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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Psicologia
Programa de Pós-Graduação em Psicanálise
Vanisa Maria da Gama Moret Santos
O efeito do Estranho na obra de Salvador Dali
Rio de Janeiro
2010
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Vanisa Maria da Gama Moret Santos
O efeito do Estranho na obra de Salvador Dali
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Psicanálise da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro como requisito para obtenção do
título de Mestre em Psicanálise.
Orientador: Marco Antonio Coutinho Jorge
Rio de janeiro
2010
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3
Vanisa Maria da Gama Moret Santos
O efeito do Estranho na obra de Salvador Dali
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Psicanálise da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro como requisito para obtenção do
título de Mestre em Psicanálise.
Aprovada em _____________________________________
Banca examinadora:
__________________________________________________
Prof. Doutor Marco Antonio Coutinho Jorge (orientador)
Instituto de Psicologia da UERJ
___________________________________________________
Prof. Doutora Heloisa Caldas
Insituto de Psicologia da UERJ
___________________________________________________
Prof. Doutora Vera Pollo
Universidade Veiga de Almeida
Rio de Janeiro
2010
4
Agradecimentos
Seria impossível agradecer a todos que, direta ou indiretamente, colaboraram para que
este trabalho tivesse início e chegasse ao fim. Entretanto, não posso deixar de sublinhar a
importância inestimável do meu marido, Charles, e dos meus filhos, João e Miguel. Amor,
força, coragem e muita compreensão foram os ingredientes mágicos que eles adicionaram ao
meu desejo para que eu conseguisse concluir esse momento de passagem em minha vida
pessoal, profissional e acadêmica. É para eles que dedico este trabalho.
Maria Anita Carneiro Ribeiro, minha analista e interlocutora, mostrou-me a pedra
incandescente e me deu condições para que, com isso, eu produzisse a fagulha e, com esta, o
fogo que transformou e iluminou o meu caminho. Vera Pollo, pessoa generosa e pesquisadora
que causa, apresentou-me a Salvador Dali. Desse encontro surreal, dei início ao meu projeto
de mestrado e segui trabalhando até chegar aqui. Heloísa Caldas, com sua escrita sensível,
como uma bússola às avessas, apontou-me uma nova direção no transcorrer do trabalho. Por
conta desse novo olhar, decidi acreditar no avesso da mesmice e segui em frente. Finalmente,
meu querido orientador, Marco Antônio Coutinho Jorge, daliniano em essência e exigente
quanto ao trabalho que desenvolvíamos, com ele, reaprendi a escrever. Sensível ao meu estilo,
entretanto, aceitou, com suavidade, os desvios necessários que minha escrita imprimia. Com
isso, evitei a rota dura e enferrujada da linha reta e segui escrevendo com suor e satisfação.
Aos amigos pessoais, poucos, mas tão especiais, por acreditarem que o percurso seria
feito. Aos colegas de turma, aos do grupo de orientação e aos grandes mestres, com os quais
aprendi a pesquisar, a todos vocês, muito obrigada!
5
Tenho, é claro, motivo para agradecer-lhe a apresentação que me trouxeram
os visitantes de ontem. Porque, até então, eu me inclinava a considerar os
surrealistas, que aparentemente me escolheram para santo padroeiro, como
loucos rematados (digamos 95 por cento, como o álcool). O jovem espanhol,
entretanto, com os seus ingênuos olhos de fanático e sua inegável mestria
técnica, fez-me reconsiderar minha opinião.
1
1
Trata-se de um trecho da carta de Sigmund Freud a Stefan Zweig de 20/07/1938 in Jorge:M.A.C. Sexo e discurso em Freud
e Lacan, p. 136.
6
SUMÁRIO
Introdução: o que podemos aprender com a obra de Dali? p.9
Capítulo 1: Psicanálise e Surrealismo p.18
1.1. Escritas possíveis entre guerras reais p.20
1.2. Escritas de guerra – de Dadá a Dali p.24
1.3. Da escrita automática de Breton ao método paranóico crítico de Dali p.28
1.4. Escritas do Real - Freud por Dali p.33
Capítulo 2: O Outro e o triângulo daliniano p.41
2.1. O “Outro Geográfico” na obra de Dali – uma estética entre ruínas e rochas p.43
2.2. O Outro e os outros da arte para Dali p.53
Capítulo 3: O efeito do estranho p.58
3.1. Revisitando o estranho em Freud com Lacan p.60
3.2. O efeito do estranho no Angelus de Millet em Dali: o método paranóico crítico p.67
3.3. O efeito do estranho na obra arte de Dali – que efeitos suas telas suscitam? p.73
Considerações finais p.80
ANEXO
BIBLIOGRAFIA
7
8
Introdução: O que podemos aprender com a obra de Salvador Dali?
Que nosso fogo interno esteja ao máximo, para esquentar a regra ao
rubro e modificá-la! Que nossa realidade interior seja tão forte que
corrija a realidade exterior. E que nossas paixões sejam devorantes, mas
que tenhamos um apetite de viver ainda maior, para devorá-las!
2
Quem disse que os sonhos não são reais ou que a realidade supostamente
compartilhada não está atravessada por nossos ‘delírios íntimos’, isso que com Freud e Lacan
chamamos de fantasia? Dali nos ensinou a sonhar de olhos abertos e a ver em suas telas o
desejo e os pesadelos da nossa própria humanidade. As imagens, sempre impregnadas por um
dado do real nem sempre são agradáveis, mas elevam o espírito de todo aquele que não é cego
para sua realidade. Sendo assim, posso dizer que ao estudar a obra de Dali aprendi um novo
verbo - dalinizar - que, para mim, significa uma ação subversiva de interpretação da
realidade. Penso que a experiência estética pode, de certo modo, equiparar-se àquela vivida
em análise, pois nos toca no mais íntimo de nossa subjetividade na medida em que nos
descola da ‘chatice’ da visada plana e bidimensional do mundo do qual fazemos parte. É
precisamente por isso que o verbo dalinizar reflete, de certo modo, aquilo a que nos
propusemos em nossa práxis, ou seja, a escutar além dos muros da razão. Tomando
emprestadas as palavras do espanhol Juan Gris
3
, Dali afirma apaixonadamente: “Nós amamos
a emoção que corrige a regra!”
4
. Nós, psicanalistas, também.
Dali dizia que seu nome significava desejo em catalão e o que pude entender com isso
é que ele, em sua arte, ia além, aliás, muito além do convencional. Acho que esse trabalho, em
muitos momentos, descambou para o não convencional. Comparando-me a uma “águia
domesticada”, cheguei a pensar que a escrita acadêmica poderia representar um ato de
contenção poética doloroso. No entanto, no decorrer do trabalho, percebi que isso não seria
possível para aquele que tem a escrita poética como causa. Espero que o resultado dessa
experiência de escrita comprove que o vôo valeu à pena. Afinal, ainda que, por vezes, julgasse
não saber por onde estava indo, o caminho foi trilhado. É chegada a hora de compartilhar essa
2
Dali apud Pauwels:1968: 65-65.
3
José Victoriano González-Pérez conhecido artisticamente como Juan Gris (Madrid, 23 de Março de 1887Boulogne-Sul-
Seine, 11 de Maio de 1927) foi um pintor espanhol que desenvolveu a sua atividade principalmente em Paris, é considerado
como um dos mestres do cubismo
.
4
Dali apud Pauwels, op. cit., p.64.
9
subversão e, por isso, passo às formalidades acadêmicas e à justificativa do meu interesse no
tema proposto e como pretendo abordá-lo.
Inicialmente, o interesse em estudar a obra de Salvador Dali surgiu por ocasião de
minha participação dos estudos desenvolvidos na Rede de Pesquisa em Psicose e Atividade
Artística de Formações Clínicas do Campo Lacaniano ao longo do ano de 2006. A princípio,
meu interesse era eminentemente clínico e minha intenção era a de investigar as estruturas
clínicas a partir da leitura de seus ensaios autobiográficos
5
. Em função dos estudos feitos,
descobri que Dali teve, segundo ele afirma em sua autobiografia, um irmão que morrera nove
meses antes de seu nascimento e que tinha o mesmo nome que ele, Salvador Dali. Tal
descoberta me fez pensar como viável a hipótese de que Dali teria feito uma identificação
imaginária (Verhaultung) ao nome próprio Salvador e que, por conta disso, passou a se
proclamar o “Salvador da arte moderna da preguiça e do caos”.
Ao dar continuidade à minha pesquisa, já sob orientação do professor Marco Antônio
Coutinho Jorge, fui percebendo que o foco clínico foi se abrindo, dando espaço para novas
investigações. Desse modo, um leque de temas se abriu resultando em novas pesquisas que
culminaram nos capítulos que seguem e cujos tópicos serão brevemente expostos aqui nesta
introdução.
Mas afinal, o que me capturou em Dali? Muitas coisas, mas certamente seu estilo
próprio é algo que impressiona. O estilo daliniano é uma marca transparente que sobrevoa
toda sua obra pictórica, de tal modo que ela prescindiria até mesmo de um certificado de
autenticidade; afinal não se pode falsificar um estilo, ou, mais precisamente, isso que Lacan
também chamará de objeto
6
. Comenta-se que, em algum momento de sua vida, Dali teria
passado a assinar telas em branco para que alguns de seus ‘discípulos’ pudessem vender suas
telas como Dalis originais. Vejo nisso uma atitude tipicamente daliniana a nos instigar,
pondo-nos em xeque em relação ao que podemos pensar sobre o que realmente confere valor
a uma obra de arte. O ponto aqui é: o nome de Dali. Um nome que vende uma obra ou uma
obra que vende um nome? Dali responde a essa questão: “[...] Tenho mais glória do que
minha pintura.”
7
Parece que para o mercado milionário das artes o que se vende enquanto um valor é o
nome do artista. Teria sido isso que Joyce pretendia nos fazer claro, quando disse que seria
5
Dali, S., “Vida Secreta de Salvador Dali” e “Diário de um gênio” in Obras completas de Salvador Dali, v. I.
6
Lacan, J., “A juventude de Gide ou a letra e o desejo”, in Escritos, p. 751.
7
Pauwels, J.L., As paixões segundo Dali, p.93.
10
lido pelos universitários por mais de 300 anos? Talvez não. Mas afinal, é o nome de Joyce ou
a novidade de sua obra que se pretende fazer circular? Ambos, certamente, pois um nome só
fica na história se sua obra o suporta como tal, ou seja, se sua produção o sustenta como um
nome de artista.
O tema que deu origem à minha pesquisa tocava na questão do nome, ainda que, de
início, eu me interessasse mais pelo tema do nome próprio e, em especial, pelo nome do irmão
morto de Dali - o outro Salvador Dalí. Entretanto, com o passar do tempo, meu interesse foi
reconduzido para outro foco – o da obra de arte de Dali. Aos poucos, pude perceber que suas
telas produziam efeitos de estranhamento e, ao mesmo tempo, iluminavam o caminho por
onde passavam. Cheguei mesmo a me indagar se isso que na obra de Dali mobiliza o fruidor
também poderia ter a ver com o que Lacan chama de epifanias joyceanas
8
. Onze anos antes da
publicação do artigo “O Estranho”
9
, Freud também já se questionava em seu texto, “O poeta e
o fantasiar”
10
, sobre como certos escritores, através de suas obras, podiam tocar a alma do
leitor e fazê-lo se emocionar. Será possível pensarmos que o belo e o horror se encontram no
ponto de estranhamento que a tela suscita no observador? Se pensarmos bem, o efeito do
estranho no fruidor de uma obra de arte como a de Dali só pode ser produzido se a sensação
suscitada for paradoxal e, portanto, ambígua. Afinal, o que há de estranho no quadro que nos
olha? Como articularmos isso ao tema do estranho em Freud? As tentativas de responder a
algumas dessas questões se desdobrarão ao longo do capítulo três, mas as articulações que
conduzirão a essas respostas se apoiarão ao longo de todo o trabalho.
No primeiro capítulo, abordamos o surgimento dos movimentos artísiticos dadaísmo e
surrealismo como tributários da psicanálise, mas, de certa forma, também influenciados por
importantes fatores como as duas Grandes Guerras Mundiais. Ressaltamos como a escrita
literária foi um meio de se tratar do tema da destruição e da criação e é nesse cenário que
Salvador Dali marca uma diferença através da escrita do seu método paranóico-crítico de
conhecimento da realidade. A escrita desse método ocorreu em decorrência de uma séria briga
com o pai, como veremos. Entretanto, Dali também julgava a arte moderna caótica e criticava
duramente os pintores modernos porque eles desprezavam os clássicos.
8
O termo epifania é aplicado quando um pensamento inspirado e iluminante acontece e que parece ser divino em natureza.
Lacan fala das epifanias joycianas para enaltecer a abilidade de James Joyce em fazer, através da escrita, com que o leitor
‘visualize’ tal sensação.
9
Freud, S., “O estranho”, AE, v. XVII; ESB, v. XVII.
10
Freud, S., “O poeta e o fantasiar”, AE, v. IX; ESB, v. IX.
11
Falaremos também da ‘confusão’ promovida pelos escritores surrealistas, pois eles se
apropriavam da teoria de Freud para direcionar suas criações literárias. Ao lançar A
interpretação dos sonhos
11
Freud despertara imenso interesse nos dadaístas liderados por
Tristan Tzara e nos surrealistas de André Breton. Na realidade, eles julgavam que seria
possível, através de suas obras, terem acesso ao inconsciente e se curar de seus ‘traumas’. O
surrealismo bretoniano surgiu como uma tentativa de dar um passo além do movimento
dadaísta que o precedeu já que os surrealistas discordavam dos artistas Dadá em muitos
aspectos, como também veremos no capítulo 1 deste trabalho. Entretanto, o movimento
liderado por Breton sofreu um abalo sísmico com a entrada de Dalí no cenário artístico de sua
época. Contrário à passividade proposta pelo método da escrita automática que supostamente
se baseava nos ensinamentos psicanalíticos de Freud, Dali operou uma ação radicalmente
diferente sobre a realidade colocando como condição prínceps o estudo dos pintores clássicos.
Sua intenção era a de captar a realidade de modo muito peculiar, pois tinha o intuito de
promover equívocos no olhar dos espectadores. Sua obra nos ensina que um ‘mesmo’ objeto
de arte percebido por várias pessoas não pode ser compartilhado de modo biunívoco entre elas
e foi isso que ele propôs em seu método paranóico crítico, ou seja, o descrédito total da
realidade.
Embora o tema do estranho só vá ser tratado no capítulo 3, já no primeiro capítulo,
faremos um breve recorte do momento histórico em que Freud escreveu seu artigo sobre “O
estranho”
12
. Além disso, faremos uma revisão de alguns textos freudianos, principalmente os
que abordam a temática das formas diferenciadas de lidar com a realidade. Partindo do
pressuposto de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, veremos como
dadaístas e alguns surrealistas usaram a psicanálise equivocadamente para justificar seus
experimentos literários. Por outro lado, será evidenciado como Dali - através de seu método
paranóico crítico de conhecimento da realidade - se aproximou bem mais da psicanálise do
que seus contemporâneos, principalmente dos textos freudianos que versam sobre a realidade
psíquica. A influência da psicanálise sobre Dali teve um rumo diferente daquele trilhado por
Breton que também se inspirou no pensamento freudiano para formular suas teorias acerca da
criação literária. Ressaltaremos o fato de que, segundo o próprio Dali, sua obra foi fruto de
sua atitude renascentista que, ao invés de desprezar a tradição e os artistas de talento, partia do
antigo para criação de algo novo.
11
Freud, S., A interpretação dos sonhos, AE, v. IV; ESB, v. IV.
12
Freud, S., op. cit., AE, v. XVII; ESB, v. XVII.
12
Sua obra escrita explica bem como isso se deu. Aliás, embora Dali seja mais
conhecido por seu trabalho como pintor surrealista, poucos sabem que ele tinha uma obra
escrita extensa a qual consta de vários textos autobiográficos e ensaios sobre arte, todos
reunidos em oito grandes volumes. Embora Dali tomasse a si mesmo como exemplo para falar
de arte e de outros assuntos, os textos que ele entendeu como autobiográficos foram
compilados no primeiro volume, onde encontramos os ensaios, “Vida secreta de Salvador
Dali” e “Diário de um gênio”
13
. Já os volumes quatro e cinco foram dedicados a ensaios sobre
arte, onde o pintor fala sobre seus pares, sua visão da arte moderna e, finalmente, enaltece
aqueles que considerava os grandes mestres da pintura. O ensaio onde ele desenvolve sua
teoria sobre a paranóia crítica é intitulado “O Mito trágico do Angelus de Millet: interpretação
paranóico-crítica” ([1933-1938] -1963/2005)
14
e está no volume cinco. Também estão nesse
mesmo volume os ensaios intitulados “50 segredos mágicos para pintar” (1948/2005)
15
e “Os
cornudos da velha arte moderna” (1957/2005)
16
. Como o próprio Dali explica, na introdução
desse quinto volume, o texto que deu origem ao ensaio sobre o Angelus de Millet teve início
em um manuscrito de 1933 que foi finalizado em 1938, mas só veio a ser publicado, pela
primeira vez, em 1963.
Uma vez que seria impossível para o objetivo desse trabalho a leitura sua obra
completa, dedicamo-nos ao estudo de alguns textos dos volumes aqui citados para
compartilhar do pensamento daliniano em sua relação com o campo que nos concerne, ou
seja, o da psicanálise em sua conexão com a arte. Afinal, embora Dali se proclamasse poeta,
não é por esse meio - o da escrita literária – que ele nos causa efeito estético, como ocorre
quando estamos diante de seus quadros. Para a psicanálise, no entanto, admitimos que o
mérito de sua escrita esteja em sua proposta inovadora de conhecimento da realidade com a
aplicação do seu método paranóico crítico à criação artística. A leitura dessa obra de Dali nos
conduz, inevitavelmente, a uma revisão dos textos freudianos que tratam da temática da
questão da realidade psíquica com certa ênfase nos textos que versam sobre o estranho e a
paranóia.
O capítulo 2 será dedicado à contextualização histórico-geográfica de Salvador Dali,
numa tentativa de articular o tema do Outro como tesouro dos significantes à importância que
a região da Catalunha teve em sua obra. Optei por falar dos três lugares mais marcantes em
13
Dali,S., op. cit. v. I.
14
Dali, S., “O mito trágico do Angelus de Millet”, in Obras completas de Salvador Dali, v. V.
15
Dali, S., op. cit. v. V.
16
Dali, S., op. cit. v. V.
13
sua vida, ou seja, as cidades onde viveu e construiu o que considero ser suas ‘casas-museu’.
As três cidades são, respectivamente, Figueres, sua cidade natal, Cadaqués, cidade onde
passava férias de verão com a família e onde construiu sua morada conjugal com Gala e,
finalmente, Púbol, onde comprou e reconstruiu um castelo para sua amadíssima mulher.
Conhecido como triângulo daliniano (Fig. 1 - mapa), esses três lugares do extremo nordeste
da Catalunha marcaram o pintor surrealista de inúmeras maneiras, mas ressaltarei a influência
da natureza ampudarneza sobre a arte de Dali. Assim como os fortes ventos da tramontana e
as águas do mediterrâneo cavavam entalhes incríveis nas duras rochas do Cabo Creus em Port
Lligat, sua história familiar – tal qual esse ‘Outro geográfico’ – marcaria tanto o artista que o
faria se sentir como essas rochas que tanto o inspiravam. Afinal, é ele quem nos diz: “Dali é o
cabo Creus”
17
.
Além disso, falaremos como a arte de grandes pintores, como Rafael Santi
18
, Diego
Velásquez
19
, Jan Vermeer van Delft
20
, Jean-Louis Ernest Meissonier
21
e Jean-François
22
,
operou para Dali como grande Outro. Não nos interessa fazer uma análise das obras desses
artistas em detalhe, mas apontar que foi pela excelência técnica dessas obras que Dali se
fascinou. O retorno de Dalí a esses grandes mestres o fez se proclamar um homem do
Renascimento, significante este que perpassa toda sua obra e que revela sua obsessão pelos
temas da ressurreição e da imortalidade. Ao tomar as obras desses grandes mestres como
referências para sua criação artística, percebemos que é desse lugar que Dali tirará os
17
Pauwels, J.L., op. cit., p.17.
18
Rafael Sanzio (em italiano Raffaello Sanzio; Urbino, 6 de abril de 1483Roma, 6 de abril de 1520), frequentemente
referido apenas como Rafael, foi um mestre da pintura
e da arquitetura da escola de Florença durante o Renascimento
italiano, celebrado pela perfeição e suavidade de suas obras. Também é conhecido por Raffaello Sanzio, Raffaello Santi
,
Raffaello de Urbino ou Rafael Sanzio de Urbino.
19
Diego Rodríguez de Silva y Velázquez (Sevilha, 6 de Junho de 1599Madrid, 6 de Agosto de 1660) pintor espanhol e
principal artista da corte do Rei Filipe IV de Espanha
. Artista do período barroco contemporâneo, importante como retratista.
Além de inúmeras interpretações de cenas de significado histórico e cultural, pintou inúmeros retratos da família real
espanhola, notáveis figuras europeias e plebeus, culminando na produção de suas obras-primas, Las Meninas (1656) e Papa
Inocêncio X (1649-1650).
20
Johannes Vermeer (Delft, 31 de Outubro de 1632 - Delft, 15 de Dezembro de 1675) pintor holandês, também conhecido
como Vermeer de Delft ou Johannes van der Meer. Depois de Rembrandt, ele é o segundo pintor holandês mais importante
do século XVII, período conhecido por Idade de Ouro Holandesa, devido às conquistas culturais e artísticas do país nessa
época. Seus quadros são admirados por suas cores transparentes e pelas composições inteligentes e brilhantes que faz com o
uso da luz.
21
Jean-Louis Ernest Meissonier (21 de fevereiro, 1815 - 31 de Janeiro de 1891) pintor e escultor francês neoclássico famoso
por suas representações de Napoleão
, seus exércitos e temas militares.
22
Jean-François Millet ( 4 de Outubro , 1814 - 20 de Janeiro , 1875 ) Pintor romântico, um dos fundadores da Escola de
Barbizon na França rural. Precursor do Realismo. Suas telas frequentemente retratam a vida de trabalhadores rurais.
14
significantes para construir sua relação com o mundo da arte, sendo precisamente aí que ele se
distancia totalmente da proposta do grupo surrealista.
Tentaremos apreender com Dali o que de real se deixa entrever, por exemplo, na tela
de Jean-François de Millet, O Angelus (Fig. 2). Sabemos que, para tentar dar conta da
angústia causada por essa tela, Dali recorreu à escrita, desenvolvendo - a partir de suas
impressões sobre esse quadro - vários textos importantes sobre o método paranóico-crítico.
Vários desses textos encontram-se sistematizados em seu ensaio intitulado “O mito trágico do
Angelus de Millet: interpretação paranóico-crítica” ([1933-1938] 1963/2005).
Desenvolveremos melhor esse assunto no capítulo 3. Nele, exploraremos o tema do “O
estranho”
23
fazendo referência, primeiramente, ao efeito angustiante que a tela O Angelus
(Fig. 2) de Jean-François Millet teve sobre Dali. Entendemos que a obra de arte - a partir de
sua relação com a Coisa – pode nos indicar o quão íntimos somos do que nos parece estranho.
Dali usa a técnica do trompe-l’oeil
24
para nos ‘confundir’ o suficiente e nos fazer aderir a sua
tese de que a interpretação da realidade é paranóica. É nesse sentido que entendemos que uma
produção artística pode operar como o analista que, no lugar de objeto a, mobiliza ‘algo’ da
realidade psíquica do sujeito. Esse ‘algo’ do real que mobiliza o sujeito fruidor pode advir de
qualquer obra de arte, seja uma tela de Dali, Millet, Velásquez ou Vermeer – não importa. É
certo que não se trata de ‘qualquer coisa’ no sentido que Lacan confere ao objeto a enquanto
objeto causa de desejo, mas no sentido mesmo do objeto enquanto perdido, ou seja, das Ding.
Vemos, por exemplo, como Freud se mobilizou tanto com o conto “O homem da
areia”, de Ernst Hoffmann, o que o levou a escrever o seu inquietante artigo “O Estranho”
25
.
Nesse texto, vemos como se dá a relação do sujeito com a castração e com o desejo. Freud
nos faz ver que esse ‘algo estranho’ que nos mobiliza é, na ‘realidade’, muito íntimo a nós.
Nesse sentido, supomos que o objeto de arte pode operar sobre o sujeito tocando-o de modo
particular, permitindo a este – a partir de sua realidade psíquica - tecer suas interpretações
sobre o objeto que lhe extasia, quer isso lhe cause êxtase, perplexidade ou pura angústia.
Aliás, Freud sempre se questionou sobre o fato de certos escritores, através de suas
obras, poderem emocionar o leitor, mobilizando nele questões edípicas sem, no entanto,
23
Freud, S., op. cit., AE, v. XVII; ESB, v. XVII.
24
Trompe-l'œil (francês) significa “enganar o olho” - é uma técnica envolvendo imagens extremamente realistas e que cria
uma ilusão de ótica
de modo que os objetos representados aparecem em três dimensões, embora seja, de fato, uma pintura
bidimensional.
25
Freud, S., op. cit.,AE, v. XVII; ESB v. XVII.
15
causar-lhe horror ou repulsa. O interesse de Freud no assunto sempre foi grande, o que fica
claro nos ensaios sobre “O poeta e o fantasiar”
26
e “O delírio e os sonhos na ‘Gradiva’ de W.
Jensen”
27
. Assim, será ainda nesse mesmo capítulo 3 que tentaremos entender melhor o que,
na obra de Dali, produz efeitos de estranho e qual a relação disso com o belo e o horror. Não
nos interessa aqui falar da estética daliniana do ponto de vista da filosofia ou de sua relação
com o mundo das Belas Artes. O que nos interessa circunscrever nesse trabalho é justamente
aquilo que Freud entendia por estética, ou seja, uma “doutrina das qualidades do sentir”
28
.
Há inúmeros exemplos ao longo da obra pictórica de Dali sobre o quão angustiantes
podem ser algumas de suas telas, como, por exemplo, Face da guerra (1940) (Fig. 3),
Construção mole com feijões fervidos: premonição à guerra civil (1936) (Fig.4), ou mesmo A
pesca do atum (1966-1967) (Fig. 5) Não quero, com isso, rotular a estética de Dali como algo
da ordem do horror, mas apontar que as grandes obras de arte trazem em si uma ‘força que
enfraquece’. Mas enfraquece o quê precisamente? Penso que isso que se abala no sujeito seria
o material de sua realidade psíquica. Se na neurose, o abalo se dá na tela da fantasia, na
psicose, temos a invasão do Outro, mas, em ambos os casos, o que mobiliza o sujeito é a
angústia diante da castração e do desejo. Dali nos ensinou muito sobre isso, tanto quanto
Freud em seu artigo “O estranho”
29
, pois enquanto o teórico vienense escrevia sobre esse
estranho familiar em plena efervescência dos tempos de guerra, Dali desenvolvia seu método
paranóico-crítico de conhecimento da realidade para dar conta do mau encontro que teve com
o pai e com a tela de Millet.
Vemos, portanto, que a questão em torno do estranho, no que tange à arte e à
psicanálise, é bastante complexa e envolve muitas articulações da teoria tanto em Freud como
em Lacan. Como sabemos, o percurso de Lacan em torno desse tema foi mais bem explorado
em seu Seminário, livro 10, A angústia (1962/2005), mas suas articulações sobre o campo do
saber envolvendo a arte podem ser encontradas em diversos momentos de sua obra. Ao longo
desse trabalho citaremos os momentos que para nós foram mais relevantes.
Após termos revisto alguns pontos importantes da teoria psicanalítica, percebemos que
Freud foi certeiro ao nos dizer que o poeta antecede o psicanalista. Assinala, também, que é
com esse escritor criativo que o psicanalista deve tentar, humildemente, aprender um pouco
mais sobre as coisas referentes ao amor, ao sexo e à morte. Dali se dizia poeta e, ainda que
26
Freud, S., idem.
27
Freud, S., “O Delírio e os sonhos na ‘Gradiva’ de W. Jensen”, AE, v. IX; ESB, v. IX.
28
Freud, S., op. cit., AE, v. XVII, p. 219; ESB, v. XVII, p. 237.
29
Freud, S., op. cit.,AE, v. XVII; ESB, v. XVII.
16
não seja como escritor literário que ele nos toque, sua obra pictórica pode, muitas vezes,
tomar ares de poesia e, até mesmo, nos inspirar.
17
Capítulo 1: Psicanálise e Surrealismo
18
Como podemos pensar o século XXI sem considerarmos a influência maciça da
psicanálise em nossa cultura desde a publicação da Interpretação dos sonhos
30
(1900) e de
todos os trabalhos de Freud desde fins do século XIX? Os programas de televisão, os
romances e os filmes incorporaram os jargões “psi” em seus discursos, ainda que, na maioria
das vezes, o façam de modo equivocado. Falar de psicanálise hoje em dia é quase banal,
mesmo que saibamos dos riscos de se vulgarizar o termo utilizado por Freud para designar um
método particular de psicoterapia que se dá através da fala. Segundo Elisabeth Roudinesco, o
termo ‘psicanálise’ foi primeiramente utilizado por Freud em 1896 em um artigo redigido em
francês intitulado “A hereditariedade e a etiologia das neuroses”
31
, mas teria sido mais bem
definido pelo próprio Freud num texto destinado a um volume coletivo, oito anos após o
primeiro emprego. Roudinesco cita o trecho em que Freud explica seu método de tratamento
pela fala, salientando o fato dele ter escrito esse texto na terceira pessoa:
[...] Já havendo o método catártico renunciado à sugestão, Freud deu um passo a mais,
rejeitando igualmente a hipnose. Ele trata com igualdade seus enfermos, do seguinte modo:
sem procurar influenciá-los de maneira alguma, faz com que se estendam comodamente num
divã, enquanto ele próprio, retirado do olhar dos pacientes, senta-se atrás deles. Não lhes pede
para fechar os olhos e evita tocá-los, bem como empregar qualquer procedimento passível de
lembrar a hipnose. Esse tipo de sessão se passa à maneira de uma conversa entre duas pessoas
em estado de vigília, uma das quais é poupada de qualquer esforço muscular e de qualquer
impressão sensorial capaz de desviar sua atenção de sua própria atividade psíquica.
32
Esse recorte do texto de Freud é bastante relevante para a abertura desse trabalho, pois
trataremos de assinalar, mais adiante, de assinalar como os surrealistas fizeram um uso
equivocado da proposta freudiana no direcionamento de suas produções literárias. Entretanto,
não devemos ver tal equívoco como depreciativo do criador da chamada escrita automática, o
poeta André Breton, pois suas pesquisas acerca do inconsciente, ainda que pelo viés da
equivocação, confirmam o quão impactante a descoberta freudiana foi para o mundo das artes
naquele momento histórico. Aliás, o grande mérito dos surrealistas foi justamente abrir as
portas para a psicanálise na França. Afinal, esse grupo composto por intelectuais, médicos e
artistas, incluindo aí o próprio Dali, se dedicou à leitura dos textos freudianos tendo como um
de seus preferidos o artigo “O delírio e os sonhos na Gradiva de W. Jensen”
33
.
Mas enquanto Freud não gostava nada da forma como os surrealistas entenderam e
tentaram aplicar seu método terapêutico, Lacan, ao contrário, reconheceu que foi através do
30
Freud, S.,op. cit., AE, v. IV; ESB, v. IV.
31
Freud, S., “A hereditariedade e a etiologia das neuroses”, AE, v.III; ESB, v.III.
32
Freud apud Roudinesco, E., Dicionário de psicanálise, p. 604.
33
Freud, S., op. cit., AE, v. IX; ESB, v. IX.
19
surrealismo, e não da literatura médica, que descobriu a importância do freudismo como
Roudinesco ressalta ao dizer que “[...] foram os surrealistas, mais do que os psicanalistas, que
reivindicaram a herança de Charcot ao homenagear, em 1928, não o neurologista da
Salpetrière, mas Augustine, sua célebre paciente.”
34
Assim, vemos como o retorno de Lacan a
Freud é, de certo modo, tributário do seu envolvimento com esse grupo de intelectuais e com
o próprio Dali.
Curiosamente, não foi somente Lacan que se encantou com Salvador Dali. Se Freud
desdenhou e, até mesmo, criticou o movimento surrealista de Breton, chamando seus
expositores de ‘loucos rematados’, com o pintor catalão, a história foi bem diferente. Em seu
livro, Sexo e discurso em Freud e Lacan
35
(1988), Marco Antonio Coutinho Jorge ressalta
como Freud havia se impressionado com Dali através de um encontro entre os dois
promovido por um amigo comum, o escritor Stephen Zweig, em Londres, em 1938.
Se, por um lado, o surrealismo se equivocou ao se valer do método psicanalítico para
colocar em prática suas produções literárias com o intuito de promover curas psíquicas, o que
dizer do dadaísmo que o precedeu? Para entendermos o movimento encabeçado por Breton
temos que dar um passo atrás. Por isso, precisamos fazer uma retomada dos movimentos
literários surgidos no entre-guerras para entendermos o que a guerra tem a ver com a criação
de textos e trabalhos tão importantes que surgiram nesse período.
Aliás, o que a destruição teria a ver com o desejo de criação? A clínica, nesse sentido,
pode nos ajudar a esclarecer tais questões e é por isso que não podemos nos furtar a incluir em
nosso trabalho algumas referências a nossa práxis em sua conexão com o tema aqui abordado.
1.1 Escritas possíveis entre guerras reais
Em 30 de julho de 1932, Einstein escreveu uma carta a Freud endereçando ao pai da
psicanálise a seguinte pergunta: “Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de
guerra?”
36
. Respondendo a Einstein, nesse mesmo ano, em seu artigo “Por que a guerra?”
37
,
Freud deixa claro que os conflitos entre os homens precisam ser mediados pela lei, caso
contrário tudo seria resolvido por meio da violência. Entendemos desse modo que a lei tem o
34
Roudinesco,E., Jacquess Lacan – esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento, p. 37
35
Jorge, M.A.C., op. cit., p. 136.
36
Freud, S., “Por que a guerra?”, AE, v. XXII, p.183; ESB, v. XXII, p. 193.
37
Freud, S, op. cit., AE, v. XXII, p. 187- 198; ESB, v. XXII, p. 197 – 208.
20
papel de intermediar conflitos entre os homens que, cegos pelos equívocos promovidos por
seu narcisismo, deixam-se levar pela ira implacável da pulsão de morte. Com Freud, também
entendemos que o altruísmo é, na realidade, fruto dos processos de recalcamento da pulsão de
morte que também pode ser entendida como pulsão de domínio. Embora pudéssemos pensar
que é a libido que mais sofre ação do recalque, Freud nos faz ver, ainda nesse artigo, que é a
agressividade que deve sucumbir às ações educativas e civilizatórias, caso contrário,
precisaríamos resolver nossas diferenças nos moldes dos bárbaros.
Lacan aponta que “a questão do bem é desde o início articulada em sua relação com a
Lei”
38
. Lacan nos faz ver, com Freud, que a moral e os bons costumes são fruto da ação
civilizatória. Dispersando-se um pouco desse maniqueísmo que a civilização construiu ao
longo do tempo, o discurso do analista questiona ‘essa onda do bem’ e insiste em privilegiar o
desejo cuja base pulsional é sempre sem pé nem cabeça
39
. Tal expressão é utilizada por Lacan
para se refereir à montagem da pulsão como uma pintura surrealista, ou seja, algo que não
passa pelo crivo da razão. Desse modo, vemos que arte e o desejo são politicamente
‘incorretos’ justamente porque a base pulsional que os move traz em si um paradoxo: para
criar, é preciso destruir.
Em virtude dessa condição da pulsão, podemos entender o porquê das produções
literárias no entre-guerras evidenciarem a desordem e o caos, deixando claro que a pulsão de
morte reinava naquele momento da história da humanidade. As duas grandes guerras
mundiais acirraram o sentimento de desamparo pois, diante dos corpos sem vida nos campos
de batalha, o homem comum confirmava sua condição de objeto.
Ainda hoje vemos como esse sentimento se repete, seja na história da humanidade,
seja nas histórias de cada um. As guerras no Oriente Médio, o alto índice de assassinatos nas
grandes cidades e as experiências que a clínica do real nos aponta, tudo isso evidencia o
quanto o sujeito ‘treme’ diante da angústia de desaparecer da cadeia significante. Nos
Escritos, em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, Lacan
propõe que “um significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante”
40
.
Também sabemos, com Lacan, que esse mesmo sujeito é, desde sempre, marcado pelas
palavras e pelo dom de amor do Outro, sendo esse grande Outro aquele que o ‘presenteará’
com um corpo de significantes. Portanto, podemos entender que nada pode ser mais
38
Lacan, J., O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, p. 270.
39
Lacan, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 160.
40
Lacan, J., in Escritos, p. 833.
21
angustiante para o sujeito marcado pelo significante do que ver no rosto sem vida do próximo
o apagamento do seu desejo.
Como sabemos, não há inscrição significante para a morte em nosso inconsciente, o
que faz com que o homem não a realize como algo real a não ser quando, de forma indireta,
ele verifica isso através do desaparecimento do seu próximo. Um bom exemplo é o que está
escrito no epitáfio Marcel Duchamp: “D’ailleurs, c’est toujours les autre qui meurement.”
41
.
O sujeito marcado pelo desejo que se exprime em sua fala não se resigna à
contemplação passiva do horror que as guerras impõem à humanidade, às marcas que se
fazem vistas em seu corpo falante ou que se repetem em atos aparentemente sem sentido. A
clínica nos ensina muito sobre isso. Assim, tem-me sido possível verificar como o analisando
- em sua batalha particular - luta incansavelmente contra a mortificação de seus desejos que os
ditos do Outro parecem lhe impor. Em algum momento, ele percebe que, para reescrever sua
história, é preciso tornar suas as suas próprias palavras. Lembro-me que, no auge de sua
angústia, certo analisando revelou que, após ter lido o jornal na sala de espera, sentira grande
desconforto. Associando seu mal estar à notícia que lera, lembrou-se de um sonho e disse:
“temo que certas palavras que me designaram por toda uma vida possam ter destruído meus
sonhos como as bombas que caíram sobre Gaza”.
Tratava-se da seguinte manchete de jornal:
Pesados bombardeios levam fome e desespero à população palestina – Após
sofrer pesados bombardeios, a cidade de Gaza, a mais populosa do território
palestino, foi sitiada por colunas de tanques e tropas de infantaria, levando
fome, frio e desespero aos moradores.
42
Uma mera notícia de jornal? Não. O analisando fez com esse recorte o que Dali
propusera ao longo de todo seu método paranóico crítico. Ele fez outra coisa: ‘palavras-
bomba’. Uma metáfora de sua dor diante da inevitável constatação de que as palavras dos pais
poderiam ter tido sobre ele um efeito devastador. Palavras que revelavam um código ao qual o
paciente se via preso.
Ao desenvolver seu método paranóico crítico de conhecimento da realidade no ensaio
intitulado “O Mito trágico do Angelus de Millet: interpretação paranóico-crítica”
43
. Salvador
Dali diz ter constatado que: “La ley moral debe ser de origen divina, ya que, antes de las
41
Duchamp M. apud Cabanne P., Engenheiro do tempo perdido, p. 194. “Além do mais, são sempre os outros que morrem”.
42
In O GLOBO, 05/01/2009.
43
Dali, S., op. cit. v. V.
22
Tablas de Moisés, ya estaba contenida en los códigos de las espirales genéticas”
44
. Parece que
o artista genial percebeu que Deus é um dos nomes do Outro cujos significantes herdamos
bem antes de nascermos. Ele fez isso ao nos dar a preciosa pista da genealogia da lei a que
estamos submetidos ainda que ele a tivesse nomeado através do discurso da ciência.
Diferentes momentos, diferentes escritas para dar conta de um encontro com o real,
isso que explode nos céus de Gaza em pleno ano novo e que não são fogos de artifício. O
analisando - nas duras batalhas travadas em sua longa travessia – sentiu-se sob fogo cruzado
ao se dar conta da alienação aos significantes que o Outro lhe impusera como um código
oculto de condutas que precisava ser questionado. Duchamp deixa claro que o falasser
45
não
morre a não ser quando está escrito que morreu, quando, enfim, ele é o outro que sumiu da
cadeia significante. Modos de se reinventar através de um novo dizer sobre o real.
É sabido que Dali foi batizado com o mesmo nome de um irmão morto, fato que o
aterrorizou ao longo de sua vida. Não pretendo me alongar nesse ponto, mas é preciso lembrar
que ele jamais se resignou em ocupar o lugar do morto, vendo nisso uma tarefa impossível.
Em vários momentos de seu ensaio autobiográfico, “Vida Secreta de Salvador Dali”
46
, o
artista falou sobre seu pavor diante da morte. Ele tentou dar conta disso, nomeando-se o
“Salvador da arte moderna da preguiça e do caos”
47
. Em meio ao movimento surrealista
inaugurado por Breton, Dali se destacou pela elaboração teórica do seu método paranóico-
crítico de conhecimento da realidade, pois, com isso, convocou um novo olhar sobre o mundo
que ele pretendia reconstruir e deixou claro que havia uma realidade para além daquela que
julgávamos poder compartilhar. Através do estudo da obra de Dali, entendemos um pouco
mais daquilo que, com Freud, chamamos de realidade psíquica.
44
Dali, S. op. cit. p. 409, v. V. “A lei moral deve ser de origem divina, já que, antes das tábuas de Moisés, já estava contida
nos códigos das espirais genéticas” (minha tradução deste e dos demais trechos em língua estrangeira ao longo do trabalho).
45
Falasser é um neologismo que Lacan emprega para se referir ao sujeito da linguagem marcado pelo desejo e que está
inserido no discurso.
46
Dali, S., op. cit. v. I.
47
Dali, S., op. cit. v. V, p. 40-43.
23
1.2
Escritas de guerra – de Dadá a Dali
Como Dali se inseriu no contexto já pavimentado pelos movimentos literários que o
precederam? Em que medida o surrealismo (Paris, 1929) de André Breton (1896-1966)) se
distancia do dadaísmo (Zurique, 1916) de Tristan Tzara (1896-1963) e como aquele
movimento se diferencia da proposta de Dali? Em que medida isso favorece nosso trabalho
com a clínica através da teoria psicanalítica em sua conexão com a arte? Comecemos nossa
discussão com um breve recorte histórico sobre tais fatos.
O surrealismo nasceu em Paris no entre-guerras, mas, diferentemente do dadaísmo que
o precedeu, esse novo movimento literário não propunha a dissolução total da arte, ainda que
esse tenha sido seu discurso inicial. Ainda assim, é preciso voltar à questão proposta pelo
movimento de vanguarda iniciado pelo poeta romeno Tristan Tzara na tentativa de explicar o
repúdio de Dali pela arte moderna então praticada, chegando mesmo a classificá-la como arte
preguiçosa e caótica. De fato, ao escrever seu método paranóico-crítico de conhecimento da
realidade, Dali desejava que a ordem renascesse do caos. Mas era preciso haver o caos para
que esse desejo de unidade e de totalidade fosse justificado para os surrealistas.
Por ora, voltemos ao caos estabelecido com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e
os efeitos disso sobre o mundo das artes, bem como sobre algumas produções teóricas de
Freud.
Com a Primeira Grande Guerra, os ideais estéticos cultuados até então foram
duramente destituídos e o homem do pós-guerra já não acreditava mais na moral e nos bons
costumes. A negação da harmonia era a forma de expressão do estado de espírito dos que
foram para os campos de batalha e de lá retornaram devastados. A proposta do dadaísmo era,
portanto, conivente com a vivência de desamparo no pós-guerra. A palavra dada, de origem
francesa, significa cavalo de brinquedo, mas é alusiva ao non-sense que a linguagem de um
bebê contém, o que nos leva a verificar o caráter anti-racionalista que o nome do movimento
evoca. Possivelmente, a arte Dadá, como o próprio nome sugere, foi uma tentativa de
simbolizar esse sentimento de despedaçamento psíquico através da perspectiva de
esfacelamento do código lingüístico e das belas artes. Sendo assim, enquanto unidade
harmônica, o belo era contrário à proposta niilista do movimento Dadaísta porque era
24
encarado como uma camuflagem diante do horror vivenciando nos campos de batalha. Afinal,
não há beleza na guerra.
Com os assassinatos de guerra, as barreiras diante da castração foram içadas, o que foi
insuportável para o homem comum. Recrutado para guerrear, ele tinha que, em nome de sua
autopreservação, convocar a força de Tanatos e, desse modo, executar seu semelhante, ainda
que isso lhe custasse o trauma de ver no outro a face de sua própria morte. Em “Introdução à
psicanálise e as neuroses de guerra” (1919), Freud fala das neuroses de guerra como
traumáticas uma vez que elas são conseqüência de um conflito no eu. Diz Freud:
O conflito é entre o velho eu pacífico do soldado e o seu novo eu bélico, e
torna-se agudo tão logo o eu pacífico compreende que perigo ele corre de
perder a vida devido à temeridade de seu recém-formado parasítico duplo.
Seria igualmente verdadeiro dizer que o antigo eu está se protegendo de um
perigo mortal ao fugir para uma neurose traumática, ou dizer que está
defendendo-se do novo eu, o qual vê como uma ameaça à sua vida. Dessa
forma, a precondição das neuroses de guerra, o solo que as nutre, pareceria ser
um exército nacional [recrutado]; não haveria possibilidade de surgirem
neuroses num exército de soldados profissionais ou mercenários.
48
Para dar conta da angústia real que a matança do próximo provocou em toda uma
geração de jovens idealistas, era preciso recorrer à escrita. Ainda que os Dadaístas parecessem
ir contra a estrutura da linguagem regida por um código e por uma estética, eles não
conseguiam abrir mão do simbólico. Afinal, ainda que de modo anárquico, eles pretendiam
fazer poesia com palavras escolhidas aleatoriamente de revistas e jornais. Essas palavras
precisavam ser lançadas no papel, - soltas e desconexas - para demonstrar o non-sense em que
seus autores estavam imersos. A escrita possível desses poetas era sem sentido e o corpo de
palavras fragmentado. Sendo contra a tradição e os bons costumes, esse movimento teria,
inevitavelmente, vida curta, mas causaria tanta confusão que os fundadores do Surrealismo se
afastaram da proposta dos Dadá por julgá-la não científica e ingênua.
Enquanto o dadaísmo abusava do sem sentido e do modo anárquico de ser, o
surrealismo buscava, através das experiências com a escrita automática, um meio de
conhecimento do irracional e do funcionamento do inconsciente. Havia um objetivo a ser
alcançado pelos escritores surrealistas que, segundo Maurice Nadeau, era “a reconciliação dos
dois campos até então inimigos, no seio de uma unidade, primeiramente do homem, em
seguida deste a do mundo.”
49
. Eles se julgavam experimentalistas da linguagem,
48
Freud, S., “Introdução à psicanálise e às neuroses de guerra”, AE, v. XVII p.207; ESB, v. XVII p. 224-225. Todas as
versões em português inseridas no corpo do trabalho foram cotejadas com a tradução argentina; muitas vezes, quando o texto
em português não deturpava a idéia principal, optei pela versão brasileira da Standard Edition, ainda que, quando necessário,
eu fizesse livremente pequenas alterações.
49
Nadeau, M., História do Surrealismo, p. 46.
25
pesquisadores do inconsciente, mas diferentemente do pensamento lógico científico,
privilegiavam a intuição e a inspiração em suas pesquisas. Nadeau enfatiza que o Surrealismo
não era considerado uma nova escola artística por seus fundadores Breton e Soupault que,
juntos, escreveram a primeira obra surrealista, Les Champs magnétiques pubicada em 1921,
apresentando-a como “uma experiência, no sentido científico do termo e não como um novo
texto de literatura de vanguarda”
50
.
Os anos do pós-guerra levaram muitos intelectuais a produzirem textos que, de modo
sutil ou explícito, estavam impregnados da angústia causada pela guerra. Vemos, por
exemplo, como Freud estava imerso no tema da pulsão de morte. Além do artigo acima
citado, não podemos nos esquecer dos textos “Bate-se numa criança”
51
e “O Estranho”
52
,
ambos de 1919, ou seja, um ano após o término da Primeira Grande Guerra. Ainda nesse
mesmo ano, Freud discorre sobre as neuroses de guerra, no artigo “Introdução à psicanálise e
às neuroses de guerra”
53
(1919/1996). Nesse artigo, ele assinala que as chamadas neuroses
traumáticas em tempos de paz se assemelham às neuroses de guerra porque, em ambas, o eu
se defende de um perigo que o ameaça de fora. Escrever era, portanto, a saída possível para
que o pesquisador devastado pelos anos de guerra pudesse dar voz e algum sentido à pulsão
de morte. Não por acaso, em 1920, Freud iria nos presentear com seu texto metapsicológico, o
“Além do princípio de prazer”
54
, e nos mostrar que a repetição era um ‘mal’ necessário e
inevitável para a nossa economia psíquica. Não pretendo me alongar nesse ponto, mas chamar
a atenção para o fato de que o caos tem seus méritos na criação, pois sabemos o quão difíceis
foram para Freud os anos que precederam o término dos conflitos bélicos. Em seu artigo, “Do
amor ao gozo – uma leitura de “Bate-se numa criança”, Marco Antonio Coutinho Jorge
lembra que: “Muito sozinho, porque a maioria de seus colegas jovens também estava em
combate, Freud não tinha pacientes, e desde 1916, enfrentava dificuldades para manter a
família e mesmo alimentá-la”
55
.
Com a publicação dos textos de Freud, os surrealistas aderiram à causa psicanalítica de
um modo muito particular. Ainda que, segundo Freud, eles fizessem um uso equivocado de
suas idéias, não podemos negar a importância de suas pesquisas com a linguagem porque, de
algum modo, elas nos reconduzem à teoria psicanalítica, uma vez que tratavam de
50
Nadeau, M., idem, p. 46-47.
51
Freud, S., “Bate-se numa criança. Contribuição ao conhecimento da gênese das perversões sexuais”, AE, v. XVII; ESB, v.
XVII.
52
Freud, S., op. cit., AE, v. XVII; ESB, v. XVII.
53
Freud, S., op. cit., AE, v. XVII; ESB, v. XVII.
54
Freud, S., “Mais além do princípio de prazer”, AE, XVIII; ESB, v. XVIII.
55
Jorge, M.A.C., in Revista Marraio, Editora Rios Ambiciosos/Formações Clínicas do Campo Lacaniano, n. 13, p. 36.
26
experimentos com a escrita e com a criação. Além disso, não podemos nos esquecer de que
esses artistas estavam imersos no caldo gélido da pulsão de morte e a única forma de erotizar
e aquecer esse caldo seria através da criação. Para sobreviver ao caos, era preciso fazer uso da
força criadora da pulsão de morte.
No Seminário, livro 7, A ética da psicanálise, Lacan enfatiza que é preciso haver
destruição para que algo novo possa surgir e diz :
Sade nos mostrou a teoria segundo a qual, pelo crime, ocorre de o homem
colaborar com novas criações da natureza. A idéia é de que o puro elã da
natureza é obstruído por suas próprias formas, de que nos três reinos,
através do que manifestam como formas fixas, acorrentam a natureza num
ciclo limitado, aliás manifestamente imperfeito, como o mostra o caos, e até
mesmo a turba de conflitos, a desordem fundamental de suas relações
recíprocas.
56
Se por um lado o caos da linguagem e das belas artes preconizado pelo dadaísmo tinha
uma intenção destrutiva, por outro, criava uma oportunidade para o surgimento de uma nova
ordem que seria encabeçada pelos surrealistas.
Liderados por Breton, esses escritores pretendiam - através da proposta da escrita
automática, inspirada no método freudiano da associação livre – investigar o inconsciente,
acreditando, ingenuamente, que poderiam chegar a uma plenitude e unificar o que estava
caótico. O mérito desses investigadores não está tanto no método usado por eles, mas no fato
de que, dentre outras coisas, eles puseram em evidência a idéia de que o belo impedia-os de se
aproximarem do desejo. Entretanto, podemos pensar que, como um anteparo para o desejo, o
belo não pode evitar de causá-lo na medida em que esconde algo precioso por detrás dos seus
disfarces. E o que seria isso senão o furo real? Tal qual a tela da fantasia, os véus da beleza
têm um mesmo objetivo: velar a castração. Então, lá onde habita o horror, o artista cria uma
rede de significantes que se entrelaçam e copulam até que surja uma trama de traços que
funcione como um engodo para o leitor, no caso da escrita, ou para o olhar, no caso das artes
plásticas.
A bagunça do caos poético proposto pelos escritores dadaístas promovia grande
confusão, servindo, desse modo, de cortina de fumaça diante da castração. Tinha-se notícia da
castração, mas não se pretendia “trazê-la à cena”, ou melhor, possivelmente, os Dadá se
contentavam em apenas denunciar os efeitos terríveis da guerra, sendo justamente isso que os
distanciava dos surrealistas que pretendiam ir além. Como o dadaísmo, o movimento
surrealista, encabeçado por Breton, fazia um esforço de ir contra uma ordem estabelecida que
56
Lacan, J., O Seminário, livro 7, A ética da psicanálise, p. 257.
27
se pautasse nas noções do bem e do belo, mas, diferentemente daquele movimento, o
surrealismo tinha um caráter sistemático e científico e ainda que, para tal, eles negassem a
lógica cientificista e valorizassem a intuição.
1.3 Da escrita automática de Breton ao método paranóico-crítico de Dali
O ano de 1924 registra a fundação oficial do grupo surrealista que tinha um escritório-
sede, uma revista – Surréalisme - e um manifesto, o Manifesto do Surrealismo escrito por
André Breton nesse mesmo ano. A proposta inicial do grupo de surrealistas era valorizar um
processo de realismo que fosse “hostil a todo surto intelectual e moral”, como assinala
Nadeau
57
. Entretanto, Breton discordava desse grupo e possivelmente por isso resolveu
escrever seu manifesto, onde preconizava que a poesia deveria ser escrita segundo um
método: o automatismo psíquico.
Podemos entender o porquê de Freud ter mantido certa distância desse movimento,
uma vez que é nítido como Breton se valeu de conceitos da psicanálise e da psiquiatria de
modo equivocado. Provavelmente inspirado pela noção de automatismo mental desenvolvido
por Gaetan Gatian de Clérambault
58
- que enfatizava o caráter patológico dos pensamentos
que acometiam pacientes psicóticos como se estes estivessem possuídos por palavras -,
Breton criou o método da escrita automática a partir do que ele entendeu por automatismo
psíquico. Em seus comentários sobre um caso clínico de psicose, Angelina Harari utiliza a
noção de automatismo mental esclarecendo que, em termos patológicos,
Um tal sentimento de possessão se manifesta freqüentemente nos maníacos,
principalmente nos maníacos inebriados. Algumas vezes, estes têm não só um
automatismo verbal muito ativo (versificação com rimas), como também um
automatismo gráfico (escrita semi-involuntária); têm atitudes e gestos
semafóricos, enigmáticos, de inspiração puramente motora.
59
Mas para Breton o automatismo mental seria entendido de modo diferente; ele o
utilizou como inspiração para criar o método da escrita automática. Vemos que ele chega até
a definir o surrealismo a partir do que nomeou de automatismo psíquico:
57
Nadeau, M., op. cit., p. 53.
58
Gaetan, Gatian de Clérambault (1872-1934) psiquiatra francês, hostil ao freudismo e ao surrealismo, mas, ainda assim,
fora designado por Lacan como seu “único mestre em psiquiatria”, como aponta Elizabeth Roudinesco e Michel Plon, in
Dicionário de Psicanálise, p 120.
59
Harari, A., Clínica lacaniana da psicose: de Clérambault à inconsistência do Outro, p.57.
28
Surrealismo. s.m. Automatismo psíquico pelo qual se exprime, quer
verbalmente, quer por escrito, quer de outra maneira, o funcionamento real do
pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de qualquer controle
exercido pela razão, fora do âmbito de qualquer preocupação estética ou
moral. Encicl. Filos. O Surrealismo repousa sobre a crença na realidade
superior de certas formas de associações negligenciadas até então, na
onipotência do sonho, no jogo desinteressado do pensamento. Tende a
arruinar todos os outros mecanismos psíquicos e a substituí-los na solução dos
principais problemas da vida.
60
Não podemos negar que sua inventividade tinha o mérito de evidenciar o fato de que o
inconsciente é uma estrutura de linguagem, ainda que ele tenha entendido isso de modo
equivocado no que tange à teoria freudiana. Afinal, como sabemos com Freud e Lacan, seria
impossível forçar uma produção inconsciente, uma vez que o sujeito do inconsciente já se
manifesta sem tal artifício, quer ele queira ou não. Nesse sentido, a produção artística entraria
na série de produções inconscientes do artista, uma vez que elas trazem as marcas da sua
realidade psíquica. Entretanto, como jamais poderemos compartilhar dessa mesma realidade –
a do artista –, o trabalho artístico, enquanto um objeto calado não pode ser analisado como
pretendiam os surrealistas. Além do mais, é sempre bom salientar que uma análise só pode ser
feita com a associação livre, regra fundamental, o que implica na posição do sujeito falante.
Do mesmo modo, parece-nos ingênuo pensar que a psicanálise, enquanto um estudo
meramente teórico, possa de algum modo favorecer a criação artística, como imaginava
Breton. Aliás, em seu artigo “O poeta e o fantasiar”, o próprio Freud nos diz que de nada
adianta compreendermos os motivos que culminam na criação, pois isso em nada irá
contribuir para nos tornarmos poetas
61
. Na realidade, concordamos com Roudinesco quando
ela - ao comentar o ensaio de Freud sobre Gradiva - esclarece que ele não tenha tido como
objetivo inicial a “aplicação rudimentar da psicanálise a um material literário, mas a tentativa
de fazer a psicanálise progredir através do estudo dos processos da criação literária”
62
. Na
contramão da proposta freudiana, muitos dos expoentes do surrealismo julgavam que através
da aplicação do método da associação livre à criação poética poderiam curar-se de seus
traumas.
Breton teve o mérito de apontar para o caráter eminentemente criativo do inconsciente,
mas em sua postura ingênua preconizava que, para escrever poesia, bastava seguir esse
método onde o talento era totalmente desnecessário, diria mesmo, indesejável. Breton
repudiava o escritor talentoso, o poeta e o próprio homem, e questionava com vigor
60
Breton apud Nadeau, op. cit., p. 55.
61
Freud, S., op. cit., AE, v. IX, p. 127; ESB, v. IX, p.135 .
62
Roudinesco, E. e M. Plon, op. cit., p. 144.
29
revolucionário: “O poeta, à escuta de seu inconsciente, terá contribuído com algo para a
riqueza desse? Todos são poetas desde que se disponham a se colocar às ordens”
63
. Com isso,
Breton alçava o surrealismo à categoria de “arte mágica” que estaria ao alcance de todos,
desde que as pessoas obedecessem a uma série de ordens, dentre as quais destaco as
seguintes: deviam estar em um lugar bem cômodo para que pudessem se auto-concentrar;
deviam se manter o mais passivas e receptivas possível.
Possivelmente, foi por conta dessas transposições abruptas que implicavam em
deturpações teóricas que Freud jamais apoiou tal movimento que o tinha como ‘santo
padroeiro’. Como sabemos, em sua humildade de pesquisador, Freud sempre soube dos
limites da psicanálise e, com freqüência, buscava resposta para seus dilemas nas palavras de
poetas de grande talento. Tal qual Freud, Salvador Dali também valorizava os clássicos, em
especial os pintores, tendo como seus preferidos Vermeer, Velasquez, Millet, dentre outros.
Dali ia contra a onda bretoniana que apregoava a passividade através de seu automatismo
psíquico. Julgando a arte moderna caótica e preguiçosa, Dalí se autoproclamava o Salvador
das artes. Sua proposta era de recompor o que estava disperso e ele iria fazê-lo através da
escrita do seu método paranóico-crítico de conhecimento da realidade. Parto daí na tentativa
de explicar como a ordem surgirá do caos para Dali.
Para o artista de Figueres, a ordem, desde sempre, emergiu do caos. Com Dali, vemos
que é impossível se livrar das heranças ou da tradição e que o simbólico não pode prescindir
do sentido que o imaginário dá para o encontro com o real. É nesse cenário que surge o
revolucionário artista catalão.
Mas o que diferenciava o método de Dali da proposta de Breton?
Antes de respondermos a essa pergunta, é importante salientarmos que a concepção
desse método teve início pouco depois de 1929, após uma grave briga de Dali com seu pai por
conta da união do artista com Gala, o que culminou com sua expulsão da casa paterna. No
momento, entretanto, nos limitaremos a assinalar que foi por ocasião da instalação desse caos
pessoal que adveio a escrita desse método. Em Dalí – The Impresario of Surrealism
64
(2004),
Jean-Louis Gaillemin ressalta que foi em 1928, no artigo intitulado “O asno podre”, que Dali
começou a se distanciar da passividade proposta por Breton com a escrita automática,
afirmando que o processo de sistematização da confusão da realidade era, de fato, algo ativo.
63
Breton apud Nadeau, op. cit., p. 56.
64
Gaillemin, J.L., Dali - the impresario of surrealism, p. 60-61.
30
No artigo escrito para o primeiro número da revista Le Surréalisme au Service de La
Révolution, por volta de 1930, Dali definiu a paranóia crítica como:
Uma atividade com tendência moral que poderia ser provocada pela vontade
violentamente paranóica de sistematizar a confusão. O fato mesmo da
paranóia, especialmente a consideração do seu mecanismo como força e
poder, conduz-nos às possibilidades de uma crise mental de ordem, talvez
equivalente, mas, em todo caso, nas antípodas da crise à qual nos submete
igualmente o fato da alucinação. Creio estar próximo o momento em que, por
um processo de caráter paranóico e ativo do pensamento, será possível
(simultaneamente ao automatismo e a outros estados passivos) sistematizar a
confusão e contribuir para o descrédito total do mundo da realidade.
65
Nesse ensaio, bem como em vários momentos ao longo de sua extensa obra
autobiográfica, Dali tentou explicar a aplicação de seu método. Referindo-se à sua obsessão
por uma obra de Jean-François Millet, O Angelus (Fig. 2), ele acreditava que seu pensamento
obsessivo diante dessa tela estava relacionado a um mal-estar que ele tinha sempre que via
esse quadro. Dali tinha uma impressão muito ruim sobre essa tela e, desde sua infância,
afirmava que algo nesse quadro parecia secretamente apontar para uma íntima relação entre
sexo e morte. De fato, havia uma história intrigante acerca desse quadro a qual foi revelada
depois que Dali requisitou um estudo de raios X sobre a tela. Tais estudos revelaram que
havia um esboço de uma figura geométrica semelhante a de um caixão o qual fora superposto
pelo saco de batatas. Imediatamente, Dali identificou nesse saco de batatas o motivo do seu
mal-estar. Ou seja, sua interpretação paranóico-crítica revelara uma realidade que jazia
escondida sob outra realidade aparente. Falaremos sobre isso um pouco mais no capítulo 3.
Qual a relação que Dali fazia do que entendia por paranóia com um método de
conhecimento da realidade e, mais ainda, com um método de criação?
Dali explicou o surgimento do seu método paranóico-crítico como tributário da
vivência de sua união com Gala que, segundo ele, o salvara da dureza e da crueldade do pai
que o expulsara de casa justamente por conta de sua relação com essa mulher que era, para
ele, sua musa, sua vida.
Com uma estranha explicação para sua teoria intitulada paranóico-crítica, Dali dizia
que comparava sua estrutura psíquica à vida de um tipo de caranguejo conhecido como
Bernardo-Eremita e explicava que a estrutura dura que lhe servia de proteção seria Gala e que
ele seria o interior mole. Então, para Dali, como enfatiza Pierre Ajame, o Salvador, seria o
paranóico-mole, o interior do Bernardo-Eremita, e Gala, a crítica dura
66
, correspondendo à
65
Dali apud Quinet in Psicose e laço social, p. 109.
66
Ajame, P., As duas vidas de Salvador Dali, p. 64-66.
31
carapaça, à concha do caranguejo solitário de aparência esquisita. De fato, a relação do
paranóico com o mole e da crítica com o duro pode ser detectada ao longo do ensaio de Dali,
mas destaco o trecho em que ele se refere ao comentário que Gala, orgulhosa, fizera depois
que os exames de raios X confirmaram a presença do esboço do que ele interpretou como o
caixão do filho dos camponeses:
Depois desse acontecimento, Gala me disse: “Se esse resultado constituísse
uma prova, seria maravilhoso; mas se todo o livro não fosse mais que uma
pura construção do espírito, então seria sublime!”. Eu, pessoalmente, dou por
certo o seguinte: este livro e a prova de que o cérebro humano, e, neste caso, o
cérebro de Salvador Dali, é capaz, graças à atividade paranóico-crítica
(paranóica: mole; crítica: dura), de funcionar como uma máquina cibernética
viscosa, altamente artística.
67
Dali definiria melhor seu método através da aplicação de sua teoria ao seu processo
criativo, tendo como principal objetivo atingir o conhecimento da realidade. Para tanto, ele
precisaria, antes de tudo, promover o total descrédito do que se pudesse entender como
realidade, pois, para além desta, haveria outra ainda mais real – uma super-realidade. Ele
aplicou esse método através da técnica do trompe-l´oeil com o uso de imagens duplas, como
podemos ver no quadro O homem invisível (1929-1933) (Fig.6). Segundo Dali, com o método
paranóico-crítico, as associações de idéias eram intermináveis e só podiam surgir de uma
idéia obsessiva como a que o mobilizara diante da tela de Millet. Para o artista, que se
denominou um “delírio vivente e controlado”, seu método paranóico-crítico foi um meio de
“descarregar suas angústias e contradições, com plena lucidez, fazendo com que os demais
participassem delas”
68
.
Dali apropriou-se do termo paranóia para utilizá-lo como significante que nomeia um
método de conhecimento da realidade. O curioso é que, com a psicanálise, o que entendemos
por conhecimento paranóico diz respeito ao conhecimento imaginário e projetivo do eu
consciente, ou seja, trata-se muito mais de um desconhecimento promovido pelo próprio eu.
Entretanto, não é difícil supor o porquê de Dali ter afirmado que a aplicação desse método
poderia operar o que ele chamou de descrédito da realidade. Uma realidade caótica, tanto no
mundo das artes como no plano pessoal provavelmente evidenciava que outra realidade
precisava ser construída, mas isso só seria possível se ele pudesse retratá-la em detalhes, aos
moldes de um fotógrafo de almas.
67
Dali, S., op. cit. v. V, p. 411.
68
Coleção Gênios da arte, p. 55.
32
Ao longo de suas explicações sobre esse método, Dali enfatizava que, para que um
artista pudesse ser considerado grande e permanecer na cultura, era preciso voltar à tradição e
às artes clássicas. Em sua autobiografia transcrita por seu amigo Jean-Louis Pauwels, Dali
explicava seu fascínio pelo conhecimento:
Não respeito os livros, mas o conhecimento. Não respeito o conhecimento,
mas tudo o que, nele, pode enriquecer meu método paranóico-crítico. Quando
pinto, faço Gala ler grandes autores para mim. Não escuto, banho-me no ruído
das palavras, absorvo os oligo-elementos da literatura para melhorar as trocas
do metabolismo daliniano. Entretanto, também leio, e muito, em três idiomas,
obras, artigos, e me interesso particularmente pela mística, pela metafísica,
pela filosofia, pela psicanálise, pelas ciências e fronteiras das pesquisas. A
diferença entre mim e os surrealistas é que eu sou surrealista. [...] Dos homens
da Renascença tenho a curiosidade universal, e as mandíbulas de meu espírito
estão em perpétuo movimento
69
(1968).
Percebemos, portanto, que Dali apropriou-se das idéias do mestre da psicanálise ao seu
modo e, assim, conseguiu elevar sua paranóia-crítica ao status de um método que se propunha
a subverter o olhar ingênuo das pessoas sobre a realidade. Se o artista surrealista dalinizou a
teoria de Freud, vejamos em que pontos dos textos freudianos ele provavelmente se apoiou.
1.4 Escritas do real: Freud por Dali
Iniciamos nosso percurso falando do efeito das guerras sobre a arte, a literatura e a
humanidade no início do século XX. Feito esse percurso, podemos ver que à destruição
sucedeu-se, inevitavelmente, a criação. Isso não parecia ser nenhuma novidade para Dali que
via no cataclismo uma oportunidade para regeneração:
Em torno do herói tudo se torna tragédia, e ao invés de chamar o heroísmo eu
chamo a guerra, não pela desordem e pela morte, mas pela ordem superior que
se manifesta em todo o estado de paroxismo da vida
70
.
Com tal idéia em mente, Dali evidenciava a necessidade do artista operar ativamente
com e sobre a realidade para que algo de novo pudesse surgir. Em seu livro Sim ou a
paranóia (1971/1974), Dali afirma:
Toda minha ambição, no plano pictórico, consiste em materializar, com a
maior raiva imperialista de precisão, as imagens da irracionalidade concreta.
[...] O importante é o que se quer comunicar: o sujeito concreto irracional. Os
meios de expressão pictórica são postos a serviço desse sujeito
71
.
69
Dali apud Pauwels, op. cit., p.212-213.
70
Dali apud Pauwels, op. cit. p. 92-93.
71
Dali, S., Sim ou a paranóia, p 16-17.
33
A construção de seu método paranóico-crítico aconteceu sob a nítida influência da
leitura dos textos freudianos, principalmente aqueles cujo percurso enfatiza a temática da
fantasia, do delírio, do devaneio e, evidentemente, o da paranóia.
O ensaio de Freud “O delírio e sonhos na Gradiva Jensen”
72
foi, praticamente, a bíblia
de todo movimento surrealista. Freud analisou o texto literário “Gradiva”, do romancista e
dramaturgo alemão, Wilhelm Jensen (1837-1911), pois viu nessa obra um bom exemplo do
que, de acordo com a narrativa do próprio Jensen, foi descrito como uma “fantasia
pompeana”. Na história, o personagem Norbert Hanold é um arqueólogo que se seduz por
uma obra de arte esculpida em baixo relevo. Tal obra exibe a figura de uma jovem adulta cujo
caminhar, aí retratado, o encanta tremendamente. Tratava-se de Gradiva, a jovem que avança.
O ensaio de Freud não é simples, mas percebemos que um dos pontos de grande
interesse para os surrealistas e para Dali versa sobre a questão da realização do desejo. Isso se
evidencia através das formações substitutivas, da fantasia e dos devaneios do personagem
Norbert que vai à Pompéia em busca do seu objeto de desejo - Gradiva. Freud faz uma
analogia entre o destino de Pompéia – soterrada e depois escavada – e o destino das idéias
intoleráveis que deverão também ser escavadas em análise. Idéias de conteúdo erótico,
incestuoso, ou seja, que apontam para o desejo. A análise dessa obra literária é complexa e
longa, mas o que nos interessa ressaltar aqui é que esse foi o texto-base que inspirou todo
movimento surrealista.
Mas como Dali se apropriou desse artigo de Freud para construir seu método? Assim
como Norbert elegera Gradiva como objeto de desejo, Dali escolheu Gala como sua musa,
tendo sido também, segundo ele, a mulher que o salvara de seus delírios. Ele atribuía a ela a
criação de seu método paranóico-crítico que surgiu como fruto dessa união. Dali repetiu
várias vezes, ao longo de toda sua vida, que o amor de Gala operara sobre ele “uma
verdadeira cura psíquica”
73
. Ele dizia: “Gala me curou de todas as minhas angústias. [...] Ela
canalizou e sublimou meus desvios nas formas clássicas. E foi o classicismo que me salvou
do delírio”
74
. A analogia feita por Dali entre Gradiva e Gala é clara, principalmente quando
lemos o que Freud nos diz sobre o que ele julgava ser a cura do delírio do personagem de
Jensen, o Norbert:
72
Freud, S., AE, v. IX; ESB, v. IX.
73
Dali, S., op. cit. v. V, p. 474.
74
Dali apud Pauwels, op. cit. p. 53.
34
Nosso herói começou a despojar-se de sua humildade e a desempenhar um
papel ativo. É evidente que estava completamente curado de seu delírio [...]. É
também exatamente dessa forma que se comportam os pacientes quando
aliviados da compulsão dos seus pensamentos delirantes pela revelação do
material recalcado que estes ocultam
75
.
Dali dizia que antes de ser curado pelo amor de Gala ele confundia delírio e realidade
e afirmava o seguinte:
Minha estrutura fundamental é ainda assim a de um grande paranóico. Mas
devo ser o único de minha espécie a ter dominado e tranformado em força
criadora, em glória e alegria uma doença do espírito tão séria. E isso consegui
por amor e por inteligência. Encontrei Gala. Por amor, ela soube obrigar
minha inteligência ao exercício impiedoso da crítica. Por amor, aceitei fazer
de uma parte da minha personalidade um aparelho autoanalisador, e assim
pude transformar a torrente dionisíaca em realizações apolíneas, que quero
cada vez mais perfeitas. Meu método, que chamei de paranóia-crítica, é a
conquista constante do irracional
76
.
Em seu livro Sim, ou a paranóia
77
, Dali compilou vários textos onde - de modo
exaustivo e confuso - tentava explicar seu método paranóico-crítico como também o fizera em
seu ensaio sobre o mito trágico. Não vamos nos repetir sobre isso, pois falaremos um pouco
mais sobre esse assunto nos capítulos 2 e 3, mas vale a pena ressaltar que é no livro
supracitado que ele menciona a tese de Lacan, Da psicose paranóica em suas relações com a
personalidade (1932). Dali elogia as idéias do amigo por estarem de acordo com o que ele
propusera em seu método e diz que ele teria se inspirado no trabalho de Lacan e não o
contrário, como muitos tendem a pensar. Não nos interessa saber o que veio primeiro, se a
tese de Lacan, ou as teorias de Dali, mas apontar que havia nesse momento uma estreita
relação entre o pensamento de ambos. Referindo-se à tese de Lacan, Dali chegou a dizer: “É a
ela que devemos a motivação de conseguirmos, pela primeira vez, uma idéia homogênea e
total do fenômeno, fora das misérias mecânicas onde se atola a psiquiatria corrente”
78
. Vemos
nesse elogio a Lacan um auto-elogio de Dali, uma vez que seu método, assim como a tese
lacaniana, enfatiza o aspecto transformador da realidade que se dá por meio do delírio de
interpretação. Em sua tese, Lacan deixa isso claro quando - discorrendo sobre o diagnóstico
de sua paciente - afirma: “No interior do quadro existente da paranóia, nosso diagnóstico
ficará, sem dúvida alguma, com o de delírio de interpretação.”
79
. Dentre os vários aspectos
75
Freud, S., AE, v. IX, p.32 ; ESB, v. IX, p. 42
76
Dali apud Pauwels, op. cit. p. 55.
77
Dali, S., Sim ou a paranóia.
78
Dali, S. idem, p. 31.
79
Lacan, J., Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade, p.202.
35
que caracterizam tal quadro, Lacan também nos fala sobre “a extensão progressiva do delírio,
a transformação do meio externo
80
(idem).
Não temos intenção, para o propósito desse trabalho, de discorrer sobre a questão
nosográfica envolvendo a paranóia ou de corrigir as idéias dalinianas a esse respeito, mas
apontar como esse significante capturou Dali e como foi importante na escrita de seu método.
Parece-nos, contudo, importante ressaltar que também os significantes conhecimento,
transformação e realidade estejam presentes no método daliniano de criação a partir do caos.
Tal fato aponta para a íntima relação entre o conhecimento e o que é da ordem da visão, ou
seja, aponta para o fato de que o eu sendo sede das identificações imaginárias é, em sua
essência, paranóico e, por isso mesmo, distorce aquilo que entende por realidade. Como nos
relembra Philippe Julien, “Ora, o eu humano se constitui por identificação graças à visão do
objeto e conforme a mesma bipolaridade. O eu tem, pois, uma estrutura paranóica, ou não
é.”
81
. Assim, a aplicação de seu método à criação de suas obras de arte nos faz ver como Dali
pretendia nos ensinar sobre isso que, com Freud, nomeamos de realidade psíquica.
Embora Dali tivesse lido muito sobre ciência, filosofia, psicanálise e psiquiatria,
parece-nos claro que Freud foi sua maior referência. Não podemos afirmar que Dali tenha lido
toda obra de Freud, mas tudo indica que ele leu, pelo menos, os textos onde Freud trabalha a
fantasia, os delírios e os sonhos, além daqueles que versam sobre a paranóia. Como sabemos,
o caso clássico de Freud sobre a paranóia foi escrito a partir da análise que ele fez do relato
das memórias de Schreber, em 1911. Entretanto, há textos anteriores e posteriores a esse que
podem nos esclarecer um pouco mais quanto às idéias propostas no método daliniano de
conhecimento e de reconstrução da realidade.
O que Freud nos diz sobre a paranóia?
No “Rascunho H” de sua correspondência com Fliess, que aconteceu entre 1887 e
1904, Freud observa que “a paranóia situa-se ao lado da loucura obsessiva como uma psicose
intelectual”
82
. Acrescenta também que a paranóia é “um modo patológico de defesa”. Vemos,
portanto, que desde o início dos seus estudos sobre a paranóia, Freud a relacionava a certos
aspectos da neurose obsessiva. Mais adiante, ainda no “Rascunho K”
83
, Freud insistirá na
comparação da paranóia com a neurose obsessiva e ressaltará que em ambas as enfermidades,
80
Lacan, J., idem.
81
Julien, P., As psicoses: um estudo sobre a paranóia comum, p. 13.
82
Freud, S., Rascunho H, AE, v. I, p.246; ESB, v. I, p. 253.
83
Freud, S., Rascunho K, AE, v. I, p.261; ESB, v. I p. 267.
36
as causas precipitantes do adoecimento devem ser de natureza sexual e devem ter ocorrido na
infância, período anterior à maturidade sexual, fato que também ocorre na histeria. A
diferença reside no fato de que no caso da neurose obsessiva e da paranóia a experiência é
vivenciada como ativa, sendo seguida da sensação de prazer. Tal vivência irá se transformar
posteriormente em angústia, culminando, finalmente, no adoecimento psíquico e na produção
de sintomas.
Na parte I do artigo “Novas observações sobre as neuropsicoses de defesa”
(1896/1996), Freud deixa claro, novamente, que o traumático é de origem sexual. Entretanto,
ele chama atenção para o fato de que “não são as experiências em si que agem de modo
traumático, mas antes sua revivescência como lembrança depois que o sujeito ingressa na
maturidade sexual.”
84
. Em uma extensa nota de rodapé nesse mesmo artigo, Freud assinala
que “[...] os traumas da infância atuam de modo adiado, como se fossem experiências novas,
mas o fazem inconscientemente”
85
. Uma vez ativado o traço mnêmico de um trauma da
infância na idade adulta, o recalque entrará em ação na tentativa de evitar a lembrança da
experiência sexual aflitiva. Mais adiante, veremos com Freud que o adoecimento psíquico é
fruto da falha desse recalque, o que levará a um prejuízo da relação do sujeito com a
realidade.
Na parte II desse mesmo artigo, Freud tratará do “mecanismo da neurose obsessiva” e
na parte III analisará o que chamou de “um caso de paranóia crônica”, ressaltando certa
semelhança entre esses dois tipos clínicos. Em ambos os casos, há prevalência de uma idéia
obsessiva e o efeito da auto-acusação. Nesse ponto, entretanto, Freud aponta que na neurose
obsessiva o sujeito acredita na auto-recriminação, o que o levará à formação de seu sintoma
primário de defesa, ou seja, a auto-desconfiança. Já na paranóia, o sujeito rejeita a auto-
recriminação que retorna para ele na forma de alucinações e idéias persecutórias.
A reconstrução de um mundo sentido como caótico foi a solução que Schreber
encontrou para lidar com a angústia vivenciada por ele como catastrófica. O tema da
reconstrução a partir do caos foi bem examinado por Freud ao longo do estudo que fez sobre
as memórias do presidente Schreber em 1911. Referindo-se à catástrofe interna por que
Schreber passou, Freud afirma que “seu mundo subjetivo chegou ao fim” (1911/1996)
86
, mas
também dirá que é através do delírio que “o paranóico constrói-o de novo, não mais
84
Freud, S., “Novas observações sobre as neuropsicoses de defesa, AE, v. III, p.165 ESB, v. III, p. 165.
85
Freud, S., op. cit., AE, v. III, p. 168; ESB, v. III, p. 167.
86
Freud, s., “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (demência paranóides)”, AE, v. XII,
p.65; ESB, v. XII, p. 77.
37
esplêndido, é verdade, mas pelo menos de maneira a poder viver nele mais uma vez”
87
. Logo
depois, acrescentará que “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é,
na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução”
88
.
Em “Neurose e psicose” (1924/1996), Freud salienta que a neurose resulta de um
conflito entre o eu e o isso, enquanto a psicose é resultado de um distúrbio cujo conflito se
deu entre o eu e o mundo externo. Para Freud, “[...] o delírio se encontra aplicado como um
remendo no lugar em que originalmente uma fenda apareceu na relação do eu com o mundo
externo” (1924/1996: 169)
89
. Alusivo ao seu estudo sobre as memórias de Schreber, Freud
ainda acrescentará nesse texto o seguinte:
Se essa condição (o conflito com o mundo externo) não é muito mais
patente daquilo que agora discernimos, isso se deve ao fato de que, no
quadro clínico da psicose, os fenômenos dos processos patogênicos
estão amiúde recobertos por aqueles de uma tentativa de cura ou de
uma reconstrução, os quais se superpõem a eles.
90
Em seu artigo “A perda da realidade na neurose e na psicose” (1924/1996)
91
, Freud
ressalta que tanto na neurose como na psicose, quando a doença é desencadeada, há um abalo
no campo da realidade do sujeito. Freud aponta que, com o adoecimento psíquico, o sujeito
tentará se rebelar contra a realidade, quer ele esteja na neurose ou na psicose ou seja, há, em
ambos os casos, uma perda da realidade. E dirá ainda que:
[...] a diferença inicial se expressa no desfecho final: na neurose, um
fragmento da realidade é evitado por uma espécie de fuga, ao passo que na
psicose, a fuga inicial é sucedida por uma fase ativa de remodelamento; na
neurose, a obediência inicial é sucedida por uma tentativa adiada de fuga. [...]
a neurose não repudia a realidade, apenas a ignora, a psicose a repudia e tenta
substituí-la.
92
Assim, nesse mesmo artigo sobre a perda da realidade na neurose e na psicose, Freud
ressalta que, na neurose, o sujeito ignora a realidade sem, no entanto, repudiá-la. Entretanto, é
possível verificar que, mesmo na neurose, há inúmeras tentativas de substituir uma realidade
desagradável por outra, o que só pode acontecer por intermédio do mundo de fantasia que o
neurótico cria para si, afastando-se, portanto, do fragmento da realidade sentida como
intolerável. Na psicose, o dano causado ao eu tentará ser reparado com o repúdio da realidade
através da tentativa de substituí-la por outra. Freud assinala que, no caso da psicose, a
reparação da perda da realidade se dará “[...] não às expensas de uma limitação da realidade –
87
Freud, S., op, cit., AE, v. XII, p.65; ESB, v. XII, p. 78.
88
Freud, S., op.cit., AE, v. XII, p. 65; ESB, v. XII, p. 78.
89
Freud, S., “Neurose e psicose”, AE, v. XIX, p.155; ESB, v. XIX, p. 169.
90
Freud, S., op. cit., “Neurose e psicose”, AE, v. XIX, p.157; ESB, v. XIX, p. 169.
91
Freud, S., “A perda da realidade na neurose e na psicose”, AE, v. XIX; ESB, v. XIX.
92
Freud, S., “A perda da realidade na neurose e na psicose”, AE, v. XIX, p. 195; ESB, v. XIX, p. 207.
38
como na neurose -, senão por outro caminho, mais soberano: pela criação de uma nova
realidade, que já não oferece o mesmo motivo do escândalo daquela que fora abandonada
[...]”
93
. Isso ocorre porque na psicose há a prevalência do imaginário em detrimento do
simbólico. Já na neurose, o imaginário está em íntima relação com o simbólico, o que se
evidencia pelo fato de que o sintoma neurótico é da ordem de uma escrita enigmática e,
portanto, representa um significado que precisa ser decifrado.
Ao final desse texto sobre a perda da realidade, Freud assinala que um comportamento
‘normal’ ou ‘sadio’ combinaria certas características de ambas as reações idealmente falando,
ou seja, o sujeito repudiaria a realidade tão pouco quanto uma neurose, mas depois, ele se
esforçaria como acontece em uma psicose, por efetuar uma alteração dessa realidade através
de um processo ativo de criação sobre a mesma. Desse modo, o sujeito dito ‘normal’
continuaria no laço social sem se confinar em seu narcisismo como ocorre nas psicoses ou nas
neuroses graves.
Feito esse breve percurso nos textos freudianos, vemos o quanto Dali se inspirou na
psicanálise para a criação do seu método paranóico-crítico de conhecimento da realidade. Para
Dali, a aplicação de seu método pressupõe uma atitude ativa sobre a realidade que se pretende
modificar, ou seja, ele rejeita a realidade para poder reconstruí-la sobre novas bases. A
aplicação desse método na obra pictórica de Dali é visivelmente perceptível, ou seja, ele nos
‘incita’ a olhar para a realidade aos moldes de um paranóico, isto é, vendo sempre outra coisa.
Aproximando-se, talvez, do que Freud idealizava como normalidade, o artista de Figueres não
se resignou a sucumbir sob os destroços da catástrofe subjetiva que lhe acometera por conta
de sua expulsão da casa paterna. Além de ler os textos freudianos e de se debruçar sobre os
estudos da ciência, Dali também empreendeu uma rigorosa revisão da técnica utilizada pelos
artistas clássicos, fazendo, desse modo, um retorno ao antigo para criar algo novo. Sua
intenção era clara: queria se reinventar.
Dali se apresentava como um homem da Renascença, pois acreditava que os artistas
não eram apenas artesãos, mas intelectuais, e, por isso, achava que deveriam se aproximar de
todos os conhecimentos humanos e aplicar essas noções científicas à arte. Embora ele
criticasse a ciência em seu aspecto estéril, ou seja, no ponto em que ela limita a criação, por
outro lado, ele a valorizava, pois reconhecia que era a partir dos estudos científicos que ele
encontrava os meios para ‘explodir’ os muros da realidade e avançar rumo ao infinito. A
93
Freud, S., op. cit., AE, v. XIX, p.194-195 ; ESB, v. XIX, p. 206.
39
extrema importância que Dali dava aos estudos da ciência de seu tempo poderia nos induzir
ao equívoco de crermos que suas obras que eram puramente racionais. Pelo contrário, a
ciência permitia-lhe ser cada vez mais surrealista em suas propostas, o que culminaria, a partir
dos anos cinqüenta, em uma atitude mística.
Divergindo de seus contemporâneos, Dali era um artista apegado à tradição, vendo
nesta uma oportunidade de se metamorfosear de modo perene. Ainda em seu livro, Sim, ou a
paranóia, ele nos diz:
Minha metamorfose é uma tradição, pois a tradição é precisamente mudança e
reinvenção de uma outra pele. Não se trata de cirurgia plástica estética, ou de
mutilação, mas de renascimento. Não renuncio a nada, continuo!
94
Sua atitude renascentista tinha a ver com a reconstrução de ruínas. Imprimindo sobre
o ‘velho’ uma escrita própria, ele reconstruiu um antigo museu que fora destruído pela guerra
civil espanhola, transformando-o em seu Teatro-museu Gala-Dali (Fig.7). Do mesmo modo,
conseguiu restaurar um Castelo em Púbol (Fig. 8) para presenteá-lo a Gala. Partindo de um
antigo casebre que pertencera à viúva de um pescador da região de Cadaqués, Dali construiu,
após vários anos, a casa (Fig. 9) onde passaria a viver com Gala depois da expulsão de casa
pelo pai. Aliás, foi na baía de Port Lligat e no rochoso Cabo Creus – regiões litorâneas da
cidade de Cadaqués - que Dali se apropriou dos significantes da natureza para reimprimi-los
ao longo de sua obra. Sobre isso falaremos mais detalhadamente no próximo capítulo.
94
Dali, S., op. cit., p. 107.
40
Capítulo 2: O Outro e o triângulo daliniano
41
Nesse capítulo, tentaremos relacionar a importância que Dali conferiu à Catalunha e à
criação de suas casas-museu em três pontos diferentes dessa região ao tema do Outro na obra
de Lacan. A partir de suas telas, foi-nos possível perceber como as imagens do litoral nordeste
dessa região se repetem ao longo de sua obra.
Em seu livro, Dali, El triángulo de L’Empordà, Sebastià Roig define o triângulo
daliniano como “ a figura geométrica resultante da união, em um mapa da Catalunha, das
localidades de Púbol, Cadaqués e Figueres com uma linha reta” (2003)
95
. Os vértices desse
triângulo ficam na região da Costa Brava, no extremo nordeste da Península Ibérica, em
Ampurdán, na Catalunha. Essa região que beira o mar Mediterrâneo é marcada pela força da
tramontana - um vento tão forte que pode chegar a 200 Km/h - e pelas estranhas formações
rochosas que, esculpidas por esses ventos, adquiriram uma morfologia propícia a todo tipo de
interpretações (Fig. 10)
96
.
Em suas telas, verificamos uma repetição dos recortes dessa região, em especial, do
litoral de Port Lligat juntamente ao Cabo Creus, em Cadaqués. Tal fato nos fez pensar que
Dali não escapou da influência desse ‘Outro geográfico’, ou seja, disso que tento evocar como
algo da ordem de um real simbolizável que envolveu o artista através das histórias contadas
pelo povo da região bem como a história de sua própria família em relação a esses lugares.
Um real cuja influência em sua vida o faria tecer com palavras e imagens a história de seu
nome.
Ainda na vertente lacaniana do Outro, falaremos também do grande Outro do saber
artístico para Dali, ou seja, aqueles artistas que ele elegeu como os seus grandes mestres.
Também falaremos de pares com quem Dali dialogou em torno da pintura. Começaremos
pelos Pichots, uma família de artistas que também passavam as férias de verão em Cadaqués e
que tiveram muita influência sobre a formação estética de Dali em relação à pintura.
95
Roig, S., Dali, El triángulo de L’Empordà, p. 203.
96
Todas as colagens de fotos referentes às casas-museu e ao litoral nordeste da Catalunha foram retiradas do livro de Sebastà
Roig, Dalí, El triángulo de L’Empordà.
42
2.1 O “Outro geográfico” na obra de Dali - uma estética entre ruínas e rochas
Dali é o cabo Creus. Ele é um ponto de referência trágico, eriçado, da navegação interior. É
um lugar de provas e de metamorfoses, onde se fazem trocas entre o maleável e o rochoso,
onde o delírio aspirante se transforma em formas triunfantes, a angústia em iluminação, o
delírio em armadura exata, o onirismo líquido em estrutura granítica. Ele escreveu: “Dali
deve mimetizar-se no cabo Creus. E: “Minha paranóia tem a permanência e a dureza
analítica do granito.
97
Esta citação é parte do livro biográfico organizado por Jean-Louis Pauwels, amigo e
biógrafo de Dali, um jornalista a quem o artista deu permissão para fazer gravações de suas
falas. O livro intitulado As paixões segundo Dali
98
(1968) é resultado das conversas dos dois
amigos, mas é o próprio Dali quem ‘fala/escreve o texto’, de modo que este passa a ser
também um livro autobiográfico. A citação acima é parte do prefácio que foi escrito por
Pauwels para introduzir os capítulos nos quais o Divino Dali tomará a palavra que também é
escrita.
O que seria uma estética entre ruínas e rochas e o que isso tem a ver com o que
concerne ao tema do Outro na teoria lacaniana? Começarei minha resposta pelo que entendi
como sendo uma estética daliniana. Como sabemos, a estética é um ramo da filosofia que tem
por objeto o estudo da natureza do belo e dos fundamentos da arte. Ela estuda o julgamento e
a percepção do que é considerado belo bem como daquilo que, enquanto uma produção
artística, mobiliza no espectador certas emoções, sejam boas ou más.
Benedetto Croce abre o capítulo I de seu Breviário de Esthetica (1912) com a
pergunta: “Que é a arte?” e, em seguida responde: “[...] é aquilo que todos sabem que é. [...]
porque qualquer pergunta implica um certo conhecimento da cousa sobre o que se pergunta
[...]”
99
. Seu livro, ao meu ver, enfatiza a importância da intuição do fruidor sobre o objeto de
arte, em detrimento de uma racionalização sobre isso de que se serve o próprio fruidor.
Parece-me, portanto, que o que importa é o fato de que toda arte deve mobilizar algo em todo
aquele que dela se serve, quer seja ele um apreciador leigo ou um expert no assunto. Incluo-
me na categoria do apreciador leigo, ou, dito de outro modo, na categoria dos ‘amadores’.
A estética daliniana é, portanto, isso que me mobilizou em suas telas como algo que
aponta para o real. Freud já havia nos alertado para esse aspecto da obra de arte em seu artigo
97
Pauwels, J.L.,op. cit. p.17.
98
Pauwels, J.L., op. cit.
99
Croce, B., Breviário de Esthetica, p. 9.
43
sobre o Estranho ao afirmar que a estética deveria ser uma “teoria das qualidades do nosso
sentir”
100
(1919/1996), pois nem sempre uma obra prima se faz notória pelo belo. Ao nos
depararmos com algumas telas dalinianas verificamos que há um ar de desolação terrificante
que pode causar um desconforto íntimo, pois suas cenas parecem ter sido retiradas de um
sonho ou pesadelo, causando no espectador um sentimento estranho que mistura medo e
fascínio. Falaremos mais exaustivamente sobre esse estranho efeito que as obras de Dali
podem causar no capítulo três. Entretanto, ressaltamos que foi na decrepitude dos espaços
físicos à sua volta que Dali se inspirou para exibir, em imagens, os significantes de sua
origem e, com isso, criar seus objetos de arte surrealistas. Evidentemente, suas casas-museu
também são objetos dessa ordem.
Possivelmente, essa estética entre ruinas e rochas é um modo de metamorfosear o
caos que se instalou em sua vida desde o momento em que foi expulso de casa pelo pai, após
sua união com Gala, ou, quem sabe, bem antes disso. Como nos informam vários de seus
biógrafos e o próprio Dali, há inúmeras histórias envolvendo Cadaqués e as relações de afeto
da família do artista com esse lugar. Uma estética que foi, provavelmente, sedimentada
através do grande amor que o pai, Salvador Dalí y Cusi, nutria por todos os arredores de
Cadaqués, a sua terra natal. As famosas rochas monstruosas do Cabo Creus (Fig. 10),
esculpidas pela fúria da tramontana, ficam próximas da Baía de Port Lligat, em Cadaqués,
sedo justamente aí onde Dali construiu sua casa com Gala. Após sua saída tempestuosa de
casa, em 1929, Dalí exilou-se com sua mulher em Port Lligat e, fazendo-se inacessível ao
mundo, ele passou a ser o próprio Cabo Creus, “a imagem mais afastada que se tinha do
Mediterrâneo, e, por sua luz fina, muitas vezes, triste, irisada, um Delft mediterrâneo ”
101
.
Como poderíamos ousar falar de um Outro geográfico sem falar da história do artista
com esse lugar? Antes de irmos adiante com a teoria acerca do Outro, temos que
contextualizar o artista em sua história para entendermos melhor o que Sebastià Roig chamou
de triângulo daliniano. Ou seja, teremos que saber um pouco sobre o trajeto percorrido pelo
artista tendo como referência os lugares onde ele nasceu, viveu, e morreu e onde construiu
suas ‘casas-museu’.
Como surgiu o triângulo daliniano? Comecemos pelo início, ou seja, pelo primeiro
vértice desse triângulo, sua cidade natal, Figueres, uma pequena cidade mercantil que se
100
Freud, S., op. cit., AE, v. XVII, p.219; ESB, v. XVII, p. 237.
101
Pauwels,J.L., op. cit., p. 15.
44
localiza aos pés dos Pirineus, na fronteira com a França. O artista nasceu no número 20 da
Rua Monturiol (hoje número 6), em 11 de maio de 1904.
Ao longo de seu livro autobiográfico Vida Secreta de Salvador Dali
102
(1942/2003), o
artista de Figueres, relata como sua terra natal e a natureza ampurdanesa o influenciaram na
criação de suas obras de arte. Muitos estudiosos da obra de Dali freqüentemente ressaltam o
fato de que ele se orgulhava muito de sua origem catalã, chegando mesmo a associar seu
talento artístico e sua genialidade a essa região da Espanha. Inspirando-se no que o próprio
Dali falava sobre Cadaqués, Sebastià Roig, chama a atenção para a associação que Dali fazia
da loucura, do talento e da genialidade com os ventos ferozes da tramontana que atingiam a
costa do mediterrâneo nessa região de Ampurdan. Roig cita o próprio Dali: “A tramontana é
responsável pelo fato de que todos que nascemos e vivemos em Ampurdan sejamos
completamente loucos”
103
(2003). Roig prossegue dizendo que por conta da influência do
vento no caráter das pessoas, essa região seria um ninho de pessoas iluminadas, uma
verdadeira fábrica de gênios.
No prefácio do seu livro As paixões segundo Dali (1968), Louis de Pauwels descreve
Cadaqués de modo poético, lindo e, ao mesmo tempo, aterrorizante. O biógrafo tece, em
nossa mente, uma imagem granítica, melancólica e obscura do vértice do triângulo daliniano
onde o artista catalão escolheu para viver seu exílio com Gala. Ele carregaria para sempre as
lembranças das primaveras e dos verões em família, bem como seu convívio com os Pichots,
uma família de artistas de quem eram vizinhos. Escreve Pauwels:
Cadaqués, sobre um mar rochoso, de cores Bretanha, aparece de costas, entre
alfarrobeiras, agrupadas em torno de sua igreja dura, tal como Dali a pintou,
com a intenção de “condensar toda cosmogonia daliniana em uma só
paisagem”. Esta cidadezinha à beira-mar que se tornou célebre, exteriormente
tão clara e definida, rapidamente desencoraja quem a visita, atormenta,
decompõe. Há falta de água doce. Os raros cafés com varanda parecem ter
sido recuperados de um naufrágio. A sujeira se acumula nas ruelas e caminhos
empoeirados dos contrafortes. Não há praias. [...] Quando a tramontana, que
sopra em acessos furiosos, desordenados, pára de atormentar e despedaçar a
alma, o vento marinho pesado, traz uma umidade pegajosa. Sob o céu azul,
fora o leitoso das paredes, há cinzas esverdeados, ocres. O líquen devora os
telhados. Nas casas, as únicas flores são as sempre-vivas, cores apagadas,
ásperas, duras. O sublime não é maternal. Um acolhimento puro e falta de
hospitalidade. Um brilho de virgindade armada e sensações mórbidas, às
vezes de pânico. [...] Cadaqués faz pensar na ágata de que fala Dali ao falar de
si mesmo: “produto do mais forçado constrangimento de um meio coloidal
preso numa estrutura rigorosa.”
104
(1968).
102
Dali, S., op. cit., p. 11.
103
Dali apud Roig, op. cit., p 11.
104
Pauwels, J.L., op. cit., p.14-15.
45
A baía de Port Lligat pertence à cidade de Cadaqués e fica próxima do famoso Cabo
Creus (Fig. 10) e foi nessa região inóspita e isolada do mundo que o artista de Figueres
iniciou sua vida conjugal com a musa do surrealismo. Exilou-se em um pequeno casebre que
pertencera à Lydia, uma pescadora da região conhecida como ‘a louca’. Ao longo de muitos
anos, Dali foi comprando outras cabanas de outros pescadores, ligando-as por degraus e
corredores. No livro de arte intitulado Dali de Gala (1962), Robert Descharnes - maior
biógrafo e amigo de Dali - citará o próprio artista para que ele mesmo explique como tal
estrutura surgiu e como passou a fazer parte de sua história:
Nossa casa cresceu exatamente como uma estrutura biológica, por
multiplicação celular. Cada novo avanço em nossa vida correspondia a uma
nova célula, um novo quarto. O núcleo foi o delírio de Lydia que nos
presenteou com a primeira célula. O gênio de Dali foi o início desse tecido
embrionário. A proteína divina era Gala; foi graças a ela que todo o resto da
estrutura pôde proliferar. Graças ao ÁcidoGaladesoxyribonucleico, a memória
de nossa estrutura no lugar de afundar-se na nulidade da tragédia romântica
chegou à categoria clássica da festa real”.
105
E assim, sob a influência do gênio de Dali e da força que Gala lhe conferia, esses
pequenos casebres malcuidados, - ou microcélulas, como dizia Dali – transformaram-se em
mais uma de suas obras surrrealistas, a casa-museu de Port Lligat (Fig 9).
Do mesmo modo, também iria surgir, bem mais tarde, o seu Teatro-Museu de Figueres
(Fig. 7) em 28 de setembro de 1978, sua última grande obra de arte surrealista. O artista
catalão “dalinizou” um teatro em ruínas, transformando-o em um “objeto surrealista absoluto;
um labirinto que continha a síntese do seu pensamento e de sua obra, onde o público poderia
explorar a grande cosmogonia daliniana”, como aponta Roig (2003)
106
. Inspirando-se no que
restou do antigo Teatro Municipal de Figueres, destruído por ocasião da guerra Civil
Espanhola (1936-1939), Dali visualizou um projeto que surgiu desses escombros e que viria a
ser o seu Teatro-Museu, berço de sua última morada. Cercado por seus pães-objetos de arte e
por esculturas, fotos de obras de seus grandes mestres, atravessado pela luz que chegava por
entre os vidros triangulares da sua tão sonhada cúpula geodésica (Fig. 11), Dali passou seus
últimos anos de vida na Torre Galatea (Fig. 12), um anexo do Teatro-Museu, ligado a este
por uma porta. A importância que Dali dava ao projeto desse museu era enorme, como
podemos verificar em vários livros de arte que relatam o feito daliniano:
Com essa construção, Dali mudou o conceito tradicional de museu,
transformando-o em museu espetáculo, no qual o público poderia não apenas
olhar, mas também participar. Dali havia criado inúmeros objetos surrealistas,
e esse museu seria a culminância. Finalmente, com o arquiteto Emilio Pérez
105
Dali apud Descharnes, R., Dali de Gala, p. 26.
106
Roig, S., op. cit., p.34.
46
Pñero, pôde realizar o sonho da construção da cúpula geodésica, que marcaria
o centro geométrico e artístico daliniano por excelência em Figueres
(2007).
107
Até que ponto esse Outro geográfico tem a ver com a história de Dali?
O pai do artista, Salvador Dali y Cusí era originário de Cadaqués, um porto de
pescadores entre o mar e as montanhas, mas trabalhava como notário e vivia em Figueres, a
30 km de sua cidade natal. Segundo nos informa Jean-Louis Gaillemin, em seu livro Dalí, The
impresario of surrealism, a família Dali costumava passar as férias de verão em Cadaqués
108
(2004) fazendo vários passeios pelo Cabo Creus, em Port Lligat. Imagens e sensações foram
gravadas na alma do menino Dali como os sulcos nas pedras sob o efeito da tramontana.
Vemos como a fascinação do artista por Cadaqués e pelas rochas do Cabo Creus tem sua
origem na relação de afeto que seu pai mantinha com essa região e, ao mesmo tempo, na
relação tempestuosa que Dali tinha com seu pai. Afirmando ter sido amado em demasia por
conta da perda de um irmão ainda criança que tinha o mesmo nome que o seu, Dali tinha
muitas queixas sobre o pai. Ele comparava a dureza do notário às rochas do Cabo Creus,
afirmando ter uma verdadeira relação atávica com essa região. Em suas gravações das falas de
Dali, Pauwels nos faz chegar o seguinte registro:
Não há para a criança pequena choque mais catastrófico do que o amor em
demasia, e esse exagero de amor-por-causa-de-um-outro-eu-mesmo, eu o
sentiria com a violência e a extensão que o mundo simbiótico e indiferenciado
dos primeiros anos me permite. À borda desse abismo, eu construiria a
fortaleza gelatinosa da paranóia, tendo como apoio na rocha a presença
maciça, a força compacta de meu pai [...].
109
O Cabo Creus fazia parte do que Dali julgava ser um cataclismo geológico que podia
ser comprovado através do aspecto inusitado das rochas que compunham esse cenário, pois ao
serem atingidas pelos ventos ferozes da tramontana e pela maresia, adquiriam formas
delirantemente monstruosas. Assim, as pedras de aspecto mineral e deformadas pela natureza
se convertiam em seres estranhos ou em partes do corpo, como podemos ver na rocha que deu
origem à obra O grande masturbador (1929), considerada por muitos seu auto-retrato (Fig.
13). Ele iria repetir esse mesmo perfil em várias outras telas, dentre as quais destaco: O Jogo
lúgubre (1929) (Fig. 14), O enigma do desejo – minha mãe, minha mãe, minha mãe (1929)
(Fig. 15), Vestígios atávicos da chuva (1934) (Fig. 16) e A persistência da memória (1931)
(Fig. 17).
107
In: Coleção gênios da arte, p. 88.
108
Gaillemin, J.L., op. cit., p. 15.
109
Dali apud Pauwels, op. cit, p.39.
47
Já em outras telas, como O espectro do sex-appeal (1932) (Fig. 18), Atavismo do
crepúsculo (1933-34) (fig. 18), Reminiscência arqueológica do Ângelus de Millet (1935) (Fig.
20), vemos as praias, o céu da tramontana e as pedras de aspecto mineral, tudo isso envolvido
numa luz opaca, terrivelmente crepuscular. Um cenário que nos faz crer que isso que se
repetia tantas vezes nas telas apontava para uma angústia real. A repetição desses fragmentos,
portanto, evidenciava uma tentativa de simbolizar esse afeto.
Foi com a matéria-prima dos significantes vindos da natureza e dos lugares por onde
passou que Dali fazia seus quadros se transformarem nessa espécie de sonho. O que o movia
nesse sentido? Além da fascinação com esse ponto do litoral da Catalunha e das fortes
ligações infantis de Dali com Cadaqués, sabemos que o fato dele ter conhecido Gala nesse
local foi decisivo para que ele construísse com ela aí o seu segundo lar, inaugurando, com sua
musa, uma nova vida e uma outra escrita. À beira do Mediterrâneo, impregnado pelo cheiro
molhado da maresia e pelo sussurro obtuso da tramontana, ele passaria a se chamar Gala-
Dali. Sua união com Gala era de tal sorte indissolúvel que eles continuariam casados, mesmo
vivendo em casas separadas. Ainda que os dois tivessem permanecido unidos até a morte dela
em 10 de junho de 1982, o convívio sob o mesmo teto iria ter um fim em 1971 quando eles
passaram a viver em casas separadas. Sebastià Roig esclarece que tal fato se deu porque a
musa surrealista não agüentava mais as extravagâncias do artista e a agitação da vida a
dois
110
.
Certa vez, Dali dissera à sua amada que, um dia lhe daria um castelo, então, ele
decidiu cumprir sua promessa nesse momento conturbado da vida do casal, comprando para
Gala um castelo na região do Baixo Ampurdán.
Surge, então, outro vértice do triângulo daliniano – o castelo de Gala, localizado em
Púbol (Fig. 8), que, a princípio, “encontrava-se em um estado bastante ruinoso”, fato que teria
encantado ainda mais Dali. Após sua mudança para este lugar, Gala fez algumas exigências a
Dali, de modo que ele só poderia visitá-la mediante agendamento e autorização da mesma.
Aos 74 anos, a musa estava cansada e queria se refugiar no silêncio e na tranqüilidade dos
campos que cercavam o Castelo de Púbol. Após a morte de Gala em 1982, Dali passou a
morar no castelo. Entretanto, ele iria partir de lá para retornar a Figueres onde passaria os
últimos momentos de sua vida na Torre Galatea, em um anexo do Teatro-Museu. Com esse
retorno à terra natal, forma-se o triângulo daliniano.
110
Roig, S., op. cit., p. 188-189.
48
A lógica que adotei para fazer a descrição do surgimento desses ‘lares dalinianos
segue a cronologia que o artista nos forneceu. Se guiados pela linha do tempo cronológico,
verificaremos que a última construção de Dali - considerada por ele como seu último objeto
de arte surrealista - foi o Teatro-Museu de Figueres que, não coincidentemente, localiza-se em
sua cidade natal. Tendo optado pela idéia de que a construção do ‘último’ vértice do triângulo
daliniano se amarra às suas origens, privilegiei uma lógica moebiana onde o fim e o início se
fundem em uma só obra e onde tempo e espaço apresentam-se de modo contínuo, sem
demarcações claras. Desse modo, o triângulo se forma como um único movimento no tempo e
no espaço. Pauwels nos esclarece algo muito intrigante e que, de certo modo, corrobora a
idéia de que os lugares que Dali retratou em sua obra eram ligados por uma lógica do
inconsciente: “Port Lligat quer dizer porto ligado, atado, amarrado com nós”
111
(1968).
Podemos dizer, portanto, que é nessa mesma direção que supomos haver uma ligação
topológica que une esses três lugares diferentes como se fossem um só. Sem fronteiras
cunhadas por um marco topográfico, o triângulo Daliniano subverte a lógica do topos e nos
mostra que, assim como o tempo, o espaço também está submetido à realidade psíquica. Ao
terem se materializado em objetos de arte surrealistas que trazem parte da história de Dali, as
casas-museu passam a compor, junto com suas telas, o corpo de linguagem do Outro
geográfico de Dali. Em seu livro, Teoria e clínica da psicose, Antônio Quinet se refere à
floresta de significante
112
(2000) e nos lembra que, do ponto de vista da psicanálise, o
significante não está colado ao significado, de modo que uma imagem no sonho pode ter valor
de palavra, tal como Freud nos ensinou na “Interpretação dos Sonhos”
113
(1900/1996).
Então, sendo o sonho a via régia do inconsciente, é através de suas imagens que temos
acesso à Outra Cena. Tais imagens são - como o próprio Freud nos ensinou - o rébus do
sonho, e, por isso mesmo, estão submetidas às mesmas leis que regem o inconsciente, ou seja,
a metáfora e a metonímia. As telas de Dali são ricas em imagens oníricas onde os paradoxos
se encontram e, por isso, podemos tratá-las como significantes cujos significados não estão
realmente em correspondência ao signo que as comporta. Em seu livro A história da arte
(2008), Ernst Hans Gombrich comenta um quadro de Dali, Aparição de rosto e fruteira numa
praia (1938) (Fig. 21) nos seguintes termos:
O modo de Dali fazer cada forma representar muitas coisas ao mesmo tempo
pode concentrar nossa atenção nos muitos significados possíveis de cada cor e
111
Pauwels, J.L., op. cit., p. 15.
112
Quinet, A., Teoria e clínica da psicose, p. 7.
113
Freud, S., op. cit., AE, v. IV; ESB, v. ESB, v. IV.
49
de cada forma – de maneira semelhante àquela em que um trocadilho bem-
feito nos faz compreender a função da palavra e seu significado
114
.
As telas de Dali estão repletas de significantes da natureza ampurdaneza de onde ele
veio e por onde passou e onde, finalmente, depositou o seu tesouro. No Seminário, livro 11,
Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1998), Lacan nos diz:
Antes que se estabeleçam relações que sejam propriamente humanas, certas
relações já estão determinadas. Elas se prendem a tudo que a natureza possa
oferecer como suporte, suportes que se dispõem em temas de oposição. A
natureza fornece, para dizer o termo, significantes, e esses significantes
organizam de modo inaugural as relações humanas, lhes dão as estruturas, e as
modelam. [...] antes de qualquer formação do sujeito, de um sujeito que pensa,
que se situa aí – isso conta, é contado, e no contado está o contador. Só depois
é que o sujeito tem que se reconhecer ali, reconhecer-se como contador.
115
Em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1957-
58/1998), Lacan define o Outro como sendo, para o sujeito, “o lugar de onde lhe pode ser
formulada, para ele, a questão de sua existência”
116
, isto é: de sua sexualidade e de seu desejo,
de sua procriação e de sua filiação, de sua existência e de sua morte, enfim, do seu destino. O
Outro, portanto: seria um lugar de questionamento do sujeito tal qual uma versão lacaniana
para o conceito de Inconsciente. Nesse sentido, vemos que o Outro é um ‘lugar’, um espaço
topológico e que não tem nada de topográfico, sendo tão somente, portanto, um espaço
intrapsíquico. Parece-me que essa é a função significante que o litoral do extremo nordeste da
Catalunha exerceu sobre Dali, uma função significante muito peculiar porque não parece que
ele tenha se servido disso como o fez Édipo diante da esfinge. Pensamos que, para Dali, ao
invés de ter-lhe proposto enigmas, a natureza tenha lhe conferido respostas certeiras sobre sua
existência.
Quase todos os textos biográficos sobre Dali destacam a importância da região de
Ampurdán sobre a obra dele, como podemos ver nos livros de arte de Robert Descharnes e
Gilles Néret, seus mais importantes biógrafos. Eles falam sobre certo atavismo que se
reproduz em sua obra, revelado pela “presença, em seus quadros, da querida planície da
Ampurdán, que é, para ele, a mais bela paisagem do mundo”
117
. E prosseguem salientando
que:
Não era apenas a costa do Cabo Creus até Estartit, com Cadaqués ao centro,
na luz mediterrânea, que servia de cenário às telas mais célebres: também os
rochedos, recortados pelos elementos, estão na origem de todas estas
estimadas excrescências, destes objetos fósseis, destas ossificações, destes
114
Gombrich, E.. H., A história da arte, p. 594.
115
Lacan, J., O Seminário, o livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 26.
116
Lacan, J., op. cit., p. 555-556.
117
Descharnes, R. e Gilles Neret, Dali, p. 9.
50
antropomorfismos e doutros “atavismos” do crepúsculo, que dominam sua
obra.
118
Não pretendo tecer uma tese sobre essa questão, nem tampouco fazer um inventário na
obra de Lacan apontando onde ele usa o termo Outro, e, assim, poder justificar essa licença
poética que me fez pensar viável isso que chamei de Outro Geográfico de Dali. O fato é que
foram suas telas que apontaram para esse caminho.
Sabemos que, em vários momentos de sua obra, Lacan fala do Outro como tesouro dos
significantes, ou seja, o código lingüístico ao qual todo sujeito está submetido desde o
momento em que é falado e desejado pelo Outro. Também a herança familiar faz parte desse
tesouro dos significantes, os ditos e os não ditos paternos, as histórias da infância, enfim, tudo
que possa se transformar em linguagem. A importância dada aos recortes geográficos mais
presentes na obra de Dali fazem parte da sua tradição familiar. Também foi nesse lugar que
ele teve suas primeiras experiências sexuais e o mais importante encontro de sua vida quando
foi apresentado à Gala.
Como dissemos anteriormente, a analogia feita entre os locais onde Dali nasceu, viveu
e morreu e o Outro surgiu pela constatação de que fragmentos de tais regiões se repetem em
sua obra do início ao fim. É precisamente por isso que ousamos elevar esses pontos
geográficos à categoria de significantes, pois parecem funcionar como fragmentos de um
sonho que insistem em retornar. Quando Dali pintou O grande masturbador (Fig. 13) ele o
fez a partir do que disse ter sido uma ‘interpretação paranóica’ de uma rocha no Cabo Creus.
Nessa tela, como sabemos, ele exibe sua enorme cabeça sustentada pelo nariz com olhos
fechados, sem boca e com várias referências à questão da angústia e do desejo. O que há de
terrível nessa tela é precisamente o fato de que essa figura monstruosamente delicada esteja
de olhos fechados e não possua boca, duas zonas erógenas castradas em sua função,
apontando para a impossibilidade de desejar.
Na lição de 27/11/1968 do Seminário, livro 16: De um Outro ao outro (1968/2008),
Lacan revisa sua construção em torno da noção do que ele designou como o Outro. Parece que
sua tentativa com isso é de nos fazer entender melhor o que já havia sido trabalhado
previamente nos Escritos, ou seja, que a função de um significante é a de representar o sujeito
para outro significante.
Como não há nada indicado na primeira definição da função do significante, a não
ser que o significante representa o sujeito em sua relação com outro significante,
118
Descharnes, R. e Gilles Neret, idem, p. 10.
51
podemos definir essa relação como quisermos. O termo mais simples será
“pertença.
119
As obras de Dali comportam muitos significantes para os quais ele deu suas próprias
significações, as quais não nos cabe interpretar. Seu legado, no entanto, nos serviu de pretexto
para abordarmos esse assunto tão inusitado sobre o Outro geográfico como um possível
correspondente de sua estrutura de linguagem, ou melhor, do código daliniano. Sua escrita
seguiu o rumo sobre as terras por onde caminhou, tecendo um triângulo no mapa da amada
Catalunha. Em cada vértice desse trajeto, um museu-obra-de-arte-surrealista, em cada museu,
as obras que o artista catalão escolheu para fazer parte de sua história, impregnada das rochas
do Cabo Creus e da natureza de Cadaqués. Supomos que essa triangulação topológica
confirma a criação original de seu nome próprio com um novo sentido que ele mesmo
conferiu. Desse modo, toda sua vida tornou-se uma grande obra de arte, cujo legado estético
inaugural tem sido preservado e perpetuado em suas casas-museu.
Mas como o artista poderia inventariar e preservar em vida tantas representações para
representá-lo para outro significante? Como deixar esse legado, esse tesouro de significantes
para a humanidade, senão criando um espaço físico para acolhê-los? As casas-museu foram,
desse modo, surgindo como espaços lógicos que, como recipientes significantes,
representavam o artista para o mundo de vários modos. Ele era o Salvador das artes modernas
da preguiça e do caos, ele foi aquele que inventou o método paranóico-crítico de
conhecimento da realidade e o homem que, ao ter encontrado sua mulher, ‘transformou-se’
em Gala-Dali. Vemos, com isso, que a questão referida à sua existência e ao Outro sexo
também pôde ser acolhida nesses templos dalinianos.
Finalmente, podemos dizer que o triângulo de Dali é esse Outro Geográfico. Um
tríângulo que, como vimos, é composto por três vértices: Figueres, sua cidade natal e lugar
onde está localizado o seu Teatro-Museu e a Fundação Gala-Salvador-Dalí (Fig. 7);
Cadaqués, onde passava os verões com a família e onde se localiza sua Casa-Museu de
Portlligat (Fig. 9), local que elegeu para morar com Gala; e Púbol, no município de La Pera,
onde comprou um castelo para sua amada Gala, o Castelo de Púbol (Fig. 8). Depois de tanto
nos repetir, não seria melhor dizermos que esses lares dalinianos funcionaram para ele como
um verdadeiro templo de significantes, como o seu real ‘Saint-home’?
120
119
Lacan, J., O Seminário, livro 16, De um Outro ao outro, p. 53.
120
Embora não caiba para o propósito desse trabalho fazer maiores esclarecimentos teóricos sobre o tema do sinthoma, faço
com esse trocadilho uma breve alusão ao termo introduzido por Lacan no Seminário, livro 23 para designar que o sinthoma é
52
2.2 O Outro e os outros da arte para Dali
Como vimos na seção anterior, a obra de Dali está definitivamente impregnada de suas
origens catalãs. Os primeiros ventos inspiradores vieram da costa norte do Mediterrâneo
através dos Pichot, amigos e vizinhos da família Dali em Cadaqués. “[...] os Pichot, família de
artistas, gente de luxo, que deslumbraram Dali criança, tocavam música clássica sobre os
rochedos atormentados, assaltados pelos respingos pegajosos. Nas noites de festa, soltavam
seus cisnes no mar, coroados de velinhas acesas.”
121
(1968). Eles organizavam concertos à luz
do luar, chegando mesmo a colocar o piano de cauda sobre os rochedos, fato que inspirou
Dali em inúmeras telas onde vemos pianos em cima de lugares inusitados como rochas ou
praias. Parece sonho, mas, nesse caso foi real, aliás, tão real como um sonho. Também as
pessoas à sua volta foram imprimindo no artista uma marca, isso que, com o passar do tempo,
culminaria no estilo daliniano.
Mas como tudo isso começou?
Sem dúvida alguma, os Pichot foram decisivos no encaminhamento de Dali para o
mundo das artes. Seu pai, ao contrário, não gostava muito da idéia do filho se tornar um
pintor. Segundo o artista relata em suas autobiografias, o pai tentava demovê-lo da idéia de
ser artista de todas as formas. Certa vez, segundo Dali, o pai quis intimidá-lo
intelectualmente, mantendo, sobre o piano da sala de estar da família um livro de medicina
onde o pequeno artista podia ver, em cores vívidas, ilustrações de doenças venéreas. Por outro
lado, havia os Pichots que sempre o apoiaram. A beleza das telas de Ramón Pichot
122
capturou de tal modo o interesse de Dali, que ele desejaria se tornar um pintor impressionista
também. De fato, em suas primeiras telas, podemos notar a influência do impressionismo,
como no quadro Retrato de meu pai (1920-21) (Fig. 22). Aliás, Dali fez o seguinte
comentário sobre esse quadro: “quando fiz seu retrato, carreguei-o com muitas camadas de
tinta, obcecado pela idéia de que um tal retrato pesa mais do que qualquer outro.”
123
Ainda
que seu pai não desejasse para ele um futuro de artista, ele concordou em aceitar os conselhos
dos Pichot e enviou o filho para estudar arte em Madrid.
aquilo que não cai, mas modifica-se, transforma-se, para que seja possível uma escrita própria que traz em si um traço único.
Em Dali, esse traço se faz claro através de suas inúmeras criações surrealistas dentre as quais incluo suas casas-museu.
121
Pauwels, J.L., op. cit. p. 15.
122
Durante as férias de verão com sua família, em Cadaquès , Dali descobriu a pintura impressionista com Ramón Pichot,
um artista local que fazia viagens frequentes a Paris
, trazendo para o menino Dali artigos e revistas de arte.
123
Dali apud Pauwels, op. cit., p. 39.
53
Uma vez aceita a sugestão dos amigos de Cadaqués, Dali ingressou na Escola de
Belas-Artes de Madrid, onde iniciou uma relação de amizade e um diálogo com alguns nomes
importantes do surrealismo, como Federico García Lorca, Luis Buñuel e Breton, dentre
outros. Com o passar do tempo e o afastamento dos ideais surrealistas apregoados por Breton,
o jovem Dali foi formando uma opinião clara sobre o que julgava ser a verdadeira obra arte, o
que não incluía a arte moderna, tampouco o cubismo de Picasso. Na realidade, tais críticas se
estenderiam também a inúmeros outros artistas modernistas que praticavam o que ele
chamava de arte caótica e preguiçosa. Para Dali, a grandiosidade de uma obra de arte está nos
detalhes, na perfeição das nuances de cores, no hiperrealismo das imagens e isso não poderia
ser feito sem um estudo rigoroso. Dali desconsiderava a arte de todo aquele que não
valorizasse a tradição. Ele se dizia um homem do Renascimento, pois além de ir contra a onda
modernista que desprezava o talento, julgava que todo grande pintor deveria,
necessariamente, retornar aos grandes mestres. Seu grande amigo e maior biógrafo, Robert
Descharnes (1993/2006), fala muito bem sobre isso ao destacar que
As influências dos Mestres do Renascimento, observadas nos museus de
Florença e Roma são evidentes nos grupos de personagens utilizadas então
por Dali para criar imagens – duplas nos seus quadros, tal como no intitulado
“Espanha” (1938) ou ainda em “A invenção dos monstros” (1937).
124
Podemos verificar que, mais do que a influência dos significantes do Outro artístico
em Dali, personificado nos ditos dos seus mestres admiráveis, ele seguia criando sob a batuta
de um “Outro prévio”
125
(1960/1998), esse que lhe ‘ditou’ seu método paranóico-crítico.
Referindo-se à segunda das duas obras supracitadas, A invenção dos monstros (Fig. 23), Dali
explica, segundo Descharnes, que “a personagem dupla, visível no primeiro plano, que tem
nas mãos uma borboleta e uma ampulheta, é o produto pré-rafaelita do retrato duplo de Dali e
Gala, pintado imediatamente atrás.”
126
O importante nesse aspecto é que, em seu retorno ao
antigo, Dali pôde renascer do seu próprio caos e, com isso, criar algo novo.
No quinto volume da Obra completa de Salvador Dali há uma inusitada tabela
intitulada “Tabela comparativa dos valores segundo a análise daliniana elaborada por dez
anos”
127
(2005) (Fig. 24) onde ele estabelece um critério para pontuação das habilidades que
julgava necessárias em um artista. Dentre os agraciados com as maiores ‘notas’ estão: Rafael,
Velásquez, Leonardo da Vinci, o próprio Dali. O ‘gabaritante’ da tabela entretanto, foi Jan
Vermeer van Delft que pontuou notas máximas em quase todas as categorias. É interessante
124
Descharnes, R. e Gilles Neret, op. cit. p. 114.
125
Lacan, J., op. cit., p.821.
126
Descharnes,R. e Gilles Neret, op. cit. p.114.
127
Dali, S., op. cit., v. V, p. 68-69.
54
notar que, mesmo tendo grande admiração por Meissonier, este não tivesse tido nota máxima
como os outros. Entretanto, com um rigor impiedoso e cruel, o mestre Dali não poupou
aqueles a quem não admirava tendo execrado pintores como Manet e Mondrian.
Dali tinha verdadeira obsessão pela técnica e pela perfeição dos pintores do século
XVII e aconselhava aos jovens pintores dizendo, “Pintor, pinta!”, ou ainda, “não te assustes
com a perfeição, jamais a alcançarás”
128
(2005). Ainda nesse mesmo volume cinco de suas
Obras Completas, Dali explica como aderiu ao título de Salvador das artes, dizendo ter sido o
filósofo e amigo Francisco Pujols o responsável por essa ‘nomeação’:
O pintor mais sensacional do mundo quer salvar a arte moderna do caos e da
preguiça, dessa vacuidade da arte moderna como havia diagnosticado o seu
amigo muito admirado, Francesc Pujols, o qual, fazendo um trocadilho com
seu nome, o considerava o Salvador.
129
Para Dali, o artista deve almejar a eternidade e isso não seria possível para seus
contemporâneos, talvez nem mesmo para Picasso que, embora admirado inicialmente por ele,
acabaria também sendo criticado. O desejo de eternidade em Dali é marcante em toda a sua
obra, mas alcançaria sua máxima expressão a partir de meados dos anos quarenta, após a
explosão da bomba atômica. Dali entra em sua fase mística, chegando a escrever, inclusive,
em seu “Manifesto místico
130
(1993/2006) que ele era um ex-surrealista, o que, para
Descharnes, não seria possível, pois o surrealismo já fazia parte dele. O fato é que suas obras,
desde então, passam a valorizar temas religiosos e místicos, onde ele e Gala aparecem unidos
na eternidade como vemos, por exemplo, na tela A ascensão (1958) e (Fig. 25).
Possivelmente, essas são suas mais belas telas porque apontam para o que ele chamou de um
‘realismo quantificado’, ou seja, um realismo que opera de acordo com as leis da física
quântica. O resultado de uma obra é fruto de uma sobredeterminação de fatores que, como
uma explosão atômica, pode resultar em uma nova realidade como podemos ver no quadro
Galatea (1952) (Fig. 26), onde uma série de esferas compõe o rosto da mulher adorada.
Novamente, podemos verificar através da obra de Dali como se dá a operação linguajeira do
inconsciente, ou seja, imagens que, tal como significantes, condensam-se em um texto
misterioso. Dali explicava esse ‘realismo’ do seguinte modo:
Numa agitação genial de idéias, decidi dedicar-me à resolução plástica da
teoria quântica da energia, e inventei o ‘realismo quantificado’ a fim de me
128
Dali, S., op. cit., v. V., p 59.
129
Dali, S., op. cit., v. V, p. 10.
130
Descharnes, R. e Gilles Neret, op. cit., p. 157-158.
55
tornar mestre da gravitação. Pintei a Leda Atômica – uma glorificação de
Gala, a deusa da minha metafísica [...].
131
Cada vez mais ligado a Gala, Dali ‘pretendia’ ser imortal, mas não conseguia ver-se
sem sua cara-metade: “Se Gala desaparecesse, ninguém poderia tomar seu lugar. É uma
impossibilidade absoluta. Eu ficaria só. Queria tanto que sobrevivesse que ela se fizesse
fechar comigo num cilindro de hélio, esperando a ressurreição”
132
. Há quadros lindos que
apontam para esse desejo como verificamos em Crucifixão ou corpus Hypercubicus (1954)
(Fig. 27), onde Dali não pintou o Cristo sofrido, pois o que Gala está vendo “é a própria
imagem de Cristo triunfante” (Dali, apud Coleção Gênios da Arte, 2007: 82-83)
133
.
Do mesmo modo, a arte que se imortaliza é para ele justamente aquela que não
sucumbe ao que designou como “estigmas de decrepitude” referindo-se à arte moderna. Ao
contrário desta, ele elegeu como ‘futurista’ a obra de Rafael porque, segundo ele, a obra
‘rafaelesca’ se rejuvenesce todos os dias. Paradoxalmente, os quadros futuristas, para Dali,
estariam destinados a morrer de velhos. Ele diz o seguinte: “Rafael: eis aí um pintor futurista,
pois entende-se que continuará exercendo mais e mais influência ativa sobre o futuro”
134
. Dali
entendia por arte futurista tudo o que pudesse sobreviver ao caos, e exemplificava essa idéia
referindo-se às obras de grandes pintores, como as de Rafael e Vermeer, que sobreviveram à
guerra.
Dali se envolvia de tal modo com a obra dos artistas eleitos por ele como grandes que
- impregnado pelas imagens contidas nesses quadros - metamorfoseava os traços de seus
mestres em telas como A pesca do atum (1966-67) (Fig. 5). Nesse quadro, por exemplo,
percebemos a influência marcante do estilo bélico e agressivo de Meissonier (Fig.28) que,
interpretado por Dali, culminava numa tela repleta de significantes rigorosamente dalinianos.
Dali ia se apropriando dessas obras tal qual ele o fazia com as rochas do Cabo Creus e,
tomando-os como significantes, servia-se delas para tecer uma escrita singular e precisa sobre
suas telas reais.
Dali se apaixonou pela precisão quase fotográfica do pintor holandês Vermeer e,
muitas vezes, tentava explicar seu método paranóico-crítico aplicando-o à tela A rendeira
(1665) (Fig. 29). O artista surrealista, totalmente fascinado por essa obra de Vermeer,
afirmava que “a qualidade de sua pintura, e a sua atenção estava cristalizada de uma forma
131
Dali apud Descharnes, e Gilles Neret, op. cit., p. 164.
132
Dali apud Pauwels, op. cit. p. 55.
133
Dali apud Coleção Gênios da arte, p. 82-83.
134
Dali, S., op. cit. v. V, p. 56.
56
tipicamente paranóica” (2006)
135
e acrescentava, “[...] a obra representava para ele a maior
violência e a síntese cósmica mais colossal, devido ao rigor de sua construção e ao aspecto
crepuscular dos minúsculos toques com os quais Vermeer pintara o quadro”
136
. Em Paris, Dali
chegou a proferir uma conferência para explicar os aspectos fenomenológicos de seu método
relacionando a figura da rendeira a de um rinoceronte. A aplicação de seu método sobre o
quadro de Vermeer também culminaria com o filme que fez com Descharnes, o qual foi
intitulado “A história prodigiosa da Rendeira e do rinoceronte”. Vemos, com isso, que a base
da aplicação de seu método está na interpretação paranóica sobre certa imagem/significante
de modo que ele a transforme - através de um processo ativo - em outra coisa, revelando desse
modo, outra realidade. Mas ele só poderia atingir essa realidade se - como esses pintores do
século XVII - pudesse reproduzi-la em detalhes.
Para poder refletir os estados de alma com precisão, Dali se valia do rigor e da técnica
desses mestres. Ele enaltecia Velásquez, dizendo que, assim como Vermeer, o pintor espanhol
“respeitava a realidade com total castidade”. Podemos dizer que, para Dali, o olho e a mão do
artista são uma só coisa:
A mão de um pintor deve ser fiel, a ponto de ser capaz de corrigir,
automaticamente, os elementos da natureza deformados por uma fotografia.
Toda pintura deve ser uma formulação ultra-acadêmica, pois é apenas a partir
desta virtuosidade que todo o resto, notadamente a arte, é possível.
137
Almejando uma precisão ultra-fotográfica, Dali pretendia mostrar em seus quadros
uma realidade super-real, ou seja, surreal. Foi assim que sua obsessão pelo quadro de Jean-
François Millet levou-o a pintar inúmeras telas onde os significantes referentes ao Angelus se
repetiam incessantemente, como o saco de batatas que retorna em várias telas de Dali.
Compondo um cenário que pertencia à história de sua angústia, o artista catalão ia dando
corpo e alma a um real impronunciável.
Através dos significantes que lhe capturavam o olhar nas telas dos grandes mestres ou
na natureza a sua volta, ele elegia aqueles que se prestavam a compor parte da sua história.
Se, por um lado, os pintores que ele admirava pareciam ocupar o lugar de eu ideal, suas obras
surrealistas, por outro lado - uma vez descoladas de seus criadores maravilhosos -, passavam a
pertencer ao reino obscuro dos significantes vindos de um Outro que, para Dali, se
apresentava encarnado no significante Arte.
135
Descharnes, R. e Gilles Neret, op. cit. p. 176.
136
idem
137
Dali apud Descharnes e Gilles Neret, op. cit. p.184.
57
Capítulo 3: O efeito do estranho
58
Nesse capítulo, faremos uma releitura do artigo de Freud, “O Estranho”
138
(1919),
sublinhando alguns pontos que julgamos importantes para abordarmos o efeito do estranho na
obra de Dali. Além disso, trataremos do efeito que a tela O Angelus (Fig. 2), de Jean-François
Millet, teve para Dali. Acreditamos que o maior de seus efeitos tenha sido o da construção do
método paranóico crítico de conhecimento da realidade. Com base nos textos do próprio Dali,
explicaremos em que circunstâncias esse método surgiu. Finalmente, na última seção desse
capítulo, discorreremos sobre os efeitos do estranho que a obra de Dali pode ter sobre o
sujeito. Para tanto, faremos uso da ficção e, com base em alguns relatos clínicos, criaremos
situações para abordarmos o tema do estranho e sua relação com a realidade psíquica.
Também levantamos alguns pontos sobre o tema da angústia em Lacan, uma vez que é
disso que trata o texto freudiano, ou seja, da questão da emergência do afeto da angústia de
castração, que se apresenta diante de uma situação que, por ser considerada estranha, absurda,
ou mesmo, terrível, pode representar um sinal de perigo para o sujeito.
Embora saibamos que, para tratar do tema referente à angústia precisaríamos fazer um
longo percurso em Freud, relacionando-o à trajetória de Lacan, resolvemos nos deter no artigo
freudiano sobre “O Estranho”, fazendo breves menções a outros textos que toquem no tema
aqui proposto. Por esse motivo, optamos por nos deter na lição de 5 de dezembro de 1962 do
seminário sobre a angústia onde Lacan fala do objeto hoffmaniano em referência ao texto
freudiano sobre o estranho. Também é preciso ressaltar que, em alguns momentos,
recorremos a contribuições de outros autores, dentre os quais destaco Moustapha Safouan
com sua obra Lacaniana 1
139
(2006).
Optamos por um estilo de escrita mais fluido com a intenção de tornar mais claro o
tema do estranho em sua relação com a angústia. Desse modo, qualquer leitor que se sinta
transferido com a psicanálise em sua conexão com a arte, poderá usufruir de nossas
articulações teóricas bem como de nossa breve contribuição com esse tema para a clínica.
138
Freud, S., op. cit. AE, v. XVII; ESB, v. XVII.
139
Saphouan, M., Lacaniana 1.
59
3.1. Revisitando o Estranho em Freud com Lacan
Nessa seção, vamos revisitar alguns pontos principais do que Freud propôs como a sua
teoria sobre o estranho no artigo “O Estranho”
140
(1919/1996). Certamente, Freud utilizou tal
expressão para diferenciar sua teoria sobre o estranho daquela contida no ensaio de Ernst
Jentsch, “Zur Psychologie des Unheimlichen”, escrito em 1906 - “Sobre a psicologia do
estranho”. Esse ensaio foi traduzido por “On the psychlogy of the uncanny” na versão inglesa
à qual tive acesso
141
.
Em seu artigo, Jentsch trabalha sobre a questão do sentimento de estranhamento que
ocorre quando uma pessoa se vê confrontada com algo inusitado ou terrível. Para falar sobre
esse sentimento estrangeiro, não familiar e que gera desconforto na pessoa, Jentsch se valeu
do conto O homem da areia
142
de Ernst Hoffmann, a partir do qual ele nos fornece a seguinte
explicação:
Ao contar uma história, um dos recursos mais infalíveis para produzir efeitos
de estranheza no conto literário consiste em deixar o leitor na incerteza sobre
se uma determinada figura na história é um ser humano ou um autômato, e
fazê-lo de tal modo que sua atenção não se concentre diretamente nessa
incerteza, de maneira que não possa ser levado a penetrar no assunto e
esclarecê-lo imediatamente.
143
Após ter lido o ensaio de Jentsch, Freud faz uso do mesmo para discordar do autor no
que tange ao fator gerador do efeito do sentimento do Unheimlich no leitor. Para Freud, o
efeito de estranheza causado no leitor do conto Homem da areia não é fruto da incerteza
intelectual do personagem Nataniel sobre a boneca Olímpia ser ou não ser um objeto
autômato e sem vida. Nesse conto, repleto de situações absurdas, Nataniel se apaixona por
essa boneca cujo vulto feminino ele só podia ver de longe. Sem saber que se tratava de uma
boneca, Nataniel é colocado em uma situação de estranho encantamento por aquele ser. Desse
modo, Hoffmann consegue criar um clima de tamanha incerteza no conto que chegamos
mesmo a duvidar se tal objeto de desejo é ou não um ser animado.
Ao longo desse artigo, Freud fala sobre o tema abordado por Jentsch de modo diverso.
Fazendo inúmeras referências a autores e a obras da chamada literatura fantástica, Freud
sustenta que aquilo que despertaria o afeto da angústia no leitor seria o temor de perder os
140
Freud, S., op. cit., AE, v. XVII; ESB, v. XVII.
141
Versão inglesa de Roy Sellars (mimeo)
142
Na versão para o português do Seminário, livro 10 sobre A angústia de Lacan, utiliza-se “Homem de areia” enquanto a
versão portuguesa da Standard Edition usa “Homem da areia” (grifo meu).
143
Jentsch apud Freud, op. cit. AE, v. XVII, p. 227; ESB, v. XVII, p. 245.
60
olhos, o que é expresso através do personagem Nataniel. Freud afirma que o tema principal do
conto de Hoffmann refere-se ao chamado Homem da Areia que, segundo a lenda, machucava
os olhos das crianças desobedientes. Para Freud, a explicação para tal temor teria suas origens
nas recordações infantis de Nataniel. Esse personagem não conseguia banir de sua mente as
lembranças ligadas à morte misteriosa de seu amado pai. Além disso, Nataniel recordava-se
que, para convencer as crianças a dormir, sua mãe costumava intimidá-las dizendo-lhes que o
terrível homem da areia estava chegando. Tal recordação era acrescida de uma dose extra de
terror, pois sua babá não só confirmava essa lenda como a piorava em sua versão. Dizia-lhes
que esse homem mau jogava areia nos olhos das crianças que não fossem para cama,
incluindo, entretanto, um detalhe ainda mais terrível: ela contava que após terem sido
machucados pelos punhados de areia, os olhos, ensangüentados, saltavam de suas órbitas.
Freud viu nesse conto fantástico material para trabalhar vários temas de sua teoria
sobre a castração. Como sabemos, as articulações teóricas de Lacan sobre esse artigo
freudiano encontram-se no Seminário, livro 10. Nesse seminário totalmente dedicado ao tema
da angústia, Lacan discorre, em detalhes, sobre a relação do surgimento desse afeto com a
presença do objeto causa de desejo o qual também é causa de angústia. Como sabemos, ele
designou por objeto pequeno a tudo aquilo que aponta para a falta no sujeito que imagina já
ter possuído - algum dia em sua vida - um objeto precioso que o completava. Não se sentindo
pleno, entretanto, ele passará toda sua vida substituindo esse lugar vazio por outros objetos
que tenham, para ele, algum valor. Daí Lacan nomear esse objeto pequeno a como objeto
causa de desejo.
Em sua leitura do artigo de Freud, Lacan também enfatiza a angústia do personagem
em referência aos olhos. Na lição de 5 de dezembro de 1962, ele dirá:
A boneca espreitada pelo herói do conto por trás da janela do feiticeiro, que
fabrica em volta dela não sei que operação mágica, é propriamente esta
imagem, i’(a), na operação de complementá-la com aquilo que, na própria
forma do conto, é absolutamente distinto dela, ou seja, o olho. O olho de que
se trata só pode ser o do herói, e o tema de que querem arrebatar-lhe esse olho
dá o fio explicativo de todo o conto.
144
É, portanto, por esse viés que Lacan fará sua articulação em relação ao que Freud
chama de angústia de castração como um sinal de perigo, o qual, nesse caso, não só aponta
para o temor de ter seus olhos arrancados, como também de vê-los completar a boneca, ou
seja, de dar a este ser autômato sua própria alma. Completar o buraco do olhar vazado do
outro poderia equivaler, a nosso ver, à perda da própria condição de ser vivente e desejante.
144
Lacan, J., O Seminário, livro 10, A angústia, p. 58.
61
Com Freud, entendemos que o primeiro objeto miticamente perdido do sujeito é o seio
materno; com Lacan, podemos inferir que esse objeto perdido para sempre refere-se ao
próprio sujeito em sua condição primeira de objeto de desejo do Outro. Para Freud, a angústia
estaria relacionada à ausência da mãe, enquanto que, para Lacan, esse sentimento estaria
associado à presença excessiva dessa mãe. Freud nos explica que o menino - ao atravessar o
Édipo, tendo disputado o amor da mãe e feito do pai seu maior rival - abrirá mão do duelo
com a figura paterna por temer perder seu falo imaginário, ou seja, o pênis. Com Lacan,
entendemos essa passagem como o momento da construção da metáfora paterna em que, ao
ser barrado pelo pai, o sujeito se liberta de sua condição de objeto de gozo da mãe. Assim, o
pai barra a mãe e introduz o filho no mundo do desejo, mas o preço a ser pago para se tornar
um sujeito desejante é o de estar marcado definitivamente pela falta, ou seja, pela castração, a
sua e a do Outro. Parece-me que é precisamente aí que Freud localiza a de angústia de
castração, de modo que, mais tarde, toda vez que o sujeito temer passar por alguma perda, ele
poderá reviver tal afeto.
Como sabemos, com as meninas a questão edípica é diferente, ou, como diria uma
paciente obsessiva, “o buraco é mais embaixo”. Sim, o buraco feminino é bem mais embaixo
porque é mais real, pois, embora a mulher esteja referida ao falo - e, portanto, tenha o
complexo de castração, - sua angústia não se localiza no órgão, como nos homens. Portanto, a
angústia nas mulheres é mais difusa porque envolve o medo da perda do amor, fato que torna
essa demanda muito maior do que a do homem.
Será, portanto, nesse seminário dedicado à angústia, que Lacan dirá que aquilo que
causa angústia no sujeito não é a iminência da perda do objeto, mas, justamente o contrário,
ou seja, o que geraria tal afeto seria sua iminente presentificação. Podemos entender melhor
isso se lembrarmos que esse objeto designado por Lacan como objeto pequeno a é equivalente
à falta, sendo esta, portanto, equivalente ao desejo. Assim, só se pode desejar algo se isso
faltar. Se o desejo é, como sabemos, aquilo que move o sujeito em direção aos seus sonhos,
projetos e planos, podemos admitir que, ao tamponar essa falta com um objeto qualquer, o
sujeito vivencie a angústia, uma vez que esse vácuo parecerá não mais existir. Desse modo,
vemos que a saída para o sujeito diante da angústia é voltar a desejar. Em análise, a
oportunidade de falar sobre seu desconforto abre as portas para o simbólico de modo que, ao
tratar essa dor real pelo viés da palavra, o sujeito acaba revelando, pelo avesso, aquilo que já
estava lá desde sempre, ou seja, a falta. Isso é, a princípio, um pequeno resumo do que
podemos entender desse extenso e complexo seminário sobre a angústia.
62
Retornemos a Freud. Primeiramente, devemos nos lembrar de que o cerne de toda
teoria psicanalítica gira em torno da noção de castração. Sabemos que tal noção tem por base
o que Freud designou por complexo de castração a partir do artigo “As teorias sexuais
infantis”
145
em 1908, onde ele verifica que, para o menino, o pênis é considerado o órgão
auto-erótico primordial, de modo que ele atribui a existência de tal órgão a todos os seres
humanos. Portanto, para Freud, o complexo de castração só existe devido a essa
supervalorização do pênis, mas sua manifestação só ocorrerá quando o menino sentir-se
ameaçado de perder esse órgão tão precioso, podendo culminar com o que Freud chamará de
angústia de castração.
É precisamente disso que tratamos no tema sobre o estranho, ou seja, da questão
referente à emergência do afeto da angústia. Vimos com Lacan que a angústia é um afeto que
não engana e que tem um objeto, o objeto a. Esse objeto foi assim nomeado com a letra a
minúscula para aludir a um vazio que, aos olhos do sujeito, poderia ser recoberto por qualquer
coisa. Nesse sentido, tal objeto pode também representar o próprio sujeito em sua vertente
especular, imaginária, ou seja, aquele ser que, diante do espelho, sente-se visto e reconhecido
pelo olhar do Outro. Aliás, é como objeto do desejo do Outro que o sujeito vem ao mundo,
tendo que depender deste para sobreviver à própria falta de instintos nos primeiros anos de
vida. O Outro cuidador é, portanto, o próximo de cujo amor dependeremos por muito tempo,
mas que pode, muitas vezes, mostrar sua face hostil e gozosa.
Como vimos, o objeto a pode se apresentar de vários modos. O invólucro do objeto
pequeno a que nos interessa abordar em relação ao tema do estranho é aquele que envolve os
seguintes aspectos: a face especular do sujeito na qualidade de seu duplo, ou seja, como
objeto no espelho, e aquele em que o objeto representa o que o sujeito foi para o Outro. Como
sabemos, esse assunto é bem complexo, até porque para Lacan, o termo castração tem três
sentidos como nos esclarece Moustapha Saphouan, em seu livro Lacaniana 1(2006):
[...] o da fratura que marca a imagem do corpo próprio; o da ameaça que se
intensifica à medida que o sujeito tenta positivar essa fratura, isto é, reduzir a
imagem ou a significação fálica à imagem do corpo próprio; enfim, o do
próprio aparecimento do falo, ou de uma outra parte do corpo que o simboliza,
no lugar mesmo da fratura ou da falta instalada no seio do campo especular. É
o caso da angústia por excelência.
146
Ao enfatizarmos, portanto, o tema do duplo especular em Freud, com o auxílio da
leitura de Lacan, podemos articular a possibilidade de haver uma estreita relação dos efeitos
145
Freud, S., “As teorias sexuais infantis”, A.E., v. IX; ESB, v. IX.
146
Saphouan, M., op. cit., p. 181.
63
do estranho com aquilo que a obra de Dali pode suscitar. Como sabemos, as obras de Dali são
plenas de imagens duplas e absurdas que puderam ser assim retratadas através da técnica do
trompe-l’oeil. O efeito dessas imagens outras no quadro pode surpreender o sujeito enquanto
apreciador da obra. A impressão que ele pode ter é que há um olhar a mais dentro do próprio
quadro. Isso pode gerar nele uma sensação de estranhamento diante desse objeto oculto que
olha para ele de dentro de sua tela própria, ou dito de outro modo, que o olha de dentro de sua
tela própria, ou seja, a da sua fantasia.
Tão desconfortável como esse encontro com o real nas telas de Dali foi aquele que
Freud relatou ter tido em uma viagem de trem. O relato dessa experiência de Freud encontra-
se em uma extensa nota de rodapé
147
em que ele fala de seu desconforto diante da assunção da
imagem de um velho antipático e decrépito que parecia encará-lo no vagão de trem no qual
viajava. Entretanto, susto maior ele teve quando percebeu que o tal velho com ares de
decadência era ele mesmo, ou seja, tratava-se de sua própria imagem refletida no vidro da
porta do vagão. Ou seja, o outro hostil de Freud, era esse estranho familiar que sempre
habitara sua realidade psíquica. Também podemos pensar que o estranhamento de Freud tenha
a ver com o fato dele não conseguir se reconhecer como um homem cuja castração se revela
no próprio corpo.
A questão sobre a incerteza intelectual desprezada por ele para explicar o surgimento
da angústia deve ser reconsiderada aqui se admitirmos que o estranho no sujeito é o seu
próprio corpo. O jogo angustiante criado por Hoffmann entre o animado e o inanimado
presentifica esse estranho de tal modo que podemos pensar na boneca do conto como uma
metáfora da condição última do sujeito, isto é, a de objeto caído e sem vida, ou seja, a de um
cadáver. Vemos, portanto, como o imaginário pode apontar para algo do real, ou seja, que a
imagem dúbia da boneca aponta para o real da morte. Da mesma forma, a experiência pessoal
de Freud com sua própria imagem refletida corrobora com essa idéia, ou seja, a de que o
estranho é, em última instância, o próprio sujeito.
Assim, se num primeiro momento, Freud desprezou as articulações de Jentsch acerca
da incerteza intelectual como causa princeps do efeito do estranho sobre o leitor, no entanto,
não subestimou o comentário de Jentsch quando este associa a isso o fenômeno do duplo na
literatura.
147
Freud, s., op. cit. AE, v., XVII p. 247; ESB,v. XVII, p. 265.
64
Para Freud, o tema do duplo diz respeito ao fato de que, ao se deparar com sua
imagem refletida, há certa confusão de identidades onde o sujeito, parece ficar,
momentaneamente, na dúvida sobre seu eu, substituindo-o por um estranho. Ele cita,
inclusive, o trabalho de Otto Rank sobre o duplo, apontando a relação desse tema com os
reflexos nos espelhos, as sombras e os espíritos guardiães. Rank fala sobre a crença de certos
povos na imortalidade da alma, equivalendo esta ao primeiro duplo do corpo. Do mesmo
modo, os egípcios faziam imagens dos mortos em materiais duradouros, acreditando que
estariam guardando suas almas, evidenciando, desse modo, que o narcisismo primário domina
tanto a mente da criança como a do homem primitivo. Mas o duplo, Freud aponta, pode
tornar-se também uma figura persecutória porque encarna aquele que anuncia a morte como
algo de que não se pode escapar, pois “depois de haver sido uma garantia de imortalidade,
transforma-se em estranho anunciador da morte”
148
(1919/1996).
Freud tenta encerrar seus exemplos sobre sua teoria do estranho dizendo que,
freqüentemente, alguns de seus pacientes homens relataram ter tido uma sensação de
estranheza diante do órgão genital feminino. Ele explica esse sentimento de desconforto de
seus pacientes comparando tal órgão ao Heim (lar) de todos os seres humanos, ou seja, ao
lugar de onde todos nós viemos, mas cuja lembrança está totalmente recalcada. O ponto alto
do texto de Freud surge quando ele diferencia o estranho na literatura fantástica daquele que
se origina dos complexos infantis, pois no caso desses últimos, o que prevalece não é a
sensação de estranhamento causada por um dado absurdo que contraria a realidade material,
pois o que conta, para o sujeito, é sua realidade psíquica. Dito de outro modo, a questão da
contradição da realidade material no caso da leitura dos contos fantásticos não é relevante
como aquela que ocorre na vida real, pois, nesse caso, o estranhamento seria originado dos
complexos infantis. Freud enfatiza que o que se vê mobilizado no sujeito quando este se
depara com alguma cena insuportável é algo que toca a sua realidade psíquica. Sobre isso
discorreremos em maiores detalhes um pouco adiante, quando falarmos sobre os efeitos que a
tela O Angelus (Fig. 2) de Millet teve sobre Dali, bem como o efeito que a obra do artista
surrealista pode exercer sobre as pessoas.
O tema da arte como meio de comoção sempre intrigou Freud. Vemos, por exemplo,
como ele já falava nesse assunto no seu artigo de 1908, “Escritores criativos e devaneio”,
148
Freud. S., op. cit., AE, v. XVII, p 235.; ESB, v. XVII, p. 252.
65
chegando a chamar o escritor criativo de “estranho ser”, pois não entendia como este poderia
“despertar-nos emoções das quais nem nos julgávamos capazes” (1908/1996)
149
.
Onze anos depois, ele continuaria insistindo no assunto, mas de modo diferente. No
artigo “O estranho” (1919/1996) ele nos fala dos escritores imaginativos como aqueles cujas
regras são aceitas pelo leitor, ou seja, nós já sabemos, previamente, que algo nos
surpreenderá. Facilmente, aceitamos idéias absurdas em seus escritos, pois “nesse caso, todo o
estranhamento que havia aderido a essas figuras se dissipa, pois elas constituem as premissas
dessa realidade poética”
150
. Na experiência real, diferente da ficção, o que se sente como
estranho está definitivamente ligado ao nosso ambiente psíquico, ou seja, àquilo que deveria
ter ficado recalcado, mas que veio à tona. Ainda que saibamos que não precisamos de uma
imagem concreta para que possamos concebê-la, é interessante notar que os exemplos usados
por Freud para iniciar sua discussão sobre o efeito do estranho sejam exclusivamente de
textos literários.
Partindo da segunda teoria de Freud sobre a angústia, onde ele postula que ela é a
causa do recalque e não o contrário, Lacan nos dirá que esse afeto está ligado ao eu, sendo,
portanto, um sinal do real que invade a ordem imaginária dessa instância psíquica. O duplo -
sendo ele esse objeto estranho, que é o próprio sujeito -, parece, enfim, revelar que algo no
corpo aponta para um real não representável. Em “Inibição, sintoma e angústia”
151
(1925/1996), Freud fala sobre esse sinal de perigo, referindo-o a uma possível perda, mas,
com Lacan, podemos entender isso de modo diferente. Lacan nos diz, por exemplo, que é o
jogo de fort-da da criança que garante a esta sua condição de desejante, pois enquanto a mãe
lhe faltar em presença, o desejo se manterá. Do mesmo modo, recorda-nos Saphouan, “não é a
nostalgia do seio materno que engendra a angústia, mas sua iminência”
152
(2006).
Após esse percurso, podemos entender que o efeito do estranho, enquanto gerador do
afeto da angústia, tem a ver com essa presença intrusiva do objeto a na sua vertente real.
Finalmente, podemos considerar que, sendo somente na falta que o sujeito pode desejar, a
emergência da angústia, ainda que pelo avesso, pode alçá-lo novamente à condição de
desejante. Mas temos que considerar que o problema será um tanto maior se tal objeto se
apresentar em sua face real, ou seja, aquela que se encontra atrelada marcadamente à pulsão
de morte.
149
Freud, S., op. cit., AE, v. IX, p.127; ESB, v. IX, p. 135.
150
Freud, S., op. cit., AE, v. XVII, p.249; ESB, v. XVII, p. 267
151
Freud, S., “Inibição, sintoma e angústia”, AE, v. XXII; ESB, v. XXII.
152
Saphouan, M., op. cit., p. 181.
66
3.2. O efeito do estranho no Angelus de Millet em Dali: o método paranóico crítico
Após termos feito essa necessária retomada do texto freudiano sobre o estranho,
falaremos agora sobre o efeito que a tela O Angelus (Fig. 2), de Jean-François Millet teve
sobre Salvador Dali. Nessa seção, portanto, trataremos desse tema através de vários textos,
uns colhidos em biografias de Dali, outros colhidos em relatos autobiográficos do próprio
artista.
Se o fenômeno do duplo especular foi motivo suficiente para que Freud trabalhasse o
tema da angústia, podemos pensar que, para Dali, não seria diferente. Entretanto, o duplo de
que se trata em Dali apareceu para ele de modo inusitado. Escondido sob as imagens de uma
tela de cunho aparentemente religioso, jazia algo que o atormentou por muitos anos. Refiro-
me ao quadro de Jean-François Millet, o Angelus (1859). O que tanto atordoava Dali nesse
quadro? Sua resposta a essa questão foi construída nos anos 1930 sob a forma de teoria, ou
seja, através da construção do que ele intitulou método paranóico crítico de interpretação da
realidade.
No ensaio “O mito trágico do Angelus de Millet”
153
(1963/2005), Dali explica o
método paranóico crítico valendo-se de suas interpretações acerca daquilo que no quadro de
Millet apontava para uma íntima relação entre sexo e morte.
De fato, havia uma história intrigante acerca desse quadro, à qual Bernard Nominé
também alude em seu livro Psicoanálisis de la vida amorosa
154
(2007), apontando para o fato
de que Millet teria originalmente pintado um quadro para representar uma catástrofe agrária
que culminou com a escassez das colheitas de batatas. Aos pés da mulher, como podemos
notar, há um cesto com batatas podres marcando o tom melancólico expresso pelo olhar
lamentoso dos camponeses diante da destruição da terra. Dali interpreta essa cena referindo-se
ao mal-estar provocado pelo ar de desolação dos camponeses, pois julga que eles estariam
velando um filho morto, embora este não esteja visível na tela.
Conhecido pelo realismo de suas telas, Millet aludia nesse quadro à miséria humana e
à pobreza do povo das zonas rurais. Diante de tamanha desolação suscitada pela cena,
153
Dali, S., op. cit., v. V.
154
Nominé, B., Psicoanálisis de La vida amorosa, p. 80.
67
aconselharam a Jean-François Millet que conferisse a sua tela um tom menos dramático. Esse
quadro ficara sem título por vários anos, até que Millet aceitou incluir uma igreja lá no fundo
da tela de modo que sua pintura tomaria um sentido religioso. O quadro se popularizou
largamente, sendo uma das telas mais conhecidas de Millet, de modo que suas cópias
passaram a constar em vários objetos do dia-a-dia das pessoas. O mal-estar ao qual a obra
aludia foi substituído por uma estética ‘politicamente correta’. Supostamente, o disfarce
efetuado pelo belo religioso e contornado pelo cesto de batatas daria conta de esconder o real
da angústia diante da destruição. Assim, o belo e o horror, como ‘gêmeos dizigóticos’,
certamente têm a mesma origem. Ambos apontam para o que Lacan chamou de Heim, “esse
lugar que representa a ausência em que estamos”, ou seja, “um ponto situado no Outro para
além da imagem de que somos feitos”
155
(1962/2005). Aliás, é do órgão sexual feminino,
enquanto estranho-familiar, que trata esse Heim, cujo buraco precisa ser tamponado com
algum disfarce primoroso. Como assinala o próprio Freud, esse lugar unheimlch “[...] é a
porta de acesso ao antigo reino da criatura, ao lugar onde cada um já morou no princípio”
156
.
No ‘Mal-Estar na Civilização’ (1930/1996), Freud diz que a fruição do belo é uma das
formas de se buscar a felicidade. E, mesmo que não creia em uma felicidade plena, ele afirma
que:
A atitude estética em relação ao objetivo da vida oferece muito pouca
proteção contra a ameaça do sofrimento, embora possa compensá-lo bastante.
A fruição da beleza é acompanhada de uma sensação particular, de suave
efeito embriagante. Embora a ciência da estética investigue as condições sob
as quais as coisas são sentidas como belas, tem sido incapaz de fornecer
explicação a respeito da natureza e da origem da beleza, e, tal como
geralmente acontece, esse insucesso vem sendo escamoteado sob um dilúvio
de palavras tão pomposas quanto ocas. A psicanálise, infelizmente, também
pouco encontrou a dizer sobre a beleza.
157
Sobre a questão do mal-estar diante das regras que a sociedade nos impõe, Lacan
adota uma visão bem freudiana. Vemos como ele abordou essa questão no seminário sobre a
ética. Nesse ponto de sua teoria, Lacan afirma que o bem é uma barreira para o desejo, uma
vez que a noção de bem está intimamente ligada às leis morais e aos bons costumes. No
capítulo sobre “A Função do Belo” (1960/1997), Lacan afirma que há uma relação do belo
com o desejo, ainda que esta seja ambígua, pois:
Por um lado, parece ser possível que o horizonte do desejo seja eliminado do
registro do belo. E, no entanto, por outro lado, ele não deixa de ser manifesto,
e como foi dito desde o pensamento da Antiguidade até São Tomás, que sobre
isso fornece fórmulas muito preciosas, que o belo tem por efeito suspender,
155
Lacan, J., op. cit., p.58.
156
Freud, S., op. cit. AE, v. XVII, p. 244; ESB, v. XVII, p.262.
157
Freud, S., “O mal-estar na cultura”, AE., v. XXI, p.82; ESB, v. XXI, p. 90.
68
rebaixar, desarmar, diria eu, o desejo. A manifestação do belo intimida, proíbe
o desejo.
158
Mas como ele mesmo dizia, Dali era um homem da Renascença e, como tal, estudou
os clássicos e se valeu da ciência em causa própria, ou seja, na direção inversa do discurso
civilizatório. Afinal, havia algo de muito estranho na tela de Millet que suscitava nele um
tremendo mal-estar desde sua mais tenra idade. Ao invés de esconder a fonte de tamanho mal-
estar, Dali o faria vir à tona.
Não podemos afirmar que Dali sabia da história envolvendo a mudança ‘estratégica’
feita no quadro por Millet, mas sua inquietação diante dessa imagem levou-o a solicitar
estudos de raios X ao museu do Louvre sobre esta tela. Fato é que ele descobriu que, sob a
pintura do cesto de batatas havia, realmente, o esboço de algo parecido com um caixão, dentro
do qual ele julgou estar o filho morto do casal de camponeses. A partir de então, Dali escreve
O Mito trágico do Angelus de Millet
159
(1963/2005), referindo-nos ao seu método paranóico
crítico. Uma mistura de realidade, lembranças e ficção se convertem na sua tese sobre o tema
mítico da morte do filho. Em sua autobiografia Vida Secreta (1942/2003), Dali fala sobre o
quadro:
Propus-me à analise sistemática de uma série de fenômenos que começaram a
ocorrer em torno desta imagem e que tomaram para mim um caráter
declaradamente obsessivo; e depois de utilizar esta imagem do Ângelus nas
formas mais diversas, tais como objetos, pinturas, poemas etc. escrevi
finalmente um ensaio de interpretação paranóica intitulado “O mito trágico do
Ângelus de Milet”, livro que se publicará logo e que considero um dos
documentos fundamentais da filosofia daliniana.
160
A resposta de Dali para tentar dar conta da sua tragédia particular adquiriu ares de
mito, mas com valor de verdade. O filho morto do casal de camponeses, que não aparece
explicitamente no quadro, equivale desse modo, à imagem que Dali fazia do irmão morto,
sendo o próprio Dali aquele que viria substituí-lo. Então, supomos que a explicação que Dali
dá para o seu nascimento, seguido à morte do irmão do mesmo nome, aponta
simultaneamente para o sexo e para a morte, afinal ele fora gerado sobre o leito de um luto
que não se deu.
Como sabemos, Dali foi um leitor da obra de Freud e apreciador dos trabalhos de
Lacan. Sendo assim, muitas de suas explicações mirabolantes sobre esse quadro se baseiam
nas leituras que ele fez dos textos freudianos e em seu convívio com intelectuais ligados à
158
Lacan, J., O Seminário, o livro 7, A ética da psicanálise, p.290.
159
Dali apud Ajame, op. cit. p. 64-66.
160
Dali, S., op. cit. v. I, p. 347.
69
psicanálise, mas isso não retira de suas interpretações o caráter de originalidade. Prova disso é
que, ao longo de sua interpretação sobre o Angelus, Dali dirá que o camponês que vemos no
quadro estaria, na realidade, escondendo uma ereção sob seu chapéu. Aludindo à relação
sexual de seus pais como o fator gerador de sua angústia, Dali fala do tema mítico da morte
do filho do casal de camponeses referindo-se à sua própria história e à do irmão, morto algum
tempo antes de seu nascimento. Além disso, faz questão de apontar que a mulher no quadro
representaria uma figura fálica cujo maior interesse seria o de se fazer fecundada como
podemos notar no seguinte relato:
Essa mãe, que poderia muito bem ser uma variante da mãe fálica com cabeça
de abutre dos egípcios, usa seu marido estranhamente “despersonalizado”
como um carrinho-de-mão com o fim de enterrar seu filho e, ao mesmo
tempo, de se fazer fecundar, sendo ela mesma a terra-mãe nutridora por
excelência.
161
(1963/2005)
Assim, para Dali, o sexo dos pais traz, imaginariamente, o filho morto de volta.
Podemos agora fazer uma breve articulação com o conto de Hoffmann, pois, embora a
angústia de Nataniel apareça em vários momentos dessa história, Lacan ressalta um trecho em
que isso é insuportável para o herói do conto. Refiro-me ao momento em que Nataniel teme
ter seus olhos arrancados para completar o furo no mesmo local no rosto da boneca. Para Dali,
podemos supor que o insuportável era justamente saber disso, ou seja, que sua função seria a
de ser, ele próprio, aquele que veio ao mundo para tampar o buraco que a morte do irmão
deixou.
Como o efeito do estranho, provocado pela tela de Millet, operou no artista
surrealista?
A partir de seu segundo encontro com o Angelus, Dali deu início à criação do seu
método paranóico-crítico de conhecimento da realidade, como veremos logo adiante. Para
Dali, não há outra realidade que não a psíquica, ou seja, aquela que tudo distorce. Assim,
através de sua obra, o artista antecede o analista, pois ele tenta nos ensinar sobre a castração
bem antes de termos chegado a ela. Afinal, é justamente com isso que nos confrontamos ao
final de uma análise, ou seja, com nossa condição originária de objeto. É, portanto, a realidade
psíquica que parece importar em todos esses reencontros. Freud, ainda no seu artigo sobre o
estranho, faz questão de apontar que, “[...] quando o estranho se origina de complexos
161
Dali, S., op. cit. v. V., p. 408.
70
infantis, a questão da realidade material não surge; o seu lugar é tomado pela realidade
psíquica”
162
(1919/1996).
A atividade paranóico-crítica proposta por Dali através de seu método é um modo
espontâneo de conhecimento irracional da realidade, ou seja, um conhecimento que “escapa,
na medida do possível, às leis e ao controle da inteligência”, como assinala Pierre Ajame em
seu livro As duas vidas de Salvador Dali (1986). A abertura para o inconsciente em Dali fez
com que ele pudesse ir além do óbvio olhar sobre a tela de Millet, e, ao mesmo tempo,
permitiu-lhe construir seu mito particular, como uma saída para a angústia. Novamente,
recorro ao próprio Dali para poder dialogar com Lacan. Afinal, como já apontamos
anteriormente, é a iminência da presença maciça do seio materno que gera a angústia, ou seja,
é o temor de que, ao invés de cumprir sua função de falta, ele invada o sujeito e o sufoque.
Dali diz o seguinte:
Nasci duplo. Meu irmão, primeiro ensaio de mim mesmo, gênio extremo e
portanto inviável, vivera apesar disso sete anos, antes que os circuitos
acelerados de seu cérebro pegassem fogo. Por causa desse Salvador, fui o
bem-amado que se ama demais. Não há para criança pequena choque mais
catastrófico do que o amor em demasia, e esse exagero de amor-por-causa-de-
um-outro-eu-mesmo, eu o sentiria com violência e a extensão que o mundo
simbiótico e indiferenciado dos primeiros anos permite. À borda desse
abismo, eu construiria a fortaleza gelatinosa da paranóia [...]
163
Mas como e quando se deu o encontro de Dali com o estranho nessa tela?
Em uma extensa nota de rodapé de sua autobiografia Vida Secreta de Salvador Dali
(1942/2003), ele afirma:
Essa pintura, que produziu em mim tão profunda impressão na infância,
desapareceu completamente de minha imaginação por anos, cessando sua
imagem de produzir em mim o mesmo efeito. Entretanto, em 1929, ao ver de
novo uma reprodução do Angelus, a mesma inquietude e o transtorno emotivo
original se apoderaram de mim.
164
Através de seus biógrafos e dos relatos do próprio Dali, sabemos que sua expulsão da
Escola de Belas Artes de São Fernando em Madri se deu por decreto do rei Afonso XIII em
20 de outubro de 1926 – um decreto real - e isso teria abalado definitivamente sua relação
com o pai. Entretanto, será o seu envolvimento com Gala que colocará pai e filho em pé de
guerra, culminando com sua expulsão de casa. Após tantas expulsões, ele se viu amparado por
Gala e com ela foi viver em Cadaqués.
162
Freud, S., op. cit., AE, v. XVII, p.248 ; ESB, v. XVII, p. 265.
163
Dali apud Ajame, p. 38-39.
164
Dali, S., op. cit., p. 346.
71
Em 1929, o casal Gala-Dali estava em Paris e, ao visitar o ateliê de Jean-François
Millet, ele se deparou novamente com o Angelus. Este reencontro o abalou de tal modo que
ele iria se dedicar a pesquisar essa tela obsessivamente. Como o quadro de Millet era
extremamente conhecido, tendo sido reproduzido em inúmeros objetos do cotidiano, como em
xícaras, calendários, guardanapos etc., Dali se deparava com essa imagem o tempo todo e, em
cada momento em que isso se dava, ele atribuía a esses encontros fortuitos um novo sentido.
Pierre Ajame ressalta que não apenas a imagem do Angelus aparecia-lhe “muito nítida e em
cores”, como parecia se impor a ele. Ajame cita o próprio Dali: “[...] o Angelus tornou-se
subitamente para mim a obra pictórica mais perturbadora, mais enigmática, mais densa e mais
rica em pensamentos inconscientes que jamais existiu”
165
(1986). Ainda segundo Ajame,
Salvador Dali, com sua obsessão por esse quadro, tornou-se o Sherlock Holmes da
surrealidade, pois via pistas em todos os lugares que o remetiam ao enigma escondido na tela.
Como vimos, as interpretações de Dali sobre esse quadro apontam para a relação entre
sexo e morte. Subjacente a essas elucubrações dalinianas, há o tema do objeto de desejo que
ele foi para os pais e sua relação com a imagem do filho morto do casal de camponeses. Em
quase todas as suas interpretações, Dali refere-se à angústia que sentia diante da emergência
de sua própria imagem como objeto de desejo exclusivo do Outro. Aliás, vemos como esse
assunto atormentava Dali. A tela O enigma do desejo: minha mãe, minha mãe, minha mãe
(1929) (Fig. 15), parece evidenciar sua angústia diante do desejo do Outro materno em
relação ao seu nascimento. Que lugar ele ocupava no desejo desse Outro, o de objeto de
desejo ou de gozo? Como escapar disso?
Uma resposta possível seria admitirmos que sua união com Gala operou, para ele,
como um suporte extra em sua estrutura, impedindo-o que sucumbisse à catástrofe subjetiva
que lhe acometera por ocasião de sua expulsão de casa. Afinal, Dali sentiu-se ejetado da casa
paterna tal qual um objeto. Reviver isso foi insuportável para ele, mas Gala o acolheu
conferindo-lhe outro contorno. É precisamente nesse ponto que supomos que Gala tenha
funcionado para Dali como um duplo especular em sua vertente amorosa, contrapondo-se à
imagem do irmão morto que encarnaria, para o artista, a vertente do duplo anunciador da
morte.
Ainda nesse seu mito trágico, Dali compara sua vida conjugal à vida de um tipo de
caranguejo conhecido como Bernardo-eremita. O crustáceo tem este nome porque vive
165
Dali apud Ajame, op cit., p. 100.
72
recluso dentro de sua concha protetora. Dali propõe a seguinte equação para explicar sua
união com Gala: o paranóico seria o mole; e a crítica, o duro. Então, Salvador, seria o
paranóico-mole, o interior do Bernardo-eremita, e Gala, a crítica dura, correspondendo à
carapaça, à concha do caranguejo solitário de aparência esquisita (1986)
166
. Sua obsessão por
imagens duplas teria surgido daí, segundo o próprio Dali, de modo que o Angelus de Millet
seria inserido em vários de seus quadros. Há uma tela sua que parece ilustrar muito bem o
lugar que Gala ocupava em sua vida. Bernard Nominé
167
(2007) comenta a tela O Angelus de
Gala (1935) (Fig. 30), apontando que o que vemos é Gala enquanto esse duplo especular de
Dali, posicionada de tal modo no quadro que sua imagem tampona o vazio percebido por Dali
na cena do Angelus. Vazio que, segundo Dali, o próprio Millet tentara cobrir com o saco de
batatas.
Assim, a imagem de Gala se sobrepõe à do filho morto do casal, e lá onde havia a
castração real, ou seja, a presentificação do objeto em sua face mortífera, Dali pinta outra
imagem, a da mulher que, como ele mesmo dizia, lhe trouxera de volta à vida. É interessante
notar que foi a partir de seu encontro com Gala que a construção dos lares dalinianos também
teve início. Desse modo, podemos pensar que Gala tenha operado para Dali como uma
proteção dupla que viabilizou a ‘construção’ de sua primeira casa, a casa do Bernardo-
eremita. Tal qual Adão e Eva, Dali fez surgir, de sua própria imagem, a mulher de sua vida,
esse duplo de si mesmo, de modo que, após essa união, Dali incluiu em seu nome o de Gala.
Eis o destino do estranho para Dali, lá onde ele havia visto a morte encará-lo de perto,
ele colocou a arte e a mulher. E o resultado disso é sua mais linda obra de arte: sua vida com
Gala, sua história, seu nome.
3.3. O efeito do estranho na arte de Dali – que afeto suas telas suscitam?
A obra calada de Dali nos convoca um dizer. Nessa seção, trabalharei o tema do
estranho a partir de alguns relatos famosos sobre as telas de Dali. A tentativa é também de
tocar brevemente na questão da obra de arte como objeto destacado de seu criador. Muito
embora esse não seja o tema principal do trabalho em questão, traçarei algumas articulações
que julgo pertinentes para o tema abordado. Inspirando-me na clínica, construí duas histórias
166
Dali apud Ajame, op. cit., p. 64-66.
167
Nominé, B., op. cit., p. 86-87.
73
onde personagens fictícios relatam o que sentiram após terem se deparado com dois quadros
de Dali: Face da guerra (1940) (Fig. 3) e O espectro do sex-appeal (1932) (Fig. 18).
A psicanálise é possível porque fazemos dela uma experiência de linguagem e com
a linguagem. Assim sendo, o que nos espanta, seja pelo ódio, seja pela paixão, seja pelo que
vemos ou ouvimos, só é possível se fazer dizer através de palavras. Entretanto, não podemos
negar a força da imagem e o que ela nos desperta. Assim, a obra daliniana nos retira da inércia
“neuróptica” e nos convoca um trabalho sobre o olhar, um trabalho que requer certo
desgrudamento do óbvio para que nossa alma se eleve um pouco mais. Não se trata aqui de
analisar as obras do gênio Salvador, mas de nos deixarmos nos elevar por elas.
A obra de arte é em si uma outra entidade, pois encontra-se destacada do sujeito que
a criou. Entretanto, a obra parece falar por si, ainda que isso só seja possível através dos
traços significantes herdados do Outro. Mas a arte não é o sujeito falante, ou seja, ela não é o
artista, e, desse modo, ainda que pareça falar por si, não fala de si. Operando aos moldes de
um analista, ou seja, como objeto a, a obra calada faz surgir um sujeito, e é por isso que a arte
de Dali nos põe a produzir um discurso no campo que nos concerne, ou seja, o da psicanálise.
Ao nos posicionarmos como ignorantes diante de um saber maior, que é o do artista,
podemos, enquanto analistas, fazer o discurso da psicanálise circular para bem dizermos o
que Freud e Lacan nos deixaram como herança, ou seja, o saber sobre o inconsciente.
Através da relação desse conceito lacaniano – o do objeto a – com o que Freud chamava
de das Ding, podemos nos aventurar a tecer alguns comentários sobre a criação da obra de
arte e sua relação com o inconsciente. Em seu livro Fundamentos da Psicanálise de Freud a
Lacan (2002), Marco Antonio Coutinho Jorge diz:
No seminário RSI, Lacan situou o objeto a, precisamente na região de
interseção entre real, simbólico e imaginário do nó borromeano; desse modo
vemos não só que ele participa simultaneamente, dos três registros que
constituem a estrutura, como também que ele representa o lugar – a rigor,
inapreensível – do próprio nó que a amarra borromeanamente. Assim, o objeto
a tem várias aparências imaginárias – grafadas por Lacan i(a), ou seja,
imagens de a, que podem ser construídas para cada sujeito por intermédio do
simbólico, dos significantes do Outro referentes às inserções históricas
singulares de cada um. Mas a dimensão que mais importa e que o configura
propriamente enquanto objeto a é o seu estatuto real, que lhe confere sua ex-
sistência que designa o que está fora do registro do simbólico. E o nome dessa
dimensão real do objeto a, Lacan empenhou-se em mostrar que foi chamado
por Freud de das Ding, a Coisa
168
.
É importante lembrarmos que a obra de arte - enquanto referida à das Ding, sendo ela
mesma, um objeto destacado do seu sujeito criador - não se presta a interpretações do artista.
168
Jorge, M.A.C., op. cit., 140.
74
Consideramos, portanto, que toda obra de arte, inclusive a de Dali, possa conter alguma
referência à fantasia de todo aquele que se sirva dela enquanto um olhar. Mas parece-nos que
é precisamente das Ding que permanece oculto nas grandes obras de arte. Entretanto, das
Ding permanece inapreensível, irreconhecível e radicalmente irrepresentável, assim como a
morte, a mulher e o sexo o são em nosso psiquismo. Talvez seja por isso que podemos pensar
na pulsão de morte como a força que leva o artista a apontar para a existência desse buraco ao
redor do qual ele produz algum saber inconsciente. As telas de Dali nos remetem a isso que
nos olha de fora e por dentro, sendo, por essa característica, que sua obra pode, por vezes,
causar desconforto, susto, assombro, ou até mesmo, êxtase.
Mas o que se busca olhar em um quadro como o de Dali? O que buscamos em uma obra
de arte que nos causa efeitos tão estranhos? Sabemos o que Freud pensa sobre esse tema, a
partir da leitura de seus artigos “Os três ensaios sobre a sexualidade”
169
(1905/1996) e “A
pulsão e suas vicissitudes”
170
(1915/1996); afinal, é nesse ponto da obra que ele tece sua
elaboração da pulsão de morte no que se refere à pulsão escópica.
Primeiramente, Freud nos fala da pulsão como um conceito-limite entre o psíquico e o
somático, o que, com Lacan, entendemos como algo que se localiza entre o simbólico e o real.
Em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
171
, Freud evoca dois tipos de pulsões
parciais: a pulsão escópica e a pulsão de crueldade, sendo esta ligada à fase sádico-anal. Mas
o interessante é que ele nos faz entender que não há uma fase escópica e sim a manifestação
espontânea dessa pulsão. Dali, assim como o próprio Freud, nos ensina que o escopismo é
atemporal. Afinal, vemos como várias de suas telas apontam para essa relação do olhar com o
ser olhado, tal qual verificamos na tela O espectro do sex-appeal (1932) (Fig. 18). Nessa tela,
vemos o olhar da criança absorta diante de um objeto fálico e, ao mesmo tempo, decrépito. No
que olha, a criança se revela em seu próprio exibicionismo, ou seja, ela também é olhada.
Essa tela de Dali, embora nos cause certo desconforto, parece dialogar com Freud a respeito
disso que ele trata nos “Três ensaios”, uma vez que este relaciona a força da pulsão escópica à
pulsão de saber que está presente nas pesquisas das crianças e nas suas tentativas de decifrar o
enigma da sexualidade. Aliás, Freud irá conferir à pulsão escópica uma função constituinte
da própria sexualidade, uma vez que é a impressão visual que a desperta.
169
Freud, S., “Os três ensaios sobre a sexualidade”, AE, v. VII; ESB, v. VII.
170
Freud, s., “A pulsão e suas vicissitudes”, AE, v. XIV; ESB, v. XIV.
171
Freud, S., op. cit., AE, v. VII; ESB, v. VII.
75
Ainda nos “Três ensaios”
172
, Freud assinala que os olhos seriam a zona erógena mais
distante do objeto sexual e que, por ter essa qualidade especial de excitação, é estimuladora do
objeto sexual que chamamos de beleza. É por isso que julgamos as qualidades do objeto
sexual como excitantes. Do mesmo modo, portanto, a pulsão escópica faz de uma pessoa um
objeto excitante e charmoso, munido do caráter do belo. O objeto olhar, enquanto objeto
pulsional, surge no campo do desejo do sujeito vestindo de beleza aquele ou aquilo que causa
o desejo do sujeito. A beleza é, portanto, produto de sublimação da pulsão escópica que, de
início, só se dirige aos órgãos sexuais. Como vemos, o conceito de belo parece ter suas
origens na excitação sexual. Mas, como o próprio Freud salienta, os órgãos genitais não
portam, em si, alguma beleza, sendo esta transferida para o corpo inteiro. Ainda que os
quadros de Dali tenham inúmeras referências eróticas, muitas delas parecem não servir como
anteparo diante da castração. Ou seja, mais que velar, muitas de suas telas, parecem revelar o
horror da castração.
O efeito do estranho na obra de Dali está precisamente no fato de que muitas de suas
telas trazem em si algo do horror que afugenta e petrifica o olhar do sujeito. Na tela O
Espectro do sex-appeal (Fig. 18), por exemplo, temos um menino que parece estar submetido
ao olhar de um estranho objeto supostamente fálico, mas que se apresenta cambaleante e
frágil. Um olhar petrificado como se estivesse diante da Medusa, esse ser mítico que, para
além de qualquer referência fálica, parece estar ligado ao gozo e, portanto, à morte que faz
sumir o sujeito, transformando-o em corpo rígido, imóvel, pura carne, tal qual as rochas do
Cabo Creus.
Eis o sujeito diante do seu próprio buraco oculto, isso que com Lacan chamamos de
objeto a, ou objeto causa de desejo; ou de seu duplo, ou de das Ding, ou mesmo, esse outro-
eu-de-eu-mesmo, como vimos nas articulações freudianas/dalinianas sobre o estranho familiar
e suas relações com a angústia de castração. Talvez seja por isso que uma obra de arte nunca é
a mesma em seus efeitos para diferentes pessoas. Assim como na relação sexual não podemos
compartilhar de nossa fantasia, não podemos compartilhar de uma obra no que diz respeito à
posição subjetiva de cada um. É por isso que a função dos críticos de arte e dos teóricos é um
tanto arriscada, uma vez que são eles os sujeitos falantes e não o artista criador. Os leigos
apreciadores, sendo menos avisados disso que os olha, podem nos surpreender com as mais
variadas visadas sobre esse olhar que também os olha.
172
Freud, S., op. cit., AE, v. VII; ESB, v. VII.
76
Como exemplo disso, traremos duas opiniões bem interessantes a respeito dos quadros
dos surrealistas e também sobre os de Dali. A obra de arte surrealista, bem como a obra de
Dali, sempre foram alvos dos mais variados comentários e impressões, como poderemos ver a
seguir através de dois relatos históricos muito importantes:
Pintam assim, porque vêem as coisas assim, então esses desgraçados deveriam
morrer em um departamento do Ministério do Interior, ou ser recolhidos ali
para esterilizá-los, a fim de evitar que se propague sua desgraçada herança. Se
não vêem as coisas como as pintam, e apesar de tudo, seguem obstinados em
seu estilo, então esses artistas deveriam ser tratados como criminosos que
atentam contra o Estado. (Adolf Hitler, 1937)
173
É preciso dar graças a você, pela nota de apresentação que me trouxeram os
visitantes de ontem. Porque, até então os surrealistas, que parecem ter me
escolhido como seu santo patrono, pareciam-me uns loucos completos... O
jovem espanhol, com seus cândidos olhos de fanático e sua inegável maestria
técnica, me incitou a reconsiderar minha opinião. Seria, com efeito, muito
interessante estudar analiticamente a gênese de um quadro desse tipo. Porém,
do ponto de vista crítico, se poderia ainda dizer que a noção de arte recusa
toda definição quando a relação quantitativa entre o material inconsciente e
elaboração pré-consciente não se mantém nos limites determinados. (Sigmund
Freud, 1938)
174
Certamente, tais comentários demonstram como a arte pode ‘incomodar’ a uns e
‘sensibilizar’ a outros. Para ilustrar um pouco mais isso que tento articular aqui, ou seja, que a
obra de arte põe o sujeito-observador em contato com algo que diz respeito à sua realidade
psíquica, trarei alguns recortes clínicos para falar sobre os ‘estranhos’ efeitos que a arte de
Dali pode evocar. Esclareço que tais relatos foram devidamente alterados em sua essência, o
que os aproxima da ficção.
Recentemente, um paciente relatou-me um episódio bastante interessante. Após quase
dois anos de conversa pela internet, ele tomou coragem e marcou um encontro com sua
‘namorada virtual’ em uma livraria bem freqüentada em seu bairro. Seria o primeiro encontro
do casal após tanto tempo de conversa erótica pela internet. Enquanto passeava por entre os
corredores de livros das artes plásticas, ele se recordava de uma recente catástrofe que
acometera sua cidade. Uma forte chuva culminara no desabamento de várias casas,
ocasionando inúmeras mortes, o que gerou angústia generalizada em toda população. Pensou
o quão afortunado ele era por não morar em áreas pobres ou de risco e, ao mesmo tempo,
compadeceu-se pelo fato de certas pessoas estarem sujeitas a grandes desgraças. Embora
tenha lamentado a má sorte das vítimas das chuvas, um rápido pensamento cruzou-lhe a
mente “Ainda bem que não fui eu!”. Nesse exato momento, ele se deparou com um livro de
arte sobre Salvador Dali. O livro estava aberto na página que ilustrava a tela Face da guerra
173
In Coleção gênios da arte, p.93.
174
Freud apud Jorge, op. cit. p. 93.
77
(Fig. 3). A tela exibe uma caveira povoado por caveiras em seus orifícios - uma imagem
terrível por sua alusão explícita à morte. No instante em que ele se deparou com a tela, ele
ouviu um trovão e, logo em seguida, começou a chover. Apavorado diante do ‘sinal’ que os
‘deuses lhe enviaram’, ele deixou a livraria abruptamente temendo ser punido por ter se
envaidecido de sua sorte. Mais tarde, em análise, ele pôde relacionar sua angústia diante do
rosto da caveira com o temor diante do iminente encontro com a mulher desconhecida.
O medo de ser morto pela mulher que habitava sua fantasia explicitara sua condição de
objeto diante do Outro. Podemos dizer que algo de sua realidade psíquica foi mobilizado pela
obra. O objeto olhar na tela o encarou de fora por dentro, ou seja, tocou em sua fantasia, e o
que veio à tona foi o outro familiar que é ele mesmo em sua condição de objeto. Ao falar mais
sobre isso, o paciente pôde associar seus temores de morrer soterrado a certas situações
concernentes às suas primeiras excitações sexuais na infância.
inúmeras telas de Dali que podem evocar as mais díspares sensações, como
ocorreu quando tive a oportunidade de ouvir de uma criança suas impressões sobre a tela O
Espectro do sex-appeal (Fig. 18). Disse o menino: “Isso me parece um cachorro quente, me
lembra churrasco, carne, é.... parece um pedaço de carne, um bife”.
Enquanto essa tela causara grande frisson na época de sua exposição por unir o erótico
a certa decadência do corpo, para o menino faminto essa cena lembrava um cachorro quente e
um bife! Essa é a magia da obra de arte enquanto objeto calado. Em Dalí, isso se torna
absurdamente fantástico, pois algo, em suas telas, parece ter o poder de causar no espectador
desavisado, perplexidade, angústia ou até mesmo fome! Portanto, é por isso que podemos
articular as teorias freudianas sobre o estranho familiar ao estudo das obras de Dali,
apontando que isso que se presentifica em suas telas tem relação com a presença real do
objeto. Seus efeitos são particulares e intransferíveis e, desse modo, referem-se à realidade
psíquica de cada um. Desse modo, um objeto que surge no horizonte de uma tela pode ser
causa de desejo, mas, em sua face real, pode suscitar a emergência da angústia.
Nós, psicanalistas, estudamos as obras de arte para abordarmos as questões referentes
à castração. Sempre que possível, tentamos articular o que aprendemos, através da conexão da
arte com a psicanálise, aos impasses da clínica do real. Entretanto, se nos falta um dizer que
seja suficiente para dar conta disso que só podemos tocar pelas bordas, nos quadros Dali, o
impronunciável se dá a ver. Sua obra atesta e confirma que se não há como compartilhar a
realidade psíquica, é possível, no entanto, evocá-la. Assim, qualquer que seja a construção
78
feita sobre o quadro, pertence, tão somente, a quem das obras se apropria, colocando esse
sujeito em uma posição outra, ou seja, a de sujeito dividido diante do objeto que lhe causa.
Desse modo, lá onde o sujeito estudioso da vida e da obra de Dali vê o temor à castração, a
decadência da carne e os sacos de batatas que tanto atormentaram Dali no quadro Angelus de
Millet, uma criança desavisada e com fome consegue ver um cachorro quente e um pedaço de
carne.
Finalmente, supomos que haja algo em comum nessas visadas sobre o objeto, afinal
trata-se da carne mesmo, um pedaço de carne, desfigurado e cambaleante. Resta-nos agora um
enigma provocado por outro objeto dentro desse mesmo quadro: o olhar perplexo do menino
no canto inferior direito da tela, aquele com roupas de marinheiro. O que ele estaria ele vendo
ao ser olhado?
79
Considerações finais
Retomando a pergunta que fiz na introdução desse trabalho – o que podemos aprender
com a obra de salvador Dali? – penso que, feito todo esse percurso, posso dar a seguinte
resposta.
Com a atitude renascentista de Dali, aprendemos que o ato criativo é, na realidade, um
ato de reconstrução que não surge do nada, pois os significantes que marcam uma existência
e, por conseguinte, uma obra de arte, são sobredeterminados pelo Outro. Também
aprendemos que o que nos espanta ou nos fascina naquilo que julgamos estranho é, na
realidade, o que há de mais íntimo em nós, ou seja, o nosso corpo em sua relação com a
castração. A obra de Dali nos ensina que aquilo que o analisante almeja ao tentar reescrever
sua história sobre nosso divã é possível, ou seja, é possível fazer das tripas coração. Ou, dito
de outro modo, é possível erotizar/dalinizar a pulsão de morte, sendo justamente isso que
permitirá ao sujeito sua entrada e sua permanência no laço social através do trabalho e do
amor. Também aprendemos que a poesia dessa travessia só surgirá se o sujeito realizar e
ultrapassar a condição de objeto que ele representou no desejo do Outro. E como não somos
artistas do quilate de Dali contentamo-nos com a poesia possível que suas obras nos inspiram.
Através do estudo de suas obras aprendemos que o trabalho e o amor compensam, no
duplo sentido que o verbo compensar evoca. Inspirados pela tela Metamorfose de Narciso
(1937) (Fig. 31), percebemos que a metamorfose do sujeito só é possível se o investimento
narcísico sobre ele não for tão alienante a ponto de fixá-lo em seu próprio espelho, esse casulo
do eu que o impede de voar. Também verificamos que a criação artística pode despertar o
sujeito de sua alienação e efetivamente permitir-lhe voltar a sonhar. E se o despertar é tarefa
longa e difícil para muitos, ou missão impossível para outros, ainda assim a arte de Dali não
nos deixa no escuro. Vimos através dos seus relógios que o tempo é mole e que o trabalho do
inconsciente só termina quando o sujeito ‘acaba’.
Dali trabalhou incansavelmente por toda sua vida. Dos prédios arruinados, do caos
pessoal e das rochas carcomidas pelos ventos do mediterrâneo, ele recolhia significantes como
quem cata lixo para então reciclá-los e reimprimi-los em suas obras de arte. Uma vida de
reconstruções e de criações. Se o seu mundo ruiu após sua expulsão da casa paterna, Dali
tratou de reconstruí-lo junto a Gala. Ao recorrer à criação de seu método paranóico-crítico de
80
conhecimento e de reconstrução da realidade, podemos admitir que Dali tenha tentado se
aproximar do que Freud idealizava como comportamento normal em seu artigo “A perda da
realidade na neurose e na psicose” (1924/1996). Nesse artigo, como vimos, Freud diz que o
comportamento normal seria aquele em que o sujeito sofredor “repudia a realidade tão pouco
quanto uma neurose, mas depois se esforça, como faz uma psicose, em efetuar mudanças
internas.”
175
(1924/1996).
Sobre o ideal de normalidade proposto por Freud, nada nos interessa acrescentar nesse
momento. Mas podemos afirmar que Dali era um incansável mestre de obras, pois ao invés de
se resignar ao sofrimento imposto por sua realidade, ele fez outra coisa com isso e, assim,
pôde entrar e se firmar no laço social como um artista e não como um louco. Contrariando o
rótulo da loucura que pudessem querer lhe imputar, ele mesmo não cansava de afirmar: “A
única diferença entre um louco e Dali é que Dali não é nada louco!”. Ou seja, ele se
distanciava da loucura não porque não sofresse de uma angústia real, mas porque
transformava isso em arte. Dali era um artista reconhecido e vivia de sua arte. Aliás, arte que,
por muitos anos, tornou-o muito rico e bem sucedido. Ainda que saibamos que Dali só tenha
conseguido organizar sua vida financeira por intermédio da dedicação e do amor
incondicional de Gala, sua mulher, seu mérito era único e incontestável. Afinal, a tentativa
constante de combater sua realidade insuportável se materializava na mais precisa arte
surrealista. Arte cujo valor, ao longo dos anos, tem se mostrado inestimável aos olhos dos
apreciadores e da qual nós, psicanalistas, temos nos servido para trabalharmos temas que
dizem respeito à teoria e à clínica.
Finalmente, gostaria de apontar que embora o tema da letra na teoria lacaniana não
tenha sido objeto dessa dissertação, seria interessante o considerarmos para estudos futuros,
pois as inúmeras criações surrealistas de Dali nos ensinaram muito mais sobre as noções de
letra e litoral do que poderíamos supor. Vemos que, ao final de sua vida, uma caligrafia
própria se impôs. Sua última tela, A cauda de andorinha (1983) (Fig. 32), parece evidenciar
que a obra de toda uma vida tenha se reduzido ao seu extrato, ou a isso que, com Lacan,
entendemos por puro traço. Um traço que essa tela exibe e que revela a marca do estilo que o
representou para o mundo de um modo muito singular. Ou seja, o traço do Salvador que pode
ser visto bem no centro da tela através da letra S que, espelhada em seu duplo invertido,
parece aludir ao amor dual de Gala e Dali tal qual podemos notar na tela O Angelus de Gala
(1935) (Fig. 30). A ‘Salvadora’ do ‘Salvador’, a Gala de Dali, ambos reduzidos ao traço da
175
Freud, S., op., cit. AE, v. XIX, p. 195; ESB, v. XIX, p. 207.
81
cauda da andorinha. Traço que se deixa ver sob a forma dos bigodes de Dali que, como
hóstias dentro de um cálice sagrado, parecem se oferecer à última ceia da degustação do olhar
do Outro.
82
ANEXO
83
Figura 1
Mapa da Catalunha
176
176
O triângulo daliniano: Figueres - H; Cadaqués - C; Girona (Castelo de Púbol) - A
http://maps.google.com.br/maps?f=q&hl’=pt-BR&q=El+Castilo+de+Gala
... 23/6/2010
84
Figura 2
O Angelus de Jean François Millet (1857 - 1859)
55, 5 cm x 66 cm
85
Figura 03
Face da guerra (1940)
64 cm x79 cm
86
Figura 4
Construção mole com feijões fervido: premunição a guerra civil (1936)
99,85 x 100 cm
87
Figura 5
A pesca do atum (1966-1967)
400 cm x 300 cm
88
Figura 6
O homem invisível (1929-1933)
140 x 81 cm
89
Figura 7
Teatro-museu Fundação Gala-Dali em Figueres
177
177
In Roig, S., op cit. p. 55-56
90
Figura 8
Castelo de Púbol, em La Pera, Girona
178
178
In Roig, S., op cit., p 198.
91
Figura 9
Casa-museu na Baía de Port Lligat, em Cadaqués
179
179
In Roig, S., op cit., p. 139
92
Figura 10
Rochas no Cabo Creus e ondas do mar
180
180
In Roig, S., op cit., p 133.
93
Figura 11
Cúpula Geodésica do Teatro-museu de Figueres
181
181
In Roig, S., op cit. p. 69.
94
Figura 12
Torre Galatea
182
182
In Roig, S., op cit., p.63.
95
Figura 13
Tela O grande masturbador e a rocha no Cabo Creus
183
que inspirou Dali nessa obra.
O Grande masturbador (1929)
110 cm x 150 cm
183
In Roig, S., op cit. p. 134-135.
96
Figura 14
Jogo lúgubre (1929)
44,4 cm x 30, 3 cm
97
Figura 15
O enigma do desejo:minha mãe, minha mãe, minha mãe (1929)
110 cm x 150,7 cm
98
Figura 16
Vestígios atávicos depois da chuva (1934)
65 cm x 54 cm
99
Figura 17
A persistência da memória (1931)
24 cm x 33 cm
100
Figura 18
O espectro do sex-appeal (1934)
18 cm x 24 cm
101
Figura 19
Atavismo do crepúsculo (1933-1934)
13,8 cm x 17,9 cm
102
Figura 20
Reminiscência Arqueológica do Angelus de Millet (1933)
32 cm x 33 cm
103
Figura 21
Aparição do rosto e fruteira numa praia (1938)
114,8 cm x 143,8 cm
104
Figura 22
Retrato de meu pai (1920-21)
90,5 cm x 66 cm
105
Figura 23
A invenção dos monstros (1937)
51,4 cm x 78,1 cm
106
Figura 24
Tabela comparativa de Dali (livro)
184
184
In Dali, S., op.cit., v. V, p. 68-69.
107
Figura 25
A ascensão (1958)
115 cm x 123 cm
108
Figura 26
Galatea das esferas (1952)
65 cm x 54 cm
109
Figura 27
Crucifixão ou Corpus Hypercúbicus (1954)
194, 5 cm x 124 cm
110
Figura 28
Tela de Meissonier
A batalha em Paris (1870-1871)
53,5 cm x 70,5 cm
111
Figura 29
A rendeira de Vermeer (1664)
24 cm x 21 cm
112
Figura 30
Retrato de Gala ou O Angelus de Gala (1935)
32,4 cm x 26,7 cm
113
Figura 31
A metamorfose de Narciso (1937)
50,8 cm x 78,3 cm
114
Figura 32
A cauda de andorinha (1983)
73 cm x 92,2 cm
115
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Site consultado para obras de arte:
http://www.passeiweb.com/saiba_mais/arte_cultura/galeria/dali/9
em 17/06/2010.
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