Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
República Pau-Brasil:
política e literatura no modernismo de Oswald de Andrade.
Giordano Barbin Bertelli.
São Carlos – S.P.
2009.
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
República Pau-Brasil:
política e literatura no modernismo de Oswald de Andrade.
Giordano Barbin Bertelli.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, como parte
dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Sociologia.
Orientadora: Tânia Pellegrini.
São Carlos – S.P.
2009.
ads:
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária da UFSCar
B537rp
Bertelli, Giordano Barbin.
República Pau-Brasil : política e literatura no modernismo
de Oswald de Andrade / Giordano Barbin Bertelli.. -- São
Carlos : UFSCar, 2009.
204 f.
Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de São
Carlos, 2009.
1. Sociologia da cultura. 2. Literatura brasileira. 3.
Modernismo. 4. Andrade, Oswald de, 1890-1954 - crítica e
interpretação I. Título.
CDD: 306.42 (20
a
)
Dedico este trabalho à deglutição por parte de todos que lhe reinventem os
sentidos e as implicações. De minha parte, ofereço-o como retribuição às
proteínas dos caraíbas que tem sido meu banquete contumaz: Evaldo Doín
(em memória), Tânia Pellegrini, Bento, Jô e Lila. E á Samy, que o lera antes
mesmo de escrito, e de quem, por ventura, estas páginas deglutiram um
pouco da beleza.
Agradecimentos
À Profª. Dra. Tânia Pellegrini, pela motivação, argúcia crítica e refinamento
intelectual com que acolheu e orientou esta pesquisa.
Aos Profs. Drs. Richard Miskolci e Wilton Marques, pela leitura e observações
generosas que realizaram para o exame de qualificação deste trabalho.
Aos demais professores e professoras cujas disciplinas ajudaram a incitar o
diálogo entre o historiador e o sociólogo que por ventura habitem em mim: Fabiano
Engelman, Jacob Lima, Maria da Glória Bonelli, Maria Inês Mancuso, Tânia Pellegrini
e Valter Silvério.
Aos colegas do mestrado/doutorado de 2007.
Ao pessoal da Diretoria de Ensino da Região de São Carlos: à Dirigente de
Ensino, Débora Gonzáles Costa Blanco; à equipe de supervisão, especialmente à Vânia
Maria Carradore; a todo pessoal administrativo e aos professores da Oficina
Pedagógica, especialmente, Roberta, Débora, Vanessa, Juliana e Renato; à dona Rosa.
Aos colegas do Programa Bolsa Mestrado: Cristiane, Dani, Débora, Djair,
Florence, Kiki, Malu, Paulo e Sabrina.
Aos meus pais Bento e Joconda; à mana Elisa e ao Jamilson.
À vó Maria, à Marleninha, Meire, Mí, Mac e Araripe.
Aos bambas de São Carlos e adjacências: Flavinha, Liginha, Fabiano, Flora e
Marina, cujas rodas de samba ajudaram-me a recompor as energias.
Aos boêmios de Tambaú: Bí, César, Danilo, Dalva, Davilson, Jairão, Michel,
Marquinho, Paulina, Talitinha, Vermelha e outros tantos.
À minha querida Samy, comparsa de perplexidades, dúvidas e descobertas.
Resumo
Este trabalho trata das relações entre política e literatura, no modernismo de Oswald de
Andrade, investigadas, predominantemente, através da leitura do Manifesto da Poesia
Pau-Brasil, do Manifesto Antropófago e do livro de poemas Pau-Brasil. Analisamos
tais relações mediante o enfoque do imbricamento entre campo literário e campo
político, e da inserção de suas lógicas e agentes no processo de diversificação sócio-
cultural ligado à expansão cafeeira. Temos por objetivo explicitar os aspectos ambíguos
de cumplicidade, colaboração e dissidência que as proposições e realizações da estética
oswaldiana apresentaram, em relação aos esforços de elaboração de uma épica para São
Paulo. Levada a efeito pelos grupos letrados e dirigentes da elite paulista, a épica
bandeirante visava a construção de uma ordem sócio-simbólica, que revestisse de
distinção sua hegemonia e neutralizasse as ameaças advindas da alteridade cultural dos
grupos sociais oriundos do processo de transformações que então atravessavam o
espaço social da capital paulista. Neste campo de forças, o modernismo de Oswald se
afigura como uma força simbólica nutrida social e subjetivamente dos conflitos que
compuseram suas condições de emergência.
Palavras-chave: Oswald de Andrade, Modernismo, Paulicentrismo, Reabilitação do
Popular.
Abstract
This work aims to investigate the relationship between politics and literature in Oswald
de Andrade’s modernism, mainly through the reading of Manifesto da Poesia Pau-
Brasil, Manifesto Antropófago and the poetry book Pau-Brasil. We have analyzed such
relationships focusing on the junction between the literary and the political fields, and
the integration of its logic and agents in the sociocultural diversity process related to
coffee growing. We aim at clarifying the ambiguous aspects of complicity,
collaboration and dissent that the propositions and achievements of Oswald’s aesthetic
presented, vis a vis the efforts of preparing an epic for São Paulo. Carried out by groups
and leaders of Sao Paulo’s literate elite, the épica bandeirante aims to building a socio-
symbolic order, which would distinguish its hegemony and would neutralize the threats
arising from the cultural otherness of social groups originated in the process of change
that then crossed the social area of São Paulo. In this field of forces, the modernism of
Oswald appears as a symbolic force fed social and subjectively of the conflicts that
composed its conditions of emergency.
Keywords: Oswald de Andrade, Modernism, Paulicentrismo, Revaluation of Popular
Culture.
Tarsila do Amaral, Retrato de Oswald de Andrade (1922).
Durante essa meia-dúzia de anos fomos realmente puros e livres,
desinteressados, vivendo numa união iluminada e sentimental das mais
sublimes. Isolados do mundo ambiente, caçoados, evitados, achincalhados,
malditos, ninguém não pode imaginar o delírio ingênuo de grandeza e
convencimento pessoal com que reagimos.
(Mário de Andrade, O Movimento modernista).
Índice
Considerações iniciais.................................................................................. p. 1
Capítulo I: O campo de produção cultural em São Paulo.........................p. 11
1 – São Paulo na virada do século...................................................................p. 12
1.1 – O campo artístico-literário......................................................................p. 24
1.1.1 – Analfabetismo e cultura leitora............................................................p. 28
1.1.2 – Mercado editorial e expansão da imprensa..........................................p. 32
1.1.3 – A problemática literária........................................................................p. 35
1.2 – Concessão e dissidência: a trajetória social de Oswald de Andrade.......p. 41
1.2.1 – Experiência amorosa e literatura...........................................................p. 43
1.2.2 – A boêmia literária..................................................................................p. 50
1.2.3 – Literatura e negócios..............................................................................p. 53
1.2.4 – A entrada no campo literário..................................................................p. 54
1.2.5 – Composição da fileira modernista..........................................................p. 60
1.2.6 – Tensões e divergências internas..............................................................p. 67
Capítulo II: A mítica bandeirante.....................................................................p. 75
2 – A elite paulista...............................................................................................p. 75
2.1 – Uma épica para São Paulo...........................................................................p. 84
2.2 – Políticos e literatos.......................................................................................p. 91
2.3 – Exorcizando o olhar colonizador.................................................................p. 99
2.4 – A reabilitação do popular: domesticação e estranhamento..........................p. 103
2.5 – O paulicentrismo oswaldiano.......................................................................p. 111
Capítulo III – A expedição Pau-Brasil: reatualizações do bandeirantismo....p. 120
3 – A redescoberta do Brasil – primeiros movimentos............................................p. 121
3.1 – A des-autorização da descoberta.....................................................................p. 125
3.1.1. – Breve digressão sobre a nudez e a preguiça................................................p. 130
3.1.2 – A África não cabe no Brasil?........................................................................p. 136
3.1.3 – Últimos movimentos....................................................................................p. 141
3.2 – Intermezzo colonial.........................................................................................p. 143
3.3 – Figurações da “pátria paulista”........................................................................p. 149
3.4 – A urbanidade do Brasil cafeeiro......................................................................p. 156
3.4.1 – A construção da capital bandeirante.............................................................p. 164
3.4.2 – Os Postes da light: leitura e escrita de São Paulo.........................................p. 167
3.5 – Turismo poético pelas minas bandeirantes.......................................................p. 177
3.6 – A re-autorização da descoberta.........................................................................p. 181
Considerações Finais...............................................................................................p. 189
Bibliografia................................................................................................................p 194
1
Considerações iniciais
Este trabalho toma como objeto de estudo as relações entre política e literatura,
no modernismo de Oswald de Andrade. O enfoque de tais relações se dá mediante a
consideração dos imbricamentos entre campo político e campo literário, na São Paulo
das três primeiras décadas do século XX, bem como da inserção de suas respectivas
dinâmicas e agentes, no contexto de transformações e conflitos que então se
configuravam, na vida social da capital paulista.
Partindo da extração sócio-cultural similar entre os literatos modernistas e a
elite política paulista (Miceli, 1979; Camargos, 2001), procuramos enfocar os âmbitos e
fatores sociais que atuaram na constituição dos vínculos entre estes grupos, com ênfase,
em seu interior, na trajetória sócio-literária de Oswald, para, a partir daí, buscarmos
explicitar a dimensão simbólica das prováveis analogias e tensões entre suas respectivas
práticas.
Com efeito, as relações entre política e literatura, em Oswald de Andrade, serão
predominantemente enfocadas em sua sedimentação simbólica, como uma “visão
oswaldiana” do mundo social brasileiro, com seus elementos e conflitos culturais e
políticos, cujo “redescobrimento” o escritor e seus companheiros de geração tão
apaixonadamente se imputaram como missão.
Assim, temos por objetivo, primeiramente, visando a identificação e
interpretação dos fenômenos que correspondem ao nosso objeto, a análise dos traços
literários característicos de Oswald, articulados aos fatores que, no período estudado,
compunham as condições sociais de produção, circulação e consumo da literatura. Tal
análise procura guiar-se sobre o pano de fundo das mudanças sócio-econômicas,
políticas e culturais características da Primeira República brasileira. E, em segundo
lugar, em decorrência do primeiro objetivo, pretendemos uma interpretação do
modernismo oswaldiano, que evite a oscilação de visões recorrentes em nossa crítica e
história literárias, presentes na dicotomia entre o heroísmo modernista de “vibração
revolucionária” (Amaral, 1997, p. 122) e a imagem do “homo ludens que se diverte com
a íntima contradição ética alienado-revoltado diante de uma sociedade em mudanças”
(Bosi, 1994, 357, grifos do autor.). O que equivale a salientar tanto pontos virtualmente
questionadores da realidade brasileira de então, quanto seu eventual comprometimento
com a ordem que a definia, ou, em outros termos, o que equivale a apontar os aspectos
2
de transigência e co-participação, assim como os de recusa e dissensão do modernismo
oswaldiano, face ao intento das elites paulistas de então de casar à sua hegemonia
política e a seu poderio econômico uma produção simbólica que atribuísse a São Paulo
o papel de liderança cultural da nação.
Detendo-nos no período que corresponde à aparição de Oswald no universo
literário e à elaboração e realização de sua proposta estética modernista, o corpus
literário enfocado compreende o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, o Manifesto
Antropófago e o livro de poemas Pau-Brasil, todos publicados entre 1924-28, o que não
impede a utilização subsidiária, ao longo da pesquisa, de outras obras do mesmo ou de
outros autores e períodos. Aliás, note-se que, além de poesia e manifestos, Oswald
transitou por uma miríade de gêneros e formas literárias, característica predominante no
perfil dos intelectuais de sua época. Ao lado de uma intensa e praticamente ininterrupta
atividade jornalística, em que exerceu crítica literária de arte e de teatro, além da crônica
mundana e política, aventurou-se na prosa de ficção, escrevendo desde romances de
“vanguarda”, como Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte
Grande (1933), paralelamente aos de escrita mais “convencional”, como os três
volumes da Trilogia do Exílio (Os condenados, 1922, A estrela de absinto, 1927 e A
escada vermelha, 1934), até os romances de “crítica social” de Marco zero: A revolução
melancólica (1943) e Chão (1945). Acrescente-se ainda sua produção teatral, em que se
destaca a retomada antropofágica em O rei da vela (1937). No fim da vida produziria
ainda duas teses, visando uma frustrada tentativa de carreira acadêmica, e o primeiro
volume de suas memórias, Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe (1954).
O referencial teórico-metodológico adotado consiste, em maior medida, nas
formulações de Pierre Bourdieu, principalmente aquelas que compõem As regras da
arte, A distinção, A economia das trocas simbólicas e O poder simbólico.
Resumidamente, Bourdieu propõe uma espécie de topologia do social, em que
este é pensado enquanto um espaço em que circulam capitais de ordem diversa:
econômica, social e cultural. Em função da distribuição/apropriação destes últimos entre
os agentes sociais, constituem-se o(s) campo(s) sociais, estruturados em posições
ocupadas pelos agentes, segundo o grau de desigualdade entre o volume, o tipo e a
composição de seus respectivos capitais. Dada a condição de escassez desses recursos
(os capitais são pensados como trunfos de poder no jogo social, em torno da disputa por
oportunidades de ganho material e simbólico), a estrutura dos campos consiste de
3
relações de força, de disputas de poder pela manutenção ou mudança de sua hierarquia
interna, assim como das regras e critérios que a definem. Como define o autor:
O campo é uma rede de relações (de dominação ou de subordinação, de
complementariedade ou de antagonismo etc.) entre posições [...]. Cada
posição é objetivamente definida por sua relação objetiva com outras
posições ou, em outros termos, pelo sistema das propriedades pertinentes,
isto é, eficientes, que permitem situá-la com relação a todas as outras na
estrutura da distribuição global das propriedades. Todas as posições
dependem, em sua própria existência e nas determinações que impõem a seus
ocupantes, de sua situação atual e potencial na estrutura do campo, ou seja,
na estrutura da distribuição das espécies de capital (ou de poder) cuja posse
comanda a obtenção dos lucros específicos (como o prestígio literário) postos
em jogo no campo. Às diferentes posições [...] correspondem tomadas de
posição homólogas, obras literárias ou artísticas evidentemente, mas também
atos e discursos políticos, manifestos ou polêmicas etc (Bourdieu, 1996, pp.
261-262, grifos do autor).
Com essa concepção, Bourdieu pretende uma forma de abordagem do social a
que chama, por oposição às abordagens substancialistas, de relacional, na qual os
fenômenos de constituição de grupos ou relações entre ou intra grupos, têm como
condição e medida de possibilidade as relações objetivas de força entre as suas
respectivas posições ocupadas, seja no interior de um mesmo campo, seja em campos
distintos e relacionados.
Em conjunção com essa formulação do espaço e dos campos sociais, encontra-se
a maneira como Bourdieu concebe a constituição dos sujeitos no interior dos mesmos.
Pode-se dizer que esse processo consiste na aquisição de determinadas disposições
(esquemas tendenciais de ação, pensamento, percepção e apreciação) que variam, por
um lado, em função da quantidade e natureza dos capitais adquiridos e, por outro, das
possibilidades de sua utilização segundo a posição ocupada pelo agente, num dado
momento de sua trajetória social e das relações objetivas que esta posição mantém com
as demais. Com efeito, o habitus, conceito fundamental para o autor, como um sistema
de disposições incorporadas, opera enquanto um complexo gerativo de práticas, sempre
em intersecção com as estruturas e posições objetivas do mundo social, isto é, o
habitus dos ocupantes dessas posições, [...] sistema de disposições que, sendo o
produto de uma trajetória social e de uma posição no interior do campo literário,
4
encontram nessa posição uma oportunidade mais ou menos favorável de atualizar-se
(idem, p. 243).
Assim, Bourdieu postula que as disposições constitutivas do habitus são
homólogas às estruturas objetivas do social, ou seja, o funcionamento de ambas tende a
obedecer uma mesma lógica, o que quer dizer que há uma certa circularidade entre o
campo que produz o habitus, o qual, por sua vez, reproduz o campo. Vale observar,
aqui, que não há precedência ou hierarquia causal pré-estabelecida, mas, antes, uma
dinâmica permanente e simultânea de subjetivação do objetivo e objetivação do
subjetivo.
Neste ponto, cabe um pequeno parênteses acerca do conceito de subjetividade,
que parece se inscrever em tais formulações, e de suas implicações para a análise
literária. Em Bourdieu, o espaço conceitual da subjetividade parece ser revestido pela
noção de habitus. Com efeito, conforme o exposto acima, isto é, de acordo com a
relação de constituição recíproca que se arma entre elementos subjetivos e objetivos, tal
perspectiva capta os fatores de subjetividade, que porventura atuem na elaboração
literária, em função de sua correlação com as estruturas objetivas do espaço social.
Nessa medida, tal modelo analítico rejeita as crenças que, a um só tempo, sustentam-se
e dão sustentação no e ao jogo de disputas, no interior do campo literário, tal como a
idéia de um gênio criador, isento de determinações alheias à singularidade de sua
vontade. Por outro lado, não se pode deixar de indagar se, em conjunto com o descarte,
cientificamente necessário, de tais crenças egressas da estética romântica, não se estaria
obliterando a análise de fatores subjetivos que, embora não diretamente dedutíveis da
objetividade do mundo social, exerçam determinado papel na elaboração estética.
Tal indagação toca, no fundo, em um ponto crucial a toda teoria sociológica, isto
é, a relação, na constituição das relações e dinâmicas sociais, entre sujeito-objeto, ação
estrutura, indivíduo-sociedade. As formulações de Bourdieu parecem captar,
predominantemente, os fatores subjetivos que acabam por se estratificar na objetividade
das estruturas sociais. As disposições subjetivas que não encontram uma atualização na
margem de possibilidades dadas pelo espaço social dos campos, mantêm-se, assim, fora
da ênfase predominante da análise, “relegadas” às dimensões da subjetividade cuja
eficácia social permanece inteligível.
Isso implica, para uma análise sociológica da literatura, a dificuldade de
identificação e explicitação dos elementos estéticos individuais, que possam ser
portadores de traços potencialmente transgressivos ou desestabilizadores da ordem
5
sócio-simbólica, em cujo interior foram social e subjetivamente gestados. Em outras
palavras, no âmbito de constituição recíproca entre o campo e o habitus, entre as
estruturas de poder e as configurações da subjetividade, captam-se predominantemente
os fatores subjetivos, cuja elaboração estética coincide com as solicitações simbólicas
inscritas na reprodução das hierarquias sociais.
Entretanto, em se tratando de estudar, sociologicamente, as conexões entre
política e literatura, é importante que se atente igualmente para as relações que se
podem estabelecer entre aspectos concretos da experiência social do autor, ou grupo de
autores, e a formação da subjetividade, como uma dinâmica que auxilia a pensar a
confrontação dos sujeitos com as estruturas sociais. Como argumenta Brah, não há “um
‘sujeito da experiência’ já plenamente constituído a quem as experiências acontecem,
[antes] a experiência é o lugar de formação do sujeito” (2006, p. 360). Os sujeitos não
precedem à experiência social em cujo campo de relações são subjetivados, assim,
tampouco, são diretamente dedutíveis das estruturas sociais. No interior deste processo,
distinguem-se, ainda, subjetividade e identidade:
A subjetividade – o lugar do processo de dar sentido a nossas relações com o
mundo – é a modalidade em que a natureza precária e contraditória do
sujeito-em-processo ganha significado ou é experimentada como identidade.
[...] De fato, a identidade pode ser entendida como o próprio processo pelo
qual a multiplicidade, contradição e instabilidade da subjetividade é
significada como tendo coerência, continuidade, estabilidade; como tendo
um núcleo – um núcleo em constante mudança, mas de qualquer maneira um
núcleo – que a qualquer momento é enunciado como o “eu”. (idem, p. 371,
grifos da autora).
Nesse sentido, a subjetividade pode ser pensada como a dimensão do sujeito
que, embora constituída socialmente, encerra disposições que não necessariamente se
coadunam com as possibilidades comportamentais ou expressivas inscritas no espaço
social. Ao passo que identidade pode ser compreendida como a dimensão do sujeito em
que certas disposições subjetivas entram em correlação, as quais podem assumir a
forma, por exemplo, da cumplicidade ou da contestação, com as solicitações identitárias
predominantes no mesmo. A subjetividade é um espaço de virtualidade, de
potencialidades múltiplas de percepção, de pensamento, de ação e de expressão,
6
algumas das quais se estratificam, se sedimentam nos contornos que definem,
transitoriamente, as configurações identitárias de um dado momento histórico-social.
Esta maneira de conceber a relação entre subjetividade e identidade pode
permitir compreender melhor as virtualidades e concretizações estéticas, tanto formais
quanto temáticas, inscritas na literatura oswaldiana, sob a forma de uma sobreposição
que encerra simultaneamente incongruência e complementaridade, assim como nos
municia para a análise de aspectos que a sociologia de Bourdieu mantém fora do foco
de sua ênfase.
Com efeito, neste trabalho, a análise da estética oswaldiana lança mão dos
ganhos teóricos que a teoria dos campos de Bourdieu permite a uma sociologia da
percepção e da representação do mundo social, com suas implicações nas construções
simbólicas elaboradas acerca do mesmo pela literatura. Isso, sem que se percam de
vista, entretanto, aspectos sociais ligados à subjetividade e à identidade, que não são
completamente inteligíveis mediante sua remissão às injunções dos campos ou das
relações entre eles, e que, no caso de Oswald de Andrade, desempenharam um papel
importante na elaboração estética da matéria que compunha o universo social em que se
inseriu sua trajetória.
Nesse sentido, atentamos para os fatores de ordem estrutural que circunscreviam
escritores modernistas e elite política em um mesmo setor do espaço social e em setores
homólogos, em seus campos específicos. Paralelamente apontamos, ao lado desta
dinâmica, que pontua uma proximidade entre os setores letrados e dirigentes das elites,
e assinala uma distância estrutural do grupo modernista em relação aos grupos
populares, que o processo de transformações que afetava a vida paulistana, à época,
estendia campos de experiência social, em cujo interior tais balizas estruturais tendiam
ao deslocamento ou diluição, abrindo inadvertidos - e por vezes temidos -, pontos de
contato e passagem entre os universos hegemônicos e os subalternos. Aqui, no que
respeita Oswald, atemo-nos também à consideração dos efeitos que um processo de
socialização – cindido entre as experiências inscritas em seus meios sociais de origem,
portanto mais vulneráveis às injunções dos campos, e aquelas oriundas da vivência
direta ou indireta de elementos pertinentes aos universos subalternos – exerceu sobre a
sedimentação das disposições perceptivas e expressivas acionadas na construção de sua
estética.
Deste modo, nas relações entre política e literatura, armadas por uma dinâmica
social que aproximava grupos de dirigentes e de escritores, procuramos igualmente
7
observar as simbolizações dispensadas aos elementos que emergiam dos universos
culturais das camadas subalternas e afetavam o universo cultural hegemônico. Isto é,
tentamos observar em que medida o processo de diversificação étnica, social e cultural
da São Paulo cafeeira adentrou o universo simbólico modernista, qual a lógica
simbólica que presidiu sua admissão ou sua eventual “intromissão”, quais os efeitos de
sua presença para o estreitamento ou afrouxamento dos vínculos sedimentados entre
políticos e literatos modernistas.
Assim, as imbricações entre política e literatura, primeiramente, prestam-se ao
enfoque, no nível institucional dos partidos e, principalmente, dos órgãos de imprensa
que atuaram na estruturação do campo literário em São Paulo, em grande parte
vinculados às iniciativas editoriais da elite política paulista, nos quais foram acolhidos
os escritores do grupo modernista.
Em segundo lugar, ao enfoque do trânsito sócio-simbólico entre políticos e
literatos. Este trânsito se desdobra, por um lado, em incentivo artístico e consumo
estético que a elite política dispensou aos autores e obras modernistas, incluindo aí a
contrapartida de prestígio político e cultural de que os primeiros se revestiam na
condição de benfeitores das artes. Por outro lado, em pontos ambíguos que
comportaram tanto afinidades quanto conflitos simbólicos entre estes grupos. Isto é, as
cumplicidades e tensões instaladas entre a prática e o imaginário político, característico
da elite paulista, e as representações da realidade sócio-cultural brasileira, levadas a
cabo pelos modernistas, e, sobretudo, por Oswald, no terreno literário.
Em um terceiro sentido, talvez mais essencial que os dois anteriores, por
envolvê-los e os atravessar, política e literatura se encontram, nesta pesquisa, no ponto
em que as elaborações literárias compõem suas linhas simbólicas com as linhas
conflitivas da dinâmica social. Isto é – transpondo para a sociologia, a sugestiva
asserção de Deleuze de que as novelas se compõem de linhas de escrita entretecidas
com linhas de vida (1996, p. 66) – no ponto em que cabe, à análise das conexões entre
relações socais, cultura e literatura, perguntar: com quais aspectos da dinâmica social a
literatura compõe ? Quais de suas forças são canalizadas para o interior estético da
obra? Quais dentre elas são neutralizadas, atenuadas ou domesticadas, ou, ao contrário,
realçadas e potencializadas esteticamente?
Se a escrita literária é parte da construção simbólica da realidade social, a
literatura mobiliza procedimentos mediante os quais traça ou dilui fronteiras, conforma
ou desestabiliza hierarquias, amarra ou contesta os laços entre coisas e lugares, sujeitos
8
e posições. Assim, na medida em que (re)maneja espaços e vínculos, pertencimentos e
exclusões, admissões e repulsas, a estética é poder, a literatura é política. Nesse sentido,
enfocamos, como eixos de significação, os Manifestos e a poesia de Oswald, que se
estendem no interior do feixe de conflitos simbólicos a fervilhar no bojo do processo de
transformações da sociedade paulistana, eixos a partir dos quais se operava a seleção e
elaboração estética de aspectos sócio-culturais, que entrariam na construção do Brasil
redescoberto por seu modernismo.
Por conseguinte, no primeiro capítulo ocupamo-nos da reconstrução e análise
das mudanças históricas que atuaram na intensificação da produção cultural em São
Paulo, nas primeiras décadas do século. A ênfase recai sobre o processo de
transformação sócio-histórica, que tanto fez emergir os fatores que promoveram a
estruturação, ainda que incipiente, do campo literário, quanto ajudou a compor um feixe
de conflitos sócio-simbólicos que atravessava a sociedade paulistana. Em um segundo
momento, ainda nesse capítulo, reconstruímos a trajetória social de Oswald de Andrade,
marcada tanto por sua inserção nos códigos comportamentais e expressivos de seu meio
social de origem, quanto por suas itinerâncias, que pontuavam focos de dissensão com
os mesmos. Paralelamente, apontamos as circunstâncias do campo literário que
contribuíram para a formação do grupo modernista e para suas tensões internas.
No segundo capítulo, enfocamos a inserção do campo literário no campo do
poder, o que, de acordo com nosso objeto, assumiu a forma de suas relações com o
campo político. Assim, procedemos à reconstrução da emergência da elite paulista no
cenário econômico e político nacional, procurando delinear seu esforço de construção
de uma mítica bandeirante que, em relação às elites concorrentes, revestisse de
distinção e legitimidade sua fortuna econômica e seu poder político recém-adquiridos e,
em relação aos novos grupos sociais, ascendentes e subalternos, instaurasse uma matriz
de estabilização simbólica e identitária, em face dos deslocamentos e instabilidades
promovidos pelo processo de diversificação sócio-cultural de São Paulo. A seguir,
enfocamos como a homologia entre o campo literário e político constituiu um vínculo
em cujo interior encontrariam lugar tanto os traços de cumplicidade, quanto os de
rebeldia, que as propostas e realizações estéticas de Oswald apresentam, em relação ao
empreendimento simbólico bandeirante.
No terceiro capítulo, retomamos os eixos de significação, já salientados no
capítulo anterior, compostos pelo paulicentrismo oswaldiano e pela reabilitação do
popular, analisando seu funcionamento no interior da economia simbólica de sua poesia
9
Pau-Brasil, considerada como a realização poética da auto-imputada missão oswaldiana
de redescoberta do Brasil, a qual enfocamos em suas cumplicidades e rebeldias face ao
nacionalismo paulistano vazado na mítica bandeirante.
Por fim, procuramos atravessar os três capítulos com a tentativa de delinear
aspectos da sociabilidade que compunham o circuito por onde circulavam estes homens
e obras, esforço que acreditamos necessário para complementar o intento de uma
sociologia da estética literária, que pretenda evidenciar as estetizações literárias do
social.
No quarto de dormir ralhos queridos não queriam que eu andasse com meu
primo. Pantico não tivera educação desde criança e por isso amava
vagamundear. Que diriam as famílias de nossas relações que me vissem em
molecagens gritantes ou com servos? Só elas é que devíamos freqüentar.
Eu achava abomináveis as famílias das nossas relações.
Oswald de Andrade, Memórias Sentimentais de João Miramar.
11
Capítulo I: O campo de produção cultural em São Paulo
1 – São Paulo na virada do século
O Modernismo paulista esteve indissociavelmente ligado às mudanças materiais,
socioeconômicas, políticas e culturais observáveis – como de resto em todo o Brasil da
passagem do século XIX ao XX – no estado de São Paulo, concentradas, com maior
força, em sua capital.
O período assistiria à expansão da lavoura cafeeira ao então chamado Oeste
Paulista, descortinando vastas zonas de exploração, cujas fronteiras movediças
acompanhavam, e faziam-se acompanhar, pelos trilhos de estradas de ferro e os silvos
das locomotivas, religando à capital estas até então remotas regiões
1
. Ligada ao porto de
Santos desde 1867, São Paulo tornava-se um ponto estratégico na economia do café,
convertida em seu centro financeiro, técnico e comercial. Impulsionada pelos capitais,
contingentes populacionais, em grande parte de origem imigrante, e recursos
tecnológicos mobilizados no surto cafeeiro, a cidade começava a crescer em proporções
elevadas, tanto espacial quando demograficamente (Sevcenko, 1992, p.108.),
assinalando a espantosa passagem de 23.000 moradores em 1872, para a cifra de
580.000 habitantes em 1920 (Dean, s.d., p. 10). Não por acaso, a década de 1870 fora
apontada como o marco de “uma segunda fundação” da cidade (Morse, 1970, p, 227.).
De fato, as mudanças promovidas pela cafeicultura, o caráter urbano de que se revestira
sua exploração no Oeste, as implicações em infra-estrutura material e humana em
transportes, comércio e financiamento, o refluxo de seu capital para atividades
industriais, intensificado nas conjunturas de baixa dos preços internacionais do produto,
dotariam São Paulo de um dinamismo sem precedentes, que a configurava, na última
década do século XIX, em “uma cidade em fluxo que apenas começava a definir-se,
uma cidade cujo passado não era mais sentido e cujo presente e futuro revestem-se de
especial urgência”. (idem, p. 273.).
Os processos coligados de expansão urbana e industrial, em grande parte
responsáveis pelos abalos no quadro sócio-cultural do então pacato “burgo de
1
Para uma análise histórica do processo de expansão da economia cafeeira e seus impactos sócio-
culturais nas cidades do interior paulista, cf. DOIN, José Evaldo de Melo. O capitalismo bucaneiro:
materialidade e cultura na saga do café. Franca, 2001. Tese (Livre Docência em História) Unesp –
campus de Franca, v.1.
12
estudantes”, vinculavam-se intimamente à expansão cafeeira que, por sua vez,
intensificara-se em função de fatores tanto de ordem externa quanto interna:
Certas circunstâncias aceleravam ainda mais o súbito crescimento do
comércio do café. Primeiro, no Ceilão, o principal rival de São Paulo, uma
praga devastou cafezais, cortando drasticamente a produção. Segundo, a
escravidão foi abolida no Brasil em 1888, abrindo caminho para uma mão de
obra mais eficiente e mais viável de imigrantes europeus livres. Terceiro. a
deposição do senescente imperador pelos militares em 1889 acarretou a
instituição de uma estrutura econômica e política extremamente
descentralizada, que permitiu ao governo do Estado de São Paulo estimular o
comércio sem entraves e reter, no Estado, todo o lucro dele derivado (Dean,
s.d., pp. 9-10.).
As próprias iniciativas ligadas à viabilização do negócio cafeeiro, favorecidas
ainda mais pela disponibilidade de investimentos gerada pelo processo de expansão das
economias centrais, necessitadas de novos mercados de matérias-primas, consumo e
capitais, delinearam um panorama oportuno para a diversificação das atividades
econômicas:
O comércio do café não gerou apenas a procura da produção industrial:
custeou também grande parte das despesas gerais, econômica e sociais,
necessárias a tornar proveitosa a manufatura nacional. A construção de
estradas de ferro proveio, toda ela da expansão do café. [...] construídas pelos
próprios plantadores com os seus lucros ou por estrangeiros seduzidos pela
perspectiva dos fretes do café. [...] o porto de Santos foi igualmente um
empreendimento do café. [...]. As usinas que proporcionavam a maior cota de
energia, [...] foram construídas por empresas européias e norte-americanas,
cuja esperança de lucro se fundava, pelo menos indiretamente, no café, isto é,
no crescimento urbano funcionalmente dependente do café. As primeiras
fábricas também se viram incalculavelmente beneficiadas pela transformação
social já operada pelo café, em particular pela presença não só de uma mão-
de-obra, assim imigrante como nativa [...] mas também de um quadro de
técnicos e contramestres contratados na Europa para superintender as
plantações ou construir estradas de ferro, ou treinados nos novos institutos de
educação superior de São Paulo. (idem, pp. 14-15.).
Cabe acrescentar, a estes fatores, mudanças institucionais concomitantes que
contribuíam para dotar de maior intensidade o processo: a monetarização da economia,
13
acompanhada pelo aumento de setores de relações sociais crescentemente mediadas
pelo mercado, a expansão do setor bancário e, na convergência do advento da mão-de-
obra livre e do aumento do volume de moeda em circulação, a progressiva constituição
de uma sociedade de mercado, ao menos nas áreas sob a influência do sistema de
produção e exportação (idem, pp. 10-11.).
A pujança e dinamismo de que se revestira a cidade de São Paulo, vistos pelos
seus fautores como sinais inequívocos da modernidade e do progresso a coroar o
sepultamento inexorável de seu ainda recente passado colonial, suscitavam os brios dos
grupos de letrados e dirigentes paulistas. O entusiasmo com as novas possibilidades que
então se configuravam, fica patente no empenho de um conjunto de iniciativas que
então eram tomadas pelo poder público municipal de dotar a capital de uma feição
urbanística e arquitetônica calcada nos padrões dos grandes centros europeus e
americanos.
2
Os próprios futuros modernistas não se mantiveram imunes à euforia e
otimismo oficiais. Pelo contrário, o processo de modernização deu margem à elaboração
de uma imagem celebrativa de São Paulo que faria as vezes de importante componente
simbólico fundido às proposições artística e literárias. Oswald de Andrade, em 1921,
momento em o grupo modernista cerraria mais firmemente sua fileiras, exultava de sua
coluna no Jornal do Comércio:
[...] a questão paulista é uma questão futurista
3
. Nunca nenhuma
aglomeração humana esteve tão fatalizada a futurismos de atividade, de
indústria, de história e de arte como a aglomeração paulista. Que somos nós,
forçadamente, iniludivelmente, senão futuristas – povo de mil origens,
arribado em mil barcos, com desastres e ânsias? ... São Paulo avança numa
afirmativa de maravilhas. A sua literatura liberada como a sua arte, tanto
quanto a sua industria e o seu comércio, tem que representar um alto papel e
uma alta missão – não podem parar ante este chora senil dos infecundos de
que Maupassant pôs todo o epitáfio no soluço do seu Clair de Lune. (apud
Boaventura, 1995, p. 79.).
2
Retomaremos este aspecto no terceiro capítulo, por ora, deve-se ter em mente seu caráter marcadamente
voltado para fins de distinção simbólica das novas elites do café, mais do que para a resolução de
problemas propriamente funcionais decorrentes do crescimento da cidade e prementes nos novos bairros
populares.
3
Deve-se observar que “futurismo”, por esta época, era um termo indiscriminadamente empregado na
imprensa em geral, como sinônimo de intensificação das atividades no plano econômico, social, político e
cultural, sem nenhuma conotação específica, entretanto, que o ligasse aos princípios de Marinetti
(Martins, 1978, p. 97).
14
O processo de enriquecimento e expansão urbana, tomado como prova e
justificativa cabais para vocações e pretensões de hegemonia e liderança, convertia-se
na pena do escritor em impulso de toda uma elaboração de motivos épicos, latentes nos
ingredientes fatalistas e teleológicos com que o autor compunha o estado de coisas do
presente, visto como ponto culminante de investidura de São Paulo do futuro marcado
pelo dever missionário de difundir ao restante do pais o progresso econômico e cultural.
Atrelando progresso econômico e literatura, Oswald ligaria mais de uma vez o
Modernismo à industrialização de São Paulo. No Manifesto da Poesia Pau-Brasil, em
1924, definia a poesia como prática de “engenheiros em vez de jurisconsultos”
(Andrade, 1972, p. 204), procedendo ao embate de duas épocas literárias subsumidas na
contraposição entre o signo do Brasil supostamente ultrapassado e conservador dos
bacharéis, e o Brasil moderno cujo futuro pretensamente começava a se efetivar na
figura dos técnicos da civilização industrial.
As levas de europeus que compunham os fluxos imigratórios despertavam com
vigor o “sonho do Brasil branco”, há muito acalentado pelas elites nacionais. As
considerações raciais implicadas na certeza de um futuro promissor para o “povo de mil
origens”, figuravam mais explicitamente na recusa que Cândido Mota Filho, crítico
literário de extração modernista, escrevendo em 1921 no Jornal do Comércio, dirigia ao
que considerava como elementos destoantes do Brasil moderno:
o Brasil do selvagem antropófago, do aimoré todo plumas e dentuças
humanas; o Brasil do miserável mestiço, inepto e indiferente a tudo, ao
estado de sua gente, à integridade de sua pátria; o Brasil do mulato borracho,
das mucamas sapecas, que só cuidam da pinga e das folias do tambu (apud
Fabris, 1994, p. 8.).
4
Menotti Del Picchia também procedeu à vinculação entre proposições literária e
celebração civilizacional de São Paulo. Apoiava sua crítica ao Romantismo, desfechada
em seus apelos de Matemos Peri!, no Correio Paulistano do mesmo ano de 1921, em
que atacava “nosso absurdo e ingênuo amor pelo passado, que mata as aspirações de
fórmulas novas – na política, na economia, na finança, na ética, na literatura” (idem, p.
6), na “evidência” do que considerava como o processo de emergência do novo
brasileiro, consubstancializado no novo paulista:
4
É interessante notar que se trata justamente dos aspectos revalorizados pelos manifestos oswaldianos a
cuja análise procederemos no segundo capítulo.
15
[...] ser poligenético, múltiplo, forte, vivo, culto, inteligente, audaz, fruto de
muitas raças em combate, resultante de muitos sangues e adaptado, pela força
das leis mesológicas, no meio em que surge, temperado pelo clima, plasmado
pela força da fatalidade histórica; traz no seu organismo uma civilização
multissecular, uma cultura requintada (idem, p. 6).
Mário de Andrade também teria sua parte de contribuição para o reforço desta
imagem de São Paulo, armada sob a viga da vinculação entre progresso econômico e
cultural. Na crônica De São Paulo, publicada e 1920 na revista Ilustração Brasileira,
Mário realçava, em meio aos progressos gerais, o transcorrer da vida cultural por ele
dividida entre os “tradicionalistas a corvejar agouros” e os “futuristas
5
em fúria”,
alimentados pela vitalidade das rodas intelectuais onde a conversação era “larga e livre
e a crítica isenta e sem desmaios”, fervilhando em “um ofego bíblico de criação”.
Cenário que o levava a entrever “batalhas e sacrifícios geniais” (idem, p. 26).
Tais tematizações da “metrópole do café”, colocam-nos diante da composição
simbólica de São Paulo neste momento inaugural de sua expansão urbana e de seu
crescimento econômico. Fabulação coletiva, ao menos no âmbito dos grupos que
gozaram, direta ou indiretamente, de uma inserção privilegiada no processo, na qual
contribuíram os futuros modernistas, com a parte que lhes coube da construção. Como
aponta Annateresa Fabris:
Se definimos a visão que os modernistas fornecem de São Paulo como um
“mito tecnizado” é porque ela é mais projetiva do que efetiva, sem que isso
implique o não-reconhecimento do processo de modernização acelerado. Mas
é justamente por ser acelerado que este processo exibe tantos choque e
contradições, obliterados na construção da épica da cidade, que leva em conta
tão somente seus aspectos positivos, coincidentes com a conquista da
burguesia industrial. (idem, p. 31)
.
5
Aqui o termo aparece empregado na função simbólica de que será, predominantemente, investido pelo
debate modernista: trata-se mais de uma estratégia discursiva de desautorização dos critérios estéticos
então hegemônicos – a que a lógica relacional das disputas literárias reservará a rotulação opositiva
passadismo – e simultânea legitimação das proposições modernistas, do que uma acolhida à estética do
movimento italiano. Como defende Fabris: “Embora negado pelos modernistas, o nome de Marinetti é
presença constante na polêmica provocada pela Semana de Arte Moderna, na qual é possível detectar um
tipo de estratégia bem preciso, caracterizado pela adoção das táticas do movimento italiano, mas não por
seus princípios estéticos. A definição de dois territórios, “passadista” e “modernista”, surge nítida no
debate que se instaura na imprensa[...]” (1994, p. X).
16
A compreensão da particularidade que a autora aponta no “mito” em questão,
não se esgota na identificação de seu princípio composicional operando mediante o
desvelar/ocultar de aspectos do processo que se procurava construir simbolicamente.
Pois, deve-se observar, que o mesmo processo, a que a autora chama “conquista da
burguesia industrial”, que fortificava os entusiasmos otimistas das elites paulistas,
colaboraria também para dar corpo aos fantasmas sociais que lhes assombraria de
receios. A industrialização e expansão urbana de São Paulo estavam implicadas em uma
série de mudanças sócio-culturais, com fortes implicações para ordem social e simbólica
então vigente. Nesse sentido, a particularidade mítica da imagem da prosperidade e
avanço de São Paulo emanava da nova dinâmica social que passava a operar na
sociedade paulistana, repleta de conflitos identitários. Isto é, o princípio de composição
do “mito tecnizado” inscrevia-se em sua própria inserção na dinâmica de redistribuição
de forças em curso, consistindo na forma simbólica assumida por uma estratégia
particular de recompor simbolicamente as forças da exterioridade social conflitiva,
canalizando-as para o interior da simbolização mítica mediante a desativação das
implicações problemáticas de seu principal vetor, a industrialização. Como
procuraremos mostrar, um princípio análogo de construção simbólica da realidade
social esteve presente no modo como Oswald vergava as forças sociais conflitivas para
o interior de sua visão poética sobre o Brasil. Não obstante, nem sempre o autor
procedeu de modo a lograr um grau de neutralização suficiente para esvaziar de teor
conflitivo suas realizações estéticas.
Do ponto de vista da composição social, um processo de diferenciação ocorria
correlata e paralelamente ao processo de industrialização. São Paulo progressivamente
deixava de ser uma sociedade relativamente homogênea, herdada de uma estrutura até
pouco tempo composta basicamente por proprietários de terras, escravos e insipientes
camadas médias de homens livres, caracterizada pela relativa solidez das fronteiras que
circunscreviam identidades e posições sociais, para assumir uma estrutura social mais
complexa e fluída, em grande parte, em função da presença de contingentes
populacionais que afluíam para a capital, tanto de nacionais, quanto de estrangeiros
mobilizados pelo café e “extraviados” para a cidade. Assim, o processo de
industrialização não só abria os novos subúrbios populares e empobrecidos, como
também assinalaria a emergência de uma camada nova-rica, em grande parte composta
17
de imigrantes (Dean, s.d., pp. 57-74), a disputar com as elites nativas os espaços de
prestígio social:
Assim foram se adensando bairros já existentes, se formando outros novos e
aparecendo núcleos coloniais mais distantes – Santana, Glória, São Bernardo
e São Caetano. Pelas várzeas, acompanhando as linhas de trens, se instalavam
as industrias e formávamos bairros operários – Brás, Pari, Moóca, Ipiranga,
Bom Retiro, Barra Funda, Água Branca. Pelas colinas adjacentes ao centro se
expandiam os bairros de classe média, entremeados de bolsões mais antigos
de casebres e gente humilde, enquanto, em torno do eixo Avenida São João,
Avenida Angélica e Avenida Paulista, se localizavam os loteamentos mais
abastados, formando bairros ponteados de grandes sobrados e mansões, como
Campos Elísios, Higienópolis e Cerqueira César (Sevcenko, 1992, p. 123).
O grosso da riqueza gerada pela expansão de São Paulo fora concentrada tanto
em algumas poucas mãos imigrantes recém chegadas, como entre os grupos paulistas,
compostos tanto pelas famílias já anteriormente situadas em posições privilegiadas,
quanto por segmentos enriquecidos pelas oportunidades geradas na diversificação dos
negócios no comércio, no mercado imobiliário e financeiro, cujo crescimento vinha de
par com o café e a industrialização. Não era incomum a presença de fazendeiros nos
ramos industriais ou adjacentes à industria, assim como a de industriais envolvidos nos
ramos do café. Contudo, o mesmo movimento de mobilidade ascendente que favoreceu,
mediante conveniências recíprocas, uma tendência geral de aliança e fusão social entre
estes grupos (Dean, pp. 75-88), também deu margem à abertura de intensos focos de
conflito instalados entre eles, principalmente da parte daqueles que reivindicavam uma
superioridade e primazia sociais em função de vínculos de pertencimento às linhagens
auto-reputadas, de fato ou pretensamente, tradicionais:
Aos lavradores, por conseguinte, a fortuna de um Matarazzo se afigurava
assustadoramente grande e capaz de ramificações ilimitadas. De vez em
quando, referiam-se aos industriais como a uma “aristocracia do dinheiro”, a
uma “plutocracia industrial” ou mesmo a um “bando de tubarões”. E ao se
lembrarem da frequência com que o novo industrial começara como
imigrante, os agricultores se queixavam dos estrangeiros que tinham chegado
de terceira classe para “empobrecer antigas famílias da aristocracia rural,
genuinamente brasileiras” (Dean, s.d., p. 76).
18
O enriquecimento repentino de grupos marginais a tais circuitos de prestígio,
suas inevitáveis demandas identitárias, contribuíam para a relativa corrosão de uma
ordem sócio-simbólica até então sedimentada pelas procedências e pretensões de
exclusividade “aristocrática” (Camargos, 20001, p. 64). As alianças matrimoniais
ajudavam a compor um processo de assimilação, equacionando conveniências
financeiras às exigências de ostentação dos predicados de admissão e pertencimento às
“altas rodas”. Não neutralizavam a dinâmica de confrontos identitários, antes, tomavam
parte dos embates em torno das disputas pela exclusividade dos quinhões simbólicos
que compunham as territorialidades do poder e do prestígio:
A frequência do casamento entre os dois grupos não significava, todavia,
completa ausência de tensão entre os empresários imigrantes e a elite
fazendeira. Os fazendeiros não poderiam deixar de torcer o nariz. Até 1918,
por exemplo, não era permitido o ingresso de certos imigrantes nos clubes
sociais de maior prestígio, o Jockey, o Automóvel e o São Paulo, e ainda hoje
não se encontra muito amiúde nomes de imigrantes em suas diretorias. [...] os
fazendeiros, ainda socialmente distintos, coexistiam numa forma repelente de
simbiose, em que os imigrantes dependiam dos “quatrocentões” para suas
alianças de status, ao passo que os fazendeiros dependiam dos imigrantes
para suas necessidades de dinheiro (Dean, s.d. p. 85).
Entretanto, se expedientes de conciliação tendiam a atenuar os conflitos intra-
elites, os embates desdobravam-se em sentido diverso em relação à leva de
“indesejados” que então afluíam para capital:
O cosmopolitismo da população adventícia, assinalando um nítido recorte de
discriminação social, como um estigma a mais a se acrescentar ao das gentes
negras e mestiças, vinha reforçar a disposição de estranhamento intrínseca ao
processo de metropolização. O passado escravista, ainda recente, palpitava
nos tratos sociais e na atitude discricionária, peremptória, brutal das
autoridades, conferindo às relações hierárquicas um acento lancinante,
quando não atroz. [...] Para os negros, desde os últimos tempos da escravidão,
a cidade era um foco de quilombos e agitação abolicionista, onde o ar
recendia a liberdade. Mas a discriminação, a competição em condições
desvantajosas com os imigrantes e a brutal repressão policial cedo
anuviariam essa perspectiva. Aos caipiras, acuados e pressionados pelo
avanço das fazendas, a demanda crescente da cidade poderia oferecer uma
19
alternativa de pequenos serviços e vendas, muito limitados porém, dados os
custos implicados pela concorrência dos “chacareiros” imigrantes, pelos
controles oficiais do acesso aos mercados e pela ação inelutável dos
açambarcadores. Aos imigrantes, em boa parte coligados em comunidades de
patrícios, nos casos ainda mais felizes, em Associações de Ajuda Mútua,
Uniões Operárias, sindicatos ou círculos paroquiais, a situação nem por isso
era promissora. Defrontados com jornadas de dez, quatorze ou dezesseis
horas de trabalho, preferencialmente propostos a mulheres e crianças, salários
congelados, custo de vida e aluguéis em escalada permanente e completo
desamparo legal, sua vida na cidade pouco diferia das fazendas de que se
haviam esquivado (Sevcenko, 1992, pp. 30-31 e p. 39).
A diversificação social de São Paulo acentuava assimetrias e distorções já
existentes e, na medida em que implicava a coexistência, no processo de rápidas
transformações que engolfavam desenraizados das mais variadas origens, de repertórios
culturais heterogêneos, abria a possibilidade de novos focos de conflito:
Além da sua heterogeneidade nacional, étnica, social, na cidade conviviam
simultaneamente temporalidades múltiplas e diversas, em alguns casos
incomunicáveis na sua estranheza recíproca, em outros mutuamente hostis,
na maior parte se ajuizando equivocadamente uma sobre as outras (idem, p.
41).
Assim, o processo que levaria à exaltação de São Paulo como pólo dinâmico e
centro hegemônico da economia e cultura nacionais, mostrava seu reverso nos receios
de suas elites em face do que lhes parecia uma “invasão” inadvertida e insidiosa de
elementos estranhos e inoportunos. A diversidade cultural que fervilhava pelas ruas da
capital, era ademais problemática na medida em que comportava a proliferação de uma
multiplicidade de repertórios identitários. As novas possibilidades identitárias que
residiam no modo de vida dos grupos subalternos, à margem dos padrões e valores dos
círculos hegemônicos, constituíam, no mínimo, a emergência de referenciais simbólicos
alternativos aos vigentes que, de uma maneira ou de outra, deslocavam, com sua
“estranheza”, o pretendido caráter modelar das identidades de elite, na medida mesma
em que tensionavam os limites da ordem sócio-simbólica que as acolhia e
desestabilizavam, no cotidiano social, a distribuição do “poder simbólico como poder de
constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de
20
transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo”
(Bourdieu, 2005, p. 14).
Tal embate sócio-simbólico era ainda mais ameaçador na medida em que sua
dinâmica comportava as investidas dos grupos populares sobre os territórios em que, a
princípio, predominava uma relativa exclusividade das elites. Um entre outros exemplos
possíveis, o caso do futebol é bastante ilustrativo a esse respeito. A princípio uma
modalidade esportiva introduzida e praticada pelos círculos mais prósperos e viajados
da capital, mesmo depois de sua rápida difusão no gosto coletivo da cidade, e talvez
justamente por isso, o futebol despertou a atenção das autoridades públicas que passam
a se investir da tarefa de incentivá-lo, não só por declarações favoráveis de apreço como
também pelo subsídio oficial e pelo projeto de construção de um estádio municipal
(Sevcenko, 1992, pp. 54-55). De certo, a simpatia e patrocínio oficiais eram a feição de
solicitude que assumia a estratégia de se conter e confinar, em um espaço passível de
regulação, a disseminação febril e a capacidade explosiva dos espetáculos futebolísticos
em mobilizar e aglomerar, em espaços proporcionalmente exíguos, suas crescentes
multidões de adeptos. Paralelamente, contudo, os grupos populares operavam a captura
e resignificação do futebol, inserindo-o no contexto específico de suas práticas e
instaurando um modo particular de ocupação do espaço urbano em que a penúria, longe
de obstar, estimulava a inventividade e reforçava as solidariedades. Veja-se os
sugestivos comentários de uma crônica que figurava em um dos editorial d’O Estado de
São Paulo, em 1920:
Mas não é só esse futebol assim normalmente organizado que merece as
atenções dos aficcionados. Há pelos bairros da cidade, dos mais chegados ao
centro aos mais remotos, infinidades de clubes que o cultivam, com ardor em
nada inferior ao da primeira [divisão]. [...] Nesses dias não fica uma aberta de
terreno baldio, um trecho de baixada, mais ou menos plano, um trato de
várzea de chão menos escorregadio, que não seja tomado por duas fervorosas
equipes, na disputa de encarniçados matches. Pelos barrancos dos aterros
circunvizinhos, pelos galhos das árvores próximas, torcedores em bando
seguem interessadíssimos as sucessivas fases do prélio. Aplausos delirantes e
chufas mordazes acolhem cada lance da pugna, tal como nos jogos da
Antártica ou da Floresta. Mas a nota pitoresca, que falta nos torneios
realizados nestas área aristocráticas é que, terminado o jogo naquelas, muitas
vezes se vêem os jogadores, vencidos e vencedores indistintamente,
arremeter para as madeiras que formam os retângulos dos gols, e,
21
arrancando-as do solo, carregam-nas às costas, com todos os outros
apetrechos e acessórios futebolísticos. É que, dizem eles, a lenha anda hoje
muito cara e vasqueira e os últimos retardatários da assistência não são lá de
inspirar grande confiança... (apud Sevcenko, 1992, pp. 60-61).
Assim, as práticas dos grupos subalternos instauravam, por assim dizer, uma
“retórica andarilha” que promovia o deslocamento de elementos culturais das zonas de
regulação, em que a prática e a retórica das autoridades oficiais visavam confina-los,
para o interior de seus próprios territórios, ressignificados pela reinserção em suas
próprias lógicas culturais. Nas palavras de Sevcenko:
Chovem queixas [nas páginas dos jornais], reclamações e apelos do público e
da redação contra os jogos improvisados de futebol, promovidos dentre os
operários, pelas ruas e praças da cidade em seus intervalos de almoço e,
principalmente, contra os “garotos”, “moleques”, “vadios” e “vagabundos”,
que se entregavam quase o dia inteiro, por todos os cantos da cidade, nos
terrenos baldios, ruas e esquinas, aos chutes e correrias atrás de bolas de pano
e papel, couro ou simples tocos de madeira. [...] o futebol propiciava o
embaralhamento das posições relativas, suscitava identificações
desautorizadas, invadia espaços interditos e desafiava tanto o tempo do
trabalho quanto o lazer. Esse componente indisciplinado, essa pressão
insurgente contra espaços e restrições discriminadoras, se incomodava alguns
grupos, por outro lado atraía multidões (idem, p. 61).
Deve-se acrescentar que este trânsito cultural desdobra-se também em sentido
diverso. Mais simbolicamente ameaçador que a “colonização” popular de um dado
cultural de elite, como no caso do futebol, era a “colonização” do próprio território
cultural das elites pela “invasão” dos dados populares. É o que se pode observar a
respeito do estranhamento suscitado pela “intromissão” de certas formas coreográficas
no repertório de posturas e gestos que compunham as prescrições comportamentais da
“boa sociedade”. Os comentários são do mesmo jornal, no mesmo ano:
Com a evolução da dança, evoluíram também os bailes. De aristocrática, fina
e delicada, se fez plebeíssima, sensual e bruta. O que até pouco se via na
sociedade, só se vê hoje às avessas: ao passo que outrora as classes sociais
mais baixas imitavam as mais altas, macaqueando-lhes pitorescamente as
atitudes, são estas, hoje, que descem e procuram os mais reles modelos.
22
Assim, no maxixe e no tango, eleitos pelo bom gosto e pelo bom-tom. Que
são eles? O produto genuíno da senzala. Por mais “estilizados” e sutilizados
que sejam, sempre serão reminiscências do bárbaro saracotear da multidão
escrava [...] (apud Sevcenko, 1992, p. 91).
Essa dinâmica sócio-cultural dava lugar ao recrudescimento de posturas, por
assim dizer, sociocêntricas por parte das elites. Refratadas através do prisma composto
pelo ideário do progresso, as práticas culturais populares, ligadas a formas de resistência
mediante a reelaboração de identidades e reinserção dos grupos subalternos, tinham seus
contornos simbolicamente delineados em figuras estigmatizantes, fosse o “atraso” ou a
“barbárie”, no discurso cultural afetado pelo cosmopolitismo, fosse a “contravenção” ou
a “desordem”, nos discursos colados aos expedientes de controle social. Assim, a
pretensão reativa de se conter o avanço social e simbólico da cultura popular desdobra-
se nos esforços, patentes na São Paulo do início do século (Fausto, 2001, p. 21), de
instauração de uma ordem urbana. A atuação do aparato policial, por exemplo,
manifesta intensamente o propósito de “controle das classes perigosas” (ibidem, ps. 45,
105) evidentes em sua incidência não sobre os crimes mais “usuais”, como homicídios,
assaltos e roubos, mas sobretudo no enquadramento de comportamentos cuja presença
era mais comum na cultura e modo de vida dos grupos subalternos, como a capoeira, os
jogos de azar, a prostituição, as manifestações festivo-religiosas, nas quais se
desenhavam os estereótipos da desordem, da vadiagem e da embriaguez, e se operava a
criminalização da cultura popular (idem, p. 46).
Entretanto, a reação empreendida pelos círculos políticos e letrados não se
restringia a esse caráter negativo de obstrução e rebaixamento das culturas subalternas,
dando margem também a propostas de feitio positivo, no sentido de apontar para a
necessidade de se implementar iniciativas no plano cultural. Esta é uma das dimensões
que transparecem, por exemplo, na solenidade de colação de grau dos bacharéis da
faculdade do largo de São Francisco, em 1919, em que o discurso do paraninfo
Herculano de Freitas, acompanhado por figuras de relevo da política local, como o
então governador Altino Arantes, assume a conotação quase religiosa de exortação à
guerra evangelizadora que se deveria dirigir aos novos grupos sociais:
Finalmente se reconhece que a sociedade esta atacada de dois gêneros
contrários de loucura coletiva: a loucura da riqueza pelos negócios, a loucura
da destruição pela anarquia. Ponhamos de permeio, se quisermos salvar a
23
sociedade atual, um novo gênero de fanatismo: o fanatismo da ordem, pela
conformidade. Todos que somos dirigentes, todos que temos interesses
superiores [...] empreendamos a cruzada amorosa da conversão dos novos
gentios da sociedade atual [...]. (apud Sevcenko, 1992, p. 246).
Já em 1920, tais perspectivas estariam articuladas no slogan do “assimilamos ou
seremos assimilados”, de Pinto Pereira (ibidem), como imperativo de manutenção da
hegemonia da “alta cultura” e da ordem sócio-simbólica correlata, o que se desdobraria
no ideário da Reação Nacionalista de Sampaio Dória: “Os brasileiros estão ameaçados
a passar, por imprudência, de senhores da terra a colonos dos estrangeiros, que vencem.
[...] A reação nacionalista será, pois, necessariamente, uma reação da cultura pela
supremacia do nacional” (ibdem).
O repertório de metáforas ativado deixa entrever bem o pânico social e cultural
com que as mudanças concomitantes ao processo de industrialização e expansão da
capital aterrorizavam os grupos que até então gozavam com relativa tranquilidade de
sua posição hegemônica. Os sobressaltos colocavam em circulação o orgulho ferido dos
detentores da “verdadeira” cultura e revestia os receios de perda de prestígio e de
desclassificação social e simbólica da aura benevolente de uma “missão catequizadora
dos gentios selvagens e bravios”, fossem eles encarnados pelo “carcamano” enriquecido
mas sem pedigree , ou pelas maltas urbanas “embrutecidas”.
Assim, as mudanças sociais que atravessavam por todos os lados a sociedade
paulista arrastavam consigo antigos referenciais, deslocando as fronteiras que
demarcavam identidades e posições. No momento mesmo em que letrados e políticos
paulistas fabulavam o elogio e exaltação das prodigalidades de São Paulo, as mesmas
forças que compunham os temas de sua celebração colaboravam também para a relativa
corrosão da ordem simbólica de cuja construção se investiram.
Dessa forma, traçavam-se no espaço social as novas linhas nas quais
simultaneamente ia-se inscrevendo o texto da paulistanidade. Dito mais precisamente,
esboçavam-se linhas de contornos ainda indefinidos, pois que controversas eram as
versões dos próprios textos a preenchê-las, as disputas em torno do léxico e sintaxe
sociais a lhes conferir forma e matéria, e, por fim, as tramas, tecidas no equilíbrio
precário dos confrontamentos. Não por acaso, gestada desde fins do século XIX,
momento em que tais transformações começam a se esboçar, é neste contexto que
24
também se fortalecem as simbolizações da imagem do bandeirante, como matriz
identitária do paulista “genuíno”.
É nesse feixe conflitivo de correlações de forças que se inscrevera a emergência
do campo literário em São Paulo, em cujo interior se gestaria o Modernismo.
Considerando, de um lado, a “coincidência” histórica do movimento com a eclosão das
iniciativas de “reação nacionalista”, e, de outro, as reciprocidades simbólicas e políticas
que se teceram entre o grupo de artistas e escritores e figuras proeminentes dos grupos
da elite política, pode-se indagar se o Modernismo não estaria, em grande medida,
atrelado a um processo de constituição de uma elite intelectual, vinculado, por sua vez,
ao processo correlato de construção da hegemonia nacional de São Paulo. Isto é, dito
com maior proximidade ao nosso objeto de pesquisa, pode-se aventar a hipótese de que
as proposições e realizações estéticas do modernismo elaborado por Oswald de
Andrade, durante os anos vinte, em alguma medida, deveram muitos de seus traços à
sua inserção no esforço coletivo de construção de São Paulo como norte cultural do país
e marco de refundação da nacionalidade. Entretanto, esta congenitalidade cultural e
política, manifesta, entre outros aspectos, no fato de ambos os grupos reivindicarem
para si os predicados de modernidade e nacionalismo, não apagaria os pontos de tensão
e as ambigüidades que se instalariam no interior de sua proximidade social e simbólica.
Pelo contrário, parece ser este mesmo o fator do qual se desprenderiam tanto as forças
poéticas que iriam compor com a ordem sócio-simbólica então vigente, quanto as que
carregavam as virtualidades que, sorrateiras, desestabilizariam suas sedimentações.
1.1 – O campo artístico-literário
Se o chamado Pré-Modernismo correspondeu ao predomínio literário do Rio de
Janeiro sobre os demais centros, algo verificável por vários indicadores significativos,
para a época, de uma relativamente intensa atividade literária na então capital da
república (Broca, 1975.), a segunda década do século XX assistiu a um paulatino
reequilíbrio de forças entre Rio e São Paulo. Antes de mais, cabe apontar, de passagem,
o caráter enviesado da categoria Pré-Modernismo. A própria partícula “pré” deixa
entrever a visão teleológica que a preside, ao conter em um mesmo agrupamento autores
e obras cujo critério de classificação não parece considerar propriedades históricas e
literárias específicas, mas tão somente o fator externo e contingente de antecederem
cronológica, ou anteciparem estilisticamente, o movimento levado a efeito em São
25
Paulo, considerado, desta ótica, ponto culminante de um longo processo de formação,
cuja história consistiria meramente nas etapas de sua preparação. Assim, por um lado,
tal noção demarca uma partilha no universo literário ao instaurar a dicotomia expressa
na crença em uma ruptura radical e em uma hierarquia de valores estéticos que oporia a
ousadia e experimentação artística, ligada ao pólo positivo do Modernismo, ao apego
subserviente às formas e temas tidos como ultrapassados, imputados ao pólo negativo
do passadismo. Por outro, configura uma inteligibilidade que oblitera o acesso às
disputas de poder que estiveram na origem de tais classificações e que, muito
provavelmente, no caso da categoria em questão, resultaram do triunfo simbólico do
grupo de escritores paulistas no campo literário.
Retomaremos este ponto adiante. Observemos, por ora, que esse deslocamento
da autoridade literária deveu-se, em larga medida, como já sugerimos, às mudanças
referidas na abertura deste trabalho, conectadas, por sua vez, ao processo de expansão
da cultura cafeeira para as terras do então chamado Oeste Paulista. Sem que se pretenda
postular um condicionamento mecânico e direto entre tais transformações, é contudo
forçoso observar que o processo em questão pode ser tomado, em suas implicações,
como um fenômeno gerador de várias mediações que articulam, no contexto estudado, o
econômico, o cultural e o político. Uma de suas principais implicações sociais consiste
no fato de que, com o advento da República, a elite política e econômica de São Paulo,
diferentemente do antigo baronato do Vale do Paraíba, passa a assumir um caráter
progressivamente urbano (Love, 1982, p. 215.).
A presença dessa nova camada social afetou diretamente o ambiente artístico.
Primeiramente, atraiu vários dos mestres-pintores então em atividade, transferindo seus
ateliês do Rio para a capital paulistana, tendo em mira essa abastada clientela em
potencial (Miceli, 2003, p. 101). Coerente com sua conduta de sistemático apagamento
dos resquícios da era colonial, talvez buscando revestir, por um lado, de uma aura de
prestígio e distinção cultural sua riqueza recém adquirida e, por outro, demarcar
simbolicamente sua progressiva projeção política na esfera nacional (retomaremos este
ponto no próximo capítulo), a nova elite paulista adota uma série de iniciativas e
intervenções em matéria de cultura, constituindo, no espaço social de São Paulo, os
traços embrionários de um mercado de bens simbólicos, dotado das pré-condições de
diferenciação estrutural entre suas instâncias internas, necessárias para seu
funcionamento enquanto campo cultural (Bourdieu, 1992, p.100.).
Dessas iniciativas, destacam-se as que resultaram no incentivo e na criação de
26
atividades e instituições voltadas para o aprendizado, a produção, a circulação e a
consagração de produtos e produtores culturais. Cumpre destacar, dentre elas, as
responsáveis pela reforma do Liceu de artes e Ofícios, pela criação da
Pinacoteca do Estado, pela regulamentação do Pensionato Artístico, [...] pelo
patrocínio de grandes exposições internacionais, pela aquisição e montagem
de coleções de obras de arte, pelo apoio e estímulo concedido aos artistas e
escritores” (Miceli, 2003, p. 23-24. NE.).
Quanto a elementos pertinentes a esses últimos, deve-se apontar, primeiramente,
a relativa expansão do comércio livreiro e da atividade editorial, com livrarias-editoras
como a Garraux, a Casa Editora O Livro, a Livraria Italiana, a Editora Monteiro Lobato,
compondo catálogos que abarcavam obras desde autores estrangeiros, sobretudo
franceses, a nacionais, entre eles, as dos modernistas (Hallewell, 1985, p. 235-250.).
Esses empreendimentos ajudavam a compor, ainda que, como discutiremos a seguir, de
forma precária, um circuito de circulação das obras literárias. Em paralelo, a
intensificação da atividade da imprensa, em parte ancorada na dinâmica de forças no
interior da oligarquia paulista, dando origem a órgãos situacionistas, como o Correio
Paulistano e O Pirralho, ou de oposição, como O Estado de São Paulo e a Revista do
Brasil, seja nos jornais que dedicavam espaço à literatura, seja em revistas propriamente
literárias, com a publicação de capítulos de romances, contos, crônicas e poesias, ou de
textos de crítica (Broca, 1975, pp. 216-241), fortalecia mecanismos tanto de difusão
quanto de visibilidade e consagração literária. E, por fim, no que respeita a esse último
fator, cabe observar a fundação da Academia Paulista de Letras (1909), com a
sintomática particularidade de vedar o acesso aos já imortalizados pela Academia
Brasileira (ibidem, 1975, p. 57.), e da Sociedade de Cultura Artística de São Paulo, que,
além de promover festas e bailes, voltava-se ainda para a realização de conferências e
publicação de livros, atividades que conferiam prestígio pela chancela de cunho
nacionalista da associação, que contava com membros das “melhores famílias paulistas”
no seu quadro de associados (Martins, 1978, ps. 16, 17,39,103).
Pode-se dizer que na intersecção dos efeitos de tais mudanças, de maneira mais
nítida do que nos tempos em que a vida intelectual de São Paulo tinha com único centro
a Faculdade de Direito (Hallewell, 1985, p. 224-225.), demarcaram-se as condições de
existência, cujas constrições discutiremos a seguir, da figura social e simbólica do
artista, seja na forma do escritor, seja em suas variantes plásticas do pintor ou escultor.
Funcionando à maneira de uma extensão não-institucionalizada dos espaços
27
acima referidos, os salões mundanos e literários também desempenharam função
importante no processo de produção dos agentes do campo cultural, principalmente no
que se refere aos predicados simbólicos desses últimos. Abrindo-se aos escritores e
artistas consagrados, como também aos da facção modernista, constituíam, entretanto,
uma forma exclusivista de sociabilidade, com pretensões de refinamento e
cosmopolitismo intelectual e estético (Camargos, 2001, ps. 38, 45.). Tomar parte do
convívio em tais ambientes significava, portanto, não só participar de um circuito de
circulação de obras e idéias literárias e artísticas, mas sobretudo ostentar a rubrica dos
agraciados pelo reconhecimento seletivo das altas rodas e da admissão em seus códigos
de conduta e expressão.
Com efeito, como apontamos acima, pode-se dizer que as implicações sócio-
culturais de tais mudanças desdobram-se na paulatina configuração de um campo
artístico-literário, pois, como aponta Bourdieu, tal fenômeno está ligado “à
autonomização progressiva do sistema de relações de produção, circulação e consumo
de bens simbólicos”. Segundo o mesmo autor, esse processo se faz acompanhar de três
desenvolvimentos correlacionados: um deles é o surgimento de fatores semelhantes aos
que acabamos de enumerar, ou seja,
a multiplicação e diversificação das instâncias de consagração competindo
pela legitimidade cultural, [...] e das instâncias de difusão cujas operações de
seleção são investidas de uma legitimidade propriamente cultural, ainda que,
[...] continuem subordinadas a obrigações econômicas e sociais capazes de
influir, por seu intermédio, sobre a própria vida intelectual ( 1992 pp. 99-
100.).
Contudo, ainda com Bourdieu, cumpre destacar alguns aspectos para relativizar
a aplicação dessas formulações teóricas, e, ao mesmo tempo, melhor especificar as
peculiaridades sócio-culturais daquele São Paulo no contexto estudado, ou seja, um
centro em expansão na periferia da economia capitalista internacional. Conforme
sugerimos, há ainda duas dimensões cruciais para a gênese e funcionamento do campo
cultural:
a constituição de um público de consumidores virtuais cada vez mais extenso,
socialmente mais diversificado, e capaz de propiciar aos produtores de bens
simbólicos não somente as condições minimais de independência econômica
mas concedendo-lhes também um princípio de legitimação paralelo [e] a
constituição de um corpo cada vez mais numeroso e diferenciado de
produtores e empresários de bens simbólicos cuja profissionalização faz com
que passem a reconhecer exclusivamente um certo tipo de determinações;
como exemplo, os imperativos técnicos e as normas que definem as
28
condições de acesso à profissão e de participação no meio. (Bourdieu, 1992,
p. 100. grifo nosso.).
1.1.1 – Analfabetismo e cultura leitora
Como se vê, trata-se de duas dimensões complementares, que embora possam
descrever desenvolvimentos parcialmente autônomos, reforçam-se e se possibilitam
mutuamente. Contudo, dadas as condições da sociedade brasileira à época estudada,
pode-se dizer que tais fatores inviabilizavam-se reciprocamente.
Com efeito, as condições do público de consumidores a que alude o autor eram
emblemáticas de uma formação social marcada pela clivagem de quase quatro séculos
de colonização e escravismo, pela ausência ou, no melhor dos casos, desenvolvimento
tardio do ensino público básico, de universidades, bibliotecas e editoras, enfim, pelas
instituições minimamente necessárias para a formação de uma cultura da leitura. Em
fins do século XIX, o pais contava com 70% de analfabetos entre sua população (Lajolo
e Zilberman, 1999. p.64.) O advento do regime republicano soava auspicioso em
matéria de educação, seja pelos pré-requisitos em tese necessários ao pleno
funcionamento de suas instituições, seja pelas políticas que se traduziram na criação da
Secretaria de Estado dos Negócios da Instrução Pública, que empreendera a reforma dos
três níveis do ensino publico e reorganizara a Escola Normal do Distrito Federal (idem,
154). Contudo, por volta de 1918, ano da publicação do Urupês, de Lobato, de um total
de aproximadamente 24.670.000 habitantes, o Brasil exibia a cifra 1.688.000 de adultos
alfabetizados. (Hallewell, 1985,p.176 e 243). Dados que remetem à convergência de
fatores desastrosos da política educacional republicana, tanto no plano mais elementar
da administração quanto no propriamente pedagógico, da inadequação dos livros
didáticos, em sua maioria traduzidos, à precariedade das condições de trabalho e
formação de profissionais (Lajolo e Zilberman, 1999, p.154-162), no país em que, no
dizer do crítico acadêmico Medeiros e Albuquerque, os professores “não se formam em
parte alguma. Improvisam-se.” (apud Martins, 1978, p. 83.). Olavo Bilac, em 1907,
apontava dados esclarecedores:
As últimas estatísticas organizadas sobre a instrução dão desânimo e
desesperação: em todo o Brasil, de 1000 habitantes em idade de cursar
escolas primárias, em 1907 somente 137 estavam matriculados, e somente 96
frequentavam as aulas; para 10.000 de todas as idades, havia somente 6
escolas com 7 professores, com 294 alunos de todas as idades, o que quer
dizer que englobadamente, estimando-se toda a população, a relação de todos
os alunos era de 29 por 1000. (apud Lajolo e Zilberman, 1999, p. 155.).
29
Se a educação formal é precondição para a aquisição de competências requeridas
para o acesso a universos culturais mais amplos, pelo menos àqueles de que tratamos
aqui, os aspectos acima descritos deixam entrever um espaço social em que os padrões
de distribuição do capital
6
cultural delineavam uma estrutura acentuadamente
assimétrica, reproduzindo o fosso existente entre a elite educada nos padrões europeus,
os segmentos das camadas médias que possuíam possibilidades de acesso ao precário
capital escolar disponibilizado pelo Estado e o grosso da população iletrada. Assim,
pode-se apontar o caráter excludente e extremamente restrito do universo social
correspondente ao campo do poder, entendendo-o como “o espaço das relações de força
entre agentes ou instituições que têm em comum possuir o capital necessário para
ocupar posições dominantes nos diferentes campos (econômico ou cultural,
especialmente)” (Bourdieu, 1996, p. 244). O escritor Paulo Barreto (João do Rio), capta
literariamente e com precisão tal problemática, em seu significado comprometedor para
a constituição de uma sociedade republicana: éramos, diz ele, “uma nação de
abandonados, em que uma parte mínima é bacharel, toma o governo, o emprego
público, verseja, é extraordinariamente culta numa profunda miséria” (idem, p. 82.).
O quadro atingia em cheio a instituição literária e despertava os sobressaltos dos
homens de letras. Sintomaticamente, o alerta vinha de escritores já consagrados, com
carreiras já consolidadas e com um público estável, passando ao largo das preocupações
“progressistas” da ala modernista. Para fechar este panorama, é significativa, uma vez
mais, a declaração de Olavo Bilac:
As últimas estatísticas, dando ao Brasil uma população total de vinte milhões
e duzentas e quinze mil almas, demonstram que, em toda a extensão do país,
todos os estabelecimentos de ensino, incluindo o ensino público e particular,
6
Neste estudo, esta categoria é aplicada segundo a definição e o papel teórico que adquire no interior das
formulações de Bourdieu (2005, p. 134) acerca do espaço e do campo social: “As propriedades atuantes,
tidas em consideração como princípio de construção do espaço social, são as diferentes espécies de poder
ou de capital que ocorrem nos diferentes campos. O capital – que pode existir no estado objetivado, em
formas de propriedades materiais, ou, no caso do capital cultural, no estado incorporado, e que pode ser
juridicamente garantido – representa um poder sobre um campo (num dado momento) e, mais
precisamente, sobre o produto acumulado do trabalho passado (em particular sobre o conjunto dos
instrumentos de produção), logo sobre os mecanismos que contribuem para assegurar a produção de uma
categoria de bens e, deste modo, sobre um conjunto de rendimentos e de ganhos. As espécies de capital à
maneira dos trunfos num jogo, são os poderes que definem as probabilidades de ganho num campo
determinado (de fato, a cada campo ou sub-campo corresponde uma espécie de capital particular, que
ocorre, como poder e como coisa em jogo, neste campo). Por exemplo, o volume do capital cultural [...]
determina as probabilidades agregadas de ganho em todos os jogos em que capital cultural é eficiente,
contribuindo deste modo para determinar a posição no espaço social (na medida em que esta posição e
determinada pelo sucesso no campo cultural).”
30
o civil e o militar, o primário, o profissional, o normal, o secundário, o
superior, tinham, em 1907, ano em que se operou o censo, a matrícula de
624.064 alunos; e isso quer dizer que a pouco mais de dois e meio por cento
da população é ministrado o favor do ensino [...] Mas não é tudo: se
estudásseis o orçamento votado pelas Câmaras para a despesa federal em um
dos últimos anos, observaríeis a insignificância das verbas dadas à instrução:
no cálculo das despezas orçadas para este ano, no valor de quase
quatrocentos mil contos de réis, apenas três mil e duzentos contos eram
destinados a tudo quanto se refere à vida intelectual do Brasil: ensino,
bibliotecas, museus [...] (apud Lajolo e Zilberman, 1999, p. 156.).
Considerando-se a emergência do leitor – algo que não se resume às questões
unicamente de escolaridade, mas que envolve todo um aparato de instituições voltadas
para a constituição de uma cultura leitora – como uma figura social correlata aos
processos constitutivos das sociedades modernas (idem, p. 10 e 14-15), o quadro que até
então vimos expondo marca bem um índice de “modernidade” da sociedade brasileira à
época estudada.
Entretanto, se eram quantitativa e qualitativamente escassos os leitores, cumpre
ainda apontar, em termos gerais e nos pontos que aqui nos interessam, as leituras
preferenciais daqueles poucos que liam.
Em matéria de obras literárias, os mais procurados eram, na prosa de ficção,
Machado de Assis, José de Alencar, Coelho Neto e Afrânio Peixoto, superados,
contudo, pelo português Eça de Queiroz (Hallewell, 1985, p.235.). Na poesia, as
preferências recaiam sobre o parnasianismo de Olavo Bilac (Martins, 1978, p.134.).
Cabe acrescentar, é claro, a torrente de autores estrangeiros, onde predominavam os
franceses, que nos chegavam na esteira da exacerbada francofilia então em voga (Broca,
1975, pp. 91-92), entre os quais Anatole France, que, juntamente com o autor de A
Relíquia, marcou as leituras de juventude dos futuros modernistas, a se considerar, pelo
menos, as predileções de Oswald de Andrade (Andrade, 1990, p. 56, 58.). Deve-se
observar que, no caso destes autores, o sucesso comercial, índice de legitimação externo
ao campo literário, era acompanhado pela consagração interna ao campo, pelo processo
de legitimação em instâncias especificamente culturais (crítica, academia, etc.), a que se
deve acrescentar o apoio que alguns dentre eles, como Machado e Bilac, encontravam
em figuras que ocupavam posições de relevo no campo do poder, como, entre outros, o
Barão de Rio Branco (Sevcenko, 1985, p. 46.).
Entretanto, como aponta Brito Broca, no contexto em estudo verificou-se uma
31
significativa proliferação de periódicos literários
7
, assim como se intensificou a
colaboração de literatos em jornais e revistas (1975, pp. 216-241). Pela permanência da
maioria destas publicações, ao longo do período estudado, conclui-se que elas contavam
com um público e um consumo relativamente estáveis, o que sugere que os hábitos de
leitura incidiam predominantemente, ou no mínimo em igual escala, sobre esse tipo de
publicação ao invés de sobre os autores e obras apontados. Não à-toa, os modernistas
implementariam suas próprias revistas, como a Klaxon: além de uma estratégia de auto-
consagração e difusão de idéias e fórmulas literárias típicas dos grupos que pretendem
ocupar ou produzir posições no campo e redefinir as regras de sua hierarquização
interna. Essa iniciativa prende-se também às constrições que o volume e composição do
público e das práticas de leitura exerciam sobre o campo literário.
Quanto à estética predominante nos periódicos de maior circulação, pode-se
dizer que se tratava de um misto de literatura e mundanismo. Não só as revistas
justapunham textos literários a reportagens sobre eventos mundanos, como as então
concorridas conferências, em cujas atrações constavam produtos e produtores literários
e artísticos, como também grande parte da literatura nelas publicada assumia um feitio
ameno e superficial, propício às expectativas de entretenimento de seus frequentadores,
o que transparece emblematicamente na definição de literatura de Afrânio Peixoto, um
dos autores mais vendidos à época, que a entendia como “o sorriso da sociedade”
(Broca, 1975, p. 4 e pp. 136-137). Assim, é de se dar crédito à apreciação de José
Veríssimo que, da ótica dos critérios de apreciação então dominantes para definir o
estritamente literário, lamentava a má qualidade das leituras da maioria, entre aqueles
poucos que liam no início do século (Dutra, 1999, p. 493.).
No interior deste mesmo filão estético e literário, devemos ainda mencionar a
permanência de um gênero de publicação que, desde o século XIX, gozava de ampla
presença, tanto nas revistas quanto nos jornais brasileiros: o folhetim. Como observa
7
Podem-se citar aqui, entre muitas outras, no Rio de Janeiro, Kosmos (1904-1909) e Fon-Fon (1907-
1945); em São Paulo, O Pirralho (1911-1918), já mencionada, congregava autores consagrados aos
jovens postulantes à carreira literária, dividia suas sessões entre a sátira política, a literatura e a crônica
esportiva e social; Papel e Tinta (1920-1921), de Oswald e Menotti Del Picchia, contava com a
colaboração de artistas e escritores de vária orientação, além dos futuros modernistas, entre o quais “o
projeto ideológico de uma arte nacional sobrepõe-se [...] à pesquisa dos novos meios de expressão em
andamento, sobretudo na Europa” (Chalmers, 1976, p. 59). Klaxon (1922-1923), fundada logo após a
Semana, era produzida exclusivamente pelos aderentes ao modernismo, servindo como plataforma de
divulgação artístico-literária e meio de intervenção do grupo no debate crítico da época, contava com
correspondentes no Rio de Janeiro (Sérgio Buarque de Hollanda), Suíça, França e Bélgica. Deve-se
ressaltar, porém, que as chamadas “revistas literárias”, ultrapassavam esse objetivo : ”poesia, arte,
literatura e teatro constituíam temas de regra, mas a crônica cotidiana quase sempre se impunha .”
(Martins e De Luca, 2008, p. 107).
32
Meyer (1996), comentando sua vitalidade editorial:
o folhetim novecentista nunca foi abafado por uma atualidade rica em
eventos com vistas e revolucionárias: vimo-lo atravessar a Revolução Russa,
greves de 1917 e subseqüentes, revolta messiânica do Contestado, levantes,
criação e repressão do partido comunista, instalação do fascismo, revolução
de 1924, movimento modernista etc. (p. 370).
Pautando-se na publicação sobretudo de traduções de autores estrangeiros como
Alexandre Dumas e Ponson du Terrail, os folhetins lograram ampla penetração junto ao
público, adentrando, mediante os serões de leitura coletiva em voz alta, até mesmo as
fronteiras do analfabetismo:
O que se pode aventar sem dúvida alguma é que, na medida em que foi
praticamente constante a publicação do romance-folhetim europeu na maioria
dos jornais brasileiros, não há como não inferir – ainda que falte a necessária
pesquisa – que ele não só foi lido e ouvido pelas classes mais altas como foi
sendo consumido por camadas renovadas de leitores e ouvintes, os quais iam
acompanhando as mudanças por que passava a sociedade brasileira (Meyer,
1996, p. 382.).
Assim, dadas essas condições sociais de apreciação e consumo da literatura,
lamentada até mesmo pelos que pertenciam aos grupos que ocupavam posições
dominantes no campo, como é caso do crítico José Veríssimo, que mantinha alianças,
entre outros, com figuras do prestígio de Machado de Assis, deve-se indagar a respeito
das condicionantes que possibilitaram a obtenção de um público e a posterior vitória
simbólica do grupo modernista. Retomaremos essa questão no segundo capítulo, onde a
discussão que procuraremos empreender permitirá melhor encaminhá-la.
1.1.2 – Mercado editorial e expansão da imprensa
Por ora, cumpre analisar a terceira dimensão do processo de emergência do
campo de produção cultural em São Paulo. Na medida em que se deu a expansão das
atividades de imprensa, os jornais e revistas passaram a reunir as principais
oportunidades profissionais aos homens de letras do período, substituindo-se,
progressivamente, o mercado pelo mecenato velado da era imperial.
Tal circunstância deveu-se sobretudo ao caráter incipiente do campo editorial à
33
época. As principais casas editoras, a Garraux, a Laemmert, a Francisco Alves e a
Garnier, dividiam seus empreendimentos entre as atividades de edição, destituídas,
aliás, de oficinas tipográficas próprias, e as de venda de obras nacionais e importadas,
recaindo sua ênfase sobre esta última, o que as caracterizava sobretudo como livrarias.
O caráter inovador da iniciativa de Monteiro Lobato nesta área deve-se, entre outros
fatores, ao empenho em reunir em uma única empresa todas as fases do processo de
produção do livro, chegando à sua distribuição e divulgação. Soma-se a esse aspecto sua
política editorial deliberadamente voltada para a abertura de espaço a autores novos,
senão literariamente, ao menos do ponto de vista de suas carreiras, isto é, estreantes ou
de poucas publicações. O arrojo do editor marca, contudo, nada mais do que o reverso
da timidez do ambiente em que se deu sua iniciativa. As dificuldades de distribuição, o
valor médio do produto final, a relativa estreiteza do mercado, somados a problemas
circunstanciais de infra-estrutura, logo demonstraram que as condições objetivas
estavam aquém das necessidades de liquidez requeridas pelo montante de capital
investido (Hallewell, 1985, pp. 226-263).
Entretanto, não era das melhores a condição dos autores que conseguiam firmar-
se em uma editora. Salvo pouquíssimas exceções, os contratos das edições eram
acentuadamente desfavoráveis aos autores e, além disso, mal remunerados (Lajolo e
Zilberman, 1996, pp. 88-99). O desdobramento sócio-cultural de tais injunções
objetivas do campo comparece, em larga medida, nas modalidades associativas
predominantes entre produtores e empresários culturais (assim também entre estes e os
ocupantes de posições de relevo externas ao campo, como abordaremos no segundo
capítulo), cujas relações não raro assumiam a forma da troca de favores, do compadrio e
do clientelismo (ibidem, p. 76, 85;), como uma espécie de decorrência acomodatícia às
condições objetivas de produção e difusão de bens culturais.
Portanto, a nosso ver, as atividades possibilitadas pelos postos abertos na
imprensa, não configuram, como quer Brito Broca, um second métier (1975, p. 216)
para os escritores, mas ao contrário, o primeiríssimo e indispensável ofício. E pode-se
dizê-lo tanto no que concerne à sua imediata reprodução material, como fonte de renda,
quanto à sua existência e reprodução de sua condição social e simbólica, enquanto
espaço em que a aparição, seja por obra própria ou pela menção de terceiros, atua como
fator de visibilidade e abertura de possibilidade de consagração.
Assim, se as mudanças de que vimos tratando, conforme observamos
anteriormente, contribuíram para elevar o grau de diferenciação social da figura do
34
escritor, deve-se notar, entretanto, que a forma e os limites que assumiu estão
igualmente presentes entre as razões da fragilidade de condição que, tendencialmente,
pesava sobre ela. É significativo, neste ponto, o caso de uma das principais lideranças
do Modernismo, Mário de Andrade (diferentemente de Oswald, por motivos que
apontaremos à frente) que se via impelido a uma constrangedora contabilidade literária.
Em carta a Sérgio Milliet, o escritor tecia estas sugestivas considerações:
[...] recentemente andei relendo meus artigos e vi claro que estava me
dispersando e confundindo escrever artigo sem ter assunto, muitas vezes
forjando assuntos para escrever artigo e mais ainda formalmente confundindo
ganhar dinheiro com escrever artigos. [...]. Fixei frio o lado ganhar dinheiro e
só escrevo mesmo coisa que renda [...]. E quando tiver um assunto que se
imponha, isso sim, escreverei e darei até de graça, se ninguém quiser pagar.
(apud Lajolo e Zilberman, 1996, p. 113.).
Vê-se, por aí, a precariedade social das condições e do grau de
profissionalização alcançado à época pela carreira de escritor. Portanto, de acordo com a
formulação de Bourdieu, que anteriormente apontamos, pode-se dizer que São Paulo
reunia condições estruturais minimamente necessárias para a emergência de um campo
de produção cultural, pelo menos no que diz respeito à aparição, ainda que incipiente,
de instâncias encarregadas da difusão e consagração de produtos e produtores culturais.
Entretanto, o baixo grau de desenvolvimento das pré-condições concorrentes a este
processo, a formação de um mercado consumidor de bens simbólicos e a
profissionalização dos agentes do campo, mostravam-se, como procuramos apontar,
ainda em um estado profundamente deficitário. Com efeito, tais considerações nos
levam a deduzir o baixo grau de autonomia relativa do campo literário à época estudada.
Diga-se de passagem que as instituições constituídas por iniciativa dos escritores
não lograram intervir positivamente nesse cenário, seja pela ineficiência organizacional
e o caráter equívoco no estabelecimento de suas prioridades de ação, seja por uma
organização voltada exclusivamente para fins de auto-consagração e distribuição do
capital simbólico. No primeiro caso, encontra-se a Sociedade dos Homens de Letras,
fundada em 1914, no Rio de Janeiro. Declarando-se voltada para a defesa dos interesses
profissionais dos escritores, a agremiação restringiu, em sua curta duração, até 1917,
grande parte de suas atividades à promoção de eventos de acento mundano como
conferências, palestras e saraus (Broca, 1975, p. 53.). Por outro lado, a ênfase de sua
ação na defesa dos direitos autorais, em si pertinente, esbarrava nos obstáculos objetivos
de questões prévias e mais elementares, como a própria dificuldade em conseguir editor,
35
e desviava suas estratégias de objetivos cuja consecução era pré-condição à realização
de suas finalidades (ibidem). Exemplo do segundo caso, é, por excelência, a Academia
Brasileira de Letras. Fundada em 1896, em torno da liderança de Machado de Assis, a
instituição apresenta uma atuação marcadamente celebrativa. Distribuindo honrarias
entre escritores já consagrados e buscando atrair figuras de relevo no campo do poder,
desempenha a função de legitimação e fortalecimento simbólico e social do grupo de
canonizados, reproduzindo a hierarquia interna do campo literário e gerando efeitos
colaterais de caráter conservador na condição de profissionalização do escritor (Lajolo e
Ziberman, 1996, pp. 101-103.).
1.1.3 – A problemática literária
Com efeito, de acordo, por um lado, com o conjunto de autores que gozavam de
considerável prestígio e, por outro, com o peso de legitimidade de instituições como a
Academia Brasileira, pode-se aferir grande parte da problemática posta então em jogo
no campo literário. Pois esses dois indicadores dão a ver as referências pelas quais então
se pautava, predominantemente, o exercício possível da vida e do ofício literários
(Bourdieu, 1996, pp. 261-270). Isto é, em termos de “escolas”, o realismo e o
naturalismo na prosa de ficção (Machado de Assis, Eça de Queiroz) e o parnasianismo
na poesia (Olavo Bilac); em termos estilísticos, a observância da métrica, o verso
alexandrino, as formas fixas, em poesia, e o vocabulário e sintaxe lusitana na prosa; em
termos dos gêneros, a narrativa romanesca e o soneto; quanto aos temas e enfoques, o
descritivismo dos tipos e dos meios humanos e ambientais e a análise de contornos
psicológicos e sociais dos personagens, na prosa; o imaginário de inspiração grega e a
eleição de vocábulos, eventos e situações previamente instituídos como poéticos, na
poesia. Se esses elementos apontam para um código específico de expressão, sua
contrapartida complementar em um código específico de conduta (idem, p. 266.)
encontra-se nitidamente sugerida no predomínio exercido no quadro da sociabilidade
literária por instituições como os salões e a academia, em que se reencenavam nas
interações, elogios mútuos e amizades condizentes às relações hierárquicas do campo.
Entretanto, dado o já observado baixo grau de autonomia relativa do campo
literário, deve-se apontar a porosidade da problemática especificamente literária a temas
que então começavam a circular com grande intensidade no campo do poder. Referimo-
nos sobretudo ao ideário nacionalista que, ao que parece, ao menos no caso de São
36
Paulo, era posto em pauta pela elite política e econômica paulista, formada, como
observa Miceli, em grande parte por homens educados na Europa ou segundo o padrão
europeu, preocupados em forjar uma tradição cultural que em nada ficasse a dever aos
então tidos como centros de civilização da época (2003, p.28.). O fenômeno nacionalista
em São Paulo decorria, assim, tanto de injunções externas quanto das que se
encontravam atreladas à nova configuração de forças no plano político interno, marcado
pela progressiva ascensão, em nível nacional, dos interesses da cafeicultura paulista.
Discutiremos esse ponto com mais vagar no próximo capítulo. No momento, deve-se
apontar como o tema afetava o campo de produção cultural.
Nesse sentido, vale dizer que as discussões intelectuais e elaborações literárias
em torno de motivos nacionalistas não eram novas. Nossa crítica e historiografia
literárias apontam no Romantismo um momento inaugural da questão do nacional em
matéria de literatura:
Como em todos os países empenhados em então na independência política, o
Romantismo foi no Brasil um vigoroso esforço de afirmação nacional; tanto
mais quanto se tratava aqui, também, da construção de uma consciência
literária. A nossa crítica [...] participou do movimento por meio do ‘critério
de nacionalidade’, tomado como elemento fundamental de interpretação e
consistindo em definir e avaliar m escritor ou obra por meio do grau maior ou
menor com que exprimia a terra e a sociedade brasileira. (Candido, 2000, p
115-116.).
Aliás, deve-se notar a ambivalência dispensada ao legado romântico pelo trato
modernista. No momento de sua inserção na problemática literária, a precedência do
Romantismo no debate sobre a nacionalidade foi cuidadosamente obliterada, ou
desqualificada pelos escritos polêmicos dos modernistas. Entretanto, após a Semana,
sua presença é patente na retomada de José de Alencar por Mário de Andrade, no
projeto de uma “gramática” pautada na oralidade brasileira, no indianismo do programa
primitivista do Pau-Brasil e da Antropofagia de Oswald e também na valorização “tupi”
do Verde-Amarelismo de Menotti. Como afirma Eduardo Jardim de Morais:
Ao contrário do primeiro modernismo, que rejeitou em bloco a contribuição
romântica, vemos aqui aberto o caminho para a releitura valorizada de alguns
aspectos do romantismo que serão, cada vez mais, apontados como
indicadores de caminhos para os modernistas. (1978, p. 88.).
37
Com efeito, o caminho trilhado pela proposta oswaldiana era aberto mediante a
ressignificação de um dos traços centrais ao Romantismo. No dizer de Antônio
Cândido:
Em nossos dias, o neo-indianismo dos modernos de 22 (precedido por meio
século de etnografia sistemática) iria acentuar aspectos autênticos da vida do
índio, encarando-o, não como o gentil-homem embrionário, mas como
primitivo, cujo interesse residia precisamente no que trouxesse de diferente,
contraditório em relação à nossa cultura européia. (1975, p. 20.).
Atendo-nos ao período que temos em mira, observa-se a forte reaparição da
questão nacionalista já no início do século, nas obras, entre outros autores, de Lima
Barreto e Euclides da Cunha. Inseridos na realidade social da capital de um país que
então se modernizava sem, contudo, aos seus olhos, ter se constituído enquanto
nacionalidade, esses autores, com suas respectivas especificidades, em função do grau e
da modalidade de sua inserção social, tematizaram e formularam um nacionalismo que,
se não chega ao nível de um projeto político articulado, buscava ao menos estipular,
segundo Sevcenko, parâmetros e bases comuns que levavam em conta, ou pretendiam
levar, a extensão social e territorial de todo o país (1985, p. 243.).
No universo cultural paulista, ocorrem, nesse particular, uma série de fenômenos
significativos, todos eles ligados a iniciativas de instituições e grupos da elite
paulistana. Um deles é a fundação de um órgão de cultura sob a liderança do grupo
Mesquita e alguns de seus simpatizantes. Em seu editorial de estréia, a Revista do
Brasil
8
, nitidamente demarcando uma distância em relação ao tipo de publicação
cultural predominante na época, justificava-se pelo “desejo, a deliberação, a vontade
firme de constituir um núcleo de propaganda nacionalista” (apud Martins, 1978, p. 38.).
Simultaneamente, intensificam-se os eventos e publicações voltadas para temáticas
congêneres, moduladas no entanto por um forte referencial regional. As conferências
“caipiras” de Cornélio Pires
9
, os bailes pastoris promovidos no Teatro Municipal, a
publicação de obras regionalistas de Catulo da Paixão Cearense, de Afonso Arinos e
8
Circulando entre 1916-1925, a revista foi adquirida, em 1918, por Monteiro Lobato que, entre outras
modificações introduzidas, ampliou o espaço destinado à criação literária.
9
Jornalista, conferencista, contista, “folclorista” e poeta, Cornélio Pires (1884-1958), notabilizou-se pela
divulgação da “cultura caipira”. Além de mais de vinte livros publicados, aventurou-se como fundador de
uma companhia de teatro, realizou filmes que documentam o cotidiano do interior paulista, cuja música e
oralidade registrou em disco. Sua primeira coletânea de poemas, Musa Caipira, data de 1910.
38
Amadeu Amaral (entre elas, deste último, um estudo sobre o Dialeto Caipira), nos
quais, direta ou indiretamente, se fez presente a atuação da Sociedade de Cultura
Artística, indiciam a demanda por elaborações simbólicas de cunho nacional-
regionalista.
Estas manifestações nacionalistas distinguem-se das anteriores pela retração da
escala de ponto de vista. O rótulo de caboclismo (Martins, 1978, p. 15), vem bem a
calhar para sua designação, ao remeter para um processo de invenção historiográfica e
literária que vinha atuando, sintomaticamente, pelo menos desde os primórdios do
movimento republicano paulista e que condensava os referenciais de sua épica
nacionalista na idealização da experiência particular da formação histórica e social de
São Paulo
10
. Sob esse aspecto agrupam-se, em larga medida, as obras iniciais, por
exemplo, de Menotti Del Pichia, Juca Mulato, e Guilherme de Almeida, Raça (Ferreira,
2002, p. 309.) sintonizadas com o universo simbólico delineado na pintura de Almeida
Júnior, aliás visto com entusiasmo por Oswald de Andrade, no artigo Em prol de uma
pintura nacional, publicado em O Pirralho:
Creio que a questão da possibilidade de uma pintura nacional foi em São
Paulo mesmo resolvida por Almeida Júnior, que se pode muito bem adotar
como precursor, encaminhador e modelo.
Os seus quadros, se bem que não tragam a marca de uma personalidade
genial, estupenda, fora de crítica, são ainda o que podemos apresentar de
mais nosso como exemplo de cultura aproveitada e arte ensaiada.
É assim que vemos nele posta em quadros que ficaram célebres a tendência
do tipo nosso, em paisagem, em estudos isolados de figura ou composições
históricas de grupos. (Andrade, 1992, p. 141.).
Como se vê, os futuros modernistas, ao ensaiar suas primeiras aparições no
campo literário, caracterizam-se por tomadas de posição que se afinam com posições já
dadas e bem demarcadas. Contudo, à medida que o grupo ganha coesão, o que
trataremos a seguir, o caráter aparentemente “neutro” com que este registro paulista da
nacionalidade aparece em sintonia com autores como Amadeu Amaral, cederá lugar a
uma visão patentemente, por assim dizer, paulicêntrica do Brasil. Nos textos que
publicam na imprensa, de caráter acentuadamente “combativo”, delineia-se então um
10
Por outro lado, tal nomenclatura, carregada de certo teor racialista e mesmo classista, assim como as
variantes “regionalismo” e “sertanismo”, requer certa cautela quando aplicada ao âmbito estritamente
literário. No mais das vezes, sua utilização parece estar ligada a certo pesar intelectual diante das
reminiscências agrárias cujas raízes nossa modernidade urbana não logrou apagar. Talvez seja este um
dos sentidos da inclusão de autores e obras agrupados sob tais categorias no período “pré-modernista”,
tido, em Bosi (1994, p. 306) e Cândido (2000, p. 114), como uma etapa meramente preparatória para as
soluções formais e temáticas realizadas pelo “modernismo”.
39
vetor de forças que aponta para a produção de novas posições, necessariamente
acompanhada pelo questionamento da distribuição da autoridade literária. Assim,
Oswald de Andrade assevera a “vocação futurista” de um “povo de mil origens,
arribado em mil barcos, com desastres e ânsias”. À notação étnico-racial aglutina-se o
referencial geográfico, complementando o pathos épico da imagem com a “luminosa
metrópole, estuante de labor intelectual [...] fatalizada a futurismos de atividades, de
indústria, de história e arte, reconhecido leader mental da nação” onde se geram “idéias
e escolas” que se distinguem das “velhas fórmulas perras” (apud Fabris, 1994, pp. 8-
10.). Para ficarmos só neste exemplo, cabe assinalar que semelhantes representações,
com a mesma temática e sentido, isto é, a liderança cultural de São Paulo, atrelada a
suas características econômicas, históricas e raciais, pipocam nos escritos da mesma
época, início da década de vinte, de autores como Mário de Andrade, Menotti Del
Picchia e o simpatizante carioca do movimento, Ronald de Carvalho (ibidem, pp. 3-10.).
Mobilizando elementos do então reinante darwinismo social, compondo uma
imagem mais projetiva do que efetiva de São Paulo (Fabris, 1994, pp. 8-10), estes
escritores articulam uma nítida estratégia de auto-afirmação no campo literário, que
passava, entre outros movimentos táticos, pela supervalorização de São Paulo como
locus predestinado a gestar a “nova” cultura brasileira, o que significava, na estrutura de
lutas que caracterizam o campo, donde decorrem tomadas de posição contrastivas,
desqualificar o então pólo de hegemonia cultural, o Rio de Janeiro, como lugar do
passadismo e conservadorismo acadêmico.
Tais elementos atrelados à postulação de uma hegemonia intelectual, que descreve
um processo homólogo ao que então se verificava no campo político, aparecem com
ainda maior nitidez em A ‘bandeira’ futurista, de Del Picchia. Mais que reportagem, o
texto se configura em expediente evidentemente propagandista, tratando, aliás, também
de uma ação de propaganda, a saber, a viagem das lideranças do movimento ao Rio de
Janeiro à procura, provavelmente, de alianças. Além disso, é possível entrever, na
metafórica burocrático-religiosa utilizada, a propensão de aliança interna ao grupo
manifesta pelo autor, questão que retomaremos a seguir. Eis o texto:
Anteontem partiu para o Rio a primeira bandeira futurista. Mário Moraes de
Andrade – o papa do novo credo - , Oswald de Andrade, o bispo, e Armando
Pamplona, o apóstolo, foram arrostar o perigo de todas as lanças, morriões,
guantes, lorigas, inclusive murzelos e rocinantes, do parnasianismo ainda
vitorioso na terra do defunto Sr. Estácio de Sá.
Bela coragem! [...] A façanha é ousada! Em lugar das onças das tribos
40
selvagens, das serpentes, que se atravessavam no caminho das ‘entradas’
como o grito de revolta da terra virgem contra a audácia dos conquistadores,
a ‘bandeira’ futurista terá que afrontar os megatérios, os bisontes, as renas da
literatura pátria, toda a fauna antediluviana, que ainda vive por um milagroso
anacronismo. (apud, Brito, 1997,p.313, grifos do autor.).
11
O tom grandiloquente, além de denunciar a origem beletrista do autor, aponta
para uma provável necessidade de causar impressão, dada sua condição retardatária, em
termos simbólicos, em relação aos companheiros mais ilustres, que são o referencial do
discurso. No mais, o desabrido achincalhe equivale a uma declaração de guerra literária.
Compreende-se, daí, o caráter, tantas vezes enfatizado, de ironia e paródia dos
expedientes estilísticos dos autores modernistas, pois se trata, em grande parcela dos
casos, de desqualificar autores, grupos e correntes postulantes à autoridade literária. É o
que transparece também no poema Capital da República, de Oswald de Andrade, que
pode ser considerado, entre outras perspectivas, um desdobramento poético de tais
textos combativos, o que, de acordo com a hierarquia de gêneros literários constitutiva
do campo de então, que elevava a poesia acima do jornalismo, reveste o ataque de uma
maior “seriedade”. Trata-se de uma peça em que os versos se compõem, como em
outros poemas do autor, pela justaposição de recortes da paisagem social e natural, em
que aspectos pejorativos, os que neste ponto queremos destacar, se contrapõem a
aspectos elogiosos, neste caso vasados no motivo do erotismo tropical, ganhando, pelo
efeito contrastivo, uma carga negativa ainda mais acentuada:
Temperatura de bolina
O orgulho de ser branco
Na terra morena e conquistada
E a saída para as praias calçadas
Arborizadas
A Avenida se abana com as folhas miúdas
Do Pau-Brasil
Políticos dormem ao calor do Norte
Mulheres se desconjuntam
Bocas lindas
Sujeitos de olheiras brancas
O Pão de Açúcar artificial (Andrade, 1996, p. 100.).
11
Seria importante identificar o momento em que se operou a passagem do termo futurismo/futurista para
modernismo/modernista, e, principalmente, a dinâmica de forças externas e internas ao grupo paulista que
a presidiu. Pode-se aventar a hipótese de que, assim como futurismo esteve ligado, como apontaremos
adiante, às estratégias polêmicas de combate do grupo paulista frente à crítica e aos critérios estéticos
hegemônicos no momento de sua inserção no campo literário, modernismo foi uma categoria posta em
jogo no momento em que as principais lideranças do movimento, Oswald, Mário e Menotti, concorriam
entre si pela versão legítima da definição de arte brasileira.
41
Assim, esses escritores demarcavam sua existência tanto em relação à literatura
feita no Rio de Janeiro, quanto ao regionalismo de autores de São Paulo, ao radicalizar e
levar às últimas conseqüências a visada paulista da nacionalidade. Cabe enfatizar, de
passagem, que a crítica ao regionalismo caboclista de São Paulo, já se inscrevia nos
traços que animariam a figura do Jeca de Lobato:
De fato, Monteiro Lobato antecipa-se de oito anos aos modernistas, não
apenas em denunciar o caráter idealizador do Indianismo (a primeira parte do
“Urupês” forneceu a Oswald de Andrade nomes e idéias, referências
históricas e perspectivas para escrever o “Manifesto Pau-Brasil”), mas
também em identificar no “caboclismo” então reinante uma nova
metamorfose das sublimações românticas. Daí, ele partia para a análise de
crua objetividade e autoflagelação em que os modernistas ir-se-iam
igualmente deleitar na década seguinte [...]. (Martins, 1978, pp. 14-15.).
Precedência cujas pegadas foram sintomaticamente apagadas pela genealogia que os
modernistas empreenderiam.
Algumas considerações sobre a dinâmica interna da formação do grupo paulista,
em suas conexões externas, advindas de sua inserção no campo literário, talvez nos
permitam aprofundar a discussão sobre estes e outros aspectos.
1.2 – Concessão e dissidência: a trajetória social de Oswald de Andrade
Conforme as considerações metodológicas de Pierre Bourdieu (1996, p. 243.),
uma vez construído o campo, passemos à trajetória dos agentes.
Oswald de Andrade nascera em São Paulo, em 1890, filho único de uma
abastada e relativamente prestigiada família. Seu pai, José Oswald Nogueira de
Andrade, era oriundo de uma família de fazendeiros na região de Baependi (M.G.),
descendente do capitão-mor José Thomé Rodrigues do Ô. Após a falência dos negócios
pecuários, transferiu-se para São Paulo instalando uma casa de corretoria imobiliária.
Completando a origem ilustre, pelo ramo materno, era filho de Inês Henriqueta de
Souza Andrade, neto do desembargador Marcos Antônio Rodrigues de Sousa,
proprietário de extensas terras em São Paulo, e sobrinho de Marcos Herculano Inglês de
Souza, jurista, deputado federal, e consagrado escritor naturalista, membro fundador da
Academia Brasileira de Letras (Boaventura, 1995, pp. 13, 27.).
A origem social do escritor esteve marcada pelas condicionantes da expansão
cafeeira. O ano de seu nascimento assinala também o início, sob os influxos da
42
concentração de recursos gerados pela economia cafeeira, da expansão urbana acelerada
da capital paulista. Os movimentos populacionais que convergiam para a então nascente
metrópole, tanto os de origem imigrante quanto os advindos do interior ou de outros
estados, conjugados à intensificação dos fluxos de capital estrangeiro e às reformas de
remodelação urbana e em infra-estrutura, promoviam a alta vertiginosa dos preços de
terrenos, imóveis e aluguéis, o que se acentuava ainda mais com uma prática
especulativa desenfreada que, via de regra, contava com a conivência do poder público
municipal (Sevcenko, 1992, pp. 108-109.).
O pai de Oswald é uma figura característica deste processo. Convertendo o dote
matrimonial de sua esposa nesse emergente mercado, firmara-se, já em fins do século,
como “um abridor de bairros, que possuíra no encilhamento todo o Brás, todo o
Cambuci e a Glória” (Andrade, 1990 , p. 43), além de possuir terrenos na região da
Cerqueira César. A urbanização desses últimos deveu-se mesmo às iniciativas diretas de
Seu Andrade, como era conhecido o pai do escritor. Aliando seus recursos econômicos
às oportunidades de empreendimento proporcionadas pelo exercício do posto de
vereador (consecutivamente eleito ao longo dos mandatos de Antônio Prado como
prefeito, entre os anos de 1899-1910), não só convertera antigos sítios e chácaras no
futuro bairro urbano, como garantiu a alta de seus preços mediante a viabilização do
acesso de linhas de bonde às suas propriedades (ibdem, p. 49).
É significativo, ainda que com caráter meramente aproximativo, da magnitude
do cabedal amealhado em tais empreendimentos, o fato de Seu Andrade destinar boa
parte de seus gastos a empreendimentos de pouco ou nenhum retorno financeiro, como
no caso de vultosas somas doadas para a construção de uma igreja e do custeio da
edição de um dos livros do autor caipira Cornélio Pires (Boaventura, 1995, p. 24, 40).
Assim, a conjunção entre a origem familiar ilustre, a fortuna não só mantida mas
também grandemente multiplicada e a condição de único herdeiro, reservou a Oswald a
trilha das vias padrão do trâmite social típico da formação dos membros de elite. Com
efeito, obteve as primeiras letras mediante a contratação de ensino particular. Em
seguida, cursou as mais prestigiadas instituições de ensino de São Paulo, como a Escola
Modelo Caetano de Campos, o Ginásio N. Sra. Do Carmo e o Colégio de São Bento,
onde bacharelou-se em Ciências e Letras (Boaventura, 1995, pp. 14, 37.). A trajetória de
aquisição de capital escolar complementou-se com os estudos de nível superior,
tipicamente realizados mediante a chancela da Faculdade de Direito do Largo de São
43
Francisco, uma das instituições centrais no processo de integração e reprodução dos
grupos de elite da Primeira República (Miceli, 1979, p. 35.).
Entretanto, “estavam começando a se afrouxar os laços orgânicos entre os
espaços de sociabilidade do universo homogêneo no interior do qual se moviam”
(Miceli, 1979, p. 8) os pretendentes a um posto intelectual. Estes tinham que se haver
com um processo de complexização nos padrões de reprodução da elite letrada e
política, em que não havia mais um transito linear e inequívoco entre, por exemplo, a
obtenção de um diploma de bacharel, a freqüência aos salões das altas rodas e a
ocupação certeira e irrevogável de uma posição estável no campo cultural ou político.
A par desta alteração nos processos de reprodução das elites letradas durante a
Primeira República, o crescimento populacional e a expansão urbana de São Paulo
configuravam novos universos sociais que, ao menos no caso de Oswald, acabaram por
atuar como espaços de sociabilidade paralelos aos padrões de socialização hegemônicos
em seu meio de origem. Nesse sentido, é curioso que o livro Um homem sem profissão,
em que Oswald narra as memórias de sua infância e juventude (Andrade, 1990.), traga
como subtítulo o indicativo sob as ordens de mamãe, e constitua, entretanto, a descrição
de uma vivência que transcorria grandemente ao largo do âmbito de vigência objetiva
da autoridade familiar. A experiência social de um moço de origem ilustre e abastada,
que até então tendia a se realizar no espaço social que descrevia um contínuo entre os
ambientes domésticos das famílias de mesma extração, a freqüência aos lazeres
refinados, o casamento predominantemente endogâmico, o acolhimento e exercício da
gestão da herança familiar, passava a ser trespassado pelas possibilidades de
constituição de vínculos sociais que excediam as fronteiras de tais espaços, pela
experienciação de espaços de convívio e de universos culturais que, por assim dizer,
situavam-se para além ou aquém das ordens de mamãe e ensejavam a reelaboração de
toda uma semântica do social, de toda uma sintaxe das interações.
1.2.1 – Experiência amorosa e literatura
As atribulações afetivas da juventude de Oswald enquadram-se no que acabamos
de afirmar. Antes de mais, vale observar que a vida amorosa de Oswald foi
predominantemente celebrada por conta de suas “uniões modernistas”, diga-se de
passagem, nada convencionais, com Tarsila do Amaral e Patrícia Galvão, a Pagu.
44
Relacionamentos em que a dimensão afetiva e estética se retroalimentavam, ambos
renderam alguns escândalos e muita arte. Tarsila não só ilustrou o livro de poemas Pau-
Brasil, como encetou o trabalho pictórico das proposições do manifesto homônimo e
deflagrou a intuição da antropofagia com sua tela O Abaporu, a cuja orientação estética
daria prosseguimento em uma série de trabalhos realizados até o final da década de
vinte, de que são exemplos telas como, entre outras, Urutu, O lago, ambos de 1928,
Antropofagia e Floresta, de 1929. A conta de escândalo em torno do casal Tarsiwald,
como os apelidara Mário de Andrade, ficava por conta do fato de que a pintora era
oficialmente casada, o que os levou, em um meio social conservador em que nem
mesmo o divórcio era legalmente instituído, a não medir esforços para legitimar sua
união, chegando mesmo à recorrer ao Vaticano para a anulação das primeiras núpcias de
Tarsila.
A união com Pagu rendera menos em termos estéticos, entretanto, estes poucos
rendimentos seriam revestidos pela alta dose de escândalo que a união de um ex-
magnata, então praticamente falido pela quebra de 1929, com uma jovem normalista de
comportamento anárquico e pouco usual gerou nos meio social paulistano. O escritor
chegou a projetar uma ficção auto-biográfica. Intitulada Oswald de Andrade Pagu
Vidinha de Lurdes Nicolau 1930, a história retrataria o desenlace do casal Tarsiwald e o
início do romance de Oswald com Pagu, personificados, entre outros personagens, em
Dona Fachada (Tarsila), Lurdes Nicolau (Pagu) e o não menos jocoso Barbatimão
(Oswald), cujo ideal de vida se sintetizava no lema “bom estômago e pau duro” (apud
Boaventura, 1995, p. 154). Tal projeto fora contudo deixado incompleto, cedendo lugar
a uma vida cotidiana voltada para a militância política, fosse na curta duração do jornal
O Homem do Povo (1931), fosse no Partido Comunista ao qual ambos se filiaram.
Entretanto, as aventuras afetivas da primeira mocidade de Oswald permitem
flagrar em ato os percalços que marcaram sua inserção nos códigos que definiam o
padrão majoritário de vida adulta masculina em seu meio social de origem.
Em setembro de 1912, retorna de sua primeira estadia na Europa, trazendo
consigo Henriette Denise Boufflers, a jovem francesa Kamiá, então com 17 anos. A
desaprovação familiar ficou por conta de Seu Andrade, que não via com bons olhos as
aventuras amorosas do filho, por reforçarem seus receios do desinteresse de Oswald
pelos negócios da família.
Entretanto, em 1914, Oswald já se encontrava às voltas com a jovem dançarina
Carmen Lydia, Maria Carmem Kosbab. Tendo aceitado o convite de batizar Carmen,
45
Oswald passa a financia-la artisticamente. As tensões e desavenças com o pai e a ex-
mulher chegam ao limite pela ocasião de uma reportagem publicada em O Parafuso, “O
escândalo da dançarina”, na qual Oswald e a avó de Carmen figuram como
“mancomunados” com o fito de explorar a adolescente, então com quatorze anos
incompletos. Terminando em litígio, o caso é resolvido em moldes bastante tradicionais
pela iniciativa da família Andrade: a avó é destituída da tutela da neta que passa à
guarda de um grupo de amigos, juridicamente “respeitáveis”, de Oswald, enquanto
Carmen Lydia é matriculada em um colégio de freiras, de modo a evitar maiores
inconvenientes aos Andrade.
Entre 1917-18, Oswald aluga uma garçonière em um terceiro andar da rua
Líbero Badaró, que passa a ser freqüentada por sua roda de amigos bacharéis-literatos,
entre eles, Pedro Rodrigues de Almeida (ex-colaborador de O Pirralho), Inácio da
Costa Ferreira (o caricaturista e artista plástico Ferrignac), Edmundo Amaral, Vicente
Rao, Guilherme de Almeida, Amado Sarti Prado e Monteiro Lobato.
Funcionando como uma espécie de endereço “extra-oficial” de Oswald, a
garçonière deu lugar a uma sociabilidade tecida na mescla da experimentação literária e
afetiva, da qual decorreu a escritura do diário O perfeito cozinheiro das almas deste
mundo, composição coletiva resultante da intervenção gráfica e verbal dos integrantes
desta roda de amigos, cada qual se assinando com um ou mais pseudônimos, numa
espécie de desdobramento subjetivo exercitado na e pela escritura. Fragmentado no
todo, por ter sido escrito em muitas mãos, como um misto de registro de impressões
citadinas e expressão de estados de ânimo gestados no calor do convívio, entre as
muitas linhas que se desprendem da trama feita de trocadilhos, provocações mútuas,
citações e paródias
12
, é possível notar a narrativa descontínua do caso amoroso entre
Oswald, já então Miramar
13
, e Maria de Lurdes Castro Dolzani.
Miss Cyclone (ou Daisy), como se assinava no diário, vinha de uma família
modesta residente em Cravinhos, interior de São Paulo. Com dezoito anos, transferiu-se
para a capital, onde ficou hospedada na casa de parentes no Brás, afim de cursar a
Escola Normal. Oswald a conhece por volta de 1917, como anota em suas memórias:
12
Mário da Silva Brito (1970, 1992), chama a atenção para o fato de o processo de fragmentação
estrutural e estilística dos romances posteriores de Oswald remontarem, em sua visão, ao diário da
garçonière.
13
Oswald, na época, chega a providenciar a impressão de cartões de apresentação, provavelmente visando
prováveis amantes, em que se lê: “Ilmo Sr. Miramar, R. Líbero Badaró, 67. 3º Andar. Sala 2. São Paulo”
(Andrade, 1992, p. 105.).
46
Em minha casa calma da Rua Augusta, a professora de piano de Kamiá, uma
moça chamada Antonieta que mora ao lado, na Rua Olinda, traz para o
almoço uma prima esquelética, com uma mecha de cabelos na testa.
Chamavam-na Deisi. [...] Convido-a cinicamente a me amar. Ela responde: -
Sim mas sempremeditação, quando no encontrarmos um dia. (Andrade, 1990,
p. 108.).
Após a morte de seu pai e o desgaste de suas relações com os parentes do Brás,
Cyclone passa a recorrer mais assiduamente aos empréstimos financeiros de Oswald. O
relacionamento entre ambos não só lhes rendeu inúmeras contrariedades familiares,
como resultou em um desfecho trágico, com a morte de Deisi em decorrência de
complicações de um aborto. Casam-se in extremis, com Oswald capitulando frente aos
valores católicos fortemente enraizados em seu ambiente familiar e em si mesmo, como
denota o fecho de várias de suas obras com o tradicional Laus Deo.
No período de seu convívio com os “gravatas”, como se referia aos
freqüentadores da garçonière, coube a Cyclone o papel de personagem central do diário.
Única mulher do grupo
14
, não só suas ausências eram anotadas com vago pesar, como
sua presença acendia as vaidades e dava motivo à esgrimas literárias, como ressalta
neste diálogo deflagrado por uma intervenção de Pedro de Almeida (João de Barros)
seguida por Oswald (Miramar):
O meu disco é uma péssima música tocada por um grande artista; o amor é, a
maior parte das vezes, uma grande música, tocada por um péssimo artista. [a
que replica a sátira miramariana:] Se isso é piada comigo, fique sabendo que
já toquei a Patética de Beethoven numa sanfona. O Pedro, esqueceu-se que é
polícia, fuzila-me com olhos de assino. [João de Barros treplica:] João de
Barros? Daisy? Miramar?... No grande cenário de um dia após o outro hão de
resolver juntos o coração e a cabeça. [...] São bons! Como os três se querem.
Acima de tudo, sejamos leais, prudentes e sensíveis. [Miramar insiste:]
Daisy, você fica insensível diante disso? [E à resposta da moça...:] Fico
imprudente e desleal. [...dobra o trocadilho:] Que prudente lealdade!
(Andrade, 1992, pp. 19-21.).
Certamente, a assiduidade da presença feminina em um meio de convívio
intelectual, perfil então majoritariamente masculino, era uma situação algo
14
As páginas do diário fazem menções intermitentes a outras mulheres que provavelmente freqüentavam
a garçonière.
47
desconcertante para os freqüentadores da garçonière. Não pelo simples fato de se tratar
de uma única mulher em uma roda de homens ansiosos por escapadelas do meio
familiar e matrimonial, mas sobretudo pelo que, provavelmente, enxergavam como um
ingrediente de ousadia em sua conduta, isto é, o caráter ativo e voluntarioso de seu
posicionamento, tanto em termos comportamentais quanto, principalmente, intelectuais.
Pois tratava-se do “disparate” de uma jovem normalista que “presunçosamente”
dispensava certa indiferença à competência letrada de seus amigos bacharéis,
afirmando-se como sujeito da escritura na medida em que se colocava como co-autora
de um texto em que, a princípio, poderia ficar confinada à mera posição de personagem.
Assim, não faltam passagens do diário que resultam da tensão entre esta
dinâmica de composição e os estereótipos arraigados nos padrões hegemônicos de
divisão de competências entre os sexos: “A Cyclone, ela sozinha, basta para encher um
ambiente intelectual de homens do quanto ele precisa de feminino, para a sua alegria e
para seu encanto” (Andrade, 1992, p.9.). À tentativa de enquadrá-la nos predicados do
“feminino” de passividade, de mero complemento ornamental à postura “séria” e
“comprometida” da atividade intelectual, a moça endereçava um lacônico e
escarnecedor “Ri devagar” (ibdem, p.2.). Ridicularizava igualmente as pretensões de
tutela existencial, utilizando-se do mesmo expediente de mal-desfarçados lugares
comuns do repertório literário, que lhe endereçavam: “Casa a arte com tua vida e talvez
sejas feliz!... Mas a arte é tão longa... e a vida é tão curta.” (ibdem, p. 16.).
Não era apenas no terreno das relações afetivas que o convívio na garçonière
abalava referências pré-estabelecidas. O entrecruzamento de universos sociais
contrastantes, neste ponto, é outro dado importante a ser observado. As idas e vindas de
Miss Cyclone, suas ausências ocasionais, alargavam o horizonte imaginativo dos
“gravatas”, levando-os indiretamente à ponderações, ainda que no mais das vezes
estereotipadas, acerca da vida que se passava para além do mundo dos cafés, bares e
redações, restritos ao circuito do Triângulo central de São Paulo:
Cyclone voltou! No grande olhar desfalecido traz a vermelhidão tracomica de
velhas noites de libertinagem... [...] Fala-nos do Brás, desse arrepiador Brás
conandoylesco. [...] No vulto desmoronado de girl do Centenário trouxe o
ritmo descompassado do Brás-Monmartre, das noites rubras da ‘Boite-à-
Fursy’... Lucie-la-Pompe dos trottoirs lamacentos da Avenida Celso Garcia!
Juliette Roux do Gasômetro! (Andrade, 1992, p. 56.).
48
O recurso constante a referenciais da literatura e cultura francesas e inglesas, e o
tom levemente pedante, deixa entrever o esforço de atenuar o teor de estranhamento
contido em tais vivências, na busca de assimilá-las a elementos longamente
sedimentados na cultura letrada destes jovens intelectuais. Entretanto, é plausível que se
considere que este choque de universos sociais distintos, inscrito na sociabilidade da
garçonière, não tenha ficado unicamente restrito ao equacionamento do estranho ao já
assimilado. Ao menos no que respeita a Oswald:
Chego ainda a tempo de vê-la galgar ligeira o estribo poeirento de um bonde
e mergulhar, com a lentidão do monstro de ferro, nesse abismo da várzea que
faz supor, para lá, no bastidor de crimes e vielas, a existência de romance em
que ela se obstina. Com uma timidez de potache, murmurei-lhe entre os
dentes um “bom dia” idiota. Ela nem sorriu nem olhou. Partiu... pela primeira
vez, percebi uma coisa séria – que ela me faz falta. (ibidem, pp. 82-83.).
Exotismos a parte, parece que um misto de ciúme, orgulho e afeição conduz
Oswald a descer do alto do sentimento de superioridade social rumo aos universos
sociais cuja presença lhe era figurada pela aparente indiferença de sua pretendida. As
constantes incursões de Oswald ao Brás, que serviam à troça dos trocadilhos de
Cyclone, “miramar, o agente secreto da minha encrenca misteriosa [...] da minha polícia
Brás... ileira” (ibdem, p. 88.), exemplificam como o processo de crescimento urbano e
diversificação social de São Paulo promovia o deslocamento das balizas que até então
mantinham uma relativa discrição entre os grupos e meios sociais distintos entre si. Isto
é, em termos sociológicos, o laço amoroso entre Oswald e Cyclone constituía o canal de
conflitiva comunicação entre os espaços sociais, em geral mutuamente excludentes, mas
complementares, da São Paulo dos salões e praças afrancesadas e a São Paulo
adventícia dos cortiços e bairros periféricos.
Longe de pretendermos reiterar o já repisado anedotário sobre a vida amorosa do
autor, tais atribulações amorosas são sociologicamente indicativas do modo conturbado
em que se deu a inserção social de Oswald nos limites de seu meio de origem, e de sua
receptividade aos imperativos de sua classe. Pelo menos no que tange à refração destes
últimos nos códigos predominantes de conduta afetiva. Com efeito, pode-se, por um
lado, concordar com Miceli, que identifica um padrão de classe nas expectativas e
comportamentos inscritos nas aventuras amorosas de Oswald, durante sua primeira
mocidade:
49
além de serem [suas namoradas] todas elas bem mais jovens do que ele, a
atração de Oswald parecia tomar alento quanto maior a distância econômica e
social de suas “protegidas” [...] não há como negar os laços de sujeição
material que permeavam essas relações. Na verdade, Oswald mantinha como
amantes essas jovens, socialmente inferiores, ao preço de uma despesa
considerável de dinheiro, tornando-as suas protegidas e dependentes,
descartadas à custa de um desembolso igualmente considerável. (Miceli,
2004, p. 203.).
Contudo, parece igualmente pertinente notar em tal comportamento certa
tendência latente a, por assim dizer, “desclassificar-se”, no sentido estrito de um
intento de ensaiar a experimentação de arranjos de vínculos e vivências sociais
alternativos em relação aos padrões socialmente hegemônicos.
É possível pensar que tais experiências tenham contribuído para a constituição
das disposições subjetivas que possibilitaram a Oswald sua tensa aproximação com os
universos culturais subalternos, que, por sua vez, lhe facultaram um conteúdo para o
preenchimento das demandas objetivas do campo literário por uma arte de feitio
nacionalista.
Escrito entre 1917 e 1921, já Os Condenados nutrira-se largamente de tal
experiência. O livro gira em torno do triângulo amoroso entre Alma d’Alvelos, jovem
prostituta, o cinegrafista João do Carmo e o cafetão Mauro Glade. A narrativa, feita de
cortes entre blocos justapostos, aspirando à simultaneidade cinematográfica, desloca-se
com o trânsito das personagens por entre meios marginalizados, bordéis, restaurantes,
cabarés, etc., e os espaços “nobres” como as avenidas de Higienópolis e o apartamento
de Alma e de um engenheiro seu amante, nas Perdizes. Neste sentido, uma linha de
ligação, que ao mesmo tempo aproxima e distancia, entre o alto e o baixo, o dominante
e o subalterno, atravessa a trama deste primeiro romance oswaldiano. Ecoando aspectos
de Madame Pommery, publicado por Hilário Tácito em 1920, o livro lança certa ironia
sob a conduta das camadas médias e altas da sociedade paulistana, ao tratar,
indiretamente, o tema clássico da prostituição como possibilidade de ascensão social,
deixando latente, portanto, a interrogação acerca dos limites e inconsistências dos
códigos que traçavam as fronteiras morais entre o “respeitável” e o “repulsivo” e
fixavam os critérios de acolhimento aos pretendentes à “boa sociedade”.
50
Publicado no livro Pau-Brasil (1925), o poema bonde é igualmente significativo
a respeito das vivências proporcionadas pelas brechas que o processo de transformações
da cidade de São Paulo abria nas fronteiras dos circuitos de circulação e sociabilidades
convencionais:
O transatlântico mesclado
Dlendlena e esguicha luz
Postretutas e famias sacolejam. (Andrade, 1966, p. 98.).
Tal processo é poeticamente sintetizado tanto no plano lexical, com o emprego
indiscriminado dos materiais advindos da diversidade lingüística resultante dos fluxos
populacionais, quanto no semântico, com a apresentação dos índices da sociedade
“oficial” (famílias) avizinhados aos da sociedade marginalizada (prostitutas) e
instalados em uma mesma escala de valor traçada por sua vinculação equânime ao
mesmo verbo, o que, ao mesmo tempo, dá a entender uma certa contrariedade recíproca
entre as partes, sugerida pelo desconforto involuntário do “sacolejar”. Sugestão que se
reveste de uma nota humorística por conta do aparente escândalo que toma o sujeito da
elocução do verso, a julgar pelo idioleto, um provável “caipira”, afligido pelos
disparates da cidade grande.
1.2.2 – A Boêmia literária
A verve satírica dos versos macarrônicos, mesclando registros oriundos da
diversificação sociolingüística da São Paulo, atravessada de fluxos (i)migratórios,
remete às práticas da sociabilidade literária da boêmia, presente desde os tempos
românticos. Agora intensificado pela expansão dos postos da imprensa, da burocracia e
pela proliferação de lugares de encontro, cafés, bares, cabarés, no triângulo central de
São Paulo, e, mais profundamente, pelas transformações socioculturais que marcaram a
instauração da República, o espaço da boêmia configurava um daqueles universos
recém-abertos de experiência social, a que nos referíamos acima.
Se bem que elaborada em referência ao contexto pós-revolucionário francês, a
interpretação da vida boêmia formulada por Jerold Seigel (1992), parece apropriada
para a dimensão de complexização dos processos de reprodução das elites, que vimos
apontando. Para o autor, a boêmia é um fenômeno cultural correlato à emergência da
sociedade burguesa, profundamente ligada à crise de significação do social, que
51
decorreu da passagem de uma forma de atribuição de sentido à vida coletiva pautada por
referenciais nitidamente definidos, como os vínculos de pertencimento a grupos, locais
e atividades de origem, típicas da sociedade estamental do Antigo Regime, para as
formas modernas calcadas na fragilidade da suposição apriorística de autonomia e livre
iniciativa dos indivíduos. Assim, a boêmia seria o palco em que a condição burguesa de
seus protagonistas é constantemente dramatizada, um território de teste e exploração dos
limites identitários inscritos na ordem social recém instituída e de suas ambuiguidades
latentes.
De certo, as transformações que marcaram a sociedade brasileira na virada do
Império à República sofreram, em larga medida, os efeitos amortecedores das estruturas
gestadas no interior de nossa formação sócio-histórica precedente. Desescravização,
trabalho assalariado, mercado capitalista, urbanização, regime republicano e outros
tantos vetores de expansão da modernidade entre nós, foram largamente recodificados
segundo uma lógica e estrutura sociais longamente sedimentadas e estratificadas ao
longo de quatro séculos de escravidão, patriarcado e predomínio rural.
Entretanto, mesmo que as eventuais rupturas do presente tenham se processado
em grande parte pela reelaboração dos traços do passado, não significa que o transcurso
tenha se dado linear e pacificamente. Há sinais que, bem observados, indiciam a
ocorrência dos abalos sísmicos que a passagem do nosso “Antigo Regime” a nossa “Era
Burguesa” deflagrou nos estratos da sensibilidade social brasileira. Testemunham-no,
por um lado, o esforço levado a efeito pela primeira geração de políticos, intelectuais e
artistas republicanos, com vistas à elaboração e difusão de emblemas, insígnias, hinos,
personagens e narrativas, enfim, de todo um aparatoso universo simbólico destinado a
concorrer na composição do panteão cívico e do imaginário do novo regime (Carvalho,
1990.). Problema de hegemonia cuja relevância política fica patente se pensarmos que a
monarquia lograra larga penetração no imaginário popular, em grande parte por suas
afinidades simbólicas tanto com a estrutura de poder social personalista, familística e
patriarcal, quanto com a religiosidade advinda da miscigenação entre a mística católica
e a africana (Schwarcz, 2009); por outro, a proliferação de perfis biográficos e
genealogias familiares, publicadas em livro ou nas páginas do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo. Em meio às transformações sociais em curso, tais expedientes
discursivos podem ter funcionado como um vínculo simbólico a religar os antigos
“nobres” – agraciados com títulos e patentes pelo Imperador e que a República nivelara
a cidadãos – à estabilidade do pertencimento a uma linhagem, resguardando suas
52
veleidades aristocráticas em face de uma sociedade cuja diversificação e insipiente
industrialização colocava em primeiro plano uma dinâmica de estratificação por classe,
dando lugar a uma camada emergente de “novos ricos”, em grande parte de origem
imigrante, e a suas demandas por prestígio social.
No que toca aos grupos de intelectuais, o momento era de substituição da busca
de uma posição privilegiada na Corte, que permitisse possibilidade de acesso às
benesses do Imperador, pela perspectiva de inserção no mercado editorial e no
jornalismo. Isso, via de regra, passava por expedientes personalistas de mobilização do
capital social face aos grupos políticos que controlavam tanto os principais
empreendimentos na imprensa quanto a destinação dos incentivos oficiais à cultura, e
poderia culminar, no caso de uma carreira bem sucedida, com a eleição a uma cadeira
da recém criada Academia Brasileira de Letras. Este universo social de parâmetros
difusos, armado por relações que implicava na transigência ambivalente tanto com os
imperativos de aprendizado técnico e cultural, quanto com os decorrentes da
cordialidade necessária ao trato social para a plena realização dos mesmos, inseria os
intelectuais num ponto de interpenetração entre traços clientelísticos, tão constitutivos
da dinâmica social brasileira, e a impessoalidade dos mecanismos concorrenciais do
mercado. Tais vetores de força não só deram vida, como delinearam muitos dos traços
da feição ambígua da boêmia literária do início do século:
Esta literatura dos autores periféricos e da boêmia parnasiana constitui, com
efeito, um mundo paralelo ao oficial, que ela rebaixa pela sátira da Academia
Brasileira de Letras e de seus “medalhões”. Mas a sua situação é, por vezes,
ambígua porque alguns entre estes escritores boêmios são membros da
Academia, ou então, protegidos de algumas figuras eminentes na política, de
quem dependem para a obtenção de um pequeno emprego burocrático. Pelo
outro lado, fica sublinhada a sua ligação com a vida extra-literária, a
subliteratura e o jornalismo. (Chalmers, 1976, p. 39.).
Oswald adentrara ao universo boêmio aos quinze anos, ainda estudante no
Colégio São Bento. Vivenciava a boêmia carioca por intermédio das anedotas de seu
amigo Emílio de Menezes, poeta parnasiano e satirista, colaborador d’O Pirralho, que
freqüentava a roda de Bilac e Paula Nei. Em São Paulo, fez parte da roda dos estudantes
da Faculdade de Direito, entre eles Indalécio de Aguiar e o poeta de inspiração
anarquista e advogado Ricardo Gonçalves, membros remanescentes do grupo do
53
Cenáculo, de Monteiro Lobato. Ao lado das discussões em torno das leituras de
Nietzsche, Dostoievski e Eça de Queiroz, o grupo, que ainda contava com a freqüência
episódica do líder anarquista Oreste Ristori (Andrade, 1990, pp. 57-86.), comprazia-se
em freqüentar espetáculos populares como o circo de cavalinhos em que figurava, entre
outras, uma versão paródico-satírica de O Guarani em que “Ceci é mulata, Peri é
italiano e faz um índio perfeitamente macarrônico” (Chalmers, 1976, p. 49.).
O caráter difuso do território cultural e literário da boêmia, co-extensivo à
ambigüidade de sua inserção social, povoado tanto pelo estilo “elevado” e edificante
dos escritores parnasianos, quanto pela sátira jornalística de “rebaixamento” estilístico
ao plano da coloquialidade popular, consubstanciava-se na produção de Oswald que,
por este tempo, era o orador dos discursos grandiloquentes do grêmio estudantil Onze
de Agosto, da Faculdade de Direito, e o irreverente Annibale Scipione, que desfiava seu
português macarrônico ítalo-paulistano nas páginas d’O Pirralho, a que Juó Banannere
dera prosseguimento.
Nesses termos estritos é que parece pertinente a designação que se faz
comumente de vários traços do temperamento de Oswald como características de uma
personalidade boêmia. Isto é, a oscilação de uma identidade entre a rebeldia e o
acolhimento em face dos códigos de expressão e de conduta hegemônicos, apontam
para uma forma de subjetividade que encontrou no paradoxo a via de sua inserção a um
tempo social e estética.
1.2.3 – Literatura e negócios
O terreno afetivo não foi o único depositário de pontos de tensão entre Oswald e
as expectativas e modelos atrelados ao seu pertencimento social. Desde cedo
incentivado por sua mãe, a maior entusiasta de sua primeira viagem à Europa e de seus
empreendimentos n’O Pirralho, Oswald era contudo motivo de constante receio ao seu
pai, chefe da família e dos negócios. Suas aventuras amorosas, somadas a sua simpatia
pela literatura, só faziam aumentar a desconfiança de Seu Andrade acerca de sua
inaptidão e desinteresse para os negócios. Em carta de 1916, escrita durante uma de suas
temporadas de férias em São Vicente, Seu Andrade dirigia-se nos seguintes termos ao
filho, a quem deixou encarregado dos negócios durante sua ausência da capital:
54
Oswaldinho. Eu estava procurando papel para te escrever censurando o modo
como v. se conduziu no negócio do terreno para a praça quando recebi a sua
carta. Eu já esperava esse resultado porque v. tem se conduzido como
verdadeira criança, está completamente dominado pelo cabotinismo doentio,
apesar das minhas zangas v. não se emenda. Aonde já se viu uma pessoa que
pretenda uma desapropriação falar no preço antecipadamente, essa novidade
cabe a v. O negócio estava perfeitamente emparelhado para se obter a lei,
mas infelizmente te falta o traquejo de negócios e é teimoso tendo o grande
defeito de se descobrir. É preciso que se emende porque eu não posso mais
trabalhar e se v. continua a pensar que negócio é literatura não podemos sair
desta situação. Deus te abençoe e te dê outra orientação. (apud Boaventura,
1995, pp. 36-37. grifos nossos).
Contudo, não se tratava, nem de longe, de um gesto de rejeição da herança
familiar, mas de lhe atribuir um sentido diverso ao recomendado pelo pai e seu bom-
senso de classe, em vista do enorme patrimônio em terrenos e imóveis. À semelhança
de um gesto paródico, procedimento estilístico tantas vezes adotado pelo autor em seus
textos, em que um significado prévio é apropriado e mobilizado em favor de seu
deslocamento para sentidos insuspeitos, Oswald apropriara-se das práticas inscritas na
condição social de herdeiro e as desvia para finalidades extra-empresariais. Com efeito,
o autor vislumbrava a margem de manobra que sua herança asseguraria a um
pretendente à carreira literária e, na equação subjetiva de suas inclinações, colocava sua
predileção pela literatura acima de sua condição de herdeiro, convertendo seu “destino”
de futuro empresário em expediente de viabilização e garantia de sua “vocação” de
escritor.
De qualquer modo, é provável que os reveses que marcaram a plena efetivação
da inserção social de Oswald, ora se opondo refratariamente, ora transigindo e se
beneficiando dos imperativos inscritos em sua condição, atuaram como fatores
constitutivos de grande parte dos ingredientes de sua elaboração literária.
1.2.4 – A entrada no campo literário
Com efeito, é assim que os efeitos tendencialmente restritivos, em termos de
trajetória e possibilidades de inserção social e profissional, da retaguarda financeira da
herança familiar, são remanejados por Oswald no sentido de possibilitar uma maior
margem de manobra e mobilidade no espaço social, de modo que lhe foi possível
55
apropriar-se das práticas e condutas, características de um moço de sua origem, para
recombiná-las e alterná-las, sem comprometer seriamente as etapas do itinerário de
formação de seu capital social e cultural.
No caso de nosso autor, essas alternâncias compunham mesmo uma trajetória
em que se multiplicavam as oportunidades de acesso a trunfos indispensáveis ao futuro
postulante à carreira artístico-literária e, em um segundo momento, à ocupação das
posições dominantes no campo correspondente. É assim que, por exemplo, com o
incentivo e apoio do grupo familiar, interrompe seus estudos na Faculdade de Direito,
em 1912, e embarca para sua primeira viagem à Europa. A viagem que deveria, aos
olhos da família, possibilitar o “traquejo” necessário e condizente a um jovem de sua
condição (Boaventura, 1995, p. 21.), funciona para o futuro escritor como um ensejo de
travar conhecimento do ambiente intelectual e artístico dos principais centros europeus
e dos mestres e obras da vanguarda.
Se na primeira viagem o ganho líquido em matéria de capital cultural se
restringiu basicamente ao primeiro contato com o verso livre simbolista e as idéias
contidas no Manifesto Futurista de Marinetti (Andrade, 1990, ps. 79, 84), os recorrentes
retornos à Europa durante a década de vinte, época em que o escritor se firma como
cafeicultor, diversificam e intensificam os investimentos e retornos em dividendos
culturais, artísticos e sociais. Em companhia de Tarsila do Amaral, de cujo pai Oswald
adquirira a fazenda Santa Maria do Alto (Boaventura, 1995, p. 127), o casal se divide
em uma miríade de atividades que incluem compromissos ligados aos negócios de
exportação de café e aquisição de obras de arte, experiências de aprendizado artístico e
literário e freqüência a instituições e eventos culturais, como museus, teatros,
exposições, sinfonias e óperas. Além desses, ambientes de sociabilidade que atendiam
simultaneamente às pretensões de atualização estética e à necessidade de estreitamento
de relações e alianças com figuras importantes tanto da cena vanguardista, como, entre
outros, o pintor cubista Fernand Legér e o poeta Blaise Cendrars, quanto do campo
político, como o diplomata Souza Dantas (Boaventura, 1995, pp. 83-92.).
Mesclando possibilidades latentes em sua origem e trajetória, Oswald articula
um empreendimento compósito que mobiliza ao mesmo tempo vivência mundana,
aprendizado artístico e recursos econômicos, circunscrevendo, durante a década de
vinte, um posto avançado do Modernismo paulista em Paris, uma espécie de embaixada
oswaldiana em que o autor angaria, em termos simbólicos, “fundos externos” que lhe
serviram como trunfos no jogo literário interno.
56
Tal itinerário constituía um cabedal de capitais econômicos, sociais e culturais,
que, em alguns casos pela sua composição, em outros pelo seu volume, predispunham
seu portador à aproximação de agentes cuja trajetória pelo espaço social resultou na
aquisição de cabedais relativamente semelhantes, o que os assemelharia também em
termos de posições possíveis de serem ocupadas nos diversos campos. Neste ponto,
acreditamos que as considerações tecidas por Bourdieu a respeito das classes sociais,
são também aplicáveis aos grupos que se constituem no interior das mesmas:
Com base no conhecimento do espaço das posições, podemos recortar classes
no sentido lógico do termo, quer dizer, conjuntos de agentes que ocupam
posições semelhantes e que, colocados em condições semelhantes e sujeitos a
condicionamentos semelhantes, têm, com toda a probabilidade, atitudes e
interesses semelhantes, logo, práticas e tomadas de posição semelhantes. [...]
poder-se-ia dizer [que este grupo de agentes] é uma classe provável, enquanto
conjunto de agentes que oporá menos obstáculos objetivos às ações de
mobilização do que qualquer outro conjunto de agentes. [...] Deste modo, é
preciso afirmar [...] a existência de um espaço objetivo que determina
compatibilidades e incompatibilidades, proximidades e distâncias. (2005, p.
136).
Embora algumas das alianças que amarrariam a coesão interna do grupo
modernista remontem aos primeiros passos da trajetória de Oswald, como a amizade
com Guilherme de Almeida, também aluno do Colégio São Bento, é a ocupação de um
posto no processo de expansão da imprensa, à época, que lhe redundará oportunidades
mais efetivas de atualização de seus capitais, enquanto trunfos na postulação de uma
carreira literária. Em outras palavras, além de podermos considerar, dada a
interpenetração já observada entre jornalismo e literatura, decorrentes das condições
estruturais do campo de então, este momento como sendo o de entrada no campo
literário, é a posição de jornalista, inscrita em uma das principais instâncias de
consagração da época, que constituirá condição de possibilidade de implementação de
uma estratégia de política literária
15
. Este aspecto, no caso de Oswald, dada sua origem
e condição social, sobressai-se ao do jornalismo tomado enquanto meio de
sobrevivência econômica, mesmo nos casos em que o autor se vê diretamente implicado
em sua dimensão empresarial. É o caso do periódico O Pirralho, que, financiado pela
família, desempenhou em sua trajetória uma função sobretudo de arregimentação e
15
Oswald atuou na imprensa desde 1909 até sua morte, começando como redator e crítico teatral no
Diário Popular , com a coluna “Teatro e Salões” . No Correio Paulistano, colaborou inclusive como
correspondente em Paris; trabalhou também no Correio da Manhã e Folha de S. Paulo. Além das revistas
Klaxon (1922) e Antropofagia (1928), criadas por ele, publicou na revista de variedades A Cigarra
(1914).
57
propaganda estética: “Eu, com a expansão da capital e a valorização dos terrenos da
Vila Cerqueira César, me julgava um moço rico e não pretendia explorar, portanto, ‘O
Pirralho’, de que pagava impressão, caricaturista e todas as contas.” (Andrade, 1990,
p.67.)
Com efeito, a propriedade de O Pirralho facilitou ao escritor uma via de acesso
à problemática do campo, tanto no que diz respeito aos assuntos então em pauta, como
no que concerne ao estreitamento de relações com autores consagrados. Em relação ao
primeiro aspecto, já apontamos acima como Oswald cerrava fileiras com o então
fortemente em voga regionalismo, ao apontar, em matéria de pintura, Almeida Júnior
como referencial estético de uma arte que se pretendesse nacional. Quanto ao segundo,
as páginas do semanário funcionaram como um locus privilegiado de reiteração, no
plano literário, da proximidade que o autor vinha construindo, no plano da
sociabilidade, com autores de estirpe parnasiana como Olavo Bilac, Olegário Mariano e
o menos consagrado entre eles, mas não menos conhecido, Emílio de Menezes, através
de expedientes como sua filiação à Associação dos Homens de Letras, de sua
participação destacada em eventos de homenagem e de sua freqüência às rodas literárias
do Rio de Janeiro (Boaventura, 1995, ps. 16, 31, 43.). Com efeito, O Pirralho chega a
dedicar capas e a endereçar comentários elogiosos a algumas destas figuras, além de
contar com uma política editorial que logra “cooptá-las” e exibi-las entre seus principais
colaboradores permanentes (Martins, 1978, pp. 22-23.).
Funcionando como catalisador de alianças, o periódico é também um importante
instrumento de auto-propaganda. Além de textos críticos como o já citado Em prol de
uma pintura nacional, suas páginas abrigaram os primeiros trechos publicados do
romance Memórias Sentimentais de João Miramar. É importante notar, como índice de
aprendizado literário, aquisição de capital cultural e intelectual e de processo de
diferenciação estilística, advindo de uma inserção cada vez mais nitidamente demarcada
no campo literário, as mutações pelas quais passou a linguagem da prosa oswaldiana.
Assim, em 1917, aparece o primeiro capítulo do livro, distante, na linearidade da
sintaxe e no predomínio da função referencial da linguagem, dos episódios que
comporiam sua versão definitiva:
Saímos calados, aos grupos de dois e três, pelo largo portão abacial do
colégio, onde acabávamos de ter a última aula do nosso curso de seis anos. O
professor Madureira, poeta e misantropo, fizera-nos um discurso de
despedida. Partíamos na direção da vida, ‘estrada, onde havíamos de
encontrar muitas vezes abismos recobertos de flores’.
58
Eu ia quieto, pelo triângulo central de São Paulo, quando percebi ao meu lado
Carlos Cintra que, para estudar em casa, não havia mais comparecido às
aulas.
- É verdade então, interpelou-me ele, não vens para a Academia?
- Não, talvez vá estudar medicina em Paris.
- É troça, hein?
- Não é troça, meu asno. Acabou-se o ginásio e agora é a Vida com V
grande. O velho Madureira chamou-me hoje no corredor para fazer-me
vaticínios, disse que um dia este país há de chamar-me seu filho predileto.
Ah! Ah! Uma terra em que arte é tocar pinho e fazer versos de pé quebrado!
Qual Academia de Direito! Não nasci para fazer desse curso a página
sentimental da existência, sou da teoria de Carlos Alberto.
- Como vai ele?
- Estupendo! E o seu grupo! o grupo do Gonçalo Rico, o poeta do
"Hipopótamo no Rio". Ontem, ficamos até 1 hora juntos, na Ilha, no Largo da
Sé, ali em frente à Catedral. [...]
Chegáramos aos Quatro Cantos. Paramos. Surgindo do portal de um café,
aproximou-se de nós outro colega de turma, o José Cerqueira, agitado e de
óculos.
- Vocês não calculam, irrompeu, como vai ser difícil a prova oral de grego.
Aquele diabo de Fei Anselmo exige toda a Crestomatia. Vou estudar em sua
casa hoje,Carlos.
- Você que vir também Miramar, fez-me o outro.
- Não, que me importa a Crestomatia?
- Miramar é literato, gritou Cerqueira rindo-se com escândalo amável.
Sacudi os ombros. Despedimo-nos. Os dois estudantes perderam as silhuetas
de adolescentes enfezados na turba que se movia para os lados do Viaduto. E
eu fiquei ali, parado, na expectativa comovida de passar, acompanhado pelo
séquito de seus boêmios, de capa largada ao ombro, moreno e franzino, o
poeta acadêmico Gonçalo Rico, que, àquelas horas, deixava o páteo do velho
convento de São Francisco.(apud, Martins, 1978, pp. 65-66.)
Com efeito, a tomada de posição sedimentada literariamente neste trecho
corresponde às alianças que o autor tecia no campo literário bem como, através destas,
às posições das quais se avizinhava. Vale observar a feição que o texto assumiria em
1924, após o contato com Cendrars. O deslocamento estilístico, com a supressão da
pontuação, a interpenetração das orações e o procedimento elíptico acompanham a
mudança da orientação da política literária do autor, em boa medida condicionada,
como discutiremos a seguir, pela nova configuração de forças do campo. Trata-se do
epsódio Rumo Sensacional, que ocupa, no enredo da versão reescrita, uma lugar
equivalente ao do trecho anteriormente citado:
Fomos devolvidos aos maços de dois e três pelo portão colegial onde
vínhamos de ter a última aula de tantos anos.
Poeta e misantropo Seu Madureira fizera-nos um adeus de discurso.
Partíamos na direção da vida - estrada onde havíamos de encontrar muitas
vezes abismos recobertos de flores.
Calados num ângulo doTriângulo separamo-nos com um abraço de José
Chelinini que ia para o comércio. (Andrade, 1978, p.).
É patente a aplicação do aprendizado estético advindo do contato direto com as
59
vanguardas européias, resultando em uma linguagem com traços cubo-futuristas
(Campos, 1978, xliii). Aliás, note-se que a estratégia de aplicar, no contexto literário
brasileiro, o capital cultural absorvido na Europa aponta para um possível paradoxo nas
reivindicações nacionalistas que Oswald reclamaria para sua literatura, isto é, um certo
descompasso entre as finalidades estéticas nacionalistas e os meios expressivos
europeizantes adotados para sua consecução. Retomaremos este ponto à frente. Por ora,
cabe observar que a entrada no campo literário, no caso de Oswald, não coincide com
sua existência no interior do mesmo. Visto que
em um universo onde existir é diferir, isto é, ocupar uma posição distinta e
distintiva, [os escritores] existem apenas na medida em que, sem ter
necessidade de o querer, chegam a afirmar sua identidade, ou seja, sua
diferença, a fazê-la conhecida e reconhecida (“fazer um nome”), impondo
modos de pensamento e de expressão novos, em ruptura com os modos de
pensamento em vigor, portanto, destinados a desconcertar por sua
“obscuridade” e sua “gratuidade”. (Bourdieu, 1996, p. 271.)
Deve-se observar que a estréia literária de Oswald, como a dos demais escritores
modernistas, tampouco exerceu, na tessitura do campo, um efeito contrastivo com a
problemática instituída. Escritas em parceria com Guilherme de Almeida, as peças
teatrais Mon Coeur Balance e Leur Âme foram sintomaticamente compostas em francês,
o que, se de um lado valeu aos autores as censuras da crítica de extração nacionalista,
por outro os sintonizava com o clima ainda fortemente francófilo preponderante entre as
elites de então, rendendo-lhes mesmo a oportunidade de as apresentar mediante a leitura
executada por uma trupe francesa que, como tantas outras à época, estava de passagem
por São Paulo (Martins, 1978, pp. 36-37.). Posterior e estrategicamente suprimidas dos
currículos literários dos autores, a obra contou com o reforço propagandístico de O
Pirralho, que asseverava a simpática acolhida “do novo trabalho dos dois distintos
intelectuais paulistas” no Rio de Janeiro, por parte de uma “escolhida assembléia de
intelectuais”, além de apontar para aspectos da trama que o posterior cânon modernista
relegaria ao universo das obsolescências românticas, neste caso, a “torturante
preocupação, que faz o desespero da humanidade masculina e rafiné, que é isso de
querer apanhar na inteireza da sua complexidade a alma fúlgida da mulher” (apud
Martins, 1978, p.36.).
Os futuros modernistas, embora estreantes, constituiam-se como autores
estruturalmente velhos, isto é, do ponto de vista interno ao campo, suas tomadas de
posição coadunavam-se com a problemática já legitimada.
60
Entretanto, a própria dinâmica do campo literário atuava no sentido de delinear
novas potencialidades, reconfigurando o espaço dos possíveis:
[...] a herança acumulada pelo trabalho coletivo apresenta-se a cada agente
como um espaço de possíveis, ou seja, como um conjunto de sujeições
prováveis que são a condição e a contrapartida de um conjunto circunscrito
de usos possíveis. [...]
Para que as audácias da pesquisa inovadora ou revolucionária tenham
algumas possibilidades de ser concebidas, é preciso que existam em estado
potencial no seio do sistema dos possíveis já realizados, como lacunas
estruturais que parecem esperar e exigir o preenchimento, como direções
potenciais de desenvolvimento, caminhos possíveis de pesquisa (Bourdieu,
1996. p. 266.).
Cumpre apontar dois dos principais fatores que operavam nesta direção. Nesse
sentido, deve-se observar que, antes mesmo da morte de seus principais nomes, o
parnasianismo, embora ainda exercesse uma hegemonia incontestada, dava sinais de
envelhecimento estético. Vários críticos e mesmo alguns autores consagrados por esta
corrente, apontavam para a constante recorrência de temas, fórmulas e soluções poéticas
que vinham se repetindo nos livros de autores estreantes, convertidos assim, a seus
olhos, em meros epígonos (Brito, 1997, p. 14). Embora exprimissem tal fenômeno em
termos dos esquemas de percepção internos ao campo, recorrendo a noções típicas da
doxa literária como “inspiração” e “originalidade” ou “imitação”, pode-se supor que
muito provavelmente tais agentes deparavam-se com um processo inerente ao campo de
dentro do qual falavam. Referimo-nos ao fato de que o avanço de todo processo de
legitimação, seja de autor, obra ou corrente literária, à medida que necessariamente se
faz acompanhar da maior difusão dos mesmos, por museus, crítica ou academia, resulta
invariavelmente no desgaste simbólico daqueles mesmos que entroniza, na conversão de
seu “efeito de desbanalização” em banalidade, no uso “sem invenção de uma arte de
inventar já inventada” (Bourdieu, 1996, p. 286.).
1.2.5 – Composição da fileira modernista
Além deste fator de desgaste estético e simbólico, decorrente do alto grau de
consagração, e que, portanto, podemos supor como algo que afetava outras tendências e
autores em estágios igualmente avançados de legitimação, o campo literário passava a
sofrer mais intensamente as demandas, já apontadas anteriormente, de um discurso e
imaginário de caráter nacionalista, emergente no campo do poder e atrelado, por sua
61
vez, à dinâmica de recomposição de suas forças internas. Como já ressaltamos,
retomaremos este aspecto no capítulo seguinte. Por ora, basta observar que a atuação
conjunta destes dois vetores convergia para uma redefinição das possibilidades em
aberto para as tomadas de posição no campo literário, abrindo posições em potencial e
revestindo, portanto, de probabilidade contestatória e polêmica a atuação dos
postulantes a ocupá-las.
Não espanta, com efeito, que renovação da linguagem e definição de uma
identidade brasileira tenham sido os dois principais pontos de apoio do discurso do
Modernismo paulista. Cabe, nesta altura, retomar a questão, anteriormente apontada, de
um suposto paradoxo entre estes dois pólos constitutivos da “bandeira” modernista,
como observa Candido: “Na verdade, ele [o Modernismo] inaugura um novo momento
na dialética do universal e do particular, inscrevendo-se neste com força e até
arrogância, por meio de armas tomadas a princípio ao arsenal daquele” (2000, p. 119.).
Considerado à luz da dinâmica que vimos expondo, este aspecto paradoxal apresenta-se
como a transposição, para o plano interno do discurso, da injunção exercida pelo duplo
caráter da problemática do campo literário, composta, por um lado, pelas demandas
nacionalistas postas em circulação antes mesmo do Modernismo, e, por outro, pelos
imperativos de renovação estética acionados pelo movimento, como estratégia de
combate e diferenciação artística frente às correntes opositoras.
Nesse sentido, trata-se de um traço inscrito nas próprias condições sociais de
possibilidade do Modernismo. Tanto em um sentido mais estrito, isto é, ligado à posição
produzida e ocupada no campo literário pelo grupo modernista, quanto em um sentido
amplo, dado que, como retomaremos no próximo capítulo, a experiência social das
elites paulistas estava marcada por um intenso contato com os centros internacionais.
Assim, o universo cultural das vanguardas européias apresentava-se como o depositário
mais acessível de meios expressivos adequados às realizações estéticas de movimentos
que, como o Modernismo paulista, reivindicavam um caráter inovador.
No interior dessa dinâmica sócio-literária do movimento, e simultaneamente
contribuindo para a definição de seus traços, Oswald converteria as demandas por uma
arte nacional em brechas propícias à atualização de suas disposições subjetivas de
aproximação aos universos da cultura popular, provavelmente oriundas de dois fatores
que embora distintos, reforçavam-se mutuamente: os já apontados percalços de sua
inserção nos seus meios sociais de origem e sua experiência de socialização marcada
pelo trânsito entre as fronteiras simbólicas que separavam os grupos hegemônicos dos
62
subalternos.
É à mesma dinâmica que também se deve, em grande parte, o aproveitamento,
na formulação de suas proposições estéticas, das condições histórico-culturais a que
chama a atenção Antônio Cândido, em sua diferenciação do primitivismo de 22 em
relação ao das vanguardas européias:
[...] não se ignora o papel que a arte primitiva, o folclore, a etnografia,
tiveram na definição das estéticas modernas, muito atentas aos elementos
arcaicos e populares comprimidos pelo academismo. Ora, no Brasil as
culturas primitivas se misturavam à vida cotidiana ou são reminiscências
ainda vivas de um passado recente. As terríveis ousadias de um Picasso, um
Brancusi, um Max Jacob, um Tristan Tzara, eram, no fundo, mais coerentes
com a nossa herança cultural do que com a deles. (2000, p. 121.).
Com efeito, no aprofundamento de tal distinção, afirma Paes:
no modernismo brasileiro, a volta ao primitivo [...] configurava um itinerário
inverso ao dos seus modelos estrangeiros. Por ter como motivação o fastio,
quando não a desistência dos valores da civilização ocidental, o primitivismo
das vanguardas européias punha à mostra seu caráter de fuga ao familiar
rumo do exótico. O dos modernistas brasileiros de 22 significava, ao
contrário, a busca das raízes remotas, e supostamente mais autênticas, de sua
própria cultura. (1995, p. 103.).
Os termos e as formas com que os escritores modernistas (mais especialmente,
de acordo com nossos propósitos, Oswald de Andrade) mobilizaram tais fatores em sua
estratégia de inserção no campo literário, tomados em função das condicionantes
estruturais do mesmo, e a medida em que a busca de uma suposta autenticidade das
próprias raízes brasileiras pode ter redundado, não obstante, em um Brasil exótico para
os próprios brasileiros, são questões que merecem uma atenção mais acurada.
Contudo, é antes necessário que se atente para a tarefa paralela da concomitante
constituição destes autores enquanto grupo, pois, como aponta Bourdieu:
Se não há dúvida de que a orientação e forma da mudança dependem do
"estado do sistema", ou seja, do repertório de possibilidades atuais e virtuais
oferecido, em um momento dado, pelo espaço das tomadas de posições
culturais (obras, escolas, figuras exemplares, gêneros e formas disponíveis,
etc.), elas dependem também e sobretudo das relações de força simbólicas
63
entre os agentes e as instituições que, tendo interesses inteiramente vitais nas
possibilidades propostas como instrumentos e apostas de luta, aplicam-se,
com todos os poderes de que dispõem, em fazer passar ao ato aquelas que
lhes parecem mais de acordo com suas intenções e interesses específicos
(Bourdieu, 1996, pp.229-230.).
Retomando o que anteriormente sugerimos, podemos observar, primeiramente,
não obstante a eventual disparidade em termos de volume, que a alta monta do espécime
cultural no cabedal de capitais acumulados por Oswald, conferia à sua trajetória um alto
grau de probabilidade de aproximação com agentes que, pela relativa compatibilidade
da composição de capitais, ocupavam objetivamente no espaço social posições análogas
a sua. Este era o caso, em geral, da maioria dos integrantes do grupo modernista.
Embora com suas respectivas peculiaridades, uns oriundos de famílias
imigrantes com relativo grau de ascensão social (Menotti Del Picchia), outros de ramos
decadentes de famílias de relativo prestígio, inclusive contando com irmão deputado
(Mário de Andrade), estudados nas instituições de reprodução cultural e intelectual das
elites oligárquicas (seja a mais legitimada Faculdade de Direito, no caso de Menotti,
Guilherme de Almeida e Cândido Motta Filho; universidades francesas, no caso de
Sérgio Mililet, ou mesmo o Conservatório Dramático Musical, no caso de Mário),
educados artisticamente pela Europa, seja em via direta (Milliet, Motta Filho) ou
indireta pelas leituras de obras e autores (os demais) – estes escritores, com suas
afinidades, delineiam um perfil potencialmente coletivo de grupo, amarrado por um dos
padrões de associação característicos do meio literário, a amizade, cuja efetivação se
dera paulatinamente ao longo das intersecções de suas carreiras. Em segundo lugar, e
aqui se trata de uma destas intersecções, deve-se apontar para a semelhança de ocupação
prioritária, típica, como vimos, da carreira do homem de letras de então, nos postos da
imprensa. Foi no exercício do jornalismo, e nas redes correlatas de sociabilidade, como
redações, bares, confeitarias, que muito provavelmente Oswald e Menotti, redator
político do Correio Paulistano, órgão oficial do P.R.P., se conheceram. Quanto a Mário,
neste particular, é já célebre o episódio do encontro entre o então repórter do Jornal do
Comércio, Oswald de Andrade, e o jovem que proferira um discurso de cunho pacifista
e patriótico numa noite de conferências no Conservatório Dramático Musical (Brito,
1997, pp 67-69.). Trata-se de um caso exemplar das sociabilidades literárias, pois o laço
de amizade coincide com o vínculo jornalístico, estabelecido pela iniciativa de Oswald
em publicar o referido discurso.
64
Reforçam tais condicionantes estruturais certas afinidades subjetivas que se pode
supor existentes, pelo menos, entre as três principais lideranças do movimento. A este
respeito, parece reveladora a consideração da problemática que se configura na inserção
social de tais autores, tomada em relação à sua vinculação aos seus meios sociais de
origem. No caso de Oswald, como vimos, a perspectiva real de um futuro como
empresário, se assegurou a amenização dos riscos sociais assumidos em suas iniciativas
literárias, colaborou também, por outro lado, para pontuar um foco de tensão com os
imperativos de sua classe, refratados em seu ambiente familiar, no que encerravam de
potenciais obstruções às suas veleidades literárias. No que concerne a Mário, a posição
de filho homem caçula em uma família materialmente destituída, não só o colocava
diante de perspectivas menos promissoras de carreira, como também provavelmente
colaborou para o clima de reprovação que o escritor sentia pesar sobre suas tendências
comportamentais e estéticas no ambiente familiar. Os traços físicos mestiços, e a ainda
hoje interdita homossexualidade, provavelmente intensificaram os eventuais
constrangimentos instalados na trajetória de sua socialização nos meios cultos
paulistanos. Quanto a Menotti, a apenas relativa ascensão sócio-econômica do pai,
pequeno empreiteiro, provavelmente não era suficiente para compensar o déficit de
prestígio social e simbólico suscetível de pesar sobre o caráter pouco usual da pretensão
de um “carcamano” à respeitabilidade intelectual e literária. Assim, motivos
dessemelhantes colaboraram, entretanto, para circunscrever tais autores em uma
experiência social em que suas vivências particulares guardavam semelhanças
subjetivas quanto à necessidade de enfrentamento de obstáculos sociais que, embora
com intensidade variável em cada caso, se interpunham à implementação de suas
carreiras, o que também os investia, na postulação das mesmas, da inclinação a assumir
ideais e concepções estéticas afinadas entre si, justamente, por serem virtualmente
portadoras, em alguns pontos, de elementos divergentes da ordem sócio-simbólica com
que tiveram que se haver.
Entretanto, estes fatores, que cimentaram reciprocidades pessoais e estéticas,
ganhariam mais eficácia, na constituição do grupo, a partir do momento em que
passaram a operar em conjunto com os efeitos contrastivos inerentes à inserção nas
relações de força entre as posições constitutivas do campo literário, ou seja, em que as
tomadas de posição do grupo passam não só a objetivar suas propostas, como também a
se contrapor às daqueles que ocupam as posições opostas a sua.
65
Com efeito, a longa série de polêmicas que tem início por conta da exposição de
Anita Malfatti em 1917, prolonga-se na série de artigos em que Oswald e Menotti
difundem e defendem a escultura de Brecheret e se intensifica entre 1920-21, momento
em que o grupo adota a pecha de futurista, atribuída pela crítica opositora, e em que se
auto-atribui a missão de efetuar, na expressão de Menotti, o “recenseamento de valores”
da arte e literatura nacionais (Brito, 1997, p. 166.); descrevem, assim, um processo de
aprofundamento da inserção destes escritores no debate artístico-literário, em que a
posição que buscam ocupar assume progressivamente um caráter distinto e distintivo. O
efeito de coesão que decorre deste processo fica explícito na recorrência dos artigos que
estes autores passam a publicar na imprensa, versando uns sobre os outros, seja para a
defesa ou o elogio, tematizando, reciprocamente, as obras e projetos de cada um como
parte de uma “missão” coletiva (Cf.: Brito, 1997, pp. 160-168.)
Assim, na medida em que se considera que as tomadas de posição de um grupo
que pretende ocupar “as posições de vanguarda, [...] são definidas sobretudo
negativamente, pela oposição às posições dominantes” (Bourdieu, 1996, p. 301.), as
iniciativas de combate dos modernistas deixam entrever não só sua pretensão de
hegemonia literária, como também os focos em que esta se concentrava. Com efeito, a
crítica destes autores busca, num esforço sistemático e coletivo, desabilitar as posições
representadas pelo romantismo, pelo parnasianismo, o realismo e o regionalismo,
tomados todos, em contraposição ao futurismo, como expressão do passadismo (Brito,
1997, pp189-198.). É o que transparece nas discussões promovidas na imprensa pelo
grupo, que giram em torno de questões como a natureza da representação estética,
abordada em termos das relações entre arte e natureza, arte e realidade, belo artístico e
belo natural, constituindo um expediente privilegiado para opor a ‘liberdade expressiva’
que se auto-atribuem aos procedimentos parnasianos e realistas, associados à ‘cópia’
(Cf.: Brito, 1997, pp. 205-210.).
Simultaneamente, e como parte da mesma estratégia, ensaia-se o esboço de uma
genealogia, por meio da eleição de autores simbolistas como “lutadores da arte nova”, o
que se compreende, por um lado, em termos de política literária, levando-se em conta o
fato de o simbolismo sempre ter ocupado entre nós uma posição literariamente
dominada (Broca, 1975, p. 126.), e, por outro, pela necessidade simbólica de instituir
uma origem que funcionasse como uma espécie de testemunho histórico a atestar a
legitimidade das pretensões presentes.
Cumpre notar que o caráter seletivo desta operação de recuperação/detração do
66
passado literário oblitera, por um lado, a crítica ao regionalismo levada a cabo por
Monteiro Lobato, em Urupês, tanto em sua vertente caboclista, como já observamos,
então em voga em São Paulo, como na variante indianista (Martins, 1978, pp. 14-15.),
que mais tarde seria retomada nos manifestos oswaldianos. A exclusão de Lobato deste
primeiro panteão modernista explica-se tanto pelas suas manifestações contrárias à
pintura de Anita Malfatti, que talvez tenham sido motivadas mais por critérios pró-
nacionalismo do que propriamente anti-modernistas (ibidem, p. 67.), quanto pelo fato de
que, somando-se a elas, tratava-se de um dos autores mais lidos de então, cujo prestígio
e legitimidade cultural foram capazes de motivar uma onda de devoluções de telas
adquiridas na exposição da pintora, comentada por Lobato no célebre artigo Paranóia
ou Mistificação. Por outro lado, são igualmente ignorados autores que, sem reivindicar
‘escola’, vinham praticando uma escrita potencialmente ‘inovadora’. É o caso de
Adelino Magalhães
16
, cujo livro, Casos e Impressões, de 1916, incomodava a crítica
pelo ‘desregramento da linguagem’, como também pela tematização de ambientes
sociais tidos como sórdidos e decadentes (Martins, 1978, pp.62-65, 122-125), bem
próximo, portanto, da ficção urbana do Oswald de Os Condenados.
Entretanto, se as citações e propaganda mútuas e a fundação de periódicos para
auto-afirmação são índices de uma relativa coesão interna, as diferenças em termos de
volume de capital operam desde o início as tensões que levariam à diluição do grupo
modernista.
Enquanto os ocupantes das posições dominantes [...] são muito homogêneos,
as posições de vanguarda, que são definidas sobretudo negativamente, pela
oposição às posições dominantes, acolhem por um tempo, na fase de
acumulação inicial do capital simbólico, escritores e artistas muito diferentes
por sua origem e suas disposições, cujos interesses, aproximados por um
momento, em seguida virão a divergir. [...] esses grupos dominados tendem a
entrar em crise, por um paradoxo aparente, quando têm acesso ao
reconhecimento, cujos lucros simbólicos vão com freqüência para um
pequeno número, senão para um só, e quando se enfraquecem as forças
negativas de coesão: as diferenças de posição no seio do grupo, e sobretudo
16
Como observa Wilson Martins: “O autor de Casos e Impressões foi uma espécie de modernista avant la
lettre. Com algumas singularidades, porém: suas idéias de realização artística não nasceram do desejo de
acompanhar inovações estranhas (porque, à época em que ocorreram, as inovações européias ainda não
tinham surgido), e muitas delas além de modernistas, foram também modernas, o que não aconteceu com
a totalidade do que se produziu ao influxo da fecunda revolução literária de 1922”. Ao que o mesmo
autor acrescenta: “Não é difícil perceber que muitas das invenções estilísticas que atribuímos a Oswald de
Andrade (como a criação de neologismos: ‘o calor neurastenizava’; ‘as perninhas que se reptibilizam’; ‘E
de Niterói o branco casario, microscopizando, estirado, lá do outro lado!’), ou a Mário de Andrade, já se
encontram nos Casos e Impressões, para nada dizer das técnicas expressionistas (e não ‘impressionistas’,
como em geral se repete), por ele introduzidas em nossa literatura antes da Semana de Arte Moderna.
(1978, pp. 64-65).
67
as diferenças sociais e escolares que a unidade oposicional dos começos
permitia vencer e sublimar, retraduzem-se em uma participação desigual nos
lucros do capital simbólico acumulado (Bourdieu, 1996, p. 301. grifos do
autor.).
1.2.6 – Tensões e divergências internas
Mesmo no momento inicial de inserção no campo literário, em que o combate
advindo das posições opostas resultava numa maior convergência e mobilização entre
os escritores paulistas, é possível que se apontem sinais das futuras dissensões. Um caso
exemplar, neste aspecto, é o modo diferenciado como Oswald, Menotti e Mário, para
ficarmos apenas nas principais lideranças do movimento, assumem e propagam o rótulo
do futurismo. Em Menotti pode-se observar certa cautela neste ponto, expressa na
passagem de uma postura refratária, no momento em que é o autor do festejado
regionalismo de Juca Mulato, para uma atitude de pleno acolhimento no contexto em
que o grupo modernista cerra suas fileiras (Brito, 1997, pp. 163-165). Oswald não só
acolhe de bom grado o rótulo, implicitamente desde sua defesa de Anitta Malfatti,
episódio em que Menotti se coloca ao lado de Lobato e Mário silencia, até inícios da
década de vinte, como também o atribui sem reservas a seus companheiros, como no
caso célebre do artigo sobre a Paulicéia Desvairada (idem, p. 163, 223-228). Quanto a
Mário, a reserva à escola de Marinetti converte-se em aberta recusa por ocasião dos
constrangimentos públicos e até profissionais motivados pelo artigo de Oswald, ao qual
replica severamente pela imprensa (idem, pp. 230-234). Trata-se, respectivamente, de O
meu poeta futurista, publicado por Oswald de Andrade a 27 de maio de 1921 no Jornal
do Comércio (Edição de São Paulo), em que o autor, por assim dizer, promove o
seqüestro estético de Mário de Andrade, com claro fito de propaganda e polêmica, para
as hostes de um suposto, e ainda bastante insipiente em termos de categorização
estética, futurismo, e de Futurista?!, artigo que Mário publica como réplica ao amigo
também nas páginas paulistas do mesmo jornal, em 6 de junho do mesmo ano. Depois
de situar “nas duas personalidades de Menotti e Guilherme o nosso orgulho de criadores
de uma poesia bem nossa, bem filha da São Paulo crepitante do Centenário” e
transcrever um poema de Mário, Oswald fecha seu artigo com observações mais de
ordem pessoal do que propriamente estética:
Acharam estranho o ritmo, nova a forma, arrojada a frase? Graças a Deus!
Podemos dizer que não só a França tem os seus Paul Fort, os seus Claudel, os
68
seus Vildrac, e a Itália rejuvenescida o seu miraculoso Govoni. Nós também
temos os nossos gloriosos fixantes da expressão renovadora de caminhos e
êxtases.
Bendito esse futurismo paulista, que surge companheiro de jornada dos que
aqui gastam os nervos e o coração na luta brutal, na luta americana,
bandeirantemente! (apud Brito, 1997, ps. 224 e 227).
A função sobretudo polêmica e estratégica que o termo desempenhava nas
investidas do grupo paulista no debate literário, principalmente nas tomadas de posições
de Oswald, sobressai na interrogação que Mário, em sua réplica, então formulava:
“Quanto ao futurismo brasileiro, ou por outra de São Paulo, Oswald de Andrade estará
mesmo convencido de que ele existe? Que produtos apresenta? Que idéias explora? Que
quer? Que bens produz? A que futuro se endireita?” (apud Brito, 1997, p. 233).
O que transparece nestas divergências internas é, possivelmente, o correlato, em
matéria de tomadas de posição estética, das divergências socialmente objetivas em
termos de origem e condição social, bem como no que estas representavam enquanto
possibilidade de acesso a capitais de vária natureza. Dito de outro modo, muito do que
aparecia, em Oswald, como cabotinismo ou arrogância, ou ainda como ousadia e
radicalidade formal e programática, é o símile estético-comportamental de um rico
herdeiro de boa parte das zonas mais valorizadas da capital paulista, o que lhe
possibilitara não só firmar-se como cafeicultor, como também arcar com o estilo de vida
de um membro da elite, que ostentava vários marcadores simbólicos da intelectualidade
refinada e cosmopolita, e cuja obtenção, acima de tudo, em grande parte independia do
sucesso literário.
Em uma conjuntura em que as perspectivas de ascensão social via conversão da
carreira intelectual em carreira política, se viam acentuadamente diminuídas (Miceli,
1979, pp. 8-9), e, como já apontamos, a condição de profissionalização do escritor se
caracterizava por relativa precariedade, a cautela de Menotti, redator do Correio
Paulistano, e a recusa de Mário, professor do Conservatório Dramático Musical (que
chega a perder alunos por conta do escândalo em torno de seu nome, associado à nova
corrente estética), era a postura talvez mais razoável para dois intelectuais diretamente
expostos a tais constrições.
Assim, é compreensível que Oswald fosse considerado pelos demais escritores
do grupo como seu maior propagandista (Brito, 1997, p. 169). O fato é que a condição
abastada conferia-lhe certo descomprometimento em relação às convenções, fossem elas
69
sociais ou literárias, permitindo que assumisse uma maior taxa de risco estético,
beneficiando-se do carisma advindo da exposição permanente da polêmica. Por outro
lado, parece inegável que a posição desfavorável de Mário, se comparada à de Oswald
em termos de capital econômico e social, revestiu suas intervenções nos debates da
época de um grau mais elevado de acuidade estética, fruto dos investimentos
intelectuais que o autor se via impelido a fazer como uma forma de compensar suas
desvantagens em relação ao companheiro de grupo.
17
O livre trânsito pelos meios de sociabilidade da alta roda paulistana, pelos quais,
provavelmente, circulava com menores constrangimentos do que seus companheiros
situados na condição de “primos pobres” (Miceli, 1979, p. 26) das famílias oligárquicas,
como também pelos ambientes similares de Paris, conferiam a Oswald uma fonte
constante de gratificação, em termos de estímulo e reconhecimento social e simbólico.
As implicações destes fatores enquanto trunfos mobilizados no jogo das disputas
literárias são bem caracterizados pelos ganhos simbólicos advindos da afetuosa amizade
com figuras como Antônio Prado, misto de intelectual e empresário, que ocupava, como
ensaísta e um dos editores da Revista do Brasil, posições de relevo no campo
intelectual, além do poeta Blaise Cendrars, componente da vanguarda francesa, com os
quais Oswald trocava elogios mútuos através destes dispositivos de distribuição de
honrarias e produção de legitimidade que são os prefácios e dedicatórias. É o caso do
prefácio de Paulo Prado ao livro de estréia poética de Oswald, Pau-Brasil:
A poesia Pau-Brasil é o ovo de Colombo – esse ovo, como dizia um inventor
amigo meu, em que ninguém acreditava e acabou enriquecendo o genovês.
Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place
Clichy – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua própria terra. A
volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a
revelação surpreendente de que o Brasil existia. Esse fato, de que alguns já
desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo,
inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia ‘pau-brasil’. (Andrade,
1996, p. 59.).
17
Um exemplo é a série de artigos Mestres do Passado, que Mário publicou, por intermédio de Oswald,
no Jornal do Comércio entre agosto e setembro de 1921. Detendo-se em estudos específicos sobre cada
um dos ícones do parnasianismo brasileiro, Francisca Júlia, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira,
Olavo Bilac e Vicente de Carvalho, o autor, sem deixar de lado o tom polêmico, presente na constante
paródia do estilo e temas parnasianos, arma sua argumentação de termos propriamente estéticos, ao
penetrar nas peculiaridades poéticas dos “Mestres do Passado”. No dizer de Fabris, Mário “denuncia
justamente a primazia técnica, a perfeição petrificada de obras habilmente construídas, mas
expressivamente insignificantes por seu tom impessoal”, e as considerações sobre a obra dos poetas, dão
também o ensejo a restrições aos critérios estéticos então hegemônicos no campo literário: “A uma poesia
feita de regras corresponde uma crítica igualmente alicerçada em regras e esquemas apriorísticos [...].”
(1994, ps. 58-59).
70
A pretensão de um gesto de refundação da nacionalidade, tema que retomaremos
no segundo capítulo, inscrita nas palavras iniciais de Paulo Prado, desdobra-se, a seguir,
na circunstância em que Oswald situa a dedicatória de seus poemas, endereçados “a
Blaise Cendrars por ocasião da descoberta do Brasil” (ibidem, p. 65.).
Portanto, não fora por mero acaso que couberam a Oswald as tomadas de
posição que mais nitidamente distinguiram a inserção do grupo paulista no debate
literário. Aliás, para além dos discursos em aparições públicas, como o que proferiu no
Trianon, no jantar de homenagem a Menotti Del Picchia, no qual, em meio a uma
platéia que congregava as figuras mais proeminentes da intelectualidade paulistana,
exortava o homenageado a assumir mais claramente sua adesão ao grupo modernista
(Brito, 1997, pp.176-178), e dos constantes artigos publicados na imprensa em defesa
da “nova causa”, foram da pena oswaldiana que vieram as primeiras iniciativas de
“oficialização” do movimento, através dos escritos programáticos de dois manifestos.
À medida que a “cruzada modernista” avança e a “causa da renovação”
estilística passa a ganhar terreno no campo literário, o que se exprimia, entre outras
evidências, na manifestação de apoio e de adesão de figuras “cariocas” como Ronald de
Carvalho, Manuel Bandeira e Graça Aranha, a ênfase da polêmica modernista desloca-
se do foco da elaboração vanguardista da linguagem para um maior predomínio da
questão da brasilidade da expressão artística, que chega mesmo a funcionar como uma
espécie de filtro da questão anterior, como transparece no projeto de Mário de uma
gramática da fala brasileira e no princípio oswaldiano, expresso no Manifesto Pau-
Brasil, de aproveitamento estético da “língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e
neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.”
(Andrade, 1972, p. 204.). No que diz respeito à dinâmica interna do grupo modernista
em função das condições de sua inserção no campo de disputas literárias, tal
deslocamento significa que o elemento de coesão negativa, advindo das divisões
estruturais do campo e expresso na oposição futurismo x passadismo, perde em
importância simbólica, pelo avanço do processo de consagração, para o elemento
referente ao tema do nacionalismo, como observamos, já há muito colocado.
Com efeito, constituem-se, assim, as condições para que as dessimetrias
existentes entre os modernistas, inscritas nas respectivas formas de inserção de seus
membros no campo do poder e resultante em desigualdades quanto ao acesso aos
diferentes capitais, convertam-se em vetores de dispersão do grupo. Estas forças
traduziram-se em diferentes tomadas de posição que iriam compor o antagonismo em
71
torno da definição do nacional em matéria de arte e literatura, bem como dos universos
culturais que garantiriam o acesso a uma arte dotada de tal caráter e, sobretudo, em
torno de se saber quem entre tais autores era o portador da definição legítima de uma
arte genuinamente brasileira.
É assim que se assiste a seus autores, cada qual levado pelos trilhos de suas
distintas trajetórias, recorrendo a expedientes próprios para a busca de elaboração da
propagada arte moderna e nacional. Com efeito, é significativo que enquanto Mário
coloca seu investimento em pesquisas folclóricas, Oswald intensifica suas estadas
européias
18
, e Menotti, preso aos encargos de sua função jornalística, oscila entre a
adesão a uma das duas lideranças que então se insinuavam. É igualmente digno de nota,
no que concerne às alianças de política literia, tornadas mais nítidas por conta do
momento da relativa dispersão do núcleo paulista originário, a progressiva aproximação
de Mário da ala carioca do movimento, sobretudo de Bandeira, o aprofundamento do
vínculo de Oswald com Paulo Prado, ponte transatlântica que o liga também a Blaise
Cendrars, enquanto Menotti investiria em mobilizações com elementos de “segundo
escalão” do grupo, como Cassiano Ricardo e Plínio Salgado, cuja atuação permanecera
relativamente inexpressiva durante o período de maior “militância” do movimento, com
os quais comporia a réplica à Antropofagia
19
.
Atuando simultaneamente a tais injunções estruturais, deve-se observar ainda as
tensões advindas da “economia das relações afetivas” que se configuraram no convívio
entre este grupo de escritores e artistas. Analisando a sociabilidade no interior do
chamado “grupo dos cinco”, composto na década de vinte por Oswald, Tarsila, Mário,
Anita e Menotti, Miceli aponta:
18
Aqui aparece o tema e o papel da viagem no Modernismo, que retomaremos no terceiro capítulo e que
fora notado por Cândido: “Os dois livros [Macunaíma e Serafim Ponte Grande] se baseiam em duas
viagens, que os tornam complementares apesar de tão diferentes: viagem de Macunaíma, do Amazonas a
São Paulo, com retorna à placenta mitológica; viagem de Serafim, de São Paulo à Europa e ao Oriente
turístico, com o mergulho final do navio El Durasno nas águas do mito. E estas viagens-de-choque,
propiciadoras da devoração de culturas, refletem os dois autores: Mário, que nunca saiu do Brasil e teve
sua experiência fundamental na famosa excursão ao Amazonas, narrada em O turista aprendiz; Oswald,
que fez pelo menos quatro estadias longas na Europa” (2004, p. 59).
19
Movimento liderado por Oswald de Andrade entre 1928-29, teve como principais produtos artísticos e
programáticos o Manifesto Antropófago (1928), de Oswald; a pintura de Tarsila do Amaral, cuja
reorientação de sua fase pau-brasil (1924-28) para a antropofágica encontra seus mais celebrados
exemplares nas telas Abaporu, Antropofagia e Urutu, trabalhos nos quais a artista afina o ideário
nacionalista do grupo com soluções plástico-formais assimiladas ao cubismo e ao surrealismo europeus; e
o Cobra Norato, de Raul Bopp, reelaboração poética de mitos amazônicos; além da publicação da Revista
de Antropofagia, dividida em duas séries, a primeira e a segunda “dentições”. O movimento contou ainda,
em sua primeira fase, correspondente à “primeira dentição”, com a colaboração de Mário de Andrade e
Antônio de Alcântara Machado, com os quais Oswald romperia posteriormente.
72
[...] o ponto extremado a que esse convívio diuturno, intensamente buscado e
valorizado pro todos, acabou por repercutir sobre o futuro afetivo e
profissional de cada um deles, em função do caldeirão de envolvimentos
afetivos pelo qual nenhum deles passou ileso. Oswald, Menotti e Mário,
nessa seqüência de entusiasmo, ficaram fascinados pelos encantos de Tarsila;
Anita e Mário, ao que tudo indica, deram corda a um relacionamento íntimo,
mas platônico, para cujo desandar contribuíram os sentimentos de
inadequação de ambos para lidar com um experimento amoroso integral; as
tensões entre Mário e Oswald, motivadas pelas disputas quanto à liderança do
movimento modernista, começaram a se plasmar nesses anos de intimidade
cotidiana; o mesmo se pode dizer quanto ao potencial explosivo que atiçava a
competição entre Anita e Tarsila; por último, convém não esquecer o papel
de coringa exercido por Menotti, objeto da rejeição de Oswald na medida
mesmo em que este outro [além de Anita] “imigrante” do grupo servia aos
interesses e às alianças montadas por Mário. [...].
Para além das trocas afetivas e sexuais no interior do grupo, a competição
entre Mário e Oswald, ambos cobiçando a dianteira inconteste no comando
cultural e estético, envolveu as mulheres e o aliciamento de Menotti, a figura
masculina mais destituída do ponto de vista social e intelectual (2003, pp.
112-113).
Comentando a correspondência entre Mário e Tarsila, de 1929, ano de
rompimento definitivo entre os dois Andrades, o mesmo autor ainda observa:
As cartas entre Mário e Tarsila revelam a que ponto podia chegar o fascínio
obsessivo dele pela figura do Oswald, buscando, a todo momento, como que
disciplinar o que nomeava como sua insubordinação intelectual na busca de
um esteio seguro de acesso na vida pessoal do competidor. Lidava com os
rompantes autorais de Oswald como se fossem recados cifrados a estimular
maior proximidade afetiva, a qual, ao que tudo indica, não encontrava
resposta à altura dos empenhos de Mário. Ou melhor, Mário escrevia a
Tarsila no intuito de se fazer ouvir por Oswald [...]. Logo, Oswald é o
verdadeiro interlocutor, o principal destinatário do investimento afetivo, o
parceiro oculto nas cartas endereçadas por Mário à Tarsila (idem, p. 115).
Tem-se, assim, um esboço das relações de forças no interior do grupo
modernista, nas quais vieram a se inscrever as mudanças das formas de interação entre
seus membros, isto é, as condições de disputa por legitimidade literária, carisma pessoal
e afetivo, manifestas na inimizade instalada entre Mário e Oswald, e no escárnio que
73
este dispensou, por um lado, aos elementos cariocas do grupo e, por outro, ao Verde
Amarelismo articulado por Menotti.
Contudo, nem estas recomposições de forças, nem tampouco o desfecho
vitorioso da reformulação do cânon literário, isto é, a redefinição da legitimidade das
regras de hierarquização do campo literário que o Modernismo operou, no sentido de
produzir e ocupar novas posições de autoridade em seu interior, de que foram parte
integrante estas dissensões e reaproximações, são completa e unicamente explicados
pela dinâmica interna ao campo que vimos expondo.
As lutas internas são de alguma maneira arbitradas pelas sanções externas.
Com efeito, embora lhes sejam amplamente independentes em seu princípio
(isto é, nas causas e nas razões que as determinam), as lutas que se
desenvolvem no interior do campo literário (etc.) dependem sempre, em seu
desfecho, feliz ou infeliz, da correspondência que possam manter com as
lutas externas (as que se desenvolvem no seio do campo do poder ou do
campo social em seu conjunto) e dos apoios que uns e ouros possam
encontrar aí. É assim que mudanças tão decisivas [...] são tornadas possíveis
pela correspondência entre mudanças internas [...] e mudanças externas que
oferecem às novas categorias de produtores [...] e aos seus produtos
consumidores que ocupam no espaço social posições homólogas à sua
posição no campo, portanto, dotados de disposições e de gostos ajustados aos
produtos que lhe oferecem (Bourdieu, 1996, pp. 285-28, grifos do autor.).
Portanto, é importante uma análise, à luz das já expostas condições sociais de
produção e consumo literário, dos fatores externos ao campo literário que estiveram
envolvidas na gênese e consolidação do Modernismo paulista. É provável que a
discussão a que procederemos no próximo capítulo permita aprofundar tanto este como
outros aspectos até agora levantados.
Bendito esse futurismo paulista, que surge companheiro de jornada dos que
aqui gastam os nervos e o coração na luta brutal, na luta americana,
bandeirantemente!
Oswald de Andrade, O meu poeta futurista.
75
Capítulo II - A mítica bandeirante
Após o que vimos expondo, cumpre efetuarmos um terceiro passo metodológico,
correspondente à terceira dimensão da realidade que concerne às condições sociais de
produção, circulação e consumo da literatura. Referimo-nos à inserção do campo
literário no campo do poder (Bourdieu, 1996, p. 243.), o que, de acordo com os nossos
propósitos, especifica-se na forma assumida, à época estudada, pelas relações entre o
grupo intelectual em foco, e em seu interior a figura de Oswald de Andrade, e o grupo
que então ocupava as posições dirigentes no campo político e econômico. Afinal, como
aponta Bosi, “Miramar e Serafim seriam pontos de vista impensáveis sem o conúbio de
uma alta burguesia paulistana com uma inteligência viajeira, curiosa e crítica” (2000, p.
313.). Acreditamos que o “ponto de vista” da prosa modernista de Oswald não foi o
único a se apoiar na referida relação. Antes, como procuraremos apontar, essa relação é
constitutiva das tomadas de posição representadas pela poética do autor, seja em suas
proposições, nos manifestos de sua autoria, seja em suas realizações, em seu primeiro
livro de poemas.
Com efeito, cabe, por ora, procedermos a um breve histórico acerca da
emergência da elite política e econômica de São Paulo, buscando, paralelamente,
delinear seu perfil cultural característico.
2 – A elite paulista
O último quartel do século XIX brasileiro fora marcado por intensas mudanças,
cujos resultados se refletiram nas posteriores reconfigurações da ordem econômica e
política. Foram fenômenos constitutivos deste processo o progressivo desgaste interno
do sistema político imperial, acompanhado da emergência de novas forças sociais
preocupadas em consolidar a representação de seus interesses no jogo político nacional.
Por volta de 1870, movimentavam-se em São Paulo as forças que alçariam a
então província à posição de principal centro dinâmico da economia brasileira.
Esgotadas as terras cafeicultoras do Vale do Paraíba, a lavoura se expandiria em direção
ao então chamado Oeste Paulista. A disponibilidade deste extenso e fértil território,
76
conjugada à alta da demanda e dos preços internacionais do café, resultou em uma série
de iniciativas postas em prática pelos grupos que se encontravam em condições de
responder às perspectivas de enriquecimento inscritas nestas novas zonas em franca em
expansão. Tais iniciativas foram tanto de ordem econômica, ligadas à montagem da
infra-estrutura requerida pelo negócio cafeeiro do Oeste, quanto de caráter político,
voltadas para a implementação dos novos interesses aí implicados. Ou seja, as novas
frentes de expansão demandavam certas resoluções que, quer se traduzissem na
necessidade de empreendimentos, como a construção de ferrovias, quer estivessem
ligadas a questões administrativas, como a política de substituição da mão-de-obra
escrava pelo trabalho assalariado do imigrante, requeriam para sua viabilização uma
margem de manobra política que fosse maior do que a encontrada pelos paulistas no
sistema de poder vigente no Império.
Consequentemente, é assim que se pôde verificar entre os clubes republicanos
paulistas o grau de coesão que os diferenciava de seus congêneres mineiros e cariocas
(Basbaum, 1976, p. 214.) e que levaria, três anos após o Manifesto Republicano de
1870, à sua unificação em torno da fundação do Partido Republicano Paulista (P.R.P.).
Entretanto, como observa Love, “para São Paulo pelo menos, é provável que o fato mais
importante ocorrido naquele ano [1870] não tenha sido a publicação do Manifesto
Republicano [...] mas a publicação de A Província, por Aureliano Tavares Bastos
1
”.
Embora se movendo no interior da instituição monárquica, à qual propunha uma forma
federativa, o autor apresentava
argumentos convincentes a favor da descentralização administrativa, da
autonomia política provincial, do controle provincial sobre o sistema
bancário e sobre a política de imigração, e da descentralização da receita
pública. Tal programa atraía irresistivelmente os cafeicultores paulistas [...].
O ideal de um regime republicano era facilmente derivável das fórmulas
propostas por Tavares Bastos. [...]. Quando os paulistas organizaram o
Partido Republicano Provincial, em 1873, deixaram claro que os interesses
locais seriam melhor servidos por meio do novo regime (1982, p. 150.).
Se levarmos em consideração que “desde o término do tráfico negreiro e da
introdução de imigrantes europeus, e especialmente depois do início da expansão
1
Trata-se de um ensaio de teor político-propagandista, em que o autor, ensaísta renomado e membro do
parlamento imperial, cita as recém criadas federações da Argentina, Áustria-Hungria e Canadá, como
modelos para a implantação de um regime político descentralizado no Brasil, contrário, portanto, à
configuração política do Império.
77
cafeicultora dos anos setenta, as molas fundamentais da economia imperial começaram
a assentar em novas forças sociais” (Cardoso, 2000, p. 17), podemos afirmar que o
advento do café do Oeste Paulista correspondeu a uma reconfiguração de forças no
campo do poder (entendido nos termos que o definimos no Capítulo I) da sociedade
brasileira de então. Contudo, as regras que o regiam e o estruturavam internamente, isto
é, os critérios que definiam quais de seus grupos ocupantes seriam alçados aos postos
mais importantes de direção, correspondiam ainda à antiga composição de forças da era
imperial, em vias de dissolução:
havia, entre os novos federalistas, os que pretendiam sobretudo ver alijadas
em definitivo certas normas inerentes à monarquia [...]. Os valores que
determinavam sistematicamente o acesso a postos de comando costumavam
ser ditados pela tradição ou pela convenção formada em tempos idos. As
áreas expansivas ou progressistas eram mal representadas nesses postos,
porque o imperador, levado talvez por um obscuro instinto de defesa, parecia
temeroso da influência de interesses que, pelo seu natural dinamismo,
pudessem comprometer a estabilidade do sistema. Os homens poderosos do
regime, ao contrário do iria suceder depois, com a República, recrutavam-se
de preferência em províncias cuja força principal vinha do passado ilustre e
venerando (Hollanda, 2000, p. 269-270.).
Não parece, portanto, descabido interpretar, desse ponto de vista, o advento do
regime republicano de 1889 como a configuração de uma institucionalidade política
adequada à emergência das novas forças sociais paulistas no cenário nacional, correlata
à redefinição das regras do jogo interno ao campo do poder, à sua reestruturação. Ou,
nos termos de Cardoso, o novo regime não se reduzia a “uma mudança ao nível das
instituições, que de monárquicas passaram a republicanas, mas houve, de fato, uma
mudança nas bases e nas forças sociais que articulavam o sistema de dominação no
Brasil.” (2000, p. 16.). Do ponto de vista de São Paulo, tal mudança representaria o
canal institucional de ampliação dos interesses cafeeiros, hegemônicos no âmbito da
província desde as últimas décadas do Império, para o nível político nacional (Fausto,
2000, p. 200). Assim, o empenho paulista em torno da estabilização constitucional do
regime, desdobrava-se no duplo sentido de, externamente, conferir um caráter de
legitimidade e credibilidade à república e, internamente, o de fazer os princípios
imprescindíveis ao bom andamento dos negócios.
De fato, o federalismo, institucionalizado com a república, representou um
molde político-administrativo que, se interessava a todos os estados suficientemente
prósperos para arcar com a autonomia em relação à União, ia ainda mais ao encontro de
certas prioridades paulistas. Três pontos, pelo menos, merecem destaque a esse respeito:
78
a contratação de empréstimos externos, a política de imigração e a administração da
receita advinda das exportações. Sob a alçada do poder estadual, pode-se dizer que o
exercício destas prerrogativas converteu-se nos pré-requisitos políticos tanto para a
consolidação da economia cafeicultora do Oeste Paulista, quanto para a conversão de
sua prosperidade como um predicado paulista. São Paulo viabilizou, assim, tanto a
continuidade da estratégia de substituição do escravo pelo trabalho imigrante, quanto a
contratação de vultosos empréstimos externos destinados ao crédito às nascentes
companhias ferroviárias e, mais tarde, aos recorrentes planos de valorização do café.
Controlando, a partir do estado, metade do mercado internacional de café e figurando
como principal exportador brasileiro (Love, 2000, ps. 53, 67), os governos paulistas
dispunham de uma considerável fonte de renda para sua receita, advinda dos impostos
sobre as exportações.
A institucionalização de uma política externa em grande medida autônoma, em
que os interesses paulistas tratavam diretamente com as figuras dirigentes dos grandes
centros internacionais, somada a uma inserção mais aprofundada no capitalismo
internacional, criou os marcos políticos e econômicos dentro dos quais a elite paulista
guiava-se no cenário internacional a partir de interesses próprios e bem definidos. É
provável, neste aspecto, que resida no exercício da gestão econômica e política das
questões cafeeiras a experiência social concreta da qual derivaria o proverbial
cosmopolitismo paulista. Neste ponto, cabe acrescentar a esse fatores que atuavam “de
dentro para fora”, aqueles que atuavam em sentido inverso, “de fora para dentro”,
embora condicionados, mas também condicionantes, às mudanças estruturais internas:
a presença de uma classe social em formação (o proletariado industrial), com
todos os elementos que tal presença implicou – imigração maciça, um
movimento de classe próprio, internacionalismo sociocultural e político,
modificações no perfil urbano-industrial da sociedade, alterações drásticas
nos “modos de vida” e na linguagem popular de certas cidades, como São
Paulo – foi aspecto essencial e determinante de todas as tensões, contradições
e mudanças vividas pela produção literária “pré-moderna”. [...] O
cosmopolitismo modernista não se compreenderia, portanto, a partir de uma
“dependência externa”, mas das fissuras que a presença crescente de uma
força de trabalho internacional, tão numerosa quanto anônima, já vinha
produzindo na ordem dominante interna há, pelo menos, três décadas.
(Hardman, 2002, pp. 117-118).
Deve-se observar que a obra de Monteiro Lobato, por exemplo, oferece um
panorama interessante deste processo de cosmopolitização da vida social paulista, com
um forte enfoque nas mudanças correspondentes que o acompanhavam, como a
79
passagem do rural para o urbano, do tradicional para o moderno. Para ilustrar, veja-se o
conto O comprador de Fazendas, publicado em 1918, em Urupês. Trata-se da estória de
um fazendeiro arruinado, provavelmente do Vale do Paraíba, dada a alusão ao solo
empobrecido e à decadência econômica da região, que se encontra às voltas com dívidas
e tentativas de venda de sua propriedade. As aspirações que nutriam sua família, diante
da possibilidade da venda, denotam bem os padrões que passavam a definir o modo de
vida característico dos setores sociais mais privilegiados, assim como dos aspirantes a
tal posição:
– Estou com palpite que desta feita a “coisa” vai! disse o filho maroto. E
declarou a necessidade, à sua parte, de três contos de reis para estabelecer-se.
– Estabelecer-se com que? perguntou admirado o pai.
– Com armazém de secos e molhados na Volta Redonda [...].
Já a mulher queria casa na cidade. De há muito trazia d’olho uma de porta e
janela, em certa rua humilde, casa baratinha, d’arranjados.
Zilda [a filha], um piano – e caixões e mais caixões de romances...
Com a perspectiva de bom negócio, com preço muito acima do esperado, “Dona
Isaura desistiu da tal casinha. Lembrava agora outra maior, em rua de procissão – a casa
do Euzébio Leite (Lobato, 1989, pp. 35-36 e p. 41.). As aspirações convergem todas
para elementos, práticas e atividades da cultura urbana, que se inscrevem em um
ambiente social mais exposto às influências advindas de um contato mais intenso com o
cenário internacional, como transparece na caracterização de um suposto comprador, em
visita pela fazenda, “moço... Bem trajado... Chapéu panamá”, que reúne os atributos
modelares da identidade social masculina das elites então emergentes:
Aquele homem confessava os mais altos paredros da agricultura! Era íntimo
de todos eles – o Prado, o Barreto, o Cotrim... E de ministros [...] Nunca se
honrara a fazenda com a presença de um cavalheiro mais distinto, assim bem
relacionado e tão viajado. Falava da Argentina e de Chicago como quem veio
ontem de lá. Maravilhoso! (ibidem, pp. 36-37).
O fato de que os interesses paulistas, assim como grande parte dos meios para a
realização dos objetivos deles derivados, estivessem basicamente circunscritos ao
âmbito estadual, não se traduziu, contudo, na diminuição da relevância política do
controle do poder federal. Pelo contrário, sobretudo em momentos críticos de
desvalorização dos preços internacionais do café, e decisivos como os planos de
valorização do produto, era estratégica a disponibilidade de certos mecanismos de
80
apanágio do poder federal: “o programa político mínimo de São Paulo durante os anos
1889-1937 consistiu em dominar as políticas federais apenas nas áreas em que a ação no
nível estadual era impossível ou insuficiente – controle da política monetária e cambial,
garantias de empréstimo e representação diplomática.” (Love, 2000, p. 74). Escapa aos
propósitos deste estudo esmiuçar os meandros da dinâmica política que viabilizou tal
estratégia, como o arranjo de compromissos entre poder federal e oligarquias estaduais,
“institucionalizado” a partir da presidência de Campos Sales, ou as alianças com Minas
Gerais, que conferiram a São Paulo um lugar privilegiado no interior de tal “sistema”.
Em primeiro lugar, entretanto, interessa reter o fato de que, ao longo do processo
de institucionalização do regime, esteve permanentemente fora do foco de discussão e
embates entre os grupos dirigentes, a questão de se definir “o que seria básico numa
ordem política que formalmente era representativa: e o povo, como opina? quem são os
eleitores e qual sua independência real?” (Cardoso, 2000, p. 41.). Tal lacuna é indicativa
da cultura política das elites da época. E não seria mera redundância designá-la como
elitista, posto que, se a ocupação de postos de comando do processo político é por si só
suficiente para conferir uma posição de elite aos seus respectivos ocupantes, não
decorre daí, necessariamente, que a atuação dos mesmos assuma um caráter excludente
e exclusivista, centrada unicamente em suas próprias prioridades. Antes, contribíram,
neste ponto, as próprias condições do eleitorado e das possibilidades efetivas de
participação da vida política institucional. Por um lado, se era extremamente baixo o
número de eleitores, os que a princípio poderiam votar estavam expostos a uma série de
constrangimentos que comprometiam o voto. A fraude recorrente incentivava altas taxas
de abstenção, motivada também pelos vários expedientes de coação que, por seu turno,
predeterminavam a escolha dos candidatos (Carvalho, 1987, pp. 66-90.). Assim,
práticas sociais de feitio acentuadamente personalistico e clientelista, contribuíam para
segmentar a respública brasileira entre o universo exíguo, como já observamos no
primeiro capítulo, do campo do poder e o restante da população, ao menos no que
concerne às formas oficializadas da vida política.
Observa-se, assim, no campo político, algo análogo ao que observamos, no
primeiro capítulo, no campo literário, quando apontamos a ausência, pelo menos por
parte do grupo modernista paulista, de um debate acerca das condições sociais da
atividade literária, relativo a questões como, entre outras, o alto índice de analfabetismo
e seus efeitos comprometedores sobre a formação de uma cultura leitora. Ou seja, se no
campo literário questões de cunho social eram postas à parte pela polêmica modernista,
81
restrita a uma tópica estritamente estética, assim também, no campo político, a atuação
da elite paulista pautou-se unicamente por questões relativas à configuração do Estado
mais adequada aos seus interesses emergentes. Ao que parece, ambos os campos em
questão circunscreviam seus ocupantes em um espaço de relações e sociabilidade
distantes socialmente o bastante do resto da realidade social mais ampla, a ponto de os
fenômenos dela oriundos se lhes aparecerem, por assim dizer, como fora de ótica, ou a
partir de uma ótica muito específica. De fato, parece tratar-se menos aqui de uma
eventual realidade acobertada que de uma realidade cujos traços são filtrados e
relacionados de acordo com esquemas específicos, gestados em cada campo, de
percepção e apreciação do mundo social, pois, como argumenta Bourdieu:
Se as relações de força objetivas tendem a reproduzir-se nas visões do mundo
social que contribuem para a permanência dessas relações, é porque os
princípios estruturantes da visão do mundo radicam nas estruturas objetivas
do mundo social e porque as relações de forças estão sempre presentes nas
consciências em forma de categorias de percepção dessas relações (2005, p.
142).
Assim é que se verifica, nas tomadas de posição da elite política paulista, uma
concepção autoritária da vida social, expressa na célebre declaração de Washignton
Luís, segundo a qual “o conflito social é antes de tudo uma questão de polícia”. Isto é,
refratado na estrutura de relações de força do campo político e captado por uma visão
do mundo social gestada no interior do mesmo, tal fenômeno era reduzido pelo líder
perrepista aos termos de uma lógica de Estado. Trataremos a seguir de fenômenos
análogos, verificados na visão que Oswald de Andrade lançava sobre o mundo social
brasileiro.
Por ora, neste particular, é interessante assinalar como essa relação entre
estruturas objetivas do mundo social e formas de percepção atuou na escrita de outro
modernista, Alcântara Machado. Os contos de Brás, Bexiga e Barra Funda são
extremamente significativos neste ponto, especialmente quando se observa que o livro é
sub-intitulado Notícias de São Paulo e reivindica a vocação de jornal, de “órgão dos
ítalo-brasileiros de São Paulo” (Machado, 1997, p.21), o que tanto o sintoniza com o
ideário oswaldiano de uma linguagem de expressão simples e direta, quanto o filia à
pretensão modernista de uma redescoberta do Brasil, neste caso focada na valorização
literária de contextos sociais populares, formados por elementos oriundos da imigração.
82
Ocorre que os bairros de extração operária, presentes no livro desde o título,
núcleos de uma intensa cultura política, cuja vitalidade marcaria as greves de 1917, são
objetos de uma elaboração temática e lingüística em que a inventividade da sintaxe, do
léxico, e a originalidade dos assuntos processam-se a par de uma sistemática depuração
dos potenciais de conflito que porventura pudessem se insinuar ao olhar do
escritor/repórter. Paradigmático da representação daí resultante, é o conto Corinthians
(2) vs. Palestra (1). O tratamento literário do evento de aglomeração popular,
virtualmente explosivo por envolver rivalidades latentes, resolve-se por dois
procedimentos narrativos que se reforçam mutuamente. O primeiro consiste em centrar
a ação na experiência de Miquelina, jovem moradora do Bexiga, cujas reações e
comentários tecidos a respeito do jogo e da atuação de jogadores e juiz, dão o tom da
estória, que gira, assim, predominantemente em torno das hesitações amorosas da moça
que se fazem acompanhar, argumento narrativo engenhoso, das hesitações em torno de
sua fidelidade de torcedora, visto que os dois concorrentes à sua fidelidade amorosa,
Rocco e Biagio, encontravam-se em campo, concorrendo, o primeiro, pela vitória do
Palestra e o segundo pela do Corinthians. Eis o trecho que estrutura toda a narrativa:
[Miquelina:] – O Rocco é que está garantindo o Palestra. Aí Rocco! Quebra
eles sem dó!
A Iolanda achou graça. Deu risada.
- Você está ficando maluca, Miquelina. Puxa! Que bruta paixão!
Era mesmo. Gostava do Rocco, pronto. Deu o fora no Biagio (o jovem e
esperançoso esportista Biagio Panaiocchi, diligente auxiliar da firma desta
praça G. Gasparoni & Filhos e denodado meia-direita do S. C. Corinthians
Paulista, campeão do Centeário) só por causa dele.
- Juiz ladrão, indecente! Larga o apito, gatuno!
Na Sociedade Beneficiente e Recreativa do Bexiga toda a gente sabia de sua
história com o Biagio. Só porque ele era freqüentador dos bailes dominicais
da Sociedade não pôs mais os pés lá. E passou a torcer para o Palestra. E
começou a namorar o Rocco. (ibdem, pp. 42-43).
No final da ação (p. 45), com a vitória do Corinthians, a protagonista indaga à amiga:
“Diga uma coisa, Iolanda. Você vai hoje na sociedade?”. Mesmo a circunstancial
arremetida da polícia contra a torcida, em um momento de protesto e tensão entre os
torcedores, por conta de um lance duvidoso do árbitro, encontra seu desfecho na
ansiedade da protagonista, em função da problemática lírico-esportiva que ocupa o
primeiro plano:
Mas o juiz marcou um impedimento.
– Vendido! Bandido! Assassino!
83
Turumbamba na arquibancada. O refle do sargento subiu a escada.
– Não pode! Põe pra fora! Não pode!
Turumbamba na geral. A cavalaria movimentou-se.
Miquelina teve medo. O sargento prendeu o palestrino, Miquelina protestou
baixinho:
- Nem torcer a gente pode! Nunca vi!
– Quantos minutos ainda? (ibidem, pp. 43-44).
O segundo procedimento narrativo liga-se ao narrador. A onisciência e a adoção
da terceira pessoa, resultam no duplo efeito de proximidade e afastamento, como se o
narrador assistisse à partida do meio da multidão, passando, entretanto, despercebido
por ela e sem com ela se misturar. Tal procedimento marca também a utilização do
vocabulário italiano ao longo do livro, sempre restrito à fala dos personagens. No conto
em questão, resulta em um ponto de vista que, embora inserido entre os torcedores,
eleva-se acima dos mesmos, o que permite uma visão contemplativa em que as
interações entre os personagens revestem-se de festiva sensualidade: “Moças comiam
amendoim torrado sentadas nas capotas dos automóveis. A sombra avançava no
gramado maltratado. Mulatas de vestido azuis ganhavam beliscões. E riam. Torcedores
discutiam com gestos”. (ibidem, p. 43).
Voltaremos a questões análogas quanto analisarmos a lógica que presidiu a
revalorização do popular na proposta de uma arte nacional levada a efeito por Oswald
de Andrade.
Retomando a problemática da inserção de São Paulo no processo de
institucionalização da República, é importante notar, em segundo lugar, e eis mais uma
analogia com o grupo modernista, que o itinerário da elite paulistana descreve, no
campo político, uma trajetória ascendente que vai, em âmbito nacional, de sua relativa
marginalização, durante o Império, ao início e consolidação de uma estratégia de
hegemonia, durante a Primeira República. Portanto, parece correto chamar a atenção
para o caráter de novidade de que se revestiu a aparição da elite paulista no cenário
nacional. E dizêmo-lo tanto no aspecto político, como vimos apontando, como no
econômico, em face da proliferação de fortunas recentes, advindas da expansão cafeeira,
muito bem notada, entre outros, por Monteiro Lobato:
As velhas fidalguias da Europa entroncam no banditismo dos cruzados. Ter
na linhagem um facínora encoscorado de ferro, que saqueou, queimou,
violou, matou à larga no Oriente, é o maior padrão de glória de um marquês
de França. Ter entre os avós um grileiro de hoje, vai ser o orgulho supremo
de nossos milionários futuros. (1948, p. 9.).
84
A novidade a que nos referimos não se reduz unicamente a uma significação
cronológica, mas assenta-se sobretudo na própria forma assumida pela expansão
cafeeira do Oeste:
Como se sabe, da empresa cafeeira concentrada no Oeste paulista nasceria
uma nova classe assentada em relações capitalistas de produção, com
consciência de seus interesses e um projeto de estruturação política do país.
Esta classe teria um caráter acentuadamente regional, tanto pela vigência de
relações capitalistas restritas à área de São Paulo, como por sua conexão
direta com os diferentes grupos externos. [...] As relações típicas entre colono
e fazendeiro tinham esse caráter [capitalista], expresso na compra de força de
trabalho – pagamento de trabalho necessário (salário) – apropriação do
excedente, sob a forma de mais valia, embora o salário proviesse de fontes
monetárias e não monetárias. (Fausto, 2000, p. 199.).
Com efeito, é provável que tenha derivado destes fatores, a condição de
predomínio econômico recém-adquirido e a posição de hegemonia política recém
ocupada, em um contexto marcado por embates e conflitos identitários, todo um
conjunto de iniciativas por parte da elite paulistana para estabelecer uma produção
cultural que revestisse sua proeminência de um caráter simbólico de distinção, tanto
em face das antigas e concorrentes elites, quanto em face das crescentes camadas,
nativas ou adventícias, cuja presença se fazia sentir com relativa intensidade,
principalmente na então florescente vida urbana. Afinal, se foi parte integrante do
processo de consolidação e legitimação política do novo regime republicano a
construção de um imaginário que lhe fosse propício (Carvalho, 1990, passim.), era de se
esperar que processo correlato ocorresse com o grupo que em seu interior gozou das
posições mais privilegiadas.
2.1 - Uma épica para São Paulo
Como sugerimos no capítulo anterior, desde pelo menos 1870, no bojo da
expansão cafeeira e nos primórdios do movimento republicano, manifestam-se em São
Paulo os primeiros intentos institucionais e simbólicos de uma elaboração cultural cujo
material seria firmemente calcado na idealização da experiência histórica paulista. É na
especificidade de tal experiência, ou no que aparecia como tal aos olhos dos letrados e
políticos da terra, que seriam garimpados não só os temas, figuras e heróis a serem
narrados, como também as tramas e pontos de vista a partir dos quais narrá-los.
85
O fato de que a idéia de uma “Pátria Paulista” começa a ganhar corpo em fins do
Império, com fortes tintas separatistas, em contraposição ao centralismo monárquico
(Hollanda, 2000a, p. 275-276.), demarca bem o campo de forças que circunscreveu o
lugar social de tais elaborações: a recomposição do campo político nacional, advinda da
crescente influência das lideranças paulistas, sob o peso dos interesses da cafeicultura.
Por outro lado, se a construção de uma identidade paulista respondia a demandas
atreladas às mudanças da política nacional, o mesmo processo de expansão econômica
que em grande medida as sustentou, ajudava também a promover uma progressiva
diversificação social que, sobretudo a partir dos anos 20, de alguma forma relativizava
antigas pretensões de precedências e distinções aristocráticas:
a aristocracia, [...] via-se desafiada pela aparição de novos componentes
sociais com suas inevitáveis demandas de poder e identidade. À testa dessas
demandas, típicas de uma economia urbana, ou agrário-industrial, estavam os
proprietários industriais de origem estrangeira, os pequenos e médios
fazendeiros, muitos deles imigrantes, bem como um contingente operário que
se agitava em greves e formas inusitadas de organização (Ferreira, 2002, p.
268-269.).
No início do século, tais demandas começavam a desdobrar-se em uma
ocupação de espaços no interior do até então “aristocrático” campo literário, seja pela
atividade da imprensa ligada ao movimento operário, seja pela elaboração
especificamente literária. Em ambos os casos, essa “invasão” do terreno das letras era
acompanhada, em grande medida, pela reivindicação de ocupação de outros espaços,
sociais e políticos. Veja-se este noticiário do jornal anarquista O amigo do povo (1902):
Sábado, 7 do corrente, realizava-se, no Casino Penteado, um espetáculo [...]
ouvia-se atentamente e pacificamente o Primo Maggio, de Gori, quando os
mantenedores da desordem buguesa vieram perturbar o sossego. Disseram-
lhes que o espetáculo era particular. Os homenzinhos teimaram em entrar; e
como houvesse protestos, irromperam furiosamente, chamaram tropas – até
cavalaria! – assustaram mulheres e crianças, revistaram os espectadores,
declararam suspenso o espetáculo, prenderam três camaradas – Torti,
Marconi e Cerchiari. (apud. Hardman, 2002, p. 310. grifos do autor).
É igualmente significativo, para iluminar os deslocamentos e as tensões
simbólicas que percorriam o espaço social neste momento, o fato de o ideário anarquista
ter afetado elementos das camadas médias, como o estudante de direito e poeta Ricardo
Gonçalves, amigo de juventude boêmia de Oswald de Andrade, e autor dos versos:
Rebelião
86
Como um vago murmúrio,
Mansa a princípio, ela ecoa,
Depois é um grito bravio
Que pela noite reboa,
Que para a noite se eleva
Num pavoroso transporte,
Como um soluço de treva,
Como um frêmito de morte.
Ah! nesse grito funesto,
Nesse rugido, palpita
Um rancoroso protesto.
É o povo, a plebe maldita
Que, sombria, ameaçadora,
Nas vascas do sofrimento,
Mistura aos uivos do vento
A grande voz vingadora.
E quando comece a lua,
Quando explodir a tormenta,
A sociedade corrupta,
Execrável e violenta
Iníqua, vil, criminosa,
Há de cair aos pedaços,
Há de voar em estilhaços
Numa ruína espantosa. (ibidem, pp. 129-130).
É no limiar deste contexto, em que o fato de um representante das “arcadas” se
por a versejar na forma popular das redondilhas, com conteúdos de temática sócio-
política, dá bem a medida do potencial de conflito inscrito nas mudanças pelas quais
vinha passando a sociedade paulista, que têm lugar as primeiras iniciativas ligadas à
empreitada simbólica da “pátria paulista”, nas páginas do Almanaque Literário de São
Paulo, fundado em 1876, por José Maria Lisboa, figura representativa da mescla entre
atividades políticas e intelectuais, característica das elites da época, e que se repetia no
caso dos demais colaboradores como Alberto e Campos Salles e Prudente de Morais.
Sintomaticamente, esta publicação inicia-se no exato momento em que a
relevância econômica de São Paulo começa a ganhar maior peso. Em contraste, não só o
estereótipo do paulista era então carregado de carga pejorativa, uma reminiscência do
retrato jesuíta do bandeirante, “homens rudes, violentos e ignorantes”, como a escrita da
história pátria, a cargo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (I.H.G.B.), legava
a São Paulo um papel de irrelevância e pouco destaque (Ferreira, 2002, p. 34-35.).
O almanaque representaria o início da montagem do arsenal simbólico com que
políticos e intelectuais paulistas buscariam preencher a ausência de seu estado nos
compêndios da história oficial e positivar a imagem negativa de seus conterrâneos, do
passado ou do presente, vale dizer, a imagem de si mesmos. Assim, entre as matérias
características deste tipo de publicação, como, entre outros, charadas, peças
87
humorísticas, anúncios comerciais, era manifesta a preocupação em dar relevo a
elementos textuais voltados para a construção das peculiaridades históricas e culturais
paulistas. Desempenhavam esta função os poemas e trovas populares, contos, estudos
históricos e lingüísticos, acompanhados de documentos de época e perfis biográficos de
“notáveis”. (Ferreira, 2002, p. 42.).
Em semelhança à onda da literatura caboclista, que apontamos no capítulo
anterior, tais investidas eram acompanhadas pelo esforço de fixar os “tipos”
característicos do paulista, seja nas suas manifestações passadas, seja em suas
sobrevivências nas manifestações da cultura popular de então. Esta iniciativa, de acordo
com as postulações da época, procedeu pela seleção dos tipos a que se atribuía a
composição da “matriz racial” paulista, resultando no destaque do elemento indígena e
português, de cujo amálgama derivaria o mameluco.
É interessante notar que ao resultado obtido com este “garimpo” racial, isto é, o
elemento mameluco que seria posteriormente revestido pela figura do bandeirante e do
caipira, equivalia uma espécie de depuração da influência negra na história paulista,
cuja presença fora notória nas zonas do Vale do Paraíba e mesmo nos primeiros tempos
do Oeste. Aliás, tratava-se de um expediente longamente sedimentado na cultura das
elites brasileiras de então, ansiosas pelo embranquecimento dos trópicos.
Semelhantes formulações compareciam, subliminarmente, em certos escritos
modernistas, como a passagem, citada no primeiro capítulo, em que Oswald exaltava a
imigração em São Paulo, referindo-se ao “povo arribado em mil barcos”. Embora o
mesmo autor denunciasse, no poema analisado no mesmo capítulo, “o orgulho de ser
branco/na terra morena e conquistada”, foi co-participante da idéia dos modernistas que
reiterava o papel central da fusão índio-português na formação de São Paulo, implícita
na representação do imigrante como “novo mameluco” (Ferreira, 2002, p. 105-106.).
Não espanta, portanto, que ao lado do caboclo e do caipira, coubesse sobretudo à figura
do bandeirante o papel de positivação do tipo paulista.
Entretanto, estas primeiras iniciativas ganhariam expressão institucional mais
sólida em 1894, com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo
(I.H.G.S.P.), a réplica paulista ao I.H.G.B. Quanto à composição de seus quadros, o
Instituto apresentava o mesmo perfil de recrutamento do Almanaque: colaboradores e
associados cuja trajetória fundia-se entre atividades intelectuais e políticas, como era o
caso de Washington Luís, líder político expressivo e historiador de segunda hora.
Compreende-se, com isso, que a agremiação tenha contado com apoio financeiro do
88
poder público estadual e de empresas privadas ligadas às altas rodas paulistanas, como a
Prado Chaves & Cia.. Não nos parece exagerado afirmar que tais empreendimentos
institucionais e simbólicos fossem a tradução concreta do anseio dos grupos dirigentes
paulistas de emprestar ao papel que vinham exercendo no cenário político brasileiro a
conotação de uma refundação histórica do país. Não eram incomum, entre eles, a
convicção de que caberia a São Paulo a missão de presidir a República, o que,
invariavelmente, confundia-se com a idéia de regeneração do regime, contrapondo-se,
aí, o propalado liberalismo paulista ao militarismo e ao jacobinismo. (Ferreira, 2002, p.
94-102.).
Esta auto-afirmação da identidade e do significado político de São Paulo foi o
elemento catalisador da mobilização que resultou no advento do Instituto. Como
observa Ferreira: “Depois de setenta anos de debates indianistas e regionalismos
românticos, sob a proteção da Coroa, caberia a eles [os fundadores do I.H.G.S.P.]
revisitar os marcos da nacionalidade com outros olhos e novo patrocínio.”. Isto é, ao
deslocamento do centro de hegemonia política, correspondia a pretensão de
deslocamento da autoridade intelectual:
[...] vitoriosa a República, era de São Paulo que seus sócios [membros do
I.H.G.S.P.] pretendiam irradiar suas luzes, não só no espaço regional, como
em toda a nação. [...] Além de significarem a busca da superioridade
intelectual e científica, [as disputas entre intelectuais paulistas e cariocas e
seus respectivos Institutos] vinham à tona acompanhando a luta em torno de
interesses econômicos e projetos políticos divergentes ou mesmo de cargos
no aparelho de Estado. (2002, p. 109.).
Portanto, a emergência da nova elite paulista no plano nacional não só constituía
as novas circunstâncias políticas a demandar novas representações, como dotava este
novo grupo de um “novo patrocínio”, o governo do estado, e lhe impunha “novos
olhos”, o auto-atribuído papel de São Paulo no contexto político brasileiro. Para a
elaboração de uma nova versão do Brasil, isto é, para a versão paulista da história
brasileira, restava, entretanto, a eleição de um referencial simbólico apto a auxiliar na
configuração desta nova narrativa tanto em seus aspectos formais quanto de conteúdo.
A figura do Bandeirante, como sugerimos há pouco, seria modelar no desempenho de
semelhante função. Largamente explorada pelos colaboradores do Instituto, a
identificação do bandeirante como antepassado e modelo do tipo paulista por
excelência, “homens de temperamento enérgico [...] incapazes de viverem em
ociosidade, tinham necessidade de dar expansão a seu espírito empreendedor”, no dizer
89
do ideólogo republicano Alberto Salles (apud Ferreira, 2002, p. 76), não só possuía,
como já observamos, conveniências de caráter racialista, como encerrava virtualidades
simbólicas passíveis de serem elaboradas de modo a oferecer à “pátria paulista” tanto
um foco narrativo próprio, o papel das bandeiras, e, por extensão, de São Paulo, na
trama da história nacional, como um conteúdo propício à exaltação de figuras e feitos
heróicos, enfeixados sob o signo da predestinação:
A presa dos índios, através de inóspitas paragens, foi a mais audaciosa
aventura dos bandeirantes, que, antes do meado do século XVI, começaram a
se internar em desconhecidos sertões, substituindo-se à metrópole na
formação do nosso território. E, assim, nem os rios caudalosos, nem as
florestas emaranhadas, nem os rumos incertos, nem os animais bravios, nem
as intempéries, nem os perigos a cada passo, nada os demoveu do
cumprimento, embora inconscientemente, de seu destino histórico. (ibidem,
p. 140.).
Com efeito, a genealogia bandeirante tratou de glorificar figuras da terra a par do
eclipsamento dos vultos anteriormente consagrados pela historiografia do I.H.G.B., ao
passo que episódios da história oficial passam a ser catalisados a partir de São Paulo.
Assim, por exemplo, a Independência é vista como obra dos paulistas e D. Pedro I passa
a uma posição meramente acessória, não só neste acontecimento, mas também como
governante, cujo papel exemplar seria reservado a Diogo Feijó. A centralidade de São
Paulo na história brasileira insinuava-se também na exaltação do republicanismo civil,
com destaque para as figuras de Prudente de Morais e Campos Sales, procedimento
discursivo em cujo interior, a um só tempo, enaltecia-se o novo regime em
contraposição ao Império, elevavam-se as figuras dirigentes paulistas em contraste com
o rebaixamento de atores concorrentes no passado ou no presente (Ferreira, 2002, p.
134-135.), e, por fim, mas não menos importante, desdobrava-se o caráter fundacional
da ação paulista na história brasileira. No interior de tais marcos narrativos, a história do
Brasil sugeria um contínuo, cujo acontecer não passava da preparação heróica das
glórias do presente republicano. De um tempo ao outro, como a interligar passado e
presente, a imagem miticamente concebida, porque atemporal, de uma saga
bandeirante, signo sob o qual ganhava força a visão paulicêntrica do Brasil:
Reaviva-se um período de aventuras e um espírito coletivo intrépido,
considerando-se os bandeirantes como artífices do progresso regional, que
continuava na cafeicultura, nas locomotivas, na metropolização da capital e
nas indústrias. A atividade bandeirante era assim tomada como o veículo da
formação territorial paulista e da própria edificação do país (Ferreira, 2002, p.
132-133.).
90
Mesmo escritores que se encontravam social e literariamente mais distantes da
influência paulista eram sensíveis à temática bandeirante. É o que se verifica no fato de
Olavo Bilac ter eleito O caçador de esmeraldas como tema para uma de suas poucas,
senão única, tentativa de incursão pelo terreno da épica. O poema gira em torno da
exaltação da figura de Fernão Dias Paes Leme. Pode-se mesmo identificar certas
passagens em que o poeta relativiza a proclamada grandiosidade dos feitos bandeirantes,
como certas considerações moralizantes, tecidas na cena em que o protagonista,
enfermo, agoniza no caminho de volta do sertão:
Ah! mísero demente! o teu tesouro é falso!
Tu caminhaste em vão, por sete anos, no encalço
De uma nuvem falaz, de um sonho malfasejo!
Enganou-te a ambição! mais pobre que um mendigo,
Agonizas, sem luz, sem amor, sem amigo,
Sem ter quem te conceda a extrema-unção de um beijo! (Bilac, 1996, p. 233).
No entanto, as estrofes de abertura do poema não deixam dúvidas sobre a
eficácia simbólica com que a matriz bandeirante vinha operando. Os atributos heróicos
do protagonista, desdobram-se no gesto fundador da “pátria”, arrancada à mata virgem
dos sertões:
Foi em março, ao findar das chuvas, quase à entrada
Do outono, quando a terra, em sede requeimada
Bebera longamente as águas da estação,
- Que, em bandeira, buscando esmeraldas e prata,
À frente dos peões filhos da rude mata,
Fernão Dias Paes Leme entrou no sertão.
Ah! quem te vira assim, no alvorecer da vida,
Bruta Pátria, no berço, entre as selvas dormida,
No virginal pudor das primeiras eras,
Quando, aos beijos do sol, mal compreendendo o anseio
Do mundo por nascer que trazias no seio,
Reboavas no tropel dos índios e das feras! (ibidem, p. 227).
A experiência social concreta da expansão econômica de São Paulo, encontrava
assim sua elaboração simbólica no tema histórico da expansão bandeirante.
No interior de tal discurso equacionavam-se pressupostos políticos, que
procediam pela identificação ascendente entre café, São Paulo e riqueza nacional (Love,
2000, p. 67; Cardoso, 2000, p. 35.), acionados sempre que os interesses estaduais
buscavam eficácia no plano federal, com pressupostos simbólicos, segundo os quais “a
91
história de São Paulo é a própria história do Brasil” (apud Ferreira, 2002, p. 110.). Com
efeito, parece claro que as investidas simbólicas apontadas, e a matriz representacional
nelas delineada, versavam sobre o passado, visando entretanto o presente e o futuro.
Com elas, a elite paulista recém-empossada na direção do país, entrelaçava sua
identidade a uma tradição gestada sob o signo da glória e da excelência. Identidade que
credenciava sua posição tanto perante os grupos concorrentes, quanto os novos estratos
sociais advindos dos processos de imigração e da incipiente mobilidade proporcionada
pela expansão econômica.
2.2 – Políticos e literatos
Cabe observar que esta matriz simbólica encontrava-se em pleno funcionamento
na década de vinte e que, dado o já observado baixo grau de autonomia relativa do
campo literário, impunha-se intensamente à pena dos escritores de então. Assim, a épica
bandeirante atraia a munição satírica de Juó Bananére
2
, que ridicularizava o I.H.G.S.P.
por meio da galhofa a um de seus principais membros, Spencer Vandré. Em um de seus
Versignos”, ativando a fala macarrônica ítalo-paulistana com que atuara n’O Pirralho,
o “gandidato à Gademia Baolista de Letras” destacava como signo de conservadorismo
as peculiaridades do figurino da elite letrada bandeirante: “Quano Gristo fiz o
mondo/Uguali come una bolla/o Spensero Vampr’elli/Andava giá de gartolla”. É
também significativa, a este respeito, a atitude de Hilário Tácito, que dedica seu
Madame Pommery, romance em que procura denunciar o moralismo e provincianismo
das altas rodas paulistanas, “ao Instituto Histórico e Geográfico, à Academia Paulista de
Letras, à Sociedade Eugênica e mais associações pensantes de S. Paulo” (apud Ferreira,
2002, pp. 294-295).
Por outro lado, a épica bandeirante parece operar enquanto um referencial pelo
qual se guiou, como vimos no capítulo anterior, o grupo modernista paulista, em sua
dupla investida de promoção de São Paulo e rebaixamento do Rio de Janeiro, em
2
Personagem criado por Voltolino, pseudônimo de Lemmo Lemmi, caricaturista de O Pirralho, foi
apropriado e desenvolvido pelo engenheiro e jornalista Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, cronista,
dramaturgo e poeta satírico, colaborador da mesma revista. A escrita macarrônica ítalo-paulista, que
distinguiu Bananére, fora introduzida em O Pirralho por Oswald na coluna Cartas d’Abaix’o Piques,
assinando-se Annibale Scipione. De 1911-1915, o posto é assumido por Bananére, que introduz ainda a
coluna Rigalegio, ambas caracterizadas pelo forte teor humorístico das paródias de autores nacionais e
estrangeiros, consagrados e vanguardistas, e da sátira a figurões da política nacional. Exímio galhofeiro,
publica, em 1915, o livro de poemas La Divina Encrenca.
92
matéria de autoridade artística e intelectual. Oswald, em uma conferência pronunciada
na Sorbonne em 1923, O esforço intelectual do Brasil contemporâneo, chega mesmo a
ativar explicitamente a matriz bandeirante. Comentando o Onda verde, de Lobato,
observa tratar-se de um estudo da “plantação de milhões de cafeeiros, feita pelos
paulistas, transformando em realidades de culturas imediatas o velho sonho do ouro das
minas longínquas [...]” (Andrade, 1992, p.35.). No texto de Lobato, que dá título ao seu
livro publicado em 1920, descreve-se o interior de São Paulo tomado pela lavoura
cafeeira, com ênfase especial nos acentos épicos do processo. Eis o trecho a que,
provavelmente, Oswald se refere, e que permite situar Lobato no interior da matriz
simbólica bandeirante, mesmo que sua posição oscile entre a exaltação/acolhimento e a
ironia/recusa:
Repete-se, então, o movimento bandeirante de outrora. Atrai o homem aventureiro não mais o ouro
dissimulado em pepitas no seio da terra, mas o ouro anual das bagas vermelhas que se derriçam em
balaios. A região era toda um matarel virgem de majestosa beleza. Rasgara-o a facão o bandeirante antigo
por meio de picadas; o bandeirante moderno, machado ao ombro e facho incendiário na mão, vinha agora,
não penetra-lo, mas destruí-lo (Lobato, 1948, p. 3.).
Observe-se que o tom de denúncia da lógica predadora da empresa cafeeira desaparece
na apropriação que Oswald faz do texto em sua conferência, onde predomina o timbre
laudatório. Entretanto, segundo pensamos, deve-se notar que esta relação não é
meramente extrínseca, como no caso da conferência de Oswald. Isto é, ao nosso ver,
não parece impróprio afirmar que vários traços da produção modernista, sobretudo a
oswaldiana, formataram seus contornos no interior da matriz simbólica bandeirante,
ou, pelo menos, guardam com ela considerável grau de correspondência, seja em
termos de analogia, seja em pontos de potencial dissidência.
O motivo épico da expansão, por exemplo, reaparece em vários lances poéticos
de Oswald. Podemos vislumbrar seus acenos em certas unidades no interior dos
poemas, onde se insinua, na forte tendência a conferir signos de dilatação do espaço, a
propensão oswaldiana ao registro visual, ou ainda como elemento expressivo que
organiza e dispõe a cena tematizada ao longo de um único poema. No primeiro caso,
veja-se este fragmento do poema versos de dona carrie, que tematiza o interior do
estado cafeeiro e suas pequenas cidades:
93
[...]
Cafezais
Cidades
Que a Paulista recorta
Coroa colhe e esparrama em safras
[...] (Andrade, 1966, p. 93.).
O motivo que apontamos comparece explicitamente no tema do avanço da cafeicultura,
acompanhado pela estrada de ferro e pela urbanização, mas também formalmente na
centralidade atribuída à “Paulista”, signo do deslocamento territorial e do progresso,
que, justaposta aos verbos de movimento, solda a mediação entre o crescimento da
lavoura, da intensificação da urbanização, e o aumento da produtividade, alinhavados
em uma relação de proporção direta.
No segundo caso, inclui-se a composição de todo o poema sugestivamente
intitulado paisagem:
O cafezal é um mar alinhavado
Na aflição humorística dos passarinhos
Nuvens constroem cidades nos horizontes dos carreadores
E o fazendeiro olha satisfeito os seus 800.000 pés coroados” (ibidem, p. 90.).
O mesmo topos que estamos salientando aqui é reelaborado na amplitude de perspectiva
em que se desenvolve a cena. Mais que mero elemento externo a ela, equivalendo ao
enquadramento em pintura, tal perspectiva formata-se na metáfora do mar recoberto
pela dispersão das aves e estende-se ao longo do comprimento do verso, que se
desdobra visualmente em nuvens e cidades no horizonte. A longitude deste é patenteada
pela identificação daqueles que lhe servem de referência e pelo contexto concreto de sua
atividade: os carreadores que reúnem a colheita (antes de a espalhar a Paulista) ao
longo da ruas da lavoura. Por fim, a amplitude da cena resolve-se na largueza de visão
do fazendeiro, o qual, em contraste com os colonos, olhando ao longe, por lhes ser
estranho, o que lhes está perto, olha do alto o que lhe está longe, mas lhe é próprio.
Semelhantes correspondências impõem um olhar mais detido sobre as relações
entre a elite política e econômica de São Paulo e o grupo de escritores modernistas. Por
um lado, como apontamos no capítulo anterior, as instituições, cujo aparecimento
acabou por possibilitar a estruturação do campo de produção cultural em São Paulo,
durante o período estudado, estiveram, direta ou indiretamente, vinculadas às iniciativas
dos grupos recém-empossados no poderio econômico e no mando político. Por outro,
94
vimos também que a insipiência do mercado editorial e a relativa exigüidade do público
leitor convergiam para o baixo grau de profissionalização dos escritores e para a
conversão do exercício do jornalismo em uma condição indispensável à atividade dos
mesmos. Nesse sentido, residia na própria configuração do campo literário um fator de
atração social entre seus agentes e os agentes do campo do poder (Miceli, 1979, pp. 2-
7).
Ao situar a origem social dos escritores modernistas no interior da classe
dominante paulista, Miceli aponta o caráter de dependência assumido pela relação entre
estes intelectuais e o grupo dirigente de São Paulo:
Embora a expansão do campo editorial e a ampliação das oportunidades de
ingresso no serviço público tenham influído consideravelmente para a
transformação das condições do trabalho intelectual vigentes na República
Velha, as possibilidades de acesso às profissões intelectuais continuam a
depender, em medida significativa, das estratégias de reconversão das
famílias que estão em condições de transmitir aos filhos um certo montante
de capital social e cultural variável conforme o grau de proximidade dessas
famílias da fração culta da classe dominante (1979, pp. xx-xxi.).
É importante observar que a expansão da imprensa esteve então atrelada às
disputas no interior da elite política paulista (id, ibid, pp. 2-7.), das quais resultaram a
dissensão reunida em torno do Partido Democrático (P.D.), em 1926. Sem diferir
substancialmente do situacionismo perrepista, o P.D. respondia à demanda de
representação partidária de frações dirigentes, que não encontravam espaço para seus
interesses, mais próximos aos setores bancário e comercial, no interior da estrutura
enrijecida do P.R.P. (Love, 2000, pp. 58-59.).
Como observa Miceli, o P.D. representou, para os intelectuais, a possibilidade de
ocupação de postos que se abriam na nova máquina partidária. Pode-se dizer, segundo o
mesmo autor, que este processo de diversificação política, no interior da elite paulista,
desdobrou-se em uma clivagem interna, no grupo modernista. Mário de Andrade,
Sérgio Milliet e Paulo Prado, por exemplo, compuseram as fileiras “democráticas”,
desde o início da dissensão, ao passo que Menotti Del Picchia e Oswald de Andrade
permaneceram do lado situacionista, e
tanto aqueles vinculados ao situacionismo perrepista como os elementos
identificados com as causas políticas dissidentes ou com a oposição
democrática prestaram sua colaboração na administração pública estadual, na
imprensa, no setor editorial, na câmara dos deputados” (Miceli, 1979, p.11.).
95
Embora nunca tenha formalizado sua adesão ao P.R.P., Oswald vinha de uma
família que mantinha relações de proximidade com o partido. Como vimos, seu pai
exerceu consecutivos mandatos na câmara de vereadores de São Paulo, ao lado de
Antônio Prado como prefeito (um dos futuros líderes da oposição democrática). De
resto, se sua assídua colaboração no Correio Paulistano já não fosse suficientemente
representativa como indicador de filiação política, um texto de 1930, publicado
postumamente, não deixa sombra de dúvida. Escrito em um momento de intensificação
da crise oligárquica dos anos vinte, Oswald, já então falido em seus empreendimentos
cafeicultores, desfecha sua cólera política em ataques que deixam entrever o
acirramento da oposição democrática, questionada e invalidada pelo autor em um ponto,
a representatividade popular, que, justamente, era em tudo aplicável também ao P.R.P.,
oferecendo indícios de uma concepção elitista e de certa forma singularmente populista
da política vigente:
A inversão de valores, de idéias e de sentimentos é um dos jogos prediletos
com que os camelôs do Partido Democrático se dispõem a embair a
curiosidade pública sempre incautamente despertada pela mascatagem de
reclame que preside aos seus ajuntamentos. Eles exploram principalmente um
monopólio de novo gênero, mas sem dúvida mais perigoso do qualquer
concessão de outra espécie: o monopólio do povo![...]
Basta reportarmo-nos à época de formação do Partido Democrático em São
Paulo e uma só indagação colocará essa gente que tão manhosamente explora
“o povo” em contrate violento com qualquer reivindicação verdadeiramente
popular. Quem é mais povo, o major Molinaro, cabo do Partido Republicano
e representante direto de uma grande massa de choferes da nossa praça, ou os
magnatas que esbanjaram centenas de contos de réis para comprar cadeiras
no congresso?[...] Por acaso o governo popularíssimo do dr. Carlos de
Campos, que pelo povo autêntico da cidade de São Paulo foi carregado até o
Palácio no dia de sua posse, foi um governo “aristocrático” no sentido
antipático da palavra?[...]
É preciso de uma vez para sempre que o povo de São Paulo escape ao
suave monopólio intervêncio-monarquista-oligarca com que o pretendem
encilhar![...]
O povo laborioso e feliz de São Paulo continua solidário com a obra de
liberdade, de progresso, de desenvolvimento maravilhoso, de união e de
ordem que lhe assegura brilhantemente o Partido Republicano Paulista
(Andrade, 1992, pp. 161-163.).
Semelhante profissão de fé possuía sua razão de ser. Oswald há muito recebera
uma acolhida favorável no interior dos círculos perrepistas às suas pretensões de
escritor. Além de ter consolidado uma posição estratégica via exercício do jornalismo,
entre outros órgãos, nos situacionistas Correio Paulistano e A Gazeta, contou ainda
com a simpatia e a subvenção extra-oficial de Washington Luís em seu empreendimento
de O Pirralho (Andrade, 1990, p. 67.). A contrapartida de reconhecimento ao mecenato
96
do futuro presidente viria por diversas vias, além da tomada de posição expressa no
combate político. Em 1916, quando de sua estréia literária nas peças escritas em
parceria com Guilherme de Almeida
3
, os autores selavam a aliança entre incentivo
artístico e compromisso político com uma dedicatória, no francês apreciado nas rodas
mundanas dos salões, ao “Senhor Doutor Washington Luiz Pereira de Sousa. Prefeito da
Cidade de São Paulo. Quisemos fazer desta primeira peça nosso escudo de combate.
Leia-se em seu brasão vosso nome – peça honrada que aí colocamos em abismo”
(Almeida e Andrade, 1991, p. 21.).
Deve-se frisar, por um lado, que o enlace simbólico entre políticos e escritores
era de proveito para ambos os grupos; os primeiros ganham em prestígio, com seu nome
associado ao papel de benfeitores da cultura e das artes; os segundos certificavam seu
pertencimento às altas rodas paulistanas e o apreço que a cúpula política do estado
devotava às suas obras e pessoas. E, por outro, que as palavras da dedicatória eram a
sedimentação de um convívio cotidianamente reiterado nos vários circuitos de
sociabilidade que a remodelação urbana da capital (retomaremos este ponto no próximo
capítulo) abria aos seus grupos privilegiados, desde as novas praças ajardinadas à
francesa, às livrarias, cafés e salões onde se misturavam discussões literárias e políticas,
aos clubes destinados aos lazeres requintados, como a Hípica.
Desse espaço social germinavam também alianças mais íntimas, como o
apadrinhamento de Washington Luís, Olívia Guedes Penteado e Júlio Prestes ao
casamento de Oswald e Tarsila, realizado em recepção de gala no palacete de
propriedade do casal, na alameda Barão de Piracicaba, mobiliado por Poiret e decorado
por obras de arte de Picasso e Léger (Boaventura, 1995, p. 118.).
Da imbricação entre campo literário e campo político, sugerida por essa
sociabilidade compartilhada, desprenderam-se várias das linhas estratégicas percorridas
pelo grupo modernista, na luta pela sua legitimação literária. Nesse particular, deve-se
salientar que muito de seu trabalho propagandístico apoiou-se nas alianças entre
escritores, políticos e empresários. Tome-se como exemplo, como apontamos
anteriormente, a utilização de suas posições no jornalismo como espaço de visibilidade
de suas propostas e polêmicas, e a própria realização da Semana de 22, planejada e
apoiada por figuras como Paulo Prado, em cujo palacete se situou “o centro ativo onde
se elaborou o modernismo” (Andrade, 1992, p. 123), integrante, juntamente com René
3
Trata-se das peças em francês, Mon Coeur Balance e Leur Âme, cuja ocasião de publicação comentamos
no capítulo anterior.
97
Thiollier, Armando Penteado, Martinho Prado e Oscar Rodrigues Alves, da Comissão
de Patrocínio da Semana de Arte Moderna (Fabris, 1994, p. 139).
Mário de Andrade, para quem “o fautor verdadeiro da Semana de Arte Moderna
foi Paulo Prado” (1978a, p. 235.), relembra o misto de mundanismo, política e arte,
característico da “sociabilidade modernista”, em conferência comemorativa de vinte
anos da Semana:
Havia o salão da avenida Higienópolis que era o mais selecionado. Tinha pro
pretexto o almoço dominical, maravilha de comida lusobrasileira. Ainda aí a
conversa era estritamente intelectual, mas variava mais e se alargava. Paulo
Prado, com seu pessimismo fecundo e o seu realismo, convertia sempre o
assunto das livres elocubrações artísticas aos problemas da realidade
brasileira. [...].
E houve o salão da rua Duque de Caxias, que foi o maior, o mais
verdadeiramente salão. As reuniões semanais eram à tarde, também às terças-
feiras. E isso foi a causa das reuniões noturnas do mesmo dia irem
esmorecendo na rua Lopes Chaves [endereço de Mário]. A sociedade da rua
Duque de Caxias era mais numerosa e variegada. Só em certas festas
especiais, no salão moderno construído nos jardins e decorado por Lasar
Segall, o grupo se tornava mais coeso. Também aí o culto da tradição era
firme, dentro do maior modernismo. A cozinha, de cunho afro-brasileiro,
aparecia em almoços e jantares perfeitíssimos de composição. E conto entre
minhas maiores venturas admirar essa mulher excepcional que foi Dona
Olívia Guedes Penteado. A sua discrição, o tato e a autoridade prodigiosos
com que ela soube dirigir, manter, corrigir essa multidão heterogênea que se
chegava a ela, atraída pelo seu prestígio, artistas, políticos, ricaços, cabotinos,
foi incomparável [...].
O último em data desses salões paulistas foi o da alameda Barão de
Piracicaba, congregado em torno da pintora Tarsila.
Não tinha dia fixo mas as festas eram quase semanais. [...]. Mas dos três
salões aristocráticos, Tarsila conseguiu dar ao dela uma significação de maior
independência, de comodidade. Nos outros dois, por maior que fosse o
liberalismo dos que os dirigiam, havia tal imponência de riqueza e tradição
no ambiente, que não era possível nunca evitar um tal ou qual
constrangimento. No de Tarsila jamais sentimos isso. O mais gostoso dos
nossos salões aristocráticos. (ibidem, pp. 239-240.).
Com o relativo afastamento que o intervalo de vinte anos lhe permitia, o poeta ainda
observava:
Todo esse tempo destruidor do movimento modernista foi pra nós tempo de
festa, de cultivo imoderado do prazer. E si tamanha festança diminuiu por
certo nossa capacidade de produção e serenidade criadora, ninguém pode
imaginar como nos divertimos. Salões, festivais, bailes célebres, semanas
passadas em grupo em fazendas opulentas, semanas-santas pelas cidades
velhas de Minas, viagens ao Amazonas, pelo Nordeste, chegadas à Baía,
passeios constantes ao passado paulista, Sorocaba, Parnaíba, Itu...
4
[...].
Doutrinários, na ebriez de mil e uma teorias, salvando o Brasil, inventando o
4
Este misto festivo de turismo e pesquisa histórico-estética, muito contribuiu para a elaboração poética
do livro Pau-Brasil de Oswald. Abordaremos este ponto no próximo capítulo.
98
mundo, na verdade tudo consumíamos, e a nós mesmos, no cultivo amargo,
quase delirante do prazer. (ibidem, p. 241.).
Em um sentido mais propriamente estético, é flagrante na atuação sobretudo de
Oswald de Andrade, o intento de acelerar, junto aos círculos cultos de elite, a
penetração de critérios de gosto e apreciação artística mais afinados com os predicados
vanguardistas que os modernistas reivindicavam para suas obras, em confronto com os
grupos “passadistas”. Nessa linha podemos incluir os serviços de consultoria estética
prestados por Oswald e Tarsila à Olívia Guedes Penteado, interessada em adicionar
exemplares da pintura vanguardista à sua coleção, quando de sua estada na Europa em
companhia do casal (Boaventura, 1995, pp. 91-92.); a inclusão de Blaise Cendrars nos
círculos de convívio a que vimos nos referindo, acompanhada simultaneamente pela
inclusão de sua obra no debate literário da época, via dedicatórias e poemas, no livro
Pau-Brasil, citações nos manifestos (Manifesto Pau-Brasil) ou ainda em artigos de
imprensa, onde figura como Blaise Cendrars, um mestre da sensibilidade
contemporânea, publicado em 1924.
Nesse último sentido, é de especial interesse, por situar-se na justa intersecção
entre conveniência política e literária, a aproximação entre o grupo modernista e o
escultor Vitor Brecheret. Ou, dito de modo mais preciso, a apropriação da obra do
primeiro pelos propósitos dos segundos. O episódio se deu no contexto dos preparativos
para as comemorações do centenário de Independência em São Paulo. Uma comissão de
intelectuais composta por Monteiro Lobato, Menotti Del Picchia e Oswald de Andrade
foi constituída para a incumbência de lavar a cabo o propósito do poder público estadual
de erigir um monumento às Bandeiras. Recém descoberto por Oswald, Menotti e Di
Cavalcante, Brecheret é um dos mais cotados para a realização da obra. Grande parte
dos motivos da visibilidade dispensada ao escultor, residiram, sem dúvida, na ênfase
com que a crítica modernista vinha ressaltando certos aspectos do seu trabalho, ou mais
precisamente, no fato de estes mesmos aspectos se prestarem, a um só tempo, a uma
apreciação que os assimilasse à bandeira de luta da renovação estética pleiteada pelos
escritores modernistas e que os contrapusesse aos alegados valores estéticos
ultrapassados. Assim, Oswald, no quinzenário Papel e Tinta, fundado e dirigido por ele
e Menotti, observa:
[...] na Europa, Brecheret não se limitou apenas a estudar com aplicação as
normas medicinais da escola, antes, possuído de uma clara inteligência e de
99
uma força de cultura ainda rara neste país de lenta evolução, observou as
idéias modernas da escultura, comungou com elas e tornou-se por isso quase
único em nosso meio. Brecheret é atual e vivo num entremez de bonecos que
refletem o movimento artístico europeu de 50 anos atrás.
Ao que Menotti, comentando no Correio Paulistano a maquete para o monumento às
Bandeiras e mencionando o papel desempenhado na descoberta do artista pelo “Dr.
Washington Luís, esse cultíssimo espírito que costuma ir procurar na modéstia e na
capacidade que não se alardeia os seus colaboradores”, ajunta:
Era uma arte nova, reacionária, consciente, séria! Não havia ali a banalidade
dos velhos e repisados motivos escultórios, a frieza doce e clássica dos
monumentos vulgares. A linha imponente, a grandiosidade, a concepção, o
arrojo equilibrado das figuras, tudo exprimia bem a audácia dos bandeirantes
[...] a arte paulista vencera em toda a linha” (apud, Brito, pp. 105-6 e ps.115 e
119.).
Assim, no interior da colaboração entre os propósitos simbólico-políticos da elite
paulista e a estratégia de auto-promoção do grupo modernista, a divulgação e análise da
escultura de Brecheret convertia-se em expediente de legitimação dos critérios estéticos
conformes aos propósitos de autoridade intelectual dos escritores paulistas.
Com efeito, o caráter de dependência que, conforme vimos acima, Miceli atribui
à relação dos escritores modernistas com os grupos dirigentes de São Paulo, constituiu,
para os primeiros, um trunfo na luta pela sua afirmação literária. Em outras palavras,
muito provavelmente foi a condição de externamente dominados, em relação ao campo
do poder, que em larga medida os alçou à posição de dominantes, internamente ao
campo literário. Ademais, cabe salientar que tal dependência não parece configurar uma
relação unilateral. Isto é, havia nela certo grau de reciprocidade, já que por meio dela a
elite política pôde auferir dividendos simbólicos em prestígio cultural e político.
Ao que parece, o programa nacionalista de Oswald de Andrade, expresso nos
Manifesto Pau-Brasil (M.P.B.) e Manifesto Antropófago (M.A.), nutriu-se largamente
da proximidade social que o autor mantinha com a elite política paulista. Dizêmo-lo em
função das correspondências, seja em termos de afinidades, seja em forma de contrastes,
que se podem apontar, em tais textos, entre a matriz simbólica bandeirante e as tomadas
de posição programáticas do autor.
2. 3 – Exorcizando o olhar colonizador
100
Oswald, a nosso ver, parece adicionar um elemento até então ausente do
nacionalismo paulistano vazado no referencial bandeirante e voltado, como vimos, para
as lutas simbólicas internas. Trata-se do papel central que a relação Brasil-Europa
assume na estruturação de seus manifestos. Assim, no M.P.B., a relação entre as
culturas do Velho e do Novo Mundo serão abordadas sob o signo da exportação:
“Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil: de exportação” (Andrade,
1972. p. 204). Se não há dúvida de que tal afirmação converte a referência ao âmbito
externo em arma de luta interna ao campo literário de então (o imperativo do
“dividamos” reputando às poéticas anteriores à do autor a subserviência à “cópia” das
correntes européias), parece pertinente, entretanto, vermos nela o ímpeto de afirmação
de uma condição de classe, já então satisfatoriamente situada nos níveis econômico e
político, buscando complementar sua hegemonia por meio da elevação de seu papel de
exportadora de matérias primas, no plano econômico, para a condição de exportadora
também de produtos simbólicos, no plano cultural.
Por outro lado, o M.A. complementa tal empreendimento simbólico deslocando
sua ênfase para o tema da importação: “Só me interessa o que não é meu. Lei do
homem. Lei do Antropófago. [...] O instinto Caraíba. [...]. Antropofagia. Absorção do
inimigo sacro. Para transformá-lo em totem”. Apropriando-se e atualizando uma matriz
ritualística “primitiva”, a metáfora do antropófago funciona como uma espécie de
modelo pelo qual pautar uma relação seletiva com a cultura européia, mediante a
apropriação de aspectos relevantes para a afirmação de um padrão cultural tido como
nacional e o descarte de elementos que escapem ou aviltem este propósito.
Com efeito, cabe destacar aqui dois elementos desta política literária externa,
que se delineiam nos manifestos de Oswald. Por um lado, deve-se salientar, com
Schwarz (1987, pp.- 34-38.), seu caráter original e inovador, visto que muitas das
formulações anteriores, e mesmo das posteriores, caracterizavam-se por duas posturas,
diametralmente opostas: ou se negava em bloco toda e qualquer influência da cultura
européia, um nacionalismo quase xenófobo, ou se aceitava sem nenhuma reserva ou
discernimento tudo que nos chegasse do velho mundo, um cosmopolitismo acrítico.
Oswald não só parece superar a unilateralidade destas posturas, como chega mesmo a
pensar a relação Brasil-Europa como uma via de mão-dupla, ao reivindicar o selo de
exportação para sua poesia. Por outro, há que se observar que o grau de pretensão
intelectual que comportam as proposições oswaldianas seria, neste particular, em larga
101
medida impensável sem o lastro da experiência social própria de uma condição de maior
e mais intensa inserção no cenário internacional, vivenciada pela classe exportadora que
controlava virtualmente 70% do mercado mundial de café. O que sinaliza a vinculação
ambígua de Oswald com a cultura viajeira da elite paulistana, pois se o autor utiliza-se
da largueza de perspectiva que lhe possibilita a vivência cosmopolita, não é sem revesti-
la de um teor inconformista de recusa, frente à adoção subserviente de padrões culturais
europeus.
Essas considerações também parecem importantes para a compreensão do
pressuposto simbólico implicado no interior do reequacionamento das relações culturais
com o Velho Mundo, que consistiu na positivação dos elementos considerados nativos
frente aos traços considerados característicos da cultura européia. Mais precisamente, a
operação de positivação selecionou justamente aqueles caracteres tidos como
problemáticos – tais como, por exemplo, a nudez e a preguiça – ou obstrutores de uma
cultura e civilização nos trópicos. Assim, Oswald faz o elogio entusiasmado da
convivência entre elementos culturais “arcaicos” e “modernos”, verificável na realidade
brasileira de então e vistos como um potencial poético para suas propostas:
Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e
dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do
chá de erva-doce. Um misto de “dorme nenê que bicho vem pega” e de
equações. [...] Obuses de elevadores, cubos de arranha-céu e a sábia preguiça
solar. A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um
pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar.
(Andrade, 1972, p. 207.).
Se esta passagem do M.P.B. põe em relevo o repertório cultural que deve nutrir a arte
que reivindica para si o papel de “abrasileiramento do Brasil”, no manifesto seguinte,
Oswald radicaliza sua posição, aponta, em tom satírico de denúncia, o que julga serem
sintomas de decadência e exaustão da cultura ocidental, formas culturais como o
patriarcado, o cristianismo e a razão cartesiano-iluminista, que, aliás, estariam na base
da negativização dos elementos culturais nativos que pretende positivar, e, por esta via,
parece chegar mesmo a sugerir, indiretamente, que se trata, agora, de “abrasileirar” a
Europa:
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em
drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia
impressa. O que atrapalhava a verdade era a roupa, o impermeável entre o
mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. [...]
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a
102
realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem
penitenciárias do matriarcado de pindorama. (idem, p.226.).
Como se vê, Oswald mobiliza referenciais culturais europeus (“Freud”) contra a
própria cultura européia, ou, nos seus próprios termos, “deglute-os”, recorrendo à
valorização tanto do passado pré-cabralino quanto do repertório popular como matrizes
de onde retirar padrões civilizacionais e culturais alternativos. Assim, contrapõe à
tradição racionalista e cristã “a mentalidade pré-lógica” e seus esquemas cognitivos: “O
espírito recusa-se a conceber o espírito sem corpo. O antropomorfismo. Necessidade de
vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as
inquisições exteriores” (idem, p. 228.). Desdobra-se daí a eleição de um novo critério de
verdade, supostamente correlato a uma institucionalidade outra, complementando o que
seria a sugestão de uma nova epistemologia afinada com o ideário vanguardista de
reconciliação entre arte e vida: “A alegria é a prova dos nove. [...] No matriarcado de
Pindorama” (idem, 231.). Por fim, delineia o quadro de uma ordem social que faz as
vezes de uma referência modelar às suas proposições:
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.
[...] A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos,
dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a
morte com o auxílio de algumas formas gramaticais. [...] Antes dos
portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade. [...]
Nunca fomos catequizados. [...] Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em
Belém do Pará. (idem, 228-229.).
A flexão dos verbos dá o que pensar: o predomínio do pretérito aponta para o
caráter de “utopia retrospectiva” das proposições oswaldianas, voltadas, contudo, para a
afirmação de um repertório de “fundo mítico como perspectiva cultural” no presente e
para o futuro (Gelado, 2006, ps. 133 e 176.). De outra parte, a recorrência da primeira
pessoa do plural sinaliza a procura de um nós que Oswald esforça-se constantemente em
evocar. Como sugerimos no capítulo anterior, a questão da apropriação da fala coloquial
brasileira esteve no centro das reivindicações modernistas de uma expressão estética
adequada ao duplo imperativo de modernidade e nacionalidade. Oswald, no M.A.,
pleiteava: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição
milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos. (idem, p. 204. grifos
nossos)”. Assim, quando se considera que o autor vai buscar os predicados sócio-
culturais que qualificam este nós sobretudo nos repertórios populares, parece lícito que
a “redescoberta do Brasil” apregoada pelos modernistas, envolveu, em alguma medida,
103
o esforço de aproximação deste grupo, letrado e intelectualizado à moda européia, com
os universos da cultura dos grupos sociais subalternos. Nesse sentido, além de um nítido
componente de intertextualidade, a proposta oswaldiana é portadora, por assim dizer, de
um forte elemento de interculturalidade, o que, por um lado, estabelece uma correlação
da estética do autor com o processo de diversificação sócio-cultual que então atravessa a
sociedade paulistana e, por outro, por extensão, reveste-a de uma carga simbólica
potencialmente transgressiva, ao resultar na transposição dos antagonismos simbólicos
gestados no nível da vida social para o seio do universo da vida literária.
2.4 – A reabilitação do popular: domesticação e estranhamento
Entretanto, o fosso social que separava esses respectivos espaços sociais, vale
dizer, a disparidade entre o letrado e o oral, o erudito e o popular, lastreada em uma
estrutura social altamente hierarquizada e concentradora dos capitais econômicos e
culturais, deixou marcas na própria lógica que presidiu esta elevação do popular à
“dignidade” literária. É importante que se observe, no desenvolvimento deste ponto, que
são inteiramente aplicáveis a Oswald as considerações tecidas por Gelado acerca das
construções narrativas e estilísticas de Macunaíma, atreladas a uma visão da pluralidade
cultural brasileira em que “à heterogeneidade indígena [...] vêm se somar,
entrecruzadas, as de outros grupos subalternos contemporâneos: os afro-brasileiros, os
imigrantes, os setores baixos e médios urbanos” (Gelado, 2006, p. 163.). É possível, por
um lado, afirmar que tal obra realiza, no plano temático e formal, uma perspectiva
artística a que se poderia atribuir o propósito de uma representação que abarcasse a
realidade multifacetada do país, o que a revestiria de um esforço de descentramento de
supostas identidades nacionais fixas e unitárias, ancoradas na generalização arbitrária de
particularidades culturais especificas de um grupo – a paulistanidade bandeirante, por
exemplo – ao restante heterogêneo e diverso dos grupos sociais
5
. Por outro, é preciso
apontar, na lógica pela qual opera, a presença de uma disposição intelectual que reitera a
hierarquia socialmente dada entre os elementos aos quais pretende atribuir uma
legitimidade cultural equânime. Ou seja,
5
Este procedimento, a um tempo simbólico e político, de generalização das particularidades de um grupo,
culturalmente impostas aos demais, é identifica por Hall (2005, pp. 50-89.) como um dos elementos
centrais às formas de dominação compreendidas na idéia e experiência da “unidade nacional”.
104
no caso de Mário [...] é importante frisar que se trata de uma perspectiva
cultural de elite, permeada de intelectualismo, que opera uma incorporação
do popular ao sistema sem pretender romper com o relativismo estético em
que se funda a separação entre o “popular” e o “culto” [...] (ibidem).
E, cumpre acrescentar, concede que as assimetrias sociais – que a um só tempo
legitimam e são legitimadas pelos princípios de (di)visão que informam a oposição
popular e erudito – em que se ancoram tais clivagens culturais, permaneçam fora do
foco da tematização. A mesma observação cabe à celebração que perpassa o olhar
oswaldiano acerca da interpenetração entre elementos “arcaicos” e “modernos” na
formação da “base dupla e presente” do universo cultural brasileiro. Neste particular, o
imperativo de “ver com olhos livres” (M.P.B.) pode tanto apontar para a subversão dos
esquemas binários de classificação, nos quais se inscreve toda possibilidade de
hierarquia e depreciação cultural, quanto traduzir a impossibilidade de enxergar
aspectos problemáticos do mundo social brasileiro que subjazem à hibridização cultural
o qual, por si, cultural e esteticamente considerada, constituí um valor positivo.
Observe-se, de passagem, que se encontra em Oswald o precedente da ressignificação
simbólica que notabilizaria, na década de 30, a obra de Gilberto Freyre. Tanto a
positivação da mestiçagem – elemento até então vinculado à idéia de degeneração racial
– como expressão e motivo de vitalidade cultural, quanto a mistificação de suas
virtualidades numa pretensa democracia racial, são desdobramentos de traços centrais à
perspectiva cultural inscrita nas propostas estéticas oswaldianas.
A perplexidade que se insinua entre os gestos festivos das proposições
oswaldianas, comparece em vários dos poemas de Pau-Brasil, onde a recorrência do
procedimento paródico e irônico, além de constituir uma marca do Modernismo, em sua
fase heróica de confrontamentos no interior do campo literário, parece responder, em
função de seus efeitos de suspensão de um sentido único e inequívoco, às dificuldades
instaladas no cerne do trabalho de formulação estética, em face da tensão entre o
disparatado dos materiais selecionados e as propensões majoritárias nos esquemas
perceptivos do autor. Veja-se, a este título, o poema biblioteca nacional:
A criança Abandonada
O doutor Coppelius
Vamos com Ele
Senhorita Primavera
Código Civil Brasileiro
105
A arte de ganhar no bicho
O Orador Popular
O Pólo em Chamas. (Andrade, 1966, p. 115.).
Além da constatação de que a peça pode ser lida como exemplo da destreza de
Oswald em compor “penetrantes ideogramas lírico-satíricos da realidade nacional e das
condições alienadas em que ela se manifesta” (Campos, 1966, p. 19.), deve-se assinalar
a ambivalência do efeito cômico deflagrado pela enunciação dos títulos de livros
dispostos na estante, em cuja seqüência enumerativa e sem sustos, entre as sugestões de
respeitabilidade erudita e oficialesca do Código Civil Brasileiro e de prescrições
retóricas de O Orador Popular, é maliciosa e sorrateiramente introduzida A arte de
ganhar no bicho (o único grafado com minúsculas), cuja hipotética publicação em livro,
já vale por si só um gesto de sátira corrosiva. É quase inevitável a percepção da
gargalhada oswaldiana irrompendo nas entrelinhas destes versos, comprazendo-se em
promover a intromissão, no seio do templo da cultura oficial, do contraste entre o
pedantismo da cultura afetada e livresca das elites de bacharéis e a ludicidade
irreverente das pequenas contravenções populares.
Entretanto, é igualmente inevitável apontar a possibilidade de o riso oswaldiano
ter se nutrido da energia de possíveis efeitos catárticos, oriundos de sua inserção em
uma lógica cultural com cujos imperativos políticos o autor, enquanto pretendente a
uma posição consolidada de escritor, impeliu-se a transigir com certa complacência.
Assim, se o humor poético de Oswald deflagra o estranhamento face à naturalização dos
lugares sociais da cultura, suspendendo a hierarquização simbólica entre seus universos
e as pretensões ao monopólio da legitimidade cultural, incluindo aí uma alfinetada
irônica nos círculos que o acolheram – e portanto em si mesmo, não deixou de
funcionar, pelo que encerra de meias-palavras
6
, como expediente gracioso de reiteração
dos vínculos simbólicos tecidos no interior dos mesmos.
6
Não pretendemos, em absoluto, negar a possibilidade do efeito estético contundente que o procedimento
de dispor os elementos em sua “pura presença”, neste como em outros poemas de Oswald, exerce na
desrotinização das expectativas e estruturas perceptivas do leitor. Como observa Campos (1996, p. 18.), o
método compositivo do autor instalaria um “efeito de antiilusionismo, de apelo ao nível de compreensão
crítica do leitor, que está implícito no procedimento básico da sintaxe oswaldiana – a técnica de
montagem – este recurso que Oswald hauriu nos seus contatos com as artes plásticas e o cinema (grifos
do autor.)”. Entretanto, consideradas certas dimensões sociológicas do fenômeno estético, entre as quais
as condições sociais de apreciação da literatura de então, é forçoso reconhecer que a rarefação sintática
assim produzida poderia facilmente sofrer um deslizamento de seus efeitos de desestabilização rumo aos
efeitos de reiteração dos princípios perceptivos que regiam a visão hegemônica de arte como também do
106
Nessa mesma direção, é interessante assinalar o modo de Oswald conceber a
distinção hierárquica entre popular e erudito. No M.A., o autor oscila entre uma postura
que sugere uma diluição de fronteiras entre os dois universos e uma outra que as
mantém para, contudo, inverter a ordem entre seus termos, elevando o popular
(subalterno) acima do erudito (hegemônico). Eis um fragmento que permite as duas
chaves de leitura: “O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil.
Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica
rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.” A imagem
quase que ecumênica da submersão de Wagner em meio aos folguedos sugere tanto
suplantação do repertório erudito pelo popular, quanto a conciliação harmônica e
orgânica entre ambos.
Assim, se o autor relativiza hierarquias culturais socialmente constituídas,
tensionando a pretensão de primado intelectual e estético da cultura das elites
cosmopolitas e letradas, parece ser à custa do apagamento das tensões sociais que estão
na base de sua gênese. Isto é, a bricolagem literária pela qual Oswald promove a
interpenetração entre conteúdos culturais, cuja hierarquização é correlata a um espaço
social caracterizado por relações assimétricas entre os respectivos portadores dos
mesmos, confere à reabilitação oswaldiana do popular uma forte tendência à
conciliação social e, portanto, de esvaziamento do potencial de tensão aí existente.
Operada pelos seus procedimentos de síntese e fragmentação, essa tendência à
conciliação produz figurações que decompõem as fronteiras sociais entre os espaços de
sociabilidade e seus ocupantes legítimos, recompostos em imagens em que o elemento
de surpresa resulta do vínculo pacífico que aproxima esteticamente atores e práticas
social e culturalmente distantes. É o caso da imagem presente no M.P.B., em que na
seqüência enumerativa de aspectos sócio-culturais que o autor elege como ingredientes
de sua poética, aparecem, de súbito, logo na seqüência de “A riqueza dos bailes e das
frases feitas”, a visão festiva das “Negras de jóquei”, onde se sugere um vínculo de
pertencimento por meio de um modo de apresentação indumentária, com os trajes que
marcam uma posição social de elite vestindo carnavalescamente a figura interditada nas
práticas e meios sociais correspondentes.
Com efeito, as reservas feitas por Canclini e Barbero ao Romantismo, mostram-
se igualmente aplicáveis às proposições de Oswald. O primeiro aponta que “os conflitos
mundo social mais amplo, depositário dos elementos a serem trabalhados artisticamente. Daí podendo
decorrer certa complacência com as convenções e hierarquias inscritas neste último.
107
em meio dos quais se formaram as tradições nacionais são esquecidos ou narrados
lendariamente, como simples trâmites arcaicos para configurar instituições e relações
sociais que garantam de uma vez por todas a essência da Nação” (apud Barbero, 2001,
p.42.). Enquanto que o segundo destaca o caráter descontextualizante da visão
romântica de cultura popular, salientando a resultante obliteração do “processo histórico
de formação do popular e o sentido social das diferenças culturais: a exclusão, a
cumplicidade, a dominação e a impugnação” (ibidem.).
Portanto, levando-se em conta a perspectiva das relações entre a elite política e a
elite intelectual paulista, o nós do universo literário e artístico apresenta-se com uma
composição distinta em relação ao nós do campo político, posto que, como apontamos
acima, a questão do elemento popular era sistematicamente posta fora dos debates e
perspectivas dos grupos dirigentes do regime republicano. Assim, a ausência de
representatividade do popular no âmbito político era simbolicamente atenuada, nos
círculos cultos da elite, pela presença de sua representação na esfera estética.
Nesse sentido, isto é, tomando-se as proposições estéticas de Oswald do ponto
de vista de sua inserção no contexto mais amplo dos percalços que assinalaram a
constituição de uma ordem republicana no Brasil, essa relação de complementaridade
compensatória inscreve os manifestos oswaldianos na tradição inaugurada pela primeira
onda de nacionalismos nas Américas, vindos à tona no contexto de independência das
antigas colônias, já que, como observa Anderson, esses movimentos, diferentemente de
seus símiles europeus, ligados ao “batismo político das classes inferiores”, foram em
grande parte motivados pelo “medo de mobilização política das ‘classes baixas’: a
saber, as revoltas dos índios ou dos escravos negros” (2008, ps. 85 e 86, grifo do
autor.). Não obstante a remissão dos motivos dos nacionalismos americanos ao “medo”
social e político dos grupos dirigentes nos pareça especificamente inadequada para
ilustrar o ponto em questão, é cabível que também o nacionalismo inscrito nas propostas
de Oswald estivesse ligado a fatores de ordem subjetiva. Referimo-nos, neste caso, a
esquemas de percepção e apreciação gestados no interior de uma experiência social
predominantemente de elite, formatada pelas assimetrias sociais entre o espaço social
que circunscrevia o campo do poder e mundo social mais amplo em que situavam os
grupos subalternos.
Compreende-se, com efeito, que decorresse daí uma visão do mundo social
pouco afeita a aparições do elemento popular, com seus eventuais constrangimentos
simbólicos em matéria de política e de cultura, senão em versões mais exóticas e
108
pitorescas, ou em suas versões “domesticadas”, esvaziadas de suas conotações
conflitivas, como era o caso, de acordo com o que vimos argumentando, da versão
oswaldiana do popular.
Portanto, não se trata tanto, aqui, das implicações homogeneizadoras que o
propósito modernista de submeter a reabilitação do popular ao projeto de definição de
um feitio nacional à arte, poderia ter exercido no nivelamento da alteridade cultural dos
grupos subalternos às pretensões identitárias dos grupos hegemônicos. Se é bastante
provável que este tenha sido um vetor de forças aí presente, é forçoso identificar tanto
em Mário quanto em Oswald certa perspicácia em driblá-lo. Pensemos no caso de
Macunaíma. Se o livro reflete sobre os percalços da realização da identidade brasileira,
devemos notar que esta questão é, contudo, colocada sob o signo da viagem
transculturalmente narrada, em que a fixidez das identidades é constantemente diluída
pelo trânsito do herói entre o rural e o urbano, o moderno e o arcaico, entre as etnias
indígenas, afro-brasileiras e européias, daí, talvez, sua ausência de caráter, pois o epíteto
de “sem nenhum caráter”, sem identidade definida, pode prestar-se à abertura de um
horizonte de multiplicidade identitária. Pode-se dizer que latências semelhantes podem
ser apontadas na perspectiva cultural da antropofagia. A deglutição antropofágica
remete a um universo tramado por permanentes interações entre a diversidade de
elementos culturais heterogêneos. A arte, e mesmo a vivência cultural mais ampla,
transcorreria por constantes deslocamentos das identidades inscritas em tal universo,
mediante sua mútua devoração, processo em que a assimilação de uma cultura por outra
não se confunde com a assimilação de uma à outra, visto que o caráter perpétuo da
deglutição deixa sempre em aberto os processos de identificação, sempre em trânsito as
identidades. Pode-se mesmo dizer que a perspectiva antropofágica abole as concepções
identitárias acerca da dinâmica cultural. Isto é, a assimilação implicada no metabolismo
cultural antropofágico se afasta da redução do diferente (elemento a ser devorado) ao
idêntico (repertório cultural do devorador), pois aponta para a processualidade
permanente das identidades em jogo: mais identificação, movimento sempre em aberto,
inacabado, que identidade, estado estacionário, supostamente fechado, do processo.
Assim, a tendência a neutralizar o potencial subversivo implicado na
reabilitação do popular inscreve-se no próprio processo de transposição dos elementos
culturais dos meios populares ao universo da cultura letrada, derivando de uma espécie
de “depuração” operada pela passagem dos mesmos pelas estruturas de percepção e
apreciação que atuavam na visão que Oswald formulava esteticamente sobre o mundo
109
social brasileiro. É importante que se assinale que uma dinâmica de formulação estética
semelhante transcorria também na pintura que vinha sendo desenvolvida por Tarsila,
realizada sob os parâmetros do Pau-Brasil. Como destaca Gilda de Mello e Souza:
Os contrastes que em Léger são sobretudo plásticos, entre as formas
geométricas dos objetos e as formas orgânicas dos homens, transformam-se
em seus quadros em oposições pitorescas de cultura, tão características da
nossa civilização urbana e folclórica. O resultado é um espaço ingênuo,
analítico e enumerativo, de estruturas simétricas simples, cores puras e lisas.
A imagem, enfim, de um mundo sem tensões [...]. Tarsila é menos feliz
quando tenta resolver o problema da figura na paisagem. [...]. Nas telas em
que a figura humana era apenas um elemento da paisagem tudo corria bem;
mas quando se tratava de aproximar a personagem do primeiro plano, como
n’O Vendedor de Frutas, [...]. A simplificação imposta aos elementos
secundários, para que se acomodassem à estilização do conjunto, não alterava
essencialmente a natureza das frutas, do passarinho, do barco; mas o mesmo
recurso aplicado ao moleque tirava a dignidade da figura, fazendo o todo
resultar decorativo como um cartaz publicitário. (Souza, 1980, pp. 268-269.).
Deve-se salientar que a demanda de uma domesticação simbólica do popular,
isto é, de uma representação mais conveniente à sensibilidade social dos círculos
cultivados de elite, era provavelmente premente em uma sociedade em que o alto grau
de exclusão operada em todos os níveis conjugava-se com a precariedade dos canais
institucionais de vazão dos conflitos e reivindicações, delineando um horizonte social
atravessado de pontos de tensão, intensificados pela presença de práticas autoritárias por
parte da autoridade oficial no trato com as populações subalternas e de formas de
controle características dos expedientes clientelistas.
Portanto, a eleição dos universos populares como predicativos do “nacional” era
por si mesma um ponto delicado e seu caráter potencialmente explosivo era
relativamente neutralizado em função de seu tratamento interno à fatura estética. Nesse
sentido, as considerações tecidas por Hardman a propósito do papel simbólico que o
beletrismo “pré-modernista” teria desempenhado nos primeiros tempos do Brasil
republicano, parecem igualmente, senão ainda mais adequadas, à estética de Oswald,
guardadas as devidas proporções entre procedimentos:
110
Era uma vez uma República com vontade de vencer. Ainda brumosa, mas já
saltitante, exibida, bacharelescamente letrada. Aliás, residia precisamente aí o
seu brilho tão fugaz quanto excessivo, mas afinal recomendável: os homens
de bem não por acaso chamavam-na familiarmente República das Letras e
letrados governavam-na. Civilização e nacionalidade, muitas vezes partidas
pelas lutas sociais, reencontravam seu elo forte e reconstruíam-se em um
discurso uno e lapidar por meio de belas letras, desenhando contornos de uma
bela época. (2002, p. 247.).
Com efeito, a reabilitação oswaldiana do popular parece corresponder, em
grande parte, a um esforço de religar, no plano simbólico, o vínculo constantemente
cindido no plano social: espaço estético da obra como território em que se resolvem, via
conciliação, os conflitos irresolutos no território da experiência social concreta.
É certo que se pode objetar acerca da “domesticação” do popular, operada pelas
proposições oswaldianas, com o fato, que já sugerimos, de que o conflito entre
universos culturais heterogêneos é constitutivo da matriz antropofágica. Entretanto, não
parece impróprio afirmar que o argumento é apenas parcialmente procedente; na medida
em que encontra respaldo nas formulações antropofágicas, sua pertinência é sobretudo
válida para leituras e apropriações estritamente estéticas e feitas a posteriori, não
correspondendo inteiramente às condições sociais do fenômeno literário dentro das
quais tal proposta emergiu, e a cujas injunções sua eficácia simbólica esteve restrita.
Pois, ao que parece, Oswald situa o elemento de conflito de sua proposta, a “deglutição
do inimigo sacro”, em relação à cultura ocidental européia, e ao seu papel hegemônico
na cultura brasileira. Se isso constitui um gesto desestabilizador dos códigos culturais
das elites, não implica, necessariamente, a evocação do potencial conflitivo do elemento
popular. O que equivale a dizer que o conflito encampado pelo autor no âmbito
doméstico é, em grande medida, condicionado pelas injunções internas do campo
literário, isto é, trata-se de uma tomada de posição de enfrentamento dos então
detentores da autoridade de legislar sobre a legitimidade dos produtos literários e dos
critérios estéticos de que se serviam para tanto.
Assim, o combate antropofágico propugnado por Oswald é circunscrito à relação
de forças entre registros concorrentes no âmbito da cultura letrada, onde a reabilitação
do popular entra como munição simbólica para alimentar a artilharia modernista, e não
como repertório cultural a cujos portadores se reivindicaria, ainda que por imputação,
uma existência social conflitiva com a ordem instituída. Nesse sentido, nos termos da
111
relação entre cultura popular e cultura erudita, no interior da proposta oswaldiana, a
primeira adquire legitimidade cultural relativa, apenas na medida em que é retrabalhada
e apropriada segundo os registros e propósitos da segunda: “eruditização” do registro
popular e não “popularização” do erudito, ademais inconcebível, dadas as condições
sociais concretas em estudo.
2.5 – O paulicentrismo oswaldiano
Há ainda que se notar outros aspectos que as intersecções entre o campo político
e literário salientam nas proposições oswaldianas. Em certo sentido, transitando no mais
das vezes sobre um tenso limiar entre a concessão e a dissidência, os Manifestos
reativam as linhas centrais da matriz simbólica bandeirante. Neste ponto, como em
outros já levantados, converge para a elaboração estética a inserção de Oswald tanto nas
injunções internas ao campo literário, quanto nas advindas de sua relação com o campo
político.
Com efeito, é possível observar em Oswald a tendência de empreender uma
reescritura do Brasil, manifesta tanto no nível mais geral dos processos de formação do
país, no interior dos quais destaca os elementos a serem trabalhados artisticamente,
quanto no plano mais específico da história literária. O intricado enlace entre estes
planos narrativos atesta o grau de interpenetração de suas bases sociais correlatas, isto é,
os embates no interior do campo literário e sua correlação com os confrontos
desenrolados paralelamente no campo político.
Assim, no M.P.B., o autor aponta a linha selecionada como central na trama
histórica brasileira, formada por “Toda a história bandeirante e a história comercial do
Brasil”. Essa tendência a equacionar “bandeirante”, logo, paulista, a “Brasil”, parece ser
a premissa que guiou a visão do autor sobre nossa evolução literária. Isto é, Oswald
transfere para o interior do enfrentamento do campo literário a matriz mobilizada pelos
paulistas nos combates internos ao campo político. A periodização da literatura nacional
sugerida pelo autor elege, por um lado, a Semana de 22 como um marco divisório: “O
trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura
nacional.” E, por outro, como prelúdio à sua poética, vista como um ponto de
culminância: “Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua
época”. Observe-se que o momento dos Manifestos parece assinalar uma inflexão na
política literária oswaldiana: a busca de uma hegemonia do grupo paulista no plano
112
nacional cede espaço às disputas pela liderança no interior do próprio grupo. Oswald
reivindica para sua proposta o estatuto de refundação da cultura brasileira, considerada
tanto em seu panorama interno, quanto em inserção no cenário cultural internacional: “E
a coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral.
Poesia Pau-Brasil.”.
Deve-se salientar que a busca de hegemonia empreendida por Oswald, no
interior do grupo modernista, é acompanhada pela recomposição de suas alianças
tecidas no espaço social. No momento em que estreita sua proximidade com Tarsila,
tanto afetiva quanto esteticamente, com a pintora ilustrando não só seus livros como
também efetuando a versão pictórica do Pau-Brasil, como o faria com a Antropofagia, e
Raul Bopp, membros centrais do grupo antropofágico, os anos que medeiam os dois
manifestos assinalam também seu rompimento com Paulo Prado, “mecenas” dos
modernistas. Oswald, então, afasta-se igualmente de Menotti Del Picchia que, em 1929,
com Cassiano Ricardo e Plínio Salgado, fundara o grupo Anta e lançara o Manifesto do
Verde-Amarelismo, em clara contraposição à Antropofagia.
A polêmica com a ala carioca do movimento também se acirra: Tristão de
Athaíde, Manuel Bandeira e Graça Aranha são alvos constantes de ridicularização,
assim como a Academia Brasileira de Letras, no episódio da carta aberta enviada pelo
autor à imprensa carioca, cujo conteúdo consiste do lançamento de sua candidatura e do
simultâneo apelo a não ser eleito (Cf.: Boaventura, 1995, pp. 109-110.). Inclui-se neste
contexto, o célebre desentendimento com Mário de Andrade, que, aliás, reprovava a
postura que o amigo assumia em relação aos companheiros cariocas (ibidem.). Quanto
aos motivos da mútua reserva que então se instalaria entre os dois Andrades, além dos
de ordem política, ligados à oposição inscrita no posicionamento dos dois autores,
Mário se filiando ao Partido Democrático e Oswald permanecendo fiel às hostes
perrepistas (Miceli, 1979, p. 22, nota 27), deve-se acrescentar, em sintonia com estes,
uma provável disputa, já apontada, em conjunto com outros fatores, no capítulo
primeiro, em torno da autoridade para definir a versão legítima do nacional em matéria
de arte e cultura. Como apontamos acima, os autores não diferiam substancialmente
quanto aos repertórios culturais a serem ativados na auto imputada missão de
“redescoberta do Brasil”. Também no capítulo anterior, observamos que o descompasso
aí residia no volume e composição dos capitais que ambos estavam em condições de
mobilizar e converter em recursos e meios de levar a cabo uma pesquisa estética
nacionalista. Assim, vislumbra-se na disparidade de investimentos, Mário viajando para
113
o interior do país, literal e literariamente, e Oswald descobrindo o Brasil por intermédio
da Europa e em grande medida estimulado pela curiosidade estrangeira de Blaise
Cendrars, as disparidades sociais que também se traduziram na proclamada oposição
entre o provincianismo e timidez de um e o cosmopolitismo e ousadia de outro.
A tendência de pretensão à hegemonia literária e intelectual, nítida nas
passagens supracitadas do M.P.B., acentua-se e se radicaliza no manifesto seguinte. A
visão das propostas oswaldianas como um momento de refundação do país é reiterada e
aprofundada com a presença de um forte elemento teleológico, presente na maneira
linear com que Oswald opera a inserção da Antropofagia, e pelo relevo que esta assume,
na história do Ocidente:
Queremos a revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A
unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. [...]. Filiação.
O contato com o Brasil Caraíba. [...]. Montaigne. O homem natural.
Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista,
à Revolução surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos.
O autor atribuí à sua proposta a proeza da inversão da relação colonizador-
colonizado, o que transfere também para o plano histórico interno: “A nossa
independência ainda não foi proclamada. [...] Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar
o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.”.
Vê-se por aí que o nacionalismo contido nos Manifestos atrela-se à busca de
uma condição hegemônica no interior do campo literário e, em particular, no interior do
grupo modernista paulista, na medida em que seu autor procura resguardar para suas
proposições estéticas o significado de uma refundação/libertação cultural e
civilizacional do Brasil, fiando sua legitimidade e supremacia em seu aventado
pioneirismo, no contraste com os concorrentes nacionais, e no suposto esgotamento da
cultura ocidental em face da “originalidade nativa” e do vigor do “instinto Caraíba”, em
contraposição às propostas européias. Não por acaso, a revisão histórica que se inscreve
simbolicamente nesta estratégia de hegemonia literária, não se limitou ao plano dos
conteúdos, da montagem das tramas e encadeamento dos processos, mas chegou ao
necessário complemento simbólico de sugestão de uma nova temporalidade para a
história: “Contra as histórias do homem, que começam no Cabo Finisterra. O mundo
não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.” O assento mítico dessa
historicidade outra assim reivindicada sobressai com a sua correlata eleição de um
tempo e lugar originários, implícitos na datação do manifesto, que, denotando a crença
114
revolucionária de Oswald em suas propostas, instaura um novo calendário: “Em
Piratininga. Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.”.
Neste ponto, Oswald situa-se em um vetor de contraste que, derivando da
própria matriz simbólica bandeirante, abre uma fissura de tensão na coerência interna da
mesma. Por um lado, a suspensão do calendário ocidental, na medida em que o autor
parece atribuir sua estruturação ao papel histórico da expansão européia na construção
do Ocidente – os imperialismos dos Césares e Napoleões – equivale virtualmente à
desqualificação da racionalidade iluminista, que não só conformava os parâmetros
historiográficos do I.H.G.S.P., como, mais profundamente, constituiu a dimensão
epistemológica inscrita nas instituições ocidentais, a mesma que dera vida às dualidades
metafísicas que suscitavam a recusa antropofágica emconceber o espírito sem corpo
e que instaurara, por derivação, as dualidades correlatas mobilizadas pelo discurso do
colonialismo – primitivo/moderno, selvagem/civilizado, etc. – e as que se articulam nas
hierarquias implícitas de tantos paternalismos de valorização do popular: oral/letrado,
espontâneo/intelectual. Por outro lado, a sugestão de um calendário alternativo aponta
para a reivindicação de uma historicidade própria, “desocidentalizada” ou, no mínimo,
construída antropofagicamente a partir das particularidades que marcaram a inserção
brasileira na ordem ocidental. Assim como o evento tomado como parâmetro, a
devoração do colonizador pelo colonizado, ressignifica o processo histórico da
colonização, na medida em que tensiona o então em voga modelo poético e
historiográfico da fusão das “três raças tristes”, tomado de empréstimo ao Romantismo
(Wisnik, 1983, p. 24.) – presente tanto nos autores do I.H.G.S.P. quanto na
“historiografia modernista” de Retrato do Brasil, de Paulo Prado. Ademais, desvela-se o
sentido de resistência inscrito no embate cultural da colonização. “Fizemos cristo nascer
na Bahia. Ou em Belém do Pará”, da mesma forma, o indígena é arrancado de sua
condição passiva que a estruturação da narrativa do heroísmo bandeirante impunha – o
fato que tal passividade viesse escamoteada pela qualificação de sua ferocidade bravia,
só reforça o expediente discursivo de afirmar o atributo heróico do aprisionamento dos
indígenas – e restituído ao papel ativo de co-autor da história da nacionalidade.
Escapa aos propósitos do presente estudo a discussão da propriedade teórica das
proposições oswaldianas. Entretanto, à primeira vista, algumas delas, se levadas às
últimas conseqüências, parecem contradizer as bases de manutenção das prerrogativas
que definiam a condição social de seu próprio autor. Tratar-se-ia de uma visão do
mundo social que, refratada na lógica do campo literário, encontrava-se impossibilitada
115
de cogitar dos vínculos entre, por exemplo, a lavoura cafeeira, a propriedade privada e
patriarcalismo (aos quais o M.A. opunha o elogio ao comunismo e ao matriarcado
indígenas)? Ou, antes, essa mesma visão, ao tender para uma postura conciliadora das
disparidades sociais, e, portanto, mais apropriada à condição social de seu portador e de
seus pares, encontrava seu limite no fato de não conceber tais vinculações senão sob o
signo da conciliação. Em outros termos, se esta segunda alternativa for mais acertada,
seriam as próprias disparidades estruturais da sociedade brasileira na época, dentro das
quais a posição social de Oswald se constitui, distanciada em relação ao restante do
grosso da população, que induziriam o autor a cogitar tais “extravagâncias”
programáticas, sem que estas lhe aparecessem despropositadas do ponto de vista da
reprodução de sua condição social.
Entretanto, deve-se atentar que elementos característicos das proposições
oswaldianas, isto é, a idéia de uma refundação do país, da centralidade de São Paulo não
só nessa façanha como em toda a história brasileira, a conexão destes a uma estratégia
de hegemonia e a tensa aproximação com os elementos marginalizados – oscilando
entre a tendência à despolitização do elemento popular e a promoção de seu potencial de
subversão simbólica – são traços que, como vimos, estabeleciam correspondências com
os elementos que compunham a cultura e a prática políticas da elite dirigente paulista.
Assim, levando-se em consideração, por um lado, a correlação de forças no campo
literário da época, tanto no que se refere à rivalidade entre Rio e São Paulo, quanto às
dissensões internas ao próprio grupo modernista, e, por outro, sua imbricação com o
campo político, parece plausível que a tomada de posição levada a cabo pelos
manifestos, traduzam um nacionalismo que se configura, a um só tempo, por assim
dizer, à moda paulista e à la Oswald.
Essa versão oswaldiana do nacionalismo que circulava no começo do século em
São Paulo, presente tanto no campo político como no literário, aponta para as relações
internas à elite paulista, isto é, para os comprometimentos recíprocos e tensões que se
instauravam entre alguns elementos de suas frações política e intelectual. Miceli, assim
analisa a gênese de tais vinculações:
Na medida em que o recrutamento de pessoal político e intelectual não
extravasa o espaço da classe dirigente, pinçando seus quadros nas franja que
concentram os ramos destituídos, seria impensável que esses “parentes
pobres” aos quais se delegou o mando político e a autoridade intelectual
possam assumir iniciativas destinadas à extensão dos terrenos de negociação
116
e, portanto, à incorporação dos grupos excluídos, sem que instilem nesses
arranjos a marca de seus interesses (1979, p. 195.).
Entretanto, deve-se observar, com o próprio autor, que o peso desse mecanismo
de cooptação variava em função da posição ocupada no campo do poder pelos
pretendentes às respectivas carreiras, demarcada pela sua origem social e,
consequentemente, pelas possibilidades de acesso aos capitais requeridos para a
consecução de seus propósitos (ibidem, pp. 24-28.). Com efeito, se seu argumento é em
geral aplicável à conjuntura mais ampla de seu estudo (1920-1945), parece aplicar-se
com pertinência apenas em parte ao conjunto de escritores que compunham o grupo
modernista e, no interior deste, com menor pertinência ao caso Oswald de Andrade.
Ademais, se sua formulação permite compreender colaborações no nível institucional
dos partidos, da imprensa e órgãos do Estado, não estende completamente a
inteligibilidade ao caso das correspondências, tanto em termos de afinidades quanto de
contrastes, que apontamos entre as manifestações no campo literário, de um lado, e no
campo político, de outro.
No caso das afinidades entre Oswald e seus símiles do universo político,
portanto, parece-nos relevante apontar, como já sugerimos, o paralelismo existente entre
o itinerário trilhado pelo grupo modernista, e, em seu interior, a trajetória de Oswald, e
aquele percorrido pela elite política paulista. Em ambas os casos, as trajetórias
descrevem um movimento ascendente que parte de posições relativamente já
demarcadas, no momento de entrada de seus agentes na lógica de lutas de seus
respectivos campos, para a constante e progressiva abertura de posições até então
apenas latentes, e cuja ocupação permitiu a construção e exercício de uma hegemonia.
Isto é, a homologia identificável entre as trajetórias e as posições ocupadas, em seus
respectivos campos, pela elite política paulista e o grupo modernista, e no interior deste
a figura de Oswald, parece ser o fator social que amarrou mais firmemente o vínculo
entre ambos os grupos, e que ajudam a melhor compreender suas afinidades simbólicas.
Neste ponto, é importante que se considere que as disposições dos agentes são
constituídas pela experiência social configurada em função da origem e trajetória sociais
e atualizadas segundo as possibilidades inscritas nas posições que venham a ocupar em
um determinado campo, como aponta Bourdieu, o “habitus [consiste em] os sistemas de
disposições que, sendo produto de uma trajetória social e de uma posição no interior do
campo (etc.), encontram nessa posição uma oportunidade mais ou menos favorável de
atualizar-se (1996, p. 243. grifo do autor). Dada, segundo a formulação de Miceli há
117
pouco citada, a comunidade de origem e trajetória sociais entre os dois grupos em
questão e o fato de se poder observar homologias tanto em relação às lutas travadas no
interior de seus respectivos campos, quanto no que diz respeito às posições ocupadas no
interior de cada um deles, é inteiramente plausível supor entre eles certa similitude de
habitus, a atuar como fator responsável pelas afinidades apontadas em suas tomadas de
posição. Posto que entre as disposições do habitus encontram-se os esquemas de
percepção e apreciação ativados na composição dos objetos pertinentes à construção
simbólica do mundo social, é possível que se compreenda, assim, não só a recorrência
de traços simbólicos presentes tanto em Oswald quanto no imaginário bandeirante, mas
também a relação de compensação simbólica identificada entre o campo político e
literário quanto ao delicado problema de inclusão/exclusão das populações subalternas
e, enfim, a representação domesticada do popular que Oswald operou nos manifestos,
como a forma estética assumida pelo ajustamento entre as disposições perceptivas e
apreciativas de escritores e políticos:
A homologia entre o espaço dos produtores e o espaço dos consumidores,
isto é, entre o campo literário (etc.) e o campo do poder, funda o ajustamento
não intencional entre a oferta e a procura [de bens simbólicos]. [...]. Quando
uma obra “encontra”, como se diz, seu público, que a compreende e aprecia,
isso é quase sempre o resultado de uma coincidência, de um encontro entre
séries causais parcialmente independentes e quase nunca – e, em todo caso,
nunca inteiramente – o produto de uma busca consciente do ajustamento às
expectativas da clientela ou às sujeições da encomenda ou da demanda.
(Bourdieu, 1996, p. 282.).
Entretanto, falta compreender os pontos virtualmente subversivos que
apontamos na poética oswaldiana. Pontos que irrompem no interior desta homologia e –
cabe a pergunta – a despeito dela? Ou, por outra, justamente por ela? Um
encaminhamento da questão parece estar relacionado ao tratamento possível de ser
dispensado ao conceito de habitus. A par da dinâmica de constituição das disposições
subjetivas de percepção e apreciação do mundo social, como resultado da interiorização
das delimitações inscritas nas estruturas sociais objetivas, é necessário atentar para o
papel de mediação aí exercido pela experiência social concreta. Isto é, trata-se de atentar
para a dimensão corpo-a-corpo da vivência social que ajuda a compor a dinâmica de
subjetivação do objetivo e objetivação do subjetivo, para a mediação que se configura
no modo como as estruturas sociais se apresentam e são concretamente vivenciadas na
experiência social.
118
Deste ângulo, como vimos, a trajetória social de Oswald implicou o
equacionamento ambíguo de forças conflituosas de socialização, inscrevendo-se em um
campo de experiência cujos limites, entre grupos, ambientes e códigos sociais,
apresentavam-se continuamente deslocados e interpenetráveis, suscetíveis, portanto, de
colaborar para a constituição de disposições propensas à relativização dos imperativos
simbólicos sedimentados nos códigos estéticos e comportamentais hegemônicos. Tal
forma de problematizar a questão, permite-nos compreender os traços oswaldianos de
rebeldia estética não só como decorrentes das possibilidades inscritas estruturalmente no
campo literário, atreladas ao confronto entre grupos rivais em torno da ocupação das
posições hegemônicas no interior do mesmo, mas também como um vetor resultante dos
dilemas de uma subjetividade que se debate nos contornos socialmente definidos das
identidades literárias então vigentes.
Por outro lado, deve-se também considerar certos fatores da dinâmica interna da
fatura estética oswaldiana. O procedimento intertextual presente no modernismo de
Oswald, ao promover a incorporação do repertório cultural dos grupos populares, tendia
a situá-lo no ponto nevrálgico de enfrentamento simbólico-identitário entre os grupos
subalternos e os grupos socialmente hegemônicos. Assim, considerando a dimensão
sociológica da intertextualidade, e posto que à ordem social entre grupos corresponde a
ordem social da(s) linguagem(ns), a estética oswaldiana descreve uma linha de força
ambígua de estabilização/subversão da ordem sócio-cultural de cujos conflitos obtivera
grande parte das energias de suas propostas e realizações.
Em Piratininga
Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.
Oswald de Andrade, Manifesto Antropófago.
120
Capítulo III – A expedição Pau-Brasil: reatualizações do bandeirantismo
Depois de delineados os contornos dos campos sociais em que se inscreveram a
figura e a obra modernistas de Oswald de Andrade, cumpre apontar e discutir alguns
traços de sua poesia Pau-Brasil, que, em grande medida, foram plasmados em uma
espécie de conjunção com as linhas simbólicas que se tramavam no feixe de correlações
de forças que animavam e atravessavam tais universos.
Pode-se depreender, do que estamos salientando, que a auto-reputada
“descoberta do Brasil” pelos modernistas tomou a forma, em Oswald de Andrade, da
empreitada simbólica de uma reescritura do Brasil. Trata-se de um vetor poético que,
como apontamos, encontrava seu correlato político-simbólico na construção do
imaginário bandeirante então levado a efeito pela elite política paulista. Estas linhas de
forças, tecidas paralelamente nas dinâmicas do campo político e do campo literário,
encontrariam seu nó de conjunção simbólica no interior da estética modernista
oswaldiana, sobretudo no ponto demarcado pela construção de uma imagem
paulicêntrica do Brasil. Conjunção estético-política que, se demarca uma convergência,
não deixaria contudo de conter elementos de tensa divergência: ambuiguidade em
grande medida inscrita na própria inserção de Oswald nos códigos e padrões de seus
meios de origem, nos próprios materiais canalizados para o interior da elaboração
literária oswaldiana, situada no ponto conflituoso de enfrentamento simbólico entre os
grupos sociais populares e os grupos hegemônicos.
Assim, a estética de Oswald parece se constituir no trânsito entre a cultura
popular e erudita. Não apenas no sentido já costumeiramente apontado, dos referenciais
culturais que alimentaram o Modernismo, mas no sentido propriamente sociológico de
uma obra gestada por fatores objetivos e subjetivos delineados nos embates de forças
sociais que então se confrontavam, e que operava o deslocamento de umas sobre a
outras, simultaneamente afastando-se e aproximando-se, tanto dos repertórios culturais
dos grupos subalternos quanto do dos hegemônicos. Uma espécie de turismo poético,
empreendido entre esses universos culturais conflitantes, que encerrava a ambuiguidade
mesma do olhar do turista: em alguma medida vulnerável à potência desestabilizadora
das singularidades da paisagem social com qual se defronta, mas constantemente
tentado a neutralizá-la, mediante sua remissão às figuras do culturalmente familiar.
Aliás, a viagem, tanto existencial quanto simbólica, parece ter sido um veio
central para a configuração do Modernismo, tanto nas pesquisas estético-culturais
121
empreendidas no interior do país e na Europa, quanto em suas figurações sintáticas,
lexicais e temáticas, corporificadas nos heróis itinerantes de Macunaíma, Memórias
Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande
1
. Também aqui há certo
bandeirantismo no Modernismo: circunspeção do presente, conectada ao retrospecto de
uma revisitação de pontos estratégicos do passado, reedição dos primeiros viajantes
colonizadores e dos antepassados paulistas glorificados na nova mítica do presente.
A itinerância da bandeira modernista, movimento que se constitui e expande sua
zona de influência à medida que incorpora os traços dos territórios culturais sobre os
quais se desloca, traça o espaço simbólico em que habita a primeira poesia oswaldiana,
e a reveste do ímpeto de empreender a reescritura poética do Brasil. Isto é, a tendência
de reescritura do Brasil, já presente nos Manifestos, enformará, em grande medida, a
configuração do livro de poemas Pau-Brasil (1925), escrito no impulso de dar
realização estética às proposições do Manifesto homônimo, publicado em 1924, e já
contendo, em vários aspectos, os elementos que reapareceriam no subsequente
Manifesto Antropófago de 1928. Assim, o livro, verdadeiro caderno de bordo ou diário
de viagens, é composto por nove seções, entre as quais é possível divisar a tessitura de
um fio narrativo que se estende do momento do descobrimento ao de sua composição.
Um roteiro em cujo interior se assiste aos flashes das passagens, tensas e irregulares, da
condição colonial à independência, do rural ao urbano, do tradicional ao moderno, cujo
ponto de culminância encontra-se consubstanciado no tempo e espaço simbolizados,
uma vez mais, na São Paulo do século XX.
3 – A redescoberta do Brasil: primeiros movimentos
Desde sua dedicatória, Pau-Brasil deixa entrever as questões a que estamos nos
referindo: “A Blaise Cendrars, por ocasião da descoberta do Brasil”. É possível que a
elaboração de parte dos poemas tenha coincidido com a viagem que realizaram Oswald,
Tarsila, Mário, Paulo Prado e outros representantes do grupo de políticos, empresários e
letrados da elite paulista, na companhia de Cendrars, em 1924, pelas cidades históricas
1
Antônio Cândido identifica ainda um outro sentido em que a viagem aparece na obra oswaldiana. Em
Oswald Viajante, a respeito do Serafim, o crítico observa: “A prosa fluída e cintilante deste livro, a sua
estrutura instável, o movimento incessante dos personagens que entram e saem, das terras que surgem e
passam, mostram bem claramente a estética transitiva do viajante, que elabora a visão das coisas pela
composição divinatória dos fragmentos rapidamente apreendidos. Aí ele realiza o desejo de agitação para
libertar, ao explodir a rotina da vida do protagonista por meio da existência sem compromissos a bordo
dos navios que, pouco a pouco, vão saindo da realidade para entrar nos mares do sonho” (apud Chalmers,
1976, nota 106, p. 101).
122
mineiras. Turismo estético-cultural que, se funcionou para Cendrars como oportunidade
de travar contato com aspectos da cultura local, muito provavelmente, não o foi menos
para os próprios modernistas. Mas, além de apontar para as alianças literárias e as
cooperações no interior das mesmas, voltadas à absorção de elementos culturais a serem
ativados por estes escritores, a dedicatória delineia a reiteração da pretensão
refundacional da poética de Oswald, assim como salienta os deslocamentos por meio
dos quais funcionou.
Entretanto, não se trata apenas das idas e vindas entre o Brasil “bárbaro e
nosso”, do M.P.B., e a Europa vanguardista de Cendrars, ou entre o Brasil vanguardista
de São Paulo e o interior do Brasil exótico. A bandeira modernista de Oswald imprime
outras marchas, ainda nas manobras de abertura do livro. Um primeiro movimento, no
poema escapulário:
No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A Poesia
De Cada Dia (Andrade, 1966, p. 66).
O poema se instaura como apropriação “espúria” da matriz religiosa presente
tanto no “catolicismo oficial”, quanto na religiosidade popular. Entretanto, se o termo
parodiado, o Pai-Nosso, é comum a ambos, a lógica de sentido adotada parece mais
próxima da festividade popular do que da ortodoxia teológica. O pão (de-açucar) é
duplamente destituído de seu sentido de sacramentalidade católico-cristã, pois, a um só
tempo, é desviado da via de acesso para um “além-mundo” e desvinculado da
comunhão na cristandade como preceito para a redenção, e remetido à corporeidade
mundana da paisagem tropical e à prática, no “aqui - agora” do cotidiano, da poesia
diária. Assim, o poema funciona como uma espécie de sortilégio propiciatório em que
se evocam os universos culturais que presidirão a “expedição” Pau-Brasil. O que
ressalta também em relicário, poema incluído na seção Poemas da Colonização:
No baile da Corte
Foi o Conde d’Eu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha do Suruí
123
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É comê bebê pitá e caí (idem, p. 86)
.
A ambientação da cena potencializa o duplo sentido que ela encerra de relicário:
isto é, de lugar onde se guardam relíquias, circunscrito, aqui, como o ponto de encontro
entre o hegemônico e o subalterno, o erudito e popular, o antigo e o moderno; e de lugar
em que reside a riqueza cultural brasileira. Essa riqueza é, neste caso, vista por Oswald
como resultante da “invasão” do primeiro pelo segundo, “contaminando” sua práticas,
ressignificando suas condutas. Donde a nota humorística advinda do caráter inadvertido
do processo, em que o popular ironicamente confere forma e conteúdo à sociabilidade
de corte.
Esta manobra de escapulário e relicário se desdobra no segundo movimento de
abertura do livro, intitulado falação. Trata-se de uma transcrição, ligeiramente
modificada, de trechos do M.P.P.:
O Cabralismo. A civilização dos donatários. A Querência e a Exportação.
O Carnaval. O Sertão e a Favela. Pau-Brasil. Bárbaro e nosso.
[...].
Contra a fatalidade do primeiro branco aportado e dominando
diplomaticamente as selvas virgens. Citando Virgílio para os tupiniquins. O
bacharel.
[...]
Donde a nunca exportação de poesia. A poesia emaranhada na cultura. Nos
cipós das metrificações (idem, p. 68).
Eis aí demarcadas as linhas que servirão de impulso e parâmetro à perambulação
histórico-cultural do livro. Trata-se de capturar o impulso descobridor português, de
reavivar o cabralismo, mas, ao mesmo tempo, de colocá-lo a serviço, porém, da
redescoberta, ressignificando, justamente, suas dimensões nefastas de exploração e
pilhagem econômica e cultural, próprias de uma civilização de donatários. Busca-se
subverte-lhe o ímpeto evangelizador e mercante, desviando-o do nativo e redirecinando-
o contra a fatalidade branco aportado. Volta-se a colonização contra o colonizador,
instiui-se o redescobrimento como conquista bandeirante adentrando a selva do cipoal
emaranhado da cultura humanista e cristã da Europa quinhentista.
124
A restituição da “força poética nativa” não resulta, porém, da aniquilação do
colonizador pelo colonizado. Pois a deglutição antropofágica não se confunde com a
vingança destrutiva, antes pressupõe a integridade do “inimigo sacro”, para que melhor
se garanta o acesso a suas virtudes, as mesmas que serão remanejadas em um outro
contexto cultural, com outras finalidades (Gelado, 2006, nota 100, p. 187). De
escapulário à falação, assiste-se antes à interpenetração de ambos, com a ressalva de
que o primeiro submete-se à lógica do segundo: a cultura católica não como meio de
colonização das almas, mas agenciada para a prática festiva da poesia (como no Pai-
Nosso parodiado em escapulário), o cabralismo não mais como desconfiguração das
culturas conquistadas, mas como reapropriação cultural mediante a “pilhagem” da
cultura do conquistador, e de sua colonização mediante a exportação dos nossos
produtos culturais (imperativo sugerido por falação).
O exorcismo do colonizador no colonizado, operação simbólica dissidente no
interior do cosmopolitismo paulista, a que nos referimos anteriormente, implicou,
assim, não só o vínculo com a Europa, colonizador externo, mas também a
ressignificação da relação, por assim dizer, entre colonizadores e colonizados internos,
isto é, entre a cultura erudita hegemônica, o bacharel, e as culturas subalternas, o
nativo.
Mais uma vez, a estética oswaldiana insere-se no ponto nevrálgico dos conflitos
que o processo de diversificação sócio-cultural de São Paulo fazia irromper nos
embates entre universos simbólicos distintos. Se por vezes, como vimos, Oswald
equalizava esta relação, mediante uma filtragem reconciliadora de seus elementos
conflitivos, como uma espécie de ajustamento simbólico às disposições perceptivas da
subjetividade hegemônica dos temas e repertórios populares, fazendo a cultura erudita
deslizar suavemente sobre a popular, adentrando-a e a domesticando de dentro, por
outras, como nos trechos aqui citados, o autor assinala a cultura subalterna
adentrando as raias culturais hegemônicas, submetendo os termos desta à lógica
daquela. Desvio do bandeirantismo contra os próprios bandeirantes, na medida em que
o ímpeto de expansão, próprio à matriz simbólica bandeirante, é agora tematizado como
a marcha do repertório da cultural dos grupos subalternos sobre o território cultural dos
grupos hegemônicos: o catolicismo ressignificado em a poesia (como em escapulário);
as iguarias e práticas populares a elas ligadas, dando conteúdo à sociabilidade das elites
(como em relicário).
125
Não obstante, a economia simbólica da estética oswaldiana apresenta seus
contrapesos: o sertão e favela, embora positivados, ou justamente por isso, fazem as
vezes de adereços indispensáveis do carnaval pau-brasil, bolsões de reminiscência
coloniais a oferecer as doses de exotismo imprescindíveis ao carnaval do colonizador.
Assim, em alguma medida, a rota da expedição histórico-cultural de Pau-Brasil não se
encontra imune às derivas da subversão, por uma espécie de correção de erro de
português:
Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português (idem, p. 161).
2
O fato da resolução da historieta que compõe o poema prender-se a fatores
contingentes e extra-culturais, diante dos quais só cabe um irônico lamento, aponta, à
primeira vista, para um sentido de esvaziamento do conflito entre as culturas
confrontadas. Entretanto, são significativos a cenarização produzida, o momento
originário enquanto intercurso cultural, e a recriação sarcástica do desdobramento
inaugural da “raça”, sob o signo do equívoco civilizacional da nação portuguesa.
Desautorizam-se, a um só tempo, os brios aristocráticos da elite bandeirante e os
contornos heróicos que a matriz simbólica elaborada pelo I.H.G.S.P. lhe atribuía – visto
que o heroísmo da conquista, além de equivocado, é ridicularizado pela sua base
involuntária, cômica, decorrência do “mau tempo”.
Esse ângulo histórico presidirá a revisitação de textos da “história oficial”
brasileira, empreendida na primeira seção do livro.
3.1 – A des-autorização da descoberta
História do Brasil constitui uma série de poemas obtidos mediante a apropriação
de crônicas e relatos de viagem de europeus, que retratam aspectos variados da
2
Erro de português, embora escrito em 1925, ano da publicação de Pau-Brasil, seria publicado apenas
em 1945, em Poesias Reunidas O. Andrade, título em que o autor, ao que parece, parodiava o nome das
Indústrias Unidas Matarazzo.
126
realidade brasileira colonial. O procedimento paródico que preside sua composição
centra-se predominantemente na desmontagem e remontagem de trechos dos
“originais”. Algo como uma edição poética que elide “a lábia” do colonizador e dispõe
sua escrita de modo a produzir a versão oswaldiana do Brasil. Vejamos a subseção Pero
Vaz Caminha, composta por quatro breves poemas:
a descoberta
Seguimos nosso caminho por êste mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra
os selvagens
Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam pôr a mão
E depois a tomaram como espantados
primeiro chá
Depois de dançarem
Diogo Dias
Fêz o salto real
as meninas da gare
Eram três ou quatro môças bem môças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha (idem, p. 72).
Nos títulos antepostos aos recortes da carta reside grande parte da carga poética
da intervenção oswaldiana. De certo modo, Oswald des-autoriza o texto, duplamente.
Por um lado, a des-autorização decorre do efeito paródico de suspensão da intenção e
do sentido perseguidos por Caminha. Neste ponto, à finalidade imediatamente
127
informativa, dando notícia à Coroa da descoberta, entremeava-se sutilmente um
mecanismo simbólico de afirmação da cultura européia ante o desconhecido. Um
procedimento de exotização do alter mediante sua redução ao mesmo, aprisionando suas
singularidades, esquivas aos esquemas de classificação operantes no pensamento
europeu, nas categorias ainda medievais da bestialidade e do demoníaco (Souza, s/d.,
p.36). Na carta de Caminha, aliás, parece predominar o aspecto bestializante:
Os outros dois [nativos] que o Capitão teve nas naus, a que deu o que
disse, nunca mais aqui apareceram – do que tiro ser gente bestial, e de pouco
saber, e por isso são assim esquivos. Eles porém contudo andam muito bem
cuidados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que são como aves
ou animais monteses, aos quais faz o ar melhor pena e melhor pêlo de que às
mansas (Caminha, 2000, p. 59).
A paródia não só tensiona a autoridade de tais formulações, como, por outro
lado, a remontagem do texto desloca a idéia mesma da centralidade portuguesa na
autoria da descoberta. Isto é, em a descoberta, tanto a linearidade e o modo direto com
que se passa do caminho no mar para as aves, e das aves para a vista de terra, quanto a
supressão das referências do escrivão acerca de coordenadas espaciais e temporais,
mantida apenas a oitava da Páscoa, bem como das considerações da tripulação a
respeito das aves e outros indícios de proximidade de terra, resulta em uma narrativa
cujo fio condutor e desfecho independem da orientação que lhe pudesse imprimir os
propósitos colonizadores e evangelizadores de Portugal. Subtrai-se toda uma indexação
do desconhecido à cultura acumulada na experiência histórica da navegação portuguesa.
O efeito de subtração de historicidade produzido pelo poema, confere acentos míticos à
história oswaldiana. A descoberta é monumentalizada, fatalidade mítica dos momentos
originários e inaugurais. A versão oswaldiana do episódio, assim formulada, apresenta a
narração de Caminha como déficit narrativo, introduz, no próprio movimento narrativo,
uma defasagem entre o narrador, a narração e o narrado, como se este ocupasse o
primeiro plano da cena, e a centralidade da relação
3
.
3
Rinaldo de Fernandes, no texto Na floresta de Pero Vaz (disponível em
www.triplov.com/conto/rinaldo/pero_vaz.html
, acesso em 12/08/2009), em que resenha o livro de Mário
Chamie, Caminhos da Carta, observa que o crítico e poeta identifica no poema a descoberta um sentido
semelhante ao por nós apontado, porém, sua análise é encaminhada de modo diverso. Segundo o
resenhista, citando Chamie: "[...] o espaço e o tempo indígenas resgatados por Oswald-poeta [...] são o
128
Entretanto, trata-se de uma operação simbólica que não só esvazia poeticamente
a autoridade e a autoria do discurso e da ação do português. A cenarização mítica da
descoberta, e a sobreposição do narrado ao narrador e à narrativa têm seu
desdobramento necessário na sobreposição da descoberta ao descobridor. Os selvagens
tem um efeito ambíguo de duplicação do espanto. A cena do poema designa unicamente
que alguém se espanta diante do espanto de outrem. O sujeito indeterminado das
orações e a flexão impessoal dos verbos em terceira pessoa deixam em aberto a
ocupação dos lugares de agente e paciente da ação descrita. A hipótese de uma quebra
de hierarquia assim poeticamente ensaiada só é traída pelo significante galinha,
remissão à cultura européia, que constitui o eixo central em torno do qual as relações se
reorganizam, os lugares se realocam e a ambuiguidade instalada desde o título se
estabiliza. Contudo, resta intacta a introdução de um fator de desestabilização cultural: o
português, espantado diante do espanto indígena, já constitui, ainda que tênue, um
deparar da cultura européia com seus limites, uma estranheza produzida pela quebra das
expectativas de comportamento em relação a um objeto (galinha) que se supõe familiar.
A descoberta, assim, começa a tomar a forma poética de um processo de descobrimento
de quem se supõe descobridor. A História do Brasil miticamente reescrita, e inscrita,
em Pau-Brasil, inverte os termos da “história oficial” e insinua que o Novo Mundo,
como o chamavam os europeus, longe de ter sido descoberto, descobriu a Europa.
Essa perspectiva anima ainda os dois outros poemas “de” Pero Vaz Caminha.
Em primeiro chá, a ironia intensifica-se ainda com uma boa dose de sarcasmo. O título,
referindo-se a uma das práticas de sociabilidade “civilizada”, que ironicamente gira em
torno de um produto de origem exótica e colonial, traz a conotação originária de um
momento (primeiro) de inauguração dos expedientes de conciliação como resolução de
conflitos, tão presentes na formação da sociedade e cultura brasileiras, com os quais o
próprio Oswald teve que se haver, tanto poética quanto socialmente. O sarcasmo vai por
conta da comicidade contida em um dos tripulantes da frota real esmerar-se em passos
de danças reinóis. Ou seja, o cabralismo oswaldiano ambienta o primeiro chá, não na
primeira missa, forma ritual central na cultura européia, também narrada por Caminha,
mas na primeira dança, prática significativa na ritualística indígena. Instaura-se, assim,
oposto negativo de toda linearidade, de toda cronologia ou de toda geografia mensuráveis. [...] O subtítulo
aposto por Oswald - 'descoberta' - se absolutiza num ato puro de descobrir: - a 'descoberta', aqui, tanto
vale para o descobrimento da terra nova como também para qualquer outro descobrimento e revelação".
129
uma duplicidade de sentido na dominação, uma via de mão dupla no processo de
aculturação.
Contudo, é no ultimo dos poemas desta série que a poética pau-brasil institui
mais fortemente o português descoberto por sua própria descoberta. Assim como
primeiro chá, as meninas da gare carrega, como título, o movimento de instauração no
presente dos aspectos originários inaugurados na descoberta. Insinua-se que a
sensualidade erótica deflagrada no contato entre as culturas, tal como se deu com as
caravelas aportadas junto à praia, dava-se ainda na contemporaneidade de Oswald, com
os trens diariamente “aportados” nas estações, nas gares. Por um lado, negligencia-se a
assimetria de poder que perpassaria, historicamente, o intercurso sexual na dinâmica
social da colonização, reduzido poeticamente ao sensualismo visual da cena. Por outro,
entretanto, uma vez mais cenariza-se o abalo vacilante que a descoberta produziu sobre
as certezas e valores da cultura européia. A duplicação semântica, presente na Carta e
mantida pelo poema, entre as vergonhas, revestimento simbólico de sentido moral da
anatomia feminina, e a vergonha, sentimento moral da castidade cristã, delineia um
circuito que se fecha entre aquele que observa e enuncia e aqueles que são observados e
enunciados. No trânsito de um ao outro, reside um desvio de sentido: o que no
observado é enunciado em termos enviesados de reprovação, as vergonhas, converte-se
em cancelamento do automatismo da reação moralmente prescrita, isto é, a supressão da
vergonha. Se o cristianismo português equivocadamente vestiu o índio, a nudez
indígena despiu o português. Isto é, o poema opera ironicamente o desnudamento do
português, a descoberta o descobre de traços centrais de sua cultura.
É importante que se observe que este efeito é obtido mediante a intervenção do
corte oswaldiano. Em Caminha lê-se:
Ali andavam entre eles [outros nativos] três ou quatro moças, bem moças e
bem gentis, com cabelos muito pretos e comprido pelas espáduas, e sua
vergonhas tão altas e tão saradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as
nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha (idem, p. 39,
grifos nossos.).
Vê-se que o poema suprime justamente uma nota realística que o escrivão
confere à descrição do corpo das índias. Na Carta, a ausência da vergonha parece ligada
não à supressão do pudor da castidade cristã, a uma afirmação desembaraçada do
erotismo, mas à presença de uma outra estética corporal, em que o escrivão não
130
reconhecia as codificações do erótico, dadas, por assim dizer, na significação genital
convencionada em sua cultura de origem. Assim, o que no texto de Caminha pode ser
considerado resultado de certo estranhamento, em Oswald transmuta-se na positivação
do erótico como força cultural da inocência primitiva e do vigor caraíba, celebrado nos
Manifestos. Esse aspecto retoma o tema da nudez, presente nesses últimos, e inscreve-se
na operação oswaldiana de reabilitação dos aspectos que, em sua visão, eram
negativizados no discurso de supremacia cultural dos colonizadores. Oswald desdobra o
expediente de voltar, contra a Europa, os próprios termos da lógica de dominação
européia, a colonização volta-se contra o colonizador.
3.1.1. – Breve digressão sobre a nudez e a preguiça
Há que se reconhecer a particularidade de enfoque, presente na reivindicação
antropofágica de “reação contra o homem vestido”. Esse esboço de “filosofia do
homem nu”, mais radical, portanto, que uma “filosofia da nudez” – já que essa se presta
muito bem às elucubrações sejam da batina, sejam do jaleco branco da psiquiatria ou de
toda a indumentária inquisidora da “toga” psicanalítica – problematiza a questão da
produção cultural não a partir da busca de suas supostas fontes genuínas, ou através do
enfoque unilateral em um ou em outro dos elementos que compõe sua dinâmica.
Oswald toma o problema, por assim dizer, pelo meio. Como vimos anteriormente, no
M.A, “o que atrapalhava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior
e o mundo exterior” (Andrade, 1972, p. 227). Sugestiva “epistemologia” que centra
todo o seu problema na questão da relação. A roupa é signo das culturas “civilizadas”
em oposição à “nudez” das “primitivas”. Mas, mais do que isso, simboliza os códigos
culturais que, na visão antropofágica, constituem as interações entre o interior e o
exterior, pode-se dizer, as interações entre os “homens” e o “real” e, mais
profundamente, as interações dos homens entre si. Por mais dicotômica que possa
parecer esta visada, aparentando pressupor “homens”, previamente a quaisquer
subjetivações que os constituem enquanto tais nas interações, e “realidade”, fora
daquela cujos contornos se constroem no interior das simbolizações inscritas nas
mesmas, o fator da impermeabilidade apontada, desloca o foco do problema para a
natureza dos vínculos estabelecidos entre os elementos, e não nos elementos por si
mesmos. Isto é, esta “lógica relacional”, imprescindível à formulação antropofágica –
posto que a própria deglutição é uma modalidade de relação – parece apontar para a
131
assertiva de que não existe uma relação predeterminada pela “natureza prévia” dos
elementos que nela estão em jogo; longe disso, não há tal primado essencialista, sendo,
pelo contrário, a modalidade dos vínculos entre os elementos que os constituem
enquanto x ou y, isto é, em termos epistemológicos, enquanto sujeito e objeto, ou, social
e historicamente, colonizador e colonizado. Assim, na perspectiva antropofágica, a
modalidade do vínculo, sendo consubstanciada pela roupa, pela impermeabilidade,
corresponde a uma cultura cujos códigos de interação resultam na unilateralidade das
relações, no reducionismo ou estancamento das possíveis vias de intercâmbio, de
hibridização entre os grupos e as subjetividades, donde a tendência à compartimentação
da experiência entre termos estanques.
Portanto, a metafórica antropofágica pretende desnudar a cultura européia como
uma indumentária de unilateralidades, que vestiu sujeitos culturalmente subtraídos de
possibilidades subjetivas e identitárias. A roupa aparece assim como uma dinâmica
social de domesticação dos sujeitos, que os converte em objetos uns para os outros,
passíveis de domesticação uns pelos outros. A colonização, nesse sentido, aparece como
exportação da debilidade cultural européia, da tentativa de sobrepô-la ao vigor caraíba:
filosofia da nudez, cujo exercício é canalizar as interações unilateralmente, hierarquiza-
las, catequizar suas disposições. A que se contraporia a filosofia do homem nu:
devoração como desobstrução das trocas, multilateralidade de intercâmbios como
condição de vigor cultural, incessante contágio entre devorador e devorado.
Uma vez mais, essa perspectiva acerca da dinâmica cultural parece
extremamente imbuída da experiência social dos processos de transformação de São
Paulo, em que, como vimos, desestabilizavam-se as fronteiras simbólicas entre grupos e
universos sócio-culturais, desalocavam-se os lugares pré-estabelecidos, e, portanto, por
assim dizer, desmanchavam-se os trajes de marcadores de pertença que regiam as
gramáticas do social, dificultando a interiorização inequívoca das sintaxes hegemônicas
de interação.
Tais fatores parecem constituir o cerne das inversões e deslocamentos
simbólicos que viemos apontando na poética Pau-Brasil. Parece ser essa a perspectiva
da dinâmica cultural da intervenção oswaldiana na relação de poder inscrita na
colonização. Entretanto, se a visada antropofágica aponta para uma quebra das
hierarquias, com a deglutição dos termos culturais europeus pela apropriação e
recombinação, segundo uma lógica imanente a uma dinâmica cultural mais vigorosa –
porque desapegada dos unilateralismos entre divino e humano, espírito e corpo, virtude
132
e pecado, sujeito e objeto, alta e baixa cultura, etc. – e aberta aos processos sempre
inacabados dos contágios identitários e subjetivos, a conjunção de forças operada na
cenarização oswaldiana das origens parece ceder, ainda, a uma combinação binarizante.
Neste ponto, se a estética Pau-Brasil, como sugerimos, contesta a hegemonia européia,
é ainda sob a condição de manter o esqueleto de binarismo que erige sua dominação,
pois trata-se de uma inversão dos termos em uma mesma relação: a colonização contra
o colonizador. Esse recuo do “instinto antropofágico” compromete, por vezes, o próprio
ímpeto de desestabilização da oposição erudito-popular – isto é, do binarismo das
hierarquias entre colonizadores e colonizados internos – bem sucedido, como
apontamos acima, nos fios poéticos que se estendem, se amarram e se reforçam, entre
escapulário, relicário e falação.
Nesse sentido, o efeito subversivo da nudez, na paródia à Caminha, não deixa de
ser acompanhado do risco de novas estereotipagens dos códigos das culturas
subalternas. A positivação do erotismo como signo de vitalidade cultural, marcando
uma rejeição ao seu enquadramento colonialista na ordem da lassidão pecaminosa do
nativo (Cf.: Souza, s/d., p. 61), procedimento classificatório constitutivo de sua
bestialização e demonização, coadunava-se, contudo, e ainda que com o sinal trocado,
com as reduções bestializantes da cultura popular, tantas vezes enquadrada pelos
agentes da ordem social, através de um prisma composto pela conjunção entre o que se
tomava por traços raciais e traços sexuais (Cf.: Fausto, 2001, p. 67).
Tais considerações parecem válidas também para os poemas resultantes da
apropriação dos textos de Gandavo
4
. Observemos, na subseção homônima, os poemas
mais significativos, por exibirem mais ostensivamente os traços dos demais:
país do ouro
Todos têm remédio de vida
E nenhum pobre anda pelas portas
A mendigar como nestes reinos
riquezas naturais
Muitos metaes pepinos romans e figos
4
Pero de Magalhães Gandavo (? -1579), de nacionalidade portuguesa, residiu na Bahia como funcionário
da Coroa entre 1565 e 1570. Nosso “primeiro historiador”, é autor do Tratado da Província do Brasil e
do Tratado da Terra do Brasil, posteriormente reunidos na História da Província do Brasil.
133
De muitas castas
Cidras limões e laranjas
Uma infinidade
Muitas canas daçucre
Infinito algodam
Também há muito páo brasil
Nestas capitanias
festa da raça
Hu certo animal se acha também nestas partes
A que chamam Preguiça
Tem hua guedelha grande no toutiço
E se move com passos tam vagarosos
Que ainda que ande quinze dias aturado
Não vencera a distância de hu tiro de pedra (Andrade, 1996, p. 74).
País do ouro e riquezas naturais reiteram a enumeração elogiosa dos recursos da
terra, também presente nos demais poemas. Entretanto, os poemas otimizam o caráter
propagandístico que, como se sabe (Souza, s/d., p. 30) Gandavo imprimiu ao seu texto,
visando promover a povoação e exploração do Novo Mundo. A supressão da pontuação,
muitos metaes pepinos romans e figos”, “cidras limões”, além de estabelecer equidade
entre as finalidades da subsistência, modo de vida nativo, e as finalidades mercantis, um
dos motivos da empresa colonial, liberam a incomensurável exuberância e
prodigalidade da natureza, superlativada pela recorrência dos “muitos, muitas,
infinidade, infinito”, e pelo ritmo, que reserva versos separados para sua aparição. A
abundância eleva a vida colonial acima da vida metropolitana, relegada à mendicância.
Essa linha de sentido encontra seu ápice no último poema. O título festa da raça,
sorrateiramente anteposto a um trecho de descrição de aspectos da fauna que, por si,
excetuado o viés do exotismo e dos referenciais de mensuração de tempo e espaço,
poderia passar inconsequentemente, converte a escrita laudatória de Gandavo no
monumento inaugural do encontro apoteótico entre a prosperidade e a preguiça. A
convergência amigável entre ambas, sem excludências lógicas ou morais, subverte a
lógica de sacrifício do humano aos imperativos do econômico, subjacente à propaganda
de Gandavo da colonização, opondo-lhe o testemunho, face à mercancia portuguesa, da
submissão do econômico aos imperativos do humano. Portanto, preguiça não como
inação, morosidade ou passividade, como apareciam aos olhos mercantis e
134
evangelizadores os objetos a serem catequizados ou escravizados; tampouco como
sintoma de um déficit de humanidade, tal como os elementos das culturas nativas eram
delineados nas tramas classificatórias do colonizador, mas como potência de vida mais
atenta às suas possibilidades imanentes, cuja eminência torna desejável o compartilhar
de sua forças com o animal, diante da relevância da afirmação de uma forma de
humanidade, em princípio irredutível à lógica extrínseca e transcendental do humano
demandado para as glórias d’El Rey e do Papa.
É inegável a exuberância da beleza política que pulula na mítica de origem
modernista. Já o M.P.B. exultava ante a insubordinada deglutição da técnica, “obuses de
elevadores, cubos de arranha-céu e a sábia preguiça solar”, secundado pelo M.A. na
celebração da “idade de ouro anunciada pela América”. Impulsos de insubordinação
presentes também na exuberância de Macunaímica, que movem seu insolente e
preguiçoso filosofar. Recém chegado a São Paulo e embora desenvolto no novo
ambiente social, o herói desfia suas reflexões macunaímicas acerca de certa
perplexidade que a cidade lhe incutia:
Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só
maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a Máquina. A
Máquina era que matava os homens porém os homens é que mandavam na
Máquina... Constatou pasmo que os filhos da mandioca eram donos sem
mistério e sem foa da máquina sem mistério sem querer sem fastio, incapaz
de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma
noite, suspenso no terraço de um arranha-céu com os manos, Macunaíma
concluiu:
– Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nesta
luta. Há empate.
Não concluiu mais nada porque inda não estava acostumado com discursos
porém palpitava pra ele muito embrulhadamente muito! que a máquina devia
ser um deus de que os homens não eram verdadeiramente donos só porque
não tinham feito dela uma Iara explicável mas apenas uma realidade do
mundo. De toda essa embrulhada o pensamento dele sacou bem clarinha uma
luz: Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens.
Macunaíma deu uma grande gargalhada. Percebeu que estava livre outra vez
e teve uma satisfa mãe. Virou Jiguê na máquina telefone, ligou pros cabarés
encomendando lagosta e francesas (Andrade, 2008, pp. 43-44).
135
A máquina aparece como a reatualização da batina e do açoite. Isto é, como
reedição das unilateralidades que estreitam as possibilidades sempre em aberto da nudez
e da preguiça. Uma modalidade de vínculo em que a processualidade se ossifica em
estado estacionário, empate indefinidamente prolongado. Como que substancializada e
divinizada em Máquina, com maiúsculas, aponta para uma dinâmica cultural distante
daquela evocada pela Antropofagia, em que “sabíamos transpor o mistério e a morte
com o auxílio de algumas formas gramaticais” (Andrade, 1972, p. 229). Máquina sem
mistérios, subtraída, portanto, à experimentação da gramática do social e da sintaxe das
interações a que a fluidez e indefinição do mistério expõe: é a cultura dos sujeitos
reduzidos a objetos, do esvaziamento, das virtualidades subjetivas daqueles, na
objetividade “inequivocadamente dada” destes. Não mais uma Iara, que as
simbolizações da linhagem produzem e explicam, mas mera realidade do mundo,
aparentemente inelutável, dado que correlata e simultaneamente constituída pelos
mesmos processos de unilateralização que operam nas subjetividades. Não à toa,
quando Macunaíma deixa São Paulo, depois de ter deglutido os discursos com que não
estava acostumado, e, assim, excusando-se das maquinações anteriores, “fez um
caborge: sacudiu os braços no ar e virou a taba gigante num bicho preguiça todinho de
pedra” (idem, p. 145, grifos nossos.): própria imagem da vitalidade calcificada pelas
escleroses da “civilização”.
Assim, a busca das origens, elemento constitutivo, como vimos, da lógica
simbólica da matriz bandeirante, é mais uma vez reativada pela poética Pau-Brasil.
Entretanto, o cabralismo de Oswald procede como um extrativismo simbólico,
escavando os estratos textuais sedimentados sobre aqueles que considera serem os
momentos inaugurais da nacionalidade, no garimpo de aspectos que, em sua ótica,
devem ser presentificados em nome de uma cultura mais autêntica e vigorosa, em
muitos pontos contrária à hegemonia da cultura européia. Basta observar que a luxuria,
como modo privilegiado de tematização da nudez, e a preguiça, tematizada como
lassidão e inépcia de organização social, são os pontos nodais da argumentação
melancólica construída em Retrato do Brasil, por Paulo Prado, exímio leitor das cartas
jesuíticas e dos autos de visitação do Santo Ofício no Brasil, acerca das dimensões
“inviáveis” da “civilização brasileira” (Cf.:Souza, s/d., p. 61).
Entretanto, como apontamos na caso da nudez, também a construção simbólica
da preguiça paga sua parcela de tributo para com a ordem sócio-simbólica instituída. O
elogio ao potencial criativo da vida ociosa parecia mesmo uma dimensão discursiva
136
mudamente inscrita nas assimetrias de uma hierarquia social que recodificava muito da
herança ainda recente da colonização, destinando as possibilidades do tempo livre a
uma parcela socialmente restrita da população. Esse aspecto constituía o elemento
sociológico da oposição entre alta e baixa cultura, simbolizado nas mãos livres do
bacharel, ocupadas pelo anel como signo de erudição, em oposição às mãos calejadas
dos elementos populares, signo da rudimentaridade de sua cultura predominantemente
manual e oral. Isto é, “a base dupla e presente – a floresta e a escola”, guardava
potencialidades civilizacionais e culturais alternativas aos padrões europeus, mas vinha
de par a um processo social altamente seletivo, no que respeita aos grupos que estavam
em condições de ter acesso aos ganhos da modernidade, de maneira a conjuga-los e
enriquecê-los com os elementos locais. Em outras palavras, muito da poética Pau-Brasil
consiste na estetização de uma sociedade em que grande parte dos fluxos modernizantes
eram, à época, agenciados em larga medida pela fragilidade de um sistema agro-
exportador de matérias-primas, calcado no latifúndio e tributário da reprodução de
relações altamente desiguais, nos planos sócio-econômico, político e cultural.
Essas considerações sobre a produção social do ócio, modalidade social e
culturalmente dada da preguiça oswaldiana, nos levam a interrogar a ausência da
representação da escravidão, seu contrário complementar, na mítica das origens de Pau-
Brasil.
3.1.2 – A África não cabe no Brasil?
É interessante observar que, entre os movimentos de supressão-potencialização
semântica dos excertos de textos parodiados em Pau-Brasil, ocorre, na subseção
Gandavo, o descarte de uma passagem que ocupava lugar central na estratégia de
propaganda do cronista português. Trata-se do fato de que, no Brasil, o colono poderia
gozar da liberação da faina, sem prejuízo de seu sustento e da possibilidade de
enriquecimento. Em sua História da Província Santa Cruz (1576), pouco antes das
observações elogiosas apropriadas por Oswald, em país do ouro, Gandavo apontava a
vantagem suprema da lide colonial:
Os mais moradores que por estás Capitanias estão espalhados, ou quase
todos, tem suas terras de sesmarias dadas e repartidas pelos capitães e
governadores da terra. E a primeira cousa que pretendem adquirir, são
137
escravos para nellas lhes fazerem suas fazendas e si huma pessoa chega na
terra a alcançar dous pares, ou meia dúzia delles (ainda que outra cousa nam
tenha de seu) logo tem remédio para poder honradamente sustentar sua
família: porque hum lhe pesca e o outro lhe caça, os outros lhe cultivão e
grangeão suas roças e desta maneira nam fazem os homens despesas em
mantimentos com seus escravos nem com suas pessoas. Pois daqui se pode
inferir quanto mais serão acrescentadas as fazendas daquelles que teverem
duzentos, trezentos escravos, como há muitos moradores na terra que nam
tem menos dessa contia, e dahi pera cima.
Estes moradores todos pela maior parte se tratão muito bem, e folguam de
ajudar uns aos outros com seus escravos, e favorecem muito aos pobres que
começão a viver na terra. Isto geralmente se costuma nestas partes, e fazem
outras muitas obras pias, por onde todos tem remédio de vida, e nenhum
pobre anda pelas portas a mendiguar como nestes Reinos. (Gandavo, 1576).
As inconveniências simbólicas são claras. Não editasse esta passagem, a
preguiça Pau-Brasil seria relativizada e perderia muito de sua força. Mas, em um nível
menos imediato, a ausência aponta para a presença de uma dificuldade de formalização
da mítica oswaldiana das origens. A forma historicamente predominante do trabalho
escravo atrelaria irrevogavelmente a tematização da escravidão à esmagadora presença
do negro africano. Se a centralidade dada à figura do índio é compreensível pelo fato da
Antropofagia nutrir-se da ressignificação de uma prática ritual indígena, a ausência do
africano parece, em uma primeira aproximação, ligada à dificuldade formal de se
resolver a cenarização da origem sob o signo do confronto cultural. Como vimos, não
obstante a multiplicidade dos contágios e confrontos serem vitais à perspectiva
antropofágica da dinâmica cultural, o ímpeto de inversão hierárquica próprio ao
cabralismo de Pau-Brasil recaía na binaridade colonizado contra colonizador. É certo
que a presença negra poderia muito bem fazer companhia à indígena, insurgindo-se com
ela no primeiro pólo. Tal modo de resolver a triangulação, achatando o triângulo à
bipolaridade da reta, redundaria, porém, na liquefação do viço conflitivo que a
bifrontalidade inequívoca índio-português pretende explicitar no contato originário. Isto
é, a construção da origem como confronto, e deste como deglutição, vincula devorador
(índio) e devorado (português) em uma solidariedade tão simbolicamente inextrincável
que subtrai à presença africana sua organicidade na estruturação da cena.
Sabe-se, como aponta Fabris, que teorias positivistas de teor racialista
informavam a visão dos modernistas sobre a sociedade, a cultura e a história. Em sua
138
exaltação do progresso de São Paulo, por exemplo, estes escritores baseavam-se “no
tripé tainiano raça-momento-meio”, para dele derivar a reivindicação do papel de
liderança supostamente exercida pelos paulistas na cultura nacional (Fabris, 1994, p. 4).
Contudo, reforçando a atuação destes fatores, havia certa dinâmica social que
compunha os critérios que regiam estes princípios composicionais da cena de origem.
Há que se observar, neste ponto, as correlações simbólicas com a matriz bandeirante.
Pois, como vimos, havia conveniências racialistas em se estabelecer o bandeirante como
padrão ético-racial do paulista. O próprio modelo identitário a que tal ancestralidade
serviria como referência, o do paulista advindo da mescla heroicamente constituída pela
submissão do indígena ao europeu, seria reatualizado pelos modernistas na exaltação
oswaldiana do “povo de mil origens, arribado em mil barcos”, lapidarmente
consubstancializada no aprisionamento simbólico do processo de diversificação étnico-
social, expresso na fórmula dos “novos mamelucos”, aos quais Alcântara Machado
dedicava seu Brás, Bexiga e Barra Funda. Dado, por um lado, que a colonização
vinculou indelevelmente o trabalho escravo às populações negras africanas e afro-
descendentes e, por outro, que o branqueamento do paulista fora simbolicamente
operado pela matriz bandeirante, e sonhado em face da imigração européia, é
compreensível que a mítica oswaldiana das origens tenha deixado de fora da
cenarização “a terceira raça”. Isto é, não só o apelo simbólico da preguiça era
neutralizado pela escravidão, não só a explicitação do confronto era mais contundente
na presença binária do indígena, devorador, e do português, devorado, como também, e
principalmente, a matriz simbólica bandeirante, com a qual Pau-Brasil compartilha a
mítica da origem, parece ter atuado como princípio propriamente sociológico a reger os
princípios simbólicos de composição da cena inaugural oswaldiana.
Assim, a inserção da poética pau-brasil na simbologia bandeirante, dera-se tanto
pela via da recomposição de suas forças contra o próprio bandeirantismo, como
também mediante uma composição reconciliadora com as mesmas. Na questão em
análise, é plausível que esta inserção marcada pela ambuiguidade tenha agenciado as
linhas de força que tanto circunscreveram a figura do indígena, como depositária do
universo cultural a ser ressignificado na antropofagia, quanto, simultaneamente,
baniram a presença do negro africano, relegando sua possibilidade estética à condição
de um ponto flutuante, simbolicamente não vinculável às tramas da cena fundacional,
“expurgando”, assim, os elementos que poderiam “manchar” indelevelmente de negro
as origens heróicas do Brasil.
139
Em Pau-Brasil, a presença do negro passa a ser tematizada a partir da segunda
seção do livro, como veremos adiante. Entretanto, o tema das origens do Brasil será
revisitado no livro posterior, Primeiro caderno de poesia do aluno Oswald de Andrade
(1927). No poema intitulado brasil, efetua-se novamente a cenarização do momento
inaugural da nação, desta vez aberta à “intromissão” do africano. O tratamento poético
dispensado à sua presença realiza-se mediante uma sugestiva partilha das respectivas
contribuições que cada uma das “três raças” forneceu à nacionalidade.
brasil
O Zé Pereira chegou de caravela
E perguntou pro guarani da mata virgem
– Sois cristão?
– Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teterê tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
– Sim pela graça de Deus
Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum!
E fizeram o Carnaval (Andrade, 1966, pp. 153-154).
A presença portuguesa é de antemão desqualificada pela supressão de qualquer
pretensão de nobreza, mediante a substituição da linguagem protocolar dos títulos
nobiliárquicos pelo coloquialismo, sumário, prosaico e genérico do “Zé Pereira”. A
oposição entre “caravela” e “mata virgem”, circunscreve uma espécie de moldura
cultural, cujo interior está a serviço da edificação da bravura e destemor indígenas. A
altivez do nativo se verticaliza à medida que simultaneamente achata a performance do
português, movimento explicitado no diálogo travado entre ambos, em que o primeiro
opõe, aberta e conflitivamente, ao atributo “cristão”, os atributos que realçam a
vitalidade indígena e, pela negativa, rebaixam a civilização européia, secundados pelas
marcas lingüísticas que afirmam a irredutibilidade de sua diferença. O cenário de
conflito se arma, marcado pela sugestão de um certo grau de incomunicabilidade,
reforçada pelo uivo da onça, designação temerosa da ferocidade dos habitantes da “mata
virgem”, que, entretanto, funciona como intermezzo para o desenlace seguinte. Esse é
deflagrado pela aparição do negro. As marcas qualitativas, que até então se inscrevem
140
num eixo passionalizado, bipolarizado entre a exuberância da coragem indígena e a
subserviência irrisória do português, deslocam-se para um eixo de significância
intelectual, sumária, mas fortemente marcada pela zonzeira do negro. Zonzeira
decorrente da faina excessiva e escaldante? Mesmo que se admita essa nota de
“denúncia”, o papel simbólico desempenhado pela zonzeira parece ser,
predominantemente, o de uma disposição vacilante, que desavisadamente toma a
palavra, rompe o tenso silêncio instaurado pelos resmungos amedrontadores do animal
selvagem, solidários ao índio, e reconduz o conflito para uma atitude de subserviência
agradecida que lembra e reitera a do português. Mesmo a diferença lingüística, que em
relação ao índio é abordada sob o signo da insubordinação, na abordagem do negro é
elemento anteposto à festividade da reconciliação. Assim, a presença do negro se
introduz, subitamente, como um elemento de resolução do conflito e restauração da
comunicabilidade. As coisas se passam como se, ao erro civilizacional do português,
viesse se acrescentar o erro do negro, cuja disposição, privada de sentidos, zonza,
contemporiza o conflito anteriormente deflagrado pela insubordinação nativa. A
maneira em que são distribuídas as respectivas contribuições nesta cena das origens,
deixa entrever a elaboração do precedente de construções simbólicas atuais, que
reaparecem nas mitificações da nacionalidade em torno do samba, futebol e carnaval.
Se no poema de 1928 a presença da escravidão africana é canalizada para a festa
socialmente reconciliadora, ainda na primeira seção de Pau-Brasil, o tema aparece
apenas sugerido, subsumido no tema do trabalho:
vício na fala
Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados (idem, p. 80).
Uma vez mais, as marcas lingüísticas introduzem a diferença cultural. O poema
efetua o contraste direto entre a norma culta da língua e a oralidade popular. Chega-se
mesmo a suspender a hierarquia sócio-cultural entre ambos os universos, visto que o
contraste procede pelo estabelecimento de equivalências entre os termos de um e de
141
outro. Entretanto, a dissolução poética da verticalidade das hierarquias sociais, sugerida
na horizontalização das simbólicas, é neutralizada pelo último verso, em que o desvio
da norma sócio-linguística é reassimilado à ordem estabelecida, mediante sua
recondução à regularidade do trabalho, encarnada na normatividade dos telhados,
permanecendo inquestionadas as assimetrias das relações sociais.
Festa e trabalho, alegria e vigor físico consubstancializados no suor de ambos,
poetizados como práticas cujas lógicas se complementam, em um movimento que
converge para reconciliação com a ordem social: eis o quinhão que coube à contribuição
africana às origens da nacionalidade, no interior da economia poética de Pau-Brasil.
3.1.3 – Últimos movimentos
Os demais poemas da seção História do Brasil, agrupados nas subseções O
Capuchinho Claude D’Abbeville, Frei Vicente do Salvador e Frei Manoel Calado,
reiteram os aspectos, já apontados, da prodigalidade da natureza, da nudez nativa, da
exuberância das mulheres e das riquezas coloniais. Excetuam-se, nesse sentido, as
subseções Fernão Dias Paes e Príncipe Dom Pedro, cada uma composta por um único
poema. Na primeira delas, encontra-se carta, em que o bandeirante comunica às
autoridades coloniais, provavelmente aos notáveis da câmara de São Paulo, ou às
autoridades metropolitanas, a iminência de uma nova expedição:
Partirei
Com quarenta homens brancos afora eu
E meu filho
E quatro tropas de mossos meus
Gente escoteyra com pólvora e chumbo
Vossa senhoria
Deve considerar que este descobrimento
É de maior consideração
Em rasam do muyto rendimento
E também esmeraldas (idem, p. 78).
É interessante notar os contrastes e semelhanças com o Caçador de Esmeraldas,
de Olavo Bilac (ver capítulo segundo, página 90). Em Pau-Brasil, desaparecem
142
quaisquer resquícios moralizantes de reprovação à cobiça bandeirante, com que Bilac
dramatiza a cena da morte do personagem de seu poema, também protagonizado por
Fernão Dias Paes. Em contrapartida, o tom edificante de glorificação, predominante no
poema do parnasiano, reina absoluto no modernista. A extensão da coragem e da
audácia das bandeiras, bem como a designação de quem as porta como atributos,
delineia-se na grandeza de escala do empreendimento, composto por “quarenta homens
brancos” e mais as “quatro tropas de mossos”; manifesta-se também na prontidão
destemida da gente aventureira, cuja força não se verga sob o peso do potencial bélico
da pólvora e do chumbo. Virilidade, força e destemor em larga escala: pintam-se com
exatidão os elementos da épica bandeirante, de forma proporcional à grandeza da
missão de que esta se incumbira.
Importa observar que os procedimentos paródicos acionados neste poema
coincidem com os dispensados nas apropriações de Caminha e Gandavo. As supressões
das referências espaço-temporais, protocolares no gênero epistolar, sobretudo em
circunstâncias oficiosas, assim como as ponderações acerca da necessidade de provisões
militares, resultam, em parte, da dinâmica própria à linguagem poética. Porém, de outra
parte, não se pode deixar de notar, no caso específico, à semelhança do que apontamos
em relação à paródia de Caminha, a particularidade de seus efeitos de
monumentalização, de “des-historização” das bandeiras, como forma de mitificação de
sua história. Assim, o mesmo movimento poético que virava, correlatamente, a
colonização contra o colonizador, o cabralismo contra Cabral e o bandeirismo contra os
bandeirantes, transita, no poema em questão, em direção simetricamente inversa. Nas
forças histórico-sociais agenciadas poeticamente na cenarização das origens em Pau-
Brasil, o único poema que tematiza a ação colonizadora de “nacionais”, faz isso
“selecionando” para sua composição a figura e a fala do bandeirante paulista, mediante
uma apropriação que os potencializa e erige o bandeirantismo em vetor central da
construção da nacionalidade: bandeirismo paulicêntrico.
Na última subseção, as origens avançam até aos preparativos da Independência:
carta ao patriarca
Tendo pensamentado tôda a noite
Assentei passar revista aos Granadeiros
Assim se os enxergar esta tarde pelo Rossio
Não assente ver Bernarda
143
Encumbi ao Miquilina
E ao Major do Regimento dos Pardos
Para virem me dar parte
De tudo que se disser pelos Botequins
Estimarei que approve esta medida
E assento que melhores
E mais fiéis a adherentes à causa do Brasil
Do que os pardos meus amigos
Ninguém (idem, p. 81).
O pendor oswaldiano para o pitoresco, como elemento a ser posto a serviço da
paródia, parece ter atuado na apropriação dos trechos que versam sobre os expedientes
políticos característicos da “sociedade de corte”: toda uma “política de bastidores” e “de
alcova”, percorrendo os meandros dos boatos, dos encontros amorosos e das
escapadelas conjugais. Se com isso a paródia dissolve parte da aura majestática de Dom
Pedro, figura aliás negligenciada, como vimos, pela historiografia do I.H.G.S.P., não
deixa também de ressoar com os expedientes clientelísticos e personalistas que a
República de bom grado herdou do Império e que continuavam a reger a dinâmica do
poder político oficial. Entretanto, o quinteto de versos que fecha o poema desloca a
ironia do plano da política palaciana para o da dinâmica social de poder, que lhe dá
sustentação. Nesse passo, o poema põe em relevo a mestiçagem como discurso que
confere consistência simbólica ao mito homogeneizador da nação e que anima a
verticalidade hierárquica sobre a qual assentam o trono e a coroa imperiais. É
interessante notar que, no esforço de caricaturizar o Império, a poética Pau-Brasil acaba
por lhe imputar algo que trazia fortemente marcado em sua própria dinâmica interna,
isto é, a tendência a converter, como vimos, os pontos potencialmente conflitivos entre
a ordem hegemônica e os grupos populares, em motivos que festiva e afetivamente
celebram a reconciliação.
Avançando as origens até a Independência, na próxima seção a expedição
cabralista retrocede e envereda por perambulações coloniais.
3.2 – Intermezzo colonial
144
Poemas da Colonização enfoca o cotidiano rural da vida colonial. Os poemas
consistem em cenas narradas ou descritas e, em sua maioria, pintam um retrato agudo da
dinâmica entre senhores, senhoras, escravos e escravas. O poema de abertura já diz
muito a respeito dos demais e estabelece os parâmetros e a função que desempenham
no itinerário da viagem Pau-Brasil que percorre o livro:
a transação
O fazendeiro criara filhos
Escravos escravas
No terreiro de pitangas e jabuticabas
Mas um dia trocou
O ouro da carne preta e musculosa
As gabirobas e os coqueiros
Os monjolos e os bois
Por terras imaginárias
Onde nasceria a lavoura verde do café (idem, p. 84).
O poema funciona como um corte que atravessa a cotidianidade colonial. De
certa forma, mantém e potencializa a chave semântica que perpassa o registro dos
cronistas parodiados na seção anterior. Pois natureza e humanidade fundem-se em uma
mesma materialidade discursiva, capturadas sob uma mesma superfície sensual de
sentido. A prole, “pitangas” e “jabuticabas” proliferam no mesmo movimento, rebentam
e pululam em um mesmo terreiro. Rebentos vegetais ou humanos, brotam do mesmo
impulso de prodigalidade da natureza tropical, que indiferencia filhos e escravos, iguala
a fecundação da terra à semeadura dos ventres e no fim se convertem em riqueza para o
fazendeiro: transbordam em sua mesa uns, em sua cama e senzala outros, submetem-se
ao seu mando todos.
A força niveladora que preside a este impulso de brutalidade vital, que se
sobrepõe, enquanto linha de força organizadora do poema, a plausíveis alusões ao
terreiro como um espaço de convívio social “igualitário” entre filhos brancos legítimos
e negros bastardos, criados no alcance a uma mesma natureza pródiga, se faz presente
também na equalização indiferenciada entre os termos da ruralidade colonial que entram
na “troca” tematizada no poema. “Monjolos”, “bois”, “gabirobas” e “coqueiros”, o
técnico, o animal, o vegetal, são arrancados de tais grades classificatórias, agrupam-se
organicamente numa síntese precisa da paisagem, cujo grau mais alto de fusão se dá na
145
antítese estilística do “ouro da carne preta e musculosa”: corpo mineral e minério
encarnado, riqueza sexualizada e sexualidade capitalizada, dimensões complementares
do escravo como bem de capital, instrumento de produção, instrumento erótico. O
“automatismo” com que se transita de um termo a outro, igualmente impulsiona a
passagem que se inscreve na transação, que do universo colonial salta diretamente,
como num ato de imaginação, à “civilização do café”, da rudeza muscular do “ouro
negro” à leveza vegetal do “ouro verde”. A efetivação das “terras imaginárias”, prende-
se a sua plenificação pelo café, o conteúdo não só independe e precede o continente, é
sua condição prévia, fecundante. O elemento visionário da expansão bandeirante elege
como telos da colonização a principal fonte de riqueza do período republicano.
Relevo dispensado à materialidade bruta das cenas, como modo predominante de
figurar e compor o cotidiano enfocado e sua alocação como um momento de passagem
para o presente republicano de Oswald, cuja amenidade contrasta com o passado
colonial, eis as linhas que parecem alinhavar os poemas dessa seção entre si, e esta
seção com a seguinte.
Nas tramas do cotidiano tecidas pelos poemas, a materialidade da figuração
adequa-se à truculência das relações:
fazenda antiga
O Narciso marceneiro
Que sabia fazer moinhos e mesas
E mais o Casimiro da cozinha
Que aprendera no Rio
E o Ambrósio que atacou Seu Juca de faca
E suicidou-se
As dezenove pretinhas grávidas
negro fugido
O Jerônimo estava numa outra fazenda
Socando pilão na cozinha
Entraram
Grudaram nele
O pilão tombou
Ele tropeçou
E caiu
146
Montaram nele (ibdem).
O modo linear em que se dá o deslizamento do enfoque, percorrendo desde as
lides banais da marcenaria e da cozinha até a explosão homicida e o desespero do
suicídio, diretamente dispostos pelas partículas de adição “e”, cuja consumação fatal
situa lado a lado a morte de um membro da família extensa do senhor à multiplicação da
vida encarnada nas dezenove pretinhas grávidas, delineia uma cotidianidade cujas
tramas se tecem na banalização da violência; esta é a prática que dá liga à banalidade da
vida na colônia. A imagem dos ventres prenhes perpassa toda a espessura do poema
seguinte, sua conjunção com a truculência anônima do “entraram”, “grudaram” e
montaram”, consubstancia um mundo cujas relações bestializa mandantes e
mandatários, em que arbitrariedade social, exploração econômica e opressão sexual
solidarizam-se perversamente, se retroalimentam e fazem girar a roda da escravidão.
Tal cenário dá ensejo para que a expedição Pau-Brasil percorra o repertório de
casos em que a oralidade popular reelabora este universo de perversidades:
medo da senhora
A escrava pegou a filhinha nascida
Nas costas
E se atirou na Paraíba
Para que a criança não fosse judiada (idem, p. 86).
A alusão ao rio vincula a água, signo da purificação e da vida, à morte, como
meio mais imediato de se furtar aos desmandos do cativeiro. Ao caso da escrava, que
bem poderia contar entre as dezenove pretinhas do poema acima, se junta a cena em que
o anedotário popular (o verbo contam) sugere uma imagética entre gótica e surrealista:
levante
Contam que houve uma porção de enforcados
E as caveiras espetadas nos postes
Da fazenda desabitada
Miavam de noite
No vento do mato (ibdem).
147
A vingança não fica restrita às forças anímicas que sopram da mata e assombram
a fazenda, aflora também nas práticas culturais em que os grupos subalternos
reelaboravam suas identidades, religavam ritualisticamente seus laços internos de
solidariedade, afrouxados pelo desterro, e convertiam a perversidade de sua inserção
social em pontos de resistência à ordem que os subjugava:
o capoeira
– Qué apanha sordado?
– O quê?
– Qué apanha?
Pernas e cabeças na calçada (idem, pp. 85-86).
O ódio social que se instala entre elementos igualmente submetidos a uma
condição de subalternização, com a importante disparidade, que reforça a indisposição
entre ambos, de que um deles está a serviço das posições hegemônicas, é congênito à
incomunicabilidade que se interpõe entre os personagens da cena, e que prepondera em
uma sociedade plasmada pela violência, a um tempo produtora e produto de
ressentimento e de disposições que tendem a reivindicar algo como um reconhecimento,
incessantemente esvaziado pela dinâmica social, pelas mesmas vias da truculência em
que esta última opera. Assim, o poema esboça rudimentos para uma sociologia do
“valentão”, figura cujos estereótipos, entretanto, parecem corroborar, dado o
procedimento elíptico da cena, a contundência da “denúncia social”; elide também
possíveis nexos entre os diálogos e as personagens, cuja ausência pode resvalar para o
diagnóstico do “voluntarismo bestial” e para a “agressividade gratuita”.
Entretanto, tomado em conjunto com os demais, o poema prepara o caminho
para o desenlace dos expedientes que recapturam os rebeldes e os reintroduzem na
“ordem”:
a roça
Os cem negros da fazenda
Comiam feijão e angu
Abóbora chicória e cambuquira
Pegavam uma roda de carro
Nos braço (idem, p. 86).
148
azorrague
– Chega! Peredoa!
Amarrados na escada
A chibata preparava os cortes
Para a salmoura (ibidem).
A leveza frugal da dieta do escravo contrasta, intensificando-a, com a força
física, cuja potência é materializada no peso da roda de carro que, ligando-se e
conferindo conteúdo ao gesto, empresta à cena uma robustez digna dos quadros de um
Portinari, com sua plástica das mãos e pés agigantados, grosseiros e calejados, de feição
mais pétrea e mineral do que orgânica e humana. É interessante notar que, enquanto a
vitalidade indígena é identificada e tematizada no plano de suas características culturais,
a vitalidade negra é sobretudo ligada à força física, seja ao seu processamento pelo
trabalho, seja à sua submissão ao castigo. Em termos da plasticidade poética, se o
tratamento do índio é mais próximo de procedimentos pictóricos, com pinceladas
verbais que põem em relevo suas virtudes culturais, o tratamento dispensado ao negro
se assemelha mais ao escultural, com o entalhe verbal que acentua a materialidade de
sua figura.
A brutalidade muscular do tema entranha o poema seguinte. As súplicas
desesperadas são o único índice de humanidade a emergir da cena. Importa que se note
que os sujeitos de sua enunciação o são na medida mesma de seu assujeitamento, isto é,
os escravos molestados aparecem não como “sujeitos de”, mas sim reduzidos à
condição de “sujeitos a”, massa tornada inerte, amarrada, pela incidência da violência,
enquanto prática que reveste a chibata, objeto inanimado, da ânima de sujeito e
protagonista da cena. Se tal tratamento acentua a contundência e brutalidade da cena,
também opera, no plano poético-simbólico, na mesma lógica de objetivação e
assujeitamento dos sujeitos. Os versos são análogos ao açoite.
Assim, diferentemente das cenas das origens, é a presença negra que dá liga e
que organiza toda esta seção. Os poemas funcionam como coextensivos à cotidianidade
colonial. Visada que escancara a dinâmica de embrutecimento inerente à sociedade
escravista, ao ostentá-la, contudo, no plano dos procedimentos poéticos.
Porém, a truculência colonial, a seguir, cede lugar à amenidade do cotidiano
rural das fazendas do café.
149
3.3 – Figurações da “pátria paulista”
A seção São Martinho, sugere desde o título a introdução do tema do café,
principal riqueza da São Paulo da Primeira República. O protagonismo poético do café
atrela-se, inextrincavelmente, ao protagonismo político e empresarial das figuras
pertencentes às rodas dirigentes do estado. O título, muito provavelmente, faz alusão e
presta reverência à família de Antônio Prado, dono de fazenda homônima em torno da
qual fundou e fomentou o núcleo urbano de Vila Nova, atual Pradópolis.
O tom laudatório desta seção não lhe retira a força propriamente poética,
tampouco lhe é extrínseco. Pelo contrário, emana da própria tessitura dos poemas. Salta
à vista a passagem do registro plasmado pela materialidade bruta da seção anterior, para
uma dicção amena que transpira certo bucolismo satisfeito e otimista. Algo como uma
“sensibilidade de rede e varanda” vaga preguiçosamente pelo cotidiano da ruralidade
cafeicultora, e como que insinua a pretensão a uma certa superioridade histórica em
relação ao passado colonial, que minimiza o peso dos evidentes resquícios deste, e
parece almejar o atestado de sua superação por um presente paulista do Brasil,
resultado da obra paulista de prosperidade, paz social e progresso:
noturno
Lá fora o luar continua
E o trem divide o Brasil
Como um meridiano (idem, p. 90.)
Reatualização da matriz simbólica bandeirante, posta a serviço da épica do
café. O poema contrasta a vigência do luar que une, o “mesmo” para todo o Brasil, com
o trem, símbolo que condensa e equipara a expansão territorial do café com a expansão
da zona de influência paulista – uma espécie de bandeirismo mecanizado, século XX –
e do “progresso” material e humano, cujo movimento separa e distingue o Brasil de São
Paulo do restante dos brasis. O meridiano descrito pela ferrovia delimita o território
poético da seção, bem como a densidade humana e social que o povoa:
bucólica
150
Agora vamos correr o pomar antigo
Bicos aéreos de patos selvagens
Tetas verdes entre folhas
E uma passarinhada nos vaia
Num tamarindo
Que decola para o anil
Árvores sentadas
Quitandas vivas de laranjas maduras
Vespas (idem, p. 91).
Mais uma vez, Pau-Brasil revisita o tema da prodigalidade tropical. Porém,
diferentemente do tratamento que lhe é dado na abordagem da vida colonial, homem e
natureza aparecem mais uma vez irmanados, contudo, não através da animalização da
humanidade, mas mediante a humanização do natural. Em outras palavras, o poema
exibe um quadro em que tanto o homem quanto a natureza aparecem “civilizados”, ou
pelo menos, a civilidade dos que percorrem o pomar é subsumida pela contenção
disciplinada das arvores sentadas; mesmo o arroubo da vaia dos passarinhos adquire
um tom amigável e convidativo, o eventual incômodo das vespas zumbe inofensivo e
solitário no último verso. Estamos longe da “selvageria” e da “barbárie” brutalizante do
terreiro colonial, de sua paisagem indiferenciada entre o negror dos escravos e das
jabuticabas. Nas terras do café, a paisagem se re-humaniza, a natureza se dispõe
ordeiramente em quitandas vivas de laranjas maduras. O poema se situa em outro
mundo, mundo plasmado pela marcha do progresso bandeirante.
Veja-se o segundo poema da seção, vindo no rastro do trem que traça o
meridiano do poema de abertura, desdobrando-lhe o movimento:
prosperidade
O café é o ouro silencioso
De que a geada orvalhada
Arma torrefações ao sol
Passarinhos assoviam de calor
Eis-nos chegados à grande terra
Dos cruzados agrícolas
Que no tempo de Fernão Dias
E da escravidão
151
Plantaram fazendas como sementes
E fizeram filhos nas senhoras e nas escravas
Eis-nos diante dos campos atávicos
Cheios de galos e de reses
Com porteiras e trilhos
Usinas e igrejas
Caçadas e frigoríficos
Eleições tribunais e colônias (idem, p. 90).
O poema tem a dimensão épica da união entre passado e presente, deste como o
coroamento e realização das forças teleologicamente inscritas naquele, encontro que se
na grande terra, assim nomeada pela expedição modernista de Pau-Brasil, que lhe
presta testemunho e lhe poetiza o atestado de (re)nascimento. Os versos materializam as
diversas faces da prosperidade do título, presente na cumplicidade entre o sol e geada na
torra do café, ouro silencioso, plantada e inaugurada pelos primeiros impulsos que lhe
deram os cruzados agrícolas, a gente heróica e destemida de – uma vez mais ele –
Fernão Dias. Novamente semeiam-se filhos, plantam-se fazendas, mas o tom
predominantemente edificante do poema reconduz esse movimento à importância da
povoação da terra, da submissão da natureza. Os vestígios coloniais são atavismos
transitórios, sua ocorrência não advém da expansão paulista, antes, tendem a ser
suplantados por ela. A base dupla e presente do M.P.B. circunscreve elementos de um
conjunto sócio-cultural que convive pacificamente, em que a parte que cabe ao
subconjunto dos fatores modernos, trilhos, usinas e frigoríficos, parece complementar
aos do subconjunto arcaico, igrejas, caçadas e porteiras, aos quais, todavia, se impõem
irrefreavelmente, visto que imperam sozinhos no último verso, as eleições, os tribunais
e as colônias, estas últimas fazendo uma das poucas menções, que figuram nesta seção,
ao universo do trabalho imigrante.
A carga semântica dos tribunais das terras do café contrasta ainda com o
mandonismo localista, fundamente entranhado na formação social brasileira.
Fortemente presente na sociedade republicana, este aspecto é, contudo, circunscrito e
relegado à seção anterior, sobre a colonização, onde aparece em senhor feudal:
Se Pedro Segundo
Vier aqui
Com história
Eu boto ele na cadeia (idem, p. 87).
152
Sugere-se assim, uma vez mais, o caráter civilizador da expansão do café
paulista e da institucionalidade republicana. O avanço da lavoura para o interior revive a
saga bandeirante de pacificação da terra e do gentio, agora atualizado na fundação de
cidades e instauração da ordem jurídica de Estado.
lei
Depois da criação do município novo
Plantado depressa nas ruas de poeira
Os bebês inumeráveis da colônia
Serão registrados em Pradópolis (idem, p. 92).
O paulicentrismo latente no tratamento épico se desdobra e dá corpo à escola
rural:
As carteiras são feitas para anõezinhos
De pé no chão
Há uma pedra negra
Com sílabas escritas a giz
A professora está de licença
E monta guarda a um canto numa vara
A bandeira alvi-negra de São Paulo
Enrolada no Brasil (idem, p. 91).
Lei, urbanidade, educação formal, o “progresso da civilização” vem de par com
a prosperidade do café. Os pés no chão e a ausência da professora assinalam mais uma
tímida menção às condições de vida das populações rurais. Esta dimensão é minoritária
no todo do poema e eclipsada pelo relevo da presença civilizacional paulista: a sala
vazia organiza o cenário para o destaque assumido pela presença da insígnia paulista,
marcando uma posição zelosa em sua guarnição do recinto, assim como em seu abraço
absorvente da pátria, visto que figura enrolada no Brasil.
O único elemento de remissão clara e inequívoca ao universo das populações
rurais subalternas é envolto em uma atmosfera de atavismo:
153
pai negro
Cheio de rótulas
Na cara nas muletas
Pedindo duas vezes a mesma esmola
Porque só enxergava uma nuvem de mosquitos (idem, p. 91).
As marcas fundas na cara e nas muletas delineiam um plano semântico em que
ambas se indistinguem, operam um distorcionismo expressivo que marca uma brutal
afinidade de decadência entre elas: decadência social, que vinca o corpo, relega-o à
mendicância, decadência corporal, que inscreve o corpo atávico nas fímbrias da nova
dinâmica social, marginalidade aparada sobre muletas. Uma reforçando e remendo
indefinidamente à outra. O poema introduz um “corpo entranho” à economia simbólica
desta seção, massa envolta em uma nuvens de mosquitos, restos que apodrecem de um
mundo pretensamente sepultado, entretanto admitido, enquanto resquício, no novo
mundo desenhado pelo café.
A cena é reconduzida e integrada no tom geral de tranquilidade que anima os
poemas. O poema paisagem, já analisado no segundo capítulo (ver página 93),
circunscreve o ambiente em que se enquadra a sensibilidade de morro azul e versos de
dona carrie, em que se dissolve a contundência da figura do pai negro:
morro azul
Passarinhos
Na casa que ainda espera o imperador
As antenas palmeiras escutam Buenos-Aires
Pelo telefone sem fios
Pedaços de céu nos campos
Ladrilhos no céu
O ar sem veneno
O fazendeiro na rede
E a Torre Eiffel noturna e sideral (idem, p. 92).
versos de dona carrie
A neblina nos segue como um convidado
Mas há um clarão para as bandas de Loreto
154
Cafezais
Cidades
Que a Paulista recorta
Coroa e esparrama em safras
A nova poesia anda em Gofredo
Que nos espera de Forde
Numa roupa clara de fazenda
É ele quem cuida da plantação
E organiza a serraria como um poema
O time feminino nos bate
Mas Cendrars faz a última carambola
Soldado de todas as guerras
Foi ele quem salvou a França na Champagne
E os homens na partida de bilhar daquela noite
Terraço
Rede
Paineiras pelo céu
As estrelas de Gonçalves Dias (idem, p. 93).
Se a poética oswaldiana contém muitos pontos, como apontamos, em que se
ridicularizam os padrões de sociabilidade das elites paulistas, é ao mesmo tempo
inegável o fato de que, na produção do Modernismo, talvez tenha sido em sua poesia
que a experiência social dos mesmos grupos encontrou sua mais bem acabada
elaboração estética
5
.
Nos dois poemas citados, a expansão da “civilização paulista” incorpora-se na
doce sensualidade encarnada pela sociabilidade amena da elite urbanizada e fazendeira:
os novos bandeirantes em passeio pelos campos e cidades, locomovendo-se
confortavelmente nos vagões da primeira classe da Paulista, nos automóveis de seus
confrades, placidamente vestidos em fazenda alva e leve. A plenitude da paisagem, um
céu familiarmente mundanizado, um chão docemente etéreo, com pedaços de céu nos
campos e ladrilhos no céu, corresponde a uma percepção que desliza desenvolta de
preocupações, a uma atmosfera em que se pode gozar um ar sem veneno e a um
5
Em um outro sentido, ligado às analogias entre a poesia oswaldiana e a concepção de “progresso” da
“oligarquia paulista”, que “encarava a ‘vocação agrícola’ do país como um elemento de progresso e
contemporaniedade, a que as demais manifestações modernizantes se deveriam e poderiam subordinar
harmoniosamente”, Schwarz aponta no “esvaziamento do antagonismo entre as matérias colonial e
burguesa”, operado em Pau-Brasil, um aspecto em que Oswald dá “forma literária à experiência de uma
oligarquia” (1987, pp. 21-23).
155
convívio em que os maiores sobressaltos resolvem-se na guerra de uma partida de
bilhar entre damas e cavalheiros.
O frescor existencial que transpira dos versos empresta-lhes um ar de turismo
poético-empresarial. As fazendas, lugar em que brota a prosperidade do ouro verde do
café, são espaço de deleite. As lógicas sociais aparentemente contrárias, antes se
complementam e se possibilitam: o fazendeiro cuida da plantação e organiza a serraria
como um poema. Os poemas estetizam o enlace entre a sociabilidade inscrita na
prosperidade da “civilização do café” e a cotidianidade da poesia. O ideário
vanguardista da religação entre arte e vida é efetivado na espraiar-se da “onda verde” da
modernidade tupiniquim.
Não por acaso, ambos os poemas se fecham com o tema modernista, ou pelo
menos oswaldiano e marioandradiano, da preguiça. No terraço da fazenda, o lirismo
bandeirante estende preguiçosamente a sua rede. Por cima da multidão de mãos
calejadas e muletas mendicantes, aberto para o ar sem veneno da atmosfera noturna,
límpida e transparente, faz concessão ao romantismo das estrelas de Gonçalves Dias.
Tais considerações nos aproximam do poema que fecha esta seção. O enfoque
recai sobre o universo do trabalho que, até então, em diferença à seção sobre a
colonização, se encontrava praticamente ausente:
metalúrgica
1.300º à sombra dos telheiros retos
12.000 cavalos invisíveis pensando
40.000 toneladas de níquel amarelo
Para sair do nível das águas esponjosas
E uma estrada de ferro nascendo do solo
Os fornos entroncados
Dão a gusa e a escória
A refinação planta barras
E lá embaixo os operários
Forjam as primeiras lacas de aço (idem, p. 93-94).
Sintomaticamente, o trabalho tematizado não é o da lavoura cafeeira. Na lógica
social da fazenda poeticamente recriada, a rede do fazendeiro permanece sem seu
correlato. Entretanto, chega-se mesmo a dispensar certa glória aos operários, “semi-
hefestos” da indústria moderna, brava e robustamente enfrentam o calor da forja e
156
imprimem forma aos trilhos. Não obstante, aparecem levemente em segundo plano,
em baixo, menos como protagonistas e mais como adição aos artefatos que importa
enfocar. O centro da cena é denso e compactamente ocupado pela hipérbole exaltada
das dimensões colossais da indústria moderna. É importante notar que a exaltação à
industrialização encontra uma solução poética que a desvia e contorna os eventuais
embaraços simbólicos de uma visada que resvalasse para a exaltação dos imigrantes,
majoritariamente envolvidos neste ramo industrial. Não só a indústria é tomada no
anonimato social de seus recursos e potenciais produtivos, como o produto tematizado é
uma das proezas do progresso da expansão bandeirante, o feito épico de uma estrada de
ferro nascendo do solo.
Assim, a indústria é simbolicamente reconduzida aos trâmites da “civilização do
café”. Portanto, na “pátria paulista”, o trabalho é subtraído da semântica do
embrutecimento, que o revestira na tematização da colonização, e passa a ser peça
coadjuvante do progresso protagonizado pelo “ouro verde”.
O poema abre os trilhos para a próxima seção. A expedição Pau-Brasil embarca
e toma o caminho, sociologicamente curto, que ligava os cafezais às cidades e à capital.
3.4 – A urbanidade do Brasil cafeeiro
A esta altura, estamos próximos da tematização do Brasil urbano. Mas antes de
desembarcar em São Paulo, Pau-Brasil executa um preâmbulo pelas cidades
interioranas. Na seção RP1, figuram referências a cidades do Oeste Paulista, assim
como do Vale do Paraíba, primeira zona cafeeira no Brasil, e de suas adjacências. É
interessante notar que capital da república, poema que tematiza o Rio de Janeiro (ver
primeiro capítulo, página 40), aparece fechando a seção, como a sugerir seu
pertencimento ao quadro urbano representado pelas demais cidades de “progresso”
ainda incipiente, um último ponto de parada antes de chegar ao “ápice do progresso
brasileiro”, consubstanciado em São Paulo. Insinua-se, assim, uma demarcação
simbólica, embora contraditada em outros poemas, bilateral entre o Brasil do
“progresso” e os brasis do “atraso”.
A visada poética reitera o topos da “vida pacata” do interior, ora associada à
inércia das atividades, resultante da decadência econômica, ora pintando um quadro que
aos poucos vai sendo alterado pelos primeiros sinais do “progresso”. É o que se
observa, respectivamente, em vadiagem mística e cidade:
157
vadiagem mística
Passei quase toda a manhã na Basílica
Rezando e olhando
Vi dois casamentos
Bentos
De fraque
O sacristão chama-se Seu Bentinho
E a gente logo que sai da igreja
Cai no rio espraiado
O hoteleiro de meu hotel
Tem cor de medalha de pescoço
E conta-me que já houve cafezais
Nos pastos
Nos bambuzais
Se eu me casasse
Queria uma orquestra
Bem besta (idem p. 98).
cidade
Foguetes pipocam no céu quando em quando
Há uma moça magra que entrou no cinema
Vestida pela última fita
Conversas no jardim onde crescem bancos
Sapos
Olha
A iluminação é hulha branca
Mamães estão chamando
A orquestra rabecoa na mata (ibdem).
A morosidade do lugar, quase toda a manhã na Basílica, impregna-se na
religiosidade que se arrasta por todo o cotidiano, na cara de medalha do hoteleiro, na
beatitude dos casamentos, dos noivos e sacristãos, todos bentos. Mesmo o rio se move
indolentemente, e só não é mais apático que o urbanismo local que negligencia o
controle de seu curso, espraiado. A inércia por fim espalha-se pelos campos, cujo vazio
ocupado pela esterilidade dos pastos e bambuzais evoca a nostálgica ressalva de ali
houve cafezais, melancolicamente pretérita. Importante notar que a ida do modernista à
158
igreja parece prender-se mais à falta de outra opção – ou, melhor dizendo, ao fato de
que a própria dinâmica local impossibilita a própria opção enquanto tal – que a uma
convicção religiosa, visto que na oscilação entre rezar e olhar, a introspecção do
primeiro cede lugar à circunspeção do segundo, a que, aliás, se deve todo o poema.
Ademais, o turista na pele do devoto episódico circula por fora do universo cenarizado,
cogitando a possibilidade de um casamento, desde que este se desse
“trocadilhescamente”, mais para besta que para bento.
Subtraída a galhofa levemente blasfema, o clima é praticamente o mesmo na
atmosfera noturna da cidade. Persiste uma certa ponta de prepotência social na
figuração das personagens e do lugar. Registra-se o provincianismo da mocinha que se
veste segundo os astros do cinema, as mamães ciosas que recolhem seus filhos aos
lares; a relativa desolação das ruas que mal é quebrada pelas conversas no jardim,
majoritariamente povoados por bancos e sapos, pela baixa frequência da festividade dos
foguetes que ocorrem espaçadamente de quando em quando; a rudimentaridade da
iluminação que repercute no procedimento do neologismo presente no verbo do último
verso, vinculando a orquestra à designação antiquada do violino.
Sem dúvida esses aspectos podem ser lidos na chave diversa de um lirismo
cívico plasmando elegias à vida interiorana. Entretanto, sua anteposição, na estrutura do
livro, quase imediata à tematização do universo urbano paulistano, reforça seu papel de
contraste e afirmação elegíaca deste último.
Há certo liame subterrâneo que corrobora o vínculo de contigüidade entre uma
seção e outra. A lente Pau-Brasil não seleciona nas cidades interioranas apenas os eixos
temáticos de significação contrastiva, como a morosidade, o provincianismo e a
incipiência econômica, mas também aqueles que salientam vetores em que se inscrevem
a expansão da zona de influência de São Paulo. É o caso de guararapes, poema-cidade
pertencente à zona cafeicultora do então chamado Oeste Paulista. A composição do
poema replica no interior do estado o aventado cosmopolitismo populacional da capital:
Japoneses
Turcos
Miguéis
Os hotéis parecem roupas alugadas
Negros como num compêndio de história pátria
Mas que sujeito loiro (idem, p. 97).
159
A composição opera fragmentações tanto no nível semântico, com a origem dos
personagens sendo designada ora pela nacionalidade, ora pelo nome próprio e ora pelo
marcadores étnico-raciais, quanto sintático, com o último verso introduzindo uma
dicção exclamativa, que corta abruptamente a linha até então descritiva. No conjunto,
tais procedimentos resultam na captação da heterogeneidade ética e cultural do estado,
contudo, o enquadramento fragmentário compartimenta as respectivas singularidades,
como se as confinasse, cada uma, em “seu lugar”. É exemplar, neste sentido, a alocação
da presença negra. Uma vez mais a problemática analisada acima comparece e os
negros como num compêndio de história pátria, figuram como resquícios obsoletos, no
melhor dos casos, museologizados.
O poema sugere que a “onda verde” engloba as regiões pelas quais se espraia,
convertendo as paragens a que alcança em microcosmos que replicam a capital.
Constrói-se uma geografia humana da “pátria paulista” mediante o espraiar-se de ondas
simbólicas concêntricas, irradiadas a partir do lugar identitário central, ocupado por São
Paulo. Povoa-se o estado dos “novos mamelucos”.
De fato, historicamente, a diversificação populacional, promovida pelos fluxos
imigratórios em grande parte catalisados pela economia do café, era um dado
observável não só na capital como no interior cafeeiro. A questão central à elaboração
estética Pau-Brasil, contudo, não passa pela observância de sua maior ou menor
verossimilhança, de sua fidelidade aos “dados concretos”. Antes, o que temos buscado
salientar, como já observado, são os vetores de significação que tal estética, no
movimento mesmo de sua constituição, estende sob o feixe de forças que compunham a
dinâmica social em que se inseria, a partir dos quais capta e seleciona os “ingredientes”
que entram na composição do Brasil que pretende celebrar. Nesse sentido, a “onda
verde” espraia-se para o interior da estética Pau-Brasil.
Outro liame que se desprende dessa tematização do interior e ruma a São Paulo é
tecido pelo poema da cachoeira:
É a mesma estação rente do trem
Toda de pedra furadinha
Meu pai morou alguns anos aqui
Trabalhando
Um dia liquidou
Ativo passivo
Cinco galinhas
160
E deram-lhe uma passagem de presente
Para que eu nascesse em São Paulo
Como não houvesse estrada de rodagem
Ele foi na de ferro
Comprando frutas pelo caminho (idem, p. 99).
Eis o esboço, ainda que sumário, de uma genealogia, cuja trama se tece no
cruzamento de elementos advindos da trajetória pessoal, do deslocamento espacial e do
processo histórico. É interessante notar que a primeira menção explicita a São Paulo e à
individualidade do poeta ocorram simultâneas e entrelaçadas. O poema é a realização de
um telos, a perseguição a um alvo final, “para que eu nascesse em São Paulo”, que
organiza toda a sua composição. Espécie de trajetória bandeirante, seus elementos
alinhavam-se ao “destino inexorável” de Oswald, designado em termos de seu
inequívoco pertencimento a São Paulo.
A viagem poética de Pau-Brasil debruça-se ainda em dois aspectos da vida
citadina, antes de seu desembarque em São Paulo. Trata-se das seções Carnaval e
Secretário dos Amantes.
A primeira compõe-se de dois poemas:
nossa senhora dos cordões
Evoé
Protetora do Carnaval em Botafogo
Mãe do rancho vitorioso
Nas pugnas de Momo
Auxiliadora dos artísticos trabalhos
Do barracão
Patrona do livro de ouro
Protege nosso querido artista Pedrinho
Como o chamamos na intimidade
Para que o brilhante cortejo
Que vamos sobremeter à apreciação
Do culto povo carioca
E da Imprensa Brasileira
Acérrima defensora da verdade e da Razão
Seja o mais luxuoso novo e original
E tenha o veredictum unânime
No grande prélio
161
Que dentro de poucas horas
Se travará entre as hostes aguerridas
Do Riso e da Loucura
na avenida
A banda de clarins
Anuncia com os seus clangorosos sons
A aproximação do impetuoso cortejo
A comissão de frente
Composta
De distintos cavaleiros da boa sociedade
Rigorosamente trajados
E montando fogosos corcéis
Pede licença de chapéu na mão
20 crianças representando de vespas
Constituem a guarda de honra
Da Porta-Estandarte
Que é precedida de 20 damas
Fantasiadas de pavão
Quando 40 homens do coro
Conduzindo palmas
E artisticamente fantasiados de papoulas
Abrem a alegoria
Do Palácio Floral
Entre luzes elétricas (idem, pp. 102-103).
Deve-se observar que o carnaval demarcava uma arena simbólica tensa no centro
dos confrontos entre a cultura dos grupos hegemônicos e a dos grupos subalternos.
Como aponta Sevcenko, no quadro de transformações sociais da São Paulo do início do
século, a atração exercida pelo carnaval dos bairros populares consubstanciava as
recomposições de forças que atravessavam a dinâmica sócio-cultural da cidade:
O Brás adquiria assim uma visibilidade emocional repentina, que
transformou a periferia em centro e o centro em periferia. As famílias
distintas, deixando suas mansões e automóveis para se meterem na carroça
rústica e buscarem a alegria no meio dos camponeses, operários, artesãos e
ambulantes imigrados, era bem um índice de um novo tempo e de um
rearranjo das ordens de símbolos (Sevcenko, 1992, p. 106.).
162
No interior da euforia da festa, operavam-se deslocamentos constitutivos da
desestabilização da ordem sócio-simbólica paulistana. É no interior deste processo que o
Carnaval de Pau-Brasil parece situar-se. Os dois poemas defrontam o universo popular,
evocado simultaneamente à evocação da festiva santidade de uma nossa senhora dos
cordões, e o universo dos grupos hegemônicos, designado na alocação solene e distinta
de na avenida. E, cumpre notar, fazem pender o equilíbrio de forças para o lado do
rancho vitorioso. Este movimento é observável na diferença dos registros. No primeiro
poema, mais afeito ao universo popular, exaltam-se os artísticos trabalhos do barracão,
atesta-se a intimidade com o querido artista Pedrinho, no mesmo passo em que se
ironiza o culto povo carioca e a Imprensa Brasileira, acérrima defensora da Verdade e
da Razão. Mas, mais importante, o poema desloca sua enunciação para o interior do
universo narrado: o brilhante cortejo que vamos sobremeter à apreciação. Ao passo
que o segundo poema plasma-se em um registro destituído da exaltação e euforia que
preside o anterior. Embora ricos na descrição da sensualidade visual da festa, os versos
restringem-se à apresentação do cortejo, sem gestos que denotem comprometimentos,
sejam apelos a padroeiros, sejam afirmações de co-participação. O poema sai do
barracão e assiste à festa na avenida, observando de fora, da calçada.
Se as composições marcam um ímpeto modernista de identificação com o
subalterno, promovendo seus agentes e manifestações à categoria de artistas e de arte, o
registro “neutro” que deixa intocadas as manifestações da avenida – salvo um possível
sarcasmo contido no deslizamento semântico de cavalheiros para cavaleiros – deixa, no
mesmo passo, simbolicamente também intocadas as composições de forças e as
dinâmicas de poder que articulam os próprios critérios do que se define como arte e
artistas. O que se manifesta, em termos da composição, na própria bipartição de
Carnaval, de um lado os barracões, de outro a avenida, compartimentados e apartados,
a salvo das “invasões” e dos “contágios” recíprocos.
Secretário dos Amantes parodia o gênero de publicações, bastante em voga na
época, que consistia em uma espécie de receituário de cartas de amor, sendo que os seis
breves poemas que a compõem resultam da remontagem de trechos de cartas enviadas
por Tarsila a Oswald (Paes, 1995, p. 111):
I
163
Acabei de jantar um excelente jantar
116 francos
Quarto 120 francos com água encanada
Chauffage central
Vês que estou bem de finanças
Beijos e coices de amor
II
Bestão querido
Estou sofrendo
Sabia que ia sofrer
Que tristeza este apartamento de hotel
III
Granada é triste sem ti
Apesar do sol de ouro
E das rosas vermelhas
IV
Mi pensamiento hacia Medina del Campo
Ahora Sevilla envuelta em oro pulverizado
Los naranjos salpicados de frutos
Como uma dádiva a mis ojos enamorados
Sin embargo que tarde la mía
V
Que alegria teu rádio
Fiquei tão contente
Que fui à missa
Na igreja toda gente me olhava
Ando desperdiçando beleza
Longe de ti
VI
164
Que distância!
Não choro
Porque meus olhos ficam feios (Andrade, 1996, pp. 106-107).
Espécie de cantiga de amigo, cuja mescla de observações prosaicas da vida
prática à declarações de afeto ironiza o sentimentalismo deste tipo de gênero poético
(Paes, 1995, p. 111), o poema reelabora outra dimensão da experiência social da elites
urbanas. Não fatores conflitivos internos à cidade, como em Carnaval, mas aqueles
ligados à facilidade de acesso às viagens para o exterior, de que gozavam seus grupos
privilegiados. Os poemas introduzem a Europa na expedição Pau-Brasil, não sob o
signo do colonizador, mas sob o da plácida vivência européia, tão freqüente nos
deslocamentos dos novos bandeirantes. Como em São Martinho, o turismo
despreocupado formata a placidez sensorial dos versos. O predomínio das imagens
visuais, plasmadas nas tênues interpenetrações entre luz e cor que envolvem e diluem a
nitidez dos contornos da paisagem citadina, conjugam-se e contrastam com a precisão
certeira das indicações financeiras, do conforto e da compostura de civilidade em
público. Esses elementos, catalisados no tema da saudade amorosa, testemunham não só
a junção de cumplicidade afetiva e artística entre Oswald e Tarsila, como também a que
se estabeleceu, na constituição de Pau-Brasil, entre a condição financeira abastada, a
viagem como ensejo de elaboração poética e a poesia como modalidade de viagem inter
e transcultural. Afinal, para estes modernistas paulistas, a Europa, embora mais distante,
era tão ou mais facilmente acessível que o bairro paulistano, embora mais próximo, do
Brás, sobretudo sob a iluminação enviesada dos Postes da Light.
3.4.1 – A construção da capital bandeirante
As três seções anteriores preparam a aparição dos Postes da Light, seção em que
se tematiza a pujante e próspera São Paulo, “capital do café”. Em RP1, salienta-se
aspectos de morosidade das cidades interioranas que, por sugestão de contraste,
remetem ao dinamismo da vida paulistana. Por sua vez, Carnaval trata de apaziguar, de
antemão, os aspectos simbolicamente ameaçadores que esta festividade popular vinha
assumindo na capital paulista, evitando que a tematização de sua “balburdia”
eventualmente desestabilizasse a luminosidade plácida dos Postes da Light. Já
165
Secretário dos Amantes, aproxima pela aparente distância: a experiência cosmopolita
presente em São Paulo, não só nas constantes viagens, a negócios ou a passeio, das
elites endinheiradas pela expansão econômica promovida pelo café, como também em
um meio urbano atravessado e conformado por fluxos internacionais de toda espécie, do
capital financeiro, das populações emigrantes e seus universos culturais “alienígenas”,
de exposições artísticas e publicações literárias européias, etc.
A expansão urbana e industrial de São Paulo fez acompanhar por uma série de
reformas no espaço citadino. O movimento da elite fazendeira para a cidade, fixando
residência na capital, assinalou a onda de derrubada dos antigos edifícios de feitio
imperial, dando lugar a uma arquitetura calcada na apropriação eclética e indiscriminada
de padrões europeus (Bruno, 1984, ps. 918, 974). Simultaneamente, o crescimento
populacional acelerado, promovia a súbita valorização do espaço urbano, o que dava
margens a amplos empreendimentos e manobras especulativas. A principal força que
presidiu este primeiro momento de expansão urbana da capital paulista, compunha-se da
conjunção entre as iniciativas de embelezamento e regulação do poder público e os
interesses especulativos de empreendedores privados, como a Light and Power e a City
of São Paulo Improvementes, a primeira formada por capital canadense-anglo-
amaricano, e a segunda congregando investidores belgas, russos, franceses e ingleses,
ambas contanto, em seus quadros diretores, com figuras do primeiro escalão político de
São Paulo (Sevcenko, 1992, pp. 119-126).
Pode-se dizer que os contornos urbanísticos e arquitetônicos que vinham se
inscrevendo no espaço urbano de São Paulo refletiam e aprofundavam as assimetrias e
desigualdades do espaço social. As áreas centrais da cidade e os bairros mais abastados
detinham quase que exclusivamente os melhoramentos realizados, assumiam uma feição
europeizada que os afastava social e simbolicamente dos bairros populares e periféricos,
muitos em processo de deteriorização e encortiçamento (idem, pp. 115-129).
Com efeito, de certa forma as reformas urbanas da capital corporificavam a
dinâmica de confrontos sócio-simbólicos a que nos referimos no primeiro capítulo; mais
ainda, compunham uma intervenção que ensejava a ereção de barreiras simbólicas de
contenção dos fluxos culturais subalternos, posto que as transformações sociais em
curso convulsionavam o espaço urbano, convertido em um território em cujo interior
“acirravam-se todos os tipos de tensão e conflito que latejavam nos desvãos da cidade:
sociais, étnicos, culturais, políticos e econômicos” (idem, p. 125).
No interior de um mesmo processo, articulavam-se urbanismo e profilaxia
166
social. O poder público, em conivência com as práticas especulativas da iniciativa
privada, abria novos bairros e praças ou redimensiona os já existentes, alargava e
calçava ruas, trocava lampiões por lâmpadas elétricas, ajardinava e arborizava e, no
mesmo passo e pelos mesmos procedimentos, complementava o “embelezamento” da
cidade buscando empurrar para as sua fimbrias os elementos que pudessem “macular” a
nova sociedade republicana. A “metrópole do café” aspirava a um espaço social de
visibilidade altamente seletivo e exclusivista, uma partilha do sensível (Rancière, 2005)
operada mediante a introdução de padrões consagrados pela origem européia e a
simultânea extirpação de elementos sociais cuja presença denotasse aspectos que de um
modo ou de outro interrogassem ou desestabilizassem a possível simbiose simbólica
entre a “urbe bandeirante” e a “identidade bandeirante”, fossem eles representados pelos
prostíbulos da antiga Rua Líbero Badaró, relembrados por Oswald em suas memórias,
ou pelos núcleos marcados pela forte presença de população negra, oriundos de grupos
originalmente aquilombados em zonas ocupadas pelas novas áreas centrais ou
adjacentes, sob as quais incidia a arbitrariedade dos projetos de desapropriação
(Sevcenko, 1992, pp. 140-141).
No quadro social das elites, esse processo encontrava seu desdobramento em
formas de sociabilidade que assinalavam um desequilibro entre o público e o privado
enquanto espaços de convívio. À medida que a cidade crescia, suas ruas, principalmente
as centrais, revestiam-se de uma atmosfera desnorteadora, dominada pelo
estranhamento e pela multidão (idem, pp. 27-28). Em contraposição, os espaços
fechados, privados, emergiam como afetiva e moralmente superiores às ruas.
Paralelamente, assim, ganhava corpo, à época, a freqüência aos salões e aos cafés. Em
seus anúncios, estes últimos orgulhavam-se por oferecer “gabinetes fechados para as
famílias” (apud Bruno, 1984, p.1132), promovendo uma espécie de continuidade do
privado no público.
Os salões mundanos e literários constituíam o supra-sumo do estilo de vida da
elite. Sediados em suas luxuosas moradias, ajudavam a infundir um ideal de vida regido
pelo luxo e conforto. Espécie de zona de confluência entre o campo político e literário,
desempenhavam um importante papel de coesão e solidariedade entre estes grupos,
oferecendo ocasião para se firmar acordos e alianças, conseguir-se bons casamentos e
burilar a etiqueta de modos e falas, reforçadora das hierarquias e coesão internas
(Camargos, 2001, p.64 ). Exemplo típico destes valores foi o salão Villa Kyrial, assim
denominado por seu proprietário e animador, o senador Freitas Vale, que congregava
167
não só diferentes tendências literárias, como também importantes líderes políticos,
literatos e artistas. Foi neste salão, freqüentado por Oswald desde 1913, que o
modernista provavelmente conheceu seus amigos Carlos de Campos e Júlio Prestes –
também assíduos convivas de Vale – e teve ocasião de estreitar laços com Washington
Luiz, outra importante liderança perrepista.
Ainda mais que os cafés também descrevem um desequilíbrio entre o público e o
privado, no quadro de sociabilidade das elites. Diferentemente de seus congêneres
europeus, onde se operou a passagem da conversa espirituosa e galante para a discussão
e argumentação, colaborando na formação de uma esfera pública burguesa
(Habermans,1984, p.49), o salão de Vale caracterizou-se pelo banimento de assuntos
polêmicos que dessem margem à discórdia. (Camargos, 2001, p. 82). A guerra na
Europa, ou o tumulto das barricadas nas ruas de São Paulo, em 1924, cediam lugar a
assuntos mais amenos, como a conferência de Oswald sobre os ambientes intelectuais
de Paris, pronunciada na Vila Kyrial. Assim, os salões compunham ambientes privados
bem parecidos com o que Benjamim denominaria de interieur, uma espécie de “estojo”,
de proteção e distanciamento do mundo para além de quatro paredes (1985, p.37),
unindo e solidarizando seus freqüentadores por aquilo que tinham em comum: o
refinamento no trato mundano que, ao mesmo tempo, os distinguia e distanciava do
restante da população.
Configurava-se assim, uma espécie de “sensibilidade de salão”, um modo de
perceber e inserir-se na cidade constitutivo da cultura política de uma elite que se
pretendia republicana. A cidade, lócus concreto da res publica, emerge como um espaço
simbolicamente pacificado e homogêneo, palco ampliado para as práticas de
mundaneidade e para o desfrute da elite cafeeira. Portanto, além dos fatores
anteriormente apontados, os vínculos de proximidade entre a intelectualidade
modernista e a elite política paulista amarravam-se também em função da própria
dinâmica de transformação urbana, que unia seus beneficiários em uma mesma prática e
sensibilidade e, na mesma medida, os apartava dos por ela renegados.
3.4.2 – Os Postes da light: leitura e escrita de São Paulo
Esta “sensibilidade de salão” parece plasmar, em alguma medida, os poemas que
compõem a seção Os Postes da light, figuração poética Pau-Brasil da “metrópole
bandeirante do café”. Entretanto, se Oswald era figura assídua nos salões aristocráticos,
168
foi também co-autor de uma espécie de réplica às formas de sociabilidade das altas
rodas paulistanas. Cumpre lembrar que a roda literária da garçonière contrastava com
os salões, em sua maior abertura ao processo de diversificação social de São Paulo, em
sua maior flexibilidade comportamental e literária, mais afeita à relativização das
hierarquias dos gestos e dos gostos.
Este trânsito entre as ruas e os salões, entre os espaços hegemônicos e os bairros
marginalizados, descentram e desestabilizam o papel que a “sensibilidade de salão”
exerce na estruturação dos Postes da Light. Em grande medida, a seção é co-extensiva
ao movimento de construção urbano-simbólico da São Paulo do início do século. Mas
trata-se de uma homologia apenas parcial, que convive com a erupção de linhas poéticas
que se compõem com aspectos que, a princípio, buscavam-se subtrair do cenário da
“capital bandeirante”.
O poema a procissão, nesse sentido, canaliza para o interior da geografia poética
de Pau-Brasil as forças que depunham contra um quadro inequívoco de “progresso”
técnico-científico da São Paulo republicana e secular:
Os chofers ficam zangados
Porque precisam estacar diante da pequena procissão
Mas tiram os bonés e rezam
Procissão tão pequenina tão bonitinha
Perdida num bolso da cidade
Bandeirolas
Opas verdes
Crianças detentoras de primeiros prêmios
De bobice
Vão passo a passo
Bandeirolas
Opas verdes
Um andor nos ombros mulatos
De quatro filhas alvíssimas de Maria
Nossa Senhora vai atrás
Um milagre de equilíbrio
Mas o que eu mais gosto
Nesta procissão
É o Espírito Santo
Dourado
Para inspirar os homens
169
De minha terra
Bandeirolas
Opas verdes
O padre satisfeito
De ter parado o trânsito
Com Nosso Senhor nas mãos
E um dobrado atrás (Andrade, 1966, pp. 111-112).
Mais uma vez, a base dupla e presente..., a reza e a geometria, do M.P.B.,
comparecem como parâmetro poético. Transferidas para o coração urbano da
“civilização do café”, inscrevem a procissão como linha de força dos universos
culturais populares, que “invade” inadvertidamente o espaço moderno dos automóveis,
obstrui o trânsito e se interpõe vagarosamente, passo a passo, à pressa do “Brasil
moderno”. O confronto é subsumido entre os chofers e o padre. Aqueles passam da
zanga à aquiescência, transferem-se da fidelidade aos automóveis à fidelidade aos
santos; este, num movimento análogo, transita seu foco de atenção da procissão que se
movimenta para o trânsito que estaca. O encontro dos dois fluxos, procissão e tráfego,
estabelece assim uma via de mão dupla em que os agentes, a princípio alocados em um
dos lados, solidarizam-se com o lado oposto: ainda que aparentemente a contragosto, no
caso dos motoristas, ou veladamente, no caso da estima pelo avesso que o orgulho do
padre testemunha. A cena resolve-se pela via reconciliadora, ainda que tensamente,
visto o foco de tensão que pulsa, perdido em meio à procissão, entre o andor e os
ombros mulatos das filhas alvíssimas de Maria: contestação do branqueamento operado
pela religião do colonizador, africanização antropofágica em forma de enegrecimento
irônico da cultura européia.
A mesma elaboração estética do entrechoque entre práticas culturais
hegemônicas e subalternas, como elemento central à dinâmica cultural que atravessava
o espaço urbano e social de São Paulo, comparece em bengaló:
Bicos elásticos sob o jérsei
Um maxixe escorrega dos dedos morenos
De Gilberta
Janela
Sotas e azes desertaram o céu das estrelas de rodagem
O piano fox-trota
Domingaliza
170
Um galo canta no território do terreiro
A campainha telefona
Cretones
O cinema dos negócios
Planos de comprar um forde
O piano fox-trota
Janela
Bondes (idem, pp. 117-118).
O poema compõe uma espécie de objeto preceptivo que corporifica as
descontinuidades e interpenetrações entre o dentro e o fora. Melhor dizendo, constrói
poeticamente a própria percepção, dispersa entre estas duas dimensões de natureza
sensorial, social e subjetiva. A nitidez dos contornos do interior residencial é
constantemente diluída pela intromissão de fluxos sensoriais externos, assim como a
exterioridade da paisagem de fora é habitada pelas figurações dos objetos domésticos
(cartas de baralho), mistura-se aos planos subjetivos de compras. A janela é o fulcro da
composição, espaço de passagem do fora para dentro e do dentro para o fora, ponto de
indefinição entre ambos.
Interessante notar que este trânsito configura uma espécie de caleidoscópio,
composto por diversas dimensões da vida da cidade: a técnica que adentra a sala nos
solavancos do bonde e na estridência da campainha, as aspirações plasmadas nos
padrões de consumo de elite, presentes no forde que ameaça ganhar as ruas, a ruralidade
como elemento da urbanidade do início do século, cantando no canto do galo. Neste
cubismo verbal, todos os elementos constitutivos da cena são acometidos por um ímpeto
poético que se esforça em deslocá-los de seus lugares costumeiros, para recombiná-los
em uma composição que não se presta a sua realocação inequívoca, antes, parece
mesmo primar pela indefinição, excusando-se de fixar quaisquer outros esquemas de
ligação e co-pertencimento entre as coisas e seus lugares. Trata-se, portanto, de um
gesto poético desafiador e estranho às pretensões de uma visualidade estável e
disciplinada, como a que parecia aspirar o espaço urbano reformado de São Paulo.
Entretanto, um elemento destoa dessa subversão da paisagem social e urbana. À
semelhança do que ocorre, como vimos, com as iguarias e comportamentos populares
no poema relicário, o maxixe é arrancado aos espaços social e culturalmente
marginalizados e introduzido no centro da sala privilegiada, fazendo fox-trotar o erudito
piano. Entretanto, diferindo no poema em análise, o elemento subalterno não
171
desestabiliza a cena erudita, como ocorre em relicário, ou, pelo menos, é apenas
parcialmente que o faz. Pois tão logo o maxixe é deslocado dos territórios culturais aos
quais era costumeiramente associado, é simultânea e imediatamente realocado, sobre os
dedos morenos de Gilberta, isto é, convencionalmente reterritorializado nos esquemas
prévios de ligação e co-pertencimento entre forma cultural e “essência” racial. Ao fim e
ao cabo, o popular mantém-se “em seu lugar”.
A composição de forças poéticas que se enlaçam entre a cumplicidade com a
ordem sócio-simbólica instituída e a ameaça de sua contestação, arma também a
tessitura de pronominais, poema em que se realça a instituição de uma Gramática como
processo de poder, circunscrevendo-a como um terreno de confronto entre o
hegemônico e o subalterno:
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro (idem, p. 114).
A ironia ao mulato sabido nos remete à tematização da mestiçagem realizada,
como vimos, no poema carta ao patriarca. Em ambos os poemas ela aparece como
processo ou expediente discursivo que permite a instauração das verticalidades
hierárquicas de poder: seja a instauração do Estado monárquico, seja, como aqui, da
instauração de um código lingüístico que pretende homogeneizar ou relegar à categoria
de desvios a multiplicidade de possibilidades de combinações significantes. A
Gramática como processualidade conflitiva, intui o caráter em aberto e em constante
litígio da própria nacionalidade, ressignificada, antropofagicamente, como um
movimento de constante perversão da norma hegemônica. Entretanto, no mesmo passo
em que o poema subtrai à nação e à língua supostos atributos essenciais e de fixidez,
resvala para a instauração de outros essencialismos, presentes tanto no mulato sabido,
vinculação entre sujeito e predicado que parece tomá-los a ambos, assim como o
vínculo que os desqualifica, como cristalização estacionária da dinâmica permanente de
172
heteroneização cultural, quanto no bom branco e no bom negro, esses figurados como
inversos simétricos daquele, mediante a mesma operação discursiva, portanto,
igualmente cristalizados e subtraídos à abertura conflitiva dos processos culturais-
identitários.
Importa notar que nos poemas que não lidam com elementos do universo
cultural dos grupos subalternos, isto é, nos termos que o livro sugere, naqueles que se
desenrolam sob a plácida luminosidade dos Postes da Ligth, a composição resolve-se
mais harmônica e pacificamente, lembrando a visualidade límpida e amena de São
Martinho:
atelier
Caipirinha vestida por Poiret
A preguiça paulista reside nos teus olhos
Que não viram Paris nem Piccadilly
Nem as exclamações dos homens
Em Sevilha
À tua passagem entre brincos
Locomotivas e bichos nacionais
Geometrizam as atmosferas nítidas
Congonhas descora sob o pálio
Das procissões de Minas
A verdura no azul klaxon
Cortada
Sobre a poeira vermelha
Arranha-céus
Fordes
Viadutos
Um cheiro de café
No silêncio emoldurado (idem, p. 113).
A percepção lisa e inteiriça do interior privado do ateliê de Tarsila contrasta com
o universo truncado e descontínuo de bengaló. O olhar movimenta-se languidamente,
como a preguiça que fez residência nos olhos da pintora. Designada como caipirinha
vestida por Poiret, esta sintetiza em sua figuração o trânsito Pau-Brasil das fazendas à
173
capital, da capital ao universo dos padrões de gosto cosmopolita. Trânsito que se
prolonga e se desdobra na segunda estrofe, na menção aos elementos que povoam o
universo estético da pintura e da poesia pau-brasil. Embora os versos procedam por
certa fragmentação, na métrica como em algumas imagens, e ensejem denotar alguma
estridência klaxon, o todo resulta ameno e bem assentado, de modo que o silêncio
emoldurado transborda da superfície dos quadros e repousa por toda a cena,
analogamente ao flutuar do cheiro de café, índice amistoso de hospitalidade, mas
sobretudo sintoma poético da centralidade de São Paulo – a impregnar com seu aroma
característico – na construção simbólica do Brasil plasmado em locomotivas e bichos
nacionais, arranha-céus, fordes e viadutos, contraponto amigável que solicita, e em
torno do qual se imanta, o pálio das procissões de Minas, a verdura e a poeira
vermelha.
Retoma-se a percepção apaziguadora que identificamos em São Martinho. Uma
mesma atmosfera de prosperidade e harmonia social vai da cidade à lavoura do café,
volta desta àquela, estende o território da “pátria paulista”:
aperitivo
A felicidade anda a pé
Na Praça Antônio Prado
São 10 horas azuis
O café vai alto como a manhã de arranha-céus
Cigarros Tietê
Automóveis
A cidade sem mitos (idem, pp. 115-116).
O centro da cidade é o palco para a cenarização de uma sociedade satisfeita
consigo mesma. É ela, sobretudo, que se move no passeio por onde a felicidade anda a
. Seu otimismo anima a inversão poética do “prosaísmo” óbvio da dinâmica
econômica de São Paulo: submete a oscilação do preço internacional do café à regência
altiva dos arranha-céus. Na arena poética circunscrita pelos Postes da Light, a manhã é
azul e a familiaridade com os “cigarros” e os “automóveis” é da mesma ordem da
solidariedade que a cidade dispensa a seus cidadãos, descortinando-se nítida e
acolhedoramente, sem obliquidades e ambivalências, sem mitos.
Cenário parecido se pode desfrutar em outras paragens, não muito longe dali:
174
jardim da luz
Engaiolaram o resto dos macacos
Do Brasil
Os repuxos desfalecem como velhos
Nos lagos
Almofadinhas e soldados
Gerações cor-de-rosa
Pássaros que ninguém vê nas arvores
Instantâneos e cervejas geladas
Famílias (idem, p. 110).
O efeito cenográfico do espaço urbano, a artificialidade da natureza
“desnaturalizada”, subtraída à livre circulação selvagem dos macacos, habitada por
pássaros pressentidos mas que ninguém vê, parece menos ironia do que fruição estética
das obras de reforma e embelezamento urbano de São Paulo, celebradas pelas famílias
com instantâneos e cervejas geladas. Pois a mesma civilidade que impera na paisagem
ajardinada e domesticada permeia a relação entre os personagens, harmoniza possíveis
diferenças e desigualdades entre almofadinhas e soldados, irmanados no seu co-
pertencimento às gerações cor-de-rosa, cuja amenidade cromática é análoga à sua
suposta fraternidade social. Ademais, é significativo que o espaço selecionado para
alocar os bichos nacionais, os macacos do Brasil, seja circunscrito em contiguidade
com as vias de acesso e transporte que ligavam e distribuíam o espaço do estado de São
Paulo ao longo de suas linhas férreas. Isto é, o poema espaçializa o Brasil no “mapa da
civilização do café”, situa-o sob o nó constritor que une e dispersa o espaço da próspera
“pátria paulista”.
Com efeito, as atmosferas nítidas extrapolam as molduras e as paredes do
atelier, e passam a habitar as ruas centrais da cidade, que o prolongam e amplificam.
Em outras palavras, nestes poemas, uma mesma rede perceptiva atravessa o universo
social e urbano de São Paulo, depura-o de todo sobressalto e truculência, aplaina suas
assimetrias e heterogeneidades em uma superfície sensorial límpida, regular e
disciplinada: restitui-se as ruas e o ambiente social da capital bandeirante.
Esse footing de fruição estética pelas ruas centrais de São Paulo culmina com
uma pausa em um dos espaços de recreação e sociabilidade refinada das elites
175
paulistanas:
hípica
Saltos records
Cavalos da Penha
Correm jóqueis de Higienópolis
Os magnatas
As meninas
E a orquestra toca
Chá
Na sala de cocktails (Andrade, 1966, p. 118).
A excitação dos ânimos e dos sentidos é introduzida. Os versos curtos, de cortes
abruptos e agudos, movimentam as percepções entre saltos e deslocamentos velozes,
fazem-na circular entre a aglomeração dos frequentadores. Entretanto, a movimentação
não abala as coordenadas de uma experiência estável e firmemente alocada. Antes, se
desdobra no interior de seu circuito, cujos contornos sociais e sombólicos permanecem
inalterados: a Penha e Higienópolis contrastam e se complementam, aquela entra com
os cavalos, força de tração indispensável à destreza dos jóqueis daquele, que os conduz
e os converte na glória dos saltos records; do mesmo bairro elegante provavelmente
provém os magnatas e as meninas, todos, esportistas e platéia, congraçados pelo som da
orquestra e pelo chá na sala conspícua e elegante da capital.
Como se vê, a formalização de elementos oriundos de seu próprio círculo social
libera a poética Pau-Brasil dos embaraços estético-políticos verificados nos poemas
que implicavam a aproximação com os universos culturais dos grupos subalternos. A
resolução formal das instabilidades e tensões deflagradas pela canalização das forças
destes últimos para a interioridade poética, oscilando entre a reconciliação e contestação
da ordem sócio-simbólica, já se encontrava, de certa forma, prefigurada no M.P.B.: “Os
casebres de açafrão e de ocre nos verdes da favela, sob o azul cabralino, são fatos
estéticos” (Andrade, 1972, p. 203). A estetização do popular, mesmo de seus traços
mais sintomáticos de uma ordem social truculenta e desigual, se dá mediante a
neutralização de suas potências dissonantes, desestabilizadoras do “otimismo
progressista” que envolve a construção simbólica da cidade, dando lugar ao tom
celebrativo da penúria e da pauperização intensificadas por uma urbanização
176
desordenada e por um urbanismo arbitrário e exclusivista.
Entretanto, a proximidade social dos temas de Pau-Brasil com o universo dos
meios de origem de seu autor, deu margem não só à redundância de esquemas
preceptivos pré-estabelecidos, complacente com uma certa experiência elitista da
cidade, como também parece compor a condição para desestabilização e
problematização da mesma, e das construções simbólicas em que simultaneamente se
apoiava e dava apoio. A visada Pau-Brasil sobre o espaço urbano, que nos poemas
vistos, inscreve um limiar que oscila entre a conciliação e a contestação da ordem sócio-
simbólica, assume um caráter mais abertamente provocador no poema que exibe com
contundência o título de ideal bandeirante:
Tome este automóvel
E vá ver o Jardim New-Gardem
Depois volte à rua da Boa Vista
Compre o seu lote
Registre a escritura
Boa firme e valiosa
E more nesse bairro romântico
Equivalente ao célebre
Bois de Boulogne
Prestações mensais
Sem juros (idem, p. 116).
Os traços de uma condição social privilegiada, presentes na hípica, são
deslocados da celebração complacente para a irônica satirização. Parodiando os lugares
comuns da publicidade imobiliária, o poema satiriza o ideal de conforto e distinção dos
novos bandeirantes, agora ligados à expansão imobiliária de São Paulo. É ostensivo o
desprezo sarcástico pela atitude subserviente aos padrões norte-americanos ascendentes
e aos franceses ainda remanescentes. Neste caso, a glória bandeirante transita para o
ridículo despropositado, para o provincianismo canhestramente afetado de
cosmopolitismo, ironicamente figurado no disparate da redundância jardim new-garden,
contrastando com a singeleza e concisão lírica da rua da Boa Vista.
Assim, os Postes da Light fornecem a luminosidade e estendem os fios que
realçam e delineiam uma narrativa da cidade de São Paulo, poeticamente construída
entre os poemas. Na trama tecida entre a as ruas e os interiores, entre procissões e
177
exibições de hipismo, a sensibilidade de salão tende a capturar e neutralizar o popular,
mas, entretanto, os deslocamentos simbólicos oriundos da diversificação social da
capital, no compasso dos quais o próprio popular aparecia como ameaçador, repontam
em ironias poéticas ao salão.
Após o longo percurso histórico-cultural de Pau-Brasil, culminando com uma
breve estadia na capital paulista, a expedição retoma a marcha. Embora dividido em
duas seções, este último deslocamento transita por duas dimensões que complementam:
de São Paulo às Minas Gerais, em seguida, deste interior “exótico” à Europa familiar e,
desta, de volta ao Brasil, com destino final em São Paulo. Bandeirantismo interno e
externo, nacional-cosmopolita, cuja circularidade contorna o traçado do território
cultural da poética oswaldiana, articulado a partir da centralidade da “capital do café”.
3.5 – Turismo poético pelas minas bandeirantes
A seção Roteiro das Minas retoma os parâmetros expedicionários de São
Martinho. O movimento de revisitação do bandeirantismo pelo interior rural e urbano
de São Paulo é redirecionado e amplificado para as cidades históricas mineiras, tornadas
assim, também elas, paulistas. A “civilização do café” expande-se histórica e
geograficamente, emite seus círculos concêntricos de paulistanização.
convite
São João del Rei
A fachada do Carmo
A igreja branca de São Francisco
Os morros
O córrego do Lenheiro
Ide a São João del Rei
De trem
Como os paulistas foram
A pé de ferro (idem, p. 120).
A primeira estrofe faz as vezes de cartão postal, a amplitude do enquadramento
evoca a cidade como um todo e vai progressivamente se fechando, passando pelos
principais “pontos turísticos”. A segunda estrofe converte o convite em duplo
178
imperativo, como que sugere que os propositores de uma “arte brasileira” devem não só
se municiarem do repertório histórico-cultural apresentado no “postal”, como também
devem faze-lo como os paulistas. Instaura-se a ancestralidade bandeirante como
precursora da redescoberta modernista do Brasil.
Em conjunção com o poema seguinte, esta relação entre bandeirantismo e
Modernismo se aprofunda:
imutabilidade
Moça bonita em penca
Sete-lagoas
Sabará
Caetés
O córrego que ainda tem ouro
Entre a estação e a cidade
E o mequetrefe
Vai tocar viola nas vendas
Porque as bateias está ali mesmo (idem, p. 120).
Sete-lagoas, Sabará, Caetés, a permanência do ouro, marcos de significação que
presentificam a epopéia bandeirante, revivida pelos modernistas, núcleo do poema a que
a simpatia com as moças do primeiro verso, e o tom de reprovação, dos três últimos, à
“nova modalidade de garimpo”, agora voltada para o bolso dos turistas, parecem apenas
emoldurar, ambientar no novo contexto. A expedição Pau-Brasil re-percorre o itinerário
bandeirante. O itinerário do poema, por sua vez, é assinalado pelas cidades fundadas
pelos paulistas. Arma-se uma remissão recíproca entre bandeirantismo e Modernismo.
Como se o bandeirantismo lançasse e projetasse o Modernismo, que por sua vez relança
e atualiza o bandeirantismo. A antecedência histórica se adensa e assume o caráter de
co-participação dos dois movimentos, construídos simbolicamente como habitantes de
um mesmo processo de expansão civilizacional e fundação da nacionalidade.
O aspecto exclamativo suscitado com o moça bonita em penca, tingindo pelo
aspecto de reprovação ao violeiro popular, mequetrefe, conjungam-se nos poemas que
vão descrever o cotidiano mineiro, roteirizado num tom entre o espanto e a deploração:
traituba
179
O sobrado parecia uma igreja
Currais
E uma e outra árvore
Para amarrar os bois
O pomar de toda fruta
E a passarinhada
Joá na roça de milho
Carros de fumo puxados por 12 bois
Codorna tucano perdiz araponga
Jacu nhambu juriti (idem, p. 121).
Em contraste com as árvores da paisagem “civilizada” do jardim da luz, as
árvores das ruas mineiras existem para amarrar os bois, o transporte é tão rudimentar
quanto a riqueza que ele arrastada. Como no registro dos cronistas coloniais, a fauna é
espantosamente proliferante, a realidade do Brasil do sertanejo se afigura com certo
exotismo ao olhar do Brasil europeizado. A paulistanização ainda se erradia, apenas
agora aparece pela defasagem, pelo intervalo de “progresso” que separa e se interpõe
entre o interior mineiro e São Paulo. A natureza ganha o primeiro plano, e se projeta
sobre o artefato humano:
capela nova
Salão Mocidade
Hotel do Chico
Uma igreja velha e cor-de-rosa
Na decoração dos bananais
Dos coqueirais (idem, p. 124).
A capela nova materializa-se na igreja velha, resquício solitário a pontuar uma
gota rosa no verde proliferante da paisagem. A natureza recobra suas forças e avança
sobre terreno há pouco ocupado pela pujança do ouro, ora praticamente desolado. A
história humana” recua face à “história natural”, esvazia-se o presente de plenitude:
casa de tiradentes
A Inconfidência
No Brasil do ouro
180
A história morta
Sem sentido
Vazia como a casa imensa
Maravilhas coloniais nos tetos
A igreja abandonada
E o sol sobre muros de laranja
Na paz do capim (idem, p. 123).
Aos olhos paulistas, diante dos quais o futuro se descortinava e se desdobrava,
concreto, em terras e trilhos, em lavouras e cidades, o presente deparado em Minas é só
o que resta do passado – que se confunde, justamente, ao passado áureo das proezas
bandeirantes. O presente aparece sob o signo do abandono, e mesmo de um certo
descaso histórico e cultural, no vazio da casa, na igreja abandonada não obstante seu
valor artístico, atestado pelo modernista. A paz do capim confunde-se com o
desolamento, que ameaça invadir o valioso patrimônio, para o qual se volta a sugestão
de um gesto de resgate por parte do Modernismo paulista, um ato bandeirante de
restituição de Minas à história, como se evidencia nos dois poemas seguir:
sabará
Este córrego há trezentos anos
Que atrai os faiscadores
Debaixo das serras
No fundo da bateia lavada
O sol brilha como ouro
Outrora havia negros a cada metro de margem
Para virar o rio metálico
Que ia no dorso dos burros
E das caravelas
Borba Gato
Os paulistas traídos
Sacrilégios
O vento (idem, p. 127).
Uma vez mais, o presente se constitui exclusivamente enquanto prolongamento
do passado, tempos ligados na continuidade do córrego, que há trezentos anos [...],
reitera praticamente um mesmo cenário. O fluxo da mercância colonial toma corpo no
181
movimento poético que interliga e sequencia o rio, os negros, os burros e as caravelas.
Em relação a este, desenha-se um contraponto na figura de Borba Gato, que introduz
um corte abrupto, uma pausa e uma virada semântica. A figuração do bandeirante
parece apontar para a ocorrência da possibilidade de um estado de coisas supostamente
diverso, uma oportunidade perdida, um ímpeto de libertação mal sucedido, os paulistas
traídos. À medida que a presença paulista ganha corpo, a natureza cede terreno, a
história se adensa, recupera sentido.
O desfecho final desta “redenção” operada pelo bandeirantismo modernista,
chega ao ápice no alto das montanhas de ocaso, composição que ecoa e justifica o
convite do poema que abrira a seção:
No anfiteatro de montanhas
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem
As cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu
Bíblia de pedra sabão
Banhada no ouro de Minas (idem, p. 128).
Finalmente, neste poema não só a natureza deixa de corroer o histórico, como é
sobrepujada e plasmada pelo artefato, que a monumentaliza. Perceba-se que este
movimento é atrelado à presença paulista. Ele lança os degraus, para que sejam
galgados pela expedição pau-brasil: ascensão ao culme da tradição artística e cultural
brasileira, onde, afora o Modernismo, ninguém mais subiu, e, no mesmo movimento, se
recupera esta tradição ao abandono, se traduz sua bíblia de pedra sabão, restituída à
nacionalidade.
Este ímpeto bandeirante de (re)descoberta é reiterado na última seção do livro.
3.6 – A re-autorização da descoberta
A seção Lóide Brasileiro tem o título apropriado do nome de uma empresa de
navegação que, à época, fazia a conexão transatlântica entre Brasil e Europa. O trânsito
182
por ela revisitado é, de certa forma, equivalente ao da seção que a antecede, na medida
que prolonga a semântica do descobrimento: passa-se dos caminhos entre São Paulo e o
interior de Minas para o percurso quinhentista das caravelas, atualizado pela experiência
social cosmopolita da elite letrada paulista.
Espécie de diário de bordo, deparamo-nos mais uma vez com um roteiro, que
tem em Lisboa seu ponto de partida e em São Paulo seu destino final. Como que a
religar as duas pontas do livro, está ultima seção se abre com um poema que, análogo à
escapulário, que abria a viagem de ida, faz as vezes de um canto propiciatório, para a
viagem de volta.
canto de regresso à pátria
Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que eu volte para lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que eu volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo (idem, p. 130).
A pretensão do redescobrimento, impõe que se esconjurem os “espíritos”
daqueles que anteriormente se aventuraram na viagem da nacionalidade. Clara paródia à
Canção do exílio de Gonçalves Dias, o poema faz repontar, desautorizada pelo tom
satírico, a presença, já considerada no segundo capítulo, de traços do ideário romântico
na poética de Oswald. Entretanto, estamos diante de um duplo movimento de
183
aproximação e distanciamento em relação à herança do Romantismo, sobretudo se
considerarmos que o caráter indeterminado da remissão à nacionalidade, designada
adverbialmente pelo “”, que, no poema de Gonçalves Dias, vai se preenchendo
indiretamente mediante o jogo contrastivo com o “aqui”, recebe, em Oswald, o
conteúdo histórico-social expresso inequivocadamente no último quarteto, em que se
arma a equação que identifica progressivamente a nacionalidade à São Paulo, e São
Paulo ao progresso da nacionalidade. Parte-se, tal como os românticos, em busca da
nacionalidade, recupera-se a questão do nacional, mas remanejam-se as coordenadas de
sua tematização, condensadas no ponto de referência central consubstancializado por
São Paulo.
À semelhança da seção interior, os poemas vão pontuando um possível itinerário
da expedição de Cabral. Assim, logo após a saída de Lisboa, avista-se do convés o
cruzeiro, os rochedos são paulo, o arquipélago de fernando de noronha. Redesenhando
o mapa náutico quinhentista, agora a serviço da redescoberta pau-brasil, o cabralismo
oswaldiano ressignifica a cartografia colonizadora, voltando-a, uma vez mais, contra o
colonizador interno. Assim, por exemplo, o cruzeiro (idem, p. 131) aparece como cruz
imperfeita/que marcas o calor das florestas/e os discursos de 22 câmaras de deputados,
uma imagem que, a um só tempo, remete à deglutição antropofágica do catolicismo, que
destorce a cruz cristã, e ironiza a recorrência dos lugares comuns “patrioteiros” na
retórica política.
Estes primeiros sinais de terra vão preparando o momento em que, após um
progressivo descortinar-se da pátria no horizonte, o olhar modernista depara-se com o
continente, e passa a reviver as linhas de Caminha, a construir a certidão de
(re)nascimento do Brasil:
recife
Desenvoltura
Atração sinuosa
Da terra pernambucana
Tudo se enlaça
E absorve em ti
Retilínea
Cana de açúcar
Dobrada
184
Para deixar mais alta
Olinda
Plantada
Sobre uma onda linda
Do mar pernambucano
Mas os guindastes
São canhões que ficaram
Em memória
Da defesa da Pátria
Contra os holandeses
Chaminés
Palmares do cais
Perpendiculares aos hangars
E às broas negras d’óleo
Baluarte do progresso
Para render
Os velhos fortes
Carcomidos
Pelos institutos históricos
Na paisagem guerreira
Os coqueiros se empenacham
Como guerreiros em festa
Ruas imperiais
Palmeiras imperiais
Pontes imperiais
As tuas moradias
Vestidas de azul e amarelo
Não contradizem
Os prazeres civilizados
Da Rua Nova
Nos teus paralelepípedos
Os melhores do mundo
Os automóveis
Do Novo Mundo
Cortam as pontes ancestrais
Do Capiberibe
185
Desenvoltura
Concreto sinuoso
Que liga o arranha-céu
À benção das tuas igrejas
Velhas
De abençoar
A gente corajosa
De Pernambuco (idem, pp. 132-133).
A assinatura modernista desta certidão da brasilidade transparece no
deslocamento dos institutos históricos, que carcomem, “musealizam” o passado. O
imperativo pau-brasil é que este seja reativado, a própria cidade, em que tudo se enlaça
e que a tudo absorve, é construída sob a ótica do M.P.B., de convívio entre a herança
colonial e os elementos de modernidade. Nesse sentido, os guindastes são canhões que
ficaram e os automóveis do Novo Mundo cortam as pontes ancestrais.
Reatulizar o descobrimento, reescrevê-lo em versão modernista, implica
enfatizar tais contrastes, mas também pacificar grande parte dos conflitos que pululam
em seus interstícios: procedimento necessário à exigência simbólica de construção de
uma continuidade histórica, prévia ao Modernismo, que é pré-condição para sublinhar a
reivindicação do caráter de ruptura, de obra refundacional, das proposições oswaldianas.
A parcela de transigência conciliadora que assim se inscreve em tal empreendimento,
plasma com elasticidade até mesmo o concreto sinuoso, argamassa flexível que abarca,
envolve e irmana o colonial e moderno, que liga o arranha-céu à benção das igrejas.
O poema versos baianos se organiza segundo esta mesma lógica em que figuram
os sertanejos asfaltados na cidade que alteia cúpulas/torres coqueiros. O mar baiano
cenariza o encontro entre passado e futuro, circunscreve o presente pau-brasil:
[...]
Uma jangada leva os teus homens morenos
De chapéu de palha
Pelos campos de batalha
Da Renascença
Este mesmo mar azul
Feito para as descidas
186
Dos hidroplanos de meu século
Freqüentado rendez-vous
De Holandeses de Condes e de Padres
Que Amaralina atualiza
Poste das saudades transatlânticas
Riscando o ocre fotográfico
Entre Itapoá e o farol tropical
[...] (idem, p. 134).
Uma vez mais, a colonização é contundentemente tematizada, agrupando a
nobreza e o clero sob o signo da mercancia e da evangelização colonial como
prostituição e expropriação da terra. O mar azul, campo de batalha da renascença e
feito para as decidas do hidroplanos, alinhava a continuidade entre passado e futuro,
interligados pelo sentido de presente instaurado pela refundação pau-brasil.
A chegada a este presente poético, coincide, assim, com a chegada do
modernista ao Brasil, roteiro cujo ponto final consubstancializa-se e atinge o clímax
com o anúncio de são paulo, penúltimo poema do livro:
Antes da chegada
Afixam nos offices de bordo
Um convite impresso em inglês
Onde se contam maravilhas de minha cidade
Sometimes called the Chicago of South America
Situada num planalto
2.700 pés acima do mar
E distando 79 quilômetros do porto de Santos
Ela é uma glória da América contemporânea
A sua sanidade é perfeita
O clima brando
E se tornou notável
Pela beleza fora do comum
Da sua construção e da sua flora
A Secretaria da Agricultura fornece dados
Para os negócios que aí se queiram realizar (idem, pp. 135-136).
Contrastando com a “outra” Chicago, os dois últimos versos ligam a
187
prosperidade à agricultura, o progresso ao café. Engenhosamente apropriado de um
anúncio publicitário destinado a investidores estrangeiros, símile século XX da carta de
Caminha ou da crônica de Gandavo, o poema canta São Paulo fazendo as vezes de
testemunha de constatação “dos fatos” impressos, exime-se estrategicamente de
eventuais censuras de auto-promoção. Como no M.P.B., “leitores de jornais [...] no
jornal anda todo o presente” (Andrade, 1972, ps. 208 e 206). Como nos poemas
apropriados de Caminha e Gandavo, a descoberta se impõe ao descobridor, com a
importante diferença de que, agora, ela joga a seu favor.
Assim, a expedição pau-brasil traça seus deslocamentos, distancia-se e retorna,
inscreve sua aparente dispersão nos círculos concêntricos da “pátria paulista”.
Organizando o trânsito Brasil-Europa em torno do itinerário de retorno desta para
aquele, Pau-Brasil desloca o feito europeu da descoberta para a descoberta levada a
efeito pelo paulista, modernista e brasileiro. Em sua circularidade mítica, o livro acaba
como começara, com a importante ressalva de que se passa da desautorização da
descoberta pelo europeu à reautorização da descoberta pela poética Pau-Brasil. Nesse
sentido, o paulicentrismo oswaldiano é o vetor de força que ordena o livro, linha que se
destaca da narrativa por ele roteirizada. O presente da refundação pau-brasil, catalisa-se
em torno de São Paulo, ponto epicêntrico da nacionalidade, nó do presente de
progresso, que amarra a trama entre o passado e o futuro, que pretende restituir sentido
à história do Brasil e inserir o Brasil na “História”.
Se de uma ponta a outra se erguem as vozes que delineiam uma espécie de hino
poético de refundação do Brasil por São Paulo e pelo Modernismo, não seria entretanto,
como vimos, sem que elas mesmas desprendessem seus contrapontos e dissonâncias. O
paulicentrismo não constitui um princípio composicional inequívoco; antes, é uma
linha de força flexível, ambígua, como o próprio feixe de correlações de forças
simbólico-sociais que atravessavam a sociedade paulistana, em cujo interior se gestou
e se desprendeu. O poema que fecha o livro diz muito da poética oswaldiana:
contrabando
Os alfandegueiros de Santos
Examinaram minhas malas
Minhas roupas
Mas se esqueceram de ver
Que eu trazia no coração
188
Uma saudade feliz
De Paris (Andrade, 1966, p. 136).
Embora referido a um dos trânsitos constitutivos da estética oswaldiana, como já
observamos, a conexão Brasil-Europa, o poema é sobretudo uma gargalhada irônica
frente ao guardiões de fronteiras, frente a todos os alfandegueiros prontos a estabelecer
e fixar os co-pertencimentos. Em certo sentido, contrabando é o nome mesmo de toda a
estética deste primeiro modernismo oswaldiano, uma arte do saque e da pilhagem, de
travessia social, espacial e temporal, dos territórios culturais. Movimento que, tal como
a defasagem que o poema instaura, entre as malas e as roupas, de um lado, e o coração,
de outro, se operou pelas tensões, aproximações e afastamentos, entre uma identidade
literária socialmente constituída sob as injunções da dinâmica do campo literário de
então, e uma subjetividade que guardava suas dimensões de incongruência com as
mesmas, que transbordavam os limites inscritos nas solicitações de tal configuração
identitária. Neste nó estético-social circunscreve-se a interioridade poética da obra
oswaldiana, para dentro da qual se canalizam e se retrabalham as forças das quais
advêm tanto os produtos literários que guardam uma carga subversiva, quanto aqueles
que trazem as marcas da reconciliação social.
Tais considerações nos levam a uma breve escala. Desembarquemos da
expedição pau-brasil, e vamos ao embarque de nossas considerações finais.
189
Considerações Finais
A análise empreendida neste trabalho permite afirmar que a estética modernista
oswaldiana esteve inextrincavelmente ligada aos processos sócio-históricos que
assinalaram a emergência, no cenário nacional, da São Paulo cafeicultora. Trata-se de
uma construção literária social e subjetivamente gestada no interior do contexto
conflitivo que marcou o esforço de elaboração de uma ordem simbólica correlata à
ascensão da hegemonia paulista. Hegemonia esta, entretanto, constantemente ameaçada
pelas dissonâncias culturais, advindas do mesmo processo de transformações que a
puseram em marcha.
A configuração do campo literário brasileiro, no início do século XX, situou o
Modernismo paulista em estreita correlação às elites de São Paulo. Entretanto, os
processos de transformação, que atravessam a sociedade paulistana de então,
envolveram o campo político e o campo literário, universos já com seus próprios
embates e disputas internas, num feixe conflitivo de correlação de forças simbólicas
que, em grande medida, “invadiu” e “contagiou” as relações de homologia entre ambos.
Isto é, a relação entre política e literatura, entre grupos letrados e grupos dirigentes da
elite paulistana, esteve atrelada, no caso do Modernismo, não só às injunções que
decorriam das lógicas paralelas e homólogas dos embates travados em seus respectivos
campos, como também às linhas de força que atravessavam o espaço social mais amplo,
em grande parte deflagradas pelos deslocamentos simbólicos e identitários traçados pela
emergência de novos grupos sociais, pela virtualidade corrosiva da alteridade de seus
repertórios e práticas culturais.
Em certo sentido, a estética oswaldiana é uma linha de força simbólica que se
compõe com estas demais linhas, entretecida com e entre elas. Pois, como salientamos,
o modernismo dos Manifestos e da Poesia Pau-Brasil, parece ter recebido seus
contornos tanto da dinâmica interna ao campo literário, aí também incluídas suas
conjunções com os embates travados internamente ao campo político, quanto da
refração que a dinâmica de conflitos sócio-culturais do espaço social encontrava, no
interior de cada um destes campos e nas relações entre eles. Nesta intersecção de forças
confrontadas no topo da hierarquia social, entre os grupos literários e políticos
hegemônicos, sob o impacto dos repertórios culturais oriundos dos grupos populares
subalternos, circunscreve-se o nó estético-simbólico da elaboração do modernismo de
Oswald: interioridade estética composta da canalização e recomposição dos embates
190
travados em um contexto social em mudança e convulsivamente conflitivo.
Paulicentrismo e reabilitação do popular podem ser, assim, pensados como a
elaboração de vetores de significação estendidos no interior do feixe de forças que
compunha a dinâmica social em que se inseria o modernismo oswaldiano, a partir dos
quais ele captava e selecionava os “ingredientes” da composição do Brasil que pretendia
“redescobrir”.
No composto literário oswaldiano, cruzam-se as linhas de força que intersectam
os universos sociais a que nos referimos acima. O nacionalismo era parte importante da
problemática especificamente literária, desde o Romantismo, ainda que análogo aos
litígios do campo político, travados entre as elites pretendentes à hegemonia nacional. O
paulicentrismo, como versão oswaldiana do nacionalismo, é a modulação assumida pela
ressignificação do ideário romântico, em confluência com toda a mítica bandeirante da
nação como expansão da “pátria paulista”. A abertura ao elemento popular responde
tanto às injunções da problemática do campo literário, então sedimentadas e
exemplificadas no chamado “caboclismo”, quanto à necessidade cultural dos grupos
hegemônicos de responder, via domesticação simbólica, às instabilidades geradas na
ordem sócio-simbólica paulistana pela presença e proliferação dos repertórios culturais
e identitários dos novos grupos, emergentes do processo de diversificação social de São
Paulo.
Nesse sentido, como se viu, compreende-se que as proposições e realizações da
“redescoberta” oswaldiana tenham assumido os contornos de uma reescritura do Brasil,
ativada, por sua vez, mediante uma visão paulicêntrica e mediante uma certa lógica de
reabilitação dos elementos culturais subalternos, isto é, da inclusão tendencialmente
reconciliadora dos elementos pertinentes aos grupos que figuravam como alvo
sistemático do rechaço e alijamento por parte dos setores socialmente hegemônicos.
Pode-se pensar, nesta dinâmica, o paulicentrismo como vetor central da
reescritura do Brasil, que tanto corresponde às demandas de uma arte de feitio nacional
para São Paulo, desdobrando para o plano cultural sua reivindicação de liderança
política da nação, quanto contribui para a construção de um eixo tendencialmente
estabilizador da identidade paulista, permitindo, por vezes, capturar, sem prejuízos ao
padrão identitário bandeirante, os elementos pertinentes à cultura dos grupos
subalternos.
Entretanto, os deslocamentos simbólicos do espaço social conflituoso, cujas
forças o modernismo oswaldiano canaliza e reelabora esteticamente, marcariam de
191
ambiguidade, no interior deste movimento mesmo, tais traços de “comprometimento
elitista” da poética de Oswald, revestindo-os simultaneamente de potenciais subversivos
frente à ordem sócio-simbólica bandeirante. É no ponto, política e esteticamente
delicado, de alijamento/reabilitação dos repertórios dos grupos subalternos, que o
modernismo oswaldiano ostenta, com maior intensidade, os afastamentos e
aproximações instaladas. De um lado, entre disposições subjetivas de percepção e
expressão, constituídas no interior de uma experiência social cindida entre a
sociabilidade dos meios hegemônicos e a vivência do contato com os novos universos
culturais; de outro, suas possibilidades de atualização, nos contornos identitários do
homem de letras, sedimentados no campo literário de então.
Parece tratar-se de um ponto de tenso cruzamento e mútua constituição entre o
subjetivo, o literário e o social. Ora a construção literária se instala na “coincidência”
entre as disposições expressivas e as demandas subsumidas na prática literária,
codificada nas injunções do campo, e coadunadas na demarcação social do “homem de
letras”; ora consubstancializa o próprio desacordo entre ambas, marcando o
transbordamento de dimensões subjetivas em relação aos limites inscritos nas
solicitações de tal configuração identitária.
Deste modo, se foi possível identificar traços de sua poética que se inscrevem e
se alimentam dos contornos da matriz simbólica bandeirante, também foram
perceptíveis aqueles que se situam em seu interior para ameaçar subvertê-la, desviá-la
contra os bandeirantes. Ou seja, se a matriz simbólica bandeirante constituiu muitas das
linhas de força, que armaram a poética de Oswald, esta não deixa de ser uma força que
diversas vezes contestou de dentro a matriz simbólica bandeirante. Os gestos de
transigência se insinuam na reiteração de elementos essenciais à mítica do
bandeirantismo: a busca das origens da nacionalidade, a centralidade atribuída ao papel
de São Paulo na história brasileira, o revestimento de tal papel com a aura de um
processo de refundação do país, levado a efeito pelo presente, consubstancializado na
São Paulo republicana, visto como o coroamento do passado bandeirante.
Por sua vez, as dissidências simbólicas comparecem, toda vez que elementos
“estranhos” à paulistanidade bandeirante escapam à neutralização de seus aspectos
conflitivos, sendo ativados em seu potencial interrogador e corrosivo da ordem sócio-
simbólica que o bandeirantismo pretendia integrar e estabilizar: poemas ou proposições
que suspendem a demarcação dos lugares sociais da cultura legítima, operando a
intromissão do subalterno no hegemônico, diluindo as fronteiras ou invertendo as
192
hierarquizações entre ambos; evocando os contágios e invasões entre universos culturais
socialmente distintos, configurando uma perspectiva de dinâmica simbólica marcada
pela multilateralidade e heterogeneidade dos trocas e elementos, estranha, portanto, às
pretensões de pureza das origens, de superioridade cultural, de fixidez e supremacia
identitárias.
Pode-se afirmar, com efeito, não obstante tenha sido gestado no mesmo processo
simbólico que deu vida à “Reação Nacionalista” e à “épica bandeirante”, que o Brasil
construído pelo modernismo de Oswald elimina o caráter potencialmente xenófobo e
exclusivista destes nacionalismos defensivos. Com efeito, a lógica que presidiu a
equalização entre o paulicentrismo oswaldiano e a reabilitação do popular é análoga,
por assim dizer, à própria oscilação deste habitus flutuante, simultânea atualização de
disposições condizentes com a posição social do autor e de disposições que se rebelam
frente os códigos correlatos à mesma.
Em termos de sedimentação de uma ordem sócio-simbólica, a estética
oswaldiana, entretecida nos confrontos inscritos nas desestabilizações simbólicas,
envolvidas no processo de diversificação social de São Paulo, liberava potenciais
subversivos, na própria medida que implicava o rompimento dos estratos simbólicos
social e culturalmente hierarquizados. Todavia, também convertia esta possível
dissidência em cumplicidade, ao operar a neutralização do subalterno pelos esquemas
perceptivos do hegemônico.
Por fim, uma vez mais, deve-se observar que tais oscilações e ambiguidades
eram constitutivas da própria figura de Oswald de Andrade. Uma figura a que as
particularidades de trajetória e inserção reservaram um pertencimento sociocultural no
interior dos grupos hegemônicos, na mesma medida em que criaram, contudo, as
possibilidades de um relativo estranhamento e desconforto com os padrões
comportamentais e expressivos majoritários nos mesmos, sem, entretanto, diluir os
obstáculos da distância social que tornavam inconcebíveis seu acolhimento ou inserção
plena, na lógica social dos demais grupos. Esta ausência de um pertencimento social
totalmente inequívoco, ou, melhor dizendo, a presença deste trânsito sempre aberto
entre o popular e o erudito, o hegemônico e o subalterno, circunscreveu a figura de
Oswald tanto em um elo social de ligação entre os escritores modernistas e a elite
política paulista, como entre esta nata letrada e privilegiada e os demais grupos sociais
subalternos. A inserção social de Oswald era suficientemente ambígua para situá-lo
como um ponto de tensão entre as forças simbolicamente conflitivas dos universos
193
culturais dos grupos populares e das elites; assim sua literatura operou ora a intromissão
“clandestina” do subalterno na pátria do hegemônico, ora a domesticação hegemônica
dos territórios subalternos, ou, ainda, o repatriamento de ambos em seus respectivos
territórios.
Nesse sentido, pode-se afirmar que as condições sociais de surgimento do
modernismo oswaldiano emergiram num campo de forças e lutas simbólicas compostas
pelo choque direto entre grupos letrados postulantes à hegemonia cultural e política e,
indiretamente, pelo embate entre as suas formas de percepção e os universos culturais
dos grupos subalternos marginalizados da Primeira República. Com relação aos
primeiros, o modernismo oswaldiano encenou a ruptura de um vínculo, cuja solidez
permaneceu insuspeita sob a nuvem de fumaça despendida por seus ataques; em relação
aos segundos, a acolhida distante ou inexistente demonstrou a dificuldade das novas
propostas para recompor um laço continuamente cindido, de cujo esgarçamento somos
ainda hoje tributários.
Este ponto de chegada é menos uma conclusão que o esboço de um novo ponto
de partida. A figura e a literatura esquivas de Oswald de Andrade talvez possam se
prestar ao prosseguimento de nossas problematizações, naquele ponto mesmo em que
mais ostensivamente se situa tal esquivez: o humor e ironia oswaldianas possivelmente
revelam muito da dinâmica social e subjetivamente conflitiva de uma elaboração
literária que fez do riso, de si mesma e de seus contemporâneos, uma forma expressiva
dos dilemas e perplexidades que se impõem à elaboração estética na e da sociedade
brasileira. Uma sociedade que se impondo de modo semelhante em relação à
investigação social, não cessa de interrogar e desestabilizar nossos artefatos teóricos e
esquemas de inteligibilidade.
194
Bibliografia
Amaral, Aracy A. Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas; São Paulo: Ed. 34/
Fapesp, 1997.
_____.Tarsila, sua obra e seu tempo. São Paulo: Perspectiva/ Edusp, 1975.
Anderson, Benedict. Comunidades imaginadas – reflexões sobre a origem e difusão do
nacionalismo. São Paulo: Companhia da Letras, 2008.
Arendt, Hannah. A condição humana. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1993.
Argan, Guilio Carlo. História da arte como história da cidade. 4ª ed São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
Barbero, Jesus Martín. Dos meios às mediações – comunicação, cultura e hegemonia. 2ª
ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.
Basbaum, Leôncio. História sincera da República – das origens a 1889. 4ª ed. São
Paulo: Alfa-Ômega, 1976.
_____. História sincera da República – de 1889 a 1930. 4ª ed. São Paulo: Alfa-Ômega,
1976.
Baumann, Zygmund. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
Bello, José Maria. História da República (1889-1954) – síntese de sessenta e cinco anos
de vida brasileira.. 4ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.
Benévollo, Leonardo. História da cidade. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1993.
Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política – ensaios sobre literatura e história
da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
195
_____. Rua de mão única. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
_____. Textos de Walter Benjamin. (org.) Kothe, Flávio R. São Paulo: Ática, 1985.
Berman, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar – a aventura da modernidade.
São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
Boaventura, Maria Eugênia (org). 22 por 22: A Semana de Arte Moderna vista pelos
seus contemporâneos. 2ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
_____. A vanguarda antropofágica. São Paulo: Ática, 1985.
_____. O salão e a selva: uma biografia ilustrada de Oswald de Andrade. Campinas:
Unicamp, São Paulo: Ex Libres, 1995.
Bosi, Alfredo. As letras na Primeira República. In: Boris, Fausto (org.). História geral
da civilização brasileira – o Brasil republicano – sociedade e instituições (1889-1930).
vol. II. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
_____. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
_____. Moderno e Modernista no Brasil. In: _____. Céu, Inferno. São Paulo: Ática,
1988.
Bourdieu, Pierre. A distinção – crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto
Alegre: Zouk, 2007.
_____. A economia das trocas simbólicas. Sérgio Miceli (org.). 3ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 1992.
_____. As regras da arte – gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
_____. O poder simbólico. 8ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
196
Brah, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. In.: Cadernos Pagu, nº 26, janeiro-
junho de 2006: pp. 329-376.
Brito, Mário da Silva. As metamorfoses de Oswald de Andrade. São Paulo: Conselho
Estadual de Cultura, s/d.
_____. História do modernismo brasileiro, 1. – antecedentes da semana de arte
moderna. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
Broca, Brito. Vida literária no Brasil, 1900. 3ªed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
Bruno, Ernani Silva. Histórias e tradições da cidade de São Paulo. 2ª ed. São Paulo:
Hucitec, 1984; v.2.
Camargos, Márcia. Villa Kyrial – crônica da belle époque paulistana. São Paulo: Senac,
2001.
Campos, Haroldo de. Miramar na mira. In: Andrade, Oswald. Obras completas II. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
_____. Serafim: um grande não-livro. In: Andrade, Oswald de. Serafim Ponte Grande.
São Paulo: Globo, Secretaria de Estado da Cultura, 1990a.
_____. Uma poética da radicalidade. In: Andrade, Oswald de. Poesias reunidas. São
Paulo: Difel, 1966.
Cândido, Antônio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987.
_____. Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade. In.: _____. Vários escritos. 4ª
ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Duas Cidades, Ouro sobre Azul: 2004, pp. 33-62.
_____. Formação da literatura brasileira – momentos decisivos. 2v. 2ª ed. São Paulo:
Martins, 1964.
197
_____. Literatura e sociedade – estudos de teoria e história literária. 8ªed. São Paulo: T.
A. Queiroz, 2000.
Cano, Wilson. Base e superestrutura em São Paulo (1886-1929). In: Lorenzo, Helena
Carvalho de; Costa, Wilma Paes da. A década de vinte e as origens do Brasil moderno.
São Paulo: Ed. Unesp, 1997.
Cardoso, Fernando Henrique. Dos governos militares a Prudente-Campos Sales. In:
Fausto, Boris (org.). História geral da civilização brasileira – o Brasil republicano
estrutura de poder e economia (1889-1930). vol. I. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2000.
Carone, Edgar. A República Velha – evolução política. 2ª ed. São Paulo, Difel, 1974
Carvalho, José Murilo de. A formação das almas – o imaginário da República no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
_____. Os bestializados – o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo:
Companhia das letras, 1987.
Chalmers, Vera Maria. 3 linhas e 4 verdades: o jornalismo de Oswald de Andrade. São
Paulo: Duas cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São
Paulo, 1976.
Chiarelli, Tadeu. Um jeca nos vernissagens – Monteiro Lobato e o desejo de uma arte
nacinal no Brasil. São Paulo: Edusp, 1995.
Dantas, Arruda. Dona Olívia (Olívia Guedes Penteado). São Paulo: Pannartz, 1975.
Dean, Warren. A industrialização de São Paulo (1880-1945). 3ª ed. São Paulo: Difel.,
s.d.
198
Deleuze, Gilles; Guatarri, Felix. 1874 – Três novelas ou “o que se passou?” In.:
_____.Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. v. 3. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996,
pp. 63-82.
Doin, José Evaldo de Melo. O capitalismo bucaneiro: materialidade e cultura na saga
do café. v. 1. Franca, 2001. Tese (Livre Docência em História) Unesp – Franca.
Dutra, Eliana Regina de Freitas. O Almanaque Guarnier, 1903-1914 – ensinando a ler o
Brasil, ensinando o Brasil a ler. In.: Abreu, Márcia (org). Leitura, história e história da
leitura. Campinas: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil; São Paulo:
Fapesp, 1999.
Eulálio, Alexandre. A aventura brasileira de Blaise Cendrars. 2º ed. São Paulo: Edusp/
Fapesp, 2001.
Fabris, Annatereza. O futurismo paulista – hipóteses para o estudo da chegada da
vanguarda no Brasil. São Paulo: Perspectiva/ Edusp, 1994.
Fausto, Boris. A crise dos anos vinte e a revolução de 1930. In.: _____. (org.). História
geral da civilização brasileira – o Brasil republicano – sociedade e instituições (1889-
1930). vol. II. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000a.
_____. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2ª ed. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
_____. Expansão do café e política cafeeira. In.:______ (org.). História geral da
civilização brasileira – o Brasil republicano – economia e finanças nos primeiros anos
da república. vol. I. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
_____. Trabalho urbano e conflito social (1890-1920). São Paulo: Difel, 1977.
Ferreira, Antonio Celso. A epopéia bandeirante – letrados, instituições, invenção
histórica (1870-1940). São Paulo: Edunesp, 2002.
199
_____. Um eldorado errante – São Paulo na ficção histórica de Oswald de Andrade.
São Paulo: Unesp, 1996.
Gelado, Viviana. Poéticas da transgressão – vanguarda e cultura popular nos anos 20
na América Latina. Rio de Janeiro: 7 Letras; São Carlos: Edufscar, 2006.
Guiddens, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Edunesp, 1991.
Habermas, Jurgen. Mudança estrutural na esfera pública – investigações quanto a uma
categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
Hahner, June. Pobreza e Política – os pobres urbanos no Brasil 1870/1920. Brasília: Ed.
Unb,1993.
Hall, Stuart. A identidade cultural na Pós-modernidade. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2005.
Hallewell, Laurence. O livro no Brasil – sua história. São Paulo: T. A. Queiroz: Edusp,
1985.
Hardman, Francisco Foot. Nem pátria nem patrão! – memória operária, cultura e
literatura no Brasil. 3ªed. São Paulo: Edunesp, 2002.
Hobsbawn, Eric. A era das revoluções – 1789-1848. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1981.
Hobsbawn, Eric. A era do capital – 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977
Holanda, Sérgio Buarque de. As influências regionais. In:______(org.) História geral
da civilização brasileira – O Brasil monárquico – do Império à República. vol. V. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000a.
200
_____. O manifesto de 1870 In:______(org.) História geral da civilização brasileira –
O Brasil monárquico – do Império à República. vol. V. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2000.
_____. Raízes do Brasil. 26ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio,1994.
Homem, Maria Cecília Naclério. Palacete paulistano e outras formas urbanas de morar
da elite cafeeira. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Lafetá, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Editora
34, 2000.
Lajolo, Marisa; Zilberman, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática,
1996.
Lauerta, Milton. Os intelectuais e os anos 20 – moderno, modernista, modernização. In:
Lorenzo, Helena Carvalho de; Costa, Nilma Peres da (org.). A década de 20 e as
origens do Brasil moderno. São Paulo: Edusp, 1997, p.93-114.
Levi, Darrel E. A família Prado. São Paulo: Cultura 70, 1977.
Love, Joseph. A locomotiva – São Paulo na federação brasileira (1889-1937). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1982.
_____. Autonomia e interdependência – São Paulo e a federação brasileira. In.: Fausto,
Boris (org.). História geral da civilização brasileira – o Brasil republicano – estrutura
de poder e economia (1889-1930). vol. I. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
Martins, Ana Luiza e De Luca, Tania Regina. História da imprensa no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2008.
Martins, Wilson. História da inteligência brasileira – (1915-1933). vol. VI. São Paulo:
Cultrix: Edusp, 1978.
201
Micelli, Sérgio. Experiência social e imaginário literário nos livros de estréia dos
modernistas em São Paulo (2004). disponível em:
www.scielo.br/pdf/ts/v16n1/v16n1a10.pdf acessado em 17/03/2009.
_____. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-45). São Paulo/Rio de Janeiro:
Difel, 1979.
_____. Nacional estrangeiro – história social e cultural do modernismo artístico em São
Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Morse, Richard. A formação histórica de São Paulo – de comunidade a metrópole. São
Paulo., Difel,1970
Naves, Rodrigo. A forma difícil – ensaios sobre arte brasileira. 2ª ed. São Paulo: Ática,
1997.
Paes, José Paulo. A ruptura vanguardista: as grandes obras. In.: Ana Pizarro (org)
América Latina: palavra, literatura e cultura. v. 3. São Paulo: Memorial; Campinas:
Unicamp, 1995.
Porto, Antônio Rodrigues. História urbanística de São Paulo (1554-1988). São Paulo:
Carthago e Forte, 1992.
Rancière, Jacques. A partilha do sensível – estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005.
Riedel, Diaulas (org). O planalto e os cafezais: São Paulo. São Paulo: Cultrix, 1959.
Rocha, João Cezar de Castro. Literatura e cordialidade – o público e o privado na
cultura brasileira. Rio de Janeiro: Eduerj, 1998.
Santos, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.
Schwarcz, Lilia Moritz. As barbas do Imperador. 10ª ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
202
Schwartzman, Simon. São Paulo e o Estado nacional. São Paulo: Difel, 1975.
Schwarz, Roberto. Que horas são? – ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Seigel, Jerrold. Paris boêmiacultura, política e os limites da vida burguesa (1830-
1930). Porto Alegre: L e PM, 1992.
Sennett, Richard. Carne e pedrao corpo e a cidade na civilização ocidental. 2ª ed. Rio
de janeiro: Record, 2001.
_____. O declínio do homem público – as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998.
Sevcenko, Nicolau. Literatura como missão – tensões sociais e criação cultural na
Primeira República. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
_____. Orfeu estático na metrópole – São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos
20. São Paulo: Companhia das Letras. 1992.
Simmel, Georg. Metrópole e vida mental. In: Velho, Otávio G. (org). O fenômeno
urbano. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
Sodré, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. 9ª ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1995.
Sousa, Gilda de Melo e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980.
Souza, Laura de Melo e. O diabo e a Terra de Santa Cruz – feitiçaria e religiosidade
popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, s.d.
Sussekind, Flora. Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
203
Willians, Raymond. O campo e a cidade, na história e na literatura. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
Wisnik, José Miguel. O coro dos contrários: a música em torno da semana de 22. 2ª ed.
São Paulo: Duas Cidades, 1983.
Obras literárias.
Almeida, Guilherme e Andrade, Oswald de. Mon coeur balance; Le âme. Tradução
Pontes de Paula Lima. São Paulo: Globo, 1991.
Andrade, Oswald de. Manifesto da Poesia Pau – Brasil. e Manifesto antropófago. In.:
Teles, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro
apresentação crítica dos principais manifestos, prefácios e conferências vanguardistas,
de 1875 até hoje. Petrópolis: Vozes, 1972.
_____. Poesias reunidas. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1966.
_____.Um homem sem profissão – sob as ordens de mamãe. São Paulo, Globo:
Secretaria de Estado da Cultura, 1990.
_____.Memórias sentimentais de João Miramar. 6ª ed. e Serafim Ponte Grande. 5ª ed.
In.: ______. Obras completas II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
_____.O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Globo, 1992.
______. Estética e Política. Pesquisa e organização Maria Eugênia Boaventura. São
Paulo: Globo, 1992 a.
Andrade, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. 6ª ed. São Paulo: Martins, 1978a.
______. Macunaíma. 1ª ed. Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros; v. 17. Rio de
Janeiro: MEDIAfashion, 2008.
204
Bilac, Olavo. Obra Reunida. (org.) Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.
Caminha, Pero Vaz de. Carta a el Rey Dom Manuel. 2ª ed. São Paulo: Ediouro, 2000.
Gandavo, Pero de Magalhães. História da Província de Santa Cruz (1576). disponível
em: www.literaturabrasileira.ufsc.br/arquivos/texto/0006-00942.html. acessado em
10/06/09.
Lobato, Monteiro. A onda verde e O presidente negro. São Paulo: Brasiliense, 1948.
_____. Contos escolhidos. (org.) Marisa Lajolo. São Paulo: Brasiliense, 1989.
Machado, Antônio de Alcântara. Brás, Bexiga e Barra Funda e outros contos. São
Paulo: Moderna, 1997.
Bibliotecas e arquivos pesquisados
Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos.
Biblioteca da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Campus de
Franca).
Centro de Documentação Alexandre Eulálio (CEDAE), Unicamp.
Núcleo Interdisciplinar Literatura e Sociedade (NILS), UFSCar.