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Ronnie Francisco
Na falha da gramática, a carne:
a pornografia em Hilda Hilst
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2007
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Ronnie Francisco
Na falha da gramática, a carne:
a pornografia em Hilda Hilst
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG.
2007
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Letras: Estudos Literários.
Área de concentração: Teoria da Literatura.
Orientadora:
Profª. Drª. Sabrina Sedlmayer.
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À minha mãe:
por todos os caminhos.
Para Túlio e Vinícius,
os infantes que me habitam.
4
DEDICATÓRIA
Ao Miguel, meu pai, e ao Otaviano. À memória deles:
a existência leve.
Às grandes mulheres que me cercam:
Beth e Bruna, minhas irmãs, e Kátia Cilene, companheira de vida.
Para Adriani Romária:
cúmplice no despudor confessável e inconfessável.
Para Maria, Ana e Janaína:
o acolhimento no lugar estranho.
Para Genner, meu irmão, Paula, André e Walter, meu cunhado:
o acolhimento generoso.
Para João Luiz,
o valente Quixote em seu confronto com a indústria cultural
e a pasmaceira pós-moderna.
Para Mércia:
com o fio de Ariadne, para que encare o labirinto sem receio.
Para Hellen:
no compasso do bolero e do samba-canção.
Para Jean Warley e Wilson:
pela sorte do bom encontro, a amizade gravada em pedra.
Para Ib:
o meio do caminho.
Para Alex, Gisele, Esther e Roberta:
pela melhor mão, a grande alegria.
Para Daniel:
o prazer das palavras compartilhadas.
Para Luciene:
a lembrança das viagens reais.
Para Zaira:
a infra-estrutura da amizade e a superestrutura dos afetos.
Para Júlio:
em suas várias existências.
Para Profª Drª. Lúcia Castello Branco:
o amor pela janela.
Para o Prof. Dr. Sérgio Peixoto:
que me ofereceu Hilda Hilst em doses poéticas.
Para Profª. Silvia da Silva Nascimento, Profª. Drª Leda de Castro e Prof. Dr. Julio Pinto:
a filiação intelectual desejada.
Para Kátia e Edivan:
amigos queridos que me ofereceram as primeiras porções de Hilda Hilst.
“Dar a mão alguém sempre foi o que esperei
da alegria” Clarice Lispector.
5
AGRADECIMENTOS
Ao CNPq, pela concessão da bolsa de estudos que possibilitou a realização deste trabalho.
À Profª. Drª. Sabrina Sedlmayer, pela orientação solícita e generosa.
À Letícia Munaier e demais funcionários do Colegiado de Pós-Graduação em Letras: Estudos
Literários, pela eficiência.
Ao João Luiz: pela contribuição imprescindível durante todo o percurso da pesquisa.
À Elaine Botelho Antunes e Ana Célia Baracho Lotti Martins, diretora e vice-diretora da E.E.
Pedro II, pelo apoio e incentivo constantes.
Ao Kirlian, pela colaboração definitiva no recorte do objeto.
À Drª. Cristiane Grando, pela amizade e pela generosa oferta de material bibliográfico.
Ao Prof. Dr. Alcir Pécora, pela solicitude com que nos atendeu e pela entrevista concedida.
Ao Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulálio”, do Instituto de Estudos da
Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas (CEDAE-IEL-UNICAMP).
Ao Dr. Júlio Machado Pinto, Drª. Ana Cecília Carvalho e Drª. Eliane Robert de Moraes, pela
contribuição intelectual, direta ou indiretamente, ao longo do meu percurso acadêmico.
À Érika Vieira, pelo acabamento final da dissertação e pela revisão cuidadosa, toda minha
gratidão.
6
RESUMO
Três são os desvios que encaminham a pesquisa, todos eles motivados pela leitura da obra de
Hilda Hilst, mais especificamente, impulsionados pela análise da trilogia pornográfica. No
primeiro momento da pesquisa, investiguei o fracasso da pornografia em sua relação com a
cultura de massa a partir dos elementos presentes na própria obra da escritora. Observei o
problema relacionado à definição dos conceitos de pornografia, grotesco, erotismo, obsceno e
licencioso, analisando depoimentos da própria Hilda Hilst, artigos de jornais e ensaios
acadêmicos que tentaram delimitar os conceitos em função das contraposições binárias. O
movimento aqui é pela ampliação do conceito de pornografia que se pensava perdido no
contexto da indústria cultural, apropriado tão-somente para designar a “erotomania” da
cultura de massa. Na falha da gramática, na cisão com o procedimento acomodado, Hilda
Hilst nos apresenta as possibilidades de uma escrita movida pela pulsão, estimulada ou
excitada, no texto pornográfico, pela descrição obscena e licenciosa da cena sexual ou pelos
exercícios lúbricos. Na trilogia pornográfica, assim como em quase toda obra em prosa da
escritora, é o cenário sexual que se mostra pulsando, em carne viva, ancorado no enigma
pulsional. No segundo momento, abordei os elementos que compõem o imaginário perverso
na trilogia de Hilda Hilst, ressaltando os elementos que nos fazem perceber sua obra como
uma literatura do incesto e, consequentemente, como escrita perversa. Por fim, no último
desvio, associo a pornografia hilstiana ao que está ainda em construção, valendo-me da noção
de rizoma em Deleuze. Ao longo de todo o trabalho, postulo a operacionalização do termo
pornografia, realimentando ou ampliando-o em direção a um processo de escrita que tem a ver
com a perversão e com a inserção da demanda erótica do corpo no texto. Penso, assim,
retomar o conteúdo “recalcado” da pornografia a partir da concepção de carne, observando
que a trilogia de Hilda Hilst é construída através da mistura de gêneros, que se organizam
como estruturas dialógicas, na qual os enunciados estão fragmentados segundo diferentes
estratégias narrativas, remetendo à idéia de carnalidade.
Palavras-chave: Hilda Hilst. Pornografia. Perversão. Carne.
7
ABSTRACT
Three diversions have determined this research, all of them motivated by the reading of Hilda
Hilst works, being driven, more specifically, by the analysis of her pornographic trilogy. At
first I researched into the failure of pornography in its relationship with mass culture
according to some elements in the work of this author. I observed the difficulty concerning
concept definition with terms such as pornography, grotesque, erotic, obscene and licentious,
when examining and analyzing Hilda Hilst’s accounts, newspaper articles and academic
essays that tried to outline concepts in accordance with binary contrapositions. The move here
was meant to broaden the concept of pornography, somewhat lost in the context of cultural
industry, appropriated only to designate the “erotomania” of mass culture. When grammar
fails, when accomodated procedures break, Hilda Hilst presents possibilities of writing that is
moved towards desire, stimulated or excited, in pornographic texts, by obscene and licentious
description of sexual scenes or by lubricous exercises. Her pornographic trilogy, as well as in
most of the writer’s prose work, it is the sexual scene that is shown, in vivid flesh, dependent
on enigmatic desire. Secondly, I approached elements that constitute the perverse imaginary
of Hilda Hilst`s trilogy, emphasizing elements that make us perceive her work as an
incestuous kind of literature and, consequently, with a perverse kind of writing style. Finally,
in my last diversion, I associate Hilst’s pornography to what is under construction, having in
mind Deleuze’s notion of rhizome. Throughout this work, I postulate the use of the term
pornography, nurturing it or amplifying it towards a writing process that has to do with
perversion and with the insertion of eroticism in texts. I consider, in this way, retaking the
hidden content of pornography based on the concept of carnality, observing that Hilda Hilst’s
trilogy is constituted of a mixture of genres, organized in dialogic structures, in which the
sentences are fragmented according to different narrative strategies.
Keywords: Hilda Hilst. Pornography. Perversion. Carnality.
8
Por que o sangue perdura. A carne não é
Como dizem os coitados das letras.
Contos d’escárnio: textos grotescos, Hilda Hilst
9
SUMÁRIO
1. PORNOGRAFIA EM HILDA HILST: UM ARTEFATO PLURAL ......................... 11
1.1 Uma breve história pornéia: a pornografia como categoria de pesquisa ...................... 15
1.2 Pornografia x erotismo: uma questão mal colocada ..................................................... 17
1.3 O texto como fetiche perverso ...................................................................................... 20
1.4 Literatura e incesto ........................................................................................................ 23
1.5 O fracasso do projeto pornográfico de Hilda Hilst........................................................ 25
1.6 Metodologia: a prática do desvio ................................................................................. 27
2. A PROFANAÇÃO LITERÁRIA EM HILDA HILST ................................................ 30
2.1 O fracasso dos procedimentos literários na pornografia .............................................. 32
2.2 Holocausto das Fadas: uma leitura equivocada............................................................34
2.3 A mudança no horizonte de expectativa: roubo, infância e pedofilia em O caderno rosa
de Lori Lambi ............................................................................................................... 37
2.4 O caderno rosa de Lori Lamby: os bastidores da linguagem ....................................... 39
2.5 Profanar o improfanável ............................................................................................... 45
2.6 Pornografia e erotismo: possibilidades de definição .................................................... 46
2.7 Cascata de erotismo: a pornografia, o licencioso e o obsceno ..................................... 51
2.8 Contradispositivos de Lori Lamby ................................................................................ 55
2.9 Contos d’escánio: entre o grotesco e o pornográfico ................................................... 57
3. PORNOGRAFIA: O PALCO PRIVILEGIADO DA PERVERSÃO.......................... 64
3.1 No princípio era o ato .................................................................................................... 67
3.2 O discurso perverso ....................................................................................................... 71
3.3 Sob o signo da errância................................................................................................. .73
3.4 Por uma estética do sintoma ......................................................................................... .76
3.5 E o verbo se fez carne................................................................................................... .80
3.6 A carne fornecida ao progenitor .................................................................................... .83
4. A CARNE: UMA SÓ MÚLTIPLA MATÉRIA.............................................................87
4.1 A órbita gozosa estilhaçando ........................................................................................88
10
4.2 O corpo fragmentado: a via do excesso .......................................................................91
4.3 A sublimação ressexualizada .......................................................................................96
4.4 Leitores perversos ........................................................................................................98
4.5 Na falha da gramática pornográfica: as combinações insuspeitas................................103
4.6 A carne, meninice do corpo .........................................................................................106
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..............................................................................109
11
1. PORNOGRAFIA EM HILDA HILST UM ARTEFATO PLURAL
Meu pau no cu, na boca, eu vos meter-vos
Aurélio bicha e Fúrio chupador,
que por meus versos breves, delicados,
me julgastes não ter nenhum pudor.
A um poeta pio convém ser casto
ele mesmo, aos seus versos não há lei.
Estes só têm sabor e graça quando
são delicados, sem nenhum pudor,
e quando incitam o que excite não
digo os meninos, mas esses peludos
que jogo de cintura já não têm.
E vós, que muitos beijos (aos milhares!)
já lestes, me julgais não ser viril?
Meu pau no cu, na boca, eu vos meter-vos.
Caio Valério Catulo. In: Falo no jardim: priapéia grega,
priapéia latina.
No princípio havia as priapéias, se buscamos fundamentalmente na tradição das
letras ocidentais o que se convencionou chamar de pornografia. Sob o gênero priapéia reuniu-
se um conjunto de poemas da Antigüidade relativos ao deus da fecundidade, Príapo,
divindade que tem como principal característica o membro genital de tamanho exagerado e
em constante estado de ereção. Ao invés da oração, é a obscenidade o culto reverente ao deus
Príapo. Dentre as muitas histórias sobre o nascimento desse deus, existe uma particularmente
interessante, relatada por João Ângelo Oliva Neto em Falo no jardim: priapéia grega,
priapéia latina
,
por nos remeter ao tempo mítico do que é indecoroso, do que deveria estar
fora de cena, mas que é forçosamente dado à luz.
Conta-se que Afrodite assumira uma beleza tão incrível que Zeus não resistiu a
tanto encanto e teve com ela um tórrido intercurso sexual. A vigilante Hera, esposa de Zeus,
ficou temerosa da beleza excessiva que teria um filho de seu marido com Afrodite, o que
acabaria por sucumbir e dominar a todos pela magnitude do fascínio. A enciumada deusa
tratou então de lançar um sortilégio sobre o ventre de Afrodite para que a criança, filha desta
deusa, nascesse disforme. Após o nascimento, quando viu a aparência obscena do filho, a
deusa da beleza procurou esconder do olhar de todos de tão horrenda criatura, lançando-a em
12
direção às inóspitas montanhas. Contudo, Príapo foi encontrado por um pastor, que o
recolheu, assentou-o e lhe prestou honrarias. O pastor considerou que a deformação ostentada
pelo deus contribuiria para a fecundidade.
Príapo tinha uma dimensão viciosa e torpe, mas também guardava valores
religiosos na sua representação, como nos informa João Ângelo Oliva Neto. No fim da
Antigüidade, porém, segundo o autor de Falo no jardim
,
somente a degradação ético-retórica
persistiu no imaginário ocidental, após a doutrinação do cristianismo que ergueu contra o falo,
a cruz. No período clássico, por mais paradoxal que pareça, a obscenidade definia o próprio
“decoro poético” de um gênero lascivo, pois a indecência moral não era uma questão que se
sobrepunha à adequação estética. Como Catulo exprimiu: “A um poeta pio convém ser casto/
ele mesmo, aos seus versos não há lei. / Estes só têm sabor e graça quando/ são delicados, sem
nenhum pudor.”
1
que se fazer, contudo, a devida contextualização do termo obsceno.
Segundo Oliva Neto:
Gêneros poéticos e em prosa aos quais a obscenidade é retórica e poeticamente
adequada, e a positiva elaboração da matéria obscena, não dirigida contra nenhuma
instituição, possibilitam afirmar que os poetas gregos e romanos da Antigüidade
eróticos, cômicos, mbicos, elegíacos, satíricos e priápicos por mais salacidade
que exibissem não eram pornográficos, como viriam a ser, curiosamente, entre
outros os próprios editores da Priapéia no Renascimento.
2
A priapéia que se desenvolveu nesse período era definida tanto pelo ritmo (o
metro priapeu) quanto pela sua matéria (relacionada com as características do deus Príapo).
Inicialmente, para que a priapéia se consolidasse como gênero de representação, foi
necessária a estrita adequação do metro priapeu à matéria priápica. Mas, segundo Oliva Neto,
essa condição foi prontamente rompida pelos gregos helenísticos e pelos romanos que
valorizavam na composição o cultivo de vários gêneros e, principalmente, o entrecruzamento
desses gêneros, o qual era implementado a fim criar novidades na representação. A
pluralidade era algo desejável na composição.
Além de inspiração à própria Hilda Hilst, as priapéias foram lembradas para
ressaltar dois pontos caros à trilogia pornográfica da escritora:a pornografia pode ser um
artefato plural e o estilo baixo do material pornográfico não necessariamente determina a
baixa qualidade artística. Quanto ao julgamento estético, cabe apresentar um trecho da
1
CATULO, C. apud OLIVA NETO, 2006, Falo no jardim, p.111-112.
2
OLIVA NETO, 2006, p. 99.
13
epístola que Caio Plínio escreve ao seu amigo Paterno, em que ele pede que este faça a devida
análise dos seus versos obscenos, mas aponta para o crítico a forma como seu livro deve ser
lido: “o leitor inteligente e sutil não deve comparar passagens de caráter que divergem entre
si, mas avaliá-las cada uma em si mesma e não considerar que é pior que outra aquela que
está perfeita em seu gênero.”
3
Na referida epístola, por fim, Caio Plínio diz algo que se
aproxima muito daquilo que a própria Hilda Hilst pensava a respeito da sua trilogia e que,
portanto, destaco para deixar claro o que significou para a escritora seu projeto pornográfico:
“...nestes versos, divirto-me, brinco, sofro, queixo-me, iro-me, faço descrições, ora mais
moderadas, ora mais elevadas, e na própria variedade tento fazer que umas coisas agradem a
uns, outras a outros e algumas talvez a todos”
4
. Assim pronunciou o poeta latino o que a
autora da trilogia pornográfica, mais tarde, assinaria em baixo.
A pesquisa em torno da trilogia de Hilda Hilst foi impulsionada pela inquietação
com a linguagem obscena e pela insatisfação com as proposições correntes em torno da
oposição binária entre pornografia e erotismo, advindas tanto do senso comum e da mídia,
quanto do campo do conhecimento acadêmico ou científico. Investigamos a noção de escrita
pornográfica a partir dos livros O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d’escárnio: textos
grotescos e Cartas de um sedutor, desarticulando o propalado fracasso atribuído duplamente à
intenção pornográfica e à ineficácia da linguagem sexual da escritora. Para reforçar a
investigação em torno da pornografia, em vários momentos tornou-se necessário voltar às
outras obras da escritora, pois são flagrantes as figuras obscenas e o discurso licencioso em
todos os seus textos em prosa.
Entre eles, uma obra que foi uma espécie de testamento da escritora: Estar
sendo. Ter sido foi o último livro com texto inédito publicado por Hilda Hilst, em 1997,
que Cascos e carícias, de 1998, compõe-se de crônicas reunidas publicadas anteriormente
no jornal Correio Popular. Estar sendo. Ter sido não retoma várias questões caras à sua
pornografia, como também faz um balanço de alguns personagens de outras obras da
escritora. Através das memórias do personagem-narrador, Vittorio, surgem Karl, Stamatius,
Crasso, Cordélia, Tom, Krauss, da trilogia pornográfica.Além de Hillé, do livro A obscena
senhora D, sintomaticamente uma das máscaras através da qual a escritora se projeta em sua
narrativa.A máscara é uma estratégia recorrente na sua produção em prosa. Numa ampla
significância, revela-se assim algumas das várias máscaras de Hilda Hilst: “Aqui estou eu. Eu
3
CAIO PLÍNIO, apud OLIVA NETO, 2006, Falo no jardim, p.111.
4
Ibidem, p.110.
14
Vittorio, Hillé, Bruma-Apolonio
5
e outros. eu de novo escoiceando com ternura e assombro
também Aquele: o Guardião do Mundo (sic)”
6
.
Deixei de lado Bufólicas, o livro de poemas que de certa forma fecha, em 1992, a
série de textos provocativos da escritora, pois me parece que além de destoar no formato,
elaborado em versos, os exercícios de estilo em torno da matéria baixa, nesse caso, estão
marcados pelo gênero burlesco de maneira mais acentuada que nos livros da trilogia em prosa.
Predomina um tom zombeteiro e os recursos cômicos utilizados em Bufólicas atenuam o
aspecto erótico que marcam subversivamente os livros que compõem a trilogia. Tal como
entendido por Georges Bataille, “o erotismo considerado tragicamente, representa uma
completa subversão”, o riso, como pensa o filósofo, “é a atitude de compromisso que o
homem adota em presença de um aspecto repugnante, quando esse aspecto não parece grave”
7
. Bataille escreve no Prefácio ao Madame Edwarda, livro composto pelo pensador sob o
pseudônimo de Pierre Angélique, que “o riso nos engaja na via onde o princípio de uma
interdição, de decências necessárias, inevitáveis, transmuda-se em hipocrisia cerrada, em
incompreensão do que está em jogo. A extrema licença ligada à zombaria é acompanhada de
uma recusa em levar a sério — quero dizer, tragicamente — a verdade do erotismo.”
8
Tendo isso em vista, três direções epistemológicas impulsionaram o nosso olhar: o
fracasso do obsceno no contexto da indústria cultural, o fracasso da pornografia como
imaginário perverso e o fracasso da escrita em relação à imagem do baixo-material. A
pergunta que direciona a pesquisa é, em princípio, buscar onde reside o fracasso da
pornografia. Mais especificamente, o que me interessa é o fracasso do projeto da escritora
Hilda Hilst, pois daí penso entender como a pornografia passou a ter o status que tem hoje: o
de mascarar a verdade do sexo e do desejo, visto que tornou-se veículo para disseminar “um
sexo neutralizado pela tolerância”
9
.
5
Luís Bruma é um pseudônimo criado pelo pai da escritora, Apolônio de Almeida Prado Hilst. A imagem do
encontro com o pai, da sintonia ou mesmo da procura impotente por alguma espécie de figura paterna será uma
constante em toda a obra de Hilda Hilst, como podemos perceber nesta passagem de Estar sendo. Ter sido, p.
100: “não. sou ninguém não, sou apenas poeira. poeira que às vezes se levanta e remoinha e depois sobe e levita,
procurando o Pai.”
6
HILST. Estar sendo. Ter sido, p.110.
7
BATAILLE. Prefácio. Outra travessia, p.95.
8
Ibidem, p.95-96.
9
BAUDRILLARD. Da sedução, p. 37.
15
1.1 Uma breve história pornéia: a pornografia como categoria de pesquisa
A pornografia talvez seja o discurso mais rentável da indústria cultural. Assim
pensava a própria escritora Hilda Hilst na época do lançamento da sua trilogia, no início da
década de 90, a ponto de dizer que escrevia “bandalheiras” para ser lida e vender mais. Esse
comentário da escritora, impregnado de ironia, foi divulgado por vários jornais
10
, causando
certa indignação na crítica especializada, que entendia, de maneira equivocada, que uma
escritora séria estava cedendo aos ditames do mercado editorial. O que podemos verificar,
contudo, a partir da postura de certos críticos, é que em tempos de mundialização da
mercadoria e do consumo, talvez até mesmo por isso associá-la unicamente a uma função
mercadológica —, a pornografia ainda se encontra excluída do interesse da ciência e da crítica
de arte brasileira. A primeira não percebe nela um saber e a segunda não lhe atribui um valor
estético.
No artigo escrito em 1967, “A imaginação pornográfica”, Susan Sontag, expõe
um quadro, ainda bastante atual no Brasil, que diz dos equívocos, da insuficiência e da
limitação dos estudos sobre pornografia. Segundo a autora de A vontade radical, “os
arquitetos da política moral estão indubitavelmente preparados para admitir que existe algo
que pode ser chamado de ‘imaginação pornográfica’, embora somente no sentido de que as
obras pornográficas são comprovações de uma falência ou deformação radical da imaginação”
11
. Sontag observa ainda que em nenhum ponto da comunidade das letras anglo-americana
encontrou qualquer indicação de que alguns livros pornográficos são obras de arte de interesse
e importância. Essa observação que cabe perfeitamente aos estudos das letras brasileiras,
mostra que é pequeno o número de pesquisas sobre as obras consideradas pornográficas.
Na Europa e nos Estados Unidos, no entanto, a pornografia tem sido uma
categoria importante de pesquisa. No ensaio “Obscenidade e as origens da Modernidade” que
introduz A invenção da pornografia, livro resultante da reunião de artigos sobre a pornografia
feitos por diferentes pesquisadores, Hunt diz não ser coincidência a ascensão das publicações
de caráter pornográfico no ano de 1740, processo simultâneo ao início do apogeu do
Iluminismo e à crise geral na sociedade e política européias. Hunt cita o estudo de Aram
Vartanian, que percebeu nos elementos eróticos, na “sexologia literária”, um certo
“Iluminismo sexual”, do qual não a própria pornografia fez parte, como desempenhou
10
Ver, como exemplo, o artigo de SCALZO, Fernanda. “Hilda Hilst vira pornógrafa para se tornar conhecida e
vender mais”, entre outros.
11
SONTAG. A vontade radical, p. 43.
16
papel importante para o movimento Iluminista, fornecendo-lhe energia criativa. Já outro
estudo citado por Hunt, de Margaret C. Jacobs, revela que a pornografia foi naturalista no seu
princípio, mas que grande parte de seu impacto residia em seus fundamentos materialistas.
Até meados do século XlX, se considerarmos a pornografia como a representação
explícita dos genitais e das práticas sexuais, esse gênero não constituía uma categoria
independente e distinta da literatura ou da arte visual. O conceito de pornografia ao longo da
história sempre esteve sujeito a conflitos e mudanças. A historiadora Lynn Hunt, na
introdução ao livro A invenção da pornografia, observa que desde a época de Aretino, no
século XVI, a pornografia vinculou-se à subversão política e religiosa, marcando um conflito
entre o desejo e virtude. Inclusive o próprio Aretino decidiu escrever os Sonetos
Luxuriosos para acompanhar as gravuras obscenas quando soube da prisão do gravurista. No
início da Modernidade, o material pornográfico tornou-se um forte instrumento de batalha
cultural, utilizado, portanto, como uma espécie de veículo que faz uso do sexo para chocar e
criticar o poder instituído. Vários estudiosos postulam uma relação direta entre a pornografia
e a crítica iluminista empreendida contra a rigidez clerical, a censura policial, a mesquinhez,
os rígidos costumes morais e os preconceitos da tradição. É importante demarcar, neste ponto,
que a pornografia de Hilda Hilst, editada no início da década de 90 do culo XX, abalou os
parâmetros da crítica literária brasileira. A trilogia composta dos livros O caderno rosa de
Lori Lamby, Contos d’escárnio: textos grotescos e Cartas de um sedutor pode ser
vinculada ao caráter político que o material pornográfico implementou no período iluminista.
Embora o desejo, a sensualidade, o erotismo e até mesmo a representação
explícita dos órgãos genitais possam ser encontrados em todos os tempos e lugares, a
pornografia, como prática literária e visual ou como categoria de pesquisa, acompanha a longa
emergência da Modernidade no ocidente, pois esteve relacionada aos principais momentos
desse processo. Segundo a historiadora, o período intermediário do século XIX foi crucial, em
termos lingüísticos, na demarcação do conceito, especificamente:
Em 1857, a palavra pornografia apareceu pela primeira vez no Oxford English
Dictionary, e a maioria de suas variaçõespornógrafo e pornográfico — datam do
mesmo período. Esses verbetes surgiram na França um pouco antes. Segundo o
Trésor de la langue française, a palavra pornographe apareceu primeiro em 1769,
no tratado de Restif de la Brettone (sic) intitulado Le Pornographe, aludindo a textos
sobre prostituição, enquanto pornographique, pornographe e pornographie, no
sentido de escritos ou imagens obscenos, datam de 1830 e 1840. Aparentemente, a
Collection de l’Enfer, da Biblioteca Nacional, foi constituída em 1836, embora a
idéia existisse desde o regime napoleônico e, talvez, até mesmo antes. Portanto, nas
17
décadas pouco anteriores e pouco posteriores à Revolução Francesa, o termo
começou a ganhar consistência, fato que nada tem de acidental.
12
Portanto, apesar das fontes principais da tradição pornográfica e de sua censura
serem buscadas bem antes do século XVIII, somente em 1769 Restif de la Bretonne
criou o
termo que veio a nomeá-la. O tratado escrito por Bretonne visava regulamentar a prostituição
para torná-la uma prática racionalizada. Segundo outro historiador, Jean-Marie Goulemot,
Bretonne era fundamentalmente sério e moralizador até mesmo em seus textos literários. Seu
tratado, “O Pornógrafo”, revela certa “pulsão regulamentarista” própria do final do
Iluminismo, ainda que o objeto a ser regulamentado fosse demarcado pelas “vias incertas dos
subentendidos amorosos”
13
. temos o primeiro confronto na definição do termo: por um
lado, encontramos o impulso da revolta na comunicação de algo que fere o pudor público com
obscenidade, indecência e licenciosidade; por outro lado, somos informados da face
regulamentarista da pornografia, tendo como objeto a prostituição em seu aspecto social.
A despeito da pluralidade e da indefinição do gênero pornográfico que ainda
persiste nos tempos atuais, convém lembrar que o sentido de pornografia vem da combinação
dos vocábulos gregos pórné, és, que significa prostituta, e de pórnos, aquele que se prostitui,
depravado. Nesta pesquisa, interessa-me mais o elemento pospositivo da composição desta
palavra, que vem do grego grafia “escrita”, “escrito”. Especificamente, pode significar
uma maneira de escrever, de representar, e ainda, uma convenção, uma descrição, tratado ou
estudo.
dois pontos, assim, a serem analisados a partir de sua etimologia: podemos
falar do tratado da prostituição, inaugurado pelo viés moralizador, resquício da idade das
luzes, e em outra direção, talvez não diretamente isenta desse contágio, mas de qualquer
forma seguindo uma outra tradição, a escrita que se quer radicalmente depravada (pórnos),
luxuriosa, obscena, catálogo de perversões, a escrita perversa.
1.2 Pornografia x erotismo: uma questão mal colocada
Antes de avançar sobre este ponto que pretendo desenvolver ao longo da
dissertação, qual seja, a pornografia como catálogo das perversões, e mais detidamente
delimitar o que seria esta “escrita perversa” na trilogia pornográfica de Hilda Hilst, vale
12
HUNT. A invenção da pornografia, p. 13-14.
13
GOULEMOT. Esses livros que se lêem com uma só mão, p. 22.
18
ressaltar que não penso a pornografia e o erotismo como categorias distintas de representação.
Delimitar as fronteiras entre elas sempre foi muito complicado. Apesar das tentativas de
alguns pesquisadores em separá-las, distingui-las conceitualmente, essas diferenciações não
parecem ser muito convincentes e são muito pouco operacionais. Encontramos definições
ancoradas em um cristalizado binarismo, estabelecidas pelo entendimento do senso comum ou
mesmo limitadas pela compreensão de campos teóricos variados. A definição mais aceita
estabelece a dicotomia entre sexo explícito, grosseiro e vulgar, que estaria presente na
pornografia, e entre sexo implícito, nobre, galanteador, que seria da ordem do erotismo.
Barthes diz, a partir de uma foto que observa, que esta o “induz a distinguir o
desejo pesado, o da pornografia, do desejo leve, do desejo bom, o do erotismo”
14
. Em outra
perspectiva estética, a pornografia é definida como representação que visa apenas o consumo
“erotomaníaco”, sendo, portanto, associada à cultura de massa, e o erotismo designa as obras
de arte da cultura erudita que tratam diretamente da sexualidade. Deleuze, em sua
apresentação do livro de Sacher-Masoch, A Vênus das Peles, propõe o uso do termo
“pornologia” para descondicionar uma série de facilidades e procedimentos estéticos
atribuídos à pornografia. Com a intenção similar a de Deleuze, Barthes vai propor o termo
“pornograma” para alargar as possibilidades de sentido do vocábulo pórnos. Mas é
interessante indagar até que ponto a mera substituição lingüística é capaz de descondicionar e
atualizar as proposições correntes sobre pornografia.
Segundo Goulemot, no séc. XVIII, antes do surgimento do termo pornografia, a
definição de erotismo abrangia tanto a noção de amor, de galanteria, como a de delírios
provocados pelo desejo. E para designar os textos e imagens que visavam exclusivamente a
produzir excitação sexual, eram usados os termos licenciosos e obscenos. O primeiro fazia
alusão tanto à libertinagem do espírito como a de costume, o segundo se referia a tudo que
é contrário ao pudor, que se deveria evitar e esconder.
Parece que, com o desenrolar do tempo, o termo pornografia vem substituir ou
incorporar todas estas acepções, até mesmo porque não entre as definições de obsceno,
erótico, licencioso e, o termo em questão, a pornografia, uma fronteira inquestionável e
definitiva. Tanto é que, diante da dificuldade de estabelecer os limites entre eles, alguns
pesquisadores, entre eles Lynn Hunt e Goulemot, têm optado por tratá-los como sinônimos,
ainda que, em alguns momentos, ressaltem as distinções semânticas decorrentes das variações
sociais, filosóficas ou morais de cada época.
14
BARTHES. A câmara clara, p. 89.
19
De maneira abrangente, parto da idéia de que o erotismo é o conceito,
estabelecido a partir da experiência de dissolução, como pensa Bataille em sua célebre obra O
erotismo, que vai pautar a pornografia como gênero literário. Para esse filósofo,
“essencialmente, o campo do erotismo é o campo da violência, o campo da violação”
15
.
Em sintonia como o erotismo, sugiro pensar a pornografia como um conceito
dinâmico que articula todas as possibilidades da representação que põe em cena o ato sexual
quando este se apresenta explicitamente ou, ainda que implícito, subtendido, mas que esteja
em confronto com a moral vigente, com os interditos sociais e com o bom tom da linguagem
oficial. Nessa perspectiva, o obsceno, o licencioso e o exercício lúbrico este mais
diretamente associado com o efeito de excitação sexual são os mecanismos que fazem
parte do sistema poético do qual a pornografia faz uso taticamente. De outro modo, podem
ainda ser considerados como estratégias autônomas instrumentalizadas pela pornografia ou
incorporadas por esta para efetivamente perturbar o corpo do seu receptor.
Toda tentativa de polarização da dicotomia, quer seja entre obsceno e erotismo,
quer seja entre pornografia e erotismo, insiste no equívoco de colocar a arte no alto, como
elevação do espírito pelo belo, desvinculada, portanto, de uma estética que tratasse da matéria
“do baixo material e corporal”, que seria da ordem do popular e não da arte. Mas seria a
pornografia um gênero contrário à arte e, no caso da sua forma escrita, seria a literatura
apenas seu acessório, como defendem alguns críticos, que teria como fim excitar o leitor,
provocar-lhe o apetite sexual?
É preciso alargar a compreensão do que é pornográfico antes que o termo seja
subutilizado para designar somente produtos da indústria cultural. O procedimento
metodológico utilizado aqui é o de abrir o conceito, tal como o filósofo Giorgio Agamben
ampliou um termo técnico estratégico no pensamento de Foucault a noção de dispositivo.
No gesto ampliador de Agamben, dispositivo é não aquilo capaz de aprisionar pelas redes
de poder, como é utilizado por Foucault orientando, capturando, controlando,
interceptando, determinando e assegurando os gestos, as condutas e os discursos dos seres
viventes, ou seja, produzindo discursos de dominação —, mas é também o que forja a
libertação, até restituir ao uso comum o que estava encoberto, perdido, subaproveitado desde
que foi capturado e separado pelo próprio dispositivo. Cada dispositivo implica formas
diferenciadas de apreensão e utilização, para que não se reduza a mero exercício da violência.
15
BATAILLE. O erotismo, p. 28.
20
Assim, mais do que a produção de poder, como em Foucault, o que está em jogo na
proposição metodológica de Agamben é a produção de subjetivação.
Ao abandonar a filologia foucaultiana para tratar de problemas maiores
vinculados à linguagem em sua relação com a subjetividade, Agamben propõe “nada menos
que uma maciça divisão do existente em dois grandes grupos ou classes: de um lado, os seres
viventes (as substâncias), e de outro, os dispositivos nos quais estes estão incessantemente
capturados.”
16
No necessário corpo-a-corpo com os dispositivos, o pensador constrói um
conceito, que envolve principalmente uma ação política, derivado de um termo que provém da
esfera do direito e da religião romana: a profanação. Em contrapartida aos dispositivos de
administração dos corpos e da gestão calculista da vida, tal como observados por Foucault na
consolidação do poder na Modernidade, Agamben sugere uma ação profanatória. A
profanação é, então, “o contradispositivo que restitui ao uso comum aquilo que o sacrifício
havia separado e dividido.”
17
Por isso, espera-se das estratégias pornográficas, quando
utilizadas esteticamente como contradispositivo profanatório, uma múltipla afecção do
imaginário, intervindo assim sobre os processos de subjetivação e, consequentemente, sobre o
corpo do receptor, para que além da lubricidade, atinja categoricamente o moralismo
conservador.
1.3 O texto como fetiche perverso
Alguém com uma mão uma descrição clínica do sexo? Talvez, mas seria
necessário ter como leitor um “fetichista das letras”
18
instigante figura imaginada por
Alcir Pécora ou uma recepção perversa, tal como é proposta por Barthes. Ainda assim,
tornar-se-ia imprescindível um superfaturamento do texto denotativo, resultante de um
esforço do leitor ao fazer a depuração criativa da linguagem presente na descrição,
inflacionando-a no imaginário. O leitor perverso que encontrasse no relato clínico a sua forma
de gozo precisaria antes cortar o texto, selecionar a sua maneira aquilo que respondesse ao seu
fetiche, como um colecionador catalogando imagens que lhe proporcione prazer ou num
exercício complexo, isolando a palavra obscena até que, por fim, a transformasse em imagem
16
AGAMBEN, G. “O que é um dispositivo?Outra travessia. Revista de Literatura número cinco, p.13.
17
Ibidem, p.14.
18
PÉCORA, “Hilda Hilst: Call for paper”. In: Germina: Revista de Literatura e Arte. Disponível em:
<http://www.germinaliteratura.com.br>.
21
lúbrica. Estabeleceria assim o lugar e o modo do seu gozo a partir da combinação e seleção
muito subjetiva que faz da palavra no seu imaginário. Ora, potencialmente não seríamos todos
leitores perversos? Não poderíamos ser do texto o observador clandestino, forjando nosso
prazer ali onde menos se espera?
Posicionar-se entre arte e excitação sexual seria redundante se levarmos em
consideração o comentário de Freud no artigo Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade.
Em nota acrescentada posteriormente, Freud observa que parece “indubitável que o conceito
de ”belo” tenha suas raízes na excitação sexual e significa originariamente o que excita
sexualmente (as iscas)”
19
. Entretanto, o que se encontra na arte em geral de forma latente, não
estaria na pornografia de forma explícita e extrema? Poderíamos concordar com Freud
quando ele afirma que “não podemos jamais achar realmente belos os órgãos sexuais cuja
visão desperta, no entanto, a mais forte excitação sexual”
20
, que a curiosidade estética,
nesta perspectiva, repousaria sobre um recalcamento do objeto considerado indigno do olhar
artístico e dos fins primitivos abandonados em função do desenvolvimento sexual normal?
O desafio deste trabalho é, portanto, pensar uma estética que se contraponha a este
modelo redutor, pois o que percebemos na pornografia é que o objetivo da escrita é
justamente “ressexualizar”, pela encenação perversa e pelo efeito da grafia, o que se sublimou
no sentido da arte. Penso, doravante, sobre a possibilidade ou capacidade da pornografia
vincular, por um lado, arte e excitação sexual, associada ao desejo perverso, e por outro, entre
arte e transgressão, como desmentido das normas, tanto do enunciado quanto da enunciação.
O desdobramento maior disso seria a releitura do conceito de sublimação, considerando a
possibilidade de ampliar a interpretação das práticas artísticas que encenariam nossas
tendências originárias à perversão, em contraponto com o aspecto ascético e asséptico da belle
lettre.
Em Da sedução, Jean Baudrillard traz um problema aditivo à pornografia, o de
colocar o “sexo tão próximo, que se confunde com sua própria representação”
21
. Segundo o
filósofo, isso seria “o fim do espaço perspectivo que é o do imaginário e do fantasmático
fim da cena, fim da ilusão.”
22
Com efeito, percebemos na pornografia, com mais nitidez que
19
FREUD, 1976. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p. 158, apud SAINT-GIRONS, B. Dicionário
Enciclopédia de Psicanálise, p. 495. (Optei pela tradução do referido dicionário por considerá-la mais pertinente
que a tradução da Edição Standard Brasileira das Obras de Psicológicas Completas de Freud.)
20
Ibidem, p. 495.
21
BAUDRILLARD, op. cit., p. 37.
22
Ibidem, p. 37.
22
em outras perspectivas da escrita, um estado de leitura de pura sensorialidade, a intenção de
produzir objetos imaginários dando-se e agindo como verdadeiros, fazendo passar a aparência
pela realidade. Seria esse o fracasso da pornografia ou estaríamos apenas em estado-limite
da linguagem, quando o corpo se impõe à escrita e, por sua vez, ao campo dos outros
leitores?
A psicanalista Maria Rita Kehl, no ensaio “Cinco Propostas Sobre a Filosofia
Libertina”, analisa o romance de Choderlos de Laclos, As Relações Perigosas, e diz que “no
diálogo entre o neurótico e o perverso, o perverso monta uma cena para fazer com que o
neurótico acredite que ele domina os segredos do gozo — e o neurótico, bobo, acredita”
23
. Na
pornografia, o perverso parece dizer que goza com o que o neurótico recalca ou, mais
vigorosamente, ele parece dizer que goza enquanto o outro recalca, trazendo assim, vestido de
verdade, o real do desejo recalcado no inconsciente do neurótico. Como bem percebe a
psicanalista, sim um gozo do perverso, mas não como acredita o neurótico. Ou melhor, o
que talvez seja apenas isto: fragmentos das possibilidades de gozo. Segundo Kehl, “o
perverso goza sim, mas não como o neurótico acredita. Ele goza em iludir o neurótico (a
cultura), em se fazer mestre de um gozo que ele também não alcança. Mas como todo
fingidor, é claro, ele goza ‘ao fingir o que deveras sente’”
24
.
Edilene Freire Queiroz, em sua prática clínica, aprofunda sobre o tema ao dar
ênfase ao discurso do perverso, no qual a palavra adquire valor de mostração em
conseqüência de uma compulsão ao ato. Segundo a psicanalista, as “frases fetiches” e a
“palavra mostração” impõem-se ao discurso descritivo e hiperbólico do perverso de forma
que o significante tem mais a função de apresentação do que de representação.
Para a psicanalista, assim como para outros teóricos, a problemática do perverso
se situa na imagem que ele guarda da castração do corpo do outro, ou seja, ele faz o
desmentido da castração feminina, tenta encobrir a falta da mulher com um véu de modo a
não ver vendo, e tenta também, a todo custo, restituir-lhe o que lhe falta. Por isso, segundo
Queiroz, o mecanismo de ocultação/revelação é próprio da problemática perversa.
A presença do véu permite àquilo que está mais além a falta a se realizar
como imagem, ou melhor, permite a projeção, na ausência de um objeto imaginário, suprindo
assim o vazio com um objeto produzido substitutivamente pelo perverso. A dimensão
imaginária aparece prevalente na organização perversa, pois é a instância onde se dá o
23
KEHL. A mínima diferença, p. 240.
24
Ibidem, p. 240.
23
investimento substitutivo no objeto que vai preencher a falta. A pornografia pode ser vista
justamente como a exploração, ou apresentação plástica, desse imaginário do perverso.
Apesar da pornografia exercer uma eficácia erótica sobre o corpo do leitor, não
necessariamente é a excitação o efeito alcançado. Como pensa Michel Leiris, e neste caso a
perversão se apresenta na literatura com um empreendimento etnográfico, “o masoquismo, o
sadismo e, enfim, todos os vícios são meios de sentir-se mais humano”
25
, pois nos apresenta
algo que nós, neuróticos, recalcamos, e que tem a ver com nossas experiências mais
profundas, violentas e abruptas com o corpo. Para Leiris, o homem consegue intensificar
sua consciência corpórea quando ultrapassa a repugnância diante dos mecanismos secretos da
carne.
Não se pode desvincular a resposta sexual do leitor da participação das forças
obscuras do desejo, do mundo das pulsões e dos gozos ignorados, enfim, do inconsciente.
Prever de que forma, ou quantas vezes, excita-se sexualmente um leitor, ali onde se quer
escapar da própria ordem sexual e sua lei simbólica, provavelmente é aí que fracassa o
narrador perverso. Querer dominar a excitação sexual do leitor esse é o ponto, parece-me,
que faz a pornografia fracassar: a escrita não resiste à gramática neutralizada do sexo. Tudo já
se sabe, tudo já se espera, portanto, a pornografia se rende a sua instrumentalização.
A trilogia pornográfica de Hilda Hilst é, levando-se em conta o conjunto da sua
produção literária, o momento no qual a explicitude da cena sexual está mais óbvia.
Entretanto, a estratégia obscena e licenciosa faz parte da dinâmica de toda a sua obra em
prosa, e a trilogia pornográfica, podemos lê-la como o resultado, ou o fecho, do caminho
perverso que a obra de Hilda Hilst desde o início já propunha.
1.4 Literatura e incesto
“Só três noite de amor, três noite de amor”, assim ficou marcado no
imaginário da escritora Hilda Hilst um dos encontros que teve com o pai psicótico, quando,
depois de muito tempo afastados, vieram a se encontrar. A própria escritora disse na
entrevista feita para a edição número oito, em Os Cadernos de Literatura Brasileira, do
Instituto Moreira Salles, que, mais do que influência do pai, fez toda sua obra através dele.
Em várias entrevistas Hilda Hilst cita o mito da filha que embriaga o próprio pai para que
25
LEIRIS, 2006, apud MORAES,2002, O corpo impossível, p. 161.
24
possa ter uma noite de amor com ele. Esse encontro incestuoso é uma constante em sua obra,
convertida em vigor poético, como na passagem que se segue:
Tocaram-me sim, meu pai tu me tocaste, a ponta dos dedos sobre as linhas da mão, o
dedo médio sobre a linha da vida, dizias Agda, três noites de amor apenas, três
noites tu me darás e depois apertastes o meu pulso e depois olhaste para o muro e ao
nosso lado as velhas cochichavam filha dele sim, a cabeça é igual, os olhinhos
também, bonita filha toda branca...
26
A literatura como incesto, ou a literatura do incesto, é o que nos apresenta Hilda
Hilst ao escrever toda uma vasta obra para o pai, como se fizesse amor com ele através da
escrita. Em quase toda sua obra, a exploração erógena do corpo da língua traduz um
imaginário que, dando voz à demanda do seu desejo, sexualiza as palavras, explicita as
demandas reais da carne e vai subvertendo a dimensão simbólica do seu texto, a ponto de nos
convencer, como propõe Júlia Kristeva, “de que não carne mais perturbadora que a carne
da escrita”
27
. Parece, assim, que Hilda Hilst nos apresenta a melodia das nossas pulsões
inconscientes.
Na falha da gramática, na cisão com o procedimento acomodado, a escritora nos
apresenta as possibilidades de uma escrita movida pela pulsão, estimulada ou excitada, no
texto pornográfico, pela descrição obscena e licenciosa da cena sexual ou pelos exercícios
lúbricos. Na trilogia pornográfica, assim como em quase toda obra em prosa da escritora, é o
cenário sexual que se mostra aí pulsando, em carne viva, ancorado no enigma pulsional.
Como em Santo Agostinho, a carne na obra de Hilda Hilst não significa
exclusivamente o corpo ou o sexo, ainda que este último seja a prática mais atacada por ser a
mais rebelde e imperiosa no desejo humano, levando a discórdia interna, tornado-se
independente do próprio controle da nossa vontade. Citando sua própria vida, Santo
Agostinho, nas Confissões, vai ilustrar a divisão da vontade pela libido: “loucura deste prazer,
que a nossa degradação liberta de todo o freio, e que é proibido pela vossa lei, me fez aceitar o
cetro que empunhei com ambas as mãos.”
28
Inúmeras são as passagens, como observou o
psicanalista Jurandir Freire Costa, nas quais Santo Agostinho fala de seus tormentos na luta
contra a concupiscência, quando se manifesta a fraqueza da vontade em relação à carnalidade.
26
HILST. Ficções, p.53.
27
KRISTEVA. Sentido e contra-senso da revolta, p. 197.
28
SANTO AGOSTINHO apud COSTA, 1998, Sem fraude nem favor, p. 86.
25
Nessa mesma acepção da carne, Hilda Hilst nos confronta com a singularidade de
uma escrita que se opõe à passividade, que perturba a ordem e a tranqüilidade, não dando
trégua nem ao corpo do autor nem ao corpo do leitor, ao impor ao mesmo tempo prazer e
perturbação da ordem, permitindo assim falar de uma estética produzida pela pulsão, uma
escrita ancorada no enigma pulsional. Por esse caminho, a carne seria o corpo
dessimbolizado, algo que escapa e resiste à própria representação pelo simbólico. Parece-me
que é sobre um princípio de incerteza, quando a gramática do simbólico falha, que o verbo se
faz carne, permitindo dessa forma explorar uma língua enigmática, ancorada nas cavidades e
reentrâncias que, neste caso, só o espaço literário nos permite experimentar.
No texto de Hilda Hilst, a palavra pulsa, como se fosse de carne, mas o que é a
carne? Sem responder, a escritora no seu livro Do Desejo, deixa-nos envoltos nessa questão:
O que é a carne? O que é este Isso
Que recobre o osso
Este novelo liso e convulso
Esta desordem de prazer e atrito
Este caos de dor sobre o pastoso.
A carne. Não sei este Isso.
O que é o osso? Este viço luzente
Desejoso de envoltório e terra.
Luzidio rosto.
Ossos. Carne. Dois Issos sem nome.
29
1.5 O fracasso do projeto pornográfico de Hilda Hilst
Vale ressaltar a inflexão ocorrida nos estudos hilstianos em meados da década de
noventa. Esses estudos consideravam que Hilda Hilst deixava de escrever literatura séria, de
qualidade, e se rendia à banalização com o lançamento de sua trilogia pornográfica. Deneval
Siqueira de Azevedo Filho, em seu livro Holocausto das Fadas, chega à conclusão que o
projeto pornográfico de Hilda Hilst havia fracassado, tanto na sua intenção pornográfica,
quanto comercialmente, sendo que a segunda hipótese era considerada como uma
conseqüência da primeira. Da leitura do referido trabalho, apreende-se que a aludida intenção
pornográfica da escritora fracassou porque obscureceu a nitidez do gênero. Para o
pesquisador, um excesso de intelectualismo, conjugado ao uso recorrente de
metalinguagem, que deixa os livros da trilogia que, segundo o autor, não é uma trilogia,
29
HILST. Do desejo, p.34.
26
pois não uma continuidade de procedimento estético nem temático pouco adequados ao
mercado a que eram destinados. Azevedo Filho resume assim o pensamento de certos críticos
brasileiros sobre a trilogia da escritora.
De outro modo, mas compartilhando da mesma incompreensão sobre o projeto
pornográfico de Hilda Hilst, Leo Gilson Ribeiro, crítico generoso da obra anterior à trilogia,
não percebe um valor literário na produção pornográfica da escritora. O crítico escreveu um
artigo, “Luminosa despedida”, afirmando que O caderno rosa de Lori Lamby e Contos
d’escárnio: textos grotescos “assinalam o adeus da escritora Hilda Hilst à literatura e, ao
mesmo tempo, sua adesão à pornografia bem-humorada”
30
(Cartas de um Sedutor ainda não
estava pronto na época em que Ribeiro proferiu essa assertiva, em 1989). Contudo, a própria
Hilda Hilst, antecipando-se à crítica, escreve na contracapa do livro de poesia, Amavisse,
lançado em 1989:
O escritor e seus múltiplos vêm vos dizer adeus.
Tentou na palavra o extremo-tudo
E esboçou-se santo, prostituto e corifeu. A infância
Foi velada: obscura na tela da poesia e da loucura.
A juventude apenas uma lauda da lasciva, de frêmito
Tempo-nada na página.
Depois, transgressor metalescente de percursos
Colou-se à compaixão, abismos e à sua própria sombra.
Poupem-no o desperdício de explicar o ato de brincar.
A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo.
O caderno rosa é apenas um Potlatch
E, hoje, repetindo Bataille:
“Sinto-me livre para fracassar”
31.
Eliane Robert Moraes, referindo-se a essa citação de Hilda Hilst, compreende que
“fracassar” significa, neste caso, a possibilidade de arriscar outras formas do dizer literário.
Supõe liberdade e também coragem de excursionar por regiões ainda não devassadas
pelo gênio criador do artista, correr o risco do desconhecido”
32
. A própria Hilda Hilst
resgatou, nos estudos etnográficos de Marcel Mauss e Georges Bataille, um termo que avaliza
o seu ato de enfrentamento — o Potlatch, ritual observado entre
os povos ameríndios da costa
noroeste american
a,
que consiste em destruir a
parte mais importante da riqueza acumulada.
Dissipa-se um potencial acumulativo em função de um atributo imaterial, a glória,
30
RIBEIRO. “Luminosa despedida”. Jornal da tarde, [s.p.].
31
HILST apud RIBEIRO, 1989, “Luminosa despedida”. Jornal da tarde, [s.p.].
32
MORAES. “A obscena senhora Hilst: poemas eróticos disfarçam uma fina reflexão
sobre a linguagem”. Jornal do Brasil, [s.p.].
27
estabelecendo assim um outro tipo de poder, que fascinou a escritora justamente por ser um
poder negativo, o poder de perder.
Hilda Hilst identificou-se com esse ritual, tão contrário à ordem capitalista, por
pressupor uma experiência revigorante, uma salvação, diretamente associada com a própria
profanação que faria ao espaço literário. Sintomaticamente, o Potlatch vai impulsionar o
movimento, já em curso desde as primeiras obras em prosa da escritora, de rebaixamento da
sua escrita em direção ao baixo-material e corporal. Irmanando-se a Bataille, Hilda Hilst
percebeu um potencial estético e político no Potlatch, o que unia definitivamente a sua
produção à elaboração filosófica e literária do autor de A parte Maldita:
Eu tenho a impressão de que ele (Bataille) tentou a Salvação, por isso é que ele
escreveu todos aqueles livros pornôs. Quando eu li A parte maldita eu tive a
compreensão do porquê ele escrevia esses textos. Fascinou-me todo o processo de
Potlatch e achei demais importante aquela frase dele, quando ele diz que “o maior
luxo de nossa época pertence ao miserável, aquele que se estende sobre a terra e
desprezam-no...”
33
1.6 Metodologia: a prática do desvio
Podemos, passado alguns anos deste evento literário, pensar nesta outra
maneira de se falar em fracasso da pornografia na trilogia hilstiana. de início, percebemos
que o fracasso atribuído à Hilda Hilst permite revisitar a tradição da pornografia, trazer de
volta, a partir da discussão dos textos da escritora, as questões que envolvem o próprio
conceito de erotismo no contexto da produção pornográfica entendido aqui não como
embelezamento do ato sexual, mas como embate de forças contrárias no qual a “pulsão de
morte” irá se impor. Até então não se encontrava na produção pornográfica brasileira recente
nada mais que uma gramática de procedimentos narrativos, estabelecida apenas com o que
mais facilmente excitaria o leitor. O fracasso do projeto de Hilda Hilst nos permite revisitar a
tradição pornográfica sob uma nova perspectiva.
Seguindo esse enfoque, a pesquisa que desenvolvo parte daquilo que G. Lascault
diz que o esteta aprende com o psicanalista: a prática dos desvios, o gosto pelos meandros,
derivações e sinuosidades.”
34
. O próprio Freud propôs o desvio como método de pesquisa.
33
HILST. Entrevista concedida a RIBEIRO, L. G. Luminosa despedida”. Jornal da tarde, [s.p].
34
LASCAULT. “Psicanálise e literatura”. In: Dicionário enciclopédico de psicanálise, p. 636.
28
Segundo o psicanalista, “basta termos a coragem de prosseguir nessa direção para entrarmos
num caminho que, embora em princípio nos faça deparar com o imprevisto e o
incompreensível, talvez nos leve, através de desvios, a algum objetivo”
35
.
Parto, portanto, de três desvios, todos encaminhados pela leitura da obra de Hilda
Hilst e, mais especificamente, impulsionados pela análise da trilogia pornográfica. No
primeiro momento da pesquisa, investiguei o fracasso da pornografia em sua relação com a
cultura de massa a partir de elementos presentes na própria obra da escritora. Observei o
problema relacionado à definição dos conceitos de pornografia, grotesco, erotismo, obsceno e
licencioso, analisando depoimentos da própria Hilda Hilst, artigos de jornais e ensaios
acadêmicos que tentaram delimitar os conceitos em função das contraposições binárias. O
movimento aqui é pela ampliação do conceito de pornografia que se pensava perdido no
contexto da indústria cultural, apropriado tão-somente para designar a “erotomania” da
cultura de massa.
No segundo momento, abordei os elementos que compõem o imaginário perverso
na trilogia de Hilda Hilst, ressaltando os elementos que nos fazem perceber sua obra como
uma literatura do incesto e, consequentemente, como escrita perversa. Por fim, no último
desvio, associo a pornografia hilstiana ao que está ainda em construção, valendo-me da noção
de rizoma em Deleuze. Ao longo de todo o trabalho, postulo a operacionalização do termo
pornografia, realimentando-o, ou ampliando-o em direção a um processo de escrita que tem a
ver com a perversão e com a inserção da demanda carnal no corpo do texto.
A essa linguagem renovada por uma erótica, que nesta pesquisa observo pelo viés
da carnalidade, Barthes propôs o nome de “pornograma”, termo que o semiólogo utiliza para
representar os procedimentos narrativos deste que considera um criador de linguagem,
Marques de Sade. Segundo o autor de Sade, Fourier, Loyola:
O pornograma não é apenas o vestígio escrito de uma prática erótica, nem mesmo o produto de um
delineamento dessa prática, tratada como uma gramática de lugares e de operações; é, por uma
química nova do texto, a fusão (como sob efeito de uma temperatura ardente) do discurso com o
corpo (“aqui estou toda nua” diz Eugénie a seus professores: “dissertai sobre mim tanto quanto
quiserdes”), de maneira que, atingido este ponto, seja a escritura aquilo que regula o intercâmbio
este Lógos e Éros, e seja possível falar de erótica como gramático e da linguagem como
pornógrafo”
36
.
35
FREUD. O tema dos três escrínios apud LASCAULT, Gilbert. “Psicanálise e estética”. Dicionário
enciclopédico de psicanálise, p. 637.
36
BARTHES. Sade, Fourier, Loyola, p. 189-190.
29
Utilizando um termo que Derrida pega emprestado na psicanálise, penso se não
teria a pornografia sofrido do “recalque” do seu elemento escritural: “Recalque e não
esquecimento; recalque e não exclusão. O recalque, como bem diz Freud, não repele, não foge
nem exclui uma força exterior, contém uma representação interior desenhando de si um
espaço de repressão”
37
. Assim, em sintonia com Barthes e Derrida, penso retomar o conteúdo
“recalcado” da pornografia a partir da concepção de carne, observando que a trilogia de Hilda
Hilst é construída através da mistura de gêneros, que se organizam como estruturas dialógicas,
na qual os enunciados estão fragmentados segundo diferentes estratégias narrativas,
remetendo, portanto, á idéia de carnalidade.
37
DERRIDA. A escritura e a diferença, p. 180.
30
2. A PROFANAÇÃO LITERÁRIA EM HILDA HILST
La profanación de lo improfanable es la tarea
política de la generación que viene.
Giorgio Agamben, Profanaciones.
“Isto sim é que é uma doce e terna e perversa bandalheira!”
38
Quando lançou seu
primeiro livro de bandalheiras, O caderno rosa de Lori Lamby, Hilda Hilst se viu diante de
um trabalho ambíguo, que não se enquadrava em um gênero específico, sem nome, sem
definição. Para a escritora era apenas isto: bandalheiras, associadas, contudo, ao seu
ressentimento com o mercado editorial. Quisera ainda fazer uma sátira ao relato bem
comportado, à literatura infantil e também à própria pornografia forjada pela indústria
cultural. Em entrevista concedida ao Jornal de Brasília, partiu para a provocação: “esse livro é
uma banana para acordar o leitor que está dormindo. Eu quis mesmo dar essa porrada na cara.
O editor brasileiro é esse nojo. Eles têm horror quando um livro tem profundidade. Quantas
vezes só faltaram me cuspir na cara (sic).”
39
O lançamento de O caderno rosa de Lori Lamby
foi um ato político da escritora.
O Historiador Goulemot, em seu ensaio sobre a recepção dos livros pornográficos
do século XVIII, levanta a hipótese de que a proliferação da pornografia e a sua associação
com os libelos políticos devem-se aos tempos incertos e tumultuosos, nos quais se opera uma
confusão de valores que emergem como sintoma da crise do regime que antecede à Revolução
Francesa. Para o autor de Esses livros que se lêem com uma só mão, a pornografia se associa à
política revolucionária de maneira espúria, forçada, que os textos obscenos eram
consumidos, em muitos casos, como puro divertimento, fazendo parte do cerimonial das casas
38
HILST. O caderno rosa de Lori Lamby, p. 95.
39
HILST apud ARAÚJO, 1990, “Inocência Escandalosa”. Jornal de Brasília, [s.p].
31
de prostituição, constituindo uma etapa necessária da iniciação amorosa. Era por meio deles
que as principiantes aprendiam sobre sua profissão, também era através deles que elas
incitavam preliminarmente seus clientes e ainda eram neles que os neófitos descobriam as
vertigens de seus primeiros ardores. Assim, sobre os textos obscenos, conclui Goulemot:
Provavelmente, pelas relações amorosa que ele encena, ele vai de encontro a normas
sociais, morais e religiosas, mas isto bastaria para nos convencer de que esta seja sua
primeira finalidade? Seu leitor não tem como meta principal transgredir a regra
moral. Seu desejo é outro. Adivinha-se facilmente. E pode-se imaginar, sem esforço,
que os amadores de livros de segunda prateleira do século XVIII não eram
necessariamente espíritos subversivos que se propunham a derrubar a ordem política
e social. O anticlericalismo “passional” não conduz necessariamente à revolução,
como o prova a tradição das trovas. A escrita pornográfica de um d’Argens (e, de
uma outra maneira, a do próprio Sade) mostra bem que a subversão moral ou
religiosa deve-se a uma adjunção filosófica e não é unicamente da alçada do texto
pornográfico.
40
Segundo o historiador, a literatura que trata da representação ficcional da
sexualidade conhece no século XVIII um sucesso e uma notoriedade até então jamais
alcançados. Até mesmo os autores renomados passaram a escrever livros eróticos
pressionados pela necessidade financeira. Assim, o romance pornográfico não parou de
evoluir (ou de transformar-se) utilizando os mesmos mecanismos de construção do romance
contemporâneo, tornando-se, dessa forma, um lugar de troca, de confluência de estilos e de
procedimentos narrativos. Contudo, para Goulemot, o que se ganhava em filosofia, em
virtuosidade narrativa e possibilidades estéticas, perdia-se em eficácia propriamente
pornográfica, isto é, sua capacidade de atiçar o imaginário e excitar o corpo do leitor.
Goulemot pensa que o que está em jogo na pornografia é literário acessoriamente, pois o
objetivo primeiro da pornografia é o de excitar o leitor. Como lembra numa evocação a
Rousseau, os textos obscenos são “estes perigosos livros que uma bela Dama de qualquer
parte do mundo considera incômodo, pelo fato de que podemos, diz ela, lê-los com uma
das mãos.”
41
Mas essa visão de Goulemot é parte da história, não há nenhuma comprovação
definitiva que postule a exclusividade ou uma ordem de prioridade, ou separação, entre a
excitação sexual e a pertubação estética e literária. O aspecto lúbrico não pressupõe nem
mesmo uma desvinculação da provocação moral e política. Segundo a pesquisadora Lynn
Hunt, no princípio do período moderno, frequentemente a intenção do autor pornográfico era
criticar ao mesmo tempo as relações sociais e sexuais. Os relatos de conversas sobre
40
GOULEMOT, op.cit, p. 85.
41
ROUSSEAU. Livro I apud GOULEMOT, op.cit, p.59.
32
prostitutas ou entre prostitutas artifício favorito da pornografia moderna inicial eram
usados para revelar a hipocrisia das convenções morais. Hunt observa que a descrição da
devassidão e das orgias em bordéis era uma estratégia recorrente para atacar e ofender os
aristocratas e os clérigos da época, esses eram os personagens recorrentes dos relatos
obscenos. Como exemplo, a historiadora lembra os panfletos pornográficos que circulavam na
França, no final do século XVIII, com relatos de detalhes das supostas orgias da rainha Maria
Antonieta com aristocratas e padres.
2.1 O fracasso dos procedimentos literários na pornografia
O surgimento da pornografia é simultâneo à cultura do material impresso. O seu
crescimento no século XVIII e XIX está diretamente associado com o próprio
desenvolvimento do romance, como pensam alguns pesquisadores, entre eles, o próprio
Goulemot. No entanto, segundo a organizadora do livro A invenção da pornografia, o
material obsceno e licencioso, como categoria estética, aparece já no século XVII, tendo todos
os traços do que será desenvolvido ao longo da Modernidade sob a denominação de
pornografia:
Quase todos os temas da prosa pornográfica posterior estavam presentes na década de 1660:
o objetivo consciente de despertar o desejo do leitor, a exposição de material autêntico
sobre sexo em oposição às convenções hipócritas da sociedade e ao domínio da Igreja e
como elemento novo no século XVII — a catalogação das perversões”, consideradas
variações diversas do prazer moral e autojustificadas (mesmo quando algumas dessas
perversões eram supostamente condenadas). Tais aspectos, tanto quanto o aparecimento
da libertinagem como um modo de pensar e agir, foram relacionadas à ênfase no valor da
natureza e dos sentidos como fontes legítimas. Desde o início, a pornografia mantinha laços
estreitos tanto com a nova ciência quanto com a crítica política.
42
Doravante, a pornografia como um sistema estético estabelecido desenvolve e
repete à exaustão, ao longo da Modernidade, certos procedimentos narrativos visando
exclusivamente o horizonte de expectativa do leitor. Determinava-se assim a sua
automatização ao se consolidar uma forma. Mas nem mesmo a pornografia existe por si só,
oferecendo a cada observador, em diferentes épocas, um mesmo aspecto da sua concepção
estética. É o rompimento com os procedimentos acomodados da narrativa obscena que
veremos adiante a partir do fracasso do projeto pornográfico de Hilda Hilst. Sob o efeito
Potlatch, quebra-se a expectativa do leitor.
42
HUNT, op.cit, p. 31.
33
Como observa Jauss, um sistema estético “só logra seguir produzindo seu efeito
na medida em que sua recepção se estenda pelas gerações futuras ou seja por elas retomada —
na medida, pois, em que haja leitores que novamente se apropriem da obra passada, ou
autores que desejem imitá-la, sobrepujá-la ou refutá-la.”
43
Talvez por isso, Hilda Hilst,
quando era uma renomada escritora, reconhecida pela crítica entre os maiores poetas e
ficcionistas contemporâneos, resolveu romper com o horizonte de expectativa, tanto do leitor
do nero pornográfico, quanto do seu próprio leitor, ou mesmo da crítica literária brasileira,
ao problematizar a concepção do que se imaginava como pornografia. Contudo, por motivos
diferentes, a crítica especializada, os leitores de pornografia e o próprio mercado editorial vão
determinar, cada um a seu modo, o fracasso do projeto pornográfico da escritora sem perceber
a questão que está sendo colocada.
44
A trilogia pornográfica da escritora fracassou tanto na sua intenção pornográfica,
quanto comercialmente, sendo que a segunda hipótese pode ser considerada como uma
conseqüência da primeira, isso é, em suma, o que conclui Azevedo Filho em seu livro
Holocausto das Fadas. Nessa perspectiva, fracassa a pornografia como gramática de figuras
obscenas e como exercício lúbrico, fracassa o desejo da escritora em ter sua obra lida por um
grande público, até mesmo porque não houve um investimento mercadológico. Contudo, e
este é o ponto mais relevante deixado de lado pelo autor de o Holocausto das Fadas. Ao
fracassar, Hilda Hilst pôs sob suspeita a própria definição do termo pornografia, rompendo
com a aparência de puro, de sensualidade, inebriamento e excitação associados ao nero.
Assim, paradoxalmente, o fracasso do projeto de Hilda Hilst irá reanimar e atualizar toda uma
discussão sobre o sentido e os efeitos da pornografia, possibilitando uma “mudança de
horizonte” na recepção do texto pornográfico, a partir de um distanciamento critico do que até
então se produziu para excitar o leitor. Como observa Jauss:
Denominando-se distância estética aquela que medeia entre o horizonte de expectativa preexistente
e a aparição de uma obra nova cuja acolhida, dando-se por intermédio da negação de
experiências conhecidas ou da conscientização de outras, jamais expressas, pode ter por
conseqüência uma “mudança de horizonte” —, tal distância estética deixa-se objetivar
historicamente no espectro das reações do público e do juízo da crítica (sucesso espontâneo,
rejeição ou choque, casos isolados de aprovação, compreensão gradual ou tardia).
45
43
JAUSS. A história da literatura como provocação à teoria da literatura, p. 26.
44
O último volume da trilogia obscena, Cartas de um sedutor, teve mais de mil exemplares devolvidos à Editora
Paulicéia, em 1995. Destaco ainda que, mesmo os dois primeiros volumes da trilogia, tiveram tiragem pequena
em relação aos livros comerciais.
45
JAUSS, op.cit, p. 31.
34
A definição excludente de pornografia e literatura, dentre outras razões menos
pontuais, baseia-se fundamentalmente na alegação de que o propósito da primeira é a indução
da excitação sexual como único objetivo, contrariando, portanto, o tranqüilo e desapaixonado
desenvolvimento da arte. A crítica parte do princípio de que uma boa e uma
pornografia. Entretanto, polariza-se uma discussão sob os efeitos da sua leitura, contrapondo a
produção artística do material obsceno que se oferece ao leitor de forma voluptuosa e lúbrica
à linguagem pornográfica considerada inábil, grosseira, suja e insípida. Mas se pode falar em
valor artístico, além do puramente sensorial, na avaliação estética que se fez, ou que pode ser
feita, da pornografia? Afinal, o que é literário na pornografia? No julgamento crítico corrente,
a produção literária seria plural, enquanto o material pornográfico seria unívoco. Por isso,
nessa perspectiva, a pornografia seria apenas um subgênero que desqualificaria qualquer
empreendimento literário, já que ficou reduzida a algumas palavras de ordem do tipo faça
isso, faça aquilo e a uma gramática de figuras obscenas que têm tão-somente a intenção de
atender ao “horizonte de expectativa” do leitor.
Querer dominar a excitação sexual do leitor: esse é o ponto, parece-me, que faz a
pornografia fracassar como empreendimento literário. A escrita não resiste à gramática
neutralizada do sexo. Tudo já se sabe, tudo já se espera, portanto, a pornografia se rende a sua
instrumentalização, que, com justiça, poderíamos chamar de “arte culinária”. Limitar a
linguagem pornográfica às funções elementares de comando e de descrição para excitar o
receptor seria efetivamente uma forma de reduzi-la, que ela se torna mero entretenimento.
Assim, não haveria nesse sistema estético nenhum interesse por procedimento literário, a
ponto de haver uma inversão, ou contaminação metonímica, no qual a pornografia torna-se
sinônimo de indústria cultural, sendo o principal instrumento de persuasão desta. Para
redefinir a noção de pornografia é preciso, portanto, perturbar o horizonte de expectativa da
recepção.
2.2 Holocausto das Fadas: uma leitura equivocada
Em Holocausto das Fadas: a trilogia obscena e o camelo bufólico de Hilda Hilst,
Deneval Siqueira de Azevedo Filho aponta algumas razões que fizeram a obra da escritora
fracassar na intenção pornográfica. Mas Azevedo Filho trabalha com uma noção bastante
limitada do que é pornográfico. Em nenhum momento o referido crítico buscou historicizar ou
problematizar a noção de pornografia. Parte da idéia do que ficou convencionado como tal
dentro do contexto da indústria cultural, por isso considera que Hilda Hilst “destempera” a
35
matéria pornográfica. De maneira abrangente, sem avaliar ou fundamentar a complexidade
do gênero que estudava, procura em alguns momentos demarcar, acentuando apenas o lado
não produtivo do fracasso, o distanciamento da literatura de Hilda Hilst da pornografia
comercial. Segundo o pesquisador:
A pornografia lato sensu é um gênero que se passa por regras claras de
funcionamento e por leis internas de relativa simplicidade e transparência. Ao
perceber que nessa produção de Hilda Hilst havia um intelectualismo exacerbado,
uma intenção metapornográfica, quando a autora discute seus objetivos, fazendo um
reclame estrondoso da pornografia enquanto novidade na sua obra, observei que, na
trilogia, a pornografia produto de consumo havia ficado em segundo plano,
perdendo, assim, seu lugar no mercado da indústria cultural (entremeada aos
produtos legitimados e às manifestações de massa).
O autor de Holocausto das Fadas conclui em consonância com essa definição que
a escritora “não consegue provocar o imaginário e a fantasia do leitor”, pois além de fugir a
uma representação realista da pornografia, desorganizando-a, exagera ainda no tom absurdo
que à perversão e ao grotesco. Segundo Azevedo Filho, esses elementos estão
amalgamados por uma narrativa fragmentada, em mosaico, intercalando gêneros, que
desmotivaria, na visão do critico, um possível receptor do texto pornográfico. Não percebe
nem mesmo que o que considera “pedantismo intelectual” e visão preconceituosa de Hilda
Hilst (como no caso citado pelo crítico, do desejo de Clódia em chupar dedos de negros) não
desqualifica sexualmente o texto da escritora, pois o que está em jogo na trilogia é justamente
a multiplicação e a ampliação das possibilidades de troca, que percebemos tanto na dimensão
formal, estabelecida dialogicamentre entre os personagens, quanto na dinâmica entre o texto e
o leitor.
A concepção de Azevedo Filho é fundamentalmente errônea, parece desconsiderar
justamente a potencialidade que os recursos estéticos utilizados por Hilda Hilst teriam para
renovar o gênero. Ao se prender na desqualificação da trilogia hilstiana em relação a um
corpo sistemático, que deveria ser coerente com as regras estabelecidas para a produção da
pornografia, o autor de Holocausto das Fadas não percebe que não foi a escritora, ou a obra
dela, que fracassou na intenção pornográfica, mas foi sim a idéia de uma certa pornografia
que foi colocada em xeque. E, dessa forma, o efeito atingido não foi o de dar o golpe de
misericórdia, opondo literatura e pornografia, relegando o segundo à lixeira cultural, mas sim
o de trazer elementos novos, estranhos ao gênero — ou que em algum momento fizeram parte
dele —, para renová-lo, permitindo-nos redefini-lo, afinal sempre pairou uma imprecisão na
delimitação do que é pornográfico. Na linhagem que Hilda Hilst se encontra, na qual consta
36
nomes como D. H. Lawrence, Henry Miller, Gustave Flaubert, George Bataille, Sade, Anaïs
Nin, James Joyce e até mesmo Shakespeare, entre outros, todos escreveram obras que em
algum momento foram consideradas pornográficas. Azevedo Filho não levou em conta na sua
pesquisa nem a questão histórico-cultural, o que em determinado tempo era considerado
“pornô”, nem avaliou a proposição de Paul Goodman, para quem “a questão não é saber se se
trata de pornografia, mas sim da qualidade da pornografia.”
46
Ao insistir na falaciosa idéia, que a própria Hilda Hilst ajudou a propagar, ou seja,
de que o objetivo da trilogia era ampliar seu publico leitor com uma produção voltada para a
cultura de massa, para vender mais e ganhar muito dinheiro, como os autores de best sellers
47
, Azevedo Filho cai em outro equívoco: analisar a qualidade da obra pornográfica da
escritora em função das intenções do “sistema comunicador”. Segundo o crítico, “ao contar
historinhas absurdas, Hilst quebra a relação entre o produtor da obra e o consumidor, pois não
está gerando mensagem específica, mas seguindo correntes que fazem da sua literatura
obscena um prato cheio de temas escatológicos, extraídos da tradição popular.”
48
Em relação
ao poema lúbrico, não menos jocoso, que Crasso fez para sua paixão, parodiando Iracema, a
virgem dos lábios de mel, de José de Alencar (“Otávia tinha pêlos de mel/ A primeira vez que
me beijou a caceta/ Entendi que jamais seria anacoreta/ Não me beijou com a boca/ Me beijou
com a boceta.”
49
), Azevedo Filho faz o seguinte comentário:
Como o princípio da verossimilhança exclui da literatura tudo o que é insólito, anormal,
estritamente local ou puro capricho da imaginação, a situação descrita no poema traz á luz, na
mistura do sublime com o grotesco, um fato literário (“beijou a boca” x “beijou com a boceta”) de
estilo baixo e irrealista. Ao tentar sofisticar a pornografia”, a autora coloca-a no vazio, pois ela
deixa de ser a matéria-prima para ser apenas mais um elemento constitutivo da narrativa. Esvazia a
narrativa do rigor pornográfico que costuma ter, tanto em nível de produção quanto no consumo, e
na relação entre ambos. O preciosismo vocabular e o excesso desmotivam, então, a recepção, pois a
matéria prima é menosprezada.
50
46
A escritora Susan Sontag destacou esta proposição de Paul Goodman no seu ensaio “A imaginação
pornográfica”. In: A vontade Radical, p. 76.
47
A escritora não abriu mão da qualidade na elaboração dos seus livros pornográficos. Como foi bem observado
por Leo Gilson Ribeiro, em artigo escrito para o Caderno de Literatura Brasileira nº8, dedicado à Hilda Hilst,
somente a literatura de entretenimento, meramente comercial, que se utiliza das repetições e facilidades
determinadas pelo mercado, sem valor intrínseco literário, encontra grande acolhida entre a massa. Segundo
Ribeiro, a massa fica presa ao que “as editoras carimbam como pulp fiction, material escrito de ínfima
qualidade”, contribuindo assim para que as massas não pensem por si próprias. (Caderno de Literatura
Brasileira 8, p.84).
48
AZEVEDO Filho. Holocausto das Fadas, p 48.
49
HILST. Contos d’escárnio, p. 15.
50
AZEVEDO F., DENEVAL S. de. op.cit., p 29.
37
A relação entre o leitor e o texto é muito mais complexa e envolve muito mais
ressonâncias, inclusive no aspecto essencialmente associado à estratégia pornográfica, que
seria o de permitir e demandar a excitação sexual do leitor. Susan Sontag faz uma crítica
contundente da noção empobrecida e mecanicista sobre a intenção de excitar o receptor,
planejada de maneira tática, como se pudesse determinar ou assegurá-la num mesmo ponto.
Múltiplas são as entradas para a excitação. Nada afastaria mais uma produção estética do seu
valor artístico do que a determinação da forma, do lugar e do momento da excitabilidade. Essa
proposição encontra boa acolhida no artigo “A imaginação pornográfica”. Para Susan Sontag:
As sensações físicas involuntariamente produzidas em alguém que leia a obra
carregam consigo algo que se refere ao conjunto das experiências que o leitor tem de
sua humanidade e de seus limites como personalidade e como corpo. A
singularidade da intenção pornográfica é, na realidade, espúria. Mas a agressividade
da intenção não o é. Aquilo que parece um fim é, na mesma medida, um meio,
assustadora e opressivamente concreto. O fim, entretanto, é o menos concreto. A
pornografia é um dos ramos da literatura ao lado da ficção científica voltados
para a desorientação e o deslocamento psíquico.
51
A trilogia de Hilda Hilst contribui também para isto: não deixar o gozo sucumbir à
regulamentação das leis do mercado, como quer a pornografia comercial. A abertura para
várias formas ou vários pontos de excitação sexual seria o desejável quando se implementa
estratégias lúbricas em uma obra pornográfica de qualidade literária. De maneira abrangente,
admitimos que a pornografia pode estar associada concomitantemente com a lubricidade e
com a perturbação, quer seja estética, quer seja psíquica mesmo que se tenha destacado o
primeiro aspecto e renegado ao segundo a configuração que a pornografia passou a ter no
contexto da mundialização dos bens culturais.
2.3 A mudança no horizonte de expectativa: roubo, infância e pedofilia em O caderno
rosa de Lori Lamby
O roubo é o mecanismo, segundo Barthes, capaz de ameaçar a ideologia burguesa,
que hoje não existe nenhum lugar da linguagem exterior a ela.Nossa linguagem vem dessa
ideologia, a ela retorna e nela fica fechada. Por isso, “a única reposta possível não é nem o
enfrentamento nem a destruição, mas somente o roubo: fragmentar o texto antigo da cultura,
51
SONTAG, op.cit, p. 52.
38
da ciência, da literatura e disseminar-lhe os traços segundo fórmulas irreconhecíveis, da
mesma maneira que se disfarça uma mercadoria roubada.”
52
Em uma leitura possível, O caderno rosa é produto de uma subtração aos escritos
do pai reelaborados segundo a imaginação infantil de Lori Lamby. O livro é construído,
dependendo do ponto de vista em que se queira perceber a narrativa, a partir de um inocente
roubo executado pela menina ou de vários plágios forjados através dela pelo pai escritor.
Nessa segunda possibilidade, haveria uma transformação surpreendente, que se converteria,
por fim, o que seria um diário redigido por Lori Lamby, em um romance idealizado pelo pai
da menina.
De qualquer forma, a conclusão a que chegamos sobre o processo criativo é que
“cada coisa pertence a quem a torna melhor”.
53
É sob essa lógica que se constrói o Caderno
rosa: o melhor, neste caso, seria o defeito, o fracasso e o inacabado representados por Lori
Lamby ou tornados ficção através dela. Assim, mesmo que permaneça a dúvida sobre a
autoria fictícia do texto, sabemos que é sobre o corpo da menina que se constrói a narrativa.
De fato, ainda que ela seja somente uma figura da ficção do escritor, do imaginário do pai que
escreve um romance, é no corpo dela que se localiza o locus de enunciação, ou seja, é Lori
Lamby que faz o texto melhor. Não é a perversão polimorfa da criança que é colocada em
proveito do discurso pornográfico, como é a infância, na enunciação do texto, a forma a ser
explorada em sua própria limitação no domínio da linguagem e do sexo. Cabe à menina
desestabilizar a narrativa.
O diário de Lori tangencia, em qualquer dos caminhos de significação do texto,
duas transgressões condenáveis moralmente, dois crimes: a pedofilia e o plágio. De um lado,
em uma certa perspectiva moral, a menina é vítima (ainda que aos seus olhos seja puro
deleite), de outro lado, ela é parte ativa. Se no final a questão da pedofilia pode ser atenuada,
pois existiu no plano da imaginação, ressalta-se então o outro crime: o plágio. Parece-nos
crível que uma menina de oito anos possa escrever um texto pornográfico furtando de um
outro o desvelamento do cenário sexual e, sobretudo, usurpando de alguém o conhecimento
da linguagem. Mas como observa Barthes, todos os que estão fora do Poder, aqueles que se
encontram na margem, estão constrangidos ao roubo de linguagem. Segundo o semiólogo,
52
BARTHES. Sade, Fourier, Loyola, p. XVIII.
53
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p.127.
39
“quando nenhuma língua conhecida está à nossa disposição, é preciso que a gente se resolva a
roubar uma linguagem — como se roubava, outrora, um pão”.
54
Em uma leitura possível, é Lori que relata, ou fantasia, suas aventuras sexuais
com o consentimento e o proxenetismo dos pais. Porém, ainda que a narrativa seja
fraudulenta, como saberemos no final, troca-se uma transgressão por outra, vai-se da pedofilia
para o plágio. Não se foge ao crime. Somos informados através da carta que Lori escreve aos
pais, internados numa casa de repouso, depois da crise gerada pelo seu Caderno. Tudo que ela
conta é falso, é fantasia, invenção com intenção de fazer um livro que seja lido e vendido para
muita gente, pois o pai, apesar de ser um escritor genial, vivia ressentido porque ninguém
comprava o que ele escrevia. O livro escrito por Lori não é resultado de um plágio dos
escritos do pai, mas também de suas leituras de Georges Bataille, Henry Miller e David
Hebert Lawrence, além de outros livros, revistinhas e filmes pornográficos que a garota pega
no quarto do pai. A menina realiza o projeto pornográfico paterno, por isso o plágio acaba
sendo também um ato de amor, sem deixar de ser uma transgressão.
2.4 O caderno rosa de Lori Lamby: os bastidores da linguagem
“A idéia de infância como experiência”, e não apenas como idade cronológica ou
psicológica, é proposta por pelo filósofo italiano Giorgio Agamben como uma potência
corrosiva que permite ao indivíduo desviar ou atrasar seu destino, reproduzindo-se a si mesmo
regressivamente. Para o filósofo, rememorar a infância é o nome e a tarefa do pensamento, o
que nos remete à idéia de um devir só possível pelas formas inacabadas, do que ainda não está
pronto, que estará sempre incompleto. Em consonância com esse pensamento, o crítico Alcir
Pécora, organizador das obras de Hilda Hilst para a Editora Globo, atenta para o aspecto
inacabado e imperfeito do Caderno, um “devir criança”, determinando o próprio ato de
enunciação. Assim, quer seja o livro a realização do projeto literário do pai, quer seja de Lori
Lamby, o que sobressai é a força criativa de um estado intermediário associado, portanto, à
meninice. Vale destacar que etimologicamente a palavra infância advém do latim infantìa, ae,
ou seja, dificuldade ou incapacidade de falar, mudez. Como bem destacou Pécora:
Neste ponto, cabe observar que tal característica desdobrável e fecundante da obra é
possível justamente pela forma rascunhada e imperfeita do “caderno”, que
permanece ainda aquém do “livro”. Isto é, “caderno evolui como forma de vida
imperfeita nalgum limbo ou soleira em que o criador ainda se move sem ter de fazer
54
BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p.185.
40
entrega de sua obra ao editor. Depois, ele apenas rasteja. O caderno Rosa é tão
extraordinário porque se escreve na antecâmara ou no corredor que inexoravelmente
apenas pode conduzir ao Livro Vermelho, isto é, ao livro milhares de vezes
escrito do comércio pornográfico. Toda potência corrosiva do gênero se demora ali,
naquele corredor de luz intermitente; deposita-se ali, naquele estágio larvar, no qual
um destino ordinário se suspende por um bravíssimo instante, mas breve. Dar mais
um passo significará terminar o livro. Já não restará então nenhum traço de
resistência do caderno incompleto ao livro feito, que inclusive pode-se dar ao luxo
de tomar o seu nome e estampá-lo na capa. Nesta linha interpretativa o fato de a
autora do caderno apresentar-se como uma criança é fundamental, pois evidencia o
estado de permanência aquém da lei, da natureza hipostasiada, da letra, inclusive a
de câmbio, para a qual, no entanto, está fadada.
55
Reforçando a idéia de incompletude, de inacabado, de um texto em devir, a
paternidade fictícia do livro é incerta e imprecisa. A própria questão da autoria é uma ficção
em O caderno rosa de Lori Lamby, ou melhor, o escritor é uma produção interna da narrativa
em todos os volumes da trilogia, é a figura responsável pela metapornografia. O fantasma da
originalidade ronda tanto o pai escritor, quanto a sua filha que ficticiamente teve seu diário
editado. Diante da oferta do personagem Tio Abel, que prometeu trazer uma história para
inspirar a escrita do seu diário, a garota recusa em princípio, pois não quer copiar ninguém,
seu caderno deve conter somente as suas experiências. Acaba cedendo, entretanto, à
contribuição do perverso personagem, que não só lhe paga pelos favores sexuais, como
também dá conselhos, auxilia na sua “educação sentimental”, explica os vernáculos não
compreendidos pela menina e ainda lhe manda “O caderno negro”, além das várias cartas
lascivas que são incluídas na narrativa.
Em outro momento, são incorporadas no texto-diário as brigas dos pais da garota,
o que dificulta o progenitor escrever um livro de bandalheira, como quer o editor Lalau.
Através do desentendimento do casal, percebemos a relação intertextual da narrativa em
construção. A esposa desejava que o marido trabalhasse a ngua como Gustave Flaubert, que
fizesse uma obra como Madame Bovary ou que escrevesse do jeito de Henry Miller, a quem
ela admirava por ser um “encantador sacaneta” e um “lindíssimo debochado”, ressaltando que
este ficou rico com seus livros pornográficos. No confronto que se seguia, o marido-escritor,
alter ego da própria escritora Hilda Hilst, solta todo o seu ressentimento: “eu trabalhei minha
língua como burro de carga, eu sim tenho uma obra, sua cretina.”
56
. Mesmo o pai de Lori,
portanto, considerado um gênio por seus pares, segundo comentário de sua esposa, é
perseguido pela angústia da influência. Gustave Flaubert, Henry Miller e George Bataille são
55
PÉCORA, A. “Hilda Hilst: Call for paper”. In: Germina: Revista de Literatura e Arte. Disponível em:
<http://www.germinaliteratura.com.br>
56
HILST. O caderno rosa de Lori Lamby, p. 69.
41
sempre evocados, que não o antecederam no empreendimento erótico, como também são
os parâmetros para a avaliação da qualidade literária do texto obsceno. Diante do temor da
influência, da busca impotente da originalidade, Michel Schneider observa, não obstante, um
movimento criativo:
A não ser que se copie Madame Bovary, da primeira à ultima linha, e que se cole em cima o
próprio nome, o que seria não um plágio, mas uma farsa, toda imitação comporta em graus
diversos, defasagens, invenções estilísticas, desgarres semânticos em que se desenha um novo
desenho, aquele que o “plagiário” não ousa escrever, em nome próprio, sem entremear de
empréstimo à guisa de testemunho. Testemunho: de quê, senão do domínio da língua que ele espera
atingir, através de uma rede mimetismos incessantemente ameaçada por dentro?
57
2.5 Profanar o improfanável
Na época do lançamento de O caderno rosa, houve uma grande repercussão nos
principais cadernos de cultura do país. O livro provocou uma celeuma entre os admiradores de
Hilda Hilst e deixou a crítica especializada diante de um impasse: como avaliar o projeto
pornográfico da escritora? Em entrevista, a autora de O caderno rosa de Lori Lamby
sentenciou: “a santa tirou a saia. Estou conseguindo o que pretendi, ou seja, chamar a atenção
para o meu trabalho. Encaro isso como um ato político de um tipo diferente. Ato político não
é só sair por aí com bandeiras ou uma metralhadora.”
58
Até então conhecida e admirada por um restrito grupo de leitores, Hilda Hilst
obteve um êxito comercial modesto, mas ainda assim, inesperado. Os exemplares, apenas mil,
editados pela pequena editora independente, Massao Ohno, esgotaram-se em pouco mais de
um mês, fato inédito para uma escritora pouco lida e desconhecida do grande público. Nova
tiragem foi colocada no mercado em seguida. Por ironia, O caderno rosa tinha sido recusado
pelas grandes editoras. Antes mesmo do lançamento do livro, a polêmica já estava
instaurada
59
. A escritora aproveitou a controvérsia para politizar a questão, trazendo um
57
SCHNEIDER, op.cit, p.134.
58
HILST, apud PRADO, 1990,“Lori Lamby, o ato político de Hilst”. Caderno 2 . O Estado de São Paulo, p.4.
59
A propósito da futura circulação dos três livros da escritora, Leo Gilson Ribeiro deu o tom da polêmica,
fazendo o seguinte comentário no Jornal da tarde de de 04/03/1989: “Em sua fazenda perto de Campinas, a
escritora paulista Hilda Hilst ultima os preparativos para o lançamento, pela Editora Massao Ohno, de seus
últimos textos. Um volume é de poesias, Amavisse, que evoca, entre outros temas, o tempo do verbo que em
latim significa ‘ter um dia amado’. As duas obras seguintes causarão surpresa: O caderno rosa de Lori Lamby
quer, abertamente, ser um livro de pornografia caipira, explorando o tabu da sexualidade infantil, uma ninfeta-
Lolita do interior precoce, e no entanto, ingênua, com 27 ilustrações do magnífico desenhista e humorista do
Brasil, Millôr Fernandes. O terceiro livro, Historias de escárnios, textos grotescos (sic), a meu ver, mistura
pornografia com citações eruditas, tudo num tom de deboche e galhofeiro”. O crítico acreditou realmente que a
42
problema para a crítica literária e, ao mesmo tempo, desapontando seus admiradores,
incomodando editores e atacando os escritores que produziam o que ela chamava de
“literatura fácil”. Sob o discurso de ganhar dinheiro denegrindo a língua e a literatura, emerge
sub-repticiamente o ressentimento e o ato de profanação de Hilda Hilst.
Como empreendimento estético, que reverbera politicamente, a escritora desloca
também a própria pornografia do seu lugar sagrado pela indústria cultural, importunando a
gramática sexual através de dois atos de profanação executados em O caderno rosa de Lori
Lamby. Primeiro, sexualiza perversamente um paraíso intocável, que é o universo infantil,
considerado pelo senso comum como ingênuo e assexuado.Por fim, expõe de forma ficcional
um crime capital para a literatura, que é o plágio, o roubo da idéia de outrem executado pela
menina. Desloca, assim, tanto a criança quanto a pornografia do seu lugar sagrado,
contaminado-os reciprocamente.
Para o filosofo Giorgio Agamben, profanar é restituir ao livre uso, e à propriedade
dos homens, aquilo que foi separado pela consagração. É uma tarefa política por excelência
dentro do contexto capitalista em que vivemos, no qual cada coisa é exibida separada de si
mesma pelo espetáculo e pelo consumo, impedindo-nos um uso de fato. Segundo Agamben,
o que não pode ser usado fica consignado ao consumo ou à exibição espetacular. Os
dispositivos capitalistas nos impedem o uso, a ponto de na sua configuração religiosa, em sua
fase extrema de espetacularização do consumo, esse sistema econômico aponta, através da
pornografia, para a criação de algo absolutamente improfanável. Contudo, o autor propõe que
a profanação do improfanável seja uma tarefa política da geração por vir. Mas isso requer
procedimentos especiais: é preciso arrancar dos dispositivos capitalistas o uso que eles
haviam capturado. Para tanto, não é suficiente abolir, cancelar ou transgredir os dispositivos
de normatização, há que torná-los inoperantes.
Para tornar a pornografia sem efeito no regime sagrado do capitalismo, é preciso
antes resgatar o seu conteúdo esquecido, deixado de lado pelos dispositivos econômicos. No
caso da trilogia hilstiana, não bastava fazer uma crítica à pornografia, era preciso fazer um
movimento de retorno afirmativo a ela. Assim, nomear o que escrevia de pornográfico foi o
primeiro gesto profanatório da escritora. Categoricamente, é como ato político que Hilda Hilst
vai nomear a sua “doce e terna e perversa bandalheira” de pornografia.
escritora abandonava a literatura. Neste mesmo jornal e no mesmo dia, Hilda Hilst concedeu uma entrevista que
saiu publicada segundo Ribeiro “às vésperas dos três lançamentos próximos que marcam a despedida da
Literatura e a incursão (dela) num nero de pornografia cheia de humor, inédita em toda a sua carreira. Uma
trajetória percorrida 40 anos quase, criando uma vigorosa dramaturgia, uma belíssima poesia e sobretudo a
prosa mais resplandecente e abissal do Brasil ou talvez mesmo da língua portuguesa, desde a criação igualmente
genial de Guimarães Rosa.”
43
Poder-se-ia desconsiderar o nome, duvidar da sua justeza, da propriedade do
termo para qualificar o trabalho da escritora.Entretanto, a ação política é desencadeada a partir
do momento em que Hilst nomeia a sua criação de pornografia. Em princípio, para a escritora,
esse era um nome, sem uma definição conceitual clara, assim como se estivesse inflado de
conteúdo informe ou esvaziado de significação precisa, o que no mesmo. Hilst ressaltava
em entrevistas publicadas na época, a imprecisão da noção de pornografia:
Escrever pornografia, ou melhor, sois dizent pornografia, porque ninguém sabe o que é isso
mesmo... Você não pode dizer que uma coisa é suja, imunda, sem falar de você mesmo, porque
tudo depende do seu olhar. O olhar que um quadro, que um livro é que se diz ou se sente
pornográfico. Por exemplo, se uma criança um ato sexual ela pode simplesmente não achar
nada, pode achar bonito, pode pensar que estão brincando... Então é difícil dizer o que é
pornografia. Eu sei que os meus amigos dizem que fracassei no Teste de Colo.
60
Contudo, seu trabalho literário se viu chamado a responder ao gênero
pornográfico ou, no mínimo, a construir um diálogo possível com o referido gênero. A
maioria dos críticos optou por chamar a ficção da escritora de “erótica” ou “obscena”. Mas a
escritora já havia comprometido a sua produção literária com a linguagem obscena, à primeira
vista, estabelecendo uma relação espúria. Parecia que profanava assim seu trabalho literário
nomeando-o de pornografia. O artigo da jornalista Fernanda Scalzo, publicado logo após o
lançamento de O caderno rosa, sintetiza as primeiras discussões sobre o projeto literário da
escritora e as incompreensões em torno dele. O título é sintomático: “Hilda Hilst vira
pornógrafa para ser conhecida e vender mais.” A escritora diz à jornalista que decidiu se
tornar uma pornógrafa de primeira linha para se livrar da maldição de não ser lida. E
acrescentou com humor: “você sabe que a pornografia é difícil de escrever, ainda mais aos 60
quando você esqueceu praticamente tudo.”
61
Certa perplexidade pautou os comentários críticos nos principais cadernos de
cultura, pois a autora de O caderno rosa de certa forma profanava um espaço sagrado, o
literário. Hilst realmente maculou esse lugar. O ato de profanação que ecoou na mídia e entre
seus leitores serviu, num primeiro momento, para sua obra ser conhecida por um público
maior. No entanto, a provocação da escritora causou, como contrapartida, uma certa
indignação em muitos de seus admiradores, afinal não se transgride um espaço impunemente,
não obstante, muitas perguntas vieram do incômodo criado por Hilda Hilst. Nas possíveis
respostas, um trabalho arqueológico pôde ser feito, para não abrir as possibilidades da
60
HILST. Entrevista concedida a Araripe Coutinho, In: Revista O Capital, [s.p.].
61
SCALZO, 1990, “Hilda Hilst vira pornógrafa para ser conhecida e vender mais.” Folha de S. Paulo, [s.p.].
44
pornografia, que foram sedimentadas no contexto da indústria cultural, como também
deslocar a pornografia de sua gramática. Como dispositivo capitalista, a normatização do
pornográfico, ao mesmo tempo em que determina a sua forma do seu consumo, descarta o que
não foi experimentado para não se correr risco. Para os pensadores críticos da indústria
cultural, no contexto da massificação, “o prazer acaba por se congelar no aborrecimento,
porquanto, para continuar a ser um prazer, não deve mais exigir esforço e, por isso, tem de se
mover rigorosamente nos trilhos gastos das associações habituais”
62
.
No primeiro momento o se aprofundou a discussão da aplicação conceitual dos
termos erótico, obsceno e pornográfico à trilogia de Hilda Hilst aos livros O caderno rosa de
Lori Lambi, Contos d’escárnio: textos grotescos e Cartas de um sedutor. A indignação
corrente se restringia a questionar como uma escritora séria, que havia publicado obras de
reconhecido valor literário, elogiada por seu trabalho singular com a linguagem, reconhecida
entre os maiores escritores da língua portuguesa, admirada por muitos intelectuais e lida
somente por um seleto público exigente, como poderia se render às facilidades da pornografia.
Julgavam não ser possível fazer literatura com e para o baixo-ventre sem cair nas repetições
enfadonhas, nos estereótipos e obviedades atribuídas ao gênero pornográfico.
Como a poesia satírica dos trovadores, a pornografia, nessa perspectiva, é
considerada de mau gosto porque vai de encontro com a arte sutil do eufemismo. Com efeito,
ambas colocam em cena a sexualidade explorando a linguagem do baixo-ventre, sendo,
portanto, alvo dos mesmos preconceitos. Em Verso, reverso, controverso, Augusto de
Campos observa que:
A poesia do realismo amoroso tem sido a mais sacrificada por práticas eufemísticas
ou puramente omissas que erigiram em torno dela uma espécie de tabu. Mas não
dela. A sátira, em geral, por obra de uma série de distorções pretensamente
moralísticas, passou a ser considerada por muitos um gênero “maldito” ou “menor”,
apêndice indesejável da criação poética. Mormente quando incorpora aquela
categoria de vocábulos tão comum ao nosso cotidiano viver-a-vida e que
curiosamente se distingue das demais palavras da tribo por um sufixo aumentativo e
por uma mudança de gênero: o palavrão, tolerado na prosa mas prescrito em poesia.
63
Gregório de Matos foi um dos que também teve os versos licenciosos interditados.
Segundo Augusto de Campos, os versos considerados “sujos” do escritor do período barroco
brasileiro ficaram nos arquivos da Academia Brasileira de Letras, amputados assim da edição
62
HOKHEIMER; ADORNO. Dialética do Esclarecimento, p.128.
63
CAMPOS. Verso, reverso, controverso, p. 108.
45
de suas obras. Campos ironiza que os versos do escritor conhecido como “Boca do Inferno”
permaneceram nos arquivos da Academia somente para a satisfação de alguma curiosidade
indiscreta
Por causa deste tipo de interdição, a pornografia de Hilda Hilst foi considerada
uma afronta à “alta literatura”. Nos jornais impressos apareceram as primeiras repostas da
crítica literária, e mesmo de jornalistas especializados na área, contrapondo-se à indignação
crescente. Eliane Robert Moraes abre a discussão em defesa do projeto pornográfico da
escritora com o artigo: “A obscena senhora Hilst poemas eróticos disfarçam uma fina
reflexão sobre a linguagem. A pesquisadora, assim como Campos, percebe que há um
preconceito que impede a análise da qualidade de uma produção pornográfica em termos
estritamente artísticos. Segundo Moraes, o silêncio em torno desse tipo de gênero tem uma
longa tradição, decorrente, sobretudo, do pressuposto de que a temática obscena por si
desqualifica a qualidade de uma obra. Opta, então, por enquadrar o primeiro livro da trilogia
de Hilda Hilst como obsceno e erótico, para desvinculá-lo do que considera “mera
pornografia”.
Não tenhamos dúvida: O caderno rosa de Lori Lamby é, sim, um livro obsceno e,
como tal, passível de ser catalogado ao lado de textos afins. Seria, entretanto, um
equívoco rotulá-la como “mera pornografia” de apelo comercial, do tipo Adelaide
Carraro ou Cassandra Rios. [...] Entendamos, pois: O caderno rosa inscreve-se
numa das mais nobres tradições de literatura erótica, aquela que, para citar apenas
alguns autores do nosso século, passa pela obra de Guillaume Apollinaire, Pierre
Loüys e Henry Miller.
64
A postura que a crítica especializada assume pode ser sintetizada na irônica
tautologia que dá título ao artigo de Alcir cora: “Não é pornográfica a pornografia de Hilda
Hilst”.
65
Segundo o pesquisador, além da trilogia contrariar as regras da literatura
pornográfica comercial, a crueza da sua escrita não tem como efeito a excitação do leitor, pois
falta-lhe a sensualidade lúbrica forjada pela simulação da realidade. Portanto, não seria
pornografia o que Hilda Hilst escreveu, a não ser que se redefina o termo. O crítico Jorge Coli
corrobora essa idéia no artigo “Lori Lamby resgata paraíso perdido da sexualidade”. Para
Coli, “Em todo caso, se a autora Hilda Hilst, teve o mesmo projeto que seu personagem
escritor, o pai de Lori Lamby fazer um livro pornográfico fracassou inteiramente.
Porque o contar bandalheiras se transforma, de imediato, pelo poder incontrolável da arte, em
64
MORAES, 1990, op.cit., [s.p.].
65
PÉCORA. Não é pornográfica a pornografia de Hilda Hilst.Correio popular, [s.p.].
46
outra coisa.”
66
Coli afirma que a qualidade artística é inimiga da pornografia. De qualquer
forma, nos artigos críticos, Pécora, Moraes e Coli desvinculam a prosa da escritora da
pornografia comercial, considerando-a como “obscena” ou “erótica”. E no qüiproquó gerado
por jornalistas e críticos, a própria escritora apresentou a sua improvável distinção entre
pornografia e obsceno:
A pornografia tem muito a ver com o indireto, com as coisas que não são ditas
claramente, sabe, por exemplo, Tristão e Isolda têm tudo a ver com a pornografia
também [...]. Se você pensar bem na história, são histórias todas assim por baixo do
pano; e o obsceno é o direto, e o obsceno pode ser cheio de luz, audácia e tudo o
mais; ele não pode ser é extremamente perturbador; o que eu acho que aconteceu no
meu caso, que foi extremamente perturbador, e é por isso que as pessoas estão ainda
de uma certa forma rejeitando, porque não é o obsceno; ah, por exemplo o Henry
Miller é um obsceno maravilhoso, cheio de luz, ele não é pornográfico, ele é
obsceno; pornográfico seriam essas pequenas novelas policiais, que aparecem assim
embrulhadas e tal, então tem diferenças muito [...]. O erótico tem tudo a ver com o
amor [...]. É a sensualidade amorosa, é quando você está apaixonado, não é? (sic)
67
2.6 Pornografia e erotismo: possibilidades de definição
A despeito da imprecição, não se aprofundou a discussão em torno da aplicação
conceitual dos termos erótico, obsceno e pornográfico à trilogia da escritora. Procurou-se
apenas distinguir a sua produção literária do que é comumente chamado de pornografia. No
Brasil, antes da repercussão em torno das obras pornográficas de Hilda Hilst, os trabalhos
seminais em torno da distinção entre pornografia e erotismo foram desenvolvidos, de forma
mais aprofundada, pela pesquisadoras Eliane Robert Moraes e Lúcia Castello Branco. Ambos
iniciados na área de estudos superiores, foram convertidos posteriormente em livros a convite
da Coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense
68
. Junto com Sandra Maria Lapeiz, a
professora de estética, Eliane Robert Moraes, buscou responder para a referida coleção o que
seria pornografia. As pesquisadoras focaram o estudo na forma como a pornografia é
apresentada no espaço público e trataram dos valores que a sociedade lhe confere. Cautelosas,
as autoras de O que é pornografia ressaltaram naquele momento — a primeira edição saiu em
66
COLI. “Lori Lamby resgata paraíso perdido as sexualidade”. Folha de S. Paulo, [s.p.].
67
HILST. Depoimento proferido na Semana de Estudos de Letras e Lingüística, [manuscrito].
68
As autoras do livro O que é pornografia contam que iniciaram a reflexão a partir da parceria na pesquisa “A
fala perversa: um estudo do discurso narrativo erótico”, financiado pela fundação Carlos Chagas. Já Lúcia
Castello Branco desenvolveu em O que é erotismo as questões que já estavam presentes na sua dissertação de
mestrado, convertida posteriormente em livro sob o título Eros travestido: um estudo do erotismo no realismo
burguês brasileiro.
47
1984 a relatividade do próprio conceito de pornografia, lembrando um aforismo atribuído
ao escritor francês Alain Robbe-Grillet: “pornografia é o erotismo dos outros”.
Moraes e Lapeiz além de abordar as variações de critérios que julgam o caráter
pornográfico de uma obra, conforme a censura de cada época, indicam que a noção de
pornografia, erotismo e obsceno estão imbricadas nas produções artísticas dos discursos sobre
a sexualidade. Como a intenção da coleção é tratar de forma breve e didática tópicos
complexos, as autoras do livro trataram mais especificamente do onde a pornografia está do
que objetivamente da sua definição. Talvez, por isso, a questão do valor artístico e literário de
uma produção pornográfica, ou mesmo uma leitura crítica do referido gênero no contexto da
indústria cultural, foi abordado apenas preliminarmente. Ainda assim, ao tratar da relação
entre pornografia e diversão, as pesquisadoras fazem a crítica do prazer domado e
homogeneizado.
Pelo que se pode constatar, muito do prazer tem sido movido a pilha, bateria, ou
então pregado a modelos e receitas. Boicotando nossa imaginação, cortando-nos as
“asas” em nome moral, controlando um tipo de consumo estereotipado, os padrões
acabam por se impor. E justamente ali, no reino do individual por excelência, a
sexualidade: reprimindo-a e estimulando-a.
69
A professora Lúcia Castello Branco, no mesmo período do estudo supracitado,
também abordou a distinção entre pornografia e erotismo. A pesquisadora adverte que ao
longo da história o conceito de pornografia tem sido manipulado a partir de uma noção de
moralidade imprecisa e ambígua. Branco cita como exemplo uma definição feita pela justiça
inglesa do século XIX, que considerava pornográfico os textos que fossem escritos com o
único propósito de corromper a moral dos jovens, apresentando um teor capaz de chocar os
sentimentos de decência de qualquer mente equilibrada. A pesquisadora observa que toda a
arte que fosse “chocantee qualquer assunto ou imagem que exibissem uma cena sexual, ou
contrariasse a moral vitoriana, eram considerados pornográficos. Segundo a autora de O que é
erotismo:
São, portanto, perigosas e parciais quaisquer tentativas de compreensão e análise da
pornografia que não contextualizem o fenômeno, ou seja, que não considerem os
valores, as idéias e as normas de conduta em vigor no grupo social e no momento
histórico em que determinada obra ou determinado comportamento foram
considerados pornográficos.
70
69
MORAES; LAPEIZ. O que é pornografia, p. 14.
70
BRANCO. O que é erotismo, p.72.
48
A legislação brasileira, em decreto de 1970, também vai censurar a pornografia,
demarcando-a como toda e qualquer publicação que explorasse a sexualidade, contrariando
assim a moral e os bons costumes. Os dois estudos citados se afinam então neste ponto: que a
noção de moral e decência depende de circunstâncias históricas, pois quase sempre está
associada com a subjetividade de quem detém o poder, encarregando-se assim por definir,
julgar e condenar o que é indecente, imoral, desviante.
Tanto as autoras de O que é pornografia quanto Lucia Castello Branco criticam a
distinção falaciosa que associa o erotismo ao que é velado e a pornografia ao que é explícito,
pois o argumento que o sustenta é puramente moralista. Ambas concordam que é frágil a
oposição que situa a arte como algo elevado e nobre e a pornografia como algo muito baixo,
sem qualidade, simplesmente por conter a descrição do ato sexual e exibição dos genitais.
Contudo, apesar do esforço em estabelecer uma distinção rigorosa entre erotismo e
pornografia, a autora de O que é erotismo trabalha os termos como oposição binária. Branco
explora equivocadamente a etimologia da palavra pornografia. Segundo a pesquisadora, o
aspecto comercial e consumista, associado ao material pornográfico após o fenômeno da
industrialização, se encontrava de forma latente na palavra grega pornos (prostituta), pois
era derivado, conforme pensa, do verbo pernemi, que significa vender.
À primeira vista, essa definição com base na etimologia da palavra parece se aplicar
apenas à pornografia tal como ela é veiculada nos dias de hoje, como material de
consumo, visando exclusivamente à comercialização e ao lucro. No entanto, se
entendermos a noção de comércio em profundidade, veremos que essa definição
pode se aplicar à pornografia em toda sua história, e que é exatamente com base
nesse aspecto, o comercial, que é possível estabelecer alguns traços distintivos entre
erotismo e pornografia.
71
O filósofo George Bataille oferece, porém, uma leitura mais instigante, e mesmo
mais pertinente, para o termo pornos, na acepção de prostituição. Ao contrário do que pensa
Branco, a idéia comercial associada ao termo somente caracteriza a prostituição tardia ou
moderna. A prostituição é diretamente associada a uma prática feminina de se oferecer como
objeto de desejo do homem, o que verificamos pelo cuidado que ela dispensa aos seus
enfeites, pela preocupação que ela tem com sua beleza. O autor de O erotismo destaca o
aspecto da dádiva associado a essa prática.
71
Ibidem, p.74.
49
É verdade que certas mulheres não reagem fugindo: oferecem-se sem reservas, elas
aceitam ou mesmo solicitam os presentes sem os quais seria difícil tornar-se um
objeto de procura. No início, a prostituição é apenas uma consagração. Certas
mulheres tornavam-se objetos no casamento, elas eram instrumentos de um trabalho
doméstico, particularmente na agricultura. A prostituição fazia delas os objetos do
desejo masculino: esses objetos, em todo caso, anunciavam o momento em que, no
amplexo, não havia nada que não desaparecesse, deixando subsistir a
continuidade convulsiva. O primado do interesse na prostituição tardia, ou moderna,
deixou esse aspecto à sombra. Mas, se no início a prostituta recebeu somas em
dinheiro ou coisas preciosas, tratava-se de um dom: ela empregava os dons que
recebia nas despesas suntuárias e nos enfeites que a tornavam mais desejável.
Assim, ela aumentava o poder que tivera desde o início de atrair os dons dos homens
mais ricos. A lei dessa troca de dons não era a transação mercantil. O que a moça
fora do casamento não pode abrir a possibilidade de um uso produtivo. O mesmo se
pode dizer dos dons que a consagram à vida luxuosa do erotismo. Essa espécie de
troca, mais que para a regularidade comercial, abria-se para a desmesura: ela podia
consumir a riqueza até o fim, ela podia consumir a vida daquele em quem ela
provocava o desejo.
72
Em outro momento,
Lúcia Castello Branco vai enfatizar ainda a relação da
pornografia com a indústria cultural. Segundo a ensaísta, o prazer que a pornografia
proporciona está diretamente associado com a ideologia dominante e com a forma subliminar
que o mercado, no contexto da mundialização cultural, doma a vontade, o desejo e o gozo. A
percepção adorniana de que a indústria cultural logra seu consumidor ao oferecer o objeto
sexual produzido em rie para domesticar o gosto e arrefecer o desejo dentro de moldes
desejáveis, encontra a devida abordagem no livro O que é o erotismo da pesquisadora.
Contudo, tal enfoque é construído para sustentar a oposição binária que acaba por reforçar.
Na perspectiva adorniana, a pornografia é um dos adjetivos da indústria cultural,
na qual se evidencia a degradação da arte. Nesta concepção, “as obras de arte são ascéticas e
sem pudor, a indústria cultural é pornográfica e puritana. Assim ela reduz o amor ao romance,
e, uma vez reduzido, muita coisa é permitida, até mesmo a libertinagem como uma
especialidade vendável em pequenas doses e com a marca comercial ‘daring’ [ousado].”
Segundo Adorno, na indústria cultural “oferecer-lhes algo e ao mesmo tempo privá-las disso é
a mesma coisa. É isso o que proporciona a indústria do erotismo. É justamente porque nunca
deve ter lugar que tudo gira em torno do coito”
73
.
Em sintonia com esse pensamento, Branco percebe que a pornografia é uma
modalidade utilitária do gozo, ao contrário do erotismo, que seria um fenômeno realmente
poderoso e subversivo, pois proporciona um gozo em si mesmo, inútil, o prazer pelo prazer,
72
BATAILLE, 2004, op. cit., p. 208.
73
HOKHEIMER; ADORNO, op.cit., p. 131- 132.
50
como requer a arte. Conclui, portanto, que o erotismo corresponde a uma modalidade não
utilitária de prazer exatamente porque propõe o gozo como fim em si, enquanto a pornografia
estaria sempre vinculada a outros objetivos, pois nela o prazer depende do pacto com a
ideologia que ela veicula. Essa oposição abona a própria separação que a pesquisadora
estabelece por fim entre arte e pornografia: de um lado, destaca o caráter “inútil” e “perverso
da arte”, de outro, o utilitarismo do material pornográfico. Na sua concepção:
A arte sustenta a realização do prazer pelo prazer, seu objetivo máximo é o gozo
erótico. Todas as vezes que uma obra de arte procura inculcar valores em detrimento
de seu caráter prazeroso, erótico, ela corre risco de desembocar em outros territórios,
como o panfleto (quando o objetivo de difundir uma ideologia política supera o
objetivo estético), ou o da pornografia, entre outros.
74
Em movimento contrário, Eliane Robert Moraes procurou dissipar a distinção
entre erótico e pornográfico, ressaltando o caráter filosófico e a alteridade que devem ser
levados em conta ao se avaliar a produção em torno do baixo material e corporal.
Principalmente nos seus estudos posteriores das obras de Marquês de Sade, Georges Bataille,
Guillaume Apollinaire, Pierre Louÿs
75
, a pesquisadora vai valorizar o grau de perturbação da
obra pornográfica. Assim, ao invés de insistir na polarização, Moraes vai operacionalizar a
noção de erotismo, em consonância com a definição de Bataille, voltando-se para o
desdobramento do conceito, quando este implica as experiências radicais em torno da
violência, da bestialidade, da dissolução, do sadomasoquismo, entre outros aspectos extremos
e excessivos da existência humana.
No ensaio que publica em 1995, no livro Literaterras, Branco também avança para
uma outra idéia de pornografia a partir da concepção de uma “retórica do gozo”, baseando-se
principalmente em O prazer do texto, de Roland Barthes. Esclarece então que o que vem
chamando de pornografia refere-se tão-somente à escrita pornográfica “oficial”, veiculada
pela indústria cultural, aquela que considera ter espaço garantido até mesmo nos regimes
repressivos. Doravante, revigora a noção de pornografia seguindo o percurso de uma grafia do
gozo, que ao contrário do comércio sexual, visasse exatamente o oposto, ou seja, o
antiutilitarismo. A subversão do gozo no espaço literário estaria em se permitir à escrita o
excesso, a extravagância, dissolvendo assim as metáforas, deslocando imagens, descendo ao
74
BRANCO, op.cit., p. 75.
75
Além dos importantes estudos acadêmicos sobre a obra de Marques de Sade e Georges Bataille, dos prefácios a
importantes livros pornográficos e dos vários artigos publicados em jornais e revistas sobre os escritores
libertinos e a literatura pornográfica, Eliane Robert Moraes foi diretora da Coleção os Libertinos — Clássicos da
Literatura erótica para Editora Ágalma.
51
máximo da minúcia para atingir o mínimo de significado. Nessa inflexão do pensamento da
ensaísta, e este é um ponto relevante para pensarmos a trilogia de Hilda Hilst, a pornografia,
como grafia do gozo, é necessariamente “o lugar não do sexo explícito, mas da linguagem
explícita”
76
. Assim, ao demarcar uma “pornografia oficial”, Branco identifica:
Ao lado dessa, uma outra grafia, que também coloca o corpo sobre a cena, obsceno
(e nisso se confunde com a “pornografia oficial”), mas que não é facilmente
digerível ou comercializável (e nisso se confunde com a produção erótica), uma
escrita que não se quer apenas do desejo, mas do gozo, se insinua. Esta, que inclui
Aretino, Sade, Bataille, entre outros (chamada de “pornologia” por Deleuze), parece
permanecer sem lugar na literatura oficial. A diferença tênue que marca a distância
entre as duas talvez seja a mesma que sutilmente demarca os terrenos da arte e da
não-arte. E o que garante especificidade á segunda é certamente um trabalho de
linguagem.
77
2.7 Cascata de erotismo: a pornografia, o licencioso e o obsceno
Dentre outros que insistem na concepção binária da literatura erótica, o historiador
Sarane Alexandrian seria, em princípio, o crítico, que rejeita com indignação a polaridade
entre erotismo e pornografia. O autor de História da literatura erótica reconhece que não
uma separação objetiva entre os termos, postulando assim não ser possível nem necessário
fazer uma distinção entre eles, pois se encontram interligados. Segundo o historiador a
pornografia é a descrição pura e simples dos prazeres carnais, o erotismo estaria dentro
dessa mesma acepção, mas revalorizado em função de uma idéia do amor e da vida social.
Desfaz uma oposição primária, é certo, ainda que por uma elaboração frágil, mas acaba por
valorizar uma outra polarização, agora entre erótico e obsceno. Alexandrian considera que o
erotismo é “tudo o que torna a carne desejável, tudo o que a mostra em seu brilho ou em seu
desabrochar, tudo o que desperta uma impressão de saúde, de beleza, de jogo deleitável”
78
.
Em contraposição a esse entendimento, porém, propõe que a obscenidade seja associada ao
rebaixamento do corpo, quando a carne está irremediável e exclusivamente ligada à sujeira, às
doenças, às brincadeiras escatológicas e às palavras imundas.
Como em Alexandrian, encontramos em todas as concepções binárias que
definem pornografia, erotismo, obsceno e licencioso a herança logocêntrica de elaborar
conceitos como pares de opostos. Todos os teóricos que insistem neste método não percebem
76
BRANCO. “Por uma retórica do gozo”. Literaterras, p.109.
77
Ibidem, p.106.
78
ALEXANDRIAN. História da literatura erótica, p. 08.
52
como cada termo, além de se sustentar fragilmente em contraposição ao outro, pode não ser
uma oposição pura e simples e superficialmente deixaria apresentar-se em combinação
binária. A definição desses termos envolve uma dinâmica, fora até mesmo de uma linearidade
histórica, que não se movimenta em relação a polaridades, mas sim desdobrando-se em
continuidade complexa, como a fluência de uma queda d’água. Cabe pensar, assim, o conceito
de pornografia tal como o processo que Hans Ulrich Gumbrecht chamou de “cascata de
modernidade”. Segundo o teórico, como cascatas, os diferentes conceitos de modernidade e
modernização “parecem seguir uma ao outro numa seqüência extremamente veloz, mas,
retrospectivamente, observa-se também como se cruzam, como os seus efeitos se acumulam e
como eles interferem mutuamente (difícil de escrever) de simultaneidade.”
79
No contexto atual da modernidade, e em consonância com esse processo descrito
por Gumbrecht, vislumbramos um problema mal colocado na demarcação do que é
pornografia. Esta não se opõe ao erotismo, muito menos ao obsceno e ao licencioso. A
definição dos limites entre eles parte de uma falsa proposição advinda das dicotomias
clássicas da Metafísica Ocidental. Não existe oposição entre eles, que cada termo solicita o
outro na sua abrangência semântica. que se ressaltar que a relação não é de
complementaridade, pois um não depende do outro para ter sentido, mas também não se
excluem mutuamente. Na relação entre os termos existe um jogo suplementar de substituição
ou acréscimos de sentidos, no qual o erotismo é o suplemento que desloca ou abala qualquer
fechamento. O suplemento, acrescenta-se, é um excesso, uma plenitude enriquecendo uma
outra plenitude, a culminação da presença. O obsceno e o licencioso são excessos solicitados
estrategicamente pela pornografia. Justamente por isso, por excederem um ao outro e, ao
mesmo tempo, não se fecharem semanticamente, é que parecem confundidos em alguns
estudos, ora abordados como sinônimos, ora apresentados em oposição conceitual.
Ademais, ao ser reivindicado em toda a sua potencialidade, o conceito de erotismo
desloca qualquer polarização. Com efeito, o fenômeno erótico é aquele que primeiro escapa a
qualquer proposição binária, que é sempre solicitado pelos outros termos, não favorecendo
assim qualquer definição estabelecida através de uma combinação dual. Em relação à
pornografia, ao licencioso e ao obsceno, o erotismo é justamente o mecanismo que resiste e
não se deixa capturar por uma lógica complementar. Como nos lembra Bataille, “o sentido
último do erotismo é a fusão, a supressão do limite”
80
. É o que encontramos, por exemplo, na
79
GUMBRECHT. Modernização dos sentidos, p. 09.
80
BATAILLE, 2004, op.cit., p. 202.
53
experiência interior de dissolução, da violência interna, tão extrema e intensa, que o indivíduo
vivencia em certas situações limites. No excesso que o licencioso e o obsceno trazem à
pornografia, o erotismo é a força constantemente solicitada ou afastada. Por estar no campo
da violência e da violação do próprio sujeito, resguarda forçosamente um potencial
profanador.
Por sua vez, dentre as várias definições dos termos licencioso e obsceno, cabe
absorver neste estudo somente o excesso que cada termo traz. Mas antes, vamos ao sentido
que o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa apresenta, onde encontramos uma série de
possibilidades do termo:
Obsceno
adjetivo
1. que é contrário ao pudor
2 .que se compraz em ferir o pudor
3 .que denota obscenidade
4 .que choca pela falta de decoro, pela vulgaridade, pela crueldade
5 .que escreve ou profere obscenidades
obscenidade
Substantivo feminino
1. qualidade do que é obsceno
2 .caráter do que, no domínio da sexualidade, fere o pudor
3 .caráter do que, por sua inconveniência, não está de acordo com as regras do
decoro;
4. caráter do que é chocante
5. ato ou dito obsceno
Licencioso
adjetivo
1 que abusa da liberdade, que agride as normas e convenções sociais; desregrado,
indisciplinado
2 que agride a decência
3 a que falta restrições morais ou legais
4 que desconsidera as proibições sexuais; marcado pelo desregramento moral
Adjetivo e substantivo masculino
5. que ou aquele que revela desregramento em seus atos, escritos e palavras;
depravado, libertino.
Licenciosidade
Substantivo feminino
Qualidade ou caráter do que é licencioso.
81
81
HOUAISS; VILLAR. Dicionário Houaiss da língua portuguesa.
54
No conteúdo manifesto da glosa, na demarcação dicionarizada, algo da etimologia
resiste como traço, ou como risco, de onde resgatamos o excesso que suplementa o gênero
pornográfico. Lic é um elemento antepositivo de composição do verbo latino licet, que
significa: “ser permitido”, “ser lícito”, “ser fácil”, “ser possível”. A cognação latina deste
elemento além de incluir as palavras licentia, licitus que significa permissão, o que é legal,
legítimo —, desdobra-se ainda em lincens denominação do que é demasiado livre,
desordenado e licentious defeituoso, o que é contra as regras. Assim, numa dupla
acepção, é o legal, o legítimo, mas também é o demasiado livre, o que vai contra as regras.
Portanto, se estas acepções não chegam a configurar uma oposição, podemos postular aqui a
legitimidade do que vai contra as regras, ou mesmo da propriedade do defeituoso, do
desordenado e demasiado livre na literatura. No licencioso, trata-se ainda de ter acesso ao
sentido que se opõe de maneira extrema à interdição. Portanto, na pornografia, o licencioso é
um excesso constantemente solicitado.
A constituição do termo obsceno não é menos complexa. Alguns autores, entre
eles Havellock Ellis e D. H. Lawrence, têm insistido numa proposição instigante de pensar o
obsceno como algo “fora de cena”. De certa forma, essa idéia se relaciona com a idéia de dar
visibilidade ao que deveria estar escondido. Lawrence chega a considerar que, já que ninguém
sabe definir com precisão o que significa ”obsceno”, deveríamos supor que derivou de
obscena: aquilo que não pode representar-se no cenário. As palavras latinas obscěnus,
obscenae representam aquilo que conduz ao “mau augúrio”, ou que o carrega. Ao longo do
tempo, passou a denominar ainda, na linguagem corrente, o aspecto frio ou horroroso de um
objeto que se deve evitar ou esconder, porque é impuro ou porque pode ferir o pudor. Na
decomposição dos termos ob-sceno surge uma outra variável que revela algo da estratégia do
gênero pornográfico, ob é uma preposição latina que pode ter o sentido de “por”, “por causa
de”, “para”, “diante de”. Assim, na pornografia, há o movimento estratégico de colocar diante
da cena, ob-sceno, dar a ver a nudez, por no espaço específico de uma arte a cena sexual.
Ganha visibilidade tudo o que uma sociedade quer esconder, pois são colocados no palco os
objetos impuros, encenando assim, dramaticamente, o contínuo ato de profanação que a
sexualidade requer.
O desnudamento é ação decisiva na obscenidade. É uma estratégia de
comunicação que se opõe à ocultação. Como pensa Bataille, “a nudez sempre arruína o
decoro que as roupas nos conferem.”
82
Portanto, o ato obsceno configura-se como a
82
BATAILLE, 2004, op.cit., p.266.
55
perturbação ou violação da organização sagrada do corpo, pois transgride as proibições
oculares. Este movimento de desnudamento é contrário, em termos míticos, à ação de Sem e
Jafé, filhos de Noé, que cobrem o rosto para não ver a nudez do pai. O filho que transgrediu a
proibição ocular teve toda a sua descendência amaldiçoada:
Noé, que era agricultor, foi o primeiro a plantar uma vinha. Bebeu do vinho,
embriagou-se e ficou nu dentro da sua tenda. Cam, pai de Canaã, viu a nudez do pai
e foi contar aos dois irmãos que estavam do lado de fora. Mas Sem e jafé pegaram a
capa, levantaram-na sobre os ombros e, andando de costas para não verem a nudez
do pai, combriram-no. Quando Noé acordou do efeito do vinho e descobriu o que
seu filho caçula lhe havia feito, disse: “Maldito seja Canaã! Escravo de escravos será
para os seus irmãos.”
83
2.8 Contradispositivos de Lori Lamby
Ao propor o erotismo como conceito dinâmico, não pretendo esgotar todas as
proposições em torno da definição do termo, pois teria que abordar toda a tradição que passa
por Platão, Freud, George Bataille e Otávio Paz, dentre outros. Essa busca, é certo, envolveria
tanto dissonâncias quanto consonâncias em torno da questão erótica. Por isso, não pretendo,
neste momento, explorar as repercussões em torno de Eros, que tanto a filosofia quanto a
psicanálise têm muito a dizer, mas em qualquer caminho que seguirmos, chegaremos ao
enunciado batailleano: o sentido último do erotismo é a fusão, a supressão do limite”
84
. O
objetivo imediato é pensar o erotismo como princípio da dinâmica do texto pornográfico,
desviado ou domesticado, no atual contexto de massificação, por dispositivos da indústria
cultural, mas também é aquilo que permite forjar contradispositivos de exceção. Além ou
aquém da função de um paradigma epistêmico, o dispositivo é aquilo chamado, em diferentes
momentos, a responder um problema. Foucault o considera como alguma formação técnica ou
conceitual que tem por função maior atender a formulação teórica em uma determinada
circunstância. Por estar sempre inscrito em um jogo de poder, esse mecanismo teria, portanto,
uma função estratégica concreta.
O dispositivo é um conjunto heterogêneo, tal como concebe Foucault, que inclui
discursos, instituições, instalações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, e em
83
BÍBLIA sagrada. A.T. Gênesis (NVI), 7, 20-25.
84
BATAILLE, 2004, op.cit., p.202.
56
algum momento, pressupõe o dito e também o não dito.É a rede que se estabelece entre todos
os elementos citados. Agamben amplia ainda mais está noção:
Generalizando posteriormente a já amplíssima classe dos dispositivos foucaultianos,
chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a
capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e
assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. No
somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões,
as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é em
um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia,
a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e
porque não a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em
que milhares e milhares de anos um primata provavelmente sem dar-se conta
das conseqüências que se seguiriam — teve a inconsciência de se deixar capturar.
85
Considero, portanto, como dispositivos, o que a indústria cultural utiliza para
repetir uma forma até à exaustão, para afastar o receptor de uma experiência genuína com a
arte erótica. A trilogia hilstiana parece suspendê-los, ou torná-os sem eficácia, para trazer de
volta, assim, o erotismo que efetivamente falta á pornografia comercial. Para tanto, foi preciso
romper com as formas fixas orientadas normativamente e impostas ameaçadoramente,
segundo êxito da vendagem e determinações das leis do mercado. Seu Caderno Rosa foi um
logro, nesse sentido, à indústria cultural. O foco da profanação da escritora é a gramática da
pornografia e não a literatura, conforme foi divulgado em alguns cadernos culturais. Hilda
Hilst traz de volta à matéria pornográfica, o erotismo, o manifesto político e a provocação,
investindo contra os tabus morais da sociedade e confrontando o mercado nas suas insidiosas
proposições. Novamente voltando a Bataille, não esqueçamos de que “o sentido último do
erotismo é a fusão, a supressão do limite”
86
, é o que pode impulsionar, portanto, os efeitos
dos contradispositivos.
Especificamente, no Caderno rosa, o ato de criação é resultado de um delito, o
plágio, o crime maior ao patrimônio de um artista. Antes, a violência do próprio relato da
menina, que macula não seu corpo, mas também a idéia de inocência e assexualidade
atribuída à criança. Seu relato vai de encontro à idealizada pureza infantil. Os contos de fadas
que tinha lido nem mesmo atendem à sua expectativa lúbrica, por isso resolveu escrever as
suas próprias histórias. A menina não compreende “por que as histórias para crianças não tem
o príncipe lambendo a moça e pondo o dedinho dele maravilhoso no cuzinho ...”
87
. Sob o
85
AGAMBEN, 2005, op.cit., p. 13.
86
BATAILLE, 2004, op.cit., p.202.
87
HILST. O caderno rosa de Lori Lamby, p. 67.
57
proxenetismo dos pais, a menina usa do seu talento precoce para ganhar dinheiro e atender a
fantasia de vários pedófilos. O seu cliente mais constante, o Tio Abel, contribuirá, como
mostrei, não com as cartas incorporadas ao texto, mas também com o “Caderno Negro de
Corina”, o livro dentro do livro, que ele lhe envia para o acréscimo ao Caderno Rosa. É nos
“Caderno Negro” que encontramos uma rie de perversões que não foram experimentadas
pela menina, como o bestialismo, o ménage à trois
,
o sacrilégio
.
Hilda Hilst logra, contudo, o
próprio perverso que alimentasse sua fantasia pedófila com a leitura do Caderno Rosa. O
Caderno da menina permite apenas os crimes literários, quer seja o da sedução perversa, quer
seja o do plágio. O relato pornográfico do Lori Lamby é uma farsa. Ficaria assim mantida a
sua pureza. Contudo, o roubo literário é uma violência tão grande como a sua suposta
prostituição. Claro que é de uma outra ordem e aponta para uma outra coisa: é um crime com
a linguagem, não contra ela. Mas para o leitor não trégua, sai de um delito, cai em outro:
transita-se entre a pedofilia e o plágio.
Parece-nos que no Caderno Rosa o roubo é um procedimento especial de
profanação, tal como desenvolvida por Agamben, pois possibilita que façamos uma outra
utilização, um uso a mais, da pornografia escrita pela menina. Por outro lado, ao recriar ou
completar não só o texto do pai, mas trazer elementos das obras de outros escritores para
dentro da sua narrativa, a menina pode ser vista também como uma catalogadora. Essa forma
de intertextualidade será amplificada no volume seguinte da trilogia hilstiana a partir da uma
ação conjunta de escavação e recolhimento dos textos estranhos à pornografia. Crasso, o
personagem-narrador de Contos d’escárnio: textos grotescos, fará não a catalogação dos
textos do escritor sem leitor, Hans Haeckel, e do vasto material obtido por sua parceira,
Clódia, no hospício onde ficou internada, como também irá explorar uma estratégia
potencializada em toda a pornografia hilstiana, qual seja, um movimento de criação que é
múltiplo.
2.9 Contos d’escárnio: entre o grotesco e o pornográfico
A forma inacabada será profícua em toda a prosa de Hilda Hilst. No segundo
volume da trilogia, não será a criança a condutora da narrativa imperfeita, mas um escavador,
num gesto de deixar sempre suspenso o texto que persegue. Nesse movimento, o grotesco é
outra estratégia que acaba sendo recuperada arqueologicamente pela pornografia em Contos
d’escárnio: textos grotescos. Esse processo se através da ação dialógica de três
58
personagens do livro: Crasso, Hans Haeckel e Clódia. Todos trarão elementos grotescos para
a narrativa, mas Hans Haeckel trará o incômodo.
Em contraposição com a lubricidade da pornografia, com outra proposição de
escrita e da arte, temos o personagem do escritor Hans Haeckel que irá perturbar a ordem da
narrativa lasciva. Clódia, leitora ideal e personagem representativa da pornografia sensual, é
aquela que resiste ao texto de Hans Haeckel. Ela não suporta a melancolia do texto do
escritor, a não ser que seja compensada com uma ação lúbrica equivalente ou superior à
quantidade de insatisfação. (Curiosamente, vale lembrar que Clódia é a musa de Catulo, poeta
de grande importância na formação literária de Hilda Hilst). A citação que se segue mostra o
desequilíbrio entre a melancolia e lubricidade no texto de Hilda Hilst, e é também um bom
exemplo da maneira singular como as estratégias dialógicas encaminham e deformam a
narrativa:
Escuta Clódia, escuta, vê se você gosta:
O dragão espichou a fina língua na cona adolescente, lento de início, como quem
rabisca. Um hipotético poente de azuladas tintas cresceu arredondado nas pálpebras
descidas. Minhas pálpebras frias. Foi assim o teu sonho, é? Um dragão de verdade?
Sim. Um dragão de sonho. Espicha mais a tua língua. Lambe aqui. Ele tinha
escamas? Lindas, purpúreas. Tinha bigode? Ai ai ai. Não. Ai ai. ela começou a
gozar. O homem enterrou-lhe a verga na vagina. (Ó! ai! ó) Em seguida abriu os
olhos. Olhou o rosto fino, anguloso e agônico da mulher adolescente. Sussurrou para
si mesmo: a morte deve ter o mesmo rosto.
que horror liebling, você anda lendo Hans, que deprimente!
mas deixa eu ler mais isto pra você.
não, não e não!
se você deixar, esquento os rabanetes pro teu buraquinho
não
e depois esquento minha pica pro teu buracão
então tá bem. Lê.
Esticou o barbante entre as duas árvores. Pendurou seus trapos. Depois s as mãos
na cintura e disse: “Bem. Agora tenho uma casa. Não havia telhado nem cachorro
nem mulher nem panelas. Crianças muito menos. Havia apenas (logo mais) o céu
negro e estrelas. Dias mais tarde demorou-se algum tempo (tempo talvez excessivo)
olhando as árvores e enforcou-se.” É do Hans.
Clódia: só isso?
Crasso: é.
Crasso: posso continuar por ele.
Clódia: s me livre. se você lembrar de colocar a língua de alguém no meio
disso tudo ou um outro dragão quem sabe.
Crasso: um dragão que coma o cu dele, por exemplo.
Clódia: antes ou depois dele se enforcar? (pausa) Crassinho, por favor, faz aparecer
uma mulher ou uma adolescente meio puta, transviada, gostosinha.” Que tem
hem, Crasso?
Crasso: mas o Hans só quis contar aquilo lá de cima.
88
88
HILST. Contos d’escárnio, p. 77.
59
É a Hans Haeckel que Crasso propõe: “vamos escrever a quatro mãos uma
história pornéia, vamos inventar uma pornocracia, Brasil meu caro, vamos pombear os passos
de Clódia e exaltar a terra dos pornógrafos, dos pulhas, dos velhacos, dos vis”, ao que o
angustiado personagem Haeckel responde: “não posso. literatura para mim é paixão. Verdade.
Conhecimento.”
89
Em Contos d’escárnio: textos grotescos, não a questão do plágio, como em O
caderno rosa de Lori Lamby, mas uma apropriação espúria, que permite o diálogo
aparentemente incongruente entre o grotesco, a pornografia e a melancolia. O relato de Crasso
seria apenas uma narrativa de suas aventuras sexuais. Clódia traz para essa narrativa os
manuscritos que ela ganha dos loucos do hospício onde é internada devido a sua obsessão por
pintar vaginas e falos dos amigos, mendigos ou de qualquer outro transeunte que lhe agrade.
Do Hans, após seu suicídio, vem os escritos angustiados e mórbidos que Crasso vai
recuperando. É o escritor suicida o responsável pelos textos de um erotismo mórbido, violento
e corrosivo.
Talvez se possa afirmar que o grotesco seria a estratégia que se oporia à
pornografia. É certo que uma atmosfera licenciosa em cada uma dessas estratégias
discursivas. Contudo, mesmo quando se utiliza dos exercícios lúbricos, da linguagem
obscena, explorando assim o “baixo material”, o grotesco parece distanciar-se da pornografia.
Preso em uma demarcação cristalizada, aquele, com sua propensão ao exagero, ao
hiperbolismo, tenderia ao riso, a pornografia, na sua pretensa vocação para tornar a carne
desejável, conduziria a excitação sexual. No ensaio “Retrato medieval de mulher: a bailarina
com pés de porco”, Yara Frateschi Viera destaca, no entanto, um ponto que aproxima a
pornografia da poesia satírica ou grotesca. A ensaísta observa que uma mesma
discriminação pesando sobre ambas, como se a linguagem de praça pública e a poesia se
excluíssem mutuamente ou, de outro modo, como se literatura e obscenidade se reduzissem a
um oxímoro. O incômodo gerado pelo grotesco e pela pornografia provém da maneira crua
como a linguagem é trabalhada, imiscuindo-se em todas as modalidades de vícios,
imbricando-se a eles.
Ficamos diante de um impasse para separar o grotesco da pornografia quando nos
deparamos com o texto do Marquês de Sade. Há em toda narrativa do famoso libertino a
inflação hiperbólica da sexualidade, o exagero, a extrapolação dos limites, dando voz a um
realismo grotesco. O obsceno em Sade é violento, podemos perceber facilmente lendo suas
89
Ibidem, p. 41.
60
obras. Mas seria menos violento o Gargantua de Rabelais, que mesmo não mostrando um
casal em ação amorosa, ridiculariza constantemente o próprio ato sexual ao aproximá-lo de
funções excrementícias? A narrativa de Rabelais, habitualmente pontilhada de obscenidades,
tem um ar alógico que parece violar todas as distâncias habituais entre as coisas, fenômenos e
valores, em função de uma farsa carnavalizada. Segundo Bakhtin, há em Rabelais um riso que
vence o medo e toda seriedade malsã. No grotesco, como percebe o teórico, o “baixo”
material e corporal é alegre. É essa alegria que simultaneamente materializa e rebaixa, liberta
as coisas da seriedade mentirosa, das sublimações e ilusões inspiradas pelo medo.
Tanto Sade quanto Rebelais amplificam os traços perversos da nossa sexualidade
ao dar forma a nossa experiência grotesca do corpo, precariamente recalcada. Em Rabelais, as
imagens obscenas são ligadas à cultura popular cômica. Essas imagens, na época que o ator
publicou seus textos, estavam essencialmente associadas à publicidade da praça pública.
Como percebe Bakhtin, na obra do autor de Gargantua, o próprio caráter da construção das
imagens e, sobretudo, da concepção do corpo vêm em linha direta do folclore cômico e do
realismo grotesco popular. Para o teórico, a principal tarefa de Rabelais foi a de absorver e
resgatar criativamente a voz da “praça pública”, para inverter ou colocar sob suspeição as
regras moribundas de uma sociedade. Assim, o riso medieval de entronização carnavalesca
tem potencialmente a capacidade de subverter a hierarquia de valores e poderes, isso foi
assimilado por Rabelais e tem destaque em sua obra. Segundo A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento:
A tarefa essencial de Rabelais consistia em destruir o quadro oficial da época e dos
seus acontecimentos, em lançar um olhar novo sobre eles, em iluminar a tragédia ou
a comédia da época do ponto de vista do coro popular rindo na praça pública.
Rabelais mobiliza todos os meios das imagens populares lúcidas para extirpar de
todas as idéias relativas à sua época e aos seus acontecimentos, a mentira oficial, a
seriedade limitada, ditadas pelos interesses das classes dominantes. Ele não crê na
sua época, “naquilo que ela diz de si mesmo e no que ela imagina ser”, mas quer
revelar o seu verdadeiro sentido para o povo crescente e imortal.
90
Sade, um criador de linguagem, na observação de Barthes, vai em uma outra
direção. A diversidade de costumes e o retorno à tradição popular, ainda que de forma criativa
ou renovadora, como em Rabelais, são relegados em função de outro ideal estético. Para Sade,
o vício e a virtude são idéias locais e subjetivas. Em sua obra não intercâmbio possível
com o outro nem com a cultura. O compromisso de seu texto é com a radicalidade da
90
BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, p.386.
61
experiência erótica. Isso, em parte, justifica a reprovação moral taxativa que a obra de Sade
sofreu. Sade é imoral, Rebelais é amoral.
Mas o autor de Gargantua também propõe uma exploração radical de erotismo.
Os atos do drama corporal e sexual exacerbados nas imagens grotescas elaboradas por
Rabelais ignoram a superfície do corpo. Esses atos demandam apenas as saídas, as
excrescência, os rebentos e os orifícios, isto é, unicamente daquilo que faz atravessar os
limites do corpo para se chegar ao fundo desse corpo. No abismo que Rabelais coloca a
experiência corpórea, o que sobressai é a carne. Os órgãos são destacados hiperbolicamente,
separados do todo, pois o corpo na sua obra está despedaçado e precisa ser reelaborado.
Emergem na encenação da sua escrita o sangue, as vísceras, os órgãos genitais, o traseiro.
Rabelais segue assim, ainda que a renovando, toda uma tradição de milhares de anos da
literatura escrita e oral, uma linhagem do grotesco que existe desde a idade média,
acentuadamente no Trovadorismo, desenvolvendo composições que objetivam inverter os
valores através das imagens do baixo material.
Em Rabelais, o corpo fragmentado, que ganha destaque hiperbólico, liga-se às
injúrias, à ironia cáustica, mas o riso é o efeito que arrebata por fim o leitor. Ainda que Sade
também se concentre muitas vezes na descrição não da cena sexual, mas também dos
genitais e dos traseiros, que revire o corpo pelo avesso, levando-o à violação dos seus limites,
não na leitura de sua obra nenhuma possibilidade de riso. Sade pratica aquilo que Barthes
chamou de violência metonímica, ao justapor, no mesmo sintagma, fragmentos heterogêneos
pertencentes às esferas de linguagem vulgarmente separadas pelo tabu sócio-moral. Para
Barthes, a contaminação criminal do texto do famoso libertino infecta todos os estilos de
discurso: o narrativo, o lírico, a moral, a máxima, o discurso mitológico.
A despeito das diferenças, podemos considerar um intercâmbio possível entre o
grotesco e o pornográfico, entre Rabelais e Sade. Ambos fazem sobressair uma tradição
realista e crua da linguagem, que foi cuidadosamente obscurecida por um ritual do bom tom
literário, mas que precisa, como observa Augusto de Campos, ser recuperada para a saúde e a
vitalidade das artes. Pra reforçar essa concepção, cabe destacar o protesto de Montaigne
contra o poder crescente das regras e interdições verbais em curso no final do século XVI.
Assim provoca o ensaísta: “o que faz aos homens a ação genital, tão natural, tão necessária e
tão justa, para que não se ouse falar dela sem vergonha e para excluí-la das conversas sérias e
62
regradas? Nós pronunciamos ousadamente: matar, roubar, trair: e aquilo, não ousaríamos
dize-lo a não ser entredentes?”
91
Parece-nos factível, no movimento de dar a ver o que é interditado, que a
construção do projeto erótico de Hilda Hilst seja heteróclita, ou seja, para renovar a
pornografia e o grotesco como gêneros literários ou como estratégias artísticas, talvez seja
preciso confundi-los, contaminá-los recíproco e reflexivamente. Se a própria definição dos
termos fica ameaçada nessa conjunção, ou precisa ser repensada, é porque saudavelmente
algo se rompe na expectativa da recepção. Estamos diante de um palco inacabado. Essa é a
sensação ao se ler a trilogia pornográfica de Hilda Hilst. Em seus textos, o que é grotesco e o
que é pornográfico escapam das normas estabelecidas. A própria polarização no entendimento
dos termos é colocada sob suspeição.
Na trilogia da escritora, tanto os exercícios lúbricos são colocados em ação,
“vamos às fodas, senhores”, pois ”foder é tudo que resta a homens e mulheres”
92
—, como
também o baixo-ventre pode vir a ter contorno licencioso, carnavalesco e satírico. Como
exemplo, vale lembrar a festa grotesca que faz uma alegoria da qualidade da grande maioria
da produção literária que se torna best-seller:
Havia sim um banheiro de dimensões fantásticas: 300 por 300, mas penico no
outro pra mulheres. Naturalmente os príncipes Cul de Cul imaginaram que os
homens defecariam na pequena floresta logo além do jardim. Logo além do jardim é
um bom título para best-sellers. E como se cagou naquela festa. E que qualidade,
que finura de dejetos! Caviares codornas faisões recheados de cerejas, cus de
canários com amêndoas alcaparras e uvas, xerecas de gazelas... após enfiar os meus
dedos nos buracos de incontáveis donas e em seguida aspirar (aspirar os dedos) sob
frondosas copas de impotentes árvores e algumas vezes montado nos pinheiros para
que de minha tara-delícia não suspeitassem, arregacei as calças e por descuido, por
imprudência (por que não olhei para baixo), defequei na peruca prateada de uma
jovem esguia e ancuda, que justo naquele instante empinava o traseiro e dava-o a
quem? Adivinharam. Ao príncipe Cul de Cul. Ouvi os e ais em tons agudos e cavos.
93
Não na trilogia, mas em vários momentos da obra em prosa de Hilda Hilst,
emergem o pornográfico e o grotesco, que se juntam e se retroalimentam continuamente,
acentuando a perturbação, de ordem estética, e o contorno provocativo, de dimensão política,
do projeto literário da escritora. Não obstante, se ainda se quer saber com o que se ri ou com o
91
MONTAIGNE apud BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, p. 280.
92
HILST. Contos d’escárnio, p. 30.
93
Ibidem, p.113-114.
63
que se excita nos textos da autora, pergunte ao leitor. Para tanto vamos imaginar essa
recepção sob o regime perverso da enunciação pornográfica.
64
3. PORNOGRAFIA: O PALCO PRIVILEGIADO DA PERVERSÃO
Não tema sobretudo ultrajar a natureza: é sempre além dos
limites conhecidos que esta sacana fixa o prazer. o
atingimos de fato quando ultrapassamos os limites que
pretendem os tolos nos ter ela prescrito. Não volúpia sem
crime. Ah! como trabalham para os nossos prazeres esses
legisladores imbecis que pretendem dar leis aos homens!
devemos ignorar e transgredir a todos, meu amigo... eis a
única arte de gozar: conheça-a e quebre todos os freios.
Marquês de Sade
Com efeito, uma estratégia perversa em construção nas obras pornográficas de
Hilda Hilst e é através dela que a cena sexual se enuncia. Em O caderno rosa de Lori Lamby,
Contos d’escárnio: textos grotescos e Cartas de um sedutor as figuras da sexualidade
desviante das normas são o suporte imaginário da criação. É do ato perverso que surge não
os enunciados que irrompem na narrativa, mas também é o aparato estilístico da enunciação.
A trilogia hilstiana solicita, portanto, a forma e as imagens de um discurso, arregimentado
historicamente pela clínica psiquiátrica, mas que, contudo, a antecede e a ultrapassa. A
apropriação da perversão pela linguagem médica é resultado de um esforço que se inicia no
século XIX. Houve primeiro, em relação à definição desse termo, uma discussão moral que só
passou a ter interesse médico tardiamente. Como ressalta o psiquiatra Lanteri-Laura, é a doxa
que delimita o campo dos fenômenos perversos da qual a episteme itratar e, portanto, é a
opinião popular que vai indicar, em princípio, o campo dos comportamentos considerados
como desviante da norma. O conhecimento clínico em relação à perversão permanecerá
dependente e tributário dos dispositivos morais estabelecidos pela opinião pública
historicamente.
Na língua portuguesa, a palavra perversão surge entre os anos de 1562 e 1575.
Trata-se de um empréstimo do latim clássico perversione, que além do significado corrente de
depravação, traz o sentido adicional de alteração de um texto, a inversão da construção no
estilo. Em relação a esse ultimo sentido, cabe destacar três alterações predominantes em cada
um dos volumes da trilogia: o roubo, a escavação/catalogação e o recolhimento de lixo,
65
respectivamente executados por Lori Lamby, Crasso e Stamatius. Não sem razão, podemos
considerar esses personagens-narradores irmanados com os personagens que, em Lavoura
arcaica, do escritor Raduan Nassar, a pesquisadora Sabrina Sedlmayer localiza ao lado
esquerdo do pai. Assim como André, o personagem incestuoso de Lavoura arcaica, os
narradores de Hilda Hilst são também transgressores, todos eles “procuram uma père version,
uma outra versão da palavra paterna”
94
. Encontramos na trilogia da escritora diferentes
formas de enunciação, com desdobramento idiossincrático associado ao modo perverso do
narrador. Cada um a seu tempo e à sua maneira irá inverter, ou pelo menos incomodar, a
ordem pornográfica, apresentando uma outra versão para uma narrativa erótica.
A menina Lori, o melhor exemplo de uma possível elaboração plástica da
perversão, em certa linha de investigação, escreve seu livro-diário tomada por um sintoma que
não é experimentado por ela no plano da realidade, pois sua imaginação é limitada pela
própria impotência da disposição polimorfa da sexualidade de uma garota de oito anos. A
ação desviante da menina está mais ligada à enunciação obscena do texto do que associada a
uma experiência efetivamente lúbrica sustentada por ela, que, como saberemos no final,
todo o cenário sexual foi uma construção ficcional. Do pai, da filha? Sempre nos restará uma
dúvida.
De qualquer forma, os atos perversos de Lori Lamby, principalmente seu grande
prazer em ser lambida, ainda que imaginariamente sustentados, remete-nos a proposição
freudiana de que as perversões dos adultos podem ser demonstradas através da observação da
sexualidade infantil. Não esqueçamos, entretanto, que na criança as pulsões emergem com
intensidade moderada, mas com a capacidade de assumir diferentes formas ao longo do
desenvolvimento sexual. Para Freud, os neuróticos preservam traços do estado infantil de sua
sexualidade, fixando ou voltando-se sempre a eles através do sintoma. É a partir da
observação do desenvolvimento da sexualidade infantil que Freud vai perceber seu
desdobramento em perversão, neurose ou mesmo na vida sexual considerada normal.
Portanto, segundo o psicanalista:
A suposta constituição que exibe os germes de todas as perversões é demonstrável na criança,
mesmo que nela todas as pulsões possam emergir com intensidade moderada. Vislumbramos
assim a fórmula de que os neuróticos preservaram o estado infantil de sua sexualidade ou foram
retransportados para ele. Desse modo, nosso interesse volta-se para a vida sexual da criança, e
procederemos ao estudo do jogo de influências que domina o processo de desenvolvimento da
sexualidade infantil até seu desfecho na perversão, na neurose ou na vida sexual normal.
95
94
SEDLMAYER. Ao lado esquerdo do pai, p.46.
95
FREUD. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p.175.
66
Em O caderno rosa, o texto da menina, construído em forma de diário, é movido
pela incompreensão, ou pela compreensão apenas parcial, do que leu, do material que furtou
ao pai, dos diálogos apreendidos em sua volta. A narrativa perversa que constrói não é
vivenciada pelo seu corpo. Nem mesmo o pai sustenta uma posição sexual desviante.
Pressionado pelo editor Lalau a fazer uma literatura pornográfica para poder ampliar seus
leitores e vender mais, ele entra em conflito não com seus valores literários, mas também
com a estética perversa. Em seu estado apoplético, lança sua cólera contra os editores, ataca a
literatura comercial e se incomoda com a própria presença da filha, pois ela lhe lembra a
protagonista do texto que escreve. Inflamado, pede à esposa, no auge de sua crise moral e
estética: “Tira a tua filhinha daí porque eu não agüento mais ver nenhuma menininha, ó meu
deus que grande porcaria, que cagada de camelo”.
96
Em sua crise, ainda mais conturbada pela
divergência com a esposa, tão desejosa que ele escrevesse um livro no estilo da Madame
Bovary, do Flaubert, o pai de Lori se vincula à linhagem de escritores para quem a atividade
literária está diretamente associada a uma elaboração estética que exige do corpo do autor
total entrega erótica.
Mami — Você não está bom nem mais pra foder.
Papi Ah, é? E você acha que eu posso escrever e meter com alguém como você,
Cora, que vive com essa boceta acesa, sua ninfomaníaca. [...] e se você gosta tanto
do Gustavo por que não se lembra que ele disse que é preferível trepar com o tinteiro
quando se está escrevendo do que ficar esporrando por aí?
97
Ao desejo declarado da mulher, o escritor responde que teve uma Madame
Bovary que deu certo. No ataque colérico que se segue, diz ainda à esposa que, se ela gosta
tanto do Gustave Flaubert, deveria lembrar da proposição do escritor sobre o trabalho
literário, para quem um livro não pode ser feito da mesma forma que se gera criança, pois é
construção, tão elaborada como uma pirâmide, dependendo, portanto, de muito suor. Para o
personagem, o livro é um trabalho perverso por excelência, resultado de um jogo erótico não
vinculado à reprodução, mas ao prazer pelo prazer.
Na narrativa de Lori Lamby transborda duplamente uma vocação literária, que é a
do pai, e um desejo de sucesso comercial, que responde de forma diferente ao mercenarismo
do editor, ao pragmatismo da mãe, ao interesse consumista da filha e á frustração do pai em se
96
HILST. O caderno rosa de Lori Lamby, p. 77.
97
Ibidem, p. 70.
67
manter com dignidade com o trabalho literário. Por isso, como força catalisadora de todos
esses anseios, Lori Lamby vai adulterar, transformar, por em fracasso, como veremos, o
próprio mecanismo perverso. Ela coloca sob suspeita a própria estratégia pornográfica em sua
eficácia lúbrica, pois insturmentaliza seu imaginário por uma ausência, a sua experiência
sexual relatada no diário revela-se por fim como pura fantasia. Seu corpo não testemunha o
vivido, como é caro à narrativa pornográfica tradicional. Evidencia-se assim que a
pornografia na obra de Hilda Hilst é construída seguindo o discurso da ficção em
contraposição ao acúmulo realista que encontramos na pornografia comercial.
3.1 No princípio era o ato
Antes mesmo de ser uma questão jurídica, e posteriormente uma patologia clínica,
a perversão era uma matéria religiosa demarcada pela igreja cristã, associada,
apropriadamente, ao pecado original. O casal primevo, ao comer o fruto proibido, faz do ato
de desobediência uma herança a ser perpetuada como signo de transgressão humana.
Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos
olhos e, além disso, desejável para dela se obter discernimento, tomou do seu fruto,
comeu-o e o deu a seu marido, que comeu também. Os olhos dos dois se abriram, e
perceberam que estavam nus; então juntaram folhas de figueiras para cobrir-se.
98
Em decorrência da sua transgressão, o primeiro casal humano foi expulso do
paraíso, e se viu diante da certeza de viver para morrer, de “retornar ao pó”, mas é também
esse ato inaugural que o habilita a poder gozar. Vale aqui lembrar a provocação em Ulisses,
de James Joyce, segunda a qual, antes da queda, Adão trepava mas não gozava. Ao tomar
consciência da própria nudez, o corpo do casal primevo passou a ter um caráter erótico, por
isso a necessidade de disfarçá-lo e escondê-lo. “Donde soubeste tu que estavas nu, senão
porque comeste do fruto da árvore, de que tinha ordenado que não comesses?
99
Assim foi
interpelado o casal primeiro pelo Criador do mundo. No princípio houve um ato perverso, a
partir dele fundava-se então uma ética do desejo e uma estética obscena.
Desde que o casal primevo erotiza a nudez e é expulso do paraíso, toda sorte de
perversões é implementada. Encontramos no Pentateuco, ainda que amenizada pela
hermenêutica, toda a força de uma sexualidade primitiva, mas também estão lá todas as
98
BÍBLIA sagrada. A.T. Gênesis (NVI), 3, 6-7.
99
BÍBLIA sagrada. A.T. Gênesis. Tradução de Padre Antônio Pereira Figueiredo, 3, 11.
68
possíveis tentativas de domá-la pela normatização, pelas regras, pela Lei do Pai. No Levítico
encontramos uma série de Leis relacionadas à sexualidade que o discurso perverso vai nos
mostrar pelo avesso. Ainda que longa, vale citar todas as relações sexuais ilícitas condenadas
no Livro Sagrado e que o perverso irá seguir na contramão:
“Ninguém poderá aproximar de uma parente próxima para se envolver sexualmente
com ela. Eu sou o Senhor. “Não desonre o seu pai, envolvendo-se sexualmente com
a sua mãe. Ela é sua mãe; não se envolva sexualmente com ela. “Não se envolva
sexualmente com a mulher do seu pai; isso desonraria seu pai. “Não se envolva
sexualmente com a sua irmã, filha do seu pai ou da sua mãe, tenha ela nascido na
mesma casa ou em outro lugar. “Não se envolva sexualmente com a filha do seu
filho ou com a filha da sua filha; isso desonraria você. “Não se envolva sexualmente
com a filha da mulher do seu pai, gerada por seu pai; ela é sua irmã. “Não se
envolva sexualmente com a irmã do seu pai; ela é parenta próxima do seu pai. “Não
se envolva sexualmente com a irmã da sua mãe; ela é parenta próxima da sua mãe.
“Não desonre o irmão de seu pai aproximando-se da sua mulher para com ela se
envolver sexualmente; ela é sua tia. “Não se envolva sexualmente com a sua nora.
Ela é mulher do seu filho; não se envolva sexualmente com ela. “Não se envolva
sexualmente com a mulher do seu irmão; isso desonraria seu irmão. “Não se envolva
sexualmente com uma mulher e sua filha. Não se envolva sexualmente com a filha
do seu filho ou com a filha da sua filha; são parentes próximos. É perversidade.
“Não tome por mulher a irmã da sua mulher, tornando-a rival, envolvendo-se
sexualmente com ela, estando a sua mulher ainda viva. “Não se aproxime de uma
mulher para se envolver sexualmente com ela quando ela estiver na impureza da sua
menstruação. “Não se deite com a mulher do seu próximo, contaminando-se com
ela. “Não entregue os seus filhos para serem sacrificados a Moloque”. Não profanem
o nome do seu Deus. Eu sou o Senhor. “Não se deite com um homem como quem se
deita com uma mulher; é repugnante. “Não tenha relações sexuais com um animal,
contaminando-se com ele”. Mulher nenhuma se porá diante de um animal para
ajuntar-se com ele; é depravação. “Não se contaminem com nenhuma dessas coisas,
porque assim se contaminaram as nações que vou expulsar da presença de vocês.
Até a terra ficou contaminada; e eu castiguei a sua iniqüidade, e a terra vomitou os
seus habitantes. Mas vocês obedecerão aos meus decretos e às minhas leis. Nem o
natural da terra nem o estrangeiro residente entre vocês farão nenhuma dessas
obominações, pois todas estas abominações foram praticadas pelos que habitaram
essa terra antes de vocês; por isso a terra ficou contaminada. E, se vocês
contaminarem a terra, ela os vomitará, como vomitou os povos que ali estavam antes
de vocês.
100
Voltando à Hilda Hilst, no segundo volume da trilogia, Contos d’escárnio: textos
grotescos, encontramos um tipo de perversão marcada pelo que Freud considerou como traço
perverso que persiste na organização da sexualidade adulta. As pessoas normais poderiam até
mesmo substituir durante um bom tempo o alvo sexual normal por uma perversão,
principalmente quando circunstâncias favoráveis, assim pensava Freud no controvertido
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905. O psicanalista constata que em nenhuma
pessoa que tivesse um possível alvo sexual normal, faltaria um acréscimo que se possa
100
BÍBLIA sagrada. A.T. Levítico (NVI), 18, 6-28.
69
chamar de perverso, e essa universalidade bastaria, por si só, na percepção de Freud, para
mostrar quão imprópria é a utilização reprobatória da palavra perversão.
Crasso, o personagem-narrador, assim como Lori Lamby, também vai alterar o
texto da pornografia. De início adverte que não gosta de colocar os fatos numa seqüência
ortodoxa, arrumada, pois isso existe excessivamente na literatura comercial, ou mesmo em
jornais, que reproduzem notícias travestidas de histórias com começo, meio e fim. Assim
como os verbos chineses não têm tempo, ele também não tem, diz o personagem, filho de uma
crassa putaria, segundo os comentários da população da cidade em que nasceu seu nome é
homonímia do adjetivo “crasso”, que na acepção figurada significa tosco, grosseiro,
rudimentar. A mãe morreu subitamente após seu nascimento e o pai morreu um mês depois
enquanto mantinha relações sexuais com uma dama do bordel da cidade. Foi criado por seu
Tio Vlad, que por sua vez morreu quando Crasso ainda era criança, no momento em que
recebia a felação de um coroinha da igreja local, chamado Tavim, de quatorze anos. Crasso
não será um perverso típico, apesar da sua genealogia de desviantes sexuais, ou porque, em
suas palavras, a despeito do seu roteiro de fornicação, também guardava momentos de tédios
e vazios. Entretanto se cercará de vários tipos de perverso e de diferentes formas de perversão.
Em Contos d’escárnio: textos grotescos, os personagens revelam na sua relação
com Crasso, ou a partir da lembrança dele, seus truques e estratégias para satisfazer o desejo e
perfazer um gozo desviado de uma normatização. Mas é relevante destacar que todas as
perversões na trilogia são desdobradas em experiências estéticas. Nesse caminho, perverter
significa não só ampliar os gestos da sexualidade, colocá-los em cena, mas também reduzi-los
a um tratamento estético, transformá-los em uma outra versão. Tal como na prática erótica
sadeana, uma complexa elaboração estética é fundamental para singularizar o “catálogo das
perversões”. Em Os 120 dias de Sodoma, do Marques de Sade, por exemplo, uma
contabilidade franqueada à vertigem da imaginação, como observou Eliane Robert Moraes.
Nessa operação, que envolve as proporções dos órgãos genitais dos fodedores, o inventário
das bundas disponíveis, entre outras enumerações de cenas lúbricas, é construída uma
enciclopédia diversificada de devassidão, como se fosse o livro Levítico ao avesso.
Estrategicamente, na referida obra de Sade, o fôlego contábil fracassa, a conta não é precisa, a
promessa de seiscentas paixões não se cumpre, uma defasagem, resta um débito no final.
Moraes destaca então o horizonte que se abre com essa falta:
Ai reside a radicalidade da “filosofia lúbrica” de Sade, que reconcilia a abstração
aritmética com a irredutível imanência do corpo para recusar a milenar separação
entre idéia e matéria. reside a particularidade desse monumental catálogo,
70
franqueado á vertigem da imaginação. Com cento e vinte dias, quinhentas e noventa
e oito paixões. O desejo lançado ao infinito.
101
Também é um exercício estético o ato ritualizado que envolve a atividade com a
língua executada pelo elegante Liló na vagina da prostituta Bina. Esse ritual envolve todos os
personagens presentes no bordel na encenação sexual que não tem platéia, todos o
participantes ativos (Como observa ironicamente Crasso, “tinha jeito de mesa de cirurgia
aquilo tudo”
102
). De outra maneira, mas não menos plástico, Josete, uma das mulheres que
passa pela excêntrica vida sexual de Crasso, faz do seu próprio corpo, tal como um
pergaminho, o suporte material da lubricidade e da poesia. Devido à sua paixão por Ezra
Pound, tatuou em seu corpo, na área genital apontada pelo poeta, o verso final retirado do
livro de poemas Do caos à ordem: “tatoo marks around the anus, and a circle of lady golfers
about him”. Com espanto, Crasso percebe, usando uma lupa, que ao redor do ânus de Josete,
tatuadas com infinito esmero e extrema competência, estavam tatuadas damas com lindos
vestidos de babados, inclusive uma delas tinha um fino chapéu de florzinha, segundo relata.
Por insistência da moça, Crasso se vê obrigado a penetrar-lhe o ânus, estraçalhando a
homenagem paradoxalmente graciosa e estranhamente lúbrica.
Também é plasticamente que a personagem Clódia, parceira de Crasso, vai
trabalhar a sexualidade. “Essa faria um bom par com Liló, ela desenhando, ele chupando”,
lembra-nos o personagem-narrador. Clódia revela seu fetiche estético quando elabora telas,
primeiro, explorando toda a singularidade das vaginas, depois, representando as várias
formas, consistências e texturas do pênis, convencida por Crasso das possibilidades estéticas
latentes no órgão sexual masculino. Diante de tão extravagante ofício, o narrador nos alerta,
ironicamente:
Ó conas e caralhos, cuidai-vos! Clódia anda pelas ruas, pelas avenidas, olhando
sempre abaixo de vossas cinturas! Cuidai-vos, adolescentes, machos, fêmeas, lolitas-
velhas! Colocai vossas mãos sobre as genitálias! A leoa faminta caminha vagarosa,
dourada, a úmida língua nas beiçolas claras! Os dentes, agulhas de marfim,
plantados nas gengivas luzentes! Cáustica, Clódia atravessa ruas avenidas e
brilhosas calçadas. Ó, pelos deuses, adentrai vossas urnas de basalto porque a leoa
ronda vossas salas e quartos! Quer lamber-vos a cona, quer adestrar caralhos, quer o
néctar augusto de vagina e falos! Centuriões, moçoilos, guerreiros, senadores,
atentai! Uma leoa persegue tudo o que é vivo mole incha e cresce! Trançai vossas
pernas, trançai vossas mãos atentas sobre as partes pudendas! Não temais a
vergonha de andar pelas ruas em torcida posturas, pois Clódia está nas ruas!
103
101
MORAES. “Inventário do abismo”. In: Os 120 dias de sodoma, p.12.
102
HILST. Contos d’escárnio, p..29.
103
Ibidem, p.36-37.
71
3.2 O discurso perverso
Como apontei anteriormente, a perversão foi primeiro uma discussão moral que só
teve interesse médico tardiamente e de forma indireta, que não era uma matéria específica
de uma clínica, mas uma classificação, associada à conseqüente sanção, a ser imposta por
instâncias legais. A medicina passou a tratar do assunto a pedido dos magistrados. O termo
era delimitado por uma legislação, religiosa ou laica, conforme o contexto sócio-político de
cada época. O código penal francês do século XIX, por exemplo, estabelecia punição, quando
se tratava de comportamentos sexuais, somente diante da configuração de escândalos públicos
do ultraje dos bons costumes ou de atentado ao pudor. Nessa segunda eventualidade,
existia falta em função de dois elementos, a idade (ou seja, a menoridade da vítima) e o não
consentimento do parceiro. O comportamento perverso não era punido enquanto tal, mas sim
por suas conseqüências. Os tribunais franceses da época não legislavam em questões privadas.
Desde que o parceiro não fosse menor de idade, os cidadãos maiores podiam chegar ao
orgasmo por todos os meios que julgassem apropriados. A noção de perversão e o julgamento
do réu prescindiam do aval da medicina. Segundo Lanteri-Laura, em Leitura das Perversões,
quando havia perícia, o discurso médico era menos para sustentar uma psicopatologia sobre o
réu, já que visava tão-somente do que descrever ao tribunal os danos sofridos pela vítima.
A definição clínica de perversão começou a ser elaborada no século XIX, a
princípio, associando as múltiplas condutas sexuais, consideradas aberrantes pela sociedade,
como variedades da alienação mental. Por muito tempo, a glosa perversa esteve a serviço da
linguagem corrente desvinculada de qualquer emprego técnico ou científico. A partir de
meados século XIX, no entanto, passou a pertencer igualmente ao uso corriqueiro e ao
emprego médico. Ademais, havia também uma diferenciação entre perversão e perversidade
mesmo antes do discurso médico se apropriar dos termos. Em língua portuguesa, no entanto,
ao longo da história, houve uma confluência na demarcação semântica dos termos, apesar de
uma tendência jurídica de apropriar-se do termo perversidade e da medicina de incorporar o
termo perversão ao seu discurso.
Ambos são derivados do latim, respectivamente, perversione e perversitate.
Segundo Lanteri-Laura, perversão era usada no plural e perversidade no singular. Numa
distinção inicial, o primeiro termo designava comportamentos, o segundo denotava uma
disposição permanente do caráter. Por fim, foi se consolidando uma demarcação na qual as
perversões eram condutas que se passavam, na realidade, pelos atos de alguém, enquanto
perversidade era uma falha mais ou menos grave que residia no sujeito. Assim, “as perversões
72
relacionava-se com o comportamento sexual, ao passo que a perversidade remetia à
agressividade, bem como a duplicidade cruel e maligna, determinando inexoravelmente o mal
em outrem”
104
.
Em Marquês de Sade e Sacher-Masoch, encontramos essas duas palavras
imbricadas, tanto o aspecto da representação sexual obscena, quanto uma disposição
agressiva, desviante da norma, estão singularizados à maneira literária de cada um. Como
observa Deleuze, tão diferentes e ao mesmo tempo tão próximos, Sade e Sacher-Masoch nos
apresentam quadros de sintomas e de signos que se ligam ao nome próprio de cada um,
designando duas perversões básicas que foram incorporadas aos manuais de psiquiatria. Não
podemos deixar de destacar, no entanto, que as noções de masoquismo e sadismo foram
demarcadas menos pelas considerações da vida íntima dos sujeitos que lhes emprestaram os
nomes, mas, principalmente, a partir das obras literárias que produziram, resultante talvez, de
uma possível satisfação estética da pulsão perversa, convertida em belle-lettre.
Para Deleuze, um escritor como Sade e Masoch não são doentes, mas antes,
grandes clínicos, deles mesmos e do mundo. Segundo o filósofo, se a psiquiatria fala de
masoquismo é porque glorifica Masoch e Sade por terem renovado entidades clínicas,
definindo-as não apenas pelo vínculo sofrimento-prazer sexual, mas através da investigação
de comportamentos mais profundos associados a experiências psíquicas que conjugam
escravidão e humilhação, dominação e dominado, senhor e escravo. Em Sade e Masoch, a
própria patologia associada à perversão é posta sob suspeita quando se intenta analisar a vida
desses autores a partir das obras que deixaram. Os textos que escreveram apresentam-se como
empreendimentos de saúde, mas devem ser considerados para além de uma clínica”, de uma
terapêutica, e mais distantes ainda de uma sintomatologia patológica. O objetivo da literatura
como empreendimento de saúde consiste em falar não de uma doença ou de uma cura, mas
daquilo que não sabemos, do que não nomeamos, ou ainda, como quer Deleuze, cabe à escrita
literária inventar um povo que falta. Aliás, nem mesmo se escreve com as próprias doenças,
diz o filósofo, pois um estado patológico não é processo, mas parada de processo:
Em todo caso, “doentes” ou clínicos, e os dois ao mesmo tempo, Sade e Masoch são
também grandes antropólogos, à maneira daqueles que sabem engajar em suas obras
toda uma concepção do homem, da cultura e da natureza — grandes artistas, à
maneira daqueles que sabem extrair novas formas, criar novas maneiras de sentir e
de pensar, e toda uma linguagem nova.
105
104
LANTERI-LAURA. Leitura das Perversões, p. 36-37.
105
DELEUZE. Apresentação de Sacher-Masoch, p. 19.
73
É mais alentador, por isso, pensar que um autor talvez seja o antropólogo da
doença e não o terapeuta dela. O escritor não é o doente lamuriando sobre o seu mal-estar,
mas sim é aquele que escreve sob o signo diferencial da perda, da fenda, do corte, submetido,
portanto, à lógica de uma falta ou de um excesso, que perturba a si mesmo e ao leitor. Todo
criador de arte é desafiado pelo anormal, pela anomalia, pelo desvio, quer seja amoral ou
imoral, ainda que o desastre ou o fracasso o ameace constantemente. Analogicamente, talvez
esteja o escritor mais próximo de um médico do que de uma doente, como pensa Deleuze,
mas o diagnóstico que o escritor elabora não é da mesma ordem discursiva de um naturalista
que quisesse elaborar uma tese, examinando, catalogando, classificando e controlando a
sintomatologia de uma doença.
Quem escreve investe no nascimento impossível dos seres aquém e além da
normalidade estabelecida por uma possível cura. Contudo, ainda que siga passo a passo a
doença genérica do homem, tudo tem inicio a partir da sua própria doença, faz seu texto
através dela, deixando em cena, de maneira mais ou menos explícita, o seu sintoma. Nesse
caminho, o personagem Karl, em Cartas de um Sedutor, é aquele que assume ostensivamente
a sexualidade desviante. Esse personagem nos fornece pistas da linhagem literária, que apesar
do desdém, encontra-se filiado:
Tenho horror de escritor. A lista de tarados é enorme. Rimbaud, o tal gênio: catava
os dele piolhos e atirava-os nos cidadãos. Urinava nos copos das gentes nos bares.
Praticamente enlouqueceu Verlaine. (E a mãe de Verlaine? O que querem dizer
aqueles fetos guardados nos potes de vidro em cima da lareira? Mãe de escritor
também não é fácil. Seriam irmãozinhos de Verlaine?) Outro doido. Deu um tiro em
Rimbaud. Se não me engano, incendiou a própria casa. Depois Proust: consta que
enfiava agulhas nos olhinhos dos ratos. E espancava os coitadinhos. Genet: comia os
chatos que encontrava nas virilhas do amante. Foucault: saia às noites, todo de couro
negro, sadô portanto, ou masô, dando e comendo roxinhos. O próprio Mishima,
louco por soldados suados e por sangue. Gozou a primeira vez vendo uma estampa
de São Sebastião flechado.
106
3.3 Sob o signo da errância
Cabe ressaltar que a nossa intenção até aqui é desvincular a perversão do discurso
de uma medicina naturalista para pensá-la como dispositivo literário, sublinhando como
uma confluência discursiva entre pornografia e perversão. Trataremos especificamente da
106
HILST. Cartas de um sedutor, p. 74.
74
perversão como discurso e avançaremos pra uma concepção de pornografia que solicita a cena
perversa como estratégia estética.
Para ampliar a problematização, interessa-nos aqui explorar as implicações do
aporte psicanalítico freudiano em suas primeiras formulações a respeito das perversões. Em
carta a Fliess, Freud relata que vinha sonhando com uma religião demoníaca primeva, cujos
ritos são executados secretamente. Nesta carta de 24 de janeiro de 1897, o psicanalista
apresenta um entendimento diferenciado da perversão, vista por ele, na contramão do discurso
médico corrente, como uma remanescência de um culto sexual primevo, semelhante ao que,
em certa época, no Oriente Semítico foi uma religião:
Em minha mente está-se formando a idéia de que, nas perversões, das quais a
histeria é o negativo, podemos ter diante de nós um remanescente de um culto
sexual primevo que, no Oriente semítico (Moloch, Astarte), em certa época, foi, e
talvez ainda seja, uma religião…
As ações pervertidas, além disso, são sempre as mesmas têm um significado e
são executadas segundo um padrão que há de ser possível compreender.
Portanto, venho sonhando com uma religião demoníaca primeva, cujos ritos são
executados secretamente, e compreendo o tratamento severo prescrito pelos juízes
das bruxas. Os elos de ligação são abundantes.
107
aparece nessa carta o aforismo que se repetirá ao longo das articulações
freudianas iniciais sobre a perversão, qual seja, de que a neurose seria o negativo da
perversão. Se a perversão é o negativo da neurose, é porque o perverso sustenta em ato uma
posição apenas imaginada pelo neurótico. que se ressaltar que a experiência perversa
antevista pelo neurótico, através da fantasia, é da mesma ordem da anteface que emerge em
seu sintoma. O negativo aqui não tem implicação moral, simplesmente demarca o não saber
derivado do próprio desvio pulsional que escapa ao controle do recalque neurótico. Ainda
segundo Freud, o neurótico passou em sua infância por uma fase perversa polimorfa que foi
precursora e pré-condição para o posterior desenvolvimento da censura no sujeito. O que na
criança era ato puro e simples no limite da própria impotência da infância, transformou-se na
posterior moralidade excessiva do indivíduo. Por outro lado, vamos insistir neste ponto:
uma vivência primitiva reatualizada na experiência sexual do perverso, como se este
retornasse ao imaginário adâmico, enquanto o neurótico vislumbra tal desvio de norma,
mas quase sempre sofre com as reminiscências do fantasma perverso.
107
FREUD. Carta 57, p. 292.
75
Mas os neuróticos são, como observa Freud, acima de tudo, inibidos em suas ações:
neles, o pensamento constitui um substituto completo do ato. Os homens primitivos,
por outro lado, são desinibidos: o pensamento transforma-se diretamente em ação.
Neles, é antes o ato que constitui um substituto do pensamento, sendo por isso que,
sem pretender qualquer finalidade de julgamento, penso que no caso que se nos
apresenta pode-se presumir com segurança que ‘no princípio foi Ato’.
108
O Gênesis presta-se aqui a uma auscultação da experiência perversa na origem
mítica do homem civilizado. Ao comer a maçã, o casal primevo, seduzido pela tentação de
uma serpente, inaugura uma erótica da transgressão e uma experiência estética associada à
erotização da nudez. O corpo nu ganha assim uma dimensão plástica voltada para a excitação
escópica. Em consonância com a persuasão da serpente, Rosolato postula que “querer per-
verter, estranho propósito, tem relação com essa sedução possível, a sedição do instante para
fazer o outro transgredir e encontrar a si mesmo em outra parte que não onde o conduziu a
cumplicidade — ou a fraqueza.”
109
O ato de Adão e Eva, ao transgredir a lei do pai, compreende uma ética e uma
estética derivadas da quebra de uma norma fundamental estabelecida pelo Criador do mundo.
Ordenou o Senhor ao homem: “Coma livremente de qualquer árvore do jardim, mas não coma
da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, certamente
você morrerá.”
110
A despeito da lei, o casal é induzido à desobediência por um “anjo caído”,
demiurgo do desejo de transgressão, que lhe insinua com a possibilidade de abarcar o poder
divino, de ampliar o mundo para além do paraíso.
Depois do revés, a certeza de morrer e a possibilidade de gozar. Existe um alento
reservado à própria queda: no culto primitivo do qual o perverso seria o devoto, entrega-se
voluntariamente ao rebaixamento, ao declínio, à dor, às experiências escusas, licenciosas ou
lúbricas, como um meio pessoal de não ser submetido à lei asseverada pela onipotência do
Outro. Esse é o legado que o casal primevo deixa a todos os filhos errantes, para os quais o
destino é feito à medida de seu gozo. O perverso é, portanto, aquele que vive sob “o signo de
Caim”, potencialmente inflado pelo vigor das pulsões que não foram recalcadas.
Janine Chasseguet-Smirgel observa que a neurose obsessiva é uma religião
privada, enquanto a perversão seria equivalente de uma religião do diabo. Nessa mesma linha
de pensamento, o psicanalista Guy Rosolato diferencia a perversão da neurose obsessiva
através da analogia que aproxima a primeira da gnose e a segunda das religiões com tradições
108
FREUD. Totem e Tabu, p.191.
109
ROSOLATO. “Estudos das perversões sexuais a partir do fetichismo”. In:
O desejo e a perversão, p. 34.
110
BÍBLIA sagrada. A.T. Gênesis (NVI), 2, 16-17.
76
ritualizadas. Por certo, até mesmo uma religião como o cristianismo, conseguiu se firmar
depois do esforço de se libertar de correntes gnósticas. No entanto, como na neurose não sem
antes ter sofrido uma atração dessas forças e ter de voltar a elas para certas inspirações e para
a necessária transformação do modelo estagnado, já sem potência criadora.
São chamadas de gnósticas as doutrinas heréticas que surgiram no século I,
baseadas nos conhecimentos esotéricos da verdade espiritual, combinando mística,
sincretismo religioso e especulação filosófica. A partir da definição de Bataille, Eliane Robert
Moraes mostra como a gnose, como forma de pensamento, se opõe radicalmente até mesmo
às filosofias clássicas:
As concepções gnósticas do início da era cristã propõem uma subversão dos ideais
da antiguidade greco-romana ao introduzir em seu discurso ”os fermentos mais
impuros”, substituindo as formas elevadas pelas figuras mais baixas. Por recusarem
a linearidade e a homogeneidade próprias das concepções acadêmicas, as imagens
polimorfas da gnose provocam intensas desordens filosóficas”, o que por certo está
na origem de sua desqualificação enquanto ”pensamento decadente”.
111
3.4 Por uma estética do sintoma
Esses esquemas comparativos, que nos servem para fazer descrições diferenciais,
são freqüentes na literatura psicanalítica. Eles permitem ampliar a especificidade de cada
campo e explorar a linguagem analítica para além da dimensão clínica. Avançamos assim
pelas interfaces da psicanálise aplicada com o objetivo de investigar a possibilidade do
sintoma. Com efeito, podemos considerar que uma obra realista estaria para a plasticidade
obsessiva e a exacerbação sentimental romanesca resultaria de uma plasticidade histérica, tal
como a pornografia seria o palco privilegiado da economia perversa.
Na plasticidade do discurso histérico percebemos escrúpulos exacerbados,
remorsos exagerados, que nos parecem falsos, e a solicitação de um outro que para ela é
completamente inviabilizado, sem negociação possível, sem substituto. Por isso chora,
lamenta, seu discurso rodopia, desliza de uma dor à outra, dissolve os fatos vertiginosamente,
como se chamasse o outro para a mesma impossibilidade, desafiando o saber do analista,
induzindo-o à mesma incompreensão do qual seu sintoma se beneficia. Dessa forma, a
histérica postula a inviabilidade do seu desejo. Ela derrama publicamente seu fracasso no
111
MORAES. O corpo impossível, p.200.
77
corpo dilacerado por males do amor. Ninguém melhor que a histérica sustenta o discurso do
sofrimento amoroso.
Que voz é essa que se ouve nas confissões e nas cantigas de males de amor, nas
novelas românticas, nos boleros, nos sambas-canções? Seria a da histérica, dito de outra
forma, seria o desdobramento estético de um sintoma marcadamente histérico, ou melhor, o
que de histeria ? Tão próximo do canto da sereia, como ouvi-lo sem se sentir ameaçado?
Para pensar nessas questões, podemos ouvir Dalva de Oliveira, evocar toda a representação do
sofrimento amoroso que ela viveu e cantou: “Não tem mais fim, este tormento que o nosso
amor deixou em mim.” “Errei sim, mas foste tu mesmo o culpado.” “Se chorei, se sorri, juro
que não sei dizer que mal eu fiz, para você me fazer tão infeliz.” “Onde estás coração? Não
sinto o teu palpitar....”
112
No próprio corpo, a histérica testemunha o seu fracasso, seu corpo grita o fracasso,
como se não tivesse nenhum segredo, ou de outra forma, para não guardar em segredo o seu
próprio mal-estar. A histérica se expõe como se não tivesse inconsciente, totalmente voltada à
chantagem exterior. Seu sintoma aparece numa conjugação aparentemente desencontrada
entre uma dupla angústia, como observa Júlia Kristeva:
O histérico deseja o máximo gozo simbólico e físico, sempre postulando a
impossibilidade, quando não a inanidade, desse desejo. Este desencontro reveste
formas bem conhecidas: sedução permanente e frigidez; erotização da ligação aos
outros e ao mundo e auto-sensualidade intocável; precipitação verba e
desconsideração da palavra; exaltação erotomaníaca e tristeza inexorável,
depressividade subjacente; provocação do pai e de seu saber e corpo espasmódico,
colérico ou mútico até o mórbido com a rival, o duplo, a mãe.
113
Mas por que o discurso histérico decepciona, incomoda quem ouve, é visto como
um fracasso estético, como uma caricatura da arte? Parece-nos que nas histéricas um
sofrimento sem fim, que vai se intensificando, cooptando todos em volta para sua dor, como
se quisesse petrificar o outro num movimento para sempre enganoso, um psicodrama patético,
uma chantagem, que conduz esse outro para o absurdo, para o ridículo da existência. Não nos
parece que são histéricas todas as mocinhas das novelas românticas?
Diria uma heroína de um romance romântico ao seu leitor potencial: desafio-lhe a
sair incólume após ouvir o meu pranto, após ver, ler, imaginar meu corpo maltratado,
dilacerado pelos desencontros do amor. Diante disso, mobilizamos uma série de mecanismos
112
OLIVEIRA, Dalva de. (Interp.). Grossas nuvens de amor. CD.
113
KRISTEVA. As novas doenças da alma, p. 79.
78
defensivos. Não como escapar: ou somos levados a nos identificar com seu sofrimento,
reconhecê-lo, ou deslocamos nossos próprios afetos das representações que ela nos impõe
para uma muralha impenetrável, construída a partir de uma intelectualização que quer afastar
qualquer possibilidade emotiva. Assim se preenche um vazio que nos é comum, mas
desidrata-se o desejo para não percebermos a incompletude, o desencontro, a falta, a falha.
Parece-me que no bolero, no samba-canção, assim como em outras
manifestações artísticas marcadas pelo exagero emocional, pelo intenso, pelo absurdo, algo
que é insuportável para algumas pessoas: a experiência histérica. É como se fosse impossível
partilhar da angústia e da excitabilidade da fala histérica. Por isso utiliza-se de mecanismos
obsessivos para tentar calar uma representação que é incômoda, que é estranha justamente no
que lhe foi extremamente familiar. Esteticamente, para que o discurso histérico não seja
somente uma caricatura da obra da arte, penso se talvez não seja necessário amalgamar a
angústia e a dor que gritam no corpo histérico com o cálculo, a intelectualização à maneira de
um obsessivo, para dar-lhe uma forma, trabalhar sua enunciação.
Nessa trilha, cabe ao esforço obsessivo depurar a linguagem, preocupar-se com o
detalhe, proceder segundo a norma, guardar obediência às regras tendo em vista a parcimônia,
o controle e, até mesmo, a depuração estética. Resta a perversão, por outro lado, bagunçar
tudo isso, suspender a Lei, transgredi-la ou reformá-la, ainda que obedeça à gramática
fetichista do seu desejo. E se o histérico obedece à vontade daquele a quem se dirige sua
sedução, se a sugestionibilidade do seu desejo reforça a armadilha a qual se prende em sua
constante insatisfação, o perverso, aparentemente da mesma forma, mas em outra relação
dinâmica, fixa-se na lei a ser transgredida, obedecendo ao imperativo do seu gozo. Para o
desviante, tudo acontece como se devesse antes de mais nada transgredir uma lei, de forma
continua, repetitiva e incessante, submetendo-a à lei de seu desejo.
Para que os discursos “histéricos” e “perversos” não sejam plasticamente uma
caricatura, penso se talvez não seja necessário desmentir a angústia e a dor que gritam no
corpo histérico e romper com a gramática do gozo perverso, à maneira obsessiva de trabalhar
a forma, redefinindo a própria enunciação estética dos seus discursos. Mas não nos
esqueçamos de que no obsessivo um excesso de excitação impulsiva e compulsiva,
combinação muitas vezes explosivas, que só a custo do automatismo libidinal e do
cerceamento mental pela repetição pode ser precariamente controlado. A palavra obsessiva se
impõe categoricamente como uma armadura impenetrável impedindo um retorno afetivo ou
pulsional. Podemos perceber na neurose obsessiva como a força da pulsão recalcada é vivida
79
como uma tentação perigosa que se deve a todo custo controlar através de medidas de
proteção compulsivas com as quais o indivíduo se cerca.
Como o interesse de nossa pesquisa não é o aspecto clínico, mas o estético-
literário, que se acentuar que o poder de gozo de um perverso é sempre subestimado. A
perversão traz um desafio crítico ou teórico para os discursos normativos. Roland Barthes,
numa instigante percepção, ressaltou o poder daquele que se desvia da norma. O referido
semiólogo destacou a perversão como uma figura invocável e uma via de intercessão,
concluindo que: “a Lei, a Doxa, a Ciência não querem compreender que a perversão,
simplesmente, faz feliz; ou, para ser mais preciso, ela produz um mais: sou mais sensível,
mais perceptivo, mais loquaz, mais divertido, etc. e, nesse mais, vem alojar-se a diferença
(e, portanto, o Texto da vida, a vida como texto)”
114
.
De outro modo, sobre os perversos, Lacan observou que “há neles uma subversão
da conduta apoiada num saber-fazer, o qual está ligado a um saber, ao saber da natureza das
coisas, uma embreagem direta da conduta sexual sobre o que é sua verdade, isto é, sua
amoralidade.”
115
A relação do pervertido com a lei, a proibição e a função paterna aparece
como determinante estrutural, como se houvesse um dever de transgredir a norma, sem cessar,
e substituir por ela a lei do seu desejo. Tanto a diferença dos sexos quanto a proibição do
incesto, à qual o perverso não consegue associar a lei, seriam desmentida por ele. Parece-nos,
por isso, que a qualidade estética na pornografia não só é tributária das figuras que ostentam a
inversão sexual, como está diretamente associada, em termos estilísticos, aos mecanismos
perversos de enunciação. Nesse procedimento estético, os enunciados são desviados ou
alterados metonimicamente até emergirem como texto erógeno.
Se no neurótico, o recalque é o mecanismo estrutural de sua defesa, no perverso
encontraremos a fixação e renegação da realidade (Verleugnung). No caso específico do
fetichista, Freud observa que este se recusa a reconhecer a existência da percepção
traumatizante da ausência do pênis na mãe. E para desmentir tal constatação, o sujeito
perverso vai fazer uma elaboração substitutiva, que neutraliza a angústia através da fixação
em um objeto fetiche.
Em todas as suas formas de negar a castração, de desmentir a falta, o perverso vai
se colocar na contramão da norma, da “lei do pai”. Contudo, ao se opor à lei, negar a
castração, o perverso acaba por se fixar à outra lei, por sua vez, identificado-se com o “pai
114
BARTHES, R. Roland Barthes por Roland Barthes, p.77.
115
LACAN. O seminário, livro 20. p. 117.
80
primevo” do qual trata Freud em Totem e tabu. Preso à pré-história da lei, o perverso fica
assujeitado ao imperativo categórico de dever gozar, obedecendo ao “Outro” que o fixa a um
fetiche. Mas até mesmo por isso, há uma vivência diferenciada do corpo na perversão.
3.5 E o verbo se fez carne
Havia uma elaboração em Freud do corpo habitado pela linguagem, que
posteriormente, como observa Queiroz, foi se desdobrando, através do entendimento de outros
teóricos, em várias noções de corpo: o corpo pulsional, o corpo erógeno, o corpo imaginário, o
corpo simbólico e o corpo sujeito. Em Lacan, especificamente, a dimensão corporal se
abordada na perspectiva dos três registros da experiência do sujeito: real, imaginário e
simbólico.
Na primeira, a do corpo enquanto real, ele é concebido mais próximo da noção de
organismo, embora não seja redutível a este, funcionando como matéria-prima e
fonte de energia. Na segunda, a do corpo imaginário, ele pode ser entendido como
aquele que permite pensar o ser enquanto constituído numa Gestalt, numa imagem,
efeito de superfície resultante da ação do simbólico no real que transforma a
matéria-prima em corpo erotizado. O Estádio do Espelho, de Lacan, destaca a
montagem dessa Gestalt do corpo, condição estruturante do sujeito. E, por último, o
corpo simbólico no qual está implicado o sujeito falante, capaz de representar e
converter para o corpo os seus pensamentos, fantasias etc.
116
As três possibilidades de registro do corpo, acrescenta Queiroz, de acordo com a
perspectiva de Lacan, estão enodadas, servindo de unidade mínima para a constituição do
sujeito. uma ordem simbólica prevalente, marcada pelo “Outro”, pela linguagem. Nessa
perspectiva, o corpo não pode mais ser concebido puramente como organismo, pois nele está
implicada uma condição relacional: “Eu-Outro”.
Também sob uma lógica triádica, Hilda Hilst escreve Tu não te moves de ti.
Construído de maneira enganosa como um romance-tese ou como uma novela alegórica, o
livro está dividido por uma estrutura dialética. As partes do livro se complementam
precariamente sob uma lógica triádica: “Tadeu (da razão)”, “Matamoros (da fantasia)”,
“Axelrod (da proporção)”.
Em “Tadeu (da razão)”, encontraremos o executivo homônimo frustrado e acuado
por sua pragmática esposa Rute, que tenta a todo custo moldá-lo à dinâmica mercantil
116
QUEIROZ. A clínica da perversão, p. 103.
81
capitalista. não vendo sentido em sua atividade, Tadeu passa a sofrer anseios poético-
metafísicos, incabíveis sob a luz da razão e à vida conjunta com Rute. Doravante, vai se
proteger, ou se projetar, em outro lugar, na sua fantasia. Tadeu, o homem deus (portanto,
Tadeus), o verbo, faz-se carne em “Matamoros”.
não mais sinais do mundo de Rute em “Matamoros (da fantasia)”. Como
observa Pécora, nas notas introdutórias ao livro, neste espaço inatual “a realidade é
exclusivamente da poesia antiga, desde a que ocorre nos cantares bíblicos até a que narra
amores pastoris vagamente clássicos, mas sempre abertamente sensuais”
117
. Maria
Matamoros vive em um lugar de delícias, em puro êxtase com o homem perfeito, que por
aparece e a desposa. Ela passa a chamá-lo de “Meu”. É nesta parte que Hilda Hilst vai aos
poucos nos fornecendo elementos para pensar sobre uma poética da perversão. Diz a
personagem homônima:
Matamoros talvez porque mato-me a mim mesma desde pequenina, não sei, toquei
os meninos da aldeia, me tocavam, deitava-me nos ramos e era afagada por meninos
tantos, o suor que era deles se entranhava no meu, acariciávamo-nos junto às vacas,
eu espremia os ubres, deleitávamo-nos em suor e leite e quando a mãe chamava o
prazer se fazia violento e isso me encantava...
118
Busca-se uma outra versão, altera-se o texto, tanto em Tu não te moves de ti,
quanto na polêmica trilogia pornográfica de Hilda Hilst. Portanto, não basta explorar a
linguagem sexual em seu aspecto denotativo, quando se vai ampliando todos os gestos da
sexualidade em um “discurso mostração”. Na explicitude vernacular que o texto obsceno da
escritora requesta, o corpo é levado ao excesso, mas também é reduzido ao seu estado poético,
ao seu estado de carne. No sutil jogo de Hilda Hilst, na especificidade da sua construção
literária, a palavra vai adquirindo valor de ato sexual, de carnalidade, de lubricidade.
Efetivamente, em Tu não te moves de ti, o corpo é o lugar sobre o qual as formas do conflito
se inscrevem. O fantasma de Tadeu é tomado ao pé da letra em “Matamoros”, de modo que as
mais primitivas inscrições da fantasia do personagem ganham forma e corpo na linguagem, no
seu fetiche de uma poesia carnal. A personagem Matamoros vai assujeitar-se ao delírio carnal
e poético para atender àquele que ela chama também de “Tadeus”.
Na última parte do livro, “Axerold (da proporção)”, o historiador homônimo faz
uma viagem de trem em direção à região onde vivia Maria Matamoros e sua mãe, Haiága, tia
do referido personagem. Axerold encaminha-se para o espaço poético da sua gente, mas o
117
PÉCORA. Nota do organizador. In: HILST, H. Tu não te moves de ti, p. 13, 1980.
118
HILST. Tu não te moves de ti, p. 61.
82
tempo já é outro. Nesse percurso, há algo que não é controlado por seu pensamento científico,
alguma coisa está sempre escapando. Por mais que se mova no espaço ou nas conjecturas do
seu pensar, permanece preso ao “Isso” que conduz sua vontade, ao que desorganiza a história
e faz confundir seu pensamento e sua ortodoxia supostamente socialista. Assim, a esperada
síntese dialética em função de um horizonte utópico não acontece, não apaziguamento
possível para as demandas da carne. Ao longo da leitura, vamos percebendo um
desmantelamento sistemático e progressivo das próprias certezas de uma relação dialética.
Pécora, no artigo “Hilda Hilst: Call for paper”, conclui que:
Do conjunto narrativo, portanto, cujo início trataria aparentemente de se resolver os
dilemas da esterilidade do capitalismo pelo gozo transcendente da poesia, não se tem
ao final senão uma aporia dolorosa. Não descanso possível na poesia, a não ser
como expectativa ingênua de neófitos, nem o trem da história chega a descobrir
qualquer fundamento segura para a esperança e a utopia. Ao fim e ao cabo,
predomina a pressão da urina no compartimento estreito, como a da poesia, aguda,
dolorosa, no núcleo do desejo agônico e irredutivelmente pessoal.
119
Como podemos observar, o cenário carnal e o seu rebaixamento estava inscrito
não em Tu não te moves de ti, como em outras obras em prosa de Hilda Hilst anteriores à
trilogia pornográfica. Não hiato entre os textos considerados “sérios” por certa crítica e as
denominadas pornográficas, como observa Pécora nas notas introdutórias da recente reedição
de Com meus olhos de cão. Editado pela primeira vez em 1986, esse livro é o último título em
prosa que antecede o lançamento da trilogia. Ainda de forma mais radical, o organizador das
obras da escritora para a reedição da Editora Globo ressalta que “a obra obscena de Hilda
significa a reta de coroação das questões de toda a sua obra anterior, e, portanto, está longe de
ser um simples estratagema comercial para atrair a atenção sobre a sua obra supostamente
séria”.
120
Para Pécora, a trilogia pornográfica é o lugar preciso, conseqüente e sério, segundo
pensa, de destinação das questões básicas da obra de Hilda Hilst. Vale destacar, como
exemplo, os apontamentos pornográficos que emergem em contos breves do livro Com meus
olhos de cão: “Primeiro conto (vulgo short stories) Mãezinha, ando farto das suas besteiras
sobre moralidade e família à hora do jantar. Já te vi várias vezes chupando o pau de papai. Me
deixa em paz. Assinado, Júnior”.
121
119
PÉCORA. Hilda Hilst: Call for paper. Germina Revista de Literatura e Arte. Disponível em:
<http://www.germinaliteratura.com.br>.
120
PÉCORA. Nota do organizador. In: HILST, H. Com meus olhos de cão, p. 6-7.
121
HILST. Com meus olhos de cão, p. 19.
83
Nesse mesmo livro, a autora mescla passagens licenciosas com outras bricas de
impactante concupiscência poética, desvelando uma das facetas da sua literatura: a erotização
crescente da palavra. Na seqüência citada logo abaixo, a cena sexual explicita o excêntrico
fetiche que singulariza a perversão, à maneira que, posteriormente, será desenvolvida por
todos os personagens-narradores da trilogia pornográfica hilstiana: todos eles são marcados
pelo fetiche da escrita ou têm o livro como fetiche, como percebemos nesta passagem:
O púbis saltado como se de espanto te visse pela primeira vez, e estava ali saltando.
Rija Libitina, os peitinhos dos vintes. Arfava fingindo, expulsava ós ais benzinho tu
me mata me corta de gilete me põe o armário em cima e outros idiotias, os dentes de
criança, a gengiva larga, põe no meio das minhas coxas teus livrinhos, ela pediu uma
vez como se suspeitasse de alguma tara minha, não quer? não quer gozar pertinho do
que você mais gosta, desses teus livros hein, não quer benzinho?
122
3.6 A carne oferecida ao progenitor
“Ato fenomenoso esse de se deitar com o pai.”
Hilda Hilst, Tu não te moves de ti
Com o objetivo de ampliar a investigação através da comparação, porém, sem
pretender confundir literatura e vida, não é esta a intenção desta leitura da obra de Hilda Hilst
— como pensa Deleuze “a literatura é delírio, mas o delírio não diz respeito a pai-mãe: não
delírio que não passe pelos povos, pelas raças e tribos, e que não ocupe a história universal”
123
—, desloco o interesse para uma estética vinculada à encenação perversa que é
desenvolvida na obra de Hilda Hilst e, ainda de maneira mais extrema, em obras como a de
Marquês de Sade, Sacher-Masoch, Jean Genet e os textos literários de Bataille.
Podemos rastrear a comunidade, sob o “signo de Caim”, ao qual a escritora se
filia, partindo de um traço biográfico que a escritora sempre evocava: a fantasiosa relação
incestuosa com o pai. A cena, investida de desejos lascivos pela escritora, constantemente
representada na sua literatura, leva-nos a considerar não um entrelaçamento direto entre a vida
e a obra, mas duplicações e articulações dialógicas do cenário primitivo que persiste no
122
Ibidem, p. 25.
123
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 15.
84
imaginário da escritora. Em várias entrevistas que concedeu, Hilda Hilst citava que seu pai foi
a razão dela ter se tornado escritora, que todo seu trabalho está ligado a ele, que fez toda sua
obra através dele.
No livro Cartas de Um sedutor, essa fantasia é deslocada para o corpo da
personagem Cordélia, irmã do personagem-narrador, Karl. O mito da filha que embriaga o pai
para dormir com ele aparece nas primeiras especulações incestuosas que o narrador
compartilha com a irmã ela é o destinatário das cartas que compõem boa parte do livro,
conhecemos seus desejos pelas missivas do irmão. Ambos comungam um desejo ardente por
um pai suspenso no espaço e no tempo da narrativa. Segundo comentários do missivista,
sabemos que esse pai possui uma formosura ímpar, plasticamente perfeito, e seduzia a todos
ao redor, homens e mulheres. Ao longo das correspondências, após algumas descrições
lúbricas e delirantes em relação ao pai, Karl pergunta à irmã se ela foi Mirra alguma vez.
Lança, dessa forma, a suspeita e a provocação à irmã: “E agora lembrei de Mirra que
embriagou e seduziu o rei Ciniras, seu pai, e teve um filho do próprio. Mirra, sim, é que
ilustra com perfeição o chamado complexo de Édipo. Pobre Édipo! Pois nem sabia que a
outra era a mãe.”
124
Na última carta que Karl escreve a Cordélia, impregnado de despeito por
ter sido excluído da cumplicidade perversa entre pai e filha, o personagem demonstra a
compreensão invejosa da realização cabal, pela irmã, do desejo incestuoso que ambos
compartilhavam:
Então Cordélia-Mirra, Iohanis é teu filho e nosso irmão. Embriagaste o pai numa
noite de águas, junto às baías. E por isso te vi pálida na manhã seguinte arrumando
valises e malas... Nunca compreendi por que te foste. Agora sim. Vinte e quatro
anos e apaixonada. E grávida do pai. Tem então quinze o irmão? E dizes que nunca
posso vê-lo. Tu o que queres para ti, Palomita. Muito bem. É como dizia um juiz
(não o Eliézer, um outro) quando lhe recriminaram a fodança com as filhas: eu as
fiz, eu as como.
125
Manter relação marital com o filho que tivera com o próprio pai é uma inflação
hiperbólica, na qual uma atualização de um cenário primitivo, via de regra, sustentado por
um perverso. No mito constantemente lembrado por Hilda Hilst, da filha que embriaga o
próprio pai para que tenha uma noite de amor com ele, notamos a ambição perversa de
dinamizar o ato sexual pela transgressão fundamental, poder somente admitido ao pai
primevo.
124
HILST. Cartas de Um sedutor, p. 59.
125
Ibidem, p. 88-89.
85
Sade melhor que ninguém representou as combinatórias eróticas da transgressão
em sua obra. Vejamos então um ato cabal do desejo perverso de violação: “para reunir o
incesto, o adultério, a sodomia e o sacrilégio, ele enraba a sua filha casada com uma hóstia”.
126
Em outro quadro, o autor libertino infla a ação de elementos profanatórios que se
processam em cascata: “conta que conheceu um homem que fodeu três filhas que tivera de sua
mãe, dentre as quais havia uma moça que ele fizera casar-se com seu filho, de modo que, ao
fodê-la, fodia sua irmã, sua filha e a sua nora, e obrigava o filho a foder a irmã e a sogra”.
127
Identificamos no livro das origens, o Gênesis, a mesma encenação do ato
incestuoso imaginado por Hilda Hilst. Avisado sobre a destruição de Sodoma e Gomorra, foi
permitido ao Ló, sobrinho de Abraão, que fosse para um lugar seguro com sua esposa e suas
filhas, sob a condição expressa de que nenhum deles olhasse para trás. As duas cidades foram
destruídas por uma chuva de enxofre. Na mesma linhagem transgressora do casal primevo, a
mulher de Ló, num ato ostensivo de desobediência, tentada pela força destruidora que
transforma tudo em cinza incandescente às suas costas, não contém a curiosidade, volta-se
para trás e olhaquando não lhe era permitido. O que viu? (o obsceno?) Jamais saberemos, não
temos testemunho. Foi transformada em estátua de sal. Como tudo em sua volta foi destruído,
Ló foi morar com suas duas filhas numa caverna. Por se saberem sozinhas com o pai, as filhas
embriagam-no para que cada uma pudesse, a seu tempo, ter uma noite de amor com o pai:
Naquela noite deram vinho ao pai, e a filha mais velha entrou e se deitou com ele. E
ele não percebeu quando ela se deitou nem quando se levantou. No dia seguinte a
filha mais velha disse à mais nova: "Ontem à noite deitei-me com meu pai. Vamos
dar-lhe vinho também esta noite, e você se deitará com ele, para que preservemos a
linhagem de nosso pai". Então, outra vez deram vinho ao pai naquela noite, e a mais
nova foi e se deitou com ele. E ele não percebeu quando ela se deitou nem quando se
levantou. Assim, as duas filhas de Ló engravidaram do próprio pai.
128
É certo que uma nostalgia primitiva que se transforma em ato na perversão,
assim como a psicose nos fala da pré-história do sujeito. Contudo, enquanto a psicose nos
remete para aquém ou além da lei, para fora do registro simbólico, na perversão estaríamos
contra uma norma, mas ainda assim, seguindo uma outra lei, imperativa do seu gozo. Por isso,
poderíamos falar de uma imoralidade associada ao desejo perverso e de uma amoralidade
associada ao delírio psicótico.
126
BARTHES. Sade, Fourier, Loiola, p.25-26.
127
Ibidem, p. 25.
128
BÍBLIA sagrada. A.T. Gênesis (NVI), 19, 33-36.
86
Exclusivamente para os desviantes da sexualidade normal, o incesto é o ato a ser
constantemente atualizado e é a interdição primária a ser abolida. Essa proibição encontra-se
na origem da própria renegação da realidade e da recusa da castração que estruturam o desejo
perverso. O cenário incestuoso está presente, portanto, em todas as variadas formas de
transgressão reivindicadas pelo desejo do desviante. No excesso solicitado por seu gozo,
percebemos o movimento em sentido oposto às formas determinadas pela cultura e um
investimento, pelo avesso, sobre as interdições.
O perverso renega a “palavra paterna” em toda a determinação performativa que
essa expressão implica, mas recoloca no lugar do “pai simbolizado”, um “pai idealizado”, no
qual projeta sua onipotência narcísica, desviada assim da ordem castradora ou, como o mesmo
efeito, perfilando-se a uma diferente ordenação normativa. Na perversão, prevalece a filiação
ao imaginário primevo, que abona o investimento no gozo anterior a instauração do tabu do
incesto. Mas não esqueçamos que o desviante vive em torno de uma outra lei, ainda que na
contramão das regras morais estabelecidas culturalmente, que faz do seu gozo não um direito,
mas um dever. Esse seria o seu fracasso no âmbito estético. O fetiche, que atualiza essa outra
lei que rege o desejo perverso, não deixa de ser uma solução plástica pra o destino da pulsão
incestuosa, mas segue, de outra maneira, diferente da formação de compromisso neurótico,
uma normatização que faz da estética não uma saída criativa, e sim uma gramática de
procedimentos visando, desde já, um gozo antecipadamente previsto e catalogado.
A pornografia seria, nessa perspectiva, uma fantasia perversa posta em ato por
meio de estratégias estéticas na combinação do obsceno, do licencioso, do lúbrico e do
grotesco. O material pornográfico teria como principal finalidade alocar e prolongar, no ato
sexual que é colocado em cena, o prazer erótico tal como experimentado pelo desviante em
seu fetiche. Mas, e quando se quer que a gramática perversa falhe, o que resta? Na falha da
gramática, o que encontramos que singulariza o processo criativo da pornografia como
estética da perversão?
87
4. A CARNE: UMA SÓ MÚLTIPLA MATÉRIA
Ai, é:
Imagem sol
Imagem esfera
Monto
AGORA sobre o teu dorso
Ereto
Planisfera una e vertical
Plena
Umasómúltiplamatéria.
Hilda Hilst. Estar sendo. Ter sido.
A escrita de Hilda Hilst se movimenta em direção às possibilidades de
representação da carne, fluxo que deságua sintomaticamente na estratégia pornográfica que
estrutura a sua trilogia. De forma multifacetada, a matéria que escapa à organização corporal
emerge na própria dinâmica do texto em prosa da escritora estabelecendo relações entre partes
aparentemente desconexas. Associado, portanto, à idéia de um corpo pulsional, não
simbólico, o texto configurado em torno da dimensão carnal é construído sob uma plástica do
esfacelamento e do disforme.
Na pornografia representada através da escrita, mesmo que se considere alguma
defasagem da palavra em relação à imagem, uma compensação do imaginário quando o
verbo pode ser rebaixado ou potencializado em direção a carne. Imaginemos uma cena em
que duas pessoas mantêm uma relação sexual. Se a seqüência amorosa apresentada estivesse
em um manual científico, chegaria a nos parecer inocente. Entretanto, se ficarmos sabendo
que aqueles dois corpos entrelaçados são de uma mãe mantendo relação sexual com seu filho,
um pai com sua filha ou qualquer outra ordem de incesto ou transgressão moral,
imediatamente a imagem seria inflacionada pela palavra na representação da cena sexual, pois
é o verbo que permite nomear o ato de perverso. Não perversão fora da linguagem, como
88
também não pornografia que se esgota na imagem. Tal observação vai ao encontro da
percepção de Roland Barthes, para quem não existe crime antes que sejamos capazes de
nomeá-lo:
Eis que um homem copula com uma mulher, a tergo e juntando à sua ação um
pouco de massa de trigo. Nesse nível não nenhuma perversão. É somente pela
adjunção progressiva de alguns nomes que o crime vai pegar pouco a pouco,
aumentar de volume, de consistência e atingir a mais forte transgressão. O homem é
nomeado pai da mulher que está possuindo e dela diz que é casada; a pratica
amorosa é ignominiosamente classificada, é a sodomia; e o pouco de pão associado
estranhamente a essa ação se torna, sob o nome de hóstia, um símbolo religioso, cuja
denegação é sacrilégio.
129
A contrapelo das leituras que se apóiam na dimensão predominantemente
imagética da pornografia, investigaremos a potencialidade estética do cenário sexual a partir
de três direções intercambiáveis e complementares da representação da carnalidade pela
escrita. Abriremos três veredas para pensar as possibilidades literárias da carne. São elas: a
carne como matéria de rizomática, implicando a fragmentação do enunciado que se produz
em sintonia com o dilaceramento do próprio corpo do texto; a carne como recurso
metonímico, através da qual, pela palavra, constrói-se a imagem obscena que, tal como o
“corpo sem órgão” deleuziano, vai se esquivar ao juízo, buscando os pontos de fuga para se
desestratificar, descodificar-se e se desterritorializar; por fim, a carne como corpo pulsional,
produzida pelo rebaixamento da escrita, não no sentido moral, mas estético, representando
assim as intensidades livres e singulares que animam, numa dupla articulação da pulsão
escópica, o corpo do leitor e do autor, ao direcionar a imaginação para o baixo ventre, para os
genitais e para a explicitude da cena sexual.
Os enunciados pornográficos explorados taticamente pelos personagens-
narradores da trilogia hilstiana, cuja linhagem encontramos em obras como as de Marques de
Sade, Pierre Louÿs, George Bataille, Guillaume Apollinaire, dentre outros, não coincidem
com a conformação estabelecida segundo a noção de um corpo unificado pelo simbólico.
Parece estar em jogo, na radicalização da proposta pornográfica de todos esses autores, um
regime de signos que difere e ultrapassa a noção de unidade antropomórfica e de receptáculo
moral tal como defendidos por um certo humanismo.
4.1 A órbita gozosa estilhaçando
129
BARTHES. Sade, Fourier, Loyola, p. 187.
89
A carne é a matéria que escapa a uma determinação simbólica. Na literatura
pornográfica é ela a figura lúbrica a ser privilegiada. Afinal, é a dimensão carnal que é
vivenciada na concupiscência, quando na convulsão erótica, nos movimentos animalescos que
são executados pelos amantes, os órgãos genitais ficam liberados para os jogos que se
desenrolam para além da vontade consciente. Órgãos intumescidos ganham, nesses
momentos, vontade própria. Como observa Bataille:
Uma violência, que a razão não controla mais, anima esses órgãos, ela os tenciona
em direção ao rompimento e, subitamente, ceder à superação dessa tempestade é a
alegria dos corações. O movimento da carne excede um limite na ausência da
vontade. A carne é em nós esse excesso que se opõe à lei da decência. A carne é o
inimigo inato daqueles atormentados pela interdição cristã, mas se, como creio,
existe uma interdição vaga e global opondo-se à liberdade sexual sob formas que
dependem do tempo e dos lugares, a carne é a expressão de uma volta dessa
liberdade ameaçadora.
130
Diante da perspectiva de uma escrita pulsional, precisamos considerar o caráter
econômico do conceito de erotismo. Este, em seu excesso de energia libidinal, leva à
supressão dos próprios limites do corpo, liberando a sexualidade não em relação à
reprodução e à genitalidade, como é vivenciada na perversão, mas também rompendo
abruptamente com a gramática de excitação cil. O entretenimento sexual que a indústria
cultural absorveu e propagou insiste no engano de circunscrever a sexualidade somente na
dimensão genital, tendo como fim exclusivo o de provocar o delírio masturbatório pela
descrição e representação da cópula. A pornografia comercial intenta excitar o receptor ao
qual se dirige com a superficialidade da sexualidade, com as ações e os objetos tornados
óbvios pela gramática: nesse movimento regulador, a anatomia genital e o coito são
esvaziados de erotismo. De um ponto de vista estético, o fetichismo toma o objeto “como um
plano fixo e estático, uma imagem parada, uma foto a que voltássemos sempre para conjurar
as conseqüências importunas do movimento, as descobertas importunas de uma exploração:
ele representaria o último momento em que se podia ainda acreditar.”
131
Resistindo a essa domesticação, a erotização do texto de Hilda Hilst subtrai um
pagamento corporal ao sujeito. Contudo, a moeda de troca não é a da ejaculação promovendo
130
BATAILLE, 2004, op.cit., p. 144
131
DELEUZE. Apresentação de Sacher-Masoch, p. 34.
90
outra ejaculação, como quer a pornografia comercial. Contrariando a dinâmica behaviorista, a
subtração na pornografia hilstiana implica na abertura do corpo para uma multiplicidade
libidinal. Não limitação ou fechamento, pois o que se busca é produzir, por fim, novos
enunciados que conduzem a outros desejos e a diferentes prazeres. Portanto, mais apropriado
para se falar sobre o excesso extraído do corpo ou do efeito que o texto pornográfico de Hilda
Hilst produz, é a noção de auto-erotismo. Esse termo está associado ao conceito de
suplemento tal como proposto por Jacques Derrida. Segundo o filósofo:
a auto-afecção sexual, isto é, a auto-afecção em geral, o começa nem termina
como o que se crê poder circunscrever sob o nome de masturbação. O suplemento
não tem o poder de pro-curar uma presença ausente através de sua imagem: no-la
procurando por procuração de signo, ele a mantém à distância e a domina. Pois esta
presença é ao mesmo tempo desejada e temida. O suplemento transgride e ao mesmo
tempo respeita o interdito.
132
Por outro lado, se o texto é direcionado pela pulsão, por vários caminhos a sua
própria integridade corpórea se estilhaça, pois é movido por uma intensidade libidinal
contínua que passa da enunciação para o enunciado, quando a forma erotiza o conteúdo,
impulsionando a linguagem para além da sua regularidade normativa. Assim, quando a
gramática falha, a palavra pulsa como se fosse de carne. Então, o corpo do leitor é atravessado
pelas matérias instáveis construídas na escrita. Ainda que sejam produzidas pelas palavras, em
um regime simbólico, os enunciados seguem fluxos dinâmicos e singulares que abrem o corpo
do leitor para a alucinação do texto.
Em O prazer do texto, Roland Barthes nos faz ver como a escrita guarda com o
corpo uma relação de afinidade erótica, pois se aproximam quanto ao destino perverso da
pulsão que os guia: isso acontece quando a fruição da primeira não se limita ao seu
funcionamento gramatical e a satisfação do segundo não se reduz às necessidades fisiológicas.
Como observou o semiólogo:
Parece que os eruditos árabes, falando do texto, empregam esta expressão admirável:
o corpo certo. Que corpo? Temos muitos; o corpo dos anatomistas e dos
fisiologistas; aquele que a ciência ou de que fala: é o texto dos gramáticos, dos
críticos, dos comentadores, dos filólogos (é o fenotexto). Mas nós temos também um
corpo de fruição feito unicamente de relações eróticas, sem qualquer relação com o
primeiro: é um outro corte, uma outra nomeação; do mesmo modo o texto: ele não é
senão a lista aberta dos fogos da linguagem (esses fogos vivos, essas luzes
intermitentes, esses traços vagabundos dispostos no texto como sementes e que
substituem vantajosamente para nós as semina aeternitatis”, os zopyra”, as
noções comuns, as assunções fundamentais da antiga filosofia). O texto tem uma
forma humana, é uma figura, um anagrama do corpo? Sim, mas de nosso corpo
132
DERRIDA. Gramatologia, p.190.
91
erótico. O prazer do texto seria irredutível a seu funcionamento gramatical
(fenotextual), como a prazer do corpo é irredutível à necessidade fisiológica.
133
4.2 O corpo fragmentado: a via do excesso
Como organismo simbólico, o corpo é a unidade através da qual o homem se
constrói e se identifica para o outro. Na Modernidade, ele é o suporte material do trabalho
sobre o qual as formas de conflito se inscrevem. Mas se o processo de modernização nada
mais fez que o adestrar para o trabalho, transformando-o em “corpo dócil”, foi preciso, pela
arte, provocar o estranhamento, a perturbação. Numa inflexão modernista, o corpo foi
decomposto, fragmentado, para ser oferecido em pedaços, tal como a cabeça de João Baptista
entregue a Salomé. Segundo Eliane Robert Moraes, os artistas modernistas perseguiram uma
problematização de corpo que teve início no Renascimento, mas que no contexto das
vanguardas européias ganhou um novo enfoque: ele se tornou a matéria a ser atacada e
destruída em função da demolição empreendida a dois princípios que acabam por se
desmoronar ou que são radicalmente colocados sob suspeição: o realismo e o humanismo.
O imaginário do corpo desfigurado torna-se recorrente na arte e no pensamento
dos modernistas a partir do momento em que as imagens ideais do homem dão lugar a uma
alteridade brusca e profunda, não menos antropológica, que visa lançar a forma humana aos
limites da sua desfiguração. Em O corpo impossível, Moraes faz uma investigação histórica e
estética desse estilhaçamento da medida humana, reconstruindo o percurso pelo qual o
homem é levado a se repensar a partir do caos, no conseqüente vazio deixado pela
fragmentação e desfiguração da sua imagem e da sua consciência. Conforme ressalta a
ensaísta, a desfiguração antropomórfica não é decorrente como implica e informa um outro
modelo de pensamento, uma nova consciência de si e do mundo:
Fragmentar, decompor, dispersar: o vocabulário que define a postura modernista é
exatamente o mesmo que serve para designar a idéia de caos, supondo a
desintegração de uma ordem existente, e implicando igualmente as noções de
desprendimento e de desligamento de um todo. Numa era de integridade perdida, o
mundo podia revelar-se em pedaços: a mão que se separa do corpo, a folha ou o
lenço que caem ao acaso, decompondo uma unidade, são imagens que encerram o
mesmo princípio evocado pela mesa de dissecação. À fragmentação da consciência
correspondeu imediata fragmentação do corpo humano.
134
133
BARTHES. O prazer do texto, p.25.
134
MORAES. O corpo impossível, p. 59.
92
A obra de Hilda Hilst está em consonância com esse empreendimento modernista
das primeiras décadas do século XX. O retalhamento da narrativa, agenciado de maneira
tática na trilogia pornográfica, aproxima ainda a composição do texto da escritora a uma
estética psicótica, na qual a origem impura da linguagem é revelada através de deslocamentos,
rupturas e fragmentações impulsionados por uma enunciação delirante. Na psicose, a escrita
articula-se como extensão metonímica do gozo de um corpo esquizo, obedecendo à ordem de
um desejo em desatino.
O segundo livro em prosa ficcional da escritora, Qadós
135
, editado pela primeira
vez em 1973, podemos perceber como Hilda Hilst operacionaliza, tanto na forma, quanto
no conteúdo, a dinâmica de uma poética baseada na linguagem do corpo amorfo ou disforme,
plenamente trabalhado junto à fragmentação e dissolução da narrativa. Na língua das delícias
por onde vagueia a imaginação da escritora, “Qad = separar”.
A dimensão metonímica é trabalhada no texto em sua exterioridade pelas mãos de
um “Grande Pai”, também chamado de “O Obscuro”, “O Máscara de Nojo”, “O Cão de
Pedra”. Esse ser, ligado à determinação de um começo eficazmente onipotente, onisciente
e onipresente além de possuir todas as formas, de fundar uma origem, molda uma
descendência à sua imagem e semelhança. Em sua função oracular, “O Obscuro” desvela para
a personagem Qadós a dimensão daquilo que Lacan considera como “a origem sórdida do
nosso ser”
136
. No vaticínio proferido sobre o destino do personagem, a escrita se movimenta
em direção ao baixo material e à existência abjeta de Qadós, ceifando a própria atividade
sublimatória empreendida por este:
E que... e que... ele Qadós aposta alto no critério da divina providência, que ele
Qadós sacode o saco se a voz do repelente mia na sua pequena tala de carne, essa
convulsiva que se diz atenta, essa toda torcida, então, se a voz do repelente mia: ora,
Qadós, nada é como pensas, nasceste porque um homem meteu o comprido e duro
dele no mais fundo e mole dela, e daí pra frente danação ou salvação isso depende se
estás mais na beirada ou menos do buraco de merda ou de jasmim.
137
135
Na nova edição feita pela Editora Globo, este livro passou a ter o título de Kadosh. Segundo entrevista que
fizemos com o professor da Unicamp, Alcir Pécora, organizador das obras de Hilda Hilst para a referida editora,
a mudança ocorreu após a escritora tomar conhecimento de que, em hebraico, a palavra que significa sagrado é
kadosh, corruptela de kadasch.
136
LACAN. Escritos apud QUINET. Teoria e clínica da psicose, p. 61.
137
HILST. Ficções, p. 66.
93
Em Qadós, assim como seria na psicose, a narrativa aparentemente não passa pelo
crivo da realidade ou de uma linguagem normativa que unifica a representação segundo a
ordem de um pai simbólico. Estamos aqui diante de um dilaceramento da solidez da matéria
do texto, no qual a narrativa move pela incerteza e imprecisão dos enunciados, seguindo
metonimicamente a própria forma de enunciação estabelecida pelo corpo informe da
personagem:
Qadós homem-mulher, roubaram a tua alma, tiraram-na dos varais, deram-lhe um
corpo, Qadós homem-mulher-cadela, maldito, sempre que a tua cabeça vazia
imaginar a posse de ti mesmo, mil estarão atrás de ti, mil lobos te invadindo, mil
estrias de esperma sangue sobre a coxa o ventre a cabeça, apenas o teu coração
continua batendo rosado gordo, apenas o que nomeaste Sentimento continua vivo, e
sentes sentes, continuarás por toda eternidade sentindo, maldito Qadós vou escrever
com fogo sobre a tua cabeça que deves apenas sentir e jamais perguntar porque
sentes, que se tivesses feito essa coisa singela, essa de te deitares tranqüilamente
sobre aquela de veias pequeninas, DEITAVAS-TE Qadós, metias furiosamente, e o
que é mais importante: ME ESQUECIAS. Porque EU digo que deve ser assim para
o homem: EU não devo estar na cabeça dos homens. EU não devo ser chamado
pelos homens. Escuta bem, Qadós, queres interferir no meu destino? milênios
procuro me afastar de ti para que em mim surja um novo nome, milênios procuro
a idéia que perdi, não era nada que se parecesse contigo, ando atrás desse sem
forma, desse nada que repousa esperando o meu sopro, e cada vez que me chamam a
matéria que sou estilhaça.
138
Sob o golpe do dedo do “Grande Pai”, forja-se o corpo da narrativa, tal como o
corpo de Qadós obedecendo ao desejo desse “Grande Outro” que promove a dissolução ou
disjunção da substância corpórea. Chega-se ao ponto de confusão pulsional de matérias
inconciliáveis. Como procedimento, à maneira de um sujeito psicótico, Qadós é invadido pela
voz auspiciosa desse Outro, até o ponto de investimento pulsional em matérias inconciliáveis:
“Qadós-homem-mulher-cadela”, “mil estrias de esperma sangue”. O despedaçamento
corporal é forçosamente estabelecido pelo Grande Pai que controla a existência, o corpo e a
linguagem do frágil personagemque, por sua vez, almeja a fragmentação, já que é a medida do
homem. Contudo, por ser onipotente, não recusa o chamado de Qadós, como também não
permite que seja apreendido como unidade antrpomórfica: sua imagem não pode ser
circunscrita segundo um molde humano. Esse “Grande Outro” só pode movimentar em
direção a algo ainda não passível de enunciação, sem nome, sem forma. Por isso, sempre
quando é convocado pelo desejo alucinado do personagem, o embate implica na sua fuga, na
138
HILST. Qadós. Ficções, p.73.
94
sua recusa ou no seu dilaceramento: “cada vez que me chamam a matéria que sou estilhaça”
(sic)
139
.
De porções estilhaçadas é feito o próprio texto de Qádós. A construção do
conteúdo é agenciada por uma enunciação rizomática, na qual se encadeiam
intertextualidades. Entre outras referências literárias e filosóficas, entre interrupções e
interlocuções, reais ou delirantes, destaco uma passagem que remete à forma e ao tom de toda
a narrativa: “espuma e pergunta, rodeia-se de estranheza, chora sobre todas as memórias, abre
Plotino e arqueia sobre o papel-pluma, palavra petrificada Forma-Ideal Princípio-Racional,
Magnanimidade, e de repente a bofetada: ‘não, a verdadeira felicidade não é vaga e fluida: é
um estado inalterável’”
140
. Aqui Plotino pode ser visto como contraponto à experiência carnal.
O emanatismo, doutrina defendida pelo filósofo neoplatônico, é um processo no qual o ser
supremo difunde contínua e permanentemente sua própria substância para criar no universo
uma extensão de sua própria essência divina, à semelhança da luz que emana de uma fonte, o
que levaria assim a uma identidade de natureza ou substância como o ser divino. Em direção
às partes baixas do corpo, o pensamento e a carne de Qadós confrontam a natureza divina,
provocam, põem em dúvida o lugar que Deus ocupa no desejo humano, como observamos
nesta passagem: “E menino perguntei àquela que me amava: é por dentro ou por fora esse
aaahhhh que tu sentes cada vez que eu ponho o meu na tua passarinha? Vem do meio das
pernas ou vem da cabeça essa coisa de fogo que te atravessa o corpo? Qadós deitado no leito
entre o punhal e Plotino se pergunta: de que lado estás, meu Deus?)”
141
Com efeito, a citação de Jorge de Lima que abre o livro de Hilda Hilst nos prepara
para esse embate da personagem com Deus:
Conheço quem vos fez, quem vos gorou,
rei animado e anal, chefe sem povo,
tão divino mas sujo, mas falhado,
mas comido de dores, mas sem fé,
orai, orai por vós, rei destronado,
rei tão morrido da cabeça aos pés.
(Jorge de Lima, Invenção de Orfeu)
142
139
Ibidem, p.73.
140
Ibidem, p.85.
141
Ibidem, p. 69.
142
LIMA. Invenção de Orfeu. In: HILST. Qadós. Ficções, p. 63.
95
Esse fragmento do poema de Jorge de Lima antecipa o ritmo do texto e já prepara para
o rebaixamento do sagrado, da profanação que virá. Como notaremos em seguida nesta
passagem, em que Qadós relembra os êxtases místicos de uma Santa Católica, remete ao “rei
destronado”, não mais sublime, que no corpo-a-corpo com a vontade e o desejo do homem,
profanado em seu luar sagrado, pode ser convertido em carne e interpelado por suas falhas:
“Qadós vai afundando, pura escatologia é o que dás àqueles que te buscam e devo repetir
como dona Tereza Cepeda y Ahumada que te via homem e ela mulher e porisso contigo
conversava: tens tão poucos amigos, meu senhor. Bem porisso. Encarnado (sic).”
143
Em Qadós diferentes gêneros literários se interpenetram e se complementam,
predominando assim a multiplicidade de sentido e de fruição. A narrativa de Hilda Hilst
solicita constantemente o poético (sua prosa sempre se encaminha para a poesia), e de outro
modo, por inúmeras vezes, seu texto também se abre para o gênero dramático, fazendo surgir
uma simbiose interna. As rupturas, variações de ritmos, alongamentos ou prolongamentos
presentes na estrutura narrativa dos textos em prosa da escritora ilustram as múltiplas entradas
permitidas ao leitor.
Como se sabe, a noção de rizoma, criada por Deleuze e Guattari, além de compreender
linhas de construção em seguimento linear, segundo as quais um texto pode estar organizado e
significado em consonância com a coerência e coesão, produz ainda linhas de desarticulação
de sentido, através das quais se implementa uma fuga, o que leva a novos enunciados, a outros
desejos ou diferentes percepções. Para os autores de Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia,
“um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma segundo
uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas.”
144
Parece-nos que não Qadós , mas
toda a produção ficional de Hilda Hilst reforça que a forma ideal de um livro envolveria a
construção segundo o movimento de um rizoma. A produção literária de Hilda Hilst estaria
assim no mesmo movimento rizomático que Deleuze e Guattari identificam na escrita de
Kleist:
O ideal de um livro seria expor toda coisa sobre um tal plano de exterioridade, sobre
uma única página, sobre uma mesma paragem: acontecimentos vividos,
determinações históricas, conceitos pensados, indivíduos, grupos e formações
sociais. Kleist inventou uma escrita deste tipo, um encadeamento quebradiço de
afetos com velocidades variáveis, precipitações e transformações, sempre em
correlação com o fora. Anéis abertos. Assim, seus textos se opõem de todos os
pontos de vista ao livro clássico e romântico, constituído pela interioridade de uma
143
HILST. Qadós. Ficções, p. 97.
144
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs, p.18.
96
substância ou de um sujeito. O livro-máquina de guerra, contra o livro-aparelho de
Estado. As multiplicidades planas a n dimensões são a-significantes e a-subjetivas.
Elas são designadas por artigos indefinidos, ou antes partitivos (c’est du chiendent,
du rhizome...) [é grama, é rizoma...]
145
4.3 A sublimação ressexualizada
Do imbricamento entre perversão e psicose, as figuras de enunciação se interagem
e se confundem na estrutura do texto de Hilda Hilst. Ambas estruturas clínicas revelam algo
que se tornou repulsivo para o sujeito, mas que em algum momento foi familiar e
posteriormente pôde ser percebido como torpe, ligado a uma origem sórdida, algo que
civilizadamente escondemos através do recalque. Parece que por desvios e desvãos, quer seja
por mecanismo que se aproximam da perversão, quer seja da psicose, um objeto pode ser
criativamente apresentado ou representado sem passar necessariamente pela ordem
estabelecida pela cultura (que por sua vez, é estruturada pelo simbólico). Ambas atualizam a
pré-história do sujeito. De um lado, a dimensão perversa polimorfa da sexualidade infantil é
destacada bem como sua conseqüente repercussão na vida adulta dos indivíduos; por outro
lado, os bastidores da entrada do ser humano na linguagem e o trauma ddecorrente ganham
evidência na alucinação e no delírio psicótico. Em uma estética advinda da perversão ou da
psicose, o conceito de sublimação parece estar invertido, de ponta-cabeça.
A noção de sublimação em Freud é pensada a partir dos impasses da satisfação
pulsional direta. A pulsão é um conceito determinado como fator quantitativo econômico,
consistindo, portanto, numa pressão fronteiriça entre o somático e o psíquico. Essa força de
carga energética tem sua fonte numa satisfação corporal, mas exige um trabalho do aparelho
psíquico tendo em vista a sua satisfação. Por ser bastante plástica, a pulsão é capaz de se
satisfazer por vários caminhos, podendo ser recalcada, revertida em seu oposto, retornar em
direção ao ego ou ser sublimada. Nessa última possibilidade, a sublimação é um conceito
reatualizado numa dimensão estética justamente por implicar o desvio do teor sexual da
pulsão para um fim não sexual, ou seja, a energia sexual é transmutada em função de um ideal
social e cultural. Segundo Freud:
A observação da vida cotidiana das pessoas mostra-nos que a maioria conseguiu
orientar uma boa parte das forças resultantes do instinto sexual para sua atividade
profissional. O instinto sexual presta-se bem a isso, já que é dotado de uma
capacidade de sublimação: isto é, tem a capacidade de substituir seu objetivo
145
Ibidem, p. 17- 18.
97
imediato por outros desprovidos de caráter sexual e que possam ser mais altamente
valorizados. Aceitamos este processo como verdadeiro sempre que na história da
infância de uma pessoa isto é, na história de seu desenvolvimento psíquico
evidenciamos que, na infância, esse instinto poderoso foi usado para satisfazer
interesses sexuais. Constatamos a veracidade deste fato se ocorrer uma atrofia
estranha durante a vida sexual da maturidade, como se uma parcela da atividade
sexual houvesse sido agora substituída pela atividade do impulso dominante.
146
Numa perspectiva estético-psicanalítica a arte seria resultante do modo como a
pulsão ultrapassa simbolicamente sua vocação sexual, ainda que esta se mantenha na
representação artística como traço conjugado ao desejo do receptor, ou ressoando
eroticamente sobre o seu corpo. O belo seria sublimante ao permitir um caminho ascendente à
pulsão, ou seja, transformaria um vínculo sexual para um fim não sexual, como se mesmo em
caso extremo, na pornografia, os corpos nus e o cenário sexual tivessem que ser encobertos
pela beleza. A pulsão escópica teria, assim, se desviado do seu fim sexual em direção a um
outro mais digno e valorizado socialmente. É nesse ponto que insistem algumas linhas de
definição que fazem distinção entre o que é erótico e o que é pornográfico. No primeiro caso,
a curiosidade estética estaria associada ao recalcamento do objeto sexual, em seu velamento,
no qual a própria ocultação do corpo teria como função reacender o desejo, deixando para o
imaginário o trabalho de completar aquilo que está escondido. No material considerado
erótico, a pulsão escópica seria plenamente sublimada no sentido da arte, em função da
valoração dos princípios que constituem a elaboração estética voltada para o espírito em
oposição aos baixos desejos do corpo. No segundo caso, não haveria sublimação, pois na
pornografia é justamente a pulsão escópica a força a ser requisitada, numa economia voltada
para a configuração primitiva da sexualidade dos indivíduos, anteriormente abandonada em
razão de uma pretensa civilidade. Ao leitor ou espectador neurótico que se aventurasse pelo
cenário sexual obsceno, caberia transpor a repugnância e o incômodo determinados pelo seu
recalque, o que nos leva a considerar que na pornografia, a pulsão sempre teria um destino
perverso.
Não podemos nos contentar, entretanto, com um dualismo ou com uma oposição
sumária entre os termos, ponto já ressaltado no primeiro capítulo, baseando-se aqui no recorte
que associa a sublimação ao trabalho psíquico de ascensão do baixo material, ligado
diretamente à explicitude sexual, elevando-o em direção ao belo, mascarando-o pela assepsia.
Também seria muito redutor simplesmente circunscrever o trabalho sublimatório ao
movimento de fruição estética que levaria por fim ao apaziguamento pulsional. Ao colocar o
146
FREUD. Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância, p.72.
98
sexo em cena (obsceno), solicitando o olhar e a carne do leitor, a pornografia se contrapõe ao
alívio final da catarse. Essa idéia encontra aporte na noção de sublimação ressexualizada
proposta por Julia Kristeva:
Ora, já sublinharam em excesso a ligação da arte com a melancolia para não
questionarmos brutalmente: como fazem aqueles que não sucumbem a isso? A
resposta é simples: ressexualizam a atividade sublimatória sexualizam as
palavras, as cores, os sons. Seja pela introdução de fantasmas eróticos na narrativa
ou na representação plástica (Sade, Diderot, Proust, Genet, Céline, Joyce etc.),
acompanhadas ou não de atividades eróticas reais: com isto, os artistas colocam em
ação a concepção freudiana de uma linguagem subentendida pela dramaturgia das
pulsões inconscientes, enquanto a análise, ao contrário, se propõe traduzi-las ou
“elaborá-las”; seja por uma concentração mais ou menos exclusiva no próprio ato
sublimatório e em seu produto ( o livro, a composição musical, a execução
instrumental), que substituem o auto-erotismo, tanto mais que eles são mantidos por
gratificações sociais ou garantias idealizadoras religiosas (Bach).
147
A pornografia nos permite pensar uma outra possibilidade estética elaborada a
partir da noção de sublimação
148
, não simplesmente reduzindo o conceito a um processo de
dessexualização, mas sim destacando o movimento de ressexualização do objeto em direção à
arte, na medida em que um investimento pulsional voltado para as experiências primitivas
de nossa sexualidade. Nesse sentido, podemos pensar a arte como o tratamento dado ao gozo
perdido, das Ding” (a Coisa), segundo Lacan. Como pensa o psicanalista, das Ding é
originalmente o que chamaremos de o fora-do-significado. É em função desse fora-do-
significado e de uma relação patética a ele que o sujeito conserva sua distância e constitui-se
num mundo de relação, de afeto primário, anterior a todo recalque”
149
. Entendemos assim,
avançando para o plano estético, que o artista forja com objetos, com tinta, com o corpo, com
os códigos, o que resta ainda do gozo da Coisa perdida. Efetivamente, portanto, no trato ao
gozo para sempre perdido, elaborada através de uma enunciação psicótica ou perversa, como
encontramos em algumas obras de Hilda Hilst, somos levados ao impensável da nossa
origem.
4.4 Leitores perversos
147
KRISTEVA. Sentido e contra-senso da revolta, p. 106.
148
Para um maior aprofundamento sobre o alcance da criação literária, tomando como eixo a noção de
sublimação, conferir: CARVALHO, A C. A poética do suicídio em Sylvia Plath. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2003.
149
LACAN. O seminário, livro 7, p. 71.
99
Na trilogia pornográfica, principalmente nos dois últimos volumes, Hilda Hilst vai
radicalizar o movimento tático que se abre para a multiplicidade de sentido através das
intermitências, deslocamentos e cortes, que não atende aos personagens desviantes, como
também solicita a atuação de leitores perversos. Em Contos d’escárnio: textos grotescos, além
das memórias de Crasso, o texto se produz pelas contribuições das personagens Clódia e Hans
Haeckel. A “leoa dos plátanos” tem o nome idêntico ao do grande amor do poeta latino Catulo
(um dos poetas prediletos da escritora Hilda Hilst) e também é a musa de Crasso. Sobre
Clódia, personagem extremamente libidinosa, sabemos que é pintora, museóloga, artista,
enfim, louca, como pensam os policias que a detém na prática de seu fetiche. Ela gosta de
observar e pintar órgãos genitais. Primeiro, somente os femininos, já que era lésbica, depois,
induzida por Crasso, seu interesse se volta para os genitais masculinos.
Do hospício, para onde foi encaminhada após a frustrada tentativa de ver os
genitais dos policiais, Clódia traz para a narrativa os presentes que recebeu dos loucos: três
peças burlescas e quinze receitas ou mini-contos, alguns sarcásticos, outros lúbricos, todos
remetendo à ilogicidade da escrita e da sexualidade. Esses textos são reunidos sob o título
“Pequenas sugestões e receitas de Espanto-Anditédio para senhores e donas de casa” em
alguns mini-contos, Hilda Hilst parece se inspirar no livro Suicídio: modo de usar, de Claude
Guillon e Yves de Boniée (em Estar sendo. Ter sido, a escritora chega a citar uma receita
desse livro). A ironia e o humor cáustico recaem sobre as receitas ou manuais de auto-ajuda,
tal como a sarcasmo destilado em Manual de civilidade destinado as meninas para uso nas
escolas, do Pierre Louÿs. Trata-se, em ambos, em Hilst e Louÿs, de uma paródia ao controle e
a toda regulação moral do comportamento, da linguagem e da sexualidade.
O intertexto emerge em Contos d’escárnio: textos grotescos como forma de
quebrar a ordem narrativa, ou mesmo para frear ou fazer romper, quer o riso, quer a
masturbação do leitor, pois quem pode determinar quando um leitor vai querer gozar ou
desatar em risos? Um bom exemplo dessa indeterminação profícua é o suposto texto didático
para iniciação sexual de um filho:
Compre uma galinha daquelas lindas, vermelhas, gordotas, que esqueci o nome.
Ensine o seu filhinho (só até 8 anos, porque senão vira “Farra da Galinha”) a segurá-
la (a galinha) abaixo das axilas, perdão, quero dizer das asas e naturalmente de
costas para o seu rapazinho. Amarre o bico (da galinha, evidente) com um pequeno
elástico colorido (para não fazer impressão ao seu menino, a não ser que ele
tenha tendências sádicas e aí, por favor não compre a galinha), para que a galinha
não se vire subitamente e bique o piupiu do seu menino. (Isso não vai acontecer,
madame, é apenas excesso de zelo do autor.) Ensine ao seu menino onde é o fiufiu
da própria e deixe-os sozinhos na hora do recreio. Os dois vão adorar. Depois
compre várias galinhas para que sua criança tenha opção de escolha. Instigue-o a
100
convidar os amiguinhos da vizinhança. Para que as galinhas também tenham opção
de escolha. Credo! Como é difícil o texto didático.”
150
Além das contribuições de Clódia, encontramos a catalogação das obras do
escritor suicida, Hans Haeckel
151
, empreendida pelo personagem-narrador, Crasso. Resistente
à banalização da literatura, Hans é aquele que o aceita escrever uma história pornéia, nem
mesmo “a quatro mãos”. Ele recusa a proposta de Crasso para inventar uma pornocracia
perseguindo os passos da luxuriosa Clódia. Nada menos apropriado para uma pornografia que
se confunda simplesmente com os exercícios lúbricos, plasmados pelos ideários da indústria
cultural, a direção melancólica que toma o texto de Hilda Hilst em alguns momentos. Neste
caso, com a inserção dos contos do escritor suicida.
Ao corpo do leitor ou do espectador, na relação com a obra pornográfica de Hilda
Hilst, não é permitido nem distanciamento das purgações, muito menos é concebível se
renunciar aos prazeres, aos desejos e às paixões que pulsam na carne em função da elevação
da alma ou de uma vivência asséptica afastada das demandas do corpo. Não é a catarse a
experiência desejável, ou mesmo possível diante do material pornográfico, melhor seria
solicitar uma certa noção de epifania, como movimento descendente, quando o verbo se faz
carne: encarnação.
Na impossibilidade mesmo de se fazer representar através da escrita, a carne se
torna uma possibilidade estética, na qual as próprias limitações são potencializadas pela
imaginação do receptor. Daí advém as maneiras diferentes de se experimentar o material
pornográfico, em função da forma como cada sintoma moldaria ou limitaria nosso prazer,
numa distribuição dos prazeres tal como a tipologia de leitores proposta por Barthes:
150
HILST. Contos d’escárnio, p. 54.
151
Na trilogia, ou mesmo em outros livros da escritora, o intrincamento entre biografia e ficção é claramente
identificado, levando-nos a perceber o que a escritora deixa do seu corpo e dos seus pensamentos em seus
personagens. Na obra de Hilda Hilst isto ganha força dramática, de forma ainda mais evidente, na trilogia
pornográfica. Nos três livros que a compõem, sempre um personagem que guarda maior proximidade
biográfica com a escritora, todos eles sustentam um ideal estético ou uma resistência às imposições do mercado
editorial. Hans Haeckel possui as mesmas iniciais do nome de Hilda Hilst e guarda outros traços biográficos
afins com a escritora, assim como o pai da menina Lori e Stamatius de Cartas de um Sedutor. Hans escreveu
uma novela, tal como a escritora, chamada Lázaro, como somos informados pelo personagem Crasso: Eu lhe
digo Hans, ninguém quer nada com Lázaros, ainda mais esse aí, um cara leproso e ainda mais morto” (Contos
d’escárnio: textos grotescos, p. 41). A novela Lázaro de Hilda Hilst foi publicada no livro Fluxofloema.
Stamatius, o personagem que vai morar na rua, entre talhas e lixos, identifica-se com a escritora não pelo
receio que a própria tinha de ficar sem moradia, pois devia uma alta quantia à prefeitura de Campinas referente
ao IPTU não pago durante muitos anos, como também revela o temor que Hilda Hilst tinha em perder os dentes.
Isso realmente veio a acontecer por conta de uma isquemia sofrida pela escritora. Diz o personagem Stamatius
na narrativa de Cartas de um sedutor, p.17: ”Sabe que (sic) perdi-os (os dentes) quando tentava pagar minha
hipoteca. A hipoteca da minha casa. Tensão. ficou claro que não consegui, fiquei sem casa sem dentes e sem
móveis.”
101
Poder-se-ia imaginar uma tipologia dos prazeres de leitura – ou dos leitores de
prazer; não seria sociológica, pois o prazer não é um atributo nem do produto nem
da produção; poderia ser psicanalítica, empenhando a relação da neurose leitora
na forma alucinada do texto. O fetichista concordaria com o texto cortado, com a
fragmentação das citações, das fórmulas, das cunhagens, com o prazer da palavra. O
obsessional teria a voluptuosidade da letra, das linguagens segundas, desligadas, das
metalinguagens (esta classe reuniria todos os logófilos, lingüistas, semióticos,
filólogos: todos aqueles para quem a linguagem reaparece). O paranóico consumiria
ou produziria textos retorcidos, histórias desenvolvidas como raciocínio, construções
colocadas como jogos, coerções secretas. Quando ao histérico (tão contrário ao
obsessional), seria aquele que toma o texto por dinheiro sonante, que entra na
comédia sem fundo, sem verdade, da linguagem, que não é sujeito de nenhum
olhar crítico e se joga através do texto (o que é muito diferente do se projetar nele).
152
Especialmente na pornografia, o texto precisa ser investigado como experiência
erógena do corpo do leitor, no qual a própria masturbação seria a adição perversa esperada
como suplemento ao texto e à relação sexual, ou mesmo como resposta ao excesso de
excitação sexual impulsionada pelo material pornográfico. Se considerarmos o psicótico como
um criador original, ou no mínimo um desestabilizador do texto padronizado, o leitor ideal,
mas não o desejável pela indústria cultural, seria um leitor sob o regime da perversão. Por
outro lado, a pornografia comercial é estrategicamente, e não criativamente, realizada, para
um suposto leitor neurótico em cima daquilo que é recalcado por este, mas que seria
experimentado livremente pelo perverso. O leitor, à maneira de um neurótico, tal como
proposto por Barthes, seria aquele que, na economia do texto, ou investe sua libido na
metalinguagem e na forma dura e seca do texto (este é o obsessivo), ou se materializa dentro
do texto, como se fosse o corpo a partir do qual a palavra tece as mais ardilosas tramas,
entregando-se e negando-se como bem faria uma histérica. O leitor perverso ideal é aquele
que se abre para o gozo mais insuspeito, pois multiplica os pontos libidinais ao mesmo tempo
em que escapa ao juízo moral e aos moldes da boa saúde, perfazendo assim uma
contralinguagem em oposição à suspeita estética que predispõe à cura, à salvação. George
Bataille opõe uma “estética do remédio”, gerada por profissionais da boa saúde mental e
cultural, a uma radical “estética do mal”, está sim irredutível a uma assimilação fácil ou
mesmo catártica.
Em O prazer do texto Barthes observou que muitos são os leitores perversos,
que o prazer do leitor pode inesperadamente ser desencadeado por uma interação que envolve
mútua afecção, isto é, a perturbação do corpo do texto se impondo ao corpo do leitor”. Por
152
BARTHES. O prazer do texto, p.82.
102
outro lado, o corpo do leitor, de maneira singular, conforme o momento, sua predisposição e
suas idiossincrasias, impõe também um dilaceramento ao corpo do texto, um recorte definido
em consonância com o seu prazer. Contudo, segundo o semiólogo:
Muitos leitores são perversos, implicam uma clivagem. Assim como a criança sabe
que sua mãe não tem pênis e ao mesmo tempo julga que ela tem um (economia cuja
rentabilidade Freud mostrou), do mesmo modo o leitor pode dizer incessantemente:
eu sei que são apenas palavras, mas mesmo assim... (emociono-me como se essas
palavras enunciassem uma realidade). De todas as leituras é a leitura trágica que é a
mais perversa: tenho prazer em me ouvir contar uma história cujo fim eu conheço:
sei e não sei, ajo em face de mim mesmo como se não soubesse: sei muito bem que
Édipo será desmascarado, que Danton será guilhotinado, mas mesmo assim... Em
relação à história dramática, que é aquela cujo resultado ignoro, uma obliteração
do prazer e uma progressão da fruição (hoje, na cultura de massa, grande consumo
de “dramáticos”, pouca fruição.)
153
Clivagens marcadamente importantes em relação à lubricidade e ao humor, para
um leitor perverso, ocorrem em Contos d’escárnio: textos grotescos acontece quando Crasso
encontra um conto de Hans Haeckel sobre a relação sexual entre um homem e a macaca que
tulo ao escrito: “Lisa”. Nesse conto uma deflação da pulsão escópica, convertida em
angústia perante o ato insuportável, uma perturbação, não menos erótica, pois o erotismo
pressupõe as experiências mais radicais com o corpo, que repercute nos personagens e nos
leitores, quando se acompanha pelo buraco da fechadura a tão patética e dilacerante cena:
Então vi: o homem nu, deitado, e Lisa acariciando-lhe o sexo com as mãozinhas
escuras, delicadas. Entre pequenos gemidos e fracos soluços o homem dizia: “minha
amada, minha adorada Lisa, temos apenas um ao outro, somos apenas nós dois neste
sórdido mundo de agonia e de treva”. Lisa olhava alternadamente para o rosto e para
o sexo do homem. Quando ele enfim ejaculou, ela enrodilhou-se lenta aos pés da
cama. Ele apagou a luz. Ouvi-o dizer ainda: “obrigado, amiga”. Fiquei muito tempo
encostado atrás daquela porta. Nunca o mundo me pareceu tão triste, tão aterrador,
tão sem Deus. No dia seguinte escrevi ao meu pai dizendo-lhe que não tinha mais
paciência para os estudos, queria voltar para a roça. Estranhou muito. Nunca me
perguntou coisa alguma, nem eu saberia explicar-lhe o patético, o dilacerado de tudo
aquilo que eu havia visto, nem eu saberia dizer para mim mesmo o porquê de
abandonar os estudos. O pai morreu muitos meses depois. Ouvi-o dizer à mãe antes
do para sempre morto: “Presta atenção no rapaz, não é mais o mesmo”. Ele estava
certo. Nunca mais fui o mesmo.
154
Não obstante, um possível leitor perverso ainda assim nos apontaria algum lugar
por onde forjar seu gozo. Na tipologia dos prazeres de leitura imaginada por Barthes não cabe
153
Ibidem, p.63.
154
HILST. Contos d’escárnio, p. 45
103
experiências estanques. Se nas rupturas abruptas dos exercícios lúbricos, ou mesmo nas
incursões melancólicas ou grotescas que se irrompem como pústulas no texto de Hilda Hilst,
ainda persiste a lascívia. Cabe, portanto, convocar um leitor perverso, aquele capaz de extrair
prazer dos objetos mais insuspeitos ou dos lugares mais impróprios. na ação perversa seria
ainda possível ressexualizar o que se encontrava aparentemente dessexualizado. A tipologia
dos prazeres de leitura imaginada por Barthes não pressupõe experiências estanques para a
recepção.
4.5 Na falha da gramática pornográfica: as combinações insuspeitas
Nas três obras que compõem a trilogia pornográfica encontramos um personagem
que é também um criador vicário, pois constrói a narrativa junto com o personagem-narrador
através de contribuições interativas, responsável pelo empuxo ao mal-estar, à melancolia,
perturbando tanto os outros personagens e a ordem da narrativa, como também incomodando
o leitor potencial. Em O Caderno rosa de Lori lamby é o pai da menina que traz para a
narrativa a perturbação, através das suas crises durante o seu processo de criação epela
metapornografia que é desenvolvida ao longo das suas discussões com o editor e com a
mulher. Em Contos d’escárnio: textos grotescos é o escritor suicida, Hans Haeckel, como
mostrei, o responsável pelo descompasso nos relatos lúbricos de Crasso. Em Cartas de um
sedutor é Stamatius o contraponto às frivolidades do personagem Karl.
Na trilogia de Hilda Hilst, mesmo quando a descrição obscena é suspensa, o
erotismo se encontra potente, não em sua forma lúbrica, mas sim, como movimento de
energia libidinal que não arranca a narrativa de uma linearidade, fragmentando-a, como
também dá o tom violento, pois como lembra Bataille, o sentido último do erotismo é a fusão,
a supressão do limite”
155
. Rompe-se, dessa forma, com os exercícios lúbricos para
impulsionar o leitor para outras dimensões do seu desejo, revelando o que mesmo de
excessivo na excitação. Os exercícios lúbricos, as estratégias obscenas e a movimentação
erótica do texto, que levam à perturbação da excitação, não podem ser considerados
excludentes, antes são suplementares, dado a aptidão das estratégias pornográficas para
refletir os excessos do nosso desejo e perturbar nosso pensamento e a ordem estabelecida.
Além da própria questão pornográfica, outro mote unificador da trilogia é o do
escritor inclinado a ser herói ridículo, como propõe Pécora, ou o do escritor trágico impotente
155
BATAILLE. O erotismo, p.202.
104
diante do editor obtuso e da pasmaceira do meio editorial e cultural. Em todos os livros da
trilogia percebemos um processo de enunciação que se desenvolve entre quem (ou o que)
resiste e quem (ou o que) se adequa (ou se rende) aos ditames do mercado editorial. O
processo enunciativo se articula, através do dialogismo, entre os duplos que vão dando corpo
ao texto. Na trilogia pornográfica de Hilda Hilst sempre um narrador que forja a narrativa
fazendo uso essencialmente, além da sua memória, das contribuições que se dão, em cada
volume da trilogia, respectivamente: pelo roubo/plágio, pela catalogação e pela tríplice
articulação entre epistolografia/o lixo/antropofagias. Esquematicamente, o processo se
representa da seguinte forma: Lori Lamby o roubo/plágio o pai da menina/Tio Abel;
Crasso/Clódia a catalogação Hans Haeckel/os loucos internos;
Karl/epistolografia/Cordélia — Stamatius/o lixo/antropofagias/Eulália.
Em Cartas de um sedutor os duplos nos apresentam um dilema tipicamente
kierkegaadiano no título do livro somos remetidos ao livro do filósofo existencialista,
Diário de um sedutor. O confronto se entre o modo de vida ético, associado à retidão do
personagem Stamatius, confrontado com o modo de vida estético, experimentado por Karl,
que se caracteriza pelo hedonismo e pelos desvios da sua sexualidade perversa. Apesar de não
estarem em posições estanques, ambos os personagens demarcam uma postura diante da
literatura: render-se ou não à banalização do espaço literário. Esse dilema aparece em todos os
livros que compõem a trilogia.
Nas notas introdutórias de Cartas de um sedutor, o livro mais complexo quanto a
essa relação dialógica na qual interagem múltiplos processos de criação e diferentes formas de
interlocução, o organizador das obras completas de Hilda Hilst destaca o próprio desencontro,
ou ruptura acirrada, entre posturas tão diferentes em relação à criação: de um lado, “o escritor
que desiste de um lugar na hierarquia burguesa do mundo (como Stamatius, o mendigo)”, e
por outro lado, aquele que “desavergonhadamente se rende a ele (como Karl, o
aristocrata)”
156
. Segundo Pécora, estas posições diferentes, que em Cartas de um sedutor bem
poderiam ser imaginadas de forma suplementar, de modo algum se estabeleceria como relação
de complementaridade ou de simples oposição:
A razão é que, em termos justos, nem o primeiro é desistente por causa da estupidez
do mundo, nem o segundo cede a ele apenas por amor venal de seus dotes. O que os
une, escritor-perdedor e escritor-vendido e, com efeito, mais correto seria pensá-
los como uma mesma personagem, em fases distintas de desentendimento de si e dos
outros é a solidão irreversível de seus desejos de autocriação. Tais os que são
156
PÉCORA. Nota do organizador. In: Cartas de um sedutor, p.9.
105
próprios do poeta forte, nos termos de Harold Bloom. Os escritos deles, assim, são
mais desencontros acirrados, rompimentos, desenganos, do que conversas
efetivamente trocadas entre pessoas diversas, numa reunião ainda possível, afetiva
ou social. Para Hilda, escrever, em qualquer caso, parece condensar o silêncio das
cartas jamais correspondidas.
157
Assim, na dialética da criação, potencializada pelo que Pécora considera a figura
de linguagem preferida de Hilda Hilst, que é a amplificação, “levada aos extremos da
desmesura e da incongruência”
158
, a escrita recai necessariamente num terceiro lugar.
predomina o silêncio e o vazio, movimentado externamente pelo desejo do escritor e o do seu
suposto leitor, e internamente, pelos desejos dos personagens-narradores e dos seus
interlocutores.
em O caderno rosa de Lori Lamby Hilda Hilst dedica-o à memória da língua,
deixando-nos a pista pela qual percebemos que a vedete da sua pornografia não poderia ser
outra senão a linguagem. Especificamente é o strip-tease da linguagem erótica que é colocado
em cena no seu livro. Para tanto, foi necessário desnudar o texto, mostrar seus bastidores
continuamente, ao mesmo tempo em que o despedaça com várias interrupções, quer seja
imiscuindo um gênero no outro, forjando insuspeitas combinações, quer seja imbricando
diferentes pensamentos e estilos dos personagens através dos quais o texto ganha corpo. A
escritora pratica aquilo que Barthes considerou como uma “violência metonímica”, pois
justapõe no corpo do seu texto fragmentos distintos, até mesmo “pertencentes a esferas de
linguagem geralmente separadas pelo tabu sociomoral.”
159
Nessa perspectiva, não é erógena
somente a imagem potencializada pela palavra, mas também, e principalmente, é o próprio
corpo da linguagem que se apresenta como texto que é erotizado, ressaltando novamente o
aforismo batailliano de que “o sentido último do erotismo é a fusão, a supressão de
limites”
160
.
É a relação possível entre as figuras libidinosas e a grafia que é colocada em cena
na pornografia da escritora de O caderno rosa de Lori Lamby. Em um contínuo movimento
erótico, a linguagem literária e as figuras obscenas, os exercícios lúbricos e a impostação
licenciosa se revezam, embriagam-se, tocam-se mutuamente no duplo prazer da língua: o do
157
Ibidem, p.9-10.
158
Ibidem, p.9.
159
BARTHES. Sade, Fourier, Loyola, p. 26
160
BATAILLE, 2004, op.cit., p. 202
106
órgão e o do sistema de linguagem. A qualidade literária da pornografia em Hilda Hilst está
justamente em fazer o intercâmbio metonímico entre logos e eros. Essa relação foi sintetizada
por Deleuze através do termo “pornologia”, que designa uma “linguagem erótica que não se
deixa reduzir às funções elementares de comando e de descrição”
161
. Na acepção criada pelo
autor de Apresentação de Sacher-Masoch, “a literatura pornológica antes de tudo se propõe a
colocar a linguagem em relação com o seu próprio limite, como uma espécie de ‘não-
linguagem’ (a violência que não fala, o erotismo de que não se fala).”
162
Trata-se de mostrar
assim que a própria linguagem é erótica. Mas qual seria a matéria lúbrica dessa escrita
conduzida pelo erotismo? Parece-nos, não sem razão, que é a carne. É ela que singulariza o
próprio jogo erótico na enunciação fragmentada em que o texto é construído pelo autor e
absorvido pelo leitor.
4.6 A carne, meninice do corpo
Na pornografia, para se dar existência textual a pulsão, é preciso que o corpo seja
decomposto ou impulsionado para além da sua limitação simbólica. Até mesmo “a linguagem,
por ser analítica, não tem ação sobre o corpo, a menos que o despedace”
163
é o que pensa
Roland Barthes. Para o autor de Sade, Fourier, Loyola: “o corpo total fica fora da linguagem,
chegam à escritura pedaços de corpo; para mostrar um corpo, é preciso ou deslocá-lo,
refratá-lo na metonímia de sua roupa, ou reduzi-lo a uma das suas partes; a descrição volta a
ser então visionária, a felicidade da enunciação se reencontra (talvez porque haja uma
vocação fetichista da linguagem)”
164
.
Há uma tendência em direcionar o olhar para as partes baixas do corpo no
material pornográfico em qualquer época. Como no fetichismo, a ação do prazer pode se
atrelar aos objetos ou a uma parte insuspeita do corpo, eleitas segundo a dinâmica do desejo
perverso. De qualquer forma, em todos os casos sempre um movimento de rebaixamento
do olhar em direção ao baixo corporal, constituindo um ataque efetivo ao que é valorizado
socialmente. Nesse sentido, cabe evocar a figura do “Acéfalo” tal como proposto por Bataille
e Masson, cuja cabeça é deslocada do seu lugar original em direção às partes baixas do corpo,
161
DELEUZE. Apresentação de Sacher-Masoch, p. 21.
162
Ibidem, p. 26.
163
BARTHES. Sade, Fourier, Loyola, p. 149.
164
Ibidem, p. 149.
107
localizando-se exatamente onde ficariam os genitais. Na concepção filosófica de Bataille,
associada aos desdobramentos dessa figura, cada coisa, tendo um lado manifesto, possui ainda
um outro oculto. Nessa linha de raciocínio, podemos perceber que o rebaixamento da cabeça
em direção às partes baixas implica uma relação de continuidade, talvez até de
correspondência entre o ideal e o abjeto, o sublime e o imperfeito, o alto e o baixo, o rosto e o
genital, a boca e o ânus.
Tanto isso é certo que podemos, segundo o autor da História do olho, localizar
nos jogos amorosos do ser humano a presença de dois rostos, percebidos no movimento
erótico intercambiável em que a boca e o ânus passam a ter funções similares. Na ação sexual,
tanto a boca quanto o ânus podem exercer funções lascivas, ou promover inversões em
relação às atividades excretoras, cuja visibilidade é categoricamente proibida, renegada e
indesejada socialmente. Depreende-se, assim, dois rostos, um formado pelos órgãos faciais e
o outro pelos genitais, que se complementam e se erotizam mutuamente, num movimento
deslizante entre o alto e o baixo. Em concordância com Bataille, a autora de O corpo
impossível conclui, então, que: “Esse outro rosto constitui a figura oculta do primeiro e, tal
como um duplo, vem revelar uma imagem noturna de seu protótipo manifesto: trata-se, pois,
de uma réplica perversa digamos também, monstruosa que interroga a identidade do
homem exatamente naquela parte de seu corpo onde ela sempre foi considerada
inequívoca.”
165
Batailliana confessa, Hilda Hilst sempre trabalhou esta questão do baixo e do alto
em toda a sua obra, mas a intenção pornográfica da trilogia deu maior destaque a essa dupla
demanda erótica. Já no nome, Lori Lamby remete à terceira pessoa do singular do verbo
lamber, a ão lúbrica que é exaustivamente explorada em todos os livros que compõe a
trilogia. Trabalha-se muito a língua na pornografia de Hilda Hilst. Tanto a língua, como
órgão muscular erógeno responsável pelo paladar, quanto a língua, como sistema abstrato de
signo, elaborado esteticamente, se articulam de maneira concomitante a perturbação física e a
satisfação erótica. Em O caderno rosa de Lori Lamby, as duas acepções de língua mantêm
uma relação de comensalismo, aproximadas segundo a perversão polimorfa da menina, para
quem sexo é igual a lamber. Na limitação própria de uma menina de oito anos, a língua
através da qual o sexo é escrito é associada à ngua utilizada para a prática sexual. Diz a
personagem: “Sabe que estou fazendo uma confusão com as línguas? Não sei mais se a língua
165
MORAES. O corpo impossível. P. 207
108
do Juca foi antes ou depois da língua daquele jumento do sonho. Mas será que essa é a língua
trabalhada que o pai fala quando ele fala que trabalhou a língua?"
166
Na árdua tarefa para entender as normas da língua e os mecanismos que envolvem
o prazer sexual, admira-se ou repudia-se O caderno rosa de Lori Lamby justamente por nos
fazer atentar para algo que não queremos perceber, que se encontra devidamente recalcado, ou
seja, rememorar as etapas de desenvolvimento da nossa sexualidade e a nossa entrada na
linguagem formal. Ambas nos fazem retornar às nossas vivências mais arcaicas com o nosso
corpo e ao processo de aprendizagem das desconcertantes e complexas normas da língua. A
menina Lori parece escavar sobre as máscaras sociais até fazer rachar as estruturas normativas
que se impõem sobre o texto e sobre o sexo, abrindo-as para um devir, portanto, ao enunciar o
texto através do corpo da menina, imatura tanto para o sexo quanto para a escrita, promove-se
um “devir criança”. A carne seria, assim, o lugar dessa química nova, pois implica um corpo
antes que esse seja simbolizável. O corpo é ampliado a tal ponto que toda regulamentação fica
frouxa, como encontramos na carnavalização em Rabelais ou na pornografia esteticamente
trabalhada.
Na literatura de Hilda Hilst, o sexo e o próprio texto devem se servir um do outro
para revitalizar um espaço que apropriadamente podemos chamar de pornográfico, onde a
linguagem erótica não se deixa reduzir tão somente a funções elementares de comando e de
descrição. A carne aqui é o lugar em que o corpo resiste a virar gramática, onde não se
sucumbe às imposições das leis. Entretanto, Barthes atenta para o papel impositivo do
simbólico, ou seja, a produção artística seria possível na neurose. Então, que necessária,
que se mantenha da normatização somente o necessário para que a carne pulse no imaginário
do leitor, reduzindo as leis ao seu mínimo multiplicador comum. Se insisti na representação
da carne para tratar das insidiosas entradas lúbricas do leitor no texto, é pelo que ela pode
comportar de um factível regime pulsional, potencializando assim o texto. Na falha da
gramática, abre-se um lugar insuspeito para uma pornografia voltada para uma experiência
radical de corpo não controlado pela vontade, aquém ou além do simbolizável.
166
HILST. O caderno rosa de Lori Lamby, p. 71.
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