprimir certos instintos que o conduziriam a
uma morte certa. Adaptar-se ao princípio de realidade é tornar-se
capaz desse controle.
Como já visto, a finalidade da educação consiste em instaurar
o princípio de realidade, para dar origem a um processo que dirija
nossas condutas intelectuais, morais e psíquicas. A questão que se
coloca agora é em que consiste essa realidade.
A realidade é tudo o que compõe o mundo externo, tanto natu-
ral como cultural. Ficando no domínio da educação, essa é para
Freud tudo que ocorre à criança, desde que sai da dependência inici-
al da mãe benevolente e protetora. Dito de outro modo, é o que
advém depois que cessa a confusão entre a satisfação objetiva e sua
representação alucinatória. O real, nesse caso, se compõe agora de
todos os elementos naturais e culturais que opõem uma resistência à
criança, introduzindo uma distância entre o desejo e a satisfação. Es-
paço, tempo, alteridade subsumem em seus quadros gerais todos os
casos específicos nos quais a realidade faz face ao desejo imediato.
Essa realidade aparece como inimiga do desejo, e o princípio
de realidade como o de submeter-se a uma coerção inevitável.
Prazer e realidade parecem, então, inconciliáveis. Portanto, e essa é
a força da análise de Freud, esses dois princípios não são contradi-
tórios, mas complementares.
24
Idem, pp.69 e 70.
25
Freud, S. O futuro de uma ilusão, op. cit., p.8.
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24
O princípio do prazer, sozinho, não torna possível a existência
humana nem mesmo a realidade do prazer. De fato, para que se
realize, deve estar combinado com o princípio de realidade. O prin-
cípio do prazer contém seus próprios limites reais e a realidade já
está nele, senão como princípio regulador, está em menor grau como
obstáculo interno:
Cada indivíduo é, virtualmente, um inimigo da civilização que, en-
tretanto, é ela mesma de interesse da humanidade, em geral. É curi-
oso que os homens, que tão mal vivem no isolamento, se sintam tão
oprimidos pelos sacrifícios que a civilização espera deles, para que
seja possível a vida em comum. A civilização deve, assim, ser defen-
dida contra o indivíduo, e sua organização, as suas instituições e leis
se colocam a serviço dessa tarefa.
26
A oposição é apenas “virtual”, é exatamente a socialização,
isto é, a adaptação à realidade, que faz possível a vida em comum,
quer dizer, a realização do prazer. O problema da educação não
consiste somente em interditar, em frustrar, mas em descobrir um
equilíbrio entre a busca do prazer, que continua a reger o equilíbrio
psíquico depois da socialização, e as limitações impostas pela rea-
lidade natural e social aos instintos primitivos. A educação tem por
tarefa disciplinar a natureza instintual, mas deixando lugar ao legí-
timo prazer. Ou melhor, ela controla os conflitos, não os suprime.
Freud nos recorda esse objetivo:
A finalidade principal de toda educação é ensinar a criança a dominar
seus instintos; é impossível, de fato, usufruir uma liberdade total;
autorizar a obediência total aos seus impulsos… A educação deve
inibir, interditar, reprimir, isto é o que ela vem fazendo desde sem-
pre. Mas a análise nos mostra que essa repressão dos instintos é
justamente a causa das neuroses. A educação deve encontrar o cami-
nho entre o Scylla da permissividade e o Charybde da interdição. Se
esse problema não é insolúvel, convém buscar o nível ótimo dessa
educação, quer dizer, uma maneira dela ser mais proveitosa e menos
26
Idem, p.9.
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25
perigosa. Deve-se decidir o que se deve proibir e, em seguida, em que
momento e por qual meio aplicar essa proibição…
A observação mostra que até hoje a educação realizou sua missão de
uma maneira muito defeituosa, que ela prejudicou grandemente as cri-
anças. Se seu nível “ótimo” pode ser descoberto, se ela consegue realizar
plenamente sua obra, então somente ela conseguirá anular o efeito de
um dos fatores da enfermidade: a ação dos traumatismos acidentais da
infância. No que concerne ao outro fator: as exigências de uma constitui-
ção pulsional indócil, a educação jamais poderá suprimi-la.
27
Essa longa citação permite situar o lugar da educação e sua
função no pensamento de Freud. Trata-se, em educando, de passar
entre dois obstáculos: de um lado, a manutenção da brutalidade
original, como resultado da ausência de resistência adulta e, de ou-
tro, a neurose que poderia provocar uma repressão desmedida. Ja-
mais se deve esquecer que, no melhor dos casos, à educação é uma
arte: quando atinge um nível teórico e prático ideal subsiste uma
“constituição natural” que não permite que ela consiga tudo. Certas
naturezas individuais continuam a ser rebeldes à disciplina educativa.
A questão que se coloca, agora, é da conciliação entre o prin-
cípio do prazer e o de realidade. Como a busca do gozo máximo
imediato e sem entraves pode encontrar um terreno de acordo
com a realidade que proíbe, frustra, impõe barreiras? Como ex-
plicar que o aparelho psíquico aceita se curvar à realidade? Sobre
qual instância do sujeito opera a realidade?
A educabilidade
Para ser eficaz, a interdição dever ser interiorizada. A existên-
cia da moral individual mostra que a regra imposta pela realidade
não é exterior ao sujeito, mas que é tomada em sua forma afetiva.
Sua eficácia repousa sobre essa interiorização. A interiorização so-
mente é possível se o sujeito possui uma instância capaz de fazer
sua a exigência social que contrabalança a influência das pulsões. O
27
Freud, S. Novas conferências sobre a psicanálise, Paris, Gallimard, 1965, pp.166 e 167.
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26
sistema freudiano postula, então, uma energia própria no sujeito,
uma espécie de pulsão de conservação de si e de sobrevivência
que contrabalança as forças pulsionais primitivas. É no amor-pró-
prio que está à raiz da obrigação moral e, portanto, de educabilidade.
“O recalcamento, como dissemos, provém do eu; podemos pre-
cisar: da estima de si mesmo (selbstachtung) que tem o eu.”
28
A interdição exterior, a frustração, corresponde a um meca-
nismo interno que é a condição mesma da educabilidade e faz
com que o homem não seja endireitado mecanicamente, mas seja
educado, quer dizer, capaz de autorregulação.
É, portanto, o eu, com seus instintos de autoconservação e seu
ideal de eu, que entra em conflito com os instintos, cuja energia é
caracterizada pela libido
29
e as forças primitivas do “isso”. A educa-
ção não pode controlar o que a natureza tem de perigoso para a
cultura, a não ser sob a condição expressa de que o sujeito encontre
um interesse no sacrifício que esta exige dele. É o eu que na sua
sobrevivência e no respeito de si mesmo um contrapeso à frustração.
Ademais, não se trata de um sacrifício absoluto, mas de um des-
locamento. O eu põe em jogo os mecanismos pelos quais a energia
primitiva vai ser desviada, dramatizada, sublimada para encontrar
uma saída na realidade. É, portanto, no interior do sujeito que se acha
o equilíbrio dos instintos primitivos. Enfim, é também no sujeito que
se constituem os mecanismos de defesa pelos quais as pulsões primi-
tivas encontram uma realização parcial ou simbólica na realidade.
Vê-se, então, onde se encontra toda a originalidade e a coerência
do pensamento de Freud sobre a educação em relação à Reich, Neill
ou Marcuse. Em vez de apresentar a educação de maneira maniqueísta,
como o adestramento exterior de uma personalidade conduzida à
obediência, Freud mostra que se a educação é possível é porque existe
no próprio indivíduo, no interior de seu aparelho psíquico, tendências
28
Freud, S. Introdução ao narcisismo, in: A vida sexual, Paris, PUF., 1972, p.92.
29
Freud, S. O mal-estar da civilização, op. cit., p.72.
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27
que exigem a educabilidade. Dito de outro modo, se o princípio de
realidade, pode, no curso do desenvolvimento individual canalizar os
impulsos espontâneos originalmente obedientes ao princípio do pra-
zer, é porque existe em nós não somente a possibilidade de interiorizar
o interdito, mas, sobretudo, forças tão primitivas como as do “isso”,
que contrabalançam a influência destas últimas, pulsões de conserva-
ção do eu, como a imagem narcísica de si mesmo. Por esse meio, a
energia interna da libido, traduzida em amor-próprio, se apresenta
como fundamento mesmo da obrigação moral, ou seja, da educação.
É sobre esse narcisismo que opera o temor de perda do amor, pri-
meiro mobilizador real da educação, mais forte que a violência direta.
É também porque a parte consciente do eu está em jogo na constitui-
ção desses mecanismos que a educação pode aparecer como forma-
ção das faculdades intelectuais do indivíduo. O princípio de realidade
tem sua fonte em nós mesmos: nos limites mesmos do princípio do
prazer e na instância da pessoa encarregada da sua conservação. Sua
exterioridade é apenas aparente. Essa interioridade, que torna a educa-
ção possível, aparece conscientemente sob diversas formas: “de am-
bição”, “de desejo de ser grande”, “de parecer adulto”, nas quais se
combinam intimamente prazer e realidade
30
.
A força de Freud é de apenas evitar a armadilha na qual caem
autores que se dizem seus seguidores: esse dualismo simplista que
coloca de um lado o indivíduo, espontâneo, natural, que demanda
apenas a realização de pulsões sem objeto; de outro lado, a socie-
dade, cultural, artificial, castradora, interditando, num interesse do
qual se ignoram as finalidades perversas, a expressão da energia
pulsional. Ele mostra que a moral e o intelecto estão em germe na
estrutura do aparelho psíquico. A sociabilidade torna possível a
socialização e essa é real porque o indivíduo, em última instância,
tem um interesse: troca uma liberdade infinita, mas precária, por
30
Freud, S. La Création Littéraire et le Rêve Éveillé, in Essais de Psychanalyse Appliquée,
op. cit., p.70 sq.
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28
uma liberdade regrada, mas real, garantida. Existe uma edu-
cabilidade natural que torna possível a educação.
Reencontramos aqui inspiração biológica que serviu de ponto de
partida. O homem não pode continuar eternamente criança, ele deve,
mais cedo ou mais tarde, sair para a vida hostil. A criança poderia
definir-se como ser de pulsão imediata, que vive protegida pelo adul-
to benevolente, longe da insensibilidade dos outros, defendido do
mundo natural exterior e dos conflitos interiores. A educação consiste
apenas em conduzi-la dessa dependência protetora, precária, para a
responsabilidade. Se, de um ponto de vista superficial, a educação tem
por papel gerir essas forças da natureza que podem mostrar-se peri-
gosas para a cultura, de um ponto de vista mais aprofundado, perce-
be-se que essa educação, ao permitir que se discipline o princípio do
prazer, permite, ao mesmo tempo a humanização do homem. Ao
contrário da criança, que vive no prazer protegido, diferentemente do
animal, dominado pelo prazer imediato, o homem aparece como um
ser de prazer mediato e emancipado.
Sem dúvida, essa concepção freudiana de educação é rica e pre-
cisa. Ela demanda, no entanto, uma análise prolongada até suas últi-
mas consequências, pois de outra maneira poderia parecer insufici-
ente. Se nos limitarmos a essa fase do entendimento, estaremos re-
duzindo Freud a um teórico da adaptação. Educar, com efeito, sig-
nifica, em última instância, socializar, e o princípio de realidade, em
geral, convém ao conjunto das regras admitidas por todas as socie-
dades, inclusive as mais tirânicas e injustas. Esse princípio não permi-
te nenhuma discriminação entre os modelos sociais. Educar consis-
tiria, assim, em inculcar as regras morais e os conhecimentos indis-
pensáveis a uma sociedade qualquer, regras e conhecimentos que lhe
permitam perseguir, para além da sucessão das gerações, as exigên-
cias que impõem suas estruturas. Nesse sentido, Freud perseguiria os
mesmos objetivos de Skinner. Ele poderia ser considerado como
partidário de uma pedagogia do ajustamento.
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29
Os fins
Pensar desse modo seria equivocar-se gravemente com res-
peito a Freud, que não é relativista, nem cínico. Realpädagogie e
moralismo educativo lhe repugnam. Sua teoria da educação re-
pousa sobre um ideal, ao mesmo tempo humano e interpessoal,
capaz de servir como objetivo final da ação. Esse ideal é o pro-
gresso da ciência, entendida como progresso da razão, que toma
consciência de si própria por intermédio do desvelamento suces-
sivo de suas ilusões. O fim que Freud atribui à educação é o de
uma autonomia, ao mesmo tempo intelectual e moral, que só pode
ser alcançada pelo saber científico.
Uma interpretação sucinta da psicanálise nos faz esquecer, muito
frequentemente que, como ciência, pressupõe a primazia da inteli-
gência sobre a vida instintiva. Longe de visar a glorificação dos
mecanismos ocultos e as ilusões do instinto, como disciplina cien-
tífica, a psicanálise pressupõe a superioridade inegável do intelecto.
Além de que, a crítica religiosa retomada em O futuro de uma ilusão
31
não se engana quando ela apresenta a psicanálise como força
destrutiva das ilusões consoladoras das religiões.
A educação não tem outra finalidade, na visão de Freud, que
operar a mesma desmistificação, a mesma desilusão que a da psi-
canálise:
O tempo no qual será estabelecido a primazia da inteligência está
ainda, sem dúvida, imensamente longe de nós, mas a distância que
nos separa não é infinita. E como a primazia da inteligência persegui-
rá, por verossimilhança, os mesmos fins que aqueles que vosso Deus
deve fazer-nos alcançar: a fraternidade e a diminuição do sofrimento,
nos sentimos no direito de afirmar que nosso antagonismo só é
temporal e de modo algum irredutível.
32
31
Freud, S. O futuro de uma ilusão, op. cit., p.73. Freud se faz indiretamente uma série de
perguntas e as contesta.
32
Idem, p.77.
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30
É a razão e a experiência que dão, de acordo com Freud, a
explicação do consolo ilusório da religião. Talvez percamos com
isso uma parte de alívio. De todo modo, seria “uma ilusão crer que
possamos encontrar noutro lugar o que (a ciência) não pode nos
dar.
33
. A educação, de acordo com Freud, caminha na direção da
razão, pela ciência e pela experiência. Finalmente, na compreensão
freudiana, Hamlet, com suas dúvidas e sua inquietude, lhe parece
melhor modelo
34
pedagógico e humano que qualquer herói místico
instalado nas certezas da boa consciência e as pobres ilusões da fé.
Poder-se-ia objetar que a ciência racional, ela mesma, é apenas
uma construção ilusória, espécie de paliativo que permite suportar os
sofrimentos, as decepções e frustrações que nos impõe a existência.
Talvez, responde Freud, a ciência e a exigência racional sejam
apenas objetos de satisfações substitutivas que nos desviam de
pensar a morte
35
. Mas, embora elas nos proporcionem satisfações
substitutivas, o conteúdo do saber que propõem tem o mérito de
não ser ilusório. Essa desmitificação objetiva se mede por três as-
pectos: a potência humana é aumentada pelo progresso da ciência;
a imagem do universo que ela propõe é mais coerente e mais
precisa
36
; e, por último, os modelos que ela fornece são universais,
visto que são reconhecidos em sua necessidade
37
.
Em função de tal finalidade, que deve fazer a escola?
Do ponto de vista moral, preparar-nos para renunciar aos nos-
sos desejos infantis, ensinar-nos a trocar um prazer infinito, mas ilu-
sório, por uma garantia de gozo, conduzir-nos a suportar certas frus-
trações necessárias à vida comum. Trata-se de permitir-nos passar
de nossas ilusões sobre nós mesmos para maior grau de lucidez.
33
Idem, p.80.
34
Freud, S. Luto e Melancolia in Metapsicologia, Paris, Gallimard, 1952, pp.189-222
35
Freud, S. O mal-estar da civilização, op. cit., p.19.
36
Freud, S. O futuro de uma ilusão, op. cit., p.78.
37
Freud, S. O mal-estar da civilização, op. cit., p.86.
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31
38
Freud, S. O futuro de uma ilusão, op. cit., p.77.
39
Freud, S. Novas conferências sobre a psicanálise, op. cit., p.166.
Do ponto de vista do saber, ou seja, da instrução, a escola
tem por responsabilidade realizar o homem que há na criança,
desenvolvendo seu intelecto, a fim de nos fazer passar da servi-
dão à liberdade.
Do ponto de vista político, deve realizar mais “fraternidade
entre os homens, diminuindo seu sofrimento”
38
.
Por sua concepção intelectual e crítica, Freud está inserido na
tradição humanista. A educação psicanalítica não consiste em libe-
rar a potência fantasmática das pulsões dos constrangimentos so-
ciais, mas “a ensinar à criança a dominar os seus instintos”
39
. Longe
de um hedonismo ingênuo ou de uma harmonia mística consigo
mesmo e de si para com os outros, Freud atribui à educação a
tarefa de tentar gerir, num equilíbrio aceitável, sacrifícios e benefí-
cios que a realidade impõe à imediatez do prazer. E isso para a
razão e pela ciência, ou seja, a obra de desilusão do intelecto. A
educação pode ser assimilada a uma ascese da inteligência, que
coloca em dúvida suas crenças e trabalha sobre ela mesma inces-
santemente para compreender o real do qual faz parte, transcen-
dendo as ilusões necessárias da infância.
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Uma breve descrição da psicanálise
41
I
Pode-se dizer que a psicanálise nasceu com o século XX, com
a publicação de A interpretação de sonhos, em 1900, que emergiu
perante o mundo como algo novo, porém, teve seu ponto de
partida em ideias antigas e sugestões anteriores, as quais Freud ela-
borou ou desenvolveu. Qualquer história a seu respeito deve, por-
tanto, começar por uma descrição das influências que determina-
ram sua origem, e não desprezar a época e as circunstâncias que
precederam sua criação.
A psicanálise cresceu em um campo muitíssimo restrito. No
início, tinha apenas um único objetivo – o de compreender algo da
natureza daquilo que era conhecido como doenças nervosas “funci-
onais”, com vistas a superar a impotência que até então caracterizara
seu tratamento médico. Os neurologistas daquele período haviam
sido instruídos a terem um elevado respeito por fatos químico-físi-
cos e patológico-anatômicos e estavam ultimamente sob a influên-
cia dos achados de Hitzig e Fritsch, de Ferrier, Goltz e outros, que
pareciam ter estabelecido um vínculo íntimo e possivelmente exclu-
40
Extraídos da edição eletrônica brasileira das obras completas de Sigmund Freud (com
adaptações)
41
Texto extraído do v. XIX da Edição Standard Brasileira (1924, 1923).
TEXTOS SELECIONADOS
40
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34
sivo com certas funções e partes específicas do cérebro. Eles não
sabiam o que fazer do fator psíquico e não podiam entendê-lo,
deixando-o ao entendimento de filósofos, místicos e charlatães; e
consideravam não científico ter qualquer coisa a ver com ele. Por
conseguinte, não podiam encontrar qualquer abordagem aos segre-
dos das neuroses, e, em particular, da enigmática “histeria”, que, na
verdade, era o protótipo de toda a espécie. Já em 1885, quando eu
estava estudando na Salpêtrière, descobri que as pessoas se conten-
tavam em explicar as paralisias histéricas através de uma fórmula
que asseverava serem elas fundadas em ligeiros distúrbios funcionais
das mesmas partes do cérebro que, quando gravemente danificadas,
levavam às paralisias orgânicas correspondentes.
Naturalmente, essa falta de compreensão afetava também bastan-
te o tratamento desses estados patológicos. Em geral, ele consistia em
medidas destinadas a “endurecer” o paciente – na prescrição de
remédios e em tentativas, na maioria muito mal imaginadas e execu-
tadas de maneira inamistosa, de aplicar-lhe influências mentais por
meio de ameaças, zombarias e advertências, e exortando-o a decidir
a “conter-se”. O tratamento elétrico era fornecido como uma cura
específica para estados nervosos; porém, todo aquele que se tenha
esforçado por cumprir as instruções pormenorizadas de Erb [1882]
tem de se maravilhar com o espaço que a fantasia pode ocupar
mesmo naquilo que professa ser uma ciência exata. A guinada deci-
siva foi dada na década de 1880, quando os fenômenos do hipno-
tismo fizeram mais uma tentativa de buscar admissão à ciência mé-
dica – dessa vez com mais sucesso do que tantas vezes antes, graças
ao trabalho de Liébeault, Bernheim, Heidenhain e Forel. O essencial
foi ter sido reconhecida a genuinidade desses fenômenos. Uma vez
isso admitido, duas lições fundamentais e inesquecíveis não podiam
deixar de ser extraídas do hipnotismo. Em primeiro lugar, recebia-
se prova convincente de que notáveis mudanças somáticas, afinal,
podiam ser ocasionadas unicamente por influências mentais, as quais,
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35
nesse caso, nós próprios tínhamos colocado em movimento. Em
segundo, recebia-se a impressão mais clara – especialmente do com-
portamento dos indivíduos após a hipnose – da existência de pro-
cessos mentais que só se poderia descrever como “inconscientes”.
O “inconsciente”, é verdade, há muito tempo estivera sob discussão
entre os filósofos como conceito teórico, mas agora, pela primeira
vez, nos fenômenos do hipnotismo ele se tornava algo concreto,
tangível e sujeito a experimentação. Independentemente de tudo isso,
os fenômenos hipnóticos mostravam uma semelhança inequívoca
com as manifestações de algumas neuroses.
Não é fácil superestimar a importância do papel desempenha-
do pelo hipnotismo na história da origem da psicanálise. Tanto de
um ponto de vista teórico quanto terapêutico a psicanálise teve às
suas ordens um legado que herdou do hipnotismo.
A hipnose também provou ser um auxílio valioso no estudo
das neuroses – mais uma vez, primeiro e acima de tudo, da histeria.
Os experimentos de Charcot criaram grande impressão. Suspeitou
ele que certas paralisias ocorridas após um trauma (um acidente)
eram de natureza histérica, e demonstrou que, pela sugestão de um
trauma sob hipnose, podia provocar artificialmente paralisias do
mesmo tipo. Surgiu assim a expectativa de que as influências trau-
máticas poderiam, em todos os casos, ter um desempenho na pro-
dução dos sintomas histéricos. O próprio Charcot não fez outros
esforços no sentido de uma compreensão psicológica da histeria,
mas seu aluno, Pierre Janet, retomou a questão e pôde demonstrar,
com o auxílio da hipnose, que os sintomas da histeria eram firme-
mente dependentes de certos pensamentos inconscientes (idées fixes).
Janet atribuiu à histeria uma suposta incapacidade constitucional de
manter reunidos processos mentais – incapacidade que levava a uma
desintegração (dissociação) da vida mental.
A psicanálise, contudo, de maneira alguma se baseou nessas
pesquisas de Janet. O fator decisivo, em seu caso, foi a experiência
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de um médico vienense, o Dr. Josef Breuer. Em 1881, indepen-
dentemente de qualquer influência externa, ele pôde, com o auxílio
da hipnose, estudar e restituir à saúde uma jovem muito bem do-
tada que sofria de histeria. Os achados de Breuer não foram co-
municados ao público senão quinze anos mais tarde, após ele ha-
ver tomado por colaborador o presente autor. Esse caso de Breuer
retém sua significação única para nossa compreensão das neuroses
até o dia de hoje. É essencial compreender claramente em que
consistia sua peculiaridade. A jovem caíra enferma enquanto ser-
via de enfermeira para o pai, a quem estava ternamente ligada.
Breuer pôde estabelecer que todos os seus sintomas estavam rela-
cionados a esse período de enfermagem e podiam ser por ele
explicados. Assim, pela primeira vez, tornou-se possível ganhar
uma visão completa de um caso dessa enigmática neurose, e todos
os seus sintomas demonstraram ter significado. Ademais, consti-
tuiu característica universal dos sintomas terem eles surgido em
situações que envolviam um impulso a uma ação que, contudo,
não fora levada a cabo, mas sim, por outras razões, fora suprimi-
da. Os sintomas, de fato, haviam aparecido em lugar das ações
não efetuadas. Assim, para explicar a etiologia dos sintomas histé-
ricos, fomos levados à vida emocional do indivíduo (à afetividade)
e à ação recíproca de forças mentais (à dinâmica), e, desde então,
essas duas linhas de abordagem nunca mais foram abandonadas.
As causas precipitantes dos sintomas foram comparadas por
Breuer aos traumas de Charcot. Ora, constituía fato notável que
todas essas causas precipitantes traumáticas e todos os impulsos
mentais que delas se originavam estavam perdidos para a memória
da paciente, como se jamais houvessem acontecido, ao passo que
seus produtos – os sintomas – persistiam inalterados, como se, no
que lhes concernia, não existisse aquilo denominado de efeito
obliterador do tempo. Aqui, portanto, tínhamos uma nova prova da
existência de processos mentais que eram inconscientes, mas, por essa
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razão, especialmente poderosos – processos que primeiro vínhamos
conhecendo na sugestão pós-histórica. O procedimento terapêutico
adotado por Breuer foi induzir a paciente sob hipnose a relembrar
os traumas esquecidos e reagir a eles com poderosas expressões de
afeto. Quando isso era feito, o sintoma, que até então tomara o lugar
dessas expressões de emoção, desaparecia. Dessa maneira, um só e
mesmo procedimento servia simultaneamente aos propósitos de
investigar o mal e livrar-se dele, e essa conjunção fora do comum
foi posteriormente conservada pela psicanálise.
Após termos confirmado, durante o começo da década de
1890, os resultados de Breuer em considerável número de pacien-
tes, publicamos Estudos sobre histeria (1895d), que continha suas des-
cobertas e a tentativa de uma teoria nelas baseada. Asseverava esta
que os sintomas histéricos surgiam quando o afeto de um proces-
so mental caracterizado por um forte afeto era impedido pela
força de ser conscientemente elaborado da maneira normal, e era
desviado para um caminho errado. Nos casos de histeria, segundo
essa teoria, o afeto passava para uma inervação somática fora do
comum (“conversão”), mas se lhe podia dar outra direção e ver-
se livre dele (“ab-reagido”) se a experiência fosse revivida sob hip-
nose. A esse procedimento demos o nome de “catarse” (purgar,
liberar um afeto estrangulado).
O método catártico foi o precursor imediato da psicanálise, e,
apesar de toda a ampliação da experiência e toda modificação da
teoria, ainda está nela contido como seu núcleo. Ele, porém, não
era mais que um novo procedimento médico para influenciar cer-
tas doenças nervosas, e nada sugeria que se pudesse tornar tema
para o interesse mais geral e para a contradição mais violenta.
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38
II
Logo após a publicação de Estudos sobre a Histeria, a associação
entre Breuer e Freud terminou. Breuer, que na realidade era consul-
tor em medicina interna, abandonou o tratamento de pacientes ner-
vosos, e Freud dedicou-se ao aperfeiçoamento ulterior do instru-
mento que lhe deixara seu colaborador mais antigo. As novidades
técnicas que introduziu e as descobertas que efetuou transformaram
o método catártico em psicanálise. Um deles foi, sem dúvida, sua
determinação de passar sem a assistência da hipnose em seu proce-
dimento técnico. Procedeu assim por duas razões: uma, porque,
apesar de um curso de instrução com Bernheim em Nancy, ele não
conseguia induzir a hipnose em um número suficiente de casos, e,
outra, porque estava insatisfeito com os resultados terapêuticos da
catarse baseada na hipnose. É verdade que esses resultados eram
notáveis e apareciam após um tratamento de curta duração, porém,
demonstravam não ser permanentes e depender demais das rela-
ções pessoais do paciente com o médico. O abandono da hipnose
causou uma brecha no curso do desenvolvimento do procedimen-
to até então e significou um novo começo.
A hipnose, contudo, desempenhara o serviço de restituir à lem-
brança do paciente aquilo que ele havia esquecido. Era necessário
encontrar alguma outra técnica para substituí-la, e a Freud ocorreu a
ideia de colocar em seu lugar o método da “associação livre”. Isso
equivale a dizer que ele fazia seus pacientes assumirem o compro-
misso de se absterem de qualquer reflexão consciente e se abando-
narem em um estado de tranquila concentração, para seguir as ideias
que espontaneamente (involuntariamente) lhe ocorressem – “a
escumarem a superfície de suas consciências”. Deveriam comunicar
essas ideias ao médico, mesmo que sentissem objeções em fazê-lo;
por exemplo, se os pensamentos parecessem desagradáveis, insen-
satos, muito sem importância ou irrelevantes demais. A escolha da
associação livre como meio de investigar o material inconsciente
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esquecido parece tão estranha que uma palavra em justificação dela
não estará fora de lugar. Freud foi levado a ela pela expectativa de
que a chamada associação “livre” mostrasse de fato não ser livre,
porquanto após suprimidos todos os propósitos intelectuais consci-
entes, as ideias que emergissem pareceriam ser determinadas pelo
material inconsciente. Essa expectativa foi justificada pela experiên-
cia. Quando a “regra fundamental da psicanálise”, que acabara de
ser enunciada, era obedecida, o curso da associação livre produzia
um estoque abundante de ideias que podiam nos colocar na pista
daquilo que o paciente havia esquecido. Com efeito, esse material
não trazia à tona o que realmente fora esquecido, mas trazia tão
claras e numerosas alusões a ele que, com o auxílio de certa
suplementação e interpretação, o médico podia adivinhar (ou re-
construir) o material esquecido a partir dele. Assim, a associação
livre, juntamente com a arte da interpretação, desempenhava a mes-
ma função que anteriormente fora realizada pelo hipnotismo.
Parecia como se nosso trabalho houvesse ficado mais difícil e
complicado; no entanto, o lucro inestimável estava em que se ob-
tinha agora uma compreensão interna (insight) de uma ação recí-
proca de forças que haviam estado ocultas do observador pelo
estado hipnótico. Tornou-se evidente que o trabalho de revelar o
que havia sido patogenicamente esquecido tinha de lutar contra
uma resistência constante e muito intensa. As próprias objeções
críticas que o paciente levantava a fim de evitar comunicar as ideias
que lhe ocorriam, e contra as quais a regra fundamental da psica-
nálise era dirigida, já eram manifestações dessa resistência. Uma
consideração dos fenômenos da resistência conduziu-nos a uma
das pedras angulares da teoria psicanalítica das neuroses – a teoria
da repressão. Era plausível supor que as mesmas forças, agora
então em luta contra o material patogênico a ser tornado consci-
ente, haviam realizado em época anterior, com sucesso, os mes-
mos esforços. Preenchia-se, assim, uma lacuna na etiologia dos
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sintomas neuróticos. As impressões e impulsos mentais, para os
quais os sintomas estavam agora servindo de substitutos, não ti-
nham sido esquecidos sem razão ou por causa de uma incapacida-
de constitucional para a síntese (como Janet supunha); através da
influência de outras forças mentais tinham-se defrontado com uma
repressão cujo sucesso e prova eram precisamente estarem eles
barrados à consciência e excluídos da memória. Apenas em
consequência dessa repressão é que eles se haviam tornado
patogênicos, isto é, haviam tido êxito em manifestar-se ao longo
de caminhos fora do comum, tais como os sintomas.
Um conflito entre dois grupos de tendências mentais deve ser
encarado como o fundamento para a repressão, e, por conseguin-
te, como a causa de toda enfermidade neurótica. E aqui a expe-
riência nos ensinou um fato novo e surpreendente sobre a nature-
za das forças que estiveram lutando uma contra a outra. A repres-
são invariavelmente procedia da personalidade consciente da pes-
soa enferma (seu ego) e baseava-se em motivos estéticos e éticos;
os impulsos sujeitos à repressão eram os do egoísmo e da cruelda-
de, que em geral podem ser resumidos como o mal, porém, aci-
ma de tudo, impulsos desejosos sexuais, frequentemente da espé-
cie mais grosseira e proibida. Assim, os sintomas constituíam um
substituto para satisfações proibidas e a moléstia parecia
corresponder a uma subjugação incompleta do lado imoral dos
seres humanos.
O progresso em conhecimento tornou ainda mais claro o enor-
me papel desempenhado na vida mental pelos impulsos desejosos
sexuais, e levou a um estudo pormenorizado da natureza e desen-
volvimento do instinto sexual. Também nos deparamos, porém,
com outro achado puramente empírico, na descoberta de que as
experiências e conflitos dos primeiros anos da infância represen-
tam uma parte insuspeitadamente importante no desenvolvimen-
to do indivíduo e deixam atrás de si disposições indeléveis que se
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abatem sobre o período da maturidade. Isso nos trouxe a revela-
ção de algo que até então fora fundamentalmente negligenciado
pela ciência – a sexualidade infantil, que, da mais tenra idade em
diante, se manifesta tanto em reações físicas quanto em atitudes
mentais. A fim de reunir essa sexualidade das crianças com o que é
descrito como sendo a sexualidade normal dos adultos e a vida
sexual anormal dos pervertidos, o conceito do que era sexual de-
via, ele próprio, ser corrigido e ampliado de uma forma que pu-
desse ser justificada pela evolução do instinto sexual.
Após a hipnose ter sido substituída pela técnica da associação
livre, o procedimento catártico de Breuer transformou-se em psica-
nálise, que por mais de uma década foi desenvolvida por Freud
sozinho. Durante esse tempo ela gradativamente adquiriu uma teo-
ria que parecia fornecer uma descrição satisfatória da origem, signi-
ficado e propósito dos sintomas neuróticos, e proporcionava uma
base racional para tentativas médicas de curar a queixa. Mais uma
vez enumeramos os fatores que contribuem para a constituição des-
sa teoria. São eles: ênfase na vida instintual (afetividade), na dinâmica
mental, no fato de que mesmo os fenômenos mentais aparente-
mente mais obscuros e arbitrários possuem invariavelmente um sig-
nificado e uma causa, a teoria do conflito psíquico e da natureza
patogênica da repressão, a visão de que os sintomas constituem sa-
tisfações substitutas, o reconhecimento da importância etiológica da
vida sexual, e especificamente, dos primórdios da sexualidade in-
fantil. De um ponto de vista filosófico, essa teoria estava fadada a
adotar a opinião de que o mental não coincide com o consciente,
que os processos mentais são, em si próprios, inconscientes e só se
tornam conscientes pelo funcionamento de órgãos especiais (ins-
tâncias ou sintomas). Para completar essa lista acrescentaremos que
entre as atitudes afetivas da infância a complicada relação emocional
das crianças com os pais – o que é conhecido por complexo de
Édipo – surgiu em proeminência. Ficou cada vez mais claro que ele
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era o núcleo de todo caso de neurose, e no comportamento do
paciente para com seu analista surgiram certos fenômenos de sua
transferência emocional que vieram a ser de grande importância para
a teoria e a técnica, do mesmo modo.
Na forma que ela assim assumiu, a teoria psicanalítica das neuro-
ses já encerrava determinado número de coisas que iam de encontro
a opiniões e inclinações aceitas e estavam talhadas a provocar espanto,
repugnância e ceticismo em estranhos; por exemplo, a atitude da psi-
canálise para com o problema do inconsciente, seu reconhecimento
de uma sexualidade infantil e a ênfase que concedia ao fator sexual na
vida mental em geral. Mais coisas, porém, deveriam seguir-se.
III
Mesmo para chegar a meio caminho da compreensão de como,
em uma jovem histérica, um desejo sexual proibido pode transfor-
mar-se em um sintoma penoso, foi necessário efetuar hipóteses com-
plicadas e de grandes consequências sobre a estrutura e o funciona-
mento do aparelho psíquico. Havia aqui uma contradição evidente
entre o dispêndio de esforço e o resultado. Se as condições postula-
das pela psicanálise realmente existissem, seriam de natureza funda-
mental e deveriam ser capazes de encontrar expressão em outros
fenômenos, além dos histéricos. No entanto, se essa inferência fosse
correta, a psicanálise teria cessado de ter interesse apenas para os
neurologistas; poderia reivindicar a atenção de todos para quem a
pesquisa psicológica tivesse alguma importância. Seus achados não
só teriam de ser levados em consideração no campo da vida mental
patológica, como deveriam deixar de ser negligenciados ao se atin-
gir uma compreensão do funcionamento normal.
Provas de ela ser útil para lançar luz sobre outras atividades
que não a atividade mental patológica, logo se apresentaram, em
vinculação com dois tipos de fenômenos: as parapraxias muito
frequentes que ocorrem na vida cotidiana – tais como esquecer
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coisas, lapsos de língua e colocação errada de objetos – e os so-
nhos tidos por essas pessoas sadias e psiquicamente normais. Pe-
quenas falhas de funcionamento, tais como o esquecimento tem-
porário de nomes próprios normalmente familiares, por exem-
plo, até então não tinham sido considerados dignos de qualquer
explicação, ou se imaginava que fossem explicáveis por estados de
fadiga, pela distração da atenção etc. Freud demonstrou então, a
partir de muitos exemplos, em seu livro The Psychopathology of
Everyday Life (1901b), que acontecimentos desse tipo têm um sig-
nificado ou surgem devido a uma intenção consciente com a qual
interfere outra, suprimida ou realmente inconsciente. Via de regra,
uma rápida reflexão ou breve análise é suficiente para revelar a
influência interferente. Devido à frequência de parapraxias tais como
os lapsos de língua, tornou-se fácil a qualquer pessoa convencer-se,
por sua própria experiência, sendo, não obstante, operantes, e que,
pelo menos, encontram expressão como inibições e modificações
de outros atos pretendidos.
A análise dos sonhos levou mais longe: ela foi trazida a públi-
co pelo presente autor já em 1900, em A interpretação de sonhos, que
demonstrava serem os sonhos construídos exatamente da mesma
maneira que os sintomas neuróticos. Como esses últimos, eles po-
dem parecer estranhos e sem sentido; porém, se os examinarmos
através de uma técnica que pouco difere da associação livre utili-
zada na psicanálise, somos levados de seu conteúdo manifesto a
um significado secreto, aos pensamentos oníricos latentes. Esse sig-
nificado latente é sempre um impulso desejoso, o qual se repre-
senta como realizado no momento do sonho. Entretanto, exceto
em crianças pequenas e sob a pressão de necessidades físicas im-
perativas, esse desejo secreto jamais pode ser expresso de modo
identificável. Ele primeiro tem de se submeter a uma deformação,
que é o trabalho de forças censurantes, restritivas, tal como é
relembrado na vida desperta. Ele é deformado, a ponto de ser
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irreconhecível, por concessões feitas à censura do sonho, porém,
pode ser, através da análise, mais uma vez revelado como expres-
são de uma situação de satisfação ou como a realização de um
desejo. É uma conciliação entre grupos conflitantes de tendências
mentais, tal como descobrimos ser o caso com os sintomas histé-
ricos. A fórmula que, no fundo, melhor atende à essência do so-
nho é esta: o sonho é uma realização (disfarçada) de um desejo
(reprimido). O estudo do processo que transforma o desejo la-
tente realizado no sonho no conteúdo manifesto do sonho – pro-
cesso conhecido como “trabalho do sonho” – ensinou-nos a mai-
or parte do que sabemos sobre a vida mental inconsciente.
Ora, o sonho não constitui um sintoma mórbido, mas é o
produto de uma mente normal. Os desejos que ele representa
como realizados são os mesmos que aqueles reprimidos nas neu-
roses. Os sonhos devem a possibilidade de sua gênese simples-
mente à circunstância favorável de a repressão, durante o estado
de sono que paralisa o poder de movimento do homem, ser mi-
tigada na censura do sonho. Assim, prova-se que as mesmas for-
ças e os mesmos processos que se realizam entre elas operam tan-
to na vida mental moral quanto na patológica. A partir da publica-
ção de A interpretação de sonhos, a psicanálise teve uma dupla signifi-
cação. Constitui não apenas um novo método de tratar as neuro-
ses, mas também uma nova psicologia; reivindicou a atenção não
só dos especialistas em nervos como também a de todos que
eram estudiosos de uma ciência mental.
A recepção que lhe foi dada no mundo científico, porém, não
foi amistosa. Por cerca de 10 anos ninguém prestou atenção aos
trabalhos de Freud. Por volta do ano de 1907, um grupo de psi-
quiatras suíços (Bleuler e Jung, em Zurique) atraiu a atenção para a
psicanálise, e uma tormenta de indignação, não precisamente fasti-
diosa em seus métodos e argumentos, irrompeu logo após, prin-
cipalmente na Alemanha. Nesse aspecto, a psicanálise partilhava da
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sorte de muitas novidades que, após certo lapso de tempo, encon-
traram reconhecimento geral. Entretanto, era de sua natureza que
inevitavelmente despertasse uma oposição especificamente violen-
ta. Ela feria os preconceitos da humanidade civilizada em alguns
pontos especialmente sensíveis. Submetia todo indivíduo, por as-
sim dizer, à reação analítica, por revelar aquilo que por acordo
universal fora reprimido para o inconsciente, e, desse modo, for-
çava seus contemporâneos a comportar-se como pacientes que,
sob tratamento analítico, acima de tudo trazem suas resistências
para o primeiro plano. Deve-se também admitir que não era fácil
convencer-se da correção das teorias psicanalíticas, ou conseguir
instrução na prática da análise.
A hostilidade geral, porém, não conseguiu impedir a psicanálise
de uma expansão contínua durante a década seguinte, em duas dire-
ções: sobre o mapa, pois o interesse nela constantemente aflorava
em novos países e no campo das ciências mentais, pois estava cons-
tantemente encontrando aplicações em novos ramos do conheci-
mento. Em 1909, o presidente G. Stanley Hall convidou Freud e
Jung para darem uma série de conferências na Universidade Clark,
em Worcester, Mass., da qual era o diretor e onde lhes foi oferecida
uma amistosa recepção. Desde então a psicanálise permaneceu sen-
do popular nos Estados Unidos, embora exatamente nesse país te-
nha sido unida a muita superficialidade e alguns abusos. Já em 1911,
Havelock Ellis podia relatar que a análise era estudada e praticada
não somente na Áustria e na Suíça, mas também nos Estados Uni-
dos, na Inglaterra, na Índia, no Canadá e também na Austrália.
Ademais, foi nesse período de luta e primeiro florescimento
que os periódicos dedicados exclusivamente à psicanálise foram
fundados. Foram eles o Jahrbuch für psychoanalytische und
psychopathologische Forschungen [Anuário para Pesquisas Psicanalíticas e
Psicopatológicas] (1909-1914), dirigido por Bleuler e Freud, e edita-
do por Jung, cuja publicação cessou ao irromper a guerra mundi-
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al; a Zentralblatt für Psychoanalyse [Periódico Central para a Psicanálise]
(1911), com Adler e Stekel como editores, o qual foi logo substi-
tuído pela Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse [Revista Internacio-
nal para a Psicanálise] (1913, hoje em seu décimo volume); e mais,
desde 1912, Imago, fundada por Rank e Sachs, uma revista para a
aplicação da psicanálise às ciências mentais. O grande interesse as-
sumido no assunto por médicos anglo-americanos foi demons-
trado em 1913, com a fundação da ainda ativa Psycho-Analytic Review,
por parte de White e Jelliffe. Mais tarde, em 1920, The International
Journal of Psycho-Analysis, destinado especialmente aos leitores da
Inglaterra, fez seu aparecimento sob a editoria de Ernest Jones. A
Internationaler Psychoanalytischer Verlag e a correspondente inglesa The
International Psycho-Analytical Press trouxeram à luz uma série contí-
nua de publicações analíticas sob o nome da Internationale
Psychoanalytische Bibliothek (Biblioteca Psicanalítica Internacional).
A literatura da psicanálise, naturalmente, não é encontrada apenas
nesses periódicos, que são na maioria sustentados por sociedades
psicanalíticas; ela aparece por toda parte, em numerosos lugares,
em publicações científicas e em publicações literárias. Entre os pe-
riódicos do mundo latino que concedem atenção especial à psica-
nálise, a Revista de Psiquiatria, coordenada por H. Delgado, em Lima,
no Peru, pode ser mencionada em especial.
Uma diferença essencial entre essa segunda década da psicaná-
lise e a primeira reside no fato de que Freud não constituía mais
seu único representante. Um círculo sempre crescente de alunos e
adeptos se havia reunido em torno dele, dedicando-se, em primei-
ro lugar, à difusão das teorias da psicanálise; depois, ampliaram,
suplementaram e conduziram essas teorias a maior profundidade.
Com o decorrer dos anos diversos desses defensores, como era
inevitável, separaram-se, tomaram seus próprios rumos, ou se trans-
formaram em uma oposição que pareceu ameaçar a continuidade
do desenvolvimento da psicanálise. Entre 1911 e 1913, C. G. Jung,
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em Zurique, e Alfred Adler, em Viena, produziram certa agitação
por suas tentativas de apresentar novas interpretações aos fatos da
análise e por seus esforços para um desvio do ponto de vista ana-
lítico. Entretanto, viu-se logo que essas secessões não haviam cau-
sado danos permanentes. O sucesso temporário que tenham atin-
gido foi facilmente explicável pela presteza da massa das pessoas
em livrar-se da pressão das exigências da psicanálise por qualquer
caminho que se lhes pudesse abrir. A grande maioria dos colabo-
radores permaneceu firme e continuou seu trabalho orientado pelas
linhas a eles indicadas. Depararemos repetidamente com seus no-
mes na breve descrição, adiante, das descobertas da psicanálise nos
muitos e variados campos de sua aplicação.
IV
A ruidosa rejeição da psicanálise pelo mundo médico não po-
dia impedir seus defensores de desenvolvê-la, inicialmente por suas
linhas originais, em patologia e tratamento especializado nas neuro-
ses – tarefa ainda não completamente realizada, mesmo atualmente.
Seu inegável sucesso terapêutico, que excedia em muito qualquer
outro que houvesse sido anteriormente conseguido, incentivou-os
constantemente a novos esforços, ao passo que as dificuldades reve-
ladas à medida que o material era examinado mais profundamente
redundaram em alterações profundas na técnica da análise e corre-
ções importantes em suas hipóteses e postulados teóricos.
No decurso desse desenvolvimento, a técnica da psicanálise se
tornou tão definida e delicada quanto a de qualquer outro ramo
especializado da medicina. Uma falha na compreensão desse fato
levou a muitos abusos (particularmente na Inglaterra e nos Estados
Unidos), porquanto pessoas que adquiriram apenas um conheci-
mento literário da psicanálise a partir de leituras se consideram capa-
zes de empreender tratamentos analíticos sem ter recebido qualquer
formação especial. As consequências de tal comportamento são pre-
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judiciais tanto para a ciência quanto para os pacientes, e acarretaram
muito descrédito para a análise. A fundação de uma primeira clínica
psicanalítica para pacientes externos (por Max Eitingon, em Berlim,
em 1920) tornou-se, portanto, um passo de grande importância prá-
tica. Esse instituto busca, por um lado, tornar o tratamento analítico
acessível a amplos círculos da população e, por outro, empreende a
instrução de médicos para serem analistas clínicos através de um
curso de formação, incluindo como condição que aquele que apren-
de concorde em ser ele próprio analisado.
Entre os conceitos hipotéticos que capacitem o médico a lidar
com o material analítico, o primeiro a ser mencionado é o da
“libido”. Libido, em psicanálise, significa em primeira instância a
força (imaginada como quantitativamente variável e mensurável)
dos instintos sexuais dirigidos para um objeto – “sexuais” no sen-
tido ampliado exigido pela teoria analítica. Um estudo mais com-
pleto demonstrou que era necessário colocar ao lado dessa “libido
objetal” uma “libido narcísica” ou “do ego”, dirigida para o pró-
prio ego do indivíduo, e a interação dessas duas forças nos capaci-
tou a explicar grande número de processos normais e anormais
na vida mental. Uma distinção grosseira logo se fez entre o que é
conhecido por “neuroses de transferência” e os distúrbios narcísicos.
As primeiras (histeria e neurose obsessiva) constituem os objetos
propriamente ditos do tratamento psicanalítico, ao passo que as
outras, as neuroses narcísicas, embora possam deveras ser exami-
nadas com o auxílio da análise, oferecem dificuldades fundamen-
tais à influência terapêutica. É verdade que a teoria da libido da
psicanálise não está absolutamente completa e sua relação com
uma teoria geral dos instintos não é clara, pois a psicanálise é uma
ciência jovem, ainda inacabada, e em estágio de rápido desenvol-
vimento. Porém, aqui se deve enfaticamente apontar quão errônea
é a acusação de pansexualismo que com tanta frequência é dirigida
contra a psicanálise. Ela busca demonstrar que a teoria psicanalítica
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não conhece outras forças motivadoras mentais senão as pura-
mente sexuais e, assim procedendo, explora preconceitos popula-
res pelo emprego da palavra “sexual” não em seu sentido analíti-
co, mas no vulgar.
A visão psicanalítica também teria de incluir nos distúrbios
narcísicos todas as moléstias descritas em psiquiatria como “psico-
ses funcionais”. Não se poderia duvidar de que as neuroses e psi-
coses não estão separadas por uma linha rígida, mais do que o
estão a saúde e a neurose, e era plausível explicar os misteriosos
fenômenos psicóticos pelas descobertas a que se chegou nas neu-
roses, que até então haviam sido igualmente incompreensíveis.
Freud, durante o período de seu isolamento, tornou um caso de
doença paranóide parcialmente inteligível através de uma investi-
gação analítica e indicou nessa psicose indiscutível os mesmos con-
teúdos (complexos) e uma semelhante ação recíproca de forças,
nas neuroses simples. Bleuler (1906) acompanhou as indicações do
que chamou de “mecanismos freudianos” em grande número de
psicoses, e Jung conquistou, de um só golpe, elevado conceito
como analista quando, em 1907, explicou os sintomas mais excên-
tricos dos estádios finais da dementia praecox a partir das histórias
individuais da vida dos pacientes. O abrangente estudo da
esquizofrenia efetuado por Bleuler (1911) provavelmente demons-
trou de uma vez por todas a justificação de um ângulo psicanalíti-
co de abordagem para a compreensão dessas psicoses.
A psiquiatria tornou-se assim o primeiro campo a que a psica-
nálise foi aplicada, e desse modo permaneceu desde então. Os mes-
mos pesquisadores que mais fizeram para aprofundar o conheci-
mento analítico das neuroses, tais como Karl Abraham, em Berlim,
e Sándor Ferenczi, em Budapeste (para nomear apenas os mais pro-
eminentes), também desempenharam papel de realce em lançar luz
analítica sobre as psicoses. A convicção da unidade e vinculação ínti-
ma de todos os distúrbios que se apresentam como fenômenos
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neuróticos e psicóticos está tornando-se cada vez mais firmemente
estabelecida, apesar de todos os esforços dos psiquiatras. As pessoas
estão começando a entender – principalmente na América – que o
estudo psicanalítico das neuroses constitui a única preparação para
uma compreensão das psicoses, e que a psicanálise está destinada a
tornar possível uma psiquiatria científica do futuro, que não precisa-
rá contentar-se com a descrição de quadros clínicos curiosos e
sequências ininteligíveis de eventos, e com o traçar a influência de
grosseiros traumas anatômicos e tóxicos sobre um aparelho psíqui-
co inacessível ao nosso conhecimento.
V
A importância da psicanálise para a psiquiatria, entretanto, nunca
teria chamado a atenção do mundo intelectual para ela ou lhe con-
quistaria um lugar em The history of our times. Esse resultado foi oca-
sionado pela relação da psicanálise com a vida mental normal, não
com a patológica. Originalmente, a pesquisa analítica de fato não
tinha outro objetivo senão estabelecer os determinantes do
desencadeamento (a gênese) de alguns estados mentais mórbidos.
No curso de seus esforços, contudo, ela teve êxito em trazer à luz
fatos de importância fundamental, criando realmente uma nova psi-
cologia, de modo que se tornou óbvio que a validade de tais acha-
dos não poderia se restringir à esfera da patologia. Já vimos quando
se produziu a prova decisiva da exatidão dessa conclusão. Foi quan-
do os sonhos foram interpretados com sucesso pela técnica analítica
– os sonhos, que são parte da vida mental de pessoas normais e que,
no entanto, podem com efeito ser encarados como produtos pato-
lógicos capazes de ocorrer regularmente em estados sadios.
Se as descobertas psicológicas obtidas dos sonhos fossem fir-
memente lembradas, só outro passo era necessário antes que a
psicanálise pudesse ser proclamada como a teoria dos processos
mentais mais profundos não diretamente acessíveis à consciência –
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51
como uma “psicologia profunda” –, e antes que pudesse ser apli-
cada a quase todas as ciências mentais. Esse passo residia na transi-
ção da atividade mental de homens individuais para as funções
psíquicas de comunidades humanas e povos, isto é, da psicologia
individual para a de grupo, e muitas analogias surpreendentes nos
impuseram essa transição. Fora descoberto, por exemplo, que nos
estatos profundos da atividade mental inconsciente os contrários
não se distinguem um do outro, mas são expressos pelo mesmo
elemento. Já em 1884, porém, Karl Abel, o filólogo, havia apre-
sentado a opinião, em sua obra Über dem Gegensinn der Urworte
42
, de
que as línguas mais antigas que nos são conhecidas tratam os con-
trários da mesma maneira. Assim, o antigo egípcio, por exemplo,
tinha em primeira instância apenas uma palavra para designar “for-
te” e “fraco”, e somente mais tarde os dois lados da antítese fo-
ram distinguidos por ligeiras modificações. Mesmo nas línguas mais
modernas, claras relíquias de tais significados antitéticos podem
ser encontradas. Assim, em alemão, Boden significa tanto a coisa
mais alta quanto a mais baixa da casa [“sótão” ou “chão”]; semelhan-
temente, em latim, altus significa “alto” e “profundo”. Assim, a
equivalência dos contrários nos sonhos constitui um traço arcaico
universal no pensamento humano.
Tomando um exemplo de outro campo, é impossível fugir à
impressão da correspondência perfeita que pode ser descoberta
entre as ações obsessivas de certos pacientes obsessivos e as obser-
vâncias religiosas dos crentes em todo o mundo. Certos casos de
neurose obsessiva na realidade se comportam como uma carica-
tura de uma religião particular, de modo que é tentador asseme-
lhar as religiões oficiais a uma neurose obsessiva, que foi mitigada
por se tornar universalizada. Essa comparação, que sem dúvida é
altamente objetável a todos os crentes, não obstante se mostrou
42
“A significação antiética das palavras primitivas”. Cf Freud, 1910e.
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psicologicamente muito frutífera, pois a psicanálise logo desco-
briu, no caso da neurose obsessiva, quais são as forças que nela
combatem entre si até seus conflitos encontrarem expressão notá-
vel no cerimonial das ações obsessivas. Nada de semelhante era
suspeitado no caso do cerimonial religioso até que, remontando o
sentimento religioso à relação com o pai como sua raiz mais pro-
funda, tornou-se possível apontar para uma situação dinâmica aná-
loga também nesse caso. Esse exemplo, ademais, pode advertir ao
leitor que mesmo em sua aplicação a campos não médicos a psi-
canálise não pode evitar ferir preconceitos acalentados, aflorar sen-
sibilidades profundamente enraizadas e provocar assim inimiza-
des de base essencialmente emocional.
Caso possamos presumir que os aspectos mais gerais da vida
mental inconsciente (conflitos entre impulsos instintuais, repressões
e satisfações substitutivas) estejam presentes em toda parte, e se há
uma psicologia profunda que conduz a um conhecimento desses
aspectos, podemos então razoavelmente esperar que a aplicação
da psicanálise às mais variadas esferas da atividade mental humana
em toda parte trará à luz resultados importantes e até então inatin-
gíveis. Em um estudo excepcionalmente valioso, Otto Rank e
Hanns Sachs (1913) tentaram reunir o que o trabalho da psicanálise
pôde conseguir até agora no sentido do preenchimento dessas
expectativas. A falta de espaço me impede de tentar completar
aqui sua enumeração. Posso apenas selecionar, como menção, os
achados mais importantes, acrescentando alguns pormenores.
Se deixarmos fora de cogitação impulsos internos pouco co-
nhecidos, podemos dizer que a principal força motivadora no sen-
tido do desenvolvimento cultural do homem foi a exigência externa
real, que retirou dele a satisfação fácil de suas necessidades naturais e
o expôs a perigos imensos. Essa frustração externa o impeliu a uma
luta com a realidade, a qual findou parcialmente em uma adaptação
a ela e, em parte, no controle sobre ela; contudo também o impeliu
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a trabalhar e viver em comum com os de sua espécie, e isso já
envolvia uma renúncia de certo número de impulsos instintuais im-
possíveis de ser socialmente satisfeitos. Com os avanços ulteriores
da civilização cresceram também as exigências da repressão. A civi-
lização, afinal, está construída inteiramente sobre a renúncia ao instin-
to, e todo indivíduo, em sua jornada da infância à maturidade, pre-
cisa, em sua própria pessoa, recapitular esse desenvolvimento da
humanidade a um estado de criteriosa resignação. A psicanálise de-
monstrou que foram predominantemente, embora não exclusiva-
mente, os impulsos instintuais que sucumbiram a essa supressão cul-
tural. Parte deles, contudo, apresenta a característica valiosa de se
permitirem ser desviados de seus objetivos imediatos e colocar as-
sim sua energia à disposição do desenvolvimento cultural, sob a
forma de tendências “sublimadas”. Outra parte, porém, persiste no
inconsciente como desejos insatisfeitos e pressiona por alguma satis-
fação, ainda que deformada.
Vimos que uma das partes da atividade mental humana é orien-
tada no sentido de obter controle sobre o mundo externo real. A
psicanálise nos diz agora, ademais, que uma outra parte, particular e
altamente prezada, do trabalho mental criativo serve para a realiza-
ção de desejos – para a satisfação substitutiva dos desejos reprimi-
dos que, desde os dias da infância, vivem insatisfeitos no espírito de
cada um de nós. Entre essas criações, cuja vinculação com um in-
consciente incompreensível sempre foi suspeitada, estão os mitos e
as obras da literatura imaginativa e da arte, e as pesquisas da psicaná-
lise realmente arrojaram luz em abundância sobre os campos da
mitologia, da ciência da literatura e da psicologia dos artistas. Basta
mencionar a obra de Otto Rank como exemplo. Demonstramos
que os mitos e os contos de fadas podem ser interpretados como
sonhos. Traçamos os caminhos sinuosos que levam da premência
do desejo inconsciente à sua realização em uma obra de arte sobre o
observador, e no caso do próprio artista tornamos claro seu paren-
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tesco emocional com o neurótico, bem como sua distinção deste, e
apontamos a vinculação existente entre sua disposição inata, suas
experiências fortuitas e suas realizações. A apreciação estética de obras
de arte e a elucidação do dote artístico não estão, é verdade, entre as
tarefas atribuídas à psicanálise. Mas parece que a psicanálise está em
posição de enunciar a palavra decisiva em todas as questões que
afloram a vida imaginativa do homem.
E então, como terceiro argumento, a psicanálise nos demons-
trou, para nosso crescente assombro, o papel enormemente impor-
tante desempenhado pelo que é conhecido por “complexo de Édipo”
– isto é, a relação emocional de uma criança humana com seus dois
pais – na vida mental dos seres humanos. Nosso assombro se reduz
quando compreendemos ser o complexo de Édipo o correlativo
psíquico de dois fatos biológicos fundamentais: o longo período de
dependência da criança e a maneira notável pela qual sua vida sexual
atinge um primeiro clímax do terceiro ao quinto ano de vida, e
depois, passado um período de inibição, reinicia-se na puberdade.
E aqui se fez a descoberta de que uma terceira parte extremamente
séria da atividade intelectual humana, a parte criadora das grandes
instituições da religião, do direito, da ética e de todas as formas de
vida cívica, tem como seu objetivo fundamental capacitar o indiví-
duo a dominar seu complexo de Édipo e desviar-lhe a libido de
suas ligações infantis para as ligações sociais que são enfim desejadas.
As aplicações da psicanálise à ciência da religião e à sociologia (por
Freud, Theodor Reik e Oskar Pfister, por exemplo), que conduzi-
ram a esses achados, ainda são novas e insuficientemente apreciadas,
mas não se pode duvidar que estudos posteriores só irão confirmar
a certeza dessas importantes conclusões.
À guisa de pós-escrito, por assim dizer, devo mencionar que tam-
bém os educadores não podem deixar de utilizar as sugestões que
receberam da exploração analítica da vida mental das crianças e, ade-
mais, que vozes se levantaram entre terapeutas (Groddeck e Jelliffe,
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por exemplo), sustentando que o tratamento psicanalítico de queixas
orgânicas graves apresenta resultados promissores, de vez que em
muitas dessas afecções determinado papel é desempenhado por um
fator psíquico sobre o qual é possível lograr influência.
Podemos, assim, expressar nossa expectativa de que a psicaná-
lise, cujo desenvolvimento e realizações até o presente foram su-
cinta e inadequadamente relatados nestas páginas, ingressará no
desenvolvimento cultural das próximas décadas como um fer-
mento significativo e auxiliará a aprofundar nosso conhecimento
do mundo e a lutar contra algumas coisas da vida, reconhecidas
como prejudiciais. Não se deve esquecer, contudo, que a psicaná-
lise sozinha não pode oferecer um quadro completo do mundo.
Se aceitarmos a distinção que recentemente propus, de dividir o
aparelho psíquico em um ego, voltado para o mundo externo e
aparelhado com a consciência, e em um id inconsciente, domi-
nado por suas necessidades instintuais, então a psicanálise deve ser
descrita como uma psicologia do id (e de seus efeitos sobre o
ego). Em cada campo do conhecimento, portanto, ela só pode
fazer contribuições, que requerem ser completadas a partir da psi-
cologia do ego. Se essas contribuições amiúde contêm a essência
dos fatos, isso apenas corresponde ao importante papel que, pode-
se reivindicar, é desempenhado em nossas vidas pelo inconsciente
mental que por tanto tempo permaneceu desconhecido.
Vol. XIV - O inconsciente
Aprendemos com a psicanálise que a essência do processo de
repressão não está em pôr fim, em destruir a ideia que representa
um instinto, mas em evitar que se torne consciente. Quando isso
ocorre, dizemos que a ideia se encontra num estado “inconsci-
ente”, e podemos apresentar boas provas para mostrar que, até
mesmo quando inconsciente, ela pode produzir efeitos, incluindo
até mesmo alguns que, finalmente, atingem a consciência. Tudo
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que é reprimido deve permanecer inconsciente; mas, logo de iní-
cio, declaremos que o reprimido não abrange tudo que é inconsci-
ente. O alcance do inconsciente é mais amplo: o reprimido não é
apenas uma parte do inconsciente.
Como devemos chegar a um conhecimento do inconsciente?
Certamente, só o conhecemos como algo consciente, depois que
ele sofreu transformação ou tradução para algo consciente. A cada
dia, o trabalho psicanalítico nos mostra que esse tipo de tradução
é possível. A fim de que isso ocorra, a pessoa sob análise deve
superar certas resistências – resistências como aquelas que, anterior-
mente, transformaram o material em questão em algo reprimido,
rejeitando-o do consciente.
Vol. XIX - A consciência e o que é inconsciente
Neste capítulo introdutório nada existe de novo a ser dito e não
será possível evitar repetir o que amiúde foi mencionado antes.
A divisão do psíquico em o que é consciente e o que é incons-
ciente constitui a premissa fundamental da psicanálise, e somente
ela torna possível a essa compreender os processos patológicos da
vida mental, que são tão comuns quanto importantes, e encontrar
lugar para eles na estrutura da ciência. Para dizê-lo mais uma vez,
de modo diferente: a psicanálise não pode situar a essência do
psíquico na consciência, mas é obrigada a encarar essa como uma
qualidade do psíquico, que se pode achar presente em acréscimo a
outras qualidades, ou estar ausente.
Se eu pudesse supor que toda pessoa interessada em psicolo-
gia leria este livro, deveria estar também preparado para descobrir
que, nesse ponto, alguns de meus leitores se deteriam abruptamen-
te e não iriam adiante, pois aqui temos a primeira palavra de teste
da psicanálise. Para muitas pessoas que foram educadas na filoso-
fia, a ideia de algo psíquico que não seja também consciente é tão
inconcebível que lhes parece absurda e refutável simplesmente pela
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lógica. Acredito que isso se deve apenas a nunca terem estudado
os fenômenos pertinentes da hipnose e dos sonhos, os quais –
inteiramente à parte das manifestações patológicas – tornam ne-
cessária essa visão. Sua psicologia da consciência é incapaz de solu-
cionar os problemas dos sonhos e da hipnose.
“Estar consciente” é, em primeiro lugar, um termo puramente
descritivo, que repousa na percepção do caráter mais imediato e
certo. A experiência demonstra que um elemento psíquico (uma ideia,
por exemplo) não é, via de regra, consciente por um período pro-
longado. Pelo contrário, um estado de consciência é, caracteristica-
mente, muito transitório; uma ideia que é consciente agora não o é
mais em um momento depois, embora assim possa tornar-se de
novo, em certas condições que são facilmente ocasionadas. No in-
tervalo, a ideia foi… Não sabemos o quê. Podemos dizer que esteve
latente e, por isso, queremos dizer que era capaz de tornar-se cons-
ciente a qualquer momento. Ora, se dissermos que era inconsciente,
estaremos também dando uma descrição correta dela. Aqui “in-
consciente” coincide com “latente e capaz de tornar-se consciente”.
Os filósofos, sem dúvida, objetariam: – Não, o termo “inconscien-
te” não é aplicável aqui; enquanto a ideia esteve em estado de latência,
ela não foi algo psíquico de modo algum. Contradizê-los nesse ponto
não conduziria a nada mais proveitoso que uma disputa verbal.
Mas chegamos ao termo ou conceito de inconsciente ao lon-
go de outro caminho, pela consideração de certas experiências em
que a dinâmica mental desempenha um papel. Descobrimos –
isto é, fomos obrigados a presumir – que existem ideias ou pro-
cessos mentais muito poderosos (e aqui um fator quantitativo ou
econômico entra em questão pela primeira vez) que podem pro-
duzir na vida mental todos os efeitos que as ideias comuns produ-
zem (inclusive certos efeitos que podem, por sua vez, tornar-se
conscientes como ideias), embora eles próprios não se tornem
conscientes. É desnecessário repetir em pormenor aqui o que foi
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explicado com tanta frequência antes. Basta dizer que, nesse ponto,
a teoria psicanalítica intervém e assevera que a razão pela qual tais
ideias não podem tornar-se conscientes é que certa força se lhes
opõe; que, de outra maneira, se tornariam conscientes, e que seria
então aparente quão pouco elas diferem de outros elementos que
são admitidamente psíquicos. O fato de se ter encontrado, na téc-
nica da psicanálise, um meio pelo qual a força opositora pode ser
removida e as ideias em questão tornadas conscientes, torna
irrefutável essa teoria. O estado em que as ideias existiam antes de
se tornarem conscientes é chamado por nós de repressão, e asse-
veramos que a força que instituiu a repressão e a mantém é perce-
bida como resistência durante o trabalho de análise.
Obtemos, assim, nosso conceito de inconsciente com base na
teoria da repressão. O reprimido é, para nós, o protótipo do in-
consciente. Percebemos, contudo, que temos dois tipos de inconsci-
ente: um que é latente, mas capaz de tornar-se consciente, e outro
que é reprimido e não é, em si próprio e sem mais trabalho, capaz
de tornar-se consciente. Essa compreensão interna (insight) da dinâ-
mica psíquica não pode deixar de afetar a terminologia e a descri-
ção. Ao latente, que é inconsciente apenas descritivamente, não no
sentido dinâmico, chamamos de pré-consciente; restringimos o ter-
mo inconsciente ao reprimido dinamicamente inconsciente, de ma-
neira que temos agora três termos, consciente (Cs.), pré-consciente
(Pcs.) e inconsciente (Ics.), cujo sentido não é mais puramente descri-
tivo. O Pcs. acha-se provavelmente muito mais próximo do Cs. que
o Ics., e desde que chamamos o Ics. de psíquico, chamaremos, ainda
com menos hesitação, o Pcs. latente de psíquico. Mas por que, em
vez disso, não concordamos com os filósofos e, de maneira coeren-
te, distinguimos o Pcs., assim como o Ics., do psíquico consciente?
Os filósofos proporiam então que o Pcs. e o Ics. fossem descritos
como duas espécies ou estágios do “psicóide” e a harmonia se esta-
beleceria. Porém, dificuldades infindáveis de exposição se seguiriam,
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e o fato importante de que esses dois tipos de “psicóide” coincidem
em quase todos os outros aspectos com o que é admitidamente
psíquico seria forçado para o segundo plano, nos interesses de um
preconceito que data de um período em que esses psicóides, ou a
parte mais importante deles, eram ainda desconhecidos.
Podemos agora trabalhar comodamente com nossos três ter-
mos, Cs., Pcs., e Ics., enquanto não esquecermos que, no sentido
descritivo, há dois tipos de inconsciente, mas, no sentido dinâmico,
apenas um. Para fins de exposição, essa distinção pode ser ignora-
da em alguns casos; noutros, porém, ela é, naturalmente, indispen-
sável. Ao mesmo tempo, acostumamo-nos mais ou menos com
essa ambiguidade do inconsciente e nos demos muito bem com
ela. Até onde posso ver, é impossível evitar essa ambiguidade; a
distinção entre consciente e inconsciente é, em última análise, uma
questão de percepção, à qual deve ser respondido “sim” ou “não”,
e o próprio ato da percepção nada nos diz da razão por que uma
coisa é ou não percebida. Ninguém tem o direito de queixar-se
porque o fenômeno concreto expressa ambiguamente o fator di-
nâmico. No curso ulterior do trabalho psicanalítico, entretanto,
mesmo essas distinções mostraram ser inadequadas e, para fins
práticos, insuficientes. Isso se tornou claro de várias maneiras, mas
o exemplo decisivo é o seguinte. Formamos a ideia de que em
cada indivíduo existe uma organização coerente de processos
mentais e chamamos a isso seu ego. É a esse ego que a consciência
se acha ligada: o ego controla as abordagens à motilidade – isto é,
à descarga de excitações para o mundo externo. Ele é a instância
mental que supervisiona todos os seus próprios processos consti-
tuintes e que vai dormir à noite, embora ainda exerça a censura
sobre os sonhos. Desse ego procedem também as repressões, por
meio das quais se procura excluir certas tendências da mente, não
simplesmente da consciência, mas também de outras formas de
capacidade e atividade. Na análise, essas tendências que foram dei-
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xadas de fora se colocam em oposição ao ego, e a análise defron-
ta-se com a tarefa de remover as resistências que o ego apresenta
contra o preocupar-se com o reprimido. Ora, descobrimos du-
rante a análise que, quando apresentamos certas tarefas ao pacien-
te, ele entra em dificuldades; suas associações falham quando de-
veriam aproximar-se do reprimido. Dizemos-lhe então que está
dominado por uma resistência, mas ele se acha inteiramente inad-
vertido do fato e, mesmo que adivinhe, por seus sentimentos
desprazerosos, que uma resistência encontra-se então em ação nele,
não sabe o que é ou como descrevê-la.
Entretanto, visto não poder haver dúvida de que essa resistên-
cia emana do seu ego e a este pertence, encontramo-nos numa
situação imprevista. Deparamo-nos com algo no próprio ego que
é também inconsciente, que se comporta exatamente como o re-
primido – isto é, que produz efeitos poderosos sem ele próprio
ser consciente e que exige um trabalho especial antes de poder ser
tornado consciente. Do ponto de vista da prática analítica, a
consequência dessa descoberta é que iremos parar em infindáveis
obscuridades e dificuldades se nos ativermos às nossas formas
habituais de expressão e tentarmos, por exemplo, derivar as neu-
roses de um conflito entre o consciente e o inconsciente. Teremos
de substituir essa antítese por outra, extraída de nossa compreen-
são interna (insight) das condições estruturais da mente – a antítese
entre o ego coerente e o reprimido que é expelido (split off) dele.
Para nossa concepção do inconsciente, contudo, as
consequências de nossa descoberta são ainda mais importantes.
Considerações dinâmicas fizeram-nos efetuar a primeira correção;
nossa compreensão interna (insight) da estrutura da mente conduz à
segunda. Reconhecemos que o Ics. não coincide com o reprimido;
é ainda verdade que tudo o que é reprimido é Ics., mas nem tudo
o que é Ics. é reprimido. Também uma parte do ego – e sabem os
céus que parte tão importante – pode ser Ics., indubitavelmente é
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Ics. E esse Ics. que pertence ao ego não é latente como o Pcs., pois,
se fosse, não poderia ser ativado sem tornar-se Cs., e o processo
de torná-lo consciente não encontraria tão grandes dificuldades.
Quando nos vemos assim confrontados pela necessidade de pos-
tular um terceiro Ics., que não é reprimido, temos de admitir que a
característica de ser inconsciente começa a perder significação para
nós. Torna-se uma qualidade que pode ter muitos significados,
uma qualidade da qual não podemos fazer, como esperaríamos, a
base de conclusões inevitáveis e de longo alcance. Não obstante,
devemos cuidar para não ignorarmos essa característica, pois a
propriedade de ser consciente ou não constitui, em última análise,
nosso único farol na treva da psicologia profunda.
Vol. XIX - O ego e o id
A pesquisa patológica dirigiu nosso interesse de modo ex-
cessivamente exclusivo para o reprimido. Gostaríamos de apren-
der mais sobre o ego, agora que sabemos que também ele pode
ser inconsciente no sentido correto da palavra. Até agora, a única
orientação que tivemos durante nossas investigações foi a marca
distinguidora de ser consciente ou inconsciente; acabamos por
ver quão ambíguo isso pode ser.
Ora, todo nosso conhecimento está invariavelmente ligado à
consciência. Só podemos vir a conhecer, mesmo o Ics., tornando-o
consciente. Detenhamo-nos, porém: como é isso possível? O que
queremos dizer quando dizemos “tornar algo consciente”? Como
é que isso pode ocorrer?
Já conhecemos o ponto do qual temos de partir com relação
a isso. Dissemos que a consciência é a superfície do aparelho
mental, ou seja, determinamo-la como função de um sistema
que, espacialmente, é o primeiro a ser atingido com base no
mundo externo, e espacialmente não apenas no sentido funcio-
nal, mas também, nessa ocasião, no sentido de dissecção
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anatômica. Também nossas investigações devem tomar essa su-
perfície perceptiva como ponto de partida.
Todas as percepções que são recebidas de fora (percepções
sensórias) e de dentro – o que chamamos de sensações e senti-
mentos – são Cs. desde o início. Mas e aqueles processos internos
que podemos – grosseira e inexatamente – resumir sob o nome
de processos de pensamento? Eles representam deslocamentos de
energia mental que são efetuados em algum lugar no interior do
aparelho, à medida que essa energia progride em seu caminho no
sentido da ação. Avançam eles para a superfície, fazendo com que
a consciência seja gerada? Ou a consciência abre caminho até eles?
Essa é, claramente, uma das dificuldades que surgem quando se
começa a tomar a sério a ideia espacial ou “topográfica” da vida
mental. Ambas essas possibilidades são igualmente inimagináveis;
tem de haver uma terceira alternativa.
Em outro lugar, já sugeri que a diferença real entre uma ideia
(pensamento) do Ics. ou do Pcs. consiste nisto: que a primeira é
efetuada em algum material que permanece desconhecido, enquan-
to a última (a do Pcs.) é, além disso, colocada em vinculação com
representações verbais. Essa é a primeira tentativa de indicar marcas
distinguidoras entre os dois sistemas, o Pcs. e o Ics., além de sua
relação com a consciência. A pergunta “Como uma coisa se torna
consciente?” seria assim mais vantajosamente enunciada: “como uma
coisa se torna pré-consciente?” E a resposta seria: “vinculando-se às
representações verbais que lhe são correspondentes”.
Essas representações verbais são resíduos de lembranças; fo-
ram antes percepções e, como todos os resíduos mnêmicos, po-
dem tornar-se conscientes de novo. Antes de nos interessarmos
mais por sua natureza, torna-se evidente para nós, como nova
descoberta, que somente algo que já foi uma percepção Cs. pode
tornar-se consciente, e que qualquer coisa proveniente de dentro (à
parte os sentimentos) que procure se tornar consciente deve tentar
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63
transformar-se em percepções externas: isso se torna possível
mediante os traços mnêmicos.
Pensamos nos resíduos mnêmicos como se estivessem conti-
dos em sistemas que são diretamente adjacentes ao sistema Pcpt.-
Cs., de maneira que as catexias desses resíduos podem com facili-
dade estender-se, de dentro, para os elementos do último sistema.
De imediato pensamos aqui nas alucinações, e no fato de que a
mais vívida lembrança é sempre distinguível, tanto de uma alucina-
ção quanto de uma percepção externa; mas também nos ocorre
em seguida que, quando uma lembrança é revivida, a catexia per-
manece no sistema mnêmico, enquanto uma alucinação, que não é
distinguível de uma percepção, pode surgir quando a catexia não
se estende simplesmente do traço mnêmico para o elemento Pcpt.,
mas se transfere como um todo para ele.
Os resíduos verbais derivam primariamente das percepções
auditivas, de maneira que o sistema Pcs. possui, por assim di-
zer, uma fonte sensória especial. Os componentes visuais das
representações verbais são secundários, adquiridos mediante a
leitura e podem, de início, ser deixados de lado, e assim tam-
bém as imagens motoras das palavras, que, exceto para os sur-
dos-mudos, desempenham o papel de indicações auxiliares. Em
essência, uma palavra é, em última análise, o resíduo mnêmico
de uma palavra que foi ouvida.
Não devemos deixar-nos levar, talvez visando à simplificação,
a esquecer a importância dos resíduos mnêmicos ópticos, quando
o são de coisas, ou a negar que seja possível os processos de pen-
samento tornarem-se conscientes mediante uma reversão a resídu-
os visuais e que, em muitas pessoas, esse parece ser o método
favorito. O estudo dos sonhos e das fantasias pré-conscientes, como
se demonstra nas observações de Varendonck, pode dar-nos uma
ideia do caráter especial desse pensar visual. Aprendemos que o
que nele se torna consciente é, via de regra, apenas o tema geral
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concreto do pensamento, e que as revelações entre os diversos
elementos desse tema geral, que é o que caracteriza especialmente
os pensamentos, não podem receber expressão visual. Pensar em
figuras, portanto, é apenas uma forma muito incompleta de tor-
nar-se consciente. De certa maneira, também, ela se situa mais per-
to dos processos inconscientes do que o pensar em palavras, sen-
do de forma inquestionável mais antiga que o último, tanto
ontogenética quanto filogeneticamente.
Retornando ao nosso argumento: se, portanto, essa é a manei-
ra pela qual algo que é, em si próprio, inconsciente, se torna pré-
consciente, a questão de como tornamos (pré-consciente) algo que
é reprimido seria respondida do seguinte modo. Isso é feito for-
necendo ao Pcs. vínculos intermediários, mediante o trabalho de
análise. A consciência permanece, portanto, onde está, mas, por
outro lado, o Ics. não aflora no Cs.
Enquanto a relação das percepções externas com o ego é bas-
tante perspícua, a das percepções internas com o mesmo exige
uma investigação especial. Ela mais uma vez dá origem à dúvida
quanto a saber se estamos realmente com razão em referir a tota-
lidade da consciência ao único sistema superficial Pcpt.-Cs.
As percepções internas produzem sensações de processo que
surgem nos mais diversos e, também, certamente, nos mais profun-
dos estratos do aparelho mental. Muito pouco se conhece sobre
essas sensações e esses sentimentos; os que pertencem à série prazer-
desprazer ainda podem ser considerados como os melhores exem-
plos deles. São mais primordiais e mais elementares, do que as per-
cepções que surgem externamente, e podem ocorrer mesmo quan-
do a consciência se acha enevoada. Expressei em outro lugar meus
pontos de vista sobre sua importância econômica maior e as razões
metapsicológicas para isso. Essas sensações são multilocalizadas, como
as percepções externas; podem vir de forma simultânea de diferen-
tes lugares e terem, assim, qualidades diferentes ou mesmo opostas.
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As sensações de natureza prazerosa não têm nada de inerente-
mente impelente nelas, enquanto que as desprazerosas o têm no
mais alto grau. As últimas impelem no sentido da mudança, da des-
carga, e é por isso que interpretamos o desprazer como implicando
uma elevação e o prazer uma redução da catexia energética. Chame-
mos o que se torna consciente como prazer e desprazer um “algo”
quantitativo e qualitativo no curso dos eventos mentais; a questão,
então, é saber se esse “algo” pode tornar-se consciente no lugar
onde está ou se deve ser primeiro transmitido ao sistema Pcpt.
A experiência clínica decide em favor do último. Ela nos de-
monstra que esse “algo” se comporta como um impulso reprimi-
do. Ele pode exercer força impulsiva sem que o ego note a
compulsão. Somente quando se dá resistência a esta, uma detenção
na reação de descarga, é que o “algo” se torna consciente como
desprazer. Assim como as tensões que surgem de necessidades físi-
cas podem permanecer inconscientes, também o pode o sofrimen-
to – algo intermediário entre a percepção externa e a interna, que se
comporta como uma percepção interna, mesmo quando sua fonte
se encontra no mundo externo. Permanece verdade, portanto, que
também as sensações e os sentimentos só se tornam conscientes
atingindo o sistema Pcpt.; se o caminho para frente é barrado, elas
não chegam a existir como sensações, embora o “algo” que lhes
corresponde no curso da excitação seja o mesmo que se elas chegas-
sem a existir. Passamos então a falar, de maneira condensada e não
inteiramente correta, de “sentimentos inconscientes”, mantendo uma
analogia com as ideias inconscientes que não é no total justificável.
Na realidade, a diferença é que, enquanto com as ideias Ics. devem
ser criados vínculos de ligação antes que elas possam ser trazidas
para o Cs., com os sentimentos, que são transmitidos diretamente,
isso não ocorre. Em outras palavras: a distinção entre Cs. e Pcs. não
tem significado no que concerne a sentimentos; o Pcs. aqui é posto
de lado – e os sentimentos são ou conscientes ou inconscientes.
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Mesmo quando estão ligados a representações verbais, tornam-se
conscientes, não devido a essa circunstância, mas sim diretamente. O
papel desempenhado pelas representações verbais se torna agora
perfeitamente claro. Através de sua interposição, os processos inter-
nos de pensamento são transformados em percepções. É como
uma demonstração do teorema de que todo conhecimento tem sua
origem na percepção externa. Quando uma hipercatexia do proces-
so de pensamento se efetua, os pensamentos são decerto percebi-
dos – como se proviessem de fora – e, consequentemente, são
considerados verdadeiros.
Após esse esclarecimento das relações entre a percepção ex-
terna e interna e o sistema superficial Pcpt.-Cs., podemos passar à
elaboração de nossa ideia do ego. Ele tem início, como vimos, no
sistema Pcpt., que é seu núcleo, e começa por abranger o Pcs., que
é adjacente aos resíduos mnêmicos. Mas, como aprendemos, o
ego é também inconsciente.
Ora, acredito que muito lucraríamos seguindo a sugestão de
um escritor que, por motivos pessoais, assevera em vão que nada
tem a ver com os rigores da ciência pura. Falo de Georg Groddeck,
o qual nunca se cansa de insistir que aquilo que chamamos de nos-
so ego comporta-se essencialmente de modo passivo na vida e
que, como ele o expressa, nós somos “vividos” por forças desco-
nhecidas e incontroláveis. Todos nós tivemos impressões da mes-
ma espécie, ainda que não nos tenham dominado até a exclusão de
todas as outras, e precisamos não sentir hesitação em encontrar
um lugar para a descoberta de Groddeck na estrutura da ciência.
Proponho levá-la em consideração chamando a entidade que tem
início no sistema Pcpt. e começa por ser Pcs. de “ego”, e seguindo
Groddeck no chamar a outra parte da mente, pela qual essa enti-
dade se estende e que se comporta como se fosse Ics., de “id”.
Logo veremos se podemos tirar alguma vantagem desse pon-
to de vista, para fins quer de descrição quer de compreensão. Exa-
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minaremos agora o indivíduo como um id psíquico, desconheci-
do e inconsciente, sobre cuja superfície repousa o ego, desenvolvi-
do desde seu núcleo, o sistema Pcpt. Se fizermos um esforço para
representar isso pictoricamente, podemos acrescentar que o ego
não envolve por completo o id, mas apenas até o ponto em que o
sistema Pcpt. forma sua [do ego] superfície, mais ou menos como
o disco germinal repousa sobre o óvulo. O ego não se acha nitida-
mente separado do id; sua parte inferior funde-se com ele. Mas o
reprimido também se funde com o id, e é simplesmente uma par-
te dele. Ele só se destaca com nitidez do ego pelas resistências da
repressão, e pode comunicar-se com o ego através do id. Com-
preendemos, em seguida, que quase todas as linhas de demarcação
que traçamos, por instigação da patologia, relacionam-se apenas
aos estratos superficiais do aparelho mental – os únicos que nos
são conhecidos. O estado de coisas que estivemos descrevendo
pode ser representado diagramaticamente (fig. 1), embora se deva
notar que a forma escolhida não tem pretensões a qualquer
aplicabilidade especial, mas simplesmente se destina a servir para
fins de exposição.
Poderíamos acrescentar, talvez, que o ego usa um “receptor
acústico” – de um lado apenas, como aprendemos da anatomia
cerebral. Poder-se-ia dizer que o usa de viés.
É fácil ver que o ego é aquela parte do id que foi modificada
pela influência direta do mundo externo, por intermédio do Pcpt.-
Cs.; em certo sentido, é uma extensão da diferenciação de super-
fície. Além disso, o ego procura aplicar a influência do mundo
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externo ao id e às tendências desse, e esforça-se por substituir o
princípio de prazer, que reina irrestritamente no id, pelo princí-
pio de realidade. Para o ego, a percepção desempenha o papel
que cabe ao instinto. O ego representa o que pode ser chamado
de razão e senso comum, em contraste com o id, que contém as
paixões. Tudo isso se coaduna às distinções populares com que
estamos familiarizados; ao mesmo tempo, contudo, só deve ser
encarado como confirmado na média ou “idealmente”.
A importância funcional do ego se manifesta no fato de que,
normalmente, o controle sobre as abordagens à motilidade com-
pete a ele. Assim, em sua relação com o id, ele é como um cavalei-
ro que tem de manter controlada a força superior do cavalo, com
a diferença de que o cavaleiro tenta fazê-lo com sua própria força,
enquanto o ego utiliza forças tomadas de empréstimo. A analogia
pode ser levada um pouco além. Com frequência um cavaleiro, se
não deseja ver-se separado do cavalo, é obrigado a conduzi-lo
onde este quer ir; da mesma maneira, o ego tem o hábito de trans-
formar em ação a vontade do id, como se fosse sua própria.
Outro fator, além da influência do sistema Pcpt., parece ter
desempenhado papel em ocasionar a formação do ego e sua dife-
renciação a partir do id. O próprio corpo de uma pessoa e, acima
de tudo, sua superfície, constitui um lugar de onde podem origi-
nar-se sensações tanto externas quanto internas. Ele é visto como
qualquer outro objeto, mas, ao tato, produz duas espécies de sen-
sação, uma das quais pode ser equivalente a uma percepção inter-
na. A psicofisiologia examinou plenamente a maneira como o pró-
prio corpo de uma pessoa chega à sua posição especial entre ou-
tros objetos no mundo da percepção. Também a dor parece de-
sempenhar um papel no processo, e a maneira pela qual obtemos
novo conhecimento de nossos órgãos durante as doenças doloro-
sas constitui talvez um modelo da maneira como, em geral, chega-
mos à ideia de nosso corpo.
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O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é
simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a
projeção de uma superfície. Se quisermos encontrar uma analogia
anatômica para ele, poderemos identificá-lo melhor com o
“homúnculo cortical” dos anatomistas, que fica de cabeça para
baixo no córtex, estira os calcanhares, tem o rosto virado para trás
e, como sabemos, possui sua área da fala no lado esquerdo. In-
gressamos repetidamente na relação do ego com a consciência,
mas existem alguns fatos importantes com relação a isso que ainda
não foram descritos aqui. Acostumados como estamos a levar
conosco nossa escala social ou ética de valores para onde quer que
vamos, não ficamos surpresos em ouvir que a cena das atividades
das paixões inferiores se acha no inconsciente; esperamos, ade-
mais, que quanto mais alto alguma função mental se coloque em
nossa escala de valores, mais facilmente encontrará acesso à cons-
ciência que lhe é assegurada. Aqui, contudo, a experiência psicana-
lítica nos desaponta. Por um lado, temos provas de que mesmo
operações intelectuais sutis e difíceis, que ordinariamente exigem
reflexão vigorosa, podem igualmente ser executadas pré-consci-
entemente e sem chegarem à consciência. Os exemplos disso são
inteiramente incontestáveis; podem ocorrer, por exemplo, durante
o estado de sono, como demonstrado quando alguém descobre,
imediatamente após o despertar, que encontrou a solução de um
difícil problema matemático ou de outro tipo com que esteve
lutando em vão no dia anterior.
Há outro fenômeno, contudo, que é mais estranho. Em nossas
análises, descobrimos que existem pessoas nas quais as faculdades
de autocrítica e consciência (conscience) – atividades mentais, classifi-
cadas como extremamente elevadas – são inconscientes e incons-
cientemente produzem efeitos da maior importância; o exemplo
da resistência que permanece inconsciente durante a análise não é,
portanto, de maneira alguma, único. Mas essa nova descoberta,
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que nos compele, apesar de nosso melhor juízo crítico, a falar de
um “sentimento inconsciente de culpa”, desnorteia-nos mais que a
outra e nos propõe novos problemas, especialmente quando
gradativamente chegamos a perceber que grande número de neu-
roses, um sentimento inconsciente de culpa desse tipo, desempe-
nha um papel econômico decisivo e coloca os obstáculos mais
poderosos no caminho do restabelecimento. Se retornarmos mais
uma vez à nossa escala de valores, teremos de dizer que não ape-
nas o que é mais baixo, mas também o que é mais elevado no ego,
pode ser inconsciente. É como se fôssemos assim supridos com
uma prova do que acabamos de asseverar quanto ao ego consci-
ente: que ele é, acima de tudo, um ego corporal.
Vol. XIV - Repressão
Uma das vicissitudes que um impulso instintual pode sofrer é
encontrar resistências que procuram torná-lo inoperante. Em cer-
tas condições, que logo investigaremos mais detidamente, o im-
pulso passa então para o estado de “repressão” [Verdrängung]. Se
o que estava em questão era o funcionamento de um estímulo
externo, obviamente se deveria adotar a fuga como método apro-
priado; para o instinto, a fuga não tem qualquer valia, pois o ego
não pode escapar de si próprio. Em dado período ulterior, se
verificará que a rejeição baseada no julgamento (condenação) cons-
tituirá um bom método a ser adotado contra um impulso instintual.
A repressão é uma etapa preliminar da condenação, algo entre a
fuga e a condenação; trata-se de um conceito que não poderia ter
sido formulado antes da época dos estudos psicanalíticos.
Não é fácil deduzir em teoria a possibilidade de algo como a
repressão. Por que deve um impulso instintual sofrer uma vicissitude
como essa? Condição necessária para que ela ocorra deve ser, sem
dúvida, que a consecução, pelo instinto, de sua finalidade produza
desprazer em vez de prazer. Contudo, não podemos imaginar facil-
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mente tal eventualidade. Não existem tais instintos: a satisfação de
um instinto é sempre agradável. Teríamos de supor a existência de
certas circunstâncias peculiares, alguma espécie de processo através
do qual o prazer da satisfação se transforma em desprazer.
A fim de melhor determinar a repressão, examinemos algu-
mas outras situações instintuais. Pode acontecer que um estímulo
externo seja internalizado – corroendo e destruindo, por exemplo,
algum órgão corpóreo –, de modo que surja nova fonte de exci-
tação constante e de aumento de tensão. Assim, o estímulo adquire
uma similaridade de longo alcance com um instinto. Sabemos que
um caso desse tipo é experimentado por nós como dor. A finali-
dade desse pseudoinstinto, no entanto, consiste simplesmente na
cessação da mudança no órgão e do desprazer que lhe é
concomitante. Não há outro prazer direto a ser alcançado pela
cessação da dor. Além disso, a dor é imperativa; as únicas coisas
diante das quais ela pode ceder são a eliminação por algum agente
tóxico ou a influência da distração mental.
O caso da dor é por demais obscuro para nos servir de ajuda
em nossos propósitos. Tomemos o caso em que um estímulo
instintual como a fome permanece insatisfeito. Ele se torna então
imperativo e só pode ser aliviado pela ação que o satisfaz, manten-
do constante tensão de necessidade. Nesse caso, nada da natureza
de uma repressão, sequer remotamente, parece estar em questão.
Assim, por certo, a repressão não surge nos casos em que a
tensão produzida pela falta de satisfação de um impulso instintual
é elevada a um grau insuportável. Os métodos de defesa acessíveis
ao organismo contra essa situação devem ser examinados em ou-
tra conexão.
Limitemo-nos, portanto, à experiência clínica, tal como en-
contrada na prática psicanalítica. Aprendemos, então, que a satisfa-
ção de um instinto que se acha sob repressão seria bastante possí-
vel e, além disso, que tal satisfação seria invariavelmente agradável
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em si mesma, embora irreconciliável com outras reivindicações e
intenções. Ela causaria, por conseguinte, prazer num ponto e
desprazer em outro. Em consequência disso, torna-se condição
para repressão que a força motora do desprazer adquira mais vi-
gor do que o prazer obtido da satisfação. Ademais, a observação
psicanalítica das neuroses de transferência leva-nos a concluir que a
repressão não é um mecanismo defensivo presente desde o início;
que ela só pode surgir quando tiver ocorrido uma cisão marcante
entre a atividade mental consciente e a inconsciente; e que a essên-
cia da repressão consiste simplesmente em afastar determinada
coisa do consciente, mantendo-a à distância. Esse conceito de re-
pressão ficaria mais completo se supuséssemos que, antes de a
organização mental alcançar essa fase, a tarefa de rechaçar os im-
pulsos instintuais cabia às outras vicissitudes, às quais os instintos
podem estar sujeitos – por exemplo, a reversão no oposto ou o
retorno em direção ao próprio eu (self) do sujeito.
Afigura-se-nos agora que, em vista da grande extensão da cor-
relação entre repressão e o que é inconsciente, devemos adiar o exa-
me mais aprofundado da natureza da repressão até que tenhamos
aprendido mais sobre a estrutura da sucessão de agentes psíquicos e
sobre a diferenciação entre o que é inconsciente e consciente. Até
então, tudo o que podemos fazer é reunir de maneira puramente
descritiva algumas características da repressão que tenham sido ob-
servadas clinicamente, ainda que corramos o risco de ter de repetir,
sem modificação, muito do que já foi dito em outros lugares.
Temos motivos suficientes para supor que existe uma repres-
são primeva, uma primeira fase de repressão, que consiste em ne-
gar entrada no consciente ao representante psíquico (ideacional)
do instinto. Com isso, estabelece-se uma fixação; desse momento
em diante, o representante em questão continua inalterado, e o
instinto permanece ligado a ele. Isso se deve às propriedades dos
processos inconscientes, de que falaremos depois.
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A segunda fase da repressão, a repressão propriamente dita,
afeta os derivados mentais do representante reprimido, ou suces-
sões de pensamento que, originando-se em outra parte, tenham en-
trado em ligação associativa com ele. Por causa dessa associação,
essas ideias sofrem o mesmo destino daquilo que foi primevamente
reprimido. Na realidade, portanto, a repressão propriamente dita é
uma pressão posterior. Além disso, é errado dar ênfase apenas à
repulsão que atua desde a direção do consciente sobre o que deve
ser reprimido; igualmente importante é a atração exercida por aqui-
lo que foi primevamente repelido sobre tudo aquilo com que ele
possa estabelecer uma ligação. Provavelmente, a tendência no senti-
do da repressão falharia em seu propósito, caso essas duas forças
não cooperassem, caso não existisse algo previamente reprimido,
pronto para receber aquilo que é repelido pelo consciente.
Sob a influência do estudo das psiconeuroses, que coloca di-
ante de nós os importantes efeitos da repressão, inclinamo-nos a
supervalorizar sua dimensão psicológica e a esquecer demasiado
depressa o fato de que a repressão não impede que o representan-
te instintual continue a existir no inconsciente, se organize ainda
mais, dê origem a derivados, e estabeleça ligações. Na verdade, a
repressão só interfere na relação do representante instintual com
um único sistema psíquico, a saber, o do consciente.
A psicanálise também é capaz de nos revelar outras coisas im-
portantes para a compreensão dos efeitos da repressão nas
psiconeuroses. Mostra-nos, por exemplo, que o representante instintual
se desenvolverá com menos interferência e mais profusamente se
for retirado da influência consciente pela expressão. Ele prolifera no
escuro, por assim dizer, e assume formas extremas de expressão
que, uma vez traduzidas e apresentadas ao neurótico, irão não só
lhe parecer estranhas, mas também assustá-lo, mostrando-lhe o
quadro de uma extraordinária e perigosa força do instinto. Essa
força falaz do instinto resulta de um desenvolvimento desinibido
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da fantasia e do represamento ocasionado pela satisfação frustra-
da. O fato de esse último resultado estar vinculado à repressão
indica a direção em que a verdadeira importância da repressão
deve ser procurada.
Voltando, porém, mais uma vez ao aspecto oposto da repressão,
deixemos claro que tampouco é correto supor que a repressão retira
do consciente todos os derivados daquilo que foi primevamente re-
primido. Se esses derivados se tornarem suficientemente afastados do
representante reprimido – quer devido à adoção de distorções, quer
por causa do grande número de elos intermediários inseridos –, eles
terão livre acesso ao consciente. Tudo se passa como se a resistência
do consciente contra eles constituísse uma função da distância exis-
tente entre eles e aquilo que foi originalmente reprimido. Ao execu-
tarmos a técnica da psicanálise, continuamos exigindo que o pacien-
te produza, de tal forma, derivados do reprimido, que, em
consequência de sua distância no tempo, ou de sua distorção, eles
possam passar pela censura do consciente. Na realidade, as associa-
ções que exigimos que o paciente faça sem sofrer a influência de
qualquer ideia intencional consciente ou de qualquer crítica, e com
base nas quais reconstituímos uma tradução consciente do represen-
tante reprimido – essas associações nada mais são do que derivados
remotos e distorcidos desse tipo. No correr desse processo, obser-
vamos que o paciente pode continuar a desfiar sua meada de asso-
ciações, até ser levado de encontro a um pensamento, cuja relação
com o reprimido fique tão óbvia, que o force a repetir sua tentativa
de repressão. Também os sintomas neuróticos devem satisfazer a
essa mesma condição, já que são derivados do reprimido, o qual,
por intermédio deles, por fim, teve acesso à consciência, acesso esse
que anteriormente lhe era negado.
Não podemos formular uma regra geral sobre o grau de
distorção e de distância no tempo necessário para a eliminação da
resistência por parte do consciente. Ocorre aqui delicado equilíbrio,
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cujo jogo não nos é revelado; no entanto, sua modalidade de atua-
ção nos permite inferir que se trata de pôr um paradeiro à catexia
do inconsciente quando esta alcança certa intensidade – intensidade
além da qual o inconsciente venceria as resistências, chegando à satis-
fação. A repressão atua, portanto, de uma forma altamente indivi-
dual. Cada derivado isolado do reprimido pode ter sua própria
vicissitude especial; um pouco mais ou um pouco menos de distorção
altera totalmente o resultado. Nesse sentido, podemos compreen-
der a razão por que os objetos preferidos pelos homens, isto é, seus
ideais, procedem das mesmas percepções e experiências que os ob-
jetos mais abominados por eles porque, originalmente, eles só se
distinguiam um dos outros através de ligeiras modificações. Decer-
to, tal como verificamos ao remontarmos à origem do fetiche, o
representante instintual original pode ser dividido em duas partes:
uma que sofre repressão, ao passo que a restante, precisamente por
causa dessa ligação íntima, passa pela idealização.
O mesmo resultado oriundo de um aumento ou de uma di-
minuição do grau de distorção também pode ser alcançado na
outra extremidade do aparelho, por assim dizer, por uma modifi-
cação da condição de produção de prazer e desprazer. Desenvol-
veram-se técnicas especiais, com o propósito de provocar tais
mudanças no jogo das forças mentais, que aquilo que de outra
forma daria lugar ao desprazer, pudesse, nessa ocasião, resultar
em prazer; e sempre que um dispositivo técnico desse tipo entra
em funcionamento, elimina-se a repressão de um representante
instintual que, de outro modo, seria repudiado. Até agora, apenas
no que se refere aos chistes, essas técnicas foram estudadas com
algum detalhe. Via de regra, a repressão só é removida temporaria-
mente, reinstalando-se de novo.
Observações como essa, contudo, permitem-nos notar outras
características da repressão. Ela é não só individual em seu funciona-
mento, conforme acabamos de assinalar, como também é extrema-
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mente móbil. O processo de repressão não deve ser encarado como
um fato que acontece uma vez, produzindo resultados permanen-
tes, tal como matar um ser vivo que, desde então, está morto; a
repressão exige um dispêndio persistente de força, e se essa viesse a
cessar, o êxito da repressão correria perigo, tornando necessário um
novo ato de repressão. Podemos supor que o reprimido exerce
uma pressão contínua em direção ao consciente, de forma que essa
pressão pode ser equilibrada por uma contrapressão incessante. As-
sim, a manutenção de uma repressão acarreta ininterrupto dispên-
dio de força, ao passo que sua eliminação, encarada de um ponto de
vista econômico, resulta numa poupança. Incidentalmente, a mobili-
dade da repressão também encontra expressão nas características
psíquicas do estado do sono, o único a tornar possível a formação
de sonhos. Com o retorno à vida de vigília, as catexias repressivas
absorvidas são mais uma vez expulsas.
Por fim, não nos devemos esquecer de que, na verdade, ao se
estabelecer que um impulso instintual é reprimido, muito pouco se
disse a respeito dele. Tal impulso pode ocorrer em estados ampla-
mente diferentes, sem prejuízo para sua repressão. Pode ser inativo,
isto é, só muito levemente catexizado com energia mental; ou pode
ser catexizado em graus variáveis, permitindo-se-lhe, assim, que seja
ativo. É verdade que sua ativação não resultará numa eliminação
direta da repressão, mas porá em movimento todos os processos
que terminam na penetração do impulso na consciência por cami-
nhos indiretos. Com derivados não reprimidos do inconsciente, o
destino de uma ideia específica é, com frequência, decidido pelo
grau de sua atividade ou catexia. Enquanto esse derivado representa
apenas pequena quantidade de energia, quase sempre permanece
não reprimido, embora pudesse calcular que seu conteúdo entrasse
em conflito com o que é dominante na consciência. O fator quanti-
tativo torna-se decisivo para esse conflito: tão logo a ideia basica-
mente detestável ultrapassa certo grau de força, o conflito se torna
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real, e é precisamente essa ativação que leva à repressão. Assim, no
tocante à repressão, um aumento da catexia energética atua no mes-
mo sentido que uma abordagem ao inconsciente, ao passo que uma
diminuição dessa catexia atua no mesmo sentido que o caráter re-
moto do inconsciente ou da distorção. Vemos que as tendências
repressivas podem encontrar um substituto para a repressão num
enfraquecimento do que é detestável.
Até esse momento, em nosso exame, tratamos da repressão
de um representante instintual, entendendo por esse último uma
ideia, ou grupo de ideias, catexizadas com uma quota definida de
energia psíquica (libido ou interesse) proveniente de um instinto.
Agora, a observação clínica nos obriga a dividir aquilo que até o
presente consideramos como sendo uma entidade única, de uma
vez que essa observação nos indica que, além da ideia, outro ele-
mento representativo do instinto tem de ser levado em considera-
ção, e que esse outro elemento passa por vicissitudes de repressão
que podem ser bem diferentes das experimentadas pela ideia.
Geralmente, a expressão “quota de afeto” tem sido adotada para
designar esse outro elemento do representante psíquico.
Corresponde ao instinto na medida em que este se afasta da ideia
e encontra expressão, proporcional à sua quantidade, em proces-
sos que são sentidos como afetos. Desde esse ponto, ao descre-
vermos um caso de repressão, teremos de acompanhar em sepa-
rado aquilo que acontece à ideia como resultado da repressão e
aquilo que ocorre à energia instintual vinculada a ela.
Gostaríamos de fazer algumas afirmações genéricas a respeito
das vicissitudes de ambos, coisa que, depois de nos situarmos, será
efetivamente possível. A ideia que representa o instinto passa por
uma vicissitude geral que consiste em desaparecer do consciente,
caso fosse previamente consciente, ou em ser afastada da consci-
ência, caso estivesse prestes a se tornar consciente. Essa diferença
não é importante, correspondendo à mesma coisa que a diferença
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entre ordenar a um hóspede indesejável que saia da minha sala de
visitas (ou do meu hall de entrada), e impedir, após reconhecê-lo,
que cruze a soleira de minha porta. O fator quantitativo do repre-
sentante instintual possui três vicissitudes possíveis, tal como pode-
mos verificar pelo breve exame das observações feitas pela psica-
nálise: ou o instinto é inteiramente suprimido, de modo que não se
encontre vestígio algum dele, ou aparece como um afeto que de
uma maneira ou de outra é qualitativamente colorido, ou transfor-
mado em ansiedade. As duas últimas possibilidades nos apontam
a tarefa de levar em conta, como sendo uma vicissitude instintual
ulterior, a transformação em afetos, e especialmente em ansieda-
de, das energias psíquicas dos instintos.
Recordamos o fato de que o motivo e o propósito da repres-
são nada mais eram do que a fuga ao desprazer. Depreende-se
disso que a vicissitude da quota de afeto pertencente ao represen-
tante é muito mais importante do que a vicissitude da ideia, sendo
esse fato decisivo para nossa avaliação do processo da repressão.
Se uma repressão não conseguir impedir que surjam sentimentos
de desprazer ou de ansiedade, podemos dizer que falhou, ainda
que possa ter alcançado seu propósito no tocante à parcela
ideacional. Evidentemente, as repressões que falharam exercerão
maior influência sobre nosso interesse do que qualquer outra que
possa ter sido bem-sucedida, já que essa, na maioria das vezes,
escapará ao nosso exame.
Agora, devemos tentar obter uma compreensão interna (insight)
do mecanismo do processo de repressão. Em particular, deseja-
mos saber se existe apenas um mecanismo isolado, ou mais de
um, e se cada uma das psiconeuroses se distingue por um meca-
nismo de repressão que lhe é peculiar. Contudo, já no início dessa
indagação, nos defrontamos com complicações. O mecanismo de
uma repressão só nos será acessível se deduzirmos esse mecanis-
mo com base no resultado da repressão. Limitando nossas obser-
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vações ao efeito da repressão sobre a parcela ideacional do repre-
sentante, descobrimos que, via de regra, ele cria uma formação
substitutiva. Qual é o mecanismo através do qual esse substituto é
formado? Ou será que devemos, também aqui, distinguir vários
mecanismos? Além disso, sabemos que a repressão deixa sintomas
em seu rastro. Podemos, então, supor que a formação de substitu-
tos e a formação de sintomas coincidem e, admitindo que isso
aconteça de um modo geral, será o mecanismo formador de sin-
tomas o mesmo que o da repressão? A probabilidade geral pare-
ceria ser a de que os dois são amplamente diferentes, e a de que
não é a própria repressão que produz formações substitutivas e
sintomas, mas que esses últimos são indicações de um retorno do
reprimido e devem sua existência a processos inteiramente outros.
Seria também aconselhável examinar os mecanismos através dos
quais se formam os substitutos e os sintomas, antes de considerar-
mos os mecanismos de repressão.
Obviamente não se trata de um assunto para especulação ulte-
rior. O lugar dessa especulação deve ser assumido por uma análise
cuidadosa dos resultados da repressão observáveis nas diferentes
neuroses. Sugiro, porém, que também adiemos essa tarefa até que
tenhamos formado concepções dignas de confiança a respeito da
relação entre o consciente e o inconsciente. Mas, a fim de que o
presente exame não seja de todo infrutífero, direi de antemão que
(1) o mecanismo de repressão de fato não coincide com o meca-
nismo ou os mecanismos da formação de substitutos, (2) existem
numerosos e diferentes mecanismos de formação de substitutos e
(3) os mecanismos de repressão têm pelo menos uma coisa em
comum: uma retirada da catexia de energia (ou da libido, quando
lidamos com os instintos sexuais).
Além disso, restringindo-me às três formas mais conhecidas
da psiconeurose, mostrarei por meio de alguns exemplos como
os conceitos aqui introduzidos se aplicam ao estudo da repressão.
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No campo da histeria da ansiedade, escolherei um exemplo bem
analisado de fobia animal. Aqui, o impulso instintual sujeito à repres-
são é uma atitude libidinal para com o pai, aliado ao medo dele.
Após a repressão, esse impulso desaparece da consciência: o pai não
aparece nela como objeto da libido. Substituindo o pai, encontra-
mos num lugar correspondente um animal que se presta, de modo
mais ou menos adequado, a ser objeto de ansiedade. A formação
do substituto para a parcela ideacional [do representante instintual]
ocorreu por deslocamento ao longo de uma cadeia de conexões
determinada de maneira particular. A parcela quantitativa não desa-
pareceu, mas foi transformada em ansiedade. O resultado é o medo
de um lobo, em vez de uma exigência de amor feita aos pais. As
categorias empregadas aqui não bastam, naturalmente, para explicar
de forma adequada nem mesmo o caso mais simples de psiconeurose:
há sempre outras considerações a levar em conta. Deve-se descrever
uma repressão, tal como a que ocorre numa fobia animal, como
sendo radicalmente destituída de êxito. Ela apenas remove e substi-
tui a ideia, falhando inteiramente em poupar o desprazer. É também
por esse motivo que o trabalho da neurose não cessa. Prossegue até
uma segunda fase, a fim de atingir seu mais importante e imediato
propósito. O que se segue é uma tentativa de fuga – a formação da
fobia propriamente dita, de um grande número de evitações desti-
nadas a impedir a liberação da ansiedade. Uma pesquisa mais espe-
cializada permite-nos compreender o mecanismo pelo qual a fobia
alcança sua finalidade.
Somos obrigados a adotar um conceito inteiramente distinto
a respeito do processo de repressão, quando consideramos o qua-
dro de verdadeira histeria de conversão. Aqui, o ponto relevante
reside em que é possível provocar um desaparecimento total da
quota de afeto. Quando isso ocorre, o paciente exibe, em relação
a seus sintomas, aquilo que Charcot denominava de la belle indiférence
des hystériques. Em outros casos, essa supressão não se mostra tão
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bem-sucedida: sensações aflitivas podem ligar-se aos próprios sin-
tomas, ou talvez venha a ser impossível impedir certa liberação de
ansiedade, que, por sua vez, põe em ação o mecanismo de forma-
ção de uma fobia. O conteúdo ideacional do representante instintual
é totalmente retirado da consciência; como um substituto – e ao
mesmo tempo como sintoma – temos uma inervação surperforte
(em casos típicos, uma inervação somática), às vezes de natureza
sensorial, às vezes, motora, quer como excitação, quer como inibi-
ção. Num exame mais detido, a área superinervada revela-se como
sendo parte do próprio representante instintual reprimido, parte
que – como se isso se verificasse através de um processo de
condensação, atrai toda a catexia para si própria. Evidentemente,
essas observações não trazem à luz o mecanismo completo de
uma histeria de conversão; o fator regressão, em especial, a ser
considerado em outra conexão, também tem de ser levado em
conta. Na medida em que a repressão na histeria [de conversão] só
se torna possível pela extensa formação de substitutos, ela pode
ser julgada inteiramente destituída de êxito; contudo, ao lidar com
a quota de afeto – a verdadeira tarefa da repressão –, ela geral-
mente significa êxito total. Na histeria de conversão, o processo de
repressão é completado pela formação do sintoma, e não precisa,
como na histeria de ansiedade, continuar até uma segunda fase –
ou antes, rigorosamente falando, continuar interminavelmente.
Um quadro totalmente diferente da repressão se revela, mais
uma vez, na terceira perturbação, que consideraremos para os pro-
pósitos de nossa ilustração – na neurose obsessiva. Aqui ficamos
inicialmente em dúvida quanto ao que devemos considerar como
sendo o representante instintual sujeito à repressão – se trata-se de
uma tendência libidinal ou hostil. Essa incerteza surge porque a
neurose obsessiva tem por base uma regressão devido à qual uma
tendência sádica foi substituída por uma afetiva. É esse impulso
hostil contra alguém que é amado, que se acha sujeito à repressão.
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O efeito, numa fase inicial, do trabalho da repressão é bem dife-
rente do que se verifica numa posterior. De início, a repressão é
inteiramente cercada de êxito; o conteúdo ideacional é rejeitado,
fazendo com que o afeto desapareça. Como formação substitutiva,
surge no ego uma alteração sob a forma de maior consciência,
quase não se podendo dar a isso o nome de sintoma. Aqui, subs-
tituto e sintoma não coincidem. Com isso, aprendemos também
alguma coisa sobre o mecanismo da repressão. Nesse exemplo,
como em todos os outros, a repressão ocasionou um afastamento
da libido; aqui, porém, ela fez uso da formação da reação para
atingir esse propósito, intensificando um oposto. Assim, nesse caso,
a formação de um substituto tem o mesmo mecanismo que a
repressão e, no fundo, coincide com ela, ao passo que cronologi-
camente, tanto quanto conceitualmente, é diferente da formação
de um sintoma. É bastante provável que todo esse processo se
torne possível pela relação ambivalente na qual o impulso sádico a
ser reprimido é introduzido. No entanto, a repressão, que foi de
início bem-sucedida, não se firma; no decorrer dos acontecimen-
tos, seu fracasso se torna cada vez mais acentuado. A ambivalência
que permitiu que a repressão ocorresse através da formação de
reação, constitui também o ponto em que o reprimido consegue
retornar. A emoção desaparecida retorna, em sua forma transfor-
mada, como ansiedade social, ansiedade moral e autocensura ili-
mitadas; a ideia rejeitada é substituída por um substituto por des-
locamento, frequentemente um deslocamento para algo muito pe-
queno ou indiferente. Uma tendência no sentido de um
restabelecimento completo da ideia reprimida acha-se, em geral,
inegavelmente presente. O fracasso na repressão do fator quanti-
tativo afetivo põe em jogo o mesmo mecanismo de fuga, por
meio de evitação e proibições, tal como vimos em funcionamento
na formação de fobias histéricas. A rejeição da ideia oriunda do
consciente é, contudo, obstinadamente mantida, porque provoca
a abstenção oriunda da ação, um aprisionamento motor do im-
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pulso. Assim, na neurose obsessiva, o trabalho da repressão se
prolonga numa luta estéril e interminável.
A curta série de comparações apresentada aqui pode facil-
mente convencer-nos de que se fazem necessárias pesquisas mais
abrangentes, antes que possamos esperar compreender inteiramente
os processos ligados à repressão e à formação de sintomas neuró-
ticos. A extraordinária complexidade de todos os fatores a serem
levados em consideração nos permite apenas uma maneira de
apresentá-los. Devemos selecionar primeiro um e, depois, outro
ponto de vista, e acompanhá-lo através do material enquanto sua
aplicação pareça proporcionar resultados. Cada abordagem isola-
da do assunto será incompleta em si mesma, não podendo deixar
de haver obscuridades sempre que ela se defrontar com material
ainda não examinado; no entanto, podemos esperar que uma sín-
tese final conduza a uma compreensão adequada.
Vol. VII - A sexualidade infantil
O descaso para com o infantil
Faz parte da opinião popular sobre a pulsão sexual que ela
está ausente na infância e só desperta no período da vida designa-
do puberdade. Mas esse não é apenas um erro qualquer, e sim um
equívoco de graves consequências, pois é o principal culpado de
nossa ignorância de hoje sobre as condições básicas da vida sexual.
Um estudo aprofundado das manifestações sexuais da infância
provavelmente nos revelaria os traços essenciais da pulsão sexual,
desvendaria sua evolução e nos permitiria ver como se compõe
com base em diversas fontes.
É digno de nota que os autores que se ocuparam do esclareci-
mento das propriedades e reações do indivíduo adulto tenham pres-
tado muito mais atenção à fase pré-histórica representada pela vida
dos antepassados – ou seja, atribuído uma influência muito maior à
hereditariedade – do que à outra fase pré-histórica, àquela que se dá
na existência individual da pessoa, a saber, a infância. É que, como se
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pode supor, a influência desse período da vida seria mais fácil de
compreender e teria direito a ser considerada antes da influência da
hereditariedade. É certo que na literatura sobre o assunto encontra-
mos notas ocasionais acerca da atividade sexual precoce em crianças
pequenas, sobre ereções, masturbação e até mesmo atividades se-
melhantes ao coito. Mas elas são sempre citadas apenas como pro-
cessos excepcionais, curiosidades ou exemplos assustadores de de-
pravação precoce. Nenhum autor, ao que eu saiba, reconheceu com
clareza a normatividade da pulsão sexual na infância e nos escritos já
numerosos sobre o desenvolvimento infantil, o capítulo sobre o
“Desenvolvimento Sexual” costuma ser omitido.
Amnésia infantil
A razão dessa estranha negligência pode ser buscada, em par-
te, nas considerações convencionais que os autores respeitam em
consequência de sua própria criação e, em parte, num fenômeno
psíquico que até agora escapou a qualquer explicação. Refiro-me à
singular amnésia que, na maioria das pessoas (mas não em todas!),
encobre os primeiros anos da infância, até os 6 ou 8 anos de idade.
Até o momento, não nos ocorreu ficar surpresos ante o fato dessa
amnésia e, no entanto, teríamos boas razões para isso. De fato,
somos informados de que, durante esses anos, dos quais só pre-
servamos na memória algumas lembranças incompreensíveis e frag-
mentadas, reagíamos com vivacidade perante as impressões, sabí-
amos expressar dor e alegria de maneira humana, mostrávamos
amor, ciúme e outras paixões que então nos agitavam violenta-
mente, e até formulávamos frases que eram registradas pelos adultos
como boa prova de discernimento e de uma capacidade incipiente
de julgamento. E de tudo isso, quando adultos, nada sabemos por
nós mesmos. Por que terá nossa memória ficado tão para trás em
relação a nossas outras atividades anímicas? Ora, temos razões para
crer que em nenhuma outra época da vida a capacidade de recep-
ção e reprodução é maior do que justamente nos anos da infância.
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Por outro lado, devemos supor, ou podemos convencer-nos
disso mediante a investigação psicológica de outrem, que as mesmas
impressões por nós esquecidas deixaram, ainda assim, os mais pro-
fundos rastros em nossa vida anímica e se tornaram determinantes
para todo nosso desenvolvimento posterior. Não há como falar,
portanto, em nenhum declínio real das impressões infantis, mas sim
numa amnésia semelhante à que observamos nos neuróticos em
relação às vivências posteriores, e cuja essência consiste num mero
impedimento da consciência (recalcamento). Mas quais são as forças
que efetuam esse recalcamento das impressões infantis? Quem solu-
cionasse esse enigma teria também esclarecido a amnésia histérica.
Todavia, não queremos deixar de destacar que a existência da
amnésia infantil fornece novo ponto de comparação entre o esta-
do anímico da criança e o dos psiconeuróticos. Já nos deparamos
com outro desses pontos, quando se impôs a nós a fórmula de
que a sexualidade dos psiconeuróticos preserva o estado infantil
ou é reconduzida a ele. E se a própria amnésia infantil também
tiver de ser relacionada com as moções sexuais da infância?
Aliás, ligar a amnésia infantil à histérica é mais do que mero
jogo de palavras. A amnésia histérica, que está a serviço do
recalcamento, só é explicável pela circunstância de que o indivíduo
já possui um acervo de traços mnêmicos que deixaram de estar à
disposição da consciência e que agora, através de uma ligação
associativa, apoderam-se daquilo sobre o que atuam as forças
repulsoras do recalcamento. Pode-se dizer que sem a amnésia in-
fantil não haveria amnésia histérica.
Creio, pois, que a amnésia infantil que converte a infância de
cada um numa espécie de época pré-histórica e oculta dele os
primórdios de sua própria vida sexual, carrega a culpa por não se
dar valor ao período infantil no desenvolvimento da vida sexual.
Um observador isolado não pode preencher as lacunas assim ge-
radas em nosso conhecimento. Já em 1896, frisei a significação da
infância para a origem de certos fenômenos importantes que de-
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pendem da vida sexual, e desde então nunca deixei de trazer para
primeiro plano o fator infantil na sexualidade.
O período de latência sexual da infância e suas rupturas
As constatações extraordinariamente amiudadas de moções
sexuais pretensamente excepcionais e anormativas na infância, bem
como a revelação das lembranças infantis do neurótico, até então
inconscientes, talvez permitam traçar o seguinte quadro das con-
dutas sexuais da infância:
Parece certo que o recém-nascido traz consigo germes de
moções sexuais que continuam a se desenvolver por algum tem-
po, mas depois sofrem uma supressão progressiva, a qual, por sua
vez, pode ser rompida por avanços regulares do desenvolvimento
sexual ou suspensa pelas peculiaridades individuais. Nada se sabe
ao certo sobre a regularidade e a periodicidade desse curso osci-
lante de desenvolvimento. Parece, no entanto, que a vida sexual da
criança costuma expressar-se numa forma acessível à observação
por volta dos 3 ou 4 anos de idade.
a) As inibições sexuais
Durante esse período de latência total ou apenas parcial erigem-se
as forças anímicas que, mais tarde, surgirão como entraves no
caminho da pulsão sexual e estreitarão seu curso à maneira de
diques (asco, sentimento de vergonha, as exigências dos ideais
estéticos e morais). Nas crianças civilizadas, tem-se a impres-
são de que a construção desses diques é obra da educação, e
certamente a educação tem muito a ver com isso. Na realida-
de, porém, esse desenvolvimento é organicamente condicio-
nado e fixado pela hereditariedade, podendo produzir-se, no
momento oportuno, sem nenhuma ajuda da educação. Esta
fica inteiramente dentro do âmbito que lhe compete ao limi-
tar-se a seguir o que foi organicamente prefixado e imprimi-lo
de maneira um pouco mais polida e profunda.
b) Formação reativa e sublimação
Com que meios se erigem essas construções tão importantes
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para a cultura e normalidade posteriores da pessoa? Provavel-
mente, às expensas das próprias moções sexuais infantis, cujo
afluxo não cessa nem mesmo durante esse período de latência,
mas cuja energia – na totalidade ou em sua maior parte – é
desviada do uso sexual e voltada para outros fins. Os historia-
dores da cultura parecem unânimes em supor que, mediante
esse desvio das forças pulsionais sexuais, das metas sexuais e
por sua orientação para novas metas, num processo que me-
rece o nome de sublimação, adquirem-se poderosos compo-
nentes para todas as realizações culturais. Acrescentaríamos,
portanto, que o mesmo processo entra em jogo no desenvolvi-
mento de cada indivíduo, e situaríamos seu início no período de
latência sexual da infância.
Também sobre o mecanismo desse processo de sublimação
pode-se arriscar uma conjectura. As moções sexuais desses anos
da infância seriam, por um lado, inutilizáveis, já que estão diferidas
as funções reprodutoras – o que constitui o traço principal do
período de latência – e, por outro, seriam perversas em si, ou
seja, partiriam de zonas erógenas e se sustentariam em pulsões
que, dada a direção do desenvolvimento do indivíduo, só po-
deriam provocar sensações desprazerosas. Por conseguinte, elas
despertam forças anímicas contrárias (moções reativas) que, para
uma supressão eficaz desse desprazer, erigem os diques psíqui-
cos já mencionados: asco, vergonha e moral.
c) Rupturas do período de latência
Sem nos iludirmos quanto à natureza hipotética e quanto à
clareza insuficiente de nossos conhecimentos acerca dos pro-
cessos do período infantil de latência ou adiamento, voltemos
à realidade para indicar que esse emprego da sexualidade in-
fantil representa um ideal educativo do qual o desenvolvimen-
to de cada um quase sempre se afasta em algum ponto, amiú-
de em grau considerável. Vez por outra irrompe um fragmen-
to de manifestação sexual que se furtou à sublimação, ou pre-
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serva-se alguma atividade sexual ao longo de todo o período
de latência, até a irrupção acentuada da pulsão sexual na pu-
berdade. Na medida em que prestam alguma atenção à sexua-
lidade infantil, os educadores portam-se como se comparti-
lhassem nossas opiniões sobre a construção das forças defen-
sivas morais à custa da sexualidade, e como se soubessem que
a atividade sexual torna a criança ineducável, pois perseguem
como “vícios” todas as suas manifestações sexuais, mesmo
que não possam fazer muita coisa contra elas. Nós, porém,
temos todos os motivos para voltar nosso interesse para esses
fenômenos temidos pela educação, pois deles esperamos o
esclarecimento da configuração originária da pulsão sexual.
As manifestações da sexualidade infantil
a) O chuchar
Por motivos que se deduzirão posteriormente, tomaremos
como modelo das manifestações sexuais infantis o chuchar
(sugar com deleite), ao qual o pediatra húngaro Lindner (1879)
dedicou excelente estudo.
O chuchar [Ludeln ou Lutschen], que já aparece no lactente e
pode continuar até a maturidade ou persistir por toda a vida,
consiste na repetição rítmica de um contato de sucção com a
boca (os lábios), do qual está excluído qualquer propósito de
nutrição. Uma parte dos próprios lábios, a língua ou qualquer
outro ponto da pele que esteja ao alcance – até mesmo o de-
dão do pé – são tomados como objeto sobre o qual se exerce
essa sucção. Uma pulsão preênsil surgida ao mesmo tempo
pode manifestar-se através de puxadas rítmicas simultâneas
do lóbulo da orelha e apoderar-se de uma parte de outra pes-
soa (em geral, a orelha) para o mesmo fim. O sugar com de-
leite alia-se a uma absorção completa da atenção e leva ao
adormecimento, ou mesmo a uma reação motora numa espé-
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cie de orgasmo. Não raro, combina-se com a fricção de algu-
ma parte sensível do corpo, como os seios ou a genitália ex-
terna. Por esse caminho, muitas crianças passam do chuchar
para a masturbação.
O próprio Lindner reconheceu a natureza sexual dessa ação e
a destacou de maneira irrestrita. Na meninice, o chuchar é fre-
quentemente equiparado aos outros “maus costumes” sexuais
da criança. De numerosos pediatras e neurologistas tem-se er-
guido um protesto muito enérgico contra essa concepção, par-
cialmente baseado, sem dúvida, na confusão entre “sexual” e
“genital”. Esse protesto levanta uma questão difícil e irrecusável:
por qual característica genérica podemos reconhecer as mani-
festações sexuais da criança? Parece-me que a concatenação de
fenômenos que pudemos discernir através da investigação psi-
canalítica nos autoriza a ver no chuchar uma manifestação se-
xual e a estudar justamente nele os traços essenciais da ativi-
dade sexual infantil.
b) Autoerotismo
Temos a obrigação de fazer um exame aprofundado desse
exemplo. Como traço mais destacado dessa prática sexual, sa-
lientemos que a pulsão não está dirigida para outra pessoa;
satisfaz-se no próprio corpo, é autoerótica, para dizê-lo com a
feliz denominação introduzida por Havelock Ellis [1910].
Está claro, além disso, que o ato da criança que chucha é deter-
minado pela busca de um prazer já vivenciado e agora
relembrado. No caso mais simples, portanto, a satisfação é en-
contrada mediante a sucção rítmica de alguma parte da pele ou
da mucosa. É fácil adivinhar também em quais ocasiões a crian-
ça teve as primeiras experiências desse prazer que agora se es-
força por renovar. A primeira e mais vital das atividades da
criança – mamar no seio materno (ou em seus substitutos) – há
de tê-la familiarizado com esse prazer. Diríamos que os lábios
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da criança comportaram-se como uma zona erógena, e a
estimulação pelo fluxo cálido de leite foi, sem dúvida, a origem
da sensação prazerosa. A princípio, a satisfação da zona erógena
deve ter-se associado com a necessidade de alimento. A ativida-
de sexual apoia-se em primeiro lugar numa das funções que
servem à preservação da vida, e só depois se torna independen-
te delas. Quem já viu uma criança saciada recuar do peito e cair
no sono, com as faces coradas e um sorriso beatífico, há de
dizer a si mesmo que essa imagem persiste também como nor-
ma da expressão da satisfação sexual em épocas posteriores da
vida. A necessidade de repetir a satisfação sexual dissocia-se,
então, da necessidade de absorção de alimento – uma separa-
ção que se torna inevitável quando aparecem os dentes e o ali-
mento já não é exclusivamente ingerido por sucção, mas é tam-
bém mastigado. A criança não se serve de um objeto externo
para sugar, mas prefere uma parte de sua própria pele, porque
isso lhe é mais cômodo, porque a torna independente do mun-
do externo, que ela ainda não consegue dominar, e porque des-
se modo ela se proporciona como que uma segunda zona
erógena, se bem que de nível inferior. A inferioridade dessa se-
gunda região a levará, mais tarde, a buscar em outra pessoa a
parte correspondente, os lábios. (“Pena eu não poder beijar a
mim mesmo”, dir-se-ia subjazer a isso.)
Nem todas as crianças praticam esse chuchar. É de se supor
que cheguem a fazê-lo aquelas em quem a significação erógena
da zona labial for constitucionalmente reforçada. Persistindo
essa significação, tais crianças, uma vez adultas, serão ávidas
apreciadoras do beijo, tenderão a beijos perversos ou, se fo-
rem homens, terão um poderoso motivo para beber e fumar.
Caso sobrevenha o recalcamento, porém, sentirão nojo da
comida e produzirão vômitos histéricos. Por força da dupla
finalidade da zona labial, o recalcamento se estende à pulsão
de nutrição. Muitas de minhas pacientes com distúrbios ali-
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mentares, Globus hystericus, constrição na garganta e vômitos
foram, na infância, firmes adeptas do chuchar.
No chuchar ou sugar com deleite já podemos observar as três
características essenciais de uma manifestação sexual infantil.
Esta nasce apoiando-se numa das funções somáticas vitais, ain-
da não conhece nenhum objeto sexual, sendo autoerótica, e
seu alvo sexual acha-se sob o domínio de uma zona erógena.
Antecipemos que essas características são válidas também para
a maioria das outras atividades das pulsões sexuais infantis.
O alvo sexual da sexualidade infantil
a) Características das zonas erógenas
Do exemplo do chuchar podemos ainda deduzir várias coisas
para a caracterização do que é uma zona erógena. Trata-se de
uma parte da pele ou da mucosa em que certos tipos de
estimulação provocam uma sensação prazerosa de determi-
nada qualidade. Não há dúvida de que os estímulos produto-
res de prazer estão ligados a condições especiais que desco-
nhecemos. Entre elas, o caráter rítmico deve desempenhar al-
gum papel, impondo-se aqui a analogia com as cócegas. Me-
nos seguro, parece, é se o caráter da sensação prazerosa
provocada pelo estímulo pode ser designado de “particular”,
particularidade essa em que estaria contido justamente o fator
sexual. Em matéria de prazer e desprazer, a psicologia ainda
tateia tanto no escuro que as hipóteses mais prudentes são as
mais recomendáveis. Mais adiante, talvez deparemos com ra-
zões que pareçam sustentar a ideia de uma qualidade particular
da sensação prazerosa.
A propriedade erógena pode ligar-se de maneira mais marcante
a certas partes do corpo. Existem zonas erógenas predestinadas,
como mostra o exemplo do chuchar. Mas esse exemplo ensina
também que qualquer outro ponto da pele ou da mucosa pode
tomar a seu encargo as funções de uma zona erógena, devendo,
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portanto, ter certa aptidão para isso. Assim, a qualidade do estí-
mulo, mais do que a natureza das partes do corpo, é que tem a
ver com a produção da sensação prazerosa. A criança chuchadora
perscruta seu corpo para sugar alguma parte dele, que depois,
por hábito, torna-se a preferida; quando tropeça casualmente
numa das partes predestinadas (os mamilos, a genitália), essa
decerto retém a preferência. Uma capacidade de deslocamento
inteiramente análoga reaparece na sintomatologia da histeria.
Nessa neurose, o recalcamento afeta sobretudo as zonas genitais
propriamente ditas, e essas transmitem sua excitabilidade a ou-
tras zonas erógenas, de outro modo relegadas na vida adulta,
que então se comportam exatamente como genitais. Além dis-
so, porém, tal como ocorre no chuchar, qualquer outra parte do
corpo pode ser provida da excitabilidade da genitália e alçada à
condição de zona erógena. As zonas erógenas e histerógenas
exibem as mesmas características.
b) O alvo sexual infantil
O alvo sexual da pulsão infantil consiste em provocar a satis-
fação mediante a estimulação apropriada da zona erógena que
de algum modo foi escolhida. Essa satisfação deve ter sido
vivenciada antes para que reste daí uma necessidade de repeti-la,
e é lícito esperarmos que a natureza tenha tomado medidas
seguras para que essa vivência não fique entregue ao acaso. Já
tomamos conhecimento do que é que promove a satisfação
dessa finalidade no caso da zona labial: é a ligação simultânea
dessa parte do corpo com a alimentação. Ainda depararemos
com outros dispositivos semelhantes como fontes da sexuali-
dade. O estado de necessidade de repetir uma satisfação
transparece de duas maneiras: por um sentimento peculiar de
tensão, que tem, antes, o caráter de desprazer, e por uma sen-
sação de prurido ou estimulação centralmente condicionada e
projetada para a zona erógena periférica. Por isso, pode-se
também formular o alvo sexual de outra maneira: ele viria
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substituir a sensação de estimulação projetada na zona erógena
pelo estímulo externo que a abolisse ao provocar a sensação
de satisfação. Esse estímulo externo consiste, na maioria das
vezes, numa manipulação análoga ao sugar.
Está em perfeito acordo com nossos conhecimentos fisioló-
gicos que a necessidade possa também ser evocada periferica-
mente, através de uma modificação real na zona erógena. Só é
um tanto estranho que, para ser abolido, um estímulo pareça
exigir a colocação de um segundo no mesmo lugar.
As manifestações sexuais masturbatórias
Só pode alegrar-nos sumamente descobrir que, uma vez com-
preendida a pulsão vinda de uma única zona erógena, não temos
muito mais coisas importantes a aprender sobre a atividade sexual
das crianças. As diferenças mais significativas dizem respeito às pro-
vidências necessárias à satisfação, que, no caso da zona labial, consis-
tiam no sugar, e que terão de ser substituídas por outras ações mus-
culares conforme a posição e a natureza das outras zonas.
a) Atividade da zona anal
Tal como a zona dos lábios, a zona anal está apta, por sua
posição, a mediar um apoio da sexualidade em outras funções
corporais. É de se presumir que a importância erógena dessa
parte do corpo seja originariamente muito grande. lnteiramo-
nos pela psicanálise, não sem certo assombro, das transmutações
por que normalmente passam as excitações sexuais dela pro-
venientes e da frequência com que essa zona conserva durante
toda a vida uma parcela considerável de excitabilidade genital.
Os distúrbios intestinais tão frequentes na infância providen-
ciam para que não faltem a essa zona excitações intensas. Os
catarros intestinais na mais tenra idade deixam a criança “ner-
vosa”, como se costuma dizer; no adoecimento neurótico pos-
terior, eles têm uma influência determinante na manifestação
somática da neurose e colocam à disposição dela toda a soma
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das perturbações intestinais. Considerando-se a significação
erógena da zona retal, que se preserva ao menos em sua
transmutação, tampouco podemos rir da influência das
hemorróidas, às quais a medicina antiga atribuía tanta impor-
tância no esclarecimento dos estados neuróticos.
As crianças que tiram proveito da estimulabilidade erógena
da zona anal denunciam-se por reterem as fezes até que sua
acumulação provoca violentas contrações musculares e, na
passagem pelo ânus, pode exercer uma estimulação intensa
na mucosa. Com isso, hão de produzir sensações de volúpia
ao lado das sensações dolorosas. Um dos melhores pressági-
os de excentricidade e nervosismo posteriores é a recusa
obstinada do bebê a esvaziar o intestino ao ser posto no
troninho, ou seja, quando isso é desejado pela pessoa que
cuida dele, ficando essa função reservada para quando
aprouver a ele próprio. Naturalmente, não é que lhe interesse
sujar a cama; ele está apenas providenciando para que não
lhe escape o dividendo de prazer que vem com a defecação.
Mais uma vez, os educadores têm razão ao chamarem de
perversas [schlimm] as crianças que “retardam” essas funções.
O conteúdo intestinal, que, enquanto corpo estimulador, com-
porta-se em uma área de mucosa sexualmente sensível como pre-
cursor de outro órgão destinado a entrar em ação depois da fase
da infância, tem ainda para o lactante outros importantes sentidos.
É obviamente tratado como parte de seu próprio corpo, repre-
sentando o primeiro “presente”: ao desfazer-se dele, a criaturinha
pode exprimir sua docilidade perante o meio que a cerca, e ao
recusá-lo, sua obstinação. Do sentido de “presente”, esse conteú-
do passa mais tarde ao de “bebê”, que, segundo uma das teorias
sexuais infantis, é adquirido pela comida e nasce pelo intestino.
A retenção da massa fecal, a princípio intencionalmente prati-
cada para tirar proveito da estimulação como que masturbatória
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da zona anal, ou para ser empregada na relação com as pesso-
as que cuidam da criança, é, aliás, uma das raízes da constipa-
ção tão frequente nos neuropatas. Além disso, o sentido pleno
da zona anal espelha-se no fato de se encontrarem muito pou-
cos neuróticos que não tenham seus rituais escatológicos espe-
ciais, suas cerimônias e coisas similares, por eles cuidadosa-
mente mantidos em segredo.
A estimulação masturbatória efetiva da zona anal com a ajuda
do dedo, provocada por uma comichão centralmente determi-
nada ou perifericamente mantida, não é nada rara nas crianças
mais velhas.
b) Atividade da zona genital
Entre as zonas erógenas do corpo infantil encontra-se uma
que decerto não desempenha o papel principal nem pode ser
a portadora das moções sexuais mais antigas, mas que está
destinada a grandes coisas no futuro. Nas crianças tanto de
sexo masculino quanto feminino, está ligada à micção (glande,
clitóris) e, nas primeiras, acha-se dentro de uma bolsa de
mucosa, de modo que não pode faltar-lhe a estimulação por
secreções que aticem precocemente a excitação sexual. As ati-
vidades sexuais dessa zona erógena, que faz parte dos órgãos
sexuais propriamente ditos, são sem dúvida o começo da fu-
tura vida sexual “normal”.
Por sua posição anatômica, pelas secreções em que estão ba-
nhadas, pela lavagem e fricção advindas dos cuidados com o
corpo e por certas excitações acidentais (como as migrações
de vermes intestinais nas meninas), é inevitável que a sen-
sação prazerosa que essas partes do corpo são capazes de
produzir se faça notar à criança já na fase de amamentação,
despertando uma necessidade de repeti-la. Considerada a
soma dos dispositivos existentes e ponderando que as
providências para manter a limpeza mal podem atuar de
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modo diferente da sujeira, custa evitar a conclusão de que é
através do onanismo do lactante, do qual praticamente ne-
nhum indivíduo escapa, que se estabelece a futura primazia
dessa zona erógena na atividade sexual. A ação que elimina o
estímulo e provoca a satisfação consiste num contato por
fricção manual ou numa pressão (decerto preparada nos
moldes de um reflexo) exercida com a mão ou unindo as
coxas. Esse último método é de longe o mais frequente nas
meninas. Nos meninos, a preferência pela mão já indica a
importante contribuição que a pulsão de dominação está des-
tinada a fazer para a atividade sexual masculina.
A bem da clareza, convém indicar que é preciso distinguir três
fases da masturbação infantil. A primeira é própria do perío-
do de lactância, a segunda pertence à breve florescência da
atividade sexual por volta do quarto ano de vida, e somente a
terceira corresponde ao onanismo da puberdade, amiúde o
único a ser levado em conta.
c) A segunda fase da masturbação infantil
O onanismo do lactante parece desaparecer após curto prazo,
mas seu prosseguimento ininterrupto até a puberdade pode
constituir o primeiro grande desvio do desenvolvimento a que
se aspira para os seres humanos inseridos na cultura. Em al-
gum momento da infância posterior ao período de
amamentação, comumente antes do quarto ano, a pulsão se-
xual dessa zona genital costuma redespertar e novamente du-
rar algum tempo, até ser detida por nova supressão, ou pros-
seguir ininterruptamente. As circunstâncias possíveis são muito
variadas e só é viável apreciá-las mediante uma análise mais
rigorosa dos casos individuais. Mas todos os detalhes dessa
segunda fase de atividade sexual infantil deixam atrás de si as
mais profundas marcas (inconscientes) na memória da pessoa,
determinam o desenvolvimento de seu caráter, caso ela per-
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maneça sadia, e a sintomatologia de sua neurose, caso venha a
adoecer depois da puberdade. Nessa última eventualidade,
constatamos que esse período sexual foi esquecido e que as
lembranças conscientes que o testemunham foram deslocadas;
já afirmei que eu também vincularia a amnésia infantil normal
com essa atividade sexual infantil. Através da investigação psi-
canalítica é possível tornar consciente o esquecido e, desse
modo, eliminar uma compulsão que provém do material psí-
quico inconsciente.
d) O retorno da masturbação da lactância
A excitação sexual do período de lactância retorna nos anos
infantis já indicados, seja como um estímulo de prurido central-
mente condicionado, que exorta a uma satisfação masturbatória,
seja como um processo da natureza de uma polução, que, em
analogia com as poluções da maturidade, chega à satisfação sem
a ajuda de ação alguma. Esse último caso é o mais frequente nas
meninas e na segunda metade da infância; não é inteiramente
compreensível em termos do que o condiciona e, muitas vezes,
embora não regularmente, parece ter como premissa um perí-
odo anterior de onanismo ativo. A sintomatologia dessas mani-
festações sexuais é escassa; o que dá sinal do aparelho sexual
ainda não desenvolvido é, na maioria das vezes, o aparelho
urinário, que funciona, por assim dizer, como tutor dele. A mai-
oria dos chamados distúrbios vesicais dessa época são pertur-
bações sexuais; a enurese noturna, quando não representa um
ataque epilético, corresponde a uma polução.
Para o reaparecimento da atividade sexual são decisivas as cau-
sas internas e as contingências externas, ambas as quais podem
ser inferidas, nos casos de doença neurótica, desde a forma dos
sintomas, sendo descobertas com certeza através da investiga-
ção psicanalítica. Sobre as causas internas falaremos mais adian-
te; as contingências fortuitas externas ganham nesse período uma
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importância grande e duradoura. Em primeiro plano, situa-se a
influência da sedução, que trata a criança prematuramente como
objeto sexual e que, em circunstâncias que causam forte impres-
são, ensina-a a conhecer a satisfação das zonas genitais – satisfa-
ção que ela fica quase sempre obrigada a renovar pelo onanismo.
Tal influência pode provir de adultos ou de outras crianças; não
me é possível admitir que, em meu ensaio A Etiologia da Histeria
(1896c), eu tenha superestimado sua frequência ou sua impor-
tância, embora eu ainda não soubesse, na época, que os indiví-
duos que permanecem normais podem ter tido na infância as
mesmas experiências, e por isso tenha dado maior valor à sedu-
ção do que aos fatores da constituição e do desenvolvimento
sexuais. É evidente que a sedução não é necessária para desper-
tar a vida sexual da criança, podendo esse despertar surgir tam-
bém, espontaneamente, de causas internas.
e) Disposição perversa polimorfa
É instrutivo que a criança, sob a influência da sedução, possa
tornar-se perversa polimorfa e ser induzida a todas as trans-
gressões possíveis. Isso mostra que traz em sua disposição a
aptidão para elas; por isso sua execução encontra pouca resis-
tência, já que, conforme a idade da criança, os diques anímicos
contra os excessos sexuais – a vergonha, o asco e a moral –
ainda não foram erigidos ou estão em processo de constru-
ção. Nesse aspecto, a criança não se comporta de maneira di-
versa da mulher inculta média, em quem se conserva a mesma
disposição perversa polimorfa. Em condições usuais, ela pode
permanecer sexualmente normal, mas, guiada por um sedu-
tor habilidoso, terá gosto em todas as perversões e as reterá
em sua atividade sexual. Essa mesma disposição polimorfa e,
portanto, infantil é também explorada pelas prostitutas no exer-
cício de sua profissão, e no imenso número de mulheres pros-
tituídas ou em quem se deve supor uma aptidão para a pros-
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tituição, embora tenham escapado ao exercício dela, é impos-
sível não reconhecer nessa tendência uniforme a todo tipo de
perversões algo que é universalmente humano e originário.
f) Pulsões parciais
De resto, a influência da sedução não ajuda a revelar as cir-
cunstâncias iniciais da pulsão sexual, mas antes confunde nossa
visão dela, uma vez que apresenta prematuramente à criança
um objeto sexual de que, a princípio, a pulsão sexual infantil
não mostra nenhuma necessidade. Contudo, devemos admitir
que também a vida sexual infantil, apesar da dominação pre-
ponderante das zonas erógenas, exibe componentes que des-
de o início envolvem outras pessoas como objetos sexuais.
Dessa natureza são as pulsões do prazer de olhar e de exibir,
bem como a de crueldade, que aparecem com certa indepen-
dência das zonas erógenas e só mais tarde entram em relações
estreitas com a vida genital, mas que já na infância se fazem
notar como aspirações autônomas, inicialmente separadas da
atividade sexual erógena. A criança pequena é, antes de mais
nada, desprovida de vergonha, e em certos períodos de seus
primeiros anos mostra uma satisfação inequívoca no
desnudamento do corpo, com ênfase especial nas partes sexu-
ais. A contrapartida dessa inclinação tida como perversa – a
curiosidade de ver a genitália de outras pessoas – provavel-
mente só se torna manifesta um pouco mais tarde na infância,
quando o obstáculo do sentimento de vergonha já atingiu cer-
to desenvolvimento. Sob a influência da sedução, a perversão
de ver pode alcançar grande importância na vida sexual da
criança. Entretanto, minhas investigações da meninice tanto de
pessoas sadias quanto de doentes neuróticos forçam-me a
concluir que a pulsão de ver pode surgir na criança como uma
manifestação sexual espontânea. As crianças pequenas cuja aten-
ção foi atraída, em algum momento, para sua própria genitália
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– geralmente pela masturbação – costumam dar o passo adici-
onal sem ajuda externa e desenvolver vivo interesse pelos genitais
de seus coleguinhas. Dado que as oportunidades de satisfazer tal
curiosidade em geral só se apresentam quando da satisfação das
duas necessidades excrementícias, tais crianças tornam-se voyeurs,
zelosos espectadores da micção e da defecação de outrem. Uma
vez sobrevindo o recalcamento dessas inclinações, a curiosidade
de ver a genitália alheia (seja do mesmo sexo, seja do sexo opos-
to) persiste como uma pressão torturante, que em muitos casos
de neurose fornece, posteriormente, a mais poderosa força
impulsora para a formação do sintoma.
Com independência ainda maior das outras atividades sexuais
vinculadas às zonas erógenas desenvolve-se na criança o com-
ponente de crueldade da pulsão sexual. A crueldade é perfei-
tamente natural no caráter infantil, já que a trava que faz a
pulsão de dominação deter-se ante a dor do outro – a capaci-
dade de compadecer-se – tem desenvolvimento relativamen-
te tardio. É sabido que ainda não se teve êxito na análise psico-
lógica exaustiva dessa pulsão; podemos supor que o impulso
cruel provenha da pulsão de dominação e surja na vida sexual
numa época em que os genitais ainda não assumiram seu pa-
pel posterior. Assim, ela domina uma fase da vida sexual que
mais adiante descreveremos como organização pré-genital. As
crianças que se distinguem por uma crueldade peculiar para
com os animais e os companheiros despertam, em geral
justificadamente, a suspeita de uma atividade sexual intensa e
precoce advinda das zonas erógenas, e mesmo no amadureci-
mento precoce e simultâneo de todas as pulsões sexuais, a
atividade sexual erógena parece ser primária. A ausência da
barreira da compaixão traz consigo o risco de que esse víncu-
lo estabelecido na infância entre as pulsões cruéis e as erógenas
torne-se depois indissolúvel na vida.
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Desde as Confissões de Jean-Jacques Rousseau, a estimulação
dolorosa da pele das nádegas tem sido reconhecida por todos
os educadores como uma das raízes erógenas da pulsão passi-
va de crueldade (masoquismo). Disso eles concluíram com
acerto que o castigo corporal, que quase sempre incide nessa
parte do corpo, deve ser evitado em todas as crianças cuja
libido, através das exigências posteriores da educação cultural,
possa ser forçada para vias colaterais.
A investigação sexual infantil
a) A pulsão de saber
Ao mesmo tempo em que a vida sexual da criança chega em
sua primeira florescência, entre os 3 e os 5 anos, também se
inicia nela a atividade que se inscreve na pulsão de saber ou de
investigar. Essa pulsão não pode ser computada entre os com-
ponentes pulsionais elementares, nem exclusivamente subordi-
nada à sexualidade. Sua atividade corresponde, de um lado, a
uma forma sublimada de dominação e, de outro, trabalha com
a energia escopofílica. Suas relações com a vida sexual, entretan-
to, são particularmente significativas, já que constatamos pela
psicanálise que na criança a pulsão de saber é atraída de maneira
insuspeitadamente precoce e inesperadamente intensa pelos pro-
blemas sexuais e, talvez, seja até despertada por eles.
b) O enigma da esfinge
Não são interesses teóricos, mas práticos, que põem em mar-
cha a atividade investigatória na criança. A ameaça trazida para
suas condições existenciais pela chegada conhecida ou suspei-
tada de novo bebê, assim como o medo de que esse aconteci-
mento traga consigo a perda de cuidados e de amor, tornam
a criança pensativa e perspicaz. O primeiro problema de que
ela se ocupa, em consonância com essa história do despertar
da pulsão de saber, não é a questão da diferença sexual, e sim
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o enigma; de onde vêm os bebês? Numa distorção facilmente
anulável, esse é também o enigma proposto pela Esfinge de
Tebas. Ao contrário, o fato de existirem dois sexos é inicial-
mente aceito pela criança sem nenhuma rebeldia ou hesitação.
Para o menino, é natural presumir uma genitália igual à sua em
todas as pessoas que ele conhece, sendo-lhe impossível conju-
gar a falta dela com sua representação dessas outras pessoas.
c) Complexo de castração e inveja do pênis
Essa convicção é energicamente sustentada pelos meninos,
obstinadamente defendida contra a tradição que logo resulta
da observação, e somente abandonada após sérias lutas inter-
nas (o complexo de castração). As formações substitutivas desse
pênis perdido das mulheres desempenham grande papel na
forma assumida pelas diversas perversões.
A suposição de uma genitália idêntica (masculina) em todos os
seres humanos é a primeira das notáveis e momentosas teorias
sexuais infantis. Tem pouca serventia para a criança que a ciên-
cia biológica dê razão a seu preconceito e tenha de reconhecer
o clitóris feminino como um autêntico substituto do pênis. Já
a garotinha não incorre em semelhantes recusas ao avistar os
genitais do menino, com sua conformação diferente. Está pron-
ta a reconhecê-lo de imediato e é tomada pela inveja do pênis,
que culmina no desejo de ser também um menino, tão impor-
tante em suas consequências.
d) Teorias do nascimento
Muitas pessoas recordam com clareza a intensidade com que
se interessaram, no período pré-púbere, pela questão da pro-
veniência dos bebês. As soluções anatômicas então concebidas
foram dos mais diversos tipos: eles sairiam do seio, ou se re-
cortariam do ventre, ou o umbigo se abriria para deixá-los
passar. Fora da análise, é muito raro haver lembranças de uma
investigação correspondente nos primeiros anos da infância;
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há muito ela sucumbiu ao recalcamento, mas seus resultados
são uniformes: os filhos chegam quando se come determina-
da coisa (como nos contos de fadas) e nascem pelo intestino,
como na eliminação de fezes. Essas teorias infantis fazem lem-
brar condições existentes no reino animal, sobretudo a cloaca
dos tipos de animal inferior aos mamíferos.
e) A concepção sádica da relação sexual
Quando as crianças em tão tenra idade assistem à relação se-
xual entre adultos, o que é ensejado pela convicção dos mais
velhos de que a criança pequena não pode entender nada de
sexual, elas não podem deixar de conceber o ato sexual como
uma espécie de sevícia ou subjugação, ou seja, de encará-lo
num sentido sádico. A psicanálise também nos permite verifi-
car que uma impressão dessa natureza na primeira infância
contribui em muito para a predisposição a um deslocamento
sádico posterior do alvo sexual. Ademais, as crianças se ocu-
pam muito com o problema de saber em que consiste a rela-
ção sexual, ou, como dizem elas, em que consiste ser casado, e
costumam buscar a solução do mistério em alguma atividade
conjunta proporcionada pelas funções de micção ou defecação.
f) O fracasso típico da investigação sexual infantil
Em geral, pode-se dizer das teorias sexuais infantis que elas são
reflexos da própria constituição sexual da criança, e que, apesar
de seus erros grotescos, testemunham maior compreensão dos
processos sexuais do que se pretenderia de seus criadores. As
crianças também percebem as alterações provocadas na mãe
pela gravidez e sabem interpretá-las corretamente; a fábula da
cegonha é amiúde contada a uma plateia que a recebe com des-
confiança profunda, embora quase sempre silenciosa. Mas como
dois elementos permanecem desconhecidos na investigação se-
xual infantil, a saber, o papel do sêmen fecundante e a existência
do orifício sexual feminino – os mesmos pontos, aliás, em que
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a organização sexual infantil ainda está atrasada –, os esforços
do pequeno investigador são geralmente infrutíferos, e acabam
numa renúncia que não raro deixa como sequela um prejuízo
permanente para a pulsão de saber. A investigação sexual desses
primeiros anos da infância é sempre feita na solidão; significa
um primeiro passo para a orientação autônoma no mundo e
estabelece intenso alheamento da criança com as pessoas de seu
meio que antes gozavam de sua total confiança.
As fases de desenvolvimento da organização sexual
Até agora, destacamos como características da vida sexual in-
fantil o fato de ela ser essencialmente autoerótica (seu objeto encon-
tra-se no próprio corpo) e de suas pulsões parciais serem inteira-
mente desvinculadas e independentes entre si em seus esforços pela
obtenção de prazer. O desfecho do desenvolvimento constitui a
chamada vida sexual normal do adulto, na qual a obtenção de pra-
zer fica a serviço da função reprodutora, e as pulsões parciais, sob o
primado de uma única zona erógena, formam uma organização
sólida para a consecução do alvo sexual num objeto sexual alheio.
a) Organizações pré-genitais
O estudo das inibições e perturbações desse processo de de-
senvolvimento, com a ajuda da psicanálise, permite-nos iden-
tificar os rudimentos e etapas preliminares de tal organização
das pulsões parciais, que ao mesmo tempo resultam numa es-
pécie de regime sexual. Essas fases da organização sexual são
normalmente atravessadas sem dificuldade, revelando-se ape-
nas por alguns indícios. Somente nos casos patológicos é que
são ativadas e se tornam passíveis de conhecimento pela ob-
servação grosseira.
Chamaremos pré-genitais às organizações da vida sexual em
que as zonas genitais ainda não assumiram seu papel prepon-
derante. Até aqui tomamos conhecimento de duas delas, que
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dão a impressão de constituir recaídas em estados anteriores
da vida animal.
A primeira dessas organizações sexuais pré-genitais é a oral, ou,
se preferirmos, canibalesca. Nela, a atividade sexual ainda não se
separou da nutrição, nem tampouco se diferenciaram correntes
opostas em seu interior. O objeto de uma atividade é também o
da outra, e o alvo sexual consiste na incorporação do objeto –
modelo do que mais tarde irá desempenhar, sob a forma da
identificação, um papel psíquico tão importante. Como resíduo
dessa hipotética fase de organização que nos foi imposta pela
patologia, podemos ver o chuchar, no qual a atividade sexual,
desligada da atividade de alimentação, renunciou ao objeto alheio
em troca de um objeto situado no próprio corpo.
Uma segunda fase pré-genital é a da organização sádico-anal.
Nela, a divisão em opostos que perpassa a vida sexual já se
constituiu, mas eles ainda não podem ser chamados de mas-
culino e feminino, e sim ativo e passivo. A atividade é produ-
zida pela pulsão de dominação através da musculatura do cor-
po, e como órgão do alvo sexual passivo o que se faz valer é,
antes de mais nada, a mucosa erógena do intestino; mas há
para essas duas aspirações opostas objetos que não coinci-
dem. Ao lado disso, outras pulsões parciais atuam de maneira
autoerótica. Nessa fase, portanto, já é possível demonstrar a
polaridade sexual e o objeto alheio, faltando ainda a organiza-
ção e a subordinação à função reprodutora.
b) Ambivalência
Essa forma da organização sexual pode conservar-se por toda
a vida e atrair permanentemente para si boa parcela da atividade
sexual. O predomínio do sadismo e o papel de cloaca desem-
penhado pela zona anal conferem-lhe um cunho singularmente
arcaico. Como característica adicional, é próprio dela que os
pares opostos de pulsões estejam desenvolvidos de maneira
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aproximadamente igual, num estado de coisas descrito pela
oportuna designação de “ambivalência”, introduzida por Bleuler.
A hipótese das organizações pré-genitais da vida sexual re-
pousa na análise das neuroses e é difícil apreciá-la independen-
temente do conhecimento destas. Podemos esperar que a con-
tinuidade dos esforços analíticos venha a fornecer-nos muito
mais informações sobre a estrutura e o desenvolvimento da
função sexual normal.
Para completar o quadro da vida sexual infantil, é preciso
acrescentar que, com frequência ou regularmente, já na in-
fância se efetua uma escolha objetal como a que mostramos
ser característica da fase de desenvolvimento da puberdade,
ou seja, o conjunto das aspirações sexuais orienta-se para uma
única pessoa, na qual elas pretendem alcançar seus objetivos.
Na infância, portanto, essa é a maior aproximação possível
da forma definitiva assumida pela vida sexual depois da pu-
berdade. A diferença dessa última reside apenas em que a
concentração das pulsões parciais e sua subordinação ao pri-
mado da genitália não são conseguidas na infância, ou só o
são de maneira muito incompleta. Assim, o estabelecimento
desse primado a serviço da reprodução é a última fase por
que passa a organização sexual.
c) Os dois tempos da escolha objetal
Pode-se considerar como ocorrência típica que a escolha de
objeto se efetue em dois tempos, em duas ondas. A primeira
delas começa entre os 2 e os 5 anos e retrocede ou é detida
pelo período de latência; caracteriza-se pela natureza infantil
de seus alvos sexuais. A segunda sobrevém com a puberdade
e determina a configuração definitiva da vida sexual.
Mas a existência da bitemporalidade da escolha objetal, que se
reduz essencialmente ao efeito do período de latência, é de
suma importância para o desarranjo desse estado final. Os
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resultados da escolha objetal infantil prolongam-se pelas épo-
cas posteriores; ou se conservam como tal ou passam por
uma renovação na época da puberdade. Contudo, revelam-se
inutilizáveis, em consequência do recalcamento que se desen-
volve entre as duas fases. Seus alvos sexuais foram amenizados
e agora representam o que se pode descrever como a corrente
de ternura da vida sexual. Somente a investigação psicanalítica
pode demonstrar que, por trás dessa ternura, dessa veneração
e respeito, ocultam-se as antigas aspirações sexuais, agora
imprestáveis, das pulsões parciais infantis. A escolha de objeto
da época da puberdade tem de renunciar aos objetos infantis
e recomeçar como uma corrente sensual. A não confluência
dessas duas correntes tem como consequência, muitas vezes, a
impossibilidade de se alcançar um dos ideais da vida sexual –
a conjugação de todos os desejos num único objeto.
As fontes da sexualidade infantil
No esforço de rastrear as origens da pulsão sexual, descobri-
mos até agora que a excitação sexual nasce (a) como a reprodução
de uma satisfação vivenciada em relação a outros processos orgâ-
nicos; (b) pela estimulação periférica apropriada das zonas erógenas;
e (c) como expressão de algumas “pulsões” que ainda não nos são
inteiramente compreensíveis em sua origem, como a pulsão de
ver e a pulsão para a crueldade. A investigação psicanalítica, que
retrocede de uma época posterior para a infância, e a observação
contemporânea da criança conjugam-se para nos apontar outras
fontes que fluem regularmente para a excitação sexual. A observa-
ção de crianças tem a desvantagem de trabalhar com dados facil-
mente passíveis de mal-entendidos, e a psicanálise é dificultada pelo
fato de só poder chegar a seus dados e conclusões depois de lon-
gos rodeios; em cooperação, entretanto, os dois métodos obtêm
um grau satisfatório de certeza de conhecimentos.
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Pela investigação das zonas erógenas, já descobrimos que es-
sas regiões da pele meramente mostram uma intensificação espe-
cial de um tipo de estimulabilidade que, em certo grau, é próprio
de toda a superfície cutânea. Portanto, não nos surpreenderá cons-
tatar que é possível atribuir efeitos erógenos muito claros a certos
tipos de estimulação geral da pele. Entre esses, destacamos acima
de tudo os estímulos térmicos, o que talvez facilite nossa compre-
ensão do efeito terapêutico dos banhos quentes.
a) Excitações mecânicas
Devemos ainda arrolar aqui a produção de excitação sexual
pela agitação mecânica e ritmada do corpo, na qual devemos
distinguir três formas de atuação estimulatória: no aparato sen-
sorial dos nervos vestibulares, na pele e nas áreas profundas
(músculos, aparelho articular). A existência das sensações
prazerosas assim geradas – vale enfatizar que é lícito empre-
garmos indistintamente, numa vasta medida, “excitação sexu-
al” e “satisfação”, cabendo-nos o dever de buscar mais adian-
te uma explicação para isso –, a existência dessas sensações
prazerosas, produzidas por certos tipos de agitação mecânica
do corpo, é confirmada pelo fato de as crianças gostarem
tanto das brincadeiras de movimento passivo, como serem
balançadas e jogadas para o alto, e de pedirem incessantemen-
te que sejam repetidas. Sabe-se que é costumeiro usar o recur-
so de embalar as crianças inquietas para fazê-las adormecer. O
balanço das carruagens e, mais tarde, das viagens de trem exer-
ce um efeito tão fascinante nas crianças mais velhas que pelo
menos todos os meninos, em algum momento da vida, quise-
ram ser condutores de trem ou cocheiros quando crescessem.
Eles dedicam intrigante interesse de extraordinária intensidade
a tudo o que se relaciona com as ferrovias e, na idade em que
se ativa a fantasia (pouco antes da puberdade), fazem disso o
núcleo de um simbolismo singularmente sexual. É evidente
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que a compulsão a estabelecer tal vínculo entre as viagens fer-
roviárias e a sexualidade provém do caráter prazeroso das
sensações de movimento. Sobrevindo então o recalcamento,
que converte tantas das predileções infantis em seu oposto,
essas mesmas pessoas, quando adolescentes ou adultas, reagi-
rão com náuseas aos balanços e sacolejos, ficarão terrivelmen-
te esgotadas pelas viagens de trem, ou tenderão a sofrer ata-
ques de angústia nas viagens, protegendo-se da repetição des-
sa experiência dolorosa através de pavor às ferrovias.
Alinha-se aqui o fato, ainda não compreendido, de que a conju-
gação do susto com a agitação mecânica produz a grave neuro-
se traumática histeriforme. Podemos ao menos supor que essas
influências, que numa intensidade ínfima se transformam em
fontes de excitação sexual, provoquem, em medida excessiva,
profunda desordem no mecanismo ou na química sexual.
b) Atividade muscular
É sabido que a atividade muscular intensa é, para a criança, uma
necessidade de cuja satisfação ela extrai um prazer extraordiná-
rio. Se esse prazer tem algo a ver com a sexualidade, se encerra
em si mesmo uma satisfação sexual, ou se pode converter-se no
ensejo de uma excitação sexual, tudo isso é passível de conside-
rações críticas que, de fato, podem também apontar contra a
colocação contida nos parágrafos precedentes, a saber, que o
prazer extraído das sensações de movimento passivo é de natu-
reza sexual ou produz excitação sexual. Mas o fato é que uma
série de pessoas informa ter vivenciado os primeiros sinais de
excitação em sua genitália no curso de brigas ou lutas com seus
companheiros de brincadeiras, situação na qual, além do esfor-
ço muscular generalizado, há ainda estreito contato com a pele
do oponente. A tendência a travar lutas musculares com deter-
minada pessoa, bem como, em épocas posteriores, a inclinação
às disputas verbais [“provoca-se o que se ama”] são bom sinal
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de que a escolha de objeto recaiu sobre essa pessoa. Na promo-
ção da excitação sexual através da atividade muscular caberia
reconhecer uma das raízes da pulsão sádica. Em muitos indiví-
duos, a vinculação infantil entre as lutas corporais e a excitação
sexual é codeterminante da orientação privilegiada que assumi-
rá, mais tarde, sua pulsão sexual.
c) Processos afetivos
Menores são as dúvidas a que ficam sujeitas as outras fontes
de excitação sexual na criança. É fácil demonstrar, tanto pela
observação contemporânea quanto pela investigação posteri-
or, que todos os processos afetivos mais intensos, até mesmo
as excitações assustadoras, propagam-se para a sexualidade, o
que, aliás, pode contribuir para a compreensão do efeito
patogênico de tais abalos anímicos. Nos escolares, o pavor de
fazer uma prova ou a tensão diante de uma tarefa difícil de
solucionar podem ser importantes não só para seu relaciona-
mento com a escola, mas também para a irrupção de mani-
festações sexuais, na medida em que, nessas circunstâncias, é
muito frequente surgir uma sensação estimuladora que incita
ao contato com a genitália, ou ainda um processo da natureza
de uma polução, como todas as suas consequências desconcer-
tantes. O comportamento das crianças na escola, que propõe
aos professores um número bastante grande de enigmas, me-
rece, em geral, ser relacionado com o desabrochar de sua se-
xualidade. O efeito sexualmente excitante de muitos afetos que
em si são desprazerosos, tais como a angústia, o medo ou o
horror, conserva-se num grande número de seres humanos
por toda a vida e, sem dúvida, explica por que tantas pessoas
correm atrás da oportunidade de vivenciar tais sensações, des-
de que haja apenas certas circunstâncias secundárias (a pertença
a um mundo imaginário, à leitura ou ao teatro) para atenuar a
gravidade da sensação desprazerosa.
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Presumindo-se que também as sensações de dor intensa pro-
voquem o mesmo efeito erógeno, sobretudo quando a dor é
abrandada ou mantida à distância por alguma condição
concomitante, estaria nessa vinculação uma das principais raízes
da pulsão sadomasoquista, de cujas múltiplas complexidades
vamos assim ganhando aos poucos algum discernimento.
d) Trabalho intelectual
Por fim, é inequívoco que a concentração da atenção numa
tarefa intelectual, bem como o esforço intelectual em geral,
têm por consequência produzir em muitas pessoas, tanto jo-
vens quanto adultas, uma excitação sexual concomitante, o que
por certo constitui a única base justificável para a tão duvidosa
prática de derivar as perturbações nervosas do “excesso de
trabalho” intelectual.
Correndo agora os olhos por essas provas e esses indícios
fornecidos sobre as fontes da excitação sexual infantil, e que
não foram completos nem exaustivos, podemos vislumbrar
ou reconhecer os seguintes traços universais: parece que as mais
abundantes providências são tomadas para que o processo da
excitação sexual – cuja natureza decerto se tornou bastante
enigmática para nós – seja posto em andamento. Cuidam dis-
so, antes de mais nada, e de maneira mais ou menos direta, as
excitações das superfícies sensíveis – a pele e os órgãos senso-
riais – e, da maneira mais imediata, a influência dos estímulos
sobre certas áreas designadas como zonas erógenas. O ele-
mento decisivo nessas fontes de excitação sexual é, sem dúvi-
da, a qualidade do estímulo, embora o fator da intensidade
(no caso da dor) não seja de todo indiferente. Além disso,
porém, existem no organismo dispositivos cuja consequência
é fazer com que a excitação sexual surja como um efeito
concomitante num grande número de processos internos, tão
logo a intensidade desses processos ultrapasse certos limites
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quantitativos. O que chamamos de pulsões parciais da sexuali-
dade deriva diretamente dessas fontes internas da excitação
sexual, ou então se compõe de contribuições vindas dessas
fontes e das zonas erógenas. É possível que nada de maior
importância ocorra no organismo sem fornecer seus compo-
nentes para a excitação da pulsão sexual.
Não me parece possível, no momento, trazer maior clareza e
segurança a essas proposições gerais, e responsabilizo dois fa-
tores por isso: primeiro, a novidade de todo o método de
abordagem, e segundo, a circunstância de a natureza da exci-
tação sexual ser-nos inteiramente desconhecida.
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1855 - Casam-se Jacob Freud e Amália Nathansohn.
1856 - Nasce Sigsmund Schlomo Freud (em 1877, abrevia o nome para Sigmund
Freud) em 6 de maio, em Freiberg, na Moravia, região da Europa Central
e que hoje faz a parte oriental da República Checa. Freud era o mais velho
dos oito filhos do casamento de seu pai, além de dois meio-irmãos que
regulavam a idade de sua mãe.
1865-1873 - Realiza estudos no Sperl Gymnasium, a partir dos 9 anos de idade,
graduando-se aos 17, com a distinção summa cum laude. Inicia estudos
universitários na Universidade de Viena, no curso de medicina, graduan-
do-se em 1881, com 25 anos.
1885 - Chega a Paris, em meados de outubro, com uma bolsa de estudos. Traba-
lha e estuda no Laboratório Patológico de Jean Martin Charcot, no Hos-
pital Salpêtrière.
1886 - De volta a Viena, casa-se com Martha Bernays, em 14 de setembro.
O casal teve seis filhos e morou na Rua Bergasse n
o
19, onde Freud
mantinha seu consultório e gabinete privado.
1938 - Imigra para Inglaterra, em 2 de junho.
1939 - Morre em 23 de setembro, aos 83 anos.
CRONOLOGIA
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efeitos? Campinas: Avercamp, 2005.
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Este volume faz parte da Coleção Educadores,
do Ministério da Educação do Brasil,
e foi composto nas fontes Garamond e BellGothic, pela Entrelinhas,
para a Editora Massangana da Fundação Joaquim Nabuco
e impresso no Brasil em 2010.
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