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A revista DEP Diplomacia, Estratégia e Política é um periódico, editado em
português, espanhol e inglês, sobre temas sul-americanos, publicado no âmbito
do Projeto Raúl Prebisch, com o apoio do Ministério das Relações Exteriores
(MRE/Funag Fundação Alexandre de Gusmão/Ipri Instituto de Pesquisa
de Relações Internacionais), da Construtora Norberto Odebrecht S. A., da
Andrade Gutierrez S. A. e da Embraer Empresa Brasileira de Aeronáutica S. A.
Editor
Carlos Henrique Cardim
Endereço para correspondência:
Revista DEP
Caixa Postal 2431
Brasília, DF – Brasil
CEP 70842-970
revistadep@yahoo.com.br
www.funag.gov.br/dep
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
DEP: Diplomacia, Estragia e Política/Projeto Raúl Prebisch no. 9 (janeiro/março 2009) .
Brasília : Projeto Raúl Prebisch, 2009.
Editada em português, espanhol e inglês.
ISSN 1808-0480
1. América do Sul. 2. Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana,
Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai, Venezuela. I. Projeto Raúl Prebisch.
CDU 327(05)
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Sumário
Argentina-Brasil: um projeto desejável – e possível?
Roberto Lavagna
Alguns elementos para entender a Bolívia
Pablo Solón
Estados Unidos, América do Sul e Brasil: seis tópicos
para uma discussão
José Luís Fiori
Transformação da matriz sócio-política e
desenvolvimento no Chile
Manuel A. Garretón M.
Colômbia: política externa, economia e o conito
Marta Lucía Ramírez
Equador, perspectivas de um ex-Presidente
Rodrigo Borja
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Número 9 Janeiro / Março 2009
132
160
171
187
211
233
253
A grande divergência: dependência histórica ou
dependência do caminho? Resultados das Américas
Steve De Castro
O que aconteceu no Paraguai?
Fernando Lugo
O paradoxo peruano: crescimento econômico
e desaprovação política
Julio Cotler
Apresentação político-econômico-social do Suriname
C.A.F. Pigot
O Uruguai e as linhas divisórias da aprendizagem
Rodrigo Arocena
A integração energética da América Latina e Caribe
María A. Hernández-Barbarito
Fernando de Szyszlo
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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Argentina-Brasil:
um projeto desejável
– e possível?
Roberto Lavagna
*
A
s iniciativas de aproximação entre a Argentina e o Brasil avançaram
substancialmente desde os acordos de 1986. Naquela ocasião foram rompidas,
embora não tenham desaparecido totalmente, as tendências negativas de
uma competição conitiva e as menos visíveis, porém não menos negativas,
de indiferença mútua. Ambas as atitudes e posturas, somente podem ser
revistas a partir de decisão política compartilhada e com a existência de
planos estragicos convergentes, até chegar ao ponto em que a estratégia
venha a se constituir um projeto regional.
Para que os objetivos de um projeto regional possam ser concretizados e,
portanto, para que o salto qualitativo ocorrido em 1986 avance decisivamente,
é necessário superar dois grandes obstáculos que convém reconhecer:
1) A tendência registrada, pelo menos a partir dos anos 80, de
manutenção de condutas não convergentes ao longo do tempo em
matéria econômica e de política exterior, e
* Ex-Ministro da Fazenda da República Argentina.
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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Argentina-Brasil: um projeto desejável – e possível?
2) No que tange à relação bilateral, a inexistência de um debate mais
profundo sobre a estratégia de desenvolvimento e de inserção na
região e no mundo.
Tarefa quase que impossível e inútil, dirão muitos pragmáticos. Para
esses, a trajetória de uma estrada, a denição quanto às linhas de energia, ou
o aumento do comércio são muito mais ecazes, tanto em escala nacional
quanto regional, do que discussões abstratas sobre a coordenação de fases
de política econômica ou do que os debates mais abrangentes a respeito de
visões estratégicas. Os que argumentam dessa maneira contrapõem realidades e
realizações comerciais ou de infra-estrutura ao tédio de discursos burocráticos
que não chegam a estreitar os interesses bem como as necessidades concretas
entre os países.
Sendo assim, diante desse argumento, eu responderia de forma positiva
e negativa às questões abordadas acima.
Sim, é verdade que, com freqüência, em nossa região e porque não dizê-
lo também no mundo são proferidos mais discursos e especulações ao invés
de obras e decisões concretas, mesmo diante da realidade e das necessidades
imediatas dos respectivos povos.
Não é verdade, por outro lado, que esse pragmatismo possa, por si só,
substituir a existência de uma nova “visão” quanto à direção a ser tomada,
quais os rumos do mundo contemporâneo e como nos adaptamos e nos
inserimos ativamente nele.
Eis o exemplo da União Européia para que recordemos da dupla
necessidade da ação a partir da reexão. O que ocorria ao processo europeu
caso, por trás da Comunidade do carvão e do aço, não tivesse existido uma
motivação muito mais profunda no momento da concepção do projeto,
por parte dos setores estratégicos? Nesse caso, tratava-se de uma motivação
econômica, qual seja, criar as bases de uma pax europea que impossibilitasse a
repetição de confrontos como os ocorridos na Primeira e Segunda Guerras
Mundiais. Nessa busca por um ambiente de paz duradoura, encontrava-se a
matriz de um projeto que, em seguida, foi concretizado pela via dos acordos
políticos em relação ao carvão e ao aço, assim como para a agricultura.
Quase por absurdo poderíamos nos indagar se as diculdades atuais
da construção européia não passam, exatamente, pela falta de visão, pela
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Roberto Lavagna
necessidade de aprofundamento e pelo fato de que a expansão geográca
talvez esteja sendo executada ao preço de uma maior supercialidade, centrada,
exclusivamente, em interesses econômicos.
O pragmatismo é uma condição necessária, porém, decididamente, não
é condição suciente. Por isso, vale a pena analisar as duas opções que estão
colocadas diante de nosso processo de integração.
I. Condutas não convergentes
Nos últimos 25 anos é possível destacar três períodos na qual as condutas
da Argentina e do Brasil não foram convergentes nem sob a ótica da realidade
econômica muito menos em relação à política internacional.
O primeiro período ocorreu por ocasião da crise da dívida vericada
no México em 1982. Durante uma década, os grandes bancos internacionais
atuaram por meio da reciclagem dos recursos extraordinários oriundos dos
países produtores de petróleo em conseqüência, justamente, do primeiro
choque dos preços do petróleo e derivados em 1973. Nesse processo de
reciclagem, os países latino-americanos se viram diante de ofertas de crédito
claramente mais eveis do que em outros momentos e utilizaram tais recursos
elevando signicativamente seu endividamento externo.
Com o advento da crise, surgiram duas interpretões diferentes em relão
a mesma: aqueles que defendiam a idéia de se tratava de uma crise de “liqüidez”
e aqueles que achavam que havia uma crise mais grave de “solvência”.
Os países centrais e os grandes bancos internacionais que tinham agido
como nanciadores, sustentavam a tese da liqüidez e pretendiam evitar “feridas
abertas e favorecer, como alternativa, um processo de renanciamento
que implicava em reduções do endividamento dos países. A tese da crise de
“solvência”, por sua vez, armava que o endividamento era insustentável e
que eram necessárias reduções ainda maiores. Caso contrário, o crescimento
de muitos países caria bastante comprometido.
A escolha de um ou outro caminho não dependia de meras decisões
individuais dos países, pois havia, implicitamente, um efeito “dominó”. Caso
os países devedores, ou pelo menos os de maior peso, tivessem condições de
impor a posição de que se tratava de uma crise de solvência, seria possível
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Argentina-Brasil: um projeto desejável – e possível?
não apenas renanciar, mas também aliviar, de maneira signicativa, a dívida
externa dos países envolvidos.
Não foi o que aconteceu. Enquanto o ministro da fazenda brasileiro,
Dílson Funaro (governo Sarney) optou por uma ação concertada em torno da
interpretação quanto ao critério de solvência, o governo argentino (Alfonsín-
Sourrouille) preferiu aceitar a tese da liqüidez e, assim, optou pelo processo
de reescalonamento da dívida, ao invés de, efetivamente, reduzi-la.
O segundo momento ocorreu durante a década de 1990. A Argentina
(governo Menem-Cavallo) entrou em processo generalizado de liberalização
nanceira, de privtizões e de forte valorização da moeda nacional, além de um
regime cambial rígido, como foi o regime de “conversibilidade”, que operava
praticamente como uma caixa de conversão. Nesse peodo, o Brasil, ao contrário,
manteve maior autonomia em sua política monetária, cambial e econômica de
um modo geral (governo Fernando Henrique Cardoso-Malan).
Essa diferenciação, em se tratando de políticas econômicas que, no
decorrer dos anos, tornou-se cada vez mais acentuada, especialmente a partir
de 1995 e do período pós-tequila, dicultou bastante a tomada de decisões
estratégicas comuns. Ademais, a Argentina estabeleceu tais políticas econômicas
com um alinhamento internacional muito ligado aos Estados Unidos, na
doutrina conhecida na Argentina como “relações carnais”, para usar uma
expressão do Chanceler argentino da época.
A Argentina tornou-se exemplo nos mercados internacionais, foi
designada aliada do atlântico-sul junto à OTAN, participou da Guerra do
Golfo e agiu como o “melhor aluno” do Consenso de Washington. O grau
extremo desse alinhamento não foi acompanhado pelo Brasil, sendo que tal
processo, ao contrário, provocou conito aberto, gerou desconanças e até
mesmo competições inúteis.
O terceiro e último momento é o da década atual. Ao desmoronar-se a
“conversibilidade”, caiu por terra, também, na Argentina, a conança social
e política quanto às políticas ortodoxas do Consenso de Washington. Como
conseqüência, a Argentina passou por sua pior crise econômica e social ocorrida
no século, caracterizada pelo fracasso do sistema nanceiro em honrar seus
compromissos (2001, governo De la Rúa-Cavallo) e, subseqüentemente, o
inevitável default da dívida decretado com extrema precipitão por um governo
transitório que durou apenas alguns dias (governo Rodriguez Saa).
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Roberto Lavagna
A posterior renegocião da vida externa com redução bastante expressiva
ocorrida nos governos de Duhalde-Lavagna e Kirchner-Lavagna associado à
adão de uma nova potica econômica que se distanciou das recomendações
ortodoxas do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM)
ocorreram, justamente, num momento em que o Brasil optou por poticas mais
convencionais. Na ocaso, a exibilidade e desvalorização do peso argentino
ocorreram num momento em que se vericou uma duradoura valorização da
moeda brasileira. Enquanto na Argentina as taxas de juros praticadas foram
baixas, no Brasil prevaleceram elevadas taxas básicas de juros (governo Lula da
Silva-Palocci-Mantega).
A Argentina foi pioneira, em nível mundial, na adoção de políticas voltadas
para a redução da vida quida junto ao FMI e ao Banco Mundial. Além disso, em
relação a esse último organismo e ao Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID), foi lançada a proposta de substituição dos programas de “ajuste estrutural
por um retorno à política tradicional de concessão de créditos para projetos de
infra-estrutura. O Brasil levou mais tempo para ajustar-se à idéia de redão da
dívida e, ao contrário, os respresentantes brasileiros argumentaram em favor da
manutenção dos programas de ajuste estrutural que, sob nosso ponto de vista,
implicavam em maior e inaceivel intromissão nas poticas internas. Naquela
ocaso, a Argentina procurou preservar a autonomia da política monetária,
enquanto que o Brasil adotou uma política mais rígida de metas de inação.
Atualmente, verica-se que o momento é mais favovel ao Brasil
comparativamente à situão da Argentina. Seria imposvel discutir neste artigo
a pertinência e ecácia de uma ou outra das posições anteriormente assinaladas.
O que importa reforçar é que não houve sincronia na escolha de políticas que,
além disso, foram escolhidas, de um e outro lado, sem a mínima consulta ao
outro País. Quando um deles se mostrava exível, menos ortodoxo e, portanto,
mais autônomo em relação a fatores externos, o outro preferia ser ortodoxo e
preocupar-se prioritariamente com a opinião dos mercados.
II. Estratégia de desenvolvimento e inserção e integração
regional
O segundo obstáculo é a falta de uma estratégia de desenvolvimento que
não seja somente o reexo de decisões nacionais, mas que também possua
envergadura regional.
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Argentina-Brasil: um projeto desejável – e possível?
Como no caso anterior, é possível ouvir argumentos contrários a esta
armação. Exemplos podem ser citados, tais como: o desenvolvimento
estratégico em relação à indústria nuclear, o setor farmacêutico ou ainda a
implantação da soja na Argentina. No Brasil não se pode ignorar a espetacular
expansão da soja, o programa de biocombustíveis, o desenvolvimento da
indústria aeronáutica e também as políticas de dio prazo no setor petrofero,
que transformaram o país de importador de petróleo a constituir uma das
maiores reservas em escala mundial. Essas reservas o colocariam, pelo menos,
entre os dez maiores produtores do mundo.
É possível citar ainda alguns exemplos em cada um dos dois países e
utilizá-los como reexo de estratégias em escala nacional, com impacto direto
na região.
Acredita-se, porém, que a questão não seja esta. É óbvio que em ambos
os países planos estratégicos, mas “planos”, no plural, não é o mesmo que
um “plano” global, integrado. Os planos, no plural, atendem a setores ou
áreas especícas e, de fato, podem demonstrar sucesso e modicar segmentos
importantes da realidade nacional. A menos que se pense que a simples soma
de planos seja um plano estratégico global, é possível que os êxitos parciais
possam coexistir com a insuciência global.
Essa é também a posição do ministro de Assuntos Estratégicos do
governo do Brasil, que, na época, destacou: “o que interessa é que não
debate sobre nossas respectivas estratégias nacionais de desenvolvimento, não
possuímos uma comunidade intelectual, e precisamos tê-la”.
Mais uma vez é notório mencionar o exemplo da Europa. Muito além
das livres fronteiras internas, particularmente as comerciais, numerosos
programas de desenvolvimento cientíco, tecnológico, industrial e de serviços
para o conjunto de países ou subgrupos de países. Tal fato, e não apenas a tarifa
externa, diferencia um projeto de livre comércio de um projeto de mercado
comum e união econômica.
Precisamente por esse motivo, o projeto atual se assemelha mais a uma
zona de livre comércio semelhante à Nafta do que ao que foi inicialmente
planejado.
Na mesma linha, disse o ex-presidente Sarney: “Equivocamo-nos no
processo de integração quando, em julho de 1990, Brasil e Argentina assinaram
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Roberto Lavagna
a Ata de Buenos Aires, decidiram mudar os rumos e em vez de focalizar o
mercado comum, deram prioridade ao desenvolvimento de uma área de livre
comércio e de uma união aduaneira em um prazo de cinco anos, com os riscos
implícitos nessa nova abordagem”.
Analisando-se sob uma perspectiva global, pode-se perguntar e demonstrar
que essa soma de planos não modicou o problema mais grave dentro de
nossos países, que não é outro senão o da enorme desigualdade na distribuição
da renda e das oportunidades. Não houve alteração na fragmentação social,
mazela essa presente nos países latino-americanos, e as ações de compensação
por meio de planos sociais apenas aliviaram as necessidades do presente, sem
modicar as condições do futuro.
Dicilmente a Argentina poderia argumentar que possui uma visão
global já que, em uma década, o país passou de uma economia caracterizada
pela supervalorização da moeda nacional e de híper-endividamento a uma
economia de moeda sobrevalorizada e de busca do desendividamento como
objetivo principal. Não plano estratégico sério capaz de justicar essas
variações que, além disso, traduziram-se em matéria de relações internacionais.
Nos últimos dez anos, o país passou de uma adesão sem críticas à política dos
países centrais e dos organismos multilaterais a um certo “esquerdismo” light,
fortemente antagônico em relação às organizações multilaterais.
Seria igualmente difícil ao Brasil explicar que, muito além dos elogios e
da atração dos investimentos, o país tenha sido o que menos cresceu entre os
países do “continentee das poncias emergentes (BRIC). É bastante provel
que tanta diferea em relação à China, Rússia e Índia, categoria em que o Brasil
aspira a situar-se, esteja relacionada com a taxa Selic e que a livre mobilidade
dos capitais tenha pesado mais na considerão dos poderes públicos e privados
do país ao invés da taxa de expansão do produto interno bruto.
Produto Interno Bruto
Taxa média anual de crescimento
Período Brasil China Índia Rússia
(*)
1980-1989 2,98 9,71 5,57 n.d.
1990-1999 1,72 9,99 5,65 - 3,80
2000-2007 3,44 9,85 7,10 7,03
(*) Média 1993-1999
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Argentina-Brasil: um projeto desejável – e possível?
III. Obstáculos a superar
Em síntese, brevemente expostos, os problemas de fundo que retardaram
nosso avanço e que ainda hoje nos faz reetir são:
Solvência ou liqüidez como conceitos alternativos para diagnosticar crises
nanceiras;
Supervalorização ou sobrevalorização da taxa de câmbio em relação ao
resto do mundo;
Sustentabilidade macro ou aceitabilidade dos mercados;
Visão estratégica ou soma de planos: isto é, visão global, que modique as
questões fundamentais da estrutura social e da dinâmica econômica,
ou visão parcial, soma de planos em áreas relevantes.
Claro que existem outros elementos que podem interferir de forma
negativa ao processo integrador, porém, no meu ponto de vista, aqui estão
resumidos os aspectos mais relevantes e não limitados, meramente, a questões
teóricas. Parece-me muito útil reetir sobre os aspectos acima indicados que
tem relação com a organização econômica e social e que, portanto, têm reexos
políticos, conseqüências de fundo.
IV. Estratégia de desenvolvimento e inserção
no mundo global
Em um mundo cada vez mais globalizado, isolar-se equivale a expor-se ao
atraso e à irrelevância. Não é menos verdade que abrir-se sem uma estratégia
nacional e regional equivale a renunciar à possibilidade de crescimento e
distribuição.
Se tivermos de representar gracamente a globalização, sem dúvida
recorreremos a uma esfera. Em uma visão ideal, a globalização pode ser
representada por uma esfera lisa e perfeita, na qual a distância mínima entre
dois pontos tem uma única solução. Além disso, a esfera é rígida, de forma
que qualquer ação exercida sobre ela não a altera. A realidade, no entanto,
pode ser melhor representada por outro tipo de esfera.. Uma noz é também
esférica, mas é rugosa e nela a distância mínima entre dois pontos pode ter
mais de uma solução. Além disso, é sucientemente porosa para que uma ação
exercida sobre ela possa modicar certas condições.
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Roberto Lavagna
Essa diferença de representação também pode ser a diferença entre uma
aceitação passiva, em um único sentido, da globalização, e uma aceitação ativa
do mundo global, na qual se reconhece que pode haver mais de um caminho
para inserir-se nela.
A ortodoxia econômica e social estabelecida nos centros intelectuais do
mundo desenvolvido e nos organismos internacionais, especialmente o Fundo
Monetário Internacional e o Banco Mundial, que habitualmente exprimem os
interesses e desejos do G7, favorecem a caracterização de “imagem” perfeita
da globalização. O princípio básico está relacionado ao fato de que tudo que
impeça a livre circulação de bens, serviços e capitais é negativo e implica na
perda de possibilidades em termos de crescimento.
Existe nesse pensamento, no entanto, uma exceção nada desprezível.
A globalização já não é perfeita, passa a ser rugosa, capaz de denir soluções
nacionais no sentido de encontrar caminhos alternativos em se tratando da livre
circulação de pessoas. Nesse caso, as barreiras, controles e políticas restritivas
e seletivas são defendidas e aplicadas cada vez mais intensamente. Os muros
se estendem quando se trata de trabalhadores não qualicados, mas as portas
tendem a abrir-se para pessoal qualicado em Universidades e centros de
formação do mundo desenvolvido.
Alguns países importantes do mundo por exemplo, a Índia
propuseram uma posição diferente como estragia de negociação em insncias
internacionais como a Organização Mundial do Comércio, do tipo: controles
para o comércio internacional de bens e serviços e liberdade para o trânsito
de pessoas. Isto é, controle para os bens e não para os fatores de produção
ou em última instância, liberdade para ambos.
Muito além desse debate, que se repete com freqüência em grandes
conferências internacionais, a realidade prática vista pelo mundo em
desenvolvimento vence quando se adota a idéia de que a globalização rugosa é a
que mais se aproxima de seus interesses. Isso porque lhe permite reconhecer
a existência de diferentes estágios de desenvolvimento; procurar desenvolver
novos setores e ir adaptando progressivamente as produtividades aos padrões
internacionais; contrapor-se às políticas como as que favorecem, no mundo
subdesenvolvido, a importação de bens não elaborados e discriminam por
meio de uma escala tarifária invertida os bens com valor agregado, etc.
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Argentina-Brasil: um projeto desejável – e possível?
Admitido esse princípio de entrar na globalização com margens de ação,
a grande questão é saber se isso se expressará através de políticas pontuais,
ad hoc, de curto prazo, ou se comporá parte de uma estratégia global de um
país. A diferença, nesse caso, é enorme.
O puro pragmatismo e casuísmo das políticas pontuais faz com que as
políticas quem nas mãos de empresários que buscam o lucro, a corrupção
se expanda pela conivência com interesses setoriais e que o valor das tecno-
estruturas do Estado tenda a decair. Ao contrio, quando se dene uma política
nacional estável, com objetivos e horizontes bem denidos, a capacidade dos
que buscam lucros se restringe rapidamente e a luta contra a corrupção tem
dois instrumentos importantes, que o o desenvolvimento de equipes cnicas
de alta qualidade e a possibilidade de avaliar resultados concretos versus os
objetivos que atendam ao plano estratégico.
Muitas são as vozes que se erguem diante da globalização, desde as que
assumem um tom decididamente negativo até as que encaram o fenômeno com
advertências e precauções. A romancista e ensaísta francesa Viviane Forrester
escreveu: “Não vivemos sob as garras fatais da globalização e sim sob o jugo
de um regime político único e planetário, não reconhecido: o ultra-liberalismo,
que governa a globalização e a explora em detrimento das grandes maiorias.
Essa ditadura sem ditador não aspira a tomar o poder e sim a dirigir aqueles
que o exercem”
1
.
O economista de Harvard Dani Rodirk comenta: “O que não me
agrada, e em algumas ocasiões também ocorre, é que alguns acabem cando
extremamente ricos enquanto outros pioram de situação, e a globalização
sem dúvida desempenha um papel que contribui também para essa segunda
conseqüência”
2
.
Mais próximo de nós, Aldo Ferrer arma: A globalização é seletiva e abarca
as esferas em que predominam os interesses dos países mais poderosos”
3
.
Na verdade, todos m razão, mas a globalizão como fenômeno
tecnológico está presente e parece pouco provável pensar em um cenário em
que haja retrocesso. Portanto, restam três opções:
1 “Uma estranha ditadura”
2 Entrevista ao jornal “Clarín”, 13.4.08
3 “De Critóbal Colón a Internet: América Latina y la globalización.”
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Roberto Lavagna
Rechaçá-la e car à margem das correntes tecnológicas, comerciais e
de investimento do mundo;
Aceitá-la passivamente e reduzir os benefícios que possam ser obtidos
a partir dela, e
Aceitá-la de maneira ativa, limitando os riscos e maximizando as
possibilidades.
Para avançar na denição de uma inserção ativa é útil pensar nos elementos
básicos pelas quais se desenvolvem vantagens comparativas e competitivas.
Nesse sentido, é preciso explorar quatro grandes elementos de
competitividade:
i) custos trabalhistas mais baixos;
ii) dotação natural de fatores (clima, terra, minas);
iii) as grandes escalas de produção, e
iv) a diferencião de bens e serviços ligados à disponibilidade de
melhores tecnologias de produção e/ou de processos.
Os baixos custos trabalhistas são próprios de países que possuem alta
disponibilidade de o de obra, o que em economia se dene como abundância
de um dos fatores de prodão: o trabalho. Esse tem sido, e ainda é, um dos
grandes ativos de países como a China e a Índia, e em menor grau de outros países
em desenvolvimento como a Indosia. A dotação natural signica, obviamente,
dispor de condições privilegiadas de terra, clima, água ou mineração.
As grandes escalas de produção permitem uma forte redução de custos
xos a partir da pesquisa e desenvolvimento do produto e dos processos, até
a introdução do produto no mercado, passando por etapas intermediárias,
tais como: difusão, projeto, cadeias de serviços ligados ao bem, etc. Para
alcançar essas escalas, são necessários mercados internos muito amplos tanto
em população como também em poder aquisitivo e/ou forte inserção em
mercados internacionais relativamente abertos.
Finalmente, dispor de tecnologias que façam com que a variedade, a utilidade,
a qualidade dos bens e serviços e o ciclo de renovação sejam o “diferencial” em
relação à disponibilidade de produtos nos mercados mundiais.
Existem atualmente no cenário internacional países que dispõem de
vários desses elementos sobre os quais repousa a competitividade. Outros,
ao contrário, podem contar com apenas um.
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Argentina-Brasil: um projeto desejável – e possível?
Países como a China são, na atualidade, temíveis em termos de competição
porque disem de enormes recursos de mão de obra a um baixo custo relativo,
trabalham com grandes escalas de produção e mais recentemente vêm se
inserindo na produção de bens de base tecnológica.
Outros, em geral os países desenvolvidos, preservam seu grau de desenvolvimento
e ao mesmo tempo pagam altos custos de mão de obra e de seguridade social.
Em compensação, dispõem de tecnologias de ponta e, nesse caso, chegam a
mercados mundiais desregulados, com bens (bens de capital e equipamento em
geral, medicamentos, etc), e/ou serviços de valor agregado (software, contdos
audiovisuais, por exemplo), e dessa forma conseguem consolidar grandes
escalas de produção.
os países que possuem economias de baixo nível de desenvolvimento (África)
ou de reduzida integração e diversicação (pses petroferos), somente
operam em mercados baseados em recursos naturais, especialmente na área
de mineração.
Restam, nalmente, os países especializados em bens altamente diferenciados,
com fortes especializações bem como valor agregado, tanto no que se refere
a bens (p. ex. Israel com equipamento de segurança, Itália com couros, etc.) ou
serviços (nanças e administração de carteiras em vários países europeus).
Levando-se em consideração que esse é o quadro geral, a Argentina e o
Brasil deveriam denir suas estratégias nacionais e regionais nesse panorama.
Revendo os elementos discutidos anteriormente, pode-se vericar que:
A Argentina tem população escassa e o Brasil população relativamente
média comparada aos países do sudeste asiático;
Os países contam com condições naturais e desenvolvimento empresarial
bastante expressivo em setores produtivos de bens agropecuários e de
pesca, assim como importantes recursos minerais;
Salvo em relação a alguns bens intermediários ou excepcionalmente
no caso dos bens nais (bens agrícolas), nossas escalas de produção
são reduzidas no caso da Argentina e médias no caso do Brasil;
A inserção mundial, mesmo com escalas produtivas mais reduzidas,
pode ocorrer com base na diferenciação de produtos. Isso inclui desde
bens genuinamente de alta tecnologia, como os bens de capital, até bens
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Roberto Lavagna
alimentícios de elevada qualidade e, portanto, diferenciados em escala
mundial, até bens de consumo com projetos inovadores, ou serviços
com elevado valor agregado como, por exemplo, os softwares, etc.
Em conseência, e salvo exceções, a inserção ativa passa fundamentalmente,
no caso de nossos países, por uma “base” de recursos naturais dos quais
a maioria tem caráter renovável (alimentos) e de especialização em bens e
serviços diferenciados. No caso, grande parte dessa diferenciação faz parte da
cadeia de agregação de valor a partir de bens agro-industriais ou de recursos
naturais em geral.
No caso dos recursos naturais e adquiridos (agropecuária) há, no entanto,
um limite de acesso aos mercados imposto, atualmente, pelas políticas de países
que subsidiam e protegem exageradamente a produção local. Entre os que
utilizam ativamente essa combinação de subsídios/proteção estão nada mais
e nada menos do que os Estados Unidos, a União Européia e o Japão, isto é,
mercados com grande poder aquisitivo.
É obvio que a situação o é idêntica comparando-se o caso da Argentina
e do Brasil. Basta assinalar que a restrição demográca e a disponibilidade
abundante de mão de obra operam muito mais fortemente sobre a Argentina
do que sobre o Brasil.
Outro detalhe está relacionado às escalas ecientes de produção, onde o
tamanho do Brasil é de duas a três vezes maior. Diante dessa vantagem relativa
do Brasil, a Argentina conta com a necessidade de um aparato econômico e
de emprego muito menor, o que permite alcançar equilíbrio empregatício
portanto, social – de maneira mais fácil.
Apesar dessas diferenças, o que é fundamental atualmente nem a
Argentina nem o Brasil possuem, que no caso são as vantagens de dispor de
um esquema produtivo semelhante aos países desenvolvido. Ademais, não
possuem reservas demográcas comparáveis com as do sudeste asiático.
É claro que, em termos populacionais, a Argentina é considerada um país
pequeno, tanto que não pode nem deve competir à base de baixos salários e
proteção social reduzida ou nula. Tampouco conta atualmente, salvo no setor
agropecuário, com grandes escalas de produção. Resta, portanto, uma base
comercial de exportação agropecuária e pesca e o desao de inserção junto
aos mercados a partir da diferenciação de seus bens e serviços.
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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Argentina-Brasil: um projeto desejável – e possível?
A partir da soma do fator escala de produção proporcionada pelo
setor primário, da diferenciação de produtos e do progresso tecnológico a
ser desenvolvido dinamicamente dependerá, ou não, a capacidade de o país
elaborar um esquema de inserção ativa na globalização.
Um modelo dessa natureza caracteriza-se pelo pagamento de salários reais
e de benecios sociais elevados, de forma semelhante ao que ocorreu nos países
desenvolvidos. Para que tal iniciativa seja sustentável, há uma exigência clara:
impulsionar o avanço tecnológico. Esse avanço poderá ocorrer, seguramente, a
partir da combinação de incorporação de tecnologias disponíveis no mundo, pela
adaptação de tecnologias ou, em casos mais limitados, pelo desenvolvimento
de soluções tecnológicas próprias. Isso é unicamente possível em um país que atribua
papel central à educação em todos os seus níveis, inclusive à formação prossional, em ciência
e tecnologia. A fabricação de um doce, o desenho de um objeto, o tratamento de insumos para
agricultura, a fabricação de uma central nuclear, de um avião, de bens ou serviços relacionados
à informática, etc., etc., o inatinveis sem que o país possa ter uma população com capacidade
para absorver métodos, copiar, adaptar ou inovar.
Caso não sejam implantados programas educacionais em maior número,
os países não serão capazes de obter vantagens da globalização. Isso vale tanto
para os bens e serviços diferenciados quanto para o setor primário onde as
vantagens tecnológicas, na qual tornam possíveis as grandes escalas, exigem
também um importante sistema educacional.
A conclusão poderia então ser resumida assim:
Não à negação do fenômeno da globalização;
Sim à preparação, à denição da estratégia-país, à idéia de até aonde ir,
e o que fazer diante desse fenômeno tecnologicamente irreversível;
Reconhecer que espaço para uma estratégia regional na qual as
alternativas da Argentina e do Brasil diferem mais pelo “grau” do
que pela substância, sem que isso signique minimizar diferenças e,
portanto, opções, e
Dar à educação, no sentido mais amplo, um papel absolutamente fundamental.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
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Alguns elementos para
entender a Bolívia
Pablo Solón
*
24 de maio de 2008. Desde a noite anterior, grupos de jovens com porretes e bananas
de dinamite hostilizam camponeses que chegam para receber o Presidente. Estamos
na véspera do 199º aniversário da cidade de Sucre. O exército e a polícia recuam
para não reagir à provocação de grupos de jovens universitários de Sucre à procura de
um conito que se transforme em luto. O Presidente Evo Morales cancela a viagem.
Com o rosto ensangüentado e cheio de medo, Ángel Vallejos, prefeito de Mojocaya,
é arrastado e espancado junto com cerca de trinta camponeses até a praça principal
de Sucre. Com o tórax nu são obrigados a ajoelhar-se e beijar a bandeira de Sucre
enquanto jovens fascistas queimam uma whipala
1
e um poncho vermelho.
P
ara entender a Bolívia de hoje é necesrio voltar os olhos para a história
desse território. A Bolívia é um país em que os dilemas de mais de 500 anos
continuam presentes. É um território em permanente rebelião.
A história tem caminhos demais. O que sucede na Bolívia possui muitas
vertentes que não podem ser abarcadas nestas páginas. É evidente que o país
vive uma aguda polarizão na qual, a m de sobreviver, as elites substituídas
pelo governo fazem ressurgir o racismo, o regionalismo e expressões fascistas.
* Embaixador. República da Bolívia.
1 Bandeira e símbolo dos povos andinos.
Alguns elementos para entender a Bolívia
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Evo Morales chegou ao governo com 54% dos votos. Nenhum
Presidente havia sido eleito por maioria absoluta nas últimas décadas. Todos
precisaram fazer pactos a m de se ungirem como tal. A história, desde 1985,
foi uma história de pactos entre três ou quatro partidos neoliberais que se
revezavam no governo. A ascensão de Evo signicou uma dupla ruptura
tanto pela emergência dos povos indígenas como pelo desarme incipiente do
modelo neoliberal.
É verdade que outros indígenas chegaram ao governo, jamais, porém,
como Presidentes e muito menos com uma identidade e uma proposta própria
alternativa às prescrições das classes dominantes.
Evo Morales poderia ter sido um Mandela, mas preferiu ser Evo
Morales. Se tivesse ele se limitado a reivindicar a identidade nativa originária e
realizado alguns ajustes no modelo neoliberal, pactuando com as velhas classes
dominantes, com certeza teria experimentado uma situação tranqüila. Optou,
porém, pela mudança e recusou os pactos ao estilo tradicional, isto é, a repartição
das quotas de poder e dos privilégios para “incluir” os adversários.
Por que motivo Evo Morales preferiu esse caminho? Por que não
modicou o discurso uma vez chegado ao poder? Por que não fez o que fazem
todos os candidatos quando chegam à Presidência?
Evo Morales é a expressão de um profundíssimo processo de mudança
que vem de longe e muito de dentro. É o termo de uma série de vetores
conuindo para o coração da América do Sul.
A volta de Tupaj Katari
Os indígenas foram varridos pela colônia, porém não exterminados.
Estudiosos de orientações diferentes opinam que os astecas, maias e incas
perfaziam em conjunto entre 70 e 90 milhões de habitantes por ocasião da
conquista. Após um século e meio de conquista e colonização restaram
três milhões e meio de indígenas, ou seja, apenas 5% da população originária
dessas terras.
Entre os missiorios chegados havia diferentes conceitos sobre a
conversão dos indígenas. Uns pensavam apenas em destruir os templos, vedar
os velhos rituais e castigar aqueles que os praticassem. Outros consideravam
Pablo Solón
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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necessário convencer os indígenas por meio da prédica e o exemplo,
conhecendo os falares e costumes de cada povo.
Surgiu assim uma mistura de resistência e dominação: catedrais erguidas
sobre antigos lugares sagrados e celebrações indígenas trasvestidas em rituais
católicos.
O choque de duas culturas há mais de 500 anos foi desigual e doloroso.
A conquista foi um fato inevitável, e a resistência dos povos foi impotente.
O território de alguns homens foi presa fácil para outros, o Deus de amor dos
cristãos esqueceu-se do próximo e a cobiça do ouro reluziu no entardecer de
um vasto continente. Mas a espada e a cruz não conseguiram exterminar nem
submeter os indígenas.
Desde o princípio houve muitas rebeliões. Uma das mais estranhas foi
a enfermidade da dança ou taqui onkoy. Quíchuas e aimarás dançavam até a
morte para escapar daquele “novo mundo”, que não podiam compreender.
Em 1780 produziram-se nos Andes várias rebeliões indígenas contra a coroa
espanhola.
Tupaj Katari cercou La Paz em duas oportunidades por mais de 170 dias
mobilizando forças de 40 mil indígenas. Ninguém entrava nem saía da cidade
sitiada. Os espanhóis passaram fome e desespero até chegarem os reforços
que lhes permitiram romper o cerco.
Tupaj Katari foi traído por um de seus colaboradores quando reunia
mais guerreiros às margens do lago Titicaca. Em novembro de 1781 foi
esquartejado por quatro cavalos na localidade de Peñas, situada no imenso
altiplano da hoje denominada Bolívia. Seu corpo despedaçado pelos quatro
cavalos foi exposto pelo território todo em sinal de “escarmento aos índios
rebeldes”. Ao morrer, o líder aimará pronunciou uma frase que cou famosa:
“Voltarei e serei milhões”.
Os espanhóis romperam o cerco de Tupaj Katari, mas não extirparam a
profunda memória dos aimarás e quíchuas. Existe uma lenda que reza estarem
os esquartejados membros de Tupaj Katari, sob a terra, juntando-se para ele
regressar transformado em milhões.
Sem dúvida é uma lenda, mas ela exprime os sentimentos mais íntimos
da mudança pela qual passa a Bolívia. Depois de Evo, a história desse território
não voltaa ser a mesma. Os povos indígenas se reencontraram, descobriram
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sua energia, força e identidade. Já não é mais possível pensar em uma Bolívia
controlada por elites brancas e mestiças que dominam índios submissos. “Os
índios de merda”, como habitualmente os chamam os ricos e poderosos, até
mesmo alguns de origem indígena, já não querem servir; querem é sentar-se
à mesa, ser levados em conta e... dirigir! Essa aleivosia é demais para uma
“sociedade” que sempre os olhou de cima para baixo e que durante séculos
debateu as maneiras de se desfazer dessa “raça enferma”, exterminá-la ou
convertê-la.
O Viver Bem
Que desejem ser levados em conta, olhados como iguais e governar
é um prato repulsivo e indigesto para as elites, que tiveram a hegemonia do
poder pelos últimos séculos, mas que esses índios, além disso, queiram retirar-
lhes os privilégios é inaceitável. No fundo, o que está em jogo na Bolívia é
a nova partilha do bolo entre empresas transnacionais, classes dominantes,
elites regionais, classes médias altas, setores populares, movimentos sociais e
povos indígenas.
A proposta dos povos indígenas e movimentos sociais se consubstancia
no denominado “Viver Bem”, em oposição à permanente busca do “viver
melhor”, que implica uma constante competição para superar o outro. É uma
proposta que aspira à harmonia entre os seres humanos, o meio ambiente,
as regiões e o mundo, a qual se opõe à competitividade e à lei do mais forte,
que impera nos mercados mundiais. Não se deve, conforme a concepção do
“Viver Bem”, “viver melhor” às expensas da exploração alheia, da natureza,
da harmonia e da solidariedade.
A visão dos índios não busca a eliminão do outro e, sim, a redenição de
um novo equilíbrio mais equitativo a necessariamente implicar a redistribuição
de renda e a redução de privilégios e superlucros dos setores mais abastados.
Uma renegociação de verdade e não de migalhas.
O país mais equitativo da Europa é a Áustria, onde a parcela de 20%
mais pobre da população recebe renda três vezes menor que a dos 20% mais
ricos. Na Suíça, os mais ricos recebem até sete vezes mais que os mais pobres.
Na Bolívia, esse indicador é abismalmente superior: a parcela de 20% mais
rica recebe mais que 60 vezes a renda dos 20% mais pobres.
Pablo Solón
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A nacionalização
A nacionalização e recuperação dos recursos e empresas estatais é a
alavanca para essa nova redistribuição. Em 2004, antes da nacionalização dos
hidrocarbonetos, o Estado recebia a título de impostos e royalties 293 milhões
de dólares. Em 2007 recebeu a esse título 1.393 milhões de dólares.
Em 2005, a receita do Estado em impostos e royalties pelos hidrocarbonetos
foi de 350 milhões de dólares e em 2007 atingiu 1.470 milhões de dólares. Esse
foi o choque da recuperação da propriedade sobre os hidrocarbonetos e a
renegociação de mais de 40 contratos com as empresas transnacionais. “Sócios
e não patrões”, é a premissa desse processo de mudança. O governo Evo
reconhece a importância do investimento estrangeiro mas de um investimento
que realmente invista e não procure ganhos fáceis e descomunais com base
na repartição de migalhas para os círculos do poder. Isso não agrada às
multinacionais, é um mau exemplo que, se for generalizado no mundo, será
desastroso para seus lucros, mas que elas acabam aceitando porque, embora
menores, continuam tendo ganhos. Anal, ganhos são ganhos.
Não obstante, a relação com as transnacionais é tensa. Algumas desejam
a volta ao passado e atrasam seus investimentos para dobrar o governo. Mas o
governo Evo não se dobra e, pelo contrário, continua avançando, recuperando
as empresas da cadeia produtiva do gás e do petróleo e adotando medidas em
outros setores, como os de fundição, telecomunicações, minerais e água.
A proposta que o novo texto constitucional apresenta é que tanto os
serviços básicos de educação, água, saúde, energia e telecomunicações quanto
os setores estratégicos de hidrocarbonetos, mineração e outros quem sob
o controle do Estado; em certos casos poderão ser rmados contratos de
prestação de serviços e de realizão de obras, sempre, no entanto, preservando
o patrimônio do Estado.
Esse incremento de receita em primeiro lugar está servindo para sanear
as naas públicas. Em 2006 houve pela primeira vez desde 1940 um
superávit de 3.664.000 dólares. Em segundo lugar, as crianças e os anciãos
foram beneciados com bônus de escolaridade e uma pensão de velhice de
caráter universal. Em terceiro lugar, iniciou-se a recuperação da empresa de
hidrocarbonetos (YPFB), que havia sido reduzida à condão de administradora
de contratos de concessão. Em quarto lugar, foram duplicadas ou triplicadas
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as receitas dos departamentos a título de redistribuição de impostos sobre
hidrocarbonetos e royalties.
A luta pela terra
A Bolívia é um país com superfície de 1.098.581 km
2
e 9,5 milhões de
habitantes, o que lhe uma densidade de 6,7 pessoas por km
2
,
muito inferior à
da França (109 hab/km
2
) ou à dos Estados Unidos (29 hab/km
2
). O problema
é que na Bolívia a terra é mal distribuída.
No ano de 1953 houve uma reforma agrária, que resolveu parcialmente
um problema e gerou outro. No altiplano e nos vales aboliu a “pongueagem”
2
e deu terras a camponeses e comunidades. Assim, a terra passou a ser “de quem
a trabalha”, com a desvantagem de que essas terras se tornaram insucientes
à medida que a população indígena ia crescendo e a sucessão hereditária fazia
surgir o “minifúndio” e até mesmo o “sulcofúndio”.
3
No Oriente da Bolívia, o problema da terra foi exatamente o inverso.
Primeiro, a lei de reforma agrária não reconheceu a existência dos povos
indígenas do Oriente. Considerava-os “silvícolas”, que precisavam do cuidado e
proteção do Estado. Segundo, outorgava ao Presidente a prerrogativa de fazer
doação de terras de até 50 mil hectares no Oriente. Terceiro, os sucessivos
governos e em particular as ditaduras militares dos anos 70 concediam sem
nenhum ônus as terras da região a seus familiares e seguidores políticos e
retribuíam favores com dezenas de milhares de hectares. Surgiu assim um
novo latifúndio em mãos de um grupo de famílias que utilizava as terras para
especular, hipotecá-las, aumentá-las, arrendá-las ou vendê-las.
Grandes e dios emprerios obtiveram mais de 50% das terras
distribuídas entre 1953 e 2002 enquanto os camponeses e pequenos agricultores
não receberam mais que 5%. Na atualidade, a grande maioria de pequenos
agricultores pobres possui apenas 1,4% das terras cultivadas ao passo que os
proprietários mais ricos são donos de 85%.
4
2 Os “pongos” eram uma espécie de servos ligados à terra que trabalhavam gratuitamente para o patrão ou
fazendeiro em troca de acesso a uma parcela da terra.
3 Sulcofúndio: quando a terra é dividida a tal extremo que cada um dos lhos é propietário apenas de um sulco
de terra.
4 Ministério do Desenvolvimento Rural, Agropecuário e Meio Ambiente, Vice-Ministério de Terras.
Pablo Solón
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No ano de 2002 foi aprovada a lei do INRA (Instituto Nacional de
Reforma Agria), que teve a nobreza de reconhecer a exisncia dos povos
ingenas do Oriente e a doação de Terras Comunitárias de Origem, mas que
foi pensada segundo a lógica do Banco Mundial de uma reforma agrária apoiada
no mercado, que buscava osaneamento” (resolver as disputas com respeito a
limites, superposições, duplos títulos de propriedade e outros vícios jurídicos)
a m de permitir o comércio de terras. A grande fraqueza da lei do INRA era,
além de o estabelecer um mecanismo ecaz para a recuperação dos latifúndios,
xar um procedimento que, na verdade, era favorável à sua legalização.
Na lei do INRA estabelecia-se a gura da revero de terras, isto é, as terras
poderiam voltar à posse do Estado sem nenhuma indenização para os donos.
Isso, no entanto, valeria para as que estivessem “abandonadas”. O “abandono
era demonstrado pela ausência de pagamento de impostos sobre a terra durante
dois anos. Mas, na prática, a m de evitar a reversão por abandono, bastava o
latifundrio pagar os impostos segundo a “auto-avaliação” de sua terra, feita
por ele mesmo,
5
ainda que em momento algum tivesse ele estado na terra.
No período 1996-2005 foram distribuídos 36.815 hectares, em média
3.681 hectares por ano. Nos dois primeiros anos de gestão de Evo Morales
foram distribuídas 697.882 hectares nos departamentos de La Paz, Pando,
Santa Cruz e Tarija, isto é, 350 mil hectares por ano. No período 1996-2007
foi distribuído um total de 734.697 hectares de terras do Estado, 95% na
gestão Evo Morales.
É preciso enfatizar que, diferentemente dos programas de redistribuição
da reforma agrária de 1953 e 1996, as novas doações não são individuais e,
sim, comunitárias, têm acesso a nanciamentos para programas produtivos
e prestação de serviços e contemplam atividades de gestão sustentável de
áreas orestais.
Entre 1996 e 2005, os governos de Sanchez de Lozada, Banzer, Quiroga,
Mesa e Rodriguez sanearam 0,2 milhões de hectares. Nos primeiros dois anos de
governo do MAS foram saneados 10,2 milhões de hectares. Em outras palavras,
no peodo 1996-2005 foi saneado um milhão de hectares por ano enquanto no
período 2006-2007 foram saneados 5,1 milhões de hectares por ano.
6
5 Artigo 4 da lei INRA (base impositiva e exceções). I. A base impositiva para a liquidação do imposto que
grava a propriedade agrícola será estabelecida pelo proprietário segundo o valor por esse atribuído a seu imóvel.
6 Vice-Ministério de Terras.
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A substituição das elites
A Bolívia sempre foi um país de extrema concentração de riqueza em
muito poucas mãos. Antes da revolução de 1952, o país se encontrava sob o
domínio dos três barões do estanho. Um deles, Simon Patiño, chegou a estar
entre as pessoas mais ricas do mundo. A nacionalizão das minas dos baes do
estanho em 1952 não produziu na Bolívia o desenvolvimento de uma burguesia
nacional empreendedora. Pelo contrário, o que surgiu foi uma burguesia e uma
classe média parasitárias do Estado: uma burocracia dominante que vivia, e
ainda quer viver, dos privilégios, dos contratos, da distribuição de cargos, das
consultorias, das negociatas e das migalhas das empresas estrangeiras.
Uma pesquisa
7
mostra que, no ano de 2002, 10% do total da população,
aproximadamente 830 mil habitantes, apropriou-se se de mais de 46% de todas
as receitas geradas no país ao passo que os 10% mais pobres se conformaram
com menos de 0,17% das receitas.
Isso quer dizer que, na distribuição de 100 bolivianos (moeda ocial do
país) de renda entre 100 cidadãos da Bolívia, os 10 mais ricos receberiam até
46 bolivianos enquanto os 10 mais pobres obteriam apenas 17 centavos, isto
é, 270 vezes menos.
Na Bolívia não se desenvolveu uma burguesia nacional com visão de país.
O progresso de um setor econômico assentado na pujança de um aparelho
produtivo foi quase inexistente. Os novos setores dominantes se organizaram
à sombra das transnacionais e do Estado. Seu projeto era imediatista e familiar
e carecia de uma perspectiva de país.
Recuperadas as liberdades democráticas em 1982, essa burguesia e classe
média subsidiárias do Estado se alternaram no governo por meio de acordos
vários entre partidos neoliberais. Após a queda do muro de Berlim, muitos
militantes esquerdistas originários da classe média, que em parte mantinham
laços com os setores políticos dominantes, se incorporaram ao establishment a
partir do governo e desmontaram o regime capitalista de Estado que existia
desde 1952. Os hidrocarbonetos, a eletricidade, a fundição do estanho, o
transporte aéreo, as telecomunicações, os fundos de pensão, tudo foi privatizado.
Nove anos antes da rodada Uruguai da OMC, a Bolívia já havia começado a
7 Comissão Episcopal da Pastoral Social Caritas da Bolívia, pesquisa realizada por Alfred Gugler.
Pablo Solón
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implementar as políticas do livre comércio. O mercado foi endeusado, e as
elites governantes adotaram uma linguagem liberal extremada.
O neoliberalismo não trouxe o propalado investimento estrangeiro e, sim, o
leilão dos recursos naturais e das empresas estatais. A grande maioria dos setores
dominantes o apostou na empresa produtiva e continuou a parasitar o Estado
e as transnacionais. As diferenças sociais e o descontentamento foram crescendo
até a ressurreição dos movimentos sociais com a chamada Guerra da Água, em
2000. Ali começou a ascensão dos movimentos sociais e de Evo Morales.
Quando, no ano de 2006, principiou o governo do MAS
8
, produziu-se
um corte muito profundo para essas elites. O governo xou os ganhos do
Presidente em mais ou menos 2.000 dólares norte-americanos e estabeleceu
que ninguém no Estado (executivo, legislativo e judiciário) poderia ganhar
mais que o Presidente. Foram cortadas as consultorias de dezenas e centenas
de milhares de dólares. Os contratos lesivos ao Estado foram paralisados ou
revertidos. Evo Morales tomou a sério que o servidor público deve servir ao
povo e não servir-se dele. Pela primeira vez em décadas, famílias de avós, pais e
lhos que viviam da potica foram deslocadas. Foi que essas elites começaram
a entrincheirar-se em nível de departamentos, governadorias, comitês cívicos e
algumas prefeituras. Nessa ocasião, a bandeira das autonomias departamentais,
que em si mesma nada mais era que a extensão de uma descentralização em
curso, foi exaltada para opor-se ao hipotético centralismo do governo Evo
Morales. Os meios de comunicação pertencentes às elites senhoriais serviram
para articular uma oposição atingida incisivamente pelos 54% dos votos do
MAS e pelo apoio crescente à nacionalização.
Regionalismo e racismo como estratégia de confrontação
O governo Evo Morales se propôs a fazer uma revolão cultural
e democrática na moldura da institucionalidade legal. As nacionalizações
permaneceram no caixilho da legalidade, e optou-se por convocar uma
Assembléia Constituinte para as transformões estruturais poderem ser
consolidadas em nível constitucional.
8 Movimento para o Socialismo, cujo verdadeiro nome era Instrumento Político para a Soberania dos Povos,
braço político eleitoral das organizações camponesas e indígenas que foi crescendo até abarcar a grande maioria
de movimentos sociais.
Alguns elementos para entender a Bolívia
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Por ingenuidade e erro político, o MAS negociou uma convocação para
eleger uma Assembléia Constituinte que não era possível ganhar, inclusive
com 90% dos votos. Em cada jurisdição eleitoral, o partido que obtivesse o
primeiro lugar teria dois constituintes e o segundo, mesmo conseguindo apenas
2% dos votos, teria um.
9
O MAS ganhou em quase todos os departamentos,
inclusive Santa Cruz, mas não alcançou, e jamais poderia alcançá-lo, os dois
terços dos votos necessários para aprovar a nova Constituição.
O MAS apostou na “concertação”. Acreditou que as demais forças iriam
negociar uma nova Constituição, mas o que sucedeu, logo após o primeiro
momento, foi uma sabotagem, um boicote sistemático a uma nova Constituição.
Primeiro com o argumento de que todo acordo em qualquer instância da
Assembléia Constituinte deveria ser aprovado por dois terços e em seguida
com o tema da “capitalia plena” para Sucre.
10
No dia da eleição dos representantes à Assembléia Constituinte realizou-
se também um referendo para ver quais os departamentos que desejavam
autonomia departamental. Em Santa Cruz, Tarija, Benie Pando venceu o
“sim” às autonomias.
A estratégia das elites deslocadas do governo e do aparelho central do
Estado cou evidente a partir desse momento: invocar e açular os sentimentos
regionalistas contra o poder central do governo Evo. O regionalismo dos
departamentos do Oriente combinou com a exacerbação do racismo contra
os indígenas, que em sua maioria são originários do Ocidente, do altiplano.
A Unión Juvenil Cruceñista
11
passou a espancar indígenas e dissidentes em
Santa Cruz, gerando um clima de amedrontamento e temor na população.
Com a Assembléia Constituinte paralisada e bloqueada pela demanda
de capitalía plena e cercada por mobilizações de universitários e funcionários
da prefeitura que impediam o funcionamento da mesma, o governo optou
por garantir o desenvolvimento das sessões em um liceu militar a poucos
quilômetros de Sucre. Grupos da Unión Juvenil Cruceñista se deslocaram para
9 Em nível departamental, a primeira maioria teria apenas dois constituintes dos 5 em disputa, e a segunda,
terceira e quarta força, um constituinte cada.
10 Sucre é a capital da Bolívia e a sede unicamente da Corte Suprema de Justiça. A capitalia plena implicava a
transferência para Sucre da sede do Governo e do Parlamento, que estão em La Paz atualmente.
11 Agrupação de jovens de Santa Cruz com características fascistas e racistas que está no interior do comitê
cívico desse departamento.
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Sucre. Algumas emissoras e em particular o canal universitário convocaram
a população a tomar o recinto onde se reunia a Constituinte. No trajeto,
produziram-se alguns choques com a polícia. Os meios de comunicação
começaram a falar de um massacre e exacerbaram os ânimos da população.
Os constituintes aprovaram em linhas gerais o novo texto constitucional e
se retiraram a m de evitar maiores conitos. A turba na cidade pôs fogo no
edifício da policia, na cadeia, na casa do prefeito e em vários automóveis. Nos
distúrbios morreram três pessoas.
A Assembléia Constituinte terminou suas sessões na cidade de Oruro.
O novo texto constitucional foi aprovado em detalhe, na ausência de um setor da
oposição. No projeto constitucional foram incluídos os temas-objeto de consenso
nas comises. A oposão não reconheceu o novo projeto de Constituição e
redigiu em 48 horas o texto de um Estatuto Autônomo para Santa Cruz.
O governo lhes propôs compatibilizar o texto do novo projeto de
Constituição com o projeto de Estatuto de Autonomia. Os governadores e a
oposição se negaram a fazê-lo e convocaram referendos nos quatro departamentos
onde havia ganho o simàs autonomias. Tais referendos o foram convocados
pelo Congresso como manda a Lei de Referendos, e além disso o texto da
pergunta era sedicioso, porque pedia aprovação imediata desses Estatutos de
Autonomia, sabendo que a Constituição Política do país em vigor o contempla
a gura de autonomias departamentais. O governo não reconheceu a legalidade
dos referendos e os qualicou de consultas custosas, sem poder vinculante.
O Tribunal Constitucional não se pronunciou porque a oposição no Senado
tem bloqueado até hoje a eleição dos membros faltantes.
A tensão foi aumentando à medida que se aproximava a data da realização
do primeiro referendo em Santa Cruz. As agressões, o clima amedrontador e
as confrontações promovidas essencialmente pela União Juvenil Cruceñista
continuaram. O objetivo era provocar o governo para que este recorresse
às forças públicas a m de impor um estado de sítio e evitar o referendo.
O governo nacional não caiu na provocação. A consulta foi feita em meio a
uma grande abstenção que chegou a 38%. O “sim” ao Estatuto de Autonomia
obteve 85% dos votos válidos emitidos. Com matizes, o panorama se repetiu
nos outros três departamentos.
12
12 A abstenção foi de 31% em Beni e o “sim” obteve 80,5%. Em Pando, a abstenção foi de 45% e o “sim”
obteve 78%. Em Tarija, a abstenção chegou a 39% e o “sim” alcançou 78% dos votos válidos emitidos.
Alguns elementos para entender a Bolívia
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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No dia seguinte ao dos chamados referendos, os Estatutos não puderam
ser efetivamente aplicados porque não se encontravam dentro do quadro
do ordenamento jurídico nacional vigente. Os prefectos se zeram chamar
Gobernadores, mas legalmente continuaram a assinar como prefectos.
Durante todo esse processo o governo insistiu na necessidade de chegar-
se primeiro a um acordo sobre o capítulo de autonomias departamentais no
novo texto constitucional. Era o caminho correto: primeiro dar nascimento à
mãe (a Constituição) e em seguida os lhos (os Estatutos de Autonomia). Mas
a estratégia da oposição não era a de chegar à concertação e sim desestabilizar
e desgastar o governo com a esperança de que este caísse na provocação das
confrontações violentas e se produzisse um caos total que levasse à queda do
governo ou seu absoluto enfraquecimento.
A “oposição” ao governo não é um conjunto articulado. É formado
pelos prefectos e comitês cívicos de alguns departamentos e pelos partidos neo-
liberais que têm maioria na Câmara de Senadores. Entre os prefectos, dirigentes
cívicos e chefes políticos uma constante luta pela liderança da oposição.
Essas discrepâncias se formaram quando a oposição no Senado aprovou a
lei de convocação ao referendo para a revogação do mandato do Presidente,
vice-Presidente e prefectos, que o governo havia proposto meses antes, sem levar
em conta que alguns prefectos podiam perder o cargo e ser destituídos.
Talvez tivessem pensado que o Presidente fosse vetar essa lei por temor a
uma derrota após os resultados do chamado “referendo” de Santa Cruz. Evo,
porém, aplaudiu nesse mesmo dia a decisão de perguntar qual era a vontade do
povo e de abandonar a provocação violenta para passar às urnas de maneira
legal e democrática.
Os resultados do referendo
Em 10 de agosto realizou-se o Referendo Revogatório sobre Presidente,
Vice-presidente e Governadores, com participação de missões da Organização
dos Estados Americanos, Unasul, Mercosul e diversos países da Europa, Ásia e
América Latina. A disputa eleitoral foi precedida por várias ações de provocação
e violência que chegaram a impedir até mesmo a visita dos presidentes da
Argentina e da Venezuela a Tarija em 5 de agosto.
Pablo Solón
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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O resultado foi contundente: o Presidente e Vice-presidente da Reblica
foram raticados por 67,41% dos votos. Em números absolutos, obtiveram
2.103.732 votos.
Está de acordo com o prosseguimento do processo
de mudança liderado pelo Presidente Evo Morales Ayma
e pelo Vice-presidente Álvaro Garcia Linera?
Em 11 anos, a votação do MAS aumentou em mais de 2 milhões de
votos. O percentual obtido pelo MAS passou de 3,7% a 67,4%, sempre em
constante ascensão.
Votação em favor do Movimento para o Socialismo
Alguns elementos para entender a Bolívia
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Percentagens de votação em favor do Movimento
para o Socialismo – 1997-2008
Por sua vez, os governadores da chamada Meia-lua
13
perderam 26.190
votos entre os referendos de 2006 e 2008 enquanto na mesma região e no
mesmo período o MAS aumentou sua votação em 182.116 votos.
Votos do MAS vs. Governadores na Meia-lua
13 Estados (na Bolívia chamados “Departamentos”) cujos governadores não apóiam o governo central (N. do T.).
Pablo Solón
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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O MAS não apenas conquistou mais de 2/3 dos votos mas também
ganhou em 95 províncias das 112 do país, demonstrando que a chamada
Meia-lua mais se parece a um quarto minguante.
Os resultados do referendo encurralaram a oposição; no entanto, ao
mesmo tempo a radicalizaram tornando-a muito mais furiosa e desesperada.
Os grupos mais violentos assumiram a liderança dos setores oposicionistas
impedindo qualquer diálogo frente à iminente constatação de que estariam em
desvantagem em todo referendo futuro sobre o novo texto constitucional.
Alguns elementos para entender a Bolívia
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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Tradução: Sérgio Duarte
DEP
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35
* Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Estados Unidos,
América do Sul e Brasil:
seis tópicos para uma
discussão
José Luís Fiori
*
1 .
Nesse início de século XXI, está cada vez mais claro que a disputa
entre as grandes potências não acabou em 1991. Apenas desacelerou,
temporariamente, como costuma acontecer depois de uma grande guerra ou
de uma vitória contundente, como foi o caso da vitória norte-americana na
Guerra Fria. Nesse caso, não houve uma rendição explícita dos derrotados,
nem um “acordo de paz” entre os vitoriosos que consagrasse uma nova
ordem mundial, como aconteceu logo após a Segunda Guerra Mundial. Isso
se deu porque não havia, naquele momento, outra potência com o poder e a
capacidade de negociar ou limitar o arbítrio unilateral dos Estados Unidos,
e porque os norte-americanos tampouco tinham disposição de negociar ou
limitar sua nova posição de poder no mundo. A projeção internacional do
poder americano começou logo após sua independência e se prolongou de
Estados Unidos, América do Sul e Brasil: seis tópicos para uma discussão
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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forma contínua através dos séculos XIX e XX. Mas foi na segunda metade
do século XX, depois da “crise de 70”, que os Estados Unidos adotaram uma
estratégia imperial explícita
1
, que obteve uma vitória contundente em 1991,
alimentando o sonho de um poder global absoluto ou de um império mundial.
Depois de 2001, essa estratégia vitoriosa assumiu uma postura bélica e, depois
de 2004, enfrentou revezes sucessivos que se somaram à expansão da China
e da Índia e ao renascimento da Alemanha e da Rússia para trazer de volta
ao centro do sistema mundial a competição e os conitos entre as grandes
potências. Essa inexão é associada, em geral, com o impasse americano
no Oriente Médio e ao fracasso da sua “guerra global” contra o terrorismo.
Mas, por trás dessa situação conjuntural, é possível identicar também uma
mudança estrutural de longo prazo que também foi provocada, em grande
medida, pela projeção global do poder americano. Nesse sentido, pode-se
dizer que a política externa recente dos Estados Unidos foi responsável por
duas guerras inconclusivas e pelo fracasso do seu projeto para o “Grande
Oriente Médio”. Mas, ao mesmo tempo, pode-se dizer que o expansionismo
americano também foi responsável, paradoxalmente, pelo sucesso econômico
da China e da Índia, e de toda a economia mundial depois de 2001 o mesmo
sucesso que está fortalecendo os principais concorrentes dos Estados Unidos
dentro do sistema interestatal. Ou seja, como vimos, a política expansiva
da potência hegemônica acaba ativando e aprofundando as contradições do
sistema mundial e fortalecendo a resistência dos Estados que são desaados
pelo avanço dos Estados Unidos, mas, ao mesmo tempo, são fortalecidos pelo
sucesso da economia americana. É óbvio que essas mudanças internacionais
não são uma obra exclusiva dos Estados Unidos e envolvem decisões políticas
de outros países e de processos que estão fora do controle americano. Mas não
há dúvida de que o expansionismo de longo fôlego e os recentes revezes dos
Estados Unidos têm uma grande importância para compreender a conjuntura
internacional desse início de século XXI e o aumento exponencial da pressão
1 “O governo Reagan combinou o messianismo anticomunista de Carter com o liberalismo econômico de
Nixon, propondo-se a eliminar a União Soviética e a construir uma nova ordem política e econômica mundial,
sob o comando inconteste dos Estados Unidos. Hoje está claro que esta estratégia adotada na década de 1980
sob liderança dos Estados Unidos e da Grã Bretanha, apressou a reviravolta na organização e funcionamento
do sistema mundial que vinha sendo elaborada, pelo menos nas duas décadas precedentes. Pouco a pouco, o
sistema mundial foi deixando para trás um modelo ‘regulado’ de ‘governança global’, liderado pela hegemonia
benevolente dos Estados Unidos, e foi se movendo na direção de uma nova ordem mundial com características
mais imperiais do que hegemônicas. J. L. Fiori (2004), “O poder global dos Estados Unidos: formação,
expansão e limites”, In: J. L. Fiori (Org.), O poder americano. Petrópolis: Editora Vozes. p. 93 e 94.
José Luís Fiori
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competitiva que es atingindo todas as regiões do mundo, alimentando
disputas hegemônicas e anunciando uma nova corrida imperialista entre as
grandes potências. Resumindo: a expansão do poder americano após a crise dos
anos 70 e, em particular, após o m da Guerra Fria, somado ao seu projeto/
processo de globalizão econômica, reacendeu a luta hegemônica entre
os Estados e as economias nacionais em quase todas as regiões do sistema
interestatal capitalista. Por todo lado, os governos rearmam seu papel na vida
econômica, sobem barreiras protecionistas e assumem o comando de suas
estratégias nacionais de desenvolvimento com suas empresas e seus “fundos
soberanos”. Quase todos os países voltam a regular seus mercados, de uma
forma ou de outra, incluindo o mercado nanceiro norte-americano.
2
Já não
se fala de “regimes” e “governança mundial” e não existe mais consenso sobre
a “ética internacional”
3
.
2. No caso da América do Sul, o impacto dessa pressão competitiva
sismica e global tem características particulares, pois se trata de um continente
onde nunca houve uma verdadeira disputa hegemônica entre os seus próprios
Estados nacionais. Primeiro, foi colônia, e depois da sua independência,
esteve sob a tutela anglo-saxônica: da Grã Bretanha, até o m do século XIX,
e dos Estados Unidos, até o início do século XXI
4
. Nesses dois séculos de
vida independente, as lutas políticas e territoriais da América do Sul nunca
atingiram a intensidade nem tiveram os mesmos efeitos que na Europa.
2 “Barreiras nacionais vêm sendo levantadas até na Internet, o símbolo do mundo sem fronteiras. Ela foi
projetada para car fora do alcance dos governos, transferindo poder, para indivíduos ou organizações privadas.
Agora, sob pressão da Rússia, China, Índia e Arábia Saudita, a empresa americana que distribui endereços na
Internet está procurando meios de os países usarem o alfabeto de sua língua-mãe. ‘Estamos assistindo ao passo-
a-passo da balcanização da internet global. Ela está se transformando numa série de redes nacionais’, diz Tim
Wu, professor de Direito da Universidade de Columbia, em Nova York.” Bob Davis, Neonacionalismo ameaça a
globalização, The Wall Street Journal, reproduzido no Valor Econômico, 29 de abril de 2008.
3 Carr, E. H. The twenty years’ crisis, 1919-1939. New York: Perennial. p. 150.
4 Em agosto de 1823, o Ministro das Relações Exteriores da Inglaterra, George Canning, propôs ao Embaixador
americano em Londres, Richard Rush, uma declaração conjunta contra qualquer “intervenção externa” na
América Latina. O Presidente James Monroe, apoiado no seu Secretário de Estado John Quincy Adams, declinou
o convite inglês. Mas três meses depois, o próprio Monroe propôs ao Congresso Americano uma doutrina
estratégica nacional quase idêntica à da proposta inglesa. Foi assim que nasceu a “Doutrina Monroe”, no dia 2
de dezembro de 1823. Como era de se esperar, os europeus consideraram a proposta de Monroe impertinente
e sem importância, partindo de um Estado que ainda era irrelevante no contexto internacional. E tinham razão:
basta registrar que os Estados Unidos só reconheceram as primeiras independências latino-americanas depois de
receber o aval da Inglaterra, França e Rússia. E mesmo depois do discurso de Monroe, se recusaram a atender
o pedido de intervenção dos governos independentes da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e México. Por isso,
muito cedo, os europeus e os próprios latino-americanos compreenderam que a Doutrina Monroe havia sido
concebida, e seria sustentada durante quase todo o século XIX, pela força da Marinha e dos capitais ingleses.
Estados Unidos, América do Sul e Brasil: seis tópicos para uma discussão
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E tampouco se formou no continente um sistema integrado e competitivo
de Estados e economias nacionais como viria a ocorrer na Ásia depois de sua
descolonização. Como conseqüência, os Estados latino-americanos nunca
ocuparam posição importante nas grandes disputas geopolíticas do sistema
mundial e funcionaram durante todo o século XIX como uma espécie de
laboratório de experimentação do “imperialismo de livre comércio”. Após a
Segunda Guerra Mundial e durante a Guerra Fria, os governos sul-americanos
se alinharam ao lado dos Estados Unidos, com exceção de Cuba depois de
1959
5
. Após a Guerra Fria, durante a década de 1990, de novo, a maioria dos
governos da região aderiram às políticas e reformas neoliberais preconizadas
pelos Estados Unidos. A partir de 2001, entretanto, a situação política do
continente mudou com a vitória, em quase todos os países da América do Sul,
das forças políticas nacionalistas, desenvolvimentistas
6
e socialistas. A grande
5 Depois de 1991 e do m da URSS e da Guerra Fria, os Estados Unidos mantiveram e ampliaram sua
ofensiva contra Cuba apesar da manutenção de relações amistosas com o Vietnã e a China. No auge da crise
econômica provocada pelo m de suas relações preferenciais com a economia soviética, entre 1989 e 1993,
os governos de George Bush e Bill Clinton tentaram um xeque-mate contra Cuba, proibindo as empresas
transnacionais norte-americanas instaladas no exterior de negociarem com os cubanos e, depois, impondo
penalidades às empresas estrangeiras que tivessem negócios com a ilha através da Lei Helms-Burton de 1996.
Essa posição permanente dos Estados Unidos o autoriza grandes ilusões nesse momento de mudanças
nos dois países. Do ponto de vista americano, Cuba lhes pertence e está incluída na sua “zona de segurança”.
Por isso, o objetivo principal dos Estados Unidos em qualquer negociação futura será sempre o de fragilizar
e destruir o núcleo duro do poder cubano.
6 A eleição de Fernando Lugo, para Presidente do Paraguai, em 2008, foi mais uma de uma série de vitórias
das forças políticas de esquerda, seguindo as eleições de Hugo Chávez, Luiz Inácio Lula da Silva, Michelle
Bachelet, Néstor e Cristina Kirchner, Tabaré Vázquez e Rafael Correa. Essa mudança político-eleitoral trouxe
de volta algumas idéias e políticas nacional-populares” e “nacional-desenvolvimentistas”, que haviam sido
engavetadas durante a década neoliberal de 1990. São idéias e políticas que remontam, de certa maneira, à
Revolução Mexicana e, em particular, ao programa de governo do Presidente Lázaro rdenas, adotado
na década de 1930. Cárdenas foi um nacionalista e seu governo fez uma reforma agrária radical, estatizou
a produção do petróleo, criou os primeiros bancos estatais de desenvolvimento industrial e de comércio
exterior da América Latina, investiu na construção de infra-estrutura, praticou políticas de industrialização
e de proteção do mercado interno, implantou uma legislação trabalhista e adotou uma política externa
independente e antiimperialista. Depois de Cárdenas, esse programa se transformou no denominador
comum de vários governos latino-americanos que em geral não foram socialistas nem mesmo de esquerda.
Assim mesmo, suas idéias, políticas e posições internacionais se transformaram numa referência importante
do pensamento e das forças de esquerda latino-americanas. Basta lembrar a revolução camponesa boliviana
de 1952, o governo democrático de esquerda de Jacobo Árbenz na Guatemala, entre 1951 e 1954, a primeira
fase da revolução cubana entre 1959 e 1962 e o governo militar-reformista do General Velasco Alvarado no
Peru, entre 1968 e 1975. Em 1970, essas idéias reapareceram também no programa de governo da Unidade
Popular de Salvador Allende, que propunha uma radicalização do modelo mexicanocom a aceleração da
reforma agria e a nacionalização das empresas estrangeiras produtoras de cobre, ao mesmo tempo em que
defendia a criação de um “núcleo industrial estratégico” de propriedade estatal, que deveria se transformar
no embrião de uma futura economia socialista.
José Luís Fiori
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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novidade desta “virada à esquerda” se deu junto ao novo ciclo de crescimento
da economia mundial. Depois de 2001, houve uma retomada do crescimento
econômico em todos os países do continente sul-americano, acompanhando
o ciclo expansivo da economia mundial. A novidade, nesse novo ciclo de
crescimento sul-americano é o peso decisivo da pressão asiática sobre a
economia continental. Em particular no caso da China, que tem sido a grande
compradora das exportações sul-americanas, sobretudo de minérios, energia e
grãos, e vem aumentando, de forma contínua, suas exportações para a região.
Por sua vez, os novos preços internacionais das commodities fortaleceram a
capacidade scal dos Estados e estão nanciando políticas de integração da
infra-estrutura energética e de transportes do continente. Além disso, os novos
pros da energia e dos mirios permitiram a formação de reservas em moedas
fortes, diminuindo a fragilidade externa da região e aumentando seu poder de
resistência e negociação internacional. As vultuosas reservas em moeda forte
da Venezuela lhe permitiram atuar duas vezes como “emprestador em última
insncia” da Argentina e do Paraguai. De todos os pontos de vista, a China es
cumprido um papel novo e fundamental na economia sul-americana, mas não
é provável que se envolva na geopolítica regional. O que é importante é que
este ciclo expansivo da economia mundial tem pressionado as economias sul-
americanas e tem fortalecido seus Estados nacionais. não possibilidade de
escapar da competição e, ao mesmo tempo, o sucesso econômico conjuntural
está potenciando o poder interno e externo dos Estados sul-americanos. Está
chegando ao m a longa “adolescência assistida” da América do Sul, mas o
preço dessa mudança no médio prazo deve ser o aumento dos conitos dentro
da própria região e o aumento da competição hegemônica entre o Brasil e os
Estados Unidos pela supremacia na América do Sul. A menos que o Brasil
opte e lute para se manter na condição de “sócio menor” dentro do espaço
hegemônico e dentro do “território econômico supra-nacional” dos Estados
Unidos, seguindo o caminho do Canadá e do México na América do Norte.
3. No caso do Brasil, seu passado pesa fortemente sobre sua posão
futura porque se trata de um país que nunca teve características expansivas nem
disputou jamais a hegemonia da América do Sul com a Grã Bretanha ou com os
Estados Unidos. Depois de 1850, o Brasilo enfrentou mais guerras civis ou
ameaças de divio interna. Depois da Guerra do Paraguai, na cada de 1860, o
Brasil teve apenas uma participação pontual, na Itália, durante a Segunda Guerra
Mundial, e algumas participões posteriores nas “forças de pazdas Nações
Estados Unidos, América do Sul e Brasil: seis tópicos para uma discussão
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Unidas e da OEA. Sua relação com seus vizinhos da América do Sul, depois
de 1870, foi sempre paca e de pouca competitividade ou integração política
e econômica. Durante todo o século XX, sua posão dentro do continente foi
a de sócio auxiliar da hegemonia continental dos Estados Unidos. Depois da
Segunda Guerra Mundial, o Brasil o teve maior participação na Guerra Fria,
mas, apesar do seu alinhamento com os Estados Unidos, começou a praticar
uma política externa um pouco mais autônoma a partir da década de 60. Na
cada de 70, em particular no governo do General Ernesto Geisel, o Brasil se
propôs um projeto de “potência intermediária”, aprofundando sua estratégia
econômica desenvolvimentista, rompendo seu acordo militar com os Estados
Unidos, ampliando suas relões afro-asticas e assinando um acordo atômico
com a Alemanha. Mas sua crise ecomica dos anos 80 e o m do regime
militar desativaram esse projeto, que foi completamente engavetando nos anos
90, quando o Brasil voltou a alinhar-se com os Estados Unidos e seu projeto
de crião da ALCA. Mais recentemente, entretanto, depois de 2002, a potica
externa brasileira mudou de rumo e assumiu uma posição mais agressiva de
armação sul-americana e internacional dos interesses e da lideraa brasileira
como na prioridade que vem sendo dada à integração sul-americana e às relações
mais próximas com alguns países da África e da Ásia, em particular, China, Índia
e África do Sul. Mas o Brasil ainda enfrenta limitações importantes para expandir
seu poder internacional: primeiro, devido ao não reconhecimento estragico da
existência de um competidor ou adversário na luta pela hegemonia sul-americana,
pelo simples fato de que este competidor inevitável responde pelo nome de
Estados Unidos da Arica. Em segundo lugar, devido à falta de organizão
estratégica do seu crescimento econômico que, por isso mesmo, foi muito baixo
nas duas últimas décadas devido à baixa capacidade de coordenação dos seus
investimentos públicos e privados, fora do Brasil e, em particular, na América
do Sul. Por m, devido à força política dentro das elites brasileiras e do próprio
establishment da sua potica externa, da posão favovel à manuteão do Brasil
na condição de sócio menor dentro do espaço hegemônico norte-americano e
dentro do “território econômico supranacional” dos Estados Unidos.
4. Com relação ao posicionamento norte-americano dentro do hemisfério,
que prestar atenção nas suas eleições presidenciais de 2008, porque elas
fazem parte de um processo de realinhamento da estratégia internacional
dos Estados Unidos. Esse processo deverá tomar alguns anos, mas é muito
pouco provável que os Estados Unidos abram mão dos três “direitos de
José Luís Fiori
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intervenção” auto-atribuídos que orientaram sua política hemisférica,
durante o século XX: i) em caso de “ameaça externa”; ii) em caso de “desordem
econômica”; e, iii) em caso de “ameaça à boa democracia”. No período da
Guerra Fria, os Estados Unidos patrocinaram, em todo continente, guerras
civis, intervenções militares e regimes ditatoriais contra um suposto “inimigo
externo”. Depois do m da Guerra Fria, patrocinaram nos mesmos países,
intervenções nanceiras e reformas econômicas neoliberais para combater
uma suposta “desordem econômica interna” e garantir o cumprimento dos
compromissos nanceiros internacionais da América Latina. E, nalmente,
a partir de 2001, os Estados Unidos vem incentivando claramente as forças
poticas conservadoras e a opino blica contra os governos que eles chamam
de “populistas autoritários” e que seriam uma ameaça à democracia.
5. Nessa encruzilhada norte-americana é interessante relembrar e reetir
sobre os grandes princípios que orientaram a política externa dos Estados
Unidos com relação à América Latina na segunda metade do século XX. Esses
princípios foram formulados pelo principal “geoestrategista” norte-americano
do século XX, que nasceu em Amsterdam, em 1893, e morreu nos Estados
Unidos, em 1943, Nicholas Spykman. Morreu ainda jovem, com 49 anos, e
deixou apenas dois livros sobre a política externa norte-americana: o primeiro,
America’s strategy in world politics, publicado em 1942, e o segundo, The geography
of the peace, publicado um ano depois da sua morte, em 1944. Dois livros que se
transformaram na pedra angular do pensamento estratégico norte-americano
de toda a segunda metade do século XX e do início do século XXI. Chama a
atenção o grande espaço que ele dedica à discussão da América Latina e, em
particular, à “luta pela América do Sul”. Ele parte de uma separação radical
entre a América dos anglo-saxões e a América dos latinos. Nas suas palavras,
“as terras situadas ao sul do Rio Grande constituem um mundo diferente do
Cana e dos Estados Unidos. E é uma coisa desafortunada que as partes de fala
inglesa e latina do continente tenham que ser chamadas igualmente de América,
evocando uma similitude entre as duas que de fato não existe.
7
Em seguida ele
propõe dividir o “mundo latinoem duas regiões do ponto de vista da estratégia
americana no sub-continente: uma primeira, “mediterrânea”, que incluiria
o México, a América Central e o Caribe, além da Colômbia e da Venezuela;
e uma segunda que incluiria toda a América do Sul abaixo da Colômbia e
7 Spykman, Nicholas. America’s Strategy in World Politics”. New York: Harcourt, Brace and Company,
1942. p. 46.
Estados Unidos, América do Sul e Brasil: seis tópicos para uma discussão
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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da Venezuela. Feita essa separação geopolítica, Spykman dene a América
Mediterrânea como uma zona em que a supremacia dos Estados Unidos não
pode ser questionada. Para todos os efeitos, trata-se de um mar fechado cujas
chaves pertencem aos Estados Unidos. O que signica que o México, Combia
e Venezuela [por serem incapazes de se transformar em grandes potências]
carão sempre numa posição de absoluta dependência dos Estados Unidos.
(p. 60). Donde, qualquer ameaça à hegemonia americana na América Latina
deverá vir do sul, em particular da Argentina, Brasil e Chile, a “região do ABC”.
Nas palavras do próprio Spykman: “para nossos vizinhos ao sul do Rio Grande,
os norte-americanos serão sempre o “Colosso do Norte”, o que signica um
perigo no mundo do poder político. Por isso, os países situados fora da nossa
zona imediata de supremacia, ou seja, os grandes Estados da América do Sul
[Argentina, Brasil e Chile] podem tentar contrabalançar nosso poder através de
uma ação comum ou através do uso de inuências de fora do hemisfério.” (p.
64). E nesse caso, conclui: “uma ameaça à hegemonia americana nessa região
do hemisfério [a região do ABC] terá que ser respondida através da guerra.
(p. 62). O mais interessante é que se essas análises, previsões e advertências
não tivessem sido feitas por Nicholas Spykman, pareceriam bravata de algum
desses populistas latino-americanos, que inventam inimigos externos e que se
multiplicam como cogumelos, segundo a idiotia conservadora.
6. Depois de Nicholas Spykman, Henry Kissinger foi o intelectual
que ocupou posão mais importante na formulação e implementação da
política externa norte-americana nas cadas de 1960 e 1970. Ele teve uma
participação decisiva na vida política interna da América do Sul. Basta ler
os documentos ociais americanos que estão disponíveis e as várias
pesquisas jornalísticas e acadêmicas que apontam para o envolvimento
direto do ex-Secretário de Estado norte-americano com a preparação e
execução dos violentos golpes militares que derrubaram os governos eleitos
do Uruguai e do Chile em 1973, e da Argentina em 1976. Além disso,
existem inúmeros processos judiciais, em vários países
8
, envolvendo Henry
8 Na França, Henry Kissinger foi chamado a depor pelo juiz Roger Loire no processo sobre a morte de
cidadãos franceses na Operação Condor e sob a ditadura militar chilena. O mesmo ocorrendo na Espanha, com
a investigação do juiz Juan Guzman sobre a morte do jornalista americano Charles Horman, sob a ditadura
chilena. E também na Argentina, onde Kissinger está sendo investigado pelo juiz Rodolfo Canicoba por
envolvimento na Operação Condor, assim como em Washington, onde existe um processo na corte federal
com acusação contra Kissinger de haver dado a ordem para o assassinato do General Schneider, Comandante-
em-Chefe das Forças Armadas chilenas, em 1970.
José Luís Fiori
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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Kissinger com a Operação Condor
9
, que integrou os serviços de inteligência
das Forças Armadas da Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai para
seqüestrar, torturar e assassinar personalidades políticas de oposição. Sempre
causou perplexidade entre os analistas o apoio de Kissinger e da diplomacia
americana à essas “intervenções militares”, que se caracterizaram por sua
extraordinária trucuncia. Mas não é difícil de entender o que aconteceu
quando se olha para os interesses estratégicos dos Estados Unidos, e sua
defesa na América do Sul, da perspectiva de longo prazo traçada por Nicholas
Spykman, em 1942. Spykman deniu o continente americano, do ponto
de vista geopotico, como primeira e última linha de defesa da hegemonia
mundial dos Estados Unidos. Dentro desse hemisfério, ele considerava
improvável que surgisse um desao direto à supremacia dos Estados Unidos
na América Mediterrânea”, onde ele incluía o México, a América Central
e Caribe mas tamm a Combia e a Venezuela. Pom, ele considerava
que poderia surgir um desao dessa natureza na rego do ABC, no Cone
Sul da América. E nesse caso, ele considerava inevivel o recurso à guerra.
A sigla ABC refere-se a Argentina, Brasil e Chile, mas a rego do ABC
inclui também o território do Uruguai e do Paraguai, incluindo exatamente
os mesmos cinco países que estiveram envolvidos na Operação Condor.
Nesse sentido, pode-se dizer que Henry Kissinger seguiu rigorosamente as
recomendações de Nicholas Spykman com relão ao controle dessa região
geopolítica. Sua única contribuição pessoal foi a substituição da “guerra
externa”, proposta por Spykman, pela “guerra interna” das Forças Armadas
locais contra setores de suas próprias populões nacionais. Mas mesmo
nesse ponto, Kissinger não foi original: recorreu ao método que havia sido
utilizado pelos ingleses na Índia durante 200 anos, e em todos os lugares em
que a Grã Bretanha dominou Estados fracos, ou seja, usando de suas elites
divididas e subalternas para controlar as suas próprias populações locais.
Nas décadas de 80 e 90, Henry Kissinger afastou-se da diplomacia direta,
mas manteve sua inuência pessoal e intelectual dentro do establishment
americano e dentro das elites conservadoras sul-americanas. Em 2001, ele
publicou um livro sobre o futuro geopolítico e sobre a defesa dos interesses
9 O interesse sobre o assunto foi reavivado recentemente pelo livro do jornalista Christopher Hitchens, The
trial of Henry Kissinger (2001), e pela resenha de Kenneth Maxwell do livro de Peter Kornbluh, The Pinochet le:
a declassied dossier on atrocity and accountability, publicado na revista Foreign Affairs, de dezembro de 2003, sobre as
relações de Kissinger com o regime de Augusto Pinochet, em particular com o assassinato do diplomata chileno
Orlando Letelier, em Washington, 1976.
Estados Unidos, América do Sul e Brasil: seis tópicos para uma discussão
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americanos ao redor do mundo
10
. Com relação à América do Sul, o autor
atenuou a forma, mas manteve o “espírito” de Spykman: segundo Kissinger,
a América do Sul segue sendo essencial para os interesses americanos e deve
ser mantida sob a hegemonia dos Estados Unidos. Só que hoje a ameaça
a essa hegemonia já não vem da Alemanha nem da União Soviética, vem
de dentro do próprio continente. No plano econômico, a amea vem dos
projetos de integração regional que excluam ou se oponham à ALCA, e no
plano político, dos populismos e nacionalismos que estão renascendo no
continente.
DEP
10 Kissinger, Henry. Does America need a foreign policy? Toward a diplomacy for the 21
st
century. New York:
Simon&Schuster, 2001.
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Transformação da
matriz sócio-política
e desenvolvimento
no Chile
Manuel A. Garretón M.
*
O Chile por volta dos anos 50
A
o início do século XX, o Chile começou a desenvolver o que
denominamos de matriz sócio-política clássica para a América Latina: estatal,
nacional, popular, democrática e partidária, no caso do Chile. O modelo
econômico e social, até aquela época, baseava-se em um sistema de livre
mercado conhecido como modelo de desenvolvimento voltado para fora,
sustentado no paradigma mais ortodoxo do livre corcio. O modelo
econômico ortodoxo se combinava com um sistema oligárquico de democracia
restrita, com grandes níveis de exclusão política e social. O papel do Estado
durante esse período foi nimo e ocorreu paralelamente à expano capitalista
das cidades de desenvolvimento mineiro e industrial que atraíam grandes uxos
migratórios do campo e do centro do país. Em conseqüência, sobreveio uma
* Universidade do Chile.
Transformação da matriz sócio-política e desenvolvimento no Chile
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aguda problemática social que tornou evidente a crise do modelo oligárquico,
o qual entrou denitivamente em colapso após a crise mundial de 1929,
obrigando-se, assim, a mudar por completo a estratégia de desenvolvimento
e iniciar uma nova era na qual o Estado pela primeira vez assume um papel
importante nesse processo.
A denominada “questão social” dos anos 20, para aludir ao problema
da exclusão insustentável do novo proletariado, gerou um clima propício para
importantes transformações sociais. Desde 1880 e até os anos 20, surgiram
grupos políticos progressistas de classe média e um emergente movimento
operário que atingiu considerável nível de organização por volta de 1922
com a fundação do Partido Comunista. Embora seja verdade que os grupos
progressistas até os anos 20 não despertaram grande efervescência eleitoral, no
entanto ajudaram a colocar novos temas na agenda social e sob a candidatura
do liberal Arturo Alessandri Palma, que chegou à presidência em 1920,
conseguiram-se importantes avanços.
No governo Alessandri, foi redigida uma nova Constituição em 1925,
que recebeu forte inuência das doutrinais sociais constitucionais imperantes
no século XX, a partir das Cartas Fundamentais que foram a Constituição
mexicana (1917) e a soviética (1918), de forma que a nova Constituição chilena
procurou assegurar um grau de bem-estar nimo aos cidadãos, com a proteção
explícita do trabalho, da indústria e Previdência Social.
Graças às bases institucionais da Constituição de 1925, foi promulgado
o Código do Trabalho em 1931 e um Código Sanitário. Por meio dessa
Constituição, foi estabelecido um sistema presidencialista democrático, a
m de deixar para trás as experiências trauticas de parlamentarismo que
havia levado a fortes crises institucionais em ns do século XIX. Além disso,
estabeleceu-se uma nova lei eleitoral que incorporou a proporcionalidade
como princípio diretor da representação no Congresso e a separação absoluta
da Igreja e do Estado, criou-se o Banco Central e implementou-se, ainda,
uma nova legislação bancária, a lei de orçamento e a Controladoria Geral
da República.
A Constituição de 1925 trouxe uma base institucional para o
desenvolvimento dos posteriores processos sociais que veremos mais adiante
e que ajudaram a constituir uma matriz sócio-política clássica baseada em
elementos como um corpo institucional econômico relativamente moderno,
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democratização política, proteção social, papel promotor do Estado, laicismo.
Tudo isso, no entanto, em caráter relativamente precário e sujeito a regressões
parciais devido, até os anos 70, à exclusão dos camponeses e setores pobres
urbanos, e à presença de enclaves oligárquicos e econômicos como a propriedade
estrangeira da grande mineração, a resistência dos setores proprietários e a
falta de coalizões políticas estáveis entre o centro e a esquerda, expressões
políticas dos setores médios e populares, respectivamente.
A Grande Depressão de 1929 afetou o Chile de maneira extraordinária,
mais do que em vários países da América Latina e do mundo, devido à queda
das exportações de salitre e cobre e, portanto a redução das receitas scais e
das reservas, o que acarretou o não pagamento da dívida externa por volta de
1931. A estratégia para vencer a crise foi a industrialização por substituição
de importações (ISI) que implicou na redução das importações, combinada
com políticas de expansão da demanda interna e controle das taxas de câmbio.
O padrão ouro foi abandonado e implementou-se uma rie de medidas
destinadas a fortalecer a produção e a demanda nacional diante do fechamento
dos mercados internacionais pela aplicação de quotas e tarifas, desestimulando
a importação de bens de consumo juntamente com a adoção de políticas
monetárias e scais anticíclicas.
O resultado da aplicação do modelo ISI foi, naturalmente, o
desenvolvimento de uma indústria nacional sob o fomento e proteção do
Estado por meio de instituições como a Corporação de Fomento da Produção
(Corfo) criada em 1939, que gerou uma simbiose entre um Estado empresário
e um setor privado fortemente subsidiado. O sistema capitalista permaneceu
inquestionável em suas bases até os anos 50 sob uma adaptação circunstancial
à crise de 1929, inicialmente, e, em seguida, à consolidação de uma idéia ou
modelo de “Estado de Compromisso”, versão latino-americana do welfare State,
nunca consolidada no Chile.
A aplicação dessas medidas foi, na verdade, em um primeiro momento,
uma resposta natural e racional à crise, que não era possível outra saída
viável diante do descalabro nanceiro internacional seguido, posteriormente,
pela Segunda Guerra Mundial. Não obstante, por volta do nal da referida
guerra, o aprofundamento dessas medidas se viu reforçado pelo surgimento
de uma ideologia latino-americanista fundada na teoria do desenvolvimento
ou do estruturalismo, impulsionada pela Cepal em meados dos anos 40.
Transformação da matriz sócio-política e desenvolvimento no Chile
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A matriz estatal-nacional-popular-democrático-partidária
O modelo social chileno, ou matriz sócio-política predominante no
século XX, pode ser denido como estatal-democrática, nacional-popular e
político-partidária, e poderia ser caracterizada pela imbricação entre política e
sociedade civil, incluída a economia, com um papel preponderante e articulador
em torno do Estado e do sistema de atores políticos, ou sistema partidário.
Tratava-se, assim, da armação da identidade de uma comunidade nacional
que vai sendo feita com o trabalho e as lutas de seus atores representativos
no campo político. Isso signica um esforço de incorporação social ampla e
a busca de solução de conitos no quadro institucional, e não pela força ou
pela coerção e exclusão.
No plano político, que foi sempre a principal expressão da idéia nacional-
estatal-democrático-popular-partidária, existia a Constituição de 1925 e um
corpo de instituições que buscavam o respeito à lei e às liberdades, ao mesmo
tempo que buscavam a responsabilidade do Estado e do serviço público, e
também as leis sociais da época, o voto universal e a incorporação das massas
à política desde 1920. Com esses ideais, estava fundado o eixo dos projetos do
Partido Radical e dos partidos de esquerda na Frente Popular, com a integração
das classes médias e setores populares, da Pátria Jovem e da revolução na
Liberdade do projeto democrata-cristão dos anos 60 e da Via Chilena ao
Socialismo encabeçada pela Unidade Popular e pelo presidente Allende
entre 1970 e 1973. No plano socioeconômico, esse projeto se expressou na
industrialização por meio do papel dirigente do Estado, da educação pública
gratuita e das universidades de âmbito nacional, da reforma agrária e, mais
adiante, das nacionalizações e do Serviço Nacional de Saúde, além de vários
outros marcos signicativos. Inclusive, em uma época passada, o serviço
militar desempenhou, de certo modo, um papel de integração nacional.
Com os governos da Frente Popular de 1938 a 1952, começou uma etapa
sólida de reformas sociais e crescimento industrial com políticas destinadas a
gerar uma base de infra-estrutura para a produção e um sistema de proteção
social para as classes operária e média. Entre 1940 e 1953, a indústria cresceu
em média 7,5% ao ano, chegando a aumentar sua participação no PIB de 7,9%
em 1929 para 23% em 1955.
Os resultados do período indicam que, independentemente da
orientação política ou ideológica dos governos que se sucederam por mais
Manuel A. Garretón M.
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de quarenta anos, havia certo consenso político e social em torno do esforço
quanto à industrialização e ao papel do Estado como eixo fundamental do
desenvolvimento, mediante instituições como a Corfo, que controlava 30% do
investimento total em bens de capital, 25% do investimento público e 18% do
investimento bruto total. Não obstante, o acordo sobre o papel do Estado não
evitou a existência de discrepâncias oriundas do campo econômico e político
da direita, assim como divergências sobre as orientações sociais no campo
mesocrático-popular ou de centro-esquerda. A política de industrialização
e desincentivo do comércio exterior tinha, por sua vez, um debate político
implícito relacionado com os movimentos de trabalhadores representados
nas estruturas políticas do Estado e dos partidos; esses movimentos operários
estabeleceram alianças com o novo empresariado industrial em prejuízo do setor
agrícola proprietário de terras, mais relacionado com as exportações, elemento
esse que seria ponto de conito no momento da crise do modelo ISI.
Por volta do nal dos anos 50, o modelo começou a entrar em colapso.
A inação e o desemprego foram sinais de severos problemas devido à
implementão de medidas protecionistas em relão à economia que, apesar de
mostrar indícios de melhoria quanto à qualidade de vida e de acesso aos serviços
para a população, augurava um cenário futuro muito negativo. O governo
conservador de Carlos Ibañez del Campo, eleito em 1952, procurou realizar
reformas no modelo Cepalino, porém sem êxito, com as recomendações da
missão econômica norte-americana Klein-Sachs (1955) restringindo a oferta
monetária e o gasto público, as quais não puderam ser aplicadas devido ao
caráter recessivo dos resultados.
O modelo de substituição de importações não foi exitoso. As críticas
a ele mostram que surgiu um aparelho buroctico excessivo e inecaz
para sustentar a infra-estrutura de benefícios sociais e setores produtivos
inecientes. Ao mesmo tempo, não se conseguiu a almejada independência em
relação ao setor externo, pois se elevou a dependência quanto à importação
de bens de capital e matérias primas a m de satisfazer a produção interna,
ocasionando distorção de preços devido aos subsídios e falta de competição
e, em conseqüência, ocorreu também elevação de preços e desemprego, o que
levou a um maior questionamento do modelo e tornando assim mais aguda
a confrontação ideológica entre os defensores do modelo Cepalino e seus
oposicionistas, partidários da modernização neoliberal.
Transformação da matriz sócio-política e desenvolvimento no Chile
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Em 1958, com a chegada do conservador Jorge Alessandri Rodriguez
ao poder, tentou-se um processo de reforma capitalista modernizadora, que
procurou imprimir ao setor privado o motor do desenvolvimento, porém
com uma política scal ativa ao estilo keynesiano. Estabeleceu-se uma taxa de
câmbio nominal como espécie de âncora para o controle de preços, junto com
a manutenção de créditos externos ao governo, isto é, uma política keynesiana
de endividamento scal com o objetivo de ativar a demanda interna por meio
do gasto scal. Apesar do acerto das reformas, estas não deram os resultados
esperados nem foram sucientes para sustentar um crescimento da produção
nem o controle de preços, posto que a estratégia modernizadora carecia de uma
coerência de médio prazo com as medidas de ajuste propostas e o controle de
preços, graças à contenção das medidas de Alessandri, que tiveram somente
um efeito momentâneo para controlar a inação. Por outro lado, essas medidas
não contaram nem com o apoio do setor empresarial e muito menos com uma
maioria política consistente.
O governo do democrata-cristão Eduardo Frei Montalva (1964) colocaria
em marcha um processo de reformas juntamente com um plano denominado
A Revolão em Liberdade”, sustentado em uma estabilizão cambial gradual
não recessiva, reforma agrária e um forte estímulo às organizações sindicais
camponesas, modernização industrial com importante papel promotor do
Estado e fomento à indústria de telecomunicações e à indústria petroquímica,
além do início da nacionalização do cobre (denominada “chilenização”) que
mais tarde seria concretizada pelo governo da Unidade Popular.
Entre 1965 e 1973, conguraram-se as tendências reformistas, cuja
principal plataforma foi a integração crescente dos setores populares mais
pobres bem como dos setores agrários e urbanos no plano econômico, político
e social. Sob o governo de Eduardo Frei, as reformas adquiriram caráter mais
gradual, porém no governo de Allende, a estratégia foi de mudanças radicais,
principalmente no campo da organização econômica e social. Excetuando-se
a ampliação da cidadania, não foram propostas reformas ao sistema político-
institucional em nenhum dos dois governos reformistas.
As principais reformas no campo econômico (reforma agrária e
nacionalização do cobre) estavam relacionadas com o sistema de propriedade
de setores considerados estratégicos para o desenvolvimento. Por sua vez,
as reformas de ampliação democrática estiveram centradas na organização
Manuel A. Garretón M.
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social e na incorporação de camponeses, jovens e analfabetos aos mecanismos
eleitorais. Sob esses governos, promulgou-se a lei de sindicalização camponesa,
que ajudou na incorporação do setor rural à vida política, cujos direitos sociais
e políticos vinham sendo secularmente postergados; estendeu-se o direito de
voto aos analfabetos e reduziu-se de 21 para 18 anos a idade para exercer o
sufrágio. Durante ambos os governos, houve absoluto respeito à Constituição
e ao exercício regular das instituições democráticas, além da plena vigência das
liberdades públicas e do Estado de Direito.
O espectro potico passava por um duplo processo: de ampliação,
por um lado, com a gestação de partidos de esquerda resultantes da cisão da
democracia cristã, e por outro, de polarização e rigidez através da unicação
da direita em um partido de feição mais nacionalista e autoritária (Partido
Nacional), da conquista de autonomia por parte do centro mais ideológico
inclusive com projeto alternativo próprio (Democracia Cristã) e da junção
da esquerda em torno da matriz marxista-leninista, com um projeto mais
radicalmente anti-capitalista.
Desde a crise de 1929 até 1973, o Estado desempenhou um papel central
não apenas na orientação do desenvolvimento e do “ordenamento” dos atores
econômicos e sociais sob um modelo desenvolvimentista comum, mas, além
disso, foi um articulador social e político por excelência. Os governos de
alternâncias, de direita, centro ou esquerda, mantiveram políticas econômicas de
proteção à indústria nacional, subsidiaram os agentes econômicos (com baixas
taxas de juros ao crédito) e efetuaram redistribuição sistemática e progressiva
da renda, assumindo, por um lado, funções na regulamentação de salários e
preços e por outro, aumentando as ações sociais nas áreas de educação, saúde
e moradia no orçamento scal. De fato, o investimento social é atualmente
reconhecido como um dos elementos duradouros do desenvolvimentismo.
Além disso, é valorizada como base sem a qual não teria sido possível o
crescimento atual da economia chilena. Os resultados econômicos do período
analisado mostram tendências moderadas, porém sustentadas de crescimento,
baixo desemprego e taxas razoáveis de investimento, embora com elevados
índices de inação, o que mostra o caráter mais político do desmoronamento
da democracia em 1973.
A característica principal da matriz clássica é a centralidade na política,
não apenas em relação aos aspectos econômicos, mas também na constituição
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de atores sociais e no plano das orientações culturais, sem negar a autonomia
própria desta dimensão. É verdade que estamos tratando de orientões
culturais que valorizam a educação, a igualdade e a solidariedade, os projetos
coletivos de nação, o caráter mesocrático, porém no qual tampouco estão
ausentes componente meritocráticos e também classistas e oligárquicos,
provenientes da presença da cultura do campo ou da fazenda. Mas a identidade
chilena e o processo de construção de identidade coletiva em seu interior
tiveram a política como eixo central. Esta sim foi muito mais do que os
demais aspectos que denem o governo e suas decisões. Foi o modo particular
de constituir-se como sociedade, uma forma de vida social. A política e as
instituições foram os principais instrumentos dessas respostas, congurando
uma perpétua ambigüidade ou hipocrisia entre a aceitação da norma e a dúvida
de seu valor intrínseco.
Mas, a particularidade da política chilena é que se tratava de uma política
de caráter mais partidário do que personalizado ou populista, como ocorria
em outros países da América Latina. A existência de um espectro ideológico
partidário completo, antes que se completasse a participação das massas na vida
social e política, conferiu a essa centralidade da política um caráter altamente
ideológico, que se radicalizaria nos anos 60 e ligaria a ideologia abstrata às
reivindicações concretas.
O modelo nacional popular, estatal-democrático e político-partidário,
que descrevemos em seus aspectos mais gerais, mostrou grandes contradições
e limitações, apesar de suas realizações. Dentre elas, a marginalização ou
subordinação e incorporão tardia de camponeses, habitantes urbanos,
mulheres e áreas regionais; a exclusão e avassalamento de diversas formas
culturais e identidades não ligadas à expressão política, especialmente a dos
povos originários; o sectarismo caracterizado pela apropriação e identicação
do ideal nacional popular por um determinado setor social, político ou cultural,
excluindo-se os demais, segregando ao invés de integrar; uma cultura que não
incentivava a criatividade individual nem a diversidade de expressões, e sim uma
homogeneidade aparente que ocultava traços de mediocridade, discriminação,
classismo e hipocrisia; por último, uma excessiva dependência da economia à
política nos aspectos de caráter mais estritamente técnico.
São precisamente essas contradições e a diculdade de superá-las que
criaria as condições propícias para uma crise que seria aproveitada pelos
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setores dominantes da economia e as Forças Armadas com o intuito de
realizar seu próprio projeto socioeconômico e político, completamente alheio
aos princípios do modelo vigente até então. Em 1970, houve uma crise de
legitimidade do modelo de desenvolvimento capitalista e de suas conseências
sociais, mas não do regime democrático. Durante o período de 1970-1973, ao
contrário, desenvolveu-se a crise de legitimidade democrática que provocaria
o desmoronamento de todo o sistema político.
A Unidade Popular e a crise político-econômica
O conjunto de partidos da esquerda chilena, agrupados na Unidade
Popular sob a liderança de Salvador Allende, compartilhava com as forças
políticas chilenas, em qualquer ponto do espectro ideológico, a aspiração
revolucionária de mudança radical e global da sociedade. No caso da esquerda,
esta se entendia como sendo socialista, cujo lema era a substituão da
sociedade capitalista, porém, diferentemente da generalidade dos países latino-
americanos, mantendo-se no quadro de um regime democrático. Por outro
lado, o projeto de conteúdo, a transformação do mundo capitalista e o início da
transição ao socialismo, esbarravam nas visões predominantes da época, como
o determinismo econômico da vida social e política, as elaborações ideológicas
através de sistemas relativamente monolíticos de pensamento e, sobretudo,
a ausência de modelos de referência para o pensamento de esquerda que não
fossem os socialismos históricos ou reais e nem a matriz marxista-leninista
revolucionária.
Apesar disso, foi possível formular, preliminarmente, uma visão própria,
a “via chilena para o socialismo cuja melhor expreso doutrinária é a
denição dada por Salvador Allende em sua primeira mensagem ao Congresso
como presidente, em 1971, ao defender a relação entre democracia política e
democracia econômica e social. Por sua vez, o programa da Unidade Popular
fazia referência, por um lado, a certas metas e formulações estratégicas, e
por outro a medidas especícas de cunho basicamente redistributivista e de
satisfação às necessidades das grandes maiorias. O vínculo entre ambas era a
expropriação dos monopólios, que daria ao Estado o excedente necessário para
reorientar o aparelho produtivo em direção à satisfação de tais necessidades.
Com espírito eminentemente anti-capitalista, o programa econômico
da Unidade Popular focalizava uma política redistributiva em busca da
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democracia econômica, baseada em mudanças estruturais da propriedade
mediante um programa de nacionalizações dirigido às grandes mineradoras
de cobre, salitre, iodo, ferro e carvão; aos bancos; ao comércio exterior e
aos monopólios estratégicos. Houve intervenções em empresas privadas de
distribuições consideradas estratégicas e outras foram tomadas arbitrariamente
por organizações de trabalhadores, assim como muitos estabelecimentos
agrícolas não atingidos pela reforma agrária do período anterior. Por outro
lado, reduziram-se as tarifas dos serviços públicos e aumentaram-se os salários
por meio da emissão de meios circulantes do Banco Central, provocando forte
inação que chegou a 293% em 1973.
Porém, além das insuciências teóricas e prograticas do projeto
da Unidade Popular e de um discurso que exacerbava a identidade do ator
social popular, tornando-o excludente e confrontativo, tratava-se da busca da
quadratura do círculo: fazer uma revolução por métodos não revolucionários
e democráticos, sem contar com a maioria institucional que, no Chile, somente
se constrói por meio dos partidos políticos. A necessidade de uma estratégia de
construção da maioria, associada ao fato de que a democracia cristã tamm tem
uma conta a saldar com seu passado, é a grande lição do período. Sem dúvida,
a Concertação de Partidos pela Democracia, que sucedeu ao regime militar
em 1990, não se explica somente pela necessidade de luta contra a ditadura
militar, mas também, precisamente, pelo aprendizado dessa lição. De qualquer
modo, analisar a realidade do período 1970-1973 e de sua culminação no golpe
militar de 1973 apenas em termos de fracasso por debilidade e inviabilidade
de um projeto e sua respectiva estratégia, seria pecar por desconhecimento.
Esses três anos estiveram marcados por uma luta política em que um setor da
oposição à Unidade Popular e ao governo de Allende tentou, desde o primeiro
momento, sua derrubada, objetivo que na época era também almejado pelo
governo norte-americano.
O projeto autoritário neoliberal
Entre 1973 e 1989, ocorreu a interrupção do regime democrático com
o governo militar de facto, sob a liderança de Augusto Pinochet. O golpe de
Estado pôs m à regularidade institucional que o país havia vivido caracterizado
por: poucas interrupções em mais de 150 anos de vida republicana; dissolução
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do Congresso; a assunção da faculdade legislativa por uma Junta de Governo;
a proibição dos partidos políticos; a suspensão dos mecanismos eleitorais; a
eliminação, na prática, das liberdades públicas; a repressão maciça e sistemática
contra aqueles que eram considerados partidários do governo anterior e
opositores do novo regime; e a subordinação do Poder Judicial ao governo
de facto. O modelo institucional do regime autoritário se consolidou ao ser
aprovada, em um plebiscito fraudulento, a constituição de 1980, dando lugar
a um processo de institucionalização autoritária que desembocaria, oito anos
depois, no plebiscito de 1988.
Estamos, assim, diante da presença de um projeto contra-revolucionário.
A história do regime militar chileno desde 1973 até 1981/82 é a história de um
duplo processo. Por um lado, a repressão e desativação dos atores previamente
constituídos, o que, dada a natureza dessa constituição, passou pela supressão
da atividade político-partidária que se manifestou no primeiro período sob
o manto da Igreja. Por outro lado, a personalização, misturando os traços
de ditadura pessoal e de regime institucional, do poder político e militar do
General Pinochet e a formação de um núcleo hegemônico no qual se combina
o poder político personalizado com a condução socioeconômica do Estado a
cargo de uma equipe tecnocrática ligada ao capitalismo nanceiro, conhecido
como os Chicago Boys.
O conteúdo principal do projeto civil-militar era, por um lado, reverter as
relações entre economia e Estado, reduzindo este último ao máximo possível
em suas tarefas integradoras e redistributivas e em seu papel de referência
da ação coletiva, sem deixar de utilizá-lo para as tarefas coercitivas e para a
implantação do próprio modelo. Por outro lado, o objetivo era impulsionar
um conjunto de transformações sociais e institucionais, que foram conhecidas
como “modernizões”, cujo signicado principal era a atomizão das relações
sociais, reduzindo-as a mecanismos de mercado e cortando sua vinculação
com a ação política.
A fórmula autoritário-neoliberal foi proposta como uma superação
radical das fórmulas precedentes: a capitalista tradicional, a fórmula mista dos
anos 60 e a de orientação socialista da Unidade Popular. Com a supressão
da política, o regime militar conseguiu realizar as transformações que o
núcleo tecnocrático estimou como sendo necessárias, e que foram impostas
a partir do Estado, sem contrapesos sociais. Os custos sociais do ajuste têm
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sido amplamente analisados e os efeitos sobre a sociedade atual e futura são
indubitavelmente de longo prazo. A fórmula neoliberal produziu não apenas
uma reestruturação econômica, mas também uma intervenção na política, que
signicou um modelo institucional do regime garantido na Constituição de 80;
um reordenamento social que signicou a emergência do ator empresarial e a
dissolução dos atores sociais populares; bem como mudanças nas orientações
culturais dos atores sociais e políticos.
O plano econômico estabilizador e de reorganização do governo militar,
baseou-se na desarticulação do Estado de Compromisso da matriz sócio-
potica clássica, e na construção de um novo projeto que se tornaria uma matriz
neoliberal, do ponto de vista de nosso enfoque analítico. Primeiramente, foram
estabelecidas políticas para controlar os desequibrios macroeconômicos, tendo
como principal prioridade o controle da inação e, posteriormente, a abertura
comercial unilateral e indiscriminada bem como a liberalização dos preços e
do mercado nanceiro. Igualmente, começou-se a desmantelar o aparelho
estatal sobre todo o sistema empresarial do Estado por meio de privatizações,
inclusive de algumas áreas tradicionalmente pertencentes ao Estado, como o
sistema de aposentadorias e o sistema de saúde. O endividamento externo foi
um pilar fundamental para a implementação das reformas da nova economia,
“faca de dois gumes” que, posteriormente, em 1982, fez com que as bolsas de
valores chilenas apresentassem default, com a crise da dívida mundial.
Simultaneamente à introdução de mudanças radicais na economia
(liberalização, abertura externa e privatização), o governo militar transformou
as políticas sociais. Tais mudanças ocorreram em seis direções principais:
drástica redução de recursos, afetando particularmente e de forma mais
intensa a moradia, saúde e educação (e dentro desses setores, as maiores
reduções foram nos investimentos e remuneração de pessoal); transferência
de funções executivas, a partir da realocação de serviços ao setor privado
e desconcentração geográca de ministérios e serviços; introdução de
mecanismos de mercado na distribuição de recursos blicos (subdio
às demandas); implementação de medidas concretas dirigidas a reduzir,
literalmente, os programas universais e focalizar os recursos públicos para
serem gastos nos segmentos mais pobres da população; desenvolvimento
de programas sociais compensatórios para situações de extrema pobreza; e
enfraquecimento do poder dos trabalhadores e dos sindicatos com estrito
controle da expressão coletiva quanto às demandas sociais.
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Apesar da falta de um “pacote de reformas administrativas” coerente,
desde o momento do primeiro ajuste político em 1975, o governo militar
executou um conjunto de medidas que transformaram profundamente o
aparelho do Estado. Dentre elas estão: as maciças privatizações de empresas
públicas – deixando algumas privatizações “pendentes” e eximindo a grande
mineradora de cobre como também a privatização dos serviços públicos,
especialmente a seguridade social; a transferência das funções dos serviços
públicos; a transferência do décit scal das municipalidades em áreas de
educação e saúde; a drástica redução de funcionários públicos e a eliminação
de repartições; a reestruturação e enfraquecimento dos ministérios “sociais”
e a modernização dos econômicos”; a nova regionalização do país com
caráter militar; legislação administrativa que gerou crescente instabilidade; e o
estabelecimento de uma lei orgânica constitucional, a qual tornou ainda mais
difíceis as modicações desse diploma legal.
Conseqüentemente, apesar de algumas medidas iniciais de racionalização
nanceira e administrativa, ocorreu, na prática, uma deterioração pronunciada
da gestão pública, dado que as autoridades econômicas do regime militar
consideravam o Estado, por denão, ineciente. A permanente arbitrariedade,
autoritarismo e desvalorização das funções públicas devastaram o moral dos
burocratas. Seus salários foram desproporcionalmente reduzidos pelos ajustes
scais. O governo de Pinochet, obcecado pelas privatizações, abandonou a
sua sorte os empregados nos serviços públicos.
Assim, promoveu-se uma noção extremamente negativa do papel do
Estado, identicando-se modernização e administração eciente com o setor
privado. O pensamento político dominante associou o setor público a idéias
e imagens antiquadas, burocráticas e anacrônicas. Em conseqüência, todos
os funcionários públicos foram injustamente considerados inecientes. Essa
visão preconceituosa, que negava as funções e a efetividade das políticas
públicas, continuou sob os posteriores governos democráticos, entre os grupos
políticos de direita e setores empresariais. Por trás desses argumentos há, por
um lado, um interesse em impedir a geração de estratégias de regulamentação,
e por outro, um interesse em privatizar todo o capital e serviços públicos
disponíveis. No entanto, adicionalmente, também nesse debate um aspecto
político ideológico mais importante: castigar um setor que é visto como
responsável pela crise de 1973 e eliminar a intervenção estatal, entendida como
principal causa da politização da sociedade. Neoliberais e neoconservadores,
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acentuando a inecácia da ão do Estado e seus efeitos supostamente
danosos ao crescimento econômico, começaram a aplicar um poderoso freio
à modernizão engena da administração blica, opondo-se a rias
iniciativas de reforma pretendidas pelos governos democráticos.
Em 1981/82, devido à crise da dívida, o modelo econômico entrou
em crise, ocasionando a eclosão de protestos populares e da oposição no
espaço público. A partir de 1986, o regime conseguiu recompor parcialmente
seu modelo econômico e preparar o cenário do plebiscito de 1988, na qual a
oposição aceitou participar a m de transformá-lo de mecanismo de promoção
do regime em mecanismo de desencadeamento de um processo de término
da ditadura e passagem a um regime democrático.
É verdade que o regime militar conseguiu impor um novo modelo de
desenvolvimento, porém somente após um estrondoso fracasso nos anos
1981-1982, que, inclusive, produziu recessão durante certo período, obtendo
certa recuperação a partir de 1986. Não faz sentido, portanto, falar de um
milagre econômico chileno. Não obstante, não houve recuperação em relação
a nenhum indicador social se comparado com os anos 70.
Em síntese, a ditadura militar e seu modelo neoliberal produziram
mudança na matriz sócio-política chilena, mas como não criaram uma nova
matriz, o resultado foi basicamente sua desarticulação.
Democracia e matriz híbrida
A transição política no Chile foi desencadeada a partir do resultado do
plebiscito de 1988. Naquele momento, cou denitivamente cancelada qualquer
possibilidade de regressão autoritária apesar das intenções visivelmente não
democráticas do pinochetismo civil e militar. A transição terminou com a
ascensão do primeiro governo democrático, em março de 1990. Desde então,
quatro governos da Concertação de Partidos pela Democracia, coalizão de
centro-esquerda, formada pela Democracia Cristã, Partido Socialista, Partido
pela Democracia (PPD) e, com menor importância, o Partido Radical Social
Democrata, têm dirigido o país, com dois presidentes democrata-cristãos
(Patrício Aylwin, 1990-94); Eduardo Frei (1994-2000); e dois socialistas-PPD
(Ricardo Lagos, 2000-2006) e Michelle Bachelet (2006-2010). Resolvia-se assim,
parcialmente, um dos grandes problemas da sociedade chilena no século XX:
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a existência de uma imbricação entre atores sociais e sistema partidário que
havia se expressado em nível de cada pólo partidário democrático, progressista,
porém, com exceção da Frente Popular do nal dos anos 30, não se havia
expressado em uma coalizão democrático-progressista que unisse o centro
e a esquerda. Parcialmente, pode-se armar que, tal fato ocorreu que a
conguração dos atores sociais havia se modicado de tal modo que não
era igualmente representável em sua integridade pelo sistema partidário.
O primeiro governo democrático de Patrício Aylwin deniu a tarefa
nacional em termos de “transição para a democracia” e armou a idéia de
um “crescimento com eqüidade”, mantendo os equilíbrios macroeconômicos
e procurando corrigir os efeitos sociais do modelo econômico. Deniu,
igualmente, um método de negociações e acordos pontuais chamado
“democracia de consensos”. O certo é que o país não se encontrava em
transão e nem tampouco houve, como armamos, verdadeiros consensos. Em
todo caso, qualquer que seja a crítica que se faça a essas denições por serem
parciais ou insucientes, deve-se reconhecer que houve metas e orientações
e que, em relação a elas, o governo avançou. Ao contrário, cabe recordar que
durante o segundo governo da Concertação apesar de um desempenho
econômico muito bom até 1997 e dos importantes progressos em termos de
obras públicas e de reforma da justiça e da educação, o país esteve à deriva em
matéria de projetos e orientações, de metas mobilizadoras de energias sociais
e culturais, sem uma orientação compartilhada e, portanto, sem condução
política. No governo de Ricardo Lagos, recuperou-se a liderança presidencial e
a meta foi planejada em termos de tornar-se um país desenvolvido no segundo
centenário de existência como nação independente. Não obstante, essa meta,
apesar dos enormes avanços em matéria de infra-estrutura, reformas sociais e
inserção internacional, está longe de ser alcançada, e nem se pode perceber se
o conjunto de atores sociais e políticos estejam se encaminhando com clareza
na mesma direção. No governo de Bachelet, primeiro governo paritário em um
Poder Executivo formado por homens e mulheres e dirigido por uma mulher na
América Latina, e que durará somente quatro anos de acordo com as reformas
constitucionais de 2005, o que tem prevalecido, tanto na campanha quanto
nos primeiros dez meses de governo, é a idéia de um novo estilo, chamado
“cidadão”. Este se dene por agendas de medidas concretas, mas por carecer
de um projeto ou horizonte político que conra sentido ao conjunto da ação
governamental, com exceção da proposta genérica de um sistema de proteção
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que se materializaria em uma reforma provisória anunciada em ns de 2006,
mas que foi avassalado por problemas que não estavam na agenda, sendo o
mais signicativo deles o movimento estudantil da educação média.
Mas, o término da transição não signicou que, junto com governos
plenamente democráticos, o regime político e a sociedade tenham alcançado
a democracia propriamente dita. Tratou-se de uma transição incompleta que
deu origem a uma democracia restrita, de baixa qualidade e cheia de enclaves
autoritários. A tarefa não era continuar com a transição, terminada, nem
consolidar o novo regime pós-autoritário que estava consolidado na
medida em que não havia regressão autoritária possível. Era, sim, reformar
profundamente tal regime e gerar uma autêntica democracia política na qual os
limites da vontade e da soberania populares não fossem xados pelos poderes
de fato ou pelas minorias políticas. Em outras palavras, era preciso resolver os
problemas deixados pela transição e que esta não havia solucionado.
Os êxitos relativos da democratizão potica chilena pagaram um
pro que pode ser visto nos grandes problemas o resolvidos, isto é,
fracassos relativos devido não à ppria natureza do processo, e sim à sua
condução política.
Tem-se insistido muito no caráter consensual da transição chilena.
A verdade é que preponderou a ausência de debate sobre os grandes temas
que denem a sociedade e as bases fundamentais da democracia, compensado
somente pela ilusão do consenso. Este existiu apenas, na realidade, para
acabar com a ditadura. O que ocorreu depois foram acordos circunstanciais
ou pontuais entre governo e oposição. Porém, ninguém, em nenhuma parte
do mundo, teria ousado chamar estes últimos com o nome de “democracia
de consensos”. A ausência de verdadeiros consensos nos temas básicos da
reconstrução da sociedade pós-ditatorial se explica, por um lado, pelo veto da
minoria e dos poderes de fato (organizações empresariais, grupos econômicos
que controlam os meios de comunicação, as próprias Forças Armadas, e em
parte o Poder Judiciário e a minoria eleitoral de direita com capacidade de
veto, dado o sistema eleitoral). Por outro lado, tal fato não ocorreu que
não houve debate sobre os temas cruciais, ou porque esse debate foi abafado
pelas exigências da estabilidade econômica ou política. Por último, porque
continua a existir um trauma da dissensão, do conito e da confrontação, que
são demonizados ou considerados uma patologia. E para que exista consenso
social básico, deve haver debate e conito.
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Nesse sentido, os problemas centrais sobre os quais tem havido debate
limitado em alguns casos e nulo em outros, mas que em nenhum deles deu
origem a consensos, o: a queso da justiça em maria de violão de direitos
humanos sob a ditadura, a reforma regional, o problema mapuche
1
, o tema da
igualdade e da redistribuão, os assuntos ligados à convivência e à reprodão,
em geral vetados pela Igreja, o modelo constitucional, a reformulação do modelo
de desenvolvimento diante da globalização, etc. Vale a pena indicar, ao contrio,
que, sem dúvida, constituiu avanço importante certo consenso sobre a prioridade
da educação, que deu origem à reforma educacional no governo de Frei, mas
que mostrou seus limites com a mobilização estudantil de 2006, originando-
se um novo debate e novos mecanismos de consenso, mais uma vez parciais
e precários; a luta contra a pobreza, que gerou a Comissão Nacional contra a
Pobreza, embora tenha sido omitido o tema da redistribuão; e a modernizão
da Justiça e a reforma do Código Penal, com a criação do Ministério Público.
Sem dúvida, a democratização política chilena teve êxito na medida em
que deslocou a ditadura, impediu a decomposição da sociedade ao controlar
as variáveis macroeconômicas e assegurou um governo formado pela coalizão
democrática majoritária. Mas não se pode falar em “transição exemplar” ou
“bem sucedida” considerando-se o resultado desse processo e a qualidade
desse regime democrático. Este se caracteriza pela precariedade institucional,
a ausência de poderes de fato e debilidade de representação devido às tensões
entre atores políticos e sociedade. Igualmente, pela fragilidade de suas bases
culturais, devido à ausência de consensos básicos e falta de coesão, unidade e
direção societária, em função da debilidade do poder estatal.
A ausência de uma crise econômica inicial que, em muitos outros casos
de transições, alterou a correlação de forças pró-democráticas e abriu espaços
de desestabilização ou deslegitimação por parte dos poderes de fato ou por
distanciamento dos setores médios populares, o obrigava os primeiros
governos democráticos a adotar políticas que tivessem efeitos anti-populares
ou regressivos para resolver uma crise conjuntural herdada. Não se havia
herdado uma crise e sim um modelo, o que é um problema estrutural muito
mais grave, que, nesse caso, não era preciso corrigir e sim substituir.
1 Termo atualmente usado para designar os indígenas do centro-sul do Chile, anteriormente chamados
“araucanos” (N. do T.).
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Não obstante, infelizmente o foi aproveitada a conseqüente oportunidade
de concentrar-se nos aspectos propriamente poticos para completar a transão
superando-se, assim, os enclaves autoritários. Dessa forma, a prioridade
absoluta conferida à estabilidade econômica, desestimulou a constituição e
ação de movimentos e atores sociais bem como prejudicou sua relação com
a política e os partidos.
É verdade que o Chile se destacou no último decênio entre seus pares
latino-americanos por ser uma notável economia emergente da região, com
índices em matéria de renda, crescimento, superação da pobreza, resumidos
nos indicadores de desenvolvimento humano, que estão entre os melhores
da região. No entanto, subsistem os problemas em torno do modelo
socioeconômico que mencionaremos e que podem causar erosão não apenas
do dinamismo do crescimento, mas também colocar em perigo os avanços
realizados e a própria existência do país como comunidade no plano social.
Tal fato esteve na origem dos debates em torno da correção ou mudança
do modelo econômico, que na campanha presidencial foram propostas
principalmente pela candidatura de esquerda fora da Concertação.
O primeiro desses problemas se refere ao ritmo, tipo e metas do
desenvolvimento econômico. A meta proposta era chegar a ser um país
desenvolvido em 2010, o que seria impossível, tanto em termos de renda per
capita quanto em termos de uma distribuição “desenvolvida” dos frutos do
crescimento. Nesse ponto é que se evidencia o problema de fundo. O modelo
de crescimento do mundo à base do papel principal das forças transnacionais
do mercado e do que se tem chamado a “nova economia”, deixou de ser
um modelo de desenvolvimento. Crescimento e desenvolvimento não
caminham juntos e o problema estrutural do emprego é a melhor ilustração
a respeito, o que exige intervenções diretas do Estado e da sociedade na
economia. Apesar de terem sido rmados acordos econômicos internacionais
de enorme magnitude e realizadas reformas sociais como o Plano Auge na
saúde ou o Chile Solidário em matéria de luta contra a pobreza, essas ações
foram claramente insucientes. O debate em torno da própria natureza do
modelo de crescimento baseado em exportações sem alto valor agregado e
com uma taxa de desemprego que parece ser estrutural, apenas foi esboçada e
em breve desapareceu, porque em todos os aspectos, sugere-se que as únicas
vozes inuentes e que até mesmo xam a agenda dos órgãos públicos são as
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dos grandes grupos e organismos empresariais, suas organizações sindicais e
seus meios de comunicação.
E esse é exatamente o segundo grande problema não solucionado pelo
modelo socioeconômico chileno: o dos atores do desenvolvimento. Por um lado,
o país viveu um clima cíclico de relações entre governo e setores empresariais,
passando de guerrilhas verbais com recriminações por parte do governo
e ameaças do setor empresarial, a declarações de plena conança e apoio
mútuo, especialmente quando se vericaram bons resultados em se tratando
da política econômica. A verdade é que, apesar de signicativas exceções, o
nível de ideologização e os interesses desatados de ganhos a todo custo são tão
generalizados que impedem o Chile de contar com um dos motores necesrios
do desenvolvimento econômico no atual modelo ecomico vigente no
mundo, que é uma classe empresarial com responsabilidades, não em relação
a lucros a qualquer preço ou no que tange a seus caprichos extra-econômicos,
e sim em relação ao país, e para isso é necessário pensar em termos do país e
do seu papel como agente de desenvolvimento, em permanente cooperação
e relação com o Estado.
Por outro lado, persiste uma atitude crítica ou tímida a respeito do
papel mais ativo do Estado quanto à sua capacidade dirigente e mobilizadora.
É verdade que em uma economia altamente globalizada como a chilena, em
comparação, por exemplo, aos principais sócios do Mercosul, torna-se muito
difícil a formulação de políticas econômicas ativas. Mas também é verdade
que, no tocante ao papel regulador e incentivador da economia, protetor no
aspecto social, redistribuidor de recursos e riquezas e gerador de igualdades,
além de promotor em áreas indispenveis como a pesquisa ou o meio
ambiente, com exceção das obras públicas, o Estado ainda está atrasado e
cativo das auto-limitações que a ideologia neoliberal impôs como sendo de
bom senso. A própria modernização do Estado, embora tenha produzido
avanços importantes na informatização e nos níveis de atenção ao usuário, não
escapou da perspectiva de medir-se com os indicadores próprios do mundo
privado ou do mercado. Reinstalar o papel dirigente, regulador e protetor
do Estado continua a ser uma tarefa prioritária, sem a qual não poderá ser
resolvido o problema das desigualdades que mencionaremos. Cabe recordar
que a participação do Estado no produto nacional é muito baixa e que ampla
margem para passar de um modelo liberal a um modelo social-democrata sem
que isso afete o crescimento.
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O terceiro problema se refere às conseqüências da situação econômica
no campo social, que signicaram um relativo estancamento, especialmente
quanto ao emprego, as igualdades socioeconômicas e a capacidade de ação
dos grupos e setores sociais mais afetados.
No que diz respeito à questão do emprego, ainda que se tenham
produzido indubitáveis avanços como o seguro-desemprego e a criação de
novos postos por parte do Estado, e que os números do desemprego tenham
declinado no último ano com importante criação de postos de trabalho,
a questão de fundo permanece: atualmente o crescimento deixou de ser
equivalente a desenvolvimento e integração social e, portanto, nos termos da
OIT, “emprego decente para todos”, o que obriga a introduzir modicações
no modelo de crescimento, bem como ações complementares que podem ser
contraditórias em relação a algumas de suas premissas ou pressupostos, de
maneira a voltar a vincular crescimento e desenvolvimento.
No plano das desigualdades socioeconômicas, deve-se recordar que
este é o calcanhar de Aquiles da sociedade chilena, na medida em que a
pobreza, pelo menos na dimensão estatística, reduziu-se signicativamente,
como indicamos, em grande parte devido ao crescimento e às políticas sociais
ecazes do Estado. Na campanha presidencial de 2005/2006, voltou a surgir
o tema da desigualdade como principal problema da sociedade chilena e isso
esteve presente em todas as candidaturas, inclusive a da direita. Não obstante,
o elemento principal para gerar maior igualdade, que é a redistribuição, na
qual um de seus elementos indispensáveis é a reforma tributária, tem estado
ausente nos programas tanto da direita opositora quanto da Concertação bem
como nas medidas do governo. A única providência a respeito foi o aumento
do IVA, com caráter eminentemente regressivo.
Assim, como o modelo de desenvolvimento prévio baseado na
industrialização e na presença do Estado tinha certos defeitos intrínsecos na
qual era preciso corrigi-los a partir do exterior, este também tem perversões
que fazem parte de sua natureza. Com efeito, o modelo econômico
predominante não favorece, como ocorria no caso da industrialização e
em relação à participação do Estado em outras décadas, a criação de bases
materiais e institucionais na qual possam constituir-se atores sociais que
organizem de maneira estável as novas demandas e que possam expressar-se
ou negociar com representantes na instância política, isto é, os partidos. Ao
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desestruturar a ão coletiva, privilegia-se somente a dimensão corporativa
ligada ao poder econômico e geram-seões defensivas esporádicas. A isso
se deve acrescentar a ausência de um corpo institucional adequado tanto
no que se refere às normas e regulamentações quanto à organização do
Estado em relação à solução de conitos e demandas sociais, o que cou
demonstrado nos escândalos por denúncias de propinas e fraudes no setor
público durante 2002 e 2003 e que levou a uma agenda de reformas parciais
importantes, mas queo transformaram a estrutura do Estado e nem sua
relação com a sociedade.
A falta de contrapeso entre organizações sociais, especialmente dos
setores mais vulneráveis e os atores mais poderosos que atuam na economia,
os poderes de fato, não apenas parece ter incrementado, mas sim, tornou-se
mais agudo. Isso faz com que os atores sociais debilitados se vejam obrigados
a escolher como única tarefa de sua ação seus próprios problemas particulares,
com o que diminui sua preocupação com as grandes questões nacionais e
aumenta sua demanda puramente corporativa. Tal fato se reforça por não se
contar, como em outra época, com um sistema partidário no qual os setores
sociais se sintam ouvidos e incorporados pela classe política, com exceção da
direita, que expressa direta e unicamente os interesses empresariais e militares,
e do Partido Comunista, sem maior projeção política, que aproveita qualquer
descontentamento contra os governos da Concertação.
Se algo parece ser bem sucedido no modelo econômico chileno é sua
inserção no processo de globalização. É evidente que a economia chilena
tem sofrido o impacto da globalização de maneira mais forte do que outras
economias do continente, entre outros motivos, devido a sua própria
dependência histórica em relação aos fatores externos em todos os planos,
mas também por causa da natureza de sua economia, mais aberta do que as
demais, conseqüência, em parte, da abertura e dos ajustes feitos antes que
a globalização se impusesse como fenômeno central do m do século. Em
matéria econômica, mais de 50% do PIB estão vinculados ao setor externo.
Quanto à pobreza, a política dos governos da Concertação tem implicado,
entre outras medidas, em um aumento sustentado do gasto social, na criação
de órgãos especiais como o Fosis no Ministério do Planejamento, a Comissão
Nacional para Superação da Pobreza, o Programa Chile Solidário e Ponte, que
implicam em forte assistência direta a todas as famílias dos setores mais pobres
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e, recentemente, a denição de políticas sociais, bem além de seus aspectos
focalizados, constituindo-se em uma política orientada a respeitar e promover
direitos garantidos judicialmente no quadro de um Estado de proteção, cujo
exemplo seria o Plano Auge na saúde, a expansão da educação pré-escolar e
a reforma previdenciária.
Vale a pena mencionar que os últimos dados da pesquisa Casen divulgados
em junho de 2007 mostram uma melhora na situação da pobreza e indigência,
resultado dos programas e princípios abordados.
Diante de tudo isso, há duas considerações a fazer acerca dessa matéria.
Por um lado, existe um debate sobre o modo de cálculo da pobreza no sentido
de que, se for recalculado em termos atuais o valor da cesta básica, a pobreza
atingiria cifras próximas ao dobro do que indica a pesquisa Casen, o que não
implica em desconhecer a tendência positiva, e sim em relativizar os resultados
estatísticos. Por outro lado, é evidente que qualquer que seja o cálculo, varia-
se, assim, uma linha estatística e não uma linha sociológica, ou seja, é possível
ou cair em qualquer ponto da linha ou não possuir as condições estruturais
de sustentação de uma situação de não-pobreza, o que signica continuar a
ser sociologicamente pobre, ainda que esteja acima da linha da pobreza em
um determinado momento.
No que se refere à distribuição de renda, somente no último período
conseguiu-se certa melhoria, porém esta foi mais aparente do que real se for
calculada a distância em termos de decís ou percentis. Também cabe assinalar
que a distribuição de rendas autônomas melhora consideravelmente em favor
dos mais pobres quando há intervenção do Estado.
Síntese e conclusões
A matriz sócio-política clássica chilena privilegiou a articulação e
imbricação entre forças sociais e partidos políticos. Foram estes, de centro e
de esquerda em conjunto nos anos 30 (trinta) e separadamente nos anos 60
(sessenta), que desempenharam o papel de “coalizão redistributiva”, o que
expressava a função central da política na denição e trajetória do modelo de
desenvolvimento.
O regime militar e as transformações socioeconômicas impulsionadas
por ele e que representaram basicamente a passagem a um novo modelo de
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desenvolvimento, tiveram um signicado mais profundo do que a simples
desarticulação da sociedade predominante até os anos 70 (setenta). Tentou-se
substituí-la por outra. Em seu tipo puro, tratava-se de um projeto neoliberal
que implicava mais do que na atomização da economia em relação à política
e sim na utopia da subordinação desta àquela. Apostava-se nos mecanismos
de mercado como nova “coluna vertebral” constituída por atores sociais que
substituíssem tanto o sistema de representação partidária quanto o papel
referencial central do Estado.
Do ponto de vista da desarticulação da matriz anterior, o regime militar
obteve êxito. Sob a perspectiva de sua substituição pela matriz neoliberal,
constituiu-se em fracasso. Nem cou de o antigo modelo socioeconômico
e nem se impôs consistentemente o modelo neoliberal no que tinha a ver com
a estratégia de crescimento, pelo menos desde que se estabeleceu um regime
democrático, por mais baixa que fosse a qualidade deste. Junto à decomposição
do modelo anterior, subsistem alguns de seus elementos em uma nova
articulação com traços parciais do projeto neoliberal e com características
novas que não pertencem nem a um e nem ao outro modelo.
Desse modo, o Chile da pós-transição representa o oposto da tese de
Aníbal Pinto relativamente à matriz clássica, que denia uma contradição sica
entre uma economia atroada e um sistema político, institucional e cultural
desenvolvido. Essa debilidade do sistema econômico estabelecia a questão de
dar autonomia à economia em relação às suas amarras políticas. Atualmente, o
problema é exatamente o inverso: uma economia em decolagem, pelo menos a
meados dos anos 90 e recuperando seu ritmo por volta de 2005, porém bastante
isolada do país e da sociedade. Frente a isso, um sistema político, institucional
e cultural atroado. Basta recordar os enclaves autoritários (Constituição e
institucionalidade, clima de impunidade pela violação dos direitos humanos
sob a ditadura e soluções parciais em matéria de justiça, existência de atores
não democráticos caracterizados pelo “pinochetismo político”); a debilidade
do sistema de descentralização e regionalização; a crise do sistema educacional
e o colapso da educação superior; a enorme debilidade dos atores sociais
especialmente para negociar com o poder econômico; o atraso do corpo
institucional em relação à organização familiar; e ainda, as diculdades quanto
à redenição do novo papel dirigente e protetor do Estado. Sem desconsiderar
os avanços que o sistema democrático realizou em vários desses planos, estes
são sempre parciais já que permanecem esbarrando no quadro constitucional
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herdado. Por sua vez, a natureza do modelo socioeconômico impediu que, nos
momentos de crise econômica, como os ocorridos em 1998 e 1999, houvesse
recursos institucionais que permitissem enfrentá-la.
Assim, parecia que o país estava diante de uma matriz sócio-política
ou de uma sociedade do tipo híbrida em relação a seu modelo predominante
de constituição na maior parte do século XX. Ela apresenta um traço de
continuidade e um traço de ruptura, além de elementos que se denem
autonomamente e que são caracteristicamente emergentes.
A ruptura consiste no fato de que a economia se tornou autônoma
em relação à política, e submeteu-se aparentemente à sua própria dinâmica
de desenvolvimento, na qual o Estado somente aponta a direção, mas não a
dene. Mas isso não signica que a economia obedeça a dinâmicas próprias do
desenvolvimento nacional, e sim que essa autonomização em relação à política
ou ao Estado é acompanhada por uma nova subordinação ou dependência,
desta vez em relação às forças transnacionais dos mercados. Provavelmente,
o elemento central desse debate, tenha sido que o modelo socioeconômico de
crescimento deixou de ser um modelo de desenvolvimento, ou dito em outras
palavras, que a economia não foi capaz de assegurar por si mesma a integração
social, conforme se pode ver no caso da questão do emprego.
Os conitos sociais reetem a contradição entre um país que resolve
relativamente bem seus problemas econômicos de curto prazo, mas que deixou
pendentes ou mal resolvidos os problemas institucionais, políticos e culturais e
também os que se referem a um modelo de desenvolvimento de longo prazo
sustentável socialmente, no qual o problema central é a queso da desigualdade
social. Diante das fórmulas de desenvolvimento seguidas antes da ditadura
militar e diante do modelo neoliberal, os governos democráticos deniram
sua estratégia como de desenvolvimento com eqüidade. Tanto no campo do
crescimento econômico, até a crise de 1997-1998, quanto no da superação
da pobreza e no item relativo ao gasto social do Estado, os avanços têm sido
signicativos. Não obstante, as desigualdades socioeconômicas se mantêm e
em alguns casos até aumentaram.
É evidente que não se pode armar que o problema chileno não é
mais a “transição à democracia e à economia de mercado”, como foi indicado
mais de uma década, no início dos anos 90. Se a democracia alcançada é
incompleta e de débil qualidade, nesse caso, não estamos diante de uma
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situação de transição e sim da necessidade de uma profunda reforma política.
Por outro lado, o modelo econômico de mercado neoliberal ou “modelo
privatizador está esgotado como base de um desenvolvimento nacional
integrado e auto-sustentável não apenas no Chile, como também em todas
as partes do mundo. O mundo se move atualmente com diculdade entre as
tendências globalizadoras e a necessidade de recolocar o papel orientador dos
Estados Nacionais e suas alianças.
Sem voltar ao debate a respeito da subordinação da economia à política, o
que é praticamente impossível, cabe pensar em fórmulas alternativas às atuais,
que passam por restituir ao Estado, em nível nacional e dos blocos supra-
nacionais, um papel dirigente quanto ao desenvolvimento, estabelecer marcos
regulatórios normativos sobre as forças do mercado e assegurar o controle
dos cidadãos sobre tais marcos e forças. Em outras palavras, reconhecendo
que política e economia são questões diferentes e autônomas, trata-se, nesse
caso, de introduzir princípios éticos da democracia quanto ao funcionamento
dos mercados.
Dito de outra forma, o que está em jogo nos próximos anos é a existência
do país como comunidade em um sentido coletivo no qual expresse sua
pluralidade e diversidade. O projeto de país, suas formas de convivência, as
identidades que o constituem e sua inserção autônoma no mundo globalizado,
são os pontos centrais da política atual.
Assim, os problemas fundamentais do país pós-transição têm a ver com
a organização da polis, da capacidade de condução, de fazer com que na política
se expressem os problemas culturais e sociais e que a economia se ligue ao
desenvolvimento geral da sociedade. Isso quer dizer que não propriamente
uma crise sob o aspecto político e sua legitimidade, nem sequer entre os jovens.
O que é uma crise da capacidade e da atividade políticas para dar conta do
que é político, e não girar em torno de si mesma. A longo prazo, o risco é que
isso leve a uma crise de legitimidade.
A situação atual de congelamento da dimensão político-institucional,
bem como uma base econômica dependente da economia transnacional, se
explicaria por dois fatores. Por um lado, a presença dos enclaves autoritários
institucionais defendidos pela oposição de direita, herdeira do regime militar.
Por outro lado, a ausência de modelos e projetos alternativos de caráter político-
cultural, sendo que uma das causas é o próprio êxito obtido pelos governos
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na Concertação. Dada essa ausência, predominam as “forças naturais” da
economia transnacional.
Pareceria ser muito cedo para resolver a questão, caso soubéssemos se
estamos diante de uma matriz emergente de relações entre Estado e sociedade
ou de uma situação de transição a outro modelo ainda desconhecido. As
indagações suscitadas pela situação econômica mundial e pelo futuro dos
processos de globalização acentuam essa dúvida.
Em todo caso, o futuro da sociedade chilena está em sua capacidade de
construção de um sistema cio-potico que resgate a idéia de uma comunidade
nacional e que não se reduza a um mercado nem a um conjunto de instrumentos
e técnicas. O país já não necessita de um “milagre econômico”, e sim de um
grande salto adiante, que deve ser político, institucional e cultural.
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Tradução: Sérgio Duarte
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Colômbia: política
externa, economia
e o conito
Marta Lucía Ramírez
*
1. Conito na Colômbia e sua incidência internacional
Antecedentes:
O
atual conito colombiano não pode ser visto sob uma ótica recente.
Obedece a um longo processo de fragmentação territorial, exclusão política,
pobreza e uma tradicional polarização política e deve, portanto, ser visto como
um processo de duração média. Os grupos armados ilegais que atualmente
operam no país se baseiam em fatores históricos para legitimar suas ações,
atacar o Estado e combater as elites políticas e econômicas do país. quem
arme que as décadas de conito armado sofridas pela Colômbia respondem
a uma tendência histórica belicista dos próprios colombianos, deixando de
lado os êxitos e as importantes realizações das instituições nacionais como,
por exemplo, o ser a democracia mais antiga do continente sul-americano e a
quase total ausência de regimes ditatoriais autoritários no século XX.
* Senadora. República da Colômbia.
Colômbia: política externa, economia e o conito
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A partir da década de 30 do século XIX, após a dissolução da Grã-
Colombia, a nova nação entrou em uma série de contendas políticas,
ideológicas e de lutas pelo poder nas quais se enfrentaram principalmente os
liberais e os conservadores e também regiões inteiras entre si. Entre 1899 e
1903 ocorreu a chamada Guerra dos Mil Dias
1
. Essa última grande guerra
civil terminou com a derrota dos liberais e assegurou um longo período de
governos conservadores. No entanto, o verdadeiro resultado nal dessa e
de todas as outras guerras intestinas foi a fragmentação do território, o freio
ao desenvolvimento econômico do país e a precariedade do Estado central.
A conseqüência mais visível dessa situação foi a perda do istmo do Panamá,
até essa época território colombiano.
Em abril de 1949 ocorreu o assassinato do candidato presidencial
Jorge Eliecer Gaitán, carismático líder popular. As teorias de conspiração, as
acusações de parte a parte e o desespero desataram a fúria das classes populares
em todo o território nacional e polarizaram o país ainda mais. Com esse fato
principia o sangrento período conhecido como “La Violencia”, considerado
por muitos como o episódio inicial do atual conito colombiano. Durante esses
anos, os partidos políticos, liberais e conservadores, voltaram a dirimir suas
divergência pela via das armas. Vale esclarecer que dessa vez não houve uma
guerra civil como as do século XIX. No caso, foram iniciativas que também
provinham da sociedade colombiana e do campo. Eram violentas formas
de resolver problemas econômicos, de propriedade da terra e de exclusão
política, entre outros – conseqüências de divergências ideológicas. Fala-se de
uma guerra civil não-declarada, com intensas perseguições políticas, algumas
praticadas pelo próprio governo conservador e outras pela autodefesa liberal.
Nascia a gura do bandoleiro, camponês freqüentemente liberal que fugia
das perseguições políticas e se deslocava para terras inóspitas do Sudeste do
país, onde formava suas próprias comunidades à margem do governo central,
convertendo-se no germe do futuro guerrilheiro.
O período de “La Violencia” foi resolvido por meio da breve ditadura
militar do General Rojas Pinilla (1953-1957), único ditador na história recente
de nosso país. Em reação à ditadura surgiu em 1957 a Frente Nacional.
1 Acosta, Gutiérrez, Leonardo, Coronel (R). Conito colombiano, história e contexto. Imprensa das forças militares
do Exército da Colômbia.
Marta Lucía Ramírez
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Com o objetivo de acabar com as disputas políticas, os dirigentes liberais e
conservadores acordaram a alternância de cada um dos partidos no poder ao
longo de quatro períodos presidenciais. Embora tivesse o acordo conseguido
reduzir a polarização bipartidária e os índices de violência, ele deixou fora
muitos setores que não integravam o escol das facções tradicionais. Essa
exclusão política foi considerada mais um fato da retenção do poder pela
oligarquia da Colômbia e levou muitos setores excluídos a tomar posições
mais radicais. Nesse momento se verica o início de novos matizes de
violência ligada às falas de feição comunista, que tinham por objetivo realizar
transformações revolucionárias no Estado incubando guerrilhas como as
FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e o ELN (Exército de
Libertação Nacional), entre outras.
Em tal seqüência de idéias identicam-se outros fatores que explicam a
aparição dessas organizações criminosas na primeira metade dos anos 50 e 60:
a dinâmica da Guerra Fria, a Revolução Cubana, a crise interna e institucional
colombiana, os problemas agrários no país, a radicalização da juventude, em
especial a estudantil, os recuos das autodefesas camponesas liberais da época
de La Violência e as tendências ao radicalismo político em alguns dos setores
de líderes sindicais, fatores esses que, unidos, geraram a consolidação das
guerrilhas tais quais as conhecemos hoje.
Em seguida analisaremos o surgimento e as condições atuais dos grupos
guerrilheiros mais importantes em todos os tempos na Colômbia, as FARC e o
ELN. Deixaremos de lado as outras guerrilhas que surgiram nos anos 70, como
o EPL e o M-19, que essas não mais existem e, portanto, não conguram
atualmente o conito colombiano.
A guerrilha das FARC – EP
A guerrilha das FARC surgiu formalmente em 1964 como união de rios
grupos que resolveram recusar uma anistia geral oferecida pelo Presidente
Alberto Lleras Camargo a todos os grupos de bandoleiros que se haviam
transferido para a região das planícies orientais colombianas. Ali conseguiram
formar uma importante base social, que em muitos casos suplantou a precária
presença do Estado. Eles se deniram como grupos guerrilheiros de feição
marxista-leninista e começaram a buscar a tomada do poder pela via da
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derrubada militar do governo do momento, alentados pela vitória de Fidel
Castro em Cuba
2
.
As cadas dos 60 e 70 transcorreram sem grandes mudanças para a
guerrilha das FARC. Eram um grupo de camponeses armados que tomaram
posse de terras isoladas e longínquas do acontecer nacional. em 1982,
durante a Sétima Conferência Nacional, as FARC optaram por uma estratégia
que juntasse “todas as formas de luta”, isto é, a luta nos âmbitos político,
social, econômico e militar. A organização adotou a sigla EP, Exército do
Povo, cuja estratégia passou da defensiva a uma ofensiva total em busca
da tomada do poder político tornando-se uma constante ameaça para o
Estado colombiano e para todos os governos legitimamente constituídos
até o presente
3
.
A guerrilha do ELN
4
O Exército de Libertação Nacional (ELN) surgiu no cenário público
do país na década de 60. Buscava derrubar o governo colombiano por meio
de uma revolução de tipo marxista com um sistema de ordem socialista, que
pretendia erradicar o capitalismo do Estado colombiano. Desde o princípio,
a diferença entre o ELN e as FARC é que o primeiro foi um movimento
criado por estudantes universirios estimulados pela revolução cubana,
com marcada inuência dos ideais políticos de Ernesto “Che” Guevara e a
participação e inuência da “teologia da libertação”
5
ao passo que as FARC
são um movimento camponês originado mais na precisão de autodefesa que
de um verdadeiro objetivo político.
Hoje, o ELN se encontra em um processo de paz com o atual governo.
Embora a organização ainda exista, está fracionada e claramente enfraquecida
graças aos duros golpes militares desferidos contra ele pela força pública
da Colômbia.
2 Pizarro, Leon Gomez; Marquetalia, Eduardo. El mito fundacional de las FARC. Publicação da Universidade
Nacional da Colômbia UN, Unimedios, nº 57, 9 de maio de 2004.
3 Ibid. Unimedios. Nº 57. 9 de maio de 2004.
4 www. Semana/com,/wf_Imprimir Articulo. Aspx?Idart= 100803&ver=COIXOxSMba...14/04/2008.
5 Rangel, Alfredo Suárez. “El conicto armado em Colombia y la experiencia internacional.” Capítulo 6,
p. 166. In: Guerra Insurgente. Intermedio Editores, 2001.
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Expansão e consolidação das guerrilhas e surgimento
de grupos paramilitares
Durante a Presidência de Belisario Betancur (1982-1986) impulsionou-se
outro processo de paz que gerou condições de diálogo com as FARC e outros
grupos guerrilheiros. Apesar de vários desses grupos se abrigarem nas anistias
oferecidas, as FARC e outras guerrilhas optaram por expandir-se em busca
do controle de algumas partes do território onde era mais débil a presença do
Estado. Ao mesmo tempo crescia a inuência do narcotráco e do cartel de
Medellín, principalmente.
Durante esse período começaram a surgir as primeiras organizações
paramilitares nas regiões do ps em que a ação guerrilheira estava amedrontando
a população civil, de modo especial importantes pecuaristas e comerciantes,
por meio de seqüestro, extorsão e roubo de bens e gado. Em principio,
esses grupos eram de caráter civil e alegavam ter o objetivo de proporcionar
segurança a populações desprotegidas pelo Estado. Apesar de seu rápido
crescimento, o fenômeno continuou a ser tratado como elemento isolado, não
sendo considerado verdadeira ameaça à estabilidade do Estado.
A expano desse grupo se deu graças a vários fatores como, por exemplo,
o apoio da sociedade civil e dos pecuaristas, comerciantes e empresários
das regiões onde os paramilitares zeram recuar a guerrilha. O apoio de
alguns membros da força pública foi igualmente importante. As autodefesas
começaram a executar tarefas “sujas”, que as forças do Estado não podiam
levar a cabo. Em muitos casos atuavam, ainda que de forma independente, com
o beneplácito de setores das forças militares, mas vale esclarecer o seguinte:
a criação ou o apoio desses grupos jamais correspondeu a uma política de
Estado como aconteceu em outros países como, por exemplo, a Guatemala,
durante o governo militar de Rios Montt, quando se chegou até mesmo à sua
regulamentação.
Em 1991 foi redigida uma nova Constituição potica tendo como
principal ideal fazer convergir todos os setores que não se percebiam incluídos
no plano político da Colômbia através de uma abertura democrática dando
espaço a novos setores e novos partidos políticos
6
. Como a prioridade da
6 Gutiérrez, Francisco Saninb. Professor do Instituto de Estudos Políticos e Relações Internacionais da
Universidade Nacional da Colômbia. Revista Análisis Político, n. 57, Bogotá, maio-agosto, 2006, p. 106-125.
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administração Gaviria se concentrava na luta contra os cartéis da droga e
especicamente contra o Cartel de Medellín, cheado por Pablo Escobar,
a conseqüência foi descuidar-se das organizações paramilitares, que se
aliavam abertamente com outros chefões da droga. O caso mais célebre foi
a organização de “Los Pepes”, uma suposta aliança entre os irmãos Castaño,
chefes de autodefesas, e o cartel de Cali para liquidar o cabeça do narcotráco
na Colômbia, Pablo Escobar. Os grupos “Paras” aumentaram a complexidade
da situação do conito interno colombiano com o surgimento de mais um
grupo gerador de violência. Disputaram o negócio da droga com os grupos
guerrilheiros e outros cartéis. A ferro e fogo tomaram o controle de regiões
inteiras que funcionavam como corredores estratégicos ou abrigavam grandes
cultivos ilícitos. À medida que avançavam, essas organizações montaram uma
série de redes maosas, que pelos meados dos anos 90 se viram permeadas pelo
negócio do narcotráco, justicando-se com a desculpa de obterem recursos
para suas campanhas anti-subversivas. Por m, o dinheiro do narcotráco foi
utilizado para custear os seus poderes locais e os principais capos maosos se
enriquecerem desmesuradamente. A criação do grupo Autodefesas Unidas da
Colômbia em 1997 (AUC) e o ocultamento à opinião pública do seu caráter
narcotracante revelou na época e até o início desta década que se tratava de
uma organização com certa motivação política oposta às guerrilhas, justicando
seu aparecimento e permanência como grupo anti-subversivo.
Por sua parte, as FARC, que face ao ataque das forças governamentais
contra os principais capos do cartel de Medellín passaram da vigilância dos
cultivos ilícitos e laboratórios de processamento da droga a tomar o controle
do negócio do narcotráco em todas as suas fases e que nos anos 80 possuíam
mais de novecentos homens e nove frentes de combate, chegaram a ter quase
15 mil homens e 60 frentes de combate nos anos 90. No mesmo período, o
ELN teve um crescimento de 70 combatentes e três frentes de ação a 3.500
homens e 30 frentes. Em meados da década de 80, esses grupos armados
ocupavam 175 municípios dentre os aproximadamente 1.092 existentes
na Colômbia.
Presidência de Ernesto Samper
O período presidencial de Ernesto Samper Pizano (1994-1998) se viu
gravemente afetado pelos esndalos derivados do desvio de fundos do
Marta Lucía Ramírez
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narcotráco para sua campanha política à Presidência da Colômbia. Isso
motivou os grupos guerrilheiros a combater o Estado colombiano armando
que esse era narcotracante e iletimo. A grave crise potica, somada à ausência
de legitimidade, produziu paralisia nas Forças Armadas e na ação do Estado.
Presidência de Andrés Pastrana
O Presidente Andrés Pastrana (1998-2002) procurou sanear 42 mil
quilômetros quadrados do território nacional em busca de uma negociação
de paz com as FARC. Esse processo, como se sabe, terminou em rotundo
fracasso dada a carência de vontade política do grupo guerrilheiro e a ausência
de conança entre as partes. Ao longo desses anos, as FARC se consolidaram
no Sudeste do país e aumentaram a atividade narcotracante e o número de
seqüestros. Foi durante esse processo de paz que Ingrid Betancourt, candidata
presidencial, e a maioria dos seqüestrados políticos foram aprisionados.
Governo de Álvaro Uribe Vélez
O fracasso dos diálogos de paz e a percepção que dominou a população
colombiana sobre a falta de vontade política de certos grupos guerrilheiros
catapultaram à Presidência da República (2002-2010) Álvaro Uribe e sua política
de mão-de-ferro perante esses grupos. Um de seus projetos principais foi o
Plano Colômbia, parte da política de Segurança Democrática, a ser exposta
como mais detalhes adiante.
O conito depois do 11 de setembro
No contexto interno colombiano, os grupos armados com tendência
comunista e à margem da lei ficaram sem bases quando ocorreram o
desmoronamento do mundo socialista e a reorganização do Estado, que teria
início logo depois da promulgação da Constituição de 91. Não obstante, as
novas formas de nanciamento como as extorsões e o inicio do narcotráco,
seqüestros e tráco ilegal de armas, entre outros, zeram o conito colombiano
car mais dinâmico do ponto de vista nanceiro e militar, o que permitiu a
sua continuidade.
Após as ações terroristas em setembro de 2001 nos Estados Unidos e os
acontecimentos do 11 de março na Espanha, produziu-se a conguração de
uma nova ordem mundial que focaliza a batalha com o terrorismo em todas as
Colômbia: política externa, economia e o conito
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suas formas. Por serem grupos de narcotracantes que empregam processos
terroristas contra a população civil e ser considerados um perigo à segurança
nacional dos americanos do Norte, os grupos guerrilheiros e paramilitares
estão incluídos nos catálogos de grupos terroristas elaborados pela União
Européia e pelos Estados Unidos.
A política exterior colombiana e os novos desaos
A diplomacia colombiana se adaptou às novas exigências do mundo
globalizado e interdependente. Robusteceu as relações bilaterais praticamente
com todos os pses do continente americano. Desenvolveu estratégias de
integração com toda a região latino-americana, especialmente com os países
andinos. Avançou na conceão de progresso integral da região, em especial
das zonas de fronteira. Para esse prosito, foram fortalecidas as comissões
de vizinhança com países como o Brasil, o Peru, a Venezuela, o Pana e
a Nicarágua. O país viu também com especial atenção o potencial cultural
e econômico de nações caribenhas e centro-americanas impulsionando
planos de cooperação com governos que até há pouco não faziam parte do
interesse nacional.
Por outro lado, a Chancelaria colombiana se converteu em ator principal na
luta contra o narcotráco, as drogas e os grupos armados à margem da lei. Junto
com a Presidência da República, implementou as campanhas para promulgar
o Conceito de Responsabilidade Compartilhada. O objetivo dessas campanhas
é conscientizar os consumidores de droga sobre os devastadores efeitos que
tem “cada dose de cocaína aspirada, e que não apenas está prejudicando a si
mesmo como também esmatando um colombiano”. As conseqüências diretas
do consumo de drogas na Europa ou nos Estados Unidos são a ampliação
do crime organizado, os assassinatos, os seqüestros e a destruição do meio
ambiente por causa dos tóxicos e herbicidas utilizados nos cultivos ilícitos.
A transnacionalização do conflito armado colombiano é agora
inocultável, especialmente após a operação militar que terminou com a vida
de Raúl Reyes, segundo no comando das FARC, em território equatoriano.
Os computadores encontrados em seu acampamento expõem a insistente
inltração e as diferentes atividades que esse grupo manteve nos países andinos.
O mais preocupante é que, de acordo com essas e muitas outras provas
coligidas pelo Estado colombiano e por agências internacionais, a tolerância
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demonstrada por alguns de nossos vizinhos para com esse grupo terrorista se
acha igualmente comprometida. Vários dos países envolvidos na passada crise
de março, criticando com dureza o governo colombiano e as forças militares
da Colômbia pela morte de Raúl Reyes, foram sistematicamente advertidos
quanto à situação por órgãos de inteligência colombianos
7
.
A cruzada diplomática empreendida pela Chancelaria colombiana
também trouxe bons resultados. Hoje em dia contamos com o resoluto apoio
de governos decididos a combater o terrorismo em seus próprios territórios.
É o caso do Brasil, com o qual temos altos níveis de cooperação em temas de
narcotráco e lavagem de ativos.
A política exterior colombiana também está comprometida com a
luta contra as novas ameaças globais que não apenas afetam nosso país mas
também todo o hemisfério: narcotráco, terrorismo, tráco de armas, crime
organizado, meio ambiente, pobreza, desastres naturais, emigração e outros
mais
8
. Os temas relacionados com a proteção aos direitos humanos e com
o direito humanitário internacional integram ativamente a agenda interna
colombiana. A política externa da Colômbia durante o governo Uribe projetou
programas tendentes a melhorar as condições de vida de nossos compatriotas
nos diversos países de residência e seu processo de inserção nas sociedades
locais. Foram assinados com países receptores de imigrantes colombianos
acordos educativos, trabalhistas, migratórios, de segurança social e de redução
do custo da remessa de recursos nanceiros assim como incentivos para
esses colombianos poderem poupar e adquirir moradia.
9
Assim, o governo
colombiano conseguiu converter “uma política externa para o Estado em uma
política externa para a sociedade”.
10
7 Os países foram alertados da seguinte forma: em duas ocasiões, a Bolívia; em 16, o Equador; em 10, a
Venezuela; em 4, o Peru; em 4, o governo da Argentina; em 7 o Brasil – com respeito à presença de membros
e de contatos do grupo terrorista, além da localização de acampamentos e até mesmo das atividades ilícitas que
estavam sendo conduzidas no Equador e das emissores que se encontram em seu território.
8 Rojas Aravena, Francisco. Seguridad en las Américas. Los desafíos post-conferencia: operacionalizar los consensos y articular
los conceptos. p. 7.
9 Conceptos Rectores de la Política Exterior Colombiana, 2002-2006.
10 Ardila, Marta; Cardona, Diego; Tickner, Arlene B. Prioridades y desafíos de la política exterior colombiana. Bogotá:
Fescol – Hans Seidel – Stiftung, 2002.
Colômbia: política externa, economia e o conito
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2. A Política de Defesa e Segurança Democrática
Quando Álvaro Uribe Vélez tomou posse como Presidente da República
no ano de 2002, a guerrilha das FARC estava revitalizada e assentada
fortemente em importantes zonas do país após o revigoramento alcançado
por ocasião das conversações de paz com a administração anterior de Andrés
Pastrana. As chances de uma saída negociada para o conito eram ínmas.
Uribe liderou o planejamento da Política de Defesa e Segurança Democrática,
fundada na reconquista do território nacional por parte da Força Pública
e das instituições do Estado, reconhecendo o narcotráco como uma das
principais ameaças à integridade da população civil e o terrorismo como seu
principal instrumento de ação.
O rotundo sucesso dessa política derivou da circunstância de não apenas
focalizar o componente castrense da guerra e o fortalecimento das Forças
Armadas mas também reconheceu que, sem a articulada ação de todos os
organismos estatais e da população civil, não seria possível manter o controle
territorial conseguido pelas forças militares. Uribe Vélez determinou que,
simultaneamente com a tomada militar, o aparelho estatal deveria fazer-se
presente nos territórios recuperados para levar educação e desenvolvimento
econômico e social às regiões com o objetivo de fortalecer a população civil
e conseguir, desse modo, a sua colaboração a m de evitar que os bandos
narcoterroristas voltassem a tomar o controle da área. Além do mais, seria o
instrumento mais ecaz para evitar o recrutamento de novos civis.
Foi instaurada nas Forças Armadas uma política de estímulo à eciência,
à transparência e à prestação de contas para melhorar as nanças da instituição
militar. O tema da defesa dos direitos humanos por parte da força pública foi
de suma importância e conseguiu projetar as Forças Armadas como uma das
instituões mais letimas do país. Essas garantias se traduziram em um elevado
grau de apoio da população civil às Forças Armadas e ao próprio governo.
A gestão nanceira das Forças Armadas é feita da seguinte forma:
62% dos recursos foram destinados para nanciar ações orientadas
à proteção da população mediante o fortalecimento da capacidade
militar para fazer-se presente em todo o território nacional e permitir
o desenvolvimento econômico e social de regiões tradicionalmente
afetadas pela violência;
Marta Lucía Ramírez
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16% foram destinados a restabelecer as condições de governabilidade
de zonas anteriormente inuenciadas por grupos à margem da lei e
organizações narcoterroristas;
14% permitem manter uma capacidade de dissuasão perante uma
tentativa de ameaça externa;
6% são empregados na luta contra a ilícita produção de drogas, e
os restantes 2% servem para manter sistemas de avaliação de gestão
e de prestão de contas através do fortalecimento dos sistemas
administrativos.
11
Resultados da Política de Segurança Democrática
Uma vez que a Política de Segurança Democrática tem fundamento
na aplicação da Ação Integral para conseguir, por meio da luta na Guerra
Política entendida em sua totalidade, a derrota dos agentes geradores de
violência na Colômbia, inclusive ameaças transnacionais como o terrorismo,
o narcotráco e a delinqüência organizada os resultados da Política são os
mesmos da aplicação da Ação Integral no país.
Cabe recordar que, no momento em que Álvaro Uribe Vélez assumiu a
Presincia da República no ano de 2002, mais da metade da exteno territorial
não contava com a presença de suas autoridades civis, pois, devido a ameaças
contra suas vidas e as de seus familiares, os Prefeitos, Governadores, Deputados
e Vereadores tinham sido obrigados a renunciar a seus cargos e procurar regio
nos grandes centros urbanos do país. Essa foi uma das primeiras conquistas
do Presidente e sua equipe de trabalho: fazer retornar as autoridades a suas
respectivas regiões, que haviam sido abandonadas aos caprichos dos grupos
narcoterroristas e delinqüentes, o que havia anulado completamente a presença
do Estado sem deixar aos habitantes outra opção que não a de submeter-se ao
domínio dos violentos. Hoje em dia, qualquer sede municipal do país conta,
no mínimo, com a presença da Polícia Nacional.
Em seus relatórios ao Congresso 2005-2006, o então ministro da Defesa
Nacional, Camilo Ospina Bernal, resumiu os excelentes resultados produzidos
pela Política de Segurança Democrática para “melhorar o ambiente econômico
11 Ministério da Defesa Nacional. Relatórios ao Congresso, 2005-2006: Camilo Ospina Bernal, Bogotá, julho
de 2006.
Colômbia: política externa, economia e o conito
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e social do país”, havendo conseguido uma “consolidação da autoridade,
apoiada em sólidos princípios de legitimidade, legalidade e governabilidade
[que] permitiu recuperar o controle da maior parte do território nacional,
particularmente nas áreas onde os grupos armados, à margem da lei, vinham
armando seu poder e nas zonas de importância estratégica para o país”.
12
Especicamente, no que se refere aos objetivos incluídos na Guerra Política
e Ação Integral, conseguiram-se entre 2002 e 2006: 9.897 desmobilizações
individuais e 30.635 desmobilizações em grupo de membros das facções
armadas ilegais, larga proteção da população civil com a redução do número de
homicídios (40,3%), massacres (63%), deslocamento interno (24%) e seestro
(72%). A Rede de Cooperadores, formada por civis, mostrou ser instrumento
de vital importância para essas realizações. Da mesma forma, conseguiu-se
combater de maneira contundente e bem sucedida o narcotráco fonte
primeira de nanciamento aos grupos ilegais e combustível da violenta situação
do país implementando instrumentos como as Famílias de Guarda-orestas
e Famílias em Ação, utilizando mais uma vez a Ação Integral.
Quanto ao componente social e econômico, evidenciou-se um
crescimento de 4,6% na média anual do quadriênio pela primeira vez desde
1974-78; o aumento do investimento do PIB, de 8,61% para 15,23%; o
desemprego decresceu ostensivamente durante os 4 anos; a matrícula ocial
aumentou 18,3%, correspondente a 1,4 milhões de vagas na educação básica
e média; 8 milhões de novos beneciários ingressaram no regime subsidiado
de saúde; e a pobreza se reduziu de 57 a 49,2%, entre outras realizações.
Adicionalmente, mas não menos importante, conseguiu-se que a
comunidade internacional reconhecesse os grupos armados como o que
realmente o: simples organizações terroristas, sem ideais políticos em
benefício da população civil
13
.
Por outro lado, no ano de 2005, as ONGs Foreign Policy e Fondo
por la Paz colocaram a Colômbia em 14º lugar no mundo entre os Estados
Fracassados. Os aspectos em que foi registrada pior classicação foram: as
pressões demográcas, as fugas humanas, o desenvolvimento desigual e a
perda de legitimidade do Estado.
12 Ministério da Defesa Nacional. Relatórios ao Congresso 2005-2006: Camilo Ospina Bernal, Bogotá, julho de 2006.
13 Ministro da Defesa Nacional, Juan Manuel Santos, em entrevista feita por Tarazona Estrada, Jacqueline.
“Conquista da paz: nova fase de consolidação da Política de Segurança Democrática. Bogotá. In: Revista
Exército. ed. 135, março de 2007.
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Em apenas um ano, isto é, no ano de 2006, a Colômbia passou ao 27º
lugar, melhorando substancialmente seus indicadores. Deve-se ressaltar que o
indicador relativo à perda de legitimidade do Estado caiu de 9,8 para 8,7 em
uma classicação de 10 pontos, sendo essa última a mais negativa ao passo
que o indicador total caiu de 95 para 91,8
14
.
Levando em considerão que esse indicador foi desenvolvido para medir
precisamente a probabilidade de que o Estado fracassasse, convertendo-se o
território assim em berço da insegurança tanto para si mesmo quanto para a
comunidade internacional, observa-se na melhoria da qualicão até que ponto,
graças à política estatal desenvolvida nesses cmpos estratégicos, foi possível
reduzir o risco em benefício da preservação e garantia da segurança nacional.
Finalmente, a mais recente pesquisa de opinião dos colombianos efetuada
pela rma Invamer-Gallup, cujos resultados foram revelados no mês de março
de 2007, e que mede, nas palavras de Mao Zedong, a temperatura da água
na qual nadarão os peixes, demonstra o que se segue: 72% dos colombianos
aprovam a gestão do Presidente Álvaro Uribe Vélez; 76%, as forças militares;
72%, a ONU e o Plano Colômbia enquanto 92% desaprovam as FARC;
91%, o ELN; e 86%, as Autodefesas (paramilitares)
15
.
O triunfo da institucionalidade é esmagador, e o fracasso da ilegalidade
é notório em uma guerra política na qual o objetivo principal é a vitória sobre
a população civil, pois, como armou o próprio Presidente Álvaro Uribe
Vélez, em 2 de junho de 2006, “nos Estados de opinião o ingrediente mais
importante para garantir a segurança dos cidadãos, para derrotar o terrorismo,
é a conança da cidadania na Força Pública”.
A Política de Consolidação da Segurança Democrática
A Política de Consolidação da Segurança Democrática foi emitida para o
setor de Defesa a m de vigorar no período 2006-2010, no quadro do Plano
Nacional de Desenvolvimento Estado Comunitário – Desenvolvimento para
Todos. As mudanças obedeceram à nova circunstância estratégica de 2006,
14 Fondo por la Paz e Foreign Policy, relatórios 2005 e 2006. http://www.redri.org/Noticias/estados_fallidos-
2006 fundforpeace.htm
15 Invamer-Gallup. Março de 2007. A rma Invamer-Gallup realizou a pesquisa entre 1.000 homens e
mulheres maiores de 18 anos nas cidades de Bogotá, Medellín, Cali e Barranquilla. Utilizou o mecanismo da
chamada telefônica segundo um sistema aleatório. A coleta de informações foi feita entre 27 de fevereiro e
1º de março de 2007. Tem uma margem de erro de 3% e um grau de conabilidade de 95%.
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criada graças aos êxitos da Política de Defesa e Segurança Democrática entre
2002 e 2006. Algumas dessas mudanças, por exemplo, foram a desmobilização
das Autodefesas Unidas da Colômbia, sob a égide da Lei de Justiça e Paz, assim
como a transformação da guerra das FARC de uma guerra de movimentos a
uma guerra de posições.
Seu objetivo principal variou, igualmente, ao passar do controle territorial,
conseguido em grande parte, à recuperação social do território por meio da
ação integral do Estado. Esse fato conferiu novo nome à Política, pois, uma
vez alcançado o controle do território, tornou-se necessário consolidá-lo.
Para isso, as diferentes zonas do país foram divididas em três, atendendo
o nível de controle do Estado sobre elas e as ameaças existentes: áreas com
presença ativa de grupos armados ilegais, áreas controladas em processo de
recuperação institucional e áreas estabilizadas.
Na zona de primeiro tipo, marcada em cor vermelha, o objetivo é romper
e expulsar os grupos armados ilegais e estabelecer controle territorial, por meio
de um esforço militar intensivo. Nas zonas amarelas, que são as controladas
em processo de recuperação institucional, o objetivo é manter a ordem e a
segurança no interior da comunidade, atrair instituições estáveis, realizando-o
por meio do esforço policial e militar intensivo. Por m, nas áreas verdes
ou estabilizadas procura-se consolidar a autoridade do Estado e estabelecer
instituições estatais e serviços públicos, realizando-o por meio de um esforço
político e social intenso.
Por outro lado, e com relação à luta contra o narcotráco, principal
combustível do conito por ser fonte por excelência de nanciamento aos
grupos terroristas, a ênfase passou da aspersão aérea para a erradicação manual
dos cultivos.
Quanto à segurança dos cidadãos, foi determinada uma estratégia em tal
sentido para desarticular os grupos e bandos que praticam delitos de impacto
nas grandes cidades.
Parte essencial da política é a educação militar, a geração de uma política
integral de direitos humanos e a reforma das instituições, como a justiça penal
militar.
Não obstante, e em essência, a Política de Consolidação é a continuação
da Política de Defesa e Segurança Democrática adaptada às novas condições
estratégicas derivadas do grande sucesso da primeira política.
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Resultados preliminares 2006 e 2007
Homicídio comum – 17.479 (2006) contra 17.198 (2007).
Homicídio de sindicalistas – redução de 68% entre 2006 e 2007.
Homicídio de indígenas – redução de 15,6%.
Homicídio de jornalistas – redução de 66,7%.
Homicídios coletivos – 37 casos (2006) contra 26 casos (2007).
Seqüestros – 687 (2006) contra 486 (2007).
Barreiras viárias ilegais 6 (2006) contra 2 (2007); (em 2002 houve 177).
Atentados terroristas – 646 (2006) contra 387 (2007).
Explosão de oleodutos – 106 (2006) contra 57 (2007).
Aspersão de plantações de coca – hectares: 152.960.
Hectares erradicados manualmente 43.054 (2006) contra 66.396 (2007).
Membros de bandos criminosos abatidos 198 (2006) contra 636 (2007).
Membros de grupos subversivos abatidos – 2.165 (2006) contra
2.067 (2007).
Desmobilizações individuais – 2.460 (2006) contra 3.192 (2007).
Deslocamento – 194.877 individuais e 22.229 coletivos (2006)
contra 97.186 individuais e 12.690 coletivos (2007).
No ano de 2007 registraram-se 2.581 combates, com uma média de
27 neutralizações diárias.
Membros da Força Pública assassinados em combate – 597 (2006)
contra 471 (2007).
Vítimas de minas antipessoal 795 militares e 370 civis (2006) contra
693 militares e 181 civis (2007). 10% das vítimas eram menores de idade.
Em 1998, morriam 2 militares para cada guerrilheiro; em 2002, 1 militar
para cada 3 guerrilheiros. Hoje, é assassinado 1 militar para cada 9
guerrilheiros.
Atualmente, as FARC combatem com 8.576 efetivos e
aproximadamente 3 mil milicianos (eram mais de 17 mil em 2002
além de 20 mil milicianos).
Colômbia: política externa, economia e o conito
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O ELN conta com 2.140 efetivos.
Os bandos criminosos têm 5.096 membros.
16
A Política de Segurança Democrática como política de
Estado
O presente governo chegará ao m dentro de pouco mais de dois anos,
e ninguém pode garantir que a próxima administração decida continuar com
a mesma linha de segurança e defesa nacional. Tendo em vista os excelentes
resultados obtidos, não dar continuidade a essa política vem a ser um risco de
grave retrocesso na matéria. A esse luxo, porém, a Colômbia não pode sedar,
pois no país não há mais vidas a sacricar nessa luta que nos divide há quase
cinco décadas.
Daí a imporncia do Projeto de Lei “pela qual se estabelece o Sistema
de Seguraa e Defesa Nacional”, remetido há poucos meses ao Congresso
da República, porque, além de regulamentar outros assuntos fundamentais
para o setor defesa, como o restabelecimento do Conselho de Segurança
e Defesa Nacional, garantirá a perpetuação dos princípios estruturais
responsáveis pelo grande sucesso da Política de Segurança Democrática,
vindo a ser, desse modo, verdadeira política de Estado e não de governo,
sujeita à mera vontade e capricho da administração do momento. Esse
projeto não procura converter essa política em lei e, sim, consagrar os eixos
fundamentais sobre os quais deve estuturar-se qualquer potica de defesa e
segurança nacional, sem os quais nos veríamos submetidos a uma situação
de incerteza na continuidade e sustentabilidade das realizações obtidas na
luta contra a violência em nosso país.
3. Economia colombiana
Situação atual
A economia colombiana cresceu 6,6% no terceiro trimestre durante o
ano de 2007 completando sete trimestres consecutivos de expansão a uma
taxa superior a 5,5%.
16 Dados obtidos do Ministério da Defesa Nacional – www.mindefensa.gov.co
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Quadro I
Da variação do crescimento do PIB colombiano
Entre as causas do crescimento do produto interno bruto podem-se
distinguir dois tipos de fatores: os externos, determinados pela inuência das
grandes economias mundiais, e os internos, inerentes ao progresso doméstico
do país.
Entre os fatores externos de crescimento encontramos a ampliação dos
investimentos, o consumo dos lares e a facilitação de crédito pelos agentes no
ano de 2007. Sem vida, as melhorias do entorno econômico, em grande parte
conseqüência da segurança democrática, proporcionaram cenários propícios
para o crescimento econômico dos últimos anos, aumentando a conança dos
consumidores na economia.
O consumo desempenha papel crucial na atual fase de expansão da
economia. O consumo doméstico (63% do PIB) cresceu 6,2% anuais no terceiro
trimestre de 2007. Os bens duveis aumentaram em 22,1% anuais (6,3% do
PIB). O ritmo de crescimento da construção foi moderado: 12,2% anuais entre
janeiro e setembro de 2007 (edicações, 1,6% anuais; obras civis, 28% anuais).
O aumento do produto interno bruto também se explica pelo incremento
de 22% no investimento, 6,4% das exportações e 16,6% das importações,
num período equivalente entre janeiro e setembro de 2007, o que motivou
um crescimento médio de 7,3% no terceiro trimestre.
Entre os fatores externos que afetaram positivamente a economia
colombiana destacam-se a melhoria dos termos de troca e os uxos de capitais
em direção a economias emergentes em 2007, o que fortaleceu os ciclos
Colômbia: política externa, economia e o conito
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expansivos do PIB. No entanto, o panorama está mudando e será menos
favorável em 2008 devido à recessão norte-americana. Calcula-se que a cada
ponto percentual a menos no crescimento da economia mundial, a Colômbia
deixará de crescer 1,4%.
Por outro lado, o crescimento mundial passou de 3,9% em 2006 para
3,6% em 2007, e em primeiro lugar na desaceleração estiveram os membros
da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),
cujo PIB caiu 0,3 pontos percentuais, situando-se em 2,5% no último ano.
A queda mais forte foi nos Estados Unidos, cujo crescimento passou
de 2,9% em 2006 para 2,2% em 2007, em grande parte como conseqüência
da fraqueza do mercado imobiliário de moradias, com pida queda nos
investimentos e restrição do crédito não para as empresas como para os
consumidores da mesma forma.
Depois de quatro anos de sólido crescimento do PIB e do comércio,
aumento contínuo dos pros dos produtos básicos, baixas margens no
mercado de bônus, variação gradual das taxas de juros e taxas de câmbio de
certa forma estáveis, agravou-se a volatilidade dos mercados internacionais.
Porém, apesar do panorama favorável experimentado pela economia
colombiana, ainda permanece um décit em conta corrente de –3,6% do
PIB e um décit scal estrutural de 4% do PIB; e continuam as pressões
inacionárias em torno de 6%, quando a meta do Banco da República é 3,5%
e 4,5% para 2007. A apreciação nominal da taxa de câmbio, de 10% anuais,
afeta consideravelmente as exportações, aumenta as importações e agrava o
décit atual da conta corrente, situação que tem como contrapartida a redução
da dívida externa contraída em dólares.
Projeção
A rmeza da economia colombiana em 2008 dependerá do ponto a
ser alcançado pela crise nos Estados Unidos e da manutenção das relações
comerciais com os outros sócios, entre eles a Venezuela e o Equador.
rias organizações econômicas nacionais, entre as quais a ANIF, projetam
que para 2008 a economia crescerá aproximadamente 5,5%, sustentada em um
nível de desemprego inferior a 10% e uma inação de 4,4%. Espera-se que o
décit em conta corrente atinja 3,2% do PIB e o décit primário do governo
central não supere 1,7% do PIB.
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91
Orientação e resultados da política nacional de
competitividade
17
A política de competitividade e produtividade propõe que em 2032 a
Colômbia se torne um dos três países mais competitivos da América Latina,
tendo um nível de renda por pessoa análogo ao de um país de rendas médias
altas por meio de uma economia exportadora de bens e serviços de alto
valor agregado e inovação, com um ambiente de negócios que estimule o
investimento local e estrangeiro, propicie a convergência regional, oportunize
mais empregos formais, eleve a qualidade de vida e reduza de modo substancial
os níveis de pobreza.
Para conseguir esse objetivo, propõe-se realizar: a) o desenvolvimento de
setores de classe mundial; b) o salto na produtividade e geração de emprego;
c) a formalização trabalhista e empresarial; tudo isso fundamentado no
progresso da ciência, da tecnologia e da inovação. São pilares que por sua vez
se complementam com estratégias para a eliminação de barreiras à competição
e ao crescimento do investimento (nacional e estrangeiro), que incluem
diferentes aspectos como estabilidade macroeconômica e jurídica, educação e
capacidades trabalhistas, regulamentação e instituições a serviço da produção,
infra-estrutura física, fornecimento de serviços públicos, consideração aos
direitos de propriedade, qualidade de vida, cidades agradáveis e aumento da
taxa de poupança.
A Colômbia teve um mediano desempenho no desenvolvimento da
competitividade e continua com o árduo trabalho de consolidar-se como
uma das nações mais competitivas da região. Durante 2007 foram obtidos os
seguintes resultados:
A Colômbia somente conseguiu manter-se igual em termos de
competitividade no tocante à educação superior e treinamento,
conservando-se na 69
a
posição em ambos os anos. Isso signica um
relativo fracasso no processo de avanço para padrões mais elevados
de competitividade no país.
As realizações a ressaltar no índice de 2007-2008 são os aumentos de
competitividade e estabilidade macroeconômica subindo duas posições
em relação ao ano anterior, da posição 65 para a 63 e conquista de
17 A Colômbia constrói e semeia o futuro. Política Nacional de Fomento da Pesquisa e Inovação. Colciencias, 2008.
Colômbia: política externa, economia e o conito
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92
24 posições em saúde e educação primária, devido aos esforços do
governo nacional para atingir cobertura nacional na Colômbia nesses
dois campos. Mesmo assim, em 2008 a Colômbia perdeu 6 posições
em termos absolutos em matéria de competitividade em relação ao
ano anterior, passando do 63
o
lugar entre 2006 e 2007 para o 69
o
lugar
entre 2007 e 2008.
São os seguintes os motivos pelos quais a nação perdeu níveis de
competitividade:
Instituições: A Colômbia perdeu 11 posições no que toca à
ecncia, idoneidade e transparência das instituições para gerenciar
os mercados e a economia nacional. Es essa queda ligada aos
escândalos da parapolítica vividos pelo ps durante 2007 e aos
delitos de lesa-humanidade (assassinato dos Deputados em Cali,
por exemplo). Em 2006-2007, o país alcançou a 68
a
posição e caiu
em 2007-2008 para a 79
a
.
Infra-estrutura: A Colômbia perdeu 11 posições em relação ao ano
anterior nesse aspecto. As condições de comércio e a ampliação da
economia não se mantiveram no mesmo plano do nível de desempenho,
estado e investimento na infra-estrutura. O foro econômico mundial
verica deciências na infra-estrutura para desenvolver a atividade
econômica nacional. Em 2006-2007 a Colômbia obteve a posição 75
e em 2007-2008 caiu para a 86.
Eciência do mercado de bens: Essa é uma das quedas mais
pronunciadas no índice de competitividade. A Colômbia perdeu 34
pontos em relação ao ano anterior, quando se colocou na posição
51 nesse particular, mas em 2007-2008 conseguiu o 85
o
lugar na
classicação geral.
Eficiência do mercado de trabalho: Apesar do crescimento
econômico do país, aumento do produto, investimento e poupança
o desemprego manteve-se em nível quase constante em 2007. No
aspecto da eciência, a Colômbia foi penalizada perdendo 9 pontos
ao passar em 2006-2007 da posição 65 à 74 em 2007-2008.
Sosticação nos negócios: A Colômbia se enfraqueceu no ímpeto
empresarial para sosticar os necios, segundo o WEF. Nesse aspecto,
Marta Lucía Ramírez
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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ela diminuiu a competitividade ao cair do 48
o
lugar em 2006-2007 para
o 65
o
em 2007-2008 perdendo 17 pontos.
Inovação: Apesar dos avanços em matéria de ciência e tecnologia, a
Colômbia continua a perder posições nessas áreas vitais para o nível
de competitividade do país. Com relação ao ano anterior, a Colômbia
desceu 13 posições na escala de competitividade ao passar do 59
o
lugar
em 2006-2007 para o 72
o
em 2007-2008.
Resultados do processo de internacionalização da economia
Ao procurar aumentar os benefícios obtidos pelo comércio gerando as
estratégias econômicas e políticas para inserir-se no esquema globalizado, a
Colômbia deu o primeiro passo para a internacionalização e integração de sua
economia com a assinatura do Acordo de Cartagena, em 1969, com o qual foi
criado o Grupo Andino. Junto com a Colômbia, a Bolívia, o Chile, o Equador,
o Peru e a Venezuela também rmaram o acordo.
O Acordo de Cartagena comou a delinear-se desde 1966 com a
Declaração de Bogotá, entrando em vigor em 16 de outubro de 1969. De
modo signicativo, essa decisão política permitiu que a integração comercial
crescesse entre seus membros e aumentasse também o comércio recíproco
de cada um dos signatários.
Em 1976, o Chile se retirou do Grupo Andino, orientando sua política
de integração comercial no sentido do Cone Sul e do Brasil. O motivo da
desvinculação do Chile foi seu desacordo com a aplicação do modelo de
industrialização via substituição de importações, o chamado modelo “Cepalino”,
seguido pelos países andinos membros do acordo, que era acompanhado por
um drástico regime de controle dos investimentos estrangeiros. Durante o ano
de 2006, após tentativas de mediação dos países andinos, a Venezuela também
ocializou a sua retirada do grupo comercial.
Não obstante, as políticas mudaram na Colômbia assim como na maioria
dos países latino-americanos, e o Chile está negociando o seu reingresso. Desde
o ano passado, a bem da verdade, esse país pertence à categoria de membro
associado da CAN (Comunidade Andina de Nações).
O seguinte passo importante em seu processo de internacionalizão
foi dado pela Colômbia ao assinar o Acordo de Montevidéu em 1980, por
Colômbia: política externa, economia e o conito
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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meio do qual foi criada a Associação Latino-Americana de Integração,
a Aladi.
Ela foi criada com o objetivo de promover a integração e o
desenvolvimento equilibrado e harmônico dessa área do continente com o
m de formar um mercado comum latino-americano. O acordo foi assinado
pela Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, México, Paraguai,
Peru e Venezuela. Cuba aderiu recentemente.
Nesse tratado foram contemplados diversos mecanismos para a realizão
dos objetivos nacionais: a preferência tarifária regional, os acordos de alcance
regional e os acordos de alcance parcial.
O tratado foi qualicado como um tratado-quadro de integração, que
permite aos países membros desenvolver uma ampla estratégia de integração,
instrumentando e regulamentando os mecanismos para realizá-lo. Nesse
contexto, a Aladi constituiu-se em plataforma para a negociação de acordos
comerciais por parte da Colômbia.
Durante a década de 80, a Colômbia negociou vários acordos de alcance
parcial, cujo propósito era fortalecer o intercâmbio comercial mediante a
outorga de preferências tarifárias e não-tarifárias. Entre esses acordos destacam-
se os assinados com os países centro-americanos: Guatemala, Nicarágua, Costa
Rica, El Salvador, Honduras e Panamá.
Posteriormente, a partir de 1991 houve na Colômbia uma guinada
importante em maria política e jurídica. A Constituão Política foi modicada
e a partir dessa data se decidiu que a política internacional deveria procurar a
integração com outros países, especialmente os latino-americanos. A mudança
jurídica reete igualmente uma profunda modicação do modelo econômico
adotado pelo Estado e o início de uma abertura econômica para transformar
e desenvolver o país. O modelo Cepalino cou distante e implementou-se um
modelo de desenvolvimento baseado na competitividade e produtividade das
empresas e do país.
Parte dessa política, a m de responder ao desao da globalização, foi a
redução de barreiras ao comércio, a abertura ao investimento estrangeiro e o
aprofundamento da integração com países da região, mediante a celebração
de tratados comerciais.
Marta Lucía Ramírez
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Nessa ordem de ideais foram subscritos novos acordos, igualmente no
âmbito da Aladi, como o Acordo de Complementação Econômica entre a
Colômbia e o Chile, em dezembro de 1993, com o Panamá no mesmo ano e
com Cuba em 2000, entre outros. Nesse mesmo cenário vale a pena ressaltar a
assinatura do Acordo de Cooperação Econômica entre a Colômbia, o México
e a Venezuela, conhecido como G-3.
Durante o ano de 2004 foi assinado o Acordo de Livre Comércio entre
os países membros da CAN e os do Mercosul, com o qual se aprofundou o
nível de integração da Colômbia com os países sul-americanos.
Atualmente, a estragia de internacionalização da Combia es centrada
na negociação de acordos de livre comércio, que recolhem os principais
desenvolvimentos nessa matéria em nível internacional. Esses acordos
se orientam e se priorizam conforme a imporncia de nossos parceiros
comerciais.
Isso explica as negociações de um acordo de livre comércio com os
Estados Unidos, o tratado de livre comércio que se deseja aprovar com os
países que formam a chamada área do Triângulo do Norte (Guatemala, Honduras
e El Salvador) e os processos de negociação que prosseguem em 2008 com o
Canadá, a União Européia, os países membros da EFTA (Islândia, Principado
de Liechtenstein, Confederação Suíça e Reino da Noruega ) e com os países
membros da APEC, entre outros, e o tratado de livre comércio com o Chile,
que depende de sanção presidencial.
Finalmente, é preciso dizer que, desde 1994, a Colômbia integra a
Organização Mundial do Comércio como estratégia de internacionalização
no âmbito multilateral.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
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Equador, perspectivas
de um ex-Presidente
Rodrigo Borja*
A América Latina
A
o pisarem pela primeira vez as terras americanas, em 1492, os homens
das caravelas pensaram haver chegado à parte ocidental da Índia e o a
um continente novo e desconhecido. Por isso, Cristóvão Colombo e seus
companheiros de aventura chamaram de “Índia” as terras que descobriram, e a
Espanha utilizou esse nome durante o período colonial inteiro. A denominação
teve origem em um equívoco geográco. Até aquele momento, os europeus
conheciam a existência de três continentes: o deles próprios, a África e a Ásia.
Haviam mantido com a África relações sem dúvida intensas de vizinhança,
guerra e intercâmbio. Da Ásia importavam porcelana, seda, jóias, substâncias
vegetais aromáticas, pérolas, pedras preciosas, ouro, prata, especiarias e outros
produtos. Quando os turcos otomanos cortaram o caminho tradicional que
ligava a Europa à Ásia Menor, por ocasião da conquista de Constantinopla no
ano de 1453, os espanhóis e portugueses se viram obrigados a buscar uma nova
rota que os levasse aos povos do Oriente a m de por ela canalizar o comércio.
Em tais circunstâncias, pensou Colombo em dirigir-se ao oriente navegando
para o ocidente, devido a sua suspeita de que a Terra fosse redonda, e, após
* Ex-Presidente da República do Equador
rodborja@hoy.net
Rodrigo Borja
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dois meses e meio de longa e fatigante navegação, chegou em 12 de outubro
de 1492 a uma ilha que os nativos chamavam Guanahani e que ele batizou
como San Salvador e em seguida a outras que supôs serem a parte ocidental
da Índia. Por isso deu o nome de Índias a essas terras. Somente vinte anos
depois, com a descoberta do oceano Pacíco por Balboa e a navegação de
Magalhães e El Cano por suas águas, foi que perceberam os europeus haver
descoberto um novo continente mundus novus sobre o qual um obscuro
navegante orentino chamado Américo Vespúcio informou nas cartas que
redigiu a seus patrocinadores italianos. Nelas armava serem aquelas não as
terras da Ásia e, sim, outras muito diferentes. Eram terras de dimensões tão
gigantescas, de vales e montanhas colossais, de rios tão caudalosos e solos tão
luxuriantemente férteis que as noções européias de espaço e distância eram
para elas totalmente inadequadas.
O nome de América” apareceu pela primeira vez em 1505 em um
pequeno livro intitulado Cosmographie introductio, que, num equívoco, atribuía
o descobrimento das terras ao navegante italiano Américo Vespúcio. Essa
denominação suscitou posteriormente muitas controvérsias. Não poucos
julgaram inadmissível desse um aventureiro seu obscuro nome de corsário
às imensas terras descobertas por Colombo em uma das mais arriscadas e
impressionantes façanhas da história. Seria lógico tê-las chamado “Colona”,
Colômbiaou Columba como alguns sugeriram, em homenagem ao
corajoso navegante.
Conforme dizem os escritores Arturo Ardao, em sua obra Génesis de la
idea y el nombre de América (1980), e Ignacio Hernando de Larramendi, em sua
Utopia de la Nueva América, foi o colombiano José Maria Torres Caicedo quem
utilizou pela primeira vez, já bem entrado o século XIX, a expressão América
Latina para referir-se ao conjunto de países colonizdos pela Espanha, Portugal
e França nessa parte do planeta.
Essa novíssima denominação foi imediatamente aceita pelo Vaticano,
que mudou em 1862 o nome do Colégio Americano do Sul para o de Instituto
Eclesiástico da América Latina. Mais tarde, a França e a Inglaterra acolheram esse
nome, com certo laivo de hostilidade em relação à Espanha.
O nome se generalizou.
Não obstante, sempre me perguntei: por que esse nome? Por que motivo
se escolheu o termo “latina” e não outro, mesmo admitindo as pretensões
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colonialistas da França naquele tempo? O que teria levado a denominar assim
aquele novo mundo?
Provavelmente foram os idiomas dos colonizadores, derivados do latim,
que foi o dialeto da cidade de Roma, estendendo-se pelo Latium e mais tarde
pelas colônias do império de Roma na península ibérica e nas Gálias. Existiu
o latim culto ou sábio, que se expressou nas obras da admirável literatura
romana e nas peças da eloqüência incomparável de seus oradores, e o latim
vulgar, falado pelo povo, do qual nasceram as línguas modernas chamadas
“romances”, que são o espanhol, o francês, o português, o italiano, o romeno,
o sardo, o provençal, o rético, o dalmático e outras.
Os latinos eram os habitantes do Lácio, cuja capital foi Roma. Seu idioma
era o latim. Dominaram, durante o império romano, os territórios que depois
seriam a França, a Espanha e Portugal, países que mais tarde conquistariam uma
parte da América e que, pela mestiçagem de sangue e de cultura, produziram
as nações chamadas “latino-americanas”.
Essas nações se diferenciam cultural e idiomaticamente entre si: as
iberoamericnas foram conquistadas por Espanha e Portugal e falam castelhano
e português, e as outras pela França e falam francês, junto com a linguagem
vernácula das populações indígenas.
América Latina” não é uma denominação precisa nem feliz. O que
desse modo se denomina é um continente heterogêneo. Existem nele países
continentais e insulares, grandes e pequenos, com regimes políticos distintos,
alguns democráticos, outros não, sistemas econômicos diferentes, estruturas
étnicas diversas e graus díspares em desenvolvimento econômico e social. Não
há, portanto, uma homogeneidade latino-americana.
O Equador
Geograa
Situado no Noroeste da América do Sul, o Equador é um país de 256.370
quilômetros quadrados de extensão. Atravessado pela linha equinocial, seu
território se localiza em dois hemisférios. Ao Norte se limita com a Colômbia;
ao Sul e Leste, com o Peru; e a Oeste, com o oceano Pacíco.
A cordilheira dos Andes, que com seus dois ramais paralelos o ocidental
e o oriental atravessa o país de norte a sul, divide-o geogracamente em três
Rodrigo Borja
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reges continentais bem diferenciadas: a costa, o altiplano andino e a Amania,
no interior das quais uma multiplicidade de climas e microclimas e uma
grande quantidade de ecossistemas. O patrimônio territorial é complementado
pela região insular, composta principalmente pelo arquilago das ilhas
Galápagos, situado a mil quilômetros de distância do continente.
A região costeira é formada por férteis planícies com vegetação
abundante, bacias sedimentares e colinas de baixa altitude, por onde correm
os rios que descem dos Andes e desembocam no Pacíco. A rede uvial
mais importante é a bacia do rio Guayas, com mais ou menos doze auentes.
A região tem 640 quilômetros de litoral, com extensas e belas praias e balnrios
atraentes. Recebe a inuência de dois fenômenos oceânicos: a corrente cálida
e úmida El Niño, proveniente do norte, e a corrente fria e seca de Humboldt,
procedente do sul. Na costa eso as proncias de Esmeraldas, Manabí, Guayas,
Santa Elena, Los Rios e El Oro.
Na região interandina, encerrada entre os dois ramos dos Andes a
cordilheira oriental e a cordilheira ocidental formaram-se numerosos
vales e ravinas de grande beleza e fertilidade, situados entre 1.800 e 3.000
metros de altitude. Nas duas cordilheiras há altos vules de neves eternas:
o Chimborazo, que tem 6.310 metros sobre o nível do mar, o Cotopaxi com
5.897, o Cayambe com 5.790, o Antisana com 5.758, o Altar com 5.320, o
Illiniza com 5.248, o Tuguragua com 5.023 e o Cotacachi com 4.944. Essas
montanhas dão origem a numerosos rios de leitos profundos, cascatas e
quedas d’água. Nessa região serrana estão as províncias de Carchi, Imbabura,
Pichincha, Santo Domingo de los Tsáchilas, Cotopaxi, Bolívar, Tungurahua,
Chimborazo, Cañar, Azuay e Loja.
Em dirão ao oriente se estende a cerrada selva amanica, que
forma parte da maior oresta tropical úmida do planeta e do maior sistema
hidrográco, possuidor da quinta parte da reserva de água doce da Terra. Sua
biodiversidade é tão rica e heterogênea que em uma milha quadrada de selva
mais espécies animais e vegetais do que nos territórios conjuntos dos Estados
Unidos e do Cana. Pertencem à rego amazônica as províncias de Sucumbíos,
Napo, Pastaza, Orellana, Morona Santiago e Zamora Chinchipe.
Cada uma das regiões tem cultivos próprios e diferentes. Na região
costeira produz-se principalmente cacau, arroz, milho, frutas tropicais, camarões
cultivados em piscinas, produtos do mar e gado de carne. No altiplano,
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principalmente milho, trigo, cevada, ores, leguminosas, hortaliças e uma
variedade de frutas de clima temperado. Na região amazônica estão as mais
importantes jazidas de petróleo e gás natural.
A quarta região insular composta principalmente pelo arquipélago
das ilhas Galápagos, situado no oceano Pacíco a mil quilômetros da costa
continental do Equador, sobre a linha equatorial, é um conjunto integrado
de ilhas de origem vulcânica que emergiram acima da superfície do mar
aproximadamente quatro milhões de anos.
O arquipélago tem 8 mil quilômetros quadrados de superfície,
distribuídos em 13 ilhas e 17 ilhotas. Descobertas pelo arcebispo do Pana
Tomás de Berlanga, em 1535, a bordo de um navio que as correntes marinhas
desviaram de sua rota, apareceram pela primeira vez na carta de navegação
preparada por Abraão Orteluis em 1570. O imperador Carlos V da Espanha
enviou às ilhas a primeira missão cientíca, dirigida pelo capio siciliano
Alexandre Malaspina.
O governo equatoriano tomou posse das ilhas em 12 de fevereiro de
1832 e as denominou Arquipélago do Equador. Em 1979, a Unesco as incluiu
na lista de bens do Patrimônio Natural da Humanidade. As fascinantes ilhas
Galápagos, nas quais parece o tempo haver estancado, foram o principal
laboratório natural em que o sábio inglês Charles Darwin pesquisou as bases de
sua teoria da evolução, que ele expôs na obra, A Origem das Espécies, publicada
em 1859, cujos 1.250 exemplares da primeira edição foram vendidos no mesmo
dia de sua publicação.
Desde esse momento, as ilhas despertaram o interesse da comunidade
cientíca mundial.
O isolamento em relação ao continente e outros fatores lhes permitiram
possuir condições endêmicas extremamente elevadas, que o o compaveis
às de qualquer outro lugar do planeta. A terça parte da vegetação terrestre,
90% dos répteis, 80% dos mamíferos e 20% dos peixes são endêmicos.
Com o objetivo de proteger os ecossistemas, a biodiversidade e a beleza
incomparável da paisagem insular, meu governo aprovou e colocou em prática
em 1992 um plano integral para a gestão dos recursos marinhos e turísticos
das Galápagos.
Rodrigo Borja
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101
História
Habitaram na antiguidade, onde hoje é o Equador, desde há
aproximadamente 11 mil anos, hordas, clãs e tribos indígenas em diversos
graus de desenvolvimento. Os grupos mais importantes foram os quitus, shyris,
puruhaes, cañaris, mochas, paltas, zarsas, huacas, tuzas, tulcanes, quillasingas,
quinches, chillos, ambatos, tiquizambis, chimbos e caras.
Os shuris estabeleceram o reino de Quito sobre esses territórios das
primitivas sociedades aborígenes.
Diz o historiador equatoriano arcebispo Federico González Suárez, em
sua Historia General de la República del Ecuador, publicada em vários tomos no
ano de 1890, que, como os povos que habitaram antigamente o que hoje é o
Equador “não conheciam a escrita e conservavam a memória do passado por
meio de tradições orais, expostas a mudanças e alterações (...) a única coisa que
as nações indígenas que povoavam essas províncias ao tempo da chegada dos
espanhóis podem apresentar ao historiador não é uma história propriamente
dita e, sim, um quadro traçado em grandes linhas”. Contudo, ele distingue dois
períodos na pré-história dos grupos indígenas que habitavam essas terras e
nelas guerreavam: “o que precedeu ao domínio dos incas e o que transcorreu
depois que os lhos do Sol subjugaram as diversas nações que existiam nesta
parte do continente americano e as submeteram ao império de Cuzco”.
O primeiro período foi o do reino de Quito, estabelecido pelos shyris depois
de haver dominado os quitus e outras tribos, e o outro, o do império inca,
domínio que durou cerca de meio século e terminou com Francisco Pizarro
chegando à costa equatoriana.
A conquista do reino de Quito pelos incas teve início na segunda metade
do século XV pelo monarca Túpac Yupanqui e continuou com seu lho Huayna
Cápac, que formou o giganstesco império a que denominou Tahuantinsuyo,
cuja extensão ia desde as planícies de Pasto, no norte, até a fronteira dos
Araucanos ao sul, e desde o oceano Pacíco, a oeste, até os Andes a leste.
O império inca se estendia desde a atual Colômbia até o Chile. As duas cidades
mais importantes do império eram Cuzco e Quito.
O Tahuantinsuyo sofreu a comoção da guerra civil entre os herdeiros
de Huayna Cápac, Huáscar e Atahualpa. Ao primeiro, o pai deixou a parte
sul do império e ao segundo a parte norte. Isso foi o que determinou em
Equador, perspectivas de um ex-Presidente
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seu testamento. Em breve, porém, em suas ambições de domínio sobre o
Tahuatinsuyo, seus lhos se viram envolvidos em uma cruenta guerra civil
dinástica. Huáscar dirigiu-se a Quito com seu aguerrido exército, Atahualpa
saiu a seu encontro e venceu-o depois de vários e longos embates. Huáscar
foi executado. Logo, porém, chegaram os barbudos. Capturaram e mataram
Atahualpa, e esse foi o desfecho do período inca e o início da conquista e
colonização desta parte da América.
O rei Felipe da Espanha, mediante cédula real de 29 de agosto de 1563,
criou a Real Audiência de Quito sobre as possessões territoriais do que é
hoje o Equador. As audiências eram unidades político-administrativas
estabelecidas em circunscrições teritoriais bem delimitadas, com autoridades
religiosas, políticas e judiciárias. A maior autoridade política era o Presidente
da audiência, que representava o monarca espanhol, e os ouvidores eram a
autoridade judiciária.
A cidade de Quito, localizada na encosta do vulcão Pichincha, a 2.800
metros de altitude sobre o nível do mar, foi fundada pelos espanhóis no ano
de 1534 no mesmo lugar em que os shyris rmaram seu reino. Desse lugar
partiu a expedição de 4 mil índios e 220 espanhóis organizada por Gonzalo
Pizarro em busca do “El Dorado”, cuja liderança foi depois assumida por
Francisco de Orellana, o qual, ao m de uma penosa travessia de 12 meses
e mais de 4 mil quilômetros percorridos, descobriu o rio Amazonas no dia
12 de fevereiro de 1542 e navegou por ele até sua foz no oceano Atlântico,
rematando em meio a indizíveis sofrimentos e sacrifícios humanos uma das
odisséias mais notáveis da história.
Quando as colônias espanholas obtiveram a emancipação da Espanha,
adotaram como critério para delimitar seus respectivos territórios o uti possidetis,
em sua origem uma fórmula jurídica própria do direito romano antigamente
invocada nas ações possessórias interdicto para reclamar em juízo sumário a
posse atual de alguma coisa por parte de quem a havia possuído sem violência,
clandestinidade ou precariedade, por determinado tempo. Em seguida, esse
princípio jurídico foi acolhido pelo direito internacional para resolver alguns
problemas de delimitação fronteiriça entre os Estados.
A fórmula utilizada pelas ex-colônias espanholas para efeitos territoriais
foi a do uti possidetis, ita possedeatis, que signicava “conforme possuís, continuareis
a possuir”. Ela serviu para regular as fronteiras dos Estados que irromperam
Rodrigo Borja
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para a independência após a etapa colonial e que assumiram seus territórios em
função das divisões político-administrativas estabelecidas anteriormente pela
metrópole colonialista. O princípio do uti possidetis foi transposto do direito
civil ao direito internacional pela primeira vez na Paz de Breda, celebrada entre
a Holanda e a Inglaterra em 1748. Desde aí, esse princípio tem sido usado
para regular a situação territorial entre dois Estados após uma guerra ou para
encerrar uma situação colonial.
No direito territorial hispano-americano, o princípio do uti possidetis teve
grande força no século XIX para determinar os direitos territoriais das antigas
colônias espanholas no momento de sua independência, conforme os títulos
expedidos pelo rei da Espanha. De acordo com esse princípio, os novos Estados
se formaram sobre os territórios alocados pela autoridade metropolitana às
respectivas circunscrões coloniais até 1810, que foi considerado o ano
emblemático da independência hispano-americana.
A partir do triunfo denitivo das foas independentistas sobre o
exército espanhol em 1822, o que hoje é o Equador passou a fazer parte da
Grã-Colômbia, constituída nesse ano sob a inspiração e governo político do
libertador Simón Bolívar. A Grã-Colômbia era integrada por três distritos:
Venezuela, Cundinamarca e Quito, cujas capitais eram as cidades de Caracas,
Bogotá e Quito, respectivamente. Sua existência, no entanto, foi efêmera, porque
as forças centrífugas foram mais poderosas que as centrípetas. A Venezuela
separou-se em 6 de maio de 1830 e convocou imediatamente a Assembléia
Constituinte, o que deu vida ao novo Estado. Concomitantemente, uma
Assembléia de Notáveis – aqueles eram os tempos dos “notáveis” – reunida
em Quito em 13 de maio de 1830 se pronunciou a favor do desmembramento
do distrito do sul da Grã-Colômbia e em 14 de agosto do mesmo ano se
instalou na cidade de Riobamba, ao sul de Quito, a Assembléia Constituinte,
que redigiu a primeira Constituição do novo Estado, a qual, como todas as
Constituições latino-americanas de seu tempo, se inspirava na Constituição
norte-americana de 1787.
A Grã-Colômbia dissolveu-se devido às pressões separatistas dos líderes
locais e, dessa forma, se esvaneceu o sonho de Bolívar de formar, por via da
integração, um Estado grande e poderoso que pudesse inuir nos destinos
da América do Sul.
Esse foi o início da vida independente do Equador.
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Sua capital, a cidade de Quito, possui o centro histórico de arquitetura
colonial mais importante e mais bem conservado da América espanhola, com
suas ruas estreitas e íngremes, a Plaza Mayor, seus conventos monumentais e
suas igrejas barrocas edicadas nos séculos XVI e XVII. A Unesco a declarou
patrimônio cultural da humanidade. Seu centro emblemático é a Plaza Mayor,
construída segundo os cânones tradicionais da Andaluzia e as instruções que
vinham da metrópole, em torno da qual, plaza, foram assentados o palácio do
governo, a casa consistorial, a catedral, o palácio do arcebispado e as principais
mansões. Nos tempos coloniais deslavam nessa praça e ruas estreitas o frade,
a beata, os folgazões, o aguadeiro, o vendedor de sandálias, o cavaleiro e o
vigia das madrugadas, mais tarde, eles todos, gurantes nas páginas das novelas
latino-americanas – Manuela, de Eugenio Díaz Castro, María, de Jorge Isaacs,
El Chula Romero y Flores de Jorge Icaza e muitas outras que retratavam os
protagonistas da praça colonial hispano-americana. Nos tempos da colônia e
mais tarde, nos primeiros tempos republicanos, a Plaza Mayor que a partir
da emancipação passou a chamar-se Plaza de la Independencia – era o ponto de
encontro das pessoas, o foro público e a fonte principal de informação da
vida comunitária. Na “hora do passeio” acorriam os senhores elegantes da
classe dominante para discutir política, maquinar contra o governo e trocar
mexericos. Nos dias festivos, ali se realizavam as procissões religiosas e os
desles militares.
Nos séculos XVI, XVII e XVIII formou-se a “escola quitenha”, de
pintura, escultura e imagens, que deixou maravilhosos testemunhos nas artes
plásticas, exibidos principalmente nos museus e nas velhas igrejas e mosteiros
de Quito, nos quais o fulgor do barroco quitenho, plasmado em suas paredes
e tetos, alcançou alturas inigualáveis.
O barroco de Quito é uma arte mestiça, primordialmente religiosa,
forjada pela fusão de culturas. É uma mistura de espanhol, italiano, amengo,
bizantino, mudéja
1
e quitenho. Metade imitação, metade originalidade, a
escola quitenha junta os elementos decorativos europeus a americanos, em
ornamentação opulenta e carregada, plasmada sobre tela, madeira, pedra ou
paredes. Muitos pintores, escultores de imagens ou entalhadores índios e
mestiços muito talentosos – como Pedro Bedón, Alfonso Chacha, Francisco
1 Estilo arquitônico que mescla elementos cristãos, judaicos e mouriscos, surgido na Andaluzia após a
reconquista do território espanhol aos árabes (N. do T.).
Rodrigo Borja
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e Jerónimo Vilcacho, Cristóbal Naupa, Sebastián Gualoto, Diego de Robles,
Bernardo Legarda, Manuel Chili (mais conhecido como Capiscara), Miguel
de Santiago, Nicolás de Goribar, Bernardo Rodríguez, Hernando de la Cruz,
Manuel Samaniego deixaram peças de riquíssima ornamentação e policromia,
pintadas ou entalhadas.
A escola quitenha, cujas obras em boa parte são de autores anônimos,
obteve prestígio na América Latina e sobre ela muito se tem escrito nos rculos
da pintura e da escultura.
Composição étnica e demográca
O Equador tem 13 milhões de habitantes, segundo as projeções do censo
da população realizado em 2001, dos quais 55% são rurais e 45% urbanos.
A densidade demográca é, pois, de 50 habitantes por quilômetro quadrado.
É um país essencialmente mestiço. 83% da população é composta de
cholos
2
e mulatos, 8% de índios, 7% de brancos (ou predominantemente brancos)
e 2% de negros.
A exemplo da grande maioria dos Estados, o Equador é plurinacional.
Existem no mundo cerca de 2 mil naciones inseridas em quase 200 Estados de
modo que a imensa maioria desses últimos tem caráter plurinacional. Ora, no
território equatoriano convivem diversas pequenas nações indígenas, entre
as quais as mais importantes são: a quéchua, a huaorani, a achuar, a shuar, a
confán, a siona, a secoya, a shiwiar, a zápara, a epera, a awa, a chachi e a tsáchila.
A maioria habita rincões longínquos da região amazônica e vive conforme
suas antigas e primitivas religiões e costumes.
A mestiçagem – diz o lósofo equatoriano da história Gabriel Cevallos
Garcia é a grande realidade histórica do Equador e, em geral, dos povos
andinos. A mescla de tipos humanos de várias procedências começou”
diz Cevallos Garcia – “mil anos antes que os espanhóis chegassem às costas
americanas e iniciassem um novo gênero de mestiçagem”. Como resultado,
nosso tipo humano, cultura e sionomia histórica foram a conseqüência das
ondas migrarias chegadas a essas terras milhares de anos antes que os exércitos
incaicos vencessem e dominassem os quitenhos e nelas incursionassem os
homens das caravelas.
2 Mestiços de europeus e aborígenes (N. do T.).
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A palavra cholo é um americanismo que o historiador peruano Carlos
Daniel Valcacel diz provir do idioma quéchua. O inca Garcilaso de la Vega
(1539-1616), ao contrário, bom conhecedor dessas coisas, armou que cholo
é uma palavra procedente das ilhas de Barlavento, que signica “cachorro” e
que foi aplicada por vitupério aos lhos dos mulatos.
A palavra tem vários signicados. Em alguns países ibero-americanos
como o Chile e a Costa Rica signica “índio civilizado”. Em outros designa
qualquer pessoa morena. No Chile tem ainda a conotação de “covarde”,
provavelmente como resquício da guerra do Pacico. Em certos países é
depreciativo e em outros, não. Pode até ser um tratamento carinhoso em sua
forma diminutiva: cholito ou cholita. Nos países andinos Equador, Peru e
Bolivia é o mestiço de índio com branco, em cujas características étnicas são
visíveis os traços indígenas. Nesses países é costume dizer cholear no sentido de
discriminar negativamente alguém, isto é, “tratá-lo como um cholo’. No Peru,
no entanto, a palavra não tem essas conexões depreciativas. Cholo é o mestiço
que sobe na vida social e se supera. Recentemente houve um Presidente,
de evidente sangue mestiço, que se fazia chamar, com um traço de orgulho,
“el cholo Toledo”.
Em geral, nos países andinos tem certa conotação depreciativa para os
que pertencem à camada superior. O branco “de puro sanguefreqüentemente
pensa que o cholo é um homem complicado e que, de mistura com ressentimento
social e insubmissão, o seu temperamento vem a ser contraditório, introvertido
e violento. O cholo, por sua vez, menospreza o índio apesar de saber que por suas
veias corre sangue índio e não gosta do branco, a quem como discriminador
e abusivo. Recordemos “o vesgo Rodriguez” do romance Huasipungo de Jorge
Icaza ou o “cholo Cisneros” de Todas las Sangres de José Maria Arguedas. O cholo
tem a impressão de que o sistema social no qual vive injusto e sem muita
mobilidade não lhe oferece possibilidade alguma de progresso e que, faça o
que faça, sua vida não mudará. O sistema é demasiadamente inexível. Isso
originou uma forte e justicada insatisfação em seu espírito.
Poderia estar aí uma explicação para a instabilidade política e social dos
países andinos.
Na ótica do índio, o cholo é um ser inconável porque tende a desprender-
se de suas raízes e assimilar-se ao branco para servir, em última análise, aos
interesses desse último. O boliviano Fausto Reinaga – fundador em 1962 do
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Partido Índio Boliviano e em 1977 da Comunidade Índia Mundial advoga
essa “indianidade”, na qual não espaço nem para o cholo nem para o branco.
Acredita que a “revolução índia” ocorrerá quando “a sociedade inca, maia,
asteca e pele-vermelha desperte e comece a caminhar em busca do ‘poder
índio’”. Reinaga ataca sem misericórdia o mestiço, a quem acusa de “racismo”
em relação ao índio. Considera que o mestiço o cholo seja frade, historiador,
antropólogo ou politico, é sempre um títere da europeização das comunidades
indígenas das Américas.
O movimento de reivindicação dos valores da mestiçagem, iniciado
com a revolão mexicana, teve eco no Peru com José Carlos Martegui e
no Equador com Jorge Icaza. Nesses anos, nos países mestiços dos Andes,
estava em curso uma batalha campal entre os hispanistas”, que cantavam
as glórias da Espanha, e os “indigenistas”, que exaltavam o império incaico.
A literatura se encarregava de dramatizar a dicotomia entre o patrão branco,
desumano e feroz, e o índio subjugado. Um falava espanhol e outro quéchua.
Os romances El Tungsteno (1931), de César Vallejo, e Huasinpungo, de Jorge
Icaza, constituíram no Peru e no Equador uma maravilhosa expressão desse
mundo maniqueísta. O mestiço, até esse momento, era o grande ausente da
realidade social e da narrativa dos países andinos. Na realidade, nas primeiras
décadas do século passado, as fotograas e desenhos só mostravam criollos
3
de cartola e índios vestidos de ponchos. O mestiço ainda não havia ingressado
no cenário social. O próprio indigenismo marxista se esquecia do mestiço
ao mesmo tempo em que atribuía ao índio o papel que Marx entregara
ao proletário. Em meio a esses dois fogos irrompeu a mestiçagem, como
elemento fundamental da realidade social andina e meso-americana e como
protagonista da literatura de denúncia. Em suas veias corre sangue índio e
sangue branco. O historiador peruano Carlos Daniel Valcárcel arma que o
cholo “sofre a dupla tragédia de duas almas irreconciliáveis e o duplo rechaço
dos de cima e dos de baixo”. Mesmo assim, o mesto luta e se esfoa
vigorosamente para abrir espaço na vida social, superar-se culturalmente,
impor a sua visão original da vida e defender os seus direitos. No nal das
contas, a grande verdade revelada om o descobrimento da América é a
mestiçagem, cheia de potencialidades e originalidades.
3 Na América hispânica dos tempos coloniais, criollo era o lho de espanhóis nascido na colônia (N. do T.).
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Biodiversidade
Do ponto de vista taxionômico, no planeta lugares mais ricos do que
outros em variedades de espécies. Em 1997, depois de haver realizado trabalhos
de campo em mais de 20 países tropicais, Russell Mittermeier na ocasião
Presidente da entidade ambientalista Conservação Internacional identicou em
seu livro Megadiversity 17 países nos quais está concentrada a maior biodiversidade
do planeta. Quase todos são condôminos da bacia amazônica. São países que
possuem uma impressionante “megadiversidade” em plantas, aves, mamíferos
e anfíbios, assim como em ecossistemas uviais e marinhos.
A biodiversidade de um ecossistema se mede por meio da heterogeneidade
das espécies, isto é, tanto pelo número das que nele habitam quanto pela sua
abundância relativa.
No Equador 324 espécies de mamíferos, 1.559 de aves, 710 de peixes,
409 de répteis, 402 de anfíbios. Signica isso que em um pequeno país de
256.370 quilômetros quadrados existem mais espécies de aves que em todo
o território dos Estados Unidos, mais espécies de peixes que nos mares da
América do Norte ou da Europa e mais espécies de anfíbios que em todo o
território europeu. Isso sem incluir os artrópodos (insetos, aranha, crustáceos).
20 mil espécies de plantas vasculares. Isso tudo signica: apenas 0,17% da
superfície terrestre possui mais de 11% de todas as espécies de vertebrados
(mamíferos, aves, anfíbios e répteis) do planeta. Sua opulenta megadiversidade
e riqueza de paisagens, beleza e ecossistemas se devem a que o Equador,
situado em pleno trópico do Câncer, na América do Sul, é atravessado pela
cordilheira dos Andes, que divide seu território continental em três grandes
regiões, dentro das quais uma multidão de climas e microclimas e uma
grande quantidade de ecossistemas.
Estrutura jurídico-política
O Equador é um Estado unitário dividido, política e administrativamente,
em 24 províncias, cada uma das quais reúne vários cantões. A descentralização
administrativa ou por serviços não afeta o caráter unitário do Estado.
As cidades mais populosas são Guayaquil, Quito (que é a capital), Cuenca,
Ambato e Santo Domingo.
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O governo central é republicano presidencial, dividido em três grandes
poderes: o legislativo, exercido pelo Congresso Nacional, unicameral, composto
por legisladores eleitos por suas respectivas províncias em forma proporcional
à população; o executivo, exercido pelo Presidente da República, seus ministros
de Estado e outros funcionários da administração; e o judiciário, exercido pela
Corte Suprema de Justiça, os tribunais provinciais e os juizados.
O Tribunal Constitucional tem a função de controlar a constitucionalidade
das leis; é um órgão autônomo, integrado por nove membros, nomeados pelo
Congresso Nacional da seguinte maneira: dois, de uma tríplice lista enviada
pelo Presidente da República; dois, de uma tríplice lista enviada pela Corte
Suprema de Justiça; dois, selecionados pelo Congresso Nacional dentre pessoas
não-pertencentes ao próprio Congresso; um, de uma tríplice lista enviada
pelos prefeitos provinciais e prefeitos municipais; um, de uma tríplice lista
enviada pelas organizações de trabalhadores, índios e camponeses; e um, de
uma tríplice lista enviada pelas câmaras de produtores.
São funcionários de eleição universal, direta e secreta o Presidente e o
Vice-Presidente da República e os legisladores, por um período de quatro anos.
É proibida a reeleição imediata do Presidente e Vice-Presidente.
O Supremo Tribunal Eleitoral e os tribunais eleitorais provinciais,
dotados de autonomia administrativa e econômica, são os órgãos encarregados
de organizar, dirigir e vigiar os processos eleitorais universais e diretos;
organizar, dirigir e vigiar os referendos que sejam convocados nos casos
previstos constitucionalmente; realizar os escrutínios das eleições e consultas
populares; resolver os litígios e reclamações que surjam desses processos; e
julgar os gastos eleitorais dos partidos e movimentos políticos e a origem de
seus recursos.
O Supremo Tribunal Eleitoral é composto por sete vogais eleitos pelo
Congresso Nacional.
É prevista a revogação popular dos mandatos dos Deputados, prefeitos
provinciais e prefeitos municipais por iniciativa de ao menos 30% dos eleitores
da respectiva circunscrição territorial.
A Constituão garante a operacionalidade essencial dos partidos
políticos, cujo nascimento e funcionamento são regulados por lei. Um partido,
para ter reconhecimento legal, deverá sustentar princípios doutrinários que o
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individualizem, apresentar um programa de ação, contar com organização em
escala nacional e reunir o número mínimo de liados requerido por lei. O partido
se extinguirá de pleno direito caso em duas eleições pluripessoais sucessivas
não obtenha pelo menos 5% dos votos válidos. Com o objetivo de garantir
a independência econômica dessas organizações políticas, a Lei de Partidos
Políticos estabelece em benecio deles um nanciamento estatal, proporcional
aos votos obtidos, e lhes reconhece determinadas isenções tributárias, porém
limita seus gastos eleitorais e lhes proíbe receber contribuições econômicas
de Estados ou empresas estrangeiras ou pessoas ou instituições que tenham
contato com o Estado.
Os magistrados da Corte Suprema são nomeados pelo Congresso
Nacional de forma vitalícia; podem, contudo, ser removidos de suas funções
pela autoridade nomeadora pelos motivos assinalados na Consituição e nas leis.
Cada província é dirigida por um governador nomeado pelo Presidente,
por um Conselho Provincial integrado pelo Prefeito Provincial, que é a
autoridade executiva, e por um órgão colegiado formado por um número
variável de conselheiros provinciais, eleitos pelos cidadãos de sua circunscrição
territorial em proporção à população da mesma.
Um dos direitos políticos é o direito ao voto, para cujo exercício se
requer: ser cidadão equatoriano por nascimento ou por naturalização, haver
completado 18 anos de idade e estar no gozo dos direitos políticos. Os
membros das Forças Armadas e da Policia Nacional não podem votar nem
ser votados. Esses direitos cam suspensos por condenação judicial a prisão
ou reclusão, pela duração da pena.
O Equador é membro fundador da Organização das Nações Unidas
(ONU) desde 1945 e também integra a Organização dos Estados Americanos
(OEA), do Grupo do Rio, do Tratado Amazônico, da Organização de Países
Exportadores de Petróleo (OPEP) e da Comunidade Andina de Nações
(CAN), da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e de outras organizações
internacionais.
O Equador faz parte do processo andino de integração econômica
fundado em 26 de maio de 1969, sob o nome de Acordo de Cartagena ou Pacto
Andino, pela Colômbia, Equador, Peru, Bolívia e Chile, ao qual a Venezuela
aderiu em 1973 e do qual se retiraram o Chile, sob a ditadura de Pinochet em
1976, e a Venezuela em 2006.
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Podem-se denir três etapas no desenvolvimento da integração andina:
na primeira, muito dinâmica, que se estendeu até 1975, foram criados os
órgãos internacionais para a condução do processo, estabeleceram-se os
programas de desgravação tarifária, adotou-se um regime comum de tratamento
do investimento estrangeiro e de marcas e patentes e foram implantados
programas setoriais de desenvolvimento industrial; em seguida veio uma
etapa de estancamento, na qual o processo perdeu dinamismo por causa
das diculdades nanceiras dos países integrados, que reduziram os níveis
de seu comércio recíproco, e da falta de cumprimento dos compromissos
contraídos; e uma terceira etapa de recuperação e reativação do Pacto Andino,
que se iniciou em 1989 graças à decisão tomada em Caracas pelos Presidentes
Virgilio Barco, Rodrigo Borja, Alan Garcia e Carlos Andrés Pérez de vigiar
diretamente a marcha do processo de integração e reunir-se duas vezes por
ano no quadro do Conselho Presidencial Andino – nova e superior instância
política por eles criada a m de examinar as ações realizadas no semestre.
Isso conferiu enorme dinamismo ao processo e multiplicou o comércio sub-
regional. Segundo informações da Junac, no período compreendido entre
1990 e 1995, o grupo andino incrementou o comércio intra-sub-regional a
um ritmo de 27% anuais embora não tenha sido um crescimento simétrico
porquanto o Equador aumentou suas vendas de 188,5 milhões de dólares
a 364 milhões, a Bolívia de 55,9 a 199, e o Peru de 214 a 412 enquanto a
Colômbia as aumentou de 327,7 a 1.805 milhões de dólares; e a Venezuela de
493,6 a 1.847 milhões. Isso demonstra que estes dois últimos países foram os
beneciários principais da integração, pois quintuplicaram e quadruplicaram,
respectivamente, suas exportações no mercado andino.
Apesar de todos os óbices e limitações, o processo andino de integração
é o mais bem sucedido, do ponto de vista técnico e institucional, dentre todos
os que foram iniciados na América Latina até a presente data, e é o único a
possuir uma instância judiciária comunitária o Tribunal Andino de Justiça –
para solucionar as controvérsias entre os países membros por ocasião ou em
conseqüência dos acordos de integração.
Em abril de 1966, os Presidentes dos países andinos, reunidos na cidade
de Trujillo, no Peru, adotaram duas resoluções de caráter formal: alterar
a denominação de Pacto Andino, pela qual se conhecia desde o prinpio
esse sistema de integração passando a chamar-se Comunidade Andina
obedecendo, provavelmente, à inuência euroia; e criar uma instância
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intermedria de condão do processo: o Conselho Andino de Ministros
das Relações Exteriores.
Os governantes dos 12 Estados sul-americanos, reunidos na cidade
de Cuzco em 8 de dezembro de 2004, projetaram criar a Comunidade
Sul-Americana de Nações, com o objetivo de “desenvolver um espaço sul-
americano integrado no aspecto político, social, econômico, ambiental e de
infra-estrutura”. Tal decisão foi raticada nas reuniões de cúpula presidenciais
de Brasília, em setembro de 2005, e de Cochabamba em dezembro de 2006,
quando os Presidentes armaram que “a integração sul-americana não apenas
é necessária para resolver os grandes agelos que afetam a região, como a
pobreza, a exclusão e a desigualdade social persistentes, que se transformaram
nos últimos anos em uma preocupação central de todos os governos nacionais,
como também é um passo decisivo para alcançar um mundo multipolar,
equilibrado, justo e baseado em uma cultura de paz”. Na ilha venezuelana de
Margarita, essa iniciativa se concretizou em 16 de abril de 2007. Os governantes
da Argentina, Bovia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru,
Suriname, Uruguai e Venezuela fundaram a União de Nações Sul-Americanas
(Unasul), com sede em Quito, e propuseram-me presidir a Secretaria Geral
da nova entidade.
Aceitei essa responsabilidade devido a minha antiga vocão integracionista,
que me levou, 28 anos, a escrever um pequeno ensaio intitulado: A sindicalização
dos países pobres, que continha uma fervorosa argumentação em defesa da união
de nossos países e da formação de um “sindicato” internacional que pudesse
fortalecer nossa posição no mundo exterior.
Imediatamente z chegar aos Presidentes minha opinião acerca do
que deve ser e fazer a Unasul. Um ponto central de minhas sugestões era a
absorção pela nova instituição, em escala regional, de todas as entidades sub-
regionais existentes a m de progredir na integração continental a cargo
da Comunidade Andina de Nações (CAN e do Mercado Comum do Sul
(Mercosul) em direção à integração continental sul-americana, com base
nas experiências, realizações e frustrações dos sistemas sub-regionais. Esse
me parecia ser o caminho para atingir os objetivos de desenvolvimento dos
países da América do Sul e potencializar sua inserção internacional no mundo
implacavelmente competitivo da era pós-Guerra Fria. A idéia era enfrentar,
com a multiplicada força da união, os blocos estatais do mundo desenvolvido
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e a constelação de corporações transnacionais que, no período pós-Guerra
Fria, se haviam consolidado com inédito vigor.
No entanto, a instrumentação do projeto encontrou alguns tropeços no
caminho. A comissão de funcionários de alto nível designada pelos governos
para formular o projeto de estatuto de fundação se inclinou por criar uma
nova estrutura integracionista ao lado das que existem. Com isso, na minha
opinião, o projeto dos Presidentes, concebido com tão clara visão de futuro,
cou mediatizado.
Vida política
Panorama geral
Nas entranhas da sociedade política do Equador cruzam-se e entrecruzam-
se divergências e contradições poticas, econômicas, sociais, culturais, religiosas,
étnicas e regionais, que conspiram contra sua coesão social. Daí deriva sua
tormentosa história, na qual se alternam governos democráticos, ditaduras
militares, golpes de Estado, mudanças de Constituições, instabilidade política,
atraso econômico e injustiça social.
Em seus 178 anos de vida republicana houve apenas uma revolução
digna desse nome: a Revolução Alfarista de ns do século XIX, de cunho
radical-liberal, que dividiu em duas partes a história equatoriana. Todos os
outros movimentos insurgentes não passaram de conspirações de origem
noturna nos quartéis embora seus protagonistas sempre tenham falado em
“revolução”. Sua acidentada história tem sido afetada por mudanças bruscas
de governo. Sua débil institucionalidade as tem permitido. Experimentaram-se
18 Constituições em seus 178 anos de história republicana: 1830, 1835, 1843,
1845, 1851, 1852, 1861, 1869, 1878, 1884, 1897, 1906, 1929, 1945, 1946, 1967,
1978 e 1998. Todas foram elabordas e promulgadas por respectivas assembléias
constituintes, exceto a de 1978, que foi aprovada por via de referendo. Essa
“inação” constitucional tem obedecido à ingênua idéia de que a mudança da
Constituição assegurava uma mudança das condições políticas. Obviamente,
porém, tudo continuou igual. As normas constitucionais perambularam pelas
alturas, sem âncoras na sociedade. Hoje mesmo está reunida a assembléia
constitucional número 19, que dará à luz no nal deste ano um projeto de
Constituição para ser submetido a referendo.
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É verdade que na América Latina ocorreram muitos golpes de Estado e
muito poucas revoluções. Provavelmente as únicas transformaçcoes que, por
sua profundidade e irreversibilidade, tiveram caráter revolucionário, tenham
sido a alfarista de 1895 no Equador, a mexicana de 1910, a boliviana de 1952,
a cubana de 1959 e a sandinista de 1979 na Nicarágua, embora essa, a bem da
verdade, carecesse da irreversibilidade própria de uma revolução. As demais
rupturas da ordem constitucional na torturada história latino-americana não
passaram de golpes de Estado que mudaram as pessoas do governo, mantendo,
porém, intocável a ordem econômica e social estabelecida.
O processo revolucionário liberal-radical de ns do século XIX no
Equador, liderado pelo General Eloy Alfaro que obteve seus galões de
General nas batalhas da liberdade e à frente de seu exército popular – exigiu
mais de três décadas de luta guerrilheira naquele tempo se falava em luta
montonera para destruir o ancien régime feudal equatoriano, em que a Igreja
Católica era a maior proprietária de terras do país. Pertenciam-lhe as melhores
e maiores fazendas do altiplano andino e também os índios que labutavam.
Os lhos dos índios também lhe pertenciam. Esses “senhores de missa e
panela” como os caracterizou o escritor equatoriano Juan Montalvo um dos
melhores cultores da prosa em língua castelhana no século XIX geriam o
país como se fosse um feudo. O governo revolucionário presidido por Alfaro
expediu em 1908 a Lei de Benecência, por meio da qual foram expropriadas
as terras da Igreja em favor do Estado, que com elas formou um fundo de
assistência pública. A alta hierarquia católica não tardou em protestar. “Essa
lei é um crime contra a Religião, um atentado contra a moral saudável, um
abuso de autoridade e uma violação dos direitos em que se funda a ordem
social”, armou. E concluiu: “Conferiram reconhecimento de cidadania ao
comunismo”.
A revolução alfarista realizou no Equador uma transformação
institucional profunda. Substituiu uma classe social por outra no exercício
do poder, separou a Igreja do Estado, secularizou o governo, consagrou a
tolerância religiosa, proclamou a liberdade de cultos, implantou a educação
pública laica, estabeleceu o matrimônio civil e o divórcio, aboliu a concertaje
(contrato por meio do qual os índios, vitalícia e hereditariamente, se obrigavam
a realizar trabalhos agrícolas em benefício do dono da fazenda, sem salário
ou com um salário ínmo), suprimiu a prisão por dívidas e por obrigões
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de fazer e eliminou a prestação de serviços pelos índios, o imposto de 3 por
1.000 sobre terras agrícolas, o pagamento de dízimos e primícias à Igreja e
outras cargas feudais.
Apesar de ser uma revolução liberal, emitiu os primeiros regulamentos
sobre jornadas de trabalho, descanso obrigatório, previdência social,
trabalho de mulheres e menores de idade, contratos individuais de trabalho,
responsabilidade por acidentes de trabalho, proteção da maternidade, repartão
de terras agrícolas e expropriação de latifúndios incultos e expediu outras
normas de caráter social, mais tarde consagradas na Constituição de 1906,
destinadas a institucionalizar as conquistas revolucionárias.
Durante o século XX, a instabilidade potica foi uma constante na história
equatoriana. Ações rebeldes, golpes de Estado, ditaduras, abandonos do poder
e renúncias dos governantes determinaram essa crônica instabilidade política.
Houve somente pequenos períodos de continuidade constitucional em que se
alternaram governos eleitos de 1948 a 1961 e desde 1979 até os tempos atuais.
No entanto, nessa última etapa ocorreram três abandonos do poder: o de
Bucaram em fevereiro de 1997, o de Mahuad em janeiro de 2000 e o de Gutiérrez
em abril de 2005, os quais, ao primeiro grito na Pra da Independência, fugiram
pela porta dos fundos ou pelos telhados do palácio, sem a elementar galhardia
de um Mariano Ospina Pérez, que nos tormentosos momentos do bogotazo de
1948 por causa do assassinato de Jorge Eliécer Gaitán na Colômbia, quando
a fúria popular fora de qualquer controle pedia sua cabeça, exclamou: “Para a
Colômbia é mais valioso um Presidente morto que um Presidente fugido”, ou
de um Salvador Allende, que preferiu estourar os miolos no palácio presidencial
a ver-se humilhado pelos sequazes de Pinochet.
Na última década e meia, o crescente divórcio entre a política e a moral
produziu graves crises de governabilidade. A corrupção, no Equador e em toda
parte, constitui grave escolho para a governabilidade porque torna ilegítimos
os governantes, retira-lhes credibilidade e despoja-os da credencial ética para
mandar e serem obedecidos. O poder repousa em um sistema de convicções:
governar é ser crível, ter crédito, suscitar conança.
A ausência desses fatores produziu uma etapa de insubordinões
e convulsões sociais. As multidões saíram às ruas para exigir a saída dos
governantes. O primeiro foi Bucaram, a quem o Congresso demitiu de
suas funções por incapacidade mental para governar, aplicando o art. 76 da
Equador, perspectivas de um ex-Presidente
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Constituição, que dizia: “O Presidente da República deixará denitivamente
suas funções, cando vago o cargo, (...) por incapacidade física ou mental
declarada pelo Congresso Nacional”.
Obviamente, a “incapacidade mental” do Direito Constitucional não é
o mesmo alheiamento mental ou a loucura dos psiquiatras. Para incorrer nela,
bastava o desgoverno que imperava, a inépcia de governo e a permanente
ausência de seu gabinete no Palácio Nacional “por medo dos fantasmas”,
segundo armou com absoluta seriedade.
Bastaram cinco meses para que se esgotasse a paciência popular.
Pouco tempo depois ocorreram os casos paralelos de Jamil Mahuad e
Lucio Gutiérrez. O primeiro prejudicou milhões de equatorianos mediante o
congelamento dos depósitos bancários, a macrodesvalorização do sucre em
cinco vezes e a dolarização. O povo se enfureceu e foi às ruas. O outro exibiu
clamorosa incapacidade para governar e em face dos protestos ordenou conter
o público à bala. Ambos fugiram do Palácio quando o povo irrompeu na Praça
da Independência e se asilaram em embaixadas; um, na do Chile; e o outro, na
do Brasil. O efeito jurídico e político do asilo diplomático é o salvo-conduto e
a saída dos asilados do país. Foram então chamados os vice-Presidentes para
concluir os mandatos.
A imprensa internacional não explicou bem esses acontecimentos.
Os partidos
A origem da vida partidária equatoriana remonta aos dias da luta pela
independência da Espanha, no início do século XIX. Na época, os próceres
quitenhos de 10 de agosto de 1809, autores do primeiro grito de liberdade na
América hispana, se dividiam entre monarquistas e republicanos.
Mais tarde, no entorno político do libertador Simón Bolívar, voltaram
a ocorrer discrepâncias entre os que desejavm o estabelecimento de uma
Presidência vitalícia ou até mesmo a restauração da monarquia e os que,
imbuídos das idéias do enciclopedismo francês, postulavam um governo
republicano e a ampliação das liberdades.
O Partido Conservador, ou o que pode ser considerado como tal, foi
fundado em 1883 sob o nome de Partido Católico Republicano e mais tarde
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mudou sua denominação para “conservador”, pom continuava a ser o partido
dos católicos. A origem do Partido Liberal é menos clara. Sua formação foi
escalonada. Houve um pensamento “avançado” sustentado pelas mentes mais
lúcidas da época, todas inspiradas na intelectualidade francesa do século XVIII.
Em 24 de julho de 1890 reuniu-se em Quito a convenção que constituiu o
novo partido político.
Não obstante, as duas agremiações eram “partidos de notáveis”, muito
próprios de seu tempo, que não se preocupavam em aglutinar massas e, sim,
em convocar pessoas de peso social e econômico. O Partido Conservador
pertencia aos proprietários de terras e ao clero da região da Serra, e sua
força repousava em Quito ao passo que o Partido Liberal era integrado por
representantes da incipiente burguesia comercial e bancária da Costa. Seu
baluarte era Guayaquil.
Esses foram os germes do bipartidarismo conservador-liberal que, de uma
ou outra forma, esteve presente desde a segunda metade do século XIX. Seus
dois chefes emblemáticos foram, respectivamente, Gabriel Garcia Moreno, o
teocrata autoritário de meados do século e o revolucionário Eloy Alfaro, que
em 1895 tomou o poder depois de quase 30 anos de lutas guerrilheiras.
Em 1926 foi fundado o Partido Socialista Equatoriano, de tendência
marxista-leninista, com uma pequena elite de intelectuais e artistas de primeira
linha, mas que não afetou o bipartidarismo predominante.
No início dos anos 30 apareceu uma organização política sui generis
denominada Compactación Obrera Nacional, composta por operários,
artesãos, pequenos comerciantes e camponeses, que se havia formado para
apoiar a candidatura presidencial de um ilustre e culto fazendeiro serrano
chamado Neftali Bonifaz, que venceu as eleições, mas foi desqualicado pelo
Congresso Nacional por ter questionada sua nacionalidade equatoriana,
que ele, em sua “despreocupada juventude”, segundo armou, havia utilizado
passaporte peruano. Nessa conjuntura, um jovem advogado de nome José
Maria Velasco Ibarra, que se mostrou novel orador, ocupou o espo
vazio deixado por Bonifaz e a partir do Congresso projetou-se à visibilidade
política. O movimento que o sustentava tomou o nome de “velasquismo” em
homenagem a seu líder, e era integrado, como ocorre freqüentemente nos
populismos caudilhistas, pelos componentes mais díspares: desde os chamados
“Cavaleiros da Imaculada”, de profundas raízes clericais e conservadoras, até
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locomunistas, todos articulados em torno da gura do doutor José Maria
Velasco Ibarra, que ocupou a Presidência da República em cinco ocasiões
embora em apenas uma de 1952 a 1956 tivesse conseguido completar
o período constitucional. Dos vinte anos que correponderiam a seus cinco
mandatos presidenciais exerceu o poder apenas onze anos por ter sido várias
vezes destituído.
Nos anos 50 surgiu em Guayaquil outra organização de fundo
populista: Concentración de Fuerzas Populares (CFP), mescla das idéias mais
contraditórias, liderada por um carismático e audaz político chamado Carlos
Guevara Moreno, que apareceu por armando haver lutado nas leiras
republicanas durante a guerra civil espanhola e haver sido “mordido pela cruel
metralha fascista”. Esse grupo que trouxe ao país técnicas de mobilização
de massas até o momento não-conhecidas e que utilizou para sua coreograa
política hinos, marchas, bandeiras e grupos de choque do mais puro estilo
mussoliniano chegou a ser em determinado momento uma importante força
política embora seu líder fracassasse na tentativa de chegar ao poder.
Camilo Ponce, destacado líder da direita equatoriana, fundou em 1951
o Movimento Social-Cristão, que no início era um pequeno círculo elitista de
personagens altamente situados na escala social que, porém, com a ajuda do
velasquismo chegou ao poder em 1956.
No início de 1971 fundei um movimento de gente jovem denominado
Esquerda Democrática, em breve transformado em um grande partido de
massas de orientação socialista democrática, tendo especial penetração nos
bairros pobres das cidades e nos setores rurais. Em sua declarão de prinpios,
ele se autodeniu como “um partido democtico e revolucionário que expressa
e promove os anseios, idéias e aspirações dos trabalhadores intelectuais e
manuais do Equador”. Foi o primeiro partido a levantar quase quatro
cadas as questões econômicas no debate político e a introduzir temas novos
à consideração pública tais como o ambientalismo, as relações do Estado e do
mercado, o desenvolvimento humano e as questões internacionais.
A Esquerda Democrática conquistou o poder sob minha condução em
1988, após uma impressionante mobilização de massas.
No começo dos anos 80, Abdalá Bucaram, cunhado do Presidente Jaime
Roldós, que morreu em um acidente aéreo em maio de 1981, formou um
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grupo de orientação populista o qual, procurando homenagear a memória do
jovem Presidente, ele chamou “Partido Roldosista”.
O movimento fundado por Camilo Ponce converteu-se posteriormente
no Partido Social-Cristão, que esteve a ponto de se extinguir devido à morte
de seu chefe, mas que foi resgatado da ruína em 1984 por um empresário
e político oriundo da Câmara de Indústrias de Guayaquil, chamado León
Febres-Cordero, que nesse ano venceu as eleições presidenciais e governou
de 1984 a 1988.
Na ausência de um regime jurídico a regular a sua existência e operação,
havia no Equador uma proliferação de partidos políticos. Eram na realidade
minipartidos, carentes de representatividade, que não passavam de algumas
pessoas, uma máquina de escrever e seus boletins de imprensa, formados no
calor do oportunismo político e dos devaneios ideológicos. É longa mas pouco
signicativa a lista desses pequenos partidos, que nas eleições não se atreviam
a lançar candidatos próprios, entrando em alianças com os partidos grandes
para tirar vantagens burocráticas. A volatilidade eleitoral era lamentável, e a
troca de dirigentes, escandalosa. Na gíria política do Equador chegou-se a
cunhar a expressão “troca de camisa” para designar o troca-troca político, por
analogia com o que ocorre no futebol prossional: o contrato de um jogador
de uma equipe pelo elenco contrário na nova temporada.
Em fevereiro de 1979, a ditadura militar, nos primeiros momentos de
seu exercício, após consulta com os dirigentes políticos, promulgou a Lei de
Partidos Políticos, que dispôs: 1) os partidos políticos gozam da proteção
do Estado; 2) unicamente eles podem apresentar candidatos a uma eleição
popular; 3) para ser candidato e exercer cargo eletivo, é preciso ser liado a
um partido; e 4) para um partido político poder ser reconhecido legalmente
e poder intervir na vida pública do Estado, ele deve: a) sustentar princípios
democráticos que o individualizem; b) ter um programa de ação compatível
com o sistema democrático; c) contar com o número de liados exigido pela
lei; e d) estar organizado em escala nacional.
A lei dispôs, além disso, o nanciamento público dos partidos à conta
do orçamento do Estado, em proporção com o número de votos obtidos nas
últimas eleições pluripessoais, nas quais as alianças cavam proibidas.
A lei procurou introduzir um pouco de ordem no caótico universo dos
partidos, mas evitar abusos e deformações do sistema, isso a lei não conseguiu.
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Partidos houve que perderam ou, quem sabe, nunca tiveram a democracia
interna, a discussão ideológica e a mobilidade interior. Foram grupos
caudilhistas sem ideologia, com propensões ao populismo. Tudo isso os levou
à formação de quistos de grupos dirigentes, à burocratização e à conversão do
partido em um diafragma que sufocava os anseios dos responsáveis medianos
e dos militantes de base.
Isso estimulou os meios de comunicação a desenterrar o termo
“partidocracia” – surgido na Europa durante o último período do pós-guerra
para designar a presença decisória dos partidos na vida política e no processo
de reconstrução democrática européia após o m do fascismo e a dar àquela
palavra um sentido pejorativo para desprestigiar todos os partidos, em um
bloco e sem atenuantes nem diferenças, gerando uma forte corrente de
opinião contrária a eles.
Além dos bombardeios da imprensa, o então Presidente Correa,
marchando com a sua infantaria, concluiu a obra de destruição dos partidos,
reduzidos, assim, à mínima expressão.
Admito que certas críticas tiveram alguma justicativa. Houve partidos
que limitavam a mobilidade interna consolidando cúpulas auto-eleitas e
autoririas, exigiam do governo quotas de poderpara seus dirigentes
o famoso loteamento de que se falava nos rculos baixos da potica
italiana eliminavam o rito nos sistemas de promão de seus membros,
incorriam em atos de corrupção ou descambavam para o populismo. Isso é
verdade, porém não invalida a tese de que os partidos políticos são elementos
indispenveis da democracia nas sociedades do mundo contemporâneo.
Não há democracia sem partidos. Eles são os intermediários entre a
sociedade e o poder. Encarregam-se de recolher, canalizar, enriquecer e
dar dirão às difusas aspirões populares e apresen-las perante quem
exerce a autoridade pública.
Não se inventou ainda nada que substitua os partidos políticos. Apesar
dos seus defeitos, eles continuam a ser elementos indispensáveis nos regimes
democráticos como intermediários entre o povo e o governo. Formaram-se
numerosas associações de todo tipo: ambientalistas, feministas, patronais,
sindicais, religiosas, de consumidores, de produtores, etc., porém nenhuma
delas, nem todas juntas, podem substituir os partidos políticos em sua visão
universal dos problemas de um país. Aquelas associações constituem grupos
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de interesse e, como tais, seus pontos de vista são demasiadamente parciais e
localizados. Com efeito, os sindicatos operários, as corporações empresariais,
os grupos de preso, as organizões não-governamentais (ONGs), os
novos movimentos sociais e outras entidades que intervêm na vida pública do
Estado representam interesses parciais e setorizados no interior da sociedade
e carecem da visão universal dos problemas de um país que têm, ou devem
ter, os partidos.
Economia
A Constituição dene a economia equatoriana como uma “economia
social de mercado”, que “se organizará e desenvolverá com a coexistência
e concorrência dos setores públicos e privados”. Esse conceito foi tomado
emprestado aos economistas alemães da Escola de Friburgo no pós-guerra –
Alfred Müller Armack, Walter Eucken e Leonhard Miksch, entre outros. Esses
acrescentaram a palavra “social” à expressão “economia de mercado” a m de
erigir “o princípio da liberdade dos mercados vinculado com a compensação
social” na tentativa de encontrar uma “terceira via” entre a economia de livre
mercado de tipo liberal e a economia dirigida de estilo marxista. Mas, embora
seus propugnadores neguem ser a economia social de mercado uma repetição
do laissez faire, a verdade é que ela não deixa de ser uma economia de mercado,
isto é, um sistema no qual os agentes econômicos privados planejam e decidem
suas ações de forma descentralizada.
A economia do Equador possui todas as características comuns aos
sistemas capitalistas: propriedade privada dos meios de produção, absteão do
Estado face às atividades dos agentes ecomicos privados, economia aberta,
explorão da mão-de-obra dos trabalhadores assalariados e subordinão da
atividade ecomica às leis do mercado: oferta e procura, iniciativa privada,
liberdade de empreendimento, livre concorrência, apetite de lucro, acumulação.
A recuperação scal se faz por meio de impostos, taxas e contribuições
especiais. Os impostos o diretos e indiretos. Alguns são cobrados pelo
poder central, e outros, pelos poderes setoriais. Os níveis de tributação são
relativamente baixos.
No ano de 1989, meu governo realizou um profundo reordenamento
do sistema tributário, que reduziu um emaranhado de mais de cem impostos
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indiretos, de arrecadação muito baixa, a apenas três: o imposto de renda, o
imposto sobre o valor agregado (IVA) e o imposto sobre consumos especiais
(ICE). A reforma alargou a base tributária do imposto de renda e melhorou
as arrecadações; liberou, porém, de seu pagamento as camadas sociais médias
e os setores de baixos rendimentos. Concomitantemente, instrumentamos
uma reforma integral do sistema tarifário que, ao corrigir a dispersão das
taxas alfandegárias, reduziu o vel impositivo de algumas importações e
desestimulou o contrabando.
Essas reformas se mantiveram até o momento em seu conteúdo essencial.
A economia equatoriana se divide, segundo a classicação proposta
pelo economista Colin G. Clark, que se tornou clássica, nos setores primário,
secundário e terciário.
Como todo país economicamente subdesenvolvido, as atividades que
mais avançaram no Equador são as primárias: mineração, agricultura, pecuária,
exploração orestal, pesca e outras, das quais se obtêm os produtos básicos
para o consumo direto, as matérias-primas para a indústria e os produtos
primários de exportação.
A indústria e outras atividades secundárias, assim como o setor terciário
da economia, que consiste na prestação de serviços e não na produção de
bens materiais, teve desenvolvimento incipiente. O comércio, o setor bancário,
as nanças, os seguros, as comunicações, a informática, a administração, a
publicidade, as relações públicas, o “marketing”, o transporte e os serviços
prossionais não avançaram muito, e sua participação no produto interno é
bastante baixa.
Da mesma forma que nos demais países da América Latina, no Equador o
número de computadores por pessoa é baixo e a inserção na Internet é pequena.
O abuso publicitário, próprio das economais abertas, contribuiu para
formar no Equador uma sociedade de consumo com toda a sua carga de
exagero publicitário, subversão de valores e alienação. A gestão publicitária
levou, como em outros países latino-americanos, à manipulação do mercado,
que, contradizendo as avaliações, não é o que diz aos produtores o que devem
produzir para satisfazer as necessidades dos consumidors, e, sim, ao contrário,
são os produtores que indicam ao mercado, por meio da magia da publicidade,
o que deve consumir.
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Os dados macroeconômicos do Equador são os seguintes:
PIB 2007: US$ 44.449.915 milhões
PIB per capita: US$ 3.419,00
PIB projetado 2008: US$ 48.508.000
O PIB petrolífero decresceu em 0,1% em 2006 e 0,0% em 2007, e o
setor não-petroleiro declinou no mesmo período em 0,1%.
Inação em 2007: 3,32%, que numa economia dolarizada não é uma
taxa baixa. A projetada para este ano é 4,25%.
Previsões de crescimento do PIB para 2008, segundo organismos
internacionais: 1,9%.
Setor petrolífero
Produção de petróleo bruto de janeiro a novembro de 2007: 170.515.000
b/d, com média diária de 509.000 barris, dos quais 257.000 foram produzidos
pela empresa estatal equatoriana de petróleo Petroecuador e 252.000 por
empresas privadas estrangeiras.
No ano de 2007, a produção petrolífera diminuiu em 5,4% em relação
ao ano anterior.
Setor externo
Os seis principais sócios comerciais do Equador em 2007 foram:
Estados Unidos
Exportações: US$ 6.029,8 milhões
Importações: US$ 2.794,8 milhões
Saldo positivo: US$ 3.235,0 milhões
União Européia
Exportações: US$ 1.753,9 milhões
Importações: US$ 1.245,8 milhões
Saldo positivo: US$ 508,1 milhões
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Peru
Exportações: US$ 1.491,9 milhões
Importações: US$ 481,1 milhões
Saldo positivo: US$ 1.010,8 milhões
Chile
Exportações: US$ 658,1 milhões
Importações; US$ 503,3 milhões
Saldo positivo: US$ 154,8 milhões
Colômbia
Exportações: US$ 650,6 milhões
Importações: US$ 1.458,8 milhões
Saldo negativo: US$ 838, 2 milhões
Venezuela
Exportações: US$ 484,1 milhões
Importações: US$ 1.318,5 milhões
Saldo negativo: US$ 834,4 milhões
Em termos percentuais, o mercado norte-americano representou 43,60%
das exportações e 20,50% das importações; os mercados da Aladi, 31,4%
das exportações e 36,60% das importações; o restante da América, 8,60%
das exportações e 5,90% das importações; Europa, 10,90% das exportações
e 10,60% das importações; e a Ásia 5,30% das exportações e 22,30% das
importações.
Dentro da Aladi, a Comunidade Andina (Venezuela, Colômbia, Equador,
Peru e Bolívia) representou 20% das exportações e 21,70% das importações.
Os 10 principais produtos de exportação são:
Petróleo cru;
Bananas e bananas da terra;
Derivados de petróleo;
Camarão;
Manufaturas de metais;
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Flores naturais;
Cacau;
Atum e outros peixes;
Café elaborado, e
Madeira.
Em 2007, as exportações FOB ascenderam a US$ 13.852,36 milhões,
das quais as exportações petrolíferas somaram US$ 8.279,44 milhões e as
não-petrolíferas US$ 5.572,92 milhões. As importações FOB signicaram US$
12.583,97 milhões, das quais as importações petrolíferas somaram US$2.588,28
milhões e as não-petrolíferas US$ 9.995,70 milhões. Tudo isso produziu, em
conjunto, uma balança comercial favorável em US$ 1.268,39 milhões que
do superávit petrolífero de US$ 5.691,16 milhões foi subtraído o décit não-
petrolífero de US$ 4.422, 77.
Houve uma desaceleração das taxas de crescimento das principais
exportações não-tradicionais nos últimos dois anos. As de camarão, produtos
do mar, ores e manufaturas de metal diminuíram enquanto cresceu a dos
elaborados de cacau.
O investimento estrangeiro direto teve notável incremento, passando de
US$ 124,2 milhões em 2006 a US$ 470,8 milhões em 2007.
As remessas dos emigrantes totalizaram em 2007 a cifra de US$ 2.259,6
milhões.
Setor nanceiro
As reservas internacionais de livre disponibilidade do Estado somaram
3.481.100 milhões de dólares em 31 de dezembro de 2007.
Em 21 de dezembro do mesmo ano, o crédito ao setor privado atingiu
o volume de 11.372.100 milhões de dólares.
As captações dos bancos privados chegaram a 10.096.909 milhões de
dólares entre janeiro de 2006 e outubro de 2007. Os depósitos à vista atingiram
6.652.687 milhões, e os depósitos a prazo, 3.082.725 milhões.
No mesmo período, a carteira de crédito bruta somou 7.444.945 milhões,
e a líquida, 6.994.173 milhões.
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Balança comercial 2007
Superávit do setor petroleiro: US$ 4.509 milhões
Décit no setor não-petroleiro: US$ 3.353 milhões.
Superávit total: US$ 1.156 milhões
As receitas do governo central em 2007 foram: setor não-petroleiro 79%
e setor petroleiro 21%. Desses, 4.315,47 miles de dólares correspondem a
rendas tributárias, 1.154,04 a transferências e 390, 49 a receitas não-tributárias.
Os dispêndios foram: 70% em despesas correntes e 30% em gastos de
capital. As despesas correntes assim se distribuíram: salários 49%, juros da
dívida 16%, transferências 14%, bens e serviços 8% e outros 14%.
Dívida em 2007: US$ 13.864 milhões
Externa: 10.626 milhões
Interna: 3.238 milhões
Dívida total: 31,2% do PIB
Externa: 23,9%
Interna: 7,3%
Orçamento 2007: US$ 14.100 milhões.
Dolarização
No icio do ano 2000, por decisão do governo democrata-cristão
presidido por Jamil Mahuad, foi decretada a substituição do sucre equatoriano
pelo dólar norte-americano para todas as transações nanceiras e comerciais.
Isto é, o dólar se tornou nossa moeda de curso legal. A partir desse momento,
o signo monetário norte-americano se converteu em unidade de contas, meio
de pagamento, medida de valor, instrumento de câmbio e mecanismo de
poupança no Equador.
A medida obedeceu a motivos mais políticos do que econômicos. Foi
tomada em meio a grandes convulsões sociais com um povo inteiro que
repudiava a corrupção e incompetência dos governantes como tábua de
salvação perante o iminente naufrágio político.
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A dolarização implicou a renúncia do Estado ao direito de cunhar
moeda, de planejar a política monetária e cambial direito que se transferiu
à Reserva Federal dos Estados Unidos – e a obter os benefícios da soberania
na cunhagem de moeda.
Somente cinco Estados do mundo adotaram formalmente a dolarização:
Panamá, Libéria de 1944 a 1989, Timor Leste, Equador e El Salvador. Os
três primeiros por motivos muito peculiares. O Panamá porque as empresas
construtoras do Canal pagavam em dólares os salários de seus 75 mil
trabalhadores, o que, de fato, converteu a moeda anericana em moeda ocial. A
Libéria porque foi fundada em 1847 por escravos negros libertos provenientes
dos Estados Unidos, que expediram uma Constituição copiada da norte-
americana e implantaram a dolarização de sua economia desde 1944 até 1989.
E o Timor Leste porque, depois de obter sua independência nacional após
350 anos de colonialismo português, foi invadido pelo exército da Indonésia
em 7 de dezembro de 1975 e entrou em extrema desordem e convulsão social,
fato que obrigou o Conselho de Segurança das Nações Unidas a enviar uma
força internacional de paz, tomar o controle político-administrativo do país e
implantar a dolarização para eliminar o caos monetário.
A imposição de um regime monetário como esse, conforme disse o
professor de Harvard Jeffrey Sachs em um artigo publicado na revista Foreign
Policy no outono de 1999, constitui uma “camisa de força” para a economia
porque retira do governo qualquer possibilidade de gerir as variáveis monetária
e cambial para regular o volume da massa monetária, conferir competitividade
às exportações, desestimular as importações supéruas e amortecer os golpes
dos mercados mundiais. Nessas condições, as autoridades tendem a compensar
a inexibilidade que o sistema transmite à economia com a exibilidade da
mão-de-obra, os reajustes do emprego, dos salários e dos benefícios sociais
e garantias trabalhistas, vertente por meio da qual contra-restam os aspectos
rígidos da economia devido à alienação de alguns dos instrumentos de política
econômica.
Sob esse sistema, o Banco Central perde a capacidade de emitir moeda
e deixa de ser o eventual emprestador aos bancos comerciais com problemas.
O Banco Central deixa de servir como banco do governo, isto é, como
emprestador em última instância para assistir os bancos com problemas de
liquidez, deixa de gerir os câmbios internacionais e de realizar as chamadas
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operações de mercado aberto (open market), que consistem principalmente
na compra e venda de valores negociáveis como forma de injetar dinheiro
na economia.
Os defensores da dolarização sustentam, ao contrário, que ela tem a
capacidade de restabelecer a conança dos investidores na moeda local o
dólar de afastar o perigo de desvalorizações, de reduzir as taxas de juros, de
minimizar o risco cambial, diminuir os custos de transação (transaction costs) no
câmbio de moeda, estabilizar os preços e submeter os bancos locais à vigilância
da Reserva Federal dos Estados Unidos.
Recordo que durante meu governo, remando contra a corrente em pleno
auge do neoliberalismo na América Latina, era a autoridade pública e não o
mercado quem xava os grandes preços da economia: o preço do trabalho,
que é o salário, o preço do dinheiro, que são os juros, e o preço das divisas,
que é a taxa de câmbio.
Indicadores sociais
O Equador foi um dos países pioneiros na promulgação de um digo do
trabalho para regulamentar as relações entre patrões e trabalhadores e garantir
os direitos irrenunciáveis dos trabalhadores. Foi expedido em 1938.
Os antecedentes europeus e norte-americanos o estavam muito
distantes. Em 1904, a legislação genebrina regulamentou a contratação
coletiva. A França fez o mesmo em 1906; a Suécia, em 1910; e a Noruega, em
1911. O governo de Weimar na Alemanha elevou à categoria constitucional
as normas sobre o tema. A Itália, às vésperas do advento do fascismo, incluiu
em sua legislação a gura jurídica do contrato coletivo. Os Estados Unidos da
América, nos anos do new deal do Presidente Franklin D. Roosevelt, expediram
o Wagner Act (Lei Wagner), que regulamentou essa forma contratual. O
primeiro Estado latino-americano a aceitá-la foi o México com sua Lei
Federal do Trabalho de 1931. O exemplo mexicano foi seguido por vários
países da América Latina.
O contrato coletivo é um mecanismo bastante eficiente para os
trabalhadores poderem alcançar melhores condições de trabalho. Consegue-as
a força do grupo, em uma frente unida de negociadores.
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No Equador, as leis de conteúdo social protegem especialmente a criaa,
o idoso, o trabalhador, o camponês e o inquilino pobre.
Os principais indicadores sociais do ano de 2006 são:
Pobreza
Nacional: 38,3%
Urbana: 24,9%
Rural: 61,5%
Indigência
Nacional: 12,8%
Urbana: 4,8%
Rural: 26,9%
Desemprego aberto: 7,5% da PEA
4
Subemprego: 39,37% da PEA
Coeciente de Gini
Distribuição do consumo: 0,46.
Analfabetismo
Nacional: 9,1%
Etnia
Indígena: 28,2%
Afro-equatoriana: 12,6%
Mestiça: 7,5%
Branca: 6,7%
Desnutrição crônica:
Nacional: 18%
Urbana: 13%
Rural: 26%
4 População economicamente ativa (N. do T.).
Equador, perspectivas de um ex-Presidente
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
130
Desnutrição global
Nacional: 9%
Urbana 7%
Rural: 11%
População sem seguro de saúde
Urbana: 79,4%
Rural: 78,9%
Moradia própria
Nacional: 65,7%
Região costeira: 70,2%
Região interandina: 60,6%
Região amazônica: 69,1%
Décit habitacional
Nacional: 60,9%
Região costeira: 70,3%
Região interandina: 49,2%
Região amazônica: 79,5%
Água encanada
Nacional: 48%
Urbana: 65,7%
Rural: 13,6%
Meu governo
Ao entregar o poder em 10 de agosto de 1992, foi graticante falar
a meu sucessor o seguinte: a economia crescia a 5,4%, as exportações se
expandiam ao ritmo de 16% anuais, o investimento privado na economia havia
batido recordes históricos, a inação foi reduzida à metade, e eu entregava
um país em plena marcha, num quadro de paz, segurança jurídica e respeito
aos direitos humanos.
Rodrigo Borja
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
131
Minha equipe de governo cumpriu uma tarefa extraordinária e como
fruto do trabalho coletivo fomos capazes de construir 1.300 programas de
água potável e esgotos, que beneciaram 1.200.000 habitantes dos setores
rurais; levamos eletricidade a 600.000 equatorianos do campo; aumentamos em
40% a superfície agrícola irrrigada; distribuímos quase 4 milhões de hectares
de terras de cultivo aos camponeses e colonos (quatro vezes mais que nos
25 anos anteriores de reforma agrária); implantamos a educação intercultural
bilíngüe com 1.812 salas de aula e 4.300 novos cargos de professores;
favorecemos 700 mil pessoas da terceira idade com a Lei do Idoso e demos
aos professores a lei de carreira docente, abono de antiguidade e melhorias
na escala de salários; criamos a rede comunitária infantil em que atendíamos
230.000 crianças quotidianamente durante a jornada de trabalho de seus pais;
entregamos merenda escolar a 1.100.000 crianças diariamente; por meio do
sistema de saúde familiar integral atendemos um milhão e meio de pessoas;
os índices de vacinação infantil chegaram a 70%; criamos o crédito estatal em
favor dos microempresários.
Em plena era do consenso de Washington, “equatorianizei” todas as
fases da indústria petrolífera, algumas das quais estavam em mãos privadas
estrangeiras. Transferi à propriedade do Estado duas renarias situadas na
pensula de Santa Elena. A operão do oleoduto transequatoriano de
500 quilômetros de comprimento que leva o petróleo bruto dos poços da
Amazônia até o porto de Esmeraldas no oceano Pacíco para sua exportação
que até aquele momento se achava nas mãos da empresa Texaco dos Estados
Unidos, foi transferida para técnicos equatorianos; e o consórcio Texaco-
Corporación Estatal Petrolera Ecuatoriana passou a ser gerido pelo sócio
majoritário, que era o Estado equatoriano.
Essa foi nossa resposta ao neoliberalismo.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
132
A grande divergência:
dependência histórica
ou dependência do
caminho?
Resultados das Américas
*
Steve De Castro
**
1. Introdução
O
historiador da China Kenneth Pomeranz [2000] argumentou que até a
metade do Século XIX, havia uma diferença pouco perceptível entre o padrão
de vida da China e do resto do mundo. Considerando-se que seu excelente
estudo se deteve justamente naquela época, seu título correto deveria ser
Antes da Grande Divergência. Nesse caso, o autor não se arriscou a quanticar
sua armação em termos aceitáveis pelos economistas, isto é, a partir, por
exemplo, do PIB per capita (PIBpc) expresso em termos de uma moeda, mas cita
** University of the West Indies (UWI). Universidade de Brasília (UnB)
jc010846@unb.br
* Agradecimento: O ensaio contém resultados de nossas pesquisas recentes, algumas das quais foram obtidas
em trabalho conjunto com Flávio Gonçalves, atualmente na Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil.
Steve De Castro
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
133
o trabalho de Paul Bairoch (p. 36). Bairoch [1993] que contestou a tendência
de Angus Maddison [1995] de superestimar as diferenças no período anterior
a 1850 entre os que seriam, no futuro, o Primeiro e Terceiro Mundos. A
compilação de trabalhos recentes sobre crescimento, de Robert Lucas [2002],
valeu-se dos dados de Bairoch para apresentar sua teoria sobre a divergência
como uma seqüência de decolagens instáveis do tipo de Rostow.
O presente ensaio sintetiza nossas conclusões a partir de um estudo que
toma por base os dados do PIBpc das Américas desde o início do crescimento,
por volta de 1820-50, sobretudo nas regiões onde havia escravidão – Estados
Unidos, Brasil, e no Caribe. Três aspectos foram abordados. Primeiramente,
descobrimos que nessas regiões surgiram diferenças signicativas entre os seus
respectivos PIBpc depois que a escravidão foi abolida, ou ainda, entre elas e o
resto do mundo, incluindo a Grã-Bretanha. A primeira revolução industrial não
deu início à grande divergência (ver gráco 1 no apêndice). Quando ocorreu a
abolição, houve uma queda, nesse indicador, em quase todos os países, porém,
muitos começaram novamente a crescer, alguns em ritmo acelerado como no
caso do Brasil e no sul dos Estados Unidos, embora nenhum dos dois tenha
conseguido reduzir a diferença em relação ao norte dos Estados Unidos senão
após a Segunda Guerra Mundial (para dados até 1930, ver tabela sobre PIBpc
no apêndice).
Em segundo lugar, desenvolvemos a noção de dependência histórica
numa série anual de PIBpc como um processo estocástico homogêneo de
Poisson que gera incrementos percentuais xos para o PIBpc em intervalos
aleatórios, e testamos a seqüência de intervalos no caso do Brasil entre 1822
e 2000, e no caso dos Estados Unidos entre os anos de 1869 e 1996 (ver De
Castro & Gonçalves [2003b,2005]). A dependência histórica aqui é o oposto da
dependência de conduta, posto que para passar no teste, o processo estocástico
o deve sofrer mudança ao longo de sua trajetória. Embora a série dos Estados
Unidos tenha passado no teste, a do Brasil não logrou o mesmo êxito, devido
à sua estagnação no nal do século XIX, ou seja, por causa de um crescimento
desastroso compartilhado por quase todas as economias escravocratas do
Atlântico, incluindo o sul dos Estados Unidos. O norte dos Estados Unidos
compensou a lentidão do sul e assim a série geral do país praticamente não
desviou de sua taxa de crescimento a longo prazo.
No terceiro tópico foi desenvolvida uma teoria para explicar o processo
ecomico de transão ocorrida no mercado de trabalho para os trabalhadores
A grande divergência: dependência histórica ou dependência do caminho? Resultados das Américas
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134
livres. Para tanto, nos baseamos na literatura recente sobre incentivos, presente
no modelo da teoria da rma. Os detalhes podem ser encontrados em
De Castro [2004]. Aqui, além disso, foi feito um retrospecto (seção 4). A agricultura
oriunda do trabalho escravo desenvolveu alguns dos mecanismos que são usados
na atualidade pelas empresas, objetivando coordenar e supervisionar o trabalho
de seus operários em várias atividades, para incrementar a produtividade em
relação a outras alternativas, como foi o caso dos trabalhadores autônomos.
A introdução do conceito de mercado de trabalho na economia escravocrata
fez com que os donos das grandes fazendas tivessem de remunerar melhor seus
empregados. Na hipótese de não ocorrer avanço tecnológico ou mudança nos
preços dos produtos, as fazendas poderiam se tornar inviáveis e a economia
fragmentar-se-ia em propriedades familiares de baixa produtividade.
A extensão dos aspectos microeconômicos à teoria do crescimento é
que, no caso da segunda revolução industrial, que efetivamente deu início à
grande divergência, havia a necessidade de que as empresas apresentassem
estruturas gerenciais hierarquizadas. Nos Estados Unidos, onde tal fato
ocorreu com êxito considerável, os políticos as consideraram, inicialmente,
como cartéis (monopólios, combinações), em grande parte devido ao poder
que exerciam sobre o mercado de produtos. Justamente quando a abolição
da escravatura exigia a dissolução das grandes fazendas, seus mecanismos
centrais supervisão, coordenação, expedição e cumprimento de ordens
foram necessários para que ocorresse progresso tecnológico, certamente na
economia como um todo e até mesmo na agricultura.
Nossa teoria sobre essa transão confere contdo ecomico ao
resultado estatístico de que a trajetória do PIBpc do Brasil foi dependente da
trajetória dos demais países, pois, ao se livrar do “beco sem saída” da escravidão
do século XIX, ainda assim o governo resistiu às novas instituições. O paradoxo
em relação aos Estados Unidos e, portanto, em relação à história da economia
mundial, é que foi precisamente nessa região que os trabalhadores livres e os
agricultores se encontravam em unidades pulverizadas com produtividade
relativamente baixa e com pouco poder no mercado de produtos, propiciando o
ambiente ideal para o crescimento dos oligopólios, que por sua vez conduziram
a uma onda de crescimento na época. No caso do Brasil, a escravidão se
expandiu no século XIX, tomou conta de quase todas as regiões do país e sua
dissolução exigiu uma reordenação de incentivos em toda a economia.
Steve De Castro
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A parte nal do ensaio se desenvolve como se segue. A próxima seção
apresenta os métodos e fontes usadas para obtenção de dados dos PIBpc das
antigas economias escravocratas e, em especial, as séries anuais completas
para o Brasil e para os Estados Unidos. A seção 3 apresenta os resultados
dos testes estatísticos sobre dependência histórica, e a última apresenta nossa
teoria sobre a economia da transição das fazendas de trabalho escravo para
empresas de trabalhadores livres.
2. Fontes de dados dos PIBpc
2.1 As economias escravocratas do século XIX
Observa-se que, a partir do ano de 1800, todos os trabalhadores das
economias do Atlântico, fossem elas baseadas no trabalho de escravos ou
de homens livres, começaram a aumentar sua produtividade. Não houve
declínio na rentabilidade das propriedades de escravos no decorrer do século
XIX. As regiões que continuavam utilizando a mão de obra escrava até 1860,
mostraram poucos sinais de queda na receita per capita em relação àquelas que
usavam o trabalho de homens livres. Entre 1840 e 1860, por exemplo, a renda
per capita do sul dos Estados Unidos apresentou um crescimento ligeiramente
mais acelerado do que a do norte. No caso as economias de Cuba e do Brasil
também apresentaram crescimento durante a primeira metade do século XIX.
Leff [1972 p. 364] concluiu que, o período entre 1822 e 1869 “foi uma época
de crescimento perceptível” para o Brasil. De Castro e Gonçalves [2003b]
utilizaram os métodos de Leff para obter a taxa de crescimento anual em
relação ao PIBpc de 0,44% ao ano, entre 1822 e 1850.
fortes indícios de que a maioria das regiões onde ainda havia escravos
eram mais ricas do que aquelas em que eles não existiam mais, embora tal
riqueza nada signicasse se comparada à de outras nações ao nal do século. A
tabela apresentada no apêndice evidencia uma comparação entre os PIBpc de
várias economias escravocratas do Atlântico. Até cerca de 1860, as diferenças
existentes entre os territórios dos Estados Unidos, no sul e no meio-oeste
daquele país, em Cuba, no Brasil, na Jamaica e na Guiana Inglesa eram
desprezíveis. Em relação ao Brasil e aos Estados Unidos, a tabela apresenta
duas fontes secundárias distintas, a de Maddison [1995] e a de Coastworth
[1993]. Conforme mencionado, Maddison de forma exagerada, chegou aos
resultados de que a renda per capita do Brasil, em 1820, foi a metade da renda
A grande divergência: dependência histórica ou dependência do caminho? Resultados das Américas
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136
per capita dos Estados Unidos. Para Coastworth esses dois países, além de
Cuba em 1800, têm aproximadamente o mesmo PIBpc. Mesmo no ano de
1850, o autor classica Cuba e Brasil num patamar relativamente próximo e os
Estados Unidos com mais 35%. A estimativa de Coastworth é a mais conável.
Entretanto, ambos mostram uma queda na renda per capita do Brasil no nal
do século XIX. É interessante observar que ambos usaram as mesmas fontes
primárias que discutiremos em seguida. A primeira delas é a de Contador e
Haddad (1975) que apresenta para o período de 1862 a 1901 uma estimativa
de crescimento real do PIBpc de 1,98% ao ano, sendo que, nesse caso, com
um crescimento demográco de 1,94%, nota-se um incremento minúsculo
do PIBpc de 0,04%. A outra é a de Leff [1982 p. 33] cuja taxa para o período
de 1822 a 1913 foi de 0,1%.
Vale destacar que, a obra clássica de Celso Furtado ([1963] Cap. 25)
apresenta uma taxa de 1,5% para o período de 1850 a 1900 que, de certa forma,
contradiz as fontes anteriormente mencionadas. Furtado sustenta (p. 163) que
entre 1850 e 1950 o Brasil manteve esta taxa que foi “maior do que a média
da Europa ocidental”. Entretanto o autor observa, corretamente, a queda
signicativa da renda no nordeste, na época com aproximadamente metade da
população. Assim, na sua avaliação, a diferença se deve ao desempenho otimista
da região centro-sul. Leff [1982 tabela 3.3 p. 42] apresenta uma variação das
taxas de crescimento para a região “fora do nordeste” no período de 1822 a
1913, e todas elas se encontravam “muito provavelmente bem abaixo daquelas
dos Estados Unidos”, cuja estimativa, em média, cava entre 0,2 e 0,4%.
A credibilidade destas taxas de crescimento no século XIX pode ser
estimada através de uma extrapolação retroativa a 1900 para a obtenção dos
níveis de renda. Examinamos também o problema da moeda comum na
qual são feitas as comparações. Haddad [1974] apresenta um crescimento do
produto real per capita (excluído os serviços) de 2,3% ao ano, para o período de
1900 a 1947. Leff [1982, p.215] acrescenta os serviços à estimativa de Haddad
e encontra 2,2% para o período de 1908-47, que se constitui superior à taxa
dos Estados Unidos de 1,8% para o período de 1913-47 (de Kuznets citado
em Contador e Haddad [1975 p.413]). Ambas as estimativas levam em conta
as respectivas moedas nacionais.
Entretanto, quando estas informações são comparadas tomando-se por
base os dólares americanos bem como a renda per capita dos Estados Unidos,
Steve De Castro
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137
observa-se uma signicativa disparidade entre as duas economias. Contador e
Haddad [1975 p. 413], por exemplo, apresentam os Estados Unidos, tanto em
1860 quanto em 1970, com uma renda per capita 10 vezes superior à vericada
no Brasil. A causa principal está relacionada à utilização das taxas de câmbio
ao invés da paridade do poder de compra (PPP). A projeção de Summers-
Heston para o período de 1950 a 2000 corrige tais distorções. Estima-se, por
exemplo, no ano de 1960 uma relação 4 vezes maior, e 3,3 vezes maior em
1990, quando o Brasil reduziu a diferença durante o período de seu “milagre
que, considera-se, ter ocorrido entre 1950 e 1980.
Ainda assim, mesmo após a correção a partir da utilização da PPP, a
disparidade, por volta de 1950, ainda é superior (acima de 6 vezes) a maior taxa
de crescimento do Brasil no período de 1900 a 1950, o que implicaria na entrada
do país no século XX numa situação de extrema pobreza. Tanto Maddison
[1995] como Coastworth [1993] estimaram uma relão por volta de 7 vezes em
1913, compatível com o maior crescimento ocorrido no século XX. Portanto,
mesmo que não ocorressem variações no crescimento no século XIX, ainda
assim a economia do Brasil caria abaixo do nível de subsistência em 1850.
Tal argumento é semelhante ao usado por Paul Bairoch [1993] para corrigir
os excessos de Maddison sobre a dispersão do início do Século XIX.
Conclui-se, no entanto, que a trajetória coerente do PIBpc do Brasil
durante o culo XIX, é a de que o país deve ter apresentado algum crescimento
entre 1820 e 1860, e um declínio na mesma proporção ou a taxas maiores,
no período de 1860 a 1900 ou 1913 (ver as taxas na seção 2.2). Tal declínio é
compatível com os dados do PIBpc do sul dos Estados Unidos, da Jamaica e
da Guiana Inglesa, obtidos a partir das informações constantes no apêndice.
A estagnação do Brasil no Século XIX está registrada na literatura recente
sobre crescimento. Barro & Sala-i-Martin [1998], por exemplo, estimaram
a renda per capita do Brasil em 1900 no mesmo patamar que o vericado na
Índia e China - $436, $378 e $401, respectivamente, calculada a partir do valor
do dólar de 1985, sendo que, no caso, a economia dos Estados Unidos, tal
indicador foi de $3,101 em 1890 (tabela 10.2, 10.3 em Maddison).
Um importante aspecto que ameniza a queda da renda média após a
abolição da escravatura no Brasil tem relação com a signicativa expansão
do setor cafeeiro fora da região nordestina de domínio tradicional do açúcar,
combinado com a imigração euroia em larga escala. Entretanto, parece que tal
A grande divergência: dependência histórica ou dependência do caminho? Resultados das Américas
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expansão ocorreu com salários relativamente constantes para os trabalhadores
livres, não sendo muito diferente do custo da utilização do trabalho escravo
(Michael Hall (1969) Cap. 3 citado por Leff [1982 p. 59]). Além disso, estima-
se que o custo dessa mão de obra contém os dois componentes do regime
escravagista, ou seja, a parte devida ao trabalhador, seu incentivo, e os custos
dos subsídios para a migração. Este realinhamento do total dos custos e
incentivos da mão de obra durante a transição da escravidão para o mercado
de trabalho é o foco principal de nosso trabalho teórico (De Castro [2004]).
Sugerimos que a causa principal da diferença de desempenho da
economia brasileira na segunda metade do século XIX em relação aos
Estados Unidos, com a qual sua hisria econômica guarda uma semelhança
mais próxima, é que o Brasil não tinha nenhuma rego onde não houvesse
o regime de escravio, quando os migrantes livres começaram a competir
com a mão de obra dos escravos. Os dois regimes coexistiram por muitas
décadas até a abolição nal da escravatura, em 1888, quando apenas 4% da
população era ainda de escravos (Leff [1982] p. 54).
2.2 Série anual do PIBpc do Brasil entre 1820 e 2000 e dos
Estados Unidos entre 1869 e 1997
Assim como Pomeranz e Bairoch, armamos que, antes de 1850,
aproximadamente todas as economias apresentavam o mesmo PIBpc (ver
gráco 1 do apêndice). Entretanto, a tabela 1 abaixo, com nossas estimativas
para o Brasil, ilustra uma média relativamente alta nas taxas de crescimento
a longo prazo no período de 1822 a 2000 (1,55%) e de 1850 a 2000 (1,76%),
quando comparadas às dos Estados Unidos de 1,68% (para o período de
1820 a 1992) e de 1,67% (para o período de 1800 a 1989) segundo cálculos,
respectivamente, de Maddison [1995] (tabela 1.3) e Engerman e Sokoloff
[1997] (tabela 10.5 p. 270). Para o período de 1850 a 1900, a tabela evidencia,
ainda, uma modesta taxa de crescimento de 0,01%, contrária ao declínio que
vericamos na Seção 2.1. Ambas se devem ao fato de termos subestimado o
PIBpc do Brasil para o período de 1822 a 1850/60.
A possível causa é que todas as nossas fontes primárias referentes ao
século XIX foram obtidas a partir de dados monetários ou dados do comércio
internacional. Leff, por exemplo, usou os estoques de moedas deacionados
para produzir aquilo que ele chamou de “renda per capita monetizada”.
Se, como ele armou, “a produção estava crescendo a uma taxa maior no
Steve De Castro
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setor monetizado” ([1982] nota de rodapé 21, p. 361), a omissão quanto ao
crescimento de rendas não monetárias, principalmente as dos agricultores
em condições de subsistência, levariam, segundo nossa metodologia, a baixas
estimativas do PIB inicial. Embora os escravos recebessem seus rendimentos
quase sempre em espécie, esses podem ter sido incluídos nos dados monetários
e de comércio na coluna referente às receitas das grandes fazendas.
Tabela 1
Taxas de crescimento
Período Brasil PIBpc Período EUA PIBpc
1822-2000 1.55% 1800-1989 1.67%
1822-1950 1.01% 1820-1950 1.56%
1822-1900 0.16% 1800-1913 1.60%
1822-1850 0.44% 1800-1850 1.10%
1850-2000 1.76% 1869-1996 1.74%
1850-1950 1.18% 1869-1950 1.66%
1850-1900 0.01% 1869-1900 1.73%
1900-2000 2.64% 1900-1996 1.76%
1900-1950 2.34% 1900-1950 1.89%
1950-2000 2.93% 1950-1996 1.89%
1950-1975 4.48% 1950-1975 1.52%
1975-2000 1.39% 1975-1996 2.10%
Fonte: ver De Castro & Gonçalves [2005]
Apesar dos níveis de renda do Brasil estarem subestimados no período
de 1822 a 1850/60, os eventuais ajustes para esse período não devem alterar,
de forma signicativa, o resultado dos testes estatísticos relatados na próxima
seção, pois, tais resultados são conseqüência do longo período de estagnação
ocorrido em meados do culo XIX. Outro detalhe é que as estimativas quanto
às rendas maiores no período anterior a 1850 apenas reforçariam a rejeição
de sua dependência histórica.
3. História ou dependência de trajetória no Brasil
e Estados Unidos
A referência básica relativa à teoria do crescimento é a de Aghion e Howitt
[1992]. Segundo tais autores, a fonte de crescimento numa economia é uma
A grande divergência: dependência histórica ou dependência do caminho? Resultados das Américas
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140
espécie de processo estocástico de Poisson sobre a ocorrência de inovações e
onde, cada uma delas, a partir de seu surgimento, aumenta o PIBpc de maneira
instantânea e permanente, no mais simples dos casos, numa percentagem
exógena e xa. Considerando-se uma série de PIBpc, a interpretação empírica
é a de que uma inovação ocorre cada vez que uma economia completa uma
elevação percentual xa. De Castro e Gonçalves [2001, 2003a] mostraram
como usar esta suposição para interpretar, a partir de simulações, a distribuição
de renda no mundo, para tanto, recorrendo a contagem de inovações a partir
de um conjunto de economias inicialmente idênticas que seguiram o processo
teórico de Poisson desde o início, ou seja, em 1800. A interpretação mais geral
desse tipo de processo, para uma única economia, é aquele em que o parâmetro
de Poisson (λ), a média do surgimento das inovações, varia tanto segundo o
tempo decorrido quanto segundo a quantidade acumulada dessas inovações.
Em De Castro e Gonçalves [2003b, 2005], estimamos o oposto. Convertemos
as séries anuais do PIBpc das economias do Brasil e dos Estados Unidos
na época do surgimento de inovões, e testamos se cada seqüência desses
surgimentos poderia ter sido gerada por um processo homogêneo de Poisson,
isto é, com a constante λ. Se sua trajetória passou nesses testes, conclui-se que
o crescimento da economia é dependente da história, pelo fato de que em seu
início ela partiu de λ e o manteve.
Tanto os países ricos quanto os pobres podem apresentar este tipo de
trajetória. Isto se deve ao fato de que os testes não se referem à taxa média
do surgimento das inovações sobre toda a trajetória, parâmetro teórico que
poderia em grande parte produzir países ricos e pobres no nal do século
XX, mas sim ao fato de que essa taxa média tenha sido ou não mantida. Se
uma economia tiver mantido intervalos de desvios de sua taxa média, por
períodos longos, tanto de estagnação quanto de crescimento, nesse caso, não
passaria no teste de dependência histórica. Esperamos, por exemplo, que a
Índia e a China, pelo menos até 1980, possam também passar no teste, em
função da manutenção de suas baixas taxas de crescimento médio. Ambas
entraram recentemente num período de crescimento acelerado que, se for
sustentado por tempo suciente, poderá causar, ao nal, a rejeição da hipótese
da dependência histórica.
O Brasil, no período de 1822 a 2000, não passou no teste. No entanto,
tanto sua série incompleta de 1889 a 2000 quanto a dos Estados Unidos de
Steve De Castro
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1869 a 1996 passaram. Os grácos 2 e 3 do apêndice ilustram a diferença das
trajetórias das duas economias. Se uma economia sempre cresceu a uma taxa
constante durante todo o período, sua trajetória será representada por uma
diagonal. No Brasil, houve, na segunda metade do século XIX, um longo
período de estagnação ou de declínio, que foi seguido por um crescimento
sustentado durante a maior parte do século XX, o que resultou na rejeição
da hipótese da dependência histórica. A partir de 1835, passaram-se quase 87
anos para que houvesse um aumento do PIBpc da ordem de 3% representado
pela linha inclinada de forma vertical, entre a 14ª e a 15ª inovações, denido
com o “valor” de 3% nos gcos. Em comparação, os Estados Unidos
(gráco 3) não se afastaram da diagonal e, portanto, de sua taxa média de
crescimento. Suas inovações no “valor” de 3% permaneceram num ritmo
constante em sua trajetória. Entretanto, considerar os Estados Unidos como
uma única economia, obscurece as diferenças entre as taxas de crescimento
de suas duas principais regiões, o norte e o sul. O sul dos Estados Unidos
reproduziu o padrão da trajetória do Brasil crescimento inicial e a seguir
declínio quando da abolição, crescendo novamente, a taxas relativamente iguais
às do norte dos Estados Unidos até 1950 e, ainda maiores após esse período.
Num segundo momento, no período de 1975-80, o Brasil hesitou. Nesse caso,
as rendas menores que tiveram relação próxima ao comportamento do norte
dos Estados Unidos, foram acompanhadas, em ambos os países, pelas mesmas
características – baixos níveis de educação, industrialização e urbanização.
Mesmo que isto mostre um crescimento historicamente dependente, um
país pode ser considerado pobre, atualmente, por apresentar um λ com um
valor inicial baixo, ou, ainda, porque apresentou um resultado ruim após uma
avaliação muito alta para λ. Isso não é pouco provel como parece quando nos
lembramos da forma do modelo de densidade de Poisson, que, dado o seu λ,
seria a distribuição teórica para a quantidade de inovações em cada economia,
desde o início, sempre que a trajetória fosse historicamente dependente.
Formulamos esta questão através do uso de um conjunto de dados de
Summers-Heston, em 2000, com o objetivo de estimar a teoria da distribuição
“desigual” a nível mundial, a partir da qual, cada economia, aparentemente,
traçou o seu λquase dois séculos, usando a suposição (não comprovada)
de que todas as trajetórias de crescimento das economias eram historicamente
dependentes. Ao ampliarmos a denição de “valor” da inovação, variando-a de
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1% a 7%, a distribuição “desigual” tornou-se mais negativamente assimétrica,
ou seja, tornaram-se mais prováveis que os valores para λ fossem maiores. Uma
das implicações deste resultado é a seguinte: se a visão da história econômica
for a de que o principal motor do crescimento foi um pequeno número isolado
de grandes inovações, nesse caso, reduzida quantidade de economias puderam
registrar um λ baixo e a causa principal da divergência seriam os resultados
de taxas quase iguais de surgimento de inovações num mesmo processo de
estagnação ocorrido em quase todas as economias.
4. A transição da escravidão para empresas e mercados
de trabalho
4.1 Considerações breves sobre interpretações teóricas anteriores
Para nós, a principal característica da escravio moderna, principalmente
na rego das Américas na época da primeira revolução industrial, foi a
percepção, pelos patrões, de que poderiam obter mais renda com o trabalho de
seus escravos oferecendo-lhes incentivos e algum insumo complementar nas
principais atividades da fazenda. Esta foi a contribuição fundamental contida
no livro Time on the cross de Fogel & Engerman de 1974, que intensicou os
debates entre os historiadores econômicos dos Estados Unidos (em especial,
ver Paul A. Davis et al [1976, 1979]) alguns dos quais contestaram, sem
sucesso, segundo nosso e no ponto de vista de Barzel [1977], sua descoberta
de que o rendimento real de um escravo nas grandes plantações (superior a 15
escravos) do cinturão do algodão dos Estados Unidos por volta de 1860, era
superior ao obtido por um pequeno fazendeiro livre da mesma região. Para
explicar porque os agricultores livres não competiam com os escravos, embora
tivessem rendimentos inferiores, Fogel & Engerman atribuíram tal diferença
ao desempenho físico resultante de serem livres. A interpretação de Barzel é
a de que a “fartura” de alimentação, o tempo de descanso, etc. constituíam-se
em complementos biológicos do regime de trabalhos forçados, mesmo sem
qualquer componente de incentivo.
Diferentemente de Barzel, armamos que o é necessário saber se
sob o regime de escravidão havia ou não algum componente de incentivo,
nem sequer se havia, nas grandes fazendas, algum tipo de especialização ou
capacidade gerencial, ou ainda se existiam, tão somente, castigos físicos ou
Steve De Castro
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a ameaça deles. Uma vez que os dados a respeito da alta produtividade dos
escravos sejam aceitos como verdadeiros, ponto crucial no debate, pode-se
utilizar tal teoria econômica para vericar se o regime de trabalho livre pode ou
não ser reproduzida. O produto excedente poderia ser suciente para a criação
de incentivos capazes de induzir agentes livres a aceitar a disciplina exigida
dos empregados supervisionados, de tal forma que a redistribuição das rendas
na abolição não viesse a ser um jogo de soma negativa, sem cooperativismo,
com perdas para os dois lados.
A obra de Eisenberg, sobre a indústria dominante do açúcar em
Pernambuco no nordeste do Brasil no período entre 1840 e 1910 [1974
p. 213-4], fornece elementos para nossa argumentação teórica sobre a ligação
entre o papel da supervisão e a queda nas receitas:
Após o icio da década de 1870, o nível dos sarios teve um declínio
constante. Todos os três tipos de trabalho livre (colonos, meeiros e
trabalhadores assalariados) podiam ser contratados e demitidos à vontade,
sem complicações de contratos ou indenizações... não podemos deixar de
concluir que no nal do Século XIX eles se beneciaram de poucas vantagens
materiais sobre os escravos.
A escravidão ainda era legal na época, mas os plantadores de cana de
açúcar aumentavam cada vez mais a venda de seus escravos para os plantadores
de café em São Paulo. O autor observa, posteriormente, que uma aparente
“melhora” no tratamento dos escravos pode ter sido a comprovação da tese
polêmica de Gilberto Freyre sobre o paternalismo dos senhores de escravos
do nordeste. Nosso modelo pode explicar tal fato sem recorrer ao altruísmo
como fez Freyre, ou a economias de escala como desenvolveram Fogel &
Engerman, mas sim como forma de recompensa por aceitar ordens que, como
numa empresa, é justicada pelos ganhos de ambas as partes pela supervisão de
uma parte pela outra. Com a tecnologia da época, provavelmente a economia
baseada na supervisão necessitava mais de escala do que o inverso.
Sob o regime de escravidão, entretanto, a coação não pode ser inteiramente
desconsiderada. Ou, para usar a linguagem do modelo, que os escravos
não tinham direito de se demitir, é provável que as fazendas pagassem a eles
menos do que se eles tivessem por direito, mesmo se, como armaram Fogel
& Engerman, pagassem a eles mais do que recebiam os fazendeiros livres da
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mesma região. O problema que tentaremos resolver é, por que motivo, depois
da abolão da escravatura, os trabalhadores livres não atingiram produtividades
mais altas.
Durante o período da escravidão, os trabalhadores livres que procuravam
um salário eventual não seriam contratados, mesmo que suas habilidades
intrínsecas fossem idênticas às de um escravo, pois o regime salarial não era
capaz de oferecer incentivos compatíveis com o empenho exigido em várias
atividades e que deveriam ser coordenados de maneira complexa. Assim, temos
uma explicação melhor da teoria de Fogel & Engerman a respeito do ingresso
psicológico. Constata-se que, sob o regime de escravidão, seria preciso que um
trabalhador livre recebesse uma oferta maior do que a de um escravo a m de
induzi-lo a aceitar a disciplina estabelecida pela fazenda, mesmo porque tais
trabalhadores tinham o direito de se demitir. Assim, os esquemas de supervisão
e incentivo não podiam ser os mesmos para os trabalhadores livres, mesmo
no caso de que, sob o regime de escravidão, as sanções legais contra o uso da
violência existissem e fossem ecazes.
Com a abolição, as fazendas precisaram mudar seu esquema de incentivos.
Não estariam, necessariamente, em pior situação, pois não seria mais
necessário pagar o capital representado pelo preço do contrato dos escravos.
Não precisariam comprar seus empregados. Na verdade, a escravatura se
tornaria redundante se o custo desses contratos fossem superiores a qualquer
redução potencial da renda bruta no momento da abolição, devido aos altos
pagamentos aos empregados e/ou à perda de renda resultante das mudanças
na composição da produção.
Estas observações podem ser melhor esclarecidas a partir da noção
básica de microeconomia. A Figura 1 do apêndice mostra quatro instituições
do capitalismo moderno; os três mercados, ou seja, o trabalho, o capital e o
produto representados por círculos e a empresa hierárquica representada por
um triângulo. Na verdade, como se vê, a gura é contraditória. As quatro partes
não podem coexistir em determinada indústria. Isto deriva do teorema de Euler
quando aplicado a uma função de produção com retornos constantes de escala,
tendo como propriedade necessária que o custo médio mínimo seja capaz de
gerar um equilíbrio competitivo. Por exemplo, se os três mercados estiverem
funcionando, nesse caso, as partes irão receber seus produtos marginais e seu
custo irá consumir os ganhos da empresa levando a um preço competitivo do
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produto. Dessa forma, a empresa hierárquica não irá desempenhar qualquer
papel econômico. Todos os incentivos estarão nos mercados. Na linguagem
das escolas de administração e economia, a empresa não tem uma margem
com a qual criar seus próprios incentivos.
A teoria do crescimento de Solow foi baseada nesta teoria microeconômica,
fato esse que, certamente, tornou-a obsoleta 50 anos antes de sua publicação.
Foram necessários mais de 30 anos para que ocorresse uma mudança de
paradigma a respeito do poder do mercado como um instrumento propulsor
da economia. No capitalismo moderno, o mercado de produtos é geralmente
impulsionado a produzir lucros sob forma de monopólio para incrementar
os incentivos da empresa hierárquica. Sob o regime de escravidão moderna, o
sacrifício era do mercado do trabalho, que as grandes fazendas enfrentavam
competição de seus produtos, e a posse de escravos podia ser nanciada
pelos mercados de capital. Na Rússia soviética, todos os três mercados eram
sacricados, até o do trabalho. Os bolchevistas acreditavam que as empresas
hierárquicas poderiam fornecer todos os incentivos. Assim, vemos que, sob o
regime de escravidão, a falta do mercado de trabalho teria propiciado o espaço
para que as plantações criassem incentivos para a supervisão, o que gerou uma
maior produtividade. Como no caso dos oligopólios modernos, as plantações
podem ter repassado parte de seu excedente de lucratividade aos seus escravos,
contrapondo os polêmicos dados encontrado por Fogel & Engerman.
4.2 Uma teoria para a transição das plantões nas fazendas
às empresas
Algumas recentes teorias da rma, baseadas em incentivos e poder,
(para uma análise, ver Holmstrom [1999]) foram utilizadas para estudar a falha
existente no argumento de Coase na qual sustenta a idéia de que, na ausência
de custos de transações, os direitos de propriedade determinam apenas a
distribuição mas não a receita total (De Castro [2004]). O modelo mostrou
como os indevidos incentivos da abolição podem ter induzido a escolhas
inecientes em relação às duas atividades. Uma pode ser executada por um
único agente trabalhando sozinho. A outra atividade requer um segundo
agente complementar e cooperativo para que seja executada. Nenhuma
das duas atividades necessita de capital físico. Quando executada fora das
grandes fazendas, a primeira acaba se constituindo em uma versão estilizada
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das pequenas propriedades familiares. Não sendo, necessariamente, ligada à
agricultura de subsistência. Por exemplo, na Jamaica, mesmo atualmente, tais
propriedades produzem bananas para exportação. No nal do século XIX,
no Brasil, muitas dessas propriedades criavam gado e plantavam alimentos
para os mercados locais. A segunda atividade que combina a qualicação e o
trabalho de dois agentes - proprietário/supervisor - é o núcleo de uma fazenda
estilizada ou paradigmática.
O que importa, nesse caso, é admitir que os incentivos para o desempenho
das duas atividades pelo agente do tipo 1 são melhor executadas pelo tipo 2
que efetuou de uma única vez o investimento xo. Entretanto, mesmo sob o
regime de escravidão, este precisa oferecer estímulos adequados para obter
uma combinação ecaz com os insumos complementares das plantações
das fazendas. A informação assimétrica o está expcita neste modelo
simplicado, mas é crucial para o argumento. Para tanto, vamos supor que, ao
contrário, ocorreram retornos crescentes ao trabalho (rct) na principal prodão
da fazenda. Com retornos crescentes, a idéia de que o desempenho individual
de um homem seja controlado por um observador externo (vericável) se
torna frágil.
Na teoria, o comportamento da rma pode ser o oposto de como o
mercado funciona segundo a teoria neoclássica. Ela pagará menos do que
o produto marginal para algumas atividades secundárias desenvolvidas por
seus empregados, a m de criar incentivos para outras, que constituem sua
atividade principal. Isso pode ser facilmente aplicado ao caso da abolição. Se
o açúcar ou o algodão constituem-se nos produtos principais, nesse caso, a
produção de alimentos de subsistência, tais como milho e mandioca, deve
ser monitorada atentamente ou desestimulada. E, nesse caso, se o açúcar e o
algodão produzem um PIB maior, o PIB cairá após a abolição da escravidão,
a menos que surja algum outro mecanismo diferente de remuneração do
trabalho ou da meação. Permanece ainda a questão quanto ao fato de saber se
a escravidão do século XIX pode ser analisada, sob todos os aspectos, como
uma empresa, e mais adiante iremos voltar a este ponto central. A remuneração
do trabalho, nesse caso, signica incentivos marginais à produção pelo esforço
e não um pagamento xo por períodos somado à supervisão.
Porém, se o direito à demissão tornou inviáveis as estruturas da economia
hierárquica, nesse caso, pode-se armar que as tecnologias da segunda
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revolução industrial não poderiam ser implementadas. A economia poderá
voltar novamente a crescer, mas este crescimento repetirá o modelo da primeira
revolução industrial (principalmente a britânica), ou seja, com pequenos
negócios familiares e mercados de trabalho restritos, e sem capacidade para
completar o ciclo com os líderes envolvidos.
Uma das principais diferenças, naturalmente, foi a ausência do direito à
demissão por parte dos escravos. As grandes fazendas não tinham que justicar
a obrigação quanto à participão de seus trabalhadores. Essa é uma questão
importante de nossa teoria sobre a transição. Por exemplo, sua justicativa é
uma condão necesria, porém o suciente, para que a escravio se torne
redundante. O modelo permite a possibilidade de redunncia, mas duvidamos
que esta tenha sido a causa da abolão. Certamente, até o advento da Guerra
Civil nos Estados Unidos, ela era imposta sobre os fazendeiros por forças
exógenas, como por exemplo, no caso dos ingleses, no norte dos Estados
Unidos ou os escravos do Haiti. Por outro lado, as imediatas re-alocações de
recursos necessárias, na verdade redistribuições, eram de menor importância.
Outra diferença importante foi a possibilidade do uso da força nas
fazendas com o objetivo de induzir os escravos a produzirem mais. Esta
é a hipótese alternativa de Barzel à nossa teoria. Nosso modelo não pode
determinar se a cooperação oferecida pela fazenda era algo semelhante à
capacidade de coordenação ou gerenciamento ou simplesmente ameaças e
castigo físico. O poder das empresas deriva sobretudo do aumento de seu
produto marginal e salários mais altos e de seu direito de contratar e demitir,
sendo que, este último não existia na grande fazenda colonial.
Vale dizer que, grande parte dos resultados descobertos por Fogel
& Engerman sobre os incentivos dos fazendeiros dos Estados Unidos em
1840-60 convencem tanto a nós quanto a Barzel (ver sua nota de rodapé 7,
p.92). A interpretação desses dados é de que a alimentação em abundância, o
tempo de descanso, etc., para mandar os trabalhadores ao campo durante as
colheitas, apenas preenchia uma necessidade biológica induzida pelo regime de
trabalhos forçados, sem qualquer componente de incentivo. Não é fácil rebater
tal armação. Nossa critica à sua teoria, entretanto, repousa no fato de que ela
nega, a priori, a possibilidade de que, com a mesma tecnologia, em um regime
de trabalho livre, possam ter existido incentivos materiais para reproduzir a
alta produtividade que, na época, os escravos das grandes fazendas do século
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XIX eram capazes de alcançar. Isto é o que o nosso modelo propõe. Se existe
um esquema de incentivo que produz um retorno razoável, e ao mesmo tempo
satisfaz a obrigação de participação do ex-escravo, então este se submeterá
voluntariamente à autoridade da fazenda e produzirá a quantidade de produtos
que esta exige, em níveis ainda maiores do que sob o regime de escravidão.
Escravos livres trabalhando como meeiros em pequenas fazendas de
algodão no sul dos Estados Unidos produziam mais nas grandes fazendas do
que quando eram escravos, representando, assim, uma aparente contradição
em relação aos resultados do modelo. Ransom & Sutch [1975] argumentaram
que os homens livres eram forçados a agir assim devido ao “monitoramento”
estabelecido pelos credores que insistiam em denir um nível mínimo de
safra, num sistema em que a colheita era dada como garantia, uma espécie de
servidão. Este valor mínimo obrigatório trazia como resultado ao trabalhador
livre uma receita maior, mas seu esforço teria que ser também maior, com
todo o trabalho extra sendo dirigido para o algodão. A renda certamente não
aumentou e tampouco a carga de trabalho. Uma suposição mais plausível (que
não é feita aqui) é que a produtividade do trabalhador da plantação e cultivo de
algodão em sua fazenda era menor devido à falta de insumos complementares
importantes para a plantação (capacitação e supervisão). Assim, considerando-
se o mesmo esforço físico e a quantidade de produtos, a tendência da sua
receita era diminuir. Dessa forma, para compensar esta perda, os escravos
livres produziam mais algodão e menos milho do que o trabalhador livre.
Outra questão parcialmente esclarecida pela nossa teoria é o debate sobre
o papel da escravidão de pequena escala, na qual prevaleceu em muitas regiões
do sul dos Estados Unidos e no Brasil (em relação a Minas Gerais, ver Martins &
Martins Filho [1984] e suas refencias a esse respeito). O modelo não necessita
de economia de escala (grandes plantações), mas precisa de supervio e acesso
dos escravos a algo que o pato detenha (terra, conhecimento prossional,
quinas). Mesmo na falta de tais complementos, a legalidade da escravidão
permite ao proprierio que compra o contrato do escravo cobrar uma comissão,
uma taxa sobre a produção do escravo, desde que sua produtividade fosse
superior à sua subsistência, como muitas eram. Muitos eram trabalhadores
altamente qualicados. A abolição acabaria com tais rendimentos, mas se não
existisse uma supervisão, não modicaria em nada a renda da economia. Haveria
uma redistribuão, uma vez que estes ex-escravos continuariam nas mesmas
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149
atividades, mas, nesse caso, ocasionando uma queda no rendimento total. Alguns
poderiam até trabalhar mais. Assim, este tipo de trabalho escravo provavelmente
não explica a queda do PIB após o m da escravidão.
Tais aspectos apontam para a questão central de nossa teoria, ou seja, que
uma nova instituição - empresas utilizando a supervisão e o direito de contratar
e demitir - era um mecanismo superior a tais contratos formais. A especialização
gerencial, aliada aos contratos de arrendamento, não foram suciente para
reproduzir os níveis anteriores de produtividade. A partir dos estudos acerca
dos incentivos dos produtos não-marginais que as empresas utilizam para
combinar os dois tipos de conhecimento prossional, argumentamos que, em
relação a certos preços e tecnologias, é possível reproduzir a alta produtividade
das plantações sem o uso do regime de trabalho forçado.
4.3 Resultados do modelo
No modelo, mostramos as condições sob as quais o PIB cai durante
o período da abolição, caso as plantações (fazendas) não modiquem seus
incentivos (para os detalhes matemáticos ver De Castro [2004]). Quando seu
cultivo principal é mais lucrativo do que a colheita do campo, a queda é ainda
maior. Pode ocorrer uma drástica redistribuição da reduzida receita total entre
os ex-escravos, pois, em alguns casos, eles podem optar por abandonar o cultivo
principal da fazenda. Entretanto, as fazendas podem optar por uma safra
que não seja socialmente eciente (PIB menor), mas que seja mais lucrativa
sem necessidade de supervisão (café?). Tal fato pode acarretar a queda nos
rendimentos dos ex-escravos em relação aos camponeses livres. Nesta troca,
a economia pode apresentar um pior resultado, que o rendimento médio
dos dois conjuntos de agentes cairá quando mudarem para atividades menos
produtivas que não necessitem da supervisão fornecida pelas empresas.
Este é, provavelmente, o grande dilema a cada mudança de regime
crescimento versus distribuição. A principal contribuição do modelo está em
mostrar que, pelo menos no caso da abolição da escravidão no Atlântico, a
economia não passou por isso. Tanto o crescimento quanto a distribuição
foram possíveis, pelo menos para os escravos e seus senhores. Os comerciantes
tiveram que encontrar atividades alternativas, provavelmente a nova prossão
de contratadores de mão de obra.
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Entretanto, esse resultado de estagnação, apesar de histórico, não é
inevitável em nosso modelo. Mostramos que pode existir um contrato de
“inquilino“ que resulte em mais renda, tanto para o antigo escravo quanto
para seu ex-senhor. Nesse aspecto, o contrato de serviço não é o contrato de
trabalho de longo prazo como os apresentados em alguns livros de história.
Nesse caso, é simplesmente uma referência às condições microeconômicas
estáticas sob as quais o agente do tipo 1 (o agora trabalhador livre) irá aceitar,
por vontade própria, a autoridade do agente do tipo 2 (o supervisor da fazenda)
e reduzir seu trabalho à atividade 1 (sua safra de camponês). Em princípio,
não se necessita de um terceiro elemento para obrigar essa execução. Sendo
assim, o resultado concreto depende do preço relativo e da tecnologia dos
dois produtos.
A princípio e na prática, os contratos de inquilinato necessitam de um
mercado que funcione para eles. Isto é, a divisão da produção da fazenda
entre os dois tipos de agentes precisa ser disciplinada através de uma opção
externa eciente para o tipo 1, caso opte por trabalhar em outras plantações,
e não somente em sua própria. Do mesmo modo que, na empresa, sua divisão
o es baseada em incentivos dos produtos marginais, podendo haver
possibilidade de conito. Empregadores de boa reputação podem auxiliar as
fazendas a minimizar a instabilidade dos custos para que se tornem empresas,
sendo que a legislação trabalhista também pode inuenciar.
Sugerimos que o sucesso ou o fracasso das empresas nos tribunais
trabalhistas irá depender da rapidez com que cada um possa construir sua
reputação. Se a reputação é basicamente um bem público, ou seja, da classe
plantadora de um modo geral, os tribunais poderiam ser dinamicamente
superiores, desde que não fossem considerados tendenciosos. Porém, caso
a reputação fosse, meramente um bem privado, sendo assim, os agentes do
tipo 2 podem aprender de forma mais rápida a conquistá-la e assim, tornar-
se empresas. É claro que, desde o advento dos tribunais e da jurisprudência,
sua reputação pode depender do regime político vigente, e a resolução desta
questão pode ir além da teoria econômica. Anal, a classe dos plantadores
continuou controlando o Poder Legislativo. Entretanto, nosso modelo partiu
do princípio de que o esforço não é vericável e assim, pode-se armar que
as empresas deveriam ser o mecanismo superior.
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4.4 Considerações para uma teoria do crescimento
Embora as antigas economias escravagistas do Atlântico tivessem
nalmente começado a crescer novamente, apenas o sul dos Estados Unidos
conseguiu se aproximar das regiões mais ricas. Mesmo assim, foram necessários
100 anos para que isto acontecesse. Muitas das economias mundiais também
não obtiveram êxito, embora estivessem claramente entre as regiões mais ricas.
Como então podemos generalizar o argumento a ponto de torná-la uma teoria
do crescimento válida para todas as economias?
O argumento teórico é que, se os preços no mercado mundial e a
tecnologia não mudaram com a abolição, as antigas economias escravagistas
que não foram capazes de manter a estrutura gerencial hierarquizada com os
trabalhadores livres, não puderam, dessa forma, reproduzir a produtividade
mais elevada das grandes fazendas. O argumento teórico microeconômico,
assim, está agora bem entendido. Se o custo da supervisão é menor do que a
perda de bem-estar para ambos os agentes complementares numa atividade
conjunta, mas lucrativa, que se torna inviável devido a uma das partes (a
principal) ter que pagar mais para a outra parte (o agente) do que o valor da
opção externa desta última, a m de fazê-la participar da atividade conjunta no
nível desejado sem supervisão, então ambas podem ganhar com um esquema
de supervisão que coordene e monitore. Um indicador da perda estática de
bem-estar após a abolição é a queda do PIB.
A lógica econômica subjacente a estas estruturas gerenciais é que, para
certas tecnologias emergentes, quaisquer esquemas de incentivos destinados
a superar os problemas de riscos nas combinações entre patrão-empregado
eram menos produtivas do que as hierarquias gerenciais. A historiograa
da chamada segunda revolução industrial está repleta de estudos sobre as
grandes transformações nos processos industriais que necessitavam, dentre
outras fontes de: aço, carvão, petróleo renado, gerão de eletricidade,
processamento de óleos vegetais, etc. Se não fosse devido ao seu trabalho
e operações agrárias intensivas, a produção e o reno da cana de açúcar de
cana seriam facilmente classicadas nesta categoria. A generalização relevante,
portanto, é a que diz que, se uma economia não for capaz de implementar com
trabalhadores livres os esquemas gerenciais das grandes unidades de produção,
seja na agricultura ou na indústria, não acompanhará o crescimento da renda
dos líderes emergentes.
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Entretanto, evidentemente, houve casos de algumas economias que
atingiram elevados níveis de renda em 1900 sem o uso de muitas dessas
estruturas ou mesmo sem uma atividade industrial significativa. Pode-
se mencionar, por exemplo, o sucesso da agricultura familiar de trigo no
meio-oeste dos Estados Unidos. No caso, tais estruturas economizaram em
supervisão gerencial, apesar da introdução das máquinas que, por sua vez,
necessitavam de fazendas de maiores extensões. Na Europa ocidental esta
transição foi menos visível, pelo menos em relação às colheitas de menor
valor menor, como é o caso dos cereais. Os outros países exportadores de
produtos primários da época, tais como a Austrália e a Argentina, apresentaram
características que permite uma explicação semelhante. E, levando-se em
conta as exceções, existiram algumas economias que organizaram estruturas
hierárquicas mais produtivas em apenas um ou dois setores, deixando que,
nas atividades restantes, os empregados vivessem em nível de subsistência, o
fenômeno chamado de dualismo.
O elemento comum quanto ao êxito na ocorrência de crescimento, em
ambos os tipos de administração, isto é, estruturas gerenciais ou unidades
pulverizadas, é o progresso tecnológico. Assim, a hipótese implícita mais
correta é saber se uma economia pode fornecer os incentivos para a geração
e implementação de inovações tecnológicas e não apenas saber qual o tipo de
unidade de produção. Entretanto, se a atividade requer gerenciamento para
sua viabilidade econômica e seu crescimento, sendo assim, é provável que a
antiga economia de escravocrata fosse menos capaz de susten-la devido à falta
de consenso sobre os incentivos. Sendo assim, podem ser necessários vários
mecanismos para a intervenção de um terceiro aspecto (legislação trabalhista,
sindicatos e tribunais trabalhistas), sobretudo no início das atividades, quando
a empresa ainda não tem a reputação de dar um tratamento justo aos seus
empregados. Se estes elementos estiverem ausentes ou forem inecazes, é
provável que a economia não chegue a introduzir tais inovações e venha a
estagnar, mesmo que contrate outros trabalhadores cujo custo de oportunidade
seja inferior ao de seus antigos escravos.
Como hipótese experimental, sugerimos que um legado da escravidão
e da abolição, que pode muito bem ser extensivo a outras localidades, é a
incapacidade de se manter grandes empresas que utilizam a supervisão como
mecanismo em seus esquemas de incentivos. Embora haja nas economias ricas
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muitas atividades sendo desempenhadas por negócios familiares de pequeno
porte que operam principalmente em mercados com incentivos de benefícios
marginais, é bastante provável que elas obtenham suas inovações por meio
de excedentes, gratuitos ou pagos, provenientes de mecanismos reais de
crescimento. O outro tipo de unidade de produção capaz de gerar inovações
são, justamente, as empresas públicas ou semi-públicas, como as companhias
estatais e os centros de pesquisa das Universidades. Sendo que, estas podem
reproduzir a maioria dos mecanismos relativos ao trabalho supervisionado
desenvolvidos pelos monopólios e oligopólios do capitalismo moderno.
Entretanto, os supervisores não estariam sujeitos à disciplina do mercado de
capital, o que implica que os incentivos oferecidos aos seus supervisionados
podem ser diferentes, apesar dos tipos de mercado de trabalho com os quais
lidam ambas as instituições.
Esta visão sobre a teoria do crescimento surge a partir de uma comparação
entre o norte e o sul dos Estados Unidos no m do século XIX. Em 1890,
quando foi decretada a primeira lei federal contra os cartéis (a lei Sherman contra os
monolios), grandes empresas estavam se juntando em rios setores do norte
dos Estados Unidos – as renarias de petleo e de açúcar são dois exemplos
famosos. Tais instituões o existiam no início do capitalismo ings que serviu
de modelo para a teoria neocssica. Nós supomos, assim, que estes “grandes
empreendimentos”, bem como o visível poder do monopólio, constituíram-se
nos principais elementos para que os Estados Unidos superassem o nível de
renda da Inglaterra no período anterior a 1914.
Assim, uma teoria geral sobre o crescimento de todas as economias
pode ser a habilidade, ou não, quanto à sustentabilidade das grandes empresas
que utilizem a supervisão e outros esquemas complexos de incentivos para
a alocação do trabalho. Curiosamente, este não é um mundo de incentivos
dos produtos marginais de Solow, bem como de mercados perfeitamente
competitivos que não denem qual o papel da empresa na economia. Naqueles
setores onde, no século XX, elas vieram a se tornar as maiores fontes de
inovações que impulsionam o crescimento, não atingir tal objetivo poderia ser
fatal. Sendo assim, o segredo pode não estar exatamente nos mercados, mas
sim em como decidir quais os mercados que podem ser suprimidos a m de
se criar espaço para incentivos das empresas.
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Apêndice
PIBpc: países selecionados, Américas, século XIX
Moohr Eisner Moohr Eisner Atack & Passell Coatsworth Maddison
Guiana Jamaica Guiana Jamaica
EUA
Sul
EUA
Centro-
oeste
EUA
Total
EUA Cuba Brasil Brasil EUA RU
£ const.
1912 1910
$ corrente $ const. 1985 $ const. 1990
1775 60
1800 807 904 738
1820 74 670 1287 1756
1830 92
1832 23.9 15.6 100 65
1840 74 65 109
1850 19.4 12.2 77 45 1394 1087 901
1860 103 89 128
1870 20.7 11.9 95 55 740 2457 3263
1880 79
1
205
1890 22.4 12.4 121 67
1900 128
4
704 4096 4593
1910 24.0 13.7 117 67
1913 200
4
399
2
4854 1893 700 839 5307 5032
1920
1930 15.7 93 466
4
847
3
Fonte: De Castro [2004].
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Gráco 1
Renda per capita relativa à Índia
Fonte: R Feenstra & G. Clark [2001] Figura 1
Figura 1
Empresas e mercados
Todas as quatro instituições mostradas abaixo não podem coexistir. Por
exemplo, se todos os três mercados estiverem funcionando, a empresa não terá
nenhum papel econômico a desempenhar. O capitalismo moderno suprime
os mercados de bens, Y. A escravidão carecia de mercado de trabalho, L, mas,
ao admiti-lo algum dos outros itens tinha que desaparecer.
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Gráco 2
Distribuição do surgimento de Inovações Observadas versus
Inovações Uniformes (Brasil, 1822-2000; 3% valor de inovações)
Gráco 3
Distribuição do surgimento de Inovações Observadas versus
Inovações Uniformes (USA, 1869-1996; 3% valor de inovações)
Tradução: Sérgio Duarte
DEP
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O que aconteceu
no Paraguai?
*
Fernando Lugo
**
O
que aconteceu no Paraguai? Ao líder sindical no Brasil, ao ingena
da Bolívia, às mulheres do Chile e da Argentina, ao militar da Venezuela, ao
economista do Equador, soma-se agora a chegada do ex-cura de Guaranda e
Echandía. uma frase que diz que o falido Estado do Paraguai agora tem “cura”
e se acrescenta à nova América Latina social e progressista. Temos bastante o que
aprender de nossos irmãos dos pses vizinhos. Temos muito o que aprender do
Equador, um país que vai caminhando de forma criativa, num caminho novo.
Quando cheguei, em 1994, à minha diocese de San Pedro de Ycuamandyyú, uma
das mais pobres do país, disse ao povo: ensinem-me a ser ouvido.
Foi o que eles zeram. Hoje também tenho dito em meu país – porque
penso que não se estuda para ser Presidente que me ensinem a ser Presidente
de todos os paraguaios. No Paraguai, o sol raiou. Queremos abraçar a América
Latina. Queremos ver o dia e saber de seus sonhos. Hoje podemos dizer que
os pequenos também têm capacidade de vencer. No domingo 20 de abril, os
paraguaios viveram um momento que, mais que histórico, foi, eu creio, heróico.
No princípio, ninguém sonhava que isso pudesse acontecer. E foi aqui no
Equador que pela vez primeira me chamaram de Presidente.
* Conferência proferida na Flacso-Quito, em 17 de junho de 2008.
** Presidente da República do Paraguai.
Fernando Lugo
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Foi uma ousadia que em apenas oito meses após assinada a Aliança
Patriótica para a Mudança tivéssemos conseguido ser eleitos como
Presidente da República do Paraguai. No Uruguai, a Frente Ampla,
formada em 1973, levou 31 anos para chegar ao governo em 2004.
s cometemos a sã ousadia de pretender ser governo depois de oito
meses de marcha acelerada e de formação da Aliança Patriótica para a
Mudança. Em poucas horas mudou-se a história trágica de seis décadas.
A palavra encantada que nós escutamos em toda a geograa nacional, sem a
menor dúvida, foi a palavra “mudança”. Mudança. O país não podia agüentar
mais. Além das opiniões particulares, existe uma opinião que já não pode ser
calada: a legítima opinião do povo paraguaio, que de fato falou: “Basta”, e se
fez ouvir nas urnas. Mudança, no Paraguai, é sinônimo de ruptura com os mais
de 60 anos em que o partido do governo esteve no poder. Celebramos a vitória
naquele 20 de abril com humildade porque dissemos que a humildade venceu
a soberba. Celebramos o nascimento da verdadeira democracia de mãos dadas
com a tão esperada alternância política. A esperança derrotou o pessimismo.
A alegria ganhou da tristeza. A coragem acabou com o medo em nosso país.
O povo triunfou. O povo é o herói. Por isso dizemos que os cidaos paraguaios
são os grandes protagonistas, o sujeito dessa mudança com os grupos sociais,
trabalhadores, camponeses e indígenas, com a classe política do país.
É tarefa para os pesquisadores trazer-nos, por meio das várias teorias
e práticas (das teorias da dependência à modernidade, do estruturalismo
ao institucionalismo, do culturalismo ao sistema de propriedade, etc.) um
entendimento cientíco da mudança política. Nos casos do modelo neoliberal
na maioria dos países da América Latina, a implantação de regimes sociais
durante a última década propiciou um intenso debate sobre as mudanças de
regime naqueles que desde há várias décadas experimentaram uma transição
política para a democracia e dos que na atualidade passam por processos de
crise. Ao esforço coletivo para procurar compreender o processo de mudança
política enfrentado na atualidade pela América Latina, uma nova qualidade se
acrescenta aos diferentes teóricos e cientistas sociais: poder compreender o
acontecido no Paraguai.
Levantam-se muitas hipóteses, talvez todas válidas, e muitas perguntas.
Primeiro, por que motivo um bispo se candidata? Como ocorreu a mudança de
sinal sem violência? Alguns propuseram que foi a queda do Partido Colorado,
outros a queda de um grupo maoso. Outros explicam a emergência de uma
O que aconteceu no Paraguai?
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nova forma de fazer política pela união dos atores sociais e políticos. Por que
motivo uma transição política tão longa e inconclusiva? muitas outras
perguntas. Convido-os a pensar e a reetir sobre a mudança no Paraguai, fato
que nos leva a indagar sobre as diversas conceptualizações com respeito ao
homem, à cultura, à sociedade, à mudança social e às formas de dominação
política de nosso povo e de sua luta para conseguir uma vida digna.
O Paraguai tem uma superfície de pouco mais de 406 mil quilômetros
quadrados, onde pasta o melhor gado bovino, com mais de dez milhões de
cabeças. Quase sete milhões de toneladas de soja são cultivadas em mais de
dois milhões de hectares para a produção de biocombustíveis. 77% da terra
está concentrada em 1% dos proprietários. Em troca, 40% dos agricultores
com menos de cinco hectares possuem apenas 1% das terras. Existem 350 mil
famílias sem terra ao passo que 151 proprietários concentram nove milhões
de hectares em nosso país. O Paraguai é um país no qual 365 dias por ano
se produz o milagre da tecnologia e do neoliberalismo como o de converter
água em energia para enriquecer multinacionais e empobrecer o povo. Um
país rico em recursos naturais mas com um aparelho clientelista e corrupto
que há décadas mantém os recursos de todos nas mãos de uns poucos. Nesse
país rico em recursos, nós somos um povo de seis milhões de habitantes, dos
quais, por decisão de um grupo de politiqueiros antipatriotas, 42% se debatem
na pobreza e 19% na miséria.
Se tivermos de responder à pergunta: quais são as instituições no Paraguai
nos últimos 60 anos? a resposta seria muito fácil. A instituição preponderante
é o partido do governo, do qual dependem as instituições do país. Mas,
se jápudemos o “mais” no dia 20 de abril, também podemos o “menos”.
A reconstrução posterior ao caos institucional levará tempo e exige
compromisso e elevada solidariedade da comunidade internacional. Serão
fundamentais o Mercosul, o Grupo do Rio, a ONU e a recente crião
da Unasul. Será muito importante o uso de mecanismos multilaterais e o
compromisso de cumprimento do direito internacional. O Paraguai esteve
nos olhos, na mente e no coração de muita gente no exterior, e isso nos
compromete. Queremos que nunca mais sejamos conhecidos somente como
país corrupto ou o mais corrupto mas, pelo contrário, como honesto e
eciente. Não queremos ser assunto apenas de crônicas policiais ou notícias
de que tudo o que é ilícito passa pelo Paraguai. Vamos sair dessa ilha cercada
de terras, do país da a, da pirataria, do narcotráco, de politiqueiros
Fernando Lugo
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corruptos, de pobreza extrema, deixar de ser famosos porque nada acontece
e passar a ser um povo estudado pelos pesquisadores em toda a extensão da
sua riqueza cultural, da sua história, das lutas silenciosas do seu povo, de uma
nação que deseja integrar-se com seus irmãos da América Latina.
O que realmente aconteceu no dia 20 de abril? Encontro uma singela
explicação na formulação matemática dos resultados eleitorais. E a explicação
é esta: nas eleições gerais de 2003 o Partido Colorado venceu com 574.232
votos enquanto a oposição obteve 924.622, mas era uma oposição dividida;
nas eleições gerais de 20 de abril passado, o Partido Colorado conseguiu
votão quase idêntica: 572.995 votos; outras candidaturas alternativas
obtiveram 460.583 votos, e a Aliança Patriótica para a Mudança chegou à
vitória com 766.522. Em 20 de abril, o Partido Colorado obteve quase a mesma
quantidade de votos, os votos anti-sistema em grande maioria foram para
outras candidaturas. Por isso, podemos armar com segurança que triunfou um
projeto político alternativo, diferente, com ideologia e identidade próprias, com
propostas claras; triunfou a unidade na diversidade, com alguns partidos unidos
a movimentos sociais; construiu-se uma nova maioria na Aliança Patriótica
para a Mudança; as pessoas viram nela uma verdadeira alternativa de mudança
e viram também que é possível uma liderança coletiva. Triunfou a mudança
graças a uma participação cidadã com elevada consciência cívica, a qual, pela
primeira vez, tinha perante si 38 grupos políticos dentre os quais escolher, com
cerca de 20 mil candidatos para ocupar 681 cargos. Uma consciência cívica e
um sistema eleitoral derivado de uma Constituição Nacional promulgada em
1992, que fruticou depois de 16 anos. Como não festejar o que na realidade
é um triunfo do povo paraguaio?
Como aconteceu isso? A principal herança da ditadura de Stroessner
foi o analfabetismo cultural. Preparar políticas culturais tem sido considerado
ato revolucionário e, portanto, proibido porque todas as revoluções culturais
atentam contra a corrupção, o crime e a ilegalidade, conclamando à mudança
e convidando a pensar diferente. Nossa classe dominante deixou o povo
sem história, sem respeito à própria cultura, sem doutrina que não seja a sua,
sem seus heróis e seus mártires. Cada luta é um novo começo, separado dos
anteriores. A experiência coletiva foi perdida, e as lições, esquecidas. A historia
é uma propriedade dos donos de todas as outras coisas. A experiência política
sucedida no Paraguai em 20 de abril passado propõe uma nova edição da forma
pela qual se desenvolvem os fenômenos políticos da América Latina do século
O que aconteceu no Paraguai?
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164
XXI e que por si constituem a melhor expressão do dinamismo permanente
que implica a vontade coletiva para determinar quem serão os representantes
do poder público em representação da vontade popular.
Nos anos do Partido Colorado com tanto poder primaram a falta
de respeito aos direitos e a repressão por ter governado, primeiro, como
ditadura militar de 1947 a 1953; em seguida, com Stroessner, de 1953 até
1989; e, nalmente, em uma transição para a democracia, de 1989 a 2008.
O Paraguai sofre desde o ano de 1947 o governo de um partido, o Colorado.
Esse partido político homogeneizou o poder político, militar e econômico
mantendo o povo na miséria, com a exclusão da maioria da população paraguaia,
principalmente os camponeses. Esse setor está atrasado em todas as suas
necessidades básicas. falta de terra, saúde, educação, assistência técnica,
comunicão, moradia digna, trabalho, etc. Creio que em certo momento nós
teremos ocasião de recriar a história de nosso país, contada por esses protagonistas
do outro lado e o pelos protagonistas da hisria ocial como em tantos pses
da América Latina. O Partido Colorado cou instalado no poder adotando um
regime autocrático, discricionário, consolidando uma unidade militar e política
que durou até 1989. Essa República do Paraguai, talvez uma das sociedades mais
conservadoras, provavelmente não estava preparada para as mudanças ocorridas
no mundo após a queda do muro de Berlim. O excesso maco dos meios
modernos de comunicão, a globalizão da economia e a mudança dos sinais
políticos pareciam não encaixar-se na conjuntura político-social do Paraguai na
última década do século XX e nos primeiros anos do século XXI.
O regime conseguiu sair da ditadura militar com uma nova quartelada em
1989 mas sem uma revolução democrática. Tratou-se de uma abertura preventiva
negociada na cúpula do Partido Colorado. Expressando seu temor num
memorável discurso, poucos dias após o m da ditadura do General Stroessner
em 1989, o professor e lósofo paraguaio Jerônimo nos dizia: “Isso é política
do “gatopardismo”, isto é, mudar alguma coisa para que nada mude”.
Após o m da ditadura de Stroessner em 1989, todas as estruturas de
controle e as instituições políticas, jurídicas, militar e legislativa permaneceram
nas mãos de seus continuadores. Da mesma forma, nada se modicou em
relão ao modelo de acumulão que durante muitos anos amparou a ditadura,
baseado nos esquemas agro-exportadores das grandes contratações do Estado
e, fundamentalmente, no dinheiro que entrou pelas grandes represas de Itaipu e
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Yaciretá. Não obstante, a crise profunda foi sendo evitada por meio da vioncia
política usada contra o povo e como ajuste de contas entre as principais facções
do poder entrelaçadas nos grupos que zeram da política o caminho dos
necios. Com o m da ditadura, os discursos se centraram predominantemente
na democracia, mas o povo continuou ausente. Além disso, o povo paraguaio
havia se acostumado por 20 anos a votar de maneira ininterrupta no interior
de um partido majoritário, dominante, clientelista. Havia praticado o voto em
constituintes, candidatos a Presidente, Senadores, Deputados, Governadores
e Prefeitos. Essa prática sucessiva se converteu paradoxalmente no grande
capital cívico de um povo ao qual as circunstâncias políticas haviam negado
por décadas qualquer opção de mudança ou alternância.
Os líderes políticos de várias correntes ideológicas que se apresentaram
no cenário político a partir do ano de 1989 sucumbiram ao estigma de suas
cumplicidades históricas em muitas ocasiões e, em outras oportunidades, não
estiveram à altura das circunstâncias. Estavam tão acostumados e acorrentados
a suas condições de opositores que nunca puderam superar tais limitações,
erguendo-se como potenciais reitores de governos. Tal circunstância fez que
a transição para a democracia se detivesse e terminasse sem um resultado
esgotando seu modelo de convivência entre as cúpulas partidárias.
Um boicote fundamental na pacíca ruptura do poder hegemônico
foi a Constituição Nacional. Na sociedade contemporânea, a lei é o veículo
da mudança política deliberada. No Paraguai, porém, a lei não representa a
sociedade e, sim, os governantes. Não temos um Estado de Direito e, sim, um
Estado de legalidade permanentemente transgredida pela própria autoridade
que exige seu cumprimento. Sem lugar a dúvida, um marco transcendental
foi preparando a queda do regime do Partido Colorado quando, em 1992, foi
promulgada uma nova Constituição Nacional na qual coincidiram pequenas
elites intelectuais somadas à formação de uma bancada camponesa e ao
desencontro de interesses políticos ambiciosos. Nela foram colocados limites
ao poder. Consagraram-se o voto direto, a criação de um tribunal eleitoral sob
controle dos partidos políticos, eleições municipais e, o que é mais importante,
o julgamento político do Presidente da República em mãos do Congresso e
a não-reeleição. As instituições democráticas criadas pela própria transição
funcionaram relativamente bem no início da transição. Porém, à medida que
novos campos da atividade pública foram se incorporando ao clientelismo
O que aconteceu no Paraguai?
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tradicional, o modelo foi-se deslegitimando a si mesmo. Votava-se, mas não
se escolhia. Continuaram a violar a Constituição, deixando de cumprir muitos
deveres e direitos, mas, quando pretenderam sua reforma para a reeleição,
o povo saiu às ruas e mais de 40 mil almas disseram: “Ditadura nunca mais”
– e dessa maneira se iniciou o Movimento Ruralista de Resistência Cidadã.
O poder político não existe para ser ocupado de uma vez e para sempre.
O poder tamm existe para ser perdido porquanto quem entra na política
pensando que vai ganhar o ingresso para a eternidade equivocou-se de lugar.
Por denição, em um regime político democrático, todo governo é e deve
ser transitório.
Os novos atores políticos hoje no país os grupos sociais entenderam
ter chegado o momento para o país pensar politicamente em seus problemas
sociais. Camponeses, trabalhadores, jovens, mulheres, foram fatores
fundamentais na luta camponesa e na ruptura maciça da classe média. Os
camponeses têm inumeráveis lutas cujo auge foi em março de 2003, quando
houve uma mobilizão de milhares de pessoas em Assunção, custando
isso um morto e vários feridos. Também há ocupações de terras, e surgiram
muitas ações de jovens, também com seus mártires. Na altura do nal de 2005
iam-se formando movimentos com raízes camponesas decididos a inserir-
se no esquema político do país por meio de uma representação própria no
Parlamento, o que lhes permitiria defender os seus direitos. A combatividade
camponesa desempenhou papel-chave nesse processo. A classe dia, cansada
de governos corruptos, da decadência do país e da falta do livre exercício
democrático, principiou a questionar seus lideres políticos, a enfrentá-los, para
em seguida romper com o partido do governo e passar maciçamente para a
Aliança Patriótica para a Mudança.
Um elemento importante que devo assinalar aqui, no Paraguai ou
em qualquer lugar, nos ajudou muito: a imprensa livre. O exercício da livre
expressão, sem restrições, foi essencial na construção da consciência cívica
em mostrar o rosto oculto e perverso do poder. Destacaram-se valentes
jornalistas com seus mártires na luta pelo exercício livre da prossão de falar
a verdade ao povo apesar das pressões dos poderosos.
E eu creio que, da mesma forma, o Partido Colorado sentiu um grande
enfraquecimento porque durante 60 anos não conseguiu dar respostas
ecazes aos grandes desaos, sobretudo sociais e econômicos, das grandes
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massas camponesas e operárias e da população paraguaia em geral. Sua falta
de liderança nos ajudou. Igualmente nos ajudou sua falta de unidade. Hoje, o
Partido Colorado está fracionado. uma ala colorada no interior da Aliança
Patriótica para a Mudança, caso inédito na política paraguaia.
O Partido Liberal Radical Autêntico também compreendeu que não
poderia seguir apostando sozinho em chegar ao poder com seu próprio
partido porque os números não o ajudavam. E hoje, hoje faz um ano, o Partido
Liberal Radical Autêntico, em uma de suas assembléias plenárias, resolveu não
apresentar candidatura à Presidência e oferecê-la a Fernando Lugo desde que
um membro desse partido assumisse a vice-Presidência.
Na Aliança Patriótica para a Mudança, com a maioria dos partidos e movi-
mentos políticos e organizações sociais conservadoras nacionais, constituímos
formalmente a Aliança Patriótica para a Mudança em 27 de agosto de 2007.
A aposta era absolutamente difícil porque, devido ao fracasso do pacto original,
terminaram por retirar-se dois deles, o Partido Unace [União Nacional de
Cidadãos Éticos] e o Partido Pátria Querida. O Unace obteve 21% dos votos,
e o Partido Pátria Querida, 3%. As elites do poder, os donos do poder em
diferentes âmbitos, foram incapazes de interpretar as grandes necessidades
sociais. Esse modelo está evoluindo ao seguir utilizando uma prática política
que não tinha nada a ver com a situação social e econômica existente.
Produzindo um crescente vazio institucional até chegar ao que temos hoje,
onde o rigor da República não funciona, as elites políticas pensaram em
enriquecer-se e não no bem-comum.
Um elemento importante, novo, que julgo ser necessário estudar mais
e também materializar-se mais, é a liderança coletiva. Finalmente, o ex-
padre de Guaranda e Echandía recebe em 17 de dezembro de 2006 mais
de 100 mil assinaturas no Paraguai para, junto com os partidos políticos e
movimentos sociais, se converter em uma liderança coletiva que nos leve à
primeira magistratura. Mas uma única andorinha não faz verão. Dissemos:
nunca nos deixem sós, juntos é que faremos a democracia. E o principal ator
são os cidadãos, é aquela cidadania que foi dia a dia constituindo essa maioria
silenciosa, paciente e perseverante, rme em suas convicções e segura de
que a pátria merecia outro porvir. Esse povo marginalizado e esquecido nos
banquetes ociais, esse povo sofrido, esse povo trabalhador e emigrante em
busca de oportunidades para viver tinha como novas convicções construir um
O que aconteceu no Paraguai?
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novo Paraguai. Ele esperava o momento para comemorar a grande festa cívica
do 20 de abril. Hoje, o Paraguai é um espaço propício e privilegiado para o
estudo e reexão cultural, econômica, social, ética e política.
Não um modelo racional elaborado que tenha condições de ser
imposto à sociedade. Consideramos falaciosa a crença em uma metodologia
social cartesiana pretensiosamente adotada pelos que desejam transformar
seus sonhos e paixões em realidades sociais. Pode-se crer seja possível uma
nova sociedade por meio da leitura de um modelo desenhado racionalmente;
no entanto, isso é um absurdo, pois não é possível desenhar racionalmente a
mudança social. Ela é o produto espontâneo da evolução cultural; cada povo
tem seu processo, e o Paraguai teo seu. Não existe um modelo único de
democracia para todos os povos embora cada povo precise de um modelo
para aprender com ele. Por isso, quando nos perguntam se adotaremos o
modelo de Chávez, de Evo, de Correa, dizemos que o Paraguai terá seu próprio
processo e construirá seu próprio modelo democrático. A Aliança Patriótica
para a Mudança foi feita, foi construída, para favorecer os mais pobres do
país. E em primeiro lugar estão os indígenas, os sem-terra, sem-teto, sem-
educação, sem-saúde. Eles nos pedem, nos exigem, nos gritam de norte a sul
do país a mudança real do Paraguai como diz uma canção chilena. Dessa vez
não se trata de mudar um Presidente, isso já zemos. Trata-se, dessa vez, de
fazer um país diferente. Nossa visão é mudar a história, dar m a mais de 60
anos de um partido que nesse período assumiu a hegemonia, mas que não
representou os princípios éticos e democráticos fundamentais e, hoje, não
representa sequer seu próprio partido porque muitos colorados na Aliança
Patriótica para a Mudança.
Os seis eixos prograticos que regem a Aliança Patrtica para a
Mudaa não sram de um laboratório, o saíram da mente de Fernando Lugo
e seu entorno. Foram sendo recolhidos porque percorremos o país três vezes,
com mais de 600 reuniões sem levar um discurso e, sim, meramente ouvindo
as pessoas. Dali nasceram os seis eixos programáticos. Em primeiro lugar,
a reforma agrária integrada. Em segundo, a reativação econômica mas com
igualdade social. Em terceiro, a recuperação da institucionalidade da República,
a saber, que as instituições sirvam a todos os paraguaios, que não tenham um
sinal, nem uma bandeira de nenhum partido político ou de nenhuma instituão
pública. Em quarto, que a justiça seja soberana e independente. Em quinto,
Fernando Lugo
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elaborar um plano de emergência nacional. E em sexto, recuperar a soberania,
especialmente a soberania energética. Esses seis eixos estão no mesmo nível.
Queremos que as instituições públicas resgatem sua institucionalidade.
Estamos convencidos de que o Paraguai vai mudar de imagem. Recordo
os versos do magistrado e poeta paraguaio Manuel Ortiz Guerrero para
expressar a tarefa da política hoje predominantemente social e progressista
no Paraguai e na América Latina: “Del lodo se levantan los lírios matutinos,
succionan impurezas viñas de grata umbría cuyos maduros frutos dan los
sagrados vinos”.
Nossa tarefa é muito grande porque é dupla. A primeira consiste em
representar os vastos setores excluídos politicamente, isto é, levar a política
real para grupos que de outro modo poderiam ser vítimas de extremistas,
demagogos ou car na mira da ão destruidora dos partidos radicais e
violentos. Em segundo lugar, consiste em preservar o espaço político. Essa
última tarefa é tanto ou mais difícil quando se leva em conta que em certas
ocasiões não se deveria apenas preservar mas também criar esse espaço, o
que envolve construir alternativas para a politização dos cidadãos. Primeiro
marcar e em seguida escolher em uma cédula de votação nos custou quase 20
anos de longa transição.
Como fruto da construção da consciência cívica e tendo como base os
direitos constitucionais, as lutas camponesas, cidadãs, operárias, a imprensa
livre, etc., o Paraguai demonstrou que a desqualicação de sua ordem jurídica,
de seu Estado de Direito, da possibilidade de colocar em vigor suas instituições
políticas e jurídicas, de suas virtudes cidadãs, de sua vocação democrática, de
sua capacidade de trabalho, de seu compromisso social tem sido vil, injusticada
e permanentemente debilitada em sua auto-estima através da imposição de
estigmas de várias espécies que atentaram e afetaram interna e externamente
a seus cidadãos. A prosperidade é fruto dos milhões de intercâmbios privados
em um ambiente garantido pelo Estado com mais liberdade, mais justiça e
mais solidariedade. instituições políticas justas podem gerar uma sociedade
justa, onde essas não apenas cumprem seu papel de regra do jogo político
mas também determinam que tipos de valores devem ser estabelecidos na
comunidade política. A cidadania, a soberania, a dignidade humana, a liberdade
irrestrita do pensamento e da palavra, a solidariedade, a identidade coletiva,
a cooperação acima da competição, resumem a justiça. A grande esperança
O que aconteceu no Paraguai?
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na América Latina e o que ela pode oferecer ao mundo é a vasta coleção de
vibrantes movimentos sociais que se atrevem a tudo questionar, desde seus
próprios governos até a maneira pela qual as corporações contaminam suas
terras. Algumas vezes se expressam nas urnas, outras, o. Algumas vezes dizem
encarnar a esquerda, outras, se denominam povo, ou nada. Anal, o que lhes
importa não são os rótulos, o que importa é a busca de uma nova maneira de
governo que não reduza a identidade, faça crescer a democracia real e m à
pobreza e à fome. Façamos juntos da América Latina uma eterna primavera a
m de nossos povos terem sol abundante para cultivar sua mente, laborar em
liberdade, possuir seu próprio ninho, seu abrigo, seu pão e seu remédio e cada
qual desenvolver sua própria identidade em sua comunidade. Eu, pessoalmente,
acredito que vamos, com o auxílio de Deus e a valiosa contribuição de todos,
viver melhor em nossa querida América Latina.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
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O paradoxo peruano:
crescimento econômico
e desaprovação política
Julio Cotler*
D
esde a última “transição para a democracia”, em 2001, o Peru passa por
uma situação paradoxal: paralelamente a um elevado e sustentado crescimento
econômico, a maioria das pessoas desaprova a atuação do governo em exercício,
as instituões ociais e o governo democrático. Tal situação agudiza os
problemas e conitos que o país vem experimentando longos anos enquanto
lideranças precárias, representações políticas divididas e organismos estatais
obsoletos não podem, ou não se interessam em estabelecer novos mecanismos
de coesão social e política ajustáveis aos novos tempos que o país atravessa.
No quadro da liberalização e abertura econômica proclamada no início
dos anos 90 do século passado e de equilíbrio macroeconômico posto em
prática pela administração pública desde essa época, a explosiva procura
de commodities e os termos de troca favoráveis contribuíram para ter o Peru
elevado crescimento econômico e pequena taxa de inação durante sete anos
consecutivos. Apesar da conjuntura externa, estima-se que o país prosseguirá
* Universidad Nacional Mayor de San Marcos.
jcotler@iep.org.pe
O paradoxo peruano: crescimento econômico e desaprovação política
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nessa tendência durante os próximos anos. Por esse motivo se fala em um
provável “milagre peruano”.
Entre 2001 e 2008, com efeito, a economia cresceu anualmente a 6,5% em
média, o valor das exportações se multiplicou por quatro, e o PIB aumentou
em cerca de 50%. Essa condição permitiu ao erário acumular reservas
internacionais, adiantar a quitação dos compromissos junto aos credores
externos, reduzindo-os signicativamente; contribuiu, da mesma forma, para
duplicar o investimento particular e disponibilizar à administração pública
receitas scais sempre maiores destinadas a promover políticas de minoração
da pobreza, promover a descentralização e dinamizar a demanda interna com
seu conseqüente impacto no crescimento do emprego e da renda.
O decidido apoio político do Presidente Garcia à estabilidade
macroeconômica e ao investimento propiciou um clima econômico favorável
incluindo-se a redução do risco-país, motivo pelo qual a agência de avaliação
Fitch concedeu ao Peru “grau de investimento” às obrigações garantidas
pelo Estado, esperando-se que outras sigam o exemplo. Tais circunstâncias
favoreceram a assinatura de um tratado de livre comércio com os Estados
Unidos, e acordos semelhantes com países da Ásia e da União Européia se
acham em tramitação.
Porém, junto com esse quadro econômico inédito, a administração do
Presidente Alejandro Toledo (2001-06) foi desaprovada pela imensa maioria, e
na atualidade, após dois anos do governo de Alan Garcia, cerca de dois terços
da população o se mostra satisfeita com a atuação dos atuais administradores;
Toledo e Garcia, em seus mandatos, foram os Presidentes mais impopulares
da América Latina.
Esse rechaço às gestões governamentais se manifestou por meio de
protestos e reivindicações de rios setores sociais e regionais que vêm se
realizando com diferentes graus de violência; da mesma forma, as críticas ao
governo se expressam nas perdicas pesquisas de opinião. Imagina-se, por
esse motivo, que em 2011 um outsider possa ganhar os votos majoritários e
modicar a atual situação, conforme já poderia ter ocorrido em 2006, quando
Ollanta Humala perdeu as eleições para Alan Garcia por uma pequena
margem de 2%.
Esse bloco de manifestações críticas revela um panorama de instabilidade
social e de insegurança política, razões para se levantarem inúmeras dúvidas
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sobre o rumo que o país poderá adotar no futuro e motivo suciente para
certas agências de avaliação de risco adiarem a decisão de conceder o grau de
investimento às nanças peruanas, apesar do ótimo desempenho econômico,
e para as empresas transnacionais celebrarem acordos com os governos para
assegurar a estabilidade jurídica de seus investimentos.
Em termos gerais, acrescenta-se que as censuras generalizadas e os
violentos protestos contra os governos de Garcia e Toledo são devidos a
que esses não cumpriram, e até mesmo traíram, suas promessas eleitorais de
priorizar as reivindicações das classes populares e das regiões andinas, criando
fontes de trabalho e renda a m de reduzir e mesmo extinguir a pobreza e a
exclusão social. Isso porque, arma-se, o modelo neoliberal implantado pelo
regime autoritário de Fujimori-Montesinos favoreceria exclusivamente as
empresas estrangeiras e os ricos.
Isto é, o repúdio aos governantes e, em geral, ao sistema político
resultaria de o crescimento econômico não ter vindo na companhia de
políticas distributivas que atendessem os setores não-excluídos no mercado
e no aparelho estatal, o que tornaria ainda mais visível, desigual e injusto o
rateio dos recursos sociais.
Não obstante, essas corretas apreciações ignoram ter o crescimento
econômico sustentado ocorrido nos últimos anos favorecido a ampliação do
emprego, da renda e do consumo, contribuindo para reduzir o nível de pobreza
de 44% para 39% da população, motivo pelo qual se presume a existência de
novas fontes de mobilidade social; desconhecem também tais argumentos
haver os governos regionais recebido inéditas somas de receita, que os serviços
públicos foram ampliados e continuarão a estender-se a regiões e setores até
agora excluídos do orçamento público.
Tem-se, por outro lado, procurado explicar o mal-estar público recorrendo
a fatores psicológicos; a esse respeito, especialistas ligados ao BID chegaram
a esta conclusão: “quando o crescimento econômico aumenta, reduz-se a
satisfação, pelo menos inicialmente” por causa das expectativas e frustrações
estimuladas pela comparação com “outros” que se encontrariam em melhores
condições
1
proposição que, diga-se de passagem, recorda o “efeito túnel”
de Albert Hirschmann. Esse argumento é igualmente plausível, porém não
1 Luís Alberto Moreno e Eduardo Lora, “La brecha de satisfacción. El crecimiento económico y sus consecuencias”.
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toma em consideração, entre outras coisas, a intensidade e a persistência dos
sentimentos de insatisfação da maioria dos peruanos com as autoridades após
sete anos de contínuo crescimento econômico.
Para responder a tais perguntas e complementar as interpretações dadas
acima, examinaremos (ainda que brevemente) as condições estruturais que
envolvem o crescimento econômico e a desaprovação ao sistema político: a
desigualdade social, a fraqueza do Estado e a fragmentação da representação
política; em segundo lugar, passaremos em revista (sumariamente) as relações
entre autoridades e setores diversos da sociedade na moldura das políticas
neoliberais.
As divisões sociais
Há, no Peru, visíveis divisões sociais tanto nas camadas da sociedade
quanto no âmbito regional a provocar uma dupla fratura: entre os setores
dominantes e o restante da sociedade e, da mesma forma, entre os povoadores
estabelecidos nas áreas urbanas, capitalistas e “modernas” da costa, por um
lado, e os camponeses amarrados no universo “tradicional”, comunitário
e indígena da montanha. Dessa forma circula por toda parte a referência à
existência de “dois países” separados social, racial, regional e culturalmente,
que, por sua vez, possuem internamente poucos e débeis laços de união entre
seus membros.
Apesar disso, as rápidas e profundas mudanças sociais ocorridas nas
últimas décadas contribuíram para modicar essa visão dualista e favorecer
uma percepção consentânea à crescente variedade social e cultural do país.
Desde meios do século passado, a migração da região campesina para a citadina
e da montanha rural para a costa urbana modicou a distribuição geográca
da população; a expansão do capitalismo e do mercado de trabalho assim
como a ampliação da educação e dos meios de comunicação diversicaram
a composição das camadas sociais, destacando-se o desenvolvimento de
setores médios, prossionais e empresariais de variadas origens e trajetórias.
Por sua vez, a difusão de novos padrões de consumo e estilos de vida pelos
meios de comunicação e pelos residentes no exterior inuem na emersão e
expansão de novas expressões culturais urbanas que privilegiam a fusão de
concepções e práticas tradicionais com as cosmopolitas.
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Essa nova situação, porém, não é suciente para dissipar a tradicional
visão do “atraso” das montanhas andinas porque está concentrada nessa região
a pobreza e indigência do campesinato nativo, que é a maioria da população
“marginalizada”, senão explorada; igualmente porque essa imagem se projeta
nos lhos dos migrantes para as cidades que recebem o grosso das camadas
populares.
Tais condições determinam que os privilegiados setores de elevada renda,
brancos e mestos, discriminem diariamente aqueles setores populares urbanos
de origem andina e cooperem para dicultar a mobilidade social e diminuir a sua
auto-estima, o que reforça a tradicional distância e a desconança e hostilidade
entre essas camadas sociais
2
; paradoxalmente, esse comportamento se fortalece
à medida que os setores populares incursionam cada vez mais em cenários
públicos diferenciados empresariais, culturais e políticos desaando os
antigos setores privilegiados e pressionando para fazer valer seus direitos
cidaos e sua vida cultural. Esse contexto de exclusão e discriminação constitui
um fator-chave da incontrolável emigração internacional em direção a países
desenvolvidos, que chegou a comprometer 10% da população total.
Por outro lado, essas divisões sociais foram acompanhadas pela oposição
histórica do “interior” do país ao arraigado centralismo burocrático de Lima,
forjada em torno das práticas patrimonial-clientelistas e de renda exercidas
pelos grupos dominantes a controlar o Estado; hoje em dia, essas relações
conitivas tendem a renovar-se devido às restrições impostas pelo governo
central aos governos regionais.
Mas a clássica soberania de Lima em relação às províncias tende a
esvaecer-se em razão de a abertura democrática e a descentralização terem
procurado eleger representantes políticos mobilizadores da opinião pública
local e nacional contra as limitações impostas pelas autoridades limenhas; e
isso porque tais fenômenos fazem também surgir novos líderes e movimentos
sociais capazes de negociar com os administradores no governo a distribuição
dos recursos destinados a impulsionar o desenvolvimento regional.
Por sua vez, em algumas zonas do país, o crescimento econômico e a
expansão de atividades informais, senão ilícitas contrabando, narcotráco,
2 Na pesquisa de valores mundiais realizada pela universidade de Michigan em 2002, o Peru apresenta os
índices interpessoais de desconança mais altos entre 163 países; por outro lado, a mesma pesquisa feita no ano
passado enfatiza que os peruanos se declaram os menos felizes entre doze países da América Latina.
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extração ilegal de madeira contribuem para fomentar atividades privadas
com a conseqüente emergência de novos atores sociais que impulsionam
uma dinâmica social e política de certa forma autônoma em relação ao núcleo
limenho.
Essas divisões sociais se mostram com muita clareza nas eleições e nas
pesquisas de opinião relativas às políticas econômicas. De fato, nas eleições
de 2006, cou evidente que a população urbana e litorânea votou em Garcia
enquanto a montanha e a selva rurais votaram em Humala. Por outro lado,
as camadas com rendimentos altos e mediano-altos (A/B) situadas na zona
da costa do país os “vencedores” favoreceram majoritariamente opções
neoliberais, motivo pelo qual apoiaram Toledo e apóiam agora Garcia;
a maioria das camadas medianas e populares (C/D/E), especialmente as
radicadas nas montanhas e na selva os “perdedores” se inclinam por
alternativas políticas de molde nacionalista-populista e formam o grosso da
população que rechaçou a administração de Toledo e agora critica a de Garcia.
Em meios de 2008, quando Garcia teve 40% de aprovação em Lima e na costa
Norte, só conseguiu 7% no Sul e 11% na selva.
Em suma, apesar de a sociedade peruana já estar, por algumas décadas,
passando por importantes mudaas, persistem, com diferentes graus e
tons, os marcos das divisões sociais, culturais e regionais tradicionais, o que
evidencia a natureza desigual no que tange ao desenvolvimento e possibilita
a permanência dos fatores que bloqueiam a constituição de modalidades
novas de coesão social, indispensável para a formulação “imaginária” de uma
comunidade política.
A debilidade do Estado
Com outros países andinos, o Peru também sofreu connuas interrupções
constitucionais devido às intermitentes intervenções militares, evidenciando
a carência de legitimidade da autoridade estatal e suas diculdades para
consolidar-se.
Após a independência e ao longo do século XIX, as contínuas brigas
de facções entre os grupos de poder assentados em Lima e nas províncias
desembocaram na proclamação de cerca de setenta governos, isto é, em
média cada qual durou somente um ano. Em seguida, a partir dos anos
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30 do século passado, a luta contra o regime olirquico protagonizada
pelo APRA resultou num longo ciclo ditatorial interrompido em 1945 por
circunstâncias internacionais; não obstante, poucos anos depois recomeçou
a histórica tendência que até o presente momento levou a cinco interrupções
constitucionais com suas consecutivas “transições para a democracia”. Isto é,
durante a segunda metade do século XX, em média a cada onze anos, o país
vivenciou abruptas mudanças do regime político.
Desde 1945, os governos democraticamente eleitos procuraram redistribuir
a renda para atacar as enormes desigualdades mediante políticas ecomicas
o-sintonizadas com os interesses dominantes; por tal motivo, essas medidas
acabavam desembocando em crise política e desordem ecomica. Os golpes
militares e regimes autoritários que sucediam a esses governos reprimiam
as pressões redistributivas perseguindo as organizações populares e suas
representões políticas e, simultaneamente, privilegiavam as expectativas dos
investidores, de preferência estrangeiros, liberalizando a economia e restringindo
o papel do Estado à execução das fuões repressivas.
Essas contínuas mudanças políticas eram acompanhadas por incessantes
modicações institucionais correspondentes aos cambiantes interesses dos
protagonistas políticos ao passo que o pessoal administrativo era recrutado,
sem distinção, entre os clientes dos verdadeiros poderes durante os ciclos
ditatoriais e entre os liados às agremiações partidárias durante os ciclos de
governos democráticos. Essa condição favoreceu a formação de malhas de
interesses privados que sustentavam e fomentavam a corrupção, consentindo
e apoiando a privatização dos recursos e espaços públicos em todo e qualquer
dos regimes políticos.
Isto é, o uso patrimonial do Estado conspirou contra a prossionalização
do serviço público civil e a consolidação da autoridade central, razão para que
essa não contasse com os recursos econômicos e institucionais para controlar
o acidentado e amplo território nem pudesse penetrar na sociedade a m de
fazer valer a execução do seu arcabouço legal. Isso ainda continua, razão pela
qual muitos setores reclamam da “falta de Estado”. Essa reclamação, porém,
tem conotações diferentes conforme as camadas sociais, como não poderia
deixar de ser.
Para os trabalhadores, pobres e excluídos, essa carência causa uma aguda
sensação de abandono e insegurança, o que leva seus porta-vozes a reivindicar
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participação direta e ecaz do Estado para atender suas carências de inclusão:
educação, emprego, saúde e moradia; a demanda é particularmente incisiva
devido a que o investimento público nessas rubricas tem sido normalmente
reduzido; em termos comparativos, o gasto social equivale à metade da média
latino-americana.
Essa carência de Estado fez desenvolver uma informalidade
generalizada, pois envolve cerca de 60% da população ativa, que se baseia em
práticas não desconhecidas como também combatidas pelas normas ociais
facilitando a existência de forças que processam o narcotráco, a extração ilegal
de madeira e o contrabando – a conviver com os resquícios dos movimentos
subversivos nas montanhas e na selva.
Para as camadas e rendas elevadas, entupidas de ideologia liberal, a
presença estatal, ao contrário, deve limitar-se a fomentar o investimento
privado e fazer cumprir as regras do mercado. Isso quer dizer concretamente:
assegurar os direitos de propriedade e incentivar a melhoria da competitividade
na economia, condições necesrias para sustentar o atual ritmo de crescimento
econômico e a “inclusão” das camadas populares no mercado como vêm
fazendo os últimos governos ainda que de maneira parcial.
Devido à manifesta “fraqueza” do Estado para atender às demandas
sociais, controlar o território e fazer cumprir a ordem legal, não provoca
estranheza a avaliação muito baixa conferida pelas diferentes camadas
sociais aos órgãos públicos e aos poderes estatais, e o desprestígio de juízes e
legisladores, de partidos políticos e do regime democrático em seu todo. Assim,
em termos comparativos, o barômetro latino registra que o Peru tem o mais
elevado índice de desaprovação em relação ao desempenho do governo e ao
regime democrático.
Em geral, o chefe do Estado é responsabilizado por essas carências,
pois a centralidade política dele e o inamado culto ao presidencialismo
contribuem para rmar a idéia de que esses defeitos existem por “falta de
vontade política” ou desinteresse presidencial para remediá-los e colocar as
coisas em seu devido lugar.
Apesar das constantes preses sociais e das organizações multilaterais, os
governos deixaram de executar as reformas de “segunda geração” destinadas
a adaptar os obsoletos órgãos políticos às exigências da globalização e às
demandas sociais. Salvo nos organismos bastante especializados, o avanço
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das reformas da administração pública tem sido pequeno e desigual devido,
fundamentalmente, à oposão e/ou desinteresse da fragmentada representação
política à míngua de prestígio e legitimidade.
A crise da representatividade política
Desde os anos 30 até bem adiantado o culo passado, as incisivas divies
sociais, a que zemos referência, originaram posições políticas antagônicas e
intolerantes. Nesse lapso, a intermitente implantação de regimes autoritários
provocou a existência de prolongadas crises de representatividade, que, além
da repressão e exclusão política das organizações dos setores populares e
medianos mobilizados, favoreceu a fragmentação e a impotência política
dessas camadas sociais.
A dificuldade para organizar-se legitimamente e fazer valer suas
reivindicações por meio institucionais incentivou essas camadas a o
reconhecer como legítimas a autoridade e suas normas legais, reforçando
o repúdio a amplos setores do Estado; por outro lado, a repressão estatal
determinou que a participão política se desenvolvesse por canais clandestinos
e que a violência passasse a constituir a única forma de eliminar a exclusão
política e transformar a ordem social.
A ruptura do regime oligárquico, as transformações sociais importantes
geradas pelo governo militar ao correr dos anos 70 e o direito de voto aos
analfabetos, principalmente camponeses indígenas, concedido pela Constituição
de 1979, impulsionaram a participação de amplos setores até o momento sem
vez nos assuntos públicos. Por esse motivo, a população de eleitores duplicou
na década seguinte.
A partir da transição para a democracia em 1980, a sociedade e a política
percorreram caminhos opostos que desencadearam agudos conitos e uma
grave crise de governabilidade; por isso, a “década perdida” foi um momento
particularmente crítico na história peruana contemporânea.
As repetidas eleições gerais e municipais evidenciaram a extrema
volatilidade eleitoral e a fragmentação política e terminaram contribuindo,
como em ocasiões anteriores, para se cristalizarem as clássicas posões
políticas antagônicas e intolerantes na agitada vida parlamentar e fracassarem
os esforços visando a constituir uma relação construtiva entre os atores
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destinada a consolidar um sistema partidário capaz de legitimar e estabilizar
o regime democrático.
Em tais circunstâncias, a subversão do Sendero Luminoso e, logo após,
do Movimento Revolucionário Tupac Amaru deixaram claros o repúdio e a
alienação de importantes levas de jovens e prossionais em relação ao Estado.
3
Ao mesmo tempo, a aliança dessas organizações com o narcotráco, ilegal,
possibilitou que se colocasse em xeque a força pública e fosse aterrorizada
a sociedade. Com efeito, a subversão e a represo das foas armadas
provocaram a morte de 70 mil pessoas, em sua imensa maioria camponeses
indígenas das montanhas meridionais.
Por sua vez, a instabilidade política permanente e as constantes
mudanças nas diretrizes econômicas durante os anos 60 e 70 desembocaram
em repetitivos desequilíbrios que inibiram a capitalização das empresas e, em
geral, do país; disso decorre, por exemplo, que a renda por pessoa atingida
em 1975 se estancasse nos 30 anos seguintes. Nessas difíceis condições, as
conseqüências da crise internacional da dívida (1982), os desastres causados
pelo fenômeno El Niño (1983) e a destruição de bens públicos no valor de 25
bilhões de dólares, equivalentes a cerca da metade do produto bruto, por causa
da subversão, tornaram mais aguda a frágil situação econômica a se arrastar
penosamente. Por último, a hiperinação desatada no governo Garcia, entre
1987-90, e os intensos conitos sociais que em seguida vieram, acabaram por
desarticular o Estado e a organização político-social.
Signica isso que o Peru, pela conjunção de todos esses fatores, sofre no
nal dos anos 80 uma severa crise orgânica do sistema social, o que levou a se
questionar a governabilidade do país. A difundida má reputação dos poderes
públicos e dos partidos políticos favoreceu a emergência e triunfo do outsider
Fujimori nas eleições de 1990; açulando a censura social à “partidocracia” e às
anacrônicas instituições ociais, ele proclamou o “autogolpe” em 1992 com
beneplácito generalizado e capturou o poder em aliança com os poderes de
fato, nacionais e internacionais, dando início a um novo ciclo autoritário que
prometia subsistir 20 anos para atacar a denitiva “reconstrução nacional”.
3 Mas também colocou em evidência as divergências e a intolerância mútua: enquanto os membros do
Sendero eram na maior parte originários da montanha, identicando-se com ideologias maoístas, os do MRTA
provinham da costa e seguiam as linhas guevaristas, isto é, esses movimentos constituíam expressões claras das
divisões sociais hostis, culturais e regionais a que aludimos.
Julio Cotler
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O sucesso do ajuste econômico e a prisão das cúpulas dos movimentos
subversivos consagraram a aprovação do Presidente Fujimori enquanto o
controle dos organismos do poder asseguraram a sua reeleição em 1995.
Contudo, as sucessivas demonstrões de arbitrariedade e corrupção de
Fujimori e Montesinos produziram uma reação interna e externa contra a sua
dolosa tentativa de reeleger-se, uma vez mais, em 2000.
As “traições” do “mal menor”
Na última das transições, em 2000, a democracia abriu um leque de
possibilidades para atacar a divisão social crescente, a persistente fraqueza
do Estado e a fragmentação política; a forma pela qual foram encaradas
essas questões pendentes assim como os resultados produzidos explicam em
boa medida os níveis e graus de insatisfação social com o desempenho dos
governos e das instituições públicas e com o regime democrático, na moldura
do crescimento econômico sustentado.
Na mobilizão contra o fujimorismo, Alejandro Toledo convocou
“todos os sangues”
4
e encabeçou, com o apoio de guras democráticas e
defensoras dos direitos humanos, as mobilizações dos “quatro suyos”,
5
o que
lhe permitiu sustentar a candidatura presidencial congregando um grupo
de vários matizes composto por simpatizantes, amigos, familiares (e muitos
oportunistas) para formar o “Peru Possível” e competir com Lourdes Flores,
que representava a direita neoliberal, e com Alan Garcia, o qual, de regresso
do exílio, recompunha a maltratada organização do PARA a m de voltar a
apostar na Presidência.
Toledo conseguiu obter apoio popular ressaltando ser de origem andina
e morador em um bairro popular de uma cidade provinciana, Chimbote, e
haver por seus esforços conseguido uma carreira prossional bem sucedida
no estrangeiro. Para sublinhar sua origem e ligão com os camponeses
indígenas, identicou-se com Pachacútec
6
e comemorou seu triunfo eleitoral
com cerimônias, supostamente incaicas, em Cusco e Macchu-Picchu.
4 A referência ao consagrado livro de J.M. Arguedas alude à integração de diferentes grupos sociais.
5 Os suyos eram as partes que constituíam o império inca.
6 Atribui-se a Pachacútec haver organizado e consolidado o império do Tawantinsuyo.
O paradoxo peruano: crescimento econômico e desaprovação política
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Toledo procurou assim representar os “povos originários”, que formavam
as camadas mais pobres, mas também tentou encarregar-se das aspirações de
mobilidade social das classes populares não por conhecer na própria carne
as suas necessidades mas da mesma forma por ter capacitação para satisfazê-
las devido às suas qualicações prossionais.
Por outro lado, procurou também obter o apoio dos empresários e dos
setores medianos, ressaltando sua experiência acadêmica e prossional de
caráter internacional, mostrando-se disposto a considerar suas aspirações no
quadro da globalização em marcha e cercando-se, para isso, de renomados
prossionais e técnicos.
Isto é, Toledo procurou representar os mundos divididos e contrapostos;
o obstante, muitas vezes essa pretensão se expressou em formas estereotipadas
e caricaturescas que geraram aversão e zombaria assim como expressões racistas
da parte de várias guras e camadas urbanas. Apesar dessas reações e do ódio
do fujimorismo a Toledo, a possibilidade de Garcia voltar a governar facilitou
a que no segundo turno Toledo congregasse a variada e dispersa oposição
social ao PARA e fosse eleito como sendo o “mal menor”.
Desde o início, Toledo se propôs a avançar simultaneamente na
estabilização e crescimento econômicos e no fortalecimento democrático,
propósito que para os radicais de qualquer sinal político equivalia a realizar a
quadratura do círculo.
Ao mesmo tempo em que prosseguia com as políticas “neoliberais”
instauradas pelo fujimorismo, o governo propôs transformar em realidade
o pacto entre “todos os sangues” por meio da constituição de um Acordo
Nacional, no qual representantes dos partidos e das organizações de
trabalhadores, das igrejas e da sociedade civil organizada deveriam
comprometer apoio a determinadas “políticas de Estado” a m de assegurar
sua continuidade a prazo longo. Simultaneamente, o Executivo acordou com o
Legislativo impulsionar a descentralização política e econômica para satisfazer
uma antiga aspiração das províncias.
Toledo igualmente raticou a constituição da “Comissão da Verdade
e Reconciliação, destinada a investigar as causas da subversão e suas
conseqüências, apoiando também a levar ao Judiciário os casos de corrupção
e violação dos direitos humanos do fujimorismo e igualmente os cometidos
Julio Cotler
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pelos governos dos anos 80, presididos por Belaúnde e por Garcia, nos
quais estavam envolvidas mais de mil pessoas, entre empresários, militares
e políticos.
Ele se propôs, dessa maneira, enfrentar a fragmentação política e a
fraqueza do Estado articulando certos atores e interesses sociais e excluindo
outros a m de assegurar o crescimento econômico, a necessária condição
para reduzir a pobreza e as desigualdades sociais.
Porém, o comportamento irregular e frívolo do Presidente Toledo
comprometeu a sua credibilidade, e isso concorreu para o seupartido”, o
Peru Possível, não se consolidar e para os membros da bancada governista
buscar os seus interesses particulares solapando as precárias bases partidárias
e, de fato, sabotando as propostas governamentais. Assim, mais uma vez,
a fragmentão e irresponsabilidade dos partidos foram qualicadas de
“politicagem”, o que reforçou o desprestígio do sistema político.
Como era de esperar, a democracia incentivou os setores silenciados
no autoritarismo a propor reivindicações de qualquer espécie enquanto as
promessas de palanque estimulavam as expectativas sociais. Nesse aspecto, os
novos governos regionais exigiram a imediata cessão de atribuições e recursos
econômicos para levar a cabo seus objetivos de maneira autônoma em
relão ao governo central”; por último, as novas condições favoreceram o
desenvolvimento de movimentos sociais opostos às tentativas de privatização
dos serviços públicos; ao mesmo tempo, Alan Garcia e a organizada
máquina aprista propunham medidas nacionalista-populistas antagônicas ao
“neoliberalismo”, o que lhes serviu para dirigir a oposição ao governo.
Em circunsncias nas quais a economia do país começava a sair da
crise internacional, as demandas sociais em proliferação foram mal atendidas,
ou tardiamente ou mesmo nunca devido à ineciência da administração
pública; esse resultado, assim como a frivolidade e nepotismo do entorno
presidencial contribram para rapidamente se desenvolver entre os setores
populares uma generalizada sensação de “traição” de Toledo às promessas
que ele havia proclamado. Reetiu-se tal sentimento em célere descdito:
no inicio da gestão, ele foi aprovado com um índice de 62%, mas ao cabo
de apenas três meses esse índice desceu à metade não parando mais de cair
até o nal do período governamental.
O paradoxo peruano: crescimento econômico e desaprovação política
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Enquanto a PARA ignorava o acordo nacional, Garcia apoiava
as constantes mobilizações contra o governo a m de se aplicarem as
políticas distributivas que tiveram conseqüências desastrosas durante sua
administração; mais ainda, Garcia encabeçou as demandas para revogar o
mandato presidencial de Toledo.
Em suma, as políticas econômicas ditadas pela tecnocracia e a
fragmentação das representações políticas se somaram para invalidar o
Acordo Nacional como espaço de negociação entre atores sociais estratégicos,
o que resvalou para o clássico antagonismo entre os agentes que respondiam
a visões e interesses contradirios. Assim, parecia repetir-se a historia
conhecida com seus previsíveis resultados.
Enquanto se agitava o ambiente social cada vez mais e a crise de
governabilidade parecia acabar com o regime democrático, a recuperação
e o crescimento ecomico deram uma pausa de refrigério às vésperas das
eleições de 2006.
Nessa ocaso, Garcia competia com Lourdes Flores, reproduzindo
uma antiga rivalidade entre populistas e liberais; subitamente, a ascensão de
Ollanta Humala com suas colocões etnopopulistas e xenófobas mudou
o panorama político devido ao contundente apoio recebido na montanha e
na selva, isto é, pela massa de “excluídos”.
No primeiro turno eleitoral, Garcia derrotou Flores na competição
pelos votos urbanos e do litoral acusando-a de representar os “ricos”. No
segundo enfrentaram-se Humala e Garcia; enquanto esse reconhecia a
responsabilidade no fracasso de seu governo anterior e declarava ter mudado
a sua orientação econômica frente ao perigo representado por Ollanta, os
eleitores da costa não tiveram opção outra seo dar a vitória a Garcia como
o candidato “menos mau”.
Desde o inicio da segunda gestão cou evidente, conforme proclamara
tardiamente, haver Garcia experimentado uma conversão política radical: por
um lado abandonou as propostas históricas da PARA, de natureza distributiva
e nacionalista, renunciando às medidas que haviam tornado impossível a
existência de Toledo; por outro, abrou em pleno governo as propostas
liberais postuladas por Lourdes Flores, sobre quem havia triunfado nas
eleões levantando contra ela a acusão de representar os interesses dos
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ricos. Dessa forma, para a massa aprista e igualmente para os setores médios
e populares do litoral que apostaram em Garcia, essa conversão veio a ser
uma traição enquanto os seguidores de Humalao cessavam de qualicar
essa mudança repentina de comportamento como deserção dos históricos
ideais do Partido do Povo.
Enquanto o crescimento econômico atinge velocidade de cruzeiro, ca
evidente que seus resultados se distribuem de maneira desigual favorecendo
as camadas médias e altas da costa, que, desde o inicio, contavam com ativos
maiores e melhores; nessas condições recrudesce a abafada oposão ao
governo a manifestar-se, primeiramente, só nas pesquisas, mas ela chega
também a adquirir expressões muito agressivas como greves regionais e
bloqueios de estradas. Não obstante, essas manifestações locais não alcançam
tradução política. A organizada bancada aprista aproveita a fragmentação
político-partidária para fazer alianças pontuais que, por alguns momentos,
conseguem fazer baixar a temperatura no Congresso e tornar estéreis
os esforços para (re)constituir frentes partidárias capazes de enfrentar
organizadamente Garcia e a APRA.
O mal-estar público expresso pelas pesquisas e pelos meios de
comunicação e as manifestações e os bloqueios de estradas, por causa da
incapacidade da administração pública para melhorar a distribuão dos
frutos do crescimento econômico, gerou insólitas reações da parte do
Presidente Garcia. Em uma série de artigos publicados na imprensa sob o
título geral de O Cachorro do Hortelão revela uma face autoriria ao acusar
indiscriminadamente os críticos do governo de “comunistas”, arcaicos”,
“falsos ambientalistas” entre os epítetos mais suaves enquanto aproveita
para atacar os organismos defensores dos direitos humanos e criminalizar
os protestos sociais; assim, acusa de “terroristas” os promotores da greve
nacional de princípios de julho de 2008 e dispõe das forças armadas para
assegurar a ordem pública.
Em circunstâncias nas quais o aumento dos preços dos bens de consumo
pressiona o precário orçamento dos setores populares e o Executivo se dispõe
a frear o crescimento para enfrentar a inação, a catadupa de decretos para
impulsionar tanto a “revolução capitalista” quanto a modernidade pode
ampliar os motivos de confrontação e intensicar o mal-estar público,
gerando resultados imprevistos que se tornarão evidentes em breve.
O paradoxo peruano: crescimento econômico e desaprovação política
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Em conclusão, aos dois anos de governo, Garcia enfrenta crescentes
protestos em razão dos mecanismos tecnocráticos adotados para encarar as
questões na pendência de solão – a divisão social, a debilidade do Estado
e a fragmentação política. Perante esses protestos, ele parece inclinar-se por
soluções autoritárias.
Assim, mais uma vez, demonstra o Peru embaraços estruturais para
avançar democraticamente no desenvolvimento capitalista.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
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Apresentação político-
econômico-social do
Suriname
C.A.F. Pigot*
1. Características gerais do Suriname
O Suriname pode ser considerado um “pequeno Estado-ilha”
O
Suriname (ver anexo 1: Informação geral sobre o país) tem uma
pequena população de 492.829 habitantes (censo realizado em 2005) de etnia
diversicada. A etnia inuencia a estrutura política (partidos), a estrutura
econômica (desenvolvimento e reivindicações setoriais) e a vida social
(preferências matrimoniais). O Suriname pode ser também considerado uma
“ilha” em sua região porque tem melhores relações e conexões com países que
dele cam muito distantes (8 vôos diretos semanais para a Holanda, 3 para o
Brasil, 2 para a Guiana e 2 para a Guiana Francesa) e está lutando na periferia
da Caricom, na América Latina e em novas estruturas globalizadas.
O Suriname tem uma economia dual
O Suriname possui um setor internacional de alumina (Alcoa/BHP
Billinton) altamente modernizado e direcionado para exportação, camarões
* Membro da Junta Consultiva do Partido Nacional do Suriname (Nationale Partij Suriname).
Apresentação político-econômico-social do Suriname
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188
(Coia, Japão e Suriname), arroz (produtores nacionais), petróleo bruto
(Petróleo Estatal), extração de madeira (local e Extremo Oriente) e ouro
(IAM-gold e Newmont). Por outro lado, pequena escala de produção para
subsistência que não é de todo comercial e está voltada para o mercado local e
também para o mercado surinamês na Holanda. Esse segmento da produção
tem o propósito da modernidade, mas conserva em grande parte sua tradição
de sorte que nele predomina o trabalho braçal intenso e informal.
O Suriname é um jovem país independente
O Suriname tornou-se independente somente em 1975 e ainda conserva
relações muito fortes com a Holanda. A relação com a Holanda pode ser
analisada através de vários indicadores. O Suriname recebe uma ajuda
ecomica abrangente quando os governos m relações amistosas, e as
transferências nanceiras domésticas particulares são consideradas a principal
fonte de ingresso de moeda estrangeira. As relações sociais com a Holanda
são também intensas quando avaliadas pela quantidade de vôos diretos (8
vôos semanais no meio da temporada) e pelas relações formais e informais
entre instituições públicas e privadas nos dois países. Os laços de família são
também fortes, pois cerca de 300.000 pessoas de origem surinamesa ou com
raízes surinamesas vivem na Holanda. As inuências políticas pós-coloniais
também merecem destaque, pois os partidos políticos em ambos os países
têm ligações de nível partidário. Questões locais do Suriname muitas vezes
são debatidas, em público, na Holanda.
O Suriname tem uma estrutura colonial regional
Paramaribo é uma inuente cidade colonial voltada para o exterior na
costa atlântica, tendo, assim, um posicionamento internacional. Tem vocação
empreendedora e está voltada para as outras partes do país, que se encarregam
da produção. Não possui atividades especícas, mas tem uma infra-estrutura
da melhor qualidade para fazer a redistribuição do que é produzido em outras
áreas. A população que está concentrada na capital e na periferia rural-urbana
dos distritos de Wanica e Commewijne é de 310.000 habitantes. Todos os
serviços de boa categoria estão concentrados em Paramaribo. Seus subúrbios
modernos reetem as classes sociais (áreas delimitadas): as de melhor poder
aquisitivo ao Norte e os segmentos mais pobres ao Sul enquanto os bairros
C.A.F. Pigot
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mais antigos estão socialmente integrados. As áreas pobres do centro da cidade
com velhas construções de madeira no estilo colonial holandês fazem parte
da Lista do Patrimônio Mundial da Unesco.
2. Situação política
A Assembléia Nacional, o Parlamento do Suriname, tem 51 cadeiras.
O Presidente e o vice-Presidente são eleitos pelo Parlamento por uma maioria
de 2/3 ou, quando essa maioria não é atingida, por uma Assembléia Pública,
que é um fórum extensivo a todos os representantes locais eleitos e membros
de órgãos estatais importantes. Os ministros são escolhidos por uma coalizão
de aliados e nomeados pelo Presidente depois de os cargos serem distribuídos.
Em razão de os ministros serem indicados por seus respectivos partidos,
parecem ter eles maior delidade partidária que o Presidente. O Suriname
também adota os Três Poderes.
Os partidos políticos têm seus fundamentos baseados, de forma
predominante, na etnia e na religião. Atualmente, os partidos com
representações no Parlamento são: indianos/hindus: VHP 8, PVF 2, NK 1;
indonésio: Pajama Luhur 6, KTPI 1; Crioulos: NPS 8, DNP 3, SPA 1, DA 91
1, Maroons (comparável aos do quilombo) 5. Um dos partidos com maior
integração étnica é o NDP 15.
A coalio dominante é formada pelo VHP, NPS, SPA, PL, A-combinatie
e DA 91. Essa coalizão é chamada de Nieuw Front + . Conquistou 28 cadeiras
nas eleições de 25 de maio de 2005. As novas eleições estão programadas para
maio de 2010.
Durante os recentes anos de independência, o Suriname tem vivido
a experiência, repetidas vezes, de um governo que administra de forma tão
incompetente o país que a recuperação da economia pela implementação de
um programa de ajuste estrutural e pela reintrodução de valores morais é
considerada uma imposição.
Os jornais e a mídia em geral criticam o desempenho do governo.
As questões estruturais que inuenciam a situação política são:
A reestruturação da economia de tal forma que possa garantir um
ambiente econômico, transparente e competitivo com crescimento
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sustentável e orçamento equilibrado. As ações de reestruturação não
estão incorporadas a um programa de ajustamento estrutural formal,
mas fazem parte das prioridades do governo. Sua execução é altamente
inuenciada pela dinâmica política. Na atualidade, os mercados
monetários são liberais, e o novo dólar surinamês é uma moeda estável
e conversível. O ambiente monetário estável dos últimos 5, 6 anos
tem sido a base da recuperação econômica e do crescimento mantido
a 6% ao ano. A privatização das empresas estatais e as reformas dos
servidores públicos são lentas e empurradas para diante sem enfrentar
decisões difíceis;
A recuperação do setor social não está de acordo com as esperanças
do povo. Obviamente, a receita do governo não consegue nanciar
todas as necessidades básicas solicitadas e tanto o governo quanto
o povo perderam a vontade política para, em público, estabelecer as
prioridades. Nem tudo, no setor social, se acha disponível para todos
os membros da sociedade. A educação, saúde e direitos democráticos
são garantidos pelo governo. A situação habitacional é deplorável. No
campo da segurança e seguridade, empresas privadas estão ocupando
os seguintes setores: companhias de seguro, planos de saúde privados
e seguros de vida, etc;
Melhoria da situação no interior. Cerca de 40.000 cidadãos surinameses
e de outras nacionalidades, a maior parte originária do Brasil, que
aceitaram o convite para vir trabalhar, vivem no interior. A infra-
estrutura dessa região é deciente (educão, sde, direitos de
propriedade de terra, autorizações, etc.). O descontentamento com o
governo central leva a mobilização política étnica com um ganho para
o partido A-combinatie, com uma estrutura de liação maroon, e
Controle do tráco de drogas e inuência dos grandes tracantes
sobre a vida social, econômica e política. A forte inuência do dinheiro
da droga atrapalha o planejamento das carreiras prossionais e a
moralidade. Discute o Parlamento na atualidade uma lei anticorrupção
como uma das medidas atenuadoras, mas pode ser que, mesmo nesse
fórum, a inuência dos grandes tracantes seja o motivo de atrasos
signicativos na aprovação da lei.
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3. Situação econômica e social
O Suriname é um país em desenvolvimento e pode ser visto tanto
como parte do Caribe (considerada a pequena escala de sua economia)
quanto da Arica Latina (consideradas as fortes limitões para o seu
desenvolvimento).
A questão étnica, a dependência de um pequeno grupo de produtos para
a exportação (bauxita e petróleo bruto), a ajuda nanceira vinda do exterior
e a emigração constante são características do Caribe.
A forte inuência militar na vida econômica, política e social no início
dos anos 80, que alimentou, em grande escala, a estrutura corrupta e a política
inecaz do governo, a ineciência dos marcos e controles regulatórios são,
de certo modo, uma característica da América Latina. As limitões do
desenvolvimento estão mais no campo (bem econômico) da ausência de metas
denidas do governo do que no campo da carência de recursos naturais e
nanceiros.
4. Estágios no planejamento do desenvolvimento do
Suriname
O planejamento do desenvolvimento do Suriname em muito se
assemelha ao pensamento internacional sobre questões de desenvolvimento.
Cinco estágios que são paralelos ao desenvolvimento mundial podem ser
destacados:
O período do “Consenso do Congresso Indiano”
Esse peodo comou depois da Segunda Guerra Mundial, dando
prioridade ao planejamento do Estado. O Suriname começou esse período
com o Welvaarstsfonds (Fundos para Prosperidade), seguido por um plano
de dez anos e planos de cinco anos. Era um planejamento centralizado, com
enérgica inuência governamental na construção de fazendas, sensoriamento
remoto de recursos naturais, etc. A idéia geral era fazer um inventário de
nossos recursos naturais e explo-los. Esperava-se atingir um desenvolvimento
aprimorado copiando-se a tecnologia ocidental, modernizando as instituições,
melhorando o nível educacional da população e enfatizando a agricultura
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como base do crescimento da maioria da população. O progresso das bases
domésticas eliminaria a inuência dos negócios em grande escala e provaria
que o mecanismo do livre mercado não era adequado para economias do
Terceiro Mundo.
O período do paradigma da economia dual
Sob a inuência dos estruturalistas latino-americanos com soluções
rápidas para a situação do ajuste de juros, controle da taxa de câmbio, dos
preços e dos salários, o Suriname desenvolveu uma ideologia de “mobilização
de seu próprio potencial, incluindo os recursos humanose de introdução
de “pólos de crescimentoregionais. Foi após a construção da represa de
Afobaka, na década de 70, que essa necessidade de modernização surgiu
no Suriname. A urbanização em grande escala de pessoas desalojadas
foi, de certa forma, vista como um sintoma aceitável da inovação e das
conseqüências lógicas do paradigma de um “crescimento desequilibrado”.
Grandes áreas rurais deixaram de ser consideradas como de interesse, e os
esforços de desenvolvimento e investimentos se concentraram em áreas que
apresentavam crescimento como as do Suriname Ocidental (Bauxita Bakhuys
e Represa Kabalebo), Commewijne (LOC), etc. Havia a expectativa de que
essas localidades tivessem um potencial de crescimento muito maior que
outras áreas do país. A noção de planejamento cou voltada para o interior.
Acreditou o Suriname que teria uma enorme evolução e aprimoramento em
sua nação com a ajuda assistencial da Holanda.
O desenvolvimento voltado para o exterior
Ao nal de 1970, havia-se tornado bem claro que o Suriname e a
Holanda tinham opiniões diferentes com respeito à política relacionada com
o desenvolvimento do Suriname. Os holandeses, por exemplo, se recusaram
a bancar totalmente o nanciamento da Represa Kabalebo utilizando os
recursos do tratado. Foi a primeira vez que o Suriname se viu obrigado, por
conta própria, a sair em busca de recursos de valor elevado. O importante foi
que o Suriname também teve de começar a pensar em meios de investimento
em relação às companhias estrangeiras. Mas, como os holandeses tinham
alocado grandes recursos para o desenvolvimento, o país não encontrou
facilidades para obter capitais estrangeiros. Desse modo, o Suriname não
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cou envolvido na crise da dívida de 1990 e no colapso dos mercados de
capitais do Brasil e do México.
O Consenso de Washington
Forçado pela gestão da economia durante o período militar, o Suriname
teve de reetir acerca de um ajuste estrutural quando o regime democrático
retornou no nal dos anos 80. Tornou-se prioritária a criação de regras para
a gestão macroeconômica das instituições nanceiras. Os elementos que se
tornaram importantes foram: disciplina scal, investimentos em atividades com
especial interesse na elevação dos juros e não tanto em “projetos políticos”,
reforma tributária, liberalizão parcial do mercado de capitais, taxas de câmbio
livres, eliminação de cotas de importação, privatização, garantia de proteção
à propriedade privada e valorização do meio ambiente.
Embora o Suriname se tenha recusado a participar do programa de
ajuste estrutural monitorado pelo FMI, teve de acordar com as regras de um
monitoramento externo feito pelo Warwick Research Institute, conforme
entendimento feito com os holandeses. O programa de ajustamento estrutural
do Suriname foi uma combinação do modelo de consenso de Washington com
uma rede de seguridade social nanciada pelos fundos do tratado. O consenso
de Washington surtiu efeitos positivos sobre o Suriname, pois estimulou a
transparência, diminuiu a corrupção e promoveu a democracia. Por outro
lado, encontrava-se tão voltado para o lado nanceiro que não incorporou
totalmente os efeitos políticos e sociais.
A aldeia global
Como todos nós sofremos a inuência dos processos da globalização,
observamos, hoje em dia, que todas as economias estão sendo avaliadas por
indicadores que levam em consideração a boa governabilidade e a redução
da pobreza.
O Suriname empenha-se por uma administração segura a ser avaliada
pelos seguintes indicadores:
Indicadores de política econômica: a. A inação no Suriname era 8,3%
em 2007; b. O décit orçamentário para este ano scal está estimado
em SRD. 405 milhões ou 5.4% do PNB; c. A liberalização comercial
está de acordo com as metas do Caricom e WTO.
Apresentação político-econômico-social do Suriname
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Indicadores de qualidade institucional: a. O cumprimento das leis é
satisfatório; b. A burocracia precisa de mais qualidade; a sensação de
corrupção é muito alta por causa da lei anticorrupção que ainda não
está em vigor.
Outros indicadores: a. Melhoria na educação é lenta; b. progresso
na melhoria da saúde; c. É lento o apoio à pesquisa agrícola; d. A
solidariedade na sociedade é lenta por causa da carência de recursos
para reformas nas pensões e para os sistemas de saúde em geral.
Alguns indicadores sociais e econômicos
A taxa de natalidade bruta é em média de 25,7 (pequena elevação em
relação aos últimos quatro anos mas em decnio constante desde 1972,
32,9). A taxa de óbitos é igual à dos pses desenvolvidos modernos com
ummero dio de 6,8. A migração externa tem sido sempre um fator a
ser levado em conta.
As exportões em 2007(alumina, alumínio, petróleo bruto, arroz,
bananas, legumes, camarões, peixes, madeira e derivados, além de outros
produtos) bateram a casa dos US$ 1.311 milhões. As reservas monetárias
fecharam o ano de 2007 em SRD 1.181 milhões, dos quais SRD 1.087,5 em
moeda estrangeira e SRD 94,5 em ouro. Deve ser levada em consideração a
exportação ilegal de ouro, em alta escala.
Até o presente momento, não foi o governo capaz de racionalizar a
produção de ouro nos garimpos do interior. O ouro gera poucos impostos e
é um grande poluidor por depositar partículas de argila e mercúrio nas águas
potáveis.
A terra é usada principalmente pela atividade agrícola 65.110 ha
(sendo 34.743 ha de agricultura extensiva e 30.367 ha de agricultura de
pequena escala); 53.495 de arroz, 2.057 de bananas, 1.768 de tomates e
outros legumes, 1.419 de laranjas, 1.148 de cocos. Esses produtos citados
o os mais importantes. O rebanho o é importante no que diz respeito
à quantidade: 88.865 cabeças de gado bovino, 19.615 de suínos, cerca de 2
milhões de aves, etc.
Através dos tempos, a política de desenvolvimento vem se preocupando
com a modernização e fortalecimento das instituições. As reformas
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do ano anterior destinadas a tornar o setor público mais eficiente são
prioritárias. O papel do setor privado e das ONGs tornou-se fundamental
à noção de desenvolvimento. Por outro lado, os países que têm contribuído
para o progresso do Suriname são mais severos no auxílio dado ao seu
desenvolvimento, pois o Suriname é apenas mais uma peça da sua estrutura
global. Os estudos de impactos tornaram-se imprescindíveis para todas as
atividades de desenvolvimento, sejam elas hospitais, escolas, estradas, etc.
Se uma atividade não gerar impacto positivo, será dicílimo conseguir
ajuda ou empréstimo. A opino dos lideres que tem grande força representativa
ecomica, nanceira, política, social, tribal, etc., é crucial para a mobilizão
de recursos e para um dialogo efetivo com parceiros internacionais.
Relação com os holandeses
Os debates com os holandeses sobre desenvolvimento vêm, muito
tempo, sendo a questão crucial das administrações. Quando o Suriname se
tornou independente, os holandeses comprometeram-se a dar um auxílio ao
desenvolvimento de US$ 1.000.000.000 durante 10 a 15 anos. Os ministros
holandeses encarregados dessa verba e o governo surinamês concordaram
sobre um aporte por setor para o auxílio holandês. Os setores para a assistência
holandesa o educação, governo, saúde, meio ambiente, moradia e agricultura.
Os avanços nesses campos, todavia, têm sido lentos.
A Holanda e o Suriname estão prestes a fazer uma reformulação de
suas políticas para uma nova relação entre países independentes, com respeito
mútuo e soberania. O Suriname tem laços intensos com a Holanda e não pode
ser apenas mais um país do rol de prioridades holandesas.
Os investimentos do governo são pequenos porque, na realidade, a ajuda
holandesa nos últimos anos não se materializou (saúde pública, educação,
infra-estrutura, rede de seguridade social, desenvolvimento no interior).
A responsabilidade pelos atrasos tem recaído sobre os longos processos de
reformulação dos planos setoriais. A sociedade civil está se tornando mais
importante nos setores sociais ligados à Holanda. Por contar com a assistência
de fundos em parceria com o estrangeiro, foram criados elos no plano dos
municípios, das agências de meio ambiente, de escolas para escolas, de cidades
para cidades, etc.
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Setor público
Os salários do funcionalismo público caram congelados entre 2002 e
2005. Espera-se venham a ser aumentados e estimulem o consumo e a procura
por moeda estrangeira, o que pode levar a uma maior demanda no câmbio.
O Suriname tem um mercado de câmbio aberto desde 11 de junho de 2002.
O interior
A situação nas áreas longínquas do interior é ruim à medida que faltam
recursos para o governo suportar os altos custos das viagens para o interior. Por
esse motivo, seus compromissos com os serviços estão sendo prejudicados.
Limitações
Com freqüência, as fortes limitações ecomicas o mencionadas
desde a Segunda Guerra Mundial, mas vários desses aspectos negativos da
economia surinamesa ainda continuam em destaque. Supunha-se que seriam
tais limitações resolvidas pelos muitos planos de desenvolvimento. No entanto,
a opinião pública geral é esta: a economia do Suriname não está crescendo
como o desejado e, sem reformas estruturais, até mesmo a deterioração poderá
ocorrer. Por outro lado, as estatísticas mostram um crescimento do BBP de
5 a 6% por ano nos últimos anos.
As opções para um crescimento rápido acham-se na indústria da bauxita,
na hidrelétrica West Suriname e no ouro em outras partes do país, tais como
Gros-Rosebel.
Questões-chave
As questões importantes existentes que podem causar um impacto
público forte são:
Negociações com a Suralco (Alcoa) e a BHP-Billinton, tendo ambas
solicitado concessões para mineração de bauxita na região de Bakhuys.
O futuro econômico do Suriname será bastante afetado por essa
decisão do governo e pelos investimentos esperados;
Disputas de fronteira com a Guiana. A disputa da fronteira marítima
está resolvida, e as expectativas sobre as reservas de petróleo são altas.
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A disputa de terras no triângulo do Sul (Rio Curuni e Rio Kutari versus
Alto Rio Corantyne) continua sem solução;
Ações contra o crime para conservar a sensação de segurança pública, e
O trânsito, principalmente em Paramaribo, começa a tornar-se um
problema sério por causa do grande mero de automóveis, em
contínuo aumento. É preciso que o trânsito seja melhor distribuído
pela infra-estrutura da velha cidade.
5. Reexões sobre o paradigma do desenvolvimento
mundial e o Suriname do século XXI
“Não se pode prever o futuro; podemos, porém, prepará-lo. O futuro
é construção.
1
5.1 Relações compatíveis
O desenvolvimento mundial é inuenciado pela revolução cientíca,
a qual nos leva a uma era de incertezas e dúvidas em escala mundial. Nesse
padrão de complexidade, globalização e incertezas precisamos de criatividade
política. Com a terceira revolução industrial, baseada na era da informação
e da lere introdução de novas tecnologias em todos os aspectos da vida
humana, a nossa sociedade está-se transformando radicalmente em uma
estrutura de códigos de computador nos dias de hoje e em códigos de genética
amanhã, fazendo com que uma nova rede globalizada de relações blicas
e privadas comece a aparecer. É óbvio que a velha estrutura política do
mundo, principalmente as fronteiras entre os países, já não é mais suciente
para conter os novos acontecimentos visto que a tecnologia transmitida por
microondas nas auto-estradas da informação não respeita as fronteiras dos
países. A primeira revolução industrial trouxe os trens, a segunda os aviões,
os automóveis, a eletricidade e o fordismo. A nova revolução industrial tem
levado o mundo a uma nova divisão em agentes da globalização (cerca de
20%), que envolvem o resto do mundo. No Suriname, com base na educação
e no tipo de trabalho, cerca de 10% da população está inserida nesse novo
desenvolvimento.
1 Declaração de Ilya Prigogine, agraciado com o Prêmio Nobel. Citação extraída de O mundo à frente, construindo
nosso futuro, de Frederico Mayor e Jerome Binde, publicação da Unesco, 2001.
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Estamos num mundo novo de segregação dividindo sociedade, trabalho,
amigos, escolas e países segundo relações compatíveis. A lógica dessas relações
compatíveis é baseada no agrupamento exclusivo dos que apresentam um
desempenho melhor, que têm maior expressão nos esportes ou na indústria
do entretenimento e que agora estão se destacando nos sistemas de saúde,
em atividades bancárias, em consultoria de negócios e até em produção de
medicamentos. Esse processo também exclui as pessoas com boa educação que
o se situam no grupo de melhor desempenho. Isso afeta a identidade nacional
em questões tais como: Seedorf e Rijkaard são surinameses? Ronaldinho
é espanhol? Alan Belda, Presidente da Alcoa mundial, é norte-americano?
O diretor da BHP/Billiton, que tem origem no Suriname, é de fato surinas?
Chegamos até a experimentar a segregação dentro das estruturas de nossas
famílias quando vários de nossos lhos vão estudar no exterior e acabam
adotando outra nacionalidade que o a nossa. Até mesmo os sistemas
educacionais estão se dividindo agora, deixando a maioria dos alunos só com
a educação básica no nível do bacharelado, e àqueles poucos de algum brilho é
concedida uma educação excelente, de alto vel, ligada a centros internacionais
de treinamento. Em relação ao ensino, torna-se imprescindível termos cursos
de treinamento internacionais como o do Itamaraty, pois notamos que seus
cursos são globalizados e nos dão a chance de nos transformarmos em agentes
da globalização em nossa atividade prossional. As empresas e as instituições
também eso se desmontando e se reconstruindo num ritmo acelerado
com uma perspectiva global. Tomemos, por exemplo, a produção do avião
Bandeirantes no Brasil, que agora se tornou um produto global. As famílias
experimentam a mesma conança fazendo dos pais solteiros um fenômeno mas
não pela quebra de padrão e, sim, pela opção de escolher parceiros com quem
querem ter um lho. Nesse mesmo diapasão muitos casais que desenvolvem
relações frágeis, com freqüência, como forma temporária de viver a dois.
Outro perigo para a sociedade surinamesa é que o amplo crescimento
do setor privado no controle da tecnologia moderna como os computadores,
telefones celulares e, vale também mencionar, o aumento da reprodução
humana estão levando a uma transformação do controle cultural exercido pelo
governo sobre a família talhada pelos modelos tradicionais.
Novas alianças tornam-se ainda mais fortes que o próprio governo, e
todas clamam por democracia, que em sua visão vem a ser menos controle
do governo e mais controle privado sobre as estratégias de desenvolvimento.
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A partir dessa perspectiva experimentamos vários poderes que minaram a
estrutura tradicional do poder dentro de nossa sociedade.
Os conglomerados industriais como a BHP-Billinton e a Suralco no
Suriname parecem estar na condição de comando do que irá acontecer
no Oeste do Suriname com os depósitos de bauxita e com o potencial
hídrico e, assim, determinam o futuro da economia;
ONG’s como a WWF e a CI-S o as agências que lideram no
concernente ao meio ambiente, e
São bastante conhecidos no Suriname os nomes das empresas e
entidades provavelmente envolvidas com o crime, com a lavagem de
dinheiro ou mesmo com o tráco de drogas. Elas estão, já faz muito
tempo, fora do alcance da policia e da justiça. Por exemplo, foi
em 2007 que o governo conseguiu iniciar o processo de levar a júri
os assassinos de dezembro de 1982.
No Suriname, e é provável que na maioria dos pses da América
Latina e do Caribe, esse processo de globalização está acompanhado por um
processo contínuo de urbanização, não obstante o fato de que a maioria de
nossa população esteja agora vivendo em cidades. No Suriname uma
grande migração das pessoas sem instrução, de origem maroon, rumo ao sul
de Paramaribo, sem chance de conseguir emprego em atividades modernas
alimentando um sistema que gera, contra si mesmos, a segregação social
regional dentro da cidade, o que paulatinamente vai minando as bases da
própria democracia.
Os jovens do interior não obedecem mais a seus lideres tribais e
menosprezam as leis de suas tribos. O governo e os pais não conseguem mais
controlar o tipo de informação que circula pela Internet e chega aos nossos
lhos. Não podemos deixar de observar a aparição de novos segmentos
prósperos da sociedade surinamesa, aparentemente mais bem protegidos da
pobreza, e de categorias sociais excluídas que parecem tornar-se vítimas da
indiferença, do preconceito e da ausência de solidariedade. A modernização
controlada privada abriu espaço para o crime chegar aos centros mesmo
de decisão. Apesar de os governos dos países ricos estarem mais ocupados
com problemas econômicos e nanceiros, o desenvolvimento da sociedade
surinamesa é um enorme desao.
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É incrível que maioria do povo não demonstre nenhum interesse no
debate sobre o desenvolvimento. As pessoas têm a percepção de não ter a sua
voz ouvida e não serem elas consideradas economicamente por se acharem
tão pequenas e desvalidas se comparadas às imagens vistas na CNN do que
vem acontecendo em outras regiões deste nosso planeta. E, com efeito, se
olharmos os meros fornecidos pelo Bureau Geral de Estatística, a situão do
sistema de saúde, a infra-estrutura, a mobilidade do Produto Interno Bruto per
capita, concluiremos que tudo isso tem aumentado. No entanto, nós estamos
observando um sistema com um sucesso econômico baseado em conceitos
de liberdade que se esqueceu de implementar a igualdade e a solidariedade
em nosso país. Isso provoca um vácuo ético. O povo e o governo estão
satisfeitos em razão de o Suriname não se haver transformado num campo de
batalha racial, pois até agora tem a sociedade conseguido evitar lutas étnicas, e
segmentos étnicos diferentes na sociedade surinamesa têm conseguido praticar
a arte da convivência pacíca. Mas a carência de interesse com respeito ao
processo político resulta em que seja eleito o governo por cerca de 60% da
população com uma grande inuência de votos de indecisos.
Quais os desaos que temos pela frente?
Paz em nossa sociedade. Sem paz qualquer esforço de desenvolvimento
está fadado ao fracasso;
Erradicação da pobreza com atenção especial imediata à erradicação
da pobreza extrema, que é regionalmente signicativa. A pobreza
tem levado a uma nova forma de apartheid no Suriname, com uma
riqueza sem precedentes em certas partes de Paramaribo. O fato é
que, por exemplo, a única associão de golfe do Suriname, tendo
um campo localizado numa área pobre, está mais interessada em
construir muros para separar-se das comunidades vizinhas do
que inserir os pobres caddies num programa de aperfeiçoamento
colocando à mostra o cuo ético anteriormente mencionado. Essa
proliferação de excluo tende a arruinar as bases da democracia.
Dessa maneira, como poderemos trazer o crescimento econômico
para as áreas de pobreza extrema?;
Desenvolvimento sustentável e o manejo adequado do meio ambiente
global;
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Nós possmos o triplo dos recursos de terras necesrios para atingir a
riqueza da América do Norte como ela se mostra agora para o resto do
mundo. O Suriname, com a constância de seus recursos naturais, tem
capacidade para deter a espiral da pobreza. Tem igualmente condições
para dar m ao uso excessivo de seus recursos naturais por meio do
conhecimento ecológico. No setor de orestas, por exemplo, o país
está desenvolvendo um uso mais econômico, inteligente e cuidadoso
de seus recursos naturais. Em setembro de 2008, o Suriname irá
sediar a conferência da UNFF sobre novos instrumentos globais não-
vinculados a autoridades legais para geração de renda sustentável das
orestas do mundo, e
É importante para o país avaliar suas alianças atuais, baseadas em
paradigmas do livre mercado, e possuir autonomia de ação para se
reestruturar segundo um conjunto de objetivos bem denidos. Em
minha opinião, o Suriname terá de mostrar coragem política para
implementar uma estratégia de orientação diferente. Examinando
o Memorando de Entendimento entre os Ministérios de Relações
Exteriores do Brasil e do Suriname, percebi que nos falta uma estrutura
conceitual geral para a cooperação com outros países. E cou evidente
o que Sêneca disse: “O vento nunca está a favor daquele que não sabe
em que direção está indo”. Um país deve ter uma direção e um plano
de longo prazo como aprendemos aqui no Itamaraty. Principalmente
porque os novos desaos não podem ser resolvidos em nível local
ou nacional. Vejamos, por exemplo, as taxas de câmbio, os preços
das commodities, as mudanças do clima, os mercados nanceiros, a
criminalidade, a lavagem de dinheiro, a poluição, a água potável, a
energia, etc.
Então, por que a ação nacional e internacional é o pouca? Deve-se
isso quase sempre à visão ope e egsta, como a dos Estados Unidos
em relação ao Protocolo de Kioto, ou à falta de vio e coragem potica.
Podemos responsabilizar nossos lideres anteriores pelas decisões que
tomaram ou pelas que adotaram tardiamente? Como Paolo Pasolini colocou
nas Mil e uma Noites: “O futuroo é um sonho único, mas uma innidade
de sonhos”.
Apresentação político-econômico-social do Suriname
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Estrutura de ação para o Suriname
Concordo com a visão de que, para progredir, um país precisa de quatro
contratos:
1. Contrato Social. A prioridade mais importante do Suriname é
reconstruir a solidariedade mediante a erradicação da pobreza e a
redução das escandalosas disparidades, que levam à apatia e exclusão
2. Contrato Natural. É necessária uma aliança entre a ciência, o
desenvolvimento e a preservação ambiental. Temos de colocar em
ação os compromissos estabelecidos na Rio 92, em Kioto e em
Bali 2007. Temos de colocar a produção e a pesquisa para servir o
desenvolvimento sustentável e considerar urgentemente a Unesco
de Reservas da Biosfera.
3. Contrato Cultural. Esse contrato focaliza uma vida com educação de
qualidade permanente para todos e excelência do prossionalismo
como um aspecto básico da democracia e instrumento fundamental
para a erradicação da pobreza. Observamos que os países
“inteligentes” agora vêem a educação de qualidade como um marco
para o desenvolvimento de seu povo e mobilizam recursos para
nanciar sua educação. O Suriname está bem atrás desses países no
que se refere a essa estratégia. Temos de combater o analfabetismo.
Temos de passar da sociedade da informação para a do conhecimento
com interação cultural
4. Contrato Ético. Temos de nos esforçar para reinvestir nossa própria
experiência de tal modo que possamos estimular a compreensão dessa
matéria tendo em mente que temos de prevenir ao invés de curar.
Isso quer dizer basicamente que, para implementar a democracia e os
deveres e direitos, é preciso haver um padrão supranacional aplicável
em todos os países. Num contexto como esse podemos ter a justa
partilha dos benefícios da globalização.
Em palavras simples, o desenvolvimento será signicativo se for assim
conduzido:
Criar uma infra-estrutura mundial que seja aceita por todos;
Redistribuir os ganhos da globalização;
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Fazer que todos participem;
Condenar o crime, lutar contra ele e desestimulá-lo;
Respeitar os direitos humanos para todos;
Manter a não-interferência na política nacional dos outros Estados e
de seus governos democraticamente eleitos;
Usar a força contra os outros apenas com a aprovação da ONU;
Exercitar a solidariedade e a troca recíproca;
Oferecer aos estudantes de outros países o acesso ao nosso sistema
educacional, e
Implementar a igualdade e não exercitar apenas a democracia
prossional.
Permitam-me nalizar colocando sob sua atenção os princípios para os
estudantes do futuro. Cito-os com base na Unesco:
Acredite nas pessoas a menos que você tenha provas de que sua
conança não é merecida, pois ca impossível construir um futuro
duradouro sem conança;
Cuide bem do planeta, pois o tomamos emprestado das gerações
vindouras e temos de entregá-lo de volta a elas exatamente como o
encontramos;
Smart é bom visto que nosso futuro repousa em nosso espírito e
não nas coisas materiais que temos hoje. Não simplesmente Smart
no sentido de sem-similar, mensurável, aceitável, realista e conforme
ao tempo mas no sentido de que nosso desenvolvimento precisa ter
como suporte a sabedoria e inteligência caso queiramos deixar uma
terra “boa” para as gerações futuras;
Prepare-se para a paz se deseja a paz, pois, se você se prepara para a
guerra, guerra terá;
aos outros aquilo que deseja receber, pois o amor e o conhecimento
são as únicas coisas que crescem ao serem repartidas;
Num mundo e num mercado globais necessitamos de uma democracia
global que não seja restringida por fronteiras ou políticas nacionais;
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Nosso futuro não está previamente escrito; ele es nas mãos de
todos nós, e
O montante gasto por ano em nossas quinas de guerra é de
aproximadamente US$ 700 biles. O montante estimado pelo UNPD
para garantir as necessidades básicas para toda a humanidade é de
US$ 40 bilhões por ano.
Figura 1
Mapa do Suriname
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205
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www.cbvs.sr/english/statistieken.htm
Informações sobre o autor: www.p-allprojectssupply.com
DEP
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Anexo 1
Informações gerais sobre o país
(Extraídas principalmente de relatórios de IMF, OAS, IADB e EU)
O Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU coloca o Suriname
como um país de desenvolvimento mediano, em 86º lugar em desenvolvimento
humano (entre 177 países). Entretanto, o país está no 17º lugar entre os de
maiores recursos naturais.
Com 80% de sua população total vivendo em Paramaribo e nas áreas
do litoral, o PIB anual per capita é de US$ 2,300, e o desemprego está em
cerca de 8,4%, enquanto a inação é projetada para uma taxa de 8% em 2006.
O PIB cresceu em torno de 8% em 2004 e de 5% em 2005, estimulado pela
abertura de uma nova mina de ouro e por investimentos nos setores de alumina
e bauxita. O FMI declara: “O recente crescimento forte da economia vem
sendo sustentado por uma cautelosa política macroeconômica. O décit total
do governo central caiu de 3 por cento do PIB em 2004 para 1 por cento em
2005. Esse crescimento é conseqüência de um aumento substancial da receita
originária do setor petrolífero, que pôde sobejamente compensar os gastos
vultosos de capital no período pré-eleitoral e a diminuição de receita com a
demora do reajuste nos preços domésticos dos combustíveis. Reetindo as
menores necessidades nanceiras do governo, o nanciamento scal pelo Banco
Central caiu de cerca de 1 por cento do PIB em 2004 para ½ por cento em
2005”. Como membro do Caricom, o Suriname levantou barreiras comerciais
preparando-se para o Caricom Single Market. No momento, benecia-se pela
expansão global dos preços das commodities e do aumento da produção da
minerão, porém permanece isolado no comércio mundial e precisa de grandes
investimentos e/ou de uma reforma estrutural para aumentar suas receitas de
exportação. O país continua dependente da exportação tradicional de petróleo,
ouro, bauxita, madeira, banana, camarão e arroz para os seus principais parceiros
comerciais (a Holanda, os Estados Unidos e os países do Caribe). O petróleo
superou a bauxita como o maior gerador de receitas e as remessas do exterior,
principalmente dos mais de 300.000 surinameses residentes na Holanda, são
responsáveis por cerca de 10% do PIB.
O holandês é a língua principal e ocial, e o inglês é falado pela maioria
dos 492.829 habitantes do país. Além disso, muitos grupos étnicos conservam
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suas próprias línguas. Não há uma religião predominante, e os vários grupos
étnicos e as religiões desenvolveram maneiras de coexistir pacicamente. Os
hindustanis são o maior segmento populacional (27,4%), havendo também
crioulos (17,7%), javaneses (14,6%), maroons (14,7%) e ameríndios (3%).
O restante da população é constituído por chineses, europeus e operários
imigrantes brasileiros recém-chegados além de uma pequena comunidade
judaica. Os principais meios de transporte no interior são os rios embora haja
também o transporte aéreo feito por pequenos aviões.
Apesar de 95% da populão ter acesso à água potável e 83% ao
saneamento, ainda problemas nessas áreas e em educação. As comunidades
do interior estão entre as mais marginalizadas e tendem a não ter acesso a
atividades econômicas sustentáveis e ao serviço social. Os gargalos para seu
desenvolvimento incluem a falta de transportes, eletricidade, educação básica,
escolas, saúde, telefone e Internet. Três quartos das crianças em idade escolar
estão em escolas primárias e secundárias, mas as crianças do interior não têm
acesso à escola secundária. Por outro lado, os lideres tradicionais no interior
procuram resolver de forma participativa as questões relativas ao respeito à terra
e aos recursos naturais. O Suriname assinou recentemente a Convenção ILO
dos Povos Indígenas e Tribais (1989) protegendo os direitos às terras, acesso
aos recursos naturais, saúde, educação, treinamento vocacional, condições de
emprego e travessia de fronteiras.
Embora o Suriname não possua uma estratégia especíca para a redução
da pobreza, o Plano de Desenvolvimento Multianual 2006-2011 (MOP) leva
em conta o problema da redução da pobreza como parte dos Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio (MDGs). Além disso, a declaração do Presidente
quanto às poticas de governo 2005-2010, publicada em novembro de
2005, deixa claro que as MDGs são o marco da política de desenvolvimento
sustentável baseada no respeito aos direitos do povo. Isso confere uma
alocação adequada de tarefas entre o governo, o setor privado, os sindicatos
e a sociedade civil. É igualmente essencial que haja uma parceria entre as
partes com consultas freqüentes.” Como o direito ao emprego está previsto
na Constituição, a criação de empregos é “um ponto de interesse vital”. E
os esforços deverão ser dedicados à criação “das condições necessárias a
estimular as microempresas de pequena escala e de médio porte” assim como
a “promover tecnologias modernas e aperfeiçoar as relações trabalhistas.”
Apresentação político-econômico-social do Suriname
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Mesmo assim, ainda muito precisa ser feito para auxiliar o setor doméstico
privado a crescer. Há mais de 120 empresas de propriedade do Estado assim
como inúmeros SMEs no Suriname a precisar de um ambiente econômico mais
liberal para trabalhar com eciência. A Reforma do Setor Público atualmente
sob preparação inclui a meta de que em 2015 setenta e cinco por cento da
força de trabalho deve estar empregada no setor privado. As Organizações
Governamentais empregam atualmente 60% da força de trabalho e gastam
25% de suas receitas com a folha de pagamento. O governo está centralizado
principalmente em Paramaribo; medidas, porém, estão sendo tomadas para
descentralizá-lo pelos outros 9 distritos administrativos existentes.
Segundo o Índice da Corrupção da Transpancia Internacional, o
Suriname saiu do 49º lugar que ocupava (2003-2004) e foi para o 78º entre 159
países (2004-2005). Mas o atual governo tem-se comprometido a car imune
à corrupção. Está para ser aprovada uma Lei Anticorrupção. Por seu lado, as
Organizações Governamentais reconheceram formalmente que os planos de
ação nacionais e internacionais devem estar ligados à boa governança e aos
direitos humanos. Portanto, a MOP incorpora uma abordagem com base em
direitos para o desenvolvimento, assumindo, como tema central, o domínio
democtico da lei mediante consultas aos atores ecomicos, sociais e culturais.
Por outro lado, havendo reconhecido o atraso signicativo no uso das últimas
tecnologias de informação e comunicação, as organizações governamentais
querem agora maximizar o uso dessas tecnologias para os negócios e para o
desenvolvimento. Há agora o compromisso da criação do Instituto Nacional
das Tecnologias de Informação e Comunicação para fazer avançar não o
governo como também o setor privado.
Com respeito ao meio ambiente, ainda se vericam atritos entre os
surinameses e os trabalhadores estrangeiros da indústria de mineração de
pequena escala. A imigração ilegal de trabalhadores (garimpeiros do Brasil
e aventureiros da Guiana) na indústria irregular da mineração de ouro está
gerando a contaminação dos rios e peixes. O uso do mercúrio para a extração
do ouro afeta a saúde da população local. A lei proposta mas ainda não em
vigor banirá o mercúrio da mineração. A MOP reforça a imporncia da
preservação ambiental como pré-requisito para o desenvolvimento sustentável.
Da mesma forma, um recente Perl Ambiental por País, da Comunidade
Européia, assinala ser “condição fundamental que o meio ambiente seja um
C.A.F. Pigot
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fator imprescindível no desenvolvimento econômico e social para garantir
um meio ambiente saudável para as futuras gerações”. O Perl propõe que
isso não possa mais ser visto como questão isolada e que a biodiversidade, a
conservação e a preservação do interior e das zonas litorâneas recebam grande
apoio da maioria das organizações políticas e da sociedade civil surinamesa.
Resumo do risco
Como quinhão de um esforço para consolidar o compromisso com
a justiça internacional do Caribe, a Coalizão para o Tribunal Criminal
Internacional (CICC) reuniu oito países caribenhos (Bahamas, Granada, Haiti,
Jamaica, St. Lucia, St. Kitts e Nevis e o Suriname) para raticar ou concordar
com o Estatuto de Roma do Tribunal Criminal Internacional (ICC). Tem
mostrado o Suriname interesse crescente em raticar o tratado o Presidente
Ronal Venetiaan pediu ao seu governo que o leve em considereração tratado,
e o Suriname co-patrocinou a primeira conferência regional Caricom sobre
a matéria. Aagora, 100 países, incluindo Antigua e Barbuda, Barbados,
Belize, Dominica, St. Vicente e Grenadines, Trinidad & Tobago e a República
Dominicana integram a ICC. O Caricom poderia acolher raticação do
tratado pelo Suriname, o que viria a consolidar a aplicação da lei no país e a
melhorar a estabilidade política a longo prazo.
Panorama econômico
Progresso evidente
A economia do Suriname continua a se beneciar da expansão das
commodities globais e do aumento na mineração. A economia cresceu 7,8%
em relação ao ano de 2004 empurrada pelos investimentos no setor mineiro.
Tendo sido as commodities aumentadas nos seu valores monetários, estima-se
que as exportações de ouro, petróleo, bananas e arroz e os investimentos na
modernização do setor relativo à bauxita consigam elevar o crescimento para
5,0% em 2005.
Nesse meio tempo, a inação continua moderada em cerca de 9,0% em
relação ao ano de 2004, segundo estimativas do FMI, enquanto se mantém
Apresentação político-econômico-social do Suriname
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estável a taxa de câmbio. Com os preços das commodities xados num patamar
alto nos próximos anos, pode-se antecipar continuará o crescimento a ser
de 4,0% em relação ao ano anterior. Por sua vez, a inação ca estável em
torno de 8,0% na relação com o mesmo ano. O progresso do Suriname nos
últimos tempos tem mostrado uma performance macroeconômica total
calcada na estabilidade. Acima de tudo, as agências internacionais de avaliação
estão começando a reconhecer essas conquistas com um índice B+ dado pela
Standard & Poor.
Panorama do setor-chave
Tudo vai bem para a alumina, ouro, petróleo, arroz e bananas. A bauxita,
usada na produção da alumina, é o pilar central da economia do Suriname.
Ela responde por mais de 15% do PIB e 70% da receita de exportação
co-hosted.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
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O Uruguai e as
linhas divisórias da
aprendizagem
Rodrigo Arocena
*
O
Uruguai é um país periférico, pequeno e sul-americano; conseguiu
inicialmente avanços políticos e sociais bastante notáveis e pouco previsíveis,
os quais, junto com o parco dinamismo econômico e ideológico das últimas
décadas, caracterizam o panorama nacional; assim, a nostalgia do passado e
a desconança diante do futuro se erguem com os maiores obstáculos para
ingressar em uma nova rota de desenvolvimento integral, aproveitando as
condições realmente favoráveis do presente.
I. A condição periférica
Vastas regiões do mundo se tornaram “periféricas” quando os “países
centrais” se armaram como tais ao converter-se de nações agrícolas em
industriais. As conseqüentes diferenças de poder econômico e militar se
estenderam ao terreno potico e tamm ao ideológico. No entanto, a
condição periférica não se transformou em destino inevitável, e sim em uma
* Reitor da Universidade da República, Uruguai.
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espécie de cerco difícil de vencer. Alguns países, comparativamente poucos, o
conseguiram, graças a energias “subjetivas” que tornaram possível aproveitar
circunstâncias “objetivas” favoráveis, em geral convertendo as diculdades
em estímulos por meio de respostas originais e heterodoxas.
Hoje, a condição periférica combina permanências e modicações. Na
subordinação mais ou menos acentuada de algumas nações e regiões a outras,
continuam a pesar fatores muito antigos. Porém, não obstante, outros ganham
crescente relevância, diretamente ligados à nova importância do conhecimento
avançado. Este se converteu, sem dúvida para o bem mas também para o mal,
na fonte principal de mudança e desestabilização da vida contemporânea. Não
são apenas as capacidades para produzir, destruir, contaminar ou curar as que
se encontram alteradas, mas também as mais diversas ocupações, costumes e
relações entre os seres humanos e com a natureza.
O fenômeno afeta de um modo ou de outro o planeta inteiro, porém de
maneira altamente desigual. De forma esquematizada porém não equivocada,
pode-se armar que em certas regiões da Terra surgem formas variadas de um
tipo semelhante de sociedade, na qual o conhecimento se constitui diretamente
na decisiva força produtiva de bens e serviços. Essa é a maior característica da
posição dominante dos “centros”, novos ou velhos, do atual sistema mundial.
Claro que o resto do globo é extremamente heterogêneo; cabe nele distinguir
periferias, semi-periferias, enclaves centrais e zonas marginais. Porém, tanto
hoje quanto ontem, a condição periférica compartilhada por regiões muito
diferentes se caracteriza por uma ausência: se antes em maior ou menor grau a
indústria não tinha presença decisiva nas dinâmicas econômicas, algo parecido
ocorre no presente com o conhecimento.
Vista por esse ângulo, a condição periférica continua a existir; possui,
em diversas facetas da vida social, incidência não menor do que indicaram
os mestres do pensamento latino-americano sobre o desenvolvimento;
porém, para captar e enfrentar suas modalidades atuais, são necessárias novas
abordagens e estratégias.
II. As linhas divisórias da aprendizagem
Uma revolução silenciosa e profunda vem crescendo nas últimas
décadas. Desde as origens da civilização, caracterizada em primeiro lugar pelo
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surgimento da escrita, o acesso às formas cambiantes de educação superior
tem estado reservado a minorias, pequenas ou pequeníssimas. Pois bem, isso
está mudando em certas partes.
Cabe destacar um antecedente importante desse fenômeno. No mundo
predominantemente analfabeto das sociedades de base agrária, alguns
poucos países iniciaram o ensino elementar a partir do culo XVIII. Isso
ocorreu especialmente naqueles que primeiro avançaram pela senda da
industrialização ou que mais tarde a percorreram com velocidade notável.
A correlão o é de casualidade, mas entre educação e desenvolvimento
ela sempre se mostrou bastante lida.
Em seu estudo pioneiro sobre o advento da sociedade pós-industrial,
publicado pela primeira vez em 1973, Daniel Bell analisava o que era uma
tendência notável nos Estados Unidos: a expansão do ensino universitário.
Como é sabido, o fenômeno caracteriza todos os países centrais da
atualidade, nos quais a maioria dos jovens tem acesso de alguma forma à
educação superior.
No icio da presente cada, um estudo patrocinado pela Unesco e
pelo Banco Mundial chamava a atenção para as difereas que se vericam
a respeito entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. O enfoque
é signicativo porque documentos anteriores do Banco Mundial vinham
recomendando aos países em desenvolvimento que não dessem prioridade
ao ensino universitário, supostamente de menor “retorno” social. O
mencionado estudo arma que as diferenças de acesso à formação superior
estão constituindo um crescente “hiato de matrículas” que diferencia cada
vez mais um e outro grupo de países.
Em nossa opinião, o “hiato de matculas é um aspecto muito importante
do subdesenvolvimento no mundo do século XXI. Mesmo assim, porém, é
demasiadamente parcial como indicador das novas dimenes de uma condão
periférica em um mundo marcado pela emergência nos “centros” de uma
sociedade do conhecimento, que não se estende a todo o planeta porém tem
enormes impactos globais. Em poucas palavras, em relação a esse fenômeno as
grandes linhas divisórias não têm a ver apenas com o acesso ao conhecimento,
mas também, sobretudo, com as possibilidades de utilizá-lo de maneira criativa
e expandi-lo a partir da prática.
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O Uruguai, por exemplo, ainda forma muito menos pessoas altamente
capacitadas do que exige o desenvolvimento nesta época, mas mesmo assim
registra uma signicativa emigração de universitários. Como é bem sabido, o
fenômeno atinge dimensões dramáticas nas regiões mais carentes do planeta,
que são obviamente aquelas onde o acesso á educação superior é menor em
termos relativos. Em outras palavras, verica-se em muitos lugares a tendência
a que quanto menor seja a proporção da população que acede ao ensino
avançado, maior é a proporção de pessoas com formação superior que não
encontram ocupação consentânea com sua preparação. Essa tendência é o
reverso da que se observa em vários países “centrais”, onde a “procura” de
pessoal altamente qualicado é ainda maior do que a “oferta” respectiva e
crescente. Diríamos que o “hiato de ocupação qualicada” é ainda mais grave
do que o “hiato de matrículas”.
Sem entrar em detalhes, podemos sugerir a seguinte representação
gráca do que vimos dizendo: imaginemos um par de eixos coordenados,
num dos quais se mede a matrícula no ensino superior e no outro a ocupação
qualicada; segundo suas coordenadas, a cada país correspondeum “ponto”.
Pois bem, acima e à direita se agrupa um pequeno conjunto de países com
matrícula superior elevada e alta ocupação qualicada; os demais países se
dispersam pelo restante da gura, diferindo consideravelmente dos primeiros
em uma ou outra das dimensões consideradas, ou em ambas. O desenho
mostra uma clara separação entre ambos os conjuntos: assim podem ser
representadas as “linhas divisórias da aprendizagem” entre centros e periferias.
Essas divisórias constituem, a nosso ver, o cerne da nova conguração do
subdesenvolvimento.
III. Os países pequenos
Dizer que o Uruguai, além de periférico, é um país pequeno, poderia
parecer simples trivialidade. O dado é óbvio e a desvantagem que supõe
também parece sê-lo; as nações pequenas são em princípio mais débeis, menos
capazes de escolher de maneira autônoma suas estratégias, mais condicionadas
por decisões alheias.
Apesar disso, impõem-se algumas ponderações. A história mostra que
a condição pequena não signica uma postergação inevitável. Com todas as
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relatividades do caso, um exemplo disso é a experiência do próprio Uruguai,
que no início do século XX era comparativamente uma avançada democracia
política e social, com alto grau de escolaridade.
Sem dúvida, o conjunto de fenômenos que se conhece como
“globalização” torna menos provável uma experiência isolada de progresso
signicativo em um país pequeno. Mas é também notório que durante o último
meio século vários dos países que mais notavelmente melhoraram as condições
de vida de seus povos não são, certamente, grandes em tamanho.
Na realidade, faz tempo que a reexão sobre o desenvolvimento vem
prestando atenção à “condição pequena”. Tem sido dito, com certa graça e
bastante razão, que o que os países pequenos têm em comum é que são todos
diferentes. Vários deles, porém, têm em comum também algo que, mais do
que uma realidade, é uma possibilidade: a de que o tecido institucional na
dimensão pequena favoreça em escala nacional uma interação entre vários
atores coletivos diferentes que, sem deixar de ser conitiva, possibilite uma
soma de esforços em torno a projetos em boa medida compartilhados.
A outra face dessa possibilidade é que os bloqueios institucionais à cooperação
entre atores têm em geral, nos países pequenos, conseqüências ainda mais
prejudiciais do que em outros.
Esse ponto de vista foi elaborado com lucidez e originalidade há mais
de trinta anos pelo versátil estudioso uruguaio Carlos Real de Azúa. Uma
abordagem similar emergiu mais tarde de uma fonte totalmente diferente,
a teoria dos Sistemas de Inovação cnico-produtiva, não casualmente na
variante primordialmente escandinava dessa teoria. Pode ser encontrada no
livro editado há vinte anos por Chris Freeman e Bengt-Ake Lundvall, Os
pequenos pses diante da revolução tecnológica”. Registramos o título
porque a nova onda de mudanças técnicas agravou, por norios motivos
de custos e escalas, os desaos enfrentados pelos pses pequenos, quando
é necessário mover-se mais rapidamente apenas para não perder posições.
O que a obra mostra convergindo, sem saber, para o ponto de vista de
Real de Azúa é que as condições sociais da transformação tecnológica
contemporânea supõem não apenas diculdades mas também possibilidades
para os países pequenos, porém somente caso sejam capazes de articular
esforços de atores que, obviamente, incluem o setor público e o empresariado,
mas não se reduzem a estes, porque devem abranger trabalhadores, técnicos,
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educadores e outros atores da sociedade civil. Em poucas palavras, se o êxito
dos processos sociais de mudança técnica depende sempre o apenas da
técnica mas também do aspecto institucional e cultural, isso é ainda mais
verdadeiro na “condição pequena”.
IV. A América do Sul no início do século XXI
Os países pequenos, e também os não tão pequenos, que passaram por
processos de desenvolvimento importantes e sustentados em sentido amplo,
têm em geral aproveitado com estratégias especícas um contexto mais amplo
e favorável. A experiência da Coréia do Sul, justicadamente destacada, reete
uma heterodoxia criativa que lhe permitiu tirar partido da situação geopolítica
circundante. Os casos da Austrália e Nova Zelândia, tão freqüentemente
comparadas com a Argentina e o Uruguai, são de difícil compreensão quando
se abstrai o quadro que lhes proporcionou inserção tão especial no império
britânico. Por m, não se deve desprezar o reconhecimento que merece o
“modelo escandinavo”, quando se percebe que seu êxito considerável se vincula
a sua posição em relação aos países pioneiros da industrialização.
O pequeno país periférico chamado Uruguai não tem destino promissor
a longo prazo à margem da América do Sul. Poderá aproveitar com bastante
êxito circunstâncias internacionais favoráveis a m de melhorar a colocação
externa de sua produção primária e assim assegurar um ciclo de crescimento
possivelmente longo. Mas o desenvolvimento, inclusive quando se considera
somente sua dimensão econômica, é mais do que crescimento econômico.
Schumpeter o explicou com clareza quase um século. Grosso modo, o
crescimento signica mais do mesmo, enquanto que o desenvolvimento
econômico é crescimento com mutação, que é o símile biológico usado por
Schumpeter para ilustrar sua noção de inovação. Hoje, o desenvolvimento
econômico exige incorporar conhecimento avançado e gente altamente
qualicada à produção de bens e serviços no sentido mais amplo da expressão.
Trata-se, portanto, de avançar pelos caminhos inter-conectados da educação
avançada e da ocupação qualicada.
Façamos um parêntesis para esclarecer qualquer eventual incompreensão
do que foi dito, que poderia ser entendido como mais um louvor à tecnologia,
conclamando à concentração de esforços somente nos denominados setores
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“de ponta”. Isso revelaria incompreensão tanto da experiência histórica do
desenvolvimento quanto do que realmente é o novo papel do conhecimento.
O desenvolvimento econômico se apoia em certas forças produtivas próprias
para inovar; pode fazê-lo a partir de ramos muito variados da produção;
adquire velocidade de cruzeiro quando a capacidade de inovação se estende
a diversos setores. A partir de certas tecnologias particularmente dinâmicas
e potencialmente expansivas, o conhecimento revoluciona o conjunto de
atividades produtivas.
Um país periférico, ainda que seja pequeno, tem de apostar em novos
setores. O Uruguai está experimentando um bem sucedido processo em
matéria de “software”. Mas o avanço em alta tecnologia não pode ser feito
contrapondo-a aos setores denominados tradicionais e nem descartando-os.
Trata-se de aproveitar as eventuais vantagens comparativas assim como as
experiências produtivas e comerciais para “subir” na cadeia de valor agregado
de conhecimentos e qualicações. A questão é portanto lutar contra essa nova
“divisão internacional do trabalho” que deixa os países periféricos do lado
inferior das linhas divisórias da aprendizagem. O Uruguai tem de fazer esse
combate em associação cada vez mais estreita com a América do Sul.
Não ignoramos que em matéria de integração a retórica transbordou
amplamente a realidade de nossa região. Porém nessa matéria, embora
o pessimismo da intelincia possa ser sobejamente justicado, estamos
obrigados a manter vivo o otimismo da vontade. Simplesmente, o
alternativa. O otimismo não pode ser ingênuo e nem estático, e sim cauteloso
e atento aos cambiantes indícios dos tempos. Justamente estes últimos nos
dizem que, no início do século XXI, congurou-se na América Latina uma
oportunidade grande e nova, sem dúvida difícil de aproveitar, mas que seria
trágico deixar de aproveitar.
Depois da “meia década perdida” de 1997 a 2002, abriram-se novas
possibilidades no que se refere à economia, à política, às idéias e aos valores.
O simples fato de que as “democracias de baixa intensidade” dos anos 90 não
tenham sucumbido à crise econômica, em alguns casos pavorosa, que marcou
o nal daquela década, é digno de ser levado em conta. Mais ainda, pela
via democrática constituíram-se vários governos novos ou renovados, com
amplo apoio da cidadania. Isso é alentador, com absoluta independência da
maior ou menor simpatia que se possa sentir um governo ou outro. Não cabe
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minimizar nem as carências e falências de que padecem várias democracias
sul-americanas, e nem os problemas que todas enfrentam, em maior ou
menor medida. Porém, aliás, em que momento foi menos difícil a situação
das democracias na América do Sul?
O que tem muito poucos antecedentes é a conjunção do que ainda constitui
a “terceira onda” de democratização em nossa região com uma situação diferente
da anterior, tanto no campo da economia quanto da ideologia. o cabe exagerar
em nenhum deles os aspectos novos e positivos, porém uns e outros são visíveis.
O crescimento econômico, iniciado antes de tudo pela demanda externa de
nossos produtos primários, não traz consigo garantia de permanência, como
alguns lhe atribuíram, nesta ou anteriores versões do fenômeno; no momento em
que escrevemos estas linhas, os especialistas discutem a desaceleração econômica
em escala internacional devido à crise nos Estados Unidos. Em qualquer caso,
porém, a região experimenta cinco longos anos de importante crescimento, que
provavelmente continuará a ser signicativo na perspectiva imediata. Por outro
lado, no nível ideológico, embora o “pós-consenso de Washington conserve um
pouco de seu antecessor, o certo é que aquele infeliz “consenso” o domina
o panorama, como na década passada.
No presente, e sobretudo para um olhar prospectivo, a América do Sul
volta a ser mais do que um dado geográco. Desenham-se na região diversas
opções para a inserção na economia global, mas de uma ou outra forma os
países de maior peso, e especialmente o Brasil, apostam em uma diversicação
produtiva imprescindível para que tal inserção não tenha caráter marcadamente
neo-periférico. A grande questão é saber se as diferenças de estratégias e poder
podem ser compatíveis com uma colaboração que não reproduza para dentro
da região as assimetrias que se busca amenizar no exterior dela.
V. Quatro enfoques a combinar
Quando se aborda uma determinada queso com o propósito de
que a reexão sirva para a ação, costuma ser conveniente combinar quatro
enfoques diferentes porém interconectados: normativo, fático, prospectivo e
propositivo.
O enfoque normativo explicita quais são os valores que se procura
promover, respondendo a perguntas do tipo; que queremos realizar? Isso
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orientaas propostas para ão, que devem obviamente levar bem em conta as
possibilidades reais. O enfoque fático, combinando o empírico e o conceitual,
procura descrever e compreender na medida do possível a realidade na qual se
deseja agir; para captar o que sucede e porque sucede, em relação a qualquer
fenômeno, muitas vezes é imprescindível considerá-lo como um processo; ao
incorporar a dimensão temporal, o enfoque fático se transforma também em
enfoque histórico. A m de propor, é preciso estudar os fatos não apenas em
suas congurações atuais mas também do ponto de vista de suas possíveis
evoluções futuras; o enfoque prospectivo, solidamente baseado na análise do
ocorrido até agora (a prospecção se baseia na retrospecção) aponta para a
captação das principais tendências e dinâmicas em jogo, a m de ter alguma
idéia sobre os cenários do porvir, sem esquecer jamais que este não está escrito,
e sim que se constrói: a tendência não é o destino, repetia Lewis Mumford. A
combinação de valores orientadores, a análise dos fatos e as reexões sobre
os futuros possíveis devem sustentar as sugestões de políticas especícas, o
que constitui a matéria do enfoque propositivo.
As conexões entre os enfoques são múltiplas e bastante evidentes, e
não devem eles ser considerados independentes, porém é importante não
confundir. Em especial, as propostas devem inspirar-se nas aspirações éticas,
mas não podem ser reduzidas a seu enunciado e sim levar em conta tanto a
realidade atual quanto a previsível. Ao revés, não perder de vista o enfoque
normativo nos impele a buscar permanentemente novas formas de ampliar
o espaço do possível.
Em relação ao desenvolvimento do Uruguai, esboçaremos um enfoque
normativo que conjuga critérios gerais com o que acreditamos surge do melhor
que existe na construção coletiva de nosso povo.
Quanto ao primeiro, pensamos no desenvolvimento numa perspectiva
profundamente inuenciada pelas idéias medulares de Amartya Sen. Em sua
visão, a expansão das capacidades e das liberdades constitui tanto a meta do
desenvolvimento quanto sua principal ferramenta. Esse é o ponto de partida,
no entendimento de que se armam tanto as dimensões individuais quanto
as coletivas, o que leva a colocar no mesmo nível a liberdade, a igualdade a
fraternidade, ou solidariedade. Esboça-se assim uma concepção integral do
desenvolvimento, humano e sustentável, que tem especial vigência em nosso
tempo, já que a expansão das capacidades de fazer e criar aponta diretamente
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para a incorporação de conhecimentos e qualicações ao conjunto das práticas
coletivas socialmente valiosas.
Essa concepção normativa do desenvolvimento é “ativista”: trata-se de
ver as pessoas não como pacientes e sim como agentes, arma Sen. Dessa
forma, insinua uma pista propositiva, pois reconhecendo com a maturidade
que deve surgir da experiência histórica o papel tanto do Estado quanto
do mercado, ultrapassa a dicotomia entre concepções mercado-cêntricas e
Estado-cêntricas e realça a importância dos protagonismos variados. Uma
concepção do desenvolvimento centrada nos atores converge naturalmente
com os ensinamentos que emergem dos estudos fáticos sobre os Sistemas de
Inovação nos países medianos e pequenos de maior progresso social.
Ora, uma concepção semelhante do desenvolvimento poderá ter
alguma viabilidade propositiva se tiver sintonia signicativa com os valores
e aspirações da cidadania à qual se dirige. Este é o ponto em que nosso
enfoque normativo se inspira no melhor da tradição uruguaia. Nas horas
mais difíceis da hisria nacional, durante a terrível ditadura sofrida pelo
Uruguai a1984, alguns dos porta-vozes mais eloentes da resistência
democrática, como Wilson Ferreira Aldunate, apelaram para o que a seu juízo
faz com que o nosso seja realmente um país, para manter viva a esperança
em um futuro diferente daquela situação de opbio. Deniam o Uruguai,
no que tem de melhor, a partir da vocação de “viver juntos”, respeitando os
direitos de todos e não esquecendo jamais a frase de um homem humilde de
outrora, que dizia que nesta terra vale a pena viver porque aqui “ninguém é
mais do que ninguém”.
Liberdade, igualdade e solidariedade, como valores compartilhados e
como vias de progresso social: essa é a perspectiva normativa em que nos
localizamos.
VI. O sustentáculo e o peso da história
Observando a realidade uruguaia em uma perspectiva de longo prazo,
tornam-se evidentes certas tendências profundas com inuência considerável
para uma concepção de desenvolvimento como a esboçada acima.
O valor comparativamente elevado conferido à liberdade e à igualdade
encontrou um terreno bastante fértil para crescer, e freqüentemente o fez de
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maneira conitiva e em geral contraditória, porém sem alcançar realizações
comparativamente signicativas. As mais importantes são as ligadas à educão,
o sistema político e a proteção social.
O Uruguai encetou muito cedo na década de 1870 a tarefa de
generalizar o ensino primário “leigo, gratuito e obrigatório”. Os êxitos foram
signicativos. No imaginário coletivo, e também na realidade, a escola pública
é o melhor que a nação construiu em sua história, e o principal apoio da noção
igualitária tão desmentida em múltiplos aspectos – segundo a qual na nossa
terra “ninguém é mais do que ninguém”.
A experiência da educação técnica mostra carências muito maiores,
com impacto duradouro. Inaugurada a Escola de Artes e Ofícios para servir
antes de mais nada a funções correcionais para rapazes “rebeldes”, apesar
de grandes esforços, inclusive os de uma das maiores e mais originais guras
da cultura nacional como Pedro Figari, as dimensões técnicas do ensino não
conseguiram sobrepujar de todo a tradicional sub-valorização do trabalho
manual e tecnológico. Isso tem raízes antigas na cultura dos conquistadores
e foi em certa medida contra-arrestada por certos contingentes de imigrantes
no nal do século XIX, porém não foi realmente revertida.
Se a valorização da educação é um ativo de considerável relevância que
surge de nossa história, a persistente sub-valorização da técnica é bem mais
do que um peso morto.
Do ponto de vista político, o país viveu em estado quase endêmico de
guerra civil nos primeiros três quartos de século de sua vida independente,
de 1830 a 1904; o Uruguai, em seguida tão pacífico na comparação
internacional, foi nessa época um país ensangüentado: a “terra purpúrea”
que Hudson descreveu de forma memorável. Uma conjunção muito especial
de circunstâncias – que em particular incluiu um quase “empate” em matéria
de poder entre os lados tradicionalmente em conito, e outra vez o peso da
imigração cedo possibilitou uma democratização que se tornou bastante
estável. Essa institucionalidade democrática sofreu duas interrupções maiores
uma na década de 1930 e outra muito pior e evocada, na de 1970 e
de ambas a nação emergiu valorizando mais a democracia do que na etapa
precedente. Nesse legado da história sustentou-se a transição sem sobressaltos,
concretizada em março de 2005, quando a esquerda assumiu pela primeira
vez o governo nacional.
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Antes de 1920 o Uruguai era o que hoje se costuma chamar social-
democracia, quando o nome tinha outras conotações. Sua gura emblemática é
certamente José Battle y Ordoñez, o Presidente durante cujo primeiro mandato
(1903-1907) terminou de fato o ciclo de guerras civis e com o qual se associa
o reformismo social que ele impulsionou com especial vigor em seu segundo
mandato (1911-1915). Deu seu nome ao “battlismo”, que é auto-identicação
da maior parte dos governos uruguaios durante o século passado, porém que
é bastante mais do que isso. Designa uma expectativa amplamente difundida,
e com signicativo apoio nos fatos, de que o Estado deve e pode redistribuir
a riqueza de maneira a reduzir desigualdades e assegurar certo bem-estar
básico a todos; supõe uma ativa disposição a organizar formas coletivas para
reclamar e também lutar em prol das reivindicões setoriais diante dos poderes
públicos; inclui, em geral, uma vocação de combinar mobilização e negociação,
com não pouca habilidade para tecer acordos e não demasiadas esperanças
em mudanças radicais. Essa atitude genérica sempre teve fortes adversários,
porém em geral tem sido a predominante.
Se para entender a Argentina é preciso compreender o que é o peronismo
– coisa nada fácil – para entender o Uruguai é preciso assumir que o país foi
“battlista” e não deixou de -lo. Hoje, quando chegou a ser muito minoritário o
tradicional Partido Colorado, do qual José Battle y Ordoñez foi o líder principal,
porém não indiscutido, durante quase três décadas, é notável comprovar que
idéias e atitudes “battlistas” são notórias não apenas no setor majoritário da
outra força política, o Partido Nacional ou Partido Blanco, senão também na
maior parte da Frente Ampla atualmente no governo, surgido como frente
popular bastante sui generis em 1971 e que agrupa quase toda a esquerda.
Na realidade, os traços mais usualmente vinculados a semelhante
estilo político se consolidaram não durante o período de fundação e sim no
denominado “segundo battlismo”, associado em particular a Luís Battle,
sobrinho do fundador, que também chegou à Presidência e foi provavelmente
a gura política mais ponderável da política nacional entre 1947 e 1958. Essa
foi no Uruguai a “época de ouro” da industrialização mediante substituição
de importações (ISI), da proteção nacional e da auto-satisfação nacional.
Muitos achavam que tinham a oportunidade de viver em um “país modelo”;
não faltavam motivos para semelhante apreciação, particularmente em uma
perspectiva comparativa, mas o exagero chegou a ser paralisante. Expressou-o
uma gura emblemática do período, armando que embora se dissesse que o
Rodrigo Arocena
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Uruguai era a Suíça da América, em uma viagem ao Velho Mundo ele havia
podido comprovar que realmente a Suíça era o Uruguai da Europa. A gura
máxima da “consciência crítica”, nessa época minoritária, Carlos Quijano,
armou oportunamente, em relação ao otimismo ambiente, que viviam-se
“anos de bovina euforia”.
O Uruguai havia antes conhecido uma industrialização precoce
diretamente ligada a impulsos de imigrantes, assim como em outros países
ocorreram experiências semelhantes. Quando em quase toda a região a ISI
cobrou alento, após a crise dos anos 30, seu impacto econômico e social
foi muito grande em nosso país. Armou-se a vocação industrializadora do
“battlismo”, cresceram a participação das manufaturas na produção total
e a inuência política do empresariado do setor, foi se fortalecendo um
sindicalismo independente do governo e com fortes bases em frigorícos e
fábricas, como as têxteis e metalúrgicas.
Mas o país foi também o exemplo do “protecionismo frívolo”, que
seguindo o no exame de Fernando Fajnzylber caracterizou a “industrialização
truncada” da América Latina. Como mostra a experiência de absolutamente
todos os países que construíram uma sólida base industrial moderna, de uma
ou de outra maneira é preciso proteger a instria nascente. A questão relevante
é na verdade outra: refere-se ao tipo de proteção, aos prazos, contrapartidas
e metas. Em nosso continente foi freqüente a prática de um protecionismo
que induzia mais a concentrar energias na busca de mais proteção do que em
aprender a produzir melhor, com tecnologia mais avançada, organização mais
adequada e envolvimento dos trabalhadores. Sempre segundo Fajnzylber, os
países do leste asiático cujo desenvolvimento industrial assombrou o mundo
na segunda metade do século XX praticaram um “protecionismo para o
aprendizado”, exigente e evolutivo à medida que as circunstâncias mudavam, o
que colaborou para a decolagem da industrialização e para evitar que chegasse
a truncar-se, como em considerável medida embora menor do que se
tornou moda dizer na década de 80 – sucedeu com a ISI latino-americana. A
importância da aprendizagem como núcleo do desenvolvimento econômico
foi vigorosamente exposta em um recente livro de Alice Amsden, que contém
uma eloqüente reivindicação da ISI na formulação de Raúl Prebisch.
Voltando ao Uruguai, notemos que a proteção à indústria teve, em conjunto,
um efeito positivo em matéria de igualdade e redistribuição. Ampliou-se o
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224
emprego em setores relativamente modernos, com melhor retribuição e proteção
social. Pequenos e micro empresários puderam expandir suas atividades.
Em conjunto, tanto a proteção social quanto a proteção à produção
melhoraram as condições de vida das pessoas e armaram a vocação
igualitarista do país. Em linhas gerais, porém, ambas fomentaram atitudes
reativas e reivindicativas, mais do que proativas e criativas. A bem-vinda
proteção social não foi vinculada com o impulso à capacitação e à formação.
A imprescindível proteção industrial pouco se vinculou com o fomento da
inovação técnico-produtiva. A signicativa expansão da educação pouco
se conectou com os mundos do trabalho e da produção. A não menos
signicativa promoção da cultura deu pouco espaço à ciência e quase
nenhum à tecnologia.
Um estudo comparativo entre a Escandinávia e três países do Cone
Sul Argentina, Brasil e Uruguai sustenta, com sólida base empírica,
que as diferenças em matéria de (des)igualdade constituem a principal
explicação das diferentes trajetórias em matéria de desenvolvimento.
Acreditamos que a conclusão seja relevante, porém deve ser anada. Com
efeito, o Uruguai não é um país comparativamente muito desigual. Dito
com muita brevidade, sugerimos que a principal diferea entre nosso país
e os escandinavos está nas diferentes formas predominantes de enfrentar
a desigualdade, coisa que eticamente entendemos em qualquer caso muito
valiosa. formas que estimulam as capacidades individuais e coletivas para
aprender, criar e trabalhar inovadoramente, o que abre espaços para novos
avanços na redução da desigualdade; a elas chamamos formas de igualdade
proativa. Há outras formas de aliviar a desigualdade que não estimulam a
vocação de ser agentes, ou a induzem essencialmente no que tem a ver
com a redistribuição, e bastante menos no que se refere à produção e à
criação técnica, institucional, educacional e cultural em geral; essas formas
de igualdade reativa são dicilmente sustentáveis no longo prazo, salvo talvez
se a “loteria dos recursos naturais” de que fala Bulmer-Thoas proporcionar
ganhos vultosos e duradouros.
Em suma, a retrospectiva sugere que a constrão do futuro tem
no Uruguai um sólido sustentáculo na experiência nacional de enfrentar a
desigualdade, porém também um peso morto nas formas reativas da igualdade
que têm sido as predominantes.
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VII. No Uruguai de hoje
Depois de uma crise realmente muito grave, que no ano de 2002 atingiu
cores dramáticas, a economia uruguaia se recuperou de maneira notável e nos
últimos três anos vem crescendo a uma média de 7% anuais, o que é realmente
incomum para o país.
A crise acentuou uma tendência, de duração bastante longa, de crescimento
da oposição das esquerdas. A Frente Ampla (FA) obteve 21% do eleitorado em
1989, quando conquistou a prefeitura da capital, Montevidéu, onde vive não
muito menos da metade da população e cujo controle conserva desde então.
Chegou a 30% em 1994, o que levou seus adversários a considerá-la com boa
dose de razão como o mais provável vencedor das eleições seguintes, e por
isso mudaram a Constituição para introduzir o segundo turno. Em 1999 a FA,
com 40% dos votos, obteve a maioria inicial no primeiro turno das eleições,
mas foi derrotada no segundo. Em 2004 triunfou com maioria absoluta no
primeiro turno, em meio a imensa manifestação de júbilo popular, que se
repetiu quando o Presidente eleito, Tabaré Vázquez, assumiu o cargo em 1
de março de 2005.
Várias mudanças marcaram esses primeiros três anos de governo da
esquerda na história do Uruguai.
A investigação dos crimes da ditadura, praticamente bloqueada nos vinte
anos anteriores, adquiriu signicativo vigor. Foi compilado um importante
relatório sobre o ocorrido com os desaparecidos, os restos mortais foram
procurados com grande tenacidade, foram exumados os de duas pessoas
mortas sob tortura, abriram-se possibilidades até o momento inexistentes para
julgar os responsáveis pelos crimes do período ditatorial e vários deles foram
processados, inclusive o Presidente que cheou o golpe de Estado de 1973.
Outro âmbito no qual se registraram avanços substanciais se refere à
situação dos setores mais carentes, que a crise havia ampliado signicativamente.
Vencendo o poucas diculdades, o Plano Nacional de Ateão à Emergência
Social (cuja sigla, note-se, é Panes) colaborou para reverter a tendência, levando
ajuda direta a muitas famílias, com contrapartidas que incluem o envio efetivo
das crianças à escola. O Panes está sendo convertido em Plano de Eqüidade,
que conserva a preocupação pela educação da população esquecida e acentua
a busca de inserção empregatícia para ela.
O Uruguai e as linhas divisórias da aprendizagem
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226
Embora ainda sejam demasiadamente visíveis os traços da miséria, a
situação social melhorou consideravelmente, devido a fatores econômicos e de
política social já mencionados e a outros, entre os quais cabe destacar a nova
política relativa aos sindicatos. Estes tiveram que afrontar condições bastante
difíceis a partir de 1990, em particular porque o Estado deixou de convocar a
negociação tripartite sobre salários e outros aspectos das relações trabalhistas,
mas também porque a perseguição sindical em diversos âmbitos enfrentou
poucos obstáculos de parte do governo. Em ambos aspectos a política ocial
mudou visivelmente, o que fez aumentar vertiginosamente a sindicalização e
melhoraram as condições de trabalho.
Contribuiu para isso, sem dúvida, a evolução econômica e a conseqüente
redução do desemprego, mais lenta, no entanto, do que o incremento da
produção, mostrando um novo exemplo desse crescimento com diculdades
para gerar empregos, que é uma tendência profunda das dinâmicas
contemporâneas.
Os fatores citados contribuíram para um aumento do salário real, sem
dúvida desigual, porém também importante.
A ppria geso da potica macro-econômica mereceu certas críticas. Por
exemplo, de certa perspectiva questiona-se o aumento das despesas; de outra,
um certo viés contrativo na política cambial e monetária. Não foi questionada,
no entanto, a competência técnica daqueles que conduzem essa política, que
em seu conjunto goza de importante aprovação.
Não ocorre o mesmo com os anúncios ociais sobre o início de um
“país produtivo”, pois as políticas a ele vinculadas não chegaram realmente
a concretizar-se.
Sem desprezar esse fato, a estrutura produtiva do país está mudando
no quadro de uma rearmão do papel dos recursos naturais, o que se
verica claramente no caso da agricultura de exportão, exemplicada
particularmente pela soja, e mais ainda pela expansão combinada do
reorestamento e fabricão de celulose. Nessas rubricas verica-se um
investimento estrangeiro comparativamente elevado, que apenas alivia a
baixa contribuão nacional na maria, com o que o investimento total
historicamente escasso de nossa economia não mostra grande reversão nesta
etapa de aumento grande e inesperado.
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Duas reformas “estruturaiscentralizam a ateão e o debate no Uruguai
de hoje. A mais ambiciosa é a criação do Sistema Nacional Integrado de Saúde,
sobre cujo impacto social positivo cabe ser otimista, embora à primeira vista
as diculdades de gestão se mostrem grandes; caso se consiga administrá-las
de maneira solvente, será a grande reforma deste período.
Na atualidade as polêmicas se centralizam em torno de certas decisões
judiciais que não permitiriam aplicar aos aposentados o imposto de renda
a pessoas físicas, outra reforma na qual o governo apostou muito, e cujos
resultados efetivos ainda são difíceis de estimar.
Em 2009 haverá eleições presidenciais e legislativas; antes devem realizar-
se eleições internas nos partidos e em conseqüência no próximo outono
estaremos em plena atividade eleitoral. Neste momento, a popularidade do
Presidente da República se mantém alta, mas a intenção de voto no partido
do governo diminuiu e é um tanto inferior à soma das intenções de voto nos
demais partidos, o que abre uma área de incerteza sobre o resultado eleitoral
bastante mais ampla do que a percebida um ano atrás.
Em suma, o que se pode ou não fazer durante os próximos doze meses
terá portanto peso especial tanto no saldo deste governo como na denição
do que o sucederá.
VIII. Um problema não resolvido
No início dos anos 90, e com menor vigor no início da década seguinte,
o governo impulsionou um projeto de claras características neo-liberais. Os
resultados foram mistos. Se for comparada com o passado do próprio país,
a transformação não foi nada menor, mas se a comparação for feita com a
região, deve-se dizer que o liberalismo cou bastante embotado no Uruguai
“battlista”.
A mudança de governo em 2005 supôs uma alteração menor no
aspecto ideológico. Pois bem, nos tempos do “pós-consenso de Washington”
as possibilidades objetivas para modicar drasticamente o rumo não são
demasiado grandes, especialmente para os países pequenos. Neste ponto
retornamos às considerações das primeiras seções, especialmente as referentes
às perspectivas da região sul-americana.
O Uruguai e as linhas divisórias da aprendizagem
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228
Um terreno no qual o atual governo uruguaio experimentou profunda
decepção foi o das relações regionais. Eram muito grandes as esperanças
depositadas em um Mercosul com governos considerados muito ans. Sem
pretender em absoluto atribuir responsabilidades quanto a isso, o certo é que a
realidade não correspondeu às expectativas. Um inesperado conito em torno
da instalação de uma fábrica de celulose em nossa margem do rio Uruguai
levou as relações com a Argentina ao pior nível em muito tempo. Embora
não se tenha registrado nenhum conito importante com o Brasil, que voltou
a ser nosso principal sócio comercial, as esperanças depositadas nas relações
com nosso grande vizinho do norte se desvaneceram muito.
Por outro lado, o governo uruguaio tentou construir um estreito
relacionamento com os Estados Unidos, chegando a colocar-se a possibilidade
de assinatura de um Tratado de Livre Comércio, o que não é compatível com
a participação no Mercosul, e embora suscite grande apoio nos partidos de
oposição, forte opinião contrária no próprio partido do governo. O certo é
que, após intenso debate em escala nacional, o Presidente Vázquez descartou
essa possibilidade em ns de 2006, mas não deixou de impulsionar uma
colaboração maior com os Estados Unidos.
Assim, a estratégia de inseão internacional é não apenas uma queso
fundamental o resolvida mas também uma grande fonte de incerteza.
Muito esquematicamente, é dicil aos partidários do Mercosul como espaço
privilegiado para uma estratégia de longo prazo encontrar argumentos favoráveis
na perspectiva de curto prazo, enquanto para os que recomendam olhar mais o
mundo do que a rego as eventuais vantagens de curto prazo não o sucientes
para provar a sustentabilidade de tal estratégia no longo prazo.
IX. Cenários para o amanhã
Quando passamos de uma sumária recapitulação de processos e fatos
relevantes de ontem e de hoje a uma incursão prospectiva, um dos principais
fatores para distinguir futuros diferentes é justamente o que vier a suceder
com a inserção externa do país.
Recentemente editamos, com Gerardo Caetano, um volume coletivo
intitulado “Uruguay. Agenda 2020”, em cuja recapitulação nal analisamos
cenários diferentes em função da evolução da desigualdade social e a distinção,
Rodrigo Arocena
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229
resumida mais acima, entre formas relativas e proativas da igualdade. O ponto
de partida para isso é a famosa tese de Fajnzylber segundo a qual, nas diferentes
combinações entre desigualdade alta e baixa com crescimento lento ou rápido,
na América Latina há um “escaninho vazio”, pois não se registram exemplos
que combinem de maneira sustentada a baixa desigualdade com o crescimento
rápido. O mais apaixonante do momento atual é que talvez esse escaninho
possa começar a ser preenchido, com o que nossas sociedades serão menos
injustas e seu desenvolvimento integral mais possível.
No caso do Uruguai, se fosse possível apenas aspirar a uma inserção
externa que não fosse parte de uma estratégia regional compartilhada
chamêmo-la inserção solitária a evolução da demanda internacional dos
produtos primários teria gravitação decisiva e dicilmente haveria grandes
estímulos objetivos para uma expansão sustentada das capacidades, a inovação
e a incorporação tanto de conhecimentos quanto de qualicações avançadas
no conjunto da produção de bens e serviços. Em tais hipóteses, mantida a
bonança do componente externo, a tradição social e política do país indicaria
um reforço da igualdade, porém com caráter predominantemente reativo,
enquanto que a deterioração das circunstâncias externas se traduziria em maior
desigualdade e lento crescimento.
Caso, ao contrário, fosse sendo gestada uma inserção a partir da
cooperação na escala do Mercosul ou da região sul-americana isto é, uma
integração para o desenvolvimentoisso abriria possibilidades para a expansão das
capacidades, ainda que não se mantenha a bonança externa, enquanto que caso
esta última continue a ser favorável o escaninho vazio poderia começar a ser
preenchido com a igualdade proativa. Em resumo, cabe apresentar o seguinte
quadro de cenários alternativos, sem dúvida demasiado esquemático:
Inserção solitária
Integração para o
desenvolvimento
Conjuntura externa
desfavorável
Desigualdade em aumento
e crescimento lento
Expansão das capacidades num
contexto de diculdades
Conjuntura externa
favorável
Igualdade reativa e
crescimento com escasso
desenvolvimento
Igualdade proativa, crescimento
rápido com desenvolvimento
autêntico
O esquema poderia e deveria enriquecer-se consideravelmente; a
formulação aqui apresentada não pretende mais do que sugerir um enfoque.
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X. A própria responsabilidade
Em nível propositivo, parece razoável restringir a área onde trabalhamos,
o mundo da educão, e mais especicamente a Universidade da República.
Essa é a única universidade pública do Uruguai, tem mais de oitenta mil
estudantes, é responsável pela maior parte da criação de conhecimentos
que se realiza no país e tem uma parcela de autonomia muito signicativa.
Sua responsabilidade em enfrentar aslinhas divirias da aprendizagem
é portanto grande.
Na instituição procura-se impulsionar um novo processo de reforma
universitária, inspirado pela tradição de compromisso com a sociedade
que consideramos ser o melhor do ideal latino-americano de universidade
oriundo desse movimento de escala continental que se conhece como
reforma de Córdoba.
A meta fundamental da nova reforma deveria ser a generalização do
ensino avaado, de qualidade e ligada com o trabalho ao longo da vida
inteira. Em termos da tradição uruguaia, uma transformão de semelhante
calibre não é mais ambiciosa nem menos necesria do que a proposta em
ns do século XIX para a generalização do ensino primário, cuja efetiva
realização constitui um dos maiores apoios que o país possui em sua hisria
para a construção do futuro.
Enfrentar o hiato da matrículaexige ampliar de maneira sustentada
as oportunidades de estudar em alto nível , o que por sua vez demanda uma
profunda transformação da educação. A esse respeito, três eixos devem ser
destacados: i) uma ênfase renovada no ensino ativo, no qual os protagonistas
principais da educação são, individual e coletivamente, aqueles que aprendem;
ii) uma ampla diversicação das modalidades e das instituições de ensino;
e iii) muito particularmente uma crescente conexão entre os mundos da
educação e do trabalho. Para ensinar fomentando realmente as capacidades
de fazer coisas novas, e durante toda a vida ativa, é preciso combinar o
que se faz nas aulas tradicionais com um aproveitamento amplo dessas
verdadeiras “aulas potenciais” que estão em todos os âmbitos – hospitais,
granjas, bricas, laboratórios, estudos prossionais, meios de comunicação,
serviços públicos, centros de turismo sustentável, etc. onde uma tarefa
socialmente valiosa é desempenhada de maneira eciente.
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O sugerido faz a conexão entre enfrentar a primeira dimensão das linhas
divisórias do aprendizado, o hiato da matrícula, com a tarefa de superar a
segunda, o hiato da ocupação qualicada.
Nessa perspectiva desempenha um papel central a revalorização de um
componente denidor do ideal latino-americano de universidade, a extensão
universitária. Entendida como colaboração da universidade com outros atores
coletivos para a criação cultural e o uso socialmente valioso do conhecimento,
a extensão deveria chegar a fazer parte da formação oferecida a todos os
estudantes, pois isso signicaria: i) uma oportunidade de servir à nação que lhes
oferece educação terciária gratuita; ii) uma vinculação precoce com a sociedade,
com particular atenção aos setores esquecidos; iii) um ensino vinculado com a
solução de problemas, e iv) uma oportunidade de mostrar o que podem fazer
os jovens altamente qualicados.
Consideremos portanto a extensão como o componente ético da
formação universitária, que pode constituir uma grande contribuição para a
superação de ambas as dimensões das linhas divisórias da aprendizagem.
É claro que a extensão é imaginada em estreita conexão com o
ensino e a pesquisa, assim como com a busca de soluções novas para os
problemas da prática, isto é, com a inovação. É um dado registrado da
realidade que em toda a Arica Latina, e muito especialmente no Uruguai,
uma contribuição maior à criação do conhecimento provém da pesquisa
universiria. Por conseguinte, a vinculão das capacidades universitárias
para pesquisar e inovar com as políticas produtivas e, o que habitualmente
é menos enfatizado, com as políticas sociais, é uma questão chave para o
desenvolvimento, entendido como expansão das capacidades e liberdades a
partir do fomento da igualdade proativa.
No mundo inteiro assiste-se ao que não seria exagerado qualicar
como combate pela alma da universidade: qual é a missão que a dene? A
antiga questão se coloca com renovada relevância devido ao novo inuxo
do conhecimento no conjunto das relações sociais. Nesse grande debate
sobre o papel das instituições de ensino superior, certas posições privilegiam
a contribuição ao crescimento econômico sem maior preocupação com a
mudança social, chegando a propor como idéia-força a noção de “universidade
empresarial”; outras posições reivindicam, ao contrário, o ideal universitário
tradicional, referido somente aos valores propriamente acadêmicos. A partir
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da periferia, buscamos uma alternativa própria, esboçada pela não de
“universidade para o desenvolvimento”.
XI – Em direção a um projeto de nação
No Uruguai, esboçou-se um século um projeto de nação democrática
e igualitária que inspirou não poucos esforços frutíferos, em particular a
conjunção de energias para a recuperação das liberdades políticas nas ocasiões
em que estas foram avassaladas. Mas o fato de que chegamos a ser considerados
um “país modelo” gerou um duplo equívoco: primeiro o de acreditar na auto-
suciência nacional e mais tarde a de bordejar a paralisante auto-satisfação.
Quando, desde o nal da década de 1950, a “Suíça da América” começou
a desfazer-se, a tônica espiritual dominante iniciou um trânsito a partir do
otimismo fácil e até frívolo em direção a um pessimismo pouco estimulante,
pois mais ou menos explicitamente presume que o país não pode ser melhor
do que foi. Em conseqüência, a proposta implícita costuma ser o retorno
ao passado, o que simplesmente não é viável e, em nosso entender, tampouco
é grandemente desejável.
O notável do período atual é que, em termos tanto materiais quanto
espirituais, abriram-se no Uruguai possibilidades nada desprezíveis para
empreender o caminho de um novo desenvolvimento, que se inspire no melhor
do passado e tire partido das condições objetivas do presente.
A resposta vinda da periferia à nova imporncia do conhecimento
terá de dirigir-se para construir sociedades de aprendizagem. Enfrentar hoje o
subdesenvolvimento exige muito especialmente conjugar os protagonismos
de variados atores para expandir as capacidades e aprender, nas práticas
compartilhadas, a resolver velhos e novos problemas. Essa conjugação de
esforços é bastante viável no pequeno país de rica tradição democrática que é
o Uruguai, onde mais de uma vez iniciativas surgidas da espessura da sociedade
civil demonstraram seu vigor.
Se as capacidades políticas internas marcam um rumo claro e caso se
congure na região uma integração para o desenvolvimento, poderia tomar
corpo um novo projeto nacional, o de construir um país de aprendizagem
estreitamente integrado na América do Sul.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
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A integração
energética da América
Latina e Caribe
María A. Hernández-Barbarito
*
O
tema da integração energética da América Latina e Caribe se insere no
debate que vincula a energia com o desenvolvimento integral, independente e
soberano dos povos, bimio que determina o desenvolvimento econômico da
humanidade. Esse enfoque encerra a variável ambiental, expressão da qualidade
de vida, da permanência das identidades culturais, dos níveis de deterioração
e esgotamento de recursos; tudo isso reete a capacidade de sobrevivência
dos componentes tanveis e intangíveis pprios da humanidade. D a
necessidade em avaliar as perspectivas da integração energética regional
com base na concepção de progresso integral, entendido como processo
econômico-social necessário para garantir a superação da pobreza, o equilíbrio
ecológico, a melhoria da qualidade de vida com justiça social, independência,
soberania e respeito às identidades culturais. A proposta venezuelana que vem
se concretizando na Petrocaribe, Petrosur e Petroandina se inscreve nessa
moldura e está contida na Alternativa Bolivariana para os povos da América.
Seus progressos são muitos e seus desaos são ainda maiores. Esta análise
* Instituto de Altos Estudos Diplomáticos Pedro Güal, Venezuela.
A integração energética da América Latina e Caribe
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234
os levará em conta mediante o prisma do desenvolvimento integral a m de
avaliar o caminho percorrido e apresentar algumas linhas de ação para sua
consolidação, em benefício dos povos da América Latina e do Caribe.
1. A relação energia-desenvolvimento e ambiente
Para refletirmos sobre esse vínculo, devemos recordar o papel
desempenhado pela energia animal da revolução agrária anterior à revolução
industrial, pelos moinhos de vento na indústria têxtil e pelo carvão
primeiro vegetal e depois mineral no impulso denitivo em direção ao
desenvolvimento das manufaturas e do transporte, junto com a máquina a
vapor (Paul Bairoch. La Revolución Industrial y el subdesarrollo, 1967), a qual foi
seguida pelo motor a combustão e o petróleo, que originaram a revolução do
automóvel e dos eletrodomésticos no início do século XX, modelo energético
em vigor até hoje, com um componente tecnológico importante como a
eletrônica e as comunicações.
Se, porém, a carência de energia tem sido em geral um obstáculo ao
desenvolvimento, sua abundância nem sempre tem gerado progressos e bem-
estar. Esse é o caso dos países petroferos subdesenvolvidos, cujos rendimentos
os levaram a construir sociedades desiguais, altamente vulneráveis a partir do
exterior. Tampouco a presença da energia nos países desenvolvidos mostra
haver-se produzido essa evolução equilibradamente que a busca da crescente
acumulão de capital provocou a exaurição desses recursos não-renoveis, com
suas seqüelas no ambiente natural e na qualidade de vida dos seres humanos.
Disso decorre que toda proposta relativa a desenvolvimento precisa evitar
reproduzir a nefasta ligação entre crescimento econômico e contaminação, entre
crescimento e exaustação de recursos não-renováveis como indica a história
da indústria petrolífera dos Estados Unidos, país que tem um gradativo décit
de petróleo, os mais elevados custos de produção e uma postura internacional
contrária à proteção ambiental, revelada em sua negativa de rmar o Protocolo
de Quioto, destinado a controlar as emissões de gases CO2 à atmosfera. Uma
pequena história conrma o que foi dito acima:
O estímulo ostensivo à extração do petróleo bruto origina-se na Lei de
Propriedade, que dava a propriedade do recurso àquele que o extraía e não
ao dono da jazida, o que estimulou a superperfuração de poços para sua
María A. Hernández-Barbarito
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extração; essa foi a causa do esgotamento posterior das reservas petrolíferas
nos Estados Unidos, junto com o estímulo ao consumo intensivo. Mais
adiante, a política petrolífera dos Estados Unidos se orientou mais para
evitar a superprodução que a preservar o recurso. Desse modo, foi aprovada
a lei de rateio para nivelar a oferta à procura e evitar a baixa de preços, com
as conseqüentes reduções na acumulação de capitais para os monolios
petrolíferos em formação. Finalmente, os programas de importações se
orientaram segundo o mesmo critério de equilibrar o mercado e garantir
preços estáveis para o renador, evitando ao mesmo tempo o m das
atividades internas de produção por carência de competitividade. Somente
se comou a falar em racionalidade energética por causa da crise dos anos
70, mas sem alterar o maco consumo de bens. (Hernandez-Barbarito,
Karam, Ramirez e outros, 2005).
Para reetirmos sobre o tema, selecionamos, entre as várias possibilidades,
um analista francês classicado como marxista-ecologista. Trata-se de André
Gorz, cujas idéias inspiradoras estão contidas em seu livro Ecologia e Política
(1982). Essa escolha não pretende ignorar o pensamento inicialmente sintetizado
por Ramón Tamames em seu livro Ambiente y Desarrollo (1982), que recolhe o
debate do Clube de Roma sobre Crescimento Zero, as diversas contribuições
ao tema e os esforços internacionais para debater o problema a partir da
Conferência de Estocolmo, dos anos 70, da qual surgiu a idéia da criação de
um Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Gorz, porém, vai
mais adiante ao discutir a racionalidade do chamado “desenvolvimento” e a
necessidade de superá-lo, agindo contra a inclinação à acumulação de capitais,
própria do capitalismo e de alguns socialismos. Em suas “sete teses à maneira
de conclusão” destacam-se estes pontos, que resumimos:
A causa da crise do capitalismo é um superdesenvolvimento das
capacidades de produção e a destrutividade geradora de escassez.
Essa crise pode ser superada por uma nova forma de produção que,
rompendo com a racionalidade econômica, se apóie na poupança de
recursos e na economia de energia;
A superação da racionalidade econômica e a redução do consumo podem
ser feitas por meio do tecnofascismo, ou da auto-regulamentação. O
primeiro será evitado na hipótese de se revigorar a sociedade civil
e a soberania das comunidades de base;
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A união entre o mais e o melhor se desfez. O melhor pode ser obtido
com menos. Pode-se viver melhor trabalhando e consumindo menos,
sob a condição de produzir bens mais duradouros que não engendrem
nem contaminação nem escassez e a que todos possam ter acesso;
A causa da pobreza nos países ricos não é a insuciência da produção
mas a natureza dos bens produzidos e a maneira de produzi-los e
distribuí-los. A pobreza pode ser extinta se deixarmos de produzir
riquezas escassas, isto é, reservadas e exclusivas;
O desemprego nas sociedades ricas reete a redução do tempo de
trabalho socialmente necessário. Mostra que todos poderiam trabalhar
muito menos com a condição de que todos trabalhassem. Admitir
remuneração igual para todos os trabalhos socialmente necessários é
o caminho para superar a pobreza; para tanto se deve também realizar
a repartição do trabalho entre todos os que são aptos;
Ao reduzir o trabalho para produzir somente o que é socialmente
necessário, expandir-se-iam as atividades autocriadas e livres. A
produção de uma variedade xa de bens e serviços poderia ser feita
no quadro de organizações de autogestão como as cooperativas, e
A uniformidade do modelo de consumo e de vida se esvanecerá
simultaneamente com as desigualdades sociais. Os indivíduos se
diferenciarão como conseqüência das variegadas formas que vierem
a escolher para empregar seu tempo livre e não dos seus ganhos ou
seus poderes. O uso das capacidades e criatividade no decurso das
horas livres será a única origem de riquezas.
Gorz conclui suas recomendões fazendo uma convocação para
trabalhar menos, consumir melhor e integrar a cultura à vida quotidiana.
Por isso, ao apresentarmos e avaliar o processo experimentado pela
Petroamérica, desejamos fazê-lo com um critério integral para destacar e
enfatizar os objetivos que ainda esperam ser atendidos a m de que a região se
dirija verdadeiramente no sentido de um desenvolvimento integral sustentável.
(Lolola Hernández-Barbarito. Petroamérica y la integración energética de América
Latina y el Caribe, 2007).
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2. A integração regional como alternativa
A garantia do progresso total se acha na integração dos povos, agora
mais que nunca, pois agora vemos a globalização neoliberal propondo-se a
apagar fronteiras, identidades e soberanias, impondo a transnacionalização
do capital para a satisfação das necessidades induzidas pela veloz e voraz
acumulação do capital. A pluripolaridade, única tendência capaz de sustar o
unilateralismo, fez surgir blocos de poder para garantir o equilíbrio. A América
Latina e o Caribe constituem um desses blocos, e, por isso, a integração, idéia
concebida por Raúl Prebisch, desenvolvida pela Cepal e aplicada por todos
os países numa concepção economicista que deu origem ao Mercado Comum
Centro-americano, à Alalc-Aladi, Comunidade Andina de Nações e Mercosul,
entre as mais importantes experiências, enfrentou no passado sua avaliação
por meio do prisma do próprio Raúl Prebisch, que destacou a precisão de
complementá-la com os critérios de justiça social mediante a distribuição dos
excedentes (1980). Hoje a medimos à luz de seus êxitos e de sua capacidade
real de integrar os povos. Lamentavelmente, o saldo não é favorável, motivo
pelo qual persiste a busca: Comunidade de Nações? União do Sul?
Face a todo esse complicado processo emerge uma moção de integração
energética e uma nova forma de concebê-la inspirada no sonho integracionista
dos libertadores Simón Bolívar e José Martí, para mencionar apenas dois dos
próceres de nossa América. Ela vem progredindo impulsionada pela precisão
de satisfazer as exigências energéticas, e assim nasceram a Petroamérica, a
Petrocaribe, a Petrosur e a Petroandina; não é, porém, inspirada em uma
concepção tecnicista nem mercantilista e, sim, na Alternativa Bolivariana para
os Povos da América a ALBA, a sua base ideológica e de princípios entre
os quais se destacam a solidariedade social e a complementaridade econômica
para conquistar a segurança alimentar e energética. Daí provém a prática de
impulsionar simultaneamente o comércio justo dos hidrocarbonetos e da energia
em geral, investimentos em infra-estrutura energética, como são os tanques
de armazenamento, centrais elétricas, renarias, transporte, com programas
de alfabetização e atenção à saúde. Esse novo binômio procura igualmente
impulsionar a independência nanceira da região com o Banco do Sul e o
Banco da ALBA a m de substituir o FMI e o Banco Mundial e Interamericano
(BID). Motivada pelo resgate do aspecto cultural, nasceu também a Telesur
como opção para garantir o direito de nossos povos a proteger suas identidades
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e a obter informação veraz assim como a idéia da Universidade do Sul para
formar quadros comprometidos com a transformação social do subcontinente.
Os povos da América Latina e do Caribe, que não haviam podido sonhar com
a superação do subdesenvolvimento e da sua dependência, fazem-no agora
inspirados na construção de modelos próprios coincidentes na necessidade
de gerar justiça social. Nesse aspecto se pronunciou o Presidente Chávez na
XXI Cúpula do Mercosul em Cochabamba, em dezembro de 2006, quando
se acordou celebrar em Caracas a I Cúpula Energética Latino-americana no
mês de abril: “Estamos construindo, porém de verdade, de maneira estrutural,
a integração de que necessitamos” (Pdvsa Avances, 21-01-2007).
3. Nascimento da Petroamérica no quadro da ALBA
O projeto Petroamérica, entendido como a proposta para integração de
energia que a República Bolivariana da Venezuela oferece à região da América
Latina e do Caribe, teve grande impulso a partir de 2005 e vem avançando
aceleradamente mediante as três figuras que a compõem: Petrocaribe,
Petrosur e Petroandina, essa última recebendo novo alento com a chegada de
Evo Morales ao governo da Bolívia e de Rafael Correa à república-irdo
Equador. Participam da Petrocaribe todas as nações insulares, com exceção de
Barbados e de Trinidad e Tobago. Barbados está vinculado a Trinidad e Tobago
por convênios de reno: se rena o seu petróleo. Trinidad e Tobago, por
sua vez, tem compromissos com o capital transnacional. Governos centro-
americanos igualmente se têm associado, e, em sua ausência, municípios e
governos setoriais, graças à chamada diplomacia indireta, que pôde beneciar
essas populações com o abastecimento de eletricidade e combustíveis para
transporte público, a preços solidários e condições de pagamento favoráveis. A
Petrosur reúne os acordos com os países do Mercosul, e a Petroandina, devido
aos compromissos atuais e/ou potenciais com os Estados Unidos, por motivo
dos Tratados de Livre Comércio, teve de atuar em níveis bilaterais.
Sendo inicialmente uma proposta visando à cooperação para facilitar a
aquisição de energia pelos países dessa área do continente, o projeto lançou
a idéia de um Gasoduto do Sul, em fase de reexão, e de um Gasoduto
Transcaribenho; concretizou projetos para construção e remodelação de
renarias no Brasil, Argentina, Cuba, Equador, Nicagua e Jamaica, entre outros;
projetos petroquímicos entre o Brasil e a Venezuela; elevação da capacidade de
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armazenamento nos países do Caribe, importadores líquidos de petróleo; oferta
de transporte a custo de frete; instalação de usinas produtoras de eletricidade
e moinhos de vento; políticas de racionalidade energética; proposta de criação
da Opegasur e participação de países como Argentina, Brasil e Uruguai nos
blocos Carabobo e Ayacucho da Faixa Petrolífera do Orinoco, etc.
A Alternativa Bolivariana para os Povos da América, ALBA, que funda
a proposta-quadro de princípios, surgiu em dezembro de 2004 em Havana,
Cuba, com o m de lutar contra a pobreza e as assimetrias, em defesa da
segurança alimentar, soberania e independência dos povos latino-americanos
e caribenhos. Da ALBA fazem parte Cuba, Venezuela, Bolívia, Dominica e
Nicarágua e em futuro próximo seguramente o Equador e o Haiti. Em resumo,
sua declaração inicial arma:
que os processos de integração surgidos anteriormente na região,
longe de responder aos objetivos de desenvolvimento independente e
complementaridade econômica, têm servido de mecanismo para aprofundar
a depenncia e a dominação interna. Esclarece que, embora a integração
represente para os países da América Latina e do Caribe uma condão
imprescindível para aspirar ao desenvolvimento perante a criação de
grandes blocos regionais que têm posições predominantes na economia
mundial, somente uma integração baseada na cooperação, solidariedade
e vontade comum de avançar juntos em direção aos níveis mais elevados
de desenvolvimento é capaz de satisfazer as necessidades e anseios dos
países latino-americanos e caribenhos e simultaneamente preservar sua
independência, autonomia e identidade. Também se mostra que a ALBA
não se transformará em realidade com critérios mercantilistas nem interesses
egoístas de ganho empresarial ou benecio nacional às custas de outros
povos; por conseguinte, o comércio e o investimento não devem constituir
ns em si mesmos e, sim, instrumentos para alcançar um desenvolvimento
justo e permanente capaz de garantir a sustentabilidade do desenvolvimento
mediante normas que protejam o meio ambiente e defendam, através de
diversos meios como a estação de televisão Telesur, a cultura e a identidade
dos povos da região com particular respeito e fomento das culturas
autóctones e indígenas (Granma, 2004:5).
Essa nova visão da integração inclui um Plano Continental contra o
Analfabetismo, bolsas em áreas de interesse para o desenvolvimento econômico
e social e um plano para tratamento gratuito de saúde para os cidadãos que
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carecem de tais serviços, como é o caso da Operação Milagro (Luís Suárez
Salazar, 2005).
4. Pontos fortes, debilidades, oportunidades e ameaças
para a integração energética regional
Como proposta, a Petroamérica procura unir potencialidades, necessidades
e vontades dos povos e governos regionais, todavia, também está sujeita às
próprias debilidades internas da região e a severas ameaças externas. Vejamos:
O balanço enertico da região demonstra que ela conta com alta
disponibilidade de recursos energéticos para atingir o auto-abastecimento. Seu
modelo de consumo privilegia até agora o petróleo, colocando em segundo
lugar a hidroeletricidade, com exceção dos países petrolíferos como México
e Venezuela, que se apóiam mais no gás, o qual ca em terceiro lugar para a
maioria dos outros. Seguem-se em importância o caro e a energia nuclear, essa
última só presente no México, Argentina e Brasil (B.P., relatório anual, 2006).
A oferta de petróleo se concentra fundamentalmente na Venezuela, México,
Equador, Bolívia, Brasil, Trinidad e Tobago e, em menores proporções, Peru
e Colômbia. Em matéria de gás encontramos três grandes produtores no Sul
tais como Venezuela, Argentina e Bolívia. No Norte, destaca-se o México.
A esses pontos fortes se acrescentam outros não menos importantes como:
Existência de certa capacidade tecnológica na área energética;
Capacidade de investimento de parte da Venezuela e outros países,
como Brasil e Argentina, que está começando a superar um período
de crise;
Experncias anteriores de intercâmbio energético por meio de acordos
de cooperação, gasodutos e malhas elétricas como os existentes nos
países do Cone Sul e entre o Brasil e a Venezuela;
Interesse manifestado por muitos governos para avançar nessa linha
de ação a m de superar suas carências energéticas;
Consciência da incerteza da oferta petrolífera procedente do Oriente
Médio devido à invasão e ocupação anglo-norte-americana no Iraque,
a intervenção no Líbano e as ameaças ao Irã;
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Ter vivido períodos de aplicação de pacotes neoliberais, que criaram
consciência dos riscos implicados na ALCA com sua Alternativa
Energética Hemisférica (petróleo venezuelano e mexicano para os
Estados Unidos) e os TLC com os Estados Unidos;
Existência de experiências prévias de organização regional no Grande
Caribe com os esforços de México e Venezuela para impulsionar o
Programa de Cooperação Energética dos anos 80, conhecido como
Acordo de São José. A isso é acrescentada a iniciativa da República
Bolivariana da Venezuela, que negociou com eles o Acordo de
Cooperação Energética de Caracas (2000) e o Convênio Integral de
Cooperação com Cuba (2000), e
Anteriormente, as empresas estatais da região haviam criado a Arpel
(Assistência Recíproca Petroleira Estatal da América Latina), que foi
uma primeira tentativa de cooperação entre empresas estatais embora
em breve tenha mudado de nome, membros e objetivos abrindo-se para
empresas privadas. Posteriormente, os governos criaram a Organização
Latino-Americana de Energia (Olade), com a esperança de coordenar a
ansiada integração energética, porém essa organização foi se dedicando
quase exclusivamente a estudos do setor na região.
Entre as oportunidades para o projeto de integração energética regional
encontramos o nascente sentimento dos povos do Sul, que buscam superar
a unipolaridade e consolidar a pluripolaridade formando blocos capazes de
negociar no âmbito internacional com uma visão partida do Sul a m de
combater a pobreza e alcançar a paz. Acrescenta-se a isso o momento particular
atual de fortalecimento da OPEP, que gerou um período de estabilização no
mercado do petleo em favor das tendências expressas pelos países produtores
e não pelos consumidores. Finalmente, para os povos da região constitui uma
oportunidade o fato de que a Venezuela esteja passando por um processo de
transformação com elevado sentido social, projetando no âmbito internacional
seu compromisso de solidariedade, integração e combate à pobreza. Vai cando
para trás o período no qual a administração transnacional foi afastando nosso
país da região, como demonstram alguns dados:
O processo de deslocamento sofrido pelo petróleo venezuelano na região,
a partir dos anos 60, levou a sua substituição progressiva pelo petróleo
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do Oriente dio e África. Em conseqüência disso, nosso petróleo foi se
concentrando na direção dos Estados Unidos. Durante esses anos amos
que as companhias que operavam no Oriente Médio e na Venezuela
preferiam enviar ao Brasil o petróleo vindo daquela região. Era o caso da
Shell, que em 1969 levou petróleo do Iraque ao Brasil num volume superior
ao exportado pela Venezuela. O mesmo aconteceu com a Esso International,
hoje Exxon, que vendeu ao Brasil volumes semelhantes de petróleo árabe
e venezuelano. O petróleo do Coveite era vendido ao Brasil a preços muito
inferiores aos do óleo venezuelano. Tampouco eram atendidas as propostas
da Petrobrás nos anos 70 para realizar atividades petrolíferas na Venezuela
(Hernández-Barbarito, Karam, Ramirez e outros, 2005).
Por outro lado, nossa história petrolífera mostra unicamente sua
dependência submissa aos Estados Unidos, sem nenhuma contrapartida.
Vejamos:
1. No ano de 1939 foi rmado com os Estados Unidos o Acordo de Livre
Comércio para desgravar todas as mercadorias importadas pela Venezuela
em troca da redução do novo imposto petrolífero dos Estados Unidos
($0,21/bl) pela metade no caso dos brutos leves e dios e um quarto
no caso dos pesados, inexistentes nesse mercado. Porém o sacrifício
não trouxe vantagens comparativas para a Venezuela que esse trato
rapidamente se estendeu a todos os países do Oriente Médio.
2. Na década de 50, quando se iniciou nos Estados Unidos o controle,
primeiro voluntário e pouco depois obrigatório, das importações, a
Venezuela seria excluída do tratamento especial outorgado ao México
e ao Canadá. Esse tratamento especial consistia em determinar a
demanda interna para dela deduzir as importações procedentes dos
países limítrofes, com o que restava um montante para as importações,
distribuído entre todos os importadores, inclusive a Venezuela, mediante
quotas.
3. Na década de 60, depois de classicar nosso petróleo como altamente
contaminador por causa do seu teor de enxofre, o ps foi obrigado,
sob ameaça de suspender as importões de derivados, a outorgar
às concessionárias depreciações aceleradas pelos investimentos nas
instalações de dessulfurização, que tiveram de construir no país, o que
motivou uma redução da receita scal pela elevação dos montantes de
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redução do rendimento líquido tributável. Esse foi um investimento
perdido porque na década de 70, com a chegada da crise energética,
as mencionadas instalações deixaram de ser utilizadas. Dessa maneira,
as renarias venezuelanas se superespecializaram na produção de
derivados para exportação aos Estados Unidos apesar de ser o preço
desses resíduos muito inferior ao do petróleo bruto.
4. Esses atos perniciosos para a renda nacional sobrevieram à chamada
nacionalização chucuta dos anos 70. Um exemplo muito claro foi a
estratégia utilizada para superar o décit interno de gasolina, que exigiu
a mudança do modelo de reno, desde sempre dedicado em 60% a
produzir derivados. O oneroso negócio, denunciado na ocasião por Juan
Pablo Pérez Alfonso, consistia em contratar investimentos muito elevados
com cada ex- concessionária ao invés de abrir licitações para escolher a
melhor opção para o país. O gasto foi de tal magnitude que fundadores da
OPEP insistiram em sua não-aprovação propondo em seu lugar importar
a gasolina necessária. Foi esse um dos negócios mais visíveis da nova
gestão petroleira transnacionalizada, que se dedicou a deteriorar os ativos
da indústria, desviar fundos através dos contratos de comercialização e
tecnologia e, por m, deprimir o preço do petróleo e colocar a empresa
estatal em condições de ser privatizada a preços vantajosos para o grande
capital, no momento em que o Presidente Chávez assumia o governo
(Hernández-Barbarito, Karam e outros, 2005).
A dinâmica da dependência, manifesta em nossa indústria petrolífera,
impediu a Venezuela de desempenhar papel de relevo na região da América
Latina e Caribe, que cou exposta e submetida à gestão do Cartel Petroleiro.
Hoje, porém, nosso país pode e quer desempenhar esse papel de protagonista,
o que ca evidente ao constatar que a Venezuela conta com 62% das reservas
de petróleo da área e 25% da produção. Em matéria de gás, a proporção é de
58%. Constatamos igualmente que a região poderia auto-abastecer-se tanto
nessas rubricas quanto em carvão (B.P., relatório anual, 2006). A robustez da
região e o papel protagônico da Venezuela aumentam se considerarmos as
reservas da Faixa do Orinoco. São cifras e proporções que nos levam a pensar
a respeito do que somos e do que podemos alcançar juntos. Vulnerabilidade,
ou auto-suciência energética? Estará tudo na dependência das alianças e
decisões que forem tomadas.
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No entanto, a proposta enfrenta um conjunto de debilidades, algumas
históricas, outras contemporâneas e conjunturais que é preciso atender, como
as seguintes:
Existência de controvérsias fronteiriças;
Inconsistência política de certos governos em relação ao processo de
integração devido a seus compromissos com o governo dos Estados
Unidos;
Desenvolvimento tecnológico limitado em algumas áreas especicas do
setor energético, o que obriga a negociar com o capital transnacional;
Restrições à capacidade dos países para nanciar projetos de reno,
transporte e petroquímicos, e
Presea em muitos países de empresas transnacionais que administram
o setor petroleiro de maneira parcial ou total.
A essas debilidades se unem as ameas que se concentram no esforço
da potência do Norte em prejudicar qualquer processo de integração da região
e ainda mais excluí-los. Trata-se das pressões dos Estados Unidos e do grande
capital para forçar alternativas de abertura, desintegração e intervenção como:
A ALCA e a Iniciativa Energética Hemisférica;
Tratados de livre comércio;
Apoios militares como o Plano Colômbia e o Plano Patriota;
Ações multilaterais por meio da Organização Mundial do Comércio
(OMC);
Ameaças de guerra preventiva contra Cuba e Venezuela, essa última
líder da proposta;
Tendência a ir substituindo o uso do petróleo por gás, hidrocarboneto
com o qual o capital transnacional procura debilitar o papel da OPEP
no mercado energético mundial. Esse processo é conhecido como a
nova transição energética, e
A criação de uma OPEP do etanol e outros agrocombusveis extraídos
de cereais e rzes, impulsionando as sementes transgênicas e reduzindo
a oferta de alimentos para a população faminta.
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À medida que a ALCA e sua componente, a Iniciativa Enertica
Hemisférica, principiaram a debilitar-se, fortaleceu-se a pressão para a rma
dos TLC, que juntamente com o projeto de estender o Plano Colômbia e
as ameaças de guerras preventivas contra a Venezuela e Cuba, se propõe a
alcançar os objetivos de Monroe: a América para os americanos (entendidos
como os norte-americanos) e neutralizar o espírito libertador dos povos que
continuam a unir-se como os da Bolívia, Equador, Nicarágua, Argentina,
Uruguai e Brasil, povos que sempre mais e mais exigem de seus governos a
oferta de propostas de vida digna.
Por sua vez, a ameaça da nova transição energética (do petróleo ao
gás) abre na Venezuela um novo debate, o da urgência de resgatar o xisto
betuminoso para garantir a imediata produção de eletricidade na região e
não esperar contar com novas reservas de gás, que impediriam colocar-se a
Faixa do Orinoco, o maior reservatório de petróleo do mundo, a serviço do
desenvolvimento estratégico do setor elétrico da região, capaz de impelir a
esperada industrialização endógena regional. Como complemento surge a isca
dos agrocombustíveis, proposta de um desenvolvimentismo exagerado que
pretende retirar terras agrícolas à produção de alimentos mas capaz de ofuscar
mais de um governo com o espelhismo do mercado devorador de energia da
nação do Norte. Controlar e dividir, eis a estratégia. Vejamos mais em detalhe
essas duas últimas ameaças.
A nova transição enertica procura concentrar, sob o donio dos países
industrializados e das transnacionais, as novas jazidas de gás das ex-repúblicas
soviéticas no mar Cáspio e as do Ocidente da África. Para enfrentar esses
propósitos, o Presidente do Irã lançou também a idéia de uma organização
dos países exportadores de gás e convidou a Rússia a aderir a ela. Esse é um
tema central para a Venezuela, sobretudo se o vincularmos com a necessidade
de resgatar o xisto betuminoso, produto que em nossa opinião foi desprezado
pela necessidade de revalorizar nossas reservas da faixa petrolífera do Orinoco
a m de que fosse considerado como petróleo e não como betume e por
considerar que a rentabilidade geral da faixa seria maior caso os petróleos crus
fossem misturados com os leves, ou fossem melhorados. Também houve o
temor de que, a pouco e pouco, o xisto betuminoso fosse colocado dentro da
quota da OPEP, o que não era rentável aos preços acordados. Nesse caso não
se considerou que o xisto betuminoso deveria competir não com o carvão e
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sim com o gás na geração de eletricidade e que seu preço deveria ser xado
com base nessa relação, ajustado de acordo com seus conteúdos de vanádio,
altamente valorizado no mercado embora desconhecida a sua presença no
subproduto atualmente.
Suas vantagens são muitas: a Venezuela possui exclusividade nesse
produto e sua tecnologia; é transportado pelas mesmas vias do petróleo,
não exigindo como o gás, instalações especiais de liquefação e gaseicação;
está disponível para atender a necessidades nacionais e regionais, não sendo
preciso esperar anos como exige o gás, cujo uso mais valioso está na indústria
petroquímica. Não admira o interesse da China, Índia, Japão e Itália pela
novidade desse energético. (Travieso, 2005, e MRE, Los mercados para el petróleo
venezolano, 2005).
Com relação ao debate surgido sobre o etanol é importante considerar
que o mesmo se inscreve no quadro de uma estratégia que procura debilitar
a integração energética regional e criar falsas expectativas quanto ao impulso
que a mesma poderia receber dos Estados Unidos. O possível apoio se
adequaria às necessidades da economia do Norte, revelada pela negativa dos
Estados Unidos à solicitação do Brasil de reduzir a tarifa que protege sua
produção interna. Essa estratégia se evidenciou nas primeiras semanas do
ano de 2007, quando se iniciou o debate sobre o etanol, por haver sido esse
um dos temas centrais da visita do Presidente dos Estados Unidos a alguns
países da América Latina.
Como sabemos, o etanol produzido nos Estados Unidos é obtido a partir
do milho enquanto no Brasil vem da cana-de-açúcar. Por sua vez, o biodiesel
é produzido a partir de oleaginosas como a soja, a palma e o girassol. Até
agora, a estratégia de produção de ambos os agrocombustíveis se apoiava na
necessidade de utilizar o produto em pequenas quantidades para substituir o
chumbo e o éter ter-metil butílico, também contaminador dos aqüíferos como
já se comprovou nos casos de vazamentos.
A polêmica se abriu porque a proposta trazida pelo Presidente Bush
em sua viagem é da possível substituição total da gasolina e do diesel por
agrocombustíveis, o que se converte em um absurdo que exigiria semear
vários planetas Terra para atender as necessidades de combustível no âmbito
mundial. Diz-nos Ramón Pichs, pesquisador do Centro de Pesquisas sobre
a Economia Mundial, que “para encher com biocombustíveis durante duas
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semanas um tanque de cinco galões [aproximadamente 18 litros] são necessários
cereais com os quais se pode alimentar 26 pessoas durante um ano” (Últimas
Notícias, 3-10-2007). A isso precisaria acrescentar seu efeito sobre os preços,
cuja elevação ocasionou protestos da população mexicana ao ver encarecida
sua tradicional tortilla. Os argumentos relativos aos custos energéticos de
produção terminam por derrubar a opção do etanol como substituto dos
combustíveis que, para produzi-los, é necessário aplicar energia fóssil à terra,
por meio de fertilizantes, fungicidas e praguicidas – que vêm do petróleo em
proporções cada vez maiores por tratar-se de um monocultivo. Semear,
colher, processar e transportar também requer petróleo e eletricidade.
Am disso, com essa estratégia se estaria estimulando o uso dos
transgênicos e destruindo a biodiversidade com mais rapidez. A respeito, a FAO
destaca em seu último relatório que entre 1900 e 2005 a superfície orestal na
América Latina retrocedeu 19% na América Central e 9% no Sul. Ademais, a
região gura em primeiro lugar no mundo quanto ao número de árvores em
perigo ou vulneráveis à extinção (Últimas Notícias 14-3-2007).
Esse é um debate necessário porque todos os países da região, incluindo
a Venezuela, têm projetos a respeito. Vejamos alguns dados:
O Brasil produz 18 bilhões de litros anuais, com o que suas importações de
petróleo bruto se reduzem em 40%; na Colômbia produzem-se 300 milhões
de litros de etanol procedente da cana-de-açúcar, e espera-se elevar a 645
mil toneladas em 2008 o biodiesel obtido a partir da palmeira de dendê. Na
Argentina é produzido com soja e se espera obter 800 mil toneladas por
ano; também algas marinhas são utilizadas. No Chile prosseguem os estudos
de terreno e conta-se com 170 mil hectares para diesel e etanol. O Paraguai
pretende processar cerca de 100 mil litros diários de biodiesel a partir da
semente de rícino, e outros países entre os quais se encontram a Bolívia,
a Guatemala, Honduras e Nicarágua têm projetos adiantados para montar
fábricas. Na Venezuela, o Plano da Pdvsa contempla um investimento de
86 bilhões para o etanol entre 2006 e 2012, e recentemente se anunciou que
serão instaladas 11 fábricas para misturá-lo à gasolina com assessoria cubana.
(Últimas Notícias, 12, 13 e 14 de março de 2007).
Preocupa de modo especial o Brasil ter fortalecido sua aliança com os
Estados Unidos por meio dessa estratégia, como se anuncia no protocolo
de cooperação rmado com aquele país, que indica “haverá uma mudança
A integração energética da América Latina e Caribe
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248
radical na matriz energética do mundo nos próximos 20 a 30 anos” (Últimas
Notícias, 13-3-2007), e a Colômbia se propor a adiantar planos nesse sentido
nas regiões onde nascem nossos rios. Esses temas devem ser considerados
pelos governos da região.
5. Balanço e algumas considerações nais
Para concluir, podeamos dizer que o projeto de integração energética da
América Latina tem avançado aceleradamente e em profundidade, abarcando
setores vitais para impulsionar o desenvolvimento de nossos povos. Os pontos
fortes, que destacamos inicialmente como próprios do projeto, permitiram
armá-lo, como é o caso da oferta de fontes energéticas abundantes, o que
levou até mesmo a se pensar em ser necessário criar uma OPEP do gás para
a América do Sul, a Opegasur, entre Argentina, Bolívia e Venezuela com o
objetivo de protegê-lo da voracidade dos grandes capitais transnacionais.
O rechaço crescente à opção do neoliberalismo assim como o bom momento
que a região atravessa em termos de crescimento com as nacionalizações dos
hidrocarbonetos na Venezuela e na Bolívia e a recuperação da Argentina
continuam a favorecer essa estratégia de integração energética, e, por isso, as
debilidades se têm neutralizado como indica o tom moderado adotado no
debate sobre o direito ao mar proclamado pela Bolívia, a incorporação da
Guiana ao Petrocaribe e o gasoduto transcaribenho com a Colômbia, projetos
que ocuparam o espaço antes consagrado às discussões limítrofes. Um avanço
importante foi a obrigação de as empresas estatais negociarem entre si, o que
marginalizou do processo as transnacionais e fortaleceu o setor estatal no
plano energético embora somente para comercializar os hidrocarbonetos no
caso dos países não-produtores.
Não obstante, as tensões existem, e a estratégia de dividir persiste como
demonstram a ofensiva de Washington para impulsionar o etanol e a intervenção
colombo-norte-americana no Equador; a inconsistência de alguns governos,
também, em especial devido à aliança da Colômbia e do Peru com os Estados
Unidos. Ante esse quadro, a oferta energética atua como moderadora e veículo
de aproximação dado seu interesse para estimular o desenvolvimento.
As ameaças enfraqueceram-se, como indicam o rechaço quase
generalizado à ALCA e à Iniciativa Enertica para a América Latina, os
María A. Hernández-Barbarito
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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freios impostos pelos países do Sul na OMC e as alianças profundas entre os
novos governos da área, que se põem como barreiras de proteção contra as
ameaças de guerra preventiva de Washington. Um exemplo é o surgimento
da ALBA, entre Cuba, Venezuela, Bovia, Dominica e Nicarágua, além da
possível adeo do Equador e Haiti, assim como os profundos laços de
amizade e cooperão com a Argentina e o Brasil, no caso da Venezuela.
O contexto internacional de guerra de desgaste no Iraque e Afeganiso
assim como as ameaças ao Irã colocam ainda o Oriente dio como a
mais importante frente de batalha para o governo dos Estados Unidos, o
que, unido à receso ecomica pela qual esse país atravessa, torna menos
provável uma intervenção militar no continente.
Não obstante, esse panorama de avanços e realizações da integração
energética na América Latina e no Caribe não nos impede insistir na reexão
necessária acerca dos riscos de um desenvolvimento baseado no crescente
consumo de energia. Insistimos em que a busca da superação dos décits
energéticos dos países da região deve ser acompanhada pela necessidade de
agir com critérios de alta racionalidade energética promovendo os usos mais
adequados para cada combustível. Trata-se de privilegiar o transporte público
mais que o particular e promover soluções produtivas e energéticas adequadas
às características de cada localidade. Trata-se, também, como diz Gorz, de viver
melhor com menos, evitar a produção de resíduos, racionalizar o consumo,
valorizá-lo e democratizar o aparelho produtivo privilegiando a cooperação
e o trabalho criador.
Seria também o caso de promover o uso de fontes alternativas renováveis
para atender às necessidades energéticas nas zonas longínquas, no caso as
fronteiras, zonas rurais, regiões selváticas, etc. Vejamos alguns exemplos:
A experiência do Centro de las Gaviotas da Colômbia, que explora e
utiliza fontes energéticas das planícies colombianas como o biogás e a geração
de eletricidade pelas águas dos rios. O Brasil também desenvolveu o biogás.
Na Venezuela encontramos o que se conhece como Revolução Energética,
que permitiu substituir lâmpadas convencionais por outras mais ecientes,
experiência promovida igualmente por Cuba; montar lâmpadas com células
fotovoltaicas em Caracas e outras regiões do país, iniciar o parque eólico na
península Paraguaná, etc. Tratar-se-ia também de multiplicar as minicentrais
propostas e construídas nos Andes por nosso tecnólogo popular Don Luís
A integração energética da América Latina e Caribe
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
250
Zambrano; propiciar o uso da energia solar direta, favorecendo cultivos
como a mandioca, que aproveita a luz solar do trópico durante todo o ano,
como faz o Brasil; e formas de cultivo hidropônicas, organopônicas (Cuba)
ou simplesmente mistas, como o tradicional conuco venezuelano, que possui
alta racionalidade energética. Estaríamos assim facilitando o desenvolvimento
da agricultura integral, o turismo ecológico, a ocupação racional de regiões
desabitadas e a auto-suciência alimentar.
A integração energética da América Latina e do Caribe deve concentrar-se
na luta contra a pobreza, na criação de emprego produtivo e na construção do
desenvolvimento sustentável conforme o compromisso da América Latina na
Cúpula Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
Cúpula do Rio (1992) e Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável
celebrada em Joanesburgo (2002).
Finalmente, poder-se-ia assinalar que a Integrão Energética, via
Petroamérica, vem a ser um componente fundamental, se não o mais valioso,
do processo de integração regional. Ela caminha a princípio no rumo da
solução dos problemas de abastecimento a preços e condições mais justas. Não
obstante, sua missão é integral, e encara o desao de promover a racionalidade
energética, a preservação do ambiente e a geração de um mundo mais limpo
e sustentável garantindo maior bem-estar à população ou, como diria nosso
Libertador Simon Bolívar, “a maior soma de felicidade possível” para ela.
Referências bibliográcas
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XXI, 1967.
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Hernández-Barbarito, Karam, Ramírez e outros. Los mercados para el petróleo
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María A. Hernández-Barbarito
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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Travieso, Fernando. Orimulsión. Determinantes geopolíticos de la Orimulsión y sus
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Editorial Buchivacoa, 2005.
Últimas Notícias. Imprensa diária, 2005-2008. Caracas: República Bolivariana
de Venezuela.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
253
Fernando de Szyszlo
F
ernando de Szyszlo Valdelomar (Lima, 5 de julho de 1925) é renomado
artista plástico peruano, conhecido principalmente por seu trabalho em pintura
e escultura. É um dos mais destacados artistas de vanguarda do Peru e gura-
chave no desenvolvimento da arte abstrata na América Latina.
Série “Sol Negro” (2003).
Acrílico sobre tela, 100 x 100 cm.
Fernando de Szyszlo
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Biograa
Fernando de Szyszlo nasceu no bairro de Lima denominado Barranco,
em 1925. É lho de Vitold de Szyszlo, físico polonês radicado no Peru e de
Maria Valdelomar, irdo escritor Abraham Valdelomar. Foi casado com a
genial poetisa peruana Blanca Varela.
Szyszlo terminou a escola secundária no Colegio de la Inmaculada.
Estudou na Escola de Arquitetura da Universidade Nacional de Engenharia
sem chegar a terminar o curso e, em seguida, ingressou na Escola de Artes
Plásticas da Pontifícia Universidade Católica do Peru. Com 24 anos viajou à
Europa, onde estudou a obra dos mestres, especialmente, Rembrandt, Ticiano
e Tintoretto, absorvendo as várias inuências do cubismo, surrealismo e
informalismo assim como da arte abstrata. Em Paris conheceu Octavio Paz e
André Breton e freqüentou o grupo de escritores e intelectuais que se reuniam
no Café Flora, embarcando em vigorosos debates sobre como seria possível
participar do movimento internacional da arte moderna e simultaneamente
preservar a identidade cultural latino-americana.
Ao regressar ao Peru, Szyszlo se converteu em importante artíce da
renovação artística no país, abrindo novos caminhos ao representar temas
peruanos em um estilo não-gurativo.
Foi docente na Escola de Arte da Pontifícia Universidade Católica do
Peru entre 1956 e 1976 e professor visitante das universidades Cornell, Yale
e do Texas.
O lirismo da cor, enriquecido por requintados efeitos de texturas e um
manejo de grande maestria de luzes e sombras são os traços mais importantes
da pintura de Szyszlo. Identicada fortemente com a união entre as imagens
das velhas civilizações e uma linguagem artística modernista, a arte de Szyszlo
revela uma ampla cultura de procedência vária, que vai da ciência e losoa
à literatura. Suas evocações dos rituais, mitos e geograa das paisagens da
costa e do deserto são freqüentemente associadas aos monumentos religiosos
pré-colombinos.
Desde sua primeira exposição em Lima, em 1947, Szyszlo realizou mais
de cem mostras individuais em museus e galerias da América Latina, Europa
e Estados Unidos e participou de prestigiosas bienais internacionais, como
Fernando de Szyszlo
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a Bienal de São Paulo e a Bienal de Veneza. Sua obra está representada em
importantes coleções públicas e particulares em todo o mundo.
Além da obra como pintor, seu interesse por literatura e amizade com
vários autores o levaram a importantes projetos sobressaindo-se entre eles a
criação, em companhia do poeta Emilio Adolfo Westphalen, da revista Las
Moradas (1947-1949), de grande importância na propagação das atividades
culturais no Peru. Em 1996 publicou Miradas Furtivas, seleção de artigos escritos
desde 1955, principalmente sobre arte contemporânea e arte pré-colombina.
É membro da Academia Peruana do Idioma.
Prêmios e reconhecimentos
Doutor honoris causa, da Universidade de San Martín de Porres.
Doutor honoris causa, da Pontifícia Universidade Católica do Peru.
Cruz de Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras, do Governo da França.
Grande Ocial da Ordem Bernardo O’Higgins, do Governo do Chile.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
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Odebrecht Perú: uma parceria de sucesso
F
alar da relação entre a Construtora Norberto Odebrecht e o Peru é falar
de uma longa parceria de sucesso. No ano de 2009, completaremos 30 anos de
atuação no Peru, um marco histórico a evidenciar a solidez e maturidade da
nossa relação. Esse produtivo relacionamento teve seu início em 1979, ano em
que a Odebrecht inaugurou seu processo de internacionalização ao conquistar
o contrato para a construção da Hidrelétrica de Charcani V, na província de
Arequipa, região Sul do Peru.
Localizada nas encostas do vulcão Misti, na cordilheira dos Andes, a
usina, cujas instalações são praticamente subterrâneas, capta as águas do rio
Chili. A energia gerada por Charcani V atende as necessidades energéticas
da cidade de Arequipa, uma das mais importantes do Peru, e do Complexo
Mineiro de Cerro Verde.
Construtora
Norberto Odebrecht
www.odebrecht.com.pe
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258
Em ns da década de 1970, quando a construção foi iniciada, moradores
da cidade sofriam com o racionamento de energia contando com apenas
três horas drias de abastecimento elétrico para permitir que as empresas
do lugar mantivessem a produção. Am disso, a baixa disponibilidade de
água impedia a expansão da agricultura local. Era urgente a realizão de
um projeto para contornar essas diculdades.
As obras de Charcani V foram iniciadas em 1980 e oito anos mais
tarde a hidrelétrica foi inaugurada. Sua conclusão eliminou as interrupções
diárias no abastecimento elétrico, possibilitando uma signicativa melhora
na qualidade de vida dos arequipeños. A disponibilidade de energia permitiu
ainda a crião de uma zona para a indústria metal-mecânica, fato que atraiu
mais moradores para o distrito, levando à inauguração de novos bairros e
centros comerciais.
Atualmente, Charcani V é responsável pela geração de aproximadamente
70% da eletricidade do Sul peruano. E graças à tecnologia avançada
empregada na sua construção, ainda hoje, duas décadas após, continua sendo
essa hidrelétrica uma das mais modernas do país, detentora de um dos mais
baixos custos de produção de energia em sua região.
No mesmo ano em que terminamos Charcani V, 1988, assinamos
um novo contrato. A Odebrecht seria com isso a responsável por tornar
realidade um projeto que tinha mais de 50 anos: o Projeto de Irrigação
de Chavimochic. Localizado na região desértica de La Libertad, o projeto
abrangeu a execução de obras hidráulicas para desviar as águas do Rio Santa,
destinadas à irrigação dos vales de Chao, Vi e Pampas de Pur-Pur. Foi
constrda uma central hidrelétrica com potência de 7,5 MW, que passou
a captar as águas do canal principal do Projeto de Irrigação Chavimochic
podendo gerar energia suciente para atender a cidade de Virú.
Em conseqüência das obras de irrigão, foi possível incorporar novas
terras à agricultura regional e abastecer de água a cidade de Trujillo e as
populações rurais próximas. Esse amplo conjunto de iniciativas, operando
sinergicamente, implicou um salto qualitativo na economia local e abriu uma
série de oportunidades de emprego e geração de renda para a população.
Hoje, a ex-desértica região de La Libertad se acha entre as mais importantes
áreas exportadoras de produtos agrícolas do Peru.
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
259
A partir do relacionamento de conança estabelecido com base nesses
primeiros projetos conjuntos, a atuação da Odebrecht no Peru ganhou
dinamismo e se ampliou consideravelmente ao longo da década de 1990. De
1993 em diante, não houve sequer um único ano em que não conquistássemos
novos contratos, ou a construção da nova etapa de alguma obra recém-
concluída ou mesmo projetos completamente novos.
Nesse conjunto de iniciativas desenvolvidas pela Odebrecht Perú,
alguns projetos merecem destaque. Na cidade de Olmos, Norte peruano,
executamos obras que permitiram o represamento de águas e posterior
transposição (transvase, em espanhol) do rio Huancadamba, um projeto
concebido mais de 80 anos mas nunca executado. Através dessa iniciativa,
tornada viável por meio de uma parceria público-privada (PPP), parte do
uxo do rio será redirecionado para o Oceano Pacíco através do Túnel
Transandino, que te 19,3 km de comprimento e 4,8 metros de diâmetro.
Concluído, o projeto permitirá que 460 milhões de metros cúbicos de água
irriguem mais de 40 mil hectares de terras rteis situadas na vertente da
cordilheira. Ademais, o uxo também alimentará duas usinas de geração
de energia.
Assim como ocorrera em Chavimochic, o Projeto Olmos fornecerá
vigoroso estímulo à economia local gerando empregos e incrementando a
qualidade de vida da população à medida que for transformando uma região
anteriormente improdutiva em uma área de prosperidade.
Figura 1: O sistema de irrigação Chavimochic e seus resultados
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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Figura 2: Mapa da atuação da Odebrecht no Peru
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261
O projeto como um todo vem sendo executado com atenção e
cuidado redobrados, pois as obras têm lugar nas proximidades de um sítio
arqueogico da cultura mochica, uma civilização pré-incaica orescente na
área mais de 2.000 anos. Algo similar havia acontecido na execução
das obras do projeto de irrigão de Chavimochic, quando se descobriu uma
pirâmide levantada pela civilização chimú (também pré-incaica) exatamente
na saída do nel principal. A área então descoberta foi isolada, os planos
de engenharia foram refeitos, e o canal sofreu um desvio para permitir a
preservação do sítio arqueológico. Tanto em um quanto em outro caso,
no passado ou no presente, a atuão da Odebrecht tem sido pautada pelo
respeito à história e cultura locais preservando as particularidades das áreas
e comunidades onde se dá a inserção da empresa.
Junto ao Projeto Olmos, a Odebrecht Perú desenvolve outras importantes
iniciativas. Nas praias da região de Pampa Melchorita, a 169 km de Lima,
está sendo instalada uma planta de liquefão de gás natural. Como parceira
do Consórcio CDB Melchorita, a Odebrecht participa da construção das
instalações marítimas auxiliares, entre as quais estão: uma ponte de atracação
de 1.350 m de comprimento; instalações para carregamento de navios GLP;
um canal de aproximação e um quebra-mar offshore de 800 m de comprimento.
Incluindo os custos de nanciamento, o projeto da Peru LNG dispõe de US$
3,8 bilhões, o maior investimento direto estrangeiro realizado em toda a
história do Peru. Desse montante, um total de US$ 247 milhões se refere ao
contrato rmado entre a Odebrecht e a Peru LNG. Concluído, o complexo
de Melchorita viabilizará a exportação do excedente de gás produzido no
país para os mercados internacionais.
Atualmente, a economia peruana vem dando sucessivas provas de
vigor e maturidade. Ao longo dos últimos anos tem sustentado o país um
dos mais elevados percentuais de crescimento do PIB em toda a Arica
Latina. Recentemente obteve o grau de investimento, uma certicação
internacional que atesta o consistente vigor do ambiente relativo aos negócios
do país.
O aprimoramento connuo da malha infra-estrutural, sem vida
alguma, tem sido peça de crucial importância para esse processo de
crescimento sustentado uma vez que os investimentos nesse fundamental
setor geram significativos impactos sobre toda a economia nacional.
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
262
A melhoria da infra-estrutura de transporte, por exemplo, tem contribdo
para a superação de obsculos geográcos e logísticos presentes no Peru,
desse modo elevando a competitividade dos bens produzidos no país tanto
no mercado nacional quanto no internacional.
Esta lógica privilegiar a integração física como instrumento-chave para
o crescimento econômico sustentável – tem informado mais duas iniciativas
das quais a Odebrecht participa no Peru. Os projetos da Iirsa Norte e da Iirsa
Sul, por exemplo, vêm sendo desenvolvidos no país com o objetivo de criar os
corredores interoceânicos para interligar as malhas de transporte brasileiras e
peruanas. A Odebrecht lidera ambos os consórcios responsáveis pela execução
das obras.
Enquanto membros do Consórcio Construtor Iirsa Norte (Concin),
participamos do melhoramento, reabilitão e construção de 955 km de rodovia
que ligarão a Amazônia ao Pacíco. A Odebrecht se encarregou da estrada que
liga o porto litorâneo de Paita, no Pacíco, ao porto uvial de Yurimaguas, na
parte peruana do rio Amazonas.
Nossa atuação na área, assim como em todas as regiões em que nos
inserimos, é orientada não somente para a execução das obras. Adotamos
também um claro comprometimento socioambiental com o desenvolvimento
integral e sustenvel não da comunidade interna composta pelos integrantes
da Odebrecht como também da comunidade externa à empresa. Em tal sentido,
promovemos diversas iniciativas. No campo do meio ambiente contribuímos,
entre outras ações, com o Proyecto Biodiversidad fazendo a expansão do centro
de custódia para animais, uma instituição que ampara o programa de proteção
aos ursos-de-óculos ou urso andino, espécie típica da região, sob ameaça
de extinção. No campo da educação, o consórcio que integramos destinou
recursos para o projeto Escuela para Todos, um programa de alfabetização que
se tornou uma escola completa e hoje oferece educação de qualidade para 177
alunos do ensino fundamental.
Esses projetos, assim como outras iniciativas que temos desenvolvido
nos campos da saúde e capacitação prossional, dão uma breve dimensão dos
vários benefícios sociais que seguem as obras realizadas no círculo do Eixo
Multimodal Amazonas Norte. Representam, assim, os reexos locais de uma
parceria estratégica mais ampla de integração física no âmbito continental, a
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263
qual desde tem acarretado muitas vantagens para a Região Norte do Peru
e trará, com toda a certeza, outras mais no futuro próximo.
Processo igual se desenvolve no Sul peruano, onde, mais uma vez, a
Odebrecht trabalha combinando a prestação de serviços em engenharia e
construção com o exercício da responsabilidade socioambiental. Participamos
do conrcio responsável pela construção da Rodovia Interocnica Sul
(Conirsa). Quando seus 710 km de extensão estiverem concluídos, a obra fará a
primeira ligação do Brasil com o Oceano Pacíco através de uma via contínua
entre a cidade peruana de Inãpari que faz divisa com a brasileira Assis Brasil,
no estado do Acre – ao porto de San Juan de Marcona, no Oceano Pacíco.
Mais precisamente, o contrato que está sendo executado prevê a construção,
operação e manutenção das estradas que ligam as cidades de Iñapari a Inambari
(trecho 3 – no departamento de Madre de Dios) e Inambari a Urcos (trecho
2 – no departamento de Cuzco).
Assim como acontece na Iirsa Norte, também desenvolvemos diversas
iniciativas junto às comunidades locais na exteno do Corredor Vrio
Interoceânico Sul (Iirsa Sul). Assumindo seu papel como agente de mudanças
e seu compromisso com a melhoria da qualidade de vida das populações que
residem em nossa área de atuação, desde 2006 a Odebrecht e a Conirsa têm
executado o Plano Integrado de Responsabilidade Social. Ademais, desde 2007,
temos conduzido o Programa Itinerante de Apoyo a la Salud y Educación
(PASE), um grande projeto realizado com o objetivo de informar e capacitar
a população em temas de saúde preventiva. Está em desenvolvimento, no
campo do meio ambiente, o Plan de Desarrollo “Interoceánica” Sul, em cujo
âmbito representantes da Odebrecht, Conirsa, Conservation International e
Pro Naturaleza têm atuado de maneira conjunta e cooperativa para promover
iniciativas de conservação e desenvolvimento ao longo dos trechos 2 e 3 do
Corredor Viário Interoceânico Sul.
A conjunta realização desses projetos revela a estreita cooperação que a
Odebrecht e a Conirsa vêm desenvolvendo com o governo peruano, entidades
privadas e a sociedade civil organizada no Peru sempre com o objetivo de
aliar o desenvolvimento sustentável das regiões onde nos inserimos com a
melhoria na qualidade de vida das populações que serão favorecidas pelos
serviços que prestamos.
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264
Figura 3: Rodovias já concluídas na Iirsa Sul
Essas e tantas outras iniciativas representam o compromisso da
Odebrecht com o desenvolvimento socioeconômico peruano. De 1979
até 2007, mais de 43.000 diferentes pessoas integraram a empresa e
contribuíram em nossos projetos. Incluindo as concessões já em curso, são
mais de 2.300 km de rodovias pavimentadas. Além disso, executamos mais
de 240 km de canais de irrigação e mais de 180 km de sistemas de água
potável. Perfuramos mais de 85 km de túneis para projetos de irrigação e
construímos mais de 60 km de linhas de transmissão de energia.
Tem a Odebrecht aberto caminhos para o futuro do Peru na costa,
na selva e na serra. Nesses quase 30 anos de parceria, atuamos sempre com
vistas à satisfação de nossos clientes e com o rme compromisso de respeitar
as particularidades socioambientais das regiões em que estamos presentes.
Orientados pela Tecnologia Empresarial Odebrecht (TEO), acreditamos na
potencialidade de nossos colaboradores e investimos em sua educação pelo
trabalho. Somos a única empresa de engenharia e construção com origem
estrangeira que permanece atuando no Peru de 1979 até hoje. Todos esses
fatores são um forte incentivo para que trabalhemos cada vez mais e cada vez
melhor com o m de perpetuar e aprofundar a parceria de sucesso estabelecida
entre a Odebrecht e o Peru.
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www.agsa.com.br
Grupo
Andrade Gutierrez
Brasil-Peru: uma parceria madura
O peso da história
B
rasil e Peru – como os demais países sul-americanos – ainda sofrem
as conseqüências daquilo que, em termos coloquiais, poderia ser descrito
como a ressaca histórica dos “quinhentos anos de periferia”, para usar a
frase expressiva de Samuel Pinheiro Guimaes. Suas vidas ecomicas
e mesmo suas percepções políticas têm ainda as marcas de cinco séculos
de vinculação assimétrica aos principais centros mundiais de poder, numa
ligão que se modicou, mas não acabou, com a independência potica
obtida no primeiro quartel do século XIX. Ela permanece em função não
de assimetrias objetivas mas também da noção geral de um relacionamento
centro-periferia, que, embora ainda real, é hoje menos marcante que o
aparentemente percebido e aceito por consideráveis e inuentes – setores
das respectivas opines nacionais.
Em nosso continente, um exemplo ilustrativo desse estado de coisas é
dado pelo fato de que, ainda hoje, uma estrada que saia do Brasil e atravesse os
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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Andes rumo ao litoral ocidental da América do Sul venha a ser considerada
por segmentos insignes da nossa opino pública mais como “saída para
o Pacícodo que obra de infra-estrutura capaz de facilitar a integração
das economias de países vizinhos. Ou em sentido inverso, que o acesso ao
Amazonas seja percebido, em países andinos, como primordialmente “uma
saída para o Atntico”. Em ambos os casos, tal atitude reete a percepção,
difundidíssima na opinião sul-americana, de que o importante é manter
os laços com os centros do poder ecomico mundial e não promover a
aproximação entre economias vizinhas.
Em suas linhas gerais, tal quadro ainda persiste, mas também é evidente
que se tem modicado signicativamente não só em nível objetivo como
também em subjetivo. No plano global, é bem verdade, a importância
relativa dos grandes centros, em particular a dos norte-americanos, tem caído
o em razão de uma decadência absoluta mas em função do progresso
dos outros, em especial, das grandes economias emergentes e da, como
conseqüência disso, propagação universal do poder. É signicativo que, já
em 2004, a revista inglesa The Economist assinalasse que, das dez maiores
economias do mundo (medidas com base no poder de compra das moedas),
quatro eram países em desenvolvimento ou em transição
1
. E, em janeiro
de 2006, a mesma revista assinalava que, usando essa mesma base de
aferição, as economias em desenvolvimento, em conjunto, haviam em 2005
respondido por um pouco mais da metade do produto mundial e por mais
da metade do aumento do PIB global em dólares correntes
2
. Hoje, sem
descer a maiores precies estatísticas, a notória asceno ecomica da
China e da Índia, a referência já corriqueira ao BRIC (Brasil, Rússia, Índia
e China) como grandes potências em ascensão, a crescente aceitação de que
é preciso modicar a composição e/ou a estrutura de votos de importantes
instituições internacionais (FMI, Conselho de Segurança da ONU, Grupo
dos 8) para melhor reetir a atual distribuição internacional de poder
tudo isso revela a gradual emersão de uma nova ordem internacional e a
progressiva conscientização dessa tendência.
1 A survey of the world economy – The Dragon and the Eagle. The Economist, 2-8/10/2004.
2 The Economist. 21/1/2006.
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
267
Uma nova realidade regional?
A América do Sul não pode encarar tais mudanças globais sem modicar
a percepção de sua posição na cena mundial e da espécie de relacionamento
que deve prevalecer entre os países que a integram.
Num mundo em que a posição dos países em desenvolvimento, no seu
todo, era marcada, sobretudo, por um relacionamento assimétrico entre o
centro e a periferia, as relações entre nações periféricas tendiam a orientar-se
para um destes rumos: a adesão de algumas delas ao centro e seu conseqüente
alheamento às outras periféricas ou, de forma alternativa, a busca de aglutinar
os países periféricos a m de modicar uma ordem econômica mundial vista
como prejudicial aos interesses dos mais pobres ou, pelo menos, proteger-se
melhor dos seus efeitos. Em certa medida, essa dicotomia ainda subsiste
embora de maneira menos marcante.
Historicamente, a segunda opção tem sido com freqüência dicultada por
desconanças e efetivas divergências de interesses entre os supostos aliados.
Vimos os resultados enfraquecedores dessas discrepâncias, por exemplo, na
débil operacionalidade política do Grupo dos 77, nas décadas de 60 e 70 do
século passado. Países que deveriam formar um grupo coeso, unido na defesa
de medidas propensas a promoverem, em benefício comum, a reforma da
ordem mundial vigente apenas se irmanavam no discurso, tendo, assim, extrema
diculdade em pôr-se de acordo sobre mecanismos corretivos concretos.
No âmbito regional, vimos problemas idênticos entravarem a concretização
da grandiosa visão de integração da América Latina como um todo. Assim,
o objetivo de integração dos países sul-americanos pode ser visto como
expressão de um recuo estratégico: não sendo possível integrar a América
Latina, tenta-se integrar a América do Sul com resultados, pelo menos até
agora, discutíveis... Por ocasião da convocação da I Reunião de Cúpula da
América do Sul, nosso então Ministro das Relações Exteriores, Embaixador
Luís Felipe Lampreia, admitiu implicitamente essa condição ao armar, em
artigo publicado na Carta Internacional, que a América Central e o Caribe não
tinham sido incluídos naquela reunião em virtude não da especicidade sul-
americana mas também das ligações, em excesso diretas e próximas, daquelas
regiões com a América do Norte, em especial com os Estados Unidos. Em
outras palavras, certo número de países latino-americanos, periféricos todos,
haviam aderido ao centro não havendo razão de convidá-los para o encontro
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
268
sul-americano de Brasília. A evidente falha desse raciocínio é que a postura
dessa ou daquela nação periférica relativamente ao centro se dene em função
de opções políticas, não de meridianos geográcos. Assim, como sabemos,
encontram-se posições diversas e até contraditórias no interior da própria
América do Sul e não só entre essa e a América Central ou o Caribe.
num mundo com tendência a diluir a concentração internacional
de poder, a cooperação política e a integração econômica entre países em
desenvolvimento podem assumir, em tese, um caráter mais construtivo e
menos defensivo embora não desapareçam as divergências ligadas a possíveis
diferenças de percepção ou a choques relacionados com interesses objetivos.
Como a idéia central vem a ser a de criar ou consolidar ligações eqüitativas e
frutíferas, não a de confrontar um adversário comum, o centro, no caso o
negócio, então, é associar recursos num empenho sinergético para assegurar
que o resultado nal seja superior à soma daquilo que as partes poderiam
conseguir isoladamente. É esse o caráter que hoje se procura atribuir à
integração da América do Sul e mais especicamente relevante para o tema
deste escrito à cooperação Brasil-Peru. Tal situação permite ao Presidente
Luís Inácio Lula da Silva proclamar a alta prioridade conferida por seu governo
à integração do subcontinente enquanto seu Ministro das Relações Exteriores
arma a intenção de manter com os Estados Unidos uma relação madura,
de caráter mais estratégico, na qual Washington perceberia o Brasil como
parceiro indispensável ao cultivo de relações estáveis com a América do Sul
e mesmo com a África. Em outras palavras, não haveria, na percepção de
Brasília, antinomia entre boas relações com os Estados Unidos e integração
dos países sul-americanos que o objetivo seria fortalecer esses países, não
antagonizar o centro.
Essa linha de racionio parece nortear a política externa brasileira
no subcontinente, mas não elimina a diculdade em atingir o proclamado
objetivo de integração da América do Sul. Além dos obstáculos inevitáveis
à concretização de uma iniciativa dessa magnitude, ela esbarra em duas
espécies de problema. O primeiro é a falta notória de eqüidade em um plano
de integração entre economias que, embora classicadas, elas todas, como
“em desenvolvimento”, apresentam entre si fortes assimetrias. Isso levaria, na
percepção das mais débeis, a um claro desvio distributivo em favor das mais
vigorosas da região, em particular a do Brasil. Do ponto de vista daqueles países,
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269
isso tornaria ilusórios ou pelo menos muito exagerados os proclamados
benefícios da integração. Públicas e notórias são, por exemplo, as insatisfações
de países como Paraguai e Uruguai. A segunda espécie de problema é a
divergência quanto à postura a tomar em relação ao centro especialmente
aos Estados Unidos. Enquanto alguns buscam estabelecer ou estabeleceram
vínculos especiais com Washington, seja sob a forma de acordos bilaterais
de comércio, como o Chile ou o Peru, seja de caráter mais amplo, como a
Colômbia, outros, como a Venezuela, concebem uma uno sul-americana se
dirigida contra os Estados Unidos, considerados por Caracas o grande inimigo.
Entre aqueles dois grupos, outros, como o Brasil, não vêem contradição entre
as boas relações com Washington e a integração do subcontinente, mas não
desejam uma associação econômica formalmente mais estreita com o poderoso
Estado setentrional. Em suma, dadas essas divergências, até mesmo integrar
apenas os sul-americanos e não mais todos os latino-americanos parece,
na melhor das hipóteses, um objetivo de muito longo prazo. Nesse contexto,
cabe, ainda que sem perder de vista o propósito nal de integração da América
do Sul, não descurar os esforços menos grandiosos, porém mais pragmáticos,
de cooperação bilateral.
Brasil-Peru
Países de enormes terririos, baixa densidade populacional e considerável
diversidade geográca, Brasil e Peru, embora em diferentes graus, enfrentam
problemas internos relativos a desigualdades regionais e integração funcional
das suas respectivas regiões.
No dizer de Enrique Cornejo Ramírez, “el Pees un país megadiverso en
el que conuyen diversas razas, lenguas y ecosistemas lo que da una gran potencialidad en
sectores como la agroindústria, el turismo o la industria forestal. Su compleja geografía,
sin embargo, diculta la integracn física entre los peruanos y pone a prueba a la s
sosticada ingeniería.
3
O Brasil, sem os mesmos extremos de diversidade
cultural e com uma geograa muito menos complexa, tem uma vasta
experncia de lidar com desigualdades regionais e integração sica de seu
extenso território. Desenvolveu também uma base industrial diversicada,
3 Cornejo Ramirez, Enrique. “La economía peruana y el desafío del crecimiento con inclusión social.” In:
DEP: Diplomacia, Estratégia e Política, n. 7, julho/setembro de 2007.
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270
na qual se inscreve uma signicativa indústria de constrão civil, com
empresas tecnicamente avançadas e economicamente lidas, com ampla
atuação na área internacional.
Essa complementação de necessidades e experiências oferece, pois, um
vasto campo de cooperação possível no desenvolvimento da infra-estrutura
peruana, um campo que vem sendo explorado por empresas brasileiras com
resultados positivos para as duas partes e perspectivas altamente promissoras.
Trata-se de um campo que, além dos benecios imediatamente ligados à política
de incrementar a permuta bilateral na área de serviços, é importante para levar
o desenvolvimento à economia peruana em seu conjunto e para incrementar
o comércio de bens entre ambas as nações.
Um bom exemplo da importância das obras de infra-estrutura e da
cooperação internacional é dado pelo ocorrido na região de San Martín, com
a recuperação da estrada Fernando Belaúnde Terry. No ano 2000, os prefeitos
membros da Associação de Municipalidades da área reuniram-se na localidade
de Tocache para determinar que medidas deveriam ser tomadas com vistas a
reverter o processo de crescente exclusão da região e como somar esforços
para que tais medidas fossem postas em prática. Formou-se rapidamente o
consenso de que a providência mais urgente e relevante era a recuperação (na
verdade a reconstrução) da estrada Fernando Belaúnde Terry. No começo
do ano seguinte, o diagnóstico foi conrmado por uma pesquisa realizada
sob os auspícios do Projeto de Redução e Alívio da Pobreza, nanciado pela
Usaid-Peru, sobre os nós de estrangulamento que impediam o progresso da
região. Segundo a pesquisa, os principais seriam “o estado ruim da rodovia
Fernando Belaúnde” e a “escassez e o custo excessivo da energia elétrica”.
Só a deterioração da estrada, a cujas margens vivem mais de 107 mil pessoas,
responderia por um prejuízo anual de 250 milhões de dólares. Finalmente,
em setembro de 2002, os governos dos Estados Unidos e do Peru rmaram
um Convênio de Doação com Objetivo Especial, cuja nalidade principal
era reduzir de modo sustentável o cultivo, com ns ilegais, da coca. Foi esse
acordo que possibilitou à Usaid doar 25 milhões de dólares para a recuperação
da estrada Fernando Belaúnde Terry, no trecho Juanjuí-Tocache. O Corpo
de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos recebeu a incumbência de
licitar, supervisionar e controlar a obra, cuja execução coube à construtora
brasileira Andrade Gutierrez. Os trabalhos, iniciados em abril de 2004, foram
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271
entregues ao governo peruano pela Usaid, entidade que assinou o contrato
com a Andrade Gutierrez, dezoito meses depois.
A importância da cooperação bilateral, no entanto, não se limita a
aproveitar essa feliz oportunidade oferecida por necessidades e possibilidades
complementares em uma área particularmente relevante para o desenvolvimento
e a integração. O Peru é um país de considerável potencialidade e que tem
sabido, nos últimos anos, expandir sua economia a um ritmo acelerado,
embora enfrente, como assinala o citado artigo de Enrique Cornejo, o enorme
desao de assegurar que os benefícios desse crescimento se distribuam mais
equitativamente. Entre os anos 2002 e 2005, o PIB expandiu-se a uma taxa
anual média de 5% e, nos dois anos seguintes, ainda mais rapidamente. Assim,
no período 2000-2007, o país apresentou a segunda maior taxa de crescimento
da renda per capita na América Latina, atrás apenas do Chile. Nos primeiros
cinco anos dessa década, a expansão foi assegurada sobretudo pelas crescentes
exportações, mas nos dois anos seguintes ela foi sustentada principalmente
pela demanda interna, que cresceu a 9% e 10,6% anuais, bem acima das taxas
de incremento do PIB e das exportações. A população economicamente
ativa (PEA) aumenta, porém, a um ritmo de 350.000 indivíduos por ano, cujo
emprego poderia ser assegurado por uma taxa anual de crescimento da
ordem de 7%. Não chega, pois, a surpreender que, em 2004, o desemprego na
economia peruana ainda fosse de 8,5% da população economicamente ativa e o
subemprego, de 54%. Em suma, quase dois terços da PEA estava desempregada
ou subempregada. Poderíamos ampliar o número de indicadores econômicos
e sociais, numa enfadonha lista de cifras, mas só conrmaríamos a avaliação
geral de que o Peru, sendo hoje um país com um bom desempenho econômico,
ainda enfrenta um enorme desao de inclusão social. A sustentação desse
desempenho na economia e, conseqüentemente, as condições para a solução
dos problemas sociais serão reforçadas num clima de cooperação bilateral, no
qual assume relevância a remoção dos gargalos de infra-estrutura.
Assim, a presença no Peru de rmas brasileiras de engenharia civil é parte
visível de uma cooperação madura entre ambos os países, uma cooperação
que não se esgota na remoção de barreiras ao comércio e no conseqüente
incremento no intercâmbio de bens. Isso é bem exemplicado pelo caso da
Andrade Gutierrez, com uma importante carteira de projetos executados ou
em andamento, relevantes não para o melhor desempenho da economia
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272
peruana como também, em certos casos, para a sua melhor integração no
continente.
A empresa chegou ao Peru pouco mais de quinze anos, em 1992,
iniciando seus trabalhos de engenharia civil no país pela construção, em
consórcio com empresas locais, na região de Piura, a quase 1.200 quilômetros
ao norte de Lima, do cais de cargas líquidas de Talara, destinado a servir à mais
antiga renaria do país e atualmente a segunda em capacidade. Era preciso
construir um cais para receber navios de até 35.000 toneladas de deslocamento
bruto e a usina de tratamento de água para lastro. A obra hoje possibilita, em
seguras condições, a atracação de navios-tanque para a carga de substâncias
obtidas na renaria e a descarga no mar da água usada para lastro em condições
ecologicamente apropriadas.
Esse foi o primeiro passo de uma longa e frutífera história de cooperação.
Outros viriam, sobretudo no setor rodoviário, mas também no de geração de
energia elétrica, numa série de importantes projetos na área de engenharia civil
que até hoje não cessou.
Dessa forma, no período 1993-1995, executou a mesma empresa para
o governo peruano uma importante obra de recuperação e manutenção de um
longo trecho (235 quilômetros) da Estrada Pan-Americana Sul. Trata-se de uma
das estradas de maior trânsito no país e permite a automóveis e caminhões
fazer o trajeto sem interrupções entre Ica e Lima, dando condições para escoar
a produção predominantemente agrícola da região servida pela rodovia para
o principal mercado consumidor doméstico, o de Lima. Seguir-se-iam outros,
como a recuperação e pavimentação da estrada Tarma-La Merced, 1996-98,
ou da rodovia La Merced-Shankivironi, 1997-1999, que em parte coincidem
no tempo com a realização do túnel de adução e obras conexas da central
hidroelétrica San Gabán II, 1996-99.
Mais importante que a listagem de projetos individuais é, porém, a visão
política endossada por todos os chefes de Estado sul-americanos na I Reunião
de Cúpula da América do Sul, realizada em Brasília, no ano 2000, de que não
bastava pôr termo a projetos individuais era preciso discutir em conjunto
a integração da infra-estrutura continental. dessa forma se conseguiria
maximizar a contribuão desses empreendimentos para a realização do
objetivo comum de integração. Foi assim que se aprovou a Iniciativa para a
Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana (Iirsa) como foro para a
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273
discussão integrada de projetos de infra-estrutura capazes de contribuir para a
consecução do objetivo integracionista aceito por todos, mas que seria pouco
mais que letra morta enquanto não fosse possível promover a integração física
do continente.
A Iirsa projetou nove Eixos de Integração e Desenvolvimento. Desses,
quatro envolvem o Peru, e três, igualmente o Brasil:
Eixo do Amazonas – Iirsa Norte (Peru-Equador-Colômbia-Brasil);
Eixo Iirsa Sul (Peru-Brasil-Bolívia);
Eixo interoceânico (Brasil-Paraguai-Bolívia-Peru-Chile), e
Eixo andino (Peru-Equador-Colômbia-Venezuela-Bolívia-Chile).
Como se pode ver, os “eixos de integração” aprovados pela Iirsa
oferecem um elemento importante para o desenvolvimento de um trabalho
sério de cooperação Brasil-Peru na área da infra-estrutura de transporte e
comunicação. O eixo multimodal Amazonas Norte, por exemplo, estende-se
por 960 quilômetros e compreende não apenas os trechos rodoviários entre
Paita e Yurimaguas mas também os portos uviais desse último local e de
Iquitos, bem como as hidrovias oferecidas pelos rios Huallaga e Marañon,
que completam a vinculação com a fronteira do Brasil. No tocante ao tema
especíco deste artigo, os projetos contemplados nos eixos Iirsa muitos dos
quais ainda estão em execução com a participação da Andrade Gutierrez e de
outras empresas brasileiras criam assim grandes possibilidades de incremento
do intercâmbio entre um país com a já mencionada potencialidade do Peru e
o Brasil, o mais importante mercado nacional da América do Sul.
À guisa de conclusão
Como assinalado na parte inicial do artigo, integrar os países latino-
americanos como um jogo de soma positiva, no qual a associação dos
países da América Latina poderia resultar em um ganho em relação ao que
seria a mera agregação dos produtos nacionais da região – foi uma idéia que
demorou a tomar pé nas respectivas capitais. Sua primeira expressão formal,
bastante inuenciada pelo pensamento da Cepal, foi o Tratado de Montevidéu
I, de 1960. Por esse tratado se criou a Associação Latino-Americana de Livre
Comércio (Alalc). Em tese, a integração deveria eliminar ou atenuar algumas
das mazelas que achacam as economias em desenvolvimento, como a estreiteza
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
274
dos respectivos mercados internos e os conseentes obsculos para a
especialização e formação de economias de escala.
Por motivos brevemente aorados em outra seção deste escrito, o ideal
integracionista não prosperou da maneira prevista naquele tratado. Chegou-
se dessa forma, duas décadas mais tarde, ao Tratado de Montevidéu II, que
estabeleceu a Associão Latino-Americana de Integrão (Aladi), cujas
realizações também caram aquém do formalmente anunciado objetivo.
Decorridos quarenta anos da assinatura do Tratado de Montevidéu I,
o Brasil tomou a iniciativa de convocar, no ano 2000, uma reunião de cúpula
dos países sul-americanos, considerados menos ligados aos Estados Unidos
que os da América Central e Caribe e dotados, no conjunto, de especicidades
que, em tese, deveriam facilitar uma aproximação mais íntima do que seria
possível em relação à América Latina em sua totalidade. Surgia assim, ainda
no governo Fernando Henrique Cardoso, a noção de um novo regionalismo
continental, o sul-americanismo, conservada no atual.
Hoje, com a sabedoria fácil da retrospecção, parece claro que toda e
qualquer idéia ambiciosa de integração regional sul-americana ou latino-
americana deve ser vista como objetivo de longo prazo, de consecução
desejável, porém remota. Sendo assim, mas sem nunca abandonar essa distante
meta, cabe desenvolver pragmaticamente esquemas bilaterais de aproximação
com nossos vizinhos, particularmente aqueles projetos que possam contribuir
da mesma forma para a consecução daquele objetivo longínquo de integração
regional. É nesse contexto que se enquadra a cooperação com o Peru na área
de infra-estrutura.
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
275
www.embraer.com.br
Embraer Empresa Brasileira
de Aeronáutica S.A.
A internacionalização da Embraer
Introdução
A
Indústria Aeroespacial, da qual a Indústria Aeronáutica constitui o
segmento mais expressivo, reúne uma combinação de características altamente
demandantes, que a fazem especial e diferenciada.
Poucas indústrias no mundo embutem combinação de desaos o
formidáveis como a indústria aeronáutica: do emprego simultâneo de ltiplas
tecnologias de vanguarda, passando pela mão-de-obra de elevada qualicação,
pelas exigências de uma indústria global por denição, à exibilidade necessária
para reagir a abruptas mudanças de cenário e os grandes volumes de capital
exigidos em sua operação.
Como fruto da experiência acumulada em mais de três cadas de atuação
neste mercado competitivo, agressivo e sosticado, na Embraer costumamos
armar que o negócio aeronáutico se fundamenta em cinco grandes pilares,
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
276
que tem como base única a satisfação dos nossos clientes, fonte geradora dos
resultados que permitirão o retorno aos nossos acionistas e a continuidade da
Empresa ao longo dos tempos:
Tecnologias avançadas: em decorrência de requisitos operacionais
muito exigentes quanto à segurança, de variações ambientais extremas,
e de restrições de peso e volume, a indústria aeronáutica emprega uma
multiplicidade de tecnologias de ponta e reconhecidamente constitui
laboratório para o seu amadurecimento, antes que sejam repassadas
a outros segmentos e atividades produtivas. Tecnologias complexas
e sosticadas estão presentes não somente no produto, mas também
nos métodos e processos de desenvolvimento e fabricação, sendo
necessário ainda a utilização das melhores práticas disponíveis no que
concerne à gestão nanceira e de pessoas.
Força de trabalho de elevada qualicação: para que se possa fazer
uso eciente e produtivo compatível destas tecnologias avançadas,
é fundamental que pessoas capacitadas estejam disponíveis, em
todos os níveis de atividades da indústria: no projeto apoiado por
computadores, no relacionamento com fornecedores e clientes
baseados nos cinco continentes, na manufatura com base em quinas
de controle numérico sosticadas, e na construção de elaboradas
soluções nanceiras com instituições internacionais.
Flexibilidade: abruptas mudanças de cenário afetando a economia e a
ordem geopolítica em escala mundial, das quais o exemplo mais recente
vem dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, tem imediato
impacto sobre a instria de transporte reo e, por decorrência, sobre os
fabricantes de aeronaves. A exibilidade para adaptar-se a estas mudanças,
com mínima perda de eciência e custos, constitui característica crucial
para assegurar sua sobrevivência e preservação.
Intensidade de Capital: investimentos maciços requeridos para o
desenvolvimento de novos produtos e melhorias em qualidade e
produtividade, aliados a longos ciclos de desenvolvimento e maturação,
fazem da intensidade de capital outra característica marcante deste
negócio. Apenas para exemplicar, o desenvolvimento da nova família
de aeronaves comerciais Embraer 170/190 requereu investimentos da
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
277
ordem de US$ 1 bilhão e o novo avião Airbus A350 deverá requerer
nada menos que US$ 15 bilhões!
Indústria global: os baixos volumes de produção e os custos elevados
fazem com que a indústria aeronáutica seja exportadora e global por
natureza, tanto no que se refere à sua base de clientes, como a de
fornecedores, ou das instituições nanceiras e investidores que a apóiam.
A mesma aeronave Embraer 170 que opera sob as cores da empresa
nlandesa Finnair no rigoroso inverno escandinavo deve igualmente
suportar as condições de elevadas umidade e temperatura do sul dos
Estados Unidos, operando sob as cores da United Express. Em ambas as
circunstâncias, a Embraer deve se fazer permanentemente presente junto
a seus clientes, provendo apoio técnico local e acesso imediato a peças e
componentes, demonstrando compromisso com o êxito de seus necios
e objetivando, sempre, a satisfão plena que assegura novas encomendas
no futuro. Ao mesmo tempo, tem que viver os diversos ambientes em
que opera para perceber tendências e mudanças nos cenários, positivas
ou adversas, e ter a capacidade de reagir com rapidez.
Legacy 600
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278
Todas essas características tornam a indústria aeronáutica um negócio, ao
mesmo tempo, fascinante e de elevado risco. O insucesso de um novo produto
pode implicar a inviabilidade e conseqüente saída do mercado da empresa que
o desenvolveu. O desaparecimento de empresas tradicionais, como a holandesa
Fokker, e a saída da sueca Saab do mercado aeronáutico civil, dentre outras,
constituem duro atestado desta realidade.
A despeito dos grandes riscos envolvidos, desenvolver uma indústria
aeronáutica autóctone, forte e autônoma, tem sido parte da agenda estratégica
de muitas nações, que através dos anos investem pesadamente em sua
implantação, apoiando-a de forma recorrente por meio de vários expedientes:
rmando grandes contratos de sistemas e produtos de Defesa, nanciando
programas de desenvolvimento de novas aeronaves em condições favoráveis
e propiciando incentivos scais de toda a sorte
A internacionalização da Embraer
Consciente de que a conquista de novos mercados, fundamentais
para o crescimento e consolidação da empresa, somente se dará de forma
efetiva se acompanhada de sua presença física nestes mercados, por meio
de unidades industriais ou de prestação de serviços de pós-venda e apoio ao
cliente, a Embraer adotou, a partir de sua privatização, em 1994, a progressiva
internacionalização de suas operações como um objetivo estratégico a
perseguir.
Longe de signicar perda de sua identidade brasileira e afastamento de
suas origens, a internacionalização da Embraer assegurará novos negócios, o
fortalecimento da nossa marca e a criação de mais empregos de alta qualicação
no Brasil, em proporções sempre superiores aos empregos gerados em suas
subsidiárias e controladas localizadas fora do país.
A partir do ano de 1997, em franca recuperação após o lançamento
no mercado do jato regional ERJ 145, a Embraer deu partida à sua estratégia
de internacionalização por meio de um misto de ações que envolveram:
1- a expansão ou implantação de escritórios de vendas e marketing e centros
de distribuição de peças de reposição; 2- realização de “joint ventures” e;
3- aquisição de empresas especializadas em serviços aeronáuticos tradicionais
e reputadas no mercado.
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Estados Unidos e Europa: presenças consolidadas
Em território norte-americano e europeu a Embraer encontra-se presente
de longa data: desde 1978 e 1983, respectivamente, por meio de escritórios de
vendas e marketing e unidades de apoio ao cliente (peças e serviços).
Ambas as unidades tiveram e têm papel vital na expansão de seus
negócios nos dois principais mercados de Aviação Comercial em todo o
mundo, onde voam hoje, incluído o Brasil, cerca de 950 jatos comerciais,
que se somam aos cerca de 800 aviões turboélices e mais aviões militares
fabricados pela Empresa. Os mercados norte-americano e europeu são
responsáveis por cerca de 95% do total das exportações.
No caso da unidade norte-americana, baseada em Fort-Lauderdale,
no Estado da Flórida, as instalações foram expandidas para fazer frente
ao crescimento dos negócios da Empresa a partir da primeira entrega do
jato regional ERJ 145, em dezembro de 1996. Em novembro de 2006 esta
unidade empregava 234 pessoas e gerenciava um estoque de peças com mais
de 50 mil itens.
Phenom 100 e Phenom 300
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280
Como resultado do aumento de seus negócios e da base de clientes
estabelecida em território europeu, a Embraer decidiu reunir em uma única
sede, localizada em Villepinte, nas proximidades do aeroporto de Roissy-
Charles de Gaulle, em Paris, suas unidades de vendas e marketing e apoio
ao cliente, incluindo importante depósito de peças sobressalentes, até
então divididas entre a mesma localidade de Villepinte, e o aeroporto de
Le Bourget. As novas instalações, integradas, deverão proporcionar maior
ecácia operacional a um corpo de 194 empregados, responsáveis pela gestão
de € 172 milhões de ativos e servir mais de 37 clientes.
China e Ásia-Pacíco: mercados estratégicos
Pela importância de sua economia, que cresce ininterruptamente a
taxas elevadas mais de duas décadas, somada ao valor estratégico do
transporte aéreo como elemento integrador e viabilizador do desenvolvimento
em um território dimensões continentais, a China foi eleita pela Embraer
como objetivo estratégico a alcançar, exigindo tratamento próprio e
diferenciado, em face de características culturais próprias, muito distantes
do mundo ocidental.
O estabelecimento da presença da Embraer em território chinês deu-
se inicialmente em maio de 2000, por meio da abertura de um escritório de
vendas e marketing, na cidade de Pequim, logo seguido da abertura de um
centro de distribuição de peças de reposição na mesma cidade.
Nos anos 2001 e 2002, a Embraer negociou com autoridades chinesas
um acordo que lhe permitisse instalar uma unidade industrial destinada à
fabricação de aviões da família ERJ 145 destinadas ao mercado chinês.
Finalmente, em dezembro de 2002, foi rmado um acordo com a
Aviation Industry of China II (AVIC II), que levou à criação da Harbin
Embraer Aircraft Industry (HEAI), “joint venture” da qual a Embraer detém
o controle, com 51% das ações com direito a voto.
Em fevereiro de 2004, a Embraer anunciou a sua primeira venda
na China por meio da HEAI seis jatos ERJ 145 para a empresa China
Southern. Seguiram-se outras importantes vendas, do mesmo modelo e na
mesma quantidade, para a China Eastern Jiangsu, março de 2005, e para a
China Eastern Wuhan, em janeiro de 2006.
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281
Em agosto de 2006, a Embraer anunciou a venda de 50 aviões ERJ
145 e 50 jatos Embraer 190 ao Grupo HNA, quarta maior empresa aérea da
China. O negócio representou o primeiro contrato de venda de um E-Jet na
China continental. O valor total das encomendas rmes, ao preço de lista,
é de US$ 2,7 bilhões. As entregas dos ERJ 145 começarão em setembro de
2007. O jato, de 50 assentos, será produzido pela própria HEAI, na cidade de
Harbin, Província Heilongjiang.
Até o nal de 2006 a HEAI terá entregado 13 unidades do ERJ 145
que, somadas às cinco aeronaves vendidas em 2000, antes da implantação
de sua “joint venture”, para a Sichuan, totalizarão 18 jatos em operação por
empresas aéreas chinesas.
Com respeito à região da Ásia Pacíco, desde dezembro de 2000, a
Embraer opera um escritório de vendas e marketing localizado em Cingapura,
com a responsabilidade de desenvolver a estratégia comercial da companhia
para os mercados da região, incluindo o subcontinente indiano.
Vista aérea da sede da Embraer em São José dos Campos
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
282
O mercado aéreo indiano passa por processo de desregulamentação
e com interessantes perspectivas de crescimento. Nesse cenário, a empresa
Paramount, recentemente criada, anunciou o início de suas operações, com
base em dois jatos EMRAER 170 e três Embraer 175, sob o regime de
“leasing operacional”.
Foi também na Índia, com governo local, que a Embraer assinou
importante contrato de venda de cinco jatos Legacy 600, congurados
especialmente para atender a requisitos de conforto e segurança aplicáveis às
autoridades daquele país.
Expandindo a base de serviços e apoio ao cliente
A Embraer deverá continuar expandindo a área de serviços, não só no
que diz respeito a assegurar os excelentes índices de despachabilidade para a
frota de seus aviões, mas também servir seus clientes com outros serviços,
como a manutenção e o reparo de aviões, garantindo a sua plena satisfação,
condição essencial à geração dos nossos resultados e crescimento das nossas
operações.
Assim é que, além de consolidar sua base de atendimento no Brasil, com
a transferência de seu Centro de Serviços para a Unidade Gavião Peixoto,
foram expandidas sua participação nos Estados Unidos, com a adição de
novas instalações da Embraer Aircraft Maintenance Services (EAMS), em
Nashville, Estado do Tennessee, e também na Europa, com a aquisição da
OGMA Indústria Aeronáutica de Portugal S.A, em Alverca, Portugal,
anunciada em dezembro de 2004, ao nal do processo de privatização.
No início de 2005, a EAMS expandiu suas instalações no Aeroporto
Internacional de Nashville para aumentar a capacidade de realização de serviços
de manutenção, em vista da crescente frota de aviões da Embraer em operação
nos Estados Unidos. Como conseqüência dessa importante decisão, a partir
de 2005, novos empregados foram progressivamente contratados pela EAMS,
cujos quadros contavam, em novembro de 2006, com 277 empregados.
A OGMA, fundada em 1918, tem desde então se dedicado à manutenção
aeronáutica, sendo hoje importante representante da indústria aeronáutica
européia, oferecendo serviços de manutenção e reparo de aeronaves civis e
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
283
militares, motores e componentes, modicações e montagens de componentes
estruturais e suporte de engenharia.
Seus principais clientes militares são a Força Aérea Portuguesa, a Força
Aérea Francesa, a Força Aérea e a Marinha dos Estados Unidos, a Agência de
Manutenção e Suprimento da OTAN e as Marinhas da Noruega e Holanda,
entre outros. No segmento comercial, a OGMA vem prestando serviços a
empresas aéreas como a TAP, Portugalia, British Midland e Luxair, e também
para companhias como a Embraer e a Rolls-Royce.
Além de trabalhos na área de manutenção, a OGMA fabrica componentes
estruturais e materiais compostos para a Boeing, Airbus, Lockheed Martin,
Dassault e Pilatus. Em novembro de 2006 contava com 1.606 empregados,
constituindo-se na maior das unidades e subsidiária da Embraer.
A preservação da cultura, valores e atitude:
desao permanente
A velocidade da expansão da Embraer a partir de 1996, ano que marcou
a entrada em operação da aeronave ERJ 145, trouxe consigo enormes desaos
Família Embraer 170/190
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284
sob os enfoques da preservação da cultura, valores e atitudes que norteiam e
deverão continuar norteando suas ações.
Apenas para exemplicar a dimensão desse desao, basta citar que, em
abril de 1997, a Empresa contava com apenas 3.200 empregados distribuídos
em um total de cinco unidades operacionais, sendo três no Brasil e duas no
exterior. Hoje, decorridos nove anos, são 18.670 empregados distribuídos
em treze unidades operacionais, sendo cinco no Brasil e oito no exterior.
Em apenas uma de suas unidades, situada na França, existem cerca de 26
nacionalidades e 19 línguas distintas dentre 194 empregados.
Saber reconhecer a rica diversidade étnica e cultural de seus empregados
e os diferentes ambientes em que desenvolvem suas atividades, incluídas
as legislações trabalhistas especícas, e, ao mesmo tempo, desenvolver seu
máximo potencial criativo, canalizando suas energias para os objetivos
do negócio, em perfeito alinhamento com os valores éticos e morais da
companhia, constitui uma das grandes prioridades de seus administradores.
O principal elemento no alcance desse intento é a chamada Metodologia
de Gestão pelo Plano de Ação. Anualmente, a Embraer elabora um Plano de
Ação com uma visão de cinco anos e segue um modelo de planejamento
estratégico considerando mercados, competidores, competências da Empresa,
oportunidades e riscos, prioridades e resultados, dentre outros fatores.
O Plano de Ação da Companhia é resultante do desdobramento interno
de planos equivalentes para cada área corporativa, funcional e de negócio,
chegando ao nível de chão de fábrica, a partir da divulgação, na estrutura
organizacional, de diretrizes gerais emitidas pela administração superior para
a Empresa. A política de remuneração variável da Companhia, que se estende
a todos os seus empregados, leva em conta as metas pactuadas entre líderes
e liderados ao longo de toda a cadeia de comando. Em assim sendo, o Plano
de Ação passa a constituir o instrumento central de empresariamento do
negócio, alinhamento e comprometimento de todos os empregados com as
metas e resultados planejados.
Juntamente com a Metodologia do Plano de Ação, a Embraer pratica
uma forte cultura de Comunicação Interna direcionada para a integração entre
empregados e seus familiares e para a disseminação dos principais valores e
conceitos Embraer.
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
285
A Comunicação Interna da Embraer atua de forma global e integrada,
lançando mão de ferramentas modernas e de grande atratividade junto aos
empregados:
O Diretor-Presidente da Embraer dise de ferramenta ppria
de comunicação com os empregados, denominado Em Tempo,
produzido simultaneamente nos idiomas português e inglês. Mais
recentemente, passaram a serem produzidas edições especiais do Em
Tempo gravadas em vídeo;
A Intranet Embraer constitui hoje ferramenta de alcance corporativo
e a principal fonte de informações de nossos empregados, com uma
média de 24,5 mil acessos diários;
Cerca de 600 comunicados internos são produzidos anualmente e
disponibilizados aos empregados via Intranet e em quadros de avisos,
sendo 25% destes comunicados de alcance corporativo;
O informativo Embraer Notícias divulga temas essenciais à cultura
Embraer: a Metodologia de Gestão pelo Plano de Ação, a importância
do discernimento e contenção de custos, o combate ao desperdício, a
integração entre equipes em torno dos grandes objetivos empresariais
da Embraer, etc;
Entrevistas concedidas pelos principais executivos da Empresa são
traduzidas e enviadas para as unidades situadas fora do país. Por
abordarem, invariavelmente, avaliões de mercado, assim como
estratégias e objetivos da Companhia, constituem objeto de grande
atenção por parte dos empregados, e
Artigos publicados na mídia nacional e internacional, abordando
temas de interesse aos negócios da Embraer, são traduzidos e
disponibilizados aos empregados.
Com essa visão e determinação, centrada em valores éticos e morais, e
tendo a integridade como base do desenvolvimento das ações, a Embraer se
lança ao empresariamento de um negócio global, extremamente desaante
e competitivo. E o faz levando aos diversos mercados a imagem de uma
empresa brasileira eciente, ágil e com produtos de qualidade e atualidade
tecnológica.
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287
5
36
49
61
111
122
Argentina e Brasil: contraste e convergência
de estruturas
Torcuato S. Di Tella
Bolívia: processos de mudança e política externa
Jean Paul Guevara Avila
Cultura, diversidade e acesso
Gilberto Gil
Ensaio sobre as grandes mudanças da política
econômica chilena e seus principais legados
Osvaldo Sunkel
Colômbia: um país de contrastes
Alfredo Rangel
Equador: temas fundamentais
León Roldós
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Número 8 Outubro / Dezembro 2007
Sumário
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
288
Guiana: impacto da política externa sobre os desaos
do desenvolvimento
Robert H. O. Corbin
Paraguai: identidades, substituições e transformações
Bartomeu Melià, s.j.
Peru: entre os sobressaltos eleitorais e a agenda
pendente da exclusão
Martín Tanaka · Sofía Vera
A República do Suriname e a integração regional
Robby D. Ramlakhan
Uruguai: breve evolução econômica e política
Alberto Couriel
O Estado de Direito e de justiça social no quadro da
Alternativa Bolivariana para a América e o Caribe –
ALBA
Isaías Rodríguez
Koki Ruiz
137
159
173
190
207
220
233
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
289
7
26
49
83
96
120
151
Sumário
A recuperação da economia argentina
Aldo Ferrer
Economia da Bolívia: diagnóstico e planos para 2008
Luís Alberto Arce Catacora
Um enfoque qualitativo da economia brasileira
João Paulo de Almeida Magalhães
A economia chilena e os desaos do desenvolvimento
Mauricio Jelvez M.
Economia colombiana na conjuntura:
uma aproximação crítica
Darío Germán Umaña Mendoza
A economia do Equador: um balanço e uma nova noção
de desenvolvimento
Fander Falconí Benítez
Economia da Guiana: avaliação e projeções
Rajendra Rampersaud
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Número 7 Julho / Setembro 2007
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
290
166
182
205
219
231
251
Paraguai, uma marcha lenta: situação e
perspectiva econômica
Dionisio Borda
A economia peruana e o desao do crescimento
com inclusão social
Enrique Cornejo Ramírez
Suriname: evolução macroeconômica
André E. Telting
A economia do Uruguai: uma perspectiva empresarial
Jorge Abuchalja
A atual fase de crescimento da economia venezuelana
Nelson Merentes
Philip Moore: alma antiga em corpo moderno
Agnes Jones
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
291
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Número 6 Abril / Junho 2007
5
15
35
49
61
76
91
Sumário
Realidade da Argentina e região
Cristina Fernández de Kirchner
Diplomacia para a vida
Pablo Solón
Brasil 2007: pronto para crescer novamente
Guido Mantega
A integração regional: fator de desenvolvimento
sustentável
Emílio Odebrecht
Em busca do crescimento com eqüidade
Ricardo Ffrench-Davis
Colômbia: desaos até 2010
Álvaro Uribe Vélez
Um plano para o Equador
Rafael Correa Delgado
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
292
Identidade cultural e creolização
na Guiana
Prem Misir
Paraguai: Estado patrimonial e clientelismo
Milda Rivarola
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Aníbal Quijano
Combate ao narcotráco no Suriname
Subhaas Punwasi
Mercosul: projeto e perspectivas
Luis Alberto Lacalle de Herrera
Acerca da grandíssima importância de um partido
Hugo Chávez
Guayasamín por ele mesmo
97
109
132
180
193
202
229
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
293
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Número 5 Janeiro / Março 2007
Sumário
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
José Paradiso
A integração da infra-estrutura na América do Sul:
um impulso ao desenvolvimento sustentável e à
integração regional
Enrique García
Paciência e eleições
Antônio Delm Netto
Perspectivas das relações entre o Chile e a Bolívia
Luis Maira
Fatores de força da Colômbia
Fernando Cepeda Ulloa
Política exterior e segurança democrática e humana
Diego Ribadeneira Espinosa
A nova ordem humana global de Cheddi Jagan
Ralph Ramkharan
5
26
36
40
56
78
86
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
294
92
108
128
144
182
191
Situação econômica e perspectivas do Paraguai
Dionisio Borda
Visão estratégica regional da política externa
do Peru
José Antonio García Belaúnde
Suriname por seus autores
Jerome Egger
Mercosul: quo vadis?
Gerardo Caetano
Plena Soberania Petrolífera
Rafael Ramírez
Silvano Cuéllar – Alegoria da Nação
María Victoria de Robayo
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295
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Número 4 Abril / Junho 2006
5
16
28
44
66
86
101
Sumário
Objetivos e desaos da política exterior argentina
Jorge Taiana
Bolívia, fator de integração
Evo Morales
Desaos e perspectivas da economia brasileira
Paulo Skaf
Programa de governo (2006-2010)
Michelle Bachelet
A armadilha do bilateralismo
Germán Umaña Mendoza
A Organização do Tratado de Cooperação
Amazônica (Otca): um desao permanente
Rosalía Arteaga Serrano
A Guiana – vinculando o Brasil ao Caribe:
um potencial que encontra a sua oportunidade
Peter R. Ramsaroop
Eric M. Phillips
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
296
120
134
155
169
206
232
A encruzilhada política paraguaia
Pedro Fadul
A grande transformação
Ollanta Humala
Suriname, uma visão macroeconômica:
desaos e perspectivas
André E. Telting
A inserção externa do Uruguai:
uma visão política e estratégica
Sergio Abreu
“Há um outro mundo, e está neste”
José Vicente Rangel
Pedro Lira
Milan Ivelic
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D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Ano I Número 3 Abril / Junho 2005
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
298
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
299
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Ano I Número 2 Janeiro / Março 2005
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
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301
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Ano I Número 1 Outubro / Dezembro 2004
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a nº 9Ja n E i r o /ma r ç o 2009
302
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