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Finalmente, a boiada vai caminhando como um navio, ordenada, dominada e
disciplinada; O breve trecho, “devagar, mal percebido, vão sugados todos pelo rebanho
trovejante (...)” indica o destino dos vaqueiros que serão traiçoeiramente tragados pelo
córrego e associa a chuva ao gado, como fará Raymundão mais adiante, quando contará
a historio do Calundú; a frase termina com oito trissílabos paroxítonos em ritmo de
marcha – um tempo forte um fraco –, paradigma da ordem e da disciplina, seguidos de
um tetrassílabo oxítono (se consideramos “no ar” um hiato) que quebra o ritmo da
escrita e que fala em chifre, o instrumento de agressão do boi:
E, agora, pronta de todo está ela ficando, cá que cada vaqueiro pega o balanço de
busto, sem–querer e imitativo, e que os cavalos gingam bovinamente. Devagar, mal
percebido, vão sugados todos pelo rebanho trovejante – pata a pata, casco a casco, soca
soca, fasta vento, rola e trota, cabisbaixos, mexe lama, pela estrada, chifres no ar...
A boiada vai, como um navio. (p. 24)
Façamos um comentário sobre o trecho acima transcrito que se inicia com
“Galhudos, gaiolos”. Naquela passagem temos uma seqüência de “qualificativos
rebuscados”, “referentes a formas ou cores dos bovinos”, conforme afirma o próprio
Guimarães Rosa em carta a Harriet de Onís de 11/12/1963:
NOTA – Esses adjetivos, referentes a formas ou cores dos bovinos, são, no texto original,
qualificativos rebuscados, que o leitor não conhece, não sabe o que significam. Servem, no
texto, só como “substância plástica”, para, enfileirados, darem idéia, obrigatoriamente, do
ritmo sonoro de uma boiada em marcha. Por isso, mesmo, escolheram–se, de preferência,
termos desconhecidos do leitor; mas referentes aos bois. Tanto seria, com o mesmo efeito,
escrever, só la:lalala – la... lá, rá, lá, rá... lá – lá – lá... etc., como quando se solfeja, sem
palavras, um trecho de música. Note também como eles se infileiram, dois a dois, ou
aliterados, aos pares de consoantes, idênticas, iniciais, ou rimando. (IEB–USP)
O "la:lalala – la... lá, rá, lá, rá... lá – lá – lá" só teria plasticidade, só despertaria no
leitor a impressão da marcha, caso se concretizasse com qualidades acústicas, ou seja,
caso fosse possível perceber tempos fortes e fracos, tal como na execução de um trecho
musical, de uma “marcha”, no caso. É por isso que a música ausentada se faz presente
por meio da forma poética articulada em palavras, sons, sílabas, como, aliás, desde a
Idade Média.
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Temos, pois, a música de palavras a plasmar um ritmo. Nesse trecho, a
música de palavras prescindiria das qualidades semânticas de seus “dizeres”. Mas as
próprias formas poéticas, por si sós, dizem coisas, não são anódinas. A forma escolhida
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“E também os dizeres das canções podem amiúde ser entoados em vários lugares onde são ouvidos de
bom grado, onde o canto da música artificial nem sempre teria cabimento, como entre senhores e
senhoras em trato particular e secreto” (grifo nosso) (Art de dictier (tomo VII, p. 272), apud POIRION,
D, Le poète et le prince).