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Representações da Violência
e da Punição na Justiça
Informal Criminal
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Representações da Violência
e da Punição na Justiça
Informal Criminal
André Luiz Faisting
Editora UFGD
DOURADOS-MS, 2009
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Direitos reservados à
Editora da Universidade Federal da Grande Dourados
Rua João Rosa Goes, 1761
Vila Progresso – Caixa Postal 322
CEP – 79825-070 Dourados-MS
Fone: (67) 3411-3622
www.ufgd.edu.br
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AGRADECIMENTOS
Um trabalho de pesquisa em Ciências Sociais sempre se desenvolve
com o apoio de muitas pessoas, sejam os autores de outros trabalhos que
nos inspiram e nos orientam, sejam os agentes sociais e as pessoas comuns
que, de forma gentil e prestativa, compartilham conosco suas experiências
pessoais e profi ssionais. Há, ainda, nossos amigos, familiares, mestres
e colegas da universidade que sempre nos apóiam e enriquecem nossa
tarefa com críticas construtivas. Assim, é necessário o agradecimento a
algumas dessas pessoas, já que seria impossível citar todas que, direta ou
indiretamente, contribuíram para a realização desse trabalho.
Aos operadores do Direito da Comarca estudada pela forma gentil e
prestativa com que me receberam e me auxiliaram em inúmeras situações.
Ao CNPq, pela bolsa e outros recursos que ofereceram as condições
materiais para realização da pesquisa. Aos professores Paul Freston e Luiz
Henrique de Toledo, pelas importantes sugestões que fi zeram por ocasião do
Exame de Qualifi cação. Aos professores Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer,
Fernando Afonso Salla e Maria Aparecida de Moraes Silva, pela leitura
crítica que fi zeram do texto para o Exame de Defesa, cujos comentários e
sugestões enriqueceram substancialmente o trabalho.
Aos queridos amigos Sylvio e Maristela Dionysio de Souza, pela
presença constante em minha vida desde a adolescência, sempre me
incentivando a estudar e me orientando sobretudo nas questões morais.
Aos colegas de turma, especialmente Márcio Mucedula, Pedroso Neto,
Kelen Leite, Regina Granja, Márcia Vazzoler e Regina Laisner que, desde
a graduação, compartilharam comigo a experiência de uma intensa “vida
universitária”, muitas vezes vivenciada para além dos muros da própria
universidade.
A todos os mestres que, de alguma forma, contribuíram para minha
formação acadêmica, especialmente à professora Norma Valêncio, que
me ensinou a valorizar a importância da função social da universidade, e
aos professores Maria Inês Mancuso, Marly Viana e Valter Silvério, pela
amizade, carinho e dedicação que sempre dispensaram a mim e aos meus
colegas, nos orientando em todos os momentos de nossa trajetória. À
memória do professor Antônio Carlos de Andrada e Silva, pela peculiar
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delicadeza da alma, e do inesquecível professor José Albertino Rodrigues
que, apesar dos poucos meses de convivência conosco, foi determinante nas
nossas escolhas no campo das Ciências Sociais.
Agradeço especialmente à professora Maria da Glória Bonelli, pelos
comentários valiosos que fez no Exame de Defesa, mas sobretudo pela
amizade e apoio permanente que me ofereceu ao longo de minha formação
acadêmica. Ao professor Karl Monsma, não apenas pela orientação segura
e competente, mas também pela amizade e sensibilidade em compreender
que, às vezes, meus problemas pessoais impediram que minhas escolhas
fossem as melhores.
Agradeço, fi nalmente, à minha família: à memória de meu pai,
Aparecido Faisting, minha maior referência, meu melhor amigo, e de minha
inesquecível irmã, Lazara Faisting, pela alegria de viver e pelo exemplo de
vida; à minha querida irmã Leonor (Preta), pelo carinho e proteção que
sempre me ofereceu desde a infância, e aos meus irmãos Benedito, José
Carlos e Viviane, pela convivência feliz que tivemos e por tudo o que
me ensinaram; à minha amada mãe, Antônia, pelo amor incondicional e
cuidados maternos que nunca me faltaram, e à minha esposa Luiza, que
vivenciou de perto minhas angústias e me fortaleceu nos momentos mais
difíceis. Se esse trabalho pôde ser concluído, eu devo a ela esse mérito; aos
meus fi lhos Matheus e Felipe, pois mesmo sem compreender o signifi cado
de uma tese, permitiram que ela lhes roubasse o tempo a que eles tinham
direito de estar comigo. A eles, portanto, minha eterna gratidão.
Para Luiza, Matheus e Felipe
Com muito amor
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .....................................................................................
1. DESAFIOS À ABORDAGEM SOCIOLÓGICA DO SISTEMA
DE JUSTIÇA ....................................................................................
1.1 - A Sociologia do Direito e a Reforma do Sistema de Justiça ....................
1.2 - A Ampliação do Acesso a partir da Informalização da Justiça ..................
1.3 - Representações Sociais e Sistema de Justiça ...........................................
1.4 - A Importância do Ritual na Análise Sociológica do Judiciário ..................
1.5 - Ação e Estrutura na Análise Sociológica das Instituições Jurídicas .........
2. O PROCESSO CONTEMPORÂNEO DE INFORMALIZAÇÃO
DA JUSTIÇA ...................................................................................
2.1 - Controle Social e Pluralismo Jurídico na Justiça Informal .......................
2.2 - Limites da Classifi cação dos Confl itos como “Pequenas Causas” .....
2.3 - A Justiça Informal no Brasil: origem e dilemas .........................................
2.4 - O Juizado Especial Criminal no Sistema de Justiça Penal ....................
2.5 - Representações da Violência e da Punição na Justiça Informal .............
2.6 - O Impacto do Juizado Especial Criminal nos Confl itos de Gênero ..............
3. O JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL A PARTIR DE UM
ESTUDO DE CASO ........................................................................
3.1 - Organização do Material e Tipologia das Audiências ...........................
3.2 - Caracterização do Juizado a partir das Variáveis Quantitativas ..............
3.3 - Os Efeitos da lei 9.099/95 sobre a Delegacia de Defesa da Mulher .........
3.4 - A Percepção dos Juízes sobre o Juizado Especial Criminal ....................
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3.5 - As Audiências Preliminares de Conciliação: aspectos do ritual ...............
3.5.1 - Tipifi cação das audiências segundo a confi guração profi ssional ..........
3.5.2 - Tipifi cação das audiências segundo a relação entre as partes ...............
3.5.3 - Tipifi cação das audiências segundo a natureza das causas ...................
3.5.4 - Tipifi cação das audiências segundo o resultado fi nal ............................
CONCLUSÕES .....................................................................................
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................
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INTRODUÇÃO
Embora no Brasil a produção sociológica sobre o mundo do Direito
ainda seja pequena, o esforço de alguns autores para ultrapassar as análises
limitadas aos códigos processuais tem contribuído para uma reorientação
nos estudos sobre o sistema de justiça. Tais estudos são decorrentes de vários
fatores, como a crescente preocupação com os direitos humanos, assim como
a própria Constituição de 1988 que teve como resultado a difusão de vários
temas jurídicos e institucionais. Dentre esses temas, destacam-se justamente
aqueles voltados para a ampliação do acesso à justiça, que, juntamente com
a questão da morosidade no andamento dos processos, constitui a base do
que se convencionou chamar de “crise do Judiciário”.
De fato, o acesso à justiça é provavelmente o tema que mais
diretamente equaciona as relações entre igualdade formal e desigualdade
social, pois a crença de que todos são iguais perante a lei signi ca uma
igualdade meramente formal, já que a isonomia, nesse caso, decorre da
norma jurídica e não da realidade social.
1
É dentro desse contexto de
difi culdades práticas e teóricas que deve se pensar o desenvolvimento
histórico dos movimentos de acesso à justiça. De acordo com Cappelletti
e Garth (1988:31-73), tal movimento no Estado moderno se desenvolveu a
pa r ti r de tr ês fa ses: a a ssis tência ju diciá r ia co mo m eio de sup er ar a s b ar re ir as
existentes; as reformas necessárias para a defesa dos interesses difusos; e
as transformões no processo visando a abertura das necesrias vias de
acesso. Nesta última fase, na qual o objetivo é tornar os procedimentos
1 Weber (1999) já apontava para este dilema ao colocar a necessidade, para compreender o tipo
ideal de desenvolvimento do direito nas sociedades modernas, do contraste entre a “ordem jurídica”
e a “ordem econômica”. Segundo ele, é preciso considerar dois campos para compreender melhor
as relações entre direito e sociedade, quais sejam, o “campo do ideal”, que caracteriza a perspectiva
propriamente jurídica, e o “campo do real”, o qual possibilita o desenvolvimento da perspectiva
sociológica. O importante a destacar nessa distinção é que, enquanto no campo do ideal busca-se apenas
o sentido normativo do direito, de maneira a investigar o sentido correto das normas cujo conteúdo se
apresenta como uma ordem que não permite contradição lógica interna, no campo do real, ao contrário,
a pergunta é o que de fato acorre na realidade social, dado que existe a possibilidade de as pessoas
participantes das ações da comunidade considerarem “subjetivamente” determinadas ordens como
válidas, orientando suas condutas por elas. Em síntese, enquanto o plano do ideal da ordem jurídica
da teoria do direito representa o plano da vigência pretendida, o plano do real da ordem econômica
representa o plano dos acontecimentos reais. Quando a ordem jurídica e a ordem econômica estão
relacionadas, é porque a ordem jurídica é vista em seu “sentido sociológico”, ou seja, a partir da
vigência empírica e não da idealizada.
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mais céleres, informais e econômicos para certas demandas, a prática da
conciliação tem sido o principal instrumento utilizado, pois busca uma
justiça rápida, menos burocrática e sem a necessidade de formalismo. É
assim que foram surgindo, paralelamente aos instrumentos convencionais e
formais de administração da justiça, os novos mecanismos de resolução de
confl itos a partir de instituições ágeis e mais ou menos profi ssionalizadas,
de forma a ampliar o acesso e diminuir a morosidade judicial.
Essas novas estratégias de controle social também passaram a
incorporar, assim, a contribuição dos estudos sociológicos sobre o sistema
de justa, justi cado pelo fato de que as de ciências do Judiciário e a
crescente controvérsia sobre como saná-las despertam cada vez mais o
interesse acadêmico e estimulam a pesquisa sociológica na área. É dentro
dessa vertente, ou seja, da análise da lógica de funcionamento do sistema
de justiça informal na área criminal, que desenvolvemos o presente estudo,
com destaque para o processo ritual nas audiências preliminares de
conciliação, base na qual opera a justiça informal no Brasil.
A importância dos estudos com este recorte justi ca-se pelo fato
de que, embora o processo de informalização dos procedimentos judiciais
seja freqüentemente destacado como uma forma de ampliação das vias de
acesso, faltam ainda análises mais precisas sobre a lógica de funcionamento
deste tipo de justiça em termos das variáveis mais qualitativas, em especial
àquelas relacionadas às formas de representação social e do ritual que
ocorrem durante as audiências preliminares de conciliação. Ou seja, o
entendimento da justiça informal passa não apenas pela constatação da
ampliação do acesso, mas também pelo tipo de justiça que é oferecida
àqueles que buscam nesse sistema a solução para seus con itos de natureza
interpessoal e intersubjetiva. Por essa razão, também buscamos nesse
estudo compreender como a estrutura social dos casos jurídicos pode
infl uenciar na maneira como eles são de fato tratados, além das variáveis
que determinam o tipo de interação que se estabelece entre agentes e
litigantes.
2
Com efeito, quando se conhece quem são as partes litigantes,
2 Black (1989) considera fundamental avaliar em que medida as características sociais, políticas,
familiares, econômicas e religiosas tanto dos agentes quanto das partes litigantes influenciam a definição
dos interesses em jogo no processo. Em contraposição ao que chama de modelo jurisprudencial, o
autor propõe a ênfase no modelo sociológico como forma de focar a estrutura social do caso e,
dessa forma, compreender como ele é efetivamente tratado. Nessa perspectiva, enquanto o modelo
jurisprudencial é prático e enfoca apenas as regras, preocupando-se em como os casos deveriam ser
decididos, o modelo sociológico é científico e preocupa-se em como os casos são realmente tratados.
Além disso, enquanto o primeiro modelo é lógico e busca obter decisões, o segundo é comportamental
e busca interpretar os fenômenos sócio-jurídicos.
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quem são seus representantes legais, quem decide o resultado, qual a
distância social entre as partes em si e entre as partes e os agentes, quais
interesses representam - individuais ou corporativos -, como se manifestam
nas audiências etc., provavelmente se compreenderá melhor as razões de
certos casos serem tratados desta ou daquela maneira.
É dentro deste quadro, portanto, que elegemos como estudo de
caso o Juizado Especial Criminal de uma Comarca de porte médio do
interior do Estado de São Paulo, concebendo-o como uma nova instância
de distribuição de justiça que está inserida num contexto mais amplo do
processo contemporâneo de informalização dos procedimentos judiciais.
A lei 9.099/95, que criou o sistema dos Juizados, foi saudada por muitos
estudiosos do sistema de justiça como um dos maiores avanços na legislação
brasileira justamente por sua proposta despenalizante, ao introduzir a
aplicação de penas não privativas de liberdade a determinados delitos,
defi nidos como de menor potencial ofensivo (GRINOVER, 1997). Tal
concepção surgiu do contexto internacional de informalização da justiça,
no qual se constatou que, na sociedade moderna, a repressão não era capaz
de resolver determinados con itos sociais. Além disso, acreditava-se que
as demandas oriundas dos delitos da vida cotidiana como a violência
conjugal, brigas de vizinhos ou de trânsito, por serem consideradas menos
relevantes, precisavam ser retiradas do Poder Judiciário.
Com efeito, os Juizados Especiais Criminais trouxeram conseqüên-
cias para a dinâmica do sistema de justiça como um todo, por exemplo,
mudanças nas funções dos magistrados. Nesta instância de justiça, esses
operadores acabam desempenhando um papel diferente daquele exercido
na justiça comum e formal, na qual, além da neutralidade que deve
caracterizar sua função, eles exercem efetivamente o seu poder de decisão,
condenando ou absolvendo os acusados. Na justiça informal, ao contrário,
os juízes não apenas interagem de maneira mais direta com os litigantes,
lançando mão de valores sociais em detrimento de procedimentos técnico-
jurídicos, mas também exercem a função de conciliadores que buscam,
através do acordo entre as partes, encerrar o processo sem que se precise
condenar ou absolver os acusados.
3
3 Tal constatação revela também os limites do chamado processo de “dupla institucionalização” do
Poder Judiciário. Este é o argumento de Lempert e Sanders
(1986:246-276) ao afirmarem que os juízes
podem, muitas vezes, confundir as funções de conciliação e decisão. Ou seja, ao mesmo tempo em que
se criam formas distintas de prática judiciária, em ambos os sistemas o que prevalece é a existência
de um mesmo tipo de profissional treinado em uma única lógica dominante no sistema de justiça
formal de decisão. Os autores acreditam que, com a instalação da justiça informal de mediação nos
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Finalmente, cabe ressaltar que, desde o início do estudo de caso
que realizamos, fomos percebendo que as audiências preliminares de
conciliação eram, num certo sentido, ritualizadas. Assim, priorizamos
a análise qualitativa dessas sessões no intuito de compreender tal ritual,
partindo do pressuposto de que, com a institucionalização da justiça
informal, criam-se formas distintas de prática judiciária que se sustentam
em normas e valores também distintos. Considerando principalmente a
estrutura social dos casos e as formas de representação da violência e da
punição, portanto, buscamos identi car a maneira como os operadores do
direito interagem entre si e com as partes litigantes, estabelecendo, assim,
um tipo de ritual característico desta instância de justiça.
O texto que ora apresentamos como resultado deste estudo está
estruturado da seguinte forma: no primeiro capítulo apontamos para
alguns dos desa os teóricos e conceituais ao estudo do sistema de justa,
destacando a necessidade de compreensão da justiça informal como um
dos principais focos de reforma do sistema de justiça; no segundo capítulo,
o objetivo foi caracterizar este processo contemporâneo de informalização
da justiça, partindo da existência de um certo “pluralismo jurídico como
fundamento deste movimento; fi nalmente, no terceiro e último capítulo,
procuramos descrever e analisar os dados empíricos levantados junto à
Comarca estudada, caracterizando o Juizado Especial Criminal em termos
das variáveis quantitativas para, posteriormente, desenvolvermos a análise
qualitativa dos dados, o que representou o objetivo principal do estudo
realizado.
Estados Unidos, criaram-se duas instituições que se baseiam em lógicas diferentes mas que contam
com um mesmo tipo de profissional, e,com isso, nas audiências de pequenas causas o processo segue
o modelo adversário, ou seja, “apesar do propósito de uma mudança radical no papel do juiz, ele
continua sendo um juiz no sentido tradicional na maioria dos tribunais (…) por mais que os juízes
procurem ser mediadores ou conciliadores, não conseguem, no decorrer dos casos, descartar o papel
judicial e o poder coercivo inerente que os acompanham”.
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1. DESAFIOS À ABORDAGEM SOCIOLÓGICA DO SISTEMA
DE JUSTIÇA
1.1 - A Sociologia do Direito e a Reforma do Sistema de Justiça
A aproximação cada vez maior entre a Sociologia e o Direito tem
permitido uma maior refl exão sobre os fenômenos jurídicos, contribuindo,
assim, para a identi cação de problemas relativos à maneira como
funciona o sistema de justiça. Cappelletti e Garth (1988:7) consideram a
invasão de cientistas sociais no domínio do direito como algo positivo,
pois essa integração permite a união de esforços para enfrentar aquilo que
eles consideram uma batalha histórica, ou seja, a luta pelo acesso à justa.
Também é neste sentido que Santos (1989:39) argumenta ser a Sociologia
do Direitoo ramo da Sociologia que mais tem feito sentir o peso dos
precursores – da teria sociológica clássica - em termos de orientações
teóricas e criações conceituais”. Isto porque, segundo o autor, ocupa-se de
um fenômeno social sobre o qual incidem séculos de produção intelectual.
Com efeito, pode-se dizer que praticamente todos os autores do
pensamento sociológico clássico se preocuparam, de alguma maneira,
com o direito como um fenômeno social. O contraste entre Durkheim e
Marx, por exemplo, é ilustrativo desse aspecto: enquanto Durkheim aponta
para uma concepção de direito como indicador privilegiado dos padrões de
solidariedade social, Marx o considera como expressão última de interesses
de classes, ou seja, um instrumento de dominação econômica e política que
opera a transformação ideológica dos interesses da classe dominante em
interesse coletivo universal. Contudo, para muitos autores foi Eugen Eh rlich
(1986, c.1967) quem criou as precondições teóricas da transição para uma
nova visão sociológica centrada nas dimensões processuais e institucionais
do direito. É nessa mesma transição que se situa a obra de Weber, cuja
preocupação em defi nir a especifi cidade e o lugar privilegiado do direito
nas sociedades capitalistas levou-o a centrar sua análise nos profi ssionais
encarregados da aplicação das normas jurídicas e na burocracia estatal.
Contudo, apesar dessa tradição intelectual, para Santos (1989:42-53)
foi apenas nas décadas de 60 e 70 que se consolidou um novo e vasto campo
de estudos sociológicos sobre a administração da justiça, a organização dos
t r i bu n a is , a fo r m a ç ã o e r e c r u t a m e n t o d o s m a g i s t r a d o s , s u a s m o t i v a ç õ e s p a r a a s
sentenças e ideologias políticas e profi ssionais, custo da justiça, bloqueamento
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dos processos e o ritmo do seu andamento em suas várias fases. As condições
teóricas para essa consolidação se sustentaram no desenvolvimento de três
áreas de conhecimento: a Sociologia das Organizações, especialmente o
interesse específi co pela organização judiciária e pelos tribunais; a Ciência
Política, pelo reconhecimento dos tribunais enquanto instância de decisão
e de poder político; e a Antropologia do Direito, pela substituição da ênfase
nas normas pela ênfase nos comportamentos e nas representações.
Considerando-se esse desenvolvimento teórico ao qual a Sociologia
do Direito foi se adaptando ao longo do século passado, pode-se dizer
que atualmente são três os grandes temas desta disciplina: as questões
do acesso à justiça, da administração da justiça, e dos mecanismos de
resolução dos con itos sociais. Apesar de esses temas estarem diretamente
associados quando se estuda o sistema de justiça, veri ca-se que a questão
do acesso e da administração da justiça tem sido, freqüentemente, o centro
do debate sociológico sobre o Judiciário. No entanto, mesmo considerando
a relevância de ambos, cuja discussão ainda não foi superada pelos graves
problemas que ainda suscitam, acreditamos que hoje há a necessidade de
uma ênfase maior no problema relativo à resolução dos con itos sociais.
No que se refere a esse desafi o, cabe ressaltar que a contribuição
inicial foi dada pela Antropologia do Direito que, ao analisar as formas de
direito totalmente diferentes das existentes nas sociedades ditas civilizadas,
destacou sistemas com pouca ou mesmo nenhuma especialização baseados
na informalidade, rapidez, participação ativa da comunidade, conciliação e
mediação. Ao mesmo tempo, evidenciou-se uma pluralidade de direitos numa
mesma sociedade convivendo e interagindo de diferentes formas.
4
Muitos
estudos se seguiram nessa perspectiva, tendo como unidade de análise o
litígio e não a norma, e por orientação o chamado “pluralismo jurídico.
Contudo, Cappelletti e Garth (1988:75) argumentam que, em
vários países desenvolvidos, os reformadores do sistema de justiça, no
intuito de encontrar métodos alternativos para decidir causas judiciais,
também têm utilizado cada vez mais o juízo arbitral, a conciliação e os
incentivos econômicos para a solução de litígios fora dos tribunais. Essas
técnicas variam e podem ser obrigatórias ou opcionais, mas a atividade
4 Ainda hoje este referencial torna-se essencial para a compreensão das novas formas institucionalizadas
de distribuição de justiça, como é o caso da justiça informal criminal no Brasil, objeto de nosso estudo.
A proposta é que tão importante quanto estudar o grau e o tipo de acesso à justiça, as suas estruturas
formais de forma objetiva, é compreender a lógica de funcionamento do sistema também em sua
configuração subjetiva, considerando o comportamento dos agentes a partir de suas ações no que se
refere à reprodução destas mesmas estruturas.
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mais importante tem sido relacionada a tipos particulares de causas,
especialmente as chamadas “pequenas causas”. Além das reformas dos
tribunais regulares, o mais importante movimento em relação à reforma
do processo, segundo os autores, se caracteriza pela criação de tribunais
especializados, como foi o caso, no Brasil, do Juizado Especial de Pequenas
Causas, hoje transformados em Juizados Especiais Cíveis e Criminais.
Neste mesmo sentido, referindo-se ao processo de democratização da
administração da justiça como dimensão fundamental para a consolidação
da democracia, Santos argumenta:
as reformas que visam a criação de alternativas constituem hoje uma das
áreas de maior inovação na política judiciária. Elas visam criar, em paralelo
à administração da justiça convencional, novos mecanismos de resolução
dos ligios, cujos traços constitutivos têm grande semelhança com os
originalmente estudados pela Antropologia e pela Sociologia do Direito,
ou seja, instituições leves, relativa ou totalmente desprofissionalizadas,
por vezes impedindo a presença de advogados, de utilização barata, se não
mesmo gratuita (SANTOS, 1995:176)
No que se refere ao caso brasileiro, embora Sadek e Arantes
(1994:36) tenham considerado que os membros do Poder Judiciário tendem
a manifestar comportamentos menos sensíveis à pressão pública e são mais
fechados ao debate, Faria (1994:46) argumenta que a magistratura tem
sido obrigada a refletir um pouco mais sobre suas funções sociais. E são os
magistrados lotados no interior e nas periferias das regiões metropolitanas
os que sofrem o choque mais direto das contradições entre o sistema
jurídico positivo e as condições reais da sociedade. Com efeito, a partir da
institucionalização da justiça informal, alguns juízes de primeira instância
já tentam substituir o tradicional papel de adjudicação pelo equilíbrio dos
diferentes interesses em confronto, utilizando-se de instrumentos como a
mediação e a conciliação dos conflitos para evitar que se instaure o processo
formal. Enfim, o importante a destacar neste debate é que compreender a
lógica de funcionamento do sistema de justiça hoje é compreender também
quais são os desafios do próprio Judiciário. A informalização da justiça é,
sem dúvida, um destes desafios.
5
5 Uma das conclusões a que chegamos em trabalho anterior sobre a justiça informal cível foi que,
apesar da tendência à informalização da justiça e à lógica da conciliação, os juízes ainda sentem
dificuldades em atuar como conciliadores uma vez que são formados e socializados dentro de uma
lógica formal que valoriza o seu poder de decisão. Com isso, muitas vezes acabam simplesmente
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O estudo que agora apresentamos sobre a justiça informal na área
criminal no Brasil pretendeu revelar, entre outras coisas, a maneira como os
operadores do direito interagem entre si e com as partes litigantes, muitas
vezes substituindo os argumentos jurídicos e normativos por argumentos
sustentados em valores socioculturais externos ao Judiciário. Tal situação
é característica da justiça informal na medida em que o seu espaço permite
que tais valores sejam manifestados de forma mais livre, revelando, por
um lado, uma forma de “justiça terapêutica” e, por outro, os estereótipos
freqüentemente obscurecidos pela formalidade jurídica.
1.2 – A Ampliação do Acesso a partir da Informalização da Justiça
Embora a expressão “acesso à justiça” seja de difícil definição,
serve para determinar pelo menos duas finalidades básicas do sistema de
justiça: um sistema igualmente acessível e que produza resultados justos.
Cappelletti e Garth (1988:8) argumentam que a análise histórica do direito
permite trar uma evolução no conceito de acesso à justiça. Nos Estados
burgueses do século XVIII e XIX, o acesso formal, mas não efetivo,
correspondia à igualdade apenas formal e não efetiva.
À medida que as sociedades foram crescendo em tamanho e
complexidade, a atuação do Estado tornou-se cada vez mais necessária para
a garantia dos direitos fundamentais. De fato, o direito ao acesso efetivo à
justiça tem sido progressivamente reconhecido como fundamental, sendo
encarado por muitos como o mais básico dos direitos humanos. Contudo,
isso não significa que os obstáculos ao acesso foram superados, ou seja,
verifica-se que, mesmo nas sociedades modernas e democráticas, o acesso
continua tendo um caráter mais formal e menos efetivo. Tal constatação,
portanto, nos coloca como necessidade identificar alguns dos obstáculos
a este acesso, com o intuito apenas de apontar para os fundamentos que
levaram ao surgimento do processo contemporâneo de informalização da
justiça como um dos instrumentos para superar os obstáculos e garantir um
acesso mais efetivo.
Provavelmente, o obstáculo mais aparente seja aquele que se refere
às custas judiciais, pois, em geral, a resolução formal de litígios é muito
reproduzindo na justiça informal procedimentos que são típicos da justiça comum e formal. Apesar
disso, os magistrados procuram manter o controle das duas justiças e impedir, com isso, que uma nova
categoria profissional assuma o controle da justiça informal (FAISTING, 1999).
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dispendiosa na maior parte das sociedades modernas. Embora o Estado
seja o responsável pelo pagamento dos salários dos juízes e proporcione
os recursos necessários aos julgamentos, por exemplo, não garante os
honorários advocatícios nem outras custas judiciais. Nesse sentido, os
altos custos, na medida em que uma ou ambas as partes devem suportá-
los, constituem uma importante barreira ao acesso. Pode-se dizer que
o problema torna-se ainda mais complexo quando envolve as pequenas
causas, já que a relação entre os custos e o valor da causa cresce na medida
em que este se reduz. Am disso, o tempo é outra variável importante para
o problema das custas judiciais, já que a morosidade do processo pode levar
aqueles economicamente mais fracos a abandonar suas causas.
Ao argumentar contra os obstáculos econômicos de acesso à justiça,
Santos (1989:46) também aponta para estudos realizados em países europeus
que demonstraram que nas sociedades capitalistas o custo é muito elevado e
a justiça é proporcionalmente mais cara para os cidaos economicamente
mais fracos. O conjunto de todos esses estudos demonstrou ainda que a
relação entre discriminação social e acesso à justiça é muito mais complexa
do que se imagi na, pois, além dos condicionantes econômicos, há t ambém os
condicionantes sociais e culturais, resultantes de processos de socialização
e de interiorização de valores muito difíceis de se transformar.
O importante a ressaltar é que, diante dessas dificuldades, surgem
cada vez mais propostas de reformas do sistema judiciário como forma de
diminuir as barreiras existentes. Assim, cabe destacar também as soluções
práticas para os problemas de acesso à justiça que têm sido oferecidas pelos
vários “reformadores”. Para Cappelletti e Garth (1988:31), o despertar de
interesse em torno do acesso efetivo à justiça levou a três posições básicas
no Ocidente a partir do início da década de 60.
O primeiro movimento se refere à assistência judiciária aos menos
favorecidos economicamente, uma vez que os esquemas de assistência
judiciária da grande maioria dos países se baseavam, em geral, em serviços
prestados por advogados particulares (assistência gratuita). Os autores
acreditam que este tipo de assistência permitiu aos menos favorecidos
economicamente um maior acesso. Contudo, esse não poderia ser o único
enfoque a ser dado na reforma que visava ampliar o acesso à justiça, já
que a assistência judiciária estatal apenas não resolveria o problema,
principalmente se pensada em termos da qualidade da justiça oferecida, e
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não apenas do ponto de vista do acesso quantitativo.
6
O segundo movimento diz respeito à representação dos interesses
difusos. De acordo com os autores, esta “onda” relativa aos direitos coletivos,
como o direito ambiental e direito do consumidor, forçou a refl exão sobre
noções tradicionais do processo civil e sobre o papel dos tribunais, que não
deixava espaço para a proteção desses interesses.
Finalmente, o terceiro movimento ampliou a concepção de acesso à
justiça e se tornou o instrumento mais adequado para enfrentar o problema. Ou
seja, enquanto a preocupação dos dois primeiros enfoques foi basicamente
encontrar representação efetiva para interesses antes não representados
ou mal representados, o novo enfoque teria alcance muito mais amplo na
medida em que centra sua atenção no conjunto geral de instituições e
mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo
prevenir disputas nas sociedades modernas, justifi cadas pelo fato de que os
novos confl itos sociais não se resolvem apenas com representação judicial,
mas exigem novos mecanismos procedimentais que os tornem exeqüíveis
(CAPPELLETTI e GARTH, 1988:67).
Essa nova abordagem de acesso à justiça teria como principal
vantagem encorajar a exploração de uma ampla variedade de reformas,
incluindo alterações nas formas de procedimento, mudanças na estrutura
dos tribunais ou a criação de novos tribunais, o uso de pessoas leigas,
modifi cações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou facilitar sua
solução, e a utilização de mecanismos privados ou informais de solução dos
confl itos. Além disso, tal concepção pressupõe também que as partes devem
ser levadas em consideração na busca da solução de seus confl itos. E nesse
sentido, argumentam os autores que a mediação ou outros mecanismos de
interferência apaziguadora são os métodos mais apropriados para preservar
os relacionamentos” (CAPPELLETTI e GARTH , 1988:72).
No Brasil, tal experiência ganhou destaque com a criação, na década
de 80, dos Juizados Especiais de Pequenas Causas. Contudo, alguns
problemas persistiram, e a idéia de uma “crise do Judiciário” continuou
fazendo parte do debate acadêmico sobre o sistema de justiça. Alguns autores
6 Para os autores, entre os limites da assistência judiciária como forma de ampliar o acesso à
justiça destacam-se os seguintes: a) para garantir a assistência judiciária seria necessário um grande
número de advogados, especialmente nos países em desenvolvimento; b) mesmo havendo advogados
suficientes, era preciso que eles se dispusessem a auxiliar os que não podem pagar pelos seus serviços;
c) a assistência judiciária não poderia solucionar o problema das pequenas causas individuais, uma
vez que os advogados pagos pelo governo normalmente não se dispõem em levar adiante essas causas,
consideradas menos relevantes.
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apontam que os sinais de defi ciente funcionamento da justiça são distintos:
institucionais, estruturais e procedimentais. A crise institucional diz respeito
ao seu formato constitucional como poder independente e sua relação com
os outros poderes. A crise estrutural é provavelmente o aspecto mais visível
da “crise do Judiciário”, pois refere-se à sua pesada estrutura e à sua falta de
agilidade. Finalmente, a crise relativa aos procedimentos refere-se à esfera
legislativa propriamente dita e aos ritos processuais, correspondentes ao
campo que envolve, por exemplo, a busca de procedimentos mais rápidos,
simples e econômicos para certas demandas, apostando no fato de que a
denominada “desformalização” do processo aumentaria a efi ciência do
Judiciário (SADEK e ARANTES, 1994:21)
.
Com efeito, nenhum conjunto
de artigos foi objeto de tantas emendas quanto o referente ao Judiciário na
Constituição de 1988, a qual também buscou, neste campo, uma justiça
rápida e efi ciente.
Foi neste sentido que, em 1995, se ampliaram as funções dos Juizados
Especiais de Pequenas Causas, sendo-lhes dada a atribuição também para
atuar sobre as pequenas causas na área criminal. No caso da justiça informal
criminal, portanto, campo no qual se concentrou nossa pesquisa, coloca-se
também a necessidade de compreender melhor a lógica de funcionamento
deste sistema. Para tanto, optamos por estudar o processo ritual desenvolvido
nas audiências preliminares de conciliação. Em outras palavras, buscamos
compreender como profi ssionais e litigantes interagem e se manifestam
sobre violência e punição nesta instância de justiça, onde são tratados os
chamados crimes de menor potencial ofensivo. Assim, cabe discutir, ainda
que brevemente, a importância dos conceitos de representação e de ritual
aplicados ao estudo do sistema de justiça.
1.3 - Representações Sociais e Sistema de Justiça
A concepção de representações com a qual trabalhamos neste texto
se refere ao conceito utilizado no campo das Ciências Sociais, ou seja, no
sentido da forma como as pessoas representam suas idéias, seus valores
e suas “concepções de mundo”. Com efeito, pode-se dizer que um dos
objetivos da Sociologia sempre foi compreender as mais variadas formas de
representações sociais, identifi cando o modo como, em diferentes contextos
e momentos, uma determinada realidade social é pensada e reproduzida
por seus membros. Disso resulta uma certa diversidade no uso do referido
conceito.
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Uma primeira diferenciação importante é com respeito à noção de
representações em geral, no sentido de uma imagem ou reprodução de algo
que não está presente, e de representações coletivas no sentido durkheimiano,
que não são produzidas individualmente e tem a ver com os fundamentos
de nosso entendimento do mundo. No primeiro caso, as representações
sobre a sociedade são produzidas tanto por cientistas sociais como por
pessoas comuns, que utilizam rotineiramente uma grande variedade de
representações da realidade social. Tais representações fornecem um retrato
parcial que é, todavia, adequado a alguma proposta. Ou seja,
qualquer representão da realidade social – um filme documentário, um
estudo demográfico, um romance realista - é necessariamente parcial,
menor do que aquilo que se poderia vivenciar e achar disponível no
ambiente real. É por isso que as pessoas fazem representações: para relatar
somente aquilo que é necessário para fazermos o que nos propusemos a
fazer. Uma representação eficiente diz tudo o que se precisa saber para um
objetivo determinado, sem desperdiçar tempo com o que não é necessário
(BECKER, 1997:140).
Por esta razão, segundo o autor, os modos de representação fazem
mais sentido quando vistos num contexto organizacional. Nesta perspectiva,
todos nós somos usuários e produtores de representações. Para Becker, em
mundos dominados por produtores, as representações tomam a forma de
argumentos: ressalta apenas os pontos que o produtor quer transmitir (ato
profi ssionalizado de fazer representações). Em mundos onde predominam os
usuários, as representações são utilizadas como arquivos a serem revistados
à procura de respostas para quaisquer questões que os usuários tenham em
mente (representações leigas).
A outra concepção – a de representações coletivas - permite conceber as
representações como as “matrizes de práticas construtoras do próprio mundo
social”. Para Chartier, o retorno a Marcel Mauss e a Émile Durkheim, e à noção
de representação coletiva, permite compreender, além das práticas que visam
a fazer reconhecer uma ‘identidade social’, “as formas institucionalizadas
e objetivadas em virtude das quais ‘representantes’ (instâncias coletivas ou
indivíduos singulares) marcam de modo visível e perpétuo a existência do
grupo, da comunidade ou da classe” (CHARTIER, 91:183)
Embora o tema das representações esteja presente nos principais
autores do pensamento sociológico clássico, pois enquanto Weber trabalha
de forma particular a noção de “visão do mundo”, na perspectiva marxista
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as representações estão associadas à forma como o modo de produção da
vida material determina o modo de vida dos indivíduos como princípio
básico do “pensamento” e da “consciência”, foi Durkheim quem realmente
elegeu, de maneira mais elaborada, as representações sociais como a
forma mesmo de entender a vida em sociedade, argumentando que “a
vida coletiva, como a vida mental do indivíduo, é feita de representações”
(DURKHEIM, 1970:16). É na esfera da religião, em seu exemplar estudo
sobre as Formas Elementares da Vida Religiosa, que o autor desenvolve o
conceito de representações coletivas.
7
A ênfase no aspecto social, portanto, é o que permite caracterizar as
representações coletivas. É assim que Durkheim propõe que, quando se
admite a origem social das categorias, uma nova atitude se torna possível.
Ao contrário do empirismo, no qual os estados individuais se explicam
inteiramente pela natureza psíquica do indivíduo, as categorias são
representações essencialmente coletivas; traduzem, antes de tudo, estados da
coletividade, ou seja, “dependem da maneira pela qual esta - a coletividade -
é constituída e organizada, de sua morfologia, de suas instituições religiosas,
morais, econômicas etc.” (DURKHEIM, 1983:518)
A sociedade, nesses termos, seria uma realidade sui generis, com
características próprias, e as representações que as exprimem teriam, assim,
uma natureza distinta das representações individuais. A própria maneira
pela qual elas se formam as diferencia.
as representações coletivas são o produto de uma imensa cooperação que se
estende não apenas no espaço, mas no tempo; para fa-las, uma multidão
de espíritos diversos associaram, misturaram, combinaram suas iias e
sentimentos; longas séries de gerações acumularam aqui sua experiência
e seu saber. Uma intelectualidade muito particular, infinitamente mais
rica e mais complexa do que a do indivíduo, está aqui, portanto, como
que concentrada (...) O homem é duplo: nele existem dois seres; um ser
individual (...) e um ser social que representa em nós a mais alta realidade
na ordem intelectual e moral que possamos conhecer pela observação, isto
é, a sociedade (DURKHEIM, 1983:518-519).
Com isso, o simples reconhecimento da importância do conceito
7 A religião, assim, estaria vinculada às representações coletivas na medida em que é uma forma de
representação e de concepção do mundo, e constitui a via através da qual Durkheim veio a elaborar
os primeiros delineamentos da Sociologia do Conhecimento. Além disso, a religião é eminentemente
social uma vez que as representações coletivas exprimem realidades coletivas.
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de representações remete, necessariamente, ao conceito durkheimiano de
representações coletivas. Importa para os nossos propósitos que, além
da religião, outros fenômenos como a moral, a linguagem, as formas de
classifi cação e o próprio direito também são compostos de representações.
Na verdade, pode-se dizer que tais fenômenos institucionalizam as
representações.
Nesse sentido, para compreendermos como as representações são
institucionalizadas no sistema de justiça informal criminal, recorremos a
Goffman (1991),
8
para quem a interação face-a-face deve ser considerada
não apenas por meio da fala, como freqüentemente é feito nos estudos sobre
o sistema de justiça, mas também a partir de outros gestos e atitudes. É
assim que o autor aponta para os dois signifi cados da expressividade, ou
seja, a capacidade de dar impressão: “as expressões dadas” e as “expressões
emitidas”. A primeira representa as expressões que se transmitem através de
símbolos verbais somente para veicular a informação. A segunda, por sua
vez, inclui uma ampla gama de ações que deduz que ela foi levada a efeito
por outras razões diferentes da informação assim transmitida. Goffman
trabalha com o segundo tipo de comunicação, a de expressão emitida, que
caracteriza, segundo ele, “o tipo mais teatral e contextual, a de natureza
não verbal e presumivelmente não intencional” (GOFFMAN, 1991:14).
Sobretudo na análise de rituais, portanto, não basta considerar apenas os
aspectos da fala, mas associada a ela também os gestos, as expressões e o
próprio cenário da interação.
Daí a importância do que o autor chama de fachada, ou seja,
o “equipamento expressivo” empregado pelo indivíduo durante sua
representação. O aspecto cênico da fachada corresponde ao cenário, aspecto
físico onde ocorre a representação. A diferença de posição entre as pessoas
reunidas numa sala de audiências, por exemplo, é reveladora deste aspecto:
a organização dos espaços é pensada de forma que o juiz normalmente se
coloque dentro do cenário de maneira a se mostrar superior aos demais;
8 Goffman (1999) recorre à linguagem teatral, entendida como uma estrutura de exposição de
conteúdos, para explicar o conceito de representação, pois considera que o homem em sociedade
sempre utiliza formas de representação para se mostrar aos outros. O autor utiliza o conceito de
representação para se referir a “toda atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado
por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre estes alguma
influência” (1999:28). No que se refere ao estudo do sistema de justiça, esse tipo de abordagem da
representação oferecida por Goffman também sugere especial atenção à análise do ritual nas interações
desenvolvidas no âmbito deste sistema.
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sua mesa se coloca muitas vezes sobre um nível mais alto, caracterizando
inclusive uma espécie de “altar”, onde ele possa olhar para as outras pessoas
de cima para baixo e nunca num mesmo nível. É assim que o cenário tende
a permanecer sempre numa mesma posição, de modo que aqueles que o
usam como parte de sua representação não possam atuar até que se tenham
colocado no lugar adequado e devam terminar a representação ao deixá-lo.
O outro aspecto da fachada é o pessoal, que corresponde aos itens do
equipamento expressivo identifi cado com o próprio ator que o acompanha
onde quer que ele vá, tais como sexo, idade, vestuário, características
raciais, aparência, atitude, padrões de linguagem, expressões faciais, gestos
corporais etc. De acordo com esses aspectos como as pessoas se apresentam,
o processo de interação, e, portanto, o processo ritual, pode se desenvolver
com características específi cas. É assim que o autor destaca ainda dois
estímulos que formam a fachada pessoal: a “aparência” e a “maneira”. A
aparência revela o status social do ator, e assim informa também o estado
ritual temporário do indivíduo; a maneira informa acerca do papel de
interação que o ator espera desempenhar na situação que se aproxima. Nas
palavras do autor,
uma maneira arrogante ou agressiva pode dar a impressão de que o ator
espera ser a pessoa que iniciará a interação verbal e dirigirá o curso dela.
Uma maneira humilde pode dar a impressão de que o ator espera seguir o
comando de outros, ou pelo menos que pode ser levado a proceder assim
(GOFFMAN, 1990:31).
Finalmente, é na “realização dramática” que o indivíduo empreende
esforços para que sua atividade se torne signifi cativa aos outros. Para tanto,
ele a mobiliza de modo tal que expresse, durante a interação, o que ele precisa
transmitir. Ou seja, ele precisa incluir, em sua atividade, sinais que acentuam
e confi rmam de modo efetivo os fatos que, sem isso, poderiam permanecer
obscuros. A dramatização de certas atividades, portanto, correspondem a
esses objetivos e nos levam a considerar, também, a importância do ritual
no estudo das instituições jurídicas.
1.4 – A Importância do Ritual na Análise Sociológica do Judiciário
Da mesma forma que o conceito de representações, historicamente
a concepção de ritual sempre esteve ligada às manifestações religiosas,
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no contraste entre as representações do mundo mágico-religioso e o
mundo profano.
9
Contudo, uma nova abordagem dos rituais tem permitido
compreender eventos de natureza distinta daqueles que lhes deram origem.
É assim que Peirano acredita que o estudo dos rituais assume um signifi cado
especial quando transplantado dos estudos clássicos para o mundo moderno.
O foco antes direcionado para um tipo de fenômeno considerado não
rotineiro e específico, geralmente de cunho religioso, amplia-se e passa
a dar lugar a uma abordagem que privilegia eventos que, mantendo o
reconhecimento que lhes é dado socialmente como fenômenos especiais,
diferem dos rituais clássicos nos elementos de caráter probabilísticos que
lhe são próprios (...) na análise de eventos, mantém-se o instrumental
básico da abordagem de rituais, mas implicações são redirecionadas e
expandidas (PEIRANO, 2001:17)
Num ensaio cuja proposta é discutir o conceito e a importância do
ritual na seara antropológica, a autora enfatiza o aspecto comunicativo e a
propriedade da fala nos rituais. Partindo principalmente das contribuições
de Jakobson e Austin, ela reconhece nesses autores a ênfase no domínio
da ação, do ato e do rito, e assim ressalta a necessidade de focalizar,
além do que os sujeitos dizem fazer, o que eles efetivamente fazem. A
fala, nesta perspectiva, é vista como um evento comunicativo e deve ser
colocada em contexto para que seu sentido seja compreendido, quer dizer,
“não é possível, portanto, separar o dito e o feito, porque o dito é também
feito” (PEIRANO, 2001:10-11).
Além disso, o que importa ressaltar é que, nessa perspectiva, falas
e ritos podem revelar processos existentes na vida cotidiana. Vemos,
portanto, que mais recentemente tem-se enfatizado no estudo dos rituais
a possibilidade de transformação de fatos cotidianos e ordinários em fatos
extraordinários da vida social. Além disso, o ritual é visto como processo de
mudança de uma estrutura para outra (TURNER, 1974). E é nesse sentido
que podemos eleger o ritual como forma de compreender as interações
entre agentes e litigantes no âmbito da justiça informal criminal, ou seja,
partindo da idéia de transição de um estado social para outro, no qual o
ritual da conciliação entre as partes permite a passagem de uma situação
de conflito para uma situação de pacificação social.
9 É assim que Durkheim associa o fenômeno do ritual ao fenômeno das representações e das crenças,
argumentando que o domínio das representações e das práticas rituais encontram-se definitivamente
no domínio das significações.
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Numa situação mais concreta, as interações entre agentes e litigantes
nesta instância de justiça são mediadas através da fala, que é utilizada
tanto pelos operadores do direito quanto pelos atores em conflito para
justificarem as ações destes. Contudo, do ponto de vista do ritual, a fala
não seria o único elemento a ser considerado na análise destas interações.
De forma geral, em contextos sóciojurídicos os diferentes papéis sociais
desenvolvidos, além de corresponderem diretamente aos diferentes
graus de hierarquia estabelecidos pelo sistema de justiça, podem também
determinar o ritual. Nesse sentido, é ilustrativo o estudo que Schritzmeyer
desenvolveu sobre o Tribunal do Júri em São Paulo, apontando como uma
das principais conclusões que
n e s s a s s e s s õ e s , h á u m a t e a t r a l i d a d e d e t e r m i n a n t e n ã o p a s s í v e l d e s e r c o n t i d a ,
transmitida e registrada em palavras escritas. Tal teatralidade é intrínseca
ao funcionamento do Júri porque sua matéria-prima são situações sociais
especialmente marcadas por relações de poder e por emoções tais como
compaixão, ódio, pena, indignação e sentimento de pertencer ou não a
um grupo (...) ser homem ou mulher, hétero, homo ou bissexual; casado,
amasiado ou solteiro; ter ou não ter filhos; ser jovem, maduro ou idoso;
falar um português correto ou sofrível; usar roupas novas ou surradas; ficar
cabisbaixo ou altivo; ter voz grave ou aguda, tudo passa a ser socialmente
significativo. Sinais individuais são interpretados como reveladores de
características de papéis sociais (SCHRITZMEYER, 2003:02-05)
Com efeito, o Tribunal do Júri talvez seja a instância de justiça na
qual a importância do ritual possa ser percebida com mais clareza, pois
está diretamente associado às formas de representações sociais que, como
enfatiza a autora, tem a ver com as relações de poder e as emoções. O
importante a ressaltar é que tais emoções, vivenciadas ordinariamente
no cotidiano das pessoas comuns, ganham um aspecto extraordinário e
signifi cativo quando representadas e ritualizadas no Tribunal do Júri.
Embora, do ponto de vista da potencialidade ofensiva dos crimes, se
tratem de instâncias de justiça totalmente distintas, alguns contrastes entre o
que ocorre nas audiências do Tribunal do Júri e nas audiências preliminares de
conciliação podem ser ilustrativos para compreender a importância do ritual
também no sistema de justiça informal. Pode-se dizer, por exemplo, que a
origem dos dramas sociais que envolvem os dois cenários são praticamente
as mesmas, embora o desfecho dos confl itos sejam diferentes. Ou seja, tanto
num caso como no outro, os crimes são marcados majoritariamente por
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relações de poder, sentimentos e emoções. Além disso, é provável que muitos
dos homicídios entre cônjuges e familiares possam ter origem nos pequenos
delitos envolvendo agressões e ameaças, o que faz inclusive com que muitos
autores e operadores técnicos considerem a justiça informal criminal como
uma instância preventiva de crimes mais graves.
Outro aspecto que aproxima essas duas instâncias de justiça é que, em
ambos os casos, os operadores representam para leigos. Ou seja, da mesma
forma que advogados e promotores no Tribunal do Júri tentam “comover”
os jurados no intuito de absolver ou condenar os réus, os magistrados no
Juizado Especial Criminal buscam “convencer” as partes litigantes a superar
o confl ito e encerrar o processo, recorrendo, para tanto, aos valores sociais
e morais externos ao sistema de justiça, pertencentes à vida cotidiana das
pessoas envolvidas no confl ito. Enfi m, o importante a ressaltar é que, em
ambos os contextos, os profi ssionais se utilizam de uma linguagem não
jurídica para alcançar seus objetivos. É assim que a autora argumenta que
“embora o Júri seja um ritual marcado pela atuação de operadores técnicos,
são os efeitos dramáticos por eles produzidos que sustentam essa instituição
enquanto locus socialmente reconhecido e legitimado do controle do poder
de matar(SCHRITZMEYER, 2003:20).
Contudo, uma diferença importante entre o Tribunal do Júri e o
Juizado Especial Criminal é que, enquanto no primeiro cenário o réu se
torna apenas um espectador interessado, nas audiências preliminares de
conciliação o acusado, assim como a vítima, atuam de forma direta no
processo ritual, considerando que nesta esfera de justiça não é obrigatória
a presença de advogados.
10
Tal constatação nos remete, ainda, à noção de
ritual também como dimensão da prática, da performance, e, assim, ao
aspecto participativo de todos os envolvidos no confl ito na busca de uma
solução para seus problemas. Nesse sentido, ainda é possível buscar outras
analogias, por exemplo, com o caráter terapêutico em processos de cura
nas sociedades tradicionais, onde todos participam ativamente do processo
ritual. Para tanto, também é ilustrativo um estudo antropológico realizado
por Magnani (2003) sobre o processo de cura na religião umbandista.
10 A conseqüência dessa interação direta entre juízes e litigantes na justiça informal criminal é que,
assim como os profissionais utilizam argumentos não propriamente jurídicos para resolver os conflitos,
vítimas e acusados também acabam tendo a oportunidade de manifestar de forma concreta seus
sentimentos e emoções, revelando, com isso, muitos dos valores apreendidos a partir de experiências
em outros espaços, em especial nas instituições familiares e religiosas. Assim, o contraste entre os
valores sociais e as regras normativas do direito resulta num tipo de interação que acaba tornando
peculiar o processo ritual nas audiências preliminares de conciliação.
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Sem entrar na descrição dos fundamentos dessa religião, o autor
busca compreender o próprio ritual mobilizado no processo de cura de
doença mental. Após relatar um caso de cura com riqueza de detalhes
etnográfi cos, o autor aponta para algumas conclusões que nos permitem
comparar este ritual com os rituais desenvolvidos para as resoluções de
confl itos interpessoais nos tribunais informais. Embora a referência seja
em relação aos contrastes entre o processo desenvolvido no âmbito de um
sistema religioso e os espaços institucionais para tratamento da doença
mental, é possível estabelecer, de forma análoga, as mesmas aproximações
quando se compara a justiça informal de conciliação com a justiça comum
e formal. Nas palavras do autor,
diferentemente do hospital, por exemplo, a casa da mãe-de-santo – onde
está situado o terreiro, ou local do culto – não se distingue das demais
edificões do bairro (...) Já as marcas de ruptura que o hospital introduz
o são, assim, tão sutis: o edifício se destaca - grande e alto, branco e
cercado de muros – com guichês, corredores, salas, celas e funcionários
(MAGNANI, 2003:20).
Em termos comparativos, portanto, este complexo hospitalar
equivaleria à justiça comum com toda sua estrutura formal e impessoal.
Já o espaço do terreiro corresponderia ao contexto da justiça informal, no
qual a interação se realiza de forma mais pessoal. Em outras palavras,
enquanto o terreiro estabelece relações com a vida cotidiana num espaço
familiar e conhecido, o hospital evoca os espaços que são a sede do
poder característico dos órgãos públicos, impessoais, burocratizados.
Enfi m, enquanto no primeiro espaço tenta-se reconstituir ‘identidades
desarticuladas’, no segundo retiram-se os últimos sinais de identifi cação da
pessoa doente; enquanto nos hospitais os agentes e as normas se constituem
em mecanismos de um poder que divide e marca as diferenças entre doente
e não doente, ignorância e saber, submissão e autoridade, nos terreiros o
que se destaca é a participação de todos, cada qual com sua especifi cidade
(agente de cura, doente e público), todos contribuindo para a produção
de um “ritual integrativo”. O que importa é que o tratamento realizado
no terreiro, em vez de isolar o doente, lhe oferece uma linguagem para
exprimir sua “loucura”, permitindo, com isso, um reordenamento de seu
comportamento. Mais do que isso, o que está em jogo não é a tentativa de
suprimir o confl ito, mas a possibilidade de torná-lo inteligível, dando-lhe
um signifi cado.
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Passando para a esfera jurídica, pode-se dizer que a solução para o
confl ito também passa pela necessidade de compreensão do seu signifi cado.
Daí o sucesso maior da conciliação para as chamadas relações continuadas,
que normalmente representam os casos relativos aos confl itos domésticos
e familiares, onde as relações devem permanecer mesmo após os confl itos.
Contudo, pela proposta da conciliação, devem passar a ser encarados de
maneira a evitar que, a partir daquele momento, ocorram novas agressões,
ameaças ou outros comportamentos reprováveis socialmente. No que
se refere ao processo ritual, portanto, tanto no sistema religioso como
no sistema de justiça informal, todos os envolvidos têm a possibilidade
concreta de participar do processo, seja na cura da doença, no caso dos
terreiros de umbanda, seja na busca de superação do confl ito, no caso das
audiências preliminares de conciliação.
É, portanto, a partir da ação de operadores e litigantes que as
estruturas se manifestam, se reproduzem e, às vezes, até se modifi cam. Tal
constatação nos coloca, assim, um outro desafi o teórico-conceitual que
deve ser incorporado ao estudo do sistema de justiça, qual seja, a relação
entre ação e estrutura como dimensões da prática e das representações.
1.5 - Ação e Estrutura na Análise Sociológica do Sistema de Justiça
De acordo com o desenvolvimento histórico da Sociologia, nesta
disciplina quase sempre se priorizou o estudo sistemático das estruturas
sociais, sugerindo, com isso, que os seres humanos não controlam suas
próprias decisões. Ao contrário, a ênfase deveria ser nos padrões gerais e
regulares de interação e comportamento, que ocorrem independentemente
da vontade individual. Segundo Monsma,
para muitos sociólogos o conceito de estrutura sempre se referiu aos
padrões de relações entre pessoas e grupos, especialmente relações sociais
institucionalizadas, ou seja, relativamente duradouras ou recorrentes no
tempo e no espaço. Esse bom e velho estruturalismo sociológico, dividido
entre funcionalismo, por um lado, e marxismo e outras abordagens críticas,
por outro, enfatizava que a estrutura social, seja na forma totalizante da
“sociedade’ (hoje um conceito polêmico), seja na forma desagregada
de instituições específicas, é algo maior que a soma dos indivíduos
participantes, que as ‘tendências estruturais’ devem ser estudadas nos seus
próprios termos, e que a ação dos indivíduos é inseparável de seu contexto
estrutural (MONSMA, 2001:6)
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Com efeito, o problema fundamental desse estruturalismo sociogico
parece ser o seu alto grau de objetivismo em termos da negação da agência
humana, pois, desconsiderar o poder dessa agência é ignorar a própria
noção de subjetividade, tão cara à refl exão sociogica sobre a sociedade
contemporânea. Assim, foi e continua sendo com referência a esta oposição
entre estrutura e ação que vários enfoques se desenvolveram, uns ressaltando
a força das estruturas e das instituições na formação do pensamento e
comportamento individuais, e outros enfatizando a agência humana como
construtora, reguladora e reprodutora das estruturas sociais.
11
A análise de casos que envolvem relações jurídicas pode ser útil neste
debate, não apenas porque sugere temas recorrentes e decisivos da vida
social, mas também porque em processos de julgamento e conciliações,
bem como de representação judicial em geral, torna-se evidente esse
tipo de relacionamento entre as mentes e as instituições.
12
Pressupõe-se
que isso ocorre tanto com as partes litigantes, que, ao manifestarem suas
desculpas, desejos e opiniões diante da autoridade judicial, recorrem às
instituições que estão impregnadas em suas mentes, como por parte dos
operadores do direito, uma vez que as instituições às quais estão fi liados
esses agentes infl uenciam, muitas vezes, sua atuação. O importante é que,
ao recorrerem às instituições para tomar decisões, os agentes acabam com
isso reproduzindo-as.
Portanto, reconhecer a infl uência das estruturas e das instituições no
comportamento individual não signifi ca considerar a ação humana, bem
como a interação entre indivíduos, fenômenos secundários. O importante
11 O problema da oposição entre ação e estrutura, segundo Norbert Elias (1994:15), é que acabou
se criando um “abismo intransponívelentre indivíduo e sociedade, na medida em que o conceito
de sociedade oscila entre estas duas idéias opostas, ou seja, “ou é entendida como uma coletânea
desestruturada de pessoas individuais, ou como objeto que existe para além dos indivíduos. O problema,
segundo o autor, é que enquanto no primeiro campo continua obscuro o estabelecimento de uma
ligação entre os atos e objetivos individuais e essas formações sociais, no segundo não se sabe com maior
clareza como vincular as forças produtoras dessas formações às metas e aos atos dos indivíduos”.
12 É na discrepância entre a vida social e o pensamento individual que Mary Douglas procura
relacionar as mentes às instituições, buscando compreender o que ela denomina de “controle social da
cognição”. Para a autora há anecessidade de uma teoria das instituições que modifique a atual visão
não sociológica da cognição humana, bem como uma teoria cognitiva que ofereça um suplemento às
debilidades da análise institucional. Na esteira de Durkheim, a autora enfatiza o domínio exercido
pelas instituições no processo de classificação e reconhecimento, onde o “raciocínio individual” não
consegue resolver determinados problemas, cujas soluções só parecem ser possíveis quando se apóiam
no pensamento institucional que já se encontra na mente dos indivíduos quando eles tomam as grandes
decisões. O argumento de Douglas é que os indivíduos, em determinadas situações, sempre se voltam
às suas instituições para tomar decisões bem como para justificá-las. E isso se torna mais evidente em
situações-limite, ou seja, as pessoas normalmente recorrem a seus compromissos institucionais para
decidirem questões de vida e morte (DOUGLAS, 1998:11).
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é evitar o chamado “reducionismo sociológico”
13
, ou seja, a forma correta
de apresentar a questão não seria em termos do quê determina o quê, mas
até que ponto as instituições infl uenciam a ação humana e, por outro lado,
como esta ação é responsável pela criação e reprodução das instituições às
quais está ligado o pensamento individual.
É por esta razão que recorremos a Giddens
14
, que, em sua “teoria
da estruturação”, propõe a existência de dois tipos de enquadramento
metodológico em pesquisa sociológica. O primeiro é aquele decorrente da
“análise institucional”, na qual as propriedades estruturais surgem como
características “cronicamente reproduzidas de sistemas sociais”. O outro
enquadramento metodológico se refere à “análise da conduta estratégica”,
na qual o foco incide sobre os “modos como os atores sociais se apóiam nas
propriedades estruturais para a constituição de relações sociais” (GIDDENS,
1989:234).
Do confl ito dessas duas posições, há um “resíduo metodológico do
dualismo de estrutura e ação”. Para Giddens, ao mostrar que tal dualismo
é espúrio, é possível compreender melhor algumas das implicações
empíricas do seu conceito de “dualidade da estrutura”.
15
Esse conceito
torna-se essencial na medida em que o autor o defi ne em contraste com
as concepções inspiradas pela idéia de que as propriedades estruturais da
sociedade constrangem a ação. Ao contrário, argumenta que a
teoria da estruturão baseia-se na proposição de que a estrutura é sempre
tanto facilitadora quanto coerciva, em virtude da relação inerente entre
estrutura e agência. Embora a teoria da estruturação não minimize a
importância dos aspectos coercivos da estrutura, esta é definida como
regras e recursos, e por esta rao a coerção não pode ser considerada a
única qualidade definidora da estrutura. A idéia central é que o processo de
socialização funde a coerção com a facilitação (GIDDENS, 1989:138).
13 Para Alexander e Giesen (1987:1-3) a situação de antagonismo entre estrutura e ação não eliminou
a tentativa de integração entre as perspectivas micro e macro. Os autores argumentam que, “se se
pretende alcançar uma integração entre os dois campos, tal dicotomia deve ser vista apenas como uma
distinção analítica”, criando, assim, as condições para substituir o conflito sobre redução pela busca
de integração. Ressaltam ainda que tal movimento da redução para a integração já estaria implícito
nas grandes sínteses sociológicas como as de Weber e Parsons, que sempre resistiram à classificação
do tipo micro ou macro.
14 Para Monsma (2001:19) “a ênfase central nos trabalhos de Bourdieu e Giddens, os dois autores
mais proeminentes da teoria da prática, é em superar a divisão entre objetivismo e subjetivismo”.
15 Uma definição concisa do conceito de “dualidade da estrutura”é assim descrita por Giddens: “A
estrutura como meio e resultado da conduta que ela recursivamente organiza; as propriedades estruturais
de sistemas sociais não existem fora da ação, mas estão cronicamente envolvidas em sua produção e
reprodução” (Giddens, 1989:303).
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Para ilustrar essa concepção, Giddens também recorre a exemplos de
interação desenvolvidos no âmbito do sistema de justiça, argumentando que
os acontecimentos ocorridos numa sala de tribunal não retratam apenas
uma troca de palavras, mas sim as implicações em termos da reprodução
de instituições sociais. Ou seja, a conversa entre os operadores do direito só
é apreendida por eles pela tácita invocação das características institucionais
do sistema, que servem de suporte para cada interlocutor, que presumem ser
as mesmas de conhecimento de todos. Mas esse conhecimento, segundo o
autor, inclui não apenas a percepção de procedimentos e táticas apropriados
em tais casos, mas também outros conhecimentos sobre o sistema legal, ou
seja, “para que a interação seja realizada, os participantes fazem uso de seu
conhecimento da ordem institucional em que estão envolvidos, de modo a
tornar essa interação signifi cativa” (GIDDENS, 1989:268).
Por outro lado, ao invocar a ordem institucional desse modo, os
agentes contribuem também para reproduzir seu poder de coerção estrutural
sobre eles próprios e sobre os demais. Neste sentido, outra característica
marcante no exemplo é a ligação entre a ordem institucional aceita e o
poder dos agentes, pois a aceitação dessa ordem é o próprio fundamento do
sistema legal como uma expressão de modos de dominação. Ou seja,
o juiz tem o direito de interromper o que os outros dizem, fazer determinados
tipos de perguntas e controlar a seqüência da interlocução, um direito que
os outros não têm, pelo menos no mesmo grau. O fato de a conversação
não possuir uma forma convencional de revezamento dos interlocutores
adquire inteligibilidade em virtude do reconhecimento mútuo de que o
juiz tem uma certa identidade social institucionalizada, conferindo-lhe
prerrogativas e sanções definidas (GIDDENS, 1989:269).
En m, o que devemos extrair desta idéia é justamente o fato de que,
ao mesmo tempo em que são vítimas da coerção institucional, os agentes
também usam as instituições para atingir seus objetivos, e a conseência
desse uso é a própria reprodução da instituição juntamente com seu poder
de coerção. Em síntese, a proposta de Giddens para superar um certo
objetivismo nas análises estruturalistas se sustenta no fato de que os atores
monitoram refl exivamente o fl uxo da vida social, e onde as propriedades
estruturais se constituem em meio mas também em conseqüência das
práticas sociais. A noção de estrutura para o autor, portanto, não deve ser
entendida independentemente da agência humana. Ou seja, regras e recursos
na ação social são, ao mesmo tempo, os meios de reprodução do sistema.
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Assim, para o propósito de levantar os desafi os teóricos e conceituais ao
estudo do sistema de justiça, o importante é que, sendo possível adotar o
conceito de dualidade da estrutura na análise dos fenômenos jurídicos,
pode-se conceber a estrutura do sistema de justiça como meio e resultado
das práticas profi ssionais.
16
Com efeito, ação e representação dos operadores do direto tornam-
se essenciais para compreender a lógica de funcionamento do sistema
de justiça. Contudo, no caso da justiça informal criminal, acrescenta-se
também a importância das práticas e representações de vítimas e acusados
envolvidos no con ito, já que nesta instância de justiça eles tornam-se partes
integrantes do processo ritual nas audiências preliminares de conciliação
e, da mesma forma que os operadores, utilizam, por um lado, os recursos
disponíveis para alcançar seus objetivos e, por outro, também sofrem
a in uência das coerções estruturais do referido sistema. Além disso,
outra característica do sistema de justiça informal é que os argumentos
apresentados pelas partes litigantes, mais do que os dos operadores, se
sustentam principalmente em valores que são adquiridos em sua experiência
cotidiana, o que acaba in uenciando as práticas também dos profi ssionais
durante o processo de interação que, muitas vezes, incorporam em seus
discursos os mesmos valores e se contrapõem, num certo sentido, às bases
normativas do direito.
2. O PROCESSO CONTEMPORÂNEO DE INFORMALIZAÇÃO
DA JUSTIÇA
2.1 - Controle Social e Pluralismo Jurídico na Justiça Informal
De acordo com Abel (1982), o movimento contemporâneo de
informalização da justiça parece apontar para uma grande transformação
do sistema legal, embora considere que os contornos de tal mudança ainda
são incertos e seu signifi cado ambíguo. Assim, o autor questiona o que
estaria realmente mudando: ideologia, normas, processos ou instituições. De
16 Considerando-se o conceito de dualidade da estrutura em Giddens, é possível evidenciar também
uma grande valorização da fala nesta tese. Com efeito, o uso da estrutura social pelos agentes se dá
principalmente através das interações mediadas pela fala como um recurso essencial para a reprodução
das propriedades estruturais, permitindo, com isso, a coerção parcial da ação. Ou seja, “a conversa,
que ocorre em contextos cotidianos de atividade, é o veículo fundamental de significação” (Giddens,
1999:300).
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qualquer maneira, o importante a ressaltar é que as diversas características
deste movimento têm em comum a preferência pela informalidade em
audiências de disputas e confl itos sociais.
17
Na análise do que chama de “as políticas da justiça informal”, Abel
organizou uma coletânea na qual os artigos coincidem na afi rmação de
que a justiça informal reforça o poder estatal pela via da ampliação do
controle social. Nesta perspectiva, as instituições informais permitem que o
controle estatal escape das paredes fechadas dos centros de coerção ofi cial,
expandindo-se para a sociedade como um todo. Para o autor,
tais instituições são informais na medida que não são burocráticas na
estrutura (...) minimizam o uso de profissionais, evitam a lei oficial em
favor de normas substantivas e procedimentais que são vagas, não escritas,
de senso comum, f lexíveis e par ticulares. Tod a inst ância de justiça infor mal
exibirá algumas destas características em algum grau. Contudo, nem todas
elas serão desenvolvidas completamente (ABEL, 1982:2)
Numa outra perspectiva, é na terceira fase
18
do desenvolvimento do
capitalismo nos países centrais que se verifica, no campo da regulação, um
incremento de fenômenos como a informalização da justiça, admitindo,
assim, a existência de uma pluralidade de ordens jurídicas (SANTOS, 1995).
Além das reformas procedimentais nos tribunais comuns e da criação de
17 De acordo com GARTH (1982:183, apud Azevedo, 1999:163), o movimento que ressalta a
necessidade de mudanças legais visando a informalização de procedimentos jurídicos pode ser melhor
compreendido a partir de enfoques distintos: a efetivação de direitos, a conciliação e a diversion.
O movimento pela efetivação de direitos visa a promoção de acesso à justiça a partir de mudanças
procedimentais legais, algumas das quais no sentido da informalização. Um dos problemas deste
enfoque, no que se refere ao Juizado Especial Criminal, é que, embora a abolição do inquérito policial
para os delitos de menor potencial ofensivo tenha garantido às vítimas um maior acesso à justiça,
a estrutura cartorária e burocrática do sistema judicial ainda permanece intocada. O enfoque da
conciliação preocupa-se não com a defesa de direitos, mas em resolver disputas em termos aceitáveis
para as partes. Embora não haja uma contradição necessária entre a conciliação e a efetivação de direitos,
a ideologia de seus proponentes e sua atual aplicação sugerem que o mecanismo da conciliação tende,
em alguns casos, a solapar a efetivação de direitos. Finalmente, a diversion (dispersão, desvio) enfoca
o problema do congestionamento da justiça formal, apontando para a necessidade de processamento de
disputas fora dos tribunais, por meio de acordo, conciliação ou arbitragem. Seus defensores sustentam que
o congestionamento da justiça não será resolvido com a mera ampliação do número de juízes e tribunais.
18 De acordo com Boaventura de Souza Santos, a primeira fase do desenvolvimento do capitalismo
nos países centrais teve início no século XVI e chegou ao seu auge no século XIX, sendo considerado
o período do capitalismo liberal. A segunda fase, que começa no final do século XIX e atinge o
apogeu nas primeiras décadas após a 2ª Guerra Mundial, é a fase do chamado capitalismo organizado,
correspondendo ao Welfare State no mundo capitalista e à constituição do bloco socialista. O terceiro
período vai do final da década de sessenta até os dias de hoje, e é chamado de período do capitalismo
desorganizado. No campo da regulação é nesta última fase que tem início uma soberania do princípio
do mercado e o conseqüente enfraquecimento do Estado como garantidor da liberdade e da segurança.
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tribunais especializados, como os Juizados Especiais de Pequenas Causas,
estudos sobre experiências alternativas como os realizados por Santos
( 1 9 9 9 ) n a d é c a d a d e 7 0 n a s f a v e l a s d o R i o d e J a n e i r o , p o s s i b i l i t a r a m
detectar, no interior desses bairros urbanos, um direito informal não
oficial, não profissionalizado, centrado na Associação de Moradores, que
funcionava como instância de resolução de litígios entre vizinhos.
Esses estudos e outros mostraram que o Estado contemporâneo
não tem o monopólio da produção e distribuição do direito, e que o
relativo declínio da litigiosidade civil, longe de ser indício da diminuição
da conflitualidade social e jurídica, é antes o resultado do desvio dessa
conflitualidade para outros mecanismos de resolução, informais e mais
baratos, existentes na sociedade. No entanto, o próprio autor alerta para o
fato de que as alternativas informais são uma criação jurídica complexa,
cujas relações com o poder do Estado devem ser melhor analisadas, ou seja,
nos casos em que os litígios ocorrem entre cidadãos ou grupos de
poder socioeconômico parificável (vizinhos, operários, camponeses,
estudantes etc.) a informalização da justiça pode ser um genuíno fator
de democratização. Ao contrário, nos litígios entre cidadãos ou grupos
com posões de poder estruturalmente desiguais (ligios entre patrões
e operios, entre consumidores e produtores, inquilinos e senhorios) é
bem possível que a informalização acarrete consigo a deteriorizão da
posição jurídica da parte mais fraca, decorrente da perda das garantias
processuais, e contribua, assim, para a consolidação das desigualdades
sociais (SANTOS, 1999:58-59).
Com efeito, vários estudos infl uenciaram as reformas na adminis-
tração da justiça nos últimos anos, por exemplo, o reforço dos poderes do juiz
na condução do processo segundo os princípios da oralidade, concentração
e mediação; processo mais informal e maior participação das partes e
testemunhas; incentivo ao uso da conciliação entre as partes sob o controle
do juiz. Outras alternativas também surgiram como a criação, em paralelo à
administração da justiça convencional, de novos mecanismos de resolução
de litígios, instituições desprofi ssionalizadas, por vezes impedindo mesmo
a presença de advogados, de utilização barata ou gratuita, maximizando
o acesso aos seus serviços e operando com vistas à obtenção de soluções
mediadas entre as partes.
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Os estudos também apontam no sentido de que juízes e conciliadores
devem atuar em determinados litígios de forma a participar intensamente do
processo e dialogar amplamente com as partes, tendo a preocupação de agir
menos formalmente e posicionar-se mais como um mediador, procurando
ultrapassar obstáculos de maneira a conduzir os litigantes para que eles
próprios se esforcem visando encontrar soluções com a menor interferência
possível. Enfi m,
seja qual for o modelo adotado, os elementos conceituais que configuram
um tipo ideal de informalização da justiça nos Estados contemporâneos
apontam para as seguintes características: uma estrutura menos
burocrática e relativamente mais próxima do meio social em que atua;
aposta na capacidade de os disputantes promoverem sua própria defesa,
com uma diminuição da ênfase no uso de profissionais e da linguagem
legal formal; preferência por normas substantivas e procedimentais mais
flexíveis e particularistas, mediação e conciliação entre as partes mais do
que adjudicação de culpa; participação deo juristas como mediadores;
preocupação com uma grande variedade de assuntos e evidências,
rompendo com a máxima de que “o que não está no processo não está
no mundo”; facilitação do acesso aos serviços judiciais para pessoas com
recursos limitados para assegurar aulio legal profissional; um ambiente
mais humano e cuidadoso, com uma justiça resolutiva rápida, e ênfase
em uma maior imparcialidade, durabilidade e mútua concordância no
resultado; geração de um senso de comunidade e estabelecimento de um
controle local através da resolução judicial de conflitos; maior relevância
em saões não coercitivas (AZEVEDO, 1999:90).
O importante a ressaltar nessa discussão sobre os mecanismos de
controle informal é que, embora seja provável que com a institucionalização
da justiça informal tenha se ampliado o controle estatal sobre demandas que
antes sequer chegavam ao Judiciário, não parece certo que tal perspectiva
seja sufi ciente para compreender a lógica de funcionamento deste tipo de
justiça. Por exemplo, quando se estudam as representações da violência
e da punição no âmbito da justiça informal criminal, nota-se também a
presença e difusão de um conjunto de valores ligados a outro movimento
moderno, qual seja, a tendência à descriminalização de certos tipos de
comportamentos, justifi cada pela falência do modelo tradicional da justiça
criminal baseado no controle puramente repressivo do Estado.
Em outras palavras, se por um lado o atual modelo da justiça informal
pode ser compreendido a partir do interesse institucional em tornar os
processos mais ágeis, como forma de garantir um maior controle sobre
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certas demandas, por outro lado, nessa instância de justiça tal controle
se fundamenta em valores sociais pertencentes ao cotidiano das pessoas
comuns. Assim, no caso da justiça criminal, os mecanismos informais
de controle social não se explicam apenas pelas mudanças legais e de
procedimentos técnico-jurídicos, mas também em função da mudança de
postura profi ssional em virtude da institucionalização de novos valores
a respeito de determinadas práticas de violência bem como das formas
punitivas associadas a elas.
Tal constatação não implica em dizer que há restrição do controle
social por parte do Estado, mas apenas ressalta o fato de que o controle
informal se fundamenta em valores distintos dos da justiça formal. Daí,
inclusive, a importância em buscar analogias com outros sistemas de
controle para além do sistema de controle estatal formal, como as religiões
tradicionais, o que permite compreender, entre outras coisas, a participação
efetiva das pessoas envolvidas no processo ritual. Por essa razão, para além
das reformas procedimentais, a tentativa de compreender o atual modelo
de informalização da justiça na esfera criminal coloca como necessidade
estudar também as relações profi ssionais e de poder dentro do Judiciário,
e como os agentes e litigantes desenvolvem suas representações sobre
violência e punição no âmbito dessa instância de justiça. Nesse sentido, uma
das questões que se discute é justamente a legitimidade dos critérios que
defi nem uma “pequena causa” e, portanto, que justifi quem um tratamento
diferenciado.
2.2 - Limites da Classifi cação dos Confl itos como “Pequenas Causas”
O desenvolvimento da concepção de acesso à justiça levou vários
países a reformarem seus sistemas jurídicos no sentido de criarem
procedimentos especiais para solucionar o que acreditavam ser “pequenas
injustiças”. Contudo, estas pequenas causas freqüentemente revelavam-se
de grande importância social já que o problema de acesso à justiça é maior
entre aqueles que não dispõem de recursos para acionar o Poder Judiciário.
No Brasil, não foi diferente. Considerando-se que o atual sistema dos
Juizados Especiais Cíveis e Criminais teve como fundamento o antigo Juizado
Especial de Pequenas Causas, criado em 1984, é conveniente retomar o
conceito de pequenas causas para compreender melhor qual a infl uência que
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tal conceituação ainda mantém sobre o atual sistema, no sentido de classifi car
os confl itos a partir do valor da causa, no caso da justiça informal cível, ou
pela potencialidade da ofensa, no caso da justiça informal criminal.
Um dos problemas que se coloca ao discutir os critérios de
classi cação das “pequenas causas”, bem como os mecanismos de sua
resolução, é exatamente por que elas devem ser apreciadas por meio de
procedimentos supostamente de segunda classe, já que o valor fi nanceiro
não indicaria a complexidade ou importância de uma causa. Ou seja, há
causas de insignifi cante conteúdo econômico cuja complexidade exige
demorado tratamento jurídico. Além disso, o reduzido valor econômico
para alguns pode representar um montante expressivo para outros. Por
esta razão, alguns autores preferem trabalhar com outros critérios, além
do econômico. Dinamarco, por exemplo, destacou três critérios para
caracterizar as “pequenas causas”: o econômico, associado ao valor
nanceiro da causa; o material, relativo à natureza do litígio; e o social,
indicando que as pequenas causas pertencem às pessoas do povo e, em
decorncia dessa característica, somente o indivíduo, como tal, teria
legitimidade para ingressar em juízo. (DINAMARCO, 1986:14-17)
Outras vantagens observadas nas reformas dos sistemas de justiça
relacionadas às pequenas causas dizem respeito à ampliação do acesso,
à necessidade de mudança da postura profi ssional e à simplifi cação das
normas (CAPPELLETTI e GARTH, 1988:98). No que se refere à ampliação
do acesso, as propostas de reforma do Judiciário apontam a redução dos
custos e do tempo de duração do litígio. Com relação à mudança de postura
profi ssional, argumenta-se que juízes e conciliadores tendem a ser menos
formais e buscam, com isso, facilitar a equalização das partes, utilizando-
se da conciliação como principal técnica para solução das disputas, e assim
preservando relacionamentos complexos e permanentes.
19
Finalmente,
com relação à simplifi cação das normas, a idéia proposta por muitos
reformadores vai no sentido de que os conciliadores possam decidir com
19 Uma das maiores dificuldades para o profissional que exerce esta função é o fato de que ele pode
confundir os papéis, ou seja, como conciliador ele pode impor um acordo pela ameaça implícita de
seu poder de decidir. Como juiz, ele pode deixar seu esforço de conciliação subverter seu mandato de
aplicador da lei. Um estudo sociológico em Nova Iorque apresentou dados empíricos que justificam estas
críticas. Ou seja, “quando a mediação fracassa, passa-se da conciliação à sentença. Freqüentemente,
os conciliadores usam a ameaça do processo de conhecimento para induzir as partes que transijam.
Segundo comentários de litigantes submetidos à arbitragem, parece que este tipo de pressão e a mistura
de mediação e julgamento causam alguma confusão e ressentimento (Sarat e Grossman. “Courts and
Conflict Resolution: Some Problems in the Mobilization of Adjudication”. Am.Pol.Sci.Rev., v. 69,
1975:354, apud por Cappelleti e Garth, 1988:110)
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base mais na ‘justiça’ do que na lei.
20
Na esfera criminal, esse problema torna-se ainda mais complexo, ou
seja, o tipo de questionamento que se faz é sobre a legitimidade dos critérios
que defi nem quando uma agressão deve ser considerada menor e com isso
receber um tratamento diferenciado. A conseqüência dessa classifi cação é
que a noção de delitos de menor potencial ofensivo cria uma diferenciação na
política criminal, pois, enquanto a estes últimos se propõe o sistema de justiça
criminal como último recurso, nas formas mais sérias de delitos mantém-se
o clássico enfoque repressivo. Com efeito, o exemplo mais visível desse tipo
de questionamento é com relação à violência doméstica e conjugal, já que
a grande maioria dos litígios julgados nos Juizados Especiais Criminais até
recentemente diziam respeito a essa categoria de violência.
21
É neste sentido que Campos (2003) questiona os critérios que defi nem
a gravidade de um delito, argumentando que o problema está em conceber
a violência doméstica como um delito de menor potencial ofensivo mesmo
considerando que ela se repete cotidianamente. Considerar a violência
doméstica como menos grave signifi ca, portanto, não reconhecer suas
implicações, ou seja,
o grau de comprometimento emocional a que as vítimas estão submetidas
por se tratar de um comportamento reiterado e cotidiano, o medo paralisante
que as impede de romper a situação violenta, a violência sexual, o cárcere
privado e outras violações de direito que geralmente acompanham a
violência doméstica. A conceituação dogmática de lesão corporal ou
amea, ao não incorporar o comportamento emocional e psicológico, os
danos morais advindos de uma relação habitualmente violenta, nega o uso
da violência como mecanismo de poder e de controle sobre as mulheres
(CAMPOS, 2003:163).
20 De fato, parece coerente evitar que os tribunais populares como os Juizados sejam mais técnicos
em detrimento da justiça. Contudo, Cappelletti e Garth (1988:112) advertem para o fato de que a
dispensa das formalidades não assegura automaticamente a qualidade de decisão do tribunal, nem evita
o perigo de que um relaxamento dos padrões normativos permita decisões contrárias à lei em juízo de
novos direitos, freqüentemente técnicos.
21 O tratamento dos crimes relacionados à violência doméstica contra a mulher foi recentemente
alterado com a promulgação da Lei Federal 11.340, de 07 de agosto de 2006, chamada de Lei Maria da
Penha que, entre outras coisas, tipificou a violência doméstica e tornou esse crime mais grave, sendo
que os agressores deixam de receber penas consideradas leves e podem ser punidos com penas que
variam de três meses a três anos de prisão. Além disso, determina que esse tipo de violência não pode
mais ser tratado nos Juizados Especiais Criminais, e sim em Juizados Especiais de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher, criados especialmente para esse fim. Embora seja inegável o avanço na
legislação em relação ao tratamento deste tipo de violência, sobretudo por se tratar não de uma violência
eventual mas sim de uma violência regular que atinge parcela significativa da população de mulheres,
e por isso a necessidade de uma legislação específica, ainda não se avaliou de forma sistemática as
conseqüências desta mudança para as relações conjugais.
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Em síntese, o problema da classifi cação dos crimes de menor
potencial ofensivo é que, apesar de a lei 9.099/95 ter sido elaborada para
xar a punição para vários tipos de delitos, ela foi usada, majoritariamente,
para julgar a violência doméstica. Com isso, a maior di culdade estaria
justamente na operacionalização dessa lei que, segundo Campos
(2003:155), tem como conseqüência a banalização da violência doméstica,
o arquivamento massivo dos processos e a insatisfação das mulheres
vítimas de agressão. Contudo, outras variáveis devem ser consideradas no
intuito de compreender este tipo de justiça, por exemplo, as motivações
que levam muitas mulheres a desistirem do processo. Daí a necessidade de
compreender melhor também a origem, os limites e os dilemas da lógica
da conciliação na justiça informal brasileira.
2.3 - A Justiça Informal no Brasil: origem e dilemas
A prática institucionalizada da conciliação no Brasil pode ser
encontrada já no período imperial, na fi gura do juiz de paz como
magistratura leiga ao lado da magistrat ura togada de direito. A Constit uição
de 1824 especi cou que o sistema judicial brasileiro independente incluiria
eventualmente inovações, por exemplo, um sistema de magistrados menores
esc olh ido s loc al me nte que se cham ar ia m juí zes de pa z. Em 1827, a leg islação
ordenou e regulou o estabelecimento de juízes locais nas regiões do Brasil
(FLORY, 1986) e, em 1832, foi editado o Código de Processo Criminal que
criou o Juizado de Instrução sob a direção dos juízes de paz.
Por serem eleitos, os juizes de paz ocupavam temporariamente o
cargo e eram responsáveis pela instrução inicial nos feitos criminais, assim
como pelo julgamento de delitos de menor gravidade pelo processo sumário.
Estabeleceu-se, assim, “a distinção entre o processo sumário, cujo julgamento
competia aos juízes de paz, e o processo ordinário para crimes cuja pena
fosse maior do que seis meses de prisão ou degredo, que se desenvolvia
perante o Júri, presidido pelo juiz de direito” (AZEVEDO, 1990:97).
22
22 Em 1840 o Juizado de Instrução foi transferido para a autoridade policial (chefe de polícia),
criando as condições para a futura consolidação do inquérito policial. Segundo Lima Lopes (1996:273),
o inquérito policial de 1871 deu à polícia “enormes poderes, confundindo sua atividade com a atividade
cartorária, consolidando o modelo inquisitorial, burocrático e cartorialista até hoje vivo, a despeito
de tentativas de reforma. Sua origem, naturalmente, era o projeto conservador de exercício de poder
político e controle centralizado”. De fato, o inquérito policial é uma figura jurídica existente até hoje.
Contudo, a partir de 1995, com a criação dos Juizados Especiais Criminais, os crimes considerados de
menor potencial ofensivo deixaram de ser objeto de inquérito policial e passaram a ser encaminhados
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Enquanto autores como Miranda Rosa (1981) sustentam que a
maior preocupação da justiça de paz era propiciar a conciliação entre
as partes para evitar que situações con ituosas se transformassem em
litígios submetidos à apreciação do Judiciário, Koerner (1992) acredita que
a justiça de paz, enquanto instituição, não pode ser compreendida apenas
deste ponto de vista, pois nessa época as questões de natureza política
certamente se sobrepunham às questões de natureza jurídica e pro ssional.
Seriam as relações de poder local, por um lado, e as relações entre o poder
local e o governo central, por outro, que constituiriam um dos principais
elementos para compreender a origem e o desenvolvimento da justiça de
paz no Brasil.
Sem entrar no mérito dessa discussão, o importante é que a análise
do desenvolvimento histórico da justiça de paz demonstrou que ela foi
se deteriorando e perdendo importância, tanto no que se refere à função
conciliatória, o que constituiu a explicação de sua denominação, quanto à
função política, que tinha por fi nalidade o fortalecimento do poder local.
Assim, o variável papel do juiz de paz como conciliador proporcionou um
bom exemplo de uma função que foi se extinguindo ao longo do tempo.
Mais recentemente, a fi gura do conciliador passou a ter espaço privilegiado
apenas na Justa do Trabalho, na qual a lógica do acordo para resolução de
confl itos trabalhistas prevalece sobre a lógica da decisão.
Isso não signi ca, contudo, que a lógica da conciliação tenha
desaparecido totalmente do sistema de justiça com a deterioração da justiça
de paz. O que ocorreu foi que, excetuando a Justiça do Trabalho, apenas
na década de 1980 ressurgem, de forma institucionalizada, os métodos
informais para resolução dos con itos. Ou seja, embora o Judiciário sempre
tivesse em sua estrutura algum tipo de sessão prévia – por exemplo, as
chamadas Juntas de Conciliação – é apenas em 1984, com a criação dos
Juizados Especiais de Pequenas Causas, que se começa a institucionalizar,
diretamente ao Judiciário para as audiências preliminares de conciliação. Nota-se, portanto, que assim
como era no Juizado de Instrução dos juízes de paz do período imperial, atualmente estes delitos
dispensam o inquérito policial e são tratados a partir da lógica da justiça informal de conciliação. A
diferença, no entanto, está no fato de que agora eles são julgados por juízes de direito pertencentes
à justiça comum e formal, e não por juízes leigos como era o caso da justiça de paz. Ainda assim,
estudiosos e agentes das Delegacias de Defesa da Mulher, instância onde a maior parte destes delitos
têm origem, criticam a lei que criou o Juizado justamente por terem substituído o inquérito policial
e retirado das delegacias a responsabilidade para dar ou não seqüência aos processos. Este problema
será explorado no capítulo 3. Por ora, pretende-se apenas ressaltar que, se na sua origem o inquérito
policial representou, como afirmou Lima Lopes, “poder político e controle centralizado”, hoje a sua
extinção para os delitos considerados “menos ofensivos” sugere justamente o contrário, ou seja, o
enfraquecimento dos delegados(as) e a descentralização de seu poder.
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de fato, uma nova forma de distribuição de justiça baseada na conciliação
como forma de evitar a instauração formal do processo.
Órgãos da Justiça Estadual, os Juizados Especiais de Pequenas Causas
foram criados pela lei 7.244/84 para atuar em causas cíveis com valor de
até 20 salários mínimos, devendo se orientar por critérios de simplicidade,
rapidez, informalidade e economia. O sistema do Juizado começou a
ser seriamente considerado no Brasil quando se discutiam medidas para
amenizar a chamada crise do Judiciário. A falta de assistência jurídica, o
congestionamento burocrático e a morosidade nos processos se constituíam
na base da crise que, acreditava-se, não seria sanada a partir somente do
reaparelhamento humano e material da justiça, mas também a partir da
criação de novos mecanismos para que “pequenas causas” não precisassem
seguir o percurso de causas de maior valor e complexidade.
Os críticos da lei que criou os Juizados o comparavam ao antigo
INPS (REVISTA OAB/SP, 1984), acreditando tratar-se de uma justiça de
segunda classe, pois entendiam que os con itos economicamente menos
expressivos seriam prejudicados na medida em que a essas pequenas
causas fosse atribuída a denominação de justiça dos pobres (CARNEIRO,
1982), e teriam, conseqüentemente, um tratamento diferenciado. Para
Dinamarco (1985), entretanto, tais críticas não se sustentavam, uma vez
que a intenção era justamente o contrio, ou seja, uma justiça acessível,
ágil, sem burocracia e capaz de julgar con itos referentes à modernização
da sociedade.
O modelo inspirador do Juizado Especial de Pequenas Causas
no Brasil foi a cidade de Nova Iorque, na qual se fez um esforço
internacionalmente reconhecido no sentido de atender com presteza e
efi ciência pequenas causas que se acumularam du rante décadas (CARNEIRO,
1985). Ali, os Juizados foram criados em 1934, com a denominação de
Poor Man’s Court. Com a ampliação do conceito de pequenas causas, o
tribunal passou a ser designado Common Mans Court. (MORAES, 1998).
Na esfera criminal, em 1984, mesmo ano em que a lei 7.244
introduziu no sistema jurídico brasileiro o tratamento das pequenas causas
cíveis, a reforma da parte geral do Código Penal introduziu também a
possibilidade de aplicação de penas alternativas em substituição à pena
privativa de liberdade, sob certas condições, pelas Varas Criminais dos
Estados (AZEVEDO, 1999:98). Mais tarde, a lei 7.244 foi incorporada pela
Constituão de 1988 atras do artigo 98, que estatuiu e xou as diretrizes
fundamentais destes Juizados nos seguintes termos:
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A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão juizados
especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes
para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor
complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante
os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas
em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de
primeiro grau.
Nota-se que a Constituição fala em causas cíveis de menor
complexidade e não em causas de menor valor econômico. Assim, segundo
Herkenhoff (1994), a designação “Juizados de Pequenas Causas” não era
exata em face do texto constitucional. O melhor seria “Juizado de Causas
Cíveis de Menor Complexidade” e “Juizado Criminal de Infrações de Menor
Potencial Ofensivo”. Isto porque causas menos complexas são diferentes de
causas de pequeno valor econômico. A correção dessa designação veio com
a lei n.º 9.099, de setembro de 1995, que manteve os fundamentos da lei
anterior, mas, além de aumentar o valor das causas para 40 salários mínimos
e exigir a obrigatoriedade da presença de advogado nas causas entre 20 e
40 salários, também deu ao Juizado a atribuição para atuar em pequenas
causas na área penal, criando, assim, o Juizado Especial Criminal.
Recebida como excelente alternativa a uma justiça lenta e burocrática,
a lei 9.099/95 criou o sistema dos Juizados Especiais Criminais para se
guiar pelos “critérios da oralidade, informalidade, economia processual e
celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos
pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade” (art. 62). De
acordo com muitos especialistas, com a criação desses Juizados no Brasil,
o Poder Judiciário passou a incorporar confl itos que antes não chegavam à
justiça. Contudo, também trouxeram outras conseqüências para a dinâmica
do sistema de justiça criminal que merecem ser destacadas.
2.4 - O Juizado Especial Criminal no Sistema de Justiça Penal
A estrutura do sistema criminal brasileiro está dividida entre as esferas
estadual e federal. O plano estadual é formado por quatro organizações:
Polícias Civil e Militar, Ministério Público, Tribunais de Justiça e Sistema
Penitenciário. Ao Sistema de Justiça cabe apurar as responsabilidades
penais, julgar a extensão e o grau de violação das leis e estabelecer a punição
no tocante à sua extensão, forma e local para cumprimento. Cabe à Polícia
Militar o trabalho de prevenção e repressão do crime, e à Polícia Civil a
função de polícia judiciária investigativa.
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As Delegacias Especializadas na Defesa da Mulher, instância onde
tem origem a maior parte dos delitos tratados nos Juizados Especiais
Criminais, estão inseridas na estrutura da Polícia Civil, tendo, portanto,
a função primordial de investigação. Tal função, no entanto, foi alterada
com a criação dos referidos Juizados, pois extinguiu-se, para esses casos, o
inquérito policial. Embora a lei que criou o sistema dos Juizados Especiais
Criminais seja federal, estes fazem parte da justiça dos Estados.
No contexto internacional, o Juizado Especial Criminal surge no
momento em que se discute a necessidade de equacionar, num mesmo
sistema punitivo, a garantia da punição de crimes sem deixar de respeitar
os direitos individuais. No Brasil, situa-se também o debate a respeito da
necessidade de reforma do sistema judicial e do código penal de 1940
(IZUMINO, 2003). De acordo com especialistas do direito, ao contrário da
legislação civil, a única novidade na legislação penal nos últimos anos foi
justamente a lei 9.099/95, que, “apesar de alguns defeitos de técnica e de
severas críticas pela introdução de novos institutos penais, representou um
avanço no sistema penal que merece ser assimilado defi nitivamente pelo
ordenamento jurídico do país” (CARVALHO, 2004:4).
Criados em 26 de setembro de 1995, os Juizados foram instalados
com o objetivo principal de enfrentar a morosidade por meio da diminuição
do volume de processos nos Tribunais de primeira instância. Sua fi nalidade
básica se sustenta nos seguintes princípios: a) oralidade: limita ao mínimo
o número de documentos em um processo; b) simplicidade: busca a
nalidade do processo da forma mais simples possível, através da versão
apresentada à Polícia pela vítima; c) informalidade: retira do processo as
formalidades inúteis; d) economia processual: assegura que ocorra o maior
número possível de atos em uma mesma audiência; e) celeridade: visa
maior rapidez ao processo, principalmente quanto à intimação das partes.
Os Juizados Especiais Criminais são responsáveis pelas causas
classifi cadas como de menor potencial ofensivo, ou seja, casos que sejam
considerados de menor gravidade, cuja intensidade é medida pela extensão
da pena relativa àqueles crimes e contravenções com pena máxima de até
um ano de detenção.
23
23 Segundo Izumino (2003), dentre os crimes mais denunciados nas Delegacias Especializadas na
Defesa da Mulher estão os seguintes: ameaça, com pena que varia de 1 a 6 meses de prisão, lesão
corporal leve, com pena de 3 meses a 1 ano de prisão, vias de fato (agressão que não deixa marcas), com
pena de 15 dias a 3 meses de prisão.
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Segundo vários autores, a maior inovação da lei 9.099/95 está no
fato de as penas anteriormente previstas para esses delitos poderem ser
substituídas pela transação penal, ou seja, pelo pagamento de multa ou pena
de prestação de serviços à comunidade. Assim, a lei seria inovadora ao
propor a substituição de penas restritivas de liberdade por outras de caráter
mais social como as penas alternativas, objetivando, sempre que possível,
a reparação dos danos à vítima. Contudo, antes da aplicação dessas penas,
a lei prevê a possibilidade de conciliação entre as partes como forma de
encerrar o confl ito e arquivar o processo sem qualquer punição efetiva. Este
é, segundo pudemos apurar em nossa pesquisa, o principal objetivo dos
operadores do direito nas audiências preliminares de conciliação.
No que se refere ao trâmite processual no Juizado, os processos
têm início quando o suposto ofendido dirige-se à autoridade policial para
formalizar a acusação, resultando disto um “Termo Circunstanciado”.
24
Considerando-se que, com a promulgação da lei 9.099/95, foi dispensada a
realização do inquérito policial, fi cou determinado que a autoridade policial
deve, após instaurar o Termo Circunstanciado, encaminhá-lo imediatamente
ao Juizado Especial Criminal, providenciando, se for o caso, os exames
periciais para a comprovação da materialidade do fato. Em seguida,
a Secretaria do Juizado deverá providenciar a intimação da vítima e do
acusado para que compareçam à audiência preliminar de conciliação, na
qual haverá tentativa de conciliação, devendo o autor do fato decidir pela
composição dos danos e pela aceitação ou não da pena. Nesta audiência,
deverão estar presentes, além do juiz, o promotor público, o autor do fato e
a vítima, que podem ou não estar acompanhados de advogado. O defensor
público também pode ser convocado pelo juiz dependendo da situação. É o
caso, por exemplo, de delitos em que é obrigatório a aplicação de pena de
multa ou prestação de serviços à comunidade (transação penal), como nos
crimes de trânsito e nos chamados crimes contra a honra.
24 Até a edição da Lei 9.099/95, as contravenções penais e os delitos punidos com pena de detenção
eram processados pelo rito processual previsto no Capítulo V, Título II, do Livro II (art. 531 a 540) do
Código de Processo Penal, denominado Processo Sumário. Pouca diferença havia entre este tipo de
procedimento e o Processo Ordinário, aplicado aos delitos apenados com reclusão. A lei previa apenas a
redução de alguns prazos e o abreviamento de determinados momentos processuais, mas a estrutura do
processo era basicamente a mesma: inquérito policial, denúncia do Ministério Público, interrogatório
do réu, defesa prévia, audiência de instrução, debates orais, julgamento. Não havia a possibilidade de
reparação civil dos danos sofridos pela vítima no próprio processo penal, ficando relegada ao papel de
mera informante da justiça penal. Nem tinha o réu qualquer interesse em reconhecer o fato que lhe era
imputado, com a negociação em torno da pena (AZEVEDO, 1999)
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Havendo o desejo de representação ou sendo o crime de ação penal
pública incondicionada, o Ministério Público poderá propor ao autor
do fato a transação penal, com a aplicação imediata de pena restritiva
de direitos ou multa. Quando não for possível nem a conciliação nem a
transação penal, o juiz intimará as partes para a audiência de Instrução
e Julgamento, na qual o acusado será interrogado, as testemunhas serão
ouvidas, os debates entre defesa e acusação serão realizados, tudo para que
o juiz possa ter elementos para proferir a sentença fi nal condenatória ou
absolutória (AVEZEDO, 1999:110).
Como pode se observar a partir desse breve roteiro sobre o
trâmite processual no Juizado Especial Criminal, a primeira tentativa é a
conciliação e, assim como constatamos no estudo de caso realizado, tal
objetivo também pareceu ser a principal fi nalidade por parte dos operadores
do direito. Contudo, a maioria das análises sobre a justiça informal na área
criminal normalmente se concentra nas questões relacionadas à transação
penal, ou seja, a discussão gira em torno de polêmicas como até que ponto
a prestação de serviços à comunidade representa uma punição efetiva.
Esquece-se, assim, que antes da transação penal a maioria dos processos é
encerrada e arquivada sem nenhum tipo de punição efetiva. As causas e as
conseqüências desse desfecho, bem como suas vantagens ou desvantagens
ainda não foram analisadas adequadamente, de forma a permitir identifi car as
motivações e o fundamento deste instrumento denominado conciliação.
25
Além disso, a compreensão da lógica de funcionamento da justiça
informal de conciliação coloca como necessidade ir além das vantagens
frequentemente apresentadas em relação à ampliação do acesso a partir
25 A conciliação como um instrumento de pacificação social pode ser encontrada em várias passagens
da história antiga. Como argumenta Cardoso (1996:93), “a prática da conciliação resistiu aos milênios
e chegou aos tempos modernos através de sucessivos aprimoramentos”. Assim, o surgimento de novas
formas de conflitualidade social nas últimas décadas teve como conseqüência, também, a proliferação
de alternativas, institucionalizadas ou não, que atuam na pacificação ou na prevenção de conflitos.
Muitas dessas alternativas informais têm origem na própria experiência cotidiana, na qual a sociedade
busca os meios não-convencionais para dirimir conflitos. Essa tendência se baseia principalmente
na negociação direta, na qual as partes abrem mão do interesse ou pelo menos de parte dele. Na
mediação ou conciliação, o conflito é resolvido com a intermediação de um terceiro, que tenta conduzir
os litigantes a um consenso. Não se faz, portanto, com o recurso de uma decisão do mediador, mas com
a persuasão empregada sobre as partes. A conciliação extrajudicial é aquela exercida por órgão que não
tem função jurisdicional, e se constitui em solução alternativa para evitar o próprio processo. Segundo
Grinover (apud Moraes, 1998:82), as vias extrajudiciais representam a racionalização do funcionamento
da justiça através da diminuição da intervenção dos tribunais nas “pequenas causas”, atribuindo aos
juízes apenas a solução de controvérsias consideradas mais relevantes. A conciliação judicial, por outro
lado, é aquela praticada por órgão que tenha função jurisdicional, na qual a composição processual é
caracterizada pela intervenção do juiz. Como etapa do processo já instaurado, ela é, na maioria das vezes,
facultativa, podendo em determinadas matérias ser obrigatória, por exemplo, nas questões trabalhistas.
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da informalização e simplifi cação dos procedimentos judiciais. É preciso,
também, como já enfatizamos, considerar as variáveis mais qualitativas
envolvidas nesse processo. Nesse sentido, a estrutura social dos casos, bem
como as formas de representação da violência e da punição nesta instância
de justiça, tornam-se elementos fundamentais no intuito de compreender
a relação entre as mudanças legais e as novas formas de sociabilidade e
confl itualidade sociais.
2.5 - Representações da Violência e da Punição na Justiça Informal
Um dos fenômenos sociais mais complexos da sociedade
contemporânea é, sem dúvida, o aumento indiscriminado da violência,
caracterizado pela banalização do comportamento agressivo na vida
cotidiana. Seja decorrente da prática dos agentes do Estado, seja oriunda de
segmentos organizados ou não da sociedade, a violência atual tem como
conseqüência um estado de medo e insegurança generalizado. Assim, um
dos principais obstáculos à garantia dos direitos humanos atualmente está
justamente nos altos índices de criminalidade e violência.
Trabalhos como os de Adorno (1996) ressaltam que as preocupações
públicas apontam para a emergência de um novo enfoque no estudo da
violência, que vai além do crime em si e se refere à mudança de hábitos
cotidianos que estão marcados por novos confl itos sociais. Esse novo
enfoque se sustenta no fato de que, quando se examinam os valores, o
comportamento e as normas culturais em relação à violência, verifi ca-se
que ela não se explica apenas pelas variáveis estruturais, mas também pela
presença e difusão de um outro conjunto de normas e valores que favorece
a ocorrência de comportamentos agressivos.
26
26 Há pelo menos três concepções que apontam para causas e efeitos distintos da violência atual.
A primeira pressupõe a existência de uma subcultura da violência, na qual as ações violentas seriam
orientadas pelo meio social onde vítima e agressor convivem; a segunda defende que a condição
socioeconômica seria a principal causa da violência, na qual as frustrações e agressões seriam oriundas
da desigualdade de acesso aos bens materiais e culturais; finalmente, a terceira concepção aponta
para a ausência do poder estatal como responsável pelo aumento indiscriminado da violência, que
estaria associada à crise de autoridade dos agentes de controle social gerando, assim, uma sensação de
impunidade. Com efeito, todas estas vertentes, bem como outras que poderiam ser suscitadas a partir de
outras classificações, oferecem elementos importantes para a compreensão da violência na sociedade
contemporânea, podendo, assim, ser consideradas de forma isolada ou combinada. Por exemplo, as
duas últimas vertentes relacionadas se constituem em importante modelo para explicar grande parte
da violência no caso brasileiro, na medida em que a falta de perspectiva dos mais pobres associada à
ausência de controle social por parte do Estado pode criar as condições favoráveis à prática crescente do
comportamento delinqüente. Da mesma forma, a vertente que parte da existência de uma subcultura da
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O importante a ressaltar é que as causas da violência não podem ser
reduzidas a uma única explicação, pois trata-se de fenômenos diferenciados.
É neste sentido que Adorno (2002a) destaca três grupos característicos do
comportamento violento na contemporaneidade. O primeiro se refere ao
crime organizado, principalmente o relacionado aos seqüestros e ao tráfi co
de drogas; o segundo é o bloco que envolve ameaças aos direitos humanos
como linchamentos, extermínios e violência policial; o terceiro refere-se aos
crimes praticados nas relações interpessoais, como nas brigas de vizinhos e
de casais. Embora esteja se referindo aos homicídios, e portanto aos crimes
mais graves e de “grande potencial ofensivo”, Adorno (2002b) ressalta
a importância deste último tipo de confl itualidade social, ou seja, aquela
relativa aos crimes provocados por tensões nas relações interpessoais,
oferecendo-nos, com isso, uma melhor defi nição deste tipo de confl ito.
Trata-se de um infindável número de situações, em geral envolvendo conflitos
entre pessoas conhecidas, cujo desfecho acaba, muitas vezes até acidental e
inesperadamente, na morte de um dos contendores. Compreendem conflitos
entre companheiros e suas companheiras, entre parentes, entre vizinhos,
entre amigos, entre colegas de trabalho, entre conhecidos que freqüentam
os mesmos espaços de lazer, entre pessoas que se cruzam diariamente
nas vias públicas, entre patrões e empregados, entre comerciantes e seus
clientes. Resultam, em não poucas circunstâncias, de desentendimentos
variados acerca da posse ou propriedade de algum bem, acerca de paixões
não correspondidas, acerca de compromissos não saldados, acerca de
reciprocidades rompidas, acerca de expectativas não preenchidas quanto
ao desempenho convencional de papéis como os de pai, mãe, mulher, filho,
estudante, trabalhador, provedor do lar etc (ADORNO, 2002b: 318).
Dentro dessa categoria de crimes que envolvem as relações
interpessoais incluem-se desde os delitos mais graves, como os homicídios,
até os crimes de lesão corporal consideradas “leves”. Isso signifi ca que,
dependendo do potencial ofensivo, eles são tratados de maneira diferenciada
pelo sistema de justiça. Para os crimes considerados de “menor potencial
ofensivo”, os casos são tratados a partir da lógica da justiça informal de
conciliação nos Juizados Especiais Criminais.
violência tem igual importância em suas correlações com as demais, na medida em que as atitudes que
implicam práticas violentas podem ser vistas como o resultado de um encontro entre as necessidades
sociais e a recusa das normas sociais. E assim como no caso anterior, ela também está associada
à ausência de controle estatal, já que tal encontro só é possível quando as forças das instituições
responsáveis pelo controle e integração sociais tornam-se incapazes de lidar com os “desvios de
comportamento”.
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Assim, um dos problemas que se coloca é sobre a efi cácia do tratamento
dos crimes considerados menores. Como vimos, tais comportamentos se
constituem em sua maioria em delitos que envolvem relações pessoais e de
proximidade, como relações conjugais, de familiares, vizinhos etc., sendo
os mais comuns aqueles relativos à violência doméstica. Esses delitos,
que do ponto de vista jurídico também se enquadram na categoria de
“crime violento contra a pessoa”, representam um tipo de crime de difícil
prevenção, ou seja,
esses comportamentos geralmente não são premeditados; resultam de
sentimentos ‘irracionais’, paixões, medo. Muitas das pessoas que os
executam nunca estiveram envolvidas em crimes anteriormente e não se
apercebem a si mesmas como criminosas. Além disso, os crimes violentos
contra a pessoa raramente refletem atividades de grupo, ou seja, a violência
é dirigida pelo agente contra uma vítima específica (SCURO NETO,
2000:107)
Assim, se por um lado a relação íntima que caracteriza esse tipo de
crime permite identifi car com facilidade o seu autor, por outro lado difi culta
o controle preventivo porque ele tem como motivações sentimentos que
envolvem relações afetivas e de pessoas conhecidas. Este, aliás, é o
principal argumento dos operadores do direito para justifi car o tratamento
específi co à violência familiar. Ou seja, para esses profi ssionais, a lógica da
conciliação entre as partes seria ideal para os casos que envolvem relações
continuadas, em que na maioria das vezes as relações permanecem mesmo
após os confl itos.
27
27 Para vários autores, o problema relativo à compreensão da violência doméstica diz respeito à
distinção entre a esfera do público e a do privado. Como se considera a família pertencente à esfera
privada, demorou muito tempo até que tal comportamento se tornasse crime. Portanto, é muito recente
a disposição de reverter a aceitação social deste tipo de violência, tornando-a um delito contra o
interesse jurídico da coletividade. Por essa razão, argumenta-se que ainda não se avançou o suficiente
nesse campo, pois as representações sobre a distinção entre homens e mulheres ainda correspondem
a valores que se sustentam numa relação desigual de poder e dominação. Sobretudo no sistema de
justiça, a igualdade formal é muitas vezes substituída por modelos que permitem o julgamento não
dos crimes mas dos papéis sociais que homens e mulheres desempenham socialmente: aos primeiros
são associados elementos pertencentes ao mundo do público - trabalhador, provedor - enquanto as
mulheres estão associadas ao mundo do privado - boa mãe, esposa fiel etc. (CORRÊA, 1983). Como já
ressaltamos, o reconhecimento da violência doméstica como um crime que merece tratamento específico
avançou ainda mais com a promulgação da Lei Federal 11.340, de 07 de agosto de 2006 (Lei Maria da
Penha) que, entre outras coisas, criou os Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra
a Mulher. Contudo, apesar da lei tornar esse crime mais grave, prevendo inclusive pena de prisão para
os agressores, ainda não se tem elementos suficientes para afirmar a maneira como serão tratados estes
crimes em termos destas representações sobre os papéis sociais de homens e mulheres.
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Tais questões se refl etem não apenas nas formas de representação
da violência, mas também na representação da própria punição. Assim,
o entendimento de como funciona a justiça informal criminal passa,
antes, pela necessidade de compreender como violência e punição estão
representadas por agentes e litigantes neste sistema. Nesse sentido, tão
importante quanto compreender as diferentes formas de manifestação e
representação da violência, é considerar as diferentes formas punitivas e o
aspecto social da punição.
28
Uma das maneiras de compreender a natureza social da punição está,
como sugere Garland (1990), nas correlações possíveis entre as diferentes
formas punitivas existentes e as questões políticas e morais relacionadas a
elas. Para o autor, um obstáculo ao melhor entendimento da punição está no
fato de que os esforços empreendidos têm sido apenas no sentido de converter
um assunto profundamente social em uma tarefa técnica para instituições
de controle social. Para tanto, o desafi o inicial estaria em construir, de fato,
uma Sociologia da Punição que explicasse, entre outras coisas, a função
social e o signifi cado cultural deste fenômeno.
29
A proposta, portanto, é
superar uma visão da punição associada exclusivamente ao sistema penal
como um aparato de poder e controle, e reconhecer que as leis criminais
e as instituições penais incorporam valores morais que são extensamente
compartilhadas pelos diferentes atores envolvidos no litígio. Em outras
palavras, o desafi o está em superar uma visão da punição como um tópico
específi co de interesse apenas da ciência criminal, e reconhecer que se
trata de uma complexa instituição social. Para o autor, esta deveria ser a
tarefa desta Sociologia, o que permitiria diferenciá-la da Ciência Criminal,
ou seja,
enquanto a Penalogia se situa nas instituições penais e busca atingir um
conhecimento de suas fuões penalógicas internas (durante todo século
XIX a Penalogia era sinônimo de ciência penitenciária), a Sociologia da
Punição vê as instituições do lado de fora e procura entender suas fuões
28 Segundo Adorno (1996:21), o problema da violência na contemporaneidade é que tudo converge
para um único propósito e anseio popular, qual seja, o de punir cada vez mais. Nesta perspectiva,
tanto as discussões como as práticas a respeito dos direitos humanos que chegam e são difundidas
pela população não se apresentam sob a forma de igualdade ou liberdade, mas sim de penalização,
integrando, nas palavras do autor, um movimento mundial de “obsessão punitiva crescente”.
29 Dentro deste propósito, Durkheim continua sendo uma das principais referências no estudo da
punição, já que tomou este fenômeno como um indicador privilegiado do vínculo moral invisível da
sociedade e, conseqüentemente, um objeto também privilegiado da investigação social.
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como um jogo distintivo de processos sociais situados em uma maior
extensão da rede social (GARLAND, 1990:10)
Uma das maneiras de explorar esta relação entre as formas punitivas
e a sociedade está, como já foi sugerido, no reconhecimento da in uência
de valores morais na justiça criminal. É nesse sentido que Andenaes (1977)
aponta para os efeitos da intimidação no direito criminal.
30
O argumento do
autor é que a punição é um meio tradicional de in uenciar comportamentos,
desde uma repreensão simples a uma criança até sentenças judiciais para
crimes considerados graves. Por isso, é preciso distinguir os efeitos da
punição real efetivamente aplicada aos réus infratores dos efeitos de uma
“ameaça de punição”. Assim, enquanto a punição real está associada a um
tipo especial de intimidação, a ameaça de punição pode ser vista como uma
“intimidação geral”, uma vez que está direcionada para todos os membros
da sociedade.
31
Dentro desse quadro, há a necessidade de considerar também a forma
como está organizado o sistema penal brasileiro, que divide as infrações
entre as de “grande potencial ofensivo”, que têm como base a pena de
prisão, e as de “menor potencial ofensivo”, que tratam das “pequenas
causas. Segundo alguns juristas, esta última forma de classifi cação
judicial dos crimes faz parte de um “novo devido processo legal”, qual
seja, o “consensual”, fundamentado na justiça informal conciliatória, que
tem como objetivo evitar a instauração formal do processo. A proposta
de aplicação de penas não privativas de liberdade, que fundamentou a lei
9.099/95, faz parte deste novo processo legal e foi conseqüência de uma
longa disputa entre uma visão repressora e uma visão minimalista, já que
a referida lei traduz um discurso de redução do sistema punitivo clássico
e da necessidade de buscar novas formas de punir e prevenir os delitos
(CAMPOS, 2003:157). Por outro lado, há um outro discurso profi ssional
30 O autor usa o termo “deterrent effects” para designar o que traduzimos como os efeitos da
intimidação. O termo “deterrênciasignifica “ato ou efeito de impedir o ataque de um possível agressor
mediante intimidação ou ameaça de retaliação”.
31 O importante a ressaltar é que a punição como um fenômeno social é também um meio de expressar
a desaprovação social. Andenaes argumenta que o termo “intimidação geral” é limitado na medida em
que exclui esta influência moral ou educativa em relação aos comportamentos. Por isso, prefere falar
dos fenômenos em termos dos “efeitos preventivos gerais da punição”, argumentando que, do ponto
de vista do legislador, criar inibições morais tem maior valor do que um mero impedimento, porque a
primeira opera até mesmo quando a pessoa não precisa temer a punição. A idéia é que os efeitos morais
ou educativos do direito criminal estão implícitos quando o reforço de valores sociais está mencionado
entre as metas de lei criminal, sendo a influência moral muitas vezes considerada mais importante do
que a influência direta da própria coibição.
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que considera a lei uma ampliação do sistema repressivo, uma vez que ela
(re)criminaliza uma série de delitos que fi cavam, na prática, fora do sistema
punitivo. Nessa perspectiva, a violência doméstica, por exemplo, que não
era perseguida, passa agora a integrar o sistema penal. Assim, a lei amplia
o sistema punitivo e não o diminui.
Diante dessa polêmica, nosso estudo pretendeu compreender as
formas de representação da punição no âmbito da justiça informal criminal,
pois, ao contrário da justiça comum e formal, em que o discurso é mais
ju rídic o já que envolve apena s os op er adores do d ireito, na ju st iça i nfor mal
é possível apreender melhor o que pensam e sentem as partes diretamente
envolvidas no con ito, pois um espaço maior para a sua manifestação.
Assim, o importante é que, nesta instância de justiça, as pessoas acabam
manifestando de forma mais clara seus desejos, expectativas e desculpas, e
com eles os valores morais apreendidos a partir das experiências cotidianas
na família, na religião ou em outros agrupamentos sociais.
Neste contexto, é possível que a informalização da justiça possa
causar também insatisfação por parte de algumas vítimas em relação
aos resultados das audiências preliminares de conciliação, sobretudo
quando elas buscam uma pena mais severa ao seu agressor e, contudo,
a solução fi nal se constitui no arquivamento do processo sem punição
efetiva. Por outro lado, também é fato que muitas vítimas demonstram
não se interessar pela pena efetiva, e buscam como punição apenas um
tipo de constrangimento do agressor diante da autoridade judicial. Ou
seja, para muitas esposas que não desejam separar dos seus maridos ou
companheiros, este tipo “subjetivo” de punição torna-se mais adequado
aos seus objetivos. De qualquer forma, até a promulgação da Lei federal
Maria da Penha, a justiça informal criminal foi usada, majoritariamente,
para julgar a violência doméstica. Assim, é imprescindível considerar,
numa perspectiva mais ampla, o debate sobre os impactos da lei 9.099/95
sobre os confl itos de gênero no Brasil.
2.6 - O Impacto do Juizado Especial Criminal nos Confl itos de
Gênero
A constatação de que o Juizado Especial Criminal se tornou um
espaço quase exclusivo para tratamento da violência doméstica nos leva
a considerar, também, o debate teórico sobre as razões de esse tipo de
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violência ser considerado um “crime menor, bem como as conseqüências
desta classifi cação para a resolução desses con itos.
É nesse sentido que Campos (2003:158) propõe a existência de
um “ cit teórico” na referida lei, pois considera que ela não levou em
conta, quando de sua formulão, o paradigma da criminologia feminista
fundamentado no conceito de gênero, ou seja, a concepção de que a forma
pela qual os sistemas de controle e seus agentes concebem o comportamento
das mulheres cria e reproduz os estereótipos de gênero. Tal perspectiva
permite constatar, entre outras coisas, que o julgamento da violência
conjugal se fundamenta menos no ato criminoso da agressão e mais no
comportamento das vítimas no que se refere aos seus papéis sociais como
esposa, mãe, etc.
Para a autora, tal défi cit tem como principal conseqüência a
banalização da violência doméstica, o arquivamento massivo dos processos
e a insatisfação das mulheres vítimas de agressão. Embora considere que a
luta pela criação das Delegacias de Defesa da Mulher tenha sido vitoriosa, o
movimento pela criminalização da violência doméstica não teve o mesmo
êxito, pois com a lei 9.099/95 esse tipo de crime passou por um processo
de despenalização operado pelos Juizados Especiais Criminais, razão pela
qual a lei seria imprópria para o julgamento da violência conjugal.
Com efeito, o principal objetivo do legislador, ao criar os Juizados
Especiais Criminais, não foi prevenir ou reprimir a violência doméstica,
bem como outros tipos de delitos considerados menores, mas sim desafogar
os sistemas de justiça comum e penitenciário, embora a justi cativa
desde a primeira versão dos Juizados em 1984 - os Juizados Especiais
de Pequenas Causas - tenha sido a de ampliar o acesso e o atendimento do
homem comum desprovido de direitos pelo sistema de justiça.
32
32 Trechos da Exposição de Motivos n.º 007, de 17/05/83, que antecedeu a criação da lei que
criou os Juizados Especiais de Pequenas Causas, assinada pelo então Ministro da Desburocratização
Hélio Beltrão dizia o seguinte: “A ausência de tratamento judicial adequado para as pequenas causas
(...) afeta, em regra, gente humilde, desprovida de capacidade econômica para enfrentar os custos
e a demora de uma demanda judicial. A garantia meramente formal de acesso ao Judiciário, sem
que se criem as condições básicas para o efetivo exercício do Direito de postular em Juízo, não
atende a um dos princípios basilares da democracia, que é o da proteção judiciária dos direitos
individuais. A elevada concentração populacional nas áreas urbanas, aliada ao desenvolvimento
acelerado das formas de produção e consumo de bens e serviços, atua como fator de intensificação e
multiplicação de conflitos, principalmente no plano das relações econômicas. Tais conflitos, quando
não solucionados, constituem fonte geradora de tensão social e podem facilmente transmudar-se em
comportamento anti-social. Impõe-se, portanto, facilitar ao cidadão comum o acesso à Justiça,
removendo todos os obstáculos que a isso se antepõem. O alto custo da demanda, a lentidão e
a quase certeza da inviabilidade ou inutilidade do ingresso em Juízo são fatores restritivos, cuja
eliminação constitui a base fundamental da criação de novo procedimento judicial e do próprio
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Esse processo de ‘despenalização” de certos delitos teve como
referência o chamado paradigma minimalista, ou seja, a concepção de que
na sociedade moderna a repressão não é o meio mais efi caz de resolver
determinados crimes, principalmente aqueles confl itos mais comuns da
vida cotidiana como os confl itos conjugais, de vizinhos ou de trânsito.
Para o tratamento desses delitos, o ideal seria, segundo esse paradigma,
a aplicação de penas alternativas não privativas de liberdade ou, como
ocorre freqüentemente nas audiências dos Juizados Especiais Criminais, a
conciliação entre as partes com o conseqüente encerramento e arquivamento
dos processos sem qualquer punição efetiva.
A crítica que aponta para um défi cit teórico da lei se fundamenta,
assim, no fato de que ela foi concebida sob o senso comum masculino, uma
vez que foi criada para punir a conduta criminosa masculina de um homem
contra outro homem, uma conduta eventual e não habitual como é a violência
doméstica. Nessa perspectiva, a preocupação maior que sustenta o trabalho nos
Juizados seria diminuir cada vez mais o número crescente de processos e não
resolver de fato os con itos. Assim, o debate que aponta para a inefi ciência
dos Juizados está em consonância com a crítica que as profi ssionais da
Delegacia de Defesa da Mulher desenvolvem quando apontam para a falta
de autonomia das delegacias depois da promulgação da lei 9.099/95. Ou seja,
se antes os crimes de lesão corporal e ameaça, delitos típicos da violência
doméstica, eram julgados pelo procedimento comum,
33
a partir da referida lei
o inquérito policial e demais procedimentos foram substituídos pelo Termo
Circunstanciado.
Por outro lado, para os defensores dos Juizados tal procedimento teve
a vantagem de permitir que a violência contra a mulher fosse publicizada
com a obrigatoriedade do registro destes termos circunstanciados, pois a
remessa obrigatória ao Judiciário permite visualizar a real dimensão do
problema, já que antes da lei as Delegacias funcionavam apenas como
conciliadoras e, freqüentemente, procuravam diminuir a gravidade dos
casos. Contudo, segundo Izumino (1997, apud Campos, 2003), mesmo
órgão encarregado de sua aplicação, qual seja, o Juizado Especial de Pequenas Causas (...) Enfim,
assegurar justiça ampla e eficaz constitui o dever maior do Estado e o anteprojeto de lei destina-
se precisamente a dar cumprimento a esse dever. Na medida em que estende a proteção judiciária,
hoje insuficiente, ao homem comum, insere-se ele, por inteiro, no processo de democratização ora
conduzido por Vossa Excelência com o apoio de todos os brasileiros”.
33 No procedimento comum a mulher registrava a ocorrência em uma Delegacia de Polícia e
formava-se o inquérito policial. Fazia-se o exame de corpo de delito (nos crimes de lesão), o agressor
era chamado, prestavam-se os depoimentos, ouviam-se as testemunhas e o processo era encaminhado
ao Ministério Público para oferecimento da denúncia.
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os litígios que antes da lei 9.099/95 chegavam ao Judiciário recebiam
tratamento similar, ou seja, os profi ssionais do direito procuravam desviar
o discurso jurídico sobre o crime, a autoria, o modo de cometimento e a
gravidade exclusivamente para o comportamento dos envolvidos, adotando
como parâmetro “a importância desses papéis para a preservação da família
e do casamento”. O que estava em julgamento não era o crime, a lesão, mas
como essas agressões afetavam a estabilidade dessas instituições.
A crítica à lei, portanto, parte do pressuposto de que o novo
procedimento, além de não alterar a lógica de preservação da família ou do
casamento, ainda passou a operar não mais com a absolvição do agressor
e sim com o arquivamento massivo dos processos através da renúncia da
vítima. É assim que, segundo o paradigma de gênero, o juiz acaba reforçando
a privatização da violência porque, como representante de uma instituição
pública, reproduz o seu entendimento de comportamentos adequados da
esfera privada, ou seja, “dessa forma, o juiz leva para público (Judiciário)
o seu próprio entendimento acerca da violência e sobre as mulheres que
recorrem ao Poder Judiciário (CAMPOS, 2003:161). Além disso, outra
questão que se coloca é com relação aos critérios que defi nem a violência
conjugal como um delito de menor potencial ofensivo. É neste sentido que
se argumenta que o legislador, ao defi nir a violência doméstica como um
delito menor, não considerou as implicações dessa classifi cação.
Para muitos defensores dos Juizados Especiais Criminais, ao inaugurar
um novo modelo de justiça criminal - o modelo consensual –, a lei 9.099/95
ofereceu à vitima a oportunidade de ser ressarcida dos danos sofridos.
Co nt u do, n os c on fl itos domésticos, o que está em jogo não é o ressarcimento
de danos materiais, mas sim a conquista do fi m das agressões. O elevado
número de processos arquivados nesta instância de justiça demonstra que
a conciliação tem como principal função não o ressarcimento dos danos,
mas sim o arquivamento do processo através da renúncia da vítima.
A explicação para o alto índice de arquivamento estaria na indução por
parte do magistrado no sentido da insistência feita à vítima para aceitar o
compromisso do agressor de não cometer mais o ato violento. Assim, “o
espírito conciliatório da lei é na realidade um espírito renunciatório para a
vítima”. (CAMPOS, 2003:165).
Por outro lado, embora o arquivamento dos processos sem punição
represente a maior parte das soluções oferecidas, há também a possibilidade
de transação penal para os casos em que a vítima não aceita a renúncia e
manifesta o desejo em continuar com o processo. Assim, cabe ressaltar que a
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transação penal tem um signi cado simbólico importante para as mulheres
agredidas, pois o simples fato de levar o con ito adiante signi ca que ela,
sozinha, não consegue pôr fi m à agressão. Por isso, a presença do juiz e dos
outros operadores do direito oferece, de certa forma, uma gravidade mais
formal ao con ito e representa um importante fator de poder para a vítima,
pois tal presença adquire o efeito simbólico de restabelecer o equilíbrio
da relação e devolver o poder à mulher. Contudo, do ponto de vista do
paradigma de gênero, mesmo a transação penal não tem surtido o efeito
desejado nos casos de violência doméstica. Isto porque as penas impostas
(multa ou prestação de serviços à comunidade) não reproduzem o grau
de gravidade desejado pelas vítimas, produzindo, assim, uma sensação de
impunidade.
Em síntese, o importante a ressaltar é que as análises existentes sobre
os impactos da lei 9.099/95 sobre os confl itos de gênero sempre enfatizam
dois extremos: ou se considera que a aplicação da lei é adequada porque
corresponde às expectativas das mulheres que não querem a condenação
do réu, ou se enfatiza a inadequação da lei ao demonstrar que a maior parte
dos casos não são resolvidos satisfatoriamente, desestimulando, assim,
novas denúncias. O desa o, portanto, é equilibrar essas duas posições, pois
ambas parecem ser legítimas do ponto de vista das vítimas.
3. O JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL A PARTIR DE UM
ESTUDO DE CASO
3.1 - Organização do Material e Tipologia das Audiências
Com o objetivo de compreender a lógica de funcionamento da justiça
informal criminal no Brasil, elegemos como estudo de caso o Juizado
Especial Criminal de uma Comarca de porte médio do interior do Estado
de São Paulo. Após o levantamento dos primeiros dados quantitativos
relativos à natureza das causas e ao resultado fi nal dos processos, tornou-
se evidente a necessidade de acompanhamento das audncias preliminares
de conciliação, já que as variáveis quantitativas apenas não davam conta
de responder as questões relacionadas, por exemplo, ao tipo de tratamento
que recebem os casos e as pessoas que buscam nesta instância de justiça a
solução para seus confl itos, de forma a justifi car o alto índice de acordos e
a r q u i v a m e nt o d o s p r o c e s s o s . T a l c o n s t a t a ç ã o p e r m i t i u q u e , s i m u l t a n e a m e nt e
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à revisão da literatura, pudéssemos buscar a evidência empírica no trabalho
de observação das audiências e nas inúmeras conversas informais que
realizávamos com profi ssionais e litigantes no referido Juizado.
Assim, também nos preocupamos, durante toda a pesquisa, com o
cotidiano do cartório e dos bastidores dorum, no intuito de compreender
a avaliação que os profi ssionais fazem sobre o seu trabalho, sobre a
importância que têm para a sociedade, que tipo de tratamento oferecem
aos usuários, e que tipo de relação estabelecem entre si dentro do sistema
de justiça. Como lembra Becker, o pesquisador de campo tem condições de
fazer mais testes de suas hipóteses do que os pesquisadores que se utilizam
de métodos mais formais e esporádicos. Ou seja,
O pesquisador de campo, devido ao fato de que tem um contato connuo
com aqueles que estuda, pode coletar dados deles através de variados
procedimentos, em diversos ambientes e em diferentes estados de espírito.
Essa variedade permite que ele faça cruzamento de suas conclusões para
verificação e volte a testá-las repetidamente, de modo a poder ter certeza
de que seus dados não são produto de um procedimento específico ou de
alguma situação ou relação particular. Ele não se limita ao que pode ser
coletado em uma entrevista, nem está limitado, no que pergunta, pelo seu
conhecimento e compreensão no momento; uma vez que pode entrevistar
repetidamente, pode investigar diferentes questões em diferentes ocasiões
(BECKER, 1997:91)
Fundamentados nessa perspectiva da necessidade da presença
contínua do pesquisador junto ao campo, lembramos também Gluckman
(1976: 66), que argumenta serem dois os meios principais disponíveis ao
pesquisador para estudar a construção dos dramas sociais, quais sejam, a
observação direta dos atos e do comportamento dos sujeitos, e os discursos
dos indivíduos acerca dos acontecimentos. Nessa perspectiva, portanto,
também é essencial para a compreensão de uma situação social a interação
comunicativa entre os agentes e o observador, pois o sentido da ação só
pode ser alcançado por meio da análise das justifi cativas que os próprios
sujeitos envolvidos fornecem.
Neste sentido, além do trabalho sistemático de observação das
audiências, optamos também por realizar entrevistas em profundidade com
os magistrados, pois consideramos que ambos os métodos se constituem
em atividades complementares. Ou seja, o trabalho de observação das
audiências permitiu compreender os objetivos e as nuanças no discurso
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dos juízes entrevistados, ao mesmo tempo que as entrevistas também
contribuíram para desvendar determinadas situações características do
ritual das audiências, o que facilitou o trabalho de observação. E como o
estudo do ritual foi o caminho que escolhemos para analisar as audiências
preliminares de conciliação, partimos da seguinte defi nição:
rituais são tipos especiais de eventos, mais formalizados e estereotipados
e, portanto, mais suscetíveis à análise porque já recortados em termos
nativos (...) são mais estáveis, há uma ordem que os estrutura, um sentido
de acontecimento cujo propósito é coletivo, e uma percepção de que eles
são diferentes (PEIRANO, 2001:08).
Para a autora, eventos em geral são por princípio mais vulneráveis ao
acaso, mas não totalmente desprovidos de estrutura e propósito se o olhar
do observador foi previamente treinado nos rituais. Desta forma, a escolha
do processo ritual para compreender melhor a lógica de funcionamento das
audiências preliminares de conciliação justifi ca-se, entre outras coisas, por
permitir que se focalize e se destaque, por meio das falas e de outras
atitudes, aquelas que dão um sentido às ações sociais de agentes e litigantes
envolvidos nos confl itos, justifi cando o caráter simbólico e signifi cativo
daquilo que, sem esse olhar, seria apenas usual. Neste caso, a análise do
ritual permite ainda apontar para as diferenças signifi cativas entre a justiça
informal de conciliação e a justiça formal de decisão.
A cidade onde realizamos o estudo de caso tem uma população
estimada em 213 mil habitantes e conta com uma Comarca constituída de
cinco Varas Cíveis e três Varas Criminais. O Juizado Especial Criminal
iniciou suas atividades na Comarca assim que a lei 9.099/95 foi promulgada,
em setembro de 1995. Por não possuir cartório próprio, ele funciona no
mesmo espaço ocupado pelas Varas Criminais existentes. Assim, as
demandas caracterizadas como “crimes de menor potencial ofensivo” que
chegam até o fórum são distribuídas entre os três juízes e as audiências
preliminares de conciliação são realizadas uma vez por semana.
De acordo com a lei, o processo criminal tem origem sempre
numa Delegacia de Polícia, seja num distrito comum ou na Delegacia
Especializada na Defesa da Mulher, com o registro da ocorrência a partir
da instauração do Termo Circunstanciado de Ocorrência Policial, no qual
se anota, além dos dados pessoais das partes envolvidas, o depoimento da
vítima e, às vezes, também do acusado. Ressalta-se que a vítima, que é
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quem presta a queixa-crime, nem sempre sabe informar os dados completos
do autor do fato, o que difi cultou o levantamento das variáveis quantitativas
relativas ao perfi l socioeconômico do acusado. Por essa razão, em algumas
situações foi possível levantar essas variáveis ausentes no processo apenas
durante a realização das audiências.
Além dos crimes de trânsito – entre os quais os mais comuns são
a falta de habilitação e a direção perigosa – todas as demais audiências
acompanhadas referiam-se a confl itos que envolviam algum tipo de
agressão ou ameaça, sendo os principais delitos distribuídos da seguinte
forma: crime de lesão corporal dolosa, crime de lesão corporal culposa,
crime contra a liberdade individual, perturbação de sossego, crime de
usurpação (dano), crime contra os costumes e contra a honra, crime de
apropriação indébita e outras contravenções penais (vias de fato, porte de
arma branca).
Considerando a natureza dos delitos, portanto, selecionamos uma
amostra de 150 casos criminais no período de 2000 a 2003, levantando
as variáveis quantitativas dos processos e acompanhando e registrando as
respectivas audiências. Além de levantarmos o número total de processos
relativos à natureza das causas para toda a Comarca desde a instalação do
Juizado em 1995, a caracterização dos processos cujas audiências foram
acompanhadas na primeira Vara Criminal foi realizada com referência às
seguintes variáveis: resultado fi nal da audiência, natureza do delito, tipo
de relação ou parentesco entre as partes litigantes, presença ou não de
advogados nas audiências, e perfi l socioeconômico de vítimas e acusados.
Com relação à organização dos dados relativos ao trabalho de
observação das audiências, optou-se pela classifi cação das mesmas em
quatro categorias, de acordo com as seguintes variáveis: a) confi guração
profi ssional, considerando-se as infl uências que a existência ou não de
interação entre os diferentes operadores do direito pode trazer para o processo
ritual; b) relação ou parentesco entre os litigantes, considerando-se que
esta variável permite associar a origem e a motivação para os confl itos aos
argumentos dos profi ssionais e dos próprios litigantes durantes as sessões;
c) natureza dos delitos de acordo com o registro, considerando-se que esta
variável, além de defi nir o tipo de tratamento oferecido, aponta também
para os limites da classifi cação dos confl itos na justiça informal criminal;
d) resultado fi nal das audiências, considerando-se que o desfecho fi nal dos
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processos permite compreender melhor, entre outras coisas, a relação entre
a estrutura social dos casos e as soluções oferecidas para eles.
3.2 – Caracterização do Juizado a partir das Variáveis Quantitativas
Tabela 1: Distribuição dos processos no Juizado Especial Criminal da
Comarca estudada, no período de 1996 – 2003
Ano 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 Tota
Ano 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 Total
Processos 2.508 2.668 2.094 1.637 1.748 1.672 2.269 1.756 16.352
Fonte: Juizado Especial Criminal de uma Comarca de porte médio do Estado de São Paulo
A primeira tabela relativa à distribuição de processos criminais
considerados de menor potencial ofensivo nos mostra que, desde sua
instalação em novembro de 1995, o Juizado Especial Criminal estudado
recebeu, até o fi nal de 2003, 16.352 novos processos, o que representa
um número bastante expressivo de audiências realizadas, principalmente
se considerarmos a possibilidade de que muitas dessas demandas não
chegavam ao Judiciário antes da instalação dos Juizados. Também se
destaca o fato de que, se considerarmos que os processos têm um espaço
limitado dentro do fórum, já que as audiências são realizadas apenas uma
vez por semana, esse número representa uma demanda signifi cativa quando
comparado ao número de processos da justiça comum.
Por outro lado, pode-se constatar, também, que não houve um
crescimento linear ao longo dos anos como temiam muitos especialistas
nos meses que seguiram a instalação dos Juizados Especiais Criminais.
Para o Juizado estudado, o que se constatou foi uma oscilação no decorrer
dos anos, embora a tendência de queda tenha sido maior do que a tendência
de crescimento. Ou seja, se analisarmos o número de processos distribuídos
no ano de 2003, por exemplo, percebe-se que ele é inferior ao maior índice
observado em 1997. Esse mesmo desenvolvimento pode ser observado nos
processos distribuídos para a primeira Vara Criminal, onde concentramos
o trabalho de observação das audiências.
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Tabela 2: Distribuição dos processos no Juizado Especial Criminal, para a
Primeira Vara Criminal da Comarca estudada, no período de 1995 – 2003
Ano 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 Total
Processos 113 1.257 1.331 1.050 811 690 557 748 590 7.147
Fonte: Juizado Especial Criminal de uma Comarca de porte médio do Estado de São Paulo
Como o Juizado foi instalado em novembro de 1995, os primeiros
processos (113) foram transferidos para o ano de 1996. Considerando-se
que os processos que chegam ao Juizado são divididos igualmente entre as
três Varas Criminais, a tendência no movimento processual para a primeira
Vara foi a mesma observada para o total de processos distribuídos na
Comarca, ou seja, embora com alguma oscilação, a tendência de queda
no número de novos processos foi maior que a tendência de crescimento.
Mesmo considerando-se que a terceira Vara Criminal foi criada em 2000,
justifi cando-se assim um menor número de processos para a primeira Vara
após esse período, pois a divisão passou a ser feita em três partes, constata-
se que houve uma queda no número de novos processos a partir de 1998
e, mesmo voltando a subir em 2002, não alcançou o maior índice, que foi
em 1997. Como apontamos para os dados gerais, tal tendência contrariou os
críticos do sistema que, preocupados com o aumento da demanda associada
à falta de estrutura, previam um enorme crescimento dos processos nos
anos posteriores à criação dos Juizados. Contudo, pelo menos na Comarca
e no período estudados, isso não ocorreu.
Alguns magistrados explicam a provável queda no número de
novos processos na Comarca ressaltando o caráter preventivo do Juizado
na solução dos confl itos interpessoais. Ou seja, as audiências preliminares
de conciliação acabam desempenhando uma função preventiva no sentido
de evitar que novos delitos, principalmente agressões, ocorram. Em outras
palavras, os juízes argumentam que a queda no número de processos
estaria relacionada à queda no número de reincidência, já que era comum a
mesma pessoa processar ou ser processada várias vezes. Nesse sentido, as
audiências preliminares de conciliação, que na verdade têm um caráter de
advertência para que novos delitos não ocorram, acabam infl uenciando na
decisão de não reincidir. Para a representante da Delegacia Especializada
de Defesa da Mulher da Comarca, contudo, estas não seriam as razões para
explicar a não reincidência:
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Eu entendo que diminuiu a reincidência não por causa da atuação da justiça,
mas porque as próprias mulheres estão além desses procedimentos; estão
mais dispostas ou mais convencidas de que elas querem pôr fim a esta
situação de agressão a qualquer custo, e mesmo buscando a separão. A
maioria delas diz “olha, eu vou me separar, eu não vou só fazer Termo
Circunstanciado, eu quero me separar. Outras dizemeu a me
separei. Então não vai sofrer mais agreso. Pode ser que sofra alguma
agressão posterior mais não debaixo do mesmo teto. Antigamente as
mulheres vinham e diziam “eu quero processar mas eu não quero me
separar, eu quero continuar convivendo, mantendo a família”. Hoje elas
estão mais dispostas à separão.
Outra hipótese para o provável declínio é que a expectativa inicial por
parte de muitas pessoas em relação a este tipo de justiça rápida e gratuita,
explicaria o alto índice de processos nos dois primeiros anos. Quando as
vítimas descobriram que na verdade esta instância de justiça, baseada na
lógica da conciliação e do acordo, não possuía instrumentos para punição
a não ser as chamadas penas alternativas, deixavam de manifestar o desejo
de processar os autores e passaram a resolver seus problemas na própria
delegacia. Em outras palavras, é provável que inicialmente muitas pessoas
tenham buscado o Juizado por desconhecerem um de seus princípios básicos,
que é a conciliação entre as partes como forma de encerrar o processo sem
que haja uma punição efetiva.
Se tal hipótese for verdadeira, é possível que muitas vítimas tenham
tido a sensação de que seus agressores saíam impunes das audiências, o que
as teria desestimulado a realizar novas denúncias. Por outro lado, como
discutiremos na análise da próxima tabela, a observação das manifestações
de várias vítimas nas audiências acompanhadas apontou para o seu desejo
de que os agressores não fossem punidos efetivamente, mas sofressem um
tipo subjetivo de punição, como a sensação de constrangimento diante da
autoridade judicial.
Com relação às demais variáveis quantitativas, é importante ressaltar
que, pelo fato de se tratar de processos informais em que as próprias
pessoas prestam queixa-crime nas Delegacias sem necessariamente
estarem acompanhadas de advogados, muitas vezes dados importantes são
omitidos e permanecem ausentes quando da instauração do processo junto
ao Juizado. Daí, inclusive, nossa opção em levantar as variáveis apenas
dos processos nos quais pudemos acompanhar as audiências, pois muitas
dessas variáveis foram coletadas durante a realização das sessões a partir
das respostas oferecidas pelas partes aos questionamentos feitos pelo juiz.
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No Juizado estudado, o magistrado quase sempre inicia a audiência
esclarecendo a sua natureza e argumentando que o intuito é buscar a
conciliação, visando o encerramento do processo. O objetivo, portanto, é
encerrar rápido. Não obstante, o juiz normalmente pergunta à vítima se
ela concorda com a decisão de encerrar o processo. No que se refere à
amostra selecionada, a observação das audiências revelou que a maioria dos
processos foram encerrados e arquivados sem punição efetiva, conforme
demonstra a tabela 3.
Tabela 3: Distribuição do resultado fi nal das audiências preliminares de
conciliação acompanhadas na Primeira Vara Criminal da Comarca estudada
Resultado Final N %
Processo encerrado e arquivado (sem punição) 117 78,0
Instrução e Julgamento (provas, testemunhas, decisão) 008 5,3
Audiência (re)designada por ausência de uma das partes 008 5,3
Processo suspenso por 30, 60 ou 90 dias 005 3,3
Ressarcimento de danos materiais (indenização) 004 2,7
Pagamento de multa 003 2,0
Pena de prestação de serviços à comunidade 003 2,0
Solicitação de nova averiguação (devolução à Delegacia) 002 1,4
Total 150 100
Fonte: Juizado Especial Criminal de uma Comarca de porte médio do Estado de São Paulo
Como pode ser observado na tabela 3, na maioria das audiências
acompanhadas (78,0%) os processos foram arquivados após conciliação
entre as partes. Pode-se constatar também que esta variável relativa ao
resultado fi nal dos processos está diretamente relacionada à variável
relativa à natureza das causas, já que para certos delitos, como crimes de
trânsito, é imperativa a aplicação de multa ou pena de prestação de serviços
à comunidade. Como a maioria dos crimes tratados no Juizado refere-se –
como veremos na tabela 4 – a crimes de lesão corporal dolosa (agressão)
e crime contra a liberdade individual (ameaça), é possível, nestes casos,
encerrar o processo sem que haja punição efetiva.
Por outro lado, o conceito de punição nestes casos deve ser melhor
compreendido, já que em muitas audiências parece que a vítima busca na
verdade o constrangimento do agressor diante do juiz, principalmente nos
casos que envolvem agressão entre cônjuges. Da mesma forma que colocamos
como uma das hipóteses para o decréscimo no número de processos o fato
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de que algumas pessoas desconheciam, no início, o objetivo principal do
Juizado, que é o arquivamento do processo, recentemente, ao contrário,
outras pessoas estariam mais conscientes desse princípio, utilizando-o,
inclusive, como forma de atingir seus objetivos. Quer dizer, muitas vítimas
vão para as audiências buscando menos uma punição severa e mais um
tipo subjetivo de punição, esperando que, com isso, novas agressões sejam
evitadas e revelando, pelo menos no espaço da audiência, um maior poder
em relação ao seu agressor. Nos termos do conceito de “dualidade da
estrutura” de Giddens, portanto, esta seria a explicação para o fato de as
pessoas utilizarem os recursos da estrutura para alcançar seus objetivos.
Com relação à natureza dos confl itos, de todos os crimes e
contravenções penais de competência dos Juizados Especiais Criminais, ou
seja, consideradas de menor potencial ofensivo e com pena máxima não
superior a um ano de detenção, o Juizado da Comarca estudada registrou os
seguintes delitos:
Tabela 4: Distribuição da natureza dos con itos dos processos
encaminhados ao Juizado Especial Criminal da Comarca estudada, no
período de 1996 – 2003
Natureza do confl itos N %
___________________________________________________________
Crime de lesão corporal dolosa 4.860 29,72
Crime contra a liberdade individual 3.548 21,70
Outras contravenções penais (vias de fato) 1.707 10,43
Condução de veículo sem habilitação 1.434 8,77
Precatória (em geral) 1.018 6,22
Outros feitos não especifi cados 759 4,64
Crime de lesão corporal culposa 727 4,44
Direção perigosa de veículos 326 1,99
Crime de usurpação, esbulho e dano 320 1,96
Crime de uso indevido de entorpecente 292 1,78
Crime contra a honra e contra os costumes 260 1,59
Crime de periclitação da vida e da saúde 237 1,45
Crime de porte de arma de fogo 227 1,39
Outros 637 3,90
___________________________________________________________
Total 16.352 100
Fonte: Juizado Especial Criminal de uma Comarca de porte médio do Estado de São Paulo
A principal constatação a partir da tabela 4 refere-se ao fato de que a
maioria dos delitos envolveu algum tipo de agressão física ou psicológica,
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sendo a agressão física a de maior índice. Ou seja, para todos os processos
distribuídos no Juizado Especial Criminal, desde sua criação em 1995, 29,72%
referiram-se a crimes de lesão corporal dolosa (agressão física) e 21,70%, a
crimes contra a liberdade individual (ameaça). Se considerarmos que os delitos
classifi cados como “outras contravenções penais” envolvem principalmente
“vias de fato” (agressão física) e “porte de arma branca” (ameaça), além do
“crime de direção perigosa”, os quais juntos representam 12,42% de todos
os processos, esse tipo de crime envolvendo a vida aumenta ainda mais. Ou
seja, somando-se os quatro tipos de delitos (crime de lesão corporal dolosa,
crime contra a liberdade individual, outras contravenções penais e direção
perigosa), nota-se que 63,84% dos processos referiram-se a relações que,
de alguma forma, colocaram em risco a integridade física das vítimas.
Tabela 5: Distribuição da natureza dos confl itos dos processos cujas
audiências de conciliação foram acompanhadas na Primeira Vara Criminal
da Comarca estudada
da Comarca estudada
Natureza das Causas N %
Natureza das Causas N %
___________________________________________________________
___________________________________________________________
Crime de Lesão Corporal Dolosa 72 48,0
Crime Contra a Liberdade Individual 48 32,0
Outras Contravenções Penais 14 9,3
Crime de Usurpação (dano) 05 3,3
Outros Crimes Contra os Costumes 03 2,0
Crime Contra a Administração (em geral e/ou pública) 03 2,0
Crime Contra a Honra 02 1,3
Crime de Lesão Corporal Culposa 01 0,7
Crime de Apropriação Indébita 01 0,7
Porte Ilegal de Arma de Fogo 01 0,7
___________________________________________________________
Total 150 100
Fonte: Juizado Especial Criminal de uma Comarca de porte médio do Estado de São Paulo
Para os processos cujas audiências foram acompanhadas na primeira
Vara Criminal, observa-se que os índices de crimes de lesão corporal
dolosa e crime contra a liberdade individual (ameaça) foram ainda maiores
em relação aos índices gerais para o Juizado. Os dados da tabela 5 revelam
que praticamente a metade dos processos, ou seja, 48%, se referem a crimes
de lesão corporal dolosa, o que indica que a agressão física se constitui
num dos principais fatores que impulsionam a busca da justiça informal na
área criminal. Somando-se os índices relativos à lesão corporal dolosa aos
crimes contra a liberdade individual (ameaça) e outras contravenções penais
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(vias de fato, perturbação de sossego e porte de arma branca), portanto,
os confl itos que envolvem agressão, ameaça e perturbação de sossego
representaram 89,3% de todas as audiências acompanhadas.
Ressalta-se ainda que, de acordo com o que pudemos apreender das
manifestações dos litigantes nas audiências acompanhadas, às vezes os
outros crimes também incluem algum tipo de agressão. Ou seja, ao receber
o pedido da queixa-crime, o agente policial pode caracterizá-lo como
crime contra a liberdade individual ou perturbação de sossego quando,
na realidade, também houve agressão física, e, portanto, também crime
de lesão corporal dolosa. Tal constatação sugere que, na justiça informal
criminal, é possível que haja uma sobreposição entre os diferentes tipos de
delitos, ao contrário do que se supõe acontecer na justiça formal, em que
os crimes são mais bem classifi cados e, desta forma, também é mais bem
defi nida a forma como devem ser tratados.
Neste sentido, é ilustrativo um estudo desenvolvido por Sudnow
(1965), que aponta para o fato de que as alternativas de acordo muitas
vezes já estão preestabelecidas no sistema, permitindo avaliar até que
ponto as categorias institucionalizadas se refl etem nas penas aplicadas
aos infratores. O autor considera a guilty plea – admissão de culpa - uma
maneira de manipulação de casos criminais, nos quais o defensor público
passa a ter papel essencial na forma como os acusados são representados.
Para descrever o método de obtenção de uma disposição para admitir
a culpa, o autor busca caracterizar o que chama de “infrações menores
necessariamente incluídas”. Isso quer dizer que onde uma infração não pode
ser cometida sem que necessariamente se cometa outra, esta é uma infração
necessariamente incluída. Um acusado não pode ser condenado por dois ou
mais crimes quando um deles já esteja necessariamente incluído nos outros,
a menos que os vários crimes ocorram em ocasiões separadas. Por exemplo,
se um assassinato ocorre, o acusado não pode ser responsabilizado pelo
“homicídio” e também pela “intenção para cometer o assassinato”, sendo o
último necessariamente incluído em assassinato de primeiro grau. Se, contudo,
um acusado tenta cometer um homicídio contra uma pessoa e comete um
homicídio contra outra, ambos os crimes podem lhe ser imputados.
Por essa razão, é fundamental para a análise sociológica das
instituições jurídicas entender como os operadores do direito constroem
as representações dos crimes. Segundo Sudnow, nos Estados Unidos
normalmente os agentes de justiça procuram ganhar conhecimento da
maneira típica na qual os crimes são cometidos, as características sociais
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das pessoas que regularmente os cometem, as características dos cenários
nos quais eles acontecem, os tipos de vítimas freqüentemente envolvidas
etc. Também se utilizam de uma linguagem própria para defi nir os crimes
e atribuir a eles modelos de atividade criminal usual, histórias criminais,
características psicológicas e trajetórias sociais. O importante é que, para
qualquer de uma série de tipos de crime, tanto o defensor quanto o promotor
podem prover alguma forma de caracterização proverbial e de representação
legal. Em síntese, nos Estados Unidos, os operadores estão interessados em
obter uma admissão de culpa onde quer que seja possível para, com isso,
evitar um julgamento.
Embora estejamos num outro contexto, de forma análoga é possível
dizer que, na justiça informal criminal brasileira, também há uma certa
sobreposição entre os vários tipos de delitos. Tal situação, no entanto, não se
resume apenas no entendimento do agente policial quando formula o Termo
Circunstanciado, mas aparece também nos argumentos dos operadores do
direito durante a realização das audiências preliminares de conciliação,
nas quais muitas vezes se busca minimizar a gravidade dos crimes como
forma de defender seus clientes, no caso dos advogados, ou de evitar a
continuação do processo, no caso dos magistrados.
Tabela 6: Distribuição do tipo de relação entre vítimas e acusados para
as audiências preliminares de conciliação acompanhadas na Primeira Vara
Criminal da Comarca estudada
Relação entre as partes N %
___________________________________________________________
Casados ou amasiados 45 30,0
Vizinhos 35 23,3
Familiares 17 11,3
Desconhecidos 17 11,3
Noivos ou namorados 09 6,0
Patrão e empregado, gerente e funcionário 08 5,3
Colegas de escola ou de trabalho 06 4,0
Namorado(a) e ex-namorado(a), esposa e ex-esposa 03 2,0
Sócios em empresas ou comércio 02 1,3
Inquilino e proprietário 02 1,3
Esposa e amante do esposo 01 0,7
Professora e aluno 01 0,7
Sem relação (acusado autuado pelo poder público) 04 2,8
___________________________________________________________
Total 150 100
Fonte: Juizado Especial Criminal de uma Comarca de porte médio do Estado de São Paulo
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A variável relativa ao tipo de relação ou parentesco entre as partes
litigantes demonstra que a maioria dos processos referiram-se a confl itos
conjugais (30%) e de vizinhança (23,3%). Somados, os dois tipos de
confl itos representaram 53,3% dos processos acompanhados, e apontam,
portanto, para a importância em compreender melhor a violência interpessoal
e intersubjetiva entre pessoas que convivem próximas uma das outras, ou que
mantém relações continuadas, como nas relações conjugais e familiares.
A principal conseqüência desta constatação, ou seja, do alto índice
de violência doméstica julgada nos Juizados, é que, de acordo com vários
autores, ela acaba passando por um processo de despenalização, na
medida em que o esforço do magistrado é sempre no sentido de encerrar o
processo sem que haja uma punição efetiva ao agressor. Daí a necessidade
em desvendar o processo ritual desenvolvido nas audiências preliminares
de conciliação, já que a provável “pressão” por parte dos profi ssionais, no
sentido de convencer as vítimas a desistirem do processo, se manifesta
sobretudo a partir das formas de linguagem, nas quais se lança mão de
valores cujos signifi cados se sustentam muito mais na experiência comum e
cotidiana do que nas regras estabelecidas pelo sistema normativo do direito.
Daí, também, decorre a importância de considerar a presença ou não de
advogados representando as partes litigantes nas audiências, já que tal
presença pode tanto facilitar como atrapalhar o esforço do magistrado no
sentido de “encerrar rápido”.
Tabela 7: Distribuição da participação ou não de advogados nas audiências
preliminares de conciliação acompanhadas na Primeira Vara Criminal da
Comarca estudada
Representação ou não de advogados N %
___________________________________________________________
Presentes apenas vítima e/ou acusado (sem representação) 82 54,6
Presente somente o advogado da vítima 25 16,7
Presente somente o advogado do acusado 22 14,7
Presentes advogado da vítima e advogado do acusado 21 14,0
___________________________________________________________
Total 150 100
Fonte: Juizado Especial Criminal de uma Comarca de porte médio do Estado de São Paulo
Observa-se que, na maioria das audiências acompanhadas, não houve
participação de advogados, ou seja, em 54,6% dos casos as partes litigantes
estavam ambas desacompanhadas desse profi ssional, e a interação foi apenas
com o magistrado. Além disso, ressalta-se que, como pudemos constatar no
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trabalho de observação das audiências, mesmo quando os advogados estão
presentes, sua participação, muitas vezes, é pequena, parecendo haver um
certo consenso em não obstruir a agilização do processo. Nesse sentido,
assim como alguns litigantes reconhecem que o objetivo do Juizado é encerrar
rápido, alguns profi ssionais também buscam convencer seus clientes de que
a conciliação é o melhor caminho. Com isso, também garantem um retorno
nanceiro sem que precisem despender muito tempo para resolverem os seus
casos, além de utilizarem, em muitos casos, o sistema de justiça informal
como fórum privilegiado de sua atuação profi ssional.
34
Por outro lado, quando o compromisso implícito entre juízes e
advogados no sentido de encerrar rápido não é compartilhado por um
dos representantes legais, altera-se completamente a forma ritualística
com que as audiências se desenvolvem. Ou seja, aqueles argumentos que
normalmente são utilizados pelos juízes para convencer as partes a encerrar
o processo esbarram justamente na resistência dos advogados em aceitá-
los, caracterizando, assim, uma situação de confl ito profi ssional tanto entre
juízes e advogados quanto entre os próprios advogados.
Contudo, embora a participação do advogado seja importante na
medida em que pode infl uenciar tanto o ritual quanto o resultado fi nal
das audiências – seja para legitimar, seja para contestar a autoridade do
juiz -, o fato é que nas sessões observadas os números revelaram que tal
participação ainda é pequena, o que pode sugerir inclusive que a sua ausência
acaba facilitando a conciliação e o conseqüente encerramento do processo.
Em apenas 14% das audiências acompanhadas, ambas as partes estavam
representadas por advogados, e somente 16,7% das vítimas e 14,7% dos
acusados se fi zeram representar exclusivamente, revelando, com isso, que é
na interação direta entre litigantes e juízes que se concentram os elementos
principais para o entendimento do processo ritual das audiências.
Em outras palavras, parece-nos que a principal questão a ser enfocada
nos Juizados Especiais Criminais esteja menos nas desvantagens oriundas
da não-representação de advogados e mais no tipo de tratamento oferecido
34 Assim como pudemos constatar em estudo anterior sobre a justiça informal na área cível, os
advogados conciliadores buscavam, nessa instância de justiça, construir uma nova identidade
profissional, cuja estratégia se fundamentava no processo de diferenciação em relação aos demais
colegas e a alguns magistrados, caracterizando-os como formais e burocráticos. Contudo, como na
justiça informal criminal da Comarca estudada é sempre o juiz que conduz as audiências, não existe
a figura do conciliador ou juiz leigo. Existem, no entanto, aqueles advogados que sempre participam
dessas audiências representando as partes ou atuando como defensores públicos de plantão, e por esta
razão acabam se especializando na lógica da conciliação e fazendo da justiça informal criminal o espaço
prioritário de suas ações.
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aos litigantes por parte dos magistrados, já que estes normalmente têm
o controle da situação mesmo quando os advogados se fazem presentes.
Daí a importância em conhecer também o perfi l socioeconômico das
partes litigantes, já que se pressupõe que ele pode infl uenciar tanto na
caracterização do confl ito quanto no próprio tratamento oferecido pelos
juízes e pelos outros operadores.
Ou seja, embora o esforço freqüentemente seja no sentido de encerrar
rápido com vistas a evitar a instauração formal do processo, o tipo de litígio
associado ao perfi l socioeconômico das partes pode determinar o tipo de
argumento oferecido pelos profi ssionais para tal objetivo, bem como a
própria manifestação das partes, o que também se constitui em elementos
importantes para compreender o ritual. Enfi m, a estrutura social dos casos
deve ser considerada na compreensão de como eles são de fato tratados.
Tabela 8: Distribuição, por gênero, de vítimas e acusados para as audiências
preliminares de conciliação acompanhadas na Primeira Vara Criminal da
Comarca estudada
Sexo Vítima N % Acusado N %
___________________________________________________________
Masculino 46 30,7 98 65,3
Feminino 98 65,3 52 34,7
Justiça pública
35
04 2,7 - -
Várias vítimas 02 1,3 - -
___________________________________________________________
Total 150 100 150 100
Fonte: Juizado Especial Criminal de uma Comarca de porte médio do Estado de São Paulo
Com relação ao sexo das partes litigantes, nota-se que as vítimas
preferenciais de agressão são do sexo feminino (65,3%), enquanto que
os acusados do sexo masculino constituem a maioria (65,3%). Esses
indicadores confi rmam os dados constantes da tabela 6, na qual o delito de
maior percentual é aquele que envolve relações conjugais, caracterizando,
assim, a violência doméstica de homens contra suas esposas ou companheiras
como a principal causa que chega à justiça informal criminal. E, segundo
pudemos apurar no trabalho de observação das audiências, mesmo nos
35 Em determinados crimes, a agressão é considerada contra a sociedade. Por exemplo, quando se
dirige em alta velocidade, sem habilitação, ou quando se é pego pelo polícia portando arma branca ou
arma de fogo, o crime é caracterizado como se fosse contra a sociedade.
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delitos que não envolvem relações conjugais, as mulheres ainda assim se
constituem em vítimas preferenciais, como no caso de litígios que envolvem
relações entre vizinhos, irmãos ou outros tipos de parentesco.
Conclui-se, portanto, que qualquer discussão sobre a forma como opera
a justiça informal na área criminal no Brasil deve passar, necessariamente,
pela questão de gênero. Tal constatação nos remete à análise do trabalho
desenvolvido pela Delegacia de Defesa da Mulher, na medida em que é
bastante provável que, antes da sua existência, as mulheres não se sentiam
encorajadas a denunciarem seus parceiros agressores. Contudo, é possível
que muitas mulheres ainda prefi ram não denunciar. Ao ser questionada
sobre as razões que levam algumas mulheres a não denunciarem, ou
mesmo desistirem do processo criminal, a delegada da Comarca estudada
argumentou o seguinte:
Eu acredito que seja em função da criação, da formão que ela recebeu,
de formação familiar, e que ela deve preservar a todo custo. Para as mais
jovens realmente o grau de suportabilidade está bem curto. Agora aquelas
senhoras de mais de quarenta anos a gente observa que elas vêm em busca
de aulio para tratar o relacionamento, tentar curar o relacionamento
mas não se separar (...) Quando a mulher tem um sentimento diferente de
preservação do casamento, que ela é mãe, eu acho que ela gostaria sim de
manter o casamento. Então ela sofre mais. Muito embora como eu disse
ultimamente as mais jovens realmente não me parece que estão se apegando
a estes valores. Elas não pensam nem meio minuto para decidir:não deu
certo vamos separar. Mas só que é uma coisa totalmente inconsciente,
porque quando as mais velhas chegam assim a ponto de uma separação
você observa que ela está uma pessoa amadurecida; que ela não tem assim
falsas expectativas. Agora as mais jovens não, elas separam hoje e amanhã
já estão morando com outro, e catastrófico do mesmo jeito (...) E aí você
observa também que quem tem sofrido muito com estas conseqüências são
as crianças.
O importante a ressaltar nesse relato é a ênfase nos valores como
a necessidade de preservação da família e do casamento nos confl itos de
gênero. Ou seja, nesse tipo de situação, o que se coloca como o centro do
problema não é a violência e o crime em si, mas, antes, as razões que levaram
ao comportamento agressivo, identifi cado-o como uma disfunção que deve
ser tratada para o bem da família, justifi cando-se, assim, a necessidade de
uma “justiça terapêutica” mais do que uma justiça que pune o agressor.
Nesse sentido, além do interesse em resolver rapidamente o confl ito, dando
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maior agilidade ao sistema, está fortemente presente o valor moral no
sentido de preservar a família e os fi lhos.
Tabela 9: Distribuição, por faixa etária, de vítimas e acusados para as
audiências preliminares de conciliação acompanhadas na Primeira Vara
Criminal da Comarca estudada
Faixa etária Vítima N % Acusado N %
___________________________________________________________
< 18 05 3,3 01 0,7
18 a 25 32 21,3 34 22,7
26 a 35 42 28,0 43 28,7
36 a 45 26 17,3 35 23,3
46 a 55 10 6,7 08 5,3
56 a 65 04 2,7 05 3,3
> 66 01 0,7 - -
Justiça pública 04 2,7 - -
Não declarado 24 16,0 24 16,0
Várias vítimas 02 1,3 - -
___________________________________________________________
Total 150 100 150 100
Fonte: Juizado Especial Criminal de uma Comarca de porte médio do Estado de São Paulo
Os dados relativos à idade das partes litigantes
36
cujas audiências
foram acompanhadas revelaram que o maior índice, tanto de vítimas (28%)
quanto de acusados (28,7%), corresponde à faixa etária que vai dos 26 aos
35 anos. Se ampliarmos essa faixa para 26 a 45 anos, o índice aumenta
para 45,3% das vítimas e 52,0% dos acusados. Se considerarmos ainda que,
dentre os processos em que não foi declarada a idade das partes (16%),
mas que também se enquadram nesta faixa etária conforme constatamos
no trabalho de observação das audiências, os índices seriam ainda maiores,
podendo chegar a 61,3% das vítimas e 68,0% dos acusados. Assim, ao
contrário de outros delitos característicos do comportamento juvenil, na
justiça informal criminal os confl itos envolvem principalmente pessoas de
maior idade.
36 Muitos processos não têm registros das variáveis como a idade, estado civil e ocupação das partes
litigantes. Assim, ao contrário das variáveis sexo e cor, que podem ser identificadas durante o trabalho
de observação das audiências, nem sempre foi possível levantar as outras variáveis.
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Tabela 10: Distribuição, por estado civil, de vítimas e de acusados para as
audiências preliminares de conciliação acompanhadas na Primeira Vara
Criminal da Comarca estudada
Estado Civil Vítima N % Acusado N %
___________________________________________________________
Casado(a) 38 25,3 50 33,3
Solteiro(a) 42 28,0 32 21,3
Amasiado(a) 22 14,7 29 19,3
Viúvo(a) 12 8,0 13 8,7
Separado(a) 11 7,3 10 6,7
Justiça Pública 04 2,7 - -
Não declarado 19 12,7 16 10,7
Várias vítimas 02 1,3 - -
___________________________________________________________
Total 150 100 150 100
Fonte: Juizado Especial Criminal de uma Comarca de porte médio do Estado de São Paulo
Como pode ser observado na tabela 10, referente ao estado civil
das partes litigantes, a maior parte se declarou casada ou amasiada,
representando 40,0% das vítimas e 52,6% dos acusados. Se considerarmos
o fato de que no grupo daqueles que se declararam separados (7,3% de
vítimas e 6,7% dos acusados) e no grupo dos que não declararam o estado
civil (12,7% de vítimas e 10,7% de acusados) também há possibilidade
de haver algum tipo de relação conjugal, o índice que envolve relações
conjugais pode ser ainda maior. Além disso, assim como pudemos constatar
no trabalho de observação das audiências, algumas partes se declararam
solteiras quando, na realidade, estavam amasiadas, sendo, inclusive, na
relação conjugal a origem do delito. Nota-se, portanto, que para os confl itos
de natureza interpessoal, o fato de ter um companheiro ou companheira não
signifi ca ser menos agressivo. Ao contrário, é na relação conjugal onde
este tipo de confl ito ocorre com mais freqüência.
Enfi m, os dados relativos à faixa etária e ao estado civil sugerem
que, de alguma forma, a maioria daqueles que se envolvem em “crimes
de menor potencial ofensivo” são pessoas que iniciaram alguma
experiência profi ssional e conjugal. Isso não signifi ca, no entanto, que
esta experiência profi ssional seja capaz de propiciar às partes litigantes
estabilidade econômica e melhores condições de vida, pois pudemos
também constatar que, em muitos casos, as condições socioeconômicas
representam forte motivação para o comportamento violento. Apenas
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signifi ca que as pessoas que têm esse tipo de comportamento são, em sua
maioria, pessoas responsáveis pelo próprio sustento e/ou de sua família.
No mesmo sentido, a experiência conjugal não signifi ca, nesses casos,
relação de respeito aos direitos do cônjuge. Ao contrário, muitas das
relações observadas se sustentam no domínio e na coerção violenta de uma
das partes, normalmente de maridos ou companheiros contra suas esposas
ou companheiras.
Tabela 11: Distribuição, por cor da pele, de vítimas e de acusados para as
audiências preliminares de conciliação acompanhadas na Primeira Vara
Criminal da Comarca estudada
Cor Vítima N % Acusado N %
___________________________________________________________
Branca 110 73,3 124 82,7
Não branca 30 20,0 22 14,6
Justiça pública 03 2,0 - -
Não declarada 05 3,3 04 2,7
Várias vítimas 02 1,4 - -
___________________________________________________________
Total 150 100 150 100
Fonte: Juizado Especial Criminal de uma Comarca de porte médio do Estado de São Paulo
Para a variável cor, normalmente as partes são caracterizadas como
brancas, negras ou pardas. Dada a ausência de registro dessa variável em
alguns processos, optou-se por levantá-las durante o trabalho de observação
das audiências. Contudo, preferiu-se optar pela classifi cação “branca”
e “não branca”, considerando, assim, a cor “parda” como pertencente à
categoria “não branca”. Dentro dessa classifi cação, portanto, a principal
constatação, para as audiências acompanhadas, é que a grande maioria das
vítimas (73,3%) e dos acusados (82,7%) foram pessoas de cor branca.
37
37 De acordo com o Censo 2000, das pessoas residentes na Comarca que estudamos, 78,74% se
declararam como brancas, 15,71% como pardas, e 4,20% como pretas. Com isso, 19,91% da população
declarou ser preta ou parda, portanto, não branca. Contudo, se considerarmos as variáveis subjetivas
relacionadas à declaração das pessoas quanto a sua cor, é possível que muitas delas tenham se declarado
como brancas quando, na verdade, poderiam ter se declarado como pretas ou pardas. Como tais
indicadores não consideram essas variáveis, é possível imaginar que eles não representam, de fato, a
realidade.
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Tabela 12: Distribuição, por ocupações, de vítimas e de acusados para as
audiências preliminares de conciliação acompanhadas na Primeira Vara
Criminal da Comarca estudada
Nível hierárquico das ocupações Vítima Acusado
________________________
N % N %
___________________________________________________________
Profi ssionais liberais de nível superior 08 5,3 04 2,7
Proprietários de pequenas empresas 03 2,0 10 6,7
Ocupações não-manuais de rotina 10 6,7 15 10,0
Ocupações manuais especializadas ou não 43 28,7 58 38,7
Aposentados e donas de casa 38 25,3 13 8,7
Não declarada (ou desempregado) 31 20,7 42 28,0
Estudantes 11 7,3 08 5,2
Justiça pública 04 2,7 - -
Várias vítimas 02 1,3 - -
___________________________________________________________
Total 150 100 150 100
Fonte: Juizado Especial Criminal de uma Comarca de porte médio do Estado de São Paulo
A variável relativa à ocupação profi ssional das partes litigantes
indicou que 28,7% das vítimas e 38,7% dos acusados declararam trabalhar
em ocupações manuais, especializadas ou não. Assim, uma primeira
constatação importante é que, em geral, acusados e vítimas, ou fazem parte
do mesmo universo profi ssional ou não possuem grandes distâncias em
termos de status ocupacional. Esses indicadores revelam, portanto, que o
Juizado da Comarca estudada, pelo menos no período pesquisado, atuou mais
na solução de confl itos entre indivíduos oriundos dos mesmos segmentos
sociais do que entre indivíduos socioeconomicamente desiguais. A outra
constatação importante, além do alto índice de desemprego observado, é
com relação ao número de vítimas que se declararam como donas de
casa, confi rmando, assim, as hipóteses levantadas nas outras tabelas sobre
a violência doméstica, onde as mulheres se destacam como as vítimas
preferenciais deste tipo de agressão. Tal constatação, a partir das variáveis
quantitativas, apontou para a necessidade de uma análise mais qualitativa
com relação à violência doméstica, o que foi realizado tanto a partir do
trabalho de observação das audiências preliminares de conciliação, quanto
da entrevista com a única delegada responsável pela Delegacia de Defesa
da Mulher da Comarca estudada.
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3.3 - Os Efeitos da lei 9.099/95 sobre a Delegacia de Defesa da Mulher
A pesquisa que realizamos e estudos recentes sobre os Juizados
Especiais Criminais
38
coincidem na constatação de que a maior parte dos
litígios que chegam a este sistema são oriundos da violência doméstica.
Nesse sentido, considerando-se que tais confl itos dizem respeito
principalmente à violência conjugal, normalmente tendo como agressores
maridos ou companheiros, é presumível também que tais litígios tenham, em
sua maioria, origem nas Delegacias Especializadas na Defesa da Mulher.
Daí a necessidade de considerar essa instância de justiça para compreender
melhor a lógica de funcionamento da justiça informal criminal, uma vez que
essas delegacias também foram diretamente afetadas pela lei 9.099/95.
No Brasil, a criação dessas Delegacias representou uma das
principais conseqüências da politização do discurso sobre a criminalização
da violência contra a mulher, já que apenas nos anos 1980 essa prática passou
a ser denunciada, permitindo, com isso, dar maior visibilidade ao problema
da violência doméstica.
39
No contexto do movimento de redemocratização
da política, grupos de mulheres vinculadas à Igreja, sindicatos e partidos
políticos passaram a cobrar do Estado a urgência de políticas para dar
respostas institucionais de prevenção e repressão da violência doméstica.
Entre os fatores que asseguravam a impunidade deste tipo de violência
estava o desinteresse das delegacias de polícia, que freqüentemente
minimizavam a gravidade das agressões ou atribuíam a responsabilidade
dos acontecimentos às próprias mulheres, desencorajando, com isso, novas
denúncias e reforçando a cultura do silêncio em torno destas agressões
(IZUMINO, 2003:2).
Contudo, muitas mudanças ocorreram na sociedade brasileira nos
últimos anos, inclusive na forma como é defi nida a violência conjugal e o
que se espera das Delegacias de Defesa da Mulher. Mesmo considerando
a importância que elas representaram para a crimininalização da violência
doméstica na sua origem, a partir da segunda metade dos anos 90 surge um
novo debate quanto ao papel desta instância de justiça com a promulgação
38 Ver, por exemplo, Azevedo (2000), Izumino (2003) e Campos (2003).
39 A primeira Delegacia de Defesa da Mulher foi criada em agosto de 1985 na cidade de São Paulo.
Experiência pioneira no Brasil e no mundo, nos anos seguintes, dado o crescente número de mulheres
que diariamente procuravam esta delegacia, houve uma rápida multiplicação do número de unidades por
todo o país. Segundo dados da Pesquisa Nacional Sobre as Condições de Funcionamento das Delegacias
Especializadas no Atendimento às Mulheres, em 2001 encontravam-se em funcionamento no Brasil
304 delas. A maior parte foi criada entre os anos de 1986 e 1995 (68%), com maior concentração na
região Sudeste – sendo 124 apenas no estado de São Paulo (IZUMINO, 2003:3).
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da lei que criou os Juizados Especiais Criminais. Embora esta lei não
trate especifi camente da violência contra a mulher, até a promulgação da
Lei Maria da Penha em setembro de 2006, ela foi utilizada na apreciação
judicial da maior parte das ocorrências registradas nessas delegacias. Para
Izumino,
as alises a respeito desta legislação têm se preocupado com a sua
aplicação, denunciando que os procedimentos adotados e as decisões
judiciais têm convertido os Juizados em espaços de discriminação em
relação às mulheres e à violência de gênero. Considerando-se que as
delegacias continuam sendo o principal espaço de denúncia dessa violência,
e, portanto, a principal via de acesso dessas mulheres à justiça, não refletir
a respeito do impacto que estas agências sofreram com a nova legislação
significa negar a importância que foram adquirindo desde sua criação
(IZUMINO, 2003:2)
Assim, um dos principais questionamentos que surgiram a partir da
primeira metade da década de 90 foi com relação à grande quantidade
de absolvição dos maridos ou companheiros agressores. Foi assim que
alguns estudos passaram a demonstrar que as Delegacias de Defesa da
Mulher também se consolidaram como espaço de resolução informal dos
confl itos, de modo que acabavam atuando como um fi ltro para os delitos
que chegavam ao Judiciário. Ou seja, para alguns policiais as Delegacias
de Defesa da Mulher são vistas como ‘delegacias de papel’ porque não
prendem e só chamam para conversar” (MUNIZ, 1996:133).
Acreditava-se, assim, que a negociação extrajudicial desenvolvida
nas Delegacias satisfazia tanto as mulheres como o próprio sistema judicial,
que em suas decisões preferia a defesa dos interesses da família ao invés
da punição pela agressão, favorecendo, assim, a absolvição dos agressores.
Contudo, considerar a grande quantidade de absolvições apenas como uma
inadequação do sistema é deixar de lado os reais interesses das mulheres
vítimas de violência doméstica. Sobre a pesquisa que realizou em relação
às Delegacias de Defesa da Mulher em São Paulo, Izumino argumenta
o seguinte:
na leitura dos processos foi importante perceber que as mulheres, no
decorrer do processo, mudavam os seus relatos, afirmando que as agressões
haviam sido superadas, sugerindo que a resolução dos conflitos poderia
ter ocorrido por outras vias, cabendo ao Judiciário apenas sancionar este
desfecho através da absolvição do agressor (IZUMINO, 2003:8).
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Situação semelhante pôde ser confi rmada pela manifestação da
única delegada da Delegacia de Defesa da Mulher da Comarca na qual
desenvolvemos a pesquisa, ao afi rmar o seguinte:
na verdade, resumindo, se você analisar, se você apurar tudo, no fundo
a mulher não quer que o marido seja efetivamente punido, não quer se
separar. Ela quer uma coisa meio milagrosa, que ele se torne uma pessoa
diferente, uma pessoa melhor, deixe de agredi-la, deixe a amante, deixe de
beber, seja mais preocupado com a provisão do lar no aspecto material,
tudo isso, ou seja, ela gostaria de ter um marido melhor. Essa é a finalidade
quando ela vem numa delegacia.
De acordo com a percepção da delegada, portanto, às vezes parece
não ser interessante para as mulheres que os maridos ou companheiros
agressores sejam punidos efetivamente. Com efeito, nas audiências
preliminares de conciliação que acompanhamos no Juizado Especial
Criminal, a busca de um constrangimento dos cônjuges diante da autoridade
judicial pareceu ser a fi nalidade principal de muitas vítimas.
O importante a ressaltar é que os magistrados, ao interagirem com
as partes litigantes na justiça informal criminal, normalmente recorrem a
valores que elas reconhecem como válidos para alcançar um acordo sem,
contudo, abdicar-se da ameaça implícita de seu poder de decidir. Esse
tipo de situação, caracterizada pela ameaça da punição, também ocorria
nas Delegacias de Defesa da Mulher antes da lei 9.099/95. Assim como
manifestou a delegada entrevistada:
Naquela época a gente tinha esse recurso: intimava as partes aqui, tanto
marido quanto a mulher, e assim tentava, usando um tom mais ameaçador,
um tom mesmo de autoridade, no sentido de que se ele tentasse fazer
mais alguma coisinha, qualquer que fosse, eu iria instaurar o inquérito,
iria representar pela prisão preventiva dele () E como ele não conhecia o
procedimento ele acreditava efetivamente que isso iria acontecer. No caso
em que nós instaurávamos, que também era um número grande, tinha toda
aquela tramitação demorada do rito processual anterior e isso causava até
uma ansiedade no elemento porque ele achava que afinal ele poderia ser
condenado, poderia ir para a cadeia, e isso até eventualmente melhorava
um pouco o comportamento e até criava-se assim um receio, um temor
de que ele, se sofresse um outro processo, ele não teria mais direito ao
benefício; enfim, trabalhava-se muito mais com a queso da expectativa,
do medo e, de certa forma, até da ignorância.
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Contudo, a lei 9.099/95 retirou das delegacias a autonomia para
resolver os confl itos, pois os processos passaram a ser encaminhados para
os Juizados Especiais Criminais. Tal mudança resultou, de fato, num maior
número de litígios encaminhados para a justiça, já que antes os casos, em
geral, eram negociados e arquivados na própria delegacia. Por outro lado, de
acordo com a delegada entrevistada, o que se ganhou em quantidade perdeu-
se em qualidade. Para a entrevistada, é preciso distinguir o momento atual
do momento anterior à lei que criou os Juizados.
Antes da lei, os crimes que envolviam, na maioria das vezes, as ocorrências
da violência doméstica que originavam o crime, que são os mesmos de
hoje (lesão corporal, a ameaça, os mais comuns) eram inseridos no rito
processual comum do código de processo penal (...) Então instaurava-se
o inquérito policial, ia para o fórum, o promotor analisava o inquérito,
se oferecia ou não uma denúncia. E o que acontecia? Naquela época as
delegadas tinham uma liberdade maior de trabalhar a questão do casal sem
a instaurão do procedimento. Então o que a gente observava é que como
o agressor não tinha certeza ou não sabia exatamente o que iria acontecer
com ele caso ele fosse processado, porque a gente trabalhava aqui a questão
da ameaça, a gente observava um resultado nesse sentido melhor (...)
Quando ficava aquela coisa no âmbito da lesão leve, do tapa, do puxão
de cabelo, do pequeno hematoma, da ameaça (...) aquelas ofensas verbais,
aquela conturbação familiar, problemas de bebida etc, eu me lembro que
muitas e muitas vezes eu intimava o casal e aquela ameaça que a gente
fazia, aquela, entre aspas, que a gente chamava de “dar uma dura” (...) Em
contrapartida, depois da lei 9.099, elabora-se um número enorme, imenso
de Termos Circunstanciados. Tem-se a vantagem de ser um procedimento
rápido, célere, e já vai para a audiência, quer dizer, a pessoa já vai com
aquela ansiedade que vai ter que participar de uma audiência na justiça e
tal. Só que no meu entendimento, no final, quando apura-se tudo e que
termina aquilo, eu entendo que a resposta desse procedimento judicial em
função desse rito é muito menor do que aquilo que ele esperava. E aí eu
creio que a possibilidade de voltar a acontecer ou a chance dessa família
voltar a tentar uma nova reestruturão ficou mais difícil.
Em contraste com a opinião da delegada, juízes e demais defensores
do Juizado Especial Criminal argumentam que esse sistema surgiu apenas
para agilizar o andamento dos processos, para “desafogar” a justiça comum e
formal, o que inclusive sempre representou um anseio da população. Também
argumentam que depende apenas do desejo da vítima – e não do sistema –
dar continuidade ou não ao litígio. Além disso, alguns juízes ainda defendem
que a conciliação é a lógica da justiça ideal, não havendo nenhum problema
em utilizá-la como meio de evitar a instauração formal do processo.
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Como vemos, questões como esta relativa ao possível enfraqueci-
mento das Delegacias de Defesa da Mulher com a promulgação da lei
9.099/95 também foram tratadas nas entrevistas que realizamos com os
magistrados no estudo de caso. Assim, considerando inclusive que com a
referida lei os juízes passaram a ser os principais agentes também na justiça
informal criminal, tornou-se imprescindível caracterizar o Juizado Especial
Criminal a partir da percepção destes operadores.
3.4 - A Percepção dos Juízes sobre o Juizado Especial Criminal
Ao iniciarmos as entrevistas com os três juizes criminais da Comarca,
40
optamos por começar com uma questão aberta justamente para avaliarmos
o que de mais importante apareceria na manifestação de cada um deles.
Assim, começamos perguntando qual a avaliação que eles faziam do Juizado
Especial Criminal. Com efeito, todos os juízes apresentaram um discurso
semelhante ao apontarem para a questão da rapidez e da agilidade como
sendo as principais características do Juizado. Nesse sentido, pode-se dizer
que eles apontaram também, embora de maneira não explícita, a existência de
um compromisso institucional no sentido de encerrar rápido. Ao argumentar
sobre os obstáculos que impediam que certas demandas chegassem à justiça
antes da lei 9.099/95, um dos magistrados argumentou o seguinte:
Antes, não chegava pela questão burocrática, pela questão do formalismo,
pela questão da demora na prestação jurisdicional, que acabava no mais das
vezes resultando numa justiça tardia ineficaz. E aí as partes imaginavam
que buscar essa justiça tardia ineficaz na verdade era perder tempo, era algo
inútil (...) Porque antes o juiz não tinha muito esse papel conciliador. Porque,
na verdade, o juiz tinha só o instrumento repressivo, que era condenar o
sujeito, o poder de decisão só. E hoje não, hoje com essa possibilidade da
transação, do acordo, seja com as próprias partes seja com o promotor,
tanto juiz quanto o promotor hoje têm um instrumento de mediação muito
presente, muito rápido (juiz 1).
Como pôde ser percebido no discurso dos magistrados, vale ressaltar
que essa rapidez enfatizada não se limita apenas à duração das audiências
preliminares de conciliação, mas também ao fato de os confl itos chegarem
mais rápido à justiça, ou seja, com a extinção do inquérito policial para
40 Os três juízes da Comarca foram entrevistados. Contudo, apenas dois concordaram em gravar as
entrevistas. Assim, embora os argumentos que apresentaremos levaram em conta as três entrevistas, a
descrição literal das manifestações dos juizes serão apenas daqueles que permitiram a gravação.
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os confl itos considerados de menor potencial ofensivo, os delitos são
registrados pelas delegacias e imediatamente encaminhados ao Judiciário.
Como argumentou o outro juiz entrevistado,
Na parte criminal nós tivemos um progresso com a lei 9.099. Esse progresso
pode ser melhor especificado em rapidez. Também na parte pedagógica
da lei. O que eu quero dizer com isso? Os crimes de menor potencial
ofensivo passaram a chegar maispido a a presença do juiz. As partes
vão rapidamente depois do acontecido informar o fato à delegacia e, em
uma semana, elas estão na frente do juiz. Isso dá uma sensação de rapidez
para os envolvidos. E essa sensação de rapidez também gera uma sensação
de efetividade, ou seja, chegou rápido é porque o problema foi levado a
sério. Este é um aspecto positivo. Nós não ficamos aqui investigando,
investigando, até um dia chamar a parte. Ou então arquivar e a parte nem
fica sabendo o que acontece, como era antes da lei 9.099. Esse aspecto foi
importante: basicamente a rapidez e esta questão também de efetividade.
Trouxe mais rápido, resolve mais rápido (juiz 2).
Nota-se, na manifestação acima, que a rapidez está associada ao que o
juiz chama de efetividade, ou seja, “essa sensação de rapidez também gera
uma sensação de efetividade”. Assim, pode-se deduzir que, de acordo com
o entrevistado, a efetividade se dá pela rapidez com que os casos chegam
à justiça. No mesmo sentido, o outro juiz também ressalta o que entende
por efetividade da justiça, apontando para a questão da rapidez com que os
casos são tratados no Juizado Especial Criminal. Ao ser questionado sobre a
existência de uma “justiça terapêutica”, o magistrado respondeu o seguinte:
Não. Isso eu vou chamar de efetividade da justiça. Antes nós tínhamos
instrumentos repressivos de condenação, de punição. Mas eu me questiono
se tínhamos efetividade. Quer dizer, o marido bateu na mulher, vinha para
justa, um processo complicadíssimo, burocrático, inqrito policial com
seis meses para resolver, justiça, audiência, duas , três, quatro, sentença,
recurso. Quer dizer, o marido bateu na mulher e o caso levou um ano
para resolver. Quantas vezes ele não bateu depois porque o caso demorou a
resolver? Onde estava a efetividade da justiça? Ah não, mas depois de um
ano ele foi condenado. Foi? Foi condenado a quê? Trinta dias de prestação
de serviços à comunidade. Era uma lesão leve. Quer dizer, hoje nós temos
uma efetividade da justiça muito maior porque nós, digamos, quebramos
formalismos, e não estamos mais preocupados com a justiça jurídica mas
com a justiça social. Então, eu acho que essa efetividade foi um grande
ganho da lei 9.099 (juiz 1).
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Como vimos no capítulo II, a lei 9.099/95 foi recebida como uma
excelente alternativa para uma justiça ágil e menos burocrática, defi nindo
que o Juizado Especial Criminal deveria se orientar, além da oralidade,
informalidade e economia processual, pelo critério da celeridade, ou
seja, pela busca de maior rapidez no processo. Assim, do ponto de vista
profi ssional, é compreensível que os magistrados enfatizem no discurso
ofi cial o compromisso institucional no sentido de “encerrar rápido”.
Contudo, embora nas manifestações dos juízes entrevistados a rapidez possa
parecer a garantia da efetividade em termos puramente temporal, ou seja,
a solução mais rápida dos confl itos, uma leitura mais atenta dos discursos
revela que eles também apontam para a importância do tipo de tratamento
que os casos recebem. Assim, indicam que a rapidez apenas não basta
para garantir a efetividade da justiça nos Juizados, sendo preciso também
se preocupar com o tipo de justiça que é oferecida àqueles que buscam
neste sistema a solução para seus confl itos interpessoais. É nesse sentido
que um dos entrevistados chama a atenção para os limites da “transação
penal”, ou seja, para a necessidade de aplicação de pena quando não se
consegue encerar e arquivar o processo sem a utilização desse recurso.
Embora também considere a transação penal um instrumento de agilização
da justiça, o magistrado alerta para o risco de sua má utilização por parte
dos operadores do direito, sugerindo que uma utilização incorreta também
pode comprometer a efetividade da justiça.
Em vez de haver uma condenação, a justiça pública propõe ao autor do crime
a aceitação de uma pena para resolver a questão. Isso também favoreceu
a rapidez para chegar no final do procedimento, ou seja, se ele aceita a
pena sem a condenação, ele cumpre a pena, a parte que foi lesada se sente
de certa forma recompensada, e nós não temos que fazer uma instrução
com testemunha, com procedimento de ampla defesa. Isso encurta muito
o caminho. Ele (o processo) só chega até a fase preliminar. Encerra com a
aplicação de uma pena. Mas há um perigo nisso que é importante ressaltar.
Essas penas precisam ser bem escolhidas, e precisam ser bem fiscalizadas,
para que as partes depois não achem que isto é um acordo simplório, um
acordo sem importância (...) Então o sujeito comete uma agressão, comete
uma ameaça, comete uma invasão à domicílio, um porte de arma, um
porte de drogas para uso próprio, e chega aqui e fala: “para mim não vai
acontecer nada, eu vou pagar uma cesta básica e vou sair fora”. Isso é um
risco (juiz 2).
Ao ressaltarmos esses aspectos mais qualitativos segundo a percepção
dos magistrados, nota-se que, se por um lado os discursos apresentam
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semelhanças no que se refere à questão da rapidez no andamento dos
processos, há divergências, ainda que sutis, no que se refere à transação
penal, ou seja, naquelas situações em que o acordo para encerrar o litígio
sem punição não é alcançado, e o juiz assume o seu poder de decisão para
punir o acusado, ainda que com uma pena menor, que é decidida em conjunto
com o promotor público. Por exemplo, ao apontar para os riscos da aplicação
de pena a partir da transação penal, o juiz acima acaba se diferenciando de
outros magistrados que se utilizam desse mesmo instrumento e oferece,
assim, exemplos de quais seriam os critérios corretos neste caso.
Nós, aqui, não aplicamos o critério de cesta básica. O que nós aplicamos são
as penas de multa paga para o Estado, prestação de serviços à comunidade,
em órgãos públicos ou particulares com finalidade social, e a prestação
pecuniária, que é uma pena em dinheiro no valor de um salário mínimo
que a pessoa paga para uma entidade com fim social ou para a própria
vítima dependendo do caso. Se a vítima teve prejuízo, esse dinheiro pode
ser revertido para a vítima, o que a dispensa de propor ação na justiça cível
para obter a reparação dos seus danos (juiz 2).
Como vemos, ao se opor ao pagamento de cestas básicas como
pena alternativa, por considerar que isso não garante uma punição efetiva,
o juiz argumenta que uma das maneiras adequadas de se utilizar bem o
instrumento da transação penal seria o ressarcimento de danos causados
à própria vítima quando houve prejuízos para ela. Por outro lado, o seu
colega aponta justamente para esse critério como sendo um dos problemas
enfrentados na dinâmica do Juizado Especial Criminal. Ao argumentar
sobre a importância de ser a vítima quem decide pela continuidade ou
não do processo, e conseqüentemente pela possibilidade de aplicação de
pena, o juiz aponta para o risco desse poder da vítima se transformar num
instrumento de barganha.
s já tivemos casos, por exemplo, em que a vítima sustentou: “ou você me
dá tanto ou eu represento. E cai numa situação mais de coação do que
propriamente de disponibilidade de direito (juiz 1).
Contudo, apesar de considerar o problema bastante comum no
Juizado, o mesmo juiz argumenta que isso pode ser evitado quando os
profi ssionais estão atentos. Assim, transfere a responsabilidade, para evitar
esse risco, aos promotores e aos juizes.
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Para isso é que tem o promotor e o juiz, para filtrar isso. Ainda que a
vítima queira usar desse instituto da representação para levar uma coisa
adiante, o promotor e o juiz estão aí para filtrar (...) Então eu acho que este
instrumento é criticado porque possibilita à vítima tê-lo como instrumento
de coação, mas por outro lado o Judiciário e o Ministério Público, filtrando
isso, o instrumento de coação cai por terra (juiz 1).
Apesar do risco de transformar a transação penal num instrumento de
barganha, o importante a ressaltar no discurso dos magistrados entrevistados
é que eles consideram o poder de representação da vítima, ou seja, a
manifestação do desejo de continuar com o processo, uma inovação da
justiça que trouxe muitos benefícios, pois antes da lei que criou os Juizados
cabia ao Ministério Público, e não à vítima, decidir pela continuidade ou
não do processo. Ou seja, tal mudança trouxe uma maior valorização à
vítima, já que, ao ter a oportunidade de decidir, ela também adquire um
poder antes inexistente. Como argumentou um dos juízes:
No sistema anterior, o que acontecia? A vítima vinha desvalorizada, o
juiz condenava no mais das vezes a uma pena pequena, uma prestação de
serviços à comunidade ou coisa do tipo, que acabava dando mais ou menos
no que dá hoje. Só que a vítima vinha numa situação muito desvalorizada,
em que não tinha vez nem voz. Hoje a vítima tem vez e tem voz. E isso
valoriza a vítima. O que faz com que, como nos casos que nós tivemos
aqui de briga de marido e mulher, a mulher sai enaltecida. Ela apanhou,
o processo arquivou, é verdade, seja arquivado direto ou com uma cesta
básica, mas ela saiu daqui enaltecida. Ela saiu daqui percebendo que ela
teve a sua vez de manifestar. Então, eu acho que esse fortalecimento da
vítima é um fator muito relevante para a solução do conflito. Por quê?
Porque a vítima antes se sentia muito desprestigiada, ela talvez buscasse
até uma justiça própria. O marido a agrediu no tapa, não deu em nada ou
deu em uma coisa boba. Ela, então, no dia seguinte, pega uma faca e enfia
na garganta do marido. Agora não. Ela sai daqui fortalecida, a ponto de
chegar na casa dela e falar:se acontecer de novo o juiz deixou muito claro
. Que vai depender de mim” (...) Então, eu acho que essa valorização da
vítima através da representação foi positiva (juiz 1).
Da mesma forma, o outro magistrado também ressalta as vantagens
da mudança que deu à vítima o poder de processar o acusado, argumentando
o seguinte:
Depende deles, não depende da justiça. Nós não temos como avaliar se a
opção deles é boa ou é ruim. Às vezes, dar chance para o marido ou dar
chance para a mulher significa que vai acontecer de novo. E acontece. Às
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vezes, eu ouvi pessoas aqui falar:é a segunda vez que eu estou aqui, é a
terceira vez que eu estou aqui. Na primeira eu dei uma chance, na segunda
eu dei uma chance. Agora eu não acredito mais no meu marido ou não
acredito mais na minha mulher. Agora eu não dou mais chance, eu quero
que continue o caso. Isso é um assunto comum aqui no Juizado. Essa
disponibilidade da ação penal ficou para a parte, saiu do promotor e ficou
para a vítima (juiz 2).
Contudo, este magistrado vai mais além ao apontar para o fato de
que tal mudança permitiu não apenas que a vítima tenha garantido o seu
direito quando decide pela punição do réu, mas também quando opta,
por escolha própria, pela não-representação, por entender que é a melhor
solução. Optando pela continuidade ou pelo arquivamento do processo sem
punição, o importante é que cabe à vítima decidir. Com efeito, segundo o
juiz, a opção de encerrar o processo sem punição, em alguns casos, poderia
inclusive trazer mais benefícios do que a opção pela representação e pela
punição. Ao apontar para as vantagens da não-representação, ele argumenta
o seguinte:
É a vitima que vai ter que assumir a conseqüência da sua escolha: continuar
ou não continuar, o que é melhor para ela (...) Ajudou até do ponto de vista
da família. Porque você calcula como é que ficava o casal que briga e
reconcilia. Ninguém quer que o outro seja condenado, mas assim mesmo
a justiça condenava. E, se fosse o caso, punha na cadeia. Eles já estavam
bem em casa, mas um era obrigado a sair para ser preso. Isso causava para
eles uma sensação de dor no final no sentido de que a emoção do momento
que levou a registrar uma determinada infração penal acabou sendo pior
para eles do que qualquer outra coisa que eles tinham pensado. Se eles
pensassem bem, eles não teriam registrado (juiz 2).
Essa questão da transferência de poder do promotor para a vítima,
oferecendo a ela a oportunidade de representar ou não contra o acusado,
somada ao fato de que este último também tem o direito, nestes casos, de
optar pela transação penal para evitar uma pena mais severa, nos remete
àquilo que estamos considerando como essencial na justiça informal
criminal, ou seja, a possibilidade de participação direta das pessoas
envolvidas no litígio na solução do confl ito. Em outras palavras, ao contrário
do que se supõe ocorrer na justiça comum e formal, em que os operadores
do direito são os que representam e dramatizam a vida social dos litigantes,
na justiça informal criminal as partes participam ativamente do processo
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ritual. Embora não façam a leitura desse ponto de vista, os magistrados
entrevistados também enfatizam a importância da participação de vítimas e
acusados para a superação dos confl itos. O importante a ressaltar do ponto
de vista do discurso dos magistrados é que, ao valorizar a participação das
partes litigantes no processo, eles também apontam para a defesa de valores
como a preservação das relações afetivas e da pacifi cação social.
É comum encontrar agressões na falia sem ser em marido e mulher. Pais,
filhos, avós se desentendem e depois se arrependem do desentendimento e
ningm quer que ningm seja punido. E a lei deu esse benefício. Então
favoreceu de certa forma a preservação de laços afetivos, familiares, de
amizade. Acontece até em briga de jogo de futebol: o sujeito briga no
calor do jogo, um dá um murro no outro. Aí chega aqui e diz:não, foi
o jogo, nós somos amigos e não queremos mais brigar. Tudo bem, a lei
deu essa opção. Essa informalidade ajudou a pacificar relacionamentos. As
pessoas pacificam pela vontade própria e a lei permite que eles pacifiquem
e não pune os crimes quando eles não querem que sejam punidos (...)
Digamos que ajuda, de uma certa forma, a paz entre relacionamentos que
às vezes são abalados por situações momentâneas. Nestes casos, a lei foi
excepcionalmente bem-vinda, porque esses casos costumam acontecer
uma vez na vida. Essas pessoas não retornam mais. Elas vêm aqui, ouvem
alguma coisa da justiça, alguma explicação, ouvem alguma ponderação,
vão embora, não vão se esquecer que estiveram aqui porque viram o juiz, e
isso representa para elas um fato marcante na vida. Mas io viver melhor
e pensar melhor aquela atitude para que não aconteça de novo. Este aspecto
foi bom (juiz 2).
Do ponto de vista do processo ritual, tão importante quanto a
participação ativa de vítimas e acusados no esforço para a superação
do confl ito é o papel que os juízes exercem nesse processo. Com efeito,
a participação das partes litigantes só adquire sentido se pensada em
termos da interação direta que elas estabelecem com os magistrados nas
audiências preliminares de conciliação. Assim, tal constatação coloca a
necessidade de compreender também a percepção que os juízes têm de si
próprios enquanto principais agentes no Juizado Especial Criminal. E sobre
isso os juízes entrevistados se manifestaram amplamente, valorizando a
importância de seu papel como conciliadores. Por exemplo, quando nos
referimos à função de conciliador e questionamos os entrevistados se essa
habilidade fazia parte da formação acadêmica ou, na verdade, era algo que
eles desenvolviam apenas no exercício profi ssional, um dos magistrados
respondeu o seguinte:
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Em regra há orientações para todos os profissionais da área desde as
faculdades até os cursos depois nas carreiras jurídicas, na Magistratura, no
Ministério Público. Há orientões sobre conciliação. Mas as orientações
sobre conciliação são teóricas. Uma coisa é receber uma orientação na
faculdade, outra coisa é chegar na frente de alguém, entender o problema
dele e jogar argumentos que ele entende. Isso é de cada um, é habilidade
individual. Se o cidadão vai ser um bom conciliador ou mau conciliador não
depende só da faculdade ou de um curso de conciliação. Depende muito da
habilidade e da humanidade dele. Ele vai ter que ser compreensivo, vai ter
que conseguir penetrar nos problemas das pessoas, e vai ter que conseguir
dar argumentos que elas tenham condições de compreender. Não basta
jogar argumentos técnicos para a pessoa simples, seo elas não vão
entender nada (juiz 2).
Questionado sobre quais seriam esses argumentos, e se eles
representariam uma nova linguagem, menos técnica e mais social, o
magistrado continuou respondendo o seguinte:
Sem dúvida. Às vezes, é uma linguagem puramente emocional. É
preciso mexer com a emoção da pessoa para que ela compreenda qual é o
significado da presença dela e o que vai acontecer com ela dependendo da
escolha que ela fizer no processo (...) Na maioria das vezes, as partes vêm
com problema e vêm já emocionadas, com os nervos à flor da pele. Como é
que se vai acalmar uma pessoa? Que linguagem você tem que usar com ela
para acal-la? Se você falar tecnicamente, ela não se acalma porque não
entende. Quando eu digo usar uma linguagem emocional, significa às vezes
usar uma linguagem mais afetuosa, uma linguagem mais familiar, uma
linguagem mais simples, de certa forma até confortar a pessoa de alguma
coisa que ela pode estar sentindo que vai atrapalhar o raciocínio dela, que
é o mais importante. Então, a linguagem emocional é uma linguagem que
consiga penetrar naquela sensação (...) Ou ela vem nervosa, ou vem triste
ou vem deprimida. Então, nós temos que conseguir furar esse bloqueio.
Os argumentos também. Eu digo:olha, isso não adianta nada, chorar
não adianta, não adianta a senhora se deprimir, não adianta o senhor se
deprimir, isso não resolve sua vida, isso não melhora sua vida, isso não
melhora a vida do outro, sua família não vai passar bem, isso não vai ser
bom depois que a senhora sair daqui. Coisas deste tipo assim, ou seja, há
um pouco de psicologia nisto tudo. Tem que haver. Se não chegar nesta
linguagem que comunique, que transmita a idéia, provavelmente a pessoa
sai daqui sem entender nada. É como se tivesse vindo aqui e falado grego.
Então, isso é um pouco da habilidade do pprio magistrado, ou de quem
estiver conduzindo ali a conversa (juiz 2).
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No mesmo sentido, o outro juiz entrevistado valorizou o seu papel
como conciliador. Contudo, apontou também para a existência de outro
aspecto na função dos magistrados, qual seja, o poder de decisão que
eles carregam mesmo quando exercem a função de conciliadores. Ao ser
questionado se essa ameaça implícita do poder de punir que os magistrados,
às vezes, utilizam nas audiências pode contribuir para a tentativa de
conciliação, o magistrado respondeu o seguinte:
É verdade (...) Como o juiz tem esse poder de decisão mesmo, ainda que
seja uma decisão mais grave da prisão etc., ele joga, vamos dizer assim, faz
um jogo de palavras para poder colocar para as pessoas que, de fato, pode
encaminhar para aquela decisão que ele está sustentando. Num primeiro
momento talvez não, mas num segundo momento pode. Por exemplo,
a questão da prisão do agressor. Claro que numa lesão leve isso num
primeiro momento não pode caracterizar, não pode acontecer. Mas se vier
de uma forma reiterada, vamos imaginar o cara que bate na mulher todo
dia. Isso possibilita o juiz, de acordo com a legislação processual, decretar
a prisão dele, a chamada prisão preventiva, por garantia da ordem pública,
e para salvar a vítima. Por que nós vamos esperar ele fazer um crime mais
grave para depois agir? Então, a lei tem esse instrumento para o juiz poder
decidir. E isso traz para o juiz uma certa, digamos, facilidade para jogar
com essas palavras, coisa que o juiz leigo não faria, porque o juiz leigo não
pode decretar prisão. Então eu vejo muito isso. Um dos fatores do sucesso
das conciliações é bem isso (juiz 1).
O que fi ca caracterizado na manifestação acima é que, além de apontar
para as vantagens da utilização desse poder de decisão dos magistrados
mesmo em audiências de conciliação, o juiz entrevistado também reitera
a importância de seu papel como juiz, pois, como argumenta, “o juiz leigo
não pode decretar prisão”. Ou seja, apesar de a lei prever a possibilidade de
utilização de “juízes leigos” também na justiça informal criminal, todos os
juízes entrevistados defenderam que apenas o juiz togado de direito reúne
as qualidades necessárias para o exercício dessa função.
Olha, se nós tivéssemos conciliadores com treinamento específico para
isso. Talvez treinados pelos próprios juízes, mas com um nível de qualidade
próximo dos juízes pelo menos, com um nível de convencimento e de
raciocínio similar, eu acho que não haveria dificuldade. Mas eu acho que
isso é praticamente inviável no sistema nosso. Eu não consigo acreditar que,
no íntimo, isso venha a acontecer. Eu não acredito. Dificilmente algm
que não é juiz consegue sentir as coisas como juiz (juiz 2).
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O outro entrevistado também demonstrou o desejo de que os juízes
togados continuem mantendo o controle da justiça informal.
Acho até possível, mas acredito que talvez não com este grau de sucesso,
vamos dizer assim. Sem querer desqualificar. Na verdade não é esta a
questão. Mas é que as partes em si, e aí eu incluo também o promotor,
eu percebo muito nitidamente que quando o promotor também é presente,
participa, e aqui como você viu o promotor nosso tem participado, eu
percebo que as partes já vêm com uma pré-convicção de que o juiz e o
promotor são as pessoas mais capacitadas para dar o veredicto do caso,
para dar a decisão do caso. Com todo o respeito ao juiz leigo, seja ele
advogado, seja ele até alguém formado na área de saúde, de psicologia,
enfim, mas me passa a idéia de que a decisão do juiz e do promotor para
as partes tem um peso maior. Por isso que eu acho que esse sistema da
atuação direta do juiz e do promotor contribui para que os conflitos sejam
melhorados (juiz 1).
Do ponto de vista da confi guração profi ssional em torno do Juizado,
o fortalecimento dessa identidade profi ssional por parte dos magistrados, no
sentido de se afi rmarem como os únicos qualifi cados para exercer a função
de conciliadores, passa não apenas pela descaracterização dos chamados
juízes leigos, mas também pelas interações que eles estabelecem com os
outros profi ssionais do direito nesta instância de justiça. Nesse sentido, o
juiz também valoriza o papel do promotor público, caracterizando-o como
um parceiro indispensável no Juizado. Tal constatação sugere, assim, a
existência de um compromisso institucional entre os dois operadores no
sentido de buscar uma solução para os confl itos que seja sustentada nos
critérios de oralidade, informalidade, economia processual e, principalmente,
celeridade.
Contudo, o trabalho de observação das audiências demonstrou que tal
compromisso institucional não é sufi ciente para garantir uma “identidade”
entre os dois operadores. É necessário, também, que ambos compartilhem
de valores parecidos quanto à caracterização dos confl itos, o que pode ter
como conseqüência tanto o arquivamento do processo sem punição quanto
a aplicação de penas alternativas. Foram esses valores que buscamos
identifi car nas representações da violência e da punição por parte dos
operadores do direito na justiça informal criminal. Quando isso acontece,
ou seja, quando juiz e promotor coincidem nas suas impressões sobre a
natureza dos confl itos e sobre o tipo de tratamento que devem receber,
pode-se falar na existência tanto de uma “comunidade de interesses”, no
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sentido de resolver rápido, como numa “comunidade de valores”, no sentido
de compartilharem dos mesmos valores relacionados ao caso em questão.
O importante a ressaltar é que, de acordo com o que pudemos observar,
esta segunda situação prevalece sobre a possibilidade de discordância entre
os dois agentes, cenário este que caracterizaria uma situação de confl ito
profi ssional, o que é mais comum nos Juizados Especiais Cíveis, onde a
interação não envolve juízes e promotores, mas sim advogados conciliadores
e advogados particulares. A referência ao Juizado Especial Cível, aliás, foi
a maneira que um dos juízes entrevistados utilizou para demarcar melhor o
espaço de atuação e a competência do Juizado Especial Criminal. Quando
perguntamos se, com a institucionalização da justiça informal, houve
também uma ampliação do controle estatal sobre confl itos que antes não
chegavam à justiça, o magistrado respondeu que isso ocorreu apenas no
Juizado Especial Cível, onde a gratuidade passou a ser a porta de entrada,
diferente, portanto, da justiça criminal, que sempre foi gratuita. Assim,
apontou para o caráter diferenciado do Juizado Especial Criminal.
Essa idéia de ampliação da atuação da justiça para conflitos que antes não
chegavam tem relação com a justiça cível. Por quê? Lá precisa, em alguns
casos, de advogado. Em alguns casos, precisa pagar. E o Juizado veio de
forma gratuita. Antes do Juizado, nada era gratuito (...) Então, onde há
dinheiro, necessidade de contratação de advogado, e de repente vem uma
lei e diz que você pode vir sozinho sem advogado, e não paga nada, é
evidente que abre uma porta muito maior para as pessoas que querem ir
ao Judiciário e isso aconteceu lá. Aqui, na parte criminal, tudo sempre foi
gratuito mesmo no passado. Nada se cobrou de ninguém. O atendimento
na Delegacia é absolutamente gratuito, todo mundo que queria ir podia ir,
o tinha problema nenhum, não pagava nada. Então, não havia bloqueio
econômico, não havia dificuldade de acesso (...) Eu não acredito que tenha
havido uma ampliação do atendimento criminal em função da natureza
da causa. Qualquer causa era recebida na Polícia e continua sendo. O que
acontece hoje é que estas partes vêm logo para o juiz. Antes, elas nem
vinham, em alguns casos, para o juiz. Sem elementos mínimos, o caso era
arquivado e ela não ia nem ver o juiz. Se olhar pelo aspecto do contato da
pessoa com o juiz, realmente ampliou. No contato com o juiz, mas não o
contato com a justiça. O contato com a justiça sempre teve. Agora, ela ter
um contato pessoal com o juiz, isso realmente não tinha (juiz 2).
Voltando à questão da interação profi ssional nos Juizados Especiais
Criminais, vale ressaltar que, apesar de juízes e promotores se constituírem
nos principais agentes nessa instância de justiça, a interação não acontece
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apenas entre eles, pois os juízes interagem também com os advogados
públicos e particulares. Com relação aos primeiros, constatou-se que eles
praticamente não interferem nas audiências. Como defensores públicos que
se revezam nos plantões, eles apenas são convocados quando juiz e promotor
decidem por uma pena alternativa, e neste caso é necessária também a sua
concordância quando a parte penalizada está desacompanhada de advogado
particular. Contudo, nunca presenciamos uma situação em que o defensor
público tenha discordado da decisão do juiz ou do promotor. Tal constatação
pode sugerir, assim, que estes agentes, quando participam das audiências,
também integram aquela comunidade de interesses e de valores juntamente
com juízes e promotores.
Por outro lado, ao contrário do defensor púbico que sequer apareceu
nas manifestações dos magistrados entrevistados, os advogados particulares
ganharam destaque por parte de um dos juízes, ao serem caracterizados
como agentes que podem atrapalhar a tentativa de conciliação. Sem desejar
desqualifi car o trabalho do advogado, pois do ponto de vista ético-profi ssional
deve-se considerar a importância do trabalho desse profi ssional na justiça
como um todo, o magistrado aponta para a sua falta de sensibilidade no que
se refere especifi camente à justiça informal criminal. Ao perguntarmos se
o advogado particular pode difi cultar o trabalho dos juízes no sentido da
conciliação entre as partes, o juiz disse o seguinte:
Eu acho que isso vem da questão de que o advogado tem uma postura
no sentido mais de buscar a reparação material, até por conta de que
evidentemente ele está ali trabalhando, ele tem que pensar com todo
o direito nos seus honorários. Então, no mais das vezes, ele vem buscar
mais uma reparação material do que qualquer outro tipo de reparação ou de
mediação. E, aí, é claro que dentro desta postura a parte chega já com uma
predisposição de que ela vai tentar sair daqui com o maior número possível
de recursos materiais, com o maior ganho possível de recurso material. E
ela vem com essa orientação através do advogado. Fica muito difi cultosa a
mediação e a questão da justiça terapêutica. Agora, o que se tem que fazer?
Eu acho que deve a OAB, e até mesmo o Poder Judiciário e o Ministério
Público, trabalhar numa linha de orientação para os advogados que, se
está vindo para esta justiça terapêutica é para se buscar a paz social e não
a reparação material. É claro que há casos, por exemplo, em acidentes de
trânsito, acidente culposo, que a vítima que sofreu o acidente, sofreu uma
lesão, sofreu danos, ela tem todo direito de ter reparação. Mas nestes casos
de violência doméstica em especial, ou de divergência entre pessoas, brigas
de vizinhos, perturbação em geral etc., eu penso que a questão do advogado
que vem preparado e prepara o seu cliente para usar do instrumento jurídico
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para a busca de satisfação material, vai contra o espírito da lei e atrapalha a
mediação (juiz 1).
Diferentemente de seu colega, o outro juiz entrevistado evitou
apontar para as difi culdades que o advogado particular pode trazer para
a tentativa de conciliação. Ao contrário, destacou o papel do advogado
como sendo indispensável para o convencimento de seu cliente no sentido
de uma solução rápida e adequada para o confl ito. Assim, esse magistrado
optou pelo caminho da valorização de todos os profi ssionais envolvidos
no processo sem, contudo, deixar de destacar o seu papel central como juiz
que, segundo ele, deve ser imparcial.
Olha, depois de anos de experiência neste Juizado, eu acho que hoje não
dá pra dispensar nem o promotor nem o advogado. O juiz já não poderia
porque o juiz é parte essencial (...) Alguns acham que o juiz deve falar mais
até que os outros profissionais. Isso resolve mais a questão. E é preciso
olhar isso com cautela. Primeiro, o juiz não pode julgar antecipadamente
nada. Ele não pode dizer para a pessoa “é melhor você aceitar determinado
tipo de pena porque eu vou te condenar se você não aceitar. Isso não
pode ser dito pelo juiz. Por outro lado, o advogado poderia dizer para o
cliente “olha, é melhor você aceitar se não você vai ser condenado”. O
advogado já pode antecipar, o juiz não. O juiz é imparcial. O promotor,
por outro lado, também não teria como fazer uma afirmação dessa porque
ele não é o juiz (...) ele não sabe o que vai acontecer. Então, veja: às vezes,
é preciso um advogado para convencer a pessoa de que o melhor para ela
é aceitar certos tipos de benefício, de acordo, sem discutir. Tem muita
gente que fala assim: “eu não fiz o crime, eu não pratiquei nada, eu vou
até o fim e vou provar que eu sou inocente. Aí o que acontece? Quem
sabe das provas que essa pessoa tem é o advogado. Eu não sei, o juiz não
sabe, o promotor não sabe. Quem sabe o potencial da prova da pessoa é
só o advogado dela (...) E aí a pessoa tem que discutir com o advogado (...)
Então, o advogado é indispensável (...) E o promotor? O promotor tem que
propor a pena. É a função dele, é a lei (...) Se ele não propuser a pena, o juiz
o poderá propor porque a lei diz que quem tem que fazer é ele. O juiz
esta, então, entrando no papel do acusador. E o juiz tem que tomar sempre
aquela cautela de ser imparcial, porque o que respeito ao Judiciário é
justamente a imparcialidade. Isso é importante anotar: o juiz precisa ser
imparcial. E a linguagem ponderada do juiz faz muito efeito. Produz um
enorme resultado no estado das pessoas (juiz 2).
Ao compararmos essas manifestações dos juizes entrevistados sobre
as interações profi ssionais em torno do Juizado Especial Criminal, duas
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constatações merecem destaque: a percepção que eles desenvolvem sobre
os advogados particulares, e a percepção que eles têm de si próprios. Se,
por um lado, ambos enfatizam a importância do promotor público, por outro
discordam quanto ao papel do advogado. Enquanto o primeiro juiz aponta
para a necessidade de uma maior conscientização desse profi ssional no
sentido de não atrapalhar a conciliação, o segundo juiz, ao contrário, aponta
justamente para a importância dele em convencer seu cliente a aceitar o
acordo e encerrar o processo.
Como conseqüência da diferença na percepção dos juízes sobre
os advogados particulares, pôde-se constatar também a percepção que
os magistrados têm de si próprios e de suas funções no Juizado. Ao
apontarem para o maior ou menor reconhecimento da importância dos
outros profi ssionais envolvidos no processo, os dois magistrados, embora
coincidam na relevância de seu papel como juiz, desenvolvem percepções
distintas quanto à maneira como devem conduzir as audiências. Vejamos:
O primeiro entrevistado, embora não tenha dito explicitamente, parece
defender um papel mais “ativo” do juiz no sentido de convencer as partes a
chegarem a um acordo e encerrarem o processo. Daí a opção, inclusive, em
caracterizar o advogado particular como um agente que pode atrapalhar a
tentativa de conciliação e, conseqüentemente, o papel mais ativo do juiz, ou
seja, “ ca muito difi cultosa a mediação e a questão da justiça terapêutica”.
Ao contrário, o outro juiz entrevistado destaca justamente a necessidade
de uma postura imparcial do juiz e, num certo sentido, menos ativa, se se
pensar em termos de uma interação mais direta com as partes, deixando,
muitas vezes, que o próprio advogado convença seus clientes a desistirem do
processo. Como ele argumenta, “o juiz tem que tomar sempre aquela cautela
de ser imparcial, porque o que dá respeito ao Judiciário é justamente a
imparcialidade. Isso é importante anotar: o juiz precisa ser imparcial”.
O importante a ressaltar é que não se trata de valorizar mais ou menos
a lógica da conciliação, pois para todos os juízes entrevistados fi cou a nítida
impressão de que esta deve ser inclusive a lógica da justiça ideal. Ou seja,
todos os magistrados apontaram para a importância e as vantagens da justiça
informal criminal no sentido principalmente da pacifi cação dos confl itos.
O contraste entre as manifestações dos entrevistados revela apenas a
existência de percepções distintas quanto ao papel que devem assumir nesta
instância de justiça. Na verdade, pode-se dizer que, mais do que diferenças
na percepção quanto à sua função, a diferença no discurso dos juízes revela
os limites entre as duas instituições de justiça e, conseqüentemente, a
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existência de um certo dilema entre conciliar e decidir. É por essa razão que
o mesmo juiz que defende a necessidade de uma “linguagem emocional
que comunique, em substituição a uma linguagem técnica que é inefi caz,
defende também a necessidade de participação de todos os profi ssionais bem
como o caráter imparcial do juiz, questões que, num certo sentido, estão
mais relacionadas à técnica e à formalidade jurídica. No mesmo sentido, o
outro juiz entrevistado aponta para a necessidade de menos formalidade por
parte dos profi ssionais, ao mesmo tempo que admite a existência de uma
ameaça implícita de seu poder de punir, poder este característico da justiça
formal de decisão.
Em síntese, embora valorizem a função de conciliadores na justiça
informal criminal, defendendo inclusive que são os mais qualifi cados para
exercer essa função, o fato é que os juízes são formados e socializados
dentro da lógica da justiça formal de decisão. Assim, às vezes, podem
confundir, no exercício de suas funções de magistrado, os dois papéis, quais
sejam, o de conciliadores e o de tomadores de decisão.
Outras duas questões que colocamos nas entrevistas com os
magistrados trataram dos efeitos da lei 9.099/95 sobre os confl itos de
gênero e sobre o trabalho desenvolvido pelas Delegacias de Defesa da
Mulher. No que se refere às delegacias, quando questionamos se a lei teria
retirado das delegadas uma atribuição importante que elas exerciam, um dos
magistrados reconheceu que houve um enfraquecimento das delegacias.
O papel da delegada da mulher quando foi criada, foi exatamente para
que existisse um profissional com uma qualificação específica na solução
desses conflitos familiares. Hoje, ficou realmente um pouco secundário. A
coisa ficou um pouco mecânica na delegacia. O que eu chamo de mecânica:
chega-se lá, faz um instrumento e joga para a justiça. Enquanto que antes,
até pelo fato de que a justiça não tinha esse poder de mediação mas só
de repressão, a própria delegacia assumia esse poder de mediação. E isso
realmente pode ter contribuído para que esse poder de mediação tenha se
esvaziado na delegacia. E aí, na medida em que se esvaziou a qualidade
dos termos, realmente vira uma coisa meio que “computador”: preencher
campos. Preenche o nome da vítima, põe o que ela diz, preenche-se o
nome do réu, põe o que ele diz, e manda para a justiça. E não se procura
naquele momento até mais acalorado, porque, quando as partes vêm para
cá, já se passaram alguns dias, e esse calor da emoção já está mais sereno,
já está mais apaziguado. Não se procurou naquele momento fazer uma
mediação que talvez fosse o momento mais oportuno, porque as partes já
estão ali colocando tudo para fora, já estão ali vivenciando o problema.
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Aqui o problema já foi vivenciado, já está no passado. Então, eu vejo que,
se pudesse conciliar as funções nesse sentido, as delegacias ter um pouco
mais de, não vou dizer autonomia, mas um pouco mais de instrumentos no
sentido de buscar desde imediato essa medião (...) Resumindo: ganhou-
se no Judiciário mas perdeu-se na delegacia (juiz 1).
No mesmo sentido, quando nos referimos à literatura crítica do
Juizado Especial Criminal, que aponta para um défi cit teórico da lei 9.099
no sentido de que ela não levou em conta a questão do gênero quando de
sua formulação, o juiz também admite esse equívoco, embora considere
que isso vem sendo sanado com a criação de novos mecanismos.
De fato, eu concordo que foi um equívoco da lei. Mas hoje isto vem sendo
sanado com a criação de novos mecanismos. Por exemplo, o próprio tribunal
de família, os juizados de família, a questão de uma alteração legislativa no
que diz respeito à violência doméstica. Eu acho que o legislador enxergou
esse equívoco e hoje está buscando saná-lo. De fato, no passado, a lei
se preocupou mais com o grau do que propriamente com a origem do
problema. Mas isso vem sendo consertado (juiz 1).
Ao responder a mesma questão sobre as queixas das delegadas por
terem perdido a condição de mediadoras dos confl itos domésticos, o outro
juiz demonstrou não encontrar fundamento nessa crítica, argumentando
que nada impede que, em alguns casos, o problema se resolva na própria
delegacia.
Olha, nada impede de que estando lá na delegacia os envolvidos, a própria
delegada ou delegado converse com eles. Não é fora de cogitação, isso pode
acontecer. E o pessoal envolvido, sentindo que o problema deles resolveu,
não precisa nem continuar. Isso pode até acontecer. Naqueles casos em que
depende da vítima querer ou não querer o processo, a conversa informal lá
na delegacia pode resolver. Muitas vezes resolve até melhor porque resolve
mais rápido ainda, nem chega aqui. Lá pacificou e resolveu. Se a autoridade
do delegado conseguir ter no espírito das pessoas ascendência suficiente
para conscientizá-las do problema, excelente (...) A lei não trata disso. A lei
estabelece um ritual. Se a pessoa vai lá, registra e manda para o juiz. Mas
imagine se vai lá o marido e a mulher juntos na delegacia: “nós queremos
registrar a queixa. Ele bateu nela e ela bateu nele. Um bateu no outro. A
delegada diz: “vocês não querem repensar melhor antes de registrar?
bom, então vamos pensar. Nada impede a delegada de fazer isso. Agora,
se vai um só ela vai ter que registrar a versão de um só e tocar o caso para
frente (juiz 2).
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No que se refere à questão do gênero, no sentido de o legislador ter
considerado para a elaboração da lei 9.099/95 mais o potencial do delito
e menos a condição da vítima, perguntamos a este juiz se tal situação, se
verdadeira, não poderia signifi car a banalização e descriminalização da
violência doméstica e, assim, também gerar uma sensação de impunidade
para tais crimes. Ao responder, o juiz foi bastante enfático ao dizer que
não há descriminalização ou impunidade, e que a confusão existe porque,
na justiça informal criminal, é a vítima quem decide pela continuação do
processo, e apontou para a falta de esclarecimento das pessoas comuns
nesse sentido.
Descriminalizar não é uma realidade. O fato continua sendo criminoso.
O que acontece é que as pessoas precisam optar pela punição, pelo
prosseguimento do processo ou pelo arquivamento. Quer dizer, não
depende mais da justiça. Se elas optam por arquivar e depois falam que
o aconteceu nada... Mas a opção não foi da justiça, foi dela. A justiça
o pode punir sem a opção da vítima. Então, dizer que não há punição
não dá para concordar, evidente. Tem que haver um esclarecimento bom
nesta questão. Porque a punição sempre ocorre quando a vítima quer e há
provas. Não basta só a vontade, é preciso ter prova. O que talvez tenha a ver
com esta questão é o problema da transação penal não ser uma condenação.
A transação penal envolve todas as penas menos a cadeia, menos a pena
privativa de liberdade. Não dá para fazer um acordo com a pessoa e
oferecer para ela a prisão. A prio só pode resultar da condenação. Talvez
haja confusão quando se dizmas não foi preso. Talvez porque se ache
que pena é só prisão (juiz 2).
Quando questionamos se não havia também a possibilidade de as
mulheres serem pressionadas pelos maridos ou companheiros para não
exercerem o direito de representação jurídica, o juiz continuou:
Pode acontecer. E a mulher vem pressionada e depois fala “eu não quero
prosseguir”. Mas não declara que está pressionada. Ela simplesmente omite
todo o problema da pressão e chega “eu não quero mais”. E a justiça só tem
um caminho: é não prosseguir. Não pode fazer nada. Então, não dá para
dizer que há impunidade. O que há é maiores chances de a pessoa não chegar
à prisão. Porque ela pode realizar antes do início do procedimento, na fase
preliminar, acordo para aceitar penas, que popularmente se chama de penas
alternativas. Então, no conceito do povo, talvez do povo menos informado
de quais são as penas, a idéia de que, se não há prisão, não há pena, leva
a uma sensação de impunidade. Mas o que acontece é bem isso: há penas
diferentes da prisão e todas elas são aplicadas nestes casos. A pessoa recebe
a punição, só que não é a cadeia (juiz 2).
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Apesar de argumentar que não acredita num processo de
descriminalização nem na existência de uma sensação de impunidade por
parte das vítimas, o magistrado fi naliza reafi rmando sua posição de operador
do direito e não de legislador, transferindo, assim, a responsabilidade pelos
possíveis problemas decorrentes da legislação a quem de fato a criou. Para
tanto, parte de uma analogia entre dois sistemas de justiça.
Contrariamente ao que nós fazemos aqui foi o que os Estados Unidos
resolveram fazer. Lá adotaram uma potica em Nova Iorque, por exemplo,
de que os pequenos delitos tinham todos que ser punidos bem severamente
porque isto desestimularia a criminalidade. É uma opção política. Não é
uma opção do Judiciário. O Judiciário não faz esta opção, é uma opção
política, de lei, legislativa. O que nós precisamos? Punir os pequenos delitos
severamente, para mostrar que, se os pequenos são, os grandes também
serão, ou nós devemos dar maior liberalidade aos pequenos delitos e procurar
punir sempre os grandes. A opção brasileira foi a segunda (juiz 2).
Em síntese, com relação às representações dos magistrados sobre
o processo contemporâneo de informalização da justiça, ressaltamos
que, embora os juízes entrevistados tenham se manifestado sobre várias
questões, oferecendo-nos elementos sufi cientes para caracterizarmos o
Juizado Especial Criminal segundo as suas próprias percepções, o que fi cou
de mais signifi cativo nas entrevistas foram justamente os elementos que
permitem compreender melhor como se desenvolvem as interações entre
eles e os litigantes nesta nova instância de justiça. Foi assim que procuramos
compreender o processo ritual das audiências preliminares de conciliação,
ou seja, a partir da interação entre operadores, vítimas e acusados, o que
também revela suas próprias representações da violência e da punição na
justiça informal criminal.
3.5 - As Audiências Preliminares de Conciliação: aspectos do ritual
Por termos concebido as audiências preliminares de conciliação
como eventos jurídicos especiais, portanto mais estáveis e detentores de
uma ordem que os estrutura, a ênfase no ritual se justifi ca porque tal escolha
permite destacar aquilo que, sem esse olhar, seria apenas usual. Como
enfatiza Peirano (2001:8), “rituais e eventos críticos de uma sociedade
ampliam, focalizam, põem em relevo e justifi cam o que já é usual nela”.
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Com efeito, dentro do sistema de justiça esses eventos têm um signifi cado
especial, pois permitem compreender melhor como agem, pensam e
interagem agentes e litigantes envolvidos na trama social.
O enfoque no ritual também se justifi ca pelo fato de que tal fenômeno
pode ser conceitualmente entendido como processo de mudança de um
estado social para outro, dando sentido, assim, aos fatos cotidianos da vida
social (TURNER, 1978). Na justiça informal criminal, tal mudança opera
em termos da passagem de uma situação de confl ito para uma situação
de conciliação, permitindo a superação do confl ito original. A análise
dos elementos que permitem compreender essa passagem, bem como dos
elementos que, contrariando esta lógica, se constituem em obstáculos à
superação dos confl itos, representou o objetivo principal desse estudo.
Cabe ressaltar, ainda, que se optou, na análise desses eventos,
pela descrição das audiências como forma de não perder a seqüência dos
argumentos e das justifi cativas por parte dos agentes. Contudo, não se trata
de um trabalho apenas descritivo, pois
a etnografia é bem mais que um mero descrever de atos presenciados ou (re)
contados – a boa etnografia leva em conta o aspecto comunicativo essencial
que se dá entre o pesquisador e o nativo, o ‘contexto da situação, que revela
os múltiplos sentidos dos encontros sociais (PEIRANO, 2001:11)
Assim, a intenção foi realizar um trabalho com viés etnográfi co,
que a descrição, ao representar a própria interpretação do evento, levou
em conta o “aspecto comunicativo entre pesquisador e nativos”, assim
como caracterizou melhor o “contexto da situação”. Além disso, a opção
pela descrição das audiências, no intuito de evitar a perda de elementos
signifi cativos, nos pareceu coerente com a escolha do ritual como processo
de mudança de situações sociais.
Finalmente, ao conceber ação e representação como dimensões
indissociáveis do ritual nas audiências preliminares de conciliação,
acreditamos ter correspondido às orientações teóricas sugeridas por Peirano
no sentido de enfatizar a dimensão do vivido como meio de acessar as
visões de mundo, ou seja,
focalizar rituais é tratar da ação social. Se esta ação se realiza no
contexto de visões de mundo compartilhadas, então a comunicação entre
indivíduos deixa entrever classificações implícitas entre seres humanos,
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humanos e natureza, humanos e deuses (ou demônios), por exemplo. Quer
a comunicação se faça por intermédio de palavras ou de atos, ela difere
quanto ao meio, mas não minimiza o objetivo de ação nem sua eficácia. A
linguagem é parte da cultura; também é possível agir e fazer pelo uso de
palavras. Em outros termos, a fala é um ato da sociedade tanto quanto o
ritual (PEIRANO, 2001:9)
Pode-se dizer, portanto, que as falas, os gestos e as expressões que
agentes e litigantes desenvolvem nas audiências preliminares de conciliação
revelam as suas próprias representações da violência e da punição, bem
como os valores sociais associados a esses fenômenos. Como tentaremos
demonstrar ao longo do texto, tais valores, que no âmbito do sistema de
justiça informal criminal adquirem um signifi cado especial, fazem parte do
universo cotidiano das pessoas envolvidas no “drama social”.
41
Vejamos,
então, os exemplos das audiências mais ilustrativas que acompanhamos,
distribuídas a partir de uma tipologia que permitiu identifi car as várias
situações possíveis.
3.5.1 - Tipifi cação das audiências segundo a confi guração profi ssional
No que se refere à confi guração profi ssional em torno das audiências
preliminares de conciliação, duas situações mereceram destaque no trabalho
de observação dessas sessões. O primeiro cenário é aquele onde não há
interação entre os operadores do direito, ou seja, nos casos – que constitui
a maioria das audiências observadas – em que os magistrados interagiram
diretamente com as partes litigantes em função da ausência dos demais
operadores. O segundo cenário, ao contrário, é aquele marcado sobretudo
pela interação entre os diferentes profi ssionais - juízes, advogados e
promotores -, no sentido das práticas e das representações que contribuem
ou prejudicam o objetivo principal das audiências, que é a tentativa de
conciliação entre as partes.
41 Para Turner, ritos seriam dramas sociais fixos e rotinizados, e seus símbolos, no âmbito da razão
durkheimiana, estariam aptos para uma análise microssociológica refinada. Fascinado pelos processos,
conflitos, dramas – em suma, pelo vivido - para Turner símbolos instigam a ação (PEIRANO,
2001:21)
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Cenário marcado pela atuação exclusiva do magistrado
Com relação ao primeiro cenário, qual seja, aquele que envolve
apenas a relação entre os juízes e as partes litigantes, a análise recai
necessariamente sobre o tipo de atuação dos magistrados para resolver os
confl itos. Foi justamente nessas situações que observamos, de maneira mais
evidente, um certo dilema na prática do magistrado, pois ele ora atua como
um juiz formal e se utiliza da ameaça implícita de seu poder de decidir
(punir), ora lança mão de outros valores não necessariamente jurídicos para
alcançar o acordo e encerrar o processo. Em outras palavras, ao interagir
com as partes litigantes os juízes normalmente recorrem a valores que elas
reconhecem e aceitam como válidos para obter sucesso no acordo. Contudo,
nunca abdicam da ameaça implícita de seu poder de punir, caracterizando,
assim, um certo dilema entre conciliar ou decidir.
Como já reiteramos em outras partes deste texto, a audiência
típica é aquela que se refere à violência doméstica e envolve agressão
entre cônjuges, não apenas por ser o tipo mais freqüente de confl ito, mas
também por oferecer os principais elementos para compreender a lógica
da conciliação e a ameaça implícita do poder de punir. Vale ressaltar que
neste tipo de litígio quase sempre o juiz conseguiu encerrar o processo sem
aplicação de pena, fundamentado no fato de que, muitas vezes, as vítimas
não pretendiam se separar dos maridos ou companheiros, nem desejavam
que eles recebessem uma pena efetiva, mas buscavam uma advertência
verbal por parte do magistrado ao seu agressor. Vejamos alguns exemplos
de audiências nos quais fi ca explícita tal constatação.
Natureza do delito: crime de lesão corporal dolosa.
Data da audiência: 12 de setembro de 2001.
Relação entre as partes: casados.
Presentes na audiência: apenas vítima e acusado.
Perfi l da vítima: mulher, branca, 34 anos, casada, operária.
Perfi l do acusado: homem, branco, 39 anos, casado, funileiro.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
Questionados pelo juiz, vítima e acusado declararam estar casados há 18
anos e ter três filhos. O juiz, de imediato, perguntou à vítima se pretendia
continuar casada, mas ela não respondeu e, olhando fixamente para o
marido, deu a impressão de que sua resposta dependeria dele. O juiz disse
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que, enquanto ela pensava, ele conversaria com o marido, e perguntou
o que este desejava da vida. Ele respondeu que separar da mulher estava
fora de questão. Voltando-se para a vítima novamente, o juiz perguntou
qual era o problema e ela respondeu que era o álcool. O juiz disse que já
imaginava, que só de olhar para o acusado já tinha percebido. Depois o
advertiu dizendo que normalmente os casos mais graves são justamente
aqueles em que o indivíduo bebe mas não fica caído na rua, pois acredita
falsamente que não é dependente; disse também que o pai de família que
bebe, normalmente, perde o respeito da esposa e dos filhos, e que em algum
momento a família acaba o abandonando. Percebendo o constrangimento
do acusado, o juiz perguntou à vítima se podia encerrar o processo com
o compromisso de que ele iria tentar melhorar seu comportamento, e ela
concordou sem qualquer questionamento. Ao final, o magistrado deu um
folheto dos Alcoólicos Anônimos ao acusado e o orientou novamente a
parar de beber, dizendo que esse era o grande mal de sua vida.
Natureza do delito: crime de lesão corporal dolosa.
Data da audiência: 12 de setembro de 2001.
Relação entre as partes: amasiados.
Presentes na audiência: vítima, acusado e o fi lho do casal de 2 anos.
Perfi l da vítima: mulher, branca, 19 anos, amasiada, do lar.
Perfi l do acusado: homem, negro, 26 anos, amasiado, pedreiro.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
O juiz iniciou a audiência perguntando à vítima o que havia acontecido, e
ela disse que pelo simples fato de ter convidado o marido para ir à igreja
ele a agrediu, dizendo que preferia ir ao bar com os amigos. Questionado
pelo juiz, o acusado disse que a mulher também tinha seu lado agressivo,
e inclusive já o teria agredido com uma faca. Ao ser olhada com espanto
pelo juiz, ela respondeu que só fez isso para se defender. O marido pediu
a palavra novamente para dizer que a esposa freqüentemente jogava suas
refeições no lixo; novamente ela respondeu à acusação dizendo que fazia
isso por que ele só fi cava no bar, onde costumava aceitar conselhos de
amigos que diziam que “mulher é na porrada”. A partir desse momento,
as partes começaram a discutir e o juiz interveio perguntando à vítima se
pretendia continuar casada com o acusado, e ela respondeu que gostaria de
tentar novamente mas tinha medo, já que ele a ameaçou dizendo que faria
pior da próxima vez. O juiz disse para ela não temer, pois o acusado estava
se comprometendo diante dele e da justiça, e que, portanto, caso ele voltasse
a agredi-la, as conseqüências seriam piores. Depois, advertiu-o novamente
dizendo que, se ele não mudasse o comportamento, da próxima vez receberia
uma pena da qual não se esqueceria jamais. Com isso, encerrou o processo
com a concordância da vítima, que disse aceitar “dar mais uma chance” ao
marido, que, por sua vez, garantiu que não mais a agrediria.
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Natureza do delito: crime de lesão corporal dolosa.
Data da audiência: 22 de agosto de 2001.
Relação entre as partes: amasiadas.
Presentes na audiência: apenas vítima e acusado.
Perfi l da vítima: mulher, negra, 44 anos, doméstica.
Perfi l do acusado: homem, negro, 29 anos, pedreiro.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
O juiz, após ler rapidamente os autos do processo, perguntou à vítima se ela
pretendia continuar com o marido, e ela respondeu que sim. Questionado
pelo juiz sobre os motivos da agressão, o acusado disse que a esposa
também o agredia. O juiz, então, advertiu ambos dizendo que ou eles
mudavam o comportamento ou iriam acabar se separando. Depois, voltou-
se para o acusado dizendo que, caso a vítima concordasse, iria encerrar o
processo, mas que da próxima vez lhe aplicaria uma pena de prestação de
serviços à comunidade. O acusado, demonstrando constrangimento, tentou
se justificar dizendo que o problema é que ele tinha bebido um pouco
a mais e que por isso teria agredido a esposa, mas que teria sido sem
querer. Diante disso, o juiz perguntou ao acusado qual seria sua reação se
a vítima o agredisse e dissesse a mesma coisa. Ele não respondeu. Depois
de adverti-los novamente dizendo que era preciso que eles se respeitassem,
o juiz encerrou o processo sem maiores dificuldades.
Estas audiências - descritas de forma simples e objetiva, pois foi
exatamente assim que ocorreram -, nas quais o juiz não teve difi culdade
em encerrar o processo, são ilustrativas pois representam o que ocorreu
com a maioria dos casos que envolveu violência doméstica e nas quais a
interação foi apenas com o juiz. Como dissemos, nesses casos, as esposas
ou companheiras freqüentemente demonstravam não pretender se separar
do marido ou companheiro, nem mesmo desejavam que eles recebessem
uma pena mais severa, pois isso poderia trazer prejuízos para a família,
que normalmente já se apresentava com difi culdades socioeconômicas. Na
verdade, em muitos casos a vítima demonstrou que seu desejo era que o
marido ou companheiro agressor fosse apenas verbalmente advertido pelo
magistrado, demonstrando acreditar no fato de que a ameaça de punição
mudasse o comportamento dele.
Assim, ao contrário de outros casos nos quais variáveis como a
natureza do delito são importantes na defi nição do processo, nestes o que
estava em jogo, mais do que o crime e a agressão em si, pareceu ser a
necessidade de um conciliador que conversasse e oferecesse conselhos
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no sentido de preservar o casamento e a família. Contudo, há situações
mais complexas em que o juiz nem sempre conseguiu sucesso rápido na
conciliação, mesmo nestas situações onde a interação se dá apenas entre ele e
as partes litigantes. Ou seja, às vezes é necessário ao magistrado um esforço
maior para convencer vítimas e acusados de que não vale a pena continuar
com o processo, recorrendo, para tanto, além dos argumentos valorativos,
também à ameaça implícita de seu poder de punir para convencê-las a
aceitar o acordo e encerrar o confl ito. Vejamos dois exemplos em que o juiz
teve maior difi culdade em obter o acordo entre as partes, embora, no fi nal,
tal objetivo tenha sido alcançado.
Natureza do delito: crime de usurpação (danos).
Data da audiência: 22 de agosto de 2001.
Relação entre as partes: casal separado.
Presentes na audiência: apenas vítima e acusado.
Perfi l da vítima: homem, negro, 23, separado, salva-vidas.
Perfi l do acusado: mulher, branca, 23, separada, faxineira.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
As partes estavam separadas há 8 meses e, segundo a vítima, sua ex-esposa
o teria agredido e quebrado sua moto. Questionada pelo juiz sobre o motivo
dessa atitude, a acusada argumentou que fez aquilo porque seu ex-marido
o a ajudava, pois ela pagava sozinha um aluguel de R$ 150,00 e não
tinha como viver apenas com os 30% que ele lhe dava para sustentar o filho
que também era dele. O juiz a advertiu dizendo que isso não era motivo
para que ela quebrasse a moto do ex-marido; que havia outras maneiras de
resolver os problemas sem que houvesse briga e agressão; que se a situação
dela estava ruim, ficaria pior agora já que teria que ressarci-lo do dano
causado; que o ex-marido estava cumprindo o que fora determinado pela
lei, e por isso ela teria que novamente resolver o problema pela via judicial
e não sair agredindo e quebrando tudo. A acusada ainda tentou argumentar
que, na audiência de acerto da peno, ela não pode comparecer, e por isso
o juiz determinou o valor à sua revelia. O juiz, já demonstrando sinais
de irritação, advertiu os dois, dizendo que, apesar de estarem separados,
era preciso que houvesse respeito e bom senso entre eles, pelo menos pelo
filho, que não tinha nada a ver com a história. A acusada pediu novamente
a palavra e disse que o ex-marido permitiu que ela quebrasse sua moto só
para prejudicá-la ainda mais, mas tal argumento não convenceu o juiz, que
perguntou à vítima se pretendia continuar com o processo criminal, e ela
respondeu que sim, pois esta era a única maneira de evitar que sua ex-esposa
o agredisse novamente. Neste momento, foi a vítima que foi advertida pelo
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juiz, que disse que ele também precisava ser compreensivo, que de certa
forma ela já tinha sido advertida e que da próxima vez certamente haveria
uma punição maior; e que, portanto, ele deveria perdoar a dívida já que
estava claro que ela não tinha como pagar-lhe. Assim, encerrou o processo
com a concordância da vítima.
Natureza do delito: crime de lesão corporal dolosa.
Data da audiência: 08 de agosto de 2001.
Relação entre as partes: casal separado.
Presentes na audiência: apenas vítima e acusado.
Perfi l da vítima: homem, negro, 37, separado, pedreiro (desempregado).
Perfi l do acusado: mulher, negra, 33, separada, cozinheira.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
As par tes est avam em processo de separação judicial, e a vítima (ex-marido)
alegou ter sido agredida por sua ex-mulher. Questionada pelo juiz se o fato
era verdadeiro, a acusada confirmou a agressão, justificando que, ao se
separarem ainda não tinham o filho, e quando este nasceu ela começou a
exigir do ex-marido seus direitos. Daí as brigas começaram. Ambos foram
advertidos pelo juiz, que disse que era necessário que eles se entendessem
já que precisavam criar o filho. O ex-marido disse que da parte dele estava
tudo bem, que inclusive estava disposto a retirar a queixa, mas a acusada
disse o contrio, ou seja, que queria dar andamento no processo já que
entendia que o ex-marido a tinha prejudicado quando resolveu processá-la.
O juiz, então, esclareceu à acusada que naquele processo sua condição era
de agressora, e que, portanto, seria melhor para ela aceitar o encerramento
e buscar seus direitos na justiça civil onde estavam sendo processadas a
separão e a definição da peno alimencia. Diante dos argumentos do
juiz, a acusada também concordou em encerrar o processo, embora tenha
demonstrado insatisfação por ter que fa-lo.
Ao contrário da maioria das audiências que envolvem confl itos
conjugais, nos dois exemplos acima o casal já estava separado e foram os
ex-maridos que fi guraram como vítimas. Tal constatação poderia sugerir
que, nesses casos, quando já existe a separação, os argumentos dos juízes
no sentido de buscar um acordo tornam-se menos efi cazes, já que não
há perspectiva de preservar o relacionamento conjugal, que já terminou.
Percebe-se, assim, que nesses casos os sentimentos como ressentimento e
vingança são mais evidentes. Por outro lado, se os argumentos do magistrado
não podem se fundamentar na reaproximação do casal, normalmente a
opção é argumentar em nome do fi lho, que, como disse o juiz, “não tem
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nada a ver com a história”. É assim, portanto, que também se desenvolvem
os argumentos valorativos para convencer as partes a encerrar o processo,
ou seja, apesar de não estarem mais casadas, a relação deverá permanecer,
pois elas têm um fi lho em comum.
Nesse mesmo sentido, há também audiências que tiveram origem
em confl itos conjugais em que fi ca evidente a representação de outros
valores relativos, por exemplo, ao ciúme e ao adultério. Vejamos um
exemplo deste tipo.
Natureza do delito: crime contra a liberdade individual.
Data da audiência: 29 de agosto de 2001.
Relação entre as partes: amasiadas.
Presentes na audiência: apenas vítima e acusado.
Perfi l da vítima: mulher, branca, 28 anos, amasiada, do lar.
Perfi l do acusado: homem, branco, 31 anos, amasiado, lavrador.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
Vítima e acusado declararam ser amasiados e ter cinco filhos. Segundo a
vítima, o acusado, quando bebe, agride a ela e a seu filho, além de ameaçá-
la com uma faca. Questionada pelo juiz se pretendia se separar do marido,
ela disse que sim. Da mesma forma, ele também manifestou o interesse em
se separar da companheira. Questionados pelo juiz se realmente era isso
que ambos queriam, e se tal decisão não era apenas porque estavam com
os ânimos exaltados, a vítima disse que não, e alegou que seu companheiro
já tinha outra mulher, o que inclusive foi confirmado por ele diante do
juiz, alegando, porém, que sua companheira também tinha um amante,
mas ela negou o fato. O juiz disse então que achava que o caso era mais
grave do que ele pensava, pois, quando há desconfiança ou traição, não
há mais como manter o casamento; que, portanto, o melhor caminho era
mesmo a separão. Contudo, disse também que deveriam, se possível,
continuar amigos pelo bem dos filhos, já que estes não tinham culpa pelo
comportamento dos pais. Em seguida, advertiu novamente o agressor
dizendo que a bebida estava lhe fazendo mal, e que, se ele ainda desejasse
ser respeitado pelos filhos e pela sociedade, era preciso ter amor próprio
e parar de beber. O acusado ainda tentou argumentar dizendo que ele era
a vítima, pois, além de ser traído, também fora agredido com uma facada
nas costas. O juiz disse para ele esquecer o passado e pensar apenas no
futuro e que, mesmo separados, deveriam se respeitar. Assim, encerrou
o processo.
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Vê-se, neste exemplo, uma maior difi culdade do juiz em conseguir
o acordo para encerrar o processo. Contudo, o importante a ressaltar é que,
independente dessa difi culdade, o ritual estabelecido para o desenvolvimento
da audiência passa principalmente pela atuação deste operador, já que na
maioria das sessões as partes se relacionam diretamente com ele. E mesmo
quando há a presença de advogados representando uma ou ambas as partes,
notou-se que o juiz, na maioria das vezes, manteve o controle na condução
das audiências. Vejamos um exemplo de uma sessão desse tipo.
Natureza do delito: crime de lesão corporal dolosa.
Data da audiência: 08 de agosto de 2001.
Relação entre as partes: casal separado.
Presentes na audiência: vítima, acusado e seu advogado.
Perfi l da vítima: mulher, negra, 40 anos, separada, assistente social.
Perfi l do acusado: homem, branco, 50, separado, profi ssão não declarada.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
Questionada pelo juiz, a vítima disse que estava amasiada com o acusado
e pretendia casar-se com ele na mesma semana em que fora agredida; que
no dia em que o acusado a agrediu ele teria fugido do hospital onde estava
em tratamento por causa do alcoolismo. Ao vê-lo, o juiz o reconheceu de
outros processos e afirmou que era sempre o mesmo problema, dizendo
que sabia que ele era uma boa pessoa, mas a bebida não o deixava seguir
sua vida. O acusado reconheceu diante do juiz que realmente estava
com dificuldades para largar a bebida e que, por isso, não conseguia se
relacionar com ningm. O juiz dirigiu-se à vítima e perguntou se ela ainda
desejava casar-se com ele, e ela respondeu que não, pois nunca tinha sido
o agredida em sua vida, nem mesmo pelos seus pais, e que por isso estava
muito assustada, sobretudo porque seu filho de sete anos teria presenciado
a agressão; disse também que era solidária e tinha consciência do problema
do acusado; que acreditou na sua melhora pois estavam indo juntos à igreja,
o que estavaoperando mudanças em suas vidas. O juiz, eno, disse a
ela que era bom dar um tempo para ver se o acusado realmente se curava
para depois, se fosse o caso, casar-se com ele; que ela não podia jogar sua
vida fora e apostar num casamento em que uma das partes não estava
em condições de levar adiante. Disse ainda que somente ir a igreja não
resolveria o problema se ele não aceitasse mudar por si próprio; que a igreja
é muito útil para estimular a mudança, mas esta dependia exclusivamente
da força de vontade do acusado, e que não sabia se ele estava disposto
a mudar. Depois, perguntou à vítima se ela pretendia continuar com o
processo, e ela respondeu que, apesar de tudo, não pretendia processar
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o acusado; que gostava dele e desejava que ele fosse feliz, e que por isso
estava rezando muito por ele. O juiz voltou-se para o acusado e novamente
tentou convencê-lo a tratar-se, dando-lhe um folheto dos Alcoólicos
Anônimos. Com isso, encerrou a audiência e o processo desejando que ele
conseguisse se tratar.
A primeira questão a ser destacada neste exemplo é que, apesar de
estar presente, o advogado do acusado não teve qualquer infl uência na
condução da audiência pelo magistrado. Ou seja, em nenhum momento ele
se manifestou, deixando que apenas o juiz conversasse com seu cliente. Tal
posicionamento do advogado pode ser justifi cado pelo fato de que talvez sua
estratégia fosse apenas no sentido de que seu cliente não fosse penalizado,
e como a audiência caminhava neste sentido, não era necessário que ele se
posicionasse. Contudo, do ponto de vista do processo ritual, é importante
ressaltar a falta de intervenção do advogado, revelando que, mesmo
com a presença deste profi ssional, na maioria das vezes o juiz manteve o
controle na condução das audiências. A questão da presença de advogados
nas audiências será retomada na parte relativa ao segundo cenário possível,
onde esses profi ssionais, assim como o promotor público, acabam tendo
uma atuação mais efetiva. Por ora, vamos discutir outro aspecto importante
neste exemplo, que tem a ver com a atuação exclusiva do magistrado.
Como pode ser constatado a partir desse mesmo exemplo, o juiz
não tentou convencer a vítima a continuar vivendo com o acusado, mas
concordou com sua decisão de suspender o casamento. Assim, uma primeira
leitura da atuação do magistrado poderia sugerir uma descontinuidade em
termos do que é comum na maioria das audiências deste tipo, que é a
tentativa de preservação da família, do casamento ou dos fi lhos. Contudo,
uma observação mais cuidadosa revela na postura do juiz a existência de
um outro valor muito comum nessas audiências, ou seja, a pacifi cação dos
confl itos, mesmo que para isso seja necessária a separação do casal.
Nesse sentido, apesar de não tentar convencer a vítima a “dar mais
uma chance” ao acusado, nem por isso o juiz deixou de atuar no sentido
de encerrar e arquivar o processo, mostrando que, apesar de não ser
possível preservar o relacionamento, ainda assim era possível pacifi car as
relações, sendo o arquivamento do processo a melhor solução. Para tanto,
foi necessário não julgar a agressão, mas considerar o comportamento do
agressor como sendo produto de uma patologia – no caso o alcoolismo –
que deve ser tratada e não reprimida com pena normativa.
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Daí a justifi cativa para considerar tal instância de justiça como um
tipo de “justiça terapêutica”, em que o objetivo é “curar” mais do que
“punir” e passar, com isso, de uma situação de confl ito para uma situação
de pacifi cação social. Algumas situações, contudo, revelam os limites e a
insufi ciência da “justiça terapêutica”, pois nem sempre fi ca clara a sensação
de que o confl ito tenha sido superado ou tenha se encaminhado para esse
desfecho. Vejamos, portanto, dois outros exemplos – tendo como acusados
respectivamente um usuário de drogas e um portador de doença mental -
que apontam para as difi culdades que o magistrado e o próprio sistema de
justiça têm para resolução de determinados confl itos.
Natureza do delito: Outras contravenções penais (vias de fato).
Data da audiência: 04 de julho de 2001.
Relação entre as partes: irmãos.
Presentes na audiência: vítima, acusado e a mãe de ambos.
Perfi l da vítima: mulher, branca, 21 anos, solteira, auxiliar de produção.
Perfi l do acusado: homem, branco, 28 anos, solteiro, servente de pedreiro.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
A vítima alegava ter sido agredida pelo acusado, seu irmão, declarando
que ele era usuário de drogas. Disse que o acusado era muito violento e
que não havia mais condições de conviver com ele na mesma casa. Depois
de ouvir as declarações da vítima, o juiz se dirigiu ao acusado advertindo-o
severamente, dizendo que se ele continuasse nessa vida seu destino só
poderia ser o “C.C”. (cadeia ou cemitério). Depois, pediu à sua assistente
para chamar a mãe das partes, que estava na sala de espera, e ela confirmou
que o filho era usrio de drogas e não sabia mais o que fazer, já que ele fora
internado por várias vezes mas sempre voltava para a casa e começava tudo
de novo; disse que o acusado freqüentemente roubava objetos em casa para
comprar craque, e que inclusive já esteve preso. O juiz voltou-se novamente
para o acusado, dizendo que, pelo fato de já ter sido preso, ele não era mais
considerado réu-primário, o que significava que da próxima vez poderia
ser muito pior; disse também que, se ele pretendesse largar essa vida, o
primeiro passo era abandonar os “amigos”. A mãe, que estava nervosa e
chorando muito, pediu ao juiz para internar seu filho, e o juiz respondeu
dizendo que não podia atendê-la, pois essa não era a sua função. Contudo,
indicou algumas entidades que poderiam ajudá-la neste sentido. Diante da
situação, o juiz propôs à vítima o encerramento do processo criminal,
argumentando com ela que seu iro tinha problemas e precisaria ser
tratado. A vítima disse compreender os problemas do irmão, mas também
argumentou no sentido de não se sentir na obrigação de ficar quieta quando
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ele a agredisse; que trabalhava o dia todo, cumprindo com todas as suas
obrigações, e por isso não poderia continuar sendo agredida sem motivo.
Ainda assim, diante de uma certa “pressão psicológica” tanto por parte do
juiz quanto por parte da mãe no sentido de encarar o problema como uma
doença, a vítima aceitou encerrar o processo. O juiz finalizou dizendo à
e que, caso ela não conseguisse internar o filho, quando ele estivesse
usando drogas em casa ela deveria chamar a polícia e mandar prendê-lo,
pois, argumentou, “pelo menos preso ele não fará uso de drogas”.
Assim como na audiência anterior, na qual o acusado foi considerado
“doente” por ser alcoólatra, nesta última audiência o juiz também procurou
encerrar o processo sem punir o agressor por considerá-lo “doente”.
Contudo, em termos das representações sobre as causas do comportamento
violento, parece que tanto agentes como litigantes consideram a dependência
de drogas como o craque mais difícil de ser tratada, sendo, portanto,
considerada uma “doença mais grave”.
42
Assim, o exemplo da audiência acima é ilustrativo no que se refere
às difi culdades do sistema de justiça quando está lidando com confl itos
domésticos que envolvem o uso de drogas. Nota-se, por exemplo, que houve
uma certa inversão dos papéis em relação às partes envolvidas, na medida
em que, a partir de um determinado momento, o acusado da agressão,
cujo comportamento foi o que deu origem ao processo, acabou sendo
caracterizado também como vítima da circunstância em que se encontrava,
principalmente por sua postura de obediência, constrangimento e admissão
da culpa e da doença.
Essa situação revela ainda que, nesta instância de justiça, as pessoas
envolvidas no confl ito adquirem um poder maior de participação na busca de
uma solução para seus problemas. E, ao terem mais espaço para manifestarem
seus valores e sentimentos, acabam também infl uenciando tanto no ritual das
audiências como no desfecho fi nal dos processos. Diante da difi culdade que
os juízes têm em lidar com litígios que envolvem casos complexos como
esses, pois nessas situações surgem questões que fogem ao seu controle,
eles não têm como resolver o problema senão permitindo uma forma de
interação mais ampla e direta com as partes em confl ito e seus familiares, o
que, no caso, também foi facilitado pela ausência de advogado.
42 A distinção entre o álcool e o craque merece ser destacada não apenas porque o craque e outros
tipos de drogas são ilegais, mas também porque a expectativa daqueles que estão envolvidos com o
usuário, bem como daqueles que têm que tratar o problema profissionalmente, parece apontar para uma
maior complexidade desse tipo de vício.
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Natureza do delito: crime contra a liberdade individual (ameaça).
Data da audiência: 08 de agosto de 2001.
Relação entre as partes: pais e fi lho.
Presentes na audiência: vítimas, acusado e advogado das vítimas.
Perfi l da vítima: homem, negro, 60 anos, casado, aposentado.
Perfi l do acusado: homem, negro, 18 anos, solteiro, desempregado.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
Antes de a audiência começar, quando as partes ainda aguardavam na
sala de espera, o acusado tentou agredir seu pai e precisou ser detido pela
polícia. Os pais do acusado entraram primeiro na sala de audiência e foram
questionados pelo juiz sobre as razões do conflito. Os pais alegaram que
o filho estava muito agressivo; que, por essa rao, precisaram inclusive
mudar para um novo endereço que o acusado não conhecia, deixando-o
sozinho em sua antiga residência. Assim que o acusado entrou na sala,
o juiz, sabendo o que havia acontecido antes, imediatamente começou a
adverti-lo, dizendo que era inconcebível que alguém agredisse o próprio
pai. Perguntando ao acusado o motivo de sua agressividade, o mesmo
começou a chorar e a dizer que os pais o abandonaram, que ele precisava
pedir esmola para sobreviver. O juiz indagou então sobre a razão pela
qual, com 18 anos, ele ainda não trabalhava, e ele respondeu que queria
apenas estudar como os filhos dos outros; que seus pais nunca obrigaram
sua única irmã a trabalhar, e portanto também não poderiam obrigá-lo. O
juiz continuou insistindo que ele tinha que seguir sua vida e deixar seus
pais em paz, pois se tratava de pessoas idosas; que ele como juiz não
poderia obrigar os pais a sustentá-lo já que ele era maior de idade. A
partir desse momento, o acusado ficou repetindo o tempo todo que queria
um tênis e uma calça nova, e que era discriminado pelos seus pais e pela
sociedade por ser negro. Embora as declarações do acusado pudessem ser
verdadeiras no sentido de ter sido abandonado pelos pais, ele apresentava
dificuldades em se comunicar, e ficava apenas repetindo as mesmas frases.
Os pais, que pareciam já estar acostumados com aquela situão, sequer
se manifestavam, e o juiz apresentava sinais de que não conseguia lidar
com aquele caso. O advogado dos pais disse ao juiz que era preciso dar
um jeito na situação já que seus clientes precisaram sair de casa para não
serem agredidos, e que a única alternativa era a internão do acusado. O
juiz respondeu ao advogado dizendo que não podia fazer nada, pois ali era
para ser tratada apenas a questão criminal. Além disso, argumentou que
os hospitais psiquiátricos não mantinham pacientes internados contra a
vontade. Contudo, o juiz foi paciente e atencioso com o acusado, tentando
convencê-lo de que se ele concordasse em procurar um médico, como juiz
ele pediria aos seus pais que lhe dessem ajuda. Depois, disse às vítimas
e ao advogado que não tinha alternativa a não ser encerrar o processo
criminal, o que foi aceito por todos mesmo com a clara sensação de que o
problema persistiria.
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Da mesma forma que na audiência anterior, em que o juiz teve
difi culdades para lidar com o caso que envolvia violência doméstica
associada ao uso de drogas, neste exemplo também fi ca evidente que
a solução para o problema não dependia nem de uma decisão jurídica
por parte do juiz, nem mesmo de uma tentativa de conciliação entre as
partes, uma vez que o acusado não aparentava ter condições de entender a
racionalidade do acordo. Contudo, o importante do ponto de vista da lógica
de funcionamento da justiça informal criminal é que, independentemente da
natureza do litígio e das variantes subjetivas que o envolvem, o fato é que a
escolha por parte do magistrado é sempre no sentido de encerrar o processo,
demonstrando, com isso, que diante de situações complexas como essas,
o arquivamento ainda é a melhor solução, transferindo o problema para
outras instâncias de poder e controle social.
Cenário marcado pela interação profi ssional
Com relação ao cenário onde há participação de advogados nas
sessões de conciliação, se na maioria dos casos eles de fato não infl uenciam
a condução da audiência pelo magistrado no sentido de encerrar os litígios,
é necessário destacar alguns casos que permitem avaliar melhor o tipo de
relação entre os diferentes operadores do direito em termos das rotinas,
acordos e confl itos profi ssionais.
No que se refere à interação profi ssional, portanto, a observação das
audiências preliminares de conciliação nos permitiu pensar, num primeiro
momento, a justiça informal criminal nos mesmos termos em que Sapori
(1995) concebe a justiça criminal de maneira geral, caracterizando as
varas criminais brasileiras como uma “comunidade de interesses”. Para o
autor, o princípio da efi ciência no sentido da agilização dos processos é o
que move a máquina judiciária na esfera criminal, a qual se sustenta num
compromisso implícito entre os diferentes operadores do direito. De acordo
com essa perspectiva, a preocupação dos profi ssionais é manter um certo
nível de produtividade que evite um acúmulo indesejável de processos
sob sua responsabilidade, não necessitando, com isso, despender de muito
tempo na análise do confl ito. Embora a maioria das audiências ocorram
sem a presença ou interferência de outros profi ssionais além do juiz, vale a
pena registrar alguns exemplos que, contrariando a lógica comum, retratam
a existência e os limites deste “compromisso implícito” entre os operadores
do direito no sentido de encerrar rápido.
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Natureza do delito: crime de lesão corporal dolosa.
Data da audiência: 20 de junho de 2001.
Relação entre as partes: cunhados.
Presentes na audiência: vítima, acusado e seus respectivos advogados,
esposa do acusado, fi lho da vítima e promotor público.
Perfi l da vítima: homem, branco, 50 anos, casado, nacionalidade norte
americana, profi ssão não declarada.
Perfi l do acusado: homem, branco, 40 anos, casado, pedreiro.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado a pedido do promotor.
A vítima alegou ter sido agredido pelo acusado, seu cunhado, após tê-lo
questionado sobre os serviços de pedreiro que ele teria realizado em sua
residência. Como sempre, o juiz iniciou a audiência perguntando às partes
o que havia ocorrido. Como as versões eram contraditórias, o juiz propôs
um acordo para encerrar o processo, o que foi prontamente recusado por
ambas as partes e seus respectivos advogados. Além das partes e seus
representantes, estavam presentes na audiência a esposa do acusado – que
era irmã da vítima – e o filho da vítima, que atuou como intérprete de
seu pai que não falava portugs. Enquanto a vítima tentava convencer o
juiz da agressão, mostrando uma camisa com marcas de sangue, o acusado
dizia ter sido ameaçado pela vítima e pedia permissão para mostrar uma
gravação que comprovava sua vero, mas o juiz não aceitou, argumentando
que aquele espaço ainda não era para mostrar provas e sim para tentar uma
composição. Diante dos ânimos totalmente alterados e convencido de que
não teria sucesso em alcançar o acordo, o juiz resolveu chamar o promotor
público que, ao se deter à leitura do processo novamente por alguns
instantes, resolveu pedir o arquivamento. Tal decisão causou uma enorme
inconformidade na vítima e em sua advogada, que tentaram argumentar
com o juiz, que, por sua vez, alegou estar aceitando a decisão do promotor
do ponto de vista técnico, ou seja, não havia provas suficientes para
prosseguir, sendo o encerramento a única decisão possível. Inconformado e
com dificuldade de se comunicar, a vítima levantou-se e tentou demonstrar
ao juiz a forma como teria sido agredido (deitado no co teria recebido
um chute no rosto), dizendo não entender a razão pela qual o processo
estava sendo encerrado. Tal tentativa, no entanto, não alterou o resultado
final do processo, que foi arquivado.
Além da inconformidade da vítima com o resultado fi nal da audiência,
que argumentava não entender a lógica da justiça brasileira, a principal
constatação neste exemplo diz respeito à atuação do promotor público, que,
ao apontar a falta de provas para caracterizar a agressão, apoiou a sugestão
inicial do juiz, que era a de encerrar o processo. Como o juiz não teve
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sucesso na tentativa de conciliação, pois lhe faltava a concordância da vítima
e de sua advogada, recorreu ao promotor público, que, juridicamente, é o
responsável pela aceitação ou não da denúncia. Assim, independentemente
da posição da vítima e de sua advogada, juiz e promotor demonstraram,
no caso, a existência de um “interesse” no sentido de evitar a instauração
formal do processo, respondendo, assim, ao compromisso institucional de
rapidez e da agilidade que, na prática, também signifi ca diminuir o fl uxo de
processos nas varas criminais.
Por outro lado, se este e outros exemplos permitiram constatar a
existência do interesse comum em encerrar rápido, também é fato que o
advogado particular pode, às vezes, sobretudo quando tem mais experiência
e prestígio junto aos outros operadores, não compactuar com essa meta
organizacional de agilidade, uma vez que seu interesse em muitos casos
é exatamente o retardamento do processo. Foi nesse sentido que o próprio
Sapori (1996), no intuito de compreender as diferenças entre a racionalidade
de defensores públicos e privados na justiça criminal brasileira, partiu
do argumento de que, enquanto a defensoria pública se caracteriza pelo
tratamento categorizado dos casos criminais, os advogados particulares
tendem a assumir a defesa em toda a sua especifi cidade.
43
Natureza do delito: outros crimes contra os costumes.
Data da audiência: 04 de julho de 2001.
Relação entre as partes: declararam não se conhecerem.
Presentes na audiência: vítima, acusado, respectivos advogados, pais do
acusado.
Perfi l da vítima: mulher, branca, 27 anos, separada, secretária.
Perfi l do acusado: homem, branco, 18 anos, solteiro, webdesign.
Resultado fi nal: encaminhado para audiência de instrução e julgamento.
A vítima alegou ter sido perseguida pelo acusado por várias vezes, sendo
que da última vez ele teria praticado atos obscenos além de lhe dizer
“palavrões”. O juiz iniciou a sessão advertindo severamente o acusado,
43 Segundo o autor, a racionalidade do defensor particular tende a não privilegiar o despacho célere
dos processos, pois a agilidade não é uma meta que norteia a ação deste profissional. Ao contrário, a
protelação é com freqüência utilizada como recurso legítimo para alcançar benefícios para o réu. Em
suma, os advogados particulares proporcionam um tratamento mais individualizado aos processos que
estão defendendo, diferentemente dos defensores públicos cujo compromisso é basicamente rotineiro e
impessoal. Além disso, o vínculo monetário existente com o cliente faz com que o advogado particular
tenda a assumir mais integralmente o compromisso com os interesses dele, e o congestionamento da
justiça criminal acaba favorecendo as estratégias estabelecidas pela defesa constituída.
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dizendo que só pelo fato de a vítima estar se expondo daquela maneira
é porque alguma coisa realmente teria acontecido. O acusado não se
manifestou e, demonstrando-se nervoso e constrangido, permaneceu o
tempo todo de cabeça baixa. Seu advogado, contudo, disse que tudo
aquilo era falso e que ele poderia provar a inocência de seu cliente; alegou
que este sequer conhecia a vítima; que não desejava duvidar da versão
que ela apresentava, mas acreditava que ela poderia estar cometendo um
engano ao confundir seu cliente com outra pessoa. A vítima interveio nesse
momento e disse não haver nenhuma possibilidade de estar enganada, pois
o acusado a teria seguido por várias vezes. O advogado do acusado pediu
para o juiz anexar ao processo documentos que comprovavam a boa índole
de seu cliente. O juiz, percebendo a complexidade do caso, propôs a pena
mínima para encerrar o processo, que para casos como este é imperativa
a aplicação da pena de multa ou prestação de serviços à comunidade. Mas
tal proposta foi recusada pelo advogado do acusado, que alegava que seu
cliente fora prejudicado em sua honra, e que por isso desejava provar sua
inocência e reverter o processo. O juiz resolveu, então, chamar o promotor
público que, ao ler novamente os autos do processo, disse que precisava
ouvir os funcionários da empresa onde trabalhava o acusado, já que ele
alegava estar trabalhando na hora do ocorrido. Assim, encaminhou-se o
processo para audncia de Instrução e Julgamento, na qual seriam ouvidas
as testemunhas e analisadas as demais provas documentais.
Do ponto de vista da dinâmica profi ssional, o que fi cou caracterizado
nesta audiência foi a “efi ciência” com que o advogado do acusado
defendeu seu cliente, forçando os outros operadores do direito a recuarem
da meta organizacional de rapidez, não compactuando, assim, da chamada
“comunidade de interesses” no sentido da agilização do processo.
Neste caso, portanto, juiz e promotor não tiveram escolha a não ser dar
continuidade ao processo, encaminhando-o para a audiência de Instrução
e Julgamento. Conclui-se, portanto, que mesmo não sendo obrigatória a
presença de advogados nas audiências preliminares de conciliação, quando
este profi ssional está presente e resolve atuar em benefício de seu cliente,
altera-se a dinâmica através da qual as audiências são normalmente
realizadas.
Em síntese, considerando o cenário em que há a participação de
advogados e o promotor público tem que atuar porque o juiz não consegue
obter o acordo, pôde-se constatar a existência tanto de um compromisso
implícito entre juiz e promotor, no sentido de encerrar o mais rápido
possível, e assim atender aos compromissos institucionais de agilidade,
quanto a posição de alguns advogados particulares no sentido de não
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aceitarem passivamente este compromisso. Essa segunda situação ocorre
principalmente nos casos como o ilustrado acima, nos quais é imperativa a
aplicação de pena ou multa e, assim, algum tipo de punição mais concreta
está prescrito pelo sistema de justiça. Nesses casos, portanto, há um maior
interesse dos advogados das partes litigantes em defenderem seus clientes
das acusações que lhe são imputadas.
Contudo, tais casos são exceção e não correspondem ao que é mais
freqüente nessas audiências. Ou seja, apesar desta possibilidade de confl ito
de interesse profi ssional, a análise quantitativa dos processos e o trabalho
de observação das audiências permitiram constatar que, quando há interação
profi ssional, o “compromisso implícito” entre os profi ssionais no sentido de
“encerrar rápido” acaba prevalecendo sobre a lógica da defesa em toda sua
plenitude. Da perspectiva do processo ritual, portanto, o importante é que
a maioria das audiências preliminares de conciliação é conduzida apenas
pelo juiz, e, quando há participação de advogados, normalmente eles não
interferem no objetivo de buscar um acordo entre as partes para encerrar
o caso, e com isso passar de uma situação de confl ito para uma situação
de conciliação. Para tanto, os magistrados freqüentemente lançam mão de
valores que são bem compreendidos pelas partes litigantes, pois também
fazem parte de suas representações.
Enfi m, as manifestações de profi ssionais e litigantes nessas sessões
revelam suas próprias representações da violência e da punição nesta
instância de justiça. São nestas manifestações, portanto, expressas nas falas,
nos gestos e em sentimentos como o constrangimento, que procuramos
os principais aspectos do processo ritual das audiências preliminares de
conciliação na justiça informal criminal.
3.5.2 - Tipifi cação das audiências segundo a relação entre as partes
O tipo de relação ou de parentesco entre as partes litigantes foi
outra variável importante para a classifi cação e análise das audiências
preliminares de conciliação acompanhadas, no sentido de contribuir para
a compreensão das motivações que deram origem ao confl ito e, assim,
compreender também os argumentos oferecidos tanto pelas vítimas e
acusados ao se justifi carem, se defenderem ou se acusarem, como pelos
operadores do direito ao buscarem a solução para os confl itos.
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Confl itos entre casais
Assim como aponta a literatura que discute os efeitos da lei 9.099/95
sobre os confl itos de gênero, em nossa pesquisa os confl itos conjugais
também representaram os litígios mais comuns na justiça informal criminal.
E, de acordo com o que pudemos apreender das representações das mulheres
vítimas de agressão, dois cenários merecem destaque. Primeiro, naquelas
situações nas quais as partes permanecem casadas após a agressão e assim
pretendem continuar, as mulheres parecem buscar como punição uma
advertência apenas verbal e informal ao marido ou companheiro.
Por outro lado, há uma segunda situação em que a vítima, seja na
condição de casada seja na de amante do acusado, por estar rompida a
relação conjugal, busca uma pena mais efetiva ao agressor. Tal situação
apresenta, de forma mais evidente, a existência de sentimentos como
ressentimento e vingança. Apesar de os resultados quase sempre serem os
mesmos que no primeiro tipo de casos, ou seja, processos arquivados ou, no
máximo, suspensos, em alguns casos as vítimas de fato conseguem garantir
uma punição mais efetiva ao seu agressor, mesmo que tais penas, chamadas
de alternativas, ainda sejam, para muitos autores, insufi cientes para garantir
que novas agressões não ocorram. Vejamos os exemplos dessas duas
situações em audiências que trataram de confl itos entre casais.
Natureza do delito: crime de lesão corporal dolosa.
Data da audiência: 01 de outubro de 2003.
Relação entre as partes: ex-amantes.
Presentes na audiência: vítima, acusado e advogado da vítima.
Perfi l da vítima: mulher, branca, 22 anos, separada, do lar.
Perfi l do acusado: homem, branco, 31 anos, casado, padeiro.
Resultado fi nal: processo encaminhado para Instrução e Julgamento.
A vítima alegou ter tido uma relação extraconjugal com o acusado com
quem teve um filho. Disse que foi agredida pelo acusado por não permitir
que ele, juntamente com sua esposa, levassem a criança ao médico.
Questionado pelo juiz, o acusado confirmou que realmente teria dado
dois tapas na vítima, mas que fez isso porque estava nervoso, pois seu
filho estava doente e ela não permitiu que ele o levasse ao médico. O
juiz disse então que era preciso que eles se entendessem, pois a maior
prejudicada nessa situação era a criança; que ambos precisavam mudar
o comportamento em favor do filho; que não deveriam usar a criança
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como pretexto para outras intenções. Apesar de todo o esforço do juiz no
sentido de conciliar as partes, quando perguntou à vítima se ela pretendia
continuar com o processo, ela disse que sim, pois nada apagaria a violência
com que ele a agrediu, e que tinha direito à justiça. O juiz ainda tentou
convencê-la do contrio, argumentando que tal decisão poderia acabar
com a aplicação de pena ao réu, e isso só pioraria as coisas, mas a vítima
continuou se negando a aceitar o encerramento do processo. O juiz ainda
propôs como solução a suspensão do processo por 60 dias até que eles
acertassem a questão das obrigações em relação ao filho, cuja proposta teve
a concordância do advogado da vítima, que disse a ela que esta realmente
era a melhor solução. Contudo, a vítima resistiu novamente e insistiu na
representão formal contra o autor. Com isso, o juiz acatou a decisão da
vítima e encaminhou o processo para a fase de Instrução e Julgamento.
Nota-se nesta audiência que, ao contrário do que ocorreu com a
maioria das outras envolvendo confl ito entre casais, o juiz não obteve sucesso
em encerrar o processo. Mesmo com a adesão de seu advogado, que aceitou
a sugestão do juiz no sentido de suspender o processo, a vítima insistiu na
representação contra o acusado. Assim, nesse caso prevaleceu exclusivamente
o objetivo da vítima contra todas as outras tentativas contrárias à continuidade
do processo, mostrando, com isso, o desejo de uma punição mais efetiva
como forma de exercer o que ela chamou de “direito de justiça”.
Natureza do delito: crime de lesão corporal dolosa.
Data da audiência: 20 de junho de 2001.
Relação entre as partes: casados.
Presentes na audiência: vítima, acusado e advogado do acusado.
Perfi l da vítima: mulher, branca, 60 anos, casada, do lar.
Perfi l do acusado: homem, branco, 65 anos, casado, aposentado.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
A vítima, uma senhora já idosa, acusava seu esposo, também idoso, de tê-la
agredido e de não colaborar com as despesas de casa. Alegou também que
ele era anti-social e não gostava da família dela, pois eles tinham apenas
um filho adotivo mas, quando se casaram, ela já tinha filhos de outro
casamento. Disse que, além de sustentar o marido, tinha que agüentar seu
mau humor. Questionado pelo juiz, o acusado disse que não era obrigado
a trabalhar para sustentar filhos que não eram seus, e também não iria
deixar de tomar suaspingas porque com 65 anos não tinha mais que
dar satisfações a ninguém. Além disso, argumentou que foi sua esposa
quem o agrediu por várias vezes com vassoura e outros objetos. O juiz,
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então, perguntou à vítima por que ela não se separava de seu esposo, e
ela respondeu que era por causa dos bens que eles tinham em comum,
e que gostaria apenas que ele mudasse seu jeito e passasse a ajudá-la
financeiramente. O acusado, por sua vez, dizia que ela apenas lhe dava um
prato de comida, o que não pagava tudo o que ele já tinha feito por ela. Os
dois discutiram por muito tempo diante do juiz, que, ao contrário de outras
audiências nas quais as partes não eram pessoas idosas, foi mais paciente
e tolerante. Por fim, disse à vítima que estava advertindo seu companheiro
para não mais agredi-la, mas que não podia obrigá-lo a trabalhar nem a
parar de beber, mas apenas pedir que ele mudasse seu comportamento, e
assim encerrou o processo com a concordância da mesma.
Assim como a maioria das audiências que tratam de confl itos entre
casais, fi cou claro nesse exemplo que o desejo da vítima era que seu esposo,
com quem já estava casada há muitos anos, fosse advertido pelo juiz na
expectativa de que ele mudasse seu comportamento. É com esse sentimento,
pois, que muitas esposas e companheiras buscam a justiça informal como
última tentativa de solucionar seus confl itos interpessoais. Contudo, nesse
exemplo, ao contrário de outros casos similares, o acusado não demonstrou
nem constrangimento nem sinais de que pretendia mudar seu comportamento
em relação à esposa e à família. Tal postura do acusado talvez se explique
pelo fato de ser uma pessoa idosa e, por isso, o juiz ter sido menos incisivo
na advertência e na ameaça de punição, freqüentes em outras situações.
Confl itos entre vizinhos
Com relação aos confl itos que dão origem aos processos criminais
envolvendo vizinhos, os tipos mais comuns de delitos são os crimes contra a
liberdade individual (ameaça), crimes de lesão corporal dolosa (agressão) e
outras contravenções penais (perturbação de sossego). Assim, ilustraremos
os confl itos entre vizinhos com as audiências acompanhadas cujos processos
foram registrados com esses três tipos.
Natureza do delito: perturbação de sossego.
Data da audiência: 19 de setembro de 2001.
Relação entre as partes: vizinhos.
Presentes na audiência: vítima, acusada, advogado da vítima.
Perfi l da vítima: mulher, branca, 34 anos, casada, do lar.
Perfi l do acusado: mulher, branca, 41 anos, separada, professora.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado
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As partes eram vizinhas, e a vítima alegou que a acusada, depois de uma
briga entre suas filhas adolescentes, foi até sua residência ofendendo a ela
e seu marido com palavras de baixo calão. Ao ouvir essa versão, a acusada
imediatamente desmentiu a vítima dizendo que ela estava invertendo
tudo; que na realidade o que aconteceu foi que a filha da vítima disse ter
visto sua filha num motel, “denegrindo”, com isso, sua imagem; por essa
rao, ela teria se dirigido à casa da vítima acompanhada de sua filha
para esclarecer tudo, e, ao chegar lá, teria sido maltratada pelo marido da
vítima, que começou a discutir com sua filha e disse que iria “dar um tiro
na sua cara”. Depois de um início de discussão entre as partes, o juiz as
advertiu dizendo que, por se tratar de pessoas adultas, elas não deveriam
se envolver dessa forma com as brigas das filhas, que inclusive já teriam
voltado a ser amigas enquanto as mães estavam naquela situação; disse
que eram vizinhas e que portanto precisavam respeitar-se mutuamente.
A acusada disse que de sua parte poderia encerrar, mas que proibiria a
amizade de sua filha com a filha da vítima. O juiz disse concordar com a
decisão, pois assim elas evitariam novos conflitos. E com a concordância
também da vítima, encerrou o processo.
O que se destaca nesse primeiro exemplo é a facilidade com que
o juiz encerrou a audiência. Isso se deu, entre outras razões, pelo fato de
que ambas as partes estavam sem advogados, o que facilitou a interação
do magistrado com elas, permitindo que ele recorresse a valores que elas
também reconheceram como válidos. Com isso, conseguiu convencer
as partes a encerrar o processo e superar o confl ito com certa facilidade.
Contudo, as audiências envolvendo confl itos entre vizinhos nem sempre
se desenvolvem dessa maneira. Em outras situações, o juiz tem maior
difi culdade para alcançar o acordo e encerrar o processo, embora na maioria
das audiências tal objetivo seja alcançado.
Natureza do delito: crime contra a liberdade individual
Data da audiência: 29 de outubro de 2003.
Relação entre as partes: vizinhos.
Presentes na audiência: vítima, acusada, seus advogados e marido da vítima
Perfi l da vítima: homem, branco, 54 anos, casado, empresário.
Perfi l do acusado: mulher, branca, 33 anos, amasiada, do lar.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado
A vítima alegou que a acusada, sua vizinha, a incomoda constantemente
com gritos e cantos religiosos, além de dizer palavrões e ameaçar sua família;
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esclareceu que não tinha nada contra a religião de ninguém mas que não
tinha sossego desde que sua vizinha se mudou ao lado de sua casa; que sua
filha é estudante de pós-graduação e que não conseguia mais estudar por
causa dos gritos e dos cantos constantes na casa da vizinha. Questionada
pelo juiz, a acusada, que estava acompanhada de seu companheiro, negou
as acusações, dizendo que achava um absurdo não ter o direito de cantar
em sua própria casa; que a vítima e sua família é que implicavam com ela;
que inclusive chamaram o Conselho Tutelar e a acusaram de maus tratos em
relação a seus filhos; que, de fato, os filhos choravam o dia todo, mas era por
causa da falta que sentiam do pai e não porque eram agredidos. O juiz disse
que não era comum que crianças chorassem o dia todo, mas que este era um
problema para o Conselho Tutelar resolver; que o processo ali era para tratar
da perturbação de sossego, e que quanto a este problema ela deveria mudar
seu comportamento; que sua liberdade deveria ir até onde começava a
liberdade do outro; que se ela tinha direito de manifestar-se religiosamente,
os vizinhos também tinham o direito de não serem perturbados; por isso, era
preciso usar o bom senso; que não precisava gritar para que Deus a ouvisse;
que, na verdade, Deus não deveria estar gostando que ela incomodasse
os outros e com isso causasse desavenças. Depois de outras acusações
mútuas, o juiz disse que não perderia mais tempo com aquela discussão;
que, caso ela não mudasse seu comportamento, da próxima vez intimaria
as testemunhas e, confirmado o delito, lhe aplicaria uma pena maisria.
Assim, encerrou o processo com a concorncia da vítima.
Natureza do delito: crime contra a liberdade individual (ameaça).
Data da audiência: 24 de abril de 2002.
Relação entre as partes: vizinhos.
Presentes na audiência: vítima e sua mãe, acusado e sua advogada.
Perfi l da vítima: mulher, branca, 40 anos, casada, faxineira.
Perfi l do acusado: homem, branco, 36 anos, solteiro, motorista.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado
Vítima e acusado alegavam que, por não haver muro na divisa de seus
terrenos, estavam tendo problemas. Questionada pelo juiz, a vítima disse
que o acusado urinava em seu terreno e lhe dizia palavrões, rao pela
qual foi imediatamente advertido pelo juiz. A vítima disse também que
o problema já era antigo, que já estiveram no fórum em outras ocasiões
com o mesmo conflito. A advogada, que também era tia do acusado e
proprietária do terreno onde ele residia, disse ao juiz que o muro ainda
o tinha sido feito porque não houve concorncia com a outra parte.
A mãe da vítima, neste momento, levantou-se e disse, de forma exaltada,
que o muro não tinha sido feito porque a proprietária queria fa-lo em
cima de seu terreno, e que isso ela não permitiria jamais. A advogada,
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demonstrando-se muito nervosa, disse que as duas – vítima e sua mãe –
não entendiam nada, que eram ignorantes, e que por isso não adiantaria
tentar explicar. Após observar os laudos e as fotos trazidas pela advogada,
o juiz entendeu que esta tinha rao e tentou convencer a vítima e sua mãe,
argumentando inclusive que as despesas de constrão do muro ficaria por
conta da advogada, já que elas não tinham condições financeiras para isso.
Tal tentativa foi em vão, e a vítima e sua mãe continuaram insistindo que
o era esse o problema. Depois de muita discussão, o juiz, demonstrando
sinais de impaciência, disse à advogada que fizesse o muro, e que se a vítima
ou sua mãe não aceitassem que procurassem um advogado e entrassem
com uma ação contra ela. Assim, encerrou a audiência e despediu-se de
todas, não permitindo mais que elas se manifestassem.
Natureza do delito: crime de lesão corporal dolosa.
Data da audiência: 01 de agosto de 2001.
Relação entre as partes: vizinhos.
Presentes na audiência: vítima, acusado e seus respectivos advogados.
Perfi l da vítima: mulher, branca, 38 anos, amasiada, do lar.
Perfi l do acusado: homem, branco, 58 anos, solteiro, microempresário.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
A vítima alegava que fora agredida pelo acusado, que estava construindo
uma fábrica ao lado de sua residência. Inquirido pelo juiz, o acusado disse
que não a agrediu e que o problema era somente com relação à suposta
invasão de seu terreno. Após ver as fotos dos terrenos e das construções
trazidas pela vítima, o juiz se voltou para o autor dizendo que ele não
poderia invadir o terreno de outra pessoa sem a autorização, ainda que
fosse apenas para terminar a construção. Nesse sentido, perguntou qual o
prazo que ele desejava para murar a abertura que dava acesso ao terreno da
vítima, que estava muito nervosa e disse não permitir que o autor invadisse
sua privacidade. O advogado da vítima também disse que o problema
o era de invasão do terreno mas sim de invasão de privacidade. O réu,
que até aquele momento estava calado, pediu para falar dizendo que “não
falava nada e só apanhava”. O juiz respondeu dizendo que ele não estava
apanhando, mas que estavam todos apenas conversando e tentando se
entender. Assim, o acusado argumentou que estava tentando terminar sua
obra e por isso precisava contar com a compreensão da vítima; que no
momento não tinha como fechar a abertura e que, depois que a fizesse,
precisaria rebocá-la, o que podia ser feito do lado de dentro do terreno
da vítima. Nesse momento, a vítima começou a chorar dizendo que não
permitira que o acusado entrasse novamente em sua residência; que ela
mesma rebocaria o muro, mas que nunca mais admitiria que a vítima
entrasse em seu terreno depois de tê-la agredido com uma pá. O juiz, então,
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advertiu ambos dizendo que era preciso ter bom senso; que o acusado não
poderia invadir o terreno de ninguém sem autorização, e que a vítima tinha
que entender que ele precisava terminar a obra; disse ainda que, quisessem
ou não, eram vizinhos e que, portanto, precisariam se respeitar. Diante da
discussão e da troca de ofensas entre as partes, o juiz, já demonstrando
sinais de irritação, encaminhou para a necessidade de encerrar o processo
e sugeriu ao agressor que designasse um de seus pedreiros para fazer o
trabalho; que, se tivesse qualquer problema, ele deveria falar com seu
advogado, e que este entraria em contato com o advogado da vítima. Com
isso, perguntou a ambos se eles concordavam e eles disseram que sim.
Ao final, o acusado disse que não precisava ter entrado na justiça e que
bastava conversar com ele; disse ainda que, caso a vítima precisasse dele,
era só procurá-lo, ao que ela respondeu não pretender vê-lo nunca mais na
sua frente. Assim, o juiz encerrou a audiência e o processo, alertando as
partes novamente para não mais resolverem os problemas usando violência
e que, caso não conseguissem conversar, que procurassem seus advogados
como ficara acordado.
Esses três últimos exemplos de audiências sobre confl itos entre
vizinhos representam o que ocorre com a maioria dos casos do tipo.
Freqüentemente, as questões dizem respeito a problemas de divisas de
terrenos, incômodo e perturbação de sossego, além de injúrias e difamação.
O problema é que muitos desses casos acabam também levando aos crimes
de lesão corporal dolosa, ou seja, à agressão física. Com efeito, pudemos
perceber que em muitas audiências, cujos processos foram registrados
tendo como causas perturbação de sossego ou ameaça, também houve
algum tipo de agressão física. Por essa razão, ao contrário do que ocorre
com a violência doméstica, nesses casos o juiz normalmente tem maiores
difi culdades em alcançar o acordo e encerrar o processo. Contudo, assim
como na resolução dos confl itos domésticos, o juiz também lança mão de
argumentos e valores como respeito, tolerância e bom senso para pacifi car
as relações.
Em especial nesse último exemplo, chamou a atenção o grau de
ressentimento da vítima ao se lamentar por ter sido agredida pelo autor com
uma pá. Ou seja, parece que, dependendo da forma como foi agredida, o
sentimento de ressentimento por parte da vítima também é maior. Quer dizer,
no caso a vítima demonstrava-se inconformada, dizendo nunca ter sido tão
humilhada. Para tanto, não se envergonhou de manifestar seus sentimentos
de forma exacerbada. Do ponto de vista do ritual, tal situação também
nos remete à contribuição de Mauss (1979) no texto sobre “a expressão
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obrigatória dos sentimentos”, no qual o autor pretende demonstrar, através
do estudo do ritual oral dos cultos funerários australianos, que as indicações
dadas para as lágrimas valem também para outras numerosas expressões de
sentimentos. Como argumenta o autor,
Não só o choro, mas toda uma série de expressões orais de sentimentos
o são fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas sim
fenômenos sociais, marcados por manifestações não espontâneas e da mais
perfeita obrigação (...) todas as expressões coletivas, simultâneas, de valor
moral e de força obrigatória dos sentimentos do indivíduo e do grupo,
são mais que meras manifestões; são sinais de expressões entendidas,
quer dizer, são linguagem. Os gritos são como frases e palavras. É preciso
emiti-los, mas é preciso só porque todo o grupo os entende. É mais que
uma manifestação dos próprios sentimentos, é um modo de manifestá-
los aos outros, pois assim é preciso fazer. Manifesta-se a si, exprimindo
aos outros, por conta dos outros. É essencialmente uma ação simbólica
(MAUSS, 1979:147-153).
Embora o autor esteja se referindo a um contexto diferente do qual
estudamos, o sentido da “expressão obrigatória dos sentimentos” aplica-
se a inúmeros casos de confl itos nas audiências acompanhadas. Neste
caso específi co da violência entre vizinhos ilustrada acima, a exacerbação
da emoção por parte da vítima pode ter representado, nestes termos, uma
tentativa de mostrar aos outros – juiz, demais presentes na audiência
e ao próprio acusado – o signifi cado de seu sofrimento, ressentimento e
inconformidade com a situação. Além disso, tal postura difi cultou o trabalho
do juiz no sentido de convencê-la a encerrar o caso, demonstrando que o
“drama social”, nesse caso, também estava marcado por fortes sentimentos
e emoções. Contudo, o importante a destacar é que a audiência acabou como
a maioria das outras, ou seja, embora as partes não tenham saído da sessão
com sentimentos de afetividade mútua, o fato é que o processo foi encerrado
e, a partir da intervenção e advertência do juiz, pacifi cadas as relações.
Confl itos entre familiares
Além das brigas entre cônjuges, outros confl itos de natureza familiar
também ocorrem no Juizado Especial Criminal. Tal constatação levou,
inclusive, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a criar, na capital,
o Juizado Especial Criminal de Família, com a justifi cativa de “melhor
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atender a população”.
44
Como já apresentamos vários exemplos da violência
conjugal, que constitui a grande maioria dos confl itos envolvendo a violência
doméstica, nesta parte ilustraremos um caso envolvendo irmãos.
Natureza do delito: outras contravenções penais (vias de fato).
Data da audiência: 29 de agosto de 2001.
Relação entre as partes: irmãos.
Presentes na audiência: vítima, acusado e advogado da vítima.
Perfi l da vítima: mulher, branca, 31 anos, separada, vendedora.
Perfi l do acusado: homem, branco, 42 anos, amasiado, microempresário.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado
A vítima disse que o acusado, seu irmão, a agrediu apenas porque ela
lhe pediu ajuda para cuidar da mãe que estava doente. O advogado da
vítima disse que o acusado também a ameaçou dizendo que iria lhe dar
um tiro na cara. Advertido pelo juiz, o acusado disse que a ir, por ter
um pouco mais de condições econômicas, costumava esnobá-lo, bem como
aos outros iros, e que o problema entre eles vinha desde a adolescência.
O juiz o advertiu dizendo que não importavam as diferenças entre eles,
mas sim o fato de que a mãe estava precisando de todos os filhos; que
eles um dia também ficariam velhos e que então sentiriam o que a mãe
provavelmente estava sentindo; que é obrigação de todos os filhos cuidar
das mães independentemente das condições e das diferenças pessoais.
Depois, perguntou à vítima se ela aceitava encerrar o processo já que se
tratava do próprio irmão. A vítima olhou para seu advogado, que disse que
aceitariam apenas se o acusado se comprometesse diante do juiz em não
mais agir daquela forma. Diante disso, todos olharam para o acusado,
que respondeu que para ele é como se a irmã estivesse morta. Assim, o
juiz disse finalmente que se era preciso que eles não se falassem mais
para evitar novas agressões que assim o fizessem; contudo, não admitiria
mais que eles voltassem ao fórum pelo mesmo motivo. Assim, encerrou a
audiência.
44 O Juizado Especial Criminal de Família foi instalado em 23 de outubro de 2003 pelo Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo, através do provimento nº 805/03. A proposta foi a de que esse
Juizado continuasse funcionando com fundamento na lei 9.099/95, mas com competência exclusiva
para o tratamento da violência doméstica. Mais recentemente, contudo, através da Lei Federal 11.340,
de 07 de agosto de 2006, chamada Lei Maria da Penha, foram criados os Juizados Especiais de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que, desta vez, alterou a legislação para os crimes
desta natureza , aumentando a punibilidade aos agentes deste tipo de violência, com penas de prisão
que variam de três meses a três anos de detenção.
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Nota-se, a partir desse exemplo, que alguns casos que chegam ao
Juizado não tiveram origem com o delito registrado. Ou seja, é possível
que muitos dos confl itos envolvendo cônjuges e familiares se desenvolvam
durante muitos anos até chegar à justiça, e só chegam quando um fato mais
grave acontece como a agressão ou ameaça. Com efeito, nesses casos,
parece que o juiz tem uma difi culdade maior de reaproximar as partes, pois
sentimentos como mágoas e ressentimentos parecem estar interiorizados
nas pessoas envolvidas. No caso ilustrado, inclusive, não apenas as
palavras denotavam esses sentimentos – “é como se ela estivesse morta”
-, mas a própria expressão facial das partes demonstrava a difi culdade de
relacionamento entre elas. Ainda assim, o juiz tentou resolver o confl ito
recorrendo a valores como o respeito e a obrigação em relação à mãe, que
estava necessitada de cuidados. Contudo, como não obteve sucesso em
reaproximar as partes, o juiz recorreu também à ameaça implícita de seu
poder de punir para pacifi car as relações.
Confl itos entre pessoas desconhecidas
Embora a maioria dos litígios que chegam ao Juizado seja relativa a
confl itos interpessoais envolvendo cônjuges, familiares, vizinhos e, portanto,
de pessoas que já se conhecem, há também alguns casos acompanhados em
que as partes não tinham qualquer relação até o momento da ocorrência do
fato. Como vimos, a lei 9.099/95 foi originalmente pensada em termos da
potencialidade do crime e não do tipo de relação entre as partes. Assim,
também os crimes entre desconhecidos classifi cados como de menor
potencial ofensivo são tratados dentro da lógica de conciliação na justiça
informal criminal.
Natureza do delito: crime de lesão corporal dolosa.
Data da audiência: 26 de setembro de 2001.
Relação entre as partes: desconhecidos.
Presentes na audiência: vítima, acusado e respectivos advogados.
Perfi l da vítima: homem, negro, 19 anos, solteiro, sem profi ssão.
Perfi l do acusado: homem, branco, 27 anos, casado, segurança.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado
O acusado declarou ser segurança num restaurante localizado dentro do
shopping da cidade. A vítima, que é freqüentadora do referido restaurante,
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alegou ter sido agredida pelo acusado e seu colega, que também era segurança
mas estava presente na audiência na condição de vítima, pois prestou queixa
na delegacia alegando ter sido agredido pela primeira vítima. Questionado
pelo juiz, o acusado disse que apenas fez seu trabalho, retirando a vítima do
restaurante depois que ele deu um soco no rosto de seu colega. O juiz, então,
começou a advertir os três, dizendo que o que eles fizeram era coisa de
moleque; que já er am todos adultos e, por tanto, poder iam resolver as coisas
de outra forma. Disse que o objetivo daquela audiência era a composição e
o encerramento do processo, e que ele realmente acreditava que esse era
o melhor caminho, pois todos se excederam, e continuar com o caso só
iria trazer mais problemas para eles; contudo, precisava do compromisso
de todos de que o conflito se encerraria por ali. Após a proposta do juiz, o
advogado da primeira vítima disse que desejava continuar com o processo;
que tinha cópia da fita gravada pelo sistema de segurança do shopping e,
com isso, era possível constatar a agressão ao seu cliente; disse ainda que,
além de agredirem seu cliente dentro do restaurante, ainda o seguiram e o
agrediram fora do shopping; que o comportamento correto dos seguranças
deveria ser o de retirar a vítima do restaurante sem agredi-la. Após a
intervenção do advogado da vítima, o juiz ainda insistiu em que o melhor
era encerrar o processo, pois lembrou ao advogado que seu cliente também
configurava como agressor, e isso poderia complicar sua situação; assim,
pediu que o advogado fosse conversar com seu cliente em outra sala para
tentar convencê-lo a encerrar o caso, já que na frente do provel agressor
isto seria mais dicil. Quando o advogado e seu cliente sram da sala, o
juiz advertiu severamente os dois seguraas, dizendo que eles “ganhariam
muito se o processo fosse encerrado, pois, se ele como juiz tivesse que
decidir, ele o faria em favor da vítima e lhes aplicaria uma pena; que não
era a primeira vez que casos de agressão por seguranças deste mesmo
restaurante era tratado naquele Juizado, e que, portanto, estava configurado
que eles realmente se excediam na sua função; disse ainda que, se não
estavam preparados para esse trabalho, que não o exercessem. Em seguida,
a vítima e seu advogado entraram novamente na sala e comunicaram ao
juiz que haviam resolvido encerrar o processo. Assim, advertindo a todos
novamente, o juiz encerrou a audiência.
O que fi cou evidenciado na audiência foi que, apesar da tentativa
inicial do advogado da vítima em continuar com o litígio, o caso acabou
sendo encerrado como a maioria dos outros. Para tanto, a atuação do juiz
foi decisiva, ou seja, mesmo acreditando na versão da vítima e de seu
advogado, pois, segundo ele próprio, não era a primeira vez que tratava de
agressões de seguranças do mesmo restaurante, o juiz priorizou a tentativa
de acordo. Foi assim que, quando o advogado da vítima manifestou o desejo
em continuar com o processo, o juiz argumentou que seu cliente também
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confi gurava como acusado, sugerindo, com isso, que ele poderia acabar
sendo punido. Assim, novamente se utilizou da ameaça implícita do poder
de punir como forma de encerrar o confl ito.
Confl itos entre patrão e empregado
Muito dos confl itos que chegam ao Juizado têm como motivações
interesses apenas materiais. É o caso dos confl itos que envolvem relações
trabalhistas, em que, mais do que a ameaça - justifi cativa comumente
usada nesses casos -, o que está em jogo são os interesses decorrentes do
cumprimento ou não das obrigações trabalhistas.
Natureza do delito: crime contra a liberdade individual.
Data da audiência: 24 de abril de 2002.
Relação entre as partes: patrão e empregado.
Presentes na audiência: vítima, acusado advogado da vítima.
Perfi l da vítima: homem, branco, 20 anos, casado, metalúrgico.
Perfi l do acusado: homem, branco, 24 anos, solteiro, comerciante.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado
A vítima disse ter sido demitida pelo acusado que era seu patrão e, ao tentar
receber seus direitos trabalhistas, foi ameaçada por ele. Questionado pelo
juiz, o acusado disse que a vítima realmente prestou serviços para ele, mas
teria abandonado o emprego sem avisar e que por isso perdeu seus direitos.
O juiz disse que aquele não era o fórum adequado para tratar de assuntos
trabalhistas, e que estavam ali porque houve ameaça. Assim, considerando
que o processo trabalhista já estava em tramitação, perguntou à vítima
se concordava em encerrar o processo criminal. A vítima olhou para
seu advogado, que disse concordar com a proposta do juiz, dizendo que
o principal era realmente a questão trabalhista. O juiz então encerrou a
audiência, advertindo as partes novamente para evitar novos conflitos e
resolver seus problemas sem ameaça ou agressão.
Nota-se, nesse exemplo, que a abertura do processo criminal foi
motivada principalmente por interesses trabalhistas. E como já havia
processo tramitando na justiça do trabalho, a vítima, orientada por seu
advogado, concordou em encerrar o processo criminal. Tal situação
sugere que, muitas vezes, as partes buscam no Juizado Especial Criminal,
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seja por interesse, seja por desinformação, uma satisfação não-penal e
sim pecunria.
45
Tal situação, contudo, não é exclusiva dos confl itos
trabalhistas, mas pode ocorrer inclusive nas relações familiares e conjugais.
Por exemplo, num crime de lesão corporal entre cônjuges, o objetivo da
vítima pode ser, na realidade, a busca de garantia da pensão alimentícia.
Por outro lado, ainda nas relações conjugais, as motivações nem sempre
representam interesses materiais: num crime de ameaça entre pais, por
exemplo, o objetivo pode ser a regulamentação da guarda dos fi lhos.
O importante a ressaltar é que, ao contrário do primeiro caso em que
as relações terminam com o cumprimento das obrigações trabalhistas, nos
confl itos conjugais pressupõe-se a existência de relações continuadas, ou
seja, as partes devem continuar se relacionando mesmo após a intervenção
da justiça. Por essa rao, nestes últimos o juiz tem mais elementos para
argumentar em termos valorativos com as partes no sentido de apontar para
o bom senso e bem-estar do fi lho e, assim, alcançar um acordo e encerrar
o processo criminal. Da perspectiva da lógica de funcionamento da justiça
informal criminal, portanto, mesmo nestas situações em que os objetivos
das partes podem não corresponder ao crime registrado no processo, o
juiz busca, por meio da interação mais direta com as partes, compreender
melhor quaiso seus reais objetivos, e, assim, argumentar com elas que a
melhor solução é mesmo o encerramento do processo.
Confl itos entre sócios (ou ex-sócios)
Os confl itos que envolvem sócios ou ex-sócios são similares aos que
envolvem patrões e empregados, no sentido de que, na maioria das vezes,
têm origem em dívidas oriundas de não-cumprimento de obrigações de
caráter material e nanceiro.
Natureza do delito: crime contra a liberdade individual
Data da audiência: 01 de outubro de 2003.
Relação entre as partes: ex-sócios.
Presentes na audiência: vítima, acusado e advogado da vítima.
45 Essa situação foi apresentada por um dos magistrados entrevistados como um problema freqüente
no Juizado Especial Criminal, já que como a continuidade do processo depende da representação da
vítima, esta pode, muitas vezes, transformar a representação num instrumento de barganha. Segundo
o magistrado declarou: “nós já tivemos casos, por exemplo, em que a vítima sustentou: ou você me dá
tanto ou eu represento”.
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Per l da vítima: homem, branco, 55 anos, separado, comerciante.
Per l do acusado: homem, branco, 44 anos, casado, comerciante.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
A vítima alegou ter sido ameaçada pelo acusado depois que romperam a
sociedade numa pizzaria. Questionado pelo juiz, o acusado disse que na
verdade foi sua esposa quem foi ameaçada pela vítima, que se aproveitou de
sua ausência em casa para ir até lá e ameaçá-la; disse ainda que havia dívidas
decorrentes de investimentos feitos na pizzaria que a vítima não queria
assumir. O juiz disse que a questão da dívida teria que ser resolvida em
outro fórum; que eles estavam ali apenas para tratar do problema criminal,
ou seja, das ameaças; disse ainda que ambos deveriam se comportar como
dois homens adultos que tiveram um negócio e agora deveriam cumprir
seus compromissos, evitando resolver as coisas com ameaças e violência;
disse também que, daquele momento em diante, não aceitaria mais ameaças.
Assim, encerrou a audiência e o processo advertindo novamente as partes
que, da próxima vez, não haveria mais conversa.
De forma similar ao caso anterior, portanto, nota-se nesse exemplo
que a motivação para o processo criminal tinha relação direta com questões
de caráter fi nanceiro e material e, no mesmo sentido, foi dito pelo juiz que
aquele não era o espaço para resolver tais questões. Contudo, com o objetivo
de encerrar o processo, o magistrado se utilizou novamente dos valores no
sentido de que precisavam se comportar como adultos e responsabilizar-
se pelos próprios atos saldando seus compromissos. Além disso, utilizou,
também, a ameaça implícita do poder de punir ao adverti-los que, da próxima
vez, seria aplicada pena para quem descumprisse o acordo. Portanto, vê-se no
exemplo, de forma mais evidente, o duplo sentido da atuação do magistrado,
ou seja, ele recorre aos valores não apenas jurídicos mas também sociais
como “responsabilidade”, ao mesmo tempo que se utiliza de ameaça de
punir (juridicamente) para resolver o confl ito e encerrar o processo.
Confl itos entre inquilino e proprietário
Como é de se supor, os confl itos envolvendo proprietários e inquilinos
normalmente são decorrentes da falta de pagamento de aluguel. No caso
seguinte, entretanto, outros elementos também estavam presentes.
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Natureza do delito: crime contra a liberdade individual.
Data da audiência: 29 de agosto de 2001.
Relação entre as partes: proprietário e inquilino.
Presentes na audiência: apenas vítima e acusado.
Perfi l da vítima: homem, branco, 48 anos, casado, comerciante.
Perfi l do acusado: homem, branco, 36 anos, casado, servente.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
A vítima disse ter sido agredida pelo acusado de quem era inquilino.
Questionado pelo juiz, o acusado afirmou que de fato agrediu a vítima,
e o fez porque ela não pagou o aluguel. O juiz então se voltou para a
vítima, que respondeu que não pagou o aluguel porque o acusado, que é
seu cliente, também não lhe pagou pelo que consumiu de sua lanchonete;
disse ainda que o problema é que o agressor é dependente de álcool e, por
isso, normalmente não se lembra do que faz. O acusado negou a acusação
e disse ao juiz que apenas queria vender sua casa e por isso desejava que
a vítima lhe entregasse as chaves. Depois de ouvir pacientemente ambas
as partes, que se acusaram mutuamente, o juiz disse que a melhor solução
era realmente a desocupação da casa pela vítima, o que evitaria novos
conflitos. Contudo, também advertiu o acusado dizendo que ele deixasse
de freqüentar a lanchonete da vítima. Assim, arquivou o processo.
Nessa situação, portanto, o juiz optou pela ênfase no distanciamento
entre vítima e acusado para, com isso, pacifi car as relações e evitar que
novos confl itos surgissem.
Confl itos entre amigos ou colegas
Os confl itos mais freqüentes que chegam ao Juizado envolvem,
principalmente, pessoas que já têm algum tipo de relação. Assim, também
são comuns, nas audiências preliminares de conciliação, litígios que
tiveram origem em confl itos envolvendo colegas de trabalho ou de escola,
freqüentadores do mesmo espaço social como clubes recreativos ou
esportivos, pessoas que se consideram – ou se consideravam - amigas.
Natureza do delito: crime contra a liberdade individual.
Data da audiência: 20 de junho de 2001.
Relação entre as partes: colegas de escola.
Presentes na audiência: vítima, acusada, respectivas mães e advogados.
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Perfi l da vítima: mulher, branca, 15 anos, solteira, estudante.
Perfi l do acusado: mulher, branca, 15 anos, solteira, estudante.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
Vítima e acusada, duas adolescentes, estavam acompanhadas de suas mães.
A vítima alegava que, depois de brigarem na escola, a mãe da acusada teria
tentado atropelá-la com o carro. Questionada pelo juiz, a mãe da acusada
disse não ter tido a intenção de atropelar a vítima, que foi apenas um
acidente, o que foi imediatamente contestado pela vítima e sua mãe. Diante
das duas versões, o juiz argumentou que não tinha como saber quem estava
falando a verdade, e que o problema é que as “mães não devem se envolver
nas brigas das filhas, pois no dia seguinte está tudo bem com elas e os
adultos são os que ficam mal”. Diante disso, ninguém mais se manifestou,
nem as partes nem seus advogados. Assim, o juiz pros o encerramento
do processo, alertando para que as partes evitassem novos conflitos, o que
foi aceito sem nenhum outro comentário.
Essa audiência teve como principal característica justamente a
rapidez com que terminou e, conseqüentemente, a facilidade por parte do
juiz em encerrar o processo. Nota-se que, apesar de estarem ambas as partes
acompanhadas de advogados, nenhum dos dois se manifestou, contribuindo,
assim, para a realização da intenção do juiz de encerrar rápido, objetivo este
que pareceu ser comungado inclusive pelas próprias partes e suas genitoras.
Ainda assim, o juiz apontou para a falta de bom senso das mães, pois, como
adultas não deveriam se envolver nas brigas das fi lhas adolescentes. Tal
advertência pareceu ser sufi ciente para as mães se convencerem de que seus
comportamentos foram inadequados, tanto que nenhuma delas insistiu na
continuidade do processo nem mesmo contra-argumentaram com o juiz.
Confl itos entre professor e aluno
Atualmente têm sido comuns situações de desrespeito e agressão
a professores em sala de aula. Tais eventos, quando não caracterizados
como crimes mais graves, também podem ser tratados no Juizado Especial
Criminal, dentro da lógica da conciliação ou, como na audiência que
acompanhamos e ilustraremos a seguir, a partir da transação penal quando
é o caso da obrigatoriedade da pena.
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Natureza do delito: outros crimes contra os costumes.
Data da audiência: 20 de junho de 2001.
Relação entre as partes: professora e aluno.
Presentes na audiência: acusado, vítima e sua advogada, defensor público.
Perfi l da vítima: mulher, branca, 30 anos, casada, professora.
Perfi l do acusado: homem, branco, 18 anos, solteiro, auxiliar de funilaria.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
A vítima alegou que o acusado, seu aluno, a ofendeu com palavras e
gestos obscenos. Por essa rao, teria sido suspenso da escola. O juiz
iniciou a audiência advertindo severamente o acusado, dizendo que para
este tipo de crime não tinha perdão na cadeia. Ao questioná-lo sobre quais
as razões que o teriam levado a cometer este ato, o acusado começou a
chorar compulsivamente, demonstrando-se nervoso e constrangido. Diante
do comportamento do acusado, a vítima tentou amenizar o problema
dizendo que ele já tinha inclusive se desculpado, e que isso para ela era o
suficiente. O juiz disse que também estava convencido do arrependimento
do acusado, porém neste caso era imperativa a aplicação de pena. Por essa
rao, chamou o defensor público de plantão e perguntou ao acusado se ele
preferia pagar uma multa ou prestar serviços à comunidade. Ele respondeu
que preferia pagar a multa, pois trabalhava o dia todo numa funilaria e,
portanto, não tinha tempo para prestar serviços. Assim, foi-lhe aplicada
uma multa de R$ 30,00. Antes de finalizar a audiência, o juiz ainda
perguntou ao acusado se pretendia continuar estudando e ele respondeu
que não, pois estava envergonhado. O juiz disse para ele esquecer o que
tinha acontecido, não errar mais, e procurar outra escola, pois sem estudo
ele não seria nada. Finalmente, a vítima disse que também estava disposta
a ajudá-lo, pois acreditava que ele realmente tinha se arrependido e, por
isso, merecia uma nova chance.
Apesar da obrigatoriedade de aplicação de pena em casos como
este, o que fi cou marcado do ponto de vista do ritual nessa audiência foi
que, de forma consciente ou não, ao expressar suas emoções diante de
todos, o acusado conseguiu convencer o juiz e a própria vítima de seu
arrependimento, mostrando o signifi cado de seu sofrimento e apontando
para o reconhecimento de sua culpa. Contudo, ao contrário de casos em que
os sentimentos prevalecentes foram a mágoa e o ressentimento, neste caso
o que fi cou como signifi cativo foi a sensação de que era possível resgatar
os laços afetivos entre as partes.
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3.5.3 - Tipifi cação das audiências segundo a natureza das causas
A tipifi cação das audiências segundo a natureza das causas permitiu
compreender a forma como os confl itos são classifi cados pelos operadores do
direito no sistema de justiça informal criminal. Quando questionado sobre
a possibilidade de determinados confl itos serem classifi cados de maneira
inadequada, um dos magistrados entrevistados disse não acreditar que tal
situação possa comprometer o resultado fi nal do processo, argumentando
que “o que importa é realmente esse contato direto que a autoridade judicial
e o Ministério Público têm com as partes; que aí, sim, pode, desde que
se dê ouvido para ambos, conhecer melhor a problemática e dentro deste
contexto fazer a devida interpretação do delito”.
Com efeito, durante as audiências as partes e seus advogados acabam
tendo a chance de se manifestarem e esclarecerem eventuais falhas na
caracterização do confl ito. Contudo, isso não elimina a possibilidade de os
operadores do direito, durante suas manifestações nas audiências, tentarem
minimizar ou maximizar a potencialidade dos crimes para atingir seus
objetivos, seja para encerrar o processo, no caso dos juízes e promotores,
seja para garantir sua continuidade, no caso de alguns advogados. Assim,
no que diz respeito ao processo ritual das audiências, e, portanto, dos
argumentos oferecidos para a superação ou não do confl ito, a variável
relativa à natureza do delito também é importante neste sentido.
Crime de Lesão Corporal Dolosa
Embora na justiça informal criminal a lesão corporal dolosa seja
um crime característico da violência doméstica, ele também ocorre em
outras relações. Assim, apresentaremos o exemplo de duas audiências que
envolveram desconhecidos.
Data da audiência: 20 de junho de 2001.
Relação entre as partes: desconhecidas.
Presentes na audiência: vítima, acusado e advogado da vítima.
Perfi l da vítima: homem, negro, 40 anos, casado, motorista.
Perfi l do acusado: homem, branco, 30 anos, solteiro, profi ssão não
declarada
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
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De acordo com os autos do processo, após uma colisão entre um carro e
um ônibus, o motorista do carro agrediu o motorista do ônibus. Um dos
passageiros do ônibus, ao presenciar a agressão, se envolveu na briga e
agrediu o motorista do carro. Após o incidente, o motorista do carro passou
a ameaçar o passageiro do ônibus, que por isso resolveu processá-lo em
conjunto com o motorista do ônibus. O juiz iniciou a audiência perguntando
aos três envolvidos o que tinha acontecido. Após a manifestão de
todos, que coincidiu com a versão constante no processo, propôs o seu
encerramento, argumentando que não valeria a pena insistir no caso; que,
apesar de todos terem se alterado e “perdido a cabeça”, acreditava que
eles eram pessoas de bem. Mesmo depois da fala do juiz, o motorista
do ônibus disse que não aceitava encerrar o processo, pois achava que o
acusado precisava pagar pelo que fez. O acusado, por sua vez, disse que
o tinha nada contra o motorista do ônibus, pois reconhecia que tinha
se excedido, mas seu problema era com o passageiro do ônibus, o qual o
teria agredido da mesma maneira. Este último, por sua vez, alegou que
apenas tentou proteger uma “vítima indefesa”, porém aceitava encerrar o
processo, pois concordava com o juiz que na ocasião estavam todos muito
nervosos. A partir desse momento, todo o esforço do juiz foi no sentido de
convencer o motorista do ônibus a aceitar o encerramento do processo, o
que inclusive contou com o apoio de seu advogado, único representante
legal na audiência, que até aquele momento não havia se manifestado, e
quando o fez foi em favor da sugeso do juiz, dizendo ao seu cliente que
realmente era melhor terminar o caso. Assim, encerrou-se a audiência.
Apesar de a audiência ter terminado com um acordo geral, em que
todos os envolvidos concordaram em encerrar o processo, fi cou evidenciado
que, apesar dos argumentos do juiz, tanto o motorista do ônibus quanto o seu
agressor não resolveram totalmente seus ressentimentos, e o encerramento
do processo se deu menos pela vontade de ambos e mais pela insistência
do juiz e do advogado da vítima, que concordaram que a melhor solução
era mesmo aquela. Constata-se, assim, que a tarefa do juiz, tanto para por
m ao processo quanto para pacifi car as relações, é mais difícil quando os
crimes envolvem agressão física.
Data da audiência: 27 de junho de 2001.
Relação entre as partes: desconhecidas.
Presentes na audiência: apenas vítima e acusado.
Perfi l da vítima: homem, branco, 40 anos, casado, motorista.
Perfi l do acusado: homem, branco, 40 anos, casado, operário.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
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A vítima, um motorista de ambulância, alegou ter sido agredida pelo acusado
quando o transportava do pronto-socorro para sua residência. Disse que o
acusado apresentava-se embriagado e não aceitava as recomendações para
ficar quieto dentro da ambulância. O acusado, ao ser questionado pelo juiz,
disse estar totalmente surpreso com o relato da vítima, pois não se lembrava de
nada daquilo que havia sido dito; mas que, apesar de tudo, estava totalmente
arrependido por qualquer coisa que teria feito, pois era um homem trabalhador,
pai de família; que não tinha o hábito de beber, e que talvez por isso tenha se
excedido; que fora induzido pelos colegas a parar num bar quando estavam
voltando para casa depois do trabalho. Diante da manifestação do acusado, o
juiz o advertiu dizendo para ele não beber mais e não “fazer mais besteiras”.
Assim, propôs à vítima que aceitasse as desculpas do acusado, o qual
respondeu que sim, dizendo não ter nenhum ressentimento contra o acusado,
pois entendia que ele estava embriagado; contudo, desejava que ele tivesse
consciência do que fez para não cometer o mesmo erro novamente. Assim, as
partes se deram as mãos e o processo foi encerrado.
Ao contrário da audiência anterior, neste caso não houve qualquer
difi culdade para o magistrado encerrar o processo, já que, além de não
haver advogados representando as partes, o acusado se mostrou bastante
constrangido com a situação, demonstrando arrependimento pelo que fez.
Assim, pediu desculpas à vítima que, por sua vez, também não colocou
nenhum obstáculo maior ao encerramento do processo. Essa audiência,
portanto, retrata as “condições ideais” para o objetivo de evitar a instauração
formal do processo, permitindo ao juiz recorrer à lógica da conciliação para
superação do confl ito.
Crime Contra a Liberdade Individual
Os delitos classifi cados como crimes contra a liberdade individual se
referem principalmente aos casos de ameaça. No exemplo que ilustraremos
a seguir, a justifi cativa para o processo criminal foi a de “constrangimento
ilegal”, no caso também considerado como crime contra a liberdade
individual.
Data da audiência: 19 de setembro de 2001.
Relação entre as partes: patroa e empregada.
Presentes na audiência: vítima, acusada e seus respectivos advogados.
Perfi l da vítima: mulher, negra, 38 anos, amasiada, auxiliar cozinha
Perfi l do acusado: mulher, branca, 52 anos, separada, professora.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado
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A vítima disse trabalhar no restaurante que era propriedade da acusada, e
que ela sempre revistava sua bolsa, causando-lhe grandes constrangimentos.
Ao ouvir a vítima, o juiz disse não estar convencido de que tinha ocorrido,
de fato, o chamado “constrangimento ilegal, pois declarou como
justificativa para o encerramento do processo o seguinte: “embora a
autora tenha causado constrangimento à vítima, para a caracterização de
constrangimento ilegal é necessário o emprego de violência ou amea,
e que a vítima tivesse comprometida a sua capacidade de resistência,
situação que não aconteceu nas hipóteses dos autos”. Antes da declaração,
porém, o juiz tentou convencer a vítima dessa interpretão, afirmando
que, por essa rao, a melhor alternativa era mesmo o arquivamento do
processo, considerando inclusive que a questão trabalhista já estava sendo
tratada no fórum adequado. Com isso, a vítima disse aceitar a decisão
do juiz, argumentando que realmente o mais importante era a questão
trabalhista. Por outro lado, a acusada, que se apresentava bastante nervosa,
disse ao juiz que desejava provar sua inocência, solicitando que ele ouvisse
as testemunhas que ela havia trazido. Ao insistir nisso, foi advertida pelo
juiz que disse ser melhor encerrar por ali, no que teve o apoio também do
advogado da acusada, que disse para sua cliente que esta era realmente a
melhor solução. Com isso, encerrou-se a audiência e o processo.
Nota-se, novamente, que houve uma inversão nos papéis em relação
às partes litigantes, ou seja, a parte que deu origem ao processo alegando
ter sido vítima de constrangimento ilegal se convenceu facilmente com
os argumentos do juiz de que tal delito não teria fi cado caracterizado,
aceitando encerrar o processo. Por outro lado, a acusada, dizendo se sentir
ofendida em sua honra, desejava provar sua inocência. O importante a
ressaltar, no entanto, é que tal esforço da acusada não foi sufi ciente, pois
seu próprio representante legal concordou com o magistrado em que era
melhor evitar a instauração formal do processo, e assim convenceu sua
cliente a também aceitar tal solução. Essa situação, portanto, caracteriza
um compromisso implícito entre juiz e advogado no sentido de evitar a
continuidade do litígio.
Outras Contravenções Penais
Dentre as audiências acompanhadas, os crimes registrados como
“outras contravenções penais” envolveram principalmente as chamadas
“vias de fato” (agressão), o “porte de arma branca” e a “perturbação de
sossego”. Como no primeiro caso os delitos são os mesmos que caracterizam
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os crimes de lesão corporal dolosa, apresentaremos exemplos dos outros
dois tipos de litígios.
Natureza do delito: porte de arma branca.
Data da audiência: 19 de setembro de 2001.
Relação entre as partes: acusado versus justiça pública.
Presentes na audiência: apenas o acusado.
Perfi l da vítima: justiça pública.
Perfi l do acusado: homem, branco, 28 anos, casado, funcionário público.
Resultado fi nal: pena de prestação de serviços à comunidade.
O acusado foi abordado pela polícia quando portava uma faca. Por essa
rao, teve que responder criminalmente mesmo sem tê-la usado contra
ningm. Questionado pelo juiz, o acusado respondeu que não teve a
intenção de ferir ninguém com aquela faca; que apenas tinha bebido um
pouco a mais e, por isso, acharam que ele pretendia usá-la contra alguém.
Mesmo demonstrando acreditar na versão do acusado, o juiz disse que
teria que lhe aplicar uma pena e perguntou o que ele preferia, se pagar uma
multa ou prestar serviços à comunidade. Ele respondeu que preferia a pena
de prestão de serviço. Diante disso, o juiz fez um ofício para uma escola
pública perto da residência do acusado e mandou que ele se apresentasse
lá para decidir que tipo de serviço prestaria num total de 20 horas. Assim,
encerrou o processo dizendo para ele evitar “fazer besteiras”.
Nos litígios como este relativo ao “porte de arma branca”, as
audiências ocorrem de forma simples e rápida, pois, ao contrário da maioria
dos casos tratados no Juizado Especial Criminal, este tipo de delito não tem
origem em confl itos interpessoais, mas a ação do acusado é considerada
como uma ameaça à sociedade. Assim, cabe ao Ministério Público oferecer
a denúncia contra o acusado. Daí, inclusive, a obrigatoriedade de aplicação
de pena para crimes assim caracterizados.
Natureza do delito: Perturbação sossego.
Data da audiência: 29 de outubro de 2003.
Relação entre as partes: vizinhos.
Presentes na audiência: apenas as vítimas (várias) e o acusado.
Perfi l da vítima: várias pessoas moradoras do mesmo bairro.
Perfi l do acusado: homem, branco, 38 anos, casado, pastor evangélico.
Resultado fi nal: processo suspenso por 60 dias pelo promotor público.
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As vítimas, todas vizinhas, alegavam que há mais de quinze anos
sofriam com o fato de morarem próximas a uma igreja evangélica, onde
se realizavam cultos e manifestações religiosas com muito barulho,
perturbando o sossego de todos que não conseguiam nem mais dormir.
Questionado pelo juiz, o acusado, pastor e representante da igreja, disse
que as vítimas estavam exagerando, pois a igreja já estava naquele local há
quase quarenta anos e só agora eles estavam reclamando; que ele já vinha
conversando com alguns vizinhos, tendo, inclusive, atendido a várias de
suas reivindicações, como diminuir o número de cultos por semana; mas
que era impossível conter o desejo das pessoas de louvarem a Deus. Nesse
momento, uma das vítimas pediu a palavra e disse que tudo aquilo eram
apenas palavras; que, na verdade, já teria havido outro processo no ano de
2000 em decorncia dos mesmos problemas, e na ocasião a igreja teria
se comprometido a fazer várias mudanças e adaptações, mas na verdade
as coisas teriam piorado; e que por isso era preciso tomar uma decisão
definitiva desta vez. O juiz, depois de ouvir a todos, disse ao acusado
que astimas tinham razão em alegar perturbão de sossego, pois se os
membros da igreja tinham o direito à manifestação religiosa, os moradores
também tinham direito ao sossego em seus lares e, que por isso deveria
haver bom senso por parte do pastor. Contudo, do ponto de vista criminal
ele apenas poderia aplicar pena; que o problema maior era com relação à
autorização que a prefeitura teria dado para o funcionamento da igreja,
o que seria objeto de um outro processo. Por esta razão, disse não ter
alternativa a não ser chamar o promotor público que, após ler o processo
por alguns instantes, sugeriu a sua suspensão por 60 dias para que novas
adequações fossem feitas pela igreja, além da apresentação da autorização
por parte da prefeitura. Assim, mesmo com os protestos das vítimas de
que isso não resolveria o problema, pois a experiência mostrava que eles
melhorariam apenas por alguns meses, suspendeu-se o processo.
Os casos caracterizados como perturbação de sossego também são
muito comuns no Juizado Especial Criminal e envolvem sempre relações
entre vizinhos. Contudo, segundo os próprios operadores do direito, os
confl itos envolvendo igrejas evangélicas têm sido freqüentes nas audiências
preliminares de conciliação. Considerando-se que a tentativa de conciliação
por parte do juiz pressupõe também o reconhecimento de valores comuns
a ambas as partes, nessas situações há maior difi culdade justamente porque
se trata de dois sistemas de valores totalmente distintos. Ou seja, como no
exemplo acima, de um lado está o representante da igreja defendendo o
direito de liberdade religiosa que, no seu entendimento, signifi ca liberdade
para louvar a Deus da maneira que desejarem os fi éis. De outro lado, os
vizinhos também sentem desrespeitado o seu direito de ter sossego em
suas próprias residências.
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A conseqüência do confl ito, que, como enfatizamos, não é apenas de
interesse, mas também de valores, é que os argumentos do juiz não foram
efi cazes para alcançar o acordo e encerrar o processo. Daí a transferência
do problema para o Ministério Público que, por sua vez, também não está
isento da mesma difi culdade. Por isso, a solução mais freqüente para tais
casos tem sido a suspensão do processo com vistas à obtenção de novas
averiguações e adequações nas instalações da igreja. Contudo, segundo as
próprias vítimas declararam no caso ilustrado acima, esta não se constitui
numa solução defi nitiva. Assim, pode-se dizer que, para questões como
esta, os instrumentos de que dispõem o Juizado Especial Criminal não têm
sido sufi cientes para pacifi car as relações.
Crime de Usurpação (dano)
Vários tipos de delitos enquadram-se no chamado crime de usurpação
e dano, sendo os mais freqüentes aqueles que representam confl itos em que,
além de agressão ou ameaça, por exemplo, também há prejuízos decorrentes
de danos materiais causados à vítima. Além desses, outro tipo freqüente de
crime caracterizado como tal é a invasão de domicílio. Freqüentemente,
esse tipo de crime também vem associado a confl itos envolvendo parentes
ou casais separados. Contudo, optamos por discutir uma audiência sobre
invasão de domicílio envolvendo pessoas desconhecidas, pois ela permite
ilustrar o caráter social normalmente atribuído aos Juizados Especiais
Criminais.
Natureza do delito: crime de usurpação (invasão de domicílio).
Data da audiência: 22 de agosto de 2001.
Relação entre as partes: desconhecidas.
Presentes na audiência: vítima e acusados.
Perfi l da vítima: homem, branco, 54 anos, casado, engenheiro.
Perfi l do acusado 1: mulher, negra, 32 anos, amasiada, doméstica.
Perfi l do acusado 2: homem, branco, 36 anos, amasiado, ajudante de ferro
velho.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
O s a c u s a d o s d e c l a r a r a m s e r a m a s i a d o s e t e r t r ê s f i l h o s m e n o r e s . A p a r e n t a n d o
ter muitas dificuldades socioeconômicas, quando questionados pelo juiz,
alegaram que, não tendo mais condições de pagar o aluguel, invadiram
uma das casas (de madeira) pertencentes a uma empresa ferroviária
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da cidade. Por essa rao, a vítima, um engenheiro representante da
empresa, estava processando-os criminalmente por invasão de domicílio.
Questionado pelo juiz se a história era verdadeira, a vítima confirmou,
dizendo que estava convencido de que não se tratava de “marginais”,
mas sim de pessoas necessitadas, que, inclusive, estavam cuidando muito
bem da propriedade; disse ainda que foi obrigado a entrar com o processo
para regularizar a situação, mas que eles poderiam permanecer na casa
até que tivessem condições de pagar aluguel novamente. Diante disso, o
juiz oficiou formalmente à empresa para que permitisse que os acusados
permanecessem na casa por mais algum tempo, encerrando, com isso, o
processo criminal.
Embora essa audiência não represente a maioria dos processos que
tramitam no Juizado classifi cados como crimes de usurpação e danos, pois
normalmente esse tipo de crime vem associado a danos materiais, cujas
penas geralmente são traduzidas em ressarcimentos do prejuízo causado,
o exemplo acima é ilustrativo por permitir identifi car, no Juizado, o
caráter social das soluções oferecidas em determinados casos. Ou seja,
considerando que essa instância de justiça se fundamenta em princípios
como a informalidade (dispensa de formalidade) e a celeridade (rapidez
nas decisões), diante da existência de um acordo prévio entre as partes o
juiz pode legitimar juridicamente tal acordo. Em outras palavras, estamos
pressupondo que na justiça comum possivelmente tal litígio estaria
submetido a dispositivos formais que, no mínimo, atrasariam a decisão
judicial, causando maiores prejuízos aos acusados.
Outros crimes contra os costumes
Dentre as audiências que acompanhamos, apenas três foram
classifi cadas como “outros crimes contra os costumes”. Contudo, todas
elas também foram importantes no sentido de apontar para a reprodução,
no sistema de justiça, de valores sociais pertencentes ao cotidiano das
pessoas comuns. Além disso, elas ainda permitiram evidenciar outro
tipo de confl itualidade muito comum, que, embora considerada menos
grave, poderia ser enquadrada dentro da categoria de “crimes sexuais”.
Certamente não foi por acaso que nos três casos estavam em jogo
comportamentos considerados inadequados do ponto de vista moral.
Como dois destes casos já foram descritos e comentados em seções
anteriores – ambos envolvendo pessoas acusadas de praticarem atos
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obscenos –, descreveremos a seguir a terceira audiência acompanhada,
que foi registrada como “outros crimes contra os costumes”.
Data da audiência: 27 de junho de 2001.
Relação entre as partes: vizinhos.
Presentes na audiência: vítima e seu pai, acusado e seu advogado.
Perfi l da vítima: mulher, branca, 15 anos, solteira, estudante.
Perfi l do acusado: homem, branco, 60 anos, viúvo, comerciante.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
A vítima, uma adolescente de 15 anos, alegava que o acusado, que era
seu vizinho, constantemente a perseguia fazendo-lhe “propostas”; disse
também que o acusado sempre lhe mandava recados e bilhetinhos. Ao
perguntar ao pai da vítima se a vero da filha era verdadeira, ele confirmou
e disse que inclusive já havia conversado com o filho do acusado mas o
problema persistia; disse ainda que estava precisando pagar um psicólogo
para sua filha por causa da perseguição e insistência do acusado. A partir
desse momento, o juiz se dirigiu ao acusado dizendo que, se caracterizado,
esse tipo de crime era inafiançável, e que na cadeia não havia perdão para
quem “mexe” com crianças; que apesar de o acusado ser uma pessoa
idosa, caso ele não mudasse seu comportamento, da próxima vez receberia
uma pena da qual não se esqueceria jamais. O réu, visivelmente orientado
por seu advogado, apenas ouviu as advertências do magistrado e não se
manifestou em nenhum momento durante a audiência. Depois de advertir
o acusado, o juiz disse à vítima e a seu pai que, caso concordassem, ele
estaria encerrando o processo, mas que qualquer outro fato eles deveriam
retornar ao fórum, pois, se comprovado o crime, o acusado seria passível
de uma punição severa. Assim, com a concordância da vítima e de seu pai
encerrou o processo.
Nota-se nessa audiência que os argumentos do juiz foram mais
incisivos do que em outras situações. Ou seja, ao dizer, por exemplo, “que
na cadeia não havia perdão para quem ‘mexe’ com crianças”, o magistrado
torna signifi cativo o valor social comum e cotidiano de que tal atitude não
é compatível com a “moral” da sociedade, quer dizer, nem mesmo na
cadeia admite-se tal comportamento. Apesar disso, o juiz prefere optar
pela tentativa de acordo para encerrar o processo, apostando no fato de
que, assim, o acusado poderia modifi car seu comportamento. É essa
suposta contradição que merece ser destacada na análise do funcionamento
da justiça informal criminal: embora reconhecendo a gravidade do
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comportamento do acusado, o juiz prefere, ao invés de penalizá-lo, investir
no seu convencimento para superar o litígio e pacifi car as relações. Ou seja,
mesmo dispondo de instrumentos necessários para decidir, junto com o
promotor, pela pena mínima, o que se verifi cou foi que o juiz optou, no
caso, pelo arquivamento sem punição.
Crime contra a honra
Os delitos classifi cados como “crimes contra a honra” no Juizado
são, num certo sentido, similares aos delitos registrados como “outros
crimes contra os costumes”. Em ambos os casos, não é a agressão física ou
a ameaça que fundamentam o processo criminal, mas sim, como os próprios
termos sugerem, a ofensa contra “costumes” ou contra a “honra”. Nesse
sentido, é possível dizer que tais confl itos guardam uma relação mais direta
com alguns valores sociais fortemente enraizados no cotidiano das pessoas
comuns, seja para reconhecer ou não como válidos os comportamentos que
dão origem ao confl ito.
Data da audiência: 14 de fevereiro de 2002.
Relação entre as partes: desconhecidas.
Presentes na audiência: apenas a vítima e a acusada.
Perfi l da vítima: mulher, negra, 27 anos, casada, do lar.
Perfi l da acusada: mulher, branca, 46 anos, doméstica.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
A vítima alegava ter sido vítima de racismo, pois, quando estava num
ônibus voltando para sua casa, a acusada a teria ofendido nos seguintes
termos:sai da frente pretinha que eu quero passar. Perguntado à
vítima se ela confirmava o que estava no processo, ela disse que sim.
Questionada pelo juiz, a acusada se justificou dizendo que, embora tenha
realmente usado aqueles termos, não teve a intenção de ofender a vítima,
e que estava se desculpando por isso. Assim, o juiz tentou convencer a
vítima de que não se tratava de crime de racismo, e que pelo fato de a
acusada estar se desculpando, a melhor solução era realmente encerrar
o processo, esquecendo o que havia acontecido e começando vida nova
daquele momento em diante. E com a concordância da vítima, encerrou o
processo.
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Essa audiência é ilustrativa, pois, apesar de poder ser objeto de
um extenso debate sobre se houve ou não crime de racismo no caso, o
fato é que a audiência foi simples e rápida conforme a descrição acima.
Poder-se-ia sugerir que a rapidez e facilidade com que o juiz encerrou a
audiência e o processo se explicam pela postura passiva da vítima, que
não insistiu na representação contra a acusada. Por outro lado, poder-se-ia
argumentar também que tal situação se explica pelo comportamento não da
vítima mas, sim, do magistrado. Ou seja, considerando-se que não havia
advogados representando as partes na audiência, coube ao juiz interpretar
os fatos relatados e tomar a decisão quanto a propor o encerramento do
processo ou esclarecer melhor a vítima de que ele poderia ter continuidade.
Como vimos, o juiz entendeu que tais fatos não caracterizavam o crime de
racismo e assim buscou convencer a vítima, sem difi culdade, a encerrar o
processo. Da mesma forma que no caso anterior, portanto, o juiz optou pelo
encerramento do processo como forma de superar o confl ito. E para isso
novamente se valeu da maior autonomia e dos dispositivos legais que lhe
permitem decidir pela aplicação de pena alternativa ou pelo arquivamento
sem punição.
Vale ressaltar, ainda, que tal decisão do juiz em convencer a vítima
a encerrar o processo se explicaria, também, em função do compromisso
institucional no sentido de encerrar rápido. Com efeito, como já afi rmamos
em outras partes deste texto, esse compromisso de fato existe e às vezes
se apresenta de forma evidente. Contudo, outra hipótese para explicar a
atitude do magistrado estaria no fato de ele realmente acreditar que o
comportamento da acusada não constituía crime de racismo. Como na
justiça informal criminal ele tem a possibilidade de se valer, além dos
critérios jurídicos, de sua própria impressão sobre os confl itos, é possível
imaginar que ele estivesse, no caso, reproduzindo um valor da própria
sociedade, ou pelo menos de parte dela.
Crime contra a administração em geral
Os delitos desse tipo envolvem, entre outros, o crime de desacato à
autoridade. Embora a audiência a seguir tenha tido origem num confl ito
familiar, por ter havido também desacato ao policial que atendeu a
ocorrência, o delito acabou sendo classifi cado como “crime contra a
administração em geral”.
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Data da audiência: 17 de abril de 2002.
Relação entre as partes: mãe e fi lho; desconhecidos.
Presentes na audiência: vítima (mãe) e acusado.
Perfi l da vítima 1: policial militar
Perfi l da vítima 2: mulher, branca, 60 anos, casada, do lar.
Perfi l do acusado: homem, branco, 30 anos, separado, autônomo.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
Ao ler o processo por alguns instantes, o juiz começou advertindo o
acusado dizendo “que é sempre assim: bebe e depois apronta”. A mãe
do acusado, que também figurava como vítima no processo juntamente
com um policial que estava ausente na audiência, disse ao juiz que não
tinha mais jeito com o filho; que se tratava de um menino bom, mas que,
quando bebia, se transformava; que ele inclusive já tinha perdido a falia
por causa da bebida. Questionada pelo juiz sobre o que pretendia fazer, a
mãe respondeu que gostaria de internar o filho, e o juiz respondeu dizendo
que esta não era a sua função, pois apenas tratava do processo criminal.
Depois disso, se dirigiu novamente ao acusado dizendo para ele não cair
novamente na besteira de desacatar policial; que teve sorte de pegar um
policial moderado. Disse ainda para a mãe do acusado que só poderia puni-
lo caso ela desejasse, mas ela disse que não, pois daria mais uma chance
ao filho. O juiz, então, o advertiu novamente dizendo que, da próxima vez,
lhe aplicaria uma pena de prisão, e que aí ele sofreria as conseqüências,
pois os presos não perdoam quem agride a própria mãe. Depois lhe deu
um folheto dos Alcoólicos Anônimos, dizendo que muitas pessoas como
ele conseguiram se livrar do vício e hoje estão bem. Assim, encerrou a
audiência.
Como se observa nessa audiência, o confl ito em questão reunia as
características necessárias para ser classifi cado como um crime de lesão
corporal dolosa (agressão) ou crime contra a liberdade individual (ameaça)
envolvendo familiares. Contudo, foi classifi cado como um “crime contra
a administração em geral” por ter havido, também, desacato à autoridade
policial. O fato é que o juiz praticamente tratou do caso envolvendo mãe
e fi lho e, embora tivesse feito menção ao desacato ao policial, este sequer
estava presente na audiência.
Considerando-se o processo ritual, portanto, o importante é que a
atitude do juiz, caracterizada principalmente pela sua fala, correspondeu ao
que acontece com a maioria das audiências, ou seja, a advertência – inclusive
com a ameaça implícita do poder de punir - seguida do encerramento do
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processo sem punição. Do mesmo modo, a postura do acusado também
correspondeu ao que ocorre com muitos outros acusados que estão na
mesma situação, ou seja, uma postura de obediência, constrangimento e
reconhecimento da culpa. Tal postura, embora menos ativa se comparada ao
papel do juiz, contribui decisivamente para o resultado fi nal das audiências
desse tipo, o qual quase sempre resulta no arquivamento do processo e na
sensação de que o acusado, na verdade, também é vítima das circunstâncias,
no caso a dependência do álcool. É por essa razão que a justiça informal
criminal é caracterizada por muitos especialistas como uma “justiça
terapêutica” imbuída de um caráter mais social do que propriamente legal.
Crime de Lesão Corporal Culposa
Tecnicamente, a diferença entre o crime de lesão corporal dolosa e
o crime de lesão corporal culposa é que, enquanto o primeiro pressupõe
que o agente quis diretamente o resultado ilícito ou assumiu o risco de
produzi-lo, o segundo é resultado de um ato de imprudência, negligência
ou imperícia do agente. Embora, como vimos, a grande maioria dos delitos
tenha sido caracterizada como crimes de lesão corporal dolosa, também
foi possível encontrar, nos termos da lei, confl itos envolvendo a “lesão
corporal culposa”. Vejamos o exemplo do único crime deste tipo cuja
audiência foi acompanhada.
Data da audiência: 28 de junho de 2000.
Relação entre as partes: desconhecidas.
Presentes na audiência: vítima, acusado e seus respectivos advogados.
Perfi l da vítima: homem, branco, 25 anos, solteiro.
Perfi l do acusado 1: homem, branco, 20 anos, solteiro, garçom.
Perfi l do acusado 2: homem, branco, 30 anos, solteiro, gerente.
Resultado fi nal: processo encerrado com indenização da vítima.
A vítima alegou que estava num restaurante quando o acusado lhe serviu
uma bebida incandescente que explodiu e lançou chamas sobre seu rosto,
queimando levemente sua face e danificando sua lente de contato. Além
disso, ele teria sido motivo de “chacota” por parte dos funcionários do
restaurante, que inclusive não lhe prestaram os primeiros socorros. Por
essa razão, desejava ser indenizado pelos prejuízos materiais e pelos danos
morais sofridos. Diante do exposto, o juiz questionou os acusados sobre os
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acontecimentos e eles, juntamente com o advogado, negaram as acusações
da vítima e disseram que tratava-se apenas de um acidente. Com isso, o
juiz tentou convencer a vítima de que não cabia processo por danos morais,
mas apenas pelos danos materiais. Para tanto, se esforçou no sentido de
mostrar à vítima que a questão foi acidental e que, por isso, ele achava
que o processo criminal deveria ser encerrado. Apesar da resistência
inicial da vítima e de seu advogado, no final ambos acabaram aceitando a
proposta do juiz, concordando em encerrar o processo criminal diante do
compromisso dos acusados de que seria ressarcido o prejuízo que teve com
as lentes de contato. Assim, arquivou-se o processo.
Embora essa audiência não represente os casos mais freqüentes
no Juizado, ela permitiu evidenciar uma situação na qual o acordo se
desenvolve em termos de uma negociação em que algum interesse material
está em jogo. Ou seja, se por um lado o pleito pelo ressarcimento de danos
morais foi imediatamente descartado pelo juiz, o ressarcimento do dano
material, por outro, serviu de base para a proposta de encerrar o processo
criminal. Constata-se, assim, que mesmo com o risco apontado por um dos
magistrados entrevistados de que é possível que o desejo de representação
por parte da vítima possa se transformar num instrumento de “barganha”,
nos casos onde há prejuízo material tanto vítimas como acusados parecem
satisfazer-se com o resultado fi nal, ou seja, a vítima tem seu prejuízo
ressarcido e o acusado se isenta do processo criminal. Esse cenário no qual
há algo mais concreto para negociar, portanto, permite ao juiz utilizar-se,
de maneira mais ampla, da lógica da conciliação e do acordo para superar
o confl ito.
Crime de Apropriação Indébita
Como o próprio termo sugere, o “crime de apropriação indébita” se
refere à posse, pelo agente, de algo que supostamente não lhe pertence.
Vejamos um exemplo deste tipo de delito na justiça informal criminal.
Data da audiência: 26 de setembro de 2001.
Relação entre as partes: acusado autuado pela polícia.
Presentes na audiência: apenas o acusado.
Perfi l do acusado: homem, negro, 33 anos, amasiado, catador de papel.
Resultado fi nal: processo encerrado e arquivado.
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De acordo com os autos do processo, o acusado foi pego pela polícia de
posse de uma caixa na qual continha uma bolsa com bijuterias. Inquirido
pelos policiais, ele teria dito que havia achado a referida bolsa quando estava
levando sua enteada para a escola. Na audiência, quando foi questionado
pelo juiz, o acusado disse que essa vero constante no processo era
verdadeira, mas reclamou da atitude dos policiais, dizendo que havia
sido levado à delegacia e acusado injustamente de roubo junto com sua
enteada, de apenas 12 anos; e que por essa rao a menina inclusive teria
perdido aula e prova naquele dia. Diante das declarações do acusado, o
juiz disse para ele que a polícia precisa investigar o caso e, por isso, o levou
à delegacia, mas que iria arquivar o processo por acreditar na sua versão e
por não haver provas contra ele.
Assim como aconteceu em outras sessões, nesta audiência não havia
vítima personalizada, ou seja, o suposto crime é considerado contra a
sociedade, que tem no promotor público o agente que deve denunciá-lo.
Pensando em termos da lógica da justiça informal criminal, o importante a
destacar é que, novamente, o juiz tem a autonomia para decidir encerrar ou
não o processo. Embora tenha argumentado que não iria condenar o acusado
pois não havia provas contra ele, o magistrado disse também que acreditava
na sua versão dos fatos, demonstrando, com isso, que sua impressão sobre o
acusado também teria motivado sua decisão de encerrar o processo.
Crime de porte ilegal de arma de fogo
Da mesma forma que o caso anterior, nessa audiência também não
houve vítima, ou seja, o acusado foi autuado pela polícia e denunciado
pelo Ministério Público. Contudo, ao contrário do “crime de apropriação
indébita” onde foi possível arquivar o processo, no caso a seguir foi
imperativa a aplicação de pena ao acusado.
Data da audiência: 24 de abril de 2002.
Relação entre as partes: acusado autuado pela polícia.
Presentes na audiência: apenas o acusado.
Perfi l do acusado: homem, negro, 20 anos, solteiro, ajudante de pedreiro.
Resultado fi nal: pena de prestação de serviços à comunidade.
De acordo com os autos do processo, o acusado foi abordado pela polícia
portando uma arma de fogo sem autorização. Como nesses casos é
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imperativa a aplicação de multa ou pena de prestação de serviços à
comunidade, o juiz de imediato esclareceu o acusado e lhe perguntou o que
ele preferia. Ele respondeu que não tinha condições financeiras de pagar a
multa e nem de prestar serviços já que trabalhava o dia todo como ajudante
de pedreiro. O juiz, então, lhe disse o seguinte: “quando se está doente
toma-se injeção; aqui (na justiça) precisa tomar remédio também. Por isso
sou obrigado a lhe aplicar a pena menor para não complicar a situação”.
Diante dos argumentos do juiz, o autor optou pela pena de prestão de
serviços e assim encerrou-se a audiência e o processo.
Mesmo considerando a obrigatoriedade de aplicação de pena, nota-
se também, no caso, que os argumentos do juiz demonstram um tipo de
representação sobre a punição na justiça informal criminal, que leva, por
analogia, a uma concepção de “justiça terapêutica”, em que o acusado é
considerado um “enfermo” e, portanto, precisa “tomar remédios”.
3.5.4 - Tipifi cação das audiências segundo o resultado fi nal
A proposta deste estudo foi, desde o início, analisar o processo
ritual das audiências preliminares de conciliação, destacando as práticas
e as representações que permitem evidenciar os elementos signifi cativos
e padronizados do processo de interação que se estabelece entre agentes
e litigantes, bem como o cenário no qual tal interação se desenvolve.
Contudo, também é necessário considerar a variável relativa ao desfecho
nal das referidas audiências. Em outras palavras, embora o desfecho não
explique o ritual, ele permite, num certo sentido, compreender melhor até
que ponto os objetivos e interesses de agentes e litigantes são alcançados
no fi nal do processo.
Além disso, considerando-se o ritual não apenas como formas
padronizadas e repetitivas de interações e comportamentos, mas também
como um processo de mudança de um estado social para outro, no sentido
da passagem de uma situação de confl ito para uma situação de conciliação,
o desfecho fi nal dos processos também permite compreender até que ponto
tal mudança se confi rma. Nota-se que todo o esforço do magistrado, e às
vezes também dos outros operadores do direito, é quase sempre no sentido
de arquivar o processo e evitar, assim, a sua formalização.
46
Da mesma
46 Há um questionamento por parte de alguns estudiosos e operadores no sentido de que o Juizado
Especial Criminal deva ou não ser considerado como um espaço “informal”, já que, mesmo nessa
instância de justiça, há uma lei regulamentada que define as regras e os procedimentos a serem
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forma, as partes envolvidas no confl ito também atuam na audiência com
vistas a um desfecho fi nal que atenda suas expectativas e interesses em
relação à justiça.
É importante ressaltar que nem sempre o juiz consegue alcançar o
objetivo de encerrar o processo sem uma punição efetiva, seja porque em
alguns casos é imperativa a aplicação de pena de multa ou de prestação
de serviços à comunidade, seja porque há situações em que ele encontra
resistência junto às partes e seus representantes legais, não conseguindo
evitar, assim, a continuidade do processo. Há, ainda, outras situações nas
quais o resultado fi nal se dá com a indenização por danos materiais causados
à vítima, e situações em que a suspensão do processo acaba prevalecendo
sobre a tentativa de arquivamento. Assim, apresentaremos nesta seção
exemplos de audiências com esses diferentes resultados, deixando para o
nal o exemplo de uma audiência cujo processo foi encerrado e arquivado
com a conciliação entre as partes, pois este tipo de audiência representou o
que ocorreu com a maioria dos processos acompanhados.
Pena de prestação de serviços à comunidade
A pena de prestação de serviços à comunidade foi considerada por
muitos profi ssionais com quem conversamos a melhor opção dentre aquelas
de que dispõe o juiz no Juizado Especial Criminal. Isso porque, além de
caracterizar uma punição efetiva, ela ofereceria ao acusado a oportunidade
de refl etir melhor sobre seus atos. Ou seja, ao contrário da multa, que pode,
dependendo da situação econômica do acusado, não representar qualquer
prejuízo, a prestação de serviços permite-lhe, durante a execução da pena,
lembrar-se dos motivos pelos quais está desenvolvendo aquelas tarefas. Para
estes operadores, essa situação possibilita a conscientização do acusado e,
quando tal fenômeno acontece, evita que comportamentos como os que
originaram o litígio sejam repetidos. Embora essa pena possa ser aplicada
adotados. Se considerarmos este ponto de vista, o Juizado se constitui, de fato, numa instituição
formal, ainda que com características especiais. Talvez daí a designação de Juizado Especial e não
de Juizado Informal. Contudo, um dos principais critérios que fundamentaram a lei 9.099/95 foi
justamente o da informalidade, no sentido de retirar dos processos as formalidades inúteis. Por essa
razão, preferimos continuar chamando de informal essa instância de justiça, não apenas porque
historicamente ela assim vem sendo designada, mas também para se contrapor justamente à justa
comum, na qual os procedimentos são realmente mais formais e os operadores do direito, sobretudo
os juizes, não possuem tanta autonomia para resolverem os conflitos como nos Juizados Especiais,
em que podem se valer menos da lei e mais de outros valores não necessariamente jurídico-formais
para resolver os conflitos.
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à maioria dos casos no Juizado, ela é comum nos litígios em que não há
vítimas personalizadas, e o acusado é processado por ter cometido uma
ação considerada contra a sociedade.
Natureza do delito: outras contravenções penais (porte de arma branca).
Data da audiência: 26 de setembro de 2001.
Presentes na audiência: acusado e defensor público.
Perfi l do acusado: homem, negro, 21 anos, solteiro, serviços gerais.
Resultado fi nal: pena de prestação de serviços à comunidade.
De acordo com os autos do processo, o acusado foi pego pela polícia
portando uma faca. O juiz iniciou a audiência questionando o acusado
sobre o que ele pretendia fazer com aquela arma, e ele não respondeu,
permanecendo de cabeça baixa. O juiz então disse que, diante do seu
silêncio, ele certamente pretendia fazer coisa errada, mas felizmente a
polícia o pegou antes. Disse que, por causa disso, era obrigado a lhe aplicar
uma pena de multa ou de prestação de serviço à comunidade pela infração
cometida, e perguntou o que ele preferia. Ele respondeu que preferia a
prestação de serviços. O juiz, então, perguntou se ele conhecia alguma
escola pública perto de sua residência e ele se referiu a uma. Assim, o juiz
mandou que ele se apresentasse para a diretora da escola para combinar
como cumpriria as 30 horas de serviços. Advertindo-o novamente, o juiz
disse para ele “parar de pensar besteira”, e com isso encerrou a audiência.
Nota-se, nessa audiência, que, embora o juiz possa determinar, entre
os tipos de penas de que dispõe no Juizado, qual deve ser aplicada ao
acusado, normalmente ele prefere consultá-lo sobre sua preferência. Se tal
constatação pode parecer, a princípio, irrelevante, um olhar mais cuidadoso
do ponto de vista do processo ritual pode revelar que, ao ter a oportunidade
de opinar sobre sua própria punição, o acusado sente-se, num certo sentido,
também atuante no processo. Assim, ele pode sair da audiência com a
sensação de que, embora penalizado, está tendo a chance de participar, nos
termos da “justiça terapêutica”, do processo de tratamento ou de cura.
Pagamento de multa
Se por um lado alguns profi ssionais apontam, como dissemos, para
as vantagens da pena de prestação de serviços à comunidade, por outro lado
também é fato que muitos acusados, ao terem a oportunidade de optarem, o
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fazem pela pena de multa, demonstrando que, às vezes, pode ser vantajoso
para eles esse tipo de pena.
Natureza do delito: crime de lesão corporal dolosa
Data da audiência: 29 de agosto de 2001.
Tipo de relação entre as partes: ex-namorados.
Presentes na audiência: vítima, acusado, defensor e promotor público.
Perfi l da vítima: mulher, branca, 18 anos, solteira, estudante.
Perfi l do acusado: homem, branco, 20 anos solteiro, ajudante motorista.
Resultado fi nal: pagamento de multa.
A vítima alegou que era namorada do acusado e estava grávida. Após a
separação, o acusado teria invadido sua residência e a agredido fisicamente.
Questionado pelo juiz sobre as razões da agreso, o acusado declarou que
recebeu uma ligação anônima em que lhe disseram que sua ex-namorada
o teria traído enquanto ainda estavam namorando; por isso, teria perdido
a cabeça. O juiz perguntou à vítima se tinha sido apenas essa agressão
e ela respondeu que sim. Com isso, sugeriu a ela encerrar o processo,
pois o acusado já estava arrependido, mas ela se negou dizendo que ele
precisava pagar pelo que fez. O juiz perguntou se havia algm na casa
quando ocorreu a agressão que pudesse testemunhar e ela respondeu
que não. O juiz voltou-se então para o promotor, que estava entrando na
sala, e lhe entregou o processo dizendo que a vítima desejava representar
contra o acusado, que inclusive tinha confirmado a agressão. Após uma
leitura rápida do processo, o promotor sugeriu ao juiz a aplicação de pena
de multa. Diante disso, o juiz disse ao acusado que estava lhe aplicando
uma multa no valor de R$ 50,00, com prazo de 15 dias para pagamento e,
caso ele não a saldasse, ela seria revertida em prisão. Depois, o advertiu
novamente dizendo para não acreditar mais em fofoca e tocar sua vida
para frente; disse ainda aos dois que eles teriam que se entender daquele
momento em diante, pois em breve teriam a responsabilidade mútua de
cuidar do filho que iria nascer.
Apesar da tentativa do juiz em encerrar sem punição, o desejo
da vítima em continuar com o processo, bem como o reconhecimento
do acusado de sua culpa, levaram o juiz e o promotor a optarem pela
pena de multa. Contudo, no que se refere à violência contra a mulher, o
questionamento que poderia se fazer, fundamentado no paradigma de
gênero, é se uma pena de R$ 50,00 representaria uma punição adequada no
caso ou, na verdade, contribuiria para a banalização desse tipo de violência.
Com efeito, pareceu que o acusado fi cou satisfeito com a pena, dando a
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impressão que em determinadas situações, para usar um jargão popular, “o
crime compensa”.
No que se refere ao ritual, contudo, pode-se dizer que tanto a vítima
como o acusado, mediados pelo juiz, participaram ativamente do processo,
ou seja, a vítima defendendo seu direito de representar pois fora agredida,
e o acusado justifi cando seu comportamento ao alegar que tinha sido vítima
de traição. Nota-se, portanto, a existência de valores sociais e sentimentos
comuns e cotidianos perpassando as falas e as demais expressões das partes
em confl ito. O resultado dessa situação foi a proposição e a aplicação da
pena mínima, no caso o pagamento da multa.
Ressarcimento dos danos materiais
Outra solução possível para o arquivamento do processo nas audiências
preliminares de conciliação é o ressarcimento de danos materiais sofridos
pela vítima. Quando fi ca evidenciado o prejuízo material, e quando vítima
e acusado aceitam o ressarcimento como solução para superar o confl ito, o
juiz utiliza esse instrumento para pacifi car as relações.
Natureza do delito: crime contra a liberdade individual
Data da audiência: 12 de setembro de 2001.
Tipo de relação entre as partes: desconhecidos.
Presentes na audiência: vítima, acusado e advogado do acusado.
Perfi l da vítima: homem, branco, 28 anos, solteiro, eletricista.
Perfi l do acusado: homem, branco, 26 anos, solteiro, vendedor.
Resultado fi nal: ressarcimento dos danos materiais.
A vítima alegava que fora agredida e teve seu carro danificado pelo acusado.
Questionado pelo juiz, este respondeu que vendeu o carro para a vítima
mas não recebeu; por esta rao “perdeu a cabeça” e acabou agredindo
a vítima e quebrando os vidros do carro. Questionado pelo juiz sobre o
motivo pelo qual não saldou a dívida, a vítima justificou dizendo que tinha
perdido o emprego. O agressor, por sua vez, argumentou que isso não
justificava já que ele tinha dinheiro para fazer benfeitorias no carro. Diante
da troca de acusações, o juiz perguntou à vítima quanto custou o conserto
do carro e ela respondeu que ficou em R$ 100,00, sendo que sua dívida
com o acusado era de R$ 300,00. O juiz disse ao acusado, então, que
seu comportamento agressivo somente o prejudicou, pois se tinha direito a
receber 300 agora só iria receber 200, já que devia arcar com os prejuízos
causados no carro. O acusado não se manifestou, e o juiz perguntou à
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vítima como ela poderia saldar sua dívida. Esta propôs pagar duas parcelas
de R$ 90,00 já que estava apenas fazendo “bico” e pagava aluguel. Diante
disso, o juiz disse ao acusado que era melhor aceitar a proposta da vítima
do que ficar sem receber, e ainda poder ser condenado pela agressão, o que
foi aceito sem maiores resistências. Assim, encerrou-se a audiência.
A principal característica dessa audiência é justamente o tipo de
negociação que teve por base a busca de satisfação de interesse material
de ambas as partes, o que pode ser visto como um certa “disfunção” dos
Juizados Especiais Criminais. Ou seja, embora o motivo justifi cado para a
abertura do processo criminal tenha sido a agressão, este comportamento foi
o que menos se discutiu durante a audiência. Contudo, pensando em termos
do processo ritual, também se observou aí uma participação ativa de todos
os envolvidos na busca de uma solução para o confl ito que contemplasse o
interesse de todos.
Processo suspenso
A suspensão do processo também pode ser uma alternativa quando
não se consegue encerrá-lo sem punição, ou quando a situação coloca ao
juiz a necessidade de aguardar um determinado tempo antes de arquivá-lo
defi nitivamente.
Natureza do delito: crime contra a liberdade individual.
Data da audiência: 01 de agosto de 2001.
Tipo de relação entre as partes: amasiados.
Presentes na audiência: vítima, acusado e seus respectivos advogados.
Perfi l da vítima: mulher, negra, 26 anos, amasiada, serviços gerais.
Perfi l do acusado: homem, negro, 28 anos, amasiado, operário.
Resultado fi nal: processo suspenso por 30 dias.
A vítima, que se apresentava bastante nervosa, disse ao juiz ter ficado
amasiada com o acusado durante 11 anos, com quem teve ts filhos; disse
que ele “bebia” muito e, depois da última agressão, resolveu se separar;
desde então, o acusado a ameaçava constantemente, insistindo em que ela
voltasse a morar com ele; que da última vez que ele a agrediu foi com uma
faca, o que causou traumas em toda a família e fez com que ela precisasse
ser acolhida por uma Casa Abrigo junto com os filhos, e que, por esta
rao, eles não estavam mais freqüentando a escola. Questionado pelo juiz
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sobre o que explicava tal comportamento, o autor, também demonstrando
nervosismo e constrangimento, disse que se tratava apenas de “problemas
domésticos”, ou seja, que ele chegava cansado do trabalho e ainda tinha
que fazer serviços em casa. Imediatamente, a vítima interrompeu o
acusado dizendo que ele estava mentindo e que o real problema era que
ele não confiava mais nela, acusando-a de tê-lo traído com outros homens.
O juiz disse que nada disso justificava a agressão, e que, sem confiança,
o casamento não se sustentava. Ao perguntar se pretendiam voltar à vida
conjugal, a vítima imediatamente respondeu que não. O juiz propôs então
a suspensão do processo por 60 dias até que a separação se efetivasse. Daí
a advogada da vítima começou a falar que não aceitava a decisão do juiz
e queria uma punição efetiva para o acusado, dizendo não confiar na sua
palavra, pois ele poderia ter matado sua cliente quando tentou enforcá-
la; e que por isso era preciso garantir que ele não chegasse perto da
vítima. O advogado do acusado, que também não tinha se manifestado
ainda, resolveu intervir e iniciou uma discussão com a advogada da
vítima, dizendo que ela estava exagerando e que as partes tinham filhos
em comum e, portanto, seu cliente não faria nada contra sua esposa, o
que novamente foi contestado pela advogada da vítima, que disse que ele
já tinha agredido a esposa diante dos filhos. Nesse contexto de ânimos
totalmente alterados, as partes também começaram a discutir e a trocar
ofensas, momento em que a advogada da vítima a retirou da mesa e foi
advertida pelo juiz, que disse que quem mandava ali era ele. A advogada
tentou insistir nos fatos e o juiz a advertiu novamente dizendo que ela
não estavaentendendo o objetivo da audiência; que caso ela quisesse
representar contra o autor, o processo continuaria, mas que o objetivo da
audiência era tentar uma composição, e por isso propôs a suspensão do
processo. Depois disso, a advogada conversou com sua cliente e disse ter
uma contraproposta: suspender o processo por 30 dias apenas até finalizar
o processo de separão, pedindo ao juiz que advertisse novamente o autor
para que não mais se aproximasse de sua cliente, o que foi feito novamente
e assim se encerrou a audiência com a suspeno do processo.
Essa audiência é ilustrativa não apenas por retratar um confl ito entre
cônjuges, mas também porque, no caso, houve uma participação mais ativa
da advogada da vítima ao insistir numa punição efetiva para o acusado.
Ao contrário das demais audiências, em que os advogados quase sempre
concordaram com o encaminhamento do juiz, visando todos um tratamento
informal e rápido, nesta fi cou evidente que a advogada da vítima não se
norteou pelo critério de agilidade, e sim pela garantia do que considerava
como os direitos de sua cliente. Contudo, o importante a destacar é que a
audiência acabou não com uma punição efetiva como desejava a advogada,
mas com a suspensão do processo.
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Processo encaminhado para a fase de Instrução e Julgamento
Se em algumas situações, como a última apresentada, o juiz
consegue suspender o litígio como forma de evitar a punição imediata ou
a continuidade do processo, há litígios nos quais ele não tem alternativa a
não ser encaminhar o caso para a audiência de Instrução e Julgamento, o
que, na prática, signifi ca tornar os procedimentos mais formais como ouvir
testemunhas e analisar provas documentais.
Natureza do delito: crime contra a liberdade individual.
Data da audiência: 27 de fevereiro de 2002.
Tipo de relação entre as partes: ex-namorados.
Presentes na audiência: vítimas, acusado e seus respectivos advogados.
Perfi l da vítima 1: mulher, branca, 29 anos, solteira, procuradora de
justiça.
Perfi l da vítima 2: homem, branco, 26 anos, solteiro, empresário.
Perfi l do acusado: homem, branco, 25 anos, solteiro, estudante.
Resultado fi nal: processo encaminhado para Instrução e Julgamento.
De acordo com os autos do processo, a vítima, uma procuradora de justiça,
alegou que o acusado, seu ex-namorado, invadiu seu apartamento e,
depois de uma discussão, teria agredido a ela e seu atual namorado, que
estava na audiência também como vítima no mesmo processo. A vítima
alegava também que o acusado havia danificado seu veículo. O juiz
questionou o advogado da vítima sobre os prejuízos, e este disse que,
com respeito aos danos materiais, estavam dispostos a fazer um acordo,
mas com relação à agreso desejavam representar contra o acusado
e dar continuidade ao processo. Questionado pelo juiz sobre a razão de
ter invadido o apartamento da vítima, com quem já não mantinha mais
nenhum relacionamento, o acusado alegou que só fez isso porque estava
preocupado com ela, pois tentou uma comunicação e não conseguiu. Diante
da firme posição do advogado da vítima, o juiz sequer tentou convencê-la
a considerar a possibilidade de encerrar o processo e, de imediato, chamou
o promotor público para avaliar o caso. O acusado ainda tentou se justificar
dizendo que estava dizendo a verdade, ou seja, que não teve a intenção
de agredir a vítima nem de invadir seu apartamento. No mesmo sentido,
seu advogado também tentou conversar com o advogado da vítima. Esta,
que até este momento não havia se manifestado, resolveu falar e iniciou
uma discussão com o advogado do acusado, dizendo que o caso era mais
grave do que ele estava pensando, pois o que estava em jogo ali era muito
mais do que tudo o que estava sendo dito; que ela era uma procuradora de
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justiça e por isso precisava preservar a sua imagem. Diante da declaração
firme e direta da vítima, não houve mais tentativas de acordo, e o promotor
público determinou a devolução dos autos à delegacia para levantamento
das provas dentro de um prazo de 15 dias.
Ao contrário de outras audiências em que as partes, mediadas
pelo juiz, protagonizaram um acordo no qual os interesses materiais
prevaleceram sobre a agressão que deu origem ao processo, neste caso,
embora o advogado da vítima tenha aceitado negociar os danos materiais,
enfatizou que estava totalmente descartada a possibilidade de acordo para
encerramento do processo na questão criminal caracterizada pela agressão.
Assim, tal constatação nos leva a considerar, também, as posições sociais
que as pessoas ocupam nesses confl itos. Ou seja, pelo fato de a vítima ser
uma procuradora de justiça, e talvez, por isso, ter mais consciência de seus
direitos, além do interesse em preservar sua imagem, o caso não poderia
ter outra solução a não ser a formalização do processo com vistas a uma
punição mais severa ao acusado.
Contudo, como a grande maioria dos litígios tramitados no Juizado
não confi gura esse tipo de situação, por serem as partes normalmente
advindas de segmentos sociais menos privilegiados, essa audiência, embora
ilustrativa do ponto de vista da interação profi ssional e da diferença de poder
e status entre as partes, não caracteriza o que é mais usual nas audiências
preliminares de conciliação, cujas soluções freqüentemente passam pelo
acordo para arquivamento dos processos sem qualquer punição efetiva.
Processo encerrado e arquivado sem punição efetiva
Antes da próxima descrição, vale lembrar que estamos entendendo
por “processo encerrado e arquivado” os casos que são concluídos sem uma
punição efetiva. Ou seja, embora os acordos para a transação penal também
sejam responsáveis pelo encerramento e arquivamento dos processos,
classifi camos os dois tipos de resultados separadamente pois, como tentamos
demonstrar nesta e em outras seções, um dos aspectos mais signifi cativos
das audiências preliminares de conciliação é justamente o encerramento do
processo sem punição. Vejamos, assim, como última audiência ilustrada,
o desfecho que representa o que ocorreu com a maioria das audiências
acompanhadas.
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Natureza do delito: crime de lesão corporal dolosa.
Data da audiência: 01 de outubro de 2003.
Tipo de relação entre as partes: amasiados.
Presentes na audiência: vítimas e acusado.
Perfi l da vítima: mulher, branca, 20 anos, amasiada, do lar.
Perfi l do acusado: homem, branco, 25 anos, amasiado, porteiro.
Resultado fi nal: processo encerrado arquivado.
A vítima, que estava na audiência com um bebê no colo, alegava que seu
companheiro a teria agredido várias vezes. O juiz iniciou advertindo o
acusado, dizendo que havia remarcado a audiência apenas para ouvir o que
ele tinha a dizer. O acusado, mostrando-se nervoso e constrangido, negou
as acusações da vítima e disse que era ele quem apanhava. Inicialmente,
o juiz demonstrou não acreditar na versão do acusado, pois argumentou o
seguinte:é sempre assim: na hora de bater é homem mas na hora de admitir
que bateu é covarde”. Contudo, o acusado continuou insistindo que era ele
quem apanhava e pediu permissão ao juiz para provar o que estava dizendo.
Com a permissão, ele abriu sua camisa e mostrou uma cicatriz, dizendo que
era resultado de uma cirurgia para retirada do baço; disse que precisou fazer
a cirurgia depois que sua companheira o atingiu como uma laranja. O juiz,
demonstrando espanto com a revelação do acusado, perguntou à vítima se
aquilo era verdade e ela confirmou, dizendo que inclusive já tinha agredido
o acusado outras vezes. O juiz, então, perguntou por que ela não tinha dito
isso na audiência anterior, e ela respondeu que cada um deveria falar da sua
agressão. Percebendo que na verdade se tratava de agreso mútua, o juiz
passou a advertir ambos, dizendo que não era possível que se agredissem
diante de uma criança linda como aquela. Neste instante, o acusado disse
que a criança não era seu filho, apesar de tê-la registrado em seu nome;
que, quando conheceu sua companheira na rua usando craque, ela já estava
grávida. Questionados pelo juiz se ainda estavam usando craque, ambos
negaram, argumentando que desde o nascimento do bebê nunca mais se
envolveram com drogas. Apenas, às vezes, ingeriam bebidas alcoólicas. A
vítima disse ainda que todo o problema era porque o acusado trabalhava à
noite e por isso tinha ciúmes e não confiava nela. O juiz respondeu dizendo
que a desconfiança era um problema mais sério; contudo, acreditava que o
casal era capaz de superá-la, pois sentia que ambos se gostavam e desejavam
continuar vivendo juntos. Depois, disse à vítima que deveria dar mais valor
ao seu companheiro, pois percebia que ele gostava muito da criança mesmo
não sendo seu filho (nesse momento o acusado estava com a criança no
colo). Questionada pelo juiz se estava cuidando bem da casa, o acusado se
adiantou e disse que esse era outro problema; que a casa era uma “sujeira” e
que a companheira não cumpria suas obrigações. Ela respondeu dizendo que
o cuidava da casa porque estava sem estímulo já que não vivia bem com
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o companheiro. Já encaminhando para o final, o juiz advertiu novamente
ambos dizendo que estaria encerrando o processo mas que esperava que eles
se entendessem a partir daquele momento; que bastava cada um fazer a sua
parte que as coisas melhorariam; disse, finalmente, que era a última vez que
conversaria com eles, e que, caso voltassem ali, não haveria mais conversa
e seria aplicada a pena prevista para tais casos. Diante dos argumentos do
juiz, ambos concordaram que não desejavam se separar. Com isso, o juiz
encerrou a audiência dizendo para eles cuidarem bem da criança.
Optou-se por encerrar a classifi cação das audiências segundo o
resultado fi nal com esse exemplo de violência doméstica porque, além de
representar o resultado da maioria dos litígios, ele também caracteriza o
“tipo ideal” de situação em que o instrumento da conciliação se aplica de
maneira mais efi caz, ou seja, quando as partes admitem os erros e declaram
o desejo de modifi car seus comportamentos. Este cenário, portanto, marcado
também pela ausência de advogados representando as partes, é o ideal para
que o juiz desenvolva sua função de conciliador e pacifi cador social.
Da perspectiva do ritual, ainda, o importante a destacar é que os
argumentos apresentados pelo juiz, mesmo sendo bastante comuns na
vida cotidiana das pessoas envolvidas no confl ito, adquirem nas audiências
preliminares de conciliação um signifi cado especial. Como enfatizamos no
primeiro capítulo, a situação é similar ao que ocorre em outras instâncias do
sistema de justiça, como no Tribunal do Júri, ou seja,
um dos traços distintivos de rituais, em geral, e do Júri, em particular, é
justamente a dramatização no duplo sentido deão e representação, pois
ações que, no mundo diário, são banais e triviais, adquirem significados
especiais quando representadas nos plenários do Júri (SCHRITZMEYER,
2003:4).
Por essa razão, as audiências desenvolvidas no Tribunal do Júri
tornam-se uma referência para compreender o que ocorre também nas
audiências preliminares de conciliação, pois nos dois contextos os crimes
têm origem em confl itos interpessoais marcados por relações de poder,
sentimentos e emoções. Contudo, como também já destacamos, há uma
característica importante nas audiências preliminares de conciliação que
merece ser destacada em contraste com as audiências do Tribunal do Júri.
Trata-se da participação ativa de vítimas e acusados no esforço para superar
o confl ito.
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Essa participação se dá, como foi ilustrado, em função da maior
liberdade que as partes têm de manifestarem seus valores a respeito
do confl ito que, somados aos valores que o juiz também manifesta,
fundamentam o processo ritual das audiências preliminares de conciliação.
Notou-se, por exemplo, que desde a primeira audiência, na qual o acusado
esteve ausente, a vítima se sentiu bastante à vontade para se manifestar e,
da mesma maneira, na audiência ilustrada o autor foi conquistando este
espaço também ao longo da sessão. Apesar dos constrangimentos mútuos
na medida em que as “revelações” eram feitas, as partes terminaram a
audiência com a sensação de que tudo havia sido dito e o confl ito, pelo
menos por um determinado período, estava superado.
Essa é, pois, a principal fi nalidade do processo ritual na forma como
o concebemos na justiça informal criminal, ou seja, a passagem de uma
situação de confl ito e contradições para uma situação de conciliação e
pacifi cação, em que a participação ativa das partes litigantes é essencial
para garantir a superação do confl ito. Tal constatação também nos permite
comparar o ritual estabelecido no sistema de justiça informal com outros
sistemas de rituais como os de religiões tradicionais, nas quais os “doentes”
participam ativamente do processo, constituindo, assim, um tipo de “ritual
integrativo” (MAGNANI, 2003). De forma análoga, a participação de
vítimas e acusados é parte integrante e fundamental do processo ritual nas
audiências preliminares de conciliação com vistas à superação do confl ito.
Contudo, este processo ritual não se sustentaria sem a participação
ativa do magistrado, ao contrário, por exemplo, do que ocorre no Tribunal
do Júri, onde esse operador ocupa uma posição neutra e técnica. Assim,
é importante destacar a mudança no papel exercido pelo magistrado na
justiça informal criminal, pois neste espaço ele de fato governa, mesmo nas
situações em que há presença de advogados e promotores. Por exemplo, na
audiência ilustrada, pode-se constatar a importância do papel do juiz, cujos
argumentos se fundamentaram menos nos aspectos técnicos e jurídicos e
mais em valores que as partes compreendiam a aceitavam como válidos,
pois também faziam parte de suas representações. Foi assim que, apesar
das acusações mútuas, o juiz resolveu insistir no acordo e na aceitação
da vítima em encerrar o processo, apostando na reconciliação do casal.
Para tanto, precisou interagir diretamente com as partes e permitir que elas
participassem ativamente do processo ritual.
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CONCLUSÕES
Com o objetivo de compreender a lógica de funcionamento da
justiça informal na área criminal, direcionamos o estudo para a análise do
processo ritual das audiências preliminares de conciliação, base na qual
opera o Juizado Especial Criminal no Brasil. A escolha do ritual permitiu
compreender, além do cenário e das ações ordenadas de falas, gestos
e expressões que caracterizam essa instância de justiça, como se dá a
passagem de um estado social marcado pelos confl itos interpessoais para
um estado social caracterizado pela conciliação e superação do confl ito.
Para tanto, a ênfase recaiu sobre as formas de representação da violência e
da punição que profi ssionais e litigantes manifestam ao interagirem durante
a realização destas audiências.
Tais representações devem ser compreendidas como transcendendo
os limites do fórum, pois as concepções sobre a violência normalmente
correspondem às experiências comuns e cotidianas de agentes e litigantes.
No mesmo sentido, as formas punitivas também aparecem como fatores
importantes na análise dessas representações, pois estão contidas tanto na
expectativa dos litigantes quanto nos objetivos dos operadores do direito.
O importante, no entanto, é que as representações dos operadores estariam
menos relacionadas com o sistema normativo de direito e mais vinculadas
a seus próprios valores sociais sobre práticas de violência e outros tipos de
comportamentos.
Tal constatação nos levou a tentar compreender os limites existentes
entre uma “comunidade de interesses” e uma “comunidade de valores” como
diferentes motivações para o comportamento dos operadores do direito no
Juizado Especial Criminal. De acordo com Sapori (1995), a administração
da justiça criminal deve ser entendida como uma comunidade de interesses
na qual o princípio da efi ciência é que move a máquina judiciária. Ou
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seja, o compromisso entre defensores, promotores e juízes se caracteriza
pela maximização da efi ciência no sentido da agilização dos processos,
lançando mão de um modelo de categorização dos casos previamente
defi nido, acionando, com isso, programas de ação também previamente
estabelecidos. Nas palavras do autor,
as varas criminais brasileiras institucionalizaram um certo modo de
fazer justiça, caracterizado pelo processamento seriado dos crimes. Essa
justiça feita em série, que denominei justiça linha de montagem, é marcada
pelo tratamento padronizado dos processos. Suas especificidades e
individualidades são desconsideradas. Procura-se, antes de tudo, classificar
os processos em categorias que, por sua vez, vão definir padrões de decisão
e de ação (SAPORI, 1995:51).
É justamente a combinação desse modelo de categorização com
os programas de ação que caracteriza, para o autor, o caráter rotineiro
da “justiça linha de montagem”, funcionando, dessa forma, como uma
“perfeita burocracia”. Mas o problema, segundo ele, é que tal burocracia
se institucionalizou como um “arranjo informaldo sistema, que por sua
vez deve ser entendido como modelos de comportamento cotidiano que
não estão previstos pelo arcabouço normativo, e, portanto, têm o caráter
de leis não escritas.
Essa idéia de “arranjos informais” também sugere uma mudança do
conceito de acordo que as abordagens jurídicas normalmente atribuem aos
Juizados Especiais Criminais, na medida em que se restringe essa lógica
à iniciativa apenas das partes, na qual os agentes atuam como mediadores
dos confl itos. Na perspectiva de Sapori, ao contrário, os acordos informais
seriam entendidos como acordos entre juízes, promotores e defensores
públicos, visando, sempre que possível, o abreviamento do fl uxo do
processo penal.
Embora a perspectiva da “comunidade de interesses” seja útil para
compreender a dinâmica profi ssional também em torno do Juizado Especial
Criminal, o importante a ressaltar é que ela não pode ser a única maneira de
explicar a forma como opera essa instância de justiça. Embora seja aparente
em muitos casos o interesse em padronizar os processos como forma de
tornar o seu julgamento mais ágil, é possível também reconhecer na prática
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dos operadores do direito um conjunto de valores que não está apenas ligado
à rapidez na solução dos casos.
Em outras palavras, embora os profi ssionais sofram uma certa
“pressão institucional” no sentido de encerrar rápido, nesta instância de
justiça eles interagem de forma mais direta com as partes litigantes, e
com isso também manifestam, de forma mais livre, seus valores sobre os
confl itos. Assim, é possível pensar a lógica da justiça informal criminal
também a partir da existência de uma “comunidade de valores” que integra
os diferentes agentes envolvidos no processo.
Soma-se a isso a importância de considerar, nesta instância de justiça,
as práticas e representações de vítimas e acusados, pois no Juizado a lógica
do convencimento - estratégia utilizada pelo juiz para a busca da conciliação
- torna o espaço do fórum ainda mais propício para a manifestação também
das partes litigantes. Ou seja, em contraste com a justiça comum e formal,
na qual os procedimentos legais são mais bem defi nidos em termos de
categorias preestabelecidas para cada caso tratado, na justiça informal
criminal os procedimentos são mais “fl exíveis” e permitem, por meio da
lógica do acordo, uma maior participação de todos os envolvidos no litígio
para a superação do confl ito e encerramento do processo.
Vale ressaltar que a lógica do acordo não elimina a possibilidade
de punição, pois no Juizado há também o instrumento da transação penal,
que signifi ca aplicação imediata de multa ou de pena alternativa. Contudo,
o que observamos no estudo de caso realizado é que o principal objetivo
no Juizado é buscar o acordo entre as partes para encerrar o processo sem
que haja uma punição efetiva ao acusado. Se, por um lado, tal constatação
pode sugerir, como argumentam muitos autores, uma forma de impunidade,
por outro lado revela a necessidade de compreender melhor o contexto e
as motivações que levam muitas vítimas a aceitarem encerrar o processo
sem punição, pois nesta instância de justiça depende delas decidir pela
continuidade ou não do litígio.
Em outras palavras, se por um lado há vítimas que de fato não
são sufi cientemente esclarecidas sobre as alternativas que têm nesta
instância de justiça, e por isso muitas vezes acabam concordando com a
sugestão do juiz no sentido de encerrar o processo, por outro lado, para
muitas vítimas, a idéia de punição realmente adquire outro signifi cado.
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Por exemplo, a expectativa de muitas vítimas é que seus agressores sejam
punidos com o constrangimento diante da autoridade judicial. A situação
é muito comum em casos de agressões entre membros da mesma família
e, dentre eles, destacou-se principalmente os que envolveram agressão
entre cônjuges, cuja situação pode ser representada pela seguinte situação:
o marido agressor se sente constrangido diante do juiz, ao mesmo tempo
que a esposa abre mão de uma punição maior e acaba concordando com o
encerramento do processo. O importante a ressaltar nesse contexto é que
tanto o constrangimento do agressor quanto a decisão da vítima de encerrar
o processo se fundamentam nas suas experiências cotidianas vivenciadas
fora do sistema de justiça.
Com isso, na perspectiva da “comunidade de valores” as práticas
e as representações dos litigantes tornam-se tão essenciais quanto as
práticas e representações dos operadores do direito, já que as pessoas
comuns desempenham um papel importante, e, com isso, também acabam
participando ativamente do processo ritual característico dessas audiências.
Quer dizer, por mais que existam programas de ação previamente
estabelecidos a partir da categorização dos delitos, na justiça informal
criminal deve se considerar também a participação das partes litigantes
e de seus representantes legais. Daí a necessidade de eleger o ritual das
audiências para compreender melhor a lógica de funcionamento da justiça
informal criminal, considerando-se que todos os envolvidos no confl ito têm
a oportunidade de participar do processo.
Em síntese, entre as principais constatações no estudo de caso
que realizamos destacam-se as seguintes: (a) na maioria das audiências
observadas, os juízes conseguiram convencer as vítimas e, em alguns casos,
seus advogados, a encerrar o processo sem aplicação de pena. Essa é,
certamente, uma das principais diferenças em relação à justiça comum,
em que juízes e promotores priorizam a aplicação da punição prevista em
lei para réus infratores. No Juizado, ao contrário, como um dos juízes
manifestou, “o objetivo é encerrar rápido”; (b) a maioria dos confl itos se
referiu à violência doméstica, com mais freqüência na forma de agressão de
maridos ou companheiros contra suas esposas ou companheiras. Percebeu-
se também que, em vários casos, o casal se apresentou com difi culdades
socioeconômicas, além da dependência alcoólica, que foi outra constante
nesses confl itos; (c) em várias audiências, fi cou a impressão de que o mais
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importante para a vítima era fazer com que o réu se sentisse envergonhado
diante da autoridade judicial, ou seja, o constrangimento do acusado diante
do juiz já representaria, em muitos casos, uma forma de punição pela
agressão física ou psicológica sofrida; (d) os magistrados, principais agentes
nas audiências, no intuito de alcançar o acordo e encerrar o processo,
freqüentemente se utilizaram de valores que as partes litigantes reconheciam
como válidos, pois também faziam parte das suas representações.
Concluímos, fi nalmente, ressaltando que uma primeira leitura das
audiências preliminares de conciliação poderia sugerir que, num certo sentido,
a lógica da justiça informal criminal se fundamenta num compromisso
institucional no sentido da rapidez e agilidade. Tal compromisso foi várias
vezes reiterado pelos próprios operadores do direito ao argumentarem que
esta é a principal vantagem do Juizado Especial Criminal. Contudo, assim
como tentamos demonstrar, ao longo do trabalho, nos vários exemplos de
audiências acompanhadas, embora o objetivo de encerrar rápido seja um
fato, a lógica de funcionamento da justiça informal de conciliação não se
explica apenas por esse compromisso. Ou seja, embora uma das principais
justifi cativas para a lei que criou o Juizado Especial Criminal tenha sido a
de tornar a justiça mais ágil para certas demandas, na prática observa-se que
essa instância jurídica se constitui, além de um instrumento de agilização
dos processos, num espaço de institucionalização de outros valores sociais
sobre formas de violência e de punição.
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