93
(4) MACÁRIO: Muito bem, Penseroso. Agora cala-te: falas como esses oradores
de lugares-comuns que não sabem o que dizem. A vida está na garrafa de
conhaque, na fumaça de um charuto de Havana, nos seios voluptuosos da
morena. Tirai isso da vida – o que resta?(...)
Falas em esperanças. Que eternas esperanças que nada parem! O mundo está de
esperanças desde a primeira semana da criação... e o que tem havido de novo?
Se Deus soubesse do que havia de acontecer, não se cansara em afogar homens
na água do dilúvio nem mandar crucificar, macilenta e ensangüentada a
imagem de seu Cristo divino. O mundo hoje é tão devasso como no tempo da
chuva de fogo de Sodoma. Falais na indústria, no progresso? As máquinas são
muito úteis, concordo. Fazem-se mais palácios hoje, vendem-se mais pinturas e
mármores, mas a arte degenerou em ofício e o gênio suicidou-se. (...)
A poesia morre: deixá-la que cante seu adeus de moribunda. Não escutes essa
turba embrutecida no plagiar e na cópia. (...)
Falam nos gemidos da noite no sertão, nas tradições das raças perdidas na
floresta, nas torrentes das serranias, como se lá tivessem dormido a menos uma
noite, como se acordassem procurando túmulos, e perguntando como Hamleto no
cemitério a cada caveira do deserto o seu passado.
Mentidos! Tudo isso lhes veio à mente lendo as páginas de algum viajante que
esqueceu-se talvez de contar que nos mangues e nas águas do Amazonas e do
Orenoco há mais mosquitos e sezões do que inspiração; que na floresta há
insetos repulsivos, reptis imundos; que a pele furta-cor do tigre não tem o
perfume das flores... que tudo isto é sublime nos livros, mas é soberanamente
desagradável na realidade!
( AZEVEDO, 1999, pp.101-103)
(5) PENSEROSO: Tudo isso nada prova. É uma poesia, concordo; mas é uma
poesia terrível. É um hino de morte sem esperança do céu, como o dos
fantasmas de João Paulo Richter. É o mundo sem a luz, como no canto da
Treva. É o ateísmo como na Rainha Mab de Shelley. Tenho pena daqueles que
se embriagam com o vinho do cepticismo. (AZEVEDO, 1999, p.104)
(6) PENSEROSO: Vê: o mundo é belo. A natureza estende nas noites estreladas o
seu véu mágico sobre a terra, e os encantos da criação falam ao homem de
poesia e de Deus. As noites, o sol, o luar, as flores, as nuvens da manhã, o
sorriso da infância, até mesmo a agonia consolada e esperançosa do
moribundo ungido que se volta para Deus... tudo isso será mentira?
(AZEVEDO, 1999, p.107)
No fragmento 1, Penseroso exprime sua reprovação ao livro que lera, comparando-
o a um “copo de veneno”, escrito por alguém cuja alma é “morta em vida”.
No fragmento 2, Macário revida a crítica afirmando que o ceticismo pode ser
poético. Para convencer o companheiro, mostra-lhe que a dor porventura sofrida, as
esperanças desvanecidas também produzem poesia.