
mas também a água é toda a morte. Tudo vem da água do rio - O alimento, O
transporte, a fartura vegetal das margens, a bebida, a fácil limpeza do corpo; e
do rio vêm as doenças, a tremura e a febre, a umidade, a lama; do rio parte a
rede dos furos recortando a mata, as águas paradas e malsãs dos igapós. No rio,
ou à margem do rio, vivem as feras perigosas. Os homens conseguem sobreviver
ali, mas sempre de sobreaviso, permanentemente sitiados por milhares de
inimigos. As casas de madeira e palha, leves como gaiolas, são erguidas em
jiraus de dois metros de altura, por temor das águas que sobem. Ali não se anda
a pé como é O natural do homem, senão praticamente no quintal de casa.
Qualquer percurso maior é uma travessia e se faz na pequena embarcação que
é um traste mais indispensável à família do que O fogão. Nos tempos de dantes,
os paroaras chamavam de montarias a essas canoas domésticas; hoje não sei se
ainda se chamam assim.
O povo é cristão, de longe em longe se levanta uma capela, mas se dirá
que O deus dali é O rio, O pai de tudo. Ou pelo menos será O rio O Olimpo
amazônico, porque lá nas águas é que moram todas as entidades fabulosas, a
cobra-grande, os botos encantados, as iaras, os caboclos-d'água que pastoram
as piracemas de peixe. Mas são divindades familiares, quase todas benéficas,
algumas graciosas; as divindades do terror são as da florestas, curupira e onças
que riem, e caiporas, ah, ninguém sabe quantas, sendo que O inimigo pior de
todos é a floresta propriamente.
O fato é que O homem amazônico é, a bem dizer, um animal aquático.
Nasce por cima d'água na sua casa de palafitas, cria-se sobre a água, come da
água, vive literalmente da água, e nem sempre quando morre escapa da água,
mesmo que não morra afogado. Tive um exemplo disso num daqueles estreitos
em que O grande navio passa tão perto da mata que, no convés, quase se toca
na folhagem com as mãos. A certa altura avistou-se um pequeno cemitério, a
cavaleiro da barranca. Fora defendido por uma cerca forte e, naturalmente, cada
morto ganhara a sua cruz de madeira. Mas isso, antes da enchente. Porque a
enchente veio, derrubou a cerca, arrancou as cruzes, e carregou consigo os
defuntos plantados mais rasos. Nem morto escapa do rio. Hoje, dizem, O lugar
é mal-assombrado.
Ah, O mistério amazônico. A gente anda por lá, dias e dias, pensando que
O enfrenta e na verdade mal O roça. Aprende uns nomes, navega sobre as águas
largas, vê e conversa com os caboclos de fala doce e face de índio. Da floresta,
só se enxergam os troncos na barranca e as altas copas, além; e os partidos de
palmeiras, as castanheiras de folha escura, aquela espécie de mangue que
parece plantado de propósito e não sei como se chama. E os troncos navegando
O rio como jangadas vivas. E na cidade um peixe-boi cativo, uns pequenos
jacarés; no mercado O estendal de peixes, alguns maiores que um homem,
outros pequenos e lindos como uma mão de prata. E O céu perto e forte,
vidrento, duro, que O sol do meio-dia transforma em massa de luz violenta, mas
que de repente se dissolve em chuva, que cai aos jorros.
Por toda a parte, água; barrenta no rio-mar, dum sépia transparente no
Tapajós, dum preto de vidro esfumado no rio Negro. E os horizontes. Fora do
mar, nunca vi tanto horizonte. Decerto para compensar da floresta, onde
horizonte nenhum existe, só a abóbada vegetal sufocando os viventes.
(Manaus, 7.6.72)
Raquel de Queiroz, "O homem e O tempo". Crônicas escolhidas.
São Paulo: Siciliano, 1995.
Parâmetros em Ação: Meio Ambiente na Escola - 5ª a 8ª série
Guia do Formador - Módulo 7 - Água