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FLORESTA
NÍSIA
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Ministério da Educação | Fundação Joaquim Nabuco
Coordenação executiva
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier e Isabela Cribari
Comissão técnica
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier (presidente)
Antonio Carlos Caruso Ronca, Ataíde Alves, Carmen Lúcia Bueno Valle,
Célio da Cunha, Jane Cristina da Silva, José Carlos Wanderley Dias de Freitas,
Justina Iva de Araújo Silva, Lúcia Lodi, Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero
Revisão de conteúdo
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier, Célio da Cunha, Jáder de Medeiros Britto,
José Eustachio Romão, Larissa Vieira dos Santos, Suely Melo e Walter Garcia
Secretaria executiva
Ana Elizabete Negreiros Barroso
Conceição Silva
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Constância Lima Duarte
FLORESTA
NÍSIA
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Fundação Joaquim Nabuco. Biblioteca)
Duarte, Constância Lima.
Nísia Floresta / Constância Lima Duarte. – Recife:
Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.
168 p.: il. – (Coleção Educadores)
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7019-513-5
1. Floresta, Nísia, 1810-1885. 2. Educação – Brasil – História. I. Título.
CDU 37(81)
ISBN 978-85-7019-501-2
© 2010 Coleção Educadores
MEC | Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana
Esta publicação tem a cooperação da UNESCO no âmbito
do Acordo de Cooperação Técnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a
contribuição para a formulação e implementação de políticas integradas de melhoria
da equidade e qualidade da educação em todos os níveis de ensino formal e não
formal. Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos
neste livro, bem como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as
da UNESCO, nem comprometem a Organização.
As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo desta publicação
não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO
a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região
ou de suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites.
A reprodução deste volume, em qualquer meio, sem autorização prévia,
estará sujeita às penalidades da Lei nº 9.610 de 19/02/98.
Editora Massangana
Avenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540
www.fundaj.gov.br
Coleção Educadores
Edição-geral
Sidney Rocha
Coordenação editorial
Selma Corrêa
Assessoria editorial
Antonio Laurentino
Patrícia Lima
Revisão
Sygma Comunicação
Ilustrações
Miguel Falcão
Foi feito depósito legal
Impresso no Brasil
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SUMÁRIO
Apresentação, por Fernando Haddad, 7
Ensaio, por Constância Lima Duarte, 11
Mestra na doutrina e na ficção, 11
Por um novo humanismo, 26
Conselhos de uma mãe-educadora, 41
A donzela e a mãe: uma mesma doutrina, 50
Fany ou o modelo das donzelas, 52
A mulher: nas origens da mística feminina, 60
Nísia atual, 77
Textos selecionados, 81
Direitos das mulheres e injustiça dos homens, 81
Opúsculo humanitário, 108
Cintilações de uma alma brasileira, 123
Cronologia, 153
Bibliografia, 161
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O propósito de organizar uma coleção de livros sobre educa-
dores e pensadores da educação surgiu da necessidade de se colo-
car à disposição dos professores e dirigentes da educação de todo
o país obras de qualidade para mostrar o que pensaram e fizeram
alguns dos principais expoentes da história educacional, nos pla-
nos nacional e internacional. A disseminação de conhecimentos
nessa área, seguida de debates públicos, constitui passo importante
para o amadurecimento de ideias e de alternativas com vistas ao
objetivo republicano de melhorar a qualidade das escolas e da
prática pedagógica em nosso país.
Para concretizar esse propósito, o Ministério da Educação insti-
tuiu Comissão Técnica em 2006, composta por representantes do
MEC, de instituições educacionais, de universidades e da Unesco
que, após longas reuniões, chegou a uma lista de trinta brasileiros e
trinta estrangeiros, cuja escolha teve por critérios o reconhecimento
histórico e o alcance de suas reflexões e contribuições para o avanço
da educação. No plano internacional, optou-se por aproveitar a co-
leção Penseurs de l´éducation, organizada pelo International Bureau of
Education (IBE) da Unesco em Genebra, que reúne alguns dos mai-
ores pensadores da educação de todos os tempos e culturas.
Para garantir o êxito e a qualidade deste ambicioso projeto
editorial, o MEC recorreu aos pesquisadores do Instituto Paulo
Freire e de diversas universidades, em condições de cumprir os
objetivos previstos pelo projeto.
APRESENTAÇÃO
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8
Ao se iniciar a publicação da Coleção Educadores
*
, o MEC,
em parceria com a Unesco e a Fundação Joaquim Nabuco, favo-
rece o aprofundamento das políticas educacionais no Brasil, como
também contribui para a união indissociável entre a teoria e a prá-
tica, que é o de que mais necessitamos nestes tempos de transição
para cenários mais promissores.
É importante sublinhar que o lançamento desta Coleção coinci-
de com o 80º aniversário de criação do Ministério da Educação e
sugere reflexões oportunas. Ao tempo em que ele foi criado, em
novembro de 1930, a educação brasileira vivia um clima de espe-
ranças e expectativas alentadoras em decorrência das mudanças que
se operavam nos campos político, econômico e cultural. A divulga-
ção do Manifesto dos pioneiros em 1932, a fundação, em 1934, da Uni-
versidade de São Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em
1935, são alguns dos exemplos anunciadores de novos tempos tão
bem sintetizados por Fernando de Azevedo no Manifesto dos pioneiros.
Todavia, a imposição ao país da Constituição de 1937 e do
Estado Novo, haveria de interromper por vários anos a luta auspiciosa
do movimento educacional dos anos 1920 e 1930 do século passa-
do, que só seria retomada com a redemocratização do país, em
1945. Os anos que se seguiram, em clima de maior liberdade, possi-
bilitaram alguns avanços definitivos como as várias campanhas edu-
cacionais nos anos 1950, a criação da Capes e do CNPq e a aprova-
ção, após muitos embates, da primeira Lei de Diretrizes e Bases no
começo da década de 1960. No entanto, as grandes esperanças e
aspirações retrabalhadas e reavivadas nessa fase e tão bem sintetiza-
das pelo Manifesto dos Educadores de 1959, também redigido por
Fernando de Azevedo, haveriam de ser novamente interrompidas
em 1964 por uma nova ditadura de quase dois decênios.
*
A relação completa dos educadores que integram a coleção encontra-se no início deste
volume.
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Assim, pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estágio da
educação brasileira representa uma retomada dos ideais dos mani-
festos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com o
tempo presente. Estou certo de que o lançamento, em 2007, do
Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), como mecanis-
mo de estado para a implementação do Plano Nacional da Edu-
cação começou a resgatar muitos dos objetivos da política educa-
cional presentes em ambos os manifestos. Acredito que não será
demais afirmar que o grande argumento do Manifesto de 1932, cuja
reedição consta da presente Coleção, juntamente com o Manifesto
de 1959, é de impressionante atualidade: “Na hierarquia dos pro-
blemas de uma nação, nenhum sobreleva em importância, ao da
educação”. Esse lema inspira e dá forças ao movimento de ideias
e de ações a que hoje assistimos em todo o país para fazer da
educação uma prioridade de estado.
Fernando Haddad
Ministro de Estado da Educação
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NÍSIA FLORESTA
(1810-1885)
Constância Lima Duarte
Mestra na doutrina e na ficção
Quando observamos o percurso realizado pelas mulheres na con-
quista de seus direitos mais elementares, como o de ser alfabetizada,
poder frequentar escolas, ou simplesmente ser considerada dotada de
inteligência, verificamos o quanto esse trajeto foi penoso. Em parte, é
possível vislumbrá-lo através das trilhas deixadas por algumas escrito-
ras em seus textos, conscientes de que faziam parte de uma reduzida
elite de mulheres letradas, e que a educação era importante para a
valorização social do gênero feminino. Dentre as que participaram
desse debate, ao longo do século XIX, está a norte-rio grandense
Nísia Floresta Brasileira Augusta, autora de importantes títulos sobre a
mulher, professora e fundadora de colégios para meninas, que muito
contribuiu para o avanço da educação feminina em nosso país.
Este nome, melhor, pseudônimo, pertenceu à Dionísia Gon-
çalves Pinto, nascida em Papari (RN), em 1810, e que, após residir
em diversos Estados brasileiros, como Pernambuco, Rio Grande
do Sul e Rio de Janeiro, mudou-se para o Velho Mundo. Na Eu-
ropa, durante alguns anos ela viajou por diversos países, como
Portugal, Inglaterra, Alemanha, Grécia e Itália, até se fixar na Fran-
ça, e morrer, em 1885, nos arredores de Rouen. Em 1954, o go-
verno do Estado do Rio Grande do Norte providenciou o traslado
de seus despojos, e construiu um mausoléu na cidade em que ela
nasceu, e que hoje leva seu nome.
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Num tempo em que a grande maioria das mulheres brasileiras
vivia trancafiada em casa sem nenhum direito; quando o ditado
popular dizia que “o melhor livro é a almofada e o bastidor” e tinha
foros de verdade para muitos, nesse tempo Nísia Floresta dirigia
colégio para moças no Rio de Janeiro e escrevia livros e mais livros
para defender os direitos femininos, dos índios e dos escravos. Nísia
deve ter sido uma das primeiras mulheres no Brasil a romper os
limites do espaço privado e a publicar textos em jornais da chamada
grande imprensa. E foram muitas as colaborações que a cada dia
surgiam sob a forma de crônicas, contos, poesias e ensaios. Aliás,
esse é um traço da modernidade de Nísia Floresta: sua constante
presença na imprensa nacional desde 1830, sempre comentando as
questões mais polêmicas da época. Se lembrarmos que apenas em
1816 a imprensa chegou ao país, mais se destaca o papel pioneiro
que esta brasileira desempenhou no cenário nacional.
Observando o conjunto da obra desta autora – quinze títulos,
publicados em português, francês, inglês e italiano – percebe-se o
diálogo que os textos realizam entre si, como se fossem peças
complementares de um mesmo plano de ação. O propósito de
formar e modificar consciências perpassa quase todos os livros,
que se unem em torno de um projeto coerente e consciente de
alterar o quadro ideológico social
1
.
Em 1832, por exemplo, ao escrever Direitos das mulheres e injus-
tiça dos homens, foi dado o primeiro passo nessa trajetória, ou plan-
tada a primeira semente que germinaria em diversos outros escri-
tos. Nesse livro – que chamou de tradução livre de Vindications of
the rights of woman, de Mary Wollstonecraft, ela trata dos direitos
das mulheres à instrução e ao trabalho, e exige que as mulheres
sejam consideradas inteligentes e merecedoras de respeito pela so-
ciedade. Nísia relaciona os preconceitos mais divulgados contra o
1
Uma versão ampliada deste texto encontra-se no livro Nísia Floresta: vida e obra (Natal:
UFRN, 1995).
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sexo feminino, identifica suas origens na dominação portuguesa, e
ainda desmistifica a ideia dominante da superioridade masculina.
Se lembrarmos que nesse tempo a grande maioria das mulheres
brasileiras vivia enclausurada em preconceitos, sem nenhum direi-
to que não fosse o de ceder e aquiescer sempre à vontade mascu-
lina, mais surpreendente se torna sua iniciativa. A autora foi uma
honrosa exceção em meio à massa de mulheres submissas, anal-
fabetas e anônimas, e por isso costuma ser lembrada como a pre-
cursora do feminismo no Brasil e na América Latina, pois não exis-
tem registros de textos anteriores realizados com essas intenções.
Nísia questiona, no livro, o porquê de não haver mulheres ocupan-
do cargos de comando, tais como de general, almirante, ministro de
Estado e outras chefias. Ou ainda, porque não estão elas nas cáte-
dras universitárias, exercendo a medicina, a magistratura ou a ad-
vocacia, uma vez que têm a mesma capacidade que os homens.
Como se vê, ela vai fundo em suas intenções de acender o debate
e de abalar as eternas verdades de nossas elites patriarcais.
Em outros trabalhos também ela será pioneira, como quando
trata do índio brasileiro. No poema intitulado A lágrima de um caeté, de
1849, além do posicionamento da autora a respeito do indígena, te-
mos a lusofobia, o elogio da natureza e a exaltação de valores indíge-
nas. A novidade do poema é que ele contém não a visão do índio-
herói que luta, presente na maioria dos textos indianistas conhecidos e,
sim, o ponto de vista do índio vencido e inconformado com a opres-
são do branco invasor. Uma outra narrativa importante é “Páginas de
uma vida obscura”, que circulou como folhetim no jornal O Brasil
Ilustrado, no ano de 1855, e contém a história de um escravo, desde
que foi trazido da África ainda criança, seus atos de heroísmo e a
dedicação ao trabalho até a morte. Pode-se perceber no texto as pri-
meiras manifestações do pensamento de Nísia Floresta no que diz
respeito ao sistema escravocrata. Ela enaltece as qualidades do ho-
mem negro, defende com ênfase um tratamento humanitário por
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parte dos senhores de escravos, e se revela sinceramente condoída
com o sofrimento do outro. Alguns anos mais tarde, por volta de
1870, a autora vai defender apaixonadamente a abolição.
No mesmo ano da publicação de A lágrima de um caeté, Nísia
Floresta embarcou para a Europa, e durante alguns anos viajou
pela Itália, Portugal, Alemanha, Bélgica, Grécia, França e Inglater-
ra, relacionando-se com grandes escritores da época, como Ale-
xandre Herculano, Alexandre Dumas (pai), Lamartine, Duvernoy,
Victor Hugo, George Sand, Manzoni, Azeglio e Auguste Comte.
Em Florença, ela frequentou cursos de botânica, ministrados por
Parlatore, antigo colaborador de Humboldt, e também em Paris,
no Collége de France, e no Musée d’Histoire Naturale. Consta
ainda que ela teria assistido às palestras de Comte sobre Filosofia
Positiva, no Palais Cardinal, em Paris, em 1851.
Das viagens pela Europa resultaram alguns livros que, bem ao
gosto da época, contêm suas impressões dos lugares que ia conhe-
cendo. Mas, Nísia Floresta não realiza simples relatos de viagem,
pois descreve com riqueza de detalhes as cidades, igrejas, museus,
parques, bibliotecas e monumentos, detendo-se nos tipos huma-
nos, e comentando tudo com sensibilidade e erudição. Itinerário de
uma viagem à Alemanha (1857), e Três anos na Itália, seguidos de uma
viagem à Grécia (em dois volumes, 1864 e 1872) são os títulos desses
livros escritos e publicados em língua francesa, que apenas recente-
mente ganharam versões em português. Esse último contém ano-
tações do ano anterior à unificação italiana, a descrição da luta, dos
sentimentos populares, do clima revolucionário e nos revela a ad-
miração da autora pelos líderes Garibaldi e Azeglio, com quem se
correspondeu durante algum tempo.
Outro trabalho dos mais importantes é Cintilações de uma alma
brasileira, publicado em Florença, no ano de 1859. Este livro contém
cinco ensaios que tratam da educação dos jovens, da mulher europeia,
e das saudades de seu país após tanto tempo ausente. Em um deles,
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por exemplo, intitulado A mulher, ela trata da francesa de meados do
século XIX, que critica pelo comportamento superficial e mundano.
Em outro ensaio, O Brasil, ela resume a história da nação brasileira, e
fala das riquezas econômicas e dos escritores mais conhecidos. Sua
intenção era, além de fazer propaganda da pátria no estrangeiro,
desfazer os preconceitos e mentiras que predominavam na Europa
acerca do Brasil. Mesmo residindo no exterior, Nísia Floresta Brasi-
leira Augusta trabalhou pela divulgação de seu país e revelou – até
mesmo em seu nome – o orgulho que sentia de sua pátria.
Mas é precisamente a questão da educação o tema que mais
encontramos ao longo da produção intelectual de Nísia Floresta,
veiculada tanto em discursos e novelas como em ensaios e colabo-
rações jornalísticas. A utopia feminista que moveu inúmeras mu-
lheres no século XIX, na Europa e nas Américas, e via a educação
como a condição primeira e fundamental para a libertação da
mulher, da situação de opressão e de submissão em que se encon-
trava, também parece ter contaminado a obra de Nísia Floresta.
E, dada a variedade e extensão desta obra, as abordagens são
também diversas, e por isso há textos mais veementes com nítidas
tonalidades panfletárias, e outros que expressam um tom afetuoso de
mãe para com a filha, ou o da professora zelosa com as suas alunas.
O Opúsculo humanitário é um exemplo do primeiro tipo. Publica-
do em 1853, o livro traz a síntese das críticas que a autora fez à
educação de seu tempo, suas propostas de mudança e seus princi-
pais argumentos na defesa de suas ideias. Também A mulher, de
1857, identifica-se com o tom utilizado no Opúsculo humanitário, pelas
denúncias e críticas que faz à educação então destinada ao sexo fe-
minino. No segundo tipo, de tom meigo e persuasivo, que fala dire-
tamente à mocidade, incluem-se os seguintes textos: Conselhos à minha
filha, de 1842; o Discurso às educandas do Colégio Augusto, de 1847; Daciz
ou a jovem completa e Fany ou o modelo das donzelas, novelas publicadas em
1847; e O abismo sob as flores da civilização, de 1856.
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As ideias que Nísia Floresta expressou nessas obras funda-
mentaram seu exercício do magistério, a que se dedicou desde
jovem, em Recife e em Porto Alegre, e também a proposta filosó-
fica e educacional do colégio que manteve no Rio de Janeiro de
1838 a 1855, com o nome de Colégio Augusto. Nessa época, é
bom lembrar, a grande maioria das escolas era dirigida por mu-
lheres estrangeiras, como mrs. Wilfords, mme. Louise Halbout,
mme. Mallet, a baronesa de Geslin, Mrs. Hitchings, mme. Lacombe,
Mme. Carolina Hoffmann e mme. Tanière. Nísia foi, com certeza,
uma das primeiras brasileiras a ter um colégio no país. No Jornal do
Comércio de 31 de janeiro de 1838, foi estampado o seguinte anúncio
do novo estabelecimento de ensino:
D. Nísia Floresta Brasileira Augusta tem a honra de participar ao res-
peitável público que ela pretende abrir no dia 15 de fevereiro próximo,
na Rua Direita nº 163, um colégio de educação para meninas, no qual,
além de ler, escrever, contar, coser, bordar, marcar e tudo o mais que
toca à educação doméstica de uma menina, ensinar-se-á a gramática da
língua nacional por um método fácil, o francês, o italiano, e os princí-
pios mais gerais da geografia. Haverão igualmente neste colégio mes-
tres de música e dança. Recebem-se alunas internas e externas. A dire-
tora, que há quatro anos se emprega nesta ocupação, dispensa-se de
entreter o respeitável público com promessas de zelo, assiduidade e
aplicação no desempenho dos seus deveres, aguardando ocasião em
que possa praticamente mostrar aos pais de família que a honrarem
com a sua confiança, pelos prontos progressos de suas filhas, que ela
não é indigna da árdua tarefa que sobre si toma. (...)
A Rua Direita – hoje Primeiro de Março – foi apenas o primei-
ro endereço do Colégio Augusto, cujo nome revela a homenagem
feita ao companheiro desaparecido. Mais tarde, o colégio foi trans-
ferido para a Rua D. Manuel nº 20, com entrada pela Travessa do
Paço, nº 23, bem em frente ao Palácio da Justiça. Vieira Fazenda, nas
Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro, registra a presença do estabele-
cimento na cidade e faz comentários sobre sua proprietária, quando
enumera os moradores mais distintos da famosa ruela.
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No prédio de dois andares, nº 23, lado ímpar, esquina com a Rua do
Cotovelo, funcionou por muito tempo importante colégio de meni-
nas. Era dele diretora d. Nísia Floresta Brasileira Augusta (...). Literata
de valor, poetisa, infatigável polemista e erudita publicista, no Brasil
e em Portugal, exerceu com grande proficiência o magistério. Colabo-
rou essa ilustre compatriota no Jornal do Comércio, no Mercantil e no
Diário do Rio, bem como em várias revistas do tempo. Conhecia di-
versas línguas e escrevia o francês com graça e facilidade.
2
Esta escola, segundo depoimento de todos os que sobre ela
escreveram, trouxe avanços consideráveis para a educação de seu
tempo. E, entre as inovações aí reconhecidas, costumam ser lembra-
das o ensino do latim, do francês, do italiano e do inglês, bem como
respectivas gramáticas e literaturas; o estudo da geografia e da histó-
ria do país; a prática da educação física; e a limitação do número de
alunas por turma como forma de garantir a qualidade do ensino.
Tais questões consistiam realmente em novidades porque os
demais colégios femininos enfatizavam principalmente o desen-
volvimento de prendas domésticas e se limitavam a um ensino
superficial da língua materna e a noções rudimentares das quatro
operações. A valorização da “educação da agulha” em detrimento
da instrução era um fato tão aceito como sendo o mais correto,
que não faltou quem criticasse o colégio de Nísia Floresta por
incluir disciplinas consideradas supérfluas para a formação das
meninas. Um dos críticos, por exemplo, no jornal O Mercantil, de 2
de janeiro de 1847, fez o seguinte comentário acerca dos exames
finais em que várias alunas haviam sido premiadas com distinção:
“trabalhos de língua não faltaram; os de agulha ficaram no escuro.
Os maridos precisam de mulher que trabalhe mais e fale menos”.
E uma campanha anônima de difamação contra Nísia Floresta,
através dos jornais, visando o caráter moral e pessoal da diretora,
que havia se casado duas vezes, ou os “excessos” do Colégio Augusto,
2
Cf. FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. Revista do
Instituto Histórico e Geográphico Brasileiro. Tomo 93, vol. 147, pp. 77-78.
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se estendeu ainda alguns anos. Mas, é bom observar, as críticas nun-
ca se referiam à capacidade intelectual ou administrativa da escritora.
Em 17 de janeiro de 1847, por exemplo, um jornalista ironiza as
disciplinas que o Colégio Augusto oferecia às meninas, nestes ter-
mos: “Ensina-lhes latim. E por que não grego ou hebraico? Pobre
diretora!”. Para o comentarista, e muitos outros de seu tempo, o
adágio popular – “Desconfie da mula que faz him e da mulher que
sabe latim” – continha foros de verdade incontestável.
Para melhor situar a autora no contexto educacional de seu
tempo e compreender a extensão do seu pioneirismo, faz-se ne-
cessário lembrar aspectos da política governamental e as priorida-
des então estabelecidas para a educação. Como, por exemplo, que
durante o período colonial não havia quase escolas no Brasil. Ape-
nas os conventos e seminários se ocupavam em fornecer uma ins-
trução àqueles que os procurassem, mas seu número era insufi-
ciente para alterar substancialmente a costumeira indigência cul-
tural. Se aos homens ministrava-se um ensino mais consistente,
repito, às mulheres bastavam os trabalhos manuais, pois o androcen-
trismo da família patriarcal se encarregava de excluí-las dos me-
nores privilégios e reservava aos homens os benefícios que a cul-
tura pudesse trazer. Com a vinda da Corte, a situação começa aos
poucos a mudar. Os novos ventos trouxeram educadoras portu-
guesas e francesas para as meninas das famílias mais abastadas, e,
lentamente, foi deixando de ser uma “heresia social” o ato de se
instruir e ilustrar alguém do sexo feminino.
Todos pareciam concordar – ainda que com interesses diver-
sos – que o século XIX representava para a sociedade burguesa o
auge da civilização, e não era mais possível admitir que metade da
população estivesse numa situação de inferioridade tão gritante,
diante da outra que detinha todos os privilégios e poderes. Aos
poucos criava-se um quase consenso (perceptível nas opiniões vei-
culadas nos jornais) em torno da ideia de que uma sociedade não
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evolui se não cuidar também da educação feminina, e não habilitar
a mulher para participar, junto com o homem, dos progressos da
técnica e das ciências. Aliás, a estreita relação entre o cuidado com
a educação feminina e o adiantamento de uma nação foi precisa-
mente a grande tese que Nísia defendeu no Opúsculo humanitário, em
consonância com o pensamento filosófico e utópico mais avan-
çado de seu tempo. O progresso social de uma nação depende do
grau de emancipação feminina e do lugar reservado às mulheres
na sociedade. Era o novo lema e urgia defendê-lo.
Por tudo isso, a educação passou a ser considerada, principal-
mente na segunda metade do século, como o primeiro passo a ser
dado para tirar as mulheres do estado de inferioridade em que a
ignorância as havia colocado. As ideias liberais que circulavam em
nossos meios políticos fizeram com que, após a independência, os
primeiros legisladores do Império estabelecessem o ensino primá-
rio, gratuito e extensivo aos dois sexos, como sendo uma respon-
sabilidade do Estado. Mas as dimensões do país, as distâncias e o
descompasso entre as províncias, contribuíram para dificultar sua
implantação e motivaram a criação do Ato Adicional de 1834 que
delegava a cada província a responsabilidade com o ensino pri-
mário e secundário, ficando a União responsável pelo superior. É
voz corrente entre os historiadores da educação brasileira a opi-
nião de que tal medida foi decisiva para a desarticulação do ensino
de primeiras letras no país, antes mesmo que este ensino estivesse
realmente assimilado pela sociedade.
E, desde o início, a educação feminina foi concebida a partir
de uma visão romântica, calcada na religião e na moral, necessária
para estimular a dignidade e preparar a futura mulher para assumir
suas funções de mãe e de esposa junto à família. Tal projeto ficava
bem distante, portanto, de um projeto de formação intelectualizada,
reservada ao segmento masculino da população. A elas bastava o
ensino primário e o desenvolvimento das habilidades manuais. Os
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cursos secundário e superior lhes eram vedados. E bem poucos
foram os colégios – ainda assim a partir das décadas de 1860 e
1870 – que se aventuraram a oferecer cursos de instrução a nível
secundário para meninas. O número das interessadas era tão pe-
queno que logo eles eram obrigados a reformular os cursos ou
mesmo a fechar suas portas. As jovens de posses continuavam
recebendo educação nas próprias casas através das preceptoras ou
sob a orientação dos pais. Enquanto isso, as demais, ainda que
houvesse a possibilidade de estudar numa escola pública, raramente
o faziam; permaneciam em suas casas, em pleno meado do século
XIX, condenadas à mesma sorte de suas antepassadas.
Por tudo isso, a bandeira de luta pela educação das mulheres
foi fortemente abraçada por aquelas que conseguiram romper o
preconceito e se destacavam, como era o caso de Nísia Floresta.
De um lado, estavam as mulheres mais conscientes que pretendi-
am, solidariamente, estender às companheiras as benesses da ins-
trução e do conhecimento de si mesmas, até como forma de ajudá-
las a ver com novos olhos o mundo em que viviam. De outro,
estavam os homens – aí incluindo filósofos, moralistas, jornalistas,
políticos e até médicos – que também pareciam envolvidos na
mesma bandeira e imbuídos da necessidade urgente de dar às
mulheres uma condição mais digna na sociedade.
O que vai ocorrer, então, é que os ideólogos do patriarcalismo,
com a competência que lhes é familiar, terminam por se apossar
das palavras de ordem feminina e por determinar, segundo seus
interesses, os novos comportamentos da mulher, seus direitos e
deveres. O redimensionamento do papel da mulher consistirá,
basicamente, na supervalorização das figuras da esposa e da mãe
alçadas à categoria de “santas”, uma vez que lhes cabe a “divina”
missão de serem as guardiãs privilegiadas da família. A mulher
enquanto menina (e filha) só parece importar por ser este o mo-
mento em que assimila o “novo” comportamento e se prepara
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para assumir as funções que lhe competem de esposa e de mãe.
Aparentemente, o poder da autoridade paterna parecia diminuir
na mesma proporção que a mãe aumentava seu espaço de poder.
Mas, no fundo, continuava cabendo ao pai a última palavra, ao pai
que era – diga-se – o único mantenedor da família. Ela, a ‘rainha
do lar’; ele, o cabeça, o chefe, o juiz.
E foram muitos os ideólogos que se projetaram e tiveram seus
discursos repetidos ad infinitum. Jean-Jacques Rousseau foi um deles.
Aliás, um dos principais. Seus escritos de 1759 e de 1762 – Émile e
La nouvelle Hèloise –, definidores do papel “natural” da mulher (boa
mãe, servir e agradar ao homem), são sempre retomados e con-
tribuem decisivamente na formulação dos novos preceitos. Outro,
Jules Michelet, obtém ampla aceitação entre os homens, particular-
mente entre as mulheres, com La femme, de 1859. Nesse livro, sob a
forma de conselhos, o autor elabora com clareza o discurso ideoló-
gico dominante recomendando aos noivos e maridos como devi-
am tratar suas mulheres, e como elas deviam agir e o que esperar de
seus homens. Michelet fixa uma imagem de mulher/esposa dócil,
meiga, frágil, dependente, que se converterá quase na imagem ideal
de mulher que todos passariam a desejar. Segundo ele, a esposa
deveria assim se expressar para o marido: “Meu amigo, eu não sou
forte. Para pouco sirvo, apenas para amar-te e zelar por ti. Não
tenho teus braços musculosos, e se fixo muito tempo a atenção em
uma coisa complicada, o sangue aflue-me à cabeça, o cérebro lateja-
-me. Não sei inventar. Não tenho iniciativa” (Michelet: 1925, p. 14).
Michelet, no afã de caracterizar o tipo perfeito de esposa, apro-
pria-se da fala feminina e põe na boca da mulher as palavras que
deseja ouvir e aquelas que acredita que ela própria deva dizer, mostra
da aceitação da inferioridade diante do homem, pois só quer “rei-
nar em casa”, no seu “pequenino universo”. Em sua definição ela
adquire os contornos do idealismo a partir da concepção mascu-
lina: A mulher é a beleza. Muita meiguice, alguma fragilidade; pu-
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dor, timidez, hesitações, aspirações indecisas, não sei quantas ou-
tras curvas amáveis (em seus movimentos, bem como em suas
formas), eis o que é a graça, a beleza. É exatamente o inverso da
linha reta de precisão e justiça, que é a rota da vida masculina”
(Michelet: 1925, p. 165).
Foi dito que cada segmento masculino, de certa forma, de-
fendia seus interesses quando, aparentemente, parecia defender a
mulher da ignorância. Tanto é assim que se pode entrever, para
além de seus discursos, ou os interesses do capitalismo em reorga-
nizar as relações de classe e de sexo, ou a imposição da nova or-
dem higiênica, ou o assentamento ideológico da família burguesa,
ou ainda, e, simplesmente, o interesse dos misóginos em manter as
mulheres afastadas de seu campo de atuação. As preocupações
com a mortalidade infantil, com o crescimento populacional e a
necessidade de se levar um pouco de instrução a todos os mem-
bros da sociedade terminou por significar, na prática, uma falsa
“elevação” da mulher e a atribuição, a ela, de novos deveres e
responsabilidades. Assim, apesar de parecerem tão diferentes os
objetivos e propósitos de cada grupo, por eles perpassava um
interesse comum que terminou por levar à mesma solução.
As expectativas femininas de acesso à instrução são atendidas,
portanto, através do novo estatuto que lhes trazia louvações, con-
siderando a mulher como a única responsável pela família e capaz
de operar a “regeneração social”. Tanto as mulheres burguesas
aceitaram o prestígio implícito no título de mãe, que muitas veicu-
laram em seus escritos a normatização do “novo” papel, contri-
buindo para sua consolidação e para fechar um novo círculo em
torno das mulheres. A esta nova mãe de família cabia zelar pela
paz doméstica, pela sobrevivência e educação dos filhos, assim
como pela vigilância da moralidade. Por isso, no Livro das noivas
(1891) – espécie de contrapartida feminina dos conselhos de Mi-
chelet –, Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) dirige-se às leitoras
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conclamando-as a preencherem as funções que lhes cabiam. Afi-
nal, segundo ela, “a felicidade humana deriva do que vive sob a
nossa responsabilidade. É a nós, como mães, que a Pátria suplica
bons cidadãos; é de nós, quando esposas, que a sociedade exige o
maior exemplo de dignidade e de moral” (Almeida: 1926).
No momento em que as escritoras apregoam as diferenças
ditas “naturais” entre os dois sexos, elas permitem que se apro-
vem medidas que, ao invés de proporcionar à mulher condições
de superar as desvantagens advindas do fato de ter sido um dia
colocada em segundo plano, servem antes para consagrar essas
mesmas desvantagens. Na segunda metade do século XIX não
havia mais dúvidas quanto à necessidade de se educar e instruir a
mulher, até para que ela pudesse desempenhar a contento esses
encargos. Era preciso, apenas, torná-la consciente de suas res-
ponsabilidades e, sobretudo, plenamente realizada e esquecida
de que poderia pretender um pouco mais. Dentro desse raciocí-
nio, as mulheres deviam estudar não por elas próprias, mas para
que melhor exercessem seus papeis previamente estipulados, isto
é, servir a outros. Apenas mais tarde, nas décadas de 1880 e
1890, outras vozes femininas, como as de Josefina Álvares de
Azevedo, Francisca Senhorinha da Mota Diniz e Presciliana Duarte
de Almeida, se farão ouvir exigindo novos direitos – os políticos
e os jurídicos – para as mulheres.
Mas voltemos a 1840, quando começaram a proliferar, princi-
palmente nos grandes centros brasileiros, colégios particulares tan-
to para meninos como para meninas, em sua maioria dirigidos
por estrangeiros. A exigência da Igreja de que só professoras po-
deriam ensinar às meninas terminou por abrir uma oportunidade
profissional à mulher, ao mesmo tempo em que permitia o início
de mais uma forma de exploração. Senão, vejamos: como não
havia professoras realmente habilitadas para o magistério, as que
ensinavam sabiam pouco e ignoravam qualquer metodologia, re-
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petindo, provavelmente, o sistema lencasteriano, em que cada uma
transmitia o pouco que sabia.
E, como eram mal preparadas e só ensinavam no curso pri-
mário, recebiam remuneração inferior à dos seus colegas do sexo
masculino, embora exercessem a mesma função. Em Pernambu-
co, por exemplo, em 1855, os professores do primário recebiam
600$ de ordenado e 200$ de gratificação no 1º grau, e 700$ de
ordenado e 200$ de gratificação no 2º grau. No caso das profes-
soras, a lei dispunha que: “As professoras terão menos 100$ de
ordenado em cada um dos graus”. Como o texto da lei não men-
ciona a gratificação, fica a nítida impressão de que elas não a rece-
bessem. (Moacyr: 1939, 499). A intenção, como observa Heleieth
Saffioti, não era exatamente promover a profissionalização da
mulher, mas “preservar os princípios da moral tradicional contrá-
rios não só à coeducação como também ao ensino de meninas
por elementos masculinos”.
Acresce, ainda, que a própria profissionalização feminina no setor do
magistério primário não chegava a ser o fruto das tendências liberais
que se formavam no seio da sociedade brasileira. Significavam mais a
solução do problema da mão de obra nas escolas primárias femininas
dentro dos princípios da segregação sexual, que norteavam a moral da
religião católica e a moral social vigente (Saffioti: 1979, pp. 196-200).
As primeiras Escolas Normais do país (de Niterói, em 1835;
de Minas Gerais, em 1840; da Bahia, em 1841, e de São Paulo, em
1846), até quase o final desse século, atendiam apenas à formação
dos professores do sexo masculino e eram, na verdade, pouco
mais que uma complementação ao primário. Não possuíam equi-
valência com o secundário e limitavam-se a reproduzir os conteú-
dos do ensino elementar, com uma pequena iniciação pedagógica.
Enfim, tratava-se apenas de um curso primário “superior”. Como
as professoras estavam impedidas por lei de frequentar tal curso,
se queriam saber um pouco mais deveriam contar com as poucas
instituições femininas que podiam lhes oferecer uma habilitação ao
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magistério primário, tal como o Seminário de Nossa Senhora da
Glória, de São Paulo, que ensinava a meninas sem recursos.
Somente na década de 1870 as Escolas Normais passaram a
aceitar matrículas das moças, sendo que a Escola Normal da
Corte, criada no Colégio Pedro II, apenas lhes ofereceu cursos
profissionalizantes em 1880. Por tudo isso, é compreensível que
os relatórios oficiais trouxessem sempre comentários e críticas
relativas à incompetência das professoras e à falta de condições
materiais de funcionamento das escolas. Em seus escritos sobre a
educação, Nísia Floresta tratará também dessas questões, reve-
lando não apenas sua visão ampla e consciente acerca do proble-
ma educacional, como o empenho em contribuir para alterar tal
quadro de modo que as mulheres de seu tempo pudessem ter
acesso à instrução e à educação.
Os escritos de Nísia serão examinados a partir da peculiaridade
que apresentam como textos que se situam entre a ficção didática e
o doutrinarismo, misturando gêneros diversos: ensaio, novela e crô-
nica, por exemplo. Em alguns, a forma ensaística prevalece, caso
encontrado em Opúsculo humanitário, que, desde o título, parece re-
cuperar um fio militante e panfletário que era comum aos opúsculos
– uma publicação intermediária entre o livro e o jornal. Parte dos
documentos de ordem política de então se conservaram sob essa
forma, principalmente os de sentido panfletário.
Em outros escritos, ao lado de questões teóricas acerca da
educação, como Conselhos à minha filha e o Discurso às educandas, en-
contram-se também elementos da vida pessoal de Nísia Floresta,
os quais dão aos textos um certo ar de autobiografia. Outros ain-
da partem de um projeto de crônica, esbarram no panfletarismo e
no relato biográfico e terminam como uma narrativa que, só em
parte é ficção, tal a força do seu didatismo. Entre estes, estão “O
abismo sob as flores da civilização”, “Um passeio no Jardim de
Luxemburgo”, e A mulher. Temos ainda, um tipo de narrativa que
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a princípio é intencionalmente ficcional, mas que resvala, ao final
de algumas páginas, na demonstração prática de teorias, o que
empobrece em muito o texto, caso de Fany ou o modelo das donzelas.
Vejamos como tais características aparecem em cada texto, e quais
os resultados dos procedimentos adotados.
Por um novo humanismo
O Opúsculo humanitário consiste numa coletânea de 62 capítulos
(ou artigos) que foram publicados, parcial e anonimamente, no Diá-
rio do Rio de Janeiro, em 1853, mesmo ano de sua publicação; e, de-
pois, com o livro já circulando, em O Liberal, de julho de 1853 a
maio de 1854. Como tais jornais eram respeitáveis e pertenciam à
“grande imprensa” da época, tal fato torna-se ainda mais significati-
vo, se considerarmos o alcance da imprensa nos meios letrados ou
o quanto de prestígio era necessário para se manter uma determina-
da matéria durante tanto tempo em evidência nos meios de comu-
nicação. Por essa e por outras colaborações, Nísia Floresta poderia
ser também considerada como uma das primeiras mulheres no Brasil
a se utilizar da imprensa para a divulgação de ideias feministas, en-
tendendo-se aqui por feminismo toda ação consciente empreendida
na defesa do sexo feminino.
A presença da autora nesse meio demonstra ainda sua grande
erudição, suas leituras, a experiência no magistério e na direção do
Colégio Augusto ou, ainda, os conhecimentos obtidos na viagem
que havia feito a países europeus durante os anos de 1849 e 1851.
No livro, a autora recupera boa parte da história da condição fe-
minina em diversas civilizações através dos séculos, da antiguidade
clássica ao seu tempo, relacionando o desenvolvimento intelectual
e material do país, ou o seu atraso, e o lugar ocupado pelas mulhe-
res na sociedade. Por fim, trata do Brasil, da mulher brasileira, das
escolas para meninas. Aliás, este parece ser o motivo mesmo de
toda a reflexão. Nísia Floresta defende aí a tese de que o progresso
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de uma sociedade depende da educação que é oferecida à mulher,
e que só a educação moral e a religiosa incutida desde cedo na
menina fariam dela melhor esposa e melhor mãe.
Apesar da divulgação que a obra teve nos meios jornalísticos,
não são muitos os registros encontrados a respeito de sua recep-
ção junto ao grande público. Alguns estudiosos de Nísia referem-
se a notas publicadas nos jornais, nas seções “A Pedido”, contendo
críticas ou endosso às suas ideias. Também mencionam comentá-
rios que Machado de Assis e Alexandre Herculano teriam feito
sobre o livro. Há que se acrescentar à recepção crítica, o texto
assinado por Luis Filipe Leite para o jornal Ilustração Luso-brasileira,
de Lisboa, em 1856. O autor dedicou ao Opúsculo humanitário um
longo ensaio, com muitos elogios à autora, com a qual afirma
concordar por diversas vezes. O que mais lhe agrada no livro pa-
rece ter sido justamente o fato de aí se propor, através da educa-
ção, apenas uma maior habilitação das mulheres no desempenho
de seu papel social, e não de maiores voos, ou muito menos uma
concorrência intelectual com os homens. Afirma o crítico: “A au-
tora não quebra lanças pela emancipação da mulher, mas conhece
com lástima, que não é a mulher ainda o que devia ser; a primeira
educadora de seus filhos, a mais útil amiga do homem. Não se
detém em vagas acusações contra os governos, no que dá mais
um documento de bom senso”. (Leite: 1860, p. 20)
Se Nísia Floresta defendesse uma educação que permitisse
maiores conquistas para as mulheres, certamente não teria obtido
a concordância do crítico e bem outra poderia ter sido sua reação.
Mas, como a autora mantém seu pensamento dentro do “bom
senso” desejado, isto é, como não propõe alterações substanciais
no status quo feminino, merece elogios. Os poucos defeitos aponta-
dos referem-se ao estilo simples, destituído de “galas”, às divaga-
ções motivadas – ele reconhece – por sua erudição, e ao título do
livro, que revelaria muito pouco da questão abordada.
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A autora do precioso Opúsculo leu muito antes de o escrever; medi-
tou ainda mais; a experiência de notável educadora corroborou-lhe a
necessidade de fazer esta boa ação, porque o é deveras quando se
escreve com tanto amor, e em tão amorável assunto; mas ganharia o
seu livro muito mais no conceito dos que não prescindem dos en-
cantos da arte a par da solidez dos fundamentos, se em objeto que a
tantas luzes se pode encarar, não deixasse às vezes senão só os argu-
mentos, sem o sedutor corretivo do estilo, que tanto adoça ainda as
mais cruas verdades, quando lhes presidem o gosto e a imaginação.
(Leite: 1860, p. 67)
O crítico português parece desconhecer que o texto foi feito
para ser publicado em série, através da imprensa, o que necessa-
riamente devia influir na escolha de linguagem mais objetiva e me-
nos elaborada. Também parece se aliar aos que não aceitam ler
‘verdades’ sem um rebuscamento retórico. Parece, pois, não se dar
conta do tom de urgência que perpassa o texto e da angústia auto-
ral quando denuncia o estado calamitoso da educação no país.
Sim, porque o tom comedido da autora existe apenas quando se
refere aos propósitos da educação; no mais, adquire grande vee-
mência, como nas contundentes críticas que faz aos que considera-
va responsáveis pela situação. Para melhor acompanharmos o pen-
samento da autora nos sessenta e dois capítulos que compõem o
Opúsculo humanitário, destaco aí quatro blocos. São eles:
Do primeiro ao quinto capítulo, a autora percorre as civilizações
antigas e modernas comentando o lugar ocupado pelo sexo femini-
no, considerado o “barômetro” que indicaria o estágio de civiliza-
ção de cada sociedade. Assim, traça um amplo panorama da condi-
ção feminina desde a Ásia, “berço do gênero humano e da filosofia,
onde ela, a mulher, era apenas a mais submissa escrava”; passa pelo
Egito e pela África, onde apenas a beleza física era valorizada; até a
Itália, a Grécia, os bárbaros do norte e os selvagens da América e da
Oceania. Tece comentários acerca do regime feudal, do Tribunal do
Santo Ofício e dos cruzados medievais. Considerando que apenas a
mulher educada na religião pode influir positivamente sobre a socie-
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dade e o que lhe importa é a moralidade dos povos, a autora termi-
na por não destacar o papel da mulher na Grécia. O paganismo aí
dominante teria impedido que sua inteligência se voltasse para a “mais
nobre missão” (Floresta: 1989b, p. 8).
Do sexto ao décimo sexto capítulos, a autora detém-se na
análise da história contemporânea, examinando o caso da Ale-
manha, da Grã-Bretanha, da França e dos Estados Unidos. As
“três grandes nações da Europa moderna” recebem os mais en-
tusiásticos elogios, principalmente a primeira, que teria dado à
mulher “privilégios reais” e “sólida educação” e pode ser consi-
derado “o país por excelência nos respeitos tributados à mu-
lher”. Na Alemanha, segundo a autora, estariam as “melhores
esposas e melhores mães, pensadoras mais profundas, mulheres
mais completamente educadas do que o são em geral as mulhe-
res do sul”. A Grã-Bretanha, por educar a mulher “nos severos
princípios de uma sã e esclarecida moral”, torna-a “consciente
de sua própria dignidade” e da “importância do cumprimento
de seus deveres”. Se a Inglaterra é “o modelo da religião, do
comércio e da liberdade”, suas mulheres “o são das virtudes do-
mésticas e da nobre altivez do seu sexo”. Já a mulher francesa é
apresentada com restrições, devido ao “espírito de galanteio”
que dominaria o país.
Mas, apesar do apreço que demonstra ter por essas nações, Nísia
Floresta observa que ainda faltava muito para que elas alcançassem
o aperfeiçoamento desejado na área da educação, sem, no entanto,
especificar em que exatamente esse nível de aperfeiçoamento con-
sistiria. As madames de Sevigné, de Maintenon, de Genlis e de
Campan são citadas para provar que a educação moral deve ser a
base de toda a instrução da mulher, a fim de que ela não se desvie da
“senda das virtudes”. À América do Norte refere-se como a “po-
derosa rainha que se apresenta por último no palco da educação”,
que confessa só conhecer através de informações. O país que possui
mais escolas primárias e secundárias, sociedades científicas e literárias
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permite à mulher ocupar o verdadeiro lugar na ordem social: “É
sempre amiga do marido, algumas vezes seu conselheiro”.
No capítulo dezessete e até o trinta e nove, a autora, finalmen-
te, trata da questão da educação no Brasil. Atribui à colonização
portuguesa as causas determinantes do nosso atraso cultural, enu-
mera os preconceitos herdados da metrópole e conclama os bra-
sileiros a agir de modo a reverter o quadro educacional.
Povos do Brasil, que vos dizeis civilizados! Governo, que vos dizeis
liberal! Onde está a doação mais importante dessa civilização, desse
liberalismo? (Floresta: 1989b, p. 43)
O desejo de ver seu país ao lado das nações mais progressistas
levava Nísia Floresta a desenvolver o tema da necessidade de edu-
cação, a provocar o debate entre os contemporâneos e a cobrar
alguma coerência entre os projetos governamentais e seu alinha-
mento aos ideais liberais. Se a educação das meninas era uma ban-
deira liberal, urgia que o país assumisse o projeto.
É interessante observar como demonstra nesse livro seu amor
à pátria. Em vez de enaltecer-lhe os potenciais, as belezas naturais,
suas riquezas à flor do solo, como então determinava o ufanismo
nacional, a autora mostra o outro lado da moeda ao apontar as
falhas e os defeitos de sua civilização: o atraso cultural, a indiferen-
ça dos governantes, o caos educacional. Mais adiante, nesse mes-
mo livro, ela faz uma verdadeira declaração de amor à terra, justi-
ficando o “Brasileira” que trazia anexado ao seu pseudônimo:
Amamos com religioso entusiasmo a nossa pátria, isto é, toda a
vasta Terra de Santa Cruz. Em qualquer ponto dela consideramo-
nos em nossa pátria e os povos aí nascidos, nossos conterrâneos e
irmãos” (Floresta: 1989b, p. 130).
Esse sentimento profundo de nacionalidade faz com que ela
considere, também, todos os nacionais – homens e mulheres, ri-
cos ou pobres – merecedores de iguais direitos aos “bens distri-
buídos pelo governo”, tais como a educação e a instrução. É com
este espírito que passa, então, a descrever nosso quadro educacio-
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nal: as escolas de ensino primário parecendo casas penitenciárias,
pessoas sem idoneidade ou capacidade comprovada a fundarem
escolas, a ausência de qualquer fiscalização por parte do governo.
Não nos embala a vã pretensão de operar uma reforma no espírito
de nosso país. Por demais sabemos que muitos anos, séculos talvez,
serão precisos para desarraigar herdados preconceitos a fim de que
uma tal metamorfose se opere. Esperamos somente que os zelosos
operários do grande edifício da civilização em nossa terra atentem
para os exemplos que a História apresenta do quanto é essencial aos
povos, para firmarem a sua verdadeira felicidade, o associarem a
mulher a esse importante trabalho.
A esperança de que, nas gerações futuras do Brasil, ela assumirá a
posição que lhe compete nos pode somente consolar de sua sorte
presente (Floresta: 1989b, p. 45).
Enquanto no Direitos das mulheres a autora rejeitava a ideia de uma
revolução radical nos costumes, no Opúsculo humanitário será diferente,
e ela expressa o desejo de uma completa transformação no sistema
educacional. Chega inclusive a afirmar que não poderá haver no Brasil
uma boa educação da mocidade enquanto “o sistema de nossa edu-
cação, quer doméstica, quer pública, não for radicalmente reforma-
do”. Mas a autora tem consciência de que os preconceitos arraigados
no espírito do brasileiro eram ainda muitos. Enumera os mais fre-
quentes, tornando alguns capítulos desse livro quase que uma extensão
do Direitos das mulheres. A fraqueza física, a incapacidade de reflexão e o
natural gosto pelo adorno, citados pelos homens, seriam apenas pre-
textos para que as mulheres fossem mantidas em estado de submis-
são. Os homens não tinham interesse em educá-las para melhor as
dominar, pois, afinal, é ela quem diz: “Quanto mais ignorante é um
povo, mais fácil é a um governo absoluto exercer sobre ele o seu
ilimitado poder” (Floresta: 1989b, p. 60).
Na crítica às escolas e ao ensino, a autora utiliza dados oficiais
do ano de 1852, do quadro demonstrativo do estado da instrução
primária e secundária das Províncias do Império e do Município da
Corte, e do Relatório feito à Assembleia Geral por Gonçalves Dias.
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Assim, ao fazer sua radiografia do ensino nacional, ela destaca os
dados relativos às meninas e analisa os documentos oficiais, utilizan-
do-se dessas informações contra o próprio governo. E termina por
desmascarar a ineficiência das leis vigentes relativas ao ensino.
Todavia, apesar deste e outros documentos oficiais, apesar do quan-
to se tem dito a respeito dos obstáculos que retardam os progressos
do nosso ensino público, muitas pessoas recreiam-se aplaudindo a
admirável rapidez com que marcha a civilização entre nós. [...]
Quando o mesmo governo confessa, à vista de provas autênticas, ser
por toda parte do Brasil pouco lisonjeiro o quadro que apresenta o
estado da instrução pública, devemos nós regozijar-nos da marcha
progressiva de nossa civilização? Cometeríamos um grande ato de
injustiça se, como aqueles seus apologistas, deslumbrados da pers-
pectiva fosforicamente brilhante das reuniões de nossas capitais –
entre as quais tanto sobressaem as desta Corte, foco da civilização
brasileira – esquecêssemos as nossas meninas do interior das pro-
víncias, condenadas ainda à sorte de suas mães sob o regime colonial
(Floresta: 1989b, pp. 84-85).
Os números que divulga são os seguintes: para um total de 55
mil alunos das escolas públicas, apenas 8.
443 eram alunas. Em Mi-
nas Gerais, onde a instrução estava mais difundida, de 209 escolas,
apenas 24 destinavam-se às meninas. A Bahia contava com 184 es-
colas primárias, sendo 26 femininas; Pernambuco, 82, sendo dezoi-
to para meninas; o Rio de Janeiro possuía 116, mas só 36 eram para
o sexo feminino e, na Corte, a sede do governo imperial, havia nessa
época, apenas nove escolas para meninas. Longe de se deixar enga-
nar com tais estatísticas, lembra que a situação das demais províncias
era bem diversa, pois muitas não haviam tomado, até então, qual-
quer iniciativa no sentido de promoverem a educação das mulheres.
Conhecendo bem essa realidade e, ao mesmo tempo, acre-
ditando pouco na iniciativa e no interesse governamentais, que
restava a um espírito como o de Nísia Floresta, além de esperar
notícias da Câmara, nos jornais diários? Muito pouco, na verda-
de, a não ser clamar energicamente contra a escassez de escolas e
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incitar os provincianos mais esclarecidos a preencherem as lacu-
nas deixadas pelo governo. E é o que ela faz em várias páginas
do seu Opúsculo humanitário.
Os números citados permitem-nos acompanhar a questão da
instrução feminina durante o Império, principalmente se a eles acres-
centamos outros dados. Em 1872 – vinte anos após esse livro –,
29,3% da população feminina no Rio de Janeiro estava alfabetiza-
da. Em 1873, o Império contava com 5.
077 escolas primárias
entre públicas e particulares, e o número de alunos perfazia um
total de 114.
014 e de 46
.246 alunas. Em 1890, essa proporção
estava na ordem de 43,8%, revelando um aumento substancial,
ainda que limitado ao Rio de Janeiro
3
.
Novos dados vêm comprovar o crescente número de meninas
frequentando escolas particulares. Vejamos: em 1855 havia na Corte
dezessete escolas primárias para meninos e nove para meninas (mes-
mo número encontrado por Nísia Floresta dois ou três anos antes),
contabilizando 909 meninos e 533 meninas. Os números da rede
particular somavam 97 escolas: 51 masculinas e 46 femininas. Onze
anos mais tarde, em 1866, a situação já era outra: para 1.
860 alunos,
havia 1
530 alunas nas escolas públicas; e 2
.111 meninos e 2
.056
meninas nas particulares. Esta surpreendente quase igualdade numé-
rica pode comprovar o quanto a instrução e a educação passaram a
fazer parte das aspirações das camadas superiores das populações
urbanas. (Saffiotti: 1979, p. 197)
O incentivo a uma ampla divulgação da educação e da ins-
trução junto à sociedade devia-se, repetimos, principalmente ao
movimento das ideias liberais entre os intelectuais e da adesão dos
homens e mulheres esclarecidos do país. O século XIX convertia-
se, assim, no momento decisivo de significativas transformações
na vida das mulheres. O acesso feminino à escola se impunha,
3
O censo brasileiro de 1872 estimava a população nacional como sendo de 10.112.061
indivíduos. Dentre estes, sabiam ler e escrever: 1.012.097 homens livres, 550.981 mu-
lheres livres, 958 escravos e 445 escravas. (HAHNER: 1981, pp. 32-33)
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vencia as resistências e consolidava-se como uma realidade. Nesse
momento, era a educação; mais tarde seria o trabalho e a ampliação
de seus direitos políticos.
Finalmente, na última parte do Opúsculo humanitário – do capí-
tulo quarenta ao sessenta e três – temos o plano de educação para
a mulher brasileira concebido por Nísia Floresta. Esse parecia ser
mesmo o objetivo primeiro do livro. É o momento em que me-
lhor se percebe o jogo de forças e de influências a que a autora
estava presa. Por um lado, próxima do pensamento liberal mais
progressista, e, por outro, limitada por sua formação religiosa aos
ditames conservadores do catolicismo. No primeiro caso, defen-
de a difusão em massa de escolas de primeiras letras para meninas
em igual número das que eram criadas para meninos, exige uma
fiscalização severa do governo na qualidade do ensino ministrado,
protesta pelo impedimento do acesso feminino ao nível secundá-
rio de escolarização, denuncia as facilidades concedidas a estran-
geiros para abrirem escolas, e ainda lamenta o baixo nível intelec-
tual da maioria das professoras. A autora endossa as modernas
teorias higienistas ao defender a necessidade de uma educação físi-
ca para mulheres e crianças, e aproveita para condenar a reclusão
feminina (“costume mourisco de se fecharem as mulheres em casa”)
que impedia a muitas um “higiênico passeio cotidiano”. Os mé-
dicos, e não só a urbanização, foram também responsáveis pela
retirada da mulher das alcovas, consideradas por eles como locais
úmidos e mal ventilados que provocavam fraqueza e doenças. Ao
defender uma nova organização doméstica e a valorização femini-
na na família, o poder médico vai transformar as mulheres em
importantes aliadas de seus projetos.
Ainda é preciso lembrar o contato que Nísia Floresta teve com
a filosofia positivista, e com Auguste Comte em Paris, que os
positivistas orgulhosamente se empenharam em divulgar. Aliás, as
únicas cartas de Nísia Floresta que restaram foram precisamente as
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35
que ela trocou com Comte, durante os anos de 1856 e 1857, e que
testemunham a amizade respeitosa e cordial que um dia existiu entre
eles
4
. Mas, ao buscarmos os escritos de Nísia Floresta, verificamos
que sua adesão à filosofia positivista foi bem limitada, até porque,
muitas das posições que ela assumiu – como a defesa da abolição,
do moralismo e da educação feminina, por exemplo – eram ban-
deiras que extrapolavam os ditames positivistas e pertenciam tam-
bém a outras correntes de pensamento – e defendidas por intelectu-
ais importantes, como Saint-Simon, Bazard, Robert Owen e Charles
Fourier. Nada mais coerente, portanto, que a autora se identificasse
com uma filosofia que vinha ao encontro de seus interesses e
enfatizava a supremacia feminina, tal como ela mesma havia feito
em Direitos das mulheres e injustiça dos homens, na década de 1830.
Assim, ao fazer a sua leitura do positivismo e ao destacar nele
os pontos que mais atendiam a seus interesses intelectuais, Nísia
Floresta adquiriu um certo verniz desse pensamento filosófico.
Enganou, desta forma, a muitos que reconheceram aí uma adesão
completa. Tanto foi apenas superficial sua identificação com tais
propostas, que não se encontra em seus escritos nenhuma outra
referência a Comte ou à sua filosofia, que não esteja diretamente
relacionada com a melhoria da condição feminina.
Examinemos agora o segundo aspecto. Ao se deixar conta-
minar por ideias moralistas de fundo religioso, ou mesmo pelo
pensamento positivista, a autora termina por contribuir não para a
ampliação do universo feminino, mas, ao contrário, para uma nova
delimitação do papel da mulher, aproximando-se perigosamente
daqueles teóricos – como Rousseau e Gregory – que tentava com-
bater. Senão, vejamos: a educação devia se iniciar no berço, com a
amamentação feita pela própria mãe. O ideal de educação para a
menina é aquela feita no lar sob a orientação materna. A escola
4
A correspondência trocada entre Nísia e Comte – composta de um total de catorze
cartas – apenas foi traduzida para o português e publicada no Brasil em 2002, por
iniciativa da Editora Mulheres, de Florianópolis.
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atenderia apenas às meninas que não pudessem, por qualquer
motivo, ser educadas em casa. As virtudes, como a modéstia, sim-
plicidade e caridade deviam ser incutidas desde cedo não só atra-
vés de palavras, mas principalmente pelo exemplo doméstico. A
menina devia ser poupada do contato com escravos e estranhos;
bailes, teatros e diversões em geral costumam ser perniciosos na
formação da criança – devia-se dar preferência a passeios ao ar
livre –, e as brincadeiras infantis deviam ser supervisionadas pela
mãe. A menina precisa ainda de um horário para dormir, acordar,
brincar, fazer refeições, estudar; enfim, para conhecer desde cedo
o “nobre fim para que foi criada”.
Assim, Nísia Floresta delineia o ambiente ideal para a menina
que, ao final, não era outro senão aquele onde as mulheres sempre
estiveram: a casa paterna. No lar – a “estufa” – ela estaria protegida
dos “miasmas” subversivos de correntes mais arejadas. Algumas
indagações tornam-se irresistíveis: se o ideal era o ensino em casa,
para que a exigência de tantas escolas?
Enquanto parecia estar tratando apenas da mulher-menina, Nísia
Floresta ao mesmo tempo envia sua mensagem à mulher-mãe e
traça nitidamente seu papel, delimitando seu campo de ação e
ampliando suas obrigações frente à sociedade. À menina caberia,
um dia, fica subentendido, ser mãe de família. À mulher que já o
fosse, cabia-lhe assumir as responsabilidades inerentes a tal função.
Ela deve: amamentar, criar com desvelo, educar nos princípios
morais, vigiar a filha todo o tempo, ser um modelo de virtudes, e,
ainda, ser mestra e preceptora, a responsável pela instrução com-
pleta dos filhos. Em última instância, ser única e exclusivamente
mãe. Parece que, nessa transmissão ideológica, residiria todo o
objetivo da educação de uma menina.
Uma mãe bem educada e suficientemente instruída para dirigir a
educação de sua filha obterá sempre maiores vantagens, aplicando-se
com terna solicitude a inspirar-lhe como emulação o sentimento da
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própria dignidade, que qualquer diretora não conseguiria obter de
suas educandas (Floresta: 1989b, p. 91).
A menina educada em casa e pela mãe seria a “delicada flor da
estufa”, enquanto a outra, que respirou miasmas e esteve exposta a
influências diversas, apenas uma “flor de jardim”. A ênfase dada à
educação moral, entendida como “o guia mais seguro da mulher, a
estrela polar que lhe indica o norte”, era necessária até como forma
de limitar as opções femininas. Afinal, a moralidade era a garantia
dos valores que regulavam a ordem e a vida social; e a religião, a
responsável principal pela sustentação dos liames sociais.
Atentem todas as mães brasileiras – como convém ao seu próprio
interesse, à dignidade da família e à glória da pátria na aurora do seu
engrandecimento – para as propensões de suas filhas, e empreguem
todos os seus esforços para arredá-las a tempo de tudo quanto possa
animar as más e enfraquecer as boas, evitem-lhes, sem que elas se
apercebam, até uma certa idade, as ocasiões de acharem-se em compa-
nhia de quem quer que seja, longe de suas vistas ou das de preceptoras
esclarecidas e dignas de sua confiança. (Floresta: 1989b, p. 112)
Nísia Floresta se identifica em parte com Kant – que é citado no
Opúsculo –, quando este considera a religião a partir de um ponto de
vista subjetivo, como “o conhecimento de todos os nossos deveres
como ordens divinas”. Também para Nísia Floresta a religião é
poderosa o bastante para garantir a vitória dos valores morais na-
queles que a praticam. Daí, sua tendência em definir a educação não
do ponto de vista do indivíduo, mas sim da sociedade. Segundo a
autora, a religião “fortifica e realça as qualidades femininas, é ela
ainda que sustenta e consola todo o indivíduo nas circunstâncias mais
difíceis da vida, a bússola invariável que lhe indica os seus deveres e
o conduz ao exato cumprimento deles”. (Floresta: 1989b, p. 134)
Com tais suportes, o conceito de educação feminina proposto
por Nísia Floresta termina por não avançar muito no que se refere
às possíveis mudanças nas condições de vida da mulher do seu tem-
po. A cultura geral, enfaticamente pleiteada, serviria tão somente
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para melhor preparar a mulher para assumir com responsabilidade
o papel de mãe de família, dentro de um rígido controle de sua
moralidade. O poder feminino, tão sonhado anteriormente, limitar-
se-ia àquele obtido através da influência junto aos filhos. Também
nessas postulações tão contraditórias, Nísia Floresta aproxima-se tanto
dos positivistas – que defendiam ao mesmo tempo uma ampla edu-
cação para a mulher e a limitação de sua atuação nos domínios do
doméstico – quanto dos higienistas, que só julgavam necessária a
instrução feminina para aplicação junto aos filhos.
Nesse momento eram muitas as vozes se manifestando com
relação à mulher. De todos os lados vinham argumentos, elogios,
reprimendas, ameaças veladas. Eis um exemplo. No mesmo ano
em que foi publicado o Opúsculo humanitário, 1853, saía no Rio de
Janeiro uma outra publicação de longo título, assinada por Zaira
Americana, também tratando da questão educacional feminina
5
.
Parte do livro, com pensamentos e biografias de homens e mulhe-
res célebres, já havia sido publicada no Jornal das Senhoras no ano
anterior, com o intuito preciso de demonstrar às leitoras – senho-
ras e mães de família –, as vantagens que a educação das mulheres
trazia para a sociedade.
Alguns anos depois, em 1862, era traduzido o livro Educação das
meninas, de Fénelon, que maior influência ainda exerceria junto aos
escritores nacionais. A tradução era assinada pela gaúcha Ana Euquéria
Lopes Cadaval, também autora de romances e de outras traduções.
Nessa época, escritores e periódicos – como O Sexo Feminino, de
Francisca Senhorinha da Mota Diniz – participavam do debate, a
maioria defendendo a educação feminina. As diferenças entre eles
surgiam quando tentavam justificar o objetivo dessa educação.
5
Zaira Americana, pseudônimo da argentina radicada no Rio de Janeiro Maria Benedita de
Oliveira Barbosa, era esposa do comendador José Thomaz de Oliveira Barbosa, e seu
livro intitulava-se: Zaira Americana mostra as imensas vantagens que a sociedade inteira
obtém da ilustração, virtudes e perfeita educação da mulher, como mãe e esposa do
homem. Rio de Janeiro: Tipographia Dois de Dezembro, de Paula Brito, 1853.
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39
As opiniões recolhidas na Polianteia comemorativa da inauguração das
aulas para o sexo feminino do Imperial Liceu de Artes e Ofícios, por exemplo,
ainda que já de 1881, nos oferecem uma ideia da diversidade de
pontos de vista entre os intelectuais acerca da questão. Num univer-
so de 127 colaboradores, foram encontradas as seguintes posições:
nove opinaram que a educação devia preparar a mulher apenas para
o lar e jamais contribuir para sua emancipação intelectual ou profis-
sional; sete, que a educação devia completar a formação feminina;
dezesseis, que a educação da mulher devia consistir sobretudo em
sua preparação religiosa e moral; 63 defendiam que educar a mulher
era contribuir para a dignificação da família, da nação e do mundo;
e 23, que a educação da mulher representa sua emancipação. Nove
colaboradores deram respostas tão evasivas que não chegaram a
definir seu pensamento a respeito (Bernardes: 1988, p. 23).
Como se pode ver, a maioria das respostas aponta para uma
educação permeada pela religião e pela moral que aperfeiçoasse
ainda mais a mulher e a tornasse naturalmente devotada ao lar, à
família e às tarefas domésticas. E entre os que assim se posicionaram
estavam dois positivistas: Miguel Lemos e Raimundo Teixeira
Mendes que, coerentemente, condenavam qualquer possibilidade
de emancipação feminina através da profissão, pois acreditavam
que isso seria o princípio destruidor da família e da sociedade
6
.
Também as quatro mulheres que participaram desta Polianteia
alinharam suas opiniões entre os que definiam a educação feminina
como fator de elevação moral das mães de família e da sociedade.
Os liberais clássicos, os positivistas e os conservadores formavam
um só grupo quanto ao assunto: para eles, a educação deveria rever-
ter, ao fim, no próprio benefício do homem ou dos seus interesses
6
Para melhor avaliar a participação dos positivistas na educação feminina brasileira, é
bom lembrar que o Decreto nº 7.247 da Reforma Carlos Leôncio de Carvalho de 19 de abril
de 1879, que facultava à mulher o ingresso ao ensino superior na Faculdade de Medicina,
foi derrubado pelo ministro positivista Benjamin Constant, em seu primeiro ato do governo
republicano. (Bernardes: 1988, p. 183)
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na sociedade como um todo. A mesma diversidade de opinião se
encontrava entre as mulheres de letras de então. Josefina Álvares de
Azevedo (1852-?), por exemplo, defendia a profissionalização femi-
nina, porém muitas abominavam tal projeto e pregavam o
confinamento doméstico como sendo um ideal de felicidade.
Nessa época, os jornais femininos eram numerosos e constan-
temente traziam, ainda que junto ao endosso das funções “natu-
rais” da mulher, a promessa de outras conquistas. Mas o desempe-
nho e prestígio da maternidade ocupava um espaço tão extenso –
e intenso – nas vidas femininas, que terminava por impedir, prati-
camente, qualquer outra atividade nesse momento. E, é bom lem-
brar, os homens continuavam atentos para evitar as reivindicações
e garantir a presença feminina nos domínios domésticos.
O aceno que Nísia Floresta havia feito em 1832, apontando
para a possibilidade de uma vida pública para as mulheres, termina
adquirindo um tom de brincadeira retórica da jovem escritora, uma
vez que nem ela mesma parecia realmente querer executar a propos-
ta ou nem mesmo nela acreditar. Se o feminismo de Mary Wollsto-
necraft pode ser considerado radical, o de Nísia Floresta parece se
encaixar no ‘bom feminismo’, pois não pretende alterar substancial-
mente as relações sociais e conserva as mulheres nos limites ideoló-
gicos do privado. Por tudo isso, é preciso destacar, mais uma vez, a
honrosa exceção de 23 colaboradores da Polianteia, os quais, medi-
ante visão mais ampla, intuíram a possibilidade de a educação repre-
sentar também um meio de conquista da emancipação feminina.
Mas, ao fazer a leitura desse especial momento da história bra-
sileira, importa ressaltar que é preciso não perder de vista o alcance
que poderia ter tido, naquela época, a repentina valorização da
figura feminina e da sua função biológica exclusiva. Para quem, até
recentemente, ocupava papel obscuro em consequência a uma
estratificação social rígida que privilegiava o papel do homem, trans-
formar-se em centro das atenções e receber homenagens de to-
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dos os lados devia realmente significar muita coisa – como natu-
ralmente significou. Essa era uma etapa obrigatória na história da
liberação da mulher e que precisava ser cumprida.
Conselhos de uma mãe-educadora
Nísia Floresta escreveu também livros que se inscrevem na
antiga tradição de prosa moralista de intenção nitidamente doutri-
nária, comum tanto na literatura europeia de séculos anteriores
como na brasileira, principalmente pela inspiração dos fascículos
do Marquês de Maricá, tão divulgados nos jornais de seu tempo.
São eles: Conselhos à minha filha, Discurso que às suas educandas dirigiu
Nísia Floresta e Abismo sob as flores da civilização. Esses escritos, inti-
mamente ligados à questão educacional, pretendem transmitir
ensinamentos através de exemplos de conduta considerados ideolo-
gicamente positivos, ao mesmo tempo em que condenam outros
por serem prejudiciais à sociedade.
Quando elege determinadas virtudes como adequadas ao com-
portamento das meninas, das mulheres e dos jovens, a autora de-
fine-se também com relação aos valores que apoia e quer ver
normatizados. Tais valores, sabemos, eram principalmente os di-
vulgados pelo moralismo cristão e endossados pela medicina higi-
ênica, voltados para o controle do corpo e do espírito dos jovens.
O poder médico adquiria importância como condutor dos inte-
resses sociais devido às alianças com os demais poderes e estabili-
zava a conduta física, intelectual, moral e até sexual dos membros
sociais, visando a sua adaptação ao sistema político e econômico.
Como outras mães-educadoras, Nísia Floresta dirige seus tex-
tos ora para a filha e às meninas em geral, ora para o filho e os
jovens, ora ainda para as alunas do seu colégio e para as mães de
família. O tom que perpassa pelos escritos é sempre o conselheiral
que, conforme as circunstâncias, adquire um aspecto afetuoso, pro-
tetor e insinuante ou ainda quase ameaçador. Em Conselhos à minha
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filha e no Discurso às educandas prevalece o primeiro deles; já em O
abismo sob as flores da civilização, o último.
Essas narrativas também têm em comum o fato de conterem
informações de ordem biográfica. A autora se apresenta ora como
uma mãe dedicada e extremosa, bem de acordo com a imagem
idealizada da mulher na época e que aparece em diversos escritos,
ora como esposa saudosa do marido, ora como filha querida e
obediente e ora, ainda, como professora zelosa. Enfim, mostra-se
em suas alegrias, aflições, melancolia e sonhos. A primeira delas –
Conselhos à minha filha – foi também a mais traduzida e a que mais
edições obteve entre todos os escritos da autora. Tal sucesso pode
ser atribuído ao fato de aí estar representado não só o paradigma
ideal da adolescente e o incentivo à prática de deveres e virtudes,
que se esperava de uma menina, mas também o comportamento
dedicado e amoroso que se esperava que uma mãe tivesse para
com a sua filha.
Na Resenha bibliográfica que Didimo Nepote faz desse livro para
o jornal veneziano L’Etá Presente, em 1858, os elogios se voltam
também (como no Opúsculo humanitário) para o bom senso dos
ensinamentos:
Ora, estes conselhos foram ditados por uma nobre alma, a uma
jovenzinha: e às jovenzinhas dirigem-se. A elas resultarão mais caros
porque não saem do círculo daquelas virtudes mais frequentes e
menos rumorosas que são necessárias na reclusa vida de uma mulher
e porque de toda página sopra um sentido de convicção na fé reli-
giosa e na atividade moral que convence e consola (L’Etá Presente,
Veneza, ano 1, nº 7, 14 ago. 1958).
No prefácio de Conselhos à minha filha a autora esclarece que os
ensinamentos aí contidos constituem o seu presente de aniversário
para a filha que completava 12 anos. Porque a mãe os considerava
úteis, preferiu-os, em vez de uma “linda alfaia”, ou seja, “loucos
enfeites da moda”. Também contribuiu o fato de a autora consi-
derar tal presente como sendo mais digno dela. Também se en-
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43
contra aí a louvação do sentimento maternal (que se converterá
numa autolouvação), considerado como o “único, imenso e ver-
dadeiro”, ao qual “todas as afeições são inferiores”. Enfim,
O sentimento maternal está além de todas as paixões humanas. Só
uma mãe é capaz dos maiores sacrifícios sem outras vistas, sem outra
recompensa mais do que o seu próprio amor. [...] Só uma mãe ama
a seus filhos com um inteiro e verdadeiro desinteresse. Ela o ama
feliz, se ele é virtuoso, desgraçada se ele não o é; mas o ama sempre e
o ama então com um sentimento mais poderoso, a compaixão!
(Floresta: 1845, p. 35)
Assim, com o pretexto de dar conselhos à filha, a autora trata
do seu amor por ela – e do amor materno como um todo –
contribuindo para a fixação e normalização de um comporta-
mento e de um sentimento que, naquela época, convinha propa-
gar. Apesar da crença dominante de que o amor materno sempre
havia existido e que era natural na mulher, de alguma forma intuía-
se que ele não existia necessariamente em todas as mulheres, haja
visto o número crescente de filhos enjeitados e os altos índices de
mortalidade infantil. As mulheres – primeiro trancafiadas nas
alcovas, depois envolvidas pelo mundanismo – pareciam não se
interessar pela sorte das crianças e menos ainda queriam se
conscientizar da importância de seu papel nessa questão.
Nísia Floresta, acompanhando as preocupações dos filóso-
fos, moralistas e médicos da época, abraça também, nesse e nou-
tros trabalhos, o ideal de transformar a mulher indiferente em
mãe amorosa e responsável. Por tudo isso se encontra, aqui, a
exaltação da figura materna e a elevação de “mãe” para o título
mais nobre, o que “exprime só todos os sentimentos d’alma, as
mais sublimes e puras afeições”, o único capaz de dar a “verda-
deira importância” à mulher.
Também no discurso pronunciado no encerramento das aulas
do seu colégio em 1847, apesar de dirigir-se às alunas e aos pais
presentes na solenidade, a autora dá testemunho de sua condição
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materna ao mencionar as aflições que havia passado pelo fato de a
filha haver adoecido naquele ano. Afirma, ao final, esperar que as
educandas façam bom uso da instrução, “de que tanto precisa o
nosso sexo, a fim de facilmente preencher os sagrados deveres que
lhe impõem a natureza e a sociedade”.
A autora atribui ao seu amor materno o gosto pelo estudo,
pois tinha a esperança de um dia dar à filha as primeiras lições. As
mulheres – entenda-se – deveriam instruir-se não por prazer ou
para emancipar-se, mas porque um dia seriam responsáveis pela
educação dos filhos (não é demais repetir). O vivo empenho de-
monstrado na propagação do sentimento materno termina por
sugerir um outro título, ou subtítulo, para esse livro que, afinal,
bem podia ser: Conselhos às mães de meninas.
Também um aspecto interessante é a evidente autoestima da
autora. Mesmo quando parece voltar-se para a filha e estar desem-
penhando seu papel de conselheira, coloca-se, a si própria, todo o
tempo, como o exemplo das virtudes que quer incentivar. Cito:
“Se algum dia ela [a família] precisar de teus socorros, imita tua
mãe, não hesites um momento em preferir a sua à tua felicidade.
Sacrifica-lhe tudo, menos a virtude!...” (Floresta: 1845, p. 51).
Sutilmente ela observa que o valor do presente – o livro – não
estaria apenas em seu conteúdo moral, mas principalmente no sa-
crifício de quem o fez à noite, nas horas do “único e ligeiro repou-
so que lhe é permitido gozar”, após o trabalho no colégio. O
orgulho da função materna não permite que a autora se esqueça
de si mesma em nenhum momento, levando-a a rememorar a
própria infância, seu amor e a dedicação pelos pais e irmãos me-
nores. Por isso a abundância de expressões como “tua sensível
mãe”, “terna mãe”, “triste mãe”, “meus solícitos e ternos cuida-
dos”, “minha vigilante ternura”. Desse mesmo orgulho ela retira a
autoridade para autointitular-se “única guia”, “melhor amiga de
sua infância” e exigir confiança absoluta: “que o menor, o mais
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45
insignificante segredo não ache asilo contra ela [a mãe] em teu
coração” (Floresta: 1845, pp. 54-55).
As virtudes e os deveres filiais aí incluídos poderiam assim ser
resumidos: a menina educada deve ser simples, natural, modesta,
amável (“sem pretensão de agradar”), amorosa e obediente aos
pais, respeitosa com os idosos, condescendente (“habitua-te desde
já a sofrer com resignação os inconvenientes da vida”); boa e solí-
cita com as companheiras, caridosa, generosa, benevolente (princi-
palmente com os “mais constrangidos” ou “menos favorecidos
de fortuna”), decidindo-se sempre pelo oprimido, “pois os des-
graçados têm incontestáveis direitos à nossa proteção e amizade”.
Esses deveres e virtudes alinham-se, pois, entre os valores de or-
dem moral e religiosa capazes de determinar aquele comporta-
mento ideal que tornaria a jovem meiga, acomodada e satisfeita
em servir o outro. Aliás, era o mesmo o que se esperava de uma
mulher. A acreditar na força de tais conselhos, não é de admirar
que não pertencesse ao vocabulário da mulher dessa época uma
outra palavra: direitos.
Perpassa ainda, pelos conselhos, um modelo de comportamento
cristão, idêntico ao preconizado para Domingos, o personagem es-
cravo de Páginas de uma vida obscura, uma narrativa relacionada à escra-
vidão. Deve-se praticar o bem apenas pelo prazer em praticá-lo, e não
para se exibir. A recompensa pelas boas ações em vida fica para um
plano espiritual a ser alcançado após a morte. A atitude paternalista da
autora para com o escravo e o oprimido em geral transparece tam-
bém quando o aconselha a agir sempre com benevolência com as
pessoas que lhe são “inferiores”. Enquanto é construído o paradigma
da boa filha, pode-se perceber ao fundo a enumeração dos vícios que
dominariam os maus filhos, que falam de seus pais, “arvoram-se de
juízes de suas condutas”, são interesseiros, caprichosos e vaidosos. A
boa filha merece toda a felicidade e o paraíso; os demais, o remorso,
a culpa, o inferno. “O mau, minha filha, não pode ser jamais feliz [...].
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46
Finalmente, na última parte do livro, encontra-se um outro
tipo de conselho que se distingue frontalmente dos primeiros; tra-
ta-se agora de ensinamentos de mulher para mulher. Nesse mo-
mento, a autora pretende passar à menina-moça sua experiência
feminina com relação aos homens e os conhecimentos que tem da
psicologia do conquistador. Para isso, faz a descrição de tipos
masculinos, das artimanhas e malícias utilizadas pelo homem na
conquista da mulher. Vejamos como introduz a questão:
Minha querida filha, há no mundo duas sortes de admiradores de
nosso sexo, uma assaz comum, outra extremamente rara. A primei-
ra é daqueles homens que, olhando-nos com desprezo, não veem
em nós, assim como nessas lindas flores que se colhem para servir-
nos de um ornato passageiro, mais do que um objeto digno somen-
te de lisonjear seus sentidos. A seus olhos, uma mulher amável é
sempre aquela que reúne mais graças exteriores e, ousados pela fra-
queza com que os prejuízos de nossa educação nos apresentam aos
olhos do mundo, eles têm estudado e põem em prática uma linguagem
toda engenhosa para atrair nossa atenção e triunfar dessa fraqueza a
despeito de nossa virtude mesma (Floresta: 1845, p. 52).
Do homem galante e conquistador deve-se, pois, manter dis-
tância. Seus elogios são falsos, suas atitudes estudadas, suas inten-
ções condenáveis. Mas haveria ainda um tipo pior: o dos hipócri-
tas. “Detestáveis seres” que aparentam modéstia sem sentir e ma-
nejam com habilidade as armas da sedução para melhor alcançar
seus objetivos. O tipo recomendado é, então, o do homem sério,
de “aspecto sisudo” que deixa transparecer “uma galhardia no-
bre”, “um recolhimento em seu porte” e que não “abusa de uma
posição”. Ou seja, os homens
cujo coração [é] formado na escola da virtude, para honra da huma-
nidade, [que] se prestam espontaneamente a vingar-nos dos ultrajes
com que pretendem abocanhar-nos o crédito daqueles, de que acabo
de falar-te. As armas de seu ilustrado entendimento, aguçadas na fina
Pedra da Moral, contrastam superiormente esses ridículos dictérios,
que para nós assestam grosseiros e fractuosos arcos brandidos por
mãos impuras.
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É de um tal homem, minha filha, que te recomendo procures a
comunicação e cultives a amizade, quando tua razão se tiver desen-
volvido. (Floresta: 1845, pp. 52-3)
No Discurso às educandas, a professora também se mostra pre-
ocupada com a ingenuidade das moças diante das artimanhas
dos homens para seduzi-las, e quer alertá-las para o poder dos
falsos elogios e da lisonja sobre o espírito jovem. A orientação
segura da mãe – ou da professora e da mulher – baseia-se, como
se vê, não só na experiência como também numa “filosofia dos
costumes” que a menina não possui e, por isso, necessita de “um
guia esclarecido” que a desvie dos perigos. Os Pensamentos que se
seguem ao Conselhos à minha filha acompanham o tom predomi-
nante no livro, e expressam um incentivo à boa conduta, um
alerta sobre o perigo ou, ainda, uma reflexão acerca da condição
feminina, como os transcritos abaixo:
VIII
Os homens que pretendem, egoístas,
Das ciências vedar-nos os arcanos,
Contra si pronunciam, sem o crerem,
Sentença, que lhe traz terríveis danos!
XXI
Do terno coração de uma mulher
É mui belo ornamento a timidez;
Mil vezes infeliz foi sempre
Quem tão bela virtude em si desfez!
XXII
Os homens, leis fizeram parciais,
Que a mulher julgar deve naturais.
Versos como esses lembram os que costumavam ser realizados
por outros escritores, como o marquês de Maricá, e que eram am-
plamente divulgados tanto pelos jornais como em publicações es-
pecíficas, visando transmitir aos leitores, de modo geral, uma pers-
pectiva reguladora de atitudes e comportamentos em sociedade.
O outro texto citado, “O abismo sob as flores da civilização”,
datado de 1856, e incluído em Scintille d’ un’ anima brasiliana (1859,
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trad. Cintilações de uma alma brasileira, 1997), é uma narrativa curta que,
de um lado, guarda certa semelhança com a crônica e o ficcional,
principalmente pelo teor metafórico de sua linguagem. Mas, por
outro, aproxima-se da prosa moralista e se posiciona claramente na
defesa de um certo padrão de comportamento e condenação explí-
cita do que considera “desvios” sociais. Nele, a autora relata um
passeio ao anoitecer nas margens do Sena e o encontro com um
grupo de prostitutas que, com música e rústicas cabanas, haviam
transformado um recanto do parque num Foire au Plaisir. É, pois,
com o objetivo de alertar e afastar os jovens de tal risco – do abis-
mo – que ela escreve esse texto e a eles se dirige. Pretende preveni-
los contra os perigos que os ameaçam e que por eles não são perce-
bidos devido à juventude. São suas palavras: “Para vós somente, ó
jovens, confiantes demais no presente, e pensando tão pouco no
porvir; para vós somente tenciono escrever estas breves palavras”
(Floresta: 1997, p. 71).
Também nos Pensamentos incluídos ao final do Conselhos à minha
filha, encontra-se um projeto semelhante, nos seguintes termos: “Sob
as flores, a serpa venenosa/Se oculta e morde o viandante incau-
to/Assim doces prazeres nos ocultam/Dos vícios o tremendo fel
mortífero” (Floresta: 1845, p. 32). A autoridade que reveste seus
conselhos provém, principalmente, da condição maternal. A auto-
ra confessa com insistência que escreve enquanto mãe, “inspirada
por minha santa mãe e mãe eu mesma”.
Esta pena que deseja vos servir de obstáculo à beira do precipício está
embebida nas lágrimas de uma mãe, que tremia a cada passo que seu
filho dileto dava neste jardim de enganosas delícias que vós, em vossa
simples inexperiência, ou na sonolência dos nobres sentidos da alma,
chamais de prazeres da juventude (Floresta: 1997, p. 71).
Os perigos e vícios que cercam os jovens estão metamorfoseados
principalmente nas prostitutas que se oferecem. São elas as “moder-
nas bacantes”, as “míseras”, o “demônio que enfeitiça” ou, ainda, “a
megera enguirlandada”; os rapazes, os jovens incautos que urge pre-
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venir e afastar do “abismo” onde se encontram. Trata-se, nesse tex-
to, da condenação explícita da luxúria e dos desvarios da carne, que
ameaçariam, não só a vida, como também, através do jovem, a
saúde da futura família. A autora endossa as teorias médicas que
consideravam a prostituição um flagelo para a saúde pública, um
perigo físico e moral, além de causa de doenças e da devassidão dos
costumes. Com esse escrito, ela contribui para a condenação da pros-
tituição e defende um outro tipo de relacionamento entre homem e
mulher, este sim, permitido e incentivado socialmente: o sexo higiê-
nico, realizado nos limites de casamento.
O tom aflito e maternal adotado no início aos poucos se trans-
muda em ameaças veladas, já que a sífilis poderia ser adquirida em
tais contatos, além da possibilidade de um incesto, caso o jovem
encontrasse ali “uma filha de vosso pai”.
E (horrível pensamento, tantas das vezes concretizado!) tremei ante
a ideia de encontrardes, sem aperceber-vos, entre as míseras que des-
mentem a própria dignidade, uma filha de vosso pai, incauto como
vós, igualmente fácil e cego em abandonar-se àqueles prazeres que
lhe aniquilaram as faculdades físicas e morais, quando ter-lhe-iam
podido durar na plena flor da idade. (Floresta: 1997, p. 81)
Opondo-se a esse clima pecaminoso, a autora descreve outra
cena em tudo oposta à primeira. Trata-se agora de um jovem casal
que passeia por perto, alheio ao que o cerca, com “a felicidade
pintada em seus rostos” e cujos “atos demonstram a santidade, a
calma, a alegria e o amor”. A sexualidade acobertada pelo amor e
praticada nos limites do sentimento conjugal é não só admitida
como até sugerida pelo texto. Esses jovens sim – é o que a autora
parece dizer – passeiam no verdadeiro jardim das delícias, uma
vez que a pureza do amor e todas as virtudes desejáveis num casal
estão do seu lado.
A partir das duas cenas, a autora contrapõe a ordem e a desor-
dem social. De um lado, a sociedade planejada, a família organizada,
as “ingênuas delícias”, “a única e verdadeira felicidade na Terra”, o
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sexo higiênico, o “fundamento da união conjugal”. De outro lado –
da desordem –, os jovens infelizes, a prostituição feminina, a família
destruída, as “espeluncas do vício” e o sexo que só traz infelicidade.
Ao defender a ordem social, Nísia Floresta está garantindo,
mais uma vez, a virtuosidade feminina e o ofício de regeneradora
do homem a ser desempenhado pela mulher. Daí sua condena-
ção a tudo que pode abalar os valores da sociedade burguesa, e
sua impaciência para com os responsáveis pela “mais importante
de suas reformas: a educação da mulher”. Ao construir sua nar-
rativa contrapondo as flores (a ordem e o progresso) ao abismo
(a devassidão dos costumes e a desordem), nossa autora mais
uma vez dá sua contribuição ao pensamento que se pretendia o
mais progressista de seu tempo.
A donzela e a mãe: uma mesma doutrina
Em um mundo, que justo ser não sabe,
Não desejes brilhar, filha querida;
Da mulher os talentos fazer devem
Os encantos domésticos da vida.
(Pensamentos)
Examinemos agora Fany ou o modelo das donzelas e A mulher.
O primeiro, um texto curto, sem diálogo, semelhante a uma novela,
foi publicado pela primeira vez em 1847. A segunda edição surgiu a
partir de um manuscrito encontrado na biblioteca da família de An-
tônio Augusto Borges de Medeiros, e doado ao historiador Fernando
Osório Filho, que o incluiu no livro Mulheres farroupilhas, de 1935,
junto a estudos de mulheres que participaram da revolução. O ma-
nuscrito, que trazia na folha de rosto, do próprio punho da autora, a
data de 8 de abril de 1847 e o nome Colégio Augusto, permitiu que
a narrativa tivesse um destino diferente de Daciz ou A jovem completa,
hoje completamente desaparecido.
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O outro texto – A mulher – é posterior. Foi publicado inicial-
mente em italiano e compõe com outros quatro o Scintille d’ un’
anima brasiliana (Cintilações de uma alma brasileira). Em 1865 foi tradu-
zido para o inglês por Lívia Augusta de Faria, filha de Nísia Flo-
resta, e publicado também em Londres. A aproximação entre Fany
e A mulher não significa que os dois textos sejam semelhantes em
sua construção, na temática ou que pertençam a um mesmo gêne-
ro. Pelo contrário, foram as diferentes formas de tratar da questão
feminina que impuseram essa aproximação, junto com a percepção
de que, no fundo, eles se completavam. Senão, vejamos.
Fany ou o modelo das donzelas deve ser considerada uma novela
de cunho didático-moralista, pois conserva bem nítida a intenção
autoral de servir de leitura para a juventude feminina em geral e,
em particular, para aquela do Colégio Augusto. Ao final da narra-
tiva, aliás, encontra-se explícita esta intenção: “Possam todas as
donzelas e principalmente aquelas para quem escrevi estes ligeiros
traços da história de Fany, imitar suas virtudes e exercitarem uma
pena mais hábil que a minha para descrevê-las”. Provavelmente
foi o que hoje se denomina uma leitura paradidática, isto é, leitura
indicada como atividade escolar, que por longo tempo esteve vin-
culada à pedagogia, pois pretendia contribuir na formação dos
educandos através da estereotipia dos bons “exemplos morais”.
Já o outro, A mulher, é um misto de ficção e ensaio dirigido a
leitoras já adultas, em que Nísia Floresta vai focalizar a mulher europeia,
a questão da amamentação e dos cuidados maternos com filhos
recém-nascidos. Os princípios ideológicos da autora atravessam de
um para outro texto, apesar dos doze anos que os separam, e man-
têm-se, assegurando uma forte coerência interna entre os textos.
A adolescente que Fany representa – a jovem perfeita – não
será nunca, evidentemente, uma mulher como as que surgem no
outro texto. Também a mulher que abandona o filho revela, com
seu gesto, não ter recebido uma formação sólida, nem os exem-
plos maternos e escolares que estiveram presentes na educação de
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Fany. O denominador comum aos dois textos continua sendo, no
entanto, a preocupação com a educação moral das mulheres, a
única que lhes daria, segundo opinião tantas vezes repetida, a cons-
ciência dos deveres que as esperam no futuro. Vejamos separada-
mente as duas narrativas para melhor explicitar essa questão.
Fany ou o modelo das donzelas
A história de Fany passa-se em Porto Alegre, durante o episó-
dio histórico da Revolução Farroupilha (1835-1845), vivenciado
em parte pela autora que aí residia por ocasião do início dos con-
flitos entre os revoltosos e o Exército Imperial. A Guerra dos
Farrapos ou Revolução Farroupilha ocorreu devido à insatisfação
dos estancieiros pela política centralizadora do governo e a falta
de autonomia das províncias. Mas havia os liberais mais exaltados,
que defendiam também ideias federalistas.
A personagem é uma adolescente, primogênita de numerosa
prole, cujos pais se engajam ao lado dos farrapos. O pai torna-se
chefe de um grupo, e, a mãe, uma entusiasta das ideias liberais, que
apoia irrestritamente o marido em suas expedições. Apesar do
envolvimento paterno e materno, Fany não toma partido e per-
manece a filha exemplar e adolescente estudiosa, ocupada única e
exclusivamente em obedecer aos pais e em praticar as virtudes que
se desejavam numa menina-moça. Em meio à revolução, ela assu-
me o comando da casa e o cuidado com os irmãos menores.
O fato de essa narrativa estar vinculada aos acontecimentos de
1835 em Porto Alegre, foi suficiente para ela ser considerada uma
crônica da Revolução Farroupilha, deixando de lado as reais in-
tenções da autora e suas opiniões acerca do episódio. Assim, lem-
brando as famosas conferências republicanas feitas por Nísia Flo-
resta no Rio de Janeiro em 1842, alguns estudiosos concluíram
pela identificação desse texto e da autora com os ideais farroupi-
lhas. É o caso não só de Fernando Osório (1935, p. 57): “formoso
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e emocionante trabalho literário vazado em forma cristã sobre as
peripécias da Guerra dos Farrapos”, de Adauto da Câmara (1987,
p.119); que o considera episódio da Revolução Farroupilha; como
também de outros leitores mais recentes deste texto. Refiro-me
aos ensaios reunidos em O papel da mulher na Revolução Farroupilha
(Retamozo,1985), um livro publicado por ocasião do sesquicente-
nário dessa revolução. Nesses textos, onde são estudados os di-
versos aspectos da participação feminina no episódio – a mulher
guerreira ou “farrapa”, as estancieiras corajosas, as intelectuais e as
chinas –, pode-se perceber uma opinião comum em todos eles:
consideram a personagem de Fany ou o modelo das donzelas e sua
autora, Nísia Floresta, como elementos favoráveis à Revolução.
Niamara Pessoa Ribeiro, por exemplo, após lamentar a ausên-
cia de registros farroupilhos escritos por gaúchas, saúda o “provi-
dencial surgimento de Nísia” neste cenário intelectual, a “única voz
feminina” a se manifestar “a favor da República rio-grandense”.
Para ela, a autora seria uma simpatizante dessa facção. Maria Dutra
da Silveira considerou Nísia uma “cronista da Farroupilha” pelo
fato de seu texto conter “as vicissitudes de uma família em Porto
Alegre” durante o conflito, e destacar aí “o papel desempenhado
durante a revolta por muitas mulheres”. Hilda Flores, em A mulher
no período farroupilha, trata mais detidamente de Nísia Floresta inclu-
indo-a também entre as intelectuais dessa época. Afirma que Nísia
“identificou-se com os farroupilhas, abraçando, como eles, a cau-
sa republicana” e se indaga até que ponto não teria havido “um
intercâmbio ideológico entre a escritora e os farroupilhas”, uma
vez que Nísia teria trazido “do Nordeste experiência política mais
antiga que a dos sul-rio-grandenses”.
Rosane Frigeri e Francisco Ricardo Rudiger, autores de “Mu-
lher e sociedade à época farroupilha”, consideraram Fany ou o mode-
lo das donzelas um retrato cristalino do “impacto causado pela Re-
volução no modo de vida da mulher” e “um relato exemplar das
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vicissitudes sofridas pelas famílias rio-grandenses durante o confli-
to”. Curiosamente, o texto nisiano representa também para esses
autores “a abstenção feminina da história, o julgamento da revo-
lução pelo tribunal imediato da vida cotidiana”. E Aldira Correa
Retamozo, em “Mulheres de 35”, limita-se a citar a “egrégia dama”
Nísia Floresta Brasileira Augusta, através dos elogios que lhe foram
feitos por Fernando Osório, simplesmente os endossando.
As outras escritoras que também foram lembradas nos ensai-
os são: Delfina Benigna da Cunha (1791-1857), autora do primei-
ro livro de poesia do RS, Poesias oferecidas às senhoras rio-grandenses.
Rio de Janeiro, 1834; Maria Josefa da Fontoura Pinto (1775-?),
redatora dos jornais Idade de Ouro (1833) e Belona Irada contra os
Sectários de Momo (1833-1834), considerada a primeira jornalista
brasileira, e Ana Eurídice Eufrosina de Barandas (1806-?), tam-
bém autora de contos, poesias e crônicas. Importa ressaltar que
todas elas definiram-se em seus escritos – umas mais, outras menos
– como contrárias à revolução.
Contudo, uma leitura mais atenta de Fany ou o modelo das donzelas
revela um posicionamento bem diverso, a meu ver, daquele que
esses autores apontaram. Basta que observemos a forma como a
Revolução Farroupilha é introduzida no texto, o tratamento que
recebe por parte da voz narradora e o papel que os personagens –
Fany e seus pais – aí desempenham. Longe de ser prenunciada,
desejada ou mesmo justificada, a revolta chega de repente rom-
pendo a harmonia do lugar e da vida das pessoas que ali habita-
vam. A capital de São Pedro do Sul era, segundo a narradora, um
paraíso, com águas cristalinas, fartura de alimentos, férteis campinas,
prodigiosas flores. Enfim,
trazem à imaginação o quadro que se nos traça desse Éden feliz onde
a soberana Bondade de Deus colocou o primeiro homem; quadro
que é completado pela simplicidade e lhaneza dos excelentes habi-
tantes desses campos, que ora descrevo. Chácaras – onde abundam
saborosos frutos da Europa – se oferecem aos olhos do contempla-
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dor, que se extasia à vista da simetria com que ali brotam as roseiras
e os cravos de todas as qualidades sem exigirem difícil cultura. As
frentes da mor parte dessas chácaras, coroadas de rosas, e como que
situadas por entre o azul do céu e o verde das montanhas, apresen-
tam no delicioso outubro um panorama digno do pincel de Rafael!
(Osório: 1935, pp. 66-67)
O rompimento da harmonia, ou, como quer o texto, o mo-
mento em que as “brilhantes qualidades e virtudes” de Fany iam ser
submetidas à prova, ocorre em 20 de setembro de 1835, dia em que
os revoltosos invadem a província de São Pedro, destituindo o go-
verno e impondo uma nova ordem. Aqui e em outras passagens,
quando se detém nos fatos históricos, a narrativa adquire um tom
de crônica histórica, fornecendo datas, como a da vitória legalista de
15 de junho de 1836, e uma versão pessoal dos episódios.
O “novo” governo não estava, portanto, dentro da “lei” e, ape-
nas mais tarde, quando as forças imperiais recuperarem a cidade, a
narradora as identificará como “governo legítimo”. A participação
do pai de Fany merece uma repreensão do narrador não só porque
deixa de cumprir com os deveres paternos de proteção e amparo à
família, como por ter se aliado aos interesses contrários àqueles que
um dia defendeu, ou seja, as “fileiras legais”. Fica a dúvida se também
seria repreendido se outra tivesse sido sua opção.
Ao final, quando é negociada a paz entre os partidos, a narrado-
ra parece explicitar uma certa simpatia pelo governo que devolve a
liberdade, as terras e os bens daqueles que se insurgiram contra ele:
Uma anistia geral fez esquecer os ódios inveterados e por uma bon-
dade especial do chefe da Nação todos os rebeldes ficaram em seus
antigos empregos, gozando dos seus direitos” (Osório: 1935, p. 73,
grifos meus).
Se o homem – o pai – é repreendido porque seguiu impulsos
patrióticos e se engajou nas fileiras farroupilhas, a mulher, mais ain-
da, vai merecer a censura por parte da narradora. Assim, aquelas que
se deixam envolver no conflito, longe de receberem palavras de
apoio, terminam por receber uma pouco discreta reprimenda. A
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adesão à política significava – para a narradora – o esquecimento
das “virtudes pacíficas de seu sexo” e, naturalmente, o abandono
das funções domésticas.
A caracterização da mãe de Fany contém alguns dos elemen-
tos que marcavam o comportamento das farrapas – as mulheres-
guerreiras que teriam fundado um partido político feminino, para
melhor participar da revolução. Segundo o texto, a mãe segue “a
torrente tempestuosa do entusiasmo”, é deslumbrada com os ide-
ais então defendidos, apoia sempre os atos do marido e chega a ir
ao campo de batalha levando consigo os filhos, pois quer ver o
que ali acontecia. Num momento de exaltação, exclama, “como
uma antiga espartana”: “Vai, eu cuidarei em tua ausência de nossos
filhos; repele os inimigos de nossa pátria, e não voltes se não voltas
vitorioso!” (Osório: 1935, p.70)
Opondo-se radicalmente à mãe e às mulheres engajadas estava
Fany. Ao invés de incentivar a guerra, ela a condena; sofre antecipa-
damente, prevendo a dor, os transtornos, os sofrimentos de todos.
Afinal, se ela era um modelo “ideal” de comportamento feminino,
parece-nos que outro não poderia ser o exemplo, a não ser o da
jovem que não toma partido entre as facções, fica indiferente à po-
lítica e não se deixa levar pelos arroubos dos que a cercam.
Fany, aliás a única personagem nomeada, caracteriza-se por
manter o mesmo comportamento – as mesmas “virtudes” – em
praticamente todo o texto, independentemente da situação em que
se encontra. Assim, ela é descrita aos 13 anos como filha exemplar,
jovem modesta, asseada, obediente e laboriosa; aos 15, em plena
revolução, tem oportunidade de desenvolver “grandemente todas
as virtudes de seu sexo”, animando a mãe, cuidando dos irmãos e
dos feridos; e oito anos depois (supõe-se, por volta dos 20) ela
aparece realizando exatamente o que havia sido antecipado pela
narradora, isto é: cuidando da casa, da educação dos irmãos me-
nores, zelando pela mãe viúva, numa dedicação sempre completa
e espontânea. Trata-se, pois, de uma personagem que não se altera
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apesar dos anos e se conserva praticamente a mesma do início ao
final da narrativa.
A sensível Fany pelo contrário, sem proferir uma palavra que ferisse
o que seu pai chamava nobre patriotismo, com sua mãe apresentava,
em sua mudez, um contraste singular com aquele entusiasmo, que
tão pouco se acordava com a doçura e timidez natural de seu excelen-
te caráter. Ela implorava ao criador pelos caros autores de seus dias e
continuava com ardor nos seus exercícios diários, sem que aquela
mudança política tão vantajosa para seu pai tivesse em nada influído
sobre seus hábitos ordinários. (Osório, 1935: p. 70, grifos meus)
A eclosão da revolução em sua província e mesmo dentro do
próprio lar não foi o bastante para alterar a rotina das obrigações
dessa personagem. Ao insistir na neutralidade e indiferença de Fany
por tudo que acontece à sua volta, a narradora parece estar preci-
samente firmando aí sua opinião de como deveria ser o compor-
tamento ideal de uma jovem.
Bem diverso foi o posicionamento de Mariana, a personagem
de Ana Eurídice Eufrosina de Barandas no interessantíssimo texto
intitulado ‘Diálogos’, publicado em O ramalhete ou flores colhidas no
jardim da imaginação (1845), também contextualizado na revolta de
1837. Neste, a personagem discute com seu pai (Humberto) e
com um primo (Alfredo) acerca do direito das mulheres de parti-
cipar da política, de tomar partido e defender suas opiniões. Seu
principal argumento apoiava-se no fato de que a revolução in-
vadia os lares, tumultuava as relações familiares, afastava os pais,
os irmãos e os filhos para longe das mulheres, levando-os aos
campos de batalha. Como – pergunta algumas vezes – a mulher
podia então manter-se indiferente e ocupar-se apenas de suas agu-
lhas e trabalhos domésticos? Se a esfera íntima estava contaminada
pela pública, tornava-se impossível – ela afirma – ignorar ou tentar
conservar as mesmas atitudes.
A influência do Direitos das mulheres e injustiça dos homens, de Nísia
Floresta, é evidente nesses “Diálogos”, nos muitos argumentos
utilizados pela personagem para convencer seus interlocutores da
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superioridade feminina, assim como dos direitos que elas tinham
ao estudo e a uma maior participação social. Porém, o mais inte-
ressante é que, ao mesmo tempo em que defende o direito de
participação feminina, a narradora não perde uma postura crítica
que questiona os reais objetivos da revolução, sua motivação e
desmascara os interesses dos homens, aí embutidos, tanto de um
partido como do outro.
Mas dizei-me, Alfredo, foi o bem da Pátria que acendeu o primeiro
facho da discórdia nesta Província? [...] sempre direi que quando
esses senhores penaram fazer esta desgraçada revolução, seus cora-
ções não estavam cheios só desse louvável sentimento: aí entrou
mais alguma coisa, ou interesse, ou vingança. [...] Quando a um
homem se apresentam vários partidos, ele não os segue indiferente-
mente; mas pesando-os lá no seu entendimento: aquele que lhe
oferece maiores vantagens é o que ele abraça, embora convenha ou
não convenha à Pátria (Barandas: 1990, pp. 100-102).
Em Nísia Floresta isso não ocorre. Apenas poder-se-ia esta-
belecer uma aproximação entre ela e Ana de Barandas no
posicionamento contrário que ambas fazem a “uma guerra entre
irmãos”. (Aliás, também Caxias se utilizará deste argumento – de
que todos eram brasileiros – para pôr fim à revolta). Faltou ainda
em Nísia não só um posicionamento definido por um ou outro
partido, ou por nenhum dos dois, como o reconhecimento do
direito que as mulheres devem ter de se engajar, ou não, em ques-
tões políticas. O espírito liberal-revolucionário da autora, sempre
tão aceso, aqui definitivamente não se manifesta. A falta de entusi-
asmo com que saúda os que se posicionam pelos farrapos e o
discreto regozijo pelas forças imperiais mostram-no bem. Preva-
lece, a meu ver, um posicionamento nacionalista – a Brasileira
Augusta – pouco afeito a tendências separatistas que colocariam
em risco a soberania e unidade nacional.
A ênfase na exaltação das qualidades da personagem terminam
por revelar o que realmente lhe importava: dar às virtudes femininas
um estatuto maior do que qualquer outra questão aí enunciada. Para
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compreendê-la (e, em parte justificá-la), basta que nos lembremos
das educandas do Colégio Augusto, as leitoras privilegiadas deste
texto. O objetivo era lhes dar um modelo de comportamento que
resumisse as virtudes desejadas em uma jovem. Por isso, os exem-
plos de abnegação total à família, de obediência irrestrita e amoroso
respeito aos pais, de cuidados maternais para com os irmãos meno-
res. Na negação da própria individualidade em nome do bem-estar
do outro, bem de acordo com os ditames do cristianismo e, depois,
do positivismo, parecia se apoiar a expectativa da autora de edu-
cação moral e de comportamento para a mulher.
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A mulher: nas origens da mística feminina
7
Armas há poderosas, que a mulher
Deve empregar com ânimo bastante:
São a doce bondade, a paciência,
A modesta ternura, a fé constante.
(Pensamentos)
No outro título de Nísia Floresta, A mulher, de 1857, é possível
observar tanto a conhecida diversidade de perspectivas que com-
põe o pensamento de sua autora, como o hibridismo de gêneros
que se configurou no traço comum da maioria de seus escritos.
Nele delineia-se com clareza o processo intelectual da autora e sua
oscilação entre a ficção, o ensaio, a crônica e o texto com propó-
sitos didáticos. É o momento por excelência de encontro entre seu
espírito criador e seu espírito crítico. Ela inicia como se estivesse
escrevendo um conto, mas não resiste ao apelo da análise e da
reflexão inerentes a sua personalidade e o transforma numa narra-
tiva, que guarda aproximações tanto com uma matéria jornalística
como com tomadas de cunho sociológico e filosófico. Há nele,
portanto, pelo menos três instâncias criativas: a ficção, o estudo de
campo e a reflexão; e três Nísias: a ficcionista, a observadora do
comportamento humano e, por fim, a filósofa. Cada um deles
está intimamente ligado ao outro e funciona, veremos, como uma
espécie de preparação ou de motivação para o seguinte.
7
A expressão ‘mística feminina’ tornou-se por conhecida com o livro de Betty Friedan –
Mística feminina, de 1964. Sua contribuição – a desmistificação da realização doméstica
– representou uma arrancada do movimento feminista nos anos 1960 e 1970 em muitos
países. Acerca da maternidade, ela indaga: “Sendo embora a maternidade uma condição
sagrada através dos tempos, defini-la como uma forma de vida total não seria negar à
mulher o resto do mundo e o futuro que diante dela se estende? Ou esta negação é que
obriga a considerar completa a maternidade?” Op. cit., p. 53.
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De início, narrada em terceira pessoa, temos a história de duas
mulheres que tomam um trem em direção aos subúrbios parisienses.
A ambientação e o clima realista se impõem desde o início. Vejamos
o próprio texto:
Agosto chegava ao seu fim. Uma temperatura de 30 graus parecia quase
sufocar os habitantes de Paris. Havia soado então o meio-dia, quando
duas mulheres entraram nos vagões da estrada de ferro de Estrasburgo
para ir a uma aldeia a vinte léguas de Paris. Após duas horas elas deixa-
ram a estrada de ferro, e tomaram um veículo que as conduziu, por entre
risonhas colinas, aonde pudessem achar um pobre lugarejo, escondido
entre as árvores de uma estrada não conhecida por elas.
O que iriam elas procurando? Por que os seus corações enterneciam-se
ao descobrir o campanário da aldeia, e daí a poucos passos a fumaça
que saía das chaminés de negras cabanas? (FLORESTA: 1997, p. 85)
O suspense provocado pela pergunta não se sustenta porque a
resposta vem a seguir: buscavam um “pobre anjinho abandonado
em mãos mercenárias”, ou seja, uma criança que ali fora deixada
para ser criada por uma ama-de-leite. Em encontrá-lo estava a
razão da viagem das personagens; na condenação desse costume
francês, a base da reflexão que se fará depois.
Nísia Floresta tratará, portanto, de um problema atualíssimo
na França daquele tempo e que, apesar das investidas dos filósofos
e médicos, não demonstrava ainda na prática sinais de esgotamen-
to. Bem antes do século XVIII, sabemos, mandar os filhos para a
casa das amas no campo costumava ser interpretado como uma
‘prova de amor’ das mães. Segundo este raciocínio, elas sacrifica-
vam seu desejo de maternagem em nome dos benefícios da saúde
que os filhos obteriam vivendo no interior, já que os ares da cida-
de lhes eram prejudiciais. Desde 1821 existiam em Paris estabeleci-
mentos particulares que serviam de intermediários entre as mães e
as amas, tal era sua procura.
As taxas de mortalidade infantil deviam ser amplamente co-
nhecidas, pois eram muito altas e alcançavam em algumas regiões
quase a metade do número de crianças. Segundo Elizabeth
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Badinter, em O amor conquistado: o mito do amor materno, que conta a
história da maternagem em França e explica como ocorreu a trans-
formação da mãe indiferente do século XVIII na mãe coruja do
século XIX, de 21 mil crianças nascidas em Paris em 1780, menos
de mil foram amamentadas pela mãe, outras mil por uma ama a
domicílio e as demais, 19 mil, foram enviadas para o interior para
a casa de amas-de-leite. Havia mesmo lugares na França em que
chegavam a morrer quase 90 crianças em cada cem, como era o
caso da Seine-Inférieure, onde, na década de 1860, morreram 87
crianças em cem nascidas vivas (Fort: 1870).
Mas, apesar dos números impressionantes relativos à morta-
lidade infantil, permanecia quase inalterado o comportamento
das mães francesas que continuavam enviando seus filhos às
mesmas nourrices e recusando-se a assumir o aleitamento. Não
faltou, inclusive, entre os que denunciavam tal situação, a acusação
de que tal comportamento encobria, na realidade, um infanticídio
disfarçado.
A indiferença materna pelo filho costuma ser explicada de
múltiplas formas: a insignificância social da criança, que era então
apenas um “objeto tedioso”ou poupart; a existência do amor sele-
tivo que privilegiava um filho em detrimento dos outros (geral-
mente o primogênito, herdeiro exclusivo do patrimônio e dos tí-
tulos quando os pais eram nobres); a educação equivocada das
meninas que apenas incentivava o gosto por futilidades; e, ainda, o
fato de as tarefas maternais serem consideradas apenas normais e
não trazerem em si nenhuma glória para a mulher.
Além disso, havia o fato de essas tarefas representarem muitas
vezes um estorvo para a vida social burguesa, impedindo muitos
dos prazeres da vida elegante: receber e fazer visitas, frequentar os
teatros, a ópera e os salões. A taxa elevada de mortalidade devia
contribuir também para que as mães não se apegassem muito aos
bebês, pois podiam perdê-los com facilidade. Elas ainda não ti-
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nham consciência de que essas taxas eram tão altas justamente de-
vido ao seu pouco, ou nenhum, cuidado.
Só a partir da década de 1870, essa questão parece adquirir
importância e se tornar um problema nacional, pois passa a ser
motivo de várias matérias de jornais, de calorosos debates entre a
classe política e de preocupações do governo e dos médicos. Foi
para reverter tal quadro, que se formou quase que um complô
entre Igreja, filósofos, moralistas e médicos. Estes, empenhados
na criação de uma nova ordem social e decididos a garantir ao
Estado um maior número de sobreviventes, montam os mais va-
riados argumentos, inclusive comparando a mulher que não ama-
menta com a fera, que, apesar de fera, amamenta seus filhotes.
Compreendia-se que só o apelo ao amor materno não era capaz
de levar uma mulher a cumprir seus deveres de mãe. Os valores
sociais, religiosos e morais foram, então, mobilizados.
A divulgação dos índices de mortalidade entre recém-nasci-
dos franceses passa a ser sistemática, bem como a do baixo cres-
cimento demográfico do país, motivo de grande preocupação
para os governantes. Afinal, a riqueza de uma nação numa socie-
dade capitalista emergente media-se também pelo número de ho-
mens que a compunha. Daí a sobrevivência das crianças tornar-se
fundamental e até uma questão de honra para todos, o que tam-
bém explica o grande empenho para a alteração de um costume
tão arraigado. Formou-se a consciência de que era necessário ope-
rar quase uma revolução nas mentalidades para conseguir que as
mães passassem a cuidar, elas mesmas, dos seus filhos.
Também entre os romancistas da primeira metade do sé-
culo, em cujas obras se refletiu a situação de abandono infantil,
encontra-se muitas vezes o registro do envio dos filhos para o
campo e da recusa da mulher em amamentar, apenas como um
fato social corriqueiro, sem qualquer comentário contrário do
narrador. Em La petite fadette, de George Sand, por exemplo,
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uma mulher do campo, que tem filhos gêmeos, é aconselhada a
recorrer a uma ama apesar de ter leite suficiente, porque ama-
mentar os dois podia enfraquecê-la. Isso só não ocorre porque a
mãe acha caro o preço da ama e resolve fazer economia ama-
mentando ela mesma os seus filhos. Só depois que se decide a
fazer isso, surge uma referência no texto sobre a dificuldade que
ela teria em escolher qual filho iria entregar à ama. (Sand: 1935)
Apenas na década de 1850 – principalmente após Madame Bovary
– o ato de contratar amas-de-leite se tornará também uma ques-
tão de denúncia por parte dos escritores mais comprometidos
com uma reforma social.
Nísia Floresta, ao fazer a análise do problema e ao condenar
com veemência tal costume, se por um lado junta sua voz àquelas
que nesse tempo já se preocupavam com a questão, por outro se
antecipa em alguns anos ao grande debate que ocorrerá no país.
Ao dedicar esse texto àquelas mães que abandonam os filhos, ela
contribui também para a mudança de comportamento das mu-
lheres francesas, principalmente através da louvação da função
materna e da insistente demonstração do quanto a prática de dei-
xar as crianças em mãos estranhas era nociva para eles e para a
sociedade como um todo.
Assim, quando as personagens de A mulher se afastam de Paris
e chegam ao subúrbio, elas encontram uma outra realidade que
revela, por sua vez, a verdade que a cidade grande tentava ocultar
afastando-a de seus limites. Daí o lugarejo ser escondido entre
árvores e a estrada não conhecida por elas. Ao adentrarem no
subúrbio e ao encontrarem ali as provas das mazelas sociais, as
personagens adentram também no próprio interior da condição
feminina e encontram sua outra face e sempre muito escondida: a
falta de amor de muitas mães para com os filhos. Afinal, não se
costumava alardear que o amor materno era inato a todas as mu-
lheres e que fazia parte mesmo da natureza feminina?
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O narrador, melhor dizer, a narradora, detectará com precisão
esse problema social e o explorará em profundidade nas páginas
seguintes. Por isso a descrição tão contundente do local onde se
encontrava a criança que as duas personagens buscavam:
Finalmente, à força de tanto procurar, conseguiram descobri-lo; e o veí-
culo parou diante de uma abjeta cabana. Apearam da carroça e entraram
naquele tugúrio, sem serem recebidas por ninguém. Ó que espetáculo,
repugnante e ao mesmo tempo triste, oferece-se aos seus olhares!...
Um úmido aposento, sem ar, com um assoalho de pedras disfor-
mes cobertas de lodo; uma janela, ou melhor um buraco, jogava
como que uma réstia de luz sobre os sujos e velhos móveis que
entulhavam aquela caverna humana, onde a panela do domingo
fervia no enegrecido fogão. Uma cama, cujo escuro baldaquino com-
binava com o restante dos objetos espalhados aqui e ali, anunciava a
desordem e a falta de qualquer asseio. A eira lotada de pútrido estru-
me tresandava, não menos que o quarto contíguo, um odor desagra-
dável impossível de suportar.... As duas mulheres entreolharam-se
sem que pudessem dizer palavra (Floresta: 1997, p. 85).
Se comparamos a descrição do casebre aonde as personagens
chegam com a que Flaubert faz da casa da ama-de-leite da filha de
Ema Bovary, mais nítidas se tornam as diferenças entre as intenções
dos dois escritores. Nísia Floresta pretende, antes de tudo, impressi-
onar o leitor e a leitora com as condições miseráveis de vida que
estavam reservadas às crianças que moravam na casa das amas-de-
leite. Por isso, a narrativa vem revestida de cores sombrias, como as
que pinta a cena do casebre, e também por isso as personagens se
apresentam tão revoltadas.
Em Madame Bovary (que, curiosamente, é do mesmo ano de
A mulher: 1857), a descrição da pobreza do local onde reside a filha
de Ema Bovary remete para a “chaminé poeirenta”, os “cotos de
vela de sebo”, a “água suja” pela erva, os “vários tipos de trapos” e
o “grande lençol de estopa” estendidos no varal. O quarto “no rés-
do-chão, o único da casa, tinha ao fundo, encostada à parede, uma
cama sem cortinas, enquanto a masseira estava ao lado da janela,
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onde um vidro partido fora colado com uma rodela de papel azul”.
A crítica de Flaubert parece privilegiar a questão do caráter das per-
sonagens, que pode ser observado principalmente a partir da ação,
dos gestos, de tudo, enfim, que compõe a cena e que, ao final, tra-
duz, e bem, sua miséria moral e física. Também o aspecto mercená-
rio da relação mãe/ama-de-leite é apontado insistentemente através
das inúmeras investidas que esta última faz junto a Ema para obter
mais algum dinheiro (Flaubert: [s.d.], pp. 72-73). Tais detalhes de
cenário e de caracterização de personagens têm, no romance, uma
função integrada e inserem-se no conjunto maior de representação.
Já a narrativa de Nísia Floresta, justamente pelo tom forte, beira a
tese e o compromisso social panfletário que movia a escritora.
Em A mulher, também as preocupações de caráter higienista
são mais numerosas e se evidenciam seguidamente nas observa-
ções da falta de asseio, da “atmosfera impregnada de miasmas”,
dos “imundos panos”, do “corpinho lânguido e enfermiço” da
criança e das condições miseráveis em que aquelas pessoas viviam.
Tais observações não deixam de refletir, evidentemente, o
estranhamento do olhar burguês diante das condições de vida de
uma outra classe social.
Mas, de repente, uma das mulheres interrompe a narrativa que
se fazia na terceira pessoa e assume a identidade de autora que ali
estava acompanhando uma amiga – a avó da criança – assumindo
também a narrativa em primeira pessoa. É precisamente aí que
inicia um outro momento, o segundo desse texto. Agora, bem
diverso será o enfoque do problema e o tom de quem o descreve,
pois tratar-se-á da voz de quem vivencia a experiência.
Ó mães sem coração, que abandonais os mais sagrados deveres da
natureza, destacando de vosso seio os próprios filhos, esta parte de
vossa alma, para mandá-los sugar um leite estranho em alguma
longínqua aldeia, onde não dais depois o ar de vossa presença! A vós,
somente, quero narrar o que vi: ante vossos olhos quero eu delinear
o deplorável quadro que partiu-me o coração, e que verbalizará o
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processo de vossa desnaturação face às gerações porvindouras! (Flo-
resta: 1997, p. 87, grifos meus).
A partir de então, ainda quando o vocativo que designa as
leitoras privilegiadas não estiver explícito, estas estarão presentes
através das chamadas da ensaísta e dos conselhos que faz ao cora-
ção feminino acerca da missão da mulher na sociedade. O segun-
do momento se inicia, portanto, quando a companheira de aven-
tura resolve retornar a Paris para interceder pelo neto junto ao
genro e a autora decide alugar um quarto em casa de uma pastora
e ficar sozinha na aldeia por mais algum tempo. Ela pretende estu-
dar melhor aquelas mulheres através da observação in loco e reco-
lher informações que lhe permitam compreender, com mais pro-
fundidade e extensão, o problema.
As diferenças entre os sentimentos das duas amigas – a francesa,
“comovida até a alma”; e a brasileira, “mais que comovida, horrori-
zada” – pretendem marcar também as diferenças que existiriam
entre as duas sociedades.
Pelo costume que ela tinha de ver tais cenas, seu coração não sofria
senão porque esse menino era seu neto; mas cenas deste tipo, por
serem novíssimas para mim, causavam-me não menos surpresa do
que horror e quis obter daí argumento para um estudo não total-
mente inútil (FLORESTA: 1997, p. 95).
Com efeito, não houve no Brasil a prática da criação de filhos
afastados da mãe e junto das amas, até porque era outra a experiên-
cia política. Mas se essa prática não ocorreu, existiu por sua vez a
presença constante da escrava ama-de-leite (ou mãe de criação e
mãe-preta), que durante alguns séculos também substituiu a mulher
junto aos filhos, não só na nutrição como em todos os cuidados que
se faziam necessários para sua criação.
Curiosamente, nossa autora não quis relacionar no seu texto o
problema da perspectiva francesa com a modalidade brasileira,
até para constatar o quanto era comum naquele tempo as mulhe-
res se esquivarem de suas tarefas maternais. Havia, inclusive, o re-
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forço ideológico (tanto num como no outro caso) de que a mu-
lher burguesa era fraca, não tinha leite ou que a amamentação aca-
baria por exaurir suas forças após o esforço do parto, compro-
metendo sua sobrevivência. A estes se somavam os argumentos
de ordem moral e social que consideravam o aleitamento um ato
pouco digno e animalesco e decretavam “em nome do bom-tom”
ser a amamentação “ridícula e repugnante”. Também é preciso
considerar que as advertências de ordem religiosa ou médica, im-
pedindo a mulher lactente de manter relações sexuais, encontra-
vam forte resistência junto aos maridos, que passavam a encarar a
amamentação como um “atentado a sua sexualidade e restrição
ao seu prazer”. (Badinter: 1985: pp. 97-98)
Não é de surpreender, portanto, que a maioria recorresse a um
ou outro expediente como forma de se eximir dessa obrigação. No
caso brasileiro, a mulher negra estava à mão e possuía todos os requi-
sitos necessários para bem alimentar as crianças. Não faltavam nem
mesmo tratados médicos que lhes acentuavam as vantagens nutricionais
e “condições eugênicas” ou os que atribuíam uma influência diferenci-
ada do clima tropical sobre as mulheres brancas e negras, alterando a
capacidade de amamentação de uma e outra. Segundo um desses
estudos, o clima esgotava as forças vitais nas brancas e irritava seu
sistema nervoso; enquanto nas outras, ao contrário, a saúde prospera-
va e também o seu poder de amamentação. Apenas quando deixou
de ser conveniente acreditar nessas falácias, inverteram-se os valores: a
escrava deixa de ser o “anjo da guarda” do menino branco e se torna
o “demônio doméstico”, um elemento corruptor da família branca;
seu leite passa a ser considerado vicioso, impuro, um transmissor de
doenças. Estava decidido que era tempo de a mãe-branca-burguesa
assumir suas responsabilidades.
Mas voltemos ao texto nisiano. No momento em que decide
observar in loco o problema, a autora assume um papel de narrado-
ra-repórter, e seu texto, as dimensões de uma reportagem. Assim,
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ela faz entrevistas, visita casas, interessa-se pela vida das crianças e
das mulheres, recolhe depoimentos, acumula experiência.
Através dos flashes dos diversos casos e do registro de fla-
grantes da vida no campo, seu texto adquire foros de verdade
porque tais imagens são descritas por alguém que viu e que viveu a
situação. Ao invés de se limitar a um superficial registro formal, de
simplesmente comentar um acontecimento de que ouvira dizer, a
autora investiga a fundo e se autoriza assim, aos olhos das leitoras,
a falar a respeito. A transcrição dos diálogos entre ela e as mulheres
é um dos recursos utilizados que contribui para tornar ainda mais
real sua narrativa e também para aproximá-la mais de uma pesquisa
de caráter sociológico.
Em um bando de garotos que gordos e contentes brincavam alegre-
mente, achava-se uma grácil criaturinha carregada por uma menina de
7 ou 8 anos, que a revirava em seus braços. Ao avistá-lo perguntei
àquela inocente que o tinha em custódia se era um seu irmãozinho. –
“Não”, respondeu-me, “é um amamentado de Paris”. (...)
Vindo ao meu encontro outra camponesa, mostrava-me uma carrei-
ra de seis ou sete meninos, todos vivazes e robustos, indicando-os
pelo nome para satisfazer minha curiosidade. – “E aquela lá?” de-
mandei-lhe, indicando uma menininha que ainda não se sustinha
bem em pé. – “É um dos meus dois amamentados de Paris”. –
“Como fazeis vós” repliquei, “para amamentar três de uma vez?” –
“Que hei de fazer?” – respondeu; “aqui é tão duro tocar a vida! e é
preciso arranjar-se de algum jeito” (Floresta: 1997, p. 97).
Em pouco tempo, ao observar que os meninos de Paris eram
sempre os mais sujos, amarelos e mirrados, o texto desmascara o
habitual pretexto das mulheres de manterem os filhos distantes
devido ao ar campestre ali existente. A isto, somam-se as denúnci-
as colhidas nas declarações das camponesas de pais que deixavam
de mandar a quantia combinada; de outros que se mudavam e
nunca mais davam notícia; de crianças que morriam, e o responsá-
vel nem ficava sabendo. Também surgem das páginas um sem
número de pequenas tragédias vividas por algumas crianças: como
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a do bebê que caiu e quebrou um braço; a do que morreu devido
a uma papa muito dura; a de um outro ainda que foi devorado
por um leitão no quintal da casa onde morava. O valor desse texto
reside, sem dúvida, justamente na construção realista de um painel
de época e do problema social dos amamentados que a afligia. E
no seu papel demolidor, ao realizar o desmascaramento das falsas
notícias de que as crianças eram felizes e bem tratadas pelas amas.
A atitude pretensamente imparcial que a autora tenta adotar
em seu estudo não se sustenta. O interesse demonstrado pelas cri-
anças abandonadas termina por trair a aparente curiosidade. Ape-
sar das evidências de falta de cuidado e da ganância de muitas
camponesas, ela ainda assim justifica e compreende o lado das
amas-de-leite – as mercenárias, como se dizia – e delas mostra
uma outra face pouco conhecida: humana e explorada. Em última
instância, seu texto conclui que não eram elas as culpadas de as
crianças serem ali maltratadas e de até morrerem, pois a rigor não
tinham condições nem de criar os próprios filhos, tais as dificulda-
des econômicas e tantas as atividades que tinham de desempenhar
para sobreviver. A grande culpa – naturalmente, pode-se até dizer
– recai sobre a mulher burguesa que não amamentava e mandava
os filhos para serem criados longe de suas vistas. A autora apela
assim também, como a Igreja e os higienistas faziam, para a culpa-
bilidade das mulheres, como forma de conseguir convencê-las a
assumir os cuidados com os filhos.
O fato de Nísia Floresta ter realizado um estudo de campo e a
partir do conjunto das impressões recebidas fazer uma abstração e
ainda teorizar a respeito poderia talvez sugerir uma aproximação
entre sua atitude “científica” com a corrente filosófica e religiosa
positivista, que valorizava o conhecimento racional fundado na ob-
servação e experiência. Mas, essa aproximação deve ficar reduzida
apenas à atitude empírica da pesquisadora. O aforismo comtiano
‘ver para crer’ era limitado, é bom lembrar, pelo dogma positivista
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que negava a explicação do porquê dos fenômenos. Estes podiam
ser conhecidos apenas em suas relações – isto é, como aconteciam –
e nunca em sua essência ou causas íntimas.
A autora, porém, (e seu texto o confirma) não se detém nos
fatos observados e quer conhecer sua origem. E é precisamente
nesse avanço da investigação que reside seu distanciamento da con-
duta científica positiva. Aqui ela pergunta e ela mesma responde:
Qual é a origem de tantas monstruosidades que vemos produzidas
em todo lugar pela civilização, e alimentadas pelo hábito?
Não é preciso procurar muito para trazê-la à luz, porque ela está clara
por toda parte.
A descrença!
E de onde vem este flagelo destruidor?
Da educação.
A educação moral, de que tenciono aqui falar, falta geralmente por
toda parte: por toda parte é esboçada, não sendo em parte alguma
levada a cabo. Daí a origem e a causa capital de todos os males morais
que afligem, e afligirão ainda por muito tempo o gênero humano
(Floresta: 1997, p. 111).
Passemos ao terceiro e último momento desse texto, qual seja, o
da elaboração de reflexões que a autora, já em Paris, faz acerca de sua
experiência. A narrativa se distancia da ficção e ganha um certo tom
ensaístico e moralizante. Assume um tom pessoal com o foco narra-
tivo na primeira pessoa e adquire uma atitude crítica que bem revela o
amadurecimento das convicções e a plenitude intelectual e existencial
de quem o escreve. Ao retomar as “forças-motrizes” de seu pensa-
mento, ou seja, os assuntos que sempre motivaram seus escritos, ago-
ra com mais veemência e mais apelos persuasivos visando a todo
custo conduzir o pensamento de sua leitora, o texto adquire um cará-
ter nitidamente formativo, pois, mais que informar, pretende formar
consciências e propor uma reforma em termos de comportamento.
Esse terceiro momento será, também, o momento da catarse
e do desabafo autoral. A mulher que retorna não é de forma algu-
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ma a mesma que partiu, pois esta vem desgostosa, impressionada,
marcada pelas “dolorosas excursões” e tem o coração fechado de
angústia. O fato de haver conhecido um outro lado da grande
cidade parece ter dado a ela mais forças para resistir aos seus en-
cantos e não se deixar seduzir por seu aparente esplendor.
O brio daquela altiva e clamorosa metrópole, os seus palácios suntuo-
sos, os belos monumentos, os esplêndidos cafés, domicílio eterno
dos ociosos, as ricas lojas, as filas das carroças que se dirigem ao luxu-
riante bosque de Boulogne para recreação dos elegantes e de todos
aqueles que folgam; esses milhares de pessoas que vão e vêm por toda
parte, alguns a negócios, alguns a passeio; todo esse movimento en-
fim, que mostra a operosidade de um povo inteligente e progressivo,
apertou-me ferozmente o coração e, como disse, quase repugnou-me.
Porque à memória de tantos infelizes que morrem à míngua nos
sótãos e dentro de escuras tocas, mesmo em meio a esta grande cidade
que exibe um luxo tão desmedido, juntava-se agora a memória daque-
las pobres crianças dadas em custódia, ou melhor dizendo, confinadas
naqueles campos, enquanto seus pais fazem parte de um tão grande
movimento de gente! (Floresta: 1997, p. 105).
O olhar que agora estende sobre a cidade está impregnado da
força da realidade que conheceu nos campos e mesmo quando apa-
rentemente divaga por entre outras questões, ao fundo permanece
o quadro das crianças abandonadas pelas mães a lhe servir de cons-
tante inspiração. Com esse olhar novo desvenda o egoísmo, a vaida-
de burguesa e a hipocrisia social que impediam os pais abastados de
optar pelas creches em vez das amas. Segundo o raciocínio burguês,
como aquelas “casas de caridade” eram utilizadas pelos mais humil-
des, não ficaria bem se eles – os burgueses – o fizessem. “Falta a eles
o coração, mas não o orgulho e a vaidade”, conclui a autora.
É nesse momento, portanto, que melhor se visualizam a edu-
cadora e a filósofa existentes na voz autoral. Ela medita sobre os
“progressos da civilização”, “as modernas descobertas”, os “no-
vos milagres da arte e do engenho”, enfim, tudo aquilo que com-
punha o amplo leque de novidades tecnológicas e se convertia em
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orgulho para os que viviam naquele século. O tom professoral e
moralista é, naturalmente, evidente:
Desaparecem as ruínas, embelezam-se as cidades, cercam-se os quar-
teirões para ficarem mais bonitos; por terra e por mar voa o comércio
nas asas do vapor que encurta as distâncias e irmana os povos; es-
plêndidas festas, congressos científicos e literários difundem-se em
toda parte; em toda parte escuta-se o grito do progresso, ecoando de
um pólo ao outro (Floresta: 1997, p. 109).
Seu novo olhar não se deixa enganar com os falsos brilhos do
avanço técnico e material; enxerga outros aspectos geralmente es-
quecidos e denuncia o lado podre da modernidade que então se
impunha. A origem da degradação social, segundo ela, estaria na
ausência de uma educação moral efetiva, a única capaz de curar “as
chagas gangrenadas da sociedade” e de completar a obra do pro-
gresso a um bom termo. Por educação moral, parece compreender
agora a massificação das virtudes – como amizade, abnegação, com-
preensão, laboriosidade – em todos os seres humanos, de modo a
ampliar os laços de solidariedade entre os homens. O componente
romântico de seu protesto é inegável e, talvez por isso, o tom mora-
lista e a intenção moralizante atingem aqui o seu ápice. A autora
pretende contribuir com seu protesto, repetimos mais uma vez, para
a melhoria social como um todo e, especificamente, para a reabilita-
ção da condição feminina. De certa forma ela faz, nestas reflexões,
um diálogo com aquela que era a grande problemática de seu tem-
po: o conflito entre a modernidade e a realização do ser humano.
O motor capaz de dar um novo impulso a tudo isso, mas que
ainda falta fazer funcionar, não é outro senão o coração feminino.
Assim, finalmente, a autora alcança seu objetivo e tudo o mais
adquire o aspecto de uma grande introdução à questão que real-
mente queria desenvolver. Ela estava convencida (esse texto nos
confirma) da superioridade moral feminina, pois a mulher pos-
suía, como elementos inerentes e inatos à sua natureza, justamente
a ternura e a capacidade de doação e amor. Mas, observa, não
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bastava que a “natureza” lhe tivesse dado estes dons: era preciso
orientar seu coração através de “uma educação culta e fortificada
na prática do dever e na razão”, para que ela o utilizasse em bene-
fício dos outros. (p. 113)
Para a construção da mulher que o século XIX pedia, era neces-
sário, antes de tudo, dar a ela o sentido das “coisas úteis” e desinfetar
sua alma dos falsos discursos de teóricos que atordoavam as mentes
femininas com suas promessas e, ao fim, mantinham-nas submissas
aos seus caprichos através de uma educação que pouco acrescenta-
va. O “mau uso” que elas faziam de sua “ascendência” sobre os
homens não podia ser, portanto, culpa delas, mas sim da educação
que recebiam e dos homens que a incentivavam.
Nísia Floresta realiza neste momento de seu texto uma espécie
de retomada das ideias que primeiro apareceram nos Direitos das
mulheres e injustiça dos homens. Temos, assim, a enumeração de alguns
preconceitos relativos às mulheres; a denúncia do abuso do poder
masculino, da dupla moral e de uma educação que servia apenas
para transformar as mulheres em bonecas para exclusivo usufruto
masculino. A ironia com que trata os que defendem tal redução
para o destino feminino bem dimensiona sua consciência do pro-
cesso utilizado por eles tanto na sedução como na exploração da
mulher. Quando, novamente retoma o diálogo com as leitoras, é
para mais uma vez exortá-las a se conscientizarem de sua condição
de exploradas e indicar-lhes o caminho que devem seguir. Mas,
esse caminho, longe de ser o da revolta, consiste precisamente no
reforço de um ideal feminino como, aliás, ela também havia feito
em Direitos das mulheres. Em suas palavras:
Mostrai-vos todas generosas, ó mulheres; em vez de gritar contra os
erros, e injustiças, dos quais sois vítimas, procurai com vossa natural
doçura, com uma bondade inalterável, e com prudentes observa-
ções, extirpá-los de seu transviado espírito, e pô-lo no bom cami-
nho, o caminho da felicidade.
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Será essa a vossa mais digna vingança: será esse o único nobre expe-
diente capaz de preparar-vos uma vida mais condizente com a vossa
própria dignidade, e com a vossa verdadeira missão sobre a Terra
(Floresta: 1997, p. 129).
Se as mulheres – a autora está convicta – se unissem em torno de
um projeto comum de automelhoramento e decidissem reconduzir o
próprio destino com o propósito de tornar-se “útil à família e a toda
a humanidade”, elas seriam as responsáveis pela regeneração da hu-
manidade e se tornariam merecedoras da ‘glória maior’. A apologia
que se segue da mulher e do seu poder advindo do sentimento (ou de
seu coração) é nossa conhecida, pois está também em outros escritos
de Nísia Floresta. O mesmo ocorre com a visão idealizada – quase
utópica – do triplo papel de mãe, esposa e filha, que ela desempenha
junto à sociedade. Os deveres passam a ocupar, assim (e por muito
tempo ocuparão), o espaço requisitado antes, por ela mesma e por
outras escritoras, dos direitos das mulheres.
Filha! Amai e respeitai os vossos pais, não por uma fórmula de
obediência vulgar, mas por um sagrado dever que é tão doce de se
cumprir para os amorosos protetores da nossa infância [...]. (p. 133)
Esposa! Guardai intacta a fé que jurastes ao homem por vós escolhi-
do, e fazei vossa delícia em dar-lhe prova [...] de que vós sois para ele
não apenas um autômato, mas uma amiga circunspecta e devota, uma
companheira inseparável e necessária à sua vida em qualquer vicissitude
[...]. (p. 135)
Mãe! Esta, ó mulheres, esta é a um só tempo a vossa mais doce, mais
nobre, mais relevante obra a cumprir. (Floresta: 1997, p. 139)
Provavelmente, no desejo de mais ainda valorizar esses papéis,
eles passam a ser acompanhados de expressões tomadas de em-
préstimo à religião, que terminam por lhes dar uma certa dignida-
de em sua aura mística. Assim, o dever filial é um dever doce de
cumprir; a vida conjugal, a “mais digna e santa”. A maternidade é
sempre uma santa função, uma missão, um sacerdócio, uma vo-
cação. E, de acordo com esse campo semântico, o lar é um paraíso,
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a mãe ‘uma santa’, e toda mãe é sinônimo de ‘santa mulher’. Essas
imagens permitem-nos deduzir o sacrifício do prazer individual
em prol da família, conforme o comportamento de renúncia que
se esperava das mulheres, incentivado pela religião.
Assim, para corresponder ao título de mãe, cabia à mulher re-
nunciar aos “prazeres do mundo” e dedicar-se única e exclusiva-
mente aos filhos sob pena de ser culpada por qualquer ‘mal’ que lhes
acontecesse. Foi precisamente para mais reforçar a opção das mu-
lheres pela maternidade, que esta e outras autoras se empenharam na
condenação da “mulher de sala” e da mundana. Para Maria Amália
Vaz de Carvalho em Mulheres e educação – Notas sobre educação (1880),
a vida dos salões enerva o corpo, excita a imaginação e torna a
mulher soberba, fútil e desinteressada pela casa. Júlia Lopes de
Almeida, em Livro das noivas (1891; 4 ed. 1926) e em A maternidade
(1925), também se empenha na culpabilização da mulher que dei-
xasse o filho em casa para se divertir e alardeia as delícias da vida
doméstica. Era preciso encontrar apenas nos afazeres domésticos
sua plena realização e não desejar nada mais além disso. A recom-
pensa por sua dedicação se revelaria na gratidão do marido, no
carinho dos filhos, na casa organizada e, ainda, na “estima honrosa”
com que os “intelectos iluminados” distinguiam as mães.
Entre os conselhos que a autora dá às mães, está precisamente
o reforço do modelo estereotipado de uma dedicação exclusiva
ao lar. Ser boa mãe era, antes de tudo, esquecer de si mesma, ser
“amorosa, simples, franca, autêntica, justa e modesta” diante dos
filhos. Também significava não os confiar a ninguém; amamentá-
los; zelar por sua saúde e por seus estudos; ajudá-los a “discernir o
verdadeiro caminho”; desenvolver neles o “amor à humanidade”,
à ordem, à parcimônia, ao trabalho. Entre seus conselhos encon-
tra-se ainda um que recomenda dar um tratamento igualitário aos
meninos e às meninas como forma de prevenir os preconceitos e
modificar naqueles a opinião futura sobre as mulheres.
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Nascestes mulheres e assim mostrai-vos; não apenas na acepção des-
te vocábulo nos lábios dos vossos amáveis e lisonjeiros antagonis-
tas, mas dando prova daquela virtude que melhor condiz convosco;
a abnegação (Floresta: 1997, p. 133).
A construção da identidade feminina – sabemos hoje – teve
que passar necessariamente pelo resgate da função biológica e pela
delimitação do papel da mulher junto à família. E, ao contribuir
para a construção dessa identidade, o nome de Nísia Floresta se
alinha também entre os das teóricas (e teóricos) da reformulação
da maternidade e do papel da mulher em nosso país e mesmo na
França, pois estava convencida (ela e as demais jornalistas e escri-
toras suas contemporâneas) de que esse “novo comportamento”
daria status e poder para as mulheres e representava a grande chance
para que estas se reabilitassem e se tornassem úteis à sociedade.
Nísia atual
Não é o caso aqui, naturalmente, de negar a extrema impor-
tância que essa etapa representou na trajetória das conquistas femi-
ninas. Ao contrário, é preciso reconhecer que significou, na época,
um passo adiante no encontro da dignidade e do respeito social.
Apenas é preciso observar que, ao enfatizar nos seus escritos as
“virtudes naturais” da mulher, ao lhe atribuir uma ação moraliza-
dora diante da família e ao considerar a educação moral como a
responsável pela maior consciência dos seus deveres, a autora ter-
mina por contribuir também para a construção e a cristalização de
uma “mística feminina” que ocorria naquele momento e por tocar
as mesmas teclas de outros pensadores, em tudo contrários a uma
ampla emancipação da mulher. No caso específico de Nísia Flo-
resta, a autora estava tão impregnada da própria mística – a ima-
gem construída de mãe dedicada e saudosa do filho distante – que
não era mesmo possível conseguir romper com ela e exercer, fi-
nalmente, uma crítica sobre a sua função discriminatória. Segundo
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essa mística, o melhor destino era “viver sua feminilidade” e ter
como únicos sonhos ser uma boa mãe e esposa perfeita, o que
estreitava o mundo feminino aos limites do lar.
Para nós é fácil perceber a posterior manipulação ideológica
desse discurso e suas consequências na vida das mulheres nas déca-
das que se seguiram. Da mesma forma, pode-se compreender os
motivos que levaram tantas mulheres a ver no elogio da materni-
dade a fórmula mágica de escapar da condição desprezível em
que a maioria delas vivia. Basta que tenhamos em mente as descri-
ções que historiadores e viajantes fizeram da vida da mulher no
Brasil Colônia e não as consideremos nem como fantasia nem
como exagero de seus livros. De “escrava doméstica” a “rainha
do lar” parecia haver uma grande distância. Tão grande que enga-
nou a maioria das mulheres, incluindo aí até as mais lúcidas. Por
isso, repito, apenas hoje é possível perceber a transformação de
“libertação” numa nova camisa-de-força. Ou de como os “deve-
res” obscureceram os “direitos” e como foi difundida a crença de
que a mulher só era capaz de realizar as tarefas ligadas à casa, ao
marido e aos filhos. As mulheres de então não podiam mesmo
perceber a nova forma de enclausuramento que se impunha, tão
grande era o seu poder e tão sedutores os seus disfarces.
Mas, de uma coisa nossa autora estava certa: apenas a educa-
ção era capaz de tirar o gênero feminino da submissão a que esta-
va relegado, e de dar às mulheres as condições necessárias para
serem donas de seus destinos. Enfim, esta é Nísia Floresta, autora
de importantes páginas de nossa história que revelam a difícil tra-
jetória que foi preciso cumprir na busca e na construção da identi-
dade e dos direitos da mulher brasileira.
Constância Lima Duarte é mestra em letras pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro e doutora em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo. É
professora adjunta da Universidade Federal de Minas Gerais. Atua em temas como
literatura de autoria feminina, crítica literária feminista, literatura do Rio Grande do Norte,
literatura de Minas Gerais e crítica literária.
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Direitos das mulheres e injustiça dos homens
Por que a ciência nos é inútil?
Porque somos excluídas dos cargos públicos;
e por que somos excluídas dos cargos públicos?
Porque não temos ciência.
Direitos das mulheres e injustiça dos homens, 1832.
Capítulo I
Que caso os homens fazem das mulheres, e se é com justiça
Se cada homem, em particular, fosse obrigado a declarar o
que sente a respeito de nosso sexo, encontraríamos todos de acor-
do em dizer que nós nascemos para seu uso, que não somos pró-
prias senão para procriar e nutrir nossos filhos na infância, reger
uma casa, servir, obedecer, e aprazer a nossos amos, isto é, a eles
homens. Tudo isso é admirável e mesmo um muçulmano não
poderá avançar mais no meio de um serralho de escravas.
Entretanto, eu não posso considerar esse raciocínio senão como
grandes palavras, expressões ridículas e empoladas, que é mais fá-
cil dizer do que provar. Os homens parecem concluir que todas as
outras criaturas foram formadas para eles, ao mesmo tempo em
que eles não foram criados senão quando tudo isso se achava dis-
posto para seu uso. Eu não me proporia a fazer ver a futilidade
TEXTOS SELECIONADOS
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deste raciocínio; mas concedendo que ele tenha alguma pondera-
ção, estou certa que antes provará que os homens foram criados
para o nosso uso, do que nós para o deles.
É verdade que o emprego de nutrir as crianças nos pertence,
assim como a eles unicamente pertence o de gerá-los; se este últi-
mo lhes dá algum direito à estima e respeito públicos, o primeiro
nos deve merecer uma porção igual, pois que o concurso imedia-
to dos dois sexos é tão essencialmente necessário à propagação da
espécie humana, que um será absolutamente inútil sem o outro.
Que direito pois têm eles de nos desprezar, e pretender uma
superioridade sobre nós, por um exercício que eles partilham igual-
mente conosco? Todos sabem, nem se pode negar, que os ho-
mens olham com desprezo para o emprego de criar filhos e que é
isso, às suas vistas, uma função baixa e desprezível; mas se consul-
tassem a natureza nesta parte, sentiriam sem que fosse preciso di-
zer-lhes, que não há no Estado Social um emprego que mereça
mais honra, confiança e recompensa. Basta atender às vantagens
que resultam ao gênero humano para convir-se nisto; eu não sei se
até por essa razão unicamente, as mulheres não mereciam o pri-
meiro lugar na sociedade civil
7
.
Qual foi o fim para que os homens se reuniram em sociedade,
senão para terem suas vidas mais seguras e pacificamente gozarem
tudo que lhes apraz?
Todos aqueles, pois, que mais contribuem a essa vantagem pú-
blica devem por isso obter maior porção de estima pública. Ora, as
mulheres, encarregando-se generosamente e sem interesse do cuida-
do de educar os homens na sua infância, são as que mais contribuem
para essa vantagem, logo são elas que merecem um maior grau de
estima e respeito públicos. Partindo desse princípio é que se olham
7
A autora utiliza em sua argumentação a Doutrina Utilitarista, uma tendência do pensa-
mento ético, político e econômico inglês, dos séculos XVIII e XIX. Essa doutrina vê no útil
(e na utilidade) o valor supremo da vida. A coincidência entre a utilidade individual com a
social foi um dos principais temas do Utilitarismo.
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os príncipes como as primeiras pessoas do Estado. Nessa qualida-
de, ou grau de elevação, se lhes conferem as principais honras; por-
que supõe-se ao menos que eles se sobrecarregam de grandes cuida-
dos, vigílias e inquietações, que exige a prosperidade do bem públi-
co. Da mesma sorte tributamos mais ou menos respeito àquelas
pessoas que estão abaixo deles e que mais se lhes aproximam, por-
que as olhamos como pessoas mais úteis à sociedade, segundo par-
tilham mais ou menos as fadigas do serviço público.
É pela mesma razão que preferimos os militares aos literatos;
porque os olhamos como um baluarte entre nós e nossos inimi-
gos. Todos concordam em respeitar as pessoas à proporção de
sua utilidade; eis pois a medida de seu merecimento. Ora, sendo
essa regra aplicável a todas as circunstâncias da vida, por que não
devem ter as mulheres, mais que todos, direito à estima pública,
contribuindo mais, sem comparação, a seu bem-estar?
Os homens podem absolutamente passar sem príncipes, gene-
rais, soldados, jurisconsultos, como antigamente e ainda hoje pas-
sam os selvagens; mas podem passar sem amas na sua infância? E se
por si são incapazes de exercer esse importante emprego, não preci-
sam indispensavelmente das mulheres? Em um Estado tranquilo e
bem regido, a maior parte dos homens são inúteis em seus ofícios e
inútil toda sua autoridade, mas as mulheres não deixarão jamais de
ser necessárias enquanto existirem homens e estes tiverem filhos.
Para que servem os juízes, os magistrados e os oficiais, senão
para garantir a segurança e propriedade dos bens daqueles que, se
não fosse proibido, seriam capazes de fazer justiça a si mesmos
mais exata e prontamente? Porém as mulheres, mais verdadeira-
mente úteis, se ocupam em lhes conservar a vida para gozarem
dessa propriedade. Estimam-se e recompensam-se os soldados,
porque combatem para defender os homens feitos, que são tão
capazes, e mesmo mais que eles, de se defenderem. Com quanta
maior razão não merece o nosso sexo essa estima e recompensa,
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trabalhando para defender os homens numa idade em que não
sabem o que são, não podem distinguir os amigos dos inimigos, e
nem têm outra defesa mais que suas lágrimas?
Se os príncipes e os ministros se sacrificam algumas vezes pelo
bem público, a ambição é o único móvel, é para adquirir poder, ri-
quezas e esplendor que eles o fazem. Porém, nossas almas mais gene-
rosas não atendem senão ao bem das crianças, que nutrimos e educa-
mos, pois que todos os dias experimentamos que a recompensa que
temos a esperar dessas criaturas desnaturadas, pelos trabalhos, cuida-
dos, inquietações e infinitos embaraços, que nos causam e de que não
se acha exemplo em todos os outros estados da sociedade civil, se
reduz a maus tratamentos e a um desprezo repreensível para com o
nosso sexo em geral. Tais são os generosos ofícios que lhes prestamos;
tal é a ingratidão com que nos recompensam.
Sem dúvida é preciso que os homens tenham a imaginação bem
corrompida para olharem um exercício tão importante como baixo e
desprezível, e para lhe recusar toda estima que na realidade merece.
Com que liberalidade não se recompensa aquele que consegue do-
mesticar um tigre, um elefante e outros semelhantes animais? E as
mulheres, que passam seus belos anos ocupadas em amansar o ho-
mem, este animal ainda feroz, não serão pagas senão com desprezo?
Se nos remontarmos à origem dessa injusta parcialidade, en-
contraremos que a única e verdadeira causa do pouco reconheci-
mento, que se tem aos importantes serviços que as mulheres pres-
tam aos homens, é que eles são comuns e ordinários. Entretanto, seja
qual for a recompensa, o prazer que a generosidade de nosso sexo
acha em preencher esse ofício basta para que nós o desempenhe-
mos com toda ternura e sem vistas de interesse. Eu não pretendo
queixar-me de não recebermos recompensa: seja-me somente per-
mitido dizer, que por sermos mais capazes que os homens em de-
sempenhar esse cargo, não se segue que não possamos também
desempenhar outro qualquer.
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Na verdade, os homens parecem aprovar isso tacitamente; mas,
com o seu desinteresse ordinário, pretendem restringir todos os outros
talentos nossos na órbita singular da obediência, da servidão e da
ocupação de satisfazer a nossos amos. Eles têm como uma razão
geralmente aprovada o serem nossos amos; mas por que títulos? Eis
uma pergunta a que não podem responder. Entretanto, esse senti-
mento é tão comum entre eles, que todos, desde o príncipe até o
súdito, se acham possuídos dele. Já fui testemunha da cena divertida
de um homem de baixa condição, pondo um sinal na testa da mu-
lher para lhe fazer ver, unicamente, dizia ele, que era seu senhor.
Esse argumento, posto que de mau exemplo e indigno de um
homem virtuoso, é talvez o melhor e mais forte que o seu sexo
pode produzir em seu favor. Seja como for, ou a natureza os tenha
destinado a ser nossos senhores, ou não; ou suas ordens sejam dita-
das ou não pela razão; nós acharíamos o jugo da obediência doce e
suave, pois que, obedecendo, não teríamos mais que submeter nossa
vontade à razão, e obraríamos como seres inteligentes, tais quais nos
conhecemos. Eis o que as mulheres estariam mais dispostas a fazer
do que os homens em igual circunstância, e que ninguém pode du-
vidar. Mas isso equivalia a nos colocarmos ao nível dos brutos, se
cumpríssemos todas as suas vontades indistintamente; pois que só
isso nos tornaria tão desprezíveis como esses seres injustos e extra-
vagantes, que nos governassem.
Amos ou não, eles não têm mais que dois partidos a seguir
para exercer sua imaginária autoridade: ou de continuar a regular
suas ordens segundo suas paixões, sem escutar a razão; e então só
as mulheres desarrazoadas lhe obedecerão, porque as sensatas não
lhes darão essa prerrogativa; ou de fazer falar a razão por sua
boca, e então todas as mulheres de bom senso consentirão nisso,
convindo mesmo que os homens se persuadam, que é por uma
pura obediência que nós condescendemos com as suas vontades.
Se escolherem o último partido, nós lhes deixaremos a inocente
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liberdade de se sentirem senhores, enquanto nos encantamos de
ver tanta autoridade do lado da razão, que é a sua verdadeira base,
reconheceremos que ambos os sexos têm direito de se regerem
reciprocamente e alternativamente; porque se os homens têm bas-
tante conhecimento para regular as ordens que derem às mulheres,
sobre os preceitos da razão, também o terão para ceder a esses
mesmos preceitos quando forem impostos pelas mulheres, sem
que importe por que boca a razão se faça conhecer.
Se os homens concordam que a razão se serve tanto deles como
de nós, está claro que ela regerá igualmente tanto uns como a outros;
mas o caso é bem diferente. Os homens, não podendo negar que
nós somos criaturas racionais, querem provar-nos a sua opinião ab-
surda, e os tratamentos injustos que recebemos, por uma condes-
cendência cega às suas vontades; eu espero, entretanto, que as mulhe-
res de bom senso se empenharão em fazer conhecer que elas me-
recem um melhor tratamento e não se submeterão servilmente a
um orgulho tão mal fundado. Se não é suficiente ter algumas aten-
ções para com esses entes orgulhosos, é muito pouco ter com eles
mais condescendência, do que temos pelas crianças; conservando-se
uma certa decência, é preciso servi-los absolutamente.
Que personagens singulares! Não são eles bem dignos de tão
alta preeminência! Exigir uma servidão a que eles mesmos não
têm coragem de se submeter, de um sexo, que sua vaidade qualifi-
ca com o título de – vasos frágeis –, e querer que lhes sirvamos de
ludíbrio, nós, a quem eles são obrigados a fazer a corte e atrair em
seus laços com as submissões as mais humilhantes! Têm porventura
eles alguns títulos para justificar o direito com que reclamam os
nossos serviços, que nós igualmente não tenhamos contra eles?
Têm um protesto tão plausível para dominar sobre nós, como
sobre aqueles selvagens, que sua inocente segurança tem privado
do poder de se oporem a suas violências e injustiças? Entretanto, a
maior parte de nosso sexo, assaz frágil para se deixar vencer pela
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piedade, por suas carícias e por seu desespero afetado, não tem
encontrado o despojo de sua dissimulação, o engano de sua ino-
cência e de seu bom coração? Quantas mulheres há que, depois de
haverem confiado a sua liberdade a um esposo, encontram bem
cedo o cordeiro transformado em tigre, e então se acham no caso
de invejar a sorte de um escravo sujeito a um tirano sem piedade?
Se a força do corpo, em que reconhecemos sua preeminência,
é um pretexto suficiente para nos calcar aos pés, o leão tem um
direito bem fundado de preeminência sobre eles e essa espécie de
bruto é mais generosa que a dos homens. Ainda que um pouco
mais feroz e bravio, o leão envergonha-se de empregar sua força
quando há demasiada desproporção entre ele e seu adversário. Na
verdade, eu convenho que deveríamos procurar satisfazê-los se
houvesse alguma aparência de nos resultar proveito. Seria barbari-
dade deixar chorar um menino, podendo-se acalentá-lo com um
brinquedo, porém, desgraçadamente, seria necessário estudar-se
toda vida para descobrir um meio de contentar essas grandes cri-
anças, mais obstinadas que as outras.
Eu tenho ouvido dizer, e é um rifão antigo, que “o diabo é bom
quando está satisfeito”. Se esse rifão é, como os outros, fundado so-
bre a experiência, prova que o diabo pode algumas vezes estar satis-
feito: eu quereria que isso se pudesse aplicar também aos homens.
Porém, tal é a constituição extravagante de sua natureza, que, quanto
mais se procura agradá-los, tanto menos se consegue; ou se por acaso
se tira algum proveito, nunca é equivalente aos seus cuidados. Certa-
mente o Céu criou as mulheres para um melhor fim, que para traba-
lhar em vão toda sua vida. Talvez se me objetará que não é trabalhar
inutilmente, uma vez que com isso não fazem mais que preencher o
seu tempo; que não tendo sido criadas senão para escravas dos ho-
mens, a nossa única obrigação é lhes ser submissas e lhes aprazer; que
quando desprezamos outra qualquer coisa, não somos nisso respon-
sáveis, pois que Deus não nos outorgou outros talentos. Mas, como
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tenho dito, e farei ver mais adiante, isso reduz-se a ter como certeza o
que ainda está em questão e supor o que deveria, porém que não
pode ser provado. Entretanto, algumas pessoas há, mais condescen-
dentes e judiciosas, que convencem que muitas mulheres são dotadas
de espírito e conduta; mas ainda assim dizem, que essas dentre nós,
que são mais recomendáveis por esses dois motivos, deixam escapar,
todavia, alguma coisa de fraqueza do sexo. Discurso desprezível e
cediço, que por si mesmo se acha destruído, e cuja extrema fraqueza
parece condená-lo a um eterno esquecimento! Mas um engenhoso
autor, não tendo coisa melhor a escrever, julgou interessante fazê-lo
reviver em um de seus escritos semanários, a fim de que este século
não ignorasse que nos séculos precedentes houve insensatos entre os
homens. Para nos dar um exemplo da sabedoria de seu sexo, ele nos
diz que os mais prudentes dentre eles têm julgado não ser preciso
conceder às mulheres as doçuras da liberdade, mas sim conservá-las
toda sua vida em um estado de subordinação e dependência absoluta
dos homens. A razão, que ele produz para sustentar esta tese tão extra-
vagante, é que nós não somos capazes de nos governar a nós mesmas.
Se não são precisas, para sustentar uma asserção tão árdua,
outras provas que a simples palavra de quem a propôs, basta ele
pertencer ao sexo interessado para ser suspeito tudo quanta avan-
ça desta natureza; entretanto como a esse respeito somos tão sus-
peitas como eles, nenhum proveito temos em negar o fato, salvo
que é importante para os sexos a necessidade de o provar. Sem
dúvida, pessoas de uma sabedoria tão consumada, se nós quisés-
semos acreditá-las sob sua palavra, não teriam a afoiteza de avan-
çar uma coisa com tanto descaramento, se não pudessem sustentá-
la com as provas mais sólidas e convincentes.
Vejamos, pois, sobre que fundamentos eles baseiam as ideias
extravagantes que fazem do nosso sexo e em que fazem consistir a
verdade e a razão, para que possamos abraçar ou rejeitar sua opi-
nião, com conhecimento de causa.
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Capítulo II
Se as mulheres são inferiores ou
não aos homens quanto ao entendimento
Em primeiro lugar, dizem eles, a maior parte do nosso sexo
tem bons intervalos, não há dúvida, mas são de pouca duração;
são relâmpagos passageiros de razão, que se desvanecem rapida-
mente; somos semelhantes à Lua, que, obstante por si mesma, não
brilha senão por uma luz emprestada; não temos mais que um
falso resplendor mais próprio a surpreender a admiração do que a
merecê-la; nós somos inimigas da reflexão; a maior parte de nós
não pensa senão por acaso, ou por um arrebatamento, e que não
falta senão por uma rotina. Eis as graves acusações intentadas con-
tra a maior parte das mulheres; mas concedendo-se de barato, que
fosse verdadeiro o que eles objetam, não é incontestável que os
mesmos argumentos podem reverter-se contra a principal parte
dos homens? Entretanto, se quiséssemos concluir da mesma ma-
neira, que é preciso conservá-los perpetuamente debaixo da nossa
guarda, não triunfariam eles e não julgariam esse raciocínio como
uma prova de fraqueza de nosso espírito?
Qualquer experiência basta para mostrar que somos mais ca-
pazes de ter inspeção sobre os homens do que eles sobre nós. Con-
fiam-se as donzelas ao cuidado de uma mãe de família e elas ficam
logo senhoras de uma casa, em idade em que os homens apenas se
acham em estado de ouvir os preceitos de um mestre.
O único meio de arrancar um jovem da libertinagem e torná-
lo à sociedade, é dar-lhe por guarda uma mulher capaz de refor-
lo com seu exemplo, moderar suas paixões pela prudência e desviá-
lo de seus excessos por maneiras mais ativas. Os homens estão
bem longe de provar o princípio com a prática; pelo contrário,
quando há alguma questão sobre seus interesses, quando sua pru-
dência consumada não basta para domar os mais debochados
dentre eles, todo seu recurso é submetê-los à nossa tutela. Assim
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pois os seus raciocínios se acham em contradição com a sua práti-
ca. Porém é o temor de nos tornar vaidosas que os obriga a sus-
tentar que não temos solidez, nem constância, e que estamos bem
longe de ter a profundeza de juízo, que eles modestamente atribu-
em a si. Donde concluem com tanta sabedoria, que tem sido ne-
cessário, que a Providência Divina, e seu senso superior concor-
ram igualmente para nos apartar das ciências, governos e cargos
públicos. É por uma indagação exata, e sem prejuízo, que se pode
ver se esse argumento tem alguma solidez.
Para reconhecer pois se as mulheres são menos capazes que os
homens para as ciências, é preciso atentar qual é o princípio que
conduz a esse conhecimento; se ele não existe nas mulheres, ou se
existe num grau menos perfeito, não se faz necessário mais provas
para demonstrar que os homens têm razão. Porém, se ele é perfei-
to em um como em outro sexo, então se deve supor os homens
invejosos e pode-se dizer, sem temeridade, que a única razão por-
que nos fecham o caminho às ciências é temerem que nos as leve-
mos a maior perfeição que eles. Todos sabem que a diferença dos
sexos só é relativa ao corpo e não existe mais que nas partes
propagadoras da espécie humana; porém, a alma que não concor-
re senão por sua união com o corpo, obra em tudo da mesma
maneira sem atenção ao sexo. Nenhuma diferença existe entre a
alma de um tolo e de um homem de espírito, ou de um ignorante
e de um sábio, ou a de um menino de 4 anos e um homem de 40.
Ora, como esta diferença não é maior entre as almas dos homens
e das mulheres, não se pode dizer que o corpo constitui alguma
diferença real nas almas. Toda sua diferença, pois, vem da edu-
cação, do exercício e da impressão dos objetos externos, que nos
cercam nas diversas circunstâncias da vida.
O Criador observa a mesma ordem ao unir as almas das mu-
lheres e dos homens a seus corpos respectivos. Os mesmos senti-
mentos, as mesmas paixões, as mesmas proporções firmam essa
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união em uns e outros; e a alma obrando da mesma maneira, em
ambos os sexos, é por consequência capaz das mesmas funções.
Para tornar esse raciocínio mais convincente não é preciso mais
que examinar a estrutura da cabeça, a sede das ciências e a parte
onde a alma se faz melhor perceber. Todas as indagações da ana-
tomia não têm ainda podido descobrir a menor diferença nesta
parte entre os homens e as mulheres: nosso cérebro é perfeita-
mente semelhante ao deles
8
; nós recebemos as impressões dos sen-
tidos como eles; formamos e conservamos as ideias pela imagi-
nação e memória, da mesma maneira que eles; temos os mesmos
órgãos e os aplicamos aos mesmos usos que eles; ouvimos pelos
ouvidos, vemos pelos olhos e gostamos do prazer também como
eles. Enfim, não se pode imaginar a diferença entre nossos delicados
e, por consequência, mais próprios a corresponder às intenções
para que foram formados
9
.
Observa-se geralmente, mesmo entre os homens, que os mais
grosseiros e mais pesados são de ordinário estúpidos e que, ao
contrário, os mais delicados são os mais espirituosos. A razão é
óbvia: a alma encerrada no corpo tem precisão de seus órgãos em
todas as duas operações; por conseguinte, está mais ou menos em
liberdade de exercer suas funções, conforme seus órgãos sejam
mais livres ou mais embaraçados. Ora, não é preciso muito traba-
lho para provar que nossos órgãos são muito mais finos e delica-
dos que os dos homens; nisso todo mundo convém; por
consequência, se nós gozamos as mesmas facilidades e se nos per-
mite, como a eles, entregar-nos ao estudo, não se pode duvidar
8
Desde o início do século XIX há notícias de “experiências científicas” que visavam
“provar” a superioridade do homem branco sobre a mulher, bem como sobre o negro e o
índio. Apesar de lançarem mão de verdadeiras fraudes científicas, ao fim do século tais
experiências eram consideradas por muitos como absolutamente corretas, reforçando a
“superioridade” de sexo e a racial. Nísia Floresta, já em 1832, antecipa-se a estas
conclusões, ao pregar a mesma capacidade intelectual para mulheres e homens.
9
A autora transforma habilmente cada “desvantagem” feminina em “vantagem” diante do
homem, operando uma inversão muito interessante nas ideias, de forma a adequá-las à
sua argumentação.
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que nós avançaríamos pelo menos em igual passo, nas ciências e
em todos os conhecimentos úteis.
Não pode ser, portanto, senão uma inveja baixa e indigna, que
os induz a privar-nos das vantagens a que temos de um direito tão
natural como eles. O pretexto que eles alegam é que o estudo e as
ciências nos tornariam altivas e viciosas; mas esse pretexto é tão
desprezível e extravagante e bem digno do seu modo de obrar.
Não, só o falso saber e os conhecimentos superficiais são os que
produzem tão mau efeito; porque o verdadeiro e sólido conheci-
mento não pode tornar as mulheres, assim como os homens, se-
não mais submissas e mais virtuosas. É preciso confessar que se
um conhecimento superficial tem tornado vaidosas algumas mu-
lheres, tem igualmente feito insuportáveis muitos homens; mas isso
não é razão para se recusar o sólido saber nem a uns, nem a ou-
tros. Deve-se pois procurar com todo empenho aperfeiçoar as
disposições que se lhes conhece para as ciências, fazer conceber o
gosto para elas e ensinar-se-lhes a fundo; é preciso seguir a opinião
de um dos melhores autores, que é aplicável a todas as ciências,
como também à poesia.
Pouco vale sábio ser, sem ser profundo;
Ou as letras deixai, ou ir-lhe ao fundo:
Não vos levem vontades caprichosas
De Hypocrene às margens perigosas;
Seus vapores sutis toldam a mente,
Cobre a razão quem bebe na corrente.
(Pope, Ensaio sobre a crítica)
10
Julga-se, comumente, que os homens não precisam de conheci-
mento para serem virtuosos; esse prejuízo só pode nascer de pesso-
as cujo espírito e conduta não é regular; tem-se concluído, falsamen-
10
Alexander Pope (1688-1744), poeta inglês, escreveu poemas satíricos em que ridicula-
rizava a sociedade elegante de sua época. Publicou também ensaios filosóficos sob a
forma poética, como Ensaio sobre o homem e Ensaio sobre a crítica. Este último foi
traduzido para o português pelo Conde de Aguiar, e publicado no Rio de Janeiro, pela
Imprensa Régia, em 1810. Talvez sejam desta tradução os versos acima citados.
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te, que as ciências são não só inúteis para a virtude, mas até prejudi-
ciais. Entretanto, não será difícil provar que o conhecimento de nós
mesmas e de outras muitas coisas é absolutamente necessário para
aumentar-nos a persuasão de nossas obrigações morais. Com efeito,
a principal razão que se apresenta de que tantas pessoas se deixam
arrastar pelo vício e pelo desleixo com tanta precipitação, ou de que
praticam a virtude com tanta indolência, é porque não se conhecem
bem a sim mesmos, nem aos objetos que os tocam.
Ora, como pretender que eles dissipem essa ignorância senão
pelo estudo e ciências? Se tem havido algumas pessoas de nosso
sexo tão deslumbradas de seu saber, que se possuem de vaidade,
essa falta em si mesma é desculpável; é porque para aprenderem a
ser humildes, não beberam no rio corrente da sabedoria, e só se
demoraram em sua superfície.
Além de que, a raridade dessa vantagem em nosso sexo e as
dificuldades que essas mulheres têm encontrado a vencer para alcançá-
la, fazem a apologia da vaidade, a que elas ajuntam ao seu mérito.
Acontece-lhes o mesmo que a um homem de não nada
11
. Que seu
mérito e indústria têm elevado a uma dignidade muito acima da
esfera de seus iguais; sobem-lhe à cabeça algumas fumaradas; além
de que, se isso é uma falta, como não se pode duvidar, é falta em
que laboram os homens todos os dias. Concedendo-se que os ho-
mens, ou as mulheres, se tornem culpáveis, não se deve fazer recair
a culpa sobre as ciências, que a isso deram lugar.
A verdadeira causa desse defeito vem de que aqueles que são
versados em qualquer ciência se reputam possuidores de uma coisa,
que é um mistério para a maior parte do mundo. Mas seja como for,
é mais provável que a vaidade dos homens sábios exceda a das mu-
lheres sábias, como é fácil ver-se pelos títulos faustosos, que arrogam
a si. Se se admitisse às mulheres a uma partilha igual das ciências, e das
11
Homem que veio do nada, o mesmo que ‘nonada’.
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vantagens, que trazem, ou que delas derivam, elas seriam menos su-
jeitas à vaidade que esses conhecimentos costumam ocasionar.
É um grande absurdo pretender que as ciências são inúteis às
mulheres, pela razão de que elas são excluídas dos cargos públicos,
único fim a que os homens se aplicam. A virtude e a felicidade são
tão indispensáveis na vida privada como na pública, e a ciência é
um meio necessário para se alcançar uma e outra.
É por ela que se consegue a exatidão do pensamento, a pureza
da expressão, a justeza das ações; sem ela não se pode jamais ter um
verdadeiro conhecimento de si mesmo; é ela que nos põe em estado
de distinguir o bem do mal, o verdadeiro do falso; é ela que nos
torna capazes de regular nossas paixões, mostrando-nos que a ver-
dadeira felicidade e virtude consiste em restringir nossos desejos, do
que em aumentar o que possuímos. Além disso, seja-me permitido
notar o círculo vicioso em que esse desprezível modo de pensar tem
colocado os homens sem o perceberem. Por que a ciência nos é
inútil? Porque somos excluídas dos cargos públicos; e por que so-
mos excluídas dos cargos públicos? Porque não temos ciência.
Eles bem conhecem a injustiça que nos fazem; e esse conheci-
mento os reduz ao recurso de disfarçar a má fé à custa de sua
própria razão. Porém deixemos falar uma vez a verdade: por que
se interessam tanto em nos separar das ciências a que temos tanto
direito como eles, senão pelo temor de que partilhemos com eles,
ou mesmo os excedamos na administração dos cargos públicos,
que quase sempre tão vergonhosamente desempenham?
O mesmo sórdido interesse, que os instiga a invadir todo po-
der e dignidades, os determina a privar-nos desse conhecimento,
que nos tornaria suas competidoras. Como a natureza parece ha-
ver destinado os homens a ser nossos subalternos, eu lhes perdo-
aria voluntariamente a usurpação, pela qual nos têm tirado das
mãos o embaraço dos empregos públicos, se sua injustiça ficasse
satisfeita, e parasse nisso, mas como um abismo cava outro, e os
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vícios sempre andam juntos, eles não se satisfazem somente com a
usurpação de toda autoridade, têm mesmo a ousadia de sustentar
que ela lhes pertence de direito, pois a natureza nos formou para
ser-lhes perpetuamente sujeitas por falta de habilidade necessária
para partilhar com eles do governo, e cargos públicos. Para refutar
esse extravagante modo de pensar será preciso destruir os funda-
mentos sobre que está baseado.
Capítulo V
Se as mulheres são naturalmente capazes
de ensinar as ciências ou não
Quanto à Retórica, é preciso convir que nós somos os seus
modelos e mestres avaliados
12
. A eloquência é um talento tão natu-
ral e particular às mulheres, que ninguém lhes pode disputar. Elas
estão em estado de persuadir tudo que lhes apraz: podem ditar,
defender e distinguir o justo do injusto sem o recurso das leis. Não
tem havido juiz que não tenha experimentado que elas são os mais
esclarecidos conselheiros, e poucos litigantes que não saibam por
experiência, que elas são juízes muito retos, cujo talento é o mais
ilustrado. Quando as mulheres tratam de algum objeto, elas se di-
rigem de uma maneira tão delicada, que os homens são obrigados
a reconhecer que elas lhes fazem sentir o que dizem. Toda arte
oratória das escolas não é capaz de dar a um homem essa eloquência
e facilidade de se expressar, que a nós nada custa; e o que sua baixa
inveja chama em nós uma superfluidade de palavras, não é outra
coisa mais que uma prontidão de ideias e uma facilidade de dis-
12
Padre Miguel do Sacramento Lopes (1791-1852), redator de jornais no Recife e no Rio
de Janeiro, e conhecido como crítico social dos mais agudos, por várias vezes em um de
seus jornais – intitulado O Carapuceiro – defendeu a habilidade feminina para a retórica,
bem como para exercer outras atividades mais condizentes com seus talentos. Sacra-
mento Blake, no Diccionario bibliographico brazileiro, vol. VI, de 1900, sugere que Nísia
teria conhecido o padre Lopes Gama, no tempo em que residiu em Olinda, porque muitas
de suas ideias sobre as mulheres eram coincidentes.
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cursos, que eles não podem adquirir, senão em muitos anos de um
penível trabalho. Quanto embaraço e perturbação não têm eles
para fazerem entender seus pensamentos? Se dizem alguma coisa
melhor, que gestos insípidos, redundanciais e carenhoncas não fa-
zem, que destroem o pouco bom que dizem? Quando pelo con-
trário uma mulher fala, seu ar é ordinariamente nobre e agradável,
seu gesto fácil e cheio de dignidade, suas ações decentes, seus ter-
mos dóceis, e insinuantes, seu estilo patético e persuasivo, sua voz
melodiosa e seu tom proporcionado ao objeto.
Ela pode sem vaidade elevar-se ao nível da inteligência mais
sublime, e com uma complacência natural à delicadeza de sua fi-
gura chegar sem baixeza ao alcance do espírito o mais moderado.
Qual é o objeto que nós não possamos tratar, sem ofender à de-
cência? Quando falamos do bem ou do mal, sabe-se muito bem
que estamos em estado de conduzir a um, e desviar do outro, os
homens os mais obstinados, por pouco que seus espíritos sejam
susceptíveis de raciocinar, e capazes de seguir um argumento. Esse
caráter de retidão, que tem todo nosso exterior quando falamos,
faz nosso poder de persuadir ainda mais vitorioso. Certamente se
temos uma eloquência mais comunicável que a sua, nós devemos
ser, ao menos como eles, tão capazes de ensinar as ciências; e se
não nos veem nas cadeiras das universidades, não se pode dizer
que seja por incapacidade, mas sim por efeito da violência com
que os homens se sustentam nesses lugares em nosso prejuízo; ou
pelo menos deve-se reconhecer nisso, que temos mais modéstia,
que eles, e menos ambição. Se quiséssemos aplicar-nos à jurispru-
dência, faríamos tantos progressos, como os homens.
Não se nos disputa o talento natural de explicar, e desenvolver
os trabalhos os mais difíceis e complicados de bem estabelecer nos-
sas pretensões, e as dos outros, de descobrir o fundo de uma difi-
culdade e de pôr em prática todos os meios capazes de nos fazer
obrar justiça: isso basta, creio, para provar que, se questiona-se de
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97
satisfazer as funções de advogado, juiz, magistrado, nós apresentarí-
amos uma capacidade para esses trabalhos, de que bem poucos
homens são susceptíveis. Mas a paz e a justiça são nosso único estu-
do; toda nossa ambição se reduz a reparar os danos que esse sexo
corrompido procura fazer-nos com tanto furor.
Nosso sexo parece ter nascido para ensinar, e praticar a medi-
cina, para tornar a saúde aos doentes, e a lhes conservar. O asseio,
a prontidão e o cuidado fazem a metade de uma cura; e por esse
motivo os homens nos deviam adorar. Na verdade nós lhes cede-
mos a nosso turno a arte de inventar os termos bárbaros, de em-
baraçar uma cura pelo número de remédios, e de aumentar a pena
de uma moléstia com as despesas, que lhes causam. Mas nós po-
demos imaginar, e temos mesmo inventado, sem o recurso de
Galeno e Hipócrates, uma infinidade de remédios para as molés-
tias, que nem os melhores autores têm podido aperfeiçoar, nem
desaprovar: e uma receita de – curandeira –, como eles chamam,
tem quase sempre destruído tal moléstia inveterada, que resiste
obstinadamente a toda ciência de um Colégio de Graduados.
Em uma palavra: as observações que as mulheres fazem em sua
prática tem-se achado tão exatas e apoiadas sobre razões tão sóli-
das, que tem demonstrado mais de uma vez a inutilidade, e pedantaria
da maior parte dos sistemas das escolas. Eu duvido que o nosso
sexo quisesse passar tantos anos tão inutilmente, como fazem esses
homens, que se apelidam filósofos; se quisesse aplicar-se ao estudo
da natureza, estou persuadida que acharíamos um caminho mais
breve para chegarmos a esse fim. Não faríamos, como certos ho-
mens, que empregam anos inteiros e algumas vezes mesmo toda sua
vida, a raciocinar sobre entes de razão e bagatelas imaginárias, que
só existem em seus próprios cérebros.
Nós acharíamos meios de empregar utilmente nossas indaga-
ções antes de aprofundar o espírito para descobrir se além da última
circunferência do universo existe algum espaço imaginário, e se este
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parto de nossa imaginação é finito, ou infinito; se um átomo pode
tornar-se em uma infinidade de partes, ou quando uma coluna de
ar, que corresponde do Céu até quase sobre a cabeça de um ho-
mem, parece menos pesada que um fardo sobre os ombros. Se
quiséssemos exprimir o que concebemos de Deus, não ousaríamos
representá-lo como um venerável ancião. Não, nós temos uma ideia
muito nobre para o comparar a algum ente criado.
Concebemos, que deve haver um Deus, pois que sentimos que,
nem nós, nem os objetos que nos cercam, podemos ser obra do
acaso, nem da nossa produção. Demais, considerando-se todos os
dias que o sucesso de nossas empresas nao é o efeito natural dos
meios, de que nos servimos para alcançá-lo, estamos convencidas
de que a série de nossas ocupações não é consequência de nossa
prudência; e assim concluímos, que isso deve ser o efeito de uma
providência superior, e geral.
Jamais imaginaríamos raciocinar sobre nossas próprias hipó-
teses quiméricas e de encher um volume para responder a impos-
sibilidades, como se poderíamos lançar uma pedra até a visão
beatífica etc.
Entretanto, poderíamos sem vaidade aspirar a ser tão bons filó-
sofos e teólogos, como os homens, e talvez melhores, se é que com-
preendo bem a significação destas palavras. Certamente os filósofos
e teólogos (seguindo o verdadeiro sentido das palavras) são seres
profundamente versados nos segredos da natureza e mistérios da
religião. Isso posto, e conhecendo-se mais que o principal fruto de
todo saber, é bem discernir o verdadeiro do falso, à evidência da
obscuridade, nós somos igualmente capazes de uma e de outra coisa.
Se quiséssemos ser filósofas e teólogas, nos proporíamos a
formar ideias da Divindade e das revelações, tão justas, quanto a
fraqueza da natureza humana pode permitir, e seguiríamos a natu-
reza em todos os seus efeitos; remontando-nos à sua origem: mas
como sabemos que o conhecimento de nós mesmas, e dos obje-
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tos que nos cercam, é absolutamente necessário para tornar úteis
os conhecimentos de que vimos de falar, em lugar de perder o
tempo em bagatelas, que ocupam o estudo da maior parte dos
maus filósofos, nos aplicaríamos a refletir sobre nós mesmas, e
sobre os diversos objetos, que nos cercam, a fim de descobrir que
relações ou diferenças eles têm conosco, e por que aplicações po-
dem ser-nos vantajosos, e corresponder ao fim para que nos fo-
ram dados. Não poderíamos pois por este meio ser filósofas tão
sábias, e teólogas tão capazes como os homens, e em estado de
aprender, e mesmo de ensinar, pelo menos tanto quanto eles são?
A prática prova suficientemente que não somos menos boas
cristãs, que eles; recebemos o Evangelho com respeito, e humilda-
de, e nos submetemos à sua doutrina de uma maneira mais exem-
plar mesmo, que a maior parte dos homens. Eu confesso, que
algumas pessoas do nosso sexo têm levado o culto religioso a
uma espécie de superstição, mas o mesmo não se observa em
muitos homens? Entretanto, eles são muito mais culpáveis que elas,
pois que a ignorância em que têm sido criadas faz cair toda culpa
sobre eles, que lhes não têm dado os meios de a evitar. Assim, se
seu zelo tem sido indiscreto, sua intenção tem sido boa, e pode-
mos assegurar com certeza – visto a facilidade com que elas têm
abraçado a religião e se conservam firmemente ligadas, apesar de
tantas desvantagens com que se lhes representa – que elas teriam se
ligado com mais firmeza à verdadeira piedade, se lhe tivessem
feito conhecer debaixo de um ponto de vista mais justo.
Quem poderá pois nos impedir de nos reger sobre a fé e disci-
plina de Jesus Cristo, e da Igreja? Se possuímos os fundamentos da
Filosofia e Teologia escolástica, não seremos tão capazes, como os
homens, no curso de nossos estudos, de entender, conferir e inter-
pretar as Santas Escrituras, as obras dos Santos Padres, e os Sagra-
dos Cânones? Não poderemos tirar dos nossos espíritos, e cora-
ções, as obras de piedade, pregar, refutar as inovações, conduzir-
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nos mesmas, e aos outros, destruir os escrúpulos mal fundados, e
decidir os casos de consciência tão bem como os mais hábeis
casuístas, que temos? Eu digo mais, não há ciência, nem cargo públi-
co no Estado, que as mulheres não sejam naturalmente próprias a
preenchê-los tanto como os homens. É portanto verdadeiro que,
quanto à Teologia, Deus tem restringido nossos talentos naturais
por uma lei positiva
13
. Assim, nós não temos de reclamar o que não
poderíamos praticar, senão por uma intrusão sacrílega.
Entretanto, pode-se observar de passagem que a proibição, que
nos fez nosso Divino Salvador, de exercer algumas funções religio-
sas, não nos proíbe de outros ofícios públicos. Ela nem mesmo
prova que sejamos indignas, ou naturalmente incapazes de exercer
aqueles mesmos. Proibir-nos dessas funções é concordar que nós
poderíamos preenchê-las. Mas por que nos proibiu Ele? Somente
por uma presunção se poderá penetrar. Entretanto, se é permitido
raciocinar sobre os preceitos divinos, nós poderíamos dar uma ra-
zão, que seria em honra, e não em desvantagem de nosso sexo. Deus
sabe incontestavelmente a inclinação geral que os homens têm à im-
piedade, e à irreligião, por conseguinte não devia reservar as funções
religiosas a esse sexo para atrair ao menos uma parte dele aos deve-
res, para que tem uma oposição tão geral? Além disso, nosso sexo
tendo uma inclinação natural a praticar a virtude e a religião, não era
necessário ajuntar mais recursos exteriores à sua graça divina para nos
atrair a um caminho, para o qual nossos corações nos conduzem.
Se pois se destruísse o prejuízo e o costume, nenhuma surpresa
haveria de se nos ver dar lições públicas de ciências em uma cadeira
de universidade, pois que para trazer, entre mil, um exemplo, certa
moça estrangeira, cujo mérito, e capacidade extraordinária, tem obri-
gado a muito tempo uma universidade da Itália a se apartar, em seu
13
Nísia parece não se dar conta de que essa “lei positiva” que impede as mulheres de
preencher algumas funções da hierarquia eclesiástica também foi feita pelos homens.
Mesmo assim, quando aceita a restrição “divina”, inverte o raciocínio usual e tira partido
para seu sexo.
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favor, das regras da parcialidade, do costume, e do prejuízo para lhe
conferir o grau de doutor; é uma prova evidente dos grandes pro-
gressos, que poderíamos fazer nas ciências, se nos fizesse justiça.
Não é tanto para justificar meu sexo, que cito esse exemplo, e
sim para favorecer os homens e fazer ver, que não é absolutamen-
te impossível que eles sejam algumas vezes justos, sem milagre. Na
verdade, seria preciso recorrer a tantos países, como um Judeu
errante, para achar nesse sexo invejoso, e pouco generoso, alguns
outros exemplos de uma semelhante equidade a nosso respeito.
Mas para encontrar muitas mulheres, cujo merecimento não cede
ao daquela italiana, não é preciso recorrer-se à antiguidade, nem
mesmo fazer a despesa de uma viagem a países estrangeiros. Nos-
so próprio século, e nossa pátria, pode gabar-se de ter tido mais
de uma Safo, de uma Cornélia, e muitas Schumans, e Dacieres
14
.
Se eu quisesse escolher uma, que ajunta em si só os diversos
talentos de todos esses nomes ilustres, poderia citar uma Elizabeth,
tão estimável pela alta superioridade de seu gênio, e de seu juízo, e
tão célebre pelo uso que lhes deu. Seus progressos nas ciências anti-
gas, e modernas em geral, a têm elevado tanto acima dos homens,
que as mais excelentes virtudes juntas a seus aprofundos conheci-
mentos lhe tem atraído a estima das mulheres; não é admirável, que
nos pertença a liberdade de fazer justiça a seu mérito, sem temer os
reproches de parcialidade, pois que os homens mesmos são obriga-
dos a admirar, a despeito de sua inveja. Entretanto, como sua pró-
pria excelência tem arrancado os justos louvores da boca mesmo
do prejuízo, eu me dispensarei de a pintar, contente de ver, que esse
sexo lhe tem feito o mesmo também, como eu não poderia fazer; e
14
Safo: poetisa grega, do século VI a.C., natural de Lebos. Sua obra, da qual só restam
fragmentos, teria sido composta de nove livros. Cornélia: mulher romana do século II a.C.,
tornou-se conhecida por sua renúncia aos cargos públicos, para se dedicar à educação dos
filhos. Clara Schumann: pianista alemã, casada com Robert Schumann. Quando solteira,
era considerada uma das mais brilhantes pianistas de seu tempo. Também era composito-
ra, mas suas obras foram incluídas entre as do marido após o casamento. Ana Lefévre
Dacier (1651-1720): escritora francesa, helenista e latinista, tradutora da Ilíada e da
Odisseia, de Homero. Foi casada com o filólogo André Dacier (1651-1722).
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102
é porque remeto os meus leitores ao que tem dido sobre o caráter
desta mulher o célebre Birch
15
, na história das Obras dos sábios.
Esse elogio é tanto menos suspeito por ser tecido por um ho-
mem, e por um homem que parece alardear de não ter mais que a
equidade precisa para louvar uma mulher acima de seu mérito. Se a
comparação que faz esse homem sincero, dos talentos de nosso
sexo, com os do seu, ofende a inveja natural dos homens, eles o
devem escusar, e perdoar. Devem-lhe pelo menos a obrigação de
nos ter provado com seu exemplo, que não é impossível encontrar-
-se um homem capaz de sacudir o jugo da paixão, e do prejuízo, em
favor da verdade, e boa fé.
Nós podemos, pois, facilmente concluir, que, se nosso sexo,
como se tem visto até o presente, tem todos os talentos, e requisitos
para aprender, e ensinar as ciências, que põem os homens em estado
de possuir o poder, e as dignidades, elas são igualmente capazes de
reduzir seu saber à prática no exercício de seu poder, e dignidades;
pois que esta nação tem mostrado, como acabamos de dizer, mui-
tos exemplos gloriosos de mulheres, que têm todas as qualidades, e
requisitos para exercer toda autoridade pública, reunidos em suas
pessoas. Por que, pois, o nosso sexo não será, ao menos, capaz de
preencher os postos subordinados de ministros de Estado, vice-rei,
governadores, secretários, conselheiros privados e tesoureiros? Ou
por que não poderão elas, sem ser admirável, ser generais de exér-
citos, ou almirantes-de-esquadra?
Porém, isso é um ponto que vale bem a pena ser examinado
separadamente.
Conclusão
De quanto tenho dito até o presente não tem sido com a intenção
de revoltar pessoa alguma de meu sexo contra os homens, nem de
15
Thomas Birch (1705-1766): historiador e biógrafo inglês. Autor de quase todas as
biografias do General dictionary, historical and critical (1743-1745), e do Memory of the
reign of Queen Elizabeth (1754).
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103
transformar a ordem presente das coisas, relativamente ao governo e
autoridade. Não, fiquem as coisas no seu mesmo estado
16
: eu preten-
do somente fazer ver que meu sexo não é tão desprezível como os
homens querem fazer crer, e que nós somos capazes de tanta grande-
za de alma como os melhores desse sexo orgulhoso; e estou mesmo
convencida que seria vantajoso para os dois sexos pensar dessa ma-
neira. Essa verdade se prova pelas más consequências que resultam do
erro contrário. Acreditando-nos incapazes de aperfeiçoar o nosso en-
tendimento, os homens nos têm inteiramente privado de todas as
vantagens da educação e, por este meio, têm contribuído tanto quanto
lhes é possível a fazer-nos criaturas destituídas de senso, tais quais eles
nos têm figurado. Assim, faltas de educação, somos entregues a todas
as extravagâncias porque nos tornamos desprezíveis; temos atraído
sobre nós seus maus tratamentos por faltas de que eles têm sido os
autores, tirando-nos os meios de evitá-las.
Qual é o resultado desse tratamento tirânico que eles nos fa-
zem experimentar? Recai por último sobre si mesmo. A falta de
saber e educação, que arrasta as mulheres às ações que os homens
reprovam, as priva das virtudes que poderiam sustentá-las contra
os maus tratamentos que eles imprudentemente lhes fazem sofrer;
faltas dessas virtudes elas imaginam os meios os mais condenáveis
para se vingarem de seus tiranos. Donde resulta que em geral os
homens e mulheres têm, uns para com os outros, um soberano
desprezo e combatem à porfia quem trata pior o outro; quando,
pelo contrário, deveriam viver felizes, se ambos os sexos se resol-
vessem a tomar um pelo outro os sentimentos de estima, que se
devem reciprocamente.
16
Após haver “provado” a superioridade feminina, Nísia Floresta recua e afirma não querer
incitar o seu sexo à revolta. Também nesse aspecto ela não segue o texto original de Mary
Wollstonecraft, que, ao contrário, declara que só uma REVOLUÇÃO (assim escrita, em
maiúsculas) seria capaz de alterar as condições de vida das mulheres inglesas. Esta
posição cautelosa de Nísia Floresta também está presente no Opúsculo humanitário, obra
em que, após traçar um drástico panorama da situação feminina, declara ficar satisfeita
apenas com o acesso das meninas à educação.
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Entretanto, se quiséssemos falar a verdade, é fora de toda a
dúvida que o vitupério recai principal e originariamente sobre os
homens; porque se quiser somente conceder às mulheres as vanta-
gens da educação e do saber, elas aprenderão a desprezar estas lou-
curas e bagatelas, que lhes granjeiam presentemente um injusto des-
prezo; elas estarão em estado de dar aos homens uma melhor opi-
nião da capacidade de seu engenho e da disposição do seu coração,
e os homens diminuirão e reformarão gradualmente seus maus pro-
cedimentos, à proporção da estima que lhes inspirarmos. Elas
capricharão em aperfeiçoar seus talentos, melhor adquirirão os co-
nhecimentos, ocupar-se-ão a entreter os homens instrutivamente e
ajuntar a solidez aos seus encantos.
Por esse meio os dois sexos viverão felizes e não terão motivos de
se acusarem mutuamente; mas enquanto os homens nos fecharem
toda a entrada às ciências, eles não poderão, sem fazer recair sobre si
toda a repreensão, lançar-nos ao rosto as faltas de conduta que a igno-
rância nos faz cometer e nós acusaremos sempre de injustiça e cruel-
dade os desprezos e maus tratamentos que eles têm para conosco,
por faltas que não está em nossas mãos remediar. Não seria mais
necessário falar nesse objeto senão para responder a algumas pessoas
fracas, que se persuadem indevidamente existir, relativamente à virtu-
de, diferenças reais entre nós e os homens; entretanto não há maior
absurdo, pois existem muitos bons e maus em ambos os sexos, e,
mesmo supondo-se que algumas mulheres têm levado a maldade
além dos homens, isso não pode desonrar o sexo em geral. Os bons
que se corrompem tornam-se sempre os mais malvados; e quando
reconhecêssemos que algumas de nosso sexo têm excedido aos ho-
mens nos vícios, seria preciso necessariamente confessar, que estes as
excedem em número
17
. Eu creio e ninguém duvidará, que falando de
17
Também o padre Lopes Gama, já citado, era dessa opinião. Em O carapuceiro (Recife,
30/5/1838) ele escrevia: “Na verdade, raro é o defeito na mulher que não seja mui
ordinário e comezinho nos homens, de sorte que se por um milagre o sexo masculino se
transmudasse em feminino, e vice-versa, teríamos o universo povoado de homens muito
mais virtuosos, do que são os atuais”.
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maus, há mil homens maus para haver uma mulher má e, ainda assim,
é julgando as coisas muito favoravelmente aos homens. Mas para sa-
ber-se se uns são naturalmente mais viciosos que os outros, é preciso
atender que só a alma é que é susceptível de virtude e que esta consiste
em uma resolução firme de fazer-se o que se julga mais conforme às
regras da razão, nas diferentes circunstâncias da vida.
Ora, a alma das mulheres não é menos susceptível que a dos
homens, dessa resolução firme que constitui a virtude, e elas sabem
também, como eles, as ocasiões de a pôr em prática. Inda que fracas
se julguem as mulheres em geral, nós sabemos reger também nossas
paixões, como os homens, e não temos mais que eles propensão ao
vício. Nós podemos mesmo fazer inclinar aqui a balança em nosso
favor, sem ofender a justiça e a verdade; entretanto, suposto mesmo
que houvesse lugar de achar-se os dois sexos igualmente em falta,
aquele que acusa o outro peca contra a equidade natural. Se existe
mais maldade nos homens que em nós e são tão cegos para percebê-
-la, são bastante temerários em achar o que repreender em nosso
sexo; e se descobrem nossas faltas e ocultam maliciosamente as suas,
que são mais condenáveis, não é isso uma baixeza neles, fazer-nos
um crime daquilo que possuímos menos que eles? Se há mais bon-
dade nas mulheres que nos homens, não se deve tachá-los de igno-
rantes e invejosos por não quererem convir nisso?
Quando uma mulher tem mais virtudes que vícios, não devem
umas fazer desaparecer os outros? Isto é tanto verdade quanto nos-
sos defeitos são insuperáveis e se nos negam os meios de nos corri-
gir. Eis aqui precisamente o caso de quase todas as faltas de nosso
sexo e porque merecem mais compaixão que desprezo. Enfim, se
nossas faltas não são tais senão em aparência, ou pelo menos são
por si mesmas muito ligeiras, não se podem supor duráveis nelas
sem muita imprudência e maldade de sua parte.
Ora, é muito fácil provar que estas são a maior parte das faltas
que se nos exprobram, as quais são comuns a todo nosso sexo de
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uma ou de outra maneira. Eu julgo ter suficientemente demons-
trado que injustamente os homens nos acusam de não ter aquela
solidez de raciocínio, que atribuem a si com tanta confiança; nós
temos o mesmo direito que eles aos empregos públicos: a nature-
za nos deu um gênio como a eles, tão capaz de os preencher e
nossos corações são tão susceptíveis de virtudes como nossas ca-
beças o são de aprender as ciências: nós temos espírito, força e
coragem para defender um país e bastante prudência para governá-
lo. Nós temos em geral os órgãos mais delicados. Se se comparar
a estrutura dos corpos para decidir o grau de excelência dos dois
sexos, não haverá mais contestação: eu julgo que os homens mes-
mos não terão dificuldade em nos ceder a esse respeito: eles não
podem negar que temos sobre si toda vantagem pelo mecanismo
interno dos nossos corpos, pois que é em nós que se produz a
mais bela e a mais considerável de todas as criaturas. Que superio-
ridade não temos sobre eles pela forma externa? Que belezas, que
ar, que graças a natureza não tem juntado aos nossos corpos e
privado aos seus? Eu me envergonharia somente de falar, se não
pensasse que há uma razão a mais para crer que nossas almas são
tanto mais delicadas, porque não posso deixar de pensar que o
Sábio Autor da natureza proporcionou nossas almas aos corpos
que nos deu: certamente a delicadeza de nosso espírito e a finura
do que se passa no interior de nossas cabeças devem pelo menos
tornar-nos iguais aos homens, que nosso exterior raras vezes deixa
de nos fazer suas senhoras absolutas.
Eu não quererei, entretanto, que pessoa alguma de meu sexo
apoie sua autoridade sobre um alicerce tão frágil. Não, o bom senso
deve sempre exceder a beleza do rosto, porque o ascendente, que a
razão tem sobre os corações, é mais durável. Eis porque exorto a
todas as mulheres a desprezar os vãos divertimentos e a aplicar-se à
cultura de suas almas, a fim de se tornarem capazes de obrar com
toda dignidade a que a natureza nos destinou; sem procurarmos
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elevar-nos e engrandecer-nos, façamos ver que merecemos dos
homens tanta parte de sua estima quanto arrogam a si além de nós.
Em uma palavra, mostremos-lhes, pelo pouco que fazemos
sem o socorro da educação, de quanto seríamos capazes se nos
fizessem justiça. Obriguemo-los a envergonhar-se de si mesmos,
se é possível, à vista de tantas injustiças que praticam conosco, e
façamo-los enfim confessar que a menor das mulheres merece um
melhor tratamento de sua parte, do que o que hoje prodigalizam à
mais digna dentre nós.
(Direitos das mulheres e injustiça dos homens. 4 ed.
São Paulo: Cortez Editora, 1989)
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Opúsculo humanitário
Quantas somas de dinheiro,
quantas vidas sacrificadas para
sustentar o que chamam a honra da nação,
enquanto a educação dos povos,
base principal do grande edifício social e
da felicidade pública e particular,
fica de lado como coisa secundária!
Opúsculo humanitário, 1853.
I.
Enquanto pelo velho e novo mundo vai ressoando o brado –
emancipação da mulher –, nossa débil voz se levanta, na capital do
Império de Santa Cruz, clamando: educai as mulheres!
Povos do Brasil, que vos dizeis civilizados! Governo, que vos
dizeis liberal! Onde está a doação mais importante dessa civili-
zação, desse liberalismo?
Em todos os tempos, e em todas as nações do mundo, a edu-
cação da mulher foi sempre um dos mais salientes característicos da
civilização dos povos. Na Ásia, esse berço maravilhoso do gênero
humano e da filosofia, a mulher foi sempre considerada como um
instrumento do prazer material do homem, ou como sua mais sub-
missa escrava; assim, os seus povos, mesmo aqueles que atingiram
ao mais alto grau de glória, tais como os babilônios, ostentando aos
olhos das antigas gerações suas admiráveis muralhas, seus suspensos
e soberbos jardins, suas colunatas de pórfiro, seus templos de jaspe,
com zimbórios de pedras preciosas elevando-se às nuvens, obras
que até hoje não têm podido ser imitadas, esses povos tão podero-
sos, dizemos, permaneceram sempre em profunda ignorância des-
sa civilização que só podia ser transmitida ao mundo pela emancipa-
ção da mulher, não conforme o filosofismo dos socialistas, mas
como a compreendeu a sabedoria divina, elevando até a si a mulher,
quando encarnou em seu seio o Redentor do mundo.
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As Déboras, as Semíramis, as Judites se mostraram embalde,
atestando, aquela, a graça de que a tocara Deus, permitindo-lhe
revelar aos homens alguns de seus mistérios; estas, uma razão
esclarecida, uma coragem rara, que provavam já então não ser
a mulher somente destinada a guardar os rebanhos, a preparar a
comida, e a dar à luz a sua posteridade.
II.
O Egito, com as suas maravilhosas pirâmides e todos os ad-
miráveis documentos com que o enriqueceram os faraós, os
Ptolomeus e o seu mais famigerado conquistador, Sesóstris, cujas
proezas encheram seu século de assombro e os povos de terror,
imitou, com o resto da África, toda a Ásia na apreciação da mu-
lher. Também o Egito jazeu sempre submergido, apesar da pro-
funda sabedoria de seus sacerdotes, em completa ignorância a res-
peito da educação que convém à mulher. Seus hieroglíficos, suas
curiosas múmias, e todos os fragmentos de sua admirável e extinta
grandeza, e conhecimentos que os sábios arqueólogos modernos
com tanta perseverança estudam, não revelam que a inteligência da
mulher fosse aí devidamente cultivada.
A beleza física, entre esses povos, era o único mérito real da
mulher e, ainda assim, aquela que a possuía entrava em concorrên-
cia com outras e devorava depois, como nos tempos presentes,
torturantes amarguras no fundo dos serralhos e dos haréns. Essa
nobre porção da humanidade ainda é hoje, para opróbio daqueles
povos, sujeita à aviltante lei da poligamia.
Os Ciros, os Nabucodonosores, os Xerxes, os Alexandres, os
Darios etc., que tiveram o poder de assolar e subjugar com seus
numerosos exércitos tantas nações diversas, não compreendiam
em seu furor de conquista que, conservando no embrutecimento
o sexo que os alimentara, privavam-se de maior glória do que lhes
davam suas armas.
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Na Pérsia, a sabedoria dos magos, na Índia os princípios conti-
dos nos Vedas e explicados por Diaimine e, depois por Viasa da
segunda Escola Mimansa ou filosofia vedanta, os profetas mesmos,
anunciando por toda parte aos homens a palavra de Deus, nada
fizeram para melhorar a condição da mulher.
Enquanto estes últimos exortavam os reis e os povos a armar-se
para castigarem outros reis e outros povos, ou lhes prediziam a des-
truição dos impérios a fim de abater-lhes o orgulho, olvidavam que a
sabedoria do Eterno, na última de suas criações, quando formou a
admirável máquina no universo, harmonizando todas as suas partes
entre si, deu ao par ditoso que devia ser o tronco do gênero humano
o mesmo sentir, a mesma inteligência, as mesmas prerrogativas.
O homem, ainda semisselvagem, arrogou a si a preeminência
da força física e tudo lhe foi submetido, a moral, assim como a
inteligência da mulher, que ele quis permanecesse sempre inculta,
para que mais facilmente desempenhasse a humilhante missão a
que a destinava.
V.
É uma verdade incontestável que a educação da mulher muita
influência teve sempre sobre a moralidade dos povos, e que o
lugar que ela ocupa entre eles é o barômetro que indica os pro-
gressos de sua civilização.
Entre os bárbaros do norte, e os selvagens da América e da
Oceania, que papel representou e representa ainda a mulher, prin-
cipalmente nas duas últimas regiões?
À fé, que muito humilhante seria para uma mulher dizê-lo!
Aqueles que têm viajado por esses países, ou lido a narração
que de seus povos fazem verídicos historiadores, lamentam tanta
degradação da espécie humana.
Deixaremos em silêncio a sorte da mulher da Europa na Idade
Média, sob os Clóvis, Carlos Magno, Oton o Grande, Godofredo
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de Bouillon, Rodolfo de Habsburgo e Maomé II, vencedor de
Constantino XII, último imperador grego, com o qual acabou o
império cristão de Bizâncio, para dar lugar, entre as monarquias
europeias, à primeira monarquia otomana.
Os cruzados – trazendo à sociedade ocidental o desenvolvimen-
to da navegação, da indústria, das artes, das ciências, e as línguas que
lhes foi preciso aprender para estabelecerem uma comunidade de
ideias entre os povos de gênio e línguas diversas, preparando-lhe as-
sim a época da Renascença, em que a Itália e, depois, a França tanto
brilharam – nenhum melhoramento fizeram na sorte da mulher.
À voz de Pedro Eremita, Urbano II, São Bernardo etc., corri-
am os reis e os povos cristãos à longínqua Palestina, para libertar
os lugares santificados pelo Cristo, enquanto deixavam por liber-
tar de férrea educação as mulheres, que Deus havia tão altamente
enobrecido na Divina Mãe do mesmo Cristo.
Quanto sangue derramou a humanidade! Quantas vítimas
sacrificadas sem nenhum resultado para ela! Que aberração, enfim,
do espírito do cristianismo!
Mas era então assim que compreendiam a sua missão na Terra
os grandes senhores do Ocidente, longe ou dentro de seus suntu-
osos e sombrios castelos, cujo eco nos repetem ainda as legendas
desses tempos.
No Oriente, as ciências e as artes fugiam espavoridas do solo
que sanguinolentas guerras devastavam.
A Grécia esclarecida havia desaparecido, e povos bárbaros ou
reis fanáticos profanavam o alcáçar das letras.
Aos filósofos, que encheram o mundo de admiração por
sua sabedoria e pela beleza de seus escritos, sucederam impera-
dores tais como Miguel, o Gago, que, não sabendo ler, proibiu
que se ensinasse às crianças, e Miguel III, que, minado de ver-
gonhosos vícios e desprezando como os seus antecessores a edu-
cação da mulher, mandara construir para os seus cavalos, que ele
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amava mais que a seus súditos, uma cavalariça cujas paredes eram
incrustadas de pórfido.
O espírito das Anas Commenes despontava nessas regiões
manchadas por toda a sorte de crimes, como desponta em noite
tenebrosa o clarão de uma estrela que brilha a furto no espaço.
A caridade, virtude personificada no sexo pela mãe do Reden-
tor do mundo, e o heroísmo com que algumas santas mulheres
suportavam o martírio, na esperança de uma vida melhor, podiam
então somente consolar a mulher cristã. Feliz aquela que de fato o
era, porque achava na fé, essa luz divina que nos esclarece a alma, um
poderoso antídoto contra a degeneração do homem e um porto
seguro de salvação.
Enquanto a civilização dormitava sob o anticristo e nunca as-
saz detestável regime feudal, que oprimia cruelmente as mulheres,
e as cruentas guerras de religião proporcionavam ao feroz instinto
de um sanguinolento e bárbaro triunfo da horrorosa Noite de São
Bartolomeu, o mais funesto de todos os erros, o fanatismo, vomi-
tava na Espanha e em Portugal o monstruoso flagelo que tem
jamais oprimido a humanidade.
O tremendo tribunal do Santo Ofício, este vergonhoso parto
dos tempos modernos do cristianismo, tão fatal aos progressos
da civilização, não queria encontrar nas vítimas que imolava a mo-
ral esclarecida, a virtude obstinada das Bororquias.
Assim, a educação da mulher ficou estacionária, principalmente
nesses países, que a natureza enriqueceu de seus mais belos dons.
XVII.
É tempo de voltarmos ao nosso caro Brasil, cujo interesse
inspirou-nos este trabalho, e repetir a exclamação com que come-
çamos este opúsculo:
– Povos do Brasil, que vos dizeis civilizados! Governo, que
vos dizeis liberal! Onde está a doação mais importante dessa civi-
lização, desse liberalismo?
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Temos já transposto metade do século XIX, século marcado
pelo Eterno para nele revelar ao homem estupendos segredos da
ciência, tendentes a aplainar as grandes dificuldades que se opõe à
universalidade do aperfeiçoamento das ideias, em ordem a fraternizar
todos os povos da Terra.
Temos testemunhado o empenho dos homens pensadores das
nações cultas em harmonizar a educação da mulher com o gran-
dioso porvir que se prepara à humanidade.
Nada, porém, ou quase nada temos visto fazer-se para remover
os obstáculos que retardam os progressos da educação das nossas
mulheres, a fim de que elas possam vencer as trevas que lhes obscure-
cem a inteligência, e conhecer as doçuras infinitas da vida intelectual, a
que têm direito as mulheres de uma nação livre e civilizada.
Deus depôs no coração da brasileira o germe de todas as
virtudes. Vejamos o impulso que o governo e os homens da nossa
nação têm dado a este germe precioso; como têm eles cultivado e
feito desabrochar as flores, madurar os frutos que se deve esperar
de uma planta de abundante seiva, sob os cuidados de um hábil e
sábio horticultor.
XVIII.
Não ignoramos que vimos encetar uma matéria tanto mais difícil
quanto teremos de ferir preconceitos inveterados, e o mal-entendido
amor próprio daqueles que julgam as coisas em muito bom estado só
porque tal era a opinião de seus antepassados. Mas o desejo ardente
que nos cala na alma, de ver o nosso país colocado a par das nações
progressistas, nos impõe a obrigação de franca e imparcialmente ana-
lisar a educação da mulher no Brasil, esperando excitar, com o nosso
exemplo, penas mais hábeis que a nossa a escreverem sobre o assunto
que, infelizmente, tão desprezado tem sido entre nós.
Aqueles que escrevem tão somente pelo bem da humanidade
– e não por orgulho ou pela triste vaidade de fazerem-se um nome,
ainda mesmo nos países onde um nome literário tem pátria e gló-
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ria – não cogitam do juízo parcial dos que limitam os interesses da
humanidade no mesquinho círculo de seus interesses pessoais.
Não nos embala a vã pretensão de operar uma reforma no
espírito de nosso país. Por demais sabemos que muitos anos, sécu-
los talvez, serão precisos para desarraigar herdados preconceitos a
fim de que uma tal metamorfose se opere. Esperamos somente
que os zelosos operários do grande edifício da civilização em nos-
sa terra atentem para os exemplos que a História apresenta do
quanto é essencial aos povos, para firmarem a sua verdadeira feli-
cidade, o associarem a mulher a esse importante trabalho.
A esperança de que, nas gerações futuras do Brasil, ela assumirá
a posição que lhe compete nos pode somente consolar de sua sorte
presente. Entretanto, sigamos o exemplo do pobre e corajoso ex-
plorador de nossas virgens florestas, exposto aqui e ali à mordedura
de venenosos répteis, para rotear um campo que outros terão de
semear e de colher-lhe os saborosos frutos... Felizes nós se pudésse-
mos conseguir o primeiro resultado desse trabalho, que muito nos
lisonjearíamos de oferecer às nossas conterrâneas como penhor do
verdadeiro interesse que elas nos inspiram.
XX.
É uma triste verdade ter o Brasil herdado de sua metrópole o
desprezo em que teve ela sempre à educação do sexo.
Os portugueses, levando suas armas e seus missionários a outras
regiões do mundo, explorando a glória pela reunião dessas duas
forças heterogêneas que eles sabiam tão bem empregar para subju-
gar os povos, embriagavam-se demasiadamente em seus grandes
triunfos para poderem ocupar-se, como deviam, da instrução da
mulher, que, segundo a opinião da maioria de seu país – mais afeita
aos costumes mouriscos que aos dos povos do norte – não há
mister de outros conhecimentos além daqueles que a habilitam a ser
a primeira e mais útil servente de sua casa.
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A glória das armas e das conquistas era a única a que aspirava o
seu gênio belicoso. Dessa glória, porém, nenhuma vantagem resulta-
va à mulher, a não ser a dos efêmeros triunfos que lhe davam os
combatentes das justas e torneios, quebrando lanças que depunham
a seus pés como uma homenagem a suas graças ou a seu amor.
Essa homenagem, que os homens da Idade Média criam render
ao verdadeiro mérito da mulher, caracteriza-se na conduta de Magriço
e de seus companheiros, que tanto orgulho inspirou aos cavaleiros
daquele tempo. Esses doze famigerados guerreiros, indo tão
dramaticametne desafrontar as damas inglesas, em vez de empre-
garem o seu valimento e a sua bravura em pugnar pela reforma da
educação das damas portuguesas, que jaziam envoltas no espesso
véu da ignorância, forneceram um exemplo a mais da leviandade
do homem, procurando a glória onde menos ela reside.
Mas fora sempre esse o espírito de sua nação, onde as ciências
e as artes nunca tiveram grande incremento fora do claustro, essa
barreira insuperável ao progresso das ideias. Entretanto, se aquelas
eram ali suplantadas pelas armas, mesmo sob o reinado de seus
mais ilustrados soberanos, alguns gênios sobressaíram na Terra tão
altamente decantada por Camões, a despeito dos obstáculos que
se opunham aos seus mais altaneiros voos.
XXX.
Era quase geral a opinião, como dissemos, que a instrução inte-
lectual era inútil, quando não prejudicial, às meninas. Mas é porque
aqueles que propalavam tão absurdo princípio não faziam essa sim-
ples observação posta ao alcance da inteligência ainda a mais míope,
e para a qual lhes não era preciso revolverem a história dos outros
povos: as mulheres brasileiras, baldas de toda a sorte de instrução,
eram elas citadas como as mais virtuosas e severas nos princípios
morais? Subtraíam-se assim à melhor cilada das seduções armadas à
inexperiência ou à credulidade do sexo?
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Se assim tivera sido, se a estatística das faltas cometidas pelas
mulheres devidamente instruídas fosse mais numerosa do que a
das outras, certo que não hesitaríamos em ser do número dos
apologistas da ignorância da mulher, porque sendo a beleza da
virtude a que mais atrai e extasia a nossa alma, nós preferíamos
adorá-la, envolvida mesmo no grosseiro manto da ignorância, a
gozarmos de todas as vantagens que a civilização oferece do alto
de seu rico e deslumbrante pedestal.
Mas todos sabem, a não ser os povos selvagens, que é um
paradoxo e paradoxo rídículo avançar-se que a ignorância é o
melhor estado para o desenvolvimento das virtudes morais.
Ouvimos sempre bradar contra o progresso dos vícios que a
civilização traz, mas é porque não se quer atentar para os que prati-
caram e praticam todos os povos, não diremos selvagens, que vi-
vem no pleno estado da natureza, mas os que, ligados por vínculos
sociais, viviam e ainda vivem sem o influxo benéfico dessa pode-
rosa regeneradora do espírito humano.
Data de tempos imemoriais o costume dos velhos, esqueci-
dos das faltas de sua mocidade, censurarem acrimoniosamente as
da mocidade atual, preconizando aquela entre a qual outrora vive-
ram. Assim também acontece aos povos que se vão libertando do
império da ignorância: hoje olham alguns como erro o que faziam
por dever os seus antepassados. Os homens foram sempre os
mesmos, a diferença está nas circunstâncias e no modo em que
vivem, à educação que recebem, ao grau de civilização mais ou
menos considerável que os vai polindo.
Ninguém mais do que nós ama a Antiguidade e se entusiasma
pelos grandes feitos que nela se praticaram, pelos insígnes gênios que a
enobreceram. Mas quando vemos entre nós o vício premiado e a
virtude oprimida ou desprezada, não somos daqueles que lançam o
anátema da maldição sobre as gerações presentes, crendo-as
infecionadas de vícios por elas inventadas, quando são eles somente a
reprodução dos que em maior escala cometeram as gerações extintas.
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Uma só coisa censuramos às atuais gerações, e muito particular-
mente à nossa: é o não tirarem da experiência que nos fornecem os
erros de nossos antepassados o antídoto precioso para minorar os
nossos. Do número desses erros é o que nos inspirou este escrito.
XXXIV.
Nenhuma lei geral tendente à investigação dos colégios parti-
culares foi ainda promulgada pelo governo, nenhuma medida foi
tomada para que o ensino da nossa mocidade seja conveniente-
mente dirigido.
Uma casa de educação entre nós é, em geral, uma especulação
como qualquer outra. Calcula-se de antemão o número dos alunos
prometidos ou em perspectiva, as vantagens que podem resultar de
uma rigorosa economia, em que por vezes a manutenção daqueles é
comprometida. Fazem-se ostensivos prospectos e conta-se com a
credulidade do público, sempre solícito em acolher sem exame tudo
o que tem a aparência de novidade e de ostentação.
À parte as devidas exceções, as nossas casas de educação são
dirigidas por pessoas sem a aptitude necessária ao desempenho do
mais melindroso emprego entre os povos civilizados. Muitas dessas
pessoas aportam às nossas praias com o fim de especularem no
comércio. Vendo depois frustrados os seus planos de interesse nessa
carreira, lançam mão do ensino, e ei-los metamorfoseados, de ne-
gociantes e até mesmo de artesãos, em preceptores da mocidade
brasileira, afetando para com os pais de família uma distinção e
sabedoria que nem a natureza nem a educação lhes dera, mas cuja
reputação aparatosas casas, enfáticos anúncios e pretensiosas pro-
messas sustentam e propagam.
Apreciamos em subido grau os talentos dos estrangeiros. Qui-
séramos mesmo poder reunir em nossa terra todos os que estives-
sem no caso de instruir-nos e utilizar-nos com os seus conheci-
mentos, de que tanta precisão tem o nosso povo. Mas quais são
aqueles que justamente merecem por esse lado a nossa conside-
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ração? Poucos, muito poucos, e estes são os primeiros a concor-
darem conosco nessa verdade.
Vivemos algum tempo na Europa e sabemos que as pessoas ali
reputadas de letras e habilitadas para o magistério têm sempre em
que se empreguem com mais ou menos vantagem. A ideia de deixa-
rem o seu país para virem instruir a nossa mocidade jamais lhes
ocorreu. E se por imperiosas circunstâncias alguma a concebe, logo
a abandona, como aconteceu ao distinto poeta e literato A.F. de
Castilho, porquanto o mesmo Portugal, em sua decadência, com-
preende hoje quanto é desairoso a uma nação deixar emigrar por
escassez de recursos os gênios que a ilustram.
Se algum motivo político os expatria, passam de uns a outros
países da Europa, e quando demandam a América, preferem sem-
pre os Estados Unidos, porque lá encontram, a par de espíritos que
melhor os que sabem apreciar, uma sociedade que lhes fala dos bens
que na sua perderam. Para o Brasil, o interesse material, e somente
ele, conduz em geral o estrangeiro, a não serem os curiosos viajantes
e naturalistas, cujo amor da ciência os indeniza, no meio de nossa
pomposa natureza, da falta da civilização europeia.
XXXVI.
Pelo Quadro demonstrativo de Estado da Instrução primária e secundária
das províncias do Império e do Município da Corte, no ano de 1852, vê-se
que a estatística dos alunos que frequentaram todas as aulas públicas
monta a 55500, número tão limitado para a nossa população, e que
nesse número apenas 8443 alunas se compreendem.
Basta refletir nessa desproporção, para julgar-se do atraso em
que se acha a instrução do sexo, tão mal aquinhoado na partilha do
ensino pago pelo governo. Nenhuma proporção há, como vamos
ver, entre as esolas primárias de um e de outro sexo.
Na província de Minas, onde a instrução se acha mais geral-
mente difundida, entre 209 escolas de primeiras letras, só 24 per-
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tencem ao sexo feminino. Considerando-se essa tão desproporci-
onal diferença, o sexo parece permanecer ali debaixo da influência
do anátema que fulminara sobre ele um dos mais notáveis presi-
dentes daquele província. Tratando das cadeiras públicas de ensino
primário, dizia ele que “deve-se ensinar às meninas tudo quando
convém que saiba uma mulher, que tem de ser criada de si e de seu
marido”. Esse severo administrador abstraiu, por sem dúvida, do
século em que falava ou confundiu um povo livre, o digno povo
mineiro, com a malfadada população de escravos que infelizmen-
te o Brasil contém em seu seio.
Na ilustrada Bahia, de 184 escolas primárias, 26 somente são de
meninas. Menos egoísta para com o sexo a sua rival na glória, o
heroico Pernambuco, fiel a suas tradições, lhe sobressai em equidade,
pois que, de 82 escolas, 16 pertencem ao sexo feminino.
A província do Rio de Janeiro, com 116 escolas, dá ao sexo 36.
No município da Corte, a sede do governo imperial, onde devia-se
mais facilitar a instrução do povo, acham-se apenas criadas nove
aulas de meninas.
As demais províncias apresentam proporcionalmente a mes-
ma escassez de recursos para o cultivo da inteligência da mulher, e
algumas há cujo estado de instrução pública não chegou ainda ao
conhecimento do governo geral.
Acrescentemos agora ao medíocre número dessas escolas a con-
fusão dos métodos, das doutrinas seguidas pelas professoras, quase
sempre discordes em seus sistemas e, como já observamos, em
grande parte sem as necessárias habilitações, e teremos, reduzido à
expressão mais simples, o número da nossa população feminina que
participa do ensino público e o grau de instrução que recebe.
LXII.
Por mais rigorosas que tenham sido as instituições dos povos,
concernentes à exclusão absoluta da mulher de toda a sorte de go-
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verno público, quem há aí que ignore ter ela a maior influência nas
ações dos homens e, por conseguinte, nos destinos dos povos?
Desde o último subalterno até o mais alto dos funcionários,
são todos mais ou menos, não diremos somente inspirados, mas
dirigidos por seu amor – senão por seus caprichos, que têm mais
de uma vez desviado da senda de seus deveres os maiores gênios,
os caracteres mais abalizados.
Passamos em silêncio o vergonhoso predomínio da mulher
sem mérito na vida privada do homem, para apontar somente
aquele que influi em sua vida pública.
Quantas vezes a pena do circunspecto magistrado tem-lhe tremi-
do na mão, firmando uma sentença contra sua consciência, para satis-
fazer o pedido de uma esposa que lhe implora pelo réu de justiça!
Quantas outras, o guerreiro impávido à frente do inimigo da pátria,
no campo de batalha, curva o joelho e depõe a espada aos pés de
uma mulher amada, se esta exige dele o sacrifício de sua glória e mais
ainda ainda o de sua honra! E os monarcas? Não têm alguns fechado
os ouvidos às reclamações de seus súditos, para seguirem os ditames
do coração que lhes fala por um desses seres destinados a abaterem o
orgulho do homem, curvando-o à sua vontade?
Se, pois, apesar do quanto se tem dito e se continuará a dizer da
fragilidade da mulher e da preeminência da razão do homem, este
dobra quase sempre essa razão ao amor daquela, árbitro de suas
ações, quem mais do que a mulher precisa de uma boa educação,
correspondente às condições em que se acha colocada? Quem mais
do que ela deve esclarecer o seu espírito, de sorte a não abusar do
império que exerce sobre o homem e dirigir este à sua própria ven-
tura e ao bem da humanidade?
A vós, pais de família, a vós cumpre remediar os erros das
gerações extintas! Educai vossas filhas nos sólidos princípios da moral,
baseada no perfeito conhecimento de nossa santa religião, no exem-
plo de vossas virtudes, quer domésticas, quer cívicas. Em vez da
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leitura de inflamantes e perigosos romances que imprudentemente
lhes deixais livre, fornecei-lhes bons e escolhidos livros de moral e
de filosofia religiosa, que formem o seu espírito, esclareçam e forti-
fiquem sua razão. A história, principalmente a de nossa terra, de que
bem poucas se ocupam, é um estudo útil e agradável, mais digno de
ocupar as suas horas vagas que certos contos de mau gosto, inventa-
dos pela surperstição ou fanatismo ignorantes para recrear a moci-
dade sem espírito. Fazei-lhes compreender desde a infância que a
mulher não foi criada para ser boneca dos salões, a mitológica-ridí-
cula divindade a cujos pés queimam falso incenso os desvairados
adeptos do cristianismo. Inspirai-lhes o sentimento de sua própria
dignidade e a firme resolução de mantê-la intacta e vantajosamente,
por ações dignas da mulher, dignas da cristã, dignas da humanidade.
Bani de seu espírito os errôneos preconceitos que por aí vo-
gam a respeito da fraqueza do sexo, fazendo-as penetrar-se desta
verdade evangélica: a fraqueza escudada nas virtudes cristãs será
sempre invencível.
Pais, governo, povos do Brasil! Elevai os olhos para esse es-
plêndido firmamento que se estende variando constantemente de
mil encantadoras cores por sobre as nossas cabeças. Volvei-os de-
pois para essa perene pomposa vegetação, incansável de expandir
a vossos pés seus ricos tesouros, esperando da vossa mão direção
mais digna dela. Contemplai todos esses prodigiosos dons da Pro-
vidência, desdobrados a olhos indiferentes, e recolhei-os depois
em vossos pensamentos, e meditai...
Não vos diz a consciência que a mulher nascida nesta vigorosa
terra superabundante de magnificências naturais, respirando sob
um céu radiante, no meio da poesia de tão admirável natureza,
não se pode limitar ao papel que tem até hoje representado?
Não sentis que a sua missão nesta parte da América civilizada,
tão balda ainda de instituições caridosas, não deve ser a de recolher
factícios triunfos tributados à matéria, quando o seu espírito pode e
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deve pretender a elevar-se a mais dignas e nobres aspirações, pro-
movendo na Terra o bem do seu semelhante?
À Providência, colocando-vos tão vantajosamente, pareceu cha-
mar-vos a comandar um dia os destinos de toda a América do Sul,
assim como aos filhos da União os de toda a América do Norte.
Eia! Se, com mais rico solo do que o dos Estados Unidos,
faltou-vos a mola principal – a educação – para a par deles
machardes, preparai-vos ao menos a satisfazer dignamente a parte
essencial da grande missão que vos fora destinada.
Educai, para isso, a mulher e com ela marchai avante, na imen-
sa via do progresso, à glória que leva o renome dos povos à mais
remota posteridade!
(Opúsculo humanitário. São Paulo: Cortez Editora, 1989, 164 p.).
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Cintilações de uma alma brasileira
A mulher
Agosto chegava ao seu fim. Uma temperatura de 30 graus
parecia quase sufocar os habitantes de Paris. Havia soado então o
meio-dia, quando duas mulheres entraram nos vagões da estrada
de ferro de Estrasburgo para ir a uma aldeia a 20 léguas de Paris.
Após duas horas deixaram elas a estrada de ferro, e tomaram um
veículo que as conduziu, por entre risonhas colinas, aonde pudes-
sem achar um pobre lugarejo, escondido entre as árvores de uma
estrada não conhecida por elas.
O que iriam elas procurando? Por que os seus corações enter-
neciam-se ao descobrir o campanário da aldeia, e daí a poucos
passos a fumaça que saía das chaminés de negras cabanas? — por-
que as duas poderosas vozes da amizade e do sangue fizeram-se
ouvir naqueles dois corações: porque ali vive o pobre anjinho aban-
donado em mãos mercenárias.
Embalde as duas mulheres puseram-se logo à procura da casa
aonde se dirigiam seus pensamentos: nem sabiam como se cha-
mava o burgozinho no qual se situava. Finalmente, à força de tan-
to procurar, conseguiram descobri-lo; e o veículo parou diante de
uma abjeta cabana. Apearam da carroça, e entraram naquele tu-
gúrio, sem serem recebidas por ninguém. Ó que espetáculo, re-
pugnante e ao mesmo tempo triste, oferece-se aos seus olhares!...
Um úmido aposento, sem ar, com um assoalho de pedras
disformes cobertas de lodo; uma janela, ou melhor um buraco,
jogava como que uma réstia de luz sobre os sujos e velhos móveis
que entulhavam aquela caverna humana, onde a panela de domin-
go fervia no enegrecido fogão. Uma cama, cujo escuro baldaquino
combinava com o restante dos objetos espalhados aqui e ali, anun-
ciava a desordem e a falta de qualquer asseio. A eira lotada de
pútrido estrume tresandava, não menos que o quarto contíguo,
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um odor desagradável impossível de sustentar... As duas mulheres
entreolharam-se sem que pudessem dizer palavra.
Assim nas desgraças como na prosperidade, há alguns solenes
momentos, em que as vivas comoções fecham o coração e sufocam
a voz!
Os donos da casa estavam nos campos; achava-se ali dentro
somente uma das suas filhas, à qual foi perguntado sobre o menino
de Paris, confiado a sua mãe; e lhe foi feito um mundo de interroga-
ções. Surpresa por uma visita tão estranha e tão nova, a simples
aldeãzinha ficou confusa, e maquinalmente subiu ao celeiro onde
não havia cama, e nem pensou em trocar as fraldas do menino.
Ó mães sem coração, que abandonais os mais sagrados deveres
da natureza, destacando de vosso seio os próprios filhos, esta parte de
vossa alma, para mandá-los sugar um leite estranho em alguma lon-
gínqua aldeia, onde não dais depois o ar de vossa presença! A vós,
somente, quero narrar o que vi: ante vossos olhos quero eu delinear o
deplorável quadro que me partiu o coração, e que verbalizará o pro-
cesso de vossa desnaturação face às gerações vindouras!
Uma daquelas duas mulheres (que era eu mesma) estava em pé
apoiada a uma velha mesa, confortando com o olhar a pobre com-
panheira que deixou escapar dos lábios estas eloquentes palavras em
tom de delírio: “Apavoro-me só de entrar!...”.
A aldeãzinha desceu de um alto alçapão da cabana, trazendo
em seus braços um menino abatido, cujos membros e as imundas
vestes teriam nauseado qualquer um não afeito a respirar naquela
atmosfera impregnada de miasmas, se não se sentisse afeiçoado à
infeliz criaturinha que tínhamos diante dos olhos. A pobre rapari-
ga, instigada pela nossa impaciência em ver imediatamente o me-
nino, foi obrigada a no-lo apresentar naquele estado.
A avó dele (que tal era a minha companheira, a quem eu fazia
de tudo para encorajar) tomou-o soluçando em seus braços, antes
de passá-lo aos meus. “Pobre do meu menino”; exclamou com
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uma voz de cortar o coração; “em que estado te encontro eu!...
Oh! se fosse possível aos mortos sair de suas sepulturas, tua boa
mãe voltaria para a dela ao ver-te assim reduzido!...”
E enchia de carinhos aquele anjinho, que extenuado e nunca
alegrado por cuidados benévolos, ficava como que pasmo e in-
sensível aos sorrisos de amor que pela primeira vez se lhe faziam.
Com a cabeça reclinada, com os olhares de uma celeste doçura,
mas mortiços e dolentes, ele se assemelhava a um tenro lírio, cur-
vado antes do tempo sobre seu caule pelo furioso furacão.
Acostumando-se um pouco a tão novas carícias, um melancólico
sorriso aflorou a seus lábios pálidos; e naquele angélico semblante li
uma tácita e justa reprimenda àqueles que se não por dureza, mas por
uma imperdoável negligência, condenaram-no a vegetar fora do teto
paterno, e talvez a uma morte prematura que o aguardava.
Sua avó perguntou à aldeãzinha onde dormia à noite o menino,
queria a todo custo ver o lugar. A simples rapariga, pressionada por
tão justa pergunta, e sabedora da falta de seus pais, hesitou, balbuciou
algumas palavras; e após ter confessado que não havia uma cama, e
que o menino dormia no chão do celeiro, replicou, refazendo-se, que
dormia com sua mãe e seu pai no mesmo leito ali presente. Cria,
assim, tornar aos nossos olhos menos deplorável o berço do pobre
menino. Chegada quase à idade de 3 anos, esta desgraçada criança
penava muito para caminhar. Suas pernas debilitadas mal podiam sus-
tentar o corpinho lânguido e enfermiço, fazendo bem ver que nunca
lhe foram prestados os cuidados que exige uma tão tenra idade. Seu
caminhar era mais um arrastar-se com o corpo: e seu sorriso era a
expressão de um longo e resignado sofrimento, mais que o impulso
daquele júbilo tão próprio da infância. Poder-se-ia dizer que ele reco-
nhecia o abandono em que se encontrava, e tinha-se-lhe acostumado
sem esforço. Não pretendendo, nem sendo afeito às carícias daqueles
que o rodeavam, não ousa exprimir uma só vontade: sofre toda pri-
vação, a fome, a febre, sem se queixar, nem dizer palavra!
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Provavelmente o pobre menininho não tinha quebrado o je-
jum aquele dia senão com uma fruta azeda, porque comeu com
grande avidez.
A ama, que tinha nesse ínterim retornado dos campos, que-
rendo fazer-nos esquecer a má impressão que recebemos à nossa
chegada, pôs o menino sobre os joelhos e fê-lo comer e beber,
certamente mais do que estava acostumado.
Terminada a refeição, a querida criaturinha cobriu-se toda de
um suor tão profuso que nos meteu medo.
Tomei-o em meus braços: queimava como fogo!
Todos os filhos da camponesa tinham já ido dormir, e ela não
se apressava em cuidar do pobrezinho que, apesar disso, não chora-
va, nem dizia uma só palavra para mostrar o quanto sofria! Estavam
tão acostumados a deixá-lo estar num cantinho, que a despeito da
solicitude que agora mostravam em nossa presença, não lhe faziam
caso. Foi preciso dizer que o menino tinha grande necessidade de
repouso, para que o pusessem na cama daquele revoltante casal que
estava à nossa frente.
Não querendo eu ficar naquela casa, mas desejando passar al-
guns dias na aldeia para ver se tornava menos penoso o estado
daquele miserável, fiz preparar uma cama em casa de uma pastora
que me pareceu assaz agradável e muito asseada.
Aproveitar-me-ei de minha estadia aqui (dizia para mim mes-
ma) para melhor estudar esses hábitos que, embora enojantes, me
interessam.
A avó do pequenino retornou a Paris para convencer seu gen-
ro a tirar o filhinho daquela rude existência em que vegetava. Ela
estava comovida até a alma; mas eu estava mais que comovida:
estava horrorizada!
Pelo costume que ela tinha de ver tais cenas, seu coração não
sofria senão porque esse menino era seu neto; mas cenas desse
tipo, por serem novíssimas para mim, causavam-me não menos
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surpresa do que horror, e quis obter daí argumento para um estudo
não totalmente inútil.
Aproximando-me no entanto do funesto aniversário da mor-
te de uma mãe que cessou de viver quase contemporaneamente à
mãe daquele menino, cuja visão havia-me tanto enternecido, não
teria podido de melhor maneira ali passar aqueles dias que em
prestar meus cuidados ao orfãozinho, e atentamente examinar em
todas aquelas aldeias e burgos essa inocente porção do gênero
humano, abandonada pelo aparente progresso da civilização, em
meio às misérias que minha boa mãe deploraria tanto quanto eu,
se coubesse também a ela ser-lhes espectadora! Mas ela nunca saiu
de seu país, onde tais enormidades são desconhecidas até agora.
Na solidão dos bosques e planícies que rodeiam aquelas aldeias, eu
podia melhor do que nas cidades retornar com o pensamento a
ela que amou e protegeu sempre, até quando pôde, todos os que
sofriam à sua volta.
O destino daquele garotinho, cuja terna mãe eu havia outrora
conhecido e estimado, acordava mais do que nunca minha
filantropia.
Pus-me a percorrer todas as vilas e aldeias próximas, para ver
se ele era o único exemplo de tanta barbárie; e servindo-me da-
queles oportunos meios que a ocasião proporcionava, e de uma
linguagem simples e afetuosa, tive toda a facilidade em introduzir-
-me em todas as cabanas, e fazer tagarelar as amas e as mulheres
das vizinhanças.
Era minha intenção ver com os meus próprios olhos aquilo que
tinha-me sido muitas vezes narrado; e consegui facilmente; porque
os camponeses ignoram ainda as muitíssimas sutilezas de que se ser-
vem os habitantes das grandes capitais para velar a verdade. Nos
campos acha-se ela toda nua, e aí se desdobra a pompa de suas
belezas aos olhos de quantos a veneram. Escutai, ó mães, escutai, a
narração daquilo que ainda me foi dado ouvir.
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Nas minhas contínuas excursões, ora retinha-me eu diante de
grupos de moleques que brincavam perto de uma cabana; ora
diante de alguma mulher que retornava da roça com seu feixe de
feno, e que me cumprimentava cordialmente em seu tosco linguajar.
Em um bando de garotos que, gordos e contentes, brincavam
alegremente, achava-se uma grácil criaturinha carregada por uma me-
nina de 7 ou 8 anos, que a revirava em seus braços. Ao avistá-lo,
perguntei àquela inocente que o tinha em custódia se era um seu
irmãozinho. – “Não”, respondeu-me, “é um amamentado de Paris.”
A camponesa, jogando no chão seu feixe de mato, punha sobre
os joelhos uma menininha à qual oferecia seu peito, enquanto outro
mirrado garotinho ficava sentado sobre a palha meio afastado, olhan-
do-a fixamente. – “É vosso também aquele menino ali, boa mu-
lher?” disse-lhe eu – “Não senhora, é um meu amamentado.
Vindo ao meu encontro outra camponesa, mostrava-me uma
carreira de seis ou sete meninos, todos vivazes e robustos, indican-
do-os pelo nome para satisfazer minha curiosidade. – “E aquela
lá?” demandei-lhe, indicando uma menininha que ainda não se susti-
nha bem em pé. – “É um dos meus dois amamentados de Paris”. –
“Como fazei vós”, repliquei, “para amamentar três de uma vez?” –
“Que hei de fazer?” – respondeu – “Aqui é tão duro tocar a vida! E
é preciso arranjar-se de algum jeito. E contou-me em seu dialeto, o
quanto tinha que penar para tirar o sustento da sua família.
Em outro lugar, uma outra lavradora lavava roupa naquele
seu cubículo de casa, onde estavam num só cômodo todas as
sujeiras e os berços das crianças. Perguntei-lhe se tinha ovos fres-
cos para me vender; e acariciava enquanto isso um belo garoto
que a segurava pela anágua pedindo pão. Tendo percebido que eu
tinha dado dinheiro para o pequenino para que o comprasse, agra-
deceu-me e fez-me sentar sobre um banquinho, pedindo muitas
desculpas por não ter de melhor para me acomodar. – “Estou
muito bem, boa mulher”, disse-lhe eu. – “Ah! senhora, não sois
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para nada soberba, como a maioria das grã-finas, que não se dig-
nam de entrar em casa de gente pobre.” Nesse ínterim um breve
grito, vindo do fundo da cabana, sobressaltou-me, e interrompi o
discurso para dizer-lhe que alguém tinha caído. – “É o menino que
peguei para cuidar, que faz algum tempo se sente mal.”
A essas palavras para cuidar, meu coração comoveu-se, e olhei
atentamente para aquele lado escuro, de onde saíra o gritinho.
Um menino, ou melhor dizendo, um mortinho, amarelo
como o açafrão, estava ali deitado num pano imundo. Ele defi-
nhava de um modo comovedor, em meio àquele bom ar cam-
pestre, que eu ouvi tantas vezes ser louvado pelas mães parisienses,
habitual pretexto para tirar da própria vista seus filhos, não sa-
bendo elas que o ar respirado pela mãe, esse é o que condiz
melhor para seus filhinhos! – “Boa mulher”, disse à camponesa
reprimindo minha comoção. – “Aquele menino parece muito
doente. Há quanto tempo o tendes?” – “Há dois anos. Nos pri-
meiros tempos andava bonzinho, mas depois começou a dar
para trás, e me dá uma grande despesa”. – “Os seus pais não
sabem nada de tudo isso?” – “Oh! com certeza; mas não se dão
por achados; mandam todo mês 20 francos, e não têm por onde
que mandem uns panos pr’o menino, nem sapatinhos, nem nada.
E eu, que hei de fazer, pobre mulher com seis filhos para alimen-
tar?” – “Vós tendes toda razão; mas no entanto e se o menino
morre?...” – “Santo céu! Quando pegamos algum amamentado,
dá-se-lhe ainda a fé do batismo; e se o menino morre, avisamos
o cura...” – “Mas afinal,” continuei a lhe dizer, interrompendo-a
com doçura; “os parentes terão de ser avisados.” – “Sim senhora,
para mandar as despesas que tivemos, se é que não se mudaram
sem mandar-nos o endereço, como está sempre acontecendo.
– “Será possível!” exclamei horrorizada: “Os pais, após terem
mandado os filhos a amas tão distantes, não se fazem mais de
vivos?” – “Senhora, não sois vós então de Paris?”
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Apercebi-me a tempo que a minha excessiva sensibilidade
poderia trair as minhas intenções; portanto respondi-lhe que há
muito tempo encontrava-me fora do país, e que tinha esquecido
esse costume. – “Tomai e comprai alguma coisinha para vossos
filhos e para aquele outro.” E tendo posto em suas mãos um pou-
co de dinheiro, fui-me embora.
Mais adiante encontrei uma camponesinha que trazia no colo
um menino, e outro pela mão. – “São vossos estes dois meninos,
minha cara?”, perguntei-lhe, apontando aquele que ela trazia no colo,
e era mais limpinho. – “Só este, senhora; este outro deram-me p’ra
cuidar.” Se bem que pouco carnudo e esqualidinho, pareceu-me
mesmo em melhor estado de quantos houvera visto até então, e
expus-lhe meu contentamento. – “Louvado seja! Não sou daquelas
que pegam criança por interesse;” disse-me, com um ar de compla-
cência pelos louvores que eu lhe tinha feito. – “Infelizmente vejo que
aqui há muitos meninos com amas, os quais não são tão viçosos
como o vosso”. – “Que quereis, ó senhora? Quase todas as amas
passam todo o santo dia pela roça na boa estação, e deixam estes
pobres pequeninos com alguma das suas meninas que olham a casa,
ou sozinhos, a berrar até a noitinha.”
“Não faz muito tempo, aquela ali (e me indicou uma mulheraça
que passava longe de nós), os dois meninos que tinha como ama,
deixou-os à sua filhinha de 8 anos. O menor não tinha ainda 4 meses;
e vendo-o chorar, a garotinha a quem a mãe tinha dito para lhe dar a
papa, não faltou a seu dever. Fez então a papa, mas dura demais, e
encheu o estômago do pobre petiz. Daí a pouco, eis que passa uma
mulher dos arredores, à qual a garotinha mostra o menino que quase
não podia mais respirar. Foram chamar a ama; ela chega, e a infeliz
criaturinha sufocada expira... Foi enterrada, e mandou-se dizer a seus
pais em Paris que o menino morrera repentinamente de uma febre.”
Outras me contaram que uma menina dada em custódia nos
arredores quebrou um braço por ter sido deixada sozinha. Então
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uma das roceiras pôs-se a falar da dureza de certos pais, que, não
pagando nunca as mesadas às amas, obrigavam as pobrezinhas a
levarem de volta o menino a Paris à repartição dos amamentados,
onde se recebem estes míseros abandonados; e outra contava-me
a dolorosa história de alguém que, após ter esperado cinco ou seis
meses de salário, não tendo mais meios de alimentar o menino em
sua numerosa e necessitada família, resolvia-se finalmente com gran-
de pesar a levá-lo de volta à tal repartição. Em um burgo mais
distante, um menino deixado por sua ama no quintal da cabana,
fora comido por um leitão!
Depois de quatro dias dessas minhas dolorosas excursões, meu
coração sentia-se tão fechado, que retornei a Paris desgostosa de
tudo e de todos!
A natureza inutilmente tinha desdobrado a meus olhos as cenas
mais encantadoras; tão dilacerantes foram os objetos por mim vis-
tos em meio àquele sorriso, que minha alma não pôde gozá-lo como
de outras vezes.
Aquela multidão de meninos repudiados pelo seio materno e con-
denados a definhar em meio a privações, oferecia-se-me em lúridas
cores, como uma maldição universal sobre os progressos de uma mal
organizada sociedade, que se gaba de seus modernos triunfos e des-
trói de tal modo os alicerces das mais sagradas leis da natureza!
Ao voltar a Paris, estava tão completamente impressionada, que
todo semblante de mulher que eu encontrava pela rua fazia-me tre-
mer, à ideia de que pudesse ser a mãe de algum dos pobrezinhos lá
abandonados. O brio daquela altiva e clamorosa metrópole, os seus
palácios suntuosos, os belos monumentos, os esplêndidos cafés,
domicílio eterno dos ociosos, as ricas lojas, as filas das carroças que
se dirigem ao luxuriante bosque de Boulogne para recreação dos
elegantes, e de todos aqueles que folgam; esses milhares de pessoas
que vão e vêm por toda parte, alguns a negócios, outros a passeio;
todo esse movimento enfim, que mostra a operosidade de um povo
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inteligente e progressivo, apertou-me ferozmente o coração, e, como
disse, quase repugnou-me. Porque à memória de tantos infelizes que
morrem à míngua nos sótãos e dentro de escuras tocas, mesmo em
meio a esta grande cidade que exibe um luxo tão desmedido, junta-
va-se agora a memória daquelas pobres crianças dadas em custódia,
ou melhor dizendo, confinadas naqueles campos, enquanto seus pais
fazem parte de um tão grande movimento de gente!
Existem asilos para meninos que não podem ser criados por
seus pais; existem creches recentemente instituídas para os filhos
dos operários que são obrigados a trabalhar o dia todo – disse-
me um bom pai de família que tinha-me ouvido deplorar a sorte
daqueles petizes, enviados para tão longe de Paris.
Mas os asilos e as creches são feitos para os pobres: e os pais das
criaturinhas mandadas a 20, 30 e 60 léguas de Paris, agastar-se-iam
com quem mencionasse aquelas casas de caridade para os filhos deles.
E outros que não têm coração para enternecerem-se com as
vozes da natureza, ficariam ruborizados em pensar em ter que
receber um benefício dessa espécie. Falta-lhes coração, mas não o
orgulho e a vaidade.
A certas mães que acham tempo para se dar às distrações da
vida, ou a insossas ocupações, que importa se os próprios filhos
definham longe delas!
À vista desse lamentável quadro, despertou em mim, como
que de um longo sono, o desejo de escrever a respeito de um
assunto que sempre me foi muito caro. Sem mencionar as aldeias
que me proporcionaram material para este gênero de estudos, o
qual ser-me-ia oferecido por todo o restante da França, não tive
intenção de acusar as pobres amas da roça, mas unicamente de
reavivar um sagrado dever no coração das mães que confiam suas
crianças a mãos estranhas e assalariadas.
Pensando sobre esta horrível parte da nossa tão alardeada civili-
zação, deixo-me levar espontaneamente pelas considerações que ela
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sugere, e medito profundamente a respeito da mais negligenciada
coisa que há do princípio do mundo até nossos dias! Apraz-me
apurar as causas dos efeitos que me interessam, e procurar em sua
origem as razões ou os erros que as produziram e desenvolveram.
Sempre se disse e se repetiu, que tudo é bem feito na harmonia
da natureza; o que ninguém poderá pôr em dúvida; mas não se dá o
mesmo na sociedade! As leis que a governam, em vez de harmoni-
zar, estão amiúde em desacordo com a índole, com as necessidades,
com o bem-estar e a felicidade dos homens!
Foram muito gabadas, e quase idolatradas, as modernas des-
cobertas, e os esforços humanos para reordenar e aplicar ao nosso
século os achados da Antiguidade.
Soberanos intelectos, sublimes engenhos e tenazes vontades, vie-
ram aplainar obstáculos julgados antes intransponíveis no imenso campo
do progresso, descerrado aos povos e às diferentes nações da Terra.
Por toda a parte novos milagres da arte e do engenho nos
espantam, nos deliciam!
Desaparecem as ruínas, embelezam-se as cidades, cercam-se
os quarteirões para ficarem mais bonitos; por terra e por mar voa
o comércio nas asas do vapor que encurta as distâncias e irmana
os povos; esplêndidas festas, congressos científicos e literários di-
fundem-se em toda parte; em toda parte escuta-se o grito do pro-
gresso, ecoando de um polo a outro.
Mas em todo canto ainda, o olho observador vê neste belo
horizonte tão luminoso uma nuvem longínqua que escurece e dilata-
-se... Em meio a essa altiva e clamorosa multidão de felizes progres-
sistas, o ouvido atento escuta gemidos de dor.
As mentes menos ofuscadas pelo esplendor tão faustoso me-
ditam acerca da sorte das vítimas desventuradas, de generosos
corações desolados, e de inocentes e miseráveis criaturas que se
arrastam atrás de toda esta pompa, criada pela arte para honrar a
hodierna civilização!
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Apesar de todas essas criações do engenho e da ciência, ainda
geme a raça humana nas calamidades que não fizeram senão mudar
de aspecto e nome, desde 6 mil anos até agora. E por que isso? Qual
é a origem de tantas monstruosidades que vemos produzidas em
todo lugar pela civilização, e alimentadas pelo hábito?
Não é preciso procurar muito para trazê-la à luz, porque ela
está clara por toda parte.
A descrença!
E de onde vem este flagelo destruidor?
Da educação.
A educação moral, de que tenciono aqui falar, falta geralmente
por toda parte; por toda parte é esboçada, não sendo em parte
alguma levada a cabo. Daí a origem e a causa capital de todos os
males morais que afligem, e afligirão ainda por tanto tempo, o
gênero humano.
Ter-se-á um enorme trabalho em abrir escolas, academias e asi-
los de caridade; promulgar leis, dilatar o horizonte das ciências e da
arte; favorecer e ampliar o comércio e a agricultura; alinhar exércitos
formidáveis; não se chegará nunca a curar as chagas gangrenadas da
sociedade, se se continuar a desleixar a educação moral dos povos.
Essa educação não se efetuará nem com armas, nem com o
poder do ouro, vil metal que tudo compra, e sim com o amor e a
virtude.
Nem efetuar-se-á com as variadas e profundas criações do gê-
nero humano, por nós admiradas todo dia. O homem descobriu
tudo, tudo aperfeiçoou em favor de uns, e em prejuízo de outros. A
mente tudo inventou e aprofundou. Mas a força intelectiva não sabe,
nem saberá jamais, harmonizar todas as partes isoladas dos elemen-
tos, desprezadas ou negligenciadas desde os primeiros séculos.
Essa operação aqui e ali experimentada, mas sempre termi-
nando em nada por falta de homogeneidade nos princípios dos
homens, só ela poderá constituir a base fundamental do verdadei-
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ro progresso da sociedade, que nada mais é, como todos sabem,
que a prosperidade dos povos.
Há um único e potente motor que pode aglutinar todos esses
elementos, e fazê-los cooperar na causa geral da humanidade; e
enquanto os homens em sua deplorável cegueira, ou em seu trans-
bordante orgulho pisarem-no ou dele descurarem, não poderão
conseguir a perfeição de seus grandes esforços!
Esse motor é o sentimento da ternura; e o seu grande e precípuo
lume está no coração da mulher. Privai-a de tudo, e com aquele
vosso costumeiro egoísmo, que dos antigos povos herdaram os
modernos com alguma modificação, negai a ela a inteligência, a fir-
meza de ânimo, a retidão de espírito, a coragem, a energia.
Mas, quanto à ternura, deveis confessar que ela a tem mais que
o homem.
A ele, segundo vós, a inteligência, o engenho, a força de vontade,
e todos os seus triunfos. A nós, o coração e todos os seus sentimentos
mais generosos com a mais nobre entre as virtudes, a abnegação.
Mas não basta que a natureza lhe tenha sido cortês deste gran-
de e inestimável tesouro: é preciso dirigi-lo bem como uma edu-
cação culta e fortificada na prática do dever e na razão, para sabê-
lo utilizar em benefício dos outros. Menos orgulhosas e mais mo-
destas do que os homens inebriados pelos triunfos do seu gênio,
não acreditamos, como o creem eles de suas descobertas e de suas
obras, que unicamente o sentimento seja bastante para produzir a
grande reforma que os povos há muitos séculos esperam.
O coração precisa ser trabalhado com uma educação especial e
convenientemente dirigida; o que acontecerá quando, submetendo a
ele o espírito e a inteligência, achar-se-á capaz de operar plena e
dignamente no destino dos homens, fazendo ressaltar e harmonizar
o quanto há de grande, de belo, e de nobre na progênie humana.
Educai o coração da mulher, esclarecei seu intelecto com o
estudo de coisas úteis e com a prática dos deveres, inspirando nela
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o deleite que se experimenta ao cumpri-los; purgai a sua alma de
tantas nocivas frivolidades pueris de que se acha rodeada mal abre
os olhos à luz.
Cessai aqueles tolos discursos com os quais atordoais sua ra-
zão, fazendo-a crer que é rainha, quando nada mais é que a escrava
dos vossos caprichos. Não façais dela a mulher da Bíblia; a mulher
de hoje em dia pode sair-se melhor do que aquela; nem muito
menos a mulher da Idade Média da qual estamos todas tão dis-
tantes, que não poder-nos-ia servir de modelo; mas a mulher que
deve progredir com o século XIX, ao lado do homem, rumo à
regeneração dos povos.
Guarde-se bem o homem de ter a mulher para seu joguete, ou
sua escrava; trate-a como uma companheira da sua vida, devendo
ela participar de suas alegres e tristes aventuras; considere-a desde o
berço até seu leito de morte, como aquela que exerce uma influência
real sobre o destino dele, e por conseguinte sobre o destino das
nações; dedique-lhe, por último, uma educação como exige a gran-
de tarefa que ela deve cumprir na sociedade como o benéfico as-
cendente do coração; e a mulher será como deve ser, filha e ir
dedicadíssima, terna e pudica esposa, boa e providente mãe.
Inspire-se na rapariga, em lugar do gosto pelo trajar, e outros
semelhantes disparates, o gosto por numerosos pequenos deveres,
que sejam compatíveis com aquela primeira idade, tão geralmente
negligenciada nas famílias.
As crianças são de mais precoce entendimento do que
acreditaríeis. Observai-as com atenção e vereis que são todas pro-
pensas por natureza a imitar aqueles que lhe estão à volta. No
início o fazem sem se aperceberem; mas com o desenvolvimento
progressivo de sua razão, seguem o modelo que melhor condiz
com a sua índole e maneira de viver. Então começam a despontar
nelas aquelas inclinações que chamais naturais, e que muitas vezes
não são mais que o resultado dos gostos por vós instilados em
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seus tenros corações, e dos exemplos que imitaram quando não
prestáveis atenção. Os pais, eu sempre disse, obstinam-se a criar
suas crianças mais para si que para as crianças mesmas; e geralmen-
te têm o pernicioso costume de fazer com que elas vejam e com-
preendam aquilo que não deveriam conhecer senão na idade ma-
dura. Esse é um grande erro, e um pecado imperdoável, contra o
qual não se protestaria nunca o bastante. Negligencia-se por toda
parte o cultivo das qualidades do coração, para ocupar-se somente
com aquelas do espírito e da pessoa, que devem agradar o mundo
frívolo e imbecil.
Vede aquela mãe que dá toda a atenção, como que se tratasse de
resolver um árduo problema de matemática, a fazer brilhar o guarda-
roupa de sua filha, enchendo-lhe a mente dos preceitos de bom gosto,
e de como deve se comportar para sobressair-se entre as outras.
Observai aquele pai, se bem que homem de talento e de gran-
de mérito, chegar ao êxtase como um simplório, ao escutar os
elogios que são feitos à ligeireza dos pés, à agilidade da mão de sua
filha, enquanto ela dança ou percorre o teclado do piano. Gaba-se
a sua graça, seu espírito, sua beleza, e sobretudo com que bom
gosto se veste; os pais acreditam já não ter nenhuma obrigação
para o mais essencial que lhe falta.
Repetidas vezes ouvi-los-eis dizerem: “Gastei tanto na educação
de minhas crianças; dei-lhes os maiores mestres da arte e da ciência!”
Em verdade a elas tudo ensinaram, menos aquilo que mais lhes urgia
aprender: os bons exemplos da família, sob o teto paterno.
A menina, de volta do distante campo onde foi nutrida, vê seus
irmãozinhos e irmãzinhas (se os pais querem-nos ter!) deixarem pouco
a pouco a casa paterna para ir receber a primeira lição de dureza e
indiferença que se lhes dá na vida; depois cresce numa atmosfera
toda contrária ao desenvolvimento das boas ideias e dos sentimen-
tos próprios de filha, de esposa, de mãe, de mulher enfim, digna de
compreendê-los, e de cumprir sua missão na Terra.
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Quando chega a sua vez de ser mãe, é naturalíssimo que ela
siga o exemplo que recebeu de sua mãe, e assim por diante.
Os pais fazem muitas vezes tráfico como o dote e as graças de
suas filhas, pretendendo uma fortuna igual àquele, ou suficiente
para comprar estas. As jovens em geral (sobretudo na França, onde
há tanto desprezo pelas raparigas de idade adiantada) submetem-
-se por obediência ou por decisão própria; e eis a santa união do
matrimônio profanada, e assim acolhida na sociedade!
Não tendo aí o coração nenhum papel, cedo as famílias desu-
nem-se, e entra nelas a infelicidade; e às vezes a desonra e a miséria.
Mas se marido e mulher querem salvar as aparências e manter-se
na opinião pública, tudo se ajusta amigavelmente; seguem eles a
morar na mesma casa, e vivem cada um por si.
Entre o povo as coisas caminham mais livremente, ou menos
hipocritamente; mas os efeitos são sempre funestos, especialmente
para a educação dos filhos.
A mulher, obrigada ao trabalho diário, cuida corajosamente
também de suas crianças, dos afazeres de casa, e daquelas dores de
cabeça que muito frequentemente têm por causa de um marido
folgazão. Nisso a mulher do povo é superior àquela de adamada
condição, e por isso justamente tem mais coração. Se ela não rece-
beu nenhuma instrução (melhor do que recebê-la imperfeita),
tampouco teve, como as mulheres de um grau mais elevado, oca-
sião de ouvir contínuos e absurdos agrados que corrompem o
ânimo em vez de bem informá-lo; tornam-no duplo e superficial,
até destruir os mais belos dotes do coração.
Os homens, em sua ambição de granjear todo deleite material,
sempre cegaram-se a respeito do proveito real que podem obter
dessa importante parte da humanidade, tratada pela maioria deles
como se fosse feita para servir de vazão aos seus prazeres e aos seus
caprichos. Tudo fizeram dela até agora, a não ser o centro comum,
de onde devem emanar todas as boas inspirações, todos os amáveis
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e prudentes conselhos para ajudá-los no caminho difícil da vida em
direção à universal conquista do progresso verdadeiro. Por quanto
se diga e se faça, todos sabem que a mulher sempre teve um grande
ascendente sobre o homem; mas desgraçadamente são quase sem-
pre menos dignas de exercitar esse privilégio, sem outro fim que o
de satisfazer os seus gostos pessoais. Com todo o orgulho que tem
este ser, que se crê o favorito da natureza, e único possuidor de uma
firme e iluminada razão, deixa-se ele vencer mais pela arte que pelo
real mérito da companheira que escolheu; e enfurecendo-se contra a
fraqueza e incapacidade moral do nosso sexo, submete-se às vezes,
sem nem se aperceber, a um jugo abominável nas mãos de uma
mulher sem qualidade.
Quem já não viu, desde um monarca até o último vassalo, o
homem arrastado por uma irresistível paixão, depor aos pés de uma
mulher amada seu poder, seu porvir, amiúde até a honra da nação?
Todavia não é essa a salutar influência que deve exercitar a
mulher sobre o homem, porque esta não é apenas individual, mas
deve conduzi-lo ao bem geral de seus semelhantes.
Se a mulher fosse sempre educada para sair-se como deveria
ser, ver-se-ia porventura o resultado da sua influência tornar-se aqui
e ali muitas vezes mais nocivo que proveitoso à felicidade dos ho-
mens? Ouviremos nós ser dito por aqueles mesmos que mais afun-
daram de paixões em paixões, e mais entregaram-se aos braços da
sensualidade, que as mulheres sejam inferiores ao homem em com-
preensão e em constância?
Tais tipos bradam e gritam contra os defeitos que eles mes-
mos enxertaram naquele sexo por demais ingênuo a fim de que se
embelezasse das qualidades a eles agradáveis em seus próprios pas-
satempos.
Após tê-lo atraído, lisonjeado, e totalmente dominado com
um linguajar terno e anelante que parece ter a marca da verdade,
despojam-no da sua inocência, da sua dignidade, e põem-lhe o
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agravo de erros, e até de delitos, de que são eles originalmente
culpados.
Em contradição a si mesmos, culpam e desprezam mais a
mulher que se deixa seduzir, que o próprio sedutor, quando pro-
clamam, como uma verdade incontestável, que a força e o raciocí-
nio são suas características, e que a fraqueza e a volubilidade são o
distintivo dela.
Se uma pobre garota cai na desgraça de prevaricar por um amor
que ela acreditava sincero e puro, se for descoberta, os anátemas da
sociedade precipitam-se sobre ela, já oprimida pela ingratidão e pelo
abandono daquele que ama, enquanto ele é acolhido com graça e
grande honra.
O homem profana os mais santos deveres da natureza e da leal-
dade; abusa da confiança das famílias nas quais é recebido, engana as
raparigas, seduz as esposas, insulta os parentes e os maridos; rasteja,
como um desenfreado animal, nos mais abjetos níveis da sociedade...
E ainda assim ele é recebido em todo lugar, festejado, e orgu-
lhoso de suas conquistas; e se ele é rapaz rico, ou em vias de sê-lo,
acha facilmente pais que não hesitam em conceder-lhe a mão de
uma filha. A mulher tida por mais fraca que o homem, deve supor-
tar sozinha a punição, se a sua força vacila. Educada entre os ele-
mentos mais contrários a corroborar-lhe a razão e iluminar-lhe o
espírito para evitar as inumeráveis insídias armadas à sua sensibilida-
de e inexperiência, deve todavia carregar por si só o oprobrioso
peso da vergonha quando ela é arrastada por aquele que a fez cair.
Oh! Como são justos e humanos estes fabricantes de moral! Quão
forte e iluminado é o seu raciocínio! Com que segurança, com que
digna “imparcialidade” condenam eles as cúmplices de seus pecados!
Mas deixemos de lado todas essas aberrações do intelecto viril,
que dariam material para grandes volumes a quem quisesse delas se
ocupar, sem poder chegar a fazer triunfar a justiça e a verdade.
Nossa intenção é somente dar a conhecer à mulher, que não
obstante todas as ideias errôneas que formam o círculo no qual foi
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criada até agora; que não obstante as severas leis sob as quais viveu,
mais ou menos humilhada em sua própria dignidade, restam-lhe
ainda muitas compensações para que se abra uma estrada, sem
recorrer às recriminações que a rebaixam, em vez de enaltecê-la,
ante os olhos do mundo; uma estrada que dignamente conduzi-la-
-ia à glória maior, aquela, isto é, de regenerar o homem.
Mostrai-vos todas generosas, ó mulheres; em vez de gritar
contra os erros, e injustiças, dos quais sois vítimas, procurai com
vossa natural doçura, com uma bondade inalterável, e com pru-
dentes observações, extirpá-los de seu transviado espírito, e pô-lo
no bom caminho, o caminho da felicidade.
Será essa a vossa mais digna vingança: será esse o único nobre
expediente capaz de preparar-vos uma vida mais condizente com
a vossa própria dignidade, e com a vossa verdadeira missão sobre
a Terra.
É tempo de todas as mulheres de coração reunirem-se sob a
santa bandeira do bem universal, trazendo consigo o tesouro de ter-
nos e pios sentimentos, do qual a natureza as dotou; e a firme resolu-
ção de trabalhar para tornar-se útil à família e a toda a humanidade.
É tempo de elas pararem de invocar de outros lugares a felici-
dade que podem por si mesmas granjear, e de fazê-la jorrar sobre
todos que a circundam; é tempo enfim de se enxugarem as lágri-
mas inúteis causadas pelas opressões ou por um arrependimento
estéril, e de assumir uma heroica resolução de fazer o máximo
para erguer-se da sua prostração, do modo que podem e que
devem, guiadas e sustentadas pela simples força do coração, des-
pindo-se de todas aquelas fraquezas, de que às vezes injustamente
são acusadas; pois, como já aludimos, essas fraquezas têm origem
no desejo doentio de agradar seus amáveis dominadores, que se
empenham para nelas incuti-lo.
Não há para a mulher condição tão aflitiva da qual não possa
sair-se dignamente, quando sentir no peito uma firme crença e uma
verdadeira bondade de coração.
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A religião, este santo e indestrutível liame que une a alma a uma
potência superior, nunca é tão profundamente sentida, e utilmente
praticada, como por uma mente e um coração de mulher.
Seja essa portanto a base de toda a sua obra, não menos do
que deve ser o seu objetivo a felicidade da família.
Não direi palavra aqui sobre a forma exterior do culto religioso
que eu acredito ser o único digno de se render ao Ente supremo.
O inconveniente das diversas crenças é uma grave questão so-
bre a qual não abrirei jamais a boca, porque não tem muito a ver
com meu tema.
Seja o coração da mulher por toda parte a sede da verdadeira
caridade e de todas as outras humanas virtudes; isto é o que faz-se
mister, para que ela torne-se digna da admiração universal, seja
qual for o culto que lhe tenham inspirado os seus superiores, e que
ela exercite de coração. Deixemos aos homens as teorias mais ou
menos eloquentes para declarar tudo que pertence ao misticismo;
deixemos a eles os argumentos científicos, as vivas e elegantes dis-
cussões de toda espécie em seu progresso para alcançar a meta de
seus vastos projetos, ou ter êxito nas arriscadas empresas.
As mulheres, unanimemente reunidas pelo nobre desejo de efe-
tuar um verdadeiro melhoramento na sociedade, poderão, com a
simples prática de suas virtudes, obter em vinte anos um resultado
mais seguramente mais útil para o gênero humano, do que não fari-
am e um século toda a competência intelectual, e todos os esforços
do homem. Basta que elas queiram, e ver-se-ia a prova. Porquanto
em meio aos preconceitos que enxameiam ao seu redor, nas trevas
em que geralmente foi deixado seu espírito a se debater, ou empo-
brecer, têm elas o coração para confiar em um feliz resultado; o
coração, esta arma que, propriamente dirigida, será invencível, e ca-
paz de triunfar sobre qualquer obstáculo, para derramar sobre o
mundo o único bálsamo que pode sanar suas chagas.
Na modorra moral em que as mulheres encontram-se sem se
perceberem, sua tarefa parecerá talvez inexequível; mas se tiverem
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o bom senso e a coragem de se despirem daqueles defeitos que
lhes salpicaram em cima com uma educação toda oposta ao seu
verdadeiro destino, facilmente conseguirão. Pensem que, quanto
mais sua educação foi descurada e seu mérito mal reconhecido,
tanto mais seus esforços para alcançar o devido lugar e a glória de
tê-lo adquirido com o uso constante de suas virtudes naturais as
destacarão no grande e maravilhoso quadro da ressurreição moral
dos povos. Longe todo egoísmo, toda pretensão, que aí aninha-se
o verme que corrói as obras do espírito humano.
Nascestes mulheres, e assim mostrai-vos; não apenas na acepção
deste vocábulo nos lábios dos vossos amáveis e lisonjeiros antago-
nistas, mas dando provas daquela virtude que melhor condiz
convosco: a abnegação.
Filha, esposa, mãe! Esta sublime tríade sois vós, ó mulheres,
que a representais sobre a Terra. Santificai-a com o honrar cada
um destes belos títulos, mediante o exercício daquela excelsa vir-
tude que nos faz sempre volver em prol dos outros o bem que
fazemos.
Filha! Amai e respeitai os vossos pais, não por uma fórmula
de obediência vulgar, mas por um sagrado dever que é tão doce
de se cumprir para os amorosos protetores da nossa infância, as
vigilantes escoltas dos nossos primeiros passos no caminho da vida;
para os quais não podemos jamais ter tantos cuidados e tantas
afeições que paguem o muitíssimo que fizeram por nós.
Esposa! Guardai intacta a fé que jurastes ao homem por vós
escolhido, e fazei vossa delícia em dar-lhe prova (primeiro com
uma doçura cheia de dignidade, depois com uma verdadeira e
terna solicitude em fornecer-lhe tudo que possa ser-lhe útil e agra-
dável) de que vós sois para ele não apenas um autômato, mas uma
amiga circunspecta e devota, uma companheira inseparável e ne-
cessária à sua vida em qualquer vicissitude; nem esqueçais um só
momento este já notório mas sempre novo axioma: a honestidade
da esposa é perpétuo ornamento da família; a honestidade da mãe
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faz sempre o papel de dote para as filhas; a honestidade em toda
mulher sempre foi mais prezada que qualquer outra beleza.
Estabelecei a ordem e a harmonia em vossa casa, e com uma
constante previdência fazei com que aí reine a parcimônia, o as-
seio, um modesto júbilo, e todos os atrativos tão fortes da famí-
lia, a fim de que o vosso esposo disso se regozija. Expulsai a
sedutora frase “Lua-de-mel”, inventada por espíritos galantes para
indicar a breve duração da felicidade conjugal; expulsai essa frase
injuriosa para vós, trocando-a por aquela de água benéfica do
Lete que, segundo a fábula, fazia esquecer os reveses da vida
àqueles que a bebessem.
Se o matrimônio, não tem senão uma “Lua-de-mel”, amiúde
é vossa culpa, ó mulheres, porque, embaçadas por um passageiro
esplendor, olvidais as práticas essenciais que possam assegurar-vos
sua longa e inalterável duração. Vós geralmente bem no começo
vos tornais como que uma caprichosa menina, que acaba por abor-
recer, não obstante seus agrados.
O homem, então, esse colosso de força que encerra em seu
coração todas as fraquezas e em seu espírito todo tipo de orgulho,
enfastiado daquelas frívolas graças com as quais teríeis a pueril
presunção de atraí-lo sempre, sente o vazio que se abre à sua volta,
e procura naturalmente outras paragens para sua fraqueza e seu
orgulho, se não pode achá-las para sua felicidade.
A vós compete, ó mulheres, a vós que possuís todo o tesouro
de ternos e caros sentimentos, e que além disso tendes aquele
discernimento delicioso, aquela fineza de espírito previdente, de
que a natureza foi-vos mais generosa que ao homem; a vós com-
pete saber identificar a hora e o lugar para manter a dignidade na
submissão, e a autoridade na obediência.
Se a maior parte dos homens não procurasse na santa união
do matrimônio um comércio que os avilta, ou um meio para ter
uma legítima prole; se a mulher não procurasse aí muitas vezes
senão uma condição no mundo, ou uma mal interpretada liber-
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dade que a libere de certos preconceitos; se um e outra, antes de se
ligarem para sempre, houvessem por bem entenderem-se entre
eles, se estudar, se conhecer e se amar, a doce união do matrimô-
nio, tão caluniada, tão profanada, e tantas vezes fracassada, seria
enfim o non plus ultra da humana felicidade.
Que outra coisa é mais doce sobre esta terra de exílio, mais
terna, mais digna e santa do que esta vida conjugal; esta suave e
constante harmonia de dois corações amantes, que se dirigem em
concórdia pela senda de todas as virtudes domésticas e sociais,
para o último e beatífico fim do homem?
Mãe! Esta, ó mulheres, esta é a um só tempo a vossa mais
doce, mais nobre, mais relevante obra a cumprir.
Ser mãe, no sentido moral, não consiste em se ter filhos, mas
em saber bem educá-los, procurando desenvolver conveniente-
mente seus corações, dirigir as suas boas disposições, pôr todo
cuidado nessas plantinhas que o Ser supremo vos confia, e de
desembaraçá-las atentamente das ervas daninhas que desabrocham
ao seu redor. Assim que começar para vós esse nobre ministério,
se quereis bem exercitá-lo, deixai todo frívolo prazer de um mun-
do que aparenta ser-vos grato da pompa que lhe fizestes de vossas
graças, ou de vossas basbaquices, mas que não poderá jamais ofe-
recer-vos um só daqueles momentos de inefável felicidade que
está ao lado do berço de um bebê, daquele anjinho cor-de-rosa
que deixais em casa, ou exilais no campo, expondo-o à triste sorte
que acabei de delinear no princípio. A esse propósito justamente
exclamava um ilustre italiano do século XVI:
Em tudo nega portanto ser mãe
Quem nega aos filhos leite, e em tudo nega
Ser mulher aquela que vitupera
Os próprios filhos mais que toda fera.
Pensai, ó mães, pensai na responsabilidade que vos impõe este
excelso título que algumas dentre vós carregam com tanta levian-
dade, e frequentemente com tanto menosprezo!
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Considerai seriamente as consequências dolorosas, e às vezes
funestas, de vosso descuido ou de vossa inépcia em educar os filhos;
considerai ainda os felizes efeitos que podeis obter dedicando-vos
todas aos cuidados maternais e ao exercício da virtude.
Um filho é o mais forte e mais duradouro liame que une o
homem à mulher.
Quantas entre vós gozam ainda da estima dos próprios mari-
dos, por nada mais senão porque um filho redobra a corrente que
os une a vós, e que vossas atitudes não souberam dourar, apertan-
do-a sempre mais, como poderíeis ter feito desde o princípio!
Quanto mais, ainda, não obteríeis se, mãe na plena acepção do
termo, guardando junto a vós esses anjos tutelares dos muros do-
mésticos, apresentásseis a cada dia ante os olhos do pai deles o
eloquente quadro das ternas solicitudes, e da sabedoria com que
zelais pela sua educação física e moral?
Porquanto o mundo imbecil ria-se de vós, não lhe sacrifiqueis
jamais um só de vossos maternais deveres. Os corações generosos,
os intelectos iluminados estimar-vos-ão mais, e a posteridade aben-
çoar-vos-á nas obras de vossas crianças, as quais permanecerão
marcadas com aquelas boas máximas de que se embeberam em
vossa escola.
Dedicai, ó mães, dedicai a dirigir bem vossas crianças, todo
aquele precioso tempo que desperdiçais nos vãos prazeres de que
não vos resta a miúdo mais que o tédio, e, alguma vez, o arrepen-
dimento de tê-los saboreado!
Fazei com que os altares domésticos sejam um verdadeiro
paraíso de que eles serão os anjos, e vós a divindade. E então, em
vez da solidão em que vos deixam frequentemente vossos espo-
sos, desgostosos daqueles constantes litígios de vossa índole ciu-
menta, ou de vossa insipidez e menosprezo, vê-los-eis sempre
prazerosos em vir, após seus negócios e fadigas, repousarem e
deleitarem-se perto de vós. Mas é a abnegação de vós mesmas em
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prol de sua felicidade e glória, aquilo de que vós deveis procurar
dar prova; é sobretudo a grande obra do porvir que deveis ter em
vista, sacrificando a ela o vosso próprio bem e todos os vossos
passatempos. Espera-se de vosso coração generoso este sublime
sacrifício que somente vós estais em condições de fazer, e que vós,
somente, sabereis impor-vos.
A mulher é onipotente sobre o homem, quando sabe prendê-
lo; portanto sabei prendê-lo, e torná-lo-eis melhor. Quereis saber
como se faz para consegui-lo com mais certeza? Ouvi. Sede boa
mãe; começai por não confiar a ninguém vossas crianças, e ide
formando nelas um coração terno sem fraqueza, uma mente sóli-
da sem orgulho, uma crença sincera, fervorosa, iluminada.
Quando a sociedade for bem ordenada, a mãe será o único
diretor e o único mestre dos próprios filhos, até a idade em que a
razão deles mostre-se formada. Enquanto não se efetuar este lento e
geral ordenamento, ponde-vos à obra com coragem, perseverança
e modéstia no santuário da família, onde sereis o primeiro e digno
sacerdote, tendo o coração por altar e a moral por sacrifício.
Dedicai-vos com mais atento cuidado ao estudo de vossas cri-
anças, vencei vossa fraqueza pelos seus graciosos errinhos; dai um
basta àquelas longas teorias, as quais, antes de beneficiá-las, aborre-
cem-nas. Um só exemplo, mas em atos, de uma qualquer virtude
permanecerá impresso em seu ânimo mais que um longuíssimo
palavrório. Nenhuma ilusão; nenhuma daquelas narrativas, onde se
mistura o interesse pessoal, para extrair daí a moral; nenhuma da-
quelas severas ameaças fora de propósito, que endurecem-nas e que
assustando-as em princípio, acabam por fazê-las acostumarem-se,
sem outra vantagem senão diminuir o respeito que vos devem.
Nenhum tipo de lisonja para animá-las a bem agir; de que não há
coisa mais nociva para o fim que vos propusestes.
Falai sempre ao coração delas, já que a mente formando-se
sob a salutar influência das boas qualidades que aí tereis feito nas-
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cer e fortificar, não produzirá mais aqueles abortos que surgem
aqui e ali no mundo para fazer padecer os nobres corações, e
contrastar com os verdadeiros progressos da sociedade.
Sede sempre amorosas, simples, francas, autênticas, justas e
modestas diante de vossos filhos. Para serdes assim, percebereis muito
bem que não é preciso ter estudado os grandes mestres; se tendes
coração, achareis aberto o maior, o mais eloquente e útil dos livros,
onde toda página oferecer-vos-á uma lição muito mais proveitosa
para aquelas criaturinhas, do que quantas possam se encontrar nos
melhores livros, ou na palavra dos mais hábeis preceptores. Bem, eis
tudo o que ser-vos-á preciso para plantar no coração e na mente de
vossos filhos os estáveis alicerces de um monumento precioso que
não desmoronará a não ser junto com a vida.
Assim que virdes as primeiras fagulhas do raciocínio deles bri-
lharem, apressai-vos, à guisa de um atento e prudente guardião, a
fazê-los discernir o verdadeiro do falso, o útil do supérfluo, o justo
do injusto; e preferir, por meio do vosso exemplo, é claro, o verda-
deiro, o útil, o justo: porque mais nos deve ser cara a honra do que
as coisas; mais a honestidade do que o útil. Não louveis jamais diante
deles coisas que trazem o selo da beleza, se primeiro não tiverdes
percebido que esta beleza encerra uma real utilidade. De tal modo
habituá-los-eis a não se deixarem ofuscar pelos inúmeros esplen-
dores fugazes, atrás dos quais uma multidão de homens arrasta-se
por toda a vida à procura daqueles objetos sobre os quais devaneava
em suas jocosas ilusões.
Insinuai, desde cedo e por muito tempo, em seus peitos o
amor pela humanidade, convencendo-os de que a verdadeira gló-
ria do homem é a de ter-lhe sido benemérito no breve curso
desta vida mortal. Privai-vos sempre, sem sombra de ostenta-
ção, ou de pretensão, a qualquer louvor, mas como um dever
naturalíssimo, de uma excursão de prazer, de uma agradável visi-
ta, para ir com eles sob o esquálido teto do pobre que implora
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vossa caridade. Não hesiteis jamais, entre o pobre gentil homem
e o rico presunçoso, a dar melhor acolhida ao primeiro do que
ao segundo, fazendo conhecer às vossas criaturinhas que atentas
vos observam, como o verdadeiro mérito não está sempre co-
berto por um elegante vestido, e como o homem nascido num
grau inferior, segundo a sociedade, pode se tornar mais digno de
ocupar um trono, do que aqueles que nascem em berços de ouro.
Fazei florescer com o vosso exemplo, no interior da vossa casa,
a ordem, o trabalho e a parcimônia, para inspirar em vossos
filhos o gosto destes dotes tão preciosos, e tão úteis em qualquer
condição de vida.
O trabalho deve ser mostrado às crianças como o manancial
de todos os bens, como uma grande e nobre virtude que supera
todas as dificuldades para revelar ao homem o único porvir digno
dele. Bani inteiramente os velhos métodos, criando um completa-
mente novo que faça vossos filhos tomarem um rumo diferente
daquele adotado até aqui pelo costume, sem resultado nenhum.
Inspirai-lhes um profundo respeito por tudo aquilo que concerne
à ordem; e nunca mostreis a eles as honras e a estima do mundo
como uma luminosa auréola sempre concedida ao verdadeiro
mérito. Muitos homens chegaram a essas honras com reprováveis
obras, e aí permanecem para ser o flagelo de seus semelhantes.
Fazei vossos filhos entenderem que o homem nunca é grande,
senão quando sabe fazer abnegar-se pelo bem dos outros; e que a
verdadeira glória é trabalhar a fim de restabelecer a harmonia, a
ordem e a felicidade entre os povos, e não fazer-se um nome
reboante por fatos ilustres e por subterfúgios, à custa da paz das
nações ou das lágrimas das famílias. Velai sobretudo por isto; que
o egoísmo não se instale naqueles tenros corações; ensinai a eles no
tempo certo a ter a devida estima pela mulher, representando-a
com vosso exemplo como a fonte e depositária da única felici-
dade durável nesta vida.
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O ensinamento da igualdade que deve reinar entre homem e
mulher começa neles em relação às próprias irmãs em seus jogos
infantis, e em todos aqueles milhares de costumes domésticos, nos
quais transparece aquele orgulho excessivo e aquela pretensão do
rapazola que tanto vos diverte, e que nada mais é, ó mulheres,
senão o germe deste presunçoso egoísmo que vos oprime por
toda a vida com prejuízo da própria felicidade deles. Vossas filhas,
igualmente criadas com atento cuidado, não acolham em seu âni-
mo aquelas ridículas aspirações de gabolice que desnaturam-nas e
desviam-nas do digno escopo que a mulher deve ter em mira;
nem deem lugar em seu coração a nenhum daqueles bravos senti-
mentos, que pouco a pouco acabam por danificar a felicidade
daqueles pelos quais elas devem viver.
Uns e outras sintam vivamente as afeições e os tratamentos im-
parciais que entre si têm de receber reciprocamente, de modo que as
pretensões frívolas e despóticas de ambos os sexos não transpareçam
de nenhum modo, nem produzam depois os amargos frutos que
tantas vezes envenenam a existência de ambos, criados para se unifi-
carem com o amor, e fazerem-se mutuamente felizes.
Eis, ó mães, eis a gloriosa obra que deveis cumprir para dar à
sociedade homens e mulheres que sejam dignos e capazes de
melhorá-la. Algumas mães têm sabido em qualquer época cum-
prir bem tão alto ofício; mas não basta, porque mil que façam o
mal, estragam sempre o bem que vinte ou trinta farão.
Preciso é, portanto, que todas as mães apliquem-se de comum
acordo em criar seus filhos nos mesmos bons princípios, a fim de
que haja conformidade nos sentimentos e na conduta de todos,
quando chegado seja o tempo de construir nova família.
Somente assim poderá efetuar-se esta organização social tão
geralmente e inutilmente recomendada e reclamada pelos escritores
do progresso! Acostumando vossos filhos na prática dos verdadei-
ros princípios humanitários, implantareis melhor e mais facilmente
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que todas as grandes e belas máximas sepultadas em seus in-fólios,
as sólidas bases da família. Constituindo boas famílias, formareis
gente laboriosa, morigerada, justa e feliz. E as famílias, os povos, as
nações, de que o gênero humano se compõe, abençoar-vos-ão em
seu verdadeiro progresso, em sua prosperidade.
Cabe, portanto, a vós, mulheres, dar esse progresso aos povos.
“Que a este tempo chamarão de antigo.
Aparelhais-vos desde agora para a guerra que contra vós
deflagrarão os espíritos desocupados, e os corações sem coração:
fechai os ouvidos ao linguajar traquejado, e levemente esparzido
duma venenosa lisonja, ou de certas sediciosas conveniências do
funesto reino da moda, que estará por toda parte para transviar-
vos de vosso nobre propósito.
Resguardai-vos de dar ouvidos a este fraudulento linguajar;
caminhai com firme e seguro passo, com amor e a fé no peito, com
a energia do espírito, para a bela aurora que, mediante vossos nobres
esforços, deverá surgir no horizonte da humanidade.
Esquecei de vós mesmas, dignas mães de todas as nações, e de
todas as classes! Esquecei de vós mesmas no cumprimento de
vossa sublime tarefa; e a sociedade, por vós regenerada, oferecerá
ao mundo no vosso amor, e na vossa abnegação, o compêndio de
todas as belas virtudes da mulher, e o arquétipo da verdadeira e
santa caridade (1857).
(Cintilações de uma alma brasileira.
Florianópolis: Editora Mulheres, 1997)
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CRONOLOGIA
1810 – No dia 12 de outubro, às 21 horas, nascia a primeira filha do casal
Dionísio Gonçalves Pinto Lisboa, um advogado português, e Antônia
Clara Freire, de nome Dionísia Gonçalvez Pinto, no sítio Floresta, em
Papari, Rio Grande do Norte. Anos mais tarde, tornar-se-ia conhecida
como Nísia Floresta Brasileira Augusta.
1823 – Aos 13 anos, a menina se casa com Manuel Alexandre Seabra de Melo, um
rapaz pouco culto e dono de grandes extensões de terra. No mesmo ano, ou
no seguinte, separam-se e ela volta a residir com os pais.
1824 – A família decide transferir-se para Pernambuco e residir primeiro em
Goiana, depois em Olinda e Recife, onde ela teria continuado os estudos.
1828 – No dia 17 de agosto, quando Nísia Floresta completaria 18 anos, Dionísio
Gonçalves Pinto Lisboa é assassinado nas proximidades do Recife, após
ganhar uma causa. Segundo a filha, os responsáveis seriam os poderosos
que não toleravam um advogado agindo contra seus interesses. Provavel-
mente nesse mesmo ano, Nísia Floresta passa a residir com o acadêmico
da Faculdade de Direito Manuel Augusto de Faria Rocha.
1830 – Em 12 de janeiro nasce a filha Lívia Augusta de Faria Rocha, companheira
das viagens pela Europa e sua futura tradutora.
1831 – É o ano da estreia de Nísia Floresta nas letras. No Espelho das brasileiras,
um jornal dedicado às senhoras pernambucanas, do tipógrafo francês
Adolphe Emille de Bois Garin, começa a surgir a escritora. Durante trinta
edições (de fevereiro a abril), Nísia colabora com artigos que tratam da
condição feminina em diversas culturas. Nasce o segundo filho, morto
prematuramente.
1832 – Publica o primeiro livro: Direitos das mulheres e injustiça dos homens, uma
tradução livre do Vindication of the rights of woman, de Mary Wollstonecraft,
sob o nome de Nísia Floresta Brasileira Augusta. O pseudônimo escolhido
revela sua personalidade e opções existenciais: Nísia, diminutivo de Dionísia;
Floresta, para lembrar o sítio Floresta; Brasileira, como afirmação do senti-
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mento nativista; e, Augusta, uma homenagem ao companheiro Manuel
Augusto. Em novembro, Manuel Augusto conclui o bacharelado em direito
e transfere-se com Nísia, a filha Lívia, a mãe e as irmãs de Nísia, Clara e
Izabel, para Porto Alegre (RS).
1833 – Em 12 de janeiro, no mesmo dia em que Lívia havia nascido três anos
antes, nasce outro filho que recebe o nome de Augusto Américo de Faria
Rocha. Em 29 de agosto, Manuel Augusto morre repentinamente aos 25
anos, deixando-a com os dois filhos pequenos. Nísia decide permanecer
em Porto Alegre, dedicando-se, sobretudo, aos filhos e ao magistério.
Sai em Porto Alegre a segunda edição de Direitos das mulheres e injustiça
dos homens, pela Typographia de V. F. de Andrade.
1837 – Com a Revolução Farroupilha, o clima na capital gaúcha fica tenso e
difícil para uma mulher, chefe de uma família composta por crianças e
outras mulheres. Nísia Floresta transfere-se para o Rio de Janeiro.
1838 – Em 31 de janeiro, estampa no Jornal do Comércio um anúncio do estabele-
cimento de ensino que estava inaugurando, o “Colégio Augusto”, em
homenagem ao companheiro falecido.
1839 – Sai a terceira edição de Direitos das mulheres e injustiça dos homens, no Rio
de Janeiro. O livro é colocado à venda na “Casa do Livro Azul”, na Rua
do Ouvidor, nº 121, por 55 réis.
1846 – Em 18 de dezembro é publicado no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro,
o testemunho de um dos examinadores elogiando as alunas e a diretora,
Nísia Floresta. Mas em 23 e 24 de dezembro, o mesmo jornal traz diversas
críticas anônimas ao Colégio Augusto, por considerar as propostas educa-
cionais avançadas e inadequadas às meninas.
1847 – No dia 17 de janeiro, há uma matéria em O Mercantil ironizando o fato de
o Colégio Augusto ter aulas de latim em seu currículo. Três novas publi-
cações vêm à luz no Rio de Janeiro. A primeira, Daciz ou A jovem completa,
é uma historieta oferecida às educandas do colégio. No Jornal do Comércio
de 5 de abril de 1847 há um anúncio desse trabalho, citado como “Histó-
ria moral, por uma brasileira”. A outra publicação tem proposta moralista
semelhante: Fany ou o modelo das donzelas, publicado em 8 de abril de 1847,
pelo Colégio Augusto. A terceira é o “Discurso que às suas educandas
dirigiu Nísia Floresta Brasileira Augusta”, pronunciado no encerramento
das aulas do Colégio Augusto.
1849 – Primeira edição de A Lágrima de um caeté. O poema de 712 versos trata do
processo de degradação do índio brasileiro colonizado pelo homem branco,
e do drama vivido pelos liberais durante a Revolução Praieira, reprimida
em Pernambuco em fevereiro desse mesmo ano. Conforme anúncios do
Jornal do Comércio, foram tiradas pelo menos duas edições do poema nesse
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ano (maio e junho). O motivo do sucesso foi, com certeza, ao fato de tratar
também da Revolução Praieira, um assunto palpitante entre os liberais.
No dia 7 de setembro, Lívia sofre um acidente ao cair de um cavalo e o
médico aconselha mudança de ares. Nísia Floresta resolve ir para a Europa
com os filhos, o que faz em 2 de novembro. Para muitos, a saúde da filha foi
apenas o pretexto para ela se ausentar do país. Com efeito, a campanha
difamatória nos jornais e o sucesso do livro elogiando os liberais eram
motivos suficientes para a escritora se sentir pouco à vontade na Corte. Em
24 de dezembro Nísia chega a uma Paris com o clima conturbado, ainda não
de todo refeito das revoluções do ano anterior.
1850 – É publicado em Niterói um romance histórico – Dedicação de uma amiga
trazendo apenas as iniciais B. A. como assinatura. Esse livro deve ser con-
siderado o primeiro romance escrito por um – ou uma – norte-rio-grandense,
segundo os historiadores.
1851 – Nísia Floresta assiste às conferências do Curso de História Geral da
Humanidade, no auditório do Palais Cardinal, ministradas por Auguste
Comte. Em julho, vai ao Chateau de Madri, no Bosque de Bolonha,
despedir-se de um amigo ilustre, Lamartine, pois resolveu sair da França
e viajar pela Europa. Em agosto, viaja para Portugal, onde fica até janeiro
do ano seguinte.
1852 – Em 27 de janeiro embarca em Lisboa rumo ao Brasil. Em 22 de fevereiro,
o Jornal das Senhoras, do Rio de Janeiro, saúda a chegada da escritora e
descreve sua experiência na Europa.
1853 – Publicação de Opúsculo humanitário, no Rio de Janeiro. São 62 capítulos
sobre a educação da mulher, dos quais os vinte primeiros tinham sido
publicados anonimamente no Diário do Rio de Janeiro, nesse mesmo ano.
Meses depois, com o livro já circulando, o texto integral reaparece em O
Liberal, periódico político e noticioso de Silva Lima. Na obra, a autora
combate o preconceito e condena os erros seculares da formação educa-
cional da mulher, não só no Brasil como em diversos países.
1855 – Em O Brasil Ilustrado de 30 de abril, temos um poema assinado por B.
Augusta, cujo título é “Um improviso, na manhã do 1º do corrente, ao
distinto literato e grande poeta Antônio Feliciano de Castilho”. E de 14
de março a 30 de junho, temos em oito capítulos a crônica “Páginas de
uma vida obscura”, assinada B.A. O texto traz a história de um negro
escravo e as ideias da autora acerca da escravidão. Em 15 de julho outra
crônica de B. Augusta viria a público: “Passeio ao Aqueduto da Carioca”,
em que ela se faz de cicerone e passeia com o turista pelo Rio de Janeiro.
Movida pela solidariedade, Nísia Floresta trabalha como voluntária junto às
vítimas da febre amarela, na Enfermaria do Hospital de Nossa Senhora da
Conceição, situada na Rua da Quitanda, nº 40.
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1856 – Em 10 de abril, Nísia Floresta segue para a segunda viagem à Europa
acompanhada apenas por Lívia. Augusto Américo permanece no Rio,
estudando. Só após dezesseis anos tornará a ver a paisagem carioca de que
tanto gostava, bem como os parentes que ficaram no cais. O Colégio
Augusto anuncia pela última vez seus cursos e, após dezoito anos de
funcionamento, fecha definitivamente suas portas. A escritora recebe o
filósofo Auguste Comte em sua residência parisiense, primeiro à Rue d’
Enferm, 11, depois à Rue Royer Collard, 9, próxima do Jardim de Luxem-
burgo, da Sorbonne e do endereço de Auguste Comte, à Rue Monsieur Le
Prince, 10. Também é desse ano a correspondência trocada entre eles,
ainda hoje guardada pelos positivistas, num total de treze cartas.
1857 – Em 5 de setembro morre Auguste Comte. Nísia Floresta é uma das quatro
mulheres que acompanham o cortejo fúnebre até o Père Lachaise, junto de
Sophie Bliaux, a filha adotiva de Comte, a irmã mais velha de Sophie, mme.
Laveyssière e mme. Maria Robinet. Publicação em Paris de Itinéraire d’un
Voyage en Allemagne, pela Typographia de Firmin Didot Frères, assinado
mme. Floresta A. Brasileira. O livro, sob a forma de cartas ao filho e aos
irmãos, contém as impressões e comentários da autora sobre as cidades
alemãs que conheceu. A primeira carta é de Bruxelas, de 26 de agosto de
1856 e, a última, de Estrasburgo, de 30 de setembro do mesmo ano.
1858 – Primeira edição de Consigli a mia figlia, com tradução para o italiano da
própria autora. A publicação se dá em Florença pela Stamperie Sulle
Logge del Gren, e os quarenta pensamentos em verso da edição brasileira
aparecem agora em prosa. A crítica jornalística logo se manifestou:
L’Imparziale Fiorentino, de Florença, de 26 de outubro e L’Etá Presente, de
Veneza, de 14 de agosto do mesmo ano, foram pródigos em elogios.
1859 – A Associação da Propaganda de Valença imprime a segunda edição
italiana do Consigli a mia figlia, que é recomendado pelo bispo de Mandovi
para uso nas escolas de Piemonte. Publicação da edição francesa de
Conseils à ma fille, em Florença, pela Impr. de Monnier, traduzido por
Braye Debuysé. Publicação, pela Typographia Barbera, Bianchi e Cia, de
Florença, de Scintille d’ un’ Anima Brasiliana, assinado Floresta Augusta
Brasileira, reunindo cinco ensaios: “Il Brasile”, “L’Abisso sotto i fiori
della civilità”, “La donna”, “Viaggio magnético”, “Una passeggiata al
giardino di Lussemburgo”.
1860 – Ao completar 50 anos, Nísia Floresta instala-se em Florença. Nessa
cidade, tem oportunidade de acompanhar cursos de botânica ministrados
por Parlatore, antigo colaborador de Humboldt. Em Paris ela já havia
assistido a aulas dessa matéria no Collège de France e no Musée d’ Histoire
Naturale. Em Florença, sai a edição italiana de Le lagrime de un caeté,
traduzido por Ettore Marcucci e com prefácio elogioso à autora. Ao final
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do poema, 41 notas explicam o vocabulário e relacionam o poema de
Nísia com Dante, Ariosto e a Bíblia. Em Lisboa, Luís Filipe Leite publica
uma crítica favorável ao Opúsculo humanitário.
1861 – Em 1
o
de junho, Nísia Floresta regressa a Paris e mais uma vez prepara-
se para residir na cidade, após três anos ausente. Alguns críticos afirmam
que teria havido neste ano uma edição de Trois Ans en Italie, assinado “par
une Brésilienne” e publicado por E. Dentu, resultado da excursão que
Nísia empreendera pela Itália de 19 de março de 1858 a julho de 1861.
1862 – O Dicionário Bibliográfico, de Inocêncio, no volume IV, traz um verbete
biobibliográfico sobre a autora. Como foi o primeiro a ser escrito, este
verbete será largamente utilizado para a realização de outros posteriores.
1864 – Publicação do primeiro volume da edição hoje conhecida de Trois ans en
Italie, suivis d’un voyage en Grèce, pela Editora E. Dentu, de Paris, assinado
“par une Brèsilienne”. Permanece a dúvida se teriam existido duas edi-
ções (1861 e 1864). Os títulos são diferentes, pois na última aparece
“suivis d’un voyage en Grèce”. Nesse livro, Nísia Floresta debate os
problemas políticos e sociais italianos, e reflete sobre o modo de vida, a
história e as manifestações culturais da Itália. Como sua excursão se deu
na época da revolução pela independência, o texto se constitui em impor-
tante testemunho a respeito dos principais acontecimentos da história
contemporânea.
1867 – É publicada em Londres a tradução inglesa de um dos ensaios de Scintille:
La donna. Trata-se de Woman, por F. Brasileira Augusta, traduzido do
italiano por Livia A. de Faria, filha da escritora. Publicação em Paris do
romance Parsis. Apesar de incluído entre os títulos da autora, não é
conhecido nenhum exemplar desse livro, nem é encontrada referência a
ele nos catálogos da Biblioteca Nacional de Paris.
1871 – É publicado Le Brésil, de mme. Brasileira Augusta, pela Livraria André
Sagnier, de Paris, também traduzido por Livia Augusta Gade (Lívia ca-
sou-se com um alemão de sobrenome Gade, tendo ficado viúva após
quatro meses de casada). Pressionada pela família e desgostosa com os
conflitos da Comuna em Paris, Nísia deixa definitivamente a cidade.
Segue com a filha primeiro para Londres, depois para Lisboa, onde em-
barca, mais uma vez, para o Rio de Janeiro. Lívia permanece na Europa.
1872 – Assinado apenas Une Brésilienne, o segundo volume de Trois ans en Italie,
suivis d’un voyage en Grèce, é publicado em Paris. Em 23 de maio, a revista
O Novo Mundo, de J. C. Rodrigues, de New York, traz uma extensa notícia
biográfica da autora acompanhada de um retrato, que contribui para
torná-la ainda mais conhecida. Após dezesseis anos no exterior, em 31 de
maio, Nísia desembarca no Rio de Janeiro.
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1875 – A estada no Brasil durou pouco mais de dois anos. Em 24 de março, Nísia
retorna à Europa. Primeiro para a Inglaterra, onde a filha a aguarda, e
depois para Lisboa. Em 9 de novembro morre o irmão, Joaquim Pinto
Brasil, no Rio de Janeiro. Ela só recebe a notícia semanas depois.
1878 – Publicação do último trabalho da escritora: Fragments d’un ouvrage inèdit –
Notes biographiques, em Paris, por A. Cherié Editeur, assinando mme. Brasi-
leira Augusta. Esse livro, apesar de conter principalmente informações a
respeito do irmão, Joaquim Pinto Brasil, traz também dados biográficos da
autora, até então desconhecidos. Transfere a residência para Rouen, cidade
medieval do interior da França, e, em seguida, para Bonsecours, na Grande
Route, 120.
1885 – Em 24 de abril, numa quarta-feira de muita chuva, às 21 horas, Nísia
Floresta Brasileira Augusta morre vitimada por uma pneumonia. Dias
depois, é enterrada num jazigo perpétuo no Cemitério de Bonsecours.
1888 – O Centro do Apostolado do Brasil publica Sete cartas inéditas de Auguste
Comte a Nísia Floresta, no Rio de Janeiro.
1889 – Em 12 de março, aos 60 anos, morre no Rio de Janeiro o filho, Augusto
Américo, lembrado como educador afável e diretor dos colégios Santo
Agostinho e Augusto, este com o mesmo nome do que sua mãe dirigiu.
1903 – O jornal A República, de Natal, publica as cartas de Auguste Comte – o
texto original e a tradução. As de Nísia Floresta, cujos originais estão na
Maison d’Auguste Comte, em Paris, apenas serão traduzidas e publicadas
no Brasil em 2002, pela Editora Mulheres, de Florianópolis.
1909 – Por um equívoco dos conterrâneos foi comemorado no Rio Grande do
Norte o centenário de nascimento de Nísia Floresta. O Congresso Literário
e os estudantes do Atheneu Norte-Rio-grandense erguem em 12 de outu-
bro um monumento a Nísia em Papari, onde teria existido sua primeira
residência. Nas palavras de Câmara Cascudo, “aí se implumara a grande ave
de arribação, cujas asas não cabiam nos limites do ninho...” (A República,
Natal, 17/01/1940).
1912 – Em 26 de abril morre Lívia Augusta Gade, que é enterrada junto à mãe
no Cemitério de Bonsecours. Desde 1855, Lívia morou em vários países
além da França, mas não retornou ao Brasil.
1928 – Vem à luz Auguste Comte et Mme Nísia Brasileira (Correspondance), pela
Librairie Blanchard, de Paris.
1933 – No Rio de Janeiro, Roberto Seidl publica Nisia Floresta – 1810/1885 – A
vida e a obra de uma grande educadora, precursora do abolicionismo, da República
e da emancipação da mulher no Brasil. Fernando Osório publica em Mulheres
Farroupilhas o manuscrito (dado por Antonio Augusto Borges de Medeiros).
Trata-se de Fany ou o modelo das donzelas, originalmente publicado em 1847.
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159
1938 – Reedição de A lágrima de um caeté pela Revista das Federações das Academias
de Letras, com estudo crítico de Modesto de Abreu.
1941 – Adauto da Câmara publica História de Nísia Floresta, no Rio de Janeiro,
através da Pongetti Editores, resultado de uma pesquisa em arquivos e
bibliotecas sobre a autora. Este trabalho, apesar das lacunas relativas à
vida e à obra, teve sua edição esgotada e tornou-se importante fonte de
consulta sobre a escritora norte-rio-grandense.
1948 – O Decreto-Lei nº 146, de 23 de dezembro, muda o nome de Papari para
“Nísia Floresta”, em homenagem à filha ilustre. E o Marechal Rondon,
positivista, dá o nome de Nísia Floresta a um posto indígena de
Pernambuco.
1950 – Em fevereiro, o jornalista Orlando Ribeiro Dantas, fundador do Diário de
Notícias do Rio de Janeiro, vai à França tentar encontrar o túmulo de
Nísia. Após algumas semanas de investigação, localiza-o em Bonsecours,
arredores de Rouen.
1953 – Através da Lei nº 1.892, de 23 de junho de 1953, o governo brasileiro
fica autorizado a fazer a trasladação de seus restos mortais para o Brasil.
O encarregado da transferência é o Centro Norte-rio-grandense através
do seu presidente, dr. Marciano Alves Freire, pela portaria nº 497, de 22
de julho, do ministro da Educação.
1954 – Dr. Marciano Freire vai a Rouen acompanhar o traslado dos despojos da
escritora, que saem de Marselha pelo navio Loide-Brasil em 9 de agosto, e
chegam finalmente no dia 5 de setembro ao Recife. Em 11 de setembro, os
jornais de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do Norte
registram a chegada dos despojos da escritora em Natal. Há homenagens da
Base Naval, bandas de música e exposição do caixão perante a população e
autoridades locais. O Departamento dos Correios e Telégrafos lança um
selo comemorativo do retorno de Nísia Floresta ao Brasil.
Em 12 de setembro, os restos mortais chegam a Papari que, aliás, já se
chamava Nísia Floresta. Desde então, Nísia repousa no mausoléu construído
em sua homenagem, próximo do local da antiga residência do Sítio Floresta.
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de Hilda H. Flores. Porto Alegre: Nova Dimensão, EDIPUC, 1990.
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Século XIX. São Paulo: T.A. Queiroz, 1988.
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Posfácio e Notas de Constância L. Duarte. São Paulo: Cortez, 1989a.
_______. Opúsculo humanitário. 2. ed. Estudo de Peggy Sharppe Valadares. São
Paulo: Cortez, 1989b.
_______. Cintilações de uma alma brasileira. Edição bilíngue. Trad. Michelle Vartulli,
Zahidé Muzart e Suzana Funck. Apresentação e Biobibliografia de Constância L.
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_______. Conselhos à minha filha. 2. ed. Rio de Janeiro: Typ. de F. de Paula Brito,
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Trad. Maria Thereza P. de Almeida / Heitor Ferreira da Costa. São Paulo:
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RETAMOZO, Aldira Correa et al. O papel da mulher na Revolução Farroupilha.
Porto Alegre: Editora Tchê Comunicações/Casa Masson, 1985.
SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed.
Prefácio Antonio Candido. Petrópolis: Vozes, 1979.
SAND, George. Os gêmeos. Trad. Augusto Sousa. São Paulo: Coleção Saraiva, 1935.
Obras de Nísia Floresta
FLORESTA, N. A lágrima de um caeté. 2. ed. Rio de Janeiro: Typographia de L. A.
F. Menezes, 1849.
______. A lágrima de um caeté. Rio de Janeiro: Typographia de L. A. F. Menezes,
1849.
______. Conseils a ma fille. Traduit de l’Italien par B.D.B. Florence: Le Monnier,
1859.
______. Conselhos à minha filha, com 40 pensamentos em versos. 2. ed. Rio de Janeiro:
Typographia de F. de Paula Brito, 1845.
______. Conselhos à minha filha. Rio de Janeiro: Typographia de J. S. Cabral, 1842.
______. Consigli a mia figlia. 2. ed. Mandovi: [s. n.], 1859.
______. Consigli a mia figlia. Firenze: Stamperia Sulle Logge del Grano, 1858.
______. Daciz ou a jovem completa: historieta oferecida a suas educandas. Rio de
Janeiro: Typographia de F. Paula Brito, 1847.
______. Dedicação de uma amiga. (Romance histórico). Niterói: Typographia
Fluminense de Lopes & Cia, 1850. 2. vol.
______. Direitos das mulheres e injustiça dos homens. 2. ed. Porto Alegre: Typographia
de V. F. Andrade, 1833.
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163
______. Direitos das mulheres e injustiça dos homens. 3. ed. Rio de Janeiro: [s. n.],
1839.
______. Direitos das mulheres e injustiça dos homens. Recife: Typographia Fidedigma,
1832.
______. Discurso que às suas educandas dirigiu Nísia Floresta (18 de dezembro de
1847). Rio de Janeiro: Typographia Imparcial de F. Paula Brito, 1847.
______. Fany ou o modelo das donzelas. Rio de Janeiro: Edição do Colégio Augusto,
1847.
______. Fragments d’un ouvrage inédit: notes biographiques. Paris: A. Chérié Editeur,
1878.
______. Itineraire d’un voyage en Allemagne. Paris: Firmin Diderot Frères et Cie,
1857.
______. Le Brésil. Paris: Libraire André Sagnier, 1871.
______. Le lagrime d’un caeté. (trad. Ettore Marcucci) Firenze: Le Monnier,
1860.
______. O pranto filial. (crônica) jornal O Brasil Ilustrado, Rio de Janeiro, 31
mar. 1856. p. 141-2.
______. Opúsculo humanitário. Rio de Janeiro: Typographia de M. A. Silva Lima,
1853.
______. Páginas de uma vida obscura; Um passeio ao Aqueduto da Carioca; O pranto
filial. Rio de Janeiro: Typographia N. Lobo Vianna, 1854.
______. Páginas de uma vida obscura. (crônica) jornal O Brasil Ilustrado, Rio de
Janeiro, jan.-jun. 1855.
______. Parsis. Paris: [s. n.], 1867.
______. Passeio ao Aqueduto da Carioca. (crônica) jornal O Brasil Ilustrado, Rio
de Janeiro, 15 jul. 1855. p. 68-70.
______. Scintille d’un’anima brasiliana. Firenze: Tipografia Barbera, Bianchi & C.
1859.
______. Trois ans en Italie, suivis d’un voyage en Grèce. Paris: Libraire E. Dentu,
1864. v. 1.
______. Trois ans en Italie, suivis d’un voyage en Grèce. Paris: E. Dentu Libraire-
Éditeur et Jeffes, Libraire A. Londres, 1872. v. 2.
______. Um improviso, na manhã de 1. do corrente, ao distinto literato e grande
poeta António Feliciano de Castilho. (poema) jornal O Brasil Ilustrado, Rio de
Janeiro, 30 abr. 1855. p.157.
______. Woman. Londres: G. Parker, 1865.
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Edições póstumas
______. A lágrima de um caeté. (Estudo e notas de Constância Lima Duarte).
Natal: Fundação José Augusto, 1997.
______. A lágrima de um Caeté. (apres. Modesto de Abreu.) Revista das Academias
de Letras, Rio de Janeiro, jan 1938.
______. Auguste Comte et mme. Nísia Brasileira: correspondance. Paris: Libraire
Albert Blanchard, 1929.
______. Cartas de Auguste Comte a Nísia Floresta (texto original e tradução)
jornal A República, Natal, jan.-fev. 1903.
______. Cartas de Nísia Floresta & Auguste Comte. (trad. Miguel Lemos e Paula
Berinson. Organização e notas de Constância Lima Duarte.) Florianópolis:
Mulheres/Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2002.
______. Cintilações de uma alma brasileira. (trad. Michelle Vartulli. Apres. e notas
biográficas de Constância Lima Duarte) Florianópolis: Mulheres/Santa Cruz do
Sul: Edunisc, 1997.
______. Direitos das mulheres e injustiça dos homens. 4. ed. (apresentação, notas e
posfácio de Constância Lima Duarte. São Paulo: Cortez, 1989.
______. Fanny ou o modelo das donzelas. In: OSÓRIO, Fernando. Mulheres
farroupilhas. Porto Alegre: Globo, 1935.
______. Fragmentos de uma obra inédita. (trad. Nathalie Bernardo da Câmara.
Apres. Constância Lima Duarte) Brasília: Ed. UnB, 2001.
______. Itinerário de uma viagem à Alemanha. 2. ed. (trad. Francisco das Chagas
Pereira. Estudo e notas biográficas de Constância Lima Duarte) Florianópolis:
Mulheres/Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1998.
______. Itinerário de uma viagem à Alemanha. (trad. Francisco das Chagas Pereira)
Natal: Ed. UFRN, 1982.
______. Opúsculo humanitário. 2. ed. (introd. e notas de Peggy Sharpe-Valadares.
Posfácio de Constância Lima Duarte) São Paulo: Cortez, 1989.
______. Sete cartas inéditas de Auguste Comte a Nísia Floresta. Rio de Janeiro:
Centro do Apostolado do Brasil, 1888.
______. Três anos na Itália. (trad. Francisco das Chagas Pereira. Apres. Constância
Lima Duarte. Natal: Ed. UFRN, 1999.
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ALVES, Constâncio. Nísia Floresta Brasileira Augusta. Almanaque Brasileiro
Garnier. Direção de João Ribeiro. Rio de Janeiro, Anno IX, 1911.
CÂMARA, Adauto. História de Nísia Floresta. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti,
1941.
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CASCUDO, Luís da Câmara. O sítio Floresta. Acta diurna. Natal, A República, 17
de janeiro de 1940. Reeditado em O livro das velhas figuras. Natal: Edição do
Instituto Histórico e Geográfico do RN, 1978.
CASTRICIANO, Henrique. Nísia Floresta. Almanaque Brasileiro Garnier. Rio de
Janeiro, 18 de dezembro de 1930.
_______. Uma figura literária do Nordeste: livro de Nordeste. (Edição fac-similada.
Introd Mauro Mota. Pref. Gilberto Freyre) Recife: Arquivo Público Estadual/
Secretaria da Justiça, 1979.
DUARTE, Constância L. Nísia Floresta: vida e obra. Natal: Ed. UFRN, 1995.
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Nádia B. (org.) A Mulher na Literatura. vol. II. Belo Horizonte: Imprensa da
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_______. Nos primórdios do feminismo brasileiro: direitos das mulheres e injustiça
dos homens. In: GOTLIB, Nádia B. (org.) A mulher na literatura. vol. III. Belo
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_______. Nísia Floresta: entre o mito e o estigma. In:SOUZA, Eneida Maria;
PINTO, Júlio César Machado (orgs.). Anais do I e II Simpósios de Literatura
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167
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168
Este volume faz parte da Coleção Educadores,
do Ministério da Educação do Brasil,
e foi composto nas fontes Garamond e BellGothic, pela Entrelinhas,
para a Editora Massangana da Fundação Joaquim Nabuco
e impresso no Brasil em 2010.
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