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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LITERATURA BRASILEIRA
O ESPAÇO DA INFÂNCIA NAS CRÔNICAS DE
CARLOS HEITOR CONY
ANDRÉ MOTA FURTADO
FORTALEZA
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LITERATURA BRASILEIRA
O ESPAÇO DA INFÂNCIA NAS CRÔNICAS DE
CARLOS HEITOR CONY
ANDRÉ MOTA FURTADO
FORTALEZA
2007
Dissertação apresentada
à Coordenação do
Programa de Pós-
Graduação em Letras da
Universidade Federal do Ceará,
como
requisito parcial
para obtenção do título de
Mestre em Literatura.
Elaborada sob a
orientação da Profª. Drª. Fernanda Maria
Abreu Coutinho
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“Lecturis salutem”
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA POR
Telma Regina Abreu Camboim – Bibliotecária – CRB-3/593
tregina@ufc.br
Biblioteca de Ciências Humanas – UFC_____
F987e Furtado, André Mota.
O espaço da infância nas crônicas de Carlos Heitor Cony/ por André
Mota Furtado. – 2007.
205 f. : il; 31 cm.
Cópia de computador (printout(s)).
Dissertação(Mestrado) – Universidade Federal do Ceará,Centro de
Humanidades,Programa de Pós-Graduação em Literatura, Fortaleza(CE),
27/07/2007.
Orientação: Profª. Drª. Fernanda Maria Abreu Coutinho.
Inclui bibliografia.
1-CONY,CARLOS HEITOR,1926- – CRÍTICA E INTERPRETAÇÃO.2-INFÂNCIA NA
LITERATURA.3-ESPAÇO E TEMPO NA LITERATURA.I-Coutinho, Fernanda Maria Abreu ,
orientador.II.Universidade Federal do Ceará. Programa de Pós-Graduação em Literatura.III- Título.
CDD(21ª ed.) B869.8408
31/07
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Drª. Fernanda Maria Abreu Coutinho – Universidade Federal do Ceará (UFC)
Orientadora
Profª. Drª Marília Rothier Cardoso – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ)
1ª Examinadora
Profª Drª Vera Lúcia Albuquerque de Moraes – Universidade Federal do Ceará (UFC)
2ª Examinadora
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Fernanda Coutinho, pela grandiosa
contribuição, durante a jornada, proporcionada por sua
incansável e terna orientação.
À Professora Doutora Marília Rothier, pela gentileza de ter
aceito o convite, e por todas as excelentes sugestões, feitas de
sua leitura atenta e aguda.
À Professora Doutora Vera Moraes, pelas valiosas observações,
apresentadas durante o Exame de Qualificação.
A Carlos Heitor Cony, pelos subsídios dados a este trabalho, em
suas atenciosas entrevistas.
Aos meus colegas e professores do Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Ceará.
A todos que, de alguma forma, me ajudaram na realização desta
pesquisa, em especial, à Maria do Amparo e ao José de Castro.
DEDICATÓRIA
A minha mãe, pela lição de vida.
A meu pai, pela garra em perseguir seus objetivos.
À Viviane, pela compreensão e apoio, em todas as etapas da pesquisa.
“Chão da infância. Algumas lembranças me parecem fixadas
nesse chão movediço...”
Lygia Fagundes Telles
“Aos 92 anos, próximo ao fim, meu pai buscava ainda a imagem
daqueles que dele haviam cuidado em criança. É que nunca
deixamos de ser crianças. Com o tempo, vamos nos tornando
crianças envelhecidas, engelhadas; mas a nossa fragilidade
continua sendo a da infância, a nossa carência continua sendo a
da infância.”
Moacyr Scliar
“Já não existe a casa em que nasci, mas esse facto é-me
indiferente porque não guardo qualquer lembrança de ter vivido
nela. Também desapareceu num montão de escombros a outra,
aquela que durante dez ou doze anos foi o lar supremo, o mais
íntimo e profundo, a pobríssima morada dos meus avós
maternos...”
José Saramago
“Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de
escada, da circunferência dos arcos dos pórticos, de quais
lâminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei que seria o
mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das
relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do
passado.”
Italo Calvino
RESUMO
A pesquisa em pauta analisa, através de uma perspectiva hermenêutica, de vertente
comparatista, o tema da infância no âmbito da literatura. A partir da leitura da obra em
crônica, publicada em livro, de Carlos Heitor Cony, objetiva-se compor uma
representação pueril, sob o ponto de vista da categoria narrativa espaço, desenvolvida
nas subcategorias: espaço físico, social e psicológico. De início, a dissertação prende-se
a uma construção argumentativa do termo crônica confessional da infância, através da
ligação entre os vocábulos crônica, memória e infância; a fim de, na seqüência, aplicá-lo
empiricamente – e de maneira específica – na edificação dos espaços infantis – privados
e públicos representados, respectivamente, pelas palavras-chave, casa e rua, nas
crônicas do autor em foco. Por meio desse recorte em relação à temática infantil,
verificou-se que o locus do passado processa-se bem mais em sentido figurado. Tanto
pelas relações sociais como por uma apresentação de um espaço mental dos
personagens; evidenciando-se, portanto, de maneira secundária, a demarcação física da
geografia das imagens da infância na obra em crônica de Carlos Heitor Cony.
Palavras-chave: crônica, memória, infância, espaço.
RÉSUMÉ
La recherche en question analyse, à travers une perspective herméneutique, versant
comparatiste, le thème de l’enfance dans le domaine de la littérature. À partir de la
lecture de l’oeuvre en chronique, publiée dans des livres, de Carlos Heitor Cony, nous
avons pour but composer une représentation puérile, sous le point de vue de la catégorie
narrative de l’espace, veloppée dans les sous-catégories: l’espace physique, social et
psychologique. Initialement, ce travail s’atatache à une construction argumentative du
terme chronique confessionnelle de l’enfance, à travers le rapport entre les mots
chronique, mémoire et enfance; afin que, dans le séquence, nous l’employons
empiriquement et de manière spécifique dans l’édification des espaces enfantins
privés et public représentés, respectivement, par les mots-clés, maison et rue, dans les
chroniques de l’auteur ciblé. À travers cette coupure par rapport à la thématique
enfantine, nous avons vérifié que le locus du passé arrive plutôt dans un sens figuré. À
cause des rapports sociaux et par une présentation d’un espace mental des personages;
soulignant, par conséquent, de manière secondaire, la délimitation physique de la
géographie des images de l’enfance dans l’oeuvre en chronique de Carlos Heitor Cony.
Mots-clés: chronique, enfance, mémoire, espace.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................................10
1. O ESPAÇO DA MEMÓRIA E A CRÔNICA CONFESSIONAL DA INFÂNCIA...13
2. O ESPAÇO DA CASA................................................................................................39
2.1 O MENINO CONY..........................................................................................57
2.2 O MENINO E O PAI.......................................................................................69
2.3 O MENINO E A MÃE...................................................................................105
2.4 O NÃO-ESPAÇO DA ESCOLA...................................................................110
2.5 O ESPAÇO DA LEITURA............................................................................117
3. O ESPAÇO DA RUA................................................................................................123
3.1 O MENINO E O RIO DE JANEIRO DOS ANOS 30...................................135
3.2 O MENINO E OS TIPOS POPULARES DO LINS DE VASCONCELOS.149
3.3 O ESPAÇO INTERPARES...........................................................................156
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................172
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................175
ANEXOS.......................................................................................................................184
Anexo A – Entrevista 1........................................................................................184
Anexo B – Entrevista 2........................................................................................191
Anexos fotográficos – C, D, E, F, G, H, I, J, L....................................................196
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Entre parênteses, o ano da primeira edição
AF – Da arte de falar mal (1963)
AFA – O ato e o fato (1964)
PS – Posto Seis (1965)
QA – Quinze Anos (A juventude como ela é) (1965)
AA – Os anos mais antigos do passado (1998)
HB – O harém das bananeiras (1999)
PSJ – O presidente que sabia javanês (2000)
SL – O suor e a lágrima (2002)
TN – O tudo e o nada (2004)
INTRODUÇÃO
A representação do imaginário infantil, ao longo do tempo, é uma presença
constante nas manifestações artísticas e – especificamente quanto à literatura – um mote
recorrente tanto na prosa como na poesia.
Na prosa brasileira, a crônica é uma espécie literária que nitidamente enfoca
o tema. E entre os melhores cronistas do país, Carlos Heitor Cony é, sem dúvida, um
dos que mais se destacaram, ao trazer os aspectos da infância e memória para o centro
de sua produção literária.
Essa faceta da obra deste autor carioca será o tema de investigação do
presente ensaio. O olhar para sua obra em crônica, de teor confessional, deu margem à
observação de que, dentre as categorias da narrativa, uma das mais expressivas no texto
é a do espaço. Nesta dissertação, opta-se, assim, pelo exame das variadas dimensões do
espaço como elemento de construção textual.
Coloca-se então como problema de investigação para o texto dissertativo em
questão um exame da configuração dos espaços infantis – públicos e privados – gerados
pelas crônicas de confissão. Em outras palavras: em que medida esse locus da infância
se estrutura na linguagem de Carlos Heitor Cony.
A leitura das crônicas suscitou uma indagação de base: por que Carlos
Heitor Cony pouco utiliza a descrição física na construção dos espaços da infância
evocados pelos textos?
Na tentativa de solucionar o problema, lançam-se duas hipóteses: a da opção
do autor pelo tratamento do espaço de natureza sócio-psicológica; e a da apresentação
tanto dos personagens como do ambiente que os rodeia estar vinculada a textos
essencialmente narrativos, nos quais o fato o que gera a ação narrativa é mais
importante que as especificações descritivas do espaço no qual se circunscreve a
história.
Neste caso específico, a pesquisa objetiva investigar tanto a construção
espacial, como a sua imagem vinculada à criança, nos textos que remetem, de alguma
forma, ao passado do autor. Dito de outro modo: empenha-se em compor uma
representação da infância, atrelada à construção dos diferentes tipos de espaços físicos,
sociais e psicológicos; cabendo assinalar, também, que a composição dessa geografia
pessoal encaminhará o leitor a uma decifração do mapa do Brasil, em boa parte do
11
século 20 e até do 21, por intermédio dos hábitos de crianças e adultos relacionados à
idade pueril.
Ao propor um elo entre os vocábulos crônica, memória e infância, tenciona-
se cunhar a expressão crônica confessional da infância a partir de reflexões
metalingüísticas, como as do próprio autor em foco cujo sentido refira-se à análise e
interpretação sobre a memória da infância, em crônica.
Estruturalmente, a dissertação compõe-se de três capítulos. O primeiro
teórico pode ser fracionado em três grandes tópicos: o inicial aborda o conceito da
crônica brasileira texto que aqui adquiriu uma feição própria, que dialoga com o
jornalismo e a literatura. Já o segundo tópico, centrado nas observações de Philippe
Lejeune – estudioso francês da autobiografia e seus gêneros afins, bem como nas
contribuições teóricas de brasileiros como Wander Melo Miranda, Eliane Zagury, entre
outros apresenta questões de teor memorialístico, a fim de se criar um vínculo com
último tópico do capítulo: a relação entre crônica, infância e memória.
No capítulo segundo, o elemento espaço soma-se aos termos crônica,
memória e infância. À luz de teóricos como Antonio Candido, Antonio Dimas, Gaston
Bachelard, Michel Butor, Vítor Manuel, a categoria literária espaço é posta em questão,
mais precisamente no âmbito da casa da infância. A morada do menino Cony.
Na pintura da temática infantil, buscam-se as contribuições, principalmente,
de Philippe Ariès – pesquisador que estudou a infância como uma construção histórica –
e também de D. W. Winnicott e John Bowlby. Estes, através de estudos de natureza
psicológica.
Quanto à última parte da pesquisa, mencionem-se as observações
relacionadas ao meio urbano, à cidade – mais precisamente à cidade do Rio de Janeiro –
espaço cultural onde se desenrolam muitas das crônicas enfocadas. Nesta parte do
trabalho, em que predominam os temas infância e cidade, sobrelevam-se as
contribuições dos teóricos Raymond Williams e Nicolau Sevcenko; o primeiro, inglês, e
o outro, brasileiro. Portanto, todas as análises nesta altura da pesquisa estão atreladas
aos temas infância e urbe, sempre com o olhar na própria vida do escritor.
O procedimento metodológico, em relação aos capítulos segundo e terceiro,
situa o tema pesquisado numa perspectiva hermenêutica, pelo viés da Literatura
Comparada. As crônicas de Carlos Heitor Cony são cotejadas tanto entre si como do
ponto de vista intertextual, ou seja, em confronto com as produções de autores
brasileiros ao longo dos séculos 19, 20 e 21. Ressalte-se que, dada a sua importância
12
para a ilustração da pesquisa sobre espaço na infância, algumas crônicas figuram nos
dois capítulos.
O corpus do trabalho se efetua na obra em crônica, publicada em livro, do
autor. São textos, que se tornaram públicos, primeiramente, na imprensa brasileira, ao
longo da atividade intelectual de Carlos Heitor Cony. Todavia, apesar do estudo pautar-
se em todos os livros de crônicas, é necessário ressaltar que nas coletâneas Os anos mais
antigos do passado e O harém das bananeiras mais do que em quaisquer outras o
autor revive sua infância com mais nitidez. E, por isso, as crônicas que as compõem
serão amiudamente citadas nesta pesquisa.
Ao se fazer um exercício comparativo durante as análises do ensaio,
pretende-se, então, chegar a um juízo de valor acerca do título proposto. Espera-se que a
pesquisa contribua, de alguma forma, para os estudos literários que se inclinam a esse
fabuloso tema que é a infância.
1. O ESPAÇO DA MEMÓRIA E A CRÔNICA CONFESSIONAL DA INFÂNCIA
O embrulho cor-de-rosa continua em minha mão.
Não tenho vontade de abri-lo, libertar lacraias que esperam,
silenciosas, para me devorar. A memória não precisa de
matéria. Do pequeno trajeto que fiz, do armário até esta
poltrona, lembrei coisas de muito submersas nos meus
porões. Devo cavar a esmo, memória devassando ângulos
adormecidos ou mortos, em escala impossível de precisar: um
minuto de memória equivalendo a anos de matéria.
Carlos Heitor Cony, Matéria de memória
Muito se tem discutido a respeito do gênero crônica no meio acadêmico.
Publicações de livros, teses, dissertações, monografias ou artigos, de um modo geral,
tentam encontrar uma definição satisfatória para a crônica, enfatizando seu hibridismo
em relação à literatura e ao jornalismo característica principal do gênero. Contudo, de
consensual e definitivo tem-se, apenas, que a proposta inicial da crônica foi, e continua
sendo, um texto produzido para ser publicado em periódicos da imprensa.
A crônica como hoje é conhecida surgiu no século 19, da pena
(literalmente) do folhetinista. Típica figura do século 19, o folhetinista era aquele
profissional da imprensa, pago para escrever em determinado espaço do jornal o
chamado folhetim. O hibridismo da crônica acontecia naquela época; e, por isso, a
produção destes textos era confiada a escritores reconhecidamente talentosos, como, por
exemplo, José de Alencar e Machado de Assis. É de se concluir, portanto, que no
século 19 o folhetim diferenciava-se do texto estritamente jornalístico.
Dirigindo-se normalmente às leitoras, José de Alencar publicava suas
crônicas sob o título “Ao correr da pena”, no Correio Mercantil e no Diário do Rio de
Janeiro. Interessante frisar que em folhetim do dia 24 de setembro de 1854, no Correio
Mercantil, ele comenta sobre a atitude profissional do folhetinista, na coluna de jornal:
Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos, a
passar do gracejo ao assunto sério, do riso e do prazer às misérias e às chagas
da sociedade; e isto com a mesma graça e a mesma nonchalance com que
uma senhora volta as páginas douradas do seu álbum, com toda finura e
delicadeza com que uma mocinha loureira sota e basto a três dúzias de
adoradores! Fazerem do escritor uma espécie de colibri a esvoaçar em
ziguezague, e a sugar, como o mel das flores, a graça, o sal e o espírito que
deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho! (Alencar, 2004:
p.25-26)
14
Em seu famoso folhetim conceitual, publicado na revista O Espelho, em 30
de outubro de 1859, Machado de Assis após comentar que o “folhetinista é a fusão
admirável do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o
frívolo” (Assis, 1986: p.959) fixa, tal como Alencar, a metáfora do “folhetinista-
colibri”:
O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar do colibri na esfera
vegetal; salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os
caules suculentos, sobre todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe
pertence; até mesmo a política.
Assim aquinhoado pode dizer-se que não há entidade mais feliz
neste mundo, exceções feitas. Tem a sociedade diante de sua pena, o público
para lê-lo, os ociosos para admirá-lo, e a bas-bleus para aplaudi-lo.
Todos o amam, todos o admiram, por que todos m interesse
de estar de bem com esse arauto amável que levanta nas lojas do jornal, a sua
aclamação de hebdomadário. (Assis, 1986: p.959)
Walter Galvani, no belo ensaio Crônica: o vôo da palavra, cria uma
imagem metafórica para o cronista, tão interessante quanto a figura do “folhetinista-
colibri” apresentada pelos citados escritores oitocentistas. O “folhetinista-colibri”
transformou-se no “cronista-gaivota”: “entendo que ofício de cronista é como vôo de
gaivota, rente às ondas, até o ponto e a hora de fisgar o peixe. E então vem o mais
difícil: voar mais e mais, sem deixá-lo cair.” (Galvani, 2005: p.22) A imagem de
Galvani é ilustrativa, pois tanto ressalta a busca do tema, captado do cotidiano pelo
cronista, como a obrigação de criar um texto leve, mas artístico. Em momento posterior
de seu ensaio, o jornalista e escritor gaúcho esclarece melhor o assunto, ao transfigurar
metaforicamente sua experiência pessoal. Idéias essas, que podem ser vinculadas, sem
prejuízo de valor, a outros cronistas:
Sou como uma gaivota, do alto examinando o que ocorre na
superfície do mar ou na beira da praia.
Ah, eis o meu assunto, está ele, vivo, respirando, esperando
apenas que eu o tome entre as mãos e o transforme em algo legível ou, por
muita sorte, em trabalho e, quem sabe com alguma competência , possa
lhe dar uma inesperada consistência artística, literária, transformá-lo em valor
cultural permanente. O que é uma simples crônica, então, poderá se abrigar
em alguma antologia futura ou se assentar em alguma estante preciosa, ao
lado de textos de Rubem Braga ou, porque não, de Pero Vaz de Caminha?
(Galvani, 2005: p.28)
Oportuno destacar o último período enunciado por Galvani, momento em
que ele explica, em tom anedótico, a tendência natural de crônicas que, por serem
acentuadamente literárias, podem figurar em livro. Tal como Galvani, comentando
15
sobre a estética desses textos breves, Luís Peazê cria também uma imagem metafórica,
ao fazer um paralelo entre o jornalista stricto sensu e o cronista. Ele afirma então:
No texto jornalístico, o jornalista entra com um serrote e um martelo em cada
mão, só. Na crônica, ele se abastece de inúmeras ferramentas, pode até nem
utilizá-las, mas elas estão ali. Se a pressa não for muito grande ele utiliza...
Um graminho, uma suta, um formão, uma serrinha menor, um esquadro, a
trena, e não raramente a sua colher de pau. (Peazê, 2006: p.22)
É, portanto, pelo uso dessas ferramentas mencionadas por Luís Peazê que o
cronista busca criar o teor literário em seu texto, podendo ele, como comentado
anteriormente, ser transcrito em livro; meio este de publicação, bem distante daqueles
textos breves do século 19, escrito pelos folhetinistas. Aliás, é bom ressaltar aqui que
nos primórdios do gênero, diferentemente da crônica moderna, cabia quase tudo,
naquele espaço do folhetim oitocentista. Para citar dois exemplos, nas colunas eram
encontradas tanto narrativas ficcionais – romances que, publicados em fragmentos,
adquiriram em seguida autonomia – como textos de crítica literária.
Adotando um ponto de vista histórico, a pesquisadora do folhetim Marlyse
Meyer
1
, no ensaio “Voláteis e versáteis. De variedades e folhetins se fez a chronica”,
resume esquematicamente o folhetim, explicando que a referida coluna brasileira
possuía as mesmas características do originário folhetim francês. Dividindo-o em
categorias específicas, Marlyse Meyer esboça as características do que se passou na
“França-matriz” e finaliza suas idéias, relacionando-as com o Brasil oitocentista:
1. Feuilleton: espaço vazio no rodapé de jornais ou nas revistas, destinado ao
entretenimento.
2. No mesmo espaço geográfico: o roman-feuilleton.
3. Variétés e diferentes feuilletons (contos, notícias leves, anedotas, crônicas,
críticas, resenhas, etc. etc. etc...).
4. Todo e qualquer romance publicado en feuilleton, ou seja, aos pedaços.
E no Brasil?
[...]
Basta um relance pela imprensa do século XIX para -lo, em todas as suas
modalidades. Tal e qual na matriz. (Meyer, 1992: p.99)
Em outro estudo chamado “Estações”, Marlyse Meyer debruçou-se na
Seção de Livros Raros da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e obteve boas
informações acerca da atividade intelectual de Machado de Assis em A estação. O
1
Cf. também a seguinte publicação: MEYER, M. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
16
mencionado periódico, com publicação quinzenal, era um jornal de modas, que possuía
uma seção literária. A pesquisadora comenta que
Em matéria de literatura, os novos são autores freqüentemente
resenhados e publicados entre eles, além de Machado de Assis, prosa ou
versos de José do Patrocínio, Mello Morais Filho, Lúcio de Mendonça,
Teófilo Dias, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira etc. (Meyer, 2001:
p.85)
Nessa seção literária, Marlyse Meyer encontrou, casualmente, escritos
machadianos. Lendo os periódicos de diferentes épocas
2
, constatou que Machado de
Assis, entre outras atividades intelectuais no jornal, publicou diversos contos e o
romance Quincas Borba, ficção estampada nesse periódico que é comparada pela
estudiosa à sua publicação posterior em livro. Para ficar apenas num exemplo, dessa
relação entre o Quincas Borba do folhetim e o do livro, “direi que a tarefa ia se
revelando muito estimulante, e de saída permitia observar diferenças notórias na
passagem do jornal ao livro: por exemplo, divergiam inteiramente os vinte primeiros
capítulos entre um e outro.” (Meyer, 2001: p.96)
Em seu comentário sobre Machado de Assis, Marlyse Meyer coloca uma
interessante questão que é a alteração do texto original quando há uma nova publicação.
Essa revisão é uma prática muito comum entre os escritores. Na busca de criar um texto
ideal, acabam suprimindo ou enxertando frases e/ou vocábulos, bem como
reestruturando a sintaxe do escrito.
Em se tratando especificamente da crônica, aspecto importante também para
destaque é que este nero restringe-se às imposições do tamanho que lhe é oferecido
no periódico; ficando limitado a um espaço fixo. Sua produção, portanto, está
subordinada a um certo número de caracteres. Eis uma grande diferença entre o cronista
– que acaba, por força da situação, virando jornalista – e o escritor stricto sensu.
Muitos são os escritores que também publicaram, ou publicam, na imprensa.
Os já mencionados (José de Alencar e Machado de Assis) e ainda Lima Barreto, Rachel
de Queiroz, Graciliano Ramos, João Clímaco Bezerra, Clarice Lispector e João Ubaldo
Ribeiro são alguns exemplos de romancistas que se tornaram jornalistas pelo viés da
crônica. São intelectuais que assumem normalmente posturas diferenciadas no exercício
diário ou semanal da escrita jornalística. Escrevem para um público específico, o leitor
2
Segundo Marlyse Meyer, o periódico funcionou regularmente entre 15 de janeiro de 1879 e 15 de
fevereiro de 1904.
17
mais exigente de jornal ou revista, utilizando uma linguagem que foge aos modelos
convencionais da mera veiculação da notícia, buscando, em geral, o registro literário.
Cristiane Costa, na pesquisa de fôlego Pena de aluguel: escritores
jornalistas no Brasil 1904-2004, trata justamente dessa dupla função (escritor e
jornalista) exercida por alguns intelectuais brasileiros. A autora parte de uma pergunta
formulada pelo cronista João do Rio, que indaga sobre o fato do jornalismo,
especialmente no Brasil, ser um fator bom ou mau para a arte literária.
3
Ao comentar
sobre o momento literário do início do século 20, ela afirma que:
Os jornais e revistas tinham como trunfo servirem de berçário, vitrine,
pedestal e mesmo de trampolim para o homem de letras, encarregando-se do
recrutamento, da visibilidade e dos mecanismos de consagração dos
escritores. Era a imprensa que dava as condições de sobrevivência e de
divulgação para a produção dessa massa crescente de intelectuais brigando
por um lugar ao sol. (Costa, 2005: p.25)
Essa divulgação proporcionada pela imprensa é apenas um dos pontos
positivos das respostas que João do Rio obteve. Lembra Cristiane Costa que os outros
são: pagamento, experiência, exercício e legitimação. E os negativos, para contrastar,
classificam-se em: mercantilismo, banalização, esterilidade, falta de tempo e
favorecimento. Contudo, a pesquisadora ressalta o fator econômico na divisão de dois
pensamentos daqueles escritores do período:
As respostas mais freqüentes são, sem dúvida, as que põem em
lados opostos arte e dinheiro. A polarização entre os que ainda acreditavam
numa arte pura e ciumenta e os que defendiam o papel primordial do
jornalismo na formação de um escritor é típica de um momento literário que
experimenta as novas regras da arte. (Costa, 2005: p.26)
Na sua conclusão, depois de dizer que é impossível elaborar uma resposta
única para a referida pergunta de João do Rio, porque “cada momento literário ou
jornalístico [como também cada escritor] tem seus próprios dilemas” (Costa, 2005:
p.345), a autora comenta a relação contraditória entre arte e mercado, porque são
Diferentes, como cara e coroa, mas interligadas. Isso porque as condições
estruturais que permitiram a profissionalização do trabalho intelectual no
Brasil, nos últimos cem anos, desenvolveram-se paralelamente à
3
Essa indagação é uma das cinco perguntas que faz parte da enquete feita por João do Rio com os
principais intelectuais de sua época, os primeiros anos do século vinte. Posteriormente, as respostas foram
reunidas por João do Rio no seguinte livro: RIO, J. do. O momento literário. Curitiba: Editora Criar,
2006.
18
massificação dos meios de comunicação. Mas não à constituição de um
efetivo mercado para a literatura, que, de cara, exclui praticamente 75 % da
população. (Costa, 2005: p.346)
Observando especificamente, neste momento, o cronista e a relação
emissor/receptor, nota-se que esse profissional da escrita, até de forma natural, acaba
como que se policiando ao se comunicar com um público específico. Tem consciência
do seu papel na imprensa e sabe a quem se destinarão seus textos. Dialoga muitas vezes
na sua própria criação, com uma parte dos leitores, os mais interessados. Aqueles que
enviam correspondência por carta ou, mais comumente hoje em dia, através do correio
eletrônico o e-mail. Esse diálogo é observável ao acompanhar a trajetória da crônica
no Brasil.
Situadas principalmente na década de 30, as crônicas de Humberto de
Campos representam, de forma clara, essa relação entre cronista e leitor de jornal. São
dezenas de textos em que o referido escritor faz da sua crônica uma carta pública, em
resposta aos remetentes, expondo, no jornal, problemas pessoais os mais variados.
Nestas crônicas, Humberto de Campos funciona comumente como um
conselheiro sentimental. Exemplo disso é “Bálsamo para um coração”, em que uma
mulher deseja suicidar-se porque fora obrigada a casar com um tio alcoólatra, agressivo
e ciumento. O texto reproduz diversos fragmentos das cartas recebidas pelo cronista e
dirige-se, logo no início, diretamente à angustiada mulher: “Minha senhora. Leio a sua
carta, e detenho-me nesta passagem: ‘Já tenho pensado na morte e estou mesmo
resolvida a suicidar-me’ [...].” (Campos, 1983: p.39) Em parágrafos posteriores, o
cronista afirma sua postura na crônica-carta: “tenho, pois, minha senhora, que ser, até
certo ponto, indiscreto. Não me viesse, anônimo, o seu grito e mandar-lhe-ia, em
segredo, o conselho que me pede. Mas a resposta é urgente e tem que ser pública.”
(Campos, 1983: p.40) nas últimas linhas do texto, Humberto de Campos aconselhará
à interlocutora que viva feliz, rebelando-se contra o marido.
Em outra crônica denominada “Carta a Maria Cerqueira”, o escritor afirma
que recebeu a missiva de uma meretriz indignada com a pobreza por que passam muitas
pessoas. Autodenominada de “prostituta analfabeta”, resta a um Humberto de Campos
atordoado, solidarizar-se com Maria, porém sem conseguir expressar conselho algum.
Ele, então, reproduz o seguinte fragmento da carta recebida:
Eu não estou aqui porque quero [a mulher escreve de um
prostíbulo], nem as outras infelizes. E quem nos sustenta são os homens da
19
sociedade... Cadê emprego para quem quer trabalhar honrada? Cadê remédio
para se tomar quando está doente? A mulher e a filha do pobre arranjam
alguma coisa se prostituindo. Por isso a rua está cheia delas. E só eu sei o que
choro de noite quando me lembro de mim. (Campos, 1983: p.71)
Este testemunho real de uma meretriz dos anos 30, em comparação com o
Brasil do século 21, mostra que em pouco mudou a situação social brasileira. Através
dos textos de Humberto de Campos acima transcritos, percebe-se a possibilidade de
haver uma cumplicidade entre cronista e leitor, podendo até chegar ao ponto de
tornarem-se amigos.
Nos anos 50, e início dos 60, o boêmio Antonio Maria
4
, radialista e
compositor brasileiro, expressou também, em seus textos breves, o diálogo entre
cronista e leitor.
O bem-humorado autor possui um texto ilustrativo para exemplo, o qual
estampa no título “Carta de leitores”. Crônica essa, feita de fragmentos de cartas dos
leitores, incluídos os nomes (ou pseudônimos) dos remetentes, como também de
pequenos comentários de Antonio Maria. Normalmente engraçado, ele faz, às vezes,
pouco caso da situação, através da ironia. Nessa crônica, a ordem do texto estrutura-se
da seguinte forma: o nome (ou pseudônimo) do remetente, seu questionamento ou
comentário e, em seguida, a fala do escritor. A fim de exemplificar o texto, transcreve-
se abaixo um trecho da crônica:
LUCRÉCIA: “Reconheço que sou uma mulher muito má. Um
dia, pinguei duas gotas de molho de pimenta no colírio do meu marido.” Seu
crime varia de gravidade, de acordo com a região onde ele é praticado. Na
Bahia, por exemplo, má, cruel, desprezível mesmo, seria a esposa que
pingasse duas gotas de colírio no molho de pimenta do marido.
CLÁUDIA RÚBIA: “... sou, enfim, uma mulher muito bonita.
Que devo fazer para ingressar no cinema? Comprar a entrada. O fato de
você ser bonita não quer dizer que entre de graça nos cinemas. (Maria, 2005:
p.33)
Para finalizar essa questão a respeito da relação entre cronista e leitor, em
outra crônica (“Amor e torresmos”), Antonio Maria escreve um comentário muito
interessante que, de certa forma, ratifica tudo o que foi dito aqui sobre o assunto. Afirma
então:
Não sei até quando terei que atender a esse consultório
sentimental. Mas o que é que vou fazer se as leitoras acham que sei das
4
O autor, na verdade, escreveria crônicas até 1964, ano de sua morte.
20
coisas? Minhas amigas, vocês deviam escrever a Nelson Rodrigues, que é um
lanterneiro de almas. Ele, sim, Nelson! Já vi almas batidas, com o “capô” e os
pára-lamas em frangalhos, saírem novas em folha como se viessem da
fábrica. (Maria, 2005: p.94)
Pelo fragmento, o autor se mostra incapaz de solucionar aquelas questões,
formuladas pelos leitores (normalmente as mulheres), eximindo-se da tarefa, e ainda
indicando um colega de imprensa (Nelson Rodrigues), que poderia sanar todas os
problemas sentimentais daquelas pessoas.
Quanto à postura no seu espaço de jornal, o cronista, mesmo escrevendo um
texto literário que, de forma geral, ameniza a dura realidade estampada nos jornais,
sofre, geralmente, injunções ideológicas do periódico no qual trabalha; realidade que
pode levá-lo a entrar em discordância com o periódico que abriga seu texto. Este é um
fato muito comum quando as crônicas são de teor político. Para citar um exemplo,
lembre-se a época da ditadura militar brasileira, período em que jornais e revistas
tinham posições ideológicas variadas, sendo contra ou a favor do regime que se
instaurava no país. O jornalista, então, ou seguia o pensamento político do jornal ou
revista em que trabalhava, ou entrava em conflito com o periódico.
Desta época, pode-se recordar um episódio envolvendo dois romancistas
que, trabalhando na imprensa, tiveram problemas com o jornal Correio da Manhã.
Carlos Heitor Cony que, incumbido de criar uma crônica diária para o jornal, inicia,
dois dias depois do golpe militar de 1964 em dois de abril uma série de textos
agressivos contra o novo regime político brasileiro.
5
Contudo, ao publicar um texto intitulado “Ato Institucional II”, o escritor
instalou um mal-estar na redação do jornal, que não queria mais censurar o regime
vigente. A crônica em questão criava doze artigos, satirizando o mecanismo político
instituído pelo militar marechal Castelo Branco para governar o país o Ato
Institucional.
Carlos Heitor Cony, então, que à época estava sendo processado pelo
ministro da guerra Costa e Silva, envia uma carta a Antonio Callado, redator-chefe do
jornal, pedindo demissão do cargo. Este, ao entregar o pedido de Cony à gerência do
Correio da Manhã, acaba, em apoio ao colega, apresentando também seu próprio
pedido de demissão. Os dois escritores deixam, então, de fazer parte do Correio da
Manhã.
5
Estas crônicas políticas, que ficaram datadas, foram enfeixadas no livro O ato e o fato, publicado no
mesmo ano de 1964.
21
Este episódio, acontecido com Carlos Heitor Cony e Antonio Callado é
apenas um exemplo de que a ideologia dos meios de comunicação pode gerar
empecilhos a seus colaboradores, independentemente de o país estar num período de
ditadura militar. Atualmente vive-se uma democracia no Brasil, porém é fácil perceber
as posições políticas dos meios de comunicação; seja em apoio ao governo ou não.
Apesar dessa questão ideológica da dia, sabe-se que existem revistas, jornais e
programas radiofônicos ou televisivos que são a-partidários, isto é, não chegam no
campo da política partidária, preferindo, geralmente, tratar de temas artísticos ou
culturais.
A propósito de comentar acerca do subjetivismo do cronista, cita-se abaixo
uma definição sobre o gênero crônica enunciada pela pesquisadora Margarida de Souza
Neves:
A crônica, pela própria etimologia chronus/crônica –, é um
gênero colado ao tempo. Se em sua acepção original, aquela da linhagem dos
cronistas coloniais, ela pretende-se registro ou narração dos fatos e suas
circunstâncias em sua ordenação cronológica, tal como estes pretensamente
ocorreram de fato, na virada do século XIX para o século XX, sem perder seu
caráter de narrativa e registro, incorpora uma qualidade moderna: a do lugar
reconhecido à subjetividade do narrador. (Neves, 1992: p.82)
A autora encerra seu comentário lembrando o status adquirido, no século
20, pelo “eu” do cronista. Um subjetivismo que dará uma nova configuração ao gênero,
aqui distante dos rodapés dos jornais oitocentistas. O próprio Carlos Heitor Cony
possui uma metacrônica (“A crônica como gênero e como antijornalismo”) que também
enfatiza esse subjetivismo do cronista. O escritor explica que
A crônica é gênero menor em termos de literatura. Admite-
se como inabalável a certeza de que a literatura tende a ser perene,
intemporal. Não faltam teóricos para garantir que a arte, nela incluindo a arte
literária, existe para superar a morte. E, se a literatura busca a infinitude, a
crônica é crônica mesmo, expressão de finitude. É temporal, fatiada da
realidade e desvinculada do tempo maior que é o da literatura como arte.
Mas daí não se deve concluir que ela seja uma defunta. Dizem
que se trata de produto típico do jornalismo brasileiro, mas não exclusivo.
Sendo por definição um texto datado, tem fases, sacrifica-se a modismos,
mas, devido à elegância ou habilidade de seus cultores, consegue sobreviver
em diferentes manifestações pleonasticamente crônicas: como gênero
(crônica) e como vinculada a um tempo (crônica também).
Temos a crônica esportiva, a social, a policial, a política, a
econômica. Elas se diferenciam do "artigo" porque é basicamente centrada
num eixo permanente: o "eu" do autor. Daí que o gênero é romântico por
definição e necessidade. (Cony, 1998: p.07)
22
O interessante desse comentário teórico de Cony é que além de dissertar
sobre os temas perenidade e forma da crônica também se expressa sobre a
subjetividade do autor, afirmando que por isso mesmo “o gênero é romântico por
definição e necessidade”.
Ao caracterizar a crônica como “gênero anfíbio”, vinculando-a ao
jornalismo e à literatura, Afrânio Coutinho acrescenta ao debate o próprio
temperamento do escritor como importante fator de autonomia à sua produção. O
teórico explicita a questão, quando diz que a crônica atinge “[...] o melhor de sua
realização formal quando consegue fundir os supostos contrários – a literatura e o
jornalismo – com um teor autônomo pela força da personalidade do escritor refletida em
seu estilo e em suas idéias”. (Coutinho, 1986: p.134)
Quanto ao conteúdo, mencionado em páginas anteriores, a crônica, como
expressão jornalística de muitos escritores, via de regra, trata de assuntos do cotidiano
citadino um traço indiscutível do gênero. Lembrando, novamente, os folhetins do
século 19: José de Alencar e Machado de Assis, por exemplo, escreviam suas colunas,
as quais tinham, como objetivo primeiro, o de reportar sobre os principais fatos da
semana. Logo, fica evidente que desses folhetins – que ocupavam normalmente o
rodapé da gina de jornal poderiam surgir temas circunstanciais do momento, o que
proporciona vantagens, na compreensão do escrito, ao leitor contemporâneo à
publicação do periódico.
Entretanto, o cronista, principalmente o diário, na persistência de comentar
sobre o dia-a-dia de sua época intenção primitiva da crônica oitocentista acaba
esgotando assuntos por demais ditos, como, por exemplo, a política, os costumes do
povo, a descrição de lugares.
Isso gera uma situação recorrente por que passa o cronista, a “falta de
assunto” como tema do texto, a qual remonta ao século 19. Na sua coluna do dia 13 de
maio de 1855, publicada no Correio Mercantil, Alencar inicia seu folhetim da seguinte
forma:
Estou hoje com bem pouca disposição para escrever.
Conversemos.
A conversa é uma das coisas mais agradáveis e mais úteis que
existe no mundo. (Alencar, 2004: p.319)
23
Em crônica do dia 21 de outubro do mesmo ano, seguindo essa tendência
usual dos cronistas de produzir um texto metalingüístico, ele começa sua coluna de
forma mais contundente que a anterior:
Estava olhando para o fundo do meu tinteiro sem saber o que
havia de escrever [...].
[...]
De fato o que é um tinteiro?
É à primeira vista a coisa mais insignificante do mundo; um
traste que custa mais ou menos caro, conforme o gosto e matéria com que é
feito. (Alencar, 2004: p.423-24)
Após uma reflexão banal sobre o tinteiro, o autor trata de temas do
momento como um leilão que iria ocorrer e as apresentações no teatro lírico. Alencar
volta ao assunto do tinteiro, ao finalizar sua crônica, de forma primorosa:
Começo de novo a olhar o fundo do meu tinteiro para ver se
ainda há alguma coisa.
Esperai! Lá vejo surgir o quer que seja, - um pequeno ponto,
um ponto quase imperceptível e confuso, que vai pouco a pouco se tornando
mais distinto, como uma vela que desponta no horizonte entre a vasta
amplidão dos mares.
Talvez nos traga coisas interessantes e curiosas; notícias que
vos compensem da insipidez destas páginas ingratas.
Oh! O ponto cresce, cresce! Vai tomando a fisionomia de uma
espécie de porteiro de secretaria, ou de bedel de academia.
Agora vejo-o distintamente; é um amigo velho!
Bem-vindo, meu bom amigo, bem-vindo amigo sincero dos
folhetinistas e dos escritores, bem-vindo, ponto final!
Não remédio, senão ceder-vos o lugar que vos compete; ei-
lo,
( . )
(Alencar, 2004: p.429-30)
Tratando-se, portanto, do tema da “falta de assunto”, Alencar produziu um
final de texto criativo. O fragmento representa bem a angústia profissional dos
escritores para concluir uma produção. A passagem é rica de imagens. O ponto final,
aqui, é comparado a um barco surgindo no horizonte, a um porteiro de secretaria e a um
bedel de academia. A convenção lingüística do ponto final figura como metáfora do
êxito do cronista, escritor que publica constantemente suas crônicas, estando preso a um
determinado tempo, geralmente o de um dia ou de uma semana.
Esse folhetinista do século 19, que traçava um painel do seu habitat, num
processo de aprimoramento do gênero, transformou-se em um cronista de linguagem
mais literária, abordando uma diversidade de temas na sua coluna de jornal.
24
Contudo, esse livre cronista, que tem autoridade para comentar
artisticamente acerca de qualquer coisa, incluindo até o tema da falta de assunto, tem
perdido espaço no jornal, nos últimos anos. É o que comenta Marcelo Coelho, colunista
do caderno “Ilustrada”, da Folha de São Paulo, no ensaio “Notícias sobre a crônica”:
Tenho a impressão [...] de que a crônica perdeu bastante espaço
e prestígio nos jornais e nas revistas. Ainda que esse tipo de texto sempre
tenha sido considerado mais ou menos “inútil” perto das notícias mais
concretas, dos textos de opinião, das reportagens investigativas, etc., parece
que a crônica ficou ainda mais inútil do que era, digamos, há trinta ou
cinqüenta anos. (Coelho, 2005: p.155)
O que Marcelo Coelho esclarece em seguida é que, na verdade, “seria mais
exato falar numa modificação do gênero” (Coelho, 2005: p.156) do que em um seu
declínio. No decorrer de seu ensaio, o escritor lembra as crônicas de Carlos Heitor Cony
publicadas na Folha de São Paulo, para defender seu ponto vista de que o texto de
Cony, por ser o que chama de “crônica clássica”, é um exceção à regra:
Pensando na Folha, acho que o lugar da crônica clássica, do
gênero carioca/mineiro tal como foi praticado a partir do Rubem Braga,
Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, etc., tem sido a coluna Rio, na
página 2, com os textos de Carlos Heitor Cony. Ali o que se tem, não todos
os dias da semana, porque algumas vezes o que Cony escreve é texto político,
de opinião, mas na maior parte dos dias – é o caso clássico da crônica em que
de fato o autor pode começar de qualquer lugar, usar qualquer assunto, não
demonstrar nenhuma tese, voltar a um tema antigo, pouco importa, porque o
texto extrai toda sua alta qualidade literária dessa mesma desimportância
que, no caso de Cony, muitas vezes se expressa na forma do arbitrário, do
capricho, da mais inspirada e artística idiossincrasia. (Coelho, 2005: p.158-
59)
Marcelo Coelho chama atenção para a literariedade particular de Cony, ao
tratar de assuntos variados, muitas vezes baseados em seu próprio passado. Ao falar
sobre os talentosos cronistas brasileiros, afirmando que são exceções em suas
respectivas épocas, Marcelo Coelho faz um comentário elogioso sobre o livro O harém
das bananeiras, de Cony. Essa é uma obra que exemplifica a chamada “crônica
clássica” do autor. Logo, é motivo para Marcelo Coelho afirmar que:
E quem quer que folheie um livro como O harém das bananeiras, de Carlos
Heitor Cony, ou leia sua crônica diária na Folha de S. Paulo, verifica que
contamos, nos dias de hoje, com um artista em tudo comparável aos maiores
mestres desse nero. O talento excepcional existe em qualquer época,
mesmo na nossa. (Coelho, 2005: p.156)
25
Em uma visão generalizante, não se restringindo aos seus comentários sobre
Cony, o que Marcelo Coelho desenvolve em seu ensaio são as seguintes idéias: 1) A
notícia de jornal, opondo-se à de TV, não costuma mostrar uma verdade absoluta, mas
sim posições diversas, com uma linguagem simples e acompanhada de imagens. 2)
Houve um aumento do número de colunistas opinativos (o autor cita os exemplos de
José Simão e Arnaldo Jabor) em detrimento do “cronista clássico”. Essas idéias,
segundo ele, fizeram com que a crônica perdesse espaço no jornal. Resumindo, então,
seu pensamento, ele explica que
[...] há um grande aumento no espaço para os articulistas, estes cada vez mais
tomam partido, e cada vez menos tomam distância diante dos fatos, e um
grande aumento no espaço para as notícias “relativizantes”, para as notícias
“distantes”, “irônicas”, no jornal; mas é simétrico a isso o processo de
diminuição do espaço da crônica. Não sei se isso constitui um problema, ou
se é um problema importante; nenhum cronista, ao menos, está obrigado a
resolvê-lo. É possível ser cronista, aliás, sem cultivar o gênero; a única
obrigação incontornável é não esgotar a paciência do leitor. (Coelho, 2005:
p.162)
O trecho a seguir, de “A crônica como gênero e como antijornalismo”
acrescenta à discussão um comentário do próprio Cony:
A imprensa moderna, altamente competitiva e cara, não chegou
a mutilar o gênero, mas direcionou-o à estratégia geral do que hoje se chama
“comunicação”. Numa palavra: exige que tudo o que é veiculado no jornal ou
revista, das condições do tempo ao desempenho das bolsas, seja útil ao leitor,
seja aquilo que nas redações é chamado de “serviço”. D que sobra um
espaço reduzido ao cronista sem assunto, sem informação e sem outro serviço
que não o estilo mais sofisticado que será apreciado por determinados
leitores e não pela massa consumidora do jornal ou revista. (Cony, 1998:
p.07)
Cony, de certa forma, ratifica o pensamento de seu colega da Folha de São
Paulo, pois tanto ele quanto Marcelo Coelho dissertam sobre a redução do espaço do
cronista na imprensa brasileira, devido à sua aparente “inutilidade” no universo
capitalista contemporâneo.
Esse “cronista clássico”, escrevendo sobre temas os mais variados, não se
limitando apenas a tratar de fatos ocorridos durante a semana como acontecia
geralmente com os folhetins oitocentistas volta-se ao seu próprio passado, a fim de
representá-lo em crônica. O autor, então, seleciona e rememora, no texto do jornal,
etapas vivenciadas por ele, os momentos que mais o marcaram durante o tempo. É nesta
busca pelo passado que a infância manifesta-se como um grande tema da crônica
26
brasileira, já que essa fase é o auge de uma época marcante da vida humana, cuja falta é
resgatada pela lembrança, em textos de teor memorialístico.
Interessante que, em crônica publicada no dia 6 de novembro de 1971, no
Jornal do Brasil, Clarice Lispector aborda, poeticamente, a questão do não vivido como
fator instigante ao surgimento da imaginação. Afirma ela, então, no fragmento
6
“Lembrar-se do que não existiu” da referida crônica:
Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei
saber do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um
esforço de memória, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca
vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva. (Lispector, 1999:
p.385)
Observa-se que a escritora produz um texto apoiado na metalinguagem. O
trecho discorre sobre a criação do escritor, pessoa propagadora de imagens que não
existiram; mas que, por serem intensas, são como vivências para o autor.
Pelo esgotamento de assunto e a obrigação do cronista em ocupar o espaço
que o jornal lhe confere, a infância aparece como tema freqüente nessas colunas de
jornal. É o que afirma Carlos Heitor Cony:
[...] no jornal a gente é obrigado a escrever e muitas vezes não tem um
assunto importante para argumentar, para opinar ou para gozar, e a gente
volta, então, para esse imenso patrimônio que é a infância de cada um. Não
sou apenas eu, tem outros escritores também, sobretudo aqueles que se
dedicam mais à crônica, estão sempre apelando para a infância, porque é um
território neutro. Muitas matérias já estão vencidas, estão passadas, e
então a oportunidade da gente fazer sempre uma .... Não vou dizer encher
lingüiça, mas a gente tem que ocupar aquele espaço que o jornal nos de
uma forma um tanto quanto possível digna e com um certo charme. (Anexo
B: p.202)
Tal como outros cronistas, Carlos Heitor Cony é, então, um escritor que
costuma retratar sua própria infância em crônicas. Aos oitenta e um anos, é de se
ressaltar que durante sua trajetória intelectual ele nunca deixou de publicar crônicas.
Com sessenta anos de jornalismo
7
, tratou de temas bem variados nestas pequenas
produções, as quais possuem certa flexibilidade conteudística.
Inserindo Carlos Heitor Cony nessa variabilidade de assuntos, percebe-se
uma infinidade de idéias, em suas crônicas de circunstância ou não. De forma breve, e
6
Nas crônicas de Clarice Lispector, publicadas no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973 e enfeixadas no
livro A descoberta do mundo, é comum a organização textual em subdivisões temáticas.
7
Em 1947, Carlos Heitor Cony estréia na imprensa cobrindo as férias do pai, que era jornalista no Jornal
do Brasil, do Rio de Janeiro. A substituição do pai faria com que Cony não mais saísse da imprensa.
27
refletindo diacronicamente desde Da arte de falar mal, de 1963, até O tudo e o nada, de
2004, relacionam-se os seguintes temas na obra em crônica do autor: política
8
, novas
tecnologias, artes, religiosidade cristã, história do mundo e do Brasil, vida literária e
jornalística, geografia e cotidiano da cidade do Rio de Janeiro, itinerário de viagens,
relacionamento amoroso, pessimismo, vida pessoal do presente e do passado, entre
outros.
É no último tema citado, a vida pessoal do passado, isto é, as lembranças
vividas, que se enquadra a crônica confessional da infância, como será explicada nas
páginas subseqüentes. A abordagem do locus de um passado distante, neste momento
inicial da pesquisa, restringe-se à própria re-invenção da infância por fragmentos da
memória corrompida. É o espaço mental trabalhado pelo narrador adulto, isto é, o
espaço para a narrativa madura e estilizada. Visão moderna, em retrospectiva, do que
vivenciou. Cony ratifica a questão, quando diz que
[...] a memória da infância é parcial e seletiva. A memória não é
absolutamente confiável. A de ninguém, não é só a minha, mas a de ninguém.
Ela já é uma soma de determinadas constatações, de revisões interiores, de
maneira que, embora a gente procure ser, digamos assim, autêntico, no
sentido de fiel aos fatos, sempre uma corrupção posterior, ou seja, a visão
do adulto quando é criança. (Anexo A: p.197)
Impossível, numa pesquisa que analise a infância do autor, não comentar
sobre a autobiografia gênero literário surgido com a publicação de Confissões, do
filósofo iluminista Rousseau, na segunda metade do século 18.
Nas crônicas de Carlos Heitor Cony, encontra-se, como já aludido neste
texto, um resgate da vida pueril. Elas buscam o passado distante do próprio autor
inserindo-se, por conseguinte, no terreno da autobiografia. Philippe Lejeune um dos
principais teóricos da autobiografia e seus gêneros vizinhos (diário íntimo, memórias,
auto-retrato, biografia, romance autobiográfico e poema autobiográfico) afirma que,
para existir um relato autobiográfico, tudo tem que partir da identidade entre autor,
narrador e personagem: o chamado “pacto autobiográfico”. Este pacto é uma condição
sine qua non para a figuração do gênero. Na análise de uma obra, para efeito de
8
O autor escreveu crônicas políticas tanto contra o regime militar dito em páginas anteriores – como
contra os presidentes eleitos após a fim da ditadura. Destaquem-se, nos últimos anos, as críticas feitas a
Fernando Henrique Cardoso (personagem central de todas as crônicas do livro O presidente que sabia
javanês) e Lula, atualmente no segundo mandato consecutivo, o quadriênio 2007 - 2010.
28
verificação do pacto, o pesquisador – em última instância – deve remeter-se ao nome do
autor na capa do livro.
Ao definir a autobiografia, Lejeune afirma que ela é um “relato
retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando
enfatiza sua vida individual, em particular a história de sua personalidade.” (Lejeune,
1975: p.14)
Ao estabelecer seu conceito de autobiografia, Lejeune o articula com os
seguintes elementos: narração em prosa, retrospecção da narrativa, assunto de uma vida
individual e identidade da pessoa real, do narrador e do personagem principal. São
elementos que existem, obrigatoriamente, na construção do texto autobiográfico. Pois,
na falta de um deles, o texto muda de feição, podendo ser classificado em algum gênero
vizinho (diário íntimo, memórias, auto-retrato, biografia, romance autobiográfico e
poema autobiográfico).
Wander Melo Miranda, discutindo o assunto, afirma que
A questão da autobiografia não se coloca, para Lejeune, como
uma relação estabelecida entre eventos extratextuais e sua transcrição
‘verídica’ pelo texto, nem pela análise interna do funcionamento deste, mas
sim a partir de uma análise, no nível global da publicação, do contrato
implícito ou explícito do autor com o leitor, o qual determina o modo de
leitura do texto e engendra os efeitos que, atribuídos a ele, parecem defini-lo
como uma autobiografia. (Miranda, 1992: p.30)
O contrato de leitura é fator determinante para o estabelecimento da
autobiografia: um discurso organizado, intencional e literário, porque não se limita
apenas à transcrição de dados individuais. É o que comenta, ainda, o pesquisador
mineiro sobre o problema da veracidade dos textos:
Entretanto, mesmo em sentido restrito, a autobiografia tende a
assimilar técnicas e procedimentos estilísticos próprios da ficção. Isso
evidencia o paradoxo da autobiografia literária, a qual pretende ser
simultaneamente um discurso verídico e uma forma de arte, situando-se no
centro da tensão entre a transparência referencial e a pesquisa estética e
estabelecendo uma gradação entre textos que vão da insipidez do curriculum
vitae à complexa elaboração formal da pura poesia. (Miranda, 1992: p.30)
Na verdade, um trânsito entre a autobiografia e a ficção, proporcionado
pela escritura. Mesmo havendo um pacto de sinceridade, a escrita autobiográfica pode
escorregar para a ficção, e vice-versa. Cony comenta, enfático, que essa escrita híbrida é
proporcionada pelo desgaste da memória devido ao tempo, pois “a verdade é que,
29
depois de um certo tempo, a memória vai sendo corrompida pela vida atual. A memória
começa a ser modelada, uma espécie de texto final que é mudado”. (Anexo A: p.201)
Fernanda Coutinho, ao falar das lembranças infantis como traços marcantes
na vida do indivíduo, acrescenta ao assunto o seguinte comentário:
Transportados para o domínio da escrita, estes traços
poderiam ser anotados tanto em relatos ficcionais quanto nos
autobiográficos e ainda nas obras híbridas, que terminam sendo as de
configuração mais freqüente, uma vez que as fronteiras entre o
confessional e o fictício não se delineiam com facilidade. (Coutinho,
2003: p.49-0)
Como se vê, a estudiosa chama atenção para a dificuldade de delimitação do
que seja autobiográfico ou não, em relação a certas obras literárias.
Um outro aspecto interessante a ser destacado nas
autobiografias é que elas trazem ao leitor vários quadros de gênero, que são,
como não se desconhece, representações da vida cotidiana. Através delas,
pois, tem-se o traçado do perfil cultural de uma determinada época.
(Coutinho, 2003: p.48)
Ao se fazer um paralelo entre os gêneros autobiografia e memórias
depreende-se que a distinção não é nítida. Contudo, apenas didaticamente, diz-se que
autobiografia é uma auto-representação, enfatizando uma vida individual; já as
memórias voltam-se para a história dos acontecimentos vividos e testemunhados de uma
época. As memórias teriam um caráter mais abrangente, enquanto a autobiografia seria
mais específica, centralizada num eu confessional.
Necessário é comparar o último comentário acima, de Cony, com um
fragmento de Baú de Ossos (primeira edição de 1972), obra inicial de Pedro Nava,
escritor que talvez tenha sido o maior autor brasileiro a cultivar o gênero memórias.
Destaca ele, na passagem abaixo, a tradição familiar e o surgimento do literário, a partir
da rememoração dos fatos:
A memória dos que envelhecem (e que transmite aos filhos,
aos sobrinhos, aos netos, a lembrança dos pequenos fatos que tecem a vida de
cada indivíduo e do grupo com que ele estabelece contatos, correlações,
aproximações, antagonismos, afeições, repulsas e ódios) é o elemento básico
da construção da tradição familiar. Esse folclore jorra e vai vivendo do
contato do moço com o velho porque este sabe que existiu em
determinada ocasião o indivíduo cujo conhecimento pessoal não valia nada,
mas cuja evocação é uma esmagadora oportunidade poética. (Nava, 2002:
p.09, grifo nosso)
30
Em boa parte de Baú de Ossos, Pedro Nava faz uma abordagem genealógica
de seus antepassados. Ao comentar sobre seu avô paterno, que não conheceu, ressalta,
novamente, a união do verídico com o literário:
Era a primeira face do espelho a severa e sem risos que
meu avô assumia para ir de manhã, de sua casa para o trabalho. o é difícil
imaginar como ele faria esse caminho se juntarmos à verdade o verossímil
que não é senão um esqueleto de verdade encarnado de poesia. (Nava, 2002:
p.58, grifo nosso)
Conhecendo o avô só por imagens e pelo discurso dos familiares, percebe-se
que Nava, pelo fragmento transcrito, coloca em pauta o fator imaginação, trabalhando
com a realidade e a verossimilhança, no processo da escrita.
Com relação a esse avô homônimo que era comerciante, o médico-escritor
mostra que teve conhecimento dele apenas por retratos, cartas e relato dos familiares.
Pelas observações já feitas até aqui, entende-se quão frágil é o gênero
autobiográfico. O próprio Lejeune, em Je est un autre, reconhece a autobiografia como
uma ilusão. Há, na verdade, uma existência de dois sujeitos, em que um tenta sem
sucesso – reconstituir o outro. Lejeune afirma que
Na verdade, não somos nunca causa da nossa vida, mas
podemos ter a ilusão de nos tornarmos seu autor, escrevendo-a, com a
condição de esquecermos que somos tão pouco causa da escrita quanto da
nossa vida. A forma autobiográfica a cada um a oportunidade de se crer
um sujeito pleno e responsável. Mas basta descobrir-se dois no interior do
mesmo “eu” para que a vida se manifeste e que as perspectivas se
invertam. Nós somos talvez, enquanto sujeitos plenos, apenas personagens de
um romance sem autor. A forma autobiográfica indubitavelmente não é o
instrumento de expressão de um sujeito que preexiste, nem mesmo um
“papel”, mas o que determina a própria existência. (Lejeune, 1980: p.242
apud Miranda, 1992: p.40-1)
Logo, entende-se que a autobiografia é uma escrita seletiva do passado.
Interessante é relacionar a autobiografia com o romance autobiográfico, gênero que não
obedece ao “pacto autobiográfico”. Trazendo-se as questões memorialistas para o texto
de Carlos Heitor Cony, esse escritor, ao ser indagado sobre a possibilidade de serem um
auto-retrato amaneirado os personagens “João Falcão” e “Augusto”, respectivamente de
Informação ao crucificado e de A casa do poeta trágico, responde a pergunta,
chamando a atenção para o pastiche: “eu não digo que os personagens são clones do
autor, mas são pastiches dele. É o autor se escondendo de uma coisa ou de outra. [...] No
31
meu caso, eu tendo um pouco mesmo para o gênero memorialístico.” (Cadernos de
Literatura Brasileira, 2001: p.43) Esta idéia de pastiche relaciona-se com o conceito de
“pacto fantasmático” nas formas mistas, caso do romance:
O pacto fantasmático é cada vez mais expandido, criando
novos hábitos de leitura. O leitor é convidado a ler romances não apenas
como ficções que remetem a uma verdade de natureza humana, mas também
como fantasmas reveladores de um indivíduo, o autor. (Miranda, 1992: p. 37)
Ana Cláudia Viegas, estudando as características de “A ‘invenção de si’ na
escrita contemporânea”, em alguns romances publicados no século 21, explica que as
narrativas Joana a contragosto, de Marcelo Mirisola, e Nove noites, de Bernardo
Carvalho, são romances que se enquadram na “autoficção”, pois há “o permanente
deslocamento entre as noções de ‘verdade’ e ficção ”. (Viegas, 2006: p.14) um
jogo nessas narrativas ficcionais em pessoa, nas quais se mesclam “autor textual” e
“autor empírico”.
Na verdade, essa “autoficção”, dita por Ana Cláudia Viegas, representa a
mesma idéia do comentado “pacto fantasmático” de Lejeune. Está-se aqui no híbrido
terreno entre ficção e realidade. Nas últimas linhas de seu ensaio, a pesquisadora
sintetiza seu pensamento, explicando que
Nas “escritas de si” contemporâneas, como os auto-retratos que
circulam na web e as autoficções dos romances em primeira pessoa, o sujeito
se cria ficcionalmente e encena sua dimensão empírica. A criação de auto-
imagens aproxima vida e arte, ficção e realidade, estabelecendo com o leitor,
em vez de um “pacto autobiográfico”, um “pacto fantasmático”, cujo contrato
de leitura não promete a revelação de verdades, mas o desdobramento do
autor em diversos personagens. (Viegas, 2006: p.21-2)
Trazendo as idéias discutidas até aqui para a obra de Carlos Heitor Cony,
não obstante sua afirmação de que tende para as memórias fala esta, mostrada em
linhas atrás: o autor não é memorialista. Comparando-o com Pedro Nava, vê-se que,
apesar de ambos resgatarem o passado, Nava diferencia-se de Cony na medida em que
possui um projeto literário memorialista organizado e de fôlego, isto é, o autor quis e
fez sua literatura, pautando-se, praticamente, na sua vida e em sua família. No caso de
Carlos Heitor Cony, a problemática de análise aumenta, porque este resgate se de
maneira difusa e por vezes mesclada com a ficção, que o autor não elaborou um
projeto intencional de memórias.
32
Levando a questão do memorialismo para a crônica, gênero que abriga o
corpus da pesquisa, relações podem ser feitas entre este “nero anfíbio” e o diário. Tal
como a crônica, o diário “é o registro do efêmero e do descontínuo por uma escrita
refratária a qualquer organização”. (Miranda, 1992: p.35) As duas formas buscam
momentos transitórios do dia-a-dia, instantes comuns da vida, inclusos de maneira
desordenada no texto. Quanto às diferenças entre elas, têm-se dois aspectos: o processo
de comunicação e o meio de publicação. No caso do diário, o receptor é o próprio
emissor, podendo haver de forma autorizada a publicação, em livro, dos escritos,
deformando, por conseguinte, seu conceito primitivo. No caso da crônica, o emissor
escreve para vários destinatários. Muitos deles, até conhecidos pelo escritor, costumam
ser emissores também, quando enviam seus comentários, sugestões, elogios ou críticas
aos escritores fato explicitado em páginas anteriores. Quanto ao meio de
comunicação, a crônica encontra-se, normalmente, em jornais ou revistas, podendo, tal
como o diário, ser publicada em livro meio que não garante, necessariamente, sua
posteridade no campo da literatura.
Na verdade, o que é mais relevante para a crônica adquirir uma
permanência, na historiografia literária, é o próprio valor intrínseco do texto – os
aspectos de ordem textual. Nesse processo de coleta, o escritor é que, geralmente, reúne
as crônicas mais literárias e não circunstanciais; resolvendo então, de alguma forma,
agrupá-las ou pela temática, ou pelo estilo, ou pela ordem cronológica ou, em
desobediência a tudo isso, usando o critério da aleatoriedade.
Antes de abordar mais especificamente os textos referentes ao tema da
infância na crônica de Carlos Heitor Cony, apresentam-se aqui alguns comentários de
Fátima Cristina Dias Rocha sobre a crônica confessional de Clarice Lispector. Em
“Identidade e autobiografismo nas crônicas de Clarice Lispector”, a pesquisadora parte
da hipótese de que nas crônicas, “Clarice tanto constrói uma identidade autobiográfica,
quanto desfaz a ilusão autobiográfica por ela encenada, deixando visíveis as tênues
fronteiras entre o cunho confessional do narrado e a livre invenção ficcional.” (Rocha,
2006: p.102) Isso porque a escritora, nesses textos de confissão, cria um discurso
metalingüístico, explicando ao leitor seu próprio ato de imprimir na escrita sua vida
pessoal. Ela declara seus dilemas no texto. Algumas vezes, confessa prazerosamente os
fatos pessoais; já, em outros momentos, lamenta e afirma não gostar de falar de si.
Para citar um exemplo, em crônica publicada no Jornal do Brasil do dia 22
de junho de 1968, no fragmento “Ser cronista”, diz que “sem perceber, à medida que
33
escrevia para aqui, [para o jornal], ia me tornando pessoal demais, correndo o risco
daqui em breve de publicar minha vida passada e presente, o que não pretendo”.
(Lispector, 1999: p.113)
Clarice Lispector, nesses textos breves, revela fatos da sua família num
tempo do passado, relata sua infância, lembrando, por exemplo, a figura do pai.
Contudo, vale destacar, que essa escrita é sempre “propondo, em lugar do binômio
falar/revelar, um outro: falar/encobrir, a autora tenta neutralizar a temida pessoalidade
de suas crônicas.” (Rocha, 2006: p.105) Já a escritura confessional de Carlos Heitor
Cony situa-se no “binômio falar/revelar”. O cronista, ao resgatar sua vida passada
nesses textos de jornal, revela-se com uma postura oposta à de Clarice Lispector.
Relembrando fatos da infância, por exemplo, Cony quer ser pessoal mesmo. Muitas
vezes vai direto ao passado sem o menor receio de confessar o que passou.
Diferentemente de Clarice Lispector, não há a escrita arrependida, a qual volta atrás do
já dito.
Da obra em crônica de Carlos Heitor Cony, publicados respectivamente em
1998 e 1999, Os anos mais antigos do passado e O harém das bananeiras
são os livros
que merecem destaque nesse universo da “literatura do eu”. As publicações estabelecem
um “pacto” com o leitor, embora, se comparado ao “pacto autobiográfico” de Lejeune,
esteja numa realidade distante, pois, além de serem textos curtos, publicados no dia-a-
dia da imprensa, não há, em algumas delas, a identidade entre autor, narrador e
personagem, como será explicado posteriormente.
certa demonstração de sinceridade com o leitor nos elementos
paratextuais destas obras. Em Os anos mais antigos do passado, percebe-se que o título
é bastante apropriado para englobar textos de confissão. No prólogo da quarta edição,
há um comentário breve do autor, que mostra a permanência do passado em sua
memória, e seu resgate pelo texto. Afirma ele que: “fantasmas antigos teimam em me
assombrar. Dou-lhes a oportunidade de um instante a mais. Em paga, que eles me
tragam remorsos de menos”.
Já em O harém das bananeiras existe, na capa, uma foto do autor, de batina,
à época do seminário mostrando, então, os indícios autobiográficos. E o título faz
referência a uma crônica homônima, que relembra o despertar da sexualidade de
meninos dos anos 30.
Tanto na orelha como na contracapa, as duas publicações fazem referência –
seja por fragmento de crônica ou não à infância de Cony. Não existe também uma
34
ordenação nos textos com relação a temas. Apenas uma ressalva: em Os anos mais
antigos do passado, o primeiro e último texto são crônicas da infância narradas na
pessoa. Cony recria, aqui, sua infância ao pôr um menino diante da janela, observando o
mundo com certo receio de fazer parte dele.
Apesar de todos esses índices de cunho autobiográfico, os livros estão longe
de serem coletâneas completas da chamada crônica confessional da infância. O passado
do autor é apenas o tema mais recorrente das duas obras, pois existem outros, já
assinalados neste trabalho, como o cotidiano da cidade, a política, sua rotina, histórias
de suas viagens, entre outros. As obras, também, não compõem todas as crônicas que
versam sobre a infância. São apenas algumas, entre muitas outras, pois, em qualquer
livro de crônica do autor, existe, com exceção de O ato e o fato, pelo menos uma com
esta temática.
Perguntado se traços de sua personalidade nas crianças, nas crônicas cujo
foco narrativo é em 3ª pessoa, Cony diz:
A gente pode contar na primeira ou na terceira pessoa, eu
prefiro contar alguns fatos na primeira pessoa, outros na terceira, sobretudo
quando a lembrança, a recordação é um pouco corrompida pelo tempo,
quando me lembro, uso em primeira pessoa, agora quando o fato está
espedaçado em mim, quando eu não me lembro bem do fato e quero agregar
outros elementos, uso a terceira pessoa porque basicamente o narrador
continua sendo eu, mas agreguei, absorvi outros. (Anexo B: p.203)
Esta explicação do próprio autor em análise talvez seja um dos melhores
comentários acerca da crônica confessional da infância. Ele mostra, de forma objetiva,
a fusão que há entre o dado autobiográfico e o elemento ficcional. Estes textos, por
vários motivos já explicados, não são memórias nem muito menos uma autobiografia.
As chamadas crônicas confessionais da infância são relatos de fragmentos,
narrados na ou pessoa gerados pelo esgotamento de assunto da história da
infância de uma pessoal real muitas vezes ficcionalizados escritos para a
transitoriedade dos periódicos; podendo ser abrangidos, de maneira caótica, ou
organizados em coletâneas de crônicas, restritas a um autor específico, ou não.
Acrescentando aqui palavras de Lejeune a essa discussão sobre os relatos
pueris, observe-se que, em “A Infância fantasma”, ele aponta que esses se apresentam
muitas vezes como uma procura iniciática, da qual se põem em cena as
dificuldades. A memória é fragmentada, as lembranças flutuam, são raras a
princípio, depois uma trama chega a religá-las, mas a dúvida persiste sobre as
35
circunstâncias ou os pormenores. O autobiógrafo vai exprimir seus
escrúpulos. (Lejeune, 1998: p.36)
Nota-se que Lejeune lembra o aspecto do esquecimento, da fragmentação da
memória, que muitas vezes impulsiona o escritor a confessar, no próprio texto, que não
se recorda com nitidez da sua infância. Não obstante essa fragmentação memorialística,
a infância é um tema relevante nos escritos confessionais. Comentando o assunto,
Fernanda Coutinho afirma que:
Sabe-se que as autobiografias, uma forma geral, representam
um exercício do sentimento do tempo para quem as elabora, quer dizer, o
“eu” que rememora estabelece uma confluência entre diversos momentos de
sua vida. Os relatos de memória são, portanto, uma oportunidade de se
perceber a pregnância dos eventos infantis na mente adulta. (Coutinho, 2003:
p.48)
Fazendo uma ponte dos escritos confessionais da infância de hoje com os
textos do século 19, pode-se encontrar a origem dessa crônica confessional da infância,
explicitada anteriormente, nos comentados folhetins oitocentistas. Contudo em
manifestação inferior à da crônica moderna. A fim de confirmar, empiricamente, o aqui
exposto, cita-se um fragmento folhetinesco de Machado de Assis, publicado no dia 23
de outubro de 1892, na Gazeta de Notícias:
Lembra-me (era bem criança) que, nos primeiros tempos do gás no Rio de
Janeiro, houve uns dias de luz frouxa, de onde os moleques sacaram este dito:
o gás virou lamparina. E o dito ficou e impôs-se, e eu ainda o ouvi aplicar aos
amores expirantes, às belezas murchas, a todas as cousas decaídas.
Ah! se eu for a contar memórias da infância, deixo a semana no
meio, remonto os tempos e faço um volume. Paro na primeira estação, 1864,
famoso ano da suspensão de pagamentos (ministério Furtado); respiro, subo e
paro em 1867, quando a febre das ações atacou a esta pobre cidade, que
arribou à força do quinino do desengano. Remonto ainda e vou a...
[...]
Não; cuidemos da semana. A simples ameaça de contar as
minhas memórias diminuiu-me o papel em tal maneira, que é preciso agora
apertar as letras e as linhas. (Assis, 1997: p.34)
Como se percebe pelo fragmento, Machado de Assis comenta um episódio
de sua infância: a questão do fraco gás da cidade carioca, fazendo com que os garotos
logo afirmassem jocosamente que “o gás virou lamparina”, termo que serviria de
metáfora para “todas as cousas decaídas”. Contudo pela obrigação de escrever sobre os
fatos da semana, Machado de Assis comenta, em tom humorado, que não deve contar as
memórias da infância. Interessante que ele se desvia de um assunto do cotidiano os
36
bonds elétricos – para resgatar um fato de sua infância, porém mostra-se preocupado em
não gastar o espaço do jornal, a ele destinado, escrevendo suas memórias.
Pelo exemplo do folhetim de Machado de Assis, depreende-se que a crônica
confessional da infância pôde desenvolver-se com afinco, a partir do momento em
que já não existia a obrigação do escritor em relatar os fatos semanais.
Deixando um pouco de lado a questão da infância e folhetim, e partindo
agora para a idéia de representação do real posta na linguagem, isto é, no espaço
simbólico constituído pelos signos lingüísticos (significante e significado); Nanami
Sato, em “Jornalismo, literatura e representação”, afirma que o texto é apenas um lugar
que simboliza o real. Isso porque “em vez de revelar o real, pode-se dizer que a
representação, ao dar-lhe suporte, substitui a totalidade e a encarna, em vez de remeter a
ela.” (Sato, 2005: p.31)
Levando esta perspectiva da representação para a crônica, na segunda parte
de seu ensaio, Nanami Sato, depois de enfatizar a marca subjetiva do gênero, comenta a
inclusão da ficção nesses pequenos relatos. Explica que:
A possibilidade de o cronista inventar incidentes, contar
histórias traz para as páginas do jornal um fazer literário por excelência que
permite criar um outro real. Dar abrigo a emoções e a fatos inventados ou
recuperados pela memória parece ser a grande arma da crônica na captura do
interesse do leitor, convidando-o para um tipo diferente de mergulho no real,
mais ameno e prazeroso, quiçá mais profundo. Para o leitor, a crônica
funcionaria como descanso, pois, a partir de um evento qualquer, em
linguagem que tende para a ambigüidade, para a plurivocidade, o cronista
tece um texto que pode atingir a categoria de ficção pura ou confrontar
diferentes tempos para fazer uma construção metonímica da imagem do
presente por meio de pequenos incidentes. (Sato, 2005: p.33-4)
A pesquisadora ressalta o caráter ficcional de algumas crônicas como
criadores de um texto prazeroso. A crônica, nesta perspectiva, afasta-se da tradicional
idéia do gênero de relato sobre os acontecimentos reais. Até mesmo nas crônicas
confessionais, o dado ficcional pode aparecer como uma ajuda para a construção
literária de um texto ideal. Na crônica confessional da infância, o elemento ficcional
pode entrar, por exemplo, através do esquecimento ou por uma estilização do autor.
Na perspectiva do jornalismo stricto sensu, Cristiane Costa, no capítulo
“Real e ficcional”, de seu referido livro, depois de mostrar alguns exemplos da falta
de ética de jornalistas que se afastaram dos dados objetivos, falseando indevidamente as
reportagens, afirma que:
37
A exatidão factual também pode esconder distorções, porque jornalistas não
apenas reproduzem os fatos, mas dão sentidos a versões dos acontecimentos
em suas reportagens. Eventualmente, uma história pode ser escrita a partir de
ângulos diferentes e vários deles serem verdadeiros. Por isso, relatar o fato de
forma fidedigna é muito diferente de descobrir a verdade sobre o fato,
aprende-se com a prática. A mentira é muito clara para quem a comete. Mas a
verdade é complexa para quem a busca. (Costa: 2005: p.286)
Tal como na “literatura do eu”, percebe-se, no jornalismo, o desvirtuamento
da apresentação do real, isto é, da sua primordial função. A situação torna-se mais
complexa, no âmbito do jornalismo, já que uma reportagem pode ser contada por
diferentes ângulos, como explica a pesquisadora. E com isso pode haver alterações de
acordo com cada versão.
Saindo do terreno jornalístico, é bom lembrar que, normalmente, os
escritores publicam suas memórias na fase da senilidade: últimos momentos de sua
existência, nos quais têm muito para narrar pelo acúmulo de experiências vividas.
Próximo do fim, acabam eles regatando o que viveram, a partir de um desejo que
culmina, conforme acepção de Eliane Zagury, no “fluxo memorial desreprimido”
9
.
Levando-se a questão para a obra de Carlos Heitor Cony, confirma-se o
exposto acima pelo fato de as obras Os anos mais antigos do passado e O harém das
bananeiras serem, praticamente, suas últimas coletâneas de crônicas. Além disso, não
se deve esquecer o Quase-memória: quase-romance, livro considerado sua obra-prima,
publicado em 1995, depois de um jejum de escrita romanesca que durou vinte e um
anos. Essa obra, como se percebe tanto pelo título como pelo prólogo do autor
intitulado “Teoria Geral do Quase” é, então, uma mistura de história, memória e
ficção. Contudo, para efeito de publicação, ela foi intitulada de romance, pela editora,
na ficha catalográfica. Esse livro apóia-se no vocábulo “quase”, que funciona como
ponto revelador entre real e ficcional. É um adequado termo que aparece no título, no
prólogo e no próprio texto da obra. Levando o assunto para as crônicas de Cony, podem
ser encontradas, neste terreno, crônicas “quase-reais” – ou “quase-ficcionais”.
Isto posto, salienta-se que a crônica confessional da infância de Cony são,
apenas, pedaços isolados e selecionados de lembranças que aconteceram e que ele
trouxe aos leitores muitas vezes repetindo a mesma temática em vários textos. São
textos, os quais podem ser ficcionalizados, configurando-se entre o vivido e o
imaginado. É necessário ressaltar que – mesmo havendo em algumas crônicas que
remontam à infância do autor uma criação artística, predominantemente, fantasiosa
9
Cf. ZAGURY, E. A escrita do eu.
38
sempre existe, nessas crônicas confessionais da infância, algo de real. Nem que seja
na sua essência. É o que afirma o próprio escritor:
[...] em linhas gerais, cada crônica em que eu rememoro a infância tem um
ponto, pelo menos parte de um ponto verdadeiro; embora não seja cem por
cento real, digamos assim, nos seus aspectos pontuais, de lugar, de tempo;
mas no sentido de substrato, ou seja, o fato em si, a observação que eu
transmito, que eu guardei, essa foi autêntica e verdadeira, não foi ficção.
(Anexo A, p.197)
A feição da crônica confessional da infância, de Cony, foi o que se
selecionou e permaneceu na memória – e que para ele é significativo, por isso a
necessidade do autor de expô-la ao público. Não por meio de um modo referencial de
escritura, mas sim com uma linguagem literária saborosa e criativa.
2. O ESPAÇO DA CASA
O homem qualquer homem é uma casa habitada por um
poeta que, sabendo ou não sabendo, tem um sentido trágico.
Poeta que inventa o seu próprio poema, poeta condenado a
habitar a casa que é ele próprio, e de repente as paredes se
desmancham e não é mais casa, sobrando o cão à porta, uma
porta que não existe mais, o cão coberto de cinzas guardando o
nada.
Carlos Heitor Cony, A casa do poeta trágico
A partir desse momento da pesquisa, os capítulos que se seguem
focalizarão questões relativas aos principais espaços criados pelo texto artístico, da
crônica confessional da infância, abordados por Carlos Heitor Cony, nos seus livros.
De início, tem-se que destacar que não há uma larga bibliografia versando o
tema espaço na literatura e, mais especificamente, na crônica confessional da infância.
O que se nota, muitas vezes, é a análise superficial do espaço, podendo chegar a ponto
de ocorrer sua diluição, na observação de outros elementos literários.
Em Espaço e romance, pequeno estudo relativo ao assunto, Antonio Dimas
diferencia espaço e ambientação, afirmando:
[...] na medida em que não se deve confundir espaço com ambientação, para
efeitos de análise, exige-se do leitor perspicácia e familiaridade com a
literatura para que o espaço puro e simples (o quarto, a sala, a rua, o barzinho,
a caverna, o armário etc.) seja entrevisto em um quadro de significados mais
complexos, participantes estes da ambientação. Em outras palavras ainda: o
espaço é denotado; a ambientação é conotada. O primeiro é patente e
explícito; o segundo é subjacente e implícito. O primeiro contém dados da
realidade que, numa instância posterior, podem alcançar uma dimensão
simbólica. (Dimas, 1994: p.20)
O que chama ele de “espaço puro e simples” integra o primeiro conceito da
categoria: o denominado espaço físico. Contudo, numa segunda instância, em
conexão com os personagens e
Sem o teor eventualmente estático do espaço físico, o espaço
social configura-se sobretudo em função da presença de tipos e figurantes
[...] e o espaço psicológico constitui-se em função da necessidade de
evidenciar atmosferas densas e perturbantes, projetadas sobre o
comportamento, também ele normalmente conturbado, das personagens [...].
(Reis e Lopes, 1988: p.205)
40
Levando-se em consideração os três modelos (espaço físico, espaço social e
espaço psicológico) que compõem a categoria espaço para a crônica confessional da
infância de Carlos Heitor Cony, serão investigados até que ponto os espaços
engendrados nos textos têm função relevante para o desenvolvimento das idéias do
cronista. Em que medida essa eventual funcionalidade dos espaços dialoga com outros
elementos da narrativa (tempo, personagens, narrador, enredo); ou se, ao contrário, essa
questão do espaço, na escritura do autor, não passa de mera ilustração, circunstância
menor, acessória.
No processo de rememoração do passado, o próprio tema da infância
condiciona, inevitavelmente, a construção de tipos espaciais, não necessariamente
registrados pela mera descrição física.
Para a construção do espaço no enredo, a descrição seja física ou
psicológica – pode tornar-se um tipo de discurso relevante. Vítor Manuel, em sua
Teoria da Literatura, elenca espaços, ao explicar a função informativa que existe em
determinadas descrições. Afirma ele que
[...] Esta função manifesta-se quer no retrato das personagens [...] quer na
caracterização do espaço social um espaço indissociável da temporalidade
histórica –, quer na pintura do espaço telúrico e geográfico [...] em geral
representado nas suas conexões com o espaço social e concebido como um
factor (sic) que condiciona ou determina os estados e as acções (sic) das
personagens. (Silva, 1986: p.741)
Essa descrição funcional, ressaltada por Vitor Manuel, é um elemento
importante quando se analisam os aspectos espaciais de um texto literário.
Em O discurso e a cidade, nos ensaios “Degradação do espaço” e “De
cortiço a cortiço”, Antonio Candido analisa, respectivamente, as obras L’Assomoir, de
Émile Zola, e O cortiço, de Aluísio Azevedo. No segundo ensaio, depois de explicar
que O cortiço paga tributo a L’Assomoir devido a várias semelhanças entre as
narrativas, Candido, referindo-se então ao romance de Aluísio Azevedo, observa que
Na composição, o cortiço é o centro de convergência, o lugar
por excelência, em função do qual tudo se exprime. Ele é um ambiente, um
meio, físico, social, simbólico –, vinculado a certo modo de viver e
condicionando certa mecânica das relações. Mas além e acima dele o
romancista estabeleceu outro meio mais amplo, a “natureza brasileira”, que
desempenha papel essencial, como explicação dos comportamentos
transgressivos, como combustível das paixões e até da simples rotina
fisiológica. (Candido, 2004: p.117)
41
Candido atribui grande valor ao cortiço de João Romão, que funciona como
um centro regulador da história, um lugar relevante na narrativa, onde os personagens
são dependentes dele. Num âmbito maior, o crítico explica que a própria natureza do
Brasil é poderosa sobre o comportamento humano, o qual muitas vezes é representado
nesse romance de maneira degradante. Desenvolvendo-se o cortiço na natureza
brasileira, ele chega a ponto de transformar-se num organismo auto-suficiente. Como
exemplo, transcreve-se abaixo um trecho do capítulo terceiro, a fim confirmar o exposto
até aqui:
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não
os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu, de uma assentada,
sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina
as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à
luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra
alheia.
[...]
Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma
aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a
cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns
cinco palmos. O chão inundava-se, As mulheres precisavam já prender as
saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos
braços e do pescoço, que elas despiam suspendendo o cabelo todo para o alto
do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao
contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as
ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. (Azevedo,
1983: p.16-7)
Percebe-se, logo no primeiro período da citação, uma antropomorfização do
cortiço, pois esse ganha vida ao acordar. Através de construções lingüísticas coloquiais,
e até vulgares, o romancista cria personagens animalizados, virando fantoches naquele
ambiente degradante. Por exemplo, ao referir-se às pessoas do sexo masculino e
feminino, diz que era “uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas”. Logo, o
fragmento apresenta uma série de vocábulos (“machos”, fêmeas”, casco”, “pêlo”,
“esfregavam”, “ventas”, “fungando”), os quais, no eixo sintático-semântico, ganham
força para exprimir o caráter animal daquele aglomerado de pessoas. Retratando o
ambiente do cortiço, o trecho constrói-se através da descrição física e psicológica.
Numa perspectiva espacial diversa de O cortiço, encontram-se as crônicas
de Cony. A preocupação em criar um perfil psicológico dos personagens aparece de
forma tão nítida que sobrepuja qualquer tentativa de reconstrução geográfica do locus
infantil.
42
Em “Maquinista da Central” (HB), por exemplo, Cony retrata seus
pensamentos, quando era criança:
Minha primeira vocação foi a de ser maquinista da Central do
Brasil. Adorava trens, gostava de seus cheiros, gostava até dos dormentes
salpicados de brasas extintas, caídas de suas fornalhas aquecidas pelo carvão
vindo da Inglaterra.
Quis ser padre essa foi não apenas a vocação definitiva mas
realmente única. Fora disso, não tive vocação para mais nada. (HB, p.221)
Também em “A mão do homem e o medo da moça” (TN), o espaço
psicológico é denotado pelo imaginário infantil:
Quando era criança [...] imaginava o tempo parado, como uma
nuvem bojuda e branca que não saía do lugar, parecendo imóvel e imensa no
céu.
Esquecia a nuvem e, quando olhava novamente para cima, não
havia mais nuvem, ou havia outra no lugar da primeira. Era um novo tempo
que nada tinha a ver com o tempo anterior. Olhar as nuvens era uma distração
e, ao mesmo tempo, uma advertência. Todas se parecem e são desiguais.
Dentro delas não há nada, como nada há dentro do tempo. (TN, p.149-50)
A infância como evasão é mostrada pelo hábito do passado, uma “distração”
do menino Cony.
em relação a O cortiço, Antonio Candido comenta que essa obra
naturalista conforma-se na vertente do ambiente descrito como tipo de discurso que
enfatiza o meio na narrativa:
A perspectiva naturalista ajuda a compreender o mecanismo
d’O cortiço, porque o mecanismo do cortiço nele descrito é regido por um
determinismo estrito, que mostra a natureza (meio) condicionando o grupo
(raça) e ambos definindo as relações humanas na habitação coletiva.
(Candido, 2004: p.119)
A citação de Antonio Candido faz referência ao método mecanicista do
crítico francês Hippolyte Taine, o qual criou uma sociologia da literatura, que, de certa
forma, amparou os romances naturalistas do final do século 19. Segundo Taine, a
criação artística estava submetida a um determinismo, o qual proferia que o homem é
produto do meio, da raça e do momento histórico.
Os ensaios de Antonio Candido baseiam-se em romances naturalistas –
obras cujo enquadramento estético propõem a análise descritiva dos espaços físicos,
buscando suporte, principalmente, no discurso crítico de Taine.
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Para os estudos literários, pouco inova uma análise que mostre apenas, por
exemplo, os espaços físicos da cidade, que um romancista ou cronista s na sua obra.
Isso porque fica limitado a uma mera geografia histórica, lembrada pelo texto literário.
Discutindo ainda o assunto da categoria em pauta, Antonio Dimas diz que
Na questão do espaço narrativo, o ponto central que orienta a
discussão e que divide as suas águas diz respeito à utilidade ou à inutilidade
dos recursos decorativos empregados pelo narrador em sua tentativa de situar
a ação do romance. Em outras palavras: até que ponto os signos verbais
utilizados limitam-se apenas a caracterizar ou a ornamentar uma dada
situação ou em que medida eles a ultrapassam, atingindo uma dimensão
simbólica e, portanto, útil àquele contexto narrativo. O que é acidental e
extrínseco à ação; o que lhe é essencial e, portanto, intrínseco? Qual é, enfim,
o grau de organicidade/inorganicidade de um determinado elemento
narrativo? (Dimas, 1994: p.33)
Apesar de Antonio Dimas e dos outros estudiosos citados restringirem-se
sobretudo à narrativa romanesca, no que concerne à questão do espaço na literatura,
pode-se estender, com proveito para este trabalho, suas considerações para o nero
crônica.
Observando as crônicas de Cony, o espaço apresentado pelo cronista nos
textos une-se a um tema maior: a infância. Importante, então, destacar, aqui, esse
grande tema como uma construção histórica no mundo ocidental, isto é, o sentimento de
infância, como algo desenvolvido pelo homem. Percebe-se isso, em História social da
criança e da família, de Philippe Ariès. Enfatizando o aspecto historiográfico, o
estudioso nega que possa existir um sentimento individual, que, partindo de uma
subjetividade exclusiva, fosse indiferente às influências do momento histórico.
Levando o assunto para as crônicas de Carlos Heitor Cony, verificar-se-á o
grau de importância desse sentimento representado nos textos, isto é, como se o
relacionamento entre o menino Cony e sua família.
Relembrando o que foi dito na “Introdução” deste trabalho, as crônicas que
serão estudadas não se vinculam somente a um tipo de espaço. Muitas delas serão
repetidas em diferentes partes, pois permitem este tipo de abertura, que tratam de
várias situações espaciais da infância. Com isso, busca-se analisar, de um modo mais
amplo, o locus vivido da crônica confessional da infância em questão.
A casa, com seus compartimentos, é um ambiente propício para a formação
de um pequeno núcleo social que é a família. É nela que existe um convívio direto entre
as pessoas de mesma ascendência. São entes favorecidos, a priori, por este local
44
reservado. Carlos Drummond de Andrade, na crônica “Um dia a casa cai”, atribui,
através dos recursos de linguagem, um valor significativo para a casa, com seus
recantos mais íntimos, expresso pelo protagonista em cena. O enredo focaliza um
homem que observa, em mais de um dia, a demolição de sua casa, para a criação de um
edifício.
O cronista utiliza um texto imagético, predominantemente descritivo, ao
perfilar, no decorrer dos parágrafos, aqueles significativos compartimentos que
compunham a antiga casa do morador. Portanto, o “telhado”, o “quarto de dormir”, o
“terraço”, os “marcos das portas”, os “cômodos”, o “pequeno balcão da fachada”, o
“teto”, a “sala de estar”, a “sala de jantar”, o “escritório” e as “gavetas” são espaços
físicos com suas peculiaridades, possuidores de um valor. O espaço, aqui representado,
sendo a extensão humana, adquire, então, significados próprios.
O homem, por exemplo, “viu a casa sem telhado [...] aquele telhado que
lhe dera tanto trabalho, por causa das goteiras [...]”. Ao comentar sobre seu quarto de
dormir, afirma que já “estava exposto ao céu, no calor da manhã”. Os espaços das portas
arrancadas transformam-se em quadro daquele ambiente, pois “os marcos das portas
apareciam emoldurando o vazio. O azul e as nuvens circulavam por entre os cômodos,
numa composição surrealista.” (Andrade, 1998: p.118)
Observando que o homem aqui é um “profissional da escrita”, portanto um
escritor, uma possível interpretação seria a afirmação de que esse personagem é a
transfiguração do próprio cronista. Esse homem do texto possui um grande carinho pelo
seu local de trabalho, um ambiente criado pela personificação. Interessante mostrar que,
ao atribuir valores humanos ao compartimento de trabalho, o cronista cria o neologismo
‘sentinte’ que, ao lado de ‘pensante’, qualificam essa “parte” da casa.
Esse ambiente, então, é denominado de “escritório, parte pensante e sentinte
de seu mecanismo individual, do ‘eu’ mais íntimo e simultaneamente mais público [já
que as obras do escritor são lidas por muitos], eu de gavetas sigilosas, manuseadas por
um profissional da escrita”. (Andrade, 1998: p.119) A crônica, na seqüência, mostra-o
como dedicado ao labor da escrita, enfatizando a evasão que a atividade proporciona,
porque “de todo o tempo que vivera na casa, fora ali que passara o maior número de
horas, sentado, meio corcunda, desligado de acontecimentos, ouvindo, sem escutar,
rumores que chegavam de outro mundo [...].” (Andrade, 1998: p.119) No âmbito do
espaço social, como essa casa, “os lugares significam também etapas da vida, a
ascensão ou a degradação social [...].” (Reuter, 1996: p.61)
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No texto de Carlos Drummond de Andrade, os momentos narrativos
funcionam apenas como elos para as descrições, que mostram no decorrer da crônica o
afeto que tinha o protagonista à sua casa, contudo não havia uma revolta no seu íntimo,
e sim um conformismo com aquilo tudo. “E não sentiu dor vendo esfarinharem-se esses
compartimentos de sua história pessoal. Nem sequer a melancolia do desvanecimento
das coisas físicas. Elas tinham durado e cumprido a tarefa”. (Andrade, 1998: p.119)
Um segundo autor importante, que também trata acerca deste universo da
casa, é Rubem Braga. É relevante lembrar aqui que, diferentemente dos outros
escritores, Rubem Braga entrou para a história da literatura brasileira, única e
exclusivamente pelo viés da crônica um gênero pretensamente não aconselhável para
quem deseja a posteridade. É o que comenta Antonio Candido quando diz que “não se
imagina uma literatura feita de grandes cronistas [...]. Nem se pensaria em atribuir o
Prêmio Nobel a um cronista”. (Candido, 1992: p.13)
Trabalhando em vários estados e no estrangeiro, Rubem Braga, entre outras
funções, foi repórter, redator, editorialista, cronista e correspondente internacional.
Durante toda sua vida produziu mais de quinze mil crônicas, publicando em torno de
duas mil, nos seus sessenta e dois anos de intensa atividade jornalístico-literária.
Sua característica principal é um forte lirismo; um conteúdo carregado de
emoção, em que o cotidiano torna-se um elemento imprescindível para seu
extravasamento interior. Grande parte de seus textos são verdadeiros poemas em prosa,
apesar de terem uma linguagem marcada pelo coloquialismo e pelas temáticas simples.
Seus parágrafos são quase versos carregados de ritmo e melodia. Para citar um exemplo
observe-se como ele começa a crônica “Ai de Ti, Copacabana! Ela bem que poderia
ser o início de um poema: “Ai de ti, Copacabana, porque eu fiz o sinal bem claro de
que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as
entranhas”. (Braga, 1960: p.99)
Como acontece com boa parte dos cronistas, Rubem Braga dá ênfase aos
relatos de fragmentos da sua vida particular, que devem funcionar como metáforas do
universal, isto é, através de sua história de vida, devemos tirar uma lição poética que
serve a todos – o que o autor quis transmitir.
Em dezenas de crônicas, esse lirismo de Rubem Braga alcança momentos
notáveis ao retratar sua infância perdida. Um assunto tão recorrente em seus livros, que
a obra Casa dos Braga: memória de infância foi elaborada exclusivamente nesta
perspectiva do infantil.
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A “Casa dos Braga” hoje biblioteca pública da cidade de Cachoeiro de
Itapemirim no Espírito Santo – era a residência familiar do autor no início do século 20.
Foi construída por volta de 1910 e adquirida, em 1912, pelo primeiro prefeito da cidade,
Francisco de Carvalho Braga, pai de Rubem Braga. É a partir da residência de sua
infância que o cronista volta no tempo para engrandecê-la, lembrando um espaço
aconchegante e composto de uma natureza particular:
Nossa casa era bem bonita, com varanda, caramanchão e o
jardim grande ladeando a rua. Lembro-me confusamente de alguns canteiros,
algumas flores e folhagens desse jardim que não existe mais; especialmente
de uma grande touceira de espadas-de-são-jorge que a gente chamava apenas
de ‘talas’; e, no fundo, o precioso de saboneteira que nos fornecia bolas
pretas para o jogo de gude. Era uma grande riqueza, uma árvore tão sagrada
como a fruta-pão e o cajueiro do alto do morro, árvores de nossa família, mas
conhecidas por muita gente na cidade; nós também não conhecíamos os pés
de carambola das Martins ou as mangueiras do Dr. Mesquita? (Braga, 2005:
p.30)
Jorge de Sá, ao citar o cronista, afirma que: “no espaço da casa, concentra-se
o significado da linhagem, fazendo com que a memória da infância seja, quase sempre,
o suporte da estrutura narrativa de Rubem Braga.” (Sá, 1985: p.16)
Nota-se, contudo, que não é a residência da infância o motivo das
narrativas; soma-se a ela a própria cidade. Os costumes e o ambiente interiorano de
Cachoeiro de Itapemirim tornam-se também a matriz de textos, onde a natureza rural é
mais valiosa do que o mundo urbano.
É no espaço privado da casa onde se delineiam, nas crônicas de Cony,
muitos episódios e reflexões sobre a infância. Pelo texto da crônica “Não é amor, ainda”
(AF), com narração em pessoa, perpassam sofridas situações de um relacionamento
amoroso desgastado. De estilo impressionista, o texto possui uma carga negativa na
medida em que põe o protagonista a refletir sobre a perda da amada. O final enfatiza
esta situação, porque “quando vai entrar em desespero, quando sente o grito nascer em
sua escura raiz, uma pausa e um novo vácuo: não, não é amor ainda. Mas dói,
como se fosse”. (AF, p.99)
Esta perspectiva da desilusão era encontrada na infância. Como exemplo,
o personagem relembra o dia em que ficou sonâmbulo e perdido, no espaço da casa. O
menino “no fundo, achava uma ternura mágica no fato de estar perdido, e quando ouviu
vozes vindas das sombras (‘mas onde se meteu esse menino?’) sabia que seria fiel o
resto da vida àquele pavor e àquela noite de descaminhos.” (AF, p.98)
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O espaço do quarto torna-se um local propício ao isolamento quando a
criança quer afastar-se dos outros ao seu redor. É nele que, de forma solitária e distante
do ambiente social, cria-se o momento da reflexão, do choro, da raiva, da tristeza, ou de
qualquer outro sentimento doloroso.
Se a casa moderna é um ambiente privado que afasta, de certo modo, os
indivíduos de um convívio social, o que dizer do quarto de dormir? É o compartimento
mais pessoal da casa, vivido por pessoas de uma família. Na crônica “Vendi a alma”
(PS), por exemplo, percebe-se claramente essa realidade. “A troco de um doce ou de
uma impunidade para alguma falta doméstica” (PS, p.79) o cronista afirma,
curiosamente, que vendeu a alma ao demônio: “foi num cair de tarde. Tranquei-me no
quarto para botar em ordem meus pensamentos e anseios. O diabo é que não consigo
agora lembrar a troco de que vendi a alma ao diabo.” (PS, p.77) Devido a alguma
divergência entre o menino e o adulto, o pacto, segundo a pitoresca narrativa, foi
estabelecido. O menino “havia ferido o dedo na bicicleta, bastou retirar o curativo e o
sangue brotou. Não deu para escrever o nome todo, mas o demônio aceita até assinatura
em cruz – segundo li num livro de orações”. (PS, p.77-8)
Nessa crônica comentada, não existe a descrição física do quarto. O espaço
aparece na cena textual pela própria movimentação do garoto. A crônica enfatiza a
figura do menino Cony como fator para o desencadear dos acontecimentos.
Interessante destacar que “Vendi a alma” está reproduzida, sem alterações,
no livro de contos Quinze anos (A juventude como ela é), publicado no mesmo ano de
Posto seis, em 1965. Analisando suas crônicas publicadas em livro, percebe-se que
Cony repete a trama, não obstante mude-lhe o título algumas vezes e, aqui e ali, altere-
lhe o texto, aprimorando-o nas sucessivas edições.
O episódio narrado em “Vendi a alma” é lembrado, ainda, em dois textos:
“A alma e o seu preço (AA) e “O grande pacto” (AA), no livro de crônicas subseqüente
Os anos mais antigos do passado, de 1998, publicado trinta e três anos após Posto seis.
Em “A alma e o seu preço”, novamente o esquecimento do motivo do
pacto feito com o demônio: “Talvez tenha sido um pedaço suplementar de torta de
banana minha sobremesa preferida na infância ou deixar de tomar um purgante.”
(AA, p.30) O final dessa narrativa possui certo humor negro pela não confiança do diabo
no menino. Aliás, as três crônicas que abordam este assunto enfatizam essa
desconfiança. Afirma o narrador: “infelizmente, o demônio não se deixou embrulhar.
Sabia que minha alma não valia o pedaço da torta de banana.” (AA, p.30)
48
No parágrafo seguinte, o texto reforça essa idéia da alma sem valor: “para
que gastar munição a fim de ter uma alma que, mais cedo ou tarde, cairia em suas mãos
por gravidade?” (AA, p.30) Longe da reclusão do quarto, a rua do Lins de Vasconcelos –
bairro onde Cony nasceu e viveu sua infância servirá de ponto culminante para a
espera da recompensa. Em seqüência à indagação acima, afirma o narrador no último
parágrafo: “[o demônio] não me deu o ar de sua presença e de seu enxofre e eu bem
que aspirei o ar do Lins de Vasconcelos para ver se ele aparecia com a torta na mão,
quentinha, untada de manteiga.” (AA, p.30)
O quintal é um dos recantos mais valorizados no retrato da infância do
autor. Diferentemente do quarto, ele é de livre acesso para os entes e empregados da
família. Cria-se nele um ambiente de brincadeiras, conversas ou trabalhos domésticos.
Apesar de não figurar no rol da crônica confessional da infância, é relevante
destacar a crônica “Conversa de passarinho”, de Rachel de Queiroz. O texto não trata de
entretenimentos de infância nos quintais, e sim de uma exaltação da narradora adulta
através do olhar e comentários sobre plantas de sua casa. É do espaço da janela que diz
Rachel de Queiroz: “contemplo uma das minhas mangueiras, porque em matéria de
mangueira sou pessoa suficientemente abastada.” (Queiroz, 1998: p.39) Em seguida
mostrará o seu carinho por suas plantas, voltando a atenção para uma delas: “a
mangueira a que me refiro agora é um de manga-rainha [...] e no galho mais fino e
mais banhado de sol da mangueira-rainha, um passarinho encarnado pousou.” (Queiroz,
1998: p.39) A partir desse momento, a escritora comentará, poeticamente, acerca desse
pássaro, estabelecido no galho da árvore.
É no quintal das casas onde se abriga a natureza privativa da família. Ali são
plantadas árvores diversas, que contrastam com os espaços fechados da sala, quarto,
escritório, entre outros. Exemplo significativo é o da famosa crônica de Rubem Braga,
nomeada de “Um pé de milho”, em que o narrador mostra-se mais atento à sua planta do
que ao radar que entrou em contato com a lua. Rubem Braga comenta sobre seu de
milho, situado no quintal de sua casa, desde a plantação até o aparecimento das espigas.
O milho, para ele, é um belo gesto da terra que emoção e alegria. Finaliza a crônica
afirmando que não é mais um mero homem da cidade, e sim “um rico lavrador da rua
Júlio de Castilhos”. (Braga, 1993: p.48)
Esta situação particular de apreço ao de milho deve servir de alerta ao
leitor. Leitor que muitas vezes não percebe pequenas coisas ao seu redor, achando que
são banais como poderia ser o pendoar desta planta. Para o cronista, este processo
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natural do de milho é uma poesia e tem muita importância. O cotidiano aqui é, ou se
transforma constantemente, em pura poesia carregada de significações emblemáticas da
vida.
Presente em inumeráveis textos da literatura brasileira, a figura da
mangueira, no quintal da infância, é mostrada na crônica de Cony, em “Areias de
Portugal” (AA): “no meio do quintal, ao lado da casa, havia a mangueira enorme, em um
de seus ramos o pai pendurara um balanço que teve seus dias de glória até que meu
irmão dele se despencou.” (AA, p.126)
O menino brincava sozinho na mangueira, subindo pelos galhos altos. E
no alto, contemplava as paisagens. A lembrança da árvore foi transposta em sonho e
impressa em crônica com uma forte carga afetiva idealizadora característica esta da
escrita memorialística:
Pois ontem, tantos anos depois, sonhei com a mangueira dos
dias mais antigos do passado. No sonho, ela surgia destacada, talvez mais alta
e mais espetacular. E como na paisagem do sonho era quase noite, ela parecia
iluminada por dentro, um pouco fosforescente, mas era a minha mangueira,
intacta, esperando por mim. (AA, p.126)
Vários são os textos em que reaparece o idílico quintal. Nestes retratos do
passado, “rara a casa que não tinha quintal e raríssimo o quintal que não tinha
bananeiras.” (HB, p.26) Ou ainda: “todas as casas tinham quintal e todos os quintais
tinham galinhas.” (TN, p.249)
A criação e venda de galinhas pelo pai marcou também o menino. Era no
quintal da casa onde se abrigavam estes animais. O jornalista Ernesto Cony Filho, pai
do cronista, “teve sucesso, viveu disso por uns tempos, mas um dia voltou ao batente da
redação e declarou que ia descansar de criar galinhas. Nunca mais as criou.” (SL, p.81)
A época da criação de galinhas é relatada em Quase-memória: quase-
romance. Nessa obra, o autor aborda muitos temas de sua crônica confessional da
infância, tais como, o ambiente da casa, os anos 30, as excentricidades do pai, o defeito
na fala e as travessuras do menino, entre outros; relembra aí, por exemplo, a época da
“Era das Galinhas! A expressão pejorativa pertencia a minha mãe: ela se casara com um
professor e jornalista, um rapaz que fazia versos e gostava de discursar em qualquer
ocasião que desse sopa.” (Cony, 1997: p.71)
De uma forma mais intensa, a crônica confessional da infância de Rubem
Braga também enfoca toda uma natureza inserta nas casas antigas. Muito comum é o
50
comentário sobre as plantas com que o “velho Braga” conviveu na infância. Em várias
crônicas, ele as descreve. Localiza-as no tempo. No entorno da casa. Nas praças de
Cachoeiro de Itapemirim – sua cidade natal.
Ao dissertar sobre “O cajueiro” da infância, Rubem Braga relembra: “o
cajueiro devia ser velho quando nasci. Ele vive nas mais antigas recordações de
minha família: belo, imenso, no alto do morro atrás da casa”. (Braga, 1964: p.77) Tal
qual a mangueira de Cony, a planta, aqui, também é nitidamente idealizada.
Rubem Braga gostava tanto das plantas que estudava sobre o assunto. Em
“Havia um de romã” é manifesto o amor à natureza. O garoto chega ao ponto de
imaginar um mapa da cidade descrito com elementos da fauna e da flora. Em seguida, o
cronista lembra uma planta muito importante de sua infância, o de saboneteira
árvore citada em vários textos do autor.
Apesar de extensa, mas importante para a
ilustração da pesquisa, indispensável aqui a transcrição dos dois primeiros parágrafos
desse texto, sobretudo quando, em comparação a Cony, quer-se enfatizar a maior
familiaridade de Braga com a natureza. Interessante, também, é a atribuição de valor aos
espaços, tendo em vista as plantas que os compõem. A crônica, então, se inicia da
seguinte forma:
Se uma criança pudesse fazer um mapa de uma cidade
pensava eu, olhando o pé de romã –, ele teria menos casas e mais árvores e
bichos. A romã, por exemplo, está estritamente ligada à carambola, na minha
coreografia íntima. Eu conhecia essas árvores de um quintal da cidade;
eram como que uma propriedade específica de certa família amiga.
Nossa própria casa tinha alguma importância devido à fruta-
pão e aos cajus, mas, do ponto de vista infantil, sua grande riqueza estava na
saboneteira, árvore que produz baleba ou bola-de-gude, ou bolinha-preta.
Cinco dessas bolinhas-pretas eram trocáveis por uma de vidro, dessas que se
compram nas lojas; essa taxa de câmbio é, mais ou menos, de 1923; talvez
não vigore hoje. Para nós, da casa, a saboneteira era uma riqueza natural, uma
qualidade intrinsecamente nossa, de nossa família; algo assim confusamente
como um baronato. Naturalmente não éramos a mais rica família da cidade;
havia, por exemplo, a chácara do dr. Mesquita, que tinha mangas soberbas,
defendidas por imensos cachorros. Mesmo saboneteira havia uma, talvez
mais famosa que a nossa, no sobrado do Machadão, onde era o telégrafo, e
onde também morava nossa professora; sobradão cauteloso, pois a calçada da
rua, ao chegar a ele, subia uns dois metros de um lado e descia do outro, de
maneira a que nem o térreo pudesse ser atingido por uma enchente do rio.
(Braga, 1991: p.102-03)
Vê-se, por conseguinte, que, tanto em Carlos Heitor Cony como em Rubem
Braga, a criança atribui sentido aos espaços da casa, quando os ocupa ou desvenda.
Uma diferença: percebe-se a descrição física, tanto da casa como da cidade da infância,
em textos de Rubem Braga, aspecto não existente na crônica de Cony. O autor em foco
51
neste ensaio busca, de preferência, resgatar episódios de sua infância, centrando-se no
caráter psicológico dos personagens.
Com relação à casa da infância, por exemplo, os espaços domésticos
surgem, naturalmente, ao serem narrados eventos, direcionados mais na ação dos
personagens. Cony não pára seu discurso narrativo, para descrever a sala, o quarto, ou
quintal do passado com suas plantas. A “formatação” da casa vai configurando-se,
muito timidamente, e de maneira esparsa, pela observação do leitor atento às crônicas
do autor. Sendo a casa da infância, retratada pelo viés dos que a habitaram no passado,
ela
Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela não
Porque na casa
Não tinha chão
Ninguém podia
Dormir na rede
Porque a casa
Não tinha parede
Ninguém podia
Fazer pipi
Porque penico
Não tinha ali
Mas era feita
Com muito esmero
Na rua dos Bobos
Número zero. (Moraes, 2005: p.228)
As negativas ao espaço físico da “A casa”, apresentadas no tetrassilábico
poema infantil de Vinícius de Moraes, ratificam de maneira lúdica através do poético
a casa dos “anos mais antigos do passado”, edificada na crônica confessional da
infância de Carlos Heitor Cony
No âmbito da casa, seja no quarto, na sala, no quintal, no porão, ou em
qualquer outro lugar privado, a criança constrói um sentido ao seu redor. É o que afirma
Marie-José Chombart de Lauwe, ao criar amplo retrato da psicologia infantil, baseado
em personagens do cinema e, principalmente, em textos literários franceses:
Os quadros íntimos pessoais: quarto, sótão, canto, cabana etc.,
apresentados em simbiose com a criança ou como contexto, significam uma
maneira de viver. Estes lugares expressam a criança e a prolongam; a criança
os faz existir, procura neles uma vida própria. Sua ausência impede a criança
de ter uma existência e gostos pessoais, bloqueia a afirmação de si mesma.
52
Estes quadros íntimos formam uma membrana protetora entre a criança e a
sociedade. Suas características se resumem em: intimidade, proteção,
personificação e, até mesmo, freqüentemente, personificação, possibilidade
de manter nesse lugar uma vida imaginária, conservar sua liberdade, realizar
sua vontade própria e por vezes observar o mundo exterior. (Chombart de
Lauwe, 1991: p.323-24)
Em A família e o desenvolvimento individual, analisando o desenvolvimento
da personalidade infantil, o psicanalista D.W. Winnicott ressalta entre os fatores
essenciais para uma boa relação entre familiares, o pleno desenvolvimento do indivíduo
na infância:
A criança que se desenvolve bem, e cuja personalidade foi
capaz de realizar internamente sua integração por força das suas capacidades
inatas de crescimento individual, exerce um efeito integrativo sobre seu
ambiente externo imediato. Essa criança “contribui” para a situação familiar.
(Winnicott, 1993: p.68)
Sabe-se que os costumes familiares são diferentes de acordo com a época
vivida. É muito comum nas crônicas de Cony a relação passado versus presente. Pois,
geralmente, busca ele fazer um paralelo entre o que era e o que é; isto é, entre o antigo e
o moderno, entre a infância e a velhice. E sempre num tom de maior afinidade com “os
anos mais antigos do passado”.
São dezenas de textos que comparam estas duas realidades. O autor alude
em algumas crônicas, por exemplo, a remédios do passado com gostos ruins, os quais
ele era obrigado a ingerir. Em “Dos infusórios” (PS), mostra este antigo costume
familiar:
Por qualquer motivo, e às vezes sem motivo, um parente afastado, um
vizinho chegado ou até mesmo um médico vinham em nossa casa, olhavam-
me penalizado e diziam, indefectíveis e sábios:
– Esse menino precisa de um infusório. (PS, p.75)
Cony é de um outro tempo “em que a eficácia dos remédios era medida pela
ruindade do gosto”. (PS, p.75) O cronista lembra “do tempo do óleo de rícino droga
abominável que baixava a moral de toda a infância recalcitrante do bairro”. (PS, p.75)
O contraponto passado versus presente acontece aqui pela comparação aos
remédios tomados pelas filhas, causando inveja no cronista, que, na infância, não
usufruiu do benefício. Nas últimas linhas, Cony comenta então:
53
Minhas filhas tomam remédios com sabor de groselha, de morango, de
pêssego, os laboratórios servem à vontade e ao paladar do doente. [...] [Elas]
não sabem o que é o Terror, o que é temer aquelas santas e domésticas
poções que me cobriam de suores frios [...]. (PS, p.76)
Em mais duas crônicas, o autor frisa sua ojeriza às drogas do passado.
Relembrando “O óleo de fígado de bacalhau” (SL):
Era comum esse tipo de remédio para anemias, fraquezas,
subnutrição, o diabo. O tempo passou, e eu deixei para trás a lembrança dos
três substantivos enfileirados, fazendo um sentido surrealista: óleo, fígado,
bacalhau. (SL, p.59)
Em “A alma e o seu preço” (AA), há novamente a imagem desagradável dos
remédios da infância, porque “antigamente, os purgantes eram letais, quem resistisse ao
gosto abominável era um herói e merecia ser salvo”. (AA, p.30)
Interessante fazer aqui uma comparação com Rubem Braga. Na crônica
confessional “Memórias de um ajudante de farmácia”, o escritor capixabense lembra a
época de quando era ajudante de farmácia, cujos donos eram o irmão e o cunhado.
Rubem Braga resgata a cultura da época, afirmando que não tomou as poções amargas e
por isso tivera uma infância prazerosa. Ao comentar então sobre um manual antigo dos
farmacêuticos, lembra o cronista as drogas do passado:
Duas fórmulas terríveis de que eu sempre consegui escapar e,
por isto, acho que tive uma infância feliz: óleo de rícino e óleo de fígado
de bacalhau. O livro tem nada menos de 1.560 páginas; é, sem dúvida
alguma, o mais representativo da cultura da época, no seu ramo. (Braga,
1991: p.21)
Essa época antiga, mesmo ultrapassada pelo moderno, é resgatada com
carinho pelo cronista, ao fazer referência às receitas do referido manual.
É possível que muitas receitas que ele nos não façam mais efeito hoje em
dia. Mas que vontade de voltar a essa medicina antiga e comprar, por
exemplo, uma bisnaga do Bálsamo Tranqüilo, que com esse nome até à alma
deve fazer bem. (Braga, 1991: p.21)
A referência aos remédios de infância, lembrados por Cony e Braga,
simbolizam um tempo antigo, engolido pela tecnologia moderna, e que por isso mesmo
alvo de recordações, muitas vezes nostálgicas, na obra em crônica de alguns cronistas.
Do ponto de vista histórico, Nicolau Sevcenko organizador do terceiro
volume da coleção História da vida privada no Brasil e autor do capítulo que encerra a
54
referida obra, denominado “A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio”
comenta que o desenvolvimento dos remédios industrializados aconteceu em paralelo à
urbanização da belle époque à brasileira. Ao indagar no seu estudo, o motivo de tanta
ênfase na publicidade dos remédios, explica Nicolau Sevcenko:
Uma razão bastante evidente para isso é que o intenso surto de urbanização,
trazendo para as cidades gentes sobretudo de origem rural, rompeu o contexto
da família ampla e a cadeia de transmissão do conhecimento das ervas,
tratamentos e processos tradicionais de cura. O lapso foi rapidamente
preenchido pelos novos laboratórios químicos e, sobretudo, pela rapidez dos
oportunistas em se dar conta da nova situação. (Sevcenko, 2004: p.553)
O que se nota também pelo fragmento é que o desenvolvimento urbano
impulsionou um isolamento e individualismo das pessoas fechadas em si mesmas
fazendo com que caísse em desuso a prática das mezinhas.
Ao destacar o resgate dos primeiros anos do autor na casa de seus pais, a
crônica confessional da infância de Carlos Heitor Cony salienta que, ao apresentar
aquele particular momento de sua vida, o autor extrapola possíveis objetivos
memorialistas e supera-se num trabalho, via imaginação, sob duas perspectivas.
Primeiro pela do autor responsável pela criação dos textos –, segundo pela do leitor,
receptor que apreende essa escrita, de teor confessional, muitas vezes identificando-se a
ela através de uma analogia pela lembrança da habitação de infância.
É pelo campo da fenomenologia que Gaston Bachelard tece suas idéias
acerca da imaginação poética. Em diferentes momentos da obra A Poética do Espaço, o
“filósofo da imaginação” (como se autodenomina) diferencia a fenomenologia da crítica
literária, da psicologia e da psicanálise. Enquanto o psicólogo e o psicanalista buscariam
encontrar na imagem razões e causas, “o fenomenólogo [...] encara a imagem tal como
ela é, tal como o poeta a cria; e tenta fazer dela um bem seu, alimentar-se desse fruto
raro; leva a imagem à própria fronteira daquilo que ele poderia imaginar”. (Bachelard,
2000: p.229)
Mais distante ainda dessa sugestão de uma captação imediata da imagem
pura está o crítico literário, um leitor objetivo e severo que “abafa a ‘repercussão’
[tomando a imagem como objeto], rejeita, por princípio essa profundidade [da imagem]
onde deve ter seu ponto de partida o fenômeno poético primitivo.” (Bachelard, 2000:
p.08)
55
A partir da imagem da casa, Gaston Bachelard denomina de “topoanálise
[...] o estudo psicológico sistemático dos locais de nossa vida íntima”. (Bachelard, 2000:
p.28) Sua reflexão busca extrair imagens de diferentes espaços da casa, numa
perspectiva de proteção, em que “[...] o ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo.
Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos
sonhos.” (Bachelard, 2000: p.25) Dessa forma a representação do espaço físico da casa
na crônica confessional da infância de Cony ganha relevos de imaginação, no espaço
mental do cronista e do leitor.
Como término deste início de capítulo, adotando aqui uma perspectiva
histórica, não se pode deixar de comentar que foi no fim do século 18 que a família
começou a se isolar em suas casas. Elas ficaram sendo então um espaço íntimo e restrito
aos familiares, porque agora “não se usava mais ir à casa de um amigo ou sócio a
qualquer hora, sem prevenir”. (Ariès, 1981: p.266) Para visitar o outro, havia o cartão
com o dia e a hora marcados, enviado pelo empregado.
As pessoas não eram mais visíveis, pois se fechavam em suas casas. A
educação não permitia a violação da intimidade alheia. Em relação aos hábitos
alimentares, na mesa, não cabiam mais discussões ou narrações engraçadas, tornando-
se, logo, as refeições mais curtas.
Com as mudanças políticas e sociais pós-Idade Média, os compartimentos e
suas funções das habitações foram mudando. Nos séculos 16 e 17, a casa tinha uma
função pública. Era aberta para receber visitas tanto profissionais como afetivas a
qualquer hora do dia. Não havia uma especialização dos cômodos, eles se
comunicavam. Nas salas, por exemplo, fazia-se de tudo. As mesas de jantar eram
improvisadas com cavaletes. Podia-se dormir neste ambiente – pois havia camas lá – ou
também dançar, comer e trabalhar.
Sendo o compartimento do quarto um local público, as camas que ficavam
nele eram rodeadas de cortinas. Os ambientes criados nessas casas tornavam-se,
portanto, uma continuação do viver no ambiente da rua.
Já no século 18, Ariès diz que
Era a casa moderna, que assegurava a independência dos modos
fazendo-os abrir para um corredor de acesso. Mesmo quando os cômodos se
comunicavam, não se era mais forçado a atravessá-los para passar de um ao
outro. se disse que o conforto data dessa época: ele nasceu ao mesmo
tempo que a intimidade, a discrição, e o isolamento, e foi uma das
manifestações desses fenômenos. Não havia mais camas por toda a parte. As
56
camas eram reservadas ao quarto de dormir, mobiliado de cada lado da
alcova com armários e nichos onde se expunha um novo equipamento de
toalete e higiene. (Ariès, 1981: p.265)
Percebe-se, portanto, que as mudanças que houve, nos ambientes internos
das habitações modernas, ocorreram devido a todo esse sentimento de família surgido
com o desenvolvimento de uma classe social denominada de burguesia.
2.1 O MENINO CONY
Preso no espaço interno da casa, o menino Cony escapa para outras
realidades. O paradoxo da prisão como sinônimo de liberdade está, aqui, bem
representado pela vida pueril deste personagem em diversas crônicas. Sua existência
não está limitada ao real. São os cantos da casa que proporcionam a criação de um
espaço imaginário.
Explica-se mais detalhadamente a questão, ao observar o seguinte processo
de construção textual do autor: o cronista, uma figura da realidade, é o narrador adulto
que resgata pela memória e imaginação a sua infância, mostrando um menino, que
também utiliza a imaginação através do devaneio.
A propósito do tema, e continuando sua fenomenologia da imagem poética,
em A Poética da Devaneio, livro posterior à Poética do Espaço, Gaston Bachelard, no
capítulo “Os devaneios voltados para a infância”, enfatiza a relação que há entre o real e
o inventado na busca pela infância. “Quanto mais mergulhamos no passado, mais
aparece como indissolúvel o misto psicológico memória-imaginação.” (Bachelard,
2006: p.114)
Assemelhando-se à idéia de Bachelard, Lya Luft, no premiado livro O rio
do meio
10
, obra que mescla ficção, relato jornalístico e confissões, comenta que o artista
“guarda a visão mágica da infância, quando o real e o imaginado convivem sem
problemas. As entrelinhas mais importante que as linhas espelham essa dança de
máscaras e desvendamentos.” (Luft, 2005: p.14) A ensaísta, no decorrer dos parágrafos,
chega ao ápice de sua idéia quando coloca que não “interessa delimitar o vivido ou o
inventado. A realidade objetiva se existe importa menos: o mundo chega até a mim
filtrado por minha visão pessoal.” (Luft, 2005: p.15)
Reencontrando e publicando sua infância na senilidade, o cronista Cony
mostra que
A solidão da criança é mais secreta que a solidão do adulto. Muitas vezes, é
no entardecer da vida que descobrimos, em sua profundeza, as nossas
solidões de criança, as solidões de nossa adolescência. É no último quartel da
vida que compreendemos as solidões do primeiro quartel, quando a solidão
da idade provecta repercute sobre as solidões esquecidas da infância. ,
10
Lançado em 1996, O rio do meio conquistou o prêmio de melhor obra do ano da Associação Paulista de
Críticos de Artes (APCA).
58
muito está a criança sonhadora. Vive no mundo do seu devaneio.
(Bachelard, 2006: p.102)
É nesta proposta que serão encaminhadas, agora, algumas análises textuais
acerca da crônica confessional da infância do autor em foco.
Texto de abertura do livro O harém das bananeiras, “O fogão e a chuva”
(HB) é uma das crônicas mais importantes do autor, pois serve de matriz conteudística a
outros textos. Com uma linguagem envolvente, fincada num meio termo entre formas
coloquiais e castiças, a crônica, no decorrer dos parágrafos, constrói a figura de Cony
desde a meninice até a transformação em adulto. Neste processo de transferência de
auto-análise dos anos de infância para a maturidade, altera-se, respectivamente, o foco
narrativo da 3ª para a 1ª pessoa.
Nas primeiras linhas da crônica a imagem retratada é a de um menino que,
fechado em si mesmo, compunha seu próprio mundo. A criança tinha problemas de
sociabilidade. Mudo até os cinco anos, “havia momentos em que chorava, em que ria
(chorava mais do que ria) e emitia algum som.” (HB, p.13) A criança sentia que os
adultos o evitavam, talvez gostassem dele (tudo era possível) mas sempre davam um
jeito de mantê-lo à distância.” (HB, p.13) Lya Luft cria uma imagem da sua infância
semelhante à de Cony quando explica que os adultos, obrigando-a a ser uma mulher
prendada, que deveria saber cozinhar, bordar e tocar ao piano “tentavam adestrá-la: ela,
porém, teimava em mirar-se no inenarrável, e muitas vezes não sabiam o que fazer com
uma criança assim.” (Luft, 2005: p.19) A alternância entre alegria e tristeza na crônica
de Cony está também em Lya Luft, pois ela “tinha momentos de euforia, divertia-se
imensamente com algum detalhe sem importância, mas também pressentia que tudo era
efêmero. Nas horas felizes, de repente sentia a punhalada: tudo isso ia acabar.” (Luft,
2005: p.19)
Isolado, o menino Cony sempre procurava seu cantinho. E tal como a janela
e o quarto, o espaço de debaixo da mesa era um dos prediletos para a observação dos
outros. Sem conseguir emitir som nenhum, e sentindo-se rejeitado, percebe-se que
O silêncio dele parecia uma denúncia o melhor era deixá-lo
pelos cantos, ou embaixo da mesa de jantar, ponto de observação que dava ao
menino a mesma perspectiva das pessoas pela metade, dos pés à cintura,
como nos desenhos animados do Tom&Jerry, onde os humanos aparecem
em forma de pernas. (HB, p.13)
59
Só, o menino Cony volta-se para si. É um silêncio que “pode ser também
doença da alma: grito de medo, desespero ou solidão”. (Del Priore, 2001: p.76)
Relembrando esta solidão do passado ao abordar sua seriedade na vida
adulta, no texto confessional “O bilhete” (HB), o autor frisa: “vivo no meu canto, só não
fico embaixo da mesa como ficava quando era menino porque podem pensar coisas
abomináveis ao meu respeito”. (HB, p.57) Esse espaço embaixo da mesa é o local
escolhido do menino Cony, pois “a criança busca um lugar íntimo, pessoal, protegido.
Seu quarto, uma peça que ela adota, um sótão, uma cabana, ou simplesmente sua cama”.
(Chombart de Lauwe, 1991: p.294) É pela recorrência dos fatos e atitudes do passado
como no caso do refúgio embaixo da mesa que o cronista rememora,
fragmentariamente, e com suporte da imaginação, sua vida. São recantos privados em
que o menino Cony apóia-se em seu silêncio e devaneio. Já o “muito barulho é
sinônimo de ‘fora’, de rua. jamais encontraremos o silêncio desse espaço infinito do
dentro, do eu, espaço onde nos achamos no face a face, doloroso e complexo, no qual
nos perguntamos: quem sou? Aonde vou?” (Del Priore, 2001: p.76)
Dois episódios acontecidos na sua infância são apresentados em “O foo e
a chuva”. São fatos recorrentes, presentes, portanto, em outras narrativas, e que por isso
mesmo mostram logo seu grau de importância. O primeiro foi quando, sendo mudo até
os cinco anos, Cony falou depois de um susto que levou, ao ver um hidroavião pousar
no mar e aproximar-se da praia. Depois, ao começar a falar tardiamente, teve problemas
de pronúncia, de dicção. Mudava algumas letras ao falá-las. “Era impossível pronunciar
o próprio nome, trocava principalmente o ‘c’ pelo ‘t’, o ‘g’ pelo ‘d’ ”. (HB, p.14)
Devido, então, a esse defeito, o segundo episódio aconteceu na festa de quinze anos de
seu irmão, quando os colegas do aniversariante, instalados no quintal da casa,
mandaram o menino dizer a seguinte frase: Dona Jandira adora um fogão”. “Dona
Jandira era uma vizinha da qual se diziam coisas. O menino empertigou-se e declamou:
‘Dona Jandira adora um fodão’ ”. (HB, p.14) Pronunciando a palavra proibitiva “fodão”,
isso foi o bastante para zombarem dele, e por conseguinte para fazer com que o fato o
agredisse emocionalmente.
Fixando-se nos traumas de infância, Cony então recordará sua mudez até os
cinco anos e seu problema de dicção
11
no Quase-memória: quase-romance, em
algumas crônicas
12
, entrevistas e palestras
13
que o autor realiza pelo Brasil afora.
11
Somente, em 1941, com quinze anos, Cony resolve seu problema de fala devido a uma cirurgia
realizada pelo médico Pedro Ernesto do Rego Batista, ex-prefeito carioca do período 1935-36.
60
Na festa de aniversário do irmão, depois de rirem dele, o menino Cony
então “passou o resto da festa emburrado [...] no dia seguinte com a tinta vermelha que
o pai gostava que ele usasse, escreveu diversas vezes a palavra ‘fogão’ ”. (HB, p.14)
Quando mostrou aos outros garotos e ninguém riu, ele logo “descobriu um caminho, um
destino” (HB, p.14): a escrita. É a partir deste fato que o narrador sai da terceira e vai
para a primeira pessoa, quando o autor afirma que “o menino cresceu e se transformou
naquilo que sou eu”. (HB, p.15) O conteúdo agora é de ordem metalingüística, pois ele
descreverá, de forma espontânea e bem-humorada, como se iniciou na escrita
romanesca: “perto dos trinta anos, mexendo nuns guardados, encontrei um caderno
forrado de verde-musgo [...] apropriado para um diário”. (HB, p.15) O escritor brinca no
parágrafo seguinte, quando diz que: “quase ia escrevendo a palavra ‘fogão’ na página de
rosto – e por pouco minha carreira literária teria tido um início mais cabalístico do que o
desejado”. (HB, p.15) É assim, desse modo peculiar, que mostra sua entrada no universo
ficcional da literatura. Sobre o enredo do romance, ele declara: “contei uma história que
começava numa infância que não era exatamente a minha mas descrevia um mundo tal
como o sentia e ainda sinto”. (HB, p.15) O escritor não citou o romance, porém se sabe
que fez referência ao livro de influência existencialista O Ventre, sua primeira
publicação ficcional. Praticamente, então, até o fim do texto, o cronista desenvolve um
exercício metalingüístico, como na frase: “escrever foi a tábua na qual me agarrei para
não ser considerado um idiota”. (HB, p.16) próximo do fim, afirma que “depois do
amargurado corpo-a-corpo com as palavras, tudo me parece lucro”. (HB, p.16)
No final da crônica Cony se mostra insatisfeito com sua vida. Talvez, em
alguns pontos, para elaborar um texto sofisticado, o autor acabe se utilizando de
expressões caricatas que não correspondam, fielmente, à sua realidade infantil, pois não
se deve esquecer que a literatura trabalha na busca da relação perfeita entre as palavras;
e é neste aspecto que o texto de confissão poderá ser alterado. Tome-se, por exemplo, o
parágrafo que se refere a seu primeiro livro, o romance O ventre. Segundo Cony, a obra
foi datilografada numa R. C. Allen. Logo em seguida, mostra que se modernizou
juntamente com as máquinas de escrever, e depois com os computadores, trocando estes
quase que anualmente. Já no final do parágrafo, ele afirma:
12
As publicadas em livro são as seguintes: “Cruz e delícia” (AA), “Um tio e um sobrinho” (AA), “As
mãos do homem” (AA) “O fogão e a chuva” (HB) “Auto-retrato” (HB).
13
Para citar um exemplo, em palestra do autor na cidade de Fortaleza, em 27 de abril de 2005, realizada
no Centro Cultural Dragão do Mar e promovida pelo Banco do Brasil, Cony retomou o assunto de forma
tão nítida, que o discurso se tornou uma paráfrase de sua crônica “O fogão e a chuva”.
61
[...] quando inauguro a máquina ou o computador, a primeira palavra que
sempre escrevo é ‘fogão’. Funciona como meu código de acesso, meu
referencial, a garantia de que posso participar da brincadeira e dizer
simplesmente que Dona Jandira adora um fogão. (HB, p.16-7)
Observa-se na citação muito mais um tom jocoso, uma busca de um estilo
literário, do que um texto de confissão. Apesar de aparentemente opostos, ficção e
confissão muitas vezes entrelaçam-se numa estrutura textual. A via é de mão dupla,
porque tanto a ficção pode escorregar para a confissão, como também o inverso é
verdadeiro, percebe-se isso no próprio exemplo da crônica “O fogão e a chuva”. Nas
crônicas de Carlos Heitor Cony, normalmente ele tenta lembrar com fidelidade o dado
do passado, contudo devido ao grande espaço de tempo ou à busca da literariedade
lingüística, acaba enveredando para a ficção; o que provoca, em determinadas situações
literárias, a impossibilidade de discernir o dado real do ficcional. Acontece também, em
crônicas do autor, o elemento real servir apenas de mote para uma criação,
essencialmente, ficcional.
Michel Butor, em Repertório, especificamente no ensaio “O espaço no
romance”, apóia-se na relação real/ficcional, a fim de dissertar acerca do espaço
literário, mais especificamente o romanesco. Butor comenta que as representações
espaciais inscritas no romance, ainda que baseadas na realidade, podendo chegar a
ponto de imprimir o nome de lugares reais, são filtradas artisticamente através da pena
do romancista escritor que acaba expressando um lugar singular em sua criação.
Portanto,
Está claro que é primeiramente no espaço das representações
que o romance introduz sua modificação essencial, mas todos perceberão
como as informações reagem sobre os percursos e as coisas, como, pois, a
partir de uma invenção romanesca, os objetos podem ser efetivamente
deslocados, e a ordem dos trajetos transformada. (Butor, 1974: p.46)
Nesse “espaço das representações”, o que se percebe na crônica “O fogão e
a chuva” é um profundo pessimismo de Cony consigo mesmo, tanto à época de criança
quanto na do adulto em que se transformou. Em cada fase do texto e portanto da sua
vida, cria frases que expressam uma autoflagelação. Depreende-se que, quando garoto,
ele passou por momentos angustiantes, fixados na memória do adulto, e lembrados em
diversas situações comunicativas.
62
Na verdade, Cony, já bem distante da sua infância, só ganhou com as
traumáticas experiências pessoais, pois aproveitou os fatos vividos, recontando-os
artisticamente em textos literários. Lya Luft tem um comentário que se encaixa com
justeza no assunto em pauta. Ela afirma que “na maturidade percebe-se que não importa
tanto o que fizeram conosco, mas o que fizemos com o que eventualmente nos
aconteceu”. (Luft, 2005: p.32) No caso de Cony, sua mudez, o problema de fala e a
zombaria dos outros foi revertida, de forma benéfica, em episódios literários.
O que ocorre nessa crônica é uma espécie de viagem cronológica em torno
da ordem dos fatos marcantes na vida do autor. Pode-se dividi-la simetricamente em
dois planos: o da infância e o metalingüístico. O primeiro plano centra-se no seu
problema relacionado à fala; e o segundo refere-se a seu ingresso na literatura ficcional,
através da publicação do seu primeiro romance.
É necessário ressaltar ainda que a crônica não apresenta descrições físicas.
Até mesmo com relação ao quintal, um espaço importante da narrativa onde “formara-
se uma roda de garotos na qual o menino não podia entrar”. (HB, p.14) O leitor não
visualiza o quintal da infância, porque não há características dele. O que ocorre é apenas
uma única referência ao espaço, que funcionará aqui como a porta de entrada para a
manifestação do grupo dos garotos, ou melhor, para a construção de um espaço social,
simbolizado pelos interpares.
Ao comentar sobre a escassez do espaço físico, que pode haver em
narrativas, Butor explica, então, a dificuldade do leitor em reconhecer espaços que se
mostram de maneira fluida nos textos:
Muitas vezes essa espacialidade evocatória permanece vaga.
As personagens que nos falam ou das quais nos falam estão “em algum
lugar”, e é tudo. Bruma que em breve se diferenciará, pois sabemos bem que
não se fala, não se age do mesmo modo num salão, numa cozinha, num
bosque ou num deserto. Será preciso pois que nos indiquem o “cenário”, isto
é, as qualidades próprias do lugar. (Butor, 1974: p.42)
Interessante frisar na fala de Michel Butor seu comentário sobre a
configuração dos espaços. Para ele, se os lugares encontram-se de maneira incerta, é
preciso existir, em certo momento da narrativa, algum traço característico da categoria,
mesmo que seja apenas a referência constituída de uma única palavra, como por
exemplo uma cidade, uma casa ou um quarto. Michel Butor coloca-se na posição de
leitor curioso a desvendar os espaços vagos postos na narrativa, logo, “será preciso
sabermos que tipo de quarto. [...] Teremos necessidade de pormenores, de que nos
63
apresentem uma amostra desse cenário, um objeto, um móvel que representará o papel
de indício”. (Butor, 1974: p.42) E essa necessidade do atento leitor pode acontecer nas
crônicas de Cony, que, em muitas delas, o fato se concretiza sem uma nítida
demarcação do locus infantil.
Em “O fogão e a chuva”, de forma a compensar a omissão do espaço físico,
verifica-se, com relação ao menino Cony, que os problemas relacionados à fala –
portanto físicos são importantes para o desenvolvimento do enredo e proporcionam a
configuração do espaço psicológico. Espaço este, simbolizado pela imagem da criança
excluída.
É nesse locus horrendus, para o menino Cony onde se mostra um dos fatos
principais da narrativa, atitude de zombaria do grupo em relação ao irmão mais novo do
aniversariante: “de repente o chamaram. Pediram que ele dissesse: ‘Dona Jandira adora
um fogão’ ”. (HB, p.14) Ao dissertar sobre a categoria espaço, Vítor Manuel comenta a
imagem dicotômica dos lugares, os quais podem ser fonte de prazer ou sofrimento:
[...] o espaço numa mescla inextricável de parâmetros físicos, psíquicos e
ideológicos, pode ser representado como locus amoenus ou como locus
horrendus, como cenário de rêverie ou de angústia, como convite à evasão ou
como condenação ao encarceramento, como possibilidade de libertação
ascensional ou de queda e enredamento no abismo. (Silva, 1986: p.742)
Como dito, a imagem do quintal, na crônica, se de forma negativa,
que será criado um ambiente de chacota focado no menino Cony.
Em “Cruz e delícia” (AA), Cony sintetiza o que explora com mais
intensidade em “O fogão e a chuva”. Como exemplo, citam-se os seus três parágrafos
finais, a fim de ilustrar o assunto em pauta:
Deu-se que nasci com um problema na fala, fui mudo até os
cinco anos. Deveria ficar mudo para o resto da vida, teria dito menos besteira
e criado menos problemas. Quando comecei a falar descobriram que eu era
incapaz de pronunciar corretamente a maioria das palavras, trocava quase
todas as letras.
Uma das distrações dos meus companheiros de infância era
pedir que eu dissesse a palavra “fogão”. Eu trocava o “g” por um “d” e saía
um palavrão que na época era impublicável. Aos dez anos, era exibido como
uma extravagância da natureza.
Foi uma alucinação quando descobri que podia escrever as
palavras que não sabia pronunciar. Ninguém ria de mim quando escrevia
“fogão”. Daí que dei uma banana para a comunicação oral e me homiziei na
linguagem escrita onde posso errar, mas sempre me divirto mais do que os
outros. (AA, p.168-69)
64
Perguntado sobre o que diria de sua infância, Cony lembra, novamente, seu
problema de fala – fato traumático, que proporciona um discurso tão repetido, chegando
a ponto de se tornar obsessivo, na vida do escritor. Mais uma vez, a fala de Cony se
aproxima da crônica “O fogão e a chuva”:
Eu fui um menino com um problema de fala que me marcou muito. Fui
obrigado a ser um menino introspectivo, isolado, solitário; porque eu tive um
problema de fala. Antes do problema, até os cinco anos, eu era mudo; e
quando comecei a falar, que viram que eu falava errado, começou então a
discriminação por isso. Comecei a escrever, justamente, porque notei que,
falando não daria conta do recado. Escrever era diferente, escrevendo eu
poderia ser eu mesmo poderia me expressar melhor do que falando. (Anexo
A: p.198)
A imagem do menino mudo que teve, em seguida, problemas de fala
garoto nascido num suburbano bairro carioca, o de Lins de Vasconcelos é vista no
protagonista do romance O indigitado. Livro escrito por encomenda para a editora
Objetiva, O indigitado foi o primeiro romance da série, “Cinco dedos de prosa”, em que
cada autor escreve uma história, girando em torno de um dos dedos da mão. No caso da
narrativa de Cony: o dedo indicador.
No prefácio do romance, o protagonista sintetiza sua história: numa tarde do
Lins de Vasconcelos duas ciganas carregando um bebê (o protagonista), param numa
casa, pedem água e, em troca, lêem a mão da mulher da casa que cuidava de seu
sobrinho um bebê que dormia no berço que estava na sala. A ação do romance inicia-
se, por um descuido desta mulher, momento em que as ciganas trocam os bebês,
fugindo rapidamente.
É nesse clima romanesco que Carlos Heitor Cony ao colocar traços
pessoais na ficção – transfigura-se no narrador-personagem, que comenta então:
Meus pais se resignaram, afinal, o berço não ficara vazio. De
minha parte, até hoje não me resignei. Cresci não sendo eu e acho que fui
mudo até os cinco anos em sinal de protesto. Que diabo, eu não era eu, podia
ser um outro menino, menos encabulado, menos abominável.
Lembro que, aos cinco anos, o pai colocou na vitrola uma das
“Danças húngaras” de Liszt, e eu guardei aquela música como um
alumbramento, até hoje me lembro da emoção com que, debaixo da mesa, a
ouvi meu lugar preferido era sob a mesa, meu ponto de observação do
mundo e da humanidade que me rodeava. (Cony, 2001: prefácio)
Antonio Hohlfeldt, refletindo acerca dos romances (Quase-memória: quase-
romance, Informação ao crucificado, O indigitado, Pessach: a travessia) que, em maior
65
ou menor grau, trazem, ao texto ficcional, dados e experiências da vida real do autor,
afirma que:
Na verdade, Carlos Heitor Cony, astuta e conscientemente,
apresenta mais uma armadilha ao leitor. É certo que, se cotejarmos dados
biográficos seus com os da personagem, encontraremos aproximações. Mas
não é isso, efetivamente, que preocupa o autor. O que ele quer é propor uma
chave antecipada de leitura. Busca concretizar aquele que Umberto Eco
denomina de leitor modelo, num procedimento que Philippe Lejeune analisa
como a necessidade de um pacto que necessariamente deve ser firmado entre
cada autor e cada leitor, para que a comunicação da obra se efetive. Na
verdade, Lejeune está preocupado especificamente com determinado tipo de
discurso, que ele chama de autobiográfico, mas cuja problematização,
generalizada, pode e deve ser também aplicada a todo e qualquer discurso,
inclusive o romanesco e ficcional. (Cadernos de Literatura Brasileira, 2001:
p.98)
A “chave antecipada de leitura”, em que Cony firma um “pacto” com o
leitor, pela fusão do real com o ficcional, é encontrada, por exemplo, nos prólogos de
Quase-memória: quase-romance e O indigitado. Nesse tipo de criação romanesca, Cony
deseja que o leitor modelo entenda que as histórias não são autobiográficas, e sim
ficções que possuem algo de real do autor: um episódio, um traço da personalidade, um
pensamento...
Observa-se essa relação amigável entre verdade e ficção também nas
crônicas de Cony. Em observância ao texto “Se eu fosse milionário” (SL), mostra-se
aqui o imaginário curioso do menino Cony: “em criança, quando pensava em ser
milionário, imaginava ser dono de uma padaria cheia de presuntos e sorvetes.” (SL,
p.78). Havia ainda a tia que sempre reprimia as maneiras do filho, primo do menino
Cony, comportar-se à mesa. Este, em troca, desejava-lhe a morte “para poder molhar o
pão com a manteiga no café-com-leite que tomava todas as manhãs.” (SL, p.79)
Na perspectiva do olhar para os espaços e pessoas da casa, o autor em “Sapatos e
ternos” (SL) relata sua tentativa em ver o avô morto, no caixão. É que, por ser ainda
muito pequeno, consegue enxergar-lhe apenas os sapatos pretos. Esse menino e a
imagem dos sapatos o acompanham na vida adulta: “associo o sapato preto ao meu avô,
morto em nossa sala, o caixão aberto, eu era pequeno, olhava para cima e via os
sapatos dele. Obviamente pretos”. (SL, p.24) No parágrafo seguinte, a criança conclui
com verve (e perfeito raciocínio indutivo!): “daí que fiquei com a certeza: sapato preto é
uniforme de defunto”. (SL, p.24)
66
Relevantes no universo da crônica confessional da infância são os textos de
abertura e conclusão do Os anos mais antigos do passado, intitulados de “Os anos mais
antigos do passado” (AA) e “A janela e o menino (Resumo dos anos mais antigos do
passado)” (AA). Mesmo levando-se em conta a transfiguração do menino Cony (a
narração é em pessoa), estes textos mostram toda uma realidade, dos anos 30, do
bairro de infância: Lins de Vasconcelos.
Na primeira dessas crônicas o vão da janela é ponto estratégico para o
olhar solitário e o devaneio infinito, pois “o menino estava na janela e olhava a noite. E
a noite se tornou manhã e tarde, depois noite outra vez – e assim sucessivamente,
durante muitos e muitos anos: os anos do passado.” (AA, p.15) Lugares, pessoas do
bairro, da família principalmente o pai são captados pelo olhar atento do menino na
janela. Diante dele, “passaram as coisas, passou o tempo e passou o mundo: os
mascarados do Carnaval, o sorveteiro e a leprosa que pedia esmolas, o lenço encardido
escondendo o rosto desfigurado.” (AA, p.15)
Essa crônica impressionista recorda, assim, sucintamente, fatos marcantes
da vida do autor, desde a infância. Um exemplo desses acontecimentos é a lembrança
estilizada dos “anos de chumbo”, quando Cony foi preso seis vezes, durante o regime
militar iniciado em 1964:
De repente, tudo foi ficando estranho, o menino perdeu o apoio
da janela. A lenta procissão dos fantasmas, ordenados como um carrossel,
transformou-se num desfile de escombros. Colocaram o capuz na cabeça do
menino e encostaram a arma em sua nuca.
Ele era livre para questionar as regras do mundo e agora o
puniam, levando-o para a prisão escura onde a janela dava para o nada. (AA,
p.16-7)
O texto então destaca tanto a vida da criança como acontecimentos da vida
adulta. Aqui, o vocábulo “menino” representa toda uma existência e não apenas a
infância. Têm-se então duas figuras: o “menino-menino” e o “menino-adulto”. Mas o
vocábulo permanece. Por exemplo, ao falar do adulto, agora grave, a referência é de
que “o menino então se habituou a olhar para dentro de si mesmo.” (AA, p.15) Ou ainda:
“chegaria a hora em que o chamariam para dentro. E as luzes seriam apagadas, o
silêncio tomaria conta de todas as coisas, da janela e do menino.” (AA, p.15) Não se
pode confundir, portanto, estes dois exemplos com as lembranças de infância, porque
aqui o que é a vivência do adulto, denominado de “menino”. Alternando-se entre
estas duas vivências, apresenta o texto um modo de narrar criativo e envolvente.
67
Próxima a ele é a crônica de encerramento “A janela e o menino (Resumo
dos anos mais antigos do passado)”. Abrigado no espaço interno da casa “o menino
descobriu a janela e a escolheu como seu lugar predileto. Podia ficar ali, era uma forma
de estar metade protegido pela casa, metade envolvido com o mundo.” (AA, p.250)
Na crônica confessional da infância do autor, uma relação constante que
é a aproximação versus afastamento do menino diante do mundo. Sente ele receio, mas
ao mesmo tempo quer conhecer o mundo, fazer parte dele. Na crônica em questão, por
exemplo, existe a passagem, mostrando que
Era da janela que o menino via o mundo e dele participava sem
se contaminar. O menino gostava, mas tinha medo da rua, do bonde que
cortara a perna do seu Almeida, do homem que deu um tiro na mulher que o
traíra, da carrocinha de cachorro, dos mascarados do carnaval. (AA, p.251)
Em outra obra comenta o cronista: “não tenho nada com o adulto que
substituiu a criança espantada diante do mundo, gostando e temendo o mundo. Fugindo
e querendo ser do mundo.” (HB, p.267)
Nos textos citados acima – “Os anos mais antigos do passado” e “A janela e
o menino (Resumo dos anos mais antigos do passado)” existe uma gama de
personagens revisitados, encontrados em outros livros de crônicas. São pessoas do
espaço público; porém visíveis ao olhar curioso do menino na janela. Fazem parte então
desse quadro o “seu Almeida”, com sua perna cortada pelo bonde, o vizinho que atirou
na “mulher que o traíra”, “o leiteiro”, “o guarda-noturno”, “o guri que vendia amendoim
torradinho”, “os mascarados do carnaval”, “o sorveteiro” e “a leprosa”.
Os escritores de memórias infantis tentam – sem sucesso – retratar um
antigo eu” fidedigno, contudo são traídos pela memória e, mais do que isso,
influenciados pelo seu campo afetivo e o da imaginação. Seja numa autobiografia ou,
por exemplo, numa crônica confessional da infância,
[...] falando do imaginário da criança numa linguagem mais ou menos
poética, os autores liberam, sem dúvida com certa facilidade, suas próprias
fantasias: esta criança, que lhes serve de pretexto, reflete ou reativa um antigo
eu muito amado. Estas novas imagens da personagem, provindas de
lembranças da infância, com todos os desvios que a vida afetiva e a memória
lhes fizeram sofrer, decorrem também do papel da criança, como encarnação
de valores nos relatos. (Chombart de Lauwe, 1991: p.91-2)
Interessante frisar também que, às vezes, cria-se uma escrita infantil nos
relatos sobre a infância, isto é, pode ocorrer que “uma linguagem ‘sobre’ a criança é
68
criada assim como uma linguagem ‘para’ a criança, que as imagens ideais e modelos
lhe são propostos.” (Chombart de Lauwe, 1991: p.01)
Como exemplo, destaque-se o par de crônicas de infância, escrito por
Cecília Meireles
14
, “O cachorrinho engraçadinho” e “Reabilitação do cachorrinho
engraçadinho”, da coletânea Quatro vozes: crônicas. Percebe-se, por meio de
construções frasais criativas, principalmente pelo uso do diminutivo, uma linguagem
terna. O enredo gira em torno de um cachorro divertido e inquieto, que mora num
apartamento junto com a família que o adotou para consolo do filho único. “Há coisa
mais triste que um menino sem irmãos nem companheiros, fechado num apartamento?
(Meireles, 1998: p.95) Em diversos momentos do texto, nota-se a intencionalidade da
cronista que, ao tratar de uma infância, acaba escrevendo para a criança com uma
linguagem infantil. Por exemplo: “e veio o cachorrinho muito engraçadinho. Todos o
cercaram, encantadíssimos.” (Meireles, 1998: p.95) Ou ainda:
[...] e o cachorrinho engraçadinho começou a abusar. E atreveu-se, num
jantarzinho íntimo, a pular para cima da mesa, a meter o focinho nos pratos, a
derrubar os copos com seus movimentos na verdade muito graciosos mas
inadequados.” (Meireles, 1998: p.96-7)
Utilizando uma linguagem infantil, como os exemplos de Cecília Meireles,
ao publicar seus textos de jornal, cronistas trabalham, vez ou outra, essa técnica
literária. Mais uma referência sobre o assunto é a crônica “Fábula eleitoral para
crianças”, de Paulo Mendes Campos. Encontra-se o seguinte discurso nas primeiras
linhas: “um dia, meninos, as coisas da natureza quiseram eleger o rei do universo.”
(Campos, 1997: p.188) Percebe-se pela frase um tom infantil e um discurso voltado às
crianças.
Como término deste tópico, ao resgatar a infância pelos pilares da memória,
afeto e imaginação, foram destacadas, em crônicas acima, os textos mais relevantes com
o objetivo de apresentar os aspectos do olhar, devaneio e solidão do menino Cony.
14
A título de ilustração, vale comentar que, em 1963, Cony passa a escrever uma coluna no jornal Folha
da Man, de São Paulo, revezando-se com Cecília Meireles.
2.2 O MENINO E O PAI
Em proporção um pouco menor que a imagem da infância, a figura do pai é
de grande valia na obra de Carlos Heitor Cony. Antes de uma análise das crônicas
referentes ao pai do escritor, necessário é fazer breve comentário em relação à Quase-
memória: quase-romance obra fundamental para compreender a relação entre o filho
escritor e seu pai.
Depois de uma longa pausa voluntária de vinte e um anos sem escrever
romances, Cony publica o premiado livro Quase-memória: quase-romance, cujo centro
da narrativa é o excêntrico protagonista anti-herói, Ernesto Cony Filho, pai de Carlos
Heitor Cony. Nessa obra, observando a estruturação dos capítulos, tal como em
Infância, de Graciliano Ramos, “o relacionamento mais ou menos livre entre os
capítulos representa a descontinuidade da memória, em franca oposição às técnicas
narrativas da autobiografia e sua prisão factual e cronológica.” (Zagury, 1982: p.122)
O enredo principia quando, em 28 de novembro de 1995, depois de almoçar
no restaurante do Hotel Novo Mundo, no Rio de Janeiro, Cony recebe, na recepção, um
embrulho de um hóspede que estivera no fim de semana anterior. Perguntado ao
porteiro o nome desse hóspede, foi explicado a Cony que era do interior de São Paulo,
contudo o recepcionista recusou-se a nomeá-lo ao escritor, já que não era hábito do
hotel.
Ao receber o pacote e observar todas as suas características (cheiro “de
fumo e de água de alfazema”, letra, e barbante, por exemplo) ele estava certo de que
o remetente tinha sido seu pai. Situando-se no tempo, Cony então inquieta-se porque
estava diante de um mistério: “apenas uma coisa não fazia sentido [afirma o escritor].
Estávamos como disse em novembro de 1995. E o pai morrera, aos noventa e um
anos, no dia 14 de janeiro de 1985.” (Cony, 1997: p.11)
É, então, a partir das características desse “embrulho” que o narrador
retrospectivo trará à tona lembranças de seu passado especialmente as de seu pai. É
portanto através da chamada memória involuntária a qual se manifesta
repentinamente pela percepção de um dos cinco sentidos, ou suas combinações que o
autor despertará, naturalmente, lembranças provocadas a partir do misterioso
“embrulho”. A expressão memória involuntária foi consagrada pelo escritor francês
70
Marcel Proust, em sua obra Em busca do tempo perdido. Pedro Nava, reconhecendo a
inovação do literato francês referente à memória involuntária, diz que
[...] Todo mundo tem sua madeleine, num cheiro, num gosto, numa cor,
numa releitura na minha vidraça iluminada de repente! e cada um foi um
pouco furtado pelo petit Marcel porque ele é quem deu forma poética
decisiva e lancinante a esse sistema de recuperação do tempo. (Nava, 2002:
p.291-92)
Interessante que o memorialista mineiro, dissertando sobre a memória
involuntária de Proust, acrescenta, ao perigoso processo da literatura memorialística,
um fenômeno incontestável – o esquecimento:
[...] Umas imagens puxam as outras e cada sucesso entregue assim devolve
tempo e espaço comprimidos e expande, em quem evoca essas dimensões,
revivências povoadas do esquecido pronto para renascer. Porque esquecer é
fenômeno ativo e intencional esquecer é capítulo da memória (assim como
que seu tombo) e não sua função antagônica. (Nava, 2002: p.292)
Em comentário de Cony sobre sua obra, ao comparar o seu “embrulho” com
a madeleine de Proust, diz em entrevista que “o embrulho de Quase memória tem a
mesma função da madeleine no chá de Proust. (Aliás, eu nem precisei abrir o embrulho
para desembrulhar todas aquelas lembranças do pai em Quase memória).” (Cony, 2001:
p.43) A analogia do embrulho com a madeleine ocorre até mesmo, no Quase-memória:
quase-romance. Afirma o narrador Cony que
Nada mais diferente, contudo, entre o biscoito de Proust e o
embrulho do pai. A madeleine trouxe o gosto que leva ao passado, ao
passado geral, ao passado anterior ao passado, ao passado depois do passado,
o passado “ao lado” do passado.
O biscoito abriu as portas do tempo do tempo perdido. [...] o
“meu” embrulho não me abre nada, muito menos o tempo [nesta obra Cony
rememora o passado do pai sem abrir o envelope]. Se abria alguma coisa era
o espaço até então, nunca pensara organizadamente na única pessoa, no
único personagem, no único tempo de um homem que, não sendo eu, era o
tempo do qual eu mais participava. (Cony, 1997: p.94)
O fragmento chama atenção para o espaço, isso porque Cony refere-se ao
pai, nas crônicas, como “um excesso”, “um exagero”, naquele espaço da casa. Ao narrar
em crônica uma pitoresca história de quando seu pai tentou, sem sucesso, aprender a
tocar violão, comenta que “ele sozinho enchia a casa. Com o violão, era um
pleonasmo.” (SL, p.44)
71
Utilizando a memória involuntária, no segundo capítulo do Quase-
memória: quase-romance, Cony remete ao pai, a partir do cheiro do envelope,
involuntariamente. O capítulo inicia-se da seguinte maneira:
Sobre a minha mesa de trabalho, o embrulho-envelope parece
cheirar mais e melhor. Eu nem preciso aproximar o rosto: sinto-lhe o cheiro
de alfazema. Mas logo desconfio que, continuando a contemplá-lo, começo a
sentir dentro do cheiro maior outros cheiros menores que identifico como
dele, embora em escala diferente.
Um cheiro vivo, mas distante, da brilhantina que ele usava, um
potezinho pequeno e redondo com bonito rótulo dourado. [...] (Cony, 1997:
p.17)
Toda essa obra de Cony composta numa estrutura fragmentária vale
ressaltar – funda-se nessa perspectiva da memória involuntária, isto é, partindo do
“embrulho” recebido, o autor recordará algum fato passado.
Entre as diversas histórias pitorescas do livro comentar-se-á aqui antes de
analisar as crônicas focadas no pai do escritor o capítulo quarto. Neste capítulo de
Quase-memória: quase-romance, “o pai” termo como é referido por Cony
proporciona uma progressiva comicidade por suas trapalhadas e falta de discrição.
O enredo do fragmento centra-se numa aparição abrupta do pai quando o
seminarista Cony estava no cemitério junto com outros seminaristas, padres e a família
Mota, no enterro do pai do importante “padre Motinha”, o “diretor espiritual” dos
seminaristas.
O pai, com um dos filhos internos no seminário, sabia que não era fácil
aquela vida religiosa a qual o menino levava. E, por isso, tentava agradar o garoto com
seu jeito engraçado, aparecendo nos locais mais inesperados para o filho, com
sanduíches, bombons, frutas e até marmita, onde quer que o menino estivesse:
Aparecia pelo meu caminho abruptamente, nos mais
disparatados lugares, na sacristia da catedral quando lá ia eu buscar o turíbulo
para as missas cantadas: ele saía das sombras de velhos armários com um
sanduíche, a gordura do presunto manchando o papel impermeável dos
botequins que ele conhecia e que, segundo ele, tinham o melhor presunto da
cidade. (Cony, 1997: p.28-9)
Afirma Cony que seu “pai gostava de tudo, ou quase tudo, mas era esganado
por carne-seca e manga.” (Cony, 1997: p.26) No texto “Das vascas do meu avô” (AF)
presente no primeiro livro de crônicas e reeditado, com pequenas alterações, em Quinze
72
anos (A juventude como ela é) Cony rememora as curiosas atitudes dos familiares que
acompanhavam, em sua casa, os últimos dias de vida de seu avô.
Interessante é que essa crônica de lembranças, salpicada de humor negro,
termina com a morte do avô pedindo carne-seca. Em Quase-memória: quase-romance,
trinta e dois anos depois, é a imagem do pai que adora carne-seca. Fazendo então uma
analogia entre os dois textos (salvo mera coincidência de gostos pela carne-seca), não se
sabe, mas possivelmente apenas um dos dois familiares pai ou avô realmente teria
gostado de carne-seca. Contudo, para o processo de construção textual desses relatos de
memórias fragmentadas, recorreu Cony à constatação do passado – pai ou avô gostar de
carne-seca que o influenciou na transferência do sintagma para o outro texto, a fim de
se criar o riso. Sabe-se que podem existir elementos ficcionais, inclusos na “escrita do
eu”, quando se quer proporcionar comicidade ao texto.
Depois de comentar sobre a carne-seca, o narrador diz que seu pai também
adorava mangas, no episódio desse capítulo do livro, Cony afirma que “a manga foi
causa de um dos meus vexames.” (Cony, 1997: p.26)
O pai, sabendo que os
seminaristas iriam ser solidários com o padre Motinha, foi cedo ao cemitério de Santa
Cruz. No momento do enterro, o menino rezando e na “fila dupla com outros alunos, de
mãos postas, compenetrado nas preces, acompanhava o féretro pelas alamedas do
cemitério.” (Cony, 1997: p.28) A aparição do pai, então, provoca alegria e ao mesmo
tempo receio, que Cony conhecia-lhe as extravagâncias: “surgiu entre os túmulos
com um pacote de caramelos, eu era louco por eles, vinham embrulhados em papel
celofane azul, o gosto era mistura de chocolate e amêndoa.” (Cony, 1997: p.28)
Mostrando seu jeito engraçado, com medo de ser descoberto, Cony explica
que “lá estava ele [...] fazendo-me sinal para que fingisse não estar vendo nada, que
ficasse de mãos postas, que continuasse respondendo aos salmos, mas me desviasse um
pouco da fila, para passar mais perto dele. E foi o que fiz.” (Cony, 1997: p.30) O pai
rapidamente levantou a sobrepeliz e colocou as balas no bolso do garoto.
O efeito cômico atingiria seu ápice em seguida. Em meio aos exagerados
prantos dos parentes do morto:
Ouviu-se o baque de um corpo que caía. O estrondo fez o
pranto parar, emudeceram os gritos, calaram-se os gemidos. O oficiante
interrompeu os salmos, os responsórios. Todos olharam na direção de onde
viera o estrondo. Temendo pelo pior, fui dos últimos a olhar. (Cony, 1997:
p.31)
73
Existia uma grande mangueira perto do jazigo do morto na qual subira o pai
do menino para tirar frutos. Cony finaliza o capítulo, criando uma forte comicidade pelo
ato inesperado do pai e a atitude dos outros personagens em querer ajudá-lo.
Reproduzem-se, então, os três últimos parágrafos como exemplo da utilização desse
humor:
Aproveitando a unção de um enterro de um Mota de Santa
Cruz, alguém subira na árvore e tentara cutucar os frutos que ameaçavam
amadurecer. Apesar de dominar a técnica para momentos que exigiam
equilíbrio e sangue-frio, o pai cometera algum erro fatal: caiu em cima da
carroça que trazia as coroas que seriam depositadas no jazigo perpétuo dos
Mota de Santa Cruz.
Houve solidariedade: todos correram para socorrê-lo, escová-
lo, abaná-lo, ouvia o pai dizer que não fora nada, apenas o susto, que
ninguém se incomodasse, ele não queria atrapalhar o enterro, padre Motinha,
olhos avermelhados, logo recomeçou os salmos, os responsórios, eu olhava o
chão, querendo ser enterrado também, ali mesmo, com a minha vergonha.
Quando olhei para o lado, sabendo que o pai ainda devia estar
ali, vi o que esperava ver: ele catava as mangas maduras no chão. (Cony,
1997: p.31)
Determinados vocábulos, peculiares, escolhidos pelo autor e engendrados na
sintaxe do texto, criam esse humor, a partir de uma de certa forma “desgraça” do
pai. O substantivo “carroça” e os verbos “cutucar”, “escová-lo”, “abaná-lo” são
exemplos disso. Orações inteiras também proporcionam esse clima ao relato como, por
exemplo, em “caiu em cima da carroça”. Um tom irônico, muito presente nas crônicas
do autor, é representado aqui quando o pai em diálogo com as pessoas que
acompanhavam o sepultamento afirma que “ele não queria atrapalhar o enterro”.
Um último comentário sobre o capítulo: nele está presente uma
peculiaridade, que também se encontra freqüentemente nas crônicas de Cony, é o
sentimento de vergonha, aliado ao de felicidade, do filho em relação ao pai. A vergonha
da criança chega ao ápice, no último momento do trecho citado, quando o pai, depois da
queda desconcertante, cata “as mangas maduras no chão”.
No capítulo que encerra sua História do riso e do escárnio, George Minois,
pautando-se nos séculos 20 e 21, analisa o riso do ponto de vista ideológico, atribuindo
a ele um falso sucesso, inserido numa modernidade mercadológica, porque
registrado, etiquetado, impresso, filmado, ele é vendido no mundo inteiro;
profissionais asseguram sua promoção, a difusão e até o serviço, depois da
venda, para as pessoas hipócritas. Ao mesmo tempo produto e argumento de
venda, torna-se um atributo indispensável do homem moderno, quase tão útil
quanto o telefone móvel. “Fazer a festa” tornou-se uma obsessão. Tudo é
74
pretexto para isso: aniversários sem significação, pseudo-acontecimentos
esportivos, culturais ou políticos – festa da cerveja, do vinho, dos licores, das
mães, da música, dos arados, do presunto, das árvores, do livro, do Ano-
Novo, de tudo ou de nada. (Minois: 2003: p.593)
Essa comercialização do riso, difundida pelos meios de comunicação,
realiza-se bem em “fazer a festa” evento artificialmente alegre. Em contraponto ao
eterno riso postiço contemporâneo, configura-se a vivência de Ernesto Cony Filho,
figura que, além de expansiva por natureza, é motivo de certo gracejo pelos outros. Sua
relação bem-humorada com o Cony criança se dá espontaneamente. Nada é artificial.
a edificação do riso na modernidade está fadada ao fracasso e à morte, segundo George
Minois. E o fazer a festa”, então, a qualquer custo, é o que provoca o fim de um riso
espontâneo:
A festa é, por essência, coletiva e antiindividualista; a pessoa se
perde no grupo. Outrora, a festa era associada ao riso em razão de seu caráter
excepcional, que permitia estabelecer um deslocamento da norma. A
extensão da festa para a vida inteira, vivida como um jogo, põe fim – mesmo
que de forma ilusória a essa separação, quebrando o elo entre o riso e a
festa. A festa obrigatória e perpétua, que se apresenta como solução coletiva
para a angústia de um mundo que perdeu sentido, torna impossível a forma
individual do riso, que é o humor. Este brincando com o sério e o derrisório;
como fazer humor num mundo em que tudo é derrisório? Ora, o humor é uma
reação muito mais eficaz do que a festa, para enfrentar o real. (Minois: 2003:
p.605)
Embora as narrativas girem em torno de Ernesto Cony Filho, Quase-
memória: quase-romance é livro fundamental para se ter uma melhor compreensão da
crônica confessional da infância de Cony. Muito do que Cony imprimiu nessa obra
encontra-se repetido, de maneira difusa, na sua crônica.
Quando se lêem as crônicas que remetem a um passado distante, tem-se a
imagem de que o maior amigo de Carlos Heitor Cony foi seu pai. Era no espaço da casa
que o menino Cony brincava e conversava com o pai um homem de confiança, um
companheiro que explicava como funcionavam as coisas do mundo ao atento garoto.
Em Formação e rompimento dos laços afetivos, John Bowlby desenvolve
questões acerca dessas pessoas de base, em quem se confia, denominando-as de “figura
de ligação”. Ao comentar sobre as atitudes desses laços afetivos afirma que
[...] o comportamento de ligação é concebido como qualquer forma de
comportamento que resulta em que uma pessoa alcance ou mantenha a
proximidade com algum outro indivíduo diferenciado e preferido, o qual é
usualmente considerado mais forte e (ou) mais sábio. (Bowlby, 1990: p.122)
75
Winnicott, por seu turno, ressalta um vínculo inconsciente a essas “figuras
de ligação”, durante os momentos de rebeldia, em alguma etapa do desenvolvimento do
individual:
Em qualquer de seus estágios, o desenvolvimento sadio do
indivíduo baseia-se numa progressão regular, isto é, numa série bem
graduada de ações rebeldes e iconoclastas, cada uma das quais é compatível
com a conservação de um vínculo inconsciente com as figuras ou a figura
central os pais ou somente a mãe
.
Poder-se-ia constatar, pela observação
das famílias, o imenso cuidado tomado pelos pais no sentido de organizar o
curso natural dessas séries de modo que a seqüência gradual que determina o
crescimento do indivíduo não seja rompida. (Winnicott, 1993: p.134)
É por esse cuidado que caminha Ernesto Cony Filho, a “figura de ligação”
do menino Cony. Sempre nessa perspectiva do pai como ente de apoio, e sem esquecer
o Quase-memória: quase-romance, observações serão feitas em crônicas centradas na
relação entre o pai e o menino Cony.
Cronista do jornal O Povo, por mais de vinte e seis anos (1954-1980),
Milton Dias também lembrou, nesses textos breves, a figura paterna. Em sete crônicas
15
enfeixadas no sugestivo título Relembranças, ele estabelece um diálogo imaginário com
o pai morto décadas, mais precisamente quando o escritor tinha apenas nove anos,
em 1928. As crônicas, então, giram em torno de comentários acerca das transformações
ocorridas desde a perda do pai.
No parágrafo inicial de “Ao meu pai morto”, o cronista sinaliza o retorno da
figura paterna, mesmo cônscio de que só um milagre divino o traria de volta:
Muitas vezes tenho pensado como seria se, depois destes 43
anos da sua morte, o senhor de repente aparecesse aqui na porta, em corpo,
sangue, alma, tão real, perfeitamente como esteve na terra. Os milagres da
ressurreição nunca mais aconteceram: no tempo em que Deus Nosso
Senhor andou no mundo, quando os homens eram certamente mais puros,
tinham mais fé, conviviam com os santos e testemunhavam pessoalmente
seus prodígios e martírios. (Dias, 2000: p.263)
O mesmo comentário surge em “Se meu pai voltasse”, também na
introdução: “é, meu pai, tenho pensado como seria se o senhor voltasse, 43 anos depois
da sua morte [...]” (Dias, 2000: p.266) Ou ainda em “O sonho” do escritor: “pai, de tal
15
As crônicas são as seguintes: “Ao meu pai morto”, “Se o meu pai voltasse”, “De pra cá”, “O
automóvel”, “Alagadiço”, “O sonho”, “A cidade”.
76
maneira me empolgou a idéia da sua ressurreição, que esta noite eu sonhei. O senhor
chegava, entrava simplesmente, cantando os versos duma canção [...]”. (Dias, 2000:
p.278)
Em sua ilusão dialógica, Milton Dias delineia um breve perfil do pai,
aproximando-o, em menor intensidade, aos trejeitos e traços do excêntrico Ernesto
Cony Filho:
E o revejo neste reencontro que não acontecerá nunca, com
toda a fidelidade que a memória guardou, a palavra fácil, os olhos pretos,
brilhantes, a cabeleira farta encimando a testa larga, a barba cerrada e os
gestos rápidos, expressivos, denunciando o ritmo dinâmico que foi sempre a
sua constante.
E se interessando por tudo, pelas invenções, pelas novidades.
Lembro o seu entusiasmo quando viu os primeiros aviões, em 1927, recordo
seu comentário tirando um pouco sobre Júlio Verne, prevendo que não
demorariam os tempos em que o homem poderia partir de Fortaleza de
manhã e dormir no Rio de Janeiro. Então a gente lhe informaria como estão
as coisas neste plano aéreo, como nós mesmos, seus filhos, temos explorado
os caminhos do u com tanta freqüência, até atravessando por cima o mar-
oceano: isto tudo que hoje é rotina e eram planos e fantasias na década de
20. (Dias, 2000: p.266-67)
O cronista, consciente de que não haverá reencontro; através então de “toda
a fidelidade que a memória guardou” (outra ilusão), descreve traços físicos (ausente na
crônica de Cony na imagem paterna) e psicológicos do pai; mostrando também a
evolução tecnológica pelas viagens aéreas.
Em “O automóvel”, por exemplo, o veículo faz parte da urbe moderna:
“depois da alegria de ter automóvel à sua porta, o senhor iria experimentar o primeiro
desapontamento: [...] para ir ao Centro a gente teria que deixá-lo [...] na Coronel Ferraz,
sob pena de ficar rodando [...] desgastando os nervos inutilmente”. (Dias, 2000: p.273)
Os hábitos e vestimentas do presente são também mencionados ao pai
morto, em “A cidade”, a sua Fortaleza,
Se quisesse passar pela praia, domingo de manhã, eu o levaria,
embora não pudesse imaginar qual seria a sua reação. Na década de 20, que
foi a última sua, ainda as mulheres usavam aqueles calções de banho que iam
bater nos joelhos e tinham blusão por cima. Mesmo assim as senhoras não
eram muito dadas ao mar. [...]
foram subindo a roupa de praia aos poucos, até passar para
um modelo que veio da França, chama-se maiô e foi muito combatido, a
princípio. Agora, como é mesmo que eu vou explicar o que estão usando?
por visto dois lenços de tamanho médio. as moças pegam um, cobrem os
seios e com outro fazem uma sunga muito mínima e muito bonitinha, formam
um “biquini” e assim se mandam para o sol, salgam o corpo na água, deitam
77
na areia horas e ficam lindas, pegam uma cor dourada, tirando sobre o
bronze, que é uma beleza. (Dias, 2000: p.282-83)
Esse intelectual do Grupo Clã
16
, ao mentalizar a vinda do pai, no espaço
semanal que lhe era conferido, na imprensa fortalezense, torna evidente que a prematura
perda paterna marca a obra desse escritor de veia lírica.
Nascido no interior do Ceará, na cidade de Massapê, Milton Dias, de modo
freqüente, recordará saudoso sua meninice interiorana em sua crônica; sendo, assim, a
infância um tema recorrente, tal como se vê na obra de Cony.
A figura paterna se apresenta de maneira explícita na crônica de Carlos
Heitor Cony. Não da forma peculiar, trazida por Milton Dias, mas pela própria
lembrança ao passado. Como existem em “Escombros de junho” (PS), muitos dos
temas, reproduzidos em outros textos breves, far-se-á, aqui, uma análise desta crônica
de forma intratextual. O processo, portanto, será feito da seguinte maneira: cita-se um
fragmento dessa crônica e, em seguida, também de outros textos, com o objetivo de se
chegar a uma idéia-chave, em relação ao pai e ao menino Cony. Utilizando-se então de
uma análise que cruza textos do próprio autor, está-se aqui no terreno da literatura
comparada. Uma definição possível para este ramo analítico da arte – no caso específico
da literária – seria dizer que a literatura comparada é uma
[...] descrição analítica, comparação metódica e diferencial, interpretação
sintética dos fenômenos literários interlingüísticos ou interculturais, pela
história, pela crítica e pela filosofia, a fim de melhor compreender a literatura
como uma função específica do espírito humano. (Brunel, 1990: p.141-42)
E é pela travessia, em crônicas de Cony que se completam, que se percebe a
feição, dada pelo autor, à sua infância estampada em textos de jornal.
No âmbito do espaço representado nos “Escombros de junho”, ocorre um
deslocamento de eixo de fora para dentro, da rua para a casa. De uma intensa
poeticidade, o texto possui dois pólos que se cruzam: o primeiro são os cotidianos
comentários do narrador adulto Cony, que partem do mês junino do agora, vivenciado
por ele (“este junho sem balões e sem fogueiras, este junho de apartamento e
compromissos”) (PS, p.135), às festas de infância.
16
O Grupo CLÃ foi uma das agremiações literárias mais importantes do Ceará. Em mais de quatro
décadas, o grupo publicou a revista homônima de 30 números, que principiou em 1946 com o número
zero –, pondo fim à publicação, em dezembro de 1988 – com o número 29.
78
Já o segundo pólo é um breve enredo, diluído nessas digressões do narrador.
Numa atividade de memória involuntária, ao dirigir-se para casa, Cony escuta, na rua,
uma conhecida canção junina, dos tempos antigos, que funciona como sua madeleine
para lembrar-se da infância, mais precisamente da fabricação dos balões juninos que
fazia junto com seu pai. Intercalados nos parágrafos da crônica, existem versos de uma
antiga canção: “Cai cai balão, / não deixa o vento te levar...” (PS, p.135); ou ainda: “a
ventania / de tua queda vai zombar / cai, cai balão, / não deixa o vento te levar...” (PS,
p.135)
Chegando a casa, o narrador melancólico – impregnado de infância – festeja
o dia de São João junto com as duas filhas em seu apartamento, localizado no Posto 6,
em Copacabana.
Partindo agora para uma análise vertical do texto, o caput da crônica se
mostra relevante. “Escombros de Junho”, somado a outros títulos de textos “A
primeira noite” (AA), “Noites de junho” (AA), “Noite mais fria” (HB) – fornecem
indícios do que será relatado pelo cronista. São todos textos líricos, em que se cruzam
presente com passado, a fim de relembrar o período de infância das festas juninas,
quando o menino fazia e soltava balões com o pai.
Observando ainda, no título, a expressão “escombros”, eis um termo
importante para enfatizar aqui. Crítico de si mesmo, Cony autodeprecia-se e analisa o
mundo com uma ótica pessimista. Provoca ele uma
[...] autoflagelação intelectual sem precedentes na literatura brasileira. Ao
contrário de escritores que são incapazes de narrar um fracasso, uma
bandalheira, ou um simples passar pelo sinal vermelho, sempre auto-
elogiativos, incansáveis ao referir-se aos próprios méritos, Cony
freqüentemente apresenta-se ao leitor, não na crônica, mas também na
ficção como um... escombro. (Sandroni, 2003: p.75)
Em relação, ou não, a Cony, mas sempre motivador textual de um clima
niilista, o substantivo escombro – às vezes flexionado – está presente em várias crônicas
de diferentes livros. Lista-se, agora, para uma melhor apresentação do referido termo,
nesses textos breves, uma dezena de exemplos, começando-se por colocar um
fragmento do próprio “Escombros de Junho”: “pelas paredes, os meus balões pendem
como escombros coloridos” (PS, p.136); “a lenta procissão dos fantasmas, ordenados
como um carrossel, transformou-se num desfile de escombros” (AA, p.16-7); “ele existia
sem existir, escombro de um fantasma que não pertencia especificamente a nada e a
ninguém” (AA, p.111); “olhava o passado e via que a vida se limitava a uma sucessão de
79
escombros” (HB, p.214); “depois, que cada qual fosse à sua vida, levando os escombros
de si mesmos” (SL, p.82); “pelo fim do ano, dos escombros da ceia de Natal sempre
sobram figos secos” (SL, p.113); “seu mundo ali está, reduzido a incompreensíveis
escombros que descem ou despencam pelas escadas” (QA, p.64); “mal amparadas pelo
governo, as matrizes estavam em escombros, todas elas feias e decadentes, caindo aos
pedaços” (AA, p.96); “tive medo de não encontrar os escombros do mundo em que
vivia” (HB, p.249); “mas nunca esqueço os escombros que ficavam nas calçadas do
passado” (SL, p.73).
Pela exemplificação acima, constata-se que “escombro(s)”, portanto, é um
vocábulo que Cony emprega vez ou outra para autodefinir-se, como, neste último
exemplo em que, comparando-se com o jornal que primeiro lhe deu abrigo na imprensa,
afirma: “à minha maneira, bem mais cedo do que esperava, também me tornei um
escombro – mas isso era problema meu”. (AA, p.54)
Contudo, quando se atenta para sua vida intelectual, de jornalista e escritor,
percebe-se o oposto. O jornalista Cícero Sandroni, ao escrever a “quase-biografia” de
Cony, aprofunda a questão e, em determinado momento da obra, relata que:
[...] Pode parecer incrível, mas ao escrever suas recordações, ele não
consegue admitir que aconteceu justamente o contrário. Sua trajetória começa
no anonimato para chegar ao reconhecimento do público e da crítica e por
que não usar a palavra tantas vezes empregada sem sentido, mas
perfeitamente adequada a Cony? – à glória. (Sandroni, 2003: p.74)
Tendo recebido críticas, freqüentemente positivas, e ganho os principais
prêmios literários nacionais
17
ao longo de sua carreira, Cony, portanto, não virou um
escombro; e sim, consagrou-se no corpus da Literatura Brasileira.
Como prova disso, de renome nacional, o intelectual Otto Maria Carpeaux,
crítico de renome nacional que trabalhou com Cony no Correio da Manhã
18
, define-o
como
17
A verdade de cada dia (Prêmio Manuel Antônio de Almeida, 1957); Tijolo de segurança (Prêmio
Manuel Antônio de Almeida, 1958); Quase-memória: quase-romance (Prêmios Jabuti: “Melhor
Romance” e “Livro do Ano Ficção”, 1996); Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de
Letras, pelo conjunto da obra, 1996; O piano e a orquestra (Prêmio Nacional Nestlé de Literatura, 1996);
A casa do poeta trágico (Prêmios Jabuti: “Melhor Romance” e “Livro do Ano – Ficção”, 1997); Romance
sem palavras (Prêmio Jabuti: “Livro do Ano – Ficção”, 2000).
18
Otto Maria Carpeaux foi um grande amigo de Cony. Em homenagem ao intelectual austríaco, nos Os
anos mais antigos do passado, Cony escreveu a crônica “Viagem em torno de Otto Maria Carpeaux”,
texto que mostra a grande importância que este estrangeiro imprimiu ao ensaio literário em nosso país.
80
o representante principal do neo-realismo brasileiro. Começou como
romancista dos costumes cariocas, naturalista mas inspirado pela angústia de
nausée; evoluiu, através de romances psicológicos, para o romance político.
De importância política também são as corajosas crônicas de O ato e o fato.
(Carpeaux, s.d.: p. 432)
Massaud Moisés, no último volume de sua História da Literatura
Brasileira, amplia o conceito de Carpeaux à ficção do autor ao lembrar a relevância
do elemento autobiográfico, bem como o confronto entre sexo e pecado. O historiador
explica que Cony
[...] insuflaria em sua ficção a experiência traumatizante dos anos de
seminário, que abandonou em 1945, bem como a consciência aguda dos
dramas existenciais determinados pelas obsessões sexuais em conflito com os
valores morais e religiosos. Com uma virulência, refletida no estilo desafeto,
franco, de recortes coloquiais, faz o balanço da pequena burguesia urbana
decadente, uma espécie de microcosmos da condição humana, não sem apelar
para lembranças autobiográficas de permeio com o testemunho da ordem
ética e política reinante nos anos 60. (Moisés, 2001b: p.358)
Sem fazer exaustiva análise acerca da prosa ficcional de Cony, quer-se
apenas exemplificar as observações de Massaud Moisés, aludindo, na seqüência, a um
único romance do autor.
O romance autobiográfico Informação ao Crucificado, escrito na forma de
diário, é considerado por Alceu Amoroso Lima, na aba do volume, como “uma terrível
confissão pública”. O narrador-personagem João Falcão, considerado pela crítica como
alter ego de Cony, narra em seu diário uma profunda angústia, ao descobrir que não
tinha vocação nem vontade para o sacerdócio. Assim, João Falcão, mesmo com apoio
espiritual dado pelos padres, quando pedia; tentando, sem sucesso, vencer a crise
religiosa por que passava, abandona o seminário, aos dezenove anos, às vésperas da
tonsura. Encerrando o livro, Cony coloca na boca do narrador a seguinte frase: “e eis
que vos dou a informação: Deus acabou” (Cony, 1999: p.108) Essa frase final é uma
paródia bíblica, porque está dito, aqui, justamente o oposto da expressão utilizada pelos
profetas, da história antiga, com o objetivo de anunciar o Messias.
Na entrevista em anexo, Cony comenta que
19
No caso do Informação ao crucificado, quis fazer um romance baseado em
mim mesmo, eu não podia colocar o meu nome, tinha que colocar
realmente o nome de um terceiro, criar um personagem que tinha como base,
como fundamento a minha pessoa, mas ali não sou eu. (Anexo B: p.204)
19
Cf. o primeiro capítulo do trabalho, já que também faz referência ao narrador João Falcão.
81
Depois dessa digressão imposta pela interpretação do título “Escombros
de junho” e utilizando, ainda, o enfoque intratextual, partes da crônica serão
analisadas aqui.
Destaquem-se os dois fragmentos: “mas em junho, a infância retorna inteira,
trazida nas mesmas canções e gostos (PS, p.136); “fecho os olhos então, e vejo passar
sem ruído, na noite que cobre as minhas vergonhas, os balões de meu pai, mais tarde os
meus próprios balões, iluminados, em silêncio”. (PS, p.137)
Como se percebe é o mês junino do presente que faz Cony lembrar-se de seu
pai, um homem que, dentre outras lúdicas atividades, gostava de fazer e soltar balões os
mais variados, ajudado pelo filho admirado e feliz, por ter um pai amigo naquele espaço
da casa.
Em “Noites de Junho”, afirma o narrador retrospectivo:
[...] Lembrei também os balões que o pai fazia para soltar nos dias 13 de
junho, eu o ajudava, segurando compenetradamente a panela com a goma
feita de farinha de trigo, a cada balão que subia de nosso quintal, o pai
berrava para a noite: “Viva Santo Antônio”. (AA, p.148)
Interessante ressaltar, como já se percebe pela citação acima, que esse
mundo mágico dos balões da infância não se vincula ao dia de São João, e sim ao de
Santo Antônio.
O menino tinha uma verdadeira ojeriza ao dia de São João, que “era o rival
mais categorizado de Santo Antônio”. (AA, p.162) Transfigurando os santos em times
de futebol, ou melhor, os dias dedicados a esses santos, afirma o narrador que
[...] o grande clássico era disputado na véspera de Santo Antônio, 12 de
junho, e São João, a 23 de junho. Havia então mais fogueiras nos quintais e
mais balões nos céus da cidade.
Eu desprezava São João. Recusava-me a contar suas fogueiras
e balões. Reconhecia que davam aquilo que antigamente chamavam de
“lavagem” em Santo Antônio. Mesmo assim, todos os anos, de nosso quintal
subiam colossos de papel fino e a nossa fogueira tinha, segundo lculos
modestos do pai, a mesma altura da tocha que brilhara no Farol de
Alexandria. O pai acreditava nisso – e eu também. (AA, p.162)
O pai era caprichoso na produção dos balões, demorando muitas vezes dias
para terminar o que começara. Sendo jornalista e possuindo certa influência na imprensa
82
seus “balões [...] chegaram a ser louvados em A Noite Ilustrada. Eram dos maiores e
mais bonitos da cidade. E dedicados a Santo Antônio.” (AA, p.163)
Nestas “Noites de Junho”, que dilui os devaneios do autor (igualmente a
“Escombros de Junho”), Cony narra o episódio em que, ao voltar com o pai para casa,
depois de uma festa de São João em casa do “tio Augusto”, o pai, que se divertia com
qualquer coisa, não compartilhava daquela rivalidade, em relação aos dias de São João e
Santo Antônio, levada tão a sério pelo filho:
[...] Segurando a minha mão, o pai tentava contá-los. Nenhum deles tinha a
formidável majestade dos nossos. O pai gostava dos balões de São João, não
era vantagem, tudo para ele era festa. Eu os odiava. E nunca os perdoei. (AA,
p.163)
Em Quase-memória: quase-romance, Cony dedica um capítulo a narrar,
detalhadamente, como seu pai fazia os balões, em meio ao olhar e à ajuda do filho
atento; o processo era longo e demorava dias. Às vésperas do dia de Santo Antônio, o
pai chegava a casa com resmas de papel e sempre trazia surpresa ao desprevenido
menino Cony:
[...] eu olhava o calendário, suspeitava que a grande noite estava próxima,
mas nunca tinha a certeza da data. Nesse dia, ele vinha mais cedo e me
pegava acordado. Mas houve anos em que chegou mais tarde, noite alta.
Sabendo que era uma festa, ele me acordava, embora minha
mãe reclamasse, acordar uma criança por causa tão boba, os balões
demorariam a ser feitos, haveria tempo para aproveitar aquilo tudo, ela não
entendia que eu tinha pressa, e o pai também. Se tínhamos de ser felizes,
queríamos ser felizes já. (Cony, 1997: p.96)
Não é exagero afirmar que os grandes momentos felizes da infância de
Cony, um dos motivadores do constante resgate memorialístico em pauta, foram criados
por Ernesto Cony Filho. Ao registrar, ainda, a importância desse lúdico período, afirma
Cony que aquele mundo mágico dos balões é o que melhor representa sua infância:
Houve o ano em que, quando acordei na manhã seguinte,
pendurado em cima da minha cama, cheirando maravilhosamente a papel de
seda e a cola de farinha de trigo, impecável, sem uma dobra, sem um
amassado, havia um pequenino balão de meia folha, seis gomos, roxo e
branco cores que sempre sobravam mas nunca eram bastantes para o
tamanho de nossa festa.
Esse balão, que nunca soltei, ficou amarrado à minha infância,
se um dia eu chegasse a rei ou a bispo e tivesse direito a um escudo, nele
mandaria gravar esse balão, logotipo do meu mundo, emblema de mim
mesmo. (Cony, 1997: p.100)
83
Num extremo oposto, situa-se a vida pueril de Graciliano Ramos. Livro de
cunho autobiográfico, Infância revela toda a crueza psicológica por que passou o
escritor alagoano. Fernanda Coutinho, em estudo comparatista sobre as “Imagens da
Infância em Graciliano Ramos e Antoine de Saint-Exupéry”, comentando acerca de
Infância, relata que:
Ao lado de questões relativas à problemática da enunciação, o
texto de Graciliano delineia outras dificuldades que se ligam à tentativa de
implantação, pela criança, de um código de tradução do mundo, capaz de
abrandar-lhe o hermetismo.
Não se duvida de que os primeiros anos são pródigos em
receios: momento de tentar construir o mundo, aplainar as arestas do que lhes
chega informe. (Coutinho, 2005: p.128)
Filho de nordestinos humildes, o menino Graciliano (deslocado do mundo)
foi educado por uma rígida disciplina, sedimentada pela repreensão – normalmente
materializada em gritos, castigos e agressões físicas em detrimento de uma educação
dialogal entre pai e filho.
Como exemplo, é relevante destacar o capítulo intitulado “Um Cinturão”,
pois narra um episódio, sobre o qual diz o escritor: “foi esse o primeiro contacto que
tive com a justiça”. (Ramos, 1982: p.35) Essa era a primeira surra, dentre muitas que
surgiriam, marcantes para ele: “os golpes que recebi antes do caso do cinturão,
puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me
com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas.” (Ramos, 1982:
p.31) Afirma ele que, como essa surra da mãe que tinha uma causa, acabou
conformando-se: “não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó”. (Ramos, 1982:
p.31) o “caso do cinturão” foi diferente. O fato aconteceu quando o pai começa a
indagar ao filho pelo seu cinturão perdido. O pai levanta-se da rede e vai ao encontro do
menino angustiado, pois não conseguia expressar, com palavras, a resposta de que não
pegara o objeto: “[...] meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e
arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Eu não sabia, mas era difícil
explicar-me [...]”.(Ramos, 1982: p.32)
Sem resposta, a narrativa expressa o auge da brutalidade do homem, no
excerto: “não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-
me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos,
alarido inútil, estertor. então eu devia saber que rogos e adulações exasperavam o
algoz. (Ramos, 1982: p.34)
84
Nas últimas linhas da narrativa, o cinturão é encontrado dentro da rede pelo
pai, criando um forte ódio no filho. Depois da imerecida surra, o narrador afirma: “[...]
vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando
uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara.”
(Ramos, 1982: p.35)
Isto posto, comparam-se então aspectos das infâncias de Graciliano e
Cony. Enquanto este aproxima-se do pai (“figura de ligação”) que o apóia nesta fase da
vida; aquele afasta-se porque sente medo.
Voltando, então, à abordagem da crônica confessional da infância, em
“Profundamente” (AA), depois de dissertar sobre a pessoa que foi Santo Antônio, Cony
retoma novamente o tema saudoso dos balões da infância; exaltando o ambiente da
casa, criado a partir da festa do santo:
[...] em casa, havia a sua festa – ponto alto de nosso calendário, praia onde
a memória amarrou para sempre a âncora da saudade.
O pai podia estar na pior. Mas na véspera de Santo Antônio a
nossa casa era a mais rica da rua, da cidade e do mundo. Caindo a noite, a
cada dez minutos subia um balão ao céu. A fogueira assava as batatas-doces,
nosso espaço aéreo ficava marcado pela fumaça colorida dos fogos. (AA,
p.66-7)
De forma explícita, como se verá nos comentários seguintes, Cony
intertextualiza a crônica “Profundamente” com o poema homônimo de Manuel
Bandeira. Faz-se necessário, portanto, transcrever o poeta pernambucano para uma
melhor compreensão e análise comparatista entre os textos:
Profundamente
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
85
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
– Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente
*
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
– Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente. (Bandeira, 1976: p.111)
Vê-se que a ótica geral do poema autobiográfico de Manuel Bandeira é a da
memória dos verdes anos. Fernanda Coutinho, em ensaio sobre “A Memória da Infância
em Manuel Bandeira”, esclarece que a representação da infância no poeta não se limita
apenas a confissões pessoais, pois Manuel Bandeira
[...] não vai restringir o tema da infância às suas relembranças pessoais. Seu
texto oferece outras percepções sobre esta idade da vida. Uma delas seria a
noção sobre o próprio ser da infância, em outras palavras: que qualidades
identificariam a criança. Em uma outra perspectiva, pode-se recompor junto
com o artista uma séria de tradições ligadas às canções infantis, às
brincadeiras, enfim, empreender um retorno ao Brasil antigo, mais que isso, a
um Nordeste antigo, que não desaparece por conta dessa memória acústica
[...]. (Coutinho, 2002: p.142)
“Profundamente”, portanto, caminha tanto nessa perspectiva do
autobiográfico quanto na imagem da reconstrução de um período histórico-social.
Dividido em dois blocos, esse poema narrativo conecta o presente ao passado, à época
das festas juninas, vivenciada pelo poeta quando menino.
O primeiro bloco, composto pelas duas primeiras estrofes, parte da festa de
São João do presente. O poeta afasta-se dela (“Quando ontem adormeci/ Na noite de
86
São João”) sem deixar de apresentar o evento feliz (“Havia alegria e rumor”), criado por
outros, que não ele (“Vozes cantigas e risos/ Ao pé das fogueiras acesas”).
Na segunda estrofe do texto, o poeta, ao acordar no silêncio da noite, chama
atenção para o aparecimento dos balões, que “passavam errantes”, e o desaparecimento
dos festejadores (“Onde estavam os que há pouco/ Dançavam/ Cantavam/ E riam/ Ao pé
das fogueiras acesas?”).
Esse bloco inicial dialoga com fragmentos que tratam sobre o São João do
presente, com os seus balões proibidos, nas crônicas de Cony. Em “Escombros de
junho”, o cronista, tal como o poeta, também fala de uma noite silenciosa: “depois, a
noite caiu, negra, para sempre. Proibiram os balões e, de minha janela do Posto 6, não
posso soltar nem estrelinhas”. (PS, p.137) Em “A noite mais fria (HB), depois de
comentar sobre a temperatura da Terra e do Rio de Janeiro num dia de São João, sabe
“que mais tarde, no silêncio da madrugada, passará pelo céu o Rei dos Reis, o enorme
balão que soltam todos os anos, formidável em seu rastro de luz e liberdade.” (HB,
p.203-04)
É no segundo bloco do referido poema que ocorre a lembrança do São João
da infância. O poeta localiza o tempo (“Quando eu tinha seis anos”) para dizer que não
assistiu à determinada festa de São João do passado porque adormeceu. Na seqüência,
sua memória afetiva nomeia pessoas reais de sua infância, que, no presente do poeta,
estão mortas (“Estão todos deitados / Dormindo / Profundamente”).
Fora o título, é no último parágrafo do “Profundamente” de Cony que se
comprova, de forma explícita, a intertextualidade relacionada ao poema supracitado.
Além de aludir ao nome do poeta, o cronista relembra o dia em que ficou acordado,
quando todos dormiam, em noite de São João: “depois, como no poema de Manuel
Bandeira, todos iam dormir profundamente. Eu ficava acordado, prolongando aquela
noite noite que agora se repete, eu sozinho e todos deitados, dormindo
profundamente.” (AA, p.67) Em “Mortos e vivos”, outro diálogo com Bandeira, quando
comenta sobre intelectuais que já morreram (Flaubert, Faulkner, Pessoa, Eliot, José Lins
do Rego, Sartre) lembra que “estão mortos, dormindo profundamente como naquele
poema de Bandeira – outro morto por sinal”. (HB, p.113)
Portanto, na crônica “Profundamente”, enquanto a família dormia, o
menino Cony prolongava a noite acordado. Acontecimento que se repete com ele
velho. o menino Bandeira opondo-se ao menino Cony dormira em noite de São
João. E o poeta adulto, também acordado em noite junina, relembra pessoas íntimas do
87
passado (“Minha avó/ Meu avô/ Totônio Rodrigues/ Tomásia/ Rosa/ Onde estão todos
eles?).
Fernando Pessoa, assinando-se com o heterônimo Álvaro de Campos,
resgatou, em poesia, o Aniversário” da infância versos que flertam com os textos
“Profundamente”, de Cony e Bandeira. Lembra o poeta na estrofe inicial:
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
(Pessoa, 2006: p.151)
Enquanto Cony e Bandeira lembram os balões da infância nas antigas noites
de São João, Fernando Pessoa centralizará o poema no aniversário infantil. A imagem
criada por Bandeira a dos familiares mortos, que não voltam mais, é vista em
Fernando Pessoa. No tempo da infância “ninguém estava morto”, no volver-se ao
presente o eu lírico comenta melancólico:
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio... (Pessoa, 2006:
p.152)
O presente se torna doloroso pela comparação ao passado. A casa vendida, a
morte dos familiares e auto-imagem como um “fósforo frio” representa a decadente
atualidade, em oposição ao saudoso passado. Passado em que se coloca a ingênua
infância, como um lúdico período :
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida. (Pessoa, 2006:
p.151)
a reflexão do adulto é pessimista. A vida teve sentido numa infância
espontânea. Logo, o “desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, / [...] /
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!”. (Pessoa,
2006: p.152) Através do forte discurso do eu-lírico, como, por exemplo, na utilização da
hipérbole “comer o passado”, percebe-se quão significativa é a infância; chegando a
88
ponto de existir, no adulto reflexivo, “raiva de não ter trazido o passado roubado na
algibeira!...” (Pessoa, 2006: p.153)
Ao falar dos balões da infância, por exemplo, Cony procura recompor esse
“passado roubado na algibeira” de Fernando Pessoa.
Volvendo-se, aqui, à crônica-base “Escombros de junho”, o cronista
destaca, em algumas passagens, sua boa relação com as filhas. A mesma relação
afetuosa de seu pai com ele, aparece, agora, com outros personagens, isto é, o
envolvimento de Cony-pai com as filhas.
O texto mostra que os balões da infância não deixaram de ser feitos,
figurando agora o escritor na postura de pai. Naquela noite de São João, Cony gastara
um mês fazendo balões, enormes, as crianças ajudavam como podiam e não podiam
muito, mas assim mesmo gostavam”. (PS, p.136) A magia, portanto, iniciada por
Ernesto Cony Filho, continuou nas gerações seguintes. Em momento posterior, falar-se-
á com maior propriedade sobre a figura do pai Cony com as filhas.
Diante dos comentários feitos até aqui, neste segundo tópico do capítulo,
percebe-se um sentimento de infância, experimentado pelo pai, em relação ao filho, por
duas perspectivas: 1) O sentimento de Ernesto Cony Filho face ao menino Cony; 2) O
sentimento do adulto Cony ante as filhas. Sentimento esse, vale ressaltar, praticamente
inexistente na relação de Graciliano com o pai.
Philippe Ariès, partindo de uma perspectiva diacrônica, analisa esse
sentimento de infância, exemplificado aqui nas crônicas do autor em pauta. Em sua
História social da criança e da família, interpretando iconografias e outros documentos
históricos, o historiador faz um estudo detalhado da infância, e chega à conclusão de
que, na Idade Média, não existia na família nem na sociedade em geral a
compreensão de que a criança deveria ser entendida e aceita como tal (com todas as
suas particularidades e idiossincrasias) e não como um “adulto em miniatura”. Para esse
historiador francês, foi só no século 17, na idade moderna, que surgiu um olhar mais
específico voltado às crianças, inclusive com o surgimento de uma nova estrutura
educacional.
No primeiro capítulo do livro, denominado “O Sentimento da Família”,
Ariès afirma que a percepção da infância foi provocada a partir de uma atribuição de
inocência e pudor às crianças. Através das suas pesquisas nas artes, o autor conclui que
89
[...] A descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua
evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos
séculos XV e XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se
particularmente numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e
durante o século XVII. (Ariès, 1981: p.65
)
Com base nas teses de Ariès, é interessante frisar e concluir que essa
compreensão da infância evoluiu em paralelo com o moderno sentimento de família.
Lembra aquele historiador que, na Idade Média, o sentimento que existia era apenas o
da linhagem. As crianças, a partir dos sete anos, saíam de casa, aprendendo um ofício
com outra família. O que importava, então, para a época medieval era a transmissão de
conhecimentos, fazendo com que o pequeno logo entrasse na vida adulta.
Observando as pinturas da época, que, cada vez mais, retratavam cenas
diversas da vida privada, o historiador deduz que se iniciou ali um sentimento novo de
família, culminando com o isolamento deste grupo em relação ao restante da sociedade.
No Antigo Regime, a maneira de viver era bem diferente. A sociedade, fisicamente
confinada no estreito espaço do burgo, onde pouca mobilidade física e quase nenhuma
social eram possíveis, permanecia muito mais aglutinada, fechada em si mesma, quiçá
reclusa, mas diligente no perpetuar de costumes e superstições, naqueles tempos
escuros. Através de suas observações, Ariès afirma, então, que “a análise iconográfica
leva-nos a concluir que o sentimento de família era desconhecido da Idade Média e
nasceu nos séculos XV-XVI, para se exprimir com um vigor definitivo no século XVII.
(Ariès, 1981: p. 210-11).
Ratificando as idéias de Ariès, Fernanda Coutinho comenta que
A contribuição do mundo infantil como reservatório de
imagens que desvelassem hábitos do cotidiano de outrora, no entanto, vai
surgir tardiamente na civilização ocidental.
Se alguém folhear um relato de memórias do século XVI, por
exemplo, em busca das lembranças infantis do autor, muito provavelmente
será em vão, pelo simples fato de que estas informações eram consideradas
de menor importância, num momento em que o próprio sentido de infância
não tinha uma significação bem nítida do ponto de vista das instituições.
(Coutinho, 2003: p.48)
Fernanda Coutinho lembra, ainda, que foi no século 19 que surgiu uma
literatura destinada, especificamente, às crianças. Logo,
As crianças do momento não mais serão levadas a se entediar
com a leitura compulsória de textos de caráter normativo, a exemplo de
tantos tratados de educação que eram impingidos aos educandos nos séculos
90
precedentes. O texto literário infantil passará cada vez mais a se pautar pelos
enfoques da ludicidade e da fantasia. (Coutinho, 2003: p.50)
Adotando uma linguagem ágil, quase como uma conversa com o leitor, a
historiadora brasileira Mary Del Priore divide Histórias do Cotidiano em cinco
capítulos temáticos (“Corpo”, “Família”, “Convívio”, “Mulher” e “Crianças, jovens e
velhos”), os quais tratam de questões atuais; fazendo referência, quando necessário, a
fatos do passado. No capítulo “Família”, ao fazer uma breve análise histórica acerca do
casamento, a historiadora centra-se na Idade Média como o início de um hábito cristão:
“[...] Invenção medieval, casar-se na igreja tornou-se corrente entre os séculos XII e
XIII, progressivamente, unificando costumes muito diferentes.” (Del Priore, 2001:
p.33)
Um último ponto de “Escombros de junho” para análise intertextual é o
fragmento final da crônica. Cony, depois de referir-se aos balões feitos pelo pai, conclui
a crônica da seguinte maneira: “balões que nunca me libertaram de seu legado de
tristeza, mansidão e fragilidade. E triste e manso, fecho as janelas para proteger a inútil
fragilidade do homem acorrentado em seus fantasmas de papel fino.” (PS, p.137)
Nas dezenas de crônicas ricas, Cony transmite, em texto, uma auto-
imagem de adulto triste, frágil e grave, no qual foi se transformando com os anos. Na
crônica confessional da infância, no trânsito que ocorre freqüentemente entre passado e
presente, a imagem da infância figura como consolo para esse homem corrompido pelo
tempo. Tem-se então a fórmula: narrador adulto insatisfeito mais memória, igual à
infância melancólica, podendo, às vezes, ser lúdica na companhia do pai.
São dezenas de exemplos, em que a construção de uma estrutura textual
lírica, mantém uma imagem pessimista do narrador adulto. É a criação de uma persona,
elaborada pelo discurso literário, que constrói uma espécie de chavão na obra de Cony.
Como exemplo, listam-se, aqui, os principais fragmentos deste “papel”, fincado em
crônicas de época vária: “sou um pequeno-burguês intranqüilo e triste – eis o meu crime
e minha vergonha” (AF, p.56); “enfrentar o dia que vem depois do outro, sem sequer me
espantar com o homem e desnecessário em que fui me transformando, aos poucos,
sem quase sentir remorsos (AF, p.65); “caminhos que escolhi sem ter preferido” (PS,
p.149); “e doloroso será abraçá-las sem poder revelar a fragilidade do adulto escuro e
medonho em que me transformei e com o qual, aos poucos, estou me habituando” (QA,
p.19); “não tenho nada com o adulto que substituiu a criança espantada diante do
mundo, gostando e temendo o mundo” (HB, p.267); “finge levar a vida com a seriedade
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possível mas está louco para que a missão acabe e ele possa voltar a ser o menino que
cresceu contra a vontade(HB, p.268); “um dia, esse amigo morreu. E o adulto escuro
de hoje, por fidelidade a um garoto, sentiu que, de repente, o mundo era menos mundo,
as coisas eram menos coisas (TN, p.381).
Depois desse percurso, em que se fez um enfoque intertextual, partindo da
crônica de base “Escombros de junho”, vale destacar, ainda, na relação entre pai e filho,
a questão do olhar. Era naquele espaço interno da casa que o pai proporcionava suas
excentricidades. Percebe-se na crônica confessional da infância de Cony o olhar do
menino para o pai, figura idealizada pelo filho, sua principal referência.
Um bom exemplo disso é a crônica “O gigante em coma” (AA). Sua
construção narrativa é feita da visão da criança solitária, que é apresentada sem amigos.
O menino, jogando bola de gude sozinho, flagra a inesperada chegada do pai a casa,
àquela hora do dia. É a partir desse ponto, até o fim do texto, que o pai rouba a atenção
do filho devido àquele súbito aparecimento:
[...] O portão do jardim fez aquele barulho que o menino ouvia à noite,
quando o pai chegava do trabalho.
Foi ver o que era. Era o pai, que largara o emprego e se
refugiava em casa com uma dor de cabeça que definiu como “colossal”. (AA,
p.223)
O fragmento acima mostra os exageros do pai até no uso dos vocábulos.
Ernesto Cony Filho não costumava usar linguagem corriqueira, utilizava palavras outras
que julgava necessária à comunicação. Sua prolixidade, seja em casa ou no trabalho, é
peça fundamental, provocando humor, em diversos textos do filho.
O capítulo inicial de Quase-memória: quase-romance explica essa
característica do pai. Tudo para ele era significativo.
Colocava solenidade nas coisas, fosse apanhar um objeto do
chão, fosse fazer a barba ou um balão, tudo demandava uma cnica que
ele sabia, ou, pelo menos, só ele aperfeiçoara ao ponto ótimo para uso
próprio. (Cony, 1997: p.12)
Em outro momento, de mesmo capítulo, afirma o filho queem geral,
quando postava cartas ou embrulhos, gostava de ser prolixo nos endereços”. (Cony,
1997: p.13) Ernesto Cony filho
92
Não abria mão do direito de proclamar os títulos da pessoa que
deveria receber a carta ou o embrulho. Um não bastava. Quando escrevia
para o cunhado e compadre Joaquim Pinto Montenegro, em Rodeio, no
antigo estado do Rio, ele nomeava tudo que sabia a respeito de Joaquim Pinto
Montenegro:
Ao diretor-chefe, provedor e bacharel
Joaquim Pinto Montenegro (Cony, 1997: p.14)
O interessante é que o pai de Cony criava ou exagerava os títulos dos
destinatários. Exemplo disso é a continuação da citação acima, aumentando o humor do
texto quando Cony diz: “bem verdade que Joaquim Pinto Montenegro não era provedor
de nada, tampouco diretor-chefe mas simples subchefe de seção na Divisão de
Dormentes de Central do Brasil. Muito menos bacharel de coisa alguma [...]” (Cony,
1997: p.14).
No seu discurso de posse da ABL (Academia Brasileira de Letras), em
2000, Cony, ao falar de si, acaba novamente referindo-se indiretamente ao linguajar do
pai. Nomeando seu bairro de infância, afirma o escritor: “menino do Lins de
Vasconcelos, sou filho de um jornalista obscuro que transformei num personagem que
todas as noites prometia a si mesmo: ‘Amanhã farei grandes coisas!’ ”. (Cony, 2000:
acesso online) Frase que é, aliás, recorrente em Quase-memória: quase-romance.
Em “O gigante em coma”, a qualificação de “colossal” para a dor de cabeça
é palavra típica do vocabulário do pai. Na crônica em questão, sendo o pai expansivo,
retirou-se para o quarto “reclamando da claridade, pedindo silêncio, que as janelas e
portas fossem fechadas”. (AA, p.223)
O menino Cony logo cessou o jogo solitário indo “espiar o gigante em
coma”. (AA, p.223) O garoto que idealizava o pai, o “gigante” que nunca ficava doente,
achou estranho aquilo tudo, principalmente quando
Antes de se enfiar na cama, ele passara pela cozinha, cortara
uma batata em finas rodelas, colocara a batata fatiada na testa, formando a
metade de uma coroa desproporcional com a cabeça. Amarrara as rodelas
com um pano e se deitara.
O garoto ficou olhando, deslumbrado e, ao mesmo tempo,
apavorado. Nunca vira o pai assim, tombado à luz do dia. [...] (AA, p.223)
A figura do pai em diversos textos, como esse em destaque, mostra-se ao
menino como um ente que se renova, novidadeiro. Percebe-se o discurso indireto livre
em indagações do menino sobre o jeito do pai, pessoa que era contra remédios
industrializados” (AA, p.223): “Por que o pai inventava essas coisas? Quem era ele para
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desprezar os remédios que o dr. Pinheiro receitava para os outros, as gotas de alium
sativum, o óleo gomenolado para o entupimento do nariz?” (AA, p.223-24)
O menino indigna-se porque é obrigado a tomar remédios ruins quando
doente, diferentemente do pai, que possui meios próprios para curar-se.
Os dois últimos parágrafos sintetizam essa relação estabelecida entre pai e
filho, garoto que fica surpreso com as atitudes esquisitas de Ernesto Cony Filho:
Perdeu a vontade de continuar jogando bola de gude.
Continuou sozinho, mas não se sentia mais sozinho. Tinha agora, diante de si,
aquilo que ele poderia considerar o maior espetáculo da Terra.
Ao cair da noite, o pai jogou fora as rodelas de batata, comeu
com esganação um frango inteiro e foi ouvir na vitrola Beniamino Gigli
cantando árias da Tosca. (AA, p.224)
Diferentemente de outras crônicas, é de se ressaltar, como se no
fragmento, que não existe aproximação e diálogo do menino com o pai. A crônica
firma-se numa tensão entre equilíbrio e movimento, representada, respectivamente,
pelos dois personagens. É no espaço da casa que ocorre esse jogo. Estabelecem-se,
portanto, quatro etapas (duas para cada personagem), exemplificadas da seguinte forma:
1) Equilíbrio, representado pela brincadeira solitária do menino: “O garoto jogava bola
de gude sozinho” (AA, p.223); 2) Movimento, representado pela chegada repentina do
pai: “Era o pai, que largara o emprego e se refugiava em casa com uma dor de cabeça
que definiu como colossal’ (AA, p.223); 3) Equilíbrio, representado pelo olhar do
filho: “O garoto foi espiar o gigante em coma” (AA, p.223); 4) Movimento, representado
pelo término do tratamento caseiro do pai: “[...] o pai jogou fora as rodelas de batata,
comeu com esganação um frango inteiro e foi ouvir na vitrola Beniamino Gigli [...]”.
(AA, p.224)
“O gigante em coma” é apenas um exemplo para apresentar a questão do
olhar da criança na crônica confessional da infância de Cony. Observando então essas
crônicas nas quais o filho liga-se ao pai, e que são a maioria, podem-se tirar duas
conclusões: 1) Ligação pelo diálogo entre o pai excêntrico e filho atento e admirado,
que apreende o mundo com o pai; 2) Ligação pelo olhar atento e admirado do filho em
relação ao pai excêntrico. Em ambos os casos, com maior ou menor intensidade, ocorre
a idealização do pai, a “figura de ligação”.
Escrevendo crônicas para o jornal O Povo de segunda a sexta-feira, o
médico-escritor Airton Monte – apesar de normalmente preferir o cotidiano como
94
matéria de sua produção publicou uma crônica, em 2 de outubro de 2006, na qual se
volve à sua infância.
Estabelecendo um contraponto à natureza do olhar infantil conyano, o
cronista cearense re-elabora sua meninice, pelos “Sons da infância”:
Definitivamente, hoje o sei, por terrível destinação genética,
nasci míope de guia que nem meu bisamaterno. Daí, até que os adultos
percebessem que seu belo primogênito era quase cegueta, tive que viver uma
boa parte da infância mergulhado num mundo hostil, pleno de sombras e
borrões como se minhas pupilas estivessem cobertas por um vidro fosco. Em
compensação, ganhei o que minha avó Maroca costumava chamar de “ouvido
de tuberculoso”. Por isso, minha memória da infância é essencialmente
sonora. Quão vívidos permanecem em mim os sons da infância. (Monte,
2006: p.02)
Logo, as vozes do passado foram muito significativas ao menino Airton. O
narrador adulto lembra, entre outros sons pretéritos, tanto a “voz afinada de mãe
entoando um samba de Cartola” quanto “a sonoridade primal da angústia: [...] o estalar
do cinturão do pai no castigar dos malfeitos”. (Monte, 2006: p.02)
O lírico cronista encerra de forma melancólica sua crônica, ao enfatizar os
“sons da infância” incluídos na desgastada memória do presente: “sons da infância são
os que ficam grudados com o visgo da permanência para muito além do passado e
povoam o vazio das memórias que se perderam ao longo do caminho”. (Monte, 2006:
p.02)
Na relação entre o menino Cony e seu pai, os sons da infância não são
relevantes. Em compensação o olhar torna-se um elemento-chave em sua crônica
confessional da época pueril.
Ernesto Cony Filho tem alma de criança, não se envergonha com os outros.
Parece que não cresceu, e isso faz com que seja o grande amigo do menino Cony. O que
importa, para ele, é a felicidade – somente. Lya Luft escreve um interessante comentário
sobre crianças que continuam, no decorrer do tempo, com pensamentos e atitudes
próprias, livres de qualquer modelo pré-estabelecido:
Crianças olham a vida com olhos grandes de admiração; m
uma graça que o tempo vai lhes tirando como uma película que ficasse
pequena demais para a alma. Algumas saem em busca desse espaço interior
que transbordou, dessa sua verdadeira humanidade. Não se deixam domar,
escapam por alguma brecha e correm em frente brandindo sua inquietação
como uma tocha.
Outras cedo tomam consciência de si, do que devem ou não
fazer ou – pior ainda – é conveniente fazer. [...] (Luft, 2005: p.28)
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A situação harmônica, estabelecida entre Cony e seu pai, continuou na
família, figurando, agora, o escritor na qualidade de pai em diálogo com as filhas
Regina Celi e Maria Verônica. Antes de comentar essa nova relação entre pai e filho nos
textos de Cony, é necessário lembrar que muitas são as crônicas do corpus da Literatura
Brasileira nas quais os escritores relatam fatos do seu cotidiano de pai. Paulo Mendes
Campos é um exemplo, porque, além de se render à crônica confessional da infância,
figura em outras oportunidades textuais como pai. Pode-se perceber claramente isso nos
textos: “Meu reino por um pente” e “O despertar da montanha”.
No primeiro, depois de comentar sobre ter ou não filhos e a profissão do
cronista, nota-se que os recantos da casa possuem importância, porque são úteis aos
personagens e, por conseqüência, à crônica. O cronista parte de seu cotidiano familiar,
para iniciar comentários sobre os filhos, que costumam perder objetos no âmbito da
casa. Indignado, ironizando o espaço onde mora com os filhos, relata o cronista: “minha
mansão tem apenas três quartos e uma sala. Pois é inacreditável a quantidade de objetos
que estão desaparecidos aqui dentro”. (Campos, 1997: p.72) Ele se chateia quando
perde objetos: “vai-se-me por água a baixo o comedimento quando não acho minha
caneta, meu lápis-tinta, meu papel, minha cola... Quando isso acontece (sempre) até
taquicardia costumo ter [...]”.(Campos, 1997: p.71)
Contudo, a maior ênfase no texto é quando os filhos perdem os pentes da
casa. O autor faz de tudo para que isso não aconteça. Compra, distribui e ainda esconde
alguns por garantia: “[...] vou escondendo outros pentes por todos os cantos e recantos,
debaixo do colchão, no alto de um móvel, atrás de um exemplar dos Suspiros Poéticos e
Saudades”. (Campos, 1997: p.72-3) Reúne-se com a família, mas sempre os pentes
ficam perdidos.
Misteriosamente, inexplicavelmente, eles desaparecem, pouco a pouco, com
certa malícia, um a um, dois a dois, até chegar o momento dramático no qual,
depois de vasculhar todos os meus esconderijos, fico em cabelos no meio da
sala e, como Ricardo III em plena batalha, exclamo patético: “Um pente, um
pente, meu reino por um pente! (Campos, 1997: p.72)
Agindo como crianças descuidadas, os filhos na história nunca assumem a
responsabilidade. Negam que pegaram qualquer coisa, deixando o pai cada vez mais
nervoso. Atitude essa que proporciona humor ao texto.
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Observa-se, na crônica, a funcionalidade criada pelos lugares da casa. São
locais (armário, banheiro, gaveta, cama, etc) que escondem objetos, e provocam toda a
ação do texto.
Em “O despertar da montanha”, Paulo Mendes Campos aborda o mesmo
universo do texto anterior, isto é, sua relação com os filhos (um menino e uma menina)
no espaço da casa, adotando o conceito de que a crônica é texto que trata sobre os
acontecimentos reais, do dia-a-dia das pessoas, incluindo os do próprio cronista. Pode-
se dizer que esses dois textos de Paulo Mendes Campos fazem parte dessa idéia de
crônica, que mostram a subjetividade do cronista, discorrendo acerca do cotidiano de
sua casa.
O segundo texto (“O despertar da montanha”) mostra o contato do pai
escritor com os filhos. A cena apresenta o pai sendo acordado pelos filhos que querem
tirar dúvidas diversas sobre as tarefas do colégio (“– Pai, os músculos formam o que
chamamos de carne? [...] – Quais os símbolos da pátria?”) (Campos, 1997: p.95)
A crônica torna-se bem humorada, pois o pai adora dormir e chateia-se com
perguntas no início da manhã. Os filhos o “bombardeiam” com indagações, e ele tenta,
em vão, continuar o sono (“mas uma pata de urso me agarra pelos cabelos. Papai! Abro
os olhos com relutância e vejo um focinho redondo e resolvido de menino”). (Campos,
1997: p.95)
No caso de Carlos Heitor Cony, estas crônicas, nas quais o escritor relata
seu cotidiano de pai, estão em Quinze anos (A juventude como ela é), obra
mencionada, e que será ainda referida, em outras partes deste ensaio. Não se deve deixar
de lembrar que essa obra é apresentada, na folha de rosto, como livro de contos, contudo
possui textos das duas coletâneas de crônicas a ela anteriores: Da arte de falar mal e
Posto seis, respectivamente de 1963 e 1965. A análise dos textos, então, desprezará os
contos, observando somente essas crônicas, retiradas de outras coletâneas. Crônicas
essas que mostram o dia-a-dia de Cony, fazendo o papel social de pai e mãe – com suas
duas filhas.
No texto denominado de “Do soul” (QA) – retirado com pequenas alterações
do livro Da arte de falar mal, que o nomeia como “Do twist” (AF) Cony estabelece
um pacto de sinceridade com o leitor, ao estampar o nome de sua primeira filha, na fala
introdutória do texto – a do entregador de discos: “– É aqui que mora a senhorita Regina
Celi?” (QA, p.41) Quem acorda e atende a campainha, mal-humorado, é o cronista. A
filha de doze anos “encomendara um mundão de longas-durações numa loja próxima, e
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pedira que mandassem as novidades, pois as novidades estavam ali, embrulhadinhas e
com a nota fiscal bem às claras.” (QA, p.41) O narrador paga os discos com cheque,
recebe o pacote e tenta dormir, mas não consegue porque a filha escuta seus novos
discos em volume que o atrapalha.
Cony lembra que incomodava seu pai, de forma análoga, quando escutava
cantos litúrgicos:
Purgo honestamente meus pecados e lembro o pai, que me
aturava a mania pelo cantochão. Eram gravações de Solésmes, motetes do
Século IV, antífonas do século III, missas de Palestrina e adágios de
Frescobaldi, mas o forte eram os intróitos, os graduais e seqüências do
Quarto Modo. O velho não dizia nada, mas me olhava fundo e talvez tivesse
ganas de me esganar. Mas me aturava e aturava meus salmos e ofertórios.
(QA, p.41-2)
O excerto não especifica se a apreciação desses cantos litúrgicos foi à época
da infância ou do seminário. Recorde-se de que Cony ingressou nos estudos
eclesiásticos dias antes de completar doze anos, abandonando-os aos dezenove. O que
se deve ressaltar no fragmento é que o narrador interpreta a situação como se tivesse
pagando pelo que fez no passado.
Não conseguindo dormir, ele, a pedido da filha, acompanha-a na dança
agitada. No começo parece ter vergonha, depois, com o propósito de vê-la feliz, insere-
se naquela realidade juvenil, deixando de lado a sua realidade:
Então, aumento o volume da vitrola, espero o tal do Jimmy
Hendrix dar um grito histérico e medonho e esqueço o cheque, a vida e a
faina humana rebolando este cansado corpo pasto de espantos até que o
fôlego e o Jimmy Hendrix acabem na manhã e na vitrola. (QA, p.42)
Inicialmente percebe-se na crônica um conflito de gerações, tensão de
pensamentos entre o adulto e o jovem, que ao final será desfeita pela aceitação expressa
do pai em convívio harmonioso com a filha. Na realidade, quase todos os textos de
Quinze anos (A juventude como ela é) pautam-se nesta relação entre gerações, no caso,
aqui, entre a do pai e a das filhas.
Em “O crime sem cadáver” (QA, p.17), o espaço interno da casa, revelado
pela ação dos personagens, é de fundamental importância para a trama. A narrativa
mostra certo suspense, ao apresentar o narrador, que procura e não encontra seus
pertences: um blusão e sua carteira. “[...] O mistério começa pelo meu guarda-roupa:
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vou procurar o blusão de estimação, velho blusão por sinal [...] e encontro a respectiva
gaveta revirada [...]”. (QA, p.17)
O curioso é que, ironicamente, a casa, descrita pelo narrador, não
proporciona mistério. Ela é apresentada de forma simples, não provocadora de suspense
na abertura do texto:
E na segunda-feira começa o mistério. A casa não tem por
onde: nem reposteiros nem mordomos, duas entidades que geralmente
propiciam suspense e mistério. É amplo o apartamento, sem escuros
comprometedores, sem ângulos tenebrosos, sem portas falsas, sem paredes
escamoteáveis e sem cadáveres emparedados. (QA, p.17)
O humor do texto é criado pelo sofrimento do narrador, querendo resolver
seu problema. Quando não encontra o blusão, ele afirma: “não estou em trajes decentes
para invadir o corredor e clamar pelo blusão. Tenho de me vestir de paciência e calças
[...].” (QA, p.17)
O suspense da história é criado pela atitude de suas filhas. Elas pegam um
blusão velho do pai, tiram dinheiro de sua carteira e saem para comprar outro, que lhe
seria dado no dia seguinte – o dia dos pais.
O mistério acompanha o narrador em toda a crônica, pois, além de encontrar
sua carteira faltando dinheiro, recebe a ligação da loja, onde as filhas estavam:
É com o senhor mesmo que desejo falar. Qual é o número de
seu colarinho?
– O quê?
– O colarinho.
– Mais ou menos o 38.
– Grande, pequeno ou médio?
As perguntas continuam. O camarada me pergunta se sou
sólido ou frágil, quantos quilos peso, se tenho barriga grande ou pequena,
quer o meu número da cabeça aos pés. (QA, p.17-8)
O homem indignado e sem saber o que estava acontecendo indaga ao
vendedor: “– O senhor é papa-defuntos?” O interlocutor responde: “– Não. Não sou
papa-defuntos. Papo os vivos, mesmo.” (QA, p.18)
A cena do diálogo torna-se cada vez mais bem-humorada pelo
desconhecimento do narrador diante de tudo. Ele desvenda o enigma no dia seguinte, ao
encontrar a roupa comprada pelas filhas no escritório. Espaço importante na resolução
da história, o escritório é apresentado através do movimento do personagem. “Vou catar
uns livros no recanto mais sagrado do escritório, onde guardo documentos importantes,
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e dou com um embrulho todo enfeitado. [...] Arrisco o dedo e sinto o macio do linho
dentro.” (QA, p.18) Não obstante o espaço do escritório ser mostrado sutilmente pela
narração, ele é de grande valia, pois torna-se útil no desfecho do mistério.
Nos dois últimos parágrafos, aparece no texto uma forte carga lírica. O
narrador o tom de sua relação harmoniosa com as filhas, sem espaço para o embate:
“bem, amanhã é Dia dos Pais. Acordarei com as duas meninas em cima de mim e terei
de [...] fingir surpresa diante do embrulho.” (QA, p.19)
Prevendo a forma da entrega de seu presente, o narrador mostra-se inibido
ante o carinho explícito das filhas. O desfecho da crônica apresenta um existente amor
de pai, mas que não é demonstrado às claras:
Cruel será manter a cara enxuta, os olhos apenas sonolentos,
ásperos, sem direito às lágrimas. E o peito encouraçado, sem pretexto para o
soluço. E doloroso será abraçá-las sem poder revelar a fragilidade do adulto
escuro e medonho em que me transformei e com o qual, aos poucos, estou me
habituando. (QA, p.19)
Comparando as publicações dessa mesma crônica analisada, nos livros
Posto seis e Quinze anos (A juventude como ela é), vêem-se alterações, na segunda obra
Quinze anos (A juventude como ela é)tanto no título – “Mistério e fragilidade” (PS)
e “O crime sem cadáver” (QA) como no corpo do texto. Isso, a fim de transmiti-la a
um público-alvo, a juventude, de uma forma mais leve, mais próxima do coloquial.
A tulo de exemplificação mostram-se, abaixo, exemplos dessa intenção de
tornar a redação mais simples. Atitude esta encontrada, freqüentemente, nas outras
crônicas de Quinze anos (A juventude como ela é). Pela breve amostra, observa-se que o
autor substitui vocábulos ou fragmentos de orações, muda de posição certas palavras;
porém o mais comum, nessa busca por uma linguagem juvenil, é o enxerto de vocábulos
e/ou frases. Utilizando o autor qualquer desses processos, nota-se alguma perda de
literariedade, na maioria dos casos. Serão, portanto, reproduzidos aqui, através de itens,
seis casos para verificação. As palavras geradoras do contraste estão realçadas pelo
modo itálico:
1. a) “Nunca sei exatamente a quantas ando, mas tenho vaga idéia de estar
eventualmente abonado.” (PS, p.139)
b) “Nunca sei exatamente a quantas ando, mas na véspera passara no
banco, tenho uma vaga idéia de estar eventualmente abonado.” (QA, p.17)
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2. a) “Avanço o número, mas o camarada me pergunta se sou sólido ou
frágil, quantos quilos peso, meu tamanho da cabeça aos pés.” (PS, p.139)
b) As perguntas continuam. O camarada me pergunta se sou sólido ou
frágil, quantos quilos peso, se tenho barriga grande ou pequena, quer o meu número da
cabeça aos pés.” (QA, p.18)
3. a) “Chegam da escola com a cara de sempre, as bochechas suadas, e
vendo aquelas bochechas suadas perco a vontade de um interrogatório severo.” (PS,
p.140)
b) “Chegam do colégio com a cara de sempre, as bochechas suadas
porque tiveram educação física naquela manhã e vendo aquelas bochechas suadas,
que as tornam tão meninas, perco a vontade e o interesse de proceder a um severo
interrogatório.” (QA, p.18-9)
4. a) “Sabe que deu ladrão em casa? Roubaram dinheiro do papai.” (PS,
p.140)
b) “Sabe que deu ladrão aqui em casa? Roubaram dinheiro do papai.”
(QA, p.19)
5. a) “Dando prova de excelente mau caráter, as duas estão preocupadas em
mudar o uniforme, chegam a cantarolar Let’s twist again, numa comovente prova de
insensibilidade pelo paterno drama.” (PS, p.140)
b) “Dando prova de excelente mau caráter, as duas estão preocupadas em
trocar o uniforme, uma delas botou no gravador o Rock and Roll Lullaby, numa
comovente demonstração de insensibilidade pelo pátrio drama.” (QA, p.19)
6. a) “Acordarei com as duas meninas em cima de mim e terei de revidar o
mau caráter delas com o meu mau caráter, e fingir.” (PS, p.140
b) “Acordarei com as duas meninas em cima de mim e terei de retribuir o
mau caráter delas com o meu próprio mau caratismo. E fingir.” (QA, p.19)
Depois de mostrados alguns exemplos é oportuno frisar que esta prática da
alteração de um texto anterior, em face da nova publicação, é perceptível em várias
101
crônicas de Quinze anos (A juventude como ela é). Isso porque houve revisão cuidadosa
do autor, no caso em questão, com o olhar voltado ao público jovem.
É muito comum a criança cultivar sua ludicidade pelo contato com animais
de estimação, tratando-os como brinquedos do seu mundo infantil. Esta imagem da
criança no diálogo com a fauna doméstica é representada por cronistas diversos.
Destaquem-se, na questão, textos em que o autor figura como o pai da criança.
Personagem este que, na procura e encontro de seu animal amigo, encontra um divertido
entretenimento.
Paulo Mendes Campos, em “Menino da cidade”, retrata com habilidade o
amor de crianças aos animais. O título adquire forte significação quando é observado
em paralelo ao corpo da crônica. O filho do cronista encontra sempre caminhos para o
contato com os animais. Inserido no ambiente da cidade-grande, quer criar animais de
toda espécie num terreno familiar, o qual na sua ótica é um sítio, contudo “o tio é
apenas um terreno do Estado do Rio, sem maiores perspectivas imediatas. Mas o garoto
precisa acreditar no sítio como outras pessoas precisam acreditar no céu.” O menino
“desmente que o Rio seja uma cidade sem bichos, possuindo o dom de descobri-los nos
lugares mais inesperados.” (Campos, 1997: p.45)
A crônica retrata a imagem da criança feliz, quando em contato com os
animais domésticos. Seja no espaço público ou privado, o olhar do garoto está sempre à
procura dos bichos. “A gente vai andando por uma rua de Copacabana, ele some e
ressurge com um pinto em flor. É chegar na Barra da Tijuca, e daí a cinco minutos,
apanhou um siri vivo.” (Campos, 1997: p.45)
Enquanto o menino Braga construía Cachoeiro de Itapemirim a partir da
flora, o filho de Paulo Mendes Campos “dá informações sobre as pessoas de acordo
com os bichos que possuíam: aquele é o dono do Malhado, aquela é a dona do Lord...”
(Campos, 1997: p.46) É o mundo visto pela perspectiva pessoal das crianças.
Paulo Mendes Campos não expõe a idade do filho, mas pode-se ter uma
noção dela quando o autor confessa que a literatura do menino “é especializada: livros
coloridos sobre bichos. Engatinha mal e mal na leitura [...]. Filho de mãe inglesa,
confunde fork e knife, mas sabe o que é seal e walrus.” (Campos, 1997: p.46) A citação
é também reveladora da realidade familiar do cronista, que, apoiando-se em sua
biografia, vê-se que, em 1951, casou-se com a inglesa Joan Albercrombie.
Deixando de lado a convivência com os animais, o texto encerra-se
mostrando o garoto em contato com a brotar da natureza, mudando logo a perspectiva
102
daquele espaço lúdico. Ele então “arranjou alguns pires sem uso e plantou sementes de
feijão. O banheiro está cheio de brotos verdes, midos. E ele sabe que possui uma
fazenda.” (Campos, 1997: p.47) Note-se a ênfase do cronista, representando a
mentalidade do filho, ao chamar essas plantinhas de “fazenda”. É como o garoto o
que plantou.
Abordando essa temática da infância lúdica do filho, na companhia dos
animais, Carlos Heitor Cony também se coloca na posição de pai e narra histórias
acerca do assunto. Em “O pai, as filhas e o pinto” (QA) encontrada com o mesmo
título, mas com alterações, em Posto seis o amigo escolhido para o brincar é o pinto,
animal muito presente no mundo da infância. A crônica, por seu forte caráter narrativo,
com enredo de ação pela presença constante dos diálogos, e sem espaço para devaneios
de cronista, assemelha-se ao gênero conto. Aliás, a fronteira entre estes gêneros é tênue,
que na crônica, além das digressões pessoais do autor sobre o mundo real, podem-se
abrigar todos os elementos para a construção do conto, isto é, de uma narrativa curta.
Percebe-se isso na obra de cronistas diversos. Fernando Sabino, Luis Fernando
Veríssimo ou Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto), para citar alguns, nomeiam
personagens, criando histórias com tempo e espaço ficcionais, de modo que, se postas
em coletâneas de contos, podem ser essas crônicas facilmente confundidas com essas
breves criações ficcionais. Exemplo próximo é Quinze anos (A juventude como ela é)
em que, se não observada toda a obra em crônica de Cony com atenção, pode-se,
ilusoriamente, definir as crônicas deste livro como sendo contos.
“O pai, as filhas e o pinto” é, então, esta crônica que mais parece conto. A
filha pede ao pai um pinto, para criar no apartamento. Ela representa a criança em busca
do brincar através de animais domésticos, no caso o pinto. Já o pai Cony transmite a
imagem de homem que tenta a todo custo, e geralmente consegue, satisfazer os desejos
dos filhos. Depois de tentar em vão convencer a filha de que era complicado criar o
animal, “desce com a filha para bater a feira, que é complicada, sobe e desce por várias
ruas, serpenteia por todo o Posto 6. Não há pintos à venda.” (QA, p.20) Eles não
desanimam, um vendedor ambulante explica que “só embaixo, depois da Rua Raul
Pompéia” (QA, p.20)
A figura do pai provas de esforço em toda a crônica, para criar um
ambiente familiar feliz. Rende-se aos pedidos da filha: Papai, enquanto eu vou à
escola o senhor toma conta do pinto. Depois deixa que eu cuido.” (QA, p.21) Noutro
103
momento, ao dormir com a filha que estava com pesadelo, pega o pinto no meio da
noite, a pedido da garota:
Esbodegado de sono, vai ele aos esbarrões. a luz mortiça
da caixa, num safanão arrebenta a tomada, a geringonça explode, um
clarão, o curto-circuito azula o quarto. Mas o pinto continua ferozmente vivo
e quente, suspenso nas perninhas magras. (QA, p.22)
A história termina quando a irmã mata o pinto afogando-o na banheira “para
ver se sabia nadar”. o pai, mesmo querendo a felicidade da família vai “, às
escondidas, dar um bombom à filha menor, pelo benefício prestado”. (QA, p.22)
Publicado 37 anos depois de Quinze anos (A juventude como ela é), também
destinado ao público infanto-juvenil, O suor e a lágrima retoma a história do pinto, em
“O pinto e o urso”, de tal forma que mais parece uma recriação do passado com tons
ficcionais.
O enredo é praticamente o mesmo, com pequenas alterações. O pai foi à
feira fazer compras com a filha, a pedido da mãe gripada, e lá, vendo vários pintos, “a
menina pediu que o pai comprasse, pelo menos um.” (SL, p.161) Aqui, a figura do pai
também proporciona a felicidade da filha: “a menina insistiu, e o pai, que tinha coração
mole comprou o pinto.” (SL, p.161) A menina, como no texto anterior, tomou conta do
animal, colocando-o numa caixa de sapatos ao lado de sua cama.
A história altera-se nos últimos parágrafos. Adquirindo um tônus poético, a
crônica coloca a filha à procura do pinto, que os adultos tiveram que retirar da casa. A
menina angustiou-se, pois “ninguém assumiu o sumiço do pinto e [ela] ficou sabendo
que vivia no meio de gente fingida.” (SL, p.162)
Com o objetivo de amenizar a tristeza da filha, sempre querendo deixá-la
alegre,
[...] o pai foi numa loja de brinquedos que havia perto de casa, trouxe-lhe um
ursinho de pano. Não era a mesma coisa. que todo mundo fingia, a menina
fingiu que gostava do urso. Depois a menina cresceu, cresceu e esqueceu do
pinto e do ursinho. Mas aprendeu a fingir.
Finge até hoje e até hoje não sabe por que é tão difícil deixar
que os outros sejam felizes. (SL, p.162-63)
Nota-se na citação (final do texto), o encantamento perdido da infância feliz.
A criança percebe como se compõe o viver adulto, e incorpora esta realidade, bem
diversa do universo infantil. A crônica representa, com vigor, o embate entre infância e
104
maturidade, ou ainda: entre o lúdico e o grave. Contudo, ressalte-se que o personagem
“pai” tenta criar um elo entre estas realidades opostas.
Nas primeiras linhas das duas crônicas, o pai mostra-se racional, não
compreendendo o entretenimento da infância. Ele diz: “– Pinto? Para quê?” (QA, p.20)
Em “O pinto e o urso”, aprofunda a questão: “– Mas para que você vai querer um pinto?
Quando crescer vai virar galinha, e como é que vamos criar uma galinha num
apartamento?” (SL, p.161)
Com essa mesma temática do pinto-brinquedo do filho, Clarice Lispector,
num dos seis temas
20
da crônica publicada em 10 de fevereiro de 1968, no Jornal do
Brasil, afirma:
Um de meus filhos comprou um pintinho amarelo. Que pena que dá. Sente-se
nele a falta da mãe. O susto de ter nascido do nada. E nenhum pensamento,
apenas sensações. Será que vai vingar? Este parece que sim. E no entanto eu
queria que não: como ter no apartamento um galo ou uma galinha? Matar e
comer? O que se cria não se mata. É esperar e dar de comer, e dar-lhe
amor vindo do calor das mãos. (Lispector, 1999: p.75)
A cronista acrescenta ao tema o sentimento de piedade para com o pinto
solitário, expressando amor ao animal. Do mesmo modo que Cony, vê a impossibilidade
de se criar um futuro galo ou galinha no espaço do apartamento. Angustia-se, então,
porque sente afeto, forte vínculo humanitário ao pinto (“O que se cria não se mata”).
Tem receio, portanto, dessa divertida união infantil entre pinto e criança. Sem
solucionar o impasse, encerra poeticamente o assunto para tratar de outro, ressaltando
que a única solução é dar amor àquele animal do filho.
algumas diferenças na representação desses pais. No texto de Cony, o
pai não demonstra nenhum vínculo afetivo com o animal, importando apenas fazer, a
qualquer preço, a filha feliz. No texto de Clarice Lispector, o olhar piedoso da mãe
volta-se, exclusivamente, à existência do pinto, deslocado de seu habitat. O próprio
título (“Um pintinho”) denota ternura ao animal pelo uso do diminutivo.
Feitas as devidas considerações, conclui-se esta seção, afirmando que boa
parte da obra Quinze anos (A juventude como ela é), mostra Carlos Heitor Cony em
convívio amigável com suas filhas, fazendo o papel de pai e e. Cony reproduz de
modo semelhante (mas em menor grau) as atitudes de seu excêntrico pai naquele trato
diário com um Cony menino, nos idos de 30.
20
Os referidos temas são: “Um pedido”; “Deus”; “Um sonho”; “Um pintinho”; “Anonimato”; “Chico
Buarque de Holanda”.
2.3 O MENINO E A MÃE
Em suas obras de teor confessional seja no Quase-memória: quase-
romance ou nas crônicas de cunho autobiográfico, Carlos Heitor Cony expõe a vida de
seu pai com tamanha intensidade, que termina por obscurecer a imagem de sua mãe a
dona de casa Julieta de Moraes.
Na crônica confessional da infância, então, o tema da mãe com o menino
Cony aparece diluído em meio a outros assuntos de maior relevância para o cronista.
Não textos dedicados à história de sua mãe, nada se sabe acerca de sua
personalidade, de seu viver, de forma geral, nos “anos mais antigos do passado”.
Apenas uma exceção: a religiosidade, muitas vezes ligada à superstição, lembrada em
textos do cronista.
Mary Del Priore destaca a importância dos relatos sobre as mães relatos
quase ausentes em Cony quando comenta que “a história do homem é, portanto, a
história de suas mães, a história das mulheres. No Brasil, a imagem da mãe é assunto
sagrado há 400 anos.” (Del Priore, 2001: p.81)
A estudiosa coloca em pauta destacando o papel da memória a utilidade
de conhecer a história de nossas mães ou avós, [...] para fazê-las continuar a existir,
viver e ser” (Del Priore, 2001: p.84), sem haver, então, espaço para o esquecimento.
Numa instância maior: elaborar uma história das mulheres não é fazê-la “por meio de
erros ou acertos sobre o seu passado, contar a saga de heroínas ou mártires [...]. O que
importa é desvendar as tensões, contradições e negociações que se estabeleceram, em
diferentes épocas, entre elas e seu tempo”. (Del Priore, 2001: p.84)
Trazendo a questão para a obra de Carlos Heitor Cony, serão feitas algumas
considerações sobre a imagem de Julieta de Moraes na crônica confessional da infância
do filho. Como dito em linhas atrás, o assunto sobre a mãe é escasso, são apenas
fragmentos de textos, formando às vezes não mais que um parágrafo.
Em “Luz e trevas” (HB), o cronista parte de um dia significativo para a
igreja católica, o Domingo de Ramos, para lembrar-se da religiosidade católica da mãe:
Minha mãe deixava os ramos secarem e eles ficavam cor de palha,
esbranquiçados, dentro do oratório onde ela venerava seus santos preferidos.
Eu tinha medo daquele oratório, achava-o sinistro, santos com caras
patibulares, o crucifixo de prata que ficou no peito do avô que morreu em
nossa casa. (HB, p.105)
106
A passagem é ilustrativa porque se pode comentá-la nos seguintes aspectos:
1) O espaço do oratório; 2) A devoção materna aos santos e 3) A morte do avô; sendo as
observações dos dois últimos de natureza intratextual.
O espaço do oratório, ambiente reservado para ritos católicos na casa da
infância, está sempre ligado à figura da mãe. Nem o pai e muito menos o menino Cony
interessavam-se por aquele lugar que, na percepção do garoto, era estranho e dava medo
desvendar. Logo, a mãe era quem dele usufruía, demonstrando então sua religiosidade.
O oratório é um lugar composto de imagens de santos católicos. Em “A
primeira noite”, crônica comentada neste ensaio, Cony lembra a devoção da e a
Santo Antônio, de que o menino tanto gostava por causa da comemoração da data
festiva: “[...] lembrei-me eu próprio dela e de sua devoção a Santo Antônio”. (AA,
p.148)
A citação de “Luz e trevas” no comentário sobre a morte do avô, dialoga
com a crônica “Das vascas do meu avô”. A imagem do crucifixo no peito do moribundo
ficou, marcando o autor. Diz ele em “Das vascas do meu avô” que “colocaram um
Cristo escalavrado na cruz de peroba que recebera o último suspiro dos varões ilustres
da família e aproximaram o crucifixo aos lábios do moribundo”. (AF, p.11-2)
Outro assunto ligado à mãe católica são as referências nas crônicas ao fim
dos tempos, ao fim do mundo. Em outro trecho de “Luz e trevas”, o cronista lembra a
infância envolvida nas questões religiosas afirmando que “houve o dia em que me
falaram do fim do mundo. Seria antecedido por três dias de trevas, não haveria luz, o
Sol se apagaria, nenhuma lâmpada se acenderia.” (HB, p.105) Interessante que no
último livro de crônicas do autor, de 2004, uma paráfrase bem nítida desse trecho. O
discurso anterior, sem a revelação do emissor, feito pela indeterminação do sujeito de
“falaram” é atribuído agora à mãe: “minha mãe contava que o fim do mundo seria
antecedido por três dias de trevas, nos quais nenhuma luz poderia ser acesa, nem mesmo
a das velas, a não ser as bentas.” (TN, p.361)
Em O ato e o fato, livro que fez história, à época da ditadura militar, por
englobar as crônicas políticas de 1964 , um pequeno trecho, ratificando a construção
da figura da e feita até aqui. O autor assinala suas atitudes diante da revolução de
1964: “ela costuma, em dias de convulsão cívica, rezar uma oração contida num velho
Goffiné subversivo: Oração para os dias de Revolução.” (AFA, p.48)
107
Em Quase-memória: quase-romance Cony rememora um episódio
acontecido, segundo o autor, em 1947 ou 1948, o do aparecimento, em Minas Gerais, de
um padre que fazia milagres:
Pároco de Urucânia, vilazinha do interior mineiro, perto de
Ponte Nova, era devoto de Nossa Senhora das Graças e em nome dela fazia
milagres formidáveis. Paralíticos andavam, mudos falavam, cegos
enxergavam, leprosos ficavam curados, tuberculosos desenganados se
livravam das hemoptises e das febres a imprensa noticiava os milagres e
vendia horrores com aquele que passou a chamar de “o Taumaturgo de
Urucânia”. (Cony, 1997: p.45)
A mãe de Cony, católica supersticiosa, ao ler no Diário da Noite os detalhes
da viagem de um grupo de peregrinos que se deslocaria a Minas Gerais, enche-se de
esperança na cura de um sestro de Ernesto Cony Filho. Carlos Heitor Cony, já adulto na
época do episódio (tinha 21 ou 22 anos), lembra seu contato com a mãe confiante.
“Minha mãe não precisou explicar tudo isso. Simplesmente mostrou-me o recorte do
jornal que atestava a eficiência do taumaturgo e estabelecia condições e preços da
caravana.” (Cony, 1997: p.46)
Em “Veludo cotelê” (HB), rememorando um domingo em que ficou “sem
vontade de nada”, em seu apartamento, localizado na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio
de Janeiro, tem-se outra breve referência à mãe. Sem “nem mesmo vontade de olhar o
Cristo lá em cima. Abrira os olhos para o mundo encarando aqueles braços abertos, a
mãe garantia que eles o abençoavam.” (HB, p.44)
Observando todas as referências sobre Julieta de Moraes na obra de Cony,
entende-se que sua imagem representa o universo religioso. Na casa da infância, além
de estar ligada aos ritos católicos, nota-se sua pouca aproximação com o menino Cony,
demonstrando uma falta de intimidade entre os dois, se comparada à presença do pai.
Do mesmo modo que Cony, Fernando Sabino em “Menino”, na coletânea A
vitória da infância, destaca o papel da mãe. Com foco narrativo na pessoa, a crônica
é um conjunto desordenado de frases todas ditas pela mãe. São frases dirigidas ao
menino, que se apresenta como que nulo no texto, pois não se estabelece um diálogo
vivo entre mãe e filho. Atente-se para o parágrafo inicial: “menino venha pra dentro,
olhe o sereno! Vá lavar essa mão. Já escovou os dentes? Tome a bênção a seu pai. Já pra
cama!” (Sabino, 2006: p.51) Ou ainda, no quarto parágrafo:
108
Avise a seu pai que o jantar está na mesa. Você prometeu, tem
de cumprir. Que é que você vai ser quando crescer? Não, chega: você
repetiu duas vezes. Por que você está quieto aí? Alguma você está
tramando... (Sabino, 2006: p.51-2)
É nessa perspectiva de frases curtas e imperativas que se cria a crônica de
Fernando Sabino. A mãe, portanto, representa a imagem autoritária, educando o filho
pela imposição do que ela quer.
Manuel Bandeira, estabelecendo um grau de sinceridade com o leitor, ao
pôr o nome e apelido de sua mãe em crônica, cria um texto tipicamente confessional,
intitulado de “Minha mãe”. A partir de um caderno antigo de despesas de D. Santinha (a
mãe do cronista) retirado de sua biblioteca, Bandeira irá transcrever não apenas dados
financeiros deste “quase diário”, como também o dia de seu nascimento:
Nasceu meu filho Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho,
no dia 19 de abril de 1886, 40 minutos depois de meio-dia, numa segunda
feira santa. Foi batizado no dia vinte de maio, sendo seus padrinhos, seu tio
paterno Dr. Raimundo de Souza Bandeira e sua mulher Helena V. Bandeira.
(Bandeira, 1997: p.186)
A crônica detém valor histórico porque, além de divulgar fragmentos de um
caderno que existiu na infância de Bandeira, traça um breve perfil da personalidade de
D. Santinha. Apesar de Francelina (sua mãe) ter o apelido de Santinha, diminutivo de
santa e “que parece bom para moça boazinha, docinha, bonitinha em suma
mosquinha morta, que não faz mal a ninguém” (Bandeira, 1997: p.185), Manuel
Bandeira contraria a questão afirmando que:
Minha mãe não era nada disso. E conseguiu, pelo menos para mim, esvaziar a
palavra de todo o seu sentido próprio e reenchê-lo de conteúdo alegre,
impulsivo, batalhador, de tal modo que não para mim no vocabulário de
minha língua nenhuma palavra que se lhe compare em beleza cristalina e
como que clarinante. (Bandeira, 1997: p.185)
Depois de comentar que herdou da mãe as características físicas (“Saí míope
como ela, dentuço como ela”); e do pai as psicológicas (“Moralmente sou mais de meu
pai”). (Bandeira, 1997: p.186-87) Bandeira volta a falar da personalidade materna, perto
do final da crônica: “minha mãe era espontânea, sabia o que queria, não era nada tímida:
ótimas qualidades que não herdei”. (Bandeira, 1997: p.187) Percebe-se aqui uma
imagem materna desinibida e objetiva, traços, como se vê, não transmitidos ao filho
Bandeira.
109
Como desfecho do tópico acerca da figura materna, é interessante
transcrever um comentário de Mary Del Priore, relativo ao carinho de mãe:
A boca materna que beija o filho é também fonte de doces palavras de
consolo. O beijo de mãe é signo de confiança, de abandono, de certeza que
não nada a temer. É de senso comum que o movimento em relação à
criança seja o de interação. (Del Priore, 2001: p.43)
da mãe com o filho, isto é, da ternura materna. Interação esta, que, na relação entre
Julieta de Moraes e o Cony criança, é praticamente imperceptível, na obra em crônica
do escritor em exame.
2.4 O NÃO-ESPAÇO DA ESCOLA
Se a figura da mãe na crônica confessional da infância de Cony é obscura, o
que dizer do espaço da escola? Nesse bloco da vida pueril, ele se configura no âmbito
máximo da omissão porque é inexistente. Uma pergunta: por qual razão o autor que
cultiva, a seu modo, a “literatura do eu” não rememora sua passagem pela escola? A
resposta se de forma simples: ele não rememora porque não freqüentou colégios.
Cony, quando começou a falar, logo apresentou um defeito de dicção
21
, alfabetizando-se
em casa com seu pai. O autor expõe o assunto em crônica (com foco narrativo na
pessoa) quando lembra que
Não podia freqüentar escolas, seria doloroso, os outros
meninos cairiam em cima dele, julgando-o retardado. Foi ficando em casa, o
pai ensinava-lhe o que podia, passava exercícios, o menino aprendeu a ler e,
quase ao mesmo tempo, a escrever. (HB, p.14)
A casa da infância, portanto, substituirá o colégio não freqüentado pelo
menino Cony. E a pessoa do pai viaqui, mais uma vez, ajudar a compor este quadro
da infância do autor. Na “quase biografia” de Cony, Cícero Sandroni esclarece o
assunto, de forma curiosa e objetiva, narrando:
Chegara a hora de o menino ir para escola. Ele gostava de
passar os dias debaixo da mesa da sala de jantar, mas este hábito não era
problema; muitas crianças agem assim quando pequenas. Mas trocar as
consoantes quando falava poderia causar sério constrangimento ao garoto; os
pais temiam que ele se tornasse motivo de chacota dos colegas da escola,
como já era dos amigos do irmão maior. Então Ernesto e Julieta resolveram:
ele, o pai, professor concursado [da prefeitura, apesar de nunca ter lecionado
em colégio algum], estava em perfeitas condições para ensinar ao filho a ler e
escrever em casa, até que o defeito fosse corrigido. (Sandroni, 2003: p.39)
Verificando este episódio da biografia de Cony em três publicações
distintas
22
, percebe-se que unidade de informações entre elas. Contudo, se
comparadas ao Quase-memória: quase-romance, nota-se que essa obra destoa das
demais, em relação ao problema da fala, na medida em que se observa, alguma
ficcionalização de Cony:
21
Cf. o tópico deste capítulo “O menino Cony”, onde o assunto foi comentado.
22
As publicações são as seguintes: 1) Carlos Heitor Cony: quase Cony; 2) Cadernos de Literatura
Brasileira: Carlos Heitor Cony; 3) Site oficial do escritor (www.carlosheitorcony.com.br).
111
Eu não pudera, até então, freqüentar regularmente os colégios. Além de criar
problemas com os colegas que caíam em cima de mim, maltratando-me,
fazendo com que eu me habituasse à solidão que no fundo eu ainda não
desejara, os professores desanimavam de me ensinar a pronunciar certos
ditongos, perdiam a paciência, chamavam o pai, aconselhavam a que me
arranjasse outro colégio.
Depois de várias experiências malsucedidas, o pai deixou-me
ficar em casa [...]. (Cony, 1997: p.103)
O excerto diz que o menino tivera algum contato com a instituição escolar,
sendo só depois de algum tempo, afastado da escola, por causa do problema.
Ainda em Quase-memória: quase-romance, manifestando o menino Cony o
desejo de ingressar no seminário, a obra relata a continuidade dos estudos caseiros do
garoto, sendo ensinado pelo pai. Ernesto Cony Filho depois de comprar um pequeno
quadro-negro (suas dimensões eram noventa centímetros por cinqüenta), giz, livros,
cadernos de caligrafia, apagador e compasso deu, então, o máximo de si para que o
menino passasse no exame de admissão ao seminário. O filho relembra, sem rancor,
esse fase de estudos severos:
Comunicou-me que, a partir do dia seguinte, eu acordaria sempre às sete
horas e teria aulas até as dez. Ele precisava sair às onze. Depois do almoço.
Das duas às cinco, eu deveria estudar e fazer os deveres de casa. Aos
domingos, quando ele não ia ao trabalho, as aulas seriam da hora em que eu
acordasse à hora em que fosse me deitar.
Eu não reclamei, mas minha mãe reclamou por mim daquela
severidade, mas o pai tinha razão: eu estava atrasadíssimo em relação aos
meninos da minha idade, ele examinara o programa de admissão solicitado
pelo Seminário, era terrível, rigorosíssimo [...], eu teria de fazer, em cinco
meses, o equivalente aos cinco anos do primário para me habilitar à admissão
de um curso ginasial truculento. (Cony, 1997: p.104)
Apesar do processo ensino-aprendizagem ter se configurado, peculiarmente,
no âmbito da casa, funcionando como professor e aluno, respectivamente, pai e filho,
Cony possui um par de textos sobre a escola da infância escola que não houve. São
crônicas que podem – pelo exposto até então – ser consideradas, no universo da crônica
confessional da infância, como pseudotextos confessionais. Intituladas de “Velho estojo
para novos mil anos (I)” (HB) e “Estojo escolar (II)” (HB), essas crônicas possuem
fórmula semelhante à dos textos memorialísticos. São líricas, melancólicas, possuem
narrador na pessoa, oscilam entre o moderno e o antigo (esquema presente, passado,
presente) e configuram-se, lentamente, através da memória involuntária que parte de
um objeto contemporâneo: um notebook a madeleine dessas crônicas. Além disso, os
112
seus discursos, sejam os do presente ou do passado, são muito próximos. A segunda
crônica, apesar de bem menor, é uma paráfrase da primeira. Devido a essa forte relação,
elas serão apresentadas em trechos, de maneira intratextual, utilizando-se dos tópicos:
Tempo presente (1), Tempo passado, Tempo presente (2).
Esquema
“Velho estojo para novos mil anos (I)” – crônica A
“Estojo escolar (II)” – crônica B
Tempo presente (1):
crônica A: o narrador comenta sobre a tecnologia do fim do século 20 (fim também do
milênio), principalmente a da evolução no campo da informática. Ele parte para o
passado através da imagem de seu computador caseiro.
crônica B: o narrador compra um computador, a partir de uma propaganda de TV a
cabo. Ao receber seu novo notebook, retroage no tempo.
Tempo passado:
crônica A: “no dia em que encarei o meu primeiro notebook, a reminiscência foi a do
pequeno estojo escolar que ganhei aos cinco anos, quando fui para o Jardim de Infância
fazer não sabia exatamente o quê”. (HB, p.240-41)
crônica B: “de repente, como vem acontecendo nos últimos tempos, houve um corte na
memória. Tinha cinco anos e ia para o Jardim de Infância. E vi diante de mim o meu
primeiro estojo escolar”. (HB, p.244)
crônica A: “Achava o nome bonito, jardim de infância, imaginava que era um jardim
mesmo [...]. Não era nada disso: caí numa sala apertada, onde havia uma quadro negro
sinistro que cheirava a giz, no qual estava a primeira palavra que me ensinaram a ler:
Silêncio! [...] À minha volta, meninos que metiam o dedo no nariz e que olhavam com
113
avidez para a minha merendeira, da qual saía o gostoso cheiro de um pão com goiaba e
queijo.” (HB, p.241)
crônica B: imagem da escola inexistente
crônica A: “Tudo era estranho e ameaçador mas havia um consolo: eu ganhara de meu
pai o tal estojo escolar, uma caixinha comprida, de madeira clara e envernizada
[...].”(HB, p.241)
crônica B: “Era uma caixinha comprida, envernizada, com uma tampa que corria nas
bordas do corpo principal.” (HB, p.245)
crônica A: “[...] com uma tampa corrediça na qual figurava um ramo de rosas muito
vermelhas e delicadas, que se destacava do tom creme que lhe servia de base.
[...]
Olhava aquele ramo de rosas e me encantava. E me encantava mais quando
sabia que, ao abrir aquela tampinha comprida, que deslizava pelos bordos da caixinha,
sentiria aquele cheiro que nunca esqueceria, o cheiro do meu primeiro estojo escolar.”
(HB, p.241)
crônica B: “Na tampa que protegia estojo e cheiro, havia estampado um ramo de rosas
vermelhas que se destacavam do fundo creme. Amei aquele ramalhete olhava aquelas
rosas e achava que nada no mundo podia ser mais bonito.” (HB, p.245)
crônica A: “E dentro dele, quietinhos, arrumadinhos, novinhos em folha, havia meia
dúzia de lápis coloridos Johann Faber, uma lapiseira cromada, uma borracha bicolor,
metade azul, metade vermelha, um apontador, uma régua. De tudo aquilo saía o tal
cheiro que me tonteava de prazer.” (HB, p.241)
crônica B: “Dentro, arrumados em divisões, havia lápis coloridos, um apontador, uma
lapiseira cromada, uma régua de 20 cm e uma borracha para apagar meus erros.
Da caixinha vinha um cheiro gostoso, cheiro que nunca esqueci e que me
tonteava de prazer. Fechei o estojo para proteger aquele cheiro, que ele ficasse ali para
sempre, prometi-me economizá-lo. Com avareza, o cheirava em momentos
especiais.” (HB, p.245)
114
Tempo presente (2):
crônica A: “Corte no tempo e de repente tiro de um outro estojo, negro e molenga, sem
cheiro nenhum, o primeiro notebook. Negro também. Nenhum ramo de rosas na tampa.
Faço um esforço para desculpar a tecnologia de ponta, sim, não iriam perder tempo em
mandar gravar na tampa dos engenhos eletrônicos uma coisa cafona e inútil.” (HB,
p.242)
crônica B: “o notebook que agora abro é negro, não tem nenhuma rosa na tampa. E, em
matéria de cheiro, é abominável.” (HB, p.245)
crônica A: “Abri a tampa. Sim, era afinal um estojo escolar superdotado, não tinha lápis
Johann Faber nem apontador, muito menos borracha em duas cores. Tinha uma porção
de teclas e comandos encimados por aquilo que minha filha me ensinou serem “ícones”.
De certa forma, era uma tentativa de compensar a falta da borracha, da régua, dos lápis
e da lapiseira.” (HB, p.242)
crônica B: imagem inexistente das características físicas do notebook.
crônica A: “Bem, é por essas e outras que não soltarei foguetes para o novo século e,
muito menos, para o novo milênio. Nem perco tempo em imaginar como serão os
estojos escolares daqui a mil anos, quando a humanidade ingressar no quarto milênio.
Aproveito a meu modo o que me resta de tempo. O Jardim de Infância esacabando,
logo tocará a sineta e eu ainda nem comi o pão com queijo e goiabada que minha mãe
me preparou para o recreio que não houve.” (HB, p.243)
crônica B: “Piorei de estojo e de vida.” (HB, p.245)
Isto posto, vê-se que é incontestável a semelhança entre as crônicas, a
começar pelos títulos, que, de certa forma, dialogam entre si. A proximidade é tamanha
que existe até a reprodução literal da oração adjetival “que me tonteava de prazer”. No
primeiro bloco do “Tempo Passado”, o narrador situa-se no tempo da ida ao jardim de
infância, a idade de cinco anos. Em “Tempo Presente (2)” (primeiro bloco), o cheiro do
objeto moderno (ou cheiro algum) é desagradável, incomparável ao do antigo estojo
passado. Aliás, o substantivo cheiro (escrito nove vezes) e sua concretização expressa
115
pelo “cheirava” (escrito uma vez), são importantes neste uso da memória involuntária.
Funcionando como um pêndulo entre presente e passado, o uso dos sentidos (o olfato
em especial) é imprescindível para a configuração destas falsas memórias de Cony.
Essas crônicas possuem todo uma estilo memorialístico, explicado em
linhas anteriores, contudo, em confronto com um elemento extrínseco, que é o dado
biográfico, confirma-se serem elas pseudoconfissões. Logo, não fazem parte da crônica
confessional da infância de Cony.
Diferentemente do autor em foco, vários cronistas escreveram sobre a escola
da infância. Rubem Braga, por exemplo, possui duas crônicas em que confessa as boas
relações de aprendizagem na escola. Em “Aula de inglês”, ele, criativamente, elabora
seu texto entre as perguntas do professor e as respostas, em inglês, do menino Braga.
Símbolo da aula convencional, a crônica representa os eficientes resultados do ensino,
colocando uma enorme felicidade do garoto por ter acertado todas as indagações. Em
“Minha glória literária”, Rubem Braga rememora suas redações escolares,
demonstrando os passos iniciais do futuro cronista: “o professor de Português passara
uma composição: “A lágrima”. Não tive dúvidas: peguei a pena e me pus a dizer coisas
sublimes. Ganhei 10, e ainda por cima a composição foi publicada no jornalzinho do
colégio.” (Braga, 1997: p.265) Contudo, ao final da crônica, Braga também resgata um
episódio em que o professor critica uma redação de sua infância.
Cecília Meireles, na crônica “Colombo”, também retrata a escola da
infância, porém não se individualiza no passado, transmitindo o retrato de grupo. Aqui,
a infância é representada por crianças, pelo pronome “nós”, no texto que apresenta a
exaltação dos pequenos pela figura histórica do navegador Colombo, tem-se um
exemplo desta narrativa: “sem os recursos pedagógicos de hoje, apenas com a força da
nossa imaginação víamos sua figura passar entre palácios e portos [...]”. (Meireles,
1998: p.84-5)
Clarice Lispector foi mais além, na escola da infância, ao escrever sua
“Noveleta”: cinco crônicas consecutivas
23
nas quais a escritora expõe suas atitudes de
aluna rebelde, nas aulas de português.
“Um novo ABC” é um dos poucos textos de Graciliano Ramos, considerado
uma crônica confessional da infância. Como se faz pressupor no título, a crônica,
23
As referidas crônicas estão enfeixadas, em A descoberta do mundo, com as seguintes denominações:
“Travessuras de uma menina (Noveleta)”; “Travessuras de uma menina – II (Noveleta)”; “Travessuras de
uma menina – III (Noveleta)”; “Noveleta”; “Noveleta (continuação)”
116
publicada em 1938, revive seus momentos de escola, momentos de sua angustiada
alfabetização escolar. “Um novo ABC” serve como apoio do capítulo “Escola”, de
Infância, pois dialogam nitidamente ao tratar de temas comuns. Para citar um exemplo
dessa relação intratextual, Graciliano, em sua crônica, recorda:
“A preguiça é a chave da pobreza”, afirmava-se ali. Que
espécie de chave seria aquela? Aos seis anos, eu e os meus companheiros de
infelicidade escolar, quase todos pobres, não conhecíamos a pobreza pelo
nome e tínhamos poucas chaves, de gavetas, e armários e de portas. Chave de
pobreza para uma criança de seis anos é terrível. (Ramos, 1989: p.170)
Sete anos depois, em Infância, o amargurado Graciliano volta ao tema: a
preguiça, chave da pobreza, e outros conceitos poderosos lançados na última folha da
carta empaparam-se de suor, decompuseram-se, manchando-me os dedos de tinta”.
(Ramos, 1982: p. 110) Os trechos são significativos face à severa educação por que
passou Graciliano. Essa escola humilde, freqüentada pelo menino Graciliano como
outras “esquece que a educação é um problema social, e encara-o como problema
pedagógico [...]. Sem fazer a crítica verdadeira, histórica, do saber que coloca aos
alunos, [essa escola] considera todo e qualquer conteúdo válido, muitas vezes baseado
em preconceitos, ignorâncias, verdades incontestáveis, dogmáticas.” (Almeida, 2001:
p.16) É a escola centrada na sapiência e autoridade do professor.
Terminado o diálogo com outros cronistas e voltando à obra de Cony,
finaliza-se este tópico do ensaio, chamando a atenção para o espaço da casa a escola
do menino Cony, ensinado por um único professor, que é o seu pai. Nota-se, mais uma
vez, quão ganha status a casa do menino Cony por causa da escola ausente, na crônica
confessional da infância do autor.
2.5 O ESPAÇO DA LEITURA
Verificou-se, no tópico precedente, a inexistência da escola na crônica
confessional da infância em foco. O menino Cony, que apresentava problemas de fala,
teve uma educação especial: foi alfabetizado, em casa, pelo pai. Em 1981, Paulo Freire,
na sua famosa palestra sobre A importância do ato de ler
24
, enfatizou que, antes da
leitura da palavra escrita, existe a leitura do mundo, que todos praticam desde os
primeiros anos. Nesse belo texto confessional, lembra Paulo Freire, em determinado
momento da conferência, seu processo de alfabetização, na casa dos pais, tal como
Cony:
A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular.
Não era algo que se estivesse dando superpostamente a ele. Fui alfabetizado
no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do
meu mundo e não do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-
negro; gravetos, o meu giz. (Freire, 2000: p.15)
Passado o período inicial da aprendizagem, Paulo Freire e Cony tomaram
caminham distintos. Enquanto o pedagogo estudaria na “escolinha particular de Eunice
Vasconcelos” (Freire, 2000: p.15) estando, contudo, alfabetizado; Cony ficaria em
casa até os onze anos, ingressando em seguida no seminário.
Como se percebe, então, o espaço da leitura ligado ao menino Cony dar-se-á
na casa da infância, um ambiente propício ao estímulo dessa atividade solitária, porém
lúdica. O pai jornalista possuía uma estante, onde o filho escolhia os volumes para ler.
Em duas crônicas Cony expressa a afeição por seu primeiro livro e pelas lições do pai.
Inicia “O mundo sem florestas” (TN ) assim:
Não lembro o título, mas lembro o cheiro. Foi o meu primeiro
livro de leitura, comprado pelo pai para me ensinar aquilo que seriam as
primeiras letras, que, no caso, foram também as últimas. Tinha um curto
poema (“Como vens tão vagarosa, oh formosa e branca lua, vem com a tua
luz serena minha pena consolar!”). A ilustração era uma lua boiando numa
noite azul esqueci muita coisa pela vida afora, mas guardei para sempre a
lua naquela noite azul. (TN, p.157)
24
Trabalho apresentado na abertura do Congresso Brasileiro de Leitura, realizado em Campinas, em
novembro de 1981.
118
Comprova-se que a memória retrata, inclusive com alguns detalhes
sensoriais, tal como o cheiro do passado, o querido livro de infância. Noutro início de
crônica (“O grande pacto”) o autor faz referência à mesma obra: “aprendi a ler (se é que
realmente aprendi) num antigo compêndio escolar chamado Primeiro Livro de Leitura
o que faz supor que havia outros.” (AA, p.155) O texto então seqüência a uma
história deste livro de infância.
Na interessante crônica “Trem com moça e jovem de batina” (HB),
encontra-se a imagem do menino leitor das obras do pai:
Eu era muito criança, nem sabia o que podia ser o amor, li uma
pequenina novela de Turgueniev que caíra da estante de livros de meu pai. A
capa era atraente [...]. Naquela época, eu era louco por trens, queria ser
maquinista da Central do Brasil. Fiquei olhando aquela capa, não por causa
da moça mas por causa do trem. (HB, p.30)
Apesar da imagem da pequena, no parágrafo seguinte, o cronista não
considera um grande ato intelectual a leitura da novela: “até que li a novela. Para a
minha idade, não era grande coisa.” (HB, p.30) Depois de sintetizado o enredo da
novela lida na infância, na qual se enfocava uma história de amor que se desfaz, o
cronista volta-se novamente à época passada:
Como disse, eu era criança quando li a novela de Turgueniev,
que se chama Ássia nome da principal personagem. Eu não amara ninguém,
até então. Afinal, estava indo para um seminário, superara a idéia de ser
maquinista da Central e queria ser sacerdote de Deus. (HB, p.31)
Um dos escritores mais populares dos anos 30 foi Humberto de Campos.
Literato possuidor de uma obra, na qual passeia por diversos gêneros, sua presença está
inscrita em alguns textos de Cony (total de três crônicas), que remontam à leitura da
infância. A fama de Humberto de Campos é reafirmada pelo próprio Cony, que, nos
anos 30, era criança: “nos meus tempos de menino, o maior cronista da época era
Humberto de Campos, autor que hoje ninguém mais lê nem cita.” (SL, p. 35)
Massaud Moisés, em sua História da Literatura Brasileira, ressalta tanto a
notoriedade de Humberto de Campos como a qualidade de suas crônicas, gênero em
que, segundo o crítico, ele se sobressaiu em relação a outras modalidades literárias.
[...] apesar de sua reação contra o movimento de 1922, Humberto de Campos
[...] foi, no entanto, escritor típico dessa quadra. Iniciou-se com um volume
de verso (Poeira, 1910), a que seguiu uma segunda série com idêntico título
119
(1917), mas a recolha de algumas crônicas no volume Da Seara de Booz
(1918) selou-lhe o destino: seria, a o fim da existência, um cronista, ora
picante, fescenino, nas ginas assinadas pelo Conselheiro XX, ora
sentimental (Os Párias, 1933; Sombras que sofrem, 1934; Destinos..., 1935;
Sepultando os meus mortos, 1935; etc.), ora humorísticos (Vale de Josaphat,
1920; Tonel de Diógenes, 1920; A Serpente de Bronze, 1921). (Moisés,
2001a: p.432-33)
Massaud Moisés, comentando de forma generalizada que os contos do
referido escritor são insatisfatórios, volve-se para o Humberto de Campos cronista e
conclui que mesmo tendo valor essas crônicas, o escritor ficou esquecido depois de sua
morte. É um comentário muito feliz de Massaud Moisés porque observando, por
exemplo, na atualidade, em pleno século 21, vê-se que Humberto de Campos foi, de
fato, esquecido, seu nome não está inscrito nos cânones literários do Brasil. O próprio
mercado editorial brasileiro deixou-o de lado, provocando ainda mais o apagamento do
escritor no corpus da Literatura Brasileira. Cita-se, então, o referido comentário de
Massaud Moisés:
Substancialmente cronista, ou, se se quiser, jornalista, seus escassos contos
ostentam a mesma fluência e simplicidade de estilo dos artigos na imprensa,
que lhe granjearam vasto prestígio em vida, mas não convencem: inclinados
ao alegórico, ao lendário, ou abusando do exotismo oriental, deixam
transparecer um fundo livresco (talvez natural no autodidata que sempre foi),
tanto mais óbvio quanto mais as crônicas brotam da experiência cotidiana,
viva, pessoal, não raro dolorosa, do escritor. Entretanto, nem elas, antes pelo
contrário, conseguiram impedir que a estrela do prosador maranhense
tombasse no ostracismo logo após sua morte: demasiado datadas para dizer
alguma coisa aos leitores de hoje. Não obstante a mão de mestre que, com
leveza, as burilou, pertencem, decididamente, a um tempo para sempre
sepulto nas cinzas da guerra de 1914. (Moisés, 2001a: p.433)
Trazendo então a figura do esquecido escritor maranhense para as crônicas
de Carlos Heitor Cony, serão observados aqui alguns textos para análise.
Em “Areias de Portugal”, reconhece-se – mais uma vez – a terna união entre
pai e filho, nas crônicas de Cony. A relação amiga, agora, não é mais por causa da
feitura de balões, e sim pelo incentivo da leitura proporcionado por Ernesto Cony Filho
em sua casa:
Naqueles dias, Humberto de Campos publicara uma gina de
suas memórias, evocando o cajueiro de sua infância.
25
Meu pai lera a crônica
para mim. Recortei-a do jornal e quase a decorei. Pior: procurei imitar o
menino que subia nos galhos mais altos e gritava: “Assobe, assobe, gajeiro,
25
É bom lembrar que o motivo do cajueiro da infância já foi comentado em outros momentos da
pesquisa.
120
naquele topo real, para ver se tu avistas terras de Espanha, Otolina, areias de
Portugal!” (AA, p.126)
Vê-se quanta influência provocada pelo pai. O garoto apega-se de forma tal
à crônica lida, resolvendo até imitar as atitudes do menino Humberto: “passei a subir
nos galhos mais altos, onde descobri um nicho no meio das folhas verdes e
perfumadas.” (AA, p.126) Na leitura da crônica confessional da infância, é forte a
relação entre Humberto de Campos e o menino Cony. Vínculo entre autor maduro e o
verde leitor um menino que cria, no seu imaginário, acepções pessoais, a partir do
lido. João Wanderley Geraldi, refletindo sobre as significações do escrito, explicita que
O autor, instância discursiva de que emana o texto, se mostra e
se dilui nas leituras de seu texto: deu-lhe uma significação, imaginou seus
interlocutores, mas não domina sozinho o processo de leitura de seu leitor,
pois este, por sua vez, reconstrói o texto na sua leitura, atribuindo-lhe a sua
(do leitor) significação. (Geraldi, 2001: p.91)
É através dos livros do pai que o menino Cony vai formando-se como leitor
eficiente, sendo a obra do escritor maranhense de grande valia para o incentivo à leitura.
Humberto de Campos é o autor mais citado quando o cronista faz referência à sua
leitura de infância. Apesar da escassa fortuna crítica existente sobre a obra de Humberto
de Campos, a jornalista Lucila Soares (neta do livreiro e editor José Olympio), na
recente publicação Rua do ouvidor 110 (obra que conta a história da Livraria José
Olympio Editora), é uma autora que enfatiza a notoriedade do escritor maranhense na
década de 30. Logo nas primeiras linhas do capítulo primeiro, narrando a gênese da
livraria do avô (julho de 1934) afirma que Humberto de Campos, “o mais popular
escritor brasileiro daquele tempo, dedicou a ela [a livraria] sua crônica diária. Intitulado
‘A vitória de um bandeirante’, e publicado no dia 3, o artigo narra o começo de uma
história que se mistura à da cultura brasileira”. (Soares, 2006: p.21)
Depois de transcrever boa parte da referida crônica de Humberto de
Campos, a jornalista sintetiza, em um parágrafo, alguns aspectos da vida e obra do
escritor:
Humberto de Campos não foi à inauguração [da livraria].
não saía de casa, vítima de uma longa e dolorosa doença degenerativa. Aos
48 anos, tinha uma obra caudalosa, cheia de romances açucarados e
lacrimogêneos, bem ao gosto da época. Era membro da Academia Brasileira
de Letras e fora deputado pelo Maranhão por dez anos. Perdera o mandato
com a revolução de 1930, mas em seguida fora compensado por Getúlio
Vargas, seu grande admirador, com dois empregos inspetor de ensino e
121
diretor da Casa de Rui Barbosa. Morreu em dezembro de 1934, sem conhecer
a livraria cuja abertura saudou. (Soares, 2006: p.22)
Já o escritor baiano Jorge Amado, preocupado com o catálogo da José
Olympio, editora que abrigava seus romances, também comenta acerca da fama de
Humberto de Campos, na época em questão. Lucila Soares diz que “em 1937, Jorge
demonstrava, apreensivo, que o único autor realmente popular da José Olympio era
Humberto de Campos, e que esse filão começava a se esgotar, até porque o autor
morrera três anos antes”. (Soares, 2006: p.141) Devido à sua literatura voltada a pessoas
comuns, entende-se, de algum modo, o sucesso do famoso escritor Humberto de
Campos nos idos de 30. Ressalte-se, aqui, o grande impulso dado pelo editor José
Olympio, ao publicar as obras completas do autor e criar o concurso de contos com o
nome do escritor maranhense.
Para exemplificar, novamente, a relação do escritor Humberto de Campos
com o leitor menino Cony, a crônica “A luz azul” (HB) é mais um texto, como os outros
exemplos citados anteriormente, que mostra sua influência na formação do leitor
criança. O cronista, após recontar um conto oriental
26
, lido na infância, encerra o texto,
relatando: “li essa história quando era criança, não sei se em Malba Tahan. Ou em
Humberto de Campos, que também fazia uns contos orientais. Conto-a a meu modo.”
(HB, p.236) O trecho é ilustrativo por apontar um fator ocasionado pela passagem do
tempo: o esquecimento.
“No caminho da Mancha, contra moinhos de vento”, (TN) apresenta-se,
novamente, o casamento infância e leitura, via textos literários:
Desde criança, quando li a adaptação feita por Monteiro
Lobato, achava que Dom Quixote estava certo: ele não combateu moinhos de
vento, mas gigantes de verdade. Mais tarde, li o original e volta e meia
retorno a ele, para distrair o espírito e tentar aprender alguma coisa. Tenho
sempre a mesma sensação: ele estava certo. (TN, p.126)
A formação intelectual do garoto vai aos poucos, então, configurando-se de
forma positiva, culminando com o resultado do exame de admissão para o seminário: o
menino Cony – aluno do pai e leitor nas horas vagas – ficara entre os primeiros
colocados da seleção.
Tratadas as circunstâncias sobre o “ato de ler” na infância, afirma-se que a
casa do menino Cony exerce importante papel no processo ensino-aprendizagem, foi o
26
Cf. as observações de Massaud Moisés feitas em linhas atrás sobre o conto de Humberto de Campos.
122
espaço privado onde se deu sua alfabetização. Infância que, paulatinamente, percorreu
os livros do pai, criando o delicioso hábito da leitura; pois ler, para ele, não era uma
obrigação, e sim um ato de fruição. Entende-se que a leitura, portanto, na crônica
confessional da infância em questão, se pelo deleite do menino Cony, sempre
vinculado ao espaço interno da casa.
3. O ESPAÇO DA RUA
Durante anos, o Rio teve dois centros: o urbano,
que tem como espinha dorsal a antiga avenida Central, hoje
Rio Branco; e o geográfico, que sempre foi mais ou menos
impreciso, uma vez que a cidade não se desenvolveu
concentricamente, em torno de um núcleo fixo.
Desde criança, ouvia falar que esse centro
putativo da cidade seria a Praça da Bandeira, mas nunca tomei
conhecimento dos cálculos alheios que determinaram esta
verdade. Tampouco tive tempo e a capacidade para promover
por conta própria novos cálculos a respeito de um assunto que,
pensando bem, não chega a me interessar concretamente.
Carlos Heitor Cony, Lagoa: história, morfologia e sintaxe
Visto o processo de reconstrução do passado através das lembranças da
infância transcorrida no interior da casa dos pais, o presente capítulo mantidas acesas
as lanternas de popa abordará ainda aspectos relacionados à meninice do autor. Mas
com outro enfoque: o espaço da rua constituio cenário da narrativa. Na verdade, esse
vocábulo rua é, aqui, uma construção metonímica. Seu sentido, conforme as análises
que serão feitas, é mais abrangente. Identifica – mais do que específicas ruas – bairros e,
num âmbito maior, a cidade inteira, composta por seus logradouros públicos.
Do ponto de vista histórico, lembra Ariès, não existia uma tida separação
entre a intimidade da casa e a rua medieval, que, na verdade,
[...] não se opunha à intimidade da vida privada; era um prolongamento dessa
vida privada, o cenário familiar do trabalho e das relações sociais. Os artistas,
em suas tentativas relativamente tardias de representação da vida privada,
começariam a mostrá-la na rua, antes de segui-la até dentro de casa. Talvez
essa vida privada se passasse tanto ou mais na rua do que em casa. (Ariès,
1981: p.198
)
Com o correr do tempo, através do processo de construção histórica da
privacidade da casa familiar, a cidade aparece como um lugar de desconhecidos,
formando um aglomerado de pessoas, muitas vezes próximas neste espaço público,
porém sem nenhum vínculo afetivo entre si. Estabelece-se, então, neste processo
ocidental de desenvolvimento da cidade, o paradoxo da aproximação/repulsão. No que
concerne à infância, e na comparação entre casa e cidade, Chombart de Lauwe
acrescenta que “a casa ou lugares ainda mais íntimos, específicos da infância, como o
sótão ou a cabana, opõem-se ao anonimato da grande cidade”. (Chombart de Lauwe,
1991: p.293) Ainda comentando as relações da infância com o espaço público, a
124
escritora destaca que este ambiente dependendo das circunstâncias pode ser
prazeroso ou adverso, comportando
[...] uma dupla categorização. De um lado, ela permite a natureza penetrar na
cidade por ocasião das feiras livres. Toda uma vida alegre manifesta-se ali.
As lojas prolongam este aspecto e o completam com objetos maravilhosos,
cores, guloseimas. A rua traz assim à cidade um ar de festa que a faz
pertencer ao mundo da criança, quando esta sente uma certa intimidade
(principalmente em meio popular). Mas a rua representa também o
desconhecido, a angústia, o anonimato, a multidão, que corre ali como um rio
hostil, com o risco de se perder. Ela se classifica então como a grande cidade.
(Chombart de Lauwe, 1991: p.324)
No âmbito da crítica literária, é interessante destacar aqui o ensaio “Entre
campo e cidade”, onde Antonio Candido estuda e interpreta a obra romanesca de Eça de
Queiroz pelo viés do espaço público. Segundo o crítico, observando em conjunto os
romances do referido escritor português, tendo em vista a questão do espaço, pode-se
dividir sua obra em duas partes: a primeira, composta pelos romances iniciais, com tema
centrado na moderna cidade capitalista de fim do século 19; e a segunda, rural,
composta de suas últimas criações, focadas na tradicional vida campestre, transcorrida
em cidades do interior de Portugal.
“Nos primeiros livros, o seu ponto de vista, portanto, é de um homem da
cidade, dum crente na cultura urbana do tempo”. (Candido, 2006: p.40) Comprova-se
isso em O crime do padre Amaro, onde “a vida provinciana é literalmente arrasada [...].
O padre aparece sob as piores cores, como agente de dissolução das consciências e dos
costumes”. (Candido, 2006: p.41) O pároco Amaro da pequena cidade de Leiria
relaciona-se com Amélia que acaba engravidando e tendo um filho seu. No capítulo
quarto, tem-se uma amostra da vida desenrolada numa cidade rural, provinciana, onde
impera a hipocrisia do clero e da sociedade portuguesa do interior, burguesa e beata. O
narrador apresenta então a curiosidade do povo interiorano, culminando na invasão, por
beatas da cidade, do quarto onde dormia Amaro, numa pensão.
Ao outro dia, na cidade, falava-se da chegada do pároco novo,
e todos sabiam já que tinha trazido um baú de lata, que era magro e alto, e
que chamava Padre-Mestre ao cônego Dias.
As amigas da S. Joaneira - as íntimas - a D. Maria da
Assunção, as Gansosos, tinham ido logo pela manhã a casa dela para se
porem ao fato...
[...]
[A S. Joaneira] foi-lhes mostrar o quarto do padre, o baú de
lata, uma prateleira que lhe arranjara para os livros. (Queiroz, s.d., p.43-4)
125
No bloco dos romances rurais, Antonio Candido chama a atenção para o
fato de Eça abandonar seu lado iconoclasta, mordaz, dos primeiros anos de escritor de
inclinações socialistas para concentrar-se mais na estética das obras, pois o ruralismo de
Eça de Queiroz e mesmo o tradicionalismo vieram a corresponder a tendências
literárias acentuadas, quais sejam o sentimento plástico e o talento descritivo. O campo
sempre foi oportuno para algumas das suas melhores descrições [...]”. (Candido, 2006:
p.52)
Pautando-se o ensaio sempre na perspectiva dos referidos espaços, Antonio
Candido encontra a harmonia entre campo e cidade numa das principais obras do
escritor português:
Se quisermos [...] estabelecer um juízo de valor, digamos que o apogeu do
seu romance coincide com o equilíbrio mais perfeito que obteve entre a visão
urbana (dominante nos primeiros livros) e visão rural (dominante nos
últimos) sem predomínio de uma sobre a outra. É o que ocorre n’Os Maias,
sua obra-prima, e obra-prima do romance naturalista universal. (Candido,
2006: p.57-8)
É interessante, também, trazer alguns comentários sobre o tema, da lavra do
crítico inglês Raymond Williams em O campo e a cidade: na história e na literatura.
Raymond Williams analisa e interpreta a literatura inglesa sob uma perspectiva
histórica, correlacionando a produção literária com as transformações sociais, ocorridas
na Inglaterra ao longo dos séculos. O ensaísta lembra que “o campo e a cidade são
realidades históricas em transformação tanto em si próprias quanto em suas inter-
relações” (Williams, 1990: p.387); e que as sociedades ocidentais cristalizaram os
vocábulos “cidade” e “campo”, criando arquétipos para cada termo, em detrimento de
uma interpretação sociológica profunda. Nesta perspectiva simbólica,
O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida
de paz,
inocência e virtudes simples. À cidade associou a idéia de centro de
realizações
de saber, comunicações, luz. Também constelaram-se
poderosas associações negativas: a cidade como lugar de barulho,
mundanidade e ambição; o campo como lugar de atraso, ignorância e
limitação. O contraste entre campo e cidade, enquanto formas de vida
fundamentais, remonta à Antiguidade clássica. (Williams, 1990: p.11)
Outro ponto importante da obra de Williams são os comentários sobre a
burguesia e o surgimento da cidade moderna, oriundos da pioneira Revolução Industrial
inglesa, que segundo o autor proporcionou uma diminuição das relações econômicas
126
rurais e da agricultura doméstica. Suas análises buscam uma interpretação dessa recém-
nascida cidade moderna, sob a ótica da literatura inglesa.
Williams ressalta que a cidade como pano de fundo do romance oitocentista
foi tema recorrente de renomados escritores da época. Na obra do escritor inglês Charles
Dickens, Williams estende, de forma intertextual, suas observações a respeito da nova
cidade oriunda do capitalismo crescente:
Na literatura mundial, em Balzac, Baudelaire e, de maneira
diferente, Dostoiévski, a imagem da cidade tornou-se, de certo modo,
dominante. Balzac havia demonstrado a complexidade social da cidade e sua
mobilidade constante; como seu objetivo era justamente descrever este
aspecto, a imagem resultante, embora complexa, é clara. Dostoiévski, por
outro lado, enfatizava os elementos de mistério e estranheza e perda de
conexão; de modo comparável a Dickens, porém partindo de reações
fundamentalmente diferentes, trabalhava no sentido de criar
reconhecimentos. Ele difere de Dickens na medida em que a fonte de
reconhecimento não reside numa consciência social sufocada, e sim num
reconhecimento espiritual, situado além do desespero do isolamento.
(Williams, 1990: p.315-16)
Esta consciência de criar uma literatura da cidade baseada numa nova
realidade social (independente de que aspecto seja vista), iniciada no século 19, foi
levada ao extremo já nas primeiras décadas do século 20.
A experiência urbana se generalizava tanto, e um número desproporcional de
escritores estava tão profundamente envolvido nela, que qualquer outra forma
de vida parecia quase irreal; todas as fontes de percepção pareciam começar e
terminar na cidade, e, se havia alguma coisa além dela, estaria também além
da própria vida. (Williams, 1990: p.316)
A reboque dessa tendência da literatura ocidental, a crônica até por sua
própria característica de dar relevo aos temas do cotidiano buscou, de forma
recorrente, interpretar esteticamente os fenômenos urbanos, como se apercebe tanto nos
folhetins do século 19 como nos modernos veículos de comunicação do século 21.
Ainda não enfocando propriamente Carlos Heitor Cony mas como uma
espécie de preâmbulo será aqui comentada, de modo intertextual, a crônica “Menino
de rua”, de Fernando Sabino. Texto homônimo de outro, da autoria do cordelista
cearense Antônio Gonçalves da Silva, poeta de veia essencialmente social, mais
conhecido nacionalmente pelo epíteto Patativa do Assaré. Far-se-á então uma relação
entre estes dois textos a crônica “Menino de rua” (Sabino, 2006: p.31) e o poema
127
“Menino de rua” (Assaré, 2001: p.307) para se chegar, em seguida, à crônica
“Chorinho para um menino morto” (QA), de Carlos Heitor Cony.
Observando as imagens das referidas produções, de Fernando Sabino e
Patativa do Assaré, percebem-se vários ditos análogos, fazendo com que os dois textos
juntos correspondam como que a uma voz uníssona. Na análise, optar-se-á pela inclusão
de versos patativanos como ratificação das conclusões acerca da crônica de Fernando
Sabino.
No texto de Fernando Sabino, retirado da coletânea A vitória da infância, é
mostrado um diálogo entre o cronista e um “menino de rua” chamado Carlos Henrique.
Na conversa, o autor, de classe média, tenta na medida do possível solucionar o
problema do garoto carente. Ao ser abordado na saída de casa por uma criança pobre
“com aquela tonalidade encardida que a pobreza tem” (Sabino, 2006: p.31), o narrador
dá-lhe uma certa quantia de dinheiro. Mas o que o pobre quer, na verdade, é um
cobertor: “– Que é mesmo que você pediu? Não foi dinheiro? – Uma coberta [...] pra eu
dormir” (Sabino, 2006: p.31), pois é um menino de rua
Com frio e com fome
Sem roupa e sem pão
A primeira forma de apoio ao garoto, após o dinheiro dado, veio de
imediato: “o jeito era voltar em casa, descobrir uma coberta velha, trazer para ele. Foi o
que fiz [...]”. O texto, como se vê, é uma denúncia expressa da injustiça social,
manifesta no raquitismo do garoto, que “não parecia ter mais de nove anos, mas me
disse que já tinha treze”. (Sabino, 2006: p.32)
O adulto, nessa circunstância, está diante de outra realidade. E quer
compreendê-la melhor para ajudar. Uma solução, embora temporária, talvez fosse
possível. Perguntado por qual razão vivia na rua, o menino responde que fora expulso
três anos pela mãe, por causa de um episódio familiar: “– Minha irmã é nervosa
quebrou o da televisão e disse que fui eu. Então minha mãe me expulsou”. (Sabino,
2006: p.32)
Demonstrando preocupação, o narrador indaga sobre essa vida miserável:
Como é que você viveu esse tempo todo? Que é que você
come?
– Peço resto de comida.
– Pra que serve esse papelão?
– Pra cobrir o chão de dormir. (Sabino, 2006: p.33)
128
Os espaços públicos da cidade tornam-se para a criança nômade, na busca
da sobrevivência, locais a serem descobertos, conquistados:
Tu vagas incerto não achas abrigo
Exposto ao perigo
De um drama de horror
É sobre a sarjeta que dormes teu sono,
No grande abandono
Não tens protetor
Carlos Henrique vive sozinho porque “amigo faz trapalhada e a gente é que
acaba preso”. (Sabino, 2006: p.33) Aqui, a realidade urbana se revela hostil, no sentido
de que tais como outros personagens desse drama social – os meninos de rua, também
anônimos como aqueles, perambulam pela cidade, buscando a precária e incerta
sobrevivência:
Seguindo constante teu duro caminho
Tu vives sozinho
Não és de ninguém
Às vezes pensando na vida que levas
Te ocultas nas trevas
Com medo de alguém
Seguindo o curso da narrativa, o cronista incentiva o garoto – filho de
desconhecido – a voltar para a casa da mãe, inclusive entregando-lhe mais dinheiro.
Menino de Rua, garoto indigente,
Infanto carente,
Não sabe onde vai
Menino de Rua, assim maltrapilho
De quem tu és filho
Onde anda o teu pai?
Não obstante o menino ter prometido voltar para casa assim que o dia
clareasse, o narrador que o ajudou de várias formas, apresenta-se, no final do texto,
profundamente descrente, pois conhece a realidade urbana. Afirma que o garoto ficará
pelas ruas, transformando-se em pivete, que pratica pequenos furtos, encerrando seu
discurso pessimista de forma enérgica: “e se por acaso voltarmos a nos encontrar daqui
a uns poucos anos, não me resta nem a esperança de que me reconheça e não me mate –
129
pois seguramente, e com justas razões, estará transformado em assaltante”. (Sabino,
2006: p.34)
Menino de Rua de ti não me esqueço
E aqui te ofereço
Meu canto de dor
Os textos de Fernando Sabino e Patativa do Assaré, como observado nos
excertos, são de caráter social, apresentando e, até de certa forma, denunciando uma
realidade muito antiga, desde o tempo do Brasil colônia.
Pouca gente sabe que as “crianças de rua” existem desde o século XVI.
Vieram de Portugal nas naus que trouxeram ao Brasil os primeiros padres
jesuítas. Encontradas nos portos e mercados, onde tentavam sobreviver
realizando pequenos furtos ou serviços, foram arrebanhadas para ajudar na
missão da catequese. Vestidas de “anjo”, com asas e roupinhas brancas,
tocando instrumentos e cantando, saíam nos cortejos pelo “sertão”:
verdadeiras iscas para atrair “indiozinhos” para as escolas jesuíticas, então
conhecidas como “casas de meninos”. (Del Priore, 2001: p.117)
A propósito do tema, e relembrando que esse problema social é antigo
ainda do tempo dos folhetins é relevante destacar que houve um aumento do número
de crianças abandonadas, no século 19, após a promulgação da Lei do Ventre Livre,
norma esta, que
[...] suscitou inúmeras críticas, feitas por contemporâneos das mais variadas
tendências políticas, e aprofundadas, posteriormente, pelos historiadores. Na
verdade, poucos acreditaram na sua eficácia para melhorar as condições de
vida da criança negra no Brasil. Ao lado da denúncia da perpetuação de fato
de sua condição de escrava, destacou-se o prognóstico do aumento do
número de abandonos dos filhos de suas cativas, por parte dos senhores [que
eram obrigados a cuidar dos pequenos]. [...] Hoje, mais de cem anos da
Abolição, convivemos com cerca de 12 milhões de crianças abandonadas nos
centros urbanos do País, das quais a maioria absoluta de origem negra. (Lima
e Venâncio, 1998: p.73)
Carlos Heitor Cony, tal como Fernando Sabino e Patativa do Assaré,
também aborda este problema social brasileiro, o da infância abandonada, em
“Chorinho para o menino morto”, de uma forma literariamente irretocável. Na crônica –
no seu realismo trágico são descritas passagens de uma densidade estética
indiscutível: “ver o cadáver que me parece enrijecido e denso, pousado sobre o asfalto
cheio de sol e de cheiros do mundo”; ou ainda na passagem: “há pouca gente ainda, e
apesar disso a vela treme. A insignificante chama lambendo a manhã e refletindo-se
130
na pequena poça de sangue que lambe o asfalto e se encaminha pelo declive para o ralo
próximo”. (QA, p.74)
Ao observar o cadáver, o narrador imagina a vida humilde, que tivera o
defunto:
[...] vejo que o cadáver é de um menino, doze anos não mais, vividinhos e
sofridos de fome e gazetas escolares e pães com manteiga e terninhos dados
pelos meninos ricos e cabeça dura para aprender o plural das palavras
terminadas em ão e um padrinho em algum lugar que lhe dá cinemas e
eventuais conselhos. (QA, p.74)
Apesar da realidade trágica do episódio retratado, inegável a qualidade
descritivo-poética da crônica: “olhamos todos e nem silêncio nem revolta há. Cada qual
bebe como pode aquele quadro e aquela verdade e depois iremos todos para nossas
vidas, talvez contemos: ‘vi hoje um menino morto’, talvez nem isso [...]”. (QA, p.74)
É interessante o final do texto, onde se estabelece uma ponte entre o
narrador e o menino: na ótica pessimista do cronista, a morte da criança funcionou
como uma negação existencial dos problemas vivenciados pelos adultos. O último
parágrafo é o mais importante da crônica. Nele, o autor alcança a maior poeticidade do
texto, ao relacionar sua infância perdida à idade madura, a que atribui o haver-se
tornado um adulto sisudo e grave. Depois de sugerir ao defunto que, se vivesse, não
seria vantagem, já que ele se transformaria num adulto; o narrador então auto-analisa-se
poeticamente:
E sinto, de repente, que em alguma calçada, abraçado a algum
asfalto – ensolarado na certa, ou talvez chuvoso jaz o corpinho não profanado
de um menino triste que inutilmente tentou se prolongar no homem de hoje.
Impotente e enrijecido pela saudade, abriu seus braços de espanto e pena, e,
cansado, ficou eterno como o garoto atropelado a dor e o tempo
imobilizando seu gesto e seu impossível grito. (QA, p.75)
Nota-se, neste final de texto, forte carga lírica na criação da imagem
criança versus adulto. O trecho mostra que a infância, com suas idiossincrasias, tentou
“se prolongar no homem de hoje”. A imagem do adulto, no fragmento, é representada,
metaforicamente, através da morte de um menino estendido na calçada. Vê-se o auge da
densidade poética, no início do segundo período: “Impotente e enrijecido pela saudade,
abriu seus braços de espanto e pena, e, cansado, ficou eterno [...]”. (QA, p.75) O
menino, que na verdade cristalizou-se no adulto, põe-se perplexo diante da nova vida.
131
Aqui, revela-se um “adulto-escombro”, desiludido com a realidade do presente, crua,
quase inexorável.
Captando também o cotidiano com uma linguagem poética, Paulo Mendes
Campos, ao regressar no tempo através da memória, procura seu passado infantil, pois
quer afastar-se da angustiante modernidade urbana. É o que reflete a crônica “Pai de
Família sem Plantação”. (Campos, 1998: p.45)
No texto, a cidade grande se revela um assombro. E o autor se desespera na
hipérbole “morro de nostalgia”; ele declara sua falsa condição de morador do Rio de
Janeiro”, proclamando que sua terra “não é o asfalto”. Em seguida, quase em delírio,
interroga: “o milho pendoou? Vamos ao pasto dos Macacos matar codornas?”. Não
podendo prescindir do passado, confessa: “desta literatura rural é que preciso”.
Tal como em Rubem Braga, o retorno ao ambiente agrário de Paulo Mendes
Campos é uma tentativa de encobrir sua realidade de homem citadino. Logo, acabam
eles, em crônica, pautando-se numa infância ideal:
Essa atmosfera de realidade opressora leva o homem a buscar
um outro espaço onde a realidade se manifeste de forma gratificante. O
espaço do prazer pode perfeitamente ser encontrado na vida urbana, mas ele
melhor se configura no campo ou nos povoados, enfim, onde permanece
aquele jeito simples de cidadezinha do interior com cheiro de infância. (Sá,
1985: p.53)
Não é no meio rural que Cony vai buscar matéria para suas crônicas. É na
cidade grande que se encontra a imagem do cronista, no papel social de pai, preocupado
e atento diante dos filhos. Na crônica “Reunião de mães” (QA), por exemplo,
transmuda-se na figura do pai, que, cioso de suas responsabilidades, dirige-se à escola
da filha, a fim de participar da reunião de pais e mestres, onde se tratará sobre a
primeira comunhão dos alunos.
Nessa crônica, narrada em pessoa, depara-se tal como aquelas outras,
do capítulo segundo com o Cony chefe de família, pois, mais uma vez, “as
circunstâncias da vida [...] haviam-no reduzido a um estado híbrido de pai e mãe ao
mesmo tempo” (QA, p.15). A crônica repete, assim, a figura do pai Cony. Agora,
entretanto, inserido em outro ambiente, longe da casa, mas ainda representando o
mesmo papel social, a que parece estava adaptado. E quanto à reunião de pais e
mestres “não há de ser nada, pensou ele, já houve tempo pior, quando a garota precisava
ir ao banheiro do cinema [...]. O jeito era levar a guria até a porta e recomendá-la a
alguma ocupante potencial e responsável”. (QA, p.15)
132
O pai Cony, ao chegar à reunião, logo sente-se um estranho. As mulheres
em maioria absoluta “olharam-no de alto a baixo, inquisidoramente”. Uma delas, de
tão surpresa que estava, chegou a indagar: “– O senhor também é mãe?”. (QA, p.15)
Diante da situação constrangedora, o homem então isola-se. Mas a discussão sobre o
tamanho dos vestidos que as meninas haveriam de usar na primeira comunhão,
prosseguia acalorada. No meio do debate, ao ser indagado sobre sua opinião, responde
com ar de desinteressado: “– Eu não entendo muito dessas coisas mas decidam à
vontade. Eu pago o prejuízo”. (QA, p.16) A resposta manifestada, assim, de supetão, e
naquelas circunstâncias, não foi bem recebida. Afinal, o colégio era de freiras e as mães,
moralistas batiam para que suas filhas usassem um vestido longo, “o clássico
vestidão roçando até o chão, as flores, as grinaldas de filó, os véus” (QA, p.15). O
desconforto das mulheres foi inegável, afinal o homem estava fazendo pouco caso delas.
Ao ser perguntado se tinha feito a primeira comunhão, observe-se o comentário do
narrador: “Poderia responder que fizera não a primeira como a última comunhão.
Mas elas não o entenderiam [...]”. (QA, p.16) Aqui, sem dúvida, identifica-se um traço
biográfico marcante da personalidade do cronista: sua postura cética e às vezes cínica
– diante das coisas da religião.
Conhecido pela intelectualidade brasileira como agnóstico confesso, este ex-
seminarista cético mostra, nos seus escritos, um desconforto e certo trauma daqueles
anos vividos no seminário, período da vida nunca esquecido. Mesmo se opondo aos
preceitos da religião católica, Cony em dezenas de crônicas escritas desde sua
primeira coletânea até a última – vale-se dos conhecimentos adquiridos naqueles tempos
de seminarista. Os temas abordados são, freqüentemente, extraídos do Velho e Novo
Testamentos e da vida dos santos. A confirmar esse lado característico do cronista, vale
destacar dois romances, cujos títulos – Pilatos e Pessach: a travessia aludem à Bíblia,
embora seus conteúdos não versem acerca de temas da História Sagrada; o prefácio do
livro Evangelho Segundo São João; e o conto “Sobre todas as coisas”, primeira história
da coletânea Os dez mandamentos
27
. Cony, portanto, convive entre o sagrado e o
profano; está em permanente conflito com Deus, embora ironicamente não deixe de
contribuir para a construção de um mundo religioso.
Atualmente o escritor está buscando, lenta e gradualmente, seu retorno à fé.
É o que afirmou em seu discurso de posse, na ABL (Academia Brasileira de Letras):
27
A obra contém dez histórias, relacionadas aos dez mandamentos, elaboradas por dez escritores; sendo a
narrativa de Cony, pautada no primeiro mandamento: “Amar a Deus sobre todas as coisas”.
133
“continuo agnóstico, mas devoto dos meus santos tutelares. Considero-me em processo,
doloroso mas sincero, de retorno à naquele Deus que o rei e profeta Davi dizia ter
alegrado a sua juventude”.
(Cony, 2000: acesso online)
Feita este breve comentário sobre o Cony agnóstico, praticamente imposta
pela crônica em análise, veja-se com que ironia e graça é concluída o texto: “ser mãe é
desdobrar fibra por fibra o coração. Ser pai é pagar a despesa”. (QA, p.16)
Com a mesma temática e idêntico título (“Reunião de mães”), Fernando
Sabino, também com muita verve, assim inicia sua crônica: “na reunião de pais só havia
mães”, excetuando-se o próprio autor e “duas ou três presenças masculinas que
partilhariam de meu ressabiado zelo paterno”. Tal como o pai Cony, Sabino sentia-se
isolado, desconfortável, naquela reunião do semi-internato onde estudava o filho:
“sentei-me numa das últimas filas”. (Sabino, 2006: p.15) Uma outra coincidência: nesta
reunião de pais, discutia-se também a respeito de roupas o uniforme dos alunos
assunto a respeito do qual Sabino manifesta a mesma insegurança de Cony: “tive
vontade de perguntar [...] mas temi aquelas mães todas voltando a cabeça, curiosas e
surpreendidas, ante uma destoante voz de homem, meio gaguejante talvez de
insegurança”. (Sabino, 2006: p.16) Mas, de repente possuído pelo espírito de criança,
uma inesperada rebeldia, quase um insulto às mães presentes: “desafiei o auditório,
acendendo um cigarro; ninguém tinha nada com isso. Criança ainda, na idade mesmo de
brincar e não levar as coisas tão a sério”. (Sabino, 2006: p.17-8)
Em Cony e Sabino, não se depreende somente a semelhança de temas.
nos dois a mesma verve espontânea, o mesmo talento para o improviso brilhante, a
mesma capacidade em interpretar com inteligência e graça e até com poesia seus
momentos do cotidiano, freqüentemente prosaicos.
E retornando às “Reuniões de mães”, percebe-se, tanto na crônica de Cony
como na de Sabino, o desconforto do pai, ao assumir o papel social de mãe. Mas sequer
se esboça algum inconformismo com a situação, que termina por possibilitar uma
aproximação carinhosa com o filho. Essa realidade, que os cronistas retratam com tanto
engenho e arte, é enfim uma característica do momento atual, em que
O afeto [do pai moderno] substituiu a autoridade [por exemplo, daquele pai
de Graciliano Ramos, representado em Infância]. Mudanças no casamento e
na própria família forçaram muitos a assumir a paternidade social de filhos de
outros homens ou a tornar-se “pães”: um misto de pai e mãe, na falta desta.
(Del Priore, 2001: p.39)
134
Este papel de “pães”, desempenhado em espaços públicos, é ainda
encontrado em outros textos de Cony. Em “Dos mil acidentes naturais da estrada” (QA)
e “Moça, pirata e samaritano” (AF), o pai Cony viaja de carro com as filhas. São
crônicas em que se retrata o amor entre pai e filho, no exercício da função de pães”,
substituindo eficazmente a ausente figura da mãe.
Em “Da rea comunicação dos povos” (QA), o sentimento de carinho do
pai Cony é demonstrado num aeroporto de São Paulo, numa viagem com sua filha
(Regina Celi), que tem agora seu nome impresso na crônica (“viajo com minha filha de
dez anos, rota Rio Buenos Aires). (QA, p.31) Para citar um último exemplo dessas
viagens com a filha, em “Contra o turismo cultural com breve exceção” (TN), o cronista
lembra outro passeio com as filhas: “num ano qualquer do passado, programei uma
temporada em Ouro Preto com minhas filhas, que eram crianças, por volta dos 10
anos. Precisava acabar um livro, e nada melhor do que o cenário barroco de uma velha
cidade”. (TN, p.86)
Finalizando este início de capítulo, à exceção da referência indireta à
infância do cronista em “Chorinho para o menino morto”, houve, em parágrafos
anteriores, uma breve digressão em torno ao tema em foco. Foi intencional. Na verdade,
buscou-se, numa espécie de contraponto à crônica confessional da infância, mostrar
também o cotidiano vivido no espaço urbano, no entanto, visto pelos olhos maduros do
cronista adulto.
3.1 O MENINO E O RIO DE JANEIRO DOS ANOS 30
À primeira vista, o título deste tópico poderia sugerir que serão elaboradas
puras considerações acerca da história do Brasil. Na verdade, a pretensão aqui é um
tanto diversa: limita-se a apresentar as tão-somente circunstâncias históricas que, de
alguma forma, possam contribuir para a análise textual das crônicas de Carlos Heitor
Cony.
O Rio de Janeiro dos anos 30, época na qual está inserido o menino Cony,
adquiriu uma fisionomia, que teve sua origem nas transformações ocorridas no Brasil
e no mundo ocidental desde meados do século 19 até a segunda década do século 20.
Nesse período, a Europa fonte onde a elite intelectual brasileira saciava sua sede de
cultura vivia os anos prósperos da segunda Revolução Industrial, também conhecida
como a Revolução Científico-Tecnológica. O nome justificava-se. De fato, nunca antes
houvera desenvolvimento industrial tão intenso, graças à utilização das novas formas de
energia – a eletricidade e o petróleo.
No Brasil, com o intuito de “modernização” da cidade do Rio de Janeiro, e
baseando-se num recém-implantado plano urbanístico de Paris, o prefeito Pereira Passos
passou a retirar, coercitivamente, as pessoas pobres que residiam em áreas centrais da
cidade.
Na década de 30, à época portanto do Cony menino, o Brasil simbolizado
pela imagem da capital federal carioca tem passado então por um processo
arbitrário de urbanização, ocorrido nas duas primeiras décadas do culo. No campo
político, sendo presidente por toda a década, Getúlio Vargas ingressou no referido cargo
pela Revolução de 30, movimento que aniquilava com a República Velha e sua “política
do café-com-leite”.
Antonio Candido, fazendo uma ponte entre a Revolução de 30 e a literatura
do período, afirma:
Na maré montante da Revolução de Outubro, que encerra a fermentação
antioligárquica referida, a literatura e o pensamento se aparelham numa
grande arrancada. A prosa, liberta e amadurecida, se desenvolve no romance
e no conto, que vivem uma de suas quadras mais ricas. Romance fortemente
marcado de neonaturalismo e de inspiração popular, visando aos dramas
contidos em aspectos característicos do país: decadência da aristocracia rural
e formação do proletariado (José Lins do Rego); poesia e luta do trabalhador
(Jorge Amado, Amando Fontes); êxodo rural, cangaço (José Américo de
136
Almeida, Raquel de Queirós, Graciliano Ramos); vida difícil das cidades em
rápida transformação (Érico Veríssimo). Nesse tipo de romance, o mais
característico do período e freqüentemente de tendência radical, é marcante a
preponderância do problema sobre o personagem. É a sua força e a sua
fraqueza. Raramente, como em um ou outro livro de José Lins do Rego
(Bangüê) e sobretudo Graciliano Ramos (São Bernardo), a humanidade
singular dos protagonistas domina os fatores do enredo: meio social,
paisagem, problema político. Mas, ao mesmo tempo, tal limitação determina
o importantíssimo caráter de movimento dessa fase do romance, que aparece
como instrumento de pesquisa humana e social, no centro de um dos maiores
sopros de radicalismo da nossa história. (Candido, 2000a: p.123-24)
Note-se que Candido ressalta a existência da prosa regionalista de 30,
enfatizando a figura do protagonista destas narrativas como elemento que se sobrepõe
aos aspectos do “meio social, paisagem, problema político”. São histórias centradas no
personagem principal, com a finalidade de explorar, artisticamente, alguns dos
problemas sociais brasileiros, por exemplo, a condição sertaneja. Somado a isso,
comenta que “ao lado dessa ficção, o ensaio histórico-sociológico é o desenvolvimento
mais interessante do período.” (Candido, 2000a: p.124) Autores como Gilberto Freyre,
Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. os principais foram ensaístas que,
procuraram interpretar o Brasil; compondo, juntamente com os romancistas da época,
um amplo painel social.
Quanto ao mercado editorial brasileiro dos anos 30, pode-se dizer que
surgiu uma democrática indústria do livro, que procurava integrar cada vez mais os
novos autores. Destaque-se a figura do audacioso livreiro e editor José Olympio,
empresário do ramo que não tinha medo de arriscar nesse mercado, lançando obras
principalmente a dos modernistas do momento – com altas tiragens para a época.
Com relação ao autor em estudo, sendo filho de jornalista, obteve forte
incentivo do pai, nessa década de 30, para adquirir o gosto pela leitura. Não obstante a
popularização do regionalismo de 30, depreende-se, a partir da obra em crônica de
Cony, que Humberto de Campos foi para o Cony criança um dos autores lidos, que mais
marcaram essa infância.
É, portanto, nesse ambiente dos anos 30, que se compõem as narrativas
centradas no Cony criança, um garoto em contato com a grande cidade, com o espaço
além do doméstico. Antes de se abordar objetivamente a narrativa de Cony no tópico
em questão, será acrescentado ao corpus dos cronistas brasileiros, comentados até aqui
durante este ensaio, o nome de Ignácio de Loyola Brandão.
Pode-se dizer que as crônicas do paulista Ignácio de Loyola Brandão
configuram-se nos aspectos de uma memória afetiva e cultural. Cronista semanal desde
137
1993 do jornal O Estado de S. Paulo, são temas freqüentes, na coluna de Loyola
Brandão, referências à infância em Araraquara e ao cotidiano da cidade de São Paulo.
Cecília Almeida Salles, no prefácio da coletânea Ignácio de Loyola Brandão: melhores
crônicas, confirma a afirmação ao explicar que “dois eixos parecem ser chaves que
podem nos conduzir na tentativa de compreensão da textura da crônica desse escritor:
cidade e memória.” (Brandão, 2004: p.09) A cidade de São Paulo, então, será fonte de
comentários na perspectiva, geralmente, de compreensão dos hábitos dessa grande
cidade. Com relação ao assunto da memória, sua cidade de infância, que é Araraquara,
desencadeará seus relatos confessionais. Pensando, portanto, nesses dois grandes eixos,
“podemos sentir que a relação São Paulo e Araraquara parece conter uma tensão de
opostos que mantém esse escritor. As recordações que essa cidade suscita nos levam a
outra constante de suas crônicas: memória.” (Brandão, 2004: p.09)
Nota-se, pelo exposto até aqui, que cruzamentos podem ser feitos entre as
crônicas de Loyola Brandão e de Cony, no que concerne aos relatos das lembranças de
infância. Saindo da perspectiva do espaço da casa, tanto a cidade paulistana Araraquara,
como o bairro carioca Lins de Vasconcelos são pontos-chave, para interpretar a imagem
da infância na urbe, respectivamente, em Loyola Brandão e em Cony. Diante do
exposto, acha-se conveniente fazer, a partir deste momento do trabalho, uma vinculação
intertextual entre esses autores, que possuem pontos de contato, quanto à crônica
confessional da infância.
Através de uma análise interpretativa das crônicas de Loyola Brandão, do
jornal O Estado de São Paulo, começa-se por comentar o texto “O menino e a moça da
papelaria”, crônica fragmentada em duas partes, publicadas, respectivamente, em 25 de
julho e 1º de agosto de 2003.
Com narração em 3ª pessoa, a referida crônica transfigura, como vários
textos de Cony, o menino Loyola. Típico texto que utiliza procedimentos estruturais
autobiográficos, ele oscila entre presente, passado, presente, contudo o que predomina é
o pretérito, que o momento do presente servirá apenas como pontos de introdução e
conclusão da narrativa.
No primeiro parágrafo do texto, depois de receber um pacote que continha
dois livros de lingüística de uma pesquisadora de Araraquara, ao ler o nome da escritora
e de seu esposo na dedicatória, aciona abruptamente a memória involuntária, “e tudo
ficou claro. Aquele livro [um dos recebidos] com mais de mil páginas teve o mesmo
efeito que o biscoito madeleine para Proust. Acionou a memória afetiva”. (Brandão,
138
2004: p.83) Oportuno comparar, neste lance, a semelhança tanto com o recebimento do
objeto embrulho por Cony, como os procedimentos da memória involuntária em
Quase-memória: quase-romance.
Esse processo da memória é muito comum nas crônicas de Loyola. Para
citar outro exemplo, em “Quem conserta guarda-chuvas?”, narrando um dia em que foi
apanhar o pão no lugar de sua empregada doméstica, lembra que “naquele momento,
minha memória afetiva foi acionada e me vi na fila da padaria Palamone, de Araraquara,
na madrugada, ao lado de meu pai”. (Brandão, 2004: p.71)
Voltando a dissertar sobre “O menino e a moça da papelaria”, depois, então,
de acionada a “memória afetiva” pelos livros, Loyola narrará um período de sua
infância, no qual tinha uma espécie de amor platônico, de encanto, em relação à esposa
de Geraldo Neves, o dono da Papelaria Neide. Isso era motivo para o garoto freqüentar
constantemente o estabelecimento, alegando um motivo qualquer a fim de ver a
encantadora esposa do dono. Loyola lembra suas atitudes na infância, dizendo que
[...] o menino lavava os pés, calçava meias e sapatos e corria pressuroso e
inquieto à Papelaria Neide é porque havia nele a esperança de ver a mulher
do dono. Ele não sabia o nome dela. Apenas a via diáfana, frágil, dotada
daquela beleza que se encontrava somente nas heroínas dos contos de fadas,
algo etéreo, celestial. Nem sempre ela estava na papelaria. Na verdade, quase
nunca. (Brandão, 2004: p.85)
A narrativa, então, durante o percurso do texto, processa o olhar do menino
Loyola criança que, em determinado momento do enredo, irá transpor a barreira do
silêncio, conversando rapidamente com Maria Helena, a mulher visada pelo olhar da
criança. Aliás, Loyola esclarece, no fim do texto, ao retomar o tempo presente, que
Maria Helena, a pessoa que o encantou nos tempos de meninice, é a escritora, que lhe
estava enviando os livros.
No intento de se fazer mais um comentário a respeito do texto, cita-se
abaixo um trecho suplementar da crônica:
Não se sabe quanto durou aquele platonismo admiração
exacerbada. Os anos passaram, a papelaria continuou, depois fechou, ao
menos não a vejo mais na Avenida 7 e os Neves, tanto Geraldo quanto Maria
Helena, se diluíram no espaço. De vez em quando lembrava aquele tempo – e
quanto tempo foi? Tudo envolto em neblina. Teria acontecido ou criei uma
história em minha cabeça, a partir da figura suave de Maria Helena, símbolo
do mundo aprazível que era a papelaria? Depois, aqui e ali, fui recebendo
referenciais e descobri que ela se tornou especialista em língua portuguesa,
lingüista das melhores. (Brandão, 2004: p.86)
139
O fragmento em questão é ilustrativo para comentar que o autor põe em
cheque a veracidade do episódio, isto é, Loyola afirma claramente não saber se o que
narrou foi real. Entende-se que o trecho coloca em pauta até que ponto os episódios
narrados na crônica confessional da infância, de qualquer autor, pode possuir contornos
ficcionais. Depois de narrados os eventos de infância, Loyola relativiza o que foi dito, já
que, na memória, está “tudo envolto em neblina”.
Comparando-o com os escritos confessionais de Cony, mesmo sabendo-se
de sua também ficcionalização do vivido, o escritor carioca diferentemente de Loyola
– não relativiza suas confissões de infância. Parte de um comentário qualquer do
presente, podendo também mergulhar diretamente no passado, sem questionar, quase
sempre, a veracidade do narrado. A história de algum episódio do menino Cony não se
interrompe nem se encerra, com comentários do autor, pautados no esquecimento. Em
compensação, a recorrente analogia inscrita no texto de Cony, entre passado versus
presente, antigo versus moderno ou infância versus velhice se encontra nas crônicas de
Loyola apenas de maneira branda. Firmando-se Cony em um discurso autocrítico
embora confessando, de maneira até pessimista, problemáticas vivências de infância
ele afina-se com os “verdes anos”, em detrimento do adulto grave em que se tornou.
Focalizando as crônicas de Carlos Heitor Cony referentes a um Rio de
Janeiro e, num plano maior, a um Brasil que não existe mais, muitas são as crônicas, nas
quais o autor retrata os hábitos de um passado; fazendo, às vezes, uma comparação com
a contemporaneidade.
Em “O diabo perderá o emprego” (SL), o autor coloca em questão o
processo de evolução da humanidade. Cony relata uma história do imperador Dom
Pedro II, que, ao falar pela primeira vez ao telefone, assustou-se com o recurso, achando
que tinha um homenzinho dentro da caixa do aparelho. Em seguida o autor reflete que:
Daí que é impossível uma visão do futuro, ainda que
aproximada. Nos anos 30, uma revista científica elegeu como maior invenção
do século aquele grampo colocado nas latas de cera de engraxar sapatos.
Antes do grampo, abrir uma daquelas latas era tarefa complicada, aliás,
complicadíssima. Um gênio descobriu que um pequeno grampo colocado na
tampa fazia o papel de alavanca [...]. (SL, p.28)
Pelo excerto, o cronista considera complicado prever o futuro, e lembra a
descoberta do “grampo” das latas, que foi exaltada nos 30 como a grande invenção do
século.
140
em “A casa e o mundo” (HB), apesar de Cony não tratar dos anos 30,
mas sim da década seguinte, o texto torna-se interessante pois mostra de forma sintética
aos leitores, alguns hábitos dos anos 40. É bom lembrar que esse texto não é uma
crônica confessional da infância, porque não se detém na infância do autor, mas sim
num relato global do ambiente dos anos 40. Além disso, nessa época, o autor em foco já
havia ultrapassado a idade pueril, pois em 1940 já tinha catorze anos.
No parágrafo inicial, o cronista opina sobre o período afirmando que:
Não apenas na família brasileira mas na sociedade em geral, o
comportamento da humanidade encontrou nos anos 40 uma espécie de praia
na qual muitos morreriam e outros se salvariam – salvação aparente porque o
ideal de felicidade pretendido não seria alcançado nas décadas seguintes.
(HB, p.149)
De forma pessimista o autor relata que a felicidade buscada não seria
alcançada nas décadas seguintes. Explica ele que a faixa temporal dos anos 40 foi
atípica, pois ficou simetricamente dividida em duas partes: a primeira até 1945, fase na
qual o país estava preso “a valores e compromissos dos anos 30” (HB, p.149); a
segunda, de 1945 até 1950, iniciada com o fim da Segunda Guerra Mundial e
representada, segundo ele, com um “pacote trazido pela paz: a coca-cola, a matéria
plástica, ‘Moonlight serenade’, os cigarros com filtro e os filmes da Atlântica. Juntando
tudo, boa coisa não podia ser”. (HB, p.149) Percebe-se que Cony expõe, no texto, um
certo receio do que viria depois da guerra. A partir deste ponto, o autor descreverá
alguns hábitos dos anos 40. Um deles, por exemplo, é que “não havia a pílula e o coito
interfemural era o maior quebra galho nas relações entre os sexos. Até casais
formalizados na igreja e na pretoria o praticavam nos dias de fertilidade da mulher [...]”.
(HB, p.149)
Ao descrever as circunstâncias do espaço doméstico, o cronista imprime sua
veia pessimista no texto, ao referir-se à falta de afetividade entre os componentes da
família: “dentro de casa, sem TV e sem ar-refrigerado, a família continuava unida e
reunida mais ou menos por falta de alternativas. Todos se toleravam e o que era
extraordinário – às vezes se amavam”. (HB, p.150)
No diálogo entre as diferentes gerações, “os pais tinham a mania de se
apresentarem aos filhos como sobreviventes de uma idade de ouro, resumida na
expressão: ‘no meu tempo’ ”. (HB, p.150) É interessante o fragmento, porque coloca a
141
figura dos pais, fazendo uma ponte entre o moderno sem valor e um passado idealizado
– procedimento comparatista feito em muitas crônicas confessionais do escritor.
Nas palavras finais do autor, é forte a crítica à TV, que surgiria na década de
50. O cronista expõe seu ponto de vista e conclui que a televisão acabou sendo um
dominador veículo de comunicação de massa. Encerra seu relato, afirmando que:
Ninguém sabia então, mas a família preparava-se para sofrer
um golpe mortal com o advento da TV nos primeiros anos da cada
seguinte. Trêmula e prateada, a telinha trouxe um estranho para dentro de
casa: o mundo. De início, um hóspede cordial e divertido. Mais tarde, um
dono cruel e chato. (HB, p.150)
Nessa crônica predominantemente dissertativa, os vocábulos do título casa e
mundo são simbolizados, respectivamente, pela família dos anos 40 e o surgimento da
televisão na década seguinte. São dois pilares, que proporcionam ao autor o
desenvolvimento de seu pensamento. Aliás, tal como essa crônica, é muito comum, nos
títulos do autor, um par de vocábulos que servem para a fundação de uma idéia,
podendo eles se complementarem ou não.
São termos que servem de base para o desenvolvimento textual da crônica.
Na obra O harém das bananeiras, para citar outros exemplos, os títulos, com esta forma
estrutural, são os seguintes: “O fogão e a chuva” (HB), “A moça e a estrela” (HB), “O
pastor e a princesa” (HB), “Vizinhos e internautas” (HB), “Loucuras e escândalos”
(HB), “O castelo e o colete” (HB), “Luz e trevas” (HB), “Mortos e vivos” (HB),
“Opinião x informação” (HB), “Paisagem e mistério” (HB), “O espaço e o tempo” (HB),
“A casa e o mundo” (HB), “A criança e o velho” (HB), “A chaminé e a porta” (HB).
Da mesma forma que o texto “A casa e o mundo”, de Cony, Loyola
Brandão possui crônicas que relatam acerca de pessoas e hábitos do passado. Percebe-
se, por exemplo, esse aspecto na produção de Loyola na crônica “Com a navalha no
rosto”.
O aludido texto baseia-se na figura do barbeiro. Como em muitas crônicas
confessionais comentadas no percurso deste ensaio, essa crônica de Loyola parte de
uma situação do presente, para remeter-se ao passado.
Depois de comentar que entrou numa barbearia para cortar os cabelos, em
determinado dia, Loyola dissertará em torno do profissional barbeiro. No segundo
parágrafo, inicia sua digressão, que continuará até a finalização da crônica:
142
Barbeiro é instituição que ameaçou desaparecer, mas conseguiu
se recompor. Quando nos anos 60 e 70 os homens decidiram deixar o cabelo
crescer, vi muita barbearia fechar as portas. As giletes descartáveis tinham
tirado boa parte da freguesia da barba. (Brandão, 2004: p.68)
Em “As telefonistas sabiam de tudo”, Loyola novamente parte de seu
cotidiano, no caso aqui, comentando sobre cartas, telegramas, cartões e recados
anotados que recebeu em casa, depois de uma cirurgia.
O autor, em seguida, volta-se tanto para sua infância quanto ao sistema de
telefonia de uma época ultrapassada. Loyola, então, convalescendo da cirurgia, discorre
sobre o objeto termômetro, que o impulsionará ao passado:
Parece banal, mas tentem ler a temperatura nas dezenas de modelos
diferentes que estão no mercado. Uns usam o velho mercúrio que aterrorizava
nossos pais, quando éramos crianças. Quebrar o termômetro era uma delícia,
para ficar brincando com a substância cremosa, prateada e brilhante. E
perigosa. O povo antigo tinha sua sabedoria. (Brandão, 2004: p.74)
Quanto ao telefone como meio de comunicação, apesar de criticar as
secretárias eletrônicas, ele não sente saudades de um sistema telefônico rudimentar do
passado, isto é, ainda em processo de desenvolvimento. Criticando as vozes eletrônicas,
do sistema telefônico, muito comuns na contemporaneidade, explica sua posição
favorável ao desenvolvimento tecnológico:
Não que eu seja contra o progresso das telecomunicações. Não tenho
nostalgia daquele sistema arcaico dos anos 50, quando cheguei a São Paulo e
na velha Última Hora ficava pendurado horas em enormes telefones pretos,
esperando linha. Podia ter me tornado monge budista, pela paciência e
concentração. E um interurbano São Paulo-Rio? (Brandão, 2004: p.75)
Tanto a postura bem-humorada de Loyola quanto seu comentário negativo
em relação à telefonia do passado permanecem, ao lembrar os anos vividos em
Araraquara. O cronista adulto lembra então o garoto Loyola:
Anos antes, em Araraquara, para fazer interurbano íamos ao Cine Paratodos,
havia uma agência da telefônica junto com a banca de revistas do Nelson
Rossi. Era pedir a ligação, comprar uma revista, ou pegar uma emprestada e
esperar. Quanto? Só Deus sabia. (Brandão, 2004: p.75-6)
O autor lembra ainda que, devido a essa primitiva telefonia, as funcionárias
que intermediavam as ligações interurbanas usufruíam de certo poder nas cidades:
143
Houve tempo em que as telefonistas eram “importantes” nas
cidades, peças fundamentais da sociedade. Delas dependiam as
comunicações. Conhecê-las ou namorá-las eram trunfos. Mais que isso,
sabiam de tudo e de todos. Se alguma fosse indiscreta, decidisse escrever um
livro, muitas cidades tremeriam, tornar-se-iam a caldeira do diabo. (Brandão,
2004: p.76)
Ao fazer um paralelo dessa crônica com o texto “Secretárias eletrônicas”
(SL), Cony, igualmente a Loyola, mostra ao leitor o enfado do discurso automatizado
dessas secretárias modernas:
Do mesmo modo que sou entusiasta das secretárias de carne, osso e voz,
embirro com as ditas eletrônicas. Não as tenho, não pretendo -las e nutro
progressiva antipatia por quem as cultiva. Dou um azar desgraçado, pois
quanto mais estou com pressa, mais esbarro com essas maquininhas infernais.
(SL, p.126)
Saindo de comentários gerais, tanto nos escritos de Loyola quanto nos de
Cony, a respeito dos hábitos de um passado que não se assemelha com a modernidade
do presente, a crônica confessional da infância do autor em estudo será retomada
novamente neste ensaio. Neste tópico em pauta, serão compreendidos os textos nos
quais o menino Cony pratica a deambulação pelo Rio de Janeiro dos anos 30. Contudo,
estas crônicas, quase sempre, não situam objetivamente o leitor quanto à época na qual
se deu aquele antigo fato, resgatado pelo texto confessional.
“Festa da primavera” (HB) é o exemplo primeiro destas crônicas. O texto
configura-se nitidamente em dois planos: o presente elaborado pela descrição, e passado
rememorado, episodicamente, pela narração.
Os momentos iniciais da crônica (dois primeiros parágrafos) exprimem o
sentimento do autor em relação à chegada da primavera na sua cidade. Mostrando-se
insensível, o cronista auto-analisa-se negativamente (aspecto este visível em sua obra
em crônica), com a chegada da nova estação: “devo ser um monstro, entre outros
motivos, porque nunca me emociono devidamente com a chegada da primavera”.
Relatando que a passagem de uma estação a outra “é marcada por um tempo esquisito”
(HB, p.201), o fragmento descreve fisicamente um céu, captado pelo olhar do cronista:
Nuvens de cinza pastoso, dramático, escondem a serra da
Tijuca e amortalham o Corcovado. As águas da Lagoa refletem um céu
opaco, sem profundidade. Nem chega a ser céu: é uma espécie de lona
144
incolor e gasta que cobre o Grande Circo onde todos nos esbofamos para
que o espetáculo continue. Para que e para quem? (HB, p.201)
Qualificadores presentes no trecho apresentam um céu peculiar, no habitat
do cronista. As nuvens são acinzentadas, perfazendo um céu “opaco”, sendo uma
“espécie de lona incolor e gasta que cobre o Grande Circo”. É necessário ressaltar ainda
a visão cética ou sem perspectivas para a existência humana, metaforizada de “Grande
Circo”.
A condição meteorológica do presente desencadeará o pensamento do
cronista à Festa da Primavera de sua infância, dando início, portanto, ao segundo plano
estrutural da crônica. A figura do pai expansivo faz parte mais uma vez das recordações
de infância do autor. Estritamente narrativa, a segunda parte mostra a ansiedade do pai
ao chegar a casa, para levar o filho a um evento público. A época é de certa forma
situada através da idade do menino Cony, mas não convicção pela lembrança do
adulto, corrompida pelo tempo (“aí pelos seis anos”):
Em criança, aí pelos seis anos, o pai chegou excitado (aliás, ele
vivia de forma excitante em todas as ocasiões, fosse inverno ou verão).
Anunciou que me levaria à Festa da Primavera, na Quinta da Boa Vista, uma
bolação que ainda não merecia o nome atual de “evento”, mas era como se
fosse. (HB, p.201)
A crônica mostra, em seguida, o retrato de uma criança só, com receio mas
querendo conhecer um mundo além do espaço restrito da casa. Seu maior amigo era o
próprio pai como foi comentado em momento oportuno homem com alma de
criança, que buscava diferentes maneiras de deixar seu filho feliz. Cony retrata então
que a festa “era muito para um pobre marquês, ou melhor, para o menino desconfiado e
triste que eu era e, de certa forma, nunca deixei de ser”. (HB, p.202)
O pai como de costume gerou forte expectativa no menino Cony, que
redundou numa decepção. A criança esperava mais que
Bananeiras de papel crepom à entrada da Quinta, duas moças vestidas de
arco-íris distribuindo uma bandeirinha brasileira, uma charanga tocando a
“Valsa dos Patinadores”, a esqualidez das barracas vendendo cachorro-quente
e pipoca. (HB, p.202)
O pai, afastando o filho dos discursos enfadonhos que havia no local, leva o
filho a “andar de bote no laguinho da Quinta” (HB, p.202). A crônica encerra-se, por
fim, com a lembrança do cronista: “prometeu que, quando eu crescesse, e fosse um
145
garoto bonzinho, me daria um barco de verdade. Barco que nunca tive, que nunca me
levou a lugar algum”. (HB, p.202)
Esse último fragmento mostra como muitos excertos da obra em crônica
de Cony – um lirismo pessimista, a visão melancólica de um adulto que busca o
passado, a fim de compará-lo com o presente.
Em “A casa mal-assombrada” (HB) tem-se o clima de mistério na
lembrança de um episódio da infância. À maneira de narrativas de suspense, o texto,
antes da inserção dos personagens, inicia-se qualificando determinado espaço da cidade:
Morava numa casa esquisita, no fim de uma rua que não levava
a lugar nenhum. A casa tinha fama de ser mal-assombrada e a rua nem tinha
nome. Diziam que ali houvera uma fazenda de café cujos escravos mataram
todos os senhores da casa-grande e depois se mataram antes que fossem
mortos pelas forças da lei. (HB, p.52)
O autor coloca em cheque a veracidade do que diziam do lugar: “lenda ou
realidade, o fato é que nenhum menino se atrevia a passar por ali”. Depois de criado o
ambiente terrificante ao imaginário infantil, o texto centra-se no menino Cony que, tal
como os outros, tinha medo daquele lugar. O cronista começa então a narrar um dos
episódios de sua infância:
Até que um dia, vindo de uma aula de catecismo, decidi cortar
caminho e fui dar num atalho que não conhecia. Quis voltar mas a
curiosidade de conhecer o mundo me levou adiante. De repente, com pavor
no peito e tremor nas pernas, estava diante da casa mal-assombrada. (HB,
p.52)
Na deambulação pela cidade, o menino Cony esbarra com a “casa mal-
assombrada”, e encontra “uma menina de franjinha na única janela aberta”. (HB,
p.53) O episódio chega ao clímax quando, depois de iniciar um diálogo com a menina
da casa sombria, recebe o seguinte convite: “depois do interrogatório, veio o convite
inesperado: ‘Quer ser meu namorado?’ Disse que sim. Prometi voltar no dia seguinte,
embora sabendo que nunca mais botaria os pés naquele chão assombrado. (HB, p.53)
A fuga do menino Cony daquele misterioso ambiente público é motivo de o
cronista mais uma vez criar uma imagem negativa de si: creio que foi ali, também,
que dobrei a esquina errada na vida. Nunca mais me pediram a mesma coisa. Desconfio
146
que devia ter voltado”. (HB, p.53) Cony, nas suas crônicas, cria uma persona textual,
que se auto-degrada, podendo ser definido como um “escombro humano”
28
.
A deambulação do menino Cony pelo Rio de Janeiro dos anos 30 continua
em “O mártir de Vila Isabel” (AA). Predominantemente narrativa, a crônica remete o
leitor a outro episódio, acontecido na infância do cronista.
O texto inicia-se com a rotina do menino Cony, na função de coroinha:
Saltava do bonde em frente ao botequim da Rua Souza Franco,
esquina com o Bulevar 28 de Setembro, botequim existente até hoje com o
mesmo nome: Ponto de Cem Réis. Do lado oposto, havia outro botequim, era
ali que uma turma de boêmios acabava a noite sem iniciar o dia. (AA, p.93)
Note-se a busca do escritor, em especificar os logradouros públicos da
infância, cenários da deambulação do menino Cony. A ação central da crônica surge
quando, depois de descrito o conhecido sambista, dos anos 30, Noel Rosa (“um cara
sem queixo, tuberculoso notório”) (AA, p.93), este músico
[...] largou o violão, pegou uma chapinha de cerveja Cascatinha e a jogou em
minha direção.
Raspou com força pela minha orelha esquerda. Ouvi ainda a
voz fanhosa gritando: “Lá vai o filho do padre ajudar a missa!” Passei a mão
pela orelha, havia um arranhão que sangrava. Corri. (AA, p.93)
O vigário chama o garoto de mártir, ao vê-lo chegar sem fôlego à sacristia.
O texto mostra que o coroinha Cony acaba descobrindo que seu agressor era um artista
musical: “fiquei sabendo que meu agressor fazia uns sambinhas e estudava medicina,
chamava-se Noel Rosa. Garantiram-me que ele iria para o inferno”. (AA, p.94)
A crônica encerra-se com a atitude do menino Cony em procurar a tampa de
cerveja que o ferira: “depois da missa e da precoce canonização, voltei ao ponto de
bonde. O botequim estava vazio. Procurei na calçada a chapinha de cerveja. Não sei por
que, tinha a suspeita de que devia guardá-la”. (AA, p.94) A citação mostra a consciência
do cronista adulto em relação à figura importante que foi Noel Rosa nos anos 30.
Depreende-se dessa crônica confessional da infância mais uma
ficcionalização dos tempos de quando Cony foi coroinha. É comum, como no texto em
análise, o contar de um episódio da infância, estilizado pelo autor com toques ficcionais,
a fim de produzir, em seu texto subjetivista, o melhor efeito artístico.
28
Cf. as observações feitas a partir do vocábulo “escombro”, no tópico “O menino e o pai”, do capítulo
segundo.
147
Ignácio de Loyola Brandão lembra em pelo menos duas crônicas (“A
tristeza da Sexta-feira Santa” e “Momento de poder”) a época na qual foi também
coroinha.
Para citar um exemplo de Loyola coroinha, depois de comentar sobre A
tristeza da Sexta-feira Santa” lembra seu “momento de poder”, em duas ações. A
primeira na sexta-feira santa, durante as procissões (“em lugar da campainha, o coroinha
batia a matraca. Macabro. Mas eu adorava a encenação”) (Brandão, 2004: p.91); a
segunda, na missa matinal do sábado de Aleluia (“começava com a igreja na penumbra
até o momento do Glória. No que o padre rezava o Glória, eu devia tocar a campainha.
Abandonava a matraca e soava a campainha vigorosamente. Momento mágico”).
(Brandão, 2004: p.92)
Ainda nessa perspectiva da relação entre cidade e infância, o percurso, para
se chegar à cidade de Niterói, é lembrado por Cony como viagens da infância. Em
“Mistério e alucinação” (AA), o cronista lembra Niterói como um lugar longínquo, nas
cansativas viagens da época de criança:
No meu tempo de menino, a viagem a Niterói era uma viagem
ao fim do mundo, ao último pedaço de matéria. Tomava-se a barca na Praça
Quinze e, meia hora depois (se a maré não estivesse contra, se estivesse,
podia demorar dias), descíamos no outro lado do Universo, além do Buraco
Negro formado pelo Big Bang. (AA, p.197)
em “Sinais” (SL), conta o escritor que “numa das mudanças de minha
infância, fomos parar em Niterói”. (SL, p.71) Faz-se necessário dizer, aqui, que o
menino Cony foi morar em Niterói, em 1930, devido ao pai ter perdido o emprego, no
jornal O Paiz, por causa da Revolução de 1930 comandada por Vargas. O Paiz jornal
que defendia o governo deposto de Washington Luís foi então incendiado por
manifestantes da revolução varguista.
No capítulo nono, de seu Quase-memória: quase-romance, Cony lembra
essa época difícil para sua família:
O pai ficou sem emprego e, durante algum tempo, na clandestinidade.
Foram tempos difíceis. A primeira providência tomada por ele
coincidia com a que todos os decaídos tomavam: foi morar em Niterói, onde
os aluguéis das casas e a vida, em geral, tinham fama de serem baratos. Havia
gente que morava em Bangu e ia cortar o cabelo em Niterói. Apesar do gasto
com as passagens, às vezes saía mais barato mesmo. (Cony, 1997: p.64-5)
148
Durante essa fase ruim, o menino Cony e sua família morariam em Niterói
por dois anos.
Depois de contextualizados historicamente os anos 30 (período da infância
de Cony) e feitas as análises interpretativas de crônicas selecionadas, é necessário
explicar que essas crônicas, pautadas nos pilares infância e cidade, são
predominantemente narrativas tal como as crônicas analisadas no capítulo segundo. São
textos que narram episódios da infância, sendo a descrição do espaço físico da cidade
quase inexistente, na composição destes enredos em pauta.
3.2 O MENINO E OS TIPOS POPULARES DO LINS DE VASCONCELOS
É freqüente, na obra em crônica de Carlos Heitor Cony, o retrato do espaço
do Lins de Vasconcelos, vinculado a personagens, que habitavam esse bairro de infância
do menino Cony. O tópico em pauta verificará, então, como se configura esse espaço do
passado, composto de recorrentes personagens da urbe, em contato com o Cony criança
e sua família. Yves Reuter, ao dissertar sobre as funções espaciais dos textos literários,
assevera que “estes lugares se organizam, formam sistemas e produzem sentido [...].
Freqüentemente eles delimitam os campos das personagens: lugares reservados a umas
e a outras, lugares comuns e lugares de passagem”. (Reuter, 1996: p.60) No caso das
crônicas de Cony, os personagens em questão, portanto, são circunscritos ao bairro Lins
de Vasconcelos.
É importante lembrar que esses personagens, nas crônicas de Cony, mesmo
sendo de certa forma recorrentes, não encabeçam os nomes que intitulam as obras do
autor. Pode-se fazer um paralelo dessa questão com Luis Fernando Veríssimo e Sérgio
Porto, cronistas que, diferentemente de Cony, possuem tulos de livros que imprimem
nomes de personagens de destaque adquirindo muita importância, na obra em crônica
desses autores.
29
Feita essa ressalva, pode-se afirmar que, em relação aos personagens
de Cony, Sacadura – além de ser um dos mais comentados pelo autor
30
– é a figura mais
pitoresca dessas narrativas em questão. Sua imagem refletida em crônicas diversas é a
de um homem que se relaciona com mulheres casadas.
Em “Por causa do Sacadura” (HB)
31
, por exemplo, é narrado um episódio
envolvendo esse personagem, que fazia parte de um triângulo amoroso. O cronista inicia
o texto, apresentando ao leitor o perfil dos personagens de sua história:
Seu Werner foi o primeiro corno que conheci. Era um suíço e
um pleonasmo, pois usava suíças, aquela barba que rodeia o rosto como um
anel. Sua cara daria excelente efígie para um selo postal. Era casado com uma
morena rechonchuda, vagamente baiana, que o traía às escondidas com um
29
Como exemplo, podem ser observados os títulos: VERÍSSIMO, L. F. Todas as Histórias do Analista de
Bagé. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002 e PORTO, S. Tia Zulmira e Eu. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.
30
As crônicas publicadas em livro, nas quais esse personagem está presente com seu nome impresso, ou
então, de maneira implícita, através de traços de sua personalidade, são as seguintes: “Crime passional”
(AA), “Novidades” (AA), “A janela e o menino (Resumo dos anos mais antigos do passado)” (AA), “Por
causa do Sacadura” (HB), “O que fazer” (SL), “Carta de mulher com calvário e retorno” (TN).
31
Essa crônica foi reproduzida, sem alterações, na coletânea O presidente que sabia javanês.
150
tal de Sacadura, famoso apanhador de passarinhos e balões no Lins de
Vasconcelos. (HB, p.217)
“Seu Werner”, depois de receber uma carta anônima sobre a prevaricação da
esposa, decide vender o estoque de seu armazém e matar-se logo em seguida. O cronista
explica, com um toque de humor, que “tanto fazia comprar um quilo de farinha ou uma
lata de sardinhas portuguesas: tudo custava um preço mínimo. Foi a primeira liquidação
a que assisti, e a mais feroz. Em dois, três dias, o armazém ficou vazio”. (HB, p.217) E a
memória do suicídio é relatada em seguida:
Lembro a manhã em que ele, fechado o armazém por falta do
que vender, deu um tiro nos miolos. o ouvi o tiro mas volta e meia, em
minhas noites de insônia, ouço aquele tiro. E penso no Sacadura, que mais
tarde veio a ser balconista na loja “Barcelos dos Parafusos”. (HB, p.218)
Denota-se na crônica que o autor, preocupado em desenhar personagens de
forma caricata e narrando a postura assumida por cada um deles, não descreve, em
trecho algum, o espaço físico do bairro. O que é uma única referência ao bairro da
infância, que, mesmo assim, surge de maneira oblíqua, na caracterização de Sacadura:
“famoso apanhador de passarinhos e balões no Lins de Vasconcelos”. os
personagens, são citados com freqüência na narrativa.
É oportuno transcrever um significativo comentário do autor, sobre seus
personagens na crônica confessional da infância. Perguntado se essas figuras de
presença reiterada nas crônicas de cunho autobiográfico são reais, Cony responde então:
Mais ou menos reais, eu não tenho certeza se são reais. Tenho a
impressão que, às vezes, acredito que existam, mas às vezes não. Eu tenho
vários personagens recorrentes como o Arranca, por exemplo. Têm alguns
personagens que são verdadeiros, outros são da minha ficção. É preciso ver
que a gente, desde criança, começa a inventar o mundo para nós. Tenho a
impressão que o personagem Sacadura eu inventei. Agora de tal maneira foi
inventado que ficou presente em mim, e hoje eu acredito que ele foi, pelo
menos para mim, real, mas não me lembro de ter conhecido nenhum
Sacadura. (Anexo B: p.205)
Ao comentar, especificamente sobre o Sacadura, o autor ainda acrescenta
que “talvez tenha [ele existido], mas muito remotamente, mas não me lembro
sinceramente. [...] O Sacadura para mim é um símbolo, assim, de um sujeito sacana, que
fazia de tudo. Ele é um personagem mítico da minha infância”. (Anexo B: p.205)
Ratifica-se mais uma vez neste ensaio, através dos comentários de Cony, o
híbrido terreno entre o real e ficcional das crônicas confessionais da infância. Quanto
151
aos personagens, o autor expõe claramente que uns são reais e outros não. No caso do
Sacadura, por exemplo, Cony, ao perscrutar sua memória, acredita que seja ficcional,
acrescentando ainda valor ao personagem, ao afirmar que é uma figura mítica de sua
infância. No processo de elaboração memorialística, a distância entre o narrador adulto
e os tempos da infância gera, como se sabe, o fator esquecimento, o qual por sua vez
proporciona ao escritor engendrar uma outra realidade por meio da ficção.
De maneira empírica a interpretação do retrato de Sacadura, em diferentes
crônicas do autor, exemplifica o afirmado por Cony, no trecho citado da entrevista em
anexo. Logo, tendo como base de modo arbitrário o texto-matriz “Por causa do
Sacadura”, percebe-se que existem múltiplos “Sacaduras” na construção desse tico
personagem para Cony.
Traçando uma analogia que se inicia, partindo de textos mais próximos ao
texto-matriz, em “Crime passional” (AA), a diferença se configura porque o suíço
Werner, antes do suicídio, acaba matando sua esposa, fato que não é mencionado no
texto-matriz:
Não sabia o que era crime passional, muito menos quem podia
ser aquele Dante. Fui assuntar na rua. O nosso vizinho, um suíço de olhos
azuis e barbas brancas, havia se matado. Antes, matara a mulher, fêmea
muito cobiçada, que ele encontrara em baixo do Sacadura famoso
apanhador de balões, emérito soltador de pipas. (AA, p.24)
Em comparação com o “Por causa do Sacadura”, percebem-se nítidas
aproximações, como por exemplo com a figura do desocupado Sacadura, que se
entretinha com pipas e balões. O enredo continua a refletir o texto anterior, em nova
menção ao Sacadura que “– ninguém sabia como – conseguira escafeder-se antes do tiro
fatal. Anos mais tarde o encontrei por acaso, como balconista da loja Barcelos dos
Parafusos”. (AA, p.24)
O foco central do “Crime passional” é a narração dessa história de adultério,
contudo, no primeiro parágrafo, é atribuído valor psíquico ao espaço da rua, como ainda
é apresentada uma seqüência de personagens que não compunham o texto-matriz:
A rua era tranqüila, o bonde Lins passava de dez em dez
minutos, pelas manhãs vinham o leiteiro, o garrafeiro, o amolador de facas e
tesouras. À tarde, o sorveteiro. À noite, o menino que vendia amendoim
torradinho com sua lata cheia de brasas soltando fagulhas. (AA, p.24)
152
Retomando o pensamento de Yves Reuter, essa rua, caracterizada como
tranqüila, é então o lugar público onde se delimitam uma série de personagens, isto é, o
locus público é preenchido por esses tipos populares.
Em “A janela e o menino (Resumo dos anos mais antigos do passado)”
32
, a
distância se inicia em relação ao enredo do texto-matriz, pela breve e única referência
ao “homem que deu um tiro na mulher que o traíra”. (AA, p.251) Nessa crônica, há uma
série de outras figuras representativas, presentes em outros textos do autor. São os tipos
caracterizados como: o vizinho “Almeida” que teve a perna cortada pelo bonde, “o
leiteiro”, “o guarda-noturno”, “o guri que vendia amendoim torradinho”, “os
mascarados do carnaval”, “o sorveteiro” e “a leprosa”.
Em “Novidades” (AA), há uma inversão do problema do adultério, pois
agora Sacadura é quem sofre com a traição da sua mulher: “houve um escândalo na rua,
a mulher do Sacadura havia fugido com um garçom da Confeitaria Lallet. Sacadura
entrou em crise, apelou para a macumba, para a polícia [...]”. (AA, p.173) Essa crônica
também acrescenta outros personagens ao texto. O próprio título “Novidades” é o nome
do protagonista. Uma distante época, na qual a memória se estabelece, nesses “dias mais
antigos do passado, quando havia pela cidade os chamados ‘tipos populares’ ”. (AA,
p.172) Definindo essas personalidades textuais, a partir do Dicionário de teoria
narrativa, o tipo pode ser considerado como
[...] uma subcategoria da personagem, o tipo pode ser entendido como
personagem-síntese entre o individual e o coletivo, entre o concreto e o
abstrato, tendo em vista o intuito de ilustrar de uma forma representativa
certas dominantes (profissionais, psicológicas, culturais, econômicas etc.) do
universo diegético em que se desenrola a ação, em conexão estreita com o
mundo real com que estabelece uma relação de índole mimética. (Reis e
Lopes, 1988: p.223)
O tipo popular, então, é essa figura representativa de determinado grupo
social. No caso dos textos de Cony, são pessoas, normalmente de poucos recursos, que
simbolizam uma classe social inserida no Lins de Vasconcelos.
Na crônica “Novidades”, fora o Sacadura, dois tipos populares são
apresentados no texto: o “Novidades” e o “Ventania”. Representam os desocupados,
que perambulam pelo humilde bairro. Ao traçar um perfil desses dois tipos, Cony
lembra que:
32
A crônica foi comentada também no tópico “O menino Cony”, do capítulo segundo.
153
[...] conhecido pelo óbvio nome de Novidades. Ele sabia tudo e anunciava
parte do que sabia. Era diferente dos outros porque falava se perguntado.
O Ventania, por exemplo, era desacreditado porque falava sem ser inquirido.
O Novidades valorizava o silêncio, mas nunca se ouviu dizer que deixasse
pergunta sem resposta. (AA, p.172)
Tal como seus atos, a própria alcunha confere uma designação popular a
essas pessoas impressas nos textos.
Citando ainda o nome do Sacadura, em mais um texto “O que fazer” (SL)
a imagem dessa figura difere bastante da do texto-matriz, que apenas “era major
reformado não sei de onde” (SL, p.120), bem longe, então, daquele amante de mulheres
casadas. Em “Carta de mulher com calvário e retorno” (TN), Cony uma nova feição
ficcional ao caso do adultério, centrando-se na figura da esposa que trai. É bom
ressaltar, também, que o nome Sacadura não aparece nessa crônica. O narrador adulto
então comenta: “lembro-me de um vizinho que perdeu a mulher, chamava-se Ema,
como a Bovary, tinha fama de trair o marido, morrera tísica era comum atribuir a
doença ao excesso de fornicação”. (TN, p.32) Vê-se na citação que o autor faz
referência à personagem Madame Bovary que nome ao romance do escritor francês
Gustave Flaubert.
O tipo popular Sacadura, como uma figura mítica da infância de Cony,
metaforiza, na maioria das crônicas citadas, a temática do amante de mulheres casadas,
o desestabilizador dos laços conjugais. No comentário abaixo, transcrito do Dicionário
de teoria narrativa, um detalhamento da definição do “tipo”, fazendo alusão
justamente à figura do amante e ao tema do adultério:
O tipo encerra virtualidades sígnicas evidentes, uma vez que a
sua presença no sintagma narrativo denuncia-se inevitavelmente pelo
concreto de indumentárias, discursos e reações com um certo cariz
emblemático, remetendo para os sentidos de teor social e psicológico que
inspiram a sua configuração, sentidos esses em que não raro se reconhece
uma certa incidência temática (cf., p. ex., a relação entre o tipo do sedutor e o
tema do adultério). (Reis e Lopes, 1988: p.224)
Imbricando Sacadura e o tema do adultério, impressos na obra em crônica
de Cony, entende-se que o autor criou um tipo popular, dentro de uma proposta textual,
que ficcionaliza os episódios da infância. Em síntese, esse processo literário se
configura da seguinte maneira: o menino Cony capta um fato ocorrido em seu habitat,
fixando-o na memória, de maneira tal, que, décadas depois, o Cony adulto rememora o
vivido, porém com o suporte da ficção.
154
Nesse trânsito entre memória e ficção, é necessário citar ainda um
fragmento do romance O indigitado, que no excerto o autor sintetiza a história do
adultério, envolvendo o Sacadura. É um comentário que, por sinal, está muito próximo
ao texto-matriz (“Por causa do Sacadura”):
Quarenta anos antes, em 1926, ali houvera um crime de morte,
complicada mistura de ciúme, suspeitas, adultério, flagrante e tiros, que
deram relevo à rua e à ladeira. A mulher chamava-se Alzira, o marido
chamava-se Acácio. O amante chamava-se Sacadura. O crime emocionou a
cidade e passou a ser conhecido como “A tragédia da Ladeira do Lins”.
(Cony, 2001: p.16)
Além da figura mítica Sacadura, a fim de ilustrar o tópico em pauta, citam-
se, nos parágrafos subseqüentes, outros tipos recorrentes.
Em “Nostalgia das galinhas” (HB), no processo comparativo entre passado e
presente, a figura do guarda-noturno é colocada em movimento, num espaço que não
existe mais: “nas longas noites, noites dos anos mais antigos do passado, quando o sono
era leve e o silêncio profundo, ouvia-se o apito solitário do guarda-noturno que
atravessava as ruas e os caminhos marcando a presença da lei e da ordem”. (HB, p.193)
em “Noites de outro tempo” (AA), fora a figura do guarda-noturno, são
acrescentados ao texto o vizinho Almeida e o menino vendedor de amendoim. Depois
de situar o leitor nos hábitos do passado, ao dizer que o dono da casa apitava ao guarda-
noturno, quando era ameaçado de roubo ou roubado, Cony lembra um episódio,
envolvendo um ladrão de galinha:
Houve a noite em que seu Almeida apitou no meio da noite.
Solidários, todos acordaram. O guarda-noturno tomou as providências que
dele a sociedade esperava. Apanharam um cara com um saco cheio de
galinhas. Seu Almeida deu uma das galinhas para o guarda, outra para o
próprio ladrão e ficou com as restantes. Guarda e ladrão, cada qual segurando
uma galinha, foram para o distrito, ou talvez nem isso, cada um tomou seu
próprio rumo.
Todos voltaram para a cama, orgulhosos da ordem, tendo o que
contar no dia seguinte. E passou o menino vendendo amendoim. Torradinho
[...]. (AA, p.170-71)
Tal como “seu Almeida”, o guarda-noturno e o vendedor de amendoim, o
ladrão de galinha, narrado no episódio, como representa, por metonímia, uma condição
social de algumas pessoas, é também considerado um tipo popular.
Na crônica “O mundo e o menino” (SL), é mostrada a visão ingênua do
menino Cony, que, ao observar o cotidiano do Lins de Vasconcelos, interpreta o mundo,
155
entendendo-o como inexorável, isto é, como se nada mudasse com o tempo. Nesse
específico olhar pueril, o menino inclui justamente os tipos populares em seu universo
inabalável:
Quando comecei a tomar conhecimento do mundo e das coisas, achava que
tudo estava certo, tudo acontecia e existia em forma de eternidade. A chuva, a
noite, o bonde Lins, que vinha de 15 em 15 minutos, a leprosa que, pedia
esmolas, o seu Almeida que, aos domingos vestia o pijama e ficava na
calçada, dando e recebendo boas noites de quem passava. (SL, p.90)
Na citação em questão, vê-se novamente a presença de um espaço público
que fixa os limites dos tipos populares, encontrados na obra em crônica de Cony.
Isto posto, salienta-se que, neste tópico da pesquisa, a categoria narrativa
espaço, fincou-se, de maneira explícita, na configuração do espaço social, representado
pela funcionalidade, no texto, dos tipos populares do bairro de infância Lins do
Vasconcelos. Bairro este, lembrado metaforicamente, também, através dos hábitos de
pessoas do passado.
Do ponto de vista físico, o bairro não é apresentado pela descrição detalhada
das ruas, praças ou qualquer logradouro público. Cony, por exemplo, não se interessa
em comentar sobre o tamanho de sua rua, se ela é importante ou não para o povo. Não
descreve também os comércios do bairro, nem as fachadas das residências de sua
infância. Na crônica confessional da infância de Cony, focada na cidade, o espaço
arquitetônico é o que menos se manifesta nos textos do autor. Em resumo, esses textos
podem retratar tanto os costumes dos moradores do bairro quanto a narração de algum
episódio do passado. De uma forma ou de outra, os tipos populares são postos, em
maior ou menor grau, nesses textos memorialísticos, de tons ficcionais.
Quanto ao menino Cony, normalmente ele figura em segundo plano dessas
narrativas. Contudo, o olhar pueril é relevante como aspecto textual introdutório da ação
narrativa. É, por exemplo, na visão quadrangular da janela ou na calçada da rua, que
podem ser enquadrados diversos tipos populares na crônica de Cony.
3.3 O ESPAÇO INTERPARES
Neste tópico de encerramento da pesquisa, a categoria espaço será
configurada quanto à crônica confessional da infância, de forma conotativa, que o
assunto em questão focalizará as relações entre os meninos, isto é, entre o menino Cony
e seus pares.
A fim de se fazerem algumas relações intertextuais, começa-se por comentar
“Foguete de bairro”, de Carlos Drummond de Andrade. A crônica mostra o escritor
adulto em contato com meninos de seu bairro, o leitmotiv para Drummond expressar,
em seu texto, as idiossincrasias dos pequenos. No parágrafo inicial, explica o contato
que teve com os meninos:
Os garotos da vizinhança vieram pedir-me auxílio para
construção de um foguete intersideral, mostrando-me o respectivo projeto. A
contribuição podia ser em alumínio ou cruzeiros, que é uma espécie mais
leve, praticamente imponderável, de alumínio. (Drummond, 1998: p.105)
O fragmento mostra a busca dos garotos de um entretenimento para o grupo,
que chega a fundar uma “sociedade de pesquisas espaciais”. (Drummond, 1998: p.105)
Nota-se, portanto, que a crônica põe às claras o caráter lúdico, representado nas
brincadeiras de infância. Os objetivos da sociedade, por exemplo, são explicados ao
cronista pelo “Ricardinho”:
O que todos queremos, explicou-me o Ricardinho, é ver o
foguete aprumar; e se o foguete aprumar legalmente, e se houver mais
“alumínio”, fabricar outro foguete mais legal ainda, até que ele possa levar
um rato, depois um gato, depois um cachorro e, finalmente, os próprios
membros da sociedade, cada um por sua vez. (Drummond, 1998: p.105-06)
O excerto é ilustrativo pois apresenta o espírito lúdico dos pequenos, através
da brincadeira de infância.
Manuel Bandeira também possui um par de crônicas que aponta a relação do
escritor com os meninos do bairro entre infância e maturidade. Em sua “A Trinca do
Curvelo”, os passatempos entre o grupo, como o jogo de futebol, por exemplo, afeta o
adulto, que externa sua raiva, ao traçar o perfil dos infantes:
157
Os piores malandros da terra. O microcosmo da política. Salvo
o homicídio com premeditação, são capazes de tudo até de partir as
vidraças das minhas janelas! Mentir é com eles. Contar vantagem nem se
fala. Valentes até na hora de fugir. A impressão que se tem é que ficando
homens vão todos dar assassinos, jogadores, passadores de notas falsas ...
Pois nada disso. Acabam lutando pela vida, só com a saudade do único tempo
em que foram verdadeiramente felizes. (Bandeira, 1998: p.116-17)
Interessante que o tom agressivo da fala inicial de Bandeira desmancha-se,
ao tentar profetizar o futuro dos garotos, que, para o cronista, terão saudades do tempo
de infância. O autor, portanto, coloca a infância como um período espontâneo e ditoso.
em “A antiga trinca do Curvelo”, Manuel Bandeira resgatará o texto
escrito anos antes. Remetendo à sua criação artística do passado, Bandeira situa o leitor
do presente:
Vai para uns quinze anos escrevi uma crônica sobre a trinca do
Curvelo, Curvelo, a Rua do Curvelo, em Santa Tereza, hoje Rua Dias de
Barros. Expliquei então que trinca era na linguagem da molecada a baderna
dos meninos do bairro e passei em revista alguns dos tipos mais curiosos da
malta do Curvelo. (Bandeira, 1998: p.210)
Os tipos infantis do passado são agora adultos empregados, o que orgulha o
cronista, apesar de ter sido alvo (janelas quebradas, por exemplo) das brincadeiras entre
os meninos:
Perdi o contacto com a trinca. Hoje, passando na Avenida Rio
Branco, vi o Álvaro. Álvaro vende bilhetes de loteria e joga futebol. Está com
vinte e um anos, não que saber de casamento. Foi ele que me deu a notícia
dos companheiros de dez anos atrás.
A única tristeza é a loucura de Lenine (já no tempo do Curvelo
sofria de ataques epilépticos). Os outros, porém, prosperaram. Encarnadinho
é alfaiate na Lapa; o pretinho Malaca, ajudante de alfaiate; Culó, aviador;
Orlando e Rafael, cadetes do exército; Peru Maluco e Arlindo, gráficos; Zeca
Mulato foi sapateiro, mas estudou e hoje é datilógrafo; Bacurau é
investigador; Ademar, jogador de boxe e de luta livre... Nenhum se perdeu.
Nenhum tem nota de culpa na polícia. (Bandeira, 1998: p.211)
Pela exposição de Bandeira percebe-se que essas figuras de hoje crianças
no passado podem ser comparadas com os tipos populares de Cony, pois possuem
apelidos, deambulam pelo bairro e são postos, de forma caricata, nos dois textos de
Bandeira. Logo, são tipos populares infantis, que cresceram e obtiveram empregos os
mais variados.
A satisfação do cronista faz rememorar de forma saudosa um tempo antigo,
mostrando que, na verdade, sua relação com esses tipos era fraterna: “tenho saudades
158
desses meninos. Prestavam-me de vez em quando um servicinho, a que eu procurava
corresponder com fornecer-lhes linha e papel fino para os papagaios”. (Bandeira, 1998:
p.211-12) O adulto não chega a fazer parte direta do universo desses interpares, mas
relaciona-se com os mesmos no seu cotidiano.
Nessa perspectiva de interpares meninos, pode-se citar a relação de Rubem
Braga menino com seus amigos. Eram garotos que pescavam no “córrego Amarelo”,
jogavam futebol na rua e estudavam numa simples instituição da cidade, o grupo
escolar. Com relação ao jogo de futebol, interessante destacar uma trilogia de crônicas
contra os Teixeiras
33
vizinhos que moravam em frente à casa de Braga. O conflito
narrativo da trilogia aparece pela censura dos Teixeiras contra o jogo dos meninos.
Alegavam eles o fim do esporte por causa do barulho e da janela de vidro, que um dia
fora quebrada pelos garotos.
Trovoadas, chuvas que aumentavam o volume do rio Itapemirim, descrição
de cajueiros, pitangueiras a flora de um modo geral são outros temas freqüentes da
Casa dos Braga: memória de infância.
Toda essa reminiscência de Rubem Braga é elaborada de duas formas em
crônica: por uma lembrança bem distante trazida pela memória afetiva; e pelo próprio
retorno do autor à sua cidade, à fazenda do seu avô, à casa de seu pai, fazendo, em
alguns momentos, um paralelo entre o passado e o presente.
Ao falar do seleto grupo que as crianças formam entre si, Chombart de
Lauwe revela
O tipo de grupo que as crianças formam, quando estão reunidas, completa
simultaneamente as características da personagem e a imagem de “outro
mundo” que é suscetível de criar quando vive livremente com seus
semelhantes, antes de ser marcada pelos adultos. (Chombart de Lauwe, 1991:
p.129)
Segundo a pesquisadora, vê-se que cada grupo tanto uma feição
específica a um único ser (um personagem) que ingressa nele, como também configura
esse espaço singular criado pelos interpares.
Pensando nesta perspectiva relacionada ao autor em estudo, muitas crônicas
de Cony são construídas devido à memória da presença recorrente do grupo de infância,
os meninos urbanos do Rio de Janeiro.
33
As referidas crônicas são: “Os Teixeiras moravam em frente”, “As Teixeiras e o futebol”, “A vingança
de uma Teixeira”.
159
Tão importante quanto “O fogão e a chuva”
34
, a crônica “O harém das
bananeiras” (HB), inserida no livro de mesmo nome, relata o despertar da sexualidade
de garotos pré-adolescentes com seus ritos de iniciação sexual. Antes de se chegar à
essência da trama em torno dos garotos o texto principia referindo-se ao fato de Luís
Carlos Prestes ter tido sua primeira relação sexual aos trinta e sete anos, segundo
depoimento de Fernando Morais. Através do exemplo de Prestes, Cony “revela o quanto
pode ser complicada esta primeira vez em que um homem se diante da mulher e vai
conhecê-la naquele sentido que, academicamente, se chama de ‘bíblico’”. (HB, p.24-5)
Da mesma maneira que o exemplo de Prestes, Cony alude à sexualidade de
outras figuras importantes da história e da literatura, referindo-se a Stendhal, Goethe e
Nero, “que começou cedo mas nem todo mundo tem a mãe que ele teve, que não deixou
para outra a primeira vez do filho”. (HB, p.25)
Num segundo momento, adotando ainda o ponto de vista histórico, ressalta
o processo de iniciação sexual de jovens do interior, que têm o costume de usarem
animais para a obtenção do prazer juvenil. “Na Sicília e na Grécia, as ovelhas eram as
preferidas pelos rapazes. Em certa região da Calábria, as galinhas também serviam para
o gasto”. (HB, p.26) Transferindo seus comentários históricos sobre a iniciação sexual
para uma análise particular, vivida no Lins de Vasconcelos, Cony explica então que os
garotos da sua região não tinham relações com animais, e sim com as bananeiras,
porque “era difícil encontrar uma vaca, uma égua ou cabra dando sopa por lá. Em
compensação, havia muitas bananeiras” (HB, p.26) nos quintais das casas.
O autor, seqüenciando a recordação, explica com detalhes o que acontecia:
“o negócio vinha de geração em geração: fazia um buraco no caule da bananeira. Um
caule macio, úmido, viscoso. Cada um tinha sua própria bananeira, com o buraco na
altura e medida apropriadas”. (HB, p.26) Para estes jovens, tudo era tão sério que,
segundo o autor, houve até casos de agressão, como um episódio acontecido com seu
primo Jerônimo, que cortou um menino usando canivete:
O primo possuía um canivete de duas lâminas que infundia
terror e lhe garantia o poder sobre as bananeiras. Uma tarde, passou por mim
o filho de um vizinho, um fraco abusado que invadira o harém e se metera a
besta com uma das bananeiras do Jerônimo. Estava coberto de sangue. (HB,
p.27)
34
Esta crônica foi comentada no tópico “O menino Cony”, do capítulo segundo.
160
Ao falar de si e comparando-se com os outros colegas, Cony afirma que: “eu
era muito garoto para me dedicar àquele passatempo”. (HB, p.26) O cronista, portanto,
apresenta os costumes dos interpares, não chegando a fazer parte daquelas experiências.
Winnicott explica que o indivíduo quer dar sua contribuição pessoal, compondo nesses
círculos sociais vínculos fraternos além dos familiares:
Quando examinamos esse fenômeno evolutivo que se inicia
com o cuidado materno e prolonga-se até o interesse da família pelos filhos
adolescentes, não podemos deixar de notar a necessidade humana de ter um
círculo cada vez mais largo proporcionando cuidado ao indivíduo, tem de
inserir-se num contexto que possa, de tempos em tempos, aceitar uma
contribuição sua nascida de um impulso de criatividade ou generosidade.
Todos esses círculos, por largos e vastos que sejam, identificam-se ao colo,
aos braços e aos cuidados da mãe. (Winnicott, 1993: p.130-31)
No ensaio sociológico “As turmas de jovens”, inserido em volume
organizado por Philippe Ariès e AndBéjin (Sexualidades Ocidentais: contribuições
para a história e para a sociologia da sexualidade), Hubert Lafont acrescenta à
discussão em pauta comentários acerca de jovens urbanos parisienses. O autor explica,
inicialmente, a permanência de uma cultura popular, representada por grupos
normalmente marginalizados que se opõem a “modelos sociais artificiais, nascidos não
de práticas que se solidificam em cultura, mas da reflexão de filantropos e de
engenheiros sociais” (Lafont, 1985: p.194). Hubert Lafont explica a questão, quando
afirma que
Em determinados setores tradicionalmente populares de Paris
subsiste assim uma sociedade autóctone vivaz e imaginativa, especialmente
bem protegida. Os grupos que portam tal socialidade resistem graças a um
meio social e urbano denso, que oferece principalmente aos jovens, que
desempenham um papel determinante nessa capacidade cultural,
possibilidades de ocupação do espaço e de modos de habitação ainda
amplamente coletivos. (Lafont, 1985: p.194-95)
Contudo, apesar da resistência, ao longo da história, desses “setores” que
conservam características próprias, inseridos no meio urbano, o pesquisador ressalta que
houve uma quebra da continuidade dessa cultura popular, a partir dos anos 60:
Parece ser verdade que a partir dos anos 60 se produziu uma
ruptura relativamente radical nessa continuidade cultural de que falamos
acima. Os adolescentes, principalmente, já não parecem buscar nos meios
populares onde nasceram os elementos necessários à sua passagem para a
idade adulta. Como resultado, parece que desempenham cada vez menos, na
161
construção da socialidade de seus grupos de origem, o papel privilegiado que
até aqui lhes coube. (Lafont, 1985: p.195)
O que Hubert Lafont denota em seu ensaio é que houve uma mudança
estrutural, de ordem social e sexual, com o surgimento de interpares urbanos, na década
de 60, formado por jovens parisienses burgueses. Tal como as práticas de iniciação
sexual, na década de 30, dos meninos urbanos do Lins de Vasconcelos, lembrados por
Cony, esses jovens parisienses querem se afirmar no grupo em que estão inseridos. Para
o estudioso, eles são
Os rapazes fisicamente mergulhados nesse universo coletivo e
levados por uma competição viril [que] desenvolvem uma espécie de
“machismo” característico. Entre a homossexualidade, que poderia se
exprimir como traição, como um insulto aos valores dos “caras”, e um
donjuanismo que rapidamente poria fim à turma e a impediria de viver muito
tempo na rua, sua sexualidade repousa no reconhecimento do vigor de cada
um por parte do grupo e se afirma como masculina. (Lafont, 1985: p.203)
O fragmento apresenta duas atitudes que funcionariam como fatores para
desconstruir o grupo “machista”: a homossexualidade e o “donjuanismo”.
No processo conyano de dizer e re-dizer um episódio do passado; alterando,
aqui e ali, o enredo memorialístico pela intromissão do fator imaginação, na procura da
literariedade, o tema central de “O harém das bananeiras” é retomado na crônica “À
sombra das bananeiras” (SL). Os textos possuem fragmentos semelhantes quanto à
comentada iniciação sexual dos interpares do Lins de Vaconcelos. A fim de citar alguns
exemplos do insistente retorno aos fatos do passado, em “À sombra das bananeiras”, o
cronista explica que todas as casas, as conhecidas pelo menino Cony, possuíam quintais
com bananeiras, e “foi através delas que aprendi as primeiras noções da vida sexual”.
(SL, p.147) Na crônica em questão o autor estipula idades para os interpares, inclusive
para si, sendo estes dados não ditos em “O harém das bananeiras”:
Era comum ver garotos de 13, 14 anos agarrados nas
bananeiras. Gemiam alto, outros gemiam altíssimo, numa emulação que eu
não entendia e que parecia fazer parte da brincadeira.
Andava pelos oito anos e achava aquilo incompreensível,
vagamente condenável. Quando me pegava sozinho me agarrava numa
bananeira, gemia alto mas não sentia nada de especial. Achava que não se
devia fazer aquilo com as bananeiras, cuja função é dar bananas. (SL, p.147)
Nas duas crônicas em pauta, percebe-se que o menino acha a prática da
“relação” com as bananeiras condenável, não obstante ele participar, sem interesse,
162
desse hábito grupal. Esses comportamentos de iniciação sexual são ritos por que passam
esses meninos urbanos. São costumes seguidos por todos, caracterizando-se, todavia,
pela socialização, embora não se possam esquecer dos aspectos de índole subjetiva na
formação do indivíduo. O típico contato com as bananeiras, desses meninos dos anos
30, simboliza, portanto, um ritual de passagem da infância para a adolescência, etapa
em que um grande despertar para a sexualidade. Numa postura sociológica, Claude
Rivière, ao definir os ritos, afirma que
[...] devem ser sempre considerados como conjunto de condutas individuais
ou coletivas, relativamente codificadas, com um suporte corporal (verbal,
gestual, ou de postura), com caráter mais ou menos repetitivo e forte carga
simbólica para seus atores e, habitualmente, para suas testemunhas, baseadas
em uma adesão mental, eventualmente não conscientizada, a valores relativos
a escolhas sociais julgadas importantes e cuja eficácia esperada não depende
de uma lógica puramente empírica que se esgotaria na instrumentalidade
técnica do elo causa-efeito. (Rivière, 1996: p. 30)
Nesses ritos de iniciação sexual, Cony coloca, nas duas crônicas, o primo
como uma figura de destaque do grupo. Em “O harém das bananeiras”, o primo
Jerônimo feriu com canivete um menino “abusado que invadira o harém”. Em “À
sombra das bananeiras”, não é impresso o nome do primo, contudo a ênfase nesse
personagem também é forte. Cony confessa então: “outro dia, falei [...] com um primo
mais velho. Falei nas bananeiras. Confessei que não as apreciara. Ele me reprovou:
‘Não sabe o que perdeu!’ ”. (SL, p.147) Esse trecho citado é o que finaliza essa crônica
confessional da infância.
Ao discorrer sobre a veracidade do fato principal de “O harém das
bananeiras”, Cony relata que:
Era muito comum isso, apenas eu fantasio um pouco. O ponto de partida dela
é uma coisa verdadeira e ali era muito comum no Rio de Janeiro, sobretudo
onde havia quintais, onde havia bananeiras, era muito comum isso. Fazia
parte da molecagem, da sacanagem precoce do brasileiro. (Anexo A: p.197)
O dado real a iniciação sexual com bananeiras praticada pelos interpares
dos anos 30 é ficcionalizado também, além das crônicas citadas, no romance Pilatos,
que segundo Cony é sua melhor criação: “como se sabe, escrevi Pilatos, que considero,
conforme falei tantas vezes, o meu melhor livro e anunciei que abandonava a
163
ficção”.
35
Pode-se dizer que o processo em questão é a influência da memória
transferindo-se para a ficção romanesca fato muito comum na carreira de qualquer
escritor pois são pessoas inseridas num contexto histórico-social e que acabam
colocando dados verídicos em suas obras ficcionais. Cony mostra-se um mestre nesta
artimanha literária. É o que se pode notar ao serem confrontadas as crônicas “O harém
das bananeiras” e “À sombra das bananeiras” com um trecho de Pilatos
livro de
conteúdo mais licencioso dentre os do autor.
No segundo capítulo deste romance, o narrador-personagem Picadura, que
morava no bairro Lins de Vasconcelos, relembra que meninos obtinham prazer por meio
das bananeiras; e que ele, diferentemente dos outros, não conseguia chegar ao orgasmo
por ser mais novo.
Excetuando-se a linguagem de Pilatos, na qual predomina o estilo coloquial,
com a inserção de vocábulos de baixo calão, o trecho citado tem profundas semelhanças
com as referidas crônicas. O narrador-personagem, além de ter morado na sua infância,
no mesmo bairro que Cony, também não conseguia sentir prazer na “relação” com as
bananeiras – imagem presente e já comentada nas duas crônicas do autor:
Lembro que me ensinaram a foder bananeiras – um esporte
muito em voga nos meus tempos de menino mas que caiu em desgraça por
falta de estímulo (a Confederação Brasileira de Desportos nunca o enquadrou
em seus estatutos) e de bananeiras, que não mais crescem nos quintais desta
cidade. Fazia-se um buraco no caule das ditas, os meninos mais crescidos ali
metiam o pau, esfregavam-se compenetradamente, e gozavam. Eu não
conseguia gozar, metia o meu toco e gostava de sentir o contato viscoso e
macio que envolvia o meu pau. Perguntavam se estava gozando – e eu
mentia, dizia que sim. (Cony, 2001: p. 07)
Quanto ao conteúdo, nota-se, portanto, a forte semelhança entre os textos.
Apesar de parecidos neste aspecto, Pilatos está distante de ser uma obra autobiográfica.
O que houve, neste caso, foi uma influência destes momentos marcantes da vida de
Cony, que se deslocaram naturalmente para a ficção. É importante frisar que a imagem
do passado foi retomada primeiramente no romance Pilatos publicado em 1974
vinte e cinco anos antes da publicação de O harém das bananeiras e vinte e oito de O
suor e a lágrima (coletâneas das quais fazem parte, respectivamente, as crônicas O
harém das bananeiras” e “À sombra das bananeiras”).
35
Em 1974, Cony publica Pilatos e afirma que jamais voltaria a escrever romances. Contudo, em 1995,
durante a doença, culminando com a morte de sua cadela setter, chamada Mila, o autor escreve,
publicando no mesmo ano o Quase-memória: quase-romance; e retorna então à ficção.
164
O enredo de Pilatos centra-se no protagonista Álvaro Picadura. Ele é um
personagem que sofre um acidente e tem seu órgão sexual retirado num hospital, em
que freiras cuidavam dos pacientes. Romance com um texto agressivo e de maior crueza
na obra do autor, Pilatos retrata fortemente as obsessões sexuais, e o lado escatológico e
niilista do mundo. Isso porque o protagonista passará por aventuras amargas, levando
consigo seu órgão sexual, guardado num recipiente, com solução de formol.
Fazendo parte da crônica confessional da infância de Cony, um tema que
compõe esse bloco dos interpares garotos da década de 30 é a infância vinculada às
festas de carnaval. Acerca do assunto, Cony possui as representativas crônicas: “O
morcego encantado” (AA), “O carnaval e o menino” (AA) e “O arlequim, o carnaval e o
menino” (TN). Textos que, para efeito de análise, serão designados, respectivamente, de
crônica A, crônica B e crônica C. Sabe-se que no processo memorialístico de Cony um
acontecimento do passado ou até mesmo alguma impressão ou interpretação, na ótica
pueril do menino Cony é ficcionalizado pelo imaginário do adulto. Nessas crônicas,
em particular, a lembrança da deambulação dos meninos usando máscaras no Carnaval
é mostrada na figura do introspectivo menino Cony e de outras crianças na urbe.
De modo esquemático, serão transcritos alguns trechos das crônicas; sendo,
em seguida, feitas as devidas observações.
Esquema
“O morcego encantado” – crônica A
“O carnaval e o menino” – crônica B
“O arlequim, o carnaval e o menino” – crônica C
crônica B: “[...] pelos anos 30, eu era menino e esperava o Carnaval [...] com certo
temor, medo dos mascarados e, ao mesmo tempo, vontade de ser um deles”. (AA, p.104)
A localização temporal impressa na citação anos 30 não é encontrada
nas outras duas crônicas. Depois de situar o tempo da narrativa, o autor partirá para a
ação do enredo de cunho autobiográfico.
crônica A: “Em Paquetá, onde em criança passava o verão, durante o Carnaval os
meninos se fantasiavam de morcego”. (AA, p.68)
165
crônica B: “[...] encontrava outros meninos-morcegos, era uma espécie de fantasia
oficial dos meninos de Paquetá [...]”. (AA, p.106)
O espaço público aqui é denotado pela praia carioca de Paquetá, onde o
menino Cony costumava passar as férias com a família. O autor lembra também o uso
marcante da fantasia de morcego.
crônica A: “Os meninos mais ricos saíam de chinês, bigodes feitos com rolha
queimada, a sombrinha colorida que me enfeitiçava. Eu jamais sairia de chinês, jamais
consentiria que meu rosto fosse aviltado com o bigode de rolha queimada. Mas a
sombrinha me fascinava”. (AA, p.68)
crônica B: “[...] saí de morcego, em criança, assustando outras crianças em Paquetá.
Minha mãe havia confeccionado complicada fantasia de chinês (ou japonês, dava na
mesma), cuja atração principal era o chapéu de cartolina, em feitio de chapéu de chinês
mesmo. [...] Meu irmão virou a mesa (ele ia sair de reles marinheiro americano, não era
bem uma fantasia mas um quebra-galho carnavalesco) e urinou em cima do meu chapéu
chinês, [por isso, o improviso da roupa de morcego]”. (AA, p.104-05)
crônica C: “Não sei por que, sempre me fantasiaram de coisas simples, morcego,
legionário, marinheiro do Rio Comprido, houve o ano em que sde chinês, foi daí que
nasceu meu pessimismo, minha birra com a vida e com a humanidade”. (TN, p.195)
Confirmando, empiricamente, a tese de que a memória se corrompe com o
tempo, Cony explica, nas crônicas A e B, que não usou a fantasia de chinês, enfatizando
a questão, ao dizer: “jamais sairia de chinês”. Contudo, na crônica C, relata justamente o
oposto. O autor “lembra” que: “houve o ano em que saí de chinês”. A memória é
traiçoeira, além de ser seletiva, é parcial. Por isso o fator ficção está presente de alguma
forma na crônica confessional da infância de Cony.
crônica A: “Saíamos com a túnica preta de tecido ordinário e a máscara monstruosa que
cheirava a cola e papelão”. (AA, p.68)
crônica B: Depois de danificado o chapéu pela urina do irmão, “Minha mãe foi ao
armarinho, comprou pano preto, a horrível máscara preta pendurada do lado de fora da
loja, máscara que cheirava a papelão e a cola e assim passei e passeei os três dias que
chamavam de folia pelas ruas desertas e cheias de sol de Paquetá, dando susto nas
166
crianças que conhecia e evitando aquelas que não conhecia, podiam ser mais fortes do
que eu e aí o sovado seria eu com máscara e tudo”. (AA, p.105)
“[...] eu vestia o morcego, a máscara com cheiro de papelão e cola, suada já,
e eu sozinho, eu-morcego, batendo as ruas cheias de sol [...]”(AA, p.106)
Fora a deambulação do menino Cony, na praia de Paquetá, é forte a
lembrança do cheiro da máscara, usada na infância, inclusive com semelhante estrutura
vocabular, ao referir-se a esse odor do passado.
Adotando uma perspectiva histórica, Philippe Ariès comenta sobre esses
difarces carnavalescos. Depois de relatar que, num período pós-medieval (do século 16
ao 18), era comum em festas o uso da máscara, principalmente pelas mulheres o
historiador afirma que o uso diminuiu, chegando ao ponto de o disfarce ser usado só por
crianças – tal como é representado nas crônicas de Cony:
A partir do século XVIII, as festas à fantasia se tornaram mais raras e mais
discretas na boa sociedade. O carnaval tornou-se então popular e atravessou o
oceano, impondo-se aos escravos negros da América, enquanto os disfarces e
fantasias foram reservados às crianças. Atualmente, as crianças se
mascaram no carnaval e se fantasiam para brincar. (Ariès, 1981: p.124)
O espaço da rua aparece como suporte da narrativa para o brincar dos
personagens. É o local de encontro dos meninos, no fragmento do texto B, por exemplo,
há breves descrições (“ruas desertas e cheias de sol”, “ruas cheias de sol”).
crônica A: “Ia desprevenido pela Rua Tomás Cerqueira, em direção à Praia de São
Roque, quando inesperadamente surgiu uma caveira. Eu tinha pavor, pânico das
caveiras. Aceitava tudo no Carnaval – e mesmo fora dele – mas caveira era demais.
A rua estava deserta, nós dois, caveira e morcego. Ela quis se engraçar
comigo, faríamos uma dupla folgazã. Encharcado de suor, afônico, corri desesperado”.
(AA, p.69)
crônica B: “[...] sentia frio na espinha quando esbarrava com uma caveira, de camisola
branca e encardida, a cruz preta nas costas, devia ser um garoto igual a mim, mas nunca
se sabe, e esta dúvida me perseguia a tarde inteira, por que botam caveiras nas ruas do
Carnaval?” (AA, p.106)
167
Percebe-se que o menino fantasiado de caveira é um dos interpares das
narrativas. É um personagem que põe medo no menino Cony, e que por isso mesmo
tornou-se uma figura importante.
No texto A, o cronista imprime um caráter verídico, ao situar o espaço da
deambulação, através da designação de uma rua existente ainda hoje, na ilha de
Paquetá: a rua Tomás Cerqueira. Rua esta que, no episódio narrado, está quase deserta,
sendo o local onde se estabelece o encontro entre os interpares. Esses espaços das
crônicas – independentes de serem nomeados no texto – adquirem certa funcionalidade,
pois são os locais onde a trama se desenvolve.
crônica A: “[..] peguei-me ao morcego, descobria que ele combinava comigo e eu com
ele, não me obrigava a coreografias complicadas. Escondido pela monstruosa cabeça de
papelão, eu podia continuar eu mesmo.
Ali pelas dez horas, colocava a túnica preta e a máscara, ficava zanzando
pelas ruas, não chamava a atenção de ninguém, nada fazia para isso, não era o meu
gênero e muito menos o meu Carnaval”. (AA, p.68)
crônica B: “[...] grudei na cara rias máscaras, várias caras, se não obtive poder e
glória, ao menos sobrevivi quieto e no meu canto, fazendo um tipo de Carnaval a meu
modo, véspera de cinzas”. (AA, p.104)
“Quando a tarde caía, jogava a máscara de grandes orelhas para cima da
cabeça e me recolhia, sentindo-me mau e amaldiçoado, perguntando-me sem resposta:
quem foi o cretino que inventou essas coisas?
Em casa, todos queriam saber se eu havia gostado do meu Carnaval.
Respondia que sim, não queria complicar a vida dos outros, bastava a minha própria
complicação. Se respondesse que não seria obrigado a dar explicações, o melhor era ir
na onda para me deixarem em paz”. (AA, p.105)
Essas últimas passagens mostram com clareza a introspecção do menino
Cony. A imagem aqui da infância é representada pela introspecção da criança, que
aceitava por conveniência ser mascarado de morcego e participar de uma atividade
interpar, no âmbito da rua. A voz e o pensamento do melancólico menino Cony criam,
portanto, o espaço psicológico no texto. São dezenas de crônicas nas quais o autor
simboliza sua infância através de personagens tristes e deslocados do mundo. O menino
é um gauche à Drummond:
168
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. (Drummond, 1974: p.03)
O Carlos do verso simboliza tanto o pré-nome de Heitor Cony como o traço
característico da imagem infantil em suas crônicas. Com uma postura anedótica, através
de uma visão extremamente individualista que explica ao leitor o seu nascimento, Cony
relata, então, o início de sua existência:
Numa avaliação deste século e deste milênio, o fato mais
importante se deu em março de 1926. Um acontecimento recente, sem
dúvida, mas que representou o eixo do milênio, a referência maior e
praticamente única – do século que está acabando. (TN, p.46)
É oportuno ressaltar que o fragmento acima foi transcrito da crônica
“Grande momento do milênio foi um inocente” (TN), publicada no último dia do século
20 (31/12/1999) na Folha de São Paulo. Cony cria um forte retrato de cunho
autobiográfico, que mais parece em alguns momentos seu curriculum vitae. No
parágrafo segundo, por exemplo, afirma então: “deu-se que naquele s e ano, num
aprazível lugar que antigamente os cariocas chamavam de Boca do Mato, numa rua
chamada Lins de Vasconcelos, no número 214, e, para ser exato, às quatro horas da
tarde de um domingo, nasceu um menino”. (TN, p.46-7)
Dando seqüência aos fatos centrados na existência do autor, Cony relata
que, em seu batistério, seu pai havia colocado
A placa [que] dizia: “Aos 22 dias do mês de março de 1926, aqui neste
batistério, foi solenemente batizado o inocente Carlos Heitor”.
Este “inocente Carlos Heitor” sou eu mesmo e é possível que
naquele tempo fosse ainda inocente. E o “solenemente” ficou por conta do
pai, que adorava solenidades e advérbios de modo. (TN, p.47)
O símbolo da inocência é retomado em “O peregrino da noite de maio”
(TN), texto publicado no mesmo jornal, em 31/05/2002. Ao lembrar uma fase do
passado, Cony diz: “para falar a verdade, nunca antes entrara numa igreja, com exceção
do dia do meu batismo, quando eu ainda era aquilo que o padre chamou ‘o inocente
Carlos’ ”. (TN, p.225)
169
O surgimento do espaço psicológico, no terreno do Carnaval da infância, é
também representado na crônica “Restos de carnaval”, de Clarice Lispector. A escritora,
depois de comentar que nunca se fantasiou, lembra:
E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e
necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o
rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu de
escada, se um mascarado falava comigo eu de súbito entrava no contato
indispensável com o meu mundo interior, que não era feito de duendes e
príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com
os mascarados, pois, era essencial para mim. (Lispector, 1999: p.83)
A menina Clarice ficava no da escada de sua casa, vendo os outros se
divertirem. Tal como Cony, que detestava a figura da caveira, a viagem ao interior de si,
ligada ao tema da solidão infantil, está presente no fragmento. Tanto o menino Cony
como a menina Clarice evitavam diálogos com os adultos. Preferiam ficar no seu canto,
sem causar problemas aos outros.
Na crônica “José Lins do Rego” (AF), tem-se a comparação entre o menino
urbano e o rural, mais especificamente nas figuras do menino Cony e o menino José
Lins. As palavras iniciais remetem logo ao passado pueril de José Lins: “estou pisando a
mesma terra e sentindo os mesmos cheiros da infância de José Lins do Rego. O caminho
foi longo”. (AF, p.113) Como se percebe neste início de texto, o processo
memorialístico se constrói quando Cony aporta na terra da infância de José Lins, na
Paraíba. Sendo acompanhado por uma filha de José Lins, que apresenta a casa onde
morou o “menino de engenho” a residência do avô materno, o coronel José Paulino
Cony retoma, na escrita da crônica, seu olhar diante daquele ambiente rural:
Em volta, ruína e solidão. Na antiga senzala vive agora a família que ali
restou do coronel Jo Paulino. E em tudo o mais vive a saudade de uma
infância que se perpetualizou em livro e que encontrou, em mim, a identidade
que só sei encontrar nos meninos tristes de todo mundo. (AF, p.113)
Ao fazer referência à construção literária de José Lins, onde o tema da
infância rural é marcante, Cony lembra, novamente, sua infância melancólica. Esse
aspecto do passado, isto é, de uma infância que poderia ter sido algo mais encobre a
visão racional do adulto. O olhar do cronista Cony é pueril, preferindo a ingenuidade da
170
criança à consciência de um adulto. Nessa crônica, o autor desenvolve esta característica
posta na sua obra. Ele confessa, por exemplo, que:
Não compreendo os adultos. Considero-os estanques, isolados,
destacados dramaticamente numa paisagem estranha da qual não participo
nem quero participar. Não sei amar os adultos, não os compreendo, e o pouco
que sei deles para desprezá-los. Mas os garotos ocupam um território
comum a todos os garotos, e a fidelidade que procuro manter à minha própria
infância de menino da cidade encontra fraternidade e amor naquela infância
primitiva e doce. (AF, p.113-14)
Na casa do coronel José Paulino, Cony volta-se, mais uma vez, à infância;
procurando fazer uma analogia entre o menino José Lins e o menino Cony, crianças que
foram criadas em ambiente diverso. A construção de uma figura pueril negativa
expressa por Cony, em seu caldo lingüístico entremeado de ficção e confissão, é posta
novamente em evidência pela lente do adulto: “fico distante dos demais para melhor
sentir a presença do menino dos dois meninos possíveis ali naquele chão de açúcar e
sol. O menino que foi José Lins do Rego, e o menino que poderia ter sido eu”. (AF,
p.114)
Na obra de Cony, a imagem pesarosa de sua infância é comumente
estilizada, através de uma carga lírica personal. Ao colocar o menino Cony em pauta no
curso memorialístico de sua crônica, o autor se expressa, por jogos metafóricos de
linguagem, de modo a criar, em boa parte de sua crônica confessional da infância,
textos poéticos, de cunho pessimista.
O lirismo de “O menino das meias vermelhas” (AA), por exemplo, pode ser
sintetizado pelos vocábulos: solidão, indiferença e zombaria. Com foco narrativo na
pessoa, a crônica transfigura o Cony criança pela descrição psicológica do personagem.
Apresentando a gênese do apelido da criança, o texto mostra que os interpares
“repararam que sempre usava meias vermelhas e ele ficou sendo o ‘menino das meias
vermelhas’. Vivia pelos cantos, quase não falava, quase não existia. Apesar disso, não
parecia infeliz. Era apenas solitário: era o Menino das Meias Vermelhas”. (AA, p.26)
O enredo explica que o menino usava meias vermelhas por causa de sua
mãe, que o obrigara, no dia do seu aniversário, a vesti-las devido à sua ida ao circo,
junto com ela. A indiferença expressa no texto ocorre através de dois pontos de vista: 1)
Pela ótica do menino, que não se importava em ficar sozinho; 2) Pela ótica dos
interpares, que o isolavam do grupo. O parágrafo transcrito abaixo resume esses dois
pontos de vista:
171
E todos os dias vinha o Menino das Meias Vermelhas com
suas meias vermelhas, com seu silêncio, sua solidão, como se esperasse
alguma coisa ou como se tudo houvesse acontecido com ele. Ninguém
dava mais importância ao menino nem às suas meias vermelhas. E era isso o
que ele parecia desejar. (AA, p.26)
A partir deste ponto, ingressa o elemento zombaria na ação da narrativa.
Sem poder jogar futebol, nem soltar pipas por causa da chuva, os interpares resolvem
insultar o menino solitário:
“Você não está no circo! Tire essas meias vermelhas, elas são
ridículas!”
O Menino das Meias Vermelhas não ficou aborrecido. Depois de
algum tempo falou, como se falasse consigo mesmo: “Eu vou continuar
usando meias vermelhas. É que minha mãe foi embora. Um dia, talvez ela
passe por mim em algum lugar, verá minhas meias vermelhas e me
reconhecerá.”
O sol apareceu de repente e os outros meninos foram jogar pelada e
soltar pipas. (AA, p.27)
Percebe-se pelos fragmentos transcritos um subjetivismo peculiar, ao ser
elaborada uma infância melancólica, que simboliza a própria vida pueril de Carlos
Heitor Cony. Pensando nesta perspectiva, “O menino das meias vermelhas” não é um
texto isolado da obra em crônica de Cony
36
. O autor constrói uma pessoa infantil
ficcional mas que, ao mesmo tempo, representa o real.
Quanto à categoria narrativa espaço, neste tópico dos interpares meninos
urbanos dos anos 30, foi observada breve referência a descrições de ruas, pois o espaço
aqui se configura muito mais num sentido figurado, isto é, na relação entre os
interpares, inseridos em enredos pintados, artisticamente, com tintas do real e ficcional.
36
Cf. por exemplo as crônicas “Os anos mais antigos do passado” e “A janela e o menino (Resumo dos
anos mais antigos do passado)”, com os devidos comentários, no tópico “O menino Cony”, do capítulo
segundo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A dissertação O espaço da infância nas crônicas de Carlos Heitor Cony
proporcionou uma análise da idade pueril em contextos literários diversos. Tomando-se
por base a Literatura Comparada, estabeleceu-se um confronto temático entre as
crônicas do autor em foco; e um outro cotejo, de natureza intertextual, através das
crônicas de escritores brasileiros que também enfeixaram, em livros, textos publicados
na imprensa, ao longo dos anos.
Nessa tarefa de garimpar imagens da infância, no âmbito da crônica
confessional da infância de Carlos Heitor Cony, observou-se o quanto o tempo interfere
na maneira de se reescre(ver) o passado. E não poderia ser de outra forma. Afinal, o
tempo flui e influi. E o refluxo das relembranças nunca é o mesmo. Tal como a sua
reescrita. Por isso, então, a intromissão do elemento ficcional, que em síntese é
gerado por três fatores: pelo esquecimento, pela criação de um tom anedótico quanto ao
assunto narrado ou para a obtenção de um determinado efeito de linguagem. De um
modo geral, depreende-se que o autor, normalmente, mescla algo de pessoal, um
episódio verídico ou não e algum elemento histórico.
Ao trazer seu passado para o palco do texto de modo seletivo, Carlos
Heitor Cony propaga com bastante intensidade e sem o menor receio seus traumas
de infância, relacionados à figura de um “adulto-escombro” – a persona literária
construída em sua crônica. Entende-se, assim, que a chave para a compreensão das
imagens da infância na obra do autor se organiza em torno de um adulto melancólico e
desiludido, que resgata, em geral, uma infância também pesarosa. Infância que
poderia ter sido.
Pensando, como tal, autoproclama-se melancólico, jamais nostálgico,
porque, segundo o próprio autor, a “nostalgia é a saudade de um tempo perdido,
melancolia é a saudade de um tempo que não houve”. (SL, p.109-10) Ao compor, então,
um “Auto-retrato” (HB) estilhaçado físico e moral Cony declara, ao perscrutar seu
interior: “não sou nostálgico, tenho até aversão aos nostálgicos. Sou melancólico o
que é outra coisa, apesar de parecida”. (HB, p.267)
Importante também destacar aqui um comentário acerca do período da
infância, conforme Carlos Heitor Cony:
173
[...] a infância é muito mais cheia de frustrações, de experiências impossíveis,
de mistérios. É a fase das condições, das barreiras. Se eu fosse representar a
infância, representaria com um garotinho querendo empurrar uma barreira,
uma muralha enorme. Mas, paradoxalmente e a trajetória humana é uma
grande contradição, é um paradoxo –, a infância é nosso momento mais
espontâneo, é a fase em que temos a coragem de fazer as coisas, de dizer as
coisas, de perguntar as coisas. Depois a vida vai nos reprimindo, e de
castração em castração se produz o adulto. (Cony, 2001: p.36)
Ou melhor, o “adulto-escombro”. Essa reflexão teórica de Carlos Heitor
Cony talvez seja o que represente melhor a sua própria infância. A relação entre
frustração e espontaneidade somada a outro paradoxo: ao da criança admirada diante do
mundo, fugindo mas, ao mesmo tempo, desejando ser do mundo. Seriam esses os
grandes pilares da representação pueril de Carlos Heitor Cony.
Sobre esses textos breves, publicados na imprensa nacional e enfeixados em
coletâneas, pode-se afirmar que sofrem variações quanto ao estilo.
Em crônicas líricas, profundamente poéticas, podendo chegar até a um
discurso filosófico em torno da infância, o autor reorganiza o vivido em texto,
trabalhando, geralmente, com as variações temporais da fórmula memorialística:
presente, passado, presente. Logo, parte de um comentário acerca de algum assunto
contemporâneo que o leva, em seguida, aos “anos mais antigos do passado”. E, no
fechamento do trabalho com a linguagem, volve-se ao momento presente.
Já em outros textos, predomina uma intensa ação narrativa, a partir de algum
evento pretérito. As crônicas, por isso, assemelham-se a contos. O diálogo entre os
personagens, em torno de uma questão qualquer, dão o tom da narrativa. Uma coletânea
que ratifica bem a questão é Quinze anos (A juventude como ela é). Aliás essa obra,
apesar de possuir algumas crônicas do autor, é considerada como reunião de contos em
sua folha de rosto. Nesses textos, o estilo torna-se leve e veloz, com doses de
coloquialismo. De um modo geral, podem ser comparados às crônicas de Luis Fernando
Veríssimo ou Fernando Sabino, no que tange à utilização da linguagem.
Essas duas tendências da crônica confessional da infância de Carlos Heitor
Cony não são estanques, podendo haver uma fusão entre elas, inseridas em um único
texto. Na verdade, é muito subjetivo traçar parâmetros fixos para a crônica, pois são
textos, normalmente diários, publicados na dinâmica dos periódicos da imprensa, sendo
confeccionados pelo temperamento de cada escritor. No caso das crônicas de Cony que
remontam à infância pode existir, por exemplo, uma poeticidade lingüística, que
comporte, também, ágeis diálogos coloquiais entre os personagens. Portanto, seria
174
artificial e arbitrário definir uma estética rígida quanto à crônica confessional da
infância do autor em pauta. O que se pode propor são apenas tendências de linguagem,
ao retratar a infância período que se encontra, de maneira difusa, no folhetim
oitocentista brasileiro.
Devido à amplitude que a temática infantil pode oferecer ao pesquisador
literário, optou-se, neste ensaio, por analisar somente os aspectos da categoria espaço na
crônica confessional da infância do autor. E chegou-se às seguintes conclusões em
relação às hipóteses lançadas: 1) É ínfimo, quase imperceptível, o recurso da descrição
física no retrato do locus infantil. Seja no recinto doméstico (quintal, sala ou quarto) ou
no público ambiente da cidade carioca; esses espaços físicos do passado aparecem de
forma espontânea nos enredos confessionais. Não é de interesse do autor, por exemplo,
discriminar, em parágrafos, tanto a dimensão do quarto do menino Cony como o que o
compõe; nem também as características geográficas do bairro de infância para citar
apenas dois casos. Na verdade, o espaço existente, de maior valia, dá-se numa segunda
instância, através da dimensão social e psicológica. Em relação à casa dos pais, foi
enfatizado então o convívio social entre o menino Cony e sua família, principalmente
com a figura paterna. E, além disso, mostrou-se o processo de evasão da infância,
retratada pelo espaço mental do garoto em foco. Quanto aos logradouros públicos dos
anos 30, época da meninice do autor, predomina, indiscutivelmente, a construção de um
espaço social, representado tanto pelos tipos populares do bairro Lins de Vasconcelos,
quanto do relacionamento entre o menino com outras crianças. As relações sócio-
interativas, através dos personagens em ação na trama textual, marcam esta etapa do
ensaio. 2) Constatou-se que Carlos Heitor Cony, preocupado mais em rememorar um
episódio, ou alguma impressão pessoal da infância, inscreve, na teatralização textual,
um espaço geográfico, que, traçado na história, se torna elemento secundário
independentemente de as crônicas serem essencialmente narrativas.
Por fim, a dissertação em pauta procurou manifestar a verticalidade da
relação entre crônica, memória e infância. Três palavras que juntas desembocaram
no termo crônica confessional da infância: a relevante expressão, que foi desenvolvida
aqui, pela edificação dos diversos tipos de espaços, figurados como categoria literária,
na cena textual da obra em crônica de Carlos Heitor Cony.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
De Carlos Heitor Cony:
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Informação ao Crucificado. 5ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
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Posto Seis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 1965.
Quinze anos (A juventude como ela é). Rio de Janeiro: Ediouro, 1973.
Pessach: a travessia. 4ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
“Sobre todas as coisas”. In: Os dez mandamentos. 2ªed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2001.
Pilatos. 5ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Quase memória: quase-romance. 10ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
A casa do poeta trágico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
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ANEXOS
ANEXO A – Entrevista concedida pelo escritor Carlos Heitor Cony, por telefone, em 30
de junho de 2007, às 10:00 horas.
AMF: Gostaria, inicialmente, que o senhor comentasse o recorrente tema da infância
impresso na sua obra em crônica.
CONY: Bem, posso, inicialmente, dizer que não é na crônica que a infância está
presente; ela aparece também na obra de ficção, nos romances, um pouco assim,
vagamente, mas todos os meus romances acho que mais da metade têm um período
grande dedicado à parte da infância. Agora na crônica existe realmente esse tema de
forma recorrente, porque eu não gosto de fazer crônicas sobre atualidades, crônicas
críticas, sobre economia, essas coisas. Porque os outros cronistas da Folha e de outros
jornais que escrevi – falam sobre os mesmos assuntos, e então eu seria redundante. Para
evitar a redundância, eu voltava e volto então a falar de mim mesmo, jogando na
infância, que é um manancial, não para o cronista, mas para qualquer ser humano. A
infância é um território, para uns, amargo, para outros, não, menos amargo, mas é um
território passado em julgado, é uma perspectiva para se julgar a infância. Grandes
obras-primas da literatura como Marcel Proust, o Em busca do tempo perdido, aquela
“madalena” molhada no chá que ele voltou ao passado; o Retrato do artista quando
jovem, do Joyce; José Lins do Rego, um grande memorialista, tem o Menino de engenho
e toda a obra dele, de forma geral. Existem outras obras assim pontuais em que a
infância é realmente trazida. Na poesia, Manuel Bandeira e Drummond sempre voltam,
respectivamente, a Pernambuco e a Itabira.
AMF: E o tema da infância é um espaço neutro.
CONY: É, exatamente. Ele é um tema muito recorrente na literatura. Para a crônica é
muito bom, porque, na medida em que eu falo da infância, eu estou livrando de falar
sobre o mundo atual. Não que eu tenha medo ou receio de falar sobre atualidades.
Quando quero falar, eu falo mesmo. Eu paguei um preço alto por isso. Já fui preso
seis vezes por conta de opiniões que dava sobre atualidades que eu vivi a ditadura
185
militar de 64 – no tempo em que trabalhei no Correio da Manhã. Mas não é por
estratégia ou por tática que volto ao passado. É porque, na realidade, a infância é um
território fértil, e passado em julgado. Você absorveu, decantou, digeriu,
metabolizou a infância. Então a infância, boa ou tem uma autenticidade para o
adulto, e as outras coisas não têm porque falta realmente aquela perspectiva que é o
tempo de digerir. Os bois têm quatro estômagos para digerir quatro vezes. O homem só
tem uma digestão. Agora, internamente, interiormente, nós temos vários estômagos e
vamos, gradativamente, fazendo a digestão, e as coisas recentes, então, não dão tempo
para essa metabolização.
AMF: Sabemos que o senhor inclui dados pessoais da criança que foi, em diversas
crônicas desde o Da arte de falar mal (1963), seu primeiro livro de crônicas; sendo a
presença destes textos confessionais bastante notória nas coletâneas: Os anos mais
antigos do passado (1998) e O harém das bananeiras (1999) – nesta última, encontra-se
até, estampada na capa, uma foto sua, à época em que fora seminarista. Até que ponto
esses episódios, confessados por um “eu” textual são verídicos?
CONY: Quando vou fazer um livro de crônicas que as editoras me pedem, procuro tirar
as crônicas temporais, as crônicas que dizem respeito a fatos do dia. Por exemplo,
Fulano matou tal, louco no cinema, a mulher que matou o pai, a filha que matou o pai,
etc. As questões do dia-a-dia. Essas coisas são temporais, passageiras, efêmeras. Elas
têm valor, têm seu espaço no jornal, mas em livro ficam defasadas. Então, ao fazer a
seleção, procuro aquelas crônicas atemporais, aquelas que falam de um tempo
superado, remoto, com personagens remotos, sentimentos remotos. Então é por isso
que nas coletâneas muita coisa sobre o passado, sobretudo esses dois livros mais
recentes: O harém das bananeiras e Os anos mais antigos do passado, este a começar
pelo título, Os anos mais antigos do passado. A minha produção diária na Folha, por
exemplo, toda ela é entremeada entre crônicas sobre atualidades, os fatos do dia, e as
reminiscências de um outro tempo passado. Ao fazer o livro, evidentemente, que eu
dou absoluta prioridade a essas que já passaram, ao texto que já está passado em
julgado. Não tem por onde colocar, por exemplo, uma crônica sobre Itamar Franco, não
é mesmo? Não tem sentido, embora eu tenha escrito muito sobre o Itamar Franco,
186
também sobre o Fernando Henrique, mas não tem sentido aparecer, num livro, um
trabalho sobre eles.
37
AMF: Mas até que ponto esses episódios confessados por um “eu” textual são
verídicos?
CONY: É o seguinte, André, a memória da infância é parcial e seletiva. A memória não
é absolutamente confiável. A de ninguém, não é a minha, mas a de ninguém. Ela já é
uma soma de determinadas constatações, de revisões interiores, de maneira que, embora
a gente procure ser, digamos assim, autêntico, no sentido de fiel aos fatos, sempre
uma corrupção posterior, ou seja, a visão do adulto quando é criança. É impossível
evitar isso, porque a própria memória da gente, mesmo quem não é escritor, é seletiva.
A verdade é essa. Ela é parcial, e também ela é cúmplice. A memória é cúmplice, ajuda
muito a nos desculpar, a relevar nossos problemas, ou então aumentá-los, se for o caso.
Então, de qualquer forma, em linhas gerais, cada crônica em que eu rememoro a
infância tem um ponto, pelo menos parte de um ponto verdadeiro; embora não seja cem
por cento real, digamos assim, nos seus aspectos pontuais, de lugar, de tempo; mas no
sentido de substrato, ou seja, o fato em si, a observação que eu transmito, que eu
guardei, essa foi autêntica e verdadeira, não foi ficção.
AMF: Por exemplo, a própria crônica “O harém das bananeiras”, creio que tem ali
muito de real.
CONY: É gerado, não é? Mas tem, realmente tem mesmo. Era muito comum isso,
apenas eu fantasio um pouco. O ponto de partida dela é uma coisa verdadeira e ali era
muito comum no Rio de Janeiro, sobretudo onde havia quintais, onde havia bananeiras,
era muito comum isso. Fazia parte da molecagem, da sacanagem precoce do brasileiro.
AMF: Mas o senhor parece que se eximiu do fato, quando dizia que era novo para fazer
aquilo tudo.
37
Apesar de afirmar que não faz sentido pôr textos sobre os políticos nas coletâneas, em 2000, publicou
O presidente que sabia javanês: reunião de crônicas políticas (acompanhadas das charges de Angeli)
publicadas entre 1994 e 2000 na página 2 da Folha de S. Paulo. São textos datados que enfocam o
período do governo de Fernando Henrique Cardoso.
187
CONY: É... Eu gosto muito dessa crônica.
AMF: Como o senhor representaria sua infância? O que diria dela?
CONY: Mais ou menos o que eu transmito, o que procuro transmitir. Eu fui um menino
com um problema de fala que me marcou muito. Fui obrigado a ser um menino
introspectivo, isolado, solitário; porque eu tive um problema de fala. Antes do
problema, até os cinco anos, eu era mudo; e quando comecei a falar, que viram que eu
falava errado, começou então a discriminação por isso. Comecei a escrever, justamente,
porque notei que, falando não daria conta do recado. Escrever era diferente, escrevendo
eu poderia ser eu mesmo poderia me expressar melhor do que falando. Então por causa
dessa tendência que eu tive é que a infância me marcou muito, pelo fato de ser
justamente uma pessoa forçadamente solitária. Não por escolha, não por opção, mas por
contingência da minha situação, de menino da classe média, com defeito de fala, que
nesse tempo era zombado. Até hoje, também, os meninos que têm esses problemas são
marcados pelos outros. Um menino que é manco, que não tem um braço, não tem uma
vista, o pessoal respeita, em termos, pelo menos é mais respeitável. Já um garoto que
fala errado, cai na boca de todos, e aí eu fiquei nessa situação. A infância pra mim ficou
sendo um piti, porque embora essa solidão que eu não procurei, mas que eu fui forçado
a adotá-la, que se prolongou pela vida afora, porque embora hoje eu não seja
diretamente um solitário embora minha profissão seja solitária – o escritor é uma
profissão solitária – mas de qualquer maneira não sou tão radical quando eu era criança,
e isso me marcou muito. Ficou sendo, digamos assim, a fase da minha vida mais em que
eu tenho mais consciência de que fui um ser humano autêntico.
AMF: Quanto à minha pesquisa, sustento na defesa da dissertação a tese de que os
espaços da infância, representados em sua obra em crônica, configuram-se muito mais
numa segunda instância, isto é, na de uma representação do espaço social e psicológico,
do que na de uma mera descrição física do locus infantil. A minha observação é de que
os textos abordam bem mais a própria ação narrativa e/ou a personalidade dos
personagens (figura do pai ou do “menino Cony”, por exemplo) do que o uso de
descrições físicas de pessoas ou lugares. Qual a sua opinião sobre o assunto?
188
CONY: Você parece está certo, viu? Sua observação está pelo caminho correto. O
temperamento dos personagens é mais marcante mesmo. Principalmente quanto à figura
do pai, um personagem recorrente, em que busco retratar aquele jeito particular que
tinha.
AMF: Também acho. Por isso enfatizo mais os fatores psicológicos e sociais, quanto ao
espaço da infância.
CONY: Passadas as contingências da infância, hoje eu não sou mais nenhum infante,
não sou mais nenhuma criança, superei a questão da fala em termos, aquele mundo da
infância acabou, porém esse período sempre ficou na vida do adulto, e olho o mundo
hoje sempre com aquela linha de referência. A minha referência principal é sempre a
infância. O que eu pensaria das coisas, se eu fosse criança. Por exemplo, na época do
atentado de 11 de setembro, eu estava no Paraná fazendo uma palestra, quando vi na
televisão aqueles aviões. Imediatamente me imaginei criança vendo aquilo, com olho de
criança. Depois foi que pensei, pôxa, vou ter que escrever uma crônica sobre isso.
Realmente fui pra máquina, pro meu computador, e escrevi uma crônica sobre o
atentado. Tinha que escrever, não era mesmo? Era impossível não comentar o fato. Mas
o primeiro contato com a notícia, com a visão, foi de criança, ou seja, como eu via o
filme do Tarzan, como eu via o filme do Flash Gordon, e ao mesmo tempo torcendo,
talvez, pelo lado errado. Mas, de qualquer maneira, foi um olhar infantil que viu aquilo,
um evento, tipicamente... se é que eu poderia entender, se é que eu entendi, do ponto de
vista adulto. Mas a minha primeira apreensão, e até hoje quando eu penso, e revejo
aquelas imagens, é a criança que está vendo aquilo.
AMF: É interessante isso, o adulto com olhar pueril.
CONY: Isso a gente leva. Eu tenho a impressão de que os seres humanos são assim,
entendeu? É o caso do Orson Welles, do seu Cidadão Kane. Você viu o Cidadão Kane?
AMF: Não, ainda não cheguei a ver.
CONY: É a história de um homem milionário, um grande magnata americano da
imprensa, do cinema, que todo mundo procura entendê-lo, mas não entende. O filme
189
começa com a morte dele. Ele está com a mão fechada, e quando abre a mão, porque
morre, cai uma bola de vidro com uma peça de trenó antigo. Ele pronuncia então aquela
palavra mágica, “rosebud”, que era o nome do trenó. Ele viveu a vida toda, e não
sabiam que ele tinha amarrado na mão uma peça do trenó que matou o irmão morte
que aconteceu, em parte, por culpa dele. Esse fato que foi para a imprensa é a chave de
toda a personalidade monstruosamente grande do personagem. Essa citação “rosebud” –
que era o nome do trenó e que foi a última palavra pronunciada por ele, antes da morte –
é a chave do negócio. Um homem que encapsulou a infância dentro do adulto. Fez uma
porção de coisas: como campanhas, financiou a guerra. Fez, enfim, o diabo; mas que, no
fundo, tendo na mão fechada um pedaço do trenó, em que o irmão tinha morrido, em
parte por culpa dele numa brincadeira infantil.
AMF: Na entrevista que o senhor me concedeu, aqui em Fortaleza, momentos antes de
uma palestra sua, realizada no Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura,
promovida pelo Centro Cultural Banco do Brasil, em 27/04/05, comentou que iria fazer
uma reunião de crônicas, centradas em sua memória e publicadas com o título Eu, aos
pedaços. Contudo, o livro ainda não foi publicado. Esse projeto ficou esquecido?
CONY: Não. Estou com essa tarefa. Ainda ontem a diretora da Objetiva me cobrou esse
livro. Eu comecei a organizar uma seleção, mas tenho que fazer, entre uma crônica e
outra, uns pedaços para enxertar. eu tenho, realmente, uma espécie de... não vou
dizer de autobiografia, mas seria uma autobiografia não romanceada, sem ordem
cronológica e expressando esse ponto de referência a infância que marcou a
minha toda, a minha vida adulta. E eu acho que vai me marcar até o momento final.
AMF: E misturando, nesse título inédito, a questão da realidade com ficção,
característica muito presente em sua obra.
CONY: É. Esse é um recurso muito comum dos escritores. Aliás, a Lygia Fagundes
Telles tem um livro sobre isso Memória e realidade
38
, como se vê pelo título, é um livro
que mistura muito isso. A verdade é que depois, de um certo tempo, a memória vai
38
Cony foi traído pela memória; porque, na verdade, o referido livro se chama Invenção e memória, como
se pode confirmar na referência: TELLES, Lygia Fagundes. Invenção e memória. ed. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000.
190
sendo corrompida pela vida atual. A memória começa a ser modelada, uma espécie de
texto final que é mudado. Coloca-se, por exemplo, um adjetivo, tira outro, elimina aqui,
acrescenta ali. Então faz uma espécie de Frankenstein. Esse Eu, aos pedaços é um
Frankenstein criado com vários pedaços. O Frankenstein é um monstro criado com
pedaços de outros corpos, misturados pelo cientista louco. E o Eu, aos pedaços é isso.
AMF: Achei esse título Eu, aos pedaços muito bom. Simples, objetivo; porém bastante
significativo.
CONY: Obrigado. Eu comecei a fazer uma seleção. Ainda ontem, como eu disse, a
editora me cobrou isso. Esse ano eu não vou publicar nada. Até agora, pelo menos, não
tem nada previsto. Então pelo jeito como eu tenho um início de coletânea, acho que
termino de fazer ainda em 2007.
AMF: Por fim, como o senhor classificaria seu estilo, no processo escritural dessas
crônicas de teor confessional?
CONY: É dentro daquela linha memorialística, onde existem vários autores. Tem
Marcel Proust, tem o Joyce não o Joyce de Ulisses mas o de Retrato do artista
quando jovem. Eu poderia citar, no caso dos brasileiros, o José Lins do Rego, o Érico
Veríssimo, um pouco. Poderia citar alguma coisa do Machado de Assis, muito
disfarçada. De forma geral, uma constante na literatura, não na literatura
brasileira, mas na literatura universal, de fazer da infância um ponto um de partida.
ANEXO B Entrevista concedida pelo escritor, momentos antes do Encontro Literário
com Carlos Heitor Cony palestra, realizada em Fortaleza, no Centro Cultural Dragão
do Mar, em 27 de abril de 2005, às 19:00 horas. E promovida pelo Centro Cultural
Banco do Brasil.
AMF: O senhor aborda o tema da infância em boa parte de sua obra em crônica,
principalmente nos livros O harém das bananeiras e Os anos mais antigos do passado,
obras que têm uma intenção de retratar a infância, tanto nas crônicas quanto na parte
gráfica como podemos observar, por exemplo, na capa de O harém das bananeiras em
que uma foto sua na época em que era seminarista. Em algumas destas crônicas o
senhor fala a respeito da melancolia. Diz que tem aversão aos nostálgicos em um texto,
mas ao mesmo tempo o senhor exalta muito a sua infância, falando do seu pai, que
construía balões com ele e que brincava com os colegas de bairro. Então como é isso,
existe uma exaltação da infância, mas esta questão da melancolia? Sua infância,
então, este seu resgate seria de uma forma boa ou ruim?
CONY: Bem, antes de mais nada, estes dois livros que você citou, O harém das
bananeiras e Os anos mais antigos do passado são livros de crônicas. Crônicas mais ou
menos recentes que eu escrevi na Folha de São Paulo. Então não são realmente
elementos constitutivos do que eu chamo de minha obra, porque no jornal a gente é
obrigado a escrever e muitas vezes não tem um assunto importante para argumentar,
para opinar ou para gozar, e a gente volta para esse imenso patrimônio que é a
infância de cada um. Não sou apenas eu, tem outros escritores também, sobretudo
aqueles que se dedicam mais à crônica, estão sempre apelando para a infância, porque é
um território neutro. Muitas matérias estão vencidas, estão passadas, e então a
oportunidade da gente fazer sempre uma .... Não vou dizer encher lingüiça, mas a gente
tem que ocupar aquele espaço que o jornal nos dá de uma forma tanto quanto possível
digna e com um certo charme. Isso na parte de crônica, agora além disso a gente pode
ver também a infância nos romances de diversos escritores talvez, até na maioria dos
escritores, como também na minha obra de romance, na minha obra romanesca. Essa
sim, eu tenho nos romances praticamente em todos eles, com exceção de dois ou três
que não são, digamos assim, que não tem como ponto de partida a infância. Vemos isso
no meu primeiro livro O ventre, em A verdade de cada dia, Informação ao crucificado,
Quase-memória, Matéria de memória. Então esse meu apelo à infância é uma coisa
192
comum, acho que em todos. Agora, em geral, as pessoas têm da infância uma nostalgia,
achando que a infância foi o melhor período. É o chamado nostálgico. Achando que
tudo está ruim, que naquele tempo era bom, porque a vida na infância era boa, etc. Eu
não tenho esse tipo de nostalgia. Agora tenho melancolia. A diferença entre nostalgia e
melancolia é o seguinte. É que a nostalgia é uma sensação, um sentimento de perda
irrecuperável, ao passo que a melancolia não. A melancolia não é uma perda, a
melancolia, pelo contrário, é um ganho. É um ganho que a gente tem, e que a gente
visita sempre, quando está, assim, precisando de algum apoio para prosseguir a jornada.
Enquanto a nostalgia é basicamente um sentimento que considero negativo, porque leva
a pessoa para o fundo do poço, a melancolia não, a melancolia seria o seguinte: está
tudo ruim, mas pelo menos eu tive uma coisa boa. Então é assim que relembro a
infância.
AMF: Pensei no sentido um pouco de tristeza, a melancolia ligada à tristeza.
CONY: Não necessariamente, porque em geral os episódios que eu lembro têm sempre
uma coisa de gozado, têm sempre uma coisa de risível, haja vista no meu Quase-
memória, as pessoas dizem que não sabem se riem ou choram, porque de tal maneira eu
relembro o passado, relembro a minha infância. Minha melancolia de tal maneira vem à
tona que as pessoas às vezes riem e às vezes têm vontade de chorar.
AMF: Em algumas crônicas que abordam a infância, o senhor coloca o foco narrativo
na 3ª pessoa como, por exemplo, em “O menino das meias vermelhas” do livro Os anos
mais antigos do passado. Há traços de sua personalidade nestas crianças?
CONY: A gente pode contar na ou na pessoa, eu prefiro contar alguns fatos na
pessoa, outros na , sobretudo quando a lembrança, a recordação é um pouco
corrompida pelo tempo, quando me lembro, uso em 1ª pessoa , agora quando o fato está
espedaçado em mim, quando eu não me lembro bem do fato e quero agregar outros
elementos, uso a 3ª pessoa porque basicamente o narrador continua sendo eu, mas
agreguei, absorvi outros ...
AMF: E o senhor coloca uns elementos ficcionais, misturando memória com ficção.
Não se pode dizer então que é uma autobiografia.
193
CONY: Observamos isso em Quase-memória. Não é à toa que o título é Quase-
memória. Não é uma memória, não é uma autobiografia, mas é quase.
AMF: No livro Informação ao crucificado, por que o senhor não quis ser direto e
colocar seu próprio nome, em vez de nomear o seminarista por João Falcão, que
existem profundas semelhanças com sua biografia, como coincidências de datas e de
personagens da obra que existiram, inclusive à época em que era seminarista? Por que
não quis fazer logo um livro de memórias mesmo?
CONY: Eu quis fazer realmente uma romance, uma ficção. No caso do Quase-memória,
feito posterior, eu vim me aproximando da questão das memórias, certo? Na segunda
parte do livro eu coloquei meu nome, recebi um embrulho do meu pai, o embrulho foi
endereçado ao jornalista Carlos Heitor Cony. O nome do meu pai é verdadeiro. No caso
do Informação ao crucificado, quis fazer um romance baseado em mim mesmo, eu
não podia colocar o meu nome, tinha que colocar realmente o nome de um terceiro,
criar um personagem que tinha como base, como fundamento a minha pessoa, mas ali
não sou eu. Essa é a diferença fundamental.
AMF: Seriam apenas alguns traços, a ficção unida com memória novamente, não é isso?
CONY: Ali é mais o seguinte: clima é verdadeiro, o clima é de memória, mas os
acidentes, os incidentes são de ficção.
AMF: No Quase-memória, a sua parte ficcional seria aquela questão do embrulho,
daquele seu diálogo com a jornalista que trabalhava com o senhor, daquele local de
trabalho?
CONY: Seria o pretexto para o mergulho no passado. Primeiro que foi um sonho real
que tive. No sonho, eu teria realmente recebido um livro, um embrulho. Também tem
uma coisa. Na minha obra, isto foi um amigo que descobriu, um crítico, que em vários
livros meus, tem sempre um embrulho presente. No Pilatos, o sujeito passa o tempo
todo no romance carregando um embrulho, em Matéria de memória também o sujeito
fica preso e manda a empregada fechar por fora e levar a chave. Ele então vai abrir um
194
embrulho onde estão as recordações dele. O embrulho então é uma constante na minha
obra. No caso do Quase-memória, o pretexto que tive foi motivado por um sonho real,
para poder então fazer aquele mergulho no passado.
AMF: Com relação a essas crônicas de cunho autobiográfico, o senhor cria ambientes
ficcionais, como já disse. Existem também vários personagens recorrentes, como o
Sacadura. Esses personagens são então reais, não é?
CONY: Mais ou menos reais, eu não tenho certeza se são reais. Tenho a impressão que,
às vezes, acredito que existam, mas às vezes não. Eu tenho vários personagens
recorrentes como o Arranca, por exemplo. Têm alguns personagens que são
verdadeiros, outros são da minha ficção. É preciso ver que a gente, desde criança,
começa a inventar o mundo para nós. Tenho a impressão que o personagem Sacadura eu
inventei. Agora de tal maneira foi inventado que ficou presente em mim, e hoje eu
acredito que ele foi, pelo menos para mim, real, mas não me lembro de ter conhecido
nenhum Sacadura.
AMF: O senhor acaba criando personagens que não tem certeza se ele existiu ou não.
CONY: No caso do Sacadura é isso. Talvez tenha, mas muito remotamente, mas não me
lembro sinceramente. Já outros não, o Arranca, por exemplo, o seu Almeida estes
aparecem em vários livros. São personagens que realmente eu conheci, não exatamente
como estão nos romances, mas conheci de alguma forma. Agora o Sacadura não, o
Sacadura para mim é um símbolo, assim, de um sujeito sacana, que fazia de tudo. Ele é
um personagem mítico da minha infância.
AMF: Em relação ao seu primeiro livro de crônicas Da arte de falar mal, de 1963, cujo
título era o mesmo da coluna do jornal Correio da manhã, onde foram publicadas essas
crônicas, existe alguma possibilidade de uma nova edição desta obra?
CONY: Não, porque as crônicas são muito efêmeras. Não tem sentido reeditar um livro
de crônicas antigo. Faz-se um livro de crônicas e somente durante algum tempo, ele tem
o direito de ser reeditado, mas depois de tanto tempo, como é o caso do Da arte de falar
mal, as crônicas envelhecem. Agora o que pode haver é o seguinte, e isso talvez eu faça
195
brevemente, que é tirar algumas crônicas do Da arte de falar mal e colocar num livro
que estou preparando para não sei quando, que será uma espécie de ... de... Muita gente
quando envelhece diz o seguinte: “eu estou na idade de fazer autobiografia, memórias”.
Mas não é o que pretendo fazer. Quero fazer uma reunião de crônicas centradas na
minha memória. vou tirar crônicas de todos os meus livros. O título eu já tenho, será
Eu, aos pedaços. Pedaços de mim mesmo que fui esparramando em rios livros de
crônicas, mas reeditar o Da arte de falar mal tal como foi feito não, porque ali tem
coisas incompreensíveis, que estão fora de moda, não tem nenhum sentido mais
reeditar aquela coletânea.
AMF: O senhor não tem um objetivo de escrever suas memórias como fez Pedro Nava,
que teve um projeto memorialista intencional, publicando suas recordações em vários
livros?
CONY: Não o Pedro Nava, mas vários escritores. Joaquim Nabuco fez, Gilberto
Amado fez, que é um grande memorialista, e outros também, tem aquele na Paraíba,
Ascendino Leite, o Josué Montello, que tem cinco livros de memórias, o Humberto de
Campos fez ... Mas o que eu vou fazer é uma coletânea de crônicas, já publicadas, e que
de alguma forma tem a ver com meu passado realmente, seria minha forma de fazer
minha autobiografia, eu, aos pedaços.
196
ANEXO C – Foto tirada no momento da Entrevista 2 (anexo b).
197
ANEXO D – Foto do escritor.
Fonte: Aba do livro O harém das bananeiras.
198
ANEXO E – Foto do escritor.
Fonte: Cadernos de Literatura Brasileira.
199
ANEXO F – Fotos dos pais.
Fonte: Cadernos de Literatura Brasileira.
O pai Ernesto Cony Filho em 1939.
A Mãe Julieta em 1951.
200
ANEXO G – Foto do escritor nos anos 20.
Fonte: Site oficial do escritor:
<http://www.carlosheitorcony.com.br/>
201
ANEXO H – Fotos do escritor nos anos 30.
Fonte: Site oficial do escritor:
<http://www.carlosheitorcony.com.br/>
Cony criança.
Cony no seminário em 1938.
202
ANEXO I – Foto do escritor com a filha.
Fonte: Cadernos de Literatura Brasileira.
Cony e Regina Celi (primeira filha) em 1951.
203
ANEXO J – Foto do escritor.
Fonte: Cadernos de Literatura Brasileira.
204
ANEXO L – Foto do escritor.
Fonte: Cadernos de Literatura Brasileira.
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