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algum momento, pressupõe o dito e também o não dito.É a rede que se estabelece entre todos
os elementos citados. Agamben amplia ainda mais está noção:
Generalizando posteriormente a já amplíssima classe dos dispositivos foucaultianos,
chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a
capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e
assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. No
somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões,
as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é em
um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia,
a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e —
porque não — a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em
que há milhares e milhares de anos um primata — provavelmente sem dar-se conta
das conseqüências que se seguiriam — teve a inconsciência de se deixar capturar.
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Considero, portanto, como dispositivos, o que a indústria cultural utiliza para
repetir uma forma até à exaustão, para afastar o receptor de uma experiência genuína com a
arte erótica. A trilogia hilstiana parece suspendê-los, ou torná-os sem eficácia, para trazer de
volta, assim, o erotismo que efetivamente falta á pornografia comercial. Para tanto, foi preciso
romper com as formas fixas orientadas normativamente e impostas ameaçadoramente,
segundo êxito da vendagem e determinações das leis do mercado. Seu Caderno Rosa foi um
logro, nesse sentido, à indústria cultural. O foco da profanação da escritora é a gramática da
pornografia e não a literatura, conforme foi divulgado em alguns cadernos culturais. Hilda
Hilst traz de volta à matéria pornográfica, o erotismo, o manifesto político e a provocação,
investindo contra os tabus morais da sociedade e confrontando o mercado nas suas insidiosas
proposições. Novamente voltando a Bataille, não esqueçamos de que “o sentido último do
erotismo é a fusão, a supressão do limite”
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, é o que pode impulsionar, portanto, os efeitos
dos contradispositivos.
Especificamente, no Caderno rosa, o ato de criação é resultado de um delito, o
plágio, o crime maior ao patrimônio de um artista. Antes, há a violência do próprio relato da
menina, que macula não só seu corpo, mas também a idéia de inocência e assexualidade
atribuída à criança. Seu relato vai de encontro à idealizada pureza infantil. Os contos de fadas
que já tinha lido nem mesmo atendem à sua expectativa lúbrica, por isso resolveu escrever as
suas próprias histórias. A menina não compreende “por que as histórias para crianças não tem
o príncipe lambendo a moça e pondo o dedinho dele maravilhoso no cuzinho ...”
87
. Sob o
85
AGAMBEN, 2005, op.cit., p. 13.
86
BATAILLE, 2004, op.cit., p.202.
87
HILST. O caderno rosa de Lori Lamby, p. 67.