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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO – DEPARTAMENTO DE LETRAS
RÉQUIEM À INFÂNCIA:
Um estudo sobre Um sábado em 30 e
Viva o cordão encarnado, de Luiz Marinho
IGOR DE ALMEIDA SILVA
Dissertação de Mestrado
ORIENTAÇÃO: PROF. DR. ANCO MÁRCIO TENÓRIO VIEIRA
Apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFPE
como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Teoria da
Literatura.
RECIFE – 2007
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Silva, Igor de Almeida
Réquiem à infância: um estudo sobre Um bado
em 30 e Viva o cordão encarnado, de Luiz Marinho /
Igor de Almeida Silva.
- Recife : O Autor, 2007.
308 folhas
Dissertação (mestrado)
Universidade Federal de
Pernambuco. CAC. Teoria da Literatura, 2007.
1. Literatura brasileira. 2. Teatro brasileiro
Pernambuco. 3. Comédia.
4. Teatro (Literatura) 5.
Literatura e sociedade. I. Falcão Filho, Luiz Marinho –
Crítica e interpretação. II. Título.
869.0(81)
CDU (2.ed.)
UFPE
B869
CDD (22.ed.)
CAC2007
-
57
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO – DEPARTAMENTO DE LETRAS
RÉQUIEM À INFÂNCIA:
Um estudo sobre Um sábado em 30 e
Viva o cordão encarnado, de Luiz Marinho
IGOR DE ALMEIDA SILVA
Dissertação de Mestrado
ORIENTAÇÃO: PROF. DR. ANCO MÁRCIO TENÓRIO VIEIRA
Apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFPE
como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Teoria da
Literatura.
RECIFE – 2007
À Diana, minha mãe,
que através desta dedicatória,
quero repor parte da ternura e da felicidade que me dá.
Como diz Bandeira,
“Ton bonheur ne peut pas être comme celui des autres”.
Ela e eu, bem o sabemos.
Agradecimentos
Esta pesquisa não teria chegado a bom termo sem a preciosa colaboração de
algumas pessoas/instituições, ao longo deste trajeto:
Devo toda a gratidão ao Professor Doutor Anco Márcio Tenório Vieira,
primeiramente por ter me aceitado enquanto orientando neste curso de mestrado; depois,
por sua dedicação e paciência, por sua competente interlocução, por sua alegria e humor
neste processo maiêutico; sem o seu empenho exigente, esta dissertação não teria obtido
os resultados pretendidos.
Agradeço aos professores e professoras da Pós-Graduação com os/as quais tive a
oportunidade de crescimento intelectual e pessoal, especialmente pelas oportunidades de
discussão na sala de aula ou fora dela. Também agradeço aos colegas do mestrado pelas
experiências compartilhadas, bem como aos funcionários e funcionárias da Pós-
Graduação pela agradável presteza e facilidades nos trâmites burocráticos universitários.
Aos Professores Dr. Alexandre Figueirôa Ferreira e Drª. Lucila Nogueira
Rodrigues pela leitura atenciosa deste trabalho, bem como por suas pertinentes
observações.
A Luís Augusto da Veiga Reis e Liliana Tavares pela amizade e pelo diálogo
intelectual sempre instigante, além do acesso de fundamental bibliografia para a redação
deste trabalho.
À Professora Doutora Fátima Saadi, tanto pelos preciosos Lire la comédie, de
Michel Corvin, e Lire la tragédie, de Alain Couprie, que fez chegar às minhas mãos
depois de incessantes buscas por sebos, sites e livrarias, como a revisão de minhas
traduções do francês.
Ao Professor Jomard Muniz de Britto, ao escritor João Silvério Trevisan, ao
Professor Doutor Roberto Mauro Cortez Motta, ao crítico e jornalista Kil Abreu, à Karla
Cascão, pelos livros e revistas que me conseguiram, graças aos quais, pude
redimensionar minhas análises e interpretações das comédias marinhas.
À Maria Claudete de Souza Oliveira pela generosidade e disponibilidade de
fotocopiar e enviar diversos livros, teses e revistas constantes das bibliotecas da
Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras e da Escola de Comunicação e
Artes, da Universidade de São Paulo, indispensáveis à minha pesquisa.
A Antonio Carlos Ramos de Matos (Tito) e a Cyril Nogier, que não mediram
esforços em Paris e Valence para localizar livros, que me foram de grande valia no
aprofundamento do gênero cômico.
À Ana Maria de Oliveira e à professora e jornalista Ivana Moura, pelas
gentilezas que me concederam em várias ocasiões durante este percurso.
À Nilza Lisboa que mediou junto a Lúcia Helena C. Franco, da Biblioteca
Central Blanche Knopf, da Fundação Joaquim Nabuco, uma fotocópia do único
exemplar que encontrei de Viva o cordão encarnado, edição do Museu do Açúcar
(1969).
Ao ator João Ferreira que me presenteou com fotos e fotocópias raras de artigos
da première de Viva o cordão encarnado.
À Professora Gilda Maria Whitaker Verri pela gentileza em intermediar junto à
Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco, através dos previdentes bibliotecários
Hélio Monteiro e Maria José Silva, a obtenção de uma rara cópia da primeira edição de
A incelença, publicada em separata pela Revista Nordeste, nos idos de 1963.
À Companhia Editora de Pernambuco (CEPE) que me pôs a disposição uma
preciosa entrevista concedida por Luiz Marinho ao Suplemento Cultural.
À Capes pelo amparo econômico, durante um ano através de uma bolsa de
estudos.
Quero agradecer ainda a:
À Professora Lúcia Machado, sempre presente como exemplo de competência
intelectual que, com carinho e dedicação, revisou meus ensaios e especialmente esta
dissertação, com a mesma qualidade e inteligência que espelha nas buas do palco,
presença luminosa de atriz.
À Helena, atenciosa, silenciosa, de uma presteza e bondade inimagináveis, pelos
dias luminosos, claros, vividos no Pina de translúcido azul-céu. Com a casa, casa-livro
sempre em desalinho, eu lhe provocava ternura e desassossego.
E agradecer especialmente a:
A Antonio, que compartilhou as dificuldades e avanços no dia-a-dia da pesquisa
à redação, com dedicação incomum, no meu encalço para ir além de mim mesmo,
encorajando-me a prosseguir nestas veredas intelectuais, oferecendo-me preciosos
insights, sugestões várias, referências bibliográficas raras, mas sobretudo por multiplicar
em nós mesmos, os mistérios desse encontro.
Sinopse
Réquiem à Infância estuda duas comédias de Luiz Marinho (1926-2002), Um
sábado em 30 e Viva o cordão encarnado. O viés teórico que nos utilizamos para a
análise destas peças foi de rastrear, em suas camadas significantes, as formas do
cômico, através de uma leitura sociocultural do autor, suas proposições estéticas e
ideológicas. Nas duas comédias, escritas sob o ângulo da memória, memórias
ficcionalizadas, na acepção de Anco Márcio Tenório Vieira, o dramaturgo transfigura
suas mitologias pessoais, suas reminiscências, num constructo pessoal que, através da
comicidade, revela a sociedade patriarcal em suas contradições. Ao mesmo tempo em
que evoca o passado, apresenta um tempo-lugar em que predomina o atraso econômico
e social, mas dele extraindo sua “força cômica”. Comédia e comicidade. Gênero e
conceito que atravessam a obra de Luiz Marinho, de maneira indissociável, em
constante transformação, passando do sério ao jocoso e vice-versa. Seriedade que
remete de antemão à comédie serieuse, de Denis Diderot (1713-1784). As duas peças
têm uma correlação interna entre o vivido e o real, mas sem o prejuízo da sua
ficcionalidade. Revelação de si mesmo, de seu outro, do mundo e de nós mesmo.
PALAVRAS-CHAVE: Dramaturgia brasileira; comédia e comicidade; literatura e
sociedade; memória e ficção; Luiz Marinho; literatura brasileira.
Résumé
Requiem à l’enfance étudie deux comédies de Luiz Marinho (1926-2002), Um
sábado em 30 et Viva o cordão encarnado. Le biais théorique que nous avons appliqué
pour l’analyse de ses pièces a été celui de tracer, dans ses couches signifiantes, les
formes du comique, à partir d’une lecture socioculturelle de l’auteur, ses propositions
esthétiques et idéologiques. Dans les deux comédies, écrites sous l’angle de la mémoire,
mémoires rendues fictives, dans la conception de Anco Márcio Tenório Vieira, le
dramaturge transfigure ses mythologies personnelles, ses reminiscences, dans une
construction personnelle qui révèle, à travers du comique, la société patriarcale dans ses
contradictions. En même temps qu’il évoque le passé, il nous présente un temps-lieu, où
prédomine le retard économique et social, mais en retirant de lui sa force comique.
Comédie et comique. Genre et concept qui traversent l’oeuvre de Luiz Marinho d’une
manière indissociable, en permanente transformation, en passant du sérieux au comique
et vice-versa. Sérieux qui nous rapporte à la comédie sérieuse, de Denis Diderot (1713-
1784). Les deux pièces ont une relation entre le vécu et le réel, mais sans le préjudice de
sa force fictionnelle. Révélation de soi-même, de son autre, du monde e de nous-même.
MOTS-CLÉS: Dramaturgie brésilienne; comédie et comique; littérature et société;
mémoire et fiction; Luiz Marinho; littérature brésilienne.
Joga teu pesar no abismo!
Esquece, homem! Esquece, homem!
Divina é a arte do esquecer!
Queres voar,
Queres habitar as alturas:
Joga o que mais te pesa no mar!
Aí está o mar, joga-te no mar!
Divina é a arte do esquecer!
Friedrich Nietzsche,
Ditirambos de Dionísio (Fragmento 67)
1882 - 1888
Tradução Márcio Suzuki
Wirf dein Schweres in die Tiefe!
Mensch, vergiss! Mensch, vergiss!
Goettlich ist des Vergessens Kunst!
Willst du fliegen,
Willst du in Hoehen heimisch sein:
Wirf dein Schwerstes in das Meer!
Hier ist das Meer, wirf dich ins Meer!
Goettlich ist des Vergessens Kunst!
Friedrich Nietzsche,
Bruchstuecke zu Dionisos-Dithyramben (Nr. 67)
1882 - 1888
Sumário
Introdução ......................................................................................................................... 12
1. Mitologias marinhas ..................................................................................................... 20
1.1. Memórias marinhas .......................................................................................... 30
1.1.1. História, ficção e autobiografia no espelho retrovisor da teoria ........... 30
1.1.2. Memórias ficcionalizadas ..................................................................... 35
1.1.3. Relembranças, regionalismos e modernismos ...................................... 39
1.2. Cosmogonia marinha ........................................................................................ 44
1.2.1. Volteios da memória: lembranças de menino ...................................... 44
1.2.2. Episódios para cinema: não olhem para a objetiva! ............................ 52
1.2.3. O fim e o início: evocações, evidências, enigmas ................................ 61
1.2.3.1. Mitológicas I: mitos de criação ............................................. 61
1.2.3.2. Mitológicas II: aprendeu sem s’insiná .................................. 68
1.2.3.3. Mitológicas III: abrindo-se em muitas saídas ....................... 79
2. Réquiem à infância ....................................................................................................... 83
2.1. Um sábado em 30 ............................................................................................. 89
2.1.1. Um sábado reencontrado: la comédie sérieuse, ao seu modo .............. 98
2.1.1.1. Antecedentes históricos da montagem .................................. 98
2.1.1.2. Novas paráfrases à cena e à crítica ...................................... 101
2.1.1.3. New old story ....................................................................... 103
2.1.1.4. Por uma comédia séria ........................................................ 108
2.1.1.4.1. Por uma poética do natural: digressões hipotéticas. 114
2.1.2. A tessitura dos fatos ............................................................................ 120
2.1.2.1. A organização da ficção ...................................................... 121
2.1.3. O entre-lugar da casa ......................................................................... 126
2.1.4. Tempo de homens partidos ................................................................. 127
2.1.5. Crônicas marinhas .............................................................................. 132
2.1.6. Para além da comicidade .................................................................... 136
2.1.7. As surpresas do amor e o acaso do desejo .......................................... 139
2.1.8. Coronéis & arlequins .......................................................................... 148
2.1.9. A comédia do patriarcalismo .............................................................. 164
2.2. Viva o cordão encarnado ............................................................................... 178
2.2.1. Prelúdio ou o abre .............................................................................. 183
2.2.2. Ainda os vestígios do despertar da primavera .................................... 185
2.2.3. Zefa e o amuleto de Zé Pelintra .......................................................... 187
2.2.3.1. Pour Feydeau ou quase um vaudeville ................................ 194
2.2.4. Santos, encantados & vadios .............................................................. 199
2.2.4.1. São Raimundo, padroeiro do “bom adultério” .................... 199
2.2.4.2. Caranguejo não é peixe? ...................................................... 205
2.2.4.3. Maria Não Enjeita, o oráculo da Jurema ............................. 211
2.2.4.4. Libações a Zé Pelintra ou dialética da cachaça ................... 228
2.2.5. Masculino, feminino: força, fluxo, fricção ......................................... 243
2.2.5.1. Ser ou não ser rapariga ........................................................ 244
2.2.5.2. Boys don’t cry ...................................................................... 253
2.2.5.3. A peleja dos cravos .............................................................. 261
2.2.6. Como se num thriller: quase cinema .................................................. 270
2.2.7. Coda ou a saideira .............................................................................. 273
Considerações finais ....................................................................................................... 276
Referências bibliográficas .............................................................................................. 282
Introdução
Toda palavra é adâmica:
Nomeia o homem
Que nomeia a palavra.
Querendo situar objetos
Construímos um elenco vertical.
Enumeração caótica?
Antes definição.
Catalogar, próprio do homem.
Murilo Mendes, Texto de consulta (1994:739)
13
Introdução
Estudar o teatro de Luiz Marinho (1926-2002), pernambucano de Timbaúba,
através de suas comédias - fazendo emergir das formas do cômico, o conhecimento
sociocultural do autor, suas proposições estéticas e ideológicas - é o objeto deste estudo.
Dentre as quatorze peças do autor, que já tiveram uma primeira sistematização feita por
Anco Márcio Tenório Vieira
1
, trabalhamos com apenas duas delas: Um sábado em 30
(1960) e Viva o cordão encarnado (1965).
A escolha deste corpus e o viés pelo qual abordamos o cômico e seus
desvelamentos socioculturais e políticos deve-se ao fato dessas peças serem
reconhecidamente comédias. As duas passaram pelo crivo de encenações as mais
diversas, sempre se acentuando o risível que provocaram. Fato registrado em críticas na
imprensa e no pioneiro estudo de Tenório Vieira, que rastreou com profundidade as teias
de suas obras e conformou-as num “teatro como memória”: lugar de suas “lembranças
domésticas, sociais, políticas, afetivas, culturais, religiosas”. (VIEIRA 2004: 18). É como
se o olhar de Marinho adulto se debruçasse sobre a criança e o jovem que já fora: “um
Marinho solipcista que busca dar sentido à sua existencialidade e, por sua vez, a todo o
universo que o cerca e que o viu nascer, crescer, tornar-se adulto, envelhecer e caminhar
para a morte”. (VIEIRA 2004: 18).
Suas comédias escritas a partir de 1960, começando com Um sábado em 30 (talvez
coletando material para sua redação desde 1954) até possivelmente 1997, época em que
redigiu sua última peça As três graças, têm uma vitalidade inerente à “força cômica”, que
Cleise Mendes afirma ser aquela que não cessa de “colocar em movimento, em circulação,
novas e novas formas dramáticas, sempre cambiáveis, sempre em mutação segundo o
desgaste provocado pelo atrito com outras forças, em cada tempo e lugar”. (2000:186). Ou
seja, Marinho escreveu e reescreveu sua obra, tanto pela inexorável força interior, como
pela necessidade premente de atuar no “tempo e lugar”, através de “uma denúncia à nação
do atraso oriundo do desenvolvimento em que vegetam os nossos irmãos nordestinos”.
1
. “[...] duas podem ser classificadas como regionais A Promessa e Viva o cordão encarnado e seis como
regionalistas A derradeira ceia, A incelença, Um sábado em 30, A afilhada de Nossa Senhora da
Conceição, A valsa do diabo e A estrada. São os textos infantis Foi um dia, A família Ratoplam e A
aventura do capitão flúor – as peças psico-existenciais – O último trem para os igarapés e Corpo Corpóreo
e a sua comédia proto-surrealista As três graças”. (VIEIRA 2004: 18).
14
(MARINHO 1968:136). E esta denúncia deu-se expressivamente através de suas comédias,
sua força cômica.
Uma hibridez que comporta matizes que vão do cômico ao trágico, do drama à
farsa. As diferenças entre elas, e dentro delas mesmas, são nuançadas, incorporando
sempre que possível as mais variadas combinações. Mas o que nelas predomina é a
comicidade, comicidade que incorpora também o humor “que tem lugar em todas as artes,
mas é no drama cômico que tem sua morada”. (LANGER [1953] 1980:352). Enfim, um
teatro que trouxe para o palco “linguagens de ligação com o campo e a cidade grande, com
uma fidelidade ao real” (PONTES [1966] 1990:138), raramente encontrada em outros
dramaturgos nordestinos, exceto José Carlos Cavalcanti Borges.
Não pretendemos historiar o cômico ou a comédia em Pernambuco, para trazer à
cena aquele sobre o qual trabalharemos: Luiz Marinho. Mas deve-se registrar que o gênero
cômico sempre esteve presente nos principais grupos amadores e companhias teatrais, dos
anos 40 até os dias de hoje. Começando pelo Teatro de Amadores de Pernambuco que
sempre incluiu em seu repertório a “alta comédia” e chegando ao Teatro Popular do
Nordeste (1960-1975), grupo criado e liderado por Hermilo Borba Filho (1917-1976) e
Ariano Suassuna (1927-), onde a “comédia” seria ao mesmo tempo erudita e popular”,
procedente das mais diversas fontes e países, inclusive as escritas no Nordeste.
Escolhemos o teatro de Luiz Marinho, como objeto de estudo, devido à importância
da dramaturgia deste autor, não para Pernambuco como para o Brasil. Desde que se
lançou como dramaturgo, através do Teatro de Cultura Popular, em 1961, e depois da
consagração definitiva com a montagem do TAP, em 1963, de Um sábado em 30, quase
todas as suas peças foram encenadas pelo país afora, por diferentes grupos, recebendo
prêmios locais e nacionais. Chegando a figurar numa obra de referência como a de Décio
de Almeida Prado, O teatro brasileiro moderno (2003:84). Também existe uma
considerável fortuna crítica sobre sua obra, publicada nos jornais do Recife, do Rio de
Janeiro e São Paulo, especialmente quando da encenação de suas peças. Sobre elas
escreveram personalidades como Valdemar de Oliveira, Joel Pontes, Décio de Almeida
Prado e Yan Michalski, dentre outros. Tendo sido, inclusive, o homenageado do VII
Festival Recife do Teatro Nacional, em 2004, o que propiciou, além de duas leituras
dramáticas
2
, a apresentação de três diferentes encenações de Corpo Corpóreo
3
e o
2
Foram lidos os seguintes textos: A valsa do diabo e As três graças. As duas leituras apresentaram-se,
respectivamente, em 14 e 19 de novembro de 2004. A primeira ocorreu no Teatro Apolo, tendo a direção de
Roberto Lúcio. No elenco, Cira Ramos, João Ferreira, Marilena Breda, João Augusto Lira, Paulo Machado,
15
lançamento do livro Luiz Marinho: o sábado que não entardece, de Anco Márcio Tenório
Vieira, dentro de um conjunto de homenagens prestadas ao dramaturgo pela Prefeitura do
Recife. Entretanto, apesar deste merecido reconhecimento por parte da imprensa, dos
órgãos públicos, da classe artística e do grande público, a ausência de um estudo
acadêmico sobre sua obra é expressiva.
Tomamos como ponto de partida para nossa análise, os procedimentos cômicos
empregados em Um sábado em 30 e Viva o cordão encarnado, devido à consciência de
que, a partir da comicidade, revelam-se as contradições socioculturais de uma sociedade,
amada e saudosamente rememorada por Marinho, mas ao mesmo tempo presa às tradições
de estruturas arcaizantes e opressoras. Dessa forma, investigamos, analisamos e
interpretamos, a partir destas duas comédias o projeto estético e ideológico de Luiz
Marinho. Ampliando o olhar sobre seu teatro, indo do todo às partes e das partes ao todo,
num processo de idas e vindas que assegurem à nossa visada crítica, uma conexão com a
forma por ele escolhida e as conexões inerentes à história.
A escolha desse corpus também é em decorrência da interpretação de Anco Márcio
Tenório Vieira que constata que ambas as peças formam as bases das memórias
ficcionalizadas de Marinho. Segundo ele, estas peças constituem uma espécie de
introdução ao seu livro de memórias, diversas vezes anunciado, mas nunca concretizado.
Porém, neste trabalho, ampliamos essa noção, constatando que o teatro de Luiz Marinho
são memórias ficcionalizadas que em sua totalidade formam também uma espécie de rito
de despedida do autor para com o seu passado, particularmente, das memórias de infância
e adolescência em Timbaúba. Tratando especificamente de suas comédias, supomos que
estas sejam reminiscências retomadas alegremente através de suas escrita ficcional onde o
autor reencontra-se consigo mesmo, com sua interioridade, ao mesmo tempo em que o ato
de relembrar pressupõe o início de um processo de esquecimento. Esquecimento não como
perda de si mesmo, mas como superação e assimilação. Semelhante a um processo de
Álvaro Heleno, Ewerson Luna, Sílvio Pinto, Giberto Trindade, Iolanda Martins, Janaina Pinheiro, Marinho
Falcão, André Riccari, Mariz e Maria Oliveira. A segunda leitura ocorreu no Teatro Barreto Júnior, com
direção de Luiz Marfuz. No elenco, Geninha da Rosa Borges, Maria de Jesus Bacarelli, Ivonete Melo,
Auricéia Fraga, Márcio Carneiro, Nelson Almeida, Hermylla Guedes, Pascoal Filizola, Adelson Dornellas e
Ivo Barreto.
3
Antes de se apresentarem no VII Festival Recife do Teatro Nacional, estas três encenações de Corpo
corpóreo estrearam em 29 de outubro de 2004, oriundas do projeto O Aprendiz Encena, realizado pelo
Centro de Formação e Pesquisa das Artes Cênicas Apolo-Hermilo, da Prefeitura do Recife. A primeira
encenação de Corpo corpóreo tinha direção de Andrezza Alves e no elenco, Ana Maria Ramos, Hilton
Azevedo e Mariana Lima Leal. A segunda, direção de André Cavendish, com o ator Jones Melo. A terceira,
sob a batuta de Sidimar Gianette, com o ator Adelson Dornellas. Curadoria de Luís Reis; dramaturgia de
Anco Márcio Tenório Vieira; direção de arte de Marcondes Lima; iluminação de Sávio Uchôa; coordenação
do projeto de Lúcia Machado e assessoria de Ana Izabel Luna.
16
superação do luto, Marinho reencontra-se com sua infância, passando-a em revista, como
se num estágio preparatório que o levará constantemente a abordagens de novas veredas
estéticas e existenciais. Novos temas, novos procedimentos dramatúrgicos, cada vez mais
se distanciando do universo telúrico e memorialístico que o impulsionou a tornar-se
dramaturgo. Sua escrita dramática configura-se sempre numa espécie de contínua
preparação para a vida, para a maturidade, mas também para a morte, para o inominável da
existência.
Nesta dissertação, empregamos o estudo das formas do cômico como viés
interpretativo, para através delas compreender as questões estéticas e ideológicas do autor,
levando-nos a inúmeras obras: quanto à análise da comédia e da comicidade, trabalhamos,
sobretudo, com Michel Corvin (1994), Henri Bergson ([1900] 2004), Charles Mauron
([1964] 2000), Denis Diderot ([1758] 2005), Sigmund Freud ([1905] 1996a; [1927]
1996d), Henri Gouhier (1952), mas também Mikhail Bakhtin (1987). E, sempre que se fez
necessário, chamamos ao nosso trabalho autores que discutem rito, mito e religiosidade
popular; erotismo e poder; assim como estética teatral; análise do teatro e dramaturgia
brasileira; regionalismos. Também tentamos responder a algumas perguntas: 1) Como
Marinho trabalhava a produção do cômico, da comicidade?; 2) Como as comédias
marinhas resistiram ou reelaboraram os hibridismos das formas dramáticas, através da
“comédia séria”, de Diderot? ; 3) Como os heróis e heroínas cômicas – se existem, com tal
fidalguia refletem sobre a ordem transgredida? ; 4) Como registrar e reler os padrões de
recepção das obras, à época em que foram publicadas e/ou encenadas?
Nosso trabalho divide-se em duas partes. Na primeira, tratamos das mitologias
pessoais de Luiz Marinho, discutindo a questão memorialística de sua obra: Mitologias
marinhas. Neste capítulo, passamos em revista várias teorias que nos permitiram uma
primeira aproximação de seu teatro e de sua pessoa, assim como a fortuna crítica de sua
obra, tendo em vista também apresentar ao leitor a diversidade de leituras que sua
dramaturgia propiciou na época de sua fatura. Retomamos a questão da ficcionalidade,
observando sua filiação aos pressupostos do Regionalismo freyriano, atestada por Anco
Márcio Tenório Vieira; em seguida, neste mesmo capítulo, redesenhamos um perfil
biográfico do autor, trazendo novas informações ou dando luz a certos aspectos não
remarcados por Tenório Vieira. Consideramos o universo memorialístico que Marinho
criou para si mesmo, como a constituição de seu mito de criação, uma espécie de mitologia
pessoal que serviu de substrato para sua criação dramática. Supomos que Marinho, em suas
entrevistas, de certa maneira, elaborava uma imagem mítica de si mesmo, como a do
17
teatrólogo matuto, de um homem quase inculto, em que Tenório Vieira via “muito mais
como uma maneira de ser e estar no mundo, do que uma verdade substantiva”. (VIEIRA,
2004:39). A partir desta informação, ampliamos sua mitificação de si mesmo, para a
criação de sua cosmogonia pessoal, berço de sua produção ficcional. Por fim, tratamos
também de constituir como se deu a formação estética de Marinho. Mas a maior
contribuição deste capítulo foi apresentar a relação que Marinho tinha com o catimbó-
jurema, através de seu discurso de posse na Academia Pernambucana de Letras. Esta é uma
informação, uma interpretação nova, dentro de uma perspectiva, de um olhar, sobre essas
memórias e sua reverberação na sua obra dramática.
Na segunda parte, estudamos Um sábado em 30 e Viva o cordão encarnado:
Réquiem à infância, que também dá título a esta dissertação. A análise das peças se dá por
ordem de sua fatura e não em função do tempo ficcional inerente às duas comédias. Neste
capítulo, revisamos a recepção crítica de ambas as peças, detendo-nos, ora nos comentários
dos críticos acerca dos textos, ora nas suas considerações sobre as primeiras montagens das
respectivas peças: a montagem de Um sábado em 30, pelo Teatro de Amadores de
Pernambuco (TAP), cuja estréia foi em 8 de julho de 1963; a montagem de Viva o cordão
encarnado, por Clênio Wanderley, em 17 de janeiro de 1968 e a encenação de Luiz
Mendonça deste mesmo texto, em 1974, no Rio de Janeiro. Ambas as peças receberam
mais de uma edição, assim como receberam consideráveis elogios por parte da crítica
teatral da época e também diversos prêmios. E mesmo quando criticadas, nunca foi negado
suas qualidades: da teatralidade, seu apelo à cena, o registro de costumes, do linguajar e
das tradições dos folguedos populares (pastoril profano).
Tomando as próprias orientações de Luiz Marinho na apresentação de A afilhada de
Nossa Senhora da Conceição, na sua edição de 1968, em que ele diz: “Com raras
exceções, não haverá risos em cena. Será uma gente muito sisuda”. (MARINHO
1968:184), redimensionamos a discussão da sisudez dos personagens marinhos a partir de
uma reflexão sobre a seriedade do riso e do risível. Reflexão que nos levou às proposições
do filósofo e dramaturgo francês Denis Diderot, no século XVIII, acerca do que ele
chamou de genre sérieux (gênero sério), sobretudo, la comédie sérieuse (comédia séria),
que se originou dessa categoria. Por mais divergente que possam parecer em suas
respectivas visões de mundo, o tempo e o espaço em que viveram, nos foi possível
constatar laços impensados por Marinho, de seu teatro, com as teorias de Diderot. Ligações
que se dão no que concernem aos procedimentos estéticos de ambos os teatrólogos. Além
disso, também estabelecemos um diálogo entre a comédia nova, de Terêncio e Luiz
18
Marinho. Na análise de ambas as peças nos detivemos no estudo da intriga, da ação
dramática e dos personagens, deslindando seus temas e idéias, tentando compreender o
pensamento de cada peça.
Em Um sábado em 30, revisando as considerações dos críticos que a concebiam
como uma comédia de costumes escrita ao modo de 1930, pudemos constatar o quanto
seus comentários foram anacrônicos. De fato Um sábado em 30 é uma comédia de
costumes, mas não uma comédia circunscrita ao saudosismo, ao registro e à galhofa aos
costumes do matuto, mas uma comédia de costumes da família patriarcal e da sociedade
que dela se originou. Ou seja, Marinho coloca seus personagens, representantes desta casta,
em suas contradições, vícios, desconstruindo toda a imagem solene, honesta e bem
intencionada que estes tentavam aparentar, sobrepor a si mesmos. Revela uma sociedade
presa aos seus costumes patriarcais, estagnada em si mesma. Transformada num sistema
mecânico, autômato, sempre a repetir seus mesmos procedimentos, formas de pensamento,
incapaz de se repensar e de se transgredir. Com um certo amargor ele chega a essa
conclusão, mas conseguindo daí extrair motivo para o riso, riso que denuncia seu desvio,
sua falta. Marinho transforma sua comédia de costumes do patriarcalismo, numa
impiedosa corrosão dos valores patriarcais. Faz triunfar sobre a constatação angustiante,
sobre a realidade que se apresenta, não como um tempo morto, mas como uma “memória-
hábito” que insiste em se presentificar e se repetir entre seus pares. Mas de certa maneira,
Marinho vislumbra uma nova sociedade, justamente a partir da constatação do que lhe
falta: o fim das desigualdades sociais, da hipocrisia e da falsa moral que aprisiona o ser
humano. Aqui, Marinho despede-se da criança que guarda dentro de si mesmo, que se
divertia com o linguajar dos matutos, ao encontrar o adulto que observa criticamente o
passado, o presente, seu tempo. Prepara-se então para novas exéquias.
Em Viva o cordão encarnado, reencontramos esse universo patriarcal, agora sob
um novo prisma, com novos personagens, num novo ambiente, embora ainda em diálogo
com Um sábado em 30. Deparamo-nos com algumas questões abordadas na primeira
comédia marinha, como moral, ética, sexualidade e religião. Aqui, foram resignificadas e
ampliadas por um novo viés. Sai-se da casa patriarcal, passando pela miserabilidade da
casa de profissionais do pastoril até chegar-se à rua. Espaço, aparentemente, sem
fronteiras, onde pelo furor da festa popular tem suas hierarquias ilusoriamente suspensas.
As questões relativas às comédias sérias de Diderot, se no universo da casa, elas ainda a
sobrenadam, na rua esvai-se quase completamente. De um pólo a outro esta peça transita
entre o cômico e o dramático; entre uma atmosfera cômica e uma atmosfera trágica; aqui
19
matizadas. Também muitos de seus personagens são outros, embora possamos encontrar
personagens presentes em Um sábado em 30: Zefa e Romeu, agora ocupando outro
papel social. Discutimos a questão da sexualidade, do conflito de gêneros e da
masculinidade, além de constatarmos o aperfeiçoamento da carpintaria teatral de Marinho.
Num processo dialético de morte e nascimento, Marinho renova-se e renasce através desta
peça, principiando seu rito de despedida numa ode ao cordão encarnado, isto é, à vida.
Tudo e nada... como o mito. Apenas uma despedida em allegro vivace, depois de
tantas incelenças e réquiens. Agora, in paradisum.
1
Mitologias marinhas
Não falo do esquecimento como perda,
mas de esquecimento como assimilação.
Destruição das formas oferecidas e
arquivamento de suas frações
nos recônditos mais profundos da memória,
para a recriação de outros módulos
agora nossos.
Pedro Nava, Balão cativo (1986:243).
Às vezes ocorre
Um autor estar
Aquém
- do próprio texto.
De o texto ter-se feito
Além dos dedos,
Como gavinha que inventou
A direção de seu verde,
E fonte que minou
O inconsciente segredo.
............................................
Às vezes ocorre
Um autor estar aquém
Da criação.
O texto-sábio
Criando asas
E o autor pastando
Grudado no chão.
Affonso Romano de Sant’Anna. Os limites do autor. (1984:12).
O mytho é o nada que é tudo.
Fernando Pessoa. Ulysses. ([1935] 2006:58)
21
1
Mitologias marinhas
Mnemosyne é a deusa da memória, mito dos primeiros tempos gregos, que gera
nove Musas, as Palavras Cantadas, procriadas em nove noites de intercurso sexual com
Zeus. São as Musas que hão de inspirar os poetas a comporem, recitarem, resgatarem o
episódio do esquecimento e presentificarem o passado. Mnemosyne
4
dava aos aedos e
adivinhos a possibilidade de voltarem ao passado e evocá-lo para a sociedade, ainda sem
escrita. Também dava poder aos mortais na medida em que os imortaliza em obras,
registrando suas fisionomias ou seus feitos, seus atos ou suas palavras e, assim, o humano
nunca seria esquecido, não morreria jamais. Portanto, a memória tornava-se “inseparável
do sentimento do tempo ou da percepção/experiência do tempo como algo que escoa ou
passa”. (CHAUÍ 2005:138).
Mas se buscarmos uma anterioridade para o desenvolvimento da memória na
Antigüidade e nos restringirmos à Grécia antiga vamos nos deparar, segundo Le Goff, com
uma clara evolução da memória coletiva, enfatizada por Jean-Pierre Vernant que, a partir
de um estudo sobre memória individual, constata: “A memória, distinguindo-se do hábito,
representa uma difícil invenção, a conquista progressiva pelo homem do seu passado
individual, como a história constitui para o grupo social, a conquista do seu passado
coletivo”. (VERNANT 1965 apud LE GOFF 2003:432). Ainda é difícil, segundo Le Goff,
compreender a passagem da memória oral à escrita. No entanto, segundo ele, uma
instituição grega - a do Mnemon - que ajuda a reconstituir o que se passou na Grécia
arcaica, pois o mnemon “é uma pessoa que guarda a lembrança do passado em vista de
uma decisão de justiça”. (LE GOFF 2003:432). Estes mnemones desempenharam papéis de
magistrados em questões religiosas e jurídicas e, com o desenvolvimento da escrita,
passaram - de “memórias vivas” em “arquivistas”.
A questão entre memória e escrita pode ter como marco o Fedro, de Platão (1962),
passagem considerada clássica sobre este assunto. O diálogo estabelecido entre o deus
4
Mnemosyne faz um par contrastante com a divindade feminina Letes, divindade do esquecimento. Mas
devemos ficar atentos que “na interpretação desse mito a genealogia tem um pequeno papel, pois ‘Lete’
(ele ou ela) é sobretudo nome de um rio do submundo, que confere esquecimento às almas dos mortos. Nessa
imagem e campo de imagens o esquecimento esinteiramente mergulhado no elemento líquido das águas”.
Cf. WEINRICH (2001:24).
22
egípcio Thot (inventor da escrita, patrono dos escribas) e o deus Tamuz (rei de Tebas)
evidencia as diferenças entre os interlocutores (reverberações da sociedade grega de
então): para Thot, a escrita fortalecerá a memória dos egípcios, pois trata-se de uma
auxiliar à sabedoria, mas Tamuz replica que “tal cousa tornará os homens esquecidos, pois
deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos, se lembrarão de
um assunto exteriormente e por meio de sinais, e não em si mesmos”. (PLATÃO 1962:35).
Pode-se concluir deste debate que a invenção da escrita com o objetivo de auxiliar na
memória dos homens, torna-los-á esquecidos. Mas a sociedade grega “divinizou” a
memória e, em diversas épocas e culturas, constata Vernant, “há solidariedade entre as
técnicas de rememorações praticadas, a organização interna da função, o seu lugar no
sistema do eu e a imagem que os homens fazem da memória”. (apud LE GOFF 2003:433).
Daí poderem os gregos da época arcaica criar a deusa Mnemosyne. E é ela a proteger o
poeta “homem possuído pela memória”, “testemunha” da “idade heróica” e por isso,
“testemunha” da “idade das origens”:
Mnemosyne, revelando ao poeta os segredos do passado, o introduz nos
mistérios do Além. A memória aparece como um dom para iniciados, e a
anamnesis, a reminiscência, como uma cnica ascética e mística. Também a
memória joga um papel de primeiro plano nas doutrinas órficas e pitagóricas.
Ela é o antídoto do Esquecimento. No inferno órfico, o morto deve evitar a
fonte do esquecimento, não deve beber no Letes, mas ao contrário, nutrir-se da
fonte da memória, que é uma fonte de imortalidade. (LE GOFF 2003:434).
A rememorização do passado e a exaltação do mito criam um problema na
reconciliação entre história e memória. Mas, uma vez perdido o aspecto mítico da memória
platônica, é Aristóteles que vai laicizar a memória ao distinguir “a memória propriamente
dita a mnemê, mera faculdade de conservar o passado, e a reminiscência, a mamnesi,
faculdade de evocar voluntariamente esse passado”, (LE GOFF 2003:435) que agora
dessacralizada, está, nas palavras de Vernant, “incluída no tempo, mas num tempo que
permanece, também para Aristóteles, rebelde à inteligibilidade”. (apud LE GOFF
2003:435). Esse passo, mais a invenção da escrita, levam à criação de técnicas de
memorização, devendo-se a Simônides de Céos, o criador da retórica, o mito fundador da
mnemotécnica (ars memoriae).
Conta-se que Simônides (cerca de 557 a 467 a.C.) fora contratado para escrever um
hino em louvor à vitória de um boxeador famoso, Scopas. Fez-se o poema, escrito e
recitado por Simônides em honra a este fato memorável. Scopas não ficou satisfeito, por
23
ter ele dedicado dois terços do seu hino laudatório aos deuses Castor e Pólux e só um terço
ao boxeador. Disse-lhe que pagaria um terço por seu trabalho. O restante, deveriam os
deuses pagar. Simônides é, então, chamado para fora do recinto festivo, pois estava sendo
procurado por dois jovens que lhe queriam falar com urgência. Logo que sai do salão, este
desaba e todos são soterrados. Simônides fora salvo pelos deuses que assim retribuíram o
hino em seu louvor. É aqui que entra a mnemotécnica: Simônides é quem vai auxiliar os
familiares a identificar cada um dos mortos, pois lembrava-se de todos e dos locais em que
estavam situados. Esta “anedota” chama a atenção para o esforço mnemotécnico no culto
aos mortos e também ressalta a importância de que, na memória, uma “espacialidade”,
uma constelação de lugares:
Nesses locais ele [o artista da memória] testemunha em seqüência ordenada os
conteúdos isolados da memória, depois de primeiro os ter transformado em
“imagens” (grego, phantasmata, latim, imagines), se não o forem por
natureza. Essa é a realização de sua “força de imaginação” (grego, phantasia,
latim, imaginatio). No seu discurso, o artista da memória precisa apenas
repassar em pensamento a seqüência de lugares (latim, permeare, pervegari,
percurrere), e com isso pode invocar em série as imagens da memória.
Portanto, é sempre uma paisagem da memória na qual age essa arte, e, nessa
paisagem, tudo o que deve ser confiavelmente lembrado tem seu lugar
determinado. Só o esquecimento não tem lugar ali. (WEINRICH 2001:31).
Com Santo Agostinho (cerca de 400) temos, a partir de suas Confissões, a
consciência de que passado, presente e futuro constituem a memória como “uma forma de
percepção interna chamada introspecção, cujo objeto é interior ao sujeito do
conhecimento: as coisas passadas lembradas, o próprio passado do sujeito e o passado
relatado ou registrado por outros em narrativas orais e escritas”. (CHAUÍ 2005:138). O ser
humano pode passear pelos “poderosos espaços” ocultados na memória. E de sua
interioridade, em meio à dialética cristã, sairão não só a “introspecção”, mas também a
psicanálise.
No século XX, a questão da memória vai também expandir-se a outros campos
como os da literatura e da filosofia. Em 1896, o filósofo francês Henri Bergson (1859-
1941), publica seu Matière et memoire no qual a noção de “imagem”, na inter-relação entre
memória e percepção, torna-se central, além de enfatizar as relações da memória com o
espírito, com a alma, influenciando vivamente Marcel Proust que havia sido seu aluno -
em seu À la recherche du temps perdu, nascendo então “uma nova memória romanesca, a
recolocar na cadeia ‘mito-história-romance’”. (LE GOFF 2003:465).
24
Para Bergson, a memória é um traço de união entre o antes e o depois. O presente
envia sinais à lembrança que lhe responde. E responde através do corpo que guarda
consigo esquemas comportamentais, consolidados, automatizados. Teríamos aqui a
memória-hábito
5
: aquela que repete continuamente mecanismos motores. O que fixara-se à
força da repetição. Memória como adestramento cultural. Mas também a memória pode
ser memória pura ou “memória propriamente dita”: aquela que não precisa de automação
para conservar uma lembrança. A memória pura ou lembrança pura atualiza-se na
imagem-lembrança, trazendo à consciência “um momento único, singular, não repetido,
irreversível, da vida. Daí, o caráter não mecânico, mas evocativo, do seu aparecimento pela
via da memória”. (BOSI 2004:49). A memória pura é aquela que mantemos em nós quase
sem nela pensarmos, por seus significados afetivos, por sua significação relevante em
nossas vidas. Por vezes, ela resgata momentos ou situações fugazes, que não se repetirão
nunca mais. Aqui, não se faz necessário lembrar-se de um fato na sua totalidade, às vezes
um resíduo do lembrado traz de volta todo o passado. Para Bergson, esta memória
propriamente dita “opera no sonho e na poesia, está situada no reino privilegiado do
espírito livre” (BOSI 2004:51), ao contrário da memória-hábito que funciona como limite
redutor da vida psicológica. Esta memória, Bergson não hesitou em chamá-la inconsciente,
pois qualquer lembrança “vive” em estado latente, potencial. Isto é, no processo psíquico,
existem estados e fenômenos infraconscientes que ficam à sombra. A representação
inconsciente e a representação consciente têm tensa convivência, como o próprio Bergson
atesta: “O espírito humano pressiona sem parar, com a fatalidade da memória, contra a
porta que o corpo lhe vai entreabrir; daí os jogos da fantasia e o trabalho da imaginação
liberdades que o espírito toma com a natureza. O que não impede reconhecer que a
orientação para a ação parece ser a lei fundamental da vida psicológica”. (BERGSON 1959
apud BOSI 2004:52-53).
5
Chauí identifica seis grandes tipos de memória, incluindo esta memória-hábito: 1) a memória perceptiva ou
de reconhecimento: “que permite reconhecer coisas, pessoas, lugares, etc. e que é indispensável para a nossa
vida cotidiana”; 2) a memória-hábito: a “que adquirimos por atenção deliberada ou voluntária e pela
repetição de gestos ou palavras”; 3) a memória-fluxo-de-duração-pessoal: “que nos faz guardar a lembrança
de coisas, fatos, pessoas, lugares cujo significado é importante para nós, seja do ponto de vista afetivo, seja
do ponto de vista de nossos conhecimentos”, falando-se de “fluxo de duração” indica a continuidade deste
processo temporal como parte inerente à nossa existência e à história pessoal de cada um; 4) a memória
social ou histórica: “que é fixada por uma sociedade por meio de mitos fundadores e de relatos, registros,
documentos, monumentos, datas e nomes de pessoas, fatos e lugares que possuem significados para a vida
coletiva”; 5) a memória biológica da espécie: “gravada no código genético das diferentes espécies de vida e
que permitem a repetição da espécie pela transmissão de suas qualidades, propriedades, traços e aspectos”,
memória inconsciente e puramente física; 6) a memória artificial das máquinas, baseada na estrutura do
cérebro humano”, memória técnica. (CHAUÍ 2005:141).
25
Além de Bergson, a memória também foi tratada pelo sociólogo francês Maurice
Halbwachs. Para ele, a memória não era considerada nem como um atributo da condição
humana “nem a partir de seu vínculo com o passado, mas sim como o resultado de
representações coletivas construídas no presente, que tinham como função manter a
sociedade coerente e unida. Para ele, a memória tinha apenas um adjetivo: a memória era a
memória coletiva”. (SANTOS 2003:21). [grifo nosso]. Nestas pesquisas de memórias
coletivas, há uma idéia implícita de salvação do passado e especialmente uma luta contra o
esquecimento. A questão da memória coletiva predominou, especialmente, nas Ciências
Sociais, ratificando a luta de sociedades inteiras pela vida, por sua própria sobrevivência e
sua promoção. Nesta contextualização, a própria memória tornou-se elemento essencial
àquilo que “se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das
atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.
(LE GOFF 2003:469). No entanto, a memória coletiva também prestou-se a tornar-se, na
mão de uma classe social dominante, objeto de poder, fato que deve servir de advertência
aos profissionais científicos da memória, antropólogos, historiadores, jornalistas,
sociólogos que devem “fazer da luta pela democratização da memória social um dos
imperativos prioritários da sua objetividade científica”. (LE GOFF 2003:471).
Diante de todo o exposto, vê-se que a memória não se reduz aos componentes
biológicos, fisiológicos ou cerebrais. Para além destes aspectos, deve-se atentar para o fato
de que a memória é uma forma de conhecimento e componente afetual de nossa existência,
com muitos componentes objetivos e, especialmente, subjetivos:
São componentes subjetivos: a importância do fato e da coisa para nós; o
significado emocional ou afetivo do fato ou da coisa para nós; o modo como
alguma coisa nos impressionou e ficou gravada em nós; a necessidade para
nossa vida prática ou para o desenvolvimento de nossos conhecimentos; o
prazer ou dor que um fato ou alguma coisa produziram em nós, etc. Em outras
palavras, mesmo que nosso cérebro grave e registre tudo, o é isso a memória
e sim o que foi gravado com um sentido ou com um significado para nós e para
os outros. (CHAUÍ 2005:141).
Por outro lado, a memória também tem fundamental importância na constituição do
mito. Estudado, sobretudo, no contexto das sociedades arcaicas, o mito representa uma
realidade cultural complexa que pode ser abordada e interpretada sob múltiplas
perspectivas, abrangendo diversas áreas de conhecimento: antropologia, sociologia,
psicologia, psicanálise, teologia, etc. Para Mircea Eliade,
26
[...] o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no
tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito
narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a
existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha,
uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre,
portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi
produzido e começou a ser. (2006:11).
Ou seja, descreve as múltiplas irrupções do sagrado ou do sobrenatural no Mundo.
Além disso, é em detrimento das intervenções desses Entes Sobrenaturais que “o homem é
o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural”. (ELIADE 2000:11). Por isso, pode-se
dizer que o mito possui uma função pedagógica que é a de ensinar “as ‘histórias’
primordiais que o constituíram existencialmente” (ELIADE 2000:16), fazendo o homem
das sociedades arcaicas perceber-se como o resultado de um determinado número de
eventos míticos. Enquanto o homem moderno considera-se um produto da História
Universal, não se sentindo obrigado a conhecê-la em sua totalidade, “o homem das
sociedades arcaicas é obrigado não somente a rememorar a história mítica de sua tribo,
mas também a reatualizá-la periodicamente”. (ELIADE 2006:17). Aqui, encontramos a
diferença fundamental entre o homem das sociedades arcaicas e o homem moderno. Para o
segundo, a irreversibilidade dos fatos é o que caracteriza a presença da História em sua
sociedade, enquanto que para o primeiro,
[...] o que aconteceu ab origine pode ser repetido através do poder dos ritos.
Para ele, portanto, o essencial é conhecer os mitos. Essencial não somente
porque os mitos lhe oferecem uma explicação do Mundo e de seu próprio modo
de existir no Mundo, mas sobretudo porque, ao rememorar os mitos e
reatualizá-los, ele é capaz de repetir o que os Deuses, os Heróis ou os
Ancestrais fizeram ab origine. Conhecer os mitos é aprender o segredo da
origem das coisas. (ELIADE 2006:17-18).
Contudo, nem sempre basta apenas conhecer o mito da origem. É preciso recitá-lo,
como forma de proclamação e demonstração do conhecimento:
Ao recitar os mitos, reintegra-se àquele tempo fabuloso e a pessoa torna-se,
conseqüentemente, “contemporânea”, de certo modo, dos eventos evocados,
compartilha da presença dos Deuses ou dos Heróis. Numa fórmula sumária,
poderíamos dizer que, ao “viver” os mitos, sai-se do tempo profano,
cronológico, ingressando num tempo qualitativamente diferente, um tempo
“sagrado”, ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável.
(ELIADE 2006:21).
27
Em contraposição a questão da memória, presente nos primórdios de diversas
sociedades, surge na contemporaneidade um tema-problema que é a questão da perda da
tradição, a quebra entre os elos que unem o passado ao presente. Diz-se que estamos
perdendo a capacidade de lembrar. Neste caso, a memória “é associada à percepção de
pertencimento a um mundo que engloba e que constitui os indivíduos. Mais que isto, a
memória é vista como um atributo ao homem a percepção de sua finitude. Temos,
portanto, dentre os valores mais caros ao ser humano, a memória”. (SANTOS 2003:17-18).
Isto evidencia que sua preservação vincula-se à condição humana e que pode ser usada na
defesa da justiça e da liberdade.
Perder a memória, seja na arte ou na literatura, seja mesmo nas Ciências Sociais,
parece ser uma grande ameaça, quase um pesadelo ao se pensar que isto redundaria numa
amnésia coletiva: os indivíduos estariam a esquecer o próprio esquecimento de si mesmos
e da sociedade. Se na memória coletiva privilegia-se a luta da memória contra o
esquecimento lembremos que
A memória está presente em tudo e em todos. Nós somos tudo aquilo que
lembramos; nós somos a memória que temos. A memória não é pensamento,
imaginação social; ela é também uma determinada experiência de vida capaz de
transformar outras experiências, a partir de resíduos deixados anteriormente. A
memória, portanto excede o escopo da mente humana, do corpo, do aparelho
sensitivo e motor e do tempo físico, pois ela também é o resultado de si mesma;
ela é objetivada em representações, rituais, textos e comemorações. (SANTOS
2003:25-26).
O francês Jacques Derrida vai lidar com o tema da memória a partir de seu conceito
de différance
6
:
[...] ele compara a memória ao pranto e à dor daquele que vela um corpo que
não mais existe. Refletindo sobre os versos do alemão Friedrich Hölderlin,
Mnemosyne, em que o poeta lamenta nunca ter sabido contar uma história,
reconhecendo nessa incapacidade uma doença triste, pois declara sua paixão
pelo lembrar e pela memória em si mesma, Derrida nos diz ser uma ilusão a
lembrança tanto do passado, quanto de um outro sujeito que se distancia de nós.
(SANTOS 2003:31).
6
“Neo-grafismo produzido a partir da introdução da letra a na escrita da palavra différence. A differance não
é ‘nem um conceito, nem uma palavra’, funciona como ‘foco de cruzamento histórico e sistemático’ reunindo
em feixe diferentes linhas de significado ou de forças, podendo sempre aliciar outras, constituindo uma rede
cuja tessitura será impossível interromper ou nela traçar uma margem, pois o que se põe em questão é ‘a
autoridade de um começo incontestável, de um ponto de partida absoluto, de uma responsabilidade de
princípio’”. Différance in SANTIAGO (1976: 22).
28
A socióloga Myrian Sepúlveda vê, nestas reflexões de Derrida sobre a memória,
“uma volta a Nietzsche”, que considera “o eterno retorno” o pior dos fardos a ser
carregado, “pois o homem pode ser feliz sem a lembrança, mas a vida é absolutamente
impossível sem o esquecimento. Há, portanto, uma anuência ao fato de que esquecemos
que esquecemos”. (SANTOS 2003:31). Observe-se que o essencial não é a perda da
memória, tida como irremediável, mas ao fato de que o esquecimento, como atitude
intencional, é essencial à vida e sem ele a vida não seria possível.
No prefácio ao seu livro Lete: arte e crítica do esquecimento (2001), o lingüísta
alemão Harald Weinrich adverte: “Ninguém pode permitir-se dizer levianamente: É
inesquecível! Isto eu jamais esquecerei! O homem está naturalmente sujeito à lei do
esquecimento, ele é fundamentalmente um animal obliviscens”. (WEINRICH 2001:11).
Diante desta constatação, o autor lança-se a reconstituir uma história cultural do
esquecimento uma teoria do esquecimento - a partir de obras, particularmente literárias
ou filosóficas.
Analisando o esquecimento num poema de Friedrich Nietzsche (1844-1900), “O sol
está baixando”, do ciclo dos ditirambos dionisíacos, observa que o verso inaugural
“Vem, dourada alegria!” dirige-se à alegria e não ao esquecimento. Em Considerações
extemporâneas, na segunda parte intitulada “Das vantagens e desvantagens da História
para a vida”, Nietzsche volta-se mais uma vez ao tema, fazendo efetivamente uma apologia
ao esquecimento: “Em certo sentido, ele é até mesmo uma arte do esquecimento, pelo
menos segundo a idéia de seu autor de trinta anos, que recomenda aos seus leitores e,
sobretudo a si próprio com palavras eloqüentes, ‘a arte e força de saber esquecer’”.
(WEINRICH 2001:180). O que é que Nietzsche quer esquecer, esquecer com arte,
pergunta-se o autor:
A resposta sumária é: a história, e isso é a história transformada em arte e
ciência, dos começos até a atualidade, que, com a multiplicação de seus
conhecimentos, mas também pelo seu mero avanço no tempo, cresce com
sempre [sic] maior complexidade e se deita como uma massa onerosa sobre a
memória do ser humano de formação histórica, até que este, de tanta carga de
lembranças, perde a possibilidade mais elementar de viver e agir. (WEINRICH
2001:180).
Ao final verifica que Nietzsche, ao longo de suas obras, vai nuançando estes
posicionamentos iniciais. É como se existissem “dois Nietzsches”: um Nietzsche filólogo
que exige a arte do esquecimento e um outro Nietzsche, filósofo, que limita essa exigência
29
por questões morais: “Pensando nos dois Nietzsches constatamos que com a indagação
pela memória e o esquecimento se levanta quase inevitavelmente a questão moral. Portanto
não se trata apenas daquilo que nós com ou sem arte podemos lembrar ou esquecer,
mas também daquilo que com ou sem arte precisamos absolutamente lembrar, e talvez
não, devemos esquecer”. (WEINRICH 2001:185).
30
1.1. Memórias marinhas
1.1.1. História, ficção e autobiografia no espelho retrovisor da teoria
A partir de seus primeiros estudos sobre a mímesis, apresentados no livro Mímesis e
modernidade e no ensaio “Representação social e mímesis”, Luiz Costa Lima compreende
que a soberania da imitatio, paródia da mímesis grega, desde o Renascimento, vinha de
uma forte motivação social. Em verdade, a imitatio nasce sob o estatuto do controle.
Dessa forma, impingindo-lhe o papel de agente repressor da subjetividade e, por isso
mesmo, tornando-se uma deturpação da mímesis original, produtora da diferença e não da
semelhança, é que Costa Lima chega até a noção do veto: o veto ao ficcional.
O veto ao ficcional seria a subjugação do imaginário em detrimento de certas
regras. Este veto se justifica pelo fato de que “a ficcionalidade concede ao discurso que
rege uma liberdade selvagem e ameaçadora a todo regime zeloso de sua verdade. Por isso,
onde ela aponte, é de se esperar que os defensores da verdade institucionalizada estendam
sua mão de ferro”. (LIMA 1986:187). Na dramaturgia de Luiz Marinho o veto se manifesta
sob a égide de três variáveis: documento, memória e ficção. Entretanto, para compreendê-
los e relacioná-los com a obra marinha, antes é preciso defini-los enquanto componentes de
três modalidades discursivas distintas: a historiográfica, a ficcional e a autobiográfica.
Apesar de ocuparem posições discursivas diversas, as três modalidades dialogam entre si,
confrontando semelhanças e diferenças, como poderemos constatar mais adiante.
Em ensaio datado de 1927, Paul Valéry dizia que o verdadeiro é inconcebível para
a literatura, pois por mais radical ou explícito que sejam seus relatos, eles estarão sempre
subordinados a escolhas feitas previamente pelo autor que os tornará claros, pintados e
coloridos conforme as regras do teatro mental. Dessa forma, pressupõe-se que o texto
literário recusa por um lado “seu caráter de documento, o ser prova de alguma verdade. Por
outro lado, insinua-se que essa negação deriva de sua natureza ficcional”. (LIMA
1986:191-192). Em outras palavras, por estar demasiado ligado às diretrizes do imaginário
ou do teatro mental, como diz Paul Valéry, o texto de intenção literária dispensa o uso dos
mesmos princípios a que se submete a análise documental.
Não podemos considerar, por exemplo, que tudo o que um escritor relata em seu
romance tenha realmente acontecido, ou que o poeta registra “suas convicções ou valores
ao falar das saudades por um marinheiro ou ao tomar um criminoso, um asceta, um
marginal como seu herói”. (LIMA 1986:193). no discurso ficcional um critério de
31
verdade que ultrapassa conceitos gerais (filosóficos ou científicos) e pragmáticos. Sua
verdade advém do conhecimento de uma situação individual. “Ou seja, a verdade de como
um sujeito empírico concebe uma certa situação. Situação que nem vale para todos, nem
muito menos expressa forçosamente os valores do autor”. (LIMA 1986:238).
Dessa maneira, Costa Lima conclui que “o discurso literário não se apresenta como
prova, documento, testemunho do que houve, porquanto o que nele está se mescla com o
que poderia ter havido, o que nele se combina com o desejo do que estivesse, e que por
isso passa a haver e a estar”. (LIMA 1986:195). Portanto, a literatura, devido às suas
qualidades discursivas, exige um tratamento diferenciado do que geralmente se destina ao
documento.
Diferentemente da literatura, o documento é algo que se toma como instrumento na
comprovação da existência prévia de algo outro. Dir-se-ia que:
[...] esse algo comprovado pelo documento possui tal ordem de existência que
esta existência se repete, se refaz e se reatualiza por efeito de sua prova. O
documento então representaria o que teria plena existência antes dele e sem ele.
Noutras palavras, o documento seria uma espécie de meio neutro, sem
propriedades ativas, que não interferiria em absoluto no caráter do que prova ou
testemunha. (LIMA 1986:197).
No entanto, como nos diz Costa Lima, a propósito da suposta neutralidade do
documento, este, além de compor apenas um dos primeiros recursos da análise, tem seu
valor documental subordinado à interpretação que o historiador lhe confere. Além disso,
por mais que se busque uma verdade pragmático-científica, sua interpretação será sempre
determinada pela coordenação do material documental; sobretudo, no que concerne à
escolha do arcabouço teórico e, conseqüentemente, à sua própria visão de mundo, sua
ideologia. Ou seja, mesmo estando cerceada pela razão, a subjetividade não deixa de se
fazer presente.
Por discurso ficcional, compreende-se como “a busca de captar imaginariamente a
alteridade do que não se é”. (LIMA 1986:221). Ou seja, busca-se imaginariamente o outro
ou sua diferença. Para isso seria necessário que o artista fosse capaz de formular um dos
lados de seu avesso. Estar nele e tomá-lo como ponto de partida do qual seu próprio mundo
viria a ser canalizado, criando algo diverso.
Por isso, ao lançar mão amplamente dos recursos imaginários, a literatura enquanto
discurso ficcional se caracteriza pela sua não documentalidade. Ela “permite ao escritor
compor figuras que não são meros reflexos ou simples projeções de seu eu”. (LIMA
32
1986:232). Em lugar dessa reduplicação de si, o teatro mental ou o imaginário, possibilita
ao ficcionista a elaboração do que Costa Lima chama ângulo de refração do eu empírico.
Ou seja, significa que a abertura para a alteridade não é total, pois é restringida pela escala
de valores que configura o horizonte do escritor.
Essa mancha biográfica assume diversas colorações, conforme o tipo de discurso
que se produza. No caso das memórias, documentam uma maneira de pensar exclusiva de
uma época, importando “menos as reações de um eu face aos eventos vividos do que o
próprio relato destes”. (LIMA 1986:237). Por isso, as memórias não se confundem com o
discurso ficcional. Ele implica tanto numa dissipação de uma legislação generalizada,
quanto da expressão do “eu”:
Nele, o “eu” se torna móvel, ou seja, sem se fixar em um ponto, assume
diversas nucleações, sem dúvida, contudo, possibilitadas pelo ponto que o autor
empírico ocupa. É a essa movência do ficcional que, simultaneamente,
implica a dissipação do eu e afirma os limites da refração de seus próprios
valores que temos chamado de ângulo de refração. Assim, tal dissipação do
eu não o torna inexistente, como se escrever ficção fosse anular seus próprios
valores, normais de conduta e de sentimentos. A imaginação permite ao eu
irrealizar-se enquanto sujeito, para que se realize em uma proposta de sentido.
(LIMA 1986:238).
A vida cotidiana no seu pragmatismo tende a congelar o eu, enrijecendo a dispersão
de nossas pulsões. O discurso ficcional por sua vez nos oferece uma saída a esse controle
cotidiano. Dessa forma, o discurso ficcional se caracteriza como a refração atingida através
de um ponto fixo, que é o próprio “eu” do autor: “pela ficção se inventa possibilidades,
sabendo-se não confundido com nenhuma delas; possibilidades, contudo que não se
inventariam sem uma motivação biográfica. Menos do que disfarce, a ficção, [...], é uma
produção direcionada pela unidade (instável) do eu”. (LIMA 1986:238-239).
Em síntese, podemos designar a palavra gênero” como um tipo de comunicação
historicamente reconhecido. Independentemente de sua natureza literária ou não literária,
oral ou escrita, difusa ou não difusa; ela se associa e se subordina à idéia de discurso. Por
sua vez, sobre discurso e gênero, pode-se dizer que são estruturas e subestruturas de
linguagem orientadas por certas regras básicas, cuja função é eliminar equívocos de
interação. Ou seja, ao invés de simplesmente padronizar, ele busca facilitar o processo de
comunicação. Dessa forma, “procurar definir um gênero significa não um ato normativo,
mas explicativo; explicativo do que entra em cena no processo de leitura. Por isso mesmo
33
esse esforço será nulo, parcial ou contraditório se não considerar a expectativa do leitor”.
(LIMA 1986:297).
Enquanto gênero, a autobiografia surge a partir do Renascimento onde a
complexidade da vida renascentista, suas relações de trabalho e de poder, “impede a
permanência de um ideal de conduta una, coletivamente orientada e previamente
ensinável”. (LIMA 1986:257). No momento em que os modelos políticos e religiosos
deixam de agir com exclusividade no reconhecimento da individualidade e que se
contrastam com a subjetividade, então em eminente ascensão, a autobiografia começa a se
configurar como forma discursiva. Ou seja, somente a partir da oposição do “eu” com o
seu meio é que o gênero autobiográfico pôde nascer. Neste sentido, partindo dessa
afirmação, é necessário dar-se conta de sua dependência em relação a duas variáveis: “o
indivíduo, cuja experiência de vida expressa, e sua dependência quanto à ficção”. (LIMA
1986:296).
Assim como a autobiografia, “a ficção, senão toda obra realizada na linguagem, é
uma tentativa de dar ordem ao caos como a vida se nos apresenta”. (LIMA 1986:299).
Entretanto, as duas modalidades se caracterizam como espécies discursivas distintas em
conseqüência do papel que ambas concedem ao “eu”. Enquanto na ficção “o eu empírico
do escritor é um suporte da invenção” (LIMA 1986:300), na autobiografia, o eu é a fonte
de experiências que o indivíduo tentará transmitir. Por sua vez, a autobiografia também
não pode ser confundida com o discurso historiográfico, que o primeiro não se restringe
a mostrar os estágios de uma carreira ilustre, pois tal tarefa pertence ao historiador, mas
“revelar o esforço de um criador em dar sentido a seu próprio conto mítico”. (LIMA
1986:301). Dessa maneira, o relato biográfico nem se confunde com o puro documento
histórico, nem com o relato ficcional.
Mas para melhor determinar o estatuto do gênero autobiográfico, ficcional e
historiográfico é necessário estabelecer um painel de semelhanças e diferenças mais amplo
entre os três. Primeiramente, os três discursos se aproximam e se distanciam sob a égide de
três variáveis: a busca e defesa de uma verdade, a ação do “eu” e o lugar do leitor, como
destino último do discurso.
Como havíamos dito, todos os três casos se caracterizam pela busca da verdade,
porém, esta, em cada modalidade, se mostra diferente. Em relação à historiografia e ao
ficcional, ambos se colocam em posições contrárias. No primeiro, o historiador se
apresenta relativamente isento do que escreve e analisa, colocando até certo ponto sua
individualidade de lado. Por isso, ele almeja apresentar uma verdade pragmático-científica
34
ao leitor. Por outro lado, essas mesmas regras, nada significam para o ficcionista, cujo
“limite não é a verdade, [...], mas as possibilidades de conceber a existência, tal como
admitida por seus valores e acessíveis a seu imaginário”. (LIMA 1986:302). Dessa forma,
o memorialista se coloca entre os dois, apresentando uma versão personalizada da história,
ao mesmo tempo em que, em relação ao ficcionista, tem seu papel limitado, que não
consegue ultrapassar o campo do vivido.
No discurso ficcional, a subjetividade ganha um papel de grande importância, pois
o trabalho sobre o experimentado se caracteriza justamente por sua reelaboração em
direção a alteridade. A ficção reorganiza o real, não para reproduzi-lo, mas para criar uma
realidade outra, ou seja, sua diferença. E a partir daí, buscar uma verdade individual que
responda a subjetividade de seu autor, mas que, ao mesmo tempo, possa ser compartilhada
com a subjetividade do leitor. Embora o discurso ficcional e o discurso historiográfico
defendam diferentes verdades, o leitor permanece sempre como o alvo de ambos, ao
contrário da autobiografia. Assim, Costa Lima diferencia os três:
[...] cada modo de expressão supõe de certa forma o leitor, i. e., o põe em
condições de partilhar o universo textual que se lhe oferece. O universo das
informações transmitidas pelos media é partilhado porque o leitor/ouvinte
pressupõe que tal coisa sucedeu e deverá estar sendo adequadamente referida. O
universo ficcional é partilhado porque o leitor previamente sabe que ele não lhe
transmite informações sobre fatos sucedidos, mas simulacros de situações
destinadas a lhe provocar prazer e questionamento. Ora, o universo
autobiográfico [...] o lhe condições de partilhar o que ali se lhe oferece. O
autobiográfico escapa do comércio do sentido, pois o autor “pode exprimir
(to mean) sua vida para si mesmo”. (LIMA 1986:306-307).
Apesar da autobiografia partir do mesmo princípio do ficcional (compreensão da
existência a partir de si e de sua relação com o mundo), ela se caracteriza como um modo
de expressão que se dirige a si mesmo, auto-referencial. Seria uma radicalização do eu, no
sentido de se restringir à sua interioridade. Uma verdade altamente personalizada que
prescinde da compreensão do leitor, fazendo sentido, de fato, ao sujeito de sua
produção. Por isso, “mais do que ‘o veto da imaginação’, [...], o gênero autobiográfico se
caracteriza pela tentação do veto à comunicação”. (LIMA 1986:307). Dessa forma,
podemos concluir também que, quanto mais personalizado é o discurso, quanto mais o
“eu” se concentra em si mesmo, mais ele abstrai o leitor.
35
1.1.2. Memórias ficcionalizadas
No seu Luiz Marinho: o sábado que não entardece, Tenório Vieira indica que o fio
condutor de sua análise deu-se na perspectiva de costurar a obra marinha como a memória
ficcionalizada do autor: “Uma ficcionalização que se manifesta ora como lembranças, ora
como recriações de histórias ou estórias ouvidas e aprendidas na infância ou adolescência,
ou como confissões pessoais”. (2004:18). Portanto, esta obra não foi definida pelo
dramaturgo como memórias, mas pelo ensaísta que assim a configurou. Como ele mesmo
diz, “as memórias marinhas” são
Memórias ficcionalizadas, entenda-se bem, pois seu teatro encerra um conjunto
de lembranças - domésticas, sociais, políticas, afetivas, culturais e religiosas
que ao tempo em que foram diluídas em quatorze textos, são também costuradas
e entrelaçadas por um delicado fio: o do olhar de um Luiz Marinho adulto sobre
a criança e o jovem que um dia fora; um Marinho solipcista que busca dar
sentido à sua existencialidade e, por sua vez, a todo o universo que o cerca e
que o viu nascer, crescer, tornar-se adulto, envelhecer e caminhar para a morte.
(2004:18).
Tenório Vieira tem como principal eixo de seu estudo aquilo que denomina “O
teatro como memória”. Este é o ensaio propriamente dito que tem uma epígrafe de
Joaquim Nabuco, tirada de Minha formação, como a reforçar o método com o qual traçará
o perfil biográfico de Luiz Marinho, ou seja, aquele de recontar a história de um homem,
um dramaturgo, pela perspectiva das primeiras impressões que ficaram no autor, como se
não lhe tivesse sido possível ultrapassá-las. Mas observe-se que a chave de interpretação da
obra marinha como memórias ficcionalizadas é o próprio Marinho quem fornece em
Um sábado em 30:
Quando fui menino, tinha o gosto pouco comum de andar pela cozinha
misturado com os empregados e passar horas e horas escutando-os conversar.
Muitas vezes, desejei ser do mato e participar daquelas estórias, daquelas
pelejas por eles contadas. Agradava-me sobremodo, seu linguajar e introduzia-o
em minhas palestras tenência, sobrosso, vigie, cuidei, caçuar, etc, com
freqüência tal que deu trabalheira imensa à minha família, corrigir-me.
Aos sábados, ninguém me arredava da cozinha. Era o dia em que chegavam do
mato para a feira, os parentes dos empregados e iam ‘assistir’ em casa... Ai!
Que gostosura de linguagem, de palestra!... E eu ali atento, sorvendo,
vibrando... até que o sol esfriava e eles marchavam ‘para trás’...
Outra intenção não tive, ao escrever esta pecinha, a não ser a de evocar um
pouco um sábado em casa, e homenagear aquela gente que eu quero muito
bem, e que anda por dispersa sem que jamais possa revê-la novamente...
(MARINHO 1968:17).
36
Todavia, a declaração de “evocar um pouco um sábado em casa” ia além desta
abertura à sua peça, publicada em 1968, embora tenha estreado no Recife, pelo Teatro
de Amadores de Pernambuco, TAP, no Teatro de Santa Isabel, no dia 8 de julho de 1963.
Quando da première, havia ele publicado este mesmo texto no programa da montagem.
Talvez por isso Um sábado em 30 foi tomado, por praticamente todos os críticos, como um
texto urdido “sob o prisma da recordação” (PONTES 1963b:3); “evocação terna e
galhofeira do passado” (PRADO [1963] 2002:273). Julgamento que será reforçado,
posteriormente, pelo próprio Marinho, em depoimentos e entrevistas para a imprensa.
Porém, é no seu discurso de posse, na Academia Pernambucana de Letras, que o
dramaturgo confirma, definitivamente, a importância da memória suas lembranças da
infância e adolescência em Timbaúba não em Um sábado em 30, mas na elaboração
de toda sua obra dramática até aquele momento, especificando as fontes e os motivos que
originaram cada peça ou determinados personagens. Na época, seu discurso propiciou
comentários como o de Nilo Pereira que fez a seguinte afirmação: “Pelo discurso de Luiz
Marinho percebe-se claramente que as suas peças são autobiográficas. O que ele retrata é
sua infância, a sua adolescência em Timbaúba e adjacências”. (1980:[s/p]). Ou o de
Andrade Lima Filho sobre Um sábado em 30 que, durante o discurso de Marinho, teve
alguns trechos representados por atores do TAP. Segundo Lima Filho, a peça contém
“episódios duma narrativa em que se identifica no teatrólogo de hoje o memorialista de
amanhã, com a mesma graça, leveza e humor no artesanato literário”. (1981:[s/p]). Este é o
tom de vários artigos publicados na imprensa recifense.
7
Foi assim que Tenório Vieira
cunhou o termo memórias ficcionalizadas como viés interpretativo de seu livro:
retomando e redimensionando o papel da memória no teatro de Luiz Marinho, a partir dos
depoimentos do autor sobre sua obra e da opinião de seus contemporâneos.
Para o ensaísta, Um sábado em 30 a peça onde se vai delinear pela voz do autor
seu caráter de memória tanto impulsionou a carreira dramatúrgica de Luiz Marinho
(aliás, sua primeira peça, não a primeira a ser levada à cena), como constituiu-se ela
mesma numa obra “que vai orientar tanto estético quanto sistematicamente, muitos dos
caminhos da sua produção ulterior”. (2004:93). É importante trazer à cena trechos de uma
entrevista concedida em 1987, na qual Marinho reitera a singularidade destas suas
memórias ficcionalizadas, que para ele só estariam presentes em Um sábado em 30:
7
Cf. também os artigos de Orlando Parahym (1980) e Mauro Mota (1980).
37
MÁRIO HÉLIO De que maneira, Luiz Marinho, você faz suas peças, qual a
técnica que utiliza, autores de teatro que lê, foi influenciado por algum autor,
você estuda individualmente a psicologia dos personagens em cada ato, o que
há de fantasia e de autobiográfico em suas peças?
L.M. Primeiro, o importante é ter uma história e depois saber se essa história
realmente “dá samba”, se tem valor mesmo, para ser desenvolvida. Depois,
começo, meio e fim, saber como vai terminar, coerência, linguajar, condição
social, etc. Qualquer autor deve fazer isso.
Quanto ao autobiográfico e o fantasioso, não o autobiográfico. em
Um sábado em 30 é que uma mistura, pois foi uma espécie de
saudosismo da infância, dos empregados e dos 700 afilhados que meu pai
tinha, a maior parte deles gente que vinha do mato; então essa gente vivia na
cozinha e eu me integrava muito com a linguagem deles. [grifos nossos].
(MÜLLER; HÉLIO; JORGE NETO 1987:9-10).
Podemos observar que Marinho tem a consciência de que sua dramaturgia, embora
a tomem como autobiográfica, é exclusivamente fantasiosa, abrindo exceção apenas para
Um sábado em 30, que ele considera como uma mistura entre a autobiografia e o
fantasioso. No entanto, é necessário ressaltar que o caráter que Luiz Marinho imprime a
este termo é um tanto impreciso, caso levemos em consideração a diferença que Luiz Costa
Lima (1986) estabelece entre fantasia e imaginário. Entende-se a fantasia, dentro do
terreno da ficção, como a capacidade de apagar a realidade desagradável e substituí-la por
uma outra que, pertencendo à mesma ordem da realidade vivida, ou seja, pautando-se no
real, nega a realidade anterior em detrimento de um hipotético presente mais agradável.
Dessa forma, ela se caracteriza como uma atividade compensatória do “eu” que, através do
uso exclusivo de mecanismos de identificação (imitação do real ou do cotidiano), abstrai
qualquer outro elemento que possa impedir o processo de reconhecimento do leitor-
espectador com o objeto artístico. Por isso, além de compensatória, ela é sentimental, não
abrindo espaço para o questionamento e a criticidade. Ela seria um poético facilitado, no
qual as narrativas da cultura de massa constituiriam seu melhor exemplo:
Do ponto de vista da ficção, ela é o recurso por excelência das narrativas que
visam a atingir o leitor de imediato. [...] O leitor recebe o produto da fantasia,
maravilha-se com a solidariedade que oferece com seus próprios “sonhos”,
compra sua idéia porque, em suma, a ficção reduplica suas expectativas, através
de seu reconhecimento das cenas que ele automaticamente identifica como
‘reais’. A fantasia contorna a estranheza própria ao imaginariamente produzido
e põe em seu lugar o já esperável pelo receptor. (LIMA 1986:223).
Para Costa Lima, a fantasia não constituiria o verdadeiro terreno do ficcional, ou
seja, da criação artística legítima. Em verdade, o ficcional corresponderia ao imaginário, a
irrealização da realidade. Ao invés de criar uma realidade substitutiva, o imaginário
38
produz e justapõe uma outra de maneira espelhar, que não reflete necessariamente a
realidade primeira, mas revela uma imagem outra distorcida. Um simulacro, que não a
anula, mas que a põe em questão. É o surgimento de uma outra possibilidade, que não é,
entretanto, compensatória, mas instauradora do desequilíbrio, pois revela as próprias
contradições do ser e do não ser, do real e do não real, do que existe e do que poderia vir a
existir. Um duplo que tenciona com o original, o real e sua imagem, e que se desdobram
em muitas sombras. Ou seja, o imaginário seria a criação do autor de sua própria
alteridade, suas possibilidades de vir a ser que se realizam na irrealização imaginária de
seu teatro mental e que, por sua vez, ganham forma na elaboração poética. Poderíamos
dizer também que o imaginário se opõe à fantasia justamente por transgredir o real. Dessa
forma, vamos tomar estes princípios norteadores como úteis à apreciação da dramaturgia
marinha, paradigma da busca pela alteridade, mesmo que esta seja obtida a partir de
origens documentais e memorialísticas. Como diz Costa Lima que todo discurso seja ele
analítico, teórico ou literário tem suas bases fincadas no biográfico, concluímos então que
o fantasioso ao qual Marinho se refere diz respeito ao imaginário pressuposto por Costa
Lima em seu livro Sociedade e discurso ficcional (1986).
Sobre Um sábado em 30, Marinho faz a seguinte afirmação na entrevista:
Gostaria de falar sobre minha primeira experiência de teatro que foi Um sábado
em 30, minha primeira peça. Situei nela o ano 30 para ter como “pano de fundo”
a revolução, mas em trinta eu tinha cerca de três anos de idade, sendo assim, os
personagens foram todos inspirados mais tarde, eles nasceram todos de minha
vivência com o pessoal de Timbaúba e até mesmo com parentes, embora
estejam disfarçados na peça. Usar este “disfarce” em meus personagens de UM
SÁBADO EM 30 foi influência de minha mãe, pois ela considerou, na época,
que mostrá-los sem máscaras iria chocar a gente de nossa terra. Se não tivesse
sido a observação dela, a peça poderia ser desdobrada em até três, pois era
enorme. Para mim não foi fácil decidir se deveria ou não colocar “disfarces
naquela gente, por isso a peça ficou engavetada ainda um bom tempo.
(MÜLLER; HÉLIO; JORGE NETO 1987:8).
Observe-se que o autor apenas acentua de que maneira elaborou suas memórias
ficcionalizadas. A máscara, que na ficção surge para desvelar o outro que em verdade não
se é, em Luiz Marinho assume a conotação primordial de disfarce. Em sua fala, a memória
é maquiada pela ficção, não para revelar sua alteridade, mas para ocultar sua origem
documental e memorialística. Ou seja, proteger sua gente de futuros constrangimentos: de
se ver e ouvir diante de um palco de espelhos; testemunhar seus segredos, seus hábitos e
suas crenças sendo desvelados. E por fazerem parte de uma comunidade, temem suas
39
sanções. Eis um veto social (e maternal) que origina um segundo veto: o veto à memória.
Dessa forma, tomando como eixo desta discussão Um sábado em 30, pode-se dizer que, na
ficcionalização de suas memórias, Marinho, buscando preservar seu “povo”, “sem querer”,
trilhou o caminho rumo à sua alteridade.
1.1.3. Relembranças, regionalismos e modernismos
Se, por vezes, é atribuída a Luiz Marinho a classificação de autor regional e/ou
regionalista (desconhecendo-se parte significativa de sua obra que escapa a este
enquadramento), pela primeira vez Anco Márcio definiu, conceituando com clareza o que
considera ser suas peças regionais (A promessa e Viva o cordão encarnado) e as
diferenciando das denominadas de regionalistas (A derradeira ceia, A incelença, Um
sábado em 30, A afilhada de N. S. da Conceição, A valsa do diabo e A estrada). (2004:18).
Quanto às outras peças, o ensaísta conclui: “As restantes fogem desse universo conceitual.
São os textos infantis Foi um dia, A família Ratoplan e A aventura do Capitão Flúor – as
peças psico-existenciais O último trem para os Igarapés e Corpo Corpóreo e a sua
comédia proto-surrealista As três graças”. (VIEIRA 2004:18). Para Tenório Vieira, a obra
de Marinho “caminha entre o regional e o regionalismo. Conceitos que não raramente são
trocados ou tidos como sinonímicos por aqueles que trataram ou tratam da sua obra, ou de
parte significativa dos textos ficcionais produzidos no Nordeste”. (2004:16).
E, de maneira concisa, aponta os antecedentes desta dramaturgia, enfim, dá-lhe um
parentesco: o 1º Congresso Regionalista do Nordeste, realizado em 1926, que aconteceu no
Recife, três meses antes do nascimento de Marinho e cujo ideário seria, décadas depois,
transfigurado em sua obra, especialmente quando se firma o conceito de Regionalismo, tal
qual o propugnado por Gilberto Freyre em seu Manifesto, tendo como base outros três
conceitos: o de Região, o de Tradição e o de Modernismo. Para Tenório Vieira, dessa
forma “estariam estabelecidas, através da conciliação entre o regional e o humano, a
tradição e a experimentação, os fundamentos para uma arte brasileira que, por sua vez,
aspirasse à universalidade”. (2004:17).
Para Freyre, o que conviria ao Brasil diante do apelo inevitável da Modernidade e
do Modernismo - seria que o País “não se uniformizasse ou se estandardizasse numa
sociedade ou numa cultura sem profundidade, sem verticalidade e sem autenticidade: sem
8
Cf. também: VIEIRA (2002:129-147; 2006b: 94-96).
40
sentido nem de tradição nem de região”. (FREYRE 1968:55 apud VIEIRA 2004:17). É o
inverso deste conceito que Tenório Viera vai chamar de “literatura regional”, literatura esta
que designaria
[...] qualquer obra que tivesse como objeto a retração dos usos e costumes de
uma determinada região do País. Restringindo-se, no caso, apenas ao conceito
de região, à literatura regional busca ficcionalizar, de maneira mais fidedigna
possível, as manifestações culturais, a sociedade e a língua de uma certa área
geográfica do País, a exemplo da alimentação, do vestir, das festas, dos rituais
da morte, da sintaxe, dos dialetos ou subdialetos, do entrecruzar das relações
sociais etc. Há, nas obras regionais, uma preocupação que se manifesta antes
etnológica sob o verniz da ficção do que a de recriar a realidade estudada e
retratada. (VIEIRA 2004:17).
Daí porque Marinho afirma que Um sábado em 30 não teria uma linguagem
universal “porque ela é muito baseada na região, em costumes exigindo, assim, o uso
demasiado de palavra”. (MÜLLER; HÉLIO; JORGE NETO 1987:9).
9
Tenório Vieira nota
que Marinho fora injusto consigo mesmo por ser Um sábado em 30 obra mais “regionalista
que regional”. (2004:31). Enfatizar que sua obra tem tom regional ou foram criadas pelo
viés regionalista remete-nos de imediato às diretrizes do Manifesto Regionalista de 1926,
de Gilberto Freyre, publicado, porém, apenas em 1952. É o que Tenório Vieira afirmou,
como a lhe dar um parentesco, uma anterioridade. O projeto estético e ideológico do
Regionalismo freyriano é o norte estético de Luiz Marinho (embora, por vezes, esteja
distante de sua ideologia). A sua célula mater é o Regionalismo cuja maior contribuição
fez frutificar o Romance de 30, com José Américo de Almeida (1887-1980), José Lins do
Rego (1901-1957), Rachel de Queiroz (1910-2003), Jorge Amado (1912-2001) e
Graciliano Ramos (1892-1953).
E não como Marinho rasgar esta máscara, este constructo estabelecido.
Inserindo-se nele, refez, ao seu modo, alguns aspectos deste cânone. Sua obra percorre
matizes vários que vão do resgate do passado memória individual e coletiva (dele
despedindo-se ou não, ou seja, com ou sem saudosismo), ao resgate das linguagens popular
do matuto, do resgate do folclore. Indo das incelenças ao pastoril, toma para si os temas do
cangaço, do messianismo (mesmo da seca), e na forma que escolheu para sua fatura
artística a dramaturgia não deixa de denunciar o sistema capitalista como explorador,
9
Diferentemente de A incelença e A afilhada N. S. da Conceição, peças que, para ele, poderiam ser
compreendidas em qualquer lugar do mundo, sem precisar dos diálogos, bastando apenas a movimentação
dos personagens/atores para o entendimento do público.
41
constatando a indigência em que vivia o povo desta região, como se a vislumbrar uma nova
sociedade.
Note-se que, embora tenha escolhido a comédia como gênero dominante em sua
obra, ele renega a idéia de que se tomem seus personagens como seres exóticos, pitorescos,
bons tipos para rir. É da situação dramática que deve derivar o riso, a comicidade, pois foi
com este objetivo que ele (afirmando em 3ª pessoa),
Começou escrever teatro, porque sentiu que alguém tinha que reagir diante de
tanta baboseira e falsidade que se fazia, retratando o nordestino no palco. De
começo, esperou que alguém autorizado no assunto, o fizesse, mas como as
coisas prosseguisse [m], resolveu, mesmo a despeito de se achar incompetente,
pois não tinha intelectualmente nenhum preparo, lançar qualquer coisa de
honesta, que representasse os costumes e a linguagem nordestina, sem se valer
das caipiradas ridículas até então encenadas, e escreveu Um sábado em 30, sua
primeira peça. (Manuscrito:s.d.).
Se o Romance de 30 desenvolveu-se a partir do regionalismo brasileiro, também
teve como influxo a consciência dos procedimentos Modernistas. Um dos mais importantes
escritores desse romance nordestino é José Lins do Rego, autor que Marinho diz gostar
muito de ler “principalmente porque tem coisas que ele escreve e me sinto inserido nas
mesmas. É saudade mesmo...”. (MÜLLER; HÉLIO; JORGE NETO 1987:9). Luiz Marinho
é tão regionalista quanto José Lins do Rego, sendo que este último derivou diretamente do
grupo intelectual que lhe conferiu este qualificativo. Já Luiz Marinho sequer foi citado por
Freyre em seu artigo “O Movimento Regionalista, Tradicionalista e, ao seu modo,
Modernista do Recife” (1976), publicado na edição do Manifesto Regionalista, no qual
passa a limpo as mais diversas influências que o Movimento exercera no Nordeste nas
comemorações de seu cinqüentenário. Neste artigo, destaca, aqui e ali, nomes como o de
Samuel Campelo, Valdemar de Oliveira, Hermilo Borba Filho, Ariano Suassuna e José
Carlos Cavalcanti Borges. Não os nomeia por constatação historiográfica; é leitura filtrada,
fantasmal. Luís Augusto da Veiga Reis questiona esta “apropriação” da totalidade do teatro
nordestino feita por Freyre, mas, a pondera e chega à conclusão que se faz necessário
estudos mais aprofundados sobre o papel do Regionalismo de Gilberto Freyre no
desenvolvimento do teatro moderno em Pernambuco:
Obviamente, essa espécie de adoção a posteriori do trabalho desses criadores
teatrais pode e merece ser objeto de uma atenta discussão. Afinal, ao elencar
esses nomes como continuadores dos seus princípios Regionalistas, Freyre
estaria reivindicando, até certo ponto, a própria paternidade do teatro moderno
42
pernambucano, no que ele produziu de mais relevante em sua breve história. E
tal reclamação parecerá sempre um tanto quanto desmedida. Todavia, apenas
quando se leva em consideração que Samuel Campelo foi um ativo participante
do Congresso Regionalista de 26, e que somente a partir de seu empenho,
sobretudo com a fundação do Grupo Gente Nossa, em 1931, o teatro feito em
Pernambuco começaria a ser reconhecido de forma mais ou menos autônoma;
ou quando se sabe que seria por intermédio dele, de Samuel Campelo, que
Valdemar de Oliveira passaria a se dedicar mais ao teatro, a ponto de fundar,
dez anos mais tarde, seu próprio conjunto, o Teatro de Amadores de
Pernambuco (TAP); e ainda quando se recorda que fora ele, Samuel Campelo,
quem acolhera em seu grupo teatral o jovem Hermilo Borba Filho, recém
chegado da cidade de Palmares, no ano de 1936, e que este viria a ser o mentor
dos primeiros passos de Ariano Suassuna no universo teatral, tem-se a
impressão de que não se deve menosprezar essa espontânea, e aparentemente
imodesta, percepção de Gilberto Freyre a respeito da presença Regionalista no
bojo do teatro feito no Estado ao longo do século XX. (REIS 2005:11).
Não deixemos, pois, de nos lembrar que Luiz Marinho teve várias de suas peças
encenadas até a data deste artigo a que nos referimos 1976 -, além de ter publicado em
1963, em separata da revista Nordeste, sua A incelença; teve publicado ainda Um sábado
em 30, A incelença e A afilhada de N. S. da Conceição, pela Universidade Federal de
Pernambuco, em 1968; e, no ano seguinte, teve a primeira edição de Viva o cordão
encarnado, pelo Museu do Açúcar, órgão do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas
Sociais, instituição criada por Gilberto Freyre e da qual participava, como Presidente do
Conselho Diretor. Ou seja, de 1963 a 1969 várias peças de Marinho foram publicadas, o
que poderia dar a Gilberto Freyre um conhecimento ou um reconhecimento desta obra que
Mauro Mota, seu amigo e colega no IJNPS, havia prefaciado sob o título de “As peças
marinhas”. Desconhecer tal obra, impossível. A mais óbvia conclusão é que Freyre não o
incluiu entre seus “descendentes” espirituais, simplesmente pelo fato de Marinho,
inicialmente, ter sido um autor montado pelo MCP, pelo qual Freyre tinha enorme aversão.
Aversão, como enfatiza Roberto Motta, que ele tinha,
[...] pelos projetos de alfabetização de movimentos como o Serviço de Extensão
Cultural, da Universidade Federal de Pernambuco (dirigido por Paulo Freire), o
Movimento de Cultura Popular, da Prefeitura do Recife nas administrações de
Miguel Arraes e Pelópidas Silveira e depois, eleito Arraes Governador,
encampado pelo Estado de Pernambuco, e divisões da Sudene
(Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), chefiada por Celso
Furtado, órgãos esses dos quais (senão das pessoas de seus dirigentes) Gilberto
era ferrenho adversário. (2002:75-76).
Coube a Tenório Vieira reinserir Luiz Marinho na descendência desta linhagem
Regionalista, da qual o Romance de 30 é tributário, bem como o teatro de Ariano
43
Suassuna, Hermilo Borba Filho, José Carlos Cavalcanti Borges, Aristóteles Soares, Isaac
Gondim Filho, Silvio Roberto de Oliveira, Jairo Lima, Vital Santos e tantos outros.
Podendo-se até reinserir Joaquim Cardozo, este poeta-calculista que tornar-se-ia
dramaturgo muito depois do Movimento Regionalista, enquanto Movimento, ter-se finado.
Afinal, Cardozo participara diretamente d’O Livro do Nordeste, espécie de texto príncipe
do Movimento, com ensaio sobre Manuel Bandeira e também com desenhos. Mas sua
dramaturgia e sua poesia transcendem quaisquer “ismos”.
Importante é que observemos também: Marinho sabe que sua obra é uma
representação calcada no real, sempre reescrita por um “eu” contingente cheio de miséria e
grandeza, que finge ser apenas um “eu matuto”, sem refinamentos, mas também quase um
cientista social um etnógrafo como Mauro Motta ressaltou. Marinho vai além de ser
mera testemunha dos fatos relatados, vai além da prenoção de essência (o real, naquilo que
de mais “verdadeiro”) e também além do “estilo” que ressoa da “essência”. Há, nele,
uma individualidade criadora, sem que se detenha muito nos paradigmas internalizados.
Aqueles que já se fixaram à sua imaginação.
44
1.2. Cosmogonia marinha
1.2.1. Volteios da memória: lembranças de menino
Luiz Marinho Falcão Filho vem ao mundo, no dia 8 de maio de 1926, em
Timbaúba, cidade da Mata Norte do Estado de Pernambuco, nascido da união de Luiz
Marinho Falcão – um senhor de engenho - com Rosa Bizerril Falcão. Num outro rito que a
este se sucedeu, foi batizado e na pia batismal não chorou. Dentro do universo de crendices
que povoavam aquele lugar, logo disseram: “Este menino não se cria!” (MARINHO
1980:2). Nasceu ao da Serra do Morro da Redenção, de frente para outro morro mais
longínquo chamado Serra dos Mocós. E teve seu umbigo - outra tradição neste universo
interiorano - enterrado na porteira. Por isto, acredita que, por mais longe que vá, de
voltar! Cresceu este moleque de engenho diante de tanto morro, que sentiu em si mesmo,
como que um vislumbre para sua vocação de olhar para além daquele lugar. A geografia
levou-o à metafísica; levou-o a se pensar em desbravador de novos horizontes, fora de seu
lugar de origem, aquele que lhe dera este pertencimento e esta possibilidade de dissipar-se
no mundo.
A infância que viveu em Timbaúba e, posteriormente nos arredores da cidade, na
Granja Santa Maria, cristalizaria na obra do dramaturgo, que veio ser referência obrigatória
no teatro brasileiro contemporâneo, dentro de suas especificidades regionalistas, sobretudo
como um conjunto de lembranças, de reminiscências individuais ou coletivas num
processo que Anco Márcio Tenório Vieira caracterizou como sendo de memórias
ficcionalizadas. Suas recordações servirão de combustível para a transposição do vivido
em sua produção dramática, que vai do singular ao coletivo.
Luiz Marinho, durante o período que viveu em Timbaúba ou em suas cercanias,
soube, consciente ou inconscientemente, constituir um “baú de lembranças”, cujas
representações mentais vieram a público através de suas obras, de seu teatro ainda mais
especialmente. Também escrevera poesias, contos, um romance (que não sabemos se foi
concluído),
10
roteiro de filme,
11
enfim, uma gama de expressões sustentadas pelos traços
10
Em 1987, em entrevista a Christianne Müller, rio Hélio e Nagib Jorge Neto, declara: “Estou querendo
romancear a vida de meus bisavôs. Escrever um romance sobre os pais de minha mãe [...] que nasceram no
Rio Grande do Norte e têm uma história lindíssima. Aos poucos, estou conseguindo a permissão [de sua mãe]
para ir ‘soltandoalgumas personagens contadas por ela mesma, e isto me deixa totalmente entusiasmado. É
a minha primeira experiência em romance, um gênero que não sei bem como desenvolver, pois sou muito
ligado a diálogos. Começo a escrever e de repente me pego fazendo diálogos, não sei se com meus
costumeiros diálogos do teatro, sairia um bom romance”. (8).
45
que o individualizaram e pelo grupo ou classe social a que pertencia de onde resultou o
substrato de sua identidade. Mas que, como qualquer outra, plástica, maleável, destarte a
máscara de “teatrólogo matuto” que tanto justapôs a si mesmo. Tenório Vieira esta
máscara de matuto de Marinho “muito mais uma maneira de ser e estar no mundo, do que
uma verdade substantiva”. (VIEIRA 2004:39).
12
Com o que estamos de acordo e sobre o
que, neste capítulo, estaremos a discutir.
Tendo ficado até os 18 anos em Timbaúba, vem concluir seus estudos em Recife,
passando por vários colégios e vindo, logo no ano seguinte à sua chegada à Capital, 1945,
a ingressar nos quadros da Caixa Econômica Federal, onde ficaria até sua aposentadoria
em 1983. O Recife alicerçou sua vida intelectual, através da convivência com poetas como
René Barbosa, Clodomir Tavares, José Gonçalves e Carlos Pena Filho. Mas a vida de
Marinho, pelo menos até ao início da década de 60, dividia-se entre o trabalho e uma vida
de boêmia a partir do novo grupo que passa a freqüentar com Expedido Pinto, Waldyr
Bezerra e Luiz Mendonça (este último importante propulsor de sua carreira dramatúrgica).
Somente 16 anos depois de fixado no Recife ingressa no Curso de Formação do Ator, em
1960, na então recém fundada Escola de Belas Artes, da Universidade do Recife, atual
Universidade Federal de Pernambuco (desistira do curso de Medicina depois de ser
reprovado) passando a conviver com grandes nomes da cena local e docentes na escola que
passara a freqüentar: Hermilo Borba Filho, Graça Melo, Joel Pontes, Ariano Suassuna,
Isaac Gondim Filho, Túlio Carella e Maria José Campos Lima.
13
Mas estava envolvido
com o teatro através de Luiz Mendonça que o levara para o elenco da Paixão de Cristo, em
Nova Jerusalém, com direção de Clênio Wanderley, onde fazia um Soldado Judeu, com um
desempenho prejudicado por sua natureza tímida: quando em certa apresentação deveria
11
Também Luiz Marinho declara no MANUSCRITO, s/d, constante do acervo de sua família que “Escreveu
um roteiro para cinema que intitulou de Aventuras e desventuras de um cavalheiro andarilho. Acha que se
na mão de um Diretor que corra em suas veias, poesia, com capacidade de sentir toda a mensagem poética ali
contida, será O Grande Poema do Nordeste, (ainda me chamam de modesto!) diz rindo. Guarda com muito
carinho e sem pressa, esperando que em algum dia surja interessado, o tal Diretor / Poeta a quem então,
confiará”.
12
É importante ressaltar que no desenho desse trajeto que estamos a constituir de Luiz Marinho, as fontes
com as quais trabalhamos são: a) o livro de Anco Márcio Tenório Vieira (2004); b) material de imprensa,
programas de espetáculos e outros documentos coletados por Vieira junto à família Marinho, assim como
suas peças publicadas ou em pias datilografadas; c) com as peças que possuímos em nosso acervo
pessoal ou obtidas em instituições como a Biblioteca da Fundação Joaquim Nabuco (Viva o cordão
encarnado, edição do Museu do Açúcar, em 1969) e na Biblioteca Pública Estadual (A incelença, separata da
Revista Nordeste, de 1963).
13
Segundo Anco Márcio Tenório Vieira (2004:65), “O objetivo de Luiz Marinho era fazer Dramaturgia,
aprender a carpintaria, o como construir uma peça. Porém, desde 1960 que essa modalidade não vinha sendo
oferecida. O motivo era a quase ausência de alunos (3 ou 4 no máximo se inscreviam no Curso), o que levou
a sua extinção em 1961. [...] Restando somente o Curso de Formação do Ator, Luiz Marinho, mesmo
frustrado, nos seus objetivos iniciais, matricula-se”.
46
defender o Messias da acusação de impostor, em vez do texto que haveria de pronunciar,
apenas balbuciou: “É lastimável”.
14
(MOURA 1996:1). Mas o curso de teatro teve que ser
abandonado em 1962, no último ano, como decorrência do decreto promulgado pelo então
Presidente Jânio Quadros que estabelecia em dois expedientes o regime de trabalho do
funcionalismo público. Aqueles que faziam curso superior tinham a garantia de
continuarem seus cursos, compensando o tempo ausente depois. Mas Marinho constatou
que apenas funcionários-alunos dos cursos de Medicina, Direito e Engenharia usufruíam
deste privilégio, não aqueles tidos como “menores”, como o curso que fazia, o de
Formação de Ator (que também era em nível superior).
(
MOURA 1996:1).
O ânimo para com o teatro não arrefeceu este homem que estava “predestinado” às
artes (bem o sabia desde que sua amiga e amiga da sua família Isnar de Moura o
aconselhou a desistir de ser poeta por ser “fraca” sua lírica) e que viria a tornar-se uma
substancial menção, em se tratando de dramaturgia regional e/ou regionalista (embora
nunca tenha defendido esta idéia de agrupar autores por uma região, por “ismo”, sabendo o
que o diferenciava de seus pares, com consciência do que estava a buscar: outros
horizontes formais e estilísticos dentro de sua obra.). Um dramaturgo brasileiro que soube
transfigurar a cultura de sua região, universalizando-a, não permitindo que o pitoresco
fosse nela o elemento fundante.
Desde 1954, começara a coletar material para a produção de sua primeira peça, Um
sábado em 30. Repetiu em várias entrevistas que decidira-se escrever para teatro porque
estava entranhado de suas lembranças de menino: os tipos, os costumes e a linguagem de
sua gente da Zona da Mata. Mas o teatro como uma expressão privilegiada em sua obra,
conforme depoimento prestado a Ivana Moura (1996:1), deu-se a partir da “idéia de
registrar costumes, a linguagem dos matutos, essa coisa que tinha sido feita, mas todas
as peças eram meio debochadas, não havia um respeito e como eu tinha uma bagagem
desse linguajar, pela convivência, então comecei a idéia de fazer um livro, uma
memória”. (grifos nossos). Percebe-se que desejava escrever um livro de memórias. Ou
que suas anotações iniciais para a escritura de Um sábado em 30, indicavam estar
escrevendo o que poderia se supor uma autobiografia, que logo se tornaria, uma ficção.
Motivação aproximada ele repete a Arlindo Almeida (1977:1): “Minhas peças estão muito
próximas da minha infância, embora elas não sejam autobiográficas, que retratem uma
época, mas a infância que tive na cidade de Timbaúba está muito marcado no meu
14
Marinho atuou por dois anos seguidos como soldado judeu na Paixão de Cristo, em 1961 e 1962. Cf.
REIS, Carlos; REIS Luís Augusto (2005:47).
47
trabalho”. (grifos nossos). No entanto, Marinho nunca deixou de mencionar que seu
interesse pelo teatro adveio da caricatura” que então se fazia do “matuto”, “do
nordestino”. Como havia muita gozação com o linguajar dessa gente é que lançou-se à
aventura da escrita dramática: “A partir daí comecei a desenvolver o conhecimento que eu
tinha do matuto, em técnica de teatro porque considero este um veículo bem mais fácil para
transmitir a maneira do nordestino se expressar”. (MÜLLER; HÉLIO; JORGE NETO
1987:8).
Com propriedade e arguto olhar, Tenório Vieira nestas memórias marinhas,
memórias ficcionalizadas (não uma recriação do folclórico, uma apropriação das tradições
populares
15
), que compreendem as suas várias lembranças, das domésticas às político-
sociais, das culturais às afetivas, do sagrado ao profano, ou seja: “Uma ficcionalização que
se manifesta ora como lembranças, ora como recriações de histórias ou estórias ouvidas e
aprendidas na infância ou adolescência ou como confissões pessoais”. (VIEIRA 2004: 18).
Nas mais diversas circunstâncias, Luiz Marinho exemplifica como tornou
ficcionalizadas suas reminiscências, como, por exemplo, no programa da montagem de Um
sábado em 30, em 1963, pelo Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP). Depoimento que
ecoa na primeira edição da peça pela Editora Universitária em 1968 e é espelhada ad
infinitum em todas as ocasiões em que a peça voltava à cena, ou em situações a que tinha
que referir-se à peça em questão. Mas sempre frisando que apenas Um sábado em 30 tinha
laivos “autobiográficos”, sendo suas outras peças apenas “fantasiosas”. Assunto tratado
aqui quando discutimos a questão das relações entre a autobiografia, o fantasioso e o
imaginário, tomando Luiz Costa Lima (1986) como fundamento teórico. Quanto ao
processo de elaboração de uma peça, Marinho seu norte estético e exemplifica (e aqui,
veja-se seu trabalho de “etnógrafo”, que o ajudou a encontrar “incelências” que se
adequavam ao desenrolar da trama):
Primeiro tenho que ter uma história, ou bolada, ou que tenha vivido; daí traço
mais ou menos um esquema na imaginação. Tem que ter começo, meio e fim.
Tem que ter um desfecho bom, se não tiver, eu abandono. E depois parto para
a pesquisa, dependendo do assunto. Por exemplo, com A incelença, que foi
baseado num tema verídico, um velório nas terras dos meus avós no Rio Grande
do Norte. As pessoas estavam fazendo um velório e de repente o suposto
defunto renasceu, quer dizer, acordou e todo mundo saiu correndo. Para isso
tive que me valer de muitas incelências, que são os cantos. Viajei para
Araripina, por esse meio de mundo, procurei comparecer a alguns velórios,
15
Este assunto pode ser redimensionado em: MAURÍCIO, Ivan; CIRANO, Marcus; ALMEIDA, Antonio de.
(1978).
48
conversar com as mulheres que cantavam. Como na época não tinha gravador
eu as trouxe para o Recife, para gravar na Rádio Jornal. (MOURA 1996:1).
[grifos nossos].
Certa vez, Marinho, que integrava o Conselho Internacional das Organizações de
Festivais Folclóricos (UNESCO) e era filiado à Comissão Pernambucana de Folclore,
confessa que não faz folclore, ele é o próprio folclore. (LUIZ Marinho, 1976). Uma
boutade, evidentemente. Uma maneira chistosa de desdramatizar sua relação com o tema
do folclore, da cultura popular e suas recriações e apropriações pela cultura erudita. Nunca
pretendeu criar distinções conceituais entre “cultura dominada” versus “cultura
dominante”. Todos estes temas são questões que Marinho nunca encarou teoricamente,
mas sempre soube, quando indagado, responder de maneira a diferençá-lo de outros
“folcloristas”, estudiosos e pesquisadores que tinham na cultura popular um “bem
intencionado” preservacionismo. Deles diferenciava-se por acreditar, intuitivamente, no
hibridismo e na transitoriedade da cultura; esta não contém em si toda a verdade de um
povo; portanto, não pode haver por parte de seus defensores nenhuma idéia de pureza ou
de imanência, como se estas fossem suas intrínsecas características. A defesa que faz do
folclore ou da cultura popular, especialmente a oral, visa mais a preservar, o que se tornará
relevante em sua obra do que a defesa propriamente dita do folclore como manifestação
cristalizada de uma cultura. Decerto que há algo de didático (especialmente para ele
mesmo) no que se propõe, mas este “algo” não diz respeito à idéia de salvaguardar uma
cultura que sabe ser volátil.
Em função do repositório cultural que agregou para a construção de seu eu
ficcional, Marinho vai fazendo, ao longo dos anos, a recolha de costumes, superstições,
religiosidades e, especialmente, seu modo de falar, a linguagem de sua gente, como a
análise que faz dos níveis de elocução em Um sábado em 30: 1) a linguagem do homem do
engenho; 2) a do homem do campo e 3) a do roceiro: “o matuto da brenha, essa gente que
fala quase num dialeto”. (LUIZ Marinho, 1976). Sua preocupação com o linguajar
justifica-se pela convicção de que ocorrerá a migração deste “matuto e de sua gente” para
outros lugares, onde será afetado inevitavelmente pelos novos modos de expressão. Quer
preservar em si mesmo a língua deste povo, e preservar em si mesmo, quer dizer preservar
em sua obra. Leia-se, para confirmação do nosso pensamento, este depoimento concedido
por Luiz Marinho ao Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, em 1976:
49
Cada um faz o que sabe fazer. sei flagrar a linguagem, o que ninguém fez
até hoje. Normalmente o que ocorre é uma ridicularização do nordestino,
indicando o português errado como seu modo de falar, o que não é verdade. Nas
falas erradas, existia sempre uma razão, uma influência do castelhano, por
exemplo. São coisas que ninguém divulgou, e penso que por ter o
conhecimento na pele cabe a mim divulgar. O que se pode fazer com isso
depois, não me interessa. [grifos nossos].
Marinho não tem nenhum saudosismo daquilo que se perde, por mais tristeza que
tenha em não reencontrar, na vida, aquelas figuras que imortalizou nas peças, ou mesmo
em sua memória. Mas o “fichário mnemônico” pode ser acionado a qualquer momento
para novas criações: comadres, noivos andando a cavalo, pretas velhas no reino misterioso
da imaginação. Em sua memória, tudo deveria tornar-se ficção; por exemplo: se “andar a
cavalo” parecia-lhe lindo, há de tornar-se novamente “belo” pela ficção: “um dia ainda vou
fazer um filme para mostrar o lado alegre do sertão”. (LUIZ Marinho 1976). Memória &
alegria: balizas permanentes a lhe apontarem o novo. A partir do ontem. Sem
saudosismos, relembremos. A cada memória posta no papel, adeus... Parte-se para nova
configuração da memória e da vida.
Num depoimento inédito, aqui referido, temos um dos relatos mais
esclarecedores sobre si mesmo:
Descende de família de Senhores de Engenho e teve toda a sua infância ligada à
gente de engenho, com quem conviveu largamente e ficou para sempre
impregnado do que ele chama de – cheiro de cana. Confessa-se admirador
incondicional de tudo que represente costumes e linguajar nordestino. Ele
próprio diz: Quando me “acusam” de folclorista, eu modestamente refuto – Não
sou propriamente folclorista, mas sim o próprio folclore... explico, quando faço
“pesquisas” para preparar algum trabalho literário, não é precisamente
pesquisas, mas sim, confirmações, pois conheço na própria pele tudo aquilo
que escrevo, são lembranças da minha infância, Apenas vou às fontes me
certificar se a memória está com falhas. (MARINHO [s.d.]:[s.p.]). (grifos
nossos).
Embora Ariano Suassuna e Luiz Marinho tenham escrito obras que mantêm ligação
com o Nordeste, Eduardo Guennes (1963:6) coloca-os como representantes do que de
melhor na dramaturgia nordestina. Mas o crítico aponta diferenças que consideramos muito
pertinentes ainda hoje, embora possamos discordar quando de forma dilatada constata que
Marinho tenha seu olhar voltado ao “exótico”, porque provavelmente ele deve ter usado
(aqui tomamos o Houaiss como referência), “exótico” não no sentido de “não originário do
país em que ocorre; que é nativo ou indígena; estrangeiro”, mas muito mais no sentido dele
tomar como material dramático o “que é esquisito, excêntrico, extravagante” e menos no
50
uso mais informal do vocábulo que seria o “que não foi bem acabado ou realizado;
malfeito; desajeitado”. Em nenhuma dessas acepções, a dramaturgia de Marinho enquadra-
se. Pelas situações dramáticas em si e porque o que ele “vê” e “fotografa” para as suas
peças são apenas confirmação daquilo que esnele, em si mesmo. Vai às fontes para
confirmar o que já conhecia. Ao contrário de Suassuna, que vai se valer da reelaboração da
cultura popular brasileira em diálogo com as fontes clássicas. Para estas fontes, Marinho
não dá ouvidos, não as vê. Ou dissimula, dissipa as informações, não as a conhecer. Ele
mesmo se diz, num evidente jogo de construção mítica de si mesmo, como um homem
humilde “quase inculto, regado pela seiva bruta do chão onde nasci, mas muito verdadeiro”
(MARINHO 1980:12). Marinho se refere de forma muito vaga às suas leituras teatrais.
Não cultivava as intertextualidades que não sejam as da vida. Na verdade, estamos
tateando em buscar parentescos, em dar-lhe interlocutores. Este artigo de Guennes aponta
para aspectos ainda a serem explorados (não será neste estudo, por nosso foco ser outro):
as aproximações e as distâncias entre Luiz Marinho e Ariano Suassuna. Em que se
assemelham e em que se diferenciam, realmente, do ponto de vista estético e ideológico.
Aqui, apenas uma nota de 1963, ao calor da hora da efervescência que o teatro
pernambucano e nacional vivia aquele momento pré-golpe militar, em que o jornalista
associa Marinho e Suassuna ao que há de melhor na dramaturgia nordestina, especialmente
por estarem comprometidos “com o processo cultural dessa área subdesenvolvida”,
fazendo então seu cotejamento entre os dois autores:
Marinho, com a visão mais aberta ao que é de exótico; Ariano, com uma visão
mais triada destes fenômenos. Marinho, cria reproduzindo quase que
fotograficamente os acontecimentos e fatos que lhe foi dado assistir. Ariano tem
uma criação muito mais elaborada e cultural, mais racional, portanto. Embora
os dois não adotem os mesmos caminhos, ambos conseguem com grande
felicidade atingir os seus objetivos.
Para realizar “A Compadecida”, Ariano partiu do conhecimento de toda História
do Teatro e a aplicação deste conhecimento para situar sua ação no Nordeste
brasileiro, dando organicidade dialética na transposição de tradicionais estórias
do romanceiro popular nordestino para o palco, em forma de comédia. Vemos
presente na elaboração desta peça todo um conhecimento que vem de Plauto,
Terêncio, Aristófanes.
Em Incelença (que considero perfeita), Marinho parte apenas de sua própria
vivência nordestina e da pesquisa dos fatos e acontecimentos que ocorrem no
Nordeste. Reproduz fotograficamente o que lhe foi dado presenciar na sua
cidade, Timbaúba. (GUENNES 1963:6).
Aqui, merece a lembrança de Joel Pontes (1926-1977), autor de um livro sobre o
teatro moderno em Pernambuco ([1967] 1990). Abrindo-se em vários caminhos, o autor
51
mapeia a produção teatral no Estado, particularmente na capital, onde se maior
movimento, com a criação permanente de grupos e com o surgimento de dramaturgos que
vieram a modificar a fisionomia do “teatro do Nordeste”, “teatro nordestino” ou mesmo de
um “teatro popular nordestino”. Popular eis a matéria essencial que Pontes vai observar
nos novos autores que surgem; especialmente, porque neles o popular usado como matéria
dramática não implica em transmudar valores. Para ser popular, conclui: não pode deixar
de ser regional e à encenação deixa-se o papel de ampliar o sentido do texto e torná-lo
compreensível a qualquer platéia. Formado dentro do espírito que animou a modernização
do teatro local, sabe que a cena desempenha um papel determinante nesta nova
dramaturgia. A palavra - expressão espiritual maior tem o poder de sobreviver
independente de glossários: “Tendo a palavra como valor máximo, os dramaturgos do
Nordeste asseguram-se comunicabilidade universal, sob a certeza de que o homem vale
enquanto compreende, a natureza dos seus iguais. Isso eles procuram fazer, crentes de que
o mesmo lhes farão as platéias onde forem. O mais é acessório.” (PONTES [1967] 1990:
136). No entanto, o ensaísta percebe que não está nesta dramaturgia que surge, uma
necessidade de tomar a cidade como tema de suas produções: nem as sugestões do
carnaval, nem a pobreza dos mangues, nem se interessa pelos desajustados sociais, nem
pelo xangô, nem pelos mal-assombros, por exemplo. Parece que não se vive numa cidade
que está cada vez mais ligada ao mundo: privilegiada pela posição geográfica que ocupa,
pelas modernas vias de transporte que a entrecruzam. Chega, então, a concluir:
As tentativas para usar o Recife como lugar de ação desaparecem ante o diálogo
áspero do homem com a terra, percebido, racional ou instintivamente, como a
única matriz do drama coletivo. o campo por extensão as vilas deixa
entrever um povo dotado de características homogêneas, uma cultura de acento
universal. Essa espécie de ordem que falta à cidade, atrai os artistas num
sentido, digamos maternal.[...] Continuam empanturrados de assuntos para se
preocuparem com novas formas, e preferem que fale o povo por seus
personagens em vez de eles próprios, escritores, tomarem o megafone. Fazem
um teatro de comunhão, o que não é um mal em si, mas chega a sê-lo pela
uniformidade. De qualquer modo estão dentro das conclusões de Gouhier, de
que a essência da arte dramática está na dissimulação: o autor exprime através
dos personagens, os quais devem ter o ar de falar por conta própria. (PONTES
[1967] 1990:137).
Desenhado este quadro analítico, Joel Pontes elenca os vários dramaturgos atuantes
àquele momento Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho, Aldomar Conrado, Luiz
Marinho, José Carlos Cavalcanti Borges, Aristóteles Soares, Isaac Gondim Filho e José de
Moraes Pinho - e traça um perfil biográfico de cada um deles, elencando suas peças
52
editadas e inéditas (ou encenadas). Também estabelece algumas características de cada um
dos autores e suas maiores ou menores habilidades no uso da matéria do popular, do
folclore. peças recriando, em termos nordestinos, assuntos do teatro clássico, ou se
aproveitando de trechos inteiros de cantadores e do romanceiro, ou mesmo de tipos. E, por
um momento, aproxima dois dramaturgos aqui trazidos à cena para cotejamento com o
que diz Guennes no seu artigo no qual confrontava Marinho a Suassuna Luiz Marinho e
José Carlos Cavalcanti Borges, o que nos parece relevante por vir de um professor,
estudioso, integrante de grupos de teatro, inclusive do TPN e que, guardando alguma
distância dos acontecimentos, escreve ao calor da hora, com muita isenção, embora em
muitas outras partes de seu trabalho observamos o quanto estava identificado com o
método brechtiano de “desidentificação” do público com o espetáculo e do qual deveria vir
a opinião crítica do autor. Opinião com a qual Marinho não partilhava. Apesar disso, ele
sabe tramar o encontro entre os dois dramaturgos:
A captação da linguagem, de tantas vezes tentada, chegou a criar uma espécie
de campo comum em que se apagam as peculiaridades localistas, sem traição ao
espírito regional. É cedo para se dizer que os raros autores trânsfugas desse
campo comum alcançarão idênticos resultados. Ao insistirem nas construções
sintáticas mais originais, José Carlos Cavalcanti Borges e Luiz Marinho correm
o risco, embora ofereçam à literatura e à lingüística uma riqueza cujo potencial
ainda não pode ser calculado com exatidão. Conseguiram levar para o palco
linguagens de ligação entre campo e cidade grande, com uma fidelidade ao real
que não se encontra nos outros escritores. Não se trata de uma caçada ao
pitoresco, mas de permanência na memória auditiva e na sensibilidade
indiferente a influências posteriores. (PONTES [1967] 1990: 138).
Joel Pontes constata: em cada um desses autores, a cor, o cheiro e a música de
sua terra natal. Marinho traz o “tom” de sua Timbaúba, enquanto Cavalcanti Borges, o
“tom” de Goiana, que o autor recriou sob a denominação mítica de “Vila da mata”, de onde
decorrem suas comédias municipais”. Nos dois autores, Pontes “uma atmosfera de
lirismo” a embalar a comicidade dos tipos regionais.
1.2.2. Episódios para cinema: não olhem para a objetiva!
Cine Teatro Recreios Benjamin. A vida cultural intensa nas primeiras décadas do
século XX fazia de Timbaúba uma cidade dinâmica, especialmente porque nela dera-se um
surto econômico importante, além de agregar personalidades e políticos que a projetaram e
infundiram-lhe a vida que necessitava para não parecer uma “cidadezinha qualquer”, como
53
aquela descrita por Carlos Drummond de Andrade. As notícias podiam vir pelos jornais:
seja pelo Timbaúba Jornal, seja pelo A Serra. Notícias que não vinham somente pela “boca
do povo”. Não era a cidade que fervilhava na sua infância. Também sua casa “respirava
o gosto pela festa e o apuro pelas coisas do espírito. O hábito da leitura cultivado pelos
seus pais, terminou por instigar nele e nos irmãos o mesmo interesse pelas palavras
impressas em livro”. (VIEIRA 2004:39). E a música tinha especial atenção de todos,
estimulados por sua mãe. Piano, violões, bandolins. E também a poesia de Otoniel Mendes,
Palmira Wanderley, Ferreira Itajubá e Auta de Sousa. Recitais de música e poesia. Da
lírica à dramática estava a um passo. E vice-versa.
Em Timbaúba, via-se “o melhor teatro”, afirma Marinho. E havia também cinema,
“o escurinho do cinema”, chupando confeitos dados por seu “primeiro herói”, Alfredo
Furapau: um trabalhador braçal, capaz de ser chefe de uma tribo de caboclinhos e cinéfilo,
amante de Greta Garbo. Não havia garoto que não disputasse sentar ao seu lado no cinema
para dele receber confeitos. Alfredo fazia discursos em casamento e batizado de pobre e
Marinho relembra: “Meu Deus! Alfredo era imenso aos nossos olhos”. (MARINHO
1980:6). Ainda em Timbaúba, seu “segundo herói”, Zefa. Empregada doméstica de sua
casa, Zefa dançava pastoril e era do cordão encarnado. Zefa foi um “alumbramento”! Mas
demorou-se pouco em sua casa por ter-se envolvido numa briga no pastoril e após um
escândalo que acordou a todos, Zefa foi demitida. Encontrá-la-ia tempos depois, na rua,
durante um carnaval. Ela atirou nele lança perfume, mas o garoto estava proibido de lhe
fazer mesura: “– Por que eu não podia falar com Zefa?... Ouvi minhas tias falarem em:
pra vida. Eu achei tão bonito, Zefa dá pra vida!” (MARINHO 1980:7). Heroína que
inspiraria o futuro dramaturgo em duas peças: Um sábado em 30 e Viva o cordão
encarnado. Nesses dois textos, encontramos Zefa em duas situações distintas: Na primeira,
a moça já se encontra empregada na casa de Seu Quincas e D. Mocinha e, assim como
ocorrera com a Zefa real, numa noite de sábado, durante o pastoril, a Zefa ficcional
também levou uma “pisa” dos partidários do cordão azul, voltando para casa chorando, aos
berros, com o vestido rasgado. Todavia, mais sorte teve a Zefa ficcional que não foi
demitida por D. Mocinha, assim como a Zefa real fora pela mãe de Marinho. Em Um
sábado em 30, Marinho recria esse fato vivido por sua heroína, fazendo-a retornar do
pastoril, segurando, instintivamente, um cravo vermelho, como se ainda estivesse sobre um
tablado, oferecendo flores e distribuindo beijinhos ao público. Gesto automático que não
condiz com o seu estado físico e psicológico naquele momento, despertando no leitor-
espectador, simultaneamente, compaixão e escárnio. Marinho reinventa seu “segundo
54
herói”, explorando tanto o seu pathos quanto o seu ridículo. Na segunda peça, Viva o
cordão encarnado, recuamos no tempo e encontramos Zefa recém chegada em Timbaúba à
procura de emprego. Trava amizade com Cabo Nestor e Vicência, que a convida para
brincar de pastora no pastoril do Velho Matraca. Mas não podendo viver apenas de pastoril
por se dizer “moça séria”, Zefa pede emprego para Vicência. Esta lhe fala de um bicheiro,
conhecido na cidade por conseguir trabalho para moças em casas de família, chamado Seu
Severiano: “VICÊNCIA - Conheço um bicheiro, seu Severiano, que sempre está
arranjando emprego pra ama. Ele até me falou que na casa do major Quincas, estão
precisando d'uma”. (MARINHO 1969:71). Este personagem que é apenas citado em Viva o
cordão encarnado, havia ganhado vida em Um sábado em 30. Todavia, assim como
Zefa, ele também foi baseado num personagem real, contemporâneo à infância de Marinho
em Timbaúba. Chamava-se Seu Severo. Nome bem próximo ao do personagem ficcional, o
que confirma ainda mais suas origens memorialísticas. Assim o dramaturgo refere-se a
Seu Severo, no seu Discurso de Posse na Academia Pernambucana de Letras: “Seu Severo
era um bicheiro que passava bicho nas casas de família. Apesar de pedir muita licença,
entrava em nossas casas, sem muita cerimônia, e dava conta das ‘últimas’, sempre em
‘confiança’. Também dava recados e arranjava empregadas”. (MARINHO 1980:6).
Características que se reproduzem na recriação que Marinho faz de Seu Severo em Um
sábado em 30 e que proporcionam a Seu Severiano, personagem ficcional, sua comicidade.
Outra pessoa que foi especial a Marinho, inesquecível mesmo, foi Davina, a ama
que o criou, que todo sábado lhe dava um tostão de seu ordenado e que ele recebia sem
nenhum sobrosso; Davina, a babá que sempre o protegeu e que lhe contava estórias,
particularmente uma, que repetia tantas vezes ele pedisse, aquela que se transformou em
sua peça A afilhada de Nossa Senhora da Conceição, a peça de que Marinho mais gostava.
E tem suas razões de menino que, quando adulto, não esqueceu:
Foi um dia, o Diabo encantou-se num rapaz muito bonito, dente de ouro,
vestido de tenente, mas não espiava para ninguém... Foi para uma festa de
casamento para tentar a noiva, mas ela era afilhada de Nossa Senhora da
Conceição. Quando ele chegou , o povo estava dançando Coco e cantando, e
de instante a instante, dizia: Viva Nossa Senhora da Conceição! E o Diabo de
banda, respondia: - Isso é com vocês, comigo não! A noiva que estava
namorando com o Diabo, quando ouviu aquilo, arrepiou-se toda e disse – Valei-
me Minha Madrinha (então vinha a parte que eu mais esperava):
- Aí... a mãe da noiva tirou a cruz do Oratório, encostou na testa do Diabo, e
aí... o Diabo pipocou! E eu completava:
- E aí ficou um cheiro danado, de enxofre! (MARINHO 1980:7-8)
55
Em Recife, continuou freqüentando o teatro, mas não as produções amadoras, pois
gostava mesmo era do bom teatro”. No entanto, certo dia, seu irmão Osíris “de muita
boa cultura” - lhe falou: “- Por que não vai ver o Teatro de Amadores de Pernambuco? [...]
São extraordinários! Nada devem aos melhores profissionais! Direi até, em certos
momentos lembram a naturalidade dos atores do cinema americano.” E se foi Luiz
Marinho assistir à peça que estava em cartaz: A casa de Bernarda Alba, de Federico García
Lorca. Teve então a confirmação de que o grupo e os atores eram extraordinários: “depois
daquela noite nada mais perdi das montagens do TAP”. (MARINHO 1986:36).
Se levarmos em consideração que Marinho radicou-se em Recife em 1944 e que, a
primeira peça que viu do Teatro de Amadores de Pernambuco, A casa de Bernarda Alba, é
de 1948, podemos supor que, voltando a se tornar “rato de teatro”, deve ter acompanhado
as montagens do grupo a partir de então. É preciso atentar para o fato de que, de 1948 a
1958, o TAP teria vivido seus momentos decisivos, podendo-se “perceber que esse é um
período áureo para o TAP, tanto pela modernidade de seus procedimentos cênicos, com a
contratação sistemática de encenadores, como pelo repertório escolhido, constituindo-se
num confronto com o passado, mas sem negá-lo, abrindo-se ao novo, ao desconhecido”.
(CADENGUE 1991:25). E que, após a peça de Lorca, chega a Recife Zigbniew
Ziembinski (1908-1978), o diretor que levara à cena o marco renovador do teatro
brasileiro: Vestido de noiva, do também pernambucano Nelson Rodrigues, que estreara em
1943, no Rio de Janeiro.
O mestre polonês monta para o TAP, Nossa cidade, de Thornton Wilder; Pais e
filhos, de Bernard Shaw e Esquina perigosa, de J. B. Priestley. Para o Teatro Universitário
de Pernambuco (TUP), dirigiu Além do horizonte, de Eugene O’Neill; Fim de jornada, de
R. S, Shariff e Macário, de Álvares de Azevedo. São exemplos de espetáculos a que pode
ter Marinho assistido. Com certeza, uma montagem ele viu, pois a ela se refere: trata-se da
de Arsênico e alfazema, de J. Kesselring (e antes dela pode ter assistido às comemorações
do centenário do Teatro de Santa Isabel, com o portentoso espetáculo: Um século de
Glória, em 1950). Aliás, esta peça de Kesselring suscitou uma enorme discussão na
imprensa, sobre o “cômico”. Se para Isaac Gondim Filho, a peça estava muito próxima ao
drama, à tragédia e mesmo ao terror, tornando-se destoante “como comédia pelo seu ritmo
lento e enfadonho” (GONDIM FILHO apud CADENGUE 1991: 80), para Andrade Lima
Filho, a peça não provoca “o riso moleque e acafajestado da chanchada. Nada disso.
Porque o ‘humor’ da peça de Kesselring é um ‘humor’ sadio e nobre, sem a mais leve
sombra de transigência com os recursos plebeus do mambembe” e, para arrematar, lembra
56
Henri Bergson que, em seu Ensaio sobre a significação do cômico, aludia a esta
comicidade das palavras: “faz rir espontaneamente sem que os atores se empenhem sequer
para isso”. (LIMA FILHO apud CADENGUE 1991:80). Também Hermilo Borba Filho
reforça que a comicidade da peça em nenhum momento cai “para o menos nobre no
cômico. [...] prova mais do que suficiente de que um conjunto sério podefazer rir sem
necessidade de visitar o picadeiro dos circos”. (BORBA FILHO apud CADENGUE
1991:81). Esta discussão entre o “baixo” e o “alto” cômico, se tiver sido acompanhada por
Marinho muito lhe terá sido útil quando da construção de suas “comédias sérias”.
O TAP também trouxe Flamínio Bollini Cerri (1924-1978), em 1955, para dirigir o
clássico de Nelson Rodrigues: Vestido de noiva. A cidade ardeu em discussões pois,
naquele momento, já contava com uma atuante Associação de Cronistas Teatrais. Marinho
deve ter visto também a remontagem de A comédia do coração, de Paulo Gonçalves
(reposta para uma temporada do TAP, no Rio de janeiro), direção lendária de Zigmunt
Turkow, em 1944, e assistiu às duas peças que Hermilo Borba Filho dirigiria para o TAP:
Seis personagens à procura de autor, de Luigi Pirandello (1957) e Onde canta o sabiá, de
Gastão Tojeiro (1958). Sobre esta última peça, quando da montagem de Um sábado em 30,
em 1963, muitos críticos fariam um espelhamento entre os dois espetáculos.
Em 1958, Luiz Marinho acompanhou de perto o I Festival Nacional de Teatro de
Estudantes, iniciativa de Paschoal Carlos Magno (1906-1980) que contava com o
patrocínio da Presidência da República, à época Juscelino Kubitschek de Oliveira, sendo
Ministro da Educação, Clóvis Salgado. A este Festival o futuro autor de Um sábado em 30
se fez presente e mandava notícias para Timbaúba deste acontecimento,
16
através da
coluna “Bilhetes do Recife”. Num deles, anuncia o Festival e, em dois outros, faz
comentários.
17
No primeiro, ele diz:
Depois de mil alterações, instalou-se finalmente às 11h30 do sábado, o esperado
Festival de Teatro dos Estudantes. Do programa nada se cumpriu apenas à
solenidade de abertura que mesmo assim foi presidida pelo Ministro Clóvis
Salgado, em substituição ao Presidente J. K. que não veio. [...] Hoje haverá
16
Através de uma coluna que assinava em algum jornal (os documentos constantes do acervo da família
Marinho não indicam a fonte nem a data), sob o título “Bilhetes do Recife”.
17
“Estará se realizando no Recife a partir da 2ª quinzena de julho, o Festival Nacional de Estudantes. Para
aqui virão Delegações de todo o território brasileiro! O festival será de caráter oficial e por ocasião do seu
encerramento estarão presentes além de todos os Reitores das Universidades do Brasil, S. Excia. o Presidente
J.K. que fará entrega dos prêmios aos ‘melhores’. O festival será durante 15 dias, havendo duas encenações
diárias, cursos, debates, etc. Na última noite o Teatro de Amadores de Pernambuco encerrará com a
apresentação de uma peça que no momento não me ocorre à memória. Depois do espetáculo e da Sessão de
encerramento, haverá um grande baile ao qual todos os atores vestidos com as roupagens dos personagens
que representaram nas diversas peças do festival. Estarei também representando Pernambuco e me ponho à
disposição de todos os timbaubenses interessados, para informações, programação, ingressos, etc.”
57
três representações, motivado pela não exibição do Coral Falado, no sábado.
Logo mais (estou escrevendo às 3 da tarde) no Teatro do Derby, será encenado
de Ibsen Espectros, pelo Grupo 57. À noite no Sta. Isabel, às 8:30 o Coral
Falado e às 10:30, o Teatro do Estudante da Paraíba com [Auto de] João da
Cruz, de Ariano Suassuna. Pela madrugada, depois dos espetáculos, haverá
homenagens pelos Clubes etc. Não tempo para nada, dormir já se constituiu
um SONHO. Portanto, o que sair de muito ruim nestas notas, vão perdoando,
infelizmente tenho que mandá-las semanalmente com quase oito dias de
antecedência, assim as notícias não podem ser mais recentes... Quinta-feira
Casamento suspeitoso, pelo Teatro Adolescente, aguardemos.
Num outro “Bilhetes do Recife”, escrito no último dia do festival, relata como
transcorreu e como se dará seu encerramento:
Aqui no Recife durante essas duas semanas se fala em teatro, se respira
teatro, é teatro na comida, teatro no trabalho, teatro nos passeios e deixou-se de
dormir por causa do teatro. A freqüência nos cinemas baixou sensivelmente e
disto se queixaram os empresários dos principais Cinemas do centro. O povo,
em verdadeira avalanche acorria ao Sta. Isabel e aquela miniatura de Teatro mal
dava para conter os participantes do Festival. No dia da segunda representação,
resolveu-se acomodar primeiramente (como é justo) os grupos participantes
para depois abrirem-se as portas ao público em geral e para isso organizou-se à
entrada uma fila que se tornou interminável tanto era o interesse do
pernambucano em acompanhar as representações. Esta fila aguardou paciente,
duas horas pela abertura das portas, mas quando essa gente entrou e encontrou a
platéia e os camarotes ocupados e supondo ser o clássico afilhadismo
brasileiro, fez a maior “onda” do planeta. Gritos de protesto, morra e abaixo,
surgiram de todos os recantos, foi tenebroso! Um diretor de um dos grupos que
surgiu no proscênio para dar alguma satisfação foi duramente vaiado e a
situação cada vez mais se agravava quando um universitário teve a feliz
lembrança de cantar o Hino Nacional. Então, todos de , no maior respeito,
entoaram o Hino e os ânimos se acalmaram – Salva a Pátria.
Depois deste Festival fico sem entender porque o nosso País tem o pior cinema
do mundo, porquanto temos atores (mesmo sem querer citar os profissionais)
que são verdadeira perfeição de representar! Peças como A morte severina [sic]
18
, Espectros, do Pato, A cantora careca e O macaco da vizinha credenciam
não os Conjuntos que as levaram mas também o Brasil para competir com
qualquer Teatro do Mundo...
Hoje, terça-feira, último dia do Festival! Vivemos grandes dias! Não pela
oportunidade de ver arte, mas também de conviver com brasileiros de todos os
rincões... Foram todos “grandes” e registro especial pelo Conjunto da Escola
Dramática de S. Paulo. Todos serão homenageados pelo nosso Teatro de
Amadores de Pernambuco com a representação de Seis personagens em busca
de autor.
19
Logo após a distribuição dos prêmios, e em seguida numa ceia de
confraternização estaremos em Olinda nos despedindo de todos e marcando um
novo encontro para o próximo ano em Porto Alegre. A Ceia dos Personagens
será servida a meia noite. Para seguirão leões, princesas, cangaceiros, frades,
18
Trata-se da primeira montagem de Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, que foi revelado
como autor teatral, numa montagem da Universidade do Pará, direção de Maria Sílvia, com músicas de
Waldemar Henrique. Cf. CADENGUE (1991:209-210).
19
A peça do TAP, tinha o título: Seis personagens à procura de autor. Vê-se com que ligeireza Marinho
redigia estas notas, quase “blogs”.
58
duendes, noivas, escravos, e um mundo encantado de personagens, será a ceia
mais estranha a que tenha tomado parte.
Achamos importante trazer o artigo em quase sua totalidade para podermos ver o
quanto Marinho estava imbuído de teatro neste final dos anos cinqüenta. Estava atento,
especialmente, mais aos espetáculos, do que aos textos teatrais, do que à dramaturgia
propriamente dita. Tanto é que ele diz em tom de “mito pessoal”, que houvera lido uma
peça – A ladrade Silvino Lopes, através de seu amigo e jornalista Expedido Pinto (como
Nelson Rodrigues que havia dito que, antes de erguer sua catedral dramática, havia lido
apenas Maria Cachucha, de Joracy Camargo).
Mas não somente do TAP fizera-se espectador. O Recife de então tinha intensa vida
teatral e outros grupos devem ter sido acompanhados por este “rato de teatro”. Logo em
1960, escreve A Derradeira ceia e Uma estória do mato (depois viria a receber o nome de
A afilhada de Nossa Senhora da Conceição). Neste mesmo ano entrega a Valdemar de
Oliveira sua peça Um sábado em 30, para sua apreciação, embora acreditasse que o que
escrevera se tratasse muito mais de outro gênero ficcional, um livro de memória, por
exemplo: “Mas, mostrando esse trabalho a Valdemar de Oliveira, ele achou meus diálogos
muito ricos e me aconselhou a aproveitá-los em teatro. E me deu um livro de carpintaria
teatral...”. (MOURA 1996:1). Ainda em 1960, entra na Escola de Belas Artes, para fazer o
Curso de Formação do Ator, que não chega a concluir, embora nele tenha tido contato com
mestres e leituras que, provavelmente, alicerçaram seus conhecimentos teatrais.
O autor de A derradeira ceia chegou a dizer que a leitura de peças não lhe
satisfazia, queria conhecer o teatro “de dentro”, em técnica e vivência, por isso ingressou
neste curso do qual guardou a lembrança de um tempo maravilhoso”, exceto quando teve
que subir ao palco, como ator, numa peça dirigida por Isaac Gondim Filho, O colar de
coral, de Antonio Callado. esta informação a medida de quanto foram valiosas estas
vivências, estas leituras. Na peça de Callado, encontramos uma situação que se espelha
difusamente em Um bado em 30. Difusamente, porque a peça de Marinho é uma
comédia e a de Callado é um drama de conflito cerrado, envolvendo dois personagens,
Manuela e Claudio, num amor quase impossível. Com “final feliz”, a luta ancestral entre
os clãs, oriundos do interior do Ceará, a que pertencem os protagonistas, redime o passado
de ódios e abre-se a uma harmonia familial e social desejáveis à época em que a peça fora
escrita. (CALLADO [1957] 2004). Como bem explica Lígia Chiappini, nesta peça a
rivalidade centenária entre as famílias, -se “por motivos de terras, e cujos conflitos se
59
prolongam de modo extemporâneo na capital do país Rio de Janeiro -, onde moram seus
descendentes empobrecidos”, devido a Revolução de 30. (CHIAPPINI 2004a:193). Mas ao
contrário de Um sábado em 30, nesta peça morre um certo Brasil que agora consolidava as
mudanças iniciadas nos anos trinta, “quando fazendeiros decadentes tiveram que vender
suas terras e viver no centro do país. Ajustando-se aos novos tempos de urbanização e
industrialização acelerada, o novo Brasil parecia civilizar-se, não deixando espaço para a
lei do olho por olho, dente por dente, que vigorava entre tantas famílias patriarcais”.
(CHIAPPINI 2004a:193). Na montagem pernambucana de O colar de coral, Marinho fez
apenas um secundário papel. Era tímido demais para ser ator. (MOURA 1996).
Estreitando seus laços com Luiz Mendonça, Marinho passa a integrar o Movimento
de Cultura Popular (MCP) tendo sua primeira peça montada ainda em 1961: A derradeira
ceia. Com ela, ganha o prêmio da Escola de Belas Artes. 1961 também é o ano de seu
casamento com Zailde Maria de Souza França. Já em 1962, nasce seu primeiro filho,
Francisco França Marinho Falcão e, embora deixe o curso de teatro, tem sua peça A
incelença, montada por Mendonça pelo Teatro de Cultura Popular (TCP), ligado ao MCP.
Em 1963, vários acontecimentos vão redimensionar sua vida: a peça Um sábado em 30 é
premiada pela União Brasileira de Escritores, secção Pernambuco, e no Concurso da
Escola de Belas Artes. A incelença sai como encarte da Revista Nordeste e o TAP faz a
première de Um sábado em 30. A incelença e A afilhada de Nossa Senhora da Conceição
abrem o Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura Popular, no Recife, sob o título
de Estórias do mato. Em 1964, Um sábado em 30 faz excursão a São Paulo, Santos e Belo
Horizonte e recebe da Associação dos Cronistas Teatrais de Pernambuco, o Prêmio Vânia
Souto, como melhor autor de 1963. Também em 1964 nasce sua filha, Carolina França
Marinho Falcão. Em 1968, Viva o cordão encarnado é montada pelo Teatro Universitário
de Pernambuco que participou do V Festival Nacional de Teatro de Estudantes, onde
ganhou a láurea de melhor autor; também são publicadas suas peças Um sábado em 30, A
incelença e A afilhada de Nossa Senhora da Conceição em edição da Universidade Federal
de Pernambuco; neste mesmo ano, nasce seu terceiro filho, Joaquim França Marinho
Falcão. No ano seguinte, Viva o cordão encarnado é publicada pelo Instituto do Açúcar e
do Álcool/Museu do Açúcar e A incelença vem pela terceira vez a público, na Revista
Dionysos, do Serviço Nacional do Teatro, órgão do Ministério da Educação e Cultura.
Pelos Cadernos de Teatro, publicação d’O Tablado, saiu A derradeira ceia, em 1973. Luiz
Mendonça, em 1974, monta no Rio de Janeiro, Viva o cordão encarnado, montagem com a
qual Mendonça e Luiz Marinho recebem os prêmios Molière de melhor direção e melhor
60
autor. Esta peça ainda seria reeditada, com modificações do autor, pela Bastidores textos
de teatro
20
, na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, provavelmente, em 1999.
Também foi republicada, com modificações no texto em relação à primeira edição, Um
sábado em 30, em 1986, pela Revista de Teatro, da Sociedade Brasileira de Autores
Teatrais (SBAT), da qual o autor era associado. No ano seguinte, publicou O último trem
para os Igarapés, na Revista Palco Nordestino, do Rio Grande do Norte. Voltaria a
publicar no Recife, em 1995, pela editora Comunicarte, duas de suas últimas peças: Corpo
corpóreo e A estrada.
Constatamos o quanto Luiz Marinho teve em vida sua obra editada, em livros e
revistas de prestígio regional e nacional. Isso mostra bem o quanto sua obra tornara-se
relevante por suas qualidades intrínsecas bem como pela rede de amizades que lhe abriram
as portas, chegando mesmo a ser editado pela editora de maior prestígio no Recife, a
editora da Universidade Federal de Pernambuco; e, de quebra, o Museu do Açúcar, ligado
ao Instituto do Açúcar e do Álcool, órgãos federais de prestígio naquele momento.
Entretanto, as revistas Nordeste (Recife), Dionysos (Rio de janeiro), Revista de Teatro da
SBAT (Rio de Janeiro), Cadernos de Teatro (Rio de Janeiro) e Palco Nordestino (Natal)
foram muito importantes para que sua criação artística alargasse seu raio de ação,
ampliasse o horizonte de leitores e possíveis encenadores.
Luiz Marinho, além de editado
21
, foi também bastante encenado. Um dramaturgo
que, pôde ver e rever suas peças encenadas e por isto pôde avançar em sua escrita
dramática. Arremessou-se por veredas desconhecidas, mas que já estavam dentro dele,
seguindo o “mote” que estabeleceu pra si. Não desdenhava do sucesso, mas preocupava-se
quando o público não entendia seu texto, numa encenação que houvesse interditado o
sentido que inicialmente lhe dera. Mostrava-se feliz em ver seus textos materializados pela
experiência viva da cena: “é muito mágico, como se você estivesse assistindo ao
crescimento de um filho em todas as fases até se tornar adulto e seguir um destino próprio
e você, ali, acompanhando, sem poder fazer mais nada. A sorte está lançada”.
(MÜLLER; HÉLIO; JORGE NETO 1987:
9)
.
Marinho tomou caminhos vários em sua
dramaturgia: variedade de estilos, de temáticas, mas sempre com uma “marca” forte de ver
o ser humano em sua busca desmedida pela felicidade, mesmo quando esta se mostra um
malogro. Para o autor, alguma coisa por mais triste que lhe pareça, apresenta, sem
20
Bastidores – textos de teatro foi um projeto de editoração para textos de teatro.
21
De sua obra não foram publicadas, apenas A promessa, A valsa do diabo, As três graças e as peças
infantis: A aventura do Capitão Flúor, A família Ratoplan e Foi um dia. Para quem escreveu quatorze textos,
é significativo que somente seis peças tenham ficado em busca de editor.
61
didatismo, sem proselitismo, uma “possibilidade” de “redenção”, ou de “alegria”, sinal
sempre lembrado, por ser o que vai dar ligadura a todo o seu tecido dramático, aquele que
o fará sempre despedir-se da vida com regozijo.
Em 1980, Marinho entra para a Academia Pernambucana de Letras (APL), na vaga
do poeta-dramaturgo-calculista Joaquim Cardozo e faz um discurso marcante para os anais
da casa de Carneiro Vilela, em que se ressalta originalidade e evocação. Marinho torna
evidente que a matéria-prima de suas peças está nas suas recordações de infância, no seu
cotidiano entre a sala da casa-grande e a cozinha com os empregados, no seu olhar de
criança que se encantava com as estórias e a linguagem dos matutos com os quais
conviveu, e que ainda se encontra presente no adulto em que se tornou. Por mais que ele
possa falar de si mesmo, através dessas peças, elas não passam de memórias que visam
contemplar o universo que o rodeava e que amava. Embora existam personagens
inspirados diretamente em sua vida, este não é seu objetivo principal, por mais que haja
algo de pessoal em seus relatos. O foco de Marinho é a apreensão da sociedade em que
viveu; sua gente e seus costumes, suas estórias, seu imaginário. A psique de Marinho surge
de sua relação com este universo que é resgatado através de sua memória.
1.2.3. O fim e o início: evocações, evidências, enigmas
Aqui, uma última passada pela infância do autor à luz de um incerto anteontem.
Luz que vem ainda iluminá-lo sob dois aspectos: um, que nos remete à construção de si
mesmo, tema recorrente a espelhar neste estudo; outro, como um desses “mitos pessoais”,
que se disfarçam e se revelam nessas memórias ficcionalizadas. Uma última passada por
seu mundo que, logo, logo, entrará em “íntimo recesso”.
1.2.3.1. Mitológicas I: mitos de criação
Muitos autores construíram suas obras a partir da infância, não apenas Marinho.
Graciliano Ramos (1892-1953), por exemplo, abordou suas experiências de menino no
interior do Nordeste, em fins do século XIX e inícios do XX, em sua obra Infância ([1945]
2006). Mas em Ramos a dimensão negativa que aos primeiros anos de sua vida são
muito contrastantes em relação à mitologia pessoal de Marinho; no romancista, em tudo
paira o pessimismo; no dramaturgo, sobrevoa o otimismo. Nos dois escritores, os dados
autobiográficos traduzem seus mitos de origem de âmbito pessoal. Em ambos, o adentrar-
62
se pela vida a partir da infância, ilumina vários estágios de cada um desses homens-
escritores. Contudo, entre os dois também muitas diferenças; especialmente as que
concernem à felicidade vivida por Marinho e a vida ao revés vivida por Ramos.
Aqui interessa-nos a visão idílica que Marinho tem de sua infância: nela não há
referências a surras, a castigos impostos pelos pais. Sua mãe, por exemplo, confessa “era
uma mulher culta, gostava de ler, tocava piano muito bem. Ela tinha o hábito de ler para
todos os filhos e afilhados romances e estórias maravilhosas. Isso me despertou logo cedo
para o gosto da leitura”. (ALMEIDA 1977:1). Em suas recordações, Marinho Dona
Rosa naquela casa de dez irmãos, parentes e aderentes, a balançar-se numa cadeira, cabelos
longos soltos, jovem, mas já matriarca com “a moleca Nuga dando-lhe cafuné”. E mais
idílios:
As minhas irmãs tocavam: O Guarany, Clair de lune, Canção russa, a
inesquecível Marcha militar, a quatro mãos, e mais outras músicas. Quando o
piano parava, a minha mãe falava: - Debussy tinha um amigo brasileiro que lhe
escrevia contando coisas do Brasil. Numa das cartas, descreveu uma lenda
muito linda, do rio Potengy... Uma índia que perdera seu amado, numa noite de
luar se afogou nas águas do rio... Depois, quando fazia lua cheia, ela
transformada em garça, saía do fundo das águas e voava à luz do luar... Esta
lenda tocou tanto a sensibilidade de Debussy, que lhe inspirou a sua mais bela
página musical Clair de lune! ... e de olhos fechados eu escutava a música
acompanhando o vôo da garça se perdendo em longínquo horizonte...
(MARINHO 1980:8).
O pai, Seu Luiz: “era um homem com o pé no chão, não era um sonhador. Todas as
pessoas da redondeza gostavam dele”. (ALMEIDA 1977:1). Deste seu “terceiro herói”,
Marinho tem a imagem de um homem rígido de caráter, contrastando com a figura de um
“liberal” que vinha das madrugadas, violão no peito, arruaceiro de pastoril e samba de
negro, partidário de Vassourinhas, noivo de sete moças, um giramundo: “Um dia, colheu
uma Rosa, botou no peito esquerdo, e parou. Fundou seu Reino, inventou amigos, de cores
diversas, de classes sociais diversas, acolheu forasteiros, sem perguntar de onde vinham,
o caráter pesando; sua casa grande, seu coração maior; sua mesa larga, todos à mesa
cantando louvores... Nossa casa era uma festa!” (MARINHO 1980:9). Seu Luiz, homem de
posses, tratava a todos sem distinção: era muito popular, tendo enorme prestígio e, não sem
razão possuía 700 afilhados (às vezes Marinho refere-se a um número menor de afilhados:
400, por exemplo: MOURA 1996:1).
A casa dos Marinho Falcão era sempre aberta, especialmente à gente matuta que ia
à feira e com eles almoçava. E, no ritual das trocas simbólicas, havia “sempre um agrado”:
63
“levava fruta-pão, cacho de banana, ovos e eu adorava conversar com eles. É uma coisa
interessante, não havia fome. Tanto é que nas minhas peças não a temática da fome, a
não ser A estrada e assim mesmo um pouquinho. Não o mesmo sofrimento, a morte...”
(MOURA 1996:1).
Vista deste ângulo, a infância torna-se mítica, nela se revelando, pelo
autor/narrador, a configuração de seu “mito pessoal”, mas também a de um mundo com
seus rituais. Os relatos, documentos, confissões de Luiz Marinho ou a sua obra, na qual
transcriou suas lembranças, têm imagens que remontam a estruturas míticas que não
expressam sua individualidade, como manifestam a própria coletividade na qual se formou.
E que sempre volta a ela para realimentar-se. E sua vida imaginária materializa-se na
imaterialidade do texto ficcional através de narrativas, pessoais ou ficcionais que, pela
distância em recordar-se dos acontecimentos, fatos, do material que lhe serve à criação,
torna-se seletivo no ato da rememoração.
Poderíamos também enumerar a lista e a saga dos “homéricos” personagens
marinhos. Para além daqueles aqui citados em suas relembranças uma dezena de
outros “heróis”. No discurso de posse da Academia Pernambucana de Letras, em 1980,
enumerou apenas três deles: Alfredo Furapau, Zefa e seu pai. Mas teve muitos outros e um
deles, não nomeado como “herói” (talvez porque já não o visse com seus olhos de menino,
pois quando o conhecera era “homem feito”), que também poderia ser chamado de
“herói” por Luiz Marinho, por sua magnanimidade para com ele, seria Valdemar de
Oliveira (1970-1977), fundador do TAP e personagem principal, depois de Luiz
Mendonça, na sua construção enquanto dramaturgo. Em seu discurso acadêmico assim
dirigiu-se ao seu pai e a Valdemar: “Meus dois grandes ausentes: Valdemar de Oliveira,
que estaria ali com seu sorriso enigmático, a olhar-me como se eu fosse uma obra sua que
estivesse sendo concluída E meu pai, com aquele seu olhar sisudo, como se estivesse a
me dizer é assim mesmo! Nada de emoções... você é um homem, meu rapaz! Embora
lágrimas furtivas lhe derretessem o coração”. (MARINHO 1980:1). Vê-se o quanto
representavam esses dois homens em sua vida.
Seu encontro com Valdemar de Oliveira, conforme nos diz Tenório Vieira, nunca
foi precisado pelo autor, mas talvez tenha ocorrido em fins de 1960, quando Marinho
estava envolvido mais diretamente com o teatro. Provavelmente este encontro deu-se antes
da montagem pelo Teatro Experimental de Cultura (TEC), grupo vinculado ao Movimento
64
de Cultura Popular, de A derradeira ceia, em 1961, com direção de Luiz Mendonça.
22
Por
estes tempos, já estudava na Escola de Belas Artes, acompanhava a vida teatral do
Teatro de Amadores de Pernambuco e, provavelmente, a vida cultural da cidade -, além
de manter estreita relação de amizade com Mendonça com quem dividira um quarto de
pensão. Tinham enormes afinidades, a ponto de Mendonça não voltar a montá-lo no
TEC, à época do MCP, onde ainda levou à cena A incelença (1962) e A afilhada de Nossa
Senhora da Conceição (1963), como retornaria à sua dramaturgia por várias vezes, no Rio
de Janeiro, onde se fixou depois do Golpe Militar de 1964. A culminância desta parceria
vai acontecer em 1974, com a montagem premiadíssima de Viva o cordão encarnado, que
teria novamente sua direção numa montagem recifense da Companhia Práxis Dramática,
em 1986 e com os alunos-atores da Casa das Artes de Laranjeiras, em 1992. Este ciclo
se fecharia com a montagem de Um sábado em 30, em 1993.
23
Mesmo que Luiz Mendonça tenha tido sempre Marinho como parceiro de sua cena,
foi Valdemar de Oliveira quem lhe deu o reconhecimento, antes de qualquer teatrólogo
pernambucano. A isto Marinho sempre foi grato. Grato ao ponto de entrar numa discussão
que envolvia Valdemar de Oliveira e Ariano Suassuna, fato raro em toda a sua vida.
Em 1957, o diretor do TAP procurava uma peça de autor local para levar à cena
pelo seu grupo, anunciando na imprensa sua intenção e os critérios de seleção:
Anda o Teatro de Amadores de Pernambuco à procura de uma boa peça
pernambucana – e não encontra. O adjetivo se impõe: de boa para cima, ou não
lhe pode interessar. E inédita, é claro, ou pelo menos, pouco conhecida [...].
Nestes últimos cinco anos somente três ou quatro peças de autores
pernambucanos vieram às mãos da direção do TAP. E nenhuma delas pôde ser
aproveitada, por motivos diversos, os mesmos motivos, provavelmente, que as
conservam em suas gavetas. Outras nascem com endereço certo: delas teve
notícia quando compromissadas, com outros conjuntos [...]. Essa história de
autores nacionais ou autores locais é muito bonita, muito nobre, muito justa.
Deve ser um dever consumir seus produtos, mas, a esse corresponde o direito de
escolha, isto é, de seleção. O amor ao caju não me obriga a chupar cajus ruins,
por mais que o seu vendedor os ache doces. Este tem o interesse da venda; eu,
não tenho o da compra. (OLIVEIRA 1957:6 apud CADENGUE 1991:330).
22
É importante assinalar que antes de denominar-se Teatro de Cultura Popular, o grupo do MCP chamou-se
de Teatro Experimental de Cultura e de Teatro do Povo; somente em 1962, é que passou a denominar-se
como Teatro de Cultura Popular (TCP).
23
Para informações mais detalhadas sobre as montagens que Luiz Mendonça fez das peças de Luiz Marinho
cf. (VIEIRA 2004) e (REIS, Carlos; REIS, Luís Augusto 2005). Também nestas obras pode-se ver as
discussões travadas entre vários grupos teatrais no Recife dos anos 60: Teatro Experimental de Cultura
versus Teatro Popular do Nordeste e entre estes segmentos da produção teatral, a posição de liderança do
Teatro de Amadores de Pernambuco, sob a batuta de Valdemar de Oliveira, que também assinava colunas
nos jornais.
65
Anos depois, Ariano Suassuna em entrevista ao Jornal de Letras, republicada
nos Cadernos de Teatro d’O Tablado, retomaria o assunto, que lhe ficara como um grito
preso na garganta:
Agora eu pergunto: como é que um autor nordestino que tenha um mínimo de
dignidade pode oferecer uma peça a um homem desses? E o pior é que, depois
disso, o diretor do TAP tem a coragem de dizer, de público, que o atual grupo
de autores do Nordeste surgiu graças ao movimento iniciado por ele, quando na
verdade é que nossas idéias e nossas peças se firmaram a despeito dele, em
oposição a ele. (ARIANO 1966:[s.p.]).
Luiz Marinho, que teve seu Um sábado em 30, estreado pelo TAP, sob a
direção de Valdemar de Oliveira, em 1963, escreve um artigo, publicado no Diário da
Noite, ainda em 1966, para lembrar ao Mestre Suassuna que ele, autor nordestino, recebera
de Valdemar de Oliveira o maior impulso à sua realização como autor enquanto muitos e
muitos de seus pares haviam silenciado sobre sua peça. Deixemos Marinho dirigir-se a
Suassuna:
Meu caríssimo amigo e ex-professor Ariano, um momentinho!... Quem quer lhe
falar é uma arribaçãzinha lá de Timbaúba, que não é besta para se meter a cantar
perto de Uirapuru... Mas chegou um dia em que a arribaçã estava pousada num
galho de cajueiro, quando escutou a estória dos cajus de Valdemar de Oliveira e
por estar com o pé no cajueiro, se sentiu também sacudida!
Bom... a conversa é a seguinte: sempre achei suas opiniões e ponto de vista de
muita valia e por cima ainda, lhe considero um sujeito formidável! Mas, desta
vez vai me permitir que eu abra o meu biquinho para discordar... porque, olhe,
esse negócio de você dizer, que o autor nordestino que dá peça para o Teatro de
Amadores de Pernambuco encenar, é indigno, deixou-me de cara no chão!
Porque, talvez você não saiba, o TAP levou pouco, uma peça minha e está
pretendendo levar outras mais! (Esclareço que a solicitação é antiga, mas não
velha!)
Agora vou lhe revelar uma coisa que há muito tinha vontade de dizer de público
(Não a você) Quando ainda engatinhava nas letras, (Não sei se me pus de
pé!) incentivado por Expedito [Pinto], peguei as minhas pobres loas (que não
estava certo de serem consideradas peças) e haja procurar teatrólogos da terra
para opinar... (MARINHO 1966).
Como vimos acima, Marinho procurou vários deles, e nenhum se manifestou
claramente sobre sua peça. Aliás, o silêncio é tudo o que restava. Para muitos, é como se
esta dramaturgia nunca tivesse existido, até hoje. Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna
66
pouco se manifestaram sobre as peças marinhas, como as chamou Mauro Mota que nela
soube observar o que lhe era peculiar: sua linguagem.
24
Evidente que para os que faziam o Teatro Popular do Nordeste (TPN), a Dramática
de Luiz Marinho estava distante demais do que haviam presumido ser o “teatro
nordestino”, e uma das condições estabelecidas era ser este teatro, um teatro fiel à
teatralidade, logo, “antiilusionista”. Pelos cânones estabelecidos pelo grupo tepenístico, a
priori, o teatro de Luiz Marinho não existiria. Ou não tinha qualidade artística para
ombrear-se com aquele grupo que produzia peças com um Manifesto
25
([1961] 1980: 64-
65) na mão, não conseguindo vislumbrar que muito do que se propunha como ideário
24
Numa das poucas vezes que Hermilo Borba Filho (1968:133-135), em nível nacional, faz menção a
Marinho é num artigo publicado pela Revista Civilização Brasileira, no qual retoma as idéias do Teatro do
Estudante de Pernambuco que ressoaram no Teatro Popular do Nordeste: a construção de um “teatro popular
nordestino”, no qual incluem, como sabemos “os trágicos gregos, o elisabetano, a tragédia francesa, o
mundo de Molière e Gil Vicente, o século de ouro espanhol, o teatro de Goldoni, o drama romântico francês,
Goethe e Schiller”, mas também “Antônio José, Martins Pena e todos aqueles que no Brasil e principalmente
no Nordeste m procurando e realizando um teatro dentro da seiva popular coletiva, como além dos já
citados [Ariano Suassuna, José de Moraes Pinho, Aristóteles Soares, José Carlos Cavalcanti Borges] , Sylvio
Rabello, Osman Lins e Luiz Marinho”. Porém, antes desta menção, por duas vezes Hermilo Borba Filho
referiu-se a Luiz Marinho e, por coincidência, sempre a classificar sua dramaturgia, como sendo “teatro de
costumes”. A primeira menção dá-se em 1965, quando os dois autores foram laureados pela Academia
Pernambucana de Letras. Em seu discurso, Borba Filho inicia agradecendo ao público que se fazia presente à
solenidade e à entidade doadora dos prêmios [Othon Bezerra de Mello] concedidos a ele e a Luiz Marinho, e
depois: “Faço, portanto, de início, o agradecimento à Academia Pernambucana de Letras. Não sei o que diria
o meu colega beneficiado nesta ocasião. Dele, porém, posso dizer que é um dramaturgo honesto, trabalhador,
entregando-se com entusiasmo ao seu teatro de costumes, com os tipos e usos de sua cidade de Timbaúba.
Nisto somos idênticos: ambos escritores do interior e, o que é mais, da zona-da-mata”. (BORBA FILHO
1965:103). Provavelmente em 1967, numa revista paraguaia publica um artigo denominado “Sobre el teatro
del nordeste brasileño” em que traça um breve panorama da literatura e do teatro no Nordeste, com ênfase no
Romance de 30 e no Teatro do Estudante de Pernambuco, que renovou o teatro nordestino e nele surgiu o seu
mais importante dramaturgo: Ariano Suassuna. Depois de elencar os grupos mais atuantes como o Teatro
Adolescente, o Teatro de Amadores de Pernambuco, o Teatro Universitário e o Teatro de Arena constata que
nenhum deles preocupou-se como o TEP se preocupara com “el fijación del autor nacional y de los asuntos
de la región” (“a fixação do autor nacional e dos assuntos da região”). Em seguida, finaliza: “Recientemente
en la década del 60, el Teatro de Cultura Popular revela un autor de costumbres importante: Luiz Marinho,
dueño de un lenguaje poderoso, presentando una galería de tipos importantes, y principalmente, explorando
los temas conocidos del pueblo, aunque recreados. Sus obras más importantes son: La excelencia y Un
sábado en treinta”. (“Recentemente, na década de 60, o Teatro de Cultura Popular revela um importante
autor de costumes: Luiz Marinho, dono de uma poderosa linguagem, apresenta uma galeria de tipos
importantes e, principalmente, explora temas conhecidos do povo, embora recriados. Suas mais importantes
obras são A incelença e Um sábado em 30”). BORBA FILHO (1967?:7). Mas também encontramos uma
referência a Luiz Marinho, numa entrevista concedida por Ariano Suassuna: “PERGUNTA - Existe um teatro
nordestino? / RESPOSTA Creio que sim. Senão de onde viria seu interesse em me entrevistar a mim, autor
nordestino? Hermilo Borba Filho, Luiz Marinho, Isaac Gondim Filho, José Carlos Cavalcanti Borges, Osman
Lins e Aristóteles Soares são excelentes autores”. (ARIANO 1966:s.p.). (Devemos a Luís Augusto da Veiga
Pessoa Reis as declarações de Hermilo Borba Filho, feitas em 1965 e 1967(?), a quem agradecemos).
25
O Teatro Popular do Nordeste foi fundado em 1960, mas apenas em 1961 apresenta seu primeiro
espetáculo e seu Manifesto, redigido por Ariano Suassuna conforme depoimento em: BACCARELLI,
Milton (1994:35), no qual esclarece: “Esse Manifesto do TPN tem sido dado como feito por Hermilo, mas
não o foi. Quem fez o Manifesto do TPN fui eu, o Manifesto que foi lançado quando da estréia do Teatro
Popular do Nordeste”. Nosso texto parafraseia o Manifesto, usando de suas palavras, para atestar o quanto
Marinho estava em sintonia com aquele grupo, que nunca o encenou. Está em itálico, como grifo nosso. Cf.
MANIFESTO do Teatro Popular do Nordeste ([1961] 1980:64-65).
67
estético-ideológico, não se distanciava da produção de Luiz Marinho. Parafraseando o
Manifesto do TPN, podemos afirmar, da mesma maneira, que o teatro de Luiz Marinho
não era formalista, tinha comunicação direta com a realidade, não era frívolo, estéril, sem
sangue e sem pensamento; não era covarde ante os abusos e privilégios da fria e cega vida
contemporânea, do mundo dos privilegiados sem entranhas e das sanguinárias tiranias
que fingiam combatê-los.
Também o teatro de Marinho não era alistado, demagógico, movido por motivos
políticos, não era arte de propaganda, não agregava nenhuma tese estranha ao seu corpo.
O teatro de Marinho era “comprometido” e em fecundo intercâmbio com a realidade,
porta-voz da coletividade e do indivíduo, em consonância com o espírito profundo do povo
nordestino. O teatro de Marinho era popular sem que popular significasse tomar o povo a
partir de uma visão simplista pré-determinada do mundo, mas um teatro pulsante com a
carne e o sangue do povo nordestino. O teatro de Marinho tinha o senso da tragédia e da
comédia, da épica, e comprometido com o homem e com o mundo. Nele perpassa a seiva
popular coletiva como estava a procurar e a realizar os dramaturgos citados no
MANIFESTO: Hermilo Borba Filho, Ariano Suassuna, José Carlos Cavalcanti Borges,
Osman Lins e José de Moraes Pinho. O teatro de Luiz Marinho expressava sua visão épica
e coletiva do mundo, sem esquecer que, como disse o poeta Tomás Seixas, as dores
individuais ainda contam”.
O teatro de Marinho era popular, mantendo-se fiel ao espírito de nosso povo, vivo,
vigoroso, amante da paz, religioso, ao seu modo, irreverente e chocarreiro com o
pomposo, o falso, o grandiloqüente, mas respeitoso diante da verdade dos heróis. E era
teatro e calcado em tradições vividas dentro da coletividade, de dentro. Mas não se
pretendia erudito sem deixar de ser popular, embora assim também pudesse ser lido,
relido, pelos “diálogos com o encenador” contemporâneo. Teatro crítico, mas não pedante.
Teatro comprometido com seu tempo, com o homem e com a sociedade.
Por tudo isto, Marinho continua a explicar a Suassuna:
É tudo verdade, meu estimado Ariano! Pergunte a Expedito!... E era novamente
Expedito quem falava:
- Rapaz! Leva para Dr. Valdemar de Oliveira!
- Pra quem?!!! Está doido?!!!
-É besteira sua!
Sim... Mas cadê coragem? Porém, como estava enganado! Quando a coragem
chegou-me, procurei o meu velho mestre do Curso Pernambucano e foi aquela
68
beleza. Ariano!... O homem com toda atenção e boa vontade, destrinchou tudo.
Anotou nomes dos personagens da peça que lhe levara, situações, condições
sociais, época vivida e numa entrevista valiosíssima, queria saber por que o
personagem tal, não era explorado logo no início da peça, um tipo tão bom. Um
outro personagem, sobrava dentro da trama... e ainda, tempo ideal para um ato,
fecho de cena etc, etc, e finalizando, despachou-me com um abraço e entregou-
me o parecer por ele preparado e onde se lia em baixo: Linguagem excelente!
Nasce aqui um Autor nacional! [...]
É óbvio que isto o era obrigação dos que procurei. Mas com a pontinha de
orgulho e de sensatez de meu temperamento ia desistir. (O que seria uma
pena para mim!). E tudo por falta de uma palavrinha amiga!
Mas Dr. Valdemar não ficou por aí. Ocupou várias e várias vezes o seu “A
propósito”, com críticas e palavras de incentivo às minhas produções. E tem
mais! A única publicação de peça minha, foi ainda por sua influência! [refere-
se, possivelmente, à publicação de A incelença, em 1963, pela Revista
Nordeste]!
Agora me diga, meu caro Ariano! Posso me considerar um autor indigno por
ceder as minhas peças a Valdemar de Oliveira? (MARINHO 1966).
Sempre foi grato a Valdemar de Oliveira e no discurso de posse na Academia
Pernambucana de Letras voltou a agradecer: “Meu Mestre! Meu amigo! Nunca vou
esquecer”. (MARINHO 1980:12).
1.2.3.2. Mitológicas II: aprendeu sem s’insiná
Luiz Marinho converteu toda sua memorialística em manifestações míticas, como
princípio de organização de sua artisticidade e, sob certo ângulo, sua ficção dramática
remete a arquétipos que vamos encontrar na própria natureza da literatura. O conceito de
arquétipo de que nos valeremos é o de Régis Boyer, no seu verbete para o Dicionário de
mitos literários, organizado por Pierre Brunel (2005). A partir das considerações acerca do
mito e do mito literário, chega aos arquétipos. Na literatura - ele começa a deslindar -, um
mito
[...] assinala uma história exemplar, ela própria cristalizada em geral em uma
imagem prestigiosa e dinâmica porque reúne ou resume o espírito mais
profundo de uma cultura, toda narrativa ou imagem digna de uma expressão
literária pode sempre remontar a um ou a vários arquétipos: Eva está presente
por trás de toda Mulher por definição fatal, em cada romance de aventura há um
rito de iniciação, em toda forma teatral um drama ritual ligado à mímica
sagrada [...] e a afirmação de si próprio em direção a uma transcendência
passava sempre por Don Juan, Ahasverus ou Fausto. (BOYER 2005: 89).
As peças e relatos de Luiz Marinho contêm estas imagens a que Boyer se refere:
imagens que remontam a paradigmas, às estruturas míticas e não apenas individuais. Como
69
se voltasse sempre ao mesmo ponto, ao princípio dos imutáveis, o mito negocia sua
existência entre a sua própria imutabilidade e as condições de sua historicidade. É preciso
atentar que, na contemporaneidade, a “remitologização” pode tanto implicar em crises da
própria sociedade na qual está inserida como também tornar-se elemento para manutenção
da vida, advertindo, sobretudo, para o excesso de racionalidade em que se passou a viver.
O termo arquétipo remete à psicologia analítica de Carl Gustav Jung (1875-1961)
que, depois de romper com seu mestre Sigmund Freud, em 1913, por discordar
essencialmente de sua teoria da libido, elabora “a noção de arquétipo, oriunda da noção de
imago, para definir uma forma preexistente que determina o psiquismo e provoca uma
representação simbólica que aparece nos sonhos, na arte ou na religião”. (ROUDINESCO;
PLON 1998: 422).
São três os principais arquétipos: animus (imagem do masculino); anima (imagem
do feminino) e o selbst (si-mesmo), centro da personalidade do indivíduo. É importante
frisar que Jung, ao conceber tal noção de arquétipo, afastou-se totalmente do universalismo
de Freud “mesmo desejando encontrar o universal nas grandes mitologias religiosas. Na
verdade, é antes, com a idéia de pattern, próxima dos culturalistas, que se podem comparar
os arquétipos. E Jung a aprofundou, aliás, ao interessar-se pelo estudo etnológico das
civilizações ditas ‘arcaicas’”. (ROUDINESCO; PLON 1998: 423). O próprio Jung queria
diferenciar “arquétipo” dos “resíduos arcaicos” freudianos, que seriam para ele apenas
“formas mentais cuja presença não encontra explicação alguma na vida do indivíduo e que
parecem, antes, formas primitivas e inatas, representando uma herança do espírito
humano”. (JUNG [1964] s/d: 67). Conceito complexo, que implica, sobretudo, na criação
de imagens simbólicas cujos arquétipos são a sua manifestação. Desconhece-se a sua
origem e se repetem ad infinitum em qualquer época ou lugar. E na literatura, o arquétipo
está sempre no fim, como diz Boyer. Para tanto, reconhece três possíveis conotações que
podem se sobrepor umas às outras: a) pode-se entender o arquétipo como protótipo; b) o
arquétipo tido como modelo ideal; c) o arquétipo como tipo supremo.
Seria nesta terceira acepção que Boyer o arquétipo como um tipo absoluto que
tende à perfeição, escapando de qualquer acidentalidade, sendo essencializado seja em que
domínio esteja: no religioso, no mítico ou no fictício, enfim onde se queira encontrá-lo. O
mero ato de escrever, passa a ter nesta perspectiva, um significado em si mesmo que
encontra sua razão de ser através da Palavra, do Verbo, só fazendo sentido na comunicação
que se restabelece
70
[...] na comunhão pressentida, esperada, ardentemente desejada que tendem a
restabelecer. A restabelecer, não a estabelecer, pois eles supõem uma realidade
transcendente que eu chamo de tipo supremo quando se trata de pessoas [...],
uma narrativa perfeita ou um arquitexto, no sentido apenas de narrativa. Em
resumo, o que os gregos chamaram tão bem de poesia, poïésie, gesto
(re)criador, ou melhor, identificação (BOYER 2005: 92).
Retomando Jung, arquétipos e mitos são semelhantes, ou apenas assemelham-se
como produtos da consciência primeva, que vai resultar no conceito de inconsciente
coletivo. O aspecto mitológico do inconsciente, graças ao seu caráter paradigmático,
consiste em uma estrutura que religa o homem ao sagrado. O inconsciente também
apresenta a estrutura de uma mitologia pessoal; no entanto, para Mircea Eliade
Pode-se ir mais longe ainda e afirmar não somente que o inconsciente é
“mitológico”, mas também que alguns de seus conteúdos estão carregados de
valores cósmicos; em outros termos, que eles refletem as modalidades, os
processos e os destinos da vida e da matéria vivente. Pode-se dizer que o único
contato real do homem moderno com a sacralidade cósmica é efetuado pelo
inconsciente, quer se trate de seus sonhos e de sua vida imaginária, quer das
criações que surgem do inconsciente (poesia, jogos, espetáculos, etc.).
(ELIADE [1963] 2006:73).
Esta exposição é para que retomemos a natureza mitológica da individualidade, a
partir do enfoque que agora passamos a considerar: a relação de Luiz Marinho com os
aspectos sagrados do Catimbó-Jurema que ele habilmente dissimula no seu discurso de
posse na APL, em 1980. Este discurso como um todo remete à infância primordial,
paradisíaca, sobre a qual nos referimos (e é sob este ponto de vista que ele conduz sua
oração solene). No discurso de posse, existem outras camadas não inteiramente legíveis
para nós, agora, até mesmo pelo desconhecimento da pessoa que foi Marinho, sua vida.
viemos a conhecê-lo através dos relatos, testemunhos, entrevistas e obras. Daí,
permanecermos na dúvida que duvida. Não sabemos se o que sabemos são dados reais,
acontecidos ou dados, testemunhos, que na rememoração ganham, através da metáfora,
uma ficcionalização. O que nos asseguraria que este discurso, esboço de autobiografia, ou
esta memorialística, não tornaram-se confissão pública num rito de iniciação?
O jovem Marinho, chegado em 1944, ao Recife, deve ter ouvido na voz de
Francisco Alves, “A canção do expedicionário”, um hino pátrio com letras do poeta
Guilherme de Almeida (1980-1969), e música de Spártaco Rossi. De 1942 a 1945, o Brasil
integrou a aliança que combateu o Eixo, quando o Presidente Getúlio Vargas resolveu que
o Brasil deveria unir-se às forças aliadas para combater Hitler, depois dos ataques alemães
71
em litoral brasileiro. A música tornou-se popular e todos a cantavam, pelas ruas, escolas,
no próprio “teatro de guerra”, especialmente pelas tropas da Força Expedicionária
Brasileira. A gravação de Francisco Alves trazia, apenas, metade dos versos originais e foi
esta a que se tornou mais popular, embora a canção fosse mais extensa.
Quando de sua posse na Academia Pernambucana de Letras, no gesto ritualístico de
sua Oração solene, Luiz Marinho faz os cumprimentos de praxe usando o poema “Irene no
céu” (BANDEIRA [1930] 1993:142) que com humildade pede licença a São Pedro para
entrar no céu, “- Licença, meu branco!”. E São Pedro, bonachão: - Entra Irene. Você não
precisa pedir licença”. Com estes versos, pede para entrar naquela veneranda casa, sob a
máscara da humildade, humildade entrelaçada à negritude de Irene, possível elo de
identificação. O que mais nos chama a atenção, de imediato, é que ele use “A canção do
expedicionário” como eixo para puxar sua conversa: especialmente, quando se pergunta
De onde venho?”. Na música, diz os versos do poeta: Você sabe de onde eu venho?
Venho do morro do engenho. Das selvas dos cafezais, / da boa terra do coco / Da
choupana onde um é pouco, / dois é bom, três é demais”. (in MARQUES [s.d.]:60). E por
ai vai a “Canção” reunindo os brasileiros de todas as partes do país: das montanhas, dos
pampas, do seringal, dos verdes mares, enfim, a música remete a um “eu coletivo” que diz
vir, “De sua terra natal”. Luiz Marinho procede da mesma forma:
-De onde venho?
- Venho dos Morros... dos Morros onde à noite o vento faz cabeceira e num
murmurinho vem contar estórias de terras estranhas por onde passou. Fala de
Gigantes, Fadas, Dragões e Reis... e escuta da Serra que nunca andou, estórias
matutas, de Caenga, Papa-figos, Compadre Rico e Compadre Pobre e do Bode
Yôyô .
- Venho das Matas, e carrego nos cabelos encanecidos, o cheiro silvestre do ca
maduro, e carrego no sangue, os mistérios da Mata, onde Reina a Rainha
Encantada da Mata Grande, que Guarda a Ciência do Vajucá... No meio da
Mata, escuto o assobio da Tapuia Caipora, e no oco do pau, deixo taco de fumo,
para a crina do meu cavalo, ela não embaraçar! Venho das Matas... por isto, está
escrito: de matuto nunca vou passar!
- O Lugar?
Timbaúba é o Lugar! - No começo, uma fazenda, uma Capela, um potentado
senhor... senhor de tudo: das terras, das águas, dos homens... senhor dos
homens, mas não do seu pensar! Um dia, o homem pensou, e com as próprias
mãos, livrou-se do jugo do potentado senhor! Nas águas do Capibaribe-Mirim,
o homem lavou as mãos, e os pés de Nossa Senhora das Dores, fez o Sinal da
Cruz! Com este gesto, nasceu o povoado Timbaúba. Também chamam
Timbaúba dos Mocós! Do outro lado do rio, vivia a gente liberta de Mocós
Velho... Duma feita, a gente de Mocós, de parelha com o povo de Goiana,
marchou para derrubar o Governo de Luiz do Rêgo. Levava foice, enxada e pá –
armas só de plantar. É este o meu lugar.
- O que trago?
72
- Trago violeiros e penitentes, pastoras e cangaceiros, beatas e vaqueiros, cegos
de feira e Capitães de Fandango... São os meus brincantes. Têm o Ontem, a
Madrugada, a Noite e o dia... o Amanhã, Deus dará.
- A que vêm?
- Vêm trazer a fé, a peleja e a justiça, a esperança, a cisma e o bem querer e... a
vergonha, para o homem de opinião!... E como regalo, trazem um cravo
encarnado, uma estrela matutina, um gibão de couro, o canto do galo, uma
peixeira vazada, um aboio cansado, uma cabaça de mel, o gargalhar da seriema
e um carneiro branquinho, para nele se viajar!
- Minha história?
- Sou um mero passageiro da história! história minha, não há! passagens de
estórias, estórias que não fiz, posso lhes contar! Tenho que buscar no fundo da
memória, para melhor me situar! (MARINHO 1980:2-3). [grifo nosso].
O estribilho da “canção do expedicionário” relembra que se aquele indivíduo que
vai à luta tem uma terra, a ela de voltar. No Brasil deixou seu terreiro, sua casa branca e
pequenina que do alto da serra, escuta o sabiá, deixou o luar do sertão, deixou a sua Maria,
Moema, Iracema, Nossa Senhora Aparecida e o Senhor do Bonfim; e com saudades
recorda da linha azul do horizonte, das estrelas prateadas que, dizem, ajoelham-se
deslumbradas, Fazendo o Sinal da Cruz”. E o refrão torna a lembrar que à terra natal
voltará o combatente com o V da vitória: vai voltar como um Ulisses e reencontrará sua
amada, país ou mulher. Mas voltará (embora muitos tenham ficado sob o chão calcinado da
Europa), assim pressupõe a música:
Por mais terras que eu percorra,
Não permite Deus que eu morra
Sem que volte para lá.
Sem que leve por divisa
Esse V que simboliza
A vitória que virá.
Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil.
Você sabe de onde eu venho?
É de uma pátria que eu tenho.
No bojo de meu violão.
Que de viver em meu peito
Foi até tomando jeito
De um enorme coração. (in MARQUES [s.d.]:61)
A estrutura de perguntas e respostas e a descrição do que deixa na pátria, mas
que em memória nele habita, fornecem ao “exilado”, temporariamente, um conjunto de
73
lembranças a serem frequentemente rememoradas, mantendo-as vivas em si, o lugar de sua
origem e o grau de pertencimento a uma coletividade, o que faz deste poema um intertexto
com o discurso de Marinho: ele também se pergunta e responde como na “canção do
expedicionário” e à medida que se pergunta sobre si mesmo, vai respondendo com as
lembranças mais caras, aquelas que o acompanharam e acompanharão até o último dos
seus dias. E, como na “canção”, volta à Timbaúba, seu país, sua terra natal: “Por mais
longe que eu fosse, um dia tinha que voltar! Voltei... e viajando no meu bonde de burros,
atravessei as Portas dos Mocós Velhos, e segui os caminhos da Granja Santa Maria... Tudo
estava lá! - Até a felicidade a família, o piano tocando a Marcha Militar, meus matutos
me querendo bem”. (MARINHO 1980:11).
Quando voltou de Timbaúba, ao Recife, ao Cais da Rua da Aurora, estava “pleno
de rezadeiras, tropeiros, Mestres da Jurema... eram meu sangue, meu gesto, meu pensar!
E por eles, possuído, assumi comigo mesmo, um sagrado compromisso: Mostrá-los ao
povo do Além Serra.” (MARINHO 1980:12).[grifos nossos].
Perpassa o texto, especialmente os trechos acima citados, inúmeras referências a
um universo que pouco se manifestou nas peças de Marinho: o mundo das religiões afro-
brasileiras, particularizando-se dentre elas, o reino dos encantados, da umbanda, do
Catimbó-Jurema.
26
Um universo que se manifestou en passant nos seguintes textos: em
Um sábado em 30 (nas conversas entre os empregados que comentam a prisão de D.
Nazinha espírita por brigar com a mulher do delegado da cidade e que, segundo Sá Nãna,
vivia “fazendo catimbó para Deus e o mundo!”); em Viva o cordão encarnado (Zé Pilintra,
inicialmente, “aproxima-se” de Maria Não Enjeita, uma pastora-cartomante, com ela
estabelecendo um “diálogo” em que a previne do futuro; em seguida, o caminhoneiro
Mané Fozinho volta a Timbaúba à procura de Zefa que se apossara de seu trancelim de
ouro. Amuleto “calçado com Pelintra” e que, por isso, protegia-o); em A Promessa
(Sebastiana faz um “catimbó”, instruída por uma amiga “rezadeira”, para que o marido
possa ter relações sexuais com ela.) e em A estrada (há um falso pai de santo que simula
26
Roberto Motta em seu artigo, quase verbete, “Jurema” confirma seu uso generalizado nos cultos populares
ligados ao Catimbó: “Seus grandes ritos descendem diretamente do toré dos caboclos (expressão que se
conserva) e da mitologia terapêutica do tabaco, esta comum aos indígenas de todo o Hemisfério Ocidental.
Trata-se de ritos simples e baratos, ao alcance de todos os bolsos, mesmo furados. As instalações são
mínimas, a organização eclesiástica é quase nenhuma. Salvo por alguns poucos baluartes da tradição, os pais
e mães-de-santo do Recife, inclusive os ortodoxamente iniciados pelos ritos africanos, trabalham tanto no
Orixá como na Jurema. Mas sem haver mistura entre uma e outra liturgia. o oficiante é que é plurivalente.
Mas a recíproca nem sempre é verdadeira. Nem todo juremeiro consegue o que se considera enorme
privilégio: o feitio regular do Santo, do Orixá senhor da sua cabeça”. ([1976] 1988:268).
74
receber um espírito, chamado Belzebu, e promete trazer riqueza para um ingênuo casal de
matutos, através de “rituais de purificação” e da apropriação de suas economias).
A fala de Luiz Marinho na Academia Pernambucana de Letras, em 1980, foi um
acontecimento cultural, dentro da comunidade acadêmica. Aqui acadêmico, referindo-se a
um núcleo do sistema cultural que tem o discurso oficial como sendo o representante mais
legítimo da oficialidade. Após a posse, elogios! E sempre o elogio ao fato de que ele
tomara suas memórias como elo do que queria comunicar aos seus pares. Memórias que
seriam sua fala acadêmica por excelência:
Dei meus cabelos de criança a São Severino do Ramo, fiz romaria ao Juazeiro.
Tenho devoção com a Lua Nova, não como carne às sextas, durmo no dia de
acordar! Tenho o umbigo enterrado na porteira, por isto, por mais longe que eu
ande, um dia tenho que voltar! Sou afilhado de Carlos Violeiro, que aprendeu
sem se ensinar:
“Mestre Carlos é bom Mestre,
Aprendeu sem se ensinar,
Três dias passou caído,
No tronco do Juremá,
Quando dali se levantou,
Foi pronto para curar!”(1980:2).
Este trecho do discurso, especialmente, dá-se como estratégia de sedução sobre o
auditório (também sobre o leitor), pela poesia que fez ocultar aspectos menos conhecidos
dele mesmo: “Sou afilhado de Carlos Violeiro, que aprendeu sem se ensinar”. Esta frase
tanto pode denotar o caráter intuitivo de sua produção e ele a enfatiza no final de sua
fala, dizendo-se um homem “quase inculto” -, como pode estar a revelar aspectos dele
mesmo de que pouco ou nada se sabia, ou que ser “afilhado de Mestre Carlos” é apenas
uma ficção de si mesmo, logo uma construção poética mas também estética e ideológica
-, que tem o fito de encantar o auditório, sem se mostrar abertamente como um
“juremeiro”, um Filho da Jurema.
Aqui chegamos a uma encruzilhada: Luiz Marinho como afilhado de Mestre Carlos
ou poeta do Vajucá. E para que tenhamos mais claro o significado da expressão ser
“afilhado de Mestre Carlos” e dos “Mestres da Jurema”, elucidemos o que vem a ser este
ritual e seus mestres, dentre eles Mestre Carlos e Zé Pilintra.
A jurema é uma árvore da família das leguminosas, comum no agreste e na caatinga
do Nordeste. Da casca de seu tronco e das suas raízes fabrica-se uma bebida mágica,
sagrada, que alimenta os “encantados do outro mundo”. Estes encantados são caboclos,
mestres e outras entidades “concebidos como espíritos de homens e mulheres que
75
morreram ou então passaram diretamente deste mundo para um mundo mítico, invisível,
sem ter conhecido a experiência de morrer: diz-se que eles se encantaram” (PRANDI
2004:7). No universo dos encantados, a umbanda é o culto mais conhecido. Mas existem
muitas outras manifestações religiosas como o tambor-de-mina, do Maranhão, que convive
com este mundo mágico, mítico e sagrado. Em muitas destas manifestações existe a
presença das religiões indígenas, sendo o catimbó ou jurema muito comum no litoral e
interior do Nordeste -, onde se mesclam tradições africanas e afro-brasileiras, embora “seja
pacífico que tenha origem indígena” (ASSUNÇÃO 2004:182). Mas o catolicismo também
se faz presente num sincretismo que lhe é peculiar.
Os “juremeiros” acreditam que a bebida feita a partir da jurema possibilite aos seus
fiéis entrarem em contato com os seres que se encantaram. Afirmar que “cada um tem sua
jurema” significa que a jurema é um culto que se dá sem padronização dos seus
praticantes. Dentro do complexo mágico-religioso da jurema envolve-se “a ingestão da
bebida feita com partes da jurema, o uso ritual do tabaco, o transe de possessão por seres
encantados, além da crença em um mundo espiritual onde as entidades residem”.
(BRANDÃO; RIOS 2004:162). A reunião que permite a entrada no mundo dos encantados
da jurema é um convite a que os do “outro lado” venham “para trabalhar” no lado de cá:
“Para os juremeiros paraibanos e pernambucanos, esse mundo espiritual tem o nome de
Juremá e é composto por aldeias, cidades, reinados. Nesses reinos e cidades residem os
encantados: os mestres e os caboclos”. (BRANDÃO; RIOS 2004:163). Estes mundos do
além, nos catimbós do Nordeste, segundo Luís da Câmara Cascudo (1989-1986), assim se
dividem:
Reinados ou reinos têm por unidade a aldeia. Cada aldeia tem três mestres.
Doze aldeias fazem um estado, com trinta e seis mestres. No estado existem
cidades, serras, florestas. Quantos são os reinos? Sete, segundo uns, ou cinco
noutras notícias. Os cinco reinos são Vajucá, Juremal, Tenema, Urubá e Josafá.
Os sete reinos são Vajucá, Tigre, Canindé, Urubá, Juremal, Fundo do Mar e
Josafá. [...] Os reinos mais conhecidos, povoados pelos mestres (espíritos que
“acostam” para responder consultas) poderosos e curadores são, Vajucá e
Jurema. (s.d: 773).
Na jurema, os afilhados são iniciados no culto pelos juremeiros em mesas onde se
dão as consultas pelo mestre da casa, aquele que “acosta” no celebrante e que passa a ser
chamado de “meu padrinho”. Lembremos-nos de que Luiz Marinho era afilhado de Mestre
76
Carlos, uma das entidades mais conhecidas da Jurema ao lado de Pilintra.
27
A primeira
ocorrência de Mestre Carlos no catimbó nordestino deu-se a partir da cada de 1920 e
aparece em estudos de Câmara Cascudo, Roger Bastide (1898-1974) e Mário de Andrade
(1893-1945), conforme nos informa Luiz Assunção (2004:197). Trata-se de uma entidade
que gostava de beber, de farrear, de jogar, de andar com prostitutas, mulheres “que dão pra
vida”:
Filho de Ignácio de Oliveira, conhecido feiticeiro. O pai tinha desgosto e não o
queria iniciar na feitiçaria. Contam, então, que Mestre Carlos “aprendeu sem se
ensinar”, quando de uma bebedeira caiu num tronco de jurema e morreu após
três dias. Essa bebedeira seria o resultado de práticas rituais do catimbó,
exercidas solitariamente sem iniciação. Mario de Andrade [...] escreve que “um
dia que o pai saiu de casa, Carlos, com 12 anos apenas, penetrou no ‘estado’
(sala onde se realizam as sessões), tirou os objetos imprescindíveis de
invocação e saiu com eles. Foi num mato de juremeiras e, iluminado por uma
presciência maravilhosa, conseguiu abrir uma sessão e invocar um mestre. Logo
‘caiu o santo’, quem sabe o que fez o santo no corpo e no fim, como em geral
sucede, quando o mestre ‘desmaterializou’ outra vez, caiu desacordado. No dia
seguinte, a inquietação principiou. Andaram campeando o menino por toda a
parte e no outro dia seguinte, Ignácio de Oliveira, desesperado, reuniu gente e
fez uma sessão. Quando caiu em transe, que mestre entra no corpo dele? nada
menos que Mestre Carlos, o mestre menino, tirando um canto novo:
Vinde, vinde, ó Flor da Noite,
Reluzindo por todas as mesas.
Rei, ó rei Nãnã...
Mestre Carlos vem trabalhar,
Meia hora de relógio,
Licença queiram me dar.
Mestre Carlos é bom mestre
Que aprendeu sem se ensinar
28
Três dias levou caído
Na raiz do Juremá
Quando ele se levantou
Foi pronto pra trabalhar
Triunfando em todas as mesas,
Na sua mesa real,
Levantou-se e foi curando
Na sua mesa real. (ASSUNÇÃO 2004:197-198)
27
Pilintra, que tem várias versões sobre sua origem enquanto mito, tem “parentesco” com Mestre Carlos
em algumas de suas manifestações: trabalha à direita e à esquerda, é protetor de prostitutas, e gosta de beber.
Sua representação é de um homem vestido de terno de linho branco, chapéu na cabeça, fumando cigarros ou
charutos: é conversador e donjuanesco. Quando em vida, era festeiro, “farrista”, irreverente, jogador de
cartas, e para muitos, quando se “encantou”, tornou-se um “exu”, que toma conta das portas dos cemitérios,
sendo guardião de suas entradas. Gosta de pinga, ervas, frutas, frango, velas. Cf. ALKIMIN (2005);
ASSUNÇÃO (2004).
28
Mário de Andrade recolheu o ponto cantado com esta variação: Qui aprendeu sem s’insiná”. Daí a
escolha do verso para abrir este item. Cf. ASSUNÇÃO (2004:200).
77
Entidade alegre que gosta de brincar, de beber e de rir durante as sessões. Cuida de
casamentos e desoculta segredos; trabalha à direita (para o bem) ou à esquerda (para o
mal); é pelos juremeiros considerado mestre curador. Ao incorporá-lo, o médium fica
transtornado com os olhos estrábicos e os lábios em forma de bico; torna-se conversador,
passa a falar bastante, gesticula, inventa brincadeiras, receita garrafadas e passes: “A
representação iconográfica é feita através de um homem branco, meia idade; a vestimenta é
um paletó de cor azul-claro. Suas oferendas principais; incenso, aguardente, vinho, mel de
uruçu, charuto”. (ASSUNÇÃO 2004:198).
Para Roger Bastide ([1945] 2004), “o rito sustém o mito” e a mitologia do catimbó
“é pobre e incipiente”, seja porque a mitologia indígena esgarçou-se na passagem da
cultura local para a dos brancos, seja porque o catimbó foi estruturado mais como magia
que como religião, sobretudo, por seus elementos serem aos olhos da igreja e da polícia,
temíveis. Constata, então, que a eficácia do catimbó (do qual a jurema é uma de suas
derivações), estando mais próximo da magia, dá-se pelo rito, através da “ação das forças
impessoais, dos poderes misteriosos e vagos”. Trata-se de uma “lógica dos gestos e não
dos conceitos”. ([1945] 2004: 149). Bastide também aponta que o “aprendeu sem se
ensinar”, a gira de mestre Carlos, revela que a iniciação nestes cultos não se de forma
organizada o “que explica a desagregação do catimbó na magia negra e no espiritismo”.
([1945] 2004: 155).
Uma mesa de Catimbó-Jurema pode ser aberta com libações que envolvem fumo,
velas acesas, bebidas, a própria jurema, como adorno ou como bebida. Uma de suas loas
para abrir uma sessão pode ser esta: abre-te mesa / Abre-te ajucá / Abre-te cortina /
Cortina reá!”.
29
No discurso proferido por Luiz Marinho na Academia Pernambucana de
Letras, ele não abriu a sessão solene com uma loa do Juremal. Mas, logo de início, se disse
“afilhado de Mestre Carlos”, o “que aprendeu sem se ensinar”. A gira que Marinho profere
é a mais conhecida, aquela que todo afilhado deve enunciar para sentir-se protegido por
seu padrinho.
O que nos perguntamos é se esta evocação de Marinho faria parte de suas vivências
afetuais, de juremeiro devoto do culto propriamente dito, ou se ali, naquele momento em
que estaria sendo ritualizada sua iniciação à Academia, ele toma este rito de iniciação à
29
Esta é uma das toadas de abertura do catimbó. Veja-se que há referências ao Vajucá, reino ao qual Marinho
se refere e versos que mostram claramente o momento exato em que “a cortina que separa o mundo visível
do invisível se abre, a sessão começa”. Cf. BASTIDE ([1945] 2004:154).
78
Jurema como transfiguração poética da vida de toda aquela gente com quem conviveu.
Gente da qual ouviu histórias e gravou com ternura, o que havia de mais precioso em seu
“linguajar”, em suas “crendices”, em suas “superstições”, que agora eram homenageadas
através dos Mestres da Jurema. Não um rito juremeiro dissimulado, mas apenas a
devolução poética, daquilo que captou de seu povo e que, por sua vez, também servia de
metáfora ao próprio rito de iniciação pelo qual passava. Um rito refletido no outro, a
espelhar também sua mitificação no imaginário do teatro brasileiro sob o viés da poesia
dramática. De qualquer maneira, em nenhum artigo que saiu nos jornais, a que tivemos
acesso, após a posse na Academia, houve menção a estes aspectos que aqui estamos a
presumir, a insinuar. Toda esta dúvida -se pela organização interna de seu discurso, no
qual não apenas evoca Mestre Carlos e os Mestres juremeiros, mas também invoca
disfarçadamente, os poderes mágicos da mata, do lugar de onde vem, mata onde habita o
curupira, a caipora, a guardiã da vida nas florestas, da vida animal, apreciadora de fumo.
Conhecedor de seus segredos, Marinho diz que deixou um “taco de fumo” no oco do pau,
para que ela não “embarace a crina de seu cavalo”, uma maneira de dizer que pagou-lhe
um tributo para que o deixe em paz na sua caminhada. Na sua “trilha, trilhada”. Caipora é
mito tupi-guarani, também se chamando curupira, que tem pés voltados para trás
(calcanhar para diante) e o corpo cheio de pústulas com feiúra descomunal. Vê-se que Luiz
Marinho não temia as dimensões estéticas do “feio” ou do “grotesco”.
30
Mostra-se conhecedor exímio do folclore brasileiro, através das menções que faz a
figuras como a do papa-figo, às histórias do compadre pobre e compadre rico; refere-se até
mesmo, ao Bode-Yôyô, um dos tantos capoeiristas do Recife, contemporâneo de
Nascimento Grande,
31
arquétipo de valentia, que vivera no Recife quando seu pai morava
na capital. Memórias coletivas à maneira de Halbwachs. É provável que Marinho, como
Luiz da Câmara Cascudo, tenha mergulhado diretamente nas reminiscências para escapar
ao Olvido. Suas observações, anotações, fixação de imagens não resultou de “cousas
olhadas para a notação curiosa”, mas de cousas vistas e vividas. Como diria Cascudo
(1971:10): “Não bibliotecas, mas convivência”. (grifos nossos).
Voltando ao lugar onde nasceu (volta mítica às origens), repete que trouxe consigo
os “Mestres de Jurema”, apresentando o compromisso firmado consigo mesmo de mostrar
a todos de “Além Serra”, tudo o que aprendera “sem se ensinar”. Tudo recebeu daquela
gente e nada lhes deu em troca, apenas este compromisso de devolver através de sua
30
Sobre estes temas cf. VASQUES ([1992] 1999:207-228; 283-292)
31
Quanto às referências a Bode-Yôyô e a Nascimento Grande cf. FREYRE ([1959] 1989: XLIII).
79
poética, as crendices, os costumes e, sobretudo, o seu linguajar: “E quando me pus homem
trazia no meu bisaco, um cabedal imenso de locuções de rara beleza: Minha riqueza! Dos 7
aos 17 anos, convivi longamente com os meus irmãos matutos. Me arranchei na sua casa,
bebi da sua água, brinquei do seu brinquedo, rezei de sua reza!... Mas, nada lhes dei!”
(MARINHO 1980:9). Por esta razão que não acreditamos que a intuição de Marinho seja
desorganizada.
algo, no seu discurso, que revela a construção de seu próprio mito pessoal. De
seus ritos recriados a partir de imagens arquetípicas que pertencem à sua cosmogonia. Por
isto que ao referir-se ao mito, Roland Barthes é categórico, afirmando que ele é um valor
sem verdades e sem sanção, tornando-se num álibi, por nada obstruí-lo:
Numa palavra, ou a intenção do mito é obscura para ser eficaz, ou é demasiado
clara para que se acredite nela. Em ambos os casos, onde está a ambigüidade?
[...].
O mito não esconde nada e nada ostenta também: deforma; o mito não é nem
uma mentira nem uma confissão: é uma inflexão. (BARTHES [1957] 1978:
150)
Estas reflexões fecham os volteios da memória da Jurema marinha. Observamos,
com atenção, a ambigüidade de tudo o que aqui se tratou. E assim foi possível tomar o
discurso de posse bem como outros de seus depoimentos -, como uma “inflexão”, “um
desvio”, uma dobra entre “ficção e realidade”, uma correspondência entre “autobiografia e
álibi”. Enfim, um convite a duvidar da veracidade do relato ou tomá-lo como cena de
origem, relato mítico, que justifica seus valores, sua visão de mundo, historicizando a
natureza ou transformando contingência em eternidade.
A relevância maior deste grande relato é que ele se despoja de sua historicidade, ou
como diria Barthes: “Nele, a história evapora-se, transforma-se numa empregada ideal,
prepara, traz, coloca; o patrão chega e ela desaparece silenciosamente: podemos usufruir
desse belo objeto sem nos questionarmos sobre sua origem”. ([1957] 1978:171). Depois de
servidos, fizemos a digestão. Perguntamos ao nosso objeto o lugar de onde veio. Veio das
matas, sabemos.... Isso já reinicia o mito. O rito.
1.2.3.3. Mitológicas III: abrindo-se em muitas saídas
A máscara de matuto confirmada, torna-se aos olhos da imprensa, com o passar do
tempo, máscara de “genialidade”. (VIEIRA SCARPA, 1994). Esta máscara, mais revela
80
que oculta: repetindo a cada nova entrevista, confissão, testemunho como estão amarrados
os fios de sua história de vida, seus mitos de origem, sua experiência íntima do mundo,
esta máscara é recriada pela transfiguração que faz de si mesmo em sua dramaturgia.
Instaura-se uma prática ritual na sua construção memorialística. Sua cosmogonia faz-se,
refazendo. E vão restando, usando da expressão junguiana, arquétipos nítidos de alguma
organização anterior instalada dentro de si, “acostada” nele -, para o recomeço de um
novo ciclo. Ciclo que trata das vivências fundamentais que seriam comuns a todos os
viventes, repetidas desde tempos imemoriais, invariavelmente. Daí, o culto à intuição e à
praticidade com intenção diversa de tornar-se através do discurso sedutor sobre si mesmo,
um exemplo, um modelo a ser seguido. No entanto, sua mitologia pessoal, por mais que
tente desvencilhar-se dos protótipos imóveis do universo burguês, este continua a espreitá-
lo e ele continua a enfrentá-lo, não desejando eternizar-se numa imagem “datada”
construída como se fora para sempre. Mitologia que se abre em muitas saídas; trilhas,
trilhadas refazendo-se; um universo dinâmico em transformação, como pode-se constatar
pela diversidade de peças que escreveu, pelas temáticas que abordou, pelas formas que
burilou, mesmo quando se tratava do gênero cômico.
É um teatro que, como espelho, vai reduplicando as estruturas e os temas de sua
própria dramática. Não é da leitura de cada peça, individualmente, que se pode inferir que
esta seja sua principal característica (embora em algumas delas se possa encontrá-la),
porque, na maioria dos casos, as peças prendem-se ao referente - ao “efeito de real”-, mas
vista de modo tout court, surpreendem aos seus leitores-espectadores quando lidas/vistas
no seu conjunto. Não é que as peças marinhas sejam auto-referenciadas, mas elas remetem-
se umas as outras (veja-se o caso, por exemplo, de Um sábado em 30 e Viva o cordão
encarnado e de A afilhada de Nossa Senhora da Conceição e A valsa do diabo), e assim, o
reflexo acaba por desempenhar um papel de estruturação desta ficção, desta memória
ficcionalizada. A enunciação destes relatos remete à sua própria origem. Daí, as peças sem
intenção deliberada, funcionarem de forma “malandra”, ambiguamente, como “escrituras”
produtivas que se tornam metáforas delas mesmas.
Marinho soube redimensionar a percepção de seus personagens e de seu universo
social, além de imprimir à comicidade uma inevitável dramaticidade. Compreensão dos
limites que a vida nos impõe, numa convulsão de sentimentos extremamente ambíguos que
nos levam como aos personagens de Viva o cordão encarnado, a uma corrosão das
lágrimas, através da sobriedade nem tão inocente do riso. “Comédia séria”, diremos. Peça
que espelha a essência mesma do teatro, como metáfora de sua grandeza e pequenez.
81
Ao elogiar os diálogos – por seu colorido pitoresco -, de Um sábado em 30, quando
da temporada da peça no Rio de Janeiro, em 1976, Yan Michalski supõe que “Luiz
Marinho parece ter repetido aqui, em adaptação brasileira, a experiência do dramaturgo
irlandês J. M. Synge, que recolhia na cozinha da sua casa o linguajar falado pelo povo, e o
transplantava para o palco, revelando a extraordinária dose de poesia contida na
espontânea e autêntica fala popular”. (MICHALSKI 1976: 2). A referência a John
Millington Synge (1871-1909) é muito feliz não somente por refletir sua experiência à de
Marinho, com seu ouvido atento ao que se dizia na cozinha de seus lares, mas notadamente
quando sabemos de outros aspectos nos quais podemos espelhá-los: o gênero sério, no
sentido francês, seria um dos pontos de contato. Synge vai concluir, pensando sobre o
teatro, que o drama é sério, “não na medida em que trata de problemas sérios em si
mesmo, mas na medida em que proporciona a substância, difícil de definir, da qual se
alimenta nossa imaginação”. (apud WILLIAMS [1968] 1975:140). Mas outro aspecto
que está em sintonia com Marinho: é a questão que ao teatro não deve faltar alegria: “É
necessário que na cena haja realidade e alegria, e esta tem sido a causa do fracasso do
teatro intelectual moderno: as pessoas se entendiam com a falsa alegria da comédia
musical que se oferece em lugar da alegria autêntica”. (apud WILLIAMS [1968] 1975:
150). Também a temática de algumas de suas peças ecoa em Marinho, aclimatando-se ao
Nordeste e às situações em que, dir-se-iam, foram recriadas como a da peça The shadow of
the Glen (A sombra do desfiladeiro), que se inicia com o velório de um velho homem que
se supõe morto, situação encenante do personagem para surpreender a jovem esposa com
seu amante. (SYNGE [1903] 1971). A incelença, de Marinho, tem enredo espelhar, mas a
simulação de morte do marido não é consciente, tratando-se de uma crise de catalepsia, que
faz todo o seu entorno desagregar-se, por causa do seu caráter de homem infiel e pouco
cumpridor de seus deveres. Se n’A sombra do desfiladeiro, por certo instante um
personagem estranho aquele universo começa a cantar De profundis, pelo sufrágio da alma
do falso defunto, em A incelença, são as carpideiras que velam e cantam para o “morto”.
Novas correspondências, também não apontadas no momento de sua primeira encenação.
Para Williams, a peça de Synge é uma “comédia naturalista”, uma farsa que adquire
extraordinária dimensão por seu jogo verbal: “O importante é a relação entre a linguagem e
a ação”, conclui. (WILLIAMS [1968] 1975: 155). Neles, a “linguagem contém o mesmo
gênero da mensagem”. Portanto, uma simples menção feita por Michalski ao eco de Synge
82
em Um sábado em 30, possibilitou-nos estabelecer um diálogo destes dois dramaturgos
que pareciam tão distantes.
32
Na obra aberta de Marinho, poética teatral composta como se fossem da mesma
fatura das mesmas vinte palavras cabralinas, Luiz Marinho não temeu apostar na tradição
de sua dramática, na estrutura tradicional de seus “versos”; muito pelo contrário, levou-os
até seus limites, numa fidelidade a si mesmo que perseguia, em sintonia com seu avesso:
despedia-se de seu teatro na medida em que nasciam e morriam, vida aberta em novas
saídas, em ritos de despedida como os que agora se iniciam, neste estudo.
Luiz Marinho “encantou-se” no dia 3 de fevereiro de 2002. Era o domingo que
antecedia o do carnaval. Como no poema de Carlos Drummond de Andrade, dá-se um
“Nascer de novo”: Não sou eu, sou o Outro / que em mim procurava seu destino. / Em
outro alguém estou nascendo. / A minha festa, / o meu nascer poreja a cada instante / em
cada gesto meu se reduz / a ser retrato, / espelho, / semelhança / de gesto alheio aberto em
rosa”. (ANDRADE [1980] 2003:1199).
Aqui, buscaremos seu renascer permanente, sua alegria a perpetrar seu destino e o
desvencilhar-se dos retratos e espelhos enganadores, que projetam falsas imagens de seus
gestos, sempre abertos ao NOVO, ao devir de um novo homem, de uma nova sociedade.
32
Quando da montagem de Luiz Mendonça, em 1993, de Um sábado em 30, ele apontou no programa da
peça, que à época em que a leu, verificou um academicismo do qual queria distância. Trinta e sete anos
depois refaz seu pensamento, amplia seu olhar: “Marinho me deu a peça pra ler em 1962, eu era o crítico da
Última Hora do Recife e achei a peça acadêmica”. Pergunta-se o que seria então hoje, uma peça acadêmica e
responde: “O que acontece é que ela é uma peça de qualidade em qualquer parte do mundo. Se Sábado,
domingo e segunda, de Eduardo de Filippo é boa e faz sucesso no Brasil, porque UM SÁBADO EM 30 não
é?” ([LUIZ MENDONÇA] 1993:s.p.). E a crítica, pegou a “deixa” do encenador e a confirmou, por mais
restrições que tenha feito ao texto e à montagem: Um bado em 30, mesmo com a sua localização no
interior de Pernambuco e numa época bem definida (no período da Revolução de 30), é mais uma comédia de
costumes do que uma peça regionalista. Os diálogos que reproduzem a fala pernambucana são apenas o
detalhe que reafirma a origem e o cenário da peça. Na sua concepção, seria tão universal quanto, por
exemplo, o regionalismo napolitano de Eduardo de Filippo”. (LUIZ, 1993:s.p.)
2
Réquiem à infância
Só o passado verdadeiramente nos pertence.
O presente... O presente não existe:
Le moment où je parle est déjà loin de moi.
O futuro diz o povo que a Deus pertence.
A Deus... Ora, adeus!
Manuel Bandeira, Passado, presente e futuro. ([1963]1993:242)
Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado
não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.
Carlos Drummond de Andrade. Ontem. ([1945] 2003:142)
84
2
Réquiem à infância
A criança, na sociedade patriarcal, tem páginas marcantes na obra de Gilberto
Freyre. Seja em Casa grande & senzala, Sobrados e mucambos ou em Ordem e progresso.
São imagens que, na maioria das vezes, revelam a crueldade do sistema social brasileiro,
especialmente no que diz respeito à perversidade aos negros, como nesta passagem:
“Através da submissão do muleque, seu companheiro de brinquedos e expressivamente
chamado leva-pancadas, iniciou-se muitas vezes o menino branco no amor físico”.
(FREYRE [1933] 2000:122). Um leva-pancadas, que vem a desempenhar “as mesmas
funções de paciente do senhor moço que na organização patrícia do Império Romano, o
escravo púbere escolhido para companheiro do menino aristocrata: espécie de vítima, ao
mesmo tempo que camarada de brinquedos, em que se exerciam os premiers élans
génésiques’ do filho-família”. (FREYRE [1933] 2000:122). Este clima despótico que
perpassa os quatro primeiros séculos do Brasil vai aperfeiçoar o mandonismo,
transformando o sadismo “do menino e do adolescente no gosto de mandar dar surra, e
mandar arrancar dente de negro de cana, de mandar brigar na sua presença capoeiras, galos
e canários – tantas vezes manifestado pelo senhor de engenho quando homem feito”.
(FREYRE [1933] 2000:122). Interrelação entre senhores e escravos cheia de distorções e
dicotomias, ainda presentes na sociedade brasileira. Sendo que, hoje, estas crianças da zona
canavieira que, quando escravas ou filhas de ventre livre, eram absorvidas nas casas-
grandes, hoje continuam a trabalhar no canavial, cortando cana, em precárias condições de
sobrevivência. (cf. DOURADO; DABAT; ARAÚJO [1999] 2006).
Luiz Marinho nada disso vivenciou. Nascera em 1926. A escravidão acabara em
1888. E de sua infância tem uma imagem que bem que se coaduna com outras a que Freyre
faz referência, em Sobrados e Mucambos. Nesta obra, Freyre diz que entre crianças e
adultos enormes distâncias. Distâncias tão grandes como a que separa “o ‘forte’ do
‘fraco’, o ‘nobre’, do ‘belo’. Tão grande como a que separa as classes, a dominadora, da
servil às vezes sob a dissimulação de raça ou casta ‘superior’ e ‘inferior’”. (FREYRE
[1936] 1977:67). Nas sociedades patriarcais, a meninice é curta, lembra o Mestre de
Apipucos, logo “quebram-se as asas do anjo”. Dos seis ou aos dez anos, a criança não
passa de um menino travesso, menino-diabo: “Criatura estranha que não comia na mesa
85
nem participava de modo nenhum da conversa de gente grande”. (FREYRE [1936]
1977:68). Mas Marinho não se refere a nenhum tipo de maus-tratos por parte de pai, mãe,
avô, avó, padrinho, madrinha, tios, tias, professor, embora fosse comum na sociedade em
que Marinho viveu “o gosto de judiar também com o menino”: não era muleque negro
que era surrado, também o garoto branco da elite brasileira apanhava do mesmo jeito. Se
Marinho era impedido de participar de conversa de gente grande, ele não expressa
formalmente este veto em suas lembranças. Mas se havia enorme abismo a separar
“adultos” de “crianças”, Marinho tentou driblar essa decalagem e, graças a isto, pode
construir suas reminiscências, tão úteis quando da construção de sua dramaturgia.
Antes de chegar à “idade teológica da razão”, Marinho andava pela cozinha de casa
gosto incomum aos garotos de sua idade, isto ele aponta com o objetivo de escutar a
conversa dos “grandes”, sobretudo dos empregados e da gente do mato que vinham à sua
casa, no sábado, quando acontecia a feira, na cidade. Ninguém conseguia tirá-lo da cozinha
e Um sábado em 30 foi escrita no sentido de evocar estes sábados inesquecíveis, como a
homenagear aquela gente que se foi. Era o mundo dos adultos, pelos olhos da criança
que fora. E esse olhar vai ver outras coisas bem peculiares à infância: uma delas é a
presença do teatro e do circo: “O teatro chegou muito cedo na minha vida, muito antes de
ler qualquer peça. Meus pais gostavam de discutir direção, texto, interpretação, atores”.
(VIEIRA; SCARPA 1994:1). Seu pai comprava ingressos - camarotes para todas as récitas
-, para todos os dez filhos mais uma sobrinha que criava. Havia vários circos que
circulavam pelo interior do país e, muitos deles, eram de circo-teatro, com um repertório
de peças que faziam as delícias daquela gente interiorana. Um deles era o famoso Circo
Nerino, que percorreu o Brasil a partir de 1913 até 1964. No Recife, consta que esteve em
1938; mas no roteiro traçado por Roger Avanzi (1922-), à época um galã, não consta que o
circo tenha ido naquele ano a Timbaúba. Lá, apareceu, por duas vezes, segundo
registros constantes do acervo do próprio circo (AVANZI; TAMAOKI 2004: 128; 194).
Da primeira vez, apresentou-se de 14 de maio a 12 de junho de 1941. Da segunda, de 9 de
junho a 20 de julho de 1948. Quando da primeira temporada do circo na cidade, tinha
Marinho 15 anos, não era tão criança como se supõe pelo seu depoimento. Da segunda,
tinha 24 anos e morava no Recife, podendo ter-se deslocado para Timbaúba, mas sem fonte
que confirme tal suspeição. A memória de Marinho transforma suas vivências de
adolescente em olhar de criança.
O circo fora marcante em sua vida de criança e adolescente isso é verdade e
Marinho reforça esse fato em várias entrevistas, ao ponto de fazê-lo ganhar aspectos
86
mitológicos, tal sua força como cena de origem. Numa entrevista, confessa: “O dono do
circo [Nerino] era amigo do meu pai, por isso todas as vezes que ia à Timbaúba ele
almoçava lá em casa, era uma festa. Eu ficava ouvindo as conversas dos artistas do circo, o
que me deixava feliz. Uma vez, arrumei minha mala para fugir com eles. Eu era fascinado
pelo circo, não fugi com o circo porque me descobriram, o que serviu para eu levar a maior
‘bronca’ do velho”. (ALMEIDA 1977:1). Noutra entrevista, dez anos depois desta,
confessa: “o que me impressionou muito na infância [não fora o teatro de bonecos] foi o
circo, inclusive minha ire eu íamos fugir em um circo.... que o diretor não sabia.
Minha irmã ia ser bailarina e eu, trapezista, na nossa imaginação”. (MÜLLER; HÉLIO;
JOGE NETO 1987:9). E revela que o Roger, personagem que não aparece em Um sábado
em 30, por quem a filha da família de Seu Quincas, Maria de Jesus, se apaixona, de fato
existiu, era mesmo o galã do circo. Ao falar deste fato, Marinho não se como
adolescente que era, mas como criança, e diz: nos meus tempos de infância, em
Timbaúba”. (MÜLLER; HÉLIO; JOGE NETO 1987:9) (grifos nossos). Certa vez, Um
sábado em 30 foi encenado por um grupo de teatro, em um circo, e quando se falou “em
Roger ele estava presente e se emocionou porque não era mais aquele galã que a peça
mostrava. Agora ele se apresentava como palhaço, pois não tinha mais condições de fazer
circo com a beleza natural”. (MÜLLER; HÉLIO; JOGE NETO 1987:10).
Além do circo, outra lembrança marcante de sua infância é de seus primeiros
contatos com a morte. Quando de seu discurso na Academia Pernambucana de Letras, Luiz
Marinho recorda:
Uma tarde, da janela, vi um auto levar, em um caixãozinho azul a minha amiga
Madalena. Não entendi o que se passava. A minha avó com os olhos lacrimados
disse: É um doce anjinho! Vai para os pés de Nossa Senhora! Mas, até hoje, aos
pés de nenhuma Imagem de Nossa Senhora, nenhum anjo se parece com a
minha amiguinha Madalena. Também não entendi, quando a minha avó tomou
jeito macilento de Nossa Senhora das Dores, e ficou em exposição na sua sala.
Foi tudo tão estranho! Não me acudiu o choro... na minha cabecinha
tumultuada, fiquei indagando: Por que minha avó virou Santa?... e ainda hoje,
na Igreja Matriz de Timbaúba, as imagens de Nossa Senhora das Dores e da
minha avó morta, se justapõem confusas... minha avó Santa? Ou aquela Santa é
a minha avó? (MARINHO 1980:3).
Curioso é que o garoto Luiz não tenha ido ao velório de sua amiguinha Madalena.
Viu apenas, pela janela, seu caixãozinho azul ser levado por um automóvel e teve a
constatação, mais tarde, de que àquele momento nada compreendera. A morte tinha o sinal
do mistério. Freyre confirma que às crianças mortas se denominava “anjos” e chega
87
mesmo a contar que, na sociedade patriarcal, em começos dos Oitocentos, em Santa
Catarina, um garoto foi velado entre lírios e círios e depois de suas exéquias, “houve até
danças alegres”. Há uma “espécie de volúpia em torno da morte de criança”, é o que Freyre
ratifica: “Alegria mórbida, desenvolvida para consolo das mães em época de condições
mais anti-higiênicas de vida. Principalmente nas vilas e cidades: as vilas e cidades dos
primeiros séculos coloniais”. (FREYRE [1936] 1977:68). O século XIX ainda não se
findara em Timbaúba, nem em muitos outros lugares.
Madalena era um “anjinho”, porque, na tradição católica, assim são chamados
aqueles que depois de batizados se vão, antes do “uso da razão”: “O termo ‘anjinho’
manifesta, por um lado, a pureza absoluta deste pequeno que se libertou do pecado original
por haver recebido o batismo e assinala, por outro lado, a convicção de que a criança,
devido à sua idade precoce, entrará no Paraíso”. (ACEVES 1999:22). Marinho não chorou
a morte da amiga e confundiu o maceramento do rosto da avó, quando de sua morte, com a
imagem de Nossa Senhora das Dores. Se Madalena não viveu a vida que poderia ter sido e
que não foi, Marinho vai aprender a enterrar seus mortos com sabedoria. Seu trabalho de
luto
33
é luta, é combate com a finitude da qual não se esquiva. Da luta com o luto, sai-se
vencedor. Aqui, não estamos a tratar de seus parentes, amigos e aderentes mortos. Mas do
fenômeno da própria criação que, ao dar-se por concluída, inicia nova era. Esta aparente
ruptura interna nos seus processos criativos não implica uma perda de seu próprio eu, mas
apenas recompõe seu élan vital, encararando através do trabalho de luto, novas
configurações criativas. E de maneira alegre, como convém a quem se supõe acreditar
numa transmigração de almas. Num afilhado de Mestre Carlos.
Neste Réquiem à Infância, Luiz Marinho despede-se de seu mundo de criança,
mundo que viu com seus olhos de menino e de adolescente. Despedidas de sua Timbaúba,
de sua gente amada, a quem tanto ouviu e que, embora todos já se tenham ido, ritualiza sua
volta, num novo ciclo de vida. Em Um sábado em 30, reminiscências declaradas que foram
transfiguradas para as páginas do livro e para o palco. Em Viva o cordão encarnado, seu
olhar volta-se atento para recriar com fidedignidade sua cidade em noites de pastoril: “No
conjunto, Um sábado em 30 e Viva o cordão encarnado formam os pilares da memória
ficcionalizada do autor. Ambos os textos constituem uma espécie de introdução ao livro de
lembranças da infância que Marinho, tantas vezes prometeu e nunca escreveu”. (VIEIRA
33
Sobre este assunto cf. FREUD ([1915] 1996b; [1917] 1996c).
88
2004:129-130) Eis a razão maior sugerida por Anco Márcio Tenório Vieira, de reuni-las
aqui neste rito de despedida:
[...] Viva o cordão encarnado é uma espécie de “segunda parte” ou “o outro
lado” de Um sábado em 30. Esteticamente falando, Viva o cordão encarnado é
o lado regional do regionalismo de Um sábado em 30. Se Um sábado em 30 tem
sua ação desenvolvida numa ante-sala de uma Casa-Grande de Timbaúba, Viva
o cordão encarnado, que se passa nessa mesma cidade, fala de suas ruas em
uma noite de festa. Em uma temos o olhar do dramaturgo sobre a vida social e o
comportamento privados; em outra, vemos Luiz Marinho tratando da vida
daqueles mesmos habitantes no espaço público. Essa ora unidade, ora oposição
entre a casa e a rua, se constituem, se presentificam, através dos personagens de
Zefa e Romeu. Personagens que, em Um sábado em 30, habitam o mesmo teto.
Sendo que aquela, como empregada da casa de Seu Quincas; e este como seu
filho. A moral, os bons costumes e os bitos que regem o cotidiano de uma
casa, não são os mesmos da rua. E é dessa mudança comportamental que trata
Viva o cordão encarnado, levando para a rua os dois citados personagens de
Um sábado em 30. Nesta comédia, vemos Zefa antes de se empregar na casa de
Seu Quincas, recém-chegada a Timbaúba. Porém, há um segundo conflito, aqui,
representado pelo personagem Zefa, a dualidade campo/cidade. O campo
representando o tempo e os valores “petrificados” de épocas imemoriais, a
cidade como o espaço da liberdade, com suas festas, seus pastoris, seus rapazes
bonitos e bem falantes, enfim. Através da personagem de Zefa, Marinho não
homenageia um dos seus heróis (ou heroína) de infância, como faz o elo entre
as duas peças. (VIEIRA 2004:129)
Por isto, tentamos agrupar estas peças neste Réquiem, para sublinhar a ligação
entre aquilo que foi vivido por Marinho e a transfiguração do vivido nestas peças, suas
recriações, suas memórias ficcionalizadas. Do inteligível ao sensível, nossa música vai
adentrando-se e repetindo como no rito católico, em cuja liturgia se faz a prece aos mortos,
logo no seu Introitus: Requiem aeternum dona eis, Domine”. (Dá-lhes o descanso eterno,
Senhor). Nosso Réquiem não tem o Dies Irae Dia da Ira -, onde se concentra a partir do
século XIX, a maior dramaticidade desta composição, que trata do Juízo Final. Estamos
menos para o Requiem de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e o de Luigi Cherubini
(1760-1842) do que para o de Gabriel Fauré (1845-1924), que a crítica musical apelidou de
“canção de ninar da morte”. O compositor eliminou o tradicional Dies Irae e introduziu
“súplicas como Pie Jesu e In Paradisum para melhor transmitir as idéias de libertação e de
confiança da boa acolhida n’um lugar melhor”. (MATTOS 2003). Nosso Réquiem pode
ser lido-ouvido em allegro vivace. Sem tom cerimonioso, sem dramaticidade, sem
teatralidade solene. Apenas com alegria, com humor, com ironia. Afinal, vamos a
Timbaúba, um paraíso perdido e reencontrado por Luiz Marinho. In paradisum deducant
angeli (Que ao paraíso te conduzam os anjos).
89
2.1. Um sábado em 30
Quando da estréia de Um sábado em 30, em 1963
34
, o parecer que Valdemar de
Oliveira dera quando do Concurso do UBE, é transcrito no programa da peça, no qual
enfatiza o que mais lhe chama a atenção no texto:
Perfeitamente integrado no ambiente onde lança os seus personagens, a
linguagem fiel à época e ao meio, o autor realizou obra de mérito, com a
reconstituição do cenário pequeno-burguês de certa região do Nordeste. Não
somente a linguagem impressiona pela sua veracidade: Um Sábado em 30 é rica
em aspectos folclóricos, em flagrantes populares, em fixação de crenças e
superstições da gente sertaneja. A ação é lenta, mas afinal se desenvolve,
enriquecida, aqui e ali, por interessantes observações do ambiente
patriarcal de cidade interiorana de Pernambuco. Original em sua criação, a
peça apresenta, também, tipos bem recortados, através dos quais se afirma o
espírito de fidelidade do autor às suas raízes familiares. [grifos nossos].
Com este parecer, Valdemar de Oliveira consolidava o prestígio da peça e do autor,
confirmando-o ainda mais através de seguidos artigos que antecederam à estréia; quando
da temporada e ao cabo dela. Ou a cada vez que retornava à ribalta. À peça de Luiz
Marinho, Valdemar de Oliveira não se cansa de lhe apontar os méritos mais relevantes: sua
linguagem regional fidedigna, os diálogos repletos de locuções de extremo valor
comunicativo, a inteligência e o rigor com que o autor captou a plasticidade da língua, as
múltiplas cambiantes do linguajar nordestino, qualidades incomuns ao romance e ao teatro
regional. em Marinho diz Valdemar de Oliveira - um enorme talento para extrair da
linguagem do seu povo de Timbaúba, onde viveu sua infância e mocidade, uma espécie de
metal precioso, riqueza imensa, onde garimpou diligentemente, com habilidade, dando
enorme contribuição ao estudo de uma possível genética da “língua brasileira”. Este
material lingüístico que se transformou em matéria nobre nas “peças marinhas” faz com
34
FICHA TÉCNICA: UM BADO EM 30. AUTOR: Luiz Marinho; DIREÇÃO: Valdemar de Oliveira.
ELENCO: Diná Rosa Borges de Oliveira (Sá Nãna); Lêda Jácome Sod (Joana); Reinaldo do Oliveira
(Chico); José Sílvio Custódio (Julião); Sulamita Lira Santos (Leninha); Elaine Soares (Zefa); Ruth
Rosenbaum (Filó); Norma Corrêa de Almeida (D. Mocinha); Antônio Brito (Seu Severiano); Vicentina
Freitas do Amaral (Quitéria); Romildo Halliday (Major Paulino); Nair Brito Filha (Luzia); Carmela Matoso
(Mercês); Tereza Cristina Vieira de Melo (Maria de Jesus); Claúdio Basbaum (Romeu); Luiz Carlos Nunes
Machado (Gustavo); Adelmar de Oliveira (Seu Quincas); José Maria Marques (Vasco); Clandira Hallyday
(Ama). CENÁRIO: Valdemar de Oliveira; SONOPLASTIA: Reinaldo de Oliveira; CONTRA-REGRA:
Cremilda Ebla; MAQUINARIA: Alceu Domingues Esteves e Aluísio Pereira de Santana; PRODUÇÃO:
Teatro de Amadores de Pernambuco; ESTRÉIA: 8 de julho de 1963. LOCAL: Teatro de Santa Isabel.
(TEATRO DE AMADORES DE PERNAMBUCO 1963; programa; CADENGUE 1991:631).
90
que Valdemar de Oliveira situe o autor num patamar distanciado dos outros dramaturgos
do chamado “teatro nordestino”, seus contemporâneos, mesmo que Marinho ainda tenha
um longo caminho a seguir:
Luiz Marinho ainda não dominou a técnica teatral, nem se trata de um
gênio que logo a primeira vista se mostrasse íntimo de tão rebelde atividade
literária. Mas, o instrumento de comunicabilidade com o público, esse ele o
possui e o vem polindo cada vez mais, o que reforça a autenticidade de suas
cenas, de si bem reproduzidas por constituírem velho patrimônio sentimental
do autor. Quem ouve os nossos matutos atentamente, surpreende, em seu
linguajar, momentos deliciosos de construção prosódica e muitos desses se
acham fixados no teatro de Luiz Marinho. E tão surpreendentemente que o
Teatro de Amadores de Pernambuco julgou por bem inserir, no programa da
peça, algumas dessas locuções, pelo menos aquelas, menos conhecidas.
35
Pouca gente sabe, o que significa dizer-se “dona Sinhá deu outra bilôra”, que a
menina “escurece” ao pai isso ou aquilo, que Fulana sabe dizer uns “pés”, que
Julião está “apuis” de matar Seu Quincas ou que tais moças “são passadas na
casca e na gorda”. Daí a busca de explicações em torno de expressões como o
“aquetar o cedém”, “não se passar para...”, “levar gosto”, “especular a vida
alheia” ou “pôr alguém de...”. [...] Luiz Marinho transplantou para as suas
peças, com uma autenticidade incomparável, tudo o que ouviu, em sua velha
Timbaúba, entre os serviçais de sua casa patriarcal. (OLIVEIRA 1963d:6).
[grifos nossos].
Depois de demonstrar seu encantamento com a linguagem das peças marinhas,
Valdemar de Oliveira explica como se deu a concepção de seu espetáculo, todo construído
sob as vistas do autor, que se fez presente aos ensaios. Para Valdemar de Oliveira, Um
sábado em 30 é “comédia de costumes”, comédia de “cunho popular”, flagrada pela
câmara fotográfica de Marinho a partir de suas vivências em sua cidade natal. A partir
deste dado, procurou ser o mais fiel possível aos tipos criados pelo autor, especialmente as
35
EXPRESSÕES POPULARES UTILIZADAS NA PEÇA: “Apuis” na iminência de...; A matutina
estrela d’alva; Abraçar suportar, tolerar alguém; Apalacar aliviar; Aparado (homem) circunciso;
Aquetar o cedém sossegar; Assistir achar-se (em tal lugar), hospedar-se; Barrão porco reprodutor;
Botar corpocrescer, tomar forma de mulher; Caçar procurar; Cangapé pontapé na barriga de perna
de outrem; “Capaz de não ser...” vá ver que é...; Chegado a inclinado a...; Comer vício comer terra;
Consolo chupeta; Cuidar supor; Dar gás dar confiança; Dar uma bilôra desmaiar; Derna desde;
Desadorada aflita; Dizer uns “pés” falar bonito; Doença de menino convulsão; Embarcar morrer,
falecer; Emboaçaencrenca; Encher o ouvido de folhas engazopar, iludir; Entoarmeter na cabeça de
alguém; Esbarrar parar; Escurecer esconder (ao pai, ao padre); Especular saber, bisbilhotar; Eu
estou é... eu me admiro de...; Ferida braba úlcera leishmaniótica; Franzido abespinhado,
agressivo; Incelença canto de velório; é noiteé tarde!; Latomiabarulho; Levar aperreio afligir-
se; Levar gosto agradar-se; Macho de empancar homem de verdade; Marcar supor, atinar; “Menos
a verdade!” isso, não!; nada de mentiras!; Moças passadas na casca e na gorda semi-virgens; o se
passar para... não admitir, não aceitar; Nicas bobagens, insignificâncias; Pelejar trabalhar; Pilantra
pelintra, almofadinha; Por alguém de... acusar de...; acusador de; Pra trásanteriormente; Protocolar
adiar, protelar. Sentir remorso sentir aperto no coração; Sobrosso susto, sobressalto; Ter talento
prova de capacidade viril; Teréns os “possuídos” de alguém; Tomar tenência compreender, aquietar-
se, precaver-se; Tornar voltar a si; Vigie olhe, passe-se, arranje-me; Zoró doida por... (Cf. TEATRO
DE AMADORES DE PERNAMBUCO programas: 1963; 1976; 1988).
91
suas vincadas humanidades. O que valorizou era o que havia de rico na peça: sua
linguagem colorida, pitoresca, justa e fiel. A isto, acresceu músicas, como as jornadas de
pastoril, canções da época, serenatas, emboladas, a lembrar a montagem que o próprio
Teatro de Amadores realizara em 1958, de Onde canta o sabiá, de Gastão Tojeiro, sob a
direção de Hermilo Borba Filho. Avisa, de antemão, que se a tonalidade cômica entre as
duas montagens é a mesma, não o são os tipos representados, agora bem mais próximos a
nós: gente de puro quilate nordestino, ganhando por isto um tom de irrecusável
autenticidade. O autor a tudo presenciou e aprovou, não só estas como outras liberdades da
mise en scène. O resultado esperado é que a peça tenha sido valorizada “grandemente sem
sacrifício das linhas mestras do enredo e dos tipos criados não por sua imaginação, mas, se
assim me posso exprimir [diz Oliveira], pela arte em fotografar, teatralmente, ambientes e
figuras humanas”. (OLIVEIRA 1963e:6). Antecipando-se a possíveis críticas negativas à
montagem e mesmo à própria peça, Valdemar de Oliveira explica como procurou
informações sobre a legitimidade de alguns pormenores da encenação, para ele, muito
importantes:
Recorri a uma fonte idônea entre outras tantas: Zilde Maranhão, senhor de
engenho daquelas bandas de Timbaúba de Aliança, para ser mais claro. A
expressão “muié macho” não é do tempo da marchinha surgida no Rio, na
década de 30; nem vem da bravura das mulheres que combateram ao lado de
José Pereira. A expressão é velha de muitos anos e Zilde como tantos outros, a
empregava para designar as mulheres “de eito”, capazes como o homem mais
forte, de uma boa “limpa” nos canaviais. Botas de montaria se usavam, sem
dúvida, mas, não eram obrigatórias no trabalho diário. O contrário se dava em
viagens para casamentos, batizados, festas em geral, para evitar que o suor do
cavalo comunicasse ao tecido da calça. No curso da revolução de 30 (e depois
dela) muita perneira de soldado ficou fazendo parte do “figurino” dos que
montavam cavalo, no interior.
Luiz Marinho insistiu nos cachos de Zefa, a pastora. Combinavam com uma
outra “Zefa” do seu tempo. Fui cascavilhar meus papéis, encontrei o conhecido
desenho de Lula [Cardoso Aires: 1910-1987] um palanque, pastoras, o Velho,
assistentes... Caráter fixado pelo pintor: cachos em todas as pastoras, mesmo as
de cabelo ruim.
De uma velha Revista da Semana arranquei uma gina fotográfica e me fui
com ela para o Esquadrão de Cavalaria, para obter peças indispensáveis ao
guarda-roupa da peça. E encontrei, por parte do seu Comandante, a melhor
boa vontade a mesma que me dispensaria, mais tarde, o coronel Gumercindo
Freire, mandando-me perneiras “do tempo de 30”.
Tudo isso, a preocupação de fidelidade à época e aos costumes e a
colaboração que por toda a parte o TAP encontrou, dá a boa medida do que está
sendo o espetáculo ora em cena, no Santa Isabel. (OLIVEIRA 1963f:6). (grifos
nossos).
92
Se a encenação buscou fidelidade quase naturalista para a montagem, também não
descuidou das músicas que acompanham o espetáculo e que faziam também um diálogo
com a montagem de Onde canta o sabiá, que a usava profusamente. Mas entre uma e outra
montagem há diferenças que Valdemar de Oliveira faz questão de ressaltar: em Onde canta
o sabiá... a música entrava livremente, com orquestra à vista do público, quase como se se
tratasse de uma burleta, bem mais próxima ao teatro musicado, com o diretor livre para
criar e recriar quantos solos ou duetos pretendesse, sem que houvesse ligação direta com a
ação dramática propriamente dita:
Em Um sábado em 30, as coisas se passam diferentemente. Os trechos musicais
independem de orquestra; acompanhamentos são feitos por instrumentos que
existem em cena; emboladas se sustentam à base de percussão, porque surgem,
naturalmente, de uma situação teatral. Carmela Matoso canta na presença de um
violão; Reinaldo faz sua serenata, fora, acompanhado por outro; a pastora e o
Velho como que reproduzem na intimidade, jornadas do pastoril; a velha
Nãna transforma o Ai Estácio!, num acalanto; a Vassourinha é entoada num
momento de entusiasmo cívico, quando fora, se ouvem dobrados e vivas. A
música, em Um sábado em 30, está, pois, visceralmente ligada à ação dramática
e não se vale do artifício da orquestra. (OLIVEIRA 1963g:6).
No entanto, a montagem da peça foi bastante criticada pela imprensa. Primeiro, por
supor que Valdemar de Oliveira fizera uma rearrumação na peça mesma; depois pelo tom,
por vezes denominado de “chanchada”, que acentuava ainda mais seu caráter de
“hilaridade”. O encenador lançou mão de mecanismos cômicos, para melhor enlaçar o
público, como se a propiciar ao receptor uma imediaticidade na resposta à peça, sobretudo
pelo riso. Esta maneira de conduzir o espetáculo era, aos olhos da crítica, uma concessão
ao “gosto médio” do público e, desta forma, sem maiores questionamentos e criticidades.
Talvez esta concessão tenha diluído a Épica que Marinho diz ter em sua obra. Para Joel
Pontes, por exemplo, a montagem levou Um bado em 30 ao âmbito da Lírica, embora
através da Dramática. De fato, Marinho pretendia que sua reconstituição daquela sociedade
fosse ÉPICA. Ele mesmo, respondendo à pergunta se havia feito uma reconstituição épica
ou burlesca “do pessoal do mato”, daquela gente que vivia na cozinha”, não titubeia e
responde enfaticamente: “ÉPICA. Nunca burlesca, de maneira nenhuma”. (MÜLLER;
HÉLIO; JORGE NETO 1987:9). Talvez por isto, tenha Tenório Vieira chegado à
conclusão de que o teor político e social do texto de Marinho houvesse se esgarçado na
encenação, a partir de sua releitura das críticas feitas à montagem:
93
Toda tensão de classe presente em Um sábado em 30 (por mais sutil que seja a
tensão), de crítica àquela sociedade que ali está representada, se diluía, nas
mãos de Valdemar de Oliveira, numa comédia de costumes, em que apenas os
aspectos pitorescos dos fatos são sublinhados. Sublinhados tanto pela
dinamização da ação que, no texto, têm um ritmo mais lento, quanto pela
interpretação excessiva dos atores. Tanto nos momentos de dor quanto os de
alegria terminam por se diluir no pitoresco, no humor. Pobres e ricos, patrões e
empregados, brancos e negros reconhecem o lugar que a sociedade lhes
destinou, sem questionamentos. Tudo está assentado, todos estão conformados
com suas vidas, nada obstante a peça ter como pano de fundo uma revolução
que, como sabemos, modificaria a face do Brasil, seria definidora para a
construção do Brasil moderno. (VIEIRA 2004:100-101).
Um dos mais freqüentes elogios à peça é o que diz respeito à sua linguagem, como
vimos em Valdemar de Oliveira. Para Mauro Mota, as peças marinhas são um reflexo dos
costumes e do “idioma” de uma região, chegando mesmo a perguntar-se: “Que
especialista, até hoje, deu-se, mais do que Luiz Marinho, ao entendimento e à valorização
da sociologia da linguagem da comunidade canavieira pernambucana?(MOTA 1968:13).
Também Joel Pontes elogia o uso e as distinções da linguagem popular, a partir dos
personagens, que para ele, naquele momento, constituía-se em aspecto novo no teatro
brasileiro:
O grande número de personagens, visto sob o aspecto da linguagem, tem isto de
excepcional, de novo mesmo no teatro brasileiro: reúne as falas rurais, rurbanas
e urbanas sem passar do limite geográfico e social em que se movem os
personagens. Rural é a linguagem de Luzia, vinda para a feira, de um mato
menos penetrado pela Civilização; rurbana, a de Nãna, Chico, Julião, etc.; e
urbana, em duas feições, as de Zefa e Joana (empregadas domésticas) e as
estudantes Mercês e Jesus. ”(PONTES 1963b:3).
Joel Pontes é um dos poucos que faz questionamentos de ordem estética e
ideológica a Um sábado em 30. Para ele, se os rapazes estão sendo caçados para
integrarem as fileiras da Revolução de 30, pergunta-se o porquê daqueles que se encontram
em cena, ou seja, na peça. Pontes afirma que Marinho deveria ter estado atento a isto, não
apenas para que a verossimilhança se efetivasse com mais força, como para acentuar
também as motivações psicológicas dos personagens. E constata que, sob o prisma da
recordação, essa pequena sociedade que se apresenta em Um sábado em 30 não padece de
críticas pois, para o autor, a peça quer apenas homenagear aquela gente que ia aos sábados
em sua casa. Por isto, comenta:
Essa homenagem, sem o complemento da crítica, deu em aceitação de ordem
social, deu em saudosismo e anuma posição absolutamente indefensável, no
94
caso da criada Filó, seduzida (com grande rapidez) pelo filho-família e voltando
depois sem o menor sobrosso para o noivo do mato. Sua conformidade com
essa ‘fatalidade’, com esse destino que lhe a sociedade patriarcal, arraigada
no sangue (quase atávica) faz que nada exija. ‘Carece não’. Isto, a realidade
social e psicológica do tempo em que a peça se desenrola. Onde, porém, o
comentário do autor, sua posição atual? Onde o aprofundamento no estado
íntimo da criada, para justificar a entrega e logo o retorno ao noivo antigo?
Onde a verdade clara sobre a injustiça, qual o defensor de Filó? Seu Quincas,
que a defende, é o próprio chefe da família patriarcal a considerar o fato sob o
ponto de vista de sua classe. E o ponto de vista do autor? A crítica da comédia
pertence a Nãna, velha quase octogenária que se permite uma liberdade de
expressão perfeitamente configurada no melhor do teatro hispânico. (PONTES
1963b:3).
Note-se que Joel Pontes pergunta com insistência: “qual a posição do autor?”. Era o
tom da intelectualidade de esquerda nos anos anteriores ao golpe militar de 1964. Era o
questionamento especialmente feito por um intelectual comprometido e que tinha uma
nítida percepção do ponto de vista do autor sobre o universo que trabalhara e sobre o qual,
acreditava, deveria posicionar-se. Mas ele mesmo responde que Luiz Marinho fala,
criticamente, através de sua personagem Nãna: é dela, a crítica interna que o autor
enfatiza. Constatamos que não é exatamente assim que se a criticidade da peça. A
configuração crítica do texto dá-se na conjugação dos mais diversos elementos integrantes
da sua própria forma dramática. É desta dramática, através do cômico, como mais adiante
veremos, que a “crítica” da peça irá expor-se por si mesma. Joel Pontes desejaria ver uma
peça que não é a que ele encontra em cena: pretende que seja épica, menos aristotélica e
mais epicizante, na qual, de alguma forma, os personagens se distanciassem daquela
realidade espaço-temporal, para criticá-la.
A peça de Marinho, o próprio autor confirma (referindo-se a toda a sua
dramaturgia), tem “começo, meio e fim”, dentro do que se poderia chamar de uma
Dramática, embora tenha afirmado também que sua visão de Um sábado em 30 seria
épica, como assinalamos. Note-se que ele usa épico em contraponto ao burlesco: isso
deixa claro que não está usando o sentido épico como epopéia, nem como algo fora do
comum, como algo extraordinário, da forma comumente encontrada em dicionários. Ele
usa épico não para enfatizar o amplo quadro que constrói sobre uma sociedade e sobre
as diversas classes sociais que a habitam, inseridas e apresentadas no cotidiano de uma
família patriarcal, mas também pelo tom político que, naquele momento, introjetara a partir
das discussões sobre as questões do popular, do teatro popular, do político e do teatro
político. Sua participação no Teatro Popular de Cultura, do Movimento de Cultura Popular,
“era na qualidade de autor teatral”, mas o grupo se encantou com suas peças, como ele
95
mesmo revela, porque deveriam ter naturalmente “alguma mensagem, uma coisa de
política, e de repente eu também estava com eles”. (BACARRELI 1994:21). “Estar com
eles” significava estar de comum acordo com suas idéias do ponto de vista das mudanças
sociais e políticas que o MCP se propunha; mas a princípio, havia apenas “sincronicidade”
entre as peças marinhas e o MCP. Ele, no grupo, era “autor”, não atuava como “militante”.
Entretanto, desta comunhão, destas afinidades eletivas, afetuais, de se imaginar que as
discussões empreendidas sobre o país e as questões candentes da realidade brasileira
influenciaram seu pensamento, aguçaram sua criticidade, mas sem tornar proselitista ou
óbvio o discurso interno de sua dramaturgia. Ele já tinha seu universo ficcional inteiro
dentro dele, estava fazendo aflorar aos poucos. Afinava seu instrumento. Mas estava tudo
dentro dele mesmo: sua gente, suas lembranças. E tinha consigo uma forma dramática a
que iria se dedicar, diferentemente daquela que muitos desejavam ver. Do ponto de vista
estilístico, não como conformar Um sábado em 30 aos princípios do épico brechtiano,
porque a peça está construída com certa tensão dramática pela progressão contínua da
ação; embora haja pequenas interrupções na ação, a exemplo dos números musicais que se
intercalam em algumas cenas, além de outras vozes narrativas que se incrustam dentro do
texto. Poderíamos dizer com Patrice Pavis que, a despeito de pertencer à forma dramática,
a peça contém “restos de épico”, até porque não existem peças rigorosamente “puras”. O
épico insurge-se, exatamente, contra a peça-bem-feita e contra a catarse (PAVIS
1999:130). Pontes, portanto, poderia estar atento a estes aspectos, mas apenas “cobrou” do
autor uma posição que já estava inscrita no subtexto da peça.
Para o Teatro de Amadores de Pernambuco, ter uma de suas montagens rotulada
como “chanchada” era algo inconcebível, posto que, desde sua fundação, em 1941, batera-
se firmemente contra este tipo de espetáculo. Mas foi como “chanchada” que o colunista
social, José de Souza Alencar, Alex, viu o espetáculo: “Infelizmente a direção do
espetáculo comprometeu a total beleza e importância do mesmo. A peça tem humor, mas o
diretor pretende transformar esse humor em chanchada. Felizmente a peça é de tamanho
valor que conseguiu vencer até mesmo a má direção”. (ALEX 1963:6). Outro crítico,
Adeth Leite, do Diário de Pernambuco, levanta questões semelhantes: o TAP negou a
dramaticidade inerente ao texto, e havia muitos aspectos que poderiam ter vindo ao
primeiro plano: “a angústia e o sofrimento de Dona Mocinha na espera do filho Vasco que
partiu para a ‘revolução’[...]; a desonra de Filó, uma moça ingênua que é tragada pela lábia
do filho do patrão (Romeu); o caritó de Quitéria, buscando por todos os meios abocanhar o
“bicheiro” Severiano e, por fim, as recordações do Major Paulino, cego, ex-combatente da
96
guerra do Paraguai”. (LEITE 1963:3). Percebe Adeth Leite que “o tema escolhido por Luiz
Marinho Falcão é rico em substância e regionalismo no bom sentido”, mas Valdemar de
Oliveira preferiu explorar o histrionismo da peça, desviando-se naturalmente para a
chanchada. (LEITE 1963:3).
Eduardo Guennes, crítico do jornal Última Hora, conferindo que Valdemar de
Oliveira imprimiu uma linha de direção dinâmica à peça de Luiz Marinho, discorda deste
encaminhamento por pressupor que a ação exigiria uma “ação mais lenta”, como o próprio
Valdemar de Oliveira havia se pronunciado no seu parecer dado à peça no Concurso da
UBE: “Realmente a ação é lenta e, por isso, talvez, Valdemar de Oliveira tenha tentado
neutralizar esta deficiência, imprimindo um ritmo mais dinâmico à ação. É justamente
nesta parte que está o equívoco”. (GUENNES 1963c:1). Com o dinamismo da cena, deu-se
um clima de superficialidade à montagem, não refletindo os acontecimentos da Revolução
no comportamento dos personagens, deixando a ação confinada à casa senhorial sem que
os acontecimentos exteriores transparecessem. Embora discordando desta diretriz
encenante, o crítico reconhece que há mérito por ter o diretor atingido os objetivos a que se
propôs.
No entanto, acredita Eduardo Guennes que este dinamismo que Valdemar de
Oliveira imprimiu à peça tenha sido influência da direção de Hermilo Borba Filho quando
da montagem de Onde canta o sabiá
36
, realizado pelo TAP; mas o próprio crítico se
pergunta se seu raciocínio é correto: “Talvez eu esteja errado, mas encontro muita coisa em
comum na linha da direção destas duas peças”. (GUENNES 1963c:1).
Ao autor, o crítico não economiza elogios, inclusive porque se diz acompanhando a
trajetória de sua produção dramatúrgica, vendo nele um nome que i figurar entre os
maiores do teatro brasileiro como acontecera com Ariano Suassuna, com quem estabelece
36
Joel Pontes, anunciando a estréia da peça, escreve a partir dos dados fornecidos pela produção que o
espetáculo contém várias intervenções musicais e faz seu comentário, antevendo e dando a ver suas
preocupações: “Já uma vez o Teatro de Amadores alcançou grande êxito com este tipo de espetáculo, em que
se multiplicam os elementos de atração: texto, pitoresco dos personagens, canto música, dança. Refiro-me a
Onde canta o sabiá, de Gastão Tojeiro. Naquela ocasião, o diretor Hermilo Borba Filho enveredou por uma
linha de farsa tomando inúmeras liberdades com o texto e por isso mesmo alcançando uma originalidade
de tratamento excepcionalmente feliz. Tinha contra si Gastão Tojeiro, naquilo que era o teatro costumeiro de
seu tempo, bem feitinho, com uma intriga ingênua, situações mais que exploradas. A seu favor contava com
o elenco do Teatro de Amadores. Principalmente, acreditava na sua concepção do espetáculo. Essa crença
ampliou-se a todos, inclusive aos que não participando do TAP, confiavam nos resultados artísticos do
empreendimento. O fato é ainda muito recente para que voltemos a exaltá-lo. Apenas, queremos mostrar aos
leitores certos pontos de contato entre Onde canta o sab e Um sábado em 30 no que diz respeito ao
espetáculo. Porque, desta vez, o TAP conta a mais com a experiência anterior e com um texto que, mesmo
sem conhecê-lo arrisco-me a julgar mais interessante do que o anterior. Um texto nosso, o que é de grande
importância, e de um autor que, a julgar pelas obras já estreadas, tem um estilo – coisa que Tojeiro não tinha.
O que pudesse parecer o ‘seu’ estilo, bem sabemos que era comum à maioria dos autores de sua época”.
(PONTES 1963a:3).
97
aproximações especialmente por serem ambos “homens intimamente ligados ao Nordeste,
particularmente às suas cidades natal: Taperoá e Timbaúba. Nestas cidades eles viveram e
aprenderam a sentir a riqueza imensa das coisas nordestinas, do folclore, das estórias, suas
lendas e tradições”. (GUENNES 1963b:s.p). E reforça o quanto a região é marcante para o
autor: “O Nordeste é o grande mundo de Marinho. É o Nordeste que com uma força
maravilhosa, ele transporta para o palco, deslumbrando. O Nordeste com as suas
contradições, sua mentalidade semi-feudal, suas alternações de todas as espécies”.
(GUENNES 1963b:s.p). Enfim, Luiz Marinho, junto a Jorge Andrade (1922-1984),
Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), Ariano Suassuna (1927-) e Augusto Boal (1931-),
são agora os que fazem o teatro brasileiro encontrar “a linha dialética que o torna válido
criticamente”. (GUENNES 1963b:s.p). A palavra de ordem é sempre esta: por um teatro
crítico, dialético. Porém, Luiz Marinho, para Eduardo Guennes, com seu Um sábado em
30, apresentou uma peça de cunho social com forte teor crítico, além de possuir outro
mérito: era obra de maior fôlego que as anteriores, não por ser em três atos, mas porque
sua dimensão social era melhor desenvolvida, embora fosse estruturalmente menos perfeita
que A incelença. Por essa razão, é que não no espetáculo do TAP a “crítica social”
implícita na peça, daí suas discordâncias com o encenador. Em verdade, são mais que
discordâncias: ele acha que o encenador “desvirtuou” a crítica social da peça de Marinho.
E, sem perder a chance de uma invectiva contra a direção do espetáculo, relembra o quanto
Valdemar de Oliveira fora fidedigno na reconstituição do ambiente da peça embora
propositadamente flagre-lhe um deslize na arqueologia da montagem: “Tanto o cenário
como os figurinos procuram ser fiéis. A única coisa que não é da época é uma garrafa
Bacardi, sem rótulo evidentemente, mas que conserva ainda o metal do gargalo. Se faço
esta observação é porque o diretor muita importância aos detalhes por menores que
sejam”. (GUENNES 1963d:1). A este detalhe, Oliveira silencia, talvez por ser de
importância menor; entretanto, não deixa de responder a todos aqueles que imaginaram ver
no palco do Teatro de Santa Isabel, uma chanchada ou um reflexo de Onde canta o sabiá:
Se de alguma coisa pode orgulhar-se o Teatro de Amadores de Pernambuco,
relativamente à montagem e ao desempenho da peça que ora mantém em cartaz
Um sábado em 30, espetáculo de que toda a cidade começa a falar é de ter
sido absolutamente fiel ao texto de Luiz Marinho, nem por um momento
inflectindo sua linha de conduta artística, para cair na chanchada. O TAP nunca
fez, nem jamais fará chanchada (que vem de chancho, porco). Quem nunca viu
alguns dos tipos que se movem em Um sábado em 30, inclusive na época
inscrita no texto nem leu este texto em suas linhas e entrelinhas, não pode dá-los
como transpondo os limites do teatro honestamente realizado. Isnar [de Moura]
98
frisou a propriedade dos personagens da peça e com isso tocou o ponto mais
sensível da representação, aquele que faz de Um sábado em 30 um dos
espetáculos de maior seriedade do TAP – e isso sem embaraço de sua
comicidade (desde que uma coisa e outra não se conflitam). Sério, também, foi
Onde canta o sabiá... e fazia rir. Há, porém, entre as duas peças a distância
que vai de um desenho copiado à realidade e uma caricatura intencional. Gastão
Tojeiro escreveu a sério sua peça e o TAP glosou o ambiente, os personagens, a
situação, pintando-os, ao mesmo tempo, com ridículo e com saudade. Luiz
Marinho a sério escreveu também sua peça – e o TAP não lhe alterou a
fidelidade do flagrante. Sua interpretação faz rir não porque o desenho falseie os
tipos e as situações, mas, porque o texto possui bastante força humorística e a
ação traduz uma realidade que é, por si mesma, cômica. Não foi preciso forçar
nada: Um sábado em 30 vive por si coisa que não acontecia com Onde canta
o sabiá..., que precisou de muito plasma para reviver. Escrita pelos idos de 1922
ou 25, Onde canta o sabiá... é uma peça que foi; escrita em 1962, Um sábado
em 30 é uma peça que é, sem embargo de passar-se sua ação em 1930. Uma
ressuscitou pela caricatura (nem poderia reviver de outro modo); outra possui
elementos atuais da vida e prescinde do traço grosso para afirmar sua evidência
cênica. Os traços que definem o seu caráter por assim dizer fotográfico (A casa
de Bernarda Alba também é fotografia, segundo o próprio García Lorca) são
todos da pena de Luiz Marinho. Não houve descaracterização nenhuma, por
parte do Teatro de Amadores de Pernambuco. Muito pelo contrário; a vigência
cênica de Um sábado em 30 prima, principalmente, pela autenticidade.
(OLIVEIRA 1963j:6).
2.1.1. Um sábado reencontrado: La comédie sérieuse, ao seu modo
A montagem de Um sábado em 30, pelo Teatro de Amadores de Pernambuco, aqui
é trazida à cena por algumas razões: a) apresentar o texto dramático e a representação
como intrinsecamente ligados por complexas relações; b) acentuar os diversos aspectos da
obra de Luiz Marinho que acabaram por se sobressaírem através da fortuna crítica que
receberam; c) sublinhar algumas características de Um sábado em 30, a partir dos
princípios ligados à poética de Aristóteles, a que Marinho pode ser filiado; d) trazer o
ponto de vista do autor através de recomendações para a encenação de suas peças, que nos
fazem associá-lo à teoria do “drama burguês” defendido por Denis Diderot (1713-1784),
no século XVIII, através do gênero sério – genre sérieux -, e dentro dele, a comédia séria –
la comédie sérieuse. Sublinhando também seu diálogo com a Arte poética, de Boileau, do
século XVII, e uma de suas conseqüências, no século XIX: o teatro naturalista.
2.1.1.1. Antecedentes históricos da montagem
No início dos anos 60, precisamente em 21 de maio de 1960, surge, oficialmente, o
Movimento de Cultura Popular (MCP) embora já funcionasse desde fevereiro daquele
99
ano. O MCP - entidade privada sem fins lucrativos, mas intrinsecamente ligada à Prefeitura
do Recife e depois ao Governo estadual nas gestões de Miguel Arraes - pretendia
“promover e incentivar, com a ajuda de particulares e dos poderes públicos, a educação de
crianças e adultos” além de “proporcionar a elevação do nível cultural do povo” e “formar
quadros destinados a interpretar, sistematizar e transmitir os múltiplos aspectos da cultura
popular”. (MOVIMENTO de Cultura Popular 1986:56).
O MCP teve a participação de
grandes nomes da intelectualidade de Pernambuco, a exemplo de Paulo Freire, Anita Paes
Barreto, Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho, Luiz Mendonça, dentre outros. Mas
Suassuna e Borba Filho logo dele se afastaram.
Dentro do MCP, surge então o Teatro de Cultura Popular, que promove uma série
de eventos na cidade: a vinda do Teatro de Arena de São Paulo, que estreou no Teatro de
Santa Isabel, em 1961, Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, além de propiciar
à cidade três oficinas: uma, de dramaturgia, ministrada por Augusto Boal e duas outras, de
interpretação por Nelson Xavier e Milton Gonçalves.
Na área teatral, uma das primeiras iniciativas do MCP foi a criação do I Festival de
Teatro do Recife, em 1961, onde se deu a apresentação de A derradeira ceia, de Luiz
Marinho, sob direção de Luiz Mendonça. No início de 1962, Nelson Xavier, que ficara no
Recife como crítico de teatro do jornal Última Hora, é convidado a dirigir para o MCP
Julgamento em novo sol, texto de cinco autores, incluindo o próprio diretor, mais Augusto
Boal, Hamilton Trevisan, Modesto Carone e Benedito Araújo. Freneticamente, ainda em
1962, o MCP monta A história da formiguinha, de Arnaldo Jabor e A volta do camaleão
alface, de Maria Clara Machado, fechando o ano de 1962 com A incelença.
Naquele momento, pelo menos dois outros grupos contrapunham-se ao MCP: um,
era o Teatro Popular do Nordeste, liderado por Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna e o
outro, o Teatro de Amadores de Pernambuco, (o mais antigo do Estado, fundado em 1941),
sob a liderança de Valdemar de Oliveira que, “ao calor da hora”, montou também Luiz
Marinho. Aqui, devemos estar atentos ao que disse Tenório Vieira: Um sábado em 30 é a
versão do TAP leia-se, Valdemar de Oliveira de qual era o seu entendimento estético-
ideológico de cultura popular”. (VIEIRA 2004:37). Ou seja, um “entendimento”
conservador, sob todos os ângulos.
Logo no início da década, funda-se o TPN, com a participação de Hermilo Borba
Filho, Ariano Suassuna, Capiba, José de Moraes Pinho, Leda Alves, José Carlos
Cavalcanti Borges, Gastão de Holanda, Aldomar Conrado e Alfredo de Oliveira (sendo que
estes três últimos saíram do grupo, por diferentes razões, depois do segundo espetáculo).
100
(PONTES [1966] 1990: 112). O TPN surge em 1960 (mas o Manifesto apareceria em
1961), dizendo-se continuador das propostas defendidas pelo Teatro do Estudante de
Pernambuco que existiu de 1946 a 1953, buscando ser o mais genuinamente brasileiro,
mas sem perder de vista a universalidade; procurando fazer um teatro popular, que não
fosse fácil, nem meramente político e rejeitando a arte gratuita e a arte alistada,
demagógica. A partir destes princípios norteadores, estréia com a peça de Ariano
Suassuna, A pena e a lei; em seguida, encena A mandrágora, de Maquiavel, ambas em
1960. O processo do diabo, espetáculo composto de três peças, de Ariano Suassuna, José
de Moraes Pinho e José Carlos Cavalcanti Borges, em 1961 e A bomba da paz, de Hermilo
Borba Filho, e Município de São Silvestre, de Aristóteles Soares, em 1962.
Por outro lado, o Teatro de Amadores de Pernambuco, dentro do ecletismo que o
caracteriza, leva ao palco Assassinato a domicílio, de Frederick Knott, O tempo e os
Conways, de John Boynton Priestley, em 1960. Em 1961, traz Hermilo Borba Filho para
dirigir À margem da vida, de Tennesse Williams e Graça Melo para montar O pagador de
promessas, de Dias Gomes. Em abril de 1963, com direção de Valter de Oliveira leva à
cena Armadilha para um homem , de Robert Thomas e, finalmente, para encerrar o ano,
estréia Um sábado em 30. Este é apenas um recorte dos anos que antecedem à aparição de
Um sábado em 30, em cena, embora Luiz Marinho tivesse sido levado aos palcos por
duas vezes: com A derradeira ceia e A incelença, e ainda em 1963, o MCP estrearia
Estórias do Mato (incluindo A incelença, que já estreara e A afilhada de Nossa Senhora da
Conceição, que fazia sua première).
Com a montagem de O pagador de promessas, o TAP havia dado um passo
importante para inserir-se num quadro mais à esquerda que a cultura do Brasil de então
vivia. O espetáculo estréia no encerramento do I Festival de Teatro do Recife, num
processo de diálogo, dir-se-ia inesperado, pela distância abissal que separavam o Teatro de
Amadores de Pernambuco do Movimento de Cultura Popular. A recepção foi calorosa e
todos os críticos de alguma forma viram nesta montagem sinais de que o TAP iniciava uma
nova fase de enriquecimento para o próprio teatro. (cf. CADENGUE 1991:287-294).
O caminho estava aberto para Um sábado em 30. Restava pô-la em cena, e logo que
o TAP percebeu que os tempos eram propícios, pôs-se a ensaiá-la. Embora tematicamente
diferente de O pagador de promessas, Marinho estava em sintonia com aqueles novos
tempos, atento às questões político-sociais discutidas abertamente no país, mas sempre
procurando observar sob qual perspectiva os valores humanos de sua gente estavam sendo
considerados. Estes são os precedentes da montagem de Um sábado em 30. Com eles é que
101
estabeleceria diálogo, pois as matrizes dramatúrgicas de Marinho eram muito mais as
encenações que passou a assistir do que as peças lidas ou as teorias formuladas na Europa
do pós-guerra. Portanto, sua dramaturgia estava ligada a cânones mais tradicionais – não só
ela, como boa parcela da dramaturgia brasileira. Da mesma forma que Marinho, muitos
autores estavam distantes das “rupturas” e das “tradições de ruptura”. Para ele, prevaleciam
as regras clássicas, tratadas ao seu modo, cuja base maior, pressupomos, seja a poética, de
Aristóteles, desaguando no genre sérieux, na comédie sérieuse e na tragédie domestique,
de Denis Diderot, como veremos.
2.1.1.2. Novas paráfrases à cena e à crítica
Na imprensa, foram muitos os artigos que analisaram a peça, a montagem, o elenco,
os elementos que compunham o espetáculo. Sinal de respeito, mesmo quando se
apontavam discordâncias quanto ao ponto de vista do encaminhamento dado pela
encenação: não retardara a ação que consideravam lenta, pouca valorização da
dramaticidade da qual a peça estava prenhe. Mas também se fala de “inverossimilhança”
na urdidura do entrecho quando se aponta que rapazes em cena e estes não foram
“caçados” pela Revolução. Questiona-se, também, naqueles tempos de hegemonia cultural
de esquerda, o posicionamento crítico do autor. Marinho poderia ter respondido que os
pressupostos estéticos de sua peça eram aqueles que Aristóteles (384-332 a.C) defendera
quanto ao gênero dramático, seus personagens agiam, não por narrativa, mas mediante
atores. (ARISTÓTELES 1994:110) Sem intermediações, ressalte-se. No entanto, a peça
não estaria destituída de criticidade, porque as partes relacionando-se ao todo e o todo, às
partes, geram um significado maior, que não se reduzem a um discurso explícito, mas que
se dão a ver nas idéias e temas que perpassam o pensamento do autor.
Diante do exposto, faz-se necessário trazer à discussão mesmo que brevemente -,
a teoria dos três gêneros o lírico, o épico e o dramático que estabelece um sistema de
normas que, no evolver da história, hão de perder sua pretensa pureza, pois “pureza em
matéria de literatura não é necessariamente um valor positivo. Ademais, não existe pureza
de gêneros em sentido absoluto”. (ROSENFELD [1965] 2004:16). Mas esta discussão
apenas perpassa nosso estudo, não é razão maior.
37
Enfim, o que acontece no gênero
37
Anatol Rosenfeld em seu Teatro épico aprofunda esta e várias outras questões relativas aos gêneros, pondo
em destaque o “drama rigoroso”, ou “puro”, para chegar ao épico. Em certo trecho de seu livro esclarece: “A
teoria dos neros é complicada pelo fato de os termos ‘lírico’, ‘épicoe ‘dramático’ serem empregados em
102
dramático é que ele acaba por reunir em si mesmo “a objetividade da epopéia com ao
princípio subjetivo da lírica” ([1965] 2004:28), como afirma Rosenfeld ao tratar da poética
de Hegel, que punha a Dramática acima dos outros gêneros. Para o ensaísta teuto-
brasileiro, seria a Dramática ligada à Épica e à Lírica que possibilitaria trazer à tona as
objetividades das ações vivenciadas num texto dramático e as subjetividades, “brotando da
interioridade dos personagens”. (ROSENFELD, [1965] 2004: 28-29).
Um sábado em 30, por mais resíduos épicos que contenha – afinal nenhum gênero é
puro, mesmo quando se pretende “drama rigoroso” -, pertence à Dramática, e dentro dela,
ao gênero cômico. Também a peça não pertencia à Lírica como pensava Joel Pontes.
Embora pudesse dela estar envolta exatamente porque o “eu” que Marinho ficcionalizava
através de seus personagens, vinha através das recordações, de suas lembranças pessoais.
Todavia, o que mais incomodou a crítica foi a ausência de uma maior “seriedade” ao
espetáculo. O texto, dizem, exigia. É verdade que se pode abordá-lo como sendo uma
comédia séria, mas ninguém pensou àquele momento o que viria a ser este tipo de
comédia. Não era simplesmente uma comédia de costumes à Martins Pena nem Valdemar
a transformou numa farsa: como compreender a intrusão de uma serenata numa farsa? Em
que gênero enquadrar uma peça que tem uma “marcha revolucionária” sendo cantada com
alegria, mas sem achincalhe? Embora Marinho apresente, nesta peça, traços da Épica, não
faz um entrecruzamento que esteja fora de sua capacidade dramatúrgica, de seu domínio
teatral, de sua própria carpintaria.
Hoje, o que fica nítido, aos olhos de Tenório Vieira, é que se, até a estréia de Um
sábado em 30, pelo Teatro de Amadores de Pernambuco, a obra de Luiz Marinho era
associada ao Teatro de Cultura Popular, do MCP, a partir daí criou-se “uma censura
ideológica na cena teatral da cidade. Pois, se sua obra era, por parte do TCP, objeto de uma
leitura que poderíamos definir como nacional-popular pelo viés da esquerda, Um sábado
em 30 fora apresentado como um nacional-popular pelo viés da direita”. (VIEIRA
2004:100).
Então, façamos um contraponto à constatação de Tenório Vieira com a de uma
espectadora, mais velha que Marinho e sua conterrânea, à época da estréia: se de tudo fica
um pouco, como diz Drummond, ficou um pouco de tudo deste Um sábado em 30, para
duas acepções diversas. A primeira acepção mais de perto associada à estrutura dos gêneros poderia ser
chamada ‘substantiva’. Para distinguir esta acepção da outra, é útil forçar um pouco a língua e estabelecer
que o gênero lírico coincide com o substantivo ‘A Lírica’, o épico com A Épica’ e o dramático com o
substantivo ‘A Dramática’. [...] Pertencerá à Dramática toda obra dialogada em que atuarem os próprios
personagens sem serem, em geral, apresentados por um narrador”. ROSENFELD ([1965] 2004: 17). Ainda
sobre esta questão cf. SZONDI ([1965] 2001); DAWSON ([1970] 1975); PALLOTTINI (1983).
103
Isnar de Moura. Para a cronista, restou algo importante que a levou a associar o que estava
“sendo apresentado à sua própria experiência prévia” (McLEISH 2000:18), passando a
fruir do espetáculo, por relacioná-lo à sua cognição, às suas relembranças:
... esse Um sábado em 30, de Luiz Marinho e encenado no Santa Isabel pelo
Teatro de Amadores de Pernambuco. Nunca pude apreciar em espetáculo teatral
tal pureza, tamanha fidelidade na reprodução de um linguajar e no
enquadramento de tipos e costumes e modos de uma gente. Talvez por ter sido
da época em que a peça se situa, na minha cidade natal de Timbaúba. E ai está a
força de uma vocação, de um destino. Nasci e me criei ali, dentro de uma escola
primária a que vinham crianças e pais de todas as espécies indo sempre passar
as férias em engenhos da vizinhança, e não guardei nada daquilo, que faz a
riqueza das peças de Luiz Marinho.
Claro que acompanhei cada cena com um sentimento diverso do da platéia. Se
não me senti na casa de dona Mocinha participando da vida de sua família, em
compensação estava dentro do ar, da atmosfera da cidade. A revolução de 30
pôs fim ao desterro voluntário a que a mamãe levou a família, revoltada pela
injustiça do perrepismo que lhe arrebatou a cadeira de professora com 38 anos
de serviços. Foi à possibilidade de volta triunfal ao querido burgo nativo, e
ninguém como eu, talvez haja cantado com mais alegria a marcha da
Vassourinha nas passeatas de vitória da revolução.
Mas a serenata foi o que me tocou comovida e profundamente. O mano Álvaro
que morreu no ano seguinte, era um dos que enchiam as noites de Timbaúba
com a sua poderosa voz de tenor. Aquilo me machucou o coração. Felizmente,
Sá Nãna manteve em cada palavra o pitoresco das cenas e não me deixou sofrer
com a lembrança do irmão morto. (ISNAR 1963:s.p.)
A partir das imagens que revolveram em sua mente, aconteceu algo importante: o
reconhecimento do vivido. O espetáculo lhe possibilitou um conhecimento que reforçou e
ampliou o que as artes devem fazer, a nós e em nós: ampliar “nossa experiência e
consciência humana” e nos tornar mais humanos. (McLEISH, 2000:18). Assim, Isnar
demonstrou-nos, nesta sua rememoração, que a comicidade veio para dar um novo alento a
um outro rito, o de despedida: pois foi a presença de Nãna que a distanciou da emoção
densa em que mergulhara, devolvendo-lhe depois da imagem do irmão morto, a alegria.
Isnar não zombou dos mortos de sobrecasaca. Sentiu a penetrante sensibilidade que as
figuras rebentavam da página-cena e soluçou com elas, voltando à alegria pela vida, pelo
soluço de vida que rebentava daquelas páginas. Também soluça-se de alegria.
2.1.1.3. New old story
Desde a estréia de Um sábado em 30, em 1963, difundiu-se pela crítica a opinião de
que a peça em questão não possuía apenas sua ação circunscrita, cronologicamente, à
104
década de 30, mas que sua própria escritura teatral era urdida à la manière de 1930. Tal
estigma é lançado em 1963, por Joel Pontes que, em sua recepção à montagem do TAP,
afirmou que Um sábado poderia ter sido escrito em 1930 porque seu autor não
“interpretou” os “diversos lances da intriga”. Segundo ele, como Marinho “preferiu o
painel de costumes sobre o fundo do encantamento e rememoração, Um sábado em 30
resultou apenas em lirismo. Não de palavras buscadamente belas ou de ritmo musical
procurado, e sim de situações”. (PONTES 1963d:1). No mesmo ano, Décio de Almeida
Prado fez a seguinte observação:
Um Sábado em 30 inscreve-se [...] na mesma linha de evocação terna e
galhofeira do passado que caracterizou, por exemplo, a recente montagem de
Onde Canta o Sabiá.
38
................................................................................................................................
A peça encenada pelo Teatro de Amadores de Pernambuco devolve-nos não só
um momento característico da vida brasileira como um momento característico
do próprio teatro brasileiro, ou seja, a comédia de costumes de 30 anos atrás,
com os seus tipos marcadamente pitorescos (a solteirona gorda de papelotes e
camisola, a criadinha saliente, os agregados da família) e com as situações
cômicas (namoros e mexericos) que não fazem qualquer cerimônia e vão logo
aos pontos fracos do público. ([1963] 2002:273-274).
Mais de dez anos depois, como eco das primeiras recepções da peça, difundidas por
Pontes e Prado, o crítico Yan Michalski reforça suas opiniões, afirmando que Um sábado
em 30 é “uma comédia de costumes que parece não passar-se em 1930, como também
ter sido escrita na mesma época”. (1976:2).
Essa comparação ao teatro da “Geração Trianon” oferece, não exatamente uma
paternidade a Um sábado em 30, mas o rótulo de “reprodução” de um gênero de teatro já
extinto, circunscrito em seu tempo e espaço. Além disso, faz-nos pressupor que, na sua
fatura, Marinho empregou as mesmas convenções que possibilitaram o sucesso comercial
desse teatro e sua catalogação nos anais da historiografia teatral brasileira. Afirmação que
nos parece desmedida e abusiva se cotejarmos, mesmo que sumariamente, Um sábado em
30 com a dramaturgia desse período. Em primeiro lugar, deve-se levar em consideração
que esse teatro foi produzido com fins exclusivamente comerciais, cuja qualidade de seus
espetáculos era determinada absolutamente pelas cifras da bilheteria. O Teatro Trianon,
onde eram encenadas a maioria dessas comédias, possuía a capacidade para mil lugares e,
por isso, as companhias, cujos primeiros atores detinham popularidade suficiente para
38
Aqui o crítico refere-se à montagem que Hermilo Borba Filho realizou, em outubro de 1963, para a Cia.
Cacilda Becker. (ALMEIDA 1987:102-103).
105
preencher todas as suas poltronas, ocupavam o teatro. Dessa forma, seus autores recorriam
a procedimentos dramatúrgicos que respeitavam os limites do palco, do empresário, mas,
sobretudo, satisfaziam o gosto do público e moldavam-se ao virtuosismo do primeiro ator,
figura central desse teatro e para quem os autores escreviam seus textos. Por isso, estes
dramaturgos produziam sempre a partir da adaptação, síntese e atualização de repertórios
tradicionais de comédias, permanecendo à mercê da “indústria cultural do divertimento
popular na jovem ‘remodelada’ capital da República”. (RABETTI 2005:141). Dessa
maneira, percebe-se a distância que separa um Gastão Tojeiro, por exemplo, de Luiz
Marinho que nunca esteve subserviente às diretrizes do repertório das companhias locais,
mesmo sendo diversas vezes montado pelo TAP. Não era o “estilo dos amadores” que
determinava sua produção, mas os meandros de sua memória que, aos poucos, iriam
erigindo sua mitologia pessoal. Além disso, analisando a estrutura dramatúrgica de Um
sábado em 30, ou seja, o urdimento da intriga, nota-se uma fragmentação de suas diversas
situações dramáticas que, em nada, lembra a carpintaria teatral das peças da “Geração
Trianon”, que existiam sempre em função do primeiro ator, ou seja, estruturavam-se em
torno de um personagem central. Pelo contrário, em Marinho, encontramos esboços de
situações, desenvolvidas sumariamente ou mesmo bruscamente concluídas, sem
concentrarem-se nas peripécias de nenhum personagem específico, mas expondo o painel
de diversas “vivências”, o espírito de uma época e de uma sociedade, onde o que se
poderia destacar seria a presença dos empregados, narradores de suas próprias alegrias e
tristezas, contadores de “causos” e que, através de seu ponto de vista, relatam os
acontecimentos da cidade e comentam o cotidiano dos patrões, além de revelarem,
discretamente, as tensões de classes existentes na relação entre patrões e empregados.
Essa característica da comédia marinha talvez justifique o julgamento feito por Joel
Pontes em que o crítico constatou que a ausência de uma “interpretação” dos “diversos
lances da intriga” resultou no que ele chama de “lirismo de situações”. O que ele queria
dizer com isso? A interpretação que exige de Marinho seria o aprofundamento da intriga,
ou seja, o desenvolvimento da ação dramática? Marinho preferiu sobrevoar o cotidiano de
uma família patriarcal, registrando-o em minidramas e minicomédias, o que poderia
denotar a superficialidade do autor ou apenas remarcar os aspectos pitorescos dos costumes
do matuto, como foi apontado pelos seus diversos críticos. Todavia, é necessário ressaltar
que o que Joel Pontes de lírico em Marinho, nós vislumbramos como sua epicidade,
“restos de épico”, porque seu recorte das situações procura atingir a essência de uma
sociedade e de um povo, não a partir do ponto de vista histórico, inserido numa narrativa,
106
mas a partir da intimidade familiar, nos seus microconflitos, emoldurados pela Dramática,
mesmo que residam fragmentos de epicidade, de narrativas presentes no discurso dos
personagens. Fato que o distancia, consideravelmente, da dramaturgia da “Geração
Trianon”. Concluí-se, portanto, o equívoco do crítico.
Outro elemento que distingue Um sábado em 30 desse teatro é a questão da busca
da brasilidade. Segundo Cláudia Braga, desde o Império até o final da Primeira República,
“um dos ideais mais cultuados por seus artistas e intelectuais foi o da ‘brasilidade’, que se
entendia como a busca de uma expressão puramente nacional nas diversas manifestações
artísticas”. (2003:7). Na Primeira República, a elite urbana ainda procurava identificar-se
com o modus vivendi europeu e, por isso, para demarcar sua distância ao brasileiro comum,
para ela, símbolo do atraso do país, era corriqueiro o uso da língua francesa em situações
diversas, “desde palavras e expressões entremeadas ao português até o ‘requinte’ da
exclusividade do francês nas conversações chics dos salões”. (2003:9). Preciosismo este
que ressaltava sua pseudo-sofisticação à européia. Como reação a este excesso de
estrangeirismos que, obviamente, invadira as principais discussões sociais da época, o
movimento dramatúrgico reagia em defesa da língua portuguesa. Em Quebranto, de
Coelho Neto, estreada no Teatro da Exposição Nacional de 1908, o autor tentou
demonstrar, mesmo que de maneira maniqueísta, “que a degeneração moral da alta
sociedade era diretamente proporcional à sua francofilia lingüística”. (2003:11). Em Um
sábado 30, não existe estrangeirismos tão pouco apologia à língua portuguesa, inclusive,
porque muitos de seus personagens não empregam corretamente o português culto, usando
largamente expressões do linguajar típico do matuto e da fala cotidiana. Característica esta
que diverge da “Geração Trianon” que primava pelo bom uso da norma culta. Nesse
sentido, Marinho aproxima-se muito mais de um Nelson Rodrigues que, dentre as várias
renovações introduzidas no teatro brasileiro, contribuiu para a criação de uma nova
linguagem, abrindo caminho a não poucos dramaturgos”: “Nelson Rodrigues adota uma
linguagem que é o reflexo das conversas do homem comum, com sua gíria, com seus
modismos, com seus defeitos de vocabulário, com suas incorreções gramaticais, com suas
interrupções, enfim com muitas das características da linguagem coloquial”.
(BERRETTINI 1980:160).
A busca da brasilidade reflete-se, também, na dramaturgia desse período através do
enaltecimento do próprio país. Os dramaturgos passam a sentir a necessidade de descrever
o Brasil, seu povo e seus costumes tanto em suas especificidades regionais, quanto em seus
costumes urbanos e suburbanos. Todavia, essa exposição era feita ora enaltecendo a vida
107
rural em contraposição ao cosmopolitismo dos grandes centros urbanos, como se na
primeira residisse a essência de nossa brasilidade; ora na oposição do nacional ao
estrangeiro. Como exemplo desse segundo caso, encontramos na peça Onde canta o sabiá
39
uma família de classe média, suburbana, mergulhada em seu provincianismo, onde mora
o casal Justino e Inácia com suas duas filhas, a prima criada como filha do casal, Fabrino
(genro do casal, casado com a filha mais velha), o primo boa-vida e esportista, a
empregada e o jardineiro. Nesta peça, a filha mais nova, Nair, revolta-se pelo desamor do
amigo de seu cunhado, Elvídio, à sua pátria. Apesar de ser brasileiro, Elvídio morou boa
parte de sua vida na França; por isso seu desapego a tudo que provém do Brasil. No
desenlace, Elvídio, que estava de passagem marcada para voltar à Europa, apaixona-se por
Nair e, conseqüentemente, pela sua pátria, desistindo da viagem. Através do amor, o
personagem descobre o valor de seu país, passando a valorizar a simplicidade da vida no
subúrbio que, na peça de Gastão Tojeiro, constitui o nosso caráter genuinamente nacional.
Triunfa, portanto, o amor e o nacionalismo.
Em 1958, no mesmo ano da montagem de Onde canta o sabiá pelo TAP, Valdemar
de Oliveira publica, pela Universidade Federal da Bahia, uma palestra sua, proferida nesta
mesma instituição, em que o diretor expõe a sua visão do teatro brasileiro. Aqui, extraímos
um trecho dessa palestra, mostrando o que Valdemar pensava desse teatro produzido
durante as três primeiras décadas da República Velha. Opinião que se antecede a muitas
das considerações que Cláudia Braga faria anos depois, no seu livro Em busca da
brasilidade:
O aparecimento, no palco brasileiro, de um grupo de nobres artistas, entre os
quais avulta a figura excepcional de Leopoldo Fróes (mais uma vez o ator
fecundando o autor) fez despertarem, de sua quiescência, gemas adormecidas do
nosso mundo intelectual, logo produzindo fartamente, como os mais
autenticamente nacionais escritores de teatro do Brasil, depois de Martins Pena
e Arthur Azevedo. São eles Gastão Tojeiro, Armando Gonzaga, Viriato Correia,
Oduvaldo Viana, que encarnam, em conjunto com outros poucos, uma fase de
nosso teatro a que poderíamos chamar de nacionalista, porque, focalizando
costumes de sua época, voltam-se para a alma de sua gente e para a alma de
sua terra, embora, via de regra, coincidam em estigmatizar os vícios da
Cidade e em exaltar as virtudes do Campo. Foram eles, nas décadas de 20 a
40, em nosso país, os alimentadores do Moloch do palco. Nutriram-se de boa
seiva nacional, flagrando os tipos mais representativos da sociedade,
principalmente do microcosmo rural ou suburbano, no que lhes parecia
duradouramente ingênuo, mas, logo perdido na efemeridade das coisas.
Leopoldo Fróes, Procópio Ferreira, Jaime Costa, Palmerim Silva, deram vida a
muitas dessas peças, nenhuma delas obra-prima, mas, todas, ou quase todas,
39
Estreada no Teatro Trianon, no Rio de Janeiro, 8 de junho de 1921. Cf. SOUZA (1960b:544).
108
caracterizadas por um conhecimento do métier que parece haver-se perdido, na
cena brasileira. Intrinsecamente, como expressão literária, pouco valiam e
pouco valem ainda. Ficaram, porém, sem confronto, do ponto de vista da
carpintaria teatral e da fidelidade fotográfica, mesmo se consideramos o teatro
mais chegado aos nossos dias, onde impera uma busca incessante de
originalidade e, nem sempre, o conteúdo humano que lhe deveria corresponder.
(OLIVEIRA 1958:46-48). [grifos nossos].
Constata-se, portanto, o pioneirismo e a profundidade de seu conhecimento sobre o
teatro brasileiro. Sobretudo, sua visão crítica. Voltando a Marinho e a seu Um sábado em
30: nesta peça, essas questões inexistem. Seu retorno ao interior de Pernambuco, seu apuro
no resgate do linguajar e dos costumes do matuto não se deve a uma tentativa de
valorização do homem do interior em contraposição ao homem urbano, mas de uma
preocupação de cunho quase etnográfico e sentimental, de preservação de uma cultura
vivida e testemunhada pelo seu autor. Mesmo que possa haver algum posicionamento
ideológico nas suas opções estéticas, o que condiciona, portanto, seu processo criativo são
suas relações afetuais com o passado: com a criança que deixou em Timbaúba e que
reencontra na sua fatura dramática, através da memória, elo de ligação entre a
realidade/passado e o imaginário. Paradoxalmente, o viés para uma real compreensão da
obra marinha em questão nos é dado pelo próprio Décio de Almeida Prado, na mesma
crítica em que afirmou que Um sábado em 30 fora escrito ao modo de 1930:
Eis a verdadeira perspectiva da peça: a vida patriarcal brasileira vista não da
sala de visitas, mas da cozinha, isto é, desvestida de sua suposta solenidade,
mostrada em seus termos reais, como o entrelaçamento sexual entre a casa-
grande e a senzala ou o que restava de uma e de outra mais forte do que
nunca. (PRADO, [1963] 2002:273).
2.1.1.4. Por uma comédia séria
Anco Márcio Tenório Vieira chama a atenção para uma advertência que Luiz
Marinho faz na apresentação de A afilhada de Nossa Senhora da Conceição: “Procure-se
evitar o máximo de exageros; - pés tortos, andar de ‘canso’, boca torta, boca aberta, etc. Os
personagens serão pessoas que, embora às vezes falando errado, falarão fluentemente. Com
raras exceções, não haverá risos em cena. Será uma gente muito sisuda”. (MARINHO
1968:184). (grifo nosso). A partir desta indicação, Tenório Vieira reforça sua reflexão
sobre as peças marinhas: “Essas recomendações poderiam valer para quase todo o restante
da obra. Na verdade, essa preocupação com o reproduzir o falar exato do homem simples
109
da Mata Norte pernambucana, é uma característica da obra de Marinho. Sua preocupação
em contar uma estória de imaginação corre paralela com a do etnólogo da língua”.
(VIEIRA 2004:107). Mais adiante em seu Luiz Marinho: o sábado que não entardece,
Tenório Vieira vai retomar este tema quando trata da montagem de A incelença, realizada
por Luiz Marinho, em 1982, com o Grupo Teatral da Caixa Econômica Federal
(GRUTEC).
Talvez essa tenha sido a encenação mais condizente com a concepção que
Marinho pensou para o seu texto. No folder da peça, lemos que “nesta
montagem, o autor, que também está dirigindo, resolveu enfatizar o lado
místico/lírico existente no texto, dando um andamento lento às marcas, valendo-
se do apoio de um Coral, deixando em segundo plano o “Cômico”,
sobejamente explorado. O coral aludido, regido por Fátima Marinho, era
constituído de cinco sopranos e sete contraltos. Além de dirigir, Marinho, junto
com Dnieper, ficou responsável pelo cenário. Observe-se que ao fazer ressalvas
ao cômico “já sobejamente explorado”, Marinho apenas reitera o que assinalara
em A afilhada de Nossa Senhora da Conceição: os encenadores evitarem o
máximo de exagero. Um ponto a ressaltar, é que tanto a concepção
mística/lírica de Marinho quanto o olhar pelo viés do realismo fantástico da
última encenação de Luiz Mendonça [1972], vão dar um novo enfoque para A
incelença: o de explorar aspectos da obra que vinham sendo desapercebidas
pelos seus encenadores; tirá-la das amarras “ideologizantes” que os anos 60
impuseram. (VIEIRA 2004:126)
“Será uma gente sisuda”: esta expressão soa bastante forte, pois o autor em, pelo
menos, seis peças tem a comicidade como forma, com situações dramáticas as mais
risíveis, umas mais, outras menos. Tomar todas as peças que têm um teor entre o “sério” e
o “risível”, é estar muito próximo do que Denis Diderot (1713-1784) concebeu no século
XVIII: um gênero dramático intermediário, entre a tragédia e a comédia.
O fato de Luiz Marinho ter feito estas declarações, valorizadas especialmente no
estudo de Tenório Vieira, que argutamente as pinçou como princípio de uma possível
poética das peças marinhas, impõe-nos, de imediato, uma verificação, observando sua
procedência e o grau em que se esta sisudez, analisando-a dentro da própria obra,
especialmente em suas seis comédias: Um sábado em 30, Viva o cordão encarnado, A
incelença, A promessa, A estrada e As três graças. Acreditamos que as três primeiras
comédias estão mais em sintonia com o pretendido pelo autor a comédia séria -; que as
três últimas, embora com nuanças que não invalidam o conceito desta sisudez, aqui
tomada como ausência de estereotipia, de caricatura, mesmo quando envereda aqui e
ali, pelo tom farsesco, pelo baixo cômico. O que Marinho quer ressaltar, supomos, é que há
uma psicologia que dá substrato aos seus personagens. Mas tal pensamento estético e
110
ideológico proposto por Marinho em dois momentos (na observação que antecede sua peça
A afilhada de Nossa senhora da Conceição, em 1968, e em seu texto no programa de A
incelença, que dirigiu em 1982) requer uma discussão mais ampla, sobretudo, porque
Tenório Vieira sugere que às indicações do autor deve-se estar atento, quando de novas
produções de seu teatro.
Tentemos uma breve reflexão: provavelmente, a posição de Marinho contra os
clichês a que foram submetidos os tipos nordestinos, levou-o a concluir que tais caricaturas
implicavam num preconceito congênito e contra o qual se insurge por possuir uma
compreensão mais profunda do universo que vivenciou, desagradando-lhe um julgamento
prévio e uma falsa generalização. Quando se posiciona contra estes estereótipos, está
lutando contra a banalidade, contra o lugar-comum, contra o padrão básico que se tornou
praticamente canônico. A caricatura só reforça o estereótipo, acabando por representar
ainda mais em tintas carregadas, os traços grotescos e jocosos dos personagens que são
postos em cena, acentuando seu ridículo; afinal, como diz Houaiss, em teatro a caricatura é
a “representação em que se figuram e se apresentam caracteres e fatos de maneira grotesca
e cômica”. (2004:626). Além de posicionar-se contra o estereótipo e a caricatura, o autor
sugere que sejam personagens sisudos, que possuam “gravidade de porte, seriedade,
circunspeção”, ainda tomando o Houaiss como referência que acrescenta ao verbete
sisudez, por extensão de sentido, o “bom senso, tino, prudência, sensatez”. (2004:626).
Todas estas definições sublinhadas, tendo como primeiro plano as recomendações
de Luiz Marinho, reforçadas por Anco Márcio Tenório Vieira, ressaltam um certo
paradoxo, o “paradoxo da seriedade”, na conceituação de Luiz Felipe Baêta Neves ([1974]
1979). Para este sociólogo e antropólogo, esta ideologia circunscrita ao “comportamento
quotidiano de todos nós” ([1974] 1979:48), embora não impondo regras ou normas, deve
ser observada por ser relevante e pertinente. Por isso mesmo, aqui trouxemos suas
reflexões para dialogarem com o pensamento teatral de Marinho, no qual se encontram
aparentes contradições internas.
O que viria a ser esta ideologia da seriedade, defendida por Baêta Neves? Uma
ideologia que busca a sisudez e a discrição, um certo repertório “nobre”, ou menos
“erudito”, em temas e em substância, para melhor ratificar sua própria existência, através
do “bom-senso” e do “bom-gosto”, que são formas de dominação cultural, sempre
apresentados como “consensuais” na sociedade, esquecendo-se de suas divisões internas
ou suas diferenças:
111
Na realidade, a ideologia da seriedade – como qualquer ideologia – não é
ingênua nem seus efeitos o benéficos a todos. O riso, o cômico, são vistos
como envoltos em inconseqüência, momentaneidade, irrelevância a seriedade
seria o inverso. O “riso não deve ser levado a sério”.... A ideologia que quer
permitir que riamos do que é cômico e que nos esqueçamos dele em seguida
exerce, de fato, uma repressão sobre formas mais ou menos veladas de análise e
crítica social. (NEVES [1974] 1979:49).
Causa-nos surpresa que Marinho tenha receio de que sua comicidade não alcance o
teor de seriedade desejável a uma sociedade onde o “riso não é levado a sério”. Ele quer
que o riso provocado por suas peças, seja capaz de permitir ao espectador, “análise e crítica
social”. (NEVES [1974] 1979:49).
Mas a maneira como se coloca na defensiva da
teatralidade inerente aos recursos cômicos de suas peças é que nos parece estranha, mas
não incompreensível. Vejamos: independentemente dos vários gêneros teatrais que
abraçou, de suas quatorze peças avulta, em pelo menos em seis delas, o cômico, o risível.
Por mais “sério” que ele deseje ser estas comédias. E veremos que elas têm um “tom de
seriedade”, enquanto forma e enquanto tema. Daí nossa busca, mesmo que podendo ser
contraproducente pelo caráter mesmo de classificação denominá-las “comédias sérias”.
Poderíamos supor que A afilhada de Nossa Senhora da Conceição seja uma
comédia, embora seus procedimentos cômicos se ocultem através de enorme sutileza, daí a
“advertência”, compreensível, para que naquela peça não se usasse, dos meios que vinham
sendo empregados na montagem de outros textos seus, também denominados comédias
(inclusive, porque o tema da peça, que ao autor é a mais cara, trate de um tipo de
religiosidade em que não deu vazão à comicidade inerente a outras de suas comédias).
Estaria uma boa razão para chamar a atenção dos encenadores para o teor “sisudo” da
peça. No entanto, mais tarde, montando A incelença, diz que não dará relevância ao
“cômico” da peça, por ter sido “sobejamente explorado”. Não sem razão ele diz isto,
pois A incelença, de fato, tem mais características de uma “comédia séria” que de uma
“farsa”, embora não lhe faltem aspectos farsescos. Desta mistura de gêneros, a
inevitabilidade de uma comédia séria. O que se pode perceber é o que Tenório Vieira
aponta: a necessidade de novas leituras de sua obra, sem deter-se naquilo que se tornou
clichê. Esta é a chave para uma nova compreensão do teatro de Luiz Marinho.
A defesa que Luiz Marinho faz da seriedade na comédia não quer dizer que
confunda “arrogância” com “sisudez” e ausência de “responsabilidade” político-social ante
o que está se pondo em cena. Pelo contrário: ele propõe riso & pensamento indissociáveis,
pois não se pode negar à comédia seu poder corrosivo e libertador. Mas que isto se
112
através de seu “poder heurístico e eficácia crítica”. (NEVES [1974] 1979:50). À primeira
vista, parece que quer instaurar uma antinomia moralista entre a sisudez e o riso, mas
nosso autor bem sabe, e suas peças testemunham, que em suas comédias, mesmo as mais
“risíveis”, um pensamento crítico que desmonta o “bom senso” e o “bom gosto” e não
recalca a comicidade, nem a menospreza como sendo “menor” (senão, teria se
encaminhado para a tragédia, por exemplo, ou para as “peças míticas”, como fez um
Nelson Rodrigues). Marinho, como já ressaltamos, experimentou várias formas dramáticas,
mas em suas comédias, enfatizou a disciplina necessária às suas encenações: fez um
convite indireto a se mergulhar por outras regiões, talvez do subconsciente, ou mesmo
arquetípicas (místico/lírico, por exemplo, como denominou sua montagem de A incelença),
tomando seus personagens como constituídos numa totalidade física e psíquica, contanto
que tal conformação não resulte em clichês, mas que, lembremos-nos, clichês são
procedimentos de produção do cômico, porque resultam do mecânico sobreposto ao vivo,
intuído por Bergson ([1900] 2004).
A eficácia do que se propõe, estamos a supor, pode ser averiguada se tomarmos
as reflexões de Diderot sobre o gênero sério, como uma teoria fantasmal que ronda o
pensamento estético de Luiz Marinho. Logo no início de seu Discurso sobre a poesia
dramática, ele se pergunta: “Se um povo conhecesse um gênero de espetáculo,
prazeroso e alegre, e se lhe fosse proposto outro, sério e comovente, sabes, meu amigo, o
que pensaria ele?Responde, perguntando-se o que os “homens sensatos” de seu tempo
diriam: “‘Para que esse gênero? Não bastassem os males reais que a vida nos causa,
querem ainda nos fazer outros imaginários? Por que admitir a tristeza, até mesmo em
nossas diversões?’. Falariam como pessoas estranhas ao prazer de enternecer e derramar
lágrimas”. (DIDEROT [1758] 2005:37-38).
Este aspecto o prazer do enternecimento - seria o efeito próprio ao gênero sério:
queria distanciar-se das extremidades da tragédia e da comédia clássicas, pois entre os dois
deveria existir um gênero médio, postulado que vinha defendendo desde suas Conversas,
ensaios que se seguiram à publicação de sua peça Le fils naturel. Mudar o hábito destes
espectadores cativos de um gênero era difícil tarefa. Tanto que não tarda a tratar da
comédia séria em sua poesia dramática:
A comédia jocosa que tem por objeto o ridículo e o vício, a comédia séria, que
tem por objeto a virtude e os deveres do homem. A tragédia que teria por objeto
nossas desgraças domésticas e a tragédia que tem por objeto as catástrofes
públicas e as desgraças dos grandes personagens.
113
Mas quem nos pintará com vigor os deveres do homem? Quais serão as
qualidades do poeta a se propor essa tarefa? Que ele seja filósofo, que tenha
mergulhado em si mesmo, vendo desse modo a natureza humana, que instrua
profundamente sobre os estados em que se divide a sociedade, conhecendo-lhes
bem as funções e o peso, os inconvenientes e as vantagens. (DIDEROT [1758]
2005:39-40).
Opondo-se à comédia clássica, focalizada nos caracteres dos personagens, a
comédie sérieuse, põe como requisito à sua existência, a pintura das condições:
Até o momento, na comédia, o caráter tem sido o principal objeto, e a condição
apenas o acessório; é preciso que a condição se torne hoje o principal objeto, e
que o caráter seja apenas o acessório. [...] É a condição, seus deveres, suas
vantagens, suas dificuldades que deve servir de base à obra. A meu ver, esta
fonte é a mais fecunda, mais extensa e mais útil que a dos caracteres. Por menos
carregado que seja o caráter, um espectador pode dizer-se consigo mesmo: não
sou eu. Mas não pode fingir que a condição desempenhada diante dele não seja
a sua; não pode desconhecer seus deveres. É preciso absolutamente que se
aplique ao que ouve. (DIDEROT [1758] 2005:40).
Aqui, acreditamos, chegamos próximos ao que nós pretendemos: mostrar que Luiz
Marinho com as recomendações de que seus personagens fossem “uma gente sisuda”,
estava apenas dizendo: “nada de caracteres”, observem as “condições em que se dão tais
ações”, ou seja, dêem atenção à unidade de ação e de tom, especificamente. Diderot sabe
que objeções a este gênero podem provar que “ele não é de fácil manejo, não pode ser
obra de criança e supõe mais arte, conhecimentos, gravidade e força de espírito do que
geralmente possuem aqueles que se consagram ao teatro”. (DIDEROT [1758] 2005:41). A
tudo isto Marinho observou e embora não tenha postulado uma poética, ela se deu através
de sua própria obra. As pequenas indicações que deu, apenas reforçaram o apelo para que
se promovesse não uma “museificação” de suas peças, mas uma permanente releitura com
profundidade, com conhecimento, com responsabilidade consigo mesmo, com a arte, com
o teatro e com a sociedade. Ou seja, nem Diderot nem Marinho acreditam na pureza dos
gêneros, mas acreditam que o teatro tenha um aspecto moral, nada desprezível. Os
procedimentos cômicos é que devem ser inteligentemente utilizados para que não se perca
o sentido geral da peça, isto sim. E a moral implícita é que Marinho quer mostrar, através
de sua dramaturgia, que determinados indivíduos que não observam com adequação as
normas sob as quais se deve viver. Não se trata de uma “moralidade” ou “moralismo”. Não
“discurso” doutrinário. Luiz Marinho a cada uma de suas figuras, seu pathos ou sua
hybris própria, fazendo com que seus personagens ajam e, agindo, mostrem-se
inesperados, críticos, submissos, revoltados, enganados e enganadores, traiçoeiros e cheios
114
de generosidade, falsa ou verdadeiramente, sob o preço do favor, do fervor, da e fé,
ou da loucura. Em sua historicidade, tudo ganha os contornos da época, de seus modos de
produção artística, a serem revistos a cada nova historicidade em que se situem novas
montagens de suas peças.
Logo, numas peças ganharão relevo a idéia de comédia séria” e noutras ganharão
destaque seu “despudor” em parodiar a própria “comédia séria”, ou seja: teremos comédias
mais sisudas e menos sisuda. Sendo a sisudez uma marca distintiva desta dramaturgia,
estivemos atentos, apontando as características mais significativas das peças que compõem
o universo de nosso trabalho, acreditando que este procedimento se com alternâncias
numas mais, noutras menos -, até mesmo porque a comédia em si não se permite a
monotonia cênica.
No entanto, podemos adiantar que a base de sua forma dramática é aristotélica,
mesmo que esta passe pelo genre sérieux e la comédie sérieuse, de Diderot, chegando à
comédia realista e mesmo à comédia proto-surrealista. Digamos assim que, entre Marinho
e Diderot, distâncias não apenas de ordem histórica, como de ordem estética e ética. A
princípio, não se afastam de determinados princípios do “Iluminismo”, como a defesa da
razão contraposta ao idealismo; o sentido de “moral” entre eles ganha distância: para
Diderot, o teatro é uma escola de virtude que forma o cidadão, que o faz capaz de viver em
harmonia na sociedade; em Marinho, a “bondade” humana é relativizada com as virtudes
que derivam da racionalidade, vistas com o ceticismo inerente à sua história pessoal e aos
condicionantes sociais que vivenciou.
2.1.1.4.1. Por uma poética do natural: digressões hipotéticas
Aqui, pretendemos apontar algumas características da teoria do teatro de Diderot,
explicitamente as concernentes ao genre sérieux, intermediário, estabelecendo, ao final,
conexões com a estética de Luiz Marinho, especialmente no que diz respeito a Um sábado
em 30. Tanto em Diderot, como em Marinho, ratifica-se o gosto pelo “efeito do real”, pelo
que veio a chamar-se de “realismo”. Mas é importante ressaltar que o Movimento
Naturalista, iniciado por Émile Zola (1840-1902), ocorrido na França entre o final do
século XIX e inícios do século XX, ao defender o retorno à natureza e ao homem,
encontra seus antecedentes no Iluminismo, a ponto de Zola afirmar que Diderot defendia
as mesmas idéias que ele (apud CARLSON [1984]1997:269). Estas idéias iriam ser o
esteio do Théâtre Libre, de André Antoine (1858-1940) que, ao adaptar os romances de
115
Zola, vai introduzir na cena uma voz narrativa que perpassará toda a representação: a voz
do autor-romancista Zola que, através das indicações dadas a partir de seus romances
adaptados ao palco, vai suprir os “vazios” da cena com indicações cênicas e cenográficas,
com rubricas, descrições dos personagens, enfim, vai prenunciar o teatro épico de Bertolt
Brecht (1898-1954). No Théâtre Libre, um autor dirige-se aos espectadores por vias
transversais, através do encenador Antoine, que também compunha uma partitura de
gestos, de pantomima, materializando em cena, dando vida à ficção (especialmente nos
primeiros tempos), dos romances de Zola, além de formular no jogo cênico a famosa teoria
da quarta parede, prenunciada por Denis Diderot, em seu Discurso da poesia dramática:
“[...] embora uma obra dramática seja feita para a representação, é preciso, entretanto, que
autor e ator esqueçam o espectador, e que todo o interesse recaia sobre os personagens”.
(DIDEROT [1758] 2005:78).
Preconizada por Denis Diderot, esta teoria foi, posteriormente, no século XIX,
reformulada por Jean Jullien (1854-1919) embora sempre atribuída a Antoine - que
exortava aos atores a representarem como se em casa estivessem, adaptando o papel a eles
próprios, devendo mesmo ignorar a reação da platéia; e para obter tal intento, deviam
considerar a abertura do proscênio como “uma quarta parede, transparente para o público,
opaca para o ator”. (apud CARLSON [1984] 1997:274). Se, para muitos estudiosos, esta
teoria implica na acentuação da ilusão, para Sarrazac, dar “as costas para a platéia é uma
maneira de narrar as relações entre homens e os movéis, os objetos, o cotidiano. O volteio
do corpo fala da vida. As costas contam a história de um corpo socializado”. (SARRAZAC
2004:126). O que Antoine vai propor como estética, para Sarrazac, seria “uma verdadeira
sintaxe de reconstrução do real”, visando a uma continuidade em cena, numa ruptura
visível com um tipo de teatro que lhe antecedeu, no qual o ator vinha até o proscênio, dizia
seu texto e voltava ao fundo do telão pintado, em processo de genuína descontinuidade
cênica. A isto, Antoine respondeu com uma poética do natural, onde a natureza não é
posta em cena, mas em cena é interrogada. (SARRAZAC 2004:126).
Esta estética - a poética do natural - teria nascido com Diderot, no século XVIII,
que se insurgira contra o Classicismo francês que tinha a Natureza como uma idealização e
engessara tanto a dramaturgia quanto a cena, especialmente através da Arte poética ([1674]
1979) de Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711), que defendia uma literatura clássica
codificada e com gêneros divididos estritamente: a tragédia, a comédia e a epopéia.
Para a tragédia, estabelece como princípios: agradar a platéia, despertar o terror e a
compaixão, obedecer às regras (através de concisão e clareza), submissão às três unidades
116
(uma leitura distorcida da poética de Aristóteles, na qual se baseia), submissão ainda à
verossimilhança e às conveniências (bienséances). Não se deve esquecer da pureza das
formas, do bom uso da língua, da correção, do rigor na composição em qualquer obra
criada. Quanto à comédia, o grande princípio a norteá-la é a imitação da natureza, exigindo
verdade na pintura dos caracteres, nas várias fases da vida e nos costumes. Recrimina
Molière que, nas Artimanhas de Scapino, direcionou-se à farsa. As regras da comédia, ele
as indica: deve existir um tom que seja adequado, a necessidade da ão deve ser bem
desenvolvida, tomando Terêncio e a Comédia Nova como modelo; enfim, proíbe-se
qualquer tipo de comicidade grosseira. Não deixa ainda de recomendar bom senso e
moralidade e devem aventurar-se a tal empreitada aqueles que tiverem legítima
vocação. Tais regras, por mais que tenham sido atenuadas no prefácio que escreveu em
1701, tiranizaram gerações de autores que a tomaram, como diria August Strindberg
(1849-1912) no prefácio à Senhorita Júlia (1888), uma Biblium Pauperum. Mesmo assim,
este século de Boileau é o mesmo de Pierre Corneille (1606-1684), Jean Racine (1639-
1699) e Molière (1622-1673), mas nos séculos seguintes, em sua arte poética irá “explodir,
de maneira definitiva, o repúdio à excessiva disciplina, à castradora regularidade estética”
(Cf. BERRETTINI 1979:7-14).
Voltemos a Diderot. O filósofo pretendeu pôr o teatro, como Voltaire (1694-1778),
a serviço da Ilustração: Assim como a tarefa da filosofia era exorcizar a superstição e os
preconceitos, também o teatro deveria esclarecer os homens. Sua missão mais importante:
ensinar a amar a virtude e a odiar o vício”. (MATTOS 2004:101). Para alcançar tal intento,
deveria o teatro ter como atribuição o de ensinar o espectador a distinguir o mal do bem e
aperfeiçoar-se como ser humano; fazendo surgir a necessidade ou a premência de que este
novo teatro transformasse a sensibilidade daqueles que assistem ao espetáculo; deste, deve
ficar uma ilusão duradoura no espectador, porque a capacidade de transformação do teatro
dá-se exatamente por sua capacidade de produzir uma “ilusão de realidade”. Tendo escrito
O filho natural (Le fils naturel), em 1757, acompanhado de três Conversas sobre o filho
natural e O pai de família (Le père de famille), em 1758, seguido do Discurso sobre a
poesia dramática, Diderot construiu uma poderosa e impactante reflexão sobre o teatro,
que culminaria com a publicação de Paradoxo sobre o comediante (DIDEROT [1778?]
1966), quase cinqüenta anos após sua morte, em 1830, que ainda hoje ressoa não como
uma teoria do teatro, mas como uma teoria da sensibilidade.
Interessa-nos, particularmente, o Discurso sobre a poesia dramática, que vai tratar
da comédie sérieuse, embora em várias de suas obras, e mesmo nas Conversas sobre O
117
filho natural, as discussões sobre o teatro em geral, e o gênero sério em particular,
tenham ganhado relevo.
Dividida em 22 capítulos, a obra busca cobrir a totalidade da produção de um texto
dramático, sem deixar de observar as questões relativas ao espetáculo. Dirigindo-se ao Sr.
Grimm (1723-1807), o filósofo-dramaturgo vai tornando-o interlocutor de seu discurso,
cheio de vivacidade e assim, enriquecendo a discussão sobre as técnicas de escritura
dramática:
Diderot atém-se aos princípios clássicos: separação entre os gêneros; unidade de
ação, tempo, lugar; verossimilhança (cujo referente primordial é o verídico e
não o possível [...]; preferência pela trama simples que se inicia logo antes do
clímax; efeito dramático baseado na identificação do espectador com o que vê.
No entanto, entre os gêneros trágico e cômico, Diderot percebe um vazio que
propõe preencher com o gênero sério. A tragédia se ocupa das catástrofes
públicas e das desgraças que sobrevêm aos poderosos e a comédia castiga o
ridículo e o vício, o gênero sério, por sua vez, deve ater-se às virtudes e aos
deveres do âmbito privado, subdividindo-se em tragédia doméstica e comédia
séria, para cobrir todo o espectro de situações no qual se incluem a dor e a
alegria.
Esta idéia de Diderot liga-se tanto a seus estudos de filosofia natural, que
concluem pelo encadeamento de todos os seres, quanto a sua observação da
sociedade contemporânea, em pleno processo de emburguesamento e cujo
sintoma mais palpável é a progressiva privatização da família que fecha-se em
sua intimidade e desenvolve um novo tipo de sensibilidade alheia à ostentação
da vida das cortes.
Quando Diderot propõe o gênero sério, seu objetivo não é apenas colocar em
cena uma larga fatia da realidade até então excluída do teatro; mais importante
do que isto é recuperar a identificação do espectador com o que vê, essencial à
obtenção do efeito dramático. (SAADI 1998:102).
Buscando a universalidade do ser humano, Diderot traz para o centro do drama
sério o tema da família, mas circunscrito ao mundo burguês, que Diderot imagina repleto
de homens de bem:
Ao escrever, sempre se deve ter em vista a virtude e as pessoas virtuosas.
Quando tomo da pena, és tu, meu amigo, que evoco e, quando ajo, és tu que
tenho diante dos olhos. É a Sofia que pretendo agradar. Se me sorris, se lhe
escapa uma grima, se ambos me têm mais afeição, sinto-me recompensado.
(DIDEROT [1758] 2005:43).
Os espectadores deste teatro, unidos pela comoção diante da virtude posta em cena,
transformar-se-iam em homens de bem, que passariam a desejar uma sociedade composta
por seus iguais, na qual todos poderiam viver de forma harmoniosa. Saadi enfatiza que
Diderot observa as inúmeras vantagens proporcionadas pelo gênero sério, especialmente as
118
que concernem aos elementos que caracterizam normalmente a comédia: “na medida em
que o campo da mimese se expande ao interessar-se prioritariamente pela condição social
do protagonista, o assunto será tratado de forma mais verdadeira, os personagens serão
mais variados e originais, as paixões mais enérgicas e o ridículo brotará das situações e não
do exagero de um personagem caricatural”. (SAADI 1998:105). Um teatro numa sociedade
em que a comédia instrua seus cidadãos, quanto aos seus deveres e na qual uma bela
tragédia ensine aos homens a temer as paixões.
Na comédie sérieuse não lugar para os criados, daí sua distância da comédia
clássica, mas dela também estão ausentes os reis e os príncipes, personagens próprios da
tragédia. Aqui, se demarca claramente o que vem a significar a condição social dos que
povoam o drama sério: a burguesia, ou mesmo a nobreza que se dissimula na classe
ascendente, como em O pai de família. A forma da escrita dramática é a prosa,
diferentemente do que prescrevia Boileau; portanto, valoriza a ação e o sentimento, a
naturalidade e a disposição dos atores em cena, assim como sua interpretação. Mas o
gênero sério, para Diderot, é duplamente difícil: “como tragédia, seu objetivo é provocar o
efeito trágico e, como comédia, deve inventar totalmente a trama. Seu trunfo é interessar os
espectadores por situações contemporâneas, tratadas num tom adequado e sem
inverossimilhanças”. (SAADI 1998:108).
Para Diderot, enfim, a comédia séria deve ser escrita tendo sempre em vista “a
virtude e as pessoas virtuosas”. Por isso, “o honesto, o honesto. Ele nos comove de forma
mais íntima e doce que aquilo que provoca o nosso desprezo e nossas risadas”. (DIDEROT
[1758] 2005:45). As comédias sérias não seriam destinadas a suscitar o riso, mas
concebidas para levar o espectador às lágrimas, através de um enternecimento:
O riso era um efeito visado pela comédia clássica. Já o enternecimento da
comédia séria deveria decorrer de exemplos de virtude que obviamente nada
tem a ver com os valores públicos da Antigüidade. Os heróis da nova forma
deveriam ser o juiz, o advogado, o comerciante, o homem de letras, o pai de
família, etc. Não é preciso muito esforço para saber que se trata do burguês
comum que o Século 18 lança no centro da intriga dramática, abrindo um novo
capítulo na história do teatro. Até então, as figuras da burguesia protagonizavam
apenas comédias jocosas como O burguês fidalgo de Molière. (MATTOS
2004:103).
***
119
O que pretendia Luiz Marinho ao sugerir que seus personagens fossem sempre uma
gente sisuda? Imaginamos que, mesmo sem conhecer a comédie sérieuse, de Diderot, este
gênero acaba por fazer confluir as tendências estilísticas que caracterizam sua obra. Não
que não saiba acerca da teoria dos gêneros (chegou mesmo a experimentar o drama, a
tragédia e a comédia dos mais diversos matizes, incluindo a farsa, sem assim nomeá-la).
Em suas comédias, no entanto, não um grau de pureza que as definam simplesmente
como comédias. Elas são comédias mais isso ou mais aquilo. Mais sérias ou menos sérias,
mas sempre em alternância como a indagar sobre o sentido mesmo do próprio fazer teatral,
suas nuanças, seus matizes, suas metamorfoses, suas cambiâncias. Instaura dúvidas. Daí
sua busca, mesmo que se em nível inconsciente, por um gênero intermediário, gênero
sério, tragédia doméstica ou comédia séria. Tentativas vãs de se esquadrinhá-lo.
Acreditamos que Marinho pensa num gênero sério, não a partir da condição dos
seus personagens que, com poucas exceções, são burgueses, especialmente aqueles que
conduzem a trama. Embora não possamos dizer o mesmo de seu público. Seu olhar volta-
se para o povo, para a gente mais humilde, para aqueles que vêm sendo denominados de
subalternos, os que estão numa faixa de indigência social e educacional, por vezes
intransponível, devido à sua “cegueira social”; subalternidade denunciada por este riso
sisudo, sua força cômica. Para Marinho, são seus personagens “gente virtuosa”, da mesma
maneira que Diderot supunha “honestos” os seus burgueses. Por mais ambíguo e
contraditório que tudo isto possa parecer.
É possível que, em seus constructos dramáticos, Marinho tente averiguar qual a
urdidura do “real” que neles se engendra. Qual seria a força e significação deste “real” é o
que nos perguntamos. Esta pergunta estende-se à platéia, aos leitores, aos atores e
diretores, convidando todos a novas leituras ou releituras que não falseiem a vida mesma,
aquela que ele ficcionalizou e que tornou visível com a capacidade de se indagar. Todavia,
é importante atentar que a obra marinha, por mais que seja capaz de reinventar o real, é
dele que ela parte, dele se alimenta, num realismo alusivo.
Acreditamos que nosso autor, ao transfigurar sua gente e sua realidade, acalentadas
em suas lembranças, sabia da real eficácia comunicacional junto ao público. Sua escrita
dramática visa à materialização cênica. Aproximando-se do público, auscultou seus
testemunhos de alegria, provocado que foi por suas reminiscências ficcionalizadas,
estendendo-se pela platéia. Riso e lágrimas. Drama e comédia: comédie sérieuse e tragédie
domestique. Melhor, o riso que Marinho queria provocar era no sentido de assegurar ao
público um bem estar legítimo e é este bem-estar que fará sua platéia permitir-se - aqui nos
120
utilizando das palavras de Pierre Aimé-Touchard (1970:126) -, “olhar o que se passa no
palco não somente com uma total liberdade de julgamento, mais ainda com uma
compreensão indulgente”.
Sua “seriedade” provinha da intensidade de vida interior, interioridade que
provinha de uma práxis, de um compromisso moral do qual não abria mão, mesmo quando
caricaturando a realidade nem sempre “honesta”, nem sempre “virtuosa”, mas com
possibilidades de, através de sua própria existência, revelar-nos “o humano em sua
variedade e profundeza, forçando-nos a interiorizar essa revelação e assimilá-la à
experiência, ela age sobre a nossa maneira de sentir e pensar. As grandes, autênticas e
legítimas obras de arte possuem a capacidade de atrair a consciência e de fazê-la aderir ao
que instantaneamente revelam”. (NUNES 1979:88). É este o desafio que Benedito Nunes
nos coloca diante da arte em geral e que aqui, redirecionamos ao estudo das peças
marinhas. Marinhas tão preciosas quanto as pedras azuis que, buriladas, revelam-nos as
potencialidades de uma realidade e de uma existência em permanente devir, pois é através
da consciência moral, não de uma moral, “que a arte cumpre a sua finalidade ética”.
(NUNES 1979:89).
2.1.2. A tessitura dos fatos
Um sábado em 30
40
, comédia em três atos, tem sua ação concentrada na ante-sala
de jantar da casa citadina de um senhor de engenho do Partido Liberal, Seu Quincas, e de
sua esposa, D. Mocinha, no interior do Nordeste, mais precisamente, na zona da Mata
Norte de Pernambuco, em Timbaúba; cidade em que nasceu e cresceu Luiz Marinho, seu
autor. Como diz o título, a peça é situada no ano de 1930, durante os últimos dias da
revolução de outubro. Sua duração respeita uma unidade de tempo rigorosa que não
ultrapassa um dia e meio, começando na manhã de um sábado e terminando na manhã do
dia seguinte juntamente com o anúncio do fim da revolução e o retorno do filho “pródigo”,
Vasco, que partira para a guerra.
Neste lugar, vivem também Romeu, Mercês, Maria de Jesus e Leninha, filhos do
casal; Quitéria, vitalina e irmã de D. Mocinha, e o Major Paulino, velho cego de 85 anos
reminiscente da Guerra do Paraguai, sogro de Seu Quincas, pai de Quitéria e de D.
40
Existem duas versões de Um sábado em 30. Cf. MARINHO (1968, 1986b). Esta análise baseia-se na
edição de 1968 e, quando se fizer necessário, utilizaremos a edição de 1986 para cotejamento e verificação
das modificações empreendidas pelo autor.
121
Mocinha. Incluem-se ainda os empregados, profundos conhecedores da vida dentro e fora
da casa, verdadeiros cronistas da intimidade familiar e do cotidiano timbaubense. Eles são
Nãna, velha octogenária, bisbilhoteira, empregada e, ao mesmo tempo, membro da
família, ou seja, uma espécie de agregada da casa; Filó, a nova copeira; Zefa, namoradeira
e dançarina de pastoril; Joana; Chico e Julião. Além desses, passam pela casa outros
personagens vindos da cidade (o bicheiro Seu Severiano), dos arredores da residência sem
uma definição específica de sua relação com o núcleo familiar (o menino Juca, que serve
de acompanhante do Major Paulino
41
) ou do mato (as comadres de D. Mocinha
denominadas apenas de Duas Mulheres
42
), ou seja, esses dois últimos constituem os
agregados da família. Personagens sempre dependentes da generosidade senhoril,
retribuindo seus favores através de sua fidelidade e de amorosos “agrados”. Seguem a
ideologia do favor
43
como fundamento de sua organização social, fruto de nossa herança
patriarcal
44
e que no Brasil configurou-se, sobretudo, durante a Primeira República, na
forma do coronelismo. Para Maria Isaura Pereira de Queiroz (1977) o coronelismo, entre
outras características, define-se como um sistema político baseado na solidariedade mútua
entre membros de uma mesma parentela e na proteção de seus eleitores, ou seja, de sua
gente, onde a figura do coronel (título atribuído popularmente a personalidades de
importante influência política e econômica numa determinada localidade) goza de grande
prestígio. E por último, em Um sábado distingue-se ainda um personagem denominado
apenas de Moça, que surge já no desfecho da peça e que é vítima de umas das perguntas
mais famosas de Nãna: “Minha negra, escute aqui... Você ainda é moça?”. (MARINHO
1968:131).
2.1.2.1. A organização da ficção
Durante o ano de 1929, o cenário político-econômico internacional e nacional passa
por diversos acontecimentos que mergulham o Brasil numa séria crise interna, afetando
todas as esferas da nação. Tais fatos foram determinantes aos acontecimentos subseqüentes
que desencadearam a Revolução de 30. A profunda crise econômica deflagrada pela
41
Na edição de 1986, o personagem Juca foi suprimido do texto pelo autor.
42
Na edição de 1968, as Duas Mulheres aparecem acompanhadas de duas crianças, um menino e uma
menina, que não aparecem na relação de personagens e também não possuem falas no corpo do texto.
tomamos conhecimento da existência de ambos pelas didascálias e pelas falas de outros personagens. Na
edição de 1986, eles são suprimidos do texto, permanecendo apenas como assunto das conversas. Além
disso, nessa mesma edição, as Duas Mulheres são condensadas num único personagem chamado Luzia.
43
Cf. SCHWARTZ (1977:13-28).
44
Cf. sobre sistema patriarcal em: FREYRE ([1933] 2000; [1936] 1977; [1959] 1974).
122
quebra da Bolsa de Nova Iorque provocou graves conseqüências para a economia brasileira
com a falência de 579 fábricas no Rio de Janeiro e em São Paulo, por falta de compradores
para seus produtos, deixando um saldo de quase dois milhões de desempregados no país.
Além disso, as fábricas que ainda conseguiam resistir tomaram medidas drásticas de
sobrevivência, fazendo demissões em massa, reduzindo a jornada de trabalho para dois ou
três dias durante a semana e diminuindo os salários dos trabalhadores em 40 a 50% no
campo e na cidade. A economia do café também ia entrando em decadência, sendo o
produto cada vez mais desvalorizado no mercado internacional. A cultura cafeicultora de
São Paulo que monopolizava a economia brasileira, determinando, inclusive, a escolha dos
presidentes da República, colocava o governo Washington Luiz na maior crise da história
da República, alastrando o pânico entre fazendeiros; a fome e o desemprego, entre os
trabalhadores.
É nesse clima que se dão as eleições de de março de 1930. Desde o governo de
Campos Salles (1898-1902), quase sempre São Paulo e Minas Gerais alternavam-se no
governo federal. Prática conhecida como política do “café com leite”. Nessa lógica, o
sucessor do então presidente paulista Washington Luiz deveria ser um mineiro. Entretanto,
o presidente decide mudar as regras do jogo, lançando a candidatura do também paulista,
Júlio Prestes. A oligarquia cafeicultora, que manipulava a máquina eleitoral, em crise,
preparava-se para manter os paulistas no poder e, assim, garantir sua própria
sobrevivência. Tal fato desagradou imensamente aos representantes de Minas, assim como
aos de outros estados, como Rio Grande do Sul e Paraíba, desejosos de ver a roleta do
poder girar a seu favor. Esta oligarquia minoritária representava interesses econômicos
diversos da economia cafeeira que predominava no país.
Com a crise que o Brasil enfrentava e o descontentamento da população faminta,
havia todas as condições para a fundação de um partido oposicionista que pudesse fazer
frente a Washington Luiz e Júlio Prestes nas eleições presidenciais e que defendesse os
interesses dessa oligarquia “à margem”. Surgia a Aliança Liberal com candidatura própria:
Getúlio Dorneles Vargas (gaúcho) e João Pessoa Cavalcanti (paraibano) concorriam,
respectivamente, para presidente e vice-presidente. A Aliança constituía-se, portanto, de
um partido lançado pelas vozes descontentes das regiões fora do eixo do café, liderado
pelos oligarcas do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba, além de contar com o apoio
dos representantes de outros Estados, como Carlos de Lima Cavalcanti em Pernambuco,
rico usineiro e empresário que gozava de grande simpatia até nos meios mais populares e
123
que lutou corajosamente pelos liberais, ao lado de Juarez Távora, durante os dias de
revolução.
A Aliança Liberal ainda chama o apoio da ala jovem da oficialidade militar, os
tenentes, protagonistas nos anos 20 de levantes armados em defesa da moralização do
regime. Graças à sua adesão ao Partido, trouxeram consigo, para a alegria dos oligarcas
liberais, o apoio das ainda pouco expressivas classes médias urbanas, cuja simpatia haviam
conquistado com seus atos revolucionários. Todavia, os objetivos da Aliança Liberal são
frustrados pela vitória fraudulenta do candidato governista Júlio Prestes. Com a derrota nas
urnas, só restava ao Partido a opção pela Revolução. Porém esse não era o intuito de todos,
havendo uma grande parcela dos filiados que preferiam ações pacíficas ao apelo às armas.
O próprio candidato à vice-presidência, João Pessoa, governador do estado da Paraíba, era
contra a Revolução. Fato que gerou uma crise interna entre os liberais, impossibilitando
momentaneamente uma ação mais drástica.
A crise política que dividia o país refletia-se dentro da administração de diversos
estados que se encontravam cindidos entre facções dos coronéis defensores dos interesses
governistas e dos coronéis que aderiram à Aliança Liberal. Como numa peça
shakespeariana, cada estado tornava-se palco para disputas familiares, onde parentelas
afins reuniam-se entre si, aglutinando sua vassalagem em torno dos seus próprios
interesses, interferindo inevitavelmente nos rumos da nação. Ou seja, misturavam numa
mesma “panela velha”, interesses pessoais e locais com questões nacionais, disputas de
ordem política e econômica com intrigas familiares. Eis o coronelismo!
Situação similar encontrava-se na Paraíba durante o governo de João Pessoa. As
dificuldades econômicas pelas quais o país passava refletia-se nesse Estado pobre,
provocando um generalizado descontentamento. Ao assumir o governo em 20 de outubro
de 1928, João Pessoa adotou severas medidas com fins protecionistas para valorizar o
comércio local. Dessa forma, deflagrou uma série de conflitos internos, em decorrência do
veto às localidades sertanejas de comercializarem diretamente e de maneira independente
com outros estados vizinhos e, principalmente, com Pernambuco que era o mais importante
centro do Nordeste. Suas medidas garantiram a ele ampla popularidade, mas também lhe
acarretaram o aumento de seus inimigos no interior comerciantes e fazendeiros que se
sentiam prejudicados com a atual política –, acelerando as conspirações dos oligarcas
conservadores. Em 10 de março de 1930, iniciou-se um levante armado contra o governo
no município de Princesa, cujo líder político e chefe da conspiração, José Pereira, era um
antigo desafeto de João Pessoa. Nesse conflito, o coronel Pereira recebeu o apoio de outras
124
parentelas conservadoras, os Dantas, do município de Teixeira, auxílio financeiro da
família Pessoa de Queiroz, proprietária do Jornal do Commercio em Pernambuco, e armas
de São Paulo, através de Júlio Prestes.
No contexto nacional, nas mais diversas áreas, ocorriam outros fatos importantes:
em 22 de maio, no Recife, 15.000 pessoas assistem à descida do dirigível alemão Graf
Zeppelin. No mesmo ano, destaca-se, ainda, o lançamento do filme Coisas Nossas;
Guilherme de Almeida entra na Academia Brasileira de Letras; são publicados os livros
Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade; O Quinze, de Raquel de Queiroz, e
Libertinagem, de Manuel Bandeira. Heitor Villa-Lobos começa a compor as Bachianas
brasileiras. Ari Barroso vence um concurso carnavalesco com a marcha nela, gravada
por Francisco Alves. Joubert de Carvalho compõe Taí (Pra você gostar de mim), gravada
por Carmem Miranda. Noel Rosa compõe Com que roupa? A seleção uruguaia de futebol
consagra-se campeã da primeira Copa do Mundo, realizada em Montevidéu.
No dia 26 de julho de 1930, quando conversava com amigos na Confeitaria Glória,
na Rua Nova, em Recife, o candidato derrotado à vice-presidência pela Aliança Liberal,
João Pessoa Cavalcanti, foi morto a tiros. Seu assassino, João Dantas, cuja família era
aliada do Coronel José Pereira no levante de Princesa. Todavia, os motivos que levaram o
assassino ao crime não eram de ordem política, mas pessoais. Tendo esse trágico
acontecimento, que mudou os rumos do país, como pano de fundo, Marinho contextualiza
a história pessoal do personagem Major Paulino Teixeira Cavalcanti, assim como situa, no
tempo e no espaço, a fábula de Um sábado em 30. Aliancista fervoroso, Major Paulino
encontrava-se na Rua Nova, junto com seu genro Joaquim (também conhecido como Seu
Quincas, senhor de engenho de prestígio na cidade de Timbaúba), no momento em que
ocorreu o incidente. Sem a visão, Major Paulino ouvia os gritos e a correria. Percebia o
tumulto, o que para seu faro de ex-combatente configurava-se como o princípio de uma
revolução. Escutava da boca do povo a sua volta: “João Pessoa foi assassinado! João
Dantas matou João Pessoa! Mataram João Pessoa no Café Glória!”. (MARINHO 1968:50).
De imediato, supôs que o crime fora premeditado por Washington Luiz, o que despertou
sua ira. Sabia que muito sangue ainda seria derramado a partir daquele dia, inclusive o seu.
No meio do tumulto, o velho Major, completamente desnorteado com o impacto da notícia
e sem saber mais quem ele mesmo era, gritou: “Abaixo a Oligarquia! Abaixo a Tirania!”.
(MARINHO 1968:51). Foi salvo da confusão por seu genro que o colocou num carro e o
conduziu a Timbaúba, onde permaneceu sitiado até o final da Revolução, temeroso de
também sofrer algum atentado.
125
No dia 3 de outubro, estourou a Insurreição Liberal no Rio Grande do Sul. Por
influência de Major Paulino, seu avô, Vasco partiu para o Sul do país como voluntário para
combater pela Aliança Liberal, ficando em Timbaúba toda a sua família. D. Mocinha,
responsabilizava-se pela administração da casa na cidade e pela educação das filhas
(Mercês, Maria de Jesus e Leninha), enquanto que Seu Quincas e Romeu (marido e filho)
cuidavam do engenho, apenas voltando a Timbaúba nos finais de semana. Passaram-se dias
sem notícias de Vasco e D. Mocinha, aflita, receava que o filho pudesse estar morto ou
preso. O cotidiano da família, entretanto, continuava o mesmo e, fora a matriarca, ninguém
na família parecia preocupar-se ou sentir a ausência de Vasco. Muitos (Major Paulino e os
empregados) tinham confiança na esperteza do rapaz que desde pequeno era o mais
arruaceiro dos filhos. Como dizia Sá Nãna, ainda menino já dava trabalho; era “gostador de
pagode... só vivia junto mais o irmão, por aqueles mundos de Campina Grande, Itabaiana,
dando tiro, acabando samba, metido com tudo quanto era de rapariga... se via chegar
notícia!”. (MARINHO 1968:21). Não era mais nenhuma criança, era homem feito!
Num sábado em 30, às vésperas do desfecho da Revolução, a família de Seu
Quincas e de D. Mocinha encontrava-se mergulhada em típicas questões domésticas e
familiares. Anunciava-se o fim do conflito para os próximos dias e D. Mocinha, que além
de sofrer pela ausência de notícias do filho, preocupava-se com a educação das filhas
Mercês e Maria de Jesus que andavam muito “libertinas”, pensando em namoro e lendo
os livros proibidos do avô (Maria de Jesus já namorava escondido com um artista de circo).
Afora isso, pairava o mistério do roubo do dinheiro da feira, recaindo a suspeita sobre a
nova empregada (Filó); preparava-se o batizado de mais um afilhado de Seu Quincas e D.
Mocinha para o domingo; Nãna, a todos vigiar patrões e empregados; Zefa a rebolar
as cadeiras pela casa, faceira e zombeteira; Quitéria a tripudiar do amor do bicheiro Seu
Severino; Major Paulino que vive de contar seu passado e a falar de guerra, mas que não
deixa de passar a mão no traseiro de quem dele muito se achegar; Leninha que quer
saber de ser criança e o Romeu, Don Juan das empregadas, que adora desencaminhar
“moça direita”. Nesse aspecto, o pior foi quando seu pai descobriu o defloramento de Filó.
O senhor de engenho fincou o pé e exigiu a reparação da moça, ou seja, casamento. Coloca
a família em crise. Ninguém mais se entendia ou se escutava, todos presos em seus desejos,
em seus universos, acusando-se uns aos outros. O circo foi embora e Maria de Jesus ficou
de coração partido. Nãna, novamente, falou o que não devia e descobriu-se que Seu
Quincas também fazia das suas: o gosto pelas empregadas era antigo na família.
Indignada, D. Mocinha ameaçou sair de casa (não suportou a quase traição do marido com
126
uma empregada nem a idéia de ver seu filho casado com outra empregada) e Major Paulino
jurou vingança (as desavenças parentais costumam acabar em sangue!). Os empregados
também não se entendiam mais: Julião e Chico brigaram pelo amor da pastora Zefa que
não se interessa por outra coisa que não seja soldado e pastoril. Aliás, a pastora está sempre
a rir de tudo e de todos, pois como ela mesma diz, “esta casa é mesmo uma comédia”;
depois foi-se “embora num bonde cheinho de soldado”. (MARINHO 1986b:62). A paz
é restituída com o anúncio do fim da Revolução e a chegada de Vasco, o filho pródigo, não
mais herói de guerra, mas da mãe, do pai, do avô, do irmão, das irmãs, ou seja, o herói da
família. Estavam todos prontos para o próximo sábado; mais um sábado em 30.
2.1.3. O entre-lugar da casa
Basicamente, a situação econômica de seus personagens pode ser determinada a
partir do papel social que estes ocupam na casa: patrões e empregados. Esses dois
principais grupos dividem o mesmo espaço: uma ante-sala de jantar. Segundo Marinho,
originalmente, Um sábado em 30 deveria passar-se na cozinha da casa, que um de seus
objetivos era resgatar os costumes, o linguajar e o comportamento da gente simples do
interior nordestino, sem as caricaturas e os clichês recorrentes no teatro brasileiro e no
imaginário nacional.
45
Além disso, como foi dito, almejava também preservar e
difundir, através do texto teatral e de seu devir no palco, uma cultura rural ou semi-rural
em processo de transformação com a progressiva e fragmentada urbanização da sociedade.
Resgatá-la de sua memória e preservá-la do esquecimento, ao mesmo tempo em que
escrevia para se permitir esquecer, despedir-se de suas lembranças. Todavia, como
transitam constantemente dentro de um mesmo espaço, patrões e empregados, além dos
agregados que entram e saem da casa, Marinho concluiu que determinadas cenas poderiam
parecer artificiais na caracterização desses distintos universos, preferindo, por isso, uma
ante-sala de jantar a uma cozinha. O autor buscava um ambiente neutro onde pudesse
conciliar essas “duas vivências”, sem prejuízo da verossimilhança de ambos os grupos.
Assim, justifica suas escolhas na descrição do espaço onde ocorre a ação da peça:
45
Caricaturas contra as quais o autor se posicionava, mas que não apontava nem nomeava. Em suas
entrevistas e depoimentos, Marinho nunca fez referências aos espetáculos ou aos autores que, através de suas
obras, segundo ele, ridicularizavam o nordestino ou difundiam uma imagem do Nordeste (geralmente
representado pela trindade seca, fome e morte) diversa da que ele preservara em si mesmo, em suas
lembranças de infância e adolescência. Por isso, não se sabe efetivamente com quem Marinho buscava
dialogar ou contrapor-se.
127
Ao idealizar esta peça, pretendia situá-la toda em um cenário de cozinha, mas
com o desenrolar, verifiquei que determinadas cenas não seriam convincentes
com tal ambiente, desse modo, resolvi criar um campo neutro, isto é, uma ante-
sala de jantar onde pudesse conciliar as duas vivências patrões e empregados
– sem prejuízos para a aceitação das cenas. (MARINHO 1968: 18)
A ante-sala de jantar possibilita a interpenetração desses dois grupos, conectando
seus respectivos espaços sociais: patrões-sala de jantar e empregados-cozinha. Além disso,
dá acesso à rua, o que permite a entrada e saída tanto de agentes internos da casa (patrões e
empregados) como de agentes externos (visitantes da cidade e do campo). Desse modo, a
ante-sala de jantar da casa de Seu Quincas configura-se como um entre-lugar, pois, em sua
neutralidade e ininterrupta freqüência de personagens, fricciona diferentes e, por vezes,
divergentes realidades sócio-culturais. Assim Marinho, descreve o ambiente da peça:
Uma ante-sala de jantar, com duas janelas largas e uma porta ao fundo da cena e
que dão para o jardim, a casa é de esquina e poderá ser divulgado, através das
portas, um trecho de um beco. Existe ainda uma porta que para a cozinha e
outra para a sala de jantar e conseqüentemente para o interior da casa.
(MARINHO 1968:18).
O espaço revela-se elemento determinante para o encadeamento dramático da
intriga e para a construção dos personagens. Através de sua neutralidade, expressa-se as
relações próximas e, ao mesmo tempo, conflitantes entre patrões e empregados. Espaço por
onde trafegam livremente ambos os grupos, servindo de extensão aos seus respectivos
espaços sociais. Lá, os empregados ainda têm um acesso irrestrito, o que garante o
flagrante de seu comportamento em diversos contextos: ora espontâneos, comentando
sobre a vida alheia de vizinhos, conhecidos, patrões ou troçando e censurando a si mesmos;
ora submissos diante da presença dos chefes da casa. Expõe-se uma frágil harmonia,
determinada pela afetividade entre ambos, própria ao sistema sócio-econômico dessa
sociedade, que mascarava os conflitos de classe aí existentes.
2.1.4. Tempo de homens partidos
Desde a estréia da montagem de Um sábado em 30 pelo TAP, em 1963, a
contextualização histórica da Revolução de 1930 tem sido vista pelos críticos como um
“discreto e irrelevante pano de fundo” (MICHALSKI 1976:2) que nada acrescenta ao
desencadear da ação dramática. De acordo com Eduardo Guennes (1963b:3), durante o
128
conflito, Timbaúba foi uma importante cidade por onde circulavam soldados que
trafegavam entre Pernambuco e Paraíba, vivendo toda a efervescência da época. Para o
crítico, tais acontecimentos não se refletiam na atmosfera de Um sábado, comprometendo
a profundidade da trama e a verdade interior de seus personagens. Para Joel Pontes, “não é
a revolução o que tem verdadeira importância” (1963b:3), mas o cotidiano de uma família
patriarcal. Décio de Almeida Prado sustenta opinião semelhante. Afirma que a Revolução e
a Aliança Liberal apenas “perpassam fugidiamente [...] como um pano de fundo que jamais
vem e jamais deve vir até o primeiro plano, a não ser para deflagrar o desfecho. O que
realmente interessa ao autor não são os fatos políticos, a circunstância social, mas a vidinha
medíocre e freqüentemente grotesca de todos os dias”. ([1963] 2002:273). Todavia,
debruçando-se sobre o texto, constatamos que sua função não se limita a um mero pano de
fundo. Ela apresenta-se de maneira pontual, quase fantasmal (tamanha a sutileza de sua
inserção na estrutura dramática da obra) no encadear dos fatos, perpassando toda a peça do
início ao seu desfecho.
Logo no início da trama, começamos a tomar conhecimentos da situação política do
país, através da conversas dos empregados que se reúnem religiosamente na ante-sala de
jantar a comentar sobre o dia-a-dia de seus patrões, vizinhos e conhecidos. Apiedam-se do
sofrimento de D. Mocinha pela ausência do filho e criticam o descaso do restante da
família que se comporta como se não possuísse um parente na “guerra”:
JOANA - (Com ar solene) A coruja ontem passou por cima do telhado
rasgando... eu acho que a velha vai embarcar!... E tu Julião, não vais avisar a D.
Mocinha?
JULIÃO - Não! Foi o que mais Seu Quincas recomendou!... Cuido que é porque
D. Mocinha vem levando muito aperreio com Seu Vasco na guerra...
CHICO - Ele não dá notícias, ninguém sabe por onde anda! Se está vivo, se está
morto!...
JOANA - Coitada de D. Mocinha! Outro dia quando passou o trem das tropas e
que tocou a corneta... ela se ajoelhou no oratório com um rosário na mão e
botou para rezar e chorar que nem quando dá trovão.
CHICO - Também, é a única que se aperreia... O resto, nem parece!...
(MARINHO 1968:20).
A Revolução também se a ver pelas manifestações de desespero de D. Mocinha,
temendo pela sorte do filho. Atormenta-se pela ausência de notícias, se está vivo ou morto,
se se encontra refém dos perrepistas ou se um dia voltará para casa, ao seio materno e
familiar. A mãe reza e faz promessa a São Severino dos Ramos, santo guerreiro, para que
proteja seu filho:
129
D. MOCINHA - (Erguendo os olhos para o u) Meu poderoso São Severino,
vós que fostes guerreiro, protegei meu filho na guerra!... Pelas vossas chagas,
prometo-vos: se meu filho tornar das fileiras com vida, mandarei vos entronizar
em minha sala de visitas. (Baixa a cabeça e chora). (MARINHO, 1968:35)
E ainda discute com o pai, Major Paulino, sobre os males das guerras e o valor do
bem-estar da família. Prefere a vida simples, sem heroísmos ou tradições, um filho pacato,
resignado ao cotidiano da família e da cidade do interior a vê-lo morto. A Revolução
instala o conflito no lar, opondo pai e filha:
D. MOCINHA - Mas pai, Vasco não dá notícias! Estou aflita... Por onde andará
aquele menino?
M. PAULINO - Uma coisa eu lhe asseguro. - Desertar, ele não desertou, isto
nunca! Pode estar preso ou morto, jamais escondido!
QUITÉRIA - Mas os rapazes que saíram, já se sabe de todos... até dos mortos...
................................................................................................................................
M. PAULINO - Essa revolução não chega ao fim do mês! Questão de dias... a
nossa causa está ganha! Não pelo Rio Grande do Sul, como andam as
coisas? O menino anda por aqueles mundos... Ele é matreiro... deve andar
fazendo das suas por lá!... Não digo nada se ele chegar aqui de gaúcha de lado.
D. MOCINHA - Não! Não creio! Pra mim é como pai disse: - Ele está preso ou
morto! E pai... a culpa é sua! O senhor foi quem influenciou para que ele
seguisse como voluntário!... Não tinha nem idade!
M. PAULINO - Era um dever! O Partido precisava de nossa ajuda! Não será na
quinta geração, que os Teixeira Cavalcanti fracassem!
D. MOCINHA - O senhor pode se orgulhar daquela galeria lá fora! Mas, quanto
não custou a cada um daqueles heróis? Sangue e vida! Só o senhor sobreviveu...
mas em que situação! - Quero meu filho simples, vivendo sem heroísmos, sem
tradições... Vivo pai! Vivo! (Chora). (MARINHO 1968:36-37)
Como se vê, a Revolução de 1930 também se encontra no idealismo anacrônico de
Major Paulino, no seu fervor pela Aliança Liberal. Esse personagem é o único que
demonstra um vivo interesse pelos fatos da Revolução. Procura saber sua repercussão tanto
no âmbito local (pergunta às comadres se os homens continuam se escondendo no mato
para não serem obrigados a lutar) quanto no âmbito nacional (busca saber as últimas
notícias saídas na impressa sobre a Revolução). Mas, ao mesmo tempo em que o velho
Major mostra-se atento à atualidade, sua memória permanece aberta à reminiscência,
trazendo ao leitor-espectador o primeiro acontecimento que serviu para desencadear o
conflito que dividiu o país: o assassinato de João Pessoa. Major Paulino contextualiza a
trama de Um sábado em 30 na história política e social do Brasil. Restitui esta comédia
marinha sua historicidade:
130
M. PAULINO [...] E a tragédia do dia 26?... Ficará impune? (Trêmulo e
nervoso) - Não posso me esquecer... que amanhã!!! [...] Eu estava na rua Nova
quando ouço correrias e tumulto. Desgraçadamente sem os meus olhos, apenas
percebia que aquilo era princípio de revolução! [...] Depois, mil bocas diziam: -
João Pessoa foi assassinado! João Dantas matou João Pessoa! Mataram João
Pessoa no Café Glória! (MARINHO 1968:49).
Fervor revolucionário que o fez incitar o neto a partir para a guerra e a discutir com
os agregados da família a importância de se lutar por “causas justas”, contra uma
oligarquia paulista opressora. Mesmo que ele também descenda de uma outra oligarquia
tão excludente e tirânica quanto a primeira, mesmo que seus ideais revolucionários
redundem em puro proselitismo. A Revolução sobrenada a comédia através dos relatos
sobre os matutos “frouxos”, que desde a Guerra do Paraguai, escondem-se nos matos,
lutando por suas próprias vidas; único bem ao qual o subalterno tem direito, mesmo que,
diante da miséria e da insanidade do ser humano, este também lhe seja negado. Em
conversa com Major Paulino, as mulheres do mato defendem “a covardia de seus homens”.
Refutam a virilidade do ex-combatente em defesa da vida de seus maridos, filhos e noivos:
M. PAULINO - Os homens ainda estão se escondendo lá pelo "mato"?
1ª MULHER - É a mesma coisa! Cuidam que ainda estão pegando homem para
brigar... pra feira, só vem velho e mulher...
M. PAULINO - Ah! Homens frouxos! Medo de lutar! Ah! meu tempo! Homem
não se escondia! Pelo contrário - Fui voluntário na guerra do Paraguai! Lutei até
o fim! O meu neto puxou a mim!
1ª MULHER - E o que foi que "ganhou"? Olho cego, não foi?
M. PAULINO - Se todos pensassem desse modo, vocês hoje não estariam aqui
assim! (MARINHO 1968:41)
A chegada do soldado perrepista Gustavo, traz a Revolução de volta à cena.
Perdido dos companheiros de batalha, quase todos mortos por envenenamento, inclusive
seu próprio irmão, o soldado vagou dias e noites sem comer nem beber até chegar às
imediações da casa de Seu Quincas e de D. Mocinha. Procurava o amparo de alguma casa
também filiada ao seu partido. No entanto, o rapaz fora descoberto e baleado, sendo
socorrido pelos empregados Julião e Chico que o recolheram para dentro da residência. A
Revolução que, até aquele momento apenas rondava a peça, dando-se a ver pelas conversas
dos empregados, comadres e patrões, invade a casa senhorial, penetrando definitivamente
na vida de todos os personagens. Em seguida, esgarça-se em comédia novamente. Na cena
em que Gustavo, ainda ensangüentado, narra suas desventuras para os presentes, de
imediato, o rapaz ganha a simpatia da família, sobretudo, das moças que o enchem de
carinhos e mimos:
131
SOLDADO [...] mais de um mês que saímos eu e meu irmão de casa, ele
morreu alguns dias envenenado com água de cacimba, e nada pude fazer...
Antes, nós soubemos que o engenho fora massacrado e incendiado e que a
nossa família fugira para a Capital, todos vivos... mas só isto: - Vivos! O resto é
miséria, devastação, e fracasso!...
A esta altura todos rodeiam o soldado e uma onda de simpatia em torno
dele. Todos querem confortá-lo, sobretudo as moças que passam toalha úmida
no seu rosto e penteia-o. Vem camisa limpa, comida, almofadas, etc. D.
Mocinha vai se intrigando com o exagero das moças.
M. PAULINO - É meu filho, vocês tomaram uma trilha errada!
MERCÊS - Ele é um suco! (Para Jesus e Quitéria)
M. DE JESUS - Parece Ramon Novarro!
MERCÊS - Se ele quisesse tirar um linhô comigo... (Riem as três). (MARINHO
1968:82).
O encantamento das moças pelo rapaz quebra a progressão dramática da cena.
Dissipa a historicidade da peça. Veta a simpatia do leitor-espectador por Gustavo, através
da comicidade que subjaz da ação de Mercês, Maria de Jesus e Quitéria que, obstinadas
pela idéia fixa de arranjar namorado e marido, não se apiedam de seu sofrimento,
enxergando um “bom partido” e não um soldado perrepista à beira da morte, traumatizado
pela perda do irmão e perdido de sua família. São ridículas por sua rigidez de caráter, o que
segundo Bergson, justifica-se pela desatenção do personagem à vida, ao entorno social que
deveria influenciar seus atos. Padecem da mania que torna os personagens cômicos seres
ridículos, reduzindo-os ao tipo. Eis sua comicidade de caráter.
Porém, na mesma noite, apesar do distanciamento cômico, ainda ecoaram vestígios
da Revolução junto ao vestido vermelho de Zefa Pastora, transformado em trapos. A moça
volta “estropiada” de uma “pisa” que os perrepistas deram no cordão encarnado, cor-
símbolo do Partido Liberal:
De repente, a porta do oitão é empurrada e Zefa entra chorando aos berros.
Zefa com o olho roxo, toda cheia de ferimentos, vestido de pastora, de lamê
vermelho e curto, todo dilacerado, bochechas exageradamente pintadas, e
instintivamente, com um cravo vermelho ainda segurado à mão.
TODOS - Que foi isto?/ Virgem!!!/ O que foi?/ Que é?/ Fala, menina! Ôxem!
Danou-se!/ Eita pau!/ Fala, menina!/ O que lhe aconteceu/ Fala! Diz! Diz!
ZEFA - (Parando o soluço e dando três suspiros breves) Foram os
perrepistas!!! Acabaram o pastoril!... e deram uma pisa no cordão encarnado!!!
(MARINHO 1968:85).
Finalmente, a Revolução invade pela segunda e última vez a casa de Seu Quincas e
de D. Mocinha, trazendo consigo o filho Vasco, e salvo. Restaura-se a harmonia na
132
família, ao mesmo tempo em que é anunciado o fim da guerra e a vitória da Aliança
Liberal, encerrando a comédia.
A sutileza da inserção do contexto histórico justifica-se pelo próprio caráter do
gênero cômico, que prescinde da noção de tempo. Quanto mais nos imbuímos do passado
do personagem, mais nos aprofundamos em sua personalidade, desvelando-a e, ao mesmo
tempo, vetando seu caráter cômico. Chegamos, portanto, ao drama e à tragédia: “Un
personnage devient comique à mesure qu’il est vidé de la biografie qui fait de lui cette
personne unique; de l’être réalisé dans une histoire qui se réalisera une seule fois se
détache un type; la sympathie qui nous attache à la personne historique disparaissant avec
elle, le comique peut naître”.
46
(GOUHIER 1952:139). No caso de Um sábado, a presença
da Revolução de outubro compromete os limites da comédia, fazendo-o, por vezes, invadir
o drama.
Dessa maneira, Marinho empreende sua anamnese ficcional. Entre momentos de
comicidade, como numa pausa dramática, dissemina a Revolução de 1930 nos assuntos de
família, nas conversas dos empregados, na opinião de cada personagem, sendo contra ou a
favor, alienado ou politizado. A galeria de personagens marinhos serve como um painel
que disseca a Revolução sob a ótica do cotidiano, da intimidade familiar. Se Um sábado
em 30 é a “crônica da vida patriarcal”, a Revolução de outubro e suas conseqüências sobre
a sociedade brasileira existem na peça na medida em que se inserem no cotidiano de uma
família patriarcal do interior do Nordeste, interferindo, sobretudo, no fórum de suas
relações interpessoais.
2.1.5. Crônicas marinhas
Um sábado em 30 é sustentado por uma tênue intriga que se ramifica e se
fragmenta em diversas subintrigas que ora se encadeiam, ora independem entre si. uma
seqüência de minidramas, e em/entre cada um deles uma minicomédia, misturando
simpatia extrema por seus personagens e exposição bem humorada de seus ridículos. Essas
pequenas unidades dramáticas, que se organizam de maneira dispersa e independente,
justapondo-se progressivamente até o desenlace da peça, constituem um mosaico de
vivências dos personagens que entram e saem da casa (seus habitantes e visitantes),
46
“Um personagem torna-se cômico na medida em que é esvaziado da biografia que faz dele esta pessoa
única; do ser realizado numa história que acontecerá uma única vez, desprende-se um tipo; quando a simpatia
que nos liga a pessoa histórica desaparece com ela, o cômico pode nascer”. [tradução nossa].
133
estabelecendo um jogo que ora provoca uma “impressão de real”, efeito de real, ora
subverte sua lógica; produzindo sua contraface, o irreal e o non-sens. Marinho apenas finge
respeitar a lógica do real, porque sua força cômica obriga-o a manter ciosamente seu
desejo à subversão e ao absurdo, características estas pertencentes à comédia. Todavia,
permanece fiel a uma estética do cotidiano que, ao mesmo tempo em que reforça sua
filiação ao gênero cômico, aproxima Um sábado em 30 da crônica: registro poético e
geralmente irônico que capta o imaginário coletivo em suas manifestações cotidianas.
Apreende o instante tal como ele se apresenta, fragmentado, perenizando-o. Joel Pontes,
numa crítica sobre a montagem do TAP de Um sábado em 30, apontava que a primeira
peça escrita por Marinho configurava-se como a crônica de uma família patriarcal, com
seus numerosos aderentes e amigos”. (1963b:3). No entanto, a crônica marinha não se
restringe à família, mas se estende a todos aqueles que compõem seu universo sócio-
cultural, ou seja, os empregados. Alias, é importante frisar que a família patriarcal, assim
como toda a pequena sociedade que a rodeia, é apresentada ou narrada ao leitor-espectador
sob a perspectiva destes mesmos personagens que sempre se encontraram à margem na
sociedade brasileira. Não é necessariamente a família que ganha o primeiro plano em Um
sábado em 30, mas seus empregados e agregados. Recontam para si mesmos e para o
leitor-espectador suas venturas e desventuras dentro e fora da casa, intercalando passado e
presente; comentam as peripécias dos patrões, vizinhos e conhecidos; brigam e se divertem
entre si mesmos quase que simultaneamente, sempre com muito humor e ironia, indo do
maravilhoso ao corriqueiro e que misturam no seu discurso ingenuidade e malícia, censura
e indulgência. São cronistas matutos que narram o cotidiano ao sabor telúrico em que se
configuram as memórias ficcionalizadas de Luiz Marinho.
Nos três atos que compõem Um sábado em 30, todos começam com os empregados
reunidos na ante-sala de jantar, seja na hora do café da manhã, do almoço ou à noite,
quando se preparam para ir ao pastoril, ao circo ou para seu merecido repouso depois de
um dia de trabalho. Mesmo na segunda versão da peça, onde Marinho fez cortes e
alterações em sua estrutura, concentrando a intriga e acelerando o ritmo da comédia, assim
como ampliou a comicidade da peça, acrescentando efeitos cômicos inexistentes na
primeira versão, a importância dos empregados permanece a mesma: iniciam e concluem a
comédia.
Logo na primeira cena, quando Julião e Chico entram na casa para fazer o desjejum
junto com Joana e Sá Nãna, tomamos conhecimento do universo memorialístico desses
personagens que, através das reminiscências da velha agregada da família, traz à cena a
134
escravidão como uma realidade ainda próxima de suas existências. O negro Julião, vindo
do engenho, comenta com seus camaradas a enfermidade de D. Sinhá, mãe de Seu
Quincas:
JULIÃO – [...] lá no engenho foi um caso sério!... D. Sinhá botou para morrer e
passaram a noite botando vela... Eu tinha selado o cavalo para vir chamar
aqui, quando a velha tornou... vi a hora ela morrer!
NÃNA - Morrer?! E aquilo morre assim com duas risadas? Aquilo é ruim
que o cão! Ah, meu filho! Se os cativos fossem vivos, você ia escutar quem
era ela!... Olhe! Tinha o gosto de apartar as parelhas de negros que eram
casados e vendia ou comprava separados... E a sujeição na cozinha?...
Menino!... permita Deus que ela viva ainda muito tempo para purgar toda a
ruindade... senão, vai diretinha para o inferno!... (MARINHO 1968:20).
Percebe-se o rancor de Nãna que ainda conserva nitidamente em sua memória a
dura lembrança do passado. Dos tempos de escravidão, de subjugação do escravo ao
senhor. Esta é uma de suas funções dentro da estrutura dramatúrgica de Um sábado: a
conservação da memória. Marinho delega aos seus personagens mais “antigos” (Sá Nãna e
Major Paulino), o trabalho mnemônico que ele mesmo se impôs em suas memórias
ficcionalizadas, retomando de uma maneira pessoal a tradição dos antigos poetas gregos de
salvaguardar o testemunho da “Idade Heróica”. Marinho reelabora seu passado, criando
uma mitologia pessoal que diviniza seus matutos, transformando-os em heróis.
Paradoxalmente, o memorialismo não é algo caro à crônica enquanto gênero
literário. Segundo Eduardo Portela, na crônica, o cotidiano é pouco ou nada
rememorativo. Aos cronistas do passado seria mais apropriado denominar de
memorialistas. Aos do futuro, se optou pelo rótulo pomposo de futurólogos. Aos do
presente moderno, dos cotidianos atuais, cabe apenas o nome desambicioso de cronistas”.
(1984:13). Contudo, Marinho não se restringe ao rótulo de “cronista do passado” ou de
“memorialista”, porque seu tempo é presentificado pela comicidade de suas comédias e,
mesmo em seus dramas, estes existem ao sabor do instante, tal como na crônica,
perenizando o vivido ou testemunhado. Em Marinho, o apreço pelo registro dos
costumes e dos ritos, como aqueles em que Nãna faz uma benzedura em Leninha para
retirar-lhe o mau olhado:
D. MOCINHA [...] Nãna, Madalena desde ontem que não come nada...
para mim, ela está com olhado... passe uma benzedura nela! (para Julião) Julião,
vá apanhar um galho de pião roxo...
NÃNA - (Resmungando para Joana) É, agora é olhado, mas quando se põe
boa, foi o doutor que curou...
135
D. MOCINHA - (Da porta) Madalena, venha! (chega a menina) Venha cá,
Nãna vai lhe rezar! (Julião volta com o galho de pião. A velha afasta-se com a
menina e num canto da sala começa a benzê-la cruzando com um galho de pião
o peito e a cabeça e depois se cruzando também, dando duas sacudidelas dum
lado, nas folhas).
NÃNA - Com dois te botaram, com três eu te tiro, olhado, quebranto,
morrinha... vivente, tu estavas doente?.. (MARINHO 1968:35).
Costume que, como atesta a velha octogenária, para seu desgosto, já se encontrava
em declínio diante da modernização da medicina que progressivamente vem suplantando
as antigas práticas medicinais, substituindo o benzedeiro pelo doutor. Ainda encontram-se
outros ritos em Um sábado em 30, como o batizado do filho da comadre Veneranda,
afilhado de D. Mocinha e Seu Quincas. Pode-se destacar também o hábito de deixar o
cabelo das crianças crescerem, preservando-os para São Severino dos Ramos, como
promessa para que o santo possa proporcionar saúde às crianças:
D. MOCINHA - Comadre!! Um menino deste tamanho, ainda conserva os
cabelos compridos?
MULHER - É promessa! (e para os meninos) Vão para o terreiro vadiar!
(Saem os dois meninos)... o cabelo é de São Severino! Quando ele nasceu teve
doença de menino e nós fizemos promessa para mudar o nome dele para Inácio
e guardar os cabelos até sete anos! Ele inteirou, estamos esperando que desça
caminhão de romaria para São Severino dos Ramos. (MARINHO 1968:41-42).
Mais um rito que o próprio Marinho vivenciou durante a infância, segundo seus
depoimentos, conservando seus cabelos longos para quando “maiorzinho” poder ofertá-los
ao santo. Além disso, também há a presença do humor e da ironia em Um sábado em 30, o
que reforça sua filiação à crônica que, em suas impressões difusas do cotidiano, utiliza-se
de ambos na luta contra a opressão, dizendo “o interdito, mesmo correndo o risco de ser
interditado”. (PORTELLA 1984:10). Como faz Chico ao ver Major Paulino recusando o
prato de papa oferecido por Joana, pois acordara “danado”, desejoso de comer “buchada”,
“pimenta” e “cachaça”:
JOANA - Seu Major não quer uma papa agora?
M. PAULINO - Que papa menina! Hoje estou danado! Vou comer buchada!...
Julião, apanhe umas pimentas e veja aguardente de cabeça e ponha na mesa no
meu lugar! (Julião obedece e Joana também sai para a cozinha. Chico, já
presente resmunga):
CHICO - Buchada?! Abra o olho; velho! Rede, panela e velho se acaba pelo
fundo! (MARINHO 1968:38)
136
Através desse chiste tendencioso, satisfaz sua hostilidade latente, disfarçada em
gracejo, à dominação imposta pelo sistema patriarcal à sua gente, representada na figura do
Major Paulino.
Portanto, em suas crônicas dramáticas, Marinho extravasa do simples rótulo de
memorialista, porque sua anmenese da infância revive não um tempo sepulcro, mas o
passado presentificado, rejuvenescido pelo hic et nunc da comédia. Sem nostalgia ou
melancolia, o memorialista tornou-se o cronista que, de tanto confundir-se com sua gente,
de justapor a criança que um dia fora ao adulto em que se transformou, não se viu mais
expulso, nem proscrito de sua primavera. Não temia mais o entardecer, pois seu segredo,
agora, é público. Pereniza-o. Transcende o vivido. Ele é dito pelos “homens do mato” que
por seu intermédio também falam. E sua fala é seu tempo, atualizado a cada nova récita de
suas crônicas marinhas.
2.1.6 Para além da comicidade
Em Um sábado em 30, como na maioria dos textos dramáticos que se propõem a
revelar a sociedade e os indivíduos que nela se inscrevem pelo viés da comicidade, uma de
suas particularidades é justamente determinar as atitudes de polarização de seus
personagens. Ou seja, fazer o estudo dos personagens, seguindo passo a passo a progressão
de suas ações. Atos que, no decorrer da intriga, revelam sutilezas ou aspectos ocultos de
sua personalidade. Em geral, a ação dos personagens secundários sobre o protagonista
possibilita tais descobertas. De suas reações, a cada nova situação de crise, deslinda-se
pouco a pouco o enigma que guarda dentro de si mesmo. Estamos, no entanto, a falar de
uma lógica mais pertinente ao drama; portanto, diversa da lógica ou da ilogicidade que
rege a comédia. Neste gênero, ao qual filiamos Um sábado em 30, longe de restringi-lo à
superficialidade dos tipos e das situações, como geralmente se procede nos estudos da
comédia, seus personagens são condicionados por uma dialética que os faz transitar da
personalidade ao tipo e vice-versa.
Para Bergson, o personagem cômico permanece sempre aprisionado em seu caráter.
Ou seja, ao seu próprio modo de ser, seu comportamento habitual, aquilo que o distingue,
mas que não lhe garante a profundidade de uma personalidade, de um personagem
dramático. É o que possibilita a imitação de seus aspectos exteriores e, por sua vez, torna-o
cômico. Por isso, todo caráter é cômico e todo personagem de comédia é um tipo.
137
Segundo Gouhier, que não discorda nem da necessidade de um veto às emoções
para o surgimento do cômico nem da comicidade inerente ao tipo, é necessário analisar
com maior atenção o mecanismo que diferencia ambos os personagens, dramático e
cômico. Para ele, a simpatia
47
que surge da relação do espectador e do personagem
dissipa-se na comédia na medida em que o personagem cômico despoja-se de uma
historicidade pessoal, de uma biografia que possibilite ao espectador um conhecimento
mais profundo de sua personalidade e, consequentemente, o estabelecimento de nculos
afetivos. A existência histórica adquire sua tonalidade dramática a partir da consciência de
sua finitude, do fim que ameaça a existência e cujo sentido trágico ressoa em sua
profundidade. Dessa forma, “ce qui arrive paraît dramatique ou tragique à un esprit qui fixe
le réel avec la volonté d’aller jusqu’au bout ou jusqu’au fond de son historicité. Le
comique requiert un autre traitement: il ne s’agit plus de l’existence mise à nu, mais d’une
existence soumise à un traitement qui la vide d’histoires trop personnelles”.
48
(GOUHIER
1952:138-139).
No momento em que tomamos conhecimento da vida que entorna aquela essência
sob o palco, seus dramas pessoais, suas privações e dilemas que o levaram ao atual estado
em que o texto teatral o apresenta, torna-se impossível não lhe destinar uma simpatia ou
mesmo uma antipatia. Não riríamos do tropeçar de um homem cego, quando seu passado,
os motivos de sua cegueira são colocados em questão pela queda, refletindo sua própria
decadência física e espiritual, as condições de sua existência. A historicidade do
personagem veta sua comicidade. Contudo, Henri Gouhier vislumbra o personagem
cômico além das fronteiras do tipo. Ele é um esquema que pode se desenvolver inserido
em histórias, tempos e espaços, cuja historicidade, por mais estrangeira que possa lhe
parecer, deve estar em intrínseco diálogo com sua essência:
47
Henri Gouhier usa o termo simpatia em lugar de identificação para designar a relação entre o espectador e
o personagem. Partindo da concepção de Pierre-Aimé Touchard sobre a identificação, calcada no
reconhecimento do espectador no personagem, como num processo de espelhamento, em que o primeiro
enxerga a si mesmo projetado no segundo, Gouhier afirma que, no lugar da identificação, o que entre
ambos é uma simpatia na qual o espectador não o personagem como um reflexo de si mesmo, mas
reconhece-o unicamente como semelhante, isto é, “il [o personagem] est un moi comme j’en suis en moi-
même. Je l’aime non comme s’il était moi mais parce qu’il est un moi et que tout être ayant la dignité d’un
moi appelle l’amour”. (GOUHIER 1952:135). “[...] ele [o personagem] é um Eu como eu também sou em
mim mesmo. Eu o amo não como se fosse eu mesmo, mas porque ele é um Eu e todo ser, que tenha
dignidade, desperta o amor”. [tradução nossa].
48
“O que acontece parece dramático ou trágico a um espírito que fixa o real com o desejo de ir até o fim ou
até o fundo de sua historicidade. O mico requer um outro tratamento: não se trata mais da existência
colocada a nu, mas de uma existência submetida a um tratamento que a esvazia de histórias demasiado
pessoais”. [tradução nossa].
138
De là son ambiguïté qui le situe entre l’essence intemporelle et l’existence
historique: comme l’essence, il est détaché de l’existence historique, mais,
ouvert sur l’existence historique, il ne signifirait rien s’il n’était déjà, en quelque
manière, ce qu’il deviendra. Quoiqu’il ne soit plus une personalité, il est encore
un personnage: un personnage en quête de personnalité.
49
(1952:157).
À la recherche da personalidade perdida. Esquecida, talvez, por sua própria
distração à vida. Dispersão que se transforma em rigidez. De certa maneira, usando
palavras de Bergson, podemos pensar o personagem cômico cindido entre sua rigidez de
caráter e uma almejada flexibilidade. Maleabilidade que o tornaria agente de seu tempo e
de si mesmo. Mas, ao mesmo tempo, dialético por natureza, carrega consigo o drama de
ser e existir, aproximando-se, por isso, ora do tipo, ora da personalidade. Na medida em
que Alceste é o Misantropo, de Molière, simplifica-se ao tipo, ganhando em comicidade.
Mas, quando este mesmo tipo é novamente Alceste, ou seja, quando o leitor-espectador
percebe-o como um homem amargurado por suas desventuras, descrente da humanidade,
mas que, ao apaixonar-se por Celimene, coloca-se novamente em risco numa aventura
amorosa que já se sabe (e ele mesmo também o sabe) será frustrada, restitui-se sua
personalidade perdida, mesmo que temporária ou parcialmente.
Através desse drama da comédia ou do personagem cômico, que o leva do tipo à
personalidade e vice-versa, Gouhier mostra-nos que não podemos vinculá-lo unicamente à
imagem da marionete como fizera Bergson. Na sua mania, nos seus gestos impensados, na
sua ilogicidade, percebem-se vestígios de personalidade. Conflitos que nem sempre
expõem seu ridículo ou despertam nosso gargalhar, nosso escárnio. Nem nosso discreto
sorriso de superioridade. Mas lampejos de vida que podem levá-lo tanto ao patético quanto
ao risível. Possivelmente ao enternecimento, como diria Diderot. Assim também procedem
os personagens marinhos, sobretudo, em suas comédias sérias. Em Um sábado em 30,
personagens movidos por traços individualizantes que os distinguem dos outros e que os
acompanham do começo ao final da peça; restringindo-os, ocasionalmente, ao tipo. Não
variam substancialmente, apenas se desenvolvem a cada nova situação, reforçando sua
especificidade, a rigidez de seu caráter. Porém, de diferentes maneiras e tons, podemos
surpreendê-los em flagrantes de dramaticidade. Indícios de uma hipotética, ou mesmo,
explícita subjetividade que os fazem escapar ao tipo, justificando o porquê de seu autor
considerá-los sisudos.
49
“Daí sua ambigüidade que o situa entre a essência intemporal e a existência histórica: como essência,
sobressai-se da existência histórica, mas, aberto sobre a existência histórica, ele não significaria nada se não
fosse, de alguma forma, aquilo que ele se tornará. Ainda que não seja mais uma personalidade, ele é ainda
um personagem: um personagem em busca de personalidade”. [tradução nossa].
139
2.1.7. As surpresas do amor e o acaso do desejo
Na construção de sua dramática, Marinho nunca preocupou-se em estabelecer elos
com a literatura clássica, muito menos refletir a dramaturgia de um Plauto (254-184 a.C.),
de um Terêncio (190-159 a.C.), de um Shakespeare (1564-1616), de um Molière (1622-
1673), tal como procederam dramaturgos como Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho,
contemporâneos a Marinho e que também tomaram o Nordeste como celular mater para a
produção de suas obras. Todavia, neste estudo, pretendemos seguir numa outra direção,
criando uma interlocução de Marinho com a comédia nova latina, sobretudo, com as
comédias de Terêncio, interlocução esta que talvez lhe fosse “suspeitosa”. Marinho não
buscou inserir-se em nenhuma tradição pelo menos não declaradamente que não fosse
as cartografias afetuais de sua memória. Memórias de sua infância, de tudo que vivenciou,
mas que sempre recriou em sua dramática, retomando os mitos obsessivos do gênero
cômico (MAURON [1964] 2000), involuntariamente ou não, e colocando sua obra em
diálogo com a tradição ocidental da comédia.
Encontra-se na comédia nova a principal fonte das imagens obsessivas que no
gênero cômico, segundo Charles Mauron, configuram-se numa fantasia triunfal.
Contrapondo-se à comédia antiga, nela há um deslocamento da cidade como tema central
para os conflitos presentes dentro da casa burguesa. O fantástico das intrigas de
Aristófanes (445-385 a.C.) é substituído pela simplicidade do real que permeia o cotidiano
doméstico. O centro da intriga na comédia nova é o amor, principal fonte de preocupação,
tanto ao nível pessoal quanto ao nível dos problemas familiares. O adultério pode apenas
ser evocado, pois, de fato, o único conflito profundo que existe, é o que opõe pai e filho.
Nesse esquema da situação dramática, o filho representa o desejo, enquanto que o pai é o
obstáculo e o árbitro. É o chefe de família todo-poderoso, tomando da esposa qualquer
poder de decisão. Comparativamente, segundo Luiz Paulo Vasconcellos (1987:50), a
comédia nova aproxima-se mais do melodrama e da comédia de costumes que da sátira
política, iniciada pela comédia antiga.
De uma maneira geral, a estrutura revelada na sobreposição das obras de Terêncio
caracteriza-se por um estado de quase equilíbrio e cuja necessidade de ação rompe-o
apenas de maneira tênue. Nas residências burguesas, bem fechadas à interferência de
elementos exteriores, convivem respeitosos e corretos maridos, vizinhos amigáveis (apenas
com algumas nuanças cômicas) e virtuosas matronas. Com respeito aos filhos, os pais
140
tendem a oscilar conscientemente entre a severidade e a indulgência. Os filhos, por sua
vez, são respeitosos e plenos de remorsos, na medida em que satisfazem seus desejos.
Devido à profundidade da psicologia de seus personagens e da complexidade da intriga, as
comédias de Terêncio tendem, ao mesmo tempo, para o enfraquecimento da comicidade e
para a duplificação da intriga. O tema da violação sobrepõe-se de forma expressiva. Dentre
as seis peças produzidas pelo autor, quatro apropriam-se desse tema: Ândria, Hécira ou A
sogra, O eunuco e Os adelfos. Os estupros são regularmente cometidos pelos filhos que,
posteriormente, os reparam através do casamento. Nesse sentindo, a farsa desaparece pelo
reconhecimento e redenção do filho que anula sua culpa. Em A sogra, peça que, segundo
seu tradutor Walter de Medeiros, “está na base do drama burguês dos últimos séculos”
(1994:9), protótipo do genre sérieux propugnado por Diderot, um jovem marido duvida da
moral de sua esposa quando esta, após seu retorno de uma longa viagem, à luz a uma
criança, supostamente, ilegítima. Todavia, descobre-se que a jovem esposa fora estuprada
antes do casamento e que seu violador era o próprio marido. Desfeito o engano, a jovem
restitui sua honra e o esposo livra-se de qualquer dúvida ou culpa, fazendo a comédia
caminhar, naturalmente, rumo ao seu happy end.
Outro tema caro à comédia nova são as situações de reconhecimento. Geralmente,
os jovens apaixonam-se por cortesãs, escravas ou órfãs, moças de moral ou posição social
inadequada às exigências da família dos pretendentes. Contudo, para o triunfo do amor, tal
situação de impasse é resolvida com o reconhecimento da jovem como a filha perdida ou
bastarda de uma tradicional família, desfazendo as barreiras sociais que ameaçavam o
idílio dos apaixonados. Por exemplo, em Fórmio, Antifão casa-se sem o consentimento de
seu pai (Demifão), com uma órfã (Fânio) sem dote. Depois, arrepende-se do que fez,
temendo as futuras retaliações do pai, um velho avarento e autoritário. A situação apenas
se inverte quando descobre-se que seu tio Cremes possuía uma filha, fruto de uma relação
extra-conjugal, na cidade de Lemmos, onde ia constantemente sob o pretexto de cuidar das
propriedades da esposa. Acontece que a moça já estava em idade para casar e Cremes tinha
a obrigação de arranjar-lhe marido. Para não ter que dar satisfações à sociedade nem à sua
esposa sobre as origens da moça, decide junto com seu irmão casá-la com seu sobrinho
Antifão a quem, por uma surpresa do acaso, a jovem se encontrava ligada pelos laços do
matrimônio. Vindo a Atenas (cidade onde a comédia se passa) à procura do pai, torna-se
órfã da mãe, que morre de “desgosto” no meio da rua, e conhece Antifão que a ampara,
casando-se logo em seguida. Como se despertando de um pesadelo, todos os temores de
Antifão são superados e os obstáculos vencidos, nada mais podendo atrapalhar sua união
141
com Fânio. Além disso, todos saem satisfeitos, porque aos amantes é concedido o direito
ao amor e os interesses dos pais são alcançados. Inverte-se a situação de angústia,
triunfando o amor.
Em Um sábado em 30, assim como nas comédias de Terêncio, são as questões
familiares que ocupam o centro da intriga. A harmonia familiar é o objetivo almejado pela
matriarca da casa, D. Mocinha, mãe e esposa virtuosa que, assim com a maioria das
matronas da comédia nova, diante do marido não possui nenhuma autoridade. Pelo menos
até o desfecho da trama quando se uma reviravolta no personagem. O amor também
surge como um de seus principais temas. Similarmente às peças de Terêncio, em Um
sábado em 30, as questões relativas ao triunfo do amor sobre a sanção familiar, sobretudo,
a paterna, são apresentadas a partir da exposição das peripécias de dois rapazes
apaixonados (Fórmio e O eunuco). No caso, em Um sábado, substituem-se os rapazes da
comédia nova por duas moças: Mercês e Maria de Jesus. As duas contrapõem-se à
autoridade dos mais velhos, censores dos seus desejos, que as oprimem em nome da moral
e da tradição. Elas almejam a liberdade que os tempos modernos trazem: namorar, dar
“beijoca”, ler livros “de homem”, etc, constantemente tentando transgredir os limites
estabelecidos. Contudo, diante da autoridade paterna, permanecem submissas e respeitosas.
Nas peripécias amorosas de Maria de Jesus e Mercês encontramos, na verdade,
esboços de uma outra comédia. De uma comédia sobre o amor e seus acasos, ainda em
seus primeiros traçados, finalizada abruptamente por seu autor, em cuja armação da intriga
e personagens ecoam a herança longínqua da comédia latina. Maria de Jesus envolve-se
com Roger, artista de circo, de nível social inferior ao seu. De imediato, torna-se
impossível a continuidade do romance devido às diferenças sociais que os distinguem e
separam. Além disso, a própria moral patriarcal que exige o decoro da mulher castra os
ideais românticos tanto de Maria de Jesus quanto de Mercês. Segundo este dogma, as duas
devem voltar seus pensamentos às questões familiares e religiosas, aguardando
resignadamente a escolha de seus respectivos maridos pelos parentes mais velhos e o dia
do casamento quando assumirão suas próprias famílias. Praticamente, o amor é expulso
desse contexto. No entanto, as duas encontram-se numa época de grandes transformações
sociais, onde lentamente é percorrido “todo um pedregoso caminho para que os indivíduos
ousassem se libertar da influência da religião, da família, da comunidade ou das redes
sociais estabelecidas pelo trabalho”. (PRIORE 2005a:231). As mulheres começam a dizer
não, os casais passam a se escolher mutuamente, baseando as relações matrimoniais no
sentimento recíproco; o casamento por conveniência torna-se vergonhoso e o amor deixa
142
de ser uma idéia romântica, transformando-se no cimento da relação: os “jovens libertam-
se dos pais e o casamento romântico tornou-se, nas áreas urbanas e rurais, o sistema
dominante de consórcio”. (PRIORE 2005a:236). Este é o principal embate desses dois
personagens e o que justifica e caracteriza suas existências: disputa entre pais e filhos,
choque entre gerações, onde se contrapõem diferentes modos de se conceber as relações
amorosas, ressuscitando o conflito primordial que, segundo Charles Mauron, caracteriza a
comédia: direito ao amor face às interdições paternas; disputa entre pai e filho.
Porém, diferentemente da comédia nova, o amor não triunfa completamente. Maria
de Jesus seu romance com Roger ser frustrado pelos sucessivos obstáculos impostos
pela família: é vigiada constantemente por Sá Nãna, que não acredita no amor, mas apenas
na moral religiosa e na sexualidade animal do homem, desejo contra o qual a velha tenta
sempre prevenir as moças da casa; as interdições de D. Mocinha e Major Paulino e,
finalmente, o veto paterno (Seu Quincas), que não se pode transgredir. Como golpe de
misericórdia, Maria de Jesus ainda sofre com a partida do circo, levando consigo seu galã
Roger. Mais sorte tem sua irmã Mercês apaixonada por um primo distante, Gustavo, que,
apesar de ser um soldado perrepista, é filho de uma sobrinha e afilhada do Major Paulino, o
que lhe garante de imediato a estima da família. Assim como nas comédias de Terêncio, o
rapaz passa por um processo de reconhecimento em que se constata sua posição social
semelhante à da família da moça. Da mesma maneira que Mercês, Gustavo também é filho
de um senhor de engenho, além de possuir laços parentais com sua família. Na hierarquia
coronelística, trata-se de duas parentelas afins, solidárias entre si. Por isso, as perspectivas
amorosas da moça configuram-se como promessas seguras de felicidade, pois formarão um
perfeito casal, de acordo com os moldes da tradição patriarcal.
Todavia, estamos a falar de uma comédia, e mesmo que haja desilusões amorosas,
toda a amargura é desfeita, de súbito, como o despertar de um sonho ou de um pesadelo:
logo após a chegada de Vasco da guerra, as dores de Maria de Jesus são imediatamente
esquecidas, dando lugar à alegria de reencontrar o irmão. Volta-se à leveza da comédia que
se encerra num aparente happy end. Caso os conflitos que opõem pais e filhos fossem
aprofundados, da comédia iríamos ao drama ou à tragédia, mergulhando completamente na
existência histórica de seus personagens, suas personalidades; mas estes também são
cômicos em sua essência e de sua existência, desprende-se o tipo. Nesse sentido, Mercês e
Maria de Jesus são duplos, cujos únicos elementos que as diferenciam como personagens
são seus nomes e o desfecho de suas respectivas peripécias amorosas. Distinguem-se como
tipos pelo seu enrijecimento para a vida social.
143
Seu traço individualizante é o desejo de amar: uma vontade que, pela intransigência
de fazer-se cumprir, torna-se numa mania, uma idéia fixa que as faz, por vezes, caírem no
ridículo. Como na chegada de Gustavo à casa de Seu Quincas, não se apiedam do
lamentável estado em que o rapaz se encontra ou da tragédia que se abateu sobre sua
família. Apenas deixam-se seduzir pelos seus atributos físicos. Não o enxergam como um
soldado do partido inimigo (um perrepista) à beira da morte, mas somente um possível
namorado, um belo rapaz, um “bom partido”. São tipos cômicos na medida em que se
fixam excessivamente no seu desejo de arranjar namorado, reagindo não de acordo com as
circunstâncias, mas sobrepondo sua mania a cada nova situação. Nesse sentido, elas
transformam-se nas enamoradas da commedia dell’arte, arquétipo que existe apenas em
função do amor. Existem para amar. Assim como as jovens, Gustavo também torna-se num
enamorado quando, ao chegar à casa de Seu Quincas, esquece-se das provações pelas
quais passou (fome, sede, morte do irmão, dos amigos, saudades da família) para dedicar-
se inteiramente à sua súbita paixão por Mercês. Despoja-se de sua historicidade pessoal, de
sua existência na guerra e converte-se ao ser amoroso que nasce dentro de si, ao estado de
plenitude e esquecimento que é o amor. Como exemplo de seu abandono, na mesma noite
em que chega à casa, ainda ensangüentado pelo tiro que levou, não deixa de flertar com
Mercês:
GUSTAVO - Sinto-me razoàvelmente feliz... depois de tanto sofrimento... tive
o prazer de vir conhecer tanta moça simpática!...
QUITÉRIA - (Rindo) Obrigada, pela parte que me toca! (Riem todos)
GUSTAVO - Como se chama?
QUITÉRIA - Eu, Quitéria, esta, Jesus, tem namorado! E esta... Mercês, livre e
desimpedida como eu! (Riem animadamente)
GUSTAVO - Desimpedida? Que sorte!
MERCÊS - Como é seu nome?
GUSTAVO - Gustavo, gosta? (MARINHO 1968:84).
Tal lógica está de acordo com a ilogicidade que rege a comédia. O apreço ao real já
tão destacado em Marinho, aqui desaparece em detrimento do non-sens. A comédia exige
essa falsificação do real e brinca com ela para melhor empreender seu jogo diante do
espectador. Aliás, a comédia brinca com o espectador, com sua credulidade, transitando do
non-sens à verossimilhança, da essência à existência e vice-versa. Se Gustavo
permanecesse mergulhado em sua personalidade, nos dramas que viveu e que ainda está a
144
passar (com a perda do irmão e a destruição da fazenda da família) não poderia se deixar
invadir pelo amor tão prontamente, transformando completamente a comédia num drama.
Assim como Mercês e Maria de Jesus, Gustavo é um personagem cômico que transita entre
o tipo e a personalidade. Melhor, ele é um personagem em busca de personalidade.
Outros personagens cômicos que fogem ao modelo da comédia nova, mas que têm
igualmente o triunfo do amor como principal objetivo e também fonte de comicidade são
Seu Severiano e Quitéria. Seu Severiano é um bicheiro solteirão, passado na idade, mas
que ainda acalenta o sonho de casar-se e constituir família. O objeto de seus devaneios
amorosos é a vitalina Quitéria que, não desconhecendo as intenções do velhote, faz-se de
desentendida para melhor se divertir às suas custas. Ambos constituem tipos cômicos,
cujos traços essenciais os individualizaram a tal ponto que a procura de uma
personalidade para os dois torna-se uma tarefa quase impossível, pois, além de serem
personagens secundários, são uma das maiores fontes de comicidade da peça, o
conseguindo escapar do tipo. Como exemplo, nas descrições que Marinho faz de Quitéria
já se denota a comicidade de suas formas: Entra Quitéria. Gorda, vitalina, gaiata,
sapeca, risonha, usa óculos, etc”. (MARINHO 1968:30). O pormenor de sua descrição
física mostra que se trata de um tipo cômico, cuja ênfase às suas formas desproporcionais o
reduz à sua exterioridade; denota seu hábito de comer excessivamente, que a tornaria
pesada e desengonçada, mas que, segundo a descrição de Marinho, é justamente seu
contrário o que se em cena ou se imagina: ela é sapeca, ou seja, buliçosa, irrequieta,
brejeira, assanhada, cheia de vida e humor, chistosa e de uma malícia coquete.
Características que, no decorrer da ação dramática, vêm a se confirmar. Do contraste de
sua forma aos seus movimentos e ao seu caráter surge, portanto, sua comicidade. Como diz
Bergson: “Quando a matéria consegue espessar assim a vida da alma, congelar seu
movimento e contrariar sua graça, obtém um efeito cômico do corpo. Se, pois, quiséssemos
definir aqui a comicidade aproximando-a de seu contrário, caberia opô-la à graça, mais do
que à beleza. É mais rigidez que fealdade”. ([1900] 2004:21).
A vitalina, porém, ainda guarda esperanças de se casar, como o dissera a Seu
Severiano, explicitando como seu futuro marido deverá comportar-se moralmente:
“Quando casar, meu marido ou anda na linha ou deserta!” (MARINHO, 1968:34).
Comporta-se como as sobrinhas à caça de namorados, sempre brejeira à espera de também
encontrar seu príncipe. Contudo, não é bonita nem é mais jovem. Mesmo assim, quando sai
para a feira, continua a preocupar-se com a própria aparência, olhando-se e “se ajeitando”
145
demoradamente diante do espelho, o que demonstra a intenção de querer estar sempre
apresentável e quiçá desejável, caso conheça algum “belo rapaz”. Como as sobrinhas,
Quitéria é uma enamorada, porém uma enamorada ridícula, cujas preocupações resumem-
se à realização amorosa, ou seja, sair do caritó. Como conseqüência de sua idéia fixa, seu
endurecimento do caráter, não se percebe ou não se aceita como solteirona (comporta-se
ainda como uma adolescente coquete), cujo único pretendente, ainda disponível, ela não
leva a sério, transformando-o em alvo de seus gracejos, é o também solteirão Seu
Severiano. Da mesma maneira, este é um tipo ridículo, essencialmente cômico. Nele,
destaca-se a comicidade dos gestos e dos movimentos. Logo em sua primeira cena, pode-se
constatar este tipo de comicidade na descrição que Marinho faz:Dá uma catucada com os
cotovelos e depois puxa um talão de passar bichos”. (MARINHO 1968:29). Essa mesma
catucada
50
repete-se no final dessa cena quando o bicheiro está a flertar com Quitéria. O
solteirão indaga-lhe que tipo de homem deseja para casar, se um homem maduro, mas
trabalhador e que dê “conta do recado” ou um moço vadio, um pilantra. A vitalina
responde seriamente que prefere um pilantra, deixando-o completamente surpreso e sem
jeito (a vitalina está a gozar da boa de Seu Severiano). Assim, ele reage: “[...] faz um
gesto de surpresa, arruma-se, catuca-se e pede licença e sai na hora que D. Mocinha vai
entrando”. (MARINHO 1968:34). O mesmo movimento de catucar-se volta a se repetir
nesta cena, como se num gesto automático, onde o mecânico sobrepõe-se ao vivo. O
catucar-se, portanto, seria um movimento que de tanto ser repetido pelo bicheiro em suas
diversas situações profissionais, fixa-se em seu corpo, ocultando sua personalidade. Por
isso, devido ao seu automatismo, mesmo em situações inesperadas que exigiriam uma
reação diversa, o bicheiro recorre novamente ao mesmo movimento, revelando sua
desatenção à vida e, consequentemente, sua rigidez. Dessa forma, temos acesso à sua
exterioridade, ao que se manifesta como repetição e automatismo, conotando um
movimento mecânico e que, por isso mesmo, aos olhos do leitor-espectador e dos demais
personagens da peça, caracteriza-o como um personagem cômico, passível de imitação e
escárnio: “As atitudes, os gestos e os movimentos do corpo humano são risíveis na exata
medida em que esse corpo nos faz pensar numa simples mecânica”. (BERGSON [1900]
2004:22).
Se Quitéria é uma enamorada ridícula, Seu Severiano, seu duplo masculino, é um
enamorado ridículo. Ambos se equivalem, completando-se. Assim como sua amada, o
50
Catucada ou cutucada vem do verbo catucar (cutucar) que significa espetar, mexer. Cf. CATUCAR in
BERNARDINO (2002:67).
146
bicheiro é um homem “já gasto” pelo avançar da idade e pelo “puxar” do trabalho, mas
comporta-se como um galã ao tentar seduzir sua ingênua. Insistindo em conquistá-la,
imagina que, para chamar sua atenção, deve vestir-se como um “pilantra”: roupa
domingueira, chapéu de palhinha, bengala na mão, cravo roxo na lapela, - um verdadeiro
almofadinha, porém ridículo, cabelo partido ao meio e vasilinado”. (MARINHO 1968:53).
Quitéria, disfarçando o riso, pergunta se ele vai à capital. Com convicção, o novo galã
responde: “Não! Eu agora vou vestir assim! Não sou mais homem trabalhador... agora
sou um pilantra!!!” (MARINHO 1968:53). O que faz reforçar sua comicidade e
insensatez, servindo mais uma vez de motivo de galhofa, inclusive, de sua amada, tão
digna de escárnio quanto ele. Mas talvez a cegueira de Quitéria diante de seu próprio
ridículo seja maior do que a de Seu Severiano, porque a vitalina denuncia no bicheiro a
mesma rigidez que ela também possui. Sua falha cômica é ainda maior, pois o
discernimento que tem para uns não tem para consigo mesma. Quanto a Seu Severiano, se
por acaso ele não vislumbra o vício cômico de sua amada, é porque é mais ingênuo e,
sobretudo, porque o amor torna-o cego. Se esse fato o redime por um lado, por outro
também reforça sua rigidez de caráter: o amor como uma idéia fixa. Por isso, ambos são
cômicos, verdadeiros enamorados ridículos.
Retomando o diálogo com a comédia nova, de Terêncio, destaca-se o personagem
Romeu que representa o jovem cujo desejo opõe-se à autoridade paterna. Sedutor da
empregada Filó, é conhecido pelos demais serviçais da casa como desencaminhador de
moça direita e que “na voz de mulher, é uma perdição”. (MARINHO 1968:21). Como diz
Chico com gracejo, defendendo-o do rótulo de brigão colocado por Sá na, “Seu Romeu
não é de briga, não. Ele é de reprodução”. (MARINHO 1986b:39). Por sua sexualidade à
flor da pele, que não pode ver um “rabo de saia”, leva o escândalo à família ao desvirginar
Filó, dentro da própria casa, onde também moram mãe e irmãs, deflagrando a ira de seu
autoritário e austero pai. No entanto, ao contrário dos jovens enamorados da comédia nova,
Romeu não luta pelo triunfo do amor, mas pelo triunfo do desejo sobre as interdições de
Seu Quincas, personagem este que também se encontra entre a severidade e a indulgência,
assim como os pais da comédia nova. Personagens das comédias de Terêncio, como
Quérea, de O eunuco, que violam a jovem por quem se apaixonam, justificam seu estupro
em nome do amor. Além disso, redimem-se da culpa, casando-se com as moças que
outrora desrespeitaram, fazendo com que o amor e a dignidade sobreponham-se à
irracionalidade do desejo. Todavia, aqui não se encontram os ecos dessa comédia latina
147
em Romeu, cuja ação e motivações levam-no justamente a um caminho oposto. Nele, o
amor é obliterado em detrimento exclusivamente de seu desejo. Desejo movente que o leva
sempre a uma nova conquista, tal como acontece com o personagem arquétipo da comédia,
Don Juan, cuja mobilidade do desejo é seu traço individualizante.
Porém as conseqüências de suas ações são tão conflitantes quanto seu modelo
latino. Apesar de seu envolvimento com Filó ter sido concedido pela moça, que se deixou
seduzir por sua “lábia” e sex appeal, tal ato é tomado por Seu Quincas como escândalo
moral, verdadeiro estupro, ultrajando toda a família e prejudicando fatalmente a honra da
serviçal. Como reparação, o pai exige o casamento de ambos, da mesma maneira que os
estupros da comédia nova são contornados, contra a vontade de Romeu que, insubmisso à
autoridade paterna, abandona a casa abruptamente. Comporta-se como o personagem
mítico do qual também descende: Don Juan que, por desafiar o “pai eterno”, é
transformado numa estátua de pedra. Mas, para o alívio de Romeu, seu autor lhe reservou
uma melhor fortuna.
Por outro lado, a moral do pai também é colocada em questão por Nãna, que o
acusa de ter tentado desonrar a cozinheira Joana da mesma maneira que seu filho agira
com Filó. Assim como na comédia nova, o fantasma do adultério ameaça a moral paterna,
fragilizando sua autoridade sobre o filho. Depois dessa revelação, a crise instala-se na
família e D. Mocinha, que já estava indignada com a imposição do marido de casar Romeu
com uma empregada, decide voltar para a casa do pai e abandonar Seu Quincas. Apenas o
retorno de Vasco consegue arrefecer os ânimos e restabelecer a paz. Romeu volta para
casa, trazendo uma solução que Seu Quincas, naquele momento, não poderia mais recusar.
Traz o noivo de Filó que estava escondido “no mato” para não ser levado à Revolução.
Este vem disposto a buscar sua noiva e casar-se com ela, mesmo não sendo mais virgem.
Provavelmente, o tropeiro fez um acordo com Romeu e, por isso, aceitou Filó novamente.
Tudo se resolve “amigavelmente” e Seu Quincas, com a moral abalada, é obrigado a
aceitar a solução do filho para escapar da fúria de D. Mocinha que, diante de todas essas
revelações, sofre uma reviravolta, deixando de ser a esposa submissa.
Os conflitos deflagrados pela oposição pai e filhos são aparentemente reparados,
por revelações e chegadas inesperadas (a revelação do quase adultério de Seu Quincas e o
retorno de Vasco) e pela astúcia de Romeu. Porém, aqui não superação da angústia
através da fantasia de triunfo, tal qual na comédia nova. Pelo contrário, os conflitos são
contornados à brasileira, como manda nossa tradição patriarcal, permanecendo, por isso,
latentes. A honra da empregada não é salva, mas remediada; o filho violador nem chega a
148
sofrer pela culpa; desvia-se, portanto, do arquétipo do filho submisso ao pai. Seus atos não
são impulsionados pelo amor, mas unicamente pelo acaso do desejo, fazendo-o aproximar-
se, portanto, do mito literário de Don Juan, embora dele também se afaste ao escapar do
castigo do “pai eterno”. Romeu não se casa, muito menos é transformado em pedra. Nesse
festim, o amor não triunfa. Aliás, ele nem chega a existir, pois é devorado pelo erotismo
ardente do “burlador” de Timbaúba. Seu Severiano e Quitéria são derrotados pelos seus
próprios vícios, permanecendo à procura do amor e são, por isso, motivo de escárnio. Os
solteirões continuaram a ser os enamorados ridículos. Maria de Jesus também não tem
uma melhor sorte, pois foi coagida pelo veto patriarcal, perdendo seu artista de circo. Mais
sorte teve sua irmã Mercês, que se apaixonou por Gustavo, soldado perrepista ferido
durante a revolução, acolhido e medicado na casa de Seu Quincas graças ao seu parentesco
com família de Major Paulino. Devido à igualdade social, o amor é salvaguardado. No
geral, trata-se, portanto, não da fuga à fantasia, mas da estagnação na fatalidade social. A
fantasia de triunfo sucumbe ao pesadelo que a realidade patriarcal brasileira representa.
2.1.8. Coronéis & arlequins
A presença dos personagens idosos em Um sábado em 30 torna-se importante para
o desencadear da trama, pois eles trazem consigo um elemento que, geralmente, não
aparece nas comédias: a memória. O velho Major Paulino, pai de D. Mocinha e da
solteirona Quitéria, traz a memória da Guerra do Paraguai (passado), a da Revolução de 30
(presente), uma memória coletiva que extravasa o cotidiano da casa e do provincianismo
dos seus personagens, circunscritos a seus próprios dramas, desejos ou manias. Confere
uma historicidade a Um sábado, situando-a no contexto histórico dos anos 30, da
Revolução e do Coronelismo. Através de seus relatos, tomamos consciência dos
acontecimentos políticos que precederam e serviram de estopim ao deflagrar da
Revolução: o assassinato do então governador do Estado da Paraíba, João Pessoa
Cavalcanti.
Toda a parentela é adepta da Aliança Liberal, embora só o velho Major pareça ser o
mais engajado de todos os membros da família, beirando muitas vezes ao ridículo, tal é o
seu fervor revolucionário. Nesta casa, existem duas parentelas afins, ligadas pelos laços
matrimoniais que uniram Seu Quincas a D. Mocinha. A primeira, é representada por Seu
149
Quincas, ou simplesmente Joaquim, como o Major Paulino costuma chamá-lo
51
, um
senhor de engenho da Zona da Mata, com residência em Timbaúba. Possui grande
prestígio na cidade e em suas redondezas, agregando uma grande quantidade de
compadres, comadres e afilhados, além de seus empregados. Usando palavras de Pereira de
Queiroz, esta é a sua gente. Gente sempre dependente, inculta e submissa, a quem Seu
Quincas concede favores por intermédio de sua Mulher: presenteia as comadres (Duas
Mulheres ou Luzia) dando roupas e remédios para suas crianças. Em retribuição, seus
“matutos” prestam-lhe devoção e amizade, simbolizadas em pequenos “agrados”:
MULHER - Bom dia para todos!... [...] Olhe aqui comadre! Trouxe, com
licença da palavra, esse capão e esses ovos para a senhora! Os ovos são
fresquinhos... da quinta-feira para cá e o penoso, foi cevado por sua afilhada!
D. MOCINHA - Que incômodo comadre! Não precisava desse trabalho!
MULHER - Não é trabalho nenhum! Mais, devemos a vocês todos! Pobre
paga favor é com esses agrados mesmos!... (MARINHO 1968:38-40).
Relação afetual que se pelo sistema de favor, outra característica do
coronelismo, onde se mede a importância de um “coronel” verificando sua capacidade em
conceder favores, o que aumenta sua rede de influências e, consequentemente, seu poder.
A segunda parentela pode ser representada pelo Major Paulino, velho de 85 anos, patriarca
de uma tradicional família da Paraíba: os Teixeira Cavalcanti. Provavelmente, para
imprimir uma maior veracidade, Marinho lhe conferiu um sobrenome famoso, pertencente
a importantes personalidades da Revolução de 30: João Pessoa Cavalcanti e Carlos de
Lima Cavalcanti. O que justifica sua adesão à causa liberal e insinua ao leitor-espectador
mais bem informado uma possível ligação parental entre este personagem ficcional e esses
dois personagens históricos.
Major Paulino Teixeira Cavalcanti fora voluntário na Guerra do Paraguai, de onde
lhe vieram o título de Major e um olho cego. Pela patente marcial, percebe-se que não é
51
Intimidade concedida ou tomada exclusivamente pelo velho Major. Fato que explicita a hierarquia que rege
essas relações parentais. A terminologia marcial (coronel, major, etc.) rege as relações entre as diversas
parentelas e seus respectivos membros como uma forma de demarcação do papel que cada integrante ocupa
nessa sociedade. Em nenhum momento, é atribuído a Seu Quincas alguma denominação marcial, nem entre
seus empregados que o tratam com o máximo respeito. Todavia, em Viva o cordão encarnado, Seu Quincas é
conhecido pelos freqüentadores do pastoril do Velho Matraca (Heronides) como Major Quincas, o que
reforça nossas correlações entre a sociedade recriada por Marinho no seu réquiem à infância e o coronelismo.
Provavelmente, Major Paulino está ou sente-se acima do genro na hierarquia coronelística e, por isso,
somando-se, possivelmente, a certa afetividade, trate-o pelo primeiro nome. Afetividade que está sempre
sujeita a desentendimentos e a querelas mortais entre membros de uma mesma parentela ou de grupos de
parentelas afins, como afirma Pereira de Queiroz (1977).
150
um grande coronel, mas um líder local de segundo escalão que, provavelmente, pela
escassez de suas posses quando jovem, ao ir para a guerra, não pode receber um título
maior. Inclusive, apesar de descender de uma família tradicional, insinua-se que sua
fortuna fora adquirida de maneira ilegal na Guerra do Paraguai. Também podemos supor
que sua fidelidade ao Partido Liberal, que o fez induzir o neto Vasco a partir para a
Revolução como ele mesmo o fizera na juventude, deve-se à sua posição de menor
prestígio ou subordinação a outros senhores de terras do partido, a que, como sinal de
solidariedade, fora obrigado a enviar alguém de seu próprio sangue ao campo de batalha.
Precisava preservar o nome da família e salvaguardar sua posição entre as demais
parentelas da região. Como ele mesmo o diz: “Era um dever! O Partido precisava de nossa
ajuda! Não será na quinta geração, que os Teixeira Cavalcanti fracassem!”. (MARINHO
1968:37).
Todavia, é um velho licencioso e ridículo. Sua historicidade patriarcal cristaliza-se
no autoritarismo e no machismo que caracteriza o sistema do qual descende,
transformando-se num tipo cômico. Seus aspectos cômicos podem ser avaliados
comparando-se as duas versões de Um sábado em 30. Na primeira, cuja comicidade é
atenuada, mencionam-se apenas os caracteres que virão de fato a ser desenvolvidos na
versão de 1986: Sá Nãna adverte os empregados da licenciosidade de Major Paulino.
Assim, ela refere-se ao personagem:
NÃNA [...] Os homens dessa casa são mesmo que barrão! [porco
reprodutor]... (estalando o dedo) Isso vem de longe! Não vê esse velho cego, ai?
Unh! Era mesmo que pai de chiqueiro! E tem uma coisa! Ainda hoje, não
aconselho a mulher nenhuma, em tempo de lua, dizer perto dele que estão
sozinhos!... (MARINHO 1968:21).
Contudo, essas características corporificam-se na segunda versão da peça,
publicada pela Revista de Teatro da SBAT, ampliando sua comicidade. Nesta, o velho
cego, ao pressentir a aproximação de qualquer moça, tem por hábito passar a mão em seu
traseiro. Ao discutir com Luzia sobre a Revolução, Major Paulino aproveita-se da
proximidade da comadre para alisá-la. Atitude que tentará repetir em situações posteriores,
mas que devido à sua cegueira, proporcionará sucessivos enganos e novos momentos de
riso:
LUZIA - E o que foi que ganhou? Olho cego, não foi?
151
M. PAULINO - Se todos pensassem desse modo, vocês, também, não estariam
aqui, assim. (O major passa a mão no traseiro de Luzia, que se espanta).
JULIÃO - (Que vem da cozinha) Pronto a aguardente, major. (O major passa a
mão, também, no traseiro de Julião, por engano) Êpa, Seu Major!!! Sou eu!
(MARINHO 1986b:45)
Situação de engano que volta a se repetir quando Luzia despede-se dos donos da
casa, mas esta, prevenindo-se da mão boba do Major, desiste de lhe dizer adeus. Má sorte
de Sá Nãna que passava por perto, justamente no momento em que Luzia iria se aproximar.
Como diria a própria Sá Nãna, “lá vai catucada”:
LUZIA – [...]. Até outrora, comadre. (Saída falsa)
MOCINHA - Não fala com o major, não?
LUZIA - É mesmo. (Pára e se lembra do alisado) Não. Não carece, não. Até
outrora. (Sai) (Sá Nãna vai saindo e quando passa por perto o major pensando
que é Luzia, passa a mão)
SÁ NÃNA - Ôxente. Te enxerga, cego! (MARINHO 1986b:46).
Apesar de sua decadência física proporcionada pela velhice e pela cegueira, o velho
Major ainda preserva em sua essência o machismo e o autoritarismo de sua condição de
senhor. De sua existência de mandonismo e de subjugação do sexo oposto, preserva ainda
seus antigos hábitos que se cristalizam em sua essência à revelia de sua nova condição. Da
nova existência histórica, deveria passar em revista sua experiência, reelaborando a si
mesmo no presente, preparando-se para o devir. Resignificando a vida. Porém sua rigidez
de caráter transforma-o num tipo cômico: o velhaco libertino. Endurecido pelo hábito e
pela sua distração ao ritmo da vida, fecha-se em si mesmo, tornando-se apenas um
conjunto de traços individualizantes que o restringem ao tipo.
Mas como diz Gouhier, o personagem cômico aproxima-se ora do tipo, ora da
personalidade. Assim, identificamos Major Paulino quando este descreve o assassinato de
João Pessoa. Na cena em que seu neto Romeu retorna do engenho, Major Paulino pediu-
lhe que lesse o jornal, para saber o que a imprensa perrepista dizia sobre os últimos
acontecimentos. Injuriado com o que ouviu, entra num processo delirante de rememoração
do passado que lhe vem a partir da leitura do jornal, fazendo-o relembrar o que seus
ouvidos registraram no dia do assassinato do então governador da Paraíba.
Percebe-se que seu fervor revolucionário não redunda apenas em proselitismo, mas
numa obsessão quase cega ao Partido Liberal. Como se a essência do ex-combatente da
152
Guerra do Paraguai ainda estivesse a preencher a existência do velho Major. Denota, ao
mesmo tempo, o que lhe é risível e patético. A audição, que é sua janela para o mundo,
transforma-se na chave de acesso à memória. Retorna ao passado, presentificando-o, como
se continuasse a ouvir os tiros e os gritos daqueles que se encontravam ao seu redor na Rua
Nova, numa reminiscência que se assemelha a uma alucinação, tal é o grau de sua
excitação e de sua introspecção. Esquece-se da realidade exterior, não se dando conta de
que seu neto não mais lhe destinava atenção, preferindo cortejar a empregada. Quando
Romeu pergunta a Filó seu nome, quem primeiro responde é Major Paulino, pensando que
o neto indagava o nome do possível mandante do assassínio de João Pessoa: Washington
Luiz. Daí extrai-se a comicidade dessa cena que em sua amplitude denota o patético do
personagem:
M. PAULINO – [...] Mataram João Pessoa.
ROMEU - Quem é você?
FILO - Sou Filó, a ama nova...
ROMEU - Quem? (Agrada-a com o dedo)
M. PAULINO - João Pessoa. Vi logo o dedo. O dedo de Washington Luiz. (O
velho está transtornado. Levanta a bengala no ar e de pé, alguns passos
para a frente)
ROMEU - (A Filó) Como foi o nome?
M. PAULINO - Washington Luiz. Sim. Washington Luiz! Meu sangue liberal
ferveu-me nas têmporas e se não fosse a minha cegueira, nem sei... (MARINHO
1986b:48)
Major Paulino insiste em dialogar com o neto, como se este estivesse de fato
participando de sua mnemotécnica. De licencioso transforma-se em lunático; enrijece-se
em seu passado militar, transfigurando sua realidade num romance de guerra. Não é mais
Paulino quem fala, mas o Major, herói da Guerra do Paraguai, que narra os últimos
conflitos nos quais seu partido tivera uma grande perda com a morte de seu chefe maior,
João Pessoa. Mortifica-se pela perda de seu líder como um soldado em meio a uma
batalha, buscando novo sentido para continuar a lutar. Glorifica seu partido, como se
exaltasse a própria pátria, disposto a entregar sua vida em prol da grandeza de seu país.
Na chegada de Gustavo, novamente porta-se como Major, não se apiedando do
sofrimento do rapaz que agonizava. Trata-o como um soldado inimigo que deveria ser
preso e entregue às forças aliadas. O Major (o tipo) diz: “Não adianta! Ele é um soldado
inimigo! Eu sou um major, ele é meu prisioneiro! Vão entregá-lo!”. (MARINHO 1968:81)
153
Todavia, quando o jovem suplica para que avisassem ao pai onde estava e dizia o quanto
este mesmo pai o amava, a máscara de Major cai, trazendo de volta sua humanidade, sua
personalidade:
SOLDADO [...] Deixem-me aqui por hoje! Quando tudo isto passar, meu pai
será um eterno reconhecido de todos... ele me adora... (Nervoso) Meu pai!
Dêem notícias de meu pai!... (Põe as mãos nos olhos)
M. PAULINO - (Mais calmo e compadecido) Quem é seu pai?
SOLDADO - É o coronel Ludugero! Do engenho Guaratuba da Paraíba!
M. PAULINO - Ludugero de Guaratuba? Você é filho de Deoclécia, então! E
sabe? Deoclécia é minha sobrinha e afilhada!... Meu filho, como se meteu com
essa hoste tão velhaca? (MARINHO 1968:81-82).
Agora, como pai e avô, recorda-se que possui um neto na guerra e que este também
poderia estar passando por situação semelhante. Por sua simpatia ao rapaz,
momentaneamente despertada, indaga-lhe pelo pai. Descobre, então, que por um acaso o
jovem também era parente seu, chamando à sua consciência a ética e a solidariedade
coronelística. Decide acolher Gustavo em respeito à sua sobrinha e afilhada Deoclécia.
Como ele mesmo o diz: “- você é perrepista! [...] E só o ignoro porque é filho de
Deoclécia!”. (MARINHO 1968:83). As relações afetuais de seu sistema social sobrepõem-
se ao tipo: ele não é apenas um major, mas o Major Paulino Teixeira Cavalcanti.
Permanece na dialética entre o tipo e a personalidade.
Se Major Paulino e Seu Quincas representam o universo masculino dessa sociedade
patriarcal, Dona Mocinha apresenta-nos sua contraparte feminina. Através de sua presença
pode-se conhecer outros aspectos da classe da qual descende no que concerne ao papel
reservado à mulher, sua formação e sua subjetividade. Subjetividade circunscrita à
hegemonia do macho, reprimida, mas cuja mudança dos costumes, sinal da modernização
da sociedade, possibilitava-lhe uma viela para a liberdade. Podemos constatar esse sintoma
não exatamente no personagem de D. Mocinha, mas no comportamento de suas filhas
Mercês e Maria de Jesus. Saídas do engenho e embebidas na urbanidade que Timbaúba
lhes trazia, almejam o direito ao amor, o que arrepia os cabelos da matriarca e de seu pai,
Major Paulino. Na peça em questão, D. Mocinha reflete a típica mulher de boa família no
interior do Nordeste. Restrita ao lar, suas únicas e principais preocupações limitam-se à
educação dos filhos e à manutenção da casa. Rigorosa na educação moral das filhas, tenta
lhes impingir o recato sem muito sucesso. Quanto aos filhos, demonstra total abnegação e
subserviência. Sofre pela ausência de Vasco, vestindo luto e fazendo promessa para que
154
São Severino dos Ramos o proteja. Romeu, que não foi à guerra, trata-a com grosseria e
estupidez apesar de sua devoção. Logo ao chegar do engenho, quando D. Mocinha insiste
em saber exatamente por que Seu Quincas não retornara junto com o filho a Timbaúba,
num possível sinal de ciúmes do marido, rapidamente o rapaz se altera, respondendo com
violência:
D. MOCINHA - (Tom natural) Estranho Seu Quincas perder uma feira...
ROMEU - Julião não avisou que ele não vinha, não?
D. MOCINHA - Sim... Diga-me, ele está doente?
ROMEU - Não senhora!
D. MOCINHA - E então por que?..
ROMEU - (Gritando) Ora diabo! Tem comprador de gado lá no engenho!!! Pai
quer ver se passa os bezerros que estão desmamados! (MARINHO 1968:48).
Contudo, D. Mocinha continuou a tratá-lo com a mesma abnegação de sempre. Ela
será sempre a mãe. A mãe sofredora cuja única preocupação é sua prole. Quanto ao esposo,
como se pode constatar na leitura de Um sábado, não espaço para a intimidade
conjugal: Seu Quincas quase não vê a esposa, sempre ocupado com os negócios do
engenho. Provavelmente, passa boa parte da semana na casa-grande, vindo para Timbaúba
apenas nos finais de semana, preocupando-se quase que exclusivamente com a manutenção
da casa. Segundo Mary Del Priore (2005), como a maioria dos casamentos nas sociedades
patriarcais do Nordeste eram estabelecidos entre as famílias (parentelas), sem se levar em
consideração o interesse dos noivos, era dispensável o namoro que prepararia o casamento,
semeando a afetividade entre o futuro casal. Como diz Nãna: “No meu tempo, moça
via homem quando era para ajustar casamento e depois, no dia!” (MARINHO 1968:70).
Tal situação pode ser sugerida na relação entre Seu Quincas e D. Mocinha. É clara a
distância tanto física quanto sentimental que os separa. Vivendo praticamente separados,
tratam-se de maneira formal. D. Mocinha chama-o sempre por “Seu” Quincas, assim como
os demais empregados da casa. Personagem essencialmente dramático, em D. Mocinha
pode-se entrever a profundidade de sua interioridade na preocupação com os filhos, no
cuidado com a casa e no trato com os empregados e comadres; indícios de sua
subjetividade inserida no contexto histórico e social que a distanciam do tipo cômico,
mesmo que carregue certas características arquetípicas, como a de mãe sofredora,
completamente voltada à sua prole e à manutenção do lar.
155
Seu Quincas também não é um personagem exatamente cômico, embora possamos
flagrá-lo em momentos de comicidade, como mais adiante demonstraremos. Ele é um
homem austero, de “rígidos” princípios éticos que nada têm a ver com a moral religiosa de
D. Mocinha nem com o respeito à tradição que Major Paulino cultiva. Todavia, não deixa
de fazer jus à sua classe que, desde seus antepassados, segregava brancos e negros, ricos e
pobres, senhores e escravos. Na manhã de domingo, ao voltar de seu engenho, aparta a
briga entre os empregados Chico e Julião. Trata-os com estrema severidade,
principalmente o negro Julião que, em detrimento de sua origem afro-brasileira é vítima do
escárnio entre seus iguais (empregados). É a Julião a quem Seu Quincas dirige suas
ofensas, despeja sua violência:
Os dois agora rebolam pelo chão e se escapam um da faca do outro. Seu
Quincas entra e com um revólver atira sem ser para alvejar, nos pés dos dois.
Eles num pulo se põem de pé.
SEU QUINCAS - Parem! Parem, seus afoitos! Mas sim senhor! Que é isto?!!!
Que desrespeito é este em minha casa?...
D. MOCINHA - (Entrando, fala mas ninguém atenção) Misericórdia! Que
foi que houve, meu Deus?!!!
Seu Quincas fala ao mesmo tempo.
SEU QUINCAS - ...Vocês estão na bagaceira, ou não é? Isto aqui está muito
bom! Não se considera mais casa de patrão... Embriagados!... Se é esta moleca,
anda sendo desmoralizada pelos pastoris!!! (E gritando) O que é que vocês
estão entendendo?!!!
Os dois homens se olham arquejante e com as ventas acesas.
CHICO - É porque ainda não nasceu homem que possa mandar eu me calar!
Que dirá um negro safado deste aí!
JULIÃO - (Imediatamente) Safado é você seu...
SEU QUINCAS - (Gritando) Calem-se agora mesmo (E para Julião) Seu
Cachorro, vá neste momento para o engenho!
JULIÃO - O senhor não me ponha de cachorro! Eu fico cego!
SEU QUINCAS - O quê?!!! (Com o indicador aponta a porta do quintal) Por
ali! Retire-se agora mesmo!
Joana apaziguando, põe a mão no ombro de Julião e consegue levá-lo até a
porta.
JULIÃO - (Parando na porta) O senhor vai ver!
SEU QUINCAS - (Dando uns passos em direção a Julião) Por ali seu
Cachorro!
JULIÃO - (Possesso) Eu fico cego! Eu fico cego! Não repita! Não repita!
D. MOCINHA - (Segurando o braço do marido) Seu Quincas! Por Deus! não
se misture com um empregado! Já está tudo resolvido! Vá embora Julião! Ele já
vai! Ele já vai! (Julião sai)
156
SEU QUINCAS - Hoje lá no engenho, vou mandar dar uma surra naquele
peste! Não me peça nada! Eu mesmo vou deixar aquele moleque mole de
apanhar! Ousando me responder! Afoito! (MARINHO 1968:100-102)
A violência da época da escravidão em que os senhores de engenho eram donos dos
corpos de seus escravos, castigando-os duramente por qualquer deslize, perdura em tempos
de coronelismo. Seu Quincas não se sente apenas como patrão de seus empregados, mas
seu senhor. O autoritarismo faz com que ele exploda em cólera insultando e ameaçando
sua gente. Atitude paradoxal para um homem que se dirá mais adiante avesso à tradição,
quando decide casar à força seu filho que comprometera a honra de uma empregada. Ao
mesmo tempo em que nega a tradição de seus antepassados para subjugar seu filho, usa-a
para oprimir seus empregados dando prosseguimento à tradição do mandonismo
brasileiro. Faz jus a sua existência histórica, sua condição de senhor de engenho criado em
casa-grande no gosto da violência, do autoritarismo e que, provavelmente, sob a influência
dos novos ideais que surgem com a Revolução, tenta modernizar-se, absorvendo novo
discurso. Mas sua existência, de tanto repetir-se, cristalizou-se em hábito, em gesto
mecânico, transformando-se numa essência. Um procedimento mecânico. Não é o Seu
Quincas quem fala, mas o Senhor de Engenho.
Como complemento a este universo patriarcal, justapõem-se aos “coronéis” seus
empregados e agregados, ou seja, sua gente. Personagens que vivem à sombra de seus
patrões, recolhendo dos seus serviços e pequenos favores o sustento para sua existência.
Conquistam o bem-querer de seus senhores na esperança de dias melhores. Ao mesmo
tempo, são personagens ambíguos que, em sua conduta e em suas confissões, revelam a
revolta e o conformismo, a subserviência e a transgressão ao seu status quo de oprimidos.
E o riso torna-se seu principal instrumento de subversão da realidade angustiante,
utilizando-se do escárnio, dos chistes e da ironia para triunfarem sobre seus mestres e do
humor para vencerem seu próprio desassossego. Possuem a ambigüidade do arlequim,
servo e carrasco de seus amos, que deles se serve para melhor se divertir e lucrar, além de
também deterem a lucidez e a loucura do bufão, sempre a se fazer de bobo diante dos
poderosos, mas também pleno de sabedoria, aconselhando seus reis nos momentos de
insensatez e desgraça.
O conformismo dos empregados em Um sábado em 30 manifesta-se, notadamente,
através do personagem de Sá Nãna, guardiã da moral na casa. Sua visão de mundo
restringe-se ao conhecimento das obrigações e limitações da mulher e dos direitos do
homem, assim como o lugar que o empregado deve ocupar na casa. Nela, não exite
157
nenhuma crítica ou revolta em relação à sua condição de subalterna ou à de seus demais
companheiros, nem questiona a moral patriarcal que é tão severa com as mulheres e
indulgente com os homens. Em verdade, ela age a favor desse sistema. Descende
diretamente desse universo, onde nasceu, cresceu e envelheceu, enxergando a mulher
apenas no seu decoro, no seu dever de se guardar constrita até o dia do casamento e nas
suas obrigações para com a família e a religião. Em oposição a este universo, existe o
homem e sua sexualidade latente da qual Nãna não recrimina de todo, mas que se
configura sempre como uma ameaça à moral e, sobretudo, às próprias mulheres. Porém
este não é um problema do sexo masculino e sim das mulheres que deles devem se
proteger. A sexualidade masculina é um instinto natural e inquestionável. Para ela, todos os
homens são iguais, “é mesmo que pólvora, o fogo acolá e eles estão se acendendo”.
(MARINHO 1968:71). Resta à mulher, portanto, a obrigação de se preservar, caindo sobre
ela duras sanções, caso não resista às tentações do sexo oposto.
Todavia, descobre-se que logo após sua viuvez quase fora estuprada por Major
Paulino que a agarrara a força. Por isso, sua antipatia ao velho. Mesmo que esse fato seja
contado sem dramas ou resquícios de traumas pela octogenária, ele nos revela não o
motivo da desavença entre os dois personagens, mas nos faz supor também o motivo de
sua rigidez moral, de seu veto à sexualidade, que a leva a vigiar outros personagens,
interessando-se quase que exclusivamente em suas condutas morais (sexuais). Apesar de
seus atos sempre desaguarem na comicidade, podemos vislumbrar um possível drama
existencial. De uma interioridade dilacerada pela libido latente que interdita e transgride na
medida em que se descuida de si mesma e passa a voltar-se completamente ao Outro.
Veto à sexualidade que também é transgredido por Sá Nãna através de seus chistes,
ironias e gracejos, que sempre giram em torno desse tema, para o espanto de Joana, moça
ainda virgem que, devido ao seu excesso de pudor, torna-se também tima da galhofa da
velha. Tais gracejos são suas principais fontes de humor e comicidade na peça. Por
exemplo, quando as “mulheres do mato” estão almoçando junto com os demais
empregados da casa, comenta-se sobre os estranhos hábitos de uma família de alemães que
morava nas redondezas e para quem uma dessas mulheres trabalhou. Torna-se motivo de
escárnio para Sá Nãna desde sua dieta (rãs, “queijo do reino podre”, etc.) até seus hábitos
sexuais que, segundo as agregadas, costumavam ser feitos com as “portas abertas”, sem
maiores pudores. Esta conversa deixou Sá Nãna extremamente animada e galhofeira,
fazendo-a insistir no assunto para melhor se divertir com o decoro de Joana:
158
NÃNA - (Chamando novamente a mulher, cochicha-lhe no ouvido e depois
em voz alta, termina a frase)... com as portas abertas?
1ª MULHER - Foi por isto que Luzia saiu de lá! (Luzia baixa a vista)
SÁ NÃNA - (Rindo) Que obra eh?!
CHICO - O que é, Sá Nãna?
(Joana zangada levanta-se da mesa e passa para a cozinha)
NÃNA - (Olhando para Joana) não se fecha porta de quarto pra nada!
Dizem que é um pagode... filho, pai, mãe... (D. Mocinha entra e Nãna se
cala). (MARINHO, 1968:56).
Contudo, ao mesmo tempo em que tem a sexualidade como fonte de divertimento,
também a reprova no que concerne às “interpenetrações” entre patrões e empregadas; ao
“modernismo” de Mercês e Maria de Jesus e à brejeirice de Zefa, usando o riso como
forma de agressão e repreensão. Quando descobre o envolvimento entre Romeu e Filó, não
questiona o caráter do rapaz, mas se volta completamente a censurar a moça:
NÃNA [...] Tocaiei tudo que se passou aqui ontem!... Sei tudo que se
passou essa noite, está ouvindo, Filó?
FILÓ - (Querendo tomar uma atitude cínica, porém desajeitada) Estou
ouvindo, Nãna! Mas, eu estou feliz! Não estou arrependida... foi uma noite
"inovidauvel"... Eu ontem comecei a viver!...
NÃNA - Repara! Como ela está falando difícil... Foi! Tua vida começou
ontem! Tu ontem entrasse pra vida!... Menina! Vou te dar um conselho: - Não
atravesse a linha! Porque se tu fores para aquelas bandas, terás um fim
amargurado!
FILÓ - Que vem a ser, atravessar a linha?
SÁ NÃNA - A linha do trem!... A rua das mulheres, onde vivem as raparigas!
FILÓ - E quem entoou na cabeça da senhora que eu vou ficar assim, a toa! Pois,
bem! Vou é casar!
SÁ NÃNA - (Com escárnio) Com quem?! Me diz.
FILÓ - Ora esta! Com quem "havera" de ser? Com Romeu!
NÃNA - (Engasgando-se) Dobre a língua! Tu podes tratar teu patrão por
fulano?! E depois, não acredito que tu sejas tão atrevida para esperançar
casamento com um branco! (MARINHO 1968:90).
Não é a segregação que opõe homens e mulheres que Sá Nãna defende, mas
também o determinismo social que secciona patrões e empregados, negros e brancos,
pobres e ricos. As divisões de classe e raça são avaliadas conjuntamente e sem
diferenciações. Dessa forma, um homem rico será sempre “um branco” e uma empregada
159
será sempre “uma negra”. E no contexto da peça, essa união é fadada à pura utopia, ao
delírio de “empregada saliente” que não sabe se colocar em seu lugar. Não se ultrapassam
os limites do quarto da empregada, nunca ascendendo de fato como almejara Filó aos
aposentos do patrão, no papel de esposa. A “cor” é, portanto, um elemento de desprestígio
social e de divisão de classes que denota não só a raça do sujeito, mas também sua posição
social. Filó não é negra, mas “branco” quem pode ser é Romeu. Todavia, essa
diferenciação segrega o patrões e empregados, mas também os próprios criados entre
si mesmos. A Pastora Zefa que tem fixação por soldado, humilha o negro Julião em
detrimento de sua cor. Diante do pedido de casamento do rapaz:
JULIÃO - Zefa, vamos casar comigo? Eu mando te botar um dente de ouro, te
dou um vestido godê e um sapato de salto alto!
ZEFA - Repara a tua qualidade! Eu me passo para um negro como tu?... Eu
aprecio é farda! Soldado! E que seja pelo menos sarará! O homem pra mim, tem
que saber assentar o nome, tem que na frente dos brancos não se pôr calado,
dizer também um pés... E tu, coitado, és preto, não sabes assentar o nome, não
és soldado, e na frente dos patrões, ficas morto! Não dizes uma loa!
(MARINHO 1968:67-68).
O desejo por soldado mostra-se como uma forma de elevação na escala social; não
é necessariamente “um branco”, mas também não é “um negro”. Da mesma forma que Filó
deixou-se seduzir pela possibilidade de ascensão social, devido às promessas de Romeu,
Zefa quer saber de namorar soldado para elevar seu status social, superar sua própria
condição de empregada e, por isso, também de “negra”, como Chico a chama
posteriormente para insultá-la. Preconceito racial e social que surge como resquícios dos
tempos de escravidão, como podemos constatar na fala da pastora, mais uma vez
tripudiando do amor de Julião:
ZEFA - Quem vai chegando sou eu. Té amanhã, minha gente (Vai saindo).
JULIÃO - Eu vou lhe levar.
ZEFA - Te enxerga. No tempo que se vendia gente, negro era troco. (Sai).
(MARINHO, 1986b:51).
Entretanto, seu desejo torna-se numa idéia fixa que a leva à derrisão de seus
companheiros quando recebe uma surra dos soldados perrepistas. Estes acabaram com o
160
pastoril e atacaram o cordão encarnado devido à filiação de sua cor à Aliança Liberal.
Machucada e sem conseguir andar direito, Zefa transformou-se em motivo de zombaria
para Chico e Nãna que se utilizaram do riso para agredir a pastora. O chiste é uma
forma de agressão disfarçada que agride através do gargalhar de um terceiro. Dessa forma,
Nãna castiga Zefa por não saber dar-se ao respeito, correndo atrás de soldado, e Chico
vinga-se de seu desamor. Ambos os personagens, Chico e Julião, são apaixonados pela
pastora, embora ela não deseje nenhum dos dois. Mesmo que goste de ser cortejada por
vários homens, estimula as investidas de ambos que sempre estão a oferecer-lhe algum
presentinho. Nãna de pronto reconhece as armações de Zefa: “- Menina, eu via Zefa
gás aos dois! Sabe como é? Ganhava confeito de um, latinha de pó de outro... e ia levando!
Mas ela não quer nem um nem outro! Prefere se perder com um branco, mas não casa com
um negro! Eu só estou é eles não marcarem isto!” (MARINHO 1968:103).
Os dois duplos, como tinha apontado Joel Pontes (1963b:1), disputam o amor de
Zefa e a amizade que os unia é desfeita no momento em que Julião decide interceder pela
pastora contra as ofensas de Chico. Defende a mesma mulher que o humilhou por ser
negro. A amizade termina e ambos são repreendidos por Seu Quincas. Como diz Nãna,
repetindo o ditado popular: “Mulher, jogo e cachaça são os plantadores da cruz do
caminho”. (MARINHO 1968:103). Diferentemente destes personagens, Filó encontra-se
estagnada no conformismo social, assim como Nãna. Todavia, ela não é uma agente
desse sistema; é mais uma vítima que permanece passiva diante da exploração e da
humilhação que lhe impingem. Depois de ser seduzida por Romeu, Seu Quincas ainda
tenta casá-la com o filho e preservar sua honra, mas a moça não aceita. Diz que prefere
continuar pobre, conforma-se em não casar. Filó é o personagem que mais sofre a ação de
outros personagens. Tudo com ela acontece. Logo que chega, torna-se suspeita de um
roubo; em seguida, é seduzida pelo filho do patrão, é repreendida por Sá Nãna que
violentamente a coloca no seu lugar de empregada e destrói seus sonhos de casamento e
ascensão social; minutos depois, é alçada ao status de noiva de seu sedutor por Seu
Quincas, tornando-se alvo do ódio de D. Mocinha que não admite ver o filho casado com
uma “empregadinha”; finalmente, vai embora, acompanhada de seu noivo tropeiro que
viera buscá-la a mando de Romeu. Filó passa apenas praticamente 24 horas na casa e,
mesmo assim, sofre todos esses transtornos, sem de fato haver alguma modificação em seu
espírito. Continua a empregada subserviente, conformada à sua condição de subalterna.
Lembra um desavisado arlequim, destituído de malícia e astúcia, que serve de joguete para
161
as disputas entre seus amos. Não há em seu discurso nenhum momento de questionamento.
Ela não se pergunta o porquê da vilania de Romeu, nem chega a desejar uma vingança pelo
mal que sofreu. Também não pede ajuda a ninguém, nem vai até seus familiares ou patrões
explicar sua situação e exigir alguma forma de reparação. Permanece resignada à sua sina.
E quando é chamada por Seu Quincas para que ele pudesse ouvir sua própria versão dos
fatos, não se porta como a vítima, mas carrega consigo a culpa dos criminosos. A culpa
que os subalternos carregam por simplesmente existirem. E prefere continuar em sua
condição de ocultamento, de não existência. Como diz, prefere ser pobre. O máximo de
revolta que se pode patentear desse personagem, é um uma revolta resignada, um rancor
inócuo, um amargor que seca em sua própria garganta:
FILÓ – [...] Não carece me dizer mais nada! Sei que estou desgraçada! Mas não
fico aqui não! Vou-me embora para as minhas terras!
SÁ NÃNA - Você ficando quieta, minha filha, ninguém tem nada com sua sina!
FILÓ - Mas eu não tenho cara mais para encobrir com os olhos aquele homem!
(MARINHO 1968:104).
Revolta podemos encontrar também nas falas de Chico. Insatisfação, diante das
diferenças de raça e de classe que o distinguem de seus patrões e até mesmo de um simples
palhaço de circo a quem, por sua origem alemã, o matuto não pode tratar de maneira
informal. Deve sempre chamá-lo por “Seu”:
CHICO - Estás feito Seu Chimarrão?!
JULIÃO - Seu Chimarrão! Seu Chimarrão! (Rindo zombeteiro).
CHICO - Ele não é meu pareceiro! (Magoado) Ele é branco, alemão!...
posso tratar ele por "Seu"!
JULIÃO - Estou caçoando! Ele é engraçado, muito engraçado! (MARINHO
1968:88).
Do conformismo vem a subserviência e da revolta, origina-se a transgressão. Nessa
dupla dialética transitam nossos arlequins. Em sua subserviência, lembram os antigos
servos dos jovens senhores, enamorados que, diante dos obstáculos às suas realizações
amorosas, contavam com o seu fiel apoio. Desde a comédia nova com seus escravos e
parasitas, passando pelo zanni da commedia dell’arte, os criados de Molière e os arlequins
162
de Marivaux. Chico serve de alcoviteiro para as peripécias amorosas de Romeu, tirando
Filó do quarto de seu sedutor depois que todos na casa acordam com os gritos de Gustavo.
Zefa também retoma a tradição dos servos da comédia ao “cortar jaca para” (alcovitar)
Maria de Jesus. E assim, como seus antecessores, os arlequins marinhos também não são
desprovidos de malícia ou segundas intenções. São esses interesses que se revelam quando
Chico e Julião, no dia seguinte, depois de salvaram a vida de Gustavo, comentam com uma
disfarçada satisfação a promessa que o rapaz lhes fizera de doar um pedaço de terra para os
dois, sendo logo depois recriminados por Sá Nãna, que percebe de imediato o
deslumbramento dos “negros” com promessa de “branco”:
CHICO - Ele é um rapaz de boa natureza! Chamou nós dois para depois,
passear lá no engenho dele...
JULIÃO - Vai passar um pedaço de terra para a gente...
CHICO - Mas eu já disse que a gente não aceitava!
NÃNA - Tu vais atrás dessas promessas?!!! Com o tempo tu vais
desmerecendo... (MARINHO, 1968:93-94).
Mas, ao mesmo tempo em que são subservientes aos seus amos, subvertem a lógica
da dominação pela força do riso. Da derrisão, vem seu triunfo. Manifestam seus instintos
hostis através de chistes tendenciosos que atuam como uma forma de agressão, disfarçada
pelo jogo de palavras. Fazem rir ao invés de agredir. Aliás, o riso em si é uma forma de
agressão. Geralmente, as vítimas de seus gracejos são personagens ridículos e, por isso,
passíveis de escárnio, e que não lhes representam nenhuma ameaça, que possuem pouca
autoridade na casa. Esses personagens são Quitéria e Major Paulino. A vitalina seria a
principal vítima de seus gracejos, servindo de motivo de escárnio, sobretudo para Chico e
Zefa. Quando sai para a feira, Quitéria é obrigada a receber a companhia de Chico, que se
encarregaria de carregar as compras, principalmente, uma galinha viva. A vitalina tem
medo de galinha e, por isso, não pode dispensar a ajuda do empregado, mesmo que não
simpatize com ele. No momento em que está de partida, chama-o para ajudá-la, enquanto
“se ajeita” diante do espelho. Nesse instante, o arlequim matuto tem sua revanche:
QUITÉRIA - (Fica no espelho, se ajeitando) Chico. Traga o balaio e vamos
saindo pra feira.
CHICO - (Entrando, fica olhando a situação) Está vendo, Dona Mocinha? Essa
tem coragem. Me desculpe, dona Mocinha, mas se eu tivesse essa cara, eu
163
andava de ré. (MARINHO 1986b:45).
Todavia, nem sempre essas revanches têm ares de simples ditos espirituosos. Na
segunda versão de Um sábado em 30, quando Seu Quincas expulsa Julião de casa,
chamando-o de cachorro e ameaçando dar-lhe uma surra, o rapaz, com desejo de vingança,
retorna à casa, procurando D. Mocinha a fim de contar-lhe um segredo. Encontrando
Nãna, em lugar da matriarca, revela então que Seu Quincas tentara uma vez ter relações
sexuais com a cozinheira Joana. Essa tentativa de adultério, por sua vez, só é revelada pela
velha bisbilhoteira, durante a crise que se abatia na família sobre o casamento forçado de
Romeu e Filó. Tal revelação abala a moral do patriarca e, num coup de théâtre, acaba
mudando os rumos da intriga.
Além disso, nossos arlequins usam do humor como forma de triunfo e denúncia à
divisão social que os oprime e revolta. É através do duplo sentido e da malícia, inseridos
nas jornadas de pastoril, que eles expõem as diferenças de classe que existem em sua
sociedade, ao mesmo tempo em que triunfam sobre a angústia, tirando de seu desassossego
razão de riso e reafirmação de si mesmos. No riso e no escárnio do patrão, o arlequim é
sempre o vencedor, mesmo que na sua alegria resida submerso o pessimismo e o amargor
de sua existência:
ZEFA- (Cantando) Alerta, alerta, rapaziada / Acorda agora e lava o rosto na
calçada / A noite hoje está muito boa / A de amanhã, a de amanhã não vale
nada.
CHICO E JULIÃO – Trá-zás, tráz-zas, tráz-zás / O velho chegou agora / Com o
seu charuto na boca / E o seu chapéu à espanhola.
JULIÃO (Imitando o Velho) Eu era moço, bem aprumado, / Pescoço liso,
delicado.
TODOS – Eu era moço, bem aprumado / Pescoço liso, pé delicado.
JULIÃO O patrão mais a patroa / Come carne com salsicha / E eu mais a
criada / Me desgraço na lingüiça.
TODOS E eu mais a criada / Me desgraço na lingüiça / Eu era moço, bem
aprumado / Pescoço liso, pé delicado. (BIS)
JULIÃO – O patrão mais a patroa / Dormem em cama de colchão / E eu mais a
criada / Me desgraço pelo chão.
TODOS E eu mais a criada / Me desgraço pelo chão / Eu era moço, bem
aprumado / Pescoço liso, delicado (BIS) / O patrão mais a patroa / Toma
banho de banheiro / e eu mais a criada / Me desgraço no barreiro.
TODOS E eu mais a criada / Me desgraço no barreiro / Eu era moço, bem
164
aprumado / Pescoço liso, pé delicado
(BIS). (MARINHO 1986b:40).
52
2.1.9. A comédia do patriarcalismo
Em Um sábado em 30, o verdadeiro nó da trama que, consequentemente, deflagra a
crise que envolverá toda a família e, inclusive, os empregados, dá-se quando Nãna
revela a Seu Quincas e a D. Mocinha o envolvimento “amoroso” de Romeu e Filó;
relacionamento que leva a moça à desonra e desgraça. Indignado com a atitude do filho, o
patriarca decide obrigá-lo a casar-se com a empregada, como forma de castigo e também
de reparação à honra da moça, mesmo tendo consciência das diferenças sociais que os
separam. O que desencadeia o conflito geral entre a família que se opõe à sua vontade,
especialmente, sua esposa e seu sogro. Tal embate retoma o mito original da comédia nova
que é o conflito entre pai e filho. O pai autoritário que se opõe e veta o desejo do filho.
52
Esta jornada de pastoril (Alerta Alerta) já se encontra na primeira versão de Um sábado em 30, em dois
momentos, sem estar na íntegra, sempre tendo Zefa como intéprete. (MARINHO 1968:37,67). Na segunda
versão da peça, em 1986, esta mesma jornada encontra-se na sua totalidade e é cantada não apenas por Zefa,
mas também por Julião e Chico (provavelmente uma reverberação da encenação do TAP, em 1963). Além
desta inserção musical, constava na primeira edição uma outra jornada de pastoril Meu passarinho
também cantada por Zefa. (MARINHO, 1968:24). Estas mesmas jornadas serão retomadas em Viva o cordão
encarnado (1969; 1999?). Ainda nesta edição, constam indicações de outras inserções musicais: depois de
ouvir-se um coro de meninos acompanhando o palhaço Chimarrão, ao final do tradicional “Hoje tem
espetáculo?/ Tem sim senhor”, o palhaço entoa uma canção (“O bela menina, vai dizer à tua patroa,/ Que
hoje no circo,/ Tem uma porção de coisa boa!/ O bela menina, vai dizer ao teu patrão!/ Que hoje no
circo/ Tem o palhaço Chimarrão!/ (Gritando)/ Azeita rapaziada!”) (MARINHO 1968:68); também escuta-se
a voz de uma solteirona, apaixonada por Romeu, cantando Último beijo, de Zequinha de Abreu (70); Sá Nãna
põe Leninha para dormir, cantando Ai! Estácio! (73); Chico, Julião, na e Joana divertem-se entre si
com Ê Ê Ê Ê Cauã (97-98), e quando Nãna revela para toda a família o quase adultério de Seu Quincas,
ouve-se o Hino do Partido Liberal (Abano e Vassourinha) (127). Na segunda edição, o autor suprimiu
algumas canções (Meu passarinho, a canção do palhaço Chimarrrão, Último beijo e Abano), permanecendo
o Alerta Alerta; Ai! Estácio!; Ê Ê Ê Cauã e a Marcha revolucionária (Vassourinha), todas transcritas
integralmente, à exceção de Vassourinha. (MARINHO 1986b: 40, 51, 56, 63). Ressaltemos que no programa
de Um sábado em 30, quando da estréia em 1963, reproduziam-se duas músicas além das constantes nas duas
edições do texto: a modinha de A cabôca bonita (“Quando as estrelas vão no céu aparecendo,/ e o
firmamento fica todo iluminado,/ vejo, cabocla, sob o sol que vai morrendo,/ o fogo eterno do teu seio
retratado!/ E tenho, então, a alma desolada/ por um queixume de tristeza e de amargor!/ É que as estrelas,
com seu manto prateado,/ vêm tirar-te do meu lado,/ vêm roubar-te ao meu amor!”) e Você não me , de
Catulo da Paixão Cearense; música Bambinode Ernesto Narazeth (I Como tão linda está!/ Como tão
linda está!/ Mas, se um beijo eu pedir,/ você não me dá.../ você não me dá.../ Quem lhe implora é o amor,/ a
inocência, o candor!/ Mas, você é tão má,/ que eu sei que você/ não dá... não !/; II Sua boca é um
primor!/ Uma abelha do amor!/ Sou capaz de jurar/ que seu beijo de ter/ o sabor do luar!/ Sua boca é um
altar,/ onde eu quero rezar/ e, após a confissão,/ nos seus bios crismar/ os meus lábios, então./; III Não
tem pena de ver,/ um Poeta sofrer!/ Quem lhe implora é o amor,/ é a doída aflição!/ Do meu coração!/ Se me
promete dar,/ eis-me aqui a esperar!/ Mas, você é tão má/ que eu sei que você,/ não dá... não dá...!”). Ainda
no mesmo programa, encontra-se a letra da Marcha revolucionária, de Romildo Queiroga, com música de
Vassourinha, (“Pernambuco não desmente/ seu passado varonil!/ Sempre foi e é valente,/ na defesa do
Brasil!/ Lutai! Lutai!/ Povo pernambucano!/ Leão do Norte/ de honrosa tradição!/ Lutai! Lutai!/ Que o povo
é soberano!/ E vencerá pela Revolução!/ Nosso povo revoltado/ tem a fúria de um leão!/ Até mesmo
desarmado,/ briga de pedra na mão!”). Cf. TEATRO DE AMADORES DE PERNAMBUCO, programa
(1963).
165
Neste caso, Seu Quincas tenta frear a volúpia de Romeu, ao mesmo tempo em que sua
resolução tem o caráter de castigo, de correção moral. Todavia, seu empenho nessa questão
é tão intenso, apieda-se com tal desprendimento, inflando-se em fúria contra o filho e
compaixão pela empregada que coloca sob suspeita suas boas intenções. De seu discurso
emergem conceitos éticos e morais que ultrapassam diferenças de classe e gênero,
diferentemente do que se evidenciou no tratamento dispensado aos empregados Chico e
Julião. Dessa forma, a identificação proporcionada ao leitor-espectador pelo realismo da
cena é nesse momento refratada. A ação de Seu Quincas provoca um certo efeito de
estranhamento. Como pode um senhor de engenho dos anos 30, guardião e centro de uma
ancestral estrutura social extremamente rígida e excludente, abandonar preconceitos de
classe e de gênero em prol de ideais de igualdade, posicionando-se declaradamente contra
qualquer “mania de tradição”, numa sociedade em que prepondera a preservação das
tradições?
No seu discurso, o patriarca age como se, ele próprio, estivesse carregado de culpa,
como se estivesse a compensar através do castigo do filho uma falta que outrora ele mesmo
cometera e que permaneceria latente em sua consciência, atormentando-o, preenchendo seu
espírito de remorso; remorso que não se encontraria na consciência de Romeu. Esta
hipótese pode ser reforçada pelas próprias palavras de Seu Quincas e também pelas
insinuações de Sá Nãna:
SEU QUINCAS [...] Eu também fui jovem e tive minhas aventuras... mas
nunca infelicitei moça... e sobretudo, respeitei a casa de meu pai!... E ainda essa
pobre coitada, que era noiva... Que ia ter sua família!... Não!
NÃNA - Não venha com muita inocência não! O senhor já teve seu "par de
botas"! (MARINHO 1968:118).
Seu “Não” impõe tanta dramaticidade em sua fala, um excesso de zelo por uma
empregada que ele nem ao menos conhecia, que Filó havia se empregado em sua casa
apenas um dia antes, que nos indagamos as reais motivações psicológicas de sua revolta.
Mesmo que ele se posicione, declaradamente, contra a prática perversa de defloramento de
moças inocentes, instituída pelo seu filho como continuação do machismo e do
autoritarismo patriarcal, numa sociedade que primava pelo decoro da mulher. Nesta
instituição social, podem existir dois tipos de mulher: as “decentes” ou as “perdidas”.
Observa-se um excesso em sua indignação que faz sua conduta moral também ser posta
166
sob suspeita pela velha agregada da casa. Suspeita que se confirma quando Nãna
53
revela que, assim como o filho, Seu Quincas também é susceptível ao mesmo tipo de falta:
quase cometeu o adultério com a cozinheira da casa (Joana). Uma vez, invadiu o quarto da
moça e não consumou o ato, porque se intimidou com a presença da velha que se
encontrava por perto e que, naturalmente, se fez notar pelo patriarca.
54
Sua moral também
é colocada em questão, justificando nossa hipótese inicial de superação de sua própria
culpa através do castigo ao filho.
Apesar das boas intenções, sua rigidez torna-o passível de suspeita, revelando sua
hipocrisia. As mesmas práticas perversas de Romeu encontram-se também presentes em
Seu Quincas, numa “hereditariedade social”, dir-se-ia. Dessa forma, desfaz-se a imagem
solene e revolucionária de senhor de engenho avesso às tradições patriarcais. No
desvelamento de sua falha de caráter, de sua hipocrisia, abala-se sua moral, fazendo-o
perder, momentaneamente, a autoridade sobre a família, sobretudo, sobre sua esposa, e
desvalidando suas boas intenções para com Filó. Destrói-se um dos pilares dessa família e
dessa sociedade: o patriarca. Percebe-se, portanto, um típico procedimento cômico, no qual
se pulverizam todos os falsos moralismos, com um olhar, cuja força “puxa para baixo”
tudo o que se encontra em cima, instalando a crise, cindindo, criando rachaduras em toda a
superfície de imagem solene e polida. Bem próprio da comicidade em geral de Bergson
que denuncia o que é rígido e artificial, assim como da força cômica, concebida por Cleise
Mendes. Contudo, a queda de Seu Quincas, a fissura de sua moral e ética, mostra-se mais
dramática do que especificamente cômica.
Por outro lado, D. Mocinha fazia-se perceber até então como a esposa virtuosa e
submissa, abnegada aos filhos e generosa com os seus empregados e, sobretudo, com os
seus agregados. Todavia, na última cena revela a fragilidade de sua imagem; seu reverso.
53
Nãna conhece a vida de todos na casa, sempre a vigiar suas condutas, proporcionando tanto o
desmascaramento de muitos personagens como situações micas de engano. Por exemplo, o suposto roubo
do dinheiro da feira, a princípio pensava-se que fora Filó a autora do furto, depois com a intromissão de
Nãna pensou-se que havia sido Joana, porque no começo da peça a velha surpreendeu a cozinheira
escondendo um misterioso embrulho em diversos lugares. Mas logo em seguida, descobre-se que se tratava
apenas de uma foto de Romeu a quem Joana achava muito bonito. Por fim, constata-se que o dinheiro não foi
roubado. Que tudo não passou de um engano de D. Mocinha. Por isso, quem em verdade conduz a ação é a
própria agregada, pois suas revelações funcionam como golpes de teatro, redirecionando muitas vezes o rumo
da intriga. Este conhecimento da vida intima da casa confere-lhe poder sobre os outros personagens e a
confiança de D. Mocinha que é quem a mantém a seu serviço. Esta é sua função: servir de “capataz
doméstico” dos empregados. Todavia, sua função de censora moral sobrepõe-se à sua personalidade, torna-se
um excesso, endurece seu caráter devido ao seu automatismo, fazendo-a vigiar indistintamente patrões e
empregados, tanto Filó e Joana quanto as filhas do casal e o próprio patriarca.
54
Na segunda versão de Um sábado em 30, quem presenciou a tentativa de adultério de Seu Quincas,
confidenciando a Sá Nãna o ocorrido, foi Julião que, aborrecido pela humilhação que sofreu, decide vingar-se
do patrão, contando seu segredo à velha bisbilhoteira.
167
Torna-se claro ao leitor-espectador que seu filho desenvolve uma prática perversa de
seduzir moças virgens e ingênuas e depois largá-las no mundo, à mercê da própria sorte,
roubando-lhes seu bem mais precioso que é a virgindade, símbolo da decência da mulher
daquela época. D. Mocinha não se conta, não vê, nem quer enxergar o sofrimento de
Filó. pensa na tradição da família, na humilhação que seria ver seu varão casar-se com
uma moça pobre e perdida. Reflete os princípios dessa sociedade, sem solidarizar-se.
Quando questiona a resolução do marido esses o seus argumentos: “- Mas Seu Quincas,
o senhor quer tomar a medida máxima! Não está vendo a impossibilidade?!... A diferença?
Ela é uma empregadinha...” (MARINHO 1968:117). Agora, passa a defender a tradição de
sua família, tradição que criticava quando queixava-se da ausência de Vasco, quando
culpava essa mesma tradição de guerreiros na família, de homens bravos e destemidos, tal
como a sociedade patriarcal o exige, mas que a colocava distante de seu herói”. Naquele
momento, negava a tradição “Teixeira Cavalcanti”. Mas quando se trata de reprimir a
sexualidade de suas filhas ou de proteger a “tradicional” canalhice de Romeu, retoma seu
antigo modo de pensamento, ao seu modus vivendi, o que provoca a ironia e o escárnio do
marido:
SEU QUINCAS - (Irônico) A senhora agora voltou ao seu pedestal!... A sua
tradição Teixeira Cavalcanti!... Ao seu orgulho que sempre me irritou... Agora
acabou-se a humanidade... não necessita mais da proteção dos Santos!... Seu
herói já vem por ai, são e salvo!
D. MOCINHA - Não seja injusto!
SEU QUINCAS -- Injusto? Injustiça é deixar mais uma pobre moça entregue ao
mundo!... Se isto na sua família é tradição, o tenho nada com os hábitos de
seu pai... Mas seu filho, é filho de um homem que não apóia vilania! Vá chamar
a moça aqui! (MARINHO 1968:118).
Ambos, marido e mulher, são separados por universos distintos que os opõem.
Enquanto o primeiro esbraveja contra as tradições da família da esposa, esta assume o que
outrora também repudiava. Passa, então, a acusar o marido de agir contra sua família, de
tripudiar de sua “respeitável” tradição, no firme propósito de proteger seu filho do
rebaixamento imposto pela autoridade paterna: “- Percebo o meu erro! O senhor e a sua
família sempre tentaram desmoralizar a minha família!” No que Seu Quincas retruca: “-
Desmoralizar, não! Protesto! mas achar ridícula essa mania de tradição, sempre achei, e
disso a senhora sabe!” (MARINHO 1968:121). Até que, também dominada pela fúria,
168
ameaça abandonar o marido:
D. MOCINHA [...] - Se meu filho casar com essa coisinha eu me retiro para
sempre desta casa!
................................................................................................................................
SEU QUINCAS - Coisinha não! Ela era tão pura quanto qualquer de suas
filhas! Idiota! Pensa que é grande importância! É apenas ridícula! Muito
ridícula! (MARINHO 1968:123-124)
Na violência da discórdia que os afasta um do outro, subentendem-se resquícios
dos malefícios dos casamentos arranjados, no sistema coronelístico. Não há nenhuma
identidade entre ambos, são dois completos estranhos. Talvez, devido à resposta de Seu
Quincas, à sua agressividade, logo em seguida, Nãna revelou o segredo do patriarca.
Agiu em defesa a quem, de fato, servia e protegia: criou a mãe de D. Mocinha e a própria
Mocinha.
Não se reconhece mais em D. Mocinha, ao chamar Filó de “empregadinha”, a
mulher que, no começo da peça, fazia o seguinte tipo de afirmação sobre suas comadres
do mato: “- Sabe que é uma gente de brio! Quisera que as minhas amizades aqui na rua,
fossem tão sinceras quanto dessa gente!” (MARINHO 1968:43). Tal paradoxo reforça as
contradições dessa sociedade, seu sistema perverso de dominação, que baseia suas
relações pessoais, nas questões de trabalho, sobretudo, na dependência e no favor. Quando
tudo isso é transcendido e vislumbra-se a possibilidade de uma pessoa humilde como Filó
ascender ao mesmo status de D. Mocinha, essas ternas relações de amizade e dependência,
que condicionam a dialética entre o patrão e o empregado, são colocadas em suspensão em
detrimento da segregação de classes, dos velhos preconceitos que baseiam a sociedade
patriarcal brasileira e que persistem ainda hoje. Portanto, não é o marido que é
desmascarado, mas também a matriarca, pois sua ação reforça o pensamento patriarcal.
Cai o segundo pilar da família e do patriarcalismo em Um sábado em 30.
Sobre Um sábado em 30 paira o fantasma de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto
Freyre, exatamente porque o livro trata da história intima da sociedade brasileira, seus
primórdios, de uma vida doméstica e conjugal, onde se viveu sob o patriarcado
escravocrata, polígamo, mas cristão, num cristianismo circunscrito ao cotidiano da família,
rodeado pelas crendices e pelos ritos dos escravos e que, em sua miscigenação, erigiu as
bases de nossa organização social e de nosso imaginário, nossa subjetividade. Esse é o
169
pensamento que sobrevoa a obra em questão, de maneira fantasmal, mas que muito ilustra
a reconstituição e a análise que Gilberto Freyre fez da sociedade patriarcal brasileira. Eis as
palavras do sociólogo que reforçam nossa observação:
Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a
nossa continuidade social. No estudo da sua história íntima despreza-se tudo o
que a história política e militar nos oferece de empolgante por uma quase rotina
de vida: mas dentro dessa rotina é que melhor se sente o caráter de um povo.
Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos poucos nos
completar: é outro meio de procurar-se o “tempo perdido”. Outro meio de nos
sentirmos nos outros nos que viveram antes de nós; e em cuja vida se
antecipou a nossa. É um passado que se estuda tocando em nervos; um passado
que emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade, não apenas
um esforço de pesquisa pelos arquivos. (FREYRE [1933] 2000:56).
Como Marinho pode ser acusado de saudosista (PONTES 1963d; PRADO [1963]
2002; MICHALSKI 1976), de restringir-se a um “lirismo de situações” (PONTES 1963d)
se os alicerces da sociedade que ele apresenta são colocados abaixo, levando consigo tudo
o que se encontrava por cima em sua solenidade? A princípio, pensávamos que Um sábado
em 30 seria uma exaltação ou defesa dos valores da família e do provincianismo da vida
rural face às “revoluções” e os “idealismos” que a modernização da civilização e de seus
novos sistemas de produção traziam, cujo preço seria a vida de filhos e pais de família, a
desestruturação de nossas bases familiares. Valores familiares representados por D.
Mocinha. Por outro lado, a Revolução é apenas defendida por Major Paulino, porém este é
um personagem ridículo e, por isso, sua defesa não pode ser levada em consideração. Em si
mesmo, ele sintetiza a caricatura de um revolucionário da Aliança Liberal que se sobrepõe
ao espírito de um senhor de engenho, tornando seu “orgulho aliancista” em motivo de
derrisão. Questionam-se os sacrifícios do “homem comum” em detrimento da renovação
de toda uma nação, o que, de fato, não chega a ocorrer, pois suas formas de organização
social permanecem as mesmas para o desassossego desse mesmo “homem comum”, vítima
de todas as mazelas da sociedade e “bode expiatório” de suas inovações. Em Um sábado
em 30, expõem-se as conseqüências da Revolução sobre a família, sua desestruturação. São
conflitos que extravasam o âmbito nacional invadindo o cotidiano: a espera dos filhos,
maridos e noivos, perdidos nos campos de batalha ou nas matas. Ou seja, paga-se um preço
muito caro pela renovação da sociedade, por sua transgressão e D. Mocinha indaga durante
todo o texto se, de fato, isso vale a pena, se é realmente necessário, se o homem não
170
deveria resignar-se ao seu provincianismo, satisfazer-se em ser “apenas” um “homem
comum” e esquecer-se do “homem político”.
Todavia, os valores dessa família também são colocados abaixo pela hipocrisia que
sustentava seus dois pilares: Seu Quincas e D. Mocinha; respectivamente, o patriarca e a
matriarca. Partes desse sistema, ambos contribuem para a manutenção desse ancestral
modelo de organização social, misturando nessa mesma “panela velha” preconceitos de
raça, gênero e classe, repassando de geração em geração e propagando-os entre seus
empregados e agregados, como prova a conduta de Nãna que, além de resignar-se ao
fatalismo social de sua existência, endossa-o entre seus pares, inclusive, como forma de
exercício de poder, reproduzindo essa mesma prática, de subalterno para subalterno. Ou
seja, seu hábito de vigiar os empregados e repetir regularmente para as criadas da casa que
“um branco” nunca poderia se passar para casar com “um negro”, reforça essas formas de
diferenciação, que contribuem para a estagnação social, perpetuando-as, além de servir de
meio para que a velha exerça sua soberania sobre os demais serviçais, pois conhecimento
também é poder.
A partir desses fatos, podemos pressupor que nada resiste à força cômica de
Marinho, pois todas as máscaras são retiradas, subvertendo e colocando pelo avesso o que
se apresentava em sua fidalguia. A Revolução é ridicularizada, o patriarcalismo já se
mostrava nocivo desde seu princípio e a família, núcleo dessa sociedade, sua força motriz,
revela-se também viciosa e decadente. Diante disso, o que resta a fazer?
A confusão está instalada e todos se acusam simultaneamente. Seu Quincas teve
sua moral e autoridade abalada. Inutilmente, tenta expulsar Sá Nãna da casa. Major Paulino
deseja vingança pela honra da filha e do neto. As filhas do casal que a tudo ouviam,
pensam nos seus próprios problemas: Mercês indagava-se se, depois de todo esse
escândalo, Gustavo ainda teria interesse de casar-se com ela e Maria de Jesus tinha
pensamentos para o circo que partia, embora elas também se mostrassem atentas ao que se
passava, emitindo opiniões, por vezes, contraditórias. Mercês estava de acordo com o pai e
era de opinião que Romeu deveria casar como uma forma de correção enquanto que Maria
de Jesus achava que Filó deveria partir e que este casamento seria um erro. Paradoxo para
uma moça que se dizia apaixonada por um artista de circo, que nenhum futuro poderia lhe
oferecer a não ser a magia do picadeiro. Além disso, as duas empregadas envolvidas no
escândalo tentavam abandonar a casa e Nãna a falar e se meter, como sempre, onde não
era chamada. A trama chega a um grau de tensão e enredamento que parece praticamente
impossível desatar o dado por Marinho, pois todos estavam presos a seus próprios
171
desejos e manias, sobretudo, enlameados em seus “vícios”. Como resolver essa situação se
todos se revelam em sua hipocrisia e enrijecimento, se insistem na manutenção de seu
status quo? Apenas a descida de um deus ex machina poderia levar a peça ao seu
desenlace. E de fato o Deus desce! Eis que surge Vasco. Seu retorno, que já era esperado
desde o início de Um sábado em 30, possibilita a resolução da intriga, restituindo a paz
naquela família e impondo drasticamente um desfecho à trama: seu happy end.
Provisoriamente, coloca todos esses conflitos em suspensão. Esquece-se do que se passou e
todos se reconciliam, inclusive, Seu Quincas e D. Mocinha. Maria de Jesus não sofre mais
pela partida do circo, Fivai embora com seu noivo tropeiro e Nãna não é expulsa.
Assim como no restante do país com o fim da Revolução, a paz volta a reinar na casa (pelo
menos até o fechar das cortinas!).
Tal situação conota o próprio estado de uma sociedade dividida entre suas tradições
e seu desejo de ruptura. Desejo frustrado. Por isso, acontece a suspensão dos conflitos
através de um final abrupto e maniqueísta que impõe um desenlace harmonioso. Expõe a
impossibilidade do dramaturgo de resolver os problemas daquela sociedade. Dessa forma,
Marinho põe em discussão conflitos de classe, gênero e raça, apresentado-os em sua
insolubilidade. Ele retrata as tensões e contradições de uma sociedade em transição, mas
que se mostra incapaz de uma real transgressão de si mesma. Um sábado em 30 trata,
portanto, da impossibilidade de transformação da sociedade patriarcal brasileira.
No entanto, deve-se levar em consideração que estamos a falar de uma comédia,
que se vulgarizou pela crítica como uma comédia de costumes, pelo apreço de seu autor de
registrar os aspectos pitorescos dos hábitos do matuto, seu linguajar e seus ritos. Nesse
ponto, é necessário abrir um parêntese e discutir essa questão. O que é uma comédia de
costumes? Esse tipo de comédia centra-se na pintura dos hábitos de uma sociedade,
utilizando-se da sátira para chamar a atenção da platéia dos desvios, dos erros nos quais
estariam correndo certos membros de um determinado segmento social. O riso surge como
um censor que busca corrigir esses desvios de conduta. A comédia de costumes, portanto,
expõe e critica os vícios de uma sociedade. Voltando a Um sábado em 30, os costumes dos
matutos não são, em nenhum momento, ridicularizados pelo seu autor. Em verdade, eles
existem muito mais como um registro etnográfico de uma cultura, se não extinta, em
vias de seu desaparecimento. Seria, assim, a luta da memória de preservá-los contra o
esquecimento, além de ser um processo de sublimação em que seu poeta reencontra-se com
seu passado, com seus matutos, reencontrando-se consigo mesmo. Porém, não discordamos
da noção de que Um bado seja uma comédia de costumes porque o que, em verdade,
172
Marinho satiriza é o modus vivendi da família e, de uma maneira geral, da sociedade
patriarcal. Por isso que nos permitimos dizer que Um bado em 30 é a comédia dos
costumes da família patriarcal, pois consegue extrair de seus vícios, nada inócuos, motivo
de riso e escárnio. Através do cômico, Marinho elabora sua critica político-social.
A criticidade interna da peça surge a partir do uso de procedimentos cômicos que
quebram a continuidade dramática das situações, impedindo a simpatia do leitor-
espectador pelos conflitos que são apresentados. Através da comicidade, veta-se a emoção
em detrimento da razão. Na crise final da família, os embates entre seus personagens são
pontuados por diversas situações de comicidade, quando, por exemplo, logo no começo, D.
Mocinha depois de uma primeira discussão com o marido, sai para chamar Filó. Seu
Quincas caminha em direção a Gustavo e, sem perceber a presença do rapaz, ainda
enfurecido com o filho, chama-o de cachorro, mas de si para si mesmo, direcionando sua
ofensa em verdade a Romeu. O que leva ao mal-entendido do rapaz que pensou ter sido o
alvo da agressão:
QUINCAS [...] chamar a moça, aqui. (Mocinha sai em direção a cozinha.
Aproxima-se de Gustavo e diz de si para si) Cachorro!
GUSTAVO - Eu?
QUINCAS - Não. Cachorro. Sob o mesmo teto onde dormiam a mãe e as irmãs.
Enoja-me. (MARINHO 1986b:60).
Quando Filó entra em cena e é interrogada por Seu Quincas, o patriarca utiliza um
vocabulário rebuscado, confundido a moça. O contraste com sua ignorância enfatiza a
comicidade das palavras que daí subjaz:
QUINCAS - Eu quero examinar um caso com justeza para que haja justiça. E
você tem que me responder com honestidade. Você prevaricou?
FILÓ - Como?
SÁ NÃNA - Ele quis perguntar se tu...
QUINCAS - (Interrompendo) Espera aí, Nãna. (Pausa) Você fez alguma
coisa que não devia com o Romeu? (Pausa. Bate na mesa).
FILÓ - (Amedrontada) Fiz, sim senhor. (MARINHO 1986b:60).
Comicidade que é amplificada com a violência do patriarca contrastando com o
temor da empregada. Mais adiante, ainda durante este interrogatório, Seu Quincas pede
detalhes de como se passou o “fato”:
173
QUINCAS - Você foi só ou ele lhe forçou?
FILÓ - Bom, Ele me forçou.
QUINCAS - (Puxando-a para si, enlaçando-a) Quer dizer que ele a puxou
assim...
MOCINHA - Seu Quincas: se o senhor vai entrar em detalhes... eu prefiro me
retirar. (MARINHO 1986b:60).
Essa quase simulação do defloramento de Filó torna-se cômica, quebrando a tensão
da cena justamente pelo contraste que ela imprime. Num ato falho, Seu Quincas sai de sua
austeridade, revelando sua corporeidade, ou melhor, sua carnalidade porque, ao enlaçar a
moça sob a desculpa de querer saber exatamente como tudo havia se passado, indícios
de seu desejo latente, de seu “fraco” por criadas. E a indignação de D. Mocinha apenas
reforça sua força cômica. Quando Seu Quincas informa a Filó que ela se casará com
Romeu, eis sua reação:
QUINCAS - Ninguém vai pagar homem pra casar com você, não. Você vai
casar é com quem lhe fez mal.
FILÓ – Não, senhor. Não carece, não.
MOCINHA - Minha filha: que coração bom você tem... Sente aqui (Senta-a).
(MARINHO 1986b:60).
Filó não se conta que Seu Quincas tenta agir eticamente. Recusa o apoio como
se este fosse apenas um agrado do patrão ao empregado e, em sua humildade, recusa a
gentileza do senhor. Age como a pobre coitada, permanecendo endurecida devido à sua
condição de subalterna, sem perceber a possibilidade de salvar sua honra e de casar-se com
Romeu como pretendia. Prefere a humildade dos humildes, provocando, ao mesmo tempo,
o risível e o patético, o cômico e o dramático de sua condição. O aparente absurdo de sua
resposta propicia a comicidade e o enternecimento. D. Mocinha, por sua vez, provas de
sua hipocrisia, numa outra situação absurda. Emociona-se quando devia lastimar a
inocência da moça. Afaga-a, desejando sua desgraça. Suas reais intenções contrastando
com seu gesto, o que também revela a ironia do autor, despertam sua comicidade. Além de
se perceber o endurecimento do personagem em sua mania de tradição que, diante da
desonra da moça, de sua ignorância e inocência, ainda consegue extrair alegria. Essa ironia
de Marinho é ainda mais enfatizada na primeira versão de Um sábado em 30 onde D.
174
Mocinha, no cúmulo de seu egoísmo e hipocrisia, chora, abraça e beija a moça na testa
quando esta recusa-se em casar com Romeu.
Outro recurso cômico utilizado por Marinho são os comentários de Nãna no
decorrer da discussão muitas vezes desviando a atenção do leitor-espectador para os
aspectos pitorescos do que é tratado. Como, por exemplo, no embate entre Seu Quincas e
Major Paulino onde ocorrem revelações “bombásticas”:
M. PAULINO - Jamais pretendia tocar neste assunto... mas... como tudo tem
seu momento na vida, chegou a hora de fazer essa desagradável revelação: -
Apesar de sua mãe vir de Conselheiros e Desembargadores, seu pai, era filho de
um padre!
SÁ NÃNA - Virgem, Nosso Senhor! O povo daqui é neto de mula de padre!
(Benze)
[
grifo nosso].
SEU QUINCAS - É assim?... E o senhor pensa que me escandalizou com esta
revelação?... Feliz foi meu pai que veio abençoado pela Santa Madre Igreja
desde que se gerou!... Agora, se está no momento de lavar roupas sujas... Sei
exatamente a origem de sua fortuna, quando o senhor voltou da Guerra do
Paraguai!
SÁ NÃNA - Pronto! Catucaram o velho com a Guerra do Paraguai... agora
não esbarra mais de falar! (MARINHO 1968:122). [grifo nosso].
Outro efeito de distanciamento do leitor-espectador através da comicidade dá-se no
momento em que Nãna revela à família o quase adultério de Seu Quincas. Prestes a
contar o acontecido, no clímax da cena, onde todos aguardam pela derradeira revelação da
velha, eis que chega Zefa a comentar com galhofa o que acontecia: (Entrando) Essa casa
é umas comédias! Viva! Minha gente! O trem chegou! Os soldados vêm marchando ali
confronte a cadeia! (Ninguém lhe presta atenção)”. (MARINHO 1968:126-127). [grifos
nossos]. A pastora, que se encontrava até então fora da casa, só percebe aquela “revolução”
em família sob seus aspectos exteriores; não se comprazia, mas ria do que assistia e seu
riso torna-se o riso do leitor-espectador que a partir de então e esta cena através de
sua derrisão. Além disso, chega com uma informação que não interessa a ninguém da casa.
Comenta a chegada de novos soldados na cidade, fato que poderia interessar a D. Mocinha;
afinal, um desses soldados poderia ser Vasco, o que posteriormente se confirma. Mas o que
se denota do comentário da pastora é, mais uma vez, seu firme desejo de “se perder” com
um soldado, mesmo depois de ter levado uma surra dos perrepistas no pastoril. Não se
percebem os novos soldados exatamente como o anúncio do fim da Revolução ou o retorno
de Vasco, mas como as novas conquistas de Zefa, o que reforça sua comicidade de caráter.
Entretanto, o ápice da comicidade e do ridículo dessa sociedade acontece um pouco mais
175
adiante quando, após a revelação de Sá Nãna, todos se encontravam paralisados, digerindo
tudo o que ouviram e presenciaram. Num silêncio que acentuava a tensão dramática e
preparava os personagens para suas futuras ações. Eis o que ocorre:
Ouve-se o toque de uma corneta e um surdo ritmado que vem se aproximando
aos poucos. Agora se percebe a música que toca o Hino do Partido Liberal
(Abano e a Vassourinha) O major ergue-se de pé, põe a mão no peito
esquerdo, chora. Zefa logo que ouviu a música saiu correndo, Seu Quincas
que tem estado calado vai se enfezando e num crescendo fala a Sá Nãna.
(MARINHO 1968:127). [grifo nosso].
Essa cena reforça a comicidade de caráter de Major Paulino que, mesmo diante da
revelação de Nãna, que provavelmente em nada o chocara, não se apieda de sua filha.
Pelo contrário, ao ouvir o Hino de seu partido consegue distanciar-se do que ocorria e
comporta-se como se estivesse em plena cerimônia cívica. Novamente, percebemos o tipo
sobrepondo-se à personalidade. Zefa age da mesma maneira, seguindo seu traço
individualizante que a faz correr atrás de soldado, partindo junto num bonde, fato que será
comunicado ao final da peça. Todos esses exemplos foram citados para expor o jogo que
Marinho estabelece entre o cômico e o dramático, aproximando-se ora de um, ora de outro,
desconstruindo a tensão de suas cenas através do riso. Pode-se pensar, porém, que suas
incursões cômicas pelo que até então se apresentava como dramático, causariam uma
banalização da situação que é desenvolvida, dos problemas que são levantados em torno da
discussão sobre a honra, a ética e a moral. Na realidade, eles indicam o caminho para a
toca do coelho, para a interpretação dos temas e idéias que subjazem nessa comédia séria.
A significação da comicidade em Um sábado em 30 encontra-se, justamente, em seu “final
feliz”. Quando todos os integrantes da família se retiram da ante-sala de jantar para
comemorar a chegada de Vasco, indo em direção ao interior da casa, permanecem apenas
Romeu e Nãna. Chamando o rapaz para dar-lhe seu último conselho e prometendo não
mais emitir opinião sobre os assuntos da casa, Sá Nãna diz:
- Romeu! Nessa casa eu não abro mais a boca nem para dizer que Nosso Senhor
é Deus... Mas antes de trancar a boca vou te dizer uma coisa, para te servir de
conselho... tu escapulisse de uma boa, mas escuta bem as derradeiras palavras
dessa velha: - Quem muito se abaixa, o fundo lhe aparece! (MARINHO
1968:130).
176
Ou seja, em sua ironia, ela previne o rapaz a o abusar mais da sorte, porque
próxima vez em que ele tentar repetir a mesma falta (abusar das empregadas da casa),
poderá não escapar da ira do pai, recebendo um castigo ainda pior que o casamento. Além
disso, no seu chiste tendencioso, a velha aconselha Romeu a não se meter mais com
empregada, porque afinal ele é “um branco”, um rapaz de boa família e, por isso, não deve
se rebaixar a gente de “menor estirpe”, igualando-se aos humildes, com as “piniqueiras”
como Nãna costuma chamar as empregadas. Nesse ínterim, chega Chico, informando
que havia uma moça do lado de fora da casa, procurando emprego como doméstica, e
pergunta para Nãna se ele poderia trazê-la para dentro. Ao ouvir Chico, Romeu
“apruma-se todo interessado” e voltando-se para Nãna, os dois riem com cumplicidade,
percebendo-se que tudo iria voltar a se repetir, que os conselhos da velha de nada
serviram ao rapaz. Assim, Nãna espicha “os dedos imitando uma tesoura” e diz: “- Pra
tu conheço um jeito! (Romeu sai rindo para o interior da casa)”. (MARINHO
1968:130). Entra a moça com uma maleta de pau e uma caixa de sapato debaixo do braço.
Aguarda pela volta de D. Mocinha que iria entrevistá-la. Chico sai para chamar a patroa da
mesma maneira como ocorrera com Filó, permanecendo, agora, na ante-sala de jantar,
Nãna e a moça, que não é nomeada por Marinho. Da mesma forma como procedera com
Filó, Sá Nãna repete a pergunta: “Minha negra, escute aqui... Você ainda é moça?”
(MARINHO 1968:131). O que essa cena significa? O que ela nos diz? Seria apenas mais
um motivo para se rir? De acordo com Bergson, ninguém ri impunemente. Nosso riso será
sempre um gesto social, um gesto de denúncia ao que é ridículo e, por isso mesmo, a tudo
o que é desviante da natureza humana. Nessa cena, subentende-se que os conflitos que
foram colocados em suspensão na peça vão ser novamente problematizados, repetindo-se
obsessivamente, semelhante a um sistema mecânico. Daí extrai-se a comicidade das
situações. Esses mesmos personagens permanecerão em seus vícios, num processo
contínuo e infinito: Romeu continuará seduzindo as empregadas, Nãna voltará a se
meter na vida dos outros, Quitéria e Seu Severiano não se casarão, continuando a ser os
enamorados ridículos, etc. Marinho transforma essa sociedade e seus personagens em
razão de escárnio. Porém, seu riso também configura-se como uma forma de agressão,
assim como o riso provocado pelos chistes tendenciosos. Seu riso é mais que uma censura,
ele é uma constatação. Uma constatação que ressoa como a condenação da sociedade
patriarcal à sua estagnação. Presa às suas tradições viciosas.
no próprio título da peça, ao não precisar o sábado em que se desenvolve a ação,
Marinho conota tratar-se de um sábado dentre muitos e que, apesar dos acontecimentos
177
inusitados que ocorrem neste dia tão especial e inoportuno, estendendo-se até o domingo, é
um sábado corriqueiro, cujos eventos sempre se repetem por mais absurdos ou chocantes
que sejam para seus personagens. A repetição desse mesmo sábado em que se presume
desdobrar-se em muitos outros no futuro, reverbera na contínua impossibilidade de
mudança da sociedade que Marinho retrata. Desse modo, através do particular, vislumbra-
se todo um sistema de organização social que, como pudemos constatar, é baseado no
patriarcalismo. Mas, o que subjaz na peça é o pessimismo do autor. Talvez o significado
maior de Um sábado em 30 seja muito mais profundo do que aparenta ser: um manifesto
de descrença na própria capacidade de renovação e transformação do ser humano. Marinho
ri, faz rir seus personagens e também nos incita ao riso, porém seu riso é amargo. Da sua
amargura triunfa o humor. Porque Marinho ri da sociedade que o viu nascer, crescer e que
o preparou para a vida. Contrasta o riso infantil da criança que foi, que se comprazia
com o linguajar dos empregados, com o sorriso do adulto que constata a desigualdade entre
seus irmãos; que se repete, continuamente, e cujo único fim é a morte. Seu riso, portanto, é
carregado do humor que busca triunfar sobre a situação angustiante que é viver. Viver na
realidade que nos oprime e que nos faz escapar ao nosso imaginário:
O riso relaciona-se, assim, com a tragicidade da vida, mas também com a
capacidade de distanciamento: o prazer de pensar, o gosto do engano e a
possibilidade de subverter provisoriamente, através do jogo, a condenação à
morte e tudo aquilo que a representa. Em geral visto como sinal de alegria, o
riso pode revelar o sofrimento em toda a sua crueza. (DUARTE 2006:51).
Luiz Marinho faz rir não apenas porque tem o domínio da carpintaria teatral ou
porque consegue extrair do absurdo de nossa sociedade a comicidade que reforça nossa
superioridade de caráter ou que denuncia nossa vergonhosa identificação, mas porque tem
consciência do caos e da relatividade da vida, sempre em movimento e transformação.
Situação diversa da estagnação da sociedade que ele apresenta e combate, mesmo que
sutilmente, devido ao seu temperamento. E se essa ausência de movimento persiste, do
fundo de sua descrença, ainda brota a esperança da transgressão pelo poder
desestabilizador que detém o riso: sua força cômica. Por isso, desmistifica ideologias e
poderes estabelecidos, brincando com a linguagem e dividindo sua voz com o falar de seu
povo que se torna sua fala também. Livra o leitor-espectador, pelo prazer do jogo, de seu
próprio risco ao automatismo; liberta-o, mesmo que instantaneamente, do peso da vida e
do medo da morte.
178
2.2. Viva o cordão encarnado
Em meados de janeiro de 1968, enquanto terminava uma temporada de A
derradeira ceia, peça de Luiz Marinho, com direção de Rubens Teixeira, pelo Teatro da
Universidade Católica, nosso autor tem uma nova peça levada à cena: Viva o cordão
encarnado.
55
O grupo que realiza o espetáculo, sob direção de Clênio Wanderley, é o
Teatro Universitário de Pernambuco (TUP). Vê-se que Luiz Marinho ainda é, naquele
momento de consolidação da ditadura no país, um autor para o qual se voltam os
universitários.
Encenada pelo TUP, a peça havia sido cedida pelo Teatro de Amadores de
Pernambuco, cujo objetivo seria apresentar-se no V Festival Nacional de Teatro de
Estudantes, que se realizaria no Rio de Janeiro de 28 de janeiro a 8 de fevereiro daquele
ano.
Na sua temporada inicial, no Teatro de Santa Isabel, a peça dirigida por Clênio
Wanderley teve boa recepção da crítica local. Benjamim Santos, no Jornal do Commercio,
constata que “O espetáculo é popular por excelência e carregado de muitas características
dos folguedos populares nordestinos: o anti-ilusionismo, a cor, a linguagem mais natural
que literária, a pancadaria, o canto e a dança”. (SANTOS, 1968:s.p). Embora não analise o
texto de Marinho, observa que a encenação possibilitou aos atores e atrizes representarem
com alegria, tornando o espetáculo bom e agradável. Estaria o triunfo do diretor Clênio
Wanderley, que soube distribuir bem os papéis bem como soube estabelecer uma eficiente
comunicação com o público:
Desde a cena inicial já se estabelece esse vigor de comunhão do público com os
atores e o autor. Nas várias vezes que vi o espetáculo, ouvi da parte dos
espectadores frases do tipo “é assim mesmo”, “parece que estou vendo”, “o
velho é desse jeito”... demonstrando um interesse pelo espetáculo que, vez por
outra, desaparecia em virtude do longo tempo de duração de cada uma das
55
FICHA TÉCNICA: VIVA O CORDÃO ENCARNADO. AUTOR: Luiz Marinho; DIREÇÃO: Clênio
Wanderley. ELENCO: Jones Mello (Cabo Nestor); Ruth Bandeira (Vicência); João Ferreira (Heronides);
Marlene Santana (Maria Não Enjeita); Diva Nise (Dora); Marlos Urquiza (Josias); Marcelo Teixeira (Dudu);
Lourdes Flório (Berenice); Karlise Pinto (Dapenha); Nelson Alexandrino (Chicuto); Sandoval Cavalcanti
(Delegado - Pai); José Antonio Accioly (Sacristão - Valter); Wiberto Guerra (Boa Tapa); Márcia Cisneiros
(Zulmira); Maria Rita Freire (Zefa); Paulo Ferreira (Mané Fozinho); Luís Carlos (Romeu); Sílvio Belo
(Soldado Rapaz); Jo Geraldo Wanderley (Juca). CENÁRIO E GUARDA-ROUPA: Janice Lôbo;
EXECUÇÃO GUARDA-ROUPA: Estelita Wanderley; MAQUINÁRIA: Aluísio Pereira de Santana;
CONTRA-REGRA: Nelson Alexandrino; MAQUILAGEM: Ana Campos Lima; PROGRAMA: José
Anacleto Elói; MÚSICOS: Valdemiro de Lima (Clarinete), Severino Assis (Trombone), Luciano Pimentel
(Bateria); PRODUÇÃO: Teatro Universitário de Pernambuco; ESTRÉIA: 17 de janeiro de 1968. LOCAL:
Teatro de Santa Isabel. (TEATRO UNIVERSITÁRIO DE PERNAMBUCO. 1968. programa).
179
partes. Mas ainda o interesse voltava com uma nova jornada do pastoril, com
uma graçola do Velho ou alguma situação engraçada. (SANTOS, 1968:s.p.)
O crítico dá a perceber que, a despeito de alguns problemas da montagem – sotaque
interiorano carregado, trejeitos de braços e ombros abusivos, cenografia mal executada
Luiz Marinho mostra-se mais uma vez vitorioso como dramaturgo. E assegura que o
espetáculo terá êxito quando de sua apresentação no Rio de Janeiro. Opinião com a qual
Valdemar de Oliveira es de acordo e, inclusive, em um de seus A propósito..., diz ter
valido a pena a longa espera para ver em cena a peça de Luiz Marinho, Viva o cordão
encarnado:
Louvemos, antes de tudo, o diretor Clênio Wanderley, que enfrentou as
dificuldades do texto Luiz Marinho é um pouco desarrumado e agüente-se
quem puder! – e as venceu uma a uma, embora insistindo, na primeira noite, em
que se tratou de um ensaio geral. Deveria, entretanto, livrar-se de algumas
delas, encurtando, à custa de cortes indispensáveis, o segundo ato, cuja
continuidade dramática se vê constantemente interrompida pelas sucessivas
jornadas de pastoril. Ganharia, com isso, duplamente, a peça: pelo corte de
jornadas que acabam se tornando monótonas, e pela condensação da ação
dramática que adquiriria um outro e mais imprevisto ritmo. Dois lembretes,
aliás, devo fazer: entre os cortes, eliminar o trecho de “O patrão mais a patroa”
(que já se acha incluído em Um sábado em 30) e uma pretensa jornada, que não
é jornada nem nada, mas, um conhecido frevo, de velhos carnavais quando
frevo ainda era cantado. Que tenha sido, depois, aproveitado pelo pastoril, em
Nazaré, não é desculpa: falta-lhe o “cachet” próprio do gênero, isto é não é
autêntico.
A peça é deliciosa, em verve e fidelidade às mais puras raízes nordestinas. Nem
se pode dizer que se exceda em irreverências porque ou o Heronides (bem
defendido por João Ferreira) é mesmo velho Matraca ou não é; ou bem Maria-
Não-Enjeita (a que Marlene Santana deu um desempenho de encher as medidas)
é o que é ou não é; e, do mesmo passo, na mesma linha interpretativa justa,
Vicência (magnífico desempenho de Rute Bandeira), Zefa Pastora (vivida com
propriedade pela Rita Freire) e o Cabo Nestor (excelente interpretação de Jones
Mello). Cito as principais figuras, mas todo o resto do elenco estava afiado e
convincente. Cortando os babados da peça, Clênio Wanderley pode assegurar
uma brilhante presença de Pernambuco no V Festival Nacional de Estudantes.
(OLIVEIRA, 1968a:6).
Vemos que os dois críticos que tratam da primeira encenação de Viva o cordão
encarnado, não se adentram no texto dramático como o fizeram vários deles, quando da
montagem de Um sábado em 30. Agora, o olhar deles acaba urdindo muito mais as
potencialidades cênicas da peça, que suas qualidades intrínsecas, o pensamento que a
move. Não uma interpretação do texto dramático, não se buscam sentidos no texto, nem
mesmo na encenação: apenas a constatação de sua funcionalidade, de sua
comunicabilidade; no caso de Valdemar de Oliveira, este aponta ser a peça “desarrumada”,
180
isto é, uma peça que requer o trabalho atento do diretor para -la em cena. O que,
segundo ele, Clênio fez muito bem, podendo até mesmo melhorar, caso lhe cortassem “os
babados”, aquilo que para o crítico, constituem as “gorduras” do texto: as sucessivas
jornadas de pastoril do segundo ato que interrompem o fluxo da ação dramática. Neste
mesmo sentido, pode-se ler o que Benjamim Santos diz sobre a longa duração de tempo
entre as partes da peça, fazendo com que se se perdesse, vez por outra, o interesse no
espetáculo. Se tudo isto acontece é porque o texto está intrinsecamente ligado à cena,
fazendo com que Santos acentue que algo na peça de muito mais natural que literário.
Esta já se constituía uma das características das peças marinhas, o que Valdemar de
Oliveira vai reconfirmar no prefácio à edição de Viva o cordão encarnado:
O senso teatral, que possuía, apura-se neste novo trabalho, de comunicação
mais fácil com o público. Entremostra-se, nele, com a mesma poderosa força, a
sua qualidade mestra - fazer falarem seus fantoches a língua do povo, criada por
ele e por ele falada, autêntica geração espontânea de expressões idiomáticas que
estão pedindo lápis e papel, se não há a máquina gravadora. (OLIVEIRA,
1969:10).
Chega a concluir que, no dia em que se fizer um “Atlas lingüístico” onde se poderá
observar os vasos comunicantes das várias zonas lingüísticas de nossa província social, “as
obras de teatro de Luiz Marinho, mais que qualquer outra do teatro nordestino, serão
compulsadas, com a seriedade que reclamam, como o mais fiel repositório da fala ingênua
e pura do homem do Nordeste”. (OLIVEIRA, 1969:10).
Viva o cordão encarnado foi publicada em 1969, pelo Museu do Açúcar. E,
provavelmente em 1999, numa republicação denominada Bastidores - Texto de teatro, de
Natal, Rio Grande do Norte, com cortes substanciais. Com esta peça, Luiz Marinho ganhou
o prêmio da Academia Pernambucana de Letras (1969), da Associação de Críticos de
Pernambuco (1969) e da Academia Brasileira de Letras (1970). Além de ter proporcionado
ao seu primeiro diretor, Clênio Wanderley, uma bolsa de estudos teatrais na França e a
Marinho, o título de melhor autor do V Festival Nacional de Teatro dos Estudantes,
realizado no Rio de Janeiro.
Até hoje, tem sido uma de suas peças mais montadas e quem realizou a encenação
de maior sucesso foi Luiz Mendonça, no Rio de Janeiro, em 1974, no palco do Teatro
Dulcina, contando em seu elenco com 23 atores e atrizes, dentre outros, Elke Maravilha,
Tânia Alves, Gracinda Freire, Ilva Niño, Ivan Setta, Sílvio Fróes e o próprio Mendonça.
181
Sucesso de público e de crítica, Mendonça e Marinho recebem o Prêmio Molière, nas
categorias de melhor diretor e autor, respectivamente.
Para Yan Michalski, Viva o cordão encarnado não produziu o mesmo choque
estético que A compadecida, porque a peça de Marinho é “ingênua”, não podendo
comparar-se “em matéria de densidade literária, à clássica obra de Suassuna”, embora
nela ainda se possa se encontrar “o mesmo sopro de inspiração, saudavelmente primitivo,
que jorra do subconsciente arquétipo do povo e se identifica misteriosamente com algumas
formas do teatro clássico que floresceu séculos atrás em países europeus”. (MICHALSKI,
1974:s.p.). O crítico constata que a trama da peça é esquemática, os personagens rarefeitos,
mas tem diálogos saborosos, constituindo-se a peça como um todo, num “bem humorado
mas superficial documentário-comentário de costumes, mas o seu valor principal reside na
sua qualidade de trampolim para a realização de um espetáculo de exuberante
teatralidade”.(MICHASLKI, 1974:s.p.). Este aspecto não passara despercebido às críticas
recifenses à época da primeira montagem. Mas havia outro aspecto que seria relevado no
espetáculo de Luiz Mendonça: sua “brasilidade” que teria, possivelmente, assegurado a
Luiz Marinho o prêmio Molière, pois, como justifica Yan Michalski, Viva o cordão
encarnado além de suas qualidades intrínsecas, é também o resultado de um trabalho em
“prol de uma dramaturgia inconfundivelmente brasileira, fiel às raízes mais autênticas e
populares do nosso teatro”. Era nitidamente uma tomada de posição a favor de um teatro
popular, de “feição” brasileira. (MICHALSKI, 1975:s.p.)
Um dos aspectos mais relevantes que toda crítica apontava no espetáculo de Luiz
Mendonça era sua vitalidade, seu humor, e, sobretudo, essa resistência ao “popular”.
Também Luiz Marinho era aplaudido pela imprensa, porque soubera transfigurar a
realidade nordestina, inserindo na urdidura teatral, o pastoril. Vejamos como Fernando
Peixoto refere-se ao autor:
Marinho é um dos autores mais representados no Rio, graças a Mendonça. No
ano passado [1973], A Incelença foi um espetáculo de extrema importância pela
procura de uma linguagem. O Cordão Encarnado é um texto mais fascinante e
mais difícil: o primeiro ato expõe uma intriga fácil, tipo o marido-a-mulher-e-o-
outro, valorizada pela linguagem e pela caracterização dos personagens [...],
mas sem maior atrativo; o segundo ato trás para a cena, com vigor e poesia, um
dos folguedos mais típicos do povo nordestino, o pastoril, forma de espetáculo
popular que se manifesta desde o século XVI. (PEIXOTO, 1989:36).
Continuando sua apreciação crítica sobre a mais importante montagem de Viva o
cordão encarnado, Peixoto assim a descreve:
182
Elementos que nos lembram o circo e a revista se sucedem e se alternam com
uma estrutura autêntica, popular e marcada por um curioso sabor medieval. Para
Luiz Mendonça, a estrutura do pastoril pode ser utilizada para outros
espetáculos teatrais: é preciso apenas encontrar uma forma, pesquisar neste
campo. Tudo que foi realizado até o momento ainda deixa a desejar.
Luiz Mendonça é um dos poucos encenadores que permanece fiel à procura de
uma linguagem teatral popular, que possa comunicar-se com as platéias mais
variadas. Viva o cordão encarnado!, neste sentido, é um espetáculo de extrema
importância: não para tomar contato com uma das fontes mais autênticas de
um possível caminho para a existência de um teatro popular verdadeiro,
descondicionado de outras influências culturais, como pelo que representa em si
um momento de vitalidade, alegria, humor, realizado com senso de
teatralidade. (PEIXOTO, 1989:38).
Mário de Andrade (1982) constatava que, na maioria dos folguedos brasileiros,
ocorre a morte e a ressurreição, ou a luta do bem contra o mal, chamando a atenção para a
noção de perigo e salvação. Nos pastoris, por exemplo, originário da península ibérica,
existe a luta entre o cordão azul e o encarnado, considerando-se o encarnado mais audaz e
atrevido que o azul. A princípio, o pastoril ou presépio/presepe tinha a finalidade religiosa
de saudar o nascimento de Cristo; posteriormente, vem a aparecer um outro tipo,
denominado, pastoril profano, que é o tipo de pastoril utilizado por Marinho em Viva o
cordão encarnado.
O pastoril profano é cheio de licenciosidade, tendo no Velho a figura que comanda
o espetáculo, as jornadas e “se esparrama em piadas, numa atuação que ressalta o
histrionismo, a improvisação. Seus diálogos com as pastoras são cheios de duplo sentido e,
com o público, puxa discussão, brincadeiras, faz trejeitos e canta canções adaptadas as suas
necessidades”. (BORBA, 2000:18).
56
O Velho é um palhaço triste, misto de cômico e
rufião que “tem dificuldades de contratar as moças dos bairros e então contrata
prostitutas,” como afirma Luiz Mendonça que explica ainda outras características do
folguedo
É um espetáculo circunstancial, brinca com os personagens populares do bairro,
critica problemas locais. É um espetáculo sem limites morais, bastante erótico.
Dura às vezes uma noite inteira e, se o pessoal está disposto, às vezes vira a
noite. Geralmente é feito em frente de um bar. O dono do bar também um
dinheiro ao Velho. (apud PEIXOTO, 1989:37).
56
. Sobre este tema cf. MELLO; PEREIRA (1990).
183
2.2.1. Prelúdio ou o abre
Na primeira edição de Viva o cordão encarnado, Marinho apresenta sua peça como
uma comédia regional, dividida em dois atos e cinco quadros. (MARINHO, 1969:11). Suas
divisões obedecem a uma lógica interna que remarca os saltos temporais da peça: enquanto
os maiores são divididos em atos, aos menores correspondem os quadros. Ou seja, os
quadros determinam, por exemplo, as transições de uma manhã para uma noite ou de um
dia para o outro, enquanto que os atos indicam uma passagem de tempo que ultrapassa,
provavelmente, algumas semanas, sem uma maior precisão. Sabe-se que a peça se inicia
durante o sétimo mês de gravidez da pastora Vicência (uma das protagonistas da trama),
culminando com o nascimento prematuro de seu filho. No começo do segundo ato, ela
encontra-se na iminência de dar a luz e está proibida de dançar pastoril – pelo marido – por
não poder mais disfarçar o tamanho da barriga. Os exíguos índices temporais do texto
apenas permitem uma aproximação da época em que se situa Viva o cordão encarnado e
da duração de sua ação dramática.
No primeiro ato, seus acontecimentos ocupam um espaço de três dias: uma quarta-
feira, à noite, no primeiro quadro; uma quinta-feira, pela manhã, no segundo quadro; e uma
sexta-feira, por volta do horário do almoço, no terceiro quadro. No segundo ato, tudo
ocorre num único dia, um sábado, dividindo-se numa manhã e numa noite, cada turno
correspondendo a um quadro diferente, sendo que à noite, justamente no último quadro, a
ação dura praticamente todo o segundo ato; assim como o terceiro quadro do primeiro ato
que o preenche em sua quase totalidade. Tal desproporção quantitativa entre os primeiros e
os últimos quadros de cada ato justifica-se porque cabe aos primeiros a tarefa de tecer as
linhas mestras da intriga que serão desenvolvidas no decorrer dos quadros finais.
O primeiro ato passa-se em meados de abril, logo após as comemorações da semana
santa e, provavelmente, meses antes dos acontecimentos que marcaram a primeira peça de
Marinho, Um sábado em 30. De acordo com a cronologia ficcional desses dois textos,
situamo-nos, no nimo, seis meses antes dos conflitos deflagrados pela revolução de
outubro. Todavia, os aspectos políticos que marcaram o Brasil no final dos anos 20 e
começo dos anos 30 e que aparecem de maneira fantasmal em Um sábado em 30,
inexistem na trama de Viva o cordão encarnado. Aqui, encontramos uma outra Timbaúba
que, ao invés de restringir-se a uma ante-sala de jantar, comprimindo num mesmo espaço
patrões e empregados, localiza-se, a princípio, num humilde quarto de teto baixo, quase
miserável, onde moram Vicência e Heronides para, em seguida, conquistar paulatinamente
184
a rua. No primeiro ato, em seus dois primeiros quadros, a cena ainda confina-se na casa; no
terceiro quadro, ultrapassa as paredes desta mesma casa, mas permanece à sua sombra, sob
sua vigilância, durante uma tarde de festa. Ou seja, no terceiro quadro, tudo acontece na
frente da casa. No segundo ato, a cena explode ganhando finalmente a rua, numa noite de
festa, outra festa, “carnaval profissional” do povo, mas igualmente apreciado e vigiado
pelas classes abastadas. Trata-se de uma função de pastoril de ponta de rua.
Também reencontramos alguns personagens de Um sábado em 30: Zefa e Romeu.
Personagens que existiam ou se conheciam, respectivamente, na primeira comédia
marinha, na condição de empregada e patrão. Em Viva o cordão encarnado,
testemunhamos a chegada de Zefa na cidade de Timbaúba, vinda de Goiana, à procura de
trabalho. Aqui, é outro o contexto que serve de palco para o encontro desses dois
personagens, mesmo que continuem igualmente distantes um do outro de acordo com as
hierarquias sociais e culturais que os separam. Conhecem-se durante uma função de
pastoril, Romeu como freqüentador e apreciador desse folguedo popular, especialmente
das moças que dançam e cantam, e Zefa, como pastora. Contexto propício a novos
entrecruzamentos sociais e carnais, desconhecidos na primeira peça, no que concerne a
estes dois personagens.
Em Viva o cordão encarnado, o homem humilde encontra-se em seu próprio
habitat, distante da casa senhorial, sem a vigilância da moral religiosa e patriarcal de Um
sábado em 30, mesmo que esta, esporadicamente, ainda paire sobre sua cabeça, a perturbar
sua consciência ou que o importune sob o brasão da lei e da ordem, de maneira ridícula e
anacrônica, fazendo-o exibir sua astúcia e despertando o riso e o escárnio. Todavia, essa
moral, se de fato existe, não é a mesma que uma Nãna ou D. Mocinha defendiam: a
moral oficial. Aqui, no “entender” do povo, ela não é dogmática, mas plástica, pois não
representa a oficialidade da cultura, nem da sociedade patriarcal. Centra-se numa discussão
antes ética do que religiosa. Trata-se, portanto, da ética no casamento, da fidelidade nas
relações conjugais, mas, sobretudo, da própria concepção de família, sem qualquer
implicação cristã. Num primeiro momento, o que se discute é a lealdade daqueles a quem
nos ligamos maritalmente, com ou sem as bênçãos da igreja, e as leis da paixão e do
desejo, nas quais a razão perde sua soberania. Retorna-se, de uma certa maneira, ao salão
burguês de Denis Diderot e sua busca pela virtude. Contudo, em Viva o cordão encarnado,
este salão é transposto para um quarto humilde, no interior de Pernambuco,
franciscanamente mobiliado e seus personagens não pertencem mais à ascendente
burguesia francesa do c. XVIII, mas a uma pequena sociedade constituída em torno de
185
um pastoril profano, notadamente, pobres, à margem de uma organização social dividida
quase que exclusivamente entre patrões e empregados. Aqui, constituem uma insípida
classe de profissionais “liberais”, voltados, em sua maioria, para os negócios do prazer e
do entretenimento. Sua moral, portanto, é sincrética, paradoxal, ambivalente; obedece, por
vezes, a uma lógica que ganha sentido em sua própria ilogicidade, no seu contrário;
onde os opostos se encontram, friccionando-se num processo ininterrupto, sem fim, em
constante transformação... Dialético!
No entanto, essa questão moral é abordada de maneira muito tênue em Viva o
cordão encarnado, desaparecendo da intriga e da motivação dos personagens na medida
em que a cena extravasa da casa e invade a rua. A ordem e a razão são abandonadas,
suspensas pela embriaguez da festa. Torna-se sua lei, o desejo; sua moral, a cachaça.
2.2.2. Ainda os vestígios do despertar da primavera
Nas primeiras páginas de Viva o cordão encarnado, Marinho escreveu a seguinte
dedicatória: “Este livro é dedicado muito especialmente ao meu pai e meus tios (Os
meninos do Cel. João de Nãna) que muitos pastoris e samba de negro acabaram, naqueles
mundos de Nazaré, Goiana e Timbaúba”. (MARINHO, 1969:7). Palavras que revelam as
bases afetuais e memoriais que serviram de alicerce para a criação desta comédia e que
estreitam ainda mais seus laços com o conjunto da obra marinha, sobretudo, com as peças
declaradamente vinculadas à sua infância e adolescência em Timbaúba.
Assim como alguns personagens retratados em Viva o cordão encarnado, filhos de
senhor de engenho (Romeu e Rapaz), seu pai e seus tios, à época de sua mocidade, também
foram freqüentadores de pastoril e, provavelmente, passado o furor de suas primaveras,
despertaram a imaginação do jovem Marinho com estórias sobre pastorinhas e velhos
licenciosos, leilões de cravos e disputas entre partidos (encarnado e azul), cujas rixas
podiam ser tanto de ordem política quanto amorosa, mas não menos ardentes e violentas,
culminando, por vezes, em pancadaria, sangue e polícia. Estórias e personagens
ciosamente depositados na memória de Marinho, à espera de sua maturação para a
reelaboração ficcional.
Todavia, não se deve esquecer que sua dramaturgia não se nutria apenas das
lembranças de infância, mas também da seriedade do pesquisador, do etnógrafo da língua,
do folclorista que recorria às fontes populares na elaboração de cada peça. Como o próprio
Marinho informa, ao final de Viva o cordão encarnado (1968:127), todas as jornadas de
186
pastoril da peça foram pesquisadas nas cidades de Recife, Goiana, Ponta de Pedra e
Timbaúba, em Pernambuco, além de Canguaretama, no Rio Grande do Norte. Porém, são
pesquisas que se configuram como “confirmações” de tudo o que viveu e aprendeu em
seus tempos de menino.
57
Apenas certificava-se se a memória não estava com falhas, se o
moleque de outrora não pregava alguma peça no adulto solipcista, no dramaturgo em que
se tornou.
E, como para confirmar a regra de que memória & invenção tornam-se, por vezes
quase inextinguíveis, nesta peça, Luiz Marinho retoma suas experiências da infância e de
adolescente. Aqui, são tratadas de forma amorosa, por vezes irônica, reelaborando-as pelo
viés da ficção, mesmo quando esta ficção é capaz de suscitar em um espectador
privilegiado por ser seu contemporâneo toda uma rede de significâncias, pela retomada dos
vestígios que a presença da peça lhe traz à mente. É o caso de Isnar de Moura, que registra
em crônica o que foi capaz de especular sobre Viva o cordão encarnado, ante a
sensibilidade crepuscular que caracterizava sua escritura, decerto testemunha de um tempo
o da estréia da peça em 1968 meses antes do país ser mergulhado nas trevas do AI-5.
Eis mais uma vez esta “testemunha ocular da história”:
De novo Luiz Marinho carrega-me para a infância, espantando-me de sua
maravilhosa fidelidade aos costumes e linguagem das gentes do Interior.
Confesso que nunca tive paixão pelo que apaixona meu querido conterrâneo e
amigo, mas de uma vez ou outra que vi pastoril nalguma ponta de rua de
Timbaúba, guardo as imagens e sons que ele inteligentemente coloca na sua
peça de agora, enriquecida por seu diálogos e cenas picantes ou ingênuas,
maliciosas e brejeiras, porém muito espontâneas que foi construído para
sequenciar a função do espetáculo.
O Teatro Universitário de Pernambuco, vai ser bem sucedido, certamente, no
festival do Rio. Disse-me Isaac Gondim Filho que o seu Emanuel será encenado
nas escadarias da Igreja de S. Francisco. Se Viva o cordão encarnado tiver
cenário assim adequado, não dúvida quanto ao seu melhor efeito e
rendimento, principalmente com mais gente no sereno, tal como no pastoril de
verdade nos tempos de outrora.
Além das pastoras e do Heronides, figuras excelentes do folguedo popular, há a
Vicência magnífica, no papel da mulher de Heronides, que o trai com a mais
deslavada cerimônia. Ruth Bandeira [Vicência] parece-me ótima, assim como o
Cabo Nestor [Jones Mello], pai verdadeiro da criança que está para nascer,
impedindo-a de funcionar como pastora, a ela, Vicência, que nem por isto deixa
de ser a personagem central da folgança.
Todos os ingredientes da situação aparecem em boa dose. Lances e brigas,
comilanças, e bebedeiras, palavrões e destemperos. Delegado, sacristão,
charivari. Até moço endinheirado que arremata o cravo e a pastora, no fim.
57
Luiz Marinho em depoimento em 3º pessoa, constante no acervo da família, afirma que as “pesquisas” que
precediam a escritura de suas peças não eram exatamente “pesquisas”, mas “confirmações” de suas
lembranças; declaração que já havíamos feito menção no começo deste estudo. Cf. MARINHO ([s.d.]:[s.p.]).
187
Janice [Lôbo] deu realce, avivou a festança com cenário e guarda-roupa
vibrantes, vistosos. As pastoras, mais que tudo. (ISNAR, 1968:s.p.).
Se Luiz Marinho é capaz de reinventar suas memórias fazendo com que sua matéria
ficcional transforme-se em outras lembranças dos que as vivenciaram -, estas
rememorações acabam por acentuar o caráter mesmo da espacialização do vivido,
resistindo à corrosão do tempo. Memória e esquecimento vindo à cena pelas
reminiscências que passam a dar novos ângulos à interpretação de sua obra.
2.2.3. Zefa e o amuleto de Zé Pelintra
Viva o cordão encarnado concentra sua intriga em torno do triângulo amoroso,
composto por Heronides, mais conhecido como o Velho Matraca, dono de um pastoril de
ponta de rua; sua esposa, Vicência, que é a mestra do pastoril, e Cabo Nestor, autoridade
local, amigo de Heronides e amante de Vicência. Ou seja, o marido, a esposa e o amante.
Após dez anos de casamento, Heronides e Vicência nunca conseguiram ter um
filho, conseqüência da esterilidade do marido. Fato que apenas agravava o desgosto de
Vicência, que não era mais tão nova e, por isso, entrava na idade perigosa de ter filho.
Lastimava-se, já que este era seu sonho: ser mãe.
Diante de todas essas impossibilidades e na iminência de seus sonhos maternais
naufragarem, Vicência decide iniciar uma relação extraconjugal com o Cabo Nestor. Os
dois passam a encontrar-se, regularmente às sextas-feiras à noite, quando Heronides
viajava para a cidade de Itabaiana, para tratar de “negócio de jogo”,
58
como dizia a própria
Vicência, retornando no dia seguinte. A princípio, este caso duraria até que Vicência
engravidasse, aliás, esta era sua única finalidade: a fecundação da mestra do pastoril.
Quanto ao cabo, caber-lhe-ia apenas o papel de reprodutor. Papel que, provavelmente, não
o desagradava, já que o rapaz portava-se como um conquistador, um garanhão, conhecido e
“invejado”, inclusive, pelo desproporcional tamanho de seu membro viril. Entretanto,
Vicência deixou-se seduzir pela “lábia” do cabo e mesmo depois de fecundada, continuou
a encontrar-se com Nestor que também por ela se apaixonou.
58
No texto de Marinho, não fica claro ao leitor exatamente o que Heronides faz em Itabaiana todas as sextas-
feiras. A informação de Vicência fornece apenas dados mínimos que justificam o encadeamento da intriga
(permite os encontros regulares de Vicência e Nestor, assim como a concepção do filho dos dois) e expõe
sumariamente os hábitos do marido. O texto não esclarece, por exemplo, se Heronides, além de trabalhar
como velho de pastoril, também trabalhava com jogos de azar ou se ele era simplesmente um jogador
contumaz.
188
Como desculpa para justificar sua gravidez tardia, depois de tantos anos de
casamento, Vicência convence o marido de que a criança havia sido concebida à força de
muita promessa. Assim, manteve o marido e o amante até a chegada do sétimo mês de
gravidez, momento em que a ação da peça se inicia. Contudo, seu idílio amoroso e
maternal não transcorreu impunemente, pelo menos em seu íntimo. No decorrer desse
tempo, a personagem começa a sofrer os reveses do adultério: culpa-se por trair o marido,
homem a quem respeita e quer bem; deseja Nestor, mas a própria consciência da paixão
apenas aumenta sua angústia. Sabe que precisa escolher um dos dois, pois sua consciência
não permite a permanência da traição, da felicidade à custa da desonra e do sofrimento de
Heronides. Porém não essegura do que fazer. Encontra-se numa situação de impasse, de
dúvidas; sobretudo, de conflito moral e ético, cindida entre a paixão e a fidelidade, o desejo
e a culpa. Esta é sua estase dramática.
Numa noite de quarta-feira, em meados de um incerto abril, provavelmente, em
1930, Vicência está em casa, sentada ao da cama, de robe, insone, enquanto Heronides
dorme. Ela ouve, suspirando, a voz de seu trovador que vem da rua. É Cabo Nestor quem
se aproxima, cantando a todo pulmão uma serenata e fazendo-se acompanhar por um
violão.
De súbito, Vicência lembra-se de qualquer coisa. Imediatamente, olha para a porta
e sobressalta-se. Olha para Heronides e depois salta da cama, indo, rapidamente, enfiar um
pano vermelho pela fresta da porta. Suspira aliviada. Era um sinal para Nestor, advertindo-
o da presença de Heronides. Todavia, era tarde demais. Quando se volta, Vicência o
marido sentado na cama. E o Cabo Nestor se encontrava cantando próximo à porta.
Heronides levanta-se e retira debaixo da cama um penico. Abre a porta da janela, joga o
líquido do vaso e, logo em seguida, lança o próprio recipiente na cabeça do Cabo Nestor
que sai correndo. No susto, ele ainda leva um tombo no chão, quebrando o violão.
Heronides diz desaforos, diverte-se com a peça que pregou no trovador. Vicência também
ri, talvez mais que o marido. Mas ela ri de alívio. Até então seu marido de nada
desconfiara. De repente, Heronides fica sério. Provavelmente, em seu íntimo, perguntou-se
quem poderia ser o trovador. Ele não o reconhecera como Cabo Nestor, seu amigo e
“antigo companheiro de farras”. Perguntou-se também por que ele parou diante de sua
porta e por que Vicência estava de pé, olhando para a rua. Suspeita da mulher. Imagina que
o trovador cantava para sua esposa e que ela correspondia aos seus galanteios.
Imediatamente, avançou em direção a Vicência e interrogou-a sobre a identidade do
misterioso homem. Apesar de surpresa, a pastora manteve o sangue frio, simulando
189
indignação com a suspeita do marido. Explicou que se encontrava diante da porta apenas
para velar seu sono. Foi até justamente para fechá-la e impedir que a música o
incomodasse. Habilmente, Vicência consegue enganar o marido, desfazendo suas
suspeitas. Retorna-se à estase inicial.
É em decorrência dos eventos desse quadro que se desencadeará a ação dramática
específica do primeiro ato. Nestor imagina ter sido traído por Vicência naquela noite. O
cabo não viu o pano vermelho na fresta da porta que, inclusive, fora ali colocado
tardiamente e, por isso, passa a acreditar que Vicência não o avisou da presença do marido
deliberadamente, colocando-o, por isso, à mercê da fúria de Heronides. Sentiu-se, portanto,
humilhado por seu rival e lesado pela amante. No dia seguinte, quando retorna até a casa
da amante, certamente para cobrar explicações, devido a um outro mal entendido, acaba
confirmando suas suspeitas. Suspeitas, por sinal, equivocadas. Nesse mesmo dia, Vicência
recebia a visita da pastora Maria Não Enjeita que, além de dançar no pastoril, também era
cartomante. Maria botou cartas para Vicência e Heronides. Durante a sessão do segundo,
viu um homem fardado no seu destino, o mesmo homem descrito no futuro de Vicência
momentos antes. Esse homem fardado era o próprio Cabo Nestor. De acordo com as cartas,
esse homem seria morto ou ferido gravemente por arma branca. Vicência, que sabia a
quem se referia a previsão, desesperou-se, acreditando que Nestor corria perigo. Dessa
forma, no momento exato de seu desespero, aparece o cabo na janela com um grande
esparadrapo, cobrindo sua testa. Devido ao impacto do penico de Heronides, o rapaz ficou
com um protuberante galo na cabeça. Quando Vicência o viu nesse estado, acreditou ser
este o ferimento grave por arma branca previsto por Maria e caiu na risada. Riu de alívio,
mesmo que exageradamente, na mesma proporção de seu desespero inicial, descarregando
sua tensão mental através do riso. Cabo Nestor, porém, não compreendeu as gargalhadas
de Vicência. Pensou ser ele o alvo de sua zombaria. Imaginou que a moça caçoava do que
lhe acontecera na noite passada, reforçando, suas suspeitas iniciais e aumentando seu ódio.
A partir de então, o cabo passa a tratá-la de maneira áspera e irônica. Deixando claro
(menos para Heronides que nada compreendia de seu mau humor) que iria vingar-se,
Nestor decide ir embora. Mas antes de partir, é convidado por Heronides a voltar no dia
seguinte para comemorar seu aniversário. Haverá um almoço. No entanto, esse convite não
enterneceu o cabo que partiu sem garantir sua presença na festa. Heronides acompanhou-o
até a rua, permanecendo na casa Vicência e Maria Não Enjeita.
No dia seguinte, durante o almoço, Cabo Nestor chega com uma ordem de
proibição do pastoril de Heronides para o próximo sábado. Segundo ele, esta era uma
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retaliação ainda em detrimento da confusão que houvera no último sábado. Essa notícia
surpreende os convidados que imaginavam que tudo havia sido esclarecido. Revoltam-
se, sobretudo, porque essa intimação vinha das mãos de Cabo Nestor, considerado até
então como amigo de todos. Na verdade, esta é a concretização do plano de vingança de
Nestor. Todavia, Heronides não se intimida e diante do cabo rasga a ordem de proibição.
Desmoralizado, Cabo Nestor vai embora sob as gargalhadas dos amigos de Heronides.
Pouco depois, chega a pastora Dora à procura de Maria Não Enjeita. A moça veio avisar a
Maria que a polícia estava atrás dela. De acordo com o que ouvira na delegacia, a Mãe de
Ciço Marinheiro e o Sacristão da igreja haviam feito uma denúncia ao delegado, que lhe
dera ordem de prisão. Na verdade, toda confusão devia-se ao fato de que Maria havia tido
relações sexuais com Ciço Marinheiro, justamente na sexta-feira santa, dia de abstenção
onde todo cristão é proibido de comer carne, devendo abranger este comedimento ao ato
sexual.
Essas acusações foram coordenadas pelo sacristão da igreja para vingar-se de Maria
que seduziu seu amigo íntimo (amante) Ciço Marinheiro. Sob os prantos da mãe do rapaz e
pressionado por “uns certos doutores duma irmandade”, escandalizados com o caso, o
delegado decide prosseguir com a ordem de prisão de Maria.
Heronides e seus amigos resolvem ajudar Maria, indo à sua procura para escondê-la
em algum lugar. Quando estavam saindo de casa, retorna Cabo Nestor com uma ordem de
prisão, endereçada a Heronides por desacato a autoridade. Este era seu castigo por ter
rasgado um documento oficial. Novo tumulto e os demais personagens agora tentam
proteger Heronides.
Para escapar da prisão e enganar o cabo, Heronides finge compreender sua difícil
posição como amigo e autoridade local, promete não resistir à prisão, mas como prova de
amizade, convida-o a tomar uma dose de cachaça para celebrar seu aniversário e a amizade
dos dois. Cabo Nestor, depois de uma certa hesitação, acaba aceitando o convite e toma
uma primeira dose. Mas como uma dose sempre estimula a seguinte, rapidamente o cabo
embriaga-se. Este é o plano de Heronides: embriagar Nestor para não ser preso e poder
ajudar Maria. Quer dar uma lição no cabo por tentar prejudicá-lo. Quando finalmente o
cabo fica completamente bêbedo, todo mundo sai em busca de Maria, permanecendo na
casa Vicência e Nestor que, na momentânea intimidade, conversam e desfazem os mal
entendidos: Vicência pediu-lhe perdão pelo incidente da noite anterior. Reafirmaram a
paixão que os unia e comemoraram o convite de Heronides para que Nestor fosse o
191
padrinho do filho de Vicência, ou seja, padrinho do próprio filho. Assim, Nestor poderia
amar a criança sem suscitar a suspeita de ninguém.
Pouco tempo depois, Heronides e seus amigos retornaram sem Maria. Mas logo em
seguida, a moça apareceu pedindo abrigo. À revelia do cabo Nestor, todos decidiram
escondê-la na casa dele. De tanto beber, o cabo desmaiou e foi levado para dentro da casa
de Vicência. Maria e Heronides foram se refugiar na casa de Nestor. Chegou o delegado,
acompanhado de um soldado e do sacristão. Em seguida, retornou Maria procurando a
chave da casa do cabo que havia esquecido. Incomodado com a demora de Maria,
Heronides também voltou em busca da mesma chave. Diante do delegado, os dois tentaram
explicar suas respectivas faltas. Melhor, pretenderam ludibriá-lo para escaparem da prisão.
Mas nesse instante, o cabo, completamente ébrio, acordou e deu um berro, pensando estar
em sua própria casa. Indignado, o delegado decidiu levar os três presos: Cabo Nestor,
Heronides e Maria Não Enjeita. No momento em que os três eram conduzidos à delegacia,
chegaram os derradeiros convidados da festa, a pastora Zulmira e seu consorte Boa Tampa,
também completamente embriagados. O delegado, então, decidiu prender todos os
presentes. Assim terminou o almoço de aniversário de Heronides.
No final de tudo, quem saiu perdendo foi Nestor. Como castigo pela bebedeira,
pegou oito dias de prisão, enquanto que o restante do pessoal apenas passou o resto da
tarde na delegacia, ouvindo conselhos do delegado. À noite, todos foram liberados e o
pastoril recebeu a permissão de voltar a funcionar. Passadas algumas semanas, Vicência foi
vaiada durante uma função do pastoril por causa do tamanho da barriga que denotava o
avançado da gravidez. Houve muita confusão e Nestor, que andava intrigado do restante do
grupo, tomou o partido da amante e efetuou várias prisões, voltando à cordialidade com o
pessoal do pastoril. Todavia, Heronides proibiu Vicência de subir num tablado até o
nascimento da criança e cancelou o pastoril por falta de uma mestra que pudesse substituí-
la.
No sábado em que não haveria função, chega Zefa em Timbaúba, à procura de
emprego. Nascida na Barra do Caricé, desde então vivia de cidade em cidade sem se fixar
em lugar nenhum. Durante a viagem até Timbaúba, Zefa foi conduzida pelo caminhoneiro
Mané Fozinho que por ela se encantou. Também interessada no rapaz, Zefa roubou-lhe um
“trancelim de ouro”, “calçado com Pelintra”, sua entidade protetora. Ou seja, este
trancelim era um amuleto abençoado por uma entidade espiritual do catimbó-jurema. A
moça esperava que, dessa maneira, Fozinho voltasse para a cidade em busca do amuleto, e
assim, poderia reencontrá-lo. De fato, foi o que o caminhoneiro fez: ao dar-se conta do
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sumiço do trancelim, retornou a Timbaúba imediatamente, tanto para reavê-lo quanto para
rever a pastorinha. em Timbaúba, Zefa conheceu Vicência que a convidou para
substituí-la, naquela noite, no pastoril do velho Matraca. Também conheceu Cabo Nestor
que lhe ofereceu hospedagem em sua casa, despertando o ciúme de Vicência que, de
imediato, percebeu o interesse de Nestor pela forasteira. Quando Mané Fozinho,
finalmente, chegou à cidade, obteve através de Vicência a informação de que encontraria
Zefa, à noite, no pastoril do Velho Matraca. Desconfiada da honestidade de Zefa (que se
dizia virgem e moça direita) e tendo ciúmes de Nestor, Vicência confidencia a Mané
Fozinho o paradeiro da moça, achando que o motorista atrapalhará o romance dos dois.
À noite, no pastoril, o boato acerca da beleza e virgindade de Zefa correra a cidade
inteira, atraindo um grande público. Todos debatiam calorosamente sobre as melhores
estratégias de conquistá-la. Cabo Nestor, por sua vez, espalhava pelos quatro cantos que
seria o agraciado por Zefa. Segundo o cabo, a moça estaria apaixonada por ele e, ainda
naquela noite, os dois dormiriam juntos. Percebe-se, portanto, que entre um ato e outro,
esvai-se, como num sonho de uma noite de pastoril, a paixão que unia Vicência e Cabo
Nestor. Ao encontrar-se com sua antiga amante, o cabo trata-a com descaso, exprimindo
seu interesse por Zefa e negando qualquer fidelidade ou responsabilidade para com
Vicência, inclusive, para com seu filho, cuja paternidade passa a duvidar. Diz-se um
homem livre, sem compromisso nenhum. Aberto ao desejo, aos novos caprichos da paixão.
Depois de discutirem, Nestor foi embora debaixo das imprecações que Vicência lhe
lançou. Ele, entretanto, divertiu-se com os ciúmes, da agora, “ex-amante”, dizendo para si
mesmo que “praga de mulher bochuda” não pega.
Quando Zefa subiu no tablado, logo tornou-se o centro das atenções do pastoril.
Enquanto entretia o público, dançando e cantando, soltava de vez em quando beijocas para
Cabo Nestor, dando a entender que ambos realmente tinham um affaire e enfurecendo
ainda mais Vicência que se embriagava no botequim do Chicuto. Pouco depois, chegou
Mané Fozinho. Logo Zefa foi ao seu encontro, passando, então, a evitar Nestor. Percebe-se
que seu objeto de desejo muda continuamente, num movimento vertiginoso e implacável.
Apenas um simples olhar serviu para redirecionar a libido da pastorinha. No começo do
segundo ato, ficam claros seus subterfúgios para atrair Mané Fozinho, em seguida, mal
conhecendo a nova cidade, flerta com o galante cabo e depois, no pastoril, transfere-se
de Nestor para Fozinho. Cambiante, a donzela pastorinha locomove-se entre um e outro.
Em Viva o cordão encarnado, essa subtaneidade do desejo. A excitação surge desde o
primeiro olhar; o ardor, desde o primeiro toque. Ao amado abate-se como um gavião,
193
devora-o apenas com o olhar cobiçoso, o mundo deixa de existir e os amantes apenas
enxergam a si mesmos, pelo menos, até a aparição de um novo objeto de desejo. Interlúdio
que pode durar dias, horas, minutos ou até segundos. Este é desejo em Luiz Marinho:
ocupa todo o ser. É, ao mesmo tempo, encantamento e vontade; transitório e brutal!
Enxergando apenas Fozinho, naquele momento, Zefa esqueceu-se de Nestor,
deixou-o de lado. O cabo permaneceu no bar, observando-os de longe. Ruminava seu
rancor contra o rival por ter sido preterido. Enquanto isso, Zefa e Fozinho conversavam de
maneira cada vez mais íntima. Quase amantes. Heronides dá um apito, chamando as
pastoras de volta para o palco. Mas Zefa não o escutou, pois estava demasiado
compenetrada em seu interlúdio amoroso com Fozinho. Confidencia ao motorista sua
virgindade diante de sua insistência em levá-la ao hotel onde estava hospedado. Zefa
recusou o convite por se dizer “moça séria”, no entanto, sua recusa apenas incendiou ainda
mais a libido de Fozinho, que subitamente, descontrola-se, agarrando e beijando Zefa, no
momento em que ela se levantava da mesa onde estavam conversando para retornar ao
tablado. De imediato, Nestor surge e interrompe o beijo mandando Zefa voltar ao palco.
Quase inicia-se uma briga entre os dois, caso Zefa não tivesse arrefecido os ânimos dos
dois garanhões. Mas Fozinho não se por satisfeito e insiste em levá-la consigo para seu
hotel. Rapidamente, Zefa explicou ao caminhoneiro que estava hospedada na casa de
Nestor, enquanto o distraía, tapando-lhe os ouvidos e beijando-o. Fozinho, ao invés de
sentir-se enciumado diverte-se em saber estar passando a perna no cabo. Contudo, devido
às intrigas de Juca, Fozinho passa a acreditar que corre risco de vida, que Nestor pretendia
matá-lo. Por isso, vai embora com Juca em busca de uma peixeira que o ajudasse a
defender-se do cabo.
Passado o furor da disputa, Nestor proíbe Zefa de voltar a falar com Fozinho. No
entanto, a moça não aceita a proibição, afirmando intempestivamente que, apesar de sonhar
casar-se com homem fardado, nunca mudará seu jeito de ser, nunca se submeterá às ordens
de homem nenhum. Como ela mesma diz: “Ninguém me doma!” (MARINHO 1969:116).
Mulher-diaba, que incita o desejo: no lugar da ira faz Nestor beijá-la com furor, ao invés de
esbofeteá-la.
Neste momento, chega Romeu, filho do Major Quincas que, de imediato, também
interessa-se por Zefa. Heronides pôs a leilão o cravo da nova pastora que passou a ser
disputado, ao mesmo tempo, por Romeu e Mané Fozinho. Romeu ganhou a disputa, mas
Mané Fozinho, não aceitando a derrota, subiu no tablado, disposto a “acabar” o pastoril. O
cabo Nestor tentou intervir, mas no combate foi ferido pelo caminhoneiro que portava um
194
punhal. Mané Fozinho fugiu e Cabo Nestor foi levado à farmácia para ser socorrido. Zefa
em nada se abalara, continuou dançando mecanicamente no tablado encantada pelo garbo
de Romeu. Esqueceu-se dos antigos amantes, devotando-se agora para uma nova
conquista. Um pretendente de maior estirpe a quem se mostra disposta a entregar sua
virgindade, sua jóia velada, sua moeda de troca no aguerrido e opressor mundo dos
homens. Foi ao encontro de Romeu, disposta a “perder-se” nos braços de um rapaz bonito
e de boa família, como sempre sonhara; insensível a toda desgraça ao seu redor. Esta é sua
natureza. Zefa é isenta de qualquer interioridade: apenas age movida por um impulso vital
que em seu excesso dissemina a inquietação, a discórdia e o caos. Seu erotismo é ardente,
animalesco, respondendo unicamente aos instintos primordiais. É lançada em constante
mobilidade por si mesma, sempre retornando ao espaço do desejo. Por preservar até o fim
seu caráter essencial, podemos dizer que Zefa é a força que vai, ela é o movimento; é a
transformação, mas, ao mesmo tempo, o desequilíbrio. Zefa, o desejo.
Ainda no pastoril, Vicência foi informada que Cabo Nestor, em decorrência do
ferimento, havia perdido o pênis. A pastora teve um ataque histérico e foi conduzida para
fora do pastoril. Logo em seguida, Heronides chamou Dudu e entregou-lhe um pacote de
dinheiro, destinado a Mané Fozinho, e mandou agradecer ao caminhoneiro pelo serviço
prestado. Ou seja, este era o pagamento de Mané Fozinho pela castração de Cabo Nestor,
planejada e encomendada por Heronides, como vingança pela traição do ex-amigo com sua
esposa. Retoma-se, dessa forma, o esquema inicial da intriga: o triângulo amoroso entre
Heronides, Vicência e Nestor. Todas as peripécias desses personagens, suas idas e vindas,
assim como a atuação de novos personagens (Mané Fozinho e Zefa) serviram para
potencializar e problematizar dramaticamente esse triângulo amoroso, levando-o ao seu
desfecho: o aniquilamento de Nestor e o triunfo de Heronides. Trágica farsa!
Ao final, Heronides anunciou o nascimento do filho de Vicência e as pastoras
encerraram a função, despedindo-se do público. Findo o pastoril.
2.2.3.1 Pour Feydeau ou quase um vaudeville
Viva o cordão encarnado aparenta ser uma peça de estrutura dramatúrgica linear,
cujos eventos sucedem-se progressivamente, sem grandes saltos temporais, com exceção
da transição do primeiro para o segundo ato. Sua intriga central é bem encadeada, unindo
através de uma mesma trama de paixão e ciúme, os dois atos que compõem a peça.
Todavia, detendo-se com maior vagar e atenção, nota-se uma diferença estilística entre um
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ato e outro, como se a constituir duas peças independentes de um ato único, reunidas numa
mesma peça, ocupando cada uma, um ato diferente. Eis uma mesma intriga abordada sob
duas perspectivas diversas, mas cuja progressão dos eventos consegue impor-lhes uma
unidade, constituindo, desse modo, uma mesma fábula. No primeiro ato, a trama
desenvolve-se sob uma perspectiva cômica, enquanto que, no segundo, extravasa-se da
comédia, adentrando-se pelo drama e, até certo ponto, chegando a laivos de tragicidade,
embora possamos encontrar nos dois atos elementos pertinentes aos dois gêneros: o cômico
e o dramático. O que enfatizamos é a predominância de um sob o outro em cada ato, em
detrimento das peculiaridades da ação dramática. Além disso, os dois atos, mesmo
complementando-se e formando uma unidade de sentido, têm suas respectivas estruturas
dramáticas relativamente independentes entre si.
O cerne dessa intriga é constituído pelo triângulo amoroso entre Heronides,
Vicência e Cabo Nestor. Motivo que inicia e conclui a peça e que desencadeia seus
conflitos. No primeiro ato, a estrutura cômica dá-se através de uma inversão no esquema
tradicional de triângulo amoroso, onde, geralmente, o marido traído tenta vingar-se da
mulher ou do amante, ou ainda, pode dirigir sua fúria a ambos. A gica dessa dinâmica é
subvertida pela comédia, expondo uma intriga onde quem se sente traído não é o marido e
sim o próprio amante, que se torna o antagonista do marido, tramando contra sua sorte
mesmo depois de ter usurpado sua mulher. No caso de Viva o cordão encarnado, Nestor
acredita que Vicência tripudiou de seu amor, porque não o advertiu da presença de
Heronides no momento em que lhe fazia uma serenata. Como recompensa por sua
declaração de amor, tomou um banho de urina, além de ter levado uma pancada de penico
na cabeça, também lançado por Heronides. Em verdade, Vicência não preveniu o amante,
porque simplesmente deixou-se enfeitiçar pela sua bela voz, esquecendo-se do mundo. E
para piorar sua situação com Nestor, no dia seguinte, riu de seu machucado, ferindo mais
ainda seu orgulho de macho. Seu riso não era de escárnio, mas de alívio, liberando através
dele as energias previamente acumuladas por uma tensão mental: o temor pela sorte de
Nestor. A significação real dessa gargalhada, no entanto, o cabo ignorava. Em sua
gramática, apenas existia o riso de zombaria, tendencioso e agressivo, presente, sobretudo,
nas camadas mais humildes da sociedade, onde as sanções sociais são mais tênues,
imprecisas, diminuindo a distância entre um simples gracejo e uma agressão verbal.
Nestor, portanto, não acredita nas “boas intenções” do riso de Vicência e reafirma-se em
seu orgulho ferido, assim como em suas falsas certezas. Amor e ódio. Irmãos de sangue.
Serão gêmeos? Paixão. Eis uma possível síntese. O trovador partiu, jurando vingança.
196
Temos, então, um qüiproquó armado: “equívoco que faz com que se tome uma
personagem ou coisa por outra”. (PAVIS, 1999:319).
De antemão, percebemos a armação de uma situação cômica, que ordenará os
rumos da ação dramática e será fonte de riso durante todo o primeiro ato. O qüiproquó,
segundo Pavis, em seu Dicionário de teatro (1999), é uma fonte inesgotável de
comicidade, mesmo que, por vezes, o equívoco possa levar a um desfecho trágico.
Repetindo, aqui se dá uma inversão no esquema de marido-esposa-amante, onde o marido
torna-se a vítima e o amante, por um mal entendido, assume o papel de algoz. Para vingar-
se de Vicência, o cabo trama diversas armadilhas para prejudicar seu rival. Inicialmente,
articula com o delegado a interdição do pastoril. Como não obteve sucesso na sua
empreitada, que Heronides rasgou a intimação na sua frente, desmoralizando-o mais
uma vez, Nestor trouxe consigo uma ordem de prisão por desacato à autoridade. Contudo,
como se trata de uma comédia, neste primeiro ato, o malogro do vilão é quase sempre um
dado seguro, além de garantia de riso para o espectador. Graças às artimanhas de
Heronides, velho de pastoril de ponta de rua, ao mesmo tempo, palhaço e rufião, ntese à
brasileira, ou seja, ao nosso modo, ou à la manière de Marinho, da tradição de bufões e
arlequins da comédia, Cabo Nestor torna-se vítima das suas próprias trapaças: na festa de
aniversário de Heronides, o cabo embriaga-se no horário de serviço e como punição, pega
oito dias de detenção. Ao invés de vingar-se do rival, Nestor é quem termina atrás das
grades, sob as gargalhados do pessoal do pastoril.
A comicidade do primeiro ato não reside exatamente no caráter dos personagens
(embora o contraste de personagens de diferentes caracteres possa também provocar o
risível, como a oposição entre a sagacidade de Heronides em face da ingenuidade de
Nestor que se c tão ou mais astucioso que o primeiro), mas nas suas peripécias, na
sucessão de situações cômicas que os levam, inevitavelmente, ao equívoco e ao malogro. O
primeiro ato, portanto, está muito mais próximo da forma aristotélica, de uma estrutura
tradicional de comédia, sobretudo no que concerne à comédia de situações ou de intriga,
além de aproximar-se também da farsa, cujos “dois temas invariáveis eram o do marido
traído e o do enganador enganado”. (RAMOS 2006:144)
Outra característica do primeiro ato que o aproxima das chamadas comédias de
situação é a duplificação ou ramificação da intriga. Aqui, a trama centra-se nas tentativas
de Cabo Nestor para prejudicar Heronides. Todavia, o velho palhaço usa de sua esperteza
para ludibriar o cabo e escapar da cadeia. No caso, a falha cômica de Cabo Nestor, seria
seu fraco por bebida, não resistindo a “bicula” e sua credulidade ao deixar-se levar pela
197
“lábia” de Heronides. Este é o esquema central da intriga no primeiro ato. Sua ramificação
dá-se a partir das confusões em que Maria Não Enjeita se envolve. Também perseguida
pela polícia em detrimento de seu envolvimento com um jovem marinheiro durante a
Sexta-feira da Paixão, infringindo as normas cristãs de abster-se dos “prazeres da carne”.
Ambas as situações misturam-se numa mesma situação cômica. Duplicam-se. Ao final,
tanto Maria Não Enjeita quanto Heronides são perseguidos pelo delegado, culminando na
prisão de todos e na detenção do Cabo Nestor por oito dias.
No entanto, Marinho trabalha de maneira dialética o cômico e o dramático, sem
isolá-los completamente em cada ato. Pelo contrário, ele os justapõe, friccionando-os
continuamente, mesmo que possamos identificar a predominância de um ou do outro em
cada ato. Há uma mistura de gêneros em Viva o cordão encarnado. Jogo lúdico que
trabalha na intersecção entre o riso e a comoção, sem desaguar, entretanto, no melodrama.
Podemos encontrar indícios de uma certa dramaticidade em Vicência, sobretudo, no início
do primeiro ato, quando vemos a pastora dividida entre o marido e o amante; pulverizada
pela culpa, tal qual uma heroína romântica.
No segundo ato, a trama desenvolve-se sobremaneira pelo viés dramático, embora
possamos perceber também a orquestração de uma atmosfera trágica na peça a partir do
misticismo dos personagens femininos
59
ou o recurso ao farsesco a partir das evoluções do
pastoril profano na peça, dos jogos e brincadeiras do Velho Matraca e sua pastorinhas com
o público, ou seja, através da valorização da dimensão corporal dos atores e dos
personagens. A continuidade da ação é linear, apesar de possuir cenas fragmentadas que
revelam o universo de cada grupo de personagens, por vezes, ocorrendo simultaneamente,
como no corte cinematográfico, em que a câmera aproxima o olhar do espectador para um
determinado grupo de personagens ou detalhe de uma grande cena, valorizando-o em
detrimento do conjunto.
Aqui, permanece o triângulo amoroso inicial obscurecido, entretanto, pelo
surgimento de novos personagens, como Zefa e Mané Fozinho, que o colocarão em
questão. Ou seja, desestabilizarão o romance de Nestor e Vicência. O cabo deixa-se seduzir
pela nova pastora, desprezando sua antiga amante durante todo o segundo ato.
A partir do desinteresse de Nestor por Vicência, surge um novo triângulo amoroso
na trama composto por Zefa, Nestor e Vicência (no papel da amante desprezada). No
entanto, uma sucessão de reviravoltas com a entrada de outros personagens que não
59
Trataremos dos aspectos trágicos em Viva o cordão encarnado no item seguinte: Santos, encantados &
vadios.
198
permite a estabilidade dessa trindade. Quando MaFozinho chega ao pastoril, Zefa passa
a dividir-se entre ele e Nestor, trazendo um novo triângulo amoroso para o centro da ação
dramática e colocando Vicência, já bastante humilhada pela rival, apenas como
espectadora dos fatos. Em seguida, Romeu uma nova guinada na trama ao interessar-se
por Zefa, sendo imediatamente por ela correspondido. Dessa forma, esboça-se uma outra
constelação: Zefa, disputada, simultaneamente, por Nestor, Mané Fozinho e Romeu. Neste
ato, uma sucessão ininterrupta de triângulos amorosos que se sucedem num movimento
vertiginoso. No primeiro ato, a trama acomodava-se em torno de Heronides, Vicência e
Nestor; no segundo, dá-se uma reviravolta com a chegada da nova pastora que não permite
mais a estabilidade dessa trindade nem de qualquer novo triângulo amoroso que surja a
partir de então. Após sua chegada essas são as tríades amorosas que se sucedem: Vicência,
Nestor e Zefa; Nestor, Zefa e Mané Fozinho; e a partir de Romeu, a moça passa a dividir-
se entre os três. Ao final, desfazem-se completamente os grupos amorosos com a castração
de Nestor e a fuga de Mané Fozinho.
De certa maneira, essa dinâmica da intriga de Viva o cordão encarnado nos remete
de imediato a outro gênero da comédia, oriundo tanto da comédia de intriga quanto da
farsa. Trata-se do vaudeville. Gênero teatral de ascendência francesa, que se tornou
conhecido, sobretudo, a partir dos séculos XVIII e XIX, sob a pena de Scribe, Labiche e
Feydeau, seu dramaturgo maior que o desenvolveu à la perfection:
O gênero vaudeville [...] baseia-se no qüiproquó e no equívoco, nos quais são
freqüentes as burlas, os enganos, os golpes. A verdadeira natureza do vaudeville
francês do século XVIII, o seu real espírito, consiste na comicidade das
situações, no encadeamento dos acontecimentos, de uma forma que se
assemelha a uma reprodução mecânica da vida. (VENEZIANO 2006:306).
No vaudeville, o protagonista marcha ao sabor de encontros e acontecimentos
inesperados (aparentemente gratuitos) através de entradas e saídas fulminantes,
desregramentos, perseguições, numa sucessão de reviravoltas que levam os personagens e
o próprio espectador ao esquecimento dos objetivos ou das motivações inicias da
precipitação do protagonista. Tudo isso propicia um ritmo desenfreado, sob uma atmosfera
de automatismo, que transforma a peça teatral numa máquina infernal e seus personagens,
em engrenagens ou marionetes do dramaturgo. Procedimento ou mecanismo semelhante à
dinâmica da estrutura dramática de Viva o cordão encarnado.
Tanto é que, quando se descobre a vingança orquestrada por Heronides contra
Nestor, retorna-se ao triângulo inicial. Melhor: percebe-se que este nunca deixara de
199
existir, estando apenas obscurecido pelas intervenções de Zefa e Mané Fozinho na trama.
Porém, houve uma ligeira modificação nesse esquema original: não é mais Cabo Nestor o
antagonista da história, mas a vítima. uma inversão onde Heronides passa a tramar
contra Nestor, movido pelo ciúme. Permanece, portanto, o mesmo triângulo amoroso do
início da peça, entrelaçando os dois atos e garantindo a coerência da enredo. Porém, é uma
mesma intriga desenvolvida sob duas diferentes perspectivas. Dialética da comédia e do
drama; diálogo entre o trágico e o farsesco. Viva o cordão encarnado ou la machine
infernale.
2.2.4. Santos, encantados & vadios
O universo sócio-cultural de Viva o cordão encarnado manifesta-se sob diversos
prismas. Aqui, destacamos dois aspectos que, apesar da sutileza que se encadeiam na
estrutura dramática da peça, perfazem um itinerário revelador das teias significantes da
obra: o primeiro, diz respeito à devoção popular ou religiosidade popular e ao sincretismo
religioso brasileiro; o segundo, concerne à presença da cachaça no dia-a-dia destes
personagens, constituindo-se, de certa forma, como elemento fundador desta sociedade.
Poderíamos dizer que esta é uma sociedade nascida sob o signo da cachaça e o dionisismo
de Zé Pelintra.
2.2.4.1. São Raimundo, padroeiro do “bom adultério”
São Raimundo Nonato nasceu por volta de 1200, na Catalunha, Espanha. Seu
sobrenome, Nonato ou Nonatus, que em latim significa não nascido (non-natus), faz jus a
própria história de seu nascimento. Devido às complicações do parto, sua mãe veio a
falecer, permanecendo a criança ainda viva em seu ventre. São Raimundo apenas
sobreviveu graças a uma parteira que o retirou das entranhas maternas com uma faca. Por
isso, alguns estudiosos acreditam que São Raimundo possuía nas costas pequenas marcas
provocadas pelos cortes desse instrumento. Nascimento de feições míticas, sua lenda
espalhou-se pelo mundo cristão e perpetuou-se no imaginário popular, tornando-se
conhecido, sobretudo nas camadas mais humildes, como o santo protetor das parteiras e do
bom parto.
São Raimundo é o primeiro santo a que se faz referência em Viva o cordão
encarnado. Seu nome é invocado logo na primeira cena da peça por Vicência que o usa
200
para proteger-se dos ciúmes do marido. Nesta cena, Heronides acorda com o barulho da
serenata de Nestor e surpreende a esposa observando a porta, como se acompanhasse a
cantoria. Depois de expulsar o trovador (Nestor) com um banho de mijo, Heronides
interroga Vicência de maneira feroz a fim de confirmar suas desconfianças de marido
“supostamente” traído:
HERONIDES – (De repente, sério) Quem será? Parou aqui! Você estava em
na porta... olhando... (Avançando) Quem é? Vamos, diga já!
VICÊNCIA(“Morta”, mas aparentando calma) Você parece que tem esterco
de galinha nessa cabeça, homem! Com certeza eu estava na porta para abrir pra
ele entrar... e depois lhe apresentar, não é, seu idiota?
HERONIDES – Sim, mas o que foi que você foi fazer na porta? Responda!
VICÊNCIA Deixa a porta aberta por causa do calor... (Começa a chorar) eu
feito uma besta, fico tocaiando... acordada, com pena de fechar, e ainda por
cima, abanando... quando acabá, você... (Chora e depois parando) Foi quando o
homem começou a cantar e eu com medo fui fechar... (Chora novamente
Berrando)
HERONIDES Ô meu Deus! Tava vigiando o sono do papai!!! Vize Malia!
Num sole mai não! Chegue! Chegue!
VICÊNCIA Você sabe que estou no mês perigoso, o sétimo, não posso ter
contrariedade! (Continua o choro)
HERONIDES – (Aproximando-se e baixando a cabeça) Dê aqui em papai, dê!
VICÊNCIA Faz dez anos que a gente peleja pra ter esse filho... quando é
agora... você... (Chora muito)
HERONIDES – (Abraçando) Não sabe que homem é assim mesmo?
VICÊNCIA Você sabe que esse menino apareceu, abaixo de promessa!
Quer jogar tudo fora, quer? (Chora) Quer? (Ficando séria) Peça três vezes
perdão a São Raimundo! Vamos! Peça perdão a São Raimundo!
HERONIDES (Se ajoelha em frente a Vicência e com a mão “Pedindo
bênção” para o céu, repete) Perdão São Raimundo! Perdão São Raimundo!
Perdão São Raimundo! (MARINHO 1969:14-16) [grifos nossos].
A partir desta cena, Marinho nos introduz na atmosfera religiosa e mística que
sobrevoa a trama de Viva o cordão encarnado. Revela seus personagens em uma
religiosidade cotidiana e particular, repleta de superstições e tabus, mas também
ambivalente em seus valores ora arcaicos, ora transgressores, demonstrando ao mesmo
tempo devoção e astúcia, tradicionalismo e inovação. Todavia, falar de devoção leva-nos a
pensar de imediato num universo maior que a absorve, ou seja, o do catolicismo e, dentro
dele, o da religiosidade popular. Tanto as práticas do catolicismo ortodoxo quanto as
201
manifestações da religiosidade popular são sustentadas por um mesmo alicerce: a noção do
sagrado.
Contudo, cada um exerce ao seu modo sua relação com o sagrado, chegando,
frequentemente, a práticas diametralmente opostas. No caso específico da religiosidade
popular, podemos defini-la não exatamente pelo que ela seja ou representa, mas pelo que
não representa, pelo que não é. Ou seja, pelo seu caráter antitético face ao catolicismo
oficial. Dessa forma, a religiosidade popular configura-se numa religiosidade dotada de
uma considerável autonomia aos dogmas e às diretrizes da Igreja Católica. Não uma
hierarquia eclesiástica a ser respeitada nem um programa doutrinário a ser seguido, ela
corporifica-se numa “explosão quase íntima ao ‘sagrado’, humanizando-o, sentindo-o
próximo, testando-o e sentindo sua força por métodos criados, não pelo clero, mas pelos
próprios devotos, métodos esses que são transmitidos, em sua grande totalidade, oralmente.
Em suma, o vivido em oposição ao doutrinal”. (CÂMARA NETO 2002).
Contrapõe-se, portanto, ao catolicismo ortodoxo que se caracteriza como “uma
religião de salvação da alma, tendo como ponto de partida a adoração pura e simples de
Deus infinito, por meio de um estado contemplativo que dispensa atitudes intermediárias”.
(CÂMARA NETO 2003). Na religiosidade popular há um desvio dessa adoração exclusiva
do Deus infinito, privilegiando-se o culto aos santos. É uma religiosidade que se define
pelas relações diretas com a divindade, sem interferências ou intermediários (sacerdote ou
o padre) entre o homem e o sagrado. Seus objetivos não são transcendentes, mas
temporais, imediatos, em que se busca a partir do sobrenatural, isto é, dos favores dos
santos, benefícios para as necessidades cotidianas, alívios para os males do espírito e
proteção: “os santos vão interceder pelo devoto na obtenção de um emprego, na volta de
um amor perdido, nas doenças, enfim, na busca do reequilíbrio material ou emocional
afetado pelas dificuldades da vida”. (CÂMARA NETO 2003). Não existe qualquer cunho
ético nessa prática devocional. Para o crente interessa apenas obter uma aliança com o
santo invocado para que este lhe traga vantagens materiais pela via do sobrenatural. Por
isso, a proliferação nas camadas populares de romarias, ex-votos e promessas, porque a
lealdade ao santo mede-se, sobretudo no comprimento de suas promessas: “Na relação
devocional, a promessa é algo fundamental e precisa ser cumprida. O devoto não pode
ficar em débito com o santo porque, da próxima vez que precisar, não será atendido; pior o
santo poderá mudar de idéia e retirar a ‘graça’ concedida ou até castigar”. (PEREIRA
2003:68). Dessa forma, pode-se dizer que a devoção está inserida dentro de uma
“economia de troca de bens simbólicos”.
202
Além disso, a predileção popular pelos santos deve-se, sobretudo pela necessidade
do povo de transformar o universo divino e abstrato do catolicismo ortodoxo numa
realidade tangível. Este é um procedimento típico da cultura popular: tornar profano o
sagrado, corporificá-lo, para assim estabelecer uma relação devocional ao mesmo tempo
mais verdadeira e humana, que a constante luta pela sobrevivência os impede de olhar
para além do horizonte, apenas enxergando o prosaico. Para ascender ao divino, é
necessário, portanto, rebaixar para o espaço das paixões e da violência do mundo o que se
encontra no alto. Por isso, a preferência aos santos que, assim como o povo, também
tiveram uma vida terrena, plena de privações e sofrimentos, mas que devido ao seu
comportamento exemplar puderam transcender ao sagrado. Tornam-se, portanto,
intermediários entre o céu e a terra, modelos a serem seguidos, porém, mais susceptíveis de
compreender e aliviar as necessidades cotidianas da massa do povo.
60
A devoção popular nasce da crença em determinados poderes sobrenaturais que o
santo de devoção possa ter, como, por exemplo, feitos extraordinários ou milagres que lhe
cubram de uma aura superior e celestial. O próprio nascimento de São Raimundo Nonato,
extraído ainda vivo do cadáver de sua mãe carrega em si mesmo uma feição mítica, como
se sua santidade fosse latente desde sua concepção. Nascimento semelhante ao do deus
helênico Dioniso também nascido a partir de acontecimentos trágicos e fantásticos, em
que, num de seus vários nascimentos foi retirado do corpo em chamas de sua mãe Sêmele
por Zeus, seu pai, e colocado em sua coxa até o término da gestação. Assim como Dioniso,
mesmo envolvido pela morte, isto é, por um corpo sepulcro paradoxalmente um cadáver
ainda prenhe de vida –, São Raimundo vive, fazendo, dessa forma, a vida brotar da morte.
Um rito de passagem para a vida que carrega em si o germe da cultura popular medieval,
tema tratado exaustivamente por Mikhail Bakhtin em seu livro A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1987), na qual existe uma
percepção carnavalesca do mundo. Aqui, tudo é visto de maneira dialética e festiva, onde
valores antitéticos co-existem simultaneamente, assumindo sua ambivalência: morte e
nascimento/ressurreição. O corpo é visto grotescamente, no sentido que esses valores
contraditórios também nele existem e, sobretudo, a partir dele se manifestam. No mito de
São Raimundo, combina-se um corpo moribundo e um outro corpo ainda embrionário da
nova vida que se aproxima. Dessa forma, a vida se revela no seu processo ambivalente,
60
Outro dado importante a acrescentar-se sobre a predileção do povo pelo culto aos santos é que no Brasil, o
catolicismo se propagou absorvendo aspectos das religiões tanto africanas quanto ameríndias. Por isso, a
devoção ao santo é também uma adaptação do culto aos orixás e as entidades da floresta.
203
interiormente contraditório. Não há nada perfeito nem completo, é a quintessência da
incompletude”. (BAKHTIN 1987:23). Essa é concepção do corpo grotesco de Bakhtin, na
cultura cômica popular da Idade Média e do Renascimento.
61
Retornando a Viva o cordão encarnado e à cena citada, Vicência faz alusão ao
nome do santo, como o responsável pela sua gravidez tardia. Graça concedida à força de
uma “promessa” que abençoará a união de mais de dez anos do casal. Contudo, os ciúmes
de Heronides não põem em risco o estado de saúde de Vicência, assim como a vida do
próprio filho, que a mãe não pode abalar-se emocionalmente, mas também assume o
caráter de desrespeito ao santo, sacrilégio contra a graça concedida. Por isso, arrefecidos os
humores do marido, Vicência manda-o pedir perdão ao seu “padroeiro”. Obviamente tudo
não passa de uma artimanha da pastora para enganar Heronides, invocando o nome de um
santo e aludindo à uma promessa fictícia, que o verdadeiro pai de seu filho é o Cabo
Nestor. Contudo, não é sem uma certa ironia que se aprecia esta cena. Ao invocar o nome
de São Raimundo (santo austero que dedicou toda sua vida na libertação de soldados
espanhóis do julgo mouro e na conversão de seus inimigos seguidores de Alá para o
cristianismo), clama-o aparentemente como parturiente ciosa de sua própria condição, mas,
sobretudo, preocupada pela saúde do futuro rebento. No entanto, protege-se em verdade
como mulher adúltera, temerosa da vingança do esposo traído. Chistosamente Marinho
carnavaliza o papel de São Raimundo em sua peça, transformando-o em padroeiro não
das parteiras e do bom parto, mas também das mulheres adúlteras contra seus maridos
ciumentos. Mesmo que a adúltera beneficiada por sua santa proteção também seja uma
parturiente e, por isso mesmo, ainda necessitada de seus favores. Mas Vicência chama-o
com outro objetivo: de salvaguardar-se dos ciúmes de Heronides para poder continuar
enganando-o com Cabo Nestor. De certa maneira, o santo invocado continua com suas
antigas atribuições com o acréscimo de uma nova: São Raimundo, padroeiro do bom
adultério.
O segundo e último santo mencionado em Viva o cordão encarnado é Santa Luzia,
protetora dos olhos. Na peça, ela é a santa de devoção da mãe de cabo Nestor, mulher cega
e mouca. No dia da chegada de Zefa à cidade, sem moradia ou conhecidos com quem
poderia se hospedar, Nestor oferece a casa onde mora com a mãe para receber a moça
naquela noite. No entanto, Vicência opõe-se a “gentileza” do cabo, fazendo uma série de
61
Inclusive, a data do nascimento de São Raimundo Nonato, como já havíamos comentado, é de princípios
do século XIII, ou seja, no período em que essa cultura cômica popular começou a proliferar com maior vigor
na Europa e que originou essa percepção carnavalesca do mundo.
204
advertências à Zefa. Eis o diálogo em que chistosamente faz-se referência a virgem e
mártir Santa Luzia:
ZEFA - Mas não tenho onde ficar! Não tenho conhecido nenhum aqui...
VICÊNCIA - Não ofereço em casa, porque moro num quarto, sabe como é...
um é pouco, dois é bom, mas três é demais! (Riem)
CABO - Pode ir lá pra casa. Moro mais mãe.
VICÊNCIA - Não vá na conversa não! A mãe dele é mouca e cega!!
CABO - Mas, Vicência... Que é isso? Com minha mãe lá?!
VICÊNCIA - Se tu tivesse respeito à tua mãe, não deixava ela tirar esmola por
aí.
CABO - Mais é diferente. Ela tira esmola pra fazer novena... É uma
promessa. E sabe pra quem é essa novena? Pra Santa Luzia! (Ri)
VICÊNCIA – É! E a metade do dinheiro que ela tira, tu tomas de cachaça!
CABO - Faço sem o menor remorso. Quem já viu cego festejar Santa Luzia? (Ri
forte) E nessa parte de beber uma coisinha, tu não podes dar um piu. Tu também
gostas da bícula! (Riem) Olha, ela fica indócil. (MARINHO 1969:73-74).
Trata-se de uma boutade em torno de Santa Luzia. Segundo Freud, os chistes não
passam de técnicas de linguagem ou jogos lúdicos nos quais o piadista maquia um
conteúdo implícito no jogo de palavras e que, por sua vez, torna-as espirituosas. Nesses
conteúdos, observa-se geralmente agressões verbais ou obscenidade disfarçados pelo jogo
de palavras que servem ao propósito do desnudamento ou da simples agressão. Quando
Vicência alerta Zefa para não hospedar-se na casa de Nestor porque a mãe dele é cega e
mouca, o que a mestra do pastoril quer dizer é que a moça estará colocando sua virgindade
em perigo confiando na “boa vontade” do cabo, pois a velha não poderá nem vigiá-los nem
interceder por Zefa, caso o cabo tente assediá-la, em detrimento de sua cegueira e surdez.
Além disso, Vicência, pelo viés do cômico, dirige uma agressão a Nestor, chamando-o de
libertino.
O cabo não se ofende, porém finge constrangimento, afirmando que não fornicaria
na casa onde mora junto com a mãe em respeito à própria. Vicência responde novamente
desmentindo o cabo, afirmando que se ele a tivesse realmente em consideração não a
deixaria tirar esmola na rua. Novamente o cabo tenta justificar-se expondo os motivos
religiosos por traz de seu martírio: uma promessa à Santa Luzia. Contudo, Nestor diz tudo
isso, não suportando mais segurar o próprio riso, o que denuncia a caçoada à divindade.
Obvio, pois metade desse dinheiro é gasto não em santas causas, mas em cachaça, na
abençoada bebedice. Fato que não envergonha o cabo, que considera mais útil investir esse
205
dinheiro em prazeres profanos do que em causas sacras; o que apresenta a própria
incredulidade do cabo, desconfiança a tudo que se apresente incrustado de sacralidade e
hierarquia. Tudo colocado sob questão através da comicidade.
Este é o tom que permeará as referências à devoção popular ou religiosidade
popular na peça e que nos é apresentado logo em seu primeiro quadro. Não exatamente o
do deboche e do escárnio, mas de uma ponderação dos valores e ideologias, colocando
tudo em movimento, revolvendo suas antinomias, dialetizando o que aparentemente
apresenta-se inerte em sua fidalguia e altivez.
2.2.4.2. Caranguejo não é peixe?
De acordo com o Dicionário Houaiss, superstição é a crença ou noção sem base
na razão ou no conhecimento, que leva a criar falsas obrigações, a temer coisas inócuas, a
depositar confiança em coisas absurdas, sem nenhuma relação racional entre os fatos e as
supostas causas a elas associadas”. (2004:2642). Seria a sobrevivência de cultos já
desaparecidos, vestígios de antigas religiões que se adaptam “psicologicamente aos
elementos religiosos contemporâneos, sempre condicionados à mentalidade popular”
(CASCUDO 1971:150), atualizando proibições, tabus, lendas e mitos: “Superstição, super-
sítio, o-que-sobreviveu”. (CASCUDO 1971:150). É também uma técnica de caráter
defensivo no plano mágico contra forças adversas. É o amuleto abençoado pelo santo ou
por outra entidade sobrenatural que nos protege contra forças maléficas e invisíveis.
Movimento instintivo, obscuro e poderoso para aqueles que acreditam na potência do
incognoscível, do sobrenatural. Em Viva o cordão encarnado, Mané Fozinho possui uma
superstição semelhante. Afilhado de Zé Pelintra confia sua sorte aos cuidados desse Mestre
da Jurema
62
a partir de um “trancelim de ouro”, um amuleto “calçado com Pelintra”
que o protege contra os males da terra e do além. Porém, seu uso é pessoal e intransferível,
e nas mãos de estranhos, seu efeito pode dar-se ao revés, trazendo sorte ao portador
indevido:
FOZINHO - Bom, não é nada demais não. Foi meu trancelim de ouro, que ela
estava achando bonito, pedindo pra botar, eu não deixei, disse que era
sagrado, de estimação... mas ela ficou bulindo, bulindo... quando é agora, dei
por falta!
62
No item seguinte trataremos dos aspectos referentes ao Catimbó-Jurema – religião popular denominada por
Roberto Motta de religião indo-afro-brasileira e sua importância na estrutura dramática de Viva o cordão
encarnado.
206
VICÊNCIA - É. Foi ela!
FOZINHO - Ela não sabe com quem está brincando. Aquele trancelim está
calçado com Zé Pilintra!
VICÊNCIA - (Isolando-se) Opa! Deus te salve, Zé Doutor!
FOZINHO - Salve, Zé!
VICÊNCIA - A menor presepada que vai fazer com ela, é dar-lhe um
baque de deixar tudo de fora (Riem os dois) (MARINHO 1969:75-76). [grifos
nossos].
Também chamada de crendice ou crendeirice, a superstição é a no milagre. Pela
graça de ter seu pedido concedido, o supersticioso (denominação também pertinente ao
devoto, pois a superstição faz parte da constelação devocional da religiosidade popular)
orienta sua súplica a qualquer dos poderes que possa atendê-lo. Como diz Cascudo, não
“a menor antinomia no homem do povo dirigir-se ao babalorixá e depois comparecer,
orante e constrito, a uma cerimônia religiosa ortodoxa”. (1971:153). E assim procede, por
exemplo, Maria Não Enjeita quando interrogada pelo delegado da cidade sobre sua
orientação religiosa:
DELEGADO – [...] (Virando-se para Maria) Maria!
MARIA - Eu! (Equivalente apresente).
DELEGADO - Você não é católica, etc, etc...?
MARIA - Bem, seu Delegado, fui educada nisto! Mas comigo não tem
bronca não! Tanto assisto a uma missa, como uma sessão espírita... mas me
chamo católica! (MARINHO 1969:63). [grifos nossos].
A superstição apresenta-se como uma lógica clara que prescinde de explicação. O
povo não sente que o sobrenatural, que a força de Deus ou de qualquer outra entidade de
devoção precise de explicações. Tudo é explicado, “diminuído”, para os padrões da
compreensão temporal. Quando não entende, decide que não é para entender mesmo,
porque “não encontrar explicação é reconhecer a fronteira inevitável do Incognoscível”.
(CASCUDO 2002:480). Portanto, a superstição consiste “na confiança de poder dispor,
evitar, afastar, dispersar, aproximar as grandezas imortais, fazendo-as ou tornando-as
acessíveis e dóceis aos interesses pessoais, do agente supersticioso”. (CASCUDO
1971:155).
Todavia, a superstição não são apenas resquícios, fragmentos dos cultos africanos e
indígenas que sobreviveram no Brasil absorvidos pela religiosidade popular. O catolicismo
português já traz em sua seiva o germe das antigas religiões pagãs, esmagadas pela
207
ascendência do cristianismo durante a Idade Média. Por isso que a cultura popular guarda
em si um princípio dialético de tradição e renovação. Ao mesmo tempo em que conserva o
arcaico, promove o renascimento e a inovação através de seu caráter não oficial, que
destrona verdades peremptórias, colocando pelo avesso tudo que se encontra na rigidez, no
não-movimento natural da natureza e do pensamento. Rindo inclusive de si mesmo, pois o
burlador não se imiscui de seu próprio riso, fazendo de si mesmo objeto de escárnio. No
caso do universo de Viva o cordão encarnado pode-se encontrar elementos que ressoam a
cultura cômica medieval: sua escatologia, glutonices, princípio material e corporal, seu
sentido do sagrado, imprecações, enfim, sua concepção carnavalesca do mundo.
É a partir dessas referências, dessa “força” que leva para baixo tudo que se encontra
no alto, que direcionaremos a análise da carnavalização do culto da Semana Santa
empreendido por Maria Não Enjeita.
Durante o almoço de aniversário de Heronides, Vicência comenta a ausência de sua
melhor amiga:
VICÊNCIANão vamos começar! Aqui tem gente do azul!! Mas, por falar em
azul, Maria não Enjeita não veio!
DAPENHAAh, de verdade! Ela está tão aperriada!! Ela com aquela mania de
não perder missa... Quando foi hoje de manhã, o sacristão, mandou ela se retirar
da Igreja, na frente de todo mundo! Disse que era ordem do padre!
DUDU – Taí, foi bom! Quer acender uma vela a Deus e outra ao diabo!
DAPENHA – O negócio é muito mais complicado! Dizem que ela foi banida da
Igreja e ainda por cima excomungada!
CHICUTO – E quem disse que pode ser assim? Só o Papa excomunga!
BERENICE – Quando esse povo quer, é num instante! Basta um telegrama.
HERONIDES – Não está vendo que o Papa, não vai se passar para excomungar
Maria não Enjeita, homem?
DUDU – Isso é honra pra gente, importante!
JOSIAS – O Diabo é quem queria uma honra dessa!
VICÊNCIA – Mas afinal de contas... O que foi que Maria fez?
DAPENHA - Sexta-feira, levou homem pra casa!
HERONIDES – Onde está à novidade?
DAPENHA – Mas, sexta-feira passada?
VICÊNCIA – Tem sexta, sábado nem domingo, pra Maria?
DAPENHA - Sexta-feira, maior?
VICÊNCIA Credo em cruz! Foi mesmo? Aí, não precisa nem do Papa
tomar conhecimento! Conheci uma, que morreu aberta em chagas, e o
homem, aleijado de reumatismo gotoso!
208
DUDU - Isso é conversa mole!
VICÊNCIA - Conversa mole, uma cebola! Não estou dizendo que conheci os
dois?
DUDU – Que nada! Foi coincidência!
VICÊNCIA – Coincidência ou não, o Diabo, é quem arrisca! (As outras) Tantos
dias no ano! (MARINHO 1969:34-36). [grifos nossos]
Esta cena desenvolve-se sob o prisma da superstição. De acordo com a liturgia das
comemorações da Semana Santa, ao fiel é terminantemente proibida a ingestão de carne
(com exceção do peixe) e também, incluído nesta lista de interdições, o tabu mais
importante: a abstinência sexual. São os chamados dias de jejum impostos pela Igreja
Católica desde a Idade Média. Segundo o dogma,
Manter relações sexuais durante a Semana Santa era o maior de todos os
pecados, principalmente na Sexta-feira Santa. [Justamente o dia em que Maria
Não Enjeita não resistiu às tentações da carne e, por isso, tornou-se vítima da
maledicência alheia e, sobretudo, da ira de um certo Sacristão, “mantenedor da
ordem e da moral” em nome da Santa Igreja]. O homem que assim procedesse,
solteiro ou casado, ficaria impotente para o resto da vida e a mulher ficaria
incapacitada para gerar filhos. E se nesse dia um filho fosse gerado, ele nascia
com o Cão-no-couro e seria infeliz até o fim de seus dias ou seria Lobisomem.
63
Além desses castigos, pode-se acrescer também os sugeridos por Vicência,
“legítima representante da religiosidade popular”. Maria Não Enjeita foi expulsa da igreja
e “aparentemente” excomungada por fornicar em dia sacro. Situação cômica por denotar
um excesso de rigidez da paróquia local na vigilância da conduta de seu rebanho. Contudo,
esse qüiproquó apenas principia. Pouco depois, chegou a pastora Dora à procura de Maria:
DORA - (Chegando alvoroçada) Minha gente! Minha gente! (Todos se
levantam e rodeiam-na) Maria não Enjeita, está aqui?
HERONIDES - O que é?
DORA - Ela está sendo procurada pela polícia!
DUDU - Como é?
JOSIAS - Que absurdo é esse?
HERONIDES - Minha amiga Maria, não pode ser presa! O que é que há?
DORA - Não sei direito não. Sei que deram parte dela! Vi na Delegacia, o
sacristão, e a mãe de Ciço Marinheiro, chorando...
63
Cf. SUPERSTIÇÕES da Sexta-feira Santa. Disponível em:
http://memoriasdaminhavida.weblogger.terra.com.br/.
209
DAPENHA - Ah! Espere aí! Já morei!! Foi Ciço Marinheiro, quem andou pela
casa de Maria, na Sexta-Feira Santa!
DORA - Parece que a estória é mais ou menos essa... Eu não cheguei a ouvir
direito porque estava do lado de fora e tinha muita gente na janela. Mas a mãe
de Ciço se queixava que o filho estava amaldiçoado pro resto da vida e coisa... e
o sacristão "marretando" Maria! Foi quando ouvi o Delegado dar ordem de
prisão, aí corri pra avisar!
HERONIDES - Sabe de uma coisa? Esse delegado está muito cheio de faceta!
Ninguém vai deixar Maria passar por esse vexame! Vamos lá agora mesmo!
TODOS - Isto! Vamos! Vamos! Agora! (MARINHO 1969:40-41).
Chega-se a uma situação paradoxal e absurda, em que se vislumbra o excesso de
rigidez de uma sociedade, tornando sua conduta risível. Porém o sentido desse qüiproquó
revela-se mais profundo e transgressor. Ao fazer a polícia intervir no crime” de Maria
Não Enjeita, tirando-o da responsabilidade da Igreja principal interessada em punir sua
ovelha rebelde, percebe-se uma conversão do sagrado para o profano quando a justiça
temporal invade o distrito da justiça divina. Mesmo que representado a oficialidade, a
invasão ao sagrado, ressalta a rigidez desses personagens representantes da lei e da ordem,
ou seja, seu ridículo, mas também, de antemão, rebaixa um assunto que a principio
propunha-se ser resolvido com seriedade e austeridade: “o sacrilégio de Maria Não
Enjeita”. Não se pode levar a sério um delegado que acata uma queixa prestada por uma
beata e um sacristão de igreja por Maria ter mantido relações sexuais com um rapaz
durante a Sexta-feira da Paixão. Na verdade, Maria fez um bem a Ciço Marinheiro ao
iniciá-lo nos mistérios do amor e do sexo, respeitando uma outra lei: a do machismo. Lei
que impinge a todo púbere, no seu rito de passagem da infância para o mundo dos homens,
ser obrigado iniciar-se sexualmente, possuir uma mulher para provar sua virilidade.
Além disso, logo descobre-se que os motivos que levaram o Sacristão a expulsar
Maria da Igreja e prestar uma queixa na delegacia, não encontram-se nas alturas do infinito
e intangível, mas na corporeidade das paixões. O que Maria Não Enjeita deixa
subentendido na cena seguinte:
DELEGADO - Estamos perdendo muito tempo. Vá, sr. Sacristão, faça a queixa!
MARIA - Menino... eu tenho uma sorte!...
SACRISTÃO - (Lendo uma nota, meio de costas para Maria) Essa víbora
peçonhenta profanou pérfidamente a Igreja! Maculou a Sexta-Feira Maior!
Chega sinto calafrios!
MARIA - Ô "delicadeza", quer falar pra eu entender?
SACRISTÃO - Manteve contacto carnal, em plena Paixão... arrastando o meu
210
particular amigo Cícero, para um pecado que irá danar a alma dele para todos
os séculos, seculórum... Amém! (Benze-se) Morro de pena!
MARIA - Acontece que o seu particular amigo Ciço, depois que sentou
praça na Marinha, passou a gostar de outras merendas! (Risadagem)
SACRISTÃO - Está vendo, seu Delegado, como é vulgar? (A Maria) Devassa!
Me náuseas! Meu amigo Cícero, tão puro! Pobre da alma dele! Morro de
pena!
MARIA - Suas penas são outras, viu bichinho? E depois, não é nem pela
alma do seu particular amigo Ciço! Você está com pena é de outra coisa!
Quer que eu fale?
SACRISTÃO (Retirando o relógio da algibeira, consulta-o, e bem
apressado) Home! Já é quase meio dia! Deixa-me ir bater meu sino! (Sai
apressado. Risos gerais)
DUDU - Cucurucu! (MARINHO 1969:61-62). [grifos nossos].
Os motivos reais e implícitos que fazem Maria Não Enjeita ser expulsa da igreja,
“excomungada” e perseguida pela polícia não são morais nem cristãos, mas profanos,
passionais, carnais. O sacristão, figura emasculada, conhecido por sua delicadeza
excessiva, supostamente mantinha ou apenas almejava manter relações amorosas com Ciço
Marinheiro, rapaz que depois de entrar para a Marinha, descobre-se viril e abandona seu
antigo “amigo” para entregar-se aos braços de Maria Não Enjeita. Portanto, o sacristão é o
agente que deflagra o processo inquisitorial” contra Maria Não Enjeita. Porém, seu ato
não se justifica por sua “piedade infinita”, no desejo de salvaguardar as almas dos fiéis da
paróquia em que trabalha. Movido pelo ciúme e despeito, vinga-se da mulher que seduziu
seu amado. E quando seu segredo encontra-se prestes a ser revelado por Maria Não
Enjeita, foge.
Todavia, o delegado não se dá por satisfeito, e mesmo tendo consciência do ridículo
das acusações do sacristão, não desiste de seu intento. Afinal, também é um devoto
fervoroso. Além disso, segundo o delegado, existe a pressão de uns “certos doutores de
uma irmandade” que se escandalizaram com a “libertinagem” de Maria Não Enjeita. Mas
Maria não se intimida e expõe ao delegado sua própria liturgia de louvor ao corpo
crucificado de Cristo:
DELEGADO[...] Creio que, seja qual for a religião, a Sexta-Feira Santa é um
dia de guarda, de respeito! A carne é respeitada! Eu mesmo sou um que me
privo, em todos os sentidos; da carne! E como é que a senhora que se diz
católica, e que segundo o nosso amigo Sacristão, não se guardou da carne, na
Sexta-Feira da Paixão?
MARIA - É seu Delegado... Mas o meu caso foi todo especial. Estou com a
211
minha consciência em paz! Não pratiquei nenhum pecado!
DELEGADO - Por que? Que caso todo especial é esse?
MARIA - É certo que era uma Sexta-Feira Santa... mas como Ciço era
marinheiro... e no meu fraco entender, marinheiro é peixe! (Risos gerais)
(MARINHO 1969:63). [grifos nossos].
Maria Não Enjeita apresenta-se como uma sacerdotisa de Dioniso que louvava seu
deus através de ritos orgiásticos, consagrando seu corpo, transformando-o num corpo
místico, templo da divindade. Dialética do sagrado e profano. Maria burla o delegado, ri de
seu conservadorismo anacrônico, ao mesmo tempo em que tenta escapar da cadeia. Faz
uma boutade. Mas sua piada guarda em si mesma um sentido profundo: dizer não haver
cometido pecado algum por ter copulado com um marinheiro, que não seu fraco entender,
é peixe, ela quer dizer que, ao seu modo, também estava louvando a Cristo, consagrando
seu corpo através do ato primordial da espécie humana, que permite sua permanência, sua
constante renovação: o sexo. Seu ato possui um sentido transgressor, dinâmico, colocando
tudo em movimento e transformação. Renovando o que se encontrava moribundo.
Trazendo para o baixo o que se encontrava nas alturas, em inércia e altivez. Torna profano
o que insiste em apresentar-se numa sacralidade excessiva, numa lúgubre seriedade.
Revela a própria ambivalência do humano, impulsionando-o para o devir: “O princípio
corpóreo material fome, sede, defecação, copulação torna-se uma força positivamente
corrosiva, e o riso festivo celebra uma vitória simbólica sobre a morte, sobre tudo o que é
considerado sagrado, sobre tudo aquilo que oprime e restringe”. (STAM 1992:43). Eis sua
força cômica!
2.2.4.3. Maria Não Enjeita, o oráculo da Jurema.
Na primeira parte deste estudo, quando tratamos das mitologias marinhas,
mostramos a presença e a relevância das religiões indo-afro-brasileiras e, particularmente,
do catimbó-jurema, na vida de Luiz Marinho, a partir de seu discurso de posse na
Academia Pernambucana de Letras. Neste discurso, o autor apresenta-se como um afilhado
de Mestre Carlos, construindo quase que uma cosmogonia pessoal em que revela os
elementos fundadores de si mesmo. Contudo, o catimbó-jurema não restringiu-se ao dia-a-
dia de Marinho como suposto filho da jurema. Pelo contrário, serviu de célula mater para
seu trabalho artístico, auxiliando na mímesis de seus personagens, dando-lhes carne, osso e
subjetividade, mas também permitindo a construção de todo um universo sócio-cultural
212
que os absorvia e transcendia ao mesmo tempo. Dessa forma, trazemos novamente a
Jurema e seus encantados para o centro desta discussão com o objetivo de revelar sua
presença e função dentro da estrutura dramática de Viva o cordão encarnado.
O Catimbó-jurema, como todas as religiões que se originaram do sincretismo
brasileiro, tem variações regionais no seu culto que demonstra um grau maior ou menor de
hibridismo: a presença ou não de determinadas superstições e ritos de origem, seja
portuguesa, africana ou indígena. Desenvolveu-se no Nordeste brasileiro, principalmente
na Paraíba e Pernambuco. Também é conhecida apenas pela denominação de Catimbó ou
de Jurema. Todavia, no uso corrente, a primeira adquiriu um sentido pejorativo de
bruxaria, enquanto que a segunda seria um nome mais elegante e respeitoso, utilizado por
seus praticantes.
Como havíamos dito anteriormente, esta religião caracteriza-se por um certo
prosaísmo e uma não normatização de seus rituais. Não existe uma hierarquia fortemente
definida entre seus fiéis como no candomblé, assim como também não uma liturgia
específica. Nela, há sempre o caráter de mobilidade, variando no país, de estado para
estado, de cidade para cidade, de comunidade para comunidade sem que haja uma
rivalidade entre membros de seitas diversas: “isso se explica pela psicologia familiar que
substitui a psicologia tribal, pelo individualismo do trabalhador agrícola, habituado à
solidão, pela dispersão em grupos domésticos autônomos, bastando-se a si mesmos”.
(BASTIDE [1945] 2004:152-153). Pode-se observar, por exemplo, como indício da
individualidade que a caracteriza que o santuário geralmente é a própria residência do
catimbozeiro. Dado que indica não o perfil psicológico de seus fiéis, mas também seu
nível social e econômico:
É o próprio quarto do catimbozeiro que serve de local de culto. O altar católico
é um altar de pobres, com algumas litografias ingênuas, pequenas estátuas
pintadas grosseiramente. O centro do catimbó é a mesa, com suas garrafas de
cachaça, cheias ou vazias; quando estão vazias, o gargalo serve de castiçal à
vela que lança sua claridade esfumaçada no claro-escuro da sala; copos,
medalhas ou moedas (calços), flechas malfeitas, às vezes uma imagem dentro
do bojo de uma garrafa, [...], cachimbo ou cigarros, às vezes um crucifixo
enfeitado de fitas, agulhas e botões, todo um bazar barato, sem beleza e em
desordem, onde se confundem o catolicismo, o indianismo e o espiritismo.
(BASTIDE [1945] 2004:152-153).
Em Viva o cordão encarnado, encontram-se indícios da Jurema nos hábitos e nas
crenças de seus personagens. Apesar de ser uma religião que cultue predominantemente
mestres e caboclos, espíritos de pessoas que passaram para o “outro mundo” de uma
213
maneira fantástica sem de fato vivenciarem a experiência do morrer, ao fiel não é proibido
praticar outras religiões nem de possuir outros ídolos, podendo adorar tanto os orixás do
candomblé quanto os santos católicos, sem ofender os mestres e os caboclos dos quais são
afilhados. Um exemplo disto são os próprios hábitos religiosos de Maria Não Enjeita que
tanto pode assistir a uma sessão espírita quanto a uma missa na igreja, além de também
atuar como cartomante. Ou seja, não dogmas nem preconceitos na sua apreensão do
divino.
Logo no segundo quadro do primeiro ato, numa visita à sua amiga e confidente
Vicência, Maria, de bito, decide jogar cartas para si mesma. Lendo as cartas, a
cartomante começa a descobrir as peripécias que o futuro próximo lhe reservava, como as
intrigas do sacristão e seus contratempos com o delegado durante o aniversário de
Heronides:
(Maria se senta à mesa e retirando um baralho dos seios, espalha sobre a
mesa. Vicência apanha umas camisinhas de bebê no arame e seu semblante se
transforma para puro enlevo).
MARIA - Deixa-me cuidar de minha vida! Vou ver o que é que hoje sai pra
mim!... Hum!... Um homem com más palavras... Contrariedades nas horas de
comidas e bebidas... (Volta Vicência dizendo denguinhos com a camisola. Vai
direto a Maria) Intrigas de um invejoso... Uns embaraços com um homem de
farda... (MARINHO 1969:19).
De súbito, ainda compenetrada no que as cartas lhe diziam, a pastora começa a rir.
Zé Pelintra, um mestres da jurema, aproxima-se e com ela trava diálogo. Nesta “conversa”,
apenas ouvida pela cartomante, presencia-se ao mesmo tempo vaticínio e gozação:
MARIA – [...] Desde ontem que só dá desgosto pra mim... (Faz pequena pausa.
Ergue a cabeça no ar e ri debochada) Ra, raí! Tu és de morte, Zé!
VICÊNCIA – (Já feliz) O que é?
MARIA Não é Pilintra! Está aqui me dizendo: (Ri) que vai ser um
angu da gota (Riem as duas depois Maria “escuta” e balança a cabeça
“ciente”)... mas no fim, quem vai sair se rindo sou eu! (Rindo)
VICÊNCIA Ah! Pergunta a Zé, se foi ele que fez aquela presepada de
ontem à noite?
MARIA Ele está dizendo que o Cabo andava atrás de uma promoção,
então recebeu logo o quepe de capitão!
VICÊNCIA(Rindo) Mas, Zé! Que malvadez com o meu lindo!
MARIA O que é?... Estou na missa! (Ouve ) O que, Zé?... O que? Tá! (O
“tá” é lamentando)
214
VICÊNCIA – Que foi que ele disse?
MARIA – Foi comigo!... Não sei o que, não sei o que... que abrisse o olho com
missa... e foi embora!
VICÊNCIAZé é de encomenda! (MARINHO 1969:19-20). [grifos nossos]
Como última profecia, Pelintra aconselha-a a tomar cuidado com a “missa”.
Naturalmente que o encantado refere-se ao evento em que a cartomante será expulsa da
igreja pelo sacristão durante a missa e excomungada, como retaliação por ter mantido
relações sexuais com Ciço Marinheiro na Sexta-feira da Paixão.
Assim como este encantado previne sua afilhada de um “devir funesto”, faz desse
mesmo futuro, alvo de seu riso e escárnio, despertando também o gargalhar de Maria e
Vicência. Aqui, deparamo-nos com um outro aspecto da Jurema: o relacionamento quase
que secular entre a divindade e o humano. O que reforça ainda mais o caráter informal
dessa religião. Diferentemente do Catolicismo, do Judaísmo, do Islamismo ou de religiões
afro-brasileiras como o Candomblé e o Xangô do Recife não uma separação vertical
entre o sagrado e o profano. Pelo contrário, uma relação horizontal de fricção entre
esses dois vetores em que a entidade relaciona-se de igual para igual com o fiel, conferindo
um prosaísmo, quase que uma intimidade nas relações “sacramentais” da Jurema. Vicência
e Maria Não Enjeita estabelecem, portanto, um contato direto, “face a face, com um ser
sagrado”. (BRANDÃO; RIOS 2004:179). Isto deve-se a própria maneira do povo
relacionar-se com a divindade, trazendo-a para a materialidade de sua visão de mundo, ao
plano do vivido e experimentado. Tanto é que a Jurema distingue-se como uma “forma
popular de alívio e terapia, certamente a mais simples e mais acessível para a maioria das
pessoas do Nordeste. Porém, ao mesmo tempo, vai além dessa função terapêutica e,
superando todo cálculo de utilidade grupal, transforma-se em brincadeira, dança e festa, na
qual as entidades se manifestam no corpo das pessoas”. (MOTTA 2005:295-296). Como
pode-se perceber no trecho citado, Maria Não Enjeita e Vicência conversavam com
Pelintra como se fossem amigos íntimos, antigos companheiros de farra, trocando gracejos
sem transgredir qualquer regra de etiqueta.
Após a “visita” de Pelintra, Maria joga as cartas respectivamente para Vicência
e Heronides. Em ambos os casos, suas preocupações giravam em torno de questões
amorosas ou financeiras. Vicência desejava saber se Cabo Nestor lhe seria um amante fiel
até a morte enquanto que Heronides, apreciador de jogos de azar, almejava saber se
ganharia na loteria. Este talvez seja um outro exemplo ilustrativo da natureza da desses
215
personagens e do sincretismo de sua devoção. Procurando alívio para as mazelas da alma,
passam da Jurema à cartomancia:
MARIA – [...] Vá seu Heronides, corte aqui!
HERONIDES – (Corta, etc) Repare se vou tirar na loteria.
MARIA – Dinheiros grandes, por caminhos curtos...
VICÊNCIA – (Rindo) Viuvinho rico!
HERONIDES – Não atrapalha! (MARINHO 1969:22).
Contudo, em Viva o cordão encarnado a presença da Jurema como manifestação da
religiosidade de seus personagens não se restringe a um dado exótico, nem etnográfico na
construção do universo sociológico da peça. Ela surge não como a expressão de uma
determinada sociedade, mas também como fator para a construção artística da obra,
possibilitando novas camadas de significação que extravasam do puramente ilustrativo. E
nesta dimensão, torna-se fundamental a valorização do papel de Zé Pelintra na estruturação
da ação dramática, assim como as correlações possíveis entre este mestre da Jurema e a
devoção de alguns dos personagens de Viva o cordão encarnado com o gênero trágico.
Os mestres são uma categoria de entidades que recebem culto na Jurema. Este
termo parece ser de origem portuguesa, onde possuía um sentido tradicional de médico. No
entanto, de uma maneira geral, “os mestres são descritos como espíritos curadores de
descendência escrava ou mestiça”. (BRANDÃO; RIOS 2004:166). Recebem como
oferendas
a cachaça que nunca deve faltar quando estão incorporados nos cultos -, o
fumo seja nos charutos ou os utilizados nos cachimbos –, alimentos
preparados com crustáceos e moluscos diversos. Com estas iguarias agradam-se
e fortificam-se estes encantados. A bebida, feita com a entrecasca do caule ou
da raiz da jurema e outras ervas de “ciência” (junca, angico, jucá entre outras)
acrescidas à aguardente, é, entretanto, a maior fonte de força e “ciência” para
estas entidades. [...].
Quando em terra, incorporados, os mestres chegam embriagados, tombando
de lado a lado e falando embolado. São brincalhões, chamam palavrões, mas o
que falam é respeitado por todos. (BRANDÃO; RIOS 2004:168-169).
Constituem uma entidade híbrida, podendo assumir diferentes faces ou papéis no
decorrer de suas funções. Ou seja, pode trabalhar tanto na esquerda (para o mal) quanto
para a direita (para o bem). Esta é uma característica geral dos mestres da jurema, cujas
216
funções e papéis são variáveis de acordo com as necessidades ou as circunstâncias
impostas pelo “trabalho”, pelo médium ou pelo adepto.
Ao lado de Mestre Carlos, Pelintra é a figura mais conhecida e importante da
Jurema. Sobre sua vida existem várias lendas que apenas reforçam seus caráter mítico e
seu poder sobre o imaginário popular. Ele é conhecido como uma entidade elegante,
prosista e galanteador das moças. Muitos acreditam que tenha vivido em Pernambuco,
Ceará ou na Paraíba. Porém, boa da parte das histórias sobre sua vida convergem para a
seguinte descrição: “ele era um pernambucano ‘cabra-da-peste’ que não levava desafora
para casa, freqüentava os cabarés da cidade do Recife, defendia as prostitutas, gostava de
música, fumava cigarros de boa qualidade e apreciava a bebida”. (ALKIMIN 2005:21). Em
suma, sintetiza o arquétipo do machão nordestino. Também é considerado um exu
(trabalhando por isso tanto à direita como à esquerda), “sendo representado com terno
branco, gravata vermelha, cravo na lapela, chapéu caído na testa, caracterizando a figura
do malandro; representa a astúcia, o livre trânsito pelas brechas e pelo proibido, o uso dos
meios não sancionados pelas normas”. (ASSUNÇÃO 2004:202). Por isso é ao mesmo
tempo temido e respeitado. É um encantado que embora possa praticar o bem também
pode ser rebelde, vingativo, zombeteiro, risonho e desordeiro.
Sua importância na trama de Viva o cordão encarnado deve-se, sobretudo, pelo
papel de ser o articulador do destino dos personagens e, particularmente, ao de Cabo
Nestor. Logo na primeira cena em que seu nome é citado, quando aproxima-se de Maria
Não Enjeita, prevenindo-a do futuro, assume a responsabilidade do incidente da noite
anterior em que Cabo Nestor, durante uma serenata que fazia para Vicência, foi
surpreendido por Heronides, recebendo um banho de mijo, um golpe de pinico e ainda
levou um tombo que danificou seu violão. Aqui, deparamo-nos com o aspecto zombeteiro
da entidade, manipulando os atos humanos a seu bel prazer, divertindo-se com os
incidentes e as confusões que consegue provocar. De uma certa maneira, ele lembra o
personagem Puck de Sonho de um noite de verão, de William Shakespeare. De acordo com
Jan Kott ([1961] 2003:195), Puck “era simplesmente um dos nomes do diabo, usados [...]
para assustar mulheres e crianças”. Assim como Pelintra, ele é um ser sobrenatural que
atua tanto para o bem como para o mal. Tanto é que um de seus inúmeros nomes é o do
bravo Robim Bom Camarada. De um diabrete familiar, ele pode passar “bruscamente a
forma do Maligno” (KOTT [1961] 2003:197), não contentando-se mais com simples
traquinagens. É um espírito do movimento, em constante relação como o mundo
sobrenatural e humano, como ocorre em Sonho de uma noite de verão, em que devido a
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sua ação desencadeiam-se todos os qüiproquós, os enganos e a reviravoltas dos dois casais
de amantes Hérmia e Lisandro, Helena e Demétrio.
Assim como Puck, Zé Pelintra é um ilusionista e prestidigitador. Afinal, seu próprio
nome revela sua verdadeira natureza: “Pelintra” significa” pilantra, malandro, vadio. É
isso exatamente o que Zé Pelintra foi em vida: um malandro. Vivia na boêmia e na
vadiagem. Amado pelas prostitutas, foi um gigolô inveterado, tendo sempre várias amantes
ao mesmo tempo, “espalhadas pela cidade, das quais obtinha dinheiro para sua vida de
boêmia”. (ALKIMIN 2005:23). Exímio jogador de carteado, quando o dinheiro das
prostitutas que protegia e explorava escasseava, era através das cartas que garantia seu
sustento. Também foi muito cedo iniciado nos mistérios da jurema. Por isso, segundo o
mito, sempre que era ameaçado por policiais, recorria aos seus conhecimentos mágicos
para se proteger, transformando-se numa bananeira.
Pelintra-Puck puxa os cordões da máquina teatral que é Viva o cordão
encarnado, manipulando seus personagens. Libera seus instintos e põe em marcha o
mecanismo do mundo. Porém, é ao mesmo tempo o diretor e o burlador deste Theatrum
Mundi, construindo e desconstruindo sua cena ideal, fazendo de suas “marionetes” objeto
de seu escárnio, como pudemos testemunhar no incidente do qual Cabo Nestor foi vítima.
Depois deste episódio, tornou-se alvo das pilhérias de seus pares. Assim como Puck
derramou nos olhos dos amantes de Sonho de uma noite de verão um líquido mágico que
os fazia apaixonar-se pelo primeiro ente que seus olhos perscrutassem, Pelintra fez
Heronides dar um banho de mijo no cabo galanteador, acrescido ainda de uma “pinicada”
na cabeça. Do amor romântico que devotava a Vicência, Nestor foi tomado por um
erotismo animal e cego que o fez encantar-se por Zefa Pastora, levando-o inevitavelmente
à catástrofe, tal como um herói trágico. O que, de antemão, pode ser considerado uma
boutade, que Nestor não corresponde aos atributos de um herói trágico. No entanto, a
função deste pastoril apenas principia e ainda temos mais algumas jornadas para cantar e
dançar até chegarmos às questões referentes ao trágico em Viva o cordão encarnado.
Esgotaremos esse assunto progressivamente até o final da última jornada e o anúncio do
nascimento do menino Jesus.
Durante a consulta de Maria Não Enjeita à Vicência e a Heronides, não foram
apenas sobre dinheiro ou amor que versaram os vaticínios da cartomante. Tanto no jogo de
Vicência quanto no do seu marido, Maria previu situações paralelas que antecipavam os
eventos que se sucederiam na trama da peça e que mudariam os próprios rumos da ação.
Eis a fortuna de Vicência, segundo Maria Não Enjeita, o oráculo da Jurema:
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VICÊNCIA[...] Bota uma cartinha pra mim. Quero ver no final, onde vou dar
com os costados.
MARIA Embaralhe e corte em três. (Vicência obedece e Maria vai
espalhando as cartas, falando) Dinheiros curtos, por caminhos longos... Uma
doença passageira... Uma mulher morena com pensamento no que é teu...
[...] Esta mesma mulher, com grande confusão nas horas de folguedos
pode ser alguma pastora – trazendo desgosto... No teu caminho, um homem
de farda!
VICÊNCIA Não está vendo? Sou eu que quero? Não é mesmo a minha
sina? Está escrito! Está escrito! Vamos! [...] Veja aí... O meu lindo... me será
fiel até a morte? (MARINHO 1969:20). [grifos nossos].
Vicência consultou-se com a amiga na esperança de saber até onde seu affaire com
Cabo Nestor a levaria; se este lhe seria “fiel até a morte”. Todavia, a fortuna lhe reservava
algumas surpresas: a “mulher morena” anunciada por Maria Não Enjeita é a própria Zefa
que apenas aparecerá no segundo ato, tomando Nestor de Vicência e provocando muitos
transtornos durante aquela função de pastoril. E obviamente também é Nestor a quem a
cartomante se refere quando prediz a existência de “um homem de farda” no destino de
Vicência. Previsão que só reforça a crença da mestra do pastoril no poder do sobrenatural
sobre sua vida. Aquilo ao que ela chama de “sina”, uma transcendência a qual não
compreende, mas respeita, depositando nela sua fé e a responsabilidade de seus atos. Como
se fosse isenta de qualquer subjetividade, respeita a uma ordem divina e objetiva que
determina suas escolhas e seus atos. Corrigindo: não liberdade de escolha nesta
concepção de mundo, apenas a fatalidade inevitável, o destino, a sina. Previsão similar será
fornecida durante a consulta de Heronides que se sucede a de Vicência. Eis a segunda
profecia do oráculo da Jurema:
MARIA – Alegrias nas horas de comidas e bebidas... Falsidade de um
homem que se faz amigo... Pensamento numa mudança [...].
................................................................................................................................
MARIA [...] Uns embaraços no teu trabalho... Uma mulher morena, a
mesma de ainda agora, com bons lucros... esta mesma mulher, pelas portas
da noite, com grandes, perturbações! (Pára. E de olhos arregalados fica
desconcertada) É só!
HERONIDES Não! você viu qualquer coisa aí, que não quer dizer! Pode
falar!
MARIA – Não... não é nada de mais, não... É uma besteira!
HERONIDES – Olha Maria... É muito difícil me enrolar!
VICÊNCIA – (Nervosa) Sou eu? De parto?
219
MARIA – Que é isso? Deixa de invenção!
VICÊNCIA – É! Eu sei que é!
MARIA – Espere . Tenha calma!... Vou dizer! (Pausa pequena) Pelas portas
da noite... Um homem de farda...
HERONIDES – A roleta só dá homem de farda!
VICÊNCIA – (Impaciente)... um homem de farda?...
MARIA – ...com morte ou ferimento grave, por arma branca!
VICÊNCIA (Num grito) Não! Prefiro a minha morte! Ai! (MARINHO
1969:22-23). [grifos nossos].
Nos novos vaticínios de Maria Não Enjeita retornam os mesmos personagens de
outrora: Zefa e Cabo Nestor. A cartomante prevê o almoço de aniversário de Heronides
(“Alegrias nas horas de comidas e bebidas”), a falsa amizade de Cabo Nestor que, além de
fornicar com sua esposa, passará todo o primeiro ato tentando colocá-lo na cadeia como
vingança pelo banho do mijo e pela pinicada que recebera no início da peça (“Falsidade de
um homem que se faz amigo”), e também já confirma ao leitor-espectador uma consciência
ou intuição de Heronides sobre o affaire de Nestor e Vicência, fazendo-nos entrever ou
pressupor uma vingança que se concretizará, de fato, no final do segundo ato com a
castração do cabo (“Pensamento numa mudança”). Além disso, novamente é anunciada a
chegada de Zefa, trazendo bons lucros para Heronides (“Uma mulher morena, a mesma de
ainda agora, com bons lucros”), mas que também trará muitos problemas, disseminando a
discórdia entre os homens e fulminando antigas paixões, numa súbita explosão de erotismo
e violência (“esta mesma mulher, pelas portas da noite, com grandes perturbações!”).
Porém, a principal e última profecia refere-se justamente ao destino funesto de Nestor,
emasculado pela peixeira de Mané Fozinho a mando de Heronides (“Pelas portas da noite...
Um homem de farda... [...] com morte ou ferimento grave, por arma branca!).
Estas são as peripécias preditas pelo oráculo que fazem cambiar a fortuna de
Nestor, trazendo-lhe um devir infausto e imprimindo-lhe chistosamente a aparência de um
herói trágico. Categoria a qual o personagem em questão não pertence. Na verdade, suas
ações levam-no a pender entre o cômico e o dramático, não ascendendo, de fato, ao
trágico. Para Aristóteles, na tragédia procura-se imitar homens melhores do que eles são
ordinariamente, enquanto que à comédia, cabe-lhe a imitação de homens piores.
(1994:105). Todavia, sua superioridade ao homem comum não se refere necessariamente
aos aspectos morais da virtude, noção de caráter notadamente cristão e não grego. O
próprio Aristóteles nos esclarece que o herói trágico “não se distingue muito pela virtude e
220
pela justiça; se cai no infortúnio, tal acontece, não porque seja vil e malvado, mas por força
de algum erro [harmatia]; e esse homem há-de ser algum daqueles que gozam de grande
reputação e fortuna, como Édipo e Tiestes ou outros insignes representantes de famílias
ilustres”. (1994:120).
Nestor não descende de nenhuma linhagem ilustre como ocorre na tragédia grega e
mesmo que represente a lei e a ordem, a justiça temporal de Timbaúba, não passa de um
reles cabo sem autoridade sobre seus subordinados. Não representa, portanto, nada que
inspire grandiosidade ou transcendência. Sua queda não serve de exemplo para ninguém. É
um homem comum, cheio de vícios que a princípio não o levam ao aniquilamento, mas
servem de pretexto para o surgimento de novas situações cômicas, revelando o ridículo do
personagem, como por exemplo, seu fraco pela bebida que, no aniversário de Heronides,
leva-o a abandonar suas funções de autoridade local e seus planos de vingança contra seu
rival para mergulhar completamente no delírio da festa e da embriaguez. Falha cômica e
não trágica, porque seu erro apenas deflagra nosso riso, não desperta nem terror nem
piedade: como punição pela vadiagem em horário de serviço pegou oito dias de cadeia
enquanto que seus colegas de malandragem (Heronides, Dudu, Chicuto, Josias, Berenice,
Dapenha, etc) passaram apenas uma tarde ouvindo sermões do delegado. Como diz
Aristóteles: “o ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente”. (1994:109). O
leitor-expectador não o reconhece, portanto, como o representante legítimo da lei e da
ordem.
Outro aspecto a ser levantado sobre a natureza do herói trágico é que seu erro ou
harmatia, “ato do herói que põe em movimento o processo que o conduzi à perda”
(PAVIS 1999:416), não existe em Viva o cordão encarnado e, particularmente, nas ações
de Cabo Nestor do ponto de vista legitimamente grego. Sua violação ao nono mandamento
de Deus, que proíbe a cobiça pela mulher do próximo, diz respeito a um pressuposto
cristão de violação da ordem, que não afeta a harmonia de uma coletividade, mas
exclusivamente ao orgulho viril de Heronides. No sentido grego do termo, “o herói falha
em manter seu lugar na harmonia universal, e para o equilíbrio ser restaurado esse ‘erro
deve ser corrigido”. (McLEISH 2000:29). Por isso, a queda do herói passa a ser tão
necessária: para o restabelecimento do equilíbrio de um macrocosmo é necessário o
sacrifício de um ente; um microcosmo que carrega em si as contradições da humanidade.
Apenas a reparação de seu excesso pode restabelecer a ordem transgredida. Por essa
essência sacrificial da tragédia, existe no herói um outro elemento de fundamental
importância: o reconhecimento ou anagnorisis. O herói
221
[...] descobre que seu agir foi errado; descobre que não devia ter feito tudo o
que fez; descobre que é o mais fraco na correlação de forças, embora aparente
ser o mais forte, ou ainda que tenha acreditado ser o mais forte. E é embaixo
que ele redescobre a sua grandeza, não significando isto, porém, que ele
necessariamente deixe de morrer ou que venha a recuperar o poder perdido. Ele
como que perde o poder terreno para conquistar o poder espiritual; ele como
que se despe do agora, para, debaixo, resplandecer elevada sabedoria,
transcendendo todos os seus juízes e algozes. À custa do próprio sangue, torna-
se mensageiro do passado para o futuro, como as almas dos mortos eram
evocadas, convocadas a comparecerem ao presente. O sangue trágico do
presente conclama o passado para superar pela sabedoria a tragédia. (KOTHE
1985:26).
Dessa forma, “o trágico se torna um rito solene não por qualquer formalismo
superficial, mas por ser o desfile da consciência diante do espelho desnudo da existência”.
(KOTHE 1985:29). uma transcendência e pedagogia explícita na tragédia grega,
presente, sobretudo, no percurso do herói trágico. Em Viva o cordão encarnado, não se
encontram esses elementos em Nestor. O personagem, ao final da peça, sofre a vingança de
Heronides sem reconhecer suas “faltas”. Em verdade, ele padece sem ter o conhecimento
do mal que sobre ele se abateu. Permanece um personagem inconsciente de si mesmo, cego
de desejo por Zefa, não reconhecendo nada nem ninguém.
Contudo, apesar de admitirmos que Viva o cordão encarnado não é uma tragédia e
que Nestor não cabe na categoria de herói trágico, mesmo assim não é possível
desconsiderar a atmosfera trágica
64
que paira sobre a peça em questão. Há uma tragicidade
sutil em Viva em cordão encarnado em decorrência da devoção de seus personagens, além
da presença da Jurema e de Zé Pelintra. O fato trágico nasce da luta vitoriosa ou não de um
ser contra uma força que o ultrapassa. Ou seja, o trágico é o surgimento “d’une
64
o utilizamos este termo no sentido atribuído por Pierre-Aimé Touchard em seu livro Dioniso: apologia
do teatro; seguido de O amador de teatro ou a regra do jogo (1978), onde afirma que as denominações de
tragédia, comédia e outros neros nunca configuraram-se como realidades, mas apenas foram admitidos
como tais, sendo, por isso, “apenas uma coerção de linguagem imposta pela tradição (1978:24). Porém,
mesmo que não concorde com tais denominações, admite sentir, em cada um desses gêneros, “a presença de
uma atmosfera trágica ou de uma atmosfera cômica”. (1978:24). E por isso, atribui exclusivamente ao
espectador a capacidade de distinguir entre uma atmosfera e outra, como se não houvesse elementos
intrínsecos na obra de teatral que permitisse a denominação de tragédia ou comédia. Para Touchard, caberia
apenas à subjetividade do espectador a capacidade de realizar essa normatização: Aquilo que faz a atmosfera
trágica não é a peça, é o espectador; o que conta não são os personagens em si, seus atos em si, mas suas
relações com o espectador”. (1978:24). Esta não é nossa concepção de atmosfera trágica para compreender
os procedimentos estéticos de Luiz Marinho. Acreditamos na hipótese de existir elementos próprios ao
gênero trágico na estrutura dramática da peça que não a qualificariam, entretanto, como uma tragédia, mas
que ressoariam numa atmosfera trágica, imprimiriam um ar de tragicidade ao leitor-espectador, possibilitando
outras camadas de interpretação da obra, levando-a ainda à comédie séreiuse, de certa forma, de D. Diderot,
que tratamos no capítulo anterior. Apenas quisemos matizar a questão dos gêneros em Marinho.
222
transcendence écrasante, quel que soit le nom qu’on lui donne”.
65
(COUPRIE 1994:9). O
trágico leva ao extremo (ao contrário do cômico) a grandeza da realidade e da humanidade.
Em outras palavras: a grandeza exalta e atinge seu máximo na luta (desigual) com a morte
e o vazio. A essência do trágico não está na situação, mas na ação. Torna-se trágico toda a
ação em que o encadeamento de situações mostra uma marcha fatal do microcosmo central
em direção ao seu próprio aniquilamento. Todavia, essa marcha fatal poderá de fato ser
trágica se desde seu início apresentar-se inevitável, como se ação carregasse desde sua
origem o germe da destruição. E mais: “La fatalité est souvent à l’origine du fait tragique.
[...] Omniprésents, les dieux interviennent dans toutes les manifestations de la vie de
l’homme. Leur action est toujours sanction d’une faute, [...] Quelle qu’en soit la cause
précise, le revirement du bonheur au malheur illustre la fragilité de la destinée humaine”.
66
(COUPRIE 1994:10).
Portanto, é justamente a presença da onisciência divina que determina a atmosfera
trágica de Viva o cordão encarnado. Os vaticínios de Maria Não Enjeita sugerem tal
proposição, sobretudo, porque estes surgem como um devir lastimável e irremediável, o
triste fim de Nestor é anunciado desde o principio da peça, como algo certo e fatal; e
também, porque até o final do espetáculo suas predições se confirmarão progressivamente
com a sucessão de eventos que serão desencadeados no decorrer dos quadros e atos. Ainda
no primeiro ato, durante o almoço de aniversário de Heronides, dá-se o seguinte diálogo
entre Vicência e Nestor:
Heronides em outro grupo, bebe, um pouco afastado.
CABO - Por que você não botou o pano na porta, sá maluca?
VICÊNCIA - (Olhando se estão sendo observados e querendo se afastar) Me
esqueci por completo! Depois a gente conversa!
CABO - A esta altura dos acontecimentos... Tenho que manter a minha
palavra...
VICÊNCIA - E uma pena!
CABO - Posso ajeitar o Delegado e dar última forma em tudo... Depende de
uma coisa!
VICÊNCIA - o que é?
CABO - Que você me peça perdão!
65
“de uma transcendência fulminante, qualquer que seja o nome com que a designamos”. [tradução nossa].
66
“A fatalidade está, frequentemente, na origem do fato trágico. [...] Onipresentes, os deuses intervêm em
todas as manifestações da vida do homem. Sua ação é sempre sanção de uma falta, [...] Qualquer que seja a
causa precisa, a inversão da felicidade em infelicidade ilustra a fragilidade do destino humano”. [tradução
nossa].
223
VICÊNCIA - estão olhando pra gente... Depois a gente conversa! (Vai se
afastando)
CABO - Hoje de noite, então?
VICÊNCIA - Não, Heronides hoje não vai a Itabaiana, dorme em casa. (Afasta-
se)
CABO - (Resmungando) Dorme em casa? Pois sim! Dorme em cana!
(MARINHO 1969:45-46).
Heronides apenas observou um pouco afastado esta conversa. Não pôde
compreender claramente o sentido do diálogo; no entanto, pelo grau de intimidade que
envolvia a conversa, pela tensão de Vicência em não ser percebida por ninguém e pelo
sussurrar das palavras, tentando velar o que estava explícito, o marido intui uma excessiva
intimidade entre sua esposa e o cabo, configurando-se numa possível traição. Sente
reforçadas suas desconfianças em relação à fidelidade de Vicência, já manifestadas desde o
começo da peça em sucessivas crises de ciúmes. Em seu peito começa a brotar o amargor,
a fúria, o desejo de vingança. Em seguida, faz a seguinte confissão a seu amigo Dudu:
HERONIDES - (A Dudu) Esse bicho, está atravessadinho, aqui!
DUDU - Quando quiser desengasgar, já sabe... (MARINHO 1969:45-46).
Não foi criticado por seu amigo. Pelo contrário foi apoiado, justamente porque o
affaire entre Vicência e Nestor não era segredo para mais ninguém, como o próprio
Dudu confirma em conversa com sua consorte Berenice, durante o pastoril, no segundo
ato:
DUDU - Você já sabe? Mas é uma miséria! Todo mundo já está sabendo.
BERENICE - Todo mundo, menos Heronides.
DUDU - Não sei como se faz isto com um cabra macho daquele! Ela é doida.
BERENICE - Não... ali é o destino! Ela disse que as cartas marcavam uma
farda na vida dela... e se era de ser com um estranho, sem saber de quem se
tratava, era logo com o cabo Nestor que era gente de confiança. Não era ela
quem queria... era o destino. Ali é mulher de muita fé!
DUDU - Muita fé, não. Muito fogo!
BERENICE - O menino que está esperando, é filho do cabo. Vai tomar o cabo
como padrinho, que é para ele ter o direito de querer bem e Heronides não
desconfiar.
DUDU - Pai não pode ser padrinho. É mais um pecado.
BERENICE - Só tenho medo que no fim de tudo dê numa desgraça!
224
DUDU - Desgraça, já é! (MARINHO 1969:86-87). [grifos nossos].
O relacionamento amoroso entre Vicência e Nestor já era de conhecimento de
todos. E pela própria fala de Dudu reconhecendo a loucura de Vicência diante da macheza
de Heronides, subentendo-se que um acerto de contas entre Nestor e Heronides é
inevitável. Além disso, o discurso de Berenice sobre as razões que levaram Vicência a trair
o marido, novamente isenta a adúltera de qualquer culpa. As cartas anunciavam um
homem de farda em seu destino. A culpa, portanto, não recai na heroína, mas sobre sua
“sina” que a transcende. É necessário ressaltar que essa visão mítica do mundo em que as
ações humanas são determinadas por uma força sobrenatural em Viva o cordão encarnado
é essencialmente feminina, com exceção do Sacristão e do Delegado. Todavia, estes
representam um catolicismo ortodoxo, ou seja, uma religiosidade oficial que se opõe a
religiosidade não oficial defendida por Maria Não Enjeita e que obviamente sintetiza a
religião do povo. A religiosidade popular apresenta um misticismo que transcende de uma
certa maneira os dogmas da Igreja. E em Viva o cordão encarnado, ela encontra
representantes fiéis entre as personagens femininas como Vicência, Zefa e Berenice. Todas
são absolutamente susceptíveis as mais variadas superstições e têm uma crença cega na
força da sina de cada uma. Como é o caso da citada Vicência ou de Zefa que acredita
estar destinada a entregar sua virgindade a um rapaz bonito e de boa família.
No segundo ato, depois de ser desprezada pelo amante, Vicência pede auxilio ao
sobrenatural. Em outras palavras, faz imprecações contra Cabo Nestor, clamando a
Pelintra a execução de sua Vingança:
VICÊNCIA - Você nunca me tratou assim! Aquela catraia está lhe virando a
cabeça!
CABO - Eu me dano com quem difama! Deixe de difamar a moça.
VICÊNCIA - Difamando? Pois fique sabendo que séria, séria, ela não é não, taí!
CABO - Deixe de onda! Isso é ciúme do feio! Você nem conhece a moça... Ela
nem daqui é. Que tristeza!
VICÊNCIA - (Em tom de "baile") Tou com ciúme, não é miserável? Tem nada
não!... Deixa! Quero ver tu quebrar as ventas, danado! Tenho fé em Deus que
ela é de te botar numa enrascada dos diabos! Pilintra vai te dar o pago,
miserável! (O cabo vai se escapulindo) Tu vais ver se não vai ser castigado,
mundiça!
CABO - (já afastado) Praga de mulher bochuda, não pega não! (Ri e se protege,
como se estivera recebendo pedradas na cabeça)
VICÊNCIA - Nojento! Vou te botar um corno! (O cabo ri gostosamente;
ninguém do "sereno" quase percebeu porque as pastoras cantavam em tom
225
alto. Vicência enxuga os olhos, vai ao botequim, pede uma cachaça, derrama
um pouco no chão e bebe o resto) Pega, Pelintra! Toma conta daquele
infeliz! (Sai de cena) (MARINHO 1969:91-92). [grifos nossos].
E mais adiante, quando Nestor é ferido por Mané Fozinho, arrepende-se de sua
imprecação e culpa o Mestre da Jurema pelo fato trágico:
VICÊNCIA - Meu Deus! Que desgraça! (Procura olhar por cima do ombro do
povo)
CHICUTO - (Erguendo-se) Vamos levá-lo para a farmácia! Não é lá coisa
muito grave, não! (Carregam o Cabo nos braços. Vicência, chorando, vai ao
botequim)
VICÊNCIA - Ui, que remorso! A culpa é minha!... (E zangada) A culpa é de
Zé Pilintra! Por que fosse me ouvir, miserável? Tu não devias saber que eu,
não estava falando de verdade? Eu podia querer mal a Nestor, podia?
(MARINHO 1969:123). [grifos nossos].
Aqui retomamos nossa hipótese inicial sobre a manipulação de Pelintra nas
ações humanas, levando Nestor à catástrofe. Tal interpretação não se deve apenas a
credulidade de Vicência, mas a própria atmosfera mística da peça que progressivamente
nos sinais da existência de uma força sobrenatural a conduzir os eventos, manipulando
os personagens para a execução de seu plano primordial.
Voltando no tempo, retomemos a cena em que Maria Não Enjeita prediz o futuro de
Vicência e Heronides. No meio da consulta do Velho Matraca, subitamente um espírito
não identificado “acosta” na cartomante, informando-o de seu passado em vidas pregressas
e do presente de sua existência atual. Eis o que diz a misteriosa entidade:
MARIA [...] (Pára um pouco, fecha os olhos e fala) Se tu se na outra se vida
fosse um príncipe! (Heronides apruma-se vaidoso) Se tu, uma grande cortesã.
(A Heronides) Teu reino era se no castelo dos Barabes... Ainda existe! Se tem
herança se tua, lá!
HERONIDES – Meu irmão, em que lugar fica esse castelo?
MARIA Não temos ordem para te dizer! Nem acusamos ladrão, nem damos
palpites pra jogo! É coisa material!
................................................................................................................................
MARIA – Tu fizesse se teu povo chorar muito... por isto, se voltasse agora com
a se missão de fazer rir, como se Velho de Pastoril!... (MARINHO 1969:22-23).
[grifos nossos].
226
O que nos intriga nesta cena é que, segundo o espírito, Heronides em outra vida foi
uma cortesã, cujo castelo que habitara pertencera a família Barabes. Ora, Barabes também
é o sobrenome de Zefa, de acordo com o próprio Heronides, quando a introduzira em sua
estréia no pastoril. Vejamos:
VELHO - (Falando) Meus caríssimos senhores! Minhas encarossadíssimas
senhoras! Vamos apresentar agora, uma fina jóia embarcada do Rio de Janeiro,
onde deixou muito velho de boca babando de chupar... pirulito, pra se consolar!
Muito homem de cabeça ardida, de meter... no juízo a vontade de com ela ficar!
Muito rapazinho de munheca entravada, de bater... (Diz um P labial) palmas,
para aplaudir a bela Josefina! Palmas pááára... Jo-se-fi-na Ba-ra-bes!
(MARINHO 1969:94-95). [grifos nossos].
De uma certa maneira, Zefa também é uma cortesã. Pelo menos essa era a
reputação que qualquer moça que se dignasse a pisar num tablado, dançando e cantando
cançonetas libidinosas. Se não procuravam explicitamente clientes, tentavam ao menos
despertar o interesse de algum homem que pudesse sustentá-las. Marinho liga de uma
maneira muito sutil esses dois personagens como se um fosse o reflexo do outro. Melhor:
Zefa seria uma espécie de duplo de Heronides, vindo para vingá-lo, conduzindo Nestor
para seu final trágico. Tal leitura só poderia ser justificada no plano do sobrenatural.
Outro exemplo seria o próprio Mané Fozinho, agente da vingança de Heronides,
mas também instrumento de Pelintra. Mané Fozinho como se sabe é afilhado deste
mestre da Jurema. Além disso, seu retorno a Timbaúba à procura de Zefa, segundo ele,
deve-se, sobretudo, para reaver um amuleto abençoado por esta mesma entidade, furtado
por Zefa, quando Fozinho lhe dera carona em seu caminhão até Timbaúba. Outro
correlação é a própria maneira como Fozinho agride Nestor. Ele utiliza um punhal: uma
arma branca, como vaticinara Maria Não Enjeita. Instrumento letal que Pelintra
costumava utilizar em vida em suas constantes pelejas com a polícia e que o tornou célebre
na posteridade. Dessa maneira, como afilhado de Pelintra, poderia deduzir-se ser o
caminhoneiro um enviado desse encantado ou o próprio corporificado. Ou seja, Mané
Fozinho poderia ser também o próprio Zé Pelintra materializado em forma humana.
Todos esses elementos presentes em Viva o cordão encarnado é que lhe conferem
uma atmosfera trágica. São eventos que introduzem na peça o signo de uma
transcendência, estabelecendo a intersecção de dois mundos: o de cima e o de baixo ou o
sagrado e o profano. É justamente a certeza religiosa, expressa na peça em questão através
227
da Jurema e da onisciência/onipresença de Zé Pelintra, que institui essa atmosfera de
fatalidade e, portanto, de tragicidade.
Esta proximidade que Marinho estabelece com a tragédia leva-o a lançar mão
inclusive de outra particularidade do gênero que é a ironia trágica, como podemos
constatar no comentário de Dudu, ao final da peça, quando é incumbido por Heronides de
levar o pagamento de Mané Fozinho:
HERONIDES - (Aproxima-se e chama discretamente Dudu, à frente da cena,
entregando-lhe um pacote de dinheiro) Tome! Entregue a MaFozinho. Diga
que o serviço saiu na rima! (Riem)
DUDU - (Afastando-se) É danado!... O sujeito passar de galo a capão!...
(MARINHO 1969:125). [grifos nossos].
O que outrora propiciava orgulho a Nestor e estimulava seu comportamento
sedutor, torna-se, de certa maneira, no motivo de seu padecimento. O herói é literalmente
pego pela palavra que contra ele se volta trazendo-lhe uma dura experiência: uma ironia
diante da ação trágica que proporciona ao leitor-expectador um distanciamento irônico-
reflexivo. É obviamente um gracejo, mas que traz consigo um amargo sabor. A
emasculação de Nestor também assume nesta perspectiva o caráter sacrificial, assim como
na antiga tragédia ática em que a desaparição do herói é o sacrifício necessário para o
restabelecimento da harmonia no cosmo.
Dessa forma, a traição de Nestor ao seu amigo Heronides torna-se necessária para a
fecundação de Vicência, assim como o seu fenecimento também foi preciso para que a
ordem familiar pudesse ser restabelecida, substituindo o amante inoportuno (porém,
momentaneamente importante para a manutenção do modelo familiar patriarcal o
marido, a esposa e o filho) pela criança longamente esperada e desejada. Além de ser um
ato de vingança, de reafirmação da masculinidade de Heronides, sua imolação também
cumpre o papel de salvaguardar a unidade daquela família em desequilíbrio. A ausência de
um filho colocava sua harmonia em risco. Tanto é que Heronides, mesmo sabendo da
traição da esposa, assume a criança bastarda como sendo seu filho legítimo, aparentemente
sem temer as sanções sociais ou a ridicularização pública. Nestor torna-se, portanto, num
bode expiatório.
Apropriando-se e convertendo aspectos da hierática tragédia grega ao prosaísmo
cotidiano de seus personagens, a não oficialidade do Catimbó-Jurema e a intimidade da
família patriarcal, Marinho demonstra a sofisticação de seus procedimentos estéticos.
228
Revela sua própria visão de mundo, convertida não nas grandes questões da polis moderna,
mas nos pequenos dramas e comédias humanas, extraindo do corriqueiro e aparentemente
banal o grandioso e o universal.
2.2.4.4. Libações a Zé Pelintra ou dialética da cachaça
No dia em que eu apareci no mundo/ Juntou uma porção de vagabundo, da orgia
De noite, teve lua e batucada/ Que acabou de madrugada
Em grossa pancadaria/ Depois, de meu batismo de fumaça
Mamei um litro e meio de cachaça
Bem puxado
Ary Barroso e Luiz Peixoto, in Na Batucada da vida.
Cachaça! Também conhecida como Aguardente, Cana, ou Caninha (para os
íntimos). Estes são alguns dos sinônimos mais comuns empregados na denominação deste
destilado brasileiro. Todavia, são nomes que se confundem numa recíproca sinônima,
ocultando certas sutilezas referentes à origem da bebida. Em verdade, Cana, Caninha ou
Aguardente é a bebida que vem do caldo da cana, enquanto que a Cachaça é proveniente
do mel ou do melado. E mais: Aguardente também é a expressão universal de bebida
destilada; Cana também é o nome dado em castelhano para cachaça e Caninha é a
aguardente feita de um tipo de cana fina, em São Paulo.
No princípio, era chamada de Vinho de borras, Garapa azeda, Garapa doida,
Bagaceira, Jeribita, Jiribita, Geriba, Jurubita, Piripita, etc. Hoje, aos seus nomes e
apelidos acrescentam-se também Água-de-briga (expressão antiga por provocar brigas),
Água-que-passarinho-não-bebe, Amansa-corno (oriunda da periferia do Rio de Janeiro),
Arrebenta-peito, Azuladinha (tipo de cachaça de cor azulada fabricada na região de Santo
Antonio da Patrulha, no Rio Grande do Sul), Birinaiti (expressão carioca que quer dizer
beber à noite), Borbulhante (refere-se ao período de fermentação em que a bebida pode
borbulhar), Branquinha, Brasa (da expressão “desce queimando feito brasa”), Caiana
(apelido utilizado no Norte do Brasil, remetendo a um tipo de cana proveniente da Guiana
Francesa, que chegou ao Brasil no começo do século XIX), Cândida (pela alvura),
Canjebrina (apelido muito usado no Nordeste do Brasil), Capote-de-pobre (por ser barata
de comprar), Elixir (porque quem bebe demasiado pode ter desarranjo intestinal),
229
Esquenta-por-dentro (devido ao ardor causado pela aguardente), Filha-de-senhor-engenho
(antiga expressão da época da escravidão), Guampa (apelido usado no Sul do país),
Gramática (pois todo pinguço finge ser professor de português), Homeopatia (basta
pequenas doses para embriagar-se), Isca (bebida que pode servir de ardil para lograr
alguém), Imaculada (referência à Virgem Maria), Jura (todo pinguço jura que será o
último gole), Moça Branca, Maria-meu-bem, Meu-consolo, Pinga (apelido usado em todo
o Brasil que vem do fabrico da bebida pelo alambique, aonde o destilado vem sempre aos
pingos), Prego (geralmente porque quem bebe muito parece um prego: aonde chega não
sai, se for arrancado com “martelo-lei”), Purinha, Santinha, Suor-de-alambique, Teta,
Tira-vergonha, e etc.
Seus nomes são múltiplos, protéicos, infinitos. Refletem as próprias metamorfoses
da bebida desde sua introdução no Brasil no século XVI até a atualidade. Transformações
que abrangem tanto seu modo de preparo quanto o uso e os ritos que lhe foram veiculados
no decorrer dos séculos e nas distintas geografias em que se estabeleceu: da farmacopéia e
dietética do Brasil colônia foi absorvida na liturgia das religiões indo-afro-brasileiras,
sendo utilizada tanto por médicos, no período colonial, quanto por curandeiros e
benzedeiros ainda hoje; inicialmente, de “regalo dos animais de tração” (CASCUDO
2006:17) transforma-se em deleite de pobre e, posteriormente, ascende ao status de bebida
elegante made in Brazil com exóticas batidas para gringo ver e burguês esnobar. E, ao
mesmo tempo, torna-se também uma bebida cult entre nossa intelligentsia, artigo de
exportação de nossa brasilidade. Cachaça, síntese da identidade brasileira.
Como diz Mary Del Priore, a cachaça é para os brasileiros o que o vinho representa
para os antigos romanos:
[...] símbolo de regra social, de conhecimento, de técnica, enfim, de vitória
sobre o instinto. Mas também símbolo de festa, de alegria de viver, de
escapismo da esmagadora rotina cotidiana. Bebida democrática, pois permite o
convívio de pessoas de diferentes categorias, e em diversas circunstâncias, a
pinga reúne, agrega, faz rir junto. Remédio para o corpo e para a alma, seu uso
assumiu, igualmente, significados sagrados em vários contextos de
religiosidade, sendo indispensável nos cultos afro-brasileiros, como o
candomblé e a umbanda. Ou nos ritos, afro-indo-brasileiros, como o catimbó, a
pajelança além de participar em diversas práticas de magia popular. (PRIORE
2005b:62).
Dessa forma, é inevitável dissertar sobre a presença da cachaça no dia-a-dia dos
personagens de Viva o cordão encarnado, na própria configuração desta sociedade recriada
230
por Luiz Marinho.
67
A cachaça perpassa seus ritos sociais desde as ações mais prosaicas
até os dias de festas. Além disso, é um elemento onipresente na realidade religiosa da peça,
como item indispensável nos cultos da Jurema e, particularmente, nas libações a
Pelintra. Mesmo que Marinho não tenha recriado em sua peça uma sessão “oficial” da
Jurema, que a possessão de Maria Não Enjeita deu-se numa situação inesperada, ao
acaso, em que a cartomante não pretendia invocar nenhuma entidade espiritual, mas
apenas, fazer uma consulta rápida e informal com o além pelo intermédio das cartas –,
informar-se sobre o futuro quase como alguém que consulta a página de horóscopo do
jornal a fim de saber como será sua fortuna para aquele dia; para o leitor-espectador
minimamente familiarizado com este culto, reconhece de imediato o odor inconfundível da
água-que-passarinho-não-bebe, pairando pelo ar, trazido pelo “bafo quente” de
Pelintra. De antemão, mergulhamos no universo das bebidas espirituosas na medida em
que penetramos nos mistérios da Jurema conduzidos por Maria Não Enjeita. Dessa forma,
a religiosidade popular em Viva o cordão encarnado possui uma segunda função na
estrutura dramática da peça: de atuar como um prelúdio da cachaça, revelando um outro
aspecto complementar do quadro social que subjaz da obra em questão.
Como afirmamos anteriormente, a aguardente não restringe-se aos dias de festa; ela
perpassa o cotidiano dos personagens, o que inclui em seu itinerário os dias normalmente
reservados ao labor e à circunspecção. Tanto é que logo no segundo quadro do primeiro ato
de Viva o cordão encarnado, encontramos uma amostra da cachaça no dia-a-dia dos
personagens. Nesta cena, durante uma quinta-feira pela manhã, enquanto Vicência
consulta-se com Maria Não Enjeita, inesperadamente, Heronides retorna da rua, trazendo
consigo uma garrafa de Pitu:
MARIA Embaralhe e corte em três. (Vicência obedece e Maria vai
espalhando as cartas, falando) Dinheiros curtos, por caminhos longos... Uma
doença passageira... Uma mulher morena com pensamento no que é teu...
(Chega Heronides com uma garrafa de Pitu e rindo, fica por trás das duas,
escutando) Esta mesma mulher, com grande confusão nas horas de folguedos
pode ser alguma pastora trazendo desgosto... No teu caminho, um homem de
farda! (MARINHO 1969:20). [grifos nossos].
67
uma peça de Antonio Callado, A revolta da cachaça, de 1959, embora publicada em 1983, onde a
branquinha vai ter um papel dramático relevante, sobretudo pela misteriosa presença de um tonel de cachaça,
do qual, à medida que a trama avança, todos os personagens bebem e aquilo “que parecia ser uma conversa
de amigos vai crescendo em tensão e nervosismo até degenerar em tragédia”. (CHIAPPINI 2004b:109). Vê-
se, de antemão, que a peça diferencia-se bastante da atmosfera cômica de Viva o cordão encarnado, por mais
que a perpasse a atmosfera trágica, ou mesmo o clima de comédia séria, à Diderot. Na peça de Marinho,
tudo caminha para um desfecho trágico cuja reviravolta devolve à peça sua força mica. E a cachaça tem
seu élan vital.
231
E no decorrer desta cena, oferece uma dose de cana a Nestor e, depois, à Vicência
para os três juntos brindarem o nascimento do filho da mestra do pastoril, futuro afilhado
de Nestor (o verdadeiro pai da criança). No final, Heronides acompanha Nestor até a rua,
dispersando-se novamente pela geografia de Timbaúba, sem deixar de lado, provavelmente
sua garrafa de aguardente. De certa maneira, poderíamos justificar esta cena, baseando-nos
no que Mary Del Priori elucida sobre o consumo da cachaça nos hábitos do brasileiro.
Segundo a historiadora, desde os tempos do Brasil colônia era ordinário a ingestão diária
de cachaça entre os escravos e, posteriormente, entre os trabalhadores braçais de um modo
geral. Vista como “santo remédio ou um elixir da longevidade” (PRIORE 2005b:64), a
cachaça enquadrava-se entre os alimentos e as bebidas que tinham por função preservar a
saúde: “existia uma forte relação entre aquilo que se ingeria e o estado geral de cada
indivíduo, que era obrigado a ficar atento às características de seu próprio corpo e àquelas
do que consumia em sua dieta. O que era bom tinha que fazer bem”. (PRIORE 2005b:64).
Além disso, “a cana, da qual se extraía a cachaça, era também a matriz do açúcar: ele
mesmo, considerado um potente medicamento ao longo dos séculos 16, 17 e 18”.
(PRIORE 2005b:64). Por isso, a caninha, usada sem excessos, era sinônimo de boa saúde
desde os primórdios de nossa civilização. E por ser uma bebida de fácil acesso aos menos
afortunados propagou-se de Norte a Sul nos hábitos do brasileiro.
Todavia, não podemos nos acomodar com esta justificativa. Apesar de plausível,
ela não soluciona a charada. Não explicita realmente o status social da cachaça em Viva o
cordão encarnado nem o de seus próprios personagens. Em primeiro lugar, na cena citada,
Heronides não chega em casa com o ar de quem retorna de uma manhã de trabalho para
um rápido intervalo do almoço com sua solícita esposa. Pelo contrário, aparece com a
leveza de quem passara o dia na vadiagem, jogando conversa fora ou participando de jogos
de azar
68
, tudo isso regado obviamente aos prazeres ebriosos da aguardente, como bem
indica a garrafa de Pitu na sua mão. Heronides, inclusive, nos gracejos e injúrias de seus
amigos e, sobretudo, de sua esposa, em várias passagens da peça, tem sempre destacado
seu hábito contumaz de beber. E o próprio Heronides reconhece sua afeição pela
Branquinha. Num rápido desentendimento com Vicência, imaginando ser censurado,
Heronides vocifera:
68
Sabe-se que Heronides é um contumaz apreciador de jogos de azar, tendo, por isso, o hábito de toda sexta-
feira ir para a cidade de Itabaiana no intuito de tratar de “negócio de jogo”, segundo sua esposa.
232
HERONIDES – O que é que você está pensando, cabrita? Quer manobrar
comigo? Você me conheceu foi bebendo, e nunca se desgostou! Agora quer
botar em pratos limpos! “Assim é que não pode continuar”, uma tamanca! E
fique caladinha! E o me venha com estória de São Raimundo, não! (Vicência
balança a cabeça penalizada. O Cabo ainda está azedo de susto). (MARINHO
1969:25-26). [grifos nossos].
Além disso, a partir das indicações do texto, sabe-se que Heronides e Vicência não
vivem de uma maneira estável. Trabalham e sobrevivem à mercê dos caprichos do mundo
da arte e do entretenimento. Respectivamente são o Velho Matraca e a Mestra de um
pastoril de ponta de rua numa cidade no interior de Pernambuco; são ao mesmo tempo
artistas e profissionais à margem do sistema econômico que rege as sociedades patriarcais
do interior na primeira metade do século, onde o capital circulava sempre em torno de um
Coronel que manipulava a seu bel prazer o modus vivendi de seus subordinados. Fora do
comércio, do trabalho na roça, ou dos serviços diretos na casa de proprietários de terras ou
usineiro, a vida profissional quase inexistia nessas sociedades, permanecendo o indivíduo
constantemente susceptível aos acasos do destino, da sina, valendo-se unicamente de sua
astúcia e vigor.
À margem desse sistema econômico, esses profissionais do prazer e do
divertimento representados em Viva o cordão encarnado aproximam-se de um outro
universo antitético à ordenação do trabalho: o mundo da desordem, da festa e da
embriaguez. Este é o modus operandi de Heronides e de seus companheiros, sua maneira
de ser e estar no mundo, regidos sob o signo da cachaça.
Aliás, Pelintra não é apenas o regente deste mundo às avessas, como também o
modelo exemplar destes personagens, cuja gesta reflete-se ad infinitum em seus hábitos e
ações. Ele émbolo da malandragem, da boêmia e da ebriedade, tendo a aguardente como
aperitivo predileto, assim como os personagens de Viva o cordão encarnado que não
importando o dia ou hora estão quase sempre com uma dose de cana na mão ou prestes a
pedir a bicada seguinte, a vigésima terceira abrideira, parecendo nunca chegar à
indesejável saideira, “o derradeiro gole, o último copo, o brinde terminal da despedida
jubilosa” (CASCUDO 2006:86), a findar o gozo e o riso dos ébrios:
DUDU – (Rindo) Uma abrideira!
JOSIAS – Abrideira... número...
HERONIDES – Vinte e três!
DUDU Depois a gente toma duas seguidas! (Riem os homens) (MARINHO
233
1969:32).
Dessa forma, constatamos em Viva o cordão encarnado que Marinho apresenta
uma sociedade de vadios, de sujeitos sem ocupação fixa ou definida, levando a vida em
diversões e prazeres, na intersecção da boemia e da marginalidade, do jogo lúdico e
folgazão ao crime. Da cachaça à peixeira, à la manière de Zé Pelintra.
Não são exatamente foras da lei, mas seguindo o próprio exemplo do Mestre da
Jurema, podem atuar tanto à direita quanto à esquerda. Trafegam em torno do pastoril do
Velho Matraca, seja tirando dele seu sustento como as pastoras Berenice, Dapenha, Dora,
Zulmira e Maria Não Enjeita ou o dono de botequim Chicuto, que mantém seu
estabelecimento nas proximidades do tablado do pastoril, servindo bebida aos apreciadores
do folguedo; seja também como companheiros de farra de Heronides, como Dudu, Josias e
Boa Tapa que ao mesmo tempo que usufruem da festa também servem de apoio nos
momentos de transtorno causados por algum filho de senhor de engenho disposto a acabar
o pastoril ou outro desordeiro qualquer, estrangeiro à falange que gravita em torno do
Velho Matraca e de suas pastorinhas. Por isso que o delegado da cidade permanece sempre
atento às funções de pastoril, à espreita de novos charivaris.
Todas são pobres e de pouca ou nenhuma educação, excetuando Romeu e Rapaz
que apenas freqüentam o pastoril e suas pastoras, e Chicuto que demonstra ser um pouco
mais esclarecido, atuando também como protético e, por isso, está num nível um pouco
mais acima do restante de seus companheiros.
De acordo com os dados fornecidos pela peça, as pastoras também não possuem
nenhuma outra profissão além da que exercem sobre o tablado de pastoril, com exceção de
Zefa e Zulmira que são respectivamente empregada e lavadeira. No entanto, a primeira
ainda encontra-se sem emprego em Timbaúba já que começa a dançar no pastoril do Velho
Matraca no mesmo dia em que chega à cidade. Quanto às outras, subentende-se extraírem
exclusivamente do pastoril os meios de sua sobrevivência. Vivem em mancebias com os
rapazes amigos de Heronides, formando casais solidários entre si: Berenice & Dudu,
Dapenha & Josias, Zulmira & Boa Tapa. Em relação aos homens, as informações são
praticamente inexistentes sobre suas atividades de subsistências, o que apenas reforça
nossa tese de uma sociedade de vadios, vivendo na indolência, à espreita dos favores,
usufruindo dos parcos lucros de suas parceiras, como podemos constatar no diálogo que se
segue entre Boa Tapa e Zulmira:
234
BOA TAPA – Vai Zulmira! Me dá o dinheiro! Estou precisando!
ZULMIRA - Tu não estás vendo que não está dando nada? Essa araponga que
chegou hoje aqui, está atrasando a gente... nem cravo se pode vender hoje! É
uma moda que Heronides inventou pra hoje!
BOA TAPA - Mas, ele pagou a vocês... isto eu vi!
ZULMIRA - Mas, nego! É do quarto! Hoje é dia de pagar!
BOA TAPA - Vai, conversa não! Passa pra cá!
ZULMIRA - Só me revolta é porque você quer o dinheiro pra ir pra zona!
BOA TAPA - É não. É pra beber... Eu lhe juro!
ZULMIRA - Então, vamos beber juntos. (Saem no maior dos amores, aos
beijos) A gente ainda acaba debaixo da ponte! (Riem. Seguem para o botequim
onde encontram Vicência bebendo) (MARINHO 1969:102-103). [grifos
nossos].
Comportando-se como um gigolô, Boa Tapa consegue extorquir sua consorte para
custear a bebedice, embora Zulmira a princípio acreditasse que seu amante pretendia gastar
todo seu dinheiro na zona. Desfeito o mal entendido, os dois enlaçam-se em beijos e
afagos, dispostos a torrar o dinheiro do aluguel no botequim de Chicuto, pois
compartilham do mesmo cio. Da mesma maneira que a cachaça destrói casamentos,
também salvaguarda os laços amorosos, transformando uma mesa de bar no paraíso
perdido dos amantes. Deslumbrantemente dialética!
Mesmo que Marinho não se aprofunde nesta questão e que apenas pincele, de
maneira muito tênue, a natureza das relações entre as pastoras com os freqüentadores do
pastoril e seus respectivos consortes, subentende-se um clima de meretrício na atmosfera
do pastoril do Velho Matraca. O que condiciona as próprias disputas entre as pastoras que
dependem do leilão de seus cravos e dos favores de seus admiradores. Tal especulação não
é sem fundamento, pois como se sabe o público do pastoril era essencialmente masculino,
interessado nos favores sexuais da pastoras, todas “recrutadas na zona de prostituição”
(MELLO; PEREIRA 1990:30) ou recolhidas nos bairros mais miseráveis. Nem todas
procuravam exatamente clientes, mas homens que as mantivessem financeiramente, que as
assumissem conjugalmente, originando novas mancebias. Por isso, em Viva o cordão
encarnado existe uma certa animosidade entre as pastoras na disputa de admiradores,
como a que ocorreu entre Maria Não Enjeita e Dora, quando esta ameaçou largar o pastoril
a mando da mãe sob a justificativa de que a “má fama” de Maria Não Enjeita poderia pôr
em risco sua pureza, caso continuassem a dividir o mesmo tablado, comprometendo sua
cotação no mercado da carne do pastoril profano:
235
DORA Eu vim aqui a mando de mãe! Ela manda avisar que não me deixa
mais sair de pastora! (Entrega o vestido)
VICÊNCIA (Sem receber) Oi por que? (Maria juntara as cartas e ia se
erguendo, quando escuta seu nome. Então se queda)
DORA – Ela disse, que filha dela, não dança no mesmo tablado com Maria Não
Enjeita!
VICÊNCIA – E Maria será alguma pestosa?
DORA – É não! É porque mãe disse que eu sou uma moça... e me juntando com
uma sujeita como Maria, fico sem cotação! (Maria está “inchando”)
VICÊNCIA – Pois é quem menos se amostra no tablado!
DORA – Também! Um bofe daquele!
VICÊNCIA – Maria pode não ser nova... mas sempre foi decente!
DORA Mas não deixa de ser uma rapariga! Não certo nós duas brincar
juntas. Eu sendo uma moça... e ainda pura! (MARINHO 1969:27-28).
Como também se sabe nas sociedades patriarcais a virgindade é um capital de
altíssimo valor para as mulheres e de grande cobiça entre os representantes do sexo
masculino.
Por outro lado, Marinho também romantiza essas relações de mancebia através do
casal Dapenha & Josias. Aqui, dá-se o inverso do que presenciamos com Zulmira & Boa
Tapa, embora ambos os finais sejam positivos no desenlace das mini-tramas dos
enamorados. Durante o pastoril, Josias é quem paga para que Dapenha continue a cantar,
valorizando não sua companheira como também levantando a bandeira do azul.
Entretanto, chega ao pastoril Rapaz e Romeu. Cobiçando a pastora Dora, o primeiro paga a
Heronides para que ela cante no lugar de Dapenha, levantando consecutivamente a
bandeira do cordão encarnado e baixando a do azul. Inicia-se uma disputa entre as duas
cores do pastoril, o azul e o encarnado, e paralelamente, uma outra entre Rapaz e Josias
pelas suas pastorinhas de preferência. Ao final, o Rapaz sai vencedor e Josias vai embora
sem um tostão no bolso sob as vaias dos demais fregueses. Porém, antes de sair ainda
ouviu as seguintes palavras de consolo de sua amada, a destemida e apaixonada Dapenha:
“- Josia! Josia! (aproxima-se) Deixa neguinho! Eu não reparando, o resto pode se danar!
Tu pra mim é o mesmo homem, liso ou com dinheiro!” (MARINHO 1969:82-83). E ainda
fixa um rendez-vouz com Josias para depois do pastoril, fazendo-o deixar o local com um
sorriso de satisfação.
em Viva o cordão encarnado, assim como nas demais peças de Luiz Marinho
circunscritas na região Nordeste, um certo elemento de generalidade no desenho de
personagens e situações, que os aproxima de paradigmas do teatro cômico popular, como
236
os tipo do delegado, do sacristão, o velho do pastoril que se aproxima do bufão medieval, o
cabo fanfarrão ou os iproquós em torno da adúltera, do marido e do amante. Noutras
palavras, o dramaturgo opera a redução de fatos e indivíduos a situações e tipos gerais da
gramática popular, mesclando-os a aspectos históricos e sociológicos do tempo e espaço
em que a ação se situa; ou seja, de uma pequena cidade do interior de Pernambuco,
provavelmente nos primeiros meses de 1930. Constitui um verdadeiro trabalho de síntese o
que Marinho realiza, porque ele polvilha pela trama elementos da identidade cultural de
uma classe social e, de certo modo, de uma época também, como a presença da cachaça, da
Jurema, de Zé Pelintra, do pastoril profano que, mesmo sendo específicos da sociedade em
que viveu e posteriormente recriou, atingem um amplo lastro porque também dialogam
com a memória cultural de um país. É ao mesmo tempo geral e particular. Como
ingrediente, um realismo espontâneo e corriqueiro, proveniente dos meandros íntimos das
relações entre aqueles personagens: as relações das pastoras com o público do pastoril,
com o velho e entre elas mesmas, reforçando a humanidade de seus personagens, nas suas
alegrias e tristezas; o que permite a ilusão do real e garante a longevidade de sua obra.
Provavelmente, a impressão de realidade da peça, sempre salientado pelos críticos e
pelo público da época de suas primeiras montagens, não vem necessariamente ou apenas
dos informes sociais e folclóricos dos seus adorados matutos. Decorre de uma visão mais
profunda, memorialística, intuitiva e mesmo instintiva da função ou destino das pessoas
nessa sociedade, construindo uma subjetividade que lhes pertence, mas ao mesmo tempo
também é sua, assim como a apreensão de traços culturas que os identifiquem sem perder,
no entanto, sua força dramática, servindo muito mais de condutor das ações e componente
das situações do que dado meramente sociológico ou exótico. Este é o caso da cultura da
cachaça em Viva o cordão encarnado que está presente em quase todos os momentos da
peça: seja na fala dos personagens ou em momentos de embriaguez; seja na reverência à
aguardente constituindo a ntese que dirige seus princípios norteadores e
comportamentais. Ela fornece as bases para o reconhecimento desta sociedade de vadios
que é a que gira em torno do pastoril do Velho Matraca, além de conduzir muitos dos
eventos que garantem a originalidade da trama da peça e justificam seu desfecho.
Nesta sociedade de malandros criada por Luiz Marinho age-se do mesmo modo que
o malandro Leonardo de Memórias de um sargento de milícias ([1854-1855] 1993), de
Manuel Antônio de Almeida. Segundo Antonio Cândido, no seu clássico ensaio “Dialética
da malandragem” ([1970] 2004), que aqui tomamos a liberdade de nos apropriar de suas
palavras, pela clareza de seu raciocínio e pela possibilidade de diálogo entre o romance de
237
Almeida e a peça de Marinho, tanto num como noutro autor, pratica-se a astúcia pela
astúcia (mesmo quando ela tem por finalidade livrar os malandros marinhos de uma
enrascada, como as artimanhas orquestradas por Nestor para prejudicar Heronides ou as
intrigas do sacristão para prender Maria Não Enjeita, no primeiro ato cômico de Viva o
cordão encarnado), manifestando um amor pelo jogo-em-si. A impressão que se tem é que
o que parece predominar na peça e, sobretudo, no primeiro ato, é o dinamismo próprio dos
astuciosos de história popular; o que nela se acha é algo mais vasto e intemporal, próprio
da comicidade popularesca. Tal propensão pelo jogo é dinamizada pela força
desnorteadora da cachaça. No primeiro ato, durante o almoço de aniversário de Heronides,
a marvada pinga
69
serve de álibi para as traquinagens do velho Matraca e seus amigos, é a
isca (como inclusive também é chamada) para burlar o pretensamente ardiloso Cabo
Nestor, conduzindo-o ao malogro.
Como sabemos, nesta cena, trata-se de um dia de festa: o aniversário do velho do
pastoril. E como diz Mary Del Priore, “festa é sinônimo de cachaça”. (2005b:70). Melhor:
O convívio com a bebida se inicia pela “abrideira”, a inicial, o primeiro copo. É
o “abre”, como designam, no rito, os caboclos do Norte do país. Ele é também o
contrário da “saideira”. O simbolismo é grande: bebe-se à saúde de alguém,
ergue-se um brinde de honra; a pinga é, enfim, indispensável ao protocolo
social. Ainda em relação ao consumo da cachaça, resistem hábitos milenares:
não deixar o copo vazio, punir os maus bebedores, derramar um pouco do
líquido no solo como forma de oferenda aos deuses, convidar para beber como
manifestação de amizade. Pode beber devagar, diz o antropólogo Luiz da
Câmara Cascudo, mas beber. O abstêmio rompe o liame do grupo. (2005b:70)
Esta dinâmica social da cachaça também é encontrada em Viva o cordão
encarnado, particularmente, entre os profissionais e o público do pastoril. Na cena em que
Nestor tenta prender Heronides, este rito social descrito por Priore esboça-se com maior
nitidez:
69
Esta é uma expressão que foi usada por Ochelsis Laureano e Raul Torres na música “Moda da pinga”,
celebrizada em sucesso por Inezita Barroso, cujo primeiro verso diz: Co'a marvada pinga é que eu me
atrapaio/ Eu entro na venda e já meus taio/ Pego no copo e dali num saio/ Ali mesmo eu bebo, ali mesmo
eu caio/ pra carregá é queu trabaio, oi lá!A música popular brasileira soube embriagar os fãs da
pinga com um vasto cancioneiro que vai de Adoniram Barbosa (“Mulher, patrão e cachaça”) a Ary Barroso e
Luiz Peixoto (“Na batucada da vida”); de Assis Valente (“Camisa listrada”) a Chico Buarque (“Joana
francesa”, “Feijoada completa”) e de Chico Buarque com Francis Hime (“Meu caro amigo”) a Carlos Lyra e
Dolores Duran (“O negócio é amar”), sem que esqueçamos a famosa marchinha de carnaval “Cachaça”, de
Mirabeau, L. Castro, H. Lobato, Marinosio Filho, que poderia tornar-se um hino desta sociedade regida por
ela: “Você pensa que cachaça é água/ Cachaça não é água não/ Cachaça vem do alambique/ E água vem do
ribeirão/ Pode me faltar tudo na vida/ Arroz feijão e pão/ Pode me faltar manteiga/ E tudo mais não faz falta
não/ Pode me faltar o amor/ Há, há, há, há!/ Isto até acho graça/ não quero que me falte/ A danada da
cachaça”. (Cf. referências bibliográficas/ fontes on-line).
238
HERONIDES – [...] Se hoje ele vem me prender, não é pelo gosto dele.
CABO - (Meio desconfiado) Estou cumprindo ordens...
HERONIDES - Olhe o que eu digo!? Vocês sabem que no cumprimento do
dever, prende até a mãe dele, se for preciso... e ele sendo nosso amigo, não vou
criar caso para enrascá-lo.
DUDU - Que amigo é esse, que não puniu por você?
HERONIDES - (Beliscando um olho) Isso você não sabe! Já eu, tenho certeza.
CABO - (Cortando) Fiz o possível!
HERONIDES - Olhe aí. Agora, me diga, vamos ter queixa duma criatura dessa?
Chega a gente está vendo que por dentro está amargurado? (Nota-se o mal estar
do Cabo)
CHICUTO - (Percebendo a manobra) Logo nosso Irmão da ópa!... [irmão de
farra] É duro o cumprimento do dever!
HERONIDES - Estamos aqui, entre amigos. Cabo Nestor, esse almoço de hoje,
era também em sua homenagem, você bem sabe disso! Então é justo que se
deixe de lhe fazer a homenagem, porque você está no cumprimento do seu
dever? Respondam meus amigos, é Justo?
TODOS - Não! Não é Justo! É não!
CABO - (Súbito, reagindo) Sei... mas primeiro, tem que ir ao delegado se
explicar! Rasgou um documento oficial! É crime!
HERONIDES - Reconheço... mas antes de um aperitivo, a gente não sai daqui!
Tudo na base da confiança!
CABO - Não... Não é certo!
CHICUTO - Sua recusa, deixa a gente meio na dúvida...
HERONIDES - É cabo. Prove a esse povo que você apenas está numa penosa
missão. (O Cabo começa a bater os olhos)
CHICUTO - Uma dose, pra confraternizar, irmão.
HERONIDES - Nenhuma mágoa... a amizade, a mesma! Antiga, de velhas
noites de farras.
CABO - (Reluta um pouco - olha p/todos e depois) Venha de lá!
TODOS - Viva!
CABO - Mas, só uma!
HERONIDES - Minha velha, aquela de comemorar! (Vicência traz uma
garrafa toda especial e um copo; entregando ao marido que serve ao Cabo e
bebe também)
CABO - (Bebe e balança as bochechas) Essa... co' a gota! (Todos riem e se
movimentam a beber. Volta a alegria)
DUDU - Sem o ponche [tira-gosto] não vai! (Vicência vinha trazendo uma
coxa de galo num pires. Entrega, toda doçura, ao Cabo)
VICÊNCIA - Sua parte preferida... a coxinha! (O Cabo se "derrete" e
Heronides bota logo outra dose no copo do Cabo e bebe também. Todos se
servem)
239
HERONIDES - Atenção... Preparem os copos! (Todos seguram os copos) Ao
nosso grande homenageado, cabo Nestor! (Cada um de per si, vem "tocar" no
copo do Cabo e bebem em conjunto. O Copo do Cabo é sempre
oportunamente cheio)
DUDU - (A Chicuto) Já tomou gosto na partida, acabou-se o homem!
CHICUTO - É, do jeito que ele é fraco, entrega já os pontos! (MARINHO,
1969:42-45). [grifos nossos].
Nesta cena, a cachaça é usada por Heronides & seus companheiros como álibi para
lograr o jovem cabo. Na intenção de safar-se da prisão, o velho do pastoril faz Nestor crer
na amizade de ambos, baseada em diversas noites de farra e regada a várias doses de
aguardente, fingindo compreender a difícil situação ou o constrangimento (que em verdade
não existe) do cabo de ter de cumprir seu papel como autoridade local, representante da lei
e da ordem, mesmo que tenha que prender seu “antigo companheiro de farra”, seu leal
amigo. Tudo em nome da ordem que o cabo defende e representa. Por isso, como forma de
demonstrar sua compreensão e amizade, Heronides convida-o para juntar-se aos demais
convidados e celebrar o triunfo da amizade em face da rigidez da lei, antes de cumprir sua
“penosa” missão de conduzi-lo até a delegacia.
Apenas um jogo de espelhos, de falsas aparências, entre os dois rivais. Artifícios da
malandragem. Em outras palavras: Tudo não passa de um ardil improvisado pelo Arlequim
Heronides para escapar da prisão e dar uma lição no falso amigo Nestor. Utiliza-se do
“código de ética dos cachaceiros” para fazer o cabo participar da festa, caminhar da ordem
para a desordem. Segundo Câmara Cascudo, “o liame ocasional do grupo se rompe com o
abstêmio. É, intimamente, um intruso. Um desmancha prazer, pondo gelo no fogo e areia
no creme”. (2002:297). Sua abstenção neste rito social mostraria “pouca solidariedade aos
amigos, índice de indiferença ao ambiente, de não estar satisfeito com a convivência”.
(2002:297). Dessa forma, como prova de amizade, Nestor não pôde abster-se da
comemoração, que participou, em outros momentos, intensamente daquele universo,
mesmo pertencendo também a um outro sistema: ao da ordem, da lei e não ao da
desordem. Teme também que sua recusa transforme seus ex-companheiros em inimigos, já
que, apesar de esbanjar valentia, não passa de um fanfarrão.
Além disso, apesar de esforçar-se e crer-se sagaz, Nestor não passa de um ingênuo;
um pobre tolo, vítima de sua própria presunção, sua falha cômica que, por sua vez, leva-o a
uma desmedida credulidade, embora creia e tente sempre demonstrar o contrário. De fato,
Nestor acredita nas boas intenções de Heronides. Sentiu-se satisfeito consigo mesmo ao
saber-se o grande homenageado da festa. Como ocorre, frequentemente, nas comédias, as
240
desmedidas de um personagem cômico levam-no ou à sua felicidade pessoal ou à sua
punição e à alegria geral dos que o cercam. No caso de Viva o cordão encarnado, o
personagem cômico em questão é Nestor, cujas desmedidas são tema deste estudo, vícios
que apenas expõem seu ridículo. E o grand finale de sua sucessão de desmedidas não pode
deixar de ser seu abandono à ebriedade, sua paixão pela marvada pinga, o chamariz de sua
queda cômica, a condutora de suas peripécias neste primeiro ato cômico. Nestor não resiste
às tentações da cachaça:
CABO - (Imediatamente) Teje preso! Ah! (Todos riem e o Cabo se esforça para
vencer o sono)
JOSIAS - Depois de uma dessa, só muita Pitu (Bebe)
CABO - (Ficando de pé, apoiado na mesa) Pronto?
HERONIDES - Ainda falta a sobremesa.
DUDU - O que é? Doce de vidro?
CABO - (Rindo) É doce de xelindró! Vamos? (Quando tenta andar, cai
sentado, sem força nas pernas)
HERONIDES - (Entregando um copo de bebida ao Cabo) Vamos. A
Saideira!!
CABO - (Disparando na risada, quando tenta se erguer inutilmente) A
ficadeira! (Bebe largamente)
TODOS - (Rindo e bebendo) A Ficadeira! (MARINHO 1969:52). [grifos
nossos].
Nestor cai na armadilha de Heronides. Deixa-se seduzir pela cachaça. Entrega-se
completamente a anarquia e a desordem. Converte-se a Zé Pelintra. Percebe-se na trajetória
do cabo Nestor um princípio dialético que o leva ao malogro. O personagem encontra-se
cindido pelo que Antonio Cândido chama de dialética da ordem e da desordem. Forças
antitéticas que o fazem pender ora para uma, ora para outra. De um lado, Nestor é o
representante da lei; do outro, entrega-se de corpo e alma a festa e a desordem do mundo
do pastoril profano, dos vadios liderados por Heronides. Em verdade, é neste universo que
identificamos o personagem. Assim como Heronides & seus companheiros, Nestor não
passa de um malandro que usa o brasão da lei apenas para conseguir vantagem sobre os
outros, como por exemplo, beber fiado no bar de Chicuto ou vingar-se de seus inimigos
sem sofrer sanções. Aproveita-se de seu papel de zelar pela ordem durante as funções de
pastoril para compartilhar os momentos de prazer saboreados pelos seus amigos. Além de
provavelmente com eles solidarizar-se, protegendo-os de retaliações e sanções da justiça,
quando lhe é conveniente. Dessa forma, ordem e desordem tornam-se valores extramente
241
relativos, comunicando-se em diversas circunstâncias, quando uma autoridade policial
manipula a lei a seu bel prazer, fornica com a mulher do melhor amigo ou solidariza-se
com os malandros do pastoril: “Ordem e desordem se articulam portanto solidamente; o
mundo hierarquizado na aparência se revela essencialmente subvertido, quando os
extremos se tocam” (CÂNDIDO [1970] 2004:37), revelando a relatividade da própria vida
que mostra um oficial da lei embriagar-se inadvertidamente, um sacristão querer castigar
uma fiel por ciúmes ou uma mulher adúltera justificar seu deslize para realizar o sonho da
maternidade. Essa dialética constitui um dos sentidos profundos da peça.
Mas dialética é a própria cachaça. Sua própria genealogia e trajetória em Viva o
cordão encarnado não nos contradiz, embora a contradição sempre seja bem vinda à
Dialética. Ao mesmo tempo em que ela propicia o êxtase e o riso, como o que ocorre no
primeiro ato, ela também está presente no desespero e nas lágrimas. Aos amantes de
coração partido, a companhia da branquinha é sempre solicitada:
O velho se retira e as pastoras ficam fumando à vontade. Zefa conversa com o
Cabo. Vicência uma rabissaca e vai ao botequim tomar uma bicada. Está
tonta, o que se observa pela fala!
VICÊNCIA - Chicuto, bota outra bicada, aí. Hoje eu desmoralizo aquela
quenga!
CHICUTO - Tenha calma, Vicência! É melhor você descansar um pouco!
Deixe a moça pra lá!
VICÊNCIA - Vai rapaz, bota a bicada. Você sabe o que está se passando...
você é meu amigo de confiança. Sabe qual é o meu caso!
CHICUTO - É por ser seu amigo, mesmo, que aconselho a não dar escândalo.
Em vez de desmoralizar, você é quem poderá ser desmoralizada! Cuidado!
VICÊNCIA - (Alterada) Eu, desmoralizada? Ainda não nasceu mulher pra me
botar pra trás... não vai ser uma negra safada daquela que vai me fazer sombra!
Hoje dou-lhe na cara!
CHICUTO - Vicêêêêência... Tu te aqueta! Bom!
VICÊNCIA - Dou-lhe na cara! (Fica chorando, falando e bebendo.)
(MARINHO 1969:97-98). [grifos nossos]
A cachaça acompanha e potencializa os ciúmes e o desespero de Vicência. Serve de
válvula de escape, conduzindo aa paixão até suas zonas mais profundas e sombrias. Sob
sua égide a pastora faz imprecações e ameaças a sua rival, o que se concretizará no embate
que as duas travarão no tablado do pastoril, sendo apartadas por Heronides. Contudo, Zefa
sairá vencedora, restando apenas o consolo da cachaça. Talvez, por isso, também seja
242
chamada pelos bebuns de coração partido de maneira ao mesmo tempo chistosa e
melancólica de Meu-consolo.
Aqui, estamos a tomar a cachaça como sinônimo de dialética. Signo que traduz e
sintetiza a sociedade que Luiz Marinho transpõe para as páginas do livro, almejando, no
entanto, sempre a tomada de sua corporeidade sob as tábuas do palco. Na travessia da
história de sua produção e consumo constatamos os sucessivos usos e significados que lhe
foram incorporados no suceder dos costumes e das épocas. Ao mesmo tempo em que é
medicamento e alimento para os males do corpo e do espírito, em seu excesso também
pode levar seus consumidores à loucura e ao caos, cambiando de alegre divertimento para
ópio dos mal afortunados, cio dos fracos. Ela é “o instrumento de um festim que tem a
ver tanto com o espírito, quanto com o corpo”. (PRIORE 2005b:92). É o eixo em torno do
qual orbitam ricos e pobres; poderosos e humildes. Suas leis obrigam-nos a perceber a
humanidade em sua transitoriedade e fragilidade. Regidos sob seu signo, os personagens
marinhos encontram a essência de sua incompletude, o fracasso de toda idéia de perfeição
e acabamento, pois cada um carrega consigo forças contrárias que determinam seu
movimento em direção ao devir. É o próprio movimento da transformação e da ausência de
verdades, pois uma adúltera também pode ser uma mãe zelosa, um oficial da lei revela-se
um burlador semelhante aos demais malandros que vigia e tenta punir, uma juremeira pode
ser mais piedosa e temente a Deus do que os representantes oficiais da Igreja, mesmo que
possua uma maneira pessoal e flexível de expor sua fé. De certa forma, todos transitam
entre a ordem e a desordem. Em Viva o cordão encarnado não verdades absolutas, pois
é do caos que o novo tem a possibilidade de surgir fazendo renascer a ordem sob uma nova
jurisdição, a partir de uma renovada configuração. Esta é a essência dialética da cachaça e
bebê-la “é acionar um mecanismo para romper a monotonia ou as insuficiências cotidianas.
Por vezes, tal mudança toma uma forma particular de bebida sagrada, quando oferecida aos
santos ou aos mortos. Outras, quando em excesso, bebedeira, a jeribita se transmuta numa
espécie de violação solene do interdito e da proibição”. (PRIORE 2005b:92).
Como se fosse uma canção de ninar, poderíamos fechar esta saideira, com a mesma
música de Ary Barroso e Luiz Peixoto, Na batucada da vida, que abriu esta secção:
E fui adormecer como um despacho
Deitadinha no capacho da porta dos Enjeitados
Cresci, vivendo
Levando a vida sem malicia
Quando um chefe de policia
Iludiu meu coração
243
E como eu fui pra ele muito boa
Me deixou na vida à toa
Desprezada como um cão.
2.2.5. Masculino, feminino: força, fluxo, fricção
Na sociedade patriarcal, o status quo da mulher define-se por oposição ao do
homem. Ou seja, a mulher seria sua negação, sua contradição. A partir desta relação
bipolar de oposição é que se institui o que chamamos de masculino e feminino, numa
relação de tensão, colocando o primeiro numa posição de soberania e o segundo ocupando
um lugar de subalternidade. Enquanto a educação masculinizante reforça os estereótipos
machistas em que o homem deve ser corajoso, livre, conquistador, viril, racional,
agressivo, competitivo e menos emotivo; a educação feminilizante procura introjetar na
mulher a passividade, a emotividade, a delicadeza, a fragilidade, a ausência de liberdade e
a subserviência ao homem, cujas únicas atribuições restringem-se aos serviços domésticos,
a reprodução e a educação da prole. Independente do nível social da mulher, sua condição
é a de propriedade, de objeto de troca e venda no mercado dos machos, de usufruto
exclusivo do varão conquistador. Isto é o que se pode denominar de sociedade falocêntrica,
de organização patriarcal, centrada no pater familias.
Este modelo de organização social oriundo das sociedades arcaicas disseminou-se
pelos séculos como base de diversas civilizações, desde os gregos e romanos até a
sociedade patriarcal do Nordeste brasileiro. Em Viva o cordão encarnado, percebe-se a
existência de valores arcaicos de onipotência masculina implícitos nas ações e falas dos
personagens. No entanto, Marinho não os expõe no esplendor de sua soberania, na
prepotência de sua vontade como o pensamento machista se manifesta ordinariamente.
Pelo contrário, aqui Marinho nos apresenta a masculinidade em crise, numa urgência de
transformação que se mostra cada vez mais inevitável. Revela personagens ora brincantes,
burladores de identidades e papéis, num jogo de espelhos refratados ambíguos e sinuosos;
ora periclitantes, em busca de si mesmos, na dura travessia para tornarem-se homens, ora
ciosos de seu status quo conquistado, digladiando-se como guerreiros medievais,
caminhando pelo fio da navalha, na fronteira entre ser e não ser homem, entre o ser e o
parecer, o ser e o devir. Assim, empreenderemos nossa próxima jornada, tentando
compreender a dialética do masculino e do feminino, sob a ótica de Luiz Marinho no seu
Viva o cordão encarnado.
244
2.2.5.1. Ser ou não ser rapariga
No pastoril profano, a ligação entre o folguedo e o sexo é um aspecto
inquestionável, pressentido por Mário de Andrade (2002), para quem o pastoril apenas
sobreviveria sustentado pelo interesse sexual de apresentar mulheres de roupas sumárias,
dançando e cantando músicas licenciosas. De fato, a presença de meretrizes ou mulheres
de moral duvidosa, acrescido de anedotas picantes contadas pelo velho conotava ao
folguedo um caráter erótico. Tanto é que seu público é predominantemente masculino,
formado por classes sociais distintas desde os mais humildes aos moços ricos que
“esperavam o pastoril acabar para satisfazer seu desejo sexual com as pastoras”. (MELLO;
PEREIRA 1990:30). Era o lugar para onde muitos púberes iam a fim de ter sua primeira
relação sexual e se afirmar como homens. De certa maneira, servia como o prostíbulo
citadino onde os jovens de boa família e os patriarcas dispunham da liberdade sexual que
não poderiam usufruir com suas respectivas noivas e esposas, que a virgindade e o
ascetismo feminino eram qualidades exigidas às mulheres de boa família até meados do
século XX, vigorando ainda de forma diluída no inconsciente coletivo da sociedade
contemporânea. É a moral da casa e da rua que pressupunha um comportamento diverso
para cada um desses ambientes, cujo desfrute tanto de um quanto do outro apenas o
homem tinha o direito. À mulher poderia existir apenas o papel de puta ou de esposa,
que não dispunha de nenhuma autonomia nesta sociedade, sempre à mercê de rigorosas
sanções. Em verdade a mulher até meados do século XX, época em que se passa a trama de
Viva o cordão encarnado, possuía o status quase que de objeto doméstico ou sexual do
homem. No caso do pastoril profano, a permissividade e a predominância masculina do
ambiente tornavam-no quase um mercado do sexo no qual cabia às pastoras a função de
objetos sexuais, mercadorias de compra e venda, gerenciadas pelo velho do pastoril, ao
mesmo tempo bufão e proxeneta, metteur en scène dos desejos. Mesmo que Marinho
aborde discretamente este aspecto mais sórdido do pastoril de ponta de rua, podemos
identificar aqui e ali fragmentos do falocentrismo e da posição social da mulher na
civilização varonil, como podemos constatar no diálogo entre Dudu, Josias, Boa Tapa e
Heronides em que cometam sobre a nova pastora (Zefa) que estreará naquela noite:
DUDU - Mas hoje está é animado! Que tempo não se tinha uma noite dessa!
BOA TAPA - Eu acho que é por causa da pastora nova! Heronides mandou
245
buscar em Goiana!
DUDU - Ah! Berenice me falou! Dizem que Heronides gastou um dinheirão pra
trazer ela!
BOA TAPA - Hoje de tarde Zulmira me apresentou a ela! Ô lasca de morena!
(Heronides vem se aproximando e já está escutando os diálogos)
DUDU - É:.. mas dizem que é donzela!
BOA TAPA - Até enquanto os meninos do major Quincas não derem em cima...
HERONIDES - Mas essa, eles não passam no papo, não! Olhe, um senhor de
engenho de lá de Goiana, botou cem contos, e ela não deixou!
DUDU - Porque foi burro. Isso vai na lábia. (Faz um gestos com os dedos nos
lábios) Depois é que o dinheiro entra em cena.
BOA TAPA - Talvez ela esteja guardando pra casar.
HERONIDES - O nego ali, precisa ter bonzinho guardado, viu?
DUDU - É... O cabra que não tiver talento e se topar com uma mulher dessa, se
fotografa! (MARINHO, 1969:77-78)
Neste diálogo, os velhos companheiros versavam sobre a beleza e a virgindade de
Zefa. Atributos cujos boatos percorreram toda a cidade durante um único dia atraindo um
grande contingente de homens ao pastoril naquela noite. Observe-se o teor e o foco da
conversa que permaneceu o tempo todo concentrada em torno do que seria preciso para
conquistar a beldade, o que era necessário para apossar-se de sua jóia rara, sua virgindade?
Porém, os requisitos necessários para tal empreendimento eram o dinheiro e a astúcia. Em
outras palavras: tratavam-na como uma mercadoria, uma meretriz em sua estréia, cuja
pureza seria leiloada para quem pagasse mais caro. Esse é o papel reservado e esperado
para a maioria das mulheres que participam do pastoril profano como Zefa, Maria Não
Enjeita, Berenice, Dapenha e Dora. Todavia, Marinho conduz a ação de maneira contrária
ao esperado, transformando Zefa numa força transgressora que inverte a ordem dos
vetores, num ambíguo jogo de identidades.
Logo na sua chegada à cidade, Zefa de antemão comunica à Vicência que não
poderá viver apenas como pastora porque não era prostituta, afinal nem a virgindade ainda
perdera. Continuava moça: “ZEFA - Mas, pastoril só, não dá! Eu não sou da vida, sou
moça!” (MARINHO, 1969:71). No entanto, seu discurso não condiz com suas ações.
Como pudemos constatar no decorrer deste estudo, Zefa comporta-se como uma femme
fatale, seduzindo quase que simultaneamente Cabo Nestor e Mané Fozinho. Roubou o
trancelim de ouro do caminhoneiro na esperança de que ele retornasse à cidade para reaver
seu amuleto. Dessa forma, poderia reencontrá-lo, estar com ele por mais alguns momentos.
Contudo, logo que chega a Timbaúba inicia um outro flerte com Cabo Nestor, fazendo
246
Vicência enfurecer-se de ciúmes e despertando suas desconfianças sobre a veracidade de
sua seriedade. E durante a função do pastoril, a moça passa a se dividir entre os dois,
estabelecendo um jogo de atração e repulsão em que ora os atrai mostrando-se receptível à
conquista, ora freia seus impulsos de uma maneira ambígua. Quando Mané Fozinho
mostra-se muito interessado em Zefa convidando-a para hospedar-se no mesmo hotel onde
ele também está sitiado, de imediato, Zefa informa ser ainda virgem. Ou seja, ela quer
dizer que deve ser tratada com respeito e comedimento. Não é qualquer uma. Almeja o
matrimônio, não havendo outros meios do pretendente obter seus favores sexuais. Vejamos
como transcorre a cena:
FOZINHO - Estou num hotel muito direitinho, de família. E você onde está?
ZEFA - Estou assistindo na casa duma cega, conhecida minha.
FOZINHO - Se você quiser vai para o meu hotel... melhor! Mais perto!
ZEFA - Agradecido... não quero que você gaste mais comigo, não...
FOZINHO - Nada... Dinheiro aqui é lixo! Estou com uma massaroca do patrão
mas ele é liga! Depois é que presto conta com ele.
ZEFA - Mas também... não é só por isto...
FOZINHO - E o que é, então?
ZEFA - Eu... sou moça. (MARINHO 1969:108-109).
Contudo, sua advertência tem um efeito contrário. Ao invés de frear as investidas
de Mané Fozinho, sua virgindade inflama ainda mais sua libido:
FOZINHO - Moça?... Mas que beleza! (Apercebendo-se) Quer dizer... é... eu
sabia que você é direita... Eu digo porque, é... eu quero casar-me. Estou
procurando, no momento, uma moça para me casar!
ZEFA - (Quase para si) Com essa rapidez?
FOZINHO - Agora, tem uma coisa: Não quero muito nova, não... Assim, de
vinte e um anos em diante...
ZEFA - (Rapidamente) Estou na casa dos vinte e três. (Novo apito)
FOZINHO - (Para si) Como está tudo bom! (Para Zefa) Mas é certeza mesmo?
Quer dizer... porque... lhe acho tão verde!
ZEFA - Eu me acho verde mesmo, pra me casar! Não estou na intenção de me
casar tão cedo! Primeiro quero gozar bem... depois é que vou pensar em casar...
FOZINHO - Comigo?
ZEFA - E eu sei... E você espera?
FOZINHO - Espeeeero, minha noiva!
ZEFA - Ai que graça!
247
FOZINHO - Olhe, não quero a minha noiva mal acomodada... Minha noiva tem
que ir para o melhor hotel da cidade! Vamos buscar sua bagagem... (Apito)
ZEFA - Não... não dá certo...!
Cabo Nestor bebendo e praguejando observa os dois.
FOZINHO – Mas... por que?
ZEFA - Tenho que subir. Depois do pastoril a gente conversa sobre isto.
FOZINHO - (Descontrolando-se, agarra e beija Zefa) Venha cá, minha filha!
Vamos hoje! (MARINHO 1969:109-110).
A princípio, o caminhoneiro tenta ser mais cortês e respeitoso, declarando inclusive
estar disponível para casamento. Porém, não consegue disfarçar sua excitação. Seu
interesse por Zefa manifesta-se com maior veemência, tentando a todo o custo convencê-la
a passarem a noite juntos. E no momento em que ela ameaça retirar-se para voltar ao
tablado, o caminhoneiro não resiste, agarrando-a e beijando-a voluptuosamente, como um
animal no cio quase a implorar para que Zefa dormisse com ele.
Além de ser muito sedutora, Zefa tinha consciência de que, dentro daquela
sociedade, a virgindade feminina possuía um alto valor entre os homens, dando-lhe um
status mais respeitável ou desejável em relação às mulheres que dançavam no pastoril.
Dentro de um ambiente de permissividade, uma donzela obviamente despertava mais as
fantasias eróticas do sexo oposto do que a respeitabilidade que eles devotariam a uma
jovem dama da sociedade ou de lúgubre virtude. Sendo assim, Zefa utilizava deste ardil
para instigar a libido masculina, torna-se mais cobiçada. Agia de maneira sedutora e livre,
como uma mulher dona de seu próprio desejo. Porém, seu discurso carregava as sanções da
sociedade ao dizer-se virgem. Dessa forma, navegando na ambigüidade dessa identidade
assumidamente flutuante, Zefa inventava-se. Sua interdição funcionava como a reiteração
do convite à conquista amorosa. O jogo de sedução e de poder estabelecido pela jovem
pastora não se baseavam no “querer ou não querer”, mas no “ser ou não ser”, ou melhor,
ser ou não ser virgem, ser ou não ser rapariga, eis a questão! Em outras palavras: entre o
ser e o não ser é que Zefa constrói sua identidade
Da mesma maneira Zefa procede com Nestor, afirmando-se virgem ao mesmo
tempo em que lhe dirige palavras e gestos convidativos. Um outro exemplo seria o
comentário de Zefa quando, ao prometer-lhe um emprego de ama na casa de Seu Quincas,
Vicência previne-a da libertinagem dos filhos do patriarca, conhecidos pelo contumaz
assédio as empregadas da casa. Ao invés de sentir-se ofendida ou reiterar sua decência,
Zefa reage de forma sonhadora, como se de fato desejasse perder sua virgindade com o
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filho de um senhor de engenho: “ZEFA (Sonhadora) Quando um dia eu resolver me
perder, vai ser com um rapaz bonito, de família... depois é que me relaxo! Isto eu tenho
comigo, está escrito!(MARINHO, 1969:71). A perda de sua suposta virgindade não está
determinada ao casamento, mas ao amor furtivo, com alguém superior, de uma classe
social mais elevada, como se, ao proceder dessa maneira, ela ascendesse na escala social
provisória ou ilusoriamente.
Em resumo, um dos temas de Viva o cordão encarnado versa sobre identidade e
poder ou poder e representação. Nesta peça, a mulher é retratada como objeto sexual
masculino. Todavia, uma ligeira subversão desta ordem a partir da atuação de Zefa. No
momento em que a pastora sobe no palco das representações de poder e do desejo,
assumindo-se enquanto objeto sexual masculino e ao mesmo tempo compreendendo-se
também como ser desejante, reificando da mesma maneira aqueles que a cortejam, dá-se
uma inversão na hierarquia falocrática.
Zefa ganha essa disputa na medida em que, ao responder à volúpia dos homens,
torna-se senhora de seus desejos, manipulando-os e ludibriando-os de acordo com sua
vontade. Agora, ela tem o direito de escolher quem ela quer e se vai ou não ceder-lhes
favores sexuais. Isto fica bem claro, quando ela seduz, quase simultaneamente o Cabo
Nestor e o motorista Mané Fozinho, mas acaba escolhendo Romeu. Ao escolhê-lo, satisfaz
sua vontade primeira de “se perder” para um homem bonito e de “boa família”. No
entanto, ela perde seu poder transgressor, justamente ao legitimar uma hierarquia social
que determina que a mulher pobre e dançarina de pastoril só pode servir ao homem
enquanto objeto sexual e, sobretudo, ter acesso à cama do patrão, unicamente através do
amor furtivo e passageiro. Por isso, o que, a princípio, havia de transgressor na Zefa
interrompe-se no momento em que ela se acomoda ao seu papel de empregada, pastora e
objeto sexual do patrão, respeitando e legitimando um sistema de poder previamente
estabelecido.
Outro exemplo um pouco diferente ao de Zefa, mas que também se move na
dialética do ser e não ser rapariga é a trajetória da pastora Dora que ainda se encontra na
adolescência. Como havíamos dito anteriormente, a personagem surge na peça criando
caso com Maria Não Enjeita. Sob influência da mãe, ameaça abandonar o pastoril para que
sua cotação entre os homens não caia em detrimento de Maria Não Enjeita. Como ela
mesma afirma, Maria é uma rapariga e, por isso, não convém que uma moça ainda pura
seja vista no mesmo tablado que Maria como se fossem mercadorias da mesma qualidade,
de valores semelhantes. Sua juventude e virgindade tornavam-na mais desejável no
249
mercado. Percebe-se no seu discurso um procedimento semelhante ao de Zefa: afirmar-se
virgem para se valorizar e atrair o maior número possível de admiradores ou pretendentes,
futuros clientes ou amantes.
Mesmo que a princípio não fique claro o subtexto implícito na cena em que se
expõe a atmosfera de prostituição ou de aliciamento da jovem pastora por sua própria mãe,
que a virtude atua como uma máscara no discurso destes personagens, valendo-se das
aparências, do status social desses personagens para se distinguirem do restante de
mulheres que fazem o pastoril, que dele tiram seu sustento. A mãe de Dora é uma senhora
casada, costureira de profissão, tendo uma púbere no despertar de sua sexualidade, como
filha. Obviamente que numa sociedade machista, como a que Luiz Marinho recria em Viva
o cordão encarnado, não desejaria que sua filha freqüentasse o mesmo ambiente de
mulheres de fama. Moças de boa família nunca poderia pisar num tablado de pastoril,
sob pena de se desmoralizarem perante a sociedade, sendo impedidas de conseguir um
“bom partido” para casamento. Parece esta a intenção da mãe de Dora ao proibi-la de
dançar no pastoril. Porém, uma contradição no discurso da jovem, revelado pela própria
Maria Não Enjeita:
MARIA (Erguendo-se) E onde é que você é pura, imunda! Em que é que
você é melhor do que eu? Vive por aí aberturando os colarinhos dos homens!
DORA – Oxem!
MARIA – Oxem, o que, sá tarada!? Tem nego aí que já está vesgo na sua mão!
DORA – Mãe, é que bem sabe!
MARIA E aquela vaca, é digna de botar nem o focinho no tablado onde eu
piso?! Uma mulher casada, sebosa! Vive com a casa cheia de “freguês”, com a
desculpa de coser calça de homem! Que coser calça de homem!
DORA – É! Ela cose, sim!
MARIA Ela “descose” as calças deles, taí! (Virando-se para Vicência)
Engraçado, é que os fregueses dela só sabem entregar as encomendas, de noite...
E tem uma tal de Minerva, que também vai pra lá; são pareceiras. Tira não sei
quantas medidas no mesmo freguês... e daí a pouco a (referindo-se a Dora)
“modista”, também vai tirar medida... e erra e tira outra, e erra e tira outra, e
erra e tira outra... olhe, é uma xumbregação da gota!... E seu Cornélio, coitado...
no meio do mundo, apitando guarda noturno! (MARINHO 1969:28).
Segundo Maria Não Enjeita, a moral de Dora e de sua mãe também é passível de
contestação. Mesmo que a mãe de Dora seja uma mulher aparentemente honrada, de
casamento estável. Maria revela o jogo de aparências engendrado pela matriarca e pela
filha. Se não uma atmosfera de meretrício, com certeza, sobrepõe-se a promiscuidade.
250
Pois tanto a filha quanto a e não são santas. A segunda é uma contumaz adúltera,
aproveitando-se de sua profissão e do serviço do marido para ter encontros noturnos com
amantes, enquanto que a filha costuma desabotoar colarinhos alheios, desafogando o fluxo
respiratório dos rapazes, quase asfixiados pelo furor de seus beijos. Trata-se de mulheres
também de moral duvidosa, que se utilizam da máscara da virtude para melhor trafegar
entre a fronteira do lícito e do proibido na sociedade patriarcal, usufruindo dos benefícios
tanto de um quanto do outro: do gozo da liberdade sexual e da respeitabilidade.
Tanto é verdade o que Maria assevera que no momento em que ameaça revelar ao
Seu Cornélio tudo o que sabe sobre a esposa e a filha, Dora titubeia. Melhor: muda
subitamente de opinião:
DORA – A senhora não tem que está maltratando pai, não!
MARIA Ele é inocente, mesmo! Pois diga à mamãezinha, que deixe o nome
de Maria Não Enjeita em paz, senão vou contar a Seu Cornélio, quem é a mãe e
quem é a filha, entendeu? Eu não digo! Essas duas obras querendo bancar
família, pra meu lado! Só vendo!
VICÊNCIA – Maria tem razão! É besteira, querer bancar a honrada no meio
do pastoril! Cada uma que tenha o seu rabo de palha...
MARIA – E por falar em rabo de palha!...
DORA (Apavorada) Agora... Vocês pensam que eu vou na onde de mãe?!!
Olhe, tirou-me do pastoril, matou-me!
MARIA – Assim?
DORA – É!... e se há um pastoril decente, esse é um! É até “familial”!
VICÊNCIA – Você acha?
DORA O Velho, casado com a Diana... respeitador... As meninas, cada
qual com seu... noivo! (Olha desconfiada para Maria)
MARIA – E eu?
DORA – Sabe que eu nunca reparei!
VICÊNCIA – Mas o que foi que você veio fazer?
DORA É besteira de mãe, do tempo antigo... Mas eu não vou na conversa
não! Olhe... trouxe o vestido, vou deixar escondido aqui! Sábado, se Deus
quiser, estou aqui. (Vai saindo) (MARINHO 1969:29-30). [grifos nossos].
A fragilidade da imagem de virtude que Dora tenta passar é imediatamente desfeita
por Maria Não Enjeita. Sob acusações e ameaças de Maria de revelar ao Seu Cornélio o
que há debaixo da máscara de pureza e moralidade que ambas (mãe e filha) ostentam, Dora
cambia de opinião, retrocede em suas antigas intenções, passando a elogiar a decência do
pastoril do Velho Matraca. Como diz a própria Vicência, não adianta alardear honradez
251
num ambiente de pleno fluxo dos desejos, onde a moral patriarcal apresenta-se em seu
reverso, desafogando o plexo solar de sua rigidez cotidiana. Não santas no pastoril, a
virtude não passa de um ardil de sedução para instigar o cortejo varonil.
Provavelmente, esta estratégia orquestrada por Dora e sua mãe almejava valorizar a
jovem pastora, ressaltando seus encantos de púbere e aparentemente “virgem” para o
arranjo de possíveis protetores ou pretendentes, homens de posses ou de situação
financeira estabelecida que se proponham a fazê-la de concubina, tal como as antigas
cortesãs ou as hetairas gregas. De certa maneira, isto lembra a prática dos senhores de
engenho de levar para suas casas jovens filhas de sitiantes para torná-las oficialmente
empregadas domésticas, mas gozando de seus favores sexuais à noite, após o “expediente”,
como sugere Marinho em outra peça, A incelença, em que um senhor de engenho autoriza
a permanência da família de D. Sindá em suas terras quando reconhece a filha adolescente
da matriarca moça feita, convidando-a para trabalhar de arrumadeira em sua casa na
intenção de assediar a garota. E em Um sábado em 30, Seu Quincas quase desvirginou a
cozinheira Joana.
Todavia, não podemos comparar Zefa à Dora. Enquanto a primeira é mulher feita,
consciente do mundo e de sua sexualidade, de como exercê-la a seu favor, mesmo que
de fato nunca tenha sido tocada por um homem, que ainda permaneça virgem; Dora ainda é
uma púbere, trazendo consigo todas as angústias dessa fase da vida. Dora encontra-se no
despertar de sua sexualidade. No segundo ato, durante o pastoril, Dora atrai a atenção do
filho de um senhor de engenho, nomeado por Marinho apenas como Rapaz. Ao final de seu
número, aproxima-se de Rapaz e Romeu que bebiam no botequim de Chicuto:
RAPAZ - (A chegada de Dora) Ô! Salve a Dora!
DORA - Seu Zé, pague uma gasosa pra mim!... Virgem que calor! (Fica se
abanando com a saia) tô pegando fogo!
RAPAZ - Eu tenho um regadorzinho que apaga esse fogo! (Riem os rapazes)
DORA - (Fingindo-se ingênua) Cadê?
RAPAZ - Ah, não está aqui não... está guardadinho no meu castelo! Vamos ver?
(Tenta logo abraçá-la)
DORA - (Esquivando-se) Oxente... que conversa mais sem jeito! Vou-me
embora! (Tenciona sair)
RAPAZ - Espere aí, minha filha! Vamos conversar mais.
DORA - Não... Desse jeito, não! Eu sou direita!
RAPAZ - Iiiih! De onde saiu essa freirinha, perdida por aqui a essas horas?
DORA - É não, seu Zé... é porque o senhor nem me conhece, e já vem logo com
252
conversa baixa pra minha banda! A gente é pobre, mas gosta...
RAPAZ - Ô! Me desculpê, madamuazelê! Vocé não quererê comparecê a um
randêvu, comigô?
DORA - (Que nada entendeu, um muxoxo entortando a boca) O que?... Ah!
(os dois rapazes ficam rindo. Chegou Valter e Juca. Dora tenciona sair)
ROMEU - Venha cá, venha cá! Conversa agora é séria.
DORA - O que é?
ROMEU - Quem é essa dona tão falada, que vai estreiar hoje, aqui?
DORA - Sei lá! É uma piniqueira!
................................................................................................................................
RAPAZ - Ela é boa de...
DORA - (Cortando) Bom, basta! (Dora vai saindo)
RAPAZ - (Segurando Dora pelo braço) Espere aí.Vem cá!
DORA - Que é isso, meu senhor? Me largue! Me largue!!!
RAPAZ - Deixe de luxo! (Torce um pouco o braço de Dora)
CABO - (Encostando) Alguma dúvida, Doralice?
RAPAZ - Não, cabo... apenas estávamos brincando com a nossa amizade...
(Solta o braço de Dora discretamente. Esta, sem palavra sai correndo para o
tablado, mas não sobe, com medo de Dapenha) (MARINHO 1969:83-85)
No levantar e abaixar da saia o interdito convida o jovem à posse e à transgressão.
Todavia, no momento em que Rapaz se torna mais direto em seus galanteios, quase a
agarrando, Dora titubeia em suas intenções; retrocede afirmando-se moça séria. Porém, sua
interdição não soa como um convite ao coito ou estimulante da virilidade masculina, mas
como um real veto ao assédio do Rapaz que acostumado a tudo possuir, não desiste quase
coagindo Dora a permanecer ao seu lado. Quando retorna ao tablado, Dora confessa seus
sentimentos à Zulmira:
ZULMIRA – [...] O moço, não topou contigo, não?
DORA - Eu tive medo. Toda vez e assim... sei lá... fico com um medo!
ZULMIRA - Deixa de ser frouxa, mulher... não é esses bichos de sete cabeças,
não! (MARINHO 1969:86).
Percebe-se nesta cena o anseio de Dora em extravasar sua sexualidade. Porém,
apesar de encontrar-se pronta para o ato sexual, de desejá-lo conscientemente, o receio
que a faz retroceder, uma dificuldade de ordem não específica que provoca a tensão,
impedindo a continuidade do encontro. A púbere pende entre ser e não ser rapariga, não
253
como um jogo sexual previamente articulado para instigar a libido masculina, mas em
conseqüência da natural insegurança da adolescência ao deparar-se com um novo mundo
que desabrocha dentro de si mesma: as transformações de seu corpo e o nascimento de seu
erotismo.
A adolescência é um rito de passagem, um réquiem à infância onde a menina de
outrora se despede das bonecas e prepara-se para receber o adulto que principia. A perda
da virgindade é, portanto, num estágio fundamental neste rito de passagem em que a
adolescente alterna-se entre a vontade de tomar para si sua sexualidade e o temor do
fracasso, da dor e do próprio desconhecido. Este é um tema que também abordaremos no
item seguinte, mas precisamente no despertar da masculinidade de um jovem, num mundo
onde os garotos não choram.
2.2.5.2. Boys don’t cry
I would say I’m sorry/ If I thought that it would change your mind/ But I know that
this time/ I have said too much/ Been too unkind/ I tried to laugh about it/ Covering all up
with lies/ I tried to laugh about it/ Hiding the tears in my eyes/ ‘Cause boys don’t cry/ Boys
don’t cry/ I would break down at your feet/ And beg forgiveness/ Plead with you/ But I
know that it’s too late/ And now there’s nothing I can do/ So I tried to laugh about it/
Covering all up with lies/ I tried to laugh about it/ Hiding the tears in my eyes/ ‘Cause
boys don’t cry/ Boys don’t cry.
70
Através da canção Boys don’t cry, do The Cure, antigo hit das paradas musicais,
acompanhamos os lamentos de um jovem que perdera a namorada por sucessivos erros,
sua contumaz insensibilidade, sua impossibilidade de entregar-se afetivamente. No seu
íntimo, lamenta tudo o que houve, mas é incapaz de externar para a amada seus
sentimentos, pois acredita ser tarde demais para o perdão e a reconciliação. Por isso,
prefere rir de tudo, fingir para si mesmo que nada tem importância, mostrando-se superior
às bobagens do coração, escondendo suas lágrimas que escorrem inadvertidamente de seus
olhos para que ninguém testemunhe sua fragilidade, sua sensibilidade, porque, segundo
70
Disponível em: http://music.yahoo.com/The-Cure/Boys-Dont-Cry/Cry/lyrics/532911. Acesso em 23 mar.
2007. “Eu pediria desculpas/ Se achasse que você mudaria de opinião/ Mas sei que desta vez/ Eu falei
demais/ Fui muito grosso/ Tentei rir disso/ Mascarando tudo com mentiras/ Tentei rir disso/ Escondendo as
lágrimas nos meus olhos/ Porque garotos não choram/ Garotos não choram/ Eu cairia a seus pés/ E pediria
perdão/ Imploraria a você/ Mas sei que é tarde demais/ E agora não nada a fazer/ Tentei rir disso/
Mascarando tudo com mentiras/ Tentei rir disso/ Escondendo as grimas nos meus olhos/ Porque garotos
não choram/ Garotos não choram”. [tradução nossa].
254
ele, garotos não choram. Esta música encerra um dos mitos em torno da masculinidade.
Aquele em que o homem se crê inatingível e absoluto: nunca chora, sempre é o melhor,
competitivo, forte, viril e insensível, nunca permitindo-se o envolvimento afetivo. Estes
são os pressupostos básicos da masculinidade que norteiam a educação de todo menino.
A pedagogia sexual dos rapazes, que reproduz os dogmas da sociedade patriarcal,
impõe uma série de padrões de comportamento “tipicamente masculinos”, opostos ao
feminino, e que com a constância de suas repetições na sucessão de diversas gerações,
durante séculos, incrustou-se no inconsciente coletivo, fazendo-se acreditar que um fator
social e cultural de comportamento (mais próximo de uma construção ideológica) tratava-
se de uma característica biológica que determinava o comportamento de homens e
mulheres, segregando as exceções (os que fogem do padrão) como falhas genéticas,
perversões ou desvios da ordem natural. Como diz João Silvério Trevisan, referindo-se aos
atributos secularmente vinculados aos homens (virilidade) e às mulheres (delicadeza) pelo
sistema patriarcal: “A força masculina e a delicadeza feminina são [...] atributos que foram
construídos de um modo ou de outro, a partir de algum momento, na história da cultura
patriarcal. Ou seja, o masculino e o feminino não podem ser tomados como realidades
objetivas e imutáveis”. (1998:39-40).
Dessa forma, uma gama de afirmações vindas da família, da escola e das relações
sociais fazem os garotos acreditarem que realmente “existe um homem viril, corajoso,
esperto, conquistador, forte, sem fragilidades, inseguranças e angústias. Os meninos
crescem achando que os outros são assim, e quando são repreendidos por não estarem se
comportando como deveriam, se sentem problemáticos em relação ao modelo”.
(NOLASCO 1995:42). Sendo assim, essa pedagogia varonil transforma-se numa espécie
de rito iniciático masculino que indica que, “diferentemente das mulheres, para ‘ser
homem’ é preciso tornar-se homem. Em outras palavras, ‘o caminho para a masculinidade
precisa ser conquistado’, ao mesmo tempo que permanece sempre possível o risco de
perdê-la”. (TREVISAN 1998:41).
O ritual de conquista da masculinidade, que começa a partir da puberdade, pode ser
muito doloroso e traumático, sobretudo se o iniciado fracassar em seu intento, se não for
capaz de conseguir provar para si mesmo e para seu meio social sua macheza, constituindo
uma mácula na sua identidade, uma ameaça a sua própria masculinidade, como se esta se
tornasse inacessível, fazendo o púbere acreditar-se menos macho, um homem emasculado,
o que representa a própria sombra da homossexualidade tal como a sociedade patriarcal a
concebe. Este é o ponto em que principiamos nossa análise da obra marinha em questão,
255
Viva o cordão encarnado, tomando como eixo de nossa reflexão a questão da
masculinidade, e como foco de análise, o ritual de passagem do personagem Valter para o
mundo dos homens.
No segundo ato de Viva o cordão encarnado, Valter chega ao pastoril com seu
amigo Juca, procurando Maria Não Enjeita:
JUCA - Pronto! Maria Não Enjeita é aquela da vaia. A que te falei que
encaminha menino.
VALTER - Mas rapaz... é um couro danado!
JUCA - E quer dizer nada? Pelo menos é limpa! Pra começar é bom assim.
VALTER - (Perturbado) Não... não... Hoje, não!
JUCA - Ih, rapaz... Tu toda vez fica assim embromando? Tem que
enfrentar.
VALTER Não... mas sabe como é? É porque hoje fui tomar banho... espirrei
(O público tem que ouvir a fala que se segue)
JUCA - Mas que besteira. Faz mal não! Não estando com febre, resfriado, não
ofende não!
VALTER - Vi dizer que dá uma tosse da braba!
JUCA - Se pegar com essa moleza... bom... depois a turma fica aí falando de
tu! (Valter, ferido, fica de vista baixa, batendo com os olhos) (MARINHO
1969:89).
Procuram-na para dar continuidade a uma velha prática das sociedades patriarcais,
sobretudo no interior brasileiro, de levar um púbere ao encontro de uma experiente
prostituta para que ela o inicie sexualmente. No caso de Maria Não Enjeita, Marinho não
apresenta-a como uma meretriz. Em verdade, o autor não esclarece quais são os seus meios
de subsistência. Todavia, sabe-se que ela é uma mulher de sexualidade livre, conhecida na
cidade por “encaminhar menino”.
Contudo, a iniciativa de Valter não é voluntária. O rapaz é obrigado pelo amigo
mais experiente para que possa dar provas de sua masculinidade. Percebe-se que Valter
teme esta situação, criando uma série de empecilhos para prorrogar o máximo possível o
momento em que terá que se testar como homem e provar para os amigos sua virilidade.
Em outras palavras: Valter literalmente precisa conquistar sua masculinidade para poder
ser aceito no seu meio social, como sugere Juca que diante das evasivas do amigo deixa
claro o que o fracasso do Valter poderia significar para os demais companheiros: o estigma
da homossexualidade. Em geral, dentre os diversos tabus sexuais que atormentam o
imaginário dos adolescentes, o malogro na primeira relação sexual pressupõe que o rapaz
256
pode tornar-se homossexual ou pelo menos, assim ser considerado pela comunidade da
qual faz parte.
Um outro elemento nesta cena é a ausência de afetividade que acompanha a
primeira relação sexual do rapaz. Ao Juca não importa se Maria Não Enjeita é feia ou
bonita, nova ou velha, gorda ou magra, mas apenas o fato de saber que ela é “limpa” e que
está disposta a receber em suas entranhas o gozo juvenil de Valter. Como ele mesmo diz:
“Pra começar é bom demais!”.
Dando continuidade à iniciação sexual do rapaz, pouco depois, Juca chama Maria
para se aproximar de Valter que fica ainda mais nervoso diante da pastora. De antemão,
Juca esclarece à Maria a situação de Valter, despertando de imediato seu interesse:
JUCA - Maria, vem cá!
VALTER – Mas rapaz... faz isso não.
JUCA - Besteira... eu também foi a mesma coisa. Hoje agradeço.
MARIA - (Chegando) Diga, coração!
JUCA - Este daqui quer lhe conhecer...
VALTER - É não...
JUCA - Ele ainda não botou cana pra engenho.
MARIA - Ôpa, do mel que eu gosto! Venha cá, meu filho.
VALTER - É brincadeira dele! (MARINHO 1969:101).
Contudo, o nervosismo de Valter aumenta progressivamente a ponto de ficar com
as mãos frias, o que deixa a pastora preocupada. A mando de Maria, Juca deixa os dois a
sós. Pouco depois, mais calmo Valter esclarece a origem de seus temores, os motivos que o
levam a ter medo de mulher:
(Deixa Vicência no botequim e se afasta - Atenção Dar toda dignidade à
cena que se segue)
MARIA - ...o coronel ganhou a questão e o trem de ferro, ficou passando aqui
por Timbaúba! Foi um festão, nesse dia!
VALTER - Meu avô contava muito, essa história.
MARIA - Agora, que você já está calmo... vou lhe fazer uma pergunta: Nunca
chegou perto de mulher, não?
VALTER - (Desalentado) Já... uma vez... mas... A senhora promete não contar
a ninguém? Nem a Juca... promete?
MARIA - Vá, meu filho... conte a sua estória! Eu não vou dizer a ninguém,
não... Tenho muita pena de homens assim como você! Chego até a querer
257
bem.
VALTER - (Vista baixa, como se estivesse rememorando um crime) Uma vez
convidei uma dona... e fomos! Quando ficamos na intimidade, eu comecei a
tremer... era a primeira vez e eu estava tímido... com certa vergonha, e não sei
porque, com pena dela, me achando um monstro... sei lá! Mas quando ela me
viu tremendo, disparou na risada e ficou desdenhando de mim... Aí, foi pior!
fiquei murchinho! Morto de vergonha, desanimado, resolvi ir-me embora!
Paguei e saí arrasado! Ela lá da porta ficou gargalhando e me insultando.
Apressei-me, felizmente, ninguém viu...
MARIA - Isso é que é ser uma sujeita perversa! Você ficou com medo de
mulher, não é, meu filho?
VALTER - Não é bem de mulher... é da hora! Fiquei com pavor daquela
hora. Eu tenho atração pelas mulheres... sonho com elas... tudo. De longe, me
animo... mas quando resolvo me aproximar, lembro daquela hora. Foi a pior
hora de minha vida! Tive mesmo vontade de me suicidar. (Chorando) E ela
ficou me explorando... mandando bilhete pedindo dinheiro e mais dinheiro!
MARIA - E você manda?
VALTER - Mando... Tenho medo que ela espalhe.
MARIA - Ah, bicha ordinária! (E chorando discretamente) Ficou com a vida
desgraçada! Mas, não, meu filho! Você é homem, tenha fé! (Valter soluça e
ela abre-lhe os braços) Chore aqui no ombro desta desprezível mulher...
mas... honesta e sua amiga.
VALTER - Mas... como posso... (Chora emocionado e cai nos braços de
Maria. Valter é acariciado por Maria, como se fora um bebê e sempre falando
se afastam para lugar conveniente.) (MARINHO 1969:106-108).
Nesta cena, esclarecem-se as origens dos recalques de Valter. Na adolescência,
devida as abruptas transformações no corpo, o jovem sente-se demasiado inseguro. No
caso de Valter, percebe-se uma insegurança exacerbada que o acompanhou até o quarto em
que ele se encontrou com a meretriz que o traumatizou. jovens que de tão inseguros de
si mesmos tendem a certos distúrbios psicológicos, como sintomas conversivos, histéricos,
fóbicos e obsessivos que funcionam como um mecanismo de defesa contra uma tensão
maior. Os sintomas conversivos e histéricos “são aqueles que se manifestam fisicamente,
na forma de mal-estar, palidez, rubor, dor de cabeça, dor de barriga, aumento da pressão
arterial, taquicardia ou falta de ar, sempre que o jovem tem de enfrentar alguma situação
difícil. Assim, ao dirigir sua preocupação para os problemas físicos, o indivíduo
conseguiria se isolar do problema maior, que é a situação a ser enfrentada”. (TIBA
1994:70).
A fobia seria a fuga da situação, evitando uma pessoa ou lugar onde o jovem seria
obrigado a enfrentar a situação. Por isso, que Valter tenta a todo custo ir embora.
Traumatizado com sua primeira tentativa de experiência sexual, o rapaz passou a fugir de
258
qualquer situação que conotasse ou exigisse alguma intimidade com mulher e que exigiria
dele alguma atitude viril. Assim, ele tornou-se conhecido entre seus amigos como tendo
medo de mulher. O que seria um sinônimo de homossexual, que o jovem não consegue
cumprir uma função básica para o gênero masculino, de acordo com a ideologia patriarcal
que é a posse de uma fêmea. Porque cabra macho tem que dar sempre no couro.
Compreende-se a insistência de Juca em propiciar a iniciação do amigo. Esta seria uma
prova pública, em que Valter deveria demonstrar aos seus companheiros sua virilidade
para não ser considerado um maricas.
O último sintoma desses distúrbios psicológicos que podemos encontrar na
narração de Valter são sintomas obsessivos: “[...] são as atitudes ou pensamentos
repetitivos que ocupam o pensamento do jovem quando tem de enfrentar aquelas
situações”. (TIBA 1994:71). A reação de Valter diante da prostituta é um exemplo desses
sintomas obsessivos. Na intimidade, o púbere é tomado por pensamentos de posse e
violência como se o que estava prestes a realizar fosse de fato uma agressão e não uma
experiência de autodescoberta ou de um pacto financeiro em que ambos sairiam
recompensados; a meretriz receberia seu pagamento e o garoto teria certeza de seu
potencial como homem. No entanto, seu nervosismo e insegurança atingiram-no
fisicamente, fazendo-o tremer. E ao invés da prostituta tranqüiliza-lo como fazia Maria
Não Enjeita, agiu de modo completamente diverso, escarnecendo de sua fragilidade. Em
verdade, a prostituta agiu como se detestasse os homens ao vociferar na rua o mau êxito de
Valter com desdém.
Para o homem, qualquer derrota implica numa fantasia de castração, “seja com
dinheiro, em propriedade, no amor, com a mulher, com os filhos, na sua posição
profissional, em influência social. Tudo isso repercute no homem como perda de
autoridade e, mais grave, uma provável perda de identidade masculina”. (TREVISAN
1998:51-52). Ou seja, perder o falo significa a perda de si mesmo. Este é o sentido do
fracasso para o macho na sociedade falocêntrica. De certa maneira, Valter, ao invés de
consagrar sua masculinidade no coito, foi emasculado pela meretriz: “[...] o macho se
define pelo seu pênis tornado falo: nele repousa a raiz do conceito de masculino. E é no
falo que se articulou a própria base da civilização patriarcal, tornada portanto falocêntrica.
[...] E isso que é a fonte de sua força torna-se também a origem de sua fraqueza”.
(TREVISAN 1998:52).
Todavia, é necessário ressaltar como Marinho elaborou este personagem: em
primeiro lugar, encontramos Valter numa situação de crise em que sua identidade
259
masculina é colocada sob suspeita; segundo a própria construção do personagem é calcada
no oposto do masculino. Valter é um homem frágil, inseguro, tímido, sensível e o mais
importante, é um garoto que chora. Esvai-se em lágrimas nos braços de Maria Não
Enjeito, mesmo que constrangido de sua própria fragilidade. Ora, todas essas
características que acabamos de descrever são pertinentes ao feminino. Tanto é que Maria
Não Enjeita apieda-se de sua triste condição não apenas em detrimento de sua experiência
traumática, mas como se reconhecesse em Valter uma categoria à margem do cabra
macho. Um indivíduo aleijado de sua masculinidade justamente por possuir em si mesmo e
externar o que constitui sua negação: o feminino. Em outras palavras: Valter apresenta
característica mais de acordo com os padrões femininos estabelecidos pela sociedade
patriarcal. Fricciona em si mesmo o princípio de sua negação.
Uma curiosidade: Na primeira edição de Viva o cordão encarnado, Marinho nos
fornece uma lista de personagens onde se constata que alguns personagens aparecem no
primeiro ou no segundo ato da peça. Para alguns deles, Marinho sugere que sejam
interpretados pelo mesmo ator, dando ao encenador uma solução para a distribuição de
papéis. O que é curioso é que para um mesmo ator o dramaturgo indica os personagens do
Sacristão e de Valter, dois personagens que têm sua masculinidade colocada em questão no
decorrer da trama. O primeiro por dar a entender suas preferências aos afagos viris e o
segundo, que tem receio de fazer-se iniciar sexualmente por Maria Não Enjeita, temeroso
de não ser novamente bem sucedido e ter sua imagem de “homem” arranhada
definitivamente. Talvez essa relação que Marinho estabeleceu entre os dois personagens
permita uma melhor visualização do segundo: o frágil Valter. Provavelmente, seu físico
não inspira uma imagem viril. Por isso, Marinho propôs aos encenadores que se
dispuseram a montar sua peça um mesmo ator para interpretar os dois personagens,
conectando-os e aumentando suas ambigüidades dentro do universo masculino. Como se
Marinho sugerisse a partir do sacristão que a physique du role do intérprete necessária ao
personagem Valter seja inversa a do estereótipo do machão, sobretudo porque se trata de
um bere que ainda está aprendendo a ser homem, ou seja, permanece ainda na
indefinição de ser ou não ser macho, no terror de tornar-se homossexual caso não seja
capaz de dar provas de sua virilidade. O que prova seu esmero na construção de cada
personagem por menor que seja, imprimindo-lhes sempre uma ilusão de real, além de
revelar suas intenções de tratar seriamente o tema do masculino e feminino. Mostra como o
dramaturgo não concebia nada de maneira superficial. Invertendo os valores, dialetizando
260
tudo o que aparenta firmar-se numa falsa estabilidade, Marinho subverte as noções de
masculino e feminino. Fricciona os opostos, desvelando sua fluidez.
Um outro indício de como Marinho pretendia abordar em profundidade o tema são
suas indicações nas didascálias em que orienta a maneira como os respectivos personagens
devem ser elaborados ou o modo como determinada cena deve ser tratada. Na aparição do
sacristão no primeiro ato, a seguinte orientação: (Riem - Chegam pelo caminho do
“Terreiro” o Delegado, o soldado e o Sacristão. Atenção: Não exagerar no papel do
Sacristão. Terá apenas, justos: roupas, gestos e boca. Traz um Livro debaixo do braço e
sempre que quer se expressar melhor, consulta uma papeleta que está dentro do livro. O
delegado pára - UM POUCO, SONDA os presentes e fala)”. (MARINHO 1969:59).
[grifos nossos]. Percebe-se que aqui ele exige do intérprete o comedimento. Atuar sem
exageros, sem exceder-se na caricatura ou na comicidade, mesmo que o Sacristão seja um
personagem cômico. Da mesma maneira, procede Marinho nas indicações que introduzem
a cena em que Valter narra sua triste história à Maria Não Enjeita. Diz ele: Atenção
Dar toda dignidade à cena que se segue(MARINHO 1969:106). Perspicaz e ciente das
especificidade de sua obra, Marinho sabe que aqui o patético pode elevar-se até os limites
da comiseração, provocando o riso no lugar do enternecimento. Propõem-se escrever uma
comédia séria ou sisuda (usando de suas próprias palavras) que do cômico às grimas,
da diversão à reflexão, buscando sempre o humano, seja em suas alegrias ou no seu
desamparo; seja em sua virtude ou em sua crueldade.
Por fim, o infortúnio transforma-se em triunfo e, sob os braços de Maria Não
Enjeita, Valter encontra sua masculinidade:
([...]. Valter tem parado de chorar Está com a cabeça deitada no ombro de
Maria que jeitosamente alisa-lhe as pontas das orelhas. Estão sentados. Ela
tenciona levantar-se, mas Valter segura-a e ela “bancando", a pudorosa,
reage)
MARIA - Meu filho... Estão olhando... (Ficam de pé)
VALTER - Estava tão bonzinho... não vá agora não! (Começa a abraçá-la)
MARIA - Olhe... Aqui não! (Maria finge-se esquiva. O rapaz quando sente a
"passividade" dela, faz investidas) Não... não... não... Olhe menino! Você está
doido... Menino!
VALTER - (Ficando senhor de si) Só um pouquinho... um pouquinho...
Deixe!
MARIA - Que menino desesperado!... Me solta! Me solta! Me sooolta, danado!
VALTER - Uh!!!
261
MARIA - Tenho que subir
VALTER - Não vá agora não!
MARIA - pra beira do rio e me espere que eu chego já! (Aperta febrilmente
o rapaz e sobe para o tablado)
VALTER - (Felicíssimo, num grito triunfal) Errôôôôôô! (Sai de cena aos
pulos, rindo e volteando até sumir) (MARINHO 1969:113-114). [grifos
nossos].
A partir de sua fragilidade, Valter descobre-se enquanto macho. No momento em
que sua sensibilidade não foi interdita, mas convidada a expressar-se livremente, o
masculino pôde nascer. Eis a síntese de um processo dialético. A macheza do púbere
desabrocha apenas através de sua negação ou contradição, o feminino, o sensível, gerando
a negação da negação: um macho que chora, sua síntese. Além disso, cabe destacar o
papel essencial que Maria Não Enjeita exerce nessa espécie de pedagogia da
masculinidade. A pastora é quem instiga a virilidade no garoto, criando um jogo
performático em que assume os diversos papéis que a sociedade patriarcal instituiu para a
mulher. Primeiramente, apresenta-se como a mulher sexualmente livre a quem o macho
não necessita estabelecer nenhum vínculo afetivo, servindo-lhe como objeto de prazer, a
chamada rapariga; em seguida, assume os predicados maternais, confortando a ainda frágil
criança; e finalmente, torna-se a donzela sedutora, passiva, indefesa, à espera do garboso
varão que possa conquistá-la. Na medida em que Valter se sente confiante e seguro nos
braços de Maria sua libido aumenta progressivamente: abre-se novamente o espaço do
desejo. Simulando pudor, Maria esgueira-se dos afagos do novo homem e quanto mais
passivamente reage mais viril torna-se Valter. Dessa forma, Marinho apresenta a
sexualidade como uma alegre brincadeira: um jogo onde as identidades são construídas
através da fricção e do fluxo dos opostos entre si, criando seres humanos mais plenos e
vigorosos.
2.2.5.3 A peleja dos cravos
A questão do masculino e do feminino perpassa toda a peça de Luiz Marinho. Até
agora encaminhamos nossa discussão em duas instâncias: na primeira, a oposição entre
machos e fêmeas em que as mulheres, subjugadas pela moral patriarcal, tornam-se objeto
sexual masculino, mas que nesse embate subvertem provisoriamente a ordem estabelecida
quando Zefa emprega um procedimento semelhante aos homens, também reificando-os na
262
medida em que paradoxalmente aceitou o espaço reservado às mulheres no mundo dos
homens, o de ser reificado; na segunda, o púbere Valter tem sua masculinidade colocada
sob suspeita por temer falhar como homem” em sua primeira relação sexual com Maria
Não Enjeita em detrimento de uma experiência pregressa frustrada, no entanto, triunfa
sobre seus próprios fantasmas no instante em que lhe é permitido expressar sua
sensibilidade, descobrindo subitamente sua virilidade. Agora nos deteremos num terceiro
aspecto da questão que concerne à atração dos homens pelo combate em Viva o cordão
encarnado. Neste item, acompanharemos a progressão das constantes pelejas entre machos
pela soberania de seus respectivos falos, sejam em simples querelas em prol da supremacia
de sua pastora de preferência ou pela disputa de uma mesma mulher, que pode expressar-se
no leilão de um cravo encarnado ou na cobiça da esposa do melhor amigo. Iniciemos,
portanto, a peleja dos cravos!
O tablado do pastoril de ponta de rua sempre serviu de palco para a representação
das disputas masculinas. Em Um sábado em 30, por exemplo, de divertimento alegre e
festivo do povo, o folguedo converte-se no teatro de guerra da revolução de outubro onde
perrepistas e liberais, ambos defendendo, respectivamente, os cordões azul e encarnado,
cores símbolo dos dois partidos, extravasaram suas divergências políticas, acabando o
pastoril e findando a noite em pancadaria. Todavia, não queremos entrar nos méritos
políticos da querela entre liberais e perrepistas, mas abordar esses teatros de guerra, como
disputas em torno das quais se decide quem tem o maior falo. Em outras palavras: quem é
o mais forte, quem é o mais perspicaz, o mais viril, quem tem mais poder segregando os
fracos dos fortes, os conquistadores dos subjugados, os vencedores dos vencidos. Este é o
sentido que subjaz nas pelejas masculinas, não restringindo-se apenas aos homens, mas
também as mulheres de vigoroso ímpeto, seja contra homens ou outras mulheres, porque
esta é ideologia propagada pela sociedade falocêntrica.
Em Viva o cordão encarnado, as questões políticas, que eclodiam na primeira
comédia marinha, inexistem. O que aqui destacamos são os sucessivos embates entre
freqüentadores do pastoril nos quais utilizam em momentos específicos, o tablado e suas
pastorinhas como metáforas de suas contendas, de sua tentativas de supremacia fálica
sobre outro macho. Pelejas que muitas vezes não se restringem unicamente ao arquétipo do
falo, mas que reverberam tensões de classe como a disputa entre Rapaz (rico) e Josias
(pobre) em que, através de sucessivos lances cada vez mais altos, apostam na graça e na
voz de suas pastoras prediletas. Josias inicia o lance para que Berenice, pastora do cordão
encarnado, pare de cantar dando lugar à Dapenha e ascendendo a bandeira do cordão azul.
263
Rapaz, que acabara de chegar ao pastoril, interessando-se por Dora logo que a vê, um
lance mais alto em benefício da jovem pastora para que ela comece a cantar no lugar de
Dapenha. Daí em diante os lances vão se tornando cada vez mais altos e aos poucos o
dinheiro de Josias vai minguando até ficar sem um tostão na carteira. Vencido por um rival
infinitamente superior, que Rapaz é filho de senhor de engenho, Josias sai do pastoril
sob as vaias do público, remoendo sua derrota: “JOSIAS - Mas me um entalo... se fosse
um da minha igualha, nem por isto. Mas perder prum rico... dá ódio!”. (MARINHO
1969:83).
Rixa semelhante, porém sem os mesmos desdobramentos no que concernem as
diferenças sociais, é a de Romeu e Mané Fozinho no leilão do cravo vermelho de Zefa.
Ambos disputavam a posse do cravo e, por extensão, a conquista da pastora. Contudo, no
calor do combate, na medida em que os ânimos vão aumentando, sobretudo em
decorrência dos efeitos da cachaça, pois neste momento Romeu se encontrava melado, o
objetivo primeiro da contenda esvai-se, prevalecendo a disputa explícita de um contra o
outro, como podemos constatar no diálogo que se segue entre Rapaz e Romeu:
BOA TAPA - A coisa hoje, vai longe!
DUDU - Ô cabra besta! Os meninos do major Quincas nunca perderam parada!
JUCA - Mas hoje vão perder! Oi só a gorjeta que o chofé me deu!
DUDU - Isso é lá dinheiro?
ROMEU - Oito mil!
RAPAZ - Vamos embora, rapaz!
JUCA - Se você visse a massaroca que ele traz no pé do ci... into!
ROMEU - Daqui só saio com a vitória!
RAPAZ - Mas essa mulher, não vale isto!
ROMEU - Não é a mulher, é a afoiteza daquele cabra!
ZEFA - Repare meu coração como está! É os olhos daquele rapaz! Chega me
falta o fôlego, ai!
FOZINHO - Dez mil!
RAPAZ - Não vá na onda não!
ROMEU - Quinze! (Murmúrio) (MARINHO 1969:120). [grifos nossos].
A experiência de ser derrotado por outro homem, não importando a circunstância
ou a causa em questão, implica a perda simbólica do falo, signo de potência e virilidade.
Dessa forma, para qualquer homem essa espécie de castração, repercute como perda de
264
autoridade, e pior, uma possível perda de sua masculinidade. Por isso, a atração dos
rapazes pelas lutas corporais ou pelas mais banais disputas possuem implicitamente sempre
o caráter de auto-afirmação do homem, de sua identidade como macho, mediante a derrota
de um oponente. Dessa forma, na primeira situação descrita, o amargor de Josias reflete
um outro fracasso mais concreto e cotidiano que é a consciência de sua subalternidade
reforçada com a vitória de Rapaz, um privilegiado, um vencedor de berço, que
provavelmente nunca passou pelas privações e humilhações diárias de Josias. No segundo
exemplo, Romeu sente-se ameaçado com a valentia de Mané Fozinho, sobretudo por
representar o estereótipo do cabra-macho, acrescentando-se seu nível social que insufla
ainda mais seu orgulho e prepotência. Para homens como Romeu, o desafio à sua
autoridade e hegemonia é algo intolerável. Como resposta a ameaça à sua identidade
intocável, reage intempestivamente num impulso destruidor a quem quer que ponha em
risco sua macheza. Contudo, esse desejo de guerra ou predisposição ao embate expressa
sobremaneira uma fraqueza do que potência. Revela a fragilidade de sua identidade, a
urgência perene de uma auto-afirmação.
Como exemplo extremo desse impulso destruidor, podemos citar o combate velado
entre Nestor e Heronides, culminando na castração do primeiro e no triunfo do segundo.
Heronides, ao tornar-se “corno”, perdendo a peleja para outro homem, evidencia em si
mesmo uma simbólica castração que será reparada ao castrar o rival, reativando apenas
aparentemente sua autoridade de homem e marido.
Um aspecto a ser observado na trajetória de Nestor em Viva o cordão encarnado é
que sua castração é apenas a culminância de um processo contínuo de emasculação do qual
o personagem é sujeito na peça do seu princípio ao fim. O cabo é um clássico exemplo do
que João Silvério Trevisan chama de crise do masculino, porque o personagem tenta o
tempo todo vestir uma fantasia de masculinidade para fazer jus ao estereótipo de macho
que ele justapôs a si mesmo. No entanto, no decorrer de suas peripécias, nota-se que seu
traje não se ajusta completamente ao seu corpo; por vezes, encontram-se folgas, outras
vezes, percebe-se o desconforto de uma roupa inflexível ao seu corpo, às reais proporções
de sua interioridade. Aliás, em Nestor não interioridade; ele não se coloca em questão e
por isso é passível do riso e deboche de seus companheiros de pastoril.
Observando-o numa breve leitura chegamos realmente a acreditar que apresenta
todos os atributos de um pico machão: primeiramente, Nestor é um cabo e por isso, por
menor que seja seu cargo dentro da hierarquia militar, ele detém um poder sobre a maioria
dos cidadãos timbaubenses, homens comuns; segundo, é conhecido por todos como um
265
Don Juan, posando de “gavião” para qualquer rabo de saia, fornicando, engravidando e
depois abandonando a esposa de Heronides, seu amigo e futuro compadre; terceiro,
pressupõe-se também ser corajoso, pois carrega no peito o brasão da lei e da ordem,
disponibilizando-se a perseguir desordeiros e mal feitores; e quarto, possui um portentoso
pênis.
Mas no suceder de novas leituras, percebe-se a debilidade de tais impressões, pois
elas são desfeitas progressivamente na medida em que Nestor é logrado ou ridicularizado.
Logo no primeiro ato recebe de Heronides um banho de mijo e uma “pinicada” na cabeça
quando fazia uma serenata para Vicência na calada da noite. Depois desse episódio tenta
vingar seu orgulho ferido usando sua autoridade para prender Heronides, mas no final,
deixando-se enganar pelo compadre, Nestor é quem termina preso. Sua fama de
conquistador revela-se posteriormente um embuste, pois permite-se manipular por Zefa;
também não é tão valente quanto fanfarreava, só sabendo levantar a voz para moleques
como Juca e Valter, não possuindo nenhuma autoridade sobre Romeu ou Rapaz e
empunhando um revólver ainda assim é ferido por Mané Fozinho que apenas portava um
punhal. Por fim, seu pênis lhe é extirpado a mando de Heronides, como castigo pela
traição.
Completa-se seu processo de emasculação, e a crise de sua masculinidade
corporifica-se na própria perda do falo. É necessário a concretude de um temor do
inconsciente masculino para que Marinho expresse o peso da armadura da masculinidade e
como ela é anacrônica e nociva ao bem viver, não importando a geografia ou a época.
Tanto é que o dramaturgo anuncia um tema tão em voga na contemporaneidade, logo
após a porrada que foi o Golpe Militar de 1964, situando sua ação nos longínquos anos 30
da década passada. Como Marinho, mesmo insistindo na máscara/disfarce de matuto
inculto, foi visionário e sensível às dores humanas, à complexidade da própria existência,
seja através do riso ou do enternecimento.
Heronides, o segundo vértice dessa peleja, também conhecido como um cabra-
macho, apesar de vingar sua honra com o sangue e o falo de Nestor, revela também as
idiossincrasias de um mito em franca decadência: o da masculinidade. Segundo Durval
Muniz Albuquerque Júnior (2003), no Nordeste, entre o final do culo XIX e os anos 30
do século seguinte, ocorre um processo de feminilização da sociedade patriarcal, sobretudo
a partir do advento da República, da urbanização do país e, consequentemente, com a
introdução dos princípios estéticos e ideológicos da modernidade. Todas essas
transformações no seio da sociedade patriarcal propiciaram uma horizontalização dos
266
valores e das normas ditas falocráticas. Analisando o livro Ordem e Progresso (1959), de
Gilberto Freyre e artigos do mesmo autor, além de artigos de outros intelectuais
contemporâneos a Freyre, publicados nos anos 30, no Diário de Pernambuco, Albuquerque
Junior constata que “todas as mudanças históricas que vinham ocorrendo, desde o final do
século passado, mas que se acentuaram após a Primeira Guerra Mundial, são descritas
como uma feminização do social, como um processo de horizontalização que o gênero
feminino representaria”. (2003:32). Em sua opinião, tomando a leitura da obra de Freyre,
essa feminização do social seria o que conduziu a sociedade ao declínio do patriarcalismo,
isto é:
[...] uma sociedade onde o predomínio do homem, do macho, do Pai, não seria
contestado, e onde em torno dessas figuras se estruturava toda a ordem social.
[...] o feminino é constantemente associado, nesses discursos, à horizontalidade.
A mulher, no próprio ato sexual, representaria esta posição, enquanto o homem,
o poder, o domínio, o ativo, representaria a verticalidade, a ordem hierárquica
que não deveria ser ameaçada. (2003:32-33).
Albuquerque Júnior observa, portanto, que como sintoma da decadência do
patriarcalismo, começa a haver, por parte de intelectuais e artistas, um retorno ao Nordeste
patriarcal, um debruçar-se sobre esse passado moribundo; o que resultou na trilogia
freyriana sobre as origens e decadência da sociedade patriarcal e no movimento
regionalista, onde há um resgate de imagens do homem nordestino que remetem aos
primórdios da civilização, ou seja, à conquista da região Nordeste. Desbravadores que no
passado aventuraram-se numa terra inóspita, adaptando-se às mais adversas condições de
sobrevivência, sem medo de morrer nem remorsos de matar. Dessa maneira, por terem
vivido um longo período sem a presença da lei do Estado, “o nordestino teria desenvolvido
um enorme espírito de liberdade, que teria sido inclusive o propulsor do povoamento dos
sertões” (ALBUQUERQUE JÚNIOR 2003:197), já que esses homens que buscavam a
liberdade a qualquer preço foram em sua grande maioria cristãos novos a fugir da
Inquisição e criminosos degradados que viam no interior a oportunidade de fugir ao
cárcere. Dessa maneira, a cultura do homem nordestino seria rústica, assim como ele
próprio e que, consequentemente garantia-lhe a sobrevivência. Sendo assim, o nordestino,
[...] fruto de uma história e uma sociedade violenta teria, como uma de suas
mais destacadas características subjetivas, a valentia, a coragem pessoal, o
destemor diante das mais difíceis situações. A literatura de cordel e outras
manifestações literárias da região não cansavam de decantar homens valentes
que conseguem resolver as mais difíceis situações por uma atuação pessoal e
267
individual sua. Coragem e um apurado sentido de honra seriam características
constituintes desses homens, que não levariam desaforo para casa. Homens que
preferiam perder a vida do que perder a honra, serem desfeitados publicamente.
Entregar-se à prisão seria o supremo opróbrio para homens que preferiam
morrer lutando. (ALBUQUERQUE JÚNIOR 2003:193-194).
A honra pessoal é um dos principais temas do discurso regionalista ao traçar as
características do nordestino. Valor que torna legítimos atos extremos, como o assassínio,
em nome de sua legitimidade e limpidez:
A honra não podia ser atacada nem por outro homem, nem por sua mulher. Um
homem sem honra não existia mais, era considerado um pária na sociedade. O
adultério feminino, por exemplo, tinha que ser duramente punido pelo marido,
sob pena de ficar desonrado. Nesses casos, a morte do amante e da esposa era o
que faria esse homem ser novamente aceito no convívio social.
(ALBUQUERQUE JÚNIOR 2003:193-194).
Heronides como se sabe é reconhecido pelos amigos como um autêntico cabra-
macho. Tanto é que no pastoril comentava-se esparsamente da loucura de Vicência em
trair o marido e que certamente tudo terminaria em desgraça, como de fato aconteceu. Este
comentário é feito por Dudu à sua consorte Berenice. Pressupomos, portanto, que
Heronides correspondia aos pressupostos do macho nordestino, segundo a descrição de
Albuquerque Júnior, e que por isso, sua vingança em nome da honra já era um fato
esperado. Prenúncio de tragédia, única maneira do varão recuperar sua dignidade perdida.
Contudo, a retaliação de Heronides não corresponde completamente ao estereótipo do
cabra-macho criado pela geração do Romance de 30. Pelo contrário, a resolução que
Marinho a seu personagem talvez corresponda diretamente ao fenômeno descrito por
Albuquerque Júnior como feminização do social no período em que a ação de Viva o
cordão encarnado transcorre. Heronides não mata Nestor; castra-o, mas deixa-o viver. Seu
crime é realizado sem o conhecimento de seus pares, afirma-se como um ato ilícito do qual
deve permanecer na obscuridade. Provavelmente porque em Viva o cordão encarnado há a
presença da lei na figura do Delegado que aparece no primeiro ato. Por isso, os atos de
Heronides são susceptíveis a sanções. O velho do pastoril não descende de nenhuma
influente família nem é protegido por nenhum Coronel da região. Não indícios na peça
de nenhum envolvimento por parte de Heronides com o poder estabelecido. Por isso conta
apenas com sua astúcia e valentia. Além disso, por dirigir um pastoril de ponta de rua, ele
encontra-se sob constante vigilância da lei, já que os charivaris eram corriqueiros neste tipo
268
de manifestação popular como a própria peça indica no primeiro ato e os estudos sociais
sobre o pastoril profano confirmam.
71
Todavia, o que demonstra a horizontalização dos valores desse personagem e, por
extensão, dos costumes de sua sociedade é que além de perdoar Vicência, Heronides ainda
assume a criança bastarda como seu filho legítimo, mesmo que sua desonra seja do
conhecimento de todos, como bem ilustra a cena final de Viva o cordão encarnado em que
Heronides anuncia ao público o nascimento do filho de Vicência e comunica que o rebento
receberá o nome do pai. No caso, Heronides referia-se a si mesmo; no entanto, a resposta
da platéia choca suas expectativas, berrando o nome de Nestor:
PASTORAS Que corneta finada,/ Que longe eu ouço tocar!/ É o romper da
bela aurora,/ Que os anjos vêm anunciar!/ Partidários adeus, adeus,/ Adeus,
adeus, adeusinho/ Que eu já me vou!/ Que eu já me vou!/ Adeusinho, a
amanhã,/ Até amanhã,/ Se nós todas vivas for,/ Vivas for! Vivas for!
HERONIDES Pára! Páaaaara! Páaaaaaaaaaara!!! Um grande acontecimento!
Vicência, teve menino! Vai levar o nome do pai!
TODOS – Nestor!!!!! (MARINHO 1999:26).
72
A piada de seus companheiros de pastoril, por mais que ele possa disfarçar um
conteúdo hostil e conservador, revela também a própria condescendência que não reage de
uma maneira declaradamente negativa. Pelo contrário, desde o início da peça que a traição
de Vicência era de conhecimento de todos e não nos comentários dos personagens
qualquer censura de cunho moral. Assim como há uma feminização do cabra-macho
Heronides, que por amor a Vicência perdoa sua traição e assume o menino bastardo como
seu filho, seu meio social também se mostra de certa maneira conivente com esta nova
situação. Ou seja, conhecem e aceitam a nova ordem que se estabelece; uma idéia de
família destituída de qualquer ideal de pureza e imutabilidade. Isto reforça o caráter de
transformação e movimento que esta sociedade anuncia. Através de Viva o cordão
encarnado, Marinho professa sua no ser humano, em sua capacidade de mudança e de
71
Cf. MELLO; PEREIRA (1990).
72
O trecho que extraímos não pertence à primeira edição de Viva o cordão encarnado (1969) da qual nos
utilizamos durante todo este estudo. Empregamos o trecho da segunda edição da peça que sofreu diversas
modificações do autor, como a exclusão de todo o primeiro ato. Na primeira edição, quando Heronides
anuncia o nascimento da criança, diz ao público que o menino terá o nome do PADRINHO: “HERONIDES
- Para! Paaaara! Paaaaaaaara! Um grande acontecimento! Vicência teve menino! Vai levar o nome do
padrinho! (MARINHO 1969:126) [grifos nossos]. Optamos pela versão de 1999, por considerá-la uma
escolha mais feliz do autor, pois o chiste do público apenas reforça a condescendência dessa sociedade à
desonra de Heronides, ou seja, sua horizontalização de valores, não reagindo negativamente ao perdão de
Heronides, mas de uma maneira outra que é o viés do riso.
269
adaptação aos novos valores que o tempo traz em seu bojo. De certa maneira, Marinho
concebe um novo homem.
Apesar de, ao final de Viva o cordão encarnado, Marinho reafirmar certos preceitos
da sociedade patriarcal como o da família, da monogamia (com a punição de Nestor) ou da
marginalização da mulher pobre à objeto sexual do patrão, do filho de família tradicional;
esses mesmo valores não se apresentam peremptórios. Marinho revela-os frágeis. uma
horizontalização permitindo a fricção e o fluxo de antinomias, como se nada fosse fechado
ou eterno, revelando uma sociedade em seu entardecer. Encontra-se aqui um processo
dialético de morte e renascimento de uma civilização.
Em Viva o cordão encarnado, Marinho retorna a discutir a família brasileira,
notadamente calcada numa estrutura patriarcal. Porém, ele direciona seu enfoque sobre as
classes desvalidas de sujeitos praticamente à margem da sociedade, que contam apenas
com sua alegria, humor, sagacidade e sua arte para sobreviverem. Diferentemente de Um
sábado em 30, centrada nos conflitos de uma tradicional família nordestina durante a
revolução de outubro. Aliás, a família é um tema constante na comédia de um modo geral,
desde a comédia nova de Terêncio, passando pelo teatro de Molière até a comédia séria de
Denis Diderot. O que reforça os laços de sua dramaturgia à tradição da comédia, pois a
discussão em torno da noção de família é um tema recorrente na quase totalidade de seu
teatro.
Há uma discussão implícita na obra de Marinho que recai sobre a família brasileira,
numa perspectiva freyriana em que a toma como a origem da sociedade brasileira. Marinho
retorna, portanto, a discussão iniciada em Um sábado em 30, agora sob um novo viés. Em
Viva o cordão encarnado, não existe mais a oposição entre patrões e empregados. Fora da
casa patriarcal as hierarquias são relativizadas pelo fluxo contínuo de valores que a rua
possibilita. Mesmo que Marinho apresente uma sociedade em crise na sua primeira peça,
onde a moral patriarcal não ressoa mais com a mesma contundência, como podemos
perceber nas contradições do discurso a da ação de Seu Quincas, patriarca da família ou a
revolta do negro Julião que jura vingança ao seu autoritário patrão. Todavia, nesta peça
Marinho não apresenta uma solução. Não consegue alcançá-la, pois sob o jugo da casa
patriarcal tudo permanece na imobilidade, na estagnação. Enquanto que na medida em que
ele leva suas histórias para a rua, à mercê do fluxo modernizador da urbanidade (mesmo
numa cidade interiorana), e abandona os senhores & arlequins de Um sábado em 30,
deixando-se seduzir pela malícia de seus malandros e pela festa popular, o pastoril profano,
dá-se uma reviravolta em sua visão de mundo. Encontramos uma sociedade ao revés da
270
que se testemunha em Um sábado em 30: em pleno estado de ebulição, de transformação e
renovação. É como se Marinho nos dissesse com sua parábola às avessas que apenas nas
camadas mais humildes é onde podemos encontrar a seiva revolucionária que leva o ser
humano ao questionamento e a renovação. Essência que se encontra sobremaneira na
cultura cômica popular.
2.2.6. Como se num thriller: quase cinema
Rubem Rocha Filho, carioca radicado no Recife, foi um desses intelectuais que
sempre esteve atento à produção de Luiz Marinho, quando na “efervescência do Brasil de
1967, antes do palco amordaçado de 68, mas depois do tranco autoritário de 64”, com
adolescentes ginasianos de Copacabana, fez subir ao palco A incelença, “esta obra-prima
onde comicidade e denúncia social se conjugam com maestria”. (ROCHA FILHO 1994:1).
Anos depois desta montagem, em artigo para o Jornal do Commercio, Rocha Filho
assevera que escolhera com Luiz Mendonça as incelenças, não alterando o diálogo
original, possibilitando que permanecesse o lastro da cultura da Zona da Mata
pernambucana: “Mas o tragicômico episódico da área rural não alienava a platéia, não
tornava exótico com suas beatas carpideiras e coronéis que ‘contratavam’ mocinhas
pobres. Ao contrário, a trama e o ritmo envolviam e davam margem à reflexão e ao riso,
serviam ao discurso de protesto e a firmação da teatralidade”. Desde então, confessa,
“ficou fascinado por este teatrólogo que escreve como ninguém, que sintonizou o ouvido
para captar a inflexão de sua gente e transformá-la em música no palco”. (ROCHA FILHO
1994:1).
Dois anos depois de ter levado ao palco A incelença, em 1969, na revista Dionysos,
Rubem Rocha Filho, a propósito de uma análise sobre aspectos do que considera a
dramaturgia nordestina, assim se refere à peça Viva o cordão encarnado:
O Pastoril, folguedo de menos nítida espinha dorsal dramática, também foi
usado por Luiz Marinho na comédia Viva o cordão encarnado. Além do lado de
transcrição musical e do uso da disputa entre duas facções, Luiz Marinho realça
um dos personagens mais teatrais que o Nordeste tem para oferecer: o Velho do
Pastoril. Esta espécie de palhaço triste e prostituído, cuja função é entremear
piadas, cançonetas e lances de dinheiro, misto de cômico e rufião, resumem a
vitalidade e a criatividade de um Calvero num mundo de fantasia e miséria de
Fellini. (ROCHA FILHO, 1969:45).
271
É bastante perspicaz a leitura que Rocha Filho faz do personagem Heronides, o
Velho Matraca do pastoril, ao correlacioná-lo com a tradição de um Calvero, comediante
vivido por Charles Chaplin (1889-1977) em seu Limelight, filme de 1952, que foi exibido
no Brasil como Luzes da ribalta. Não coube a Rubem Rocha Filho aprofundar seus termos
de comparação, nos quais muitas diferenças se dariam, mas trazer este personagem
chapliniano à cena remetendo-o à figura do triste Heronides, já a dimensão do tipo de
personagem que Marinho construiu: um homem apaixonado, um palhaço envelhecido, que
tem uma esposa grávida de um filho que não é seu embora se faça de “cego, surdo e
mudo” - motivo de zombaria por parte da comunidade que ele mesmo ridiculariza no
palco, quando no exercício de suas funções. Velho decadente e traído, Heronides é o
arquétipo dos bufões que riem da falta de sentido da existência, embora a vivam com
intensidade e riam-se dela até o último momento. Sabem da finitude de tudo.
Ao contrário da peça de Marinho, o filme de Chaplin é um melodrama
(“melodrama, também ao seu modo”): a trama é simples, envolve o amor de um palhaço
em decadência, Calvero, por uma jovem bailarina, Theresa, em profundo estado de
depressão. Cria-se entre eles uma relação de cumplicidade e amizade, culminando com o
estrelato da bailarina graças ao apoio e empenho desse pobre palhaço. O filme remete à
passagem das várias gerações no meio artístico (no universo circense, especialmente, isto
se dá de forma ainda freqüente),
73
trazendo novas perspectivas à bailarina, enquanto
Calvero encaminha-se para morte. Signo do renascimento da própria Arte que permanece
viva, nele configura-se a capacidade da arte de prolongar-se por todo o sempre, além da
vida, além da morte. Se à Theresa assoma o medo de envelhecer, Calvero adverte que
apenas “nos transformamos”. Como Chaplin, Marinho também soube redimensionar a
percepção de seus personagens e de seu universo social, além de imprimir à comicidade
uma inevitável dramaticidade. Compreensão dos limites que a vida nos impõe, numa
convulsão de sentimentos extremamente ambíguos que nos levam, como aos personagens
de Viva o cordão encarnado, a uma corrosão das grimas através da sobriedade nem tão
inocente do riso. “Comédia séria”, diremos. Peça que espelha a essência mesma do teatro,
como metáfora de sua grandeza e pequenez, talvez como a versão brasileira da música de
Chaplin, para seu filme magistral, Luzes da ribalta, letra de José Augusto e versão de
Antonio Almeida e João de Barros, pseudônimo de Braguinha (1907-2006): Vidas que se
acabam a sorrir / Luzes que se apagam nada mais / É sonhar em vão, tentar ao outro
73
Sobre o circo e as famílias circenses, consultar: TORRES, Antonio (1998); AVANEZ; TAMAOKI (2004)
272
iludir / Se o que se foi, pra nos não voltará jamais / Para que chorar o que passou /
Lamentar perdidas ilusões / Se o ideal que sempre nos acalentou / Renascerá em outros
corações”.
74
Para um dramaturgo que além do teatro, sempre amou o cinema, esta “fita” estaria
no seu inconsciente é o que supomos, estamos a sugerir. Ao remeter Heronides, o velho
Matraca, ao Calvero de Chaplin e às figuras de Federico Fellini (1920-1993), Rocha Filho
enriquece ainda mais a dramaturgia de Marinho associando-o ao autor de La strada (A
estrada da vida) - outro ícone cinematográfico. O Fellini que ainda neste filme poder-se-ia
encontrar “a influência direta, evidente e confessada do lirismo de Chaplin”, como
constatou José Lino Grünewald (1970: xiv) em seu prefácio à tradução brasileira do roteiro
de A estrada (FELLINI [1954] 1970). E é interessante lembrar o quanto Fellini refletia
sobre o cômico, a comicidade, o riso, chegando mesmo a dizer:
Nada é mais triste do que o riso; nada mais lindo, magnífico, estimulante e
enriquecedor que o terror do desespero profundo. Creio que cada homem,
enquanto vive, é prisioneiro deste medo terrível ao qual toda a prosperidade está
condenada a fracassar, mas que guarda, até em seu mais profundo abismo, essa
liberdade cheia de esperança que lhe permite sorrir em situações aparentemente
desesperadoras. Por isso, a intenção dos autênticos escritores de comédia quer
dizer, os mais profundos e honestos – não é, de modo algum, unicamente
divertir-nos, mas abrir despudoradamente nossas cicatrizes mais doloridas para
que as sintamos com mais força. Isto pode ser aplicado a Shakespeare e a
Molière tanto quanto a Terêncio e a Aristófanes. Por outro lado, não existe um
verdadeiro poeta trágico estou pensando em Eurípides, Goethe, Dante que
não saiba manter seus sofrimentos mais terríveis com uma certa distância
irônica. (FELLINI [1974] 1983: 53)
Novas correspondências. Sobretudo porque, como Fellini, Marinho sabia descer de
sua “aristocracia de matuto letrado, para conferir beleza ao inóspito, amando homens,
mulheres e crianças, endurecidas pela existência, vivendo em meio aos escombros de uma
cidadezinha qualquer, não apelando para o artifício de esconder as feridas sociais e
humanas de seus personagens; sempre encontrando a beleza no feio e sem deixar de rir
com eles da própria solidão humana. Solidão talvez, muito sua no seu solipcismo. De toda
a modernidade que se espraiava no zênite de sua existência. Se isto se faz bem presente
em La strada, em que os personagens fellinianos são ilhas que não se comunicam,
deixando para o final a inevitabilidade da ausência de comunicação, através de uma dor
dilacerante que faz com que o velho palhaço (Zampanò, interpretado por Anthony Quinn)
74
Disponível em: http://jose-augusto.letras.terra.com.br/letras/196994/. Acesso: 2 jan. 2007.
273
desabe em choro profundo ante a morte da amada (Gelsomina, interpretada por Giulietta
Masina), contrariando a moral de que “homens não choram”, em Viva o cordão encarnado,
Marinho faz de seus personagens seres também isolados, uma sociedade de tristes bufões
que retomam a vida, voltam ao canto, como se uma graça inevitável tivesse que ser
absorvida no turbilhão de desencontros que a vida prega, e sem choro: Boys don’t cry.
Tudo isto confere a Viva o cordão encarnado (e a obra marinha em sua totalidade), uma
vastidão analítica ainda não explorada pelos estudos acadêmicos, especialmente pela
comunicação popular que sua obra possui e porque esta comunicação também fora bastante
usada pelos dois cineastas, mesmo quando matizadas de sofisticações estilísticas e
filosóficas, especialmente no caso de Fellini.
Metamorfose, enigmas da Arte. Do cinema ao teatro.
2.2.7. Coda ou a saideira
Em Viva o cordão encarnado, Vicência, a mulher de Heronides (o Velho Matraca),
encontra-se grávida não do marido, mas do amante, Cabo Nestor. O marido enganado
como vimos – encomenda ao motorista Mané Fozinho a castração do amante de sua
mulher, através de uma simulação de briga entre os dois para dar a entender não ter sido
proposital. Vicência, ao saber do ocorrido, fica histérica, sendo levada para fora de cena,
sem que saiba que fora seu marido o articulador deste fato. Cabo Nestor, o Don Juan
“cabra macho” o que passou “de galo a capão” -, construiu sua masculinidade a partir da
imagem pública de um sedutor contumaz.
Ao ser fecundada por outro homem que não seu marido, Vicência demonstra não
sua independência, como sua coragem diante de circunstâncias adversas, ao mesmo tempo
remetendo ao mito da fecundação da Virgem Maria pelo Espírito Santo. Ou seja, Vicência
é uma Nossa Senhora às avessas e, ao final da peça, nasce seu filho com o Cabo Nestor.
Diferentemente do dogma cristão, Vicência não é fecundada pelo Espírito Santo,
autoridade e potência divina, mas por Nestor, um cabo, autoridade terrena, mas também
um deus Phallus. Porém, uma autoridade cujo poder é o tempo todo colocado sob questão,
sendo ridicularizado do princípio ao fim pelos seus antigos companheiros de malandragem
até culminar em sua castração: a extirpação total de sua potência fálica. De certa maneira, a
emasculação de Nestor reverbera na idéia de morte do Pai. De finitude versus o infinito.
Além disso, o cabo não é um modelo de virtude. Carrega em si mesmo todos os vícios
humanos: a vaidade, a luxúria, a deslealdade, a covardia, etc. Transita entre ordem e a
274
desordem. Ao mesmo tempo em que representa a ordem temporal, deixa-se invadir pela
desordem do pastoril profano, pelo mundo de malandros e falsas donzelas. Respeita a
ordem dos vadios, cuja lei é o desejo e a moral, a cachaça. Cabo Nestor, um Espírito Santo
às avessas. Com sutileza é que Luiz Marinho rebaixa o mito bíblico, deslocando-o para a
corporeidade da vida. Apropria-se do conteúdo religioso da versão sacramental do
folguedo em que se adora e louva o nascimento do Messias, prolongando-o na celebração
alegórica do nascimento humano, da vida que se renova face à morte. Do fenecimento do
deus Phallus ao nascimento de um novo ente. É o próprio renascimento da humanidade,
caminhando lado a lado com o seu contrário e que expressa o caráter ambivalente da
existência.
Eis, finalmente, uma sociedade e seus valores morais desnudados pelo teatro.
Teatro que humaniza a sociedade através da paródia, da ironia e da comicidade devolvendo
ao leitor/espectador suas dúvidas apontando caminhos sem didatismos -, despedindo-se
de um mundo em processo de transformação, reconfigurando a nova vida que se inicia, “-
Como qualquer coisa nova/ inaugurando o seu dia./ - Ou como o caderno novo/ quando a
gente principia”. (MELO NETO 1993:201).
Em seu réquiem à infância, Marinho homenageia uma personagem cara às suas
mais tenras lembranças e que provavelmente lhe serviu de inspiração na criação de seu
Viva o cordão encarnado:
Zefa vivia cantarolando jornadas de pastoril e me ensinava o Dueto do patrão
mais a Patroa. Eu adorava ir para o seu quarto para vê-la se preparar para o
Pastoril. Era do Cordão Encarnado, e vestia um vestido de lamê vermelho,
curto, deixando as coxas de fora. Passava na língua um pedaço de papel de seda
vermelho e com ele, pintava as faces, e cantarolava, e dizia coisas baixinho que
eu não entendia, oferecendo cravo aos “Meus Senhores” e finalmente pronta,
saía pelo portão do fundo do quintal. Mas antes, pregava um lacinho vermelho
no meu pijaminha, e mandava eu sonhar com os anjos. Mas eu sonhava mesmo
era em ir para o Pastoril torcer pelo Cordão Encarnado de Zefa! (MARINHO
1980:6-7).
O vermelho, cor predileta de Zefa, reflete a própria personalidade do personagem e
sintetiza o espírito da comédia marinha: cor diurna, vivaz, solar, incita à ação; “é a imagem
de ardor e beleza, de força impulsiva e generosa, de juventude, de saúde, de riqueza, de
Eros livre e triunfante”. (CHEVALIER; GHEERBRANT 1990:945). Nesta comédia,
Marinho reencontra-se com seu passado, assim com em Um sábado em 30. Porém, em seu
rito despedida, o fim e o esquecimento que as palavras depositadas na folha em branco
pressupõem, apontam para um novo estágio de renascimento e libertação. O cordão
275
encarnado transfigura-se no cordão umbilical de Luiz Marinho e o filho de Vicência é o
próprio autor renascido. Do adulto despedindo-se da criança e ressurgindo para uma nova
vida. Iniciando um novo rito.
Debruçamo-nos numa dramaturgia calcada nas suas lembranças de infância, em que
a memória individual de Marinho encontra-se em estado bruto, apropriando-se e
reelaborando personagens e situações próximas de suas vivências. Através da recriação da
sociedade patriarcal, Marinho revela-a em suas contradições. Oferece uma imagem do real
que não reflete a realidade, mas que a fricciona, refrata-a, colocando-a em questão. Eis sua
ficcionalidade, sua alteridade; seu projeto estético e ideológico, provocando àqueles que o
lêem ou assistem suas encenações, através do riso, do escárnio, mas também do
enternecimento, quase chegando às lágrimas, a reflexão, o questionamento sobre nosso
modus vivendi, sem perder a seriedade, nem a sisudez, mesmo que por vezes, diante do que
se ou assiste, possa-se cair no chão de pernas para o ar, ébrios de seus prelúdios à
cachaça. Que venha a abrideira!
Considerações finais
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas
muito mais que lindas
essas ficarão.
Carlos Drummond de Andrade. Memória. (2003:252-253)
277
Considerações finais
A história age profundamente e passa por uma multidão de fases,
quando conduz ao túmulo a forma ultrapassada da vida.
A última fase da forma universal histórica é a sua comédia.
Por que é assim o curso da história?
É preciso, a fim de que a humanidade se separe alegremente do seu passado.
Marx e Engels, apud Mikhail Bakhtin (1987:382).
O dramaturgo Luiz Marinho construiu uma obra que Anco Márcio Tenório Vieira
denominou como sendo um “teatro da memória”, posto que sua dramaturgia estava calcada
em suas memórias. Sob este prisma, Tenório Vieira observa que não se trata de
autobiografia ou de relato memorialístico, mas de memórias ficcionalizadasque, para o
ensaísta, “encerra um conjunto de lembranças” individuais ou coletivas que Marinho
entrelaçou para dar “sentido à sua existencialidade”. (VIEIRA 2004:18). Recriações do
vivido, das estórias aprendidas ou ouvidas, da infância à adolescência.
Ou seja, o que Tenório Vieira possibilitou ao estudo das “peças marinhas” foi
inseri-las nas poéticas da memória, poéticas nas quais muitos escritores e/ou poetas
brasileiros modernos, se adentraram, a exemplo de Manuel Bandeira (1886-1968), Murilo
Mendes (1901-1975), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e João Cabral de Melo
Neto (1920-1999). Todos eles, e cada um ao seu modo, trilharam por temáticas que
remetem às reminiscências pessoais, em que o “eu lírico” significação à “memória
prévia” (como nomeou Drummond um poema seu), nas quais encontramos a configuração
de um passado que, de repente, transcende à própria subjetividade.
Entre estes poetas, uma afinidade muito próxima à que Gilberto Freyre (1900-
1987) encontrava entre ele e o pintor Cícero Dias (1907-2003): afinidades de
reencontrarem o tempo através da saudade “uma saudade com paradoxais projeções sobre
o futuro”, saudade não confinada em nostalgias, ambos buscando “passados perdidos
através de métodos pós-modernos de captura de tempos aparentemente mortos; de
procurarmos fazê-los viver, ligando-os a tempos presentes e a tempos futuros; e sugerindo
que, afinal, o tempo, sendo tríbio, é na verdade um só”. (FREYRE [1970] 1980:50-51).
278
Neste voltar-se ao passado, um encontro com mundos insuspeitados que estavam na
interioridade dos criadores ou na captação de valores de toda uma cultura, sua civilização
experimentada através da pulsão poética, da configuração da visão de mundo, do senso
cósmico de cada um, superpondo vidas, experimentando dúvidas e contradições, porque
não se continha mais nos limites do mundo.
Poetas que articularam uma “escrita do eu” envolta nas memórias mais fundas de si
mesmos, transfiguradas em linguagens que desafiaram a todos eles, sob os mais diversos
disfarces, máscaras de si mesmos em que a “infância” filtrada, cumpria um ritual de
desdramatização dos homens em que essas crianças se tornaram, ou como dizem as
epígrafes do nosso Réquiem à infância: “Só o passado verdadeiramente nos pertence”
(Bandeira) ou como em Drummond, em que tudo o que aconteceu ficou gravado, não no
ar, mas em si mesmo, e a partir das memórias vieram à luz, num processo de “lembrar,
escrever, esquecer”. Essa poética memorialística associa-se às “peças marinhas” que,
através de sua criticidade interna, provoca uma corrosão que as faz distanciar-se de um
mero “saudosismo”. Poética que se alimenta do vivido que, em Marinho, está internalizado
em suas mitologias pessoais. O presente passando a significar vários tempos num só,
remetendo ao mito, mas também chegando mesmo a transcendê-lo, pela historicidade.
Nele, a corrosão é ficcional porque desrealiza o realizado e apresenta-se ao imaginário do
leitor/espectador com uma mobilidade que simula o visto para dispersá-lo em seguida,
dando-lhe nova concretude, sempre na probabilidade do vir a ser, como nas duas peças que
analisamos: Um sábado em 30 e Viva o cordão encarnado. Nestas duas peças que
estudamos, uma transfiguração do real sem que se queira ser “preservacionista” de
qualquer passado, mesmo que, como em Carlos Drummond de Andrade, nele se flagre um
“menino antigo” que evoca imagens de sua infância, para revivê-la como reconfiguração
de seu próprio mundo: seja a de sua Timbaúba natal, dos morros de onde vem, das caiporas
que o assustavam, dos tacos de fumo que colocava nos troncos de árvore para proteger-se,
ou das bênçãos de Mestre Carlos “o que aprendeu sem s’insiná”. Sua revistação ao passado
não se de maneira fortuita, mas com vitalidade redobrada, especialmente porque a
forma ficcional que elegeu foi o teatro, e dentro dele a comédia teve maior relevância.
Para Tenório Vieira, a dramática de Luiz Marinho inclui a memória pessoal e
coletiva, começando com suas lembranças mais recônditas, até o momento quando ganham
a escrita e a cena e, desta forma, se mostra como memórias ficcionalizadas. A trilha da
memória e sua poética vêm de intrínsecas eras e certamente terá continuidade enquanto o
ser humano estiver sob os influxos da história de suas subjetividades na intencionalidade
279
de seus criadores. Não se trata de um événement discreto e efêmero, pois uma poética da
memóriacontinuidade às lembranças, as ilumina, nem que seja para delas se esquecer
e delas se lembrar, num ritual revelador do ser e do estar no mundo, do seu devir, uma vez
que aberto o “baú das lembranças”, já não se pode silenciar. Há iluminações no presente de
onde se fala, de onde se enuncia. Os tempos misturam-se: o passado, o presente e o futuro.
Mas é, notadamente no Ontem, como diz Drummond (e também em Bandeira, nas
epígrafes que abrem nosso Réquiem), que tudo está gravado em nossa interioridade e,
através de nossas próprias vidas e obras, nos dissipamos, porque sabemos (ou
presumimos saber) qual é o insuportável mau cheiro da memória(ANDRADE [1945]
2003:159) que nos pertence.
Também em Luiz Marinho vamos encontrar, a partir de seus depoimentos, uma
poética da memória, um teatro da memória, que, em vez de um eu lírico, dá-se a ver
uma forma dramática que absorve o eu, o tu e o ele, enquanto criação estilística e
intencionalidade quanto ao gênero escolhido que, no seu caso, deu-se através da
Dramática. Mas para que pudesse usar da dramática, valeu-se de um “euque mobilizou
toda a sua obra teatral. Buscou uma organização dramatúrgica clara em seu conjunto, com
sensibilidade e inteligência. E, sobretudo, com humor e comicidade, mas também com
dramaticidade e atento às agruras do humano, seja em riso, seja pela dor, mas sempre
buscando no seu leitor-espectador fiel, um diálogo que sem se despreocupar com a empatia
imediata, buscava de forma cerrada uma comunicação abrangente que não deixasse aquele
seu receptor indiferente. Em Marinho, não existem abstrações, metafísicas inócuas, mas
dramas e comédias íntimas, antiidealistas e anti-românticas, tendo nas mãos não só o
“sentimento do mundo” drummondiano, mas a carnadura do real, do homem, das coisas
que se abrem à ética, por questões morais e não de ordem intelectual. Literatura que não se
engaja em didatismos, nem quer servir às ordens do dia da política; quer deixar ao leitor-
espectador a decisão de agir contra todas as injustiças que degradam o humano e a
sociedade. Em sua obra, não apenas a memória a serviço de “si mesmo”, de suas
reelaborações interiores e do meio circundante, mas, sobretudo a serviço de uma utopia,
vinda de um Thomas More (1480-1535) para quem um novo homem e uma nova sociedade
estão em devir: arte & literatura enquanto poética & ética em jogos espelhares.
Estudar estas duas peças de Luiz Marinho deu-nos a oportunidade de averiguar a
maneira como ele despede-se de seu mundo de criança: através de um trabalho de luto que
implica na superação do perdido, possibilitando-lhe reinvenções do mundo pela ironia,
280
pelo humor, pela alegria, pelo humano riso. E, assim sendo, fazer com que a finitude da
vida, seja recuperada pela alegria e pelo esquecimento da dor, da aflição e das lágrimas.
Em Um sábado em 30, sua peça de maior fortuna crítica, foi-nos possível cotejar o
gênero sério, formulado por Denis Diderot, com uma possível comédia séria em Marinho.
Por um lado, ambos estavam de acordo que não havia pureza nos gêneros dramáticos. Por
outro lado, o teatro tinha como atributo um “caráter moralizante”, sendo que, em respeito a
esta questão, ambos divergiam: para o primeiro, a Moral era dos homens honestos, porém
burgueses, para Marinho sua gente virtuosa” era composta de homens e mulheres em
situação de subalternidade, vivendo de forma ambígua e contraditória. Nisto, a decalagem
histórica assumia seu papel. Mas é, sobretudo, ao desmascarar a sociedade patriarcal, ao
invés de confirmá-la em seus valores que nossa análise ganha novo patamar dentre as
exegeses feitas à peça. Especialmente, por tratarmos dos mecanismos do cômico como
procedimentos que ele usa para desestabilizar toda uma sociedade, através do riso, sua
força cômica.
Em Viva o cordão encarnado, deparamo-nos com algumas das questões já
rastreadas e discutidas na primeira comédia marinha (moral, ética, sexualidade, etc), aqui
ampliadas e resignificadas, sob um novo viés, ganhando uma nova forma, uma nova cena.
Outros espaços, outros personagens. Percebe-se, claramente, o amadurecimento estético de
Marinho, no aperfeiçoamento da carpintaria teatral. Diferentemente de Um sábado em 30,
nesta peça, há uma sofisticação na elaboração da intriga e da ação dramática, reforçando
seu diálogo com a comédia nova latina de Terêncio e a comédia séria de Denis Diderot.
Também há um aprofundamento nas questões de gênero (feminino, masculino); tudo
ganhando um novo sentido através da paródia e do riso, onde a sociedade patriarcal, nas
suas camadas mais marginais é colocada a nu, em suas contradições. Na dialética da casa
& da rua.
Chegamos a observar que ainda ficaram de fora deste estudo que apenas
continuidade ao trabalho de Tenório Vieira - as várias questões e sugestões feitas tanto por
Mauro Mota, como por Valdemar de Oliveira: estudar as “peças marinhas” pelo viés da
Lingüística. Nem foi possível analisar todas as “comédias marinhas”, como pretendíamos
originalmente. No entanto, ao eleger nosso corpus, fomos no encalço das obras mesmas,
perguntando a cada uma o que elas queriam ou podiam nos dizer. E, nestas escolhas, muito
de nossas subjetividades, mas sem descuidar do rigor na interpretação das obras, e sem
descuidar da compreensão que cada uma delas exigiu de nós. Esta foi nossa interpretação,
nossa leitura, nossa busca de significação para as “peças marinhas” que, em nosso
281
Réquiem à infância, encerra um percurso, mas abre-se a outro: a perspectiva de
aprofundamento da obra completa de Luiz Marinho. Uma obra que está a exigir um
conjunto de estudiosos que dêem conta de sua vastidão e de sua grandeza para
conhecimento da sociedade em que vivemos, dos homens e mulheres que somos.
EM BUSCA DE UM TEATRO DA VIDA: o teatro de Luiz Marinho, objeto de
nosso estudo, através de suas comédias Um sábado em 30 e Viva o cordão encarnado,
estabelece relações entre indivíduos, crenças, valores, com várias vozes entrecruzando-se
numa sociedade que de tão real, ficcionalizou-se por si mesma. Parecem peças de um
exílio interior, no qual se resguardam convenções inventadas pelo próprio dramaturgo. Um
theatrum mundi, só seu, esculpido pelas narrativas de tantos outros rapsodos de sua cidade,
de seu mundo, que com ele interagiram dando-lhe matéria viva para que a vida não fosse
apenas um sonho, mas a própria materialidade do vivido. Tudo, em ritos de despedida, sem
saudosismos, ritos quase vazios de significados maiores, a não ser aqueles vindos após as
exéquias, os ritos da alegria pela mudança de estação. Por um novo instante de vida.
Efêmera, mas vida. Esta alegria é que lhe deu confiança numa vida melhor, numa
sociedade mais justa, provando que o riso e a comicidade, no país da “piada pronta” como
diz o colunista José Simão da Folha de S. Paulo, pode ser uma eficaz maneira de
compensar um enorme déficit emocional que temos em relação à sociedade e ao mundo em
que vivemos. Mundo de revelações surpreendentes e hilariantes, capaz de, pela
desidentificação do cômico, fazer-nos reencontrarmo-nos com o outro, com nós
mesmos.
Referências bibliográficas
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8. Filmes
- A ESTRADA da vida (La Strada). Argumento: Federico Fellini e Tullio Pinelli. Roteiro:
Federico Fellini, Túlio Pinei, Ennio Flaiano. Diálogos: Ennio Flaiano. Direção: Federico
Fellini. Produção: Dino De Laurentis, Carlo Ponti. Fotografia: Otello Martelli. Música:
Nino Rota, executada por Franco Ferrara. Intérpretes: Giulietta Masina, Anthony Quinn,
307
Richard Basehart, Aldo Silvani, Marcella Rovere, Lilia Venturini. ITA: Ponti De
Laurentis, 1954. 1 DVD (93 MIN), preto e branco.
- LUZES da ribalta (Limelight). Produzido, escrito e dirigido por Charles Chaplin.
Intérpretes: Charles Chaplin, Claire Bloom, Sydney Chaplin, Nigel Bruce, Norman Lloyd,
Buster Keaton Marjorie Bennett e com o ballet André Eglevsky e Melissa Hayden. EUA:
Warner Brothers, 1952. 1 DVD (141 MIN), preto e branco.
9. Obras de metodologia científica
- BASTOS, Lídia da Rocha et al. [1979] 2004. Manual para a elaboração de projetos e
relatórios de pesquisas, teses, dissertações e monografias. 6ª ed. Rio de Janeiro: LTC.
- CASTRO, Claúdio de Moura. 1976. Estrutura e apresentação de publicações científicas.
São Paulo: McGraw-Hill do Brasil.
- CRUZ, Anamaria da Costa; PEROTA, Maria Luiza Loures Rocha; MENDES, Maria
Tereza Reis. 2002. Elaboração de referências. ed. Rio de Janeiro: Interciência; São
Paulo: Intertexto.
- ______; MENDES, Maria Tereza Reis. 2003. Trabalhos acadêmicos, dissertações e
teses: estrutura e apresentação. Niterói: Intertexto.
- ECO, Umberto. [1977] 1983. Como se faz uma tese. Trad. Gilson César Cardoso de
Souza. São Paulo: Perspectiva.
- FRANÇA, Júnia Lessa. [1990] 2003. Manual para normalização de publicações técnico-
científicas. 6ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Ed. Universidade Federal de Minas Gerais.
- MENDES, Maria Tereza Reis; CRUZ, Anamaria da Costa; CURTY, Marlene Gonçalves.
2002. Citações: onde, quando e como usar. Niterói: Intertexto.
- SEVERINO, Antônio Joaquim. [1985] 2002. Metodologia do trabalho científico. 22º ed.
rev. e ampl. São Paulo: Cortez.
- SOLOMON, Décio Vieira. [1971] 2001. Como fazer uma monografia. 10ª ed. São Paulo:
Martins Fontes.
10. Outras obras
- ALMEIDA, Guilherme de; ROSSI, Spártaco. 1944. Canção do expedicionário. In:
MARQUES, Alvonira. [[s.d.].]. Hinos oficiais e canções patrióticas do Brasil. Santa Cruz
do Sul – RS: Rigel, p. 60-62.
- ANDRADE, Carlos Drummond de. 2003. Poesia completa. Conforme as disposições do
autor. Fixação de textos e notas Gilberto Mendonça Teles. Introdução Silviano Santiago.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
308
- BANDEIRA, Manuel. 1993. Estrela da vida inteira. 20ª ed. Introdução de Gilda e
Antonio Candido. Rio de Janeiro: Nova fronteira.
- FERREIRA, Ascenso. [1928] 1988. Catimbó. 7º ed. Recife: FUNDARPE.
-MARQUES, Alvonira. [s.d.] Hinos oficiais e canções patrióticas do Brasil. Santa cruz do
Sul – RS: Rígel.
- MENDES, Murilo. 1994. Poesia completa e prosa. Organização, preparação do texto e
notas Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
- NAVA, Pedro. 1986. Balão cativo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
- NIETZSCHE, Friedrich. (1882-1888) 1987. Ditirambos de Dionísio (Fragmento 67).
Trad. Márcio Suzuki. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 set. Folhetim, nº 554, p. 12.
- PESSOA, Fernando. 2006. O eu profundo e os outros eus. Seleção Afrânio Coutinho.
Apresentação Maria Bethânia. Introdução geral Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
- RAMOS, Graciliano. [1945] 2006. Infância (Memórias). Rio de Janeiro; São Paulo:
Record.
- SANT’ANNA, Affonso Romano de. 1984. Os limites do autor. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 2 set. Folhetim, nº 398, p. 12.
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