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Universidade Federal de Santa Catarina
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História
JACQUELINE WILDI LINS
PARA UMA HISTÓRIA DAS SENSIBILIDADES E DAS
PERCEPÇÕES:
VIDA E OBRA EM VALDA COSTA
Florianópolis
2008
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JACQUELINE WILDI LINS
PARA UMA HISTÓRIA DAS SENSIBILIDADES E DAS
PERCEPÇÕES:
VIDA E OBRA EM VALDA COSTA
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal de Santa
Catarina, na área de Políticas da Escrita, da Imagem
e da Memória, como exigência parcial para a
obtenção do grau de doutor em História Cultural.
Orientador: Maria Bernardete Ramos Flores
Florianópolis
2008
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JACQUELINE WILDI LINS
PARA UMA HISTÓRIA DAS SENSIBILIDADES E DAS
PERCEPÇÕES:
VIDA E OBRA EM VALDA COSTA
Esta tese de doutorado em História Cultural foi julgada e aprovada pelo
Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), da Universidade Federal de
Santa Catarina, na área de Políticas da Escrita, da Imagem e da Memória.
Florianópolis, 18 de fevereiro de 2008.
Banca examinadora
Prof.ª Dr.ª Maria Bernardete Ramos Flores (UFSC-SC)
Orientadora
Prof.ª Dr.ª Tânia Regina de Oliveira Ramos (UFSC-SC)
Membro
Prof.ª Dr.ª Luciene Lehmkuhl (UFU-MG)
Membro
Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Morethy Couto (UNICAMP-SP)
Membro
Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Fontes Piazza (UFSC-SC)
Membro
Prof.ª Dr.ª Sandra Makowiecky (UDESC-SC)
Membro suplente
Prof.ª Dr.ª Roselane Neckel (UFSC-SC)
Membro suplente
Para Bernardo e Betina.
AGRADECIMENTOS
À Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), por me propiciar a
oportunidade de um afastamento para capacitação.
À Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), por oferecer o Programa de
Pós-Graduação em História, por meio do qual pude realizar o meu doutorado e conviver
com pessoas que, de uma forma ou de outra, deixaram as suas marcas neste trabalho.
À minha orientadora, Maria Bernardete Ramos Flores, por ter acreditado neste
projeto de pesquisa, pelo incentivo, pela dedicação e pelas importantes colaborações.
Aos membros da Banca Examinadora, por terem aceitado o convite para
participar desta banca.
Aos meus colegas do grupo de estudos, carinhosamente denominado Os Girafas
Lange, Silvinha, Mário, Edgar e eu, além da nossa orientadora, Maria Bernardete –,
pelas prazerosas trocas e descobertas.
À Maria Nazaré Wagner, secretária do Programa de Pós-Graduação em História
da UFSC, por estar sempre pronta a atender com responsabilidade e dedicação às
necessidades burocráticas dos acadêmicos.
Aos amigos e colegas do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes da
Universidade do Estado de Santa Catarina (CEART), UDESC, pela compreensão em
virtude de minha prolongada ausência.
Aos meus sogros, Zenilda e Hoyêdo, e à minha irmã, Jeanine, sempre presentes.
Ao meu pai, Georges, sempre inclinado a procurar um título para mim em suas
“andanças”.
Às queridas amigas e colegas Dora Dutra Bay, Rosângela Miranda Cherem,
Marta Martins, Sandra Makowiecky, Lígia Czesnat, Maria Teresa Santos Cunha, Anita
Prado Koneski, Nara Milioli Tutida, Maria Cristina dos Santos Pessi, Kézia Lenderly,
sempre dispostas a compartilhar as tristezas, as alegrias e o desejo pelo conhecimento.
Ao prof. Dr. José Emílio Burucúa, pesquisador argentino do legado de Aby
Warburg, sempre disponível para oferecer e partilhar o seu vasto conhecimento sobre o
assunto.
À Sandra Cavalazzi, à dona Iracema (in memoriam), sua mãe, e a toda a família
Silva, por acreditarem nas pessoas talentosas e pela ajuda no mapeamento da família e
dos amigos de Valda Costa.
À Diocéle Palma Ribeiro e ao José Ricardo Ramos de Souza (Ricardo da
molduraria ARTCA), pelas importantes dicas e pela ajuda no mapeamento dos
colecionadores de Valda Costa.
À Addy de Freitas Lima Fernandes, por ter me permitido o acesso às filhas de
Valda Costa.
Ao padre Valmir e à funcionária Felisbina Patrícia Hames, ambos da Paróquia
Santa Terezinha do Menino Jesus, pela importante ajuda no contato com os moradores
do Morro do Mocotó.
À Gabriela e à Gisela, filhas de Valda Costa, pelas entrevistas concedidas e pelo
acesso às fotografias da família.
Ao Gilberto Guimarães, por ter me guiado com tanta simpatia e disposição pelos
caminhos do tortuoso Morro do Mocotó.
À Rachel Araújo Reis e à Sandra Regina Martins, pelo apoio logístico.
À Liane Rose Chipollino Aseff, excelente colaboradora desta pesquisa, por ter
realizado entrevistas com críticos, colecionadores e artistas e por ter coletado
importantes fontes escritas e orais, dividindo comigo essa árdua tarefa.
Ao Museu de Arte de Santa Catarina (MASC), representado pelo seu diretor,
João Evangelista de Andrade Filho, e aos funcionários da biblioteca e do acervo
artístico, sobretudo aos artistas plásticos Ronaldo Linhares e Jayro Schmidt, pela
colaboração nas entrevistas e por terem facilitado o acesso aos arquivos dessa
instituição.
À Sônia Margarette Fraga Machado, funcionária do setor do Patrimônio da
Secretaria de Administração do Estado de Santa Catarina, pela ajuda no mapeamento
das obras de Valda Costa adquiridas pelo Governo do Estado de Santa Catarina e pelo
Banco do Estado de Santa Catarina.
A todos os entrevistados, pela concordância na inclusão de entrevistas e na
reprodução de imagens (no caso de artistas) na tese.
Finalmente, e em especial, aos meus filhos, Bernardo e Betina, e ao Hoyêdo, as
pessoas mais importantes de minha vida.
Não posso terminar esta tese sem citar, com saudades, um amor incondicional,
infelizmente não mais aqui entre nós: minha mãe Selma, a maior orientadora da minha
vida.
Retrato
Cecília Meirelles
Eu não tinha esse rosto de hoje
Assim calmo, assim triste, assim
magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha esse coração
Que nem se mostra
Eu ao dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
A minha face?
Figura 1 - Valda Costa, sem título, 1985. Óleo s/eucatex, 30 x 24 cm.
Fonte: Coleção particular.
O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha.
Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria
preciso assim partir de novo desse paradoxo em que o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em
dois. Inelutável paradoxo – Joyce disse bem: “inelutável modalidade do visível”,
num famoso parágrafo do capítulo em que se abre a trama gigantesca de Ulisses.
Georges Didi-Huberman
RESUMO
LINS, Jacqueline Wildi. Para uma história das sensibilidades e das percepções:
vida e obra em Valda Costa. 2008. 294 f. Tese (Doutorado em História Cultural)
Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2008.
O objeto desta tese é abordar a vida e a obra de Valda Costa, uma artista
florianopolitana afrodescendente de origem pobre e pouco estudo criada no Morro
do Mocotó, localidade de baixa renda situada próxima ao centro de Florianópolis.
Sua vida foi breve, posto que, em 1993, faleceu aos 42
anos de idade. Morreu pobre
e esquecida, após fulgurante ascensão como artista plástica: desde meados dos
anos 1970, entrando pelos anos 1980, freqüentou os mais concorridos ambientes
culturais locais na condição de pintora que lograra alcançar uma considerável
aceitação no mercado florianopolitano de artes plásticas. A pesquisa explora os
nexos entre vida e obra da artista, encarando a segunda como uma narrativa
biográfica em forma de retratos. O estudo realizado não só leva em conta os
contextos político-cultural e socioeconômico que envolveram a materialização dessa
produção artística, mas igualmente estabelece relações com a produção de outros
artistas, em outros períodos e lugares, relações essas inspiradas no pensamento do
teórico alemão Aby Warburg. As contribuições desse autor, pertencentes aos
campos da História Cultural e da Teoria da Imagem, estão na origem da matriz
conceitual empregada na tese. Seu uso neste estudo baseia-se na convicção de que
a fertilização cruzada de disciplinas História e Teoria da Imagem possibilita
novos e promissores olhares sobre histórias de sensibilidades e de percepções.
Palavras-chave: Valda Costa; história e imagem; vida e obra; biografia e retrato;
Aby Warburg.
ABSTRACT
LINS, Jacqueline Wildi. Para uma história das sensibilidades e das percepções:
vida e obra em Valda Costa. 2008. 294 f. Tese (Doutorado em História Cultural)
Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2008.
This thesis is about Valda Costa, an afrodescendent artist born in Florianópolis, poor
and poorly educated and raised at the Morro do Mocotó, a low income locality close
to the central area of Florianópolis. Her life was short as she died in 1993 at the age
of 42. At her death she was poor and practically forgotten, after an almost
astonishing ascension as a plastic artist: from the mid-70s until de mid-80s she
frequented the most visible and attended cultural spaces of Florianópolis under the
condition of a painter who had succeeded in achieving a considerable penetration in
the local market of plastic arts. The research looks at the life and the artistic
production of Valda Costa, exploring the relationships between both and considering
the latter as a biographic narrative manifested as portraits. Such an approach is
developed taking into account not only the political, cultural and socioeconomic
contexts that involved the bringing into being of this artistic production, but also
establishing some relationships with the production of other artists, working in
different periods and places, a kind of analysis based upon the ideas of the German
scholar Aby Warburg. The contributions of this author, which belong to the fields of
Cultural History and Images Theory, appear at the origin of the adopted conceptual
structure. Its use in this study has to do with the conviction that a cross fertilization of
disciplines History, Images Theory allows new and promising ways for looking at
histories of both sensibilities and perceptions.
Keywords: Valda Costa, history and image, life and artistic production, biography and
portrait, Aby Warburg
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Valda Costa, sem título, 1985 ...............................................................................7
Figura 2 - Artistas locais de coletiva intitulada Artistas de Florianópolis, realizada em maio
de 1974..............................................................................................................36
Figura 3 - Valda Costa, auto-retrato, s/d..............................................................................42
Figura 4 - Valda Costa, sem título, 1980 .............................................................................44
Figura 5 - Valda Costa, Morro, 1979....................................................................................44
Figura 6 - Valda Costa, Boi-de-mamão, 1979......................................................................45
Figura 7 - Valda Costa, Hospital de Caridade, 1979............................................................46
Figura 8 - Valda Costa, Alfândega, 1979.............................................................................47
Figura 9 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1988................................................................48
Figura 10 - Valda Costa, sem título, detalhe pintura, 1979 ..................................................49
Figura 11 - Valda Costa, sem título, detalhe pintura, 1988 ..................................................49
Figura 12 - Valda Costa, detalhe desenho de figurino para escola de samba, 1993............49
Figura 13 - Valda Costa, sem título, 1991 ...........................................................................51
Figura 14 - Valda Costa, sem título, 1985 ...........................................................................51
Figura 15 - Valda Costa, sem título, 1985 ...........................................................................51
Figura 16 - Valda Costa, sem título, detalhe........................................................................51
Figura 17 - Valda Costa, sem título, detalhe........................................................................51
Figura 18 - Valda Costa, sem título, 1976 ...........................................................................53
Figura 19 - Valda Costa, sem título, 1984 ...........................................................................53
Figura 20 - Valda Costa, sem título .....................................................................................53
Figura 21 - Valda Costa, sem título, detalhe,s/d ..................................................................56
Figura 22 - Valda Costa, fotografia, capa de fôlder..............................................................60
Figura 23 - Detalhe de fotografia de Valda Costa com suas obras ......................................61
Figura 24 - Valda Costa, sem título, 1982 ...........................................................................61
Figura 25 - Valda Costa, fotografia......................................................................................61
Figura 26 - Valda Costa, sem título, 1983 ...........................................................................62
Figura 27 - Valda Costa, 1993. Desenho.............................................................................63
Figura 28 - Fotografia dos filhos e sobrinhos de Valda Costa..............................................64
Figura 29 - Valda Costa, sem título,1999 ............................................................................65
Figura 30 - Valda Costa, Pau-de-fita, 1989..........................................................................65
Figura 31 - Valda Costa, sem título, s/d...............................................................................66
Figura 32 - Valda Costa, sem título, s/d...............................................................................67
Figura 33 - Valda Costa, sem título, 1986 ...........................................................................67
Figura 34 - Valda Costa, sem título, s/d...............................................................................68
Figura 35 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1986..............................................................68
Figura 36 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1986..............................................................69
Figura 37 - Valda Costa, sem título. Escultura em tijolo maciço,s/d.....................................71
Figura 38 - Leonardo da Vinci, Santana, a Virgem e o Menino, 1509/10.............................71
Figura 39 - Leonardo da Vinci, Santana, a Virgem, o Menino e São João Batista, detalhe,
1498...................................................................................................................72
Figura 40 - Martinho de Haro, Nu, s/d .................................................................................73
Figura 41 - Martinho de Haro, Mundanas, s/d .....................................................................73
Figura 42 - Martinho de Haro, desenho de Valda Costa, s/d. Carvão s/papel canson A4....73
Figura 43 - Martinho de Haro, Nu com Biombo Amarelo, entre 1975/1980..........................73
Figura 44 - Foto de Martinho de Haro em seu atelier ..........................................................74
Figura 45 - Valda Costa, sem título, s/d...............................................................................76
Figura 46 - Idem, detalhe ampliado de frente ......................................................................76
Figura 47 - Idem, detalhe de lado........................................................................................76
Figura 48 - Valda Costa, sem título, 1978 ...........................................................................77
Figura 49 - Valda Costa, sem título, 1976 ...........................................................................78
Figura 50 - Valda Costa, sem título, 1976 ...........................................................................78
Figura 51 - Fotografia de Valda Costa com dona Iracema, uma de suas filhas e uma amiga.
..........................................................................................................................78
Figura 52 - Matéria de Saint Clair Monteiro: “O primitivo de Valda Costa, sábado na
Emedaux” ..........................................................................................................81
Figura 53 - Valda Costa, sem título, s/d...............................................................................84
Figura 54 - Valda Costa, sem título, s/d...............................................................................85
Figura 55 - Valda Costa, sem título, 1978 ...........................................................................86
Figura 56 - Valda Costa, imagem de fôlder de exposição....................................................87
Figura 57 - Valda Costa, sem título, 1985 ...........................................................................88
Figura 58 - Valda Costa, fotografia......................................................................................89
Figura 59 - Valda Costa, sem título, detalhe, desenho de figurino para escola de samba,
1993...................................................................................................................90
Figura 60 - Valda Costa, sem título, desenho de figurino para escola de samba.................90
Figura 61 - Valda Costa, sem título, desenho para figurino de escola de samba, 1992.......90
Figura 62 - Valda Costa, sem título, s/d...............................................................................91
Figura 63 - Valda Costa, sem título, s/d, detalhe assinatura, frente do quadro....................92
Figura 64 - Valda Costa, sem título, s/d, detalhe assinatura, verso do quadro ....................92
Figura 65 - Valda Costa, sem título, s/d...............................................................................94
Figura 66 - Valda Costa, sem título, detalhe, s/d. ................................................................94
Figura 67 - Catacumbas Romanas, século III......................................................................94
Figura 68 - Sidrac, Misac e Abdêgano atirados na fornalha por Nabucodonosor, Catacumba
de Santa Priscila, Roma, séc. III-IV....................................................................95
Figura 69 - Valda Costa, sem título, 1993 ...........................................................................95
Figura 70 - Valda Costa, sem título, 1983 ...........................................................................97
Figura 71 - Despedida a Valda Costa..................................................................................98
Figura 72 - José Pedro Heil, Homenagem à Valda Costa, s/d.............................................99
Figura 73 - José Pedro Heil, Homenagem à Valda Costa, s/d.............................................99
Figura 74 - José Pedro Heil, Homenagem à Valda Costa, s/d.............................................99
Figura 75 - Fotografia de Beto Stodieck ............................................................................106
Figura 76 - A instalação Tropicália, de Hélio Oiticica, exibida em 1967, na exposição Nova
Objetividade.....................................................................................................108
Figura 77 - Valda Costa, sem título, 1976 .........................................................................110
Figura 78 - Valda Costa, Retrato de Gilberto Gil, 1983......................................................117
Figura 79 - Fotografia de Gilberto Gil, Álbum Refavela......................................................118
Figura 80 - Valda Costa, sem título, 1984 .........................................................................123
Figura 81 - Valda Costa, fotografia....................................................................................123
Figura 82 - Valda Costa, sem título, s/d.............................................................................125
Figura 83 - Valda Costa, sem título, 1989 .........................................................................126
Figura 84 - Valda Costa, sem título, 1985 .........................................................................127
Figura 85 - Valda Costa, sem título, 1984 .........................................................................128
Figura 86 - Valda Costa, sem título, 1985 .........................................................................131
Figura 87 - Valda Costa, sem título, s/d.............................................................................134
Figura 88 - Valda Costa, sem título, s/d.............................................................................136
Figura 89 - Valda Costa, sem título, 1983 .........................................................................136
Figura 90 - Valda Costa, sem título, s/d.............................................................................137
Figura 91 - Deus africano da fertilidade.............................................................................138
Figura 92 - Henri Matisse, La Danse (A Dança), c.1907....................................................138
Figura 93 - Paul Gauguin, 1891-93. Cilindro decorado com figura de Hina e dois criados.
........................................................................................................................138
Figura 94 - Valda Costa, sem título, detalhe, s/d...............................................................138
Figura 95 - Máscara africana.............................................................................................138
Figura 96 - Pablo Picasso, Les Demoiselles D´Avignon, detalhe, 1907.............................139
Figura 97 - Constantin Brancusi, A Musa Adormecida, 1910.............................................139
Figura 98 - Valda Costa, sem título, 1984 .........................................................................141
Figura 99 - Valda Costa, sem título, 1985 .........................................................................141
Figura 100 - Valda Costa, sem título, 1987........................................................................142
Figura 101 - Pedro Figari, Candomblé, s/d........................................................................142
Figura 102 - Pedro Figari, Nostalgias Africanas, s/d..........................................................142
Figura 103 - Valda Costa, sem título, 1986........................................................................143
Figura 104 - Valda Costa, sem título .................................................................................143
Figura 105 - Valda Costa, sem título, 1983........................................................................144
Figura 106 - Valda Costa, sem título, 1990........................................................................144
Figura 107 - Valda Costa, sem título, 1991........................................................................145
Figura 108 - Valda Costa, sem título, detalhe assinatura, 1991.........................................145
Figura 109 - Valda Costa, sem título .................................................................................146
Figura 110 - Valda Costa, sem título, 1985........................................................................146
Figura 111 - Valda Costa, sem título, 1987........................................................................147
Figura 112 - Valda Costa, Casario Açoriano, 1987............................................................147
Figura 113 - Valda Costa, Casario Açoriano, 1989............................................................147
Figura 114 - Detalhe Casario Açoriano,1989.....................................................................147
Figura 115 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................148
Figura 116 - Valda Costa, sem título, 1988........................................................................149
Figura 117 - Valda Costa, sem título, 1985........................................................................149
Figura 118 - Valda Costa, sem título, 1989........................................................................149
Figura 119 - Valda Costa, Vaso de Flor.............................................................................149
Figura 120 - Valda Costa, sem título, 1985........................................................................150
Figura 121 - Valda Costa, sem título .................................................................................150
Figura 122 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................150
Figura 123 - Valda Costa, Vaso de Flores, s/d ..................................................................151
Figura 124 - Van Gogh, Campo de Trigo com Corvos, 1890 .............................................152
Figura 125 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................153
Figura 126 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................153
Figura 127 - Valda Costa, sem título, 1992........................................................................153
Figura 128 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................154
Figura 129 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................154
Figura 130 - Valda Costa, sem título, 1976........................................................................155
Figura 131 - Valda Costa, sem título .................................................................................155
Figura 132 - Valda Costa, sem título .................................................................................156
Figura 133 - Valda Costa, sem título, 1989........................................................................157
Figura 134 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................157
Figura 135 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................157
Figura 136 - Valda Costa, sem título, 1984........................................................................157
Figura 137 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................158
Figura 138 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................158
Figura 139 - Valda Costa, Nu Feminino, 1986...................................................................159
Figura 140 - Ticiano, Vênus de Urbino, 1538 ....................................................................159
Figura 141 - Edouard Manet, Olympia.1863......................................................................159
Figura 142 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................160
Figura 143 - Valda Costa, Retrato de Marcelo Seixas, 1993 .............................................161
Figura 144 - Valda Costa, retrato de Solange Silva Hazin, 1976 .......................................162
Figura 145 - Valda Costa, sem título, 1986........................................................................162
Figura 146 - Valda Costa, Retrato de Jane Macedo de Souza, 1981 ................................162
Figura 147 - Valda Costa, sem título, 1979........................................................................163
Figura 148 - Valda Costa, sem título, 1986........................................................................163
Figura 149 - Valda Costa, sem título, 1976........................................................................164
Figura 150 - Valda Costa, sem título, 1976........................................................................165
Figura 151 - Detalhe do Retrato de Solange Silva Hazin...................................................166
Figura 152 - Valda Costa, sem título, 1979........................................................................166
Figura 153 - Valda Costa, sem título, 1985........................................................................168
Figura 154 - Martinho de Haro, Nu em Frente ao Espelho,s/d...........................................169
Figura 155 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1984 ..........................................................169
Figura 156 - Martinho de Haro, Vaso de Flor, s/d..............................................................174
Figura 157 - Valda Costa, sem título, 1986........................................................................174
Figura 158 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................175
Figura 159 - Martinho de Haro, Cais da Rua Francisco Tolentino, 1960/1965...................176
Figura 160 - Valda Costa, sem título, 1985........................................................................176
Figura 161 - Martinho de Haro, s/d....................................................................................176
Figura 162 - Valda Costa, sem título, data ilegível.............................................................176
Figura 163 - Martinho de Haro, Nu Sentado no Sofá Vermelho, s/d ..................................177
Figura 164 - Valda Costa, sem título, 1985........................................................................177
Figura 165 - Martinho de Haro, Mulata com Pulseira Amarela, detalhe, 1975/1980 ..........177
Figura 166 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1984 ..........................................................177
Figura 167 - Martinho de Haro, Barco no Cais, detalhe, 1946 ...........................................178
Figura 168 - Valda Costa, sem título, detalhe, s/d .............................................................178
Figura 169 - Martinho de Haro, Baía Sul com Nuvens, detalhe, 1970/1975.......................179
Figura 170 - Valda Costa, sem título, detalhe, s/d .............................................................179
Figura 171 - Martinho de Haro, Cais Hoepcke, detalhe, 1960/1964 ..................................180
Figura 172 - Valda Costa, sem título, detalhe, s/d .............................................................180
Figura 173 - Valda Costa, sem título, detalhe, s/d .............................................................180
Figura 174 - Martinho de Haro, Mulata, detalhe, 1975/1980..............................................180
Figura 175 - Martinho de Haro, Mulata com Bananas, detalhe, 1975/1980 .......................181
Figura 176 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1985 ..........................................................181
Figura 177 - Martinho de Haro, Mulata, detalhe, 1975/1980..............................................181
Figura 178 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1981 ..........................................................181
Figura 179 - Valda Costa, sem título, 1986........................................................................184
Figura 180 - Di Cavalcanti, Mulata na Varanda com Pássaro, 1965..................................184
Figura 181 - Noêmia Mourão, Mulata, 1949 ......................................................................185
Figura 182 - Portinari, Café, 1935 .....................................................................................185
Figura 183 - Valda Costa, sem título, 1982........................................................................186
Figura 184 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1987 ..........................................................186
Figura 185 - Lasar Segall, O Bananal, 1927......................................................................187
Figura 186 - Édouard Vuillard, Mother and Sister of the Artist, 1893 .................................188
Figura 187 - Valda Costa, sem título, 1981........................................................................189
Figura 188 - Valda Costa, detalhe,1981 ............................................................................189
Figura 189 - Valda Costa, sem título, 1981........................................................................189
Figura 190 - Valda Costa, assinado Vivalda, sem título, s/d ..............................................190
Figura 191 - Georges Braque, Le Viaduc à l’Estaque, 1908 ..............................................191
Figura 192 - Valda Costa, sem título, 1987........................................................................191
Figura 193 - Giorgio Morandi, Natureza-Morta, 1955 ........................................................191
Figura 194 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................194
Figura 195 - Valda Costa, sem título, 1988........................................................................194
Figura 196 - Valda Costa, sem título, 1989........................................................................194
Figura 197 - Valda Costa, sem título, 1986........................................................................195
Figura 198 - Valda Costa, sem título, 1986........................................................................196
Figura 199 - Valda Costa, sem título, 1986........................................................................196
Figura 200 - Valda Costa, sem título .................................................................................202
Figura 201 - Fotografia de Valda Costa com os filhos Miguel Angelo e Marcos Pólo ........202
Figura 202 - Valda Costa, sem título, detalhe, s/d.. ...........................................................203
Figura 203 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................211
Figura 204 - Valda Costa, Desenho com caneta hidrocor, s/d...........................................211
Figura 205 - Valda Costa, Desenho com caneta hidrocor, s/d...........................................211
Figura 206 - Artemisia Gentileshi, Judite matando Holofernes, 1620.................................213
Figura 207 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1984 ..........................................................215
Figura 208 - Máscaras Africanas.......................................................................................215
Figura 209 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1976 ..........................................................216
Figura 210 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1984 ..........................................................216
Figura 211 - Valda Costa, sem título, 1974........................................................................217
Figura 212 - Frida Kahlo, A Coluna Quebrada, 1944.........................................................218
Figura 213 - Frida Kahlo, As Duas Fridas, 1939................................................................219
Figura 214 - Frida Kahlo, Pensando na Morte, 1943 .........................................................220
Figura 215 - Frida Kahlo, Frida and Diego Rivera, 1931....................................................220
Figura 216 - Valda Costa, sem título, 1993........................................................................221
Figura 217 - Valda Costa, sem título, detalhe....................................................................221
Figura 218 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................222
Figura 219 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................222
Figura 220 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................222
Figura 221 - Valda Costa (assinada Miguel Angelo), sem título, s/d..................................223
Figura 222 - Valda Costa, detalhe da assinatura...............................................................223
Figura 223 - Dante Gabriel Rossetti, Anunciação (Ecce Ancilla Domini!)1850...................224
Figura 224 - Albrecht Dürer, Estudo para Melancolia I, 1514 ............................................224
Figura 225 - Albrech Dürer, Melancolia I, gravura, 1514....................................................226
Figura 226 - Valda Costa, sem título, 1992........................................................................229
Figura 227 - Valda Costa, sem título, 1988........................................................................230
Figura 228 - Valda Costa, sem título .................................................................................230
Figura 229 - Valda Costa, sem título .................................................................................231
Figura 230 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1987 ..........................................................231
Figura 231 - Valda Costa, sem título, 1984........................................................................231
Figura 232 - Valda Costa, Auto-Retrato, 1986...................................................................232
Figura 233 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................232
Figura 234 - Valda Costa, sem título, detalhe assinatura, s/d............................................232
Figura 235 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................233
Figura 236 - Valda Costa, sem título, detalhe assinatura, s/d............................................233
Figura 237 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................233
Figura 238 - Valda Costa, sem título, detalhe assinatura, s/d............................................233
Figura 239 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................233
Figura 240 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................234
Figura 241 - Valda Costa, sem título, 1987. ......................................................................235
Figura 242 - Valda Costa, sem título, 1986. ......................................................................236
Figura 243 - Valda Costa, data ilegível..............................................................................238
Figura 244 - Valda Costa, sem título, 1986........................................................................239
Figura 245 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................240
Figura 246 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................241
Figura 247 - Valda Costa, sem título, 1985........................................................................241
Figura 248 - Valda Costa, sem título, 1985........................................................................241
Figura 249 - Valda Costa, sem título, 1984........................................................................242
Figura 250 - Valda Costa, sem título, 1993........................................................................242
Figura 251 - Valda Costa, sem título, 1985........................................................................242
Figura 252 - Valda Costa, sem título, 1981........................................................................242
Figura 253 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................243
Figura 254 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................243
Figura 255 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................243
Figura 256 - Valda Costa, desenho, s/d ............................................................................244
Figura 257 - Valda Costa, sem título, s/d...........................................................................245
Figura 258 - Giuseppe Arcimboldo, O Verão, 1573. . ........................................................246
Figura 259 - Valda Costa,Detalhe do Retrato de Solange Silva Hazin, 1976.....................247
Figura 260 - Valda Costa, sem título, 1976. ......................................................................247
Figura 260 - Valda Costa, sem título, 1984........................................................................249
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ACAP Associação Catarinense de Artistas Plásticos
AIDS Síndrome de Imunodeficiência Adquirida
ARTCA Molduraria de José Ricardo Ramos de Souza
BADESC Agência de Fomento do Estado de Santa Catarina S.A.
BESC Banco do Estado de Santa Catarina
CEART Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina
CELESC Centrais Elétricas de Santa Catarina
CIC Centro Integrado de Cultura
DCE Diretório Central dos Estudantes
DIRETUR Diretoria Regional de Turismo
ELETROSUL Eletrosul Centrais Elétricas S.A., distribuidora de Energia para
a Região Sul e Mato Grosso do Sul, vinculada ao Ministério de
Minas e Energia
EMEDAUX Firma de construção civil de Florianópolis dos anos 1970/80
FCC Fundação Catarinense de Cultura
GAPF Grupo de Artistas Plásticos de Florianópolis
MASC Museu de Arte de Santa Catarina
NEN Núcleo de Estudos Negros
PT Partido dos Trabalhadores
RBS Rede Brasil Sul
SEA Secretaria Estadual de Administração
SESC Serviço Social do Comércio
SETUR Secretaria de Turismo
UDESC Universidade do Estado de Santa Catarina
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFSC Universidade Federal de Santa Catarina
UNISUL Universidade do Sul de Santa Catarina
UNIVALI Universidade do Vale do Itajaí
SUMÁRIO
1 REUNINDO AS PEÇAS DA INELUTÁVEL CISÃO DO VER: UM OLHAR SOBRE
VALDA COSTA: À GUISA DE INTRODUÇÃO ....................................................... 18
2 “METÁFORAS DA MEMÓRIA”: AS ARTES PLÁSTICAS DOS ANOS 1970 E
1980 EM FLORIANÓPOLIS. ONDE ESTÁ VALDA COSTA?................................. 36
2.1 “Punctum” ou um encontro marcado com Valda Costa ...................................... 42
2.2. Uma trajetória em narrativas: fragmentos que iluminam detalhes da vida de
Valda Costa .............................................................................................................. 57
2.3 Valda Costa em biografemas ............................................................................. 60
2.4 Os espaços e os afetos de Valda Costa: uma breve cartografia das artes
plásticas dos anos 1970 e 1980 de Florianópolis e “alhures” ................................. 100
3 BIOGRAFIA EM RETRATOS: VISUALIDADES EM VALDA COSTA................ 122
3.1.Retratando a obra plástica de Valda Costa ...................................................... 129
3.1.1. As paisagens, cenas e cultura da Ilha de Santa Catarina ............................ 141
3.1.2. As naturezas-mortas..................................................................................... 148
3.1.3 As figuras sagradas....................................................................................... 153
3.1.4 Os retratos..................................................................................................... 155
3.2 Reflexos de espelhos: os rastros do mestre Martinho de Haro na obra de
Valda Costa ............................................................................................................ 169
3.2.1 Outras possíveis matrizes visuais.................................................................. 182
4 O RETRATO COMO BIOGRAFIA EM VALDA COSTA: O DIÁLOGO ENTRE
VIDA E OBRA ........................................................................................................ 193
4.1 Rosto ou máscara? Valda Costa e a construção de identidades através da
obra ........................................................................................................................ 205
4.2 Espelho da alma ou as ninfas melancólicas de Valda Costa: o retrato como
pulsão..................................................................................................................... 223
4.3 Espelho do artista: a paisagem e a natureza-morta como retrato .................... 236
5 O OLHAR QUE SÓ VIVE EM NOSSOS OLHOS PELO QUE NOS OLHA:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 250
FONTES ................................................................................................................. 255
Depoimentos e entrevistas ..................................................................................... 255
Jornais, catálogos e fôlderes .................................................................................. 258
Bibliografia.............................................................................................................. 259
ANEXOS ................................................................................................................ 282
Anexo - Outras obras de Valda Costa .................................................................... 282
18
1 REUNINDO AS PEÇAS DA INELUTÁVEL CISÃO DO VER: UM
OLHAR SOBRE VALDA COSTA: À GUISA DE INTRODUÇÃO
O tema desta tese representa um desdobramento de reflexões elaboradas no
processo de construção de meu percurso acadêmico. No centro das abordagens
que privilegiei esteve sempre presente a idéia de que, como quaisquer construções
intelectuais, a obra de arte necessariamente reflete as condições tangíveis e
intangíveis dentro das quais é elaborada.
Certa de que as obras de arte podem mas não necessariamente assim
devem se apresentar conter a chave para a compreensão das marcas que artistas
captam e deixam por meio de seu trabalho, defini como foco da minha tese de
doutorado a vida e a produção da artista plástica florianopolitana Valda Costa. Trata-
se de uma artista considerada autodidata, afrodescendente, de origem pobre, de
pouco estudo, moradora do Morro do Mocotó, um bairro de baixa renda,
freqüentadora dos ambientes culturais locais da época, que, entre os anos 1970 e
1980, alcançou a condição de pintora com grande aceitação no mercado local de
artes plásticas. Faleceu prematuramente em 1993, aos 42 anos de idade, pobre e
esquecida.
Mergulhar na produção plástica de Valda Costa permitirá tecer considerações
sobre as subjetividades dessa artista que ficaram registradas na sua obra como
expressão e veículo da sua experiência no mundo, ou seja, como manifestação
material dos seus dilemas, seus medos, suas angústias e sua esperança. Dessa
forma, a obra de Valda Costa pode ser entendida como o seu espaço íntimo (o seu
mundo interior) por meio do qual a artista se relacionou com o mundo social que a
circundava (o seu mundo exterior), ou seja, o espaço onde e a partir de onde Valda
se defrontou com o seu destino num jogo complexo de interações entre
individualidade, máscara social e recursos retóricos, pois, conforme define Merleau-
Ponty (2000, p. 56),
a visão do pintor não é um olhar sobre um exterior, relação 'físico-ótica'
somente com o mundo. O mundo não está mais diante dele por
representação: antes, o pintor é que nasce nas coisas como por
concentração e vinda a si do visível; e o quadro, finalmente, não se refere
ao que quer que seja entre as coisas empíricas senão sob a condição de
ser primeiramente 'autofigurativo'; ele não é espetáculo de alguma coisa a
19
não ser sendo 'espetáculo de nada', rebentando 'pele das coisas' para
mostrar como as coisas se fazem coisas e o mundo se faz mundo
1
.
Valda não traduziu um mundo, mas instalou um mundo e se fez nesse mundo
através das suas sensibilidades e percepções. O mundo de sua obra foi marcado
pela busca de “um eu”. Entretanto, para tocar em si, Valda precisou tocar o mundo,
pois “o mundo é aquilo que nós percebemos. [...] O mundo não é aquilo que eu
penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me
indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável” (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 14).
O mundo de Valda Costa, a sua obra, foi inesgotável porque foi o lugar
possível para a artista preencher as lacunas, as faltas, o vazio, foi o lugar onde a
artista pode efetuar-se.
Efetuar-se ou ser efetuado significa: prolongar-se sobre uma série de pontos
ordinários; ser selecionado segundo uma regra de convergência; encarnar-
se em um corpo; reformar-se localmente para novas efetuações e novos
prolongamentos limitados. Nenhuma dessas características pertence às
singularidades como tais, mas somente ao mundo individuado e aos
indivíduos mundanos que os envolvem; eis porque a efetuação é sempre ao
mesmo tempo coletiva e individual, interior e exterior, etc. (DELEUZE, [S.
d]).
A obra foi o espaço onde Valda efetuou-se demarcando os limites do seu “eu”
interior e exterior, ou seja, todos os lugares por ela vividos, sejam eles sociais,
culturais, afetivos ou simbólicos. Não houve mundo inteligível para Valda, houve
mundo sensível, pois no mundo sensível da sua obra ela descobriu a possibilidade
de ser evidente em silêncio, de ser subtendid[a], e a pretendida positividade
de mundo sensível [...] prova ser justamente um inatingível, se vê
finalmente num sentido pleno a totalidade onde são recortados os sensíveis.
O pensamento está um paço mais adiante dos visibilia (MERLEAU-PONTY,
2005, p. 199).
1
A subjetividade, para Deleuze ([S. d]), não consiste na demarcação de limites do “eu” interior, mas
na idéia de que ele é o efeito que se produz na exterioridade desse “eu”. Sendo assim, para o autor,
os processos de subjetivação ocorrem nas esferas do ético e do estético, buscando produzir modos
de existência inéditos. Deleuze utiliza o conceito de dobras para explicar esses processos de
subjetivação como modificação daquilo que nos sujeitamos reconstruir com outras experiências, com
outras delimitações. O movimento da dobra permite habitar o limite que traça as bordas que somos,
permite situar-nos em uma linha instável e arriscada.
20
Para poder estar um passo adiante dos visibilia e para atingir
2
as
sensibilidades e as percepções de Valda Costa por meio da sua visualidade plástica,
optei pelo cruzamento de disciplinas que ajudam a pensar o amplo campo da
História e da Teoria da Imagem bem como permitem produzir articulações através
de analogias entre a narrativa pictórica de Valda Costa e o discurso retórico
contemporâneo das imagens analisadas
3
, pois, interpretar uma obra é colocá-la em
exposição numa relação entre visões estéticas e conceitos de espaço/tempo. Como
aponta Frange (1995, p. 54), “Apropriar-se de uma imagem, por amor ou ódio, é
transcendê-la, construir uma ‘outra’ obra, além da primeira”.
Dito isso, é importante destacar o papel da produção plástica de Valda Costa
nesta tese, pois foi através da sua obra que a artista se deu à percepção. Além
disso, e pensando a obra (ou a imagem) como memória que anula o tempo e o
espaço, acredito que, por meio de fragmentos e de singularidades da vida e da obra
dessa artista, pode-se tecer relações entre a obra objeto de estudo e outras que lhe
advêm na construção de uma memória das sensibilidades e das percepções de
épocas e de contextos diferentes. O desafio que se instaura é o de mapear a vida e
a obra de Valda Costa em seu tempo e em seu espaço e, para além deles, também
tentar criar “linhas de fuga” em direção a alguns campos de influência, convergência
e/ou divergência, talvez como instrumento para se pensar as relações entre o agora
e o outrora através da produção plástica da artista.
Desse modo, para compreender as singularidades de Valda Costa em função
da sua produção, busquei referências conceituais no campo da Teoria da Imagem e
da História para auxiliar na descoberta de algumas chaves de “leitura” para a obra a
ser analisada (ou descrita, segundo Merleau-Ponty (1999)). Cabe ressaltar que a
intenção não é a de buscar verdades, mas sim a de aceitar subjetividades (as dela e
as minhas) e a parcialidade do conhecimento. É fundamental não perder de vista a
necessidade de se pensar o conceito de imagem e as suas implicações
metodológicas para os historiadores e para os teóricos da imagem que estão
debruçados sobre esse controverso assunto, pois, em uma tese em que a imagem é
o centro do interesse, é imprescindível posicionar-se conceitualmente acerca das
questões-chave dessa discussão.
2
Para Merleau-Ponty (2005) se trata de descrever, e não de explicar nem de analisar.
3
Conforme aponta Marin, citado por Huchet, no prefácio da edição brasileira do livro de Didi-
Huberman (1998).
21
Hoje, ao pensamento que concebe a obra de arte como integrante de uma
realidade cultural dada numa época e num determinado lugar, pode-se contrapor, ou
seria melhor dizer, justapor, o pensamento de Aby Warburg, de Georges Didi-
Huberman e de Walter Benjamin através da leitura de Antelo (2004, p. 9): “Graças a
elas, [as imagens], compreendemos que a história se faz por imagens, mas que
essas imagens estão, de fato, carregadas de história. Isto é, de nonsense, de
equívocos. Constatamos, assim, que a imagem nunca é um dado natural. Ela é uma
construção discursiva que obedece a duas condições de possibilidade: a repetição e
o corte”. Nesse sentido, podemos ainda buscar, no pensamento de Carl Einstein,
desta vez, conforme Didi-Huberman (apud ZIELINSKY, 2003), “que as imagens não
nos apaixonariam como o fazem se elas só fossem eficazes na frente estreita de sua
especificidade histórica e estilística”.
Essa é uma preocupação capital visto que o cerne do problema está em
encontrar pontos comuns entre teorias vinculadas à crítica, à teoria, à História e à
análise de produções artísticas que lancem uma luz (com todos os cuidados
necessários) sobre o estudo da obra em questão. Nesse sentido, a figura de Aby
Warburg, considerado o pioneiro nos estudos da História Cultural, torna-se
imprescindível, pois parte da concepção contemporânea sobre o uso da imagem em
diversas disciplinas e, sobretudo na História, irá ter na figura desse pensador o seu
ponto de partida.
A reflexão crítica de Aby Warburg repercutiu amplamente na história da
Filosofia e da Arte desde o início do século XX. Justapondo as imagens do
Renascimento Florentino às dos Índios Pueblo do Novo México, esse autor explorou
novas e diferentes possibilidades da documentação iconográfica, remetendo as
reflexões sobre a imagem a um outro patamar substancialmente mais fértil. Em
Warburg, com efeito, a análise iconológica
4
apresenta-se como uma investigação
sobre as fontes de imagens: as imagens não são entidades a-históricas, e sim
realidades históricas inseridas num processo de transmissão de cultura. No entanto,
conforme afirma Antelo (2004, p. 10), Warburg propõe um modelo cultural da história
que tem mais a ver com o inconsciente histórico e com a sobrevivência de certas
4
Termo utilizado para designar o terceiro e mais importante, segundo os pesquisadores do grupo de
Warburg, nível do método iconográfico. A iconologia, ou interpretação iconológica, volta-se para o
significado intrínseco da imagem, ou seja, para os princípios subjacentes que revelam a atitude
básica de uma nação, um período, uma classe, uma crença religiosa ou filosófica.
22
formas expressivas, ou seja, um modelo distante “do esquema narrativo pautado por
começo e recomeço, progresso e declínio, nascimento e decadência, a partir do qual
sempre se retirou um mecanismo linear para explicar as influências e os modos de
transmissão cultural”.
Nessa perspectiva, poder-se-ia ainda afirmar, com alguma segurança, que o
renascimento do pensamento de Warburg, a partir dos anos 1980, está, em certa
medida, calcado no atual interesse pelas fronteiras porosas de tempo, de espaço e
de disciplinas do saber. Segundo Guerreiro (2005),
[f]ala-se hoje de um ‘renascimento’ de Aby Warburg para designar o
interesse crescente pela sua obra e para reconhecer que ela terá finalmente
chegado ao momento da sua legibilidade. Este ‘renascimento’ não é
motivado por um interesse arqueológico, mas pela descoberta de que todo
o trabalho de Warburg as suas elaborações teóricas, as suas
investigações historiográficas, a constituição de uma biblioteca que o
ocupou a vida inteira o um contributo (sic) importante para pensar a
história da arte, isto é, tanto a disciplina assim chamada nos seus
métodos, nos seus pressupostos como a própria historicidade das obras
de arte. E, de maneira mais alargada, para pensar o vasto campo das
‘ciências da cultura’.
De fato, alargando as fronteiras disciplinares, Warburg recombinou os
fenômenos culturais abrigando abordagens de dimensão tanto micro como macro,
com perspectivas locais e transcontinentais mediante a utilização de fontes quer
completamente reconhecidas quer tão-somente secundárias, referindo-se às
dimensões temporais de curta ou de longa duração.
Aby Warburg nasceu em Hamburgo, em 1866, e estudou filosofia, história e
religião em universidades da Alemanha, da França e da Itália. Em 1896, realizou sua
famosa viagem à América do Norte, onde permaneceu durante seis meses entre as
comunidades de índios Pueblo e Navajo. Isso lhe permitiu ampliar o seu universo de
estudos para além das culturas do Mediterrâneo, interessado que estava em
investigar a transmissão da iconografia antiga entre diferentes culturas e também as
relações entre pensamento mágico, arte, ciência e religião
5
.
5
Ao investigar a recorrência de algumas formas nos quadros de Botticelli, no seu estudo sobre o
artista, Warburg se refere a essa recorrência como um pathos ou uma linguagem mímica cuja
migração histórica e geográfica é possível acompanhar. Assim, Warburg começa a encarar a história
da arte como uma memória errática de imagens que regressam constantemente como sintomas
(fazendo apelo a uma «psicologia histórica da expressão humana»). Para esse autor, o conceito de
história é fundado em uma teoria da memória social ou coletiva. A memória coletiva foi motivo de
investigação para Warburg a partir do seu estudo sobre o «Nascimento de Vênus» e a «Primavera»,
de Botticelli, de 1893, no qual podia se ver, no subtítulo, a frase: «um estudo sobre as
representações da Antiguidade no primeiro Renascimento italiano». Sua pesquisa sobre a recorrência
23
Em 1909, Aby Warburg comprou uma casa em Hamburgo com a intenção de
ali alojar a sua vasta biblioteca e criar um instituto de investigações, tarefa para a
qual contratou, em 1913, um jovem historiador da arte chamado Fritz Saxl. O
começo da 1ª Guerra Mundial e a prolongada internação psiquiátrica a que se
submeteu, entre 1918 e 1923, atrasaram a abertura do instituto, que só seria
inaugurado em 1926. Com a morte de Warburg, em 1929, e a ascensão do Nazismo
ao poder, em 1933, o futuro do instituto se tornou sombrio, motivo pelo qual Fritz
Saxl e Gertrud Bing, então assistente de Warburg, com a ajuda do governo britânico,
resolveram transferir o acervo de 60 mil exemplares para Londres. Esse acervo foi
incorporado à Universidade de Londres em 1944.
Várias correntes de estudos sobre interpretação da imagem reivindicaram, ao
longo do século XX, a influência e/ou a inspiração dos trabalhos de Aby Warburg.
Entre os mais conhecidos autores das primeiras gerações, e ainda não citados neste
texto, podemos destacar, por exemplo, Edgar Wind, Erwin Panofsky, Ernst Cassirer,
Baxandall e Ernst Gombrich. Todos eles estão ou estiveram vinculados, de uma
forma ou de outra, ao Instituto Warburg e ao método dito iconológico, mesmo que
cada um fizesse as suas próprias leituras e apropriações do espólio intelectual de
Warburg.
Atualmente, podemos assinalar Carlo Ginzburg e Georges Didi-Huberman
como dois exemplos de pesquisadores que mantêm um intenso diálogo com o
de formas antigas, na obra de Botticelli, fez com que Warburg acompanhasse a migração histórica e
geográfica dessas formas. Assim é que Warburg começa a encarar a história da arte como uma
memória errática de imagens que regressam constantemente tais como sintomas (fazendo apelo a
uma «psicologia histórica da expressão humana»). Se o Renascimento italiano constituiu para
Warburg um campo de eleição, não foi tanto por um interesse pelo Renascimento em si, mas pelo
que esse período poderia lhe fornecer de exemplo histórico do funcionamento da memória cultural e
das sobrevivências primitivas. Uma das primeiras vezes que Warburg mencionou explicitamente a
noção de memória coletiva foi na apresentação pública do programa da sua biblioteca, numa
conferência pronunciada na Câmara de Comércio de Hamburgo, com a palavra Warburg: “«Ela [a
biblioteca] propõe-se mostrar a função da memória colectiva [sic] européia enquanto poder formador
de estilo, assumindo como constante a cultura da Antiguidade pagã». Se é possível acompanhar as
imagens da Antiguidade na sua migração imparável, na sua deslocação histórica e geográfica, é
porque elas permanecem como tensão energética, como «vida em movimento» (bewegtes Leben),
cujos traços significantes estão inscritos na memória da humanidade. É importante sublinhar isto: o
que Warburg entende por Nachleben e remete para uma sobredeterminação temporal da história que
não é a da continuidade do tempo cronológico não são nunca conteúdos, mas valores expressivos
que ganham forma naquilo a que chamou Pathosformel, fórmula de pathos, na qual se a ver uma
«mímica intensificada», uma gestualidade expressiva do corpo com origem nas paixões e nas
afecções sofridas pela humanidade. Cada época selecciona [sic] e elabora determinadas
Pathosformels, na medida das suas necessidades expressivas, regenerando-as a partir da sua
energia inicial. Em contato com a «vontade selectiva» [sic] de uma época, elas intensificam-se,
reactivam-se [sic], carregam-se de um significado que entra em conflito com um pólo oposto, isto é,
«polarizam-se» (GUERREIRO, 2005).
24
pensamento de Warburg. O primeiro é um historiador italiano cuja pesquisa está
centrada principalmente no paradigma indiciário e em suas aplicações
6
. Conforme
Burucúa (2003, p.10),
[es] probable que el recuerdo del método warburguiano actuase a la manera
de un antecedente esencial de ese paradigma, individualizante a la par que
universalizador, pues Ginzburg no sólo exhibía de tal suerte la continuidad
de una cierta línea de la gnoseología histórica, sino que aspiraba a refundar
una historiografía de la cultura atenta a los grandes cuadros de la sociología
y de la antropología, al mismo tiempo que los micro fenómenos y a los
detalles que componen la trama de cualquier proceso histórico acotado,
revelando mejor, aunque paradójicamente, los hilos que unen lo individual y
lo pequeño con los movimientos mayores del devenir humano.
O segundo, Georges Didi-Huberman, é um filósofo e historiador da arte,
crítico da postura do sujeito historiador da arte preocupado somente com leituras
conteudistas das obras de arte. Como afirma Didi-Huberman, a relação sujeito–
objeto precisa ser alterada para que o historiador da arte possa vivenciar a abertura
dialética estabelecida na relação entre imagem e sujeito. Conforme aponta Antelo
(2004, p. 10), Didi-Huberman postula não haver História da Arte
que possa prescindir, para o seu próprio relato e para sua construção, de
modelos estéticos. Toda história cultural é um peculiar modo ficção”. Para
Didi-Huberman, a grandeza da obra de Warburg consistiria mesmo na sua
capacidade de desorientar a história, pois as “imagens produzem um regime
de significação que apela aos processos da memória psíquica e,
elaborando-se como sintoma, elas sobrevivem e deslocam-se no tempo e
no espaço, exigindo que se alarguem, conseqüentemente, os modelos da
temporalidade histórica e que se acompanhe a sua sobrevivência para além
do espaço cultural originário”.
Crítico acirrado das leituras processuais que situam as imagens como ponto
numa trajetória histórica, o filósofo francês Didi-Huberman busca em Warburg a sua
concepção rememorativa da História em que as imagens na dimensão de memória
criam “no movimento de sobrevivência e de deferimento que lhes é característico
determinadas circulações e intrincações de tempos e falhas, que vão desenhando
6
Sobre a questão das correntes atuais que recebem influências diretas do pensamento de Warburg,
Agamben (2004, p. 27) diz que: “Le cercle herméneutique de Warburg peut être ainsi représenté
comme une spirale qui se déroule sur trois niveaux principaux: le premier est celui de l’iconographie et
de l’histoire de l’art; le deuxiéme est celui de l’histoire de la culture; le troisiéme, le plus vaste, est
precisement celui de la science sans nom’, qui vise à un diagnostic de l’homme occidental à travers
ses fantasmes, à la figuration de laquelle Warburg a consacré toute sa vie. Le cercle dans lequel se
dévoilait le ‘bon dieu cachê dans les détails n’était pas un cercle vicieux, ni nom plus, au sens
nitzcchéen, un circulus vitiosus deus”.
25
um percurso, um regime de verdade, uma densidade constelacional própria”
(ANTELO, 2004, p. 10).
Esses dois autores citados Carlo Ginzburg e Georges Didi-Huberman –
possibilitam identificar duas vertentes possíveis de serem trilhadas no que se refere
à análise de imagens: na primeira, via Ginzburg, a imagem seria tratada como um
indício de algo dado, ou ainda, como fruto da capacidade humana e histórica de criar
um mundo paralelo de sinais que se coloca no lugar da realidade. De uma maneira
geral, no âmbito da História Cultural, esse é o caminho que se impõe. A outra
vertente seria aquela seguida por Didi-Huberman
7
, na qual a obra (ou imagem) é
vista como vida, valor, sentimento, em suma, como “um texto possível de ser
pensado por uma instância interpretativa cujo território é também criação”
(CHEREM, 2006, p. 424). É a complexidade de tal repertório que permite considerar
as imagens não como evidências de uma dada realidade cultural mas também
como um enigma sobre problemas que, irresolutos, atravessam o tempo e o espaço,
pois, segundo Manguel (2001), a obra de arte existe entre as sensações do pintor
que a imaginou e aquela que ele colocou na tela; entre aquela de nossa percepção e
aquela que os contemporâneos do pintor perceberam; entre o vocábulo atual comum
e um vocabulário mais elaborado de símbolos secretos. Assim, ainda conforme esse
autor, o crítico pode resgatar uma obra até o ponto da reencarnação; já o artista,
pode repudiar a obra até o ponto da destruição.
Quando nos confrontamos com uma obra de arte, essa talvez seja a nossa
única reação possível: o equivalente a uma prece de gratidão por nos
permitir, com nossos sentidos limitados, um número infinito de leituras, que,
para o nosso maior proveito e alegria, trazem a possibilidade do
esclarecimento. [...] Talvez todas as pinturas sejam, em um certo sentido,
um enigma; talvez todas as pinturas permitam supor a proposição de uma
pergunta relativa ao tema, à lição, ao enredo e ao significado. [...] O enigma
permanece o mesmo: só as respostas variam (MANGUEL, 2001, p. 29, 55 e
83).
O enigma da imagem o se esgota em si mesmo. É necessário ir além da
dimensão mais visível que ela nos oferece. Há tensões, desejos, códigos que
precisam ser “lidos”, pois o passado nunca é um tempo concluído, está sempre
emergindo no presente. Nessa perspectiva, a obra de arte (imagem) é a memória
que anula a fenda entre o passado e o presente; é a ponte colocada entre o agora e
7
Aqui pensar também em Warburg e em Benjamin.
26
o outrora. É o que oportuniza o diálogo entre diferentes espaços e tempos, pois,
diferentemente do documento histórico, que é um traço do passado, a obra de arte,
ou imagem, continua emitindo novos e diferentes sentidos. A sua reaparição jamais
é igual ao que já foi.
Além disso, e de pleno acordo com Meira (2003), a interpretação da obra de
arte ou da imagem jamais consegue decifrar plenamente o seu enigma. Por esse
motivo, o “leitor” ou intérprete necessita girar em torno dela (da imagem ou da obra)
por aproximações na busca de sentidos, pois interpretar não é produzir identidade
para a forma, mas sim “tentar identificações em caráter sempre aberto e fazer
sínteses paradoxais onde conflitos e contradições podem coexistir como procura
constante. O ato de interpretação também é um ato poético de co-criação” (MEIRA,
2003, p. 130).
Calcada na crença da imagem como enigma de caráter aberto a sínteses
paradoxais em que as contradições podem coexistir, defini descrever (utilizando
mais uma vez o termo de Merleau-Ponty) a obra de Valda Costa amparada por
autores que, de uma maneira ou de outra, embasam os seus repertórios numa
interlocução metodológica com Aby Warburg, notadamente (e já citados) Walter
Benjamin, Carlo Ginzburg e Georges Didi-Huberman. A escolha pode parecer, a
princípio, antagônica ou contraditória, pois como fazer coabitar numa mesma chave
de leitura de imagens (no caso a produção plástica de Valda Costa) autores como
Ginzburg, Benjamin e Didi-Huberman? A resposta deve vir ao longo da discussão na
análise e na interpretação da vida e da obra dessa artista, ou seja, na contribuição
que esses autores podem trazer para a reflexão acerca dos limites da teoria na
produção de um sentido, principalmente no que se refere à divisão de campos
conceituais, que, na verdade, são mais complementares do que antagônicos.
Quando penso em autores como Walter Benjamin, Carlo Ginzburg e Georges Didi-
Huberman, penso em autores que fazem parte de uma mesma matriz de repertório
capaz de abrir possibilidades de diálogo entre subjetividades, estilos e fins diversos.
Esses autores podem ser antagônicos em alguns pontos de suas reflexões, mas não
são díspares
8
.
8
Segundo Calvino (1990, p. 110), diversos elementos formam a parte visual da imaginação, entre
eles “a observação direta do mundo real, a transfiguração fantasmática e onírica, o mundo figurativo
transmitido pela cultura em seus vários níveis e um processo de abstração, condensação e
interiorização da experiência sensível, de importância decisiva tanto na visualização quanto na
27
Nesses autores busco uma fundamentação para refletir sobre as imagens de
Valda Costa. Sendo assim, a obra dessa artista será analisada ou descrita, num
primeiro momento, como o ponto de convergência dos significados de um
determinado tempo e de um lugar, de um agir e de um pensar: o de Valda Costa e
de seus pares mais próximos e diretos (penso aqui nas especificidades da história,
da micro-história vista por Carlo Ginzburg). Ao recortar esse foco, estou também
considerando o espaço e a produção de artistas plásticos florianopolitanos ou dos
que viviam e produziam na Ilha de Santa Catarina durante as décadas de 1970 e
1980. O posicionamento sobre o referido momento pode e deve ser visto como
ponto de partida material para a abordagem da obra de Valda Costa. Para uma mais
clara compreensão do momento tratado, faz-se necessário tecer interrogações sobre
alguns aspectos da produção artística local e também num espaço e num tempo
mais alargados.
Partindo desse tempo e desse espaço mais amplos e acreditando que a partir
do instante em que o artista dá como encerrada a fatura de sua criação, a obra de
arte se desprende
9
de seu autor e passa a ser potência de outras inspirações (nesse
caso, as minhas) e de outros autores. Entro então num outro momento da análise da
produção de Valda Costa, a saber: pensar a sua obra como unidade rompida,
rizomas e significações transformadas, paradoxos e anacronismo que não
verbalização do pensamento”. Todos esses elementos estão de certa forma presentes nos autores
que considero como modelos.
9
Com Mallarmé, Kafka e Proust apareceu uma nova relação entre literatura e realidade. O texto
literário, para esses autores, não representava a realidade, não era a pia do mundo. Para explicar
essa mudança, Blanchot criou o conceito do “Fora”, demarcando a especificidade da literatura (LEVY,
2003). Tal conceito desconstruiu a idéia de que a literatura é um meio de se chegar ao mundo. Ela é
sim a própria instauração de mundos, eventos de pleno real. A palavra para Blanchot sempre volta ao
vazio de onde surgiu, ou ao espaço anterior à designação de gêneros, de palavras, portanto, espaço
de reunião do neutro, do impessoal. Também Foucault é uma contribuição para o pensamento do
“Fora” (MACHADO, 2000). Para esse autor, há o desaparecimento do autor apoiado na identidade, na
individualidade, na biografia, no “eu” daquele que fez a obra. Para esses autores, o apagamento do
autor e da obra é feito em proveito da sobrevivência da palavra, no caso da tese, na palavra pintada,
ou seja, na figura plural. Barthes, por sua vez, enfatiza a questão da inexistência do autor fora ou
anterior à linguagem (BARTHES, 2004). Para ele, um escritor será sempre o imitador de um gesto ou
de uma palavra anteriores a ele, nunca originais. Barthes retira a ênfase de um sujeito que tudo sabe,
unificado, intencionado como o “lugar” de produção da linguagem, liberta a escrita do despotismo da
obra. Libertada a escrita da “tirania do autor”, Barthes abertura a cada leitor de adicionar, alterar
ou simplesmente editar um outro texto, abrindo assim possibilidades para outras autorias.
Pareyson (1997), ao formular o seu pensamento sobre arte, propõe uma estética da produção e da
formatividade, em que a atividade artística está centrada no formar, no executar, no produzir, no
realizar, que, para o autor, significa ao mesmo tempo inventar, figurar, descobrir. Esse autor concebe
a obra de arte como um organismo vivendo uma vida própria, em que a leitura é também um
executar. “O fato é que a arte não é somente executar, produzir, realizar, e o simples ‘fazer’ não basta
para definir a sua essência. A arte é também invenção. Ela não é execução de qualquer coisa
ideada, realização de um projeto, produção segundo regras dadas ou predispostas. Ela é um tal fazer
que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer.” (PAREYSON, 1997, p. 25-26).
28
respondem exclusivamente às necessidades sociais, mas que as transformam (aqui
penso em Walter Benjamin e em Georges Didi-Huberman, entre outros autores).
Segundo Barthes (2004), sempre foi assim a partir do momento em que o fato é
contado fora de qualquer função que não seja o próprio exercício do símbolo. Assim
produz-se o “defasamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria
morte, a escrita ou a pintura começa. [...] [S]abemos que para devolver à escrita o
seu devir, é preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor deve pagar-se com a
morte do autor” (BARTHES, 2004, p. 58-64).
Nessa perspectiva, é certo que mergulhar na produção plástica de Valda
Costa não somente permitirá tecer considerações sobre as inquietações da artista
traduzidas em telas, que representam a sua leitura de si e de seu mundo
10
, mas, e
também, possibilitará produzir articulações (nesse caso, as minhas) com outras
obras de outros tempos e espaços por intermédio de sua narrativa. De fato, na teia
anacrônica da memória, em que vários tempos podem se encontrar, cruzar e
conviver, estão Valda Costa e, principalmente, a sua obra, a qual produz um regime
de significação que sobrevive, que se desloca e que é retorno não do idêntico, mas
da possibilidade do passado
11
. Como aponta Benjamin (apud MESQUITA; ZITA,
2004),
Cada presente é definido por aquelas imagens que lhe são sincrônicas:
cada agora é o agora de uma determinada recognoscibilidade. Nele, a
verdade está, até à explosão, carregada de temporalidade. [...] Não que o
passado lance a sua luz sobre o presente ou que o presente lance a sua luz
sobre o passado, mas “imagem” é, aí, aquilo em que o pretérito se junta de
modo fulgurante com o agora, em uma constelação. Noutras palavras:
“imagem” é a dialética em paralisação. [...] A imagem lida, isto é, a imagem
no agora de sua recognoscibilidade, porta em alto grau a marca do
momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura.
Esse sem dúvida será um grande desafio, pois a produção de Valda Costa
está inserida num entre-lugar, para utilizar a expressão e idéia de Silviano
10
Pensar aqui na dialética das relações sociais. Segundo Costa (2002, p. 9), “as pessoas formam-se
no contraponto das imagens recíprocas como um jogo de espelhos, compreendendo-se ou opondo-
se, contemplando-se ou estranhando-se. se revelam identidades e alteridades, diversidades e
desigualdades, acomodações e oposições”.
11
Conforme Pereira (2006), que se repensar a idéia de sistema para a história das imagens, pois
mesmo que exista algo de sistemático, as imagens não são exatamente um sistema; existem redes
temáticas e mesmo redes de redes (rizoma) que as obras tecem entre elas, mas certamente não uma
rede de redes que possa ser costurada de uma ponta a outra. Assim, as funções aquilo para que
servem as imagens podem ser múltiplas, contraditórias, ambíguas e polivalentes. [...] E nisso deve-
se levar em conta também a produção e a recepção da imagem, com todas as relações dialéticas,
abertas, ampliadas e problematizadas por ela”.
29
Santiago
12
, como aponta Lindote (2005, p. 8), e, portanto, fortemente impregnada de
ambigüidades e peculiaridades como o foram (e o são) as produções inseridas em
espaços periféricos
13
. Entretanto, são essas ambigüidades (aqui cabe enfatizar a
dificuldade de se estabelecerem parâmetros críticos em relação ao discurso
hegemônico em todos os sentidos
14
) e peculiaridades que criam um espaço para a
reinvenção e a instituição de novas narrativas que possam ser “los hilos que unen lo
individual y lo pequeño con los movimientos mayores del devenir humano”
(BURUCÚA, 2002, p. 10).
Cabe ressaltar que a produção artística de Valda Costa é uma voz do
pequeno, do individual. Assim, centrar o foco da tese na obra dessa artista é, de
certa maneira, concordar com Silviano Santiago, conforme aponta Souza, E. M
(2002), quando este propõe a ruptura com o discurso colonizado e a independência
cultural baseada na lição de Borges, que desconstruiu modelos da literatura mundial.
A autora diz que “Conceitos como fonte e influência, original e cópia, localismo e
universalismo deixam de ser interpretados segundo critérios positivistas e se
inscrevem sob o signo da contradição e do paradoxo, desfazendo-se a rigidez das
oposições” (SOUZA, E. M, 2002, p. 52-53).
Transpor as barreiras impostas pelo pensamento hegenico ainda é uma
árdua empreitada. No Modernismo brasileiro, essa tarefa teve origem na
modernidade com Oswald de Andrade e com o conceito de “antropofagia” por ele
cunhado. No entanto, acompanhando ainda o pensamento de Moreira (2003), é
somente na contemporaneidade que o legado desse conceito e, como decorrência
dele, a atitude antropofágica começam a se fazer sentir. Com a antropofagia e
outros conceitos engendrados pelos discursos ditos periféricos, a História tem sido
12
Silviano Santiago utilizou essa bela expressão para designar, em suas análises, as tensões
existentes entre a produção periférica culta e a sua recepção nos países do Primeiro Mundo.
13
Sobre a crítica nos espaços ditos periféricos, Gruzinsky (2001) faz uma pertinente análise. Como
abordar mundos mesclados? Primeiro, aceitando-os tais como nos aparecem, em vez de nos
apressarmos em desarrumá-los e submetê-los a triagens que supostamente localizariam, e depois
isolariam, os elementos que formam o conjunto. A dissecação que chamamos de análise – não tem
apenas o inconveniente de fazer a realidade explodir; nos mais das vezes, ela projeta filtros, critérios
e obsessões que existem em nossas visões de ocidentais. ‘Sou um tupi tangendo um alaúde’ [...]
Aceitar em sua globalidade a realidade mesclada que temos diante dos olhos é um primeiro passo”
(GRUZINSKY, 2001, p. 26).
14
Sobre essa dificuldade, muito Hélio Oiticica, citado por Reis (2004 p. 163) escreveu: “Essa
magia do objeto, essa vontade incontida pela construção de novos objetos perceptivos (tácteis,
visuais, proposicionais, etc.), onde nada é excluído, desde a crítica social até a patenteação de
situações-limite, são características fundamentais da nossa vanguarda, que é vanguarda mesmo, e
não arremedo internacional de país subdesenvolvido, como até agora o pensam as nossas ilustres
vacas de presépio podre e fedorento”.
30
reescrita segundo novos modelos e novas taxionomias. Atualmente podemos até
pensar os “centros” a partir das margens. Na verdade, conforme afirma Moreira
(2003), ao cunhar o conceito de antropofagia, Oswald de Andrade formulou uma
abstração da realidade que propunha a “reabilitação do primitivo” no homem
civilizado. Ao propor o canibal como sujeito transformador, Oswald em busca de uma
visualidade da arte brasileira moderna por um caminho outro daquele trilhado pelas
vanguardas européias e norte-americanas.
Retomar de Silviano Santiago o conceito de entre-lugar e de Oswald de
Andrade o seu Manifesto Antropofágico de 1928 é destacar a perspectiva
anticêntrica, antiuniversalista e antiexclusivista do discurso hegemônico. É concordar
com Rolnik (1996, p. 19), quando ela afirma que antropofágico é o próprio processo
de abertura, de desterritorialização, “ao invés de se anestesiar de pavor, dispor do
maior jogo de cintura possível para improvisar novos mundos toda vez que isso se
faz necessário, ao invés de bater pé no mesmo lugar com medo de ficar sem chão”.
Chegando ao que pretendo aproximar esses conceitos da análise da
produção de Valda Costa –, é reconhecer a possibilidade de se construir uma
história da arte escrita a partir das margens em direção ao centro no sentido
oswaldiano ou santiaguiano, ou seja, o da desconstrução do ordenamento clássico
de cunho evolutivo que propõe uma análise partindo do primitivo para culminar no
civilizado. É poder considerar o marginal e o irrelevante
15
. Conforme Lindote (2005,
p. 10), é poder fazer uma correlação ou simetria com a produção artística latino-
americana, pois esse lugar reinventa um caminho, “submetendo a importância da
devoração para uma espécie de ruminação constante e consciente do objeto
ruminado”. Ou ainda, como afirma Fabris (2002, p. 88), tentar encontrar respaldo na
estratégia que Nelly Richard denomina de “subterfúgio retórico da diferença”, que
confere uma nova centralidade às margens para que culturas outras se tornem
15
É importante lembrar que no ensaio intitulado De Warburg e E. H. Gombrich: Notas de um
Problema de Método”, Ginzburg (1989, p. 41-93) apresenta o método de Warburg, enfatizando a
postura desse autor em relação a fenômenos históricos pouco relevantes, chamando a atenção para
o fato de que Warburg se interessou por saberes não consagrados que o possibilitaram considerar o
marginal e o irrelevante. Cabe também enfatizar que, para Santiago (1971), “a maior contribuição da
América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de ‘unidade’ e
‘pureza’”.
31
sujeitos autônomos da enunciação e assumam uma postura crítica capaz de intervir
(desorganizar) nas regras de uma fala que determina pertenças e pertinências”
16
.
Antes de precipitar-me no entusiasmo de pesquisadora, é preciso admitir que
tal empreitada será um grande desafio, pois propor um estudo sobre uma artista cuja
obra e produção artística são irregulares, com altos e baixos (talvez mais baixos do
que altos) e com pouca visibilidade, é deparar-me com o desafio de apreender o
inapreensível na vida que brotou do banal. Além disso, tentarei buscar aproximações
da obra de Valda Costa com a de artistas canonizados pela crítica local e
nacional, o que torna ainda mais árduo esse desafio, que, apesar de a artista ser
conhecida pelo mercado de arte local, pela mídia e por possuir obras em espaços
públicos e oficiais, quase nenhum registro escrito, ou muito pouco, existe sobre a
questão (a fortuna crítica sobre Valda Costa é bastante incipiente).
Entretanto, o que procuro é uma história das sensibilidades e das percepções
na experiência do olhar que me permita, por meio das imagens, ou melhor, das
formas pelas quais Valda Costa se deu a reconhecer, tentar ler ou interpretar a sua
força mitopoética
17
. Pretendo procurar as fontes das quais as imagens de Valda
alimentaram o seu poder e, sobretudo, captar na singularidade de uma artista de
margem de periferia o desvio que possibilita a identificação do particular ou do
próprio numa teia de sobrevivências, já que não existe um único regime de verdade,
assim e também não existe um local hegemônico de legitimação de discurso nem de
vencidos, nem de vencedores
18
(MELLO; SOUZA, 2005, p. 17-28).
A única certeza, nesse processo de apresentação da obra de Valda Costa, é
a incerteza, como afirmou Deleuze (2000), ao trabalhar o conceito de dobra em
16
Fabris (2002, p. 88) menciona ainda que “Se a América Latina é constituída por uma multiplicidade
de dessemelhanças, o que é comum a todos os países que a integram é o fato de estarem situados
na periferia do modelo ocidental de modernidade”.
17
Segundo Didi-Huberman (2002, p. 48-49), a imagem constituiria um fenômeno antropológico total,
uma cristalização, uma condensação particularmente significativa disso que é uma cultura” (kultur)
em um momento de sua história: uma força mitopoética da imagem (die mythenbildende Kraft in Bild).
A imagem não pode ser dissociada nem do agir global de uma sociedade, nem do saber próprio de
uma época, nem da crença. Aí reside um outro elemento essencial da invenção warburguiana que fez
abrir a História da Arte em direção ao “continente negro”: a eficácia mágica mas também litúrgica,
jurídica ou política – das imagens.
18
Nesse sentido, cabe trazer para corroborar com essa idéia a proposta de Walter Benjamin,
conforme aponta Didi-Huberman (apud MELLO; SOUSA, 2004, p. 64), sobre o conceito de imagem
dialética, ou seja, aquela capaz de sustentar o paradoxo de oferecer uma figura inédita inventada da
memória. A memória está aqui concebida não como a instância que retém, mas como a que suporta
uma perda em que alguma coisa resta, um traço, um fragmento, que permite recolocar algo novo em
jogo, transformando-o em diferença
.
32
Leibniz. Nesse sentido, pode-se apontar a obra de Valda para algo semelhante a
dobras que se desdobram ao infinito, que provocam outros desdobramentos da
matéria e da alma em que a simultaneidade do côncavo e do convexo, do interior e
do exterior, do em cima e do em baixo definem um espaço aberto e plural no qual
contido e continente se equivalem numa operação infinita. O que está dentro pode
estar fora, e o que está fora pode também estar dentro. O que Deleuze (2000, p. 66)
nos diz, em outras palavras, é que toda lógica do sentido assenta-se sobre uma
lógica do não sentido, desdobra-se constantemente, transformando-se em não
sentido, e vice-versa.
Como fazer conexões entre o conceito de dobras em Deleuze (2000) e a
produção plástica de Valda Costa (produção esta, conforme indicado, realizada
por uma artista que vivia à margem, num meio periférico)
19
? Qualquer tentativa de
resposta para essa pergunta pode me conduzir a diversos caminhos, como num
labirinto ou numa teia, cheios de possibilidades e de arranjos. É preciso não perder
de vista as particularidades do meio periférico dentro do qual Valda Costa estava
inserida. Faz-se necessário frisar que, em meados das décadas de 1970 e 1980,
Florianópolis começou a se firmar como ponto de referência de manifestações
artísticas que se enquadravam nos movimentos artísticos nacionais, apresentando,
na sua produção, crítica e difusão, elementos em comum com outras cidades do
país e mesmo com o que estava acontecendo no cenário internacional.
Nesse período, a geração de artistas inovadores (Max Moura, Jairo Schmidt,
Vera Sabino, Janga, Loro, etc.) convivia com as gerações modernistas ou mesmo
pré-modernistas. Artistas como Vechietti, Pléticos, Meyer Filho e Martinho de Haro
(que se enquadravam no limite entre o passado, o presente e o futuro, ou seja,
estavam ligados à geração modernista, mas continuavam produzindo e participando
das reflexões e dos movimentos da época), muitas vezes redimensionando a
tradição, faziam um elo entre as diferentes gerações: aquela que se estabelecera
desde o início do Modernismo e, sobretudo, a partir dos anos 1950, com o Grupo de
Artistas Plásticos de Florianópolis (GAPF), e a atual, que tentava a todo custo
19
É importante não deixar de pensar no conceito de descentramento da cultura, proposto por
Santiago (1971) como idéia regeneradora da margem, e que pode ser privilegiado como estratégia
operacional fecunda para a literatura e para as culturas não hegemônicas através de uma
metodologia de leitura para o lugar de transgressão das literaturas produzidas nos trópicos. Consultar
também Lindote (2005) e Bhabha (2003). Este último trata das narrativas legitimadoras da dominação
cultural, as quais, ainda que estruturadas numa lógica binária de centro e periferia, hierarquizadora e
eurocêntrica, podem ser deslocadas para revelar o que ele chama “terceiro espaço”.
33
posicionar a arte de Florianópolis de modo a “expressar as singularidades culturais
em dialética constante com o mundo” (AMANTE, 2000-2001).
É importante observar que os artistas das gerações modernistas continuaram
ligados às suas linguagens de origem, permanecendo por muito tempo como padrão
de referência no mercado de arte local
20
e também como parâmetro para uma nova
geração de artistas contemporâneos, os quais ainda estavam vinculados de alguma
maneira a uma práxis modernista. Entre essa geração de novos, encontraremos
Valda Costa, que, conforme será discutido mais à frente, foi modelo e discípula de
Martinho de Haro.
Para pensar as possibilidades da obra dessa artista, que foi considerada
primitiva, naïf, discípula direta (e a única) de Martinho de Haro, “a nossa Di
Cavalcanti”, “a nossa Djanira”, “a nossa Camille Claudel”, entre outras atribuições,
acredito que somente voltando-se novamente para Deleuze, dessa vez em parceria
com Guattari, na elaboração do conceito de rizoma, é que poderei elaborar possíveis
conexões desse jogo complexo de interações entre o local e o global, entre o linear
e o anacrônico, entre o agora e o outrora, entre a realidade e a ficção.
Segundo Deleuze e Guattari (1995, p. 11-37), existem dois tipos de
pensamento que estruturam o conhecimento da vida humana e social: (1) o
pensamento “árvore”, mantenedor das ordens e das tradições em que se cultivam as
memórias, a classificação e tudo o que é normativo; e (2) o pensamento rizomático,
considerado o pensamento do desvio, da memória curta, da produção do próprio
inconsciente, aberto ao acaso e ao encontro involuntário, o lugar das diferenças,
complexidades e multiplicidades
21
.
O conhecimento em forma de árvore possui raiz pivotante, única, não
atendendo às necessidades múltiplas das transformações. Pode-se verificar esse
tipo de pensamento nos costumes hierárquicos e racionais que se instalaram nos
corpos, sobretudo, dos povos ocidentais. Por sua vez, o rizoma não pretende buscar
um corpo substantivo, e sim uma performance de temporalidade universal.
Retorno a Valda Costa, pois citar Deleuze é deixar claro de antemão algumas
escolhas, que esse pensador provoca e instiga a desafiar a lógica do sentido que
20
É importante frisar que a construção do ingrediente mitomágico nas manifestações artísticas locais
resistiu, e ainda resiste, ao tempo. O mercado de arte de Florianópolis firmou-se por intermédio dos
artistas que cristalizavam na sua produção a tendência à captação de temáticas eminentemente
locais, envolvendo a exuberante natureza, o cenário antigo da Ilha e o folclore de origem açoriana.
21
Os princípios do rizoma seriam a conexão, a heterogeneidade, a multiplicidade, a ruptura
assignificante, a cartografia e a decalcomania.
34
possui como base categorias entrincheiradas. Trabalhar a obra de Valda Costa sob
a luz dos teóricos citados permitirá abrir passagem para outros processos que não
os já dados e equacionados. Possibilitará ressaltar as marcas pelas quais uma
artista que vivia à margem foi afetada e com as quais deixou as suas próprias
marcas sobre e para além das possibilidades de sua época.
E mais, trabalhar a obra de uma artista de pouca visibilidade no circuito
hegemônico das artes significa adentrar num território pouco explorado através de
cruzamentos teóricos inesperados. Essa via de acesso permitirá tecer novas tramas
sobre fenômenos aparentemente insignificantes, o que certamente possibilitará
superar conceitos e idéias classificatórias preconcebidas pelo ideário hegemônico
dos cânones já construídos e determinados pela História. É certo que a intenção
desta tese não é a de classificar ou de enquadrar a obra ou a vida de Valda Costa
em categorias claras, mas sim de tentar compreender como foram elaboradas as
suas singularidades e, mais do que isso, tentar mostrar que, como acontecimento
histórico, a obra de Valda Costa tem lugar nas tramas do seu espaço e do seu
tempo e para além deles.
Para finalizar esta introdução, cabe ressaltar que o foco central da discussão
da tese é a vida e a obra de Valda Costa, pensadas nas suas subjetividades
(sentimentos e percepções) expressas em imagens. No entanto, para fins
metodológicos, tornou-se necessário colocar certos limites de abordagem; assim,
decidi, após minuciosa análise do conjunto da obra ao qual tive acesso, fazer um
recorte específico na temática a ser explorada e desenvolvida: o retrato como
narrativa biográfica.
A partir daí, tracei três eixos (ou capítulos) como os principais norteadores da
discussão: o primeiro eixo, ou segundo capítulo, fala (por meio de relatos, das
poucas fontes escritas e, sobretudo, da produção plástica) da trajetória de vida de
Valda Costa e do contexto no interior do qual se concretizou a sua obra. Nesse
capítulo, serão trabalhados e mapeados alguns campos conceituais que instruem o
meu olhar por todo o percurso de análise da obra e da vida da artista nesta tese.
No terceiro capítulo, a obra é o centro das atenções, ou seja, trata-se da
análise do processo artístico de Valda Costa: as diversas influências, o mestre
Martinho de Haro e a produção plástica da artista. Nesse capítulo, também se
trabalham alguns conceitos derivados da sistematização de leituras sobre material
bibliográfico relevante. Esses conceitos permitem explorar as possíveis relações
35
entre o retrato/auto-retrato e a biografia/autobiografia, embasando o entendimento
da obra de Valda Costa como uma narrativa autobiográfica. O seu conteúdo
abrange, portanto, a trajetória da obra e o meu olhar sobre o caminho trilhado pela
artista.
O quarto capítulo apresenta diferentes leituras sobre a obra de Valda Costa
enfeixadas na temática da obra como narrativa biográfica, ou seja, as
interpenetrações entre vida e obra por intermédio do retrato (ou auto-retrato) e da
biografia (ou autobiografia). Essas leituras dedicam-se à discussão do binômio
identidade–alteridade em Valda Costa. Nesse segmento, a produção da artista é
também considerada como unidade rompida, rizoma e significações transformadas,
o que possibilita fazer correlações e simetrias com produções artísticas de outros
tempos e de outros lugares.
36
2 “METÁFORAS DA MEMÓRIA”: AS ARTES PLÁSTICAS DOS ANOS
1970 E 1980 EM FLORIANÓPOLIS. ONDE ESTÁ VALDA COSTA
22
?
Olvidado! Palabra terrible!? Qué ser humano se atreve a condenar, incluso a los más
criminales, a la peor de las muertes: la de ser olvidado para siempre?
Jules Michelet
23
Figura 2 - Artistas locais de coletiva intitulada Artistas de Florianópolis, realizada em maio de 1974.
Fonte: PORTO; LAGO, 1999.
O título deste capítulo da tese não tem como objetivo introduzir este
segmento da pesquisa a uma prolongada discussão sobre a problemática do
esquecimento ou, por conseguinte, da memória, mas sim chamar a atenção do leitor
para um determinado esquecimento, ou, seria melhor dizer, para uma certa lacuna
22
Aqui fiquei em dúvida entre três possibilidades de título: Lembrar para o morrer:..., ou, Sintoma
da memória:..., terminologia criada por Didi-Huberman para designar o encontro de lembranças do
agora com o outrora, ou, o escolhido, Metáforas da memória:..., tomado emprestado de Gagnebin
(2006, p. 107-118), do capítulo 8 do livro Lembrar, escrever, esquecer, em que a autora trabalha a
idéia de rastro, escrita e memória. Aqui caberia também lembrar o conto de Borges intitulado Funes, o
Memorioso. Segundo essa fábula, para que tengan lugar nuevos hechos o nuevas creaciones, solo
se pode permitir que perdure uma minúscula porción de lo que sido”. Ou ainda, as reflexões de
Joubert, conforme aponta Gamboni (2007, p. 10-11): “La memória y el olvido son la madre y le padre
de las musas. El verdadero saber está compuesto por esas dos cosas”.
23
Na foto vemos artistas locais que fizeram uma coletiva intitulada Artistas de Florianópolis, em maio
de 1974, na galeria de arte Studio A/2, de Beto Stodieck e de Ana Fox. Na foto estão em pé, da
esquerda para a direita: Hassis, Rodrigo de Haro, Dona Maria Ilse Velvikas, Martinho de Haro,
Franklin Cascaes, Martin Afonso de Haro, Ely Heil e Nini. Sentados, da direita para a esquerda:
Meyer Filho, Vecchietti, Vera Sabino, Max Moura e Beto Stodieck.
37
na historiografia da arte em Santa Catarina: a de Valda Costa e a da sua vasta
produção realizada e amplamente difundida no meio artístico e cultural local, no
período compreendido entre o ano de 1974, marcado pela sua primeira exposição
“oficial”
24
, e o ano de 1993, data de sua prematura morte.
A imagem trazida para ilustrar o início desta fala mostra alguns artistas
plásticos locais que no ano de 1974 fizeram uma coletiva na galeria Studio A/2, do
jornalista Beto Stodieck, que também está na foto, ajoelhado, da esquerda para a
direita (Valda Costao se encontrava entre os expositores). Esses artistas, durante
as décadas de 1970 e 1980, compartilhariam com Valda Costa o espaço na mídia e
no mercado que abastecia os colecionadores de arte à época. Por que na
construção dessa memória artística Valda Costa ficou e fica constantemente de
fora
25
?
Existem poucos registros em forma de textos críticos, biografia, currículo,
fôlderes e material impresso em geral da extensa produção da artista (segundo
consta, foram produzidas mais de 800 obras, eu mesma tive contato com
aproximadamente 250 delas). Mesmo nas instituições públicas, como o Museu de
Arte de Santa Catarina (MASC) e o Governo do Estado de Santa Catarina que
adquiriu do Banco do Estado de Santa Catarina (BESC) em outubro de 2003
26
as 16
obras que essa instituição possuía da artista (entre tantos outros artistas de âmbito
local, nacional e internacional) –, o que se encontra registrado e documentado sobre
Valda Costa se restringe a um parco currículo no Indicador Catarinense das Artes
Plásticas, publicado pela Fundação Catarinense de Cultura em 2001, e a alguns
recortes de jornais dos anos compreendidos entre 1974 e 2000. A família da artista
não possui praticamente nenhum registro, documento ou obra, e as galerias de arte
mais recentes que comercializam Valda Costa pouco sabem sobre a sua trajetória.
24
Em todos os documentos pesquisados, sejam currículos de galerias, sejam do acervo da artista no
MASC, ficou registrado que a primeira exposição de Valda Costa foi realizada em 1974, uma coletiva
na Universidade do Estado de Santa Catarina. A sua primeira exposição individual foi feita em 1975,
nas Lojas Emedaux, em Florianópolis.
25
Talvez a resposta esteja nas palavras de Karina Mauro (2007, p. 183): todo relato é uma seleção
de fatos que implica uma perda: daquelas coisas que não encaixam em uma estrutura que requeira
coerência lógica, temporal e espacial. “Más allá de las vicisitudes edípicas, aquello que permance
olvidado es la structura paradojal del deseo. Paradojal y constitutivo, por cuanto es un vacío que
promueve la búsqueda del objeto (o representación) que le falta para colmarlo, poniendo en
movimiento al sistema, al tiempo que não existe un objeto que pueda significarlo totalmente, por la
simple razón de que es algo que, al tiempo que intenta recuperarse, no existió nunca.”
26
Essa compra efetivou-se na negociação entre o BESC e o Governo do Estado de Santa Catarina
de bens imóveis e móveis, de propriedade do Banco do Estado de santa Catarina, em outubro de
2003.
38
Dessa forma, na tentativa de suprir parte de todas essas lacunas descritas,
busquei nos colecionadores
27
, amigos e críticos de arte alguns subsídios a partir de
entrevistas que me auxiliassem a armar um enredo para a trama que eu estava
disposta a formular, ou seja, a trajetória da vida e da obra de Valda Costa. Muitos
críticos e marchands não se dispuseram a falar sobre a artista, entre eles a dona da
conhecida galeria dos anos 1980, denominada Studio de Arte, Rosinha Correa, que
foi uma das marchands que mais comercializaram a obra de Valda Costa e Zeca
D’Acampora.
Segundo o poeta Benedetti (2007), o esquecimento está cheio de memórias
que, às vezes, não cabem na lembrança, fazendo com que tiremos os rancores
pelas bordas, pois
en el fondo el olvido es un gran simulacro
nadie sabe ni puede/aunque quiera/olvidar
un gran simulacro repleto de fantasmas
esos romeros que peregrinaran por el olvido
como si fuese el Camino de Santiago
el día o la noche en que el olvido estalle
salte en pedazos o crepite/
los recuerdos atroces y los de maravilla
quebrará los barrotes de fuego
arrastrarán por fin la verdad por el mundo
y esa verdad será que no hay olvido.
Pensando-se a memória como um simulacro em que nada se pode, tal como
aponta Benedetti (2007), ainda que se queira esquecer, dar voz a Valda Costa por
intermédio daqueles que a conheceram, das poucas fontes escritas e, sobretudo, da
própria obra da artista, é quebrar as trancas de fogo e arrastar, afinal, a verdade
pelo mundo, e essa verdade será a de que não esquecimento. Assim,
apresentarei, neste segmento do trabalho, Valda Costa, sua vida e sua obra, e em
certa medida e para fins metodológicos, o contexto em que a artista se inseriu e,
conseqüentemente, no qual se materializou a sua produção plástica
28
.
27
A partir de um primeiro contato, indicado por José Ricardo Ramos de Souza, dono da molduraria
ARTCA e também colecionador de Valda Costa, fui encontrando muitos outros colecionadores e
amigos da artista.
28
Nesse momento de historiador que busca fragmentos em discursos e imagens que narram um
passado, é impossível deixar de pensar em Carlo Ginzburg e nas suas considerações sobre o
historiador detetive. Ginzburg (2004) defende que o conhecimento do historiador é indiciário e
fragmental. Tal como Freud ou Sherlock Holmes, ele opera de forma detetivesca, recolhendo os
sintomas, os indícios e as pistas que, combinados ou cruzados, podem oferecer deduções e
significados. Por vezes, a constituição de um paradigma indiciário não se prende às evidências
manifestas, mas sim aos detalhes, aos elementos de menor importância, marginais, residuais, aos
39
Pesquisando sobre a artista em fontes como jornais, catálogos e fôlderes de
exposições coletivas ou individuais e nos poucos livros e textos acadêmicos sobre
as décadas de 1970 e 1980 em Florianópolis, percebi um descompasso desse
material em relação aos relatos em forma de entrevistas ou depoimentos daqueles
que viveram plenamente a capital catarinense artística e cultural do referido período
(dentro desse rol, eu me incluo).
O vazio existente de fontes escritas é suplantado por outras fontes também
importantes e imprescindíveis em um trabalho de pesquisa dessa natureza. A
primeira são as narrativas e lembranças daqueles que conheceram Valda como
mulher, como mãe e, sobretudo, como artista. Ao falarem sobre Vivalda Terezinha
da Costa
29
, Nina
30
ou Valda Costa, a memória dos narradores entrevistados traz
fatos e imagens que ajudam a compor um discurso, a minha narrativa sobre a artista
e sobre a sua obra, pois, calcada no pensamento de Pena (2004), acredito que a
memória existe no esquecimento, pois quando acionada, torna-se discurso que
não substitui o passado, apenas mostra que ele falta.
A estória de qualquer coisa é apenas o que podemos saber sobre esta
coisa, jamais a totalidade. A lacuna é onipresente. O passado não está
pronto. Ele ainda está por fazer e articular-se no presente, ou melhor, na
presença, onde elaboramos a memória e a transformamos em discurso.
(PENA, 2004, p. 23).
Porém, cabe ressaltar, como afirma Benjamim (apud GAGNEBIN, 2006, p.
40), que “articular historicamente o passado” por meio de narrativas, de lembranças
quer visuais, orais ou escritas não significa “conhecê-lo tal como ele propriamente
foi”, mas sim significa apoderar-se de “uma lembrança tal como ela cintila num
instante de perigo”. Ainda mais, e em total acordo com Sarlo (2007, p. 12)
31
, penso
que:
As visões do passado (segundo a fórmula de Beneviste) são construções.
Justamente porque o tempo do passado não pode ser eliminado e é um
perseguidor que escraviza ou liberta, sua irrupção no presente é
compreensível na medida em que seja organizado por procedimentos da
narrativa e, através deles, por uma ideologia que evidencie um continuum
gestos mais simples e espontâneos que, contudo, permitirão a decifração do enigma e o desfazer de
um enredo.
29
Nome de batismo da artista.
30
Como Valda era chamada pela família e como ficou conhecida no Morro do Mocotó.
31
Aqui também se pode buscar em Elias (1998, p. 63) a idéia de simultaneidade temporal. Segundo o
autor, Em sua qualidade de simbolizações de períodos vividos, essas três expressões (passado,
presente e futuro) representam não apenas uma sucessão como ‘ano ou o par ‘causa–efeito’, mas
também a presença simultânea dessas três dimensões do tempo na experiência humana”.
40
significativo e interpretável do tempo. Fala-se do passado sem suspender o
presente e, muitas vezes, implicando também o futuro.
Ao elaborar a memória transformando-a em uma narrativa, tento não me
deixar aprisionar pela teia discursiva daqueles que falam para criar os espaços e os
afetos de Valda Costa dentro dessa ambiência artístico-cultural dos anos 1970 e
1980 do século XX em Florianópolis. Procuro partir da idéia que o real também é
uma construção discursiva feita no passado ou no presente. Nenhuma fonte deve
ser tomada como indício do real, pois, segundo Albuquerque Junior (1991, p. 48-49),
[a] fonte histórica é sempre um monumento, ou seja, uma construção
também histórica e discursiva. Ela não é sinal de um acontecimento [...]; ela
própria é um acontecimento que deve ser explicado. O discurso para
Foucault é em si um acontecimento histórico.
Assim, com base nas palavras de Albuquerque Junior (1991), entro no foco,
no objeto, ou ainda, na fonte, que, para mim, nesta tese é a primordial, o
monumento que me possibilita, com certa segurança (pois está materializado), traçar
o meu percurso sobre a trajetória de Valda Costa, qual seja a produção plástica da
artista
32
. No entrecruzamento das fontes escritas, narradas e pintadas (ou
esculpidas), nasce a minha história, a narrativa que um esquecimento o
conseguirá apagar, pois a imagem, a força do texto pintado ou esculpido por Valda
Costa, continua e continuará presente como um acontecimento, viva como uma
brasa que, pronta para reacender o fogo, necessita somente de um sopro para
recomeçar a aquecer, pois a imagem
[...] est bien autre chose qu’une simple coupe pratiquée dans le monde des
aspects visibles. C’est une empreinte, un sillage, une traîne visuelle du
temps qu’elle voulut toucher, mais aussi des temps suplémentaires-
fatalement anachroniques, hétérogènes entre eux- qu’elle ne peut pas, en
tant qu’art de la moire, ne pas y agglutiner. C’est de la cendre langée,
plus ou moins chaude de plusiers braises. [...] Enfin, l’image brûle de la
mémoire, c’est-à-dire qu’elle brûle encore, lors même qu’elle n’est que
cendre: façon de dire son essentielle vocation à la survivence, au malgré
tout. Mais, pour le savoir, pour le sentir, il faut oser, il faut approcher son
visage de la cendre. Et souffler doucement pour que la braise, dessous,
recommence d’émettre da chaleur, sa lueur, son danger (DIDI-HUBERMAN,
2006, p. 51-52).
32
Aqui cabe também registrar que Derrida justapõe o conceito de presença com o de ausência,
valorizando uma marca para ser repetida em qualquer contexto, isto é, a escrita. Faço paralelo em
Valda Costa, ou seja, a pintura como o lugar da sobrevivência do sujeito, não precisando mais de sua
presença. “O ser se apaga e a escrita se inscreve.” (AMARAL, 2000, p. 37).
41
Dessa forma, para narrar as sensibilidades de Valda Costa ou tentar traduzir
as sensações da artista que brotaram do seu trabalho, da sua obra, é preciso
colocar o rosto perto das cinzas e soprar docemente tal qual um artesão, ou seja,
com a alma, o olho e a mão, como aponta Benjamin (1993, p. 220). Isso requer um
esforço da razão e da emoção (ou seria da paixão?), pois as sensibilidades lidam
com a subjetividade, com as sensações, com as emoções, enfim, com tudo o que é
apreendido para além dos princípios da razão.
42
2.1 “Punctum” ou um encontro marcado com Valda Costa
33
Figura 3 - Valda Costa, auto-retrato, s/d. Desenho em giz de cera s/eucatex pintado de branco.
Fonte: Coleção particular.
A arte do biógrafo consiste justamente
na escolha. Ele não tem que se preocupar em ser
verdadeiro; deve criar dentro de um caos de traços humanos.
Leibniz diz que, para fazer o mundo, Deus escolheu o melhor
entre os possíveis. O biógrafo, como uma divindade inferior, sabe escolher,
entre os possíveis humanos, aquilo que é único.
Marcel Schwob
Lendo as palavras de Marcel Schwob (1997, p. 23), reflito sobre o porquê da
escolha de Valda Costa e sobre o que faz dela aquilo de único para chamar tanto a
minha atenção a ponto de me fazer debruçar sobre a sua obra e, inevitavelmente,
sobre a sua curta vida no intuito de compor uma tese de doutorado.
Num primeiro momento, esse pensamento me faz recorrer a Roland Barthes,
precisamente ao conceito de punctum por ele desenvolvido no seu livro intitulado A
Câmara Clara, de 1984, no qual faz uma longa e interessante análise sobre a
imagem fotográfica. Segundo esse autor, o punctum de uma foto é o acaso que
punge, que mortifica, que fere. Não está relacionado com o produtor da obra, com a
cultura do operador, com a visão de mundo. Ele depende de o espectador se sentir
33
Segundo Gabriela, filha de Valda Costa e proprietária desta obra, por ter se deteriorado, este auto-
retrato de sua mãe não existe mais. A reprodução foi feita a partir de uma fotografia tirada em
1999, por ocasião da exposição rememorativa a Valda Costa realizada pelo Banco do
Desenvolvimento do Estado de Santa Catarina (BADESC).
43
tocado, pungido por determinada imagem. O punctum está ligado à maneira que a
imagem tem de lançar o desejo para além daquilo que ela se dá a ver. Barthes
(1984, p. 69-80) afirma que:
Com muita freqüência, o punctum é um ‘detalhe’, ou seja, um objeto parcial.
Assim, dar exemplos de punctum é, de certo modo, entregar-me. [...] O
punctum o leva em conta a moral ou o bom gosto; o punctum pode ser
mal-educado. [...] Pela marca de alguma coisa, a foto não é mais qualquer.
Essa alguma coisa deu um estalo, provocou em mim um pequeno abalo, um
satori, a passagem de um vazio (pouco importa que o referente seja
irrisório).
O punctum (pungir) é da ordem do amar, é a própria subjetividade do
observador, é impessoal e intransferível. E porque o punctum toca, ele possibilita à
obra viver no interior de quem é tocado. Fazendo isso, dá oportunidade à opinião e à
recriação por meio daquilo que acrescento à obra. Pensando nessas palavras, volto
à Valda Costa, pois fui ao encontro do conceito de punctum de Roland Barthes
justamente por saber que a escolha dessa artista e de sua obra tenha sido uma
escolha da ordem da própria subjetividade, da ordem do amor, da ordem do pungir.
Ao olhar um quadro de Valda Costa no MASC, na década de 1980, fui
capturada por uma imagem que me deteve por alguns instantes: uma ninfa negra de
cabelos loiros, tal qual Afrodite, nascida das espumas do mar, que me olhava com
olhos grandes, tristes e penetrantes como das estátuas votivas da antiga
Mesopotâmia (Figura 4). A roupa leve e transparente confundia-se com as ondas do
mar e com o corpo bem torneado da deusa do amor, do sexo, da fecundidade, do
casamento e da beleza corporal. De quem era essa obra? Quem era essa deusa
que se projetava no primeiro plano do quadro com leveza, sensualidade, com ar
melancólico e brejeiro? Seria um auto-retrato da artista que pintou a tela?
44
Figura 4 - Valda Costa, sem título, 1980. Acrílica s/eucatex, 33 x 38 cm.
Fonte: Acervo MASC.
No mesmo museu, descobri mais quatro obras da mesma artista. Todas as
quatro, diferentemente da primeira, retratavam temas vinculados à cidade de
Florianópolis, nos seus aspectos urbanos e culturais. Outra coisa me intrigou,
sobretudo na obra intitulada Morro, na qual também projetados no primeiro plano do
quadro se encontram e desencontram “casebres” de madeiras espremendo-se uns
aos outros (Figura 5).
Figura 5 - Valda Costa, Morro, 1979. Acrílica s/eucatex, 44 x 49 cm.
Fonte: Acervo MASC.
45
O que se destaca aos olhos do observador são os telhados que dão ritmo e
profundidade à composição. Seria esse o quintal da casa de Valda Costa? O ângulo
de visão da artista é o de quem tinha intimidade com o local: roupas penduradas nos
varais, portas e janelas semi-abertas, simplicidade, frescor. A vida que passa de
forma simples elaborada e vivida na tela: poética das imagens do dia-a-dia da
artista. Na introdução do seu livro A Poética do Espaço, Bachelard (1993, p. 6) diz
que no “devaneio poético a alma está em vigília, [pois] [...] para ter uma imagem
poética não lhe é necessário mais do que um movimento da alma”. O quadro da
artista retrata o movimento do deslumbramento diante das imagens banais do
cotidiano.
Com um olhar próprio e peculiar sobre os aspectos físicos e culturais de
Florianópolis, Valda Costa tratou a temática da cidade, muito difundida e apreciada
pelos colecionadores e tão presente na iconografia artística local, de forma
inovadora: incorporou às suas telas o elemento “morro” e os personagens
afrodescendentes. Seriam essas obras narrativas biográficas? Seriam espelhos
opacos de uma vida? As superfícies das telas de Valda Costa seriam espelhos de
suas várias imagens, dos seus vários “eus”? Seriam os espaços criados para a
reinvenção de outros mundos, lugares, vidas desejadas e, talvez, jamais vividas, a
não ser pelo desejo?
Figura 6 - Valda Costa, Boi-de-mamão, 1979. Acrílica s/eucatex, 48 x 49 cm.
Fonte: Acervo MASC.
46
Para compartilhar o mundo de Valda Costa, fez-se necessário penetrar nas
entranhas de sua vasta produção, pois muito pouco resta documentado sobre a
artista, nada ou quase nada foi escrito sobre ela: sobraram somente alguns
fragmentos de jornais que anunciam as suas exposições e as narrativas orais
daqueles que a conheceram, além de algumas poucas entrevistas concedidas pela
própria artista
34
.
As imagens ficaram retidas na minha memória como um enigma. Em 2004,
quando da elaboração do projeto de doutorado, novamente essas imagens
povoaram os meus pensamentos. Debruçando-me mais sobre a obra de Valda
Costa, percebi o quanto está impregnada de vida. As referências de vida estão na
obra, e vice-versa: o morro, o negro, a negra, o Hospital de Caridade (Figura 7), local
onde Valda trabalhou por muitos anos como atendente de enfermagem
35
e onde
vendeu as suas primeiras obras.
Figura 7 - Valda Costa, Hospital de Caridade, 1979. Óleo s/eucatex, 31 x 39 cm.
Fonte: Acervo MASC.
34
Deve-se apontar algum, ou alguns, caminhos na direção da discussão sobre vida e obra. Um texto
interessante a ser consultado é Crítica Biográfica, de Leyla Perrone-Moisés. Nesse texto, a autora,
utilizando Lautréamont (um escritor sem biografia) como foco do debate, faz uma crítica sobre
biografias que partem do “pressuposto de que a obra é a transposição de uma vida, o retrato
retocado das experiências existenciais de um indivíduo artista” (PERRONE-MOISÉS, 1973, p. 51).
35
Essa informação consta no currículo da artista, extraído da pasta encontrada no acervo do Museu
de Arte de Santa Catarina. Entretanto, alguns funcionários do Hospital de Caridade (que trabalharam
com Valda Costa) e os médicos Vilmar Gerent e Hercílio Varela, ambos funcionários daquela
instituição e também colecionadores das obras da artista, afirmaram em depoimentos que ela atuou
não como enfermeira ou ajudante de enfermagem, e sim como servente ou serviços gerais.
47
A Alfândega, retratada na Figura 8, foi o espaço que “a acolheu”. Foi por meio
da Associação Catarinense de Artistas Plásticos (ACAP), localizada na Alfândega,
na figura do seu presidente, José Pedro Heil, que Valda conseguiu ser internada no
Instituto de Psiquiatria, em 1993. Além disso, foi nesse mesmo espaço que ela
produziu boa parte de sua obra nos momentos mais difíceis do final de sua curta
vida. Seria a obra de Valda Costa um auto-retrato? Uma autobiografia?
Figura 8 - Valda Costa, Alfândega, 1979. Acrílica s/eucatex, 37 x 44 cm.
Fonte: Acervo MASC
O fenômeno, se assim pudermos descrever Valda Costa, foi marcado pela
fugacidade e pelo paradoxo. Sua vida e sua obra também estavam presas pelo
paradoxo, talvez em virtude da procura por algo que sempre lhe tenha escapado
pelos dedos. Valda ficou presa ao seu mundo, avançou num lugar fixo, viveu sem ter
sido capaz de juntar os seus traços incompletos de identidade, foi privada de
identidades construídas por ela mesma
36
. Será essa a sua angústia melancólica
traduzida nos olhos dos personagens pintados em suas telas?
36
Valda Costa, como veremos na seqüência desta pesquisa, circulou em diferentes espaços de
Florianópolis, conviveu com pessoas de diversas classes sociais, morou em diversos locais da
cidade: viveu várias vidas e incorporou várias personagens. Entretanto, ficou presa ao seu mundo,
terminando a sua trajetória de vida (ou “das várias vidas”) num lugar de passagem, porém fixo, ou
seja, do mesmo ponto de onde partiu. Nesse sentido, utilizo o termo “lugar fixo” inspirada na metáfora
do barco utilizada por Foucault (2001, p. 421-22): “o barco é um pedaço de espaço flutuante, um
lugar sem lugar que vive por si mesmo, que é fechado em si e ao mesmo tempo lançado ao infinito do
mar e que, de porto em porto, de escapada em escapada para a terra, de bordel a bordel, chega até
48
Diz-se que os olhos são os espelhos da alma, pois refletem e deixam refletir
as sensações e os desejos, como aponta Chauí (1988). Segundo Leonardo da Vinci,
os olhos são a janela do corpo, “por onde a alma especula e frui a beleza do mundo,
aceitando a prisão do corpo que, sem esse poder, seria um tormento” (CHAUÍ, 1988,
p. 31). O poder dos olhos em Valda Costa está na constância melancólica, é quase
uma marca registrada da artista. Para aqueles que a conheceram, como Eliane
Oliveira, os olhos dos personagens de Valda o os olhos dela própria, que tais
quais os do seu pai, “seu” Timóteo, tinham esse ar de tristeza e melancolia”
37
(Ver
Figuras 9, 10, 11 e 12).
Figura 9 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1988. Óleo s/eucatex, 40 x 37 cm.
Fonte: Coleção particular.
as colônias para procurar o que elas encerram de mais precioso em seus jardins”. Você
compreenderá por que o barco foi para a nossa civilização, do século XVI aos nossos dias, ao mesmo
tempo e não apenas, certamente, o maior instrumento de desenvolvimento econômico (não é disso
que falo hoje), mas a maior reserva de imaginação. O navio é a heterotopia por excelência”. É
importante não perder de vista que, a partir de análises literárias, Foucault (1981) afirma que não
vivemos em espaços homogêneos: “o espaço no qual vivemos, pelo qual somos atraídos para fora de
nós mesmos, no qual decorre precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo, de nossa
história, esse espaço que nos corrói e nos sulca é também em si mesmo um espaço heterogêneo”. O
autor nomeia os espaços, ou seja, as utopias, que são os posicionamentos sem lugar real, espaços
essencialmente irreais que nos possibilitam as fábulas e as heterotopias: lugares reais, delineados
pela instituição sociedade, nos quais os posicionamentos reais estão representados e invertidos.
Esses lugares são utopias realizadas, lugares de representações culturais. O lugar existe realmente,
e nele há a representação de posicionamentos culturais. São lugares que estão fora de todos os
lugares (FOUCAULT, 1981).
37
Eliane Oliveira, funcionária blica e amiga de Valda Costa, freqüentou a casa da artista no Morro
do Mocotó e depois dividiu com ela um apartamento no bairro Itaguaçu durante dois anos, na década
de 1980. Em entrevista, disse que só deixou de morar com a amiga depois que Valda conheceu
Marco Antônio Riobranco dos Santos (OLIVEIRA, 2007).
49
Figura 10 - Valda Costa, sem título, detalhe pintura, 1979. Óleo s/ eucatex.
Fonte: Coleção particular.
Figura 11 - Valda Costa, sem título, detalhe pintura, 1988. Óleo s/ eucatex.
Fonte: Coleção particular.
Figura 12 - Valda Costa, detalhe desenho de figurino para escola de samba, 1993. Lápis sobre papel,
102 x 31 cm.
Fonte: Coleção particular.
O paradoxo é a marca
38
. A obra está inserida em muitos lugares e, ao mesmo
tempo, em nenhum lugar. Talvez esteja num entre-lugar, conforme já indicado. Valda
38
A tese insistirá na marca do paradoxo, ou conforme Warburg, da polaridade. Vale lembrar que, no
caso dos autores trabalhados, o paradoxo não é elaborado sobre a tônica da exclusão ou/ou, e sim
da convivência dos opostos e/e.
50
viveu no limiar
39
: a exuberância das formas e das cores é compartilhada com a
tristeza e a melancolia fixada nos traços e, muitas vezes, no corpo de suas figuras,
que são, provavelmente, desdobramentos da artista, já que possuem os mesmos
padrões visuais. o esses os vários duplos de Valda Costa? Será uma tipologia
(séries) criada propositalmente pela artista, que, segundo consta, foi a primeira
40
a
pintar o cotidiano de negros e negras no Estado de Santa Catarina?
A produção de Valda Costa indica esse possível caminho, que repetição
de tipos ou séries. A palavra “série”, quando aplicada à pintura, pode ser descrita
para as obras encomendadas por um patrono, cujo tema dá unidade ao grupo, e que
são expostas em conjunto, ou para as obras realizadas ao mesmo tempo
41
com
procedimentos técnicos semelhantes a partir de motivos idênticos ou similares,
desde que a série seja intencionada pelo artista e exibida em conjunto.
Em Valda Costa, as séries se referem
42
a uma ordenação do seu mundo, na
repetição de tipos, na construção de possíveis versões de si. Segundo Lacan (1998,
p. 448-453), a repetição de um mesmo, ao ser repetido, inscreve-se como distinto, já
que a repetição possui o estatuto de uma “intrusão conceitual”, de uma insistência
significante. Os elementos se repetem para fazer aparecer deliberadamente o que
não se mostra (ver, por exemplo, as Figuras 13 a 20). Valda se repetiu, se mostrou e
se ocultou
43
nas suas telas, pintou vida desejada e vivida, narrou através das tintas.
39
Valda Costa sempre viveu no limiar, seja o da fama ou o do total esquecimento, o da riqueza ou o
da pobreza, o da alegria ou o da tristeza, o do reconhecimento ou o da rejeição, entre outros.
40
Martinho de Haro, entre outros artistas de Santa Catarina, haviam inserido o morro e as mulatas
em suas temáticas, mas com uma conotação mais vinculada à exuberância, ao Carnaval e à
sensualidade.
41
No caso de Valda Costa, acredito que não houve exposição em conjunto de séries. Todas as
exposições elencadas em seu currículo foram investigadas, e nenhum documento foi encontrado.
Além do MASC, as demais instituições pesquisadas não possuem registros anteriores à década de
1990.
42
Valda também realizava séries (ou, talvez, fosse mais conveniente dizer repetições de temas) por
encomendas.
43
Segundo o depoimento de Jo Ricardo Ramos de Souza, proprietário da molduraria ARTCA
(molduraria que emoldurou muitas obras de Valda), Valda se escondia atrás de suas telas, criava
outras Valdas, duplos dela mesma.
51
Figura 13 - Valda Costa, sem
título, 1991. Óleo
s/eucatex, 59 x 39 cm.
Fonte: Coleção Milton Bordin.
Figura 14 - Valda Costa, sem
título, 1985. Óleo
s/eucatex, 38 x 30 cm.
Fonte: Coleção Milton Bordin.
Figura 15 - Valda Costa, sem
título, 1985. Óleo
s/eucatex, 27 x 22 cm.
Fonte: Coleção Milton Bordin.
Negros, jovens, fortes, belos. Homens duplicados, homens dos desejos de
Valda: seus filhos, seus amores. Valda amava os negros. Todo homem
afrodescendente, “de porte”, que chegava ou passava por Florianópolis ela
namorava. Eram modelos, jogadores de futebol, músicos, artistas. Em depoimento, o
artista plástico Décio David
44
disse que “Valda Costa teve vários namorados, mas
nenhuma paixão foi igual à que ela teve pelo Marcão
45
”.
Figura 16 - Valda Costa, sem título, detalhe.
Óleo s/eucatex, 34 x 22 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 17 - Valda Costa, sem título, detalhe.
Óleo s/eucatex, 28 x 24 cm.
Fonte: Coleção particular.
44
Décio David, artista plástico, pintor autodidata, amigo de Valda Costa, de quem possui grande
influência estilística. É coordenador do Núcleo de Estudos Negros (NEN). Segundo Décio, Marcão foi
a grande paixão de Valda Costa, negro bonito vindo do Rio Grande do Sul e pai de cinco dos seis
filhos da artista (DAVID, 2005).
45
Marco Antônio Riobranco dos Santos viveu muitos anos com Valda Costa, e o casal teve cinco
filhos, uma menina e quatro rapazes. Marcão, como era conhecido, é gaúcho e chegou em
Florianópolis para trabalhar como modelo (manequim). Teve problemas com a Justiça e foi por
diversas vezes preso. Cursou, na Universidade Federal de Santa Catarina, Geografia e Filosofia, não
terminou nenhum dos dois cursos (abandonou o primeiro em 1996 e o segundo em 2002). Hoje é
aposentado por invalidez pela Universidade Federal de Santa Catarina, onde trabalhou como
jardineiro alocado na Prefeitura do Campus.
52
Várias vidas, várias faces, várias telas (ou seriam palcos?). Por um lado,
como Nina, foi mãe, filha, esposa. Como Vivalda Teresinha da Costa trabalhou como
enfermeira
46
e cabeleireira, levando uma vida simples, sem brilho, sem glamour.
Mas, por outro, também como Valda Costa (como passou a assinar o seu nome nas
telas), conheceu o mundo da fama, teve o respaldo de políticos, críticos e
marchands, comprou carro e apartamento, teve luxo e reconhecimento. Pediu de
tudo e para todos, viveu de favores e teve muitos amores. Mas somente um a levou
à loucura. Qual dessas vidas lhe pertencia?
47
Ninfas negras, jovens, belas e sensuais. Amantes da música e das artes. As
faces retratadas são a mesma face, as máscaras são diversas. O vestido listrado
(ver Figuras 18, 19 e 20) saiu muitas vezes do guarda-roupa da memória, assim
como os acessórios. O retrato (ou auto-retrato) é pintado (na maioria das vezes em
primeiro plano) por baixo de uma camada de tinta (ou seria pó-de-arroz?) que
mascara a face. O pincel é assim como um bisturi. Será também uma navalha, um
raspador, e por que não, uma picareta? Isto é também um trabalho de arqueologia”
(SARAMAGO, 1999, p. 275). Valda incansavelmente retirou e recolocou camadas de
tintas, se fez em arquivo dando visibilidade às suas diversas faces. Pintou tudo o
que pode e desejou ver e dizer (ou mesmo esconder) de si, se construiu e
reconstruiu na vida paralela que criou (pintou) para si.
46
Segundo depoimento do Dr. Gerent, médico do Hospital de Caridade desde os anos 1970, Valda
Costa trabalhava no setor de serviços gerais daquela instituição (GERENT, 2007).
47
Talvez como o personagem Omar Kayan, de Fernando Pessoa, Valda tivesse muitas e diferentes
personalidades: “Omar tinha uma personalidade; eu, feliz ou infelizmente, não tenho nenhuma. Do
que sou numa hora na hora seguinte me separo; do que fui num dia no dia seguinte me esqueci.
Quem, como Omar, é quem é, vive num mundo, que é o externo, mas num sucessivo e diverso
mundo interno. A sua filosofia, ainda que queira ser a mesma que a de Omar, forçosamente o não
poderá ser. Assim, sem que deveras o queira, tenho em mim, como se fossem almas, as filosofias
que critique; Omar podia rejeitar todas, pois lhes eram externas, não as posso eu rejeitar, porque são
eu” (PESSOA, 1999, p. 395).
53
Figura 18 - Valda Costa, sem
título, 1976. Óleo s/eucatex, 40
x 42 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 19 - Valda Costa,
sem título, 1984. Óleo
s/eucatex, 22 x 33 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 20 - Valda Costa,
sem título. Óleo s/eucatex,
15 x 23 cm.
Fonte: Coleção particular.
Tal e qual Moscarda
48
, personagem de Luigi Pirandello que não suporta ser o
que é, não se reconhecendo nas imagens que as outras pessoas fazem dele, Valda
Costa busca na obra o outro lugar onde pode afirmar os seus fantasmas, onde pode
experimentar os seus desejos, as suas diversas faces, o lugar da farsa, pois “é
emprestando o seu corpo ao mundo que o pintor transmuta o mundo em pintura”
(MERLEAU-PONTY, 2000, p. 18).
Segundo Fabris (2004), analisando o ensaio que Barthes fez sobre o retrato
fotográfico (A Câmara Clara), diante da objetiva, o indivíduo, ao mesmo tempo que
se imita, não deixa de experimentar uma certa transformação de sujeito em objeto,
pondo em crise a noção profunda de subjetividade. “A semelhança testemunhada
pela fotografia remete ao sujeito enquanto ele mesmo’, ou seja, a uma identidade
puramente civil, até mesmo penal, subtraindo aquilo que é, de fato, fundamental o
sujeito ‘tal qual si mesmo’.” (FABRIS, 2004, p. 115).
Poderíamos afirmar, como o fez Fabris (2004) na análise de Barthes, que a tal
“passagem da dimensão do ‘tal qual’ em si mesmo para aquela do ‘enquanto ele
mesmo’ marca uma mudança profunda na consciência da identidade, da qual a
fotografia é o verdadeiro agente” (FABRIS, 2004, p. 115-116). Seguindo essa
reflexão, penso que, para Valda, o espaço da obra, ao propiciar o advento do “eu”
48
Pirandello (2001) diz: “Não fui um autor de farsa, mas um autor de tragédias. E a vida não é uma
farsa, é uma tragédia. O aspecto trágico da vida está precisamente nessa lei que o obriga a ser um.
Cada qual pode ser um, nenhum, cem mil, mas a escolha é um imperativo claro”.
54
como o outro ou dos vários outros como “eu”, cria uma cisão profunda entre o sujeito
e a própria imagem.
O que realmente acontece, segundo Barthes (apud FABRIS, 2004), e que
cabe muito bem à análise da obra de Valda Costa, é que o retrato permite ao
retratado (muitas vezes ele próprio) entrar em identidades imprecisas, cambiantes,
fragmentadas. Como apontou Pirandello (2001), somos um, cem mil ou nenhum,
somos aquele que acreditamos ser ou aquele que desejaríamos que os outros nos
vissem. Ou ainda, de acordo com Saramago (1999, p. 11), o retrato está sempre
longe do seu fim, pois duas pinceladas podem concluí-lo, entretanto “duas mil não
chegarão para o tempo que preciso”.
Valda viveu à margem, ou melhor dizendo, num entre-lugar (literalmente e
metaforicamente: viveu no morro, mas também em bairros de classe média;
freqüentava a alta e a baixa sociedade; experimentou diversas técnicas e estilos;
misturou em suas obras alegria e melancolia). Conheceu a estabilidade e a fama,
entretanto morreu pobre e esquecida. Sua obra sobrevive (ou seria a sua vida que
sobrevive?) nas casas de colecionadores, algumas em museus, em espaços
públicos, outras mesmo no exterior. A vida é finita, a obra não. A vida vivida através
da obra é eterna, múltipla, anacrônica, é a evidência do sensível de Valda Costa. A
artista contou “suas vidas” da melhor maneira que poderia fazer: por meio de tintas,
barro, madeira..., de todos os materiais com os quais ela construiu a sua obra. Não
seria esse um outro paradoxo? Quem sabe... Entretanto, no jogo da vida vivida por
intermédio da obra, Valda Costa teve a oportunidade de inventar e materializar
outras versões de si, pois as fronteiras entre vida e obra o tênues: a obra acaba
sendo biografia, memória e confissão. É tudo e, ao mesmo tempo, não é nada
(SARAMAGO, 1991, p. 11).
A meteórica passagem de Valda pelo mundo das artes plásticas de
Florianópolis precisa de um novo espaço: a sua obra pode ser lida” para além dos
rótulos incorporados à sua crítica
49
. Além disso, o exotismo conferido a essa bela
negra de pouco estudo, porém de muita sensibilidade e tato para as cores e para os
traços fortes marcados por formas cheias, modernas, negras, lidas no próprio
corpo negro de rosto forte com lábios carnudos e olhos grandes e ovalados ou, e
49
Os críticos enquadram a obra de Valda Costa com freqüência nas categorias de primitivo, naïf ou
como uma modernista com influências de Martinho de Haro.
55
principalmente, oblíquos de tristeza e malícia, tais como os olhos de Capitu
50
–, o
faz jus à sua história. Sobre o “cometa Valda”, Valdir Agostinho afirmou em
entrevista que a artista não surgiu no meio artístico “devargazinho”, mas sim veio e
brilhou. E como todo cometa, foi intensa, mas passageira (AGOSTINHO, 2006).
Valda foi o fugaz, o efêmero, a fumaça que esvoaça. Talvez a sua obra se
encaixe perfeitamente ao seu perfil: intensa, inacabada, multifacetada, fugaz. Talvez
seja o retrato de uma modernidade tardia de Florianópolis: a da margem, a da
vontade de visibilidade e de inserção num espaço mais alargado e ousado e,
paradoxalmente, a de permanência (seja aos fortes vínculos com a temática de
caráter regional/local, seja a condição de margem: em Florianópolis é difícil escapar
a essa condição, se avança no lugar fixo). Alguns artistas adaptaram-se muito
bem a essa condição, outros não. Valda Costa viveu intensamente o conflito do
entre-lugar
51
.
O certo é que a obra de Valda Costa pertence a esse lugar, a essa borda, a
esse limite, ou seja, o seu próprio lugar. A obra é imensa, plural, rica, contudo breve:
o seu retrato. Como a poetisa Ana Cristina César, guardadas as devidas proporções,
Valda tinha pressa, pois foi pura passagem
52
, como ilustra o poema apresentado a
seguir.
50
Referência à Capitu, da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis. “Tinha-me lembrado a
definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era
oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e
examinar. me perguntou o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a
doçura eram minhas conhecidas. [...] retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e
poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem
quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o
que me a idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força
que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia nos dias de ressaca. (ASSIS, 1997, p.
71).
51
Em entrevista concedida ao Jornal O Estado, de 24 de maio de 1987, Valda afirmou que gostaria
de sair de Florianópolis, ir para o Rio de Janeiro, “um lugar maior” onde os artistas são mais
valorizados, pois, segundo ela, “artista daqui não existe para o povo, mas a classe alta”.
52
Expoente da chamada poesia marginal dos anos 1970, a poeta carioca Ana Cristina sar (1952-
1983) tornou-se conhecida em escala nacional. Alma inquieta, escritora compulsiva, produzia
poemas, cartas, artigos para jornais e revistas, traduções, ensaios. Entre os principais títulos
deixados por Ana Cristina César encontra-se A Teus Pés, Inéditos e Dispersos e Crítica e Tradução.
Ana suicidou-se em outubro de 1983, aos 31 anos de idade.
56
53
Figura 21 - Valda Costa, sem título, detalhe, s/d. Óleo s/eucatex.
Fonte: Coleção Odete Oliveira.
Esvoaça...Esvoaça...
É como a vela que se apaga. E a fumaça sobe e se atenua. É o amor fraco
que se apaga.
Não adianta poemas para a lua.
Sofre o homem, o amor acaba. E a doce influência esvoaça. Como o fio
adelgaçado.
De fina e translúcida fumaça.
Esvoaça, esvoaça... Atenua o amor. Atenua a fumaça.
Para que tanta dor? E o amor vai sumindo. Adelgaça, esvoaça, esvoaça...
(CÉSAR, 1998)
53
A imagem foi enviada pela internet sem as devidas medidas e também sem a data.
57
2.2. Uma trajetória em narrativas: fragmentos que iluminam detalhes da vida de
Valda Costa
[o] biografema de nada mais é do que uma anamnese factícia: a que eu empresto ao autor
que amo. [...] [É] o detalhe insignificante, fosco; a narrativa e a personagem no grau zero, meras
virtualidades de significação. Por seu aspecto sensual, o biografema convida o leitor a fantasmar; a
compor esses fragmentos, um outro texto que é, ao mesmo tempo, do autor
amado e dele mesmo – leitor.
Leyla Perrone-Moisés
O contato com o conceito “biografema” de Barthes me permitiu “fantasmar”,
refletir e criar um texto da pintora amada Valda Costa. Compor a obra e a vida dessa
artista em fragmentos “[foi] necessariamente uma questão de leitura, de seleção e
valorização daqueles resíduos gnicos que toma[ram] volume na própria leitura”
(CARAMELLA, 1996, p. 22), ou seja, na minha leitura. Além disso, a idéia de
biografema vai ao encontro das idéias de descontinuidade, de fragmento, de
multiplicidade, de dobras, de impossibilidade de chegada à origem. Barthes mina os
pressupostos progressistas e desagrega o encadeamento cronológico feito através
da justaposição
54
.
Dito isso, cabe ressaltar que o conceito “biografema” permite uma maior
flexibilidade na ordenação, nas escolhas e na aproximação da obra da artista Valda
Costa aos “eus” fragmentados e tecidos em dobras da mulher Vivalda Terezinha da
Costa, ou vice-versa, sem ter que necessariamente trabalhá-los de forma ordenada
e fixa (apesar de ter seguido uma determinada ordem cronológica). Ademais, narrar
a vida e a obra dessa maneira permite uma aproximação à idéia de História da Arte
como o sintetizar de uma montagem historiográfica como imagem dialética
55
, tal qual
Benjamin (apud PEREIRA, 2006) havia pensado, ou seja, em suspensão. “E sendo
dialética, ela é crítica: ao nos olhar, ela nos obriga a olhá-la e a constituir esse olhar”.
54
Cabe lembrar que o que Warburg fez no seu Atlas foi levar essa hipótese até o ponto em que
julgou poder fazer um mapa das deslocações mnémicas uma espacialização da História que a
apresenta não de modo cronológico, nada se situa antes ou depois, mas sim lado a lado, mais ou
menos afastado. Esse método de montagem de imagens reflete uma concepção da cultura como um
complexo dos processos de circulação das formas expressivas. Na montagem, os símbolos visuais
funcionam como um arquivo de memórias justapostas. “E nisto, como bem reparou Matthew
Rampley, ele pode ser comparado à Obra das Passagens, de Walter Benjamin”. (GUERREIRO,
2005).
55
O conceito de “montagem” foi também trabalhado por Benjamin, e de certa forma por Warburg e
pelos surrealistas, notadamente Eisenstein.
58
Ao constituir esse olhar poderei realçar um aspecto crucial da tese, a saber:
na análise das imagens de Valda Costa por meio de recortes e de aproximações
(dela com ela mesma e dela com outros artistas), salientando os labirintos, os
desvios e as fraturas, pois é certo que, por uma escolha (no caso, as minhas
escolhas), a biografia acaba sendo ela própria um desvio
56
. Nesse sentido, através
do meu olhar, a vida e a obra de Valda Costa passam a ser entendidas como o
ponto de convergência (ou divergência) entre o estético, o sociológico, o cultural e
as subjetividades individuais: as dela e as minhas. Trabalhar com a experiência do
sensível é demonstrar a sua eficácia pelas reações que o capazes de provocar ao
meu olhar e ao meu sentir.
Sobre as diferenças entre biografia e biografema em Barthes, Caramella
(1996) afirma que não se pode confundir o biografema com a biografia, nem se pode
associá-lo a um tipo de discurso construído por um autor a partir de figuras de estilo
que se apresentam, sobretudo, como um ornamento repousando numa concepção
de linguagem como expressão, pois, no sentido barthesiano, o biografema é uma
questão de leitura, de seleção e de valorização de resíduos gnicos que tomam
importância na própria leitura.
Fragmentos de um corpo que retornam não pela subjetividade de um estilo,
nem de um sujeito como ilusão, mas de um sujeito da escritura que entende
a linguagem como representação. Assim, ao contrário da biografia em que o
texto passado é uma homenagem a uma pessoa morta: morta enquanto
pessoa que é morta na linguagem desgastada; o texto biografemático traz à
luz, pela leitura, um corpo vivificado pela e na leitura. Um corpo como uma
dobra do sujeito que se inscreve no tecido textual e se desfaz nele, qual
uma aranha que se dissolve ela mesma nas secreções construtivas de sua
teia. (CARAMELLA, 1996, p. 21-22).
Para Perrone-Moisés (1983, p. 10), Barthes nos fez ver a sua vida através do
que ele chamou de “anamnese
57
: lembranças de infância fixadas como breves
56
Segundo Didi-Huberman (apud ZIELINSKY, 2003, p. 40-41), A noção benjaminiana de legibilidade
encontra uma exemplar aplicação, ou seja, ganha sentido na história o que aparece no
anacronismo de uma colisão onde o Outrora se encontra interpretado e “lido”, ou seja, posto à luz do
advento de um Agora resolutamente novo. As obras são, em geral, os primeiros interpretantes das
obras. Elas o são sempre na despreocupação e na impertinência anacrônicas de um deslocamento
da história. [...] O anacronismo é um risco dialético, mas este risco este forçar, este meandro, este
artifício perigoso vale a pena: trata-se apenas, nem mais nem menos, de levantar um obstáculo
epistemológico e de abrir a história para novos objetos, para novos modelos de temporalidade”.
57
Anamnese: o fragmento operatório da memória. Esses fragmentos não trabalham com um centro,
se deslocam para territórios outros. Heterotopias que devem ser desmistificadas. Segundo Barthes
(1977), o biografema nada mais é do que uma anamnese factícia: a que eu empresto ao autor que
eu amo”.
59
hacais”. Relendo a sua vida como linguagem, o autor inventa um outro de si mesmo:
o eu” deslocado para alhures. Longe de se revelar como algo total e emoldurado,
Barthes revela-se num texto que fica entre o ver e o não ver, um corpo que se
percebe nas suas intermitências, ou ainda, na encenação de um desaparecimento-
aparecimento”.
Se eu fosse escritor e morto, como eu gostaria que minha vida se reduzisse,
pelos cuidados de um biógrafo amistoso e desenvolto, a alguns
pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: ‘biografemas’,
cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir
tocar, como átomos epicuristas, algum corpo futuro, prometido à mesma
dispersão. (PERRONE-MOISÉS, 1983, p. 9)
Localizando a leitura biografemática dentro dos estudos artísticos, poder-se-ia
dizer que essa é uma intervenção que fica à margem da própria crítica, entre o
desejo de uma prática escritural e a metalinguagem, não se resolvendo numa ou
noutra. Isso ocorre porque, de um lado, não se classifica para a leitura
biografemática o problema de valor em termos de qualidade artística, ou ainda, essa
leitura não busca uma verdade poética; e de outro, ela vive o desejo quase utópico
de transformar a linguagem-objeto na própria linguagem.
Ainda, segundo Perrone-Moisés (1983, p. 9, 14-15),
os biografemas são pequenas unidades biográficas, índices de um corpo
perdido e agora recuperável como um simples “plural de encantos”. A vida
não como destino ou epopéia, mas como texto romanesco, “um canto
descontínuo de amabilidades”. Assim, a obra de Barthes é o conjunto de
seus livros onde o texto está em sua escritura. [...] [O] modo discreto como
Barthes viveu e comunicou esses fatos coincide, perfeitamente, com sua
repugnância pelo tipo de imaginário que preside as biografias-destino.
É o corpo perdido e agora recuperável (utilizo o termo “recuperável” com
duplo sentido: o primeiro, pela minha narrativa e pelas minhas escolhas, em que
recupero o que quero de Valda, e o segundo, pelas imagens narrativas deixadas
pela artista em sua obra, as escolhas de Valda Costa) em plural de encantos que me
possibilitará elaborar um texto através de palavras e de imagens sobre a vida e, por
conseguinte, sobre a obra de Valda Costa, pois
Desse corpo o que volta não é algo uno, baseado no princípio de
identidade, de marcas de estilo de um autor, mas algo fragmentado,
baseado em relações de semelhança, cujo princípio é a analogia.
60
Fragmento metonímico de um corpo que constrói o uma temporalidade,
mas uma rede-renda analógica, numa concepção espacial da linguagem.
Isto é, um corpo que se constrói textualmente na inter-relação tempo-
espaço. O tempo não como medida justa cronológica, dentro dos limites de
uma sucessão linear dos acontecimentos, mas como algo que se rarefaz,
desloca e se metamorfoseia na inter-relação com espaço-linguagem, em
volume. E é o volume da linguagem que preenche a ausência do corpo
total. Um volume que se constrói pelos resíduos da linguagem velados no
texto e revelador no exercício migratório da leitura, tendo a própria
linguagem como escuta. Linguagem que escuta traços da realidade como
ficção, como representação: índices de qualidade lidos num processo
seletivo e comparativo que parte da globalidade e atravessa a totalidade
sensível do ícone. (CARAMELLA, 1996, p. 22-23).
2.3 Valda Costa em biografemas
58
Figura 22 - Valda Costa, fotografia, capa de fôlder.
Fonte: Acervo MASC.
Valda surgiu como uma artista talentosa e diferente, e estava apoiada pelo
Beto e, indiretamente, pelo Martinho, que era um dos grandes pintores
catarinenses. Mas a Valda teve luz própria, conhecia bem as cores, a
perspectiva. Ela soube retratar bem o seu mundo. (PISANI, 2006)
59
58
Essa fotografia consta na capa do fôlder da exposição individual realizada em 1979 pela Casa
Victor Meirelles, atual Museu Victor Meirelles, e foi obtida do acervo do MASC, pasta da artista.
59
Entrevista concedida por Osmar Pisani, 70 anos, funcionário público aposentado e crítico de arte,
no dia 24 de novembro de 2004, em Florianópolis. Infelizmente, Osmar Pisani veio a falecer três
meses depois dessa entrevista, assim, não voltamos a falar com ele, como havia sido combinado,
para dar continuidade aos depoimentos sobre o sistema das artes dos anos 1970 e 1980 em
Florianópolis. Ele foi uma peça muito importante para a crítica e o sistema das artes na cidade.
61
Figura 23 - Detalhe de fotografia de Valda
Costa com suas obras, uma delas, um
provável auto-retrato.
Fonte: Acervo Família Walter Francisco Silva.
Figura 24 - Valda Costa, sem título, 1982.
Óleo s/eucatex, 38 x 24 cm.
Fonte: Coleção Antônio Fasanaro.
Como um cometa, a Valda passou pela cidade deixando gravada sua
percepção da alma do lugar como os que muito antes dela deixaram nas
inscrições rupestres. Retratou a Ilha sobrevoando e, na distância, revelava
seus encantos. Ávida, como se intuísse que precisava ter pressa, produziu
muito. Do alto do seu morro, avistava a ponte e o mar que nos rodeia e nos
faz diferentes, ilhéus. (SABINO, 2005)
60
Figura 25 - Valda Costa, fotografia
Fonte: JORNAL O ESTADO, 1975, p. 12.
Valda teve uma vida muito marcante, atribulada. [...] Ela era muito bonita,
ela também chegou a ser modelo. [...] Ela era uma pessoa muito requintada,
não era uma pessoa da cópia. [...] Ela tinha um gosto diferente. [...] Ela tinha
uma consciência muito grande de sua negritude, e não se falava nisso, pois
era natural, espontânea na maneira de se vestir, de se pentear.
(DAVID,
2005)
61
.
60
Entrevista concedida pela artista plástica de Florianópolis, Vera Sabino, em outubro de 2005.
Alguns dias após a entrevista, Vera Sabino e Semy Braga enviaram, via e-mail, os seus depoimentos.
61
Entrevista concedida por Décio David, pintor autodidata, discípulo de Valda Costa, nascido em
Florianópolis, em 1958. Atualmente é coordenador do Núcleo de Estudos Negros (NEN).
62
Eu me lembro de uma característica dela, ela tinha os cabelos diferentes,
estilo black power. É uma pena, ela era artista, e s da comunidade não
sabíamos
62
.
63
Figura 26 - Valda Costa, sem título, 1983. Óleo s/eucatex, 22 x 22 cm.
Fonte: Coleção João do Amarante.
Valda era muito inteligente, eu comprei ao todo umas vinte mulatas que ela
fez. Ela sempre trabalhava com temas nativos e com auto-retratos, como se
fosse seus alter-egos. Mudava as cores e a roupagem, mas a imagem era
dela, entende? (SANTOS
, 2007)
64
.
62
Entrevista concedida por Ulda Gonzaga, madrinha da escola de samba Copa Lord, realizada no dia
10 de março de 2007 na sala da direção da Escola Municipal Lúcia Maiorve, a qual ela dirige,
localizada no Monte Serrat, em Florianópolis.
63
João do Amarante, funcionário público aposentado, em entrevista, na sua casa em Antônio Carlos
no dia 30/01/2007. Era amigo e marchand da artista, e afirma ser esta obra um auto-retrato. Ele
intitulou a obra de Valda Jovem.
64
Entrevista realizada com Shirley Guimarães Rocha dos Santos, 68 anos, assistente social. É
funcionária do Hospital Celso Ramos e conheceu Valda Costa quando foi presidente do Conselho
Comunitário do Morro do Mocotó.
63
Figura 27 - Valda Costa, 1993. Desenho sobre folhas A4, 102 x 31 cm.
Fonte: Coleção José Alfredo Beirão.
Naquela época ela era muito chegada no pessoal da galeria Studio A/2. O
Beto tinha um apreço muito grande por ela, e ela era uma negra muito linda,
era um tipo exótico, usava umas roupas e um cabelo diferentes. Mas a
Valda era uma moça humilde e vivia no morro, parece que aquele do
Instituto de Educação. Mas a Valda era uma moça muito inteligente,
sensível, tinha sido modelo do Martinho e, de certo modo, dessa
convivência ela tirou alguma experiência. (PISANI, 2006)
65
.
65
Entrevista concedida em 24 de novembro de 2006, em Florianópolis, por Osmar Pisani, funcionário
público aposentado, professor da Universidade do Estado de Santa Catarina, crítico de arte e poeta.
64
66
Figura 28 - Fotografia dos filhos e sobrinhos de Valda Costa.
Fonte: Acervo Gabriela Costa.
De 1977 a 1983 eu me afastei da Valda, ela conheceu esse que foi o marido
dela, era um sujeito estranho, eu me afastei, voltei a vê-la depois, mais
tarde, em 1987, quando eu trabalhava no BESC Cobrança e um dia eu
passei no Bar Roma, na Hercílio Luz, e a vi com os filhos. Ela andava
sempre com os filhos, não tinha dinheiro para comer. Era um quadro muito
triste de se ver, ela me reconheceu e disse para mim: Pô, brancão, eu
numa pior, não tenho dinheiro nem ‘pras’ crianças comer! Então eu pedi
para o garçom dar comida para ela e para as crianças, leite e sanduíches.
Eu a levei para casa, no morro (ela havia voltado para o morro), e conheci o
barraco em que ela estava vivendo com os seis filhos. Todos moravam num
quadradinho de tábuas, não tinha nem banheiro. Ela improvisou um
banheiro feito por ela mesma todo em argila, tinha até banheira.
(AMARANTE, 2007)
67
.
66
Essa fotografia foi tirada em frente à casa dos pais de Valda Costa, no Morro do Mocotó. Acervo da
filha de Valda Costa, Gabriela. A casa não existe mais.
67
Entrevista realizada em Antônio Carlos, região metropolitana de Florianópolis, em 30 de janeiro de
2007, com João do Amarante, 57 anos, nascido em Videira, SC, funcionário público aposentado,
tapeceiro, amigo e colecionador de Valda Costa.
65
68
Figura 29 - Valda Costa, sem título. Óleo s/eucatex.
Fonte: JORNAL AN CAPITAL, 1999.
Valda, artista que como tantas outras na História da Arte começou como
modelo de um dos mais importantes artistas deste Estado, o Martinho de
Haro, capturou com maestria o senso cromático do mestre e depois com
visão própria, de moradora de favela, vivendo no limite da condição
humana, produziu uma obra cheia de verdade, delicadeza e amor pela sua
cidade. Sem dúvida, uma extraordinária artista. (BRAGA, 2005)
69
Figura 30 - Valda Costa, Pau-de-fita, 1989. Óleo s/eucatex, 34 x 48 cm.
Fonte: Coleção Lúcia M. Correa Freyesleben.
Quem diria o sucesso que fez essa mulher, ela não teria morrido, se
entregou assim... O estado de loucura em que ela estava nos dois últimos
anos de sua vida... A Valda criticava muito Florianópolis, ela se sentia
68
Valda Costa, sem título, óleo s/ eucatex, Coleção particular, fonte Jornal AN Capital de 12 de
janeiro de 1999, “Última página”.
69
Entrevista realizada com Semy Braga, artista plástico, em julho de 2005 na casa e atelier do artista
e de sua esposa e também artista, Vera Sabino, em Florianópolis.
66
explorada, mas aqui é assim. Para eu vender as minhas pandorgas, tenho
que negociar. Até o Jayro Schimdt era assim, vendia obra na Praça XV. [...]
Para sobreviver é assim, é folclore, é vaso de flor e não sei o quê. O artista
precisa saber da medida, pois o tema ele sabe qual é [...].
(AGOSTINHO, 2006)
70
.
Figura 31 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 18 x 22 cm.
Fonte: Coleção Família Herman Brill.
Acho que estás no caminho certo ao perceber algo de biográfico no trabalho
de Valda. Ela era assim: em fevereiro pintava passistas, em junho, festas
juninas, quando estava com fome, naturezas-mortas. Tive oportunidade de
ver um trabalho maravilhoso dela, uma natureza-morta simples, mas
sublime. Uma cesta com bananas, uvas, etc., enquanto fazia o trabalho ela
dizia adorar bananas, uvas, uma mesa bem farta e decorada. Coitada... Sei
que ela também, certa vez, começou a assinar os trabalhos com outros
nomes, pois as pessoas se negavam a “pagar pouco pelo trabalho dela.
Esta foi a sua estratégia, criar pseudônimos para as pessoas adquirirem seu
trabalho por um valor inferior ao do “mercado”. Rosinha Correa, Zeca
D'Acampora, Cléa Espíndola, Osmar Pisani e Omar Carvalho eram
enfáticos ao afirmar que ela não deveria vender seus trabalhos por preços
inferiores, não era profissional agir assim. Coisas de uma Ilha surreal...
Desse período, surgiu a Vivalda, a Nina, o Miguel Angelo, etc. no final de
sua vida, ela se negava a assinar os seus trabalhos. Tinha plena
consciência de seu valor como artista e não queria mais nem pintar, queria
ser cantora, pois como artista tinha tido “tristeza e sofrimento”.
(PEREIRA, 2007)
71
.
70
Valdir Agostinho, artista plástico, trabalhou no Studio A/2 com Beto Stodieck e foi também
moldureiro. Ele concedeu esta entrevista em novembro de 2005, no seu atelier, na Barra da Lagoa,
em Florianópolis.
71
Depoimento de Marcelo Seixas Pereira, artista plástico que conheceu Valda Costa e conviveu com
a artista durante o período em que trabalhava na ACAP juntamente com José Pedro Heil. Os nomes
que ele cita são de críticos de arte e de marchands.
67
Figura 32 - Valda Costa, sem título, s/d.
Óleo s/eucatex, 40 x 29 cm.
Fonte: Coleção Eli Heil.
Figura 33 - Valda Costa, sem título, 1986.
Acrílica s/eucatex, 42 x 26 cm.
Fonte: Coleção Diocéle Palma Souza.
Eu penso na Valda como Camille Claudel, enlouquecida por uma paixão.
(BEIRÃO, 2007)
72
.
No final, Valda enxergava Marcão por todos os lados. Todos os filhos
homens possuem Marcos no nome: Marcos Gabriel, Marcos Miguel,
Marcos... (CHAVES, 2007)
73
.
O amor dela era tipo Nelson Rodrigues, ela amava loucamente esse preto.
(SANTOS, 2007)
74
.
72
José Alfredo Beirão, arquiteto, professor do Curso de Moda e Estilismo da Universidade do Estado
de Santa Catarina (UDESC), colecionador e amigo de Valda Costa.
73
Entrevista concedida por Clarita Chaves, coordenadora de ensino da Sociedade Alfa Gente,
entidade filantrópica que atende às comunidades de Florianópolis em situação de miséria. Foi vizinha
e amiga de Valda Costa.
74
Entrevista concedida por Shirley Guimarães Rocha dos Santos, referindo-se ao Marcão.
68
Figura 34 - Valda Costa, sem título, s/d.
Óleo s/eucatex, 48 x 32 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 35 - Valda Costa, sem título, detalhe,
1986. Óleo s/eucatex, 46 x 32 cm.
Fonte: Coleção particular.
Recentemente acompanhei a passagem da exposição de Camille Claudel
por aqui. Acho comum “no nosso ramo” fazermos aproximações,
cruzamentos. Vejo muito da Valda em Camille e de Camille na Valda,
evidentemente que guardadas as devidas proporções. Mas aproximações
são possíveis, já que ambas eram mulheres possuidoras de um talento
indiscutível, sensíveis demais e que sucumbiram ao devaneio e à paixão
arrebatadora, foram incompreendidas e marginalizadas e excluídas
socialmente. Acho que me empolguei um pouquinho, por hoje é .
(PEREIRA, 2007).
Este segmento do trabalho pretende elaborar a biografia
75
de Valda Costa
enfatizando as suas escolhas como mulher e artista. Trata-se, aqui, menos da
trajetória da obra que do caminho trilhado pela artista, tendo-se como ponto de
referência a análise da obra e os discursos elaborados por meio de fontes escritas e
orais. Não pretendo, contudo, apreender a história de uma vida em um relato com
75
Como aponta Vilas Boas (2002, p. 53-71), “as fontes de um biógrafo são idênticas às de um
historiador ou de um jornalista investigativo que trabalha para periódicos ou em seu próprio livro-
reportagem: documentos (oficiais e o oficiais), correspondências, fotos, diários, clippings, livros de
memórias e autobiografias, assim como, eventualmente, entrevistas de compreensão e reconstrução.
[...] Durante o processo de pesquisa biográfica é necessário e nem sempre evitável entrevistar.
Significa, em outras palavras, ter de lidar com lembrança/recordação (por via oral ou escrita) de
amigos, familiares e conhecidos que conviveram direta ou indiretamente com o biografado. [...] O
autor que extrai tudo de tudo dezenas de cadernos de anotações, por exemplo pode estar-se
escondendo no fato de não ser capaz de assumir a sua responsabilidade pela seleção criteriosa. [...]
Os biógrafos operam o que os novos historiadores chamam de mundo das experiências comuns, que
incluem novas formas narrativas, como micronarrativas... [...] A biografia, portanto, não pode conter a
totalidade dos acontecimentos testemunhados, em dado momento ou em determinado lugar, mas
somente alguns aspectos escolhidos. [...] Os biógrafos m de manter um diálogo interminável entre
presente e passado. Uma biografia não pode ser escrita a menos que o biógrafo estabeleça algum
tipo de contato com a mente do biografado e a sua. Trata-se de uma relação de reciprocidade”.
69
começo, meio e fim, pois não seria possível construir a história de Valda Costa com
estabilidade e coerência numa época em que a realidade se apresenta de forma
múltipla e desconexa. Segundo Vilas Boas (2002, p. 53-71), não é possível “ignorar
que os atuais espaços de produção, circulação e recepção estão inseridos numa teia
de conexões permeada por conceitos como indeterminação, caos,
complementaridade e tolerância às ambigüidades [...]. Não, não é possível”.
Pensando na impossibilidade de apreensão da totalidade da vida e da obra de
Valda Costa, torna-se mais uma vez importante não perder de vista o conceito de
“biografema” de Roland Barthes. Conforme indicado, a idéia de biografema
possibilita criar uma narrativa de vida sem a pretensão de apreender a história, no
caso a de Valda Costa, em um relato minucioso e linear, e sim trabalhar com
fragmentos de vida(s) e de obra(s) até o ponto em que a vida é a própria obra
76
e a
obra é a própria vida. Sobre o limiar entre vida e obra, Baudelaire (1996) escreveu
de forma sublime e contundente no poema intitulado Retratos, apresentado a seguir
ilustrando a Figura 36.
Figura 36 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1986. Óleo s/eucatex, 49 x 34 cm.
Fonte: Coleção particular.
76
Vilas Boas (2002, p. 71) afirma que ao biógrafo “não cabe discutir cada atitude do biografado, cada
sucesso e insucesso, cada opção feita e desfeita, cada ação dos protagonistas com os quais
conviveu. Assim, o discurso se estenderia até o inexeqüível. Cabe a ele narrar com riqueza
(detalhamento) até o ponto em que a vida é a própria vida”.
70
Valda Costa, filha de Timóteo Cesário Costa e de Maria de Lurdes Costa,
batizada como Vivaldina Terezinha da Costa, nasceu no bairro Estreito, em
Florianópolis, no dia 20 de maio de 1951. Cresceu naquele bairro e, tendo estudado
no Colégio José Boiteux, onde cursou o ensino fundamental. Conforme o relato de
seu amigo e colega de profissão Décio David
77
, Valda sempre demonstrou facilidade
para as artes, ficando incumbida, nas tarefas em grupo, de realizar a parte ilustrativa
dos trabalhos. Participou de concursos de desenho do Colégio, tendo sido por várias
vezes agraciada com premiações de destaque (DAVID, 2005).
Desde menina, Valda Costa, oriunda de uma família de exímias costureiras,
preferia os lápis de cores e qualquer outro instrumento que lhe possibilitasse
exercitar a sua paixão pelo desenho. Segundo Gisela, filha de Valda, “enquanto as
minhas tias “ficavam na costura”, minha mãe sempre estava envolvida com o
desenho. No lugar da agulha, tinha sempre um lápis e papel na mão”
78
. Segundo
Décio David, apesar da predileção pelo desenho, Valda também “era uma exímia
costureira, bordadeira, cabeleireira. Tinha todo esse talento artístico”
79
.
Na fase da vida de menina (adolescente, entre 12 e 14 anos), toda a sua
família mudou-se para a parte insular da cidade de Florianópolis, precisamente para
o Morro do Mocotó, comunidade antiga e de baixa renda que ocupa uma área
consideravelmente grande nas proximidades do centro da cidade.
Nina, como Valda era chamada pela família e como ficou conhecida no Morro
do Mocotó, começou a desenhar e pintar muito cedo de forma autodidata. Conforme
o relato de seus vizinhos, com o seu primeiro quadro presenteou a mãe. Aos 14 ou
15 anos, segundo a própria artista
80
, em entrevista concedida a um jornal local,
entrou para a Escola Profissional de Artes
81
. No entanto, a experiência com o ensino
77
Entrevista concedida em novembro de 2004. É importante lembrar que a história oral é um recurso
utilizado para elaboração de documentos. Segundo Vilas Boas (2002, p. 61-62), “[há] uma variação
de história oral de vida conhecida como narrativa biográfica. [...] Na história oral de vida, presta-se
atenção ao valor da experiência pessoal em si, [...] aliado a particularidades que remetem a
acontecimentos julgados importantes. Nesse último caso, [...] a participação do entrevistador como
interlocutor pode ser muito mais presente e ativa”.
78
Obtive essa informação com base no depoimento dado pela filha Gisela, comerciante, 24 anos, no
dia 9 de abril de 2007.
79
Entrevista concedida por Décio David, coordenador do NEN.
80
Entrevista concedida por Valda Costa ao jornal O Estado, em 6 de setembro de 1983.
81
A Escola Profissional de Artes, também conhecida como Escola Profissional Feminina, foi fundada
mais de 70 anos como opção de lazer feminino. Oferecia cursos de artesanato, pintura, tapeçaria,
etc. Desde 2003 essa escola passou a se chamar Centro de Educação Profissional Jorge Lacerda e
tem como objetivo a formação profissional das camadas de média e baixa renda.
71
formal de arte revelar-se-ia efêmera por achar que não era nenhuma novidade para
ela o que os professores ensinavam.
Em 1967, segundo consta em um dos breves currículos junto à pasta da
artista armazenada no MASC
82
, Valda vendeu o seu primeiro trabalho, uma talha de
madeira com pasta de vidro. Entretanto, nessa época ela ainda não pensava em
seguir uma carreira artística, em viver exclusivamente do que produzia, já que não
existiam muitas opções de mercado. Mesmo assim, Valda não desistiu e passou a
pesquisar por conta própria diferentes técnicas, materiais e estilos. A artista utilizou a
tinta óleo, o guache, o lápis, o pastel e o nanquim. Também fez incursões na
escultura em madeira, em barro e no tijolo maciço, como pode ser visto no exemplo
ilustrado na Figura 37, “a madona” com um sorriso meio “leonardesco”. Esta
escultura foi talhada em tijolo maciço, de pequenas dimensões, porém com muita
graça e destreza. As ferramentas utilizadas eram as mesmas das máquinas de
costura. Certamente essa obra faz parte da série de madonas (falaremos um pouco
mais à frente sobre as madonas) que Valda pintou, gravou e esculpiu. Nota-se uma
forte influência clássica tanto na temática quanto no estilo. Essa influência
certamente surgiu a partir de livros com os quais a artista teve contato e do artista
Martinho de Haro, de quem Valda foi modelo.
Figura 37 - Valda Costa, sem título. Escultura
em tijolo maciço, 17 x 10 cm.
Fonte: Coleção João do Amarante.
Figura 38 - Leonardo da Vinci, Santana, a
Virgem e o Menino, 1509/10. Óleo s/tela, 1,69 x
1,30 m. Museu do Louvre.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
82
Breve currículo que faz parte da pasta da artista do acervo do MASC.
72
Figura 39 - Leonardo da Vinci, Santana, a Virgem, o Menino e São João Batista, detalhe, 1498.
Desenho. Museu National Gallery, Londres.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
Nos anos 1970, Valda passou a freqüentar o atelier de Martinho de Haro
83
(primeiramente como modelo, depois como protegida e pupila)
84
, do qual recebeu
forte influência estilística. Foi principalmente por intermédio de Martinho de Haro que
Valda Costa educou o seu olhar para a arte. Conforme relato do artista plástico
Sílvio Pléticos em entrevista, foi no convívio dentro do atelier que Valda aprendeu
alguns princípios acadêmicos, pois o mestre Martinho tinha formação acadêmica,
mesmo não sendo um acadêmico. Ainda segundo Pléticos (2006), algumas das
mulatas pintadas por Martinho tiveram Valda como modelo
85
.
83
Martinho de Haro foi um artista fundamental no processo artístico de Valda Costa. Falaremos sobre
ele com mais atenção no segundo capítulo.
84
Aqui muitas controvérsias. Algumas pessoas, como o próprio Décio David, afirmam que Valda
não chegou a ser modelo de Martinho, mas a maioria dos entrevistados, inclusive Rodrigo de Haro,
filho do artista, e alguns colecionadores mais chegados aos dois artistas, afirmam que Valda foi
modelo de Martinho de Haro e que, inclusive, a viram posando.
85
Silvio Pléticos se referiu ao livro intitulado Martinho de Haro, de Walmir Ayala e Rodrigo de Haro,
que tinha com ele, apontando reproduções de obras de mulatas que, segundo ele, tiveram Valda
como modelo, como nos exemplos apresentados nas Figuras 40, 41, 42 e 43.
73
Figura 40 - Martinho de Haro, Nu. Óleo
s/madeira, 46 x 31 cm.
Fonte: Coleção Danton Vampré Junior.
Figura 41 - Martinho de Haro, Mundanas.
Óleo s/madeira, 19 x 17 cm.
Fonte: Coleção Marcondes Marchetti.
Figura 42 - Martinho de Haro, desenho
de Valda Costa, s/d. Carvão s/papel
canson A4.
Fonte: Acervo Família De Haro.
Figura 43 - Martinho de Haro, Nu
com Biombo Amarelo, entre
1975/1980. Óleo s/compensado,
60,5 x 40,5 cm
86
.
Fonte: Coleção Maria Helena Lopes
Silva
Que não se imagine, contudo, que Valda Costa não era muito mais do que um
“reflexo artístico” de Martinho. Valda tinha luz própria, uma luz forte e de longo
alcance. O próprio artista costumava dizerque precisava tomar cuidado com aquela
86
Obra apresentada na exposição comemorativa do Centenário do Artista realizada no MASC entre
outubro e dezembro de 2007.
74
mulher porque ela poderia tomar o lugar dele nas artes plásticas”
87
. (DIÁRIO
CATARINENSE, 1993). As marcas de Martinho na trajetória e na vida de Valda
Costa o muitas, entretanto, conforme será mostrado no próximo capítulo, a artista
conseguiu deixar outras impressões que contam a sua história, pois a obra é o lugar
material no qual se definiram as suas escolhas, as suas singularidades, as suas
impressões. Tais impressões o liberar “uma espécie paradoxal de eficiência e de
magia: magia que seria aquela singular da tomada corporal e universalizante como
reprodução serial: a que produz semelhanças extremas que não são mimeses, mas
duplicação, ou ainda a de produzir semelhanças como contraformas,
dessemelhanças” (DIDI-HUBERMAN, s/d, p. 3-4).
88
Figura 44 - Foto de Martinho de Haro em seu atelier.
Fonte: AYALA; HARO, 1986.
Na época em que Valda Costa começou a freqüentar o atelier de Martinho de
Haro, ela ainda o vivia ou pensava profissionalmente como artista. Valda
trabalhava como atendente de enfermagem (ou servente) no Hospital de Caridade.
Foi nessa instituição que, em 1972, a artista começou a vender, de forma
sistemática, as suas obras para os médicos e colegas de trabalho. “Às vezes as
87
Entrevista concedida por Rosinha Correa, marchand, ao Diário Catarinense datado de 28 de julho
de 1993.
88
Ao fundo, observa-se no cavalete uma tela com o tema Mulata (seria Valda Costa?)
75
coisas não aconteciam”, lembra Valda Costa em entrevista. Em 1975, ela conseguiu
montar a sua primeira exposição individual e, a partir dos anos seguintes, participou
de diversas coletivas. O reconhecimento estava finalmente garantido (JORNAL O
ESTADO, 1987).
Aos poucos, Valda foi criando espaços e afetos no meio artístico de
Florianópolis, seja como modelo e aprendiz de Martinho de Haro, seja como artista
autônoma, e foi obtendo reconhecimento pelo seu trabalho. Do artista e agora
amigo, e de certa forma mestre, Valda foi experimentando as possibilidades da
pintura, trabalhando estilos e técnicas diferentes. Entretanto, para além do mestre e
da pintura, fez também incursões em outros materiais e técnicas, conforme
mencionado.
Valda queria aprender tudo com o mestre Martinho de Haro. Queria ter
contato com os livros sobre arte que o artista possuía em sua biblioteca e,
sobretudo, queria ter contato com o seu processo artístico. Martinho ensinava tudo o
que Valda pedia, dava-lhe muitas dicas. Foi por meio desse contato que Valda
conheceu o trabalho de Di Cavalcanti e de outros artistas modernistas com os quais
o mestre havia interagido no seu próprio percurso artístico. Entretanto, Valda era
incondicional de Michelangelo, o artista renascentista que a influenciou, inclusive, a
desenvolver uma série de madonas, como apontou Décio David em entrevista:
Era genial a série de madonas. Ela fazia em escultura também: em cimento,
em madeira... Essas madonas, não me esqueço. Minha irmã tinha uma, o
sei que fim levou. Os medalhões eram soberbos. As madonas tinham perfis
equilibrados, mantos bem elaborados. Tudo era feito com chave de máquina
de costura. Tem aqueles outros materiais tradicionais para escultura, mas
ela usava somente aquelas chavezinhas, fazia miséria com elas. A fase dela
no cimento, lembro, era de umas imagens compostas, eram umas vinte
imagens em uma só [como a do exemplo abaixo]. (DAVID, 2005).
76
Figura 45 - Valda Costa, sem
título, s/d. Escultura em tijolo
maciço, 22 x 10 cm.
Fonte: Coleção João do
Amarante.
Figura 46 - Idem, detalhe
ampliado de frente.
Figura 47 - Idem, detalhe de
lado.
Madonas, imagens da Virgem e do Menino Jesus, a maternidade sagrada, o
amor incondicional de mãe e de filhos. Símbolo da pureza e do recato. As imagens
da Virgem são incontáveis e variadas na história da iconografia da arte ocidental. Na
pintura de Valda, no exemplo apresentado na Figura 48 a seguir, as figuras da mãe
e do filho ocupam todo o espaço da tela e ambos vestem vermelho cor de sangue,
símbolo do amor, do laço familiar. Trocam olhares e gestos de ternura, envolvidos
por um fundo celestial. Talvez para Valda Costa as madonas simbolizassem a única
relação estável possível, a de e. “Aonde a Valda ia, carregava aquela filharada,
era um no colo e o resto pendurado pelos braços, pelas os, pelas pernas... A
Valda era uma mãe amorosa, fazia tudo pelos filhos.” (AMARANTE, 2007)
89
.
89
A imagem de Valda Costa com os filhos é tão marcante que todos os entrevistados se referiram a
ela dessa forma. João do Amarante disse que no final dos anos 1980 entrou, junto com a família de
Valda, com um processo contra um jornalista que escreveu na coluna que assinava em um jornal
local um versinho jocoso que dizia “Lá vem a galinha Valda, com os seus pintinhos pendurados...”.
João não se lembrava do nome do jornalista, nem do jornal, e ficou de procurar os documentos do tal
processo, que deveriam estar guardados em algum lugar, pois ele tinha mudado de residência.
77
Figura 48 - Valda Costa, sem título, 1978. Óleo s/eucatex, 45 x 34 cm.
Fonte: Coleção particular.
No percurso diário entre o Morro do Mocotó, o Hospital de Caridade e o
centro da cidade, onde morava Martinho de Haro e onde se encontravam as
pessoas “de todas as tribos”, Valda Costa, que sempre carregava algum trabalho
consigo, conheceu uma senhora que morava próximo ao Morro do Mocotó e que, ao
ver aquela moça com umas garrafinhas de vidro pintadas, se encantou pelo
trabalho. Essa senhora, de nome dona Iracema, e seu marido, o advogado Walter
Francisco da Silva, foram figuras fundamentais na vida artística de Valda Costa.
Acreditando nas potencialidades de Valda, dona Iracema ofereceu um espaço
desativado nos fundos da sua casa para a jovem aspirante à artista fazer o seu
atelier. Como dona Iracema havia trocado o piso da casa, Valda utilizou os tacos de
madeira que sobraram como suporte para as suas primeiras pinturas feitas no “seu
atelier”. As garrafinhas não existem mais, mas alguns tacos sobreviveram no acervo
da família de dona Iracema, como, por exemplo, os das “madonas” ilustradas nas
Figuras 49 e 50.
78
Figura 49 - Valda Costa, sem
título, 1976. Óleo s/taco de
madeira, 20 x 10 cm.
Fonte: Coleção Família Silva.
Figura 50 - Valda Costa, sem
título, 1976. Óleo s/taco de
madeira, 20 x 10 cm.
Fonte: Coleção Família Silva.
Eliane Oliveira, amiga de Valda Costa e com quem a artista dividiu um
apartamento durante dois anos, no Bom Abrigo
90
, falou sobre a importância de dona
Iracema e de seu marido, Walter Francisco, para o salto de Valda, que de artista
“amadora” virou “profissional”, com um espaço adequado que eles lhe concederam
para que ela diariamente pudesse se exercitar e criar.
91
Figura 51 - Fotografia de Valda Costa com dona Iracema, uma de suas filhas e uma amiga.
90
Bairro na parte continental de Florianópolis que, nas décadas de 70 e 80, foi o point da cidade
boêmia e intelectual.
91
Na fotografia, abaixo delas, pode-se ver alguns quadros de Valda Costa, que naquela ocasião
estava grávida de sua primeira filha, Gabriela.
79
Quem realmente ajudou a artista no início de sua carreira foi o casal Walter
Francisco Silva. Na época, eles moravam perto da entrada do Morro do
Mocotó e disponibilizaram um espaço no quintal da casa que não estava
sendo usado para a Valda trabalhar. Acho que era uma garagem.
Realmente, eles foram os primeiros incentivadores da Valda. Depois,
surgiram o seu Martinho, o Peixoto, o Zeca D’Acampora... Mas quem
realmente deu o impulso inicial foi o casal. (OLIVEIRA, 2007)
92
.
O filho do casal, Walter Francisco da Silva Filho, também falou em entrevista
sobre o que se lembrava do período durante o qual Valda Costa utilizou o espaço da
garagem desocupada de sua casa para pintar.
Eu me lembro da Valda, foi em 1972, ela era meio menina ainda. A mãe
tinha desocupado a garagem e cedeu o espaço para ela pintar. O pai dela
passava por aqui
93
todos os dias, era pedreiro ou marceneiro, era um
homem forte. Ele ajudou a Valda a arrumar o espaço para ela pintar. Ela era
uma negra magrinha, com traços muito bonitos, mais ou menos 18 ou 20
anos, tinha o cabelo tipo rastafári, muito bonita. É pena que a situação
sócio-econômica dela não deu chance para ela crescer. Tinha falta de
recurso, escolaridade. Mas era muito inteligente, educada e talentosa.
(SILVA FILHO, 2005)
94
.
Também foi nesse período do desabrochar de Valda Costa para o sistema
das artes que o colunista social (talvez melhor fosse nomear cultural) Beto Stodieck
abriu um espaço de arte chamado Studio A/2. A intenção desse espaço era
promover eventos oriundos de outros centros. O espaço trouxe para Florianópolis o
grupo Os Novos Baianos, Gilberto Gil, entre outros. Entretanto, acima dessas
promoções, o referido espaço tinha como meta divulgar artistas catarinenses para
“mostrar que Florianópolis tem bons artistas que também podem dar o seu recado”.
(PORTO; LAGO, 1999, p. 157). Juntamente com essas promoções, foi criada uma
Galeria de Arte “e escritório de representação comercial, além [de um espaço para]
funcionar como relações-públicas de pessoas (médicos, advogados) e coisas”
(PORTO;LAGO, 1999, p. 157). Saiu no jornal a seguinte nota sobre a abertura do
espaço:
92
Eliane Oliveira, funcionária pública, amiga de Valda Costa, freqüentou a casa da artista no Mocotó
e depois foi morar com Valda em um apartamento no bairro Bom Abrigo, nos anos 1980, no
Continente. Só deixou a amiga depois que ela conheceu o Marcão.
93
A entrevista foi realizada no laboratório de análises clínicas do entrevistado, que na década de
1970 e 1980 foi a casa da sua família.
94
Walter Francisco da Silva Filho é médico. Filho de dona Iracema e do Sr. Walter Francisco,
concedeu essa entrevista em setembro de 2005, no laboratório Exame, de propriedade do
entrevistado, que funciona onde era a casa da família na época em que Valda pintava na garagem
desocupada.
80
Studio A/2, a transa total que Florianópolis há muito esperava. Taí pra quem
quiser ver – é só chegar.
O Studio A/2 já está a mil. Maiores propagandas não estão sendo feitas
senão Ana Maria Rapozzo d’Oliveira e eu ficamos sem mãos a medir. Não
esperávamos que o sucesso fosse tanto. Para junho partiremos para uma
total investida nos campos da divulgação, promoção, representação, mais
Galeria de Arte. Aguardem. (PORTO; LAGO, 1999, p. 157)
A galeria, situada inicialmente na Rua Padre Roma, no centro da cidade de
Florianópolis e depois transferida para a Avenida Rubens de Arruda Ramos, na
Beira-Mar Norte (na mesma cidade), foi reservada para promover exclusivamente os
artistas locais. Foram realizadas diversas individuais e coletivas com recepções nas
aberturas das mostras, diga-se de passagem, que não eram “nada discretas. [...]
Costuma[va] ser um ouriço tal, que a fama [atravessou] fronteiras. Aliás, queiram ou
não, o A/2 [foi] a glória estadual [...] (PORTO; LAGO, 1999, p. 157). A inauguração
da galeria foi realizada com a exposição individual da artista plástica Vera Sabino,
em setembro de 1973
95
.
A partir da realização, com sucesso, da primeira exposição, Beto, através do
Studio A/2 e de sua coluna, passou a divulgar o trabalho de muitos artistas
florianopolitanos ou radicados na Ilha. Ele se transformou em uma referência para o
mercado de arte local: o artista que Beto Stodieck gostava, divulgava e cujo trabalho
indicava estava de certa forma com um espaço garantido. E, geralmente, os artistas
escolhidos por Beto eram jovens, ousados e tinham o seu repertório envolvido com a
Ilha. Valda fez parte desse seleto grupo eleito por Beto para representar a pintura
local. A artista começou a freqüentar os espaços promotores de cultura de
Florianópolis e se inseriu num mundo bem diferente daquele a que estava
habituada: o mundo de uma determinada elite (mais intelectualizada, marginal e
envolvida com a cultura local).
Em entrevista realizada no MASC, João Otávio Neves Filho, o Janga, crítico
de arte e artista plástico, disse que esse caminho foi feito via Beto Stodieck, que
agregava ao seu redor todo o pessoal alternativo, contestador, “maluco” da área.
95
Beto escreveu o seguinte sobre a primeira exposição que inaugurou o seu espaço de arte: Com
vocês, o rebu do ano: a exposição (de Vera Sabino) que inaugurou o Studio A/2. E, finalmente,
aconteceu a inauguração do Studio A/2 com a exposição de desenhos de Vera Sabino. Foi na sexta,
à noite, e constituindo-se no mais badalado acontecimento sócio-artístico-cultural-econômico dos
últimos 300 anos na capital catarinense, o que quer dizer o território barriga-verde. Sem qualquer
modéstia – a verdade tem que ser dita. Apesar da chuva e do frio, o beautiful people ilhéu engalonou-
se, fantasiou-se para ver (e ser visto) na expo, o vernissage que até hoje enche as boquitas de
comentários. Todos a favor, naturalmente aliás, outros comentários não poderiam que os
habitues da fofoca não foram convidados (PORTO; LAGO, 1999, p. 157).
81
Beto abriu espaço não somente para Valda Costa, mas também para outros artistas
outsiders, tais como João Olíbio
96
, Wilson Martins, etc. Vecchietti
97
também dava
muita força para esses artistas novatos. “Nessa ‘onda’ ia muita gente da sociedade.
Viam o trabalho desses artistas divulgados pelo Beto e compravam. O trabalho da
Valda era muito bom. Ela vendia muito bem. Ela conseguiu ganhar uma certa
importância, pena que ela não soube administrar bem isso.” (NEVES, 2007).
Conforme indicado, em 1975 a artista fez a sua primeira exposição
individual na Loja Emedaux, também localizada no centro de Florianópolis. Como
afirmou o historiador Carlos Humberto Corrêa em entrevista
98
, a crítica recebeu bem
os seus trabalhos, rotulando Valda como pintora primitiva (rótulo bastante em voga
naquela época, visto que os ditos “primitivos” faziam sucesso e vendiam bem no
mercado de arte local). Assim se expressou Monteiro (1975) na sua coluna Mural do
Jornal O Estado sobre a exposição e a pintora (Figura 52):
Figura 52 - Matéria de Saint Clair Monteiro: “O primitivo de Valda Costa, sábado na Emedaux”.
Fonte: MONTEIRO, 1975.
O primitivismo de Valda Costa, sábado na Emedaux
Sábado, às 20h30min, a Loja Emedaux inaugurará a exposição dos
trabalhos de Valda, jovem artista conterrânea que desponta nesse momento
96
João Olíbio da Silva, artista plástico/artesão, autodidata, 65 anos. Criou uma técnica de colagem
usando a casca do caule da bananeira e sementes diversas.
97
Pedro Paulo Vecchietti (1933-1993). Tapeceiro autodidata, artista gráfico, ilustrador de livros e
revistas, foi membro fundador do GAPF e sócio fundador da ACAP.
98
Carlos Humberto Corrêa é professor aposentado do Departamento de História da Universidade
Federal de Santa Catarina, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina e crítico
de arte.
82
para as artes plásticas catarinenses, com a realização de sua primeira
mostra. Há mais de um ano ela vem se dedicando às sérias perspectivas da
arte, “depois de toda uma existência de pintar por pintar”, que o desenho
a acompanha desde os bancos escolares. Apresentará 27 trabalhos em
óleo e pintura acrílica sobre tela ou eucatex e sua temática primitivista
composta de roos e flores, casarios e naturezas-mortas. Chamando a
atenção à resplandecente mistura de cores que mantêm-se viva sem ferir
uma certa harmonia [sic]. Os trabalhos de Valda ficarão expostos no
endereço da Deodoro 13 até o dia 15 de dezembro, onde poderão ser
visitados no horário das nove às 21 horas. (MONTEIRO, 1975, p. 12).
No final dos anos 1970 e durante os anos 1980, período da intensa produção
de Valda, a artista obteve muito apoio cultural de entidades governamentais (era
uma prática comum na época). Essas entidades organizavam suas exposições,
responsabilizando-se desde a colocação de molduras até a realização da
publicidade e venda das obras. É importante salientar o papel da Secretaria de
Turismo (SETUR) e da Diretoria Regional de Turismo (DIRETUR), que contribuíram
na divulgação e no apoio para a realização das exposições, e do Banco do Estado
de Santa Catarina (BESC), que comprou 16 obras de Valda Costa que faziam parte
do seu acervo, hoje transferido para o Governo do Estado de Santa Catarina. Além
das obras do seu acervo, o BESC adquiriu outras obras de Valda Costa (e de outros
artistas locais) para presentear autoridades de outros Estados e países que
visitavam aquela instituição
99
.
Valda Costa conquistou nome e posição no mercado de arte local vendendo
suas obras por um bom valor comercial. Fez exposição em Porto Alegre (RS),
Curitiba (PR), Chapecó, Joinville, entre outras cidades do Estado de Santa Catarina.
Com toda essa circulação, algumas obras de Valda foram levadas para o exterior,
como, por exemplo, para o Japão, a França e os Estados Unidos da América
100
.
Sua primeira exposição foi em “1974: Col. UDESC. 1975: Ind. Lojas
Emedaux, Fpolis. 1976: Ind. Ed. A. Gonzaga, Fpolis; Cols. Secretaria de
Turismo de Porto Alegre e sala de arte do SESC, Curitiba. 1977: Ind. Ed.
Belvedere, Fpolis; Cols. Prefeitura Municipal de Chapecó e Museu do
99
Informação obtida por intermédio de funcionários, ex-funcionários e funcionários aposentados do
BESC, muitos deles colecionadores de obras de Valda Costa.
100
Sobre a saída de obras de Valda para o exterior, a posição de boa parte dos entrevistados é
unânime. Segundo Vânia Luzia Machado Pereira, funcionária aposentada do BESC, era prática
corrente do Dr. Hélio Guerreiro, presidente daquela instituição à época, presentear entidades, amigos
e autoridades nacionais e internacionais com obras de artistas locais, sobretudo as de Valda Costa. A
entrevistada Shirley Guimarães Rocha dos Santos, 68 anos, assistente social e funcionária do
Hospital Celso Ramos que, nos anos 1970 e 1980, morou e trabalhou no Morro do Mocotó, onde
conheceu Valda Costa, afirmou que 20 telas de mulatas que ela tinha pintadas pela artista foram
levadas para a França por uma amiga para serem vendidas. Ela nada mais soube da amiga, que
“continua morando por lá”.
83
Sambaqui em Fpolis. 1978: Ind. Diretur e Ceisa Center, Fpolis. 1979: Ind.
Casa Victor Meirelles, Fpolis. 1982: Col. Pintura Primitiva, Terminal Rita
Maria, Fpolis. 1983: Destaque do Mês no MASC, Mostra de artistas
catarinenses, Elase, Fpolis. 1984/85: Cols. de Natal, Studio de Artes, Fpolis.
1989: Ind. Retrato de Florianópolis, Studio de Artes. (BORTOLIN, 2001, p.
94)
Mas Valda não conseguiu manter o ritmo de vendas para suprir os seus
gastos: “ela era muito gastadora e não sabia administrar o dinheiro que ganhava
(SANTOS, 2007). Tinha necessidade de ganhar mais dinheiro, não podia esperar
pelas exposições, ela queria vender. Além disso, “ela não tinha aquela mesmice [...].
Alguém descobria um tema novo que ela estava fazendo, iam direto na casa dela
para comprar. Por isso, esse esquema de galerias e exposições não funcionava
muito com ela” (DAVID, 2005). Valda era uma pessoa livre para fazer as suas
escolhas e as fazia, o que desagradava os marchands que comercializavam as suas
obras.
Claro se um marchand não consegue administrar um determinado artista,
ou esse artista vende o seu trabalho como ela vendia, de uma maneira
aleatória, por qualquer preço, é claro que os marchands ficavam
reclamando. [...] Agora eles se esquecem de dizer que são os maiores
exploradores dos artistas [...], e quem ganha menos é o artista que
produz
101
. [...] E aí vêm reclamar que o artista vende no atelier [...] Os
marchands não têm que reclamar. (SCHMIDT, 2007).
Para Valda, as vendas começaram a acontecer diretamente com o
comprador, pois ela acreditava estar sendo “explorada” pelos marchands
102
. Além
disso, nesse momento, Valda vivia exclusivamente da sua produção, pois precisava
sobreviver. Assim, foi se afastando gradativamente das exposições e do circuito de
museus e das galerias, e talvez este seja um dos motivos pelos quais Valda foi
perdendo espaço na mídia e no circuito “oficial” de arte. A artista acreditava que a
venda direta ao colecionador lhe rendia mais proventos e de forma mais imediata.
Valda tinha pressa. Entretanto, ela não tinha noção do valor de sua produção. O
aumento dos gastos pessoais com ela mesma e com a sua nova e arrasadora
101
A própria Valda Costa falou em entrevista para o Jornal O Estado, de 6 de setembro de 1983,
sobre essa questão e, anos mais tarde, depois de sua morte de Valda, a artista plástica naïf Tercília
dos Santos afirmou o seguinte em entrevista para o Jornal AN Capital, Anexos, de 9 de julho de 1999:
“Eu lamento que uma artista como Valda Costa tenha sido tão explorada por pessoas inescrupulosas
de Florianópolis. Elas tinham coragem de trocar um quadro por um quilo de alimento. Tem gente que
hoje tem um bom acervo [...]. São pessoas que eu o quero que trabalhem com a minha obra, por
isso procuro galerias de fora. Ela tinha seis filhos para sustentar, e por isso as pessoas se
aproveitavam dela de um modo cruel”.
102
Informação obtida por meio da amiga Eliane Oliveira.
84
paixão, Marcão, aliado à vinda dos numerosos filhos (ao todo foram seis), fez com
que Valda começasse a produzir cada vez mais frenética e rapidamente e a vender
cada vez mais barato a sua produção. A obra começou a ser comercializada a
qualquer preço, inclusive à base de trocas por produtos de primeira necessidade.
Segundo consta sobre o início “glorioso” e o “retrocesso” da artista no circuito
cultural de Florianópolis, no começo de sua carreira Valda viveu uma vida intensa
com muita produção, fartura e muitos namorados, até conhecer a sua arrasadora
paixão, Marcão. Décio David mencionou em entrevista que “esse foi o divisor, pois
com o Marcão, vieram muitos filhos, um atrás do outro, ela vivia grávida, tempo
minúsculo para a produção e muitos aborrecimentos”.
Figura 53 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 48 x 36 cm.
Fonte: Coleção José Ricardo Ramos de Souza.
Valda pensou ter encontrado o paraíso onde viveria um intenso e duradouro
amor com o seu Adão (Marcão). Entretanto, a situação não se configurou da
maneira como Valda havia imaginado, ou melhor, sonhado (desejado). Marcão,
segundo relatos, era belo e sedutor. Tinha uma personalidade forte, dominadora e
violenta. Não possuía emprego fixo e vivia da produção de Valda Costa. Valda
perdeu o controle sobre sua vida, sua produção, seus bens e seus amigos. Violência
e dor: Valda não suportou o peso de tantas perdas. Deprimida, não correspondida e
85
cada vez mais pobre, começou a dar sinais de decadência física e mental, e passou
a ter delírios de perseguição, nos quais Marcão aparecia para destruir a sua vida e a
sua carreira
103
. Teve que abandonar a vida à qual havia se habituado, ou seja, a
vida do “agito”, da produção intensa, do conforto e da segurança econômica.
Onde era o embalo, onde estava e circulava o Beto Stodieck, o ‘fulaninho’,
estava Valda. Com Marcão isso acabou. Ela não vivia mais a vida dela, ela
começou a viver a vida dele, não vendia mais, produzia pouco. Marcão
começou a administrar a vida de Valda. O que ela pintava não era mais
dela, ela não segurava mais nada. (DAVID, 2005).
104
Figura 54 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 39 x 24 cm.
Fonte: Coleção particular.
O Apolo negro, complexo, belo e enigmático. Guardião das musas, por quem
era adorado. A figura de Apolo está associada com a vida e com a morte. Foi essa
figura de luz, deus do arco de prata, na Figura 54 representado com toda majestade
e beleza, que flechou o coração de Valda e o fez sangrar até a morte. A loucura por
uma intensa paixão. A paixão que a levou à loucura. Como Camille Claudel, com
103
Entrevista concedida por Clarita Chaves, vizinha e amiga de Valda Costa, 2007.
104
Suposto retrato do Marcão.
86
quem Valda foi por muitos dos entrevistados comparada, viveu um intenso, louco e
cego amor.
Valda Costa precisou voltar para o Morro do Mocotó, pois o espaço no mundo
da arte e da cultura de Florianópolis ficou restrito e impossível para ela
105
.
Entretanto, ao chegar no morro, ela também foi hostilizada. Mesmo tendo na artista
a sua representante no meio artístico-cultural, os moradores do Mocotó rejeitavam a
idéia de que o que Valda fazia poderia valer mais do que um mês de trabalho duro e,
sobretudo, não aceitavam que, no momento de “glória”, ela havia optado por viver
fora da comunidade. Entretanto, Valda jamais se afastou da vida do morro. Pelo
menos nas suas pinturas ela representava a sua comunidade: fez de suas telas, de
maneira não deliberada, um espaço para uma crítica social e econômica. Mostrou
como ninguém antes dela, pelo menos em Florianópolis, cenas do cotidiano da
favela. “Aquelas casas, aqueles casebres, a vida na favela. Valda tinha consciência
da sua condição como mulher, como negra e como artista. E ela colocava isso na
pintura.” (SCHMIDT, 2007)
106
.
Figura 55 - Valda Costa, sem título, 1978. Óleo s/eucatex, 34 x 22 cm.
Fonte: Rita Kauling.
105
Valda Costa não tinha mais condições econômicas para sustentar o padrão de vida que vinha
tendo até então.
106
Entrevista concedida em 19 de março de 2007 por Jayro Schmidt, 58 anos, artista plástico e
professor de pintura e história da arte do CIC.
87
107
Figura 56 - Valda Costa, imagem de folder de exposição.
Fonte: Acervo MASC.
Mas, o grande dilema de Valda Costa era a falta de respeito das pessoas do
próprio morro. “As pessoas não compreendiam o valor do seu trabalho. Como uma
pessoa do morro iria entender que uma pintura feita em eucatex vale alguma
coisa? Aí era uma luta interminável.” (DAVID, 2005).
Com uma situação instável, um louco amor para sustentar, muitos filhos e a
dupla rejeição (a da elite que lhe havia acolhido no espaço de arte local e a do Morro
do Mocotó), Valda começou a apresentar um quadro de depressão e de loucura. Ela
foi “abandonada” pelos dois mundos. “No Morro, dizem que batiam nela quando ela
descia para vender os seus quadros. Ela era muito bonita, exótica, parecia com
aquelas modelos de Di Cavalcanti que entravam para a sociedade.(NEVES, 2007).
Ainda, segundo depoimento do artista plástico e crítico de arte João Otávio das
Neves, o Janga, Valda tinha tudo para dar certo, mas ela não soube administrar os
seus afetos. Depois que ela conheceu o Marcão, as drogas, as bebidas, todos
começaram a se afastar dela. Como relatou Janga em depoimento, “Ficou
inconveniente mesmo, muita loucura”.
Entretanto, a conquista em Valda Costa, talvez, não muito diferente dos
grandes nomes da literatura, das artes e da filosofia, deu-se no espaço da criação.
Foi nesse espaço que ela encontrou a abertura liberando-se das cadeias da
existência cotidiana, tornando assim possíveis resistências inéditas, assim como
vozes inauditas, aptas a dobrar-nos diferentemente. Pensando como Rago, Orlandi
e Veiga Neto (2002, p. 288),
107
Valda Costa, imagem do fôlder da exposição individual realizada na casa Victor Meirelles (atual
Museu Victor Meirelles), de 19 a 30 de dezembro de 1979, sem especificações.
88
A errância, o deserto, o exílio, o fora. Como conquistar a própria perda,
retornar à dispersão anônima, indefinida, mas nunca negligente, num
espaço sem lugar, num tempo sem engendramento, próximo ao que
“escape à unidade”, numa experiência do que é sem harmonia, sem
acordo?
108
.
Tristeza, solidão e dor. Novamente a figura colocada em primeiro plano no
centro da tela toma conta da cena (Figura 57). O corpo farto, exuberante, contrasta
com o ar melancólico de tristeza. No fundo da tela duas casas colocadas em
oposição. Seria a representação dos dois mundos onde Valda vivia? O da
esperança, simbolizado pelo verde, e o da alegria, pelo rosa? O da riqueza e o da
miséria? A qual desses mundos Valda pertencia? A figura feminina, talvez Valda,
está dividida e totalmente excluída, ou seja, está no entre-lugar.
Figura 57 - Valda Costa, sem título, 1985. Óleo s/eucatex, 48 x 34 cm.
Fonte: Coleção particular.
108
No texto Literatura e loucura, Peter Pál Pelbart trata o tema da loucura fazendo uma aproximação
entre Blanchot, Foucault, Deleuze e Guattari. “Não o ser, mas o Outro, o Fora, o Neutro. Paixão do
Fora que atravessa a escrita Febril de Kafka, bem como a de Blanchot, e que reverbera na obsessão
de Foucault com o tema das fronteiras e dos limites, da alteridade e da exterioridade, ou em Deleuze-
Guattari, na sua reivindicação por uma relação com o Fora e toda a maquinaria nômade que d
deriva.” (RAGO; ORLANDI; VEIGA NETO, 2002, p. 287).
89
Mesmo com todas as condições adversas, na tentativa de garantir o seu
espaço
109
dentro da comunidade do Mocotó, Valda Costa criou um grupo de música
com jovens e crianças, pois além da pintura e da escultura, ela gostava muito de
música. Segundo Gisela, filha de Valda Costa, “minha mãe adorava cantar. Ela era
de Bob Marley, Djavan, Raul Seixas, Gilberto Gil...”. Assim, aproveitando a paixão
pela música, como mencionou Décio David em depoimento, Valda adquiriu alguns
instrumentos e montou o referido grupo.
Figura 58 - Valda Costa, fotografia.
Fonte: Acervo da família da artista.
Ela era de Gil, mas não era muito ligada assim. Quando Bob Marley
surgiu no Brasil, a Valda era rastafári, gostaria de saber de onde saiu
aquilo da Valda. Quando Gil esteve aqui, ficou hospedado no Hotel Maria do
Mar, a Valda ficou quase louca, pintou um quadro dele e eu fui com ela para
oferecer o quadro para o cantor. Ele foi muito receptivo, nos atendeu muito
bem, falamos da oferta e tudo bem
110
.
109
Penso na noção de espaço em Foucault quando esse autor afirma que não vivemos dentro de um
espaço vazio, mas sim totalmente carregado de qualidades, o espaço de nossas percepções e
paixões, o qual se configura como um lugar real de projeções: as heterotopias (FOUCAULT, 2002, p.
411-422).
110
cio David refere-se ao acontecimento que ficou conhecido na cidade. Quando Gilberto Gil
esteve aqui, em 1983, Valda Costa pintou um retrato do artista para presenteá-lo. Gilberto Gil não
aceitou a oferta. Segundo o depoimento de Décio, que estava com a artista e disse ter ajudado a
pintar o quadro, Gilberto Gil havia aceitado o presente, no entanto, enquanto Décio foi ao banheiro, “a
Valda ficou conversando com o Gil, não sei o que ela falou, mas na minha volta do banheiro ele disse
que não poderia ficar com o quadro porque ele seria mais útil para ela se fosse vendido. o sei se a
Valda falou alguma coisa que deu a impressão de estar querendo fazer merchandising em cima deste
presente para o Gil. Em resumo, ele acabou não ficando com o quadro e a Valda saiu bem
desapontada do hotel” (DAVID, 2005).
90
Valda teve muitas paixões: a pintura, a escultura, a música, a moda e a
dança. Adorava as escolas de samba. Chegou a morar em frente à sede da Copa
Lord, conhecida e tradicional escola de samba de Florianópolis. Suas irmãs eram
porta-estandartes, e Valda criava figurinos para as escolas
111
, como os identificados
nas Figuras 59, 60 e 61.
Figura 59 - Valda Costa, sem
título, detalhe, desenho de figurino
para escola de samba, 1993.
Lápis s/papel A4, 51 x 22 cm.
Fonte: Coleção José Alfredo
Beirão.
Figura 60 - Valda Costa, sem
título, desenho de figurino
para escola de samba. Lápis
s/papel A4 colados uns aos
outros, 102 x 31 cm.
Fonte: Coleção José Alfredo
Beirão.
Figura 61 - Valda Costa, sem
título, desenho para figurino de
escola de samba, 1992. Caneta
hidrocor s/papel A4, 51 x 22 cm.
Fonte: Coleção João do
Amarante.
Mesmo doente
112
, continuou a produzir freneticamente. Segundo o
depoimento de Clarita Chaves, a artista passava noites em claro produzindo e os
dias andando pela cidade para vender a qualquer preço o que havia produzido.
Chegava a sair de casa com os quadros ainda molhados, outros ela tentava secar
111
Depoimento de Márcio José Pereira de Souza, vereador pelo PT na cidade de Florianópolis, em
entrevista concedida no dia 9 de outubro de 2006.
112
Valda foi diagnosticada com a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS).
91
no forno, alguns chegavam a ficar chamuscados no verso. Começou a assinar as
telas como Miguel Angelo, pois dizia que quem pintava não era ela, e sim o mestre.
Em algumas telas, quando assinava Miguel Angelo, colocava no verso Vivalda Costa
(seu nome de batismo).
Figura 62 - Valda Costa, sem título, s/d. 31 x 26 cm.
Fonte: Acervo Molduraria Tico-Tico.
O mesmo olhar triste e distante. Pinceladas largas e desordenadas,
carregadas de emoção. Com um sentido próximo daquele apontado por Manguel na
sua análise da chamada síndrome de Stendhal (2001, p. 29)
113
, Valda registra a
autobiografia como pesadelo, ou seja, de forma simplesmente desnorteante. Mas
não é Valda, ela não se mostra. Esconde-se por detrás de uma máscara, símbolo da
identificação. Assim, pela mágica da apropriação, Valda se identifica com o
personagem desejado Michelangelo e foge da “realidade”, da vida que se tornara
difícil e que estava por encerrar o seu ciclo. Refugia-se no mundo das telas, do qual
ela ainda detinha o controle. As Figuras 63 e 63 revelam detalhe da assinatura na
frente e no verso do quadro, respectivamente.
113
Segundo Manguel, no capítulo “o Espectador comum : A imagem narrativa” do seu livro intitulado
Lendo Imagens. Uma história de amor e ódio, a “chamada síndrome de Stendhal afeta visitantes (...)
que vêem as obras primas da Renascença pela primeira vez. Algo nessas obras de arte colossais as
assombra, e a experiência estética, em lugar de ser uma experiência de revelação e de
conhecimento, torna-se caótica e simplesmente desnorteante, a autobiografia como pesadelo.”
92
Figura 63 - Valda Costa, sem título,
s/d, detalhe assinatura, frente do
quadro.
Fonte: Acervo Molduraria Tico-Tico.
Figura 64 - Valda Costa, sem título,
s/d, detalhe assinatura, verso do
quadro.
Fonte: Acervo Molduraria Tico-Tico.
Quando saía para vender, oferecia a sua produção nas portas da Assembléia
Legislativa, do BESC, da CELESC, da ELETROSUL e de outros locais aos quais
estava acostumada a freqüentar no auge da sua carreira. No prédio da antiga
Alfândega, onde funcionava a ACAP, Valda encontrou um refúgio e um espaço de
apoio onde podia produzir. Nesse local, sob a tutela da Associação de artistas, ela
ganhava, além da comida, material e espaço para trabalhar. A doença avançava, e o
seu estado físico e mental deteriorava-se a cada dia. Com a ajuda da Direção da
ACAP, na figura de seu presidente, José Pedro Heil, e também do então vereador
Márcio José Pereira de Souza, foram realizados eventos beneficentes para
arrecadar fundos para a internação de Valda Costa no Instituto Psiquiátrico São
José
114
e para ajudar a sua família.
Sobre Valda Costa, Márcio de Souza, que conheceu a artista pessoalmente
quando esta se encontrava num quadro físico e mental bastante deteriorado,
mencionou em entrevista que o que vem à sua memória é a figura de Valda com os
filhos na porta da Assembléia Legislativa vendendo os seus quadros. Ele havia
visto de longe alguns anos antes aquela mulher no auge de sua carreira: linda,
exuberante, feliz. Era difícil acreditar que se tratava da mesma pessoa. Naquele
momento, no ano de 1993, Márcio tinha sido eleito vereador, e foi nessa condição
que resolveu ajudar a artista e a família dela. Contando com a colaboração
114
Valda Costa foi internada no Instituto Psiquiátrico São José meses antes de sua morte. Ela
apresentava um quadro psicótico, segundo relatou o Dr. Marcos Noronha, médico psiquiatra que
atendeu a artista.
93
espontânea de alguns grupos de músicos locais (entre eles o grupo Dazaranha),
organizaram um grande evento no Clube 25, no Morro Chapecó, atual Morro do 25.
Valda nem pôde comparecer ao evento.
Nós conseguimos arrecadar um dinheiro para ela e a sua família. A verba
toda foi revertida para a construção da sua casa, e me parece que ainda
teve uma ajuda da prefeitura municipal para a aquisição da casa. Houve
uma sensibilização e uma resposta desses setores para com o
reconhecimento do trabalho dela, não? Eu diria assim
115
. (SOUZA, 2006)
Do Mocotó, Valda saiu para o Instituto de Psiquiatria de o José em abril
de 1993. Ficou dois meses internada na ala de apartamentos particulares
116
. Todo o
tratamento foi pago pela ACAP, que arrecadou a verba em função de um evento
beneficente. Ela retornou ao Mocotó, mais a sua situação física continuava a se
deteriorar. Segundo João do Amarante, Valda sabia da gravidade de sua doença,
mas escondia isso dos outros. Muitos companheiros da boemia estavam também
vivendo a mesma situação ou já haviam morrido. Em depoimento ele disse:
Alguns dias antes dela morrer, ela me chamou. Quando cheguei ao morro,
ela estava com essas duas obras [João mostra as duas obras], um anjo
revoltado e a mulher no Carnaval. Ela disse: ‘olha, “seu” Brancão (ela me
chamava de “seu” Brancão), eu vou te dar esse presente, eu vou e não
volto mais. (AMARANTE, 2007).
A revolta da artista pode ser percebida no quadro “do anjo revoltado” (Figura
65), que ela pintou e com o qual presenteou, antes de sua internação no Hospital
Nereu Ramos, o seu amigo João do Amarante. No quadro se vê, em primeiro plano,
um belo anjo loiro em posição de oração. Como as figuras dos orantes da fase
catacumbálica da arte paleocristã, esse anjo parece implorar por misericórdia, ao
115
Márcio José Pereira de Souza, em entrevista concedida no dia 9 de outubro de 2006.
116
Segundo o relato do Dr. Marcos Noronha, psiquiatra que atendeu Valda Costa, em entrevista
concedida no dia 6 de julho de 2007, ela foi atendida por ele em uma primeira consulta em fevereiro
de 1993. No mês de abril, Valda foi internada no Instituto de Psiquiatria São José com um quadro de
distúrbio bipolar e surto psicótico, confusão mental, desencadeado, provavelmente (na época era
difícil o diagnóstico, e ainda não se tinha muitas informações precisas sobre o assunto), pelo quadro
infeccioso avançado da AIDS. O Dr. Marcos ainda afirmou que Valda Costa tinha um grande
problema de cunho social, valorizava perdas inesperadas e prejuízos financeiros, além disso, a artista
desenvolveu problemas graves com a infecção que adquiriu associado ao quadro básico bipolar.
Também mencionou: “ela tinha uma fixação pelo marido, Marcão.” Foi medicada com injeções
antipsicóticas, que melhoraram o raciocínio dela. Saiu do Instituto em maio, mas ainda estava muito
magra e com lesões pelo corpo. Foi internada em julho no Hospital Nereu Ramos, vindo a falecer no
dia 27 daquele mês. O medico ainda comentou que Valda era uma pessoa muito divertida e que
todos gostavam de conversar com ela.
94
mesmo tempo que deixa entrever a sua raiva com um gesto obsceno de sua mão
direita. Ao fundo, dominando quase todo o quadro e emoldurando a figura do anjo,
vemos um dos símbolos da cristandade, a Igreja. Próximo ao dedo que “xinga” e à
cruz de uma das torres da larga e possivelmente dividida igreja, ou fé, vê-se o
símbolo da ajuda divina, a pomba (Figura 66). Na outra o, o anjo segura um
ramalhete de flores, homenagem prestada ao vencedor? Ou ainda, seriam essas
flores o símbolo do renascimento primaveril? Valda estava ciente de sua condição,
nada mais tinha a ser feito.
Figura 65 - Valda Costa, sem título,
s/d. Óleo s/eucatex, 46 x 31 cm.
Fonte: Coleção João do Amarante.
Figura 66 - Valda Costa, sem
título, detalhe, s/d. Óleo
s/eucatex, 46 x 31 cm.
Fonte: Coleção João do Amarante.
117
Figura 67 - Catacumbas Romanas, século III.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
117
Orans - Pintura sobre reboco do culo III. A obra Catacumbas Romanas representa uma mulher
com os braços levantados em súplica e oração num cenário que sugere o paraíso. Sob a pintura, os
loculi, ou sepulturas escavadas na rocha.
95
Figura 68 - Sidrac, Misac e Abdêgano atirados na fornalha por Nabucodonosor, Catacumba de Santa
Priscila, Roma, séc. III-IV.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
Valda também presenteou João do Amarante com uma outra tela, assinada
Vivalda. Seria essa tela o símbolo da vida eterna da artista? Valda para viver
eternamente? Para viver no luxo, na festa e na fantasia? Nessa tela (Figura 69), o
rosto angelical da figura feminina está perdido em meio a plumas, brilhos, adereços
mil. A figura que surge do nada, envolta por tanto brilho e luz, tem os olhos perdidos.
Não sorriso, não alegria. Valda tentou buscar a sombra sob muitos guarda-
sóis colocados sobre a cabeça de sua figura feminina. Seria essa figura um duplo? A
sombra, como apontam Chevalier e Gheerbrant (1992), é o lugar das coisas fugidias,
irreais e mutantes. É o oposto da luz e, ao mesmo tempo, o seu complemento. Os
autores mencionam que para os africanos, “a sombra é considerada como a
segunda natureza dos seres e das coisas e está geralmente ligada à morte. No reino
dos mortos o único alimento é a sombra das coisas, leva-se uma vida de
sombras”.
Figura 69 - Valda Costa, sem título, 1993. Óleo s/eucatex, 40 x 20 cm, assinada Vivalda.
Fonte: Coleção João do Amarante.
96
No caso de Valda, a sombra é a própria figura feminina, ela é a sombra e o
alimento. É a consciência dos contrários, difícil de vivenciar, mas rica de
possibilidades. Segundo Chevalier e Gheerbrant (1992), para Jung a sombra é tudo
o que o sujeito recusa reconhecer ou admitir e que, entretanto, se impõe a ele. “Essa
sombra se projeta nos sonhos sob a figura de certas pessoas, que não passam de
reflexos de um certo eu inconsciente [...]”. Em um conto de Andersen
118
, A Sombra,
o autor descreve a vida de um indivíduo dominado pelos caprichos ferozes da
sombra, ou seja, do equivalente ao reflexo ou ao duplo (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1992). Seria este quadro a representação da sombra dominadora
de Valda Costa? Um duplo que viverá com beleza, riqueza e saúde para a
eternidade?
119
Valda Costa foi internada no Hospital Nereu Ramos, onde veio a falecer no
dia 27 de julho de 1993. Sobre a artista, o artista plástico Valdir Agostinho, que a viu
na véspera de sua morte quando foi visitá-la no hospital, lembrou algumas
passagens em entrevista. Falou da paixão de Valda pelos sapatos e que, quando a
visitou na casa dela nos áureos tempos, ficou impressionado com a quantidade de
pares que a artista tinha. “Quando eu conheci a Valda, ela morava em um
apartamento perto da Catedral Metropolitana. Eu entrei lá e estava cheio de sapatos.
Ela entrava em tudo que era loja, comprava tudo... Eu vi assim, aqueles tamancos.
Fiquei impressionado.”
118
Hans Christian Andersen foi um poeta e escritor dinamarquês de histórias infantis nascido no
século XIX. No conto A Sombra, Andersen conta a história de um rapaz apaixonado que pensa na
sua própria sombra destacada de si e vivendo perto da amada. Vendo a sua sombra como a
emanação de seu amor pela amada, o rapaz deixa-se tomar por completo pela força do desejo a
ponto de a sua sombra viver como se tivesse uma vida independente dele. Ao passar a viver com a
amada, o rapaz reencontra a sua sombra, mas agora a sombra representa para ele um patrão
implacável, um inimigo que o condena a ser pelo que tem. A história de Andersen termina com o
rapaz servindo de sombra para a sua amada, vivendo uma existência completamente diferente da
sua vida de antes, passando a servir a sua amada somente materialmente.
119
A idéia de duplo desenvolveu-se, principalmente, a partir da escultura egípcia, que pretendia, por
meio da imagem do duplo, obter a eternização do homem. A estatuária desenvolveu um processo de
representação que pudesse preservar a imagem do Farou de nobres importantes após a morte.
Essa tendência ao realismo na forma em parte se deve à crença na vida após a morte.
97
Figura 70 - Valda Costa, sem título, 1983. Óleo s/eucatex, 40 x 23 cm.
Fonte: Coleção particular.
Nina, a pobre menina, sentada na soleira da porta de sua casa, com os pés
descalços à espera de uma fada madrinha (Figura 70). Onde estão os sapatos da
triste Cinderela? O sapato é o fetiche feminino e está ligado à sensualidade. Mas, e
também no caso de Cinderela, a prova de sua identidade: o príncipe tendo-a
reencontrado, “casa-se com ela por sua beleza, apesar de sua pobreza e de seus
farrapos” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1992, p. 803). Depois de transformar-se em
Cinderela, os pés jamais ficaram descalços e desprotegidos. Como para Cinderela,
os sapatos de Valda poderiam ser lidos como o símbolo da catarse, do
desvencilhamento da miséria e do sofrimento. É a representação da liberdade e
também da humildade, o que determina o caminho percorrido da felicidade à
infelicidade. Entre tantas pessoas foi para Valda que o sapato se destinou.
Entretanto, essa Valda, a Cinderela, conforme ainda relata Valdir Agostinho,
não ficou por muito tempo no seu eixo, equilibrada, em cima de seus sapatos: a
publicidade, as vendas de obras, o dinheiro fácil, toda essa situação foi mexendo
com a artista. Aquela Valda, Valdir não viu mais. Depois, em 1993, encontrou-a pela
última vez, conforme mencionado anteriormente, no Hospital Nereu Ramos (hospital
para pacientes com doenças infecto-contagiosas), “doente e acabada”. Foi essa a
última imagem que ficou de Valda Costa para Valdir Agostinho:
98
Mas a arte a defendia... Isso foi no final... Agora, no começo, ela era uma
pessoa maravilhosa, eu cheguei a vê-la expondo na Beira-Mar. Ela, de
camisa azul, bem vestida, a mãe, no Belvedere [Ed. Belvedere, localizado
na Avenida Rubens de Arruda Ramos, onde funcionava uma Galeria de
Artes]. Ela era muito interessante... (AGOSTINHO, 2006).
No dia seguinte à sua morte, saiu em um dos jornais locais a seguinte
matéria: “Despedida a Valda Costa. Artista plástica catarinense, que chegou a ser
comparada a Di Cavalcanti na década de 70, morreu ontem”.
Figura 71 - Despedida a Valda Costa
A área das artes plásticas catarinenses perdeu uma de suas
representantes mais ativas na década de 70, quando despontou como uma
revolucionária com sua obra. Valda foi velada ontem no Salão Paroquial da
Igreja da Prainha. quatro anos a artista estava enfrentando problemas
emocionais e desde o dia 10 de junho encontrava-se internada no Hospital
Nereu Ramos. Valda chegou a ser considerada a Di Cavalcanti catarinense,
segundo a marchand Rosa Correa, da galeria Studio de Artes, que
trabalhou durante toda a década de 80 junto com a artista. “A obra dela era
fantástica. Na sua ignorância cultural, ela era uma artista extraordinária”,
afirma. A semelhança com Di Cavalcanti pode ser percebida através das
mulatas que pintava, além de retratar a Ilha. “Todos os dias eu vendia as
suas obras. Muitos colecionadores da cidade possuem trabalhos seus”, diz
Rosa, que possui alguns em sua galeria, enquanto outros integram o acervo
do MASC (Museu de Arte de Santa Catarina). A florianopolitana Valda
Costa, nascida em 1951, era autodidata e expôs na capital e em diversas
cidades do país. Ela começou a pintar em 1974, quando levava suas obras
para o pintor Martinho de Haro olhar. Ele costumava dizer que precisava
tomar cuidado com aquela mulher, porque ela poderia tirar o lugar dele nas
artes plásticas. (DIÁRIO CATARINENSE, 1993).
99
Alguns anos depois de sua morte, houve uma exposição no espaço Cultural
Fernando A. M. Beck, do BADESC (Agência Catarinense de Fomento S. A.),
intitulada Valda Costa (in memoriam), no período de 4 de janeiro a de março de
1999. A exposição contou com 12 obras da artista e teve boa repercussão de
publico e na mídia local (ver anexos). No mesmo ano, de 16 a 24 de novembro, no
hall da Assembléia Legislativa, em Florianópolis, foi realizada uma Coletiva de
Artistas Negros, intitulada Valda Costa, comemorativa ao dia da Consciência Negra.
A mostra contava com obras de artistas locais que homenageavam a falecida
colega. Entre os trabalhos estavam três obras de José Pedro Heil, que segundo o
próprio artista, são retratos de Valda.
120
Figura 72 - José Pedro Heil,
Homenagem a Valda Costa, s/d.
Técnica mista s/tela, 30 x 24 cm.
Fonte: Acervo do artista.
Figura 73 - José Pedro Heil,
Homenagem a Valda Costa, s/d.
Técnica mista s/tela, 34 x 22 cm.
Fonte: Acervo do artista.
Figura 74 - José Pedro Heil,
Homenagem a Valda Costa, s/d.
Técnica mista s/tela, 38 x 25 cm.
Fonte: Acervo do artista.
Lembro-me de Valda Costa com aqueles penteados maravilhosos que ela
mesma fazia. Sempre bem vestida, elegante. Ela era uma mulher muito
exuberante, bonita, talentosa. Era muito crítica e autocrítica... É pena que
não tive contato pessoal com a Valda nesse período. A minha convivência
foi no período da ACAP, quando fui presidente. Nesse período o contato foi
diário, mas não era mais essa Valda... (HEIL, 2006).
120
As obras de Pedro Heil enfatizam as características físicas mais marcantes de Valda Costa. Foi
unanimidade entre os entrevistados o destaque para a beleza e para a exuberância na maneira de se
vestir e de se pentear da artista. Não intenção aqui em fazer correlações entre as obras de ambos
os artistas.
100
2.4 Os espaços e os afetos de Valda Costa: uma breve cartografia das artes
plásticas dos anos 1970 e 1980 de Florianópolis e “alhures”
[...] [T]odo o trabalho de cartografia – mesmo o que se coloca sob o signo da referencialidade
e da imparcialidade – é uma prática subjetiva, conjetural, provisória.
Maria Esther Maciel
Conforme já indicado na introdução deste trabalho, a obra de arte, como
quaisquer construções intelectuais, pode mas não necessariamente deve se
apresentar – conter a chave para a compreensão das marcas que os artistas captam
e deixam sobre as suas épocas. É dentro dessa visão que neste trabalho a obra de
arte não se apresenta como unilateral. A vida e a produção artística de Valda Costa
devem ser consideradas, em certa medida e para fins metodológicos, no contexto
em que a artista se inseriu e, conseqüentemente, em que se materializou a sua obra.
Assim, neste segmento da tese, proponho traçar a cartografia dos anos 1970 e
1980, sobretudo em Florianópolis, com o intuito de dar “língua para os afetos que
pedem passagem”, pois do cartógrafo se espera que ele esteja “mergulhado nas
intensidades do seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que
lhe parecerem elementos possíveis para a composição que se fazem necessárias”
(ROLNIK, 1998, p. 30). Para a autora, a cartografia acompanha e se faz ao mesmo
tempo que certos mundos se desmancham e outros se formam, “mundos que se
criam para formar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos
vigentes tornaram-se obsoletos”.
A trama desse enredo possui muitos personagens. Uma jovem bela, negra e
talentosa. Um artista maduro, meio taciturno, vivido, amante da beleza e do fazer
artístico vinculado à tradição. Um ousado jovem de elite, que viveu intensamente e
de forma marginal, que viajou muito, que gostava do mundo das artes e era amante
de sua terra natal. Muitos jovens artistas sedentos por novidades, cultura e agito. Um
país sob um regime político duro. Uma cidade provinciana ávida por inovações,
reformas... Mas, nem tanto. Este é um espaço, o espaço dos afetos onde foram
tecidas as redes de movimentação, de expressão e de afinidades de Valda Costa,
pois, como afirma Ávila (2007),
[o] lugar do afeto é muito real. Parece que não, parece interno, mas não é.
O espaço do afeto é externo porque é um espaço de configuração de
101
relações, de tecitura de redes de afinidades, de movimento, de expressão
que escapa. O afeto não se basta. Ele é, necessariamente, um vetor, mas
um vetor apenas. É um antes, um quase. Ele é a possibilidade de
constituição de alguma coisa.
Constituição de quê? Vejamos. Eram os anos 1970 e 1980 do século XX na
provinciana Florianópolis, que tentava ganhar ares de cidade grande. Muitos jovens
da elite que haviam saído para estudar em centros maiores voltavam aos seus lares.
Outros que não faziam parte do cenário pequeno-burguês da cidade também aqui se
estabeleciam, após passagens pelos centros artísticos do exterior e do Brasil. Toda
essa movimentação vai resultar em uma mistura interessante, inusitada e, muitas
vezes, inesperada.
Segundo Kossovitch (2002, p. 11), nos grandes centros, a partir dos anos
1970, “a arte se reapresenta, avançando sem sobressaltos sobre o terreno
desertado pelas vanguardas”. Também nessa década, de uma maneira geral no
contexto nacional e internacional, a arte buscou incorporar à sua expressão as
novas tecnologias. Em meados dos anos 1970, certas premissas básicas da década
anterior haviam sido transformadas ou tinham simplesmente exaurido. Os gestos
iconoclastas das vanguardas pop, do rock e do sexo pareciam ter se esgotado pela
crescente circulação comercial, o que fez com que esses movimentos perdessem o
estatuto de vanguarda.
Concomitantemente à situação que começava a ser delineada nos anos 1970,
continuaram ainda sendo dominantes muitas das práticas ditas modernistas No
entanto, parece que houve uma dispersão e uma disseminação cada vez maior das
práticas artísticas. Porém, quase todas continuavam operando a partir “das ruínas do
edifício modernista, investindo contra ele na busca de idéias, saqueando o seu
vocabulário, [...] enfim, desfrutando de uma espécie de semivida na cultura de
massas” (HUYSSEN, 1991)
121
. A arte se expandia num conceito artístico mais
amplo, levando parte da produção da época rumo à desmaterialização do objeto, até
com endosso das teorias de Foucault, Baudrillard e Lacan. É certo que os
minimalistas haviam varrido da arte a imagem, a personalidade, a emoção, a
mensagem e a produção manual, mas os conceitualistas deram um passo além e
eliminaram o próprio objeto.
121
Huyssen está se referindo, nesta citação, ao crítico Edward Lucie-Smith e a seu livro intitulado Art
in Seventies.
102
Embora esse período se caracterize pela sucessão de linguagens com as
mais variadas implicações, no final da década de 1970 registra-se, em diversos
locais, uma forte tendência de reabilitação da pintura como meio de expressão
privilegiada. Está-se falando de uma espécie de “regresso”, envolvendo a “nova
pintura” tanto na América como na Europa. Os que achavam que a pintura tinha
completado o seu ciclo com o expressionismo abstrato se enganaram, pois nos anos
finais da década de 1970 e, sobretudo, na de 1980, o retorno da pintura revelou
grande riqueza de facetas, merecendo realce a multiplicidade de temáticas e de
vocabulários expressivos.
É importante registrar que, em certos locais e em certos casos, o
internacionalismo das vanguardas cedeu lugar às tendências regionais. Novamente
reportar-nos-emos ao termo “regresso” para identificar um certo refluxo ao regional e
um apego aos temas de preservação das tradições e dos costumes lingüísticos, de
certa forma bastante explorado e utilizado pelos modernistas latino-americanos de
uma maneira geral. Segundo Fabbrini (2002), as obras pós-vanguardistas dos anos
1980 foram classificadas, por parte de alguns historiadores e críticos de arte
americana, em função das tradições artísticas locais, tais como as escolas de
Chicago, do Texas e da Califórnia. Outros, também americanos, adotaram um
critério étnico ou cultural vinculado às minorias, ou seja, a arte hispânica, a arte
negra ou afro-caribenha, a arte indígena, etc. Dessas minorias alguns
procedimentos, definidos em função da geografia ou dos laços da tradição,
encontravam-se em sintonia com o circuito de arte americano e que, apesar das
diferenças culturais, compartilhavam na pintura grandes afinidades: a preferência
pelo figurativo, extremamente colorido, e pela narrativa da história e dos costumes
locais. Para o autor, “são pinturas que reagiram contra as vanguardas tardias. [...]
Renunciando a busca vanguardista, eles investiram na comunicação imediata,
figurativa e de acento naïf para reintroduzir a experiência humana ausente, segundo
eles, dos movimentos artísticos dos anos 60 e 70”. (FABBRINI, 2002, p. 93).
Dirigindo-se a atenção mais para o final do século XX, observa-se um grande
número de posições e de poéticas animando a cena mundial das artes plásticas: do
figurativo ao abstrato, do humor ao drama, do feito à mão ao fabricado por meios
mecânicos, do campo fechado ao campo expandido, do efêmero e transitório ao
permanente. Nessas bases, falar em arte contemporânea é, no mínimo, algo
103
complexo e contraditório. Da mesma forma ocorre quando se pensa em conceitos
preocupados em somente seguir uma linha de pensamento ou um único princípio.
O que se testemunha, na verdade, o novas formas de efetivação das
propostas artísticas e novas estruturas de linguagem, que induzem a uma
reavaliação do conceito de arte no Ocidente. A tecnologia abriu grandes
possibilidades também para a arte. É claro que as possibilidades das formas
tradicionais de expressão não se esgotaram, mas as transformações foram
evidentes, tendo em vista os benefícios das novas técnicas e materiais.
Resumindo, para não me estender muito no âmbito internacional e nacional
no que diz respeito ao Brasil dos anos 1970 e 1980, pode-se perceber, conforme
aponta Morais (1993), que a década de 1970 do conceito e da tecnologia está para a
de 1950 da construção como os anos de 1980 da pintura e do prazer estão para o
tropicalismo dos anos 1960. Para o autor, não se trata de mera repetição (revivals),
mas de desdobramentos de determinadas propostas. Em outras palavras, o
concretismo, com o seu vocabulário reduzido, enfatizou a idéia de estrutura abrindo
espaço para sistemas mais complexos ligados à ciência e à alta tecnologia como
base da criação visual. os anos 1960 “foram, assim, uma espécie de corredor
alegre e debochado entre duas décadas sisudas e sérias: construção (ordem) e
conceito (arte como idéia). Ao inverso, os anos 70 formam uma cunha reflexiva entre
dois momentos prazerosos: tropicalismo e geração 80”. (MORAES, 1993, p. 7-9).
Tanto no Brasil quanto no exterior os anos 1970 e 1980 na Ilha de Santa
Catarina caracterizaram-se pela ampla efervescência cultural, especialmente no
campo das artes plásticas, em que surge com vigor a linguagem abstrata e, ao
mesmo tempo, valoriza-se a cultura local. Nessas décadas, o circuito de arte local
entrou em sintonia com a produção artística nacional e internacional com o retorno
de muitos artistas que haviam saído para estudar em centros maiores, inclusive no
exterior. Conforme aponta Andrade Filho (2007, p. 9), “Tratava-se de longos
estágios, que em alguns casos incidiam em vários anos. [...] Era de se esperar que a
agitação internacional tivesse aqui seu eco.”
A efervescência artístico-cultural e a ditadura marcaram os anos 1970, que
instigaram os artistas a uma produção mais complexa do ponto de vista conceitual.
Em Santa Catarina, os anos 1970 foram decisivos para a consolidação da produção
local. a década de 1980, segundo Andrade Filho (2005, p. 9), “começa com uma
nova geração autônoma e descolonizada, menos sectária. [...] Tudo dialoga, o
104
passado remoto e o recente. [...] A comunicação torna-se ferramenta valiosa. As
fronteiras se atenuam. Embora todas as contradições urbanas, sinais de
esperança”.
Todo esse movimento colocou de vez Santa Catarina em um intenso diálogo
com o circuito nacional. A partir da década de 1970, passa a ser difícil destacar
nomes tanto em Florianópolis como em outras cidades do Estado, segundo Laus
(2001, p. 19), “pois se multiplica o aparecimento de artistas de diversas tendências,
dando realce ao fato artístico como um todo”. Nomes como Rubens Oestroem, Suely
Beduschi, Loro, Vera Sabino, Elke Hering Bell, Jayro Schmidt, Max Moura, entre
outros, começaram as suas trajetórias abrindo novas possibilidades para o cenário
artístico-cultural da cidade. Esses artistas chacoalharam com as gerações pré-
modernistas e modernistas trazendo o abstrato e, mais tarde, o conceitual para o
circuito de arte do Estado. Essa nova geração mexeu com o olhar do público, que
estava desacostumado com experiências radicais como a dos primeiros objetos de
Max Moura e das esculturas moles de Elke Hering Bell. “Os meios de comunicação
tornam-se um dos grandes dinamizadores da arte catarinense nessa virada histórica
regada a sexo, drogas e rock and roll. O ‘é proibido proibir’ instala-se entre os
barrigas-verdes.” (MAKOWIECKY, 2003, p. 338).
Cabe mencionar que certas condições contribuíram para que esse período
fosse significativo para as artes em Florianópolis, como, por exemplo: a expansão
dos meios de comunicação de massa, com a vinda da Rede Brasil Sul (RBS), grupo
gaúcho ligado à Rede Globo de Televisão; a implantação da Eletrosul, que consigo
trouxe um grande contingente de gaúchos e cariocas para aqui se estabelecer; e,
aliados a essa nova conjuntura também estavam associados a prosperidade e o
crescimento da classe média com elevado poder de consumo, inclusive de cultura e
de lazer. Esses fatos juntos resultaram numa combinação propícia para a
proliferação e o consumo da arte em Florianópolis.
Também cabe salientar o papel de instituições como a Associação
Catarinense de Artistas Plásticos (ACAP) e o Museu de Arte de Santa Catarina
(MASC). A primeira contribuiu com exposições e intercâmbios. Além disso, assumiu
uma função mercadológica trazendo um novo vigor ao mercado de artes local,
absorvendo e incentivando boa parte de jovens artistas. Por sua vez, o MASC
ganhou um novo espaço no Centro Integrado de Cultura (CIC), onde funcionariam
as oficinas de arte em espaços mais amplos e adequados. Além disso, em 1985 foi
105
criado o Centro de Artes da UDESC, em um bairro próximo do Itacorubi, o que fez
dessa região um centro aglutinador de atividades ligadas à cultura.
É importante não esquecer que a Universidade Federal de Santa Catarina,
localizada próxima ao CIC, com seus 12 mil alunos e funcionários à época, não
deixava de ser um público-alvo para as atividades artísticas, além de possuir o seu
próprio setor de artes (TUTIDA, 1998). Os movimentos estudantis da universidade
também participavam ativamente das atividades culturais, tendo no Diretório Central
dos Estudantes (DCE) um espaço alternativo para a comercialização e a divulgação
de novos talentos
122
. Alargando as fronteiras institucionais, o Grupo Noss’Arte, com
Jayro Schmidt, João Otávio das Neves, o Janga, e Max Moura, leva a arte para os
morros e as escolas públicas, seguindo a trilha inovadora da ACAP e das oficinas de
arte do CIC (ANDRADE FILHO, 2005).
Toda essa movimentação vai exigir de Florianópolis mais espaços para
acolher as novas propostas que estão surgindo. Além do circuito “oficial” dos
museus e das instituições públicas, entram em cena os salões, os espaços sociais e
as galerias. Contudo, pelo papel dinamizador de mercado e inovador, as galerias
são o maior destaque dessas décadas. Em Florianópolis, a Galeria Studio A/2 “fez
história com os agitadores Beto Stodieck e Luiz Paulo Peixoto. O que ia para as
paredes dessa galeria era considerado o supra-sumo da contemporaneidade [...]”,
como afirma Makowiecky (2003, p. 341).
Aqui, nesse ponto da trama, retomo os personagens citados no início deste
segmento da tese. Começo pela figura do ousado jovem da elite florianopolitana,
Sérgio Roberto Leite Stodieck, o Beto Stodieck, que nos anos 1970 e 1980 foi um
dos personagens marcantes de Florianópolis no circuito artístico. Sua trajetória se
confunde com a cidade desse período. Formado em Direito, em uma faculdade do
Rio de Janeiro, onde também cursou Jornalismo, escreveu a Coluna do Beto durante
as décadas de 1970 e 1980, nos jornais catarinenses O Estado e Jornal de Santa
Catarina, coluna esta que o próprio Beto definiu como social-lógica e social-
democrática
123
. Segundo relata Cacau Menezes, um jovem e grande amigo da
época e, atualmente, também colunista, Beto Stodieck não era apenas um colunista
comum, mas um guru, pois influenciava muitos jovens com o seu comportamento
122
Informação obtida em entrevista com Jayro Schmidt.
123
O seu estilo chegou a ser comparado ao do conhecido colunista Zózimo Barroso do Amaral. Como
Zózinho, Beto era um colunista diversificado e politizado.
106
ousado. Ainda conforme Menezes (2007), Beto foi responsável pela quebra de
preconceitos. Apesar de ser um elitista assumido de família tradicional de
Florianópolis, que adorava viajar, a boa mesa e as roupas de grife, Beto também
tinha um lado outsider, relaxado e popular. Circulava com desenvoltura em todos os
espaços de sua amada Florianópolis, pois
venceu a ignorância da cidade, venceu os preconceituosos, venceu os
radicais [...] Beto perdeu para a doença, AIDS. Todas as outras batalhas
foi vencedor. Foi perseguido pela direita e pela esquerda, pelos brutos e
pela polícia e por muitos outros caretas que não aceitavam sua moderna
liderança sobre a juventude numa cidade aentão altamente provinciana.
Sabia que eles existiam [...], mas ignorava os inimigos solenemente.[...]
Ignorava-os por completo. Fusquinha verde, careca com peito cabeludo,
roupas chiques, óculos loucos, empresário e amigo de artistas famosos,
ninguém foi mais poderoso em Florianópolis do que Beto Stodieck, a quem
devo muito, muito, muito da minha esperteza, se é que ela existe na
proporção que alguns gostam de comentar. (MENEZES, 2007).
Figura 75 - Fotografia de Beto Stodieck.
Fonte: MENEZES, 2007.
E como ousado e inteligente homem da elite e da mídia, Beto gostava de
inovar, chocar e desestabilizar o próprio meio do qual ele fazia parte, porém, com o
qual não partilhava muitas das idéias e opiniões. Um dos aspectos significativos
dessa disputa de idéias era a sua visão de progresso para a cidade de Florianópolis:
diferentemente da elite local, que viu no boom turístico e imobiliário uma grande
oportunidade de modernização e de mudanças na estrutura da cidade, Beto lutou,
por meio das palavras nas suas colunas, pela preservação da Florianópolis de
outrora, no entanto, sem o conservadorismo provinciano.
Suas armas eram os jovens, que adoravam o seu jeito descolado e
irreverente, as palavras, muitas vezes cortantes e mordazes, e a arte. Parecendo um
107
pouco xenófobo, atacou o poder vindo de outros Estados e privilegiou a “nossa arte
e a nossa cultura” num momento em que o “nossa” era um modo de ser em
desuso (não perder de vista que nessa época estamos no auge do mundo e da arte
globalizada, anos 1970 e 1980 do século XX). Beto deu espaço para os artistas
locais mostrarem os seus trabalhos, tendo sido o elo de contato entre artistas e
colecionadores.
Era um homem controvertido, adorava Nova York, os grandes centros, mas
queria preservar a sua Floripa (foi ele quem primeiro chamou Florianópolis dessa
forma carinhosa). Personalidade das mais interessantes, criou um elo entre
passado, presente e futuro, entre ricos e pobres, entre elite e marginália. Criou o
Studio A/2, para o qual convergiam artistas maduros, tais como Martinho, Pléticos,
Meyer Filho, entre outros nomes de uma “tradição” artística local. Juntamente com
esses modernistas, atraiu jovens e irreverentes artistas que estavam
experimentando a arte e a antiarte do momento. Entretanto, existia um laço em
comum entre essas gerações: a manutenção do tema vinculado, de uma forma ou
de outra, à Ilha. Beto não abria mão de sua terra. E o público local aplaudia e
comprava a produção de seus protegidos.
E os protegidos eram muitos, de diversas tribos, e nesse rol entrou Valda
Costa, que tinha sido modelo de Martinho de Haro e que, naquele momento,
despontava no cenário artístico local. Valda tinha muitos atrativos que Beto
considerava: era jovem, bela, negra, talentosa e pobre. Representava o que de mais
marginal poderia existir nesse meio elitista. E mais: retratava também a cidade e,
além disso, retratava uma cidade que muitos ainda não conheciam ou estavam
despertando para tal: a cidade vista do morro ou o morro visto com o olhar de quem
também o enxergava a partir da cidade. Com Valda, surgiram outros artistas
oriundos de comunidades menos favorecidas: Valdir Agostinho, Wilson Martins,
Ronaldo Linhares, João Olíbio, entre outros. O momento era esse. Beto soube
ousar, conviveu e valorizou outros “mundos” e espaços.
Sobre esse momento, Antônio Luiz Lira, o Toninho (também artista oriundo de
comunidade carente), músico do extinto conjunto chamado Som Nosso de Cada Dia,
do qual faziam parte, além dele, Luis Henrique Rosa, Tuca, nego Deto, Mazola, Luis
Fernando e Érico, disse, em entrevista, que nessa época todos os artistas, jovens e
intelectuais, freqüentavam os mesmos espaços. Esses espaços eram os barzinhos
onde havia música ao vivo, os clubes, as escolas de samba. Foi nesses espaços
108
que o músico conheceu Valda Costa, que estava sempre com “a turma do Beto
Stodieck”
124
.
Conheci Valda Costa quando ela era moça solteira, muito bonita e andava
com umas roupas assim, todas diferentes. Tinha o cabelo black, ela era
uma artista. [...] Rodrigo de Haro, meu eventual parceiro daquelas noites
boêmias, quando via a Valda chegar costumava proclamar: “A nossa
Djanira". O artista era “apaixonado pela Valda”. [...] Aqueles tempos eram
bons, hoje o é mais assim. [...] Era uma agitação total. Os mundos se
misturavam
125
. (TONINHO, 2007).
Para tentar compreender essa ambiência, é importante lembrar que o Rio de
Janeiro fervilhava
126
. Muitos “ismos” acontecendo, várias barreiras sendo quebradas,
como a barreira criada entre a elite que detinha o monopólio das artes e uma arte
popular que estava sendo colocada em xeque por, entre outros, um artista ousado e
marginal: Hélio Oiticica, amigo de Caetano e de Gil (que eram amigos de Beto),
inspirador do movimento tropicalista com a obra penetrável (cabine-ambiente)
denominada Tropicália
127
.
Figura 76 - A instalação Tropicália, de Hélio Oiticica, exibida em 1967, na exposição Nova
Objetividade.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
124
As pessoas se referiam, na época, e ainda se referem, ao grupo do Beto: as pessoas que
circulavam (o grupo de artistas, jovens e intelectuais) sempre juntas nos espaços públicos ou
privados da cidade.
125
Conversa informal realizada no dia 9 de março de 2007 com o Sr. Antônio Luis Lira, o Toninho, 57
anos, brasileiro, funcionário público e músico .
126
O Rio de Janeiro era o centro de referência artística e cultural na época, e para os
florianopolitanos o poderia ser diferente. Muitos jovens da elite local veraneavam, estudavam e
tinham no Rio o seu modelo cultural. O próprio Beto, conforme já indicado, havia cursado as
faculdades de Direito e de Jornalismo naquela cidade nos anos 1960.
127
De maneira semelhante ao que tinha acontecido no início do século XX com os primeiros
modernistas e com os movimentos da vanguarda brasileira, o movimento tropicalista dos anos 1960-
70 (que tinha como referência a vanguarda produzida no Brasil no início do século XX), com Rubens
Gerchman, Nelson Leirner, Cláudio Tozzi, entre outros, buscou referências na iconografia e na cultura
locais. Nas artes plásticas o movimento é deflagrado na mostra Nova Objetividade Brasileira,
momento em que Oiticica apresentou a sua instalação denominada Tropicália. Na música vamos ter
nas figuras de Caetano e de Gil os seus grandes representantes, e no cinema evidencia-se Glauber
Rocha. É importante reforçar que o Brasil está, nesse período, sob governos ditatoriais, o que vai
favorecer a resistência, por parte dos intelectuais e dos artistas, a tudo o que é imposto e vindo de
fora.
109
Quando criei a minha obra-ambiente TROPICÁLIA (1966-67), duas coisas
queria, de modo objetivo: uma era sintetizar tudo o que vinha fazendo
tempos no sentido de uma arte-ambiental (ou antiarte, como queiram), outra
era marcar, com o conceito de tropicália, um novo modo objetivo de
caracterizar certos elementos na manifestação atual da arte brasileira, que
se possam erguer como uma figura autônoma, não cosmopolita, opondo-se
num novo modo ao OP e Pop internacionais. [...] Como cheguei a isso é
uma longa história: a descoberta no morro da favela carioca, dos bas-fonds
do Rio e a minha iniciação no samba como passista da Mangueira – foi tudo
um processo de anos para cá, propositalmente antiintelectual. Enquanto
muitos sonham com Paris, Londres, Nova York, etc., eu me dedico anos
ao que chamo de ‘volta ao mito’ – com isso longe de ser uma atitude
intelectual, abstrata, foi uma experiência decisiva no contexto da cultura
brasileira. [...] Nossa pobre cultura universalista, baseada na européia e
americana, deveria voltar-se para si mesma, procurar o seu sentido próprio,
voltar a pisar no chão, a fazer com a mão, voltar-se para o negro e para o
índio, à mestiçagem: chega de arianismo cultural no Brasil. (OITICICA,
2002, p. 123).
Oiticica viveu sem limites e sem preconceitos. A mesma importância atribuída
ao artista consagrado passou ao anônimo passista de uma escola de samba. A
vanguarda o conseguiu afastá-lo do convívio com a arte popular. Ele abdicou do
seu emprego como operador de telex para morar na Mangueira, uma das favelas do
Rio de Janeiro, onde se inseriu no universo do samba e se transformou num
convicto passista, num tempo em que a elite ainda preferia assistir da arquibancada.
Era um exercício de liberdade; vida e obra estavam entrelaçadas.
Hélio Oiticica foi o último romântico da vanguarda radical brasileira. Sua
obra criadora foi a realização, nos planos do estético e do ético, do que
poderia ser chamada uma teoria da marginalidade. [...] Subiu o morro e
desceu como passista, desfilando por Mangueira. Favelizou Mondrian, em
seus labirintos de cores selvagens, trouxe Malevitch a terra, eliminando toda
aura metafísica, marcou encontro com Klee no caju, recriou em sua obra o
morro que ressurge como Éden” (Londres, 69), gerando supravivências no
seu “barraco”, na “cama”, nos vários penetráveis, reinventou o jogo de bilhar
(Opinião 66), o futebol e o samba. Fez de sua arte uma espécie de terreno
baldio onde tudo podia acontecer, sem limites, sem categorias, sem rótulos,
sem culpas e recalques morais, num aprofundamento da consciência da
marginalidade do artista, de qualquer criador. (MORAES, 1998, p. 54-55).
Em Florianópolis, os anos 1970 e 1980 também foram marcados por uma
certa marginalidade. Beto foi uma espécie de catalisador “oficial” desse
movimento
128
, pois detinha as suas armas: a influência na mídia, que ajudava a
promover artistas, e o espaço, o Studio A/2, local de encontro e exposições. Os
jovens artistas viviam plenamente essa marginalidade em que dois mundos se
128
Aqui o sentido de movimento está ligado à movimentação, ao acontecimento, e não ao movimento
artístico “institucionalizado”.
110
encontravam: o da arte oficial, dos museus e dos espaços estabelecidos, e o da arte
alternativa, que utilizava outros espaços e meios para fazer e acontecer.
O momento era o de ambivalência e o de paradoxo: uma “tropicália
florianopolitana”. Alguns nomes ligados “ao grupo” que circulava e trabalhava com
Beto Stodieck eram politizados, estavam interessados em criar novos e diferentes
espaços que fossem distantes dos museus e dos espaços “institucionalizados”. O
modelo era o da contracultura
129
.
A forma de como a gente colocava a arte era diferente: tinha pintura
abstrata, tinha objetos, enfim, a própria realidade, a gente era um bando de
revoltados, o próprio contexto cultural e político da época, o golpe militar em
64, os políticos. A gente representava os marginais, a gente era marginal, e
a gente tentava realizar coisas diferentes e isso chocou! Até os artistas mais
tradicionais se chocaram. Nós reuníamos pessoas dos mais diferentes
lugares e áreas, enfim, escritores, poetas, músicos, era uma circulação de
coisas. [...] Penso em Valda a partir da marginalidade dela, não adianta
querer florear, entende? Ela e a obra dela... Ela foi uma artista marginal. E
uma marginal do ponto de vista privilegiado, porque sabia pintar, ela sabia
manifestar isso. (SCHMIDT, 2007)
Figura 77 - Valda Costa, sem título, 1976. Óleo s/eucatex, 39 x 28 cm.
Fonte: Coleção particular.
129
O termo “contracultura” foi inventado pela imprensa norte-americana, nos anos 1960, para
designar um conjunto de manifestações culturais novas que floresceram não nos Estados Unidos,
mas também em vários outros países. O termo é adequado, pois uma das características básicas do
fenômeno é o fato de se opor, de diferentes maneiras, à cultura vigente e oficial: contracultura é a
cultura marginal e independente do reconhecimento oficial. Nas artes, a contracultura se manifestou
no florescimento dos happenings, das revistas alternativas, dos quadrinhos, dos steres, dos shows
luminosos, do artesanato, da pintura psicodélica... Como fatores determinantes dessa revolução
cultural, observam-se a Guerra do Vietnam, a Revolução Chinesa e a guerrilha de Che Guevara na
Bolívia, entre outros movimentos. Em suma, ocorreu uma série de problemas políticos e culturais que
marcaram decisivamente a década de 1960 e fizeram com que uma onda de revoltas estudantis, com
discursos contra a sociedade capitalista da qual faziam parte, tomasse proporções nunca antes
imaginadas. Esse caminho trilhado pelo movimento estudantil internacional era, em boa medida, o
resultado de todos os movimentos de contestação registrados após a Guerra Mundial, de
ajustamento às transformações e à complexidade da sociedade pós-industrial (LINS, 2001).
111
Valda viveu, produziu e experimentou esses espaços, esse entre-lugar
130
.
Sobre o surgimento de Valda Costa no cenário artístico local, o historiador e crítico
de arte Carlos Humberto Corrêa lembrou que, quando foi criada a galeria de arte do
Beto Stodieck, ele foi chamado para conhecer o trabalho de Valda Costa para fazer
uma apresentação da obra da artista. A partir de uma interação com a jovem pintora,
Carlos Humberto confirmou o que já havia percebido num contato mais rápido com a
obra: que se tratava de uma artista cuja temática da obra estava umbilicalmente
vinculada à sua própria experiência de vida. Segundo ainda o historiador, Valda se
preocupava mais com o aspecto social da representação do que com a forma. Uma
boa parcela de sua produção estava ligada à vida do morro e à vida doméstica. Ela
pintava o cotidiano daquele mundo do qual fazia parte.
Não era uma arte teórica, também não era uma coisa de protesto...Parecia
que, apesar das condições sociais que ela tinha, ela aceitava aquilo e podia
aproveitar aquela situação em prol de uma representação mas digna,
entende? Ela não protestava da maneira como vivia, ela contava e
representava aquilo e pronto
131
. (CORRÊA, 2006)
Por sorte ou pelo seu talento, Valda Costa caiu nas graças do colunista Beto
Stodieck, coisa que não era fácil, “era uma panela”. Assim, desfrutou de um espaço
nos eventos que Beto promovia e, por conseguinte, no sistema de arte local. Cacau
Menezes
132
relatou que as festas que o Studio A/2 promovia eram as melhores da
cidade. Eram grandes acontecimentos, todos se preparavam como se estivessem
indo a uma festa de gala: usavam as suas melhores roupas, se produziam para ver e
para serem vistos. Os artistas que Beto divulgava eram disputados pelos
colecionadores.
Quem o Beto não gostava, não tinha jeito. Era melhor trocar de profissão.
Seu marchand era o Luiz Paulo Peixoto, que também foi seu fotógrafo. A
turma de artistas disputava ser chamada para a galeria. João Olíbio, Valda,
130
Tal e qual o personagem Macunaíma, de Mário de Andrade, Valda Costa era “um personagem
ambivalente, indeciso, dividido entre dois sistemas de valores”. A história da criatura de múltiplas
facetas se repete, o arquétipo do brasileiro e do latino-americano, dividido entre opções antagônicas,
oscilando entre culturas, mas pertencendo simultaneamente a todas (GRUZINSKY, 2001, p. 27).
131
Entrevista concedida por Carlos Humberto Corrêa, professor aposentado da Universidade Federal
de Santa Catarina e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, no dia 22 de
novembro de 2006, em Florianópolis.
132
Cacau, apelido derivado do nome Ricardo Menezes, colunista do jornal Diário Catarinense,
apresentador de uma coluna no Jornal do Almoço, jornal em horário nobre local da rede Brasil Sul de
Televisão (RBS), associada à Rede Globo de Televisão, promotor de eventos, talvez um dos
sucessores de Beto Stodieck do momento. Depoimento enviado por e-mail, no dia 27 de março de
2007.
112
Vera Sabino, Rodrigo de Haro, Max Moura, essa turma brilhava. O Studio
A/2 foi um templo da Ilha. Depois Beto foi para Nova York. O Beto badalava
tanto os artistas daqui que até os surfistas conheciam os autores das obras
quando iam a uma festa em qualquer residência. Os artistas, na verdade,
eram os nossos amigos, da turma do Beto e do Kioski. Era uma turma muito
louca, muito criativa. (MENEZES, 2007)
É a vida no paradoxo, sem exclusão e com exclusão, muitas vezes vivida de
forma dolorida. A situação geral da Florianópolis cultural dessa época era paradoxal:
a geração nova convivia com a mais “tradicional”, pobre convivia com rico, muita
badalação, agito e mudança. Beto tentou criar uma “tropicália ilhoa”, e Valda
desfrutou, pelo menos nos primeiros anos de sua “carreira artística profissional”,
dessa situação. Márcio de Souza, também um jovem dessa geração dos anos 1970
e 1980, disse que a figura de Valda Costa era conhecida e comemorada nos
espaços por onde ela transitava, não somente nos ambientes da classe média e
alta, mais (e também) nos locais mais populares, “mais precisamente da população
negra”. Ela nunca se distanciou da comunidade, a presença dela na classe média e
alta, ainda segundo Márcio de Souza, era mais profissional.
Eu me recordo dela em algumas aparições no Copa Lord, espaço de vida
social da população negra, ela freqüentava também. Ela se destacava
pela sua beleza e pelos arranjos que ela fazia nos cabelos, ela usava os
cabelos black power, era uma mulher bela, chamava a atenção. Então, ela
vivia essa diferença de circulação de espaços distintos. (SOUZA, 2006)
No princípio, Valda era bem aceita nos dois mundos, transitava com
desenvoltura nos espaços de ricos e de pobres, da arte erudita e da arte popular.
“Era algo que remete a Cruz e Souza. Negro, filho de escravos, mas que foi educado
pela cultura branca, que sabia línguas, tinha cultura e que pela inteligência e
capacidade criativa utilizou o repertório dos brancos” (SCHMIDT, 2007). Valda Costa
seguiu um caminho semelhante: com criatividade e inteligência, utilizou todas as
possibilidades e ferramentas de que dispunha para ser aceita nos dois mundos. Em
certa medida foi aceita, pois soube agradar o mercado local retratando Florianópolis
e a sua cultura (como indicado anteriormente) por meio do seu olhar peculiar,
inédito e individual. Mas, diferentemente de Cruz e Souza (não obstante o drama e
os dilemas vividos por sua condição de pobre e negro, o artista valeu-se da retórica,
muitas vezes de forma metafórica e catártica, da pureza e limpeza” impostas pela
estética do seu tempo), apesar de ter sido bem integrada às elites, Valda Costa não
destituiu a sua obra do lastro cultural africano, ou afro-brasileiro (aliás, exacerbou as
113
características que a sua época lhe forneceu). Aos valores da sociedade da elite
branca, Valda incorporou, de forma híbrida e sincrética, o elemento popular e
afrodescendente nas suas obras.
Vale lembrar que, apesar das mudanças ocorridas no cenário artístico desse
período, a paisagem e a cultura da Ilha continuavam sendo o mote para uma parcela
significativa dos artistas locais, que, por um lado, muitas vezes misturavam a
temática local às novas propostas estéticas e, por outro, permaneciam vinculados ao
ideário estético das vanguardas modernistas para quem o mercado era, e de certa
forma ainda é, mais clemente. Sobre o assunto, Andrade Filho (2005, p. 8) afirma:
Espécimes de originalidade bruta, os trabalhos desses criadores o
originais tiveram como conseqüência dois fatos importantes, de significação
e âmbito diversos. Entre os relevantes resultados está, no âmbito criativo, a
formação de uma estética congruente que viria a ser mais tarde tipificada
mediante o epíteto de ‘mito e magia’. A importância disso avaliamos no
curioso fenômeno de assimilação que misturou arte e vida, de tal forma que
as imagens criadas passaram a indicar, indissoluvelmente, a própria
personalidade do litoral catarinense. O segundo resultado deriva da
aceitação dessa estética pelo público e de galerias que foram atuantes
durante um bom tempo.
Cabe também lembrar que o próprio cenário internacional daquele momento
corroborou essa insistência local na temática regional, além, é claro, do próprio
mercado de arte, conforme indicou Andrade Filho (2005), que continuava investindo
em obras com a temática vinculada ao regional e ao popular. Valda Costa, com o
apoio de Beto Stodieck e de seus colaboradores mais próximos, não fugiu a essa
regra. A artista investiu uma boa parcela de sua produção na cultura local, assim
teve apoio e compradores garantidos.
Segundo Dorfles (1992), uma possível distinção entre a arte popular, ou
vinculada aos temas regionais, e a arte de elite, ou pensante, tem o seu central
no consumo, o que quer dizer que a qualidade comunicativa e fruitiva da arte
“popular” facilitariam a sua recepção no meio dos colecionadores e fruidores.
para Canclini (1990)
133
, o culto ao popular, nacional, regional, etc., é, na
verdade, ligado às construções culturais engendradas pela modernidade. Ao
133
O autor analisa a cultura dos países latino-americanos sob a ótica das complexas relações que se
configuram na atualidade, em que as tradições culturais coexistem com a modernidade (que para ele
ainda não terminou de chegar). Fala sobre os fenômenos da hibridação cultural, tentando
compreender o diálogo existente entre a cultura popular, a erudita e a de massas. Para Canclini
(1990), a globalização é um processo complexo de interações econômicas, políticas, sociais e
culturais que incidem sobre as formas de vida, os valores e a existência cotidiana das pessoas.
114
analisar a modernidade e a pós-modernidade na América Latina, o autor afirma que
a interação crescente entre o culto e o popular diminui as fronteiras entre os seus
praticantes e os seus estilos. Isso ocorre, por um lado, pela necessidade de
expansão dos mercados culturais e, por outro, pela luta a favor do controle do culto
e do popular mediante esforços para defender os capitais simbólicos e específicos, e
demarcar a distinção em relação aos outros. Para exemplificar, Canclini (1990) cita
Caetano Veloso, Astor Piazzola, Borges, entre outros artistas que desenvolvem ou
desenvolveram os seus trabalhos simultaneamente em várias vertentes.
No contexto local, o foi diferente. O sistema das artes funcionou da mesma
forma: artistas e promotores de arte atendiam ao mercado consumidor, ora trazendo
o que de mais contemporâneo estava acontecendo, ora se sentindo estimulados a
permanecer com o vínculo ao regional ou local. Era o livre trânsito entre linguagens,
estilos e espaços. Muitos dos jovens artistas também queriam alcançar as camadas
mais populares, interferir nos espaços urbanos e criar outros canais para a
divulgação de suas produções. Conforme Canclini (1990), são os artistas “anfíbios”,
ou seja, os articuladores de códigos culturais de origens diversas que, ao mesmo
tempo que estão vinculados às heranças culturais, transitam em espaços de reflexão
contemporânea, vivem o entre-lugar.
O inusitado da combinação. Entretanto, para Fabbrini (2002, p. 15), foi a partir
dos anos 1970 que a arte foi recolocada sem os sobressaltos das vanguardas. O
autor lembra que o recurso da apropriação em combinações múltiplas é uma
constante, e os laços com a tradição o efetivados sob novas leituras, pois o
“presente arquiva o futuro e abre um passado”. Ainda segundo esse autor, a
natureza provisória ou insuficiente para classificação estilística das obras torna
necessários outros critérios de análise. Aliado a isso, verificou-se que a pluralidade
de abordagens “borra as margens estilísticas e que a recusa de classificação é
nítida. “Muitos se alinham, no curso de seu percurso pessoal, as várias linhagens,
desinteressando-se das categorias positivas da História da Arte. [...] [E]videnciam-se
signos da arte atual: ornamental, matérico, regional, etc.” (FABBRINI, 2002, p. 24-
25)
Voltemos aos protagonistas desse segmento que, de uma maneira ou de
outra, enquadram-se no que Canclini (1990) chamou de artistas “anfíbios” e,
também, de uma certa forma borram, por meio da suas produções, as margens
estilísticas nas interpretações que fazem das vanguardas. Valda Costa (entre muitos
115
artistas de sua geração) não fugiu a essa regra. Por um lado, transitou pelas
“heranças culturais orianas”, induzida, provavelmente, por Beto Stodieck e por
outros críticos que apoiavam os artistas vinculados à temática ilhoa (como
demonstram as colunas escritas na época nos jornais)
134
, e utilizou um repertório
estilístico que recusa a classificação nítida
135
. Por outro lado, Valda também
incorporou ao conjunto de sua obra as marcas da herança cultural africana. Em
Valda, mais do que um puro regionalismo, a obra se apresenta como uma
“demarcação” de território, ou seja, a territorialidade como experiência humana
(talvez, seguindo o pensamento de Warburg, essas marcas carregadas de tensão
foram trazidas por uma memória coletiva, pathosformel, e reorganizadas em função
do novo contexto).
De uma maneira geral, uma conseqüência visível no campo da estética de
apelo ao regional vem à tona no crescente número de artistas locais que optavam
(ou eram induzidos a optar) pelo acento naïf em suas produções reintroduzindo a
experiência humana e a vida vivida na arte. Os críticos locais apoiavam esses
artistas, e os colecionadores investiam massivamente nessa estética de
comunicação imediata em que obra e vida se aproximavam
136
. Entre os diversos
nomes que constaram na lista dos críticos de arte como parte do universo plástico
primitivo ou naïf, ínsito de artistas espontâneos, outsiders, insiders, de artistas brut,
ingênuos ou incomuns, entre tantas outras denominações, podemos citar: Nini,
Margot Araújo, Néri Andrade, Loly Hosterno, Vera Sabino e Eli Heil. Sobre a estética
incomum que era tema de uma exposição em Florianópolis, Osmar Pisani escreveu
na sua coluna do Jornal O Estado o seguinte
137
:
134
Além dos críticos, entre eles Beto Stodieck, os colecionadores tiveram um papel decisivo na
produção artística vinculada à temática ilhoa, pois davam preferência, na hora da aquisição, à
produção com essa temática. Conforme relato de colecionadores e de artistas, os compradores
encomendavam os quadros escolhendo o tema que queriam ver em suas telas.
135
Cabe destacar que nesse momento, no âmbito nacional e internacional, a arte se apresentava
como um enorme mosaico de expressões, os diversos estilos da arte dita “pós-moderna” conviviam
sem choques ou barreiras. Nesse sentido, o pós-moderno seria uma reflexão no intuito de articular
valores e significados da natureza, da História, dos símbolos e mitos não racionais, além de culturas
antigas no intuito de configurar uma nova identidade cultural e artística. Nessa procura, e sem que
isso surpreenda, passado e presente se fundem (LINS, 2001).
136
É importante não esquecer que colecionadores de elite em toda a história da arte sempre optaram
por obras nas quais se reconheciam e tinham as suas vidas valorizadas. Isso se deu no
Renascimento, sobretudo no de Flandres, no Barroco holandês, na América Central, com as obras
ornamentais cuzquenhas, etc.
137
Cabe mencionar que, em 1981, a XVI edição da Bienal Internacional de Arte de São Paulo foi
aberta com uma nova proposta de ordem: abandonou a montagem geográfica optando pela analogia
de linguagem. Walter Zanini, diretor da edição, dividiu a exposição em núcleos nos diferentes andares
do prédio. O terceiro e o último foram reservados para a Arte Incomum e agruparam muitos trabalhos
116
Agora, na Sala de Arte do Terminal Rita Maria, uma coletiva de pintores,
que se alinham na terminologia Incomum”, mostra o poder da imaginação,
num tempo edênico e ideal, próprio da infância ou de delicada e
surpreendente percepção de uma cosmogonia transbordante de criação. [...]
Para Victor Musgrave, Curador Internacional da Bienal, do Setor Arte
Incomum, o artista ingênuo não muda: ele termina como começou, isto é,
pela ausência do referencial acadêmico, essa categoria de artistas
desenvolve suas próprias técnicas e idéias, e passa a sistematizar uma
temática de natureza popular, emotiva. No caso de nossos “ingênuos” ou
“primitivos”, três elementos identificadores: a figura humana com
variantes possíveis da tradição, costumes e folclore, a paisagem e o
casario. (PISANI, 1982, p. 23)
No âmbito internacional, artistas como Roger Brown, Francisco Alvarado-
Juarez, Frida Kahlo e Geórgia O’Keefe estão, entre outros, na lista daqueles que
assumiram “as funções de cronistas, [procurando] trabalhar a matéria das
experiências próprias e alheias valendo-se da observação atenta, mas também
da recriação pessoal que sempre intervém no ato de descrever ou narrar”
(FABBRINI, 2002, p. 93).
Valda também descreveu ou narrou. Usou com maestria esses recursos para
contar e recontar rias vezes as suas histórias. Fez parte da longa lista de artistas
ditos naïf ou primitivos que desabrocharam nessa época. Sobre a Valda naïf, na
mesma nota acerca da exposição intitulada O Mágico Universo dos Primitivos
138
,
citada acima, Pisani (1982, p. 23) afirmou: “Se quisermos apontar uma representante
da arte feita por negros em Santa Catarina, é preciso referir-se a Valda, que, aliás,
feitos em hospitais psiquiátricos. “A sala foi, sem dúvida, um sucesso, e teve curadoria de Victor
Musgrave, colecionador e pesquisador apaixonado por esse tipo de arte. A art brut sempre causou
polêmica pelo fato de ser confundida com naïf e a arte infantil. Musgrave preferia conceituá-la como
manifestação de idéias sem contaminação cultural e que o deveria ser comparada à arte terapia
utilizada nos hospitais de doentes mentais. [...]. Trata-se de uma manifestação criativa, espontânea,
de formidável intensidade, muitas vezes perturbadora, por ocultar as profundezas ocultas da psique
o outsider que dentro de nós –, de uma forma que a arte profissional não faz. É uma arte
essencialmente destituída de estereótipos culturais.” Entre os artistas participantes brasileiros,
encontrava-se a artista catarinense de Palhoça, região metropolitana de Florianópolis, Eli Heil. Para
estabelecer outras conexões, ver Amarante (1989, p. 293).
138
É importante citar que o primitivo na arte tem também um forte vínculo com o movimento Fauve. A
natureza problemática do rótulo ‘primitivo’ e seus vários significados para a crítica de arte do começo
do século XX são exemplificados nas tentativas, tanto da época como nas que vieram depois, de
definir o primitivismo dos fauves. Os termos “bárbaroe “primitivo” foram amplamente utilizados para
descrever as obras dos artistas vinculados ao grupo. A idéia de bárbaro era associada ao modo
“infantilesco” ou “ingênuo” como eram tratadas as telas, ou seja, com aparência tosca e inacabada e
um amplo apelo ao decorativo pelo uso intenso de cores. Aliada a isso, a produção desses artistas,
entre eles Matisse, estava voltada para a “descoberta da escultura africana. O apelo dos objetos
africanos ou da oceania tinham também para os fauves os mesmos interesses que embasaram as
pesquisas dos cubistas e expressionistas (HARRISON; FRASCINA; PERRY, 1998).
117
não esquece a força de sua raça e a expressa com intensidade. Meninos, moças e
casarios refletem, principalmente, em tons escuros, o mundo simples de Valda”.
Valda não esqueceu de sua raça, de sua origem, do seu espaço. Retratou
com força criativa a sua própria vivência. Em entrevista, Décio David disse que
Valda “foi uma das primeiras pessoas a fazer da favela um luxo, pois antes tudo era
feio. A favela era feia, morar na favela era pior ainda, dizer que morava na favela
era... E hoje, hip-hop... Até a própria Tropicália entrou na poesia da favela...”.
Aqui cabe pensar no retrato que Valda Costa fez de Gilberto Gil. Valda
colocou o artista em primeiro plano de perfil, como mostrado na Figura 78 a seguir.
Figura 78 - Valda Costa, Retrato de Gilberto Gil, 1983. Óleo s/eucatex, 56 x 42 cm.
Fonte: Coleção Antônio Fasanaro.
Ao fundo, na tela pintada para Gil, pode-se ver a favela, a ponte, a gaivota “na
ilha, sem noção de milha, ficou longe da terra, gaivota menina, gaivota querida que
voa numa boa”
139
. Gil havia gravado os álbuns de sua trilogia RE
140
. No quadro,
Valda entra na leitura da cidade, do urbano, a “Refavela”. O momento era de
apologia à negritude, assumir a negritude era assumir a “Refavela” (GIL, 2007).
139
Estrofe da letra da música Gaivota, de Gilberto Gil, do álbum RE.
140
Refazenda, álbum gravado em 1975 por Gil, um dos mais importantes de sua carreira que junto
com Refavela, gravado após visita ao continente africano, e Realce formariam uma trilogia. No álbum
Refavela, Gil fez uma canção intitulada Sandra, na qual, de maneira metafórica, descreve a sua
experiência no Instituto de Psiquiatria São José.
118
Refavela
141
(Gilberto Gil)
A refavela revela aquela que desce o morro e
vem transar
O ambiente efervescente de uma
cidade a cintilar
A refavela revela o salto que o
preto pobre tenta dar
Quando se arranca do seu barraco
prum bloco do BNH
A refavela, a refavela, ó, como é tão bela, como
é tão bela, ó
A refavela revela a escola
de samba paradoxal
Brasileirinho pelo sotaque mas
de língua internacional
A refavela revela o passo com
que caminha a geração
Do black jovem, do black-Rio, da nova dança no
salão
Iaiá, kiriê, kiriê, iaiá
A refavela revela o choque entre
a favela-inferno e o céu
Baby-blue-rock sobre a cabeça
de um povo-chocolate-e-mel
A refavela revela o sonho
de minha alma, meu coração
De minha gente, minha semente, preta Maria,
Zé, João
A refavela, a refavela, ó, como é tão
bela, como é tão bela, ó
A refavela, alegoria, elegia, alegria e dor
Rico brinquedo de samba-enredo sobre medo,
segredo e amor
A refavela, batuque puro de samba
duro de marfim
Marfim da costa de uma Nigéria, miséria, roupa
de cetim
Iaiá, kiriê, kiriê, iáiá.
Figura 79 - Fotografia de Gilberto Gil, Álbum Refavela
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
São as subjetividades de Valda Costa traduzidas em sentimentos, desejos,
idéias: a artista coloca em sua obra todos os ingredientes daquele momento. Gil
havia sido preso em Florianópolis por porte de maconha. Ficou internado no Instituto
de Psiquiatria São José, que mais tarde seria local de internação da própria Valda.
[Valda] por que apareceu na vida. [...] Na minha primeira noite quando nós
chegamos no [sic] hospício. E Lair, Lair. Cíntia porque, embora choque, rosa
é cor bonita. E Ana, porque parece uma cigana na Ilha. [...] Azul, porque
azul é cor, e cor é feminina...
142
(GILBERTO GIL, 1977).
141
Álbum Refavela, de Gilberto Gil, 1977.
142
Sandra, música de Gilberto Gil do álbum RE, 1977.
Figura 79 - Fotografia de Gilberto Gil do Álbum
Refavela, dele mesmo.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007
119
Podem-se encontrar muitos nós de identificação na vida, na obra: ambos
negros, marginais, artistas. Seria o retrato de Gilberto Gil uma projeção? Valda
estaria na verdade se retratando? Refavela revelou aquela que desceu do morro,
deu um salto e pulou “prum” outro lugar (ou outros lugares). Valda transitou nas
diferentes esferas da sociedade florianopolitana, manteve laços estreitos de amizade
e envolvimento profissional com artistas, marchands, políticos e colecionadores de
todas as convicções e classes. Soube articular a sua produção aos seus próprios
interesses financeiros, investindo, inclusive, no primitivo. Entretanto, da mesma
forma, transformou a sua produção em um espaço de experiência formal e de
expressão de angústias e de desejos.
Retomando o mapa do período, é importante frisar que, segundo Makowiecky
(2003, p. 343), os anos 1970 em Florianópolis foram considerados a plataforma para
a chamada “explosão dos anos 1980”, pois essa década foi marcada pela
aproximação da produção artística local ao circuito nacional e internacional,
definindo assim a linguagem contemporânea no solo catarinense
143
. Algumas
mostras foram fundamentais para essa chamada explosão, como, por exemplo,
Geração 80 e Resumo 85. Também a exposição denominada Tendências
Contemporâneas, que reuniu artistas importantes da nova geração, foi um evento
marcante. Aliadas a esses eventos, apareceram mostras de arte pública sob a forma
de outdoors e stand-artes. Surgiram as primeiras instalações com a artista plástica
Romanita Disconzi. Também eram destaques artistas como Juliana Wosgraus,
Doraci Girrulat, Bira, Janga, o grupo Nhaú, entre outros. “O MASC, sob a direção de
Harry Laus, atua agora como entidade inovadora, à qual, juntamente com a ACAP,
impõe uma completa reformulação no modo de encarar-se a arte. É o decênio de
ouro, pode-se dizer da arte catarinense.” (PISANI, 2006, p. 466).
É certo que os anos 1980 foram o decênio de ouro: muitos artistas circularam
para além das fronteiras do nosso Estado, aconteceram muitos eventos, exposições,
o mercado se aqueceu. As instituições apoiaram de modo efetivo os jovens artistas e
as suas produções ousadas. Toda essa movimentação repercutiu de modo
significativo no processo e no amadurecimento da crítica de arte local. “Esse
borbulho artístico acabou por incrementar o cenário da produção crítica dessa
143
É importante não esquecer que a abertura se deu em todos os sentidos, o figurado e o efetivo,
com a modernização da cidade: aterros, BR-101, UFSC, Eletrosul, entre outros aportes
mencionados.
120
época. Os críticos passaram a exercer uma função diferenciadora, através de seus
escritos, divulgavam e refletiam o tema aos leitores não acostumados aos novos
rumos da arte” (MARQUETTI, 1999, p. 12). A imprensa escrita teve um papel
importante, pois divulgava e mediava os acontecimentos artísticos locais.
Não obstante ao novo cenário artístico cultural de Florianópolis que se
configurou nesse período, a cidade provinciana (que estava saindo desse estado)
ávida por inovações e por reformas vai encontrar ainda algumas resistências à
explosão criativa contemporânea. E essa resistência muitas vezes partia do lugar de
onde menos se esperava: do inovador e outsider Beto Stodieck, que sobre a
exposição Tendências Contemporâneas escreveu, em tom de ironia, na sua coluna
do Jornal de Santa Catarina, de 23 e 24 de março de 1986, o seguinte:
A última do Meyer
No rolar pós-hippie da inauguração da exposição Tendências
Contemporâneas” (?) acontecia na noite de quinta no espaço da antiga
Alfândega, circulando cauteloso entre “lixo” caprichosamente exposto ao
chão (com poucas coisas se salvando às paredes), o plástico Meyer Filho
subitamente é abordado por petulante garoto que lhe pergunta abrupto:
O que o senhor está achando? Chocado? Como é que o senhor compara o
seu trabalho de antigamente com essa nossa nova tendência?
Resposta do conhecido e prestigiado “galo”, uma das glórias da nossa
plasticidade – com aquela esganiçada e alta voz cacarejante que lhe é
peculiar:
Olha, meu filho: sou mais vanguarda que vocês todos juntos, sabe? Se eu
quiser vou ali na [sic] parede e desenho um caral (**) [sic] bem grande, com
a cabeça bem vermelha e causo muito mais escândalo do que esse lixo
gratuito aqui de vocês.
He-he-he... (PORTO; LAGO, 1999, p. 171).
Alguns dias depois, na mesma coluna, Beto Stodieck recomendava aos seus
leitores a peça que estava em cartaz no teatro Álvaro de Carvalho intitulada Vivo
numa Ilha. Segundo o colunista, a peça de “criação livre e bem humorada (e,
sobretudo jovem) do Grupo A, daqui mesmo. [...] Fica por mais uns dias em cartaz
[...] e é bem superior (ponham superior nisso!) do que qualquer xaropada que esses
‘nomes nacionais e globais’ têm por hábito embromar por aqui” (PORTO; LAGO,
1999, p. 171).
Beto, “embora tenha sido um homem do mundo”, segundo Pereira (1999), era
visceralmente ligado “à amada Ilha, [...] cenário preferencial” de suas tramas.
Continuou, até 1990, ano de sua prematura morte
144
, incentivando e apoiando os
144
Beto Stodieck morreu no dia 6 de agosto de 1990, aos 44 anos de idade.
121
jovens artistas que priorizavam a temática local nas suas produções. Sua crítica foi
romântica no sentido baudelairiano, ou seja, para ter sua razão de ser, [...] [deveria]
ser parcial, apaixonada, política isto é, concebida de um ponto exclusivo, mas que
descortina o máximo de horizontes” (BAUDELAIRE, 1988, p. 20).
O intenso fluxo de jornalistas e especialistas (críticos) voltado para a
produção artística local, que no momento tomava ares globais, foi uma arma
bastante eficaz na divulgação e na difusão do que acontecia: a imprensa escrita
reservava significativas brechas para as artes plásticas, e o mercado era promissor.
Surgiram colunas especializadas assinadas por críticos como Osmar Pisani, João
Otávio das Neves (o Janga), Harry Laus, entre outros. Ainda havia espaço para ser
compartilhado entre a “velha guarda” das artes plásticas e os novos e jovens
artistas.
Nos anos 1990, a fase da efervescência artística e da crítica passou. Os
jornais extinguiram as colunas assinadas pelos críticos e estas passaram a manter
apenas reportagens sobre artes plásticas. Com a morte de Beto Stodieck, abriu-se
uma enorme lacuna.
Além do Beto, morreram também Hassis, Martinho de Haro, Wilson Martins,
Meyer Filho, Peixoto, Valda Costa, entre outros. Aqueles jovens ousados das
“neovanguardas” locais foram absorvidos pelo mercado ou pelas instituições
“oficiais”. Os rumos da crítica tomaram um outro sentido, e o espaço de reflexão e do
discurso foi deslocado para as instituições acadêmicas e museológicas. Dos anos
1970 e 1980 do século XX restou, sobretudo, a força de uma memória.
122
3 BIOGRAFIA EM RETRATOS: VISUALIDADES EM VALDA COSTA
Não criei personagens. Tudo o que escrevo é autobiográfico. Porém, não expresso minhas
emoções diretamente, mas por meio de fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões. Mas cada página
que escrevi teve origem em minha emoção.
Jorge Luis Borges
O foco pretendido no terceiro capítulo da tese é a obra de Valda Costa, ou
seja, trata-se da análise da sua produção plástica: as diversas influências, o mestre
Martinho de Haro e os diferentes temas abordados por Valda Costa. Neste capítulo,
também se encaminha a discussão (pelas leituras feitas ao longo do trabalho e pela
análise de parte da produção plástica da artista em questão) para a leitura da obra
de Valda Costa como uma possível narrativa autobiográfica, o que possibilitará
explorar, sobretudo no Capítulo 4, os possíveis nexos entre o retrato/auto-retrato
145
e
a biografia/autobiografia. Neste segmento, trata-se mais da trajetória da obra que do
caminho trilhado pela artista.
A estratégia para esse percurso continua sendo a de trabalhar com
fragmentos, agora mais da obra do que da vida de Valda Costa, destacando certos
eixos temáticos que perpassaram por quase todo o seu trabalho. Tal construção foi
mais uma vez inspirada no conceito de “biografema” de Roland Barthes, pois estou,
em certa medida, de acordo com o autor quando ele afirma não ser necessário
encontrar acontecimentos importantes ou justificativas biográficas para uma criação,
pois, mais do que o autor em si, o que importa é quem é o autor em sua obra.
Se o que importa é quem é o autor em sua obra, penso que falar sobre a obra
de Valda Costa é falar sobre a sua produção plástica como um arquivo que
cristalizou no tempo e no espaço das telas, “os eus de tinta” da artista. É também
pensar a obra de Valda Costa como possibilidade de desdobramentos de outras
Valdas, as diversas faces em retratos da artista, que, como leitora, eu poderei lhe
atribuir. É pensar no jogo de alteridade não como uma prática neutra, mas sim como
experiência do contato: eu apenas existo a partir do outro, da visão do outro, o que
me permite também compreender o mundo tendo como base um olhar diferenciado,
partindo tanto do diferente quanto de mim mesma. Neste momento da tese, morre,
145
Cabe destacar que pretendo trabalhar não somente o retrato propriamente dito como auto-retrato,
mas também a paisagem e a natureza-morta como retratos e/ou auto-retratos.
123
em parte, Valda Costa na sua obra e nasce um leitor que lhe dará outras vidas
através de sua obra.
Figura 80 - Valda Costa, sem título, 1984. Óleo s/eucatex, 42 x 40 cm.
Fonte: Coleção Milton Bordin.
Se a imagem observada na fonte por Narciso é seu próprio reflexo “pintado”
e se o quadro, como fonte, é também uma pintura “reflexo”, então o que
reflete será sempre a imagem do espectador que a observa, que nela se
observa. Sou, portanto, sempre eu que me vejo no quadro que olho. Sou
(como) Narciso: acredito ver um outro, mas é sempre uma imagem de mim
mesmo. O que a proposta de Filóstrato nos revela finalmente é que
qualquer olhar para um quadro [ou biografado] é narcísico. (DUBOIS, 1993,
p. 143).
Figura 81 - Valda Costa, fotografia.
Fonte: JORNAL O ESTADO, 1983
146
146
Acervo da pasta da artista, armazenada no MASC.
124
Somos vistos ou vemos? O pintor fixa atualmente um lugar que, de instante
a instante, não cessa de mudar de conteúdo, de forma, de rosto, de
identidade. Mas a imobilidade atenta de seus olhos remete a uma outra
direção, que eles seguiram freqüentes vezes e que breve, sem dúvida
alguma, vão retomar: a da tela imóvel sobre a qual se traça, está talvez
traçado, desde muito tempo e para sempre, um retrato que jamais se
apagará. (FOUCAULT, 1999, p. 6).
Analisando-se as telas de Valda Costa, percebe-se uma característica comum
a quase todo o conjunto de sua obra: pinceladas firmes, traços fortes, cores e formas
exuberantes, lugares íntimos, paisagens, figura humana, vida vivida. Esses são os
aspectos mais marcantes da expressão plástica de Valda, tomados e retomados
obsessivamente durante as décadas de 1970 e 1980, com marcas e sinais que
conferem traços singulares e inéditos à obra da artista.
A essas características, pode-se acrescentar ainda a sua obsessão pelas
duplicações, pelos desdobramentos e pelas combinações: Valda Costa buscava no
cotidiano mais próximo a matéria-prima para a sua produção. Compôs, a partir da
própria experiência, uma narrativa atravessada pela vida que, provavelmente, o
estava vinculada a um projeto estético ou intelectual, mas moldada na experiência
do sensível.
Justapondo-se as imagens da obra aos poucos retratos fotográficos da artista,
além das “imagens” orais elaboradas a partir dos relatos daqueles que a
conheceram e que conviveram com ela, torna-se quase impossível o fazer um
paralelo com a metáfora do espelho em Borges: na narrativa espelhada da obra se
encontra o lugar que ele se vê e se sente no mundo: o espaço em ficção do real.
Na sua produção literária, Borges decifrou a identidade do seu “eu” através de
si mesmo por meio do outro, do duplo, do reflexo e do espelho. Revelou, no espaço
da sua obra, a sua permanência muito mais em Borges que nele mesmo:
alguns anos tentei livrar-me dele e passei das mitologias do arrabalde
aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de
Borges e terei que imaginar outras coisas. Assim, minha vida é uma fuga e
tudo eu perco e tudo é do esquecimento, ou do outro. Não sei qual dos dois
escreve esta página. (BORGES, 1999, p. 206).
Como em Borges, seria a obra de Valda Costa o real espaço da vida revelado
em ficção? Seria o espaço dos desejos de Vivalda Terezinha da Costa? Ou, de outra
forma, seria esse o espaço do “duplo real” vivido por Valda Costa?
125
Segundo Silva (2005), para Borges os espelhos revelam os fragmentos que
assombram o fantasma do uno, pois embaralham qualquer ordem ou solução e
possibilitam a pluralidade icônica do que somos.
[Espelhos são] símbolos que se revelam como confrontos com alteridades,
com tantos outros que vivem dentro e fora de mesmos, nesse labirinto
chamado tempo. [...] Os espelhos velados [...] revelam os fragmentos que
assombram o fantasma do uno. [...] Diante do silêncio de uma imagem ou
mesmo de uma sombra, sem nome e sem rosto’, é que nos deparamos
com o crepúsculo do que somos, rasgos de loucura em nossos quadros
comodamente dispostos de similitudes. Os espelhos estão velados por não
suportarmos olhar para eles e por sabermos que eles podem projetar vários
de nós que não caberiam num nome, num lugar ou numa representação.
(SILVA, 2005, p. 2-3).
Quais seriam os nomes, os lugares e as representações das Valdas das quais
estamos falando? Quais delas se tornam um real possível para nós e para ela
mesma por meio da experiência do visível? Seria possível traçar um perfil de Valda
Costa para além da dimensão da visibilidade retiniana, para além de sua obra?
Figura 82 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/ eucatex, 31 x 20 cm.
Fonte: Coleção Milton Bordin.
Uma de minhas insistentes súplicas a Deus e ao meu anjo da guarda era
não sonhar com espelhos. Sei que os vigiava com inquietação. Algumas
vezes, receei que começassem a divergir da realidade; outras ver meu rosto
126
neles desfigurado por adversidades estranhas. Soube que este temor está,
outra vez, prodigiosamente no mundo. (BORGES, 2000a, p. 182).
Conforme o indicado, Valda Costa nasceu, viveu e produziu em
Florianópolis. Nas suas telas evocava temas simples, vinculados ao cotidiano da Ilha
de Santa Catarina, notadamente os seus casarios, a sua gente e os seus costumes.
Entretanto, o que mais me chamou a atenção na sua vasta produção, após
detalhada análise a partir do contato com uma significativa parcela da obra da artista
(conforme indicado, foram vistas e analisadas mais de 200 obras), é a presença
constante de figuras humanas de diversos tamanhos, ângulos e formatos. São
crianças, jovens, homens e sobretudo mulheres. Mulheres brancas negras e negras
brancas, com colos fartos, ancas marcadas e olhos melancólicos.
Valda costumava projetar em primeiro plano as figuras e os objetos, jogando
para o fundo (ou outros planos) das telas as suas referências: o morro, a ponte, os
barcos. repetição de figuras, de objetos, além de traços fisionômicos sem
definição: pode ser Valda Costa, mas também qualquer um de nós. Valda elaborou
séries (ou se elaborou em séries): mulheres reclinadas em primeiro plano e, ao
fundo, montanhas, morros, mar; mulheres sentadas em cadeiras com imensos
encostos (ou seriam molduras?), golas enormes que enquadram os rostos e deixam
à mostra colos fartos; espaços internos e íntimos.
Figura 83 - Valda Costa, sem título, 1989. Óleo s/eucatex, 40 x 50 cm.
Fonte: Coleção particular.
127
As obras com as mulheres reclinadas e projetadas no primeiro plano dos
quadros revelam uma plasticidade em que corpo sinuoso e paisagens ondulantes se
misturam. O corpo sensual, farto e maternal não está reclinado sobre uma cama ou
uma chaise longue (motivo recorrente na iconografia moderna), mas se confunde
com a terra, símbolo da maternidade, da força, da fecundidade e da regeneração:
“sulcos semeados, o lavrar e a penetração sexual, parto e colheita, trabalho agrícola
e ato gerador, colheita de frutos e aleitamento, o ferro do arado e o falo do homem”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1992, p. 879).
Figura 84 - Valda Costa, sem título, 1985. Óleo s/eucatex, 40 x 60 cm.
Fonte: Coleção Família Freyesleben.
Mãe zelosa e mulher sensual
147
, retratou inúmeras vezes as suas mulheres
carregando potes, símbolo feminino, junto ao ventre. Mãe, mulher, terra, raízes: a
tela que revela a personagem que se apresenta em diversas facetas. A tela que
reflete vida, a vida que se reflete na tela: o eterno jogo de espelhos.
Mulheres que possuem padrões visuais muito semelhantes e recorrentes
lançadas em espaços próximos e familiares à artista o alguns dos elementos que
configuram a obra de Valda Costa como uma narrativa biográfica tecida em tramas
em que na teia as figuras humanas se entrelaçam ou se moldam à paisagem, ao
cotidiano, à natureza-morta, ao sagrado e ao profano.
147
Todos os entrevistados foram unânimes em dizer que Valda era uma mãe muito zelosa. Segundo
o depoimento de Vânia, funcionária aposentada do BESC, a artista “andava para cima e para baixo
com aqueles filhos todos pendurados. Era um em cada mão, outro no colo, e assim andava a Valda”.
128
É no limite da tela (espaço de dobras e redobras) entre realidade e ficção que
se insere o território das possibilidades infinitas “de vidas” de Valda Costa. A artista
certamente pintou biografias construindo as suas histórias e as suas identidades
múltiplas e desconexas em instantâneos fixos nas telas: território de projeção do
corpo e da alma, lugar de passagem.
Imagens pintadas jamais se apagarão. No invisível do visível as obras de
Valda Costa possibilitam leituras polissêmicas e cambiantes, idênticas à
personagem que as pintou, pois quando pintava, Valda tentava ser fiel a sonhos, e
não às circunstâncias. Sobre isso, Borges (2000c) afirmou que nas histórias que ele
escrevia existem circunstâncias verdadeiras, mas com um certo quinhão de
inverdade. Para esse autor, não existe satisfação em contar uma história como
realmente aconteceu, pois cabe ao artista [e ao leitor da obra] a tarefa de mudar as
coisas, mesmo que sejam insignificantes.
Figura 85 - Valda Costa, sem título, 1984. Óleo s/eucatex, 40 x 23 cm.
Fonte: Coleção Odete Maria de Oliveira.
[o] pintor fixa atualmente um lugar que, de instante a instante, o cessa de
mudar de conteúdo, de forma, de rosto, de identidade. Mas a mobilidade
atenta de seus olhos remete a uma outra direção, que eles seguiram
freqüentes vezes em que breve, sem dúvida alguma, vão retomar: a da tela
imóvel sobre a qual se traça, está talvez traçado, desde muito tempo e para
sempre, um retrato que jamais se apagará. (FOUCAULT, 2002b, p. 6).
129
3.1.Retratando a obra plástica de Valda Costa
Pintar é um estado de espírito, é preciso colocar as emoções para fora. Não consigo ficar
mais de uma semana sem pintar. Mas eu devia ser mais organizada, pois a arte, se não enriquece,
pelo menos sustenta o artista. O mercado é bom, mas devia haver uma maior divulgação para tirar a
gente desse anonimato. Planos? Penso em voltar para a escultura, principalmente em argila. [...]
Valda Costa
Inicio este segmento do trabalho dando voz à própria Valda Costa, que é
tão rara a oportunidade de vê-la falar de sua obra, talvez por ter optado em dizer, e
muito, através da pintura. Aqueles que a conheceram afirmam que Valda falava
muito pouco do seu processo criativo. Janete Coelho em entrevista disse que “Ela
passava horas na frente da tela pintando, a tinta ia direto da palheta para a tela,
raramente ela desenhava o que iria pintar, o quadro ia surgindo do nada, da
memória. Às vezes eu tinha a sensação de que uma entidade ‘baixava’ na Valda.
Era incrível vê-la pintar”.
Era um “frenesi”. Valda, além de muita emoção na fatura de suas obras,
precisou batalhar, e muito, para conseguir um espaço no sistema das artes de
Florianópolis. Encontrou muitas dificuldades pelo caminho. Entretanto, teve muita
sorte (ou seria habilidade?) para despertar em Martinho de Haro o seu lado de
mestre. Sobre Martinho, Carlos Humberto Corrêa
148
em depoimento afirmou:
[o] Martinho era um sujeito difícil, muito difícil. Conheci bem o Martinho de
Haro, e era muito difícil para ele transmitir o conhecimento que ele tinha,
então se ela [(a Valda Costa)] conseguiu extrair algum conhecimento do
Martinho, deve-se mais a ela do que ao Martinho querer transmitir, entende?
Ela era muito carismática e inteligente... O Martinho não era de estar
dividindo conhecimento. (CORRÊA, 2006).
Mas dividiu mesmo não sendo professor por vocação. Andrade Filho (2007, p.
39) lembrou: “Assim, para mal ou para bem considerando-se os riscos do
didatismo e do pedagogismo – poucos nomes podem ser ligados à sua órbita. Dessa
vez, a reserva pode ser feita em relação a Valda Costa, sua modelo e discípula”. Do
mestre Martinho, além do estilo, a modelo e depois pupila teve influência no uso dos
materiais. Desse artista, Valda não teria somente recebido os elementos técnicos e
148
Carlos Humberto Corrêa, professor aposentado da UFSC e presidente no Instituto Histórico e
Geográfico de Santa Catarina, em entrevista concedida no dia 22 de novembro de 2006, em
Florianópolis.
130
formais. A sua produção reflete, tanto quanto a de Martinho, entre muitos outros
artistas de Florianópolis, uma imensa simpatia pelos diferentes aspectos do seu
entorno sociocultural, quer dizer, aspectos associados à cultura da Ilha de Santa
Catarina.
Conforme mencionado, os artistas florianopolitanos, fiéis às suas condições
de modernistas latino-americanos e brasileiros, também impregnaram as suas
produções de elementos que evocavam a identidade local de forma ampla. Com o
GAPF, a influência da cultura efetivamente se cristalizava na produção artística da
cidade. A tendência à captação de temáticas eminentemente locais, envolvendo a
exuberante natureza e o cenário urbano e cultural, foi presença destacada na
estética florianopolitana desde então
149
.
A partir do GAPF os artistas mais novos centrariam, quase todos, a
respectiva produção nos contexto físico e imaginário da Ilha. Rodrigo de
Haro, por exemplo, numa obra quase toda de cunho narrativo, tende a
explorar um ângulo da personalidade feminina da Ilha, com visíveis
influências da arte deco e da arte japonesa. Vera Sabino, por seu turno, faz
brotar dos pincéis um mundo vegetal, humano e animal, carregado de
mistérios e imagens oníricas. João Otávio das Neves Filho, o Janga, registra
as raízes culturais da Ilha, uma preocupação observada na sua mostra
denominada “Ilha-vitrais”, de julho de 1993, onde através de figuras
emblemáticas da cultura local são retratados o cotidiano e o folclore de
Florianópolis. (LINS, 1991, p. 62-63).
Com Valda Costa não foi diferente. A artista utilizava o repertório centrado na
cultura local, entretanto, essa opção dar-se-ia mais pela demanda do mercado. E,
conforme lembra Valdir Agostinho em entrevista, Valda vendia muito, pois pintava o
tema predileto dos colecionadores locais. “Valda tinha cota alta com o
colecionador”
150
. Como tantos outros artistas, Valda fazia essa pintura que era mais
149
Sobre o assunto, Lehmkuhl (1996, p. 39) faz uma pertinente análise na sua dissertação de
mestrado intitulada Para além do círculo: o grupo de artistas plásticos de Florianópolis e a positivação
de uma cultura nos anos 50. Desse material extraímos um trecho: “[...] [O] olhar [dos] artistas
[modernistas] está voltado para a Ilha, seus lugares, seus personagens e suas ações. É esse mundo
que eles vão imortalizar através da sua arte, positivando uma cultura cujas bases estão fincadas na
herança açoriana. [...] Temas do cotidiano ganham status de obra de arte ao serem estetizados e
politizados nas palavras dos escritores e no pincel do artista. Um mundo vai sendo tocado e
transformado em ‘coisas’ pela mão do artista que lhes confere imortalidade”.
150
Segundo Valdir Agostinho, Valda criticava muito Florianópolis por causa do mercado. “Era
comercial, utilizava em seus quadros lindas cores. Também fez talha em madeira e escultura. Muita
mulher. Trabalhava muito com argila, que logo se acaba. O que a Valda precisava era de apoio e de
amizade. Ela andou muito com Beto Stodieck. Valda estava sempre no meu caminho. Era muito
bonita, negra linda. A vida de artista é muito desregrada: ela não aproveitou o que ganhou para fazer
um investimento. Foi igual ao Barbarella (apelido do artista plástico Wilson Martins, apelido inspirado
na personagem feita pela atriz Jane Fonda no filme Barbarella, de Roger Vadim, de 1968. Wilson
Martins, como a personagem vivida por Jane Fonda, era uma figura exótica e possuía cabelos longos
131
assimilada, mas agora a melhor arte dela era a independente desse mercado, a que
ela fazia por necessidade dela mesma, mais existencial. Assim eu acho que o
trabalho mais original dela é esse mais independente, onde ela fala dos negros, os
retratos, o morro...” (SCHMIDT, 2007).
Não obstante o uso desse repertório, conforme já mencionado, Valda foi mais
além e agregou à temática local novos elementos: a cultura afrodescendente e o
cenário urbano de periferia, sobretudo a favela onde morava.
Figura 86 - Valda Costa, sem título, 1985. Óleo s/eucatex, 35 x 22 cm.
Fonte: Coleção Milton Bordin.
A Valda, artista que, como tantas outras na história da arte, começou como
modelo de um dos mais importantes artistas deste Estado: o Martinho de
Haro. Capturou com maestria o senso cromático do mestre e depois com
visão própria, de moradora da favela, vivendo no limite da condição
humana, produziu uma obra cheia de verdade, delicadeza e amor pela sua
cidade. Sem dúvida, uma extraordinária artista. (BRAGA, 2005).
Cabe salientar que pela inspiração espontânea, pelo aprendizado irregular
feito de maneira quase autodidata e pela escolha das temáticas populares, Valda foi
e dourados)”. Como Valda Costa, Barbarella, de quem era muito amigo, vendeu muito, mas acabou
morrendo pobre, jovem e doente. Circulou nos mesmos espaços em que Valda circulou, teve os
mesmos apoios, a mesma trajetória no sistema das artes local e o mesmo fim da sua colega e amiga.
132
considerada por uma boa parcela da crítica local como uma artista primitiva
151
, naïf
ou ínsita (do latim insitus, ou seja, inato)
152
. Isso, todavia, não significa que a artista
não tenha experimentado e exercitado diferentes formas e técnicas. Percebe-se no
conjunto da obra o amplo leque do vocabulário modernista em que a artista buscou
os subsídios estéticos para a sua produção
153
, sobretudo sob a orientação do mestre
Martinho.
De fato, a obra da artista apresenta, muitas vezes de forma simultânea,
elementos do cubismo, do fauvismo, do art nouveau, do expressionismo, do
primitivo, entre outros. Todos esses elementos, interpretados sob a ótica particular
de Valda, enfatizam a marca do território (no sentido amplo que essa palavra pode
ter) como defesa de algum tempo “perdido”, talvez, conforme a análise de Fabbrini
(2002), na tentativa de reafirmar identidades étnicas ou antigas (esse aspecto é
bastante evidente na obra de Valda Costa), histórias de origens ticas, de
ortodoxias religiosas ou de purezas raciais. [...] A posição [...] não é xenófoba ou
151
No texto intitulado O Primitivismo e o Moderno, Gill Perry faz uma interessante análise da relação
entre a arte designada moderna e as formas de representação que se opunham explicitamente à
cultura ocidental urbana. Dentro do quadro de referência europeu “os conceitos do ‘primitivo’ foram
usados tanto pejorativamente quanto como uma medida de valor positivo. Para a maioria do povo
burguês dessa época, a palavra significava povos e culturas atrasados e incivilizados. [...] Numa
época em que os franceses, como os britânicos e os alemães, estendiam as suas conquistas
coloniais na África e nos mares do Sul e criavam museus etnográficos [...], os artefatos dos povos
colonizados eram vistos amplamente como prova de sua natureza incivilizada ‘bárbara’, de sua falta
de progresso cultural. Essa visão era reforçada pela crescente popularidade das teorias
pseudodarwinistas da evolução cultural. Ao mesmo tempo, visões mais positivas da pureza e da
bondade essencial da vida ‘primitiva’, em contraste com a decadência das sociedades ocidentais
supercivilizadas, estavam ganhando espaço na cultura européia. Essas visões eram influenciadas
tanto por noções do ‘bom selvagem’ (derivadas, muitas vezes de forma distorcida, dos escritos do
filósofo setecentista Jean-Jacques Rousseau) como por tradições bem estabelecidas de pastolarismo
na arte e na literatura. Desenvolveu-se uma tradição chamada ‘primitivistaque associava o que era
percebido como vidas e sociedades simples com pensamentos e expressões mais puros. [...] Nas
reavaliações modernistas da arte e dos artefatos ‘primitivos’, essas idéias foram reelaboradas e
modificadas (HARRISON, 1998, p. 5-6).
152
Segundo Flávio de Aquino, chama-se “arte ínsita” uma manifestação plástica instrutiva capaz de
narrar cenas do cotidiano, popular ou lendas e mitos. Entretanto, o que se constata na estética desse
estilo pode também ser inserido no contexto e no pensamento de uma parcela da arte
contemporânea. Com base nessas considerações, Aquino (1978) afirma que a pintura ínsita faz parte
da pintura de todos os tempos. AndBreton ressaltava a imaginação instintiva do artista primitivo, a
qual, segundo ele, estava vinculada ao inconsciente. Pensando dessa forma, Breton considerava a
arte ínsita como precursora do surrealismo e de alguns movimentos modernistas que foram em
direção à aventura o naturalística. No Brasil, somente depois da semana de 1922 é que passou a
existir um maior interesse por parte dos intelectuais por esse tipo de manifestação artística. Alguns
artistas ínsitos freqüentaram o Núcleo Bernardelli ou Santa Helena. Em 1932, Gilberto Freyre edita o
Manifesto Regionalista, tentando chamar a atenção para a cultura nordestina. No Rio de Janeiro
surgiram Djanira e José Pancetti, em São Paulo, Gonsales, em Pernambuco o mestre Vitalino. Em
Santa Catarina, juntamente com a arte moderna que vai legitimar a arte ínsita, vão surgir as figuras
de Franklin Cascaes, Meyer Filho, entre outros (AQUINO, 1978).
153
Cabe ressaltar que essa busca foi feita de forma autodidata, não sistemática e, provavelmente,
sem o intuito de buscar um rigor formal para a sua obra.
133
fundamentalista, pois não figura uma identidade fixa e estável, mas, ao contrário,
‘identidades abertas, contraditórias, inacabadas e fragmentadas’ da atualidade”.
(FABBRINI, 2002, p. 100)
154
.
Contraditória e fragmentada, mas muito bem resolvida, é a fatura
155
da obra
de Valda Costa. As superfícies de suas composições são organizadas num espaço
não muito amplo. Na maior parte de sua produção, Valda joga as figuras ou os
objetos “principais” no primeiro plano da tela, trabalhando o fundo (ou outros planos)
com total desprezo em relação à perspectiva de matriz renascentista. Num arranjo
mais livre e eclético, em que estilos se mesclam e se confundem, nasceu um
repertório no qual força e originalidade se encontram: às sinuosidades do decorativo,
em determinadas obras, se opõem, em outras, um rigor cubista, da mesma forma
que um certo “rigor” acadêmico percebido em alguns momentos é desbancado em
outros pelo total desprezo ao estilo formal clássico.
O mesmo se dá em relação à cor. Sensível à cor, Valda Costa alterna fases
de uso intenso de cores vibrantes e fortes a outras de tons neutros e terrosos
156
.
154
Também é importante levar em consideração a análise, muito pertinente, de Perry et al. (1998, p.
5-83), segundo a qual o “primitivismo” na arte moderna tem raízes na estética oitocentista e,
diferentemente do caráter puramente formal até então atribuído ao estilo, ele envolve, pensando aqui
na “teoria do discurso de Foucault”, uma relação de poder, de autoridade sobre aqueles que são
definidos como “primitivos”. A categoria do outro também vem sendo debatida nas análises atuais
sobre o “primitivo”. É uma categoria crítica pós-moderna que descreve uma tendência a desfigurar
outra cultura, sociedade, objeto ou grupo social. “A categoria implica uma auto-imagem, uma posição
de superioridade, a partir da qual relações ou diferenças são incorretamente percebidas ou
representadas.” É certo que o conceito do primitivo” foi utilizado tanto de forma pejorativa quanto
como medida de valor positivo como a visão da pureza e bondade essencial da vida “primitiva”, em
contraste com a decadência das sociedades supercivilizadas. Muitos movimentos do final do século
XIX e início doculo XX se pautaram no “tema primitivo” para embasar as suas pesquisas estéticas,
tais como: o grupo de Pont-Aven, Os Nabis, os simbolistas, o grupo de Barbizon e muitos artistas
oriundos desses movimentos. Entre esses artistas estão Gauguin, Bernard, Matisse, Denis, entre
outros. A fonte africana e da oceania suscitou muitas pesquisas formais. Além disso, o caráter
expressivo do dito “primitivismo” vai possibilitar a aproximação dos alemães a esse estilo. Assim, é
pertinente afirmar que o “primitivo” é o elemento de destaque nas pesquisas das vanguardas, tanto
como valor de conteúdo quanto de forma. Assim, falar que Valda Costa era primitiva” é dar força à
análise segundo a qual a artista tinha uma força primitiva na sua fatura, talvez como recalque
lembrar do pathosformel warburguiano, força essa que perpassou, de uma maneira ou de outra, nas
várias escolas e nos estilos que a artista experimentou.
155
Diz-se de fatura o procedimento do artista na constituição da obra. É o conjunto de fatores que
o desenvolvimento ao processo criativo do artista até o seu resultado final.
156
Certamente o uso das cores estava associado ao seu estado de espírito oscilante e também à sua
condição financeira: ela usava as cores de que dispunha no momento da fatura. O artista plástico
Sílvio Pléticos, em entrevista concedida em 5 de novembro de 2006, na sua residência no Bairro
Ipiranga, Grande Florianópolis, comentou sobre essa questão: “Ela é econômica nas cores. É como
Frans Hals, maravilhoso artista perto do Rembrandt. A par do Rembrandt... que acontece com Frans
Hals, que não tem cor, que predomina isso e aquilo... (risos). Provavelmente o tinha outras cores,
ou tinha pouca, ou pode ter sido sugestão do Martinho, de usar poucas cores, porque ela não era
uma pintora de bisnaga, direto no azul, amarelo, verde. Ela não é como o Tércio da Gama, onde tudo
é cor. A cor elimina o interesse pela forma, um elemento empurra o outro, é característica bem
134
mesmo momentos em que o monocromatismo, com ar de inacabado, é encontrado
na sua vasta produção. Sobre o uso das tintas, outro aspecto a ressaltar é a
utilização do aguado em algumas obras, herança do mestre Martinho de Haro.
Desse pintor, também adquiriu o hábito de utilizar o eucatex como o espaço de
fatura, bem como a tinta a óleo como matéria-prima. Segundo Valdir Agostinho,
“Valda Costa usava lindas cores. Suas pinturas têm o aguado do Martinho. Esse era
o truque para o aspecto aquarelado [dos quadros]”
157
.
Figura 87 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 23 x 19 cm.
Fonte: Gabinete do governador do Estado, SEA.
O trabalho de Valda Costa tinha sempre a mesma característica: desenho
feito com pincel bastante espesso; a tinta era aplicada diretamente como saiu da
bisnaga (ela o usava a técnica de transparências de tintas), com pouca mistura. A
obra tinha tendência ao realismo, ou, talvez melhor dizendo, ao naturalismo
158
, sem
preocupações formais com as proporções, ao contrário,
Valda explorava a beleza das deformações inconscientes, aquelas que
surgem em certos espontâneos, autodidatas. Em outras palavras, ela não
era uma “primitiva”, era uma moça que tinha talento, talvez com falta de
conhecida dos críticos. Bem, ela ainda é bem objetiva: a matéria, o corpo como tal, os objetos... É
realístico nas próprias proporções”.
157
Valdir Agostinho, artista plástico, cantor, compositor e performer. Trabalhou na primeira galeria de
Florianópolis, Studio A/2, com Beto Stodieck, e conheceu Valda Costa. Entrevista concedida em
outubro de 2005, no atelier do artista, localizado na Barra da Lagoa, Florianópolis.
158
Cabe frisar que existem nuances entre o realismo e o naturalismo tanto na literatura como na
pintura. O realismo, grosso modo, tenta representar a realidade da forma que ela se apresenta, sem
idealizar ou fantasiar. o naturalismo é um realismo” idealizado, enfatiza certos traços e aspectos
da representação.
135
orientação para se definir, no caso, uma academia... Valda tinha uma
tendência realista, com formas que estavam quase se libertando e tendia a
um certo efeito [pelo uso da cor] fauvista, mas com muita coragem de
utilizar esse termo. (PLÉTICOS, 2006).
Entretanto, para muitos críticos, artistas e colecionadores, a potência da
produção de Valda Costa, tanto na pintura como em outras linguagens que a artista
experimentou, encontra-se num certo “brutalismo”
159
que se instaura em boa parcela
da sua produção: linhas pretas e grossas dividem os espaços das telas e dão força
mística às formas preenchidas com cores fortes e pinceladas amplas e vigorosas.
Sobre o assunto, Jayro Schmidt falou em entrevista
160
:
[Valda] contornava as figuras, isso é repetitivo na obra dela, e espaço
assim para a imagem. Mas vai muito além disso, tem algo de místico, algo
de religioso. Não é algo que ela achou bonito, é algo que ela fez por
intuição. Ela viu aquilo, ela sentiu aquilo em algum lugar. Tem
referências...
161
(SCHMIDT, 2007).
159
Mais do que qualquer associação ao movimento BRUT, o termo “brutalismo” é aqui utilizado
sobretudo no sentido de estilo outsider (de aspecto livre e espontâneo). Jean Dubuffet, na década de
50 classificava como Outsider Artist todo artista que se manifestava refletindo seu universo interior, a
chamada art brut. O termo “arte bruta” foi criado por Dubuffet, em 1945. No texto manifesto escrito em
1949, intitulado L’art brut préferé aux arts culturels, Dubuffet afirma: ”Nós entendemos por isto [arte
bruta] as obras executadas por pessoas imunes à cultura artística, da qual o mimetismo,
contrariamente com o que se passa nas obras dos intelectuais, tem pouca ou nenhuma contribuição,
pois seus autores tiram tudo (temas, materiais para colocar na obra, meios de transposição, ritmos,
fragmentos de escrituras, etc.) de sua profundeza, e não dos cânones da arte clássica ou da arte que
está na moda. Nós assistimos à operação artística toda pura, bruta, reinventada no interior de todas
as suas fases por seu autor, a partir somente de seus próprios impulsos. Falamos da arte que se
manifesta em função da invenção” (DUBUFFET, 1986, p. 202-202). Ver também Dantas (2005, p.
156).
160
Pensar aqui no grupo de pintores franceses batizados como nabis (do hebraico "profetas") que
atuava em Paris na década de 1890, sob inspiração direta da obra de Paul Gauguin. A criação do
grupo surge em um contexto atravessado por releituras críticas do impressionismo. Outros
movimentos surgem na mesma direção, o simbolismo, os pós-impressionistas... Gauguin descobre o
caráter original das obras de Cézanne, explorando, como ele, um estilo antinaturalista. Mas o faz pelo
uso de amplas áreas de cores puras e planas, emolduradas por contornos precisos que se revelam
nas pinturas realizadas em Pont-Aven. O sintetismo de Gauguin com sua simplificação das formas
e purificação expressiva é descoberto por Paul Sérusier, que tenta combiná-lo às formulações
simbolistas em sua própria obra (O Bosque do Amor; O Talismã, 1888) e no movimento nabis, que
funda com Maurice Denis, Pierre Bonnard e Edouard Vuillard. O grupo dos “profetas” almejava
alcançar uma síntese das principais correntes da época, combinando as soluções formais do
cloisonismo de Gauguin à relação estreita entre poesia e pintura defendida pelos simbolistas. Trata-
se de apresentar uma nova reação ao naturalismo impressionista pelo uso emocional da cor e pela
distorção da linha.
161
Aqui é importante pensar em Warburg, precisamente no conceito de pathosformel, desenvolvido
pela primeira vez no ensaio sobre «Dürer e a Antiguidade Italiana», de 1905. Nesse ensaio, Warburg,
a partir da análise de um desenho de Dürer, representando a morte de Orfeu, fala de um «pathos
heróico e teatral», «expressão física intensificada», «vida em movimento» e «vida mimicamente
intensificada». Abre-se aqui uma questão importantíssima que é a da descoberta de uma dimensão
dionisíaca do Renascimento, oposta à visão habitual de um Renascimento apolíneo, em que triunfa a
ordem, a clareza, a harmonia.
136
Figura 88 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 34 x 22 cm.
Fonte: Coleção particular.
Também sobre o brutalismo em Valda Costa, Max Moura afirmou que a
artista, que apareceu por volta de 1976 no Studio A/2 de Beto Stodieck, trazida pelo
marchand Luiz Paulo Peixoto, era “talentosa, tinha uma pincelada bastante
interessante, meio brut. A cor também era muito bem resolvida”
162
.
Figura 89 - Valda Costa, sem título, 1983. Óleo s/eucatex, 30 x 22 cm.
Fonte: Gabinete do governador do Estado, SEA.
A partir da reflexão de Jayro Schmidt sobre a força tica que emerge da
“verdadeira” obra de Valda Costa, retorno a Aby Warburg e à noção de pathosformel
por ele formulada: a imagem como fenômeno antropológico, ou seja, uma
162
Max Moura, artista plástico, depoimento enviado por e-mail, em dezembro de 2004.
137
cristalização, uma condensação do que é uma cultura. Para Warburg, como aponta
Cherem (2005, p. 4), as representações visuais não poderiam ser analisadas
somente como problemas formais, e sim como imagens antigas que sobrevivem
como expressão física e psíquica de um esforço intensificado. No estudo que
elaborou sobre o quatrocentos italiano, Warburg observou “que nas obras da
renascença compareciam testemunhos de estado de espírito transformado em
imagens, onde eram reconhecíveis os traços permanentes das comoções mais
antigas da existência humana” (CHEREM, 2005, p. 4).
Figura 90 - Valda Costa, sem título, s/d. Madeira, 63 x 19 cm.
Fonte: Coleção Luiz Alves (Dão).
A força do gesto, a força da alma, ou seja, afinidades formais, afinidades
expressivas. Na produção de Valda Costa o elemento brut, o brutalismo, vem do
fundo da alma africana
163
. O totem, o protetor, o guia é o exemplo de um
antepassado com quem mantém um elo de parentesco (Figura 90). Como aponta
Didi-Huberman (2003, p. 41), é o anacronismo “de uma colisão” em que o Outrora
163
Segundo Warburg (apud CHEREM, 2005), é possível acompanhar as imagens em seus
deslocamentos históricos e geográficos, pois estas permanecem como tensão energética, como vida
em movimento, cujos traços significantes estão inscritos na memória da humanidade, nos valores
expressivos (pathosformel), ou seja, numa gestualidade expressiva com origem nas afecções e nas
paixões sofridas, visto que cada época elabora certos valores expressivos na medida de suas
necessidades.
138
se encontra interpretado e “lido”, ou seja, posto à luz pelo advento de um Agora
resolutamente novo”. É o agora das raízes africanas vivido por Valda Costa nas suas
telas, que também foi vivido na arte por outros artistas em outros tempos e em
outros lugares, como, por exemplo, pelos vanguardistas europeus (ver Figuras 91,
92 e 93).
Figura 91 - Deus africano
da fertilidade.
Fonte: WOOD, 1998.
Figura 92 - Henri
Matisse, La Danse (A
Dança), c.1907, 44 cm de
altura. Musée Matisse,
Nice.
Fonte: WOOD, 1998.
Figura 93 - Paul Gauguin,
1891-93. Cilindro
decorado com figura de
Hina e dois criados,
madeira com douradura
pintada, 37 x 13 x 11 cm.
Hirschorn Museun and
Sculpture Garden.
Fonte: WOOD, 1998.
Traços ancestrais do Apolo Negro no presente imediato (Figura 94), traços
residuais das máscaras africanas (Figura 95). Pureza de linhas e de formas, lugar do
simbólico. Em meio ao rosto anônimo de uma máscara pode aparecer, bruscamente,
um retrato “entre todos los demás, el retrato de un hombre que existió y que no se
parecia a ningún outro” (CLAIR, 1999, p. 163).
Figura 94 - Valda Costa, sem título, detalhe, s/d.
Óleo s/eucatex, legível, 46 x 32 cm.
Fonte: Coleção Antônio Fasanaro.
Figura 95 - Máscara africana.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
139
Didi-Huberman (1990) afirma que a representação humana, nas tradições
representativas mais antigas, não se detinha em detalhes, muito menos nos detalhes
do rosto. Segundo o autor:
Um lugar que se marca, um lugar que se colore, pois, bem antes de todo o
‘nascimento da arte’, levar em consideração e pôr em andamento os meios
fundamentais da própria figurabilidade ‘artística’ (desenho, cor) para situar a
questão do rosto que desaparece. Está aí como receptáculo quase vazio
marcado exatamente com alguns furos e exatamente salpicado de pigmento
vermelho para que formule um dia, bem mais tarde, a questão do retrato
enquanto tal. (DIDI-HUBERMAN, 1990, p. 68-69).
Figura 96 - Pablo Picasso, Les Demoiselles
D´Avignon, detalhe, 1907. Óleo s/ tela, 243.9 x 233.7
cm. Museu de Arte Moderna de Nova York.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
Figura 97 - Constantin Brancusi, A Musa
Adormecida, 1910. Bronze, 28 x 22 x 15 cm.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
O vazio que se preenche com o ritual, pois “longe de mostrar puramente a
representação plena de rostos, o que os retratos fariam, depois de tudo, seria
apenas poetizar” (DIDI-HUBERMAN, 1990, p. 62).
As marcas e os discursos sobre a arte africana começam a surgir com um
maior vigor no final do século XIX e no início do século XX, sobretudo no momento
em que alguns artistas e teóricos da arte começam a questionar a supremacia da
cultura ocidental. Um nome de destaque nessa empreitada foi Carl Einstein (1885-
1940), que, em 1915, publica em Leipzig o primeiro texto teórico conferindo à arte
africana o estatuto de arte: A Escultura Negra
164
.
164
Didi-Huberman (2003, p. 38) diz que até Einstein havia uma grande dificuldade teórica para a
análise da arte africana, pois a “cultura africana desafia todas as regras sobre as quais o discurso
histórico ocidental funda a sua legitimação”.
140
Utilizando-se de métodos da etnologia para aplicá-los no estudo da arte
moderna, Einstein (2002) estabelece relações muito interessantes entre a arte
primitiva e a psique moderna. Para ele, a arte primitiva era a expressão das
angústias, da vontade do absoluto, em suma, a potência do espírito criador.
Segundo o autor, as unidades formal e religiosa se correspondem, e o mesmo
acontece com o realismo formal e o realismo religioso. “La obra de arte europea
llegó a ser metáfora del efecto que incita al espectador a uma libertad indolente. La
obra religiosa de arte negro es categórica y posue uma esencia precisa que excluye
toda limitación.” (EINSTEIN, 2002, p. 43).
Segundo Didi-Huberman (2003), na sua análise sobre o pensamento de
Einstein, a arte africana, sobretudo a escultura, vai surgir como uso de valor, como
objeto de conhecimento novo para a arte moderna, precisamente para o cubismo.
Didi-Huberman (2003, p. 40) enfatiza que a versão sobre a arte africana de Einstein
só foi possível na medida em que se inventam novos objetos criando-se a colisão
o anacronismo de um agora com um outrora, em que o outrora se encontra
interpretado à luz de um agora resolutamente novo.
Algunos problemas del arte contemporâneo han provocado um
acercamiento más escrupuloso al arte de los pueblos africanos; como
siempre, también aqui sido un suceso artístico actual el que
provocado que se configurara su correspondiente historia: en su centro se
elevaba el arte de los pueblos africanos. Lo que antes parecia carecer de
sentido encontrado su significación en los esfuerzos más recientes de
artistas plásticos; se adivinado que apenas em ninguna outra parte se
han configurado con tanta claridad problemas precisos de espacio, ni se
formulado de manera tan propia un hacer artístico como entre los negros. El
resultado: el juicio hasta hece poço emitido sobre el negro y su arte
retratado más el enjuiciador que al próprio objeto (EINSTEIN, 2002, p. 30).
Assim, na obra de Valda Costa pode-se perceber as sobrevivências em
estado latente de formas intensificadas de um passado africano, o encontro do
outrora com o agora, a colisão. Pode-se perceber o corpo e a alma como suporte de
signos, marcas que nele se inscrevem como linguagem a ser decifrada em chaves
de polaridade em que se lêem os rastros africanos de humanidade e pertencimento
(MONTES, 2002). É o rastro que não é um signo como outro, mas que pode exercer
o papel de signo. Conforme Montes (2002), o rastro, mesmo tomado como signo,
significa fora de toda a intenção de significar, pois o rastro autêntico decompõe a
ordem do mundo,
141
vem como em ‘sobre-impressão’. Aquele que deixou rastros ao querer
apagá-los, nada quis dizer nem fazer pelos rastros que deixou. Ele
decompôs a ordem de forma irreparável. Pois ele passou absolutamente.
Ser, na modalidade de deixar um vestígio, é passar, partir, absolver-se.
(LEVINAS apud GAGNEBIN, 2006, p. 113-114).
Assim, visto que a obra de Valda é o resultado da interpenetração de
influências e de rastros, cabe destacar as linhas temáticas com as quais a artista
trabalhou. Valda Costa utilizou quatro linhas temáticas, constantemente retomadas e
recriadas. Os principais temas na obra dessa artista são as paisagens, as cenas e a
cultura da Ilha de Santa Catarina, as naturezas-mortas, as figuras sagradas e os
retratos.
3.1.1. As paisagens, cenas e cultura da Ilha de Santa Catarina
Figura 98 - Valda Costa, sem título,
1984. Óleo s/eucatex, 18 x 32 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 99 - Valda Costa, sem título,
1985. Óleo s/eucatex, 38 x 28 cm.
Fonte: Coleção Milton Bordin.
A mais bela qualidade da natureza é o movimento. Telhados, faces, linhas, cores, tudo se
afita e se persegue num entrelaçado de cores telúricas, quentes, fervorosas. O trabalho de Valda, vila
[sic] conquista da ilha mágica.
Rodrigo de Haro
165
165
Fôlder da exposição de Valda Costa na Casa Victor Meirelles realizada de 19 a 30 de dezembro
de 1979, sob a coordenação da Fundação Catarinense de Cultura e a DIRETUR.
142
Figura 100 - Valda Costa, sem título, 1987. Óleo s/ eucatex, 34 x 22 cm.
Fonte: Coleção particular.
Imagens simples do cotidiano, tratadas em linguagem espontânea, são
trazidas para as telas com originalidade e frescor. Apesar de ser uma temática
bastante difundida no meio artístico florianopolitano, conforme indicado, Valda
retrata Florianópolis sob uma nova faceta, um novo olhar: incorpora à temática
elementos que ainda não faziam parte da iconografia local, tais como o morro e
personagens de origem africana no seu cotidiano.
Segundo relatou Osmar Pisani em entrevista, Valda pintava o cotidiano dos
negros e o folclore local de maneira que faz lembrar o artista uruguaio Figari, que,
embora não sendo negro, tem trabalhos nos quais também retratava a vida da
comunidade pobre e negra em Montevidéu e no pampa. Pisani diz que ele também
tem quadros belíssimos”.
166
Figura 101 - Pedro Figari, Candomblé, s/d.
Óleo s/cartão, 79 x 88 cm.
Figura 102 - Pedro Figari, Nostalgias
Africanas, s/d. Óleo s/cartão, 60 x 80 cm.
Museo Juan Manuel Blans.
166
É importante frisar que Pisani não se refere aqui a questões de estilo, fatura ou de valor das obras,
mas sim ao fato de que ambos os artistas foram inovadores na temática do negro em seu cotidiano
no espaço dentro do qual cada um atuava.
143
Figura 103 - Valda Costa, sem título, 1986. Óleo s/eucatex, 33 x 25 cm.
Fonte: Coleção Ricardo Wildi.
Pode-se perceber, nesses exemplos, entre muitos outros, que o tratamento
dado à temática folclórica também contempla os personagens afrodescendentes e
mantém o morro como pano de fundo da obra. Valda Costa, desse modo, afirma o
seu lugar de origem. Além disso, a força dessas obras, como em tantas outras da
artista, está na ênfase dada aos pés deformados dos personagens.
Pés de coração em África com as mãos e os pés trombolhos disformes. E
deformados como os quadros de Portinari dos estivadores do mar. E dos
meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas das formes de Pomar. Vou
cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa a própria cor da pele.
(TENREIRO JR. apud ABDALA JUNIOR, 2007).
Figura 104 - Valda Costa, sem título. Óleo s/eucatex, 37 x 40 cm.
Fonte: Coleção João do Amarante.
O quadro ilustrado na Figura 104, onde se vêem meninos jogando bolinhas de
gude, faz parte da primeira fase da artista, segundo relato de João do Amarante em
144
entrevista, que afirma ter acompanhado a trajetória da artista e amiga: “A primeira
fase de Valda começou com quadros infantis, naïfs, com paisagens do morro.
Depois, ela foi para as naturezas-mortas e, mais tarde, para as negras.”
Figura 105 - Valda Costa, sem título, 1983. Óleo s/eucatex, 37 x 40 cm.
Fonte: Coleção particular.
Valda tinha pleno domínio da temática. Explorou todas as possibilidades de
formato, composição, cores e traços. Em determinados momentos, como ilustrado
na Figura 105, as almofadas de bilro aparecem em primeiro plano, que, na
desproporção, saltam aos olhos.
Figura 106 - Valda Costa, sem título, 1990. Óleo s/eucatex, 108 x 92 cm.
Fonte: Coleção particular.
Em outros, é o peixe o elemento principal da composição que em uma
bandeja parece repousar sobre a cena da cidade (Figura 106). A montagem do
145
espaço é organizada ao gosto da artista, que treinou um olhar de quem de longe
e de perto, o olhar de quem enxerga do morro e de quem organiza a forma para
valorizar o irrelevante da composição. Muitas vezes esse olhar parte da mesma linha
que a do horizonte, de onde tudo fica no mesmo plano, tudo possui o mesmo valor.
Em algumas obras, como a da Figura 107, onde se vê em destaque a base da
ponte Hercílio Luz, Valda ousou mostrar um ícone de Florianópolis por meio de um
ângulo de visão que pouco se espera: somente um olho curioso para destacar esse
elemento. Uma revelação inesperada: a ponte e suas entranhas engolem a cidade
velha e pacata.
Figura 107 - Valda Costa, sem título, 1991. Óleo
s/eucatex, 52 x 36 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 108 - Valda Costa, sem título,
detalhe assinatura, 1991. Óleo s/eucatex,
52 x 36 cm.
Fonte: Coleção particular.
Valda tinha intimidade com essa paisagem: eram os locais por onde circulava
diariamente. “Nas casinhas debaixo da Ponte Hercílio Luz, que ainda existem,
moravam o Mazola e o Érico (do grupo musical Som Nosso de Cada Dia), e Valda
sempre andava com essa rapaziada. Nós andávamos pela cidade fazendo som.”
(LIRA, 2007)
167
. Entretanto, diferentemente de muitos, Valda, com um olhar arguto e
treinado, sempre enxergava um novo ângulo dessas cenas “banais” do dia-a-dia.
167
Antônio Luiz Lira, o Toninho, funcionário público e músico. Entrevista concedida em março de
2007.
146
Figura 109 - Valda Costa, sem título. Óleo
s/eucatex, 32 x 41 cm.
Fonte: Coleção Milton Bordin.
Figura 110 - Valda Costa, sem título, 1985. Óleo
s/eucatex.
Fonte: Coleção particular.
Com base no que tinha acesso via Martinho de Haro (que possuía livros,
revistas e material visual sobre pintura e arte em geral no seu atelier)
168
, Valda
também pintou temas explorados por artistas do circuito nacional. Os negros que
dançam ou que trabalham na lavoura (Figura 109) nos fazem pensar, principalmente
pelas suas deformações de membros, nos personagens de Portinari. A mulher que
mal cabe na tela (Figura 110), de formas arredondadas, remete-nos a Di Cavalcanti,
Tarsila, entre outros modernistas.
De repente, encontro perdida (ou seria achada?) no meio da vasta produção
de Valda Costa uma ou outra obra que nunca imaginaríamos ter sido pintada pela
artista. São obras que fogem totalmente ao padrão visual, ou estilo, se assim
pudermos dizer, do conjunto da sua produção. Um exemplo disso é a obra ilustrada
na Figura 111, uma simples paisagem (percebe-se reminiscências “acadêmicas” da
Escola Profissional Feminina) com ar bucólico. Nessa paisagem, a luz difusa e
radiante, associada à exuberância da natureza, ao quadro um aspecto romântico
(meio impressionista, se pensarmos, em relação à fatura, na luminosidade absorvida
da natureza) de pura expressão de sentimento. Argan (1992, p. 33) diz que “o
sentimento é um estado de espírito frente à realidade; sendo individual, é a única
ligação possível entre o indivíduo e a natureza, o particular e o universal; assim,
168
Informação obtida junto à família de Haro e àqueles que freqüentavam o atelier do artista.
147
sendo o sentimento o que há de mais natural no homem, não existe sentimento que
não seja sentimento da natureza”.
Figura 111 - Valda Costa, sem título, 1987. Óleo s/eucatex, 28 x 43 cm.
Fonte: Coleção particular.
Em outros momentos, o sentimento cede lugar a uma organização espacial
mais racional na qual as linhas sóbrias e as formas geométricas das casas e dos
monumentos envolvem a natureza comedida e circundante.
Fazem também parte do repertório de Valda as cenas urbanas que retratam
os casarios e os monumentos antigos de Florianópolis, como os ilustrados nas
Figuras 112 e 113.
Figura 112 - Valda Costa, Casario
Açoriano, 1987. Óleo s/eucatex, 58 x
88 cm.
Fonte: Acervo Governo do Estado de
Santa Catarina.
Figura 113 - Valda Costa, Casario
Açoriano, 1989. Óleo s/eucatex, 52 x
85 cm.
Fonte: Acervo Governo do Estado
de Santa Catarina.
Figura 114 - Detalhe
Casario Açoriano, 52
x 85 cm.
148
Entretanto, caminhando para o final dos anos 1980 e início dos anos 1990,
com o agravamento do estado de saúde físico e mental da artista, as suas obras vão
cada vez mais se soltando, não existe mais nenhum “rigor”. Valda o se prende
mais a nada (nem ao mercado de arte, nem às galerias, nem aos seus próprios
limites). A obra adquire ainda mais um brutalismo fascinante, infantil e sensível. As
formas se deformam e se diluem, as cores se transformam. Natureza feita de
simplicidade audaciosa e pueril. Marcas das lembranças de lugares vividos e
imaginados, lugares trazidos da memória (Figura 115).
Figura 115 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 40 x 25 cm.
Fonte: Coleção João do Amarante.
3.1.2. As naturezas-mortas
As naturezas-mortas
169
de Valda Costa são exuberantes nas cores, nas
formas e nas composições. Potes, vasos de flores, frutos, peixes, compõem os
cenários organizados de memória. Num determinado momento, os peixes e os potes
estão pousados sobre mesas ou sobre a cidade e a paisagem, que, na
desproporção, criam um (des)equilíbrio ousado. Segundo relato de Vânia em
entrevista, Valda não copiava aquilo que pintava, ela organizava as suas naturezas-
mortas na própria tela por meio da sua imaginação.
169
De acordo com Canton (2004), o conceito de natureza-morta surgiu entre os séculos XVI e XVII,
particularmente na Holanda, para caracterizar cenas envolvendo alimentos, frutos, flores, mesas
postas, objetos como livros, velas e os vanitas (crânios humanos ou caveiras), que incluem o
memento mori atestando, assim, a efemeridade da vida.
149
Figura 116 - Valda Costa, sem título, 1988. Óleo s/eucatex, 23 x 34 cm.
Fonte: Coleção Helena Márcia Beduschi.
Tem um mulato que pinta aqui no centro da cidade. Ele pinta bem, ele
retrata o que está vendo, mas a Valda o, é diferente. Ela imaginava, ela
não copiava. Tinha um quadro lindo que o senhor Hélio Guerreiro
encomendou (gostaria de saber com quem está o quadro). Ele disse para a
Valda que queria peixe, boi-de-mamão, catedral. Ela pintava com a
imaginação, não copiava. Não colocava um vaso e copiava, ela fazia a partir
da imaginação...
170
(PEREIRA, 2005).
Figura 117 - Valda Costa, sem título, 1985. Óleo s/eucatex, 30 x 23 cm.
Fonte: Coleção Família Freyesleben.
Figura 118 - Valda Costa, sem título, 1989. Óleo
s/eucatex, 42 x 42 cm.
Fonte: Coleção Odete Maria de Oliveira.
Figura 119 - Valda Costa, Vaso de Flor, data
ilegível. Óleo s/eucatex, 53 x 41 cm.
Fonte: Acervo Governo do Estado de Santa
Catarina.
170
Vânia Pereira, funcionária aposentada do BESC e colecionadora de Valda Costa, em entrevista
concedida em outubro de 2005.
150
Valda Costa organizava as suas naturezas-mortas com poucos objetos,
porém com muita imaginação e percepção de espaço: potes, peixes, vasos de flores,
objetos retomados incansavelmente eram representados sob vários pontos de vista.
Essa era uma prática comum entre os pintores modernistas (o repertório de
naturezas-mortas de Cézanne, por exemplo, era limitado a alguns objetos) para
quem a natureza-morta era um mero pretexto para trabalhar composição e teoria
pictórica, ou seja, a natureza-morta era um subsídio para as pesquisas plásticas.
É certo que a prática da natureza-morta exige domínio e sensibilidade formal,
sobretudo para quem, como Valda Costa, (re)criava os objetos percebidos em novas
combinações. É o devaneio imanente a uma poética da suspensão: os rastros que o
tempo deixa nos objetos, nos indícios de experiências e nas sensações.
Figura 120 - Valda Costa, sem título, 1985. Óleo
s/eucatex, 24 x 32 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 121 - Valda Costa, sem título, data
ilegível. Óleo, s/eucatex, 38 x 50 cm.
Fonte: Coleção particular.
171
Figura 122 - Valda Costa, sem título, s/d. Acrílica s/eucatex, 104 x 72 cm.
171
Este é o único quadro que a filha Gisela possui da mãe, o qual está bem deteriorado.
151
As naturezas-mortas são temas canônicos da arte que tangenciam o ordinário
do dia-a-dia. Entretanto, Valda não os tratou de forma banal, ela “montou” arranjos
exuberantes em composições nas quais o acento se encontra na “desordem” e no
desequilíbrio: vários planos e perspectivas se somam às cores e formas distorcidas
(mostradas em ângulos diferentes) dentro de contornos negros que delimitam o
espaço dos objetos na tela. Os elementos emblemáticos da artista são os potes, os
vasos e as jarras em cerâmica, objetos utilitários que significam imagens da
transitoriedade, do prosaico da vida.
Figura 123 - Valda Costa, Vaso de Flores, s/d e assinatura. Óleo sobre eucatex, 40 x 30 cm.
Fonte: Coleção Marcelo Seixas.
Segundo relatou Marcelo Seixas
172
, o vaso ilustrado na Figura 123 foi o último
trabalho que Valda fez na ACAP, algum tempo depois de ela sair do Instituto São
José, onde esteve internada entre os meses de abril e maio de 1993. Dias depois,
seu quadro de saúde complicou, e ela foi internada no Hospital Nereu Ramos,
falecendo em seguida, no mês de julho do mesmo ano.
Pode-se perceber que as formas tornaram-se simplificadas, Valda se limitou
ao essencial. As pinceladas são grossas, e as cores foram aplicadas em espessas
172
Marcelo Seixas, artista plástico, amigo de Valda Costa. Quando Valda Costa freqüentava a ACAP,
Marcelo trabalhava com José Pedro Heil, presidente da associação naquele período. Depoimento
fornecido via e-mail enviado entre maio e julho de 2007.
152
camadas. Sugerem, como as obras de Van Gogh, um transbordamento de cor e
forma em que os ritmos das pinceladas demonstram o estado de espírito da artista.
É certamente um estranho fenômeno que todos os artistas, poetas,
músicos, pintores, sejam materialmente infelizes, inclusive os felizes [...].
Isto renova a eterna questão: a vida é inteiramente visível para nós, ou
antes da morte lhe conhecemos um hemisfério? Os pintores para falar
deles –, estando mortos e enterrados, falam à geração seguinte ou a
várias gerações seguintes por suas obras. Isto é tudo, ou ainda algo
mais? Na vida de um pintor, talvez a morte não seja o mais difícil. Eu
confesso o saber nada a respeito, mas a visão das estrelas sempre me
faz sonhar, tão simplesmente quanto me fazem sonhar os pontos negros
representando cidades e aldeias num mapa geográfico. Eu me pergunto por
que os pontos luminosos do firmamento nos seriam menos acessíveis que
os pontos negros do mapa da França? Se tomamos o trem para ir a
Tarascon ou a Rouen, tomamos a morte para ir a uma estrela. O que
certamente é verdadeiro neste raciocínio é que estando na vida nós não
podemos ir a uma estrela, assim como estando mortos não podemos tomar
o trem. Enfim, não me parece impossível que a cólera, as pedras, a sica, o
câncer, sejam meios de locomoção celeste, assim como os barcos a vapor,
os ônibus e a estrada de ferro são meios terrestres. Morrer tranqüilamente
de velhice seria ir a pé (VAN GOGH, 2002).
Figura 124 - Van Gogh, Campo de Trigo com Corvos, 1890. Óleo s/tela, 50,5 x 103 cm. Van Gogh
Museum, Amsterdan.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
Mas, como Valda Costa, Van Gogh não morreu tranqüilamente de velhice.
Como um artista atormentado, alguns dias depois de pintar Campo de Trigo com
Corvos, retorna ao campo de trigo, mas dessa vez não para pintar. um tiro no
peito, é socorrido, mas não resiste. Foi sepultado em 30 de julho de 1890, um dia
antes do dia do sepultamento de Valda Costa, ocorrido cento e três anos depois.
153
3.1.3 As figuras sagradas
Figura 125 - Valda Costa, sem
título, s/d. Óleo s/eucatex, 32 x
28 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 126 - Valda Costa, sem
título, s/d. Óleo s/eucatex, 36 x
26 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 127 - Valda Costa, sem
título, 1992. Óleo s/eucatex, 24 x
18 cm.
Fonte: Coleção João do
Amarante.
Imagens que parecem transcender o tempo e o espaço também fazem parte
do repertório de Valda Costa: anjos, madonas, Jesus Cristo e todos os elementos
simbólicos ligados a essa temática. Sagrado e profano convivem sem atritos, ora as
figuras estão dispostas em um espaço celestial, ora se encontram no mundo
terrestre.
Como visto nos primeiros capítulos desta tese, as figuras sagradas na obra
de Valda Costa também podem ser “lidas” como duplos que oportunizam a
(re)criação e a reinvenção de si e de outros. Na constituição de um mundo sagrado,
Valda se separa do mundo caótico, mostra a sua ira (pensar na Figura 65), exacerba
o seu lado maternal (como na Figura 48, por exemplo). É na consagração do espaço
da fatura que a artista se instaura no mundo e organiza a realidade (ELIADE, 1999).
É a imagem, talvez a auto-imagem, como lugar de adoração, a dimensão do sagrado
como recusa da dessacralização do mundo.
154
Figura 128 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo
s/madeira, 30 x 78 cm.
Fonte: Coleção José Ricardo Ramos de Souza.
Figura 129 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo
s/madeira, 31 x 73 cm.
Fonte: Coleção José Ricardo Ramos de Souza.
O tratamento formal dado às figuras sagradas é o mesmo dado às figuras
humanas (ou profanas), ou seja, de destaque: colocadas em primeiro plano, essas
imagens transportam as marcas da iconografia cristã, porém com certa liberdade
formal. As fisionomias (tanto as sagradas quanto as profanas) carregam os mesmos
traços, os mesmos gestos, o mesmo olhar. O sagrado que atravessa a barreira entre
os mundos espiritual e físico: retratos tomados em uma outra dimensão.
155
3.1.4 Os retratos
Figura 130 - Valda Costa, sem título, 1976. Óleo s/eucatex, 42 x 26 cm.
Fonte: Coleção José Alfredo Beirão.
Aquele que olha de fora através de uma janela aberta não nunca tantas
coisas quanto aquele que olha uma janela fechada. Não objeto mais
profundo, mais misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, mais radiante do
que uma janela iluminada por uma candeia. O que se pode ver à luz do sol
é sempre menos interessante do que se passa por detrás de uma vidraça
[...] (BAUDELAIRE, 2006).
Figura 131 - Valda Costa, sem título, data ilegível. Óleo s/eucatex, 38 x 22 cm.
Fonte: Coleção particular.
Neste buraco negro ou luminoso vive a vida, sonha a vida, sofre a vida [...]
Com seu rosto, com sua roupa, com seu gesto, com quase nada refiz a
história desta mulher, ou melhor, sua lenda e, por vezes, a conto a mim
156
mesmo chorando.[...]. E me deito, feliz por ter vivido e sofrido em outros que
não eu mesmo. Vocês talvez me digam: tem certeza de que esta lenda é
verdadeira?” Que importa o que possa ser a realidade situada fora de mim,
se ela me ajudou a viver, a sentir que sou e o que sou? (BAUDELAIRE,
2006).
A menina que brinca entre as quinas de costura, os pis e os papéis é a
mulher que tece, costura, desenha, esculpe e pinta. A menina, pequena Nina, que
se observa nos espelhos, nos vidros e no reflexo do mar é a mulher Valda, que vive
uma existência de ninfa negra, guerreira, mas simples. A tela é o seu espaço, o
espaço das realizações e fantasias da menina e da mulher.
Figura 132 - Valda Costa, sem título, data ilegível. Óleo s/eucatex, 30 x 18 cm.
Fonte: Coleção particular.
Os retratos de Valda Costa, de pura visualidade moderna, são o que de mais
marcante e pessoal existe no conjunto de sua obra. Loiras, morenas, ruivas, todas
negras. Linhas grossas e negras delimitam cores e sustentam figuras, geralmente,
conforme afirmado, em primeiro plano. Sobrancelhas, olhos, nariz: tipologias
criadas e recriadas que se repetem incansavelmente. O espaldar da cadeira na qual
se senta a modelo destaca detalhes da roupa, do brinco, do corpo. A estrutura do
objeto “cadeira” empresta ao ser “mulher” o suporte: o inanimado que anima e
destaca o corpo e a alma (ver, por exemplo, Figuras 132, 133, 134, 135 e 136).
157
Figura 133 - Valda Costa, sem
título, 1989. Óleo s/eucatex, 40
x 32 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 134 - Valda Costa, sem
título, s/d. Óleo s/madeira, 38 x
248 cm.
Fonte: Acervo João do
Amarante.
Figura 135 - Valda Costa, sem
título, s/d. Óleo s/madeira, 38 x
24 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 136 - Valda Costa, sem título, 1984. Óleo s/eucatex, 50 x 40 cm.
Fonte: Coleção Família Tomaselli.
A anatomia do desejo foi buscar suas matrizes nas mulheres fatais: loiras,
ruivas, cheias de volúpia e de graça (Figuras 137 e 138). Transbordam os limites dos
quadros com seus volumes e adereços: a mulher de encantos delirantes e, muitas
vezes, sobrenaturais.
158
Figura 137 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo
s/eucatex, 39 x 33 cm.
Fonte: Coleção João do Amarante.
Figura 138 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo
s/eucatex, 46 x 31 cm.
Fonte: Coleção João do Amarante.
173
Figura 139 - Valda Costa, Nu Feminino, 1986. Óleo s/madeira, 30 x 90 cm.
Fonte: Coleção Marcelo Seixas.
As Vênus (de Urbino) de Ticiano, (adormecida) de Giorgione, de Velásquez,
as Majas de Goya, a Olympia de Manet, as Ninfas Negras de Valda Costa. Se
existem referências? É possível. Valda elabora a feminilidade com todos os artifícios
dos antigos e dos novos idealismos. A mulher que se oferece totalmente nua ao
olhar daqueles que a observam: a mercadoria do amor (Figura 139). Imagem
reveladora em carne voluptuosa e em tecidos palpitantes. A cor da carne se funde à
cor da madeira do piso, símbolo da substância universal. Ao fundo, distante, vista
173
Esta obra foi pintada sobre uma cabeceira de cama de solteiro.
159
através de três janelas, a natureza luxuriante. Aqui não gato nem cão, não existe
a teatralidade das cortinas: a pintura feita sobre a cabeceira de uma cama (nada
mais sugestivo) tem um só interesse: a Ninfa Negra e seus atributos “naturais”.
Bataille (1983), na análise que fez da Olympia de Manet, afirmou que, na sua
exatidão provocante, a nudez da mulher representada é o silêncio que dela se
desprende, ou seja, é o “horror sagrado” de sua presença, uma presença cuja
simplicidade é de ausência. Comparando o realismo de Manet ao realismo de Zola,
o autor afirmou ainda que o segundo situou o que descreveu, enquanto Manet, no
caso de Olympia, teve o poder de situar em lugar nenhum.
Manet nos faz ver um quadro no qual, no despeito das aparências, não
nada para se ver a não ser o fulgor, [...] um fulgor que nos salpica, [...] um
fulgor que acerta o alvo em cada toque, pois cintila bem próximo à nus,
[...] que nos salpica com a espuma da qual surge [...]: atual e inatual...
(LANCRI, 1990, p. 53).
Figura 140 - Ticiano, Vênus de Urbino, 1538.
Óleo s/tela. Galeria Degli Uffizzi, Florença.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
Figura 141 - Edouard Manet,Olympia,1863. Óleo
s/tela, 130,5 x 190 cm. Museu d’Orsay, Paris.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
Recuamos e avançamos no tempo, e as musas estão lá ou aqui: o fulgor que
acertou as Olympias e as Vênus também tocou Valda Costa. O Outrora no encontro
com o Agora: a Ninfa Negra, saída das águas das praias da Ilha (refiro-me aqui mais
uma vez ao quadro da “Ninfa Negra” do acervo do MASC, ilustrado na Figura 4); a
Vênus que emergiu para se manter no tempo e no espaço das telas como um fulgor
que atrai todos os olhares.
A delicadeza e a graça também fazem parte desse repertório. Mulher
encantada com a cabeça ornada por um grande “pão-por-Deus” (Figura 142).
160
Figura 142 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 29 x 24 cm.
Fonte: Coleção João do Amarante.
Sereia canta ansiosa
Nas ondas d’água salgada,
Quem descobrir a sereia
Tem uma jovem delicada.
Sereia canta ansiosa
Vem um jovem no salão
Para pedir “pão-por-Deus”
Que retrate um coração
174
.
Porém, com o tempo, o encantamento e a graça das mulheres cativantes de
Valda Costa o cedendo lugar à tristeza e ao desencanto das ninfas melancólicas.
No final de sua trajetória, a artista não retratava mais as suas figuras humanas com
o recorrente sorriso maroto: as imagens de Valda não sorriam mais. Sobre o
assunto, Marcelo Seixas Pereira mencionou em entrevista:
Valda era excelente retratista. Enquanto pintava, ela se expressava
oralmente, como uma criança. Era muito curioso acompanhar o processo da
artista. Ela fazia uns trabalhos grandes com figuras femininas com o morro
ao fundo. Todas esboçavam um sorriso maroto, sacana”... Certa vez, notei
que as personagens que Valda pintava o sorriam mais. Perguntei a ela
por que, e ela respondeu-me: Como posso pintar pessoas sorrindo se eu
não tenho mais aqueles dentes?” Ela me escancarou a boca e mostrou a
podridão em que seus dentes e a sua alma se encontravam. (PEREIRA,
2007).
174
Versos coletados na região da Grande Florianópolis. Os “pães-por-Deus” são pedidos formulados
em versos escritos em corações recortados em papel. De origem portuguesa, é muito difundido no
litoral catarinense (PIAZZA, 1956).
161
Alma e corpo de mulher ferida que camuflou na tela a dor da vida. Ser de
sensação que conservou na obra percepções e afecções. Valda sorriu. “A arte
conserva, é a única coisa no mundo que conserva. [...] O que se conserva, a coisa
ou a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e
afectos. [...] A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si”
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 213-214). Valda sorrirá enquanto a tela durar.
Valda Costa também fez retratos de amigos, familiares e clientes. A liberdade
estilística encontrada na maior parte da produção de figuras humanas da artista
cede lugar (nos retratos de amigos ou clientes) a um maior “rigor formal”. No
exemplo ilustrado na Figura 143, vê-se o amigo Marcelo Seixas Pereira, no clássico
ângulo de perfil, retratado com traços “rápidos e soltos”. Segundo relatou Marcelo
em entrevista, “Esse retrato Valda fez rapidamente enquanto conversávamos”.
Figura 143 - Valda Costa, Retrato de Marcelo Seixas, 1993. Giz de cera s/A4.
Fonte: Coleção Marcelo Seixas.
Nos exemplos abaixo, nos quais as retratadas pousaram como modelo,
percebe-se uma postura mais comedida que evidencia a figura do retratado
posicionada em destaque no primeiro plano do quadro sobre um fundo neutro
(Figuras 144 e 145).
162
Figura 144 - Valda Costa, retrato de Solange
Silva Hazin, 1976. Óleo s/eucatex, 42 x 24 cm.
Fonte: Coleção Solange Silva Hazin.
Figura 145 - Valda Costa, sem título, 1986. Óleo
s/eucatex, 28 x 18 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 146 - Valda Costa, Retrato de Jane Macedo de Souza, 1981. Óleo s/eucatex, 40 x 28 cm.
Fonte: Coleção Jane Macedo de Souza.
O quadro retratado na Figura 146 é de Jane Macedo de Souza, amiga de
Valda. Sobre a fatura dessa obra, Jane falou:
Que eu lembre, foram umas três sessões, de uma hora cada. Eu fiquei
nervosa porque ela me dirigia a pose e ficava repetindo: “não mexe, fica
quieta”! Eu tinha que ficar como uma estátua, embora tenha sido um retrato
como 3 x 4. Mesmo eu sendo amiga, era profissional, paguei pelo quadro
163
cujo valor eu não lembro ao certo. Valda era perfeccionista. Ela me disse
quando me entregou o quadro: Ah! Ficou mal, eu não gostei. Pega para ti!
Quando ela me entregou a obra pronta, ela me deu um outro quadro de
presente, um lindo cavalo. (SOUZA, 2007).
Figura 147 - Valda Costa, sem título, 1979. Óleo s/eucatex, 24 x 24 cm.
Fonte: Coleção Paulo Caminha.
Na vasta produção de figuras humanas, retratos, Valda Costa reserva parte
significativa de sua produção para reproduzir tipos que trazem consigo a referência
étnica e de lugar, o pertencimento, a territorialidade. Segundo Schultz (2002), o
sentir-se parte de um território é construído mediante os instrumentos emocionais,
afetivos, intelectuais e sensitivos.
Figura 148 - Valda Costa, sem título, 1986. Óleo s/eucatex, 32 x 24 cm.
Fonte: Coleção particular.
164
Representar: apresentar de novo diante de si, por meio da imagem,
construção do imaginário que assim se a ver, entregando-se ao olhar. Olhar que
sobre si mesmo se volta, quando confrontado ao outro, pois o outro coloca como
interrogação a nossa própria identidade. Esta foi sempre nossa humana condição.
Montes (2002, p. 45) diz que:
Do fundo do mundo, cada sociedade e cada cultura se definiu a si mesmo
como modelo exclusivo da verdadeira humanidade, relegando a diferença
ao domínio da natureza, onde campeia o inumano, seres bestiais ou
monstruosos, ou então ao reino sobrenatural de espíritos e anjos, demônios
ou deuses.
Para finalizar esse segmento do trabalho, não posso deixar de comentar que,
entre as obras vistas e fotografadas, encontrei três que tinham como motivo
cavalos
175
. E sobre essas três obras os seus proprietários contaram passagens, no
mínimo, curiosas.
Figura 149 - Valda Costa, sem título, 1976. Óleo s/eucatex, 50 x 80 cm.
Fonte: Coleção Paulo Caminha.
A primeira apresenta um grupo de cavalos que, jogados no primeiro plano do
quadro, dão-nos a sensação de estarem aterrorizados, fugindo de alguma coisa ou
de algum lugar (Figura 149). Segundo o seu proprietário, Paulo Caminha
176
, que
retirou a tela para ser fotografada por mim detrás de um sofá da sala, esta tela se
175
Soube pelos que conheceram a obra de Valda que existem mais exemplos de telas com o motivo
“cavalos”
176
Paulo Caminha, funcionário público, em entrevista em novembro de 2005.
165
encontrava naquele lugar porque a sua esposa fica incomodada com as expressões
dos cavalos, o permitindo que a obra seja pendurada em nenhuma parede da
casa. Talvez esse medo esteja fixado na sua memória pela crença e associação
feita ao cavalo das trevas, filho da noite e do mistério. “Esse cavalo arquetípico é
portador de morte e de vida a um tempo, ligado ao fogo, destruidor e triunfador e
a água, nutriente e asfixiante” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1992, p. 202-203).
Figura 150 - Valda Costa, sem título, 1976. Óleo s/eucatex, 40 x 30 cm.
Fonte: Coleção Solange Silva Hazin.
A segunda obra, de Solange Silva Hazin, parece ser um recorte do mesmo
tema e/ou da mesma obra de Paulo Caminha (inclusive foram pintadas no mesmo
mês e ano, conforme os registros feitos por Valda Costa nas próprias obras). Um
cavalo, em primeiro plano, que parece estar apoiado no dorso de outro (que não
aparece por inteiro), olha fixa e ferozmente o observador através do único olho que é
retratado na tela. Solange Silva Hazin ganhou esse quadro quando o seu retrato
feito por Valda Costa lhe foi entregue. Valda deu para Solange as duas obras ao
mesmo tempo, afirmando, segundo relatou Solange, não ter gostado do retrato que
fez da cliente.
166
Figura 151 - Detalhe do Retrato de Solange Silva Hazin.
Solange também não gostou do seu retrato e, sobre a obra (o cavalo feroz
solitário) presenteada por Valda, disse ter ficado incomodada por ter achado a
expressão do cavalo muito forte (olhar fixo, boca entreaberta e narinas
“fumegantes”) e a sua expressão, no retrato pintado por Valda, muito parecida com a
do cavalo
177
. Das diversas obras que Solange possui de Valda Costa, essas duas
são as únicas que ficam guardadas dentro de um armário.
Figura 152 - Valda Costa, sem título, 1979. Óleo s/eucatex, 80 x 79 cm.
Fonte: Coleção Jane de Macedo Souza.
A última obra vista com o motivo “cavalos” é a de Jane de Macedo Souza, e,
diferentemente das duas primeiras, a figura do animal pintado parece ter saído de
um conto de fadas (evocação do paraíso terrestre?) (Figura 152). O cavalo, ou a
177
Entrevista concedida por Solange Silva, em novembro de 2005.
167
égua, tem a expressão dócil e delicada, parece estar sorrindo. Caminha com graça e
leveza em meio a uma natureza sublime: imagem de um cosmos harmonioso no
qual o cavalo representa (seguindo a simbologia indo-européia) a força fecundante,
o instinto e, por meio da sublimação, o espírito (CHEVALIER; GHEERBRANT,
1992). Segundo os autores, para os psicanalistas, o cavalo simboliza o psiquismo
inconsciente, “arquétipo próximo da Mãe, memória do mundo, ou então do tempo,
porquanto está ligado aos grandes relógios naturais, ou ainda, ao da impetuosidade
do desejo”. De significação complexa e múltipla, o cavalo passa com igual
desenvoltura da noite ao dia, da morte à vida, da paixão à ação, religa, portanto, os
opostos numa manifestação contínua. “Ele é essencialmente manifestação, ele é
Vida e Continuidade, acima da descontinuidade de nossa vida e de nossa morte.
Seus poderes ultrapassam o entendimento.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1992, p.
211).
Os poderes e os desejos de Valda também ultrapassam o nosso
entendimento. Ratificando as oposições da própria artista, a história dessa obra é
idêntica àquela contada por Solange. Ao terminar o retrato de Jane, Valda disse não
ter gostado do trabalho feito e, juntamente com o retrato pintado, presenteou Jane
com a obra do cavalo ou égua. Porém, diferentemente de Solange, Jane adorou as
duas telas. Existiria aí alguma associação entre o animal e as mulheres retratadas?
Pode-se pensar nessa atitude de Valda Costa (além da insistência em alguns
temas e na criação de tipologias) como um indício de sua preocupação e busca por
uma forma ideal”. Talvez, como o personagem Frenhofer
178
, de Balzac (2003), do
romance A Obra-Prima Ignorada, Valda Costa corresse atrás de um ideal jamais
alcançado na visão da própria artista. Segundo relatos, ela raramente ficava
satisfeita com o resultado que conseguia nas suas obras.
Uma outra observação não pode deixar de ser feita no final deste segmento,
qual seja, o agrupamento das obras em temas foi pensado, sobretudo, em relação à
produção pictórica da artista. Não se deve perder de vista, porém, que, apesar de
poucos exemplos sobreviventes ao tempo, Valda fez longas e interessantes
178
Sobre o assunto, Didi- Huberman (1985, p. 34) menciona que « l’exigence de la forme’ selon
Frenhofer n’est donc pas l’exigence de ses qualités de surface, fussent-elles tridimensionnelles:
Essaie de mouler la main de ta maîtresse et de la poser devant toi, tu trouveras un horrible cadavre
sans aucune ressemblance, dit Frenhofer. [...] Mais qu’est-ce que la forme? C’est [...] une fertilité
insaisissable du repli. Le visible serait comme une immense et profuse topologie des replies, un
feuilletage pelliculaire généralisé, dans lequel l’insterstice serait en quelque sorte porteur de la
différence, du sens».
168
incursões na talha, na cerâmica, na escultura, no desenho de figurinos, na pintura
sobre outros suportes além do eucatex e da tela (inclusive, cabe destacar que das
mais de 250 obras vistas ou fotografadas, somente uma entre elas foi feita sobre
tela, a que é mostrada na Figura 153). No final da vida, Valda Costa lançava mão de
qualquer pedaço de papel, madeira, enfim, o que ela encontrava pela frente que
pudesse servir de suporte para as suas produções
179
.
180
Figura 153 - Valda Costa, sem título, 1985. Óleo s/ tela, 48 x 32 cm.
Fonte: Coleção Janete Coelho.
Cabe também mencionar uma outra curiosidade: nas diversas entrevistas
realizadas, foram muitos os depoimentos sobre a maneira como Valda Costa se
vestia e se penteava. Geralmente as pessoas começavam a falar da artista por esse
caminho e associavam essa maneira de ela se vestir e de se pentear aos seus
outros inúmeros “talentos”: para a música, para os trabalhos manuais (fazia
acessórios de roupas, costurava) e também como cabeleireira.
179
Segundo José Ricardo Ramos de Souza, dono da molduraria ARTCA, muitas obras de Valda
feitas em papel craft ou outros materiais não apropriados para tal foram emolduradas por ele.
180
O tema dessa obra foi encomendado pela proprietária, Janete Coelho.
169
3.2 Reflexos de espelhos: os rastros do mestre Martinho de Haro na obra de
Valda Costa
181
Figura 154 - Martinho de Haro, Nu em Frente
ao Espelho. Óleo s/compensado.
Fonte: Coleção Marcelo C. Paulo.
Figura 155 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1984.
Óleo s/eucatex, 42 x 40 cm.
Fonte: Coleção Milton Bordin.
Tem um espelho que reflita ao mesmo tempo tua obra e teu modelo e julga dessa maneira.
[...] Toma um espelho e fá-lo refletir o modelo vivo, comparando esse reflexo com a tua obra; bem
verás que o original é conforme a cópia. E, acima de tudo, toma o espelho como mestre.
Leonardo da Vinci
Tendo em vista veicular um sentido, começo este segmento utilizando mais
uma vez este objeto com o intuito (meio lacaniano, da fase do espelho) de tentar
compreender o jogo de espelhamento gerado pela relação do pintor Martinho de
Haro com a modelo Valda Costa e da pupila Valda Costa com a artista Valda Costa.
O espelho, entre outras funções já citadas nesta tese, tornou possível ao
homem observar como os outros o vêem. Pelo seu poder de reflexão, esse objeto,
com o tempo, ganhou inúmeros significados e interpretações. Em lendas e mitos
apareceu com poderes sugestivos, mágicos e míticos, em discussões filosóficas é
utilizado para ilustrar ponderações sobre a condição ambígua (interior e exterior)
181
Esse é também um dos quadros ao qual o artista plástico Pléticos se referiu em entrevista, sendo
um dos quadros que Martinho pintou tendo Valda Costa como sua modelo.
170
humana. Foi com essa ferramenta que os artistas renascentistas puderam aprimorar
a sua auto-imagem através da observação mais minuciosa e mais fiel de si.
182
Para Barthes (1987), o jogo de espelhos só se completa no reencontro com
alguém. No caso de Valda Costa, esse reencontro deu-se com Martinho de Haro. Ao
confrontar a sua imagem na obra do mestre, Valda tentou elaborar na sua obra a
própria imagem, ou as suas várias imagens. A obra da artista carrega os rastros de
Martinho, e, em certa medida, a sua obra reflete a do mestre. Comecemos pelo
mestre, recuperemos um pouco a sua história.
Martinho de Haro nasceu no dia 11 de novembro de 1907 em São Joaquim,
na serra catarinense. A descoberta da arte, sobretudo do desenho, aconteceu ainda
cedo, aos 12 anos de idade. Nesse período estudava em Lages, cidade vizinha a
São Joaquim, tendo conhecido numa exposição de que participava no Clube Astréa,
naquela cidade, duas pessoas que cumpririam muito mais tarde um papel central em
sua trajetória: o jornalista e historiador José Artur Boiteux e o escritor Othon da
Gama D’Eça. De ambos, anos mais tarde, recebeu uma interferência decisiva junto
ao então Governador do Estado, Adolpho Konder, para seguir a carreira artística no
Rio de Janeiro.
A bolsa de estudos do Governo do Estado viria quando contava 20 anos de
idade. Assim, em 1928, transferiu-se para o Rio de Janeiro no intuito de cursar a
Escola de Belas Artes, onde teve, entre outros, dois excelentes mestres: Rodolfo
Chambelland e Henrique Cavalleiro, que bem antes da Semana de Arte Moderna, ao
retornar de uma longa permanência na França, seria o primeiro a, no Brasil, praticar
uma pintura mais sólida e estruturada, na qual repercutia forte a marca de Cézanne.
(TEIXEIRA LEITE, 2007, p. 25). Sobre esse período Martinho afirmou guardar gratas
lembranças, principalmente por ter tido a oportunidade de trabalhar e conviver com
um núcleo de artistas atuantes, chegando a participar de vários eventos
182
Sobre a procura de si em um espelho ler Guimarães Rosa: Desde aí, comecei a procurar-me — ao
eu por detrás de mim à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. Isso, que
se saiba, antes ninguém tentara. Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de
um mais ou menos falaz pressuposto: ninguém se acha na verdade feio: quando muito, em certos
momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético aceito. Sou
claro? O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, preexistente; enfim,
ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu, porém, era um perquiridor
imparcial, neutro absolutamente. O caçador de meu próprio aspecto formal, movido por curiosidade,
quando não impessoal, desinteressada; para não dizer o urgir científico. Levei meses. (GUIMARÃES
ROSA, 1994, p. 70-78).
171
significativos, como, por exemplo, as exposições realizadas pela Escola Nacional de
Belas Artes. Com a palavra o pintor:
Do meu convívio no Rio de Janeiro guardo as mais gratas lembranças. Com
os colegas fiz grandes amizades e camaradagem. Os mestres
confraternizavam com os menos famosos e mesmo com os novos. [...] Di
Cavalcanti executava sua maior obra, pintando os murais do teatro João
Caetano. No Palace Hotel, localizado à Avenida Rio Branco, organizavam-
se as exposições de vanguarda, com Ismael Nery, Alberto Guignard,
Portinari, Rego Monteiro, Celso Antônio, Alfredo Herculano e Segall.
(AYALA, HARO; 1986, p. 34).
De fato, os anos 1930 seriam muito produtivos para Martinho. Em 1931, o
artista passou a integrar o Núcleo Bernardelli, participando da XXXVIII Exposição
Geral de Belas Artes, também conhecido como Salão Revolucionário ou Salão Lúcio
Costa. Em 1933, ganhou a Medalha de Bronze na 40º Exposição Geral de Artes da
Escola Nacional de Belas Artes e, em 1934, foi agraciado com a Medalha de Prata
no Salão Nacional de Belas Artes. Naquele mesmo ano de 1934, o pintor
catarinense foi auxiliar de Eliseu Visconti (1866-1944) na execução do friso do
Teatro Municipal do Rio de Janeiro e expôs na Galeria do Palace Hotel, nessa
mesma cidade. O ponto alto dessa década bastante produtiva ocorreria em 1937,
quando Martinho de Haro seria agraciado com o disputado prêmio Viagem ao
Estrangeiro, obtido com a obra intitulada Depois do Rodeio.
Em julho de 1938 Martinho embarcou para Paris. Nessa cidade ingressou na
Academia da Grande Chaumière, tendo como professor um dos mestres fauvistas,
Othon Friesz (1879-1949), cuja produção marcou a sua obra no uso das texturas e
das cores. Paralelamente aos estudos na Academia, Martinho tinha contato direto
com as obras dos artistas vanguardistas europeus e freqüentava os ambientes
culturais parisienses. Entretanto, por causa da iminente ameaça da Segunda Grande
Guerra, o regresso ao Brasil teve que ser antecipado. Assim, em 1939, Martinho
desembarcou no Rio de Janeiro, onde permaneceu por algum tempo.
Posteriormente, e de forma definitiva, regressou a Santa Catarina.
A opção pela volta pode soar um tanto estranha, haja vista o que o Rio de
Janeiro poderia representar para a carreira do artista. Mas o desencanto com a
guerra e a situação econômica do momento foram determinantes para sua decisão.
Anos mais tarde, Martinho falou sobre a sua escolha: “O isolamento em minha Ilha
manteve intacto o mundo das idéias, embora a custo de qualquer pretensão à
172
popularidade. [...] A ilha é aprazível; fiquei fascinado, como Ulisses, pelas sereias”.
(SCHMITZ, 2006, p. 13-14-15).
Auto-exilado em Florianópolis a partir de 1942, Martinho viveu de
encomendas oficiais, de retratos e de aulas de desenho em escolas públicas
estaduais e federais. Ao lado dessas atividades, atuou como promotor cultural e
como defensor da preservação do patrimônio arquitetônico da cidade adotada,
fazendo desta a temática principal da sua produção pictórica a partir dos anos 1960.
Segundo ele, era preciso registrar a Ilha antes que a estupidez a destruísse. E foi
fixando Florianópolis nas suas pinturas, tema em que Martinho não conheceu
concorrentes à altura, que o artista recriou a velha cidade colonial: os velhos
atracadouros, os casarios, as igrejas, as ruas e as alamedas de outras épocas.
Imagens como restos de presença em cores aquareladas e luzes diáfanas
adquiridas pela intimidade do manuseio da técnica de aguado.
Martinho sentia-se parte da paisagem da Ilha. Tinha intimidade com os seus
cenários e recantos. Segundo Rodrigo de Haro (AYALA; HARO, 1986), seu filho,
também artista plástico, além de poeta, Martinho fez da sua obra um prolongamento
da cidade, da ilha aprazível. Nela recuperou paisagens e sobrados, reorganizando-
os após minuciosa contemplação.
Nos anos 1970, Martinho refez o itinerário dos grandes centros com
exposições individuais. Ocorre então a redescoberta do artista pelo público e pelos
críticos do eixo Rio–São Paulo. Em 1970, expõe na Galeria Seta, de São Paulo, e
em 1972, na Galeria Chica da Silva, no Rio de Janeiro. Também nessa mesma
cidade expõe, em 1973, na Galerie de L’Alliance, e, em 1974, na Galeria da Praça.
Com outros artistas participou em 1971 da mostra 50 Anos da pintura brasileira, no
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e, em 1972, da mostra Arte Brasil hoje:
50 anos depois, na Galeria Collectio de São Paulo. Em 1976, participa, juntamente
com Franklin Cascaes (1908-1983), seu conterrâneo, de uma exposição no clube
Naval de Brasília. Encerrando essa década, realiza, em 1980, uma mostra em
comemoração aos seus 50 anos de pintura, na Trevo Galeria de Arte no Rio de
Janeiro.
Após esse período, Martinho de Haro se refugia novamente em sua ilha
aprazível e retoma a sua produção, privilegiando outros temas, tais como vasos de
flores, naturezas-mortas e nus. Para uma parcela significativa de críticos de arte,
entre os quais Teixeira Leite (2007), é nas naturezas-mortas que Martinho o
173
melhor e o mais pessoal de sua contribuição e é nelas que se revela um dos
grandes nomes da arte brasileira. De fato, na sua vasta produção de naturezas-
mortas, o artista explora o seu lado mais sensível, sensibilidade essa que brota da
mistura suave das cores e da delicadeza sensual dos arranjos. Ainda conforme
Teixeira Leite (2007), as naturezas-mortas de Martinho de Haro teriam paralelo
naquelas que Alberto Guignard (1896-1962) pintou ao longo de sua extensa carreira,
embora cada um dos artistas tenha se mantido dentro do território que lhes é
próprio.
Falando de delicadeza e sensualidade na obra de Martinho de Haro, cabe não
perder de vista os seus arranjos de flores e os seus nus. Flores e nus, temas que se
aproximam: ambos representam o símbolo do princípio passivo, da beleza, da
transitoriedade. As flores de Martinho possuem formas arredondadas, curvilíneas,
volumosas, cheias de volúpia. São leves, de cores variadas, vivas e sensuais.
Ocupam, na maioria das vezes, todos os espaços dos quadros em composições
simétricas que expressam um sentimento contido no equilíbrio das composições,
equilíbrio esse que não fez parte do repertório do artista na fatura dos seus nus: os
nus de Martinho de Haro revelam de forma poderosa a vontade de corromper e de
ousar. Restauram e instauram a beleza do que é mais intenso e sensual na idéia de
corpo. É na composição dos corpos que a moderação cede lugar à exuberância
revelando o desejo da carne através dos tons azeitonados das peles, das linhas
voluptuosas das coxas e dos ventres, dos lábios volumosos e dos olhos rasgados de
malícia dissimulada.
É certo que os corpos das sereias da aprazível Ilha encantavam Martinho de
Haro. Ele teve várias delas como modelo, as mais exóticas, exuberantes, comuns e
decadentes. Segundo o crítico de arte Walmir Ayala (1986), o artista traduzia essas
mulheres em linguagem de intensa rusticidade. Dos corpos dessas sereias, o pintor
arrancava o erotismo e a beleza quase selvagem. Entre essas criaturas, Martinho
encontrou uma cujo talento também para a pintura a fez ocupar todos os espaços,
tanto o do sucesso e o da glória quanto o da decadência e o da vaidade: Valda
Costa (1951-1993). A modelo talentosa, cheia de graça e interesse, foi uma sereia
negra, talvez a ninfa saída das águas (pensei aqui mais uma vez no quadro do
MASC ao qual me reportei anteriormente Figura 4) da ilha aprazível para quem
Martinho deixou marcas indiscutíveis do seu trabalho: o manuseio do aguado, a
temática, a opção pelo material, as matrizes modernistas, entre outras.
174
Não obstante estar em sintonia com o seu mestre, Valda Costa seguiu o seu
próprio caminho. Sobre essa questão, o artista plástico e professor de pintura e
História da Arte do CIC, Jayro Schmidt, mencionou em entrevista:
Não, o Martinho não. É, ela foi modelo do Martinho de Haro, sempre se tem
referências. A experiência dela como modelo, se relacionando com ele...
Mas a pintura de ambos não tem nada a ver uma com a outra, são
totalmente diferentes. Não dentro de um contexto da pintura moderna, claro,
mas são expressões diferentes. Martinho de Haro era uma mente
acomodada, uma pessoa assim, do ponto de vista tranqüilo, voltado para a
memória da cidade, os casarões antigos. Tem uma certa inquietação, os
céus que ele pintava eram enormes, em contraste com aquela coisa
imobilizada, parada no tempo, o passado. A Valda não, a Valda estava de
olho no presente, nas coisas que aconteciam com ela no momento, então
são expressões diferentes, ela estava ligada com a alta expressão, com a
própria ansiedade que ela queria colocar para fora, são coisas diferentes...
Agora, é claro que a presença de um artista acaba influenciando a pessoa.
Mas não, eu não consigo ver uma relação, não tem, o Martinho de Haro não
contornava as formas, ele usava as cores, traços, quando ele precisava,
mas contornar como ela, não. Ela tinha essa história de contornar tudo, e
em pinceladas grossas, tecnicamente a pintura dela é “tosca” se comparada
à pintura de Martinho de Haro, mais refinada nos tons, na ondulação... São
totalmente diferentes. (SCHMIDT, 2007).
Martinho de Haro morreu, de problemas cardíacos, no dia 23 de maio de
1985, aos 77 anos de idade. Ulisses embarcou para a sua última viagem, dessa vez
sem volta. Deixou para trás muitas obras incompletas e a sereia negra encantada da
Ilha aprazível que o cativou.
É certo que as produções artísticas desses artistas não se confundem,
entretanto, pode-se observar muitas aproximações entre ambos, mesmo quando as
soluções da fatura o, de uma maneira geral, diferentes. As Figuras 156 e 157
apresentadas a seguir caracterizam-se como exemplos sobre esse ponto.
Figura 156 - Martinho de Haro, Vaso de Flor,
s/d. Óleo s/eucatex, 58 x 44 cm.
Fonte: Coleção Maria do Carmo Morganti.
Figura 157 - Valda Costa, sem título, 1986. Óleo
s/eucatex, 44 x 34 cm.
Fonte: Coleção Jeanine Wildi Varela.
175
No primeiro exemplo (Figura 156), um vaso de flores pintado por Martinho de
Haro, percebe-se um rigor na execução e uma distribuição dos elementos
compositivos de forma limpa e ordenada: o vaso está posicionado no centro da tela,
duas cadeiras estão em volta da mesa em equilíbrio, o fundo, em losangos, atribui
uma ordem racional à tela. na pintura de Valda Costa (Figura 157), a composição
é desordenada: o vaso está projetado em primeiro plano, o suporte do vaso, o prato,
é grande demais e está em diagonal, o que desestabiliza ainda mais a composição.
Tudo é força e tensão. As flores, que podem ser lidas como a figura arquetípica da
alma, o centro espiritual, ocupam quase todo o espaço do quadro e transbordam
pela boca do vaso, reservatório de vida, símbolo da força secreta. Diferentemente do
mestre, nada em Valda Costa é contido e comedido.
Conforme indicado, segundo Teixeira Leite (2007), Martinho foi um exímio
pintor de naturezas-mortas. As palavras desse crítico de arte também dizem um
pouco de Valda Costa que, como o seu mestre Martinho, trabalhou de forma
exuberante as suas naturezas-mortas, também dentro de um território que lhe é
próprio.
Cabe mais uma vez ressaltar, quando se fala das naturezas-mortas de Valda
Costa, a beleza e a diversidade de potes e jarros, mais uma herança” do mestre,
que pintou esses utensílios sobretudo nas telas da série do cais Rita Maria e Carl
Hoepcke, da Alfândega e do Antigo Mercado. Entretanto, diferentemente de
Martinho, que em muitas das suas telas tratou esses objetos quase de forma
abstrata (ver Figura 159), Valda Costa, em arranjos diversos, modelou e deu forma
aos seus potes e jarros tal e qual uma artesã o faz nas rodas de oleiro, ou seja, com
habilidade e olhar aguçado, sensível ao modelado sutil das proporções e dos
volumes em que pequenas mudanças nas formas possibilitam o (des)equilíbrio das
forças (ver Figuras 158 e 160).
Figura 158 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 34 x 40 cm.
Fonte: Coleção particular.
176
Figura 159 - Martinho de Haro, Cais da Rua
Francisco Tolentino, 1960/1965. Óleo s/verso do
eucatex, 71,5 x 90,5 cm.
Fonte: Coleção César Bastos Gomes.
Figura 160 - Valda Costa, sem título, 1985. Óleo
s/eucatex, 34 x 28 cm.
Fonte: Coleção Milton Bordin.
Um aspecto que chama a atenção na produção de naturezas-mortas em
Valda Costa em relação ao mestre Martinho de Haro é organização do espaço no
qual elas são representadas. Como Martinho, Valda dispõe os seus objetos sobre as
referências do lugar de onde ela fala: Florianópolis, o seu morro, as suas praias
(Figuras 161 e 162).
Figura 161 - Martinho de Haro, s/d. Óleo
s/madeira, 31 x 44 cm.
Fonte: Coleção Maria do Carmo Morganti.
Figura 162 - Valda Costa, sem título, data
ilegível. Óleo s/eucatex, 80 x 80 cm.
Fonte: Coleção Paulo Caminha.
177
Figura 163 - Martinho de Haro, Nu Sentado no
Sofá Vermelho, s/d. Óleo s/madeira, 28 x 42 cm.
Fonte: Coleção Família do artista.
Figura 164 - Valda Costa, sem título, 1985. Óleo
s/eucatex, 44 x 38 cm.
Fonte: Coleção Sílvio Pléticos.
Como afirmou Sílvio Pléticos (2006) em entrevista, a produção de nus na obra
de Martinho é pequena, “mas é a que revela de forma poderosa a vontade de
corromper uma idéia preestabelecida, restaurando a beleza do que é mais profundo
na reflexão sobre a carne e o desejo”. Em Valda, não existe comedimento na
restauração da beleza da carne e do desejo do corpo: as figuras representadas
jogadas no primeiro plano dão à obra uma sensação escultórica da forma, que para
Sílvio, “era praticamente as proporções do corpo dela. Não um princípio racional
na composição, tudo está em conflito e obliqüidade [...]”.
Figura 165 - Martinho de Haro, Mulata com
Pulseira Amarela, detalhe, 1975/1980. Óleo
s/compensado, 39 x 34 cm.
Fonte: Coleção Marcelo Collaço Paulo.
Figura 166 - Valda Costa, sem título, detalhe,
1984. Óleo s/eucatex, 50 x 40 cm.
Fonte: Coleção Família Tomaselli.
178
Os olhos amendoados, o gesto melancólico da cabeça inclinada, olhos que
muitas vezes não focam o espectador (Figura 165). Elementos de uma tradição
modernista que o mestre encontrou de forma acentuada em sua modelo, ou seja, o
olhar que “exprime e reconhece forças e estados internos, tanto no próprio sujeito,
que desse modo se revela, quanto no outro, com o qual o sujeito entretém uma
relação compreensiva. A percepção do outro depende da leitura dos seus
fenômenos expressivos dos quais o olhar é o mais prenhe de significações (BOSI,
1988, p. 77).”
Seguindo o raciocínio sobre os rastros deixados por Martinho de Haro na obra
de Valda Costa, é quase impossível deixar de pensar, neste momento da análise,
nos vestígios infinitesimais que permitem captar influências mais profundas do
mestre na sua discípula: pistas, mais precisamente, sintomas (no caso de Freud),
indícios (no caso de Sherlock Holmes), signos pictóricos (no caso de Morelli),
inacessíveis ao investigador desatento, pois “o que caracteriza esse saber é a
capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma
realidade complexa não experimentável diretamente” (GINZBURG, 1989).
Vejamos nas figuras mostradas a seguir algumas pistas que ligam, nos
detalhes, Martinho de Haro e Valda Costa:
Figura 167 - Martinho de Haro, Barco no
Cais, detalhe, 1946. Óleo s/eucatex, 39,7 x
47,5 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 168 - Valda Costa, sem título,
detalhe, s/d. Óleo s/eucatex, 34 x 23 cm.
Fonte: Coleção particular.
179
As pinceladas, que em muitos quadros foram aplicadas de forma irregular
com camadas espessas de tintas, dão luminosidade e, muitas vezes, leveza às
obras desses artistas. Entretanto, nas obras da fase final da vida de Valda Costa, as
suas pinceladas ficaram mais firmes e carregadas, o que, quando aplicadas sem
hesitação, permitiu-lhe pintar rapidamente e produzir um vasto número de obras
para serem imediatamente vendidas.
Figura 169 - Martinho de Haro, Baía Sul com
Nuvens, detalhe, 1970/1975. Óleo s/eucatex, 41
x 61 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 170 - Valda Costa, sem título, detalhe,
s/d. Óleo s/eucatex, 32 x 24 cm.
Fonte: Coleção particular.
Segundo Andrade Filho (2007, p. 49), “os céus de Martinho encontram
símile nos de Guignard, concebidos sob o prisma de outra fantasmagoria”. Azuis,
cinzas, cinzas-chumbo, brancos, violetas. O céu ora é sereno, ora é tenso, com
turbulentas nuvens. Em um livro consagrado à história da nuvem na pintura,
Damisch (1972) observa que a nuvem pintada desempenha funções de acordo com
as suas propriedades físicas, ou seja, mascara o irrepresentável ao mesmo tempo
que o designa assegurando um equilíbrio paradoxal
183
. A discípula captou a lição do
mestre e, em sua obra, tensão e leveza muitas vezes coabitam o mesmo espaço da
obra.
183
Para Damisch (1972), na concepção do espaço renascentista e barroco, as nuvens eram os
dispositivos pictóricos que serviam aos artistas para disseminar um não-sentido. Em vez de
determinar um significado, a nuvem seria o sintoma da desordem representacional (em contraposição
ao rigor da perspectiva) pelo processo de disseminação e da produção do o-sentido no campo
imagético. Assim, para esse autor (em conformidade com Didi-Huberman), o signo visual é ambíguo e
possui uma capacidade inesgotável de disseminação de sentidos diversos.
180
Figura 171 - Martinho de Haro, Cais
Hoepcke, detalhe, 1960/1964. Óleo
s/verso de eucatex, 46,5 x 62,5 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 172 - Valda Costa, sem título,
detalhe, s/d. Óleo s/verso de eucatex,
29 x 18 cm.
Fonte: Coleção José Ricardo Ramos
de Souza.
Como Martinho, Valda também utilizou o verso do eucatex (suporte predileto
de ambos os artistas) para acentuar as texturas de suas pinturas.
Além dos motivos e temas, pode-se observar nas pinturas de Valda Costa
muitos outros rastros do mestre, tais como, por exemplo, na composição, no traço,
na pincelada, na escolha de suporte, de material, etc.
Figura 173 - Valda Costa, sem título, detalhe,
s/d. Óleo s/eucatex, 23 x 19 cm.
Fonte: Gabinete do governador do Estado de
Santa Catarina, SEA.
Figura 174 - Martinho de Haro, Mulata,
detalhe, 1975/1980. Óleo s/compensado, 35,5
x 27,5 cm.
Fonte: Coleção César Bastos Gomes.
181
Figura 175 - Martinho de Haro, Mulata com
Bananas, detalhe, 1975/1980. Óleo s/tela sobre
eucatex, 46 x 39 cm.
Fonte: Coleção Marcelo Collaço Paulo.
Figura 176 - Valda Costa, sem título, detalhe,
1985. Óleo s/eucatex, 30 x 23 cm.
Fonte: Coleção Família Freyesleben.
Figura 177 - Martinho de Haro, Mulata,
detalhe, 1975/1980. Óleo s/compensado,
35,5 x 27,5 cm.
Fonte: Coleção César Bastos Gomes.
Figura 178 - Valda Costa, sem título,
detalhe, 1981. Óleo s/eucatex, 37 x 23 cm.
Fonte: Coleção José Alfredo Beirão.
Para finalizar este segmento, embora muitas outras afinidades entre mestre e
discípula possam ser elencadas, volto às palavras do entrevistado Jayro Schmidt:
“sempre se tem referências. A experiência dela, se relacionando como modelo [...]”.
Essas influências podem ser percebidas quando se analisa com cuidado o conjunto
da obra de ambos os artistas. Entretanto, longe de servirem como uma extensão do
mestre, as referências de Martinho de Haro atuaram como base concreta para que
Valda Costa encontrasse o seu próprio caminho.
182
3.2.1 Outras possíveis matrizes visuais
Cada escritor, segundo Borges, nada mais faz do que repetir os seus antecessores, sem
nenhuma originalidade, e já Cervantes defendia essa posição. Anulado o princípio de identidade,
Borges nega a originalidade, nega que algo do muito que foi escrito possa considerar-se patrimônio
individual de um autor. O livro não tem realidade e só se impõe por sua multiplicação possível. Assim
como cada mito só tem sentido em confronto com os demais, cada livro só terá significação em
relação com outro. Cada texto é um campo magnético em que se cruzam os textos que o autor cita
ou a que alude, plagia ou repete e que vem de uma produção coletiva como bem sabiam os clássicos
que Mallarmé e Valéry redescobriram.
Bella Jozef
Inicio este segmento da pesquisa citando uma vez mais Borges, na fala de
Bella Jozef (1999), desta vez na epígrafe, pois falar da obra de Valda Costa é falar
sobre a interpenetração de influências no processo criativo dessa artista. No
segmento anterior desta tese, vimos que o mestre Martinho de Haro teve um papel
importante no percurso artístico de Valda Costa. Entretanto, apesar das influências
diretas e indiretas recebidas de Martinho, ela criou um repertório original agregando
outros elementos e influências para além do mestre.
Sobre o percurso artístico de Valda Costa, saiu na imprensa local à época:
O primeiro contato de Valda Costa com as pessoas do meio artístico
ocorreu por ocasião de um leilão na Faculdade de Educação, seguindo-se
uma exposição na Emedaux. Na época, faltava dinheiro para pagar as
molduras, o vermelho e o amarelo predominavam de forma gritante, mas as
vendas foram boas, embora a preferência fosse por quadros de catedrais
pequenas e outros temas ilhéus. O contato com outros artistas e pessoas
como o sergipano Ethel Muniz
184
, um ativo incentivador das artes nos anos
70, e Luiz Peixoto levou a uma diversificação dos temas e cnicas,
seguindo-se apreensão da arte de Portinari através de revistas e livros. Veio
a fase bíblica, que agradou, e finalmente os temas de morro, carnaval,
favelas. [...] Com obras tendendo atualmente para o expressionismo, Valda
garante que o pode ser considerada uma pintora primitiva. “O popular é
mais real”, afirma e diz que temas fantásticos ficam melhores, por outro
lado, em Vera Sabino e Rodrigo de Haro. (JORNAL O ESTADO, 1983b, p.
27).
O certo é que Valda Costa experimentou e teve contato (certamente visual e
através de Martinho de Haro
185
) com diversas escolas das vanguardas internacional
e nacional. Conforme indicado, na obra dessa artista aparecem, muitas vezes
184
O artista sergipano que mora atualmente na França foi contatado diversas vezes, mas não deu
retorno. Consta no seu blog, na internet: “Artiste Franco-Brésilien, en Aracaju-Sergipe-Brésil. Vit et
travaille en France, Italie et Allemagne depuis 1978. Peintre « iconoclaste » et Artiste 100 références”
(ETHEL MUNIZ, 2007).
185
Aqui cabe lembrar que o próprio Martinho de Haro praticou todos os gêneros e teve contato com
diversas “escolas”.
183
justapostos, diversos elementos do repertório estilístico das vanguardas
modernistas. Tais elementos constituem um território vastamente explorado por um
tipo de traçado de linhas sintéticas e de formas livres. Presentes no conjunto da obra
estão as linhas fortes e negras
186
que contornam as figuras separando-as por
campos de cores homogêneos em que ora predominam os tons terrosos, ora vibram
os rosas, os azuis, os verdes, os vermelhos e os amarelos.
A “herança” modernista na obra de Valda Costa tem matrizes visuais tanto
dos modernistas brasileiros, como Portinari, Di Cavalcanti, Anita Malfati, Djanira,
entre outros, quanto de artistas do circuito internacional, como, por exemplo,
Bonnard, Gauguin, Van Gogh, Degas, Picasso, Morandi, entre outros cubistas,
fauves, expressionistas e metafísicos. É importante deixar claro que os vestígios
desses artistas encontrados nas obras de Valda Costa são rastros de Martinho de
Haro e de outros artistas locais com os quais ela manteve contato direto e intenso,
como, por exemplo, Pléticos, Rodrigo de Haro, Vera Sabino, etc. Cabe também
salientar, como afirmado anteriormente, que Valda Costa teve contato com os
artistas das vanguardas nacionais e internacionais (e seus repertórios) através de
revistas, livros e material diverso.
Ressalta-se também que essas diversas influências percebidas na obra de
Valda Costa não fazem dessa artista uma exceção, pois era e é prática corriqueira
por boa parcela dos artistas que não possuem formação acadêmica (academia aqui
não referencia o sentido clássico, mas sim o sentido de uma instituição de ensino)
ou sistemática buscar em várias escolas e artistas sua fonte de inspiração. Sobre o
assunto, Morais (1995, p. 9-10) o ilustra em uma crônica de 1988:
A pintura que vou pintar hoje, Matisse ou Nolde, Guignard ou Ensor, um
ícone russo, uma coluna grega, Schnabel? Me dê um catálogo, uma revista,
um livro, sou um viajante pelos ismos, errando à deriva, por mares tantas
vezes navegados, mas sempre dispostos à aventura. Sou um voyeur
186
No século XIX, criou-se um termo (e escola) específico para a utilização dessa técnica de pintura,
ou seja, o cloisonnisme. Última fase do sintetismo, o cloisonnisme é um movimento francês de
pintores devotados à pintura feita a partir de áreas de cores contornadas por tons escuros. Também
é o termo que define na pintura a forma ou zona pintada com uma única cor, sem modelado e
delimitada por contorno, na maioria das vezes grosso e de cor escura. Essa forma de pintura,
inspirada nos vitrais e nas estampas japonesas, ganhou expressão, principalmente, nas obras de
Emile Bernard (1868-1914) e Louis Anquetin (1861-1932). Em suas pinturas, “as formas são
simplificadas, e áreas de cores pouco naturais, uniformes, são separadas por contornos pesados
que evocam os vitrais góticos ou os esmaltes cloisonnés, enfatizando suas qualidades decorativas. A
meta não é ilustrar a realidade objetiva, mas expressar um mundo interior de emoções”. (BRENARD,
2003, p. 49).
184
amoroso da vida, sou amante de minha pintura, nela encontro o meu tio
arqueológico, minha fonte de prazer, meu orgasmo. [...] A pintura é
internacional. É regional. Na crista do novo internacionalismo, o regional se
afirma aqui, na Europa, em todo lugar. Uma nova primitividade, um novo
barbarismo. Mescla de todos os regionalismos. [...] Delicadezas e
transparências de cor e grafismo, aquarelas tropicais, musicalidades
femininas. A pintura é corpo e casa, paisagem e vísceras. O biográfico
tangenciando a obra. Cortes. Psicotopos: desordem e controle, é tudo o que
se queira.
É tudo o que se queira em Valda: a pintura é corpo e casa, paisagem e
vísceras: “o biográfico tangenciando a obra” e, muitas vezes, também tangenciando
a obra de outrem (mais uma vez, pode-se recorrer à metáfora do espelho).
Figura 179 - Valda Costa, sem título, 1986. Óleo
s/eucatex, 37 x 43 cm.
Fonte: Coleção Moacir José Serpa.
Figura 180 - Di Cavalcanti, Mulata na Varanda
com Pássaro, 1965. Óleo s/tela, 95 x 75 cm.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
Trajetórias que se cruzam na vida e na obra. Di Cavalcanti e Noêmia, Valda Costa e
Martinho de Haro. As duas mulheres, musas dos artistas; as duas mulheres, alunas;
as duas mulheres, artistas. Noêmia Mourão, a principal musa de Di Cavalcanti, foi
sua aluna e discípula dedicada. Valda Costa, a ninfa melancólica de Martinho, foi
também sua aluna e discípula aplicada. Temas e formas se entrecruzam nas suas
obras: a de Di com Martinho, a de Noêmia com Di, a de Valda com Martinho, Di e
Noêmia, Martinho e Valda. As musas são transfiguradas em artistas.
185
Figura 181 - Noêmia Mourão, Mulata, 1949. Óleo s/tela, 38 x 46 cm.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
Para Coli (2005, p. 83), “um dos grandes prazeres dos historiadores da arte é
descobrir as imagens renascendo dentro de outras imagens, tomando novos
sentidos, ressuscitando o mesmo para se transformar em outro”, pois o processo de
um artista, no pensamento dos historiadores da arte, reitera-se nos processos mais
amplos das produções artísticas. Pensando dessa forma, não posso deixar
novamente de estabelecer conexões topográficas, agora entre Valda Costa e
Portinari. Mais uma vez, vida e obra se imbricam nos vastos labirintos do destino.
Portinari, como Valda, era um homem de origem humilde (filho de imigrantes
modestos do interior de São Paulo) que contou com seu talento para ocupar um
lugar no sistema das artes.
Figura 182 - Portinari, Café, 1935. Óleo s/tela, 195 x 130 cm.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
186
Impressionavam-me os pés dos trabalhadores das fazendas de café. s
disformes. Pés que podem contar uma história. Confundiam-se com as
pedras e os espinhos. Pés semelhantes aos mapas: com montes e vales,
vincos como rios. [...] Pés sofridos com muitos e muitos quilômetros de
marcha. s que os santos têm. Sobre a terra, difícil era distingui-los. Os
pés e a terra tinham a mesma moldagem variada. Raros tinham dez dedos,
pelo menos dez unhas. Pés que inspiravam piedade e respeito. Agarrados
ao solo, eram como alicerces, muitas vezes suportavam apenas um corpo
franzino e doente. Pés cheios de s que expressavam alguma coisa de
força, terríveis e pacientes. (PORTINARI, 1997, p. 6).
Figura 183 - Valda Costa, sem título, 1982. Óleo s/eucatex, 110 x 70 cm.
Fonte: Coleção Família Silva.
Figura 184 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1987. Óleo s/eucatex, 34 x 22 cm.
Fonte: Coleção Milton Bordin.
Sobre Portinari, Mário de Andrade (apud CHIARELLI, 2007, p. 152-154)
escreveu:
Inquieto, mas persistente, sua pintura muda freqüentemente de aspecto
exterior, mas mantendo sempre a marca de uma personalidade
inconfundível. É que descendendo de um meio rural, Cândido Portinari,
187
conserva a alma e a força populares. Vivendo desde adolescente no Rio de
Janeiro e freqüentando agora pessoas de todas as classes, conserva,
entretanto a pronúncia caipira” paulista que escutou em sua infância. [...] E
sua própria temática brasileira, que tanto o identifica com sua terra, também
é desconfiada e o deriva de nenhum nacionalismo loquaz. É muito mais
uma necessidade do seu espírito popular, uma conseqüência lógica do seu
estilo. [...]
Estaria Mário de Andrade falando de Valda Costa? Nonsense, mas possível,
se não fosse o abismo temporal e de espaço entre as duas figuras (a de Valda
Costa e a de Portinari, além, é óbvio, a de Mário de Andrade).
Outra possível aproximação pode ser feita, dessa vez, com Lasar Segall, que
representou o negro brasileiro, conforme aponta Guéguen (2007), com “a secreta
nostalgia das raças exiladas”, ou seja, como seres despregados das estilizações da
então dita “arte negra” como expressão do “bom selvagem”. Segundo o autor, Segall
deslocou a questão da arte negra para a condição social e para os processos
políticos da mestiçagem a ponto de se auto-representar como mulato na pintura
Encontro, datada de 1924. As paisagens elaboradas por Segall confrontam o
expressionismo alemão com a luz tropical, revelando a descoberta da paisagem
social brasileira. Das telas de Segall brota uma natureza cultivada e ordenada, tendo
na obra intitulada O Bananal (Figura 185) um exemplo de paisagem social marcada
por uma ética do trabalho. Como em Valda Costa, a obra de Segall demonstra um
impulso de identificação e de pertencimento.
Figura 185 - Lasar Segall, O Bananal, 1927. Óleo s/tela, 127 x 82 cm.
Fonte: GUÉGUEN, 2007.
188
Como aponta Schultz (2002, p. 129),
Dibujos y pinturas de negros, así como paisajes tropicales, ocuparon su
voluntad de realización. Su famosa obra Bananal es uma síntesis y a la vez
muestra expansiva del impacto que puede producir en un artista la fuerza de
un lugar y la fuerza de una etnia: plantación de bananos y campesino negro.
Arrisco-me mesmo com um olho teimoso a buscar vestígios de outros artistas,
pois, como salientou Merleau-Ponty (2002, p. 86-87),
a percepção estiliza, isto é, ela afeta todos os elementos de um corpo ou
de uma conduta, de um certo desvio comum em relação a uma norma
familiar que possuo no meu íntimo. Mas, se não sou pintor, essa mulher que
passa fala apenas a meu corpo ou a meu sentimento de vida. Se o sou,
essa primeira significação suscitará outra. o vou apenas recorrer à minha
percepção visual e pôr nelas os traços, as cores, os contornos, e somente
esses, entre os quais se tornará manifesto o valor sensual ou o valor vital
dessa mulher. Minha escolha e os gestos que ela orienta vão ainda
submeter-se a uma condição mais restritiva: tudo o que encontrei,
comparado ao real ‘observável’, será submetido a um princípio de
deformações mais secreto, que fará finalmente com que aquilo que o
espectador verá na tela não seja mais apenas a evocação de uma mulher,
nem de uma profissão, nem mesmo de uma concepção de vida, mas de
uma maneira típica de habitar o mundo e de tratá-lo, enfim, de significá-
lo...[...] É preciso então que o mundo percebido pelo homem seja tal que
possamos nele fazer parecer, por um certo arranjo de elementos, emblemas
não apenas de nossas intenções instintivas, mas também de nossa relação
mais íntima com o ser.
Figura 186 - Édouard Vuillard, Mother and Sister of the Artist, 1893. Oil on canvas. 18 1/4 x 22 1/4"
(46.3 x 56.5 cm). Gift of Mrs. Saidie A. May. © 2005 Artists Rights Society (ARS), New York/ADAGP,
Paris.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
189
Édouard Vuillard esteve durante boa parte de sua vida em contato com
matérias de costura (sua mãe era costureira) e com os desenhos têxteis do seu tio, o
que por certo influenciou a sua formação artística. Artista vinculado ao grupo Nabis,
recorreu a diversas fontes de inspiração para elaborar uma obra de cunho intimista,
delicada e ornamental. Percebe-se uma forte influência da gravura japonesa e do art
nouveau nos seus traços. Valda Costa, também oriunda de uma família de exímias
costureiras, deixa à mostra em muitos de seus quadros, como, por exemplo, o da
negra sob um fundo floral que se confunde com o vestido (Figura 187), um traço
fluido delicado e sensual.
Figura 187 - Valda Costa, sem
título, 1981. Óleo s/eucatex, 37 x 23
cm.
Fonte: Coleção José Alfredo Beirão.
Figura 188 - Detalhe óleo s/eucatex
37 x 23 cm.
O mesmo é percebido no quadro apresentado a seguir (Figura 189), no qual
as linhas ondulantes do pote, do fundo, do peixe e do prato são abraçadas pelas
sinuosas folhas que controlam e unificam a obra.
Figura 189 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1981. Óleo s/eucatex, 37 x 23 cm.
Fonte: Coleção José Alfredo Beirão.
190
Outra matriz percebida na obra de Valda Costa é a cubista. No caso da
artista, a geometrização das figuras é resultado de uma arte intuitiva derivada da
experiência visual e da invenção (Figura 190).
Figura 190 - Valda Costa, assinado Vivalda, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 38 x 24 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 191 - Georges Braque, Le Viaduc à l’Estaque, 1908. Óleo s/tela, 59 x 72,5 cm. Museu
Nacional de Arte Moderna de Paris.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
Além do fauvismo, do expressionismo, da arte naïf e da arte brut, Valda fez
incursões também pelo mundo imóvel, intimista e melancólico da arte metafísica. A
dimensão metafísica pode ser encontrada em muitos artistas mais próximos de
Valda Costa, tais como em Martinho de Haro, em Tarsila do Amaral e até mesmo na
pintura social de Cândido Portinari. Em Valda, a natureza-morta imobilizada pelo
silêncio parece indicar o vazio, a busca pelo inominável. A frieza é quebrada pelo
delicado e singelo vaso de flores, todo branco, todo puro (Figura 192).
191
Figura 192 - Valda Costa, sem título, 1987. Óleo
s/ eucatex, 23 x 38 cm.
Fonte: Coleção Família Silva.
Figura 193 - Giorgio Morandi, Natureza-Morta,
1955.
Fonte: Coleção particular.
A pintura é ‘ruminação do olhar’ e ‘inspiração, expiração, respiração no Ser.
[...]. A pintura é transubstanciação do sensível, passagem da carne do
mundo na carne do pintor para que dela se faça presente um novo visível, o
quadro, visível do visível, feito por um vidente que participa da visibilidade.
(CHAUÍ, 1988, p. 60).
Para estabelecer visibilidades e conexões entre as obras de Valda Costa e as
de outros artistas, é importante frisar (conforme citado na introdução desta tese)
que mergulhar na produção plástica de Valda não somente permite tecer
considerações sobre as inquietações da artista como também possibilita criar
cruzamentos de sentidos inesperados que dialogam com artistas de outros tempos,
espaços, subjetividades e estilos.
Nesse sentido, cabe ressaltar que o pensamento de Carlo Ginzburg, Aby
Warburg, Walter Benjamin e Georges Didi-Huberman instruiu e organizou o meu
olhar sobre esse percurso trilhado, ou seja, o da imagem que produz um regime de
significação por meio de vestígios, mas, e também, o da imagem que sobrevive e
que se desloca no tempo e no espaço, que é retorno o do idêntico, mas da
possibilidade do passado
187
.
187
Conforme Pereira (2006), há que se repensar a idéia de sistema para a história das imagens, pois
mesmo que exista algo de sistemático as imagens não são exatamente um sistema; existem redes
temáticas e mesmo redes de redes (rizoma) que as obras tecem entre elas, mas certamente não uma
rede de redes que possa ser costurada de uma ponta a outra. Assim, as funções aquilo para que
servem as imagens podem ser múltiplas, contraditórias, ambíguas e polivalentes. [...] E nisso deve-
se levar em conta também a produção e a recepção da imagem, com todas as relações dialéticas,
abertas, ampliadas e problematizadas por ela.
192
Cada presente é definido por aquelas imagens que lhe são sincrônicas:
cada agora é o agora de uma determinada recognoscibilidade. Nele a
verdade está, até à explosão, carregada de temporalidade. [...] Não que o
passado lance a sua luz sobre o presente ou que o presente lance sua luz
sobre o passado, mas “imagem” é, aí, aquilo em que o pretérito se junta de
modo fulgurante, com o agora, em uma constelação. Noutras palavras:
”imagem” é a dialética em paralisação. [...] A imagem lida, isto é, a imagem
no agora de sua recognoscibilidade, porta em alto grau a marca do
momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura. (MESQUITA; SILVA,
2004).
Pensando nas palavras de Benjamin (apud MESQUITA; SILVA, 2004),
sublinho que as imagens possuem também valor de deslocamento, de passagem,
de indefinição. Assim, no próximo capítulo, mais uma vez tentarei tecer redes de
associações e de cruzamentos de sentidos na busca de uma leitura não atrelada a
significados já dados da obra de Valda Costa.
193
4 O RETRATO COMO BIOGRAFIA EM VALDA COSTA: O DIÁLOGO
ENTRE VIDA E OBRA
Quando [uma] atitude diante da arte e da vida, da artevida, não mais for possível, por ter o
pensamento selvagem encontrado o seu horizonte intransponível, numa possível e provável situação
pós-humana, a arte terá encontrado sua morte. Até lá é essa a questão central da arte.
Teixeira Coelho
Sendo a obra de Valda Costa vista aqui como uma narrativa biográfica,
espelho, lugar de auto-reconhecimento, "obra de alteridade", aparição, penso (como
o fez Teixeira (2003, p. 76) na análise da novela de Balzac intitulada A Obra-Prima
Ignorada) a questão do lugar da arte na vida, ou seja, “a relação entre arte e vida e
da arte no lugar da vida, da arte como alternativa à vida e da arte como a morte da
vida”. Misturando personagens reais da História da Arte com personagens fictícios,
porém verossímeis, Balzac criou uma novela habitada pelas intensas forças das
relações entre vida e obra
188
. Tanto quanto Balzac e, por conseguinte, Teixeira
Coelho, acredito ser possível captar uma vida por meio de uma obra, pois, “se não
for nesse foco, não interessa, a arte não interessa” (TEIXEIRA, 2003, p. 76).
Assim, neste capítulo, procuro elaborar interseções entre vida e obra optando
pelo foco seminal da análise da obra de Valda Costa, qual seja o retrato (ou o auto-
retrato) como narrativa biográfica que passa pelo “eu” e pelo outro, pela
preocupação do sentido de estar no mundo, pela construção de identidades
superpostas, múltiplas, cumulativas e nômades, pela reinvenção de mim como outro,
como espaço e territorialidade, pois
O ‘eu’ forjado em valores e normas históricas, por teorias históricas e
discursos do saber, [...] o sou eu: é apenas uma passagem, um momento
de mim. [...]. Esta é a identidade nômade: uma heterotopia de mim, um
espaço outro, que, conectado a todos os espaços dos quais eu falo e sou,
abre o caminho para a transformação. (SWAIN, 2002, p. 340).
188
A associação feita à novela de Balzac com a figura mitológica do Pigmaleão poderia também ser
feita, no sentido dado pela psicologia, à Valda Costa. Dá-se o nome de “efeito pigmaleão” ao efeito de
nossas expectativas e percepções em relação à realidade, ou seja, a maneira como nos relacionamos
com essa realidade de forma que realizássemos a realidade de acordo com as nossas expectativas
em relação a ela.
194
As diversas transformações e mutações de Valda Costa percebidas na sua
obra indicam o caminho da artista na busca da criação de imagens pessoais que
nascem de traços residuais autobiográficos metamorfoseados no vigor de suas
pinceladas. Seriam os quadros de Valda as impressões de si em um outro deslocado
e lido em dobras? Seriam mergulhos no “eu” ou arremessos no outro?
Figura 194 - Valda Costa,
sem título, s/d. 40 x 28 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 195 - Valda Costa,
sem título, 1988. Óleo
s/eucatex, 33 x 29 cm.
Fonte: Coleção João do
Amarante.
Figura 196 - Valda Costa, sem título,
1989. Óleo s/eucatex, 24 x 28 cm.
Fonte: Coleção particular.
Três mulheres, os repetitivos olhos oblíquos de malícia, seios fartos, lábios
grossos, pele negra (Figuras 194, 195, 196). As cores e os penteados dos cabelos
variam, vestidos sempre ajustados realçam as belas formas do corpo. O morro, o
barco, os peixes e novamente o morro estão sempre presentes. O mundo que
condensa o corpo e que, portanto, resume-se nos rostos, todos parelhos, quase
iguais. O mesmo olhar, a mesma pose, as mesmas referências, a mesma mulher
nas suas diversas facetas (ou seriam faces?).
Como os personagens de Guimarães Rosa
189
que vagueiam pelas páginas dos
seus livros guiados pelas experiências vividas do autor e, talvez, não plenamente
elaboradas, as diversas faces (ou máscaras) de Valda Costa certamente também
são criadas pela necessidade da artista de vivê-las e de ordená-las em um plano em
que tudo é possível: o plano da criação, a obra, pois o
189
Um exemplo pode ser visto no conto O espelho. “Mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não
este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto quase delineado, apenas
mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de
menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?” (GUIMARÃES
ROSA, 1994, p. 441-442).
195
quadro congela o Desejo que se oferece no esvaecimento do mistério da
geração, acompanhando o cortejo de sua paixões: Jogo, Prazer e outros
Amores, Duplicidade, Ciúme e outras Loucuras. Máscaras e rostos
misturam-se aesse levantamento do u que revela a pulsão vital em sua
mais brilhante manifestação: [a obra]. (LAMBOTTE, 2000, p. 105).
Segundo Sontag (apud WERNECK, 1996, p. 35), não se pode interpretar a
obra a partir da vida, mas sim a partir da obra interpretar a vida. É o caso de Walter
Benjamin, em cujos escritos haveria uma teoria da melancolia tal como havia nos
seus olhos reproduzidos em diversas fotografias e, “também, nas suas atitudes
diante de interlocutores, uma atenção desviada que lhe dava o ar de ser melancólico
e solitário, de temperamento saturnino”. Pensando no que até o momento foi
elaborado, me pergunto onde, na produção plástica de Valda Costa, termina a artista
e começa a personagem? Em que ponto tudo se torna expressão e arte?
Figura 197 - Valda Costa, sem título, 1986. Óleo s/eucatex, 32 x 32 cm.
Fonte: Coleção particular.
Ainda três mulheres, rostos e expressões as aproximam (Figura 197). Qual
desses rostos pertence a Valda Costa? Qual é o verdadeiro rosto da artista? O
mundo na tela: três versões de si num espaço e num tempo. O duplo, figura
imaginária que persegue o sujeito como o “seu outro” que faz com que seja ele
196
mesmo e, ao mesmo tempo, nunca se pareça consigo. O simulacro que pode se
tornar “realidade” (BAUDRILLARD, 1991).
Figura 198 - Valda Costa, sem título, 1986. Óleo
s/eucatex, 43 x 28 cm.
Fonte: Coleção Moacir José Serpa.
Figura 199 - Valda Costa, sem título, 1986. Óleo
s/eucatex, 42 x 32 cm.
Fonte: Coleção Eliane Oliveira.
O retrato assinala o lugar do simbólico, e quando nos atrai em meio a uma
teoria de rostos indiferentes ou anônimos, é porque esse retrato, entre tantos outros,
é de alguém que existiu e que não se parecia com nenhum outro, a não ser com os
seus próprios duplos (CLAIR, 1999).
É certo que o processo de criação da imagem pessoal é um fenômeno
presente na cultura humana desde tempos remotos: sua origem está marcada ainda
na Pré-História com o surgimento da pintura. Segundo Plínio (apud DUBOIS, 1993),
a pintura nasceu com a delimitação do contorno da sombra humana quando a filha
de um oleiro de Sicion, Dibutades, enamorada de um rapaz que precisava partir,
projeta na parede de uma caverna a sombra do jovem. Eis, muito classicamente, o
dispositivo princeps, o gesto inaugural que remonta a pintura não somente em sua
origem, mas igualmente em sua essência. “A fim de conjurar a ausência futura de
seu amante e conservar um traço físico de sua presença atual, [...] ocorre à moça a
idéia de representar na parede com carvão a silhueta do outro projetada: no
197
instante derradeiro e flamejante, e para matar o tempo, fixar a sombra que ainda
está ali, mas logo estará ausente.” (DUBOIS, 1993).
Partilhando com Plínio (apud DUBOIS, 1993) a idéia do retrato como gestão
de uma perda ou do “falar” de alguém que está ausente, Didi-Huberman (1990) diz
que:
a questão do retrato começa, talvez, no dia em que, diante do nosso olhar
aterrado, um rosto amado, um rosto próximo cai contra o solo para não se
levantar mais. Para finalmente desaparecer na terra e se misturar a ela. A
questão do retrato começa talvez no dia em que um rosto começa diante de
mim a não estar mais porque a terra começa a devorá-lo. Longe, então,
de mostrar puramente a representação plena dos rostos, o que os retratos
fariam, depois de tudo, seria apenas poetizar – isto é, produzir – uma tensão
sem recurso entre a representação dos rostos e a difícil gestão de sua
perda, ou de uma espécie de esvaziamento interior, por exemplo, esse
descarnamento que deixará à mostra apenas um crânio na terra. O que a
terra preenche quando o rosto é escavado voltando então o crânio ao que
rigorosamente é, a saber, uma caixa aberta, uma caixa esburacada é o
que o retrato, com outros meios e para outros efeitos, “preencheria” também
(como se enche um esvaziamento. Cova, mas também como se executa
uma função simbólica). Nos dois casos, um rosto se ausenta; nos dois
casos uma morte significa-se pelo esvaziamento. E, por conseguinte, em
todos os casos, a questão do retrato seria uma questão do lugar. (DIDI-
HUBERMAN, 1990, p. 62)
Para Costa (2002), o processo de criação da imagem pessoal está presente
na cultura humana há muito tempo. Segundo a autora, o rosto é a parte do corpo
que pouco vemos e conhecemos, motivo pelo qual aprendemos a avaliar a
sensação que causamos mirando-nos no olhar de outrem. A reação que neles
percebemos nos dá a dimensão de nossa presença.
Dessa preocupação e estranhamento em relação à nossa fisionomia
originaram-se diferentes manifestações artísticas como as máscaras, as
pinturas corporais e os retratos. Surgiram também mitos como o de Narciso
que, não reconhecendo o reflexo do próprio rosto na água, por ele se
apaixona. (COSTA, 2002, p. 99)
Seguindo um caminho semelhante ao de Narciso, que se apaixonou pela
própria imagem, Dorian Gray (de Oscar Wilde)
190
conta a história de um nobre que,
encantado com seu retrato – pintado por um artista –, deseja permanecer para
sempre como nele aparece: jovem e sedutor. Escrito em 1890, este livro traduz, na
190
Lambotte (2000, p. 134) afirma que “O narcisismo primitivo, ameaçado pela eventualidade
permanente da destruição do Eu [Moi], estaria na origem da invenção da noção de alma, como o
duplo tão exato quanto possível do eu corpóreo; ele se oporia então à morte por um desdobramento
do Eu, sob a forma de uma sombra ou de um reflexo”.
198
verdade, as principais preocupações estéticas do autor que, por meio do
personagem Dorian, descreve com minúcia os cabelos, os olhos, a face e o
temperamento sedutor do personagem enfatizando o desejo pela beleza e pela
juventude eternas. Segundo Dorian, “[...] é pena que uma criatura tão radiosa deva
envelhecer” (HALLWARD, 2005, p. 11).
E foi com o desejo de permanência que o retrato surgiu com a arte funerária
egípcia no Novo Império, em 1500 a.C., quando passou da representação
esquemática da imagem do faraó para o retrato em si mesmo, mas sempre atrelado
à questão semi-humana e semidivina. Na Idade Média, o retrato manteve o seu
caráter sagrado, e os papas foram representados como os fundadores da Igreja,
assim como os reis, considerados os eleitos por Deus. No Renascimento, não
havia necessidade de uma justificativa sagrada, e o retrato se converteu em um
gênero independente, acompanhando a doutrina filosófica segundo a qual o homem
é o centro das atenções. O artista se concentrou na busca de efeitos visuais,
posicionou as figuras em fundos imaginários e criou diversos tipos de retratos: de
perfil, de frente, de três-quartos, assim como os retratos de busto, de ou
recostado.
O retrato alcançou o seu auge no Maneirismo, devido à proibição das
imagens religiosas nos países protestantes como conseqüência da reforma. Assim,
o gênero se diversificou ainda mais e se difundiu por vários países, principalmente
sob a influência dos holandeses. Essa difusão da retratística acompanhou os
anseios da corte e da burguesia urbana no que concerne à projeção das suas
imagens na esfera da vida pública e privada.
Do século XVII ao XIX novos contornos seriam agregados aos retratos.
Realmente passam a ser observadas figuras de segmentos sociais mais amplos e
uma maior liberdade expressiva. O grande esplendor do retrato acontece no século
XIX, graças ao impulso da classe burguesa, que buscou possuir tudo o que era
antes privilégio da nobreza. Durante a primeira metade daquele século,
desenvolveram-se três tipos dominantes de retratos: (1) o retrato de ostentação, no
qual a pessoa era representada nos exercício de seu ofício; (2) o de três-quartos; e
(3) o busto, que se revelava uma solução financeiramente vantajosa.
Em 1839, com a invenção da fotografia, camadas mais amplas da sociedade
tiveram acesso ao retrato. No retrato em pintura, por sua vez, o indivíduo deixou de
ser modelo e se converteu em um motivo pictórico, permitindo aos artistas
199
desenvolverem seus interesses plásticos. Nesse processo, impressionistas e neo-
impressionistas romperam definitivamente com o acento naturalista que marcou a
tradição retratística. A fotografia representou uma grande contribuição para tal
ruptura daquela tradição, mas cabe enfatizar que ela mesma impôs e desenvolveu
um repertório próprio.
Roland Barthes, no livro intitulado A mara Clara, estudou os diversos
significados do ato fotográfico. Nele percebeu uma complexidade que definiu como
“campo cerrado de forças”, em que quatro imaginários se cruzam, se afrontam e se
deformam. Diante da objetiva, o fotografado é, ao mesmo tempo, aquele que se
julga, aquele que gostaria que julgassem, aquele que o fotógrafo julga e aquele de
quem ele (o fotógrafo) se serve para exibir a sua arte. Ou seja, para o autor o
fotografado não pára de se imitar, e é por isso que, cada vez que se deixa fotografar,
é, infalivelmente, tocado por uma sensação de inautencidade, às vezes de
impostura. Entretanto, ainda para o autor, a fotografia representa esse momento
muito sutil em que, para dizer a verdade, não somos nem um sujeito nem um objeto,
mas antes um sujeito que se torna objeto:
vivo então uma microexperiência da morte (do parêntese): torno-me
verdadeiramente espectro. O fotógrafo sabe muito bem disso, e ele mesmo
tem medo (ainda que por razões comerciais) dessa morte que seu gesto irá
embalsamar-se. [...] Seria possível dizer que, terrificado, o fotógrafo tem de
lutar muito para que a fotografia não seja a morte. (BARTHES, 1984, p. 27-
28).
O autor menciona ainda que a fotografia é contingente e que pode dar
significado se assumir uma máscara como aquela que Calvino designou, aquela que
faz de uma face o produto de uma sociedade e de sua história.
É o que ocorre com o retrato de Avedon: a essência da escravidão é aqui
colocada a nu: a máscara é o sentido, na medida que é absolutamente puro
(como o era no teatro antigo). É por isso que os grandes retratistas são
grandes mitólogos. [...] A máscara é, no entanto, a região difícil da
Fotografia. [...] A Fotografia da Máscara é, de fato, suficientemente crítica
para inquietar (em 1934, os nazistas censuraram Sander porque seus
‘rostos da época’ não correspondiam ao arquétipo nazista da raça), mas,
por outro lado, é muito discreta (ou muito ‘distinta’) para constituir
verdadeiramente uma crítica social eficaz, pelo menos segundo as
exigências do militarismo: qual ciência engajada reconheceria o interesse da
fisiognomonia? (BARTHES, 1984, p. 58)
191
.
191
Aqui seria interessante buscar imbricações com o conceito de scara em Lacan e em seus
leitores.
200
Segundo Costa (2002, p. 98), o retrato é um gênero cuja importância
sociológica “vai além do seu valor estético por envolver processos psicossociais
importantes, como a identidade da pessoa retratada e a elaboração da sua auto-
imagem. Além disso, estabelece uma delicada relação entre artista, retratado e
público”.
Já para Miceli (1996, p. 14), os retratos são imagens negociadas entre artistas
e retratados. Ambos os lados se servem para expressar seus anseios nas diferentes
esferas da experiência social. “Beleza, amores e sentimentos arrebatados,
pretensões materiais de prestígio e poder; embates institucionais e rivalidades
políticas eis alguns dos ingredientes mobilizados nesse inesgotável jogo de
imagens.”
Compartilhando o espaço da perspectiva acima apontada, existe também
aquela que confere ao retrato um caráter mais grupal, ajudando a compor a memória
coletiva, familiar ou institucional, que celebra uniões, nascimentos e mortes.
Segundo Lejeune (1996), o retrato funciona a partir do pressuposto de que
o indivíduo retratado tem valor social. Situação diferente, ainda de acordo com o
autor, caracterizaria o auto-retrato: “no meio do gênero mais codificado (o auto-
retrato) uma centelha (que às vezes se origina do espírito do espectador) deixa à
vista de maneira vertiginosa a essência da arte: a auto-representação do homem (e
não do mundo), o auto-retrato tornando-se a alegoria da própria arte”. (LEJEUNE,
1996, p. 88).
Ainda conforme Lejeune (1996), o auto-retrato e o retrato são distinções entre
gêneros como autobiografia e biografia.
Na verdade, essa distinção trata da diferença entre identidade e semelhança.
Enquanto a identidade para o autor é um fato estabelecido no nível da enunciação,
para ser aceito ou recusado, a semelhança se produz a partir de uma relação em
que as duas pontas localizam-se no enunciado, estando sujeita a margens mais
fluidas de aferição que a identidade.
Se para definir a identidade opera-se com três termos narrador e enunciado
(localizados no interior de um texto) e autor (o referente do sujeito da enunciação) –,
para definir a semelhança recorre-se a um quarto termo, um referente extra-textual
ou modelo. É perseguindo a semelhança que se cometem erros na comparação
201
entre biografia e autobiografia, quando se considera a primeira simplesmente um
caso particular do gênero no qual domina a segunda
192
.
No que se refere ao auto-retrato como autobiografia, Beaujour (1980) afirma
que o auto-retrato se distingue da autobiografia pela ausência de uma narrativa
linear, e, por conseguinte, de um desenrolar lógico dividido em temas. Segundo esse
autor, ao auto-retrato resta, para os historiadores e para os teóricos, um discurso do
fora, uma antimemória que repousa sobre a analogia ou metáfora, ou seja, a poesia.
Beaujour (1980, p. 8-9) diz ainda que a oposição entre a narrativa, de um
lado, e a analogia, a metáfora e a poesia, de outro, permite esclarecer um traço
importante do auto-retrato, ou seja, aquele que tenta constituir coerência graças a
um sistema de lembranças, de reprises, de superposições ou de correspondências
entre os elementos homólogos e substituíveis, de tal maneira que a sua aparência é
aquela do descontínuo, da justaposição anacrônica e da montagem, que se opõem à
lógica de uma narração. A totalização do auto-retrato não é dada de antemão, pois
sempre se podem juntar ao paradigma elementos homólogos, enquanto que na
autobiografia o caráter fechado já está implícito na escolha do curriculum vitae. “La
formule operátoire de l’autoportrait est donc: Je ne vous raconterai pas ce que j’ai
fait, mas je vous dire qui je suis” (BEAUJOUR, 1980, p. 8-9).
Sobre auto-imagem, Saramago (1999) diz que a função do retrato seria a de
registrar a imagem observada do outro. No entanto, o retrato se transforma em uma
aproximação consigo mesmo, uma superfície reflexiva em que a imagem que
aparece, como num espelho, é a sua, pois, quem retrata, a si mesmo se retrata.
Assim, nesse processo, o importante é o pintor, e o retrato vale o que o pintor
valer
193
.
192
Ainda para Lejeune (1996), é certo que o erro que se comete na medida em que ambos se
definem como textos referenciais e como tal “pretendem trazer uma informação sobre uma ‘realidade’
exterior ao texto, estão sujeitos à prova de verificação”. O pacto referencial incluiria uma definição do
campo do real visado e uma explicitação das modalidades e do grau de semelhanças que o texto
pretende alcançar. Ser, entre tantas coisas, é mergulhar sua própria máscara persona alheia no
profundo coração do outro, o que constitui a verdadeira viagem às míticas traduções das trevas.
O
artista, assim, opera o
cirúrgico corte do onírico quando anuncia em versos a sua múltipla identidade.
193
Seria também oportuno fazer aqui um contraponto com Cortazar (2003), no livro Jogo de
Amarelinhas. Neste livro, o autor cria um sistema de personagens que dialogam com seus duplos, um
composto inter-relacional em que um personagem se entrelaça com o outro e afirma o “eu” do outro
não como objeto, mas como outro sujeito.
202
Saramago (1999, p. 79) ainda menciona que:
O Dr. Gachet que Van Gogh pintou é Van Gogh, não Gachet, e os mil trajos
(veludos, plumas, colares de ouro) com que Rembrandt se retratou são
meros expedientes para parecer que pintava outra gente ao pintar uma
diferente aparência. Disse que não gosto da minha pintura: porque não
gosto de mim e sou obrigado a ver-me em cada retrato que pinto.
Figura 200 - Valda Costa, sem título, data
ilegível. Óleo s/eucatex, 42 x 28 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 201 - Fotografia de Valda Costa com os
filhos Miguel Angelo e Marcos Pólo.
Fonte: Acervo Ricardo Molduraria ARTCA.
Neste ponto, retomo Valda Costa, o seu processo criativo, a sua constante
repetição de tipos humanos, as cenas domésticas e os lugares, meros expedientes
para parecer que são outra gente e outros lugares. As máscaras que velam e
revelam personagens como um duplo, um outro, uma dobra de si. O auto-retrato não
como um traço autobiográfico, mas como um biografema que se revela pelos
fragmentos de um corpo de representação (CARAMELLA, 1996).
203
Figura 202 - Valda Costa, sem título, detalhe, s/d. Desenho.
Fonte: Coleção João do Amarante.
O rosto emoldurado por uma imensa gola trabalhada à espera de uma
máscara (Figura 202). Traços rápidos e fluídos mostram que a artista tinha pressa.
No espaço vazio do rosto de Valda Costa cabem muitas máscaras, vários rostos,
rostos e máscaras que podem ser vistos como a cara do mundo para além da face
humana, rostos voltados para o mundo das sensibilidades e das percepções de
Valda Costa. Qual desses rostos ou máscaras irá para a posteridade?
No romance intitulado Manual de Pintura e Caligrafia, Saramago (1999) traz a
narrativa de um pintor de retratos medíocre que, infeliz com seus dois últimos
quadros, decide autobiografar a sua vida e, conseqüentemente, as suas
experiências com a pintura e a escrita. Assim, nas imbricações entre as linguagens
escrita e pintada, esse pintor busca elementos para justificar uma narrativa do “eu”
em confronto com uma multiplicidade de identidades possíveis e cambiantes com as
quais pode se identificar. O pintor reconhecerá, ao final, que na justaposição do
retrato e da biografia tudo é autobiografia.
Mas quem escreve? Também a si escreverá? Que é Tolstoi na Guerra e
Paz? Que é Stendhal na Cartuxa? É a Cartuxa todo o Stendhal? Quando
um e outro acabaram de escrever estes livros, encontraram-se neles? Ou
acreditaram ter escrito rigorosamente e apenas obras de ficção? [...] Tudo é
biografia, digo eu. Tudo é autobiografia, digo com mais razão ainda, eu que
a procuro (a autobiografia? a razão?). Em tudo ela se introduz (qual?), como
uma delgadíssima lâmina metida na fenda da porta e que faz saltar o trinco,
devassando a casa. [...] a complexidade das multiplicadas linguagens
em que essa autobiografia se escreve e se mostra, permite, ainda assim,
204
que em relativo recato, em segredo bastante, possamos circular no meio
dos nossos diferentes semelhantes. (SARAMAGO, 1999, p. 169).
Como uma delgadíssima lâmina eu me meti nas fendas e nas frestas da obra
de Valda Costa e encontrei algum espaço para significações. Entretanto, essas
significações elaboradas foram e são incapazes de traduzir uma verdade, pois, tal
qual o narrador de Manual de Pintura e Caligrafia, de José Saramago, reconheço a
impossibilidade para a pintura e/ou para a escrita, ou para o retrato e/ou para a
biografia, de captar a “imagem do verdadeiro”, que nenhuma imagem ou texto
pode fixar o instante: “o instante não existe”. A invenção tem maior probabilidade de
ser exata porque a realidade é intraduzível, é plástica, é dinâmica e é dialética
também.
Não é tempo. Não é ainda tempo. [...] O que ainda não está, o que veio e
transita, o que é não está [...] Insisto que tudo é biografia. Tudo é vida
vivida, pintada, escrita: o estar vivendo, o estar pintando, o estar
escrevendo: o ter vivido, o ter escrevido [sic], o ter pintado. (SARAMAGO,
1999, p. 132).
Nesse jogo da vida contada, vivida e escrita pelas palavras pintadas, Valda
Costa encontrou uma possibilidade de criar outras versões de si mesmo, e eu, por
meio das minhas palavras escritas nesta tese, de criar outras versões dela, pois,
como aponta Calvino (2002, p. 114),
seja como for, todas as ‘realidades’ e as ‘fantasias’ podem tomar forma
através da escrita, na qual exterioridade e interioridade, mundo e ego,
experiência e fantasia aparecem compostos da mesma matéria verbal; as
visões polimorfas obtidas através dos olhos e da alma encontram-se
contidas nas linhas uniformes de caracteres minúsculos ou maiúsculos, de
pontos e de vírgulas, de parênteses; páginas inteiras de sinais alinhados,
encostados uns aos outros como grãos de areia, representando o
espetáculo variegado do mundo numa superfície sempre igual e sempre
diversa, como as dunas impelidas pelo vento do deserto.
Assim, através da escrita
194
, criei algumas chaves de leituras, significações,
sobre a vida e a obra de Valda Costa. Com o olhar curioso, fiz relações e tentei
transpor as barreiras do puramente visual. Assim, li a obra da artista como uma
possível narrativa biográfica que, por meio de retratos e/ou auto-retratos (ou
biografia e/ou autobiografia), junta fragmentos de identidades. Mesmo havendo
descompasso de tempo, de valor e de espaço, fiz entrecruzamentos (e farei no
194
Para Descamps (apud GAMBONI, 2007, p. 13), “si la pintura de sobrevivir em la memória de la
humanidad, será también por medio de la escritura”.
205
próximo segmento deste capítulo da tese) entre Valda Costa e outros artistas que
apresentam as mesmas preocupações em suas obras, sejam elas na forma, sejam
no conteúdo.
4.1 Rosto ou máscara? Valda Costa e a construção de identidades através da
obra
Diante [...] de um rosto desconhecido imagino uma história inscrita nos traços fisionômicos
que contemplo: a história do indivíduo contemporâneo, representado nessa imagem, em que agora
me detenho. Olho no fundo dos olhos [...] que me observam mudos. Interrogo-os e não obtenho
resposta. O indivíduo que se mostra [...] está próximo e distante, é aquele lá e, ao mesmo tempo,
“qualquer um”.
Patrícia Lavelle
Eixo central nesta análise da obra de Valda Costa, o questionamento
identitário ganha diferentes abordagens e se aproxima da potência do corpo como
um lugar transitivo de autocriação e de redimensão do eu”. Valda encarnou
diferentes personagens no tempo e no espaço de suas telas, o seu lugar possível de
criação, modo privilegiado de se relacionar consigo mesma e, sobretudo, com
outrem. No reverso do espelho, o olhar sobre si se volta para si quando confrontado
a um outro
195
. É o reflexo que tem no corpo a possibilidade de apreensão do léxico
do outro. “En este pacto del Mismo y el Outro se presenta el problema crucial de la
identidad. [...] Nunca ser totalmente el Mismo, ni el Outro, nunca identificarse
totalmente, siempre mantener una distancia, una alteridad.” (CENCI, 2004, p. 87).
Segundo Hall (2000a), o debate sobre identidade tem dado inovadoras pistas
para o entendimento do momento atual em que vivemos. Onde est[aria], [então], a
necessidade de mais uma discussão sobre a ‘identidade’? Quem precisa dela? A
essa pergunta, o próprio autor responde, afirmando que a questão da identidade
vem sendo amplamente discutida na teoria social, pois as velhas identidades, que
por tanto tempo estabilizaram o mundo social, entraram em declínio. Novas
identidades surgiram e fragmentaram o indivíduo moderno, até então visto como um
195
Segundo Gombrich (2000, p. 111), “nos modelamos a nosotros mismos tanto en funcion de las
expectativas de los demás que asumimos la máscara o, como dicen los junguianos, la persona que la
vida nos asigna y nos vamos transformando em nuestro tipo hast que éste moldea toda nuestra
conducta, hasta la plasticidad del hombre, por supuesto, la de la mujer. Lãs mujeres actuan más
conscientemente sobre su tipo y imagen que la mayoria de los hombres y, com el maquillaje y el
peinado, uelen configurarse a si mismas como alguno de los ídolos de moda de la pantalla o la
escena.
206
sujeito unificado. As certezas caíram por terra. A chamada “crise de identidade”,
como aponta o autor, faz parte de um processo mais amplo de mudança que está
deslocando as estruturas e os processos centrais das sociedades modernas e
abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma certa estabilidade
social.
É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do
discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais
históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas
discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas. Além disso,
elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder e
são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que
o signo de uma unidade idêntica, naturalmente constituída, de uma
‘identidade isto é, uma mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem
costuras, inteiriça, sem diferenciação interna em seu significado tradicional.
(HALL, 2000a, p. 109).
Hall (2000b) apresenta três concepções distintas que alicerçam o pensamento
sobre a identidade.
A primeira, centrada no sujeito do Iluminismo, está baseada numa concepção
da pessoa humana como um indivíduo totalmente unificado, dotado das
capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consiste num núcleo
interior que emerge pela primeira vez quando o sujeito nasce e com ele se
desenvolve, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo contínuo ou
"idêntico" a ele ao longo da existência do indivíduo. O centro essencial do “eu”,
nessa concepção, é a identidade de uma pessoa.
A segunda concepção está atrelada à noção do sujeito sociológico, reflexo da
complexidade do mundo moderno. Nessa concepção, o núcleo interior do sujeito
não é autônomo e auto-suficiente, mas sim formado na relação com outras pessoas
importantes para ele que medem os valores, os sentidos e os símbolos (a cultura)
dos mundos que ele habita. De acordo com esse ponto de vista, que se tornou a
concepção sociológica clássica, a identidade é formada na “interação” entre o “eu” e
a sociedade. O sujeito ainda possui um núcleo (ou essência interior) que é o “eu
real”, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos
culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem. Logo, a
identidade costura o sujeito à estrutura.
A terceira e última concepção descrita por Hall (2000b) é a do sujeito pós-
moderno, sujeito esse que não possui identidade fixa, essencial ou permanente. No
207
sujeito pós-moderno, a identidade torna-se uma “celebração móvel” que é formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais é representada ou
solicitada nos sistemas culturais que a rodeiam. Esse sujeito é definido
historicamente, e não biologicamente. Assume identidades diferentes, em diferentes
momentos, que não são unificadas ao redor de um eu” coerente. No sujeito pós-
moderno, coexistem identidades contraditórias empurrando-o em diferentes
direções, de tal modo que as identificações estão sendo continuamente deslocadas.
Nessa concepção, a identidade plenamente identificada, completa, segura e
coerente é uma fantasia. Em vez disso, à medida que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais
podemos nos identificar (pelo menos temporariamente).
Ainda para Hall (2000a, p. 105), é na tentativa de rearticular a relação entre
sujeitos e práticas discursivas que a questão da identidade ou melhor, a questão
da identificação, caso se prefira enfatizar o processo de subjetivação (em vez das
práticas discursivas) e a política de exclusão que essa objetivação parece implicar
volta a aparecer.
A “identificação”, ainda seguindo o pensamento deste autor, acaba sendo um
conceito pouco desenvolvido na teoria social e cultural. Por essa razão, torna-se
necessário buscar subsídios de compreensão tanto no repertório discursivo quanto
no psicanalítico.
Na linguagem do senso comum, a ‘identificação’ é construída a partir do
reconhecimento de alguma origem comum, ou de características que são
partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo
ideal. [...] Ela o é, nunca, completamente determinada no sentido de que
se pode, sempre, ‘ganhá-la’ ou ‘perdê-la’, no sentido de que ela pode ser
sempre sustentada ou abandonada. [...] A identificação é, pois, um processo
de articulação, uma suturação, uma sobredeterminação, e não uma
subsunção. [...] [C]omo num processo, a identificação opera por meio da
différence, ela envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcação
de fronteiras simbólicas, a produção de efeitos de fronteiras’. Para
consolidar o processo, ele requer aquilo que é deixado de fora o exterior
que a constitui. (HALL, 2000b, p. 106).
No lugar de ver a identidade como um fato consumado e representado pelas
práticas culturais, Hall (2000b) propõe pensá-la como uma produção que nunca se
completa, que está sempre em processo e é sempre constituída internamente, e não
externamente à representação. O que definimos como nossas identidades poderia
208
provavelmente ser mais bem conceituado como as sedimentações ao longo do
tempo daquelas diferentes identificações ou posições que adotamos e procuramos
viver como se viessem de dentro, mas que, sem dúvida, são ocasionadas por um
conjunto especial de circunstâncias, sedimentos, histórias e experiências únicas e
peculiarmente nossas como sujeitos individuais.
Como representação social, a identidade é uma construção simbólica de
sentido que organiza um sistema compreensivo a partir da idéia de pertencimento. A
identidade é uma construção imaginária que produz uma certa coesão social,
permitindo a identificação da parte com o todo; também é relacional, pois se constitui
a partir da identificação. Diante do “eu” ou do nós” do pertencimento se instaura a
estrangeiridade do outro. Assumir identidades como construção imaginária de
sentido pode significar uma compensação simbólica em relação a perdas reais da
vida.
Nesse sentido de compensação simbólica a perdas reais da vida, Bhabha
(2003), tratando do tema da cultura para além da oposição sujeito/cultura, diz que
falar em sujeito significa falar de sujeitos híbridos e sem identificações fixas que se
estabelecem na fronteira do além. O além, para o autor, o significa um novo
horizonte nem um abandono ao passado, mas sim o momento de trânsito em que o
espaço e o tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e
identidade, de passado e de presente, de interior e de exterior, de inclusão e de
exclusão. Habitar o além é fazer parte de um tempo revisionário que renova o
passado refigurando-o como um entre-lugar que inova e interrompe a atuação do
presente da necessidade, e não da nostalgia de viver. Assim, estudar a fronteira do
além, para Bhabha (2003), é discutir os entre-lugares que fornecem terreno para a
elaboração de estratégias de subjetivação.
Ainda para Bhabha (2003), diferentemente da história morta, que narra as
contas do tempo seqüencial, estar no além é habitar um espaço intermediário, é ser
parte de um tempo revisionário, é residir num espaço de intervenção do aqui e do
agora. A partir do pensamento deste autor, retomo Valda Costa e sua vida narrada
nas telas, para, quem sabe, fazê-la coabitar um espaço do além, um espaço de
intervenção do aqui e do agora, pois, lidar com tal possibilidade de coabitação
requer uma invenção que renove e reconfigure o passado a partir de uma
sobrevivência: a do espaço de mim, já que o
209
[eu] nômade, sou outra, além daquilo que pareço e falo. Eu sou um espaço
de mim, migratório, de transição, nesta cartografia que me revela e me
nega. Eu sou o espelho de mim, um lugar sem lugar [...] em um espaço
irreal que se abre virtualmente atrás da superfície, eu estou lá, onde não
estou, uma espécie de sombra que me a mim mesma minha própria
visibilidade, que permite olhar-me lá onde não estou. (SWAIN, 2002, p.
340).
É no retrato (ou auto-retrato) ou na narrativa biográfica (ou na autobiografia)
que busco outras possibilidades de leituras da produção de Valda Costa, um de
aproximação do outrora com o agora, o sintoma da fragmentação. Valda operou as
suas transformações, mudou as suas identidades, viveu diversos papéis nos seus
“textos pintados”. Isso quer dizer que foi no espaço de sua obra que Valda encontrou
a possibilidade de cobrir o seu rosto com diversas máscaras, como aponta Sarlo
(2007, p. 31). Essas máscaras foram sendo moldadas ao longo de sua trajetória
artística e ganharam uma dimensão de ausência, de perda, de simulação, à medida
que Valda Costa foi perdendo estabilidade financeira, física e mental.
Conforme Sarlo (2007), é na perda de um sentido de si estável que se opera
a crise de identidade (o que oportuniza a coabitação de vários “eus”) transformando
o sujeito que fala em mera máscara ou assinatura. Valda cobria o seu rosto com
diversas máscaras, tinha distintas assinaturas (pode-se pensar aqui
metaforicamente, pois, conforme visto, Valda utilizou diversos nomes – assinaturas –
em seus quadros) e pintar lhe dava a oportunidade de vivê-las, todas, intensamente,
sem as agruras da vida fora das telas. Entretanto, quem são todas essas Valdas?
Aquela imagem entrevista de relance era mesmo a minha? Eu sou mesmo
assim, de fora, quando vivendo o me penso? Então para os outros eu
sou aquele estranho surpreendido no espelho; aquele, e não mais eu tal
como me conheço: aquele ali, que eu, de primeira, ao notá-lo, não
reconheci. Eu sou aquele estranho que não posso ver vivendo nem
conhecer senão assim, num momento de distração. Um estranho que só os
outros podem ver e conhecer, não eu. E desde então me fixei neste
propósito desesperado: de perseguir aquele estranho que estava em mim e
que me escapava, que eu não podia fixar diante de um espelho porque logo
se transformava em mim tal como eu me conhecia aquele um que vivia
pelos outros e que eu podia conhecer, que os outros viam vivendo, eu não.
Também eu queria vê-lo e conhecê-lo tal como os outros o viam e
conheciam. Repito: ainda acreditava que esse estranho fosse um só, um
para todos, assim como pensava ser um para mim. Mas logo esse meu
drama atroz se complicou com a descoberta dos cem mil Moscardas que eu
era o para os outros, mas também para mim. (PIRANDELLO, 2001, p.
33-34).
210
Como o personagem Vitangelo Moscarda, de Luigi Pirandello (2001), Valda
criou, possivelmente sem se dar conta, um espaço de reflexão em suas obras sobre
o seu próprio corpo, sobre as suas possíveis identidades, sobre as suas cem mil
faces. Talvez, e também como Moscarda, obcecada pela descoberta de que não é
unívoca, ou, o que até então imaginava ou desejava ser, esta artista revela nas suas
obras os muitos encontros e desencontros dela com ela própria e dela com o outro.
Matéria-prima da arte, o corpo nunca deixou de ser inventado e reinventado
pelos artistas, pois permite ser visto (e se a ver) como uma obra de arte em
potencial. De fato, para tratar o corpo como objeto de arte é preciso se afastar dele
para depois reinventá-lo de forma artística. Nesse processo de constante reinvenção
nascem auto-retratos como os de Valda Costa, os quais colocam em evidência os
problemas da visibilidade, da alteridade e da identidade. Nascem as diversas faces,
ou as diferentes máscaras da artista. Valda se auto-retratou recortando e criando
momentos de sua vida no refúgio mais íntimo e solitário de sua obra. Buscou, no
espaço de seu corpo, as marcas de possíveis e cobiçadas identidades. Seu corpo foi
o território por ela habitado, e ela fez dele a sua morada e a sua matéria artística.
Nas obras da artista aparecem e desaparecem as várias Valdas, Vivaldas, Ninas
(entre outras) por ela criadas e recriadas infinitamente
196
.
Pela existência dilacerada (doença, pobreza, solidão, incompreensão,
loucura...) e multifacetada (transitava em diferentes mundos, vivia vários papéis...),
Valda Costa fragmentou a sua personalidade para multiplicá-las em suas telas.
Criou, tal como Fernando Pessoa e muitos outros escritores, heterônimos em forma
de imagens, duplos. Os heterônimos, diferentemente dos sinônimos, constituem
várias pessoas que habitam um único criador. Cada um deles tem a sua própria
biografia como se os “eus” fragmentados e múltiplos eclodissem dentro do artista
gerando várias versões de si.
Na vertigem desse jogo, as máscaras olham-se sabendo-se máscaras.
Usam um olhar que não lhes pertence, e esse olhar, que vê, não se .
196
Segundo Bataille (apud MORAES, 2002, p. 171-172), [A]s máscaras representam a própria
‘encarnação do caos’. São formas inorgânicas que se impõem aos rostos, não para ocultá-los, mas
para acrescentar-lhes um sentido profundo. Dseu parentesco com os monstros imaginários, como
as esfinges e as sereias citadas por Leiris: na qualidade de artifícios que se acrescentam ao rosto
humano para torná-lo inumano, essas representações ‘fazem de cada forma noturna um espelho
ameaçador do enigma insolúvel que o ser mortal vislumbra diante de si mesmo’. As máscaras
presentificam as incansáveis interrogações da humanidade. O rosto nu, ‘aberto e comunicativo’, [...] é
a superfície clara que assegura a estabilidade e a ordem entre os homens [...], quando [ele] se fecha
e se cobre com uma máscara, não há mais estabilidade nem sol. A máscara comunica a incerteza e a
ameaça de mudanças súbitas, imprevisíveis e tão impossíveis de suportar quanto a morte.
211
Colocamos no rosto uma máscara e somos outro aos olhos de quem nos
olhe. Mas de súbito descobrimos, aterrados, que, por trás da máscara que
afinal não poderemos ser, não sabemos quem somos. (SARAMAGO, 2007)
Figura 203 - Valda Costa, sem
título, s/d. Óleo s/eucatex, 40 x
20 cm.
Fonte: Coleção João do
Amarante.
Figura 204 - Valda Costa, s/d.
Desenho com caneta hidrocor.
Fonte: Coleção João do
Amarante.
Figura 205 - Valda Costa, s/d.
Desenho com caneta hidrocor.
Fonte: Coleção João do
Amarante.
Esses são os seus retratos, os seus corpos, os seus rostos, as suas
máscaras, as suas identidades. É com eles que Valda vive a incessante
metamorfose do seu ser. É com eles que ela se recria incansavelmente como num
jogo de espelhos, pois “o homem tem em si, por assim dizer, vários léxicos, várias
reservas de leitura, segundo o número de saberes, de níveis culturais de que dispõe.
Todos os graus de saber, de cultura e de situação são possíveis perante um objeto
ou uma coleção de objetos” (BARTHES, 1987, p. 178).
Segundo Beaujour (1980), Santo Agostinho, no Capítulo 3 do livro X das
Confissões, faz uma meditação sobre a memória e o esquecimento:
Augustin n’y dit rien de lui même. C’est sans doute que l’expérience
inaugurale de l’autoportraitiste est celle du vide, de l’absence de soi; c’est
qui suscite la panique stérilisante qu’Artaud, par exemple, rapporte dans ses
lettres à Rivière. Artaud ne pense pas qu’en termes d’avoir: mon esprit, ma
pensée qui, bien entendu, se dérobent lorqu’il veut les hypostasier sur le
papier comme fixe son propre corps dans un miroir.[...] Sous la plume
affluent [emergent]les bêtises, les fantasies, les fantasmes dont rien ne
garantit la pertinence, les limites ou la valeur... (BEAUJOUR, 1980, p. 9-10)
212
Como Valda, outras artistas (de outros tempos e espaços) também falaram de
si, criaram e fizeram surgir de si (sem que alguém garantisse o pertencimento, os
limites ou o valor) fantasias, besteiras e fantasmas com os meios de que dispunham.
Uma delas viveu muito tempo. Valda provavelmente nem sequer sonhou sobre a
existência dessas artistas, mas na vida e na obra delas restam sobrevivências,
semelhanças, similitudes
197
: são próximas na potência do corpo, na força da vida
vivida através das telas. Falo da romana Artemísia
198
, que, após ser estuprada,
passou a viver distintos papéis nas peles de muitas mulheres que por ela foram
retratadas. Viveu intensamente as vidas nos corpos pintados em suas telas.
Incorporou, emrias versões, os papéis de Judite, Maria Madalena, Minerva,
Cleópatra e Lucrecia. Tais papéis lhe permitiram expressar em seus quadros o
drama vivido. Para quem teve a vida exposta, esquadrinhada, violada, a pintura se
constituiu em um certo mecanismo de defesa, uma espécie de vingança sublimada,
uma máscara que, por sua aderência, obriga o rosto humano a tornar-se qualquer
coisa, coisa em si obscura, tentadora e misteriosa
199
(DIDI-HUBERMAN, 1995).
As mulheres de Artemísia, ou as várias Artemísias, são sempre fortes,
valentes, determinadas, verdadeiras heroínas, protagonistas dos seus próprios
destinos. Judite, um tema recorrente na obra da artista, é um exemplo dessa
determinação. Esse tema, amplamente utilizado por pintores em várias épocas,
chama a atenção do fruidor pela maneira como a pintora realizou a sua obra. Essa
passagem bíblica aparece no Antigo Testamento e narra a história de Judite, que se
coloca diante do perigo para enfrentar Holofernes, general das tropas de
Nabucodonosor que estava incumbido de atacar os reinos do Ocidente. Com a ajuda
de uma criada, Judite decapitou o temido general. Nas suas telas, Artemísia retrata
uma Judite destemida, decidida, no momento da ão (Figura 206). Com crueza e
violência, Judite (ou seria Artemísia?) decapita Holofernes. Num jogo de luz e
sombra, com muito sangue e poucos elementos decorativos, o espectador é
convidado a participar da cena. Não dá para fugir dela.
197
Pensar aqui nas reflexões de Foucault, entre outros autores pós-estruturalistas, sobre
representação e conceitos afins.
198
Artemísia Gentileschi nasceu em Roma, em 1593. Era filha de um pintor talentoso chamado
Orazio Gentileschi, o qual dominava muito bem a técnica de claro/escuro, da escola de Caravaggio. A
obra de Artemísia foi influenciada por estes dois nomes da pintura barroca: Orazio e Caravaggio.
199
C’est que Leiris indiquait, non moins clairement, em definissant le masque comme une chose
neutre, une chose em soi obscure, tentante et mystérieuse. [...] Um semblable prenant figure de
n’import que chose, une chose comme se révélant pour constituer cette paradoxale chose même
qu’0ffre la figure, pour l’homme de as propre destruction. (DIDI-HUBERMAN, 1995, p. 96-97)
213
Figura 206 - Artemisia Gentileshi, Judite matando Holofernes, 1620.
Fonte: AGNATI, 2001.
A volta recorrente ao tema de Judite denota uma idéia fixa da qual a artista
não de, por muito tempo, se livrar, a da sua tragédia pessoal. Artemísia viveu
intensamente o papel dessas mulheres em suas telas, fazendo da arte o espaço
para viver suas identidades forjadas na compreensão de si através de outros. Na
pele de Judite, a guerreira confiante e vingativa, ou, na pele de Maria Madalena, a
penitente e visionária, Artemísia viveu, no refúgio de suas telas, várias vidas. Como
Artemísia, Valda também vai viver através das telas os seus diferentes papéis, vai
vestir as suas diversas máscaras, pois uma máscara o é, principalmente, aquilo
que representa, mas aquilo que transforma, isto é: que escolhe não representar”
(LÉVI-STRAUSS, [s.d]).
As máscaras, na África, foram criadas pelos artistas das tribos para serem
usadas em ritos religiosos. Essas máscaras representavam faces exageradas,
estilizadas, angulosas, assimétricas; uma forma não realista para expressar, com
efeito dramático, que esses objetos abrigavam espíritos fortes e perigosos. Eram
feitas em madeira, cobre ou marfim. No Antigo Egito, as máscaras também eram
utilizadas em cerimônias, muitas vezes vinculadas a sacrifícios. As múmias eram
mascaradas antes do enterro com máscaras adornadas de pedras preciosas.
No Alaska, os esquimós acreditavam que cada criatura tinha uma dupla
existência e podia mudar para a forma de um ser humano ou animal, bastando
214
querer. Assim, as máscaras eram feitas com duas faces – uma de um animal e outra
de um humano.
No noroeste dos Estados Unidos, os nativos usavam máscaras em uma
cerimônia anual em que choravam os mortos. Os homens representavam os
fantasmas dos mortos com máscaras pintadas e decoradas com penas e ervas. Já
os Hopi e os Zuni (nativos do sudoeste dos Estados Unidos), entre outros, usavam
as máscaras para adorar os seus mortos. Segundo Ribon (1991), a máscara tem
parte com a Morte,
a quem toda a cultura pretende domesticar: herança indo-européia, não
designaria originariamente o fio que envolvia o cadáver humano para
impedi-lo de atormentar os vivos? Em inúmeras sociedades arcaicas, a
máscara cômica, por trás da qual o usuário sente-se protegido, é muitas
vezes um meio de parodiar a morte, para mantê-la à distância; ela filtra o
duplo do morto, permitindo assim uma comunicação aceitável com ele. [...]
A scara, por seu poder de captação, reordena os elementos separados
do mundo cuja unidade original é perdida é recomposta na dança
mascarada pela fixa rigidez da máscara de um corpo em movimento.
(RIBON, 1991, p.100-101).
Foi nas antigas Grécia e Roma que as máscaras começaram a ter fins
artísticos. Eram utilizadas em festivais de teatro. Porém, com o fim da antiga
civilização romana, as máscaras caíram em desuso, pois os primeiros cristãos
atribuíram o uso de máscaras a cultos pagãos, tornando-as quase ilegais. Aos
poucos, as máscaras ressurgiram no velho continente, vindo para a América com o
fluxo de imigrantes, principalmente como brinquedos das crianças e para bailes e
celebrações mascaradas como o famoso Mardi Gras e o Carnaval.
Momento intenso de gozo: o da transgressão. [...] Esse ritual tem suas
regras e dura apenas um tempo; [...] qual uma dobradiça entre o real e o
mítico, a máscara, por trás da qual o usuário guarda sua própria
individualidade, mantém o intervalo que o separa do mundo significado pela
máscara; e o próprio homem mascarado não faz mais que imitar,
exteriormente pela dança e interiormente pelo imaginário, o mundo
sobrenatural designado pela máscara. Mundo do qual nos aproximamos
sem nunca verdadeiramente abordá-lo, como em qualquer arte. (RIBON,
1991, p. 101).
215
Figura 207 - Valda Costa, sem título, detalhe, 1984. Óleo s/eucatex, 42 x
28 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 208 - Valda
Costa, Máscaras
Africanas. Óleo
s/eucatex.
No carnaval de Valda, a máscara pode ser a da Maricota, boneca de grandes
proporções feita de trapos que, rodopiando, sacode os longos braços na tentativa de
agressão ao cantador e à platéia que assiste a essa encenação do folclore local
(LEHMKUHL, 1996). Representaria essa máscara uma produção social do rosto?
Representaria a Valda que se destaca entre os seus, que vive na fronteira do morro
e da cidade, que convive com pobres e ricos, que se destaca, mas que também
ataca? Seriam as máscaras de Valda Costa as máquinas de rostidade (produção
social do rosto) de que nos falam Deleuze e Guattari (1996)? A máquina de
rostidade, segundo esses autores, efetua uma rostificação de todo o corpo, de seus
entornos, de suas funções e de seus objetos. Se o rosto produzido socialmente é
uma política, desfazer o rosto também o seria
200
.
200
Sobre o assunto ver também Levinas (1988). Para esse autor, é no face-a-face humano que se
irrompe todo sentido. Diante do rosto do Outro, o sujeito se descobre responsável e lhe vem à idéia o
Infinito. O outro metafísico é outro de uma alteridade que não é formal, de uma alteridade que não é
um simples inverso da identidade, nem de uma alteridade feita de resistência ao Mesmo, mas de uma
alteridade anterior a toda a iniciativa, a todo o imperialismo do Mesmo; outro de uma alteridade que
216
Figura 209 - Valda Costa, sem título, detalhe,
1976. Óleo s/eucatex, 28 x 39 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 210 - Valda Costa, sem título, detalhe,
1984. Óleo s/eucatex, 28 x 24 cm.
Fonte: Coleção particular.
Fazer e desfazer rostos: lugar de devires, território produtor de multiplicidade:
instrumento de territorialização que nos leva à identificação estável com um papel ou
com uma função. Valda fez e desfez rostos incansavelmente no espaço de sua obra,
abriu o seu corpo às novas formas de expressão, às multiplicidades de conexões e
territórios, reinventou regimes de paixão tratando os demais e a si mesmo como
fluxos, e não como códigos.
A rostidade, ainda segundo Deleuze e Guattari (1996), seria um processo de
subjetivação que nos permitiria pensar como se produz socialmente um rosto; assim,
em última instância, o rosto seria um sistema aberto a diferentes circunstâncias e
possibilidades, no caso de Valda Costa, todas aquelas que a artista desejou e viveu
na sua obra.
[...] um rosto: sistema muro branco-buraco negro. Grande rosto com
bochechas brancas, rosto de giz furado como olhos como buraco negro. [...]
O rosto não é invólucro exterior àquele que fala, que pensa ou que sente.
[...] Os rostos não são primeiramente individuais, eles definem zonas de
freqüência, delimitam um campo. [...] lugares de ressonância... Um rosto
constitui o muro do significante, o quadro ou a tela. O rosto escava o buraco
de que a subjetivação necessita para atravessar, constitui o buraco negro
da subjetividade, como consciência ou paixão, a câmera, o terceiro olho.
(DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 33-50).
não limita o Mesmo, porque nesse caso o Outro não seria rigorosamente Outro: pela comunidade da
fronteira, seria, dentro do sistema, ainda o Mesmo. O absolutamente Outro é Outrem; não faz número
comigo. A coletividade em que eu digo ‘tu’ ou ‘nós’ não é um plural de ‘eu’. Eu, tu, o são indivíduos
de um conceito comum. [...] O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a idéia do Outro em
mim, chamamo-lo, de fato, rosto. Esta maneira não consiste em figurar como tema sob o meu olhar,
em expor-se como um conjunto de qualidades que formam uma imagem. O rosto de Outrem destrói
em cada instante e ultrapassa a imagem plástica que ele me deixa, a idéia à minha medida e à
medida do seu ideatum a idéia adequada. Não se manifesta por essas qualidades, mas kath'autó.
Exprime-se (LEVINAS, 1988, p. 26-38).
217
Figura 211 - Valda Costa, sem título, 1974. Óleo s/eucatex, 34 x 26 cm.
Fonte: Acervo Fundação Hassis.
Em Valda Costa rostos e máscaras evocam identidades múltiplas a partir de
uma matriz. Suas obras têm em comum, conforme indicado, o fato de, na maioria
dos casos, apresentarem figuras humanas que possuem um mesmo padrão visual
de composição: rostos e formas insistentes, repetitivas, todavia, diferentes. Na
constituição de uma auto-imagem, através de sua obra, Valda criou uma série de
estereótipos destacando os personagens por ela vividos ou desejados. Esses
personagens padronizados”
201
aparecem com acessórios de mãe, de mulher loura,
de mulher fatal, de virgem, de lavadeira, de musa, de pescador, de pessoa
melancólica, entre outras personas.
Como Artemísia, Valda Costa não poupou esforços para criar identidades
que, ao se deslocarem de um corpo para outro, trazem para o primeiro plano “a
problemática da aparência como fruto de uma construção social” (FABRIS, 2004).
Essa construção deu feição aos seus fantasmas, às suas vontades e às suas
censuras, ou seja, a um emaranhado contraditório de desejos e investimentos
particulares. A que remetem, então, os retratos de Valda Costa? Possivelmente, ao
corpo como território para o qual convergem as pressões políticas e culturais, sociais
e econômicas. Segundo Fabris (2004, p. 173-174-175), remetem às versões
radicalmente diferentes do indivíduo, que pode ser representado por sucedâneos e
imitações do homem. Remetem a arquétipos sociais, e não tanto a indivíduos
concretos.
201
No sentido de padrão de figura humana por ela criada, lembrar também nos padrões de objetos e
adornos, nesse caso, o vestido listrado na Figura 211, que apareceu em outras três versões em
obras analisadas no segundo capítulo desta tese.
218
Segundo Haar (2000), quando o pintor representa a si mesmo, ele não busca
fechar o domínio de si, “representar a cena da representação, como acreditava
Foucault”. Ele busca mais mostrar
o enigma de seu incapturável olhar, a metamorfose do vidente no visível,
mostrar que o espetáculo lhe escapa no momento mesmo em que ele se
organiza, e que é artista aquele que se entrega perdidamente a esta
perda. A pintura é esta apropriação do vidente pelo visível (HAAR, 2000, p.
100-101).
Figura 212 - Frida Kahlo, A Coluna Quebrada, 1944. Óleo s/tela, 31 x 40 cm. Coleção Fundação
Dolores Olmedo.
Fonte: MILNER, 2002.
Próxima da romana seiscentista e de Valda Costa na potência do corpo para
a construção (ou perda) de identidades, encontra-se Frida Kahlo, que, na luta
incessante entre vida e morte, buscou força e inspiração para se criar e se recriar na
sua obra. Desde criança, a artista conviveu com problemas de saúde. Aos seis anos
de idade ficou presa à cama durante nove meses devido a uma paralisia infantil. Aos
dezoito, sofreu um grave acidente de ônibus. Teve várias fraturas na coluna, bacia e
pernas e uma grave perfuração na pélvis, ficando impossibilitada de ter filhos.
Esteve longos períodos de sua vida acamada. Desde então, passou a pintar, talvez,
na tentativa de afastar, por meio das cores, as sombras dos seus dramas pessoais.
A pintura não surgiu de uma “vocação precoce”, mas sim da necessidade de seu
corpo, de sua solidão. O contínuo trabalho de recomposição de sua imagem e a sua
incessante luta pela reestruturação interna como num mosaico mexicano foram
219
traduzidos nas suas telas e nas suas próprias palavras da seguinte maneira: Não
estou doente. Estou partida. Mas me sinto feliz por continuar viva enquanto puder
pintar” (SZTAJNBERG, 2006).
Não somente de sofrimento e dor na doença viveu Frida Kahlo. O amor
também lhe causou muitas feridas. Sua relação com Diego Rivera, também pintor,
foi tempestuosa, com infidelidades de ambas as partes. Essa forte relação não lhe
trouxe nenhum conforto. Frida continuava a expressar nos seus auto-retratos a dor
física e psicológica à qual era submetida. A obra As Duas Fridas, de 1939, pintada
logo após o seu divórcio com Diego Rivera, sinaliza a fragmentação que a realidade
lhe impôs.
Figura 213 - Frida Kahlo, As Duas Fridas, 1939. Óleo s/tela, 170 x 170 cm. Coleção do Museu de
Arte Moderna do México.
Fonte: MILNER, 2002, p. 59.
Na tela que ilustra a Figura 213, a Frida objeto da paixão por Diego e o seu
duplo (ou alter ego) tem expostos os seus corações ligados um ao outro apenas por
uma artéria. Uma é mexicana, a mais amada por Diego. Esta Frida carrega na mão
um amuleto com a imagem do marido amado. A outra, europeizada, corre o risco de
se esvair em sangue até a morte. “Essa hemorragia narcísica quando não é
estancada desemboca na melancolia, a menos que o trabalho de elaboração possa
produzir uma assunção positiva do desamparo. Por que o chamo meu Diego? Nunca
foi, nem será meu. É dele mesmo.” (SZTAJNBERG, 2006).
A loucura pela paixão também transtornou Valda Costa. Entretanto, Valda não
viveu, como o fez Frida, no espaço de suas telas a relação conflituosa que tinha com
a sua paixão: viveu sim na vida vivida o caos e a desordem, a loucura e a desrazão.
220
Essas forças de tensão não aparecem nas obras de Valda, mas em Frida, que
nunca pintou sonhos, pois tudo o que retratava era a sua realidade.
Figura 214 - Frida Kahlo, Pensando na
Morte, 1943. Óleo s/tela, 44,5 x 37 cm.
Coleção particular.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
Figura 215 - Frida Kahlo, Frida and Diego
Rivera, 1931. Oil on canvas, 99 x 78,7 cm.
San Francisco Museum of Modern Art,
San Francisco, CA, USA.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
Os quadros de Kahlo são imagens interiores, realidades criadas a partir de
dentro para a realidade exterior. Apesar de sua arte explorar a própria
biografia, o observador consegue entender e interpretar os temas, as
formas, os modelos e os mbolos apresentados. A franqueza intransigente
e a integridade com que exprime o destino pessoal em obras que dão a ver
a sua dor de forma tangível não podem deixar de tocar o observador.
Embora o sofrimento de que falam seja pessoal, as imagens mantêm-se
como exemplo de um tema mais vasto e universal. (GOHLKE, 2001, p. 257).
O tema é universal, Valda também o viveu. Entretanto, diferentemente de
Frida Kahlo, Valda Costa pintou sonhos e desejos
202
. Bons sonhos, jamais
pesadelos (ou muito poucos pesadelos): encenou vidas pela estratégia de
multiplicar-se, criou tipologias para suprir os seus desejos, registrou valores na
superfície de suas telas. Inseriu-se em relações complexas. Viveu entre dois
mundos, o das telas e o da vida vivida. Aderiu muitas máscaras ao seu rosto, deu à
202
Aqui sonho deve ser considerado para além do sentido de metáfora. Valda Costa literalmente
pintava sonhos, vida desejada e, talvez (conforme o indicado), somente vivida nos sonhos.
Segundo o relato de Clarita Chaves, amiga da artista, em entrevista, Valda passava “horas contando
os seus sonhos. Sonhava e pintava, no final, dizia que não era ela quem pintava, e sim Michelangelo
[...]”. Michelangelo seria um de seus duplos? Pintor da vida paralela de desejos de Valda Costa? Não
perder de vista que Valda Costa passou a assinar sua obra com os nomes Vivalda, Miguel Angelo,
Angelo Miguel...
221
sua vida um sentido, aquele que a máscara empresta para o rosto dado por
Benjamin, como aponta Cantinho (2002), ou seja, o do modo da imagem alegórica
pela qual obriga a coisa a significar.
Na mão do alegorista, a coisa torna-se outra coisa, ela fala assim de outra
coisa. [...] A máscara alegórica é também esquema porque opera essa
transfiguração. Para o alegorista trata-se de apresentar o desamparo
humano e a sua fragilidade [...] sob a máscara redentora que lhe é
sobreposta pela alegoria. (CANTINHO, 2002, p. 83-84).
Figura 216 - Valda Costa, sem título, 1993.
Desenho com caneta hidrocor sobre papel A4.
Fonte: Coleção João do Amarante.
Figura 217 - Valda Costa, sem título, detalhe.
Óleo s/eucatex.
Fonte: Coleção particular.
Quando Valda se retrata, ela se faz personagem, como mencionado, e
adere várias máscaras ao seu rosto. As suas tipificações certamente são as muitas
transfigurações do seu corpo, da sua alma. Segundo relato de João do Amarante em
entrevista, Valda o gostava de ser fotografada, “se alguém aparecia com uma
máquina fotográfica, ela se escondia”. Valda não gostava de ser flagrada
fortuitamente, ela se “autocriava”, preferia utilizar as diversas máscaras de que
dispunha no seu repertório de desejos e da sua imaginação. Essas máscaras eram
sempre uma incógnita, eram veladas, podiam ser inventadas e reinventadas quantas
vezes fosse preciso. Para Lacan, as máscaras são como véus em que se pinta a
ausência. Desse modo o véu, ou a máscara, torna-se, por um breve momento, mais
precioso para o homem do que a própria realidade (WIRTHMANN, 2007).
222
Figura 218 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 16 x 16 cm.
Fonte: Coleção José Ricardo Ramos de Souza.
Os rostos de Valda Costa tornaram-se máscaras, as máscaras de Valda
Costa tornaram-se rostos. O olhar melancólico, esse olhar que pouco se altera nas
suas representações, está sempre presente. Entretanto, à medida que a doença
avançava sobre o seu tempo e o seu espaço, as máscaras e os rostos de Valda (ou
Vivalda, ou Nina, ou Miguel Angelo) foram se diluindo (o olhar foi se perdendo no
vazio interior, nas chagas do corpo ferido pela AIDS, nas chagas da alma ferida pelo
amor e pela loucura) como se a artista soubesse que em um determinado momento,
não muito distante, rosto e máscara iriam se encontrar para nunca mais retornarem
a não ser como imagem.
Figura 219 - Valda Costa, sem título. Tijolo
maciço, 22 x 10 cm.
Fonte: Coleção João do Amarante.
Figura 220 - Valda Costa, sem título. Tijolo
maciço, 22 x 10 cm.
Fonte: Coleção João do Amarante.
223
4.2 Espelho da alma ou as ninfas melancólicas de Valda Costa: o retrato como
pulsão
203
Figura 221 - Valda Costa (assinada Miguel Angelo), sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 34 x 48 cm.
Fonte: Coleção Ricardo da Molduraria ARTCA.
Figura 222 - Detalhe da assinatura
Olhar perdido, distante, triste, olhar de madona tímida e medrosa (Figura
221). O grande corpo e os braços, projetados no primeiro plano do quadro, abraçam
o pote com ramalhete de lírios da paz, atributo daqueles que estão associados à
Virgem especialmente Gabriel nos quadros da Anunciação, como, por exemplo, o
ilustrado na Figura 223 (CARR-GOMM, 2004, p. 140). Valda pintou esse quadro nos
últimos meses de sua vida marcada pela doença e pela melancolia. Seria essa tela a
expressão de um desejo melancólico de mudança, de transformação, de fuga?
203
Obra de Valda Costa feita no final da vida quando a artista estava bem doente. Vale notar que
na assinatura consta Miguel Angelo, nome de um dos seus filhos e do pintor renascentista que,
segundo Décio David, era o predileto dela.
224
Figura 223 - Dante Gabriel Rossetti, Anunciação (Ecce Ancilla Domini!)1850. Óleo s/tela, 41,9 x 73
cm. Tate Gallery, Londres.
Fonte: IMAGENS GOOGLE, 2007.
O termo “melancolia” vem do grego melankholia. É formado pela associação
das palavras kholê [bílis] e melas [escuro]. Melancolia significa a bílis negra, uma
das muitas substâncias do corpo humano que, segundo a medicina antiga, em
excesso provocaria uma desordem cujo principal sintoma seria o afundamento nos
próprios pensamentos e a perda de interesse pelo mundo exterior. Conforme
Aristóteles (apud FEITOSA, 2006, p. 40), uma das principais características dos
melancólicos seria a propensão em se deixar levar pela imaginação. Lambotte
(2000, p. 20) diz que na cultura grega, a melancolia teria, portanto, um caráter
ambíguo: de um lado, era vista como uma doença perigosa, que podia até levar ao
suicídio e, de outro, podia ser um estado de fermentação da alma, um instante de
calmaria antes da explosão de novas idéias e formas.
Figura 224 - Albrecht Dürer, Estudo para Melancolia I, 1514.
Fonte: LAMBOTTE, 2000, p. 20.
225
Na Idade Média, a melancolia ficou também conhecida como o mal dos
monges e dos eremitas que buscavam o isolamento como uma forma de protesto
contra a decadência moral das sociedades em que viviam. A palavra “acedia”, que
vem do grego clássico akaedia, significa ausência de cuidado, tristeza, indiferença,
negligência. Assim, a literatura cristã, a partir do século três depois de Cristo, vai
conferir à palavra “acedia” um caráter predominantemente negativo, como uma
patologia que leva à destruição. Foi também na Idade Média que a Astrologia fez
associações entre os humores e os astros, em particular entre Saturno e a bile
negra, cuja interpretação também era de cunho negativo.
No entanto, no Canto XXI do Paraíso, Dante evocará Saturno positivamente
como o astro da contemplação e da sabedoria, abrindo, assim, o espaço para que
no Renascimento Florentino o gênio melancólico da Antiguidade fosse redescoberto.
A partir dessa redescoberta, Marcílio Ficcino (1433-1499)
204
escreverá sobre a
loucura divina e o heroísmo espiritual manifestado sob a influência de Saturno
205
.
204 Para Ficcino, a alma possuía três faculdades distintas que formavam um todo hierarquicamente
ordenado: a imaginação (imaginatio), a razão discursiva (ratio) e a razão intuitiva (mens). as
faculdades inferiores do homem estavam, até certo ponto, sujeitas à influência dos astros; as
faculdades da alma, em particular a mens, eram essencialmente livres. O ser humano, ativo e
pensante, é fundamentalmente livre e pode, inclusive, governar a força dos astros, expondo-se de
maneira consciente e voluntária à sua influência. Para tanto, ele propõe uma autoterapia astrológica,
uma reordenação deliberada de sua própria razão e imaginação. A obra de Ficcino acaba culminando
em uma glorificação de Saturno, o Deus-Ancião que renunciou ao poder em troca da sabedoria e
trocou a vida no Olimpo por uma existência dividida entre a mais alta esfera do céu e as
profundidades mais interiores da Terra. Shakespeare, Cervantes e Michelangelo são alguns
exemplos dessa melancolia conscientemente cultivada, pois a síntese mais perfeita para a
inteligência se atinge quando o verdadeiro humor se acerca da melancolia, ou quando a verdadeira
melancolia se transfigura pela ação do humor (ALVARENGA, 2006).
205
No Renascimento é retomada a tradição aristotélica segundo a qual o melancólico é também um
homem criativo e genial. Com o passar do tempo, melancolia passou a designar muito mais os
sintomas da crise, e não as causas fisiológicas, mas desde Aristóteles até Walter Benjamin continuou
sendo o estado afetivo ambíguo mais freqüente associado a escritores, pintores e filósofos. Essa
mudança de perspectiva está representada pela famosa gravura de Dürer intitulada Melancolia I. O
temperamento melancólico aparece personificado na figura de uma mulher alada, cercada de
instrumentos de arte e de ciência, em um momento de solidão noturna, olhando concentrada para um
horizonte no qual se um arco-íris e um cometa. A cena mostra que a melancolia pode ser uma
experiência de interiorização profunda e fértil, um estado afetivo propício a todo ser que tenha como
projeto compreender e modificar o mundo. A obra de Dürer enfatiza as visões superiores, às quais a
melancolia pode nos conduzir, mas não oculta o peso e a imobilidade que inflige, simultaneamente,
ao corpo. A modernidade vai oscilar entre um certo culto à melancolia e às tentativas isoladas de
dissociá-la da criatividade. Artistas românticos e expressionistas vão privilegiar o individuo sensível à
margem da sociedade por meio de uma exaltação da solidão, do desespero e da loucura.
Influenciados por Kant, que via no temperamento melancólico uma marca da sensibilidade do nio,
diversos pintores e escritores, entre eles Goya e Baudelaire, vão criar as suas obras sob o signo de
saturno, o deus/planeta que rege o tempo, a destruição e causa inquietude na alma. Cada vez, mais
fica fortalecida a crença de que o ser humano é fundamentalmente melancólico, dominado por uma
sensação de vazio interior (FEITOSA, 2006, p. 40-43).
226
Sabe-se que nos séculos XVI e XVII, o tema e as imagens da melancolia
foram objetos de numerosas e ricas representações, tendo na gravura, intitulada
Melancolia I, de Albrecht Dürer (Figura 225), um exemplo dos mais conhecidos e
analisados por historiadores, críticos, filósofos, entre outros. Nessa obra, pode-se
ver uma personagem alada rodeada por objetos que normalmente estão associados
ao humor melancólico.
Figura 225 - Albrech Dürer, Melancolia I, gravura, 1514.
Fonte: LAMBOTTE, 2000
Segundo Panofsky (apud Lambotte, 2000), a obra Melancolia I, de Dürer,
representaria a figura do pensamento, a fusão de duas formas iconográficas
distintas, uma popular, dos calendários e pequenos livros, e outra de um “Typus
Geometriae”, dos tratados de filosofia e das enciclopédias. De um lado, a
intelectualização da melancolia; do outro, a humanização da geometria. Por um lado,
a miséria e o infortúnio “aliadas a uma associabilidade e a uma incompetência
gerais; do outro, a nobreza da ciência e o domínio das emoções até a indiferença.”
Em suma, Dürer imaginou, seguindo o pensamento de Panofsky, conforme afirma
Lambotte (2000, p. 48),
Um ser provido da compreensão e da técnica de uma arte vencido pelo
desespero sob a nuvem de um humor negro. [...] Encontramos o duplo
rosto da melancolia com o ‘melancólico existencial’ e o ‘melancólico suicida’,
na ordem especulativa, com os ‘estados melancólicos’ e a ‘melancolia
verdadeira’, na ordem psicológica.
Para Büch (apu LAMBOTTE, 2000, p. 20), a obra Melancolia I, de Dürer,
figuraria o terrível flagelo da peste que assolou a Alemanha no final da Idade Média.
227
“Houve alucinações [...]. As pessoas diziam ter visto aparições de demônios,
pássaros fabulosos, cães negros que eram considerados como os propagadores da
peste”. Essas “visões” duraram por muito tempo na tradição popular, portanto,
seriam, na gravura de rer, testemunhas preciosas da fantasia do tempo. Assim,
todos os atributos, até a própria figura da melancolia, representariam a
personificação dos horrores da peste
206
.
A melancolia ainda faz parte do nosso repertório artístico e crítico atual. As
leituras sobre o assunto se ampliaram, ganharam novos contornos, mas sejam quais
forem os novos aportes, a imagem da melancolia sempre esteve e estará associada
a um tipo de “peste”: ou seja, a doença, a violência, a miséria, a guerra, a ignorância,
a inteligência, a exclusão.
Seriam essas imagens fixações (ou “coagulações”) do modo como os artistas
enxergam (ou enxergaram) e sentem (ou sentiram) os períodos das suas existências
e os ambientes imediatos ou não no interior dos quais produzem objetos de
arte? Ou, além de poderem ser vistas como indissoluvelmente ligadas a realidades
culturais específicas a uma determinada época e a um determinado lugar, essas
imagens igualmente espelhariam inquietações sobre problemas que atravessam o
tempo e o espaço e que reaparecem incessantemente?
Conforme afirma Clair (2005), reais e visíveis, essas imagens são ao mesmo
tempo objetos simbólicos, emblemas e metáforas, do mesmo modo que o é a própria
Melancolia. Assim, ainda segundo esse autor, existiria um museu ideal da
melancolia, uma pinacoteca que reuniria inúmeras obras pintadas, gravadas,
desenhadas, que (de Dürer a Edvard Munch, de Domenico Fetti a De Chirico)
retratam a melancolia, seus traços e suas poses desde as imagens das estrelas
mais antigas com suas orantes aflitas até O Pensador, de Rodin, mergulhado em
seus devaneios sombrios.
Caberia nesse momento retornar ao pensamento de Warburg, na sua
apreensão do sentido de imagem que envolve tanto a exploração de pormenores
históricos, na busca de como as obras de arte se inscrevem nos contextos da sua
206
Pode-se chegar no limite da aproximação da metáfora e analogia trazendo o clássico livro
intitulado Temperamento Melancólico: Uma Marca da A Peste, de Albert Camus. Neste livro o autor
narra a história de uma cidade argelina tomada pela peste, onde uma população enclausurada luta e
morre contra essa força invisível. Na verdade, esse romance de Camus é a metáfora dos horrores da
Guerra Mundial por ele vivenciados. A peste é a alegoria da maldade, da insensatez. As chagas
por ela provocadas expõem a natureza desumana das sociedades modernas. A peste é a doença
que faz definhar, que coloca a vida cara a cara com a morte.
228
criação, quanto a consideração de um pretenso inconsciente histórico que perpassa
(e explica) a perenidade de distintas formas de expressão. É assim que a Melancolia
de Dürer bem como as ninfas melancólicas de Valda Costa poderiam ser vistas não
apenas como manifestações das forças imobilizantes, mas e também como a
emergência da reflexão e do pensamento, ou seja, como categoria da polaridade
que se tornou para Warburg uma forma interpretativa de todos os fenômenos
culturais. Entretanto, segundo Burucúa (2006), trabalhar com a categoria da
pathosformel de Warburg em horizontes artístico-culturais distantes daquela primeira
construção historiográfica warburguiana do Atlas Mnemosyne não é tarefa fácil, pois
requer certos cuidados. Porém, o autor diz:
si trascendemos el plano de las formas de representación y apuntamos al
papel de vectores emocionales que tienen las Pathosformeln, vayamos a
dar uma capa más profunda del problema y hallemos una nueva base para
proyectar la categoria hacia aquellos terrenos tan difíciles (BURUCÚA,
2006, p. 197).
Deixando de lado o plano da forma de representação e pensando mais no
vetor emocional da Pathosformel proposto por Burucúa (2006), penso em Valda
Costa tocada pela “peste da melancolia” (que também tocou e toca muitos outros
artistas). Pode-se mesmo, num olhar rápido e desavisado, sentir e perceber a
melancolia expressa nos olhos das figuras humanas dessa artista, mesmo aquelas
do início de sua vasta produção, que aparecem felizes, radiantes, envoltas em temas
alegres e em cores vibrantes. Conforme indicado, segundo relata a sua amiga
Eliane, esse era o olhar de Valda.
Melancolia expressa por meio do olhar, e muitas vezes da própria postura das
imagens feitas por Valda Costa (postura essa recorrente nas imagens da Melancolia
na iconografia ocidental), ganha intensidade e dimensão à medida que a peste se
espalha por todo o corpo e por toda a alma da artista devido ao agravamento de sua
doença: Valda foi “definhando” física e moralmente por causa da AIDS, a peste,
segundo Sontag (1984), do final do século XX. Como para Camus (1947), de modo
figurado, a peste que engoliu o corpo e a alma de Valda Costa trouxe à irrupção da
tragédia pessoal o foco de disseminação de outras pestes, as metáforas virais
transformadas em metonímias totais.
229
A AIDS, o crack, os vírus eletrônicos, o terrorismo não são intercambiáveis,
mas eles m todos um ar de família. A AIDS é bem um crack dos valores
sexuais, os computadores tiveram um papel virulento no crack da Wall
Street, mas, podendo por sua vez serem infectados, a eles espreita um
crack dos valores informáticos. O contágio não é somente ativo no interior
de cada sistema, ele se de um sistema ao outro. O conjunto gira em
torno de uma figura genérica que é aquela da catástrofe. (SONTAG, 1984).
Figura 226 - Valda Costa, sem título, 1992. Óleo s/madeira, 38 x 24 cm.
Fonte: Coleção João do Amarante.
A figura genérica da catástrofe que transformou a vida e a obra da mulher, da
mãe, da amante, da artista. Valda Costa foi jogada (ou se jogou) num turbilhão pela
paixão, pela loucura, pela doença, a doença como alegoria. Segundo relata Valdir
Agostinho em entrevista,
A Valda não era mais a mesma, ficou totalmente transtornada pela paixão e,
depois, pela doença. Valda não tinha uma vida regrada. Ela se deixou levar.
Nos últimos meses de vida estava extremamente magra e o corpo coberto
por feridas em ‘carne viva’. Era um quadro muito triste de se ver.
(AGOSTINHO, 2006).
De mulher exuberante, de ninfa negra sedutora de olhos tristes, de musa
inspiradora do mestre Martinho de Haro, Valda Costa se metamorfoseou na mulher
amargurada, solitária, doente, a ninfa melancólica. Em Valda, a melancolia foi muito
mais do que uma afecção do corpo, a melancolia foi uma doença do espírito, do
230
humor e da alma
207
. A ninfa foi vencida pela loucura e pela dor, o vazio está nos
seus olhos. Em Valda Costa, a melancolia é expressa, sobretudo, por meio de seus
olhos, pois, como afirma Perrone-Moisés (1988, p. 327), “cada pessoa é um olhar
lançado ao mundo e um objeto visível ao olhar do mundo. Cada corpo dispõe de um
jeito de olhar que lhe é próprio e essa particularidade condiciona também sua
visibilidade como corpo diferente dos outros”.
Figura 227 - Valda Costa, sem título, 1988. Óleo
s/eucatex, 35 x 29 cm.
Fonte: Coleção Antônio Fasanaro.
Figura 228 - Valda Costa, sem título, data
ilegível. Óleo s/eucatex, 27 x 22 cm.
Fonte: Coleção Izabel Fett Schaeffer.
O olhar de Valda é um olhar impreciso, triste, que nos vê, mas que não nos
olha, pois o olhar da artista está voltado para ela própria, para dentro de si. Trata-se
de um olhar do interior, que vê nos quadros uma possibilidade de outra vida, ou seja,
aquilo que falta no mundo. Como afirma Perrone-Moisés (1988, p. 25), “O olho vê o
mundo e aquilo que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para
ser ele próprio, [...] e vê, uma vez feito, o quadro que responde a todas essas faltas”.
A melancolia em Valda Costa é muito mais o sintoma de sua crise existencial,
daquilo que faltava no seu mundo. O olhar da artista fixado na tela, o seu espelho
207
Segundo Clair (2005), a melancolia é ambivalente: La lancolie est doublé. Affection de l’esprit,
c’est une humeur du corps. Son nom évoque un vague à l’âme, une fumée qui assombrit la pensée et
le visage, un voile jeté sur le monde, une tristesse sans cause. Mais il designe aussi une entité
physique, une matière visible, un corps sensible, un liquide doté de proprietés spécifiques, de couler
noire, que secrète la rate
.
231
opaco, é o olhar da ausência, da nostalgia (talvez daquilo que nunca tenha existido,
das faltas).
Mais uma vez a figura está projetada no primeiro plano do quadro. A
exuberância do corpo sensual se contrapõe ao olhar incerto, longínquo, triste. Para
Jean Paris, o olho também se pinta, pois a obra também nos considera. Valda Costa
eternizou o olhar das ninfas negras. “E onde melhor apreender o segredo de um
pintor senão neste olhar com que ele dota as suas criaturas, a fim de que,
eternamente, elas o dirijam aos outros?” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1992, p.
653).
Figura 229 - Valda Costa, sem título, detalhe,
1984. 50 x 40 cm.
Fonte: Coleção Família Tomaselli.
Figura 230 - Valda Costa, sem título, detalhe,
1987. 30 x 24 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 231 - Valda Costa, sem título, 1984. Óleo s/eucatex, 30 x 24 cm.
Fonte: Coleção Milton Bordin.
232
No exemplo abaixo (Figura 232), a exuberância e a sensualidade da ninfa
negra o substituídas pela imensidão estática do corpo amorfo. Tudo é recato: os
cabelos estão escondidos sob o lenço cor-de-rosa, a carcaça está protegida pela
ampla blusa. Não sinal de seios fartos. A figura parece postada como uma efígie
e, mais uma vez, parece estar dividindo dois mundos, porém, nesta tela esses
mundos divididos parecem iguais: os telhados e as casas possuem a mesma forma,
o mesmo padrão e as mesmas cores. Tudo se confunde na similitude e na ausência
de profundidade, tudo é estático e distorcido: um momento eternizado do tempo em
que o mundo visível de Valda Costa e o dos seus projetos o partes totais do
mesmo ser. Ela se “vendo, toca-se, tocando, é sensível e visível para si mesmo”
(MERLEAU-PONTY, 20002, p. 21).
Figura 232 - Valda Costa, Auto-Retrato, 1986. Óleo s/eucatex, 60 x 50 cm.
Fonte: Acervo Marcelo Seixas.
Figura 233 - Valda Costa, sem
título, s/d. Óleo s/eucatex, 28 x
24 cm.
Fonte: Coleção José Ricardo
Ramos de Souza.
Figura 234 - Valda Costa, sem
título, detalhe assinatura, s/d.
Óleo s/eucatex, 28 x 24 cm.
Fonte: Coleção José Ricardo
Ramos de Souza.
233
Figura 235 - Valda Costa,
sem título, s/d. Óleo
s/eucatex, 29 x 18 cm.
Fonte: Coleção José Ricardo
Ramos de Souza.
Figura 236 - Valda Costa, sem
título, detalhe assinatura, s/d.
Óleo s/eucatex, 29 x 18 cm.
Fonte: Coleção José Ricardo
Ramos de Souza.
Figura 237 - Valda Costa,
sem título, s/d. Óleo
s/eucatex, 38 x 28 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 238 - Valda Costa, sem
título, detalhe assinatura, s/d.
Óleo s/eucatex, 38 x 28 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 239 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 38 x 38 cm.
Fonte: Coleção José Ricardo Ramos de Souza.
234
e toca-se, vive e é “real” para si mesma como Valda, como Miguel Angelo,
como Vivalda Terezinha da Costa e também como ninguém, o vazio
208
, o vazio dos
olhares que unem todas as possíveis versões de si, o vazio da melancolia existente
tanto na alegria como na tristeza, o vazio de si mesma em todas as suas versões. O
vazio da tela.
Figura 240 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 23 x 43 cm.
Fonte: Coleção José Ricardo Ramos de Souza.
Na aparência, a tela vazia guarda o silêncio indiferente e imóvel (Figura 240).
Cada cor é um grito de quem pode sustentar tudo, “mas não pode suportar tudo.
Fortalece o verdadeiro, mas também o falso. Devora sem piedade o rosto do falso.
Amplifica a voz do falso até o urro agudo impossível de suportar. [...] Estou aqui!
[...] Escute! Escute o meu segredo!” (KANDINSKY, 2000, p. 250). É o segredo da
dor, conforme o indicado, pelas perdas materiais, sentimentais e físicas. Valda,
Vivalda, Miguel Angelo, ninguém e todos ao mesmo tempo.
Coesão no interior por divergência exterior, junção por dissolução e
dilaceramento. Na inquietação a tranqüilidade, na tranqüilidade a
inquietação.[...] Da mentira (abstração) devo falar a verdade. Verdade cheia
de saúde que se chama AQUI ESTOU. (KANDINSKY, 2000, p. 253).
208
Segundo Moreira (2007), na melancolia o sujeito é invadido pelo outro, em uma experiência de
encontro com a alteridade interna e externa. O outro narcísico que comparece na melancolia está
ligado à busca de um eu ideal, por isso visa um objeto que pode ser assimilado por si mesmo.” O
outro “alteritário” do melancólico expressa uma estrangeidade que pode ser mortífera para o sujeito.
[...]
A dimensão alteritária está intrinsecamente presente na vivência de perda do objeto na medida
em que essa experiência de sofrimento leva o sujeito ao encontro do outro que habita seu ser. Esse
encontro pode ser produtivo, como no luto, que possibilita a vivência de devires-outros. Mas pode ser
mortífero, como na melancolia, que conduz o sujeito a se perder em um outro.
235
Figura 241 - Valda Costa, sem título, 1987. Óleo s/eucatex, 39 x 24 cm.
Fonte: Coleção particular.
Loucura, tristeza e melancolia, paixão e alegria, pólos opostos que invadiram
o universo de Valda Costa
209
. Sua obra representa o caminho paradoxal e secreto
do seu mundo, ou seja, das ressurreições de um passado construído a partir das
lembranças (poder-se-ia pensar num passado mais remoto das naschleben e na
relação bipolar das pathosformel warburguianas) num presente desejado, contudo
inexistente, vivido por várias personas ao longo da imaginação e da fantasia no
espaço “real” das suas telas.
209
Não perder de vista que Valda Costa foi diagnosticada, segundo o psiquiatra Marcos Noronha,
com distúrbio bipolar com surtos psicóticos, certamente agravado pela AIDS.
236
4.3 Espelho do artista: a paisagem e a natureza-morta como retrato
Não se busca realizar o ‘retrato’ da paisagem, mas sim a ‘paisagem que está dentro’, aquela
que nos faz pensar, ver e ser de uma maneira específica. Paisagens que determinam nossa própria
paisagem interior, que registram o paradigmático de um território ou um tipo de momento especial
que faz com que um determinado lugar seja único.
Irmã Arestizábal
Figura 242 - Valda Costa, sem título, 1986. Óleo s/eucatex, 43 x 37 cm.
Fonte: Coleção Moacir José Serpa.
Corpo, cadeira, mesa, toalha, vestido: tudo possui o mesmo padrão (Figura
242). A toalha veste o corpo e veste a mesa. O corpo veste a cadeira: as texturas e
as formas dos objetos se confundem. Tudo está em um perfeito desequilíbrio, as
formas perderam a estabilidade. Segundo Moraes (2002, p. 75-76),
Tudo se inscreve na equivalência dos contrários, anulando qualquer
pretensão de verdade. [...] Uma vez liberados de suas aparências, de suas
propriedades físicas, os objetos passam a ser dotados de um inesgotável
poder de migração.
Ao fundo, da janela aberta não se nenhuma paisagem, pois os volumes, a
topografia, migraram para o corpo da ninfa negra, indicando que sujeito e território
são indissociáveis porque o corpo também é território.
237
A construção visual das identidades passa pela questão da territorialidade,
pois o “território, suporte físico de toda a vivência social, foi sempre um dos
determinantes da identidade cultural, na medida em que pode ser considerado como
área geográfica em que o indivíduo ou um grupo desenvolve a sua existência”
(BULHÕES, 2002, p. 153). Atitudes, hábitos e valores são condicionados pelas
relações com determinados espaços geográficos.
As referências de pertencimento estão constantemente presentes na
produção plástica de Valda Costa. Essas referências são o eixo de equilíbrio da
artista, de proximidade com um lugar (ou lugares) físico determinado, pertencimento
este que se deu, sobretudo, no espaço de sua obra, pois, cabe aqui voltar à questão
do entre-lugar e refletir que na insistência de Valda Costa em determinadas
paisagens (ou objetos nas suas naturezas-mortas) reside, provavelmente, o reflexo
da sua difícil relação com o seu próprio espaço e lugar, ou mesmo com o seu próprio
ser
210
. De acordo com Bulhões (2002, p. 154),
A paisagem, reflexo da relação circunstancial entre o homem e a natureza,
pode ser vista como a tentativa de ordenar o entorno com base na imagem
ideal. A forma pela qual a imagem é projetada e constituída reflete uma
elaboração filosófica e cultural que resulta tanto da observação objetiva do
ambiente quanto da experiência individual ou coletiva com relação a ele.
Valda Costa não pertencia a nenhum território, pois o pertencimento é da
ordem do sensível, da conquista de afetividade, e Valda não cabia, pelo menos
dessa forma, nos dois mundos pelos quais circulou e viveu, “o morro e a cidade” (a
comunidade carente onde foi criada e o espaço cultural de uma determinada elite da
cidade de Florianópolis). Houve um tempo em que a artista circulou com
desenvoltura nesses dois espaços, mas esse tempo não durou. Valda foi
duplamente deslocada, ficando literalmente num entre-lugar, em uma borda, numa
encruzilhada.
210
Cabe lembrar o que o Dr. Marcos Noronha (psiquiatra que tratou de Valda Costa) afirmou na
entrevista concedida: “Valda Costa tinha um grande problema de cunho social, valorizava perdas
inesperadas e prejuízos financeiros”. Além disso, a artista desenvolveu problemas graves com a
infecção que ela adquiriu associada ao quadro básico bipolar.
238
Figura 243 - Valda Costa, data ilegível. Óleo s/eucatex, 37 x 28 cm.
Fonte: Coleção particular.
Valda me contou que, certa vez, ao retornar para o morro carregando duas
sacolas de compras foi abordada por vizinhos e espancada, deram-lhe com
a cara no muro e quebraram-lhe os dentes... Ela nem sabia o porquê...
Valda, no meu entendimento, foi duplamente segregada. Tanto pela
sociedade florianopolitana quanto pela comunidade em que nasceu.
(PEREIRA, 2007)
O recorrente olhar triste, figura e fundo se misturam, o pote modelado pelo
oleiro, símbolo do carma, formado a cada dia através do nosso comportamento,
segundo apontam Chevalier e Gheerbrant (1992), modela o ventre da mulher. Onde
está esta mulher? Talvez, num lugar real de projeções, como aquele indicado por
Foucault (2001, p. 411-413), em que (tal como um espelho) ao mesmo tempo se
está e não se está:
Há, [...], e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização,
lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria
instituição da sociedade e que são espécies de contraposicionamentos,
espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos
reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no
interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e
invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora
eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem
absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e
dos quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de
heterotopias.
239
Valda Costa criou e viveu num microcosmo em que podia justapor os seus
lugares reais de projeção: a obra. Metamorforseou-se em objetos e lugares
reproduzindo o seu corpo na ordem do universo, pois, pensando sob a luz de
Foucault (2000), o homem está em proporção para com o céu, com a terra, com os
animais e as plantas, assim como para os metais, as estalactites e as tempestades.
Ainda, segundo esse autor,
na vasta sintaxe do mundo, os diferentes seres se ajustam uns aos outros.
[...] O lugar e a similitude se imbricam: vê-se limos nos dorsos das conchas,
plantas nos galhos dos cervos, espécies de ervas no rosto dos homens; e o
estranho zoófito justapõe, misturando-as, as propriedades que o tornam
semelhantes tanto à planta quanto ao animal. (FOUCAULT, 2000, p. 23-27).
Foucault (2000) acrescenta ainda que, pelo encadeamento da semelhança, o
mundo constitui cadeia consigo mesmo.
O homem é gleba, seus ossos rochedos, suas veias grandes rios; sua
bexiga é o mar e seus sete membros principais, os sete metais que se
escondem no fundo das minas. [...] O corpo do homem é sempre a metade
possível de um Atlas universal. (FOUCAULT, 2000, p. 23-27)
Figura 244 - Valda Costa, sem título, 1986. Óleo s/eucatex, 47 x 40 cm.
Fonte: Coleção Vilmar Gerent.
Pelo mundo da semelhança, Valda é pote, é pedra, é casa, é paisagem. As
formas são todas parelhas, os lugares, sempre os mesmos: território como extensão
do corpo e da alma de Valda Costa. Identificar-se com o outro, conforme já indicado,
é ocupar-se dele, é criar-se outro por meio de similitudes.
240
Figura 245 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 40 x 30 cm.
Fonte: Coleção José Ricardo Ramos de Souza.
Novamente pelo mundo da similitude pode-se pensar que Valda se duplicou
em potes que, umbilicalmente unidos, ganham formas sinuosas como fossem ancas
e quadris: paixão, sensualidade que se esvai através das formas brutas e
inacabadas. Dois potes que se confundem como se fossem uma única peça. A
composição repete o mesmo esquema formal das telas que representam as ninfas
divididas (como ilustra, por exemplo, a Figura 197). Em primeiro plano os potes, ou
seria a Valda duplicada (até mesmo duplicada em Marcão
211
). Ao fundo, duas casas,
ou talvez, os dois mundos, as duas vidas, a separação. As imagens não são mais
nítidas, tudo se embaralha. Deslocamentos, vivências atípicas e típicas de uma alma
sensível e doente pela paixão, pela doença e pela dor. Valda se explica pela
semelhança com as coisas, como aponta Foucault (1999, p. 96),
[...] sua decomposição em elementos idênticos e diferentes, a repartição em
quadro de suas similitudes desordenadas: por que, pois, as coisas se
oferecem numa imbricação, numa mistura, num entrecruzamento, em que
sua ordem essencial está confusa, mas bastante visível ainda que
transpareça sob forma de semelhanças, de similitudes vagas, de ocasiões
alusivas para uma memória alerta?
211
Segundo o relato de Clarita Chaves (2007), Valda não conseguiu se desvencilhar dessa paixão.
Ela era atormentada por esse sentimento, via Marcão por todos os lados, vivia Marcão por todos os
seus poros. Se Marcão estava preso, Valda praticamente morava na Delegacia onde ele se
encontrava. Ela tentou esquecer esse homem, sem êxito.
241
Figura 246 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 30 x 71 cm.
Fonte: Coleção José Ricardo Ramos de Souza.
Mais uma vez semelhanças e similitudes: corpo e natureza se confundem no
mesmo padrão, nas mesmas cores, nos mesmos volumes e nas mesmas formas:
corpo, paisagem e flores. O inesgotável poder de migração (Figura 246).
Para Bataille (apud MORAES 2002, p. 159), nas sociedades humanas as
mulheres assim como as flores encarnam os mais elevados ideais de amor e beleza.
Entretanto, “o é descabido observar que se afirmamos a beleza das flores é
porque elas parecem estar em conformidade com aquilo que deve ser, ou seja, por
representarem, no que lhes diz respeito, o ideal humano”.
Figura 247 - Valda Costa, sem título, 1985. Óleo
s/eucatex, 34 x 28 cm.
Fonte: Coleção Milton Bordin.
Figura 248 - Valda Costa, sem título, 1985. Óleo
s/eucatex, 28 x 22 cm.
Fonte: Coleção Milton Bordin
242
Nas Figuras 247 e 248, vêem-se formas puras e sublimadas: mulher e flor
representam o símbolo do princípio passivo, da beleza, da transitoriedade. Formas
arredondadas, curvilíneas, volumosas, cheias de volúpia. Entretanto, essas flores
estão em um vaso que representa o vazio. As flores também estão no caminho da
ausência, do desaparecimento, logo não estarão mais ali, não pertencerão mais a
esse lugar. E o vazio do vaso, ou seria do corpo e da alma, precisará ser preenchido
de novo, o eterno retorno.
Figura 249 - Valda Costa, sem título, 1984. Óleo
s/eucatex, 24 x 28 cm.
Fonte: Coleção particular.
Figura 250 - Valda Costa, sem título, 1993. Óleo
s/eucatex, 23 x 31 cm.
Fonte: Coleção João do Amarante.
Figura 251 - Valda Costa, sem título, 1985. Óleo
s/eucatex, 24,5 x 23 cm.
Fonte: Coleção Adriano Pauli.
Figura 252 - Valda Costa, sem título, 1981. Óleo
s/eucatex, 50 x 41 cm.
Fonte: Coleção Adriano Pauli.
Valda pintou inúmeros vasos de flores, e assim como aconteceu com os seus
retratos (pode-se perceber nas figuras que as referências de lugar e os fundos são
os mesmos, os volumes e a composição se assemelham pétalas de flores o
243
olhos, vasos são corpos com ventres arredondados que muitas vezes sustentam nas
suas alças argolas como se fossem brincos)
212
, à medida que sua doença física e
mental se agravava, os vasos e as flores foram perdendo o viço, as formas cheias e
voluptuosas, foram perdendo a vida. Talvez, como na obra Girassóis, de Van Gogh,
o maior enigma dos vasos de flores de Valda Costa, “est[eja] en su appelación a lo
humano estando totalmente ausente la figura humana, o que recuerda uma
afirmación de Cézanne: El hombre ausente, pero todo entero em el paisaje”.
(OLIVERAS, 2007, p. 89).
Figura 253 - Valda Costa, sem título, s/d.
Óleo s/eucatex, 40 x 26 cm.
Fonte: Coleção João do Amarante.
Figura 254 - Valda Costa, sem título, s/d.
Óleo s/eucatex, 40 x 33 cm.
Fonte: Coleção João do Amarante.
Figura 255 - Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 30 x 40 cm.
Fonte: Coleção José Ricardo Ramos de Souza.
212
Na análise feita por Eduardo Peñuela Cañizal (2004, p. 33) sobre Frida Kahlo, o autor menciona
que “la pintora penetraba em la especificidad del individuo y se fijaba em su vestuario y em su rostro
para captar ellos “la vérité de l’être”. Mas tarde exploro la profundidad de los frutos y de las flores,
escudriñando sus órganos escondidos.”
244
Figura 256 - Valda Costa, s/d. Desenho com caneta hidrocor s/folha A4.
Fonte: Coleção João do Amarante.
Beleza secreta de ninfa negra que se repete, como nos quadros de Vermeer
(apud PEIXOTO, 2004) nos quais se encontram sempre a mesma mesa, o mesmo
tapete e a mesma mulher. Beleza que também se mantém idêntica em todas as
obras de Dostoiévski, como afirma Peixoto (2004, p. 59) “nas suas mulheres de rosto
misterioso, capaz de mudar bruscamente, fazendo a mulher parecer diferente do que
é. Aí se percebe a criação de uma alma das feições e dos lugares”. Rosto e
paisagem, paisagem e rosto, justapostos e sobrepostos se confundem: o rosto
apreendido na paisagem e a paisagem captada no rosto humano. A relação figura e
fundo é substituída pelo jogo de correspondências na superfície homogênea. As
linhas do rosto são as mesmas que cruzam todo o espaço do desenho. A figura é o
lugar, o lugar sem limites estabelecidos, o lugar de identificação, de deslocamentos
e passagens, o lugar de associação e de não definição (DIDI-HUBERMAN, 1995).
Mulher e natureza, mulher e objetos: no corpo da imagem se inclui o próprio corpo
do pintor em movimento. Emprestando o seu corpo ao mundo, o pintor faz do mundo
uma pintura, ou seja, a convergência como base do princípio da analogia
universal
213
.
213
Aqui penso em Merleau-Ponty (1975), que no livro intitulado Fenomenologia da Percepção explica
que considera o seu próprio corpo como o seu ponto de vista sobre o mundo. Mas a forma como se
percebe o mundo e seus fenômenos também está vinculada à cultura e à sociedade. Desse modo, a
percepção nunca poderia ser neutra”, imparcial ou pura. O autor também entende que o corpo
sintetiza a ambigüidade (imanência/transcendência) do ser no mundo. Assim, corpo é forma de
245
Valda transportou para a sua obra todo o seu mundo: a sobreposição do
corpo humano com a paisagem e com os objetos. Benjamin e Baudelaire trataram a
cidade como corpo humano, fazendo que a percepção de ambos se confundisse. O
primeiro afirmou que o “rosto humano era rodeado por um silêncio que o olhar
repousa’. Uma quietude própria da paisagem”. O segundo mencionou que o pintor
não deve se deixar levar pelo que o rosto lhe apresenta, visível. Ele deve ver o que
se dá a ver, mas também intuir o que se oculta”.
Figura 257 - Valda Costa, sem título, s/d. Tijolo maciço, 25 x 11 cm.
Fonte: Coleção João do Amarante.
Na Figura 257 o corpo de mulher grávida brota da pedra bruta onde se
ocultou. Pedra, mbolo da Terra-mãe, aquela que a vida. Matéria passiva,
ambivalente. Mulher e Terra, unidade, um bloco, um ser. Terra e Mulher se
expressão, pleno de intencionalidade e poder de significação. Também para Merleau-Ponty (1975),
natureza e cultura, assim como sujeito e objeto, não podem ser dicotomizados: o corpo não pode ser
entendido simplesmente como organismo. Ele também é cultura, transcendendo o aspecto físico.
Também vale lembrar que a expressão analogia universal” foi tomada por empréstimo dos
surrealistas cuja busca de um paralelismo entre poesia e alquimia o seria concebível dentro dos
parâmetros da identidade e contradição. Na base dessa convergência restaria um princípio, como
aponta Moraes (2002, p. 75-90): a analogia universal.
246
confundem num único lugar: na maternidade “sagrada”
214
. O corpo materno
capturado pela pedra. O corpo que assume, segundo Roger Caillois (apud
MANGUEL, 2001, p. 174), aspectos do espaço ao seu redor. “Não temos um rosto
presente: quando pensamos ter captado as nossas feições num reflexo, elas se
transformaram em alguma outra coisa.”
Figura 258 - Giuseppe Arcimboldo, O Verão, 1573. Óleo s/tela, 76 x 64 cm. Museu Nacional do
Louvre, Paris.
Fonte: LOUVRE MUSEUM, 2007
A transfiguração do corpo, a reversibilidade da metamorfose, foi moda de
época, tendo em Arcimboldo
215
um audacioso representante. Empregando formas
214
Valda Costa viveu muitas vezes esse momento. Segundo relatou João do Amarante em entrevista,
ela fez essa obra quando estava grávida do seu último filho.
215
Giuseppe Arcimboldo (1527-1593) foi um pintor italiano que iniciou seus trabalhos em Milão, com
seu pai, mas atingiu a fama em Praga, sob a proteção do Imperador Rudolph XI. Suas obras
principais incluem a série As Quatro Estações, nas quais usou, pela primeira vez, imagens da
natureza, tais como frutas, verduras e flores, para compor fisionomias humanas. A idéia de reproduzir
as estações como pessoas era usada desde a época dos romanos, entretanto, Arcimboldo foi o
pioneiro na utilização de vegetais de estações distintas na composição de rostos humanos. Na
literatura, são inúmeros os exemplos da transfiguração entre corpo e paisagem, animais ou objetos
(CORTÁZAR, 1975). “Afuera, mi cara volvia a acercarse al vídrio, veia mi boca de labios apretados
por el esfuerzo de comprender a los axolotl. Yo era un axolotl y sabía ahora instantáneamente que
ninguna comprensión era posible. Él estaba fuera del acuario, su pensamiento era un pensamiento
fuera del acuario. Conociéndolo, siendo él mismo, yo era un axolotl y estaba en mi mundo.”
(CORTÁZAR, 1975, p. 116), ou ainda em Borges (1999, p. 254): “Um homem propõe-se a tarefa de
desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de
montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de habitação, de instrumentos, de astros, de
cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a
imagem de seu rosto”.
247
distintas para dizer, ou representar”, a mesma coisa, Arcimboldo significa tudo, no
entanto, tudo é surpreendente.
Quer dizer nariz? Sua reserva de sinônimo põe a sua disposição um ramo,
uma pêra, uma abóbora, uma espiga, um lice, uma flor, um peixe, um
pernil de coelho, uma carcaça de frango. Quer dizer orelha? Basta ir buscar
elementos em um catálogo heteróclito de onde extrai um tronco de árvore,
um cogumelo, a inflorescência de uma espiga, uma concha, uma cabeça de
animal. [...] Tudo é sempre idêntico, diz o palíndromo; qualquer que seja o
sentido em que coloquemos os objetos, a verdade permanece. ‘Tudo pode
tomar um sentido contrário’, diz Arcimboldo; isto é, tudo tem sempre um
sentido, qualquer que seja o tipo de leitura, porém esse sentido nunca é o
mesmo. (BARTHES, 1990, p. 126-127).
Pode-se retornar, neste momento, para as telas do retrato de Solange Silva
Hazin e o “cavalo feroz”, ambos pintados por Valda Costa (Figuras 259 e 260).
Conforme citado, Solange não gostou de nenhuma das duas telas, pois se achou
muito parecida com o cavalo de expressão muito forte.
Figura 259 - Detalhe do Retrato de
Solange Silva Hazin.
Fonte: Coleção Solange Silva Hazin.
Figura 260 - Valda Costa, sem título,
1976. Óleo s/eucatex, 30 x 40 cm.
Fonte: Coleção Solange Silva Hazin.
É a reversibilidade da metamorfose como princípio estético. Os traços
animalescos na figura humana não são tomados, a priori, com um sentido pejorativo,
pois o corpo do animal está associado às formas da beleza do corpo humano.
Essas projeções antropomórficas são com freqüência mais sutis que o
reconhecimento de uma simples analogia. [...] O homem quando e essas
máscaras vira um bicho, pois a máscara é um apêndice dele. [...] Esse ritual
248
supõe-se a abertura na subjetividade, na direção de um mais além do
humano, o bicho autêntico, o ser vivo. (JEUDY, 2002, p. 19)
216
Figura 261 - Valda Costa, sem título, 1984. Óleo s/eucatex, 41 x 32 cm.
Fonte: Coleção Hercílio Varela.
Na Figura 261 a natureza e a ninfa negra são mediadas por uma operação
artística: topologias de uma forma. O corpo surge como relevo que se confunde
com a paisagem suporte circundante. A mulher pode vir a ser uma paisagem, pois,
conforme Roger (1997), on evoquerá, de manière assez convenue, la colline des
seins, le vallon de sa gorge, le ravin de son sexe, sans doute le plus exposé à cette
metaphorisation, triviale ou poétique: touffe, motte, mont de Vênus, sillon, grotte,
jardin bien clos, source scellée”. A erotização da paisagem amplamente utilizada por
artistas como Hugo, Flaubert, Verlaine, Zola, Proust, Dali, Ernst, entre tantos outros.
Paisagens de sonhos, nostálgicas que induzem ao desejo da jovem e bela mulher, a
ninfa negra de corpo nu. “O corpo que irrompe, o corpo que descobre outros
horizontes, o corpo mundo.” (JEUDY, 2002, p. 140).
A identidade é disseminada em formas que perdem a sua estabilidade: as
partes do corpo tornam-se intercambiáveis. Os rostos o mutantes, podem ser
216
Aqui Jeudy (2002) se refere à obra Baba Antropofágica, de Lygia Clark, citando um trecho da carta
pela artista, enviada no dia 14 de novembro de 1978 à Hélio Oiticica.
249
rostos, mas também podem ser paisagens. A máquina de rostidade que opera a
rostificação de todo o corpo, “de suas imediações e de seus objetos, uma
paisagificação de todos os mundos e meios”. A obra de Valda Costa pode ser vista
como a cara do seu mundo, a sua biografia, o seu rosto ou as suas diversas
máscaras, pois, como apontam Deleuze e Guattari (1996),
até a máscara encontra aqui [na paisagens e objetos] uma nova função,
exatamente o contrário da precedente. Pois não qualquer função unitária
da máscara, a não ser negativa (em nenhum caso a máscara serve para
dissimular, para esconder, mesmo mostrando e revelando). Ou a máscara
assegura a pertença da cabeça ao corpo, e seu devir-animal, como nas
semióticas primitivas, ou, ao contrário, como agora, a máscara assegura a
instituição, o realce do rosto, a rostificação da cabeça e do corpo: a máscara
é então o rosto em si mesmo, a abstração ou a operação do rosto.
Inumanidade do rosto. O rosto jamais supõe um significante ou um sujeito
prévios. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 33-50).
250
5 O OLHAR QUE VIVE EM NOSSOS OLHOS PELO QUE NOS
OLHA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Voltei algumas vezes nesta tese à idéia da reversibilidade do espelho como a
metáfora mais apropriada para atribuir sentido à escolha do recorte dado à produção
plástica de Valda Costa, ou seja, aquela do retrato como um espelho no qual a
artista refletiu a sua imagem, os seus valores, os seus desejos, a sua época, a sua
maneira de ver o mundo, em suma, as suas sensibilidades e percepções.
Provavelmente, essa opção tenha sido motivada pelo que a obra de Valda Costa
pode me oferecer como exercício teórico-crítico, ou ainda, por aquilo que me tocou
ou me pungiu como fruidora, pois como aponta Manguel (2001), todo “retrato é, em
certo sentido, um auto-retrato que reflete o espectador. Como ‘o olho o se
contenta em ver’, atribuímos a um retrato as nossas percepções e as nossas
experiências. Na alquimia do ato criativo, todo o retrato é um espelho”.
Esse espelho, na alquimia do ato criativo e crítico, captou a partir de Aby
Warburg outros reflexos, tais como os de Walter Benjamin, de Carlo Ginzburg, de
Georges Didi-Huberman e de Roland Barthes, autores que me instigaram a pensar
sobre a questão do olhar do historiador em todas as dimensões e sentidos, desde a
escolha das obras e da artista até a apreensão metodológica em relação ao visual
da imagem a ser analisada.
Os diversos modos de olhar refletem diferentes visões, que a realidade
visível se revela como uma possibilidade entre tantas. Cézanne pintou cerca de
oitenta versões da montanha de Santa Vitória. Como pôde ver tantas montanhas em
uma mesma montanha? O seu olhar de pintor captou algumas vistas possíveis de
uma pretensa mesma realidade, todas as que couberam na magia de sua tela. Ver é
também reconhecer e recriar para além do entendimento óbvio.
O olhar seleciona e associa, retém e elimina, apropria-se de uma realidade
por meio de um filtro pessoal. Vemos de modos diferentes as mensagens visuais, as
obras de arte ou qualquer imagem. Pela experiência estética do olhar podemos
adquirir capacidades mais complexas na compreensão da arte e da história. Essa
compreensão não se diretamente, é preciso encontrar um sentido para além dos
juízos de gosto, de beleza, enfim, para além das primeiras impressões que o olhar
nos provocou.
251
Durante a minha trajetória nesta pesquisa, tentei instruir o meu olhar para ir
mais além das primeiras impressões que a obra de Valda Costa me causou, pois
ultrapassar certos limites que uma análise pode impor é emancipar a obra de sua
pura visibilidade e privilegiar descrições (para utilizar o termo de Merleau-Ponty) que,
inscritas num texto cultural maior, podem se abrir para formas diferentes de leitura
cujas fronteiras ainda não são percebidas com clareza (SCHOLLHAMMER, 2007).
Assim, a escolha que fiz privilegiou um caminho que exigiu flexibilidade e
diálogo constante com diferentes disciplinas ou saberes. Feita a escolha, tentei unir
na pesquisa e nas análises (ou descrições) a leveza dionisíaca com o rigor apolíneo,
pois imagens e textos são “espaços abertos a múltiplas leituras e nem sempre têm
toda a eficácia aculturante que se lhes atribui com freqüência. [...] [O]lhar e ler, por
excelência, permitem tanto a incorporação e a permanência de signos e valores
como as reapropriações, os desvios, as desconfianças, as resistências”. (CUNHA,
1999, p. 72). Certamente um caminho feito de certezas e incertezas.
As certezas visíveis em torno da vida de Valda Costa eram aquelas dadas,
ou seja, a de uma bela modelo e artista negra, moradora de favela, que, após um
período de desentranhamento dos condicionantes impostos pela sua condição
socioeconômica (MICELI, 1996), circulou com desenvoltura pelo interior das
instituições culturais oficiais e não oficiais locais, e viveu e desfrutou de uma
situação estável como artista “profissional” com um mercado de arte garantido.
Entretanto, essa situação não durou por muito tempo. Valda experimentou da
aceitação incondicional à rejeição total. Encerrado o encanto da novidade e com o
agravamento de seu estado físico e mental, Valda tornou-se incômoda tanto para a
elite cultural que a acolhera quanto para a sua comunidade.
Sobre a obra, poderíamos, na mesma clave das certezas, falar que se trata
de uma produção com base formal modernista (já que Valda Costa “bebeu da fonte”
de Martinho de Haro e de seus interlocutores), com forte tendência ao primitivo e ao
naïf, opção que, tudo indica, foi feita pela receptividade do mercado local de arte,
que favorecia e ainda favorece esse alinhamento estilístico”
217
. O mesmo pode-se
dizer em relação à temática local, pois Valda “explora em seus traços o turismo de
Florianópolis, em que peixes, renda, mar, Mercado Público, Alfândega e boi-de-
217
Conforme indicado, esse discurso foi amplamente utilizado pelos críticos e legitimador de
artistas nesse período em Florianópolis, e não somente em relação à produção de Valda Costa.
252
mamão dividem as suas composições, garantindo-lhe uma venda fácil” (JORNAL O
ESTADO, 1987). Mas essa foi uma tendência que, certamente, Valda utilizou para
garantir o seu sustento e o seu espaço no sistema das artes local. Entretanto, a
artista experimentou muitos e variados materiais e estilos, criou marcas próprias,
como, por exemplo, as linhas negras e grossas que circulam e separam os campos
de cores e formas, a incorporação do elemento afro e o cotidiano da favela, além
dos seus diversos tipos humanos.
Sobre a produção desta artista, as certezas são aquelas indicadas pelo
conjunto de sua vasta obra, ou seja, em alguns momentos ela criou trabalhos muito
interessantes, com resultados plásticos muito bem resolvidos e, em outros, um
esvaziamento de qualidade. Isso não é difícil de ser percebido e explicado, que a
artista o teve acesso a recursos e tempo (sobretudo após o nascimento de seus
filhos) para o seu “amadurecimento artístico”. Valda aspirava atingir “o centro”,
entretanto encontrou muitos obstáculos na sua trajetória, muitos deles colocados por
ela própria. Com um repertório pautado nas suas singularidades e no seu entorno
mais próximo, Valda Costa ambicionou mudar de vida. Conforme indicado nesta
tese, pura fantasmagoria.
Entretanto, para um olhar não acomodado e instruído pelos autores lidos,
acreditei em outras chaves de leituras para a obra de Valda Costa (sem ter
pretendido fazer a transfiguração do banal
218
). Vi na obra desta bela negra (como
todos se referiram a ela durante as entrevistas realizadas) com pouco estudo e
oportunidades inúmeras possibilidades, que foram para muito além do que os meus
olhos puderam avistar, ou seja, tentei pensar em um repertório crítico por meio do
qual a tarefa de discorrer sobre uma artista periférica inserida em um contexto
homogeneizador pudesse fugir ao já dado ou equacionado. Deparei-me com o
desafio de superar rótulos e etiquetas classificatórias e também de apreender o
inapreensível da vida e da obra aparentemente insignificantes de Valda Costa.
Refiz o itinerário desta artista recusando o caminho mais fácil apontado, pois
pensar a vida e a produção plástica de Valda Costa foi também oportunizar a análise
de aspectos paradoxais que nela (na análise e, talvez, na própria obra) apontam.
São paradoxos que se apresentam no conflito entre vida e obra. Pensar as
218
Refiro-me, de modo mais geral e amplo, ao sentido dado a essa expressão por Danto (2002).
Segundo esse autor, a transfiguração do banal consiste no modo de produção da arte preconizado
por Duchamp, ou seja, objetos comuns apresentados como arte.
253
impressões captadas nos quadros de Valda Costa foi também refletir sobre o
descompasso e o desvio no paradoxo. Foi refletir sobre o que as marcas e as
impressões carregadas de tensões deixadas pela artista despertam a partir do
presente. Assim, nesse aparente descompasso ou desvio, nesse choque do tempo
passado (o dela e de sua obra) e do tempo presente (o meu e o da minha obra
sobre a dela) que se instaurou, atravessada pelo meu olhar, a força da obra dessa
artista plural, que marcou nas suas telas os traços do próprio corpo e da própria
vida. Valda também deixou rastros: tanto na obra de outros artistas, como por
exemplo, em Décio David, quanto a partir de suas próprias obras, como, por
exemplo, em mim. São rastros voluntários e involuntários, impressões de si mesma.
Tais rastros me revelaram um sentido para a produção plástica da artista para
além daqueles das certezas, qual seja, a obra como biografia (ou autobiografia) em
que muitos rostos ou máscaras (ou ainda, “eus” possíveis e cambiantes) ficaram
impressos nas telas da artista como o registro de sua passagem fugaz pela História
da Arte de Florianópolis. Retomo mais uma vez a metáfora do espelho, pois “se todo
retrato é um espelho, um espelho aberto, então nós, os espectadores, somos por
nossa vez um espelho para o retrato emprestando-lhe sensibilidade e sentido”
(MANGUEL, 2001, p. 27).
Emprestei à obra de Valda Costa um sentido, uma impressão, o sentido que
me foi contado pela artista através de suas telas, pois a obra é o lugar onde se
definiram e ficaram impressas as suas escolhas, as suas singularidades. É o espaço
no qual permanecem as marcas que a artista apreendeu e deixou sobre as
possibilidades de sua época, constituindo-se como uma autobiografia possível de
ser lida para além do seu tempo e do seu lugar, ou seja, uma marca durável como
uma impressão que exclui toda a distância ao seu referencial porque precisa aderir
para acontecer e para operar (DIDI-HUBERMAN, 1997, p. 3-4).
Pensar em Valda Costa, em sua trajetória labiríntica, fugaz e paradoxal, foi
pensar em uma possível análise da sua vida e da sua obra optando por caminhos de
problemas e incertezas em vez de discursos de certezas. Fui buscar na artista
periférica de matriz modernista a sua maneira singular e contemporânea de abordar,
provavelmente sem se dar conta, a problemática identidade e alteridade. Os
desejos, as angústias e os medos de Valda Costa, ou Vivalda Teresinha da Costa,
ou Vivalda, ou Miguel Angelo, ou Angelo Miguel entre tantas outras versões de si e
do outro, são atemporais, deslocaram-se e deslocam-se como sintomas, o que
254
oportuniza a elaboração de diferentes leituras e de aproximações de Valda Costa
com outros artistas de espaços e de tempos diversos. Instaura-se o jogo infinito de
espelhos e de máscaras, as impressões sobreviventes, as de Valda Costa e as
minhas, que se imbricaram com a de outros por meio de um olhar mais sensível e
atento, o olhar que vale e “só vive em nossos olhos pelo que nos olha” (DIDI-
HUBERMAN, 1998b, p. 29).
255
FONTES
Depoimentos e entrevistas
AGOSTINHO, Valdir. Entrevista concedida a Jacqueline Wildi Lins e Liane Rose
Chipollino Aseff. Florianópolis, out. 2006.
ALVES, Luis (Dão). Entrevista concedida a Jacqueline Wildi Lins e Liane Rose
Chipollino Aseff. Palhoça, abr. 2007.
AMARANTE, João do. Entrevista concedida a Jacqueline Wildi Lins e Liane
Rose Chipollino Aseff. Florianópolis, jan. 2007.
BEIRÃO, Alfredo. Entrevista concedida a Jacqueline Wildi Lins pelo professor
do Curso de Moda e Estilismo da Universidade do Estado de Santa Catarina.
Florianópolis, jun. 2007.
BRAGA, Semy. Entrevista concedida a Jacqueline Wildi Lins. Florianópolis, jul.
2005.
CAMINHA, Paulo. Entrevista concedida a Jacqueline Wildi Lins. Florianópolis,
nov. 2005.
CAVALLAZZI, Sandra Silva. Entrevista concedida a Jacqueline Wildi Lins.
Florianópolis, set. 2005.
CHAVES, Clarita. Entrevista concedida a Jacqueline Wildi Lins pela Diretora do
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______. A penúltima visão do paraíso: ensaios sobre memória e globalização. São
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SWAIN, Tânia Navarro. Identidade nômade: heterotopias de mim. In: RAGO,
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SZTAJNBERG, Rachel. Frida Kahlo: o desamparo encarnado. Disponível em:
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TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
TOMKINS, Calvin. Duchamps. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.
TREVISAN, Armindo. Como apreciar a arte: do saber ao sabor: uma síntese
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280
TUTIDA, Nara Beatriz Milioli. Registros e impressões: a trajetória da gravura em
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obra-de-frida-kahlo>. Acesso em: 5 ago. 2007.
282
ANEXOS
Anexo - Outras obras de Valda Costa
Valda Costa, sem título, 1983. Óleo s/eucatex,
28 x 22 cm. Coleção particular.
Valda Costa, sem título, s/d. Óleo
s/eucatex, 30 x 24 cm. Coleção Falia
Silva.
Valda Costa, sem título, 1980. Óleo
s/eucatex, 23 x 24,5 cm. Coleção
Adriano Pauli.
Valda Costa, Barraquinha, s/d. Óleo s/eucatex, 40
x 60 cm. Acervo SEA.
Valda Costa, sem título, 1976. Óleo
s/eucatex, 40 x 36 cm. Acervo SEA.
Valda Costa, Vaso de Flores, s/d. Óleo
s/eucatex, 30 x 26 cm. Acervo SEA.
283
Valda Costa, Vaso de Flores, 1976. Óleo
s/eucatex, 59 x 48 cm. Acervo SEA.
Valda Costa, Vaso de Flores, 1976. Óleo
s/eucatex, 51 x 41 cm. Acervo SEA.
Valda Costa, Casario Açoriano, mista, s/d
legível. Óleo s/tela. 42 x 43 cm. Acervo SEA.
Valda Costa, Casa de Campo, s/d. Óleo
s/eucatex, 20 x 26 cm. Acervo SEA.
Valda Costa, Pescador, 1976. Óleo
s/eucatex, 26 x 25 cm. Acervo SEA.
Valda Costa. A Volta. 1976. Óleo s/eucatex,
30 x 27 cm. Acervo SEA.
284
Valda Costa, sem título, 1979. Óleo
s/eucatex, 58 x 88 cm. Acervo SEA.
Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 21
x 34 cm. Acervo SEA.
Valda Costa, sem título, 1986. Óleo
s/eucatex, 37 x 23 cm. Coleção Odete de
Oliveira.
Valda Costa, sem título, 1985. Óleo
s/eucatex, 32 x 22 cm. Coleção Família
Freyesleben.
Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 42 x 60
cm. Coleção particular.
Valda Costa, sem título, 1987. Óleo
s/eucatex, 34 x 60 cm. Coleção João do
Amarante.
285
Valda Costa, assinado Vivalda,
em título, 1993. Óleo s/eucatex,
34 x 28 cm. Coleção João do
Amarante.
Valda Costa, assinado Miguel Angelo e Valda, sem
título, 1992. Desenho, lápis sobre folha de prontuário
do Hospital de Caridade (feito durante uma de suas
internações), tamanho A4. Coleção João do Amarante.
Valda Costa, sem título, 1992.
Desenho, lápis sobre folha de
prontuário do Hospital de Caridade
(feito durante uma de suas
internações), tamanho A4. Coleção
João do Amarante.
Detalhe
286
Valda Costa, sem título, 1992.
Desenho, lápis sobre folha de papel
A4. Coleção João do Amarante.
Valda Costa, sem título, 1992. Desenho, lápis sobre
folha de papel A4. Coleção João do Amarante.
Valda Costa, sem título, desenho, 1992.
Lápis sobre folha de papel A4. Coleção João
do Amarante.
Valda Costa, sem título, 1992. Desenho,
lápis sobre folha de papel A4. Coleção João
do Amarante.
Valda Costa, sem título, assinado Vivalda,
s/d. Desenho, lápis sobre folha de papel A4.
Coleção João do Amarante.
Valda Costa, sem título, s/d. Desenho, caneta
hidrocor e caneta esferográfica sobre folha de
papel A4, s/d. Coleção João do Amarante.
287
Valda Costa, sem título, s/d. Desenho,
caneta hidrocor sobre folha de papel A4.
Coleção João do Amarante.
Valda Costa, sem título, s/d. Desenho,
caneta hidrocor sobre folha de papel A4.
Coleção João do Amarante.
Valda Costa, sem título, s/d. Desenho,
caneta hidrocor sobre folha de papel A4.
Coleção João do Amarante.
Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex,
24 x 32 cm. Coleção particular.
Valda Costa, sem título, 1984. Óleo s/eucatex, 19 x 24
cm. Coleção José Alfredo Beirão.
Valda Costa, sem título. Óleo
s/eucatex, 45 x 28 cm. Coleção
Márcia Beduschi.
288
Valda Costa, sem título, 1984. Óleo s/eucatex,
23 x 19 cm. Coleção José Alfredo Beirão.
Valda Costa, sem título, 1985. Óleo
s/eucatex, 24 x 18 cm. Coleção José
Alfredo Beirão.
Valda Costa, sem título, s/d. Desenho, lápis
s/papel A4, 1,02 x 31 cm. Coleção José
Alfredo Beirão.
Valda Costa, sem título, s/d. Desenho, lápis
s/papel A4, 1,02 x 31 cm. Coleção José
Alfredo Beirão.
289
Valda Costa, sem título, s/d. Desenho, lápis
s/papel A4, 80 x 21 cm. Coleção José Alfredo
Beirão.
Valda Costa, sem título, s/d. Desenho, lápis
s/papel A4, 80 x 21 cm. Coleção José
Alfredo Beirão.
Valda Costa, sem título, 1986. Óleo
s/eucatex, 45 x 60 cm. Coleção Marfiso
Pigozzi.
Valda Costa, sem título, s/d. Óleo sobre o verso do
eucatex, 30 x 40 cm. Coleção José Ricardo Ramos
de Souza.
290
Valda Costa, assinado Miguel Angelo, s/d. Óleo
s/eucatex, 32 x 42 cm. Coleção José Ricardo
Ramos de Souza.
Valda Costa, sem título, s/d. Óleo
s/eucatex, 38,5 x 38,5 cm. Coleção
José Ricardo Ramos de Souza.
Valda Costa, assinado Angelo Miguel , sem título, s/d.
Óleo s/eucatex, 20 x 30 cm, sem data. Coleção José
Ricardo Ramos de Souza.
Valda Costa, assinado Vivalda,
em título, s/d. Óleo s/eucatex,
35 x 22 cm. Coleção José
Ricardo Ramos de Souza.
Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/eucatex, 20 x 30
cm. Coleção José Ricardo Ramos de Souza.
Valda Costa, sem título, s/d. Óleo
s/eucatex, 28 x 21 cm. Coleção José
Ricardo Ramos de Souza.
291
Valda Costa, sem título, s/d. Óleo
s/madeira, 58 x 39 cm. Coleção José
Ricardo Ramos de Souza.
Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/madeira, 26 x 30
cm. Coleção José Ricardo Ramos de Souza.
Valda Costa, sem título, s/d. Óleo s/madeira (madeira catada em construção), 78 x
30 cm, s/d. Coleção José Ricardo Ramos de Souza (no detalhe, verso do suporte da
obra, vê-se um prego que não pode ser retirado para não danificá-la).
292
Valda Costa, sem título, s/d. Desenho, lápis
s/papel A4, 1,02 x 31 cm. Coleção José Alfredo
Beirão.
Valda Costa, sem título, s/d legível. Óleo
s/eucatex, 28 x 22 cm. Coleção José
Tito da Luz.
Valda Costa, sem título, s/d. Desenho, lápis
s/papel A4, 1,02 x 31 cm. Coleção Solange
Silva.
Valda Costa, sem título, s/d legível. Óleo
s/eucatex, 32 x 24 cm. Coleção José Tito
da Luz.
Valda Costa, sem título, 1985. Óleo
s/eucatex, 34 x 28 cm. Coleção Milton
Bordin.
Valda Costa, sem título, 1981. Óleo
s/eucatex, 28 x 28 cm. Coleção Milton Bordin.
293
Valda Costa, sem título, 1987. Óleo s/eucatex,
28 x 24 cm. Coleção particular.
Valda Costa, sem título, 1984. Óleo
s/eucatex, 28 x 24 cm. Coleção Sandra
Silva Cavalazzi.
Valda Costa, sem título, 1984. Óleo s/eucatex, 24
x 24 cm. Coleção Sandra Silva Cavalazzi.
Valda Costa, sem título, 1984. Óleo
s/eucatex, 32 x 24 cm. Coleção Sandra
Silva Cavalazzi.
294
Valda Costa, sem título, 1984. Óleo
s/eucatex, 28 x 28 cm. Coleção Sandra Silva
Cavalazzi.
Valda Costa, sem título, 1978. Óleo
s/eucatex, 24 x 24 cm. Coleção Sandra Silva
Cavalazzi.
Valda Costa, sem título, 1976. Óleo s/eucatex, 38 x 42 cm. Coleção Hercílio Varela.
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