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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
CLADEMILSON FERNANDES PAULINO DA SILVA
RELIGIÃO E SERTÃO: A VIDA, A PALAVRA E O
SAGRADO COMO VEREDAS DE LEITURA TEOLÓGICO-
LITERÁRIA PARA A OBRA DE JOÃO GUIMARÃES
ROSA
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2009
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CLADEMILSON FERNANDES PAULINO DA SILVA
RELIGIÃO E SERTÃO: A VIDA, A PALAVRA E O
SAGRADO COMO VEREDAS DE LEITURA TEOLÓGICO-
LITERÁRIA PARA A OBRA DE JOÃO GUIMARÃES
ROSA
Tese de doutorado apresentada em cumprimento
às exigências do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Religião da Faculdade de
Humanidades e Direito da Universidade
Metodista de São Paulo, para obtenção do grau
de Doutor.
Orientador: Prof. Doutor Etienne Alfred Higuet
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2009
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FICHA CATALOGRÁFICA
Silva, Clademilson Fernandes Paulino da
Religião e sertão : a vida, a palavra e o sagrado como veredas de leitura teológico-
literária para a obra de João Guimarães Rosa / Clademilson Fernandes Paulino da
Silva. São Bernardo do Campo, 2009.
238fl.
Tese (Doutorado em Ciências da Religião) -- Faculdade de Humanidades e
Direito, Programa de Pós Ciências da Religião da Universidade Metodista de São
Paulo, São Bernardo do Campo
Orientação : Etienne Alfred Higuet
1. Teologia e Literatura 2. Magalhães, Antonio Carlos de Melo - Crítica e
interpretação 3. Crítica Literária 4. Rosa, João Guimarães, 1908-1967 – Crítica e
interpretação 5. Teologia – América Latina I. Título
CDD 261.58
CLADEMILSON FERNANDES PAULINO DA SILVA
RELIGIÃO E SERTÃO: A VIDA, A PALAVRA E O SAGRADO
COMO VEREDAS DE LEITURA TEOLÓGICO-LITERÁRIA PARA
A OBRA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA
Tese de doutorado apresentada em cumprimento
às exigências do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Religião da Faculdade de
Humanidades e Direito da Universidade
Metodista de São Paulo, para obtenção do grau
de Doutor.
BANCA EXAMINADORA:
___________________________________
Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet (Presidente)
Universidade Metodista de São Paulo – UMESP
___________________________________
Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro
Universidade Metodista de São Paulo – UMESP
___________________________________
Prof. Dr. Paulo Augusto de Nogueira
Universidade Metodista de São Paulo – UMESP
___________________________________
Prof. Dr. João Cesário Leonel Ferreira
Universidade Presbiteriana Mackenzie – MACKENZIE
___________________________________
Prof. Dr. Waldecy Tenório de Lima
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP
À Belinha, à Fran e ao Ni.
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus, de quem também sou: minha esposa Fran, minha filha
Isabela e meu filho Nicolas, que souberam ter amor e paciência durante os
momentos em que me desliguei de tudo e de todos, e vivi minha travessia de
pesquisador.
Agradeço meus pais: Doraci e Severino, que mesmo longe, na constante
preocupação, se fizeram perto.
Agradeço aos colegas: João Luis, Natanael, Reginaldo e Claudinei (meu irmão),
pelo incentivo e pelo apoio dado durante esses últimos anos.
Agradeço à professora Roseli Eitutes, professora de português da Faculdade
Teológica Batista de Campinas, e ao amigo João Luis Ferreira das Neves pelas
revisões feitas no texto.
Agradeço à Missão Batista Vitória, comunidade religiosa da qual faço parte, que
soube, nos momentos mais apertados de tempo, dividir seu pastor com a
pesquisa acadêmico.
Agradeço à Faculdade Teológica Batista de Campinas pelo tempo que lá estive
como professor, também ao Seminário Teológico Batista Grandes Lagos, na
minha Santa fé do Sul, minha “cordisburgo”, lugar de amizades,
companheirismo e conhecimento.
Agradeço ao IEPG e à CAPES pelas bolsas de pesquisa que viabilizaram os
recursos financeiros sem os quais eu não teria concluído o curso.
Agradeço ao Prof. Dr. Antonio Carlos de Melo Magalhães, orientador e
compadre meu, pelo tempo e pela paciência que me presenteou enquanto, como
bons sertanejos, caminhos juntos na pesquisa.
Agradeço ao Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet, que de forma pronta e também
paciente – num segundo momento – conduziu-me pelos caminhos da orientação.
Agradeço, por fim, a Deus, que, em minha vida, nunca precisou existir para
haver, e que, nos meus idos sofrimentos, sempre foi presente e constante.
Amém...
SILVA, Clademilson Fernandes Paulino da. Religião e Sertão: a vida, a palavra e o
sagrado como veredas de leitura teológico-literária para a obra de João Guimarães
Rosa. São Bernardo do Campo: UMESP, 2009. (Tese de Doutorado).
RESUMO
A presente tese, de título: Religião e Sertão, é uma tentativa de ler, a partir do viés do
diálogo entre religião, teologia e literatura, e do método da correspondência de
Antonio Carlos de Melo Magalhães, a obra do literato mineiro João Guimarães Rosa.
Para tanto, a tese segue por meio de três grandes correspondências encontradas não
na obra rosiana como também, de forma comum e constante, em quase todas as
pesquisas que seguem a interface teologia e literatura: palavra, vida e sagrado. Vida
como processo de existência a travessia do homem humana, palavra como meio de
manifestação dessa existência e sagrado como forma de explicação para essa
existência. Desse modo, os quatro capítulos da tese seguem essas correspondências:
o primeiro, com uma discussão sobre o próprio diálogo: religião, teologia e literatura,
seguido dos outros três, como veredas de leitura: vida, palavra e sagrado.
Palavras-chave: Teologia, literatura, diálogo, correspondência, João Guimarães Rosa.
SILVA, Clademilson Fernandes Paulino da. Religion and Hinterland: the life, the
word and the sacred as paths of literary-theological reading for the work of João
Guimarães Rosa. São Bernardo do Campo: UMESP, 2009. (Doctorate Thesis).
ABSTRACT
This present thesis, titled: Religion and Hinterland, is an attempt to read, from the
bias of the dialogue between religion, theology and literature, and the
correspondence method from Antonio Carlos de Melo Magalhães, the work of the
writer from Minas Gerais, João Guimarães Rosa. Thus, the thesis follows by three
major matches found not only in Guimarães Rosa work, but also, in a common and
constant form, in almost all studies that follow the theology and literature interface:
word, life and sacred. Life as the existence process the crossing of the human
being, word as the existence manifestation, and sacred as the reason for this
existence. Thus, the four chapters of the thesis follow this correspondences: the first
chapters with a discussion about the dialogue itself: religion, theology and literature,
followed by three others chapters, as paths of reading: life, word and sacred.
Keywords: theology, literature, dialogue, correspondence, João Guimarães Rosa.
SUMÁRIO
Introdução Geral ....................................................................................................
10
I. Religião e Sertão: veredas e Veredazinhas .........................................................
18
Introdução ...........................................................................................................
18
1. Teologia e Literatura: primeiras veredas ........................................................
20
1.1. Veredas na Europa: Charles Moeller .........................................................
20
1.2. Literatura e teologia latino-americana .......................................................
25
1.3. Teologia, antropologia e literatura: veredas em Antonio Manzatto ..........
31
2. “Deus no Espelho das Palavras”: sobre o método da correspondência ..........
35
3. Textos Sagrados e Literaturas Profanas: os textos e suas veredas ................. 44
3.1. A Bíblia como literatura ............................................................................
47
3.2. Bíblia: um texto religioso em itinerário .....................................................
50
3.3. A Bíblia e sua literariedade .......................................................................
54
3.4. Textos sagrados e literaturas profanas: palavras em palimpsesto ............. 63
Conclusão ...........................................................................................................
68
II. A Vida como Vereda: o humano e sua existência como caminho de diálogo ..
70
Introdução ...........................................................................................................
70
1. Primeira Problematização: mimesis e verossimilhança ..................................
71
A arte poética: Platão ...............................................................................
72
A arte poética, mimesis: Aristóteles ......................................................... 72
Verossimilhança ....................................................................................... 74
2. A Antropologia Contida: o social e o antropológico como meios de leitura . 76
O sertão social ..........................................................................................
77
O humano provisório ................................................................................
81
O pacto, a luta e a ascensão .....................................................................
88
3. Entre as margens: teologia e literatura ........................................................... 91
4. A Vida como Vereda: um tema humano em correspondência entre teologia
(Juan Luis Segundo) e literatura (João Guimarães Rosa) ...................................
95
Uma literariedade meio teológica ............................................................
96
Uma teologia meio literária ..................................................................... 100
5. Sertão, solidão e sofrimento: caminhos de correspondência ..........................
106
Das explicações insuficientes ...................................................................
109
Das questões do destino: a pedagogia do sofrimento ..............................
112
Da liberdade e do sofrimento: a travessia do homem humano ................
114
Conclusão ...........................................................................................................
117
III. A Vereda da Palavra: questões de linguagem em religião, teologia e
literatura .................................................................................................................
119
Introdução ...........................................................................................................
119
1. Questões de Linguagem: literatura e religião .................................................
120
Religião e Sagrado: delimitação de conceitos ......................................... 120
Palavra, religião e literatura ....................................................................
124
2. Texto sagrado e literatura profana em João Guimarães Rosa ........................ 128
2.1. Palimpsestos: um pequeno exemplo ..........................................................
129
2.2. Citações Diretas e Influências: leituras intertextuais de Guimarães Rosa .
133
2.2.1. Leituras de Guimarães Rosa em Platão e Plotino ................................
135
2.2.2. Leituras espirituais de Guimarães Rosa: Sagarana ..............................
139
Pedrês e Lalino Salãthiel ..........................................................................
140
2.3. “A hora e a vez de Augusto Matraga”: leituras do evangelho e do
cristianismo .......................................................................................................
143
2.4. O corpo da palavra em Miguilim ...............................................................
150
2.5. Sertão e SerTão: o “Grande Sertão: Veredas” sincrético ..........................
156
3. Uma literatura não-profana .............................................................................
163
Conclusão ...........................................................................................................
170
IV. O Sagrado rosiano: leituras no “grande sertão: veredas” ................................
172
Introdução ...........................................................................................................
172
1. Religião e Sertão: o sagrado como mais do que um tema ..............................
173
O sertão como espaço da existência e da religião ...................................
176
O sertanejo Riobaldo: leitor e intérprete da experiência humana ...........
179
2. Deus e o Diabo: o muito misturado ................................................................
183
Leituras sobre Deus ..................................................................................
184
Leituras sobre o diabo ..............................................................................
187
Deus e o diabo nas veredas do Grande Sertão .........................................
189
3. O sagrado, a palavra e a vida ..........................................................................
199
A margem da palavra: memória e reflexão em Riobaldo .........................
202
A vida: um negócio muito perigoso ..........................................................
205
4. A vereda, veredazinha de João Guimarães Rosa ............................................
208
A condição humana: a matança dos cavalos na Fazenda dos Tucanos ...
209
A vereda: reflexões sobre a vida .............................................................. 212
As veredazinhas: conclusões sobre a vida e sobre Deus ..........................
216
Conclusão ...........................................................................................................
218
Conclusão Geral .....................................................................................................
221
Bibliografia ............................................................................................................
231
10
“No princípio era a Palavra e a Palavra estava com Deus e a
Palavra era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito
por meio dele e sem ele nada foi feito. O que foi feito nele era a
vida, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilha nas trevas, mas as
trevas não a apreendem. Houve um homem enviado por Deus. Seu
nome era João...”
1
.
INTRODUÇÃO
Talvez a primeira fala desta tese deveria ser já uma defesa da possibilidade de
um diálogo entre a teologia e a literatura, uma proposta que, dentro do campo dos
estudos de teologia ou de ciências da religião é algo relativamente novo. Aponto isso
porque sei que o que de fato sequer saber, em tese e em princípio, é a razão dessa
escolha, do diálogo e não de outra pesquisa; a razão do próprio diálogo, em si; e a
razão do autor ou da obra escolhida. Também porque à teologia, em alguns dos
estudos que pressupõe esse diálogo, foi dado um papel de protagonista, enquanto à
literatura um papel de coadjuvante ou mesmo de figuração, quando não apenas de
cenário, como elemento ilustrador para aquilo que a teologia fala ou, mesmo antes da
teologia falar, como aquilo que serve de aporte para a fala teológica. Mas, como já se
dirá no primeiro capítulo desta tese, isso não se configura como diálogo, é apenas
fala e ilustração ou ilustração e depois fala, mas quem fala, de fato, seria a teologia.
Disso, como primeiro contato com o diálogo e como primeira constatação, surgiria o
primeiro questionamento: que diálogo é esse e como ele se daria?
Para todo o diálogo se pressupõe sempre uma interlocução, de um lado uma
parte e do outro lado a outra parte, onde concordância ou não sobre aquilo que se
está falando. Da mesma forma, pressupõe-se que o que se fala deva ser assunto
comum, tema comum a ambos, que haja correspondência e que, no diálogo, a
nenhum dos lados seja dado o saber final ou máximo daquilo que foi dito, pois, no
diálogo, ganhos e perdas não devem ser contabilizados, mesmo que haja, e haverá,
1
Evangelho de João, capítulo 01:01-06. Bíblia de Jerusalém, nova edição, revista e ampliada. São
Paulo: Paulus, 2003.
11
discordâncias. No entanto, o que se segue é uma leitura de Guimarães Rosa e não há,
como houve em minha dissertação, o segundo do diálogo: João Guimarães Rosa em
diálogo com Juan Luis Segundo. Porém, ainda pressuponho diálogo, já que agora
quem fala, em parte, é a literatura. E fala esperando uma resposta, pois é uma tese
que não está sozinha, faz parte de uma procura de teólogos e cientistas da religião
por interlocutores que estejam, principalmente fora, mas não excluídos, do fazer
teológico. Buscando exemplificar, tomo o próprio “Grande Sertão: Veredas” como
exemplo: Riobaldo é a narrativa literária que busca em seu interlocutor mudo, mas
presente, “o senhor doutor”, a concordância ou a discordância para sua fala: “o sério
pontual é isto, o senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo; e escute
desarmado
2
. Nisto está o diálogo: a literatura, de forma plausível e suficiente, fala
sobre aquilo que a teologia costuma falar mais, e, desse modo, espera que seja
escutada, escutada além daquilo que está aparentemente falando e, do mesmo modo,
espera que sua interlocutora a escute desarmada.
I
Guimarães Rosa certamente é um dos maiores escritores brasileiros. Também
é um representante significativo da literatura de língua portuguesa e, pelas muitas
traduções de sua obra, também é um autor universal. por isso, qualquer pesquisa
que envolvesse seu nome e sua obra, já, por si, seria justificável. Da mesma forma,
para pesquisas e estudos em religião, Guimarães Rosa é um nome pelo qual não se
pode passar de forma desapercebida, ao largo. E isso não se justifica apenas e a partir
das falas de força literária do jagunço Riobaldo sobre religião, aquela que
desendoidece; sobre Deus, que existe por intermédio das pessoas; e sobre o diabo:
“o diabo na rua no meio do redemunho”. Mas também por toda a mística
3
que
envolve a obra, do Augusto Matraga ao Miguilim, do Grivo ao Teresinho.
2
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.125.
3
“Apenas na solidão pode-se descobrir que o diabo não existe. E isto significa o infinito da felicidade.
Esta é a minha mística”. nter LORENZ. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Eduardo de Faria
COUTINHO (org). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro / Brasília: Civilização Brasileira / Instituto
Nacional do Livro, 1983. (Coleção Fortuna Crítica). p.73.
12
Rosa é um alquimista da palavra e, quando escreve, correndo o risco de
explodir, como todo alquimista
4
, mistura na palavra a vida, e na vida mistura o
sagrado. Essa é a sua preocupação maior. É Curt Meyer-Clason, seu tradutor para o
alemão, que diz:
“O senhor [Guimarães Rosa] acreditará se eu lhe disser que o mais
importante (para mim) nesta narrativa não existe mais em nossa
latitude: o constante sobe e desce da alma, como espelho do
mundo, a consciência como medida e meio de todas as coisas,
como balança onde se pesa se e como o homem se afirma diante do
homem, diante da criação, diante de Deus
5
. [...] “O senhor é um
demiurgo que paira sobre as suas águas nebulosas e ordena o
desordenado”
6
.
Por essa razão, o autor que faz de seus livros uma forma de preocupação e
reflexão sobre a vida
7
e sobre o divino, que considera a língua como seu elemento
metafísico
8
, é, tanto para a teologia ou mesmo para os estudos de religião, lugar,
fonte e espaço para o diálogo.
Em Guimarães Rosa se percebe, mesmo numa leitura rápida, que a
preocupação não é apenas de estética ou mesmo de exclusiva preocupação poética,
como se só isso já não justificasse uma pesquisa, e justifica. Mas, como a questão é o
que para ser dito à teologia, o diálogo com a teologia, vê-se também essa clara
preocupação com aquilo que diz respeito à vivência humana e sua relação com aquilo
que o transcende, seja esse “aquilo” os imaginários sobre Deus, sobre o diabo, sobre
outras forças sobrenaturais, “endemoninhamentos”, rezas, crendices etc. Tudo isso,
4
“Escrever é um processo químico; o escritor deve ser um alquimista. Naturalmente, pode se explodir
no ar. A alquimia de escrever precisa do sangue do coração”. Id. Ibid. p.85.
5
Maria Apparecida Faria Marcondes BUSSOLOTTI (org). João Guimarães Rosa: correspondência
com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.198. (Carta de
Curt Meyer-Clason de 22 de agosto de 1964).
6
Id. Ibid. p.271. (Carta de Curt Meyer-Clason de 02 de abril de 1965).
7
“A literatura tem de ser vida! O escritor deve ser o que ele escreve. [...] Somente renovando a língua
é que se pode renovar o mundo. Devemos conservar o sentido da vida, devolver-lhe esse sentido,
vivendo com a língua. Deus era a palavra e a palavra estava com Deus. Este é um problema
demasiado sério para ser largado nas mãos de uns poucos ignorantes com vontade de fazer
experiências”. Günter LORENZ. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Eduardo de Faria COUTINHO
(org). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro / Brasília: Civilização Brasileira / Instituto Nacional do Livro,
1983. pp.84e88.
8
Günter LORENZ. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Eduardo de Faria COUTINHO (org).
Guimarães Rosa. Rio de Janeiro / Brasília: Civilização Brasileira / Instituto Nacional do Livro, 1983.
p.80.
13
em certa medida, chama o leitor teólogo ou o leitor das ciências da religião para o
diálogo, para a pesquisa e para a reflexão.
II
Acrescenta-se também a isso, que tudo ainda é meio tortuoso, a
compreensão de que um caminho para o diálogo precisa ser bem definido e bem
delimitado. Como tudo ainda é muito provisório, a escolha desse caminho limitador
faz-se extremamente necessário, que para o diálogo entre “saberes” diferentes é
preciso um método guia, e, por aqui, a escolha é feita pelo método da
correspondência, proposta de Antonio Carlos de Melo Magalhães
9
. E tomo esse
caminho sabendo que o método não é único e é apenas meio para a leitura da obra
rosiana, meu objeto e minha preocupação. Pois acredito que seja importante
salientar, desde já, que não se pretende provar o método como método eficaz para o
diálogo entre teologia e literatura, fazendo da tese um texto-obra teórico sobre as
questões do diálogo entre teologia e literatura, mas sim, fazer uma leitura da obra
rosiana a partir da preocupação do diálogo com a teologia e, para tanto, utilizar o
método, que julgo ser o mais adequado:
“O método se constrói sempre em diálogo com outros caminhos.
Um caminho não é somente o espaço informe, mas aquilo que em
grande parte determina o jeito de caminhar do sujeito. [...] Cami-
nhante e caminho, pesquisador e método descobrem novidades,
alteram formas, mas mantêm uma certa relação de
indissociabilidade, numa clara dependência mútua escolhida pelo
pesquisador”
10
.
9
Coloco essa citação em nota porque ela será melhor citada e explicada em tempo apropriado dentro
da tese: “[...] na correspondência parte-se do princípio de que essa relação precisa ser radicalmente
superada na teologia e que precisamos encarar a possibilidade de propiciar um diálogo no qual,
seguindo o conceito de correspondência em matemática, a cada elemento de um conjunto são asso-
ciados um ou mais elementos de outro. Numa formulação mais voltada para o mundo da teologia, a
cada elemento considerado da revelação na Bíblia e na tradição teológica, podem ser associados um
ou mais na literatura mundial. A cada narrativa considerada compreensão da fé, que se associar
outra dentro da literatura. A cada forma de anúncio de uma verdade considerada fonte da fé, há que se
associar outra na experiência das pessoas e nas interpretações literárias. Com isso, Bíblia e tradição
mantêm-se como interlocutoras, sem elas não haveria correspondência; perdem, entretanto, seu lugar
de normatividade única do saber teológico”. Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus no
Espelho das Palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. (Coleção:
Literatura e Religião). 205p.
10
Id. Ibid. p.204.
14
De modo que o literário seja respeitado como interlocutor no diálogo, não servindo
apenas como servo na exposição de uma realidade social e nem como uma pergunta
humana que carece de uma resposta vinda de um outro saber mais completo e
capacitado para isso. Bem como que a teologia, devendo se manter com sua
especificidade própria e com seus elementos próprios de leitura e de compreensão do
mundo: a Bíblia e a tradição, mantenha-se, sendo assim também respeitada, como
teologia, fazendo com que o diálogo seja realmente possível
11
.
Na correspondência, e essa é uma preocupação do método, a literatura deve
ficar no seu espaço comum, como forma de linguagem humana na expressão de sua
existência, consciência e desejos, do mesmo modo como a teologia, que, de outra
forma, também deve se manter consciente de que não é mais “lugar de normatividade
única do saber teológico”
12
. No diálogo sobre questões que antes lhe eram comuns e
exclusivas, ela (a teologia) é agora interlocutora.
“O reconhecimento da correspondência é também um pressuposto
para o reconhecimento de que o Deus que adoramos e nomeamos
tramita no espelho das palavras. Nenhuma palavra é mera
realização de outra. Palavras se correspondem na força da
experiência, na precisão e alcance da nomeação e na coragem de
escrever sobre o mistério de nossas vidas”
13
.
Com essa compreensão em mente, a tese pretende caminhar pela leitura de
Guimarães Rosa buscando ler os temas que nele encontro: a vida (existencial ou
socialmente pensada), a palavra (como forma de intertextualidade) e o sagrado
(como experiência humana com aquilo que o transcende), como os grandes lugares
de correspondência entre a literatura rosiana e a teologia, lugar de onde falo. Tais
lugares, que passo a chamar de veredas, em certa medita, não servirão apenas para a
leitura de Rosa, mas talvez também para toda a grande literatura que a isto se propõe:
ler e escrever sobre o mistério da vida, dialogar com verdades formuladas
anteriormente, as influências, e, por fim, nominar o que não se nomina.
11
Por isso tomo muito cuidado em manter teologia como teologia e literatura como literatura,
esforçando-me, quando compreendo o valor teológico do literário, em usar expressões como “fazer
teológico” e meia-teologia, buscando uma compreensão de que o theos não é assunto nem
preocupação única de uma logia específica.
12
Id. Ibid. p.205.
13
Id. Ibid. p.207.
15
Tal compreensão também permite leituras diferenciadas em Rosa. Percebe-se
que os textos carregam, por carregar essa expressão do sagrado, também uma
proposta de religião que se faça religião mesmo, em si, enquanto texto literário-
religioso, o que configuraria uma certa forma de pensar teológico fora da teologia, de
uma teologia-literária, pensada, dada e expressada na cultura, numa teologia da
cultura. Assim, de forma mais específica, a preocupação passa a ser de, nessa
tentativa de leitura a partir da interface teologia e literatura, pressupondo um método,
o método da correspondência, e um caminho: a vida, a palavra e o sagrado, como
metodologia, como já dito, encontrar o que é sagrado, religioso e teológico dentro de
uma obra literária, a obra rosiana. E digo isso sabendo que o religioso, em Rosa, não
é só tema, é proposta do texto, é preocupação em si mesmo, é texto que se propõe ao
sagrado.
Nessa forma literária, sem proposta epistemológica obviamente, Guimarães
Rosa, dá-nos também, dentro da interface teologia e literatura, a partir dos grandes
lugares de correspondência que nele encontro, a possibilidade da ampliação da
própria correspondência. A vida, a palavra e o sagrado, além de três grandes lugares
de correspondência que encontro no diálogo entre teologia e literatura, são os três
grandes lugares de correspondência que, em Guimarães Rosa, revelam o que de
possível no diálogo entre teologia e literatura e o que de religião na literatura.
Nesse caso, é ler a literatura não como algo que possui um caráter de expressão
(ela mostra como é) da religião, mas também de participação no religioso (ela
também é). É ler a literatura como expressão de um sagrado que acontece na
existência humana e que não pertencente ao religioso institucionalizado, ao religioso
confessional, mas ao que é humano. É dizer também que algumas obras literárias
pertencentes à grande literatura podem ser, além de leitoras do cotidiano e da
religiosidade contida nesse cotidiano, expressões dessa religiosidade, como algo
contido pela religiosidade, mas também revelador do que pertence à religião.
III
Religião e Sertão: a vida, a palavra e o sagrado como veredas de leitura
teológico-literária para a obra de João Guimarães Rosa, título da tese, nasce dessas
16
primeiras compreensões. Desse modo, ela segue por essas veredas com quatro
capítulos: 1. O primeiro, religião e sertão: veredas e veredazinhas, é uma discussão
sobre os caminhos que as pesquisas de religião e teologia em literatura têm trilhado,
o que, desde o início não se propôs ser apenas uma leitura do estado atual da questão,
até porque, em teologia e literatura, o estado ainda é atual, que a pesquisa nessa
área específica é algo relativamente novo. Foram trabalhados autores da teologia
como Juan Luis Segundo, que rapidamente passa por discussões em literatura;
Charles Moeller, que possui uma vasta obra que discute cristianismo e literatura,
mostrando distanciamentos e proximidades entre alguns escritores europeus e a
teologia cristã católica do século XX; Pedro Trigo e Gustavo Gutiérrez, ambos
teólogos do contexto latino americano, que se utilizam da literatura como parceira de
denúncia no seu discurso teológico; algo não muito distante da proposta de
antropologia contida de Antonio Manzatto, esse no contexto brasileiro, com livro
de tulo “Teologia e literatura”; e Antonio Magalhães, que oferece o meio para a
caminhada nesta tese, a correspondência entre teologia e literatura. Na segunda parte
do primeiro capítulo toma-se outro – mas não muito diferente caminho. São
apresentações de questões de texto, texto sagrado e literatura profana, com autores
como Régis Debray, Jack Miles, Northrop Frye e Harold Bloom. Até se concluir o
capítulo com Salma Ferraz e Eli Brandão, que levam as discussões de teologia e
literatura para o espaço das relações intertextuais, os palimpsestos.
2. O segundo e terceiro capítulos, procuraram perder essa compreensão
teórica – sem no entanto abandoná-la para poder entrar mesmo nas leituras da obra
de Guimarães Rosa pelas veredas da vida e da palavra. A Vida como Vereda: o
humano e sua existência como caminho de diálogo, o segundo capítulo, com
preocupações em verossimilhança, optou por dois caminhos: um com a ajuda de
Willi Bolle, crítico da obra de Guimarães Rosa, e Antonio Manzatto, com sua
antropologia contida, num caminho mais de leituras sociais, e o outro, que tomou
minha dissertação de mestrado como base, com um caminho mais de existência:
liberdade e sofrimento, que toma Juan Luis Segundo como o outro do diálogo. A
Vereda da Palavra: questões de linguagem em religião, teologia e literatura, o
terceiro capítulo, preocupou-se em delimitar primeiro, de forma rápida e não muito
teórica ou exaustiva, as questões de linguagem de religião e de literatura, numa
tentativa de limitação dos termos. Depois, com a apresentação de um palimpsesto
17
exemplo, Fita verde no cabelo, fez-se incurso em leituras de Guimarães Rosa:
citações diretas e influências; leituras de Guimarães Rosa, reescritos e lidos em sua
obra; leituras espirituais e intertextualidades. Por fim, com Sertão e SerTao, com a
ajuda de Heloisa Vilhena de Araujo e Francis Úteza, foi feita uma leitura das
influências taoístas e tomistas no “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa.
3. O quarto e último capítulo, de cunho conclusivo, O Sagrado rosiano:
leituras no “Grande Sertão: Veredas”, tomou a vereda do sagrado como caminho e
o “Grande Sertão: Veredas” como base de leitura. O que se procurou com o capítulo
foi demonstrar que na obra de Rosa, o sagrado, antes de ser um tema, é uma
preocupação, é um convite à reflexão. A palavra rosiana é embebida de vida, de
religião, de teologia e de experiências com o sagrado. Dessa forma, Deus e diabo
foram lidos como personagens do “Grande Sertão: Veredas”, mas, principalmente,
foram lidos como uma preocupação de existência, de formulação e organização, e de
interpretação de Riobaldo.
Assim, segue a presente tese como dito mais à frente em canoa
afundadeira, que, nessas altas idéias, no diálogo entre religião, teologia e
literatura, ainda e também navego mal: “Sou um sertanejo, nessas altas idéias
navego mal. Sou muito pobre coitado”
14
. “Eu quase que nada sei. Mas desconfio de
muita coisa. O senhor concebendo, eu digo: para pensar longe sou cão mestre o
senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos
os matos, amém!”
15
14
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.30.
15
Id. Ibid. p.31.
18
I. RELIGIÃO E SERTÃO: VEREDAS E VEREDAZINHAS
“[...] Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande
sertão! Não sei. Ninguém não sabe. Só umas raríssimas pessoas –
e só poucas veredas, veredazinhas”
1
.
Introdução
A aproximação em diálogo da teologia ou das ciências da religião com a
literatura, proposta relativamente nova, como dito na introdução desta presente tese,
possui um universo de possibilidades metodológicas bastante diversificado. E, dessa
forma, por possuir essas muitas possibilidades, torna-se matéria extremamente
delicada para o trato do pesquisador, que, como caminhante nessas veredas de
diálogo, pode, na verdade, não dialogar. O pesquisador, dependendo de sua
preocupação e de seus objetivos com o diálogo, pode supervalorizar tanto a teologia
como a literatura e, no momento da pesquisa e organização do pensamento, colocar,
numa relação de importância, uma acima da outra. A isso poder-se-ia acrescentar
também a problematização levantada por Karl-Josef Kuschel: Deus como péssimo
princípio estilístico”
2
e a arte como “um mau princípio para a fé”
3
, mostrando os
distanciamentos impostos pelo dois lados para o diálogo e, desse modo, as
dificuldades de aproximo para quem pretende dialogar.
Contudo, as questões levantadas acima, não podem servir de empecilho para
o não acontecimento de um diálogo interdisciplinar entre teologia e literatura
4
.
1
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.116.
2
Karl-Josef KUSCHEL. Os escritores e as escrituras: retratos teológico-literários. (tradução: Paulo
Astor Soethe, Maurício Cardoso, Elvira Horstmeyer, Ana Lúcia Welters). São Paulo: Loyola, 1994.
p.14.
3
Id. Ibid. p.30. Para maiores informações sobre o assunto, que se no contexto europeu, alemão,
para ser mais específico, consultar também Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus no espelho
das palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. pp.21ss.
4
Por enquanto os termos usados: teologia, religião, sagrado, literatura e outros, não serão
exemplificados de forma detalhada, tudo ainda será introdutório. No decorrer da pesquisa os termos
serão melhor explicados e objetivamente aplicados, principalmente teologia e literatura e religião e
literatura.
19
que, como dito por Juan Luis Segundo, a literatura é lugar de reflexão sobre a vida e
da relação dessa vida com o divino:
“Raramente, os teólogos levam em conta, como argumentação
válida para suas elaborações especulativas, a maneira com que
muitas vezes os literatos tratam temas teológicos. Parece que não
os consideram como dignos da mesma atenção que se presta às
teorias filosóficas. Não obstante, creio que um erro nisso, pois,
além de tais escritores refletirem, às vezes, muito mais que os
próprios filósofos, os elementos condicionantes mais populares do
modo de pensar de uma época, eles têm a vantagem de que seu
interesse cultural não vai se precaver tanto em ultrapassar o umbral
do religioso e em aplicar a ele o senso comum e a liberdade
crítica”
5
.
Assim, a teologia e as ciências da religião, levando todas essas questões em
consideração, não podem deixar de lado um material tão vasto sobre a condição
humana (antropologia) e a sua visão de Deus (teologia). Pois, como afirma Juan Luis
Segundo, no texto citado acima, os temas teológicos são muito bem apresentados por
literatos. Os mesmos refletem, para usar a mesma frase de Segundo, “[...] os
elementos condicionantes mais populares do modo de pensar de uma época [...]”
6
,
tanto com relação a si mesmos (como humanos no mundo), como de sua relação com
o divino (a religião).
Este primeiro capítulo, Religião e Sertão: veredas e veredazinhas, como
capítulo introdutório, procura exatamente por esses primeiros encontros. No entanto
o faz buscando ser mais do que uma visita ao “estado atual da questão”, e, desse
modo, objetiva analisar as veredas visitadas, refletir sobre esses encontros,
apropriar-se daquilo que é possível e importante para a atual pesquisa, e, por fim,
consciente de suas limitações, começar a pensar em um caminho próprio para a
leitura da obra literária de João Guimarães Rosa.
5
Juan Luis SEGUNDO. O Inferno como Absoluto Menos: um Diálogo com Karl Rahner. (tradução:
Magda Furtado de Queiroz). São Paulo: Paulinas, 1998. p.124. Juan Luis Segundo, nesse texto, está se
referindo especificamente aos irmãos Grimm da Alemanha e ao escritor Hans Cristian Andersen da
Dinamarca: Contes, d’Andersen. Paris, Mercure de France, 1954.
6
Id. Ibid. p.124.
20
1. Teologia e Literatura: primeiras veredas
Com o primeiro ponto deste capítulo busco um caminho que seja mais do que
apenas a apresentação de alguns autores e seus caminhos pelo diálogo entre teologia
e literatura, como dito logo acima e como em alguns outros momentos buscar-se-á,
por mais de uma vez, justificar: o texto procura ser mais do que uma apresentação do
estado atual da questão. O texto que segue é essa busca, começa em veredas
européias, passa por caminhos latino-americanos, até chegar ao contexto brasileiro.
1.1. Veredas na Europa: Charles Moeller
Começo minha travessia, travessia de pesquisador, por minhas veredas,
veredazinhas dum sertão sem fim, por onde umas raríssimas pessoas caminharam
e caminham, trabalhando com Charles Moeller (1912-1986)
7
, teólogo católico, belga,
que, num clássico teológico apologético de seis volumes, tratou, em língua francesa,
na década dos cinquenta do século passado, o tema aqui apresentado: teologia e
literatura em diálogo. Dos seis volumes, tive contato apenas com os três primeiros e
em português, edição de 1958, onde o autor, preocupado em demonstrar sua leitura
de mundo, seu sentimento pastoral e sua preocupação teológica apologética, utilizou-
se da literatura, trabalhando com vários autores e autoras, para, como o próprio título
de seus seis volumes propõe, falar de Literatura do Século XX como fonte de leitura
7
Nascido em 18 de janeiro de 1912 em Bruxelas, Charles Moeller foi um grande leitor dos clássicos
gregos, dos clássicos cristãos, dos clássicos europeus: Dante, Shakespeare e Nietzsche, além de
Dostoievski; mas, e, principalmente, leitor da literatura do século XIX e XX, autores de seu tempo,
conforme diz sua biografia e conforme suas obras demonstram. Foi professor na Faculdade de Saint-
Pierre em Jette, onde foi nomeado professor em 1937. Também foi professor em Louvain (1950).
Além de membro da L'Académie royale de langue et de littérature françaises de Belgique de 18 de
abril de 1970, ao dia 3 abril de 1986, dia de sua morte. Autor de vários livros, Moeller começou a
publicar sua grande obra em 1953, com o primeiro volume de Cristianismo e Literatura no Século XX,
com o subtítulo o silêncio de Deus. No mesmo ano publicou o segundo volume, com o subtítulo A
em Jesus Cristo, seguido pelo terceiro: Esperança dos homens, de 1957, o quarto: L'espérance en
Dieu notre Père, de 1960, o quinto: Amour des hommes, de 1975, e o sexto, póstumo, deixado escrito
de próprio punho: L'exil et le Retour, publicado em 1993. Sua carreira religiosa e teológica também
foi bastante significativa. Moeller fez parte do conselho do Concílio Vaticano II; em 1968 foi
convidado para participar da redação do Esquema XIII, que se transformou, posteriormente, na
Constituição Pastoral Gaudium et Spes (a Igreja no Mundo); foi, por dois anos em Roma, sub-
secretário da Congregação da Doutrina da Fé; também foi convidado pelo papa Paulo VI para dirigir o
Instituto Ecumênico de Jerusalém, onde, em 1972, tornou-se secretário. Além disso, Moeller, para
além de suas muitas obras sobre literatura – todas dialogadas com a teologia –, produziu vários artigos
de fé. Pesquisa feita no site
da L'Académie Royale de Langue et de Littérature Françaises de
Belgique, www.arllfb.be, no dia 09/08/2007 às 11h20m.
21
para os acontecimentos e inquietações culturais do mesmo século, e, do mesmo
modo, falar, como evento e instituição eclesiástica contra-cultural, do Cristianismo,
que ele parece considerar leitor preocupado e privilegiado deste contexto, além, é
claro, de detentor exclusivo da revelação, do dogma, do credo, da moral e da ética e,
como não poderia deixar de ser, da fé.
Tendo não como objetivo resenhar o autor, mas apenas apresentar o método
de aproximação-diálogo entre teologia e literatura que ele tem, tomo, como principal
preocupação neste momento, apontar as veredas pelas quais o autor se enveredou.
Moeller deixa claro, enquanto teólogo e sacerdote e é isso o que ele é , o que
deseja encontrar na literatura, quais os limites que a mesma possui e, a partir de seu
tema central
8
, o modo como fará o diálogo. E é esse o caminho não sem antes
mostrar seus próprios limites – que o autor vai propor fazer:
“Meu intuito, neste volume [também nos outros], é dar algumas
lições de teologia: a teologia tem imprensa [sic], muitas vezes
por culpa dos teólogos. Contudo parece-me possível encarnar
algumas verdades cristãs essenciais com a ajuda das obras literárias
contemporâneas. É possível que perseguindo duas lebres ao mesmo
tempo, a da crítica literária e a do catecismo, eu deixe escapar
ambas. Receio que nem os teólogos nem os literatos fiquem
satisfeitos. É perigoso a gente instalar-se numa fronteira. Mas é
indispensável que alguém se afoite, para que outros, depois dele,
façam melhor”
9
.
Não buscando fazer melhor não é essa a minha intenção ou preocupação –,
mas fazendo depois, num outro tempo, não consigo, como pesquisador, na
aproximação-diálogo entre teologia e literatura feita por Charles Moeller, ver um
lugar fronteiriço. Ele escolheu, assim como todos têm e terão que escolher, um lugar
de onde falar, e esse lugar está bem definido em sua obra:
“[...] se uma coisa que me preocupa, é descobrir os caminhos
secretos que ligam as verdades teológicas que encontro na Bíblia,
nos Padres e na liturgia, com as verdades mais diretamente
8
Os temas são, como melhor explicados à frente, apresentados pelos subtítulos dos volumes.
9
Charles LLER. Literatura do Século XX e cristianismo: o silêncio de Deus. São Paulo:
Flamboyant, 1958. (Volume I). pp.18-19.
22
humanas que me ensinam o testemunho literário dos meus
contemporâneos”
10
.
Seu objetivo, do mesmo modo, também é claro:
“Eu não creio no poder das verdades que se transmitem de boca em
boca, de alma para alma. Baseando-me no testemunho de autores
modernos, espero despertar o interesse de meus irmãos em
humanidade e levá-los a compenetrar-se melhor das bases da sua
fé”
11
.
Assim, Charles Moeller elabora seu método de diálogo num sistema de
observação biográfica do literato
12
, levantamento das relações existentes entre essa
biografia e a obra analisada
13
e, por fim, uma refutação
14
ou aproveitamento
15
teológico do autor e da obra. O que sempre se faz levando em consideração o tema
principal de cada volume, apontado pelos subtítulos dos mesmos: o silêncio de Deus,
a em Jesus Cristo e esperança dos homens, que caberiam num tema comum: o
10
Id. Ibid. p.465.
11
Id. Literatura do culo XX e cristianismo: a em Jesus Cristo. São Paulo: Flamboyant, 1958.
(Volume II). p.28.
12
Falando de André Gide, o autor diz: “Debruçando-me sobre o seu drama pessoal, com luzes da
teologia e do sacerdócio (como um confessor, poderia mesmo dizer), foi-me possível, segundo creio,
entrever o despedaçamento da sua vida e melhor separar sua obra, que a Igreja acaba de colocar no
Index, da sua pessoa, que ninguém tem o direito de dizer condenada aos olhos da misericórdia”. Id.
Literatura do Século XX e cristianismo: o silêncio de Deus. São Paulo: Flamboyant, 1958. (Volume
I). p.16. Contudo, não é apenas isso o que me parece acontecer.
13
O melhor exemplo disso, dentro da obra de Moeller, é André Gide: “A obra gideana prova esta
verdade terrível; mas Deus sabe o verdadeiro “drama de AndGide”. Vou talvez causar espanto,
mas julgo dever dizer, como sacerdote, que nenhum crítico tomou em conta em seu verdadeiro peso
humano o drama patológico da sua perversão sexual: as cartas de 1914 são, a este respeito, de tal
modo claras, que se impõe a máxima misericórdia para julgar a sua pessoa. Gide queria ser
compreendido. Nunca se ouviu bastante essa voz queixosa que ressoará até ao fim em seus escritos”.
Id. Ibid. p.155.
14
“Sartre apaga, com uma penada, vinte séculos de história cristã, sem uma investigação séria, apenas
em virtude de uma opção prévia em favor do “racionalismo materialista” ou, se se prefere, segundo
Gilbert Varet, do “empirismo dialético”.” Id. Literatura do culo XX e cristianismo: a em Jesus
Cristo. São Paulo: Flamboyant, 1958. (Volume II). p.80.
15
Moeller, citando personagens de Joseph Malègue no livro Augustin ou le Maître est , diz: “O
romance inteiro é dominado por uma galeria de figuras santas: Maria, a pequena ald viçosa e
asseada, recusa beber um copo de água durante um longo passeio, porque quer comungar na capela de
la Font-Sainte; um dia ela dirá que não se fazem as terríveis mortificações dos tempos antigos, “não
porque não se possa, mas porque ninguém quer mais fazê-los”; esta virtuosa menina, a quem Augustin
dedicará um amor platônico, ingressará nas Clarissas de Paris. A Sra. Méridier, a admirável mãe de
Augustin, nunca pensa em si mesma; em seu leito de morte pedirá para viver mais alguns dias, a fim
de consolar Cristina da perda de seu filho; ao morrer, dirá: "felizmente que Deus", mas até ao
derradeiro instante da sua vida preocupar-se-á com os outros. Cristina, a irmã de Augustin,
abandonada pelo marido, perderá seu bebê e sua mãe; cuidado irmão até ao fim, esse irmão que,
sem o saber, contagiou seu filho da doença que o levou; une o seu sacrifício ao de Cristo, sem frases,
sem atitudes patéticas. Paulino Zeller, Monsenhor Herzog e Largilier... e tantos outros que tornaremos
a encontrar no decurso deste capítulo.” Id. Ibid. p.208.
23
sentimento de absurdo
16
e o desespero humano diante da existência num mundo
conturbado
17
: “o desespero devora nossa época”
18
. Desse modo, os autores e autoras
são classificados em três grupos: os filhos dessa terra, os aeronautas sem carga
19
e
os filhos da terra e dos céus
20
; que significaria, de uma forma mais clara, aqueles que
não creem, aqueles que creem errado, ou seja, os hereges, e aqueles que creem da
forma correta e que, desse modo, revelam que ainda existe verdadeira num
ambiente “fora” do espaço eclesiástico, revelando também que ainda esperança
para este mundo
21
.
Dentro desse esquema, Moeller procura na literatura do Século XX ecos de
uma sociedade em profunda decadência espiritual
22
, dada a uma sexualidade
doentia
23
e a uma religiosidade espiritualista, gnóstica
24
e herética
25
, quando não
16
Cf. Id. Literatura do Século XX e cristianismo: esperança dos homens. São Paulo: Flamboyant,
1958. (Volume III). pp.227ss. Sobre Franz Kafka.
17
Com a leitura dos três volumes é possível perceber que o tema – que aponto como comum – aparece
de forma indireta trabalhado nos três livros. Acredito também, pelos títulos dos demais, que o mesmo
aconteça nas outras três obras.
18
Id. Ibid. p.12. Citando L. Evely. L’espérance. Fevereiro de 1953. pp.03-04. Referindo-se ao pós-
guerra. Todo esse contexto de desespero, citado por Moeller, está ligado à situação da Europa que se
reconstrói, ou tenta, depois da segunda grande guerra, dividida em um ateísmo profundo e uma
espiritualidade que busca fundamentações. Assistimos, em meio século, a acontecimentos mais
grandiosos e mais graves do que em nenhum outro período da história. No intervalo de uma geração,
ou pouco mais, duas guerras mundiais tiveram lugar; estalaram duas das maiores revoluções dos
tempos modernos; dois colossos nasceram, incomparavelmente mais poderosos que qualquer outro
império da antiguidade. Forjaram-se instrumentos para captar a energia, cujas possibilidades
ultrapassam os sonhos mais desvairados dos utopistas; técnicas psicológicas foram acertadas, capazes
de afeiçoar os espíritos a um mesmo molde e de submeter os homens a uma obediência cega de
autômatos. Tudo se passa como se, no século XX, ao aproximarem-se decisões graves e irrevogáveis,
a marcha ininterrupta da humanidade tivesse alcançado uma velocidade apocalíptica. Id. Ibid. p.549.
Apud. Tibor MENDE, Regards sur l’histoire de demain, traduzido do inglês por M. Levi, Paris, 1954.
p.33.
19
“Huxley é um ser aéreo. Seus romances dão a impressão de ballet imóveis. É um aeronauta do
espírito, mas um aeronauta sem carga.” Id. Literatura do Século XX e cristianismo: o silêncio de
Deus. São Paulo: Flamboyant, 1958. (Volume I). p.247.
20
Tomo como exemplo o primeiro volume da obra, o silêncio de Deus, que serve de parâmetro para
os demais.
21
Cf. Id. Literatura do Século XX e cristianismo: esperança dos homens. São Paulo: Flamboyant,
1958. (Volume III). Essa esperança se liga, no terceiro volume da obra de Moeller, a uma dualidade
mundial: capitalismo e comunismo, EUA e URSS como esperanças humanas, e, num outro lugar,
como contra ponto, uma esperança legitimamente cristã diga-se: mais ligada à possibilidade do
capitalismo –, para o aqui e agora e também para o futuro, escatológica.
22
A hipótese materialista que mais perigosamente seduz o homem moderno consiste em fazer da
religião uma “mitologia consoladora”, menos alegre talvez que a dos gregos, mas que envolve o
crente numa irisada nuvem de esperanças irreais. [...] Os fiéis das religiões iludem-se. Sartre dirá que
ele “são uns farçantes [sic]”, pois recusam ver que o homem está sozinho na sua ilha deserta.” Id.
Literatura do Século XX e cristianismo: a em Jesus Cristo. São Paulo: Flamboyant, 1958. (Volume
II). p.15.
23
“Deparamos aqui com o mais grave obstáculo do existencialismo ateu e da mentalidade
contemporânea. O homem moderno recusa ser “engendrado”; ele quer-se sem ascendentes e sem
24
ateia
26
. Dos ecos apresentados, ele, enquanto teólogo e sacerdote, seleciona autores e
obras que refletem essa mesma sociedade, sem contudo, questioná-la; seleciona
autores de uma espiritualidade herética, um meio de caminho entre dois extremos; e,
como contra ponto, apresenta autores que também são ecos dessa sociedade, mas
que, de uma outra forma, apresentam caminhos de uma espiritualidade e
religiosidade verdadeira e cristã ou, se assim for melhor, cristã, por isso, verdadeira.
Contudo, para mim, essas veredas de Charles Moeller não me levam aos buritizais,
não me levam ao Urucuia; não podem ser veredas para um diálogo com João
Guimarães Rosa; pois qualquer confessionalismo religioso que se aproxime de Rosa
para um diálogo, tendo como ponto de partida e de chegada uma teologia
confessional, não dialoga mais, ou, de uma outra forma, à moda de Moeller, dialoga
para refutar, para usar como exemplo de uma sociedade perdida numa religiosidade
não mais presa aos sistemas fechados de uma confissão, e Rosa, o literato diante do
teólogo, seria um bom exemplo para isso, que ele não pertence a uma, mas sim a
todas
27
. Essas veredas digo isso com todo o respeito que posso ter são veredas-
mortas, “ali eu não devia nunca de me ter vindo; lá eu não devia de ter ficado. Foi o
que assim de leve eu mesmo me disse, no avistar o redondo daquilo, [...]”
28
.
descendentes. A importância atribuída à homossexualidade na literatura atual caminha nesse sentido,
bem como todas as tentativas de controlar, por uma técnica, a propagação da vida”. Id. Ibid. p.91.
24
“Nós consideramos a Gnose e as heresias aparentadas, como velharias interessando apenas aos
sábios frequentadores de museus de horrores antigos; esquecemos que a Gnose foi sempre O grande
perigo que corre a Igreja.” Id. Literatura do Século XX e cristianismo: o silêncio de Deus. São Paulo:
Flamboyant, 1958. (Volume I). p.275.
25
“Não quero passar por um farejador de heresias: graças a Deus outros se encarregam disso, e bem
mais do que seria desejável.” Id. Ibid. p.16. Apesar do autor dizer isso, como em outros anunciados do
mesmo tipo, não acredito que ele tenha respeitado aquilo que anunciou.
26
O antiteísmo domina o nosso tempo. A última temporada teatral (1951-52) revela que, para
provocar ressonâncias na alma do espectador, e também para obter receita, é necessário levar Deus ao
tablado, para o esbofetear ou adorar: em qualquer dos casos a obsessão de Deus é evidente.” Id. Id.
Literatura do Século XX e cristianismo: a em Jesus Cristo. São Paulo: Flamboyant, 1958. (Volume
II). p.18.
27
João Guimarães ROSA e Edoardo BIZZARRI. João Guimarães Rosa: correspondência com seu
tradutor italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.90. Carta de 25 de
Novembro de 1963.
28
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.417.
25
1.2. Literatura e teologia latino-americana
A partir de outro lugar e, em certa medida, com preocupações diferentes,
encontramos Pedro Trigo
29
e Gustavo Gutiérrez
30
, em Teología en la Literatura
Latinoamericana, na terceira parte do livro organizado por Pablo Richard, Raíces de
la Teología Latinoamericana.
Para além do esquema de Moeller
31
, que tem na literatura o outro do diálogo
que fala e depois se cala para ouvir a voz da teologia, refutando ou legitimando o
autor e a obra, está, na minha leitura, a preocupação desses dois teólogos, católicos,
latino-americanos, pertencentes à teologia da libertação, que, parecem-me, estão
mais preocupados em encontrar para além de uma voz para o diálogo uma voz
que grite junto, que denuncie junto a miséria de um povo.
Num primeiro momento, segundo Pedro Trigo, a relação entre a literatura
latino-americana e a religião latino-americana inicia-se por dois meios possíveis: a
29
“Pedro Trigo es sacerdote jesuita, doctor en Teología, profesor del ITER (Escuela de Teología de la
UCAB) y miembro del Centro Gumilla. Vive en una parroquia popular y acompaña a comunidades
cristianas populares. Desde 1972 ha participado regularmente en encuentros de teólogos
latinoamericanos. Ha publicado entre otros: Creación e historia, Salmos de Vida y fidelidad, Salmos
del Evangelio, Consagrados al Dios de la vida. Ha colaborado en numerosas obras colectivas de
Teología y escribe regularmente en revistas teológicas”. Pesquisa feita no site www.gumilla.org.ve,
dia 24/09/2007, às 22h.
30
Gustavo Gutiérrez nasceu num bairro de Lima no Peru, no dia 08 de Junho de 1928, como um
mestiço, parte hispânico, parte quéchua. Motivado por problemas de saúde na infância e adolescência
decidiu seguir a carreira médica, mas deixou tudo para tornar-se padre. Por causa de seu esforço no
trabalho teológico, a igreja o enviou para estudar na Europa: Louvain, Bélgica, Lyon, França e
Gregorian, na Itália. Quando retorna a Lima, num outro momento de sua vida, “tornase asesor
nacional de la UNEC (Unión Nacional de Estudiantes Católicos) y profesor de teología dogmática y
de ciencias sociales en la Universidad Católica de Lima. Es considerado como el iniciador de la
llamada teología de la liberación, su obra se presenta como una crítica del estado de pobreza y de
esclavitud del pueblo latinoamericano y revaloriza teológicamente los esfuerzos de liberación que se
llevan a cabo en aquel continente. Su obra La teología de la liberación (1971) ha sido traducida a
varios idiomas; otros libros que cabe recordar son Teología desde el reverso de la historia (1977) y La
fuerza histórica de los pobres (1982). Pesquisa feita nos sites: www.bookrags.com/biography e
www.biografiasyvidas.com/biografia no dia 24/09/2007, às 22h15m.
31
Moeller também trabalha a questão social como tema da literatura e de uma preocupação teológica
pastoral. Em seu terceiro volume ele mistura a esse tema o que também está misturado dentro da
teologia da libertação – o capitalismo e o marxismo-comunismo, dando, diferentemente da teologia da
libertação, como seria de esperar, maior credibilidade e possibilidade libertadora ao capitalismo, que,
diretamente, está ligada ao progresso do mundo moderno, à ciência e à tecnologia. A Europa cristã
moderna ainda é, apesar da guerra e das consequências da mesma, uma esperança libertadora para o
mundo: “se a Europa quer renunciar a todas as idéias de privilégio e hegemonia, verificará sem dúvida
que a supremacia do homem branco acabou, mas não o seu papel, que continua fundamental na
evolução do futuro”. Id. Literatura do Século XX e cristianismo: esperança dos homens. São Paulo:
Flamboyant, 1958. (Volume III). p.551.
26
ausência ou o panfleto; ou a religião não tem nenhuma importância, é irrelevante
para o contexto, ou seja, não aparece como tema, e
“el hecho es sin duda macizo; [já que] los novelistas que
reaccionan contra el elitismo modernista y se meten a la tierra para
cantar su grandeza, destapar su opresión y proclamar sus luchas y
esperanzas, tanto en sus análises como en sus utopias, dejan de
lado a la Iglesia”
32
.
ou, de uma outra forma, aparece como legitimadora desse processo de apropriação e
espoliação do povo. Citando Jorge Icaza, Huasipungo, Pedro Trigo afirma: “[...] la
novela encierra una crítica frontal al papel de la religión en la sierra ecuatoriana y
una requisitoria rabiosamente anticlerical”
33
, “la religión es sólo y totalmente
alienante [...]”
34
.
Por outro lado, a religião, dentro da literatura latino-americana, pode também
ser observada como mais uma vítima entre outras vítimas
35
: “hiciéronlo mal los
españoles cuando destruyeron para construir otros católicos, los templos gentiles.
Aquello no constituía realmente el acabar con una religión para que se implantase
otra, sino el acabar con toda religión, con todo sentido de religión”
36
, fato que seria
fruto de uma “evangelização” desenfreada do cristianismo nas novas terras
32
Pedro TRIGO. Teología narrativa en la nueva novela latinoamericana. In: Pablo RICHARD.
Raíces de la teología latinoamericana: nuevos materiales para la historia de la teología. São José,
Costa Rica: DEI: CEHILA, 1985. p.263.
33
Id. Ibid. p.266.
34
Id. Ibid. p.264. Um outro bom exemplo para isso é Miguel Angel Astúrias, em El Señor Presidente,
que mostra, segundo Pedro Trigo, a profunda alienação da igreja, que parece viver numa outra
realidade, num outro mundo. Citando o relato literário de um assassinato presenciado por um bispo
num período fictício de ditadura militar, Pedro Trigo diz: “Ágora bien, no puede negarse una cierta
complementariedad en ambos trabajos: el policía asesino despacha al hombre de este mundo y el
obispo santo lo lleva al cielo. En realidad el obispo ¿a quien da la absolución? La respuesta es terrible:
a ambos. A uno “espiritualmente” y al otro socialmente. Esa es la terrible transacción: no condena al
asesino a cambio de tener la posibilidad de atender espiritualmente a los asesinados”. Id. Ibid. p.290.
35
Exemplo disso é a figura do vigário, “es uno más en esta fila de espectros”. Id. Ibid. p.271.: “La
novela [El Luto Humano de José Revueltas] es como una metáfora terrible: la muerte de una niña
junta para la muerte a los que van a morir. Son cuatro familias. Asesinos y víctimas se despojara de su
condición, se unen ante la muerte de la niña para celebrar su propia precariedad, su esterilidad, su
condena. Se está desbordando el río bafo los cielos desatados. Dos hombres lo atraviesan para buscar
al cura. Van en la barca los dos enemigos, uno cae al agua y el otro lo rescata, unidos por la muerte de
la niña que hipoteca todo pasado. Regresa con ellos el cura. Sin ganas, sin esperanzas, atado a ellos
por el mismo desmoronamiento. ¿Viene a entregar la salvación o a comulgar con su muerte? Id. Ibid.
p.268.
36
Id. Ibid. p.269. Citando diretamente El Luto Humano de José Revueltas.
27
“descobertas” pelos espanhóis; história, como aponta Trigo, muito bem narrada pelos
literatos
37
latino-americanos.
Trigo ainda aponta dentro da literatura latino-americana exemplos das
relações existentes entre igreja e sociedade; mostra a religiosidade popular como
possibilidade de outra forma de espiritualidade e cristianismo, além de revolta contra
o sistema eclesiástico fechado
38
; aponta os conflitos relacionados à moral
39
enfrentados pela igreja graças ao processo de modernização
40
, início de todos os
males segundo Charles Moeller; e também apresenta, como opções para a igreja, os
limites e as necessidades de escolhas entre o ficar do lado dos ricos ou do lado dos
pobres, revolta e revolução
41
.
37
Dentro dessa lógica, Pedro Trigo, utilizando-se da literatura, mostra, a partir dos vigários (e de
outros religiosos), personagens constantes nas obras, os exemplos dessa evangelização-desapropriação
feita pela igreja, que ora foi de participação efetiva, ou seja, legitimação do processo e ação no
processo, e ora de proteção e cuidado, ou seja, uma outra possibilidade evangelizadora e cristã, como
por exemplo Dionísio, frei, protetor de Nila, personagem que figura a terra que é desejada: “El tipo de
institución eclesiástica que representar los dos fray Dionisios de Cubagua es el de una Iglesia profética
que, llevada por su amor al pueblo como proyecto histórico y cultura, es capaz de criticar radicalmente
el proyecto colonizador y neo-colonizador y al talante idolátrico, inhumano de la cultura imperialista.
Su defensa del indio lo lleva constituirse en guardián de su memoria histórica y suscitador de un
proyecto liberador.”. Id. Ibid. p.281. Referindo-se ao frei Dionísio, personagem de Cubágua, obra de
Enrique Bernardo Núñez.
38
Cf. Id. Ibid. pp.291ss. Análise de Hijo de Hombre de Augusto Roa Bastos. Que também pode ser
uma revolta não contra a igreja, mas também contra todo o sistema social opressor vigente: “La
tensión entre el pueblo y la institución tiende a ser resuelta por la institución apoyándose en el poder
establecido y reprimiendo al pueblo. Pero esta represión no puede extremarse: la institución se
quedaría sin clientes y el Estado sin el principio de orden que supone la religión controlada”. Id. Ibid.
p.300.
39
Cf. tb. Id. Ibid. pp.300ss. Análise da obra Juntacadáveres de Juan Carlos Onetti. “Tal vez la Iglesia
Latinoamericana en los años 50 y 60 no haya pecado de amor al orden por flojera o falta de
imaginación; pero tal vez sí se haya dado en ella esa energía extraviada del cura Bergner, un auténtico
gigante, pero que al faltarle la trascendencia, el sentido de realidad del Evangello, ha emprendido
tremendas peleas, pero contra un enemigo equivocado”. Id. Ibid. p.303.
40
Exemplo para isso é Al filo del agua de Agustín Yañez (Id. Ibid. pp.281ss), que é, como tema, o
conflito entre a modernização do México, proposta por Porfírio Díaz, e a religiosidade conservadora
católica. Id. Ibid. p.281. O romance que se desenrola entre os anos de 1909 e 1910, é teorema perfeito
para isso: “[...] en esta cristandad nada se remite al brazo secular. No hay coacciones físicas. Sólo
presión moral. La institución eclesiástica domina a través de las conciencias”. Id. Ibid. p.283. Nesse
contexto a igreja é vista como opressa moral, trata temas menores e, deste modo, não percebe os temas
mais relevantes, as questões sociais, por isso al filo del agua.
41
Cf. Id. Ibid. pp.304ss. Exemplo de Pedro Párano, livro de Juan Rulfo. “Pero el padre Rentería tiene
algo de ventaja sobre Pedro Páramo, un principio de vida: su pecado. Su pecado - una forma al fin y al
cabo de relación con el Dios de la vida - no le permite resignarse del todo. Mientras se confiese
pecador no estará muerto. Pedro Páramo se ha cruzado de brazos. Las revoluciones van y vienen ante
su rencorosa indiferencia. Y un día, la noticia: “Se ha levantado en armas el padre Rentería. ¿Nos
vamos con él o contra él?/ - Eso ni se discute. Ponte al lado del gobierno (...)/ - Me iré a reforzar al
padrecito. Me gusta cómo gritan. Además lleva uno ganada la salvación”. En el contexto histórico la
revolución seria la de los cristeros. [...] no se trata de la pretendida defensa de Dios y de la institución
eclesiástica, sino de la lucha contra la opresión del hombre por el hombre, sentida como pecado.” Id.
Ibid. p.308. Cf. tb. Id. Ibid. pp.309ss. Análise da obra La feria de Juan Jo Arreola. La feria es
28
Por fim, Pedro Trigo, chega naquele que, enquanto literato, grita junto com a
teologia
42
, José Maria Arguedas, com quem Gustavo Gutiérrez
43
também vai
aproximar-se para diálogo:
“Es imposible leer a Arguedas sin percibir que el asunto de la fe
religiosa - con todos sus avatares - es capital en su obra. Trigo lo
demuestra bien examinando con finura en Ríos Profundos la
función central que juegan en la novela los enfrentamientos entre
Ernesto y el sacerdote director del colegio, así como estudiando el
debate sobre Dios en Todas las Sangres, y las implicancias del
nuevo cristianismo y del Dios liberador en Los Zorros. Esto ocurre
simple y sencillamente porque Arguedas encuentra lo religioso
muy dentro de la vida del pueblo desde el que estribe y del que
forma parte”
44
.
Ainda, segundo Trigo, bem como segundo Gutiérrez, a questão em Arguedas
está mais em sobre de qual religião e de qual Deus se está falando; mais ainda: como
se está falando desta religião e deste Deus
45
. Tenho a impressão que o que se busca é
uma religião fora dos espaços religiosos, nos mitos do povo, na vida e na cultura. E
isso é boa vereda.
Num diálogo em Todas las sangres, diálogo entre o velho sacristão de São
Pedro e o padre, revela tal afirmativa:
“El cura le pide que cante en la capilla de los indios y él responde:
“Quemado yo, padre. Mi iglesia dentro de mi pecho quemado.
¿Cómo voy a cantar? La Gertrudis igual que ángel canta. El
sacristán contesta./ - La Gertrudis no piensa en Dios; canta triste,
sí, porque es deforme./ - Padrecito: tú no entiendes el alma de los
indios. La Gertrudis, aunque no conociendo a Dios, de Dios es.
¿Quién, si no: le dio esa voz que limpia el pecado? Consuela al
triste, hace pensar a alegre; quita de la sangre cualquier suciedad./ -
interesante porque presenta la realidad de una institución eclesiástica dividida. Dividida y en lucha. Y
sin posibilidad de acomodo. Hay dos proyectos pastorales y son irreconciliables. Y la división no es
por cuestiones sutiles de escuelas teológicas sino por cuestiones bien terrenales [...]”. Id. Ibid. p.315.
42
Diga-se melhor: teologia da liberdade, lugar de onde Pedro Trigo e Gustavo Gutiérrez falam.
43
Gustavo GUTIÉRREZ. Entre las calandras: algunas reflexiones sobre la obra de J. M. Arguedas.
In: Pablo RICHARD. Raíces de la teología latinoamericana: nuevos materiales para la historia de la
teología. São José, Costa Rica: DEI: CEHILA, 1985. pp.345-363.
44
Id. Ibid.p.358.
45
“Importa hacer notar que Arguedas no se entrampa en lo accesorio y va a lo medular de la cuestión:
Dios mismo. “¿Quién es Dios? ¿Quién es?”, preguntaba la kurku a partir de su sufrimiento y su insig-
nificancia. Aquí está lo decisivo, todo otro aspecto de lo religioso (doctrinas, instituciones, personas)
le está supeditado.” Id. Ibid. p.358.
29
Bueno, terco. No puedo obligarte. Esa kurku tiene algo, algo
extraño; duele./ - El Dios, pues, padrecito. Ella ha sufrido entre los
señores. Dios de los señores no es igual. Hace sufrir sin
consuelo””
46
.
A busca de alguns personagens protagonistas de Arguedas, também como
exemplo, é o de libertar-se da religião estabelecida e da religião imposta de forma
hierárquica pelo catolicismo, instituição reguladora da fé. E essa busca, busca de
libertação dos personagens de Arguedas, dá-se nos espaços da memória, o mito. Em
Los rios profundos, esses espaços da memória estão ligados a uma busca pelo sentido
da religião. O protagonista do romance, Ernesto, não consegue, depois de buscar seu
povo e analisar a realidade do mesmo, aceitar a pregação do padre diretor do colégio,
que representa, no romance, a ideologia “de la sociedade establecida”
47
. Já em Todas
las sangres o contexto é de diálogo, para Trigo, todos os sangues falam por si
mesmo
48
e, deste modo, dialogam, e no diálogo, constitui-se uma busca do sentido da
religião
49
, onde, também, cada sangue busca seu próprio sentido. Em El zorro de
arriba y el zorro de abajo, observa-se o que mais interessaria a teologia da
libertação, o projeto libertador
50
do cristianismo em diálogo com o marxismo:
“Que la industria, U.S.A y el gobierno sean enemigos del pueblo,
ya estaba claro en sus novelas anteriores. Pero que las fuerzas
liberadoras fueran el nuevo cristianismo y los comunistas eso es
una novedad. [...]. [Arguedas, em relação aos] comunistas, siempre
había apreciado el coraje, aunque desviado. Pero es una novedad
absoluta la valorización de la institución eclesiástica”
51
.
Esta seria a lógica de libertação em Arguedas: cristianismo e marxismo
compreendidos dentro de uma busca por libertação, numa relação dialética,
onde el comunismo sería la mediación histórica del cristianismo
52
: no basta
46
Pedro TRIGO. Teología narrativa en la nueva novela latinoamericana. In: Pablo RICHARD.
Raíces de la teología latinoamericana: nuevos materiales para la historia de la teología. São José,
Costa Rica: DEI: CEHILA, 1985. p.326.
47
Id. Ibid. p.320.
48
Id. Ibid. p.322.
49
Id. Ibid. pp.324ss.
50
Cf. tb. Megafón o la guerra de Leopoldo Marechal. Id. Ibid. pp.333ss. Sobre o bispo Frazada:
“Jesús clavado en la cruz habría iniciado el proceso. Y el obispo habría librado ante todo una batalla
mística: Desclavar al Cristo inmovilizado por la institución eclesiástica, devolverlo a su desafiante
desnudez raspando tanto revoque edulcorante que lo desfigura, y reintegrarlo a sus inabarcables
dimensiones espacio-temporales: [...]”. Id. Ibid. p.336.
51
Id. Ibid. pp.329-330.
52
Id. Ibid. p.330.
30
rezar, hay que pelear
53
.
Contudo, se se considerar o coração da questão: Deus mesmo, segundo
Gutiérrez em Arguedas
54
, o grito diante da vida e da miséria da vida, miséria que
está na e para além da pobreza, podemos considerar, a meu ver, essa como uma
possibilidade de leitura de Guimarães Rosa: teologia da libertação e Guimarães Rosa.
Por outro lado, se a questão é social, a vereda se torna, apesar de possível,
insuficiente, que a questão social não é tema central no Grande Sertão: Veredas.
pobreza, fala-se da pobreza, mostra-se a pobreza, mas ela não é tema e nem
tom de denúncia quando dela se fala. Se formos para Guimarães Rosa, como acima é
mencionado e para isso temos que entrar no contexto da crítica literária e por
rápido sair da teologia encontramos autores que trabalham com a denúncia social
como tema para a obra rosiana. Willi Bolle, como exemplo, em Diadorim – a Paixão
como Medium-de-Reflexão, vê, distanciando Guimarães Rosa de Euclides da Cunha,
uma possível leitura social do Grande Sertão: Veredas. Entre “Euclides e Guimarães,
um real e outro ficcional [...] [vê-se que] o ficcional é o que mais se aproxima do real
e o real [jornalístico] é o que mais se distancia do real”
55
, o real social, segundo
Bolle. Diadorim como exemplo, personagem medium-de-reflexão, além de
representar o tema do gênero
56
, segundo o autor, é também representação do social:
“A paixão amorosa de Riobaldo por Diadorim é o medium através
do qual Guimarães Rosa expressa o seu amor pelo povo sertanejo
[...] Diadorim é o medium artístico que faz com que a história da
paixão amorosa de Riobaldo por Diadorim não seja apenas um ato
de memória afetiva individual, mas também uma reflexão sobre a
sociedade e a história.
57
[...] Diadorim é o povo”
58
.
Esse, parece-me, seria o limite de uma interpretação exclusivamente social
para o Grande Sertão: Veredas. Isso sem falar de Hermógenes, que segundo Bolle,
53
Id. Ibid. p.333. Citação do romance feita por Pedro Trigo.
54
Gustavo GUTIÉRREZ. Entre las calandras: algunas reflexiones sobre la obra de J. M. Arguedas.
In: Pablo RICHARD. Raíces de la teología latinoamericana: nuevos materiales para la historia de la
teología. São José, Costa Rica: DEI: CEHILA, 1985. p.351.
55
Willi BOLLE. Diadorim a paixão como medium-de-reflexão. In: Lélia Parreira DUARTE; e
Maria Theresa ALVEZ. (organizadoras). Outras margens: estudos na obra de Guimarães Rosa. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001. p.349.
56
Id. Ibid. p.346.
57
Id. Ibid. p.353.
58
Id. Ibid. p.354.
31
representa o povo mal, e de figuras inumanas que constantemente aparem no Grande
Sertão: leprosos, coxos, lázaros, meninos pretos famintos, gente louca e os
catrumanos
59
, figuras representativas de atraso e inumanidade. Mas se é isso que
interessa à teologia e principalmente à teologia da libertação e eu sei que não é
isso a possibilidade de leitura de Rosa fica pequena, mas se a preocupação é outra:
o coração da questão: Deus mesmo, aí os espaços são muito maiores, são espaços do
tamanho do sertão.
1.3. Teologia, antropologia e literatura: veredas em Antonio Manzatto
Não muito distante de Charles Moeller e menos ainda de Pedro Trigo e
Gustavo Gutiérrez, encontra-se outra vereda, a vereda de Antonio Manzatto
60
, em
Teologia e Literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos
romances de Jorge Amado, que começa com uma justificação epistemológica, que,
segundo o autor, seria indispensável para “uma reflexão teológica a partir de uma
obra de um romancista”
61
. Segundo Manzatto, literatura é arte, teologia é ciência
62
,
desse modo, cada uma deve respeitar suas especificidades: literatura como objeto e
teologia como lugar de pesquisa.
A primeira questão levantada por Antonio Manzatto, que se justifica em sua
importância, relaciona-se à preocupação de legitimação que o pesquisador precisa ter
quando se aproxima da literatura como objeto de sua pesquisa: o que se vai fazer
precisa estar sempre muito bem delimitado e justificado. Pois, dentro desse esquema
59
Id. Ibid. p.354.
60
Antonio Manzatto possui graduação em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa
Senhora da Assunção (1982), graduação em Filosofia pela Faculdades Associadas do Ipiranga (1978),
mestrado em Teologia pela Universite Catholique de Louvain (1990) e doutorado em Teologia pela
Universite Catholique de Louvain (1993). Atualmente é professor titular da Pontifícia Faculdade de
Teologia Nossa Senhora da Assunção e professor titular do Centro Universitário Assunção. Tem
experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática. Atuando principalmente nos
seguintes temas: teologia, literatura, antropologia, Jorge Amado, romance. Informações retiradas do
Currículo Lattes do autor.
61
Antonio MANZATTO. Teologia e literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida
nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. p.13.
62
Id. Ibid. p.13. Cf. tb. p.38. “A teologia é a ciência da fé, [...]”.
32
de delimitação e justificação duas perguntas sempre são feitas: o que é a literatura?
63
,
e qual é a relação da literatura com a verdade?
64
Perguntas que, em grande medida,
buscam uma forma de tirar ou de dar uma importância que justificaria uma pesquisa
em algo que parece ser, num primeiro momento, apenas coisa relacionada ao belo
65
,
feita para dar prazer, para o lazer, ou mais, para o devaneio
66
. Essa pouca ou
nenhuma importância dada à literatura estaria, por sua vez, ligada à sua
ficcionalidade, ou seja, ao fato de que a literatura não trata de verdades e, por não
tratar de verdades, não pode ser coisa séria
67
. Contudo, para Manzatto, a literatura,
por ser ficção e estar preocupada com o belo, o estético, não precisa estar desligada
de verdades: “essa história é bela e contém ensinamentos, diz Jorge Amado. Isso
significa que verdade e beleza coexistem no domínio da arte literária”
68
. Assim,
Manzatto entende que o literário, a partir da verossimilhança em Ricouer, fala
também de verdades e que, em alguns casos, de forma até melhor ou mais profunda
do que a própria verdade científica: “[...] a ficção pode conter uma verdade, e mesmo
talvez uma verdade mais profunda e mais verdadeira que o empirismo”
69
.
“A obra literária [desse modo, a partir da verossimilhança,]
ilumina e descobre nossos pensamentos íntimos, torna-nos
conscientes de sua profundidade. Lendo, nós nos descobrimos a
nós mesmos à luz do autor e de sua obra; e, nos conhecendo
melhor, podemos chegar à ação ou à conversão necessária.
70
[...]
não [trata] da transmissão de um conhecimento científico, mas sim
da transmissão do sentido da vida [...]”
71
.
63
“[...] não é possível buscar-se uma noção estrutural do que seja literatura, pois não se pode
encontrar senão noções que se revelam funcionais”. Aput Tzvetan TODOROV. Les genres du
discours. Paris: Seuil, 1978. p.15.
64
Cf. Id. Ibid. pp.16ss.
65
“Se a literatura é uma arte, ela deve ter relações com o belo; [...].” Id. Ibid. p.24.
66
“O trabalho dos poetas e autores, dentro do que passou a ser considerado como literatura, foi, quase
sempre, colocado na esfera da motivação estética e não da hermenêutica, servindo, portanto, mais para
os momentos de devaneio e fruição do que para os de análise e reflexão.” Antonio MAGALHÃES.
Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. p.49.
67
“Essa história é bela e contém ensinamentos, diz Jorge Amado. Isso significa que verdade e beleza
coexistem no domínio da arte literária.” Antonio MANZATTO. Teologia e Literatura: reflexão
teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994.
p.24. “A questão torna-se, então, saber se na literatura a verdade é submetida à estética ou vice-versa,
ou, dito de outra maneira, ver como se dão, em literatura, as relações entre estética e verdade”. Id.
Ibid. p.25. Assim, “para não se trair a obra literária é necessário tomá-la sempre como literatura,
forma e conteúdo unidos.” Id. Ibid. p.34.
68
Id. Ibid. p.25. Aput O Sumiço da Santa de Jorge Amado.
69
Id. Ibid. p.16.
70
Id. Ibid. p.23. Aput Luís Alonso SCHÖKEL. La parole inspirée: ecriture sainte à la lumière du
langage et de la littérature. Paris: Cerf, 1971. p.291.
71
Id. Ibid. p.23.
33
O literário, segundo Manzatto, fala da vida e, falando da vida, aproxima-se
das ciências que se preocupam com a vida. No entanto, a literatura possui seu lugar
próprio quando faz isso, lugar que deve ser respeitado e valorizado: “a literatura, a
partir de um ponto de vista particular, busca apreender o sentido do mundo e do
homem, e exprimi-lo segundo sua especificidade”
72
. E é essa busca em apreender o
sentido do mundo e do homem que aproxima a literatura da teologia; essa é a vereda
de Manzatto, a antropologia
73
: “é, pois, o caráter antropológico da literatura que é
importante para a teologia”
74
, vereda à qual hei de voltar no decorrer da pesquisa.
Manzatto, como teólogo, também fala de um lugar específico, a teologia da
libertação
75
, que, assim como a literatura, tem como preocupação o humano:
“A literatura pode ajudar a bem conhecer o homem em favor
de quem a libertação deve ir. [...] a arte não está livre de ideologia,
[...] pode existir uma arte de libertação. [...] Quando o povo, ou o
artista em seu nome, canta e celebra o que toca, sua luta, sua
esperança, seu conhecimento mesmo intuitivo da libertação, a
teologia pode aceitar a racionalidade dessa linguagem”
76
.
Ainda nessa relação de diálogo entre teologia e literatura, Manzatto aponta
preocupações de cunho metodológicos que foram aqui apresentados: cada
participante do diálogo deve respeitar seu lugar específico. A teologia, assim como a
literatura, possui sua especificidade e é, a partir dela, que o teólogo que empreende
esse diálogo deve partir: “se a teologia não pensa mais sua própria experiência mas a
de um outro horizonte, ela deixa de ser teologia. O diálogo com as ciências ou as
artes não exige da teologia que esta perca sua identidade”
77
. E é assim que o teólogo,
72
Id. Ibid. p.21. Aput José Luís Plascência MONCAYO. La relación entre la antropologia y la
cristologia en la obra de Dostoyevski. Roma: Facultas Theologiae, 1988. p.16.
73
“O teólogo é um homem de igreja, mas ele vive também mergulhado em uma sociedade atravessada
por interesses e conflitos; sua produção teológica é condicionada por essa sociedade, e busca dar
respostas nascidas da experiência de fé aos problemas que essa sociedade enfrenta. [...] A vida
humana concreta tem, assim, importância para a reflexão teológica”. Id. Ibid. p.46. Isso se parece
muito com o caminho da antropoteologia de Juan Luis Segundo, que trabalharei no segundo capítulo
dessa tese, com intenção de traçar minha própria vereda de diálogo entre teologia e literatura.
74
Id. Ibid. p.69.
75
“Fazer teologia sem esse ato primeiro [a vida cristã] é deformar a Revelação, ou reduzir a teologia a
uma logologia, uma palavra sem sentido. [...] A teologia da libertação quer ser ato segundo de uma
vida cristã vivida em um continente rasgado pela pobreza. [...] Assim a teologia como inteligência de
é comprometida como inteligência não de uma simples afirmação de verdades, mas de um
engajamento, de uma atitude global diante da vida.” Id. Ibid. p.53.
76
Id. Ibid. p.89.
77
Id. Ibid. p.39.
34
quando cumpre seu papel teológico, mesmo no diálogo
78
, deve tratar o caráter da
teologia com respeito: “o papel da teologia é repensar os dados da Revelação a partir
e dentro da experiência de fé, tal como esta é vivida hoje pela comunidade cristã”
79
.
Para tal empreendimento, Manzatto escolhe Jorge Amado, e, faz isso preocupado em
demonstrar que a literatura é apenas objeto da teologia, ela pergunta e a teologia
responde:
“A experiência de fé não se faz independentemente das outras
experiências humanas e da cultura: [...] Assim o literário pode dar à
teologia ocasião para que seja feita uma reflexão sobre a Palavra de
Deus não a partir do espaço eclesial mas a partir do mundo, e até
mesmo fornecer-lhe o material para a inculturação da fé, na medida
em que apresenta o homem, a sociedade, a cultura”
80
.
Assim como dito em parágrafo anterior, concluindo esse ponto, Rosa não
tem uma preocupação social como ponto central para sua obra apresentação do
homem, da sociedade e da cultura num lugar, numa região –, o que não diz que ele
não trate do social e nem que não faça uma crítica ou aponte problemas, mas essa,
certamente, não é a ênfase de sua obra. Mas o humano, sua existência (a vida), sua
crise (o sofrimento) e sua busca pelo sagrado (o religioso) são seus temas: “a língua,
para mim [diz Guimarães Rosa], é instrumento: fino, hábil, agudo, abarcável,
penetrável, sempre perfectível, etc. Mas sempre a serviço do homem e de Deus, do
homem de Deus, da Transcendência”
81
.
Por fim, não gastando muito fôlego aqui, que esse será tema de um
capítulo, acredito que, para encontrar as veredas e veredazinhas do Grande Sertão
que serão, nesse trabalho, trilhados, será preciso, primeiro, encontrar a antropologia
contida no romance apontada por Manzatto
82
, encontrar a vida, a vida do homem
78
“[...] a cultura supõe um conjunto de criações humanas transmissíveis de geração em geração por
mecanismos simbólicos. [...] Pelos mbolos, ele mostra o povo em sua condição histórica, e revela a
vida, a experiência e a verdade desse povo. [...] Ora, se a teologia quer dialogar com as culturas, a
literatura torna-se um meio interessante para esse diálogo, pois ela auxilia mesmo a inculturação da
fé.” Id. Ibid. p.79.
79
Id. Ibid. p.40.
80
Id. Ibid. p.68.
81
Maria Apparecida Faria Marcondes BUSSOLOTTI (org). João Guimarães Rosa: correspondência
com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.412.
Correspondência de João Guimarães Rosa, 27 de Agosto de 1967.
82
“Ela interessa-se por tudo o que é humano, de tal modo que se pode dizer que a literatura é tão
grande quanto o humano. Diversas ciências aproveitaram-se disso ao longo dos séculos e debruçaram-
35
humano que Rosa apresenta, para, desse modo, encontrar Deus ou, se assim o for,
encontrar o Dia, ou ainda, encontrar um por meio do outro:
“[...] quem-sabe, a gente criatura ainda é tão, que Deus pode às
vezes manobrar com os homens é mandando por intermédio do
diá? Ou que Deus quando o projeto que ele começa é para muito
adiante, a ruindade nativa do homem é capaz de ver aproximo
de Deus é em figura do Outro?”
83
2. “Deus no Espelho das Palavras”: sobre o método da correspondência
Retomo o caminho da pesquisa com esse segundo ponto, cujo título é o
mesmo da obra do autor que aqui será seguido, Antonio Magalhães
84
, ainda
preocupado com as delimitações da tese, no entanto, assim creio eu, com uma
percepção já avançada do assunto. Deus no espelho das palavras, livro ganhador do
prêmio Jabuti de 2001, e a proposta de método que ele oferece para o diálogo entre
teologia e literatura, tornam-se, como se percebeu nos caminhos feitos até aqui,
meio de leitura que tomo, de dentro do diálogo, para a obra de João Guimarães Rosa.
Localizo o ponto como um interludium não apenas para estabelecer uma
divisão no capítulo ou na reflexão feita até o momento, que deixa para trás uma
primeira discussão sobre o assunto: teologia e literatura e religião na literatura, e
retoma o mesmo por outros caminhos e preocupações num terceiro e último ponto, o
que, de certa forma, o próprio texto de Magalhães, em si mesmo, faz, mas também
pela importância que a obra aqui analisada possui, tanto para minha pesquisa, por seu
método nessa vereda ainda muita água –, quanto pela a interface aqui seguida:
se sobre a literatura para desenvolver seus estudos e chegar a uma melhor compreensão do humano.
[...] Por aí, pode-se perceber que o romance vai além da narração, do relato, além do próprio romance,
e engloba os contextos social, econômico, racial, religioso, político, cultural, ideológico e torna-se
então interessante, como campos de pesquisa, para várias ciências.” Antonio MANZATTO. Teologia
e literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São
Paulo: Loyola, 1994. pp.63-64.
83
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.56.
84
Antonio MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São
Paulo: Paulinas, 2000. (Coleção: Literatura e Religião). 213p. Antonio Magalhães é Doutor em
Teologia pela Universitat Hamburg, U.H., Alemanha. Foi professor no programa de Pós-graduação
em Ciências da Religião da Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião da Universidade Metodista
de São Paulo, UMESP. Hoje é professor na Universidade Estadual da Paraíba, UEPB, na Pós-
graduação em Literatura e Interculturalidade do Departamento de Letras e do Departamento de
Filosofia e Ciências Sociais.
36
teologia e literatura em diálogo, oferecendo, como proposta na própria interface, um
método e, também em grande parte para minha pesquisa, uma forma metodológica a
ser seguida.
Antonio Magalhães propõe um método para o diálogo entre teologia e
literatura denominado método da correspondência [assim ele o chama], não da
correlação, como em Tillich
85
, como Magalhães de forma preocupada procura
apresentar
86
, mas sim, método que leva em consideração aquilo que corresponde e
que por corresponder pode ser ponto de ligação e partida para um diálogo:
“[...] na correspondência parte-se do princípio de que essa relação
precisa ser radicalmente superada na teologia e que precisamos
encarar a possibilidade de propiciar um diálogo no qual, seguindo o
conceito de correspondência em matemática, a cada elemento de
um conjunto são associados um ou mais elementos de outro. Numa
formulação mais voltada para o mundo da teologia, a cada
elemento considerado da revelação na Bíblia e na tradição
teológica, podem ser associados um ou mais na literatura mundial.
A cada narrativa considerada compreensão da fé, há que se associar
outra dentro da literatura. A cada forma de anúncio de uma verdade
considerada fonte da fé, que se associar outra na experiência das
pessoas e nas interpretações literárias. Com isso, Bíblia e tradição
mantêm-se como interlocutoras, sem elas não haveria
correspondência; perdem, entretanto, seu lugar de normatividade
única do saber teológico”
87
.
Desta forma, o autor, avançando muito em relação aos autores apresentados
anteriormente, apresenta uma possibilidade de diálogo que não considera o esquema
pergunta ou exposição (da literatura) e resposta (da teologia)
88
usado, como por
85
“No método da correlação, pode-se cair no simplismo de uma redução à relação entre pergunta
(literatura) e resposta (revelação).” Id. Ibid. p. 142.
86
“É método da correspondência porque não sequer confundir com nenhum dos métodos e modelos
teológicos apresentados no decorrer deste livro, apesar de considerar a importância da grande maioria
deles.” Id. Ibid. p.205.
87
Id. Ibid. p.205.
88
Nessa aproximação, e essa é a critica de Antonio Magalhães, “o texto literário é visto como amostra
e interpretação da realidade humana e, como tal, não possui, aparentemente, uma consistência
teológica, sem que seja negado o valor teológico, que ele possui. A diferença entre valor teológico e
consistência teológica não é somente didática, mas esna própria alma desse método. À literatura é
concedido o valor teológico porque ela pode apresentar possibilidade de compreensão do mundo no
qual a teologia deseja se encarnar, mas nela não é reconhecida uma consistência teológica, porque não
apresenta nada que altere o percurso divino e revelatório da encarnação. [...] A primeira forma de
leitura é retroativa, porque parte do pressuposto de que as maiores verdades estão ditas dentro do
aparato canônico da Igreja. A segunda forma de leitura é perspectiva, porque ela quer operar
mudanças no curso da realidade humana e oferecer diretrizes para a prática da Igreja no mundo. Na
37
exemplo, por Charles Moeller e Antonio Manzatto, que consideram a literatura
apenas como fonte para a teologia, o que, em grande parte, não deixa de ser também
uma possibilidade para o diálogo
89
. Grupo ao qual também acrescento Kuschel, que,
falando também de correspondências com as devidas diferenças obviamente –,
parece, em sua “Teopética”, ainda oferecer um diálogo onde o teológico se faz leitor
do literário, onde a pergunta seria, ainda, o como fazer teologia a partir da... (cultura,
arte, literatura etc). Diz o autor:
“Objetiva-se aqui uma teologia que procure o diálogo com a
literatura em favor do próprio discurso teológico acerca de Deus,
sem incorrer, de sua parte, em mera adaptação cultural ou na
nivelação anuladora de uma ausência de contornos claros para si
mesma. Objetiva-se uma teologia com um estilo diverso: o
estabelecimento de critérios literários para um discurso confiável
acerca do Deus cristão. Objetiva-se, assim, expressar o objeto da
teologia cristã com auxílio de critérios literários de estilo, de modo
que a lealdade aos textos cristãos fundamentais possa associar-se à
interpretação da realidade proposta pela alta literatura. Em suma:
como pensamento em termos de correspondências almeja-se a
conquista de uma teopoética, uma estilística do discurso adequado
para falar de Deus nos dias de hoje”
90
.
Contudo, para Magalhães, no diálogo, se o leio bem, não há pergunta e
resposta, um fazer teologia a parte de..., mas há, ou melhor, deve haver, conversação
sobre uma pergunta comum, o tema. Neste diálogo proposto – e isto é o importante
teologia continua sendo teologia, e literatura continua sendo literatura, e, ambas,
como saberes humanos, dialogam respeitando seus lugares e suas especificidades. É
o “assumir semelhanças e, ao mesmo tempo, definir as diferenças”
91
, que Magalhães
aponta:
primeira, existe o valor teológico em si; na segunda, o elemento a ser lido teologicamente. No
primeiro movimento desse método, a tentativa de se trabalhar com a forma, renovando as
expressões das verdades aceitas. No segundo, há a tentativa de transformar conteúdos ao propor
transformação social e pessoal. Importa transformar o mundo e, para isso, a leitura teológica da obra
literária se propõe a conhecê-lo melhor para apresentar as respostas.” Id. Ibid. pp.190e191.
89
“Para isso, é fundamental manter a alteridade e a autonomia da atividade literária, sem transformá-la
em “serva” da teologia, reconhecendo nela, porém, uma porta de entrada tanto para uma compreensão
do humano quanto para uma aproximação do sagrado”. Id. Ibid. p.118.
90
Karl-Josef KUSCHEL. Os escritores e as escrituras: retratos teológico-literários. (tradução: Paulo
Astor Soethe, Maurício Cardoso, Elvira Horstmeyer, Ana Lúcia Welters). São Paulo: Loyola, 1994.
p.223.
91
Antonio MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São
Paulo: Paulinas, 2000. p.143.
38
“O objetivo é, portanto, desenvolver uma teologia que, para a sua
própria fala sobre Deus, busca o diálogo com a literatura, sem cair
no perigo da relativização de si própria e da literatura, mantendo a
fidelidade aos testemunhos bíblicos e reconhecendo a grandeza da
interpretação da realidade contida na literatura”
92
.
Por essas veredas, que pressupõem um diálogo entre diferentes/iguais, eu
me enveredei com minha dissertação de mestrado, que tentou, enquanto pesquisa,
fazer um diálogo entre Juan Luis Segundo e João Guimarães Rosa, considerando a
vida como lugar para a pesquisa e a liberdade e o sofrimento
93
como tema. No
entanto, a preocupação agora não é mais a mesma, apesar da mesma continuar como
ponto de partida para minha pesquisa. Eu procuro também por uma outra vereda,
vereda que só se abrirá nos capítulos que, nesse trabalho, à frente seguem, vereda que
entenda a literatura como boa intérprete e como eficaz atualizadora das mensagens
religiosas, mas que assuma “que ela [a literatura] é portadora também de uma forma
própria de ver Deus e as tradições da fé”, o que implicaria em “assumir como diz
Magalhães a contribuição da literatura de uma forma ainda mais ousada para o
saber teológico”
94
. E talvez seja aqui que a presente pesquisa esteja, nessa busca.
**
Antonio Magalhães ainda apresenta outras questões que carecem aqui, nesse
momento, de apontamentos, que as mesmas, as questões, são e serão de
considerável importância dentro dessa pesquisa. Para o autor, como primeira questão
a ser levantada, está a relação intrínseca existente entre literatura e, especificamente,
o cristianismo
95
. Para o autor: “o cristianismo é uma religião do livro”
96
:
92
Id. Ibid. p.143.
93
Clademilson Fernandes Paulino da SILVA. Liberdade e sofrimento: o “Grande Sertão: Veredas”
de João Guimarães Rosa em diálogo com a teologia de Juan Luis Segundo. São Bernardo do Campo:
UMESP, 2005. 133p. (Dissertação de Mestrado).
94
Antonio MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São
Paulo: Paulinas, 2000. p.149. As citações feitas acima foram retiradas de uma pergunta feita pelo
autor em seu livro. Torno-a afirmação porque entendo que ela, além de uma pergunta-proposta, torna-
se agora uma das minhas principais preocupações.
95
Digo especificamente porque a possibilidade de tal afirmação também servir para outras
tradições religiosas. O que também se faz considerado na obra de Magalhães.
96
Antonio MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São
Paulo: Paulinas, 2000. p.05. Régis Debray também diz: “Todo rabino é livre para ler o que quiser. O
que também vale para as outras pessoas. Não existe instituição para decretar o que é verdadeiro. Entre
os fariseus, tudo pode ser dito. O texto santo permanece aberto. Por quê? Porque a família fecha, ela
mesma, por meio da mãe e, também, de certas práticas (circuncisão, culinária etc.). A unidade do povo
39
“Dizer que o cristianismo é uma religião do livro significa, antes de
tudo, constatar que boa parte de sua força e poder de sobrevivência
a alguns impérios, bem como sua contribuição para a sustentação
de outros e ainda seu alcance de mudar trajetórias de vida de muitas
pessoas em diferentes culturas e períodos da história deveu-se ao
fato de que os pilares de seu anúncio, os fundamentos de seu
conteúdo, foram traduzidos rapidamente em forma de livros, cartas,
contos, alegorias, poesias etc”
97
.
Constatações essas que nos conduzem a outras preocupantes questões dentro do
diálogo entre teologia e literatura: a canonicidade, a força literária condutora e o
problema da memória e da narrativa. 1. Para o autor, pelo menos assim o percebo, a
ligação do cristianismo com o livro não tem, num primeiro momento, uma relação
específica com o cânon, mas sim, com textos em si
98
, entre os quais, alguns, por sua
força [o que aqui não se define
99
], tornaram-se canônicos e, deste modo, tornaram-se
também centro da discussão e da preocupação normativa [ética, doutrinária e
teológica] da igreja: de um texto exclusivo de uma memória de a um corpo de
textos canonizados, de um corpo de textos canonizados a uma compreensão de
Palavra de Deus e daí por diante. 2. O autor também entende que “a tradição judaico-
cristã apresentou elementos importantes para a construção de um saber histórico no
Ocidente”, o que se deveu, em grande parte, à força literária que essa tradição
possuiu e possui, que tem no êxodo
100
, uma construção literária, um elemento
central
101
tanto para a construção do monoteísmo
102
, como para um imaginário e uma
judeu é dada por sua ancestralidade; já o povo cristão, em formação, não tinha essa base, o que
tornava o futuro extremamente precário. [...] Para o catecúmeno, o laço social não é estabelecido dessa
forma. Eis por que o cristianismo romano não é propriamente uma religião do livro (como o judaísmo,
o islã e o protestantismo), e por duas razões básicas: a cultual e a doutrinal. O ritual da sinagoga
encaminha o crente para um texto, a santa comunhão o remete a um evento, que é a Santa Ceia. Numa
homilia judaica, a palavra de Deus é ouvida ou lida. Na missa, comida e bebida”. Régis DEBRAY.
Deus, um itinerário: material para a história do eterno no ocidente. (tradução: Jônatas Batista Neto).
São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.216.
97
Antonio MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São
Paulo: Paulinas, 2000. p.06.
98
“Essa relação entre cristianismo e literatura, que se expressa primeiramente na fórmula cristianismo
como literatura, conhece muitos outros exemplos que vão além do livro considerado canônico.” Id.
Ibid. p.15.
99
“Se, por um lado, a escolha de uma seleção de livros com o status de canônicos foi responsável por
uma teologia que tentou se guiar pelos seus escritos, por outro, a questão da canonicidade jamais será
entendida, nem pela teologia nem pela literatura, como limite das interpretações.” Id. Ibid. pp.07-08.
100
“Com certeza, o cristianismo como literatura tem um lugar entre as grandes interpretações e
traduções na história. As poderosas e abrangentes interpretações que o êxodo sofreu dentro da história
do Ocidente são uma prova contundente desse fato.” Id. Ibid. p.13. Para Magalhães essa compreensão
de êxodo liga-se a uma força de expansão existente no judaísmo e também, por usurpação do texto, ao
cristianismo, que libertados e peregrinos precisam invadir e apropriar-se do que é do outro e do outro.
101
Cf. Id. Ibid. pp.08-13.
40
lógica de expansão. Mais ainda, o autor também entende que “[...] o poder do
cristianismo residiu no fato de que seus personagens e narrativas foram transmitidos,
contados com novas cores e disseminados dentro de novas tramas”
103
; o que retirou,
não de forma total, a exclusividade da instituição na detenção e controle dos
imaginários de fé, muitos deles relacionados às narrativas blicas, e, deste modo,
recolocou [se em algum momento deixou de estar] essas narrativas, esses
imaginários (resignificados ou não) e a própria religiosidade em espaços de
religiosidade popular e de cultura
104
:
“As narrativas bíblicas passaram a ser narrativas da cultura, os
personagens bíblicos foram tingidos novamente com o imaginário
dos povos, as tramas que encontramos nos relatos da Bíblia
passaram a ser imagens das tramas das memórias da religiosidade
popular. Com isso, o cristianismo se tomou realmente literatura,
e grande literatura, porque não ficou preso à interpretação do
missionário, não ficou cativo do mundo dos interesses das
Igrejas”
105
.
3. Por fim, passando por temas que aqui foram tratados [teologia e literatura no
contexto latino-americano e teologia da libertação e literatura] e outros que hão de
ser tratados [Bíblia e literatura e Deus como personagem literário, Harold Bloom e
Jack Miles], Magalhães problematiza a questão da memória e da narrativa:
“O que a história eclesiástica fez foi substituir essa busca da
verdade histórica pela revelação, desembocando numa grande
ideologia, a partir da qual a história oficial estabeleceu-se e dividiu
a história do cristianismo, execrando os ditos hereges que não
comungavam com aquilo que passou a ser considerado a verdade
histórica da revelação a ser reproduzida. Uma das maiores e mais
graves conseqüências para a história do cristianismo foi a
confusão que se deu entre memória e documento escrito (Bíblia,
textos do magistério etc.)
106
[grifo meu].
102
Nisto Régis Debray concordaria. Monoteísmo e expansão são quase que sinônimos: “O
monoteísmo nada tem de princípio fundador e genérico, desde a origem destinado a preencher toda a
terra”. Régis DEBRAY. Deus, um itinerário: material para a história do eterno no ocidente.
(tradução: Jônatas Batista Neto). São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.41.
103
Antonio MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São
Paulo: Paulinas, 2000. p.15.
104
“Por reconhecer essa relação intrínseca, Dostoievski pregava uma síntese entre cristandade e as
grandes formas literárias. Com essa mesma intuição, Kafka, pensando especificamente no judaísmo,
defendia que uma crença, ainda que enfraquecida, podia tornar-se fonte e tema para uma significativa
produção literária.” Id. Ibid. p.15.
105
Id. Ibid. p.16.
106
Id. Ibid. p.185.
41
Em verdade, esse não foi o único erro cometido e a igreja não foi a única que
errou nesse ponto. Quando se fala em memória e narrativa, e aqui penso junto em
memória e narrativa de [se é que é possível separar ambas], pensa-se em
formulação histórica e em tempo. No entanto, não é possível, nessa disputa entre
“historiografia científica” e “narrativas de grupos”, reconstruir uma categoria de
verdadeiro e falso, isso seria simplório e inocente demais. Nem é, ao mesmo tempo,
possível de se reconstruir categorias de tempo: passado, presente e futuro: “o que é
passado não se foi; ele existe em nós como memória; o que é o futuro não é o não-
existente, mas presente em nós como nossa potencialidade. [...] o futuro ainda não
chegou, o passado caducou cronologicamente e o presente não permanece
107
. Isso
me faz lembrar de Riobaldo, que diz: “o que lembro, tenho”
108
e o que ele tem ele
conta, é a narrativa: “Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou por cima –
o que parece longe. Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas
principalmente quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor
saiba”
109
. Mas o que é que se quer decifrar a partir dessas narrativas?
“Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou
contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a
matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da
que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O
que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está
pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!
[...] Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei.
Ninguém não sabe. umas raríssimas pessoas – e só poucas
veredas, veredazinhas”
110
.
É aqui, na matéria vertente, que as narrativas de fé – o estar contando
religioso –, canonizadas ou não, que preservam as identidades moral e doutrinal das
comunidades confessantes, e as narrativas literárias o estar contando ficcional da
grande literatura –, que “preserva[m] um quadro narrativo da experiência e da
história humana”
111
, encontram-se e dialogam sobre a vida, “fundamentalmente
107
Id. Ibid. p.184. Seguindo Paul Ricoeur.
108
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.204.
109
Id. Ibid. p.245.
110
Id. Ibid. p.116.
111
Antonio MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São
Paulo: Paulinas, 2000. p.181.
42
narrativa”
112
, e o fazem a partir da palavra escrita, aquela, fundamentalmente escrita
sem margens:
“Literatura e religião se confundem, pois ambas expressam o
corriqueiro, as firulas e mesquinhez do cotidiano, ao mesmo tempo
que nos puxam para o insondável, para algo que nenhuma atitude
reprodutora da satisfação cotidiana conseguirá atingir, porque o que
procuramos vem “da parte de além”, mas está ao mesmo tempo de
uma certa forma visível aos olhos: o rio. Medo e fascínio esse
“além” desperta. Literatura e religião são irmãs nas desventuras e
aventuras do cotidiano, na reprodução de valores ou na recriação
do mundo, na confirmação de um mundo que requer nossa servidão
ou na transformação do velho em novo, na superação das
margens”
113
.
***
Antonio Magalhães para concluir esse ponto –, superando algumas escolas
européias de literatura e de crítica literária, principalmente no contexto alemão,
114
que põem em conflito teologia e literatura, religião e arte
115
, que parecem coisas o
distantes, mas próximas no que diz respeito ao transcendente
116
, tão conflitantes e
dicotômicas, mas harmônicas naquilo que buscam dizer
117
; superando também as
teologias que negam veementemente a literatura ou a cultura
118
como algo
112
Id. Ibid. p.180.
113
Id. Ibid. p.179-180. No texto supracitado, Magalhães faz referência ao conto de João Guimarães
Rosa, a terceira margem do rio. “[...] há em Guimarães Rosa não somente um modismo de escola, mas
a preocupação movente é a própria vida do ser humano, seus contentamentos e suas satisfações da
margem, seu olhar sobre a transcendência a partir da qual e para a qual a vida toda pulsa”.
114
Cf. Id. Ibid. p.45ss.
115
“Os motivos foram apresentados e eles indicam que boa parte dessa discussão se deu dentro do
espírito iluminista, num processo de emancipação que setores da cultura almejavam em relação aos
ditames do poder eclesiástico. Em grande parte, o que temos aqui é uma espécie de concorrência entre
teologia e literatura, entre religião e arte, entre estética literária e ética religiosa, para estabelecer que
campo de conhecimento humano estaria em melhores condições de representar a transcendência
humana, seus sonhos de superação e o desvelamento de suas intuições mais profundas.” Id. Ibib.p.45.
116
“Um dos pressupostos dessa leitura literária da transcendência é o de que esta é uma experiência de
todos os seres humanos. Ela não é destinada somente a gênios religiosos e místicos espirituais. É uma
experiência do cotidiano, mesmo na sociedade secular.” Id. Ibid. p.30.
117
“Os vestígios da herança religiosa nos poemas e romances apontam para questões que superam os
aspectos meramente estéticos do texto e colocam-nos diante de temas fundamentais da própria vida
humana e de seus conflitos.” Id. Ibid. p.138.
118
“Nós, porém, temos de ter clareza que cultura não é preocupação do cristianismo. Este se preocupa
com a vida eterna, que começa aqui, neste momento; vida eterna que é ameaçada, mas não destruída
pela morte.” Id. Ibid. p.59. Apud Reihold SOINEMER. Der Bildungsauftrag des christfichen Dichters.
In: LANDAU, E. M. Von. (ed.). Gesammelte Werke. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1978. v.
lX, pp. 436-437.
43
importante, pelo contrário, que a veem como “desgraça e sem-vergonhice”
119
; e
também as crises entre a epistemologia, a religião e a arte
120
, ainda dentro desse
contexto; apresenta-nos, num outro lugar e espaço, o latino-americano
121
, as
possibilidades de uma aproximação entre teologia e literatura:
“A literatura latino-americana apresenta possibilidades de
superação desse antagonismo fundamental da teologia ocidental ao
manter na sua construção a relação dinâmica entre discurso e fé. O
texto literário não é uma mera reprodução da experiência, mas
também não pretende ser um sistema explicativo rígido, intocável e
sobrepujados de novas experiências. Ao manter a tensão criativa
entre os dois aspectos, ela o faz dentro de um espírito que não quer
somente explicar o mundo, mas interpretá-lo e reconstruí-lo
constantemente”
122
.
Este então seria o caminho da teologia no diálogo com a literatura latino-
americana, o caminho de uma teologia que pode ser latino-americana, dialogal e
relevante, que, superadas as orientações positivistas das teologias européias, a
teologia latino-americana pode caso defenda a preservação do símbolo dialogar
mais profundamente com seu mundo. Mas, não é só isso.
O que se torna importante agora – não que o que já fora tratado não os seja ou
não o tenha sido está na possibilidade de um “trabalho teológico”, que Magalhães
olha com otimismo, feito “encarando a teologia da tradição e textos da literatura
como representações do sagrado na vida”
123
. Por isso, nessa vereda, a da
correspondência entre diferentes, que, espelhados nas palavras “revelam o mistério
de nossas vidas”, “nossas verdades mais profundas”
124
e nossa relação com o
sagrado, caminho, e o faço, consciente de que há algo a mais a dizer, ou, pelo menos,
algo a mais a fazer.
119
Id. Ibid. p.58. Citando Barth.
120
“Se por um lado o romantismo conquistou importantes representantes entre pessoas ligadas à
literatura e à teologia, por outro sua presença tornou ainda mais aguda a separação entre conhecimento
considerado científico e intuição estética, tornando marginais as vozes que tentavam convergir às
diferentes formas de saber.” Id. Ibid. p.27.
121
“Temos de cuidar, portanto, para não transferir problemas de interpretação existentes entre
literatura e filosofia, teologia e sociologia, do contexto europeu para a nossa realidade.” Id. Ibid. p.70.
122
Id. Ibid. p.129.
123
Id. Ibid. p.197.
124
Cf. Id. Ibid. pp.206ss.
44
3. Textos Sagrados e Literaturas Profanas: os textos e suas veredas
“[...] todo o povo se reuniu como um homem na praça situada
defronte da porta das Águas. Disseram ao escriba Esdras que
trouxesse o livra da Lei de Moisés, que Iahweh havia prescrito para
Israel. Então o sacerdote Esdras trouxe a Lei diante da assembléia,
que se compunha de homens, mulheres e de todos os que tinham o
uso da razão. Era o primeiro dia do sétimo mês. Na praça situada
diante da porta das Águas, ele leu o livro desde a aurora até o meio-
dia, na presença dos homens, das mulheres e dos que tinham o uso
da razão: todo o povo ouvia atentamente a leitura do livro da Lei. O
escriba Esdras estava sobre o estrado de madeira, construído para a
ocasião; perto dele estavam, à sua direita, Matatias, Sema, Anias,
Urias, Helcias, Maasias; e à sua esquerda, Fadaías, Misael,
Melquias, Hasum, Hasbadana, Zacarias e Mosolom. Esdras abriu o
livro à vista do povo e se pôs de pé. Então Esdras bendisse a
Iahweh, o grande Deus; todo o povo, com as mãos erguidas,
respondeu: Amém! Amém!, e depois se inclinaram e se prostraram
diante de Iahweh, com o rosto em terra”
125
(Neemias 08:01-06).
Dou início ao último ponto desse presente capítulo, que intenta de forma
ainda provisória distanciar e aproximar os textos sagrados das literaturas profanas, de
forma proposital com uma perícope do livro bíblico de Neemias que descreve a
leitura de um livro da lei feita pelo escriba-sacerdote Esdras no tempo da
reconstrução de Jerusalém e do Segundo Templo. Digo que a citação é proposital
porque a mesma, corroborada por outros textos bíblicos
126
, abre uma possibilidade de
leitura, em outra vereda, para um outro encontro entre a literatura e o texto sagrado,
uma vereda onde Yahweh, a partir deste momento, o término da reconstrução de uma
125
Bíblia de Jerusalém, edição revista e ampliada.
126
São muitas as citações bíblicas sobre a importância do livro ou dos livros, obviamente não
referidos à Bíblia como a conhecemos, e nem a livros como os conhecemos. Poderíamos citar
rapidamente as inúmeras vezes, nos profetas e em outros textos, de referências ao escrever para
preservar a memória: Êxodo 17:14; I Samuel 10:25; Ester 09:32; 19:23; Isaías 30:08; Jeremias
30:02; Daniel 12:04; e ao ler para repreender e ensinar o povo ou o rei: Êxodo 24:07; II Reis 11:12;
Ester 06:01; Jeremias 36:10; Lucas 04:14-31, livro lido e interpretado por Jesus. Pode-se entender
também a importância dada ao “livro” nas inúmeras referências feitas a livro como “livro da lei”,
“livro da vida” ou, como forma de legitimar acontecimentos, a frases do tipo como disse ou dizia o
livro (ou escritura)”, ou ainda, “como está ou estava escrito”. Outros fatos interessantes também
alimentam esta importância dada ao que é escrito, como o livro queimado e reescrito de Jeremias,
Jeremias 36; o livro encontrado na reforma de Josias, II Reis 22; o livro e os selos do apocalipse, que
desencadeiam o fim do mundo, Apocalipse 05; o livro comido por João em Apocalipse 10, com gosto
de mel e, depois, amargo; o pedido do escritor a Timóteo em II Timóteo 04:13, para que o mesmo
trouxesse os livros; o fato de que todos os feitos de Jesus, se escritos em livro, nem o mundo inteiro os
conteriam, João 21:25, ou ainda, de que os feitos escritos, foram escritos para que, se lidos, fossem
lidos para criar fé, João 20:30, além de muitas outras referências. Mas, por fim, cito ainda a famosa
afirmação do apóstolo “Paulo”: “toda a escritura é divinamente inspirada”, contida na segunda carta
escrita a Timóteo, 03:16.
45
Jerusalém e de um templo inferior e muito menos significativo que o primeiro, tema
do livro de Neemias, será visto, de forma irrevogável, tanto para o judaísmo nascente
como para o cristianismo posterior, como um habitante de um texto
127
.
Na narrativa de Neemias, no texto acima citado, percebe-se que é diante do
texto que o povo se levanta, diz amém e amém e, por fim, prostra-se; revelando
assim, algo de suma importância para a religião monoteísta nascente, o judaísmo, e
para as outras duas futuras religiões monoteístas, o cristianismo e o islamismo: é no
texto e não mais no Templo, no Santo dos Santos ou na Arca da Aliança que
Yahweh, Alá ou Deus Pai é ocultado e revelado
128
: “a Tora será o templo sem o
templo: o que resta quando não se quer esquecer nada e tudo está por terra”
129
. Mas
não é isso, essa percepção, o divino no texto, que carrega em si uma enormidade
de implicações tanto para a religião quanto para a própria cultura além das
implicações para a presente pesquisa também se torna de suma importância para o
diálogo entre teologia e literatura:
“Um livro assim [a Bíblia] segundo Antonio Magalhães não
pode ser encarado como coisa de criança, no sentido pejorativo,
visto que nele reside a seriedade de toda uma civilização, os
fundamentos éticos e religiosos de diferentes culturas e a reserva de
temas que passaram a determinar a maior parte dos grandes debates
que ainda hoje continuamos a discutir”
130
.
Deste modo, como já visto e dito, a Bíblia
131
passa a ser, a partir dessa
percepção, de indispensável análise para o diálogo proposto pelo víeis aqui
127
“Unable any longer to walk in Eden or feast in his Temple, Yahweh resides in the Jewish Bible. So
comfortably is he at home there that he needs no Third Temple, unless by now (as it seems to me,
though not to those who trust still in the Covenant) he has exiled himself even from the delight of its
pages.” [Impossibilitado de caminhar no Éden ou descansar em seu Templo, Yahweh habita a Bíblia
Hebraica. E de tão confortável que ele se encontra neste lugar, ele não precisa mais do Terceiro
templo, a não ser que agora (como me parece, ainda que não para aqueles que ainda acreditam na
Aliança) ele tenha se exilado para sempre das delícias daquelas páginas]. Harold BLOOM. Jesus and
Yahweh: the names divine. New York: Riverhead Books, 2005. p.123.
128
Cf. John B. GABEL; Charles B. WHEELER. A Bíblia como literatura: uma introdução. (tradução:
Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves). São Paulo: Loyola, 1993. pp.77s.
129
Régis DEBRAY. Deus, um itinerário: material para a história do eterno no ocidente. (tradução:
Jônatas Batista Neto). São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.95.
130
Antonio MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São
Paulo: Paulinas, 2000. p.97.
131
Para mim, não a Bíblia, mas todo o texto ou narrativa sagrada em texto ou não (oral), pode
sofrer com as mesmas questões que a Bíblia sofreu e sofre. Cf. Antonio Carlos de Melo
MAGALHÃES. Religião e interpretação literária: perspectivas de diálogo das Ciências da Religião
46
trabalhado: teologia, religião e literatura; seja como fornecedora de “instrumentos e
base para muitas criações literárias”
132
; seja como literatura mesmo (José TOSAUS
ABADÍA, A Bíblia como Literatura; e John B. GABEL e Charles B. WHEELER, A
Bíblia como Literatura), criadora do mais fantástico personagem de ficção criado
(Jack MILES, God: a biography e Harold BLOOM; David ROSENBERG, The Book
of J); seja como livro mesmo (biblos), em papiro ou pergaminho ou papel (Régis
DEBRAY, Deus, um itinerário); seja como palimpsesto (Eli Brandão SILVA. O
Nascimento de Jesus-Severino no Auto de Natal Pernambucano); seja em
carnavalização textual (Salma FERRAZ, As faces de Deus na obra de um ateu: José
Saramago); ou seja em re ou desleitura de si mesma (Harold BLOOM, Jesus and
Yahweh: the names divine).
Assim, neste primeiro momento, seria possível escolher e assumir, dentro da
mesma problemática, alguns diferentes caminhos. Assumir a Bíblia como texto
religioso, consciente de todas as implicações que isso carrega: texto não-ficcional,
texto de revelação, palavra de Deus. Mas também, entendendo juntamente ou não o
caráter religioso do texto, assumir a Bíblia (ou todo o texto ou narrativa religiosa)
como obra literária, mas não no sentido corrente de literatura, como obra de
ficção, fruição e devaneio, ou, como disse Gabel e Wheeler, de belles lettres
133
. E,
como caminho nesse assumir de possibilidades, poder-se-ia apontar a história da
construção do texto como texto de caráter religioso, a formação do texto nas
mentalidades religiosas que o seguiram, o texto como formador ético, social e
religioso de povos e / ou também o texto como fonte de criatividade e espiritualidade
para outros textos, não necessariamente religiosos.
Por outro lado, seria também possível o que aqui ainda não se resolve, pois
esses são caminhos também de outros capítulos que uma grande obra literária, de
belles lettres, de ficção, mas não necessariamente para a fruição e o devaneio,
poderia carregar uma percepção do sagrado, uma palavra sagrada, o que, certamente,
com a Literatura. In: Religião e Cultura: o espírito da letra, temas de literatura e teologia. São Paulo:
PUC, 2004. p.23.
132
Id. Ibid. p.101.
133
John B. GABEL; Charles B. WHEELER. A Bíblia como literatura: uma introdução. (tradução:
Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves). São Paulo: Loyola, 1993. p.18. Os autores chamam
isso de composições literárias: salmos, poesias, sabedorias, cânticos etc, como em outros autores,
principalmente em comentários de salmos e dos livros de sabedoria.
47
exigiria mais e maiores explicações. Ou ainda, de outra forma para mim,
pessoalmente, menos interessante, nem por isso menos importante –, seria dizer que
todo teólogo sistemático assemelha-se a um crítico literário sistemático
134
e, desse
modo, aproximar, talvez de forma forçada e também meio cômica, mas ainda em
diálogo, teologia e literatura, dizendo que o teólogo (o sistemático), quando abre seu
texto sagrado e faz teologia, em verdade está fazendo uma crítica literária com fins
religiosos. Mas este não seria e nem será, em tese, o caminho.
3.1. A Bíblia como literatura
Antonio Magalhães, como dito aqui, entende que a importância do diálogo
entre teologia e literatura se inicia no fato de que o cristianismo e o autor afixa-se
no cristianismo é uma religião do livro, e de que seu poder, tanto na sua expansão
quanto na sua sobrevivência enquanto religião, reside no fato de o cristianismo ser
literatura
135
. Assim, e não poderia ser diferente, o autor entende que o livro do
cristianismo, a Bíblia, tanto o NT quanto o AT, é literatura, e isso, ainda segundo o
autor, seria consenso entre os próprios estudiosos da Bíblia, os exegetas. No entanto
há alguns limites:
“O problema central aponta Magalhães é que os exegetas estão
presos a uma teia de interesse teológico e, com esse objetivo,
limitam bastante o próprio alcance do texto como polissemia
religiosa e criatividade estética, colocando a qualidade literária do
texto sempre como meio para se chegar ao conteúdo teológico”
136
.
134
“All theologians, from Philo to the present, are allegorists, and since allegory is irony, and
demands literary insight, theologians almost always fail, Plato being the grand exception. Systematic
theologians are like systematic literary critics: Paul Tillich is a modified success, Augustine is a
magnificent failure, and Northrop Frye also sinks.” [Todo teólogo, de Filo até hoje, é um alegorista, e
visto que a alegoria é ironia, e demanda conhecimento literário, os teólogos quase sempre falham,
Platão foi uma grande exceção. Teólogos sistemáticos o parecidos com críticos literários: Paul
Tillich é um sucesso limitado, Agostinho é um insucesso magnífico, e Northrop Frye igualmente
sobra]. Harold BLOOM. Jesus and Yahweh: the names divine. New York: Riverhead Books, 2005.
p.11.
135
Cf. Antonio MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São
Paulo: Paulinas, 2000. pp.05-07.
136
Id. Ibid. p.99.
48
O que seria o mesmo que dizer que a Bíblia é uma obra literariamente escrita, com
todas as características de uma obra literária
137
, mas com preocupações rigidamente
teológicas (religiosas) em sua formação. Mesmo quando grandeza literária no
texto, como dito por Magalhães, o teológico, para o exegeta comprometido, sempre
prevalece. Porém, mesmo para estes exegetas, não parece existir nenhum conflito no
fato de considerar a Bíblia como literatura, desde que, nesse considerar a Bíblia
como literatura, não lhe seja tirado o elemento histórico, sua veracidade enquanto
documento, e seu conteúdo religioso como preocupação última, que seria
exatamente o seu caráter sagrado que a distinguiria das outras literaturas
138
.
Antonio Manzatto, como exemplo, entende que “o fato de a Bíblia ser
reconhecida como Palavra de Deus pode fazer esquecer que ela é também uma
expressão literária”
139
. [...] Mas também, por outro lado, que “o fato de ser uma obra
literária não impede a Bíblia, especialmente esses livros: Jonas, Jó, Tobias e
Salmos
140
, de maior ficcionalidade, de serem também Palavra de Deus”
141
. Segundo
o autor, ficaria mais compreensível uma leitura da Bíblia a partir de uma leitura que
parta de uma compreensão e de uma hermenêutica literária, “[...] ler a Bíblia à luz da
literatura é compreendê-la melhor”
142
. No entanto, ainda há limites.
A Bíblia, lida a partir da literatura, algo que se inicia em 1753, com Robert
Lowth, em Sacra Poesia Hebrorum
143
, é colocada diante de uma problematização
característica da própria literatura, a relação entre o texto escrito e a verdade tema
aqui discutido
144
–, o que aproxima, de forma significativa, os textos sagrados
145
137
Cf. José Pedro TOSAUS ABADÍA. A Bíblia como Literatura. (tradução: Jaime A. Clasen).
Petrópolis: Vozes, 2000. pp.53s.
138
Cf. Antonio Geraldo CANTARELA. Bíblia e literatura: aproximações e perguntas. In: Horizonte
Teológico. Belo Horizonte: ISTA, 2006. p.40.
139
Antonio MANZATTO. Teologia e literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida
nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. p.80.
140
O autor está trabalhando aqui com aquilo que ele chama de “realidade literária” (Apud. JoLuís
PLASCÊNCIA MONCAYO) a partir dos livros citados: Jonas, Jó, Tobias e Salmos. Id. Ibid. p.81.
141
Id. Ibid. p.81.
142
Id. Ibid. p.81.
143
Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Religião e interpretação literária: perspectivas de
diálogo das Ciências da Religião com a Literatura. In: Religião e Cultura: o espírito da letra, temas
de literatura e teologia. São Paulo: PUC, 2004. p.23.
144
Cf. Antonio MANZATTO. Teologia e literatura: reflexão teológica a partir da antropologia
contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. pp.16ss. Antonio MAGALHÃES.
Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. pp.49ss.
Cf. Também Aristóteles (Arte poética e Arte retórica) e Platão (A república, Fédon e Fredo).
49
da literaturas profanas, contundo, ainda as mantêm separadas, que a Bíblia não se
reduziria a uma simples literatura humana, fruto de imaginação criativa:
“Para algumas pessoas, o estudo literário da Bíblia é uma tentativa
de solapar a historicidade das passagens bíblicas. Com isso, a
análise literária acabaria pondo em dúvida a verdade das Escrituras
Sagradas. Por isso consideram perigosa a aplicação desta análise a
certas seções da Bíblia. [...] Para certas pessoas, o estudo literário
parece abandonar o essencial da Bíblia, seu caráter divino, e reduzir
a palavra de Deus a pura literatura humana”
146
.
para outros autores, como Northrop Frye, Harold Bloom e Jack Miles – que serão
trabalhados mais à frente ainda nesse ponto, menos Frye –, essa preocupação com a
verdade não é uma questão “importante”, pois, para eles, não importa o que foi dito,
mas como foi dito e como foi interpretado. O que foi dito, se é verdade ou não,
importa a uma exegese comprometida com a Bíblia como Palavra de Deus, inspirada
e inspiradora
147
. Para essa exegese a comprometida a relação Bíblia e Verdade,
que se dá numa compreensão de história Bíblia como livro histórico –, está na
relação intrínseca entre o texto bíblico e a necessidade de se dizer que “um ser divino
penetrou na história e organizou as coisas nos termos do seu próprio plano para a
humanidade”
148
; é o histórico
149
como ponto de partida, e é o religioso como
preocupação última. E, caso essa história não seja tão história assim e a verdade não
seja tão verdade assim, julga-se, segundo Gabel e Wheeler, “pela proximidade com a
verdade”, vê-se não o como foi, mas o como poderia ter sido:
“A falsificação literária [na Bíblia] segundo Régis Debray não
decorre da vontade de enganar, nem do talento para a mitomania,
145
“A reelaboração do passado é dinâmica, voltada para o futuro. Seu papel é dar sentido ao presente
oferecendo um alvo invejável a uma comunidade que, de outra forma, poderia duvidar do seu futuro.
É por isso que cada episódio das Escrituras cuja redação se estende por sete ou oito séculos fala a
linguagem do tempo em que foi escrito, e não do momento em que teria ocorrido.” Régis DEBRAY.
Deus, um itinerário: material para a história do eterno no ocidente. (tradução: Jônatas Batista Neto).
São Paulo: Companhia das Letras, 2004. pp.52-53.
146
José Pedro TOSAUS ABADÍA. A Bíblia como Literatura. (tradução: Jaime A. Clasen). Petrópolis:
Vozes, 2000. pp.21-22.
147
Não quero com isso dizer que outra forma de exegese, talvez menos comprometida com a
instituição, não leve em consideração o elemento histórico contido nos textos bíblicos, como o método
histórico crítico, por exemplo.
148
John B. GABEL; Charles B. WHEELER. A Bíblia como literatura: uma introdução. (tradução:
Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves). São Paulo: Loyola, 1993. p.49.
149
“Ao contar as suas histórias do passado, eles não o faziam em benefício do passado, mas do
presente do seu presente, é claro. Isto é, eles selecionavam materiais referentes ao passado e os
moldavam nos termos do que sentiam ser as necessidades da sua audiência presente.” Id. Ibid. p.51.
50
mas sim de um instinto de conservação: para não mergulhar no
desespero ou na falta de sentido, a imaginação do grupo deve
refazer sua realidade. Enganar-se para não morrer é melhor do que
o inverso”
150
;
o que na literatura, segundo Gabel e Wheeler, autores citados acima, não seria
possível, ou melhor, “funcionaria muito pouco”, já que “estas – as belles lettres – não
reivindicam nenhuma verdade que possa ser considerada seriamente”
151
; o que, por
sua vez, distanciaria os textos sagrados das literaturas profanas, re-valorizando os
textos sagrados e desvalorizando as literaturas profanas.
3.2. Bíblia: um texto religioso em itinerário
Por outra vereda, sem nenhuma preocupação com historicidade ou
veracidade, “mais no percurso do que no discurso”
152
, “procurando evitar o delírio da
interpretação”
153
, como o próprio autor anuncia, está Régis Debray
154
, autor aqui
visto e citado, que fica, por sua singularidade, um tanto quanto distante mas não
muito das principais preocupações dentro desse ponto. Por outro lado, também por
essa mesma singularidade, torna-se necessária alguma referência ao autor.
Como dito, Debray não está preocupado com as análises históricas ou com a
veracidade dos acontecimentos bíblicos narrados pela própria Bíblia, e nem com a
forma como isto se interpreta; mas está, e esse é o objetivo de seu livro, no como um
texto em si, enquanto texto, transformado e re-transformado, pôde criar e re-criar o
divino
155
e, deste modo, criar e re-criar o humano e sua forma de ser no mundo. Diz
150
Régis DEBRAY. Deus, um itinerário: material para a história do eterno no ocidente. (tradução:
Jônatas Batista Neto). São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.54.
151
John B. GABEL; Charles B. WHEELER. A Bíblia como literatura: uma introdução. (tradução:
Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves). São Paulo: Loyola, 1993. p.18.
152
Régis DEBRAY. Deus, um itinerário: material para a história do eterno no ocidente. (tradução:
Jônatas Batista Neto). São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.18.
153
Id. Ibid. p.18.
154
Limito-me a apresentar o autor a partir das informações contidas na tradução de seu livro em
português, texto aqui usado: “Régis Debray (Paris, 1940) participou da guerrilha na América Latina na
década de 1960, ao lado de Che Guevara. Foi preso na Bolívia e libertado em 1970. Hoje é professor
de filosofia na Universidade de Lyon e presidente do Conselho Científico da Escola Nacional Superior
das Ciências de Informática e das Bibliotecas. É autor de vários ensaios, entre eles: La Révolution
dans révolution (1967); Le Pouvoir intellectuel em France (1979); Que vive la République (1989); À
demain de Gaulle (1990); L’État séducteur (1993), e Cours de médiologie générale (1991).”
155
“Ele não chega a nós no estado em que partiu. Seu transporte O transforma.” Id. Ibid. p.26.
51
o autor: “nosso propósito não é retomar a interpretação de um texto sagrado, e sim
saber como é possível que exista o sagrado, o texto e as permanências de leitura”
156
.
Assim, de forma ainda muito resumida e simplista, pode-se dizer que, para o autor e,
de forma não totalmente explicada, para a tese, Deus, ao modo de personagem
literário, como em Jack Miles e Harold Bloom, fez-se a partir da construção de um
texto em um processo tecnológico de desenvolvimento de comunicação e de
transporte
157
. Deus, para Debray, se fez na roda
158
e no papel
159
. Ele é textual.
Desenvolveu-se no texto. Na figura (pictografia) Ele era plural ou nem era Ele
160
, no
texto e com a força do deserto Ele se fez uno e se expandiu
161
, querendo,
conjuntamente, fazer-se uno para todos, é o monoteísmo e sua expansão.
Lendo Debray, descobre-se que Deus e a Palavra (primeiro falada e depois
escrita) são devedores um ao outro. Foi pela Palavra que Ele nos fez (João 01:01),
mas foi também pela Palavra que nós O fizemos, O difundimos
162
e O controlamos:
“assim como a revolução da escrita carrega no ventre uma revolução epistemológica,
uma teografia está grávida de uma teologia e, portanto, de uma logomaquia
163
, o
que no fundamentalismo se torna muito mais agudo
164
, segundo o autor. Descobre-se
também, na leitura de Debray, que a força do divino no texto não está apenas no
texto em si, no fato de ser texto, literatura, como é preocupação de Antonio
Magalhães acentuar, mas na mobilidade e na acessibilidade que este texto possui
165
.
156
Id. Ibid. p.26.
157
Para o autor citado não importa a grandeza literária em verdade isso nem é dito por ele –,
diferentemente de Harold Bloom, Jack Miles e Northrop Frye, e também, diferentemente da proposta
deste presente trabalho.
158
“[...] (o mais primitivo esboço de carro conhecido, com rodas entalhadas, figura numa fábula de
Uruk, cidade iraquiana de onde provêm os primeiros textos cuneiformes). O carro com rodas aparece
nas margens do Nilo e do Eufrates por volta do final do quarto milênio. A dupla passagem do signo
pictográfico para o signo fonético e do simples trenó feito de galhos para o carro puxado por bois ou
asnos (os cavalos começaram a ser utilizados 2 mil anos atrás) tem relação direta com o nosso dossiê.”
Id. Ibid. p.38.
159
O homem descende do símio, mas Deus descende do signo e os signos têm uma longa história. Id.
Ibid. p.39.
160
Cf. Id. Ibid. pp.42ss.
161
“Foi o contato deserto/alfabeto que pôs o monoteísmo em movimento, e nós continuamos a nos
beneficiar da sua capacidade de impulso.” Id. Ibid. p.128.
162
“E um deus “alfabetizadopode decolar de suas bases e transpor muros com um salto, como o
próprio fenício, homem ágil, do comércio e da navegação, que carregava seu linear (a linha reta ou
curva substituindo a cunha) com as mercadorias.” Id. Ibid. p.109.
163
Id. Ibid. p.124.
164
“O fundamentalismo pode ser visto, a esse respeito, como hipertrofia doentia do traço escrito. O
culto do livro se transforma em sadomasoquismo quando o louco de Deus se põe a girar dentro de si
mesmo, como um dervixe.” Id. Ibid. p.123.
165
Cf. Id. Ibid. pp.131ss.
52
Nisto estaria também, para Debray, a vitória de um Deus sobre outro Deus, uma
vitória textual: “o primeiro triunfo do Deus lido sobre o Deus visto é o gabarito,
economia de espaço”
166
. Parece, nessa lógica, que o transcendente prefere o mínimo.
Como diz o autor, o metafísico “prefere as minúsculas”
167
. Também se descobre,
nesta leitura, que na mudança do veículo o que é veiculado também muda e que
quem veicula, simboliza
168
e ressignifica melhor vence. O Cristo como parricida
169
é
bom exemplo disso. Para Jack Miles, em Christ: a crisis in the life of God, por
exemplo, a superação de Yahweh por Jesus e pelo Deus Pai se deu através da solução
de uma crise entre Yahweh e seu povo na configuração literária de uma personagem
divino diferente, extremamente pacífica, dada ao sacrifício e ao fracasso, mas, ao
mesmo tempo, vencedora. O que certamente se deveu, segundo o autor, não ao
grande poder significador ou ressignificador do Novo Testamento, mas também e em
grande parte a edição do Antigo Testamento cristão em relação à Bíblia Hebraica,
que possibilitou a significativa mudança de um Deus que se emudecia para um Deus
que passaria a falar cada vez mais até encarnar-se e, deste modo, falar e ser diferente:
“Antes ele pedia que eles oferecessem sacrifícios a ele; agora ele se
sacrifica por eles. Antes ele pedia que eles o servissem a ele; agora
ele os serve. Antes ele pedia que eles o amassem; agora ele os ama,
e o faz até o fim, e os instrui que a marca do pacto deles com ele
não deve ser a devoção deles por ele, mas a devoção deles um pelo
outro”
170
.
Em Harold Bloom, em Jesus and Yahweh: the names divine, a suplantação deveu-se
a uma leitura equivocada da Bíblia Hebraica
171
, mas uma leitura equivocada bem
sucedida: “[…] qualquer julgamento do Novo Testamento, quer seja como literatura
ou como espiritualidade, é, historicamente, a mais bem sucedida renovação outrora
166
Id. Ibid. p.137.
167
Id. Ibid. p.136.
168
Diz Debray: “Não é ver e ouvir, mas fazer ver e escutar que estabelece a diferença. [...] A eficácia
simbólica atua melhor no futuro.” Id. Ibid. p.177.
169
Id. Ibid. p.317.
170
“Once he demanded that they offer sacrifice to him; now he sacrifices himself for them. Once he
demanded that they serve him; now he serves them. Once he demanded that they love him; now he
loves them “to the and” and instructs them that the mark of their covenant with him shall be not their
devotion to him but their devotion to one another.” Jack MILES. Christ: a crisis in the life of God.
New York: Alfred A. Knopf, 2001. p.211.
171
“The New Covenant necessarily founds itself upon a misreading of the Hebrew Bible.” [ Harold
BLOOM. Jesus and Yahweh: the names divine. New York: Riverhead Books, 2005. p.14.
53
efetuada”
172
. No entanto, em Régis Debray, a suplantação, além de literária, de
“prodigiosa elaboração”, que converteu “em apoteose um fiasco, em tulo de glória
um suplício infamante e em prova de excelência uma contraprova calamitosa”
173
, e
que tem numa personagem polissêmica sua grande vantagem, é também
tecnológica
174
, é a troca do rolo pelo códice
175
:
“Maleabilidade da relação com o público, leveza do suporte de
propagação. O hightech da época ou o códex, o ancestral dos
paralelepípedos retangulares que chamamos de livros, foi logo
utilizado e aproveitado. Foi por essa porta de serviço, entre os
séculos II e IV, que a verdade cristã fez sua entrada na sociedade.
Com pés de pomba, como convém, e nos ombros dos importantes.
Com efeito, esse Deus heimatlos [apátrida], nenhuma autoridade
intelectual da romanidade O viu chegar e, de repente, Ele estava
lá. Tarde demais para fazê-Lo voltar ao aduar de origem”
176
.
Para Debray, o livro, transformado depois em instrumento e imagem do
poder
177
, foi o capacitador, literário e tecnológico como pôde ser visto – da
expansão cristã e de sua afixação no poder. Foi também, com a invenção da imprensa
172
“[...] however one judges the New Testament, whether as literature or as spirituality, it is histori-
cally the most totally successful makeover [literary] ever accomplished.” Id. Ibid. p.45.
173
Régis DEBRAY. Deus, um itinerário: material para a história do eterno no ocidente. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004. p.176.
174
Jack Miles diz a mesma coisa: “In the modern sense of the word book, however, the Jews might be
more accurately called the people of the scroll. It is the Christians who are the people of the book as
we know it. […] Whoever invented it [the codex], Christianity's enthusiastic adoption of it gave the
new religion a technological advantage that undoubtedly fostered its spread.” [No sentido moderno da
palavra livro, qualquer que seja, os judeus, por força, seriam chamados mais perfeitamente de povo do
rolo. São os cristãos que são o povo do livro como nós o conhecemos. [...] Quem quer que tenha o
inventado [o códex], foi a adoção entusiástica do cristianismo por ele que deu a nova religião o avanço
tecnológico que, sem dúvida, promoveu esta expansão]. Jack MILES. God: a biography. New York:
Alfred A. Knopf, 1995. pp.16e17.
175
“[...] os manuscritos de autores cristãos compreendem quatro vezes mais dices do que rolos,
enquanto os dos autores latinos compreendem quinze vezes mais rolos do que códices”. As pias da
Septuaginta, para uso dos cristãos, têm a forma de códices, e o judaísmo continua a se afirmar “pelos
volumes”. Jeová insiste em se desenrolar, na matéria vegetal, com a mão direita e a se enrolar
novamente com a mão esquerda (movimento linear e leitura contínua). [...] A Igreja permanece fiel às
folhas dobradas, em cadernos costurados, e a Sinagoga, ao rolo tradicional. Ele vem do Egito dos
faraós e desaparece de nossas bibliotecas por volta do século IV (até renascer em rolos de fax).” Régis
DEBRAY. Deus, um itinerário: material para a história do eterno no ocidente. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004. p.195.
176
Id. Ibid. pp.194-195.
177
“A iconografia medieval e, ritualmente, o homem com o livro e a mulher com a criança, um
diante do outro. A Virgem segura Jesus, o apóstolo segura a Escritura. A uma, a maternidade. Ao
outro, a autoridade (ou a autoria). A cada um sua dor. As mulheres fazem nascer no sofrimento, e os
homens também. Para elas, as crianças, para eles, os livros, filhos dos celibatários. Os manuscritos
constituem incumbência dos monges, nos scriptoria, e não das monjas, a não ser muito raramente (nos
mosteiros de Sainte-Croix e santa Cecília).” Id. Ibid. p.253.
54
com Gutenberg, o grande motor da reforma protestante
178
e das vitórias sobre o
catolicismo
179
; e será também, hoje e no futuro, com a derrocada da palavra no
mundo moderno
180
, a destruição de Deus, que “[...] a ilusão religiosa do momento
é um mundo sem religião”
181
; ou, numa hipótese menos ruim para a religião,
simplesmente, a sua reconfiguração: “as figuras de origem são universais e, por isso
mesmo, reatualizáveis, bem além da primeira platéia”
182
.
3.3. A Bíblia e sua literariedade
Mas o que importa aqui não é a tecnologia eficaz, mesmo que ela seja
importante, e ela é, mas sim o texto eficaz
183
, a Bíblia como um livro que fez e faz
diferença, não por sua força religiosa, mas também por sua grandeza literária. E
nesta vereda caminham dois autores, Jack Miles
184
e Harold Bloom
185
. Miles parece
178
“Lutero e Gutenberg, uma velha dupla. [...] maior conhecimento da Bíblia foi a causa principal da
Reforma religiosa do século XVI. Contaram-se 438 edições em latim. E, entre 1517 e 1520, calcula-se
que as publicações de Lutero alcançaram 300 mil exemplares.” Id. Ibid. pp.286e291.
179
“Roma não tinha motivos para alarmar-se e, com efeito, o papado ergueu muitos louvores ao novo
processo, que lhe foi útil na cruzada contra os turcos. [...] Daí a confusão quando o gênio do
dispositivo desconhecido lhes passa a perna. [...] Se Deus se encontra comigo num livro que pode ser
multiplicado à vontade, que necessidade tenho eu de intercessores ou de acompanhantes? “Todo
protestante virou papa, com uma Bíblia na mão” ninguém disse melhor do que Boileau. A máquina
de reproduzir detonou a máquina de controlar.” Id. Ibid. pp.288e292.
180
“Entre nós, a catástrofe patrimonial do Eterno começa com o difícil aprendizado da leitura e da
escrita na escola primária, a derrocada da língua no ginásio, o abandono das Letras nos liceus, e o
desprezo organizado pelo ensino filosófico no colegial. Nosso Deus é feito do mesmo estofo textual
que nossa laicidade.” Id. Ibid. p.390.
181
Id. Ibid. p.406.
182
Id. Ibid. p.409.
183
“O livro mais editado, lido e comentado do mundo, o nosso metalivro, retira sua aura do fato de
ser, ao mesmo tempo, fonte de informação e fonte de fé, anais de um povo e Palavra de Deus. Tem
duplo valor: horizontal (a crônica de uma história localizada) e vertical (a revelação de um desígnio
sobrenatural). Recto, a adaptação, como narrativa épica, de um percurso nacional, que se faz saga
pitoresca; verso, a universalização de eventos particulares, usada como oração por todos. Duas
histórias pelo preço de uma, a profana e a sagrada sustentando uma à outra. Ora, quanto mais as peças
do dossiê foram examinadas, mais o teológico desapegou-se do histórico, o que permite admirar mais
a virtude criativa do fantástico e a eficácia dos símbolos. A Bíblia não é “falsa” – a não ser sob o olhar
das nossas ilusões historicistas. Ela é eficaz.” Id. Ibid. p.49.
184
“Jack Miles é jornalista e membro do corpo editorial do “Los Angeles Times”. Ex-jesuíta, fez seus
estudos religiosos na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, e na Universidade Hebraica, em
Jerusalém. É doutor em línguas do Oriente Próximo pela Universidade de Harvard. Foi professor
titular da Universidade da Califórnia e bolsista da Fundação Guggenheim. Diretor do programa de
prêmios literários do Times, foi presidente do Círculo Nacional de Críticos Literários e ganhador do
Prêmio Pulitzer, com o livro God: a biography. (As informações do autor foram retiradas do site da
Companhia da Letras, que publicou em português God e Christ).
185
Harold Bloom nasceu em Nova York, em 11 de julho de 1930, tem origem judaica e tendências
religiosas e teológicas gnósticas, como ele próprio afirma; é hoje professor titular de Humanidades na
Universidade de Yale, tendo, anteriormente, ocupado cátedra na Universidade de Harvard. É autor de
55
muito mais preocupado com a eficácia da editoração na construção da Bíblia e de seu
principal personagem, Deus, do que com a grandeza literária dos escritos e dos
autores e de suas contribuições para a construção da Bíblia e de sua força
significadora
186
. Já Bloom, por sua vez, prefere e se preocupa, sem deixar as
considerações de Jack Miles de lado, com o texto e sua grandeza, com a genialidade
e seus gênios, os autores, mesmo que esses sejam tratados também de forma
ficcional, como a autora J
187
. Mas ainda não é isso. Quando entramos nestes dois
autores, ambos críticos literários, duas significativas contribuições para o diálogo
entre teologia e literatura, entramos num campo onde ler a Bíblia como literatura,
como dito aqui, não é ver as linguagens literárias que a mesma possui; mas é
também dizer, ou melhor, ler a Bíblia como literatura mesmo, e ver suas principais
personagens, Deus, na Bíblia Hebraica ou no Antigo Testamento cristão, ou Jesus, no
Novo Testamento, como personagens mesmo, criações literárias, mesmo que com
fundos históricos ou, ao menos, com fundos possíveis de veracidade. E isso pode ser
dizer mais ou pode ser dizer menos. Mais para a literatura e menos para a religião,
sem menosprezo obviamente. Mais porque é – até agora – talvez um caminho
contrário, uma leitura literária do teológico, e menos porque talvez fique faltando
ainda algo que ainda carece de ser dito.
27 livros e ganhador de vários prêmios: o McArthur, da Academia Norte-Americana de Letras e
Artes, a Medalha de Ouro de Crítica e Belles Lettres, da mesma academia, o Prêmio Internacional da
Catalunha e o Prêmio Alfonso Reyes, do México. Suas obras mais importantes são: Shakespeare: a
Invenção do Humano”; O Cânone Ocidental: os Livros e a Escola do Tempo”, considerado sua obra
prima; O livro de J”; e Gênio”. (As informações biográficas e bibliográficas do autor foram obtidas
no site www.objetiva.com.br, acessado no dia 03 de novembro de 2006).
186
Quando digo que ele prefere algo não estou dizendo que ele ignora ou despreza o outro algo.
187
“My further assumption is that J was not a professional scribe but rather an immensely
sophisticated, highly placed member of the Solomonic elite, enlightened and ironic. But my primary
surmise is that J was a woman, and that she wrote for her contemporaries as a woman, in friendly
competition with her only strong rival among those contemporaries, the male author of the court
history narrative in 2 Samuel.” [Minhas mais distantes pressuposições são de que J não era um escriba
profissional, mas antes um membro da elite de Salomão, alguém muito sofisticado e altamente bem
colocado, culto e irônico. Mas minha primeira conjectura é que J era uma mulher, e que ela escreveu
para seus contemporâneos como mulher, em amigável competição com seu único e forte rival entre
estes contemporâneos, o autor masculino da corte, da história narrativa de II Samuel]. Harold
BLOOM; David ROSENBERG. The book of J. New York: Vintage Books, 1991. p.09. “[…] to
identify J as a woman is a fiction, but so, of course, is the usual easy assumption that J was a man.”
[[…] identificar J como uma mulher é uma ficção, mas então, o que é claro, é usualmente mais fácil
aceitar que J fosse um homem]. Id. Ibid. p.36.
56
De Jack Miles, que procura distanciar-se de dois aspectos limitadores para a
pesquisa: a crença religiosa e a busca histórica
188
, tomo como principais
contribuições dois aspectos centrais: a importância da editoração e do arranjo dos
textos como construção literária e a leitura de Deus como personagem
189
. Primeiro,
Jack Miles entende que os editores, tanto do Tanach (onde Deus se desintegra sem
desaparecer
190
), texto com o qual ele trabalha em seu primeiro livro, como do Antigo
Testamento cristão (onde Deus termina atuante e vivo), fizeram, por percepção
literária, as escolhas dos arranjos que cada obra iria ter
191
. Para o autor, a ordem do
cânon, tanto do judeu como do cristão foi feita a partir de uma consideração artística
crucial
192
. Harold Bloom, por sua vez, lendo Jack Miles, mas muito mais preocupado
com a autora J do que com Redator R, preocupação principal de Jack Miles, também
entende que esta escolha é deliberada. Nada nesta redação, em certa medida,
aconteceu por acaso, mas sim, por conveniência literária e, obviamente, religiosa, ou
vice-versa.
Deus, como personagem dentro dessa construção artística, tornou-se
apenas a linha condutora da trama. Ele é a amarra literária que deu, apesar dEle
próprio não ter
193
, a unidade que a Bíblia precisava para se tornar o que se tornou. E
é nisso que está segundo Jack Miles a grande conquista literária do Tanach, mais
religiosa do que literária:
188
“I do not write about (though I certainly do not write against) the Lord God as the object of
religious belief. I do not attempt, as theology does, to make an original statement about God as an
extraliterary reality. I do not write as a historian and therefore do not focus, as historian do, on the
successive Israelite and Jewish communities that believed in God. My interest goes not to those
believing communities but, after the fashion of A. C. Bradley, to the God they believed in.” [Eu não
escrevo sobre (ainda que certamente não escreva contra) o Senhor Deus como um assunto de
religiosa. Não tento, como a teologia faz, fazer uma declaração original sobre Deus como uma
realidade extra-literária. Não escrevo como um historiador e por esta razão não foco, como um
historiador faz, sobre a contínua comunidade Israelita e Judia que acredita em Deus. Meu interesse
não é por estas comunidades de mas, à maneira de A. C. Bradley, pelo Deus que eles acreditam].
Jack MILES. God: a biography. New York: Alfred A. Knopf, 1995. p.10.
189
“God is, as I shall try to show in the book that follows, an amalgam of several personalities in one
character. Tension among these personalities makes God difficult, but it also makes him compelling,
even addictive.” [Deus é, como tentarei mostrar em meu livro, este que segue, uma amalgama de
muitas personalidades em um único caráter. A tensão entre estas personalidades faz de Deus um ser
difícil, mas também o faz atrativo, igualmente desejoso]. Jack MILES. God: a biography. New York:
Alfred A. Knopf, 1995. p.06.
190
Cf. Id. Ibid. p.23.
191
Cf. Id. Ibid. pp.15-19.
192
Id. Ibid. p.15.
193
Cf. Jack MILES. God: a biography. New York: Alfred A. Knopf, 1995. pp.93-94.
57
“[...] esta façanha literária descansa sobre um a priori intelectual
sintetizado, uma façanha religiosa mais do que de criatividade
literária. Foi apenas com um conjunto de muitos deuses, imaginado
com uma unidade dinâmica, com uma tensão não resolvida, que um
caminho foi aberto para o escrito sobre a estória de Deus, no qual
toda a complexidade de uma personagem com múltiplas
personalidades pode ser apresentada e as tensões internas desse
personagem puderam se tornar coerentes e progressivamente
reveladas”
194
.
No entanto, não isso em Jack Miles. Ele também contribui mostrando o como
uma criatividade original, a dos autores e editores do Tanach, conseguiu,
literariamente falando, misturar a história de um povo, sua religiosidade e uma
mitologia (ficção) própria, ou emprestada, num texto que conseguiu criar não um
Deus, mas também um povo para este Deus
195
. Diz Jack Miles:
“O que faz o Tanach um trabalho de arte literária é precisamente o
caminho por onde ele torna a experiência religiosa de um povo em
um personagem, o Senhor Deus, e sua experiência histórica em
uma trama. Mas esta transformação não pode acontecer como um
simples processo inconsciente, um tipo de acepção involuntária.
Foi uma corajosa proeza literária transformar a vitória histórica da
Assíria e da Babilônia na ação de um protagonista, o Senhor Deus,
reforçando os termos de um acordo anterior com seu antagonista,
Israel. Permitir que o caráter de um protagonista se desenvolva
nessas e por meio dessas ações constitui um comparável ato
literário”
196
.
194
“[…] this literary achievement rests on a prior intellectual synthesis, a feat of religious rather than
literary creativity. It was only as a ser of several gods was imagined into a unity dynamic with
unresolved tensions that the path was broken for the writing of a story of God in which the full
complexity of a character with multiple personalities could be presented and the tensions within that
character could be coherently and progressively revealed.” Id. Ibid. p.93.
195
“Taking the Tanakh on its own terms, everything in it really happened (history), its outcome is of
enormous personal consequence for each and every reader or hearer (religion), and, page by page and
some-times line by line, it has the unmistakable confidence and artistic panache of a living literature
(fiction). There is no reversing the evolution of the modern mind. We shall never know this unity
again. No historian, no preacher, no novelist can ever re-create it – can ever again, that is, be all three
at once. But by an effort of the imagination, we can experience in this central text of our literary
heritage the unity as it then was.” [Tomando o Tanach em seus próprios termos, com todas as coisas
nele contida como realmente acontecido (história), o efeito é de enorme conseqüência pessoal para os
leitores ou ouvintes (religião), e, tomado página por página e, às vezes, linha por linha, ele [o Tanach]
tem confiança inconfundível e pinta artística de uma literatura viva (ficção). Não existe reversão para
a evolução da mente moderna. Nós nunca conheceremos está unidade outra vez. Nenhum historiador,
nenhum pregador, nenhum novelista jamais poderá re-criar isto, não outra vez, isto é, ser três em um.
Mas, por um esforço de imaginação, nós podemos experimentar nesse texto central de nossa herança
literária, a unidade que ele teve]. Id. Ibid. p.166.
196
“What makes the Tanakh a work of literary art is precisely the way it turns the religious experience
of a people into a character, the Lord God, and its historical experience into a plot. Such a
transformation could never come about as a purely unconscious process, some kind of involuntary
abreaction. It requires the exercise of an aggressively creative intelligence. It was a bold literary stroke
58
Harold Bloom, como já dito, preocupado mais com a autora J do que a
redação final, o que seria o incomum, pois, segundo ele, “eles [os estudiosos da
Bíblia], quase sem exceção, preferem não tratar com J, mas sim com R, o triunfante
Redator”
197
, o vilão da história
198
, torna mais aguda esta percepção de que a Bíblia e
Deus nada mais são do que uma obra literária e um personagem literário
199
. Em
Yahweh – segundo o autor – “em suas transfiguradas formas, sobra o Deus dos filhos
de Abraão, das crenças judaicas, cristãs e muçulmanas. Mas Yahweh, no livro de J, é
uma personagem literária, simplesmente como o é Hamlet”
200
. E é aqui e nisso que
Harold Bloom se torna importante para o diálogo entre teologia e literatura. Ele
entende que J, o livro, antes de ser texto religioso, o que forçosamente passou a
ser, a partir de uma revisão, era texto literário, apenas literário, o que o diferencia,
em algumas partes, de Jack Miles. Com respeito à autora J também. Para Bloom, ela
não era o que constituiria, segundo ele, uma grande ironia
201
uma autora
religiosa, mas sim uma autora
202
relacionada a um círculo de intelectuais da corte de
Salomão, que estavam muito mais ligados à arte literária do que à religiosidade
judaica de seu tempo
203
.
to turn the historical victories of Assyria and Babylon into the actions of a protagonist, the Lord God,
enforcing the terms of a prior agreement with his antagonist, Israel. It was a comparable literary move
to permit the character of the protagonist to develop in and through these actions.” Id. Ibid. p.190.
197
“[…] almost without exception they [os estudiosos da Bíblia] chose to deal not with J but with R,
the triumphant Redactor.” Harold BLOOM; David ROSENBERG. The book of J. New York: Vintage
Books, 1991. p.14.
198
“This Redactor, a formidable fellow, has received very distinguished praise in our time, but I am
afraid he is the villain of this book, since I am convinced that but for him we would have a much fuller
Book of J.” [Este redator, um formidável companheiro, tem recebido muito louvor em nosso tempo,
mas eu tenho medo de que ele seja o vilão deste livro, que estou convencido de que sem ele nós
teríamos um livro de J muito mais completo]. Id. Ibid. p.22.
199
Diferente de Miles, Bloom parece pouco preocupado talvez por ressentimento com o elemento
religioso nesse processo todo.
200
“In Yahweh, in transmogrified forms, remains the God of the Children of Abraham, of believing
Jews, Christians, and Muslims. But Yahweh, in the Book of J, is a literary character, just as Hamlet
is.” Id. Ibid. p.12.
201
“Of all the extraordinary ironies concerning J, the most remarkable is that this fountainhead of
Judaism, Christianity, and Islam simply was not a religions writer.” [De todas as extraordinárias
ironias concernentes a J, a mais forte é que a fonte do judaísmo, do cristianismo e do islamismo,
simplesmente não era uma escritora religiosa]. Id. Ibid. p.31. “[...] I do not believe that J’s interests
were either theological or political. They were what we would now call imaginative or literary, and
concerned the elite image of the individual life, rather than the relation between Yahweh and the
Israelites, or the fortunes of the Davidic monarchy as such.” [[…] mas eu não acredito que o interesse
de J fosse ou teológico ou político. Eles eram aquilo que nós podemos chamar de imaginativo ou
literário, e convergiam à imagem de uma elite, de uma vida individual [segundo Bloom, Davi, o
grande foco da escritora], mais do que a relação entre Yahweh e os israelitas, ou as aventuras da
monarquia davídica como tal, [obra do Cronista]]. Id. Ibid. p.46.
202
Segundo o autor, uma dama da aristocracia salomônica. Cf. Id. Ibid. pp.298-299.
203
Cf. Id. Ibid. p.318.
59
“J, de forma semelhante a Shakespeare, escreveu entre a verdade e
o pensamento, simplesmente como faz a crença, mas nem J, nem
Shakespeare parecem, para mim, crentes, quer seja em Yahweh ou
em Yahweh e Cristo, pelo menos não como a maioria das pessoas
é. J e Shakespeare, sendo poetas do mais alto sublime, não
desperdiçaram energias para escolher formas de adoração de contos
poéticos. Eles trabalharam, especificamente, para representar a
realidade, mas de um modo a compelir sempre a perpetuação de
uma realidade sempre nova, que deve sempre aparecer”
204
.
Igualando texto sagrado com texto literário
205
, o autor, mais do que tornar o
literário na Bíblia mais evidenciado, cria uma possibilidade de correspondência que,
para mim e para minha pesquisa, possibilita uma forma de diálogo onde o literário e
o religioso, mantendo suas especificidades, tornam-se mais próximos e mais
dialogais, na palavra. No entanto, mesmo assim, ainda lhe falta algo, que ainda não
se resolve com esta discussão preliminar.
Assim, para fechar este ciclo de reflexões em torno de Harold Bloom e Jack
Miles e seguir adiante na pesquisa com exemplos acontecidos de diálogo entre textos
sagrados e literaturas profanas, retomo dois trabalhos dos autores, Jesus and Yahweh
e Christ: a crisis in the life of God, que levam a discussão da Bíblia como literatura e
Deus como personagem para o texto sagrado cristão, o Novo Testamento ou, como
prefere Bloom, o Segundo Testamento ou Testamento Tardio. Vendo Jesus como o
protagonista e não mais o Deus Yahweh, Jack Miles, mantendo sua compreensão de
Bíblia como literária e de Deus como personagem literário
206
, em nada muda sua
trajetória anterior iniciada em God: a biography. Da mesma forma, Harold Bloom,
204
“J, like Shakespeare, works between truth and meaning, just as belief does, but neither J nor
Shakespeare seems to me a believer, whether in Yahweh or in Yahweh and Christ, at least not a
believer as most people believe. J and Shakespeare, being poets upon the heights of the Sublime, do
not waste their energies by choosing forms of worship from poetic tales. They work rather to represent
reality, but in the urgent mode of compelling a perpetually fresh reality to appear.” Id. Ibid. p.319.
205
“I myself do not believe that the Torah is any more or less the revealed Word of God than are
Dante's Commedia, Shakespeare's King Lear, or Tolstoy's novels, all works of comparable literary
sublimity. Yet even I am shadowed by the residual aura of the Book of J, despite my conviction that
the distinction between sacred and secular texts results from social and political decisions, and thus is
not a literary distinction at all.” [Eu mesmo não acredito que a Torá, a palavra revelada de Deus, seja
algo a mais ou a menos do que a Comédia de Dante, o Rei Lear de Shakespeare ou os romances de
Tolstoy, obras de comparável sublime literário. Ainda assim, eu estou encoberto por uma aura residual
do livro de J, apesar da minha convicção de que a distinção entre textos sagrados e seculares resulta de
uma decisão social e política, e, deste modo, não são por uma distinção literária]. Id. Ibid. p.11.
206
“Such is the reading a reading of the New Testament as a work of imaginative literature that
this book will attempt”. [Deste modo, é uma leitura uma leitura do Novo Testamento como uma
obra literária de imaginação – que este livro intentará fazer]. Jack MILES. Christ: a crisis in the life of
God. New York: Alfred A. Knopf, 2001. p.27.
60
acrescentando Jesus de Nazaré e Jesus Cristo ao seu conhecido caminho sobre
Yahweh
207
, apresenta e é isso o que nos interessa aqui aquilo que ele chama de a
mais forte e mais criativa desleitura
208
(misreading) de toda a história literária e
textual
209
.
Jesus, o novo protagonista de uma nova obra literária sobre a vida de Deus,
uma releitura da Tanach lida a partir da Septuaginta
210
, segundo Jack Miles, foi
simplesmente uma nova forma religiosa e literária de reconstruir uma imagem de
Deus desgastada: “tornou-se necessário pensar o obvio e redefinir o Senhor como
um deus que quando retornou à ação como um guerreiro não estava apenas atrasado,
mas totalmente cancelado, e então era preciso ajustar sua personalidade guerreira de
acordo à realidade”
211
. Ao invés de declarar a derrota sobre os inimigos segundo
Miles foi mais fácil declarar a não existência do inimigo
212
e, deste modo,
transformar uma vergonhosa derrota em uma magnífica vitória
213
, que aconteceu
de fato no texto, o que foi suficiente.
Desse modo, tudo no Novo Testamento, tornou-se uma ressignificação do
Antigo Testamento, o que, em grande parte, deu-se por necessidade religiosa, mas só
aconteceu por capacidade e criatividade literária. Em Miles o Novo Testamento,
somado ao Antigo Testamento
214
, é, em si, como obra religiosa e literária, legítimo e
207
“This book centers upon three figures: a more-or-less historical person, Yeshua of Nazareth; a
theological God, Jesus Christ; and a human, all-too-human God, Yahweh.” [Este livro se centraliza
em três figures: uma mais ou menos histórica, Yeshua de Nazaré; um Deus teológico, Jesus Cristo; e
um humano, muitíssimo humano Deus, Yahweh]. Harold BLOOM. Jesus and Yahweh: the names
divine. New York: Riverhead Books, 2005. p.01.
208
Desleitura é o termo usado pelo tradutor do texto para o português.
209
Id. Ibid. p.36.
210
Cf. Jack MILES. Christ: a crisis in the life of God. New York: Alfred A. Knopf, 2001. pp.257ss.
211
“It become necessary to concede the obvious and to redefine the Lord as a god whose return to
action as a warrior was not just delayed but altogether canceled, and then to adjust his warlike
character accordingly.” Id. Ibid. p.114.
212
Id. Ibid. p.108.
213
Id. Ibid. p.117.
214
“Once the Tanakh was turned into the Old Testament and bound with the New Testament between
the covers of what was felt to be a single, composite work, Christian exegetes received a kind of
standing invitation to hear the Old Testament within the New in a similar implicit and “harmonic”
way even when, they found no explicit reference to it.” [Uma vez que o Tanach foi transformado no
Antigo Testamento e ressaltado pelo Novo Testamento entre as capas do trabalho de composição que
foi feito para criar uma unidade, os exegetas cristãos reconheceram um tipo de convite para ouvir o
Antigo Testamento dentro do Novo Testamento com uma implícita e harmônica similitude, mesmo
não encontrando nenhuma referência explícita para isto]. Id. Ibid. p.261.
61
não está errado
215
o que não significa dizer que a outra leitura o Tanach e não o
Antigo Testamento, seja ilegítima ou que esteja errada. para Bloom não. Para o
autor, que talvez penso eu seja ou apenas esteja meio ressentido, o Novo
Testamento ou Testamento Tardio é, apesar de obra magnífica e eficaz, uma releitura
desleal. Primeiro, porque os cristãos não resgataram, nem religiosa nem
literariamente, o Tanach, a Bíblia Hebraica, mas sim um Velho Testamento
cristão
216
, lido na Septuaginta de um judaísmo não judeu, mas sim grego.
“Agora, na história ocidental, é muito tarde para auto-decepções
religiosas ou humanas sobre a apropriação cristã da Bíblia
Hebraica. É certamente muito tarde na história judaica para ela ser
outra diante da total clareza relativa à natureza e o efeito deste ato
cristão de total usurpação”
217
. [...] “Se o Novo Testamento triunfou
no modo Romano, e isso se fez sob Constantino, então o
prisioneiro conduzido em procissão foi o Tanack, reduzido à
escravidão como o Antigo Testamento. Toda a subseqüente história
judaica, até a fundação, mais de meio século atrás do Estado de
Israel, testifica as conseqüências humanas de escravidão
textual”
218
.
Segundo, porque Jesus, como Deus, um Deus teológico, com a exceção do livro de
Marcos, segundo o autor, é incompatível com Yahweh. Jesus Cristo é teológico,
Javé, é profundamente humano e, por isso, não dado à teologia
219
, mas dado, talvez
somente, à literatura. Para o autor este Yahweh cristão, aprisionado na figura
transcendente do Deus Pai, não era nem mesmo hebreu, era grego. Para Bloom,
“Yahweh não leu Platão”
220
, Jesus, pelo que parece, sim. Terceiro porque nenhum
215
Cf. Id. Ibid. p.251.
216
Harold BLOOM. Jesus and Yahweh: the names divine. New York: Riverhead Books, 2005. p.45.
217
“It is now altogether too late in Western history, for pious or humane self-deceptions on the matter
of the Christian appropriation of the Hebrew Bible. It is certainly much too late in Jewish history to
be other than totally clear about the nature and effect of that Christian act of total usurpation.” Id. Ibid.
p.72.
218
“If the New Testament triumphed in the Roman mode, and it did under Constantine, then the
captive led in procession was the Tanakh, reduced to slavery as the Old Testament. All subsequent
Jewish history, until the founding more than half a century ago of the State of Israel, testifies to the
human consequences of that textual slavery.” Id. Ibid. pp.50-51.
219
Id. Ibid. p.193. “I find nothing in theological Christianity to be more difficult for me to apprehend
than the conception of Jesus Christ as a dying and reviving God. […] I can understand Yahweh as
being in eclipse, desertion, self-exile, but Yahweh's suicide is indeed beyond Hebraism.” [Eu não
achei nada na teologia cristã que fosse mais difícil para minha compreensão do que a concepção de
Jesus Cristo como um agonizante (morto) e ressuscitado Deus. [...] Eu posso entender Yahweh como
estando em eclipse, desertado, em exílio próprio, mas um Yahweh suicida é algo que está realmente
longe do hebraísmo]. Id. Ibid. pp.06-07.
220
Id. Ibid. p.212.
62
texto segundo Bloom completa o outro, seja literária ou religiosamente falando,
ainda mais da forma como fez o Novo Testamento com a Bíblia Hebraica:
“Nenhum texto consuma outro texto, ainda que existam revisões e
revisões: o Talmude prefigura o que é uma revisão; São João, de
outra forma, inflige um sparagmos Orphic, ou uma interpretação
aos pedaços, sobre a Torá, espalhando os membros de Yahweh
como se o Mestre da Presença fosse outro Osíris, ou um israelita
contemporâneo explodido em pedaços em um ônibus por um
homem bomba suicida/homicida palestino. São João, para Yahweh,
é má notícia”
221
.
No entanto, tanto para Harold Bloom quanto para Jack Miles, mesmo sendo
Jesus e Yahweh personagens, em alguns pontos, incompatíveis e, mesmo sendo o
Novo Testamento cristão uma revisão ou uma desleitura da Bíblia Hebraica, não é
possível negar que a força religiosa de ambos, tanto de Jesus como de Yahweh,
sendo ele seu pai ou não, reside em grande parte na criatividade e na força literária
que os textos dessas religiões possuem. Mas para Bloom, menos do que para Jack
Miles, tudo ainda é apenas literatura: “Jesus is to the Greek New Testament what
Yahweh is to the Hebrew Bible, or Hamlet to Shakespeare’s play”, mas todos
também são dados à religião, todos, como personagens literários, são “the vital
protagonists, the principles of apotheosis, the hopes for transcendence”
222
.
Mas essas conclusões de Jack Miles e Harold Bloom, apenas por enquanto,
seria uma das possíveis veredas para a aproximação e o diálogo entre teologia e
literatura. No entanto, ambos, como visto, são críticos literários e possuem a
tendência de privilegiar mais o literário do que o teológico e de olhar talvez por
isso – com desconfiança para o religioso. O literário sempre prevalece
223
. Jack Miles,
como crítico literário, mesmo consciente de que a Bíblia não se propôs ou por seus
escritores ou por seus redatores a ser uma obra literária como a conhecemos, mas
221
“No text fulfills another, yet there are revisions and revisions: the Talmud adumbrates, which is
one mode; St. John instead inflicts an Orphic sparagmos, or rending apart, upon the Torah, scattering
Yahweh’s limbs as though the Mister of Presence was another Osiris, or a contemporary Israeli blown
apart in a bus by a Palestinian suicide/homicide bomber. St. John, for Yahweh, is bad news.” Id. Ibid.
p.149.
222
Id. Ibid. pp.12e13. No texto original o texto está no singular, coloco no plural para poder dar
sentido à frase e leveza ao texto, sem contudo mudar o sentido daquilo que fôra dito.
223
Mais em Bloom do que em Miles.
63
sim uma obra de “insistência moral”
224
, insiste de forma criativa de que a Bíblia lida
pela teologia ou pela história, a crítica histórica
225
, pouco disse, mas que quando lida
a partir de um estudo literário pode significar mais: a really non-historical, literary
study of the Bible on the basis of its shapes, styles, and motifs could be very
interesting
226
. No entanto, como já disse, esta é uma entre muitas veredas.
3.4. Textos sagrados e literaturas profanas: palavras em palimpsesto
Desse modo, para fechar o presente ponto e capítulo, apresento, como
anunciado, as veredas escolhidas por Salma Ferraz
227
e Eli Brandão
228
. A primeira,
224
“Nothing in the Bible is ever said merely to inform or amuse; neither knowledge nor beauty nor
any other human good is ever pursued for its own sake. As a result, the Bible provides only some of
the aesthetic pleasure that we have learned to expect of imaginative writing, while the distinct
aesthetic effect that it does produce is one of concentrated and commanding moral urgency. The
speeches of Jesus, like the speeches of God, have that about them which says, in effect, “This is
neither a school exercise, reader, nor an idle entertainment, nor even a beautiful work of art. This is
reality. This is serious. Pay attention!”.” [Nada na Bíblia é dito meramente para informar ou divertir;
nem conhecimento, nem beleza, nem qualquer bem humano são procurados por seu próprio
reconhecimento. Como resultado, a Bíblia prove apenas um pouco de prazer estético do que nós
esperamos de um escrito de imaginação [literatura], embora o distinto efeito estético que ela produz é
de uma concentrada e imperativa insistência moral. Os discursos de Jesus, iguais aos discursos de
Deus, tem o assunto que eles querem dizer, em fato: Isto não é nem um exercício escolar, leitor, nem
um entretenimento de devaneio, nem uma bela palavra artística. Isto é real. Isto é sério. Preste
atenção!”]. Jack MILES. Christ: a crisis in the life of God. New York: Alfred A. Knopf, 2001. p.42.
225
“The historical criticism of the New Testament has, in sum, all the kick of nonalcoholic beer, and
some who were once intoxicated by it have awakened with a sobriety hangover.[A crítica histórica
do Novo Testamento tem, em suma, toda a excitação de uma cerveja sem álcool, e aqueles que uma
vez foram intoxicados por ela têm acordado com uma ressaca de sobriedade]. Id. Ibid. p.271.
226
Id. Ibid. p.272. Apud. James BARR. Holy Scriture: canon, authority, criticism. Filadélfia: The
Westminster Press, 1983. p.159. “If the appreciation of the Bible as art ever moves from the margins
to the center of biblical studies, it will bring a distinct new problematic with it, for what can be stated
concisely enough as doctrine cannot be evoked concisely in narrative or poetry any more easily than it
can be painted simply on canvas.” [Se a apreciação da Bíblia como arte uma vez mover-se das
margens para o centro dos estudos bíblicos, levará uma distinta e nova problemática consigo mesmo,
pois o que pode ser declarado de forma consciente como doutrina não pode ser chamada de forma
consciente em narrativa ou poesia como não pode ser simplesmente pintado em quadro]. Id. Ibid.
p.379.
227
Salma Ferraz é professora do Departamento de Língua e Literaturas Vernáculas da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) e Doutora em Literatura Portuguesa pela UNESP. É contista e
ensaísta com artigos publicados em diversas revistas acadêmicas do país. Atualmente desenvolve
estudos na área de Teopoética Estudos Comparados entre Teologia e Literatura na Pós-graduação em
literatura da UFSC. (As informações sobre autora foram retiradas do livro Salma FERRAZ. As faces
de Deus na obra de um ateu: José Saramago. Juiz de Fora: UFJF; Blumenau: Edifurb, 2003).
228
Eli Brandão é Bacharel em Teologia - STBNB - Recife - PE (1981), Licenciado em Letras
Vernáculo/Inglês, Universidade Estadual da Paraíba (1988), Mestre em Teologia, STBNB, Recife -
PE e Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2001). Atualmente é
professor titular da Universidade Estadual da Paraíba, atuando no ensino e na pesquisa na área de
literatura, Departamento de Letras, na graduação e no Mestrado em Literatura e Interculturalidade,
64
tomando Mikhail Bahktin como referencial para a leitura de José Saramago,
analisou, pelo viéis de diálogo teologia e literatura, quatro romances do autor. Eli
Brandão, tomando Gérard Genette e Paul Ricoeur como referenciais de leitura,
trabalhou, pelo mesmo viés, a obra Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo
Neto.
Eli Brandão apresenta a possibilidade de que o diálogo entre teologia e
literatura se dê, entre outros possíveis diálogos, no texto o que em grande parte é o
que eu também persigo neste trabalho. É o texto escrito, segundo o autor, “o lugar,
por excelência, onde as relações entre teologia e literatura se objetivam, [...]”
229
. É no
texto escrito, no encontro entre o hipertexto literário (na obra de Brandão o exemplo
é Morte e Vida Severina) e os hipotextos teológicos (os evangelhos de Mateus e
Lucas)
230
que o diálogo entre teologia e literatura se dá como possibilidade do
encontro daquilo que é um palimpsesto nos textos.
“Um palimpsesto, diz Genette, é, literalmente, um
pergaminho do qual uma inscrição anterior foi apagada para que
uma outra a substituísse. Tal operação, entretanto, não conseguiu
apagar irremediavelmente o texto anterior, de modo que o mais
antigo pode ainda ser lido no atual por transparência”
231
.
Isto é o mesmo que dizer que todo o texto é uma reescritura de outro texto, como
visto em Jack Miles e Harold Bloom. Contudo, em Eli Brandão, o texto literário é
ou melhor pode ser reescritura da Escritura, e não só, como em Miles e Bloom, a
Escritura lida pela Escritura. É o Jesus Cristo dos Evangelhos tornado o Jesus Cristo-
Severino do Auto do Natal Pernanbucano
232
. A isso Brandão chama de
com ênfase no estudo das relações da Literatura com a teologia e a filosofia. (Informações obtidas no
Currículo Lattes).
229
Eli Brandão da SILVA. O nascimento de Jesus-Severino no Auto de Natal Pernambucano como
revelação poético-teológica da esperança. Hermenêutica transtexto-discursiva na Ponte entre
Teologia e Literatura. São Bernardo do Campo: UMESP, 2001. (Tese de Doutorado). p.86.
230
Cf. Id. Ibid. p.181.
231
Id. Ibid. p.96.
232
“— Compadre José, compadre, / que na relva estais deitado: / conversais e não sabeis / que vosso
filho é chegado? / Estais conversando / em vossa prosa entretida: / não sabeis que vosso filho /
saltou para dentro da vida? / Saltou para dento da vida / ao dar o primeiro grito; / e estais aí
conversando; / pois sabeis que ele é nascido. // Todo o céu e a terra / lhe cantam louvor. / Foi por
ele que a maré / esta noite não baixou. / Foi por ele que a maré / fez parar o seu motor: / a lama
ficou coberta / e o mau-cheiro não voou. / E a alfazema do sargaço, / ácida, desinfetante, / veio
varrer nossas ruas / enviada do mar distante. / E a língua seca de esponja / que tem o vento terral /
veio enxugar a umidade / do encharcado lamaçal. // Todo o céu e a terra / lhe cantam louvor / e
65
hipertextualidade
233
, onde o processo de transformação (o palimpsesto) pode ampliar,
reduzir ou mesmo substituir o texto anterior
234
.
Segundo Salma Ferraz, no Evangelho Segundo Jesus Cristo de José
Saramago, parece existir exatamente essa mesma preocupação. Mas, como diz a
autora,
“há de se frisar [...] que a intertextualidade no texto não é pacífica;
pelo contrário, ela se faz problematizadora, evidenciando uma
tensão (dialogismo entre os dois textos, denunciando a hostilidade
de um em relação ao outro) e uma intenção crítica (pelo uso da
paródia e da ironia, criticar o cerne de toda a teologia Deus),
[...]”
235
.
Os textos saramagianos são reescrituras, mas são reescrituras carnavalescas ao modo
da teoria de carnavalização de Mikhail Bahktin. E essas releituras bíblicas de
Saramago, segundo Salma, começam mesmo antes de seu explícito texto de releitura,
o Evangelho Segundo Jesus Cristo. Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, há,
segundo a autora, uma releitura carnavalesca de episódios bíblicos:
“Nesse livro diz a autora a releitura de episódios bíblicos é
marcante, que o narrador os desconstrói pela inversão irônica da
paródia. Não é Deus, por exemplo, quem expulsa Adão e Eva, mas
de certa forma, é o casal edênico quem expulsa Deus do Paraíso,
instaurando o que poderíamos denominar de “gênesis às avessas”,
pois uma releitura demoníaca do episódio, tudo é dessacralizado
[...]”
236
.
Também nessa carnavalização do texto, segundo a autora, uma constante
reformulação das personagens e de sua importância dentro das narrativas ou histórias
fundantes. Em o Memorial do Convento, um texto que narra acontecimentos
cada casa se torna / num mocambo sedutor. / Cada casebre se torna / no mocambo modelar / que
tanto celebram os / sociólogos do lugar. / E a banda de maruins / que toda noite se ouvia / por
causa dele, esta noite, / creio que não irradia. / E este rio de água cega, / ou baça, de comer terra, /
que jamais espelha o céu, / hoje enfeitou-se de estrelas.” (trecho do poema).
233
Eli Brandão trabalha com as cinco modalidades de transtextualidade de Gérard Genette:
intertextualidade, paratextualidade, metatextualidade, hipertextualidade (com a qual ele vai trabalhar)
e arquitextualidade. Cf. Id. Ibid. p.90. Apud. Gérard GENETTE. Palimpsestes: la literature au second
degree. pp.07-14.
234
Cf. Id. Ibid. p.94.
235
Salma FERRAZ. As faces de Deus na obra de um ateu: José Saramago. Juiz de Fora: UFJF;
Blumenau: Edifurb, 2003. p.155.
236
Id. Ibid. p.28.
66
históricos de Portugal, acontece uma clara inversão das personagens. As personagens
centrais, como aponta a autora, são postas à margem e as personagens das margens
são postas como centrais
237
: “o narrador de Memorial do Convento prefere centrar
seu olhar para as margens e enxergará o centro a partir das margens”
238
. no
Evangelho Segundo Jesus Cristo o destaque fica para os párias, os “pecadores
milernarmente [sic] rejeitados e discriminados, [...] os anti-heróis, como Madalena
239
e o Diabo”
240
. ainda a inversão do sim para o não nessas reescrituras
palimpsesticas de Saramago. É um não ateu de um escritor militante
241
, convencido
de que faz parte de um mundo religioso e de um contexto cristão, e que, por isso,
vendo esse contexto, protesta em seus re-escritos. Diz Salma:
“Em Terra do Pecado coloca um não ao Deus que abomina o sexo,
em Memorial do Convento coloca um não à Igreja Católica, em
História do Cerco de Lisboa, coloca um não ao Deus das guerras e
mortandades inúteis, um não aos deuses, um não às crenças
dominadoras que se intitulam portadoras exclusivas da verdade.
Negação e transgressão, eis as palavras-chaves da História do cerco
de Lisboa, quer seja em relação à História oficial, quer seja em
relação a Deus”
242
.
Seria esta uma forma de fazer teologia
243
, ou, penso eu, de fazer uma não-
teologia. Uma teologia-literária atéia que não pode negar Deus e que, por isso, o
reescreve. É o (Des)evangelho
244
. Um evangelho antropocêntrico feito In nomine
hominis
245
. Um (Des)evangelho que quer ser Evangelho em contra ponto em
palimpsesto com o Evangelho feito In nomine Dei.
237
“Em toda a obra predomina uma inversão de valores entre o sagrado e o profano, resultando numa
completa troca de papéis: os portugueses anônimos ocupam o lugar de protagonistas, deixando aos
reis o papel de coadjuvantes, o alto se torna baixo e vice-versa, o elevado é trocado pelo vulgar, a
ironia é constante, a paródia bíblica se efetiva de diversas maneiras, a intertextualidade está presente
assim como polifonia, enfim, todos os valores se invertem, é a instauração do chamado “mundo às
avessas”, próprio da carnavalização, segundo os estudos propostos por Bakthin.” Id. Ibid. p.80.
238
Id. Ibid. p.76.
239
“A essa personagem confere um perfil feminino magnífico que intervém no sagrado, impede a
realização de milagres e questiona a misoginia de Deus, revelando uma estranha sabedoria.” Id. Ibid.
p.160.
240
Id. Ibid. p.158.
241
Id. Ibid. p.204.
242
Id. Ibid. p.142.
243
Cf. Id. Ibid. pp.27e194.
244
Id. Ibid. p.149.
245
Id. Ibid. p.151.
67
Por outro lado, em Eli Brandão, que trabalha com o texto de João Cabral de
Melo Neto, Morte e Vida Severina, não parece existir uma preocupação com o
ateísmo do autor e o ateísmo dos autores aqui é apenas coincidência e nem com
um caráter de “denúncia” (um não) que a obra poderia conter, um não as muitas
formas de destruir a esperança. A polifonia palimpsestica de Morte e Vida Severina é
uma reescritura de uma esperança ainda existente, uma insistente (teimosa)
esperança
246
: “a esperança de que a implosão da vida Severina poderá se transformar
em explosão”
247
:
“[...]
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina”
248
.
em Rosa e isso será delimitado de forma mais consciente no último
capítulo desta tese o que é palimpsesto, como afirmo em artigo publicado, parece
estar tão bem aplicado na obra que os hipotextos ou, como está no artigo, os
universos religiosos contidos no texto perderam-se no solve et coagula de um
processo literário-religioso alquímico
249
. O que era o antes se perdeu na mistura e o
que sobrou parece ser apenas um texto, em verdade, o texto. Por essa razão, não
246
“A conversa interrompida com o anúncio do nascimento do menino [em nota acima] deixara a
interrogação de Severino no ar. Como o salto para dentro da vida triunfou sobre a ameaça do salto
para dentro da morte, é desse ponto que o Carpina retoma a prosa, convidando Severino à reflexão.
Esse terceiro degrau hermenêutico acompanha a estrutura da obra, pois a fala do Carpina é uma
verdadeira aplicação da lição aprendida com o evento e a significação da vida nascida.” SILVA, Eli
Brandão da. Jesus-Severino e a teimosa esperança. In: Estudos de Religião 32. São Bernardo do
Campo: UMESP, 2007. (Revista Semestral de Estudos e Pesquisa em Religião do Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião da Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião da Universidade
Metodista de São Paulo). p.139.
247
Id. Ibid. p.140.
248
Trecho final do poema Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto.
249
Clademilson Fernandes Paulino da SILVA. A Alquimia Religiosa como Forma de Construção
Literária no Romance Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa. In: Theós: Revista
Eletrônica de Reflexão Teológica. Campinas: FTBC, Vol.03, Nº1, junho de 2007. (periódico
eletrônico: www.revistatheos.com.br).
68
chamo, nem chamarei, já que isso é matéria dos capítulos que se seguem, esse
processo literário de Rosa de palimpsesto, nem chamarei de releitura ou desleitura
carnavalizada, mas chamarei sim, seguindo Francis Utéza, de alquimia
250
literário-
religiosa, é o sagrado manifesto num texto de literatura.
Conclusão
Espero que este primeiro capítulo, como dito na introdução, tenha conseguido
ser mais do que apenas uma leitura do “estado atual da questão” e, para mais, tenha
conseguido ser na verdade se tornado uma significativa introdução ao problema,
uma delimitação da temática, uma apresentação das possíveis veredas e um ponto de
partida para a presente pesquisa. Espero que o mesmo, o capítulo, tenha apresentado
de forma respeitosa os caminhos já traçados dentro do diálogo entre teologia e
literatura, pois esses caminhos, especialmente os caminhos sociais como tema entre
teologia e literatura encontradas em alguns teólogos da libertação no contexto latino-
americano, a antropologia contida de Antonio Manzatto, como lugar de diálogo entre
a teologia e a literatura, e as questões levantadas entre textos sagrados e literaturas
profanas, mesmo que ainda não relacionados ao tema, seguiram como importantes
temáticas no restante da tese. Somados ao método da correspondência, método que
assumo como caminho de leitura, essas veredas, de forma bastante significativa, hão
de me ajudar nessa minha caminhada, assim espero, como também espero que o
capítulo não tenha dito nem mais nem menos, mas apenas o suficiente daquilo que
deveria ter dito, o necessário para um início de discussão.
Assim, depois da apresentação de tantas veredas, veredas como pouca ou
muita água, veredas mortas e veredas férteis, boas veredas, de Charles Moeller a Eli
Brandão e Salma Ferraz, sabendo que nem toda a vereda, veredazinha, leva aos
ribeirões ou ao famoso “Velho Chico”, onde tem muita água, fica difícil saber qual
250
“A tentação é grande de falar aqui de sincretismo: pronunciamos esta palavra, porém, para
refutar sua validade. Não se trata absolutamente da assimilação de elementos diversos tomados de
doutrinas diferentes. Trata-se da afirmação de que o Conhecimento é Uno, embora se oculte embaixo
de máscaras múltiplas herdadas da história. A sabedoria, a iluminação, o satori são fruto de uma
alquimia interna que concilia os contrários e livra do “Mal”, do encadeamento das causas e das
conseqüências, da fluidez das coisas, do Carma, da mesis: os discípulos do Trismegisto dizem com
certeza a mesma coisa que os filhos do Céu.” Francis UTÉZA. João Guimarães Rosa: Metafísica no
Grande Sertão. (tradução: José Carlos Garbuglio). São Paulo: EDUSP, 1994. p.53.
69
caminho tomar ou se a vereda que se está tomando é boa vereda, ou mesmo se ela, a
vereda escolhida, levará às muitas águas, as águas de correspondência que estão, na
vida, na palavra e no sagrado, relacionadas enquanto lugares de encontro entre a
teologia e a literatura na obra de João Guimarães Rosa.
Assim sigo, mas sigo como cão mestre, por fundo de todos os matos, sigo
sem muito saber, mas de muita coisa desconfiando, sigo rastreando essa minha idéia
ligeira, idéia de que teologia e literatura se encontram nas veredas das mais altas
idéias, nos grande lugares de correspondência, nas veredas da vida, da palavra e do
sagrado, para, desse modo, dizer que a teologia, a religião e a experiência com o
sagrado podem, de forma muito significativa, manifestar-se numa literatura que se
propõe a ser mais do que literatura, sem, no entanto, deixar de ser: “todos os meus
livros diz Rosa são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o
mistério cósmico, esta coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer
lógica, que é chamada “realidade”, que é a gente mesmo, o mundo, a vida”
251
.
251
Maria Apparecida Faria Marcondes BUSSOLOTTI (org). João Guimarães Rosa: Correspondência
com seu Tradutor Alemão Curt Meyer-Clason. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.238. Carta de
João Guimarães Rosa de 09 de Fevereiro de 1965.
70
II. A VIDA COMO VEREDA: O HUMANO E SUA EXISTÊNCIA COMO
CAMINHO DE DIÁLOGO
“Através da arte, disse Goethe, distanciamo-nos e ao mesmo
tempo aproximamo-nos da realidade”
1
.
Introdução
Sabendo que o primeiro capítulo teve de forma específica uma preocupação
mais introdutória, buscando ser mais do que apenas um levantamento do estado atual
da questão, como já dito, entro nesse segundo capítulo com uma preocupação mais
de leitura da obra proposta do que de apresentação de delimitações teóricas, apesar
delas ainda serem necessárias, já que é a partir delas que as leituras serão feitas.
O que se propõe, como o tulo do capítulo apresenta: a vida como vereda,
que, em parte, toma a minha dissertação de mestrado como base para o caminho, é a
apresentação da vida como ponto de correspondência entre a teologia e a literatura.
o subtítulo, o humano e sua existência como caminho de diálogo, é mais uma
preocupação de delimitação, pois o que se procura é por um tema ou preocupação
humana que seja comum ao teológico e o literário.
Assim, procurando aproximar a arte da vida ou a vida da arte, o capítulo
segue com a preocupação de ler a vida como vereda de diálogo, primeiro a partir de
questões sociais como preocupação central, apontando o diálogo para uma teologia
bem específica, a teologia da libertação, e, depois, para questões existenciais,
buscando pela pergunta sobre a razão da vida, ou, principalmente, pela pergunta
sobre a razão da vida ser como ela é, algo muito perigoso.
1
Anatol ROSENFELD. Literatura e Personagem. In: A Personagem de Ficção. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1998. p.49.
71
1. Primeira Problematização: mimesis e verossimilhança
Em algumas das primeiras discussões sobre o diálogo entre teologia e
literatura, tanto no contexto europeu, quando no contexto latino-americano, como
rapidamente dito na introdução deste capítulo, levou-se em consideração, como uma
das primeiras problematizações dentro deste novo campo de estudos, a questão sobre
a verdade e a ficcionalidade dentro dos textos literários.
A pergunta ou a problemática então, que não é tão nova assim, torna-se ponto
de partida para uma discussão primeira sobre a capacidade de contribuição da
literatura para as formas de saber e de pesquisa distintamente “sérias”, como por
exemplo a teologia, ou seja e assim se faz a pergunta –, em que um texto ficcional
feito para ser bonito, para a fruição e para o devaneio, pode contribuir numa pesquisa
onde o histórico, o humano, o antropológico, o divino, o teológico etc. estão sendo
pesquisados? Ao literário caberia uma discussão sobre o texto em si, sua construção,
sua beleza estética (se falas bem ou não
2
), seu estilo etc., e nada mais que estivesse
além disto, do texto em si mesmo e de sua grandeza literária enquanto texto. No
entanto, para Antonio Magalhães, “dizer que a arte se explica somente pela arte é tão
ingênuo quanto dizer que a teologia se explica somente pela teologia”
3
.
Desse modo, o literário – e isso já pressupõe uma resposta afirmativa à
pergunta feita acima, sabendo das implicações que isso carrega e do simplismo e dos
limites da resposta – pode em muito e em alguns casos de forma distinta ou mesmo
privilegiada, contribuir para estudos e pesquisas em nível acadêmico
4
, sejam esses
feitos em diálogo com a antropologia, com a psicologia, com as ciências da religião
ou mesmo com a teologia, que seja em correspondência, caminho da presente tese.
2
Cf. PLATÃO. Sobre a inspiração poética (Íon) & Sobre a mentira (Hípias Menor). (tradução do
grego de André Malta). Porto Alegre: L&PM, 2007.
3
Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em
diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. p.70.
4
Faço essa afirmação, mesmo sabendo que a mesma é simplista, apenas para afirmar a importância da
literatura para pesquisas e estudos acadêmicos, o que, de forma geral, sempre se faz necessário. O
literário, como fonte de pesquisa, precisa sempre ser justificado.
72
A arte poética: Platão
É certo que a discussão começa com uma preocupação no entorno da verdade,
ou, no contexto que aqui se aplica, na relação ou tensão entre o mundo da perfeição e
a realidade imperfeita
5
. Platão, com sua compreensão de conhecimento disposto em
hierarquia: superiores e inferiores; entende a “literatura” (o poético) num lugar de
inferioridade nos conhecimentos, já que ela é imitação daquilo que já imita, se assim,
com muito simplismo da minha parte, posso dizer. Em Fedro se percebe a
impossibilidade da literatura (poética) como reveladora da verdadeira memória do
mundo das idéias, assim como, em a República, onde Platão chama o poético de
teologia, vê-se que o poético, além de não ser revelador, já que é imitação da
imitação, pode se tornar também desvirtuamento:
“quando alguém disser tais coisas dos deuses [mentiras, conforme
parágrafos anteriores do livro], levá-lo-emos a mal e não lhe
daremos coro, e não consentiremos que os mestres as usem na
educação dos jovens, se queremos que os nossos guardiões sejam
tementes aos deuses e semelhantes a eles, na máxima medida em
que isso for possível ao ser humano”
6
.
Ou, caminhando paulatinamente para a teologia, nas palavras de Barth, citadas por
Magalhães, mas lembradas a partir da citação acima: “literatura é desgraça, sem-
vergonhice religiosa [...]”
7
, “jogo sem compromisso, sem seriedade existencial”
8
.
A arte poética, mimesis: Aristóteles
em Aristóteles a literatura ganha novos sabores. Se em Platão, apesar dos
pesares, a literatura pode ser se bem argumentada além de agradável, útil
9
, em
5
Cf. Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em
diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. p.51.
6
PLATÃO. A república. (tradução: Pietro Nassetti). São Paulo: Martin Claret, 2006. (Coleção a Obra-
Prima de Cada Autor). p.73.
7
Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em
diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. p.58.
8
Cf. Id. Ibid. p.58.
9
“Aqui está o que tínhamos a dizer, ao lembrarmos de novo a poesia, por, justificadamente,
excluirmos da cidade uma arte desta espécie. Era a razão que a isso nos impelia. Acrescentemos ainda,
para ela não nos acusar de uma tal ou qual dureza e rusticidade, que é antiga a diferença entre a
73
Aristóteles
10
ela é melhor, ela diz mais, mesmo que seja apenas mimética, mas
principalmente por ser mimética. É na mimesis (imitação ou representação) que o
humano é delineado de uma forma que não o poderia ser em outras formas de
discurso:
“[...] o discurso poético traz à linguagem aspectos, qualidades,
valores da realidade, que não têm acesso à linguagem diretamente
descritiva e que podem ser ditos em favor do jogo complexo
entre a enunciação metafórica e a transgressão regrada das
significações usuais de nossas palavras”
11
.
E isso se dá, segundo Ricoeur, de duas formas específicas: 1. na tragédia, onde o
humano é visto em sua “melhor condição”, acredito que por sua heroificação
12
, e 2.
na comédia, onde o humano é visto em “sua pior condição”
13
, humilhante e
vexatória
14
.
Para Aristóteles, a partir da presente preocupação, não é papel do artista [do
escritor] descrever a verdade ou pela tragédia, ou pela comédia, ou por qualquer
filosofia e a poesia. Realmente, temos a “cadela a ganir ao dono” e a “que ladra” e o “homem
superior a proferir palavras vãs”, e o “bando de cabeças magistrais” e os “que pensam sutilmente”,
como afinal “vivem na penúria” e mil outras provas da antiguidade do antagonismo entre elas. Mesmo
assim, diga-se que, se a poesia imitativa voltada para o prazer tiver argumentos para provar que deve
estar presente numa cidade bem governada, a receberemos com gosto, pois temos consciência do
encantamento que sobre nós exerce; mas seria impiedade trair o que julgamos ser verdadeiro. Ou não
te sentes também seduzido pela poesia, meu amigo, sobretudo quando a contemplas através de
Homero? / Sinto, e muito. / Logo, é justo deixá-la regressar, uma vez que ela se justifique, em metros
líricos ou em quaisquer outros? / Absolutamente. / Concederemos certamente aos seus
defensores, que não forem poetas, mas forem amadores de poesia, que falem em prosa, em sua defesa,
mostrando como é não agradável, como útil, para os Estados e a vida humana. E escutá-los-emos
favoravelmente, porquanto teremos vantagem, se se vir que ela é não agradável, como também
útil. PLATÃO. A república. (tradução: Pietro Nassetti). São Paulo: Martin Claret, 2006. (Coleção a
Obra-Prima de Cada Autor). pp.306-307.
10
ARISTÓTELES. Arte poética. (tradução: Pietro Nassetti). São Paulo: Martin Claret, 2004. 148p.
(Coleção a Obra-Prima de Cada Autor).
11
Paul RICOEUR. Tempo e narrativa. (tradução: Constança Marcondes Cesar). Campinas: Papirus,
1994. 327p. (Volume 01). p.11.
12
“A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; num estilo tornado
agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes; ação apresentada,
não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror, tem por
efeito obter a purgação dessas emoções”. Capítulo VI de A arte Poética. ARISTÓTELES. Arte
poética. (tradução: Pietro Nassetti). São Paulo: Martin Claret, 2004. (Coleção a Obra-Prima de Cada
Autor). p.35.
13
Paul RICOEUR. Tempo e narrativa. (tradução: Constança Marcondes Cesar). Campinas: Papirus,
1994. 327p. (Volume 01). p.61.
14
“A comédia é, como dissemos, imitação de maus costumes, não contudo de toda sorte de vícios,
mas daquela parte do ignominioso que é o ridículo”. Capítulo V de A arte Poética.
ARISTÓTELES. Arte poética. (tradução: Pietro Nassetti). São Paulo: Martin Claret, 2004. (Coleção a
Obra-Prima de Cada Autor). p.33.
74
outro gênero literário de forma a historicizar seu trabalho, ele não é historiador, é
poeta, escreve não o que foi, mas o que poderia ter sido, e é nisso que a sua
representação do humano, da vida e da própria história se faz mais forte: “por tal
motivo [diz Aristóteles] a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a
história, porque a poesia permanece no universal e a história estuda apenas o
particular”
15
. E é nessa universalidade humana, da tragédia e da comédia, do melhor
e do pior do humano, que a vida se faz correspondente, enquanto tema, entre a
teologia e a literatura.
Verossimilhança
Contudo, é apenas na personagem que a verossimilhança se faz relacional ao
mundo real e à própria vida universalizada, seja pela catarse, apontada por
Aristóteles, seja pela observação psicológica, antropológica e social do homem
humano contida na literatura. É a personagem apresentada, representada
16
ou mesmo
real que possibilita a correspondência entre o teológico que observa a vida e que, nos
seus próprios moldes, a descreve, e o literário que, a partir da ficção que lhe é
comum, a representa. Assim, o que foi o histórico ou o factual não precisa ser
importante, já que o que importa é o que poderia ter sido, a representação, do
possível e não do real
17
. A verdade não representa “genuinidade, sinceridade ou
autenticidade”
18
, ela é verossimilhante, e é na verossimilhança que reside a
importância da literatura como objeto de pesquisa, como por vezes aqui já dito.
Antonio Candido e Anatol Rosenfeld concordam que o falso na literatura não
é o que não aconteceu, já que a literatura não parte de pressupostos de que tem que
15
Capítulo IX de A arte Poética. Id. Ib. p.43.
16
Cf. Décio de Almeida PRADO. A personagem no teatro; e Paulo Emílio Sales GOMES. A
personagem cinematográfica. In: VV.AA. A personagem de ficção. São Paulo: Editoria Perspectiva,
1998. 119p. (Debates).
17
“Isso, porém, não exclui, antes pressupõe que a grande obra de arte literária nos restitua uma
liberdade o imenso reino do possível que a vida real não nos concede. A ficção é um lugar
ontológico privilegiado: lugar em que o homem pode viver e contemplar, através de personagens
variadas, a plenitude da sua condição, e em que se torna transparente a si mesmo; lugar em que,
transformando-se imaginariamente no outro, vivendo outros papéis e destacando-se de si mesmo,
verifica, realiza e vive a sua condição fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-
se, distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria situação”. Anatol ROSENFELD. Literatura
e personagem. In: Ibid. p.48.
18
Id. Ibid. p.18.
75
ser representativa, mas sim o que foi mal representado
19
. A grande literatura é aquela
que consegue exatamente o contrário disso, ela representa tão bem que o que ela
representa pode ser melhor do que o que está sendo representado. Para Candido,
entre vida e ficção, a literatura, por ser mais coesa e fixa na apresentação de seus
personagens, torna a observação e a apresentação da vida, mesmo sendo ela
ficcional, algo de maior profundidade:
“Na vida [diz Candido], estabelecemos uma interpretação de cada
pessoa, a fim de podermos conferir certa unidade à sua
diversificação essencial, à sucessão dos seus modos-de-ser. No
romance, o escritor estabelece algo mais coeso, menos variável,
que é a lógica da personagem. A nossa interpretação dos seres
vivos é mais fluida, variando de acordo com o tempo ou as
condições da conduta. No romance, podemos variar relativamente a
nossa interpretação da personagem; mas o escritor lhe deu, desde
logo, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a
curva da sua existência e a natureza do seu modo-de-ser”
20
.
O que leva a entender que a melhor personagem é aquela que é inventada e
inventada bem, com representações na realidade, verossimilhante, mesmo que essa
seja de um mundo individualizado do autor, do mundo que o cerca
21
, contudo,
sempre sendo algo que carrega valor universal, que fale da existência, que fale da
vida e que fale da matéria vertente. Para Rosenfeld,
“se reunirmos os vários momentos expostos, verificaremos que a
grande obra de arte literária (ficcional) é o lugar em que nos
defrontamos com seres humanos de contornos definidos e
definitivos, em ampla medida transparentes, vivendo situações
exemplares e um modo, exemplar (exemplar também no sentido
negativo). Como seres humanos encontram-se integrados num
denso tecido de valores de ordem cognoscitiva, religiosa, moral,
político-social e tomam determinadas atitudes em face desses
valores. Muitas vezes debatem-se com a necessidade de decidir-se
em face da colisão de valores, passam por terríveis conflitos e
enfrentam situações-limite em que se revelam aspectos essenciais
da vida humana: aspectos trágicos, sublimes, demoníacos,
grotescos ou luminosos. Estes aspectos profundos, muitas vezes de
ordem metafísica, incomunicáveis em toda a sua plenitude através
do conceito, revelam-se, como num momento de iluminação, na
plena concreção do ser humano individual. São momentos
19
Id. Ibid. p.19.
20
Antonio CANDIDO. A personagem de romance. Ibid. pp.58-59.
21
Cf. Id. Ibid. p.69.
76
supremos, à sua maneira perfeitos, que a vida empírica, no seu fluir
cinzento e cotidiano, geralmente não apresenta de um modo tão
nítido e coerente, nem de forma tão transparente e seletiva que
possamos perceber as motivações mais íntimas, os conflitos e crises
mais recônditos na sua concatenação e no seu desenvolvimento”
22
.
É na literatura e em suas personagens, seguindo esse caminho, que as possibilidades
da vida humana são observáveis, suas idiossincrasias, seus sofrimentos e conflitos, e
suas falas, bem como de sua religiosidade, seu modo de ver Deus e de descrever a
vida.
2. A Antropologia Contida: o social e o antropológico como meios de leitura
Tomando caminho já delineado no primeiro capítulo, em observações de
teologia e literatura na América Latina, especialmente em Pedro Trigo e Antonio
Manzatto, podemos entender a relação entre teologia e literatura, nesse primeiro
momento, a partir de uma leitura antropológica da literatura, daquilo que tomando
emprestado termo de Antonio Manzatto, no título de seu livro chamo de
antropologia contida. De forma rápida e ainda provisória, pode-se dizer que é uma
tentativa da teologia, enquanto “ciência da fé”
23
, segundo Manzatto, de observar
aquilo que é humano a antropologia contida nas letras literárias, e, a partir daí,
reformular um fazer teológico mais significativo e eficaz no contexto local e atual. A
busca da teologia por fontes literárias trata-se, no dizer do autor, “de uma reflexão
teológica contextualizada, que busca dar respostas às questões apresentadas à fé pela
realidade sócio-econômica-política desse continente”
24
.
De outra forma, se a questão é de denúncia e a busca da teologia,
principalmente da teologia da libertação de Pedro Trigo e de Gustavo Gutiérrez, é de
ruptura com as formas de poder, então a literatura é vista como parceira nesse
caminho libertador, parceira, como disse no capítulo anterior, no grito de liberdade
humana, aquele que é ouvido a partir de muitas vozes, bem como e também da
22
Anatol ROSENFELD. Literatura e personagem. In: Ibid. p.45.
23
Antonio MANZATTO. Teologia e literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida
nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. 38.
24
Id. Ibid. p.47.
77
literatura. Diz Manzatto: “a literatura, por seu simbolismo, pode legitimamente
interessar à teologia da libertação, principalmente se ela ocupa-se dos pobres e do
mundo dos pobres”
25
.
O sertão social
Se isso se corresponder entre teologia e literatura o que fôra dito acima ,
então Guimarães Rosa se lido assim – é parceiro de uma teologia militante em prol
do povo e do pobre, um denunciador literário dos sistemas de poder, da situação
popular e da alienação religiosa. em Rosa uma antropologia contida, aonde uma
teologia da libertação ou qualquer outra teologia pode se achegar para obter fontes
sobre a vida e o humano num universo social bem específico, o sertão
26
brasileiro:
“O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que
situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem,
fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de
Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem
maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de
fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa
de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do
arrocho de autoridade. O Urucúia vem dos montões oestes. Mas,
hoje, que na beira dele, tudo dá fazendões de fazendas, almargem
de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata
em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas há. O
gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada
um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de
opiniães... O sertão está em toda a parte”
27
.
25
Id. Ibid. p.89.
26
“A palavra já era usada na África e até mesmo em Portugal. [...] Nada tinha a ver com a noção de
deserto (aridez, secura, esterilidade) mas sim com a de ‘interior’, de distante da costa: por isso, o
sertão pode até ser formado por florestas, contanto que sejam afastadas do mar. O vocábulo se
escrevia mais freqüentemente com c (certam e certão) [...] do que com s. [G. Barroso] vai encontrar a
etimologia correta no Dicionário da Língua Bunda de Angola, de frei Bernardo Maria de Carnecatim
(1804), onde o verbete muceltão, bem como sua corruptela certão, é dado como locus mediterraneus,
isto é, um lugar que fica no centro ou no meio das terras. Ainda mais, na língua original era sinônimo
de ‘mato’, sentido corretamente usado na África Portuguesa, só depois ampliando-se para ‘mato longe
da costa’. Os portugueses levaram-na para sua pátria e logo trouxeram-na para o Brasil, onde teve
longa vida, aplicação e destino literário.” Willi BOLLE. Grandesertão.br: o romance de formação do
Brasil. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2004. (Coleção Espírito Crítico). p.48. Aput Walnice
Nogueira GALVÃO. O império do belo monte: vida e morte de Canudos. São Paulo: Fundação
Perseu Abrano, 2001. p.16.
27
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.23-24.
78
Dentro da crítica literária é Willi Bolle
28
, seguindo Antonio Candido,
Cavalcante Proença, Walnice Galvão, Manuel Castro e Kathrin Rosenfield, quem nos
coloca diante da questão social no Grande Sertão: Veredas. Para Bolle, e isso é uma
questão de opiniães, “existe [dentro do Grande Sertão: Veredas] uma
correspondência entre um problema político e social a falta de entendimento entre
as classes e a configuração da obra”
29
, é a antropologia contida. Para o autor,
também e mesmo o elemento religioso ou os elementos da obra que arremetem ao
religioso são “figurações” do que é o centro problemático da obra, a questão social:
“[...] o sertão é o mapa alegórico do Brasil; o sistema jagunço, a
instituição entre a lei e o crime; o pacto com o Diabo, a alegoria de
um falso pacto social; a figura de Diadorim, o desafio para
desvendar o dissimulado e o desconhecido; e a fala do povo, o
próprio labirinto da língua... [...]”
30
.
Para Bolle, o Grande Sertão: Veredas, o romance de Guimarães Rosa, é um
“estudo de um dos problemas cruciais do Brasil: a falta de entendimento entre a
classe dominante e as classes populares, [...]”
31
. É um romance, apesar de todo o
elemento místico que rodeia o texto, de cunho social.
Assim, para leituras da teologia, aos modos de Pedro Trigo, o texto seria um
discurso parceiro, denunciador. para Antonio Manzatto, o romance seria um lugar
privilegiado para a pesquisa, que ele, apesar de sua ficcionalidade, revela
elementos de uma história desconhecida do Brasil e de uma cultura bem específica, a
do sertanejo. Revelando também uma situação social degradante, bem como uma
28
Willi Bolle nasceu em 23 de março de 1944, perto de Berlim. Estudou Letras e História na Freie
Universität de Berlim, de 1964 a 1966, quando veio para o Brasil para fazer pesquisas sobre a obra de
Guimarães Rosa. Formou-se em Letras pela Universidade de São Paulo, em 1968. Doutorou-se em
1971, na Universidade de Bochum, Alemanha, com uma tese sobre a evolução da técnica narrativa
nos contos de Guimarães Rosa. Lecionou Teoria Literária no Setor de Pós-Graduação da PUC-SP, de
1972 a 1978. Desde 1977 é professor de Literatura Alemã na USP, onde defendeu, em 1984, a tese de
livre-docência sobre Walter Benjamin e a cultura da República de Weirriar, e onde tornou-se titular
em 1990. É ator formado pela Escola de Arte Dramática (EAD-USP, 1983-1986). Foi professor
convidado na Stanford University, no Zentrum für Literaturforschung de Berlim, na Freie Universität
de Berlim, na UNICAMP, UFPF, (Recife) e UFPA (Belém). Entre 2001 e 2003 foi presidente da
Associação Latino-americana de Estudos Germanísticos (ALEG). Em 2004 iniciou tini trabalho de
leituras dramáticas de Grande Sertão: Veredas com alunos de Letras da USP e os contadores de
estórias de Cordisburgo. Willi BOLLE. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São
Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2004. (Coleção Espírito Crítico). p.477.
29
Id. Ibid. p.21.
30
Id. Ibid. pp.08-09
31
Id. Ibid. p.09.
79
religiosidade falseada. Talvez ainda, para Manzatto, a obra literária de Rosa,
“pode[ria] ser [uma literatura ficcional] capaz de mobilizar homens para a reforma da
sociedade ou para a construção de uma nova”
32
.
Seguindo assim os caminhos sociais para uma leitura específica do Grande
Sertão: Veredas, pode-se dizer que três elementos estruturais que compõem a
lógica do livro: a terra, o homem e a luta
33
. Por terra, pode-se entender outros dois
pontos: 1. o sertão, como espaço geográfico, “fim de rumo, terras altas, demais do
Urucúia”
34
, 2. e a terra como o lugar do conflito social, do desenrolar das questões do
homem e da luta. A terra-sertão, relacionado aqui ao livro de Euclides da Cunha, Os
Sertões, principalmente por Antonio Candido, é, na perspectiva de verossimilhança,
o lugar do real
35
, espaço sico e lugar da vida, onde o viver, no constante dizer de
Riobaldo, é um negócio muito perigoso. Mas o sertão não é lugar, é também
condição, mesmo que alguns não queiram que seja.
O primeiro elemento norteador nas leituras do sertão no romance de Rosa e
desse elemento ligado às questões sociais é a relação literária entre Os sertões de
Euclides da Cunha e o Sertão de Guimarães Rosa. Ligação que não se apenas por
questão de título, mas também por releitura histórico-social. O Sertão rosiano seria,
para Willi Bolle, reescritura dos Sertões de Euclides
36
. Mais: seria uma releitura
ficcional mais forte do que a leitura pressupostamente histórica. Para Bolle, seguindo
Walnice Galvão, Rosa, no seu romance, conseguiu captar de forma mais forte a
lógica do sertão e da vida sertaneja. A forma rasteira como Guimarães Rosa olhou o
32
Antonio MANZATTO. Teologia e literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida
nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. 76.
33
Antonio Candido de MELLO e SOUZA. Tese e antítese: ensaios. São Paulo: T.A. Queiroz. 2000.
p.123.
34
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.24.
35
“Na obra, o Real é simbolizado pela palavra Sertão, que se desdobra em três representações: o local
físico-geográfico; o mundo movente do mal e do bem, do ser e do não ser, do diabo; o grande Ser-tão
ou a totalidade do Real, este não acessível ao conhecimento humano. Ao final de todo esse percurso,
onde continua persistindo a dúvida, surge a certeza, de que é metáfora a palavra vereda, daí o título
Grande Sertão: Veredas, mas a certeza do percurso do questionamento: é a travessia humana.”
Manuel Antonio de CASTRO. O homem provisório no Grande Ser-tão: Veredas: um estudo de
Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro e Brasília: Tempo Brasileiro e INL, 1976. (Tempo
Universitário). p.14.
36
“A idéia desse estudo comparativo é a hipótese de que Grande Sertão: Veredas é uma “reescrita” de
Os Sertões.” Willi BOLLE. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas
Cidades, Editora 34, 2004. p.27.
80
sertão
37
, como cão mestre
38
, deu ao seu romance um sertão mais real, diferentemente
de Euclides, que por uma pretensão de objetividade científica, mesmo atraído pelo
sertanejo
39
, se distanciou dele e do sertão, tratando-os de forma preconceituosa,
que, apesar da força – o sertanejo é um forte – ele também se configurou como inútil,
pois sua força vem da bruteza da vida, o que lhe impediria de ser um ser civilizado,
um ser da república, da cidade. Para Bolle,
“é pela feitura labiríntica que a representação do sertão por parte de
Guimarães Rosa difere radicalmente da de Euclides da Cunha.
Enquanto o narrador d'Os Sertões descreve o “labirinto
monstruoso” do sertão humano com distanciamento e pré-
conceitos, como que receando contagiar-se, o narrador de Grande
Sertão: Veredas mergulha de cabeça nesse labirinto, assemelhando-
se a ele no seu modo de pensar e narrar. É a superação da
cartografia mimética (mesológica) por um mapeamento da mente
humana. O discurso labiríntico de Guimarães Rosa representa o
modo como um cérebro trabalha. É a partir do mapa da mente
individual de Riobaldo que o escritor elucida o funcionamento da
máquina do poder e da mentalidade coletiva, o pensamento do
povo sertanejo, resgatando para uma consideração mais objetiva
aquilo que Euclides desqualificou como “a própria desordem do
espírito delirante”
40
.
Do outro lado dessa lógica, como apontado acima, está a cidade, o lugar em
oposição ao sertão, a partir de onde Euclides fala e de onde Guimarães Rosa,
enquanto narrador literário, se distância. Esse sertão, o lugar geográfico e o espaço
da luta social, é o contrário da cidade-civilização, “é uma região anacrônica, num
estágio de desenvolvimento não muito distinto do que apareceu descrito nos relatos
de viajantes durante o período colonial”
41
, é uma terra sem lei, terra de ninguém,
onde o forte é aquele que sobrevive, onde “Deus mesmo, quando vier, [segundo
37
“O olhar de Guimarães Rosa sobre o sertão é o exato oposto das vistas euclidianas do alto: é uma
perspectiva rasteira. Enquanto o ensaísta-engenheiro sobrevoa o sertão como num aeroplano, o
romancista caminha por ele como por uma estrada-texto. Ou então ele atravessa o sertão como um
rio”. Willi BOLLE. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades,
Editora 34, 2004. p.76.
38
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.31.
39
Cf. Walnice Nogueira GALVÃO. As formas do falso: um estudo sobre a ambigüidade no Grande
Sertão: Veredas. São Paulo: Editoria Perspectiva, 1972. p.18.
40
Willi BOLLE. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades,
Editora 34, 2004. p. 85.
41
Eduardo de Faria COUTINHO. Em busca da terceira margem: ensaios sobre o Grande Sertão:
Veredas. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1993. p.19.
81
Riobaldo] que venha armado”
42
, é o lugar onde o muito republicano
43
precisa ser
feito, mas, principalmente, é o lugar, em literatura verossimilhante, da travessia do
homem humano, a vida.
O humano provisório
Se a terra é o lugar do conflito, a terra sertão, então o sertão que não é espaço
geográfico, mas sim metáfora, é o lugar da vida humana, primeiro do ex-jagunço e
agora fazendeiro Riobaldo, o narrador da estória, e, depois, da universalização do
humano e de seus problemas humanos
44
. Para Antonio de Castro, “o homem
problemático constitui o cerne da obra [do Grande Sertão: Veredas] e de todo o seu
desdobrar-se”
45
. O tecer reflexivo de toda a obra, todas as estórias e desdobramentos
dessas estórias, contadas poeticamente, são apenas pretextos para usar o termo do
autor para um desenrolar sobre o homem [o humano] e seus problemas. Mas e
essa é pergunta do autor –, como seria mostrado essa problemática do homem? E
qual seria esse problema? Para Castro, a problemática humana é mostrada por Rosa
através da dúvida
46
. O Grande Sertão: Veredas é uma narrativa sobre a dúvida,
primeiro sobre a existência ou não do diabo, e, a partir dessa primeira dúvida, a
segunda, fôra ou não fôra feito um pacto? Desse modo, é o diabo o centro da
narrativa, mas não enquanto tema, e sim como força motriz da existência e da
problemática humana, por isso o subtítulo da obra: “o diabo na rua, no meio do
42
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.35.
43
Essas eram falas de Belelo, o representante político dentro do romance. Cito apenas dois trechos
do livro para exemplificar: “Zé Bebelo tinha de se esbarrar, ia até na varanda ou na janela, a apitar o
apito, ditar as boas ordens. Daí, mais renovado, voltava para perto de mim, repunha: “Ah, cujo vou,
siô Baldo, vou. eu que sou capaz de fazer e acontecer. Sendo porque fui eu que nasci para
tanto!” Dizendo que, depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado fosse, então reluzia
perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo a
pobreza, estreando mil escolas.” Id. Ibid. p.147. “Zé Bebelo mandou dispor uma tábua por cima de um
canto de cerca, conforme ele ali subiu e muito falou. Referiu. Para do Rio Pacu, no município de
Brasília, tinham volteado um bando de jagunços – o com o valentão Hermógenes à testa – e derrotado
total. Mais de dez mortos, mais de dez cabras agarrados presos; infelizmente só, foi que aquele
Hermógenes conseguira de fugir. Mas não podia ir a longe! Ao que Bebelo elogiou a lei, deu viva
ao governo, para perto futuro prometeu muita coisa republicana.” Id. Ibid. p.149.
44
A individualização e a universalização do humano é, nas grandes obras literárias, característica
primeira. O individual é, muitas vezes, a representação de uma coletividade específica ou mesmo do
próprio homem humano.
45
Manuel Antonio de CASTRO. O homem provisório no Grande Ser-tão: Veredas: um estudo de
Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro e Brasília: Tempo Brasileiro e INL, 1976. (Tempo
Universitário). p.22.
46
Cf. Id. Ibid. pp.29. ss
82
redemunho”. E a narrativa em forma de diálogo com um ser silencioso e
desconhecido, o senhor doutor, é uma forma de perguntar-se a si mesmo sobre essa
dúvida e sobre essa condição humana, profundamente problemática
47
. Diz Riobaldo:
“Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio
das coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu
amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o
estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um
segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo
comigo”.
48
Também – nessa mesma lógica – como esse humano se constrói a partir de uma força
motriz diabólica, seu relacionamento com a vida poderia ter um desfecho, um
destino: o mal. “A temática do mal e do bem [diz Castro] sai do horizonte do diabo e
remete para o relacionamento do homem com o sertão”
49
. Contudo, como a questão
aqui é da antropologia contida e a preocupação é a problemática social, precisamos
dizer que o mal no Grande Sertão: Veredas, o mal da vida humana, é um mal social:
“[...] o mal de que trata Grande Sertão: Veredas, diz Willi Bolle, lido como história
primeva do Brasil, é um mal social”
50
.
Assim, entendendo o mal do sertão de Rosa como um mal social, é possível
entender a reflexão do texto narrado como uma reflexão sobre a questão social e seu
mal, e entender as dicotomias do romance como representações da dicotomia social,
que, de um lado, retrata criticamente a classe dominante, e, do outro, revela as
mazelas da classe dominada. Mas não é só isso, mostra também o grande
47
“O diálogo em Grande Sertão: Veredas é então, presença simultânea, e não consecutiva, de
elementos aparentemente opostos, coexistência formal e substancial entre uma coisa e seu avesso; ele,
no enredo na qual, note-se, o silêncio não é a negação da voz, mas é a sua alteridade, é o “ser outro”
da voz. A genial invenção narrativa de Guimarães Rosa consiste na personificação do silêncio, no
transformar o silêncio em uma personagem que, como locutório, numa paradoxalmente presença
física encarna a alteridade dentro e no devir do texto. [...] Por isso, o falar com um estranho /
estrangeiro o estranho como o que é profundo, o que é inconfessável para si mesmo é uma forma,
é a forma mais direta de falar a si mesmo, e o falar-se relacional é também, é sobretudo um falar-se
reflexivo.” Vincenzo ARSILLO. O olhar do silêncio: maiêutica do discurso dialógico e representação
do outro em Grande Sertão: Veredas. In: Lélia Parreira DUARTE; e Maria Theresa ALVEZ.
(organizadoras). Outras margens: estudos na obra de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Autêntica,
2001. pp.328-329 e p.321.
48
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.55.
49
Manuel Antonio de CASTRO. O homem provisório no Grande Ser-tão: Veredas: um estudo de
Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro e Brasília: Tempo Brasileiro e INL, 1976. (Tempo
Universitário). p.31.
50
Willi BOLLE. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades,
Editora 34, 2004. p.157.
83
distanciamento entre uma e outra classe, o que para Bolle, no romance, revela-se na
própria escrita em forma de reescritura de Euclides da Cunha. Todo o romance é uma
forma de desconstruir o texto anterior. Primeiro a forma labiríntica de escritura do
Grande Sertão: Veredas uma estória contada de memória é um contraponto da
escrita “linear e progressista” anotada jornalisticamente de Euclides
51
. Depois, a
apresentação de um contador de dentro, um Riobaldo ex-jagunço e agora fazendeiro
(os dois lados da dicotomia social sertaneja) também se configurou, segundo Bolle,
como forma de contraponto a uma escritura-narração de fora, com linguagem urbana
e epistemológica. Enquanto Riobaldo é a fala jagunça, mística e confusa, Euclides é
o contrário disso, é uma linguagem opressora, onde o que foi falado não consegue ser
entendido, por causa da linguagem, por quem foi o assunto do que se fez texto
52
. A
língua em Euclides também foi usada como arma de opressão, enquanto em Rosa
tornou-se forma poética de denúncia e libertação. É o conto Famigerado, de
Primeiras Estórias
53
, que pode exemplificar isso melhor. Chamado de famigerado, o
51
Id. Ibid. p.80.
52
“É como se o jagunço letrado que é o narrador do romance batesse à porta do “narrador sincero” de
Euclides da Cunha, para resolver uma questão jurídica. Na verdade, o autor d'Os Sertões conhecia
muito bem o significado da palavra “jagunço.” Id. Ibid. p.93. Para Bolle, o padrinho de Riobaldo,
Selorico Mendes, fôra, no romance, um tipo de Euclides, que conta de fora, mas que, mesmo assim, se
vangloria da glória alheia: “De ouvir meu padrinho contar aquilo [...] começava a dar em mim um
enjôo. Parecia que ele queria emprestar a si as façanhas dos jagunços...”. Ao caracterizar a fala de
Selorico Mendes como “sincera narração”, Guimarães Rosa parodia também o “narrador sincero” de
Euclides, com sua tendência à heroização. Id. Ibid. 127.
53
“Narrado em primeira pessoa, Famigerado, conto que faz parte da obra Primeiras estórias, de
Guimarães Rosa, constitui-se num episódio mico. Nesse conto, podemos opor o poder da força,
Damásio, ao poder da instrução, do conhecimento médico. Caso o médico tivesse revelado o sentido
dicionarizado do termo “famigerado”, estaria, por certo, infligindo uma sentença de morte ao moço.
Em Famigerado, Guimarães Rosa tematiza a importância da linguagem. Seu conhecimento ou não
determina as posições sociais. Enredo: Um médico do interior [narrador da história] recebe a visita de
quatro cavaleiros rudes do sertão. Seu líder, Damásio, conhecido assassino da região, quer que o
doutor, pessoa letrada do lugar, o esclareça a respeito do significado da palavra “famigerado”, pois
ouviu esta palavra de um moço do governo. A pergunta é feita por Damásio, da seguinte maneira: -
Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: famisgerado... faz-
me-gerado... falmisgeraldo... famílias-gerado? O conto encaminha-se para um anticlímax: o médico
(narrador) depara-se com uma situação de tensão: um bandido feroz, Damásio Siqueiras, visita-o com
a intenção de saber o significado da palavra “famigerado”. O facínora queria saber, portanto, se aquela
palavra seria motivo para a desgraça ou para a paz. Temeroso de revelar a verdadeira intenção do
homem do governo, o médico mente, pois teme a violência de Damásio contra o “moço do Governo”
que assim o havia chamado. O médico, ineficientemente (ou por insegurança), informa que o termo
significa “inóxio”, “douto”. A verdade não fica clara. Damásio pede para que seja usada “fala de
pobre”, de “em dia de semana”. Um pedido humilde. O narrador, pois, detém poder da situação.
Expõe-lhe toda a verdade. Informa que não é nome de ofensa. Ele explica então que “famigerado”
quer dizer “célebre”, “notório”, “notável”. O assassino, depois de tranqüilizado com a resposta do
médico, agradece e vai embora. Antes, porém, considera que: Não há como as grandezas machas de
uma pessoa instruída. O interessante é notar que uma constante preocupação em descobrir o que
existe por trás das palavras. Damásio quer ter posse desse conhecimento, pois suas ações dependem
disso. O narrador quer saber por que essa curiosidade, com medo de que tenham feito intriga contra
ele. Uma leitura desatenta indicaria que o narrador censurou a verdade. De fato, “famigeradoquer
84
jagunço, que não sabe nem falar a palavra, consulta um senhor doutor para receber
instrução, pois não sabe se vinga o xingamento ou se sente feliz pelo elogio. Em
parte ele é enganado pelo médico, e em parte não:
“Foi de incerta feita o evento. Quero pode esperar coisa tão sem
pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo
tranqüilo. Parou-se à porta um tropel. Cheguei à janela. Um grupo
de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à
minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três
homens a cavalo. [...] “Vosmecê é que não me conhece.
Damázio, dos Biqueiras... Estou vindo da Serra...” [...] “Vosmecê
agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que
é: fasmisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhas-
gerado ... ?” [...] “Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que
vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra morde lhe
preguntar a pregunta, pelo claro...” [...] Famigerado é inóxio, é
“célebre”, “notório”, “notável”... / “Vosmecê mal não veja em
minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É
caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?” / Vilta
nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...
/ – “Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-
de-semana?” / Famigerado? Bem. É: “importante”, que merece
louvor, respeito... / “Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na
Escritura?”
54
Mas são as personagens que dão o real exemplo da dicotomia social no sertão
rosiano: 1. Primeiramente, segundo Bolle, “as figuras prosaicas do romance”
55
: 1. Zé
Bebelo, político afoito do sertão, citado anteriormente com uma de suas falas, o
muito republicano; 2. o “seo” Habão
56
, fazendeiro ganancioso, figura representativa
dizer “famoso, importante, que merece respeito”. Mas boa parte das pessoas usa esse termo com o
sentido de “maldito, desgraçado”. uma forte possibilidade de que essa tinha sido a intenção do
moço do governo. E a fala final do narrador deixou nas entrelinhas, como uma parábola, uma estória,
este último significado. Quando Damásio lhe pede para confirmar se não se constituiu ofensa, o
interlocutor diz: Olhe: eu, com o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era
ser famigerado bem famigerado, o mais que pudesse!... De fato, mesmo proprietário, estabelecido,
culto, formado, naquela hora em que se sentia encurralado pelo medo de perder a vida, o que mais
queria era ser tão desgraçado, tão maldito quanto Damásio. Mas o bandido não estava preparado para
essa verdade. Estava diante dele, mas não a enxergou. Estava ainda mergulhado nas trevas. Não pôde
perceber o brilho do vaga-lume. É por isso que sai desmanchando-se de felicidade e alívio.” Resumo
retirado de www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/f/famigerado_conto.
No dia 29 de agosto de 2008.
54
João Guimarães ROSA. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.56-61.
55
Willi BOLLE. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades,
Editora 34, 2004. p.130.
56
“Agora ele conservava os olhos sem olhar, num vagar vago, circunspecto, pensava aqueles
capítulos. Disse que ia botar os do Sucruiú para o corte da cana e fazeção de rapadura. Ao que a
rapadura havia de ser para vender para eles do Sucruiú, mesmo, que depois pagavam com trabalhos
redobrados. De ouvir ele acrescentar assim, com a mesma voz, sem calor nenhum, deu em mim, de
85
dos latifundiários brasileiros; 3. o “seo” Ornelas
57
e 4. Ricardão, o jagunço
dominado pela volúpia de poder e dinheiro, homem “[...] rico, dono de fazendas,
somente vivia pensando em lucros, querendo dinheiro e ajuntando. Diadorim, do
Ricardão era que ele gostava menos: “Ele é bruto comercial...” disse [Diadorim],
e fechou a boca forte, feito fosse cuspir”
58
. 2. Depois tem os catrumanos os mais
pobres do Pubo e do Sucruiú figuras da realidade sertaneja em seu estado mais
deprimente e depressivo, os miseráveis, gente pobre e doente:
“Algum dia, depois de hoje, hei de esquecer aquilo. Arruado que
era até bem largo, mas mal se enxergavam aquelas casas. Ao
demais rezando, ao real vendo – eu vim. Casas – coisa humana. Em
frente delas todas, o que estavam era queimando pilhas de bosta
seca de vaca. O que subia, enchia, a fumaça acinzentada e
esverdeada, no vagaroso. E a poeira que demos fez corpo com
aquele fumegar levantante, tanto tapava, nos soturnos. Aí tossi,
cuspi, no entrecho de minhas rezas. Voz nem choro não se ouviu,
nem outro rumor nenhum, feito fosse decreto de todas as pessoas
mortas, e até os cachorros, cada morador. Mas pessoas mor que
houvesse: por trás da poeira, para lá da fumaça verdolenga se
vislumbravam os vultos, e as tristes caras deles, que branqueavam,
tantas máscaras. Aos homens e mulheres, apartados tão estranhos,
caladamente, seriam os que estavam jogando todo o tempo mais
rodelas de bosta seca nas fogueiras isso que deviam de ter por
todo remédio. Nem davam de nossa vinda, de seus lugares não
repente, foram umas nervosias. Ao que, aqueles do Sucruiú, fossem juntas-de-bois em canga, criaturas
de toda proteção apartadas. Mas eu não tinha raiva desse seô Habão, juro ao senhor, que ele não era
antipático. Eu tinha era um começo de certo desgosto, que seria meditável. “Para o ano, se Deus
quiser, boto grandes roças no Valado e aqui... O feijão, milho, muito arroz...” Ele repisava, que o que
se podia estender em lavoura, lá, era um desadoro. E espiou para mim, com aqueles olhos baçosos –
eu entendi a gana dele: que nós, Bebelo, eu, Diadorim, e todos os companheiros, que a gente
pudesse dar os braços, para capinar e roçar, e colher, feito jornaleiros dele. Até enjoei. Os jagunços
destemidos, arriscando a vida, que nós éramos; e aquele seô Habão olhava feito o jacaré no juncal:
cobiçava a gente para escravos! Nem sei se ele sabia que queria. Acho que a idéia dele não arrumava o
assunto assim à certa. Mas a natureza dele queria, precisava de todos como escravos. Ainda confesso
declarado ao senhor: eu não tivesse raiva daquele seô Habão. Porque ele era um homem que estava de
mim em tão grandes distâncias. A raiva não se tem duma jibóia, porque jibóia constraga mas não tem
veneno. E ele cumpria sua sina, de reduzir tudo a conteúdo. Pudesse, economizava até com o sol, com
a chuva. Estava picando fumo no covo da mão, garanto ao senhor que não esperdiçava nem o átomo
dumas felpas. A alegria dele era uma recontada repetição, um condescendido: vinte, trinta carros de
milho, ah, os mil alqueires de arroz... Bebelo, que esses projetos ouvisse, ligeiro logo era capaz de
ficar cheio de influência: exclamar que assim era assim mesmo, para se transformar aquele sertão
inteiro do interior, com benfeitorias, para um bom Governo, para esse ô-Brasil! Em peta, que, um seô
Habão, esse não se entusiasmava. Era os carros-de-bois carreando a cana. E ele dava ordens.
Ordem que dava, havia de ser costumeira e surda, muito diferente da de jagunço. Cada pessoa, cada
bicho, cada coisa obedecia. Nós íamos virando enxadeiros. Nós? Nunca! João Guimarães ROSA.
Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.431-432.
57
“Soubessem que esse seo Ornelas era homem bom descendente, posseiro de sesmaria. Antes, tinha
valido, com muitos passados, por causa de política, e ainda valesse, compadre que era do Coronel
Rotílio Manduca em sua Fazenda Baluarte.” Id. Ibid. p.467.
58
Id. Ibid. p.195.
86
saíam, não saudavam. Do perigo mesmo que estava maldito na
grande doença, eles sabiam ter quanta cláusula. Sofriam a
esperança de não morrer. Soubesse eu onde era que estavam
gemendo os enfermos. Onde os mortos? Os mortos ficavam sendo
os maus, que condenavam. A reza reganhei, com um fervor. Aquela
travessia durou só um instantezinho enorme. Mesmo que os cavalos
nossos indo iam devagar, que é como se vai, quando todos rezando
sozinhos em cima deles, devagar duma procissão. Não se perturbou
palavra. E foi que dali acabamos de surgir – da arrepoeira e fumaça
de estrume, e o corusco de labareda alguma, e a mormaceira. Deus
que tornasse a tomar conta deles, do Sucruiú, daquele transformado
povo”
59
.
E é logo depois do encontro com essas figuras marginais que Riobaldo fecha o pacto
e assume o poder do bando. Em verdade, segundo Bolle, é o encontro com esses dois
ou três lados da realidade sertanejos (os catrumanos, “seo” Habão e Zé Bebelo,
“tríade de personagens”) que leva Riobaldo a fechar o pacto e fazer sua escolha
social
60
. É o confronto com essa realidade que força o jagunço a querer estar do lado
de quem manda – ser quem manda – e não do lado de quem é mandado.
Por fim, dentro desse quadro, estão ainda Diadorim e Riobaldo. Diadorim, o
Dia + adora + im / o Diá (diabo) + dor
61
, que conhece Riobaldo no de Janeiro,
afluente do Rio São Francisco, na época em que ambos eram crianças, é, primeiro, o
encanto condutor da vida de Riobaldo, é ele sua paixão proibida, sua dor e a razão de
toda a estória, uma estória de luto. Depois, como o próprio nome apresenta,
Diadorim é, como personagem, representação de uma compreensão de mundo
(sertão) e de vida divididos, dicotômicos ou, como para alguns, representação do
dilaceramento social do Brasil retratado por Rosa. Diadorim, Otacília e Nhorinhá, a
tríade feminina contida no romance
62
, segundo Eduardo Coutinho, a mulher
guerreira, a moça pura e a prostituta, representam uma lógica de divisão: “é luz e
59
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.408-
409.
60
Cf. Willi BOLLE. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades,
Editora 34, 2004. p.168.
61
Augusto de CAMPOS. Um lance de Dês do Grande Sertão. In: Augusto de CAMPOS; Haroldo de
CAMPOS; Pedro XISTO. Guimarães Rosa em três dimensões. São Paulo: Conselho Estadual de
Cultura; Comissão de Literatura, s/d. (Coleção Ensaio). p.60.
62
Eduardo F. COUTINHO. Diadorim e a desconstrução do olhar dicotômico em Grande Sertão:
Veredas. In: Lélia Parreira DUARTE; e Maria Theresa ALVEZ. (organizadoras). Outras margens:
estudos na obra de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p.38.
87
trevas, bem e mal, Deus e o Demo, amor e morte, homem e mulher, e seu nome já
traz em si a dualidade que a integra, [...]”
63
.
“Diadorim para Coutinho é mulher e é guerreiro, é verossímil e
inverossímil, e o amor que Riobaldo tem por ela é lícito e é também
ilícito. Do mesmo modo que Otacília e Nhorinhá, ao invés de
complementar-se, apresentam cada uma o seu oposto, Diadorim é a
confluência desses dados em constante turbulência, é o emblema
dilacerado de um espaço o sertão onde “os pastos carecem de
fechos”, e onde, enfim, “tudo é e não é”
64
.
Por outro lado, como uma terceira possibilidade de leitura para Diadorim,
pode-se aferir a ela não a compreensão de fio condutor do romance
65
, paixão
como medium-de-reflexão, mas também, aos modos de Eric Auerbach
66
, uma
compreensão de Diadorim como figura: “uma figuração do social do povo”
67
. Para
Bolle, “a paixão amorosa de Riobaldo por Diadorim é o medium, através do qual o
romancista expressa seu amor pelo povo sertanejo”
68
. Riobaldo
69
é o exemplo da
ascensão social, da vida dividida entre um antes e um depois, de entre as margens,
onde Diadorim é o elo entre as duas, da pobreza extrema, do menino que pedia
esmola, à riqueza do fazendeiro ex-jagunço Riobaldo. Eles, na canoa afundadeira,
63
Id. Ibid. p.38.
64
Id. Ibid. p.47.
65
Cf. Évila de Oliveira Reis SANTANA. Grande sertão: veredas do desejo. In: Lélia Parreira
DUARTE; e Maria Theresa ALVEZ. (organizadoras). Outras margens: estudos na obra de
Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. pp.51ss. Cf. tb. Willi BOLLE. Diadorim a
paixão como medium-de-reflexão. In: Ib. Ibid. pp.331ss; e Id. Grandesertão.br: o romance de
formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2004.
66
Erich AUERBACH. Figura. (tradução: Duda Machado). São Paulo: Ática, 1997.
67
Willi BOLLE. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades,
Editora 34, 2004. p.215.
68
Id. Ibid.p.224.
69
“Diferentemente das exegeses convencionais, que entendem o nome de Riobaldo como o de um
homem “frustrado” ou, por compensação, de alguém que atingiu a plenitude”, a minha leitura se faz
por uma via etimológica diferente. A partir do verbo alemão baldowern (explorar) podemos remontar
ao substantivo hebraico ba'al-davar, que designa “o dono das palavras e das coisas”. Na Idade Média,
“um eufemismo para o Diabo”, a palavra migrou através do iídiche baldower (o referido, “o O”) para
o alemão, mais especificamente, para a linguagem dos marginais, sendo o Baldowerer “aquele que
sonda o lugar e as oportunidades para um crime”. No século XIX, o verbo baldowern passou para a
linguagem coloquial no sentido de “explorar, auscultar, investigar” o que corresponde ao ofício do
historiador (do grego historêin = investigar). Postado à margem do Rio São Francisco, que é o
“grande rio da civilização brasileira”, o narrador Riobaldo exerce o papel de um investigador dos
discursos que falam da história do país, sobretudo daquilo que ela tem de oculto, demoníaco e
dissimulado.” Id. Ibid. p.08.
88
simbolicamente tocam as duas margens do Grande Sertão: Veredas, o direito e o
esquerdo, o fasto e o nefasto
70
.
O pacto, a luta e a ascensão
“Saímos, sobre, fomos. Mas descemos no canudo das
desgraças, ei, saiba o senhor. Desarma do tempo, hora da paga e
perdas, e o mais, que a gente tinha de purgar, segundo se diz. Tudo
o melhor fizemos, e tudo no fim desandava. Deus não devia de
ajudar a quem vai por santas vinganças?! Devia. Nós não
estávamos forte em frente, com coragem esporeada? Estávamos.
Mas, então? Ah, então: mas tem o Outro o figura, o morcegão, o
tunes, o cramulhão, o dêbo, o carôcho, do pé-de-pato, o
malencarado, aquele o-que-não-existe! Que não existe, que não,
que não, é o que minha alma soletra. E da existência desse me
defendo, em pedras pontudas ajoelhado, beijando a barra do manto
de minha Nossa Senhora Abadia! Ah, me vale; mas vale por um
mar sem fim... Sertão. [...] Contra o demo se podia? Quem a quem?
Milagres tristes desses também se dão. Como eles conseguiram
fugir das unhas da gente, se escaparam o Ricardão e o
Hermógenes – os Judas”
71
.
A compreensão de luta no Grande Sertão: Veredas passa por uma
compreensão de luta dentro de um espaço e de um lugar de sobrevivência muito
dificultoso, é a luta da pessoa pobre do meio rural e sua forma violenta de lidar com
a vida e com o sistema dominante de opressão e marginalização que marca essa
forma de ser do sertanejo e do jagunço. É a violência que garante o sistema de
opressão
72
e é a violência a única forma de luta contra ela. Para Walnice Galvão, essa
é uma tradição brasileira no trato de suas questões de terra
73
. De um lado o oprimido
lutando por terra, como no caso de Canudos com Antonio Conselheiro, retrato do
romance de Euclides da Cunha, e, do outro, o opressor, geralmente abastecido pelo
braço armado do governo, o exército, ou, de outra forma, com um braço armado
próprio, os jagunços. Esse braço armado, segundo Galvão, “serve [dentro dos
70
Antonio Candido de MELLO e SOUZA. Tese e antítese: ensaios. São Paulo: T.A. Queiroz. 2000.
pp.124-125.
71
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.317-
318.
72
Cf. Walnice Nogueira GALVÃO. As formas do falso: um estudo sobre a ambigüidade no Grande
Sertão: Veredas. São Paulo: Editoria Perspectiva, 1972. p.12.
73
Cf. Id. Ibid. p.21.
89
romances e da vida real, o Brasil histórico] para prevenir conflitos e para resolvê-
los”
74
, o que se [ou se dava] obviamente, a partir de uma violência extremada,
uma “prática rotineira, orientando o comportamento dos seres humanos em todos os
níveis”
75
, desde a vida cotidiana, passando pelas questões de terra e indo até as
esferas de poder, as eleições e a política, como se verá mais à frente em “A hora e a
vez de Augusto Matraga”.
Em Guimarães Rosa é Riobaldo o sujeito-personagem que se faz presente
nesse universo de violência retratado literariamente. É ele, enquanto personagem-
narrador, que movimenta o leitor pela história e pela estória de um Brasil real, mas
narrado a partir da verossimilhança. Riobaldo é perfeito, segundo Walnice Galvão,
para representar esse quadro. Primeiro, ele é jagunço, ou seja, fala de dentro da
história/estória; depois, ele é letrado, o que pressupõe uma capacidade maior para
conduzir uma narrativa sobre sua trajetória – narrativa em forma de novela de
cavalaria
76
–, que ele, supostamente, por isso, conheceria melhor os mecanismo da
vida sertaneja e jagunça, bem como de formas melhores para o jeito de narrar. Por
fim, ele é representante de opostos: 1. primeiro dos braços armados, acompanhou os
soldados no tempo em que conviveu como professor de Bebelo, depois foi
jagunço contra esses mesmos soldados do governo; 2. segundo, dos diferentes lados
das representações sociais do sertão, o menino pobre, filho de Bigri, que esmolava
para pagar promessas às margens do rio de janeiro, e o fazendeiro, ex-jagunço,
proprietário de muitas terras, que no fim de sua vida conta sua trajetória.
Desse modo, as duas únicas saídas desse sistema sertão se configuram, a
violência e/ou a religião
77
: “de sorte que carece de se escolher: ou a gente se tece de
viver no safado comum, ou cuida de religião só. Eu podia ser: padre sacerdote, se
74
Id. Ibid. p.21.
75
Id. Ibid. p.21.
76
Cf. Id. Ibid. pp.60-67. Walnice Galvão compara o Grande Sertão: Veredas com as formas de escrita
e narrativa das novelas de cavalaria, também com sua força e violência. Essa comparação é feita com
as histórias de Carlos Magno e os “doze pares da frança”, com as aventuras de Bernardo del Carpio,
opositor aos “pares de frança”, e com Dom Quixote. Para Sônia Maria Viegas Andrade a narrativa de
Riobaldo é semelhante à epopéia homérica. Mais às tragédias. “[...] a epopéia de Riobaldo configura o
mundo de valores e transforma a estória de sua vida no destino de seu povo”. Sônia Maria Viegas
ANDRADE. O universo épico-trágico do Grande Sertão: Veredas. Belo Horizonte: Laboratório de
Estética da UFMG. 1982.
77
Cf. Willi BOLLE. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades,
Editora 34, 2004. p.419.
90
não chefe de jagunços; para outras coisas não fui parido”
78
. Riobaldo opta pelas
duas:
“Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião da religião.
Aproveito de todas. Bebo água de todo o rio... Uma só, para mim é
pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a
certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina
dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde o
Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, alto a
Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me
suspende. Qualquer sombrinha me refresca. [...] Eu queria rezar o
tempo todo”
79
.
Mas é através do pacto e da luta que ele consegue o que quer, a ascensão social, a
saída do debaixo do sistema, o de sertanejo e de jagunço mandado, para o de cima do
sistema, o mandador dono de terras. E é apenas depois do encontro com os
catrumanos e com o “seo” Habão, que queria fazer deles enxadeiros, conforme
dito, o encontro com os dois lados do sistema, que Riobaldo resolve fechar o pacto.
Em sua cabeça era o encontro com o diabo que poderia lhe oferecer saídas para
aquela situação, o sistema sertanejo-jagunço:
“Aquilo, que eu ainda não tinha sido capaz de executar. Aquilo,
para satisfazer honra de minha opinião, somente que fosse. “Ah,
qualquer dia destes, qualquer hora...” era como eu me aprazava.
O dum dia, duma noite. Duma meia-noite. Só para confirmar
constância da minha decisão, pois digo, acertar aquela fraqueza. Ao
que, alguma espécie aquilo continha? Na verdade real do
Arrenegado, a célebre aparição, eu não cria. Nem. E, agora, com
isto, que falei, já está ciente o senhor? Aquilo, o resto... Aquilo
era eu ir à meia-noite, na encruzilhada, esperar o Maligno fechar
o trato, fazer o pacto!”
80
. [...] “Ah, esta vida, às não-vezes, é
terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande. Remordi o ar: -
“Lúcifer! Lúcifer!...” eu bramei, desengulindo. Não. Nada. [...]
“Lúcifer! Satanaz!... outro silêncio. O senhor sabe o que o
silêncio é? É a gente mesmo, demais. “Ei, Lúcifer! Satanaz, dos
meus Infernos!” Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas
e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem
respondeu – que é um falso imaginado”
81
.
78
Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.31.
79
Id. Ibid. p.32.
80
Id. Ibid. p.426.
81
Id. Ibid. p.438.
91
Mesmo sendo falso imaginado a existência do diabo e o trato em forma de
pacto com o que não-existe, é isso que garante a Riobaldo a força motriz para a
tomada da chefia do bando e a busca e vingança sobre os Judas, o Ricardão e o
Hermógenes. O pacto, para Willi Bolle, mesmo sendo parte de um imaginário
místico, mágico e religioso do contexto sertanejo, não se configurou assim nem no
romance, nem para o romancista, foi uma forma de demonstração da alienação
religiosa do sertanejo
82
. Ele carrega mais uma questão social e política do que uma
questão stica ou religiosa. Para Bolle, o problema social, “o problema das
diferenças de classe, que Riobaldo chegou a sentir na pele, foi resolvido pelo
pacto”
83
. Não foi o renascer para uma nova compreensão da vida – um renascer meio
exotérico , foi “o forjar de uma nova identidade social”
84
, com implicações
substancialmente políticas e de poder. É a lei do Cão.
No entanto, a ascensão social de Riobaldo teve seu preço, como toda a
ascensão social dentro dessa lógica. Na batalha final ele perde Diadorim: “A Deus
dada. Pobrezinha... [...] Que Diadorim era corpo de uma mulher, moça perfeita...
Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa”
85
. Talvez por isso a dúvida e a
culpa do personagem narrador. Seu desejo de poder lhe custou muito caro: “[...]
Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não
acende a água do rio Urucúia, como eu solucei meu desespero”
86
.
3. Entre as margens: teologia e literatura
Olhar para a literatura como meio de obtenção de material humano para a
teologia humano em seus aspectos antropológicos e/ou sociais é caminho
possível no diálogo entre teologia e literatura. Mesmo na leitura de Guimarães Rosa,
especificamente o Grande Sertão: Veredas, como visto e feito, tal diálogo se faz
82
“Seu romance é carregado de elementos míticos, porque assim é possível reproduzir o discurso
essencialmente mitificador e dissimulador das estruturas de dominação - reproduzir, para que o
comentário do narrador possa revelar como a violência institucionalizada articula o seu discurso.”
Willi BOLLE. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades, Editora
34, 2004. p.139.
83
Id. Ibid. p.151.
84
Id. Ibid. p.172.
85
Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.615.
86
Id. Ibid. p.615.
92
possível. No entanto, nesse diálogo o que se busca é uma forma de compreensão para
tornar possível uma afirmação. A compreensão é dada pela observação da literatura,
que revela talvez com maior profundidade aspectos do “ser” humano enquanto
pessoa, enquanto crente e enquanto agente social, participante ou vítima dos sistemas
de poder. a afirmação cabe à teologia, que é a detentora da palavra de fé. À
teologia cabe refletir, proferir e fazer. Diz Antonio Manzatto: “a teologia não pode
separar sua tarefa de reflexão da de sua missão profética, isto é, ela não pode
separar seu caráter científico [tendo aqui especificamente a literatura como objeto] de
seu caráter missionário”
87
, ou seja, a evangelização ou catequização. E a literatura
pode até servir como meio para isso, se não para a conversão ao cristianismo ou para
outra fé, pelo menos para um humano mais humano:
“[...] a literatura pode contribuir para humanizar o homem, em
particular diante dos mitos da técnica e do consumo, na condição
que ela continue a ser sempre literatura, e não se transformando em
didática ou em moral. [...] A literatura humaniza o homem, e
apenas aquele que lê pode olhar o mundo com olhos de ver”
88
.
Porém, nessa forma de diálogo e aqui encontro os limites dessa vereda
não parece haver por parte do outro do diálogo, a literatura, algo que deva ser ouvido
dentro do diálogo, e que deva ser tomado como relevante na própria teologia. Isso
pode parecer, em princípio, incoerente, que a literatura está sendo ouvida pela
teologia, está sendo lida. Mas é exatamente nisso que reside a questão. A literatura
está sendo ouvida e não dialogada. A perspectiva social ou antropológica, da
antropologia contida, é o objeto da pesquisa, a literatura é apenas o meio e a teologia
o fim, um fim em si própria. Para Manzatto, como exemplo, é apenas “o caráter
antropológico da literatura que é importante para a teologia”
89
, como citado
anteriormente, o que retiraria da própria literatura sua condição de diálogo, ela não
tem nada a dizer, mas apenas para mostrar.
Em princípio, seria compreensível esta lógica de leitura da teologia em
relação à literatura num momento em que, segundo Antonio Magalhães, a teologia
87
Antonio MANZATTO. Teologia e literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida
nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. p.81.
88
Id. Ibid. p.38.
89
Id. Ibid. p.69.
93
entende a necessidade de um caminho mais narrativo e preocupado com as questões
de história, de interpretação do mundo, de uma melhor visão da própria religião, dos
dogmas e dos mitos, e, como consequência, da necessidade de um afastamento das
grandes sistematizações
90
. Assim, com a preocupação dessas novas formas de
teologia, principalmente nos contextos de terceiro mundo, com os sujeitos
91
, a
teologia foi levada a buscar novas formas de observação desses sujeitos, e, nesse
caminho, ela encontrou a literatura
92
. Diz Antonio Magalhães:
“Uma outra forma básica de recolocar a questão do sujeito é o
diálogo com a literatura como aproximação da existência dos
grupos e dos sujeitos que melhor captam, apreendem, reelaboram, e
interpretam a complexidade das relações, ao se tornar uma
aprofundada discussão acerca das relações possíveis entre a
representação da realidade pela linguagem narrativa e as inserções
operadas pela imaginação ficcional nessa mesma realidade
representada”
93
.
Contudo, essa seria uma das margens no contato entre teologia e literatura.
Do outro lado, na outra margem, outras e possíveis pretensões dentro do diálogo
entre teologia e literatura. E é em canoa afundadeira que atravesso de uma margem
para outra.
Na leitura do Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa, a primeira
preocupação é a do estabelecimento do diálogo. Não se busca fazer da literatura
apenas um lugar de observação, incorrendo em perigo apontado por Magalhães:
“O problema básico do modelo da leitura teológica da obra literária
consiste, portanto, numa compreensão de revelação que separa ação
de Deus da compreensão humana e, subseqüentemente, o conteúdo
90
Cf. Antonio MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São
Paulo: Paulinas, 2000. pp.133ss.
91
“A questão do sujeito ocupou um lugar significativo na Teologia da Libertação nos últimos trinta
anos e não podemos desconhecer, ao falarmos do método interpretativo, esse debate teológico na
América Latina, que teve uma tendência de tentar resolver o dilema teológico com a elaboração de
uma teologia dos sujeitos.” Id. Ibid. p.113. Para Antonio Magalhães, o sujeito específico do terceiro
mundo é o pobre, o sujeito em excelência. Cf. Id. Ibid. p.115. No entanto, as especificações se
tornaram algo comum às teologias dos sujeitos, como a teologia negra, a teologia indígena, a teologia
feminista etc. Cf. Id. Ibid. p.114.
92
“É importante trabalhar com expressões da realidade que, ao mesmo tempo que representem
sujeitos dentro de um pensamento ou processo histórico, os perceba sempre dentro de um transfundo
maior de relações.” Id. Ibid. p.116.
93
Id. Ibid. p.117.
94
da da narrativa da fé. Com isso, cria a distância de valor entre o
documento da e o documento literário, forjando um encontro
marcado pela desigualdade, visto que um é o que interpreta e outro
é objeto de uma análise. Leituras assim normalmente
comprometem aquilo que o texto pode dizer, porque aquilo que ele
chega a dizer nessa leitura está predefinido por aquilo que se
espera de sua interlocução”
94
.
O que talvez tenha feito com que o autor preferisse o termo correspondência a outros
termos, para poder diferenciar seu caminho de aproximação com a literatura, em
diálogo, e não num esquema de pergunta (cultura-literatura) e resposta (igreja-
teologia) predefinida, conforme citação acima –, um simplismo onde o método da
correlação poderia cair
95
.
Depois, o que aqui se procurará dizer, no diálogo, é que Rosa tem mais a
oferecer à teologia do que uma leitura do que é antropologicamente contido na obra-
romance Grande Sertão: Veredas, dentro desse esquema situação/pergunta e
resposta. Rosa tem para oferecer à teologia efetivamente um diálogo. E é na
correspondência que esse diálogo se estabelece, o que se busca exemplificar no ponto
quatro desse segundo capítulo.
Por fim, com o estabelecimento do diálogo e a compreensão de que o que se
tem a oferecer são mais do que observações, será buscado um dizer na literatura,
dentro do diálogo e dentro da obra rosiana, mais especialmente no Grande Sertão:
Veredas, que ofereça um falar teológico fora da teologia, uma fala e um “fazer”
teológica. No entanto, também como preocupação, procurar-se-á manter os
elementos que são específicos de uma e da outra, da teologia e da literatura. Pois se
sabe que o diálogo se faz possível se houver dos dois lados interlocutores para
dialogar.
94
Id. Ibid. p.194.
95
“O método da correlação segue a linha de Paul Tillich e algumas teses defendidas pelo Concílio
Vaticano II sobre a relação entre Deus e o mundo. Teologia não é entendida a partir de uma revelação
objetiva e autoritária, mas a partir da experiência dos grupos com o Deus dentro da história. Segundo
esse método, há uma relação estreita entre revelação e situação humana. Na pergunta, já há indícios da
resposta: na arte, a presença tanto do divino quanto das questões últimas da vida humana. [...] No
método da correlação, pode-se cair no simplismo de uma redução à relação entre pergunta (literatura)
e resposta (revelação).” Id. Ibid. p.142.
95
4. A Vida como Vereda: um tema humano em correspondência entre teologia
(Juan Luis Segundo) e literatura (João Guimarães Rosa)
É a partir desse ponto, que serve como caminho em balsa afundadeira entre
margens, da antropologia contida à meia teologia de Riobaldo, que proponho um
caminho feito entre teologia e literatura: uma correspondência a partir de um tema
humano, profundamente humano, a liberdade e o sofrimento. Para tanto, as leituras
feitas voltam à minha dissertação de mestrado
96
, que agora me serve como caminho
de referência, texto ao qual volto para poder continuar.
Primeiro é Antonio Candido e Anatol Rosenfeld
97
quem nos direciona nessa
compreensão. É a idéia de verossimilhança que possibilita em correspondência a
aproximação em diálogo entre teologia e literatura. Como visto, é na verossimilhança
nas leituras antropológicas que ela possui que a literatura pode contribuir para o
fazer teológico. Mas não é isso. Pode-se dizer que na verossimilhança literária, na
forma como a literária lê, interpreta e escreve a vida, temas humanos tratados pela
teologia podem também estar sendo tratados de igual forma pela literatura. Assim,
compreende-se que a literatura não serve ou contribui ao fazer teológico, ela fala em
correspondência, e o que define a correspondência é o tema, aqui a liberdade e o
sofrimento. Diz Antonio Candido:
“Na extraordinária obra-prima Grande Sertão: Veredas de tudo
para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, impecavelmente
realizado. Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu
ofício; mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental do
autor: a absoluta confiança na liberdade de inventar”
98
.
E é por aqui que caminho. Quem fala é um teólogo, esse é o ofício. Sobre o que se
fala é a teologia. O estranho talvez é a partir de onde se fala, da literatura. Talvez por
isso o fazer pareça sempre incompleto, inacabado, não sistematizado, sempre meio.
96
Clademilson Fernandes Paulino da SILVA. Liberdade e sofrimento: o “Grande Sertão: Veredas”
de João Guimarães Rosa em diálogo com a teologia de Juan Luis Segundo. São Bernardo do Campo:
UMESP, 2005. 133p. (Dissertação de Mestrado).
97
Cf. VV.AA. A personagem de ficção. São Paulo: Editoria Perspectiva, 1998. 119p. (Debates).
98
Antonio Candido de MELLO e SOUZA. Tese e antítese: ensaios. São Paulo: T.A. Queiroz. 2000.
p.121.
96
Uma literariedade meio teológica
Para a entrada nessa compreensão de um tema humano em correspondência
entre teologia e literatura, tomo emprestado preocupações e interpretações bíblico-
teológicas de Juan Luis Segundo. O autor uruguaio, teólogo e não literato ou crítico
literário, o um ou o outro no espaço do diálogo, é tomado aqui como exemplo na
correspondência entre teologia e literatura. Segundo, tendo como tema aquilo que ele
chama de concepção humana sobre liberdade, trabalha em seu livro “Que mundo?
Que homem? Que Deus?” temas sobre essa liberdade em desenvolvimentos na
construção do saber humano. Falando a partir disso sobre aaventura” (termo do
autor) em busca de uma compreensão de liberdade pensada teologicamente no
Antigo Testamento, ele se depara com o que é teológico-literário no livro de Jó
99
,
que passo a considerar uma personagem bíblica, literária e teológica em
verossimilhança com a caótica existência humana.
O livro que começa em desgraça e termina em triunfo, pelo menos em sua
forma final, retrata, enquanto narrativa, a estória ou história de uma aposta mística
entre Deus e Satanás. É uma luta cósmica entre os opostos divinos que, como
consequência, afeta diretamente a vida humana. Para Segundo, que considera o livro
uma “narrativa mítica em prosa”
100
, literatura, se assim puder ser dito, constrói, a
partir de uma visão própria do livro, numa hermenêutica própria, como digo em
minha dissertação, uma idéia de que o livro de carrega em si duas teologias e
meia. Particularmente eu acrescentaria uma terceira, uma mais dualistas. Mesmo
assim, ainda seriam três e meia.
Porém, é entre o prólogo que acredito conter essa teologia mais dualista e
o epílogo um certo retorno à teologia de retribuição da aliança que se encontra,
em forma de poesia e sabedoria, uma das mais ricas e mais profundas compreensões
literário-teológicas sobre a existência e a vida humana dentro do texto bíblico. Para
Segundo, o autor (ou autores, ou organizador/res) de Jó não era um grande poeta,
99
Juan Luis SEGUNDO. Que mundo? Que homem? Que Deus? Aproximação entre ciência, filosofia
e teologia. (tradução: Magda Furtado de Queiroz). São Paulo: Paulinas, 1995. pp.267-272. Cf. tb.
Clademilson Fernandes Paulino da SILVA. Liberdade e sofrimento: o “Grande Sertão: Veredas” de
João Guimarães Rosa em diálogo com a teologia de Juan Luis Segundo. São Bernardo do Campo:
UMESP, 2005. (Dissertação de Mestrado). p.81.
100
Id. Ibid. p.267.
97
um escritor, mas também era alguém profundamente preocupado em organizar um
pensamento teológico coeso. Ele, o autor, no dizer de Segundo, deu “tratos à bola”
101
na construção do livro. Para que o texto, em si mesmo, tivesse uma coerência
teológica, uma lógica nos acontecimentos que envolviam o humano e sua vida, ele
criou uma teologia harmônica na relação desse humano com Deus e desse Deus com
o humano, mas o fez dando uma certa e grande beleza literária ao livro de Jó.
Os amigos de Jó representam, para Juan Luis Segundo, a primeira teologia do
livro. Essa é a teologia da aliança, baseada em tratos de retribuição. Se o
comportamento é adequado, bênção, caso contrário, maldição. Eles [os amigos de
Jó], na verdade, queriam saber qual era o pecado que cometera para estar
passando por uma provação de tais proporções. O objetivo da interlocução dos
amigos é para que Jó confesse seu pecado, arrependa-se e volte-se para Deus
102
:
“O falador ficará sem resposta?
Dar-se-á razão ao eloqüente?
A tua vã linguagem calará os homens?
Zombarás sem que ninguém te repreenda?
Disseste: “Minha conduta é pura.
sou inocente aos teus olhos.”
Se apenas Deus falasse,
abrisse os lábios por tua causa,
revelar-te-ia os segredos da Sabedoria,
que desconcertam toda sensatez!
Então saberias que Deus te pede contas da tua falta”.
(Jó 11:02-06 – Bíblia de Jerusalém, Nova Edição, Revista e
Atualizada)
103
.
Depois uma teologia que o autor ou o organizador de empresta a Deus,
pois é Yahweh quem fala. “O autor [diz Segundo] propõe, pela boca de Deus, a única
solução razoável, usando e abusando do pensamento do Deutero-Isaías sobre a
transcendência do Criador e a inutilidade de apelar a ele [...]
104
, para um sofrimento
que não se merece, sobre o qual não se tem culpa. Yahweh não parece se preocupar
com o sofrimento imerecido de (da humanidade), nem mesmo está preocupado ou
sente a necessidade de responder a qualquer questionamento feito. Nada é falado
101
Id. Ibid. p.267.
102
Cf. Id. Ibid. p.268.
103
Todos os textos agora citados seguem essa tradução.
104
Id. Ibid. p.269.
98
sobre a dor, sobre a reclamação em si, já que a dor não é merecida, nem sobre a
aposta. Yahweh, no embate com [se é que houve embate de fato, que Jó pouco
pode falar], também nada fala sobre aliança – a teologia que envolve os amigos de
– e nem sobre providência
105
, a fala é outra:
“Então Yahweh respondia do seio da tempestade [ou do
redemoinho, algo mais chamativo para leituras em Guimarães
Rosa], e disse:
“Quem é esse que obscurece meus desígnios
com palavras sem sentido?
Cinge-te os rins, como herói,
interrogar-te-ei e tu me responderás.
Onde estavas, quando lancei os fundamentos da terra?
Dize-mo, se é que sabes tanto.
Quem lhe fixou as dimensões? — se o sabes —,
ou quem estendeu sobre ela a régua?
[...]
Examinaste a extensão de terra?
Conta-me, se sabes tudo isso.
De que lado mora a luz,
e onde residem as trevas,
para que as conduzas à sua terra
e distingue os acessos de sua casa?”
(Jó 38:01-05e18-20).
A terceira teologia, que não se configura como terceira, já que é apenas meia,
é a meia teologia de Jó, o protagonista do livro. Mas, além de meia, ela é, para Juan
Luis Segundo, a teologia que serve como interludium entre a primeira teologia, a
teologia da aliança, e a segunda teologia, a teologia “monística” de Deus
106
. Para
usar linguagem rosiana, ela é uma teologia entre as margens. é apenas alguém que
não entende a sua culpa, que não culpa em si mesmo, e também não
compreende a existência humana sem a ação da justiça de Deus, por isso, ao mesmo
tempo que aceita a teologia de seus amigos, pois também faz parte dela, aceita
também a teologia da soberania de Deus:
105
Cf. Clademilson Fernandes Paulino da SILVA. Liberdade e sofrimento: o “Grande Sertão:
Veredas” de João Guimarães Rosa em diálogo com a teologia de Juan Luis Segundo. São Bernardo
do Campo: UMESP, 2005. (Dissertação de Mestrado). p.82.
106
“Esta é a teologia que o autor do livro de presta a Deus com a qual invalida a de uma aliança
concebida como contrato. Por isso, dizia que o livro de entrelaçava duas teologias e meia: a antiga
crença da proporção entre conduta e acontecimentos históricos, a queixa desesperada de Jó de que isso
não se aplica a seu caso, e a teologia colocada na boca de Deus, pela qual ele silencia o homem com
sua transcendência, obrigando-o a viver os acontecimentos por seu valor intrínseco, gratuitamente.”
Juan Luis SEGUNDO. Que mundo? Que homem? Que Deus? Aproximação entre ciência, filosofia e
teologia. (tradução: Magda Furtado de Queiroz). São Paulo: Paulinas, 1995. p.p.271.
99
“Jó respondeu a Yahweh:
Reconheço que tudo podes
e que nenhum dos teus desígnios fica frustrado.
Quem é aquele que vela teus planos com propósitos sem sentido?
Falei de coisas que não entendia,
de maravilhas que me ultrapassam.
(Escuta-me, que vou falar;
interrogar-te-ei e tu me responderás.)
Eu te conhecia só de ouvir,
mas agora meus olhos te vêem:
por isso, retrato-me
e faço penitência no pó e na cinza! (Jó 42:01-06).
Contudo, em sua meia teologia, que é mais grito do que sistema
107
, formula sua
pergunta sobre a vida, a pergunta que fica entre as margens. Ele aceita, mas não
entende, por isso diz: “[tudo] é a mesma coisa! Ele extermina o íntegro e o ímpio. Se
uma calamidade semear morte repentina, ele se ri do desespero dos inocentes” (Jó
09:22-23). Dessa forma, tanto a ausência como a presença de Deus se torna algo
angustiante para Jó e para o humano que sofre:
“Quão poucos são os dias de minha vida!
Fica longe de mim, para que eu tenha um instante de alegria,
antes de partir, sem nunca mais voltar,
para a terra de trevas e sombras,
para a terra soturna e sombria,
de escuridão e desordem,
onde a claridade é sombra” (Jó 10:20-22).
Como dito e visto, essa compreensão de Deus no Antigo Testamento, para
Segundo, fica entre sistemas de teologia, mas não se faz teologia. É apenas meia
108
.
A teologia de “Deus”, que o autor põe na boca de Yahweh, é uma teologia que
silencia a teologia da aliança, que retorna e resiste no epílogo do livro; no entanto,
entre as duas, meio como questionamento de ambas, fica essa teologia meia, que não
se faz teologia, mas que não deixa também de ser teologia. É meia apenas “porque
não consegue chegar a ser uma teologia inteira, não chega a ser um sistema, é apenas
107
Clademilson Fernandes Paulino da SILVA. Liberdade e sofrimento: o “Grande Sertão: Veredas”
de João Guimarães Rosa em diálogo com a teologia de Juan Luis Segundo. São Bernardo do Campo:
UMESP, 2005. (Dissertação de Mestrado). p.83.
108
Apesar da dificuldade de compreender verdadeiramente o sentido que Juan Luis Segundo dá a essa
expressão “meia teologia”, acredito que ela expresse bem a idéia de literariedade teológica que quero
dar ao presente ponto. Especialmente se, como creio, ela carregar uma forma de dizer sem dizer, de
ser e não ser, algo característicos dos textos de Segundo.
100
um grito, um grito de desespero. Porém, apesar de não ser uma, não é também
nenhuma [...]”
109
. Desse modo, a partir dessa gica que empresto de Juan Luis
Segundo, chego a Riobaldo personagem do Grande Sertão: Veredas.
Uma teologia meio literária
Pode parecer, em princípio, que o que se está propondo é uma leitura em
palimpsesto entre o livro bíblico de Jó e o Grande Sertão: Veredas, aos modos de Eli
Brandão
110
ou de Salma Ferraz
111
. Contudo, não é essa a intenção. Apesar de e de
Riobaldo, em verossimilhança, estarem muito próximos um do outro, e também da
possibilidade de diálogo por este caminho, o de um palimpsesto literário, a questão
se distancia disso sem, no entanto, abandonar isso –, que ela envolve mais as
preocupações que ambos possuem quanto aos questionamentos sobre a existência, o
sofrimento e a liberdade. A preocupação principal é a de mostrar que Riobaldo, de
forma semelhante a Jó, é um personagem em conflito, em dúvida
112
:
“Mas o mal de mim, doendo e vindo, é que tive de compensar,
numa mão e noutra, amor com amor. Se pude? Vem horas, digo: se
aquele amor veio de Deus, como veio, então o outro? ...Todo
tormento. Comigo, as coisas não têm hoje e ant’ôntem amanhã: é
sempre. Tormentos. Sei que tenho culpas em aberto. Mas quando
foi que minha culpa começou? O senhor por ora mal me entende,
se é que no fim me entenderá. Mas a vida não é entendível”
113
.
A questão da culpa é a primeira dúvida de Riobaldo. E é ela elemento que
aproxima mais ainda e Riobaldo – que abre toda a possibilidade de outras dúvidas
sobre a existência humana e seu sofrimento. E é nisso que a meia teologia de
Riobaldo, semelhantemente à meia teologia de Jó, se constrói. Desse modo, as
perguntas novamente se fazem: a culpa é do diabo? É de Deus? É do humano
109
Id. Ibid. p.83.
110
Eli Brandão da SILVA. O nascimento de Jesus-Severino no auto de Natal Pernambucano como
revelação poético-teológica da esperança. Hermenêutica transtexto-discursiva na ponte entre
Teologia e Literatura. São Bernardo do Campo: UMESP, 2001. 294p. (Tese de Doutorado).
111
FERRAZ, Salma. As faces de Deus na obra de um ateu: José Saramago. Juiz de Fora: UFJF;
Blumenau: Edifurb, 2003. 234p.
112
Cf. CASTRO, Manuel Antonio de. O homem provisório no Grande Ser-tão: Veredas: um estudo
de Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro e Brasília: Tempo Brasileiro e INL, 1976. (Tempo
Universitário). pp.14ss.
113
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.156.
101
(Riobaldo ou Jó)? Ou a culpa é da própria vida, que não é entendível, mas que,
mesmo assim, precisa ser lembrada e refletida?
“Serve meus pensamentos. Serve, para o que digo: eu queria ter
remorso; por isso, não tenho. Mas o demônio não existe no real.
Deus é que deixa se afinar à vontade o instrumento, até que chegue
a hora de se dansar. Travessia, Deus no meio. Quando foi que eu
tive minha culpa? Aqui é Minas; é a Bahia? Estive nessas
vilas, velhas, altas cidades... Sertão é o sozinho. [...] Sertão: é
dentro da gente”
114
.
Parece-me, desse modo, que Riobaldo constrói, da mesma forma que seu
companheiro literário-teológico, o Jó personagem, uma teologia meio literária ou
uma literatura meio teológica sobre a existência e suas crises. Assim, nesse jogo de
relações entre teologia e literatura ou literatura e teologia, creio, como proposto no
título deste segundo capítulo, que a vida é uma das possíveis veredas para essa
correspondência, e é exatamente sobre isso que Riobaldo reflete, seja no âmbito
social, como denúncia de Guimarães Rosa, seja no desabafo sobre a existência, no
grito sobre a vida, na meia teologia como vereda, o caminho que creio ser melhor e
que agora é tomado.
É no narrar que a vida como vereda começa a ser entendida. O contar do
personagem-narrador, primeiro, é um chamado a uma reflexão sobre a existência,
depois ou conjuntamente, da relação, nessa existência, do homem humano com o que
pertence ao religioso, mesmo que alguns não queiram. Ao contar, o narrador está
lançando ao seu leitor-ouvinte sua dúvida, sua dor, sua condição inexplicável diante
da existência, sua meia teologia que pode ser, para quem pensa e faz teologia, uma
teologia inteira, verossimilhante, mas, mesmo assim, teologia, teologia que se põe a
discutir a liberdade e o sofrimento como temas da vida, da própria teologia e da
literatura. Diz Riobaldo:
“Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando
não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria
vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que
empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que
induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho
114
Id. Ibid. p.325.
102
do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe! [...] Lhe
falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão!”
115
.
Caminhando por essa trilha, por dentro do Grande Sertão, pelas veredas,
encontramos 1. primeiramente uma personagem protagonista condutora, é Riobaldo.
É ele quem introduz toda a reflexão com o contar de sua vida, e é ela, a sua vida, que
se torna verossimilhante. 2. Segundo, temos um lugar geográfico específico, com
problemas e questões específicas; contudo, com relações de universalidade, “o sertão
é do tamanho do mundo”
116
, “o sertão está em toda a parte”
117
. 3. Depois, temos uma
estória contada, são as idas e vindas de um jagunço
118
. E são essas muitas reflexões e
conclusões sobre a vida e, principalmente, de seu maior sofrimento, a morte de seu
maior amor, Diadorim, que “a ponte temática: liberdade e sofrimento como
correspondências entre o mundo literário, mágico e imaginativo de João Guimarães
Rosa e o mundo real e teologicamente pensado de Juan Luis Segundo”
119
se faz. O
que em Juan Luis Segundo está, obviamente, para além das leituras feitas de Jó.
A personagem Riobaldo, dentro do romance, é aquela que vive o ficcional e
que, ao mesmo tempo, nessa ficcionalidade, revela também o real vivido e sofrido
pelo humano comum, que, por seu tempo, no seu sofrimento real, também reclama,
assim como na ficção, por respostas
120
. Mas essa tentativa de leitura em
verossimilhança da vida da personagem com a vida real e comum, também tenciona
ser, no diálogo e isso precisa ser também melhor delimitado –, mais do que uma
tentativa de observação das relações existentes entre a personagem e seu criador, o
autor
121
, como se tudo fosse apenas uma reflexão social. Lendo Riobaldo, pretende-
se ler, em diálogo apesar de se estar tratando apenas da estória da personagem e
não da história do autor – o que é correspondente, dentro do tema liberdade e
sofrimento, entre João Guimarães Rosa e Juan Luis Segundo. Também não se discute
apenas uma questão social, um mal social, uma denúncia. O problema do sofrimento
115
Id. Ibid. p.116.
116
Id. Ibid. p.89.
117
Id. Ibid. p.24.
118
Cf. Clademilson Fernandes Paulino da SILVA. Liberdade e sofrimento: o “Grande Sertão:
Veredas” de João Guimarães Rosa em diálogo com a teologia de Juan Luis Segundo. São Bernardo
do Campo: UMESP, 2005. (Dissertação de Mestrado). p.52.
119
Id. Ibid. p.52.
120
Id. Ibid. pp.52-53.
121
Alguns críticos de Rosa fazem essa leitura, uma comparação entre o personagem e o autor, como
verossimilhantes. Em verdade o próprio Guimarães Rosa faz essa comparação.
103
humano, em Riobaldo, consequentemente em Rosa, é um problema de existência, e a
pergunta é sobre essa existência.
Já o sertão é o espaço geográfico imaginado onde Riobaldo cumpre com a sua
carreira, a carreira que lhe está proposta (ou não), sua travessia de vida, “consolo e
redenção do homem humano”
122
, segundo Márcia Marques. E só
“então, depois desse cumprimento, agora velho, como ele próprio
apresenta-se, vem a este “senhor doutor” [o leitor-intérprete], que o
visita, e conta-lhe sua história, história de vida cumprida, tendo
como principal preocupação a busca por uma resposta para a sua
dor”
123
,
resposta que talvez esteja somente no “senhor doutor”, no leitor, que talvez saiba o
que ele, definitivamente, não sabe. Assim, o contar se torna um convite:
“Riobaldo, como personagem-protagonista e narrador de sua
própria realidade, quando narra, joga-nos sua estória e também nos
joga para dentro dela. Ele nos chama para ouvi-lo, mas nos chama
para ouvir mais do que ele tem a dizer. Ele nos chama para sermos
intérpretes de sua triste estória de vida”
124
ou, de outro modo, da triste história de vida humana, literária, mas, também,
teologicamente pensada.
Poder-se-ia também falar numa 4. quarta e última possibilidade: Guimarães
Rosa / Riobaldo, um como opinião e diálogo
125
com o outro
126
. Para Márcia
Marques, utilizando-se de Amigucci, Riobaldo e João Guimarães Rosa são figuras
diferentes de um diálogo virtual que os aproxima. Riobaldo seria uma espécie de
122
Márcia Marques de MORAIS. Riobaldo e Suas Más Devassas no Contar. In: Lélia Parreira
DUARTE; Maria Theresa ALVEZ. (Organizadoras). Outras margens: estudos na obra de Guimarães
Rosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p.170.
123
Clademilson Fernandes Paulino da SILVA. Liberdade e sofrimento: o “Grande Sertão: Veredas”
de João Guimarães Rosa em diálogo com a teologia de Juan Luis Segundo. São Bernardo do Campo:
UMESP, 2005. (Dissertação de Mestrado). p.74.
124
Id. Ibid. p.74.
125
Márcia Marques de MORAIS. Riobaldo e suas más devassas no contar. In:lia Parreira
DUARTE; Maria Theresa ALVEZ. (Organizadoras). Outras margens: estudos na obra de Guimarães
Rosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. pp.154ss.
126
Cf. também Clademilson Fernandes Paulino da SILVA. Liberdade e sofrimento: o “Grande
Sertão: Veredas” de João Guimarães Rosa em diálogo com a teologia de Juan Luis Segundo. São
Bernardo do Campo: UMESP, 2005. (Dissertação de Mestrado). p.75.
104
figura épica sertaneja e João Guimarães Rosa
127
uma espécie de interlocutor
intelectual. Enquanto um fala a partir de um saber vivido, narrado oralmente, o outro
fala de um saber apreendido, por isso escreve. No texto os dois se fundem. Um
absorve o outro e pelo outro é absorvido. Os dois falam e questionam em espaços
diferentes, mas o tema lhes é comum: a vida:
“De tudo não falo. Não tenciono relatar ao senhor minha vida em
dobrados passos; servia para que? Quero é armar o ponto dum fato,
para depois lhe pedir um conselho. Por daí, então, careço de que o
senhor escute bem essas passagens: da vida de Riobaldo, o
jagunço”
128
.
Pensado assim, Riobaldo, um tipo de Jó segundiano, “é alguém-personagem,
com valor real, que, relembrando sua estória de vida, conta a um outro, o “senhor
doutor”, uma personagem emudecida durante todo o romance, que faz um tipo de
127
Guimarães Rosa, filho de Florduardo Pinto Rosa e Francisca Guimarães Rosa, nasceu em 27 de
junho de 1908, na cidade de Cordisburgo, Minas Gerais. [...] Aos 10 anos de idade, mudou-se para
Belo Horizonte com o intuito de estudar. [...] Formou-se em Medicina no ano de 1930, pela
Universidade de Minas Gerais, [...] começando sua carreira médica na Força Pública do Estado de
Minas Gerais, como Capitão Médico, onde conheceu e fez amizade com Juscelino Kubitschek. De
1938 a 1942 foi cônsul em Hamburgo; de 1942 a 1944 foi secretário da embaixada em Bogotá; em
1946 foi chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura, a quem substituiu na cadeira número
dois da Academia Brasileira de Letras; de 1948 a 1951 foi primeiro-secretário e conselheiro da
embaixada em Paris; em 1948 participou como secretário da delegação do Brasil à Conferência de Paz
em Paris, mesmo ano e local onde representou o Brasil na Sessão Extraordinária da Conferência da
Unesco, onde também, em 1949, foi delegado do Brasil na IV Sessão da Conferência Geral da
Unesco; em 1951, voltou ao Brasil para ser novamente nomeado como chefe de gabinete do ministro
João Neves da Fontoura; em 1953, tornou-se chefe da Divisão de Orçamento; e, finalmente, em 1962,
assumiu a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras, cargo que tomando-lhe muito de seu tempo
o esgotou fisicamente, afastando-o assim um pouco da literatura. Sua carreira literária iniciou-se em
1929, com a publicação na revista “O Cruzeiro” do seu artigo intitulado “O mistério de Highmore
Hall”. Suas obras literárias foram: “Sagarana” de 1946, obra que o levou a um lugar de destaque na
literatura brasileira; “Com o Vaqueiro Mariano” de 1952; “Corpo de Baile” de 1956 e 1964, em três
volumes: “Manuelzão e Miguilim”, “No Urubuquaquá, no Pinhém”, e “Noites do Sertão” (volume
publicado em 1964); “Grande Sertão: Veredas” de 1956; “Primeiras Estórias” de 1962; “Tutaméia” de
1967; “Estas Estórias” de 1969 e “Ave, palavra” de 1970, sendo as três últimas obras póstumas. Em
1962 e 1964 participou como colaborador de outras obras: “O Mistério dos MMM” e “Os Sete
Pecados Capitais”, respectivamente. Guimarães Rosa, como escritor, foi bastante premiado: em 1936,
recebeu o Prêmio da Academia Brasileira de Letras pela coletânea de versos “Magma”; em 1946, o
livro “Sagarana” recebeu o prêmio Filipe d’Oliveira; em 1956, o livro “Grande Sertão: Veredas”
127
recebeu o prêmio Machado de Assis do INL, e em 1957, o prêmio Carmem Dolores Barbosa e o
prêmio Paula Brito; em 1963, “Primeiras Estórias” recebeu o prêmio do PEN Clube do Brasil. [...]
João Guimarães Rosa faleceu em 19 de novembro de 1967, três dias depois de ter sido recebido na
Academia Brasileira de Letras, sucedendo João Neves da Fontoura na cadeira de número dois.
Clademilson Fernandes Paulino da SILVA. Liberdade e sofrimento: o “Grande Sertão: Veredas” de
João Guimarães Rosa em diálogo com a teologia de Juan Luis Segundo. São Bernardo do Campo:
UMESP, 2005. (Dissertação de Mestrado). pp.35-37.
128
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.232.
105
leitor e intérprete dessa estória contada”
129
, seu drama de vida e sua pergunta diante
desse drama: de quem é e onde está a culpa? Essa estória, refletida e contada num
tempo bem posterior aos acontecimentos quando o personagem-narrador conta,
conta quando está vivendo anos depois de sua vida jagunça –, é uma estória de
sofrimento e saudade contada de memória. “Ele relembra, reflete e questiona sua
dor”
130
: “por esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente
se querendo bem. O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade?”
131
Nesse seu tecer reflexivo, tentando dar respostas para o seu sofrimento,
Riobaldo procura entender os porquês de seu caminho de vida, de suas escolhas e de
sua dor, aos modos de Jó e de sua meia teologia. Mas, mesmo caminhando por sua
memória repleta de magia, de mística e de religiosidade, não consegue entender
132
. A
personagem verossimilhante não formula, apesar de sua múltipla pertença religiosa –
ele bebe de todo rio –, uma teologia que explique a sua angústia e a angústia
humana, que, para ele, nenhuma delas da conta de explicar o sofrimento humano.
“Ele apenas sofre, reflete e reclama de sua dor”
133
. Ele faz, apropriando-me de Juan
Luis Segundo, aquilo que chamamos até aqui de “meia teologia”, o que não chega a
ser teologia, pois é apenas meia, mas que também pode, em potencialidade, tornar-se
uma teologia, uma teologia inteira
134
, mas que, por outro lado, também pode
continuar sendo literatura sem perder seu elemento de literariedade teológica, sem
perder a força de sua correspondência.
129
Clademilson Fernandes Paulino da SILVA. Liberdade e sofrimento: o “Grande Sertão: Veredas”
de João Guimarães Rosa em diálogo com a teologia de Juan Luis Segundo. São Bernardo do Campo:
UMESP, 2005. (Dissertação de Mestrado). p.52.
130
Id. Ibid. p.53.
131
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.43.
132
Cf. Clademilson Fernandes Paulino da SILVA. Liberdade e sofrimento: o “Grande Sertão:
Veredas” de João Guimarães Rosa em diálogo com a teologia de Juan Luis Segundo. São Bernardo
do Campo: UMESP, 2005. (Dissertação de Mestrado). p.52.
133
Id. Ibid. p.53.
134
Cf. Id. Ibid. p.53.
106
5. Sertão, solidão e sofrimento: caminhos de correspondência
Toda a complexa rede de reflexões de Riobaldo passa pela relação desse
sertanejo ex-jagunço pelo sertão. Como dito algumas vezes até aqui, o sertão é
lugar e espaço, mas aqui isso já começa a se configurar como conclusão, pelo menos,
por enquanto.
O lugar sertão de Rosa é Minas, é o sul da Bahia e parte de Goiás, fim de
rumo, terras altas, como diz Riobaldo. Mas é lugar principalmente de um povo
prascóvio
135
, cheio de superstição e de uma religiosidade sincrética, mística e
complexa. O romance começa com essa explicação:
“– Nonada. Tiros que o Senhor ouviu foram de briga de homem
não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do
córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em
minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um
bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com
máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo
que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava
rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o
demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for.
Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O
senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a
cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver
se deu mortos”
136
.
Para a leitura desse sertão é preciso tolerância: “o senhor tolere, isto é o sertão”
137
.
“O senhor deve de ficar prevenido: esse povo diverte por demais
com a baboseira, dum traque de jumento formam tufão de ventania.
Por gosto de rebuliço. Querem-porque-querem inventar maravilhas
glorionhas, depois eles mesmos acabam crendo e temendo. Parece
que todo o mundo carece disso. Eu acho, que”
138
.
135
“Tolo, ingênuo. // Variação de pacóvio.” MARTINS, Nilce Sant’anna. O léxico de Guimarães
Rosa. São Paulo: Edusp, 2001. p.395. (Pacóvio) - pa.có.vio, adj+sm 1 Que, ou o que é simplório,
toleirão. 2 Que, ou o que é imbecil, parvo. Antôn (acepção 2): inteligente, sagaz. Segundo Dicionário
Michaelis.
136
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.23.
137
Id. Ibid. p.23.
138
Id. Ibid. p.90.
107
No romance, em princípio, o lugar físico, a geografia do sertão, parece dar
lugar ao espaço místico e supersticioso do povo que o habita. Para o escritor,
Guimarães Rosa, e para o narrador, Riobaldo, é isso o que é de maior significação
dentro do sertão. O sertão não é lugar apenas é estado: “sertão: é dentro da
gente”
139
. Essa idéia de psicologia do sertanejo do sertão de Rosa se descobre em
alguns autores. Para Eduardo Coutinho, além de geografia, o sertão tem relação com
o estado psíquico com a gente que nele habita
140
. como que uma relação de
existência e estado entre o sertão e o sertanejo.
Porém, o sertão é mais. Se há uma verossimilhança entre Riobaldo e o homem
humano, também uma relação em verossimilhança entre o sertão e a vida. A
reflexão de Riobaldo sobre o sertão, é também, em verossimilhança, uma reflexão
humana sobre a vida. Se o sertão é violento, a vida também o é, por isso, viver é um
negócio muito perigoso. O lugar sem lugar de Riobaldo é a vida que o produziu e o
fez pensar. Ele aprendeu: “aprender-a-viver é que é vier, mesmo. O sertão me
produz, depois me enguliu, depois me cuspiu do quente da boca...
141
. O que vem
além, para mim, não pode ser apenas uma visão social, do mal social, ou mesmo
apenas uma leitura estética sobre a vida, é uma reflexão meio-teológica. Poderia ser
uma teologia meia em entrelace entre outras teologias. Contudo, como sei que Juan
Luis Segundo não queria dizer apenas isso, ela também pode ser uma teologia
mesmo que apenas meia em correspondência com outras teologias a partir deste
tema comum: a vida, a solidão e o sofrimento.
O que se está procurando dizer é que enquanto a teologia clássica (teologias
dogmática e sistemática), em seus espaços específicos, trabalha os temas humanos
como a liberdade e o sofrimento, Juan Luis Segundo, atrelado a essa mesma teologia
clássica, mas a seu modo, também trabalha os mesmo temas. Contudo, por outro
caminho, o da literatura, também quem (Guimarães Rosa), ao seu próprio modo,
esteja trabalhando esses mesmos temas, ao mesmo tempo e com a mesma
preocupação teológica. O que talvez não seja ainda possível e nem viável é dizer que
isso seja uma teologia, uma teologia clássica ou uma teologia outra, da libertação,
139
Id. Ibid. p.325.
140
Eduardo de Faria COUTINHO. Em busca da terceira margem: ensaios sobre o Grande Sertão:
Veredas. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1993. p.39.
141
Id. Ibid. p.601.
108
por exemplo. No entanto, o que talvez possa ser dito e viável no dizer, é que isso não
deixa de ser um fazer teológico, um fazer que não se prende ao sistema, não depende
em parte dele, e nem nele se esgota, mas que, principalmente, o questiona. É
meio (ou meia), fica entre, próximo, é e não é.
Enquanto Jó, o livro, apresenta sistemas de teologias próprias de seu tempo,
ainda em discussão hoje, teologia da aliança e monismo, Jó, o personagem mais
literatura do que sistema teológico –, diante de sua precária existência, oferece sua
insuficiente explicação, sua angustiante visão de Deus e da vida:
“Já que tenho tédio à vida,
darei livre curso ao meu lamento,
falarei com a amargura da minha alma.
Direi a Deus: Não me condenes,
explica-me o que tens contra mim.
Acaso te agrada oprimir-me,
rejeitar a obra de tuas mãos
e favorecer o conselho dos ímpios?
Porventura tens olhos de carne,
ou vês como vêem os homens?
Acaso são os teus dias como os de um mortal
e teus anos como os dias do homem,
para indagares minha culpa
e examinares meu pecado,
quando sabes que não sou culpado
e que ninguém me pode tirar de tuas mãos?
[...] Se tivesse incorrido em pecado, ai de mim!
Se fosse inocente, não ousaria levantar a cabeça,
saturado de afrontas e saciado de misérias.
Orgulhoso como um leão, tu me caças,
multiplicas proezas contra mim,
renovando teus ataques contra mim,
redobrando tua cólera contra mim,
lançando tropas descansadas contra mim.
Então, por que me tiraste do ventre?
Poderia ter morrido sem que olho algum me visse,
e ser como se não tivesse existido,
levado do ventre para o sepulcro (Jó 10:01-07,15-19).
Da mesma forma, dentro da preocupação de correspondência, enquanto a teologia
clássica busca respostas às questões da vida, especificamente aqui, a liberdade e o
sofrimento, e enquanto Juan Luis Segundo, sem deixar essas mesmas teologias, mas
indo para além delas, com reflexões sobre o sofrimento como preço pela liberdade,
109
encontramos Guimarães Rosa, através de seu personagem Riobaldo, dizendo literária
e teologicamente, como começo daquilo que aqui se busca entender: “o diabo não
há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia”
142
.
Das explicações insuficientes
Em princípio, no Grande Sertão: Veredas, em Riobaldo uma explicação
meio dualista das questões da vida ou, pelo menos, a visão de necessidade dessa
explicação, que uma compreensão que passasse pelo bom como bom e pelo ruim
como ruim, facilitaria em muito a compreensão da própria vida com ela é e do
sofrimento que nela existe:
“[...] eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruim [diz
Riobaldo], que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o
feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza!
Quero os todos pastos demarcados... [...]”
143
.
No entanto, essa compreensão de mundo e de vida nunca fôra suficiente. Para
Juan Luis Segundo, essa forma de pensar nunca passou, dentro da teologia e do saber
humano, em determinadas circunstâncias, de uma preguiça do pensamento
144
.
Citando Torres Queiruga, Creo en Dios Padre, Segundo diz: “no dualismo, o
problema se torna central e organiza o conjunto da vida religiosa: existem dois
princípios originários, um bom e outro mau, que, respectivamente, explicam a
presença do bem e do mal”
145
. Mas para Segundo e para Riobaldo, isso apresenta
limites. A aparente clareza do dualismo, não resiste, para Segundo, seguindo ainda
Queiruga, “a uma análise racional, porque dois deuses, que mutuamente se limitam,
142
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.624.
143
Id. Ibid. p.237.
144
Juan Luis SEGUNDO. Que mundo? Que homem? Que Deus? Aproximação entre ciência, filosofia
e teologia. (tradução: Magda Furtado de Queiroz). São Paulo: Paulinas, 1995. p.61. “A eliminação do
monismo lhe é necessária para poder afirmar a existência de criaturas limitadas e contingentes.
Mesmo que se caia, assim, numa disfarçada contradição; [...]. A eliminação do dualismo lhe é
igualmente necessária, porque se existisse algo com o qual Deus não teria contado para criar, a
criatura dependeria de dois princípios. E, com razão, poderíamos acusar de “teologia preguiçosa” um
teólogo que admite isso, pois ainda ficaria por explicar qual o papel desse segundo princípio e que
relações tem com o primeiro.” Id. Ibid. p.63.
145
Id. Ibid. p.65. Nota de roda-pé 18. Apud A. Torres QUEIRUGA. Creo en Dios Padre. pp.111-112.
110
demonstram com isso que não o são”
146
. Já Riobaldo, apesar da necessidade de
compreender assim, não consegue. Há um “contudo” na fala dele citada acima:
“como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a
esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito
misturado...”
147
.
Se em Riobaldo o mundo é meio misturado, em Juan Luis Segundo essa
mistura está também nos sistemas: “tanto os sistemas de tendência monista têm
fragmentos dualistas como, inversamente, os sistemas de pensamento dualista
contêm monismos parciais”
148
. E, dos sistemas, as misturas são observáveis na vida e
na religiosidade que a acompanha:
“Então eu pensei por que era que eu também não podia ser
assim, como o Jõe? Porque, veja o senhor o que eu vi: para o Jõe
Bexiguento, no sentir da natureza dele, não reinava mistura
nenhuma neste mundo as coisas eram bem divididas, separadas. –
“De Deus? Do demo?” foi o respondido por ele “Deus a gente
respeita, do demônio se esconjura e aparta...”
149
.
Também na vida está expressa essa dinâmica, ora acertada, ora
desconcertada. A compreensão do bem e do mal, do bom e do ruim ou mesmo de
Deus e do diabo, não se dá, assim, de uma forma tão simples. Tudo é meio
misturado, mesmo quando se tenta separar, apartar:
“Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja [...]
150
. “E,
outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma
beleza de traiçoeiro gosto! A força dele, quando quer moço!
me medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é
na lei do mansinho assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se
divertindo, se economiza. A pois: um dia, num curtume, a faquinha
minha que eu tinha caiu dentro dum tanque, caldo de casca de
curtir, barbatimão, angico, sei. “Amanhã eu tiro...” falei,
comigo. Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava. Ah,
então, saiba: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido
roído, quase por metade, por aquela aguinha escura, toda quieta.
146
Id. Ibid. p.65. Nota de roda-pé 18.
147
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.237.
148
Juan Luis SEGUNDO. Que mundo? Que homem? Que Deus? Aproximação entre ciência, filosofia
e teologia. (tradução: Magda Furtado de Queiroz). São Paulo: Paulinas, 1995. p.67.
149
Id. Ibid. p.237.
150
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.33.
111
Deixei, para mais ver. Estala, espoleta! Sabe o que foi? Pois, nessa
mesma tarde, aí: da faquinha se achava o cabo... O cabo por
não ser de frio metal, mas de chifre de galheiro. está: Deus...
Bem, o senhor ouviu, o que sabe, o que sabe me entende...”
151
.
Em parte isso é dualismo, em parte é monismo, mas de forma completa é a
vida, algo não entendível. O bem e o mal na vida não possuem uma origem bem
específica como se esperaria, o bem de Deus e o mal do diabo. Ora o bem de Deus
vem do diabo, ora o mal do diabo vem de Deus. Apesar da aparente dualidade
também uma certa complementaridade entre Deus e o diabo, entre o bem e o mal:
[...] quem-sabe, a gente criatura ainda é tão, que Deus pode às
vezes manobrar com os homens é mandando por intermédio do
diá? Ou que Deus quando o projeto que ele começa é para muito
adiante, a ruindade nativa do homem só é capaz de ver aproximo de
Deus é em figura do Outro?
152
Mas é o exemplo da mandioca que clarifica a insuficiência das explicações diante do
bem e do mal, das relações entre Deus e o diabo, pensados num maniqueísmo e num
dualismo fixo:
“Mal haja-me! Sofro pena de contar não... Melhor, se arrepare:
pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não a
mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que
mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca doce
pode de repente virar azangada motivos não sei; às vezes se diz
que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de
manaíbas vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma
toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também é
que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum
mal”
153
.
Nessa lógica existe também um amor proibido (homossexual
154
), um mal
encoberto em amizade
155
e uma vitória não compreensível do mal contra o bem
151
Id. Ibid. p.39.
152
Id. Ibid. p.56.
153
Id. Ibid. p.27.
154
“Mas o mal de mim, doendo e vindo, é que tive de compensar, numa mão e noutra, amor com
amor. [...] se aquele amor veio de Deus, como veio, então o outro? ...Todo tormento. Comigo, as
coisas não têm hoje e ant’ôntem amanhã: é sempre. [...] Mas a vida não é entendível.” Id. Ibid. p.156.
155
“Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim de amor mesmo amor,
mal encoberto em amizade.” Id. Ibid. p.305.
112
vitória parcial
156
que não permitem a Riobaldo, em sua reflexão, uma compreensão
de simples oposição, de um lado o Uno e do outro lado o Outro. No Grande Sertão:
Veredas de Guimarães Rosa, onde Riobaldo pensa, pode-se dizer, seguindo Juan
Luis Segundo, não nem monismo, nem dualismo, apenas existência livre
existência – e sofrimento.
Das questões do destino: a pedagogia do sofrimento
Depois, num segundo momento, de forma mais clara e mais abundante do que
no primeiro, encontramos uma crise no simplismo explicativo do dualismo e do
maniqueísmo. Para Riobaldo, um sertanejo, explicar o mundo a partir de dois
conceitos básicos e opostos é insuficiente, como visto e dito. Nesse segundo
momento, não pensado de forma cronológica, a narrativa e o pensamento de
Riobaldo não se dão assim, o que marca é uma compreensão de carma
157
ou de
sofrimento purgatório para os que de forma agem nesse mundo
158
, uma forma de
destino pedagógico de onde ninguém foge.
Quem lança essa compreensão a Riobaldo, é seu compadre kardecista
Quelemém. A explicação é de que a dor, o sofrimento e o próprio diabo (ou espíritos
desencarnados) são instrumentos para a lapidação da alma humana, uma forma de
transformar o que é ruim em bom a partir de um castigo dado por um pecado
156
Falo sobre a primeira batalha do grupo contra os traidores, o bando do Hermógenes e do Ricardão.
A citação que segue fôra feita no corpo do texto, no ponto anterior, segue outra vez apenas para
conferência daquilo que se está dizendo, até porque a gica dada ao texto agora é outra. “Saímos,
sobre, fomos. Mas descemos no canudo das desgraças, ei, saiba o senhor. Desarma do tempo, hora de
paga e perdas, e o mais, que a gente tinha de purgar, segundo se diz. Tudo o melhor fizemos, e tudo no
fim desandava. Deus não devia de ajudar a quem vai por santas vinganças?! Devia. Nós não
estávamos forte em frente, com a coragem esporeada? Estávamos. Mas, então? Ah, então: mas tem o
Outro – o figura, o morcegão, o tunes, o cramulhão, o debo, o carocho, do pé-de-pato, o mal-encarado,
aquele o-que-não-existe! Que não existe, que não, que não, é o que minha alma soletra. E da
existência desse me defendo, em pedras pontudas ajoelhado, beijando a barra do manto de minha
Nossa Senhora da Abadia! Ah, Ela me vale; mas vale por um mar sem fim... Sertão. [...] Contra o
demo se podia? Quem a quem? Milagres tristes desses também se dão. Como eles conseguiram fugir
das unhas da gente, se escaparam o Ricardão e o Hermógenes os Judas. Pois eles escapuliram:
passaram perto, légua, quarto-de-légua, com toda sua jagunçama, e não vimos, não ouvimos, não
soubemos, tivemos jeito nenhum para cercar e impedir.” Id. Ibid. pp.317-318.
157
“Eu confiro com meu compadre meu Quelemém, [...] que, por todo o mal, que se faz, um dia se
repaga, o exato.” Id. Ibid. p.38.
158
“[...] o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer.” Id.
Ibid. p.27.
113
anteriormente cometido, numa vida passada. Mas a resposta não serve a Riobaldo:
“como no homem que a onça comeu, cuja perna. Que culpa tem a onça, e que culpa
tem o homem? Às vezes não aceito nem a explicação do Compadre meu Quelemém;
que acho que alguma coisa falta”
159
.
Mas são duas outras estórias contadas por Riobaldo, casos acontecidos na sua
vizinhança, que servem de contestação para tal explicação. A primeira é a de um
senhor chamado Aleixo, homem que segundo o narrador era das
“maiores ruindades calmas que se viu. [...] Um dia, por graça
rústica, ele matou um velhinho que por lá passou, desvalido
rogando esmola. [...] vem pão, vem mão, vem são, vem cão. [...]
um ano passado, de se matar o velhinho pobre, e os meninos do
Aleixo adoeceram [...] eles restavam cegos. O Aleixo [movido
pelo sofrimento dos meninos] agora vive da banda de Deus”
160
.
A segunda estória é a de Pedro ndo, “homem de bem por tudo em tudo, ele e a
mulher dele, sempre sidos bons, de bem”. Todavia, mesmo sendo bons, possuíam um
filho de nome Valtêi que era a imagem da ruindade, “uma vez (conta Riobaldo)
encontrou uma crioula benta-bêbada dormindo, arranjou um caco de garrafa, lanhou
em três pontos a popa da perna dela”. O seu desejo era sempre meio escuro: “eu
gosto é de matar...” numa ocasião disse o menino a Riobaldo. Mas, diferente da
estória anterior, onde o mal passou a ser bem quando o lado inocente do bem foi
castigado, os meninos
161
o que aparenta ser uma incoerência da vida –, nessa
outra estória, a do Pedro Píndo, de sua esposa e de filho, o Valtêi, foi o bem que
passou a ser mal quando o mal foi castigado, que o pai e a mãe, gente tida como
“sempre sidos bons, de bem”, passaram a ser maus, extremamente violentos com o
filho. Além disso, sabendo que idéia é de que o menino pagava por um crime
cometido no passado imaginário kardecista, ainda o fato de que quando o mal
dele e de outra suposta vida era nele castigado
162
, no meio do castigo, no processo
159
Id. Ibid. p.328.
160
Id. Ibid. p.29.
161
“Ele mesmo diz que foi um homem de sorte [o Aleixo], porque Deus quis ter pena dele,
transformar para o rumo de sua alma. Isso eu ouvi, e me deu raiva. Razão das crianças. Se sendo
castigo, que culpa das hajas do Aleixo aqueles meninozinhos tinham?!” Id. Ibid. p.29.
162
“Pois, o senhor vigie: o pai, Pedro Pindó, modo de corrigir isso, e a mãe, dão nele, de miséria e
mastro – botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro, ele nu nuelo, mesmo em junho
frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele do sangue, com cuia de salmoura.
[...] O menino rebaixou de magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, e entisicou, o
114
das constantes surras, passou a assemelhar-se, no seu sofrimento, ao bem: “Ah, mas,
acontece, quando está chorando e penando, ele sofre igual que se fosse um menino
bonzinho...”
163
. Assim, as estórias revelam essa insuficiência das explicações diante
da realidade vivida que se apresenta, mesmo sendo essas explicações dadas, como
dito, por seu mentor espírita, o compadre Quelemém, por quem ele nutre profundo
respeito.
Da liberdade e do sofrimento: a travessia do homem humano
Por fim, para Juan Luis Segundo, seguindo uma compreensão de mundo e de
vida teologicamente pensada, mas pensada a partir de uma criação em processo de
evolução
164
, aos modos de Teilhard de Chardin, pensa e entende que a liberdade é o
que determina o acaso no destino na caminhada humana. Não há dualismo, porque
isso é preguiça do pensamento, e não monismo, porque isso leva à paralisia e a
imobilidade na existência
165
.
Assim sendo, essa condição humana em liberdade é característica inescapável
dessa mesma condição humana. O humano é livre e é a sua liberdade que o
caracteriza como sofrente (termo de Riobaldo) diante da sua existência.
Compreende-se assim que a vida humana é algo em construção, inacabado: “o
senhor... Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas
não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas mas que elas vão sempre
mudando. Afinam ou desafinam...”
166
. E é o humano que deve acabar (terminar) com
ela, a vida, completá-la. E para Segundo, é na escolha que o humano constrói sua
existência e, em cada escolha, a própria vida cria os desdobramentos para o futuro. A
infelicidade ou o sofrimento está no fato de que não é possível fazer travessias
tempo todo tosse, tossura da que puxa secos peitos. Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher se
habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquinho foram criando nisso um prazer feio de diversão
como regulam as sovas em horas certas confortáveis, até chamam gente para ver o exemplo bom.”
Id. Ibid. pp.29-30.
163
Id. Ibid. pp.29-30.
164
Cf. Juan Luis SEGUNDO. Que mundo? Que homem? Que Deus? Aproximação entre ciência,
filosofia e teologia. (tradução: Magda Furtado de Queiroz). São Paulo: Paulinas, 1995. pp.435-489.
Capítulos 10 e 11.
165
Cf. Id. Ibid. p.63.
166
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.39.
115
experimentais: o caminho é único; as escolhas são únicas, diria Lélio, outro
personagem de Rosa: “mas, então, pois... mas, então! – não era melhor, não havia um
jeito, um possível, de se desmanchar o atual, e recomeçar, de outro princípio, a
história das pessoas?!”
167
; e as consequências imprevisíveis:
“A gente vive repetido, o repetido. [...] Um está sempre no escuro,
no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está
na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da
travessia.”
168
[...] “Eu atravesso as coisas e no meio da travessia
não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de
chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e
passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em
baixo, bem diverso do que em que primeiro se pensou. Viver nem
não é muito perigoso?”
169
A liberdade, desse modo, “um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de
grandes prisões”
170
, vai se perdendo, ao usá-la
171
, dentro da existência. E o único
ponto de onde se pode falar e refletir sobre essa existência, entre a liberdade e o
sofrimento, é no fim, no fim da travessia, e é isso o que Riobaldo, nosso personagem-
narrador, faz. No fim, Riobaldo chega a angustiantes conclusões, sem fechamentos
decisivos. A vida é algo perturbador, não apenas pelo perigo que é viver, mas pelas
constantes dúvidas que a vida suscita: quem foi que a viveu? Quem foi que fez as
escolhas? De quem foi o caminho, a travessia?
“Deus está em tudo conforme a crença? Mas tudo está vivendo
demais, se remexendo. Deus está mesmo vislumbrando era se tudo
se esbarrasse, por uma vez. Como é que se pode pensar toda hora
nos novíssimos, a gente estando ocupado com estes negócios
gerais? Tudo o que foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a
gente está num cômpito. Eu penso é assim na paridade. O demônio
na rua... Viver é muito perigoso; e não é não. Nem sei explicar estas
coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é o do sentidor.”
172
Se para Juan Luis Segundo (teologia) não dualismo, para Riobaldo (literatura)
também não, já que o diabo, definitivamente, para ele não existe:
167
Id. Lélio e Lina. In: No Urubuquaquá, no Pinhém. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.303.
168
Id. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.80.
169
Id. Ibid. p.51.
170
Id. Ibid. p.323.
171
Cf. Juan Luis SEGUNDO. Que mundo? Que homem? Que Deus? Aproximação entre ciência,
filosofia e teologia. (tradução: Magda Furtado de Queiroz). São Paulo: Paulinas, 1995. p.29.
172
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.328.
116
“O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas
melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é
barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor
consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma?
Viver é negócio muito perigoso... Explico ao senhor: o diabo vige
dentro do homem, os crespos do homem ou é o homem
arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que
não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo”
173
.
Deus, no entanto, tem que haver
174
, mesmo não agindo não monismo –, mesmo
que seja apenas por uma questão de lógica, é preciso ter um princípio iniciador, ou
por uma questão de conforto existencial, tendo Deus tudo fica mais fácil...
“mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com
Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o
mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no
vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo de grandes e pequenas
horas, não se podendo facilitar é todos contra os acasos. Tendo
Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim
certo”
175
.
Mas, o que mesmo, de fato, existe, é uma existência vivida no sozinho, numa
liberdade assistida, num acaso determinado, onde cada qual escolhe seu próprio
caminho, onde cada um se faz conforme suas escolhas, mesmo que não se queira ser,
negar: “narrei miúdo, desse dia, dessa noite, que dela nunca posso achar o
esquecimento. O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou,
não quero ser. Deus esteja”
176
.
Conclui-se, desse modo, que nesse “sertão” de Rosa, nada se explica mas
tudo se diz sobre essa existência inoperante (Deus) e sobre essa inexistência em
ação e acontecimento (o diabo), de um que existe mesmo quando não e do outro
173
Id. Ibid. p.26.
174
Juan Luis Segundo entende uma existência sutil de Deus na vida humana, daquilo que ele afirma
ser um Deus nem demasiadamente perto, que impeça a liberdade humana, e nem demasiadamente
longe, que o abandone completamente ao puro acaso. Cf. Juan Luis SEGUNDO. Que mundo? Que
homem? Que Deus? Aproximação entre ciência, filosofia e teologia. (tradução: Magda Furtado de
Queiroz). São Paulo: Paulinas, 1995. pp.483-489. Quem parece compreender bem isso é Dona
Rosalina. Diz Lélio a respeito dela: “Era bom, ficar escutando o que ela falava, e que mudava sempre.
Falava muito em Deus, mas como se estivesse nem muito longe nem muito perto demais [...]”. João
Guimarães ROSA. Lélio e Lina. In: No Urubuquaquá, no Pinhém. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2001. p.236.
175
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.76.
176
Id. Ibid. p.232.
117
que não precisa existir para haver. Não há conclusões, uma sistematização, há apenas
reflexões de uma narrativa mítica, talvez aos modos de Jó, lido por Segundo, com
tons de uma fala meio-teológica, que procura por respostas para aquilo que não se
responde, a existência humana em liberdade e em sofrimento, a vida do homem
humano, a travessia.
Conclusão
Se Antonio Candido
177
está certo e o Grande Sertão: Veredas tem tudo a
oferecer para quem o souber ler, dependendo do ofício ou da intenção do leitor, então
os dois caminhos de leitura proposto por este capítulo estão corretos. Tanto a
antropologia contida, quanto a meia-teologia de Riobaldo são caminhos possíveis.
Também está certo o próprio Riobaldo, que, em seu diálogo com o personagem
silencioso, o senhor doutor, estabelece um diálogo com quem, em tese, sabe mais
sobre o que ele está contando do que ele mesmo, o narrador: “conto ao senhor é o
que eu sei e o senhor não sabe; mas principalmente quero contar é o que eu não sei se
sei, e que pode ser que o senhor saiba”
178
. Assim, também em tese, é o leitor que
defini o que está sendo dito, de fato, pelo narrador, o sobre o que, o que está por
cima ou por baixo do assunto
179
.
De outra forma, se Candido continua certo, há sempre algo que é “traço
fundamental do autor”, Guimarães Rosa. E ele diz:
“Sem imodéstia, porque tudo isso de modo muito reles, apenas,
posso dizer a Você o que Você sabe: que sou profundamente,
essencialmente religioso, ainda que fora do rótulo estricto e das
177
“Na extraordinária obra-prima Grande Sertão: Veredas de tudo para quem souber ler, e nela
tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu
ofício; mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental do autor: a absoluta confiança na liberdade
de inventar.” Antonio Candido de MELLO e SOUZA. Tese e antítese: ensaios. São Paulo: T.A.
Queiroz. 2000. p.121.
178
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.245.
179
Miúdo e miúdo, caso o senhor quiser, dou descrição. Mas não anuncio valor. Vida, e guerra, é o
que é: esses tontos movimentos, o contrário do que assim não seja. Mas, para mim, o que vale é o
que está por baixo ou por cima o que parece longe. Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não
sabe; mas principalmente quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba.
Agora, o senhor exigindo querendo, está aqui que eu sirvo forte narração – dou o tampante, e o que for
– de trinta combates.” Id. Ibid. p.245.
118
fileiras de qualquer confissão ou seita; antes, talvez, como o
Riobaldo do “G.S: V.”, pertença a todas. E especulativo, demais.
Daí, todas as minhas, constantes, preocupações religiosas,
metafísicas, embeberem os meus livros. Talvez meio-
existencialista-cristão (alguns me classificam assim), meio neo-
platônico (outros me carimbam disto), e sempre impregnado de
hinduísmo (conforme terceiros). Os livros são como eu sou. [...]
Ora, Você já notou, decerto, que, como eu, os meus livros, em
essência, são “anti-intelectuais” – defendem o altíssimo primado de
intuição, de revelação, de inspiração sobre o bruxolear presunçoso
da inteligência reflexiva, da razão, a megera cartesiana. Quero ficar
com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e São
Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff
com Cristo, principalmente”
180
.
Se assim o for, então o Grande Sertão: Veredas não tem apenas para oferecer
à teologia uma leitura do que é antropologicamente contido, mas algo a mais. E
digo “apenas” porque não invalido essa forma de leitura. Ela é somente insuficiente
na leitura de Guimarães Rosa.
Quando entendo a vida como correspondência possível no diálogo entre
teologia e literatura na obra de Guimarães Rosa, especificamente o Grande Sertão:
Veredas, não invalido a leitura antropológica e social feita por outros autores
teólogos. Contudo, em Rosa, tendo a vida como vereda de correspondência, o que se
não é o que pode ser observável na literatura pela teologia, o que se é uma real
possibilidade de diálogo, onde o literário possui um fazer ou um dizer teológico que
pode dialogar com o fazer teológico da própria teologia. A literatura continua sendo
literatura e a teologia sendo teologia, mas, no diálogo, a literatura – nesse caso
especificamente Guimarães Rosa – possui uma “fala” teológica, mesmo que seja uma
fala baseada na intuição, na revelação e na inspiração, desprendida do bruxelar de
uma teologia institucionaliza, mesmo que seja um fazer teológico apenas meio-
teológico.
180
João Guimarães ROSA; Edoardo BIZZARRI. João Guimarães Rosa: Correspondência com seu
tradutor Italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.90. Correspondência de
João Guimarães Rosa – 25 de Novembro de 1963.
119
III. A VEREDA DA PALAVRA: QUESTÕES DE LINGUAGEM EM
RELIGIÃO, TEOLOGIA E LITERATURA
“[...] o poeta é coisa leve, e alada, e sagrada, e não pode
poetar até que se torne inspirado e fora de si, e a razão não esteja
mais presente nele. Até conquistar tal coisa, todo homem é incapaz
de poetar e proferir oráculos. [...] o deus me parece demonstrar a
nós, para que não tenhamos dúvida, que não são humanos esses
belos poemas nem dos homens, e que os poetas não são nada mais
que intérpretes dos deuses, estando tomados, cada um, por aquele
que o toma. Para demonstrar isso, o deus, de caso pensado, cantou
por meio do poeta mais banal a mais bela canção” (Sócrates)
1
.
Introdução
Esta segunda vereda de leitura entre teologia e literatura, que tomo para a
leitura de João Guimarães Rosa, a Palavra como Vereda, por sua complexidade e
volume, precisou ser atenuada, pois poderia tomar diversos caminhos na relação
entre palavra e diálogo entre teologia e literatura.
Primeiro, seria possível aprofundar-se numa leitura da relação entre a palavra
sagrada e a literatura profana, passando atentamente por autores como Harold Bloom
e Northrop Frye. No entanto, tal caminho demandaria mais uma discussão teórica do
que propriamente uma leitura de Guimarães Rosa. De outra forma, seria possível
uma leitura de relações textuais entre a literatura sagrada e questões próprias da
religião dentro da literatura rosiana, utilizando-se e fazendo paralelos textuais. Mas
isso também demandaria um volume muito grande de produção, já que tanto a obra
de Rosa quanto as fontes religiosas onde o autor “bebeu” são algo gigantesco. Dessa
forma, como caminho para a leitura de Rosa, tomando a palavra como ponto de
referência, a correspondência, optou-se por outro caminho: primeiro, o da
apresentação de questões de linguagem na religião e na literatura, mais como forma
1
PLATÃO. Sobre a inspiração poética (Íon) & Sobre a mentira (Hípias Menor). (tradução do grego
de André Malta). Porto Alegre: L&PM, 2007. pp.33e35.
120
de limitação de conceitos; depois, caminhou-se pelas relações de textos, os textos
sagrados e profanos em Guimarães Rosa, com a apresentação de um palimpsesto
exemplo; até se chegar às veredas de influência do autor, que serviram como leitura
para a sua obra. Assim, é isso o que segue.
1. Questões de Linguagem: literatura e religião
A primeira preocupação em relação às questões de linguagem está na
delimitação daquilo que se quer dizer com os termos próprios deste diálogo: teologia
e literatura. Deu-se à literatura, desde o início da produção deste texto, de forma bem
geral, a compreensão de belas letras, o que certamente não explica definitivamente o
conceito de literatura nem limita esse conceito dentro da presente tese, que a
literatura está para além dessa limitação conceitual
2
. com relação à teologia, o
caminho se deu em duas diferentes direções: 1. teologia como produção de um saber
da igreja sobre o divino, sistematizada e dogmatizada; e 2. teologia como reflexão
humana sobre o divino, dada num espaço mais aberto e menos vinculada à igreja, à
dogmática ou à sistematização. No entanto, para além, outros termos também passam
a ser usados no diálogo entre teologia e literatura, como os termos “religião” e
“sagrado”. De forma a ampliar e a criar outros termos e novas problematizações,
como os termos “religião e literatura”, “texto religioso” e “texto secular”, “texto
sagrado” e “texto profano”, “linguagem literária” e “linguagem religiosa”. Desse
modo, nas relações do diálogo entre teologia e literatura no entremeio da
linguagem – literatura e religião se encontram de forma definitiva especificamente no
texto, ou melhor, na palavra, tanto na sagrada como na profana.
Religião e Sagrado: delimitação de conceitos
Segundo Severino Croatto, o texto ou a palavra, como prefiro e anuncio, é a
última das formas no desenvolvimento da linguagem religiosa, caminho único para a
2
Não retomo aqui as discussões sobre tal assunto, pois acredito que os dois primeiros capítulos da tese
dão conta de tal problematização. Também não detalho as compreensões de teologia pelo mesmo
motivo. O que aqui se busca é tratar dos conceitos religião e sagrado, o que também não se busca com
aprofundamento, já que esse não é objetivo da tese.
121
interpretação da religião, segundo o autor
3
. Croatto, em sua fenomenologia da
religião, caminha do mbolo, que ele compreende como linguagem básica da
religião
4
, ao mito, depois, do mito ao rito e, por fim, do rito à doutrina, o texto em si.
Ele entende também como o mito tenta ordenar e estruturar a realidade, dando ao
homem religioso uma significação do caos ao cosmos que a formulação e
organização de textos significadores (textos que recolham as tradições, os mitos, a
instituição dos ritos, as orações e as leis básicas) logo, como primeiro fenômeno,
tornaria esses textos em textos fundantes e sagrados
5
. O texto símbolo se torna texto
sagrado, sacralizando também a língua e o mediador (escritor), além de possibilitar e
fomentar a doutrina e a ética
6
.
Também para Rudolf Otto, a compreensão do sagrado atinge seu ponto mais
“evoluído” na configuração do texto, que está na ética e na doutrina como afirmação
do elemento racional do sagrado. Mas, segundo o autor, é o elemento não-racional
que “revela” de forma mais completa a experiência humana com o divino. Ele diz
que “o sagrado é antes de mais nada, interpretação e avaliação do que existe no
domínio exclusivamente religioso”, que passa por categorias racionais, como a ética,
mas que se de forma mais completa e complexa naquilo “que se subtrai a tudo o
que nós chamamos de racional”, é algo “completamente inacessível à compreensão
conceitual, e constitui algo inefável”
7
. E esse algo, para Otto, é sempre o algo que
está fora, fora de mim, é o que eu não compreendo, é um mysterium; e que por eu
não compreender tenho medo (o sentimento primeiro
8
), é um mysterium tremendum;
3
Para ele, a experiência do sagrado se faz visível e analisável na linguagem que, como elemento
aparente, procura expressar essa experiência, a experiência do humano com o que está fora dele e
além de sua realidade e compreensão. Severino CROATTO. As linguagens da experiência religiosa:
uma introdução à fenomenologia da religião. São Paulo: Paulinas, 2001. pp.41ss.
4
O símbolo é a linguagem básica da experiência religiosa. Funda todas as outras. Tem um valor
essencial que é necessário destacar mais uma vez: o símbolo faz pensar; o símbolo diz sempre mais do
que diz. É a linguagem do profundo da intuição, do enigma. Por isso é a linguagem dos sonhos, da
poesia, do amor, da experiência religiosa”. Id. Ibid. p.118.
5
Cf. Id. Ibid. pp.398-399.
6
Cf. Id. Ibid. pp.400ss.
7
Rudolf OTTO. O sagrado: um estudo do elemento não-racional na idéia do divino e a sua relação
com o racional. (tradução: Prócoro Velasques Filho). São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista,
1985. p.11.
8
Otto entende que Schleiermacher estava errado quando assinalou como sentimento religioso o
sentimento de dependência. Em Schleiermacher “o sentimento religioso seria imediato e à primeira
vista um sentimento de si mesmo, uma determinação particular do eu, o sentimento de minha
dependência. Somente por meio de inferência é que se pode concluir que esse sentimento é causado
por algo externo a mim, que se encontraria na divindade em si. Mas esta concepção é contrária aos
dados psíquicos. O sentimento de ser criatura é, pelo contrário, um elemento subjetivo concomitante;
por assim dizer, ele é sombra de um outro sentimento, o sentimento do medo que, sem nenhuma
122
mas que, ao mesmo tempo que me causa medo, seduz e me atrai (o mirum), pois
entendo que sou menor em relação ao que está fora, sou dependente e criatura, e isso,
para Otto, na religião, que, “em certos casos, assume a manifestação do sagrado”
9
, é
um a priori:
“A religião não está nem sob a dependência do telos nem do ethos
e não vive de postulados. O que nela de não-racional possue
[sic], por sua vez, origem independente e mergulha diretamente as
suas raízes nas profundezas ocultas do espírito”
10
.
Tudo isso estaria ligado a uma não-racionalidade que pertence ao universo da
religião, que só se explica ou se analisa a partir de uma observação do que é expresso
dentro e a partir dessa relação entre o humano e o divino, a expressão em linguagem,
o que Eliade chama de hieorofania
11
. Mas essa expressão [a linguagem] nem sempre
é racional. Para Otto, “a religião não se esgota em anunciados [sic] racionais”
12
, pelo
contrário, é no não-racional, elemento que teima hoje em resistir mesmo dentro de
religiões altamente racionalizadas (como o cristianismo), que a religião e o sagrado
se fazem experimentáveis e compreensíveis: “não se pode tentar compreender o que
ela [a religião] é a não ser tentando chamar a atenção do ouvinte para a mesma e
fazer-lhe encontrar em sua vida íntima o ponto onde ela surge e se torna então
consciente”
13
. E isso, para usar uma linguagem mais rosiana, estaria mais ligado ao
“primado da intuição” do que à “megera cartesiana”
14
.
dúvida, relaciona-se diretamente a um objeto fora de mim. Este objeto é o objeto numinoso”. Id. Ibid.
p.15.
9
Id. Ibid. p.164.
10
Id. Ibid. p.115.
11
Para Eliade, é a compreensão da relação do homo religiosus com o sagrado, a hierofania, que
possibilita a compreensão da religião como religião na existência humana, que busca pela organização
do Caos em Cosmos. “A fim de indicarmos o ato da manifestação do sagrado, propusemos o termo
hierofania, [...] o algo de sagrado que se nos revela”. Mircea ELIADE. O sagrado e o profano: a
essência das religiões. (tradução: Rogério Fernandes). São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.17.
12
Rudolf OTTO. O sagrado: um estudo do elemento não-racional na idéia do divino e a sua relação
com o racional. (tradução: Prócoro Velasques Filho). São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista,
1985. p.09.
13
“Id. Ibid. p.12. Para Otto, quem experimentou a religião sabe o que é religião, do contrário “é
impossível conversar sobre religião” com quem não experimentou a religião, com “um tal homem”.
Id. Ibid. p.13.
14
João Guimarães ROSA; Edoardo BIZZARRI. João Guimarães Rosa: Correspondência com seu
tradutor Italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.90. (Correspondência de
25 de Novembro de 1963, enviada por João Guimarães Rosa).
123
Segundo Friedrich Schleiermacher, o teólogo pai da teologia protestante
moderna, religião seria basicamente isso, intuição. Na sua apologia
15
, Schleiermacher
tenta demonstrar que religião é, primeiro, uma ‘intuição’ do universo. Por isso, para
o autor, toda tentativa de “penetrar mais profundamente na natureza e na substância
do todo”
16
, e toda tentativa de meditar acerca do Infinito e do ser de Deus, não
pertence ao religioso
17
, pois o religioso apenas intui, não organiza, nem melhora.
Isso, para Schleiermacher, é papel da metafísica e da moral, que, em algum momento
da história, capturou a religião. Depois, em segundo lugar, religião é a compreensão
humana de sua finitude em relação ao Universo e da necessidade de relação desse
humano com esse Universo, o sentimento de dependência, o que, acredito, se faz
muito perto daquilo que Paul Tillich chama de “preocupação última”: “tudo aquilo
que preocupa o homem de forma última se torna deus para ele
18
. Isso seria religião,
o lugar último para aquilo que fracassou como possibilidade e início de significações
mais fortes diante da realidade que se apresenta. Segundo Rubem Alves, a teia de
símbolos, o testemunho das coisas ainda ausentes e a saudade do que ainda não se
fez
19
.
Na religião, entende Rubem Alves, o humano se organiza e organiza seu
mundo numa linguagem que interpreta
20
e sentido (exprime de forma
organizadora
21
) ao como o humano vive em relação com seu mundo. Mas não
isso, ela também confere força, pois ela se relaciona com questões de poder
22
, diz
Riobaldo: “[...] não ache que a religião afraca”
23
. Além de possibilitar fuga: “por
mais alienada que seja uma dada experiência religiosa, ela é sempre um protesto
contra as condições de existência”
24
. É a forma do humano dizer sobre aquilo que lhe
escapa, sobre aquilo que não pode ser dito.
15
Friedrich SCHLEIERMACHER. Sobre a religião. (tradução: Daniel Costa). São Paulo: Novo
Século, 2000.
16
Paul TILLICH. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX. (tradução: Jaci
Maraschin). São Paulo: ASTE, 2004. p.36.
17
Cf. Id. Ibid. pp.36-37.
18
Paul TILLICH. Teologia sistemática. (tradução: Getúlio Bertelli). São Paulo / São Leopoldo:
Paulinas / Sinodal, 1987. p.180.
19
Rubem ALVES. O que é religião? São Paulo: Edições Loyola, 1999. pp.24-25.
20
Id. O enigma da religião. Petrópolis: Vozes, 1975. p.70.
21
Id. Ibid. p.25.
22
Id. Ibid. p.92. Apud. Emile DURKHEIM.
23
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.39.
24
Rubem ALVES. O que é religião? São Paulo: Edições Loyola, 1999. p.100.
124
Palavra, religião e literatura
Na literatura, dentro das possibilidades para esta leitura da “palavra” como
vereda de correspondência, vê-se, em princípio, que algumas das discussões também
passam por uma preocupação de linguagem, que, no texto literário, por sua força de
arte e de produção representativa, inicia-se na compreensão da estética e da
hermenêutica, o que, por sua vez, poderia, desde esse início, conduzir as discussões
em duas diferentes direções: 1. Primeiro, sob dois opostos: um pelo lado do contexto
artístico e literário, com a compreensão de religião exclusivamente como dogma e
não mais como experiência ou experimentação humana da vida e de representação do
mundo, como aconteceu, segundo aponta Antonio Magalhães, nas discussões entre
teologia e literatura no contexto europeu
25
; e, do outro lado, mais “científico”
(sociologia, filosofia, psicologia e teologia), a compreensão de literatura como “coisa
segunda” dentro da produção do saber humano, literatura mais como expressão
estética do que como hermenêutica:
“A literatura, ao ser colocada como vel inferior do conhecimento
do mundo, das coisas e das relações, foi entendida em caráter
associativo, consciente ou inconscientemente, de forma semelhante
como a natureza foi entendida em relação à razão, o corpo em
relação ao espírito, a seita em comparação com a Igreja e o
sentimento em comparação com a análise. Nas questões éticas, ela
significaria permanentemente o perigo de fruição estética, de
escapismo lúdico, de devaneio artístico, sem se ocupar com as
dimensões mais profundas das relações envolvidas no objeto
analisado e na forma como ele poderia ser, da melhor maneira,
desvelado”
26
.
2. Segundo, em correspondência literária: a compreensão de que a linguagem
literária em sua força de arte, na estética e na fala hermenêutica, poderia ser uma
fonte para leituras do imaginário religioso e das manifestações do sagrado nesse
imaginário, ou mesmo, por uma outra vereda, a literatura como uma expressão
mesma do sagrado. Nesse caso a literatura poderia se tornar “literatura religiosa”,
como afirmação dos dogmas ou, de outra forma, tornar-se literatura em concorrência,
como expressão melhor do sagrado, seja em sua intertextualidade (palimpsesto),
25
Cf. Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura
em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. p.45.
26
Id. Ibid. p.69.
125
como reafirmação, ou na releitura ou desleitura dos textos sagrados por excelência.
Diz Magalhães:
“Problematizando a relação com a teologia, temos o caso da
literatura diante de duas possibilidades: ou se tornando em litera-
tura religiosa, servindo de narrativa humana das narrativas divinas
da revelação, ou se acomodando ao papel de engano ou de narrativa
concorrente ao projeto da tradição como proposta de revelação
estabelecida e fechada”
27
.
No entanto, o que não se tenciona com essas primeiras afirmações é caminhar
na direção de uma leitura da arte, especificamente da arte literária, que entenda e
diga que a arte expresse melhor o transcendente do que a própria religião, dizer que a
expressão do sagrado pela arte se faz mais forte do que a expressão do sagrado na
religião. Não é também intenção transformar a estética, seja ela de outras artes ou da
própria literatura, estética literária, em “um outro nome para as questões últimas
desenvolvidas pela teologia”
28
, dando-lhe outra e mais força. Também, por outro
lado, não se busca nem se buscará defender o sagrado como elemento exclusivo
do religioso ou, pelo menos, como sendo maior ou mais forte do que a mesma
expressão na arte, assim como não se entendeu, nem se defendeu o teológico como
elemento exclusivo da igreja, do magistério, dos concílios ou das sistemáticas e
dogmáticas. Entendo, primeiro, que o sagrado, assim como o teológico, não é
contido, mas contém.
Desse modo, contido pelo sagrado sagrado pensado a partir de Rudolf Otto
e Mircea Eliade, como elemento não-racional e racional
29
na formação do
pensamento humano entende-se que a “palavra” expresse esse sagrado como
linguagem humana, tanto no campo da própria religião, a religião institucionalizada,
que, por fim, segundo Otto, vai levar o sagrado para conceitos mais racionais
30
,
quanto no campo da própria cultura, de uma religiosidade que, sem estar desligada,
27
Id. Ibid. p.69.
28
Cf. Id. Ibid. p.151.
29
“Propomo-nos apresentar o fenômeno do sagrado em toda a sua complexidade, e não apenas no que
ele comporta de irracional. Não é a relação entre os elementos não-racional e racional da religião que
nos interessa, mas sim o sagrado na sua totalidade”. Mircea ELIADE. O sagrado e o profano: a
essência das religiões. (tradução: Rogério Fernandes). São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.17.
30
Cf. Rudolf OTTO. O sagrado: um estudo do elemento não-racional na idéia do divino e a sua
relação com o racional. (tradução: Prócoro Velasques Filho). São Bernardo do Campo: Imprensa
Metodista, 1985. p.121.
126
fica à parte dessa religião institucionalizada, expressa, dentre outras formas, também
no elemento estético das belles letres. E é a palavra, falada e escrita, o elemento
central nessa lógica. A palavra sobre o sagrado torna-se palavra sagrada.
Tudo se pela palavra. Segundo Antonio Magalhães, a compreensão se
através das palavras que estão no nosso mundo, “palavras são as coisas e as pessoas e
pelas palavras criamos o mundo, ordenamos o caos e damos nomes novos às
situações e pessoas”
31
:
“É pela fé [diria o autor aos hebreus] que compreendemos que os
mundos foram organizados por uma palavra de Deus. Por isso é
que o mundo visível não tem sua origem em coisas manifestas”
(Hebreus 11:03).
Mas, quando saímos da Palavra Sagrada por excelência, a Bíblia, discussão a ser
feita e aprofundada mais à frente, a palavra perde um pouco de sua força significativa
e significadora. Ela não faz mais parte de uma lógica religiosa institucionalizada e
fixada. No entanto, quando pensamos que a Palavra Sagrada foi, antes de ser sagrada,
apenas palavra, podemos compreender, seguindo Northrop Frye
32
, que a palavra
se tornou sagrada, porque antes era apenas palavra, significante e significadora, tenha
sido ou ainda seja ela oral ou escrita, mítica ou bíblica, doutrinal ou literária:
Talvez não exista essa entidade chamada “a bíblia” e o que assim
se chama não passe de uma mixórdia inconsistente e confusa de
textos precariamente definidos. [...] Ela existe, quando não mais,
porque foi obrigada a existir. Mas, apesar de todas as razões
externas, deve haver alguma razão interna, mesmo para uma
existência compulsória. [...] Ela começa como começo do tempo,
na criação do mundo; e termina com o término do tempo, no
Apocalipse. No meio do caminho ela resenha a história humana, ou
o aspecto da história que lhe interessa, sob os nomes simbólicos de
Adão e Israel”
33
.
Tomando isso como base, pode-se entender que quando a palavra é lida dentro da
literatura, ela é forte não por ser, primeiro, sagrada, pois a ela não foi dado essa forte
31
Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em
diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. p.158.
32
Northrop FRYE. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. (tradução de Flávio Aguiar). São
Paulo: Boitempo, 2004. 293p.
33
Id. Ibid. p.11.
127
caracterização, mas por ser, primeiro, palavra. Para Suzi Frankl Sperber, “a palavra é
sagrada e evoca o sagrado”
34
. No vínculo entre a poesia e o sagrado
35
, poderíamos
dizer, entre a literatura e a religião, respeitando os conceitos a partir do que fôra
dito, encontra-se a palavra, que, na literatura, é evocadora, potencializadora, e que
formula sentido, como no mito
36
e na religião, para a vida do sofrente. Por isso ela é
também palavra sagrada:
“Todos estes motivos se referem à palavra de força sagrada, que
leva à iniciação: o fortalecimento da alma para enfrentar os perigos
da viagem e, depois, para ter acesso ao reino dos mortos sem
perigos para si, até chegar à plenitude, que é também a recuperação
(ou manutenção) da identidade identidade que vem de uma
aliança com o sagrado [a autora se refere ao Livro dos Mortos do
Antigo Egito e ao conto do Chapeuzinho Vermelho, e o faz
comparando um ao outro]. A “palavra sagrada e de potência [a
autora fala de Freud]” precisa ser reconhecida, aceita, vivida e
repetida. Ela revela ter um nível metafísico (religioso) e ao mesmo
tempo um nível de mera enunciação, que é o da materialidade da
palavra”
37
.
Esse sentido evocador da literatura, de vocação para a vida, anunciado
também por Reginaldo Júnior em sua tese de doutorado
38
, de produção de sentido
para a vida, que antes era elemento exclusivo do mito religioso, segundo Frye, passa
a ser a força da palavra literária, da palavra literária sagrada, que se faz sagrada não
por força de excelência, mas por força de sentido. Suzi Frankl Sperber ainda diz:
“não é necessário nenhum artifício ou esforço para atribuir valor sagrado à palavra de
potência [a uma literatura significante e significadora]. Ele existe per se
39
. Com isso
não se quer privilegiar a literatura como manifestação do sagrado, pela palavra. Mas
começar a dizer que a palavra, como linguagem humana, na literatura, quando se faz
34
Suzi Frankl SPERBER. Sagrado, poesia e efabulação. In: Eduardo GROSS (organizador).
Manifestações literárias do sagrado. Juiz de Fora: UFJF, 2002. p.86.
35
Id. Ibid. p.86.
36
Leituras em Mircea Eliade, o Sagrado e o profano e Mito e realidade, talvez possam servir para
uma melhor compreensão daquilo que se propõe por sagrado e mito no presente texto, no sentido de
limitação dos conceitos e também daquilo que se está propondo.
37
Suzi Frankl SPERBER. Sagrado, poesia e efabulação. In: Eduardo GROSS (organizador).
Manifestações literárias do sagrado. Juiz de Fora: UFJF, 2002. p.95.
38
Cf. Reginaldo José dos SANTOS JÚNIOR. A plausibilidade da interpretação da religião pela
literatura: uma proposta fundamental em Paul Ricouer e Mikhail Bakhtin exemplificada em Jo
Saramago. São Bernardo do Campo: UMESP, 2008. (Tese de Doutorado). pp.81ss.
39
Suzi Frankl SPERBER. Sagrado, poesia e efabulação. In: Eduardo GROSS (organizador).
Manifestações literárias do sagrado. Juiz de Fora: UFJF, 2002. p.95.
128
sagrada no sentido exposto acima, torna-se correspondência entre teologia e
literatura, a segunda vereda que se espera para a tese.
2. Texto sagrado e literatura profana em João Guimarães Rosa
No diálogo entre teologia e literatura, no que diz respeito à relação entre
textos, os religiosos e os seculares ou os sagrados e os profanos, o caminho de
relação pode se dar em três diferentes aspectos, ligados entre si, mesmo assim
diferentes: o palimpsesto, a citação direta e a influência.
Como já citados aqui, quando se pensa em palimpsesto no diálogo entre
teologia e literatura, toma-se como referência Eli Brandão e Salma Ferraz, com
pesquisas em João Cabral de Melo Neto e José Saramago. Contudo, em Guimarães
Rosa não é possível caminhar na direção de observações de palimpsestos como feito
por esses autores, como se verá mais à frente.
Em Eli Brandão e Salma Ferraz, como se no trabalho de ambos, a
correspondência se estabelece entre os textos, o texto sagrado que é relido e re-
escrito no texto profano. Textos que são re-escritos ou como contextualização,
mesmo que de forma não tão proposital assim, como no caso de João Cabral de Melo
Neto, ou como desconstrução, desevangelho, como no caso de Saramago. Agora e
eu acredito que isso é pressuposto nesses autores se o palimpsesto ou a
intertextualidade puder se estabelecer a partir também de outros parâmetros, onde
não os textos se correspondam, mas também as idéias e as lógicas envolvidas nos
textos, seria possível compreender essas mesmas relações de intertextualidades em
Guimarães Rosa; o que também se aplicaria àquilo que entendo como citações
diretas
40
. O texto, apesar de não estar por palimpsesto ou literalmente transcrito,
40
Salma Ferraz faz essas observações com relação às obras de José Saramago, mostrando nos textos
do autor textos retirados das escrituras. Salma FERRAZ. As faces de Deus na obra de um ateu: José
Saramago. Juiz de Fora: UFJF; Blumenau: Edifurb, 2003. 234p. Evandro César Cantária da Silva, em
sua dissertação de mestrado, faz, apesar de sua preocupação principal não ser essa, observações
quanto ao uso que Clarice Lipector faz, em seu judaísmo encalacrado, de textos bíblicos que, em
alguns casos, são citados literalmente. Evandro César Cantária da SILVA. O judaísmo encalacrado:
mística e religião em a hora da estrela, de Clarice Lispector. São Bernardo do Campo: UMESP,
2006. 146p. (Dissertação de Mestrado). Em projeto em andamento, que provavelmente no final desta
tese também já estará finalizado, Claudinei Fernandes Paulino da Silva, procura ler em Fiódor
129
ipsis litteris, ele é identificável, tanto como texto, na relação de intertextualidade,
quanto como idéia, a partir da influência.
2.1. Palimpsestos: um pequeno exemplo
Em “Ave, Palavra”, o conto “Fita Verde no Cabelo”
41
, que tem como
subtítulo “Nova velha estória”, é o que melhor evoca, segundo minhas leituras, a
compreensão de palimpsesto em Guimarães Rosa a partir da compreensão de
palimpsesto como visto anteriormente, um texto que logo identifica o outro texto
42
.
O conto, pelo título e também pelo início da narrativa, dispensaria a apresentação do
texto primeiro que é evocado por Rosa.
Fita Verde no Cabelo: “Havia uma aldeia em algum lugar, nem
maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e
mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e
cresciam. Todos com juízo, suficientemente, menos uma
meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com
uma fita verde inventada no cabelo. Sua mãe mandara-a, com um
cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase
igualzinha aldeia. Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo
era uma vez”
43
.
Chapeuzinho Vermelho: “Era uma vez uma doce menininha que
conquistava o amor de todos que a conheciam, mesmo de quem
a havia visto uma vez. Ela tinha uma velha avozinha que lhe
desejava tudo de bom, de tanto que a amava. Certa vez, a avó lhe
mandou um pequeno manto com um capuz de veludo vermelho que
lhe caiu tão bem que ela ganhou o apelido de Chapeuzinho
Vermelho. Um dia, sua mãe a chamou e disse: “Venha cá,
Chapeuzinho. Quero que visitar a sua avó e leve um pedaço de
bolo e uma garrafa de vinho para ela, pois está muito fraca e isso
vai lhe fazer bem. Mexa-se e apronte-se antes que o tempo fique
quente demais, e direito pelo seu caminho, comporte-se bem e
Dostoiévski, não como objetivo principal de sua dissertação, textos dos evangelhos que se encontram
na obra desse autor russo do século XIX.
41
João Guimarães ROSA. Fita verde no cabelo (Nova velha estória). In: Ave, Palavra. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.110-112.
42
Em Saramago, a partir do trabalho de Salma Ferraz, logo se identifica o texto religioso que serve
como leitura e re-escritura do literato, é o Evangelho. em João Cabral de Melo Neto, em “Morte e
vida Severina”, na pesquisa e obra de Eli Brandão, o palimpsesto não é identificável muito
rapidamente, mas se percebe e se sabe, os palimpsestos são as narrativas que envolvem a vida de Jesus
de Nazaré. É isso o que se quer dizer com percepção do palimpsesto.
43
Id. Ibid. p.110.
130
com discrição; e não corra para não cair e quebrar a garrafa, senão
a sua avó vai ficar sem vinho”
44
.
O conto rosiano, diferente do “Chapeuzinho Amarelo” de Chico Buarque
45
,
que parece ser mais uma paródia da primeira estória, uma inversão, amplia e
aprofunda, como uma re-escritura mais forte do que o texto primeiro, os sentidos
evocadores da primeira estória
46
. “Chapeuzinho Vermelho”, nas versões de Charles
Perrault e dos Irmãos Grimm, que amenizam o final trágico da estória, apesar de não
possuir diretamente uma literariedade sagrada, evocam sentidos de tentação, feitas
pela figura monstruosa e meio diabólica do lobo; sentidos de escolha, caminho certo
e caminho errado; e, talvez, de salvação, o herói que retira as vítimas boas e
inocentes do ventre da morte.
“Um caçador que havia saído a caçar com a sua espingarda,
passando por ali e pensou: “Como ronca essa velha! Vou entrar e
ver que está acontecendo.” Então ele entrou no quarto e quando se
aproximou da cama, viu o lobo deitado. “Ora, ‘seu’ velho pecador”,
disse o caçador, “não é que finalmente te encontrei? Estou te
procurando há muito tempo, Senhor Lobo.” Ele ia erguendo a
espingarda quando deu pela falta da velha e imaginando que o lobo
a poderia ter engolido, lembrou-se de que ainda era possível salvá-
la. Resolveu então não atirar e, pegando uma tesoura, abriu o
estomago do lobo adormecido. Qual não foi a sua surpresa quando
ele viu o rosto Chapeuzinho Vermelho espiar para fora ao primeiro
corte, e quando o abriu mais, ela saltou para fora exclamando:
“Puxa, fiquei tão assustada. Estava terrivelmente escuro no
estomago do lobo!” Depois eles ajudaram a velha avozinha, que
estava viva e intata, a sair, mas ela mal conseguia respirar. Quando
o lobo acordou, era tarde demais para salvar a própria vida. Ele
caiu de novo na cama e morreu, e o caçador arrancou a sua pele.
44
Jacob GRIMM. Contos de fadas / Irmãos Grimm. (tradução: Celso M. Paciornik). São Paulo:
Iluminuras, 2005. p.267.
45
“Amarelada de medo. / Tinha medo de tudo, aquela Chapeuzinho. / não ria. / Em festa não
aparecia. / Não subia escada nem descia. / Não estava resfriada, mas tossia. / Ouvia conto de fada e
estremecia. / Não brincava mais de nada, nem de amarelinha. / Tinha medo de trovão. / Minhoca, pra
ela, era cobra. / E nunca apanhava sol, porque tinha medo da sombra. / Não ia para fora pra não se
sujar. / o tomava banho pra não descolar. / Não falava nada pra não engasgar. / Não ficava em pé
com medo de cair. / Então vivia parada. / Deitada, mas sem dormir e com medo de pesadelo. / Era a
Chapeuzinho Amarelo. / E de todos os medos que tinha o medo mais que medonho era o medo do tal
do LOBO. [...]. Chico BUARQUE. Chapeuzinho Amarelo. (Ilustrações de Giraldo). Rio de Janeiro:
Editora José Olympio, 2001. 36p.
46
“O correlacionamento de dois elementos narrativos não idênticos pertencendo a dois relatos
diferentes redunda em reconhecer-se a existência de uma disjunção paradigmática que, operando no
interior de uma categoria semântica dada, faz com que se considere o segundo elemento da narrativa
como a transformação do primeiro”. Suzi Frankl SPERBER. Caos e cosmos: leituras de Guimarães
Rosa. São Paulo: Duas Cidades, 1976. 210p. Apud. A. J. Greimas. Elementos para uma teoria da
interpretação do relato mítico. In: Communications. Nº 08, p.31.
131
Depois disto, todos se sentaram, muito contentes, beberam o vinho
e comeram o bolo que Chapeuzinho Vermelho havia trazido, e
depois o caçador levou a menininha sã e salva para casa. “Puxa”,
pensou ela, “nunca mais sairei de meu caminho para andar pelo
mato quando minha mãe me proibir””
47
.
no conto de Rosa não tentação e nem destino, “o lobo nenhum,
desconhecido nem peludo”
48
[...], “ela mesma resolveu escolher tomar este caminho
de cá, louco e longe, e não o outro, encurtoso”. A escolha também não é feita pelo
caminho mais fácil, mas sim pelo caminho mais “interessante” ou o menos
“ajuizado”, descuidado, um entre os muitos caminhos possíveis da vida, o que, desde
já, mostra os caminhos escolhidos pelo autor em sua escritura.
“Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também
vindo-lhe correndo, em pós. Divertia-se com ver as avelãs do chão
não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem
em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeiínhas
flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas
passa. Vinha sobejadamente”
49
.
Agora é o fim da estória que carrega a maior força evocadora do conto. Sem
tentação; sem bem e inocência (a menina), sem mal e horror (o lobo); sem duas
escolhas, que as escolhas são muitas; sem desvio do caminho; e, por fim, sem
consequência, Rosa devolve ao conto um final trágico, mas um trágico pela
tragicidade da própria existência. Não há, como dito, consequência, mas a
“acontecência” da vida como ela é.
O verossimilhante no conto de Rosa é mais forte. O texto evoca questões
sobre a vida e a inexistência da vida, ou mais, sobre o desapercebido (como se fosse
ter juízo pela primeira vez) diante do drama da vida, o sofrimento e a morte. É o
encontro da inocência com a dor. E, por não saber como reagir, o desapercebido
lembra do medo e do lobo, a escritura primeira:
47
Jacob GRIMM. Contos de fadas / Irmãos Grimm. (tradução: Celso M. Paciornik). São Paulo:
Iluminuras, 2005. pp.269-270.
48
“Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu os lenhadores, que por lenhavam; mas o lobo
nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo. Então, ela,
mesma, era quem se dizia: Vou à vovó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a
mamãe me mandou.” A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa
que vê, e das horas, que a gente não vê, que não são”. João Guimarães ROSA. Fita verde no cabelo
(Nova velha estória). In: Ave, Palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.110.
49
Id. Ibid. p.111.
132
Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe
respondeu, quando ela, toque, toque, bateu:
– “Quem é?"
“Sou eu...” – e Fita-Verde descansou a voz. – “Sou sua
linda netinha, com cesto e pote, com fita verde no cabelo, que a
mamãe me mandou.”
Vai, a avó, difícil disse: – “Puxa o ferrolho de pau da porta,
entra e abre. Deus te abençoe.”
Fita-Verde assim fez, e entrou e olhou.
A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar
agagado e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo.
Dizendo: – “Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de
mim, enquanto é tempo.”
Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se
de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo
atada; e estava suada, com enorme fome de almoço. Ela perguntou:
“Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos
tão trementes!”
– “É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha
neta..." – a avó murmurou.
– “Vovozinha, mas que lábios, ai, tão arroxeados!”
– “É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha
neta...” – a avó suspirou.
– “Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse
rosto encovado, pálido?”
– “É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha
netinha...” – a avó ainda gemeu.
Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela
primeira vez.
Gritou: – “Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!”
Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente,
a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo
50
.
O palimpsesto se estabelece entre as estórias, a da “Chapeuzinho Vermelho”
e da “Fita Verde no Cabelo”, como visto. Mas também se estabelece se o que se
propõe ao palimpsesto serve a partir das relações de idéias, mesmo das idéias
religiosas de que em cada texto se dispõe. “Chapeuzinho Vermelho” e “Fita Verde
no Cabelo” dizem mais do que seus textos podem, aparentemente, dizer. Nas
“entrelinhas” as “morais das estórias”, que, em cada uma, apresenta um universo
de influências diferenciado e plural, que, por seu tempo, junto ao texto em si,
também se entrecruza em diálogo.
50
Id. Ibid. pp.111-112.
133
2.2. Citações Diretas e Influências: leituras intertextuais de Guimarães Rosa
De outra forma – e é isso, no diálogo entre teologia e literatura, que julgo, em
Rosa, ser o mais importante estão as citações e as influências. Caso se pense em
palimpsesto de uma forma restrita, como um texto que logo identifique o outro, então
o palimpsesto não conta de observações no caminho de diálogo na vereda da
palavra entre a teologia e a literatura na obra rosiana, como visto, até porque o
palimpsesto que apresentei como exemplo nem é de um texto religioso, pertencente
ao espaço da religião. Da mesma forma, se se pensar em citações apenas como
referências diretas a textos religiosos, pode-se dizer que as citações diretas desses
textos, como da Bíblia por exemplo, não dão conta desse diálogo em Rosa, a
porque na literatura rosiana isso não se faz com muita frequência
51
. Mas se a
compreensão de palimpsesto e de citações diretas puder ser ampliada, chegando às
margens das influências, então a palavra, a vereda segunda desta tese, encontra um
lugar no diálogo entre teologia e literatura em Guimarães Rosa.
Em Rosa, as influências como talvez em todo o grande escritor ditam o
caminho da própria escrita e revelam o que, em tese, queria ser dito pelo escritor em
sua obra. Ninguém está isento de influências: “um poema, uma peça ou um romance
é necessariamente compelido a se formar através de obras precursoras”
52
. Em
verdade é graças às influências de escritura e re-escritura que a literatura se faz:
“A grande obra literária é sempre re-escritura ou revisão, e está fundada sobre uma
leitura que abre espaço para o “eu”, ou que trabalha de tal forma a reabrir velhas
51
Apenas como exemplo cito em Ave, Palavra, o conto “Os Abismos e os Astros”, onde Rosa cita o
Salmo 126:01 (Bíblia Católica) 127:01 (Bíblia Protestante): “Se o Senhor não guarda a cidade, em vão
vigia a sentinela”. No mesmo conto ele também cita diretamente Heráclito: “A harmonia oculta vale
mais que a harmonia visível”. Id. Os abismos e os astros. In: Ibid. pp.89-91. Outra referência à Bíblia
é feita em Tutaméia, no conto “Grande Gedeão”: “Mas o redentorista bradava fé, despejada, glosava
os fortíssimos do Evangelho. Informou: “Os passarinhos! o colhem, nem empaiolam, nem
plantam, pois é... Deus cuida deles.” Em fato, estrangeiro, marretou: “Vocês sendo não sendo mais
valentes que os pássaros?!”. Id. Tutaméia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
p.123. Mas as consequências em Gedeão, talvez outra referência bíblica, não foram tão evangélicas
assim: “Sentou-se com totalidade. Fez declarado o voto, como quem faz bodoque ou um dique:
“Vou trabalhar mais não.” Sério como um cavalo de circo, cruzou pernas e braços. Escutavam-no
consternados”. Id. Ibid. p.123.
52
“A poem, play, or novel is necessarily compelled to come into being by way of precursor works,
[…]”. Harold BLOOM. The western Canon: the books and school of the Ages. New York, San Diego
and London: Hardcourt Brace & Company, 1994. p.11. Cf. também Harold BLOOM. A angústia da
influência: uma teoria da poesia. (tradução: Marcos Santarrita). Rio de Janeiro: Imago, 2002. 208p.
134
obras para nossos novos problemas”
53
. E em Guimarães Rosa isso nem busca ser
ocultado. É ele próprio que diz: “Quero ficar com o Tão, com os Vedas e
Upanixades, com os Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, com Berson,
com Berdiaeff com Cristo, principalmente”
54
, mostrando assim, o que, em muito,
influenciou-lhe na vida e na produção de sua obra. E é a partir dessas influências que
se entende o que foi escrito, o que é e o como foi escrito, ou vice-versa.
No caso do conto “Fita Verde no Cabelo”, apresentado como exemplo de
palimpsesto, parece-me claro que são as influências de Rosa que o fazem repensar a
estória primeira a partir de um outro caminho de evocação, de reflexão e de produção
de sentido. Não é tanto o palimpsesto pelo palimpsesto, mas é a não aceitação
rosiana de um mundo e de uma existência estruturados em dualismos, destino,
retribuição etc. – o que se dá a partir de suas muitas influências – que dá ao seu texto
uma forma de re-escritura, não só de Chapeuzinho Vermelho, mas de toda a escritura
sagrada ou de lógica religiosa que passou ou influenciou a sua obra, pois o que se
em “Fita Verde no Cabelo” repete-se em outros contos de Rosa e, de forma muito
forte, está também presente no “Grande Sertão: Veredas”. No entanto, o que seria
muito difícil é observar e encontrar onde se dão ou estão cada uma dessas muitas
influências, respondendo assim à pergunta: em que conto, em que trecho, em que
parágrafo ou em que expressão está esta ou aquela influência? Mesmo assim,
Benedito Nunes
55
e Suzi Frankl Sperber
56
enveredam-e por esse caminho, fazendo
observações a partir daquilo que por eles é chamado de cotejo, uma comparação
textual – e é isso o que a palavra significa – em confrontação. Diz Suzi Sperber:
“No cotejo entre cada sistema de per si com a obra, verificamos
que nenhum se adequava integralmente à obra como um todo, nem
a cada livro, senão apenas a partes, a trechos de cada livro. Apenas
alguns temas e algumas idéias refletiam de fato tais leituras. É claro
que a sobreposição de filosofias e doutrinas diferentes
determinaria fatalmente a transformação de cada uma delas”
57
.
53
“Great writing is always rewriting or revisionism and is founded upon a reading that clears space
for the self, or that so works as to reopen old works to our fresh sufferings”. Id. Ibid. p.11.
54
João Guimarães ROSA; Edoardo BIZZARRI. João Guimarães Rosa: Correspondência com seu
tradutor Italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.90. (Correspondência de
João Guimarães Rosa – 25 de Novembro de 1963).
55
Benedito NUNES. O dorso do tigre. São Paulo: Editoria Perspectiva, 1976. pp.143-210.
56
Suzi Frankl SPERBER. Caos e cosmos: leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Duas Cidades,
1976. 210p.
57
Id. Ibid. p.16.
135
Sperber, em seu livro “Caos e cosmos”, delimita as influências de Guimarães
Rosa a categorias de influências espirituais, filosóficas, intelectuais e literárias. Para
isso, ela toma as entrevistas do escritor ou outros textos dele, textos sobre a própria
obra, como o citado agora pouco, em carta a Edoardo Bizzarri; bem como a
biblioteca do próprio Guimarães Rosa, tomando os trechos sublinhados dos livros
como referência
58
.
2.2.1. Leituras de Guimarães Rosa em Platão e Plotino
Platão e Plotino
59
, como pode ser observado em muitas das obras de Rosa,
fariam parte dessas primeiras influências. Em alguns dos contos rosianos observa-se
que as referências aos autores aparecem de forma bastante clara em forma de
epígrafes:
“Porque em todas as circunstâncias da vida real, não é a
alma dentro de nós, mas sua sombra, o homem exterior, que geme,
se lamenta e desempenha todos os papéis neste teatro de palcos
múltiplos, que é a terra inteira” [...] “Seu ato é, pois, um ato de
artista, comparável ao movimento do dansador; o dansador é a
imagem desta vida, que precede com arte; a arte da dansa dirige
seus movimentos; a vida age semelhantemente com o vivente”
(Plotino)
60
.
“Num círculo, o centro é naturalmente imóvel; mas, se a
circunferência também o fosse, não seria ela senão um centro
imenso” (Plotino)
61
.
58
“Verificamos que a comparação entre os trechos marcados (importantes para Guimarães Rosa) e
trechos dos livros do Autor, poderia levar-nos a encontrar não só os pontos de contacto entre
elementos comparados, senão esta disjunção paradigmática da qual fala Greimas. Os trechos
comparados poderiam assim ser considerados como variantes de um mesmo texto”. Id. Ibid. p.18.
59
muitas outras influências apresentadas por Suzi Sperber, a autora que agora se torna referencial
de leitura, mas o destaque será dado a Platão e Plotino porque seus temas estão mais próximos dos
temas religiosos que serão apresentados aqui. As outras influências serão citadas de forma mais rápida
e discreta. A autora ainda cita os Upanishads, Sertilhantes, Guardini, Christian Science e alguns outros
intelectuais e literatos. Em entrevista Rosa disse: Goethe nasceu no sertão, assim como Dostoievski,
Tolstoi, Flaubert, Balzac; ele era, como os outros que eu admiro, um moralista, um homem que vivia
com a língua e pensava no infinito. Acho que Goethe foi, em resumo, o único grande poeta da
literatura mundial que não escrevia para o dia, mas para o infinito. Era um sertanejo. Zola, para tomar
arbitrariamente um exemplo contrário, provinha apenas de São Paulo. Günter LORENZ. Diálogo com
Guimarães Rosa. In: Eduardo de Faria COUTINHO (org). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro / Brasília:
Civilização Brasileira / Instituto Nacional do Livro, 1983. (Coleção Fortuna Crítica). p.85. Guimarães
Rosa ainda cita Unamuno e Dante, como duas de suas maiores leituras.
60
João Guimarães ROSA. Noites do sertão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
61
Id. Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
136
“Não me surpreenderia, com efeito, fosse verdade o que
disse Eurípedes: quem sabe da vida é uma morte, e a morte uma
vida?” (Platão, Górgias)
62
.
Em forma de epígrafe outras referências a outros autores também são feitas,
como a Camões no “Entremeio”, “Com o vaqueiro Mariano” de “Estas estórias”: “As
vacas, vindo o dia, derramados, de mim desamparadas vêm bramando”
63
. Além de
outros autores em outras citações. outras referências são feitas de forma não muito
séria (para não dizer cômica), nem por isso menos importante ou menos revelador
64
:
“Pescaria
A Mário Matos
O Peixe no anzol
é kierkegaardiano.
(O pescador não sabe,
só está ufano.)
O caniço é a tese,
a linha é pesquisa:
o pescador pesca
em mangas de camisa.
O rio passa,
por isso é impassível:
o que a água faz
é querer seu nível.
O pescador ao sol,
o peixe no rio:
dos dois, ele só
guarda o sangue frio,
O caniço, então,
se sente infeliz:
é o traço de união
entre dois imbecis...”
65
.
[...]
“Como no fato espartano – nos Apophthégmata lakoniká de
Plutarco que depenou um roxinol e, achando-lhe pouca carne,
xingou: “Você é uma voz, e mais nada!” [...] Assim atribui-se a
Voltaire – que, outra hora, diz ser a mesma amiúde “o romance do
espírito” a estrafalária seguinte definição de “metafísica”: “É
um cego, com olhos vendados, num quarto escuro, procurando um
gato preto... que não está lá””
66
.
Mas a relação de Rosa com Platão e Plotino estaria também para além das
citações, que, em parte, revelariam as preocupações de Guimarães Rosa com esses
dois autores. Platão e Plotino, de forma considerável, fazem parte das discussões
62
Id. rano. In: Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.261.
63
Id. Com o vaqueiro Mariano. In: Ibid. p.128. O texto é de Éclogas Apócrifas”, os Interlocutores:
Anzino e Limiano”.
64
Cf. também o conto “Teatrinho” em Ave, Palavra, onde Guimarães Rosa imagina uma conversa
entre Érico Veríssimo e Carrera-Andrade sobre Julien Green. Id. Ibid. pp.138-142.
65
Id. Às coisas de poesia. In: Ave, Palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.83-84.
66
Id. Aletria e hermenêutica. In: Tutaméia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
p.34.
137
literárias de Rosa em temas sobre a existência humana e seu sofrimento: o humano e
sua relação com o real (o mito da caverna), o amor decaído, a alma
67
e o mal
68
.
Segundo Benedito Nunes, o amor (decaído ou o), como temática da escrita
em Rosa, é um tema discutido de forma platônica
69
, algo que repousa na “idéia
mestra do platonismo”: o impulso erótico, 1. primitivo e caótico em Diadorim, 2.
sensual em Nhorinhá, e 3. espiritual em Otacília, todas elas mulheres que passaram
pela vida de Riobaldo, personagem principal do “Grande Sertão: Veredas”
70
. Mas é
em “Párano”, outro conto de “Estas estórias”, precedido pela citação de Platão, que
revela o que aqui de mais importante nessa influência, o caminho da travessia. O
conto que parece uma homilia de apologética religiosa começa com a seguinte frase:
“Sei, irmãos, que todos existimos, antes, neste ou em diferentes
lugares, e que o que cumprimos agora, entre o primeiro choro e o
último suspiro, não seria mais que o equivalente de um dia comum,
senão que ainda menos, ponto e instante efêmeros na cadeia
movente: todo homem ressuscita ao primeiro dia”
71
.
E é a partir dessa frase que se desenvolve e se desenrola, no conto, uma discussão
sobre vida, liberdade, sofrimento e morte.
Suzi Sperber apresenta essa temática a partir de termos como “ir e voltar”,
“chegar”, “voltar”, partir, viajar etc. termos que fazem parte de uma preocupação
rosiana com o caminho “de purificação da alma para a obtenção do conhecimento
das verdades absolutas”, algo que ligaria o esoterismo rosiano, que veremos mais ao
longo desse ponto, com suas leituras de Platão
72
. Apesar de uma pré-existência da
alma e de uma existência posterior, no além, o que é pressuposto de em Rosa, o
real se e se vê no meio da travessia: “O Burrinho Pedrês vai e volta, mas o pathos
67
“Os principais conceitos platônicos assinalados por Rosa, aparentemente, referem-se ao mito da
caverna, ao conceito do amor que, decaído, perde as asas e à crença na alma antes do nascimento e
depois da morte”. Suzi Frankl SPERBER. Caos e cosmos: leituras de Guimarães Rosa. São Paulo:
Duas Cidades, 1976. p.65.
68
“O Mal, segundo o Plotino dos textos sublinhados e assinalado por Guimarães Rosa, é estranho à
alma; inexiste nos indivíduos e mesmo na realidade. Portanto, pertence ao não-ser; está na não
realização e no contrário da plenitude”. Id. Ibid. p.102.
69
Para o autor essa relação estaria ligada a Diotima e Sócrates em O Banquete.
70
Cf. Benedito NUNES. O dorso do tigre. São Paulo: Editoria Perspectiva, 1976. pp.144-145.
71
João Guimarães ROSA. Párano. In: Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.261.
72
Suzi Frankl SPERBER. Caos e cosmos: leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Duas Cidades,
1976. p.66.
138
propriamente dito está na travessia do córrego da Fome. Lalino vai ao Rio de Janeiro
e volta, mas o importante na ação da personagem é a solução dos acontecimentos à
sua volta”
73
. Mas é o conto “Cara-de-Bronze”, do livro “No Urubuquaquá, no
Pinhém”, que, segundo Benedito Nunes, trabalha melhor as relações da viagem ou da
travessia do homem humano pela “Vida”, e a busca dos sentidos dessa travessia de
vida a partir da “Palavra”, o “quem das coisas”: “a viagem apresenta-se em “Cara-
de-Bronze” como Demanda da Palavra e da Criação Poética”
74
. É o Grivo quem
viaja e volta com muito conhecimento diverso: “ele foi amofim e voltou bizarro, com
cores boas...”
75
; viagem essa que se fez por um motivo revelador, a Palavra
76
, a
Poesia
77
.
A temática da “travessia” aparece em muitos dos contos de Rosa, de Sagarana
a Ave, Palavra. Mas é Riobaldo, no grande romance rosiano, quem diz: “A gente
vive repetido, o repetido. [...] Um está sempre no escuro, no último derradeiro é
que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para
a gente é no meio da travessia”
78
. Diz Benedito Nunes: “para Guimarães Rosa, não
há, de um lado, o mundo, e, do outro, o homem que o atravessa. Além de viajante, o
homem é a viagem – objeto e sujeito da travessia”
79
.
73
Id. Ibid. p.67.
74
Benedito NUNES. O dorso do tigre. São Paulo: Editoria Perspectiva, 1976. p.182.
75
João Guimarães ROSA. Cara-de-bronze. In: No Urubuquaquá, no Pinhém. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001. p.116.
76
“[...] foi somente em “Cara-de-Bronze” que Guimarães Rosa pôs a nu o motivo da travessia,
focalizando-a direta e expressamente como tema. A viagem passa a constituir, nesse ponto, a demanda
pela Palavra e da Criação Poética. Eis o sentido da estória deste Ariel do sertão, o Grivo, que sai
mundo afora, a procurar, para seu patrão Cara-de-Bronze, “o que das coisas”, e que lhe traz, na volta,
como único bem, “a viagem da viagem”: o relato poético do que viu, ouviu e imaginou”. Benedito
NUNES. O dorso do tigre. São Paulo: Editoria Perspectiva, 1976. p.179.
77
“O “Cara-de-Bronze” era do Maranhão (os campos-gerais, paisagem e formação geográfica típica,
vão de Minas Gerais até lá, ininterrompidamente). Mocinho, fugira de lá, pensando que tivesse
matado o pai (pág. 619 [172]), etc. Veio, fixou-se, concentrou-se na ambição e no trabalho, ficou
fazendeiro, poderoso e rico. Triste, fechado, exilado, imobilizado pela paralisia (que é a exteriorização
de uma como que “paralisia da alma”), parece misterioso, e é ; porém, seu coração, na ultima velhice,
estalava. Então, sem se explicar, examinou seus vaqueiros para ver qual teria mais viva e
“apreensora” sensibilidade para captar a poesia das paisagens e lugares. E mandou-o à sua terra, para,
depois, poder ouvir, dele, trazidas por ele, por esse especialíssimo intermediário, todas as belezas e
poesias de lá. O Cara--de-Bronze, pois, mandou o Grivo buscar Poesia. Que tal?” João Guimarães
ROSA; Edoardo BIZZARRI. João Guimarães Rosa: Correspondência com seu tradutor Italiano
Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. pp.93-94. Correspondência de João
Guimarães Rosa, 25 de Novembro de 1963.
78
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.80.
79
Benedito NUNES. O dorso do tigre. São Paulo: Editoria Perspectiva, 1976. p.179.
139
2.2.2. Leituras espirituais de Guimarães Rosa: Sagarana
Mas são especificamente as influências espirituais que mais interessam essa
pesquisa. Segundo Suzi Sperber, uma delas talvez a mais significativa das
influências em Guimarães Rosa passa pelo que ela chama de “Esoterismo
Paulista”, tomado das publicações do “Círculo Esotérico da Comunhão do
Pensamento”, a “Primeira Série de Instruções”
80
. Assim, o esoterismo contribuiria
com o pensamento de Rosa de duas principais formas: 1. através do ecletismo do
esoterismo, que consegue conjugar em si elementos de diferentes tradições que
parecem, em princípio, antagônicos, criando dessa forma um tentativa de síntese; e 2.
através do lema “hei de vencer”, que dá ao “fiel” esotérico o caminho do pensamento
positivo. “Evitar de pensar o mal, de ter medo, ódio e tantos sentimentos negativos
[segundo a autora, e isso estaria em Rosa e em sua obra], fortalece[ria] o indivíduo e
habilita[ria]-o à conquista de seu mundo e das coisas que deseja”
81
. Assim, pecado
(erro), culpa, medo e destino seriam temas para serem discutidos e negados na obra
de Rosa, o que aqui já se viu e já se disse sobre o conto “Fita Verdade no Cabelo”.
O “Esoterismo Paulista” e sua influência no pensamento e na obra rosiana,
“quiças a mais antiga das leituras”
82
de Rosa, marcam, segundo Suzi, de forma mais
clara e forte, principalmente o primeiro livro do autor, Sagarana
83
, que também
carrega, segundo Aguinaldo Aparecido Campos
84
, uma forte influência bíblica e
cristã, mesmo que no sentido de cristianismo católico popular, o que se dá, em
Sagarana, em contra pontos entre esoterismo e cristianismo.
Para Aguinaldo Campos, Sagarana é um texto exemplar da religiosidade de
Rosa, “há referências ou ecos bíblicos numa amálgama sincrético, formando a
religiosidade popular”
85
, algo bem presente nesse primeiro livro de Guimarães Rosa.
80
Suzi Frankl SPERBER. Caos e cosmos: leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Duas Cidades,
1976. p.23.
81
Id. Ibid. p.23.
82
Id. Ibid. p.23.
83
“Caso o interesse de Guimarães Rosa pela doutrina se manifestasse intertextualmente,
encontraríamos em Sagarana trechos que lhe poderiam ser relacionados. Nada encontramos, porém,
que tivesse uma relação clara e imediata”. Id. Ibid. p.24.
84
Cf. Aguinaldo Aparecido CAMPOS. Passagens bíblicas em Sagarana de João Guimarães Rosa.
São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP,
2000. 167p. (Dissertação de Mestrado).
85
Id. Ibid. p.12.
140
Dos nove contos existentes no livro, Aguinaldo seleciona “A hora e a vez de Augusto
Matraga” como conto principal nessa relação de Rosa com o cristianismo e com a
Bíblia. Para Suzi Sperber, “a renovação de Nhô Augusto, sua passagem de mau a
bom, de ateu a crente, de representante do diabo a representante de Deus, do medo à
força, é um desenvolvimento do tema da conversão evangélica”
86
. Todos os trâmites
da travessia da personagem principal, Augusto Matraga, fazem parte daquilo que a
autora identifica e denomina “criatural cristão”
87
, a mistura do que é bíblico, do que é
cristão institucional (sui-generis
88
) e do cristianismo popular, com todas as suas
crendices e práticas mágicas.
Pedrês e Lalino Salãthiel
O burrinho Pedrês, segundo Aguinaldo Campos, é uma forma de narrativa
inaugural
89
, que abre Sagarana como uma Gênesis, que, por sua vez, como livro, é
fechado com Augusto Matraga, uma referência aos evangelhos e a Paulo
90
. Além de
personagem com nomes bíblicos, “Saulo, Salathiel, Reynero
91
, Zacarias, Herodes,
Gabriel (pretinho) e Josias”
92
, Pedrês seria referência a duas estórias inaugurais da
Bíblia, o dilúvio e o êxodo
93
: “[...] até junho duraria o êxodo dos rebanhos de corte”
94
[...] “– O dilúvio não dava fim”
95
:
“Tais elementos [diz Aguinaldo Campos] justificam nossa proposta
inicial: O Burrinho Pedrês pode ser lido como narrativa inaugural,
tanto no sentido de abrir possibilidades de diálogo com referências
primitivas bíblicas, alocadas no Velho e Novo Testamento, quanto
com outros aspectos responsáveis por uma espécie de
86
Suzi Frankl SPERBER. Caos e cosmos: leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Duas Cidades,
1976. p.44.
87
Id. Ibid. p.43.
88
Id. Ibid. p.40.
89
Aguinaldo Aparecido CAMPOS. Passagens bíblicas em Sagarana de João Guimarães Rosa. São
Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP, 2000.
p.83.
90
Cf. Id. Ibid. p.02.
91
Esse não é um nome bíblico, faz parte da história cristã, mas não da Bíblia, pelo menos, não de
forma direta, talvez apenas com algumas referências no livro do Apocalipse.
92
Cf. Id. Ibid. pp.24e91.
93
Cf. Id. Ibid. pp.15,32e91
94
João Guimarães ROSA. O burrinho pedrês. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
p.41.
95
Id. Ibid. p.93.
141
atemporalidade que perpassa as narrativas menores do conjunto
textual”
96
.
Mas é “A volta do marido pródigo” que faz a alusão mais forte ao Novo
Testamento, na “Parábola do filho pródigo”. E isso no título. No entanto, o título
que faz os dois textos se corresponderem, colocam, nos textos, os dois em contra
ponto. O filho pródigo é um jovem que, depois de ter requerido a herança do pai
ainda vivo, toma a decisão de partir para gozar os prazeres da vida, e que, depois de
perder tudo, arrependido, volta para a casa do pai (Lucas 15:11-32). Lalino
Salãthiel, o marido pródigo, é um homem que não tem nada e continuará a não ter
nada durante todo o conto. Ele toma algum dinheiro emprestado
97
, quase que
“vendendo” a mulher, e parte para uma vida de prazeres: “as aventuras de Lalino
Salãthiel na capital do país foram bonitas, mas podem ser pensadas e não
contadas, porque no meio houve demasia de imoralidade”
98
. Depois, mas não
arrependido, pois não culpa, por uma necessidade própria, volta para a mulher,
que, casada com outro, torna-se peça de um jogo de política e “maracutaias” do
marido, que, no fim, acaba conseguindo a esposa de volta.
99
Por outro lado, o burrinho Pedrês e Latino Salãthiel, o marido pródigo, além
de contraponto, parecem ser, apesar dos dilemas que os envolvem e das relações
desses com os textos bíblicos, senhores de seus destinos, ligados também, não como
vítimas ou culpados por seus destinos, ao ideal do “hei de vencer” esotérico.
O burrinho, uma estória não-profana, que faz parte de uma história real ou
que é construído a partir de uma história real
100
, é a estória de alguém desprezado e
colocado à parte e que, no fim da estória, torna-se o grande e humilde herói:
96
Aguinaldo Aparecido CAMPOS. Passagens bíblicas em Sagarana de João Guimarães Rosa. São
Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP, 2000.
p.93.
97
“O senhor me empresta o dinheiro, que é o que falta. Senão, eu não posso ir... É emprestado.
Daqui a uns seis meses, lhe pago. Mando. Tenho um emprego bom, arranjei vou ser tocador de
bonde, no Rio de Janeiro... Se não, eu não posso ir... (Agora é a hora de uma série de ares.) Sem
dinheiro, não vou. Não vou ir... Como é que posso?!...” João Guimarães ROSA. A volta do marido
pródigo. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.114.
98
Id. Ibid. pp.117-118.
99
Cf. Aguinaldo Aparecido CAMPOS. Passagens bíblicas em Sagarana de João Guimarães Rosa.
São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP,
2000. pp.99-104.
100
“O BURRINHO PEDRÊS Peça não-profana, mas sugerida por um acontecimento real, passado
em minha terra, muitos anos: o afogamento de um grupo de vaqueiros, num córrego cheio”. João
142
“Folgado, Sete-de-Ouros endireitou para a coberta. Farejou o
cocho. Achou milho. Comeu. Então, rebolcou-se, com as
espojadelas obrigatórias, dançando de patas no ar e esfregando as
costas no chão. Comeu mais. Depois procurou um lugar qualquer, e
se acomodou para dormir, entre a vaca mocha e a vaca malhada,
que ruminavam, quase sem bulha, na escuridão”
101
;
o que não deixa de ser também um conto cristão: “aquele que se humilha será
exaltado” (Mateus 23:12). Mas cristão e esotérico: “hei de vencer”. Em verdade, um
conto sincrético.
“Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a
história de um homem grande, é bem dada no resumo de um dia
de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em
algumas horas seis da manhã à meia-noite nos meados do mês
de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do Rio das
Velhas, no centro de Minas Gerais”
102
.
Por sua vez, Latino Salãthiel parece ser o senhor de suas ações, tanto na ida
quanto na volta. Ele é consciente de que suas escolhas fazem parte de seu próprio
trajeto de vida, sua travessia, sem destino, sem conseqüências funestas, sem culpa e
sem medo:
“– Olhe, seu Ramiro... a estória é séria... Eu vou-m’embora daqui.
A mulher fica... vou me separar... Ela não sabe de nada, porque eu
vou assim meio assim, de fugido... [...]
103
– Olha, fala com a Ritinha que eu não volto mais,
mesmo nunca. Vou sair por esse mundo, zazando. Como eu
não presto, ela não perde... Diz a ela que pode fazer o que
entender... que eu não volto, nunca mais... [...]
104
O senhor pode merecer um castigo de Deus...
– Que nada, seu Miranda! Deus está certo comigo, e eu
com ele. Isto agora é que é assunto meu particular...
Alegrias, seu Miranda!
105
Guimarães ROSA. Carta de João Guimarães Rosa a João Condé, revelando segredos de Sagarana.
In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.23.
101
João Guimarães ROSA. O burrinho pedrês. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
p.97.
102
Id. Ibid. p.30.
103
Id. A volta do marido pródigo. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.114.
104
Id. Ibid. p.115.
105
Id. Ibid. p.116.
143
Mas é “A hora e a vez de Augusto Matraga” que põe tais questões em maior
complexidade: pecado, culpa, destino e pensamento positivo, o “hei de vencer.
Talvez a mais famosa frase de Augusto Matraga revele, em parte, isso: “p´ra o céu eu
vou, nem que seja a porrete!”. No entanto, o conto, o último de Sagarana, livro que
levou oito anos para ficar pronto, é mais um conto cristão: “todas as estórias de
Sagarana receberam esta influência do esoterismo. E a culpa e erro de Matraga têm
origem provável na leitura do Novo Testamento, [...]”
106
.
2.3. “A hora e a vez de Augusto Matraga”: leituras do evangelho e do
cristianismo
Augusto Matraga, mais conhecido como Nhô Augusto, é o filho de um
coronel chamado Afonso Esteves. Órfão de mãe, criado pela avó, que tinha
esperanças dele ser padre, é um fanfarrão violento e temido por todos em sua
pequena vila. Ele, deixando sua mulher e filha em casa, passa a vida bebendo e
vadiando com outras mulheres, além das arruaças e ações violentas que comete. Até
que começa a purgar por seus “pecados”. Primeiro fica muito endividado, perde os
amigos de festa e sua mulher o deixa, trocando-o por outro:
“E o outro era diferente! Gostava dela, muito... Mais do que ele
mesmo dizia, mais do que ele mesmo sabia, da maneira de que a
gente deve gostar. E tinha uma força grande, de amor calado, e uma
paciência quente, cantada, para chamar pelo seu nome: ...Dionóra...
“Dionóra, vem comigo, vem comigo e traz a menina, que ninguém
não toma vocês de mim!...” Bom... Com um sonho... Com um
sono...”
107
.
Mas seu verdadeiro processo de purgação começa na surra que ele toma, surra
que quase o leva à morte:
“Já os porretes caíam em cima do cavaleiro, que nem pinotes de
matrinchãs na rede. Pauladas na cabeça, nos ombros, nas coxas.
Nhô Augusto desdeu o corpo e caiu. Ainda se ajoelhou em terra,
querendo firmar-se nas mãos, mas isso só lhe serviu para poder ver
106
Suzi Frankl SPERBER. Caos e cosmos: leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Duas Cidades,
1976. p.35.
107
João Guimarães ROSA. A hora e a vez de Agusuto Matraga. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001. p.369.
144
as caras horríveis dos seus próprios bate-paus, e, no meio deles, o
capiauzinho mongo que amava a mulher-à-toa Sariema”
108
.
Quase morto, Matraga é acolhido e cuidado por um casal de negros samaritanos
quem vivem próximos “à boca do brejo”
109
. Depois, pelo mesmo casal de negros é
levado a um sítio de sua propriedade. Nesse sítio, depois dos muitos sofrimentos
110
no processo de recuperação, encontra-se com um padre, trazido pelo casal de negros,
confessa-se e aprende coisas sobre o pecado, penitência e perdão:
“Você não deve pensar mais na mulher, nem em vinganças.
Entregue para Deus, e faça penitência. Sua vida foi entortada no
verde, mas não fique triste, de modo nenhum, porque tristeza é
aboio de chamar demônio, e o Reino do Céu, que é que vale,
ninguém tira de sua algibeira, desde que você esteja com a graça de
Deus, que ele não regateia a nenhum coração contrito”
111
.
Ele então se arrepende, converte-se e começa sua penitência: trabalho, abstinência de
cigarro, bebida e mulher, buscando assim o seu fim final
112
, a sua hora e a sua vez:
“Largaram à noite, porque o começo da viagem teria de ser uma
verdadeira escapada. E, ao sair, Nhô Augusto se ajoelhou, no meio
da estrada, abriu os braços em cruz, e jurou: Eu vou p’ra o céu, e
vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez de chegar...
108
Id. Ibid. p.376.
109
Id. Ibid. p.376.
110
“Ele chamava por Deus, na hora da dor forte, e Deus não atende, nem para o fôlego, assim num
desamparo como eu nunca vi!” Id. Ibid. p.377.
111
Id. Ibid. p.379.
112
A penitência parece ter duas características distintas, mas não tão opostas assim: 1. uma
característica moral, o abandono do que é “pecado” ou, pelo menos, do que é “prazeroso”, e 2. o
fortalecimento de si mesmo na busca por algo que se quer, que pode vir de Deus, como paga pelo
sacrifício, ou de uma conquista própria, a partir da auto-conscientização e do fortalecimento de si
mesmo. Há dois outros exemplos disso em Rosa: 1. Em Noites do sertão, com Soropita: “Tudo devia
de ser uma regra: levantar muito cedo, ainda com o escuro da noite, trabalhar o dia inteiro, no mais
atarefado, cansar as forças; de noite, comia, iam dormir abraçados, sem antes fazer nada, como dois
irmãos. Dizia: “Vamos passar um mês inteiro, não abraçar nem beijar, não fazer nada, regrando a
vida da gente em sério costume”; assim conforme se cumpre firmeza de jagunço, ou promessa feita
a santo. Então, se pudesse se privar assim, ficava forte, toda hora estava seguro de estar direito: a
boa disposição e coragem!” João Guimarães ROSA. Lão-Dalalão (Dão-Lalalão). In: Noites do sertão.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.106; e no Grande Sertão: Veredas, com Riobaldo: “Compadre
meu Quelemém, muitos anos depois, me ensinou que todo desejo a gente realiza alcança se tiver
ânimo para cumprir, sete dias seguidos, a energia e paciência forte de só fazer o que dá desgosto, nojo,
gastura e cansaço, e de rejeitar toda a qualidade de prazer. Diz ele; creio. Mas ensinou que, maior e
melhor, ainda, é, no fim, se rejeitar até mesmo aquele desejo principal que serviu para animar a gente
na penitência de glória. E dar tudo a Deus, que de repente vem, com novas coisas mais alas, e paga e
repaga, os juros dele não obedecem medida nenhuma. Isso é de compadre meu Quelemém. Espécie de
reza?” Id. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.169.
145
P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!... E os negros
aplaudiram, e a turminha pegou o passo, a caminho do sertão”
113
.
O conto, segundo Aguinaldo Campos, é aquele que, em Sagarana, carrega “as
referências religiosas de caráter cristão”
114
de forma mais acentuada. Sua travessia é
uma travessia de redenção, redenção especificamente cristã. E, para Suzi Sperber,
como dito, bem como para Aguinaldo Campos, toda essa influência cristã está
relacionada com as leituras de Guimarães Rosa do Novo Testamento. Já para Paulo
Lopes, em “Utopia cristã no sertão mineiro”
115
, o conto é a representação de uma
disputa ideológica cristã em meio a um conflito marcadamente social, onde Nhô
Augusto representa, no primeiro, o sistema cristão opressor, o lado dos ricos, e, no
segundo momento, como Augusto Matraga, o sistema cristão oprimido, o lado dos
pobres
116
.
Enquanto que para Aguinaldo Campos a travessia de Nhô Augusto é
representação apenas de uma travessia de redenção cristã, de um pecador a uma
figura redimida, de homem velho a homem novo, nos dizeres do apóstolo Paulo
117
.
Para Lopes, a representação cristã no conto é da remissão do próprio cristianismo,
que, a partir de seus próprios agentes, faz-se e se refaz historicamente. O Augusto,
representante dos coronéis que mantinham o poder econômico e político de suas
regiões
118
, é também figura divina do Augustus do poder sobre a vida e a morte, o
Deus patriarcal do próprio cristianismo, segundo Lopes
119
. o Augusto Matraga,
homem redimido, é o Deus
120
destroçado pelas matraques do poder, e que assim, na
sua hora e vez, pelo seu próprio sangue, como se tudo isso fosse um processo
contínuo dentro do cristianismo, redime o oprimido. O que faz de Matraga um agente
histórico na contínua reformulação do cristianismo entre o poder e a redenção, bem
113
Id. Ibid. p.381.
114
Aguinaldo Aparecido CAMPOS. Passagens bíblicas em Sagarana de João Guimarães Rosa. São
Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP, 2000.
p.108.
115
Paulo César Carneiro LOPES. Utopia cristã no sertão mineiro: uma leitura de “A hora e a vez de
Augusto Matraga” de João Guimarães Rosa. Petrópolis: Vozes, 1997. 147p.
116
Cf. Id. Ibid. pp.88ss.
117
Aguinaldo Aparecido CAMPOS. Passagens bíblicas em Sagarana de João Guimarães Rosa. São
Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP, 2000.
p.02.
118
Id. Ibid. p.110.
119
Cf. Paulo César Carneiro LOPES. Utopia cristã no sertão mineiro: uma leitura de “A hora e a vez
de Augusto Matraga” de João Guimarães Rosa. Petrópolis: Vozes, 1997. p.89.
120
Id. Ibid. p.97.
146
como de um agente divino, vocacionado, que traça a sua travessia ou via, a via
crucis, em prol do outro
121
: “aceitar a morte para que a vida se torne mais vida é o
supremo gesto de amor”
122
. O que também faz de Matraga, que faz seu caminho em
direção à sua hora e vez, sobre um jumentinho, um tipo ou uma figura de Jesus
Cristo
123
. E é, para Lopes, o ato final de Augusto que marca toda essa lógica.
Joãozinho Bem-Bem, jagunço que Augusto conhece no retorno para sua terra, que se
torna seu último tentador, que ele o convida para entrar no bando e vingar seu
passado
124
, é o representante daquilo que Augusto representava, o sistema patriarcal,
de domínio e opressão. Já o velho que iria entrar na sala era o outro lado, o povo:
“Nisso, fizeram um estardalhaço, à entrada. / Quem é? / É o tal
velho caduco, chefe. / – Deixa ele entrar. Vem cá, velho. / O
velhote chorava e tremia, e se desacertou, frente às pessoas. Afinal,
conseguiu ajoelhar-se aos pés de seu Joãozinho Bem-Bem. / Ai,
meu senhor que manda em todos... Ai, seu Joãozinho Bem-Bem,
tem pena!... Tem pena do meu povinho miúdo... Não corta o
coração de um pobre pai...”
125
.
O velho, representante de um cristianismo popular, é aquele que, diante do
poder, expressa-se da forma mais devotada e simples possivel, pois sabe que está
diante do representante de um Deus de justiça e força, que pode com a sua vida e
com sua morte.
“– Levanta, velho... / O senhor é poderoso, é dono do choro dos
outros... Mas a Virgem Santíssima lhe dará o pago por não pisar em
formiguinha do chão... Tem piedade de nós todos, seu Joãozinho
121
Id. Ibid. p.98.
122
Id. Ibid. p.83.
123
Id. Ibid. p.98. Cf. também Aguinaldo Aparecido CAMPOS. Passagens bíblicas em Sagarana de
João Guimarães Rosa. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo - USP, 2000. pp.110e147.
124
“– Não se ofenda, mano velho, deixe eu dizer: eu havia de gostar, se o senhor quisesse vir comigo,
para o norte... lhe falei e torno a falar: é convite como nunca fiz a outro, e o senhor não vai se
arrepender! Olha: as armas do Juruminho estão aí, querendo dono novo... / Deixa eu ver... / Nhô
Augusto bateu a mão na winchester, do jeito com que um gato poria a pata num passarinho. Alisou
coronha e cano. E os seus dedos tremiam, porque essa estava sendo a maior das suas tentações. / Fazer
parte do bando de seu Joãozinho Bem-Bem! Mas os lábios se moviam talvez ele estivesse
proferindo entre dentes o creio-em-deus-padre e, por fim, negou com a cabeça, muitas vezes: /
Não posso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem!... / Depois de tantos anos... Fico muito agradecido,
mas não posso, não me fale nisso mais... / E ria para o chefe dos guerreiros, e também por dentro se
ria, e era o riso do capiau ao passar a perna em alguém, no fazer qualquer negócio. / – Está direito, lhe
obrigar não posso... Mas, pena é...”. João Guimarães ROSA. A hora e a vez de Agusuto Matraga. In:
Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.407.
125
Id. Ibid. p.409.
147
Bem-Bem!... / – Levanta, velho! Quem é que teve piedade do
Juruminho, baleado por detrás?”
126
Mesmo assim, mesmo com o reconhecimento da pequenez do povo, do outro
lado, percebe-se que não nem piedade e nem palavra de misericórdia, a lei que se
segue é a lei da justa vingança, já que o filho do velho havia matado um do bando de
Joãozinho Bem-Bem. O apelante então roga pelo sangue de quem pagou e pela
lágrima de quem já chorou:
“– Ai, seu Joãozinho Bem-Bem, então lhe peço, pelo amor da
senhora sua mãe, que o teve e lhe deu de mamar, eu lhe peço que
dê ordem de matarem só este velho, que não presta para mais
nada... Mas que não mande judiar com os pobrezinhos dos meus
filhos e minhas filhas, que estão lá em casa sofrendo, adoecendo de
medo, e que não têm culpa nenhuma do que fez o irmão... Pelo
sangue de Jesus Cristo e pelas lágrimas da Virgem Maria! ... / E o
velho tapou a cara com as mãos, sempre ajoelhado, curvado,
soluçando e arquejando. / Seu Joãozinho Bem-Bem pigarreou, e
falou: / Lhe atender não posso, e com o senhor não quero nada,
velho. É a regra... Senão, até quem é mais que havia de querer
obedecer a um homem que não vinga gente sua, morta de traição?...
É a regra. Posso a livrar de sebaça, às vezes, mas não posso
perdoar isto não... Um dos dois rapazinhos seus filhos tem de
morrer, de tiro ou à faca, e o senhor pode é escolher qual deles é
que deve de pagar pelo crime do irmão. E as moças... Para mim não
quero nenhuma, que mulher não me enfraquece: as mocinhas são
para os meus homens... / Perdão, para nós todos, seu Joãozinho
Bem-Bem... / Pelo corpo de Cristo na Sexta-Feira da Paixão! /
Cala a boca, velho. Vamos logo cumprir a nossa obrigação...”
127
.
Como não resposta, o velho então revela quem realmente é o Deus
representado por Joãozinho Bem-Bem.
“Mas, aí, o velho, sem se levantar, inteiriçou-se, distendeu o
busto para cima, como uma caninana enfuriada, e pareceu que ia
chegar com a cara até em frente à de seu Joãozinho Bem-Bem.
Hirto, cordoveias retesas, mastigando os dentes e cuspindo baba,
urrou: / Pois então, satanás, eu chamo a força de Deus p'ra ajudar
a minha fraqueza no ferro da tua força maldita!... / Houve um
silêncio. E, aí: [...]”
128
.
126
Id. Ibid. p.408.
127
Id. Ibid. p.408.
128
Id. Ibid. p.409.
148
chega a hora e a vez de Matraga. Ele ouve o clamor do velho e roga por
ele junto ao amigo Joãozinho Bem-Bem. Não obtendo resposta, o fim final se dá.
Com o fim da munição, o último que Matraga mata, na faca, é Joãozinho Bem-Bem.
“Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com
sorriso intenso nos lábios lambuzados de sangue, e de seu rosto
subia um sério contentamento. / Daí, mais, olhou, procurando João
Lomba, e disse, agora sussurrado, sumido: / Põe a benção na
minha filha... seja onde for que ela esteja... E, Dionória... Fala
com a Dionória que está tudo em ordem! / Depois, morreu”
129
.
Desse modo, “A hora e a vez de Augusto Matraga” é um conto marcadamente
cristão, uma releitura e re-escritura, ou mais, uma reflexão sobre a história e os
processos de funcionamento de conflitos dentro do próprio cristianismo, daquilo que
Paulo Lopes chama de conflito e morte de deuses:
“O deus patriarcal, como o deus guerreiro, são deuses da morte. O
deus popular é resistência a estes e, como tal, traz em si a
possibilidade do deus da vida, [...] é por isto que não apenas
Joãozinho Bem-Bem tem de morrer, mas Augusto também. [...]
a morte dos deuses anteriores possibilitará a continuidade e
realização do deus da vida”
130
.
Mais ainda, Matraga é a representação das leituras de Rosa no Novo
Testamento, não de leituras ingênuas, a ponto de existir referências diretas
131
, mas de
uma leitura que deixa marcas no conto: 1. o jumentinho que conduz Augusto
Matraga para sua hora e vez; 2. os negros samaritanos, representantes daquilo que
Augusto mais odiava e desprezava, que o ajudam no pior momento, sendo
verdadeiramente seus próximos; 3. a compreensão paulina de velho e novo homem;
e, acrescento, 4. passagens que aproximam o Apóstolo Paulo de Augusto Matraga: a)
Paulo também era representante do poder; b) possui uma conversão marcante; c) é
vítima de muitas violências; d) e se torna um libertador cristão entre os oprimidos.
129
Id. Ibid. p.413.
130
Paulo César Carneiro LOPES. Utopia cristã no sertão mineiro: uma leitura de “A hora e a vez de
Augusto Matraga” de João Guimarães Rosa. Petrópolis: Vozes, 1997. p.115.
131
Cf. Suzi Frankl SPERBER. Caos e cosmos: leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Duas Cidades,
1976. p.40.
149
Também, se levarmos em consideração as influências esotéricas no livro de
Sagarana, apontadas por Suzi Sperber, bem como o fato de Augustro Matraga, depois
do espancamento, ter sido marcado a fogo com um símbolo esotérico
132
,
compreenderíamos que o conto também poderia ser um contraponto às influências
cristãs em Rosa, ou mais, poderia ser uma revelação da ação sincrética de Rosa, tanto
em sua vida como em sua obra literária:
“Isto provaria [segundo Suzi Sperber] que o interesse de Guimarães
Rosa nas leituras espirituais respondia a duas necessidades: à
pessoal e na busca da transcendência; à profissional, i.e., literária,
na conversão das características doutrinárias em processos
narrativos”
133
.
Desse modo, o conto seria um conto verdadeiramente bíblico e cristão, com
características de um cristianismo católico mais regionalista, mineiro, com lógicas e
crendices populares, muito conhecidas e respeitadas por Guimarães Rosa. Também
de um cristianismo histórico, vítima da crítica rosiana, de um questionamento dessas
mesmas verdades “bíblicas” e “cristãs” nas relações humanas, bem como das
verdades que dizem respeito ao erro, à culpa, ao perdão (penitência), ao castigo, ao
céu e ao inferno, e, de forma mais forte, ao destino. Augusto Matraga, na leitura do
texto, apesar de cristão, parece também ser adepto do pensamento positivo, “hei de
vencer”: “– Cada um tem a sua hora, e há-de chegar a minha vez!
134
Sua jornada
não parece ser a de um destino preso, mas sim a de alguém que escolheu, mais por
força de sua própria vontade e condição do que de ações externas, principalmente
divinas, fazer seu próprio caminho, e ele fez.
132
“E, aí, quando tudo esteve a ponto, abrasaram o ferro com a marca do gado do Major – que soía ser
um triângulo inscrito numa circunferência –, e imprimiram-na, com chiado, chamusco e fumaça, na
polpa glútea direita de Nhô Augusto. Mas recuaram todos, num susto, porque Nhô Augusto viveu-se,
com um berro e um salto, medonhos”. João Guimarães ROSA. A hora e a vez de Agusuto Matraga.
In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.376.
133
Suzi Frankl SPERBER. Caos e cosmos: leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Duas Cidades,
1976. p.32. “Forçoso é reconhecer que esta marca é uma marca, no mínimo, muito original. Se
andarmos pelas inúmeras fazendas pelo interior de Minas, ou de Goiás, muito provavelmente do
Brasil inteiro, veremos que noventa e nove por cento das marcas são as iniciais do proprietário. Que
um outro fazendeiro, por um motivo qualquer, tenha como símbolo um outro desenho, lá, mas que
esta marca seja exatamente um símbolo esotérico referente à divindade, é bem mais significativo”.
Paulo César Carneiro LOPES. Utopia cristã no sertão mineiro: uma leitura de “A hora e a vez de
Augusto Matraga” de João Guimarães Rosa. Petrópolis: Vozes, 1997. p.79.
134
João Guimarães ROSA. A hora e a vez de Agusuto Matraga. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001. p.398.
150
2.4. O corpo da palavra em Miguilim
Em “Corpo de Baile”
135
a religião que permeia é o cristianismo, mas é mais
do que isso segundo Heloisa Vilhena de Araujo, é um cristianismo místico, de
leituras do Evangelho de João
136
, e talvez e isso eu acrescento meio mágico,
muito mais gnóstico cristão do que cristão em sua forma palestinense, seguindo
leituras de Oscar Cullmann
137
.
O livro começa com o conto “Campo Geral”, que narra a estória do Menino
Miguilim, figura representativa da infância de Guimarães Rosa, tanto da miopia do
autor, descoberta numa infância já avançada
138
, quanto da perda de uma irmão, na
verdade, uma irmã
139
.
135
O livro de 1956, composto de sete contos, que anteriormente era em um único volume foi dividido
em três livros
135
, “Manuelzão e Miguilim”, com os contos “Campo geral” e “Uma estória de amor”;
“No Urubuquaquá, no Pinhém”, com os contos “O recado do morro”, “Cara-de-bronze” e “A história
de Lélio e Lina”; e “Noites do Sertão”, com os contos “Dão-Lalalão (o devente)” e “Buriti”. Diz
Heloisa Vilhena de Araujo: “parece-me que o que atrairia Guimarães Rosa numa edição de três
volumes seria a possibilidade de, com ela, figurar a Trindade”. Ela diz isso baseada em frase de Rosa
numa carta a Edoardo Bizzarre, o tradutor italiano, de 03 de janeiro de 1964: “o livro ficará sendo em
três livros distintos e um verdadeiro... que tal?“Houve, é certo, razões de ordem prática para a
partição do livro em três, mas creio que o autor viu nela a possibilidade que lhe era aberta de indicar a
Trindade”. Heloisa Vilhena de ARAUJO. O roteiro de Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa. São
Paulo: Editora Mandarim, 1996. p.404.
136
Cf. Id. Ibid. p.384.
137
Oscar CULLMANN. Das origens do evangelho à formação da teologia cristã. São Paulo: Novo
Século, 2004. 224p.
138
Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista? Vamos até lá. Quem é que está
em tua casa? É Mãe, e os meninos... Estava Mãe, estava Tio Terêz, estavam todos. O senhor alto e
claro se apeou. O outro, que vinha com ele, era um camarada. O senhor perguntava à Mãe muitas
coisas do Miguilim. Depois perguntava a ele mesmo: “Miguilim, espia daí: quantos dedos da minha
mão você, está enxergando? E agora?Miguilim espremia os olhos. Drelina e a Chica riam. Tomezi-
nho tinha ido se esconder. Este nosso rapazinho tem a vista curta. Espera aí, Miguilim... E o senhor
tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito. Olha, agora! Miguilim olhou. Nem não
podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras
das pessôas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas
passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo... O senhor
tinha retirado dele os óculos, e Miguilim ainda apontava, falava, contava tudo como era, como tinha
visto”. João Guimarães ROSA. Campo geral. In: Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.149.
139
“E precisava de perguntar a outras pessôas – o que pensavam do Dito, o que achavam dele, de tudo
por junto; e de que coisas acontecidas se lembravam mais. Mas todos, de Tomezinho e Chita a
Luisaltino e Vovó Izidra, mesmo estando tristes, como estavam, só respondiam com lisice de assuntos,
bobagens que o coração não consabe. Só a Rosa parecia capaz de compreender no meio do sentir, mas
um sentimento sabido e um compreendido adivinhado. Porque o que Miguilim queria era assim como
algum sinal do Dito morto ainda no Dito vivo, ou do Dito vivo mesmo no Dito morto. a Rosa foi
quem uma vez disse que o Dito era uma alminha que via o Céu por detrás do morro, e que, por isso
estava marcado para não ficar muito tempo mais aqui. E disse que o Dito falava com cada pessôa
como se ela fosse uma, diferente; mas que gostava de todas, como se todas fossem iguais. E disse que
o Dito nunca tinha mudado, enquanto em vida, e por isso, se a gente tivesse um retratinho dele, podia
se ver como os traços do retrato agora mudavam. Mas ela tinha perguntado, ninguém não tinha um
151
Segundo Heloisa Araujo, “Corpo de Baile” se estrutura de uma forma
pendular ou como uma balança de “novelas”. Dos sete contos, 4. O recado do morro
seria o conto central, o equilíbrio entre os outros seis contos: 1. Campo geral, 2. Uma
estória de amor, 3. A estória de Lélio e Lina, 5. Dão-Lalalão, 6. O Cara-de-Bronze, e
7. Buriti
140
.
“O recado do morro” é a estória de uma viagem, uma travessia. Pedro Orósio
é a personagem principal, para quem a mensagem é enviada, aos modos de um
oráculo ou de uma gnosis especial. O recado começa a ser dado no início da
travessia. Mas ele é incompreensível, está além dos “sentidos e da razão, além das
imagens e das idéias”
141
. É algo que escapa aos letrados e iletrados participantes da
viagem dentro do conto, mesmo que, “de certo, segredos ganham, as pessoas
estudadas”
142
. “[...] os que sabem ler e escrever, a modo que mesmo o trivial da idéia
deles deve de ser muito diferente”
143
. Apenas figuras enigmáticas ou simplórias
dentro do conto conseguem entender a mensagem, como o Gorgulho, uma figura
meio João Batista, morador de cavernas na região do Urubuquaquá, ou
Nominedômine:
“E com o esbarrão do Pedro Orósio ele se despertou e alevantou a
prumo a cabeça. –... Escutem minha voz, que é a do Anjo dito, o
papudo: o que foi revelado. Foi o Rei, o Rei-Menino, com a espada
na mão! Tremam, todos! Traço o sino de Salomão... Tremia as
peles este é o destino de todos: o fim de morte vem à traição, em
hora incerta, é de noite... Ninguém queira ser favoroso! Chegou a
Morte aconforme um que traz, um dessa banda do norte, eu
ouvi batendo tambor de guerra! Santo, santo, Deus dos
Exércitos... A Morte: a caveira, de dia e de noite, festa na floresta,
assombrando. A sorte do destino, Deus tinha marcado, ele com
seus Dôze! E o Rei, com os sete homens-guerreiros da História
retratinho do Dito. E disse que o Dito parecia uma pessôinha velha, muito velha em nova. Miguilim se
agarrou com a Rosa, em pranto de alívio; aquela era a primeira vez que ele abraçava a Rosa”. Id. Ibid.
pp.123-124.
140
Heloisa Vilhena de ARAUJO. O roteiro de Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa. São Paulo:
Editora Mandarim, 1996. pp.402-403. Segundo a autora, o “seoAlquiste representa o pensamento
científico, voltado para os elementos da natureza e para os corpos naturais e celestiais e Frei Sinfrão o
pensamento religioso, voltado para o exercício das virtudes. O seo Jujuca representa a parte prática da
vida, isso em relação à teórica, dos dois acima citados. Todos esses companheiros de Pedro Orósio.
Cf. Id. Ibid. p.410.
141
Id. Ibid. p.413.
142
João Guimarães ROSA. O recado do morro. In: No Urubuquaquá, no Pinhém. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2001. p.35.
143
Id. Ibid. p.34.
152
Sagrada, pelos caminhos, pelos ermos, morro a fora... Todos
tremeram em si, viam o poder da caveira: era o fim do mundo.
Ninguém tem tempo de se salvar, de chegar ate na Lapinha de
Belém, da manjedoura... Aceitem meu conselho, venham em
minha companhia... Deus baixou as ordens, temos de obedecer.
É o rico, é o pobre, o fidalgo, o vaqueiro e o soldado... Seja Caifaz,
seja Malaquias! E o fim é à traição. Olhem os prazos!...”
144
A constante repetição do recado do morro ou da mensagem do morro é o que
capacita Pedro, no fim final, a compreender o que lhe estava sendo dito desde o início
do conto. Mas isso somente a partir de uma introspecção, quando Pedro resolve ouvir
a si mesmo sobre o que estava sendo dito antes por muitos: o Gorgulho
(Malaquias), o Zaquias, o Guégue, o Joãozezim, o Nominedômine, o coletor e o
Laidelim.
Para Heloisa, entender o que estava sendo dito foi um aprender algo ao longo
de uma vida, a vida de Pedro, a travessia de um homem humano
145
. E esse
aprendizado tem algo sobre a espiritualidade, é a palavra de Cristo sendo dita e
repetida: “a palavra de Cristo é, portanto, um chamado para que se passe de uma
visão corporal, exercida na vida ativa, para uma visão espiritual, exercida na vida
interior”
146
. Porém, parece-me melhor compreender que é “Campo geral”, a história
de Miguilim e Dito, que melhor exemplificam os caminhos da religião dentro de
“Corpo de Baile”. Se não como centro do livro, com valor pendular, pelo menos
como conto iniciático. Miguilim [diz o conto] tinha oito anos. Quando completara
sete, havia saído dali [do Mutúm], pela primeira vez: [...]”
147
. Miguilim é o começo
da travessia, o começo da reflexão sobre a vida, o começo da formulação da palavra,
e o começo da vereda em direção ao sagrado. Ele é o menino-homem em construção
no conto. Em construção e em conflito. No conto ele tenta resolver três dos grandes
dilemas da vida: 1. o bem e o mal; 2. a morte e a vida; e 3. a tristeza (dor e
sofrimento) e a alegria.
144
Id. Ibid. pp.80-81.
145
Heloisa Vilhena de ARAUJO. O roteiro de Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa. São Paulo:
Editora Mandarim, 1996. p.415.
146
Id. Ibid. p.417.
147
João Guimarães ROSA. Campo geral. In: Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2001. p.27.
153
O primeiro dilema, que percorre toda a obra rosiana, começa na estória do
bilhete do Tio Terêz entregue a Miguilim para entregar a sua mãe:
“Mas não podia entregar o bilhete à Mãe, nem passar palavra a ela,
aquilo não podia, era pecado, era judiação com o Pai, nem não
estava correto. Alguém podia matar alguém, sair briga medonha,
Vovó Izidra tinha agourado aquelas coisas, ajoelhada diante do
oratório do demônio, de Caim e Abel, de sangue de homem
derramado. Não falava. Rasgava o bilhete, jogava os pedacinhos
dentro do rego, rasgava miúdo. E Tio Terêz? Ele tinha prometido
ao Tio Terêz, então não podia rasgar. Podia estar escrito coisa
importante exata, no bilhete, o bilhete não era dele. E Tio Terêz
estava esperando lá, no outro dia, saindo de detrás das árvores”
148
.
Então Miguilim sai para perguntar, primeiro para o Dito: “– Dito, como é que
a gente sabe certo como não deve de fazer alguma coisa, mesmo os outros não
estando vendo?“– A gente sabe, pronto””
149
. Depois para a Rosa: “Rosa, quando
é que a gente sabe que uma coisa que vai não fazer é malfeito?” “– É quando o diabo
está por perto. Quando o diabo está perto, a gente sente cheiro de outras flores...””
150
.
Depois para a mãe: “– Mãe, o que a gente faz, se é mal, se é, bem, ver quando é que
a gente sabe?” “– Ah, meu filhinho, tudo o que a gente acha muito bom mesmo fazer,
se gosta demais, então pode saber que é malfeito...”
151
. O vaqueiro e o vaqueiro
Salúz também tão suas opiniões:
“– Menino não carece de saber, Miguilim. Menino, o todo quanto
faz, tem de ser mesmo é malfeito...” [...] “– Sei se sei, Miguilim?
Nisso nunca imaginei. Acho quandos os olhos da gente estão
querendo olhar para dentro só, quando a gente não tem dispor para
encarar os outros, quando se tem medo das sabedorias... Então, é
mal feito””
152
.
Por fim, é o Dito que, nervoso de ver o irmão fazer a mesma pergunta a todos,
resolve responder outra vez ao irmão, e, assim, a compreensão de oposto se esvai:
“Tudo quanto há, antes de se fazer, às vezes é malfeito; mas depois que está feito e a
148
Id. Ibid. p.84.
149
Id. Ibid. p.86.
150
Id. Ibid. p.86.
151
Id. Ibid. p.87.
152
Id. Ibid. p.87.
154
gente fez, aí tudo é bem feito...”
153
. Mas Miguilim acha que a resposta do irmão é um
caçoar dele.
O dilema do bem e do mal que se estende até o “Grande Sertão: Veredas”,
que, para mim, nem no conto nem no romance posterior, é resolvido, para Heloisa
Araujo, encontra solução na “verdade
154
. Dizer a verdade ao Tio Terês, de que não
entregou o bilhete e que não entregaria
155
, libertou Miguilim do peso da
responsabilidade de resolver o que é o bem e o que é o mal, o dilema.
Depois, o segundo dilema é o da morte e da vida, um outro jogo de opostos.
Miguilim acha que vai morrer:
“Era um pensamento enorme, Miguilim tinha de rodear de todos
os lados, em beira dele. E isso era, era! Ele tinha de morrer? Para
pensar, se, carecia de agarrar coragem debaixo da exata idéia,
coraçãozinho dele anoitecia. Tinha de morrer? Quem sabia, só?
Então ele rezava pedindo: combinava com Deus, um prazo que
marcavam... Três dias. De dentro daqueles três dias, ele podia
morrer, se fosse para ser, se Deus quisesse. Se não, passados os três
dias, então ele não morria mais, nem ficava doente com perigo,
mas sarava! Enfim que Miguilim respirava forte, no mil de um
minuto, se coçando das ferroadas dos mosquitos, alegre quase.
Mas, nem nisso, mau! maior susto o salteava: três dias era curto
demais, doíam de assim tão perto, ele mesmo achava que não
agüentava... Então, então, dez. Dez dias, bom, como valesse de ser,
dava espaço de, amanhã, principiar uma novena. Dez dias. Ele
queria, lealdoso. Deus aprovava”
156
.
O medo da morte aproxima Miguilim de Deus. Sua morte ou a possibilidade
dela o leva a compreender e buscar mais da vida: “– Dito, eu às vezes tenho uma
saudade de uma coisa que eu não sei o que é, nem donde, me afrontando...”
157
. O
dilema, que volta na própria morte do Dito e também na morte de Diadorim, resolve-
se com a ressurreição, segundo Heloisa de Araujo. A frase do seu Aristeu é, para a
153
Id. Ibid. p.87.
154
Heloisa Vilhena de ARAUJO. O roteiro de Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa. São Paulo:
Editora Mandarim, 1996. p.432. A autora cita João 14:05: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”;
também poderia ter citado João 08:32 “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.
155
João Guimarães ROSA. Campo geral. In: Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2001. pp.94-95.
156
Id. Ibid. p.65.
157
Id. Ibid. p.73.
155
autora, anúncio do evangelho: “eu sou a ressurreição e a vida” (João 11:25)
158
:
“– Escuta, meu Miguilim, você sarou foi assim, sabe:
... Eu vou e vou e vou e vou e volto!
Porque se eu for
Porque se eu for
Porque se eu for
hei voltar...”
159
.
Por fim, como último dilema, está o sofrimento e a felicidade. O sofrimento
de Miguilim está na morte do irmão, bem como a compreensão da felicidade:
“Todos os dias que depois vieram, eram tempo de doer. Miguilim
tinha sido arrancado de uma porção de coisas, e estava no mesmo
lugar. Quando chegava o poder de chorar, era até, bom enquanto
estava chorando, parecia que a alma toda se sacudia, misturando ao
vivo todas as lembranças, as mais novas e as muito antigas. Mas,
no mais das horas, ele estava cansado. Cansado e como que
assustado. Sufocado. Ele não era ele mesmo. Diante dele, as
pessôas, as coisas, perdiam o peso de ser. Os lugares, o Mutúm – se
esvaziavam, numa ligeireza, vagarosos. E Miguilim mesmo se
achava diferente de todos. Ao vago, dava a mesma idéia de uma
vez, em que, muito pequeno, tinha dormido de dia, fora de seu
costume – quando acordou, sentiu o existir do mundo em hora
estranha, e perguntou assustado: “Uai, Mãe, hoje é
amanhã?!””
160
.
Mas antes de morrer o Dito havia dado a Miguilim a saída do sofrimento, mesmo em
meio a ele: “– “Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que
a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece
acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por
dentro!...””
161
.
Miguilim é o iniciador da viagem, da travessia. Mas ela também está presente
em Lélio e Lina, sendo Lélio o homem viator do conto e Rosalina, como figura da
158
Heloisa Vilhena de ARAUJO. O roteiro de Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa. São Paulo:
Editora Mandarim, 1996. p.430.
159
João Guimarães ROSA. Campo geral. In: Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2001. pp.78-79.
160
Id. Ibid. p.122.
161
Id. Ibid. p.119.
156
graça de Deus, de “Nossa Senhora”
162
, a condutora de Lélio por essa viagem. Ela é
aquela que mostra a Lélio as coisas de Deus: “falava muito em Deus, mas como se
Deus estivesse nem muito longe nem muito perto demais”
163
. Também ela, a viagem,
está presente em Cara-de-Bronze – como já visto em ponto anterior – com o vaqueiro
Grivo que busca algo para seu patrão. Soropita, em Dão-Lalalão, também é alguém
que quer fazer a viagem, mas que antes procura por soluções para os dilemas, para as
oposições. Já que Doralda, sua esposa, antes de ser esposa de casa, fina e doce, fôra
prostituta em casa de damas. Oposições vencidas por Manuelzão, que, no silêncio do
riachinho secado, encontrou a voz de Deus e, desse modo, passou de um ser
controlador a um ser controlado. Vencidas também por Lélio, que no “feio”
encontrou o “bonito”. Também por Liodoro, dona Lalinha e Glórinha em Buriti,
que, também na morte, descobriram segredos revelados por Dito a Miguilim: “Deus
nos dá pessoas e coisas, para aprendermos a alegria... Depois, retoma coisas e
pessôas para ver se já somos capazes da alegria sozinha... Essa a alegria que Ele
quer...”
164
.
2.5. Sertão e SerTão: o “Grande Sertão: Veredas” sincrético
As leituras de religião no entorno da “Palavra” no romance “Grande Sertão:
Veredas” se dão a partir do termo sincretismo, termo que passo a usar para a leitura
do texto, mesmo conhecendo os limites que o termo impõe ao texto rosiano, e os
limites que o texto rosiano, por ser literatura, apresenta ao termo.
O romance, se o que é pensado em termos de sincretismo é a combinação de
práticas religiosas tradicionais
165
, não possuiria nenhuma significativa contribuição
para tal problematização, que, no romance, não dados sobre o processo de
formação sincrética nem no contexto onde o romance se desenrola, nem de um
sincretismo pensado de forma geral, apesar de Rosa mencionar tal questão em
162
Heloisa Vilhena de ARAUJO. O roteiro de Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa. São Paulo:
Editora Mandarim, 1996. p.503.
163
João Guimarães ROSA. Lélio e Lina. In: No Urubuquaquá, no Pinhém. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001. p.236.
164
João Guimarães ROSA. Buriti. In: Noites do sertão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.304.
165
Nestor García CANCLINI. Noticias recientes sobre la hibridación. In: Heloisa Buarque
HOLLANDA e Beatriz RESENDE (orgs). Artelatina. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. p.73.
157
entrevista, mas sem se saber se ele falava do sertão geográfico ou do sertão
imaginado por ele:
“Nesse mundo trágico [o sertão] e cheio de tensão reinam deuses
que aparentemente recuaram ante o cristianismo mas que, na
realidade, são forças motrizes dele em que ainda se fiam e aos
quais obedecem um povo e um continente inteiro”
166
.
Tomando em consideração o texto de Canevacci, na relação com o romance,
percebe-se que o termo em si também possui suas próprias limitações, um problema
com o conceito de sincretismo. Canevacci apresenta termos que tentam, de alguma
forma, explicitar a complexa definição do termo: marronização, bricolagem,
bifurcação, mirrorshades (óculos espelhados), dialética, dialógica e polifonia
167
; aos
quais se acrescenta mestizaje, transculturación, creolización e hibridación de
Canclini; além do “mix juice and mix salada” de Tomio Fugita
168
.
O conceito de hibridação, processo que gera o híbrido, apresentado por
Canclini, parece servir muito bem para a conceituação daquilo que pode ser
entendido como forma de se falar de sincretismo dentro da literatura, principalmente
do romance de Rosa, obra literária aqui analisada. O termo tomado da biologia
refere-se ao processo de combinação de formas no caso do sincretismo, formas
culturais e religiosas – que, antes do processo, existiam separadas e que, no processo,
combinadas, geram o hibrido, uma forma melhor e mais adaptada ao seu contexto
169
,
com “nuevas estructuras, objetos y prácticas”
170
. Contudo, o termo bricolagem, do
francês aquilo que é feito de forma artesanal possui, dentro daquilo que quero
entender como sincretismo no romance de Rosa, um conceito-palavra melhor e mais
apropriado, já que o termo, que também pressupõe a utilização de duas coisas
separadas que misturadas formaram uma outra coisa, revela, ou a entender, um
166
Maria Apparecida Faria Marcondes BUSSOLOTTI (org). João Guimarães Rosa: correspondência
com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. pp.378-379.
(Correspondência de Curt Meyer-Clason, anexo ao dia 24 de Novembro de 1966).
167
Cf. Massimo CANEVACCI. Sincretismo: uma exploração das hibridações culturais. São Paulo:
Studio Nobel, 1996.
168
O termo nos foi apresentado pela colega Andréa Tomita em Colóquio de Doutorado a partir do
texto de Tomio FUJITA. Sincretismo: Mix juice and mix salada. In: Hirochika NAKAMAKI. Tosui
suru bunka chananbei no shukyo to shakai. Japan: Heibonsha, 1992.
169
Cf. Id. Ibid. p.64.
170
Nestor García CANCLINI. Noticias recientes sobre la hibridación. In: Heloisa Buarque
HOLLANDA e Beatriz RESENDE (orgs). Artelatina. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. p.62.
158
processo que acontece com mais naturalidade e menos engenhosidade do que na
hibridação. Porém, mesmo sendo os termos mais apropriados, tanto hibridação como
bricolagem que considero o melhor termo são termos insuficientes para tratar de
sincretismo dentro do romance “Grande Sertão: Veredas”. Assim, na impossibilidade
desses termos, assumo outro, utilizado por Francis Utéza: alquimia
171
. É o próprio
Rosa que diz: “escrever é um processo químico, o escritor deve ser um
alquimista”
172
. No uso do termo assumo também a preocupação de Utéza, a negação
do sincretismo como forma de leitura para romance:
“A tentação é grande de falar aqui de sincretismo: só pronunciamos
esta palavra, porém, para refutar sua validade. Não se trata
absolutamente da assimilação de elementos diversos tomados de
doutrinas diferentes. Trata-se da afirmação de que o Conhecimento
é Uno, embora se oculte embaixo de máscaras múltiplas herdadas
da história. A sabedoria, a iluminação, o satori são fruto de uma
alquimia interna que concilia os contrários e livra do “Mal”, do
encadeamento das causas e das conseqüências, da fluidez das
coisas, do Carma, da Nêmesis: os discípulos do Trismegisto
173
dizem com certeza a mesma coisa que os filhos do Céu”
174
.
Porém, mesmo negando o sincretismo mais o termo –, não vejo a
possibilidade de suprimi-lo de dentro do romance. Ele sempre estará lá. Contudo,
negá-lo e ampliá-lo para alquimia religiosa possibilita uma melhor leitura do
processo de mistura religiosa dentro do romance. O solve et coagula da alquimia
possibilita a compreensão do derretimento (solve) de duas ou várias formas de
religião, sua mistura e, por fim, sua reconfiguração (coagula) em algo que não é mais
171
Francis UTÉZA. João Guimarães Rosa: metafísica no Grande Sertão. (tradução: José Carlos
Garbuglio). São Paulo: EDUSP, 1994. pp.39-53.
172
Günter LORENZ. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Eduardo de Faria COUTINHO (org).
Guimarães Rosa. Rio de Janeiro / Brasília: Civilização Brasileira / Instituto Nacional do Livro, 1983.
(Coleção Fortuna Crítica). p.85.
173
“É verdade, sem mentira, certo e muito verdadeiro: O que está abaixo é como o que está acima e o
que está acima é como o que está abaixo para fazer os milagres de uma coisa, e do mesmo modo
que todas as coisas m sido e têm vindo de um pela mediação de um, assim todas as coisas são
nascidas desta coisa única por adaptação. O Sol é seu pai, a Lua é sua mãe, o vento o terá levado em
seu sonho, a terra é sua nutriz; o pai de tudo, o Thelesma de todo o mundo, está aqui; sua força e
potência serão completas se é convertido em terra. Separarás a terra do fogo, o sutil do espesso,
suavemente e com grande habilidade; subirá da terra ao céu e de novo descerá à terra, deste modo
recebe a força das coisas superiores e inferiores. Por este meio terás a glória de todo o mundo e toda
obscuridade se afastará de ti. É a força forte de toda força, pois vencerá toda coisa sutil e penetrará
toda coisa sólida. Assim foi criado o mundo. Disto se fará e surgirão admiráveis adaptações cujo meio
está aqui. Por isso sou chamado Hermes Trismegisto, porque possuo as três partes da sabedoria de
todo o mundo. O que disse da Operação do Sol está cumprido e acabado.” Tábua de Esmeralda.
174
Francis UTÉZA. João Guimarães Rosa: metafísica no Grande Sertão. (tradução: José Carlos
Garbuglio). São Paulo: EDUSP, 1994. p.53.
159
nenhuma das religiões anteriores: melhorada, ampliada, subjugada, co-existente etc;
mas sim uma outra experiência religiosa única e nova, impossível de ser novamente
separada, ou ainda, observada apenas a partir das partes que a constituíram, já que o
processo alquímico solveu (derreteu) as outras religiões e apenas a observação do
que foi coagulado, a nova coisa, é que dará a compreensão da nova religião ou
concepção religiosa existente. O que existia antes, as partes, podem ser apenas
parcialmente identificadas.
A múltipla pertença da personagem principal, no “Grande Sertão: Veredas,
Riobaldo,
“O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo
é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por
isso é que se carece principalmente de religião:
para desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara
loucura. [...] Muita religião, seu moço! Eu cá, não
perco ocasião da religião. Aproveito de todas.
Bebo água de todo o rio... Uma só, para mim é
pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão,
católico, embrenho a certo; e aceito as preces de
compadre meu Quelemém, doutrina dele, de
Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim,
onde o Matias é crente, metodista: a gente se
acusa de pecador, alto a Bíblia, e ora, cantando
hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende.
Qualquer sombrinha me refresca”
175
.
junto à múltipla pertença do autor, observadas nesse capítulo,
revela a múltipla pertença das imagens religiosas contidas no
romance, de deuses que não recuaram diante do cristianismo,
mas se tornaram forças motrizes dele. Algo que começa a ser
revelado, segundo Utéza, desde os inícios do livro: primeiro, na
própria capa do livro, nos desenhos de Poty, feitos a partir de
sugestões do autor, e, segundo, no próprio título e subtítulo do
livro. Os desenhos, tanto da primeira versão como da versão
definitiva, revelam, segundo Francis Utéza, o encontro entre o
oriente e o ocidente. As gravuras possuem imagens do Egito,
175
Id. Ibid. p.32.
160
como a esfinge; símbolos da astrologia, representados pelas letras
contidas nos desenhos VAB, D e R; o signo de Salomão, imagem
gráfica da “Pedra Filosofal” da tradição da alquimia
176
; o símbolo
do infinito; imagens cristãs, como as cruzes de Santo André e
igrejas do interior de Minas Gerais; imagens do sertão mineiro,
como os buritis e os animais; cenas do livro; e imagens do
diabo.
177
Ainda segundo Utéza, além dos desenhos, o próprio título
e subtítulo do livro revelam o encontro entre o ocidente e o
oriente. Para o autor, o “Grande
Sertão: Veredas”, título do livro, traz
nas três palavras contidas no mesmo
uma leitura do Taoísmo:
“[...] importa reter o que o adjetivo grande acrescenta ao
substantivo sertão. Não se trata apenas de uma simples questão
espacial: é a anteposição do próprio arquétipo, é o sagrado que se
instaura no além do profano. As veredas-oásis, que nos Gerais de
Minas e de Goiás equilibram os fluidos a secura do sertão, tornam-
se caminhos que levam ao conhecimento, ao princípio
indiferenciado do Tao dos orientais. [...] O Ser do Tao é o resultado
da dinâmica dos arquétipos yin e yang agindo em oposição-
complementaridade nas Veredas do Ser tão.”
178
Isso também se revela no entusiasmo de Guimarães Rosa demonstrado em
carta ao tradutor italiano de suas obras, Edoardo Bizzarri, em relação ao título que o
livro receberia na versão em alemão: “P.S. – O “Grande Sertão: Veredas” sairá ainda
este ano na França, com o título de “Diadorim”. E, também este ano, na Alemanha,
com o título de (!): “GRANDE SERTAO”. (Sem til.)”
179
.
176
Eu conhecia esse símbolo como estrela de Davi.
177
Francis UTÉZA. João Guimarães Rosa: metafísica no Grande Sertão. (tradução: José Carlos
Garbuglio). São Paulo: EDUSP, 1994. pp.58-64.
178
Id. Ibid. p.56.
179
João Guimarães ROSA e Edoardo BIZZARRI. João Guimarães Rosa: correspondência com seu
tradutor italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.150. (Correspondência de
João Guimarães Rosa , 07 de Abril de 1964. Acrescentado à mão.
161
Além disso, para Utéza, a água da vereda (solve) e a terra do sertão (coagula)
revelam também o processo de fusão dos materiais da tradição medieval hermético-
alquímico.
180
Já com relação ao subtítulo do livro: “o diabo na rua, no meio do
redemunho”, que é anúncio do desfecho da estória, possui “uma fórmula proverbial
cujo conteúdo folclórico é de origem portuguesa”
181
. O arquétipo rua é o espaço da
ação do diabo, que tudo confunde e bagunça (daimon), o que também possui
característica de uma re-escritura bíblica: “é Yahvé utilizando de Satã para irritar
Jó”
182
, um outro encontro textual.
Esses múltiplos encontros de tradições, culturas e religiões são também vistos
e entendidos por Utéza, a partir de uma análise exegética exaustiva dos nomes das
personagens e de seus contextos dentro do livro. Além de outras palavras e situações
específicas dentro do romance que também passaram pelo mesmo processo, que não
cabem aqui, nesse presente texto, serem analisados ou mesmo citados, já que essa
não é a intenção mesmo.
183
Por outro lado, no mesmo caminho interpretativo, considerando a religião
como ponto para a leitura do romance, Heloisa Vilhena de Araujo
184
, sem nenhuma
preocupação ou referência ao Taoísmo, apresenta o romance como um diálogo entre
Guimarães Rosa e Dante Alighiere. Ela entende o romance como uma viagem do
homem humano em direção a Deus, uma viagem de purgação e redenção, que,
diferente do livro de Dante, não acontece no purgatório ou no inferno, mas sim no
sertão mineiro, e tem o jagunço Riobaldo, narrador e protagonista do romance, como
180
Francis UTÉZA. João Guimarães Rosa: metafísica no Grande Sertão. (tradução: José Carlos
Garbuglio). São Paulo: EDUSP, 1994. p.56.
181
Id. Ibid. pp.56-57.
182
Id. Ibid. p.57.
183
O autor é extremamente detalhista nas observações de onde o autor do romance poderia ter tirado
determinada palavra, conceito, filosofia, lição de moral etc. O que acabou por tornar o seu livro um
tanto quanto cansativo. Apenas como forma de exemplo podemos apresentar Hermógenes, principal
inimigo de Riobaldo protagonista do romance, como filho de Hermes, da mitologia grega. Id. Ibid.
pp.292-300. O senhor Habão, fazendeiro extremamente ganancioso e que parece querer escravizar os
jagunços, da cultura judaica (Abraão). Id. Ibid. pp.211-218 além de outros personagens que são
identificados com personagens bíblicos: Bebelo com Moisés, Riobaldo com Josué e Jesus, João
Goanhá com João Batista. E, por fim, como exemplo, os catrumanos, um grupo de semi-humanos
encontrados pelo bando numa cidade destruída pela peste, das cartas do Tarô. Id. Ibid. pp.200-210: a
descrição dos mesmos é a descrição das cartas do Tarô: o arcano (morte), o papa, o valete de paus, o
rei de ouros e o valete de ouros.
184
Heloisa Vilhena de ARAUJO. O roteiro de Deus: dois estudos sobre a obra de Guimarães Rosa.
São Paulo: Mandarim, 1996. pp.13-376.
162
o homo viator
185
, que viaja pela narrativa do livro, na travessia da vida, em busca de
Deus.
Os termos céu, inferno, purgatório, graça, Deus, Diabo, pecado, traição
(ligado a Judas), cruzada
186
e redenção são, a partir dessa leitura, as palavras-chave
para a interpretação religiosa do romance. os termos yin e yang não são nem
mesmo citados por Heloisa Araújo, e a tradição cristã, que para Utéza possui um
caráter secundário no livro, é a tradição religiosa que serve como caminho principal
de leitura do romance. O “Grande SerTAO: Veredas” de Utéza é, para a autora, na
verdade, uma figuração, como livro, da própria Trindade
187
, da revelação e do
caminho da redenção, o verbo (logos-palavra) de Deus.
“[...] Grande sertão: veredas poderia, ainda, ser visto como
uma figuração da Encarnação: da significação, do espírito, que se
encarna no corpo do livro, na letra do livro. E, segundo santo
Tomás, [...], através do verbo exprime-se a Trindade inteira”. O
verbo é o caminho da Trindade.”
188
Para a autora, assim como também para Francis Utéza, Guimarães Rosa é
personagem do romance na figura de Riobaldo. Contudo, esse autor-personagem,
Guimarães-Riobaldo, segue por uma linha de compreensão da vida a partir das
veredas de Tomás de Aquino: a filosofia e a teologia, as duas veredas do cristianismo
segundo São Boaventura, que Heloisa passa a chamar de vereda filosófica e vereda
teológica
189
na obra de Guimarães Rosa. Para a autora, Guimarães Rosa é, na
verdade, o grande personagem do romance. Ele é a via interpretativa do texto e,
consequentemente, de toda a sua obra: “Guimarães Rosa é, ao que tudo indica, o
personagem único (polissêmico
190
) do Grande sertão: veredas, o “homem humano”
185
Id. Ibid. p.21.
186
Riobaldo é o líder da cruzada contra os Judas, os traidores.
187
Id. Ibid. p.93.
188
Id. Ibid. p.94.
189
“Segundo Santo Tomás de Aquino, a razão, sem a ajuda da revelação, pode provar a existência de
Deus, sem que, entretanto, possa conhecer sua essência. Essa nos é dada pela revelação.” Cf. Id. Ibid.
p.99.
190
Ele se diversifica nas muitas outras personagens que o texto carrega, principalmente em Riobaldo.
Além do cavalo “Manelzinho-da-Crôa”, o cavalo alado (Alighiere) e o cavalo guerreiro (Guimarães -
Wimara) que fazem a ligação entre os dois autores. Cf. Id. Ibid. p.121. Heloisa também utiliza da
exegese (etimologia e semântica) dos nomes dos personagens e de episódios específicos de cada um
desses para apresentar suas argumentações, mas o faz de forma mais agradável do que Utéza.
163
que percorre o itinerarium mentis ad Deum
191
, o caminho de Cristo, ou melhor, o
Cristo como “o caminho” (João 14:06)
192
. O romance também é uma alquimia, mas
agora entre a teologia cristã, principalmente Tomás de Aquino, e a filosofia-
mitologia grega, principalmente nas imagens dos filhos de Hermes
193
Hermógenes
(o daimon) e Diadorim (o hermafrodita).
Desse modo, fica difícil tentar esclarecer aquilo que já parece bastante claro
para os dois autores citados anteriormente. Ambos apresentam exaustivamente suas
argumentações, conseguindo demonstrar que Guimarães Rosa realmente bebeu de
toda essa água e, desta forma, embebedou também seu romance de conteúdos
religiosos de diversas fontes: do cristianismo, do kardecismo e, mesmo que Heloisa
Araújo não apresente nada quanto a isso, até mesmo do taoísmo. Fica também difícil
apresentar qual dos dois autores possui a melhor ou a maior razão naquilo que diz
respeito às fontes religiosas usadas pelo autor para a construção de seu texto, que
ambos apresentam percepções parciais dos conteúdos religiosos contidos na obra de
Rosa. Fica difícil também dizer qual foi exatamente a alquimia religiosa usada,
que todas essas influências estão dentro do romance, são perceptíveis, e, como
afirmei no ponto anterior sobre Benedito Nunes e Suzi Sperber, são conteúdos
religiosos difíceis ou impossíveis de serem separados, identificados e analisados
como fonte depois do solve et coagula de todo esse processo alquímico literário.
3. Uma literatura não-profana
“A língua e eu somos um casal de amantes que juntos procriam
apaixonadamente, mas a quem até hoje foi negada a benção
eclesiástica e científica. Entretanto, como sou sertanejo, a falta de
tais formalidades não me preocupa. Minha amante é mais
importante para mim”
194
.
191
Id. Ibid. p.121.
192
Cf. Id. Ibid. p.171.
193
Cf. Id. Ibid. pp.133ss.
194
Günter LORENZ. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Eduardo de Faria COUTINHO (org).
Guimarães Rosa. Rio de Janeiro / Brasília: Civilização Brasileira / Instituto Nacional do Livro, 1983.
(Coleção Fortuna Crítica). p.83.
164
Tomo a expressão que o próprio Guimarães Rosa usa para o conto “O
burrinho Pedrês”, um conto não-profano
195
, para intuir algumas das questões de
fundo da obra, que em verdade, em muitos casos e contos, estão bem na superfície.
Intuir o que se fez sem a bênção eclesiástica e científica. Dizer não-profano aqui é
conveniência, é algo, em princípio, mais adequado do que dizer sagrado, pelo menos
por enquanto.
para Harold Bloom, chamar de não-profana uma literatura secular, não
seria apenas uma questão de conveniência, mas sim de escolha. Para o autor, a linha
tênue que separa os textos sagrados das literaturas profanas é uma simples questão
política: “na grande literatura [diz Bloom], eu duvido que a secularização tenha
alcançado lugar. Chamar uma obra de força literária significativa de religiosa ou
secular é uma decisão política e não uma questão de estética”
196
. Em alguns casos,
como apontado pelo autor, nem há uma linha tênue, já que quando um texto é
canonizado na religião é feito por questão política, mesmo que nele haja uma força
estética, como no caso de J, re-elaborado, re-escrito e misturado pelo redator final do
Pentateuco
197
, e o evangelho de João
198
; e, quando canonizado pela literatura, o
cânone literário, é por uma questão estética, mesmo que nela haja uma
sensibilidade
199
religiosa, como quase sempre há. Dante, o escritor do Terceiro
Testamento, exemplo mais concreto dessa lógica em Bloom, é, na grande literatura, o
autor que melhor exemplifica tal conceito:
“Se você quer ler a “Comédia” [diz Bloom] como uma alegoria das
teologias, comece com o único teólogo que mais importava para
Dante: ele mesmo. A “Comédia”, como toda a grande obra
canônica, destrói a distinção entre texto sagrado e texto secular. E a
195
A expressão é “peça não-profana”, para ser mais exato. João Guimarães ROSA. Carta de João
Guimarães Rosa a João Condé, revelando segredos de Sagarana. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001. p.23.
196
“In high literature, I doubt that secularization has ever taken place. Calling a work of sufficient
literary power either religious or secular is a political decision, not an aesthetic one”. Harold BLOOM.
The western Canon: the books and school of the Ages. New York, San Diego and London: Hardcourt
Brace & Company, 1994. p.247.
197
Cf. Harold BLOOM e David ROSENBERG. The book of J. New York: Vintage Books, 1991.
335p.
198
Cf. Harold BLOOM. Jesus and Yahweh: the names divine. New York: Riverhead Books, 2005.
238p.
199
“A religious sensibility is very different from a religious belief, particularly in an era when is still
imposed […]”. Id. Ibid. p.167.
165
Beatriz é agora, para nós, a alegoria da fusão entre o sagrado e o
secular, a união de profecia e poema”
200
.
Dentro dessa lógica de Harold Bloom, toda a literatura que possuir “mastery
of figurative language” na produção de literatura de imaginação, “originality”,
“cognitive power”
201
, “knowledge” e “exuberance of diction”
202
, a amalgama da
força estética da poesia, do que Bloom chama de “aesthetic value”
203
da obra, pode
ser considerada uma literatura canônica, com força de religião. Essa seria uma
literatura que coloca o texto e o leitor num lugar “between truth and meaning”, o
“kenoma” gnóstico
204
.
No entanto, Harold Bloom não leva em consideração, pelo menos nas obras
que aqui foram lidas, a complexidade que o texto toma qualquer que seja ele, em
qualquer religião quando esse, dentro da religião, ganha status de texto canônico.
Para o autor, como visto, o texto antes de religioso é texto literário, e o que o leva a
ser religioso é uma conveniência política. Mesmo assim, quando ele se torna texto
canônico seu status de significação muda, pelo menos para o fiel. Mas não é isso o
que interessa a Bloom, e sim o valor estético da obra. Por outro lado, Northrop Frye
compreende bem a importância da Bíblia como texto literário, o que, segundo ele,
não se daria sem uma certa grandeza literária própria, a ponto de influenciar boa
parte da literária ocidental. Contudo, para o autor, a Bíblia é algo “mais” do que
apenas uma obra literária:
200
“If you want to read the Comedy as an allegory of the theologians, start with the only theologian
who truly mattered to Dante: Dante himself. The Comedy, like all of the greatest canonical works,
destroys the distinction between sacred and secular writing. And Beatrice is now, for us, the allegory
of the fusion of sacred and secular, the union of prophecy and poem”. Harold BLOOM. The western
Canon: the books and school of the Ages. New York, San Diego and London: Hardcourt Brace &
Company, 1994. p.81.
201
“History is no more a god or demiurgo than language is, but as a writer Shakespeare was a sort of
god. Shakespeare centers the Western Canon because he changes cognition by changing the
representation of cognition. Whitman centers the American canon because he changes the American
self and the American religion by changing the representation of our unofficial solves and our
persuasive if concealed post-Christian religion”. [A história não é mais deus ou demiurgo do que a
linguagem, mas, como escritor, Shakespeare foi um tipo de deus. Shakespeare é o centro do Cânone
Ocidental, por ele muda a cognição por mudar a representação da cognição. Whitman é o centro do
Cânone Americano porque ele muda a América e sua religião por mudar a representação da nossa
própria compreensão não oficial e mudar nossa oculta e persuasiva religião pós-cristã]. Id. Ibid. p.276.
202
Cf. Id. Ibid. p.29.
203
Cf. Id. Ibid. p.23. Cito apenas a página como exemplo daquilo que Bloom repete quase que
constantemente em sua obra, “the aesthetic value”, que se encontra, segundo ele, numa percepção
individual, o que se torna seu método, conforme página assinalada.
204
Id. Ibid. p.59.
166
“A abordagem da Bíblia de um ponto de vista literário não é de per
si ilegítimo: nenhum livro poderia ter uma influência literária tão
pertinaz sem possuir, ele próprio, características de obra literária.
Mas a Bíblia era tão obviamente mais do que uma obra literária,
seja o que este “mais” signifique, que uma metáfora quantitativa
não ajudava muito”
205
.
O que deu à Bíblia um status não só de Código de Fé, mas também de Código de
Arte
206
. Percebeu-se então que separar a Bíblia da literatura seria algo irracional
207
,
tanto por sua própria literariedade, quanto por sua influência em outras obras
literárias. Mas aqui a pergunta estaria relacionada ao inverso: e quanto à força
religiosa dos textos literários? Para Frye, a resposta começa com a percepção de que
a literatura, em nosso tempo, “dá continuidade à tradição de se criarem mitos”
208
. E o
mito, na religião, como visto em ponto anterior, é aquilo que amplia o sentido do
símbolo, dando significado ao que não se explicaria de outra forma.
Frye, seguindo Vico, separa as idades da linguagem humana em três fases:
hieroglífico, hierático e demótico
209
. A idade hieroglífica foi marcadamente mítica e
poética, foi onde se deu toda a produção literária anterior a Platão, como Homero e o
Velho Testamento. A segunda fase, a hierática, foi o tempo de uma “linguagem
individualizada” onde “as palavras tornaram-se a expressão exterior de pensamentos
e idéias interiores”
210
. Na terceira fase, a marca foi a transição da importância do
sujeito para o objeto, “o critério de verdade” passou a se relacionar “com a fonte
externa da descrição, ao invés de se relacionar com a consistência interna do
argumento”
211
. A principal diferença do deslocamento da linguagem do período
hieroglífico para o período demótico foi a mudança de evocação da palavra, “lá a
205
Northrop FRYE. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. (tradução de Flávio Aguiar). São
Paulo: Boitempo, 2004. p.14.
206
“Mesmo Blake, que avançou mais do que ninguém em sua época na identificação da religião com a
criatividade humana, não chamava a Bíblia de obra literária: ele dizia que “o Antigo e o Novo
Testamentos são o Grande Código da Arte”, frase que tomei como título deste livro depois de muitas e
longas reflexões sobre o que implica”. Id. Ibid. p.16.
207
Cf. Id. Ibid. p.17.
208
Id. Ibid. p.20.
209
“Vico denomina os três tipos, respectivamente, de poético, heróico ou nobre, e vulgar. Eu os
chamarei de hieroglífico hierático e demótico. [...] Os três termos de Vico, além de sua identificação
com a escrita, são muito sugestivos como ponto de partida para se pensar o lugar da Bíblia na história
da linguagem enquanto langage, embora no fim de minhas reflexões houvesse muito pouco de
Vico”. Id. Ibid. p.28.
210
Id. Ibid. p.30.
211
Id. Ibid. p.37.
167
palavra evocava a coisa, e hoje a coisa evoca a palavra”
212
. Além disso, houve
também um deslocamento de sentidos, do figurado ao literal. Até hoje não havia
diferença entre ambas, a percepção de uma linguagem separada entre figurada e
literal é fenômeno da linguagem demótica
213
.
“Se a primeira fase da langage é predominantemente poética, as
duas seguintes não o são; naturalmente os poetas procuram se
adaptar às novas condições lingüísticas. Na segunda fase a poesia
se adapta normalmente através da alegoria, como no caso de Dante,
onde uma narrativa metafórica corre em paralelo com uma
conceitual, mas aquela sempre manifesta deferência por esta. Ou
seja, no período metonímico, Dante, como um mero poeta, embora
um dos grandes, jamais seria reconhecido como uma autoridade em
assuntos religiosos, como o eram os teólogos e outras fontes do
lado conceitual de sua alegoria. Na terceira fase a literatura se
adapta sobretudo através do que se chama usualmente de realismo,
adotando categorias como probabilidade e plausibilidade como
instrumentos retóricos”
214
.
Dessa forma, à literatura deu-se o papel de continuadora dos sentidos
metafóricos da idade hieroglífico, o mito
215
. Porém, nas sociedades hieroglíficas, o
mito tinha papel duplo, o de diversão, quando para esse fim era criado
216
, e o
sagrado, quando servia para a estruturação da comunidade
217
, produzindo sentido e
significado. Reformular o mito significaria reformular a sociedade. Para Frye, foi
Milton quem primeiro percebeu que a mudança da metáfora era algo mais importante
que a mudança nas doutrinas
218
. Nisso tudo que se passa, diz o autor:
212
Id. Ibid. p.38.
213
Id. Ibid. p.48.
214
Id. Ibid. p.50.
215
“Decorre daí que a literatura seja descendente direta da mitologia, se é que dela podemos falar
como sendo descendente”. Id. Ibid. p.61.
216
Id. Ibid. p.59.
217
“[...]o interesse real do mito é o de traçar uma circunferência em torno de uma comunidade humana
e olhar ali dentro para aquela comunidade; [...]. Id. Ibid. p.64.
218
Id. Ibid. p.115. Dissemos antes que as grandes estruturas doutrinárias do passado, aquelas que
identificamos como católicas, protestantes e similares, sempre tenderam a fazer de si mesmas antitipos
da narrativa e das imagens bíblicas. Elas são elaboradas para estabelecerem a reivindicação: isto é que
significa sua revelação nuclear, e assim é que você deve entendê-la. Tais sistemas de fé, conquanto
sejam ainda impressionantes e úteis, dificilmente são definitivos para nós, porque são pesadamente
condicionados pelas fases da linguagem que eram ascendentes em seu tempo fosse a metonímica,
fosse a descritiva. Uma reconsideração da Bíblia pode se realizar como parte e em conjunto com
uma reconsideração da linguagem, e de todas as estruturas, inclusive as literárias, que a linguagem
produz. Pode-se ter a esperança de que neste contexto o objetivo de tal reconsideração seria mais de
ensaio, e um ensaio dirigido não a um ponto final de crença mas a uma comunidade aberta de visão, e
à caridade que é o princípio de informação para uma comunidade ainda maior do que a da fé. Id. Ibid.
p.266.
168
“[...] a peça literária está adquirindo a qualidade existencial de
entrar na vida de alguém e de se transformar em possessão pessoal
A capacidade de adquirir essa qualidade de se tornar citável perante
uma variedade de situações é imprevisível: [...] a literatura [neste
sentido] pode adquirir o mesmo elemento descentralizados que
discutimos em relação à Bíblia”
219
.
Porém, tudo o que se disse sobre a literatura de Rosa até o presente momento,
foi sobre relações, descrições, apreensões e influências dentro daquilo que se
entenderia como traços de uma correspondência pela palavra entre religião, teologia
e literatura. Mas, para além dessa apreensão das coisas e da descrição dessas coisas,
das relações e das influências, formada dentro de uma literatura polissêmica, densa,
meio regionalista, cheia de dizeres mineiros, às vezes numa linguagem de Iauaretê
220
,
física e metafísica, onde “tudo é e não é”, há mais do que apenas uma leitura e
escritura de uma religião presente tanto no regionalismo do autor, nas Minas Gerais
“cristã católica”, como no sincretismo alquímico, quanto no universalismo do Sertão
e do SerTao, das muitas águas dos muitos rios desse sertão. também uma
preocupação de anúncio, de convite, de chamado, de percepção de mundo e de
sentidos:
“Disseram-me que isso era blasfemo, mas eu sustento o contrário.
Sim! A língua dá ao escritor a possibilidade de servir a Deus
corrigindo-o, de servir ao homem e de vencer o diabo, inimigo de
Deus e do homem. A impiedade e a desumanidade podem ser
reconhecidas na língua. Quem se sente responsável pela palavra
ajuda o homem a vencer o mal”
221
.
Para Rosa, que entende a vida e a palavra como uma coisa junta, cosidas na
dinâmica da existência, a literatura tem papel maior do que de apreensão e descrição,
denúncia ou estética, é instrumento intuitivo de formação e reformulação: “somente
renovando a língua é que se pode renovar o mundo”
222
, segundo o autor. E isso passa
por Deus, ou seja, é um plano de religiosidade:
219
Id. Ibid. p.256.
220
Cf. Harold de CAMPOS. A linguagem do Iauaretê. In: Eduardo de Faria COUTINHO (org).
Guimarães Rosa. Rio de Janeiro / Brasília: Civilização Brasileira / Instituto Nacional do Livro, 1983.
(Coleção Fortuna Crítica). pp.574-579.
221
Günter LORENZ. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Id. Ibid. p.84.
222
Id. Ibid. p.88.
169
“devemos conservar o sentido da vida, devolver-lhe esse sentido,
vivendo com a língua. Deus era a palavra e a palavra estava com
Deus. Este é um problema demasiado rio para ser largado nas
mãos de uns poucos ignorantes com vontade de fazer
experiências”
223
.
Se isso é vero em Rosa, tanto na sua consciência como em sua obra, pode-se
dizer que sua literatura tem ares de uma literatura de religião, não no sentido estrito,
em “fileiras de qualquer confissão ou seita”
224
, mas de uma religiosidade esotérica,
sincrética, panenteísta e libertadora, preocupada com o humano e com o
transcendente.
“Eu não sei o que sou. Posso bem ser cristão de confissão
sertanista, mas também pode ser que eu seja taoísta à maneira de
Cordisburgo, ou um pagão crente à la Tolstoi. No fundo, tudo isto
não é importante. Como homem inteligente, às vezes pode-se sentir
necessidade de se tornar um beato ou um fundador de religiões. A
religião é um assunto poético e a poesia se origina da modificação
de realidades lingüísticas. Desta forma, pode acontecer que uma
pessoa forme palavras e na realidade esteja criando religiões. Cristo
é um bom exemplo disso”
225
.
Essa linguagem, mais icônica do que digital
226
, seria o rio sem margens da
literatura, o ideal do peixe
227
; seria também o ideal da religião, uma espiritualidade
sem credos; bem como o ideal da teologia, um sem limites na percepção de Deus e
no discurso sobre Ele, de seus mistérios e de sua relação com a vida
228
: “fundar a
223
Id. Ibid. p.88.
224
João Guimarães ROSA; Edoardo BIZZARRI. João Guimarães Rosa: Correspondência com seu
tradutor Italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.90. (Correspondência de
João Guimarães Rosa, 25 de Novembro de 1963).
225
Günter LORENZ. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Eduardo de Faria COUTINHO (org).
Guimarães Rosa. Rio de Janeiro / Brasília: Civilização Brasileira / Instituto Nacional do Livro, 1983.
(Coleção Fortuna Crítica). p.92.
226
Cf. Juan Luis SEGUNDO. O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré. São Paulo: Paulinas, 1985.
Vol. I. (Coleção Fé e Ideologia). pp.179-217. Tb. “[...] a narração (assim como outros gêneros
literários de tipo icônico, preferidos pelo Antigo Testamento) torna o dogma “acreditável””. Id. O
dogma que liberta: fé, revelação e magistério dogmático. São Paulo, Paulinas: 2000. p.187. Enquanto
que a linguagem digital (científica) torna a coisa mais seca, menos crível e menos re-formulável. Id.
Ibid. p.185.
227
“Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum dia já tivessem
existido septos, limitações, tabiques, preconceitos, a respeitos de normas, modas, tendências, escolas
literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições – no tempo e no espaço. Isso, porque: na panela
de pobre, tudo é tempêro. E, conforme aquêle sábio salmão grego de André Maurois: um rio sem
margens é o ideal do peixe”. João Guimarães ROSA. Carta de João Guimarães Rosa a João Condé,
revelando segredos de Sagarana. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.24.
228
Cf. Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura
em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. (Coleção: Literatura e Religião). pp.170ss.
170
existência na margem é optar em não avançar nas águas [como o filho, que conta a
estória do pai que toma uma canoa, encomendada, e entra no rio, para não mais
voltar
229
] é contentar-se em contemplar a imensidão, conformando-se em meditar
como seria a profundidade e a busca nos espaços sem margem”
230
. E isso nos deixa à
beira da última vereda para a leitura de Guimarães Rosa no diálogo entre teologia e
literatura, o Sagrado.
Conclusão
A “Palavra” como vereda em Guimarães Rosa toma esses caminhos, mais de
influências de temas e de textos. Por essa razão, neste capítulo, procurou-se, a partir
de diversos autores e autoras, descrever as muitas leituras de Guimarães Rosa e as
consequências dessas muitas leituras na produção de sua obra. Toda palavra lida
tornou-se palavra re-escrita, algumas vezes como afirmação ou reafirmação do texto,
das idéias ou crenças anteriores, ou, em muitos casos, como refutação ou
desescritura, nos dizeres de Harold Bloom. Também foi possível observar que na
palavra escrita, principalmente no sertão imaginado, que o que antes existia de forma
separada, como crenças antagônicas e inconciliáveis, tornou-se, num processo
alquímico literário, uma coisa nova, um mito novo, reconciliador e resignificador.
Mas a palavra também toma caminhos de uma literatura que se pressupõe
como mais do que literatura. Não que o ser literatura não seja em si suficiente, mas
porque, para muitos, a literatura é sempre menos como palavra. E em Rosa a palavra
procura por ser mais, dizer mais e de forma mais forte, pois ele não escreve para o
agora: “A gente tem de escrever para setecentos anos. Para o Juízo Final. Nenhum
esforço suplementar fica perdido”
231
. Desse modo ela abre no diálogo entre teologia
e literatura, como dito, uma outra vereda de correspondência, a vereda do sagrado,
que, como vereda, não apenas amplia as possibilidades das duas veredas anteriores,
vida e palavra, dando ao diálogo um possível e terceiro caminho, mas também solve
229
Cf. João Guimarães ROSA. A terceira margem do rio. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001. pp.79-85.
230
Id. Ibid. p.172.
231
Maria Apparecida Faria Marcondes BUSSOLOTTI (org). João Guimarães Rosa: correspondência
com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.235. (Carta de
09 de fevereiro de 1965).
171
et coagula as duas veredas anteriores em uma experiência literária, teológica e
religiosa dentro da obra rosiana, dada e vivenciada tanto pelo autor, quanto pelos
leitores mais crentes.
Assim, para não entrar muito em questões mais escatológicas pertencentes ao
quarto capítulo, parafraseando Vinicius de Moraes, aproveitando a lógica do
palimpsesto, em o “Samba da Bênção”, fecho o presente capítulo:
[A literatura] tem que ter
Qualquer coisa além de beleza
Qualquer coisa de triste
Qualquer coisa que chora
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado
Uma beleza que vem da tristeza
De se saber [literatura]
Fazer [literatura] não é contar piada
E quem faz [literatura] assim não é de nada
[A boa literatura] é uma forma de oração
Porque [a literatura] é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não”
232
.
Guimarães Rosa diz que como escritor pensa em eternidades e na ressurreição
do homem
233
, e isso, na literatura, é qualquer coisa mais do que beleza, é uma forma
de oração. Ela é, como palavra”, uma forma de falar de Deus e do humano, sem a
bênção eclesiástica e sem a bênção da ciência. Mas isso não lhe foi empecilho nem
impedimento, nem o deveria ser para a teologia.
232
Vinicius de MORAES e Baden POWELL. Samba da Bênção. É melhor ser alegre que ser triste /
Alegria é a melhor coisa que existe / É assim como a luz no coração / Mas pra fazer um samba com
beleza / É preciso um bocado de tristeza / É preciso um bocado de tristeza / Senão, não se faz um
samba não / Senão é como amar uma mulher linda / E daí? Uma mulher tem que ter / Qualquer
coisa além de beleza / Qualquer coisa de triste / Qualquer coisa que chora / Qualquer coisa que sente
saudade / Um molejo de amor machucado / Uma beleza que vem da tristeza / De se saber mulher /
Feita apenas para amar / Para sofrer pelo seu amor / E pra ser perdão / Fazer samba não é contar
piada / E quem faz samba assim não é de nada / O bom samba é uma forma de oração / Porque o
samba é a tristeza que balança / E a tristeza tem sempre uma esperança / A tristeza tem sempre uma
esperança / De um dia não ser mais triste não / [...]”.
233
Günter LORENZ. Diálogo com Guimarães Rosa. Eduardo de Faria COUTINHO (org). Guimarães
Rosa. Rio de Janeiro / Brasília: Civilização Brasileira / Instituto Nacional do Livro, 1983. (Coleção
Fortuna Crítica). p.78.
172
IV. O SAGRADO ROSIANO: LEITURAS NO “GRANDE SERTÃO:
VEREDAS”
“Mas eu vinha bem-andante, e ávido, aberto a todas as
alegrias, querendo agarrar mais prazeres, horas de inteira terra. Por
que vim? Foi-me dado, ainda no último momento, dizer que não,
recusar-me a este posto. Perguntaram-me se eu queria. Ante a
liberdade de escôlha, hesitei. Deixei que o rumo se consumasse,
temi o desvio de linhas irremissíveis e secretas, sempre foi minha
ânsia querer acumpliciar-me com o destino. E, hoje em dia, tenho a
certeza: toda liberdade é fictícia, nenhuma escôlha é permitida;
então, a mão secreta, a coisa interior que nos movimenta pelos
caminhos árduos e certos, foi ela que me obrigou a aceitar. O mais-
fundo de mim mesmo não tem pena de mim; e o mais-fundo de
meus pensamentos nem entende as minhas palavras”
1
.
Introdução
Depois de passar por duas das veredas proposta para esta tese, vida e palavra,
chega-se a última dessas veredas, a terceira e última, o sagrado. Talvez a maior
dificuldade, em princípio, como se verá, é o de dar, no presente texto, a clara
compreensão do que se quer dizer com “sagrado”, principalmente em relação ao
diálogo com a literatura.
Essa mesma preocupação ocupou também espaço no capítulo anterior, que
o mesmo tratou de literatura profana e de texto sagrado, texto da cultura e literatura
da religião. Por isso mesmo, alguns teóricos que tratam do assunto foram
apresentados lá, no primeiro ponto do terceiro capítulo, com o fim mesmo de que
eles servissem tanto para o terceiro como para o quarto capítulo da tese.
Por agora, sagrado diz respeito àquilo que faz parte da relação e da
experiência humana com aquilo que lhe escapa, que lhe transcende. Obviamente que
1
João Guimarães Rosa. Párano. In: Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.265.
173
essa rápida explicação dada não dá conta daquilo que se quer dizer com o “sagrado”,
pois ele, o termo, de certa forma, é sempre maior do que as delimitações que a ele
são impostas, ele sempre dirá mais do que quer dizer. Outros termos, usados também
por outros autores que trabalham o diálogo entre teologia e literatura, também sem
muitas explicações e delimitações semânticas, serão usados: religião, religiosidade,
espiritualidade e teologia.
No entanto, a preocupação não está exatamente em apresentar ou delimitar o
que quer dizer “sagrado”. Mas sim, e esta é a vereda, em apresentar os caminhos do
sagrado dentro da obra rosiana ou os caminhos da obra rosiana a partir das relações
com o sagrado, no presente capítulo, de forma mais específica, no “Grande Sertão:
Veredas”. E, dessa forma, na narrativa de Riobaldo, apresentar as leituras feitas sobre
a vida, a palavra e a relação de ambos com o sagrado, bem como das observações da
existência e da experiência humana a partir da relação e da visão que se tem de Deus
e do diabo.
Vida, palavra e sagrado formam esse caminho de leitura. O sagrado é a última
dessas veredas por onde sequer trilhar, a veredazinha final do diálogo: “Digo ao
senhor: o diabo não existe, não há, [...] mas que Deus não há. Estremeço
2
.
1. Religião e Sertão: o sagrado como mais do que um tema
Observando entrevistas de Guimarães Rosa, bem como suas
correspondências, pode-se dizer que o tema central de suas obras, sem nenhuma
sombra de dúvida, é um tema (ou temas) que nos arremete ao sagrado. Além disso e
de outro modo, observando seus muitos contos e seu romance, o “Grande Sertão:
Veredas”, também poderia ser dito que o sagrado é um tema dentro da obra rosiana,
uma outra e terceira vereda de correspondência no diálogo entre teologia e literatura,
o que tornaria a sua obra um lugar de observação das múltiplas experiências
religiosas, tanto das institucionalizadas como das populares, descritas nos textos,
como já foi feito e como ainda, em parte, vai se fazer nesse presente capítulo.
2
Id. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.76.
174
De certa forma, algumas das conhecidas e citadas falas de Guimarães Rosa
em entrevista a Günter Lorenz e das cartas a Edoardo Bizzari, revelam essa
preocupação do autor com questões que dizem respeito à relação do humano com
aquilo que o transcende:
“Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar
um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente, impossível,
perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é chamada “realidade”,
que é a gente mesmo, o mundo, a vida. Antes o obscuro que o
óbvio, que o frouxo. Toda gica contém inevitável dose de
mistificação. Toda mistificação contém boa dose de inevitável
verdade. Precisamos também do obscuro”
3
.
Na entrevista concedida a Lorenz, ele diz “sou escritor e penso em
eternidades. [...] Eu penso na ressurreição do homem”
4
. Vindo de Guimarães Rosa,
para quem conhece sua obra, isso não soa como expressão acontecida ao acaso ou de
forma não pensada. Realmente esta é a sua preocupação: as eternidades e a
ressurreição humana. Também não são inocentes frases como:
“os meus livros, em essência, são “anti-intelectuais” defendem o
altíssimo primado de intuição, de revelação, de inspiração sobre o
bruxolear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, a megera
cartesiana. / Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades,
com os Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, com
Bergson, com Berdiaeff – com Cristo, principalmente”, [...]
5
.
que os textos foram produzidos de uma forma a conter uma preocupação e uma
linguagem intuitiva, produzida em proximidade com a narrativa oral
6
: “estou
contando fora, coisas divagadas”
7
, para exatamente tornar menos possível a
3
Maria Apparecida Faria Marcondes BUSSOLOTTI (org). João Guimarães Rosa: correspondência
com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.238.
Correspondência de João Guimarães Rosa, 09 de Fevereiro de 1965.
4
Id. Ibid. p.78.
5
João Guimarães ROSA; Edoardo BIZZARRI. João Guimarães Rosa: Correspondência com seu
tradutor Italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.90. Correspondência de
João Guimarães Rosa, 25 de Novembro de 1963.
6
“Essa adesão [a determinadas concepções do sagrado] começa pelo resgate de uma tradição oral, que
é proveniente da narrativa popular (do contador de histórias, fabulista sertanejo e do griot africano,
memória viva da comunidade), modelo e/ou matéria prima da qual se apropriam [Guimarães Rosa e
Mia Couto] para, por meio do engenho artístico, traduzir o poder encantatório que freqüentemente se
perde na transposição do oral para a escrita”. Eduardo de Araújo TEIXEIRA. A reabilitação do
sagrado nas estórias de João Guimarães Rosa e Mia Couto. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas - USP, 2005. p.22.
7
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.37.
175
racionalização e mais claro o primado da intuição, da revelação e da inspiração.
Além de que os autores, personagens ou textos citados por ele nessa resposta a
Lorenz, realmente embebedam seus livros, como já visto em capítulo anterior.
Nem é inocente a frase: “a religião é um assunto poético e a poesia se origina
da modificação de realidades lingüísticas. Desta forma, pode acontecer que uma
pessoa forme palavras e na realidade esteja criando religiões. Cristo é um bom
exemplo disso”
8
. Guimarães Rosa pressupõe (ou pelo menos esse é o desejo dele)
que sua obra seja uma forma de mudar a visão do humano em relação ao que lhe
transcende, mudando sua forma de ser e também de se transcender: “a língua ao
escritor a possibilidade de servir a Deus corrigindo-o, de servir ao homem e de
vencer o diabo, inimigo de Deus e do homem”
9
. E isso não seria apenas descrever a
religiosidade, mesmo sendo pensada como reabilitação
10
, seria uma forma (ou
tentativa) de modificar a própria religiosidade, apresentando, de forma profético-
poética, uma escritura outra, baseada na escritura anterior, como um palimpsesto,
mas outra, não superior ou melhor, mas outra como forma de nova interpretação e
proposição em relação à primeira, ou melhor, em relação aos leitores-intérpretes
comuns dessa escritura primeira, a religião oficial e institucionalizada. Desse modo,
o sagrado não seria apenas tema, seria algo mais, seria o que se deseja alcançar. A
literatura rosiana não descreve o sagrado e nem procura ser sagrada, como é a
literatura sagrada, a Bíblia, mas intenta, assim como a própria literatura sagrada,
intuir a experiência com o divino, num “sentir-pensar”
11
próprio, a “lógica do
ilógico”
12
, ou, nos dizeres de Rudolf Otto, o que é não-racional na constituição da
mentalidade humana. Hygia Ferreira, em sua dissertação de mestrado, resumiria tudo
isso em uma compreensão simples e objetiva: Rosa, “enquanto viveu [e escreveu],
8
Günter LORENZ. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Eduardo de Faria COUTINHO (org).
Guimarães Rosa. Rio de Janeiro / Brasília: Civilização Brasileira / Instituto Nacional do Livro, 1983.
(Coleção Fortuna Crítica). p.92.
9
Id. Ibid. p.84.
10
Eduardo de Araújo Teixeira parece, com sua tese, defender a idéia de Guimarães Rosa e Mia Couto
(um outro autor com quem ele trabalha) procuraram com suas obras, reabilitar o sagrado perdido em
decorrência de um contexto de secularização social. É uma forma de adesão para a reabilitação. Rosa
em relação à cultura popular cristã mineira e Mia Couto às práticas de crença na ancestralidade de
uma religiosidade tradicional africana, em Moçambique. Cf. Eduardo de Araújo TEIXEIRA. A
reabilitação do sagrado nas estórias de João Guimarães Rosa e Mia Couto. São Paulo: Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP, 2005. (Tese de Doutorado).
11
Günter LORENZ. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Eduardo de Faria COUTINHO (org).
Guimarães Rosa. Rio de Janeiro / Brasília: Civilização Brasileira / Instituto Nacional do Livro, 1983.
(Coleção Fortuna Crítica). pp.91-92.
12
Id. Ibid. p.92.
176
tentou edificar o seu templo, fundar a sua religião, criar o seu microcosmo, enfim,
figurar a sua própria mística, que se transfigura poeticamente através do coração e da
linguagem do sertanejo brasileiro”
13
.
O sertão como espaço da existência e da religião
Ainda nessas mesmas entrevistas e cartas, Guimarães Rosa também nos
aponta o de onde ele fala, e esse lugar é o sertão. Ele mesmo não intenta esconder seu
regionalismo (acusação que lhe foi imposta por muitos críticos, mas isso, como diria
Riobaldo: é uma questão de opiniães). Diz ele: “em Minas Gerais; sou mineiro. E
isto sim é o importante, pois quando escrevo, sempre me sinto transportado para esse
mundo”
14
. Mas esse sertão não lhe é apenas região, é seu povo e sua linguagem:
“É que eu sou antes de mais nada este “homem do sertão”; e isto
não é apenas uma afirmação biográfica, mas também, e nisto pelo
menos eu acredito tão firmemente como você, que ele, esse
“homem do sertão”, está presente como ponto de partida mais do
que qualquer outra coisa”
15
.
Desse modo, se o “homem do sertão” é o ponto de partida e se a linguagem é
a do sertanejo, o lugar pode ser o sertão: Minas Gerais, Bahia e Goiás (hoje
também Tocantins). Mas esse sertão não é apenas um lugar geográfico, é, também e
primeiro, uma ficção que universaliza: “o sertão é do tamanho mundo”
16
. Esse lugar
anacrônico do interior agreste do Brasil, revela-se como algo mais do que apenas
esse lugar específico: “o sertão [em verdade] é sem lugar”
17
. Depois, em segundo, o
sertão pode ser também o lugar da pobreza
18
e da violência, a condição humana em
seus extremos:
13
Hygia Therezinha Calmon FERREIRA. A sagrada “escritura” de João Guimarães Rosa. São José
do Rio Preto: Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Paulista - UNESP,
1983. p.01.
14
Günter LORENZ. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Eduardo de Faria COUTINHO (org).
Guimarães Rosa. Rio de Janeiro / Brasília: Civilização Brasileira / Instituto Nacional do Livro, 1983.
(Coleção Fortuna Crítica). p.65.
15
Id. Ibid. p.65.
16
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.89.
17
Id. Ibid. p.370.
18
Isso foi visto de forma mais detida no segundo capítulo desta tese.
177
“Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as
astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é
um pedacinhozinho de metal...”
19
.
“Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde homem tem de ter dura
nuca e mão quadrada”
20
.
“Órfão de conhecença e de papéis legais, é que a gente vê mais,
nestes sertões”
21
.
Mas ele é também espaço das crenças e crendices
22
, dos imaginários e, de forma
mais forte, da vida humana, a travessia: “sertão é isto: o senhor empurra para trás,
mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se
espera; digo”
23
.
“Ah, mas, no centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a
razão mais certa e de mais juízo!”
24
“No sertão, até enterro simples é festa”
25
.
“O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o
senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos
governa...”
26
.
O sertão é também o lugar das contradições. Da existência, convivência e luta entre
os opostos, entre Deus e o diabo:
“Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo”
27
.
19
Id. Ibid. p.35.
20
Id. Ibid. p.126.
21
Id. Ibid. p.57.
22
“Mas diverso do que se vê, ora ora ali lá. Como deu uma moça, no Barreiro-Novo, essa desistiu
um dia de comer e bebendo por dia três gotas de água de pia benta, em redor dela começaram
milagres. Mas o delegado-regional chegou, trouxe os praças, determinou o desbando do povo,
baldearam a moça para o hospício de doidos, na capital, diz-se que ela foi cativa de comer, por
armagem de sonda. Tinham o direito? Estava certo? Meio modo, acho que foi bom. Aquilo não era o
que em minha crença eu prezava. Porque, num estalo de tempo, já tinham surgido vindo milhares
desses, para pedir cura, os doentes condenados: lázaros de lepra, aleijados por horríveis formas,
feridentos, os cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo:
criaturas que fediam. Senhor enxergasse aquilo, o senhor desanimava. Se tinha um grande nojo. Eu
sei: nojo é invenção, do Que-Não-Há, para estorvar que se tenha dó. E aquela gente gritava, exigiam
saúde expedita, rezavam alto, discutiam uns com outros, desesperavam de sem virtude requeriam
era sarar, não desejavam Céu nenhum”. Id. Ibid. p.75. Cf. também a estória de Maria Mutema, mulher
que matou o marido e um padre e que, depois de arrependida e de ter confessado o crime, virou santa.
Id. Ibid. pp.238-243.
23
Id. Ibid. p.302.
24
Id. Ibid. p.301.
25
Id. Ibid. p.74.
26
Id. Ibid. p.511.
178
“Deus deixou. Deus é urgente sem pressa. O sertão é dele
28
”.
“Remanso de rio largo... Deus ou o demo, no sertão...”
29
.
“Satanão! Sujo!... e dele disse somentes – S... – Sertão...
Sertão...”
30
.
– “O sertão é bom. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado...” –
ele seo Ornelas dizia. – “O sertão é confusão em grande demasiado
sossego...”
31
.
O sertão também pode até ser o lugar da religião, mas a religião que se
professa no sertão é a religião do sertão:
“não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão
fala-se a língua de Goethe, Dostoievski e Flaubert, porque o sertão
é o terreno da eternidade, da solidão, onde o interior e o exterior
não podem ser separados, segundo Westöstlicher Divan [obra de
Goethe]. No sertão, o homem é o eu que ainda não encontrou um
tu, por isso ali os anjos ou o diabo ainda manuseiam a língua. O
sertanejo, você mesmo escreveu isso [Rosa fala de Lorenz, em
crítica escrita sobre a edição alemã do “Grande Sertão: Veredas”],
“perdeu a inocência no dia da criação e não conheceu ainda a força
que produz o pecado original”. Ele está ainda além do céu e do
inferno. “É o homem que perdeu Deus e encontrou o diabo””
32
.
Mas o sertão parece ser principalmente condição de existência:
“A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando
conta dele a dentro... Agora perdi. Estou preso”
33
.
“– “Sertão não é maligno nem caridoso, mano oh mano!: – ...ele
tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor
mesmo”
34
.
“[...] o sertão é uma espera enorme”
35
.
27
Id. Ibid. p.172.
28
Id. Ibid. p.519.
29
Id. Ibid. p.577.
30
Id. Ibid. p.607.
31
Id. Ibid. p.470.
32
Günter LORENZ. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Eduardo de Faria COUTINHO (org).
Guimarães Rosa. Rio de Janeiro / Brasília: Civilização Brasileira / Instituto Nacional do Livro, 1983.
(Coleção Fortuna Crítica). p.86.
33
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.295.
34
Id. Ibid. p.537.
35
Id. Ibid. p.591.
179
Desse modo, o sertão se faz o único e possível lugar para todos esses
encontros e desencontros da vida humana, o lugar do conflito, da mística, da religião,
da travessia, do sonho e da esperança. Ele é o lugar de onde se pode falar talvez
apenas porque ele seja o único lugar de onde se pode falar. É por isso que Guimarães
Rosa como pessoa e escritor não consiga deixar o sertão: “mas, tem horas em que me
pergunto: se melhor não seja a gente tivesse de sair nunca do sertão”
36
; pois ele é o
assunto único: o “Sertão é o sozinho. [...] Sertão: é dentro da gente
37
.
O sertanejo Riobaldo: leitor e intérprete da experiência humana
Se o sertão é o lugar, Riobaldo é a figura representante desse lugar. Primeiro,
ele é a marca de uma geografia, é sertanejo; depois, é também a marca de uma
condição social, ele é jagunço
38
. Mas sua narrativa intrincada, desmanchada
39
,
contada de memória
40
, e com força de oralidade, esconde uma compreensão de vida
que está bem para além do regionalismo e das discussões de cunho social, como
apresentados por Willi Bolle
41
. Se o sertão é um sem lugar, o que pode fazer dele
qualquer lugar, se ele é a representação do mundo, “do tamanho do mundo”, então
Riobaldo é também a personagem representante de uma condição humana mais
universalmente pensada:
“A aspiração do narrador não consiste na rememoração enquanto
tentativa de estabelecer o que lhe aconteceu individualmente [...] O
que está em jogo é a memória busca de uma verdade
36
Id. Ibid. p.302.
37
Id. Ibid. p.325.
38
Kathrin ROSENFIELD. Os descaminhos do demo: tradição e ruptura em Grande Sertão: Veredas.
Rio de Janeiro / São Paulo: Imago / EDUSP, 1993. (Biblioteca Pierre Menard). p.12.
39
Cf. Cleusa Rios Pinheiros PASSOS. O contar desmanchado... artifícios de Rosa. In: Lélia Parreira
DUARTE; e Maria Theresa ALVEZ. (organizadoras). Outras margens: estudos na obra de
Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. pp.21-35.
40
“Sei que estou contando errado, pelos altos. [...] Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de
contar. O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos,
cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam contar seguido,
alinhavado, mesmo sendo coisas de rasa importância. De cada vivimento que real tive, de alegria
forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido
desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas
antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data”. João Guimarães
ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.114-115.
41
Willi BOLLE. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades,
Editora 34, 2004. (Coleção Espírito Crítico). Cf. Também Id. Willi BOLLE. Diadorim - a paixão
como medium-de-reflexão. In: Id. Ibid. pp.331-355.
180
universalmente válida que transcende os fatos particulares da
vivência singular. A narração riobaldiana não alinha fatos, porém
aventura-se na matéria vertente na dupla errança em meio de
reminiscências confusas e de palavras que não recobrem
exaustivamente as sombras do vivido”
42
.
Riobaldo começa sua narrativa amarrando um ponto para o seu contar que
vai ser fechado no final do livro. E esse ponto é a morte de Diadorim. Na edição lida
para a tese, de 2001, décima nona edição, o fato começa a se dar na página seiscentos
e nove
43
e termina na página seiscentos e dezesseis, com o “fim que foi”: “aqui a
estória se acabou / aqui, a estória acabada / aqui a estória acaba”
44
. Daí até a página
seiscentos e vinte e quatro apenas conclusões elucidativas: a revelação do
verdadeiro nome da vereda, “não era Veredas-Mortas, mas Veredas-Altas”
45
, o
verdadeiro nome de Diadorim, Maria Deodorina da Bettancourt Marins
46
; o
reencontro com Bebelo
47
; a partida para a casa de Otacília
48
; o encontro com
Quelemém, que o ajuda a começar a decifrar sua “estória” de vida
49
; e o
agradecimento ao seu ouvinte (ou leitor): “amável o senhor me ouviu, [...]”
50
. Todo o
restante (quase seiscentas páginas) é uma tentativa de leitura daquilo que o levou a
isso: “queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer
tantos atos, dar corpo ao suceder”
51
.
42
Id. Ibid. p.12.
43
Conheci o que estava para ser: que os dele e os meus tinham cruzado grande e doido desafio,
conforme para cumprir se arrumavam, uns e outros, nas duas pontas da rua, debaixo de forma; e a frio
desembainhavam. O que vendo, vi Diadorim movimentos dele. Querer mil gritar, e não pude,
desmim de mim-mesmo, me tonteava, numas ânsias. E tinha o inferno daquela rua, para encurralar
comprido... Tiraram minha voz. [...] Mas eles vinham, se avinham, num pé-de-vento, no desadoro,
bramavam, se investiram... Ao que fechou o fim e se fizeram. E eu arrevessei, na ânsia por um
livramento... Quando quis rezar e um pensamento, como raio e raio, que em mim. Que o senhor
sabe? Qual: ... o Diabo na rua, no meio do redemunho... [...] E eles sanharam e baralharam, terçaram.
De supetão... e só... [...] Sangue. Cortavam toucinho debaixo de couro humano, esfaqueavam carnes.
Vi camisa de baetilha, e vi as costas de homem remando, no caminho para o chão, como corpo de
porco sapecado e rapado... Sofri rezar, e não podia, num cambaleio. Ao ferreio, as facas, vermelhas,
no embrulhável. A faca a faca, eles se cortaram até os suspensórios. ... O diabo na rua, no meio do
redemunho... Assim, ah mirei e vi o claro claramente: ai Diadorim cravar e sangrar o
Hermógenes... Ah, cravou no vão e ressurtiu o alto esguicho de sangue: porfiou para bem matar!
[...] Que engoli vivo. Gemidos de todo ódio. Os urros... Como, de repente, não vi mais Diadorim! No
céu, um pano de nuvens... Diadorim!” João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.609-611.
44
Id. Ibid. p.616.
45
Id. Ibid. p.617.
46
Id. Ibid. p.620.
47
Id. Ibid. p.621.
48
Id. Ibid. p.619.
49
Id. Ibid. p.623.
50
Id. Ibid. p.624.
51
Id. Ibid. p.116.
181
De forma primeira, o protagonista-narrador entende que para se viver numa
realidade sertaneja, metáfora da existência humana, é preciso ter religião. Mas, como
ele mesmo diz, uma não basta: “muita religião, seu moço! Eu cá, não perco
ocasião da religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo o rio... Uma só, para mim
é pouca, talvez não me chegue”
52
. Ele sabe que uma religião não conta de
responder a todas as questões da vida. Por essa razão, ecumenismo, sincretismo,
dupla-pertença etc, são, para Riobaldo, para o homem sertanejo e, talvez, para todo o
homem e mulher crente, condição e não um pressuposto:
“Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de
compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas,
quando posso, vou no Mindubim, onde o Matias é crente,
metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora,
cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende.
Qualquer sombrinha me refresca”
53
.
E essa religião (ou religiões), diferentemente de como aponto Willi Bolle,
crítico da obra rosiana trabalhado no capítulo dois desta tese, não é um
enfraquecimento do humano diante da sua realidade, pelo contrário, a religião não
afraca
54
, ela é que fortalece, que cria sentido e que sara da loucura da realidade da
vida: “o que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as
pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para
desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara loucura”
55
.
Diante de uma realidade nua e crua (o sertão sofrimento), a religião parece ser
o único lugar de refresco para a alma cansada de quem vive a travessia da vida da
pior forma possível, na pobreza
56
e em meio ao desmando e à violência: “o grande-
52
Id. Ibid. p.32.
53
Id. Ibid. p.32. A citação feita se repete no capítulo 02 como representação do elemento alienante
causado pela religião, segundo Willi Bolle. Também no capítulo 03 como referência à forma como
Guimarães Rosa pensa e professa a religião. No entanto, aqui, capítulo 04, a citação pressupõe outras
questões.
54
“[...] não ache que religião afraca. Senhor ache o contrário”. Id. Ibid. p.39.
55
Id. Ibid. p.32. Em suas conclusões Riobaldo acrescenta: “Reze o senhor por essa minha alma. O
senhor acha que a vida é tristonha? Mas ninguém não pode me impedir de rezar; pode algum? O
existir da alma é a reza... Quando estou rezando, estou fora de sujidade, à parte de toda a loucura. Ou
o acordar da alma é que é?” Id. Ibid. p.621.
56
“[...] saiba o senhor: população de um arraial baiano, inteira, que marchava de mudada-homens,
mulheres, as crias, os velhos, o padre com seus petrechos e cruz e a imagem da igreja tendo até
bandinha-de-música, como vieram com todos, parecendo nação de maracatu! Iam para os diamantes,
tão longe, eles mesmo dizendo: “...nos rios...” Uns tocavam jumentos de almocreve, outros
182
sertão é a forte arma”
57
. Como metáfora, poderia ser dito: em meio à vida é preciso
algo que responda a vida. Assim, se fosse possível, para resolver tal questão,
Riobaldo criaria a cidade da religião
58
, o lugar maior de todo o desendoidecimento:
“Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de e posição se
reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se
viver em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo
glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, se
levantava enorme igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e
todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até à hora de
cada uma morte cantar. Raciocinei isso com compadre meu
Quelemém, e ele duvidou com a cabeça: “Riobaldo, a colheita é
comum, mas o capinar é sozinho...” – ciente me respondeu”
59
.
Além disso, como visto em capítulo anterior, Riobaldo entende a religião
junto com a própria violência
60
como porta de saída para essa mesma realidade, a
sua realidade pobre e violenta, sertaneja e jagunça, como fuga no caso do jagunço
Joé Cazuzo, que em visão da virgem acabou por abandonar a jagunçagem:
“Aí, de bote, aquele Joé Cazuzo – homem muito valente – se
ajoelhou giro no chão do cerrado, levantava os braços que nem
esgalho de jatobá seco, e gritava, urro claro e urro surdo: “Eu
vi a Virgem Nossa, no resplandor do Céu, com seus filhos de
Anjos!...” Gritava não esbarrava. – “Eu vi a Virgem!...” Ele almou?
Nós desigualamos. [...] esse acabou sendo o homem mais
pacificioso do mundo, fabricador de azeite e sacristão, no São
Domingos Branco. Tempos!”
61
carregavam suas coisas sacos de mantimentos, trouxas de roupa, rede de caroá a tiracol. O padre,
com chapéu-de-couro prà-trasado. era uma procissão sensata enchendo estrada, às poeiras, com o
plequeio das alpercatas, as velhas tiravam ladainha, gente cantável. Rezavam, indo da miséria para a
riqueza. E, pelo prazer de tomar parte no conforto de religião, acompanhamos esses até à Vila da
Pedra-de-Amolar. venta é da banda do poente, no tempo-das-águas; na seca, o vento vem deste
rumo daqui. O cortejo dos baianos dava parecença com uma festa. No sertão, até enterro simples é
festa”. Id. Ibid. p.74.
57
Id. Ibid. p.359.
58
Id. Ibid. p.326.
59
Id. Ibid. p.74.
60
De sorte que carece de se escolher: ou a gente se tece de viver no safado comum, ou cuida de
religião só. Eu podia ser: padre sacerdote, se não chefe de jagunços; para outras coisas não fui parido.
Mas minha velhice principiou, errei de toda conta. E o reumatismo... como quem diz: nas
escorvas. Ahã”. Id. Ibid. p.31.
61
Id. Ibid. pp.35-36,37.
183
ou como aceitação dessa realidade, como participante ativo: “a gente tem de sair do
sertão! Mas se sai do sertão é tomando conta dele a dentro... Agora perdi. Estou
preso”
62
.
Dessa condição inescapável que é o sertão, a vida; passando pela religião,
tentativa de superação ou fuga dessa mesma realidade (ou meio para suportar a
realidade, mesmo que seja um meio alienante); chega-se às leituras sobre Deus e o
diabo, que, em princípio, podem ser vistos como tema, já que a preocupação de Rosa
gira em torno de reflexões sobre a existência e o porquê da existência, depois,
também como personagens, participantes das situações, das tramas, dos
acontecimentos etc, personagens junto, até mesmo como vítimas da própria
realidade, o sertão: “remanso de rio largo... Deus ou o demo, no sertão...”
63
.
2. Deus e o Diabo: o muito misturado
Em “Águas da Serra”, poesia de Rosa lido no livro “Magma”, ganhador de
prêmio oferecido pela Academia Brasileira de Letras em 1936
64
, revela em parte
os caminhos que Guimarães Rosa vai dar àquele que, em certa medida, pode ser visto
tanto como tema como personagem dentro de sua obra, o próprio Deus:
“Águas que correm,
claras,
do escuro dos morros
cantando nas pedras a canção do mais-adiante,
vivendo no lodo a verdade do sempre-descendo...
Águas soltas entre os dedos da montanha,
noite e dia,
na fluência eterna do ímpeto da vida...
Qual terá sido a hora de vossa fuga,
quando as formas e as vidas se desprenderam das mãos de Deus,
62
Id. Ibid. pp.294-295.
63
Id. Ibid. p.577.
64
“Concluindo: – É, pois, meu parecer que seja o 1º prêmio do Concurso de Poesia de 1936 concedido
ao livro Magma, de João Guimarães Rosa; e que não seja a ninguém, neste torneio, conferido o
prêmio, tão distanciados estão do primeiro premiado os demais concorrentes. Tal é, salvo melhor
juízo, o meu parecer”. Concurso Literário de 1936, Parecer da Comissão Julgadora, São Paulo, 22 de
novembro de 1936, Guilherme de Almeida (relator). João Guimarães ROSA. Magma. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1997. p.07. Aput Revista da Academia Brasileira de Letras, ano 28, vol. 54, p.234-
236 (todo o parecer).
184
talvez enquanto o próprio Deus dormia?...
E então, do semi-sono dos paraísos perfeitos,
os diques se romperam,
forças livres rolaram,
e veio a ânsia que redobra ao se fartar,
e os pensamentos que ninguém pode deter,
e novos amores em busca de caminhos,
e águas e as lágrimas sempre correndo,
e Deus talvez ainda dormindo,
e a luz a avançar, sempre mais longe,
nos milênios de treva do sem-fim...”
65
.
O Deus que dorme o semissono e que continua dormindo dentro da poesia é
muito parecido com o Deus existente mas inoperante do “Grande Sertão: Veredas”.
Que ele existe – e nenhum grande personagem de Rosa e nem o próprio Rosa
discordaria é condição: “mas que Deus não há. Estremeço”
66
. Mas, o como ele
existe é que é a questão: “que Deus existe, sim, devagarinho, depressa. Ele existe
mas quase só por intermédio da ação das pessoas: de bons e maus. Coisas imensas no
mundo”
67
.
Leituras sobre Deus
Em “Magma”, Deus, como Alá, junto a outros termos pertencentes ao
universo religioso: crente, Alcorão, alma, “djinos”, ainda aparece na poesia intitulada
“Mil e uma Noites”, mas mais como participante do poema e não como tema, centro
ou preocupação, pelo menos, aparente. Outra referência ao islamismo, mais
especificamente ao deus muçulmano
68
, está no conto “Minha gente” de “Sagarana”:
“E reparei que os olhos de Maria Irma são negros de verdade, tais,
que, para demarcar-lhes a pupila da íris, o deus dos
muçulmanos, que vê uma formiga preta pernejar no mármore preto,
ou o gavião indaié, que, ao lusco-fusco e em vôo beira nuvens,
localiza um anu pousado imóvel em chão de queimada”
69
.
65
Id. Ibid. p.15.
66
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.76.
67
Id. Ibid. p.359.
68
Coloco deus em letra minúscula para manter a grafia dada pelo conto.
69
Id. Minha gente. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.227.
185
Mas, mesmo aí, a citação é apenas ilustração, pelo menos é o que aparentemente se
percebe, que o provérbio árabe: “na noite preta, uma formiga preta sobre uma
mesa de mármore preto. Deus a vê”; mistura-se aos poderosos olhos do gavião indaié
para ilustrar a força do negro dos olhos da Maria Irma.
No entanto, as maiores referências a Deus nos dois primeiros livros de Rosa
antes do “Grande Sertão: Veredas”, “Sagarana” e “Corpo de Baile”, dizem respeito
ao medo e ao terror diante de Deus. Em “A volta do marido pródigo”, como
exemplo, nos dizeres de “seu” Ramiro a Lalino Salãthiel, Deus, pela possibilidade de
seus castigos, é aquele que deve ser temido: “o senhor [por suas intenções e futuros
feitos] pode merecer um castigo de Deus...”
70
.
Em “São Marcos”, outro conto de “Sagarana”, Deus se mostra na figura do
deus das formigas e no deus do louva-a-deus: “como será o deus das formigas?
Suponho-o terrível. Terrível como os que o louvam...”
71
. Acredito – e posso estar em
todo errado – que essa seja outra referência ao deus dos muçulmanos
72
, enquanto que
o louva-a-deus figure o deus dos cristãos:
“E isto é também com o louva-a-deus, que acolá, erecto, faz vergar
a folha do junquilho. Ele está sempre rezando, rezando de mãos
postas, com punhais cruzados. Mas, no domingo passado, este
mesmo, ou um qualquer louva-a-deus outro, comeu o companheiro
em oito minutos justos, medidos no relógio - deixou de lado apenas
as rijas pernas-de-pau serrilhadas da vítima, e o seu respectivo
colete... Foi-se”
73
.
Nesse mesmo conto ainda referências a Pan
74
, ao orixá-pai
75
e ao Vudu
76
.
Além disso, o próprio título do conto evoca o cristianismo, que São Marcos, além
de um santo cristão é um Evangelho da Bíblia. Por fim, a personagem principal do
70
Id. A volta do marido pródigo. In: Ibid. p.116.
71
Id. São Marcos. In: Ibid. p.282.
72
Id. São Marcos. In: Ibid. p.282.
73
Id. Ibid. pp.283-284.
74
“Tudo aqui manda pecar e peca - desde a cigana-do-mato e a mucuna, cipós libidinosos, de flores
poliandras, até os cogumelos cinzentos, de aspirações mui terrenas, e a erótica catuaba, cujas folhas,
por mais amarrotadas que sejam, sempre voltam, bruscas, a se retesar. Vou indo, vou indo, porque
tenho pressa, mas ainda hei de mandar levantar aqui uma estatueta e um altar a Pan”. Id. Ibid. p.279.
75
Cf. Id. Ibid. p.262.
76
“Porque a Cesária tornou a tirar fora a agulha do do calunga de cera, que tinha feito, aos
pouquinhos, em sete voltas de meia-noite: “Estou fazendo fulana!... Estou fazendo fulana!...” , e
depois, com a agulha: “Estou espetando fulana!... Estou espetando fulana!...”. Id. Ibid. p.263.
186
conto, o incrédulo diante de todas as superstições e crenças, que é avisado para não
abusar e que, por seus abusos
77
, é enfeitiçado por um preto feiticeiro, o João
Mangolô, clama em sua oração pelo deus de todos: “angustio-me, e chego a pique de
chorar alto. Deus de todos! Oh... Diabos e diabos... Oh...”
78
.
Miguilim e Dito, de forma ainda infantil, em “Campo Geral”, conto do livro
“Manuelzão e Miguilim”, também sofrem com seu temor de Deus:
“Quando foi o trovão! Trovejou enorme, uma porção de vezes, a
gente tapava os ouvidos, fechava os olhos. o Dito se abraçou
com Miguilim. O Dito não tremia, malmente estava mais sério.
“Por causa de Mamãe, Papai e tio Terêz, Papai-do-Céu está com
raiva de nós de surpresa...””
79
.
De forma diferente e mais aguda do que o irmão Dito, é Miguilim quem sofre
com essa consciência de um Deus que deve ser temido. Isso se revela no pacto que
ele trata com Deus, por medo de morrer de doença
80
, quando promete rezas e o fim
de malfeitos
81
, e quando, engasgado com um osso de galinha, temendo também a
morte
82
, busca por Deus. Mas isso está principalmente nas falas que lhe são
apresentadas por conta da morte de seu irmão: “veio seo Deográcias, avelhado e
magro, dizia que o Patorí não era ruim assim como todos pensavam, dizia que Deus
para punir o mundo estava querendo acabar com todos os meninos”
83
. Compreensão
que começa a mudar já em Manuelzão: “quem castiga nem é Deus, é os avessos”
84
.
77
“Bem que Nhá Rita Preta cozinheira não cansava de me dizer: Se o senhor não aceita, é rei no
seu; mas, abusar, não deve-de! E eu abusava, todos os domingos, porque, para ir domingar no mato
das Três Águas, o melhor atalho renteava o terreirinho de frente da cafua do Mangolô, de quem eu
zombava já por prática. Com isso eu me crescia, mais mandando, e o preto até que se ria, acho que
achando mesmo graça em mim”. Id. Ibid. p.263.
78
Id. Ibid. p.289.
79
Id. Campo Geral. In: Manuelzão e Miguilim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.44.
80
“Tudo tão caprichado lindo! Ele Miguilim havia de achar um jeito de sarar com Deus”. Id. Ibid.
p.60.
81
Id. Ibid. pp.65-72.
82
“Uma vez ele tinha puxado o paletó de Deus. Esse dia foi em hora de almoço : ele Miguilim ia
morrer! de repente estava engasgado com ôssinho de galinha na goela, foi tudo tão: ...malamém...
morte...”. Id. Ibid. p.45.
83
Id. Ibid. p.117.
84
Id. Uma estória de amor: festa de Manuelzão. In: Ibid. p.200.
187
Leituras sobre o diabo
Ao diabo, que finda o “Grande Sertão: Veredas” sendo negado: “o diabo não
há! É o que eu digo, [...]”
85
, é dado uma imagem de criatura indecifrável, medonha
86
,
ou, também por isso, enganadora:
“O Chefe se benzia, temia a noite chegando. “Querem rumar o
machado nele, dar derruba...” E quem? O que vinha: o bicho da
noite, o inimigo. Como era o “inimigo”, ô Chefe? “Vai ver, é
uma coisa, que não é coisa. Roda por aí tudo. Se a gente dormindo,
ela tira as forças da gente... Vem, mata. É uma coisa muito ligeira
esvoaçada, e que não fala, mas com voz de criatura...”
87
.
“Ei, Miguilim, isto é p’ra você, você, carece de saber das coisas:
primeiro, foi num mato, onde eu achei uns macacos dormindo,
acordaram e conversaram comigo... Depois, se a gente um ruivo
espirrar três vezes seguidas, e ele estando com facão, e pedir água
de beber, mas primeiro lavar a boca e cuspir então, desse, nada
não se queira, não!”
88
Por outras vezes o “diabo” serve ou como xingamento ou como reforço em
uma expressão: “me molhou todo, rasgou minha roupa, diabo!...”; aí, foi o diabo.
Major Anacleto ficou peru, de tanta raiva”; “– Apanha, diabo! esmurrei o ar, com
formidável intenção”; “– Tu Tião, diabo! Tu apertou demais o cocão!...”.
em “Tutaméia (terceiras estórias)”, segundo livro depois de “Grande
Sertão: Veredas”, no conto “A vela ao diabo”, é estabelecida uma forma de
contrariedade (ou inversão) para se falar dele. Em verdade, no conto, apenas uma
referência ao diabo: “o diabo não é inteiro nem invento”
89
, mesmo assim o conto o
retém com o título, como também o faz o “Grande Sertão: Veredas” em seu
subtítulo: “o diabo na rua, no meio do redemunho...”. E é a epígrafe do conto que
85
Id. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.624.
86
Referindo-se ao Hermógenes Riobaldo descreve o diabo: “Como era o Hermógenes? como vou
dizer ao senhor...? Bem, em bró de fantasia: ele grosso misturado dum cavalo e duma jibóia... Ou
um cachorro grande, eu tinha de obedecer a ele, fazer o que mandasse. Mandava matar. Meu querer
não correspondia ali, por conta nenhuma”. Id. Ibid. p.223.
87
Id. Buriti. In: Noites do sertão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.162
88
Id. Campo Geral: In: Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
p.78.
89
Id. A vela ao diabo. In: Tutaméia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.53.
188
inicia essa inversão que dará ao conto o seu sentido real: “e se as unhas roessem os
meninos?”
90
O conto narra a estória de Teresinho, um jovem que, por medo de perder a
namorada que agora mora em São Luís, resolve oferecer a Deus uma novena, com
vela e orações: “devia, cada manhã, em igreja, acender vela e de joelhos ardê-la, a
algum, o mesmo santo que não podia nem ver qual, para o bom efeito”
91
. Mas,
apesar de confiar em Deus, que “o método moveria a Deus”
92
, por não ver resultados,
resolve, por entender Deus como “curvo e lento”
93
, “ajudar com o agir”
94
, ele então
procura Dlena, por quem nutre um certo apreço
95
, para pedir ajuda e consolo. As
cartas que Zidica escreve são sempre iguais, espaçadas em tempo e pouco meigas
96
.
No ínterim, Teresinho e Dlena se conhecem melhor, aproximam-se
97
, até o fim da
novena (da vela) e a última carta:
“Correu ele a Dlena, ao súbito último ato, açorado, asas nos
sapatos. De fato. O Santo não lhe valera. Dlena, ei-la jeitinho,
sorrisinho, dolo estampada no vestido, amarelo com malhas
castanho-vermelhas. Foi ela quem abriu o envelope; o ia-iá-iá de rir
riu de modo desusado. Mas franziu-se, então que então. Ela era:
seus olhos sem cinzas, rancordiosa. A carta rasgou, desfaçava-se.
“Viva,esta!” voz de festa; o que maldisse. Soou, e fez-se silepse.
Teresinho recuou, de surpresa, susto, queimados os dedos. Seu
coração se empacotou. Decidiu-se, de vez, de ombros, não preso.
Ali algo se apagava. Dlena, ente. Nada disse, e disse mal. o que
doeu: sorriso do amarelo mais belo. Teresinho arredou olhos. Saiu-
se e tardara de lá, dela, de vé-la. Voou para Zidica, a São Luís,
90
Id. Ibid. p.50.
91
Id. Ibid. p.50.
92
Id. Ibid. p.51.
93
Id. Ibid. p.51.
94
Id. Ibid. p.51.
95
“Ia conseguindo, e reanimava-se; nada pula mais que a esperança. Difícil – pueris humanos somos –
era não olhar nem conhecer o Santo. Na hora, sim, pensava em Zidica; vezes, outrossim, pensasse um
risquinho em Dlema”. Id. Ibid. p.51.
96
“Mostrou-lhe as de Zidica, após e pois. Simplórias simples cartinhas, reles ternas. Dlena, aliás,
nelas leve notava as gentis faltas de gramática”. Id. Ibid. p.52.
97
“Sentados os dois, ombro com ombro, a fim de arredondados suspiros ou vontade de suspirar.
Ternura sem tentativa fraternura. Teresinho se embriagando miudinho, feliz feito caranguejo na
umidade, aos eflúvios dessa emoção. Seu coração e cabeça pensavam coisas diversas. Valia divertir-
se, furtar o tempo ao tormento apud Dlena. Foram, a abrandar o caso, a festa e cinema. Num muito
mais; prorrogavam-se. Teresinho, repartido, fino modo, que mais um escorpião em pica em sua
consciência. Zidica bordando o enxoval... Zidica, a doçura insípida da boa água, produtora de
esperanças... Tão quieto, São Luís, tão certo... Seu coração batia como uma doença, ele tinha medo.
Não iam desnamorar-se! A vida, vem se encaminhava. A novena completara-se, a derradeira vela, ele
genuflexo. Fez o que pôde com aquele pensamento”. Id. Ibid. p.52.
189
em mês se casaram. Foram infelizes e felizes, misturadamente”
98
.
Nesse sentido, a vela ao santo, que também é ao diabo, que separa Teresinho
de Dlena e o une a Zidica, a quem ele ama “com toda a fraqueza de seu coração”
99
,
serve como exemplo dos caminhos percorridos por Deus e pelo diabo no “Grande
Sertão: Veredas”, um caminho de confusão e de mistura. Para um poderia ser para
Deus, mas para outro poderia ser para o diabo.
Deus e o diabo nas veredas do Grande Sertão
De fato, é no romance de Rosa, o “Grande Sertão: Veredas”, que Deus e o
diabo se encontram como forma de uma reflexão sobre temas do sagrado, como
temas e como personagens. No entanto, seus caminhos são de distanciamento e
proximidade, de dualidade e de complementariedade:
“Deus está debaixo da mesa; o diabo está atrás do armário; Deus
está atrás da porta; o diabo está no meio da sala; o que há de errado
com meu coração? o que de errado? Deus está lendo jornal; o
diabo está dançando; o diabo está fazendo o jantar; Deus está
escrevendo uma carta; o que há de errado com meu coração? O que
de errado? Deus está sonhando; o diabo está fazendo discurso;
Deus está lavando os pratos; o diabo está tocando piano; Deus é o
teto da casa; o diabo é a porta dos fundos; o diabo é o chão da
cozinha; Deus é o vão da entrada; o que de errado com meu
coração? O que há de errado?
O texto citado acima, uma música do Titãs, de autor desconhecido, ou
melhor, não encontrado
100
, serve como primeira tentativa de mostrar a relação
existente entre Deus e o diabo no Grande Sertão: Veredas de João Guimarães
Rosa. É certo que a música não é de Rosa e nem expressa, literariamente, a grandeza
do autor. Contudo, o tema “Deus e o Diabo”, lido a partir da música, aproxima-se de
forma interessante da confusão existente entre a pessoa de Deus e a pessoa do diabo
no “Grande Sertão: Veredas”, texto rosiano. No romance, assim como na música, o
98
Id. Ibid. p.53.
99
Id. Ibid. p.50.
100
O CD UM: 84/94 apenas a indicação de Paulo Miklos, Sérgio Britto e Nando Reis. Em outros
lugares pesquisados a indicação é a de autor desconhecido ou indisponível, por essa razão preferi
colocar a explicação: “desconhecido, ou melhor, não encontrado”.
190
divino e o diabólico encontram-se numa constante confusão de lugares e ações, o que
leva o autor a não compreender em que dimensões expressam-se, na sua mente e no
seu coração, ou um ou outro, que ambos fazem parte da mesma realidade e, de
forma confusa, habitam os mesmos lugares e os mesmos espaços da vivência
humana, lugares de luta, onde “viver [segundo Riobaldo] é um negócio muito
perigoso”.
Num primeiro momento, também não pensado de forma cronológica, já que o
texto possui uma forma diferente de trabalhar o tempo, é um tempo a partir da
memória
101
, fragmentado, como visto, o romance carrega uma divisão bem
dualista, bem definida e bem separada entre Deus e o diabo, entre o bem e o mal
102
.
As imagens que se processam de um e do outro, em alguns momentos do romance,
têm ligações bem claras entre a pessoa e aquilo que se espera da pessoa: o bem
ligado a Deus e o mal ligado ao diabo, além de uma clara distinção e divisão entre
ambos. Deus e o diabo, em alguns momentos do texto, são entendidos como
contrários entre si: “Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja”
103
.
Contudo, é importante salientar que aqui o imaginário é kardecista, que a
contrariedade entre um e o outro está na forma de castigo usada para a punição do
humano reencarnado; porém, não deixa de haver no texto uma divisão bem dualista
entre Deus e o diabo, mesmo que a questão maniqueísta não esteja muito bem
definida, já que não se sabe, ou não fica claro, de quem vem o bem e de quem vem o
mal, ou ainda, o que é o bem e o que é o mal. No entanto, o elemento de dualidade
está presente e mostra a oposição
104
: “o que não é Deus, é estado do demônio”
105
.
“Às vezes não aceito nem a explicação do Compadre meu
Quelemém; que acho que alguma coisa falta. Mas, medo, tenho;
mediano. Medo tenho é porém por todos. É preciso de Deus existir
a gente, mais; e do diabo divertir a gente com sua dele nenhuma
existência. O que é uma certa coisa uma só, diversa para cada
um que Deus está esperando que esse faça. Neste mundo tem
maus e bons todo grau de pessoa. Mas, então, todos são maus.
101
Memória que Deus me deu não foi para palavrear avesso nele, com feitas ofensas...”. João
Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.236.
102
Assim como se disse sobre as questões da vida no ponto “das explicações insuficientes”, no
segundo capítulo da tese.
103
Id. Ibid. p.33.
104
“[..] Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele...” Id. Ibid. p.58.
105
Id. Ibid. p.76.
191
Mas, mais então, todos não serão bons? Ah, para o prazer e para ser
feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na
consciência; para penar, não se carece: bicho tem dor, e sofre sem
saber mais porquê. Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo caminho da
gente é resvaloso. Mas; também, cair não prejudica demais – a
gente levanta, a gente sobe, a gente volta! Deus resvala? Mire e
veja. Tenho medo? Não. Estou dando batalha. É preciso negar que
o “Que-Diga” existe. Que é que diz o farfal das folhas? Estes gerais
enormes, em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão,
as feias onças. O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em dia
acho que Deus é alegria e coragem que Ele é bondade adiante,
quero dizer”
106
.
O segundo momento dessa reflexão começa a se revelar como uma mistura e
uma confusão entre as ações das duas personagens. A realidade do sertão, uma
realidade que nos proíbe de entender tudo de forma rápida e simples, o bem e o mal,
o bom e o ruim, o belo e o feio, tudo muito bem separado e nos seus devidos lugares,
é o início de uma ponderação sobre um “velho pensar”:
“Ao que não vinha a lufa de um vendaval grande, com Ele em
trono, contravisto, sentado de estadela bem no centro. O que eu
agora queria! Ah, acho que o que era meu, mas que o desconhecido
era, duvidável. Eu queria ser mais do que eu. Ah, eu queria, eu
podia. Carecia. “Deus ou o demo?sofri um velho pensar. Mas,
como era que eu queria, de que jeito, que? Feito o arfo de meu ar,
feito tudo: que eu então havia de achar melhor morrer duma vez,
caso que aquilo agora para mim não fosse constituído. E em troca
eu cedia às arras, tudo meu, tudo o mais alma e palma, e
desalma... Deus e o Demo! – “Acabar com o Hermógenes! Reduzir
aquele homem!...” –; e isso figurei mais por precisar de firmar o
espírito em formalidade de alguma razão. Do Hermógenes, mesmo,
existido, eu mero me lembrava feito ele fosse para mim uma
criancinha moliçosa e mijona, em seus despropósitos, a
formiguinha passeando por diante da gente entre o e o pisado.
Eu muxoxava. Espremia, p’r’ ali, amassava. Mas, Ele o Dado, o
Danado sim: para se entestar comigo eu mais forte do que o
Ele; do que o pavor d’Ele e lamber o chão e aceitar minhas
ordens. Somei sensatez. Cobra antes de picar tem ódio algum? Não
sobra momento. Cobra desfecha desferido, bote, se deu. A
que eu estava ali, eu queria, eu podia, eu ali ficava. Feito Ele. Nós
dois, e tornopio do pé-devento o ró-ró girado mundo a fora, no
dobar, funil de final, desses redemoinhos: ...o Diabo, na rua, no
meio do redemunho... Ah, ri; ele não”
107
.
106
Id. Ibid. pp.328-329.
107
Id. Ibid. p.437.
192
Esse “velho pensar” e tudo isso, questões ainda não resolvidas pelo texto e
nem na mente de Riobaldo, continuam a levar o leitor para a questão do bem e do
mal, questão que não se resolve, questão de definição e de origem
108
. Na narrativa
não é o bem que vence o mal, e não é o mal que vence o bem, os dois coexistem em
lugares comuns, ora em união, ora em conflito; ora com a origem certa, ora com a
origem errada ou, para ser mais exato, confusa
109
. O que é o bem e o que é o mal?
Qual é a origem de ambos? Onde está o lugar onde eles se separam? Essa confusão,
não muito maniqueísta, evidencia-se de forma mais plena na relação de amor mesmo
amor de Riobaldo por Diadorim: “mas o mal de mim, doendo e vindo, é que tive de
compensar, numa mão e noutra, amor com amor (Otacília e Diadorim). [...] se aquele
amor (Otacília) veio de Deus, como veio, então o outro (Diadorim)?”
110
“[...] o
amor assim pode vir do demo? Poderá?!”
111
O seu amor por Diadorim era “de amor
mesmo amor, mal encoberto em amizade”
112
, mas era amor de origem desconhecida,
já que um bem, o amor, não poderia vir do mal, o diabo; mas esse amor não era bem-
amor, era mal, era um amor de um homem por outro homem: “de que jeito eu podia
amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e armas, espalhado
rústico em suas ações?! Me franzi. Ele tinha culpa? Eu tinha culpa?”
113
; e por ser
mal-amor não poderia também vir do bem, não poderia vir de Deus. De onde então
viria tal amor?
108
Expressões como: mais, que coragem inteirada em peça era aquela, a dele? De Deus, do demo?”
Id. Ibid. p.125, são comuns dentro da narrativa. A dúvida de origem é sempre clara: de Deus ou do
demo? A metáfora da mandioca brava e boa exemplifica bem, como dito em capítulo anterior, essa
lógica de Riobaldo: “Mal haja-me! Sofro pena de contar não... Melhor, se arrepare: pois, num chão, e
com igual formato de ramos e folhas, não a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-
brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca doce pode de repente virar
azangada motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas
seguidas, de manaíbas vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora
veja: a outra, a mandioca-brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem
nenhum mal.” Id. Ibid. p.27.
109
Um outro bom exemplo que se pode dar disso é a figura do Hermógenes: “Como podia? Ái-de-vai,
meu pensamento constante querendo entender a natureza dele, virada diferente de todas, a inocência
daquela maldade. A qual me aluava. O Hermógenes, numa casa, em certo lugar, com sua mulher, ele
fazia festas em suas crianças pequenas, dava conselho, dava ensino. Daí, saía. Feito lobisomem?
Adiante de quem, atrás de quem, atrás de que? Acruz o senhor faça, meu senhor! Aí eu acreditei que
tivesse de haver mesmo o inferno, um inferno; precisava. E o demônio seria: inteiro, louco, o ido
completo assim irremediável. [...] O demônio esbarra manso mansinho, se fazendo de apeado, tanto
tristonho, e, o senhor pára próximo então ele desanda em pulos e prezares de dansa, falando
grosso, querendo abraçar e grossas caretas – boca alargada. Porque ele é dôido sem cura. Todo
perigo”. Id. Ibid. pp.250-251.
110
Id. Ibid. p.156.
111
Id. Ibid. p.155.
112
Id. Ibid. p.305.
113
Id. Ibid. p.511.
193
“Estou contando ao senhor, que carece de um explicado. Pensar
mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é
mesmo para se desiludir e desmisturar. A senvergonhice reina, tão
leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero
sem maldade. Está certo, sei. Mas ponho minha fiança: homem
muito homem que fui, e homem por mulheres! [...] Então – o
senhor me perguntará o que era aquilo? Ah, lei ladra, o poder da
vida. [...] Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele
fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele
estar longe, e eu nele pensava. E eu mesmo o entendia o que
aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eu mesmo entender não queria.
Acho que. Aquela meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais
de sempre. E em mim a vontade de chegar todo próximo, quase
uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços, que às vezes
adivinhei insensatamente – tentação dessa eu espairecia, aí rijo
comigo renegava. Muitos momentos. Conforme, por exemplo,
quando eu me lembrava daquelas mãos, do jeito como se
encostavam em meu rosto, quando ele cortou meu cabelo. Sempre.
Do demo: Digo? Com que entendimento eu entendia, com que
olhos era que eu olhava? Eu conto, O senhor ouvindo. Outras
artes vieram depois”
114
.
Além dessa relação com o Dia... Diadorim
115
, que carrega esses elementos de
confusão entre o bem e o mal, entre aquilo que é bom e aquilo que é mau no próprio
nome, existem também outras relações de ambigüidade que podem ser analisadas a
partir do texto, o Hermogénes, por exemplo, homem de tão grandes feiuras
116
e
ruindades, poderia, eventualmente, ter também um aspecto de bondade:
“Ái-de-vai, meu pensamento constante querendo entender a
natureza dele, virada diferente de todas, a inocência daquela
maldade. A qual me aluava. O Hermógenes, numa casa, em certo
lugar, com sua mulher, ele fazia festas em suas crianças pequenas,
dava conselho, dava ensino. Daí, saía. Feito lobisomem? Adiante de
114
Id. Ibid. pp.165-166.
115
Augusto de CAMPOS. Um Lance de “Dês” do Grande Sertão. In: Augusto de CAMPOS; Haroldo
de CAMPOS; Pedro XISTO. Guimarães Rosa em Três Dimensões. São Paulo: Conselho Estadual de
Cultura; Comissão de Literatura, s/d. p.60. (Dia + adora + im = Diá (diabo) + dor).
116
“Como era o Hermogénes? Como vou dizer ao senhor...? Bem, em b de fantasia: ele grosso
misturado – dum cavalo e duma jibóia... Ou um cachorro grande.” “[...] o Hermogénes era fel
dormindo, flagelo com frieza.” [...] “Eu não queria olhar para ele, encarar aquele carangonço; me
perturbava. Então olhava o dele um enorme, descalço, cheio de coceiras, frieiras de remeio de
rio, pé-pubo. Olhava as mãos. Eu acabava achando que tanta ruindade conseguia estar naquelas
mãos, olhava para elas, mais, com asco. Com aquela mão ele comia, aquela mão ele dava à gente.”
[...] O Hermogénes, homem que tirava seu prazer do medo dos outros, do sofrimento dos outros. Aí,
arre, foi de verdade que eu acreditei que o inferno é mesmo possível. o possível o que em homem
se vê, o que por homem se passa. Longe é, o Sem-olho. E aquele inferno estava próximo de mim,
vinha por sobre mim. Em escuro, vi, sonhei coisas muito duras. Nas larguezas do sono da gente.” João
Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.186;187e197.
194
quem, atrás de quem, atrás de que? A cruz o senhor faça, meu
senhor!”
117
Nessa mesma relação de dualismo e ambiguidade está também um bem, lado
entendido sempre como o vitorioso, que não obtém a vitória sobre o mal nos
combates narrados no romance, pelo contrário, é vencido pelo mal. Deus, na
realidade do sertão, não consegue vencer o diabo nessa luta maniqueísta
118
. Quando
chega o momento da vingança do bem sobre o mal, da justiça sobre a injustiça, o
bem acaba não podendo mais do que o mal, Deus não pode mais do que o diabo:
“Saímos, sobre, fomos. Mas descemos no canudo das desgraças, ei,
saiba o senhor. Desarma do tempo, hora da paga e perdas, e o mais,
que a gente tinha de purgar, segundo se diz. Tudo o melhor
fizemos, e tudo no fim desandava. Deus não devia de ajudar a quem
vai por santas vinganças?! Devia. Nós não estávamos forte em
frente, com coragem esporeada? Estávamos. Mas, então? Ah,
então: mas tem o Outro o figura, o morcegão, o tunes, o
cramulhão, o dêbo, o carôcho, do pé-de-pato, o malencarado,
aquele o-que-não-existe! Que não existe, que não, que não, é o
que minha alma soletra. E da existência desse me defendo, em
pedras pontudas ajoelhados, beijando a barra do manto de minha
Nossa Senhora Abadia! Ah, me vale; mas vale por um mar sem
fim... Sertão. [...] Contra o demo se podia? Quem a quem? Milagres
tristes desses também se dão. Como eles conseguiram fugir das
unhas da gente, se escaparam o Ricardão e o Hermógenes os
Judas.”
119
É então que Riobaldo, por ver que Deus não podia mais do que o demo, fez seu
pacto, para que talvez assim, sendo pactário como era o inimigo Hermógenes,
pudesse alcançar a vitória e a vingança, dando a entender que o mal é que pode
vencer o mal. E isso não é apenas uma questão de força social, como diz Bolle
120
,
passa por forças de elementos pertencentes à religião, elementos que, por vezes,
ditam a forma do comportamento humano diante da existência por meio dessas
117
Id. Ibid. pp.250-251.
118
Cf. Capítulo dois da presente tese. “No dualismo, o problema se torna central e organiza o conjunto
da vida religiosa: existem dois princípios originários, um bom e outro mau, que, respectivamente,
explicam a presença do bem e do mal. Mas sua aparente clareza não resiste a uma análise racional,
porque dois ‘deuses’ que mutuamente se limitam, demonstram com isso que não o são”. Juan Luis
SEGUNDO. Que mundo? Que homem? Que Deus? Aproximação entre ciência, filosofia e teologia.
(tradução: Magda Furtado de Queiroz). São Paulo: Paulinas, 1995. p.65 (nota de rodapé 18). Apud A.
Torres QUEIRUGA. Creo en Dios Padre. pp.111-112.
119
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.317-
318.
120
Conferir o segundo capítulo da Tese.
195
mesmas forças. A partir disso, penso que Guimarães Rosa, no “Grande Sertão:
Veredas” e em boa parte de sua obra, tentou ilustrar que é a compreensão e a relação
com o sagrado que dita todo o comportamento humano, suas ações individuais e
coletivas, bem como sua forma e sua força social. E isso passa pelas compreensões
que se tem de Deus e do diabo:
“E não conheci arriação, nem cansaço. [...] De repente, com um
catrapuz de sinal, ou momenteiro com o silêncio das astúcias, ele
podia se surgir para mim. Feito o Bode-Preto? O Morcegão? O Xú?
E de um lugar tão longe e perto de mim, das reformas do Inferno
ele devia de estar me vigiando, o cão que me farejava. [...] E, o
que era que eu queria? Ah, acho que queria mesmo nada, de tanto
que eu queria tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente
queria era – ficar sendo!”
121
[...]
“Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta
vida é grande. Remordi o ar: – “Lúcifer! Lúcifer!...” – aí eu bramei,
desengulindo. Não. Nada. [...] – “Lúcifer! Satanaz!...” Só outro
silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo,
demais. “Ei, Lúcifer! Satanaz, dos meus Infernos!” Voz minha se
estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não
existe, e não apareceu nem respondeu que é um falso
imaginado”
122
.
No terceiro e último momento, nas reflexões de Riobaldo como velho ex-
jagunço, depois da vingança concluída, da morte de Ricardão e Hermógenes, e da
triste revelação de que Diadorim era mulher, nosso narrador conclui, ou melhor,
fecha a narrativa, mas sem deixar de fazer questionamentos, de que o diabo não
existe. Na realidade o texto tem início com essa declaração do narrador, que é
também a mesma declaração que está na última frase do livro, o que imagino seja
também uma forma de costurar o texto em uma única reflexão: “O diabo não há! É o
que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia”
123
. Mais ainda, quando
Riobaldo está terminando sua fala, ele chama a confirmação do senhor doutor que o
ouve, a personagem leitor, que também confirma suas preposições: “amável o senhor
me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe”
124
.
121
Id. Ibid. p.436.
122
Id. Ibid. p.438.
123
Id. Ibid. p.624.
124
Id. Ibid. p.624.
196
Essa reflexão nos leva a entender que no sertão, na luta entre o bem e o mal,
não há derrotas e vitórias, há sim, e tão somente, perdas e ganhos de uma vida vivida
sem Deus (bem) e sem o diabo (mal), uma total liberdade. É possível entender que
Riobaldo, mais amadurecido, chega a conclusão de aquilo que mais existe, na
realidade da vida, é o que não existe; e que aquilo que menos existe ou não existe, na
vida que se vive, é o que mais existe: “Deus existe mesmo quando não há. Mas o
demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí ele
toma conta de tudo”
125
. Aquilo que não existe, o diabo, por ser diabo, precisa ser
negado, mesmo que haja a impossibilidade de sua negação, pois ele, mesmo não
existindo existe naquilo que o figura como diabo, o diabólico, o que é, sem sombra
de dúvida, o que mais existe na experiência humana:
“O diabo não existe? [...] O senhor vê: existe cachoeira; e pois?
Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele,
retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco,
sobra cachoeira alguma? [...] Explico ao senhor: o diabo vige
dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado,
ou o homem dos avessos. [...] Tem diabo nenhum. Nem espírito.
Nunca vi. [...] Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas,
nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças eu digo. Pois não é
ditado: “menino trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas
águas, na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio do
redemunho...
126
.
Por outro lado, Deus não pode deixar de existir, pois é Ele, mesmo não agindo e não
havendo, que cria sentido para a vida:
“Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo esperança:
sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem
Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o
aberto perigo de grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar
é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se
descuidar um pouquinho, pois, no fim certo. Mas, se não tem
Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque
existe dôr”
127
.
Para Riobaldo, Deus não pode deixar de existir, pois é o único que pode criar ordem
na existência humana e, de certa forma, também o único que pode gerar esperança no
125
Id. Ibid. p.76.
126
Id. Ibid. pp.26-27.
127
Id. Ibid. p.76.
197
coração sofrido do sertanejo, mesmo e apesar de ser um Deus que só age por
intermédio das pessoas
128
, e de, na realidade do sertão, na realidade sertaneja, ser
uma figura inconstante em suas ações
129
às vezes totalmente inoperante –, e ainda,
de só ser visível aos homens por meio daquele que lhe é o contrário:
“[...] quem-sabe, a gente criatura ainda é tão, que Deus pode às
vezes manobrar com os homens é mandando por intermédio do
diá? Ou que Deus quando o projeto que ele começa é para muito
adiante, a ruindade nativa do homem só é capaz de ver aproximo de
Deus é em figura do Outro?”
130
Mesmo desejando que as coisas fossem bem definidas, fáceis de serem
observadas e identificadas, e bem separadas, como enxergava seu amigo dos tempos
de jagunço, o Jõe, em quem, no sentir de sua natureza, “não reinava misturas
nenhuma nesse mundo as coisas eram bem divididas, separadas”
131
. Mesmo assim,
desejoso disso, Riobaldo não conseguiu chegar a outra conclusão que não fosse a de
que não existe diabo:
“[…] o Cujo, o Oculto, o Tal, o Que-Diga, o Não-sei-que-diga, o
Que-Não-Fala, o Que-Não-Ri, o que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos,
o Tristonho, o Muito-Sério, o Sempre-Sério, o Austero, o Severo-
Mor, o Galhardo, o romãozinho um diabo menino, o Rapaz, o
Homem, o Indivíduo, Dião, Dianho, Diogo, o Pai-da-Mentira, o
Pai-do-Mal, o Maligno, o Coisa-Ruim, o Tendeiro, o Mafarro, o
Manfarro, o Canho, o Côxo, o Capeta, o Capiroto, o Das-Trevas, o
Tisnado, o Pé-Prêto, o Pé-de-Pato, o Bode-Prêto, o Cão, o
Morcegão, o Gramulhão, o Xú, o Temba, o Duba-Dubá, o Azarape,
o Dê, o Dado, o Danado, o Danador, o Arrenegado, o Diá, o
Diacho, o Diabo, o Rei-Diabo, o Demo, o Demônio, o Drão, o
Demonião, Barzabú, Lúcifer, Satanás, Satanazim, Satanão, Sujo
[...], S... Sertão, o Dos-Fins, o Sôlto-Eu, o Outro, o Ele, o O...”
132
.
128
“Que Deus existe, sim, devagarinho, depressa. Ele existe mas quase por intermédio da ação
das pessoas: de bons e maus. Coisas imensas no mundo. O grande-sertão é a forte arma. Deus é um
gatinho? [...] Então, onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade?” Id. Ibid.
p.359.
129
“Deus, para qualquer um jagunço, sendo inconstante patrão, que às vezes regia ajuda, mas outras
horas, sem espécie nenhuma, desandava de proteção se acabou, e pronto: marretava! Que
rezavam.” Id. Ibid. p.250.
130
Id. Ibid. p.56.
131
Id. Ibid. p.237.
132
Pedro XISTO. À busca da Poesia. In: Augusto de CAMPOS; Haroldo de CAMPOS; Pedro
XISTO. Guimarães Rosa em Três Dimensões. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura; Comissão de
Literatura, s/d. p.29.
198
[...] “Ele não existe, [...] “não tem diabo nenhum, não existe, não
pode”
133
.
e de que Deus, mesmo existindo, entregou-nos às angústias da vida e à solidão:
“Deus está em tudo conforme a crença? Mas tudo está vivendo
demais, se remexendo. Deus está mesmo vislumbrando era se tudo
se esbarrasse, por uma vez. Como é que se pode pensar toda hora
nos novíssimos, a gente estando ocupado com estes negócios
gerais? Tudo o que foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a
gente está num cômpito. Eu penso é assim na paridade (grifo meu).
O demônio na rua... Viver é muito perigoso; e não é não. Nem sei
explicar estas coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é o do
sentidor”
134
.
Desse modo, pensar na paridade: “o demônio na rua... viver é muito
perigoso”, tornou-se então a solução de uma reflexão que transita é a travessia do
homem humano e sempre conduz a um cômpito: “tudo o que foi, é o começo do
que vai vir”, “tudo é e não é”
135
ao mesmo tempo, sem separação e sem dualidade. A
memória de Riobaldo é a memória humana em busca de uma compreensão e de uma
solução da vereda humana. E, como se vê, o sagrado, nas personagens que mais lhe
são comum: o demoníaco e o divino, é condutor das existências nessa vereda, mesmo
sendo as personagens ou inexistente ou inoperante: “Olhe: Deus come escondido, e o
diabo sai por toda parte lambendo o prato...”
136
, “remanso de rio largo”
137
.
133
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.438 e
31.
134
Id. Ibid. p.328.
135
“Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a
alegria de amor compadre meu Quelemém, diz. Família. Deveras? É, e não é. O senhor ache e não
ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom
filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. que tem os depois e Deus, junto. Vi
muitas nuvens. Id. Ibid. pp.27-28.
136
Id. Ibid. p.72.
137
Id. Ibid. p.577.
199
3. O sagrado, a palavra e a vida
É certo que toda a obra de Guimarães Rosa carrega, como ele mesmo disse e
aqui já foi visto, um forte tom de religiosidade: “os livros são como eu sou”
138
, e, em
essência, Guimarães Rosa é um homem religioso, mas, também como ele mesmo
disse, “fora do rótulo estricto e das fileiras de qualquer confissão ou seita”
139
. E é
essa experiência de espiritualidade que ele tem que faz de suas obras uma literatura
carregada de preocupações com temas da religião, com teologia e com o sagrado.
Também é certo que, de forma mais forte, significativa e constante, Deus e o
diabo são temas e personagens no “Grande Sertão: Veredas”, nas reflexões do ex-
jagunço e fazendeiro Riobaldo, e que, de forma menos representativa e com alusões
esparsas e esporádicas, aparecerem no restante da obra.
Contudo, as preocupações de Rosa com a palavra, como palavra que tenta
produzir sentido e que chama (no sentido de evocação) o leitor para refletir sobre
aquilo que está escrito, para que o leitor, a partir da palavra lida
140
, também possa
recriar significados e criar seus próprios sentidos: “amável o senhor me ouviu, minha
idéia confirmou”
141
; bem como as preocupações com a vida, a por vezes repetida –
travessia humano, continuam dando ao texto rosiano características de uma literatura
preocupada com aquilo que escapa ao humano na sua experiência com o sagrado, na
configuração da religião e nas proposições da teologia.
O conto “A terceira margem do rio” de “Primeiras estórias”, parece ser o
conto que mais aproxima essa compressão de palavra e vida como representações da
literatura rosiana no falar sobre espiritualidade. Talvez o conto mais famoso de
Guimarães Rosa seja também a porta de entrada para essa compreensão:
138
João Guimarães ROSA; Edoardo BIZZARRI. João Guimarães Rosa: Correspondência com seu
tradutor Italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.90. Correspondência de
João Guimarães Rosa – 25 de Novembro de 1963.
139
Id. Ibid. p.90.
140
A palavra lida é palavra que também quer ser vida (ou viva, sobre a vida), vida que também deve
ser lida: “A vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-sendo. E a gente, por
enquanto, a por tortas linhas. Está-se a achar que se ri”. João Guimarães ROSA. Aletria e
hermenêutica. In: Tutaméia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.30.
141
Id. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.624.
200
“Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim
desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas
sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo
me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que
os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia,
e que ralhava no diário com a gente minha irmã, meu irmão e eu.
Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma
canoa”
142
.
A narrativa que se abre com a apresentação do pai e da família, também já
chama a atenção do objeto usado para o transcorrer da estória, é a canoa. Quando a
canoa fica pronta o pai vai para o rio para nunca mais pisar em terra:
“Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu
um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou
matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a
gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de
pálida, mascou o beiço e bramou: “Cê vai, ocê fique, você nunca
volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim,
me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa
mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava,
chega que um propósito perguntei: “Pai, o senhor me leva junto,
nessa sua canoa?” Ele retornou o olhar em mim, e me botou a
bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda
virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e
desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo – a sombra dela por
igual, feito um jacaré, comprida longa”
143
.
Segundo entrevista de Guimarães Rosa, o rio e o jacaré (o crocodilo) são
representações da profundidade humana, da vida e da existência:
“Escrevendo, descubro sempre um pedaço do infinito.Vivo no
infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio
já ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me
chamava João Guimarães Rosa. Quando escrevo, repito o que vivi
antes. E para estas duas vidas um léxico apenas não me é
suficiente. Em outras palavras: gostaria de ser um crocodilo
vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vem ao mundo como um
magister da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar
da sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria
de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são
profundos como a alma do homem. Na superfície são muito
vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros
142
Id. A terceira margem do rio. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.79.
143
Id. Ibid. p.80.
201
como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de
nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica
para conjugar eternidade. A estas alturas, vo deve estar me
considerando um charlatão ou um louco”
144
;
bem como, uma terceira margem ou um rio sem margem é também o ideal da
palavra, tanto para a literatura como também para a teologia
145
:
“Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo,
de que algum dia tivessem existido septos, limitações, tabiques,
preconceitos, a respeitos de normas, modas, tendências, escolas
literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições – no tempo e
no espaço. Isso, porque: na panela de pobre, tudo é tempêro. E,
conforme aquêle sábio salmão grego de André Maurois: um rio
sem margens é o ideal do peixe. [...] O que eu gostaria de poder
fazer seria aplicar, no caso, a minha interpretação de uns versos de
Paul Eluard: ... “o peixe avança nágua, como um dedo numa
luva”... Um ideal: precisão, micromilimétrica”
146
.
Talvez por isso, a grande frustração do filho narrador, no fim do conto “A terceira
margem do rio”, seja o ter escolhido, por medo da profundidade, ficar à margem:
“Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra
doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se
condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos.
fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava
muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, e lá, o
vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas
quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que
reforçar a voz: “Pai, o senhor está velho, fez o seu tanto...
Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora
mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar,
do senhor, na canoa!...”. E, assim dizendo, meu coração bateu no
compasso do mais certo. Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou
remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de
repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um
saudar de gesto - o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos!
144
Günter LORENZ. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Eduardo de Faria COUTINHO (org).
Guimarães Rosa. Rio de Janeiro / Brasília: Civilização Brasileira / Instituto Nacional do Livro, 1983.
(Coleção Fortuna Crítica). p.72.
145
“Um rio sem margens, eis o ideal do peixe; a língua conhecida e vivida sem os bitolamentos das
escolas, eis o ideal da literatura. E acrescento: a linguagem teológica usada sem os cerceamentos dos
sujeitos ou das instituições, eis o ideal da teologia”. Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus no
Espelho das Palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. (Coleção:
Literatura e Religião). p.169.
146
João Guimarães ROSA. Carta de Guimarães Rosa a João Conde, revelando segredos de
Sagarana. In: Sagarana. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. p.24.
202
E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me
tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me
pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo
um perdão. Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém
soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que
não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo
abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos,
que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também
numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras:
e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio”
147
.
E em Guimarães Rosa não se pode escolher ficar à margem, nos rasos. Sua obra
conjuga o sagrado, a palavra e a vida em uma escritura que busca por diálogo e
interpretação.
A margem da palavra: memória e reflexão em Riobaldo
Todo o caminho narrativo de Riobaldo, as más devassas do contar, onde, num
contar de memória, ele lembra e diz
148
, a memória procura por um ponto (a morte e
revelação do sexo de Diadorim) não para formular uma sequência, mas para amarrar
uma lógica de reflexão. Em verdade, o vai e vem da narrativa, que também é uma
forma de entretenimento para o ouvinte e leitor
149
, onde ele, por vezes, quase revela o
porquê do contar: “o sério pontual é isto, o senhor escute, me escute mais do que eu
estou dizendo; e escute desarmado”
150
, é um meio de ocultação e revelação
151
não só
do fato final, mas da leitura que ele, Riobaldo, faz do fato final. O contar é um contar
para lembrar e para pensar: “conto para mim, conto para o senhor. Ao quanto bem
não me entender, me espere...”
152
. Mas o que está oculto e vai se revelar no fim, a
147
Id. A terceira margem do rio. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.85.
148
Cf. Gláucia Vieira MACHADO e Ondina Pena PEREIRA. In: Lélia Parreira DUARTE; e Maria
Theresa ALVEZ. (organizadoras). Outras margens: estudos na obra de Guimarães Rosa. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001. p.77.
149
Cf. Évila de Oliveira Reis SANTANA. Grande sertão: veredas do desejo. In: Id. Ibid. p.58.
150
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.125. Cf.
Também: “Me lembro, lembro dele nessa hora, nesse dia, tão remarcado. Como foi que não tive um
pressentimento? O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de moça,
morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquinho, os
olhos dum terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que
era um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E tantos anos se passaram”.
Id. Ibid. p.207.
151
“O senhor espere o meu contado. Não convém a gente levantar escândalo de começo, aos
poucos é que o escuro é claro”. Id. Ibid. p.207.
152
Id. Ibid. p.161.
203
morte de Diadorim e seu sexo, se faz presente, junto com todas as conclusões
sobre a própria vida, no todo do livro.
Além disso, no mapa da memória
153
, não é o fato que é narrado a coisa
principal, mas sim a interpretação do fato: “o que eu não entendo hoje, naquele
tempo eu não sabia”
154
, onde todas as lógicas e forças que movem o fato também
estão presentes, a “sobre-coisa a outra-coisa”
155
. Por isso o contar é mais uma
pergunta pelo que não se sabe do que pelo que de fato aconteceu: “conto ao senhor é
o que eu sei e o senhor não sabe; mas principalmente quero contar é o que eu não sei
se sei, e que pode ser que o senhor saiba”
156
. Também é uma busca pelo que houve e
não houve:
“[...] não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe
alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de feito, meu
coração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a idéia, achar o
rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não
houve. Às vezes não é fácil. Fé que não é”
157
.
Desse modo, essa narrativa, o “Grande Sertão: Veredas”, a memória de um
sertanejo, ex-jagunço e agora fazendeiro, cabra ignorante
158
, é uma forma de mistura
– para usar o termo de Riobaldo, “tudo muito misturado” – de memória narrada, feito
palavra, com vida, que sempre é um negócio muito perigoso, e também com o
sagrado, um meio de tentar “desmisturar” as coisas. A palavra é, assim, na narrativa,
não só a forma da narrativa, como palavra escrita em forma de palavra falada
153
Cf. Évila de Oliveira Reis SANTANA. Grande sertão: veredas do desejo. In: Lélia Parreira
DUARTE; e Maria Theresa ALVEZ. (organizadoras). Outras margens: estudos na obra de
Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p.51.
154
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.505.
155
“Essas coisas todas se passaram tempos depois. Talhei de avanço, em minha história. O senhor
tolere minhas más devassas no contar. É ignorância. Eu não converso com ninguém de fora, quase.
Não sei contar direito. Aprendi um pouco foi com o compadre Quelemém; mas ele quer saber tudo
diverso: quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa. Agora, neste dia nosso,
com o senhor mesmo me escutando com devoção assim é que aos poucos vou indo aprendendo a
contar corrigido”. Id. Ibid. p.214.
156
Id. Ibid. p.245.
157
Id. Ibid. p.192.
158
“Não esperdiço palavras. Macaco meu veste roupa. O senhor pense, o senhor ache. O senhor ponha
enredo. Vai assim, vem outro café, se pita um bom cigarro. Do jeito é que retorço meus dias:
repensando. Assentado nesta boa cadeira grandalhona de espreguiçar, que é das de Carinhanha. Tenho
saquinho de relíquias. Sou um homem ignorante. Gosto de ser. Não é no escuro que a gente
percebe a luzinha dividida? Eu quero ver essas águas, a lume de lua...”. Id. Ibid. p.325.
204
(oralidade), ela é o elemento (ou vereda) ordenador e conciliador
159
do refletir sobre
a vida humana e da relação (ou experiência) desse humano com o sagrado:
“É através da palavra e na palavra que o mundo, as possíveis razões
do mundo, podem refletir-se, por que ela, fisicamente e
imaterialmente, está na origem daquelas razões, e, portanto, é
preciso investigá-la, interrogá-la, escavá-la (seria possível, nesse
sentido, estender a Guimarães Rosa o que Samuel Beckett notava
sobre a escrita de Joyce: “sua escrita não é ao redor da coisa; é
aquela coisa mesmo”...) [...]”
160
.
Esse tecer reflexivo em palavra é também uma forma de, na personagem-
narrador Riobaldo, figurar a pessoa humana. Os fatos narrados são, “no fundo,
pretextos para tecer, poeticamente, especulações em torno do homem e de seus
problemas”
161
. O fato de “a vida (viver) ser um negócio muito perigoso” e da vida de
Riobaldo ter se desdobrado em tantos caminhos e depois ter chegado aonde chegou,
é uma forma de ler o humano problemático, seus caminhos e seus pontos de chegada
na vida comum. Mas também é mais do que isso: “eu queria decifrar as coisas que
são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço,
mas a matéria vertente (grifo meu)”
162
. A vida e a experiência humana diante da vida
é também preocupação: “a vida é boba. Depois é ruim. Depois, cansa. Depois, se
vadia. Depois a gente quer alguma coisa que viu. Tem medo. Tem raiva de outro.
Depois cansa. Depois a vida não é de verdade... Sendo que é formosa!”
163
.
159
“A conciliação não se dá no conteúdo do narrado, na experiência vivida que Riobaldo relata, porém
na escritura poética do texto. É ela que concilia as linguagens oriundas de culturas heterogêneas que
precisam conviver no Brasil, e no mundo que se quer universal: conciliação entre a expressão da
experiência insólita e singular e a linguagem especulativa e racional, assim como entre as
reminiscências míticas da religião popular e a linguagem erudita da tradição livresca indo-européia”.
Kathrin ROSENFIELD. Os descaminhos do demo: tradição e ruptura em Grande Sertão: Veredas.
Rio de Janeiro / São Paulo: Imago / EDUSP, 1993. (Biblioteca Pierre Menard). p.24.
160
Vincenzo ARSILLO. O olhar do silêncio: maiêutica do discurso dialógico e representação do
outro em Grande Sertão: Veredas. In: Lélia Parreira DUARTE; e Maria Theresa ALVEZ.
(organizadoras). Outras margens: estudos na obra de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Autêntica,
2001. pp.328-329 e p.325.
161
Manuel Antonio de CASTRO. O homem provisório no Grande Ser-tão: Veredas: um estudo de
Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro e Brasília: Tempo Brasileiro e INL, 1976. p.22.
162
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.116.
163
Id. Cara-de-Bronze. In: No Urubuquaquá, no Pinhém. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
p.154.
205
A vida: um negócio muito perigoso
Obviamente que essa vida lida, escrita e relida aqui é uma vida envolta em
sofrimento. Se ela é um negócio muito perigoso, o fato de existir é um ato
passivo do sofrer. Sagarana, como primeira obra e primeiro exemplo, é uma
coletânea de estórias sobre a tragédia humana, a dor, a perda e o sofrimento. Desde o
primeiro conto “O burrinho Pedrês”, onde um grupo de cavaleiros morre num rio em
meio a uma chuva forte e uma enchente
164
, até a saga de Augusto Matraga, todas as
estórias envolvem algum tipo de perda, de dor, de violência, de morte ou de tragédia.
Em “Conversa de Bois” um diálogo interessante dos bois do carro-de-boi
sobre o humano e sua condição:
“– Os bois soltos não pensam como o homem. nós, bois-de-
carro, sabemos pensar como o homem!...
Mas Realejo, pendulando devagar fronte e chifres, entre os
canzis de madeira esculpida, que lhe comprimem o pescoço como
um colarinho duro, resmunga:
Podemos pensar como o homem e como os bois. Mas é
melhor não pensar como o homem...
É porque temos de viver perto do homem, temos de
trabalhar ... Como os homens... Por que é que tivemos de aprender
a pensar?...
– É engraçado: podemos espiar os homens, os bois outros ...
Pior, pior... Começamos a olhar o medo... o medo
grande... e a pressa... O medo é uma pressa que vem de todos os
lados, uma pressa sem caminho ... É ruim ser boide-carro. É ruim
viver perto dos homens... As coisas ruins são do homem: tristeza,
fome, calor – tudo, pensado, é pior...
Mas, pensar no capinzal, na água fresca, no sono à
sombra, é bom... É melhor do que comer sem pensar. Quando
voltarmos, de noite, no pasto, ainda haverá boas touceiras do roxo-
miúdo, que não secaram... E mesmo o catingueiro-branco está com
as moitas só comidas a meia altura... É bonito poder pensar, mas
nas coisas bonitas ...
“É isso mesmo... o que é bonito... O que é manso e
bonito... Eu até queria contar uma coisa... Sabia de uma coisa...
Sabia, mas não sei mais” ...As orelhas de Brilhante murcharam, e a
164
“O burro pára. O mundo bóia. [...] Uma peitada. Outro tacar de patas. Chu-áa! Chu-áa... ruge o
rio, como chuva deitada no chão. Nenhuma pressa! Outra remada, vagarosa. No fim de tudo, tem o
pátio, com os cochos, muito milho, na Fazenda; e depois o pasto: sombra, capim e sossego...
Nenhuma pressa. Aqui, por ora, este poço doido, que barulha como um fogo, o faz medo, não é novo:
tudo é ruim e uma só coisa, no caminho: como os homens e os seus modos, costumeira confusão”. Id.
O burrinho Pedrês. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.94.
206
cabeça sobe e desce. “Não encontro mais aquilo que eu sabia...
Coisa velha... Também, vem tanta coisa para a gente pensar!...
Vêm, como os mosquitos maus, da beira do mato... Perto do
homem, só tem confusão...””
165
.
Corpo de Baile também é inundando por estórias de sofrimento. Miguilim
sofre com a morte de Dito, seu irmão, sua maior perda. Sofre com sua doença e sua
inocência. Sofre com a violência do pai. Sofre a negligência da mãe, e a relação da
mesma com um tio seu, o Tio Terêz. Sofre o assassinato que o pai comete, sofre,
depois, com a fuga e a morte do pai. Sofre com a religião opressora da avó. Sofre
também com a miopia que o impede de ver a beleza das coisas, principalmente a
beleza do Mutúm, lugar aonde ele vive. Manuelzão é uma figura triste que vai
construir uma capela para uma “Nossa Senhora Feia”
166
. “O recado do morro”
termina em uma chacina. “Cara-de-Bronze”, em forma de peça teatral, é um conto
enigmático, onde seu personagem que nomeia o conto é um velho à beira da morte.
“Lélio e Lina” mistura uma estória de amor e decepções. Já “Noites do sertão” possui
contos de relacionamentos felizes mais confusos, incompletos: Dão-Lalalão e Buriti.
Mesmo em “Primeiras estórias” e “Tutaméia”, livros posteriores ao “Grande
Sertão: Veredas”, as estórias também carregam um tom de vida sofrida. “A menina
de lá” é um conto triste, narra a morte de uma menina santa que prevê sua própria
morte e específica a forma e as cores de seu caixão. “Sorôco, sua mãe, sua filha” é a
estória de uma família desfragmentada por conta da loucura. “Os irmãos Dagobé” é
um conto de violência, e “A benfazeja”, além de violento é um conto de
incompreensão
167
. “Tutaméia” se distancia dessas escritas de sofrimento, mesmo
assim, não deixa de conter reflexões sobre a vida e a condição humana diante dela:
“viver é um rasgar-se e remendar-se”
168
.
Mas é a estória de Riobaldo, que também é uma estória trágica, de
sofrimento, que marca essa compreensão da vida como algo perigoso. E a morte de
Diadorim é, certamente, sua maior dor:
165
Id. Conversa de Bois. In: Ibid. pp.333-334.
166
Id. Uma estória de amor (Festa de Manuelzão). In: Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.153.
167
Nem todos os contos de “Primeiras estórias” possuem esse tom de sofrimento.
168
Id. João Porém, o criador de perus. In: Tutaméia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001. p.120.
207
“Aquela Mulher não era má, de todo. Pelas grimas fortes que
esquentavam meu rosto e salgavam minha boca, mas que já frias
rolavam. Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus-buritizais levados de
verdes... Buriti, do ouro da flor... E subiram as escadas com ele, em
cima de mesa foi posto. Diadorim, Diadorim será que amereci
por metade? Com meus molhados olhos não olhei bem como que
garças voavam... E que fossem campear velas ou tocha de cera, e
acender altas fogueiras de boa lenha, em volta do escuro do
arraial...
Sufoquei, numa estrangulação de dó. Constante o que a
Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como
que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim,
casca de tão grosso sangue, repisado. E a beleza dele permanecia,
permanecia, mais impossivelmente. Mesmo como jazendo
assim, nesse pó de palidez, feito a coisa e máscara, sem gota
nenhuma. Os olhos dele ficados para a gente ver. A cara
economizada, a boca secada. Os cabelos com marca de duráveis...
Não escrevo, não falo! – para assim não ser: não foi, não é, não fica
sendo! Diadorim...
Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava
rezas da Bahia. Mandou todo o mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher
abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples.
Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo. E
disse...
Diadorim – nu de tudo. E ela disse:
– “A Deus dada. Pobrezinha...”
E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não
contei ao senhor e mercê peço: mas para o senhor divulgar
comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no
átimo em que eu também soube... Que Diadorim era o corpo de
uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que
a surpresa. A coice d’arma, de coronha...
Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão
terrível; e levantei mão para me benzer mas com ela tapei foi um
soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim!
Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não
acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero.
O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente
nunca tem termo real.
Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci,
retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a
Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos
eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que
cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no ser, haviam de
dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu
exclamei me doendo:
“Meu amor!...” Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela,
para poder não presenciar o mundo”
169
.
169
Id. Ibid. pp.614-615.
208
E é também a estória de Riobaldo que, na obra de Guimarães Rosa, relaciona
de forma mais forte e clara, essa relação da vida e do sofrimento com o sagrado, com
Deus e com o diabo, que, por vezes, marca as veredas da travessia do homem
humano: “a vida da gente faz sete voltas – se diz. A vida nem é da gente...”
170
.
4. A vereda, veredazinha de João Guimarães Rosa
A pergunta de Riobaldo é pela vida e por tudo o mais que envolve a vida: a
busca, a luta, os ganhos e perdas, a alegria e a tristeza, e o momento do fim final,
pautado pela lembrança e pela interpretação dessa lembrança, reflexões sobre as
veredas e veredazinhas da própria vida. E a vida [para Riobaldo] é muito
discordada. Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz. Tem as caras todas do
Cão, e as vertentes do viver”
171
. E a resposta a essa pergunta está no texto, na
narrativa, na palavra, “nada fora da palavra”, pois “quando mais dentro aflora”,
como, por vezes, se repetiu aqui, e se ilustra bem através na música de Milton
Nascimento, com letra de Caetano Veloso:
“Meio a meio o rio ri por entre as árvores da vida
O rio riu, ri por sob a risca da canoa
O rio riu, ri o que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi a voz das águas
Asa da palavra, asa parada agora
Casa da palavra, onde o silêncio mora
Brasa da palavra, a hora clara, nosso pai
Hora da palavra, quando não se diz nada
Fora da palavra, quando mais dentro aflora
Tora da palavra, rio, pau enorme, nosso pai
172
.
170
Id. Ibid. p.171.
171
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.520.
172
Milton NASCIMENTO e Caetano VELOSO. A terceira margem do rio. Segundo Caetano Veloso
a música de Milton Nascimento, cujo título já arremete à obra de Guimarães Rosa, deu a ele uma letra
baseada no conto que tem o mesmo título da música e também no “Grande Sertão: Veredas”. “Oco de
pau que diz: eu sou madeira, beira / Boa, dá vau, triztriz, risca certeira / Meio a meio o rio ri,
silencioso, sério / Nosso pai não diz, diz: risca terceira / Água da palavra, água calada, pura / Água da
palavra, água de rosa dura / Proa da palavra, duro silêncio, nosso pai, / Margem da palavra entre as
escuras duas / Margens da palavra, clareira, luz madura / Rosa da palavra, puro silêncio, nosso pai /
Meio a meio o rio ri por entre as árvores da vida / O rio riu, ri por sob a risca da canoa / O rio riu, ri o
que ninguém jamais olvida / Ouvi, ouvi, ouvi a voz das águas / Asa da palavra, asa parada agora /
Casa da palavra, onde o silêncio mora / Brasa da palavra, a hora clara, nosso pai / Hora da palavra,
quando não se diz nada / Fora da palavra, quando mais dentro aflora / Tora da palavra, rio, pau
enorme, nosso pai”.
209
No entanto, a preocupação de Riobaldo diante da vida e da memória, um
processo, em si, doloroso: “para trás, não paz”
173
, é o de entender os processos
de travessia da vida, o que, em tese, no diálogo entre teologia e literatura, seria a
vereda determinante, já que nesse processo, além das observações possíveis da
travessia humana, do homem humano: suas lutas, seus sofrimentos, suas alegrias,
seus dramas etc, também é possível pensar Deus e o diabo, personagens pertencentes
ao universo da religião, ao espaço sagrado e às discussões da teologia.
Riobaldo e acredito que esse seja o centro da questão – quer responder uma
pergunta que, provavelmente, é uma pergunta que boa parte dos teólogos também
procura responder: de quem é a vida? Em verdade, a pergunta não para aí, ela se
expande para questões sobre o bem e o mal; sobre destino, acaso e liberdade; sobre
felicidade e sofrimento; e também sobre Deus e o diabo. Mas ela continua sendo
simples assim: de quem é a vida? De Deus? Do demo? De uma disputa cósmica entre
ambos? Do destino? Do acaso puro? Da liberdade? Daquilo que captura e prende a
vida? Ou a vida não é de ninguém e nem de nada? Ou é uma mistura de cada uma
dessas coisas? Obviamente que, os teólogos menos inocentes, assim como Riobaldo,
ainda têm lá suas dúvidas: “a gente só sabe bem aquilo que não entende”
174
.
A condição humana: a matança dos cavalos na Fazenda dos Tucanos
O episódio da matança dos cavalos, episódio, segundo o próprio Guimarães
Rosa, marcado pela metafísica, parece ser um momento dentro do livro onde se
revela, figuradamente, a condição humana.
Riobaldo relata que o episódio se na “Fazenda dos Tucanos”, onde, ainda
com a liderança de Zé Bebelo, o grupo de Riobaldo é cercado pelo bando dos
“Judas” na sede da fazenda, e uma batalha terrível é travada
175
. Em meio a tantas
173
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.58.
174
Id. Ibid. p.394. “A gente só sabe bem aquilo que não entende. O senhor veja: eu, de Diadorim, hoje
em dia, eu queria recordar muito mais coisas, que valessem, do esquisito e do trivial; mas não posso.
Coisas que se deitaram, esqueci fora do rendimento. O que renovar e ter eu não consigo, modo
nenhum. Acho que é porque ele estava sempre tão perto demais de mim, e eu gostava demais dele”.
175
Na edição lida, de 2001, a chegada à Fazenda dos Tucanos e essa batalha são relatados da página
338 até a página 386, onde, finalmente, eles conseguem fugir da sede da fazenda.
210
mortes, tanto de um lado quanto do outro, oshermógenes” resolvem matar os
cavalos que estavam cercados num curral:
“[...], no sobrevento, o Cavalcânti se exclamou: “A que estão
matando os cavalos!...” Arre e era. cheio o curralão, com a
boa animalada nossa, os pobres dos cavalos ali presos, tão sadios
todos, que não tinham culpa de nada; e eles, cães aqueles, sem
temor de Deus nem justiça de coração, se viravam para judiar e
estragar, o rasgável da alma da gente – no vivo dos cavalos, a torto
e direito, fazendo fogo! Ânsias, ver aquilo”.
Presos num curral, os cavalos, todos sadios, sem culpa, sofrem um sofrimento
não merecido e sem nenhuma necessidade ou mesmo explicação. O sofrimento ou a
realidade de sofrente lhes era uma condição:
“Alt’-e-baixos – entendendo, sem saber, que era o destapar do
demônio os cavalos desesperaram em roda, sacolejados
esgalopeando, uns saltavam erguidos em chaça, as mãos cascantes,
se deitando uns nos outros, retombados no enrolar dum rolo, que
reboldeou, batendo com uma porção de cabeças no ar, os pescoços,
e as crinas sacudidas esticadas, espinhosas: eles eram só umas
curvas retorcidas!”
176
Deus e o diabo, no relato de Riobaldo, são constantemente citados. Aqueles que
infligiam o sofrimento não tinham o temor de Deus, aquilo que lhes poderia ter
servido como freio em tal ação. ao diabo é dado a culpa: “era o destapar do
demônio”. E o sofrimento causava mais sofrimento: “o Fafafa chorava. João
Vaqueiro chorava. Como a gente toda tirava lágrimas. Não se podia ter mão naquela
malvadez, não havia remédio”
177
.
“Aquilo pedia que Deus mesmo viesse, carnal, em seus
avessos [grifo meu], os olhos formados. Nós rogávamos as pragas.
Ah, mas a fé nem vê a desordem ao redor. Acho que Deus não quer
consertar nada a não ser pelo completo contrato: Deus é uma
plantação. A gente e as areias. Aturado o que se pegou a ouvir,
eram aqueles assombrados rinchos, de corposo sofrimento, aquele
rinchado medonho dos cavalos em meia-morte, que era a espada de
aflição: e carecia de alguém ir, para, com pontaria caridosa, em um
e um, com a dramada deles acabar, apagar o centro daquela dor.
Mas não podíamos! O senhor escutar e saber – os cavalos em
176
Id. Ibid. p.355.
177
Id. Ibid. p.356.
211
sangue e espuma vermelha, esbarrando uns nos outros, para morrer
e não morrer, e o rinchar era um choro alargado, despregado, uma
voz deles, que levantava os couros, mesmo uma voz de coisas da
gente: os cavalos estavam sofrendo com urgência, eles não
entendiam a dor também. Antes estavam perguntando por
piedade”
178
.
Mesmo depois que tudo se passou, o sofrimento, a lembrança do sofrimento
ainda amargava a memória deles todos
179
: “Mesmo quando o arraso do último rincho
no ar se desfez de vez, a gente ainda se estarrecia quietos, um tempo grande, mais
prazo até que o som e o silêncio, e a lembrança daquele sofrer, pudessem se
enralecer embora, para algum longe”
180
. Depois disso Riobaldo propõe duas
questões, uma delas já citada anteriormente:
“Daí, depois, tudo recomeçou de novo, em mais bravo. E nisto, que
conto ao senhor, se o sertão do mundo. Que Deus existe, sim,
devagarinho, depressa. Ele existe – mas quase só por intermédio da
ação das pessoas: de bons e maus. Coisas imensas no mundo. O
grande-sertão é a forte arma. Deus é um gatilho?”
181
“Agora, que mais idoso me vejo, e quanto mais remoto aquilo
reside, a lembrança demuda de valor se transforma, se compõe,
em uma espécie de decorrido formoso. Consegui o pensar direito:
penso como um rio tanto anda: que as árvores das beiradas mal
nem vejo... Quem me entende? O que eu queira. Os fatos passados
obedecem à gente; os em vir, também. o poder do presente é
que é furiável? Não. Esse obedece igual e é o que é. Isto,
aprendi. A bobéia? Pois, de mim, isto o que é, o senhor saiba é
lavar ouro. Então, onde é que está a verdadeira mpada de Deus, a
lisa e real verdade?”
182
Percebe-se assim que o é possível escapar dessa condição, é possível
vivê-la. No entanto, é possível perguntar pela piedade e, desse modo, questionar ou
mesmo e tão somente buscar entender essa condição
183
.
178
Id. Ibid. pp.356-357.
179
“Mas o Fafafa nem nada não disse, não conseguia: o quanto pôde, se assentou no chão, com as
duas mãos apertando os lados da cara, e cheio chorou, feito criança com todo o nosso respeito, com
a valentia ele agora se chorava. Id. Ibid. p.358.
180
Id. Ibid. p.359.
181
Id. Ibid. p.359.
182
Id. Ibid. p.359.
183
“Informação que pergunto: mesmo no Céu, fim do fim, como é que a alma vence se esquecer de
tantos sofrimentos e maldades, no recebido e no dado? A como? O senhor sabe: há coisas de
medonhas demais, tem. Dor do corpo e dor da idéia marcam forte, tão forte como o todo amor e raiva
e ódio”. Id. Ibid. p.37.
212
A vereda: reflexões sobre a vida
Riobaldo então estende a sua reflexão: qual era então a sua condição? De
quem ele era? Mas antes de responder de quem era, Riobaldo sabe de quem
gostaria de ser, ele queria era ser dono de si mesmo: “ser dono definitivo de mim, era
o que queria, queria. Mas Diadorim sabia disso, parece que não deixava: [...]”
184
.
Em princípio, percebe-se que Diadorim é o condutor de Riobaldo pela vida,
tanto pelos bons
185
quanto pelos maus caminhos
186
: “o Hermógenes: mal sem razão...
[grifo meu] Para poder matar o Hermógenes era que eu tinha conhecido Diadorim, e
gostado dele, e seguido essas malaventuranças, por toda a parte?”
187
E é desde o
encontro dele, ainda menino, com Diadorim
188
, no “de Janeiro”, rio afluente do rio
São Francisco, que isso fica marcado na memória de Riobaldo como um
questionamento: “Por que foi que eu conheci aquele Menino? [...] Mas, para que? por
que?”
189
Mas a pergunta já não era mais essa.
No entanto, o encontro em canoa afundadeira, que vai ser interpretado
depois, respondido depois, marca a existência de Riobaldo de forma profunda, pois
esse encontro foi como um chamado para o aprofundamento e enfretamento da vida,
sair da margem e entrar no rio: “Carece de ter coragem...” ele me disse”
190
,
“Carece de ter coragem. Carece de ter muita coragem...” ele me moderou, tão
gentil”
191
.
“E eu não tinha medo mais. Eu? O sério pontual é isto, o
senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo; e escute
184
Id. Ibid. p.54.
185
“Quem me ensinou a apreciar essas as belezas sem dono foi Diadorim...”. Id. Ibid. p.42. “Depois de
tantas guerras, eu achava um valor viável em tudo o que era cordato e correntio, na tiração de leite,
num papudo que ia carregando lata de lavagem para o chiqueiro, nas galinhas-d’angola ciscando às
carreiras no fedegoso-bravo, com florezinhas amarelas, e no vassoural comido baixo, pelo gado e
pelos porcos. [...] Aquela visão dos pássaros, aquele assunto de Deus, Diadorim era quem tinha me
ensinado”. Id. Ibid. p.205.
186
“Mor que depois eu soube – que, a idéia de se atravessar o Liso do Sussuarão, ele Diadorim era que
a Medeiro Vaz tinha aconselhado”. Id. Ibid. p.70.
187
Id. Ibid. p.557.
188
pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino mocinho,
pouco menos do que eu, ou devia de regular minha idade”. Id. Ibid. p.118.
189
Id. Ibid. p.126.
190
Id. Ibid. p.122.
191
Id. Ibid. pp.124-125.
213
desarmado. O sério é isto, da estória toda – por isto foi que a estória
eu lhe contei eu não sentia nada. uma transformação, pesável.
Muita coisa importante falta nome”. [...] Agora, que o senhor
ouviu, perguntas faço. Por que foi que eu precisei de encontrar
aquele Menino? Toleima, eu sei. Dou, de. O senhor não me
responda. Mais, que coragem inteirada em peça era aquela, a
dele? De Deus, do demo? [grifo meu, essa é a verdadeira
pergunta]”
192
.
No segundo encontro, quando os dois já são rapazes, traça-se, de forma
definitiva, o destino de Riobaldo: “E ele como sorriu. Digo ao senhor: até hoje para
mim está sorrindo. Digo. Ele se chamava Reinaldo. [...] o amor assim pode vir do
demo? Poderá?! [grifo meu]”
193
. O restante da estória é então marcado pela tentativa
de Riobaldo de ficar com Diadorim até o fim. Ele é seu destino preso. Diadorim era a
sua neblina
194
, Diadorim havia tomado conta dele
195
. Ele era o seu Diá...
196
. E isso se
estende até a compreensão de Riobaldo de que estava amando mesmo, de amor
mesmo amor, seu companheiro de armas:
“Ao que, alforriado me achei. Deixei meu corpo querer Diadorim;
minha alma? Eu tinha recordação do cheiro dele. Mesmo no escuro,
assim, eu tinha aquele fino das feições, que eu não podia divulgar,
mas lembrava, referido, na fantasia da idéia. Diadorim mesmo o
bravo guerreiro ele era para tanto carinho: minha repentina
vontade era beijar aquele perfume no pescoço: a lá, aonde se
acabava e remansava a dureza do queixo, do rosto... Beleza o que
é? E o senhor me jure! Beleza, o formato do rosto de um: e que
para outro pode ser decreto, é, para destino destinar... E eu tinha de
gostar tramadamente assim, de Diadorim, e calar qualquer palavra.
Ela fosse uma mulher, e à-alta e desprezadora que sendo, eu me
encorajava: no dizer paixão e no fazer pegava, diminuía: ela no
meio de meus braços! Mas, dois guerreiros, como é, como iam
poder se gostar, mesmo em singela conversação por detrás de
tantos brios e armas? Mais em antes se matar, em luta, um o outro.
E tudo impossível. Três-tantos impossível, que eu descuidei, e
falei. –... Meu bem, estivesse dia claro, e eu pudesse espiar a cor de
192
Id. Ibid. p.125.
193
Id. Ibid. pp.154-155.
194
Cf. Id. Ibid. p.40.
195
“O senhor releve e não reprove. Demasias de dizer sobem com as lembranças da mocidade. Não
estou contando? Pois minha vida em amizade com Diadorim correu por muito tempo desse jeito. Foi
melhorando, foi. Ele gostava, destinado, de mim. E eu – como é que posso explicar ao senhor o poder
de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio. Eu ia com ele até o rio
Jordão... Diadorim tomou conta de mim”. Id. Ibid. p.209.
196
Cf. Id. Ibid. p.604.
214
seus olhos... –; o disse, vagável num esquecimento, assim como
estivesse pensando somente, modo se diz um verso”
197
.
É então na velhice e na memória que lhe pertence, “o que lembro,
tenho”
198
, que as respostas são dadas: “Esse menino, e eu, é que éramos destinados
para dar cabo do Filho do Demo, do Pactário!”
199
“A modo que o resumo da minha
vida, em desde menino, era para dar cabo definitivo do Hermógenes naquele dia,
naquele lugar”
200
; “mas primeiro, antes, teve o começo. E aí teve o antes-do-começo;
que o que era a gente vindo, vindo”
201
, e isso leva ao pacto, ao diabo e às questões
sobre a alma, à pergunta: de quem é a vida?
“Sempre sei, realmente. o que eu quis, todo o tempo, o
que eu pelejei para achar, era uma só coisa – a inteira cujo
significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era:
que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de
cada uma pessoa viver e essa pauta cada um tem mas a gente
mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por
si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem.
Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso
dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só uma
ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no
encoberto; mas, fora dessa conseqüência, tudo o que eu fizer, o que
o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou
deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela
outra é a lei, escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro
viver: que para cada pessoa, sua continuação, foi projetada,
como o que se põe, em teatro, para cada representador sua parte,
que antes foi inventada, num papel... Ora, veja. Remedêio peco
com pecado? Me torço! Com essa sonhação minha, compadre meu
Quelemém concorda, eu acho. E procurar encontrar aquele
caminho certo, eu quis, forcejei; que fui demais, ou que cacei
errado. Miséria em minha mão. Mas minha alma tem de ser de
Deus: se não, como é que ela podia ser minha? O senhor reza
comigo. A qualquer oração. Olhe: tudo o que não é oração, é
maluqueira... Então, não sei se vendi? Digo ao senhor: meu medo é
esse. Todos não vendem? Digo ao senhor: o diabo não existe, não
há, e a ele eu vendi a alma... Meu medo é este. A quem vendi?
Medo meu é este, meu senhor: então, a alma, a gente vende, só, é
sem nenhum comprador...”
202
.
197
Id. Ibid. pp.592-593.
198
Id. Ibid. p.204.
199
Id. Ibid. p.425.
200
Id. Ibid. p.590.
201
Id. Ibid. p.563.
202
Id. Ibid. pp.500-501.
215
Riobaldo percebe aos poucos que o pacto e sua estória de vida estão marcados
por uma pauta, um destino. Mas esse destino não é o traçado pela Moira, as três
irmãs da mitologia grega, mas sim pela própria condição da vida. E a vida é isso:
“viver é um descuido prosseguido”
203
. Desde sua infância ele está “indo a esmo
204
,
conduzido pela própria vida, pelo incorrer e suceder dos acontecimentos: “ah, e se
não fosse, cada acaso, não tivesse sido, qual é então que teria sido o meu destino
seguinte?”
205
Mesmo Deus só seria um condutor parcial dentro da existência, Ele não
controla, apenas aponta: “Deus vem, guia a gente por uma légua, depois larga. Então
tudo resta pior do que antes. Esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém pode medir
suas pêrdas e colheitas”
206
. Deus não parece ser um controlador da vida, mas apenas
um apreciador, quando não, apenas um espectador com algumas e esporádicas ações
de refinamento da vida: “Deus não se comparece com refe, não arrocha o
regulamento. Pra que? Deixa: bobo com bobo um dia, algum estala e aprende:
esperta. que, às vezes, por mais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de
pimenta...”
207
.
o diabo precisa ser negado: “tem diabo nenhum”
208
. A vida não é dele: “se
tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não queira.
Não é vendível”
209
; e isso apesar dele do diabo estar presente em tudo e em toda
parte
210
, além de ser o homem aos avessos: “explico ao senhor: o diabo vige dentro
203
Id. Ibid. p.86.
204
Id. Ibid. p.120.
205
Id. Ibid. p.142.
206
Id. Ibid. p.160.
207
Id. Ibid. p.33.
208
Id. Ibid. p.26.
209
Id. Ibid. p.41.
210
“Hem? Hem? Ah. Figuração minha, de pior pra trás, as certas lembranças. Mal haja-me! Sofro
pena de contar não... Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não
a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu
uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente virar azangada motivos não sei; às vezes se diz
que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas vai em amargando, de
tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandiocabrava, também é que às
vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, o senhor viu, por
ver, a feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra cascavel? Observou o porco gordo,
cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engolir por sua suja comodidade o mundo todo?
E gavião, corvo, alguns, as feições deles representam a precisão de talhar para adiante, rasgar e
estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo. Tudo. Tem até tortas raças de
pedras, horrorosas, venenosas que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o
216
do homem, os crespos do homem ou é o homem arruinado, ou o homem dos
avessos”
211
. Se ele não era de Deus e não era do demo
212
, de quem ele era? Ele era da
vida, era do sertão
213
: “Porque aprender-a-viver é que é viver, mesmo. O sertão me
produz, depois me enguliu, depois me cuspiu do quente da boca...”
214
.
Riobaldo sabia que tudo o que lhe acontecerá até aquele momento era
resultado do que a vida lhe propôs e das escolhas que ele fez: “– “Sertão não é
maligno nem caridoso, mano oh mano!: ...ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao
senhor, conforme o senhor mesmo””
215
. No fim final, quem mandava nele não era
mais ele, mas os avessos dele
216
, suas escolhas erradas, o seu próprio caminho
217
. Por
isso suas conclusões tomam um único caminho possível: “o diabo não há! É o que eu
digo, se for... Existe é homem humano. Travessia”
218
.
As veredazinhas: conclusões sobre a vida e sobre Deus
Há três trechos na obra de Guimarães Rosa que eu gostaria de reproduzir aqui
com a intenção de fechar este último ponto deste último capítulo. O primeiro,
dividido em duas partes, é de “Campo Geral”, uma fala de Dito que é repetida depois
por Miguilim:
“– “Miguilim, Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu
sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo
com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de
diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo que é assim o significado dum
azougue maligno tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está
misturado em tudo”. Id. Ibid. p.27.
211
Id. Ibid. p.26.
212
Id. Ibid. p.510.
213
“Mas repeli aquilo. Visão arvoada. Como que eu estava separado dele por um fogueirão, por alta
cerca de achas, por profundo valo, por largues enorme dum rio em enchente. De que jeito eu podia
amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e armas, espalhado rústico em suas
ações?! Me franzi. Ele tinha culpa? Eu tinha culpa? Eu era o chefe. O sertão não tem janelas nem
portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa...
Aquilo repeli?” Id. Ibid. p.511.
214
Id. Ibid. p.601.
215
Id. Ibid. p.537.
216
Cf. Id. Ibid. p.486.
217
“Se não vivei Deus, ah, também com o demo não me peguei refiro ; mas um nome eu falava,
fortemente falado baixo, e que pensado com mais força ainda. E que era: Urutú Branco!... Urutú
Branco!... Urutú Branco!... Cujo era eu mesmo. Eu sabia, eu queria”. Id. Ibid. p.570.
218
Id. Ibid. p.624.
217
poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!...”
219
[...] “O
Dito dizia que o certo era a gente estar sempre brabo de alegre,
alegre por dentro, mesmo com tudo de ruim que acontecesse, alegre
nas profundas. Podia? Alegre era a gente viver devagarinho,
miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma”
220
.
O segundo trecho é do conto “Buriti”, de “Campo Geral”, do livro “Noites do
Sertão”, pensamento de Lalinha, depois da morte de Maria Behú
221
: “Deus nos
pessoas e coisas, para aprendermos a alegria... Depois, retoma coisas e pessoas para
ver se já somos capazes da alegria sozinha... Essa – a alegria que Ele quer...”
222
.
No “Grande Sertão: Veredas” está o terceiro, mais longo e último trecho que
aqui se reproduz. É uma mistura de uma canção, a canção do Siruiz, e de uma
reflexão de Riobaldo:
“Aí sendo que eu completei outros versos, para ajuntar com os
antigos, porque num homem que eu nem conheci aquele Siruiz
eu estava pensando. Versos ditos que foram estes, conforme na
memória ainda guardo, descontente de que sejam sem razoável
valor:
Trouxe tanto este dinheiro
o quanto, no meu surrão,
p’ra comprar o fim do mundo
no meio do Chapadão.
Urucuia – rio bravo
cantando à minha feição:
é o dizer das claras águas
que turvam na perdição.
Vida é sorte perigosa
passada na obrigação:
toda a noite é rio-abaixo,
todo dia é escuridão...
Mas estes versos não cantei para ninguém ouvir, não valesse a
pena. Nem eles me deram refrigério. Acho que porque eu mesmo
219
Id. Campo Geral. In: Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2001. p.119.
220
Id. Ibid. p.148.
221
“A tristeza pela morte de Maria Behú produzia espécie de liberdade. As pessoas estavam mais
unidas, e contudo mais separadas”. Id. Buriti. In: Noites do sertão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2001. p.304.
222
Id. Ibid. p.304.
218
tinha inventado o inteiro deles. A virtude que tivessem de ter, deu
de se recolher de novo em mim, a modo que o truso dum gado mal
saído, que em sustos se revolta para o curral, e na estreitez da
porteira embola e rela. Sentimento que não espairo; pois eu mesmo
nem acerto com o mote disso o que queria e o que não queria,
estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim:
esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois
desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é
ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio
da alegria, e ainda mais alegre no meio da tristeza! assim de
repente, na horinha em que se quer, de propósito por coragem.
Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia”
223
.
Deus esteja! Esta seria a compreensão dele, de Riobaldo: o que Deus quer da
gente é coragem e alegria diante da vida, independente do momento e da situação,
independente das culpas ou das absolvições. Esse é o ideal, o que se busca, mas que
quase nunca se encontra, a veredazinha: “perto de muita água, tudo é feliz”
224
.
Conclusão
A negação de um, do diabo, e a defesa da existência do outro, de Deus, na
narrativa de Riobaldo, parece ser apenas uma questão de retórica. No entanto, o que
mais existe ser aquilo que não há e o que menos há ser aquilo que existe e essa é a
reflexão de Riobaldo não parece ser uma coisa com muita lógica. Porém, não é de
lógica que a religião sobrevive, muito menos o sagrado, um elemento o-racional,
segundo Rudolf Otto. É Riobaldo quem diz: “Ah, mas, no centro do sertão, o que é
doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo!”
225
Talvez por isso a conclusão irracional de Riobaldo, primada mais pela
intuição e menos pelo racionalismo, esteja mais perto do correto: o homem humano é
223
Id. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.333-334.
224
Id. Ibid. p.45. Cf. Tb. “Mas, por entre as chapadas, separando-as (ou, às vezes, mesmo no alto, em
depressões no meio das chapadas) as veredas. São vales de chão argiloso ou turvo-argiloso, onde
aflora a água absorvida. Nas veredas, sempre o buriti. De longe, a gente avista os buritis, e já sabe:
lá se encontra água. A vereda é um oásis. Em relação às chapadas, elas são, as veredas, de belo verde-
claro, aprazível, macio. O capim é verdinho-claro, bom. As veredas são férteis. Cheia de animais, de
pássaros. As veredas são sempre belas!” João Guimarães ROSA e Edoardo BIZZARRI. João
Guimarães Rosa: Correspondência com seu tradutor Italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2003. pp.42-43. Correspondência de João Guimarães Rosa, 11 de outubro de 1963.
225
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.301.
219
escravo de sua liberdade: “mas liberdade aposto ainda é alegria de um pobre
caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. [...] a vida não é uma coisa
terrível?”
226
, ele está preso ao seu livre destino, ao seus caminhos escolhidos por ele
mesmo e, principalmente, preso às conseqüências dessas escolhas, inclusive ao
sofrimento e a lembrança dele: e o Urutú-Branco? Ah, não me fale. Ah, esse...
tristonho levado, que foi – que era um pobre menino do destino...”
227
.
“O São Francisco partiu minha vida em duas partes. A Bigrí, minha
mãe, fez uma promessa; meu padrinho Selorico Mendes tivesse de
ir comprar arroz, nalgum lugar, por morte de minha mão? Medeiro
Vaz reinou, depois de queimar sua casa-de-fazenda. Medeiro Vaz
morreu em pedra, como touro sozinho berra feio; conforme
comparei, uma vez: touro preto todo urrando no meio da
tempestade. Bebelo me alumiou. Bebelo ia voltando, como
um vivo demais de fogo e vento, zás de raio veloz como o
pensamento da idéia – mas a água e o chão não queriam saber dele.
Compadre meu Quelemém outrotanto é homem sem parentes,
provindo de distante terra – da Serra do Urubu do Indaiá. Assim era
Joca Ramiro, tão diverso e reinante, que, mesmo em quando ainda
parava vivo, era como se estivesse constando de falecido.
Candelário? Candelário se deseperou por forma. Meu coração é
que entende, ajuda minha idéia a requer e traçar. Ao que Joca
Ramiro pousou que se desfez, enterrado no meio dos carnaùbas,
em chão arenoso salgado. Candelário não era, de certo modo,
parente do compadre meu Quelemém, o senhor sabe? Diadorim me
veio, de meu não-saber e querer. Diadorim eu adivinhava, sonhei
mal? E em Otacília eu sempre muito pensei: tanto que eu vinha as
baronesas amarasmeando no rio em vidro – jericó, e os lírios todos,
os lírios-do-brejo copos-de-leite, grimas-de-moça, são-josés.
Mas, Otacília, era como se para mim ela estivesse no camarim do
Santíssimo. A Nhorinhá nas Aroeirinhas filha de Ana Duzuza.
Ah, não era rejeitã... Ela quis me salvar? De dentro das águas mais
clareadas, tem um sapo roncados. Nonada! A mais, com aquela
grandeza, a singeleza: Norinha puta e bela. E ela rebrilhava, para
mim, feito itamotinga. Uns talismãs. A mocinha Miosóstis? Não. A
Rosa’uarda. Me alembrei dela; todas as minhas lembranças eu
queria comigo. Os dias que são passados vão indo em fila para o
sertão”
228
.
Guimarães Rosa conhece bem as formas instituídas do saber e do saber
religioso, ou mesmo do saber teológico e, por isso, ele rompe com esses saberes e,
226
Id. Ibid. p.323.
227
Id. Ibid. p.33.
228
Id. Ibid. pp.326-327. O texto é um quase resumo de toda a jornada de Riobaldo. Esse foi o seu
destino.
220
rompendo, de dentro da literatura, a partir da escrita poética, propõe um outro saber,
que não quer ser teologia, como se disse, talvez apenas meia, meia teologia, mas
sim um outro saber que quer ser uma fala em diálogo, que também quer e pode
dialogar com a teologia. O senhor doutor, que é o ouvinte de Riobaldo, a figura do
leitor para muitos críticos de Rosa, é, ou melhor, também pode ser o teólogo. Para
isso, penso, testo e explico: a vida, a palavra e o sagrado podem ser as veredas para
isso.
Por aqui fica então e somente uma compreensão simples: se para a teologia
tais afirmações não podem ser feitas, por causa de sua lógica; na literatura, que não
obedece a tais lógicas, tais afirmações podem, com certa tranquilidade, acontecerem:
“Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para
haver”
229
.
229
Id. Ibid. p.76.
221
CONCLUSÃO
Pensar que Deus existe por intermédio das pessoas, de boas e más, e
pensar que por intermédio das pessoas é que o diabo existe, é compreender que o
que de fato existe é o “intermédio das pessoas”. E essa é a compreensão de Riobaldo.
É por intermédio das pessoas que a vida se dá: a história, as ações e reações, as
escolhas, o que acontece e o que deixa de acontecer, as consequências, a memória, a
interpretação dessa memória, etc. Além disso, é compreender que o sagrado só existe
e só se faz “também” por intermédio das pessoas, das boas e das más. Obviamente
que essas conclusões o caberiam num manual de teologia dogmática (contexto
católico) e nem de teologia sistemática (contexto protestante e evangélico). No
entanto, essa não deixa de ser uma conclusão de teologia, mesmo que seja apenas
meia-conclusão ou meia-teologia.
De outra forma, pensar assim seria pensar também e isso foi tratado no
segundo capítulo desta tese em como uma personagem de ficção poderia contribuir
para tal compreensão (também para outras compreensões) em teologia. Miguilim,
Augustro Matraga, Grivo, Lina, Riobaldo etc, são personagens de ficção, frutos da
imaginação do autor mineiro Guimarães Rosa, que poderia ser, ele sim, considerado
alguém que está refletindo na literatura uma forma de pensar teológico. Mas a
personagem, além de imaginação do autor, é a tensão existente, tanto na teologia
como na literatura latino-america, entre o que é o imaginário e o que é reflexão
1
.
Assim, a personagem, por poder ser, a partir da verossimilhança, a forma de reflexão
do autor, do leitor, de um contexto específico ou mesmo de uma conclusão comum
que não concorda com o dizer afixado, é o ponto para a leitura. E foi por esse
caminho que se pensou e que se construiu as reflexões na Vereda da Vida, como
caminho de leitura para a obra Rosiana.
1
Conforme Antonio Magalhaes: “O que não se pode rejeitar, porém, é que tanto a preocupação de
Schleiermacher quanto a de Hegel colocam uma questão fundamental para o debate teológico: a
tensão de fato existente para a teologia, que caminha entre o imaginário e a reflexão, e é dentro desse
itinerário que a literatura latino-americana se encontra”. Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES.
Deus no Espelho das Palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. (Coleção:
Literatura e Religião). pp.129-130.
222
A partir de tais leituras, que apontam para as primeiras conclusões, ainda
seria possível pensar na relação entre personagens e, desse modo, também na relação
entre textos, numa forma de intertextualidade, como se caminhou pelo terceiro
capítulo, com a Vereda da Palavra. Primeiro de Riobaldo, como personagem de uma
literatura que se entende como literatura de imaginação; depois de Dante, como
literatura de imaginação, mas com força e relação clara dentro dos imaginários de
religião; e, por fim, Jó, uma personagem Bíblica. Jó, como em parte já dito, é uma
personagem bíblica pensada a partir de uma historicidade, que se lhe for tirada, lhe é
tirada (em parte) também a força de espiritualidade. Dante é personagem e escritor,
histórico, mas também ficção, e ficção embebedada de um imaginário religioso bem
específico, numa mistura de filosofia, mitologia grega, imaginário cristão católico,
teologia e também de literatura, pois não se pode esquecer que quem transita pelas
veredas de um imaginário específico da religião: inferno, purgatório e céu, são os
poetas. Agora, Riobaldo é ficção. Mas é ficção, romance, que mantém também
uma relação clara com a história e com a sociedade da qual faz parte, com questões
sociais, de política, geografia etc; bem como com o imaginário religioso, o corrente,
mais popular, e o erudito, mais teológico. Nisso, Jó, Riobaldo e Dante são iguais.
Numa linguagem que lhes é comum, a literária ou icônica, de forma também digital
2
,
revelam um universo de sentidos, de verdades e de valores que seus textos
defendem
3
. E isso não é só imaginação, literatura de imaginação, para o divertimento
ou devaneio, é reflexão, é questionamento ou ponderação, é ampliação, ou mesmo
uma forma de proposta diferente, uma proposta outra.
Do jovem que o pai entrar no rio em canoa, para nunca mais voltar, ao
próprio pai, pai crocodilo que entra no rio – na profundidade humana –, passando por
Miguilim, por Diadorim, por Lalino Salãthiel, pelo Pedrês, pela menina de fita-verde
no cabelo, até Riobaldo, todos querem ler seu mundo e entendê-lo, mesmo que seja a
partir da imaginação de seu autor, e, também, por meio de um fazer teológico meio
“distorcido e confuso”. Mas o que se quer é entendê-lo, para dele criar sentido: “só o
que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma coisa a inteira
cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive”
4
. Mas não é isso, o
2
Icônico e digital são termos usados por Juan Luis Segundo, termos já usados no presente texto.
3
Cf. Id. Ibid. p.170.
4
João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.500.
223
texto se faz palavra a narrativa de uma estória-história para poder também ser e
dar sentido para múltiplas e diversas situações da vida, para ser verossimilhante, algo
imaginado, identificável na vida e citável no real
5
. Isso aproxima outra vez os textos
religiosos dos textos literários de imaginação e religião dos textos de imaginação. O
que, novamente, cria esse elemento de aproximação, uma forma de intertextualidade:
os textos da grande literatura, sejam eles agora pertencentes a um cânone religioso ou
não, são textos descentralizados, procuram ser (e são) “mais” do que lhes é
atribuído
6
, são palavras que criam sentido, são significadoras.
Se se insiste e em parte é isso que a presente tese procura que a obra
rosiana, mais especialmente o “Grande Sertão: Veredas”, é “mais” do que literatura,
também se deve pensar no que quer dizer esse “mais”
7
, e isso, independentemente do
projeto originário do autor
8
ou mesmo do projeto imaginado de possíveis leitores,
capazes de canonizar o texto como texto de religião. Pois ela é, penso eu, uma
literatura que continua formando junto, mas também à parte da literatura de
religião
9
uma forma de consciência espiritual que começa no autor da obra e chega
5
“[...] o que se passa é que a peça literária está adquirindo a qualidade existencial de entrar na vida de
alguém e de se transformar em possessão pessoal A capacidade de adquirir essa qualidade de se tornar
citável perante uma variedade de situações é imprevisível: [...] a literatura [neste sentido] pode
adquirir o mesmo elemento descentralizado que discutimos em relação à Bíblia”. Northrop FRYE. O
código dos códigos: a Bíblia e a literatura. (tradução de Flávio Aguiar). São Paulo: Boitempo, 2004.
p.256. “Temos agora dois princípios críticos com que prosseguir. Um é o de que a Bíblia, em suas
convenções lingüísticas, está muito próxima das convenções da oralidade e da tradição oral. O outro é
o de que, nela, toda e qualquer sentença é uma espécie de mônada lingüística. De um certo ponto de
vista a Bíblia é tão unificada e contínua como um texto de Dante, e assim a vimos até aqui; de um
outro ponto de vista ela é tão descontínua e epifânica como um texto de Rimbaud”. Id. Ibid. p.247.
6
Cf. Id. Ibid. p.259.
7
“Penso que para ver o que ela significa devemos nos voltar de novo para a teoria do significado
“polissêmico” que, embora tradicional, continua negligenciada. Uma experiência muito comum na
leitura é a de descobertas futuras que poderão ser feitas na mesma estrutura de palavras. Mais ou
menos sente-se assim: “pode-se obter mais disso daí”; ou podemos dizer, a respeito de uma peça que
admiramos em especial, que, a cada vez que a lemos, encontramos algo novo. Esse “algo novo” não é
necessariamente algo que não vimos antes; pode vir, ao invés, de um novo contexto existente em
nossa própria experiência. O que daí se infere é que, quando começamos a ler, há um processo
dialético que se desdobra, de tal modo que qualquer compreensão dada do que lemos é parte de uma
série de fases, ou de estágios, da compreensão”. Id. Ibid. pp.259-260.
8
“[...] ao acontecer na vida [diz Antonio Magalhães], o texto é sempre algo a se cumprir, um projeto a
ser realizado, um caminho a ser seguido, independente do interesse originário do autor ou da autora”.
Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus no Espelho das Palavras: teologia e literatura em
diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. p.206.
9
A isso acrescento a fala de Antonio Manzatto: “Esse fato permitiu a distinção entre uma literatura
dita cristã, aquela que fala de Deus, da Igreja, do crente, da fé, e uma outra literatura, dita pagã ou
secular. [...] Existem aqueles que dizem que a literatura cristã é a verdadeira, a boa literatura; outros,
ao contrário, preferem afirmar que a literatura secular é a única literatura legítima, pois a cristã está
por demais submetida aos dogmas da fé, o que atrapalha a liberdade e a criatividade da expressão
224
e se expande em parte de seus leitores
10
. E, como se viu, dito pelo próprio autor, a
obra rosiana nasce exatamente com essa preocupação: “a ngua, para mim, é
instrumento: fino, hábil, agudo, abarcável, penetrável, sempre perfectível, etc. Mas
sempre a serviço do homem e de Deus, do homem de Deus, da Transcendência”
11
.
Não é apenas uma literariedade comprometida com a beleza, apesar de ser bela, mas
com a beleza literária que seja profunda em relação à vida, ao humano e à relação da
vida e do humano com o divino, com o transcendente. Mesmo que seja a partir de
uma realidade religiosa e de uma espiritualidade sertaneja real e também imaginada,
onde tudo é muito misturado, plural e sincrético: “nesse mundo trágico e cheio de
tensão [diz Rosa] reinam deuses que aparentemente recuaram ante o cristianismo
mas que, na realidade, são forças motrizes dele em que ainda se fiam e aos quais
obedecem um povo e um continente inteiro”
12
.
II
Da mesma forma e aqui se chega ao caminho escolhido no último capítulo
da tese e também às suas efetivas conclusões –, se se reconhece que Deus está no
“espelho das palavras”, então, em Guimarães Rosa, certamente um reflexo dEle,
um reflexo teológico literário ou literário teológico. Também, se a correspondência é
reconhecida no diálogo, então ela se faz o espelho e os temas surgem: vida, palavra e
sagrado, temas que se repetem de forma corrente e diferente em todas as obras sobre
teologia e literatura que tive contato. No entanto, assim como a vida (o humano e sua
existência) não é um tema exclusivo da teologia, o que, em verdade, por muito tempo
foi um tema negligenciado por ela; e como a palavra é linguagem de todos e para
todos enquanto forma de comunicação para aqueles e aquelas que dominam seus
meios; o sagrado, como vereda de correspondência, pertence apenas ao sagrado e,
como sagrado, como experiência humana com o divino, “tramita”, como linguagem
artística”. Antonio MANZATTO. Teologia e Literatura: Reflexão Teológica a partir da Antropologia
Contida nos Romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. p.13.
10
Harold BLOOM and David ROSENBERG. The book of J. New York: Vintage Books, 1991.
pp.09ss.
11
Maria Apparecida Faria Marcondes BUSSOLOTTI (org). João Guimarães Rosa: correspondência
com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.412.
Correspondência de João Guimarães Rosa, 27 de Agosto de 1967.
12
Id. Ibid. pp.378-379. Correspondência de João Guimarães Rosa, 24 de Novembro de 1966 (em
anexo à carta).
225
de reflexão da existência e da experiência humana, na palavra, “no espelho das
palavras”
13
.
E a obra de Guimarães Rosa é isso, o isso que a presente tese procurou
mostrar. A sua palavra não é reatualização ou re-escritura ou desescritura, aos modos
de um palimpsesto. Mas, a partir de outras obras, daquilo que se chamou de
“angústia da influência”
14
, inclusive de obras de cunho religioso ou sagrada por
questão de excelência
15
, é texto-palavra que quer como mais um entre os espelhos
falar “junto” sobre o mistério da vida, bem como de nomear o que é inominável:
Deus.
“Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência,
a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e
intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo,
sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de
todos, penetrando conhecimento que os outros ainda ignoram. O
senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia
do que seja na verdade um espelho? Demais, decerto, das noções
de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao
transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os
fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, um
milagre que não estamos vendo”
16
.
A palavra, sagrada ou profana, de religião ou secular, o que depende em
muito do lugar de onde se olha, é espelho, e o que nela reflete (ou é refletido) é o
tema: a existência humana, outra palavra e a transcendência. Nisso se concentra o
diálogo: a vida, a palavra e o sagrado são refletidos, não pelas noções de física ou
pela lei da óptica, mas a partir do pensamento humano, tanto na teologia como na
literatura, que buscam se aprofundar, de forma diferente e com suas especificidades,
em nossas verdades mais profundas
17
. Se a teologia “reflete” e fala (palavra) da vida
13
“O reconhecimento da correspondência é também um pressuposto para o reconhecimento de que o
Deus que adoramos e nomeamos tramita no espelho das palavras. Nenhuma palavra é mera realização
de outra. Palavras se correspondem na força da experiência, na precisão e alcance da nomeação e na
coragem de escrever sobre o mistério de nossas vidas”. Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus
no Espelho das Palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. p.207.
14
Aput Harold Bloom.
15
Obras eleitas para serem suas obras fundantes, obras fundantes da religião, conforme dito por
Bloom.
16
João Guimarães ROSA. O espelho. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
p.119.
17
“[...] se por um lado nada pode assumir o lugar de Deus na vida humana, incluindo a Bíblia, a
tradição ou qualquer texto da literatura, por outro lado esse Deus tampouco é visto, percebido e vivido
226
social ou existencialmente pensada a literatura também o faz. Guimarães Rosa
faz isso. Se a teologia tenta compreender o sagrado, a literatura também tenta
compreender o sagrado. Nisso elas se correspondem. Elas refletem, como um
espelho, mas como espelhos diferentes, a mesma imagem, o mesmo tema. Se uma
usa a palavra para revelar essa reflexão, a outra também usa a palavra para revelar
essa reflexão, mesmo que uma seja mais formal e a outra mais poética. E isso está
presente e é extremamente forte em Guimarães Rosa, como se procurou demonstrar e
para onde ainda se aponta.
O que se busca é dizer que Deus também é, certamente, um assunto rosiano,
um assunto da literatura. Mas provar isso é um caminho longo e pedregoso, talvez
como o de Dante, pois é certo que há um espaço enorme entre a teologia e a
literatura, espaço que vai do primeiro círculo do inferno, onde estão os sábios da
antiguidade, que tiveram vida virtuosa, mesmo sendo pagãos, como os filósofos e os
poetas gregos, até o quarto céu, onde estão os teólogos, como Tomás de Aquino;
distância que a proposta de diálogo vem procurando diminuir ou mesmo suprimir.
Obviamente seria mais fácil se, como no mundo imaginário de Guimarães Rosa, tudo
fosse muito misturado, como, em parte, no real realmente seja. No entanto, nessa
leitura, ambas continuam sendo teologia e literatura, com seus lugares demarcados e
com seus espaços bem definidos, mas se correspondendo no reflexo que criam para
falar de Deus, assunto comum ao fazer teológico, bem como ao fazer literário, o lado
que, na presente tese, foi privilegiado. Eis aí o diálogo.
III
Desse modo, termino a presente tese com palavras rosianas que tentam, de
alguma forma, espelhar, corresponder e se apresentar para um diálogo onde saberes
18
diferentes podem se encontrar e se enriquecer de forma inteligente e mútua:
sem a linguagem que se manifesta nas diversas áreas da cultura. A correspondência é o verdadeiro
espelho, pois nela residem as diversas manifestações de nossas verdades mais profundas”. Antonio
Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus no Espelho das Palavras: teologia e literatura em diálogo. São
Paulo: Paulinas, 2000. p.206.
18
Sei da dificuldade de entender e apontar literatura como uma forma de saber humano.
227
“Mas tinha cometido um erro. O primeiro engano seu nesse dia. O
equívoco que decide do destino e ajeita caminho à grandeza dos
homens e dos burros. [...] outros procuram o centro, e muitos se
deixam levar, empurrados, sobrenadando quase, com os mais
fracos rolando para os lados e os mais pesados tardando para trás,
no coice da procissão”
19
.
“Viver de graça é mais barato... [...] Deus está certo comigo, e eu
com ele. Isto agora é que é assunto meu particular... Alegrias, seu
Miranda!”
20
“Não foi culpa minha, foi má-sorte minha...
21
[...] Mas, depois.
Agora é sentar nas folhas secas, e agüentar. O começo do acesso é
bom, é gostoso: é a única coisa boa que a vida ainda tem. Pára, para
tremer. E para pensar. Também. [...] meu Deus, como isto é bonito!
Que lugar bonito p'r'a gente deitar no chão e se acabar!... É o mato,
todo enfeitado, tremendo também com a sezão”
22
.
“Acho que amanhã de-tardinha eu estou chegando lá, no sitio da
mãe dela. Se ela quiser ir comigo, nós voltamos para o São Paulo...
Quero descansar um pouco e gozar a vida... disse Turíbio Todo,
com um suspiro de satisfação. Qual, seu Turíbio Todo... Com
perdão da palavra, mas este mundo é um monte de estrume! Não
vale a pena a gente ficar alegre... Não vale a pena, não. – Ora, deixe
de curtir mal sem paga... Que é isso!?... A gente vive sofrendo...
Todo o mundo é padecer... Não vale a pena!... E depois a gente
tem de morrer mesmo um dia...”
23
.
“– Ai, que mundo triste é este, que a gente está mesmo nele p'ra
mor de errar!... E, quando a gente quer concertar, ainda erra mais...
Maldito vício de gostar de pescaria!”
24
“E, pronto, sem pensar, entrei a bramir a reza-brava de São Marcos.
Minha voz mudou de som, lembro-me, ao proferir as palavras, as
blasfêmias, que eu sabia de cor. Subiu-me uma vontade louca de
derrubar, de esmagar, destruir... E então foi só a doideira e a zoeira,
unidas a um pavor crescente. Corri”
25
.
“P’ra cavalo ruim, Deus bambeia a rédea... Um dia ele encontra
outro mais grosso... Eu estou vendo o diabo, com defunto na
19
João Guimarães ROSA. O burrinho Pedrês. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
pp.35e50. Falando do comportamento da boiada, mas também do comportamento humano na vida, na
segunda citação.
20
Id. A volta do marido pródigo. In: Ibid. pp.125e116.
21
Falando da maleita, a doença.
22
Id. Sarapalha. In: Ibid. pp.169e173. Delírios e lembranças em meio ao acesso de febre do primo
Argemiro. Sezão era o antigo nome do livro Sagarana.
23
Id. Duelo. In: Ibid. p.206.
24
Id. Minha gente. In: Ibid. p.230.
25
Id. São Marcos. In: Ibid. p.290. Em meio ao sofrimento o incrédulo pega forte na reza.
228
cacunda! Esse sujeitinho ainda vai ter de dançar de ceroula, seu
doutor! Isto aqui é terra de gente brava...”
26
.
“Coisando por tristes lembranças, decerto, bem faz que Brilhante
carregue luto de-sempre. Mas, perpetuamente às voltas com bernes,
bichos, carrapichos, e morcegos, rodoleiros, bicheiras, no avesso
da vida, boas maneiras ele não pode ter. Todavia, ninguém boi tem
culpa de tanta má-sorte, [...]”
27
.
“Sorte nasce cada manhã, e já está velha ao meio-dia...”
28
.
“Mas agora Miguilim queria merecer paz dos passados, se rir seco
sem razão. Ele bebia um golinho de velhice”
29
.
“Quem castiga nem é Deus, é os avessos”
30
.
“– “É a Voz e o Verbo... É a Voz e o Verbo... Arreúnam, todos, e
me escutem, que o fim-do-mundo está pendurando! Siso, que
minha prédica é curta, tenho que muito e converter...”. Da casa-de-
venda do Flôr, do outro lado da esquina, um moço cometa se
chegava à janela e perguntava: “Você é Cristo, mesmo, ou é
João Batista?...” E o vira-mundo malucal, que ia se afastado, se
revirou, rente, por sobre o descompasso de suas altas pernas, que
nem umas andas, e levantou os braços, bem escancarados leito
precisasse de escorar a queda do céu”
31
.
“– A vida é boba. Depois é ruim. Depois, cansa. Depois, se vadia.
Depois a gente quer alguma coisa que viu. Tem medo. Tem raiva
de outro. Depois cansa. Depois a vida não é de verdade.. Sendo que
é formosa!”
32
“A vida não perdoa descuidos... E não tristeza que me ajude...
[...] Mas, então, pois... Mas, então! não era melhor, não havia um
jeito, um possível, de se desmanchar o atual, e recomeçar, de outro
princípio, a história das pessõas?”
33
“Vida era uma coisa desesperada. [...] A felicidade é o cheio de um
copo de se beber meio-por-meio; [...]”
34
.
26
Id. Corpo fechado. In: Ibid. p.297.
27
Id. Conversa de bois. In: Ibid. p.330.
28
Id. A hora e a vez de Augusto Matraga. In: Ibid. p.370.
29
Id. Campo Geral. In: Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
p.89.
30
Id. Uma estória de amor: festa de Manuelzão. In: Ibid. p.200.
31
Id. O recado do morro. In: No Urubuquaquá, no Pinhém. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
p.76.
32
Id. Cara-de-Bronze. In: Ibid. p.154.
33
Id. Lélio e Lina. In: Ibid. pp.279e303.
34
Id. Lão-Dalalão (Dão-Lalalão). In: Noites do sertão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
pp.35e42.
229
“A essas coisas. Sorte. Quem souber o que é a sorte, sabe o que é
Deus, sabe o que é tudo. [...] Morrer talvez seja voltar para a
poesia”
35
.
“– Representar é aprender a viver além dos levianos sentimentos,
na verdadeira dignidade”
36
.
“A vida era o vento querendo apagar uma lamparina. O caminhar
da sombra de uma pessoa imóvel. [...] – Você ainda não sabe
sofrer... [...] Tenho de me lembrar. O passado é que veio a mim,
como uma nuvem, vem para ser reconhecido: apenas, não estou
sabendo decifrá-lo. [...] As lembranças são outras distâncias. Eram
coisas que pararam à beira de um grande sono. A gente cresce
sempre, sem saber para onde”
37
.
“Seguia, certa; por amor, não por acaso. [...] Sabia que coisa era o
tempo, a involuntária aventura”
38
.
“[...] a vida é bruta, os homens são cativos...”
39
.
“A luz é para todos; as escuridões é que são apartadas e diversas”
40
.
“A alegria de Deus anda vestida de amarguras”
41
.
“Aos pedacinhos, me alembro
42
. [...] Infelicidade é uma questão de
prefixo. [...] viver é um rasgar e remendar-se”
43
.
“[...] guardei o de Deus, gastei o do diabo... Mas, o que no fim de
cada mês me falta, a minha Nossa Senhora intéira. Com a ajuda
superior, eu vivo é do que é o do bico dos pássaros...”
44
.
“– Ora, vista. A gente fabulando o vivendo. Será que alguém, em
estudo, escarafunchou o roda-rodar de toda a gente, neste meu
mundo? Assim – serra acima ou rio abaixo – os porquês”
45
.
“E, hoje em dia, tenho a certeza: toda liberdade é fictícia, nenhuma
escôlha é permitida; já então, a mão secreta, a coisa interior que nos
movimenta pelos caminhos árduos e certos, foi ela que me obrigou
a aceitar. O mais-fundo de mim mesmo não tem pena de mim; e o
35
Id. Buriti. In: Ibid. pp.132-133e303.
36
Id. Pirlimpsiquice. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.89.
37
Id. Nenhum, nenhuma. In: Ibid. p.101.
38
Id. Seqüência. In: Ibid. pp.114-115.
39
Id. O cavalo que bebia cerveja. In: Ibid. p.146.
40
Id. A benfazeja. In: Ibid. p.184.
41
Id. Arroio-das-Antas. In: Tutaméia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.46.
42
Id. Esses Lopes. In: Ibid. p.83.
43
Id. João Porém, o criador de perus. In: Ibid. p.120.
44
Id. A estória do Homem do Pinguelo. In: Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
p.157.
45
Id. Ibid. p.189.
230
mais-fundo de meus pensamentos nem entende as minhas pa-
lavras”
46
.
“A vida fornece primeiro o avesso. [...] Vida coisa que o tempo
remenda, depois rasga”
47
.
“A quietude é de Deus, a pressa é do diabo”
48
.
“Saudade é ser, depois de ter”
49
.
Por fim, sobre o tudo disso, sublinho a última vereda a última palavra: “Deus
existe mesmo quando não há. Mas o demônio o precisa de existir para haver a
gente sabendo que ele não existe, ele toma conta de tudo”
50
. “Deus está em tudo
[...] toda a hora a gente está num cômpito. Eu penso é assim, na paridade. O demônio
na rua... Viver é muito perigoso; e não é não
51
. Nonada, Travessia... “É o que eu
digo, se for... Existe é homem humano”
52
.
.
46
Id. rano. In: Ibid. p.265.
47
Id. Retábulo de São Nunca. In: Ibid. p.301.
48
Id. Em-cidade. In: Ave, Palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.201.
49
Id. Do diário em Paris. In: Ibid. p.333.
50
Id. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.76.
51
Id. Ibid. p.328.
52
Id. Ibid. p.624.
231
BIBLIOGRAFIA
Obras de João Guimarães Rosa:
Ave, Palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 379p. 1. O mau humor de
Wotan; 2. Histórias de fadas; 3. Sanga Puytã; 4. O grande samba disperso; 5.
Aquário (Berlim); 6. Evanira! 7. Uns inhos engenheiros; 8. Às coisas de poesia; 9.
Os abismos e os astros; 10. Zoo (Whipsnade Park, Londres); 11. O homem de Santa
Helena; 12. De stella et adventu magorum; 13. O porco e seu espírito; 14. Fita verde
no cabelo (Nova velha estória); 15. Do diário em Paris; 16. Novas coisas de poesia;
17. Uns índios (sua fala); 18. Zoo (Rio, Quinta da Boa Vista); 19. Subles; 20.
Teatrinho; 21. Cipango; 22. Sempre coisas de poesia; 23. A velha; 24. Zoo
(Hagenbecks Ticrpark, Hamburgo Stellingen); 25. Sem tangência; 26. Pé-duro,
chapéu-de-cocaro; 27. Em-cidade; 28. Grande louvação pastoril à linda Lygia Maria;
29. Quemadmodum; 30. Aquário (Nápoles); 31. Ao Pantanal; 32. Quando coisas de
poesia; 33. A caça à lua; 34. Zoo (Hagenbecks Tierpark, Hamburgo Stellingen); 35.
O lago do Itamaraty; 36. O burro e o boi no presépio; 37. Reboldra; 38. Zoo (Jardin
des Plantes); 39. Além da amendoeira; 40. A senhora dos segredos; 41. Homem,
intentada viagem; 42. Ainda coisas da poesia; 43. Fantasmas dos vivos; 44.
Nascimento; 45. Cartas na mesa; 46. Zoo (Pare Zoologique du Bois de Vincennes);
47. Dois soldadinhos mineiros; 48. Terrae vis; 49. Circo do miudinho; 50. Do diário
em Paris; 51. Minas Gerais; 52. Jardim fechado; 53. O riachinho Sirimim; 54.
Recados do Sirimim; 55. Mais meu Sirimim; 56. As garças.
Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 335p. 1. A simples e exata
estória do burrinho do Comandante; 2. Entremeio Com o vaqueiro Mariano; 3. A
estória do Homem do Pinguelo; 4. Meu tio o Iauaretê; 5. Bicho mau; 6. Páramo; 7.
Retábulo de São Nunca; 8. O dar das pedras brilhantes.
Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 624p.
Magma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. 146p.
Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 263p.
1. Campo Geral; 2. Uma estória de amor: festa de Manuelzão.
No Urubuquaquá, no Pinhém. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 313p. 1. O
recado do morro; 2. Cara-de-Bronze; 3. Lélio e Lina.
Noites do sertão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 316p. 1. Lão-Dalalão (Dão-
Lalalão); 2. Buriti.
Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 236p. 1. As margens da
alegria; 2. Famigerado; 3. Sorôco, sua mãe, sua filha; 4. A menina de lá; 5. Os
irmãos Dagobé; 6. A terceira margem do rio; 7. Pirlimpsiquice; 8. Nenhum,
nenhuma; 9. Fatalidade; 10. Seqüência; 11. O espelho; 12. Nada e a nossa condição;
13. O cavalo que bebia cerveja; 14. Um moço muito branco; 15. Luas-de-mel; 16.
Partidas do audaz navegante; 17. A benfazeja; 18. Darantina; 19. Substância; 20.
Tarantão, me patrão; 21. Os cinos.
232
Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 624p. 1. O burrinho Pedrês; 2. A
volta do marido pródigo; 3. Sarapalha; 4. Duelo; 5. Minha gente; 6. São Marcos; 6.
Corpo fechado; 7. Conversa de Bois; 8. A hora e a vez de Augusto Matraga.
Tutaméia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 268p. 1. Aletria e
hermenêutica; 2. Antiperipléia; 3. Arroio-das-Antas; 4. A vela ao diabo; 5. Azo de
almirante; 6. Barra da Vaca; 7. Como ataca a sucuri; 8. Curtamão; 9. Desenredo; 10.
Droenha; 11. Esses Lopes; 12. Estória nº3; 13. Estorinha; 14. Faraó e a água do rio;
15. Hiato; 16. Hipotréleo; 17. Intruge-se; 18. João Porém, o criador de perus; 19.
Grande Gedeão; 20. Reminisção; 21. Lá, nas campinas; 22. Mechéu; 23. Melim-
Meloso; 24. No prosseguir; 25. Nós, os temulentos; 26. O outro ou o outro; 27.
Orientação; 28. Os três homens e o boi; 29. Palhaço da boca verde; 30. Presepe; 31.
Quadrinho estória; 32. Rebimda, o bom; 33. Retrato de cavalo; 34. Ripuária; 35. Se
eu seria personagem; 36. Sinhá Secada; 37. Sobre a escova e a dúvida; 38. Sota e
barla; 39. Tapiiraiauara; 40. Tresaventura; 41. Uai, eu?; 42. Umas formas; 43. Vida
ensinada; 44. Zingarêsca.
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TILLICH, Paul. Teología de la cultura y otros ensayos. Buenos Aires: Amorrortu
Editores, 1974. 277p.
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