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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
DEPARTAMENTO DE PÓSGRADUAÇÃO
MESTRADO ACADÊMICO EM POLITICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE
JOSÉ MARCILIO DE SOUSA FAÇANHA
SEMÁFOROS - PARADA OBRIGATÓRIA! UM LUGAR PRATICADO POR
PERSONAGENS E HISTÓRIAS
FORTALEZA-CE
2009
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JOSÉ MARCILIO DE SOUSA FAÇANHA
Semáforos Parada Obrigatória! Um lugar praticado por personagens e
histórias
Dissertação submetida à Coordenação do
Curso de Pós-Graduação em Políticas Públicas
e Sociedade da Universidade Estadual do
Ceará como requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre em Políticas blicas e
Sociedade.
Orientação: Prof. Dr Geovani Jacó de Freitas
FORTALEZA-CE
2009
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F111s Façanha, José Marcílio de Sousa.
Semáforos – parada obrigatória! Um lugar praticado por
personagens e histórias/ José Marcílio de Sousa Façanha. –
Fortaleza, 2009.
99p. ;il.
Orientador: Prof. Dr. Geovani Jacó de Freitas
Dissertação (Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e
Sociedade MAPPS) Universidade Estadual do Ceará,Centro
de Estudos Sociais Aplicados.
I. Espaço. II lugar. III público;. IV modernidade. V
identidade. I. Universidade Estadual do Ceará. Centro de Estudos
Sociais Aplicados.
CDD: 320.6
JOSÉ MARCILIO DE SOUSA FAÇANHA
Semáforos – Parada Obrigatória! Um lugar praticado por personagens e
histórias
Dissertação submetida à Coordenação do
Curso de s-Graduação em Políticas
Públicas e Sociedade da Universidade
Estadual do Ceará como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em
Políticas Públicas e Sociedade.
Aprovada em ____/____/_____
Banca Examinadora
_________________________________
Prof. Dr. Geovani Jacó de Freitas(Orientador)
Universidade Estada do Cea
________________________________
Prof. Dr. Hermano Machado Ferreira Lima
_________________________________
Prof. Dr. Rosemary de Oliveira Almeida
Este trabalho dedico a meu filho: Ian de
Moura Façanha, foi nele que busquei
sentido para continuar em minha jornada
quando me faltaram forças. Dedico
também em especial ao meu irmão
Francisco Marcelo de Sousa Façanha que
continua vivo em minha memória
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais: Maria Ednar de Sousa Façanha e Francisco José Façanha Félix que
me deram e continuam dando apoio para a continuação de meus estudos.
Aos meus familiares e todos aqueles que colaboraram direta e indiretamente com a
pesquisa.
Agradeço o apoio de Ana Cecília dos Santos que me auxiliou nos trabalhos de
pesquisas de campo.
Aos professores Ubiracy de Sousa Braga que me deu importantes dicas para o
desenvolvimento desta obra.
Grato ao apoio de: Jessé; Terezinha Gadelha; Fabíola Gadelha, Fabiano Gadelha.
Agradecimentos ao importante trabalho desempenhado com sabedoria e
competência pelo professor e orientador desta dissertação Geovani Jacó de Freitas
que me acompanha em minhas jornadas sociológicas desde o ano de 2004.
Resumo
Este é um estudo referente à conjugação das categorias: espaço” e “agentes
sociais”, identificados no texto como o espaço dos cruzamentos de trânsito e os
agentes como os personagens dos sinais, sujeitos que praticam o espaço dos
cruzamentos dando novo significado aqueles lugares. Tratamos de um lugar espaço
que deixa de ser apenas lugar de passagem e agora se revela como gerador de
identidades e da sentido à ações que agora emergem no contexto público.
Trouxemos para reflexão falas, gestos e códigos de sujeitos que reinventam
determinados espaços urbanos com táticas próprias e astúcias da arte de fazer.
Relatos, imagens e notícias; a cidade; a modernidade; o mercado e a rua são peças
que se encaixam em nosso objeto de pesquisa: os sujeitos que atuam nos
cruzamentos de trânsito da cidade de Fortaleza, os personagens dos sinais.
Palavras chave: Espaço; Lugar; Público; Modernidade; Identidade;
ABSTRACT
This is a referring study to the interaction of the categories: “space” and “social
agents”, identified in the text as the space of the transit crossings and the agents as
the personages of the traffic lights, citizens that practise the space of the crossings
giving new meaning those places. We deal with a place space that leaves of being
only ticket place and now it shows as generating of identities and the direction to the
action that now emerges in the public context. We brought for reflection you speak,
gestures and codes of citizens that invent again definitive urban spaces with proper
and astuteness tactics of the art to make. Stories, images and notice; the city;
modernity; the market and the street are parts that if incase in our object of research:
the citizens that act in the crossings of transit of the city of Fortaleza, the personages
of the traffic lights.
Words key: Space; Place; Public; Modernity; Identity;
SUMÁRIO
1.INTRODUÇÃO........................................................................................................05
2. A CIDADE O MERCADO E A RUA.......................................................................16
2.1 Olhando para a cidade.......................................................................................16
2.2 A respeito do polido espaço urbano................................................................22
2.3 O espaço público em debate.............................................................................26
2.4 O mercado é público assim como a rua também o é!....................................33
2.5 O momento da visualização – o que se revela nos sinais!............................36
3. CRUZAMENTOS URBANOS E A SOCIABILIDADE DE UM PROCESSO
DESIGUAL.................................................................................................................40
3.1 Cruzamentos em jornadas urbanas..................................................................47
3.2 Eles eso esperando o sinal fechar mas não para atravessarem a
rua...............................................................................................................................51
3.3 O tempo dos Sinais.............................................................................................54
4.0 RELATOS IMAGENS E NOTÍCIAS – LOCAIS POR ONDE PASSAMOS...........59
4.1 O cruzamento vira notícia...................................................................................59
4.2 No chão de asfalto...............................................................................................63
4.3 Cleiton e Elaine, o encontro no encontro das ruas..........................................67
4.4 Francisco Lúcio “o garçom das ruas”...............................................................74
4.5 Personagens inusitados.....................................................................................76
4.7 A barraquinha da Esmola..................................................................................85
5.0 REFLEXÕES FINAIS............................................................................................90
BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................96
INTRODUÇÃO
Durante longos séculos, a terra foi o grande
laboratório do homem; só pouco tempo é
que a cidade assumiu esse papel. O fenômeno
urbano manifesta hoje sua enormidade,
desconcertante para a reflexão teórica, para a
ação prática e mesmo para a imaginação
(LEFEBVRE 2001).
Desde quando a sociedade ocidental optou por passar tudo que for de
construção social pela moldura do processo de “racionalização” (WEBER, 2004), que
tamm de acordo com Habermans (1986, p.53): significa em primer lugar la
ampliacion de los hábitos sociales que quedan sometidos a los critérios de la decision
racional”, a sociedade humana transformou-se numa sociedade do controle não
humano, ou seja, uma sociedade guiada por sistemas de regras devidamente
separadas, escalonadas, esquadrinhadas, construindo-se o mais distante possível da
subjetividade humana. Tudo precisou ser realmente controlado. Depois do
desencantamento do mundo, evitou-se o caos das descrenças” metafísicas, com a
crença na ciência racionalista. São valores que intermedeiam uma configuração
matemática de relação com o outro, ou seja, com seu tempo medido, com sua vida
compartimentalizada e suas relações vistas num universo de confronto entre o que é
“normalizado” e o que está lá, em contraste com o normativo ou, o que não está sob
controle. Como lembra Simmel (2005):
o espírito moderno tornou-se mais e mais um espírito contábil. Ao ideal da ciência
natural de transformar o mundo em um exemplo de cálculo e de fixar cada uma de
suas partes em fórmulas matemáticas corresponde a exatidão contábil da vida prática
(p.580).
Estas características acima relacionadas são também o cenário onde
encontramos nosso objeto de pesquisa, os “personagens dos semáforos” localizados
no “espaço dos sinais de trânsito”, entre os quais focamos os “flanelinhas”,
socialmente identificados como aquelas pessoas que limpam os pára-brisas dos
carros em troca de dinheiro, além de outros agentes como pedintes, vendedores e
malabaristas.
Situamos estes personagens com referência às atividades por eles
desenvolvidas nos sinais de trânsito, tendo como parâmetro a dinâmica do tempo
(ELIAS, 1998) demarcada, objetivamente, pela intermitência entre as luzes, amarela,
verde e vermelha. Identificar os digos que orientam práticas desses personagens,
as linguagens e falas ditas e não ditas, além do cotidiano dos cruzamentos de
Fortaleza-CE, são propostas deste trabalho de dissertação que realizamos junto ao
Mestrado Acadêmico de Políticas Públicas e Sociedade, da Universidade Estadual do
Ceará.
Como primeiros resultados, adiantamos que a categoria “personagens do
sinal” faz parte dos setores “marginalizados” que configuram o mundo capitalista
recente (GIDDENS, 1991). A história de vida de nossos informantes que, aqui
chamamos de personagens dos sinais, nos levam tamm a reflexões a respeito dos
caminhos que a sociedade moderna trilhou em seu desenvolvimento. Muitas são as
contribuições que apontam para as conseqüências do avanço econômico capitalista,
muitas, são as seqüelas para o contingente que ficou com a menor fatia da produção
mercantil. Como afirma Pochmann (2007, p.02):
em países periféricos como o Brasil, a desigualdade constituída
ainda pela condição colonial, marcada pelo extensivo uso escravo do
trabalho, da monocultura da produção e do monopólio da terra, foi
sendo consolidada pelo avanço do capitalismo selvagem. Sem a
realização das reformas civilizadoras, o fantástico progresso das
forças produtivas ocorrido no ciclo da industrialização nacional
(1933–1980) seguiu contaminado pela dinâmica da exclusão.
Esse capitalismo selvagem construído sobre processos de condição social,
desiguais dos quais nos fala Pochmann (Idem) fez emergir no mundo moderno o que
Santos B. (2009, p.80) trata como “fascismo social”, em que, “um regime social de
relações de poder extremamente desiguais (...) concede à parte mais forte, poder de
veto sobre a vida e o modo de vida da parte mais fraca”. Ainda de acordo com
Santos (Idem) esse poder de veto presente no referido “fascismo social assume
formas distintas, dentre elas podemos citar o apartheid social que seria:
a segregação social dos excluídos por meio de uma cartografia
urbana dividida em zonas selvagens e zonas civilizadas. As zonas
selvagens são as zonas do estado de natureza hobbesiano, as zonas
de guerra civil interna existentes em muitas megacidades em todo o
Sul global. As zonas civilizadas são as zonas do contrato social, e
vivem sob a constante ameaça das zonas selvagens (Idem, p.80).
A emergência desses personagens no cenário dos cruzamentos com
semáforos na cidade de Fortaleza-CE tem sua intensificação no final da cada de
1980. Hoje é quase impossível trafegar em Fortaleza e não topar com figuras que
atualmente o típicas dos semáforos: os flanelinhas, pedintes e vendedores
ambulantes dos sinais. Seu aparecimento está ligado às combinações entre, a
dinâmica da sociedade capitalista e os pilares que formam a rede de relações que
conjugam a produção dos saberes locais e seus agentes, os seus sentidos e seus
respectivos “lugares”, conforme analisam Geertz (1978) e Augé (1994).
Buscaremos adentrar no universo das relações que constroem a figura dos
personagens do sinal, ou seja, ir a campo com os equipamentos necessários à
percepção da realidade “fabricada” (BLIKSTEIN, 2003) dos cruzamentos e a
realidade dos personagens que compõem o cotidiano desse espaço - o espaço dos
sinais. Entrevistas, anotões em diários de campo, visitas constantes e o olhar
sociogico do pesquisador fazem parte dos procedimentos que estamos utilizando
como aparato metodológico desta pesquisa.
Escrever sobre o universo dos cruzamentos é falar sobre relações sociais
conflitantes. É tamm falar de ão, classe social, cultura, economia e violência.
Dentre os autores que tratam do assunto, destacamos Alba Zaluar que vem, desde a
década de 1990, publicando trabalhos de pesquisa junto a camadas populares
menos favorecidas. Em seu livro “A máquina e a revolta”, estudo pelo qual buscou
revelar o cotidiano e as formas de organização das classes populares, ela alerta
sobre as dificuldades que temos ao tratar de temas que envolvem os discursos
acerca da pobreza, como demonstrado nesta passagem:
Escrever sobre os ‘pobres’ urbanos no Brasil de hoje é uma dupla
ousadia. Primeiro, porque os ‘pobres’ constituem a maior parte da
população urbana, podendo apenas ser um sinônimo para outra
palavra no discurso político nacional: o povo. Segundo porque os
‘pobres’ enquanto categoria social exercera e exercem notável
fascínio sobre os pensadores daqui e dalhures, sendo alvo de teorias
a respeito de seu papel político e econômico em sociedades em
desenvolvimento (ZALUAR 1994, p. 34).
O pesquisador que decide ir ao campo multilinear do popular, tem que estar
prevenido dos disfarces e armadilhas que porventura venham mascarar falas, e
subverter verdades. O dito tem suas vertentes e para o se deixar levar por
primeiras impressões, é necessário atentar para outros dados referentes à realidade
estudada, pois, muitas vezes temos que lidar com inverdades ou meias verdades
que, se não reconhecidas a tempo, podem levar a falhas interpretativas mais
abrangentes, como ainda nos revela Zaluar:
o significado do que me foi dito estava justamente na mentira
sistemática que sugeriram as barreiras intransponíveis entre mim e
os que aguçavam a minha curiosidade conhece-los – os bandidos do
bairro popular. Entretanto, esse significado não foi dito ou explicitado
na entrevista, mas sim no comentário de terceiros sobre ela. Assim,
a relação dual entrevistador/entrevistado exibiu de forma dramática e
reveladora a importância e a necessidade da mediação de terceiros:
não apenas as teorias sociais e os dados estatísticos de que me vali
que são também comentários reveladores sobre o dito, mas também
a opinião de outras pessoas do mesmo lugar, que tinham com os
entrevistados um código de significados e regras de comunicação do
qual eu era e deveria permanecer excluída... (Zaluar 2004, p. 12)
Nos sinais luminosos, encontramos agentes dessas classes populares em seu
ambiente de labor e sociabilidade. São “citadinos”, como retrata Frugoli (2007, p.07),
que ocupam os espaços urbanos, deslocam-se por diversos territórios e estabelecem
“relações de proximidade e distância com outros citadinos em contextos específicos e
situados. Ele não se reduzem à figura do transeunte, mas [...] tampouco coincide
obrigatoriamente com a do cidadão”.
Falar de espaço em pleno processo de utilizão é falar também de território.
Território vira conceito, de acordo com M. Santos (2007), ao ser utilizado na análise
social, segundo o sentido atribuído por aqueles atores que dele se utilizam. Ainda
conforme este autor, “não serve falar de território em si mesmo, mas de território
usado, de modo a incluir todos os atores. O importante é saber que a sociedade
exerce permanentemente um diálogo com o território usado”. (Idem, p. 26)
Estudar pessoas em suas ações cotidianas pressupõe, tamm, refletir junto ao
pensamento de George Simmel (2005; 2006) a respeito do funcionamento da
sociedade, onde verificamos como são possíveis as relações de sociabilidade e as
continuidades dessas relações no tempo e no espaço. Para tanto, Simmel observou,
em seus diversos “ensaios”, rios caracteres que se fazem presentes nas teias
sociais, tecidas, tanto em grandes salões, como nas ruas que conectam vidas umas
às outras. Estão presentes em seus textos, assim como também revela e interpreta
Waizbort (2000) em “As Aventuras Antropológicas de George Simmel”, desde temas
abrangentes como: a guerra; a dominação; os círculos sociais; o espaço; a cultura; o
dinheiro; a religião; a família; a moral, até estudos sobre temas um pouco inusitados
para a sociologia do inicio do século XX como: a ponte; a moldura; a aventura; a
ruína; a asa do jarro; a porta; o amor; a conversa; etc. No entanto, de acordo com
Simmel (2006) todas essas categorias, só obtém seu status de social quando
tomadas no momento que são pano de fundo para agregar indivíduos:
Em si e para si, essas matérias com as quais a vida se preenche,
essas motivações que a impulsionam, não têm natureza social. A
fome, o amor, o trabalho, a religiosidade, a cnica, as funções ou os
resultados da inteligência não são, em seu sentido imediato, por si só
sociais. São fatores da sociação apenas quando transformam a mera
agregação isolada dos indivíduos em determinadas formas de estar
com o outro e de ser para o outro que pertencem ao conceito geral
de interação. (SIMMEL Idem, p 60)
Para não ficarmos de fora dessa aventura antropológica, podemos dizer que,
dentre inúmeros aspectos inusitados, tomamos de assalto para estudo, as dinâmicas
que ocorrem nos sinais de trânsito. Nosso objeto é o personagem que circunda um
objeto simbólico, que se encontra suspenso no ar: o semáforo, onde indivíduos
aproveitando-se de seu funcionamento específico: - luz verde para os carros
seguirem, amarelo dando o alerta, tanto aos motoristas, como aos flanelinhas, para o
vermelho – parada obrigatória. Ali, os personagens adentram num processo interativo
e multidimensional com os motoristas e consigo próprios que nos levantou interesse
em pesquisar. A partir deste ponto, alçamos voos maiores que levam, por exemplo,
a observações sobre a cidade, a políticas econômicas, o espaço público, as relações
de produção, a violência, o tempo, a miria e, concomitante a isso também, os
caracteres inusitados como a poesia, a esmola, o olhar.
O comum, o olhar investigativo, os detalhes ganham patamares superiores e
alcançam grande importância para a apreciação do todo da obra. O simples sorriso
de Monalisa preencheu o quadro de Leonardo da Vinci (1452 1519) de mistério.
Os simplismos falam por si, os gestos simples podem descrever a cultura como um
todo, um simples piscar de olho advertindo sobre uma trapaça, o curvar-se diante do
rei, o silêncio, o grito, o balançar de cabeça, tantos códigos que muitas vezes não
precisamos, nem falar e nem escutar ninguém falando para entendermos o que
ocorre a nossa volta. No entanto esses digos precisam estar claros ao olhar
estranho e não habituado, para que possam ser decifrados é que entra o trabalho
do pesquisador. Os códigos presentes no cotidiano dos semáforos são códigos
específicos de quem vive aquela realidade. Existem por exemplo às regras com
relação à chegada do estranho, aquele que decide ir para o cruzamento. Esse, para
poder permanecer lá, tem que ser levado por alguém que está autorizado a estar
lá. E esta autorização vem de um prévio conhecimento dos que estão antes dele e
assim por diante. A chegada lá, pode ser por intermédio de um parente, ou amigo,
ou até amigo de amigo que esteja no sinal. Aquele que ocupa o espaço do
cruzamento antes de todos, na lei dos cruzamentos identificada nos depoimentos dos
“sinaleiros”, obtém o status de liderança sobre o local. Geralmente parte dele a
permissão para a permanência dos demais.
Alguns realizam malabarismos e performances acrobáticas; há os que vendem
produtos diversos como canetas, chaveiros, bonés, capas para celular, enfeite para
geladeira, brinquedos, artigos de decoração, adesivos etc. os que limpam para-
brisas de carros e caminhões, também conhecidos como flanelinhas; e aqueles que
simplesmente apelam para a caridade alheia praticando mendicância. Todos estes
o personagens que encontramos na rápida e efervescente dinâmica desta
metrópole que é Fortaleza, de lindas praias e casarões antigos, carrega, como em
outras metrópoles, práticas esponneas ou “não institucionais” de reconfiguração de
seus espaços urbanos.
Tornou-se comum aqui, nas duas últimas décadas do século XX, a ocupação
ou, pelo menos, a reutilizão” de espaços de calçadas e ruas, principalmente em
cruzamentos, para a prática de venda, mendicância, limpeza de para-brisas etc. O
vendedor ambulante dos semáforos expõe aquilo que seria emergencialmente útil:
água, flanelas, guarda-chuva carregadores de celular para funcionar dentro de
veículos, pão, capa para bancos de carro, artigo de decoração para automóvel e
casa, brinquedos etc. O menino arrisca movimentos acrobáticos para chamar a
atenção e pedir dinheiro, pois para alguns desses meninos, só pedir parece não ter
mais o resultado satisfatório. O flanelinha, assim como o engraxate das praças, que
de sapato em sapato busca um trocado, achou por bem, querer sair limpando vidro
de carro em carro, sem se importar com o fato de que, a grande maioria dos carros já
vem com um sistema automático de limpeza de para-brisa.
Assim como a cidade e suas ruas, a vida dos personagens dos sinais é tamm
uma vida em movimento, são como nômades no sentido do termo utilizado na
reflexão de Deleuze e Guatari (1997, p.51) onde:
por mais que o trajeto nômade siga pistas ou caminhos costumeiros,
não tem a função do caminho sedentário, que consiste em distribuir
aos homens um espaço fechado, atribuindo a cada um sua parte, e
regulando a comunicação entre as partes. O trajeto nômade faz o
contrário, distribui os homens (ou os animais) num espaço aberto,
indefinido, não comunicante.
Comparativamente ao bricouleur de Strauss, os personagens dos sinais das
metrópoles, aproveitando-se do que tem em mãos, remontam os cacos da terra da
qual brotaram. Da mesma maneira que descreve Strauss (1989, p.51): “à maneira do
bricouleur que cuida das peças de um velho despertador desmontado e, elas ainda
podem servir para o mesmo uso ou para um uso diferente, por pouco que sejam
desviados de sua função primeira.” Tal qual este bricouleur, os personagens dos
sinais tomam a rua para uma nova utilidade. Estes novos ocupantes, na condição de
personagens dos sinais, ou ainda os sinaleiros encontram-se entre fronteiras
simultaneamente físicas e simbólicas, seja nos limites físicos das ruas, seja nas
fronteiras da realidade social, entre o dizível e o não dizível, entre os jogos semióticos
do verde e do vermelho dos quais derivam as esferas do permitido e do interdito da
vida social, local em que, segundo Martins (2000), a investigação se torna fecunda.
Este é nosso estudo: Os personagens do lugar-espaço’ do sinal. O estudo
destes personagens nos traz a revelação de ações significantes, carregadas de
sentido e demais elementos estruturantes que devem revelar os comportamentos e
categorias sociais necessárias para a compreensão sociológica e política do tema em
questão. Trata-se não de interpretar o local que foi descrito como um local
funcional, um local “seguro” de passagem para pedestres e vculos, de usos e
costumes banais, mas reinterpretá-lo a partir da descrição daqueles que refizeram
sua paisagem estética. Agora, também sob a ótica de Augé (1994), o espaço que a
priori poderia ser visto como um espaço que não pode se definir como identitário,
relacional e histórico, um “não lugar”, fruto da supermodernidade, agora foi subvertido
com uma nova relação histórica e identitária, ou seja, estamos tratando de um não
lugar” que passou a ser “lugar” aos olhos dos praticantes dele, na vida cotidiana, que
é, por si mesma, reveladora da história em seus processos interativos,
representativos e simbólicos, relacionados à experiência vivida. Como revela Leite
(2004, p.37) “em muitos casos é possível compreender as práticas sociais,
associando-as aos significados construídos e atribuídos aos lugares enquanto
suporte prático e simlico da vida pública cotidiana”.
A verificação do espaço em si também é de equivalente importância. O espaço
da rua e o cruzamento dela é um espaço urbano que se tornou público e, como tal, é
uma categoria sociológica constituída por ações daqueles que lhe atribuem sentidos
e o estruturam com práticas diferenciadas formando lugares. Como relata Matta
(1997, p.30), “o espaço não existe como dimensão social independente e
individualizada, estando sempre misturado, interligado ou ‘embebido’ [...] em outros
valores que servem para a orientação geral”.
Um espaço público tem em si seu valor estrutural, e é sua existência não
espacial como também política, ou seja, demarcado institucionalmente, que faz dele
importante peça nas correlações de poder e disputa. Como nos informa Leite (2004),
o espaço público o es obviamente imune às assimetrias do poder e das
desigualdades sociais que perpassam sua construção social.
O espaço que se tornou lugar, o foi porque, além de sua função geográfica, ele
adquiriu caracteres peculiares, aparentemente dispersos, mas que na investigação
revelam-se como peças importantes para a compreensão do funcionamento e
estrutura do lugar. São peças de um mosaico que devem ser montadas uma a uma:
a esmola, a notícia, a violência, a infância, a arte, o tempo, o retrato, o carro, a voz, a
indumentária etc.
No momento das entrevistas sentimos um ar de desconfiança por parte dos
informantes para com o pesquisador, fato que dificultou o processo de coleta de
dados e informações para nossa pesquisa. Na tentativa de quebrar esta
desconfiança, tentamos tornar nossas conversas bem informais para deixá-los à
vontade, para relatarem o que puderem sobre suas vidas. Alguns nos viram como
alguém que poderia ajudar a arrumar um emprego ou melhorar sua situação de
alguma forma; outros nos viam como porta voz de suas dificuldades. Houve tamm
muita indisposição em colaborar com a pesquisa, fato que refletiu no número de
informantes contatados, que totalizou algo em torno de vinte e dois personagens.
Para esta indisposição, podemos considerar o fato de o tempo que eles não
aproveitam quando o sinal fecha, pode acarretar em perda de dinheiro. Por este fato,
alguns se recusaram a conversar conosco. Constatamos tamm que muitos deles
sentem vergonha de estarem ali. Estes preferiram não revelar informações de sua
vida para nossa pesquisa. Problemas como esses parecem ser comuns,
principalmente para os que trabalham coletando depoimentos no próprio campo de
pesquisa. Sobre esse assunto Zaluar (1994, p 15) ressalta que: “se nada nos
garante o direito de perturbar-lhes a vida, no espaço que eles concebem como o de
sua liberdade (...), só nos resta concluir que contamos tamm com a paciência e a
generosidade do nosso ‘objeto’”.
Para o pesquisador que decide ir a determinados campos de pesquisa onde
um considerável número de riscos, tanto à pesquisa em si, como a própria vida do
pesquisador, torna muito delicada, a realização da coleta de dados. Um pequeno
deslize pode comprometer o trabalho de um dia inteiro. Muitas vezes nos
cruzamentos deparamos com situações, em que nos vimos cercados por jovens
fazendo o uso de drogas e, ao mesmo tempo, hostis à nossa presença. Tudo o que
se fala em ambiente hostil deve ser colocado de forma que o informante não se sinta
acuado ou coagido, e com isso comprometa a coleta de informões.
Apesar das dificuldades de dissertarmos sobre a vida real, sobre o concreto,
sobre os personagens e a vida no espaço dos sinais foi muito gratificante pelo fato de
termos formão em sociologia. Este fato possibilitou a continuidade neste caminho -
no campo das ciências humanas, com a dissertação desta obra. Buscamos
autenticidade em nossas observações e isso só foi possível devido à análise ao vivo
e em cores no próprio campo de pesquisa. A ida ao campo, aos cruzamentos, é uma
leitura áudio visual de um livro interativo, em que o leitor tem que tomar cuidado para
não borrar as páginas deste mesmo livro e se tornar ele também, personagem de sua
própria literatura. Em relação aos campos da pesquisa, demos, certa prefencia aos
locais onde havia o maior número de personagens dos sinais atuando, apesar de, em
algumas oportunidades, também resolvermos colher informações em cruzamentos
menos freqüentados pelos que aqui denominamos de “sinaleiros”.
Os cruzamentos recheados de personagem ficam agora na memória para
contínuas reflexões. Esta tamm é uma das intenções desta pesquisa: incentivar o
leitor desta dissertação a pensar em um mundo que se revela nas esquinas, nas
ruas, nos sinais. Enxergue nos cruzamentos, mais do que alguém que perturba na
hora que o carro ra. Podemos observar a cena, que se passa fora do automóvel.
Existem histórias que em algum momento se ligam à dele, na teia que tecemos a
cada dia.
Esperamos contribuir com reflexões em torno das questões relacionadas ao
estudo das categorias “espaço” e “lugar”, a inserção nestes espaços de determinados
sujeitos urbanos, as histórias desses sujeitos com esses espaço e lugares, seus
relatos de lugares - bricolagens feitas com resíduos do mundo (CERTEAU 1994).
Quanto à diferenciação das categorias espaço e lugar, com esteio em estudos como
os do próprio Certeau (1994), Santos (2007), Leite (2004), Augé (1994), entre outros.
Quando nos referirmos à posição geográfica do objeto, faremos uso do termo
espaço; quando nos referirmos às práticas que pertencem o só ao espaço, mas a
todo o conjunto de relações envolvido, aí utilizaremos a categoria lugar. Essa
diferenciação será mais bem desenvolvida posteriormente, na tentativa de contribuir
com os debates travados nos ciclos políticos e acadêmicos que tratam de questões
relacionadas ao tema desta investigação, cujo universo abrange o estudo das
práticas de lugar e, mais precisamente, dos usos e contra usos do espaço urbano,
tendo como foco os cruzamentos das grandes avenidas de Fortaleza.
Para as políticas públicas trazemos informações a respeito de um espaço por
onde passam essas mesmas políticas. O espaço da rua, os lugares do público.
Trazemos as ações praticadas no interior dos espaços de trânsito da Cidade para a
luz da reflexão, para o diálogo com cientistas sociais urbanos, fornecemos então,
dados para os planejadores e executores políticos revelando, ao mesmo tempo, a
polis em falas, fotografias e palavras.
Para refletirmos sobre a questão dos personagens dos espaços dos sinais,
faremos no tópico 2 uma discussão à respeito de aspectos ligados à formação
estrutural e simbólica dos espaços compreendidos na dinâmica das ruas, ou seja, a
função desses espaços como categoria ligada ao que se entende como público.
Rebuscando a história da cidade de Fortaleza, preparamos o leitor para adentrar nas
discussões referentes aos espaços dessa cidade, mais precisamente o espaço do
sinal que virá à tona no pico 3 quando se farão presentes os relatos dos
personagens dos sinais, dentre eles adolescentes, motivo pelo qual seus nomes
aparecem de forma abreviada em respeito à lei brasileira de proteção à crianças e
adolescentes. Conversamos a respeito de suas práticas cotidianas, suas intenções,
suas experiências, seus sonhos etc. Ainda neste tópico, deveremos refletir sobre a
dinâmica da relação tempo-espaço, categorias que são destaque nesta obra por
englobarem diversos aspectos relevantes para a compreensão do nosso objeto. No
tópico quatro, iniciamos nossa discussão por meio da análise de fatos noticiados na
imprensa local e nacional referente a nosso objeto de estudo, para em seguida
darmos novamente voz aos personagens da pesquisa na tentativa de trazer o leitor
para um diálogo frente a frente, como se ele pudesse estar lá no momento da
pesquisa.
2. A CIDADE O MERCADO E A RUA
2.1 Olhando para a cidade
Foto. Marcilio Façanha: Cruzamento das Avenidas Oliveira Paiva com Desembargador Gonzaga.
Assim como nos leva a entender Lefebvre (2001), numa primeira definição de
cidade, podemos considerá-la como sendo a projeção da sociedade sobre um local,
portanto, toda a relação pertencente à sociedade: arte, comercio, crenças, hábitos e
costumes, se encontram na cidade aglutinada. Segundo levantamentos históricos a
crião do município de Fortaleza se deu a 13 de abril de 1726, quando a povoação
do Forte foi elevada à condição de vila. Em 1823, o Imperador Dom Pedro I elevou a
vila à categoria de cidade. Durante o Segundo Imrio, o Intendente Antônio
Rodrigues Ferreira e o Arquiteto Adolfo Hebster realizaram obras urbanísticas
transformando Fortaleza em uma das principais cidades do País. Fortaleza tem hoje
seus 283 anos, uma metrópole com mais de dois milhões de habitantes, divididos
entre 336 quilômetros quadrados. A capital cearense é hoje a quinta maior cidade
brasileira em população
1
. Uma cidade, “moderna”, atenta às evoluções tecnológicas
e a constantes reconfigurações de seu tecido social. Esta Cidade em suas “caras”:
política; econômica; cultural etc., contém heranças das tribos como: dos Tupis,
Kariris, Tremembés, e Tabaréus. Em seu início de história ocidental, esta Terra - a
Fortaleza do forte; a conquista de Portugal trouxe com o processo de colonizão, a
força da religião cristã e tamm os cultos dos negros escravizados. Nesse tempo,
1
Informações referente à história de fortaleza extraída do Endereço eletrônico:
http://www.fortaleza.ce.gov.br/fort
“Eu peço
esmola na rua
desde criança,
eu aprendi
viver na rua e
fico na rua
mesmo, nasci
e vou morrer
na rua”
por meios de processos de povoamento do sertão com a cana de açúcar, o algodão e
o gado, Fortaleza foi se tornando um grande centro urbano coletor das mercadorias
do interior, porém, teve que conviver através dos tempos com a imigração desses
interiores sertanejos - homens, mulheres e crianças fugitivos da “seca”: grande
período de estiagem de chuva onde a vegetação seca e as atividades agrícolas e de
pastoreio ficam impraticáveis.
2
Sendo a capital, o maior centro urbano do estado do Ceará, Fortaleza traz em
sua história, as consequências dos acontecimentos descritos acima, as mudanças
econômicas e políticas nacionais e globais que ajudam a pintar este quadro vivo, e
traz à tona as conseqüências do tempo percorrido por esta e outras localidades que
participam da “aventura ocidental”. Esta aventura é o que buscamos compreender
no contexto desta Capital. Para tanto, a priori, optamos por um recorte bem atual; um
acontecimento que pode revelar pistas sobre o comportamento e a cultura de um
momento histórico desta cidade. Buscamos um quadro que pudesse representar o
encontro dos sujeitos moderno e dos “desfiliados”, (CASTEL1998) impedidos de
seguir neste mesmo trem moderno; um encontro que vem a público, que pode ser
observado e ouvido por todos, da ação que “é a única que não pode sequer ser
imaginada fora da sociedade dos homens” (ARENDT 2007, p.31). Este é tamm o
lugar do inusitado, o olho no olho de sujeitos em posições opostas, um na armadura
metálica sobre rodas; o outro com seu instrumento de ão forçando uma interação
imediata. Buscando o olhar do outro para si, o apelo ao outro pela continuidade de
sua sobrevivência e a de seus dependentes. Este lugar reúne estas categorias em
um momento circunscrito, marcado e dividido pela ciência - é o espaço dos
cruzamentos desta Cidade, o espaço do sinal de trânsito de Fortaleza, espaço
observado e utilizado como objeto de estudo num primeiro momento, quando
redigíamos a monografia de término do curso de Ciências Sociais na Universidade
Estadual do Ceará – UECE (FAÇANHA 2005). Dando continuidade a esses estudos,
nos propomos a enxergar este local como uma espécie de laboratório de análises
sociais. A observação de comportamentos ocorridos no espaço de tempo entre o
ascender e apagar das luzes do semáforo.
2
Idem.
O espaço urbano de Fortaleza não pode deixar de ser observado junto às
mudanças e acontecimentos políticos que transformaram a segunda metade do
século vinte, em uma pista de corrida cujo prêmio era o ouro, quem sabe um “ouro de
tolo” que brilha, mas não é o precioso assim. De acordo com Santos e Pinheiro
(2008, p.47) o espaço urbano de Fortaleza passou por uma crescente explosão
demográfica que ocorreu de forma desordenada e, segundo os autores, “a cidade
não reúne condições suficientes para a promão de políticas voltadas para a
geração de empregos, para a redução do déficit habitacional e melhoramento dos
serviços púbico de saúde, saneamento, educação, transporte etc.”.
Durante toda a segunda metade do século XX, Fortaleza, em seu desenho
geográfico, veio se moldando às exigências de rapidez do mercado vigente. Desde
Vicente Fialho (prefeito de Fortaleza de 1971-1975) aLuiziane Lins, foram fortes
“pinceladas” no desenho da Capital. Além da construção de grandes avenidas,
houve tamm mudança no espaço do habitat de diversas famílias - tudo em nome
do progresso. Nesse contexto, sobre a cidade de Fortaleza, Pinheiro; Santos (2008)
trazem a seguinte reflexão:
o espaço urbano de Fortaleza mediante a crescente explosão
demográfica, sobretudo a partir da segunda metade do século XX,
cresce desordenadamente, carecendo de melhor compreensão dos
fenômenos que o tornam caótico. Em razão, sobretudo, deste
crescimento desordenado, a Cidade não reúne condições suficientes
para a promoção de políticas públicas voltadas para a geração de
empregos, para a redução do déficit habitacional e melhoramento
dos serviços públicos de saúde, saneamento, educação, transportes
etc. (PINHEIRO e SANTOS 2008, p. 47)
O habitat que antes já foi uma conquista do espaço de moradia por aqueles que
constituíam seu espaço comunitário, agora só serve para os poderes públicos, se
estiverem dentro dos padrões dos planos diretores da Capital (ou do capital que em
sua nese é administrado por políticas particulares de interesse econômico e
ideológico respaldado em Partidos que são os corpos políticos do sistema
representativos). Como nos lembra Lefebvre (2001, p. 23) ,até então “habitar” era
participar de uma vida social, de uma comunidade, aldeia ou cidade. A vida urbana
detinha entre outras, essa qualidade, esse atributo. Ela “deixava habitar, permitia
que os citadinos-cidadãos habitassem (Idem). A questão é que os habitats que
foram se erguendo, pós-industrialização, o “inchaço” na Capital influenciado pelo
êxodo rural, geraram aglutinações suburbanas e constrangimentos no seio do espaço
urbanizado. Famílias inteiras morando embaixo de viadutos, ou encostas próximas
ao litoral, além dos que simplesmente decidiram habitar marquises em ruas e
avenidas, mostram a fragilidade com que aconteceu o processo de desenvolvimento
desta metrópole.
O capital industrial em si não absorveu essas pessoas, porém a indústria de
bens precisa de consumidores, como ainda revela Lefebvre (Idem), a consciência
social vai deixando pouco a pouco de se referir à produção para se centralizar em
torno da cotidianidade do consumo. Portanto, os novos habitantes de Fortaleza não
foram, simplesmente mandados de volta a suas terras natais, e sim, “ajeitadosem
locais um “pouquinho” mais distantes do centro comercial e das casas dos dirigentes
desses centros. Serviços informais diversos e não qualificados são peças chave na
circulação de bens industriais. O camelô vende os produtos importados da grande
indústria, o vendedor ambulante de lanches vende coca-cola, água industrializada,
produtos alimentícios diversos, todos originários das instrias de manipulação e
produção. A salsicha da Perdigão preenche o cai duro” (o cachorro quente vendido
no meio da rua) do carrinho de lanche, e o gostosinho de carne moída com cuscuz
garantem parte do escoamento dos industriais manipuladores de grãos e fazendeiros
criadores de gado. Como podemos esperar que esta parcela da população que es
afastada dos ditames legais do mundo do trabalho formal, não tem suas funções
respaldadas na lei, não participa de decisões estruturais, pois não tem sindicato e
muitos nem associação, para que tomem consciência de sua condição de explorada
pela aventura do mundo moderno do consumo capitalista?
Uma nova forma de exploração surgiu com o advento do processo industrial. O
consumo voraz de lugares e pessoas. Podemos também inverter a ordem e dizer:
pessoas que consomem lugares, que são consumidos por pessoas e, quando a
relação se esgota, ou os lugares procuram outras pessoas, ou as pessoas procuram
outros lugares. Ensinaram-nos a consumir o bolo, agora é bom deixar o bolo ao
nosso alcance.
Neste ponto voltamos as atenções para o objeto de nossa pesquisa, pois
tamm o justamente os personagens dos sinais que, aparentemente à margem
da produção industrial, objetiva entrar na rota do consumo. Nessa linha de
pensamento, Simmel (apud WAIZBORT) interpreta como sendo o símbolo da
modernidade, o dinheiro:
a dominação do dinheiro insere-se nesse grande e uniforme
processo vital que opõe de maneira decisiva a cultura espiritual e
social da Época Moderna frente à Idade Média e frente à
Antiguidade, suportando e sendo suportada por esse processo (...)
na medida em que as coisas encontram o seu equivalente em um
meio de troca completamente sem cor, que está para além de
qualquer determinação específica; na medida em que elas se trocam
a cada momento por esse meio de troca, elas são de certo modo
polidas e aplainadas, suas farpas diminuem, processos contínuos de
equilíbrio se diluem entre elas, sua circulação, compra e venda
ocorrem em uma velocidade completamente diferente do que em
épocas de uma economia natural. Cada vez mais coisas que
pareciam estar além da circulação da troca, são sugadas em seu
fluxo infatigável (SIMMEL apud WAIZBORT 2006, p.166).
A cidade agora, como um grande mercado consumidor é reflexo do que cada
ser tem de mais honrado, mais patriota, mais louvável, que é agora o espírito de
consumir. Se o trabalho não fosse remunerado com certeza não iria entrar no
discurso de glorificação do homem. Os escravos seriam todos gloriosos se isso
fosse verdade, e libertá-los não seria nenhum ato de bondade. Hoje vivemos como
lembra Santos (2000) a respeito da passagem do livro do Gênesis, depois de pecar
contra Deus amaldiçoados com os dizeres: “No suor do teu rosto comerás o teu pão,
até que te tornes a terra”. O castigo agora o é mais trabalhar, e sim, não poder
trabalhar. Personagens das ruas, os “sinaleiros vem com tudo, como dizem os
próprios personagens: “pedir é o roubar”, é o mais próximo de trabalhar, além de
estar dentro do contexto do consumir.
Fortaleza é, enfim, uma “cidade grande” e tal grandeza é carregada nas mentes
de quem vive a velocidade de sua cotidianidade e acompanha a pressa de seu
crescimento voraz. A cada momento somos embevecidos com sua grandeza, e vez
por outra nos pegamos exigindo melhorias constantes em todos os setores da
cidade. Desta maneira, assim como revela Simmel:
na medida em que a cidade grande cria precisamente essas
condições psicológicas a cada saída à rua com a velocidade e as
variedades da vida econômica, profissional e social, ela propicia,
nos fundamentos sensíveis da vida anímica, no quantum da
consciência que ela nos exige em virtude de nossa organização
enquanto seres que operam distinções, uma oposição profunda
frente à cidade pequena e à vida no campo, com o ritmo que corre
mais uniformemente, mais lento e mais habitual de sua imagem
sensível-espiritual de vida (SIMMEL apud WAIZBORT 2006,
p.317).
Tratamos de uma cidade brasileira que assim como destaca Buarque (2000,
p,13): a cidade brasileira atravessou intensas transformões econômicas sempre
reproduzindo a difícil inserção do pobre na produção, no consumo e na cidadania”.
Mais que isso, esse autor nos traz reflexão sobre caracteres da expansão industrial.
Expansão cujas transformões técnicas alteraram, além dos aparelhos de produção,
a paisagem social das nações que as acolheu, onde a simples fabricação e
promoção de uma máquina como o automóvel, por exemplo, acarreta para a cidade
uma série de consequências como as que ele descreve:
um exercício com o automóvel, ícone da segunda revolução
industrial, permite observar a adaptabilidade da pobreza às mutações
da cidade. O veículo com motor a explosão dissolveu a logística
urbana, amplo espaço de subsistência da pobreza, aposentando
cocheiros, ‘burros sem rabo’ e carregadores manuais. Em
contrapartida, criou desde o taxista, o caminhoneiro e seu ajudante, o
guardador e o lavador de carros, até o flanelinha e o pedinte de
cruzamentos (BUARQUE, 2000, p.13 e 14).
O pouco da história fragmentada que apresentamos anteriormente sobre a
cidade de Fortaleza servirá para indicar que estamos nos referindo num primeiro
momento ao que acontece no espaço dos semáforos, entre os cruzamentos das
principais ruas e avenidas desta Cidade. Não pretendemos induzir a ligação direta
entre os acontecimentos históricos e as ações no espaço citado, porém situar as
informações em um contexto específico. Especificação que possibilitará a realização
de futuras comparações entre outras localidades que possuam a mesma conjuntura
de espaço e lugar. Com esta análise pretendemos observar melhor a natureza social
do fato, suas raízes; as causas de sua permanência, e os motivos que condicionam
suas ações. Verificarmos, tamm, se esta associação moderna de humanos es
sendo guiada para algum lugar ou se está apenas sendo guiada como quem guia um
carro desgovernado.
(Foto: Façanha 2009. Avenida senador Virgilio Távora 2009).
2.2 A respeito do polido espaço urbano.
O espaço urbano significa, antes de tudo, uma construção histórica contínua.
Como informa Lefebvre (2001, p. 11), após a derrocada das cidades mais tradicionais
como as cidades de modo de produção asiática ou medieval, cleos sociais políticos
e ou comerciais foram surgindo para suprir uma demanda organizacional de
crescimento contínuo e altamente acumulativo, bem mais complexo. O “urbano”
surge com mais força e deve ser entendido como uma realidade social fora do cleo
da intimidade. O meio urbano agora se apresenta com maior soberania e carrega
consigo a soma do todo social.
Como ainda nos mostra Lefebvre (2001), podemos definir como sociedade
urbana a realidade social que nasce à nossa volta. A palavra urbano geralmente vem
acompanhada do termo espaço, isto conota a importância dos espaços não privados,
ou pelo menos não totalmente privados que permitem ser utilizados por uma esfera
que ultrapasse, mesmo que de forma não consciente, os interesses particulares. A
cidade, base para a cidade moderna atual, nasce dessa conjugação de laços num
espaço determinado, o urbano.
Com o surgimento da industrialização e a tomada política dos poderes por parte
dos interesses industriais e comerciais, os espaços logo foram refletindo o caráter
dos novos modos de produção de sua sociedade. O espaço urbano e também
público agora gira em torno de uma nova ordem, uma nova autoridade.
Para visualizarmos melhor essa questão, seguimos a seguinte linha de reflexão:
Não é possível imaginar um mercado onde não haja um controle por parte de alguma
autoridade que use da força legitimada para contro-lo, para prevenir saques, para
controlar a utilização da moeda etc. Também não podemos imaginar esse mercado
sem um “espaço” apropriado para suas negociações. Logo as ruas, praças e
logradouros das cidades representam o urbano que revela seu caráter utilitário e
simlico nessa construção histórica. Mesmo as negociações on-line tem local
apropriado. A rede mundial de computadores tem seu espaço cibernético, os
chamados “sítiosou sites que são por sua vez controlados por uma central que
abriga os demais sítios, e assim configuram um espaço de negociação e troca de
informações, tamm chamado “mercado virtual” que, como nos leva a entender
Sposito (2008), traz no cerne de seu funcionamento as características que
configuram também o espaço urbano concreto, as trocas, os pontos de encontro, o
espaço determinado de negociações etc.
Neste raciocínio podemos enxergar a sociedade e, por conseguinte as cidades
modernas em suas “teias” que se entrelaçam através de diversas redes interligadas
aos espaços e lugares, movimentando-se por meio de informações, ações e
intervenções institucionais ou não. Como trata Lefebvre:,
a sociedade no seu conjunto compreendendo a cidade, o campo e as
instituições que regulamentam suas relações, tende a se constituir
em redes de cidades, com certa divisão do trabalho (tecnicamente,
socialmente, politicamente) feita entre essas cidades ligadas por
estradas, por vias sociais e marítimas, por relações comerciais e
bancárias. (2001, p. 13)
Para Bauman (2007), a sociedade é cada vez mais vista e tratada como uma
“rede” em vez de uma estrutura. São conexões e desconexões aleatórias e de um
volume essencialmente infinito de permutações possíveis. Se pensarmos que
locais de intercessões nessas redes, o espaço urbano deve ser um deles, e
tamm um dos componentes de maior tensão. É nele que se concentram os
“centros nevrálgicos” da sociedade moderna e é nele que encontramos os mais
diversos atores e papeis sociais. É nele também que se revela o pensamento
elaborado do sujeito da casa, do lar, do privado. O ator da peça moderna constrói
seu personagem e mostra-se ao grande público, que por vezes finge o o ver.
Sobre este assunto Maffesoli (1987, p. 137) informa que ”a constituição em rede dos
microgrupos contemponeos é a expressão mais acabada da criatividade das
massas.
Estes atores nos revelam os espaços-lugares
3
como “palco” e suas práticas
específicas e internas aos determinados espaços. Imagine que, se num mercado
não houvesse os mercadores e os compradores realizando o processo de troca de
mercadorias, logo, não haveria esse mercado. Somente a ação conjugada ao
espaço nome ao que chamamos de lugar. Mesmo que em um espaço aconteça
apenas uma prática simples como, por exemplo, trocar um sapato por dinheiro ou
outro objeto, podemos enxergar, por intermédio de investigação, processos maiores
que devem revelar teias de relações mais complexas que podem trazer à tona, por
exemplo, os espectros da base de funcionamento de uma sociedade do tipo
burguesa.
Desse modo, podemos revelar também esbos de uma organização que se
ergue como metrópole (em grego: mãe das cidades). Entre ruas e avenidas vemos
tamm o organismo social de uma cidade como Fortaleza, importante
nacionalmente, bela em paisagens e moderna em sua conjuntura social e econômica.
Para a continuidade de nossa jornada, pedimos que, imaginem uma peça de
um quebra cabeça, onde a mesma não tem função e não existe como peça, sem as
outras que se encaixam a ela. Com apenas uma das peças na mão podemos rastrear
as outras e aos poucos a imagem se revela. As peças são como retratos das
maneiras de fazer do cotidiano que seguem ou improvisam mediante códigos
intrínsecos, como numa partitura ou uma bua de regras de jogo, onde, como nos
fala Certeau (1994), para interpretar papéis e ações, não devemos apenas descrever
3
Escolhemos nos referir aos termos espaços-lugares dessa forma por acharmos que eles podem em
determinados momentos sugerirem um leitura conjunta para melhor sua melhor compreensão, pois, se nos
referimos a ambos ao mesmo tempo é porque é ao mesmo tempo em que os termos espaço e lugar podem
funcionar para fins de análise.
lances, golpes ou truques singulares, mas supor que tais ações e maneiras de fazer
correspondem a procedimentos em um mero finito e que implicam a uma lógica
dos jogos de ações relativos a tipos circunstanciais” (Idem, p.83).
É importante salientarmos que da mesma forma que observamos o espaço
urbano como uma construção histórica, também devemos considerar a historicidade
desse jogo que vem se moldando dentro de espaços físicos e espaciais identificáveis,
onde também, suas peças se movimentam como em um brinquedo de mosaico nas
mãos de quem se propôs a revelá-lo. A peça do mosaico que investigamos como
destacado acima, é a do espaço dos cruzamentos de trânsito da cidade de Fortaleza.
Um lugar praticado por personagens e histórias. Um pequeno recorte do tecido
social, mas que, assim como nas investigações arqueológicas, pode nos revelar o
tipo de tecido, o ano em que foi fabricado, onde e quem provavelmente começou a
tecê-lo, em que parte deve ser encaixada etc. Algumas das peças desse jogo são: o
privado; o público; o espaço; a rua; o ser; o tempo. Como nos revela Lefebvre:
se considerarmos a cidade como obra de certos “agentes históricos e
sociais, isto leva a distinguir a ação e o resultado, o grupo (ou os
grupos) e seu ‘produto’ sem com isso separá-los”. Não obra sem
uma sucessão regulamentada de atos e ações, de decisões e de
condutas, sem mensagens e sem códigos. Tampouco a obra sem
coisas, sem uma matéria a ser modelada, sem uma realidade prático
sensível, sem um lugar, uma natureza’, um campo e um meio. As
relações sociais são atingidas a partir do sensível; elas não se
reduzem a esse mundo sensível e, no entanto não flutuam no ar, não
fogem na transcendência. Se a realidade social implica formas e
relações, se ela não pode ser concebida de maneira homologa ao
objeto isolado, sensível ou técnico, ela não subsiste sem ligações,
sem se apegar aos objetos, às coisas. (LEFEBVRE, 2001, p.54)
Estes e outros caracteres que constituem nosso objeto, “os personagens do
sinal”, entram em choque ou mais precisamente se entrecruzam. E são nesses
cruzamentos de trânsito de uma metrópole como Fortaleza, que colhemos as pistas
dessa jornada. Como num jogo de xadrez, anotamos os lances e os movimentos das
peças, as guerras de posições, os ataques, as defesas, traçamos a rua como
tabuleiro e os personagens como peças dispostas em diferentes cores no tabuleiro
social que é nosso espaço público.
2.3 O espaço público em debate
a função do âmbito público é iluminar os
acontecimentos humanos ao fornecer um
espaço das aparências, um espaço de
visibilidade, no qual homens e mulheres
podem ser vistos e ouvidos e revelar
mediante a palavra e a ação quem eles
são. Para eles, a apancia constitui a
realidade, cuja possibilidade depende de
uma esfera pública na qual as coisas
saiam da escura e resguardada existência.
(BIRULÉS, 1996, p.21)
O espaço público é antes de tudo um espaço construído nas relações humanas.
Mais que um simples espaço, demarcado geograficamente onde circula pessoas, traz
tamm relações entre “coisas e os homens”, dotando-as de sentido, como assim
nos fala ARENDT (2007. p, 31) em A condição humana:
as coisas e os homens constituem o ambiente de cada uma das
atividades humanas, que não teriam sentido sem tal localização; e,
no entanto, este ambiente, o mundo no qual viemos não existiria sem
a atividade humana que o produziu.
Esse “sentido” advém das ações que, segundo a autora, são atividades
exercidas em interação direta ou indireta com outros homens. Ações que
encontramos em ambientes de pluralidade, são: a condição de toda vida política na
esfera pública, onde sujeitos singulares se articulam e re-apropriam espaços
tornando-os praticáveis e dinâmicos.
Os espaços por sua vez refletem o caráter das ações que ao se externarem e
tornarem-se públicas, passam a constituir e refletir estruturas ulteriores da sociedade.
Comportamentos que muitas vezes advém da esfera pública e adentram na esfera
privada, construindo habitus (Bourdieu1989) e sendo construídos por eles, como foi
dito por Bachelard (1998, p. 201): as imagens da casa seguem nos dois sentidos:
estão em nós, assim como nós estamos nelas”, o pensamento sobre o “nós” nesta
passagem é tratado como sendo construção coletiva que da mesma forma nos
projeta para o exterior, pois “estamos nelas”.
Em sua gênese, nas primeiras configurações da cidade-estado, práticas e ações
se distinguiam na relação entre esfera blica e privada. A esfera da vida privada, o
lugar das relações intimas familiares, se diferenciava da esfera pública ou política
onde se encontrava a liberdade. O lar, o reino da família, era o reino das
necessidades naturais e a polis representava a liberdade; a vitória sobre as
necessidades naturais da vida e que por sua vez constituem condição para o próprio
homem conviver ou ter direito e voz como membro da polis. Esta distinção entre o
público e o privado se fazia presente de forma semelhante nos escritos de
Aristóteles (2002) em que o autor nos expõe que, a autoridade doméstica é uma
monarquia, porque a família é toda regida por um, apenas; a autoridade civil ou
política é aquela que rege homens livres ou iguais” (p. 21).
A autoridade civil à qual se referia Aristóteles (Ibidem) são justamente os
contratos sociais instituídos na polis por “homens livres”, cidadãos que devem ao
mesmo tempo formular e obedecer às leis, porém, estes também não deveriam se
prender ao trabalho, pois:
os cidadãos não devem desempenhar as artes mecânicas nem as
profissões do comércio; pois este tipo de existência tem algo de vil e
é contrária a virtude. É necessário até, afim de que sejam realmente
cidadãos que eles não se tornem lavradores, pois o descanso é
preciso para fazer nascer à virtude em sua alma, e para exercer os
direitos civis (ARISTÓTELES, Idem, p. 21).
Fica claro então que o “lar”, o lugar da satisfação das necessidades
primárias, como também revela Matta (1984), uma esfera onde nos realizamos
basicamente como seres humanos, é ou “era” tido então como espaço privado, onde
o homem se desgasta, não transcende e morre. A esfera pública não; o homem se
eleva a condição de ser social, obtém seu registro identitário, assim como analisa
Ortega (2001)
4
:
Não se trata de exercícios solitários (...) Nunca se refere ao sujeito,
descontextualizado, da interioridade. A formação da identidade é um
processo público, um acontecimento no mundo. Nas lutas contra
formas de subjetivação, à procura de novas formas de subjetividade
e sociabilidade, o sujeito se constitui no mundo compartilhado com
outros indivíduos.
4
Omero da página não aparece devido a sua configuração no endereço eletrônico. Conferir endereço eletnico:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732001000100015&lng=pt&nrm=iso
Na esfera pública as ões podem tomar proporções transcendentais,
imortalizando aqueles que as praticaram, assim como buscou o personagem
mitológico de Aquiles, mostrado em um pequeno diálogo do filme Tróia
5
, onde o herói
grego, logo após ser chamado a se juntar a outros guerreiros nas batalhas, na
cidade-estado de Tróia, conversa com sua mãe sobre a possibilidade de não ir à
guerra, ficar em casa envelhecer ter filhos, ação que, segundo sua e, fatalmente o
leva a não ser lembrado por mais de duas gerações, e do contrário, ao ir à guerra,
terá a chance de se tornar uma figura imortalizada pelo tempo através de seus atos
heróicos.
Essa apologia à entrega do corpo privado ao ser social, ou seja, a aclamão da
passagem da esfera privada à esfera da liberdade - à esfera pública, veio se
modificar com o que Arendt (2007) vem chamar de “a promoção do social”, onde a
autora verifica a ascensão da administração caseira (...) do sombrio interior do lar
para a luz da esfera pública”, como fator significante que permitirá mudanças
significativas no comportamento social, pois: “não apenas diluiu a antiga divisão entre
o privado e o político, mas também alterou o significado dos dois termos e a sua
importâncias para a vida do indivíduo e do cidadão, ao ponto de torná-los quase
irreconhecíveis” (ARENDT Idem; p 47).
Durkheim (1999) em A divisão do trabalho socialnos mostra, como através de
uma rede de solidariedade orgânica, ou seja, solidariedade entre grupos e afins, e
que pertençam a um mesmo segmento social no processo de interação, acabam
organizando a sociedade como um todo ao negociarem interesses com o intuito de
se administrar o próprio patrimônio individual material ou imaterial. Dentro deste
processo, a sociedade vai sendo levada a se dividir e se especializar devido às
próprias circunstâncias em que se organizam, ou seja, a vida em sociedade passa a
se organizar a partir das estruturas do todo social, que passa a impelir ou, de acordo
com Durkheim (Idem), coagir o indivíduo para que este aja de acordo com as regras
institucionais pré-estabelecidas e possivelmente pós-estabelecidas neste contato,
assim como o autor nos revela nesta passagem:
Quanto mais os membros de uma sociedade são solidários, mais
mantêm relações diversas seja uns com os outros, seja com o grupo
5
Tróia, direção de Wolfgang Peterson, produção: Warner Bros. Pictures, Radiant Productions, Plan B Entertainment.
Ano: 2004.
tomado coletivamente, pois, se seus encontros fossem raros, só
dependeriam uns dos outros de maneira intermitente e fraca. Por
outro lado, o mero dessas relações é necessariamente
proporcional ao das regras jurídicas que as determinam. De fato a
vida social, onde quer que exista de maneira duradoura, tende
inevitavelmente a tomar uma forma idêntica e a se organizar, e o
direito nada mais é que essa mesma organização no que ela tem de
mais estável e de mais preciso (DURKHEIM, Ibidem; p.31, 32).
Essas regras estabelecidas a partir do social impedem que ações
espontâneas venham a tomar conta da sociedade configurando-se no que Durkheim
(Ibidem) classificaria como anomia. A sociedade portanto, de acordo com Arendt
(2007), passa a excluir a possibilidade de ação, que segundo a autora é proveniente
do lar dostico. A ão é substituída por comportamentos esperados, guiados por
inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a normalizar os seus membros,
abolindo-se assim o que a autora chama de ação espontânea.
Arendt (idem) alerta que, para o advento da economia doméstica (interesses
privados) à esfera pública traz consigo o desejo de devorar as esferas mais antigas
do político e do privado, bem como a esfera mais recente da intimidade. Durkheim
(1999) também antecipa esta questão e se refere ao Estado como solução última
para frear possíveis desvios no funcionamento do todo social. Ainda para Arendt
(2007) a divisão do trabalho é precisamente o que sucede à atividade do labor nas
condições da esfera pública e que isso jamais poderia ocorrer na privatividade do lar.
Acontece, porém, que esta nova esfera que ascende nos primórdios da
sociedade industrial, dilui, ou mais precisamente tornou tênue a divisão entre o
público e o privado. O espaço público transforma-se no mundo do comum, onde
conviver no mundo significa ter um mundo das coisas interposto entre os que nele
habitam em comum (ARENDT 2007; p 62). Este mundo do comum é também
revelado por alguns autores como Baudelaire (1996); Benjamim (1994); Giddens
(1991), em que a era moderna fica sendo o mundo do tangível, do desencantamento
(WEBER 2004). Nesse contexto, só o que depende da permanência, o que deve
ultrapassar as fronteiras das gerações, nas palavras de Arendt (2007), seria a
existência da esfera pública e a subseqüente transformação do mundo em uma
comunidade de coisas que reúne os homens e estabelecer uma relação entre eles
(Idem; p 64) e é somente o caráter público da esfera pública que pode dar brilho e
preservar através dos séculos as atividades do homem.
Os cruzamentos são antes espaços públicos. Quando os personagens dos
sinais aparecem trazendo suas vidas e suas práticas, cruzando suas particularidades
da vida intima, o espaço vira lugar. Um lugar praticado por personagens e histórias.
Um lugar onde se reflete o econômico e o antropológico da sociedade que o contém.
O termo esfera é bem sugestivo para acompanhar o termo público. Uma esfera
não tem cantos, não tem como se esconder. Do mesmo jeito é o que deve ser
entendido como público, como o que se torna blico, vem à tona, se mostra, se
revela. Isto é a política do social, o que faz enrijecer laços, o que torna um
aglomerado de indivíduos num espaço, um povo com identidade e cultura. Como nos
lembra Rousseau (1995), em paralelo à afirmação de Aristóteles (2002) de que o
homem é um animal político, para Rousseau (1995), o homem só se torna um ser
político se este estiver caracterizado como ser social, se estiver adentrado no
que seria a esfera social que se glorifica no espaço público.
Em todos os locais, podemos pronunciar alguma opinião a respeito de algo,
porém é só no espaço público (LEITE 2004), construído a partir das interfaces entre
os conceitos de esfera blica da qual retira a categoria ão, que as ações
demarcam lugares e ganham sentido público. As práticas interativas emprestam
sentidos aos lugares que, dado sua configurão, também estruturam essas ões.
Estes lugares se desenham como uma espécie de “lugar praticado”, expressão
trabalhada por Certeau em A invenção do cotidianoonde o autor trabalha tamm
com o conceito de tática para que se constitua em maneiras de fazer pelas quais os
usuários se apropriam e reapropriam do espaço. Este que pode ser também o “lugar
antropológicode Augé (1994), aquela construção concreta e simbólica do espaço
que não poderia dar conta, somente por ela, das vicissitudes e contradições da vida
social (p. 51), que precisa da atividade humana para ter sentido.
O espaço público, local que é visível aos olhos de todos e que revela aspetos
do que pode ser exibível, como revela Arendt (2007), é o que abriga a esfera pública
e esta se diferencia, pelo menos de forma mais clara, nas sociedades pré-industriais,
onde o que deve ser ocultado é o referente à esfera privada, local que, segundo a
autora, foi vasculhado na era moderna, dada a sua grandiosa importância. Foucault
(1979) vê que essa esfera, oculta da vida humana na era moderna, foi sendo vigiada
e, aos poucos, a sociedade foi criando mecanismos de controle cada vez mais
aprimorados. Fato este que o autor considera característica de uma sociedade
permeada por relações de poder e controle.
A torre de Bentham, da qual Foucault tira como exemplo para trabalhar com a
noção do olhar panópticon, o olho que tudo , traz para dentro da esfera pública
segredos e intimidades a fim de serem normalizadas para um maior controle do que
antes citamos como sendo ão. Tomamos como exemplo de uma torre de Bentham
moderna, uma torre de observação da polícia militar construída no espaço dos
cruzamentos entre as avenidas Raul Barbosa e Murilo Borges, local onde, após
muitas práticas de assaltos e assassinatos, virou um lugar de “extremo risco”
segundo as autoridades.
Foto: Marcilio Façanha. Torre de observação da polícia militar do Ceará no cruzamento
das avenidas Raul Barbosa com Murilo Borges
Os espaços que se tornam públicos, lugares de práticas humanas, se
entregues completamente aos mecanismos de controle social, podem ocasionar o
fenômeno do conformismo que só é possível na sociedade, onde o comportamento
substituiu a ão (ARENDT, 2007). A massificação dos comportamentos, a
padronização, o pensamento único, a intolerância e a falta de reflexividade são
características sistematizadas através do controle total sobre o publico e o privado,
deixando este último a mercê das arbitrariedades públicas, como aconteceu na
Alemanha hitlerista da qual tratou Arendt (1991), em: As Origens do Totalitarismo.
O espaço público necessita das atividades humanas, que embora transcenda à
vida de um ser humano em si, existienquanto for praticada por estes homens.
Este espaço, enquanto respeitar a condição de individualidade dos sujeitos, os
segredos, a parte oculta, as táticas distintas, não ocasionará o desequilíbrio social
que gerou e continua gerando sistemas intolerantes de vida.
O espaço dos sinais é público, é lugar, é esfera e traz ações aos olhos de todos.
É lá que parcelas que se encontram nas partes mais obscuras das páginas de jornal,
entram em contato com o corpo social em movimento. Todos, governador, prefeito
(a), políticos em geral, empresários, professores, estudantes, bancários etc., em
algum momento, passam pelo espaço dos sinais, passam pelos sinaleiros, passam
pelo mercado fugaz dos cruzamentos urbanos. eles se cruzam. O vendedor de
castanha, o flanelinha, o mendigo, o malabarista que olha para você, e com esse
simples gesto é dito: “eu estou aqui”. Agora esses personagens fazem parte mais
claramente do jogo. Não são mais apenas números que preenchem estasticas
diversas, agora estão à vista. Não como esconder o que transborda, e o que
transborda ocupa novos espaços para escoar e ecoar seu grito. O mercado, na
perspectiva de quem está na rua é o próprio espaço praticado. Quem chegar
primeiro no espaço o pratica, vira lugar, e, quando não práticas de lugar, volta a
ser espaço. A ação o transforma e no mundo informal são muitas as possibilidades.
Trouxemos neste tópico as discussões sobre urbano”, “espaço”, lugares” e
público, lembrando ao leitor: enxergar o espaço dos sinais, assim como os sinaleiros,
não escapa à ligação, entre esses temas e o que ocorre na dinâmica do sinal. É uma
parte do todo, que traz o todo, em sua parte que está no sinal.
As considerações que fizemos a respeito do espaço urbano e espaço público
irão nos ajudar a interpretar melhor o que se passa em locais, onde ocupações
conflitantes entre realidades distintas como é o caso dos personagens dos sinais.
Como destaca Leite (2004, p. 23):
a distinção entre espaço urbano e espaço público pode ajudar a
reconhecer quando estamos lidando com uma simples configuração
espacial da cidade e quando podemos estar diante de lugares. Por
lugar, estou entendendo aqui uma determinada demarcação física e
ou simbólica no espaço, cujos usos o qualificam e lhe atribuem
sentidos diferenciados, orientando ações sociais e sendo por estas
delimitado reflexivamente.
Os sujeitos da pesquisa dos semáforos que ocupam os espaços, os tornam
praticáveis e impõem limites simbólicos que podem levar as severas punições para
quem os ultrapassa. Ainda de acordo com Leite (Idem), um lugar é sempre um
espaço de representação, cuja singularidade é construída pela “territorialidade
subjetivada”.
2.4 O mercado é público assim com a rua também o é!
Flanelinhas, mendigos e vendedores ambulantes são agora desenhos certos
nas paisagens sociais de um grande mercado que se tornou a cidade. O mercado
que antes era restrito e circunscrito a casarões no centro da metrópole, hoje se
encontra em todo lugar, em qualquer praça, logradouro, ruas e cruzamentos. Ele é
“global”, termo que seria jargão se não estivéssemos nos referindo a um globalismo
total, o mercado é global não apenas em termos políticos ou macro-econômicos, mas
sim, em condições geoespaciais, como nos relata Santos (2007, p.22;23): “os lugares
tornam-se um dado essencial do processo produtivo, em todas as suas instâncias, e
passam a ter um papel que não tinham antes. A globalizão revaloriza os lugares.”
O mercado agora está em todo lugar. O mendigo que pegava os restos da feira,
na “feira do mercado”, que era no mercado mesmo, no local apropriado, agora pega
os restos em qualquer lugar, nas ruas, nos becos e nos sinais, pois este mercado
esem qualquer lugar, mas que, no entanto não é um lugar qualquer. Não saímos
mais de casa para ir ao mercado; ao sairmos de casa já estamos no mercado.
Outdoors, propagandas em carros de som, panfletos anunciando ofertas, a toda hora
pessoas querendo comprar, pessoas querendo vender e pessoas mendigando as
sobras dessas transações. O sentido da rua agora está além de ser o local da
realização política do homem privado, se tornou a realização econômica do homem
moderno.
Essa passagem do moderno em suas tramas de rua vem muito bem ilustrada no
filme “Luzes da Cidade”, dirigido, produzido e estrelado por Charles Chaplin. No filme,
o personagem de Chaplin, um vagabundo que ganha a vida realizando bicos pela
cidade encontra em uma esquina, Virgínia, uma jovem florista cega pela qual se
apaixona. Assim como a maioria dos personagens dos cruzamentos desta pesquisa,
a florista foi para as ruas na tentativa de ajudar na renda de sua família. Ela morava
em um quarto alugado com sua Tia desempregada e sem nenhum tipo de renda. O
filme data de 1931, e com ele Chaplin nos traz com maestria o reflexo da
urbanização industrial; a partir do título encontramos a metáfora da passagem das
trevas, das ruas escuras, para a luz artificial da indústria, as “Luzes da Cidade”.
Foto disponível no endereço eletrônico: http://www.cineplayers.com/filme.php?id=599.
Nosso personagem do sinal também é um homem moderno. O simples fato de
estar na rua pode significar “trabalho”, ação, dinamismo e muitos outros caracteres
que constituem uma cidade moderna. “Vagabundear na rua” é um termo que não
tem mais o mesmo sentido de tempos atrás, quando o mercado ainda era tímido e
vivia escondido atrás de muros e instituições. O Brasil, que carrega a insígnia de país
em desenvolvimento, traz no seu portfólio, queira ou não queira, o vagabundo, o
mendigo, o ambulante e flanelinha do sinal.
Por sua vez, os personagens do sinal, pelo menos em seus depoimentos,
parecem o mais se importar com os ditames institucionais que pregam a
necessidade de inserção no mercado de trabalho. Para exemplificar isso trazemos a
seguinte frase ouvida de um flanelinha no bairro da Parangaba: “aqui no sinal eu
ganho mais do que eu ganhava quando trabalhava de carteira assinada”. O mercado
não é mais do Estado e da burguesia dominante, ele é de qualquer líquido e
aventureiro ser efêmero; “qualquer” homem ou mulher que abraçou a livre iniciativa e
se ergueu diante das circunstâncias. Adeptos do termo popular “fazemos qualquer
negócio”, os personagens dos sinais se armam de sua liberdade e “metem a cara” na
janela do seu carro.
Eles não estão fora, eles estão dentro, forçaram sua entrada ou simplesmente
nem forçaram muito, saíram de casa e foram para as ruas, sem emprego, sem
dinheiro, apenas com seu corpo e voz. Observemos a transposição de alguns dos
depoimentos colhidos de flanelinhas nas ruas de Fortaleza num questionamento
sobre: “como você veio parar no cruzamento?” As respostas geralmente são
semelhantes a esta que ouvidas de Francisco Gomes, homem de 32 anos, no
cruzamento da avenida Treze de Maio com Avenida da Universidade: “tava sem fazer
nada, tinha um amigo meu que me chamou pra cá, eu arranjei o rodo a flanela e
vim tentar aqui né!”.
Em um sinal localizado no cruzamento das avenidas José Bastos com Costa e
Silva, um jovem de 19 anos relatou o seguinte: “depois que eu tive a minha filha eu
precisei me virar pra conseguir dinheiro, eu comecei a reparar os flanelinhas e vim
pro sinal e aprendi aqui mesmo. Foi o jeito, não tinha emprego pro nego agora eu
to aqui” Um outro informante, adulto, trabalhando mais de dois anos como
flanelinha, num cruzamento próximo ao terminal da Parangaba, acrescentou uma
preocupação familiar ao seu depoimento e também relatou sobre um encontro
inusitado que teve com um ajudante de oficina de automóveis:
num tem outra opção não, está nascendo meu terceiro filho e sou
eu que coloco as coisas em casa, às vezes da pra tirar pelo
menos, uns vinte reais por dia. Às vezes o nego tira até trinta [...]
uma vez um cara que era ajudante numa oficina de peças me
perguntou por que eu passava o dia aqui feito besta para apurar um
real, antes de falar eu perguntei a ele quanto é que ele apurava por
dia e ele me disse que apurava 15 reais eu comecei a rir e mandei
ele pegar um rodo e vir pro sinal que tinha mais futuro (Flanelinha, 29
anos, cruzamento das Avenidas Osório de Paiva com Avenida
Senador Fernandes Távora).
2.5 O momento da visualização - o que se revela nos sinais!
Foto: Marcilio Façanha 2009. Avenida Senador Virgilio Távora.
Lembramos que o termo “personagens do sinal categoriza dentro de
determinados parâmetros sujeitos praticantes do espaço dos cruzamentos das
avenidas ou ruas, em que um grande fluxo de carros obedecendo aos indicadores
de luz vermelha, amarela e verde dos semáforos, para praticarem atividades
relacionadas com o tempo em que estes carros estão parados e interagirem com os
condutores ou passageiros dos vculos motorizados.
Dentro desta categoria enxergamos os flanelinhas”, os malabaristas,
vendedores, de carro em carro (ou de porta em porta de carro), vendedores apenas
expondo seus produtos dispostos nas calçadas, sem o luxo de uma vitrine de loja,
mas que cumprem o papel de levar o passante a entregar-se a sedução do olhar.
Além destes, tamm pedintes suplicando por caridade e clamando por alguma
ajuda financeira e possivelmente outros ainda não observados. Falo da possibilidade
de haverem outros pelo fato de buscarmos o sujeito como personagem no contexto
da utilizão do espaço combinado com o tempo controlado” do semáforo, e sua
busca de interação com os motoristas. É por isso que atividades humanas realizadas
dentro do contexto acima explicitado poderão ser consideradas como ações de
“personagens do sinal”.
Nessa construção mudamos de um espaço de passagem e sem memória, para
um novo como nos revela Augé (1994, p.74): acrescentamos que existe
evidentemente o não lugar como o lugar [...] ele nunca existe sob uma forma pura;
lugares se recompõem nele; reações se reconstituem nele; as ascias milenares da
‘inveão do cotidianoe das ‘artes de fazer’”. O sujeito agora se encontra pensando
num processo idealizado. Sujeito e espaço caracterizados em um só. Agora é que
esperamos -lo. É que a cena se repete. É lá, daquele jeito que o imaginamos
que ele vai estar, nesse “espaço idealizado, sendo o sujeito deste espaço uma
escie de tipo ideal de personagem do sinal, com suas “falas” relacionais como a
esse respeito nos informa Augé (Idem, p 73): “o lugar se completa pela fala, a troca
alusiva de algumas senhas, na convivência e na intimidade cúmplice dos locutores”,
suas invenções signatárias, e suas trocas simbólicas. Com isso reconstroem e
forçam a interação com os viajantes e interferem na solidão da “supermodernidade”
nas grandes cidades.
Para entender esse espaço idealizado, basta observá-lo como lugar dotado da
capacidade de construir personagens e, ao mesmo tempo ser construído por eles no
momento de suas ações. Espo idealizado pela sua singularidade e condição inter-
relacional para com os demais agentes componentes de sua existência. Lugar que
segundo Augé (Idem) “se completa na fala, a troca alusiva de algumas senhas, na
convivência e na intimidade cúmplice dos locutores”.
Idealizar um espaço significa trazer à tona os seus caracteres que se encontram
dispersos no espaço e agrupá-los em um conceito totalizante. A cidade, por
exemplo, para ser reconhecida como tal tem que agrupar seus elementos dispersos e
constitutivos em uma rede de ralações sociais e espaciais que constituirá seu todo. A
compreensão das ações dos indivíduos no interior dos espaços integrantes das redes
de relação social, tem que emergir de um pensamento independente e também
imparcial. É preciso, portanto um esforço filosófico para tal compreensão. Os
filósofos, assim como nos revela Lefebvre (2001), trazem à tona elementos
elucidativos, agrupados à luz da teoria:
a obra da cidade continua e se concentra na obra dos filósofos, que
recolhe as opiniões e os conselhos, as obras diversas, que reflete
sobre elas numa simultaneidade, que reúne diante de si as
diferenças numa totalidade: locais urbanos no cosmos, tempos e
ritmos da cidade os tempos e ritmos do mundo [...] a cidade como
emergência, linguagem, meditação sobe a a luz teórica através do
filosofo e da filosofia. (Idem, p. 38).
Dentro dos espaços, as ações ocorrem carregadas de sentido, este, construído
na vida particular de cada sujeito, ou seja, vindo de fora do espaço, comum aos
demais e emprestando um novo sentido a dinâmica do interior daquele espaço.
Agora, observemos também a natureza das ações advindas de um campo de
sentido, absorvido da fusão entre uma motivação vinda do espaço exterior, ao do
ambiente do sinal e o sentido nascido da interação no interior entre os demais
componentes do “campo”, termo também trabalhado por Bourdieu (1998, p. 27), que
nos faz lembrar que “o objeto em questão não está isolado de um conjunto de
relações que o retira o essencial de suas propriedades”.
Notemos que o espaço é também idealizado por possuir a exclusividade de
construção do “tipo ideal” (WEBER 2001) de personagem, o personagem do sinal.
Acima afirmamos a hipótese de que os sentidos que geram as ões sofrem
influência do meio e este meio ao qual estamos nos referindo é específico. É o local
em que estão dispostos diversos agentes e construções simbólicas formadoras do
espaço idealizado. Como estamos trabalhando com a hipótese da construção e
reconstrução a partir de cada ação, ou seja, infinita enquanto houver ão no interior
do espaço, o nosso “espaço idealizado” é passível de sofrer modificações no que diz
respeito à compreensão dos sentidos.
É importante observarmos que existem caracteres sob um olhar despercebido,
na qual podemos perceber uma importância desproporcional na compreensão do
espaço ideal. Se tirarmos como exemplo o semáforo, é obvio que poderemos dizer,
que sem ele não haverá mais relações entre agentes organizados, pelo tempo que
conduz suas ações nos instantes do acender e apagar das luzes do semáforo.
Porém, não necessariamente por haver um semáforo em determinada rua ou
avenida, poderemos afirmar que um espaço idealizado dos personagens do sinal
ali. Da mesma forma, os demais caracteres (flanelinhas, malabaristas, pedintes etc.),
isolados do espaço deixam de ser personagens idealizados do sinal.
Nessas relações entre tipos dotados de sentido estruturalmente dialético,
conflitante, seres pensantes de seus atos, praticantes do espaço, encontramos sua
constatação como personagem no momento em que se externa o produto de suas
múltiplas interações. Aproximando-nos da observação da passagem do sujeito “em
si para o sujeito “para si” de Hegel (1983), chegamos a um esboço do espaço
Idealizado do sinal. No momento “em si”, ele ainda não absorveu nem tampouco
reconheceu suficientemente seu papel pessoal, não houve a compreensão de si.
Este é um momento inicial, ele ainda não agiu, está lá, espera ainda absorver as
engrenagens do espaço que irá proporcionar o combustível para o sentido de suas
ões. Sua revelação em ser para si será, portanto, assim como num processo de
revelação de uma foto, num local determinado, que diferente da foto, que só se
revela no escuro, acontecerá em meio a diversas “luzes”, onde ao invés de serem
externadas como numa fotografia, serão absorvidas pelos atores ou personagens em
questão e tamm absorvidas pelos que enxergam acontecimento naquele espaço,
onde o mesmo não é mais apenas lugar de passagem, “não antropológico”, ou
simplesmente “não lugar” e passa a ser um lugar de história ou como classificaria
Augé (1994): um “lugar”.
A política de utilização dos espaços passa a ser escrita no interior dos mesmos.
Os cruzamentos de vias de trânsito passam a ser lugares praticadosmerecedores
de reflexão por parte de intelectuais da sociologia e das políticas públicas, pois estes
espaços se fazem presentes na dinâmica das cidades e são elementos ativos de
interação social.
3. CRUZAMENTOS URBANOS E A SOCIABILIDADE DE UM PROCESSO
DESIGUAL.
As cidades, Brasil em particular,
adquiriram grande importância como
centro de relações socioeconômicas e
como espaço dinâmico e
heterogêneo, com origem no processo de
industrialização. O crescimento
desordenado das metrópoles brasileiras
provocou defasagem no atendimento das
demandas e necessidades urbanas, ao
não conseguir responder, no mesmo
ritmo, instalação da infra-estrutura urbana
e outros serviços necessários à
população. Fortaleza e sua região
metropolitana apresentam estes intensos
contrates, o que a caracteriza como um
espaço socialmente desigual (FREITAS
2008, p. 20).
Foto: Marcilio Façanha, Avenida Mister Hall com Humberto Monte.
No cruzamento das avenidas Treze de Maio com Avenida da Universidade,
conversei com ALS , adolescente de 16 anos que se encontrava à esperava do sinal
vermelho para atuar como flanelinha naquele local. Relembrando, os flanelinhas
o os que levam consigo um pequeno rodo combinado a uma esponja molhada,
alguns além do rodo carregam um reservatório com água. Sua ação geralmente é
rápida, o motorista para seu vculo devido ao sinal da luz vermelha do semáforo e
logo o flanelinha se aproxima, passa o rodo com a esponja molhando o para-brisa
(ação que é realizada muitas vezes sem a permissão do motorista), retira o excesso
de água e em seguida estende a mão pedindo um auxílio em dinheiro, utilizando-se
de frases como: “dá uma ajudinha aí pra completar a merenda”.
Em nossa conversa, ALS disse que ainda freqüentava a escola. Ele estaria
assistindo às aulas no turno da noite, porém quando perguntamos a que horas ele
costumava chegar e sair do cruzamento ele respondeu que chegava ao meio dia e
saía entre sete e dez horas da noite. Segundo o adolescente, ele está cursando a
sexta série, e na parte da tarde ganha alguns trocados no sinal para ajudar a tia que
o cria desde os dez anos de idade. A tia de ALS ganha apenas o salário mínimo
como aposentada, e o adolescente a tem como referência familiar. ALS disse não
querer mais ser um gasto dentro de casa, mora num cômodo sozinho, próximo à
casa da tia no bairro Bom Jardim. O nosso personagem resolveu dedicar seu tempo
nas tardes da semana para ir aos cruzamentos. Em nossa conversa ouvi sobre as
dificuldades que ALS enfrenta ali, o medo de ser assaltado por outros flanelinhas, o
desgaste físico e emocional que aquela atividade lhe traz, os sonhos que teve de
adiar etc. ALS gostaria de ser músico, até tocou em uma banda com colegas do
bairro Bom Jardim, onde reside, e sua permanência ali deverá ser breve.
Observemos um trecho de nossa conversa naquela tarde:
-Pesquisador: ALS, porque que tu trabalhas aqui no sinal, de flanelinha?
-ALS: é melhor do que tá no meio da rua roubando, aqui tô trabalhando.
-P: Já trabalhou de alguma outra coisa?
-ALS: Trabalhei com artesanato, trabalhei em padaria...
-P: Sabe fazer o que de artesanato?
-ALS: Eu fazia barco, furava açaí pra fazer colar, pulseira, trabalhei numa banda...
-P: Porque não deu mais certo esses trabalhos?
-ALS: Porque fica fraco. (a venda de artesanato) a gente o tem mais dinheiro
pra pagar. Aí é no sinal mesmo...
-P: O que você faz com o dinheiro daqui?
-ALS: Eu dou pra minha tia, pra minha avó me de comer; eu compro roupa pra
mim, pago o aluguel. Pra mim...
-P: Como você aprendeu a ser flanelinha?
ALS: Uns amigos meus trabalhava perto de casa, eu fui e me interessei e
comecei a vir mais eles...
-P: O que tua família fala sobre o fato de você ser um flanelinha?
-ALS: É melhor do que tá roubando por aí, né?
-P: Você tem vontade de fazer outra coisa?
-ALS: Trabalhar numa banda de pagode...
-P: Você toca é?
-ALS: Não eu era rold (o responsável por carregar e arrumar os instrumentos no
palco)
-P: Mas você não toca nenhum instrumento?
-ALS: Toco não, mas vou aprender a tocar violão...
-P: O que aconteceu com a sua mãe e seu pai, porque você não mora com eles?
-ALS: A minha mãe é viciada em drogas e o meu pai, pro interior com uma mulher
que ele arranjou...
-P: Você chega que horas aqui?
-ALS: Lá pras dez horas, doze horas...
-P: Quanto você apura por dia aqui?
-ALS: Vinte reais, trinta, cheguei a apurar até cinenta...
-P: Você vem todo dia, até no fim de semana?
-ALS: Dia de domingo eu não venho não.
-P: Por quê?
-ALS: Porque é o dia que dá pra me divertir
-P: Quanto você ganha por carro aqui?
-ALS: 25 centavos, dez, já cheguei a ganhar dez reais só de uma vez só.
-P: Esse pessoal que rouba no sinal é que tipo, como eles chegam? Você sabe?
-ALS: Tem uns que o flanelinha... tem uns que é vendedor,
-P: O que acontece depois que eles roubam? Vão embora?
ALS: Eles passam um pedacinho, depois voltam, continuam vendendo água de
coco...
-P: Você sabe onde eles costumam ficar?
-ALS: Ali perto do shopping (o shopping mais próximo do local em que estávamos é o
Shopping Benfica);
-P: Você gosta de ficar aqui no sinal? Você acha legal?
-ALS: É eu acho legal, ganhado meu dinheirozinho honesto...
ALS é um adolescente que participa agora do mercado da “guerra dos
lugares”. Assim como uma guerra em um campo de batalha vidas também podem se
perder na guerra urbana. Vidas que como numa guerra são contadas apenas em
números. O jovem que quer ser músico, pelo menos no momento em que está no
sinal, ainda não pratica sua arte preferida. Por entre carros, buzinas e ladrões, ALS
vai atrás do novo sentido que a vida lhe deu, um sentido que se mostra obrigatório, e
cada vez mais cedo é incorporado pelo ser humano, que ainda criança estende a
mão para alcançá-lo: o dinheiro.
Neste mundo do capital tempo é dinheiro e como MARX (2002, p.111) nos
leva entender as relações entre homens na sociedade capitalista vão se
transformando em relações entre coisas, entre mercadorias, como explicitado nessa
passagem: “o trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si
mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporção
em que produz bens”. Agora o que fazemos e o tempo em que vivemos correm
juntos com o ponteiro da fabrica moderna capitalista. A fábrica moderna capitalista
es em tudo, é líquida, é global, transnacional, multifuncional, não está mais
escondida atrás de muros altos, está agora embutido nas mentes individuais, o
homem é agora o próprio capital em desenvolvimento, e o tempo em que o se
aprende nada é um tempo que não serve à economia global. Hoje em dia, o tempo
que dedicamos a uma atividade nos dá fichas e informões sobre elas. Estas
informações lhe inclinam a continuar, todavia, no caso de ALS, a ação que ele
escolheu praticar e dedicar parte do seu tempo foi a de flanelinha nos sinais de
trânsito. A simples tarde em que ALS passa junto ao sinal pode levá-lo a ficar por
por muito mais tempo do que imagina.
Como já citamos em passagens anteriores, é como se ele adquirisse
fichas simbólicas que só valessem para aquele tipo de realidade. A linguagem
apreendida, as mandingas, o hábito e o conhecimento restrito ao ambiente, ou seja,
conhecimento advindo apenas da prática de rua, prende ALS numa teia que ele
mesmo vem tecendo, pelo simples fato de praticar essas ações e dedicar boa parte
de seu tempo apenas àquele lugar, como disse anteriormente; uma prática de
lugares”, um espaço transformado em lugar antropológico que vai se codificando na
ão do agente. Essa vida agora se tornou como algo natural, um habitus, uma
disposição incorporada, quase postural (BOURDIEU. 1998).
O que acontece com ALS revela também mais um aspecto que aumenta a
problemática dos estudos sobre os personagens do sinal: a pouca idade com que
esse personagem adentra neste ciclo. Vejamos o que ZALUAR (1994, p.17) nos
expõem em seu pensamento a respeito: “... não é mais possível para as famílias de
trabalhadores de baixa qualificação [...], prescindir da ajuda de seus filhos menores,
na formação da renda familiar. E isso os leva a sair do controle materno e procurar
meios e renda em biscates pela cidade junto com muitas outras crianças”.
Na realidade brasileira, País dito “em desenvolvimento”, um grande mero de
crianças e adolescentes se transformou em mão de obra doméstica e é no contexto
familiar que acontecem os primeiros atos de desrespeito às leis do estatuto da
Criança e do Adolescente; Lei Federal que prevê o amparo não apenas ao grupo
infanto-juvenil, mas tamm a família como um todo. Para alguns garotos, o lugar
onde deveria ser de proteção e educação, “a casa”, é agora apenas o lugar de
passagem, pois a “vida” está na rua.
O que temos é o fato de, muitos destes personagens que estão em busca da
sobrevivência nos cruzamentos de trânsito, o crianças que, como também nos
revela Graciani (1999, p.130), chegam a este meio “levadas muitas vezes por
parentes, irmãos mais velhos que procuram complementar a renda da família”, onde,
uma vez na rua, a criança coma a idealizar seu espaço e criar seu cotidiano em
torno desta busca pela sobrevivência:
a partir do momento que se está na rua, começa a delinear-se o
espaço vital pelo imaginário da criança, adolescente e jovem de rua.
Alguns encontram serviço no supermercado próximo, outros numa
construção civil, outros vão vender pequenas mercadorias (...) outros
inventam ou criam diversas formas de ganhar dinheiro, com
limpadoras de pára-brisa, guardadores de carros etc. (Ibidem).
Nosso trabalho, como funcionário terceirizado do município de Fortaleza no
cargo de Educador Social de Rua, nos auxiliou bastante na visualizão ulterior de
alguns destes personagens do sinal. Lembramo-nos do ano de 2004 onde
conhecemos dois irmãos, um com nove anos e o outro com apenas oito anos de
idade, ambos no cruzamento das Avenidas Costa e Silva com Pompílio Gomes no
bairro do Jangurussu, conhecido também como sendo o bairro que abrigava o aterro
de todo o lixo coletado no Município. Os dois garotos costumavam praticar
mendicância naquele local na época. Em visita a casa dos dois, conhecemos seus
pais e um irmão mais novo de um ano de idade. O pai dos garotos sofria de
pneumonia e estava impossibilitado de trabalhar. A mãe cuidava do filho mais novo e
tamm esperava a chegada de um novo bebê, estava grávida de cinco meses. A
casa era de tijolos sem reboco e continha apenas um vão onde havia uma cama, um
guarda roupa e um fogão. Recebiam a ajuda dos fundos de benefício federal para
famílias em situação de pobreza, o que hoje é chamado no Brasil de Bolsa Família, e
o restante da renda adivinha da mendicância dos dois garotos no cruzamento citado.
Essas são cenas comuns para quem trabalha junto às camadas menos
favorecidas em Fortaleza. Toda semana conhecia famílias com características
semelhantes e, como “Educadores Sociais”, só podíamos dar conselhos, registra-los
e incentivarmos as crianças a participarem dos projetos da prefeitura ou do governo.
O envolvimento emocional de um educador com a situação daqueles, a quem ele
assiste pode levá-lo a se indignar com o que está posto e incentivá-lo a se
movimentar, tentar algo que, de acordo com suas constatações, possa ser útil e que
não seja apenas um paliativo ineficaz para essas pessoas. Um comportamento de
indignação por parte de um Educador da área de assistência social pode levar a
choques com o raciocínio de instituições como a FUNCI
6
, por exemplo, órgão para a
qual trabalhamos por mais de dois anos e fomos convidados a sair, no ano de 2005,
justamente por conflitos de pensamentos – pensamentos contraditórios.
Neste contexto, voltamos à questão dos personagens do sinal, destacamos um
pouco da trajetória de mais três adolescentes, todos, personagens dos sinais:
-L. L.F, de 14 anos, que A mãe a abandonou quando ainda era bebê, indo embora
para o interior. Seus avós maternos a criaram, porém, quando a avó faleceu e o avô
casou novamente, L.L. F saiu de casa, pois não tinha um bom relacionamento com a
nova companheira do avô. Passou a viver nas ruas. Até o ano de 2008, a
adolescente morava nas proximidades do Terminal Lagoa, agora em 2009, vive nas
proximidades do Terminal da Parangaba, onde usa drogas, como crack e solvente.
-J. W. S. L., 15 anos - saiu de casa porque é homossexual e alguns membros
da família não aceitam. A mãe não se opõe à sua orientação, mas a avó e o tio
viviam entrando em conflito com o adolescente. Em relação ao pai, o adolescente
nunca conheceu. Depois de conhecer outros homossexuais e usar substâncias
entorpecentes como cola e solvente, J.W.S.L resolveu viver nas ruas onde é
explorado sexualmente. Mora na rua, nas imediações do Terminal Lagoa e do
Terminal da Parangaba.
-B. S. L., 16 anos - mora com a mãe e a irmã, o pai o abandonou quando ainda
era pequeno. Conheceu “Neguinho”, um adulto que mora no Terminal Lagoa desde
criança e por influência dele começou a usar drogas como solvente, cola crack.
Em comum alem do fato de todos terem menos de dezoito anos, serem
moradores de rua e todos usuários de droga, é que eles podem ser vistos no
cruzamento da avenida Pedro Ramalho com a rua Germano Frank. Em companhia
de outros adolescentes, crianças e aadultos, ocupam todos os sentidos das vias.
Por baixo de suas roupas é guardada uma substância entorpecente, em geral cola de
sapateiro e uma mistura de solvente com fragrâncias, o popularmente conhecido
“loló”. Em nossas visitas ao local (no total de quatro), não conseguimos conversar
com nenhum dos adolescentes que estavam, dado ao estado de entorpecimento
6
Sigla para: Fundação da Criança e da Família Cidadã.
em que se encontravam. Apesar de conturbadas, o conhecimento sobre essas
trajetórias ajuda a enxergar um pouco além do espaço sugerido.
3.1 Cruzamentos em jornadas urbanas
No campo dos cruzamentos urbanos encontramos sujeitos aproveitando o
cotidiano das ruas para construir sua vida, aproveitando brechas e sobras,
construindo seu labor em retalhos, bicos ou biscates” - termo conhecido também
como referente a um trabalho secundário, paralelo a outra atividade principal, que na
vida cotidiana vem se tornando cada vez menos secundário, e cada vez mais, o único
modo de sobrevivência de uma parcela da população fortalezense. Os biscates para
a realidade dos que o praticam também chamado “biscateiros”, pode ser considerado
um refúgio “tático”, assim como nas palavras de Certeau (1994, p.47) maneiras de
fazer do mais fraco (no caso o flanelinha, o pedinte, o menino malabarista e o
vendedor ambulante) sobre o mais forte”. O mais forte nesse caso seria: o espaço
da rua enquanto público e sujeito às leis da constituição, forte enquanto
representante máximo do todo social, esfera de coerção moral que inibe ou atiça
atos. Os biscateiros, flanelinhas, ambulantes e pedintes, não pelo fato de não es
previsto suas atividades e permanência “legalali, porém eles estão lá, praticando
ascias da arte de fazer, resistindo e se opondo agora com uma força produzida de
fora, do seu jeito, sua astúcia agora é tal como a métis grega, são agora
consumidores do espaço desenhando e impõem seu nome no moderno espaço das
ruas.
Consumir um espaço significa tamm adquirir uma vida cotidiana própria,
adquirir uma função, um papel, firmar sua identidade. A busca da sobrevivência
nestas práticas urbanas não deixa de salientar também essa busca individual que
trata do resgate do sentimento de identidade, e esse sentimento é, como destaca
Santos (2000, p.239): “é a consciência de si, é a soma da integração cognitiva, pelo
indivíduo, de elementos de informação que lhes são fornecidos nas relações com
seus diferentes grupos que pertença e perante o restante do tecido social”.
O sujeito que está, esperando o sinal fechar, espera também ser notado, não
pelos motoristas que o seus coadjuvantes diretos, mas por aqueles que deles
dependem, filhos, mãe, parentes. Mostram para o mundo sua ação e colocam seu
nome “à forçano que eles intitulam como sendo “trabalho”. Informais, efêmeros e
líquidos, sua permanência ali depende da suposta demanda, assim como leões
esperando a passagem da manada de guinús, os personagens dos sinais ficam na
espreita aguardando seu momento de agir perante a sociedade.
(Foto: Ana Celia dos Santos, Avenida Pontes Viera com Barão do Rio Branco)
O cruzamento é agora um lugar ocupado por atores com ões semelhantes
aos revelados por Diógenes (1998) quando esta autora se refere aos “bárbaros
modernos”, uma alusão a jovens personagens do mundo moderno, globalizado e
apartado, jovens que ultrapassam os limites da ordem social e reivindicam seu
espaço:
os ‘bárbaros modernos’ dos anos noventa, se não consegue
alterar os limites que os separam, que segregam, ‘invademo
‘lugar do outro criando novas territorialidades. Provocam as
suas aparições constantes nos semáforos, nos
estacionamentos, nas praças, nos shoppings, nos locais mais
aprazíveis para o turismo, numa curiosa interlocução entre a
ordem e a desordem (Diógenes Idem. p.51)
Para muitos, a jornada dos cruzamentos em vias de trânsito, o deslocar-se por
entre os carros, a prática da espera e ação na dinâmica do tempo do sinal de trânsito
começa de manhã. Assim como é para Daniel, vendedor ambulante que se utiliza
do espaço dos sinais, mais precisamente no cenário da Avenida Mister Hull com
Umberto Monte, nove e trinta da manhã:
-Pesquisador: Você consegue sobreviver apenas da venda no sinal?
-Daniel: Tem dia que dá, tem dia que não dá;
-P: Você gosta do trabalho no sinal?
Daniel: Gosto, tem bem uns seis anos que eu trabalho no sinal, só aqui eu
estou há quatro anos;
-P: Por que você escolheu este sinal?
- Daniel: Porque aqui é a saída de Fortaleza, tem muito carro, próximo às datas
comemorativas o pessoal viaja muito e passa por aqui. Fica mais fácil de vender.
-Pr: Você já trabalhou em outra atividade?
-Daniel: Já trabalhei de zelador com carteira assinada por cinco anos.
-P: Por que não trabalha mais de zelador?
-Daniel: Porque aqui é melhor, aqui ganha mais, vem quando quer, trabalha a
hora que quer;
-P: Almeja algum outro serviço alem desse de vendedor ambulante nos sinais?
-Daniel: Aqui eu já estou acostumado, pretendo ficar por aqui mesmo, até
quando Deus quiser;
Daniel vendia no momento da entrevista alguns objetos de decoração para
escritório e casa. Este vendedor não foi aos semáforos apenas para conseguir
dinheiro para sua sobrevivência, ele foi em busca de uma relação que o insira na
circulação moderna da cidade, ou seja, em busca de sua cidadania. Como no
sistema capitalista, a principal ocupação social se tornou a produção e o consumo de
bens (materiais e simbólicos), mercadorias em geral, e serviços que mantém a
circulação e produção desses bens em andamento, quem participa desse processo,
mesmo que de maneira informal, também se insere nos alicerces da cidade. Numa
entrada forçada, sem regulamentação por parte do Estado, mesmo assim, ele
carrega dali o sentimento de fazer parte de toda essa rede de consumidores da qual
fala CANCLINI (2006, p.72) onde: “vincular o consumo com a cidadania requer
ensaiar um reposicionamento do mercado na sociedade, tentar a reconquista
imaginativa dos espaços públicos, do interesse pelo público assim o consumo se
mostrará como lugar de valor cognitivo, útil para pensar e atuar, significativa e
renovadoramente na vida social”.
O campo da sociologia vem desde a Escola de Chicago (pioneira na parte
etnográfica voltada ao contexto urbano num âmbito inicialmente sociológico)
destinando seus esforços para a compreensão do que podemos chamar de
fenômenos urbanos, acontecimentos que se realizam em grandes centros
econômicos e densamente povoados. O que esta ciência passou a estudar diz
respeito a fatos que advém de aglomerações de diferentes tipos de pessoas,
crianças, jovens, velhos, homens e mulheres de diferentes etnias, diferentes raças e
credo em torno de um habitat comum a todos: a cidade. Para sermos mais precisos,
nos referimos às grandes cidades, locais privilegiados da realização do moderno - a
relação entre proximidade corporal e distância espiritual personificada no
comportamento blasé” (Frugoli Junior 2007, p.14). Este comportamento blasé é
característica do sujeito anônimo que é também parte da exatidão calculista da vida
prática, e como prática de defesa perante um movimento citadino intenso. Ele
desenvolve como destaca Frugoli Junior (Idem) o caráter blasé reservado,
insensível, indiferente, formando assim uma relação ambígua entre proximidade
corporal e distância subjetiva.
3.2 Eles eso esperando o sinal fechar, mas não para atravessarem a rua.
“Eles estão por toda a parte. Nos semáforos dos cruzamentos mais
movimentados da cidade, especialmente nos bairros nobres da
Capital.” Reportagem e Foto: Diário do Nordeste 20/03/2007.
Desde o início desta pesquisa, três anos, quando ainda tratávamos de um
personagem do sinal em particular, na ocasião, o que ficou popularmente conhecido
como “flanelinha”, conhecido assim, por andar com um tecido de algodão em uma
mão mais conhecido como flanela” e um pequeno rodo e um compartimento com
água na outra, não encontramos qualquer fonte que revelasse os primeiros esboços
de ão dos que hoje são chamados de “personagens do sinal” no espaço dos
cruzamentos. O semáforo, por sua vez, teve sua data de criação no ano de 1840 em
Boston
7
umas das cidades mais populosas dos Estados Unidos. Em fortaleza esta
invenção veio se instalar por volta da década de 1950 sob as ordens de Stephenson
Bezerra dos Santos, superintendente de trânsito do Estado do Ceará na época.
Porem, é fato que os espaços de cruzamentos de ruas e avenidas com grande
fluxo de veículos, vem sendo ocupados e redimensionados algum tempo, por
jovens, crianças e idosos que, como já dissemos, se aproveitam do fato de os
motoristas terem que seguir a regra de parar ao acender da luz vermelha. É fato
tamm que alguns motoristas chegam algumas vezes a quebrar esta regra ao
ultrapassarem o sinal vermelho para evitar pararem seus carros no cruzamento.
7
Sobre esta informação conferir o endereço eletrônico: http://www.portaldotransito.com.br/curiosidades
Porém, nos dias atuais, esta prática está bem mais rara devido à presença de
aparelhos eletrônicos nos cruzamentos, mais conhecidos como “foto-sensores”, que
tiram fotos das placas dos vculos infratores. O direito de ir de uns, te que
momentaneamente dar lugar ao direito de vir dos outros que estão em via
perpendicular, e um dos meios encontrados pelas autoridades de trânsito para evitar
a colisão entre veículos foi, a utilização do semáforo nos cruzamentos.
Entendemos a idéia que os carros são obrigados a parar, porém, a peça que
procuramos para encaixar em nosso quebra cabeça está em compreender o
processo que ocorre após isso. O processo de criação dos espaços dos personagens
dos sinais, ou seja, as implicações sociológicas, políticas e históricas que circundam
o ciclo do sinal. Afinal de contas, à função de evitar colisões e atropelamentos foi
atrelada à criação do espaço (tanto físico como temporal) para determinadas
pessoas, possibilitando-as de interagirem, oferecerem serviços de limpeza de
parabrisa, como no caso dos flanelinhas; serviço de distração, no caso dos
malabaristas, serviço de venda, no caso dos ambulantes; e nenhum serviço direto,
mas pedido de auxílio por parte dos que praticam mendicância e, um outro não-
serviço bastante discutido nos noticiários: a prática de assaltos nos cruzamentos.
Eles estão esperando o sinal fechar, mas não para atravessarem a rua.
Acontecem encontros entre mundos, individualidades, classes, homens e mulheres
sem emprego formal, famílias inteiras ocupando lugar entre o meio fio e os vculos,
pobres, miseráveis e excluídos dos benefícios da sociedade moderna. Modernidade
que nos traz a busca pela compreensão racional dos fatos. Tamm traz no cerne de
suas relações, a efemeridade, como nos lembra Baudelaire (1996, p.25): “a
modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a
outra metade o eterno e o imutável”.
(Foto: Marcilio Façanha. Local: Avenida Pontes Vieira)
O sinal fechado, o moderno, um encontro pido e casual de instante não
programado dentro do tempo programado de um sinal, como o descrito na canção de
Paulinho da Viola, datada de 1998:
– Olá! Como vai?
– Eu vou indo. E você, tudo bem?
– Tudo bem! Eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro... E você?
– Tudo bem! Eu vou indo, em busca de um sono tranqüilo...Quem sabe?
– Quanto tempo!
– Pois é, quanto tempo!
– Me perdoe a pressa - é a alma dos nossos negócios!
– Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem!
– Quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí!
– Pra semana, prometo, talvez nos vejamos...Quem sabe?
– Quanto tempo!
– Pois é...quanto tempo!
– Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das ruas...
– Eu também tenho algo a dizer, mas me foge à lembrança!
– Por favor, telefone - Eu preciso beber alguma coisa, rapidamente...
– Pra semana...
– O sinal...
– Eu procuro você...
– Vai abrir, vai abrir...
– Eu prometo, não esqueço, não esqueço...
– Por favor, não esqueça, não esqueça...
– Adeus!
“Pegar o lugar no futuro”, essa noção de futuro e desenvolvimento, tempo
contado, cronometrado, dividido em passado, passado recente, presente, futuro
próximo, futuro distante, se encontra na vivência do homem pós revolução burguesa
e industrial de forma bem central. O tempo serve a quem? Este aparenta não ter
sua conjuntura tão coletiva como nas tibros descritas por ELIAS(1998)
3.3 O tempo dos sinais
O tempo, então corresponde a um espaço
evidentemente oscilante que contrasta peodo
de vida social num ambiente compacto (“...) e
disperso...” (MATTA 1997).PAGINA?
Um estudo sobre as relações de “tempo” encontradas nos espaços dos
cruzamentos, espaços que com o “tempo” vieram se modificando entre indivíduos
inseridos em sua idealizão, vivido e objetivado pela racionalização, transformados
em lugares pelos usuários. O tempo e o espaço combinados geram história. Aqui, o
ser, o tempo e o lugar são instrumentos sociais de fundamental importância para a
compreensão das ações humanas, aquelas que deixa rastros espaço-temporal, como
nos leva a entender Lefebvre (2001) existe a escrita da cidade, aquilo que se escreve
e prescreve em seus muros, na disposição dos lugares e no seu encadeamento, em
suma, ‘o emprego do tempo’ na cidade pelos habitantes dessa cidade.
Neste tópico, falaremos do “tempo” construído, aquele que não é apenas
factual, natural, mas inscrito. Assim como os desenhos rupestres identificaram o
tempo de gerações passadas, as ões praticadas no tempo presente mostram o
retrato de nossa cidade, de nossa civilização.
Se compararmos o mesmo espaço compreendido em datas diferentes, mas
precisamente no caso dos cruzamentos das ruas de Fortaleza (CE) em um espaço
de 20 anos, iremos constatar que houve muitas mudanças nas configurações sociais
e urbanas. Esta análise deverá nos indicar o tempo em que podemos ver nosso
objeto de estudo principal, que é o espaço dos Sinais de esferas sociais, divididas
entre personagens pedintes, trabalhadores, passantes etc.
Quando nos referimos aos tempos de agora queremos falar na verdade sobre
a idéia que se formulou a respeito do tempo e sua relativa importância dentro de
certos moldes para a cultura de uma sociedade que prima pelo controle das ações
que ocorrem no meio social. Os tempos de agora mostram sua realidade
concretizada em conceitos científicos, racionais e culturais.
A humanidade conviveu com muitos tempos, mas o das sociedades ocidentais
modernas, que tem Descartes como figura importante na implementação de
conceitos ditos “modernos”, mostra claramente sua face. Desemprego, fome,
poluição e vioncia, são fatos facilmente observados em noticiários do Brasil e do
mundo. Mas, o que isso tem a ver com o tempo e com os sinais de trânsito? Elias
(1998) nos mostra como chegar à idéia de tempo ao observarmos o relacionamento
de posições ou segmentos pertencentes a duas ou mais seqüências de
acontecimentos em evolução contínua. Ao estudarmos alguns comportamentos
sociais, dispostos em um determinado espaço de tempo de 20 anos (poderemos
situar o tempo de 1987 a 2007), por exemplo, o comportamento de jovens, crianças e
idosos ocuparem espaços públicos como o dos cruzamentos de ruas e avenidas para
pedirem dinheiro, agirem como “flanelinhas”, praticarem malabarismos em busca de
moedas, venderem quinquilharias etc., veremos uma tendência ocasionada por um
ou mais fatores que faz com que estes espaços venham sendo ocupados por um
contingente cada vez maior de pessoas.
Ações essas, que aparentam certo grau de normalidade no inconsciente de
muitos que passam direta ou indiretamente pela realidade dos sinais, pelo menos em
algumas cidades brasileiras (FAÇANHA, 2005). Afirmamos que estamos no tempo
que muitos estudiosos do mundo do trabalho chamam de informal; filósofos da
modernidade colocariam como um tempo “efêmero”, tempo de incertezas que beira o
caos, assim como dizem os anunciadores do fim do capitalismo”. Muitos são os
acontecimentos que levam as características que se repetem e formulam o que
poderíamos chamar de “fato social”, fato que também nos serve aqui como referência
temporal. registros de flanelinhas, no tempo situado nas ultimas décadas do
século XX depois de Cristo. o encontramos registros destes em nenhum lugar do
mundo que date de antes dos anos de 1980.
Utilizamos o exemplo dos Personagens dos Sinais”, porque podem
representar bem a relação dos fatos e acontecimentos característicos do período
atual. Estes se encontram num espaço referencial específico que é o “espaço do
sinal’ que colocamos também como “espaço ideal”“. Pessoas que pedem esmolas
podem ser observadas desde os tempos mais distantes, podendo encontrar
referência nos estudos de diversos autores que tratam das desigualdades entre os
homens. Mas encontrá-las dentro de determinados espaços que as tornam membros
integrantes de seu cenário, (referimo-nos à relação, espaço tempo) no “espaço do
sinal” consideramos ser um fenômeno recente, os pedintes agora tem seu local
apropriado na modernidade, ele é fixo, ele é determinado pelo tempo do sinal. O
espaço do sinal se tornou cenário, os cruzamentos com sinais leva-nos a imaginar
estes personagens como sujeitos, presos a uma realidade moderna, ou como trata
Auge (2004): ”surpermorderna”. Algo que num primeiro momento pode ser encarado
como simples, mas por outro lado o estudo do simples leva a libertarmo-nos do
simplismo, e o que seria relevante está também no ínfimo(MARTINS, 2000. p.12),
pois é na observação de um depoimento fato ou imagem cotidiana que a história se
desvenda ou se oculta (Idem).
Foto: Marcilio Façanha. Cruzamento das Avenidas Humberto Monte com Mister Hall
Então Maria da Conceição disse: “uma pessoa de idade como eu, como é que
vai conseguir emprego? eu já vou fazer cinqüenta anos !” Esta vendedora de
“toda
mudança no
espaço é uma
mudança no
‘tempo’ e toda
mudança no
‘tempo’ é uma
mudança no
espaço” (Elias
1998)
castanha e biscoito de goma já trabalhou como doméstica e tamm em fábrica de
castanha como “raspadeira” de castanha. Nenhuma dessas duas opções supera seu
faturamento nos semáforos que, segundo a personagem nos informou, gira em torno
de 30 reais por dia de lucro.
-Pesquisador: Quanto a senhora ganhava na fábrica de castanha?
-M. Conceição: Menos de um salário né, porque nessa época né!
Conceição veio para o cruzamento com uma amiga. Seu marido de sessenta
anos esdesempregado e costuma fazer alguns bicos para ajudar. Ela tem mais
cinco filhos, destes, dois trabalham em fábrica de castanha.
-P: A senhora é de Fortaleza?
-M. Conceição: Não, olhe, eu sou de Caucaia, pra você ver, olhe, eu sou de Caucaia
e venho trabalhar aqui! (Fortaleza, cruzamento das Avenidas Mister Hull com
Umberto Monte).
-P: Como foi a decisão de vir para o sinal?
-M. Conceição: a... foi porque muito tempo que eu vendia assim (...) de porta em
porta, nos bairros, aí eu achei melhor vir pra cá, a gente andava bastante né? E aqui
a gente pelo menos se movimenta. Mas éaqui né? E quando termina, o ponto do
ônibus já é mais perto, e andando de bairro em bairro é mais cansativo.
Com os 30 reais diários, com a venda de castanha, Maria já conseguiu reformar
sua casa, ação que o era possível quando ela era apenas assalariada. Um dos
sonhos de Maria da Conceição é conseguir, ainda com o dinheiro apurado nos
semáforos e mais com a ajuda dos filhos e marido, conseguir colocar seu próprio
comércio no lugar onde mora, município cearense de Caucaia, região
metropolitana de Fortaleza.
A relação de conceição com o trabalho nos sinais tamm é uma relação
temporal, assim como nos informa Matta (1997, p.34) “as unidades de tempo
podem ser visíveis como tal porque estão ligadas a alguma atividade socialmente
bem marcada”. O tempo se relaciona com Conceição, na medida em que ela vive o
tempo, em que pessoas como ela encontram lugar para adentrar no espaço
“efêmerodos cruzamentos. Lugar que, por motivos determinados, trouxe para essa
senhora a visualizão imaginária dos dizeres: permitido trabalhar aqui.
Houve o acúmulo de “tempos”, os que ela trabalhou em bricas de
castanha, vendendo de porta em porta, os que ela viveu em sua cidade e os
caminhos que ela traçou. Com a experiência adquirida em tempos atrás, Conceição
se realiza agora nos cruzamentos e nessa nova dinâmica de espaço-tempo, aonde o
tempo vai para bem mais além do que a simples compreensão do relógio, o espaço
se re-inscreve a cada volta do ponteiro.
Também a respeito do tempo, a frase de uma outra personagem é bem
reveladora, Eliane
8
, uma personagem que atua nos cruzamentos vestida com uma
fantasia de palhaço, relatou a opinião de sua mãe sobre o fato de ela ir ganhar a vida
nos sinais: “a minha mãe acha meio estranho, porque a minha mãe ela é muito
assim, do tempo antigo”. O tempo que nos referimos aqui é o tempo conceitual, o
tempo que vai além das noções de medida física. Adentramos no universo cultural de
sua construção, nos símbolos que dizem mais do que as horas do relógio. Tempo e
espaço aqui, são, de acordo com Elias (1998, p 80), símbolos conceituais de tipos
específicos de atividades sociais e institucionais. Eles possibilitam uma orientação
com referência às posições, ou aos intervalos entre essas posições, ocupadas pelos
acontecimentos, seja qual for sua natureza”. O tempo de Conceição e o de Eliane é
o tempo em que as personagens estão inseridas. Suas posições no decorrer do
cerio espaço-temporal da sociedade e suas localizações no território do qual fazem
parte nos dá o que podemos chamar de noção de tempo, e com isso, ao analisarmos
essas categorias em conjunto, tempo – espaço, podemos visualizar nosso objeto com
mais precisão.
8
Essa personagem será melhor visualizada no capítulo 4, tópico 4.5 que trata dos personagens que atuam no
sinais utilizando de fantasias que permeiam o imaginário coletivo, no caso, encontramos a figura do Papai Noel,
e a Palhaça Eliane.
4. RELATOS, IMAGENS E NOTÍCIAS - LOCAIS POR ONDE
PASSAMOS.
4.1 O cruzamento vira noticia
Não dá mais pra não notar, vira notícia, incomoda, esà vista, não tem como
esconder. Algumas fontes nos revelam que apropriação do espaço do cruzamento,
por alguns destes personagens do sinal, produzem certa tensão social entre, por
exemplo, flanelinhas e motoristas. Estes últimos se sentem incomodados pela
insistência dos limpadores. É isso que demonstra a reportagem do dia 15 de
setembro de 2005 do periódico Diário do Nordeste, que expôs a matéria cujo título é:
“Abordagem e insistência assustam os motoristas” e diz o seguinte:
Os segundos necessários para aguardar o sinal verde nas principais
vias de Fortaleza se transformaram em momentos de tensão e
estresse para a maioria dos motoristas”. O numero, o tipo de
abordagem e a insistência dos lavadores de vidros estão mudando
os hábitos dos cidadãos alem de fechar os vidros e acenar não
querer o serviço, quem guarde moedas temendo agressões ou
ultrapasse o sinal vermelho
Andar ou trafegar em algum veículo pela cidade de Fortaleza inclui também
correr riscos. locais considerados de “risco” pela própria Policia Militar do Estado
como o cruzamento da Avenida Padre Antônio Tomáz com a Via expressa, por
exemplo, onde na madrugada do dia 17 de outubro de 2006, a cientista social e
Reportagem:‘Flanelinhas’ vão ganhar chance de
sair das esquinas. Periódico: Diário do Nordeste.
30/01/2005 Fortaleza Ce.
Foto: Neysla Rocha
assessora da Coordenação de Políticas do Livro e de Acervos da Secult Secretaria
de Cultura do Estado - Andréa Havt Bindá, 38, morreu depois de levar um tiro no
peito durante tentativa de assalto. O cruzamento se tornou um ponto frágil de difícil
controle por parte dos órgãos responsáveis pela segurança. Hoje em dia avançar o
sinal vermelho após as vinte e duas horas é permitido tendo em vista o grande
número de assaltos a motoristas nos cruzamentos. A ligação desses acontecimentos
com os personagens picos de nossa pesquisa é quase que inevitável, pois eles
tamm atuam nesses espaços. No ano de 2005, a Secretaria de Segurança Pública
e Defesa Social (SSPDS), por meio da Polícia Civil, fez um cadastro de 138
flanelinhas em 38 cruzamentos considerados de maior risco na Cidade. Os pontos
críticos foram mapeados a partir dos dados resultantes do levantamento do mero
de ocorrências registradas na Cidade.
No dia 5 de outubro do ano de 2008, mais dois casos de violência nos
cruzamentos foram noticiados pela imprensa. Dessa vez, entre os próprios
flanelinhas que entraram em confronto pela disputa do espaço do sinal.
Mais uma briga entre ‘flanelinhas’ resultou em morte em plena
Avenida Bezerra de Menezes. No começo da tarde de ontem, no
cruzamento da avenida com a Rua Padre Anchieta, no bairro São
Gerardo, José Marcos Siqueira Gomes, 30 anos, matou um homem
que foi identificado apenas como César. Ele o atingiu com golpes de
gargalo de garrafa no pescoço.O crime ocorreu a poucos metros da
nova sede da Secretária de Segurança Pública e Defesa (SSPDS). O
acusado foi detido rapidamente por populares e, em seguida,
algemado por uma patrulha do Ronda do Quarteirão. Com ferimentos
na cabeça e nas mãos, ele afirmou que, os golpes foram fruto da
briga com a tima. O trânsito na Avenida Bezerra de Menezes ficou
engarrafado durante mais de uma hora. Curiosos se espremiam para
ver o corpo no chão. Perito do Instituto de Criminalística (IC) foram
até o local.O acusado foi levado para o 1º, DP (Elleri) pela patrulha
do Ronda do Quarteio. Na delegacia, José Marcos contou que
desde criança trabalha como flanelinha’ naquele cruzamento e que,
César, tinha chegado recentemente por ali e tentou tomar seu ponto.
Na delegacia também ficou comprovado que o acusado já tinha
outras passagens pela Polícia por uso de entorpecentes. José
Marcos confessou o crime e disse que sar estava tentando tomar
clientes seus no sinal e que por isso tinham brigado. “Ele me atacou
com o rodo. Então, peguei a garrafa e furei ele”, confessou.
Esse é o segundo crime envolvendo ‘flanelinhas’ no peodo de um
mês. O primeiro caso ocorreu no dia 14 de abril último, também na
Avenida Bezerra de Menezes, nas dependências da Churrascaria
‘Estilo dos Pampas’.Na ocasião, a briga entre os dois homens
resultou na morte de Daniel Ribeiro da Costa. Ele foi morto a bala
após discutir com um homem ainda não identificado pela Polícia. Os
homicídios estão sendo investigados pelos inspetores do 1º DP,
comandados pelo delegado titular daquela distrital Francisco
Braguinha de Sousa. Em praticamente todos os bairros da cidade,
‘flanelinhas’ brigam pelo domínio do espaço público. Muitos usam
armas.(Disponivelem:http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?
codigo=537633)
A reportagem traz nas entrelinhas uma espécie de lei silenciosa do tipo “eu
cheguei primeiro”, algo talvez influenciado pela lei de Newton de dois corpos não
poderem ocupar o mesmo lugar no espaço. O fato acima descrito pode nos levar a
refletir sobre um tipo de pensamento competitivo e individualista desenvolvido e
incentivado, principalmente no seio do mercado capitalista, que adentrou nos modos
de pensar do ser humano e o inclinou cada vez mais, na batalha egoísta e sangrenta
por conquistas. o podemos tratar aqui de instinto de sobrevivência rememorado. É
possível que não tenhamos aprendido a compartilhar nossa terra. Desde o início da
hisria do Brasil esta terra foi saqueada e tomada por aqueles que diziam “cheguei
primeiro” e tamm “trouxe as baionetas”. Não nos reconhecemos como irmãos de
pátria, o olhamos para a condição do outro como um compatriota. Pensando
nesse estado de guerra, Hobbes (2002) lança a seguinte afirmativa: “se dois homens
desejam a mesma coisa, portanto, ao mesmo tempo em que ela é impossível de ser
gozada por ambos, eles se tornam inimigose então precisaríamos de um leviatã
para evitar uma “guerra de todos contra todos”. O problema é que não Estado que
iniba o suficiente, àquele que vive às margens dele. As disputas ali eram por
dinheiro, por fregueses, por mercado, ou seja, pela reprodução material e simbólica
da vida. Os que agem fora da lei não tem como recorrer à lei para as resolões de
disputas como essa. A nenhum dos dois foi permitida oficialmente a ocupação
daquele espaço, porém as sociedades não são feitas somente de leis, também os
pactos silenciosos que as permeiam.
Nem tudo é tragédia nas reportagens sobre o espaço do sinal, pois lá também
os que encontraram lugar para desenvolver sua arte. A seguinte reportagem fala
sobre os malabaristas do asfalto. Na cidade de Natal, o jovem Wanderson mostra
toda sua habilidade ao acender da luz vermelha:
Nos cruzamentos da cidade, entre carros e flanelinhas, os toques
lúdicos dos malabaristas urbanos encantam motoristas que
aguardam a luz verde dos sinais de trânsito para engatar a primeira.
“A febre de manipular objetos circenses conquistou espaço e se
tornou uma das atividades preferidas de quem quer unir lazer,
concentração e, em muitos casos, ganhar uns trocados”. (Matéria
disponível em: http://www.overmundo.com.br/overblog/malabares-do-
asfalto).
(Foto disponível no endereço eletrônico: http://www.overmundo.com.br/overblog/malabares-do-asfalto)
As reportagens não se limitam só as cidades brasileiras. Não éaqui que
encontramos pessoas ocupando o espaço dos semáforos em busca de dinheiro. Em
Paris, conforme divulgado em um jornal de circulação nacional, foram vistos esses
jovens tentando ganhar a vida nos cruzamentos:
uma cena comum nas grandes metrópoles dos pses pobres e em
desenvolvimento começa a fazer parte também do cotidiano das ruas
de Paris. Meninos com uma escovinha e uma garrafa de plástico
contendo uma mistura de água e detergente passam o dia nos sinais
de trânsito da cidade para ajudar no sustento da família. Assim que
o sinal fecha, eles se dirigem aos automóveis -escolhem, em geral,
os modelos mais caros ou mais novos- e limpam o pára-brisa do
veículo, em troca de algumas moedas. O fenômeno surgiu a menos
de um ano em Paris e, embora a prefeitura não disponha de dados
oficiais, os lavadores estão presentes atualmente em pelo menos
quatro pontos da capital francesa: Clignancourt e Asnières, no norte
da cidade; Porte de Maillot, na porção oeste; e Vanves, ao sul. Os
locais preferidos dos lavadores de pára-brisa são sinais de tnsito
de grande movimento próximos à via periférica que circunda a cidade
(Maria disponível no periódico “Folha de São Paulo”, 28/08/00).
Título: “Flanelinhas chegam a Paris”.
4.2 No chão de asfalto
Numa manhã de sexta feira, chegamos ao cruzamento da Avenida Mister Hull
com a Avenida Umberto Monte, próximo ao Campus do Pici, da Universidade Federal
do Ceará, local que é tamm um dos principais locais de passagem para saída e
entrada de veículos na cidade de Fortaleza. Ali, avisto a imagem que mencionei
anteriormente como comum aos olhos dos passantes: pessoas esperando o
semáforo fechar, para oferecer o serviço de limpeza dos parabrisas dos vculos,
vendedores de flanelas, capa para celulares, castanha, capa para direção de
automóveis, animais de brinquedo etc. O personagem do flanelinha costuma se dirigir
diretamente ao motorista que em algumas vezes, de acordo com depoimentos dos
próprios flanelinhas, se mostra muito irritado para com a ação deles. A este respeito,
Diogo de 19 anos, flanelinha que atua nesse cruzamento, relatou sobre como alguns
motoristas se dirigem a ele: encosta no meu carro não filho de rapariga...”, frase dita
por uma motorista a Diogo que revela ter medo da reação dos motoristas: “já pensou,
vou limpar o carro do cara e ele esarmado?!”. Nesta visita ao cruzamento entre
as avenidas Mister Hall e Humberto Monte, verificamos práticas que podem revelar
um pouco de como vem sendo utilizado o espaço do sinal, mais precisamente em
seus “contra usos”, que são, assim como nos revela Leite (2004), ”transgressões nas
paisagens urbanas ao subverter usos esperados”. Diogo trabalhou como servente
de pedreiro em uma obra em torno de um shopping, que fica nas proximidades do
cruzamento em que estávamos. Em nossa conversa, o jovem com sua voz forte e
apressada revelou-se muito insatisfeito em está ali. Observe agora nas palavras do
próprio Diogo um pouco de sua rotina como personagens dos sinais:
-Pesquisador: Há quanto tempo você já está aqui no sinal como flanelinha?
-Diogo: Um ano.
-P: Por que você decidiu atuar no sinal como flanelinha?
-Diogo: Porque não tinha coisa melhor né?
-P: Você já fez alguma outra atividade?
-Diogo: Trabalhei no North Shopping de servente.
-P: Você ganhava quanto lá?
-Diogo: Ganhava setecentos por mês.
-P: Se aparecesse outro serviço de servente você vai pegar ou vai ficar aqui?
-Diogo: Qualquer serviço é melhor do que aqui.
-P: Em que você acha que poderia melhorar sua vida?
-Diogo: Só um emprego mesmo, de carteira assinada, tá bom demais.
-P: Você consegue apurar quanto aqui por mês ou semana, ou por dia?
-Diogo: Por dia, uns vinte contos.
Neste momento da entrevista, Elaine, uma jovem que iremos conhecer melhor
mais adiante repreende Diogo e diz:
-Elaine: Tu faz mais Diogo tu faz mais!
-Diogo: Dependendo do movimento o nego faz...
-P: Na hora que o sinal fecha você tem alguma preferência na hora de escolher o
carro?
-Diogo: Eu vou em qualquer carro, mas a minha preferência mesmo é os carro mais
velhos, os mais velhos são os que dão mais e os carros novo são os mais
trancados...
-P: E tem algum problema quando o vidro tá fechado?
-Diogo: É que o nego tem medo né! O nego limpa aí... encosta no meu carro não
filho de rapariga, aí eu digo não vem com ignorância que aquio tem ignorância
não, que a ignorância não leva pra frente não né? Já pensou, um "meganha" desse
te “esculhamba" e o cara tá armado? Ontem mesmo um chapa da gente, foi lavar
um carro, ele pastora carro de noite, aí os cara, só porque era da polícia, tava muito
doida, era ele mais três, aí pediu pro negão pra lavar o carro o negão foi, aí quando
ele lavou que ele terminou aí esperou , era umas três e meia para as quatro horas
(madrugada). Além de ter feito o negão lavar o carro sabe o que foi que o cara fez?
Ele não pagou, fez o negão tirar a roupa e apontou a arma pra ele e mandou ele
fazer carreira. Isso é coisa que se faça?
-P: Esse sinal aqui é bom para ficar?
-Diogo: É.
-P: Você já trabalhou em outro?
- Diogo: Eu tava num que tinha aqueles menino que fica com as vareta assim... como
é...?
-P: Malabarista?
-Diogo: É, malabarista. Eu limpava lá, e nesse dia era jogo do Fortaleza e Ceará,
tinha dois menino lá fazendo malabares , aí eles terminaram e aí foram pedir, o
cara abriu o vidro e atirou , matou todos dois...
-P: Matou? Por quê?
-Diogo: Matou, o ceará perdeu, ela tava com a camisa do time do Ceará (o
motorista), quando é dia de jogo se o time deles perde, eles querem agredir mesmo
agente...
-P: Qual é o principal perigo aqui pra vocês?
-Diogo: É o futebol da madrugada, se tiver na pista aí eles passam é por cima...
-P: Vocês têm algum pensamento de tentar se organizar aqui?
-Diogo: A gente já é organizado. Tem gente que diz que vai mandar não sei quem
pra tirar agente aqui do sinal, e que não vai ficar nenhum, mas se tirar é a mesma
coisa, se tirar agente volta de novo, só se matar a gente. Roubar eu num vou, a única
vez que eu roubei comi foi peia da COTAM, foi peia pra nunca mais
-Elaine: Ali naquele mato foi Diogo? Foi tu quem apanhou ali?
-P: O que você acha que leva uma pessoa a decidir roubar?
-Diogo: Não tem emprego né! Faz quanto tempo que eu tô aqui, já faz mais de ano.
-P: O que sua família acha de você trabalhando com flanelinha?
-Diogo: A minha mãe diz pode ir, não roubando né!
-P: O que você faz com o dinheiro daqui? Você consegue juntar? Compra alguma
coisa?
-Diogo: Jogo apostado.
-P: Você já tentou comprar alguma coisa pra você? Algo como som, televisão, sei lá,
bicicleta alguma coisa?
-Diogo: A bicicleta que eu comprei eu perdi, os "home" tomou, comprei num dia no
outro os home tomou, não tinha documento.
-P: O que você faz quando não está aqui? Algum lazer ou outra coisa?
-Diogo: eu jogo bola, jogo apostado sinuca...
-P: você bebe ou usa alguma droga?
-Diogo: o. Meu pai morreu só de beber cachaça.
Diogo afirmou ter ido atuar como flanelinha nos sinais por o haver “coisa
melhor”, mas em seguida afirmou que qualquer outro serviço era melhor do que estar
ali. Não ficou claro se ele não arranjou ou não procurou outro , o fato é que por dia a
quantia de vinte reais e a dinâmica “organizada” por eles nos semáforos faz Diogo
permanecer e sua saída dos cruzamentos deverá depender desta “coisa melhor”,
que porventura possa aparecer.
O espaço do semáforo é um mundo do qual seus usuários, ou seja, os
sinaleiros, enrijecem sua ação dotando-a de sentido, o que adm do dia a dia, do
contato com os outros sujeitos que se encontram na mesma situação, os que estão
ali. Sentido advindo também da resposta da sociedade, que chega em forma de
trocados. Os sinaleiros não mais reclamam apenas pelo fato de terem que se sujeitar
à pedidos de esmola para sobreviver, pois passaram a reclamar os maus tratos e
alertam sobre os perigos que correm ali. Reclamam como se fossem amparados por
alguma lei que regulamenta sua atividade e acreditam ser uma categoria organizada -
os flanelinhas, que se diferenciam dos demais personagens dos sinais, malabaristas,
pedintes e vendedores.
O mercado dos semáforos também requer uma grande circulação de
pessoas em seus carros. Os sinais procurados pelos sinaleiros são, geralmente, os
mais movimentados. Há, assim como Diogo afirmou, preferências por carros. Os
carros mais velhos, por exemplo, não possuem sistema de ar-condicionado, logo os
motoristas andam com os vidros abertos, fato que facilita a comunicação entre
sinaleiro e motorista. Dentre os que aqui nesta pesquisa chamamos de personagens,
havia naquela manhã de sexta feira de fevereiro, entre vendedores ambulantes e
flanelinhas, algo em torno de 17 pessoas redesenhando a paisagem dos
cruzamentos e introduzindo novas práticas ao uso “comum” ou “esperado” daquele
espaço. ões que, ainda de acordo com Leite (2004 p.25), estão “constituindo
lugares que configuram e qualificam os espaços urbanos como espaços públicos, na
medida em que os tornam locais de disputas, práticas simbólicas sobre o direito de
estar na cidade, de ocupar seus espaços de traçar itinerários, de pertencer, de enfim,
ter identidade e lugar”.
4.3 Cleiton e Elaine, o encontro no encontro das ruas
Entre os corredores da movimentada Avenida Mister Hall encontramos
Elaine, ex-moradora de rua, natural do município cearense de Quixadá. Veio morar
nas ruas de Fortaleza ainda criança, com nove anos de idade. Ainda aos nove anos,
Elaine sobrevivia da confecção de chapéus de palha na Avenida Beira Mar. Na
condição de moradora de rua, passou por alguns abrigos governamentais para
crianças e adolescentes que se encontram em situação de rua. Hoje, já com 22 anos
exerce a atividade de flanelinha junto com Cleiton, 30 anos, seu atual companheiro
que conheceu nos espaços dos cruzamentos de Fortaleza. Elaine já trabalhou como
empregada doméstica, atividade que lhe proporcionava o ganho de um salário
mínimo. Um dos principais desejos de Elaine é ser escritora, a jovem escreve em
seu caderno poemas e acontecimentos de seu dia a dia.
Para visualizarmos melhor as conversas que tivemos com esse casal, observem
então um pouco da transcrição do nosso encontro naquela manhã:
-Pesquisador: Você consegue sobreviver atuando como flanelinha no sinal?
-Cleiton: É, da pra sobreviver né, a humilhação é grande, mas...
-P: Já trabalhou em outra atividade?
-Cleiton: Já trabalhei de servente;
-P: Mas o que você prefere? Trabalhar como servente ou continuar nos sinais como
flanelinha?
-Cleiton: Prefiro ficar por aqui mesmo e ainda, às vezes, aparece um bico pro nego
fazer né, aqui acolá. Aí eu vou, eu largo aqui e vou pra lá.
-P: Você consegue apurar quanto de dinheiro em média aqui no sinal? (neste
momento sua companheira Elaine se aproxima e fica para acompanhar nossa
conversa).
-Cleiton: No dia melhor da trinta, vinte conto.
-P: E quanto é a media aqui por carro?
-Cleiton: Às vezes cinqüenta centavos, um real, dez centavos.
-P: Eles (os motoristas) costumam dar outra coisa além de dinheiro?
-Cleiton: Eu já ganhei comida, já ganhei roupa, eles dão sim, a gente ganha.
-P: A que horas você chega aqui no sinal? Elaine responde por ele: agente acorda é
tarde;
-Cleiton: Tem dia que a gente acorda cedo, tem dia que acorda tarde, a gente sai
à noite;
-P: Diga-me algo que aconteceu de ruim para você aqui no sinal?
-Cleiton: Muita coisa;
-P: Diga algo que você achou muito ruim.
-Cleiton: O ruim é quando a gente chega pra limpar aí puxam o revolver.
-P: Por que você veio parar aqui no sinal? Elaine responde por Cleiton novamente:
ele tá aqui desde os sete anos.
-Cleiton: Sempre fiquei aqui pela rua.
-P: Mas você tem casa ou mora na rua?
-Cleiton: Tenho casa;
-P: Você acha que alguém poderia fazer alguma coisa por você, para lhe ajudar?
Elaine responde: a gente só espera Deus mesmo;
-P: Mas vocês esperam alguma ajuda do governo, por exemplo? Prefeitura ou
Governo do Estado, algum político em particular?
-Elaine: Espero mais não, porque se for esperar, ave Maria...
-P: (para Cleiton) Você é casado?
- Cleiton: Sou, é ela aí. Respondeu apontando para Elaine.
-P: ( para Elaine): Você conheceu Cleiton na rua, aqui no sinal?
-Cleiton: Eu a conheci aqui.
-P: (você tamm era flanelinha?). Perguntamos para Elaine
- Eu trabalhava em casa de Família.
-P: os dois juntos aqui no sinal apuram quanto por mês então?
-Elaine: na faixa de uns 100 reais;
-P: os dois juntos? Por mês?
Elaine: não, só num dia só;
-P: entendi: em um dia os dois apuram cem reais!
-Cleiton: É não gastando né.
-P: O que acontece quando chega alguém desconhecido de vocês para ficar no sinal,
seja como flanelinha, pedinte ou vendedor?
-Elaine: se chegar um desconhecido aqui, os cara não for com a cara, bota pra sair
voado; por às vezes vem desconhecido, vem é muito, mas o vem pra trabalhar
vem pra roubar, aí suja, e por causa de uns todos pagam, a polícia chega, quebra
o rodo e mete a chibata, se alguém fizer alguma coisa errada aqui, se um fizer
uma coisa errada aqui todo mundo apanha. Uma vez ele aqui (um outro flanelinha
que se aproximou neste momento) foi limpar o carro de um gringo, ai jogou a água,
né, o gringo foi tirar a mão dele (do flanelinha) do carro ele puxou né. Então o
gringo foi lá na viatura e deu cinqüenta reais pro policial e o policial deu um chute na
perna dele aqui. Tem gente que faz é pagar os homens pra meter a chibata, pra levar
preso...
-P: vocês almoçam onde?
Elaine: almoça ali nas irmãs.
-P: onde é?
Elaine: é uma casa que tem aqui perto, das freiras.
-P: quando vocês precisam ir ao banheiro aonde vocês vão?
-Elaine: a gente vai onde nós dorme;
-P: Tem onde tomar banho lá?
-Elaine: a gente toma banho aqui mesmo, pega um balde de água e toma banho aqui
mesmo.
-P: vocês se sentem bem, atuando aqui como flanelinhas?
Elaine: eu não sinto não, é muita humilhação, o pessoal às vezes desce é pra bater
na gente, um monte deles já desceram já;
-P: Vocês acham que o que vocês fazem aqui é um tipo de trabalho?
-Elaine: isso aqui não é trabalho pra gente não, mas é muito melhor ta aqui do que
roubar, porque roubar é..., porque daqui pra lá você não sabe, você pode levar um
tiro, pode ir preso.
-P: (perguntamos para Elaine): quando você trabalhava em casa de família quanto
você ganhava?
- Elaine: ganhava um salário, mas não era de carteira assinada não.
-P: então você ganha mais aqui?
- Elaine: é a gente ganha mais que o trabalhador aqui no sinal; tem gente que pra
mais de dez reais (um único motorista).
Cleiton completa: não tem gente que não tenha pelo menos dez centavos né? pra
!
-P: como foi sua vida até você chegar aqui no sinal? (perguntamos para Elaine)
-Elaine: eu não sou daqui não, sou de Quixadá, eu sde casa, eu tinha nove anos
de idade. vim pra cá e ficava pela beira mar (trecho da orla marítima da cidade
de Fortaleza), trabalhava de fazer chapéu de palha, vender co, ... eu peguei e
deixei ! Fiquei pelo abrigo, lá no pólo (a jovem se referiu a uma casa abrigo
sustentado pelo Governo do Estado para crianças e adolescentes que estão em
situação de moradores de rua; hoje em dia o espaço tem o nome de Espaço Viva
Gente.) Fui pega pelos amarelinhos (funcionários do Governo que encaminham
crianças e adolescentes que se encontram em situação de risco, para abrigos,
centros de saúde, etc.), fiquei pelas instituições né.
-P: o que você queria que mudasse em sua vida?
-Elaine: eu queria que Deus mudasse minha vida, eu queria sair dessa vida, arrumar
um emprego melhor, fixo, ter a minha casa mesmo pra não morar na rua;
P: você acha que vai conseguiria sair dessa vida, que você diz sozinha ou você
precisaria de alguma ajuda?
-Elaine: Preciso de ajuda, NE? Alguém que fique ajudando...
-P: como seria essa ajuda?
- Elaine: assim, a pessoa dando a palavra pra gente, tipo uma igreja, a palavra de
Deus. Pode ser uma pessoa que é crente ou outra católica, mais que todo dia venha
pregando a palavra de Deus.
-P: vocês tem parentes ou amigos junto de vocês aqui no sinal?
-Elaine: só tem colega, porque na vida da gente, a gente não tem amigo não, amigo
da gente é só aquele lá de cima.
-P: o que as famílias de vocês pensam, sobre o fato de vocês praticamente viverem e
trabalharem aqui no sinal?
-Elaine: eu não posso falar da minha família porque faz quatro anos que eu vivo
com ele e não vejo eles, minha mãe faz nove anos que ela sumida, eu não sei
mais quem é...
-P: e teu pai?
-Elaine: Meu pai eu não quero saber dele não.
P: e a sua família, Cleiton?
-Cleiton: rapaz, a minha família vive em casa...
-P: Você se relaciona bem com eles?
-Cleiton: eu vou lá, dou a bença...
-Elaine: a mãe dele, a mãe dele é ruim, ela expulsa até os próprios filhos que tem,
ele aí teve um irmão que morreu de overdose de droga, vivia com desgosto da vida.
-P: o que vocês gostam de fazer quando não estão aqui?
-Cleiton: jogar bola, assistir televisão.
Elaine: ele aqui se impregna mesmo é no vídeo-game.
P: e você Elaine?
-Elaine: eu gosto mesmo é de escrever
P: escrever o que?
-Elaine: eu escrevo versos, poesias...
Podemos considerar o diálogo acima, um retrato falado dos personagens
Elaine e Cleiton, que juntos enfrentam a ferocidade dos corredores urbanos. Ambos
personagens das ruas, dos cruzamentos, fazem do ambiente urbano seu “habitat”.
Uma marquise, um estacionamento, um posto de gasolina, fixam residência no
espaço publico e em público. Em meio ao conturbado cenário urbano, Elaine
encontra tempo e inspiração para escrever e possivelmente preservar sua intimidade
em forma de versos. Abandonando a família, ou a família não podendo estar com
eles. Elaine sai de Quixadá e vem para a compartimentalizada Fortaleza. Passa a
ocupar abrigos institucionais e, posteriormente, enxerga a rua como seu habitat.
encontra Cleiton, a mão que a segura e traz de volta ao seu íntimo, que porventura
tenha sido abafado pela frieza da vida moderna e rápida de Fortaleza. Voltamos
outras vezes ao mesmo cruzamento, mas não conseguimos encontrar esse casal.
Sobre o paradeiro deles, outros personagens do sinal que estavam, informaram,
que eles devem ter migrado para outro espaço, mas não souberam informar
exatamente onde.
4.4 Francisco Lúcio “o garçom das ruas”
Avenida Treze de Maio com Carapinima, por entre carros, motos, ônibus e
pedestres, em frente a um conhecido shopping center da cidade de Fortaleza,
encontramos Francisco cio, de 36 anos. Ele não está de carro, moto ou ônibus
nem é somente um passante, ele é um personagem do sinal. Casado, pai de dois
filhos, trabalhou de porteiro em hospitais e condomínios residenciais e, atualmente
enfrenta o dia a dia nas ruas com uma bandeja de salgadinhos na mão oferecendo
seu produto ao preço de um real, aos motoristas e passageiros de veículos que por
trafegam. Por muitas vezes, a luz verde do semáforo acendia e Francisco ainda se
encontrava bem no meio da avenida concluindo a última venda daquele instante.
“Instantes”, trinta segundos é o tempo em que a luz vermelha acende e os carros
param, assim como numa esteira rolante de uma brica de produção Fordista, os
personagens, “operários das ruas” realizam seu trabalho escalonadamente.
As Ferramentas das quais dispunha Francisco eram seu corpo e sua voz. A
mercadoria eram alguns salgadinhos diferenciados embrulhados em sacos plásticos.
O valor do produto foi estipulado por ele a um Real, mesmo valor de outras
mercadorias como a água mineral, água de coco e pãezinhos de leite, vendidos por
outros personagens que dividiam com ele aquele espaço moderno que naquele
momento mais se assemelharia a um “chão de fábrica”.
Chegamos nesse cruzamento referido por volta das 16 horas de uma quarta
feira, buscamos captar os elementos de configuração da pesquisa durante mais ou
menos uma hora. Após esse tempo, escolhemos dentre todos os personagens
abordar Francisco, o vendedor de salgadinhos que me pareceu um dos mais ativos
do local. Ele parecia estar em vários lugares ao mesmo tempo; o vendedor de
salgados anunciava seu produto percorrendo uma distância de mais ou menos uns
50 metros em meio a três fileiras de automóveis. Já ao cair da noite, nos dirigimos a
Francisco numa tentativa de aproximão para conhecê-lo por meio de sua fala,
porém nessa primeira tentativa não obtivemos êxito. Num primeiro momento,
perguntamos qual era o preço de seus salgadinhos, ele atendeu de pronto: “só um
real, patrão, vai um aí, é da melhor qualidade”, mas quando nos identificamos como
pesquisador, Francisco relutou em dar a entrevista. Vimos que Francisco estava
apressado, queria vender seus salgados e aquele era um momento crucial para a
venda, pois o fluxo de vculos era muito intenso. O próprio Francisco relatou a
situação dessa forma: “eita, agora não , é a hora do rush, entende?Aguardei
mais um pouco e insistimos novamente. O depoimento de Francisco seria
importante, quisemos ir além do olhar blasé das grandes cidades, o olhar indiferente,
o lugar da relação do moderno que aproxima, mas torna tamm os indivíduos
indiferentes uns aos outros, o que Waizbort (2006) e Frugoli (2007) ressaltam como
sendo uma relação entre proximidade corporal e distância espiritual que culmina no
que estes autores tamm chamam de comportamento blasé.
Anunciando seu produto com sua voz rouca e apressada Francisco vendia em
média um saquinho a cada dois tempos de luz vermelha, o que lhe gerava uma
quantia diária de quarenta reais. Francisco revelou tamm que recebia um salário
mínimo quando trabalhava de porteiro, o salário mínimo hoje no Brasil essendo
calculado em R$ 465,00, se calcularmos o valor de quarenta reais diários
multiplicados por quinze encontraremos a quantia de seiscentos reais, ou seja,
trabalhando por apenas quinze dias no cruzamento, Francisco Lúcio recebe bem
mais que o salário de um mês inteiro caso fosse um simples assalariado. Francisco
tem como meta, construir sua casa própria para sair do aluguel, para tanto, segue no
sinal e espera alcançar seu objetivo trabalhando mesmo: “quero construir minha
casa própria, pois ainda moro de aluguel, a expectativa é dar uma vida melhor para
minha família”. Sobre alguns de seus companheiros de sinal, Francisco revelou-se
insatisfação com um determinado grupo, o dos pedintes, e relatou o seguinte: “o que
eu vejo aqui, que eu acho ruim é que tem muita gente aqui desocupado, que tem a
oportunidade de fazer alguma coisa e não tem essa atividade, prefere ficar pedindo,
então isso aí eu sou contra”.
Francisco ao ser interrogado, como ele se sentia em morar numa cidade como
Fortaleza, ele de pronto revelou: “olha a gente tem os motivos da gente em viver
numa cidade grande e tem que ter os cuidados porque, hoje a cidade tá muito
violenta, então a gente tem mais é que precaver, se cuidar, evitar de andar muito em
ruas desertas..., as coisas que vêm acontecendo assalto roubo e outras coisas mais”.
4.5 Personagens inusitados
Era noite quando em uma de nossas peregrinações pelos cruzamentos de
Fortaleza, junto com minha ajudante nestas pesquisas de rua, Ana Cecília, avistei um
senhor caracterizado de “Papai Noel”. Pedindo em um dos cruzamentos do bairro do
Benfica estava ENOCH, com uma grande sacola nas mãos, botas longas, um gorro,
um cinturão preto e uma enorme barba. O traje não era da cor vermelha como de
costume aqui no Ocidente. Enoch vestia uma fantasia verde, também não
esvamos em época de natal, mas Enoch, de 82 anos, parecia não se importar com
datas. Fomos até esta figura excêntrica, nos identificamos como pesquisadores e
relatamos sobre a pesquisa, depois disso, tivemos uma interessante conversa ali
mesmo no cruzamento:
-Enoch: Escute aí, coloque aí o significado da palavra E N O C H, é hebraico, quer
dizer dedicado.
- Pesquisador: O senhor já está a quanto tempo nos cruzamentos?
-Enoch: quinze anos. Em quinze anos, é o ano todinho vestido de papai Noel, é
verde porque é o original, aquela vermelhinha foi a coca cola que trouxe pra vender
coca cola, pegue uma latinha e veja!
-P: Por que o senhor escolheu essa cor de roupa, verde?
-Enoch: É porque o natal significa nascimento, luzes e cores, não importa a cor, eu
uso preto e branco que é o meu time, o Ceará, visto azul, vermelho que é o
conhecido tamm, verde e amarelo (...) e cada cor tem um significado, essa aqui,
verde, significa esperança de um natal feliz e tamm natureza, ecologia, o azul é
amor que você tem pra dar, o amarelo significa o ouro do Brasil e o vermelho é
sangue, muita guerra,..., num vê o Iraque batendo na Palestina? (...) e quando eu uso
cada uma eu mostro também que o natal é variado... O verde, por exemplo, é o do
primeiro Papai Noel, São Nicolau, ou Nicolas ,se quiser chamar.
-P: E o que o senhor quer simbolizar vestido de papai Noel?
-Enoch: , essa é uma pergunta maravilhosa, eu simbolizo o natal, o ano todo,
porque natal quer dizer nascimento e nascimento é todo dia, todo dia é o natal do
qual Jesus nasceu, e Jesus não nasceu no dia 25 de dezembro não, é mentira, Jesus
nasceu em treze de abril...
-P: Por que treze de abril?
-Enoch: Porque na época de Maria era obrigado a ir ao Egito, na cidade dela fazer o
recenseamento e era anual...
-P: O senhor é daqui de Fortaleza?
-Enoch: Eu nasci em Cascavel, mas me criei aqui.
-P: Por que o senhor pede dinheiro nos sinais?
-Enoch: o é pra mim, eu sou escritor, eu sou escritor de quinze livros, quinze
(enfatizou Enoch) não sou rico ainda porque eu não tenho um patrocinador que me
financie pra eu fazer todos os livros que eu queria...
-P: Por que o senhor escolheu pedir no sinal?
-Enoch: É porque o sinal é o lugar mais conveniente pra se pedir, e é o mais (...) eu
tô aqui, aí passam os carros, param... “o senhor ta ocupado hoje, não? Quer fazer um
evento, não?” Um nascimento um aniversário qualquer coisa (...) eu vou, aí eu ganho
cem reais a hora!
-P: aqui é o lugar de encontrá-lo?
-Enoch: Isso... Acertou na mosca! Esse aqui é o lugar que eu fico... Esse ou
qualquer outro sinal, o tempo que eu posso ficar que eu tenho oitenta e dois anos,
eu já cansado, nesses horários eu vou pra casa, mas se não, ficaria ameia
noite...
-P: O senhor passa quanto tempo por dia, em média, aqui no sinal?
-Enoch: Eu passo quatro a cinco horas, aí eu canso, eu to velhinho (...) vou pra
casa.
-P: Mas o senhor pede aqui nesse sinal?
-Enoch: Peço, peço em qualquer canto, peço, mas não é pra mim que eu não preciso
de dinheiro, eu peço é pras creches, pras crianças carentes, crianças famintas que
você sabe que o estudar nos colégios, os pais botam só pra almoçar merenda,
jantar merenda, porque não têm em casa nada, os pais não tem nada.
-P: O que você fala quando chega aos carros?
-Enoch: eu faço assim, eu estendo a mão e digo ‘me dê uma ajuda pras creches pras
crianças carentes’, dá quem quer, não é obrigado.
-P: Já aconteceu algo de ruim com o senhor aqui no sinal?
Enoch: Nunca aconteceu nada de ruim, me acontece de bom porque eu sou
abençoado por Deus e pelo Buda, porque eu sou budista, minha religião é budista,
porque o Cristo veio três mil ano depois do Buda, o Buda veio três mil anos antes,...,
depois foi que Deus lembrou de mandar o primogênito dele, Jesus, pra morrer na
cruz, e se ele voltar vai morrer de novo na cruz;
-P: Seus livros são sobre o que? Os livros que o senhor escreve?
-Enoch: Eu escrevo sobre (...) ah! Vou lhe dizer um, vou lhe emprestar, você me
devolve segunda feira, você passa aqui e me devolva, porque não tem, mas já
esgotou e eu to fazendo agora a segunda edição.
Neste momento da entrevista Enoch abre sua sacola e para nossa surpresa
tira um livro cujo título é “Esse mundo gay“. No precio do livro encontrei tamm
referencias a outros livros tamm de Enoch cujos títulos eram: Papai Noel”;
“Retalhos da Revolução de 1964”; “Falsas Lideranças”; “Corrupção Administrativa na
Prefeitura de Fortaleza, no CRC-CE e no CFC”; Urino terapia Medicina Alternativa;
“As Verdadeiras Lideranças do Ceará”. O livro em questão: “esse mundo gay” trata
de assuntos relacionados à homossexualidade de forma crítica e bem humorada.
-P: e por que esse título?
-Enoch: é lindo! O nome é lindo, o mundo não é gay, o mundo?
-P: mas o senhor gosta ou não dos gays?
-Enoch: Adoro gay, adoro! Adoro!
-P: Qual o grau de escolaridade do senhor?
Enoch: Eu fiz até a universidade de contabilidade (...) terminei, sou contador.
-P: O senhor é aposentado? Com quantos salários o senhor se aposentou?
-Enoch: Três salários mínimos, naquele tempo era dinheiro demais, dava pra tudo,
hoje em dia só dá pra dar por caridade, pra minha mulher.
-P: O senhor pretende ficar até quando atuando nos sinais?
-Enoch: Meu filho Deus é quem sabe, se Deus e o Buda me tirar do sinal hoje eu
termino o sinal hoje.
-P: O senhor tem algum sonho que não se realizou ainda?
Enoch: Tenho, é o Brasil prestar que nunca prestou, é o Brasil deixar de ser roubado
que nunca deixou de ser roubado, primeiro foi saqueado pelos portugueses, depois
pelos americanos agora é pelos países do mundo todo.
-P: O que a sua esposa acha do fato de o senhor vir para os sinais?
-Enoch: Meu filho eu já botei a minha esposa pra escanteiomuito tempo, eu ando
atrás é de outra...
Enoch não esna condição de ser considerado desempregado, também diz
não precisar de dinheiro, o contador aposentado demonstrou utilizar o sinal como
forma de aparecer para a sociedade. Enoch parece não ter se contentado apenas
com a produção de seus livros e botou a fantasia de papai Noel e foi, segundo ele,
para o melhor lugar da Cidade para se visualizar alguém, o cruzamento. O espaço
dos sinais chama Enoch a colocar uma roupa de papai Noel e sair de sua casa todos
as noites. Enoch fala com orgulho sobre o tempo que espor ali, “quinze anos, eu
já estou por aqui quinze anos”.
O que este homem tem em comum com os outros personagens? Podemos
arriscar, o fato de ele ver nos sinais o local em que poderá ser visto e se sentir ativo,
se mostrando para o urbano e gritando ainda estar vivo e querendo , consumindo o
lugar, se identificando com o social ao adentrar na esfera do blico, conversando,
interagindo, ocupando. Pano de fundo ou carro chefe, as criancinhas famintas de
Enoch preenchem seu discurso nos semáforos.
A entrevista com Enoch durou uns trinta minutos e foi feita no próprio
cruzamento. Enoch demonstrou satisfação em falar de sua vida e de seu dia a dia
nos semáforos, vez por outra ele parecia temer que a entrevista acabasse e dizia:
”pergunte mais, pergunte mais”. Quatro dias depois voltamos para o cruzamento da
Avenida Treze de Maio com Carapinima, no mesmo horário, na esperança de
encontrar Enoch novamente para lhe devolvermos o livro que Ele havia nos
emprestado e também podermos registrar o momento do novo encontro em
fotografias.
Logo que chegamos avistamos Enoch sentando próximo ao cruzamento. Ele
descansava um pouco e tamm conversava com um passante. Enoch quando nos
viu, sorriu e se mostrou muito contente. Enoch disse estar em busca de patrocínio
para publicação em larga escala de seu primeiro livro: “esse mundo gay”. Enoch nos
perguntou se poderíamos ajudá-lo, depois da conversa agravel que nós tivemos
quatro dias atrás, não podíamos negar ajuda a este Papai Noel verde. Fiquei então
de copiar um exemplar do livro para a mídia digital, mais precisamente oCD”.
Enoch ficou contente e disse que ia aproveitar e vender o CD. Perguntamos: vai
vender para alguma editora? Ele rebateu e disse: “que nada, vou é vender aqui no
sinal mesmo que eu ganho muito mais dinheiro”. Observe agora este simpático
Papai Noel e o livro que esse personagem apresenta com orgulho:
Foto: Marcilio Façanha: Encoh exibindo seu livro.
Em nosso segundo encontro, bem mais informal que o primeiro Enoch revelou
a quantia que arrecada nos sinais. Apenas no período de 16h00min às 19h00min
horas, Enoch disse conseguir arrecadar todos os dias a quantia de cinqüenta reais.
Fora isso, Enoch ganha também com festas particulares para as quais é contratado
para fazer a figuração de Papai Noel. O mês de dezembro é o melhor, segundo
Enoch, para sua “atividade paralela” de animador de festas. Este velhinho, escritor,
contador aposentado e papai Noel das noites do Benfica, contou já ter conseguido,
somente no mês do natal a quantia de doze mil reais, tudo devido a seu cacque
gira em torno de 100 reais a hora. Acreditando ou não, podemos até especular, bem
que ele representa com eficiência o estereotipo de Papai Noel, sua barba é natural,
fala muito bem e é bem velhinho, sua presença em festas natalinas, seria bem
conveniente, a quantia que talvez esteja um pouco alta pra acreditar!
Em um outro cruzamento e tamm se utilizando do espaço dos sinais como
vitrine, encontramos Eliane, com uma fantasia de palhaço. A personagem de 38
anos utiliza o espaço do cruzamento de tempos em tempos na esperança de ser
chamada para animar festas infantis. Assim como Enoch, o valor de seu cachê gira
em torno de cem reais. Eliane vai esporadicamente aos semáforos, segundo ela,
quando o “negócio em casa aperta”. O dinheiro que ela apura nos semáforos gira em
torno dos quarenta reais. A personagem diz ficar das 13h00min horas até as
18h00min horas no cruzamento, com uma bandeja de flores e fazendo algumas
performances para chamar a atenção: “às vezes tem umas crianças, eu brinco de
dar pirulito, elas dizem ‘é ela de novo, chama ela mamãe pro meu aniversário’
assim eu acho que eu sou uma empreendedora”
Eliane comentou sobre as benesses e os riscos de ser uma personagem do
sinal, dentre os riscos, o de ser atropelada é o que mais a preocupa. Eliane diz ter
sido testemunha do atropelamento de uma menina de nove anos que pedia em um
dos cruzamentos da Avenida Oliveira Paiva. Este fato levou Eliane a ir menos aos
cruzamentos, pois segundo nos informou, a imagem da menina atropelada vem
sempre forte em sua memória quando ela vai atuar no espaço dos sinais. Além
disso, Eliane também comentou o fato de ter que lidar com comentários do tipo: ”sai
do meio, a gente tá cansado, ainda mais uma otária dessa no meio do trânsito
vestida de palhaço”. Porém, de acordo com Eliane, também os que dizem
“maravilha, você é uma artista, isso é ótimo pra você”.
Foto Marcilio Façanha. Personagem Eliane no Cruzamento das Avenidas Washington Soares com Miguel Dias.
Em mais ou menos quarenta minutos de conversa identificamos mais pistas a
respeito do universo dos sinais. Na transcrição de parte do diálogo poderemos
enxergar um pouco dos bastidores do comércio “transitório” que preenche os
cruzamentos e nos faz identificar, cada vez mais, peças para formamos o desenho de
nosso mosaico sociológico, do qual nos referimos anteriormente.
Pesquisador. Como foi seu início nos sinais, por que você veio para cá?
Eliane: foi assim: eu estava com dois meninos pequenos e o meu marido tinha me
deixado, aí eu me desesperei. Um rapaz disse assim: ’por que tu num vai pro sinal?
Lá é bom. Então eu vim.
P: como foi seu começo nos sinais?
Eliane: a gente sente um pouco de vergonha, mas os outro tamm, e a
necessidade vem, e a gente logo acostuma.
P: quem foi esse amigo que lhe levou ao sinal? Ele também fica no sinal?
Eliane: é assim ó, esse rapaz é o Adnailton, eu considero ele um empreendedor, ele
tem os próprios empregados sendo dentro do sinal mesmo...
P. Como ele faz?
Eliane: é assim, ele trabalha por época, tem época que ele trabalha com fruta,
tipo... seriguela, aí ele pega a Kombi dele vai pra CEASA( Central de Abastecimento)
pega as frutas, coloca no caixote, vem, ele mesmo embala e para os próprios
trabalhadores dele, escondidinho pra ninguém vê, ele a bandeja a um real
pro trabalhador e o trabalhador faz o preço dele pra poder ganhar. Tem uns que
chegam a vender as mercadorias de um Real a três Reais. Nesse negócio alguns dos
que já trabalharam pra ele trabalham é por conta própria, eles mesmos vão pro
fornecedor e fazem tudo.
Eliane revelou um pouco sobre os bastidores do mercado dos sinais, mercado
esse que sobrevive, passa pelo tempo e o crivo dos cruzamentos não só geográficos,
mas, cruzamentos sociais. As práticas dos mercadores da rua o práticas que
ecoam de baixo, onde o chão de asfalto se movimenta e o universo da sociedade do
cotidiano desenha seu retrato. É o público que se movimenta e observa o avanço
das crises financeiras mundiais, do lado de fora da janela do carro. Obedecendo as
regra de compra e venda do mercado e buscando sua margem de lucro particular, o
vendedor autônomo dos sinais sobrevive ao tempo e aexpande seu negócio. O
homem na sociedade do capital se socializa na prática da compra e venda
ocasionada pela necessidade do consumo. Funciona agora uma escie de formula
de socialização, onde um dos caracteres da fórmula que serve para aproximão
social é o dinheiro. O dinheiro que separa quem tem, dos que não tem, também une
e de certa forma coloca tudo na mesma balança. Sobre esta função do dinheiro
afirma Simmel (apud WAIZBORT 2006 p. 156):
O dinheiro é comum’ por que ele é o equivalente para tudo e todos;
o individual é distinto. O que é igual a muitos, é igual ao mais
baixo dentre eles e com isso rebaixa também o mais alto ao nível do
mais baixo. Isto é a tragédia de todo nivelamento, que ele impulsiona
imediatamente para a posição do elemento mais baixo.
O dinheiro que circula nos sinais faz circular todas as outras peças que foram
postas no tabuleiro dos cruzamentos urbanos. Mais que o dinheiro, estamos
rastreando os sentidos envolvidos na dinâmica urbana de uma cidade nos tempos
modernos. As caras, as falas, os tempos, a rua, o lugar, o acontecimento, as rimas
como as de Fabiano nosso próximo personagem:
Foto: Ana Cecília dos Santos. Fabiano no cruzamento das Avenidas Pontes Vieira com Barão de Studart
Era uma terça feira de fevereiro do ano de 2009. Ao passarmos pelos
cruzamentos entre as avenidas Visconde do Rio Branco com Pontes Vieira avistamos
um flanelinha limpando e fazendo graça com os motoristas. Ele parecia fazer um
discurso diferente dos demais que só pedem; ele também pedia, mas, além disso, ele
soltava alguns versos na tentativa de conseguir seu objetivo. Ao perguntarmos a
quanto tempo Fabiano atuava nos sinais, ele responde: “parece que eu nasci foi
aqui”, Fabiano manifestou o desejo de publicar seus versos que disse serem muitos,
e ficou feliz quando lhe informamos que pelo menos esse que ele havia me dito
estaria exposto neste trabalho dissertativo. No momento da entrevista, Fabiano
estava atuando. Era por volta das 17h30min, só havia ele naquele sinal, muitos
carros passaram por nós e a cada luz vermelha, Fabiano ia ao sinal em busca de
suas moedas. Fabiano parecia já ter passado por problemas sérios como flanelinha,
quando lhe dirigimos a pergunta que geralmente fazíamos aos outros personagens
do sinal: me diga algo de ruim que lhe aconteceu aqui no cruzamento”, Fabiano
ficou calado e com um olhar de desaprovação disse:deixe pra é melhor não falar
disso não” e o que então aconteceu de bom. “... de bom é muito trabalho.”
“Olha, quando o He-Men se
transforma ele puxa a espada
das costas e aponta pro tigre
pacato chamado gato
guerreiro, agora no final
desse desenho agente
o tigre guerreiro transformado
em pacato, é legal ques
dois estamos calçados de
chinela e ela de sapato".
(Fabiano, o poeta flanelinha
do cruzamento das avenidas
Barão de Studart com Pontes
Vieira).
4.6 A barraquinha da esmola.
Seu doutô os nordestino m muita gratidão
Pelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão
Mas doutô uma esmola a um homem qui é são
Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão
É por isso que pidimo proteção a vosmicê
Home pur nóis escuído para as rédias do pudê
Pois doutô dos vinte estado temos oito sem chovê
Veja bem, quase a metade do Brasil sem cumê
serviço a nosso povo, encha os rio de barrage
cumida a preço bom, não esqueça a açudage
Livre assim nóis da ismola, que no fim dessa estiage
Lhe pagamo inté os juru sem gastar nossa corage
Se o doutô fizer assim salva o povo do sertão
Quando um dia a chuva vim, que riqueza pra nação!
Nunca mais nóis pensa em seca, vai tudo nesse chão
Como vê nosso distino mercê tem nas vossa mãos
(Composição: Luiz Gonzaga / Zé Dantas)
Em Fortaleza além dos pedintes nos semáforos também é comum à presença
de pedintes dentro de ônibus coletivos. Lembramos de determinado episódio em que
um homem subiu para o ônibus coletivo no qual esvamos e lançou a seguinte fala:
“peço a atenção de todos porque eu to desempregado, minha família morreu quando
eu ainda era criança e eu nunca tive oportunidade na vida, agora eu to aqui pedindo
a caridade de vocês por que é melhor eu vir pedir do que sair por aí roubando...” Uma
mulher sentada em uma cadeira atrás da nossa, abriu a bolsa e deu algumas moedas
para o rapaz, depois que o homem desceu do ônibus, ela justificou sua conduta
dizendo ter dado dinheiro justamente para que ele não fosse roubar e temia poder ser
uma futura vítima de assalto de homens como aquele.
Diante de uma afronta gratuita como a descrita acima, a atitude da mulher
poderia a ser enxergada como uma espécie de antropofobia, ou seja, medo da
sociedade, medo do homem. No entanto esse parece não ser um caso isolado. Para
Baumam (2007) os medos nos estimulam a assumir uma ação defensiva e a ão
defensiva confere proximidade e tangibilidade ao medo. Para ele, o processo de
globalização negativa vem tornando as pessoas cada vez mais vulneráveis a esses
medos, como explicita nessa passagem:
se a idéia de sociedade aberta era originalmente compatível com a
auto determinação de uma sociedade livre que cultivava essa
abertura, ela agora traz a mente da maioria de nós à experiência
aterrorizante de uma população heterônoma, infeliz e vulnerável,
confrontada e possivelmente sobrepujada por forças que não
controla nem entende totalmente; uma população horrorizada por
sua própria vulnerabilidade, obcecada com a firmeza de fronteiras e
essa segurança dos indivíduos que vivem dentro delas - enquanto é
justamente essa firmeza de fronteiras e essa segurança de vida
dentro delas que geraram domínio ilusório e parecem ter a tendência
de permanecer como ilusões enquanto o planeta for submetido
unicamente à globalização negativa. (BAUMAM Idem, p.13).
Ainda para Baumam(Ibidem), o medo agora se estabeleceu, saturando nossas
rotinas cotidianas; praticamente não precisa de outros estímulos exteriores, já que as
ões que estimula dia a dia fornecem toda a motivação e toda a energia que ele
necessita para se reproduzir. Com a vida humana cada vez mais individualizada e
compartimentalizada isolamo-nos tanto que o precisamos mais ir para ilhas
remotas do pacífico para encontrarmos “estranhos”. Mesmo assim, ainda que não
tenhamos certeza da reação do outro à chegada do estranho, não nos impelimos a
procurar conhecê-lo. O avanço da sociedade da informação levou para casa também
o medo. Casos de violência são divulgados de forma a causar choque na população.
Pudemos constatar isso pessoalmente em algumas viagens que fizemos a outras
cidades brasileiras. Quando desembarcamos em São Luiz do Maranhão, em uma
conversa rápida com um morador local, ao falarmos que morávamos em Fortaleza, o
homem fez uma cara de espanto e disse: “eita, essa cidade é violenta demais, é
muita violência, eu não ia aguentar morar não”. Perguntamos-lhe por que ele dizia
aquilo, e o homem respondeu que assistia aos programas policiais do ceará que
eram re-transmitidos lá, via - antena parabólica.
Nos cruzamentos de Fortaleza, uma, das cenas mais comentadas pelos
flanelinhas e outros personagens dos sinais, é a dos motoristas que fecham os vidros
dos carros quando percebem a aproximação deles. As notícias que relatamos
anteriormente sobre assaltos nos semáforos são apenas umas pequenas parcelas do
que saiu na impressa como um todo. A sociedade ocidental agora rege sua vida
por meros estatísticos, a polícia manda tomarmos cuidados e, paralelo a isso,
circula pela Cidade a informação, ainda não oficial, que seria permitido ultrapassar o
sinal vermelho, desde que em baixa velocidade, após as 22h00min horas.
Uma cena bem curiosa. Encostado ao meio fio entre os dois sentidos da
avenida padre Antônio Tomás, próximo ao cruzamento com a Avenida Virgílio
vora, identificamos um homem sentado em uma cadeira de metal, sobre a sua
cabeça um guarda sol típico de praia, além de um chapéu de palha e uns óculos
escuros. Havia também um vasilhame ao alcance dos motoristas que paravam no
cruzamento. Não houve vida, era um personagem dos sinais, com características
bem mais marcantes devido à parafernália que o cercava naquele “súbito
loteamento”. É visível a perturbação de nosso personagem, quando nos
aproximamos dele. Podemos perceber que fica um pouco intrigado. Talvez, no
momento da aproximação para a entrevista, achasse que poderíamos ser alguém da
prefeitura ou mesmo da polícia, querendo retirá-lo dali, mesmo nos identificando
como pesquisador, o homem continuou receoso e depois de um pouco de
conversa é que ele demonstrou mais calma, ficando um pouco mais à vontade com
nossa presença. Francisco tem 72 anos, ficou cego devido a uma patologia ocular
conhecida como catarata, já es a vinte anos nos cruzamentos de Fortaleza
praticando mendicância. Antes disso, Francisco foi agricultor em sua cidade natal:
Crato. Francisco mora na comunidade Verdes Mares, próximo ao Mucuripe, tem
muitos filhos, não revelou quantos, mas descreveu algumas características das quais
nos relatou com um tom de voz amargurado: "meus filhos são casados,
amancebado, tem um em casa que não faz nada, um é veado, ladrão e o outro toma
cachaça, usa droga, é a maior fuleragem...”.
É curioso, sabermos como este homem de setenta e dois anos, cego,
consegue ir para o semáforo carregando uma cadeira, um guarda sol e mais alguns
utensílios plásticos. Ao perguntarmos se alguém o ajudava na vinda para o
cruzamento, Francisco disse: “não. Olhe, eu fiquei cego dos dois olhos. (neste
momento o homem retira os óculos mostrando realmente em seus olhos os sinais de
cegueira) aí eu fiz uma operação e fiquei enxergando um pouquinho do olho
esquerdo,... eu mostro, às vezes o pessoal fala: ‘olha se fazendo pra pedir
esmola... eu mostro, eu fico de óculos porque é melhor do que ficar mostrando
né?”.
Ainda foi perguntado a Francisco, se ele ficava constrangido no início de sua
prática de mendicância no sinal e Francisco respondeu da seguinte forma: “vergonha
nada rapaz, quem é que tem vergonha disso, tem vergonha é de roubar, vai pedir
quem quer não é? Lembramos agora do personagem fictício Umberto Domenico
Ferrari, o Umberto D. do diretor Vittorio de Sica. Nesta história “Umberto D” é um
velhinho que é despejado de uma pensão por o poder pagar o aluguel. A história
se passa na década de 1950 onde a Itália passava por problemas pós segunda
guerra mundial. Humberto era um senhor da classe média que de um ano para outro
viu tudo que tinha se esvair. A se ver na rua, sem dinheiro vendeu o pouco que tinha
para sobreviver. Suas roupas, a mala que as carregava e alguns outros utensílios.
Humberto tinha como companheiro e único amigo, um cachorro vira-lata, Flick. O
dinheiro da venda de suas roupas logo se foi e Humberto, faminto, se viu numa
situação complicada. Sem dinheiro e nem perspectiva de arrumar emprego, o velho
solitário foi para uma esquina da cidade de Roma juntamente com Flick e arriscou
pedir esmolas. Colocou seu chapéu na boca do cachorro e ficou com a mão
estendida à espera da esmola dos passantes. Acontece que o orgulho de Umberto
ainda não tinha desaparecido por completo, quando o primeiro passante se
aproximou para entregar a moeda a Umberto, ele que estava com a palma da mão
virada para cima a inverteu e fez de conta estar observando se caia alguma gota de
chuva do céu. Francisco contou o ter tido problemas em aceitar a sua situação,
julgou os ladrões como os que deveriam se envergonhar e se mostrou bastante
insatisfeito em não receber mais esmolas do que recebia. Francisco também
informou ser católico, religião que por meio da bíblia, seu livro máximo, mais
precisamente no Novo Testamento, incentiva a prática de dar esmolas. No site
9
da
comunidade católica C.O.T. Comunidade Obreiros da Tardinha é informado o meio
para se viver os três elementos da espiritualidade "quaresmal": Orão; Jejum e a
esmola.
10
Não podemos afirmar aqui que Francisco decidiu ir às ruas por ser católico,
cego e supostamente miserável, mas o que queremos ressaltar é a naturalidade com
a questão da mendicância é praticada no Brasil e até respaldada em campanhas de
doações e etc. Para finalizarmos o encontro com Francisco perguntamos a ele qual
o sonho dele que ainda não havia se realizado:
9
Material on-line disponível em: http://www.cot.org.br/igreja/campa. php
10
Em algumas passagens bíblicas o incentivo a pratica de mendicância tamm é claro como
nas palavras do evangelho de Lucas: -Lucas capítulo onze, versículo quarenta e um: “antes dai
esmola do que tiverdes, e eis que tudo vos será limpo”.
-Francisco: “é enricar, enricar e ir para Porto Alegre e viver de mordomia”.
A dicção deste personagem tornou a conversa um pouco difícil de ser
compreendida. Algumas frases desconexas e faladas muito rapidamente foram
desafios para a nossa pesquisa e acredito tamm ser para qualquer pesquisador
que trabalha com relatos orais desta natureza.
Francisco. Cruzamento das avenidas Padre Antônio Tomás com Fernandes Távora).
5. Reflexões finais
Com algumas poucas exceções, os personagens dos sinais de trânsito que
contatamos para esta pesquisa são em sua maioria, homens e mulheres com baixo
vel de escolaridade, fora do mercado de trabalho formal. A maioria entre vinte e
trinta anos de idade e que nunca tiveram um emprego com a carteira de trabalho
assinada. Pessoas que nunca freqüentaram a escola ou largaram os estudos muito
cedo para tentar a vida nas ruas, praticando bicos, tentando ajudar no sustento de
suas famílias. Mais da metade dos nossos pesquisados, foi para as ruas ainda
criança. Atualmente, alguns com mais de trinta anos, ainda tentam angariar
dinheiro nos cruzamentos das grandes avenidas de Fortaleza. Segundo eles, de
moeda em moeda, conseguem levar para casa, a ajuda, que pelo menos fornece a
alimentação da família.
Expressões como: “estar aqui é melhor que roubar” ou “estar aqui é melhor
que não estar fazendo nada”, são expressões que ouvimos de quase todos os
nossos informantes no decorrer da pesquisa. O fato de estar desempregado também
é um argumento muito usado pela maioria para justificar a ida aos sinais. Houve até
informantes que revelaram também sua preferência em ser flanelinha, a ter que se
submeter a um emprego que pagasse apenas o salário mínimo.
Alguns de nossos informantes já constituíram família, fato que, segundo o
depoimento de alguns deles, influenciou na decisão de irem aos sinais de trânsito.
Seguindo uma rotina diária, chegam por volta das sete e meia da manhã e saem
depois das vinte horas quando o fluxo de vculos já diminuiu bastante. Quase todos
os informantes seguem essa rotina todos os dias. Já chegam com seus baldes,
rodos, mercadorias para revenda ou com a “fala da miséria”: “dá uma ajudinha
para comprar comida pros meus filhos...”, e aproveitam o maior número de carros
parados nos sinais, e aproveitam também que parte da população tem hábito das
religiões cristãs de dar esmolas, para conseguir o máximo de dinheiro possível.
Algumas vezes, são alvos de insultos por parte de motoristas e revelam que vez por
outra sofrem algum tipo de agressão praticada por policiais. Dentre estas agressões,
a mais relatada é o ato da quebra do rodo dos flanelinhas, onde policiais encostam o
cabo do rodo praticado na limpeza, na beira da calçada e quebram-no pisando em
cima.
“Os personagens do sinal de trânsito”, procuram sempre ir aos mesmos sinais,
na tentativa de garantir seu espaço perante os demais que freqüentam, a fim de
“construírem sua freguesia”. Essa ação contribui para ganhar a confiança dos
motoristas que sempre passam pelo local. A confiança também se conquista perante
todos, quando o novo freqüentador “não suja”, isto é, não comete furtos. Depois de
conseguirem o que consideram suficiente, para o dia, e enfraquecidos pelo
cansaço, eles voltam para o “seio familiar”, ou para a marquise que serve de moradia
e se preparam para um novo dia de luta pela sobrevivência nos sinais.
Perguntamos a essas pessoas sobre seus pensamentos, o que pretendem
fazer e o que esperam do futuro. As respostas foram: viver em paz, e ter saúde, ter
uma casa para morar e o que verificamos nas respostas como desejo da maioria, foi
a de largar a vida de mendicância nos sinais. Vida que, na opinião dospersonagens
sinaleiros” com quem trabalhamos, é humilhante. A mudança de vida para a maior
parte deles vem acompanhada do desejo por algum emprego de carteira assinada,
que daria uma sensação de maior segurança de vida. Alguns esperam a ajuda de
governantes ou ainda alguma ajuda de setores da sociedade civil. Outros pretendem
se qualificar e batalhar por emprego no mercado de trabalho, mas segundo
sinaleiros”, esta atitude se torna muito difícil se não impossível, devido à situação de
pobreza em que se encontram, e também o fato de necessitarem passar o dia inteiro
nos sinais para garantir seu sustento e ou de sua família.
Dentre os questionamentos da pesquisa, um deles busca revelar os motivos
que levam essas pessoas a recorrerem a atividades como limpar os vidros dos carros
de desconhecidos, que param apressados nos sinais - motoristas que algumas vezes
se mostram agressivos para com esses personagens que aqui apresentamos.
Dentro dos depoimentos colhidos vimos como um dos argumentos principais para a
ida deles aos sinais, é a necessidade de arrumar dinheiro para o sustento próprio e
da família. Nossos informantes dizem que não outra coisa a fazer e que estar ali,
seria melhor que entrar no mundo da criminalidade. entre eles a insatisfação com
empregos que, segundo alguns, não pagam o suficiente para se manter, para
conseguir o que julgam ser o mínimo necessário, como vestimenta e comida.
Neste momento não falamos de culpados ao retratar a crise, mas falamos de
pessoas. Pessoas como os flanelinhas; como os pedintes; as crianças desnutridas e
todos os que compõem a imagem de pobreza e miséria. Imagem real que, como nos
fala Forrester (1997), o sabem mais o que fazer com ela; o que fazer com as
pessoas que não servem mais ao capital. Um fato social, um caso tamm político
que segundo Genéreux (1998) fruto de decisões errôneas dos gestoresblicos.
Constatamos a luta dos que sofrem com a exclusão das benesses do sistema
social do capital, ou em outras palavras, aqueles que são excluídos das
oportunidades; oportunidade de ter uma boa educação ou de dar uma boa educação
para os filhos; oportunidade de ser atendido num hospital de qualidade; oportunidade
de ter diversas escolhas de lazer; oportunidade de escolher onde morar, o que vestir
o que comer, o que ouvir, o que comprar e de escolher como viver. Para todos os
que não tem, a “oportunidade de ter oportunidade”, ainda restam-lhes algo: a luta
pela vida, e continuam lutando, seja nos sinais, nas ruas, nas calçadas e onde existir
lugar que possibilite mantê-la.
Vimos no olhar, na expressão do rosto de cada um, um pedido de ajuda ou
pelo menos de “visão”. Verificamos nos sinais o somente a atividade de um
flanelinha, de um pedinte, de um ambulante, mas tamm uma reação silenciosa
ocasionada pela interferência da imagem daquela pessoa que se encontra suja e mal
vestida, muitas vezes sob efeito de entorpecentes, querendo interagir com um
representante do “clube dos cidadãos”, querendo limpar seu carro, lhe pedir um
trocado e mostrar o rosto. Aí estão eles:
Tá relampiano, cadê neném?
Tá vendendo dropes no sinal pra alguém
Tá relampiano, cadê neném?
Tá vendendo dropes no sinal pra alguém
Tá vendendo dropes no sinal...
Todo dia é dia, toda hora é hora
Neném não demora pra se levantar
Mãe lavando roupa, pai já foi embora
E o caçula chora pra se acostumar
Com a vida lá de fora do barraco
Hai que endurecer um coração tão fraco
Para vencer o medo do trovão
Sua vida aponta a contramão
Tá relampiano, cadê neném?
Tá vendendo dropes no sinal pra alguém
Tá relampiano, cadê neném?
Tá vendendo dropes no sinal pra alguém
Tá vendendo dropes no sinal...
Tudo é tão normal, todo tal e qual
Neném não tem hora para ir se deitar
Mãe passando roupa do pai de agora
De um outro caçula que ainda vai chegar
É mais uma boca dentro do barraco
Mais um quilo de farinha do mesmo saco
Para alimentar um novo João Ninguém
E a cidade cresce junto com neném
(Letra de Lenini e Paulinho Moska)
“Tudo é tão normal”, esse trecho revela que episódios como a ida de criança e
adolescentes aos semáforos, de tão corriqueiro se normalizou, pelo menos aos olhos
mais ligeiros da opinião blica. Não só crianças, mas a presença nos sinais de
personagens em geral, homens e mulheres das mais variadas idades, praticando
aquele espaço, vem, insistentemente, se construindo e abrindo espaço em nossas
mentes tornando o cenário como algo comum, ou pelo menos comum de aceitarmos.
Observamos um pouco aqueles que contracenam juntamente com os
personagens dos sinais. Os que dialogam simbolicamente com essa realidade e, os
que estão, pelo menos no momento da interação, dentro da sociedade civil
estabelecida: os motoristas, os cidadãos contribuintes registrados etc. O que
pensamos? Incomoda-nos? “com as pessoas que se oferecem para limpar o pára-brisa,
molhando-o antes da concordância do motorista, me incomodo bastante. Ambulantes não me
incomodam e, eventualmente, até compro algo: frutas, flanela, jornal, etc.” (P.P. L. C.).
No depoimento acima o informante mostrou não se preocupar com os
vendedores, inclusive compra produtos que são oferecidos no semáforo, que sob
esta ótica se assemelha aos serviços de drive inoferecidos em algumas redes de
lanchonete. Esse drive in dos sinais apassou por tentativas de organização, em
meados de 2004 o governo do estado tentou cadastrar os ambulantes que atuam no
cruzamento, distribuindo-lhes fardamento e cadastrando-os.
Os motoristas são como os próprios personagens dos sinais nos dizem:
“fregueses” do espaço dos sinais. Estão literalmente do lado de dentro. De dentro do
carro, da sociedade, dentro da lei e da ordem. Para ser motorista precisa-se de uma
identidade, de uma residência fixa, saber ler e escrever e estar psicologicamente em
“ordem, ser cidadão. No encontro dos semáforos ocorre o choque entre os que
estão e os que tentam estar, ou pelo menos forçam a sua entrada social pela “janela
dos carros. O motorista é também coadjuvante ou mais precisamente o mais
importante ator coadjuvante das histórias dos sinais. Lá estão expostos ao público e
mais vulneráveis frente aos acasos urbanos.
A tentativa de organização de alguns dos personagens dos semáforos se
mostrou em vão. O espaço dos cruzamentos é justamente o espaço do “avulso”, do
mercado do acaso, pode estar ou não. Os flanelinhas tamm passaram por
tentativas de cadastros nesta mesma época, porém como controlar o que esali
devido a descontroles da sociedade do controle? Tudo a ciência procura dar uma
explicação, e também como cientistas sociais tentamos desenvolver essa função, no
entanto a sociedade é composta de indivíduos, como nos lembra Elias (1994), é a
sociedade dos indiduos que leva suas experiências individuais para o mundo
exterior, numa teia de sociabilidade que não temos e talvez não devamos ter o total
controle. Quando o indivíduo se dispõe a ganhar a vida nas bricolagens das ruas,
nas táticas manuais dos artesãos do cotidiano é porque ele veio de uma
insatisfação, ou o adequação de sua vida ao ditames normativos do
comportamento social.
Para melhor compreendermos essa insatisfação, devemos buscar os demais
elementos envolvidos no fato em questão, entendendo que assim como revela
Simmel (2006) “todos os fatos sociais não são, (...) somente sociais. sempre um
conteúdo objetivo (de tipo sensorial, espiritual, técnico ou psicológico) socialmente
corporificado, produzido e propagado, gerando assim a totalidade da vida social”. A
informalidade é um destes conteúdos, esta é para eles também sinônimo de
liberdade e uma nova atmosfera é erguida ali. Essa nova atmosfera vai ganhando
terreno a medida que a sociedade do controle vai se descontrolando. Quanto mais
os mecanismos de acolhimentos individuais da nova sociedade burguesa forem se
mostrando ineficazes. Identificamos estes mecanismos no sistema de educação
que é voltado para o mercado competitivo, o próprio sistema da sociedade do
trabalho que segue leis abstratas de oferta e procura, e deixa de lado o ser humano e
suas necessidades vitais. O Estado e seu sistema político que funciona mais como
excludente do que como representativo do indivíduo.
O universo informal cresce à medida que o formal diminui. O interesse
privado é informal. A soma dos interesses privados constrói uma nova ordem que de
acordo com sua abrangência, pode deter o controle e tomar as rédeas do Estado -
essa agora é a nova forma, ou o “formal”. Neste tempo um meio termo é usado na
tentativa de inibir o crescimento do informal. No entanto a diminuição do formal”
parece inevitável. A última crise econômica
11
do mundo ocidental vem servindo de
desculpa para demissões em massa e retenção de gastos em todos os setores do
universo formal. Os personagens dos semáforos, talvez “imunes à crise”, se utilizam
do que está posto. Em seus relatos fica a dupla intenção de ficar e não querer ficar.
Querem ficar em empregos de carteira assinada que traga estabilidade e uma melhor
segurança de vida, mas também querem uma renda equivalente a, pelo menos, dois
sarios mínimos e que o trabalho não exija muito. A atmosfera que rege o cotidiano
dos semáforos tem vida própria e esta tem seu embrião no espírito da sociedade
moderna. A atmosfera é marginal, é o funcionamento social a partir do real e
imediato, é o limite do efêmero que se tornou comum e contínuo.
11
Crise financeira que teve inicio nos Estados Unidos da América no segundo semestre ano de 2008.
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