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Clemente não adota a violenta recusa dos espetáculos, da moda e dos
ornamentos testemunhada, naquelas mesmas décadas por Tertuliano. Para
ele, a fé cristã não se opõe à vida social, mas existe nela, e por outro lado,
como vimos, a moral racional que deve reger uma sociedade se identifica
com a moral cristã.
38
Nos seus escritos, é fato, existem tendências ascéticas ou com uma clara
influência platônica
39
. Ele não associa a identidade cristã com a recusa das coisas
do mundo
40
. Ao contrário, ele se esforçou por conciliar os conteúdos da fé cristã com
a filosofia que predominava em seus dias
41
. Ao fazer isto, deu uma demonstração de
abertura para a cultura e sociedade de sua época. Correu, assim, o risco de
contaminar a proposta cristã com elementos estranhos ao seu conteúdo original, o
que de fato ocorreu. A. Hamman ao comentar a importância do pensamento de
Clemente de Alexandria, assim se expressa:
Ele soube conciliar seu ideal de cultura com seu ideal religioso. Foi, na
história do pensamento cristão, o primeiro teólogo a lançar os fundamentos
de uma cultura inspirada pela fé e de um humanismo cristão. Resolveu esta
fusão, descobrindo no Cristo o educador do gênero humano.
Continua a ser, por isso, um precursor, um modelo, uma fonte, a que
precisaremos remontar incessantemente a fim de solucionar a mesma
questão que o século XX nos propõe.
42
O que vemos em Clemente é a difícil tarefa de colocar a fé em Cristo em
relação com a cultura que a cerca. Ou seja, a fé cristã deve se relacionar com a
cultura, mas, assim, corre o risco de ser por esta, descaracterizada. Parece-nos,
contudo, que a alternativa a este risco, seria o isolamento fundamentalista.
A tese fundamental deste trabalho é que a visão dualista platônica e
neoplatônica introduziu no pensamento teológico cristão uma tendência, que se
tornou mais forte com o passar dos séculos, de se renegar aspectos da cultura,
freqüentemente chamados de “as coisas do mundo”, criando, por sua vez, um
Cristianismo espiritualizado, com dificuldades de lidar com o corpo, com os prazeres,
com a sexualidade, com o riso. Eis o nosso paradoxo: o necessário diálogo com a
cultura helênica introduziu na teologia cristã o dualismo platônico que, por sua vez,
38
MORESCHINI e NORELLI, 1996, p. 349.
39
Por exemplo, em seu Estrômatos depois de exaltar o papel do casamento, ele afirma: “a finalidade mais
imediata do matrimônio é a de procriar, ainda que o fim mais pleno seja o de procriar bons filhos”. Citado em
VIVES, J. Los Padres de La Iglesia. Barcelona: Herder, 1982. p. 243.
40
Cf. MORESCHINI e NORELLI, 1996, p. 350.
41
Cf. ALTANER e STUIBER, 1972, p. 197.
42
HAMMAN, A. Os Padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1980. p. 84.