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Comitê Cientíco Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África
HISTÓRIA GERAL
DA ÁFRICA
I
Metodologia
e pré-história da África
EDITOR J. KI-ZERBO
UNESCO Representação no BRASIL
Ministério da Educação do BRASIL
Universidade Federal de São Carlos
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HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA
I
Metodologia e pré ‑história da África
Comitê Cientíco Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África
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Coleção História Geral da África da UNESCO
Volume I Metodologia e pré-história da África
(Editor J. Ki-Zerbo)
Volume II África antiga
(Editor G. Mokhtar)
Volume III África do século VII ao XI
(Editor M. El Fasi)
(Editor Assistente I. Hrbek)
Volume IV África do século XII ao XVI
(Editor D. T. Niane)
Volume V África do século XVI ao XVIII
(Editor B. A. Ogot)
Volume VI África do século XIX à década de 1880
(Editor J. F. A. Ajayi)
Volume VII África sob dominação colonial, 1880-1935
(Editor A. A. Boahen)
Volume VIII África desde 1935
(Editor A. A. Mazrui)
(Editor Assistente C. Wondji)
Os autores o responveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro,
bem como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO,
nem comprometem a Organização. As indicações de nomes e apresentação do
material ao longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte
da UNESCO a respeito da condição jurídica de qualquer país, terririo, cidade, rego
ou de suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites.
Comitê Cientíco Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África
HISTÓRIA GERAL
DA ÁFRICA
I
Metodologia e
pré ‑história
da África
EDITOR JOSEPH KI‑ZERBO
Organização
das Nações Unidas
para a Educação,
a Ciência e a Cultura
História geral da África, I: Metodologia e pré -história da África / editado por Joseph
Ki -Zerbo. – 2.ed. rev. Brasília : UNESCO, 2010.
992 p.
ISBN: 978-85-7652-123-5
1. História 2. Pré ‑história 3. Historiograa 4. Métodos históricos 5. Tradição oral
6. História africana 7. Culturas africanas 8. Arqueologia 9. Línguas africanas 10. Artes
africanas 11. Norte da África 12. Leste da África 13. Oeste da África 14. Sul da África
15. África Central 16. África I. Ki -Zerbo, Joseph II. UNESCO III. Brasil. Ministério da
Educação IV. Universidade Federal de São Carlos
Esta versão em português é fruto de uma parceria entre a Representação da UNESCO no Brasil, a
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação do
Brasil (Secad/MEC) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Título original: General History of Africa, I: Methodology and African Prehistory. Paris: UNESCO;
Berkley, CA: University of California Press; London: Heinemann Educational Publishers Ltd., 1981.
(Primeira edição publicada em inglês).
© UNESCO 2010 (versão em português com revisão ortográca e revisão técnica)
Coordenação geral da edição e atualização: Valter Roberto Silvério
Preparação de texto: Eduardo Roque dos Reis Falcão
Revisão técnica: Kabengele Munanga
Revisão e atualização ortográca: Cibele Elisa Viegas Aldrovandi
Projeto gráco e diagramação: Marcia Marques / Casa de Ideias; Edson Fogaça e Paulo Selveira /
UNESCO no Brasil
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)
Representação no Brasil
SAUS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9º andar
70070-912 – Brasília DF – Brasil
Tel.: (55 61) 2106-3500
Fax: (55 61) 3322-4261
Site: www.unesco.org/brasilia
Ministério da Educação (MEC)
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad/MEC)
Esplanada dos Ministérios, Bl. L, 2º andar
70047-900 – Brasília DF – Brasil
Tel.: (55 61) 2022-9217
Fax: (55 61) 2022-9020
Site: http://portal.mec.gov.br/index.html
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Rodovia Washington Luis, Km 233 SP 310
Bairro Monjolinho
13565-905 – São Carlos – SP – Brasil
Tel.: (55 16) 3351-8111 (PABX)
Fax: (55 16) 3361-2081
Site: http://www2.ufscar.br/home/index.php
Impresso no Brasil
V
SUMÁRIO
Apresentação ...................................................................................VII
Nota dos Tradutores ..........................................................................IX
Cronologia .......................................................................................XI
Lista de Figuras .............................................................................XIII
Prefácio ..........................................................................................XXI
Apresentação do Projeto ..............................................................XXVII
Introdução Geral ......................................................................... XXXI
Capítulo 1 A evolução da historiografia da África.................................... 1
Capítulo 2 Lugar da história na sociedade africana ................................ 23
Capítulo 3 Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e
contribuição à história em geral .......................................... 37
Capítulo 4 Fontes e técnicas específicas da história da África
Panorama Geral ................................................................... 59
Capítulo 5 As fontes escritas anteriores ao século XV ........................... 77
Capítulo 6 As fontes escritas a partir do século XV ............................ 105
Capítulo 7 A tradição oral e sua metodologia ..................................... 139
Capítulo 8 A tradição viva ................................................................... 167
Capítulo 9 A Arqueologia da África e suas técnicas. Processos de
datação ............................................................................... 213
SUMÁRIO
VI
Metodologia e pré -história da África
Capítulo 10 Parte I: História e linguística ............................................ 247
Parte II: Teorias relativas às “raças” e história da África.... 283
Capítulo 11 Migrações e diferenciações étnicas e linguísticas .............. 295
Capítulo 12 Parte I: Classificação das línguas da África ....................... 317
Parte II: Mapa linguístico da África ................................. 337
Capítulo 13 Geografia histórica: aspectos físicos .................................. 345
Capítulo 14 Geografia histórica: aspectos econômicos ......................... 367
Capítulo 15 Os métodos interdisciplinares utilizados nesta obra ......... 387
Capítulo 16 Parte I: Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais
da África ........................................................................... 401
Parte II: Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais
da África ........................................................................... 417
Capítulo 17 Parte I: A hominização: problemas gerais ......................... 447
Parte II: A hominização: problemas gerais ....................... 471
Capítulo 18 Os homens fósseis africanos ............................................. 491
Capítulo 19 A Pré -História da África oriental .................................... 511
Capítulo 20 Pré -História da África austral ........................................... 551
Capítulo 21 Parte I: Pré -História da África central .............................. 591
Parte II: Pré - História da África central .......................... 615
Capítulo 22 Pré -História da África do norte ........................................ 637
Capítulo 23 Pré -História do Saara ....................................................... 657
Capítulo 24 Pré -História da África ocidental ....................................... 685
Capítulo 25 Pré -História do vale do Nilo ............................................ 715
Capítulo 26 A arte pré -histórica africana ............................................. 743
Capítulo 27 Origens, desenvolvimento e expansão das técnicas
agrícolas............................................................................. 781
Capítulo 28 Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos
sistemas sociais até o século V antes da Era Cristã .......... 803
Conclusão Da natureza bruta à humanidade liberada ......................... 833
Membros do Comitê Científico Internacional para a Redação de
uma História Geral da África ............................................................853
Dados Biográficos dos Autores do Volume I ......................................855
Abreviações e Listas de Periódicos ....................................................859
Referências Bibliográficas ................................................................865
Índice Remissivo ..............................................................................927
VII
APRESENTÃO
“Outra exigência imperativa é de que a história (e a cultura) da África devem pelo menos ser
vistas de dentro, não sendo medidas por réguas de valores estranhos... Mas essas conexões
têm que ser analisadas nos termos de trocas mútuas, e influências multilaterais em que algo
seja ouvido da contribuição africana para o desenvolvimento da espécie humana”. J. Ki-Zerbo,
História Geral da África, vol. I, p. LII.
A Representação da UNESCO no Brasil e o Ministério da Educação têm a satis-
fação de disponibilizar em português a Coleção da História Geral da África. Em seus
oito volumes, que cobrem desde a pré-história do continente africano até sua história
recente, a Coleção apresenta um amplo panorama das civilizações africanas. Com sua
publicação em língua portuguesa, cumpre-se o objetivo inicial da obra de colaborar para
uma nova leitura e melhor compreensão das sociedades e culturas africanas, e demons-
trar a importância das contribuições da África para a história do mundo. Cumpre-se,
também, o intuito de contribuir para uma disseminação, de forma ampla, e para uma
visão equilibrada e objetiva do importante e valioso papel da África para a humanidade,
assim como para o estreitamento dos laços históricos existentes entre o Brasil e a África.
O acesso aos registros sobre a história e cultura africanas contidos nesta Coleção se
reveste de significativa importância. Apesar de passados mais de 26 anos após o lança-
mento do seu primeiro volume, ainda hoje sua relevância e singularidade são mundial-
mente reconhecidas, especialmente por ser uma história escrita ao longo de trinta anos
por mais de 350 especialistas, sob a coordenação de um comitê científico internacional
constituído por 39 intelectuais, dos quais dois terços africanos.
A imensa riqueza cultural, simbólica e tecnológica subtraída da África para o conti-
nente americano criou condições para o desenvolvimento de sociedades onde elementos
europeus, africanos, das populações originárias e, posteriormente, de outras regiões do
mundo se combinassem de formas distintas e complexas. Apenas recentemente, tem-
se considerado o papel civilizatório que os negros vindos da África desempenharam
na formação da sociedade brasileira. Essa compreensão, no entanto, ainda está restrita
aos altos estudos acadêmicos e são poucas as fontes de acesso público para avaliar este
complexo processo, considerando inclusive o ponto de vista do continente africano.
APRESENTAÇÃO
VIII
Metodologia e pré -história da África
A publicação da Coleção da História Geral da África em português é também resul-
tado do compromisso de ambas as instituições em combater todas as formas de desigual-
dades, conforme estabelecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948),
especialmente no sentido de contribuir para a prevenção e eliminação de todas as formas
de manifestação de discriminação étnica e racial, conforme estabelecido na Convenção
Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial de 1965.
Para o Brasil, que vem fortalecendo as relações diplomáticas, a cooperação econô-
mica e o intercâmbio cultural com aquele continente, essa iniciativa é mais um passo
importante para a consolidação da nova agenda política. A crescente aproximação com
os países da África se reflete internamente na crescente valorização do papel do negro
na sociedade brasileira e na denúncia das diversas formas de racismo. O enfrentamento
da desigualdade entre brancos e negros no país e a educação para as relações étnicas
e raciais ganhou maior relevância com a Constituição de 1988. O reconhecimento da
prática do racismo como crime é uma das expressões da decisão da sociedade brasileira
de superar a herança persistente da escravidão. Recentemente, o sistema educacional
recebeu a responsabilidade de promover a valorização da contribuição africana quando,
por meio da alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e
com a aprovação da Lei 10.639 de 2003, tornou-se obrigatório o ensino da história e
da cultura africana e afro-brasileira no currículo da educação básica.
Essa Lei é um marco histórico para a educação e a sociedade brasileira por criar, via
currículo escolar, um espaço de diálogo e de aprendizagem visando estimular o conheci-
mento sobre a história e cultura da África e dos africanos, a história e cultura dos negros
no Brasil e as contribuições na formação da sociedade brasileira nas suas diferentes
áreas: social, econômica e política. Colabora, nessa direção, para dar acesso a negros e
não negros a novas possibilidades educacionais pautadas nas diferenças socioculturais
presentes na formação do país. Mais ainda, contribui para o processo de conhecimento,
reconhecimento e valorização da diversidade étnica e racial brasileira.
Nessa perspectiva, a UNESCO e o Minisrio da Educação acreditam que esta publica-
ção estimulará o necessário avao e aprofundamento de estudos, debates e pesquisas sobre
a tetica, bem como a elaboração de materiais pedagógicos que subsidiem a formação
inicial e continuada de professores e o seu trabalho junto aos alunos. Objetivam assim com
esta edição em português da História Geral da África contribuir para uma efetiva educação
das relações étnicas e raciais no país, conforme orienta as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relões Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-
brasileira e Africana aprovada em 2004 pelo Conselho Nacional de Educação.
Boa leitura e sejam bem-vindos ao Continente Africano.
Vincent Defourny Fernando Haddad
Representante da UNESCO no Brasil Ministro de Estado da Educação do Brasil
IX
NOTA DOS TRADUTORES
NOTA DOS TRADUTORES
A Conferência de Durban ocorreu em 2001 em um contexto mundial dife-
rente daquele que motivou as duas primeiras conferências organizadas pela
ONU sobre o tema da discriminação racial e do racismo: em 1978 e 1983 em
Genebra, na Suíça, o alvo da condenação era o apartheid.
A conferência de Durban em 2001 tratou de um amplo leque de temas, entre
os quais vale destacar a avaliação dos avanços na luta contra o racismo, na luta
contra a discriminação racial e as formas correlatas de discriminação; a avaliação
dos obstáculos que impedem esse avanço em seus diversos contextos; bem como
a sugestão de medidas de combate às expressões de racismo e intolerâncias.
Após Durban, no caso brasileiro, um dos aspectos para o equacionamento
da questão social na agenda do governo federal é a implementação de políticas
públicas para a eliminação das desvantagens raciais, de que o grupo afrodescen-
dente padece, e, ao mesmo tempo, a possibilidade de cumprir parte importante
das recomendações da conferência para os Estados Nacionais e organismos
internacionais.
No que se refere à educação, o diagnóstico realizado em novembro de 2007,
a partir de uma parceria entre a UNESCO do Brasil e a Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (SECAD/
MEC), constatou que existia um amplo consenso entre os diferentes participan-
tes, que concordavam, no tocante a Lei 10.639-2003, em relação ao seu baixo
grau de institucionalização e sua desigual aplicação no território nacional. Entre
X
Metodologia e pré -história da África
os fatores assinalados para a explicação da pouca institucionalização da lei estava
a falta de materiais de referência e didáticos voltados à História de África.
Por outra parte, no que diz respeito aos manuais e estudos disponíveis sobre
a História da África, havia um certo consenso em afirmar que durante muito
tempo, e ainda hoje, a maior parte deles apresenta uma imagem racializada e
eurocêntrica do continente africano, desfigurando e desumanizando especial-
mente sua história, uma história quase inexistente para muitos até a chegada
dos europeus e do colonialismo no século XIX.
Rompendo com essa visão, a História Geral da África publicada pela UNESCO
é uma obra coletiva cujo objetivo é a melhor compreensão das sociedades e cul-
turas africanas e demonstrar a importância das contribuições da África para a
história do mundo. Ela nasceu da demanda feita à UNESCO pelas novas nações
africanas recém-independentes, que viam a importância de contar com uma his-
tória da África que oferecesse uma visão abrangente e completa do continente,
para além das leituras e compreensões convencionais. Em 1964, a UNESCO
assumiu o compromisso da preparação e publicação da História Geral da África.
Uma das suas características mais relevantes é que ela permite compreender
a evolução histórica dos povos africanos em sua relação com os outros povos.
Contudo, até os dias de hoje, o uso da História Geral da África tem se limitado
sobretudo a um grupo restrito de historiadores e especialistas e tem sido menos
usada pelos professores/as e estudantes. No caso brasileiro, um dos motivos
desta limitação era a ausência de uma tradução do conjunto dos volumes que
compõem a obra em língua portuguesa.
A Universidade Federal de São Carlos, por meio do Núcleo de Estudos
Afrobrasileiros (NEAB/UFSCar) e seus parceiros, ao concluir o trabalho de
tradução e atualização ortográfica do conjunto dos volumes, agradece o apoio
da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD),
do Ministério da Educação (MEC) e da UNESCO por terem propiciado as
condições para que um conjunto cada vez maior de brasileiros possa conhecer e
ter orgulho de compartilhar com outros povos do continente americano o legado
do continente africano para nossa formação social e cultural.
XI
Cronologia
Na apresentação das datas da pré -história convencionou -se adotar dois tipos
de notação, com base nos seguintes critérios:
• Tomando como ponto de partida a época atual, isto é, datas B.P. (before
present), tendo como referência o ano de +1950; nesse caso, as datas são
todas negativas em relação a +1950.
• Usando como referencial o início da Era Cristã; nesse caso, as datas são
simplesmente precedidas dos sinais - ou +.
No que diz respeito aos séculos, as menções “antes de Cristo” e depois de
Cristo” são substituídas por “antes da Era Cristã”,da Era Cristã”.
Exemplos:
(i) 2300 B.P. = -350
(ii) 2900 a.C. = -2900
1800 d.C. = +1800
(iii) século V a.C. = século V antes da Era Cristã
século III d.C. = século III da Era Cristã
CRONOLOGIA
XIII
Lista de Figuras
Figura 2.1 Estatueta em bronze representando o poder dinástico dos Songhai
(Tera Níger). ......................................................................................................... 27
Figura 4.1 Baixo -relevo do Museu de Abomey ..................................................................... 71
Figura 5.1 Manuscrito árabe (verso) n. 2291, fólio 103 Ibn Battuta (2
a
parte),
referência ao Mali ............................................................................................... 102
Figura 6.1 Fac-símile de manuscrito bamum ......................................................................106
Figura 6.2 Fac-símile do manuscrito vai intitulado “An Early Vai Manuscript ................. 134
Figura 8.1 Músico tukulor tocando o “ardin ....................................................................... 179
Figura 8.2 Cantor Mvet ...................................................................................................... 179
Figura 8.3 Tocador de Valiha. O instrumento é de madeira com cordas de aço ................. 194
Figura 8.4 “Griot hutu” imitando o “mwami caído ............................................................194
Figura 9.1 Microfotografia de uma secção da fateixa de cobre pertencente ao barco
de Quéops em Gizeh .......................................................................................... 217
Figura 9.2 Radiografia frontal do peito da Rainha Nedjemet, da 21
a
dinastia.
Museu do Cairo .................................................................................................. 217
Figura 9.3 Bloco de vitrificação mostrando a superfície superior plana, as paredes
laterais e uma parte do cadinho ainda aderente ao lado direito ..........................227
Figura 9.4 Base de uma das colunas de arenito do templo de Buhen. Nota -se o
esboroamento da camada superficial devido à eflorescência ...............................227
Figura 10.1 Estela do rei serpente ....................................................................................... 271
Figura 10.2 Récade representando uma cabaça, símbolo de poder .......................................272
Figura 10.3 Récade dedicada a Dakodonu ........................................................................... 272
Figura 10.4 Leão semeando o terror. ................................................................................... 272
LISTA DE FIGURAS
XIV
Metodologia e pré -história da África
Figura 10.5 Pictogramas egípcios e nsibidi .........................................................................273
Figura 10.6 Palette de Narmer ............................................................................................. 273
Figura 10.7 Amostras de várias escritas africanas antigas....................................................274
Figura 10.8 Primeira página do principal capítulo do Alcorão em vai ................................ 275
Figura 10.9 Sistema gráfico vai ........................................................................................... 276
Figura 10.10 Sistema gráfico mum .....................................................................................278
Figura 10.11 Sistema pictográfico .......................................................................................278
Figura 10.12 Sistema ideográfico e fonético -silábico .......................................................... 278
Figura 11.1 Mulher haratina de Idélès. Argélia...................................................................302
Figura 11.2 Marroquino ...................................................................................................... 302
Figura 11.3 Mulher e criança argelinas ............................................................................... 302
Figura 11.4 Voltense ............................................................................................................ 304
Figura 11.5 Mulher sarakole, Mauritânia, grupo Soninke, da região do rio ........................304
Figura 11.6 Chefe nômade de Rkiz, Mauritânia ................................................................. 304
Figura 11.7 Mulher peul bororo, Tahoura, Níger ................................................................ 306
Figura 11.8 Criança tuaregue de Agadès, Níger ..................................................................306
Figura 11.9 Mulher djerma songhay de Balayera, Níger ..................................................... 306
Figura 11.10 Pigmeu twa, Ruanda ...................................................................................... 308
Figura 11.11 Grupo San...................................................................................................... 308
Figura 11.12 Pigmeu do Congo ..........................................................................................308
Figura 11.13 Mulheres zulu ................................................................................................ 311
Figura 11.14 Mulher peul ...................................................................................................313
Figura 11.15 Mulher peul das proximidades de Garoua -Boulay, Camarões ....................... 313
Figura 11.16 Jovem peul do Mali ........................................................................................ 313
Figura 12.1 Mapa diagramático das línguas da África ........................................................ 338
Figura 13.1 África física ...................................................................................................... 347
Figura 14.1 Os recursos minerais da África ........................................................................ 385
Figura 16.1 Gráficos mostrando analogias entre isótopos de oxigênio (ou variações
de temperatura) e a intensidade do campo magnético da Terra, em um
testemunho de fundo de mar, para os últimos 450000 anos ............................418
Figura 16.2 Gráficos mostrando analogias entre temperaturas indicadas pela microfauna
e a inclinação magnética para os últimos 2 milhões de anos............................ 419
Figura 16.3 Mapa das isotermas da água de superfície do oceano Atlântico em fevereiro,
18000 B.P. ........................................................................................................ 426
Figura 16.4 e 16.5 Mapa mostrando diferenças na temperatura da água de superfície
entre a época atual a 17000 B.P. Figura 16.4: inverno. Figura 16.5: verão. ......427
Figura 16.6 Evolução relativa da razão pluviosidade/evaporação nos últimos 12000 anos
na bacia do Chade (13° 18° de lat. N.) ..........................................................433
Figura 16.7 Variações dos níveis lacustres nas bacias do Afar ............................................. 434
Figura 16.8 Mapa das localidades fossilíferas do Plio -Pleistoceno da África oriental ........ 438
XV
Lista de Figuras
Figura 16.9 Cronologia radiométrica e paleomagnética do Plioceno/Pleistoceno da
África oriental, do sudoeste da Europa e do noroeste da América ..................439
Figura 16.10 Cronologia e ritmo da evolução das civilizações durante o Pleistoceno,
com relação à evolução dos hominídeos ........................................................ 442
Figura 16.11 Tendências gerais do clima global para o último milhão de anos. .................443
Figura 17.1 Reconstituição do meio ambiente do Faium há 40 milhões de anos.
Desenhos de Bertoncini -Gaillard sob a direção de Yves Coppens ..................450
Figura 17.2 Depósitos eocênico e oligocênico do Faium, Egito ..........................................450
Figura 17.3 Os dados paleontológicos ................................................................................. 454
Figura 17.4 Garganta de Olduvai, Tanzânia .......................................................................455
Figura 17.5 Crânio de Australopithecus africanus. Da direita para a esquerda, perfil de
criança (Taung, Botsuana) e de adulto (Sterkfontein, Transvaal) .....................455
Figura 17.6 Garganta de Olduvai, Tanzânia .......................................................................457
Figura 17.7 Sítio do Omo, Etiópia ......................................................................................457
Figura 17.8 Sítio do Omo, Etiópia ......................................................................................458
Figura 17.9 Crânios de Australopithecus boisei, sítio do Omo, Etiópia ................................. 458
Figura 17.10 Sítio de Afar, Etiópia .....................................................................................459
Figura 17.11
Crânio de Cro -Magnoide de Afalu, Argélia..................................................459
Figura 17.12 Canteiro de escavações em Olduvai ............................................................... 461
Figura 17.13 Crânios de Australopithecus robustus, à direita, e Australopithecus gracilis,
à esquerda ......................................................................................................461
Figura 17.14 Homo habilis ...................................................................................................463
Figura 17.15 Os sítios de Siwalik no Norte do Paquistão, expedição D. Pilbeam ..............465
Figura 17.16 Reconstituição do crânio de Ramapithecus ..................................................... 465
Figura 17.17 Esqueleto de Oreopithecus bambolii, com 12 milhões de anos, encontrado
em Grossetto (Toscana) por Johannes Hürzeler, em 1958 ............................ 465
Figura 17.18 Reconstituição do meio ambiente do Homo erectus de Chu -Ku -Tien
(ou Sinantropo), China (400 mil anos) ..........................................................466
Figura 17.19 Homo erectus de Chu -Ku -Tien (reconstituição) .............................................. 466
Figuras 17.20 e 17.21 Detalhe do solo olduvaiense (observam -se vários objetos,
entre os quais, poliedros e um grande osso de hipopótamo) .......................... 475
Figura 17.22 Uma das mais antigas pedras lascadas do mundo ..........................................479
Figura 17.23 Uma das primeiras pedras lascadas do mundo ............................................... 479
Figura 18.1 África: alguns dos sítios mais importantes de hominídeos...............................492
Figura 18.2 Crânio de Homo habilis (KNM -ER 1470). Vista lateral. Koobi Fora,
Quênia. ............................................................................................................. 499
Figura 18.3 Crânio de Homo erectus (KNM -ER 3733). Vista lateral. Koobi Fora,
Quênia .............................................................................................................499
Figura 18.4 Crânio de Australopithecus boisei (OH5). Vista lateral. Garganta de
Olduvai, Tanzânia ............................................................................................ 503
Figura 18.5 Mandíbula de Australopithecus boisei (KNM -ER 729). Vista em face
oclusiva. Koobi Fora, Quênia ........................................................................... 503
XVI
Metodologia e pré -história da África
Figura 18.6 Crânio de Australopithecus africanus (KNM -ER 1813). Vista lateral.
Koobi Fora, Quênia. .........................................................................................505
Figura 18.7 Mandíbula de Australopithecus africanus (KNM -ER 992). Vista em
face oclusiva. Koobi Fora, Quênia .................................................................... 505
Figura 19.1 A pré -história na África Oriental (1974) ......................................................... 512
Figura 19.2 África oriental: principais jazidas da Idade da Pedra (1974) ............................ 523
Figura 19.3 Garganta de Olduvai, Tanzânia setentrional .................................................... 530
Figura 19.4 Early Stone Age, primeira fase: utensílios olduvaienses típicos
(“seixos lascados”). ............................................................................................ 530
Figura 19.5 Early Stone Age, segunda fase: instrumentos acheulenses típicos
(vista frontal e lateral). 1. picão; 2. machadinha; 3. biface ................................533
Figura 19.6 Isimila, terras altas da Tanzânia meridional. Vista da ravina erodida
mostrando as camadas onde foram encontrados utensílios acheulenses ........... 535
Figura 19.7 Concentração de bifaces, machadinhas e outros utensílios acheulenses
(a pequena colher de pedreiro no centro serve como escala) ............................ 535
Figura 19.8 Middle Stone Age e utensílios de transição: o exemplo da direita é uma
ponta fina podendo ser encabada, talvez como ponta de lança ........................ 537
Figura 19.9 Olorgesailie, no Rift Valley do Quênia. Escavações em um sítio de
ocupação acheulense .........................................................................................537
Figura 19.10 Late Stone Age: lâmina com bordo de preensão retocado (à direita);
segmento de círculo (no centro); raspador e micrólito esquerda), feitos
de obsidiana no Rift Valley do Quênia .......................................................... 540
Figura 19.11 Apis Rock (Nasera), Tanzânia setentrional. As escavações sob o abrigo,
bem visível, à direita revelaram uma sucessão de ocupações humanas da
Idade da Pedra Recente ................................................................................. 540
Figura 20.1 Localização dos depósitos fauresmithienses e sangoenses na África austral .... 554
Figura 20.2 Depósitos de fósseis humanos do Pleistoceno Superior e alguns do
Pós -Pleistoceno na África austral ....................................................................554
Figura 20.3 Principais depósitos de fauna e fósseis humanos do fim do Plioceno ao
início do Pleistoceno na África austral ............................................................. 556
Figura 20.4 Localização dos principais depósitos acheulenses na África austral ................. 556
Figura 20.5 Acheulense Inferior, Sterkfontein: biface, lasca cuboide e dois núcleos ...........563
Figura 20.6 Utensílios do Acheulense Superior, de Kalambo Falls, datados de mais de
190000 anos B.P. ............................................................................................. 563
Figura 20.7 Utensílios provenientes dos depósitos de Howiesonspoort .............................. 563
Figura 20.8 Utensílios da Middle Stone Age, provenientes de Witkrans Cave ..................... 572
Figura 20.9 Utensílios do Lupembiense Médio, de Kalambo Falls ..................................... 572
Figura 20.10 Distribuição de lâminas e fragmentos de lâminas utilizadas, com relação a
estruturas de blocos de dolerito, no horizonte primário em Orangia ............572
Figura 20.11 Civilização sangoense de Zimbabwe, variante do Zambeze ..........................578
Figura 20.12 Indústrias da Middle Stone Age, provenientes de Twin Rivers (Zâmbia),
datadas de 32000 a 22000 anos B.P. ............................................................. 578
XVII
Lista de Figuras
Figura 20.13 Indústrias de Pietersburg e Bambata, provenientes da gruta das Lareiras
(Cave of Hearths), no Transvaal, e da gruta de Bambata, em Zimbabwe.
Instrumentos característicos das regiões de arbustos espinhosos e do
bushveld .......................................................................................................... 578
Figura 20.14 De 1 a 12, utensílios em sílex e calcedônia, das indústrias wiltonienses da
província do Cabo, na África do Sul. De 13 a 20, utensílios das indústrias
de Matopan (Wiltoniense de Zimbabwe ), provenientes da caverna de
Amadzimba, Matopos Hills, em Zimbabwe ................................................. 580
Figura 20.15 Utensílios de madeira provenientes de depósitos do Pleistoceno na África
austral ............................................................................................................580
Figura 20.16 Lasca -enxó em forma de crescente feita de sílex negro, montada por meio
de mástique sobre um cabo de chifre de rinoceronte, proveniente de uma
caverna da baía de Plettenberg, no leste da província do Cabo ..................... 580
Figura 21.1 Variações climáticas e indústrias pré -históricas da bacia do Zaire ................... 592
Figura 21.2 Monumento megalítico da região de Buar na República Centro -Africana .....603
Figura 21.3 Acheulense Superior. República Centro -Africana, rio Ngoere, Alto Sanga ..... 603
Figura 21.4 Vaso neolítico de fundo plano. República Centro -Africana, Batalimo,
Lobaye ............................................................................................................610
Figura 21.5 Zonas de vegetação da África Central .............................................................616
Figura 21.6 Mapa da África Central com os nomes dos lugares citados no texto ..............619
Figura 22.1 Evolução da
Pebble Culture
para as formas do Acheulense .......................639
Figura 22.2 Biface Acheulense o mais evoluído da jazida de Ternifine (Argélia
ocidental)..........................................................................................................641
Figura 22.3 Machados de riolito do Acheulense encontrados no sítio de Erg
Tihodaine. ........................................................................................................ 643
Figura 22.4 Ponta do Musteriense, El -Guettar (Tunísia) ...................................................643
Figura 22.5 “Esferoides facetados” de Ain Hanech ............................................................. 643
Figura 22.6 Ateriense do Uede Djouf el -Djemel (Argélia oriental) ................................... 647
Figura 22.7 Indústria do Capsiense típico ........................................................................... 647
Figura 22.8 Indústria de armaduras do Capsiense superior ................................................647
Figura 22.9 Indústria do Capsiense superior ....................................................................... 647
Figura 22.10 Neolítico de tradição capsiense do Damous el -Ahmar, Argélia oriental.
Mó e moleta. Traços de carvão e ocre. Fragmentos de conchas de Helix ...... 654
Figura 22.11 Pequena placa calcária gravada. Capsiense superior do Khanguet
el -Mouhaad, Argélia oriental......................................................................... 654
Figura 22.12 Ain Hanech, seixos com lascamento unifacial (chopper) ou bifacial
(chopping ‑tool) ................................................................................................655
Figura 22.13 Perônio humano em forma de punhal – Capsiense superior – Mechta
el -Arbi, Argélia oriental, escavações feitas em 1952 ...................................... 655
Figura 23.1 Principais sítios de pinturas e gravuras rupestres saarianas ..............................661
Figura 23.2 Machado plano com entalhes, Gossolorum
(Níger). .....................................661
Figura 23.3 Machadinha de Ti -n -Assako (Mali). ............................................................... 661
Figura 23.4 e 23.5 Seixos lascados (Pebble Culture), Aoulef (Saara argeliano) .................... 666
XVIII
Metodologia e pré -história da África
Figura 23.6 Biface do Paleolítico Inferior, Tachenghit (Saara argeliano). ...........................666
Figura 23.7 Machadinha do Paleolítico Inferior, Tachenghit (Saara argeliano) ..................666
Figura 23.8 Grande ponta dupla bifacial ateriense, Timimoum (Saara argeliano) .............. 670
Figura 23.9 Pontas aterienses, Aoulef (Saara argeliano) ......................................................670
Figura 23.10 Ponta dupla bifacial ateriense, Adrar Bous V (Níger) .................................... 670
Figura 23.11 Cerâmica neolítica, Dhar Tichitt (Mauritânia) .............................................. 675
Figura 23.12 Cerâmica de Akreijit, Mauritânia .................................................................. 675
Figura 23.13 Pontas de flechas neolíticas, In Guezzam (Níger)..........................................681
Figura 23.14 Machado com garganta neolítica, Adrar Bous (Níger). .................................. 681
Figura 23.15 Machado polido neolítico, região de Faya (Chade) ........................................ 681
Figura 24.1
Zonas de vegetação da África ocidental. ..................................................686
Figura 24.2 Cerâmica do Cabo Manuel, Senegal ................................................................ 696
Figura 24.3 Brunidor de osso, encontrado no sítio neolítico do Cabo Manuel ...................696
Figura 24.4 Mó feita de rocha vulcânica, encontrada no sítio neolítico de Ngor ............... 700
Figura 24.5 Pendentes de pedra basalto do sítio neolítico de Patte d’Oie .......................... 700
Figura 24.6 Machados polidos de “Bel Air em dolerito ..................................................... 704
Figura 24.7 Cerâmica neolítica de “Bel Air”, do sítio de Diakité, no Senegal .................... 704
Figura 24.8 Vaso de fundo plano da Idade do Ferro ...........................................................709
Figura 24.9 Círculo megalítico, Tiekene Boussoura, Senegal: o “túmulo do rei”
aparece em primeiro plano ............................................................................... 711
Figura 24.10 Estatueta antropomórfica encontrada em Thiaroye, no Senegal .................... 711
Figura 25.1 O Vale das Rainhas .......................................................................................... 720
Figura 25.2 Pontas de dardos em sílex de Mirgissa, Sudão ................................................. 720
Figura 26.1 Rinoceronte, Blaka, Níger ................................................................................749
Figura 26.2 Gazela, Blaka, Níger.........................................................................................749
Figura 26.3 Bovino, Tin Rharo, Mali .................................................................................. 749
Figura 26.4 Elefante, In -Ekker, Saara argelino ................................................................... 749
Figura 26.5 Pintura rupestre, Namíbia ................................................................................ 754
Figura 26.6 Pintura rupestre, Tibesti, Chade ...................................................................... 754
Figura 26.7 “Pista da Serpente”, pintura rupestre ............................................................... 760
Figura 26.8 Dama Branca, pintura rupestre ........................................................................ 760
Figura 26.9 Detalhe de uma gravura rupestre, Alto Volta ................................................... 764
Figura 26.10 Pintura rupestre, Namíbia .............................................................................. 764
Figura 26.11
Pinturas rupestres, planalto do Tassili n’Ajjer, Argélia ............................................. 766
Figura 26.12 Cena erótica, Tassili ....................................................................................... 770
Figura 26.13 Cena erótica, Tassili. ....................................................................................... 770
Figura 27.1 Zoneamento ecológico latitudinal .................................................................... 785
Figura 27.2 Diferentes ecossistemas ....................................................................................785
Figura 27.3 Os berços agrícolas africanos ........................................................................... 791
Figura 27.4 Mapa geoagrícola da África ............................................................................. 791
XIX
Lista de Figuras
Figura 27.5 Aspecto de urna queimada (após a combustão) – Futa Djalon: Pita,
Timbi -Madina ................................................................................................. 794
Figura 27.6 Terra lavrada com o Kadyendo pelos Diula de Oussouye (Casamance)
antes do replantio do arroz ............................................................................... 794
Figura 27.7 O Soung ou entre os Seereer Gnominka, pescadores -rizicultores das
ilhas da Petite Côte, no Senegal .......................................................................796
Figura 27.8 Arrozais em solos hidromorfos sujeitos a cheias temporárias na estação
das chuvas (rizicultura de impluvium), Casamance: aldeia bayoyy de Niassa ... 798
Figura 27.9 Ilhas artificiais para a cultura do arroz em arrozais aquáticos muito
profundos onde o nível da água não baixa o suficiente ....................................798
Figura 28.1 Túmulo de Rekh mi -re em Tebas .....................................................................827
Figura 28.2 Túmulo de Huy: parede leste (fachada sul) ...................................................... 827
Figura 28.3 Navalha, Mirgissa, Sudão ................................................................................. 827
Figura 28.4 Túmulo de Huy ................................................................................................ 829
Figura 28.5 Estátua de cobre de Pépi I (Antigo Império) ................................................... 831
Figura 29.1 Australopithecus boisei, jazidas do Omo .............................................................842
Figura 29.2 Laboratório destinado às pesquisas sobre o remanejo do delta do Senegal,
Rosso-Bethio, Senegal ........................................................................................ 842
XXI
Prefácio
Durante muito tempo, mitos e preconceitos de toda espécie esconderam do
mundo a real história da África. As sociedades africanas passavam por sociedades
que não podiam ter história. Apesar de importantes trabalhos efetuados desde
as primeiras décadas do século XX por pioneiros como Leo Frobenius, Maurice
Delafosse e Arturo Labriola, um grande número de especialistas não africanos,
ligados a certos postulados, sustentavam que essas sociedades não podiam ser
objeto de um estudo científico, notadamente por falta de fontes e documentos
escritos.
Se a Ilíada e a Odisseia podiam ser devidamente consideradas como fontes
essenciais da história da Grécia antiga, em contrapartida, negava-se todo valor
à tradição oral africana, essa memória dos povos que fornece, em suas vidas, a
trama de tantos acontecimentos marcantes. Ao escrever a história de grande
parte da África, recorria-se somente a fontes externas à África, oferecendo
uma visão não do que poderia ser o percurso dos povos africanos, mas daquilo
que se pensava que ele deveria ser. Tomando frequentemente a “Idade Média
europeia como ponto de referência, os modos de produção, as relações sociais
tanto quanto as instituições políticas não eram percebidos senão em referência
ao passado da Europa.
Com efeito, havia uma recusa a considerar o povo africano como o criador
de culturas originais que floresceram e se perpetuaram, através dos séculos, por
PREFÁCIO
por M. Amadou Mahtar M’Bow,
Diretor Geral da UNESCO (1974-1987)
XXII
Metodologia e pré -história da África
vias que lhes são próprias e que o historiador só pode apreender renunciando a
certos preconceitos e renovando seu método.
Da mesma forma, o continente africano quase nunca era considerado
como uma entidade histórica. Em contrário, enfatizava-se tudo o que pudesse
reforçar a ideia de uma cisão que teria existido, desde sempre, entre uma África
branca” e uma “África negra que se ignoravam reciprocamente. Apresentava-se
frequentemente o Saara como um espaço impenetrável que tornaria impossíveis
misturas entre etnias e povos, bem como trocas de bens, crenças, hábitos e ideias
entre as sociedades constituídas de um lado e de outro do deserto. Traçavam-se
fronteiras intransponíveis entre as civilizações do antigo Egito e da Núbia e
aquelas dos povos subsaarianos.
Certamente, a história da África norte-saariana esteve antes ligada àquela da
bacia mediterrânea, muito mais que a história da África subsaariana mas, nos
dias atuais, é amplamente reconhecido que as civilizações do continente africano,
pela sua variedade linguística e cultural, formam em graus variados as vertentes
históricas de um conjunto de povos e sociedades, unidos por laços seculares.
Um outro fenômeno que grandes danos causou ao estudo objetivo do passado
africano foi o aparecimento, com o tráfico negreiro e a colonização, de estereótipos
raciais criadores de desprezo e incompreensão, tão profundamente consolidados
que corromperam inclusive os próprios conceitos da historiografia. Desde que
foram empregadas as noções de “brancos” e negros”, para nomear genericamente
os colonizadores, considerados superiores, e os colonizados, os africanos foram
levados a lutar contra uma dupla servidão, econômica e psicológica. Marcado
pela pigmentação de sua pele, transformado em uma mercadoria entre outras,
e destinado ao trabalho forçado, o africano veio a simbolizar, na consciência de
seus dominadores, uma essência racial imaginária e ilusoriamente inferior: a de
negro. Este processo de falsa identificação depreciou a história dos povos africanos
no espírito de muitos, rebaixando-a a uma etno-história, em cuja apreciação das
realidades históricas e culturais não podia ser senão falseada.
A situação evoluiu muito desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em
particular, desde que os países da África, tendo alcançado sua independência,
comaram a participar ativamente da vida da comunidade internacional e
dos intercâmbios a ela inerentes. Historiadores, em mero crescente, têm
se esforçado em abordar o estudo da África com mais rigor, objetividade e
abertura de espírito, empregando obviamente com as devidas precauções
fontes africanas originais. No exercício de seu direito à iniciativa histórica, os
próprios africanos sentiram profundamente a necessidade de restabelecer, em
bases sólidas, a historicidade de suas sociedades.
XXIII
Prefácio
É nesse contexto que emerge a importância da História Geral da África, em
oito volumes, cuja publicação a Unesco começou.
Os especialistas de numerosos pses que se empenharam nessa obra,
preocuparam-se, primeiramente, em estabelecer-lhe os fundamentos teóricos
e metodológicos. Eles tiveram o cuidado em questionar as simplificões
abusivas criadas por uma concepção linear e limitativa da história universal,
bem como em restabelecer a verdade dos fatos sempre que necessário e possível.
Eles esforçaram-se para extrair os dados históricos que permitissem melhor
acompanhar a evolução dos diferentes povos africanos em sua especificidade
sociocultural.
Nessa tarefa imensa, complexa e árdua em vista da diversidade de fontes e
da dispersão dos documentos, a UNESCO procedeu por etapas. A primeira
fase (1965-1969) consistiu em trabalhos de documentação e de planificação da
obra. Atividades operacionais foram conduzidas in loco, através de pesquisas de
campo: campanhas de coleta da tradição oral, criação de centros regionais de
documentação para a tradição oral, coleta de manuscritos inéditos em árabe e
ajami (línguas africanas escritas em caracteres árabes), compilação de inventários
de arquivos e preparação de um Guia das fontes da história da África, publicado
posteriormente, em nove volumes, a partir dos arquivos e bibliotecas dos países
da Europa. Por outro lado, foram organizados encontros, entre especialistas
africanos e de outros continentes, durante os quais se discutiu queses
metodológicas e traçou-se as grandes linhas do projeto, após atencioso exame
das fontes disponíveis.
Uma segunda etapa (1969 a 1971) foi consagrada ao detalhamento e à
articulação do conjunto da obra. Durante esse período, realizaram-se reuniões
internacionais de especialistas em Paris (1969) e Addis-Abeba (1970), com o
propósito de examinar e detalhar os problemas relativos à redação e à publicação
da obra: apresentação em oito volumes, edição principal em inglês, francês e
árabe, assim como traduções para línguas africanas, tais como o kiswahili, o
hawsa, o peul, o yoruba ou o lingala. Igualmente estão previstas traduções para
o alemão, russo, português, espanhol e chinês
1
, além de edições resumidas,
destinadas a um público mais amplo, tanto africano quanto internacional.
1 O volume I foi publicado em inglês, árabe, chinês, coreano, espanhol, francês, hawsa, italiano, kiswahi-
li, peul e português; o volume II, em inglês, árabe, chinês, coreano, espanhol, francês, hawsa, italiano,
kiswahili, peul e português; o volume III, em inglês, árabe, espanhol e francês; o volume IV, em inglês,
árabe, chinês, espanhol, francês e português; o volume V, em inglês e árabe; o volume VI, em inglês,
árabe e francês; o volume VII, em inglês, árabe, chinês, espanhol, francês e português; o VIII, em inglês
e francês.
XXIV
Metodologia e pré -história da África
A terceira e última fase constituiu-se na redação e na publicação do trabalho.
Ela começou pela nomeação de um Comitê Científico Internacional de trinta e
nove membros, composto por africanos e não africanos, na respectiva proporção
de dois terços e um terço, a quem incumbiu-se a responsabilidade intelectual
pela obra.
Interdisciplinar, o método seguido caracterizou-se tanto pela pluralidade
de abordagens tricas quanto de fontes. Dentre essas últimas, é preciso
citar primeiramente a arqueologia, detentora de grande parte das chaves da
história das culturas e das civilizações africanas. Graças a ela, admite-se, nos
dias atuais, reconhecer que a África foi, com toda probabilidade, o berço da
humanidade, palco de uma das primeiras revoluções tecnológicas da história,
ocorrida no período Neolítico. A arqueologia igualmente mostrou que, na
África, especificamente no Egito, desenvolveu-se uma das antigas civilizações
mais brilhantes do mundo. Outra fonte digna de nota é a tradição oral que,
até recentemente desconhecida, aparece hoje como uma preciosa fonte para
a reconstituição da história da África, permitindo seguir o percurso de seus
diferentes povos no tempo e no espaço, compreender, a partir de seu interior, a
visão africana do mundo, e apreender os traços originais dos valores que fundam
as culturas e as instituições do continente.
Saber-se reconhecer o mérito do Comitê Cienfico Internacional
encarregado dessa História geral da África, de seu relator, bem como de seus
coordenadores e autores dos diferentes volumes e capítulos, por terem lançado
uma luz original sobre o passado da África, abraçado em sua totalidade, evitando
todo dogmatismo no estudo de questões essenciais, tais como: o tráfico negreiro,
essa sangria sem fim”, responsável por umas das deportações mais cruéis da
história dos povos e que despojou o continente de uma parte de suas forças
vivas, no momento em que esse último desempenhava um papel determinante
no progresso econômico e comercial da Europa; a colonização, com todas suas
conseqncias nos âmbitos demográfico, econômico, psicogico e cultural;
as relações entre a África ao sul do Saara e o mundo árabe; o processo de
descolonização e de construção nacional, mobilizador da razão e da paixão de
pessoas ainda vivas e muitas vezes em plena atividade. Todas essas questões
foram abordadas com grande preocupação quanto à honestidade e ao rigor
científico, o que constitui um mérito não desprezível da presente obra. Ao fazer o
balanço de nossos conhecimentos sobre a África, propondo diversas perspectivas
sobre as culturas africanas e oferecendo uma nova leitura da história, a História
geral da África tem a indiscutível vantagem de destacar tanto as luzes quanto as
sombras, sem dissimular as divergências de opinião entre os estudiosos.
XXV
Prefácio
Ao demonstrar a insuficiência dos enfoques metodológicos amiúde utilizados
na pesquisa sobre a África, essa nova publicão convida à renovação e ao
aprofundamento de uma dupla problemática, da historiografia e da identidade
cultural, unidas por laços de reciprocidade. Ela inaugura a via, como todo
trabalho histórico de valor, para múltiplas novas pesquisas.
É assim que, em estreita colaboração com a UNESCO, o Comitê Científico
Internacional decidiu empreender estudos complementares com o intuito de
aprofundar algumas questões que permitirão uma visão mais clara sobre certos
aspectos do passado da África. Esses trabalhos, publicados na coleção UNESCO
História geral da África: estudos e documentos, virão a constituir, de modo útil,
um suplemento à presente obra
2
. Igualmente, tal esforço desdobrar-se-á na
elaboração de publicações versando sobre a história nacional ou sub-regional.
Essa História geral da África coloca simultaneamente em foco a unidade
histórica da África e suas relações com os outros continentes, especialmente
com as Américas e o Caribe. Por muito tempo, as expressões da criatividade dos
afrodescendentes nas Américas haviam sido isoladas por certos historiadores em
um agregado heteróclito de africanismos; essa visão, obviamente, não corresponde
àquela dos autores da presente obra. Aqui, a resistência dos escravos deportados
para a América, o fato tocante ao marronage [fuga ou clandestinidade] político
e cultural, a participação constante e massiva dos afrodescendentes nas lutas da
primeira independência americana, bem como nos movimentos nacionais de
libertação, esses fatos são justamente apreciados pelo que eles realmente foram:
vigorosas afirmações de identidade que contribuíram para forjar o conceito
universal de humanidade. É hoje evidente que a herança africana marcou, em
maior ou menor grau, segundo as regiões, as maneiras de sentir, pensar, sonhar
e agir de certas nações do hemisfério ocidental. Do sul dos Estados Unidos ao
norte do Brasil, passando pelo Caribe e pela costa do Pacífico, as contribuições
culturais herdadas da África são visíveis por toda parte; em certos casos, inclusive,
elas constituem os fundamentos essenciais da identidade cultural de alguns dos
elementos mais importantes da população.
2 Doze números dessa série foram publicados; eles tratam respectivamente sobre: n. 1 O povoamento
do Egito antigo e a decodicação da escrita meroítica; n. 2 − O tráco negreiro do século XV ao século
XIX; n. 3 – Relações históricas através do Oceano Índico; n. 4 – A historiograa da África Meridional;
n. 5 A descolonização da África: África Meridional e Chifre da África [Nordeste da África]; n. 6
Etnonímias e toponímias; n. 7 – As relações históricas e socioculturais entre a África e o mundo árabe; n.
8 A metodologia da história da África contemporânea; n. 9 – O processo de educação e a historiograa
na África; n. 10 A África e a Segunda Guerra Mundial; n. 11 Líbia Antiqua; n. 12 O papel dos
movimentos estudantis africanos na evolução política e social da África de 1900 a 1975.
XXVI
Metodologia e pré -história da África
Igualmente, essa obra faz aparecerem nitidamente as relações da África com
o sul da Ásia através do Oceano Índico, além de evidenciar as contribuições
africanas junto a outras civilizações em seu jogo de trocas mútuas.
Estou convencido de que os esforços dos povos da África para conquistar
ou reforçar sua independência, assegurar seu desenvolvimento e consolidar
suas especificidades culturais devem enraizar-se em uma consciência histórica
renovada, intensamente vivida e assumida de geração em geração.
Minha formação pessoal, a experiência adquirida como professor e, desde os
primórdios da independência, como presidente da primeira comissão criada com
vistas à reforma dos programas de ensino de história e de geografia de certos
países da África Ocidental e Central, ensinaram-me o quanto era necessário,
para a educação da juventude e para a informação do público, uma obra de
história elaborada por pesquisadores que conhecessem desde o seu interior
os problemas e as esperanças da África, pensadores capazes de considerar o
continente em sua totalidade.
Por todas essas razões, a UNESCO zelará para que essa História Geral da
África seja amplamente difundida, em numerosos idiomas, e constitua base
da elaboração de livros infantis, manuais escolares e emissões televisivas ou
radiofônicas. Dessa forma, jovens, escolares, estudantes e adultos, da África e de
outras partes, poderão ter uma melhor visão do passado do continente africano e
dos fatores que o explicam, além de lhes oferecer uma compreensão mais precisa
acerca de seu patrimônio cultural e de sua contribuição ao progresso geral da
humanidade. Essa obra deverá então contribuir para favorecer a cooperação
internacional e reforçar a solidariedade entre os povos em suas aspirações
por justiça, progresso e paz. Pelo menos, esse é o voto que manifesto muito
sinceramente.
Resta-me ainda expressar minha profunda gratidão aos membros do
Comitê Científico Internacional, ao redator, aos coordenadores dos diferentes
volumes, aos autores e a todos aqueles que colaboraram para a realização desta
prodigiosa empreitada. O trabalho por eles efetuado e a contribuição por eles
trazida mostram, com clareza, o quanto homens vindos de diversos horizontes,
conquanto animados por uma mesma vontade e igual entusiasmo a serviço da
verdade de todos os homens, podem fazer, no quadro internacional oferecido
pela UNESCO, para lograr êxito em um projeto de tamanho valor científico
e cultural. Meu reconhecimento igualmente estende-se às organizações e aos
governos que, graças a suas generosas doações, permitiram à UNESCO publicar
essa obra em diferentes línguas e assegurar-lhe a difusão universal que ela merece,
em prol da comunidade internacional em sua totalidade.
XXVII
Apresentação do Projeto
A Conferência Geral da UNESCO, em sua décima sexta sessão, solicitou
ao Diretor -geral que empreendesse a redação de uma História Geral da África.
Esse considerável trabalho foi confiado a um Comitê Científico Internacional
criado pelo Conselho Executivo em 1970.
Segundo os termos dos estatutos adotados pelo Conselho Executivo da
UNESCO, em 1971, esse Comitê compõe -se de trinta e nove membros
responsáveis (dentre os quais dois terços africanos e um terço de não africanos),
nomeados pelo Diretor -geral da UNESCO por um período correspondente à
duração do mandato do Comitê.
A primeira tarefa do Comitê consistiu em definir as principais características
da obra. Ele definiu -as em sua primeira sessão, nos seguintes termos:
• Em que pese visar a maior qualidade científica possível, a História Geral
da África não busca a exaustão e se pretende uma obra de síntese que
evitará o dogmatismo. Sob muitos aspectos, ela constitui uma exposição
dos problemas indicadores do atual estádio dos conhecimentos e das
grandes correntes de pensamento e pesquisa, não hesitando em assinalar,
em tais circunstâncias, as divergências de opinião. Ela assim preparará o
caminho para posteriores publicações.
• A África é aqui considerada como um todo. O objetivo é mostrar as
relações históricas entre as diferentes partes do continente, muito amiúde
APRESENTAÇÃO DO PROJETO
pelo Professor Bethwell Allan Ogot
Presidente do Comitê Cientíco Internacional
para a redação de uma História Geral da África
XXVIII
Metodologia e pré -história da África
subdividido, nas obras publicadas até o momento. Os laços históricos
da África com os outros continentes recebem a atenção merecida e
são analisados sob o ângulo dos intercâmbios mútuos e das influências
multilaterais, de forma a fazer ressurgir, oportunamente, a contribuição
da África para o desenvolvimento da humanidade.
A História Geral da África consiste, antes de tudo, em uma hisria das ideias
e das civilizações, das sociedades e das instituições. Ela fundamenta -se sobre
uma grande diversidade de fontes, aqui compreendidas a tradão oral e a
expressão artística.
• A História Geral da África é aqui essencialmente examinada de seu
interior. Obra erudita, ela também é, em larga medida, o fiel reflexo da
maneira através da qual os autores africanos veem sua própria civilização.
Embora elaborada em âmbito internacional e recorrendo a todos os
dados científicos atuais, a História será igualmente um elemento capital
para o reconhecimento do patrimônio cultural africano, evidenciando os
fatores que contribuem para a unidade do continente. Essa vontade de
examinar os fatos de seu interior constitui o ineditismo da obra e poderá,
além de suas qualidades científicas, conferir -lhe um grande valor de
atualidade. Ao evidenciar a verdadeira face da África, a História poderia,
em uma época dominada por rivalidades econômicas e técnicas, propor
uma concepção particular dos valores humanos.
O Comitê decidiu apresentar a obra, dedicada ao estudo de mais de 3 milhões
de anos de história da África, em oito volumes, cada qual compreendendo
aproximadamente oitocentas páginas de texto com ilustrações (fotos, mapas e
desenhos tracejados).
Para cada volume designou -se um coordenador principal, assistido, quando
necessário, por um ou dois codiretores assistentes.
Os coordenadores dos volumes são escolhidos, tanto entre os membros
do Comitê quanto fora dele, em meio a especialistas externos ao organismo,
todos eleitos por esse último, pela maioria de dois terços. Eles se encarregam da
elaboração dos volumes, em conformidade com as decisões e segundo os planos
decididos pelo Comitê. São eles os responsáveis, no plano científico, perante
o Comitê ou, entre duas sessões do Comitê, perante o Conselho Executivo,
pelo conteúdo dos volumes, pela redação final dos textos ou ilustrações e, de
uma maneira geral, por todos os aspectos científicos e técnicos da História. É
o Conselho Executivo quem aprova, em última instância, o original definitivo.
Uma vez considerado pronto para a edição, o texto é remetido ao Diretor -Geral
XXIX
Apresentação do Projeto
da UNESCO. A responsabilidade pela obra cabe, dessa forma, ao Comitê ou,
entre duas sessões do Comitê, ao Conselho Executivo.
Cada volume compreende por volta de 30 capítulos. Cada qual redigido por
um autor principal, assistido por um ou dois colaboradores, caso necessário.
Os autores são escolhidos pelo Comitê em função de seu curriculum vitae.
A preferência é concedida aos autores africanos, sob reserva de sua adequação
aos títulos requeridos. Além disso, o Comitê zela, tanto quanto possível, para
que todas as regiões da África, bem como outras regiões que tenham mantido
relações históricas ou culturais com o continente, estejam de forma equitativa
representadas no quadro dos autores.
Após aprovão pelo coordenador do volume, os textos dos diferentes
capítulos são enviados a todos os membros do Comitê para submissão à sua
crítica.
Ademais e finalmente, o texto do coordenador do volume é submetido
ao exame de um comitê de leitura, designado no seio do Comitê Científico
Internacional, em função de suas competências; cabe a esse comitê realizar uma
profunda análise tanto do conteúdo quanto da forma dos capítulos.
Ao Conselho Executivo cabe aprovar, em última instância, os originais.
Tal procedimento, aparentemente longo e complexo, revelou -se necessário,
pois permite assegurar o máximo de rigor científico à História Geral da África.
Com efeito, houve ocasiões nas quais o Conselho Executivo rejeitou originais,
solicitou reestruturações importantes ou, inclusive, confiou a redação de um
capítulo a um novo autor. Eventualmente, especialistas de uma questão ou
período específico da história foram consultados para a finalização definitiva
de um volume.
Primeiramente, uma edição principal da obra em inglês, francês e árabe será
publicada, posteriormente haverá uma edição em forma de brochura, nesses
mesmos idiomas.
Uma versão resumida em inglês e francês servirá como base para a tradução
em línguas africanas. O Comi Científico Internacional determinou quais
os idiomas africanos para os quais serão realizadas as primeiras traduções: o
kiswahili e o haussa.
Tanto quanto possível, pretende -se igualmente assegurar a publicação da
História Geral da África em vários idiomas de grande difusão internacional
(dentre outros: alemão, chinês, italiano, japonês, português, russo, etc.).
Trata -se, portanto, como se pode constatar, de uma empreitada gigantesca
que constitui um ingente desafio para os historiadores da África e para a
comunidade científica em geral, bem como para a UNESCO que lhe oferece
XXX
Metodologia e pré -história da África
sua chancela. Com efeito, pode -se facilmente imaginar a complexidade de uma
tarefa tal qual a redação de uma história da África, que cobre no espaço todo um
continente e, no tempo, os quatro últimos milhões de anos, respeitando, todavia,
as mais elevadas normas científicas e convocando, como é necessário, estudiosos
pertencentes a todo um leque de países, culturas, ideologias e tradições históricas.
Trata -se de um empreendimento continental, internacional e interdisciplinar,
de grande envergadura.
Em conclusão, obrigo -me a sublinhar a importância dessa obra para a África
e para todo o mundo. No momento em que os povos da África lutam para se unir
e para, em conjunto, melhor forjar seus respectivos destinos, um conhecimento
adequado sobre o passado da África, uma tomada de consciência no tocante
aos elos que unem os Africanos entre si e a África aos demais continentes, tudo
isso deveria facilitar, em grande medida, a compreensão mútua entre os povos
da Terra e, além disso, propiciar sobretudo o conhecimento de um patrimônio
cultural cuja riqueza consiste em um bem de toda a Humanidade.
Bethwell Allan Ogot
Em 8 de agosto de 1979
Presidente do Comitê Científico Internacional
para a redação de uma História Geral da África
XXXI
Introdução Geral
A África*
1
tem uma história. foi o tempo em que nos mapas -múndi e
portulanos, sobre grandes espaços, representando esse continente então marginal
e servil, havia uma frase lapidar que resumia o conhecimento dos sábios a respeito
dele e que, no fundo, soava também como um álibi: “Ibi sunt leones”. existem
leões. Depois dos leões, foram descobertas as minas, grandes fontes de lucro, e
as “tribos indígenas” que eram suas proprietárias, mas que foram incorporadas
às minas como propriedades das nações colonizadoras.
* Nota do coordenador do volume: A palavra ÁFRICA possui até o presente momento uma origem difícil
de elucidar. Foi imposta a partir dos romanos sob a forma AFRICA, que sucedeu ao termo de origem
grega ou egípcia Lybia, país dos Lebu ou Lubin do Gênesis. Após ter designado o litoral norte -africano,
a palavra África passou a aplicar -se ao conjunto do continente, desde o m do século I antes da Era
Cristã.
Mas qual é a origem primeira do nome? Começando pelas mais plausíveis, pode -se dar as seguintes versões:
• A palavra África teria vindo do nome de um povo (berbere) situado ao sul de Cartago: os Afrig. De onde
Afriga ou Africa para designar a rego dos Afrig.
• Uma outra etimologia da palavra África é retirada de dois termos fenícios, um dos quais significa espiga,
mbolo da fertilidade dessa rego, e o outro, Pharikia, região das frutas.
• A palavra África seria derivada do latim aprica (ensolarado) ou do grego apri (isento de frio).
• Outra origem poderia ser a raiz fecia faraga, que exprime a ideia de separação, de diáspora. Enfatizemos
que essa mesma raiz é encontrada em certas línguas africanas (bambara).
• Em sânscrito e hindi, a raiz apara ou africa designa o que, no plano geogfico, está situado “depois”, ou
seja, o Ocidente. A África é um continente ocidental.
• Uma tradão histórica retomada por Leão, o Africano, diz que um chefe iemenita chamado Africus teria
invadido a África do Norte no segundo milênio antes da Era Cristã e fundado uma cidade chamada
Afrikyah. Mas é mais provável que o termo árabe Afriqiyah seja a transliteração árabe da palavra África.
• Chegou -se mesmo a dizer que Afer era neto de Abro e companheiro dercules!
INTRODUÇÃO GERAL
Joseph Ki ‑Zerbo
XXXII
Metodologia e pré -história da África
Mais tarde, depois das tribos indígenas, chegou a vez dos povos impacientes
com opressão, cujos pulsos batiam no ritmo febril das lutas pela liberdade.
Com efeito, a história da África, como a de toda a humanidade, é a história
de uma tomada de consciência. Nesse sentido, a história da África deve ser
reescrita. E isso porque, até o presente momento, ela foi mascarada, camuflada,
desfigurada, mutilada. Pela “força das circunstâncias”, ou seja, pela ignorância e
pelo interesse. Abatido por vários séculos de opressão, esse continente presenciou
gerações de viajantes, de traficantes de escravos, de exploradores, de missionários,
de procônsules, de sábios de todo tipo, que acabaram por fixar sua imagem no
cenário da miséria, da barbárie, da irresponsabilidade e do caos. Essa imagem
foi projetada e extrapolada ao infinito ao longo do tempo, passando a justificar
tanto o presente quanto o futuro.
Não se trata aqui de construir uma hisria -revanche, que relançaria a
história colonialista como um bumerangue contra seus autores, mas de mudar
a perspectiva e ressuscitar imagens esquecidas” ou perdidas. Torna -se necessário
retornar à ciência, a fim de que seja possível criar em todos uma consciência
autêntica. É preciso reconstruir o cenário verdadeiro. É tempo de modificar o
discurso. Se são esses os objetivos e o porquê desta iniciativa, o como – ou seja,
a metodologia – é, como sempre, muito mais penoso. É justamente esse um dos
objetivos desse primeiro volume da História Geral da África, elaborada sob o
patrocínio da UNESCO.
I. PORQUÊ?
Trata -se de uma iniciativa científica. As sombras e obscuridades que cercam o
passado desse continente constituem um desafio apaixonante para a curiosidade
humana. A história da África é pouco conhecida. Quantas genealogias mal
feitas! Quantas estruturas esboçadas com pontilhados impressionistas ou mesmo
encobertas por espessa neblina! Quantas sequências que parecem absurdas
porque o trecho precedente do filme foi cortado! Esse filme desarticulado e
parcelado, que não é senão a imagem de nossa ignorância, nós o transformamos,
por uma formação deplorável ou viciosa, na imagem real da história da África
tal como efetivamente se desenrolou. Nesse contexto, não é de causar espanto o
lugar infinitamente pequeno e secundário que foi dedicado à história africana
em todas as histórias da humanidade ou das civilizações.
Porém, algumas décadas, milhares de pesquisadores, muitos de grande
ou mesmo de excepcional mérito, vêm procurando resgatar porções inteiras da
XXXIII
Introdução Geral
antiga fisionomia da África. A cada ano aparecem dezenas de novas publicações
cuja ótica é cada vez mais positiva. Descobertas africanas, por vezes espetaculares,
questionam o significado de certas fases da história da humanidade em seu
conjunto.
Mas essa mesma proliferação comporta certos perigos: risco de cacofonia
pela profusão de pesquisas desordenadas ou sem coordenação efetiva; discussões
inúteis entre escolas que tendem a dar mais importância aos pesquisadores que
ao objeto das pesquisas, etc. Por essas razões, e pela honra da ciência, tornava -se
importante que uma tomada de posição acima de qualquer suspeita fosse levada
a cabo por equipes de pesquisadores africanos e não -africanos, sob os auspícios
da UNESCO e sob a autoridade de um conselho científico internacional e de
coordenadores africanos. O número e a qualidade dos pesquisadores mobilizados
para esta nova grande descoberta da África denotam uma admirável experiência
de cooperação internacional. Mais que qualquer outra disciplina, a história é
uma ciência humana, pois ela sai bem quente da forja ruidosa e tumultuada
dos povos. Modelada realmente pelo homem nos canteiros da vida, construída
mentalmente pelo homem nos laboratórios, bibliotecas e sítios de escavações, a
história é igualmente feita para o homem, para o povo, para aclarar e motivar
sua consciência.
Para os africanos, a história da África não é um espelho de Narciso, nem um
pretexto sutil para se abstrair das tarefas da atualidade. Essa diversão alienadora
poderia comprometer os objetivos científicos do projeto. Em contrapartida, a
ignorância de seu próprio passado, ou seja, de uma grande parte de si mesmo,
não seria ainda mais alienadora? Todos os males que acometem a África hoje,
assim como todas as venturas que aí se revelam, resultam de inumeráveis
forças impulsionadas pela história. E da mesma forma que a reconstituição
do desenvolvimento de uma doença é a primeira etapa de um projeto racional
de diagnóstico e terapêutica, a primeira tarefa de análise global do continente
africano é histórica. A menos que optássemos pela inconsciência e pela alienação,
não poderíamos viver sem memória ou com a memória do outro. Ora, a história
é a memória dos povos. Esse retorno a si mesmo pode, aliás, revestir -se do valor
de uma catarse libertadora, como acontece com o processo de submersão em si
próprio efetivado pela psicanálise, que, ao revelar as bases dos entraves de nossa
personalidade, desata de uma vez os complexos que atrelam nossa consciência
às raízes profundas do subconsciente. Mas para não substituir um mito por
outro, é preciso que a verdade histórica, matriz da consciência desalienada e
autêntica, seja rigorosamente examinada e fundada sobre provas.
XXXIV
Metodologia e pré -história da África
II. COMO?
Passemos agora à problemática questão do como, ou seja, da metodologia.
Neste campo, como em outros, é necessário evitar tanto a singularização excessiva
da África quanto a tendência a alinhá -la demasiadamente segundo normas
estrangeiras. De acordo com alguns, seria preciso esperar que fossem encontrados
os mesmos tipos de documentos existentes na Europa, a mesma panóplia de
peças escritas ou epigráfica, para que fosse possível falar numa verdadeira história
da África. Para estes, em resumo, os problemas do historiador são sempre os
mesmos, dos trópicos aos pólos. Torna -se necessário reafirmar claramente que
não se trata de amordaçar a razão sob pretexto de que falta substância a ser -lhe
fornecida. Não se deveria considerar a razão como tropicalizada pelo fato de ser
exercida nos trópicos. A razão, soberana, não conhece o império da geografia.
Suas normas e seus procedimentos fundamentais, em particular a aplicação do
princípio da causalidade, são os mesmos em toda parte. Mas, justamente por
não ser cega, a razão deve apreender diferentemente realidades distintas, para
que essa apreensão seja sempre muito firme e precisa. Assim, os princípios da
crítica interna e externa se aplicarão segundo uma estratégia mental diferente
para o canto épico Sundiata Fasa
2
, para a capitular De Villis ou para as circulares
enviadas aos prefeitos de Napoleão. Os métodos e técnicas serão diferentes.
Aliás, essa estratégia não será exatamente a mesma em todas as partes da África;
nesse sentido, o vale do Nilo e a fachada do Mediterrâneo se encontram, para
reconstrução histórica, numa situação menos original em relação à Europa do
que a África subsaariana.
Na verdade, as dificuldades específicas da história da África podem ser
constatadas já na observação das realidades da geografia física desse continente.
Continente solitário, se é que existe algum, a África parece dar as costas para
o resto do Velho Mundo, ao qual se encontra ligada apenas pelo frágil cordão
umbilical do istmo de Suez. No sentido oposto, ela mergulha integralmente sua
massa compacta na direção das águas austrais, rodeada por maciços costeiros,
que os rios forçam através de desfiladeiros heroicos” que constituem, por sua
vez, obstáculos à penetração. A única passagem importante entre o Saara e
os montes abissínios encontra -se obstruída pelos imensos pântanos de Bahr
el -Ghazal. Ventos e correntes marítimas extremamente violentos montam guarda
do Cabo Branco ao Cabo Verde. Entretanto, no interior do continente, três
2 Elogio a Sundiata, em língua malinke. Fundador do Império do Mali no século XIII, Sundiata é um dos
heróis mais populares da história africana.
XXXV
Introdução Geral
desertos encarregam -se de agravar o isolamento exterior por uma divisão interna.
Ao sul, o Calaari. Ao centro, o “deserto verde” da floresta equatorial, temível
refúgio no qual o homem lutará para se impor. Ao norte, o Saara, campeão dos
desertos, imenso filtro continental, oceano fulvo dos ergs e regs que, com a franja
montanhosa da cordilheira dos Atlas, dissocia o destino da zona mediterrânea
do restante do continente. Sobretudo durante a pré -história, essas potências
ecológicas, mesmo sem serem muralhas estanques, pesaram muito no destino
africano em todos os aspectos. Deram também um valor singular a todas essas
seteiras naturais que desempenharam o papel de passarelas na exploração do
território africano, levada a efeito pelas populações que aí habitavam há milhões
de anos atrás. Citemos apenas a gigantesca fenda meridiana do Rift Valley, que
se estende do centro da África ao Iraque, passando através do molhe etiopiano.
No sentido mais transversal, a curva dos vales do Sanga, do Ubangui e do Zaire
deve ter constituído igualmente um corredor privilegiado. Não é por acaso que
os primeiros reinados da África negra tenham se desenvolvido nessas regiões
das terras abertas, estes sahels
3
que eram beneficiados simultaneamente por uma
permeabilidade interna, por uma certa abertura para o exterior e por contatos
com as zonas africanas vizinhas, dotadas de recursos diferentes e complementares.
Essas regiões abertas, que experimentaram um ritmo de evolução mais rápido,
constituem a prova a contrario de que o isolamento foi um dos fatores -chave
da lentidão do progresso da África em determinados setores
4
. As civilizações
repousam sobre a terra”, escreve F. Braudel. E acrescenta: A civilização é filha do
número”. Ora, a própria vastidão desse continente, com uma população diluída
e, portanto, facilmente itinerante, em meio a uma natureza ao mesmo tempo
generosa (frutas, minerais, etc.) e cruel (endemias, epidemias)
5
, impediu que fosse
atingido o limiar de concentração demográfica que tem sido quase sempre uma
das precondições das mudanças qualitativas importantes no domínio econômico,
social e político. Além disso, a severa punção demográfica da escravidão desde
os tempos imemoriais e, sobretudo, após o comércio negreiro do século XV ao
XX, contribuiu muito para privar a África do tônus humano e da estabilidade
necessários a toda criação eminente, mesmo que seja no plano tecnológico. A
natureza e os homens, a geografia e a história não foram benevolentes com a
3 Do árabe sahil: margem. Aqui, margem do deserto, considerado como um oceano.
4 O fator climático não deve ser negligenciado. O professor urstan Shaw destacou o fato de que certos
cereais adaptados ao clima mediterrâneo (chuvas de inverno) não puderam ser cultivados no vale do
Níger, porque ao sul do paralelo 18, latitude norte, e em virtude da barreira da frente intertropical, sua
aclimatação era impossível. Cf. J. A. H. XII 1, 1971, p. 143 -153.
5 Sobre esse assunto ver J. FORD, 1971.
XXXVI
Metodologia e pré -história da África
África. É indispensável retornar a essas condições fundamentais do processo
evolutivo, para que seja possível colocar os problemas em termos objetivos e
não sob a forma de mitos aberrantes como a inferioridade racial, o tribalismo
congênito e a pretensa passividade histórica dos africanos. Todas essas abordagens
subjetivas e irracionais apenas mascaram uma ignorância voluntária.
A. As fontes difíceis
No que concerne ao continente africano, é preciso reconhecer que o manuseio
das fontes é particularmente difícil. Três fontes principais constituem os pilares do
conhecimento histórico: os documentos escritos, a arqueologia e a tradição oral.
Essas três fontes são apoiadas pela linguística e pela antropologia, que permitem
matizar e aprofundar a interpretação dos dados, por vezes excessivamente brutos
e estéreis sem essa abordagem mais íntima. Estaríamos errados, entretanto,
em estabelecer a priori uma hierarquia peremptória e definitiva entre essas
diferentes fontes.
1. As fontes escritas
Quando não são raras, tais fontes se encontram mal distribuídas no tempo e
no espaço. Os séculos mais obscuros” da história africana são justamente aqueles
que não se beneficiam do saber claro e preciso que emana dos testemunhos escritos,
por exemplo, os séculos imediatamente anteriores e posteriores ao nascimento
de Cristo (a África do Norte é uma exceção). No entanto, mesmo quando esse
testemunho existe, sua interpretação implica frequentemente ambiguidades e
dificuldades. Nesse sentido, a partir de uma releitura das viagens” de Ibn Battuta
e de um novo exame das diversas grafias dos topônimos empregados por este
autor e por al’Umari, certos historiadores são levados a contestar que Niani,
situada às margens do rio Sankarani, tivesse sido a capital do antigo Mali
6
.
Do ponto de vista quantitativo, massas consideráveis de materiais escritos de
caráter arquivístico ou narrativo permanecem ainda inexploradas, como provam
os recentes inventários parciais dos manuscritos inéditos relativos à história da
África negra exumados de bibliotecas do Marrocos
7
, da Argélia e da Europa.
6 Cf. HUNWICK, J. O. 1973, p. 195 -208. O autor corre o risco do argumento a silentio: “Se Ibn Battuta
tivesse atravessado o Níger ou o Senegal, teria feito referência a isso”.
7 Cf. UNESCO, Coletânea seletiva de textos em árabe proveniente dos arquivos marroquinos, pelo professor
Mohammed Ibraim EL KEITANI, SCH/VS/894.
XXXVII
Introdução Geral
Também nas bibliotecas particulares de grandes eruditos sudaneses, encontradas
em cidades da curva do Níger
8
, manuscritos inéditos cujos títulos permitem
entrever filões analíticos novos e promissores. A UNESCO estabeleceu em
Tombuctu o Centro Ahmed Baba para promover a coleta desses documentos.
Nos fundos de arquivos existentes no Irã, no Iraque, na Armênia, na Índia e na
China, sem falar das Américas, muitos fragmentos da história da África estão
à espera da perspicácia inventiva do pesquisador. Nos arquivos do primeiro-
-ministro de Istambul, por exemplo, onde estão classificados os registros dos
decretos do Conselho de Estado Imperial Otomano, uma correspondência
inédita datada de maio de 1577, enviada pelo sultão Murad III ao Mai Idriss
Alaoma e ao bei de Túnis, projetam nova luz sobre a diplomacia do Kanem
Bornu daquela época e também sobre a situação do Fezzan
9
.
Um trabalho ativo de coleta vem sendo realizado com êxito pelos institutos
de estudos africanos e centros de pesquisas históricas nas regiões africanas que
foram penetradas pela cultura islâmica. Por outro lado, novos guias editados pelo
Conselho Internacional dos Arquivos, sob os auspícios da UNESCO, propõem-
-se a orientar os pesquisadores na floresta de documentos espalhados em todas
as partes do mundo ocidental.
Apenas um grande esforço de edições e reedições judiciosas, de tradução
e difusão na África permitirá, pelo efeito multiplicador desses novos fluxos
conjugados, transpor um novo limiar qualitativo e crítico sobre a visão do passado
africano. Por outro lado, quase tão importante quanto a grande quantidade de
documentos novos será a atitude dos pesquisadores ao examiná -los. É assim
que numerosos textos explorados desde o século XIX ou mesmo depois, mas
ainda no período colonial, reclamam imperiosamente uma releitura expurgada
de qualquer preconceito anacrônico e marcada por uma visão endógena. Assim
sendo, as fontes escritas a partir das escrituras subsaarianas (vai, bamum, ajami)
não devem ser negligenciadas.
2. A arqueologia
Os testemunhos mudos revelados pela arqueologia são em geral mais
eloquentes ainda do que os testemunhos oficiais dos autores de certas crônicas.
A arqueologia, por suas prestigiosas descobertas, já deu uma contribuição
valiosa à história africana, sobretudo quando não crônica oral ou escrita
8 Cf. Études Maliennes, I. S. H. M., n. 3, set. 1972.
9 MARTIN, B. G. 1969, p. 15 -27.
XXXVIII
Metodologia e pré -história da África
disponível (como é o caso de milhares de anos do passado africano). Apenas
objetos -testemunho, enterrados com aqueles a quem testemunham, velam sob
o pesado sudário de terra por um passado sem rosto e sem voz. Alguns deles
são particularmente significativos como indicadores e medidas da civilização:
objetos de ferro e a tecnologia envolvida em sua fabricação, cerâmicas com
suas técnicas de produção e estilos, peças de vidro, escrituras e estilos gráficos,
técnicas de navegão, pesca e tecelagem, produtos alimentícios, e também
estruturas geomorfológicas, hidráulicas e vegetais ligadas à evolução do clima...
A linguagem dos achados arqueológicos possui, por sua própria natureza, algo de
objetivo e irrecusável. Assim, o estudo da tipologia das cerâmicas e dos objetos
de osso e metal encontrados na região nígero -chadiana do Saara demonstra a
ligação entre os povos pré -islâmicos (Sao) da bacia chadiana e as áreas culturais
que se estendem até o Nilo e o deserto líbio. Estatuetas de argila cozida com
talabartes cruzados, ornatos corporais das estatuetas, formas de vasos e braceletes,
arpões e ossos, cabeças ou pontas de flechas e facas de arremesso ressuscitam
assim, graças a seus parentescos, as solidariedades vivas de épocas antigas
10
, para
além desta paisagem contemporânea massacrada pela solidão e pela inércia.
Diante disso, a localização, a classificação e a proteção dos sítios arqueológicos
africanos se impõem como prioridade de grande urgência, antes que predadores
ou profanos irresponsáveis e turistas sem objetivos cienficos os pilhem e
os desorganizem, despojando -os, dessa maneira, de qualquer valor histórico
sério. Mas a exploração destes sítios por projetos prioritários de escavação em
grande escala poderá desenvolver -se no contexto de programas interafricanos
sustentados por poderosa cooperação internacional.
3. A tradição oral
Paralelamente às duas primeiras fontes da história africana (documentos
escritos e arqueologia), a tradição oral aparece como repositório e o vetor do
capital de criações socioculturais acumuladas pelos povos ditos sem escrita:
um verdadeiro museu vivo. A história falada constitui um fio de Ariadne
muito frágil para reconstituir os corredores obscuros do labirinto do tempo.
Seus guardiões são os velhos de cabelos brancos, voz cansada e memória um
pouco obscura, rotulados às vezes de teimosos e meticulosos (veilliesse oblige!):
ancestrais em potencial... São como as derradeiras ilhotas de uma paisagem
outrora imponente, ligada em todos os seus elementos por uma ordem precisa
10 Cf. HUARD, P. 1969, p. 179 -224.
XXXIX
Introdução Geral
e que hoje se apresenta erodida, cortada e devastada pelas ondas mordazes do
modernismo”. Fósseis em sursis!
Cada vez que um deles desaparece, é uma fibra do fio de Ariadne que se
rompe, é literalmente um fragmento da paisagem que se toma subterrâneo.
Indubitavelmente, a tradição oral é a fonte histórica mais íntima, mais suculenta
e melhor nutrida pela seiva da autenticidade. A boca do velho cheira mal”
diz um provérbio africano – “mas ela profere coisas boas e salutares”. Por mais
útil que seja, o que é escrito se congela e se desseca. A escrita decanta, disseca,
esquematiza e petrifica: a letra mata. A tradição reveste de carne e de cores,
irriga de sangue o esqueleto do passado. Apresenta sob as três dimensões aquilo
que muito frequentemente é esmagado sobre a superfície bidimensional de uma
folha de papel. A alegria da mãe de Sundiata, transtornada pela cura súbita de
seu filho, ecoa ainda no timbre épico e quente dos griots do Mali (animadores
públicos; ver capítulo 8). É claro que muitos obstáculos devem ser ultrapassados
para que se possa peneirar criteriosamente o material da tradição oral e separar
o bom grão dos fatos, da palha das palavras -armadilha falsas janelas abertas
para a simetria –, do brilho e das lantejoulas de fórmulas que constituem apenas
a embalagem circunstancial de uma mensagem vinda de longe.
Costuma -se dizer que a tradição o inspira confiança porque ela é funcional;
como se toda mensagem humana não fosse funcional por definição, incluindo -se
nessa funcionalidade os documentos de arquivos que, por sua própria inércia e
sob sua aparente neutralidade objetiva, escondem tantas mentiras por omissão e
revestem o erro de respeitabilidade. Certamente, a tradição épica em particular
é uma recriação paramítica do passado. Uma espécie de psicodrama que revela
à comunidade suas raízes e o corpo de valores que sustenta sua personalidade:
um viático encantado para singrar o rio do tempo em direção ao reino dos
ancestrais. É por isto que a palavra épica não coincide exatamente com a palavra
histórica: cavalga -a através de projeções anacrônicas a montante e a jusante
do tempo real, com interpenetrações que se assemelham às perturbações do
relevo em arqueologia. E os escritos, escaparão eles próprios a essas intrusões
enigmáticas? Aqui, como em toda parte, é preciso procurar a palavra fóssil -guia,
tentar encontrar a pedra de toque que identifica o metal puro e rejeita a ganga
e a escória.
Certamente, no discurso épico, a fragilidade do encadeamento cronológico
constitui seu verdadeiro calcanhar de Aquiles; as sequências temporais
subvertidas criam um quebra -cabeça onde a imagem do passado não nos chega
de modo claro e estável como num espelho de boa qualidade, mas como um
reflexo fugaz que dança sobre a agitação da água. A duração média dos reinados
XL
Metodologia e pré -história da África
ou das gerações constitui um domínio extremamente controvertido no qual as
extrapolações feitas a partir de períodos recentes são muito pouco seguras, em
razão das mutações demográficas e políticas. Por vezes, um dinasta excepcional
e carismático polariza sobre si os feitos mais notáveis de seus predecessores e
sucessores que, assim, são literalmente eclipsados. É o que acontece com certos
dinastas de Ruanda, como Da Monzon, rei de Segu (início do século XIX), a
quem os griots atribuem toda a grande conquista desse reino.
Por outro lado, o texto literário oral retirado de seu contexto é como peixe fora
da água: morre e se decompõe. Isolada, a tradição assemelha -se a essas máscaras
africanas arrebatadas da comunhão dos fiéis para serem expostas à curiosidade
dos não iniciados. Perde sua carga de sentido e de vida. Por sua própria existência
e por ser sempre retomada por novas testemunhas que se encarregam de sua
transmissão, a tradição adapta -se às expectativas de novos auditórios adaptação
essa que se refere primordialmente à apresentação da mensagem, mas que não
deixa intacto o conteúdo. E não vemos também mercadores ou mercenários da
tradição que servem à vontade versões de textos escritos reinjetados na própria
tradição?!
Enfim, o pprio contdo da mensagem permanece frequentemente
hermético, esotérico mesmo. Para o africano, a palavra é pesada. Ela é fortemente
ambígua, podendo fazer e desfazer, sendo capaz de acarretar malefícios. É por
isso que sua articulação não se de modo aberto e direto. A palavra é envolvida
por apologias, alusões, subentendidos e provérbios claro -escuros para as pessoas
comuns, mas luminosos para aqueles que se encontram munidos das antenas
da sabedoria. Na África, a palavra não é desperdiçada. Quanto mais se está em
posição de autoridade, menos se fala em público. Mas quando se diz a alguém:
Você comeu o sapo e jogou a cabeça fora”, a pessoa compreende que está sendo
acusada de se furtar a uma parte de suas responsabilidades
11
. Esse hermetismo
das “meias -palavras” indica, ao mesmo tempo, o valor inestimável e os limites
da tradição oral, uma vez que sua riqueza é praticamente impossível de ser
transferida integralmente de uma língua para outra, sobretudo quando esta outra
se encontra estrutural e sociologicamente distante. A tradição acomoda -se muito
pouco à tradução. Desenraizada, ela perde sua seiva e sua autenticidade, pois a
língua é a “morada do ser”. Aliás, muitos dos erros que são imputados à tradição
são provenientes de intérpretes incompetentes ou inescrupulosos.
11 Cf. AGUESSY, H. 1972, p. 269 -297.
XLI
Introdução Geral
Seja como for, a validade da tradição oral está amplamente provada nos dias
atuais. Ela é largamente comprovada pelo confronto com as fontes arqueológicas
ou escriturais, como no caso do sítio de Kumbi Saleh, dos vestígios do lago Kisale,
ou mesmo dos acontecimentos do século XVI transmitidos pelos Shona, cuja
conformidade com os documentos escritos por viajantes portugueses daquela
época foi verificada por D. P. Abraham.
Em suma, o discurso da tradão, seja ela épica, prosaica, didática ou
ética, pode ser histórico sob um tríplice ponto de vista. Em primeiro lugar,
ele é revelador do conjunto de usos e valores que animam um povo e que
condicionam seus atos futuros pela representação dos arquétipos do passado.
Fazendo isso, a epopeia não só reflete, mas também cria a história. Quando Da
Monzon é tratado de “senhor das águas e dos homens”, expressa -se com isso o
caráter absoluto de seu poder. Contudo, essas mesmas narrativas mostram -no
consultando incessantemente seus guerreiros, seus griots, suas mulheres
12
. O
senso de honra e de reputação explode na famosa réplica do “canto do arco em
louvor a Sundiata (Sundiata Fasa): “Saya Kaoussa malo yé”
13
. Esse valor também
se exprime muito bem no episódio da luta de Bakary Dian contra os Peul do
Kournari. Ressentido, o bravo Bakary retirara -se para sua aldeia, Dongorongo;
diante das súplicas de seu povo para que retomasse o comando das tropas de
Segu, cedeu apenas quando foi tocado na corda sensível do orgulho e da glória:
As velhas palavras trocadas, esquece -as. É o teu nome agora que precisa ser
considerado; pois se vem ao mundo para construir um nome. Se nasces, cresces
e morres sem ter um nome, vieste por nada, partiste por nada”. Bakary, então,
exclama: “Griots de Segu, que vós vistes, não será impossível. Farei o que me
pedis, por meu renome. Não o farei por Da Monzon. Não o farei por ninguém
em Segu. -lo -ei somente por minha reputação. Mesmo depois de minha
morte, isso será acrescentado ao meu nome”.
Encontramos um traço similar de civilização e lei, quando Silamaka diz:
Tendes sorte que me seja proibido matar mensageiros”.
Em suma, a recomposição do passado está longe de ser integralmente
imaginária. Encontram -se fragmentos de lembranças, filões de história que
frequentemente são mais prosaicos que os ornamentos coloridos da imaginação
épica: “Foi assim que surgiu essa instituição de pastores coletivos nas aldeias
bambara. Se eras escolhido e feito pastor, tornavas -te Peul público. Os Peul
públicos guardavam os rebanhos do rei. Eram homens de etnias diferentes, e
12 Cf. KESTELOOT, L. Tomos 1, 3 e 4.
13 A morte vale mais do que a desonra”.
XLII
Metodologia e pré -história da África
seu pastor chefe chamava -se Bonke”. Ou ainda “Nessa época não se usavam
babuchas, mas chinelas de couro de boi curtido, com um cordão na parte da
frente (em torno do dedo grande do pé) e um outro no calcanhar”. Enfim, a
narrativa épica é salpicada de alusões a técnicas, a objetos que não são essenciais
ao desenvolvimento da ão, mas que dão indícios sobre o modo de vida. “Ele
(Da Monzon) convocou, seus sessenta remadores Somono, trinta homens na
proa e trinta na popa. A piroga estava ricamente decorada”. As escadas são
preparadas e colocadas contra a muralha. Os cadores de Segu sobem de
surpresa e infiltram -se na cidade (...). Os cavaleiros de Segu lançam flechas
flamejantes. As casas da aldeia pegam fogo”. Saran, a mulher apaixonada por Da
Monzon, vai umedecer a pólvora dos fuzis dos guerreiros de Kore... É por um
diagnóstico rigoroso que às vezes se vale da análise psicanalítica e neste caso
considera as próprias psicoses do público ou dos transmissores da tradição que
o historiador pode atingir a medula substantiva da realidade histórica.
Por conseguinte, a multiplicidade de versões transmitidas por clãs adversários,
por exemplo, pelos griots -clientes de cada nobre protetor (horon, dyatigui),
longe de constituir uma desvantagem, representa uma garantia suplementar
para a crítica histórica. E a conformidade das narrativas, como no caso dos
griots bambara e peul, que pertencem a campos inimigos, um realce particular
à qualidade desse testemunho. A história falada, por sua própria poligênese,
comporta elementos de autocensura, como mostra o caso dos Gouro, entre os
quais a tradição esotérica liberal e integracionista, transmitida pelas linhagens,
coexiste com a tradição esotérica oligárquica e meticulosa da sociedade secreta.
Na verdade, não se trata de uma propriedade privada, mas de um bem indiviso
pelo qual respondem diversos grupos da comunidade.
O essencial é proceder à crítica interna desses documentos atras do
conhecimento íntimo do nero literário em questão, sua temática e suas técnicas,
seus códigos e estereótipos, as fórmulas de execução, as digressões convencionais,
a língua em evolução, o público e o que ele espera dos transmissores da tradição.
E sobretudo a casta destes últimos, suas regras de conduta, sua formação, seus
ideais, suas escolas. Sabe -se que no Mali e na Guiné, por exemplo em Keyla,
Kita, Niagassola, Niani, etc. –, existem séculos verdadeiras escolas de iniciação.
Essa tradão rígida, institucionalizada e formal é geralmente melhor
estruturada e sustentada pela sica de corte que se integra a ela, que a
esconde em partes didáticas e artísticas. Alguns dos instrumentos utilizados,
como o Sosso Balla (balafo de Sumauro Kante), são em si mesmos, por sua
antiguidade, monumentos dignos de uma investigação de tipo arqueológico.
Mas as correspondências entre tipos de instrumento e tipos de música, de
XLIII
Introdução Geral
cantos e de danças constituem um mundo minuciosamente regulado, no qual
as anomalias e as adições posteriores são facilmente detectadas. Cada gênero
literário oral possui, assim, um instrumento específico em cada região cultural: o
balla (xilofone) ou o bolon (harpa -alaúde) para a epopeia mandinga; o bendré dos
Mossi (grande tambor redondo de uma só face, feito com uma cabaça e tocado
com as mãos nuas) para a exaltação, muitas vezes silenciosa, dos nomes de guerra
(zabyouya) dos soberanos; o mvet (harpa -cítara) para os poetas músicos dos Fang
em suas Nibelungen tropicais. Veículos da história falada, esses instrumentos
são venerados e sagrados. Com efeito, incorporam -se ao artista, e seu lugar é
tão importante na mensagem que, graças às línguas tonais, a música torna -se
diretamente inteligível, transformando -se o instrumento na voz do artista sem
que este tenha necessidade de articular uma palavra. O tríplice ritmo tonal,
de intensidade e de duração, faz -se então música significante, nessa espécie
de “semântico -melodismo de que falava Marcel Jousse. Na verdade, a música
encontra -se de tal modo integrada à tradição que algumas narrativas somente
podem ser transmitidas sob a forma cantada. A própria canção popular, que
exprime a “vontade geral” de forma satírica e que permaneceu vigorosa mesmo
com as lutas eleitorais do século XX, é um gênero precioso, que contrabalança
e completa as afirmações dos “documentos” oficiais.
O que se diz aqui sobre a sica vale tamm para outras formas de
expressão, como as artes plásticas, cujas produções são, por vezes, a expressão
direta de personagens, de acontecimentos ou de culturas históricas, como nos
reinos de Abomey e do Benin (baixos -relevos) ou na nação Kuba (esculturas).
Em poucas palavras, a tradição oral não é apenas uma fonte que se aceita por
falta de outra melhor e à qual nos resignamos por desespero de causa. É uma
fonte integral, cuja metodologia se encontra bem estabelecida e que confere
à história do continente africano uma notável originalidade.
4. A linguística
A história da África tem na linguística não apenas uma ciência auxiliar, mas
uma disciplina autônoma, que, no entanto, a conduz diretamente ao âmago de
seu próprio objeto... Percebe -se bem isso no caso da Núbia, que se encontra
amortalhada no duplo silêncio opaco das ruínas de Meroé e da escrita meroítica
não decifrada porque a língua permanece desconhecida
14
. É claro que há muito
14 A UNESCO organizou em 1974, no Cairo, um simpósio cientíco internacional para a decifração dessa
língua africana.
XLIV
Metodologia e pré -história da África
a ser feito nesse campo, começando pela catalogação científica das línguas.
Na verdade, não é necessário sacrificar a abordagem descritiva à abordagem
comparatista e sintética com pretensões tipológicas e genéticas. É por meio
de uma análise ingrata e minuciosa do fato linguístico, com seu significante
de consoantes, vogais e tons, com suas latitudes combinatórias em esquemas
sintagmáticos, com seu significado vivido pelos falantes de uma determinada
comunidade”
15
, que se pode fazer extrapolações retroativas, operação que muitas
vezes se torna difícil pela falta de conhecimento hisrico profundo dessas
línguas. De modo que elas podem ser comparadas a partir de seu extrato
contemporâneo pelo método sincrônico, base indispensável para toda síntese
diacrônica e genética. A tarefa é árdua, e é compreensível que duelos de erudição
aconteçam em algumas áreas, particularmente no que diz respeito à ngua
bantu. Malcolm Guthrie, por exemplo, sustenta a teoria da autogênese, enquanto
Joseph Greenberg defende com veencia a tese de que as línguas bantu
devem ser colocadas num contexto continental mais amplo. Isto se justifica,
diz Greenberg, pelo fato de as semelhanças existentes não serem analogias
acidentais resultantes de influências externas, mas derivarem de um parentesco
genético intrínseco, expresso em centenas de línguas – desde o wolof até o baka
(República do Sudão) – pelas similitudes dos pronomes, do vocabulário de base
e das características gramaticais, como o sistema de classes nominais. Para o
historiador, todos esses debates não são meros exercícios acadêmicos. Um autor
que se baseie, por exemplo, na distribuição dos grupos de palavras análogas
que designam o carneiro na África central na orla da floresta constatará que
esses grupos homogêneos não ultrapassam a franja vegetal, mas distribuem -se
paralelamente a ela. Isto sugere uma distribuição dos rebanhos de acordo com
os paralelos dos dois biótopos contíguos da savana e da floresta, ao passo que,
mais a leste, o padrão linguístico se ordena claramente em faixas meridianas da
África oriental para a África austral, o que supõe um caminho de introdução
perpendicular à primeira, e ilustra a contrario o papel inibidor da floresta na
transmissão das técnicas
16
. Esse papel, no entanto, não é idêntico para todas
as técnicas. Em suma, os estudos linguísticos demonstram que as rotas e os
caminhos das migrações, assim como a difusão de culturas materiais e espirituais,
são marcados pela distribuição de palavras aparentadas. Daí a importância da
análise linguística diacrônica e da glotocronologia para o historiador que deseja
compreender a dinâmica e o sentido da evolução.
15 Cf. HOUIS, M. 1971, p. 45.
16 Cf. EHRET, C. 1963, p. 213 -221.
XLV
Introdução Geral
J. Greenberg, por exemplo, trouxe à luz as contribuições do kanuri ao haussa
em relão a termos culturais e a termos da cnica militar, contribuições
essas que valorizam a influência do império de Bornu no desenvolvimento
dos reinos haussa. Em particular, os títulos das dinastias de Bornu, incluindo
termos kanuri como kaygamma, magira, etc., conheceram uma notável difusão
até o coração do Camarões e da Nigéria. O estudo sistemático dos topônimos
e antropônimos pode também fornecer indicações bastante precisas, contanto
que essa nomenclatura seja revista segundo uma abordagem endógena, pois um
grande número de nomes foi deformado pela pronúncia ou redação exóticas de
não -africanos ou de africanos que atuavam como intérpretes ou escribas. A caça
à palavra correta, mesmo quando esta foi congelada pela escrita há séculos atrás,
é uma das tarefas mais complexas da crítica histórica da África.
Tomemos um exemplo: a palavra “Gaoga utilizada por Leão, o Africano, para
designar um reino do Sudão tem sido frequentemente assimilada a Gao. Mas a
análise desse topônimo a partir do teda e do kanuri permite localizar também
um reino chamado Gaoga entre o Uadai (Chade), o Darfur (Sudão) e o Fertit
(República Centro -Africana)
17
. Quanto à referência ao Iêmen para designar
o país de origem de numerosas dinastias sudanesas, um reexame sério desse
problema tem sido feito desde H. R. Palmer. Não se deveria interpretar a palavra
Yemen não mais segundo as evocações religiosas dos cronistas muçulmanos
orientados em direção à Arabia Felix, e sim em referência ao antigo país de Yam
(daí Yamem)?
18
Também o exame do léxico swahili, recheado de termos de origem árabe, e
do léxico das regiões da costa oriental malgaxe (Antemoro, Antalaotra, Anosy),
banhada por influências árabes, revela -se uma fonte rica de ensinamentos para
o historiador.
De qualquer maneira, a linguística, que já prestou um bom serviço à história
da África, deve desvencilhar -se de início do desprezo etnocentrista que marcou
a linguística africana elaborada por A. W. Schlegel e Auguste Schleicher,
segundo a qual “as línguas da família indo -europeia estão no topo da evolução,
e as nguas dos negros, no ponto mais baixo da escala, apresentando estas,
entretanto, o interesse de segundo alguns revelar um estado próximo ao
estado original da linguagem, em que as línguas não teriam gramática, o discurso
17 Cf. KALAK, P. 1972, p. 529 -548.
18 Cf. MOHAMMADOU, A. e ELDRIDGE. 1971, p. 130 -155.
XLVI
Metodologia e pré -história da África
seria uma sequência de monossílabos e o léxico estaria restrito a um inventário
elementar”
19
.
5. A antropologia e a etnologia
O mesmo comentário aplica -se a fortiori à antropologia e à etnologia. Na
verdade, o discurso etnológico
20
tem sido, por força das circunstâncias, um discurso
com premissas explicitamente discriminatórias e conclusões implicitamente
políticas, havendo entre ambas um exercício científico forçosamente ambíguo.
Seu principal pressuposto era muitas vezes a evolução linear: à frente da caravana
da humanidade ia a Europa, pioneira da civilização, e atrás os povos primitivos”
da Oceania, Amazônia e África. Como se pode ser índio, negro, papua, árabe?
O “outro”, atrasado, bárbaro, selvagem em diversos graus, é sempre diferente,
e por essa razão torna -se objeto de interesse do pesquisador ou de cobiça do
traficante. A etnologia recebeu, assim, procuração geral para ser o ministério
da curiosidade europeia diante dos nossos nativos”. Apreciadora dos estados
miseráveis, da nudez e do folclore, a visão etnológica era muitas vezes sádica,
lúbrica e, na melhor das hipóteses, um pouco paternalista. Salvo exceções, as
dissertações e os relatórios resultantes justificavam o status quo e contribuíam
para o “desenvolvimento do subdesenvolvimento
21
. O evolucionismo à Darwin,
apesar de seus grandes méritos, o difusionismo de sentido único, que tem visto
muitas vezes a África como o escoadouro passivo das inveões de outros
lugares, o funcionalismo de Malinowski e de Radcliffe -Brown, enfim, que
negava toda dimensão histórica às sociedades primitivas, todas essas escolas se
adaptavam naturalmente à situação colonial na qual proliferavam como num
terreno fértil
22
. Suas abordagens, muito pobres afinal para a compreensão das
sociedades exóticas, desqualificavam -se ainda mais pelo fato de as sociedades
pelas quais tinham maior interesse serem exatamente as mais insólitas, isto é, os
protótipos de uma humanidade instalada no elementar. Tais protótipos, contudo,
19 Cf. HOUIS, M. 1971, p. 27
20 O termo etnia, atribuído aos chamados povos sem escrita, foi sempre marcado pelo preconceito racista:
“Idólatra ou étnico”, escrevia Clément Marot desde o século XVI. A etnograa é a coleta descritiva dos
documentos. A etnologia é a síntese comparativa.
21 Cf. COPANS, J. 1971, p. 45: A ideologia colonial e a etnologia decorrem de uma mesma conguração,
e existe entre essas duas ordens de fenômenos um jogo que condiciona o desenvolvimento de ambas”.
22 Cf. RUFFIE, J. 1977, p. 429: “O pseudodarwinismo cultural que inspira o pensamento antropológico do
século XIX legitima o colonialismo que, assim, não se caracteriza como produto de uma certa conjuntura
política, mas de estrutura biológica; em resumo, um caso particular de competição natural. A antropologia
do século XIX justica a Europa imperialista”.
XLVII
Introdução Geral
constituíam apenas microrganismos, com um papel histórico não desprezível
por vezes mesmo notável mas na maioria dos casos marginal em relação
aos conjuntos sociopolíticos mais poderosos e melhor engajados no curso da
história.
Desse modo, toda a África foi simbolizada por imagens que os próprios
africanos podiam considerar estranhas, exatamente como se a Europa fosse
definida no começo do século XX pelos costumes à mesa e pelas formas de
moradia ou pelo nível técnico das comunidades do interior da Bretanha, do
Cantal ou da Sardenha. Além disso, o método etnológico baseado na entrevista
individual, marcado com o selo de uma experncia subjetiva total porque
intensa, mas total apenas no nível do microcosmo, desemboca em conclusões
objetivas” muito frágeis para que possam ser extrapoladas.
Enfim, por uma dialética implacável, o próprio objeto da etnologia, sob
a influência colonial, desvanecia -se pouco a pouco. Os indígenas primitivos,
que viviam da coleta e da caça, e mesmo do “canibalismo”, transformavam -se
aos poucos em subproletários dos centros periféricos de um sistema mundial
de produção cujos pólos estão situados no hemisfério norte. A ação colonial
consumia e aniquilava seu próprio objeto. Por isso, aqueles que haviam sido
incumbidos do papel de objetos, os africanos, decidiram iniciar, eles próprios,
um discurso autônomo na qualidade de sujeitos da história, pretendendo
mesmo que, em certos aspectos, os mais primitivos não são exatamente os que
se imagina... Ao mesmo tempo, pioneiros como Frobenius, Delafosse, Palmer,
Evans Pritchard, que, sem preconceitos haviam trabalhado na descoberta de
um fio histórico e de estruturas originais nas sociedades africanas com ou
sem Estado, continuavam seus esforços, retomados e aperfeiçoados por outros
pesquisadores contemporâneos. Estes acreditam que se podem atingir resultados
objetivos aplicando os mesmos instrumentos intelectuais das ciências humanas,
mas adaptando -os à maria africana. Derrubam assim, de uma só vez, as
abordagens errôneas baseadas na diferença congênita e substantiva dos nativos”
ou em seu primitivismo na rota da civilização. Basta reconhecer que se o ser
dos africanos é o mesmo – o do Homo sapiens – seu ser -no -mundo é diferente.
A partir daí novos instrumentos podem ser aperfeiçoados para apreender sua
evolução singular.
Ao mesmo tempo, a abordagem marxista, com a condição de o ser
dogmática, e a abordagem estruturalista de Lévi -Strauss contribuem também
com observações válidas, mas opostas, sobre a evolução dos povos ditos sem
escrita. O método marxista, essencialmente histórico e para o qual a história é
a consciência coletiva em ação, insiste muito mais nas forças produtivas e nas
XLVIII
Metodologia e pré -história da África
relações de produção, na práxis e nas normas; o método estruturalista, por sua
vez, quer desvendar os mecanismos inconscientes, mas lógicos, os conjuntos
coerentes que sustentam e enquadram a ação dos espíritos e das sociedades.
Bebendo nessas novas fontes, a antropologia será, esperamos, algo mais que
uma Fênix que, em defesa da causa, haja renascido das cinzas de um certo tipo
de etnologia
23
.
A antropologia deve criticar seu próprio procedimento, insistir tanto nas
normas quanto nas práticas, não confundir as relações sociais, decifráveis pela
experiência, e as estruturas que as sustentam. Ela enriquecerá assim, umas através
das outras, as normas, estruturas e opiniões, por meio da ampla utilização das
técnicas quantitativas e coletivas de pesquisa, racionalizando e objetivando o
discurso. Não apenas as interações dos fatores globais, mas também a síntese
hisrica, interessam particularmente à antropologia. Por exemplo, pode -se
constatar uma correspondência entre a existência de rotas comerciais com
monopólio real de certas mercadorias e as formas políticas centralizadas (em
Gana e no Mali antigos, no Império Ashanti do século XVIII, no Reino Lunda
do Zaire, etc.). Enquanto isso – contraprova decisiva – em oposição aos Ngonde
e aos Zulu, povos de línguas e costumes idênticos (os Nyakusa e os Xhosa), mas
que viviam à margem dessas rotas, não atingiram uma fase monárquica
24
. A
partir disso, podemos tentar inferir uma espécie de “lei” de antropologia ou de
sociologia política. Por outro lado, as estruturas de parentesco podem acarretar
um grande número de consequências sobre a evolução histórica. Assim, quando
dois grupos de línguas diferentes se encontram, a forma de união conjugal entre
esses grupos geralmente decide qual será a língua dominante, pois a língua
materna só poderá impor -se se as mulheres forem tomadas como esposas e não
como escravas ou concubinas. Assim, certos grupos Nguni conservaram sua
língua de origem, enquanto outros, que desposaram mulheres sotho, perderam
sua língua em favor da língua sotho. É também o caso dos pastores peul vindos
de Macina e de Futa Djalon, que tomaram suas esposas entre os Mandinga e
criaram a província de Uassulu: eles são peul apenas pelo nome e por certos
traços físicos, que perderam sua língua de origem em favor do malinke ou
do bambara.
23 A sociologia seria uma cncia intra -social para o mundo moderno, enquanto a antropologia se
caracterizaria por uma abordagem comparativa (inter -social). Mas isso não signica ressuscitar categorias
contestáveis como a diferença, com seu cortejo de etno -história, etno -arquelogia, etno -matemática...?
24 Cf. THOMPSON, L. 1969, p. 72 -73.
XLIX
Introdução Geral
Dessa forma, as principais fontes da história da África mencionadas acima,
o podem ser classificadas a priori de acordo com uma escala de valores que
privilegie permanentemente uma ou outra. Toma -se necessário julgar caso por
caso. Na verdade, não se trata de testemunhos de tipos radicalmente diferentes.
Todas correspondem à definição de signos que nos chegam do passado e que,
enquanto veículos de mensagens, não são inteiramente neutros, mas carregados
de intenções francas ou ocultas. Todas necessitam então da crítica metodológica.
Cada categoria de fonte pode conduzir às demais: a tradição oral, por exemplo, tem
levado muitas vezes a depósitos arqueológicos e pode até auxiliar na comparação de
certos documentos escritos. Assim, o grande Ibn Khaldun escreve, na História dos
Berberes, sobre Sundiata: “Seu filho Mança Ueli o sucedeu. Mança em sua língua
escrita significa sultão e Ueli é o equivalente de Ali”. Todavia os transmissores da
tradição ainda hoje explicam que Mansa Ule significa “o rei de pele clara”.
B. Os quatro grandes princípios
Quatro princípios devem nortear a pesquisa, se se quer levar adiante a frente
pioneira da historiografia da África.
1 Primeiramente, a interdisciplinaridade, cuja importância é tal que chega
quase a constituir por si uma fonte específica. Assim, a sociologia política
aplicada à tradição oral no Reino de Segu enriqueceu consideravelmente uma
visão que, sem isso, limitar -se -ia às linhas esqueléticas de uma árvore genealógica
marcada por alguns feitos estereotipados. A complexidade, a interpenetração de
estruturas às vezes modeladas sobre hegemonias antigas (o modelo mali, por
exemplo) aparecem, assim, em sua realidade concreta e viva. Da mesma forma,
no caso dos países do delta do Níger, as tradições orais permitem completar
o conjunto de fatores de desenvolvimento, demasiadamente reduzidos às
influências do comércio negreiro e do óleo de palmeira; as relações endógenas
anteriores no sentido norte -sul e leste -oeste até Lagos e a região de Ijebu são
atestadas pela tradição oral, que apóia e enriquece admiravelmente as alusões
de Pacheco Pereira no Esmeraldo
25
.
E foi exatamente um elemento de antropologia cultural (o texto de iniciação
dos pastores peul
26
) que permitiu a certos p -historiadores interpretar
25 Cf. ALAGOA, L. 1973.
26 Cf. HAMPABÂ e DIETERLEN, G. 1961.
L
Metodologia e pré -história da África
corretamente os enigmas dos afrescos do Tassili: animais sem patas do quadro
chamado O Boi e a Hidra, o mágico U de Ouan Derbaouen, etc.
Assim, decorridos mais de 10 mil anos, os ritos de hoje permitem identificar
as cinco irmãs míticas dos sete filhos do ancestral Kikala nas cinco maravilhosas
dançarinas dos afrescos de Jabbaren.
A expansão dos Bantu, atestada pelas fontes concordantes da linguística,
da tradição oral, da arqueologia e da antropologia, bem como pelas primeiras
fontes escritas em árabe, português, inglês e pelos africânderes, torna -se uma
realidade palpável susceptível de ser ordenada numa síntese cujas arestas se
mostram mais nítidas no encontro desses diferentes planos. Do mesmo modo,
os argumentos linguísticos juntam -se aos da tecnologia para sugerir uma
difusão dos gongos reais e sinos cerimoniais geminados a partir da África
ocidental em direção ao baixo Zaire, ao Shaba e a Zâmbia. Mas as provas
arqueológicas trariam, evidentemente, uma confirmação inestimável para tal
fato. Essa combinação de fontes impõe -se ainda mais quando se trata de minorar
as dificuldades relativas à cronologia. Não é sempre que dispomos de datas
determinadas pelo carbono 14. E quando existem, estas devem ser interpretadas
e confrontadas com dados de outras fontes, como a metalurgia ou a cerâmica
(materiais e estilos). E não é sempre que podemos contar, como ao norte do
Chade
27
, com enormes quantidades de fragmentos de cerâmicas que permitem
construir uma tipologia representada numa escala cronológica de seis níveis.
Uma excelente demonstração desta conjugação de todas as fontes disponíveis
é a que permite estabelecer uma tipologia diacrônica dos estilos pictóricos e
cerâmicos e confrontá -los para extrair uma série cronológica que se estende
por oito milênios, sendo o todo sustentado pelas sondagens estratigráficas e
confirmado pelas datações de carbono 14 e pelo estudo da flora, da fauna, do
habitat e da tradição oral
28
.
Às vezes, o mapa dos eclipses datados e visíveis em regiões específicas permite
comprovações excepcionais quando tais acontecimentos são relacionados com o
reinado deste ou daquele dinasta. Em geral, porém, a cronologia não é acessível
sem a mobilização de várias fontes, ainda mais porque a duração média das
gerações ou dos reinados é susceptível de variações, a natureza da relação entre
os soberanos que se sucedem nem sempre é precisa, o sentido da palavra filho
pode não ser biológico, mas sociológico, às vezes três ou quatro nomes ou nomes
27 Cf. COPPENS, Y. 1960, p. 129 e ss.
28 BAILLOUD, A. 1961, p. 51 e ss.
LI
Introdução Geral
fortes” são atribuídos ao mesmo rei, ou ainda porque, como entre os Bemba, a
lista dos candidatos à chefia incorpora -se à lista dos chefes.
Sem minimizar a importância da cronologia, espinha dorsal da matéria
histórica, e sem renunciar aos esforços para assentá -la sobre bases rigorosas,
será preciso, no entanto, sucumbir à psicose da precisão a qualquer preço, que
corre então o risco de ser uma falsa precisão? Por que obstinar -se em escrever
1086 para a queda de Kumbi Saleh em vez de dizer no fim do século XI”? Nem
todas as datas têm, aliás, a mesma importância. O grau de precisão requerido
em cada caso não é o mesmo, nem todas as datas devem ser erigidas em estátua.
Por outro lado, é importante reintegrar todo o fluxo do processo histórico no
contexto do tempo africano, que não é alérgico à articulação do acontecimento
numa seqncia de fatos que originam uns aos outros por antecencia e
causalidade. De fato, os africanos têm uma ideia do tempo baseada no princípio
da causalidade. Este último, contudo, é aplicado de acordo com normas originais,
em que o contágio do mito impregna e deforma o processo lógico; em que o nível
econômico elementar não cria a necessidade do tempo demarcado, matéria -prima
do lucro; em que o ritmo dos trabalhos e dos dias é um metrônomo suficiente
para a atividade humana; em que calendários, que não são nem abstratos nem
universalistas, são subordinados aos fenômenos naturais (lunações, sol, seca), aos
movimentos dos animais e das pessoas. Cada hora é definida por atos concretos.
Em Burundi, por exemplo, país essencialmente rural, o tempo é marcado pela
vida pastoril e agrícola: Amakana (hora da ordenha: 7 horas); Maturuka (saída
dos rebanhos: 8 horas); Kuasase (quando o sol se alastra: 9 horas); Kumusase
(quando o sol se espalha sobre as colinas: 10 horas); etc. Em outros lugares, os
nomes das crianças são funções do dia do nascimento, do acontecimento que o
precedeu ou sucedeu. Os muçulmanos na África do Norte acham muito natural
chamar suas crianças pelo nome do mês em que nasceram: Ramdane, Chabane,
Mulud.
Essa concepção do tempo é histórica em muitos aspectos. Nas sociedades
africanas gerontocráticas, a noção de anterioridade no tempo é ainda mais
carregada de sentido que em outros lugares, pois nela estão baseados os direitos
sociais, como o uso da palavra em público, a participação numa dança reservada,
o acesso a certas iguarias, o casamento, o respeito de outrem, etc. Além disso,
a primogenitura não é, na maioria das vezes, um direito exclusivo na sucessão
real; o número dos pretendentes (tios, irmãos, filhos) é sempre grande e a idade
é levada em conta no contexto de uma competição bastante aberta. Decorre daí
uma preocupação ainda maior com a cronologia. Mas não necessidade de
saber que alguém nasceu em determinado ano: o essencial é provar que nasceu
LII
Metodologia e pré -história da África
antes de determinada pessoa. As referências a uma cronologia absoluta impõem-
-se apenas no caso de sociedades mais amplas e mais anônimas.
Essa concepção do tempo social não é estática, pois no contexto da filosofia
africana pandinamista do universo, cada um deve aumentar incessantemente
sua forma vital, que é eminentemente social, o que inclui a ideia de progresso
dentro e através da comunidade. Como diz Bakary Dian: “Mesmo depois de
minha morte, isso será acrescentado ao meu nome”. Em algumas línguas, a
mesma palavra (bogna em barambara, por exemplo) designa o dom material, a
honra, o crescimento.
A contagem das estações do ano é muitas vezes baseada na observação
astromica, podendo abranger uma série de constelações, como a Ursa Maior;
entre os Komo (alto Zaire), as Plêiades, que são comparadas a um cesto de
machetes, anunciam a hora de afiar tais instrumentos para o arroteamento dos
campos. Em caso de necessidade, essa concepção do tempo é mais matemática.
Como exemplo, podemos citar os entalhes em madeiras especiais conservadas
como arquivos nas grutas da região dos Dogon ou o depósito anual de uma pepita
de ouro num pote de estanho na capela dos tronos no reino de Bono Mansu,
ou de uma pedra num jarro, na cabana dos reis na região mandinga; sem contar,
evidentemente, as importantes realizações nesse campo do Egito faraônico e
dos reinos muçulmanos (almóada, por exemplo). Se pensarmos na dificuldade
em converter uma sequência de durações numa sucessão de datas e ainda na
necessidade de encontrar um ponto fixo de referência, verificaremos que este
último é, na maior parte do tempo, fornecido por um fato externo datado, como
o ataque ashanti contra Bono Mansu. Na verdade, somente a utilização da escrita
e o acesso às religiões “universalistas” que dispõem de um calendário dependente
de um terminus a quo preciso, assim como a entrada no universo do lucro e da
acumulação monetária, remodelaram a concepção “tradicional” do tempo. Em
sua época, porém, tal concepção respondia adequadamente às necessidades das
sociedades em questão.
2 Outra exigência imperativa é que essa história seja enf im vista do
interior, a partir do pólo africano, e não medida permanentemente por padrões
de valores estrangeiros; a consciência de si mesmo e o direito à diferença são
pré -requisitos indispensáveis à constituição de uma personalidade coletiva
autônoma. Certamente, a opção e a ótica de auto -exame não consistem em
abolir artificialmente as conexões históricas da África com os outros continentes
do Velho e do Novo Mundo. Mas tais conexões serão analisadas em termos de
intercâmbios recíprocos e de influências multilaterais, nas quais as contribuições
positivas da África para o desenvolvimento da humanidade não deixarão de
LIII
Introdução Geral
aparecer. A atitude histórica africana não será então uma atitude vingativa nem
de auto -satisfação, mas um exercício vital da memória coletiva que varre o
campo do passado para reconhecer suas próprias raízes. Após tantas visões
exteriores que têm modelado a marca registrada da África a partir de interesses
externos (até nos filmes contemporâneos), é tempo de resgatar a visão interior
de identidade, de autenticidade, de conscientização:volta repatriadora”, como
diz Jacques Berque para designar esse retorno às raízes. Ao considerar o valor
da palavra e do nome na África, ao pensar que atribuir nome a uma pessoa é
quase apoderar -se dela – a tal ponto que os personagens venerados (pai, esposo,
soberano) são designados por perífrases e cognomes –, compreenderemos por
que toda a série de vocábulos ou conceitos, todo o arsenal de estereótipos e de
esquemas mentais relativos à história da África situam -se no contexto da mais
sutil alienação. É preciso aqui uma verdadeira revolução copernicana, que seja
primeiramente semântica e que, sem negar as exigências da ciência universal,
recupere toda a corrente histórica desse continente, em novos moldes
29
.
Como observava J. Mackenzie em 1887, referindo -se aos Tsuana
(Botsuana), quantos povos da África são conhecidos por nomes que eles
próprios ou quaisquer outras populações africanas jamais utilizaram! Esses
povos passaram pelas pias batismais da colonização e saíram consagrados à
alienação. A única saída real é escrever cada vez mais livros de história da África
em línguas africanas, o que pressupõe outras reformas de estrutura... Quantos
livros de história da África dedicam generosamente um décimo de suas páginas
à história pré -colonial, sob o pretexto de que é mal conhecida! Assim, damos um
salto sobre “séculos obscuros” e vamos diretamente a algum explorador famoso
ou procônsul, demiurgo providencial e deus ex machina, a partir do qual começa
a verdadeira história, ficando o passado africano confinado a uma espécie de
pré -história desonrosa. Certamente, não se trata de negar as influências externas,
que agem como fermento acelerador ou detonador. A introdução no século
XVI das armas de fogo no Sudão central, por exemplo, favoreceu a infantaria
formada por escravos, em prejuízo dos cavaleiros feudais. Tal mutação repercutiu
na estrutura do poder através do Sudão central, tendo o kacella ou kaigamma,
de origem servil, suplantado junto ao soberano o ministro nobre Cirema. Mas
as explicações mecânicas a partir de influências externas (inclusive no caso
29 Ver a esse respeito a interessante demonstração de I. A. AKINJOGBIN, 1967. A partir da comparação
entre o sistema do ebi (família ampliada), que seria a fonte da autoridade de Oyo sobre as famílias, e
o sistema daomeano de adaptação ao tráco de escravos pela monarquia autoritária exercida sobre os
indivíduos, o autor explica a disparidade entre os dois regimes. Ver também VERHAEGEN, B. 1974,
p. 156: “O fato bruto é um mito. A linguagem que o designa é implicitamente uma teoria do fato”.
LIV
Metodologia e pré -história da África
dos apoios de caba!) e as correspondências automáticas entre os influxos
exteriores e os movimentos da história da África devem ser banidas em favor
de uma análise mais profunda, a fim de revelar as contradições e os dinamismos
endógenos
30
.
3 Além disso, essa história é obrigatoriamente a história dos povos africanos
em seu conjunto, considerada como uma totalidade que engloba a massa
continental propriamente dita e as ilhas vizinhas como Madagascar, segundo
a definição da carta da OUA. É claro que a história da África integra o setor
mediterrâneo numa unidade consagrada por muitos laços milenares, às vezes
sangrentos, é verdade, mas na maioria dos casos mutuamente enriquecedores.
Tais laços fazem da África, de um lado e do outro da dobradiça do Saara, os dois
batentes de uma mesma porta, as duas faces de uma mesma moeda.
É necessariamente uma história dos povos, pois na África mesmo o
despotismo de certas dinastias tem sido sempre atenuado pela distância, pela
ausência de meios técnicos que agravem o peso da centralização, pela perenidade
das democracias aldeãs, de tal modo que em todos os níveis, da base ao topo,
o conselho reunido pela e para a discuso constitui o rebro do corpo
político. É uma história dos povos porque, com exceção de algumas décadas
contemporâneas, não foi moldada de acordo com as fronteiras fixadas pela
colonização, pelo simples motivo de que a posição territorial dos povos africanos
ultrapassa em toda parte as fronteiras herdadas da partilha colonial. Assim,
para tomar um exemplo entre mil, os Senufo ocupam uma área correspondente
a parte do Mali, da Costa do Marfim e do Alto Volta. No contexto geral do
continente, terão maior destaque os fatores comuns resultantes de origens
comuns e de intercâmbios inter -regionais milenares de homens, mercadorias,
técnicas, ideias, em suma, de bens materiais e espirituais. Apesar dos obstáculos
impostos pela natureza e do baixo nível técnico, tem havido desde a Pré -História
uma certa solidariedade continental entre o vale do Nilo e o Sudão, até a floresta
da Guiné; entre esse mesmo vale e a África oriental, incluindo, entre outros
acontecimentos, a dispersão dos Luo; entre o Sudão e a África central pela
diáspora dos Bantu; entre fachada atlântica e a costa oriental pelo comércio
transcontinental através do Shaba.
Os fenômenos migratórios ocorridos em grande escala no espaço e no tempo
não devem ser entendidos como uma imensa onda humana atraída pelo vazio ou
30 Cf. LAW, R. C. C. 1971. Para o autor, o declínio de Oyo é provocado pelas tensões intestinas entre
categorias sociais subalternas: escravos, intendentes do alan (rei) nas províncias, representantes das
províncias na corte, triunviratos de eunucos reais (do centro, da direita e da esquerda).
LV
Introdução Geral
deixando o vazio atrás de si. Mesmo a saga torrencial de Chaka, o mfécane, não
pode ser interpretada unicamente nesses termos. O movimento de grupos Mossi
(Alto Volta) em direção ao norte, a partir do Dagomba e do Mamprusi (Gana),
foi realizado por bandos de cavaleiros que, de etapa em etapa, foram ocupando as
várias regiões; no entanto,podiam concretizar tal ocupação amalgamando -se
aos autóctones, tomando esposas nativas. Os privilégios judiciais que eles próprios
se outorgavam provocaram rapidamente a proliferação de suas escarificações
faciais (uma espécie de carteira de identidade), enquanto a língua, bem como as
instituições dos recém -chegados, prevaleceram a ponto de eliminar as dos outros
povos. Outros costumes, como os ligados aos cultos agrários ou os que regiam os
direitos de estabelecimento, continuavam a ser de competência dos chefes locais,
ao mesmo tempo em que se instauravam relações de parentesco de brincadeira”
com certos povos encontrados pelo caminho. O grande conquistador mossi”
Ubri, aliás, já era ele próprio um mestiço”. Esse esboço de processo por osmose
deve substituir quase sempre o cenário romântico e simplista da invasão niilista
e devastadora, como foi longa e erradamente representada a irrupção dos Beni
Hilal na África do Norte.
Os excessos da antropologia sica, com seus preconceitos racistas, o
hoje rejeitados por todos os autores sérios. Mas os Hamitas” e outras raças
morenas”, inventadas em defesa da causa, não cessaram de povoar as miragens
e os fantasmas de espíritos ditos científicos.
Tais categorias”, declara J. Hiemaux
31
num texto importante:
“Não podem ser admitidas como unidades biológicas de estudo. Os Peul não
constituem um grupo biológico, mas sim cultural. Os Peul do sul de Camarões, por
exemplo, têm seus parentes biológicos mais próximos nos Haya da Tanzânia. Quanto
à proximidade biológica entre os Mouros e os Warsingali da Somália, ela deriva tanto
da hereditariedade quanto do biótopo similar que os condiciona: a estepe árida”.
vários milênios, os dados propriamente biogicos, constantemente
subvertidos pela seleção ou pela oscilação genética,o dão nenhuma referência
sólida para a classificação, nem sobre o grupo sanguíneo, nem sobre a frequência
do gene Hbs, que determina uma hemoglobina anormal e que, associado a um
gene normal, reforça a resistência à malária. Isto ilustra o papel importantíssimo
da adaptação ao meio natural. A estatura mais elevada e a bacia mais larga, por
exemplo, coincidem com as zonas de maior seca e de calor mais intenso. Neste
caso, a morfologia do crânio mais estreito e mais alto (dolicocefalia) é uma
31 HIERNAUX, J. 1970, p. 53 e ss.
LVI
Metodologia e pré -história da África
adaptação que permite uma menor absorção de calor. O vocábulo “tribo será
tanto quanto possível banido desta obra, exceto no caso de certas regiões da
África do Norte
32
, em razão de suas conotações pejorativas e das diversas ideias
falsas que o sustentam. Por mais que se destaque que a “tribo é essencialmente
uma unidade cultural e, às vezes, política, alguns continuam a -la como um
estoque biologicamente distinto e destacam os horrores das “guerras tribais”,
cujo saldo muitas vezes se limitava a algumas dezenas de mortos ou menos que
isso; esquecem, porém, todos os intercâmbios positivos que ligaram os povos
africanos no plano biológico, tecnológico, cultural, religioso, sociopolítico, etc.,
e que dão aos empreendimentos africanos um indiscutível ar de família.
4 Além do mais, esta história deverá evitar ser excessivamente fatual, pois
com isso correria o risco de destacar em demasia as influências e os fatores
externos. Certamente, o estabelecimento de fatos -chave é uma tarefa primordial,
indispensável até, para definir o perfil original da evolução da África. Mas
serão tratadas com especial interesse as civilizações, as instituições, as estruturas:
técnicas agrárias e de metalurgia, artes e artesanato, circuitos comerciais, formas
de conceber e organizar o poder, cultos e modos de pensamento filosófico ou
religioso, técnicas de modernização, o problema das nações e pré -nações, etc. Esta
opção metodológica requer, com mais vigor ainda, a abordagem interdisciplinar.
Finalmente, por que esse retorno às fontes africanas? Enquanto a busca desse
passado pode ser, para os estrangeiros, uma simples curiosidade, um exercício
intelectual altamente estimulante para a mente desejosa de decifrar o enigma da
Esfinge, o sentido real dessa iniciativa deve ultrapassar tais objetivos puramente
individuais, pois a história da África é necessária à compreensão da história
universal, da qual muitas passagens permanecerão enigmas obscuros enquanto
o horizonte do continente africano não tiver sido iluminado. Além disso, no
plano metodológico, a execução da história da África de acordo com as normas
estabelecidas neste volume pode confirmar a estratégia dos adeptos da história
total, apreendida em todos os seus estratos e em todas as suas dimensões, por todo
o arsenal de instrumentos de investigação disponíveis. Dessa forma, a história
torna -se essa disciplina sinfônica em que a palavra é dada simultaneamente a
todos os ramos do conhecimento; em que a conjunção singular das vozes se
32 O termo árabe Khabbylia designa um grupo de pessoas ligadas geneologicamente a um ancestral comum e
que vivem num território delimitado. Como a liação genealógica tem grande importância entre os povos
semíticos (árabes, berberes), la Khabbylia (que corresponde em português ao termo tribo) desempenhou, e
por vezes desempenha, um papel que não pode car esquecido por silêncio na história de inúmeros países
norte -africanos. A m de preservar toda sua conotação histórica e sociocultural, o vocábulo Khabbylia
será mantido em sua graa original.
LVII
Introdução Geral
transforma de acordo com o assunto ou com os momentos da pesquisa, para
ajustar -se às exigências do discurso. Mas essa reconstrução póstuma do edifício
pouco construído com pedras vivas é importante, sobretudo, para os africanos,
que têm nisso um interesse carnal e que penetram nesse domínio após séculos
ou décadas de frustração, como um exilado que descobre os contornos ao mesmo
tempo velhos e novos, porque secretamente antecipados, da almejada paisagem
da pátria. Viver sem história é ser uma ruína ou trazer consigo as raízes de
outros. É renunciar à possibilidade de ser raiz para outros que vêm depois.
É aceitar, na maré da evolução humana, o papel anônimo de plâncton ou de
protozoário. É preciso que o homem de Estado africano se interesse pela história
como uma parte essencial do patrimônio nacional que deve dirigir, ainda mais
porque é pela história que ele poderá ter acesso ao conhecimento dos outros
países africanos na ótica da unidade africana.
Mas esta história é ainda mais necessária aos próprios povos para os quais
ela constitui um direito fundamental. Os Estados africanos devem organizar
equipes para salvar, antes que seja tarde demais, o maior número possível de
vestígios históricos. Devem -se construir museus e promulgar leis para a proteção
dos sítios e dos objetos. Devem ser concedidas bolsas de estudo, em particular
para a formação de arqueólogos. Os programas e cursos devem sofrer profundas
modificações, a partir de uma perspectiva africana. A história é uma fonte na
qual poderemos não apenas ver e reconhecer nossa própria imagem, mas também
beber e recuperar nossas forças, para prosseguir adiante na caravana do progresso
humano. Se tal é a finalidade desta História Geral da África, essa laboriosa e
enfadonha busca, sobrecarregada de exercícios penosos, certamente se revelará
fecunda e rica em inspiração multiforme. Pois em algum lugar sob as cinzas
mortas do passado existem sempre brasas impregnadas da luz da ressurreição.
C A P Í T U L O 1
1
A evolução da historiograa da África
Os primeiros trabalhos sobre a história da África são tão antigos quanto o
início da história escrita. Os historiadores do velho mundo mediterrânico e os
da civilização islâmica medieval tomaram como quadro de referência o conjunto
do mundo conhecido, que compreendia uma considerável porção da África.
A África ao norte do Saara era parte integrante dessas duas civilizações e seu
passado constituía um dos centros de interesse dos historiadores, do mesmo
modo que o passado da Europa meridional ou o do Oriente Próximo. A história
do norte da África continuou a ser parte essencial dos estudos históricos até a
expansão do Império Otomano, no século XVI.
Após a expedição de Napoleão Bonaparte ao Egito em 1798, o norte da
África tornou -se novamente um campo de estudos que os historiadores não
podiam negligenciar. Com a expansão do poder colonial europeu nessa parte
da África – após a conquista de Argel pelos franceses em 1830 e a ocupação do
Egito pelos britânicos em 1882 um ponto de vista europeu colonialista passou
a dominar os trabalhos sobre a história da porção norte da África. No entanto,
a partir de 1930, o movimento modernizador no Islã, o desenvolvimento da
instrução de estilo europeu nas colônias da África do Norte e o nascimento dos
movimentos nacionalistas norte -africanos começaram a combinar -se para dar
origem a escolas autóctones de história que produziam obras não apenas em
árabe, mas também em francês e inglês, restabelecendo assim o equilíbrio nos
estudos históricos dessa região do continente.
A evolução da historiograa da África
J. D. Fage
2
Metodologia e pré -história da África
Assim sendo, o presente capítulo preocupar -se sobretudo com a
historiografia da África ocidental, central, oriental e meridional. Ainda que
nem os historiadores clássicos nem os historiadores islâmicos medievais tenham
considerado a África tropical como destituída de interesse, seus horizontes
estavam limitados pela escassez de contatos que podiam estabelecer com ela,
seja através do Saara em direção à “Etiópia” ou o Bilad ‑al ‑Suden, seja ao longo
da costa do mar Vermelho e do oceano Índico, até os limites que a navegação
de monções permitia atingir.
As informações fornecidas pelos antigos autores no que se refere mais
particularmente à África ocidental eram raras e esporádicas. Heródoto, Manetão,
Plínio, o Velho, Estrabão e alguns outros descrevem apenas umas poucas viagens
através do Saara, ou breves incursões marítimas ao longo da costa Atlântica,
sendo a autenticidade de alguns desses relatos objeto de animadas discussões
entre especialistas. As informações clássicas a respeito do mar Vermelho e do
oceano Índico têm um fundamento mais sólido, pois é certo que os mercadores
mediterrânicos, ou ao menos os alexandrinos, comerciavam nessas costas. O
Périplo do Mar da Eritreia (mais ou menos no ano +100) e as obras de Cláudio
Ptolomeu (por volta do ano +150, embora a versão que chegou até nós pareça
referir -se sobretudo ao ano +400, aproximadamente) e de Cosmas Indicopleustes
(+647) constituem ainda as principais fontes da história antiga da África oriental.
Os autores árabes eram mais bem informados, uma vez que em sua época a
utilização do camelo pelos povos do Saara havia facilitado o estabelecimento de
um comércio regular com a África ocidental e a instalação de negociantes norte-
-africanos nas principais cidades do Sudão ocidental. Por outro lado, o comércio
com a parte ocidental do oceano Índico tinha se desenvolvido a tal ponto que um
número considerável de mercadores da Arábia e do Oriente Próximo se instalara
ao longo da costa oriental da África. Assim, as obras de homens como al -Mas’udi
(que morreu por volta de +950), al -Bakri (1029 -1094), al -Idrisi (1154), Yakut
(cerca de 1200), Abu’l -Fida (1273 -1331), al’Umari (1301 -1349), Ibn Battuta
(1304 -1369) e Hassan Ibn Mohammad al -Wuzza’n (conhecido na Europa
pelo nome de Leão, o Africano, 1494 -1552 aproximadamente) são de grande
importância para a reconstrução da história da África, em particular a do Sudão
ocidental e central, durante o período compreendido entre os séculos IX e XV.
No entanto, por mais úteis que sejam essas obras para os historiadores
modernos, pairam dúvidas de que possamos incluir algum desses autores ou
de seus predecessores clássicos entre os principais historiadores da África. O
essencial da contribuição de cada um deles consiste numa descrição das regiões
da África a partir das informações que puderam recolher na época em que
3
A evolução da historiograa da África
escreveram. Não existe nenhum estudo sistemático sobre as mudanças ocorridas
ao longo do tempo e que constituem o verdadeiro objetivo do historiador. Aliás,
tal descrição nem chega a ser realmente sincrônica, pois se é verdade que uma
parte das informações pode ser contemporânea, outras delas, embora pudessem
ainda ser consideradas verdadeiras na época em que o autor vivia, muitas vezes
poderiam ser provenientes de relatos mais antigos. Além disso, essas obras
apresentam o inconveniente de que, em geral, não nenhum meio de avaliar
a autoridade da informação, de saber, por exemplo, se o autor a obteve por sua
observação pessoal ou a partir da observação direta de um contemporâneo, ou
se ele simplesmente relata rumores correntes na época ou a opinião de autores
antigos. Leão, o Africano, constitui um exemplo interessante desse problema.
Assim como Ibn Battuta, ele próprio viajou pela África, mas, ao contrário deste,
não se pode afirmar com certeza que todas as informações que ele nos fornece
tenham provindo de suas observações pessoais.
Talvez fosse útil relembrar aqui que o termo história não deixa de ser ambíguo.
Atualmente, pode ser definido como “um relato metódico dos acontecimentos
de um determinado período”, mas pode também ter o sentido mais antigo de
descrição sistemática de fenômenos naturais”. É essencialmente nessa acepção
que ele é empregado no título em inglês da obra de Leão, o Africano (Leo
Africanus, A Geographical History of Africa; em francês, Description de l Afrique),
significado que permanece hoje na ultrapassada expressão “história natural”
(que, aliás, era o título da obra de Plínio).
Entre os primeiros historiadores da África, porém, encontra -se um muito
importante, um grande historiador no sentido amplo do termo: referimo -nos
a Ibn Khaldun (1332 -1406) que, se fosse mais conhecido pelos especialistas
ocidentais, poderia legitimamente roubar de Heródoto o título de “pai da
história”. Ibn Khaldun era um norte -africano nascido em Túnis. Uma parte
de sua obra é consagrada à África
1
e às suas relações com os outros povos
do Mediterrâneo e do Oriente Próximo. Da compreensão dessas relações ele
induziu uma concepção que faz da história um fenômeno cíclico, no qual os
nômades das estepes e dos desertos conquistam as terras aráveis dos povos
sedentários e aí estabelecem vastos reinos, que, depois de cerca de três gerações,
perdem sua vitalidade e se tornam vítimas de novas invasões de mades.
Trata -se, sem dúvida, de um bom modelo para grande parte da história do
1 As principais explicações sobre a África encontram -se na mais importante obra desse autor, a Muqqadima
(tradução francesa de Vincent MONTEIL), e no fragmento de sua história traduzido por DE SLANE
sob o título Histoire des Berbères.
4
Metodologia e pré -história da África
norte da África e um importante historiador, Marc Bloch
2
, utilizou -o para sua
brilhante explicação da história da Europa no início da Idade Média. Ora, Ibn
Khaldun distingue -se de seus contemporâneos não somente por ter concebido
uma filosofia da história, mas também e talvez principalmente por não ter,
como os demais, atribuído o mesmo peso e o mesmo valor a todo fragmento de
informação que pudesse encontrar sobre o passado; acreditava que era preciso
aproximar -se da verdade passo a passo, através da crítica e da comparação.
Ibn Khaldun é, realmente, um historiador muito moderno e é a ele que
devemos o que se pode considerar quase como história da África tropical, em
sentido moderno. Na qualidade de norte -africano e também pelo fato de ter
trabalhado, a despeito da novidade de sua filosofia e de seu método, no quadro
das antigas tradições mediterrâneas e islâmicas, ele não deixou de se preocupar
com o que ocorria no outro lado do Saara. Assim, um dos capítulos de sua obra
3
é uma história do Império do Mali, que na época em que ele viveu atingia seu
auge. Esse capítulo é parcialmente fundamentado na tradição oral da época e,
por esta razão, permanece até hoje como uma das bases essenciais da história
desse grande Estado africano.
Nenhum Estado vasto e poderoso como o Mali, nem mesmo os Estados
de menor importância como os primeiros reinados haussa ou as cidades
independentes da costa oriental da África, podiam manter sua identidade ou
sua integridade sem uma tradição reconhecida relativa à sua fundação e ao seu
desenvolvimento. Quando o Islã atravessou o Saara e se expandiu ao longo da
costa oriental trazendo consigo a escrita árabe, os negros africanos passaram a
utilizar textos escritos ao lado dos documentos orais de que dispunham para
conservar sua história.
Os mais elaborados dentre esses primeiros exemplos de obras de história
atualmente conhecidos são provavelmente o Ta’rikh al ‑Sudan e o Ta’rikh
el ‑Fattash, ambos escritos em Tombuctu, principalmente no século XVII
4
. Nos
dois casos, os autores fazem um relato dos acontecimentos de sua época e do
período imediatamente anterior, com muitos detalhes e sem omitir a análise
e a interpretão. Mas antecedendo esses relatos críticos tamm uma
evocação das tradições orais relativas a períodos mais antigos. Dessa forma, o
2 Ver sobretudo BLOCH, M. 1939, p. 91.
3 Na tradução de M. G. DE SLANE, intitulada Histoire des Berbères (1925 -1956), este capítulo gura no
volume 2, p. 105 -16.
4 O Ta’rikh al ‑Sudan foi traduzido para o francês e comentado por O. HOUDAS (1900); o Ta’rikh
el ‑Fattash, por O. HOUDAS e M. DELAFOSSE (1913).
5
A evolução da historiograa da África
resultado não é somente uma história do Império Songhai, de sua conquista e
dominação pelos marroquinos, mas também uma tentativa de determinar o que
era importante na história pregressa da região, sobretudo nos antigos impérios
de Gana e do Mali. Em função disso, é importante distinguir os Ta’rikh de
Tombuctu de outras obras históricas escritas em árabe pelos africanos, tais
como as conhecidas pelos nomes de Crônica de Kano e Crônica de Kilwa
5
. Estes
últimos nos oferecem somente anotações diretas, por escrito, de tradições que até
então eram, sem dúvida alguma, transmitidas oralmente. Embora uma versão da
Crônica de Kilwa pareça ter sido utilizada pelo historiador português de Barros
no século XVI, não nada que prove que a Crônica de Kano tenha existido
antes do início do século XIX.
É interessante notar que as crônicas dessa natureza escritas em árabe não
se limitam necessariamente às regiões da África que foram inteiramente
islamizadas. Assim, o centro da atual Gana produziu sua Crônica de Gonja (Kitab
al ‑Ghunja) no século XVIII e as recentes pesquisas de especialistas como Ivor
Wilks revelaram centenas de exemplos de manuscritos árabes provenientes dessa
região e de regiões vizinhas
6
. Por outro lado, é preciso não esquecer que uma
parte da África tropical – a atual Etiópia – possuía sua própria língua semítica,
inicialmente o gueze e mais tarde o amárico, na qual uma tradição literária foi
preservada e desenvolvida durante quase 2 mil anos. Sem dúvida nenhuma, essa
tradição produziu obras históricas no século XIV, das quais um exemplo é
a História das Guerras, de Amda Syôn
7
. As obras históricas escritas em outras
línguas africanas como o haussa e o swahili, distintas das escritas em árabe
clássico importado mas utilizando sua escrita,apareceram no século XIX.
No século XV os europeus começaram a entrar em contato com as regiões
costeiras da África tropical, fato que desencadeou a produção de obras literárias
que constituem preciosas fontes de estudo para os historiadores modernos.
Quatro regiões da África tropical foram objeto de particular atenção: a costa
da Guiné na África ocidental; a região do Baixo Zaire e de Angola; o vale
do Zambeze e as terras altas vizinhas; e, por fim, a Etiópia. Nessas regiões,
durante os séculos XVI e XVII, houve uma considerável penetração em direção
ao interior. Mas, como no caso dos escritores antigos, clássicos, ou árabes, o
5 Pode -se encontrar uma tradução inglesa da Crônica de Kano em H. R. PALMER, 1928, vol. 3, p. 92 -132,
e da Crônica de Kilwa em G. S. P. FREEMAN -GRENVILLE, 1962, p. 34 -49.
6 Sobre a Crônica de Gonja e a coleção de manuscritos árabes na atual Gana, ver Nehemin LEVTZION,
1968, p. 27 -32 sobretudo; Ivor WILKS, 1963, p. 409 -17; e omas HODGKIN, 1966, p. 442 -60.
7 Existem várias traduções dessa obra, sobretudo uma (em francês) de J. PERRUCHON no Journal
Asiatique, 1889.
6
Metodologia e pré -história da África
resultado não foi sempre, e em geral não de forma imediata, a produção de obras
de história da África.
A costa da Guiné foi a primeira rego da África tropical descoberta
pelos europeus; ela foi o tema de toda uma série de obras a partir de 1460,
aproximadamente (Cadamosto), até o início do século XVIII (Barbot e
Bosman). Uma boa parte desse material é de grande valor histórico, porque
fornece testemunhos diretos e datados, graças aos quais podem -se situar várias
outras relações de caráter histórico. também nessas obras abundante material
histórico (entendido como não -contemporâneo), sobretudo em Dapper (1688),
que, ao contrário da maioria dos demais autores, não era um observador direto,
mas apenas um compilador de relatos alheios. Porém, o objetivo essencial de
todos esses autores era mais descrever a situação contemporânea do que fazer
história. E é somente agora, depois que uma boa parte da história da África
ocidental foi reconstitda, que podemos avaliar corretamente muitas das
afirmações que eles fizeram
8
.
Nas outras regiões que despertaram o interesse dos europeus nos séculos
XVI e XVII a situação era um pouco diferente. Isso talvez se deva ao fato
de terem sido o campo de atividade dos primeiros esforços missionários, ao
passo que o principal motor das atividades europeias na Guiné foi sempre o
comércio. Enquanto os africanos forneciam as mercadorias que os europeus
desejavam comprar, como era em geral o caso da Guiné, os negociantes não
se sentiam impelidos a mudar a sociedade africana; eles se contentavam em
obser-la. Os missionários, ao contrário, sentiam -se obrigados a tentar alterar
o que encontravam e, nessas condições, um certo grau de conhecimento da
história da África poderia ser -lhes útil. Na Etiópia, as bases já existiam. Podia-
-se aprender o gueez e aperfeiçoar seu estudo, bem como utilizar as crônicas e
outros escritos nessa língua. Obras históricas sobre a Etiópia foram elaboradas
por dois eminentes pioneiros entre os missionários, Pedro Paez (morto em
1622) e Manoel de Almeida (1569 -1646), e uma história completa foi escrita
por um dos primeiros orientalistas da Europa, Hiob Ludolf (1634 -1704)
9
. No
baixo vale do Congo e em Angola, assim como no vale do Zambeze e em suas
imediações, os interesses comerciais eram provavelmente mais fortes que os
8 e Voyages of Cadamosto, comentadas por G. R. CRONE, 1937; John BARBOT, 1732; William
BOSMAN, edição comentada, 1967.
9 Em C. BECCARI, Rerum Aethiopicarum Scriptores Occidentales lnediti (Roma, 1905 -1917), a obra de
Paez se encontra nos volumes 2 e 3 e a de Almeida, nos volumes 5 e 7; existe uma tradução parcial em
inglês da obra de ALMEIDA em C. F. BECKINGHAM e G. W. B. HUNTINGFORD, Some Records
of Ethiopia, 1593 -1646 (1954). A Historia Aethiopica de LUDOLF foi publicada em Frankfurt, em 1681.
7
A evolução da historiograa da África
da evangelização. Ocorre porém que, em seu conjunto, a sociedade africana
tradicional não estava disposta a fornecer aos europeus o que eles desejavam, a
não ser que sofresse pressões consideráveis. O resultado é que ela foi obrigada
a mudar de modo tão drástico que mesmo os ensaios descritivos dificilmente
podiam deixar de ser em parte históricos. De fato, importantes elementos de
história podem ser encontrados em livros de autores como Pigafetta e Lopez
(1591) e Cavazzi (1687). Em 1681, Cadornega publica uma História das Guerras
Angolanas
10
.
A partir do século XVIII, parece que a África tropical recebeu dos historiadores
europeus a atenção que merecia. Era possível, por exemplo, utilizar como fontes
históricas os autores mais antigos, sobretudo os descritivos como Leão, o
Africano, e Dapper –, de maneira que as histórias e geografias universais da
época, como The Universal History, publicada na Inglaterra entre 1736 e 1765,
podiam consagrar um número apreciável de páginas à África
11
. Houve também
ensaios monográficos, como é o caso da História de Angola, de Silva Correin
(cerca de 1792), da Some Historical account of Guinea, de Benezet (1772) e das
duas histórias do Daomé: Memórias do Reino de Bossa Ahadée, de Norris (1789)
e History of Dahomey, de Dalzel ( 1793). Mas uma advertência se faz necessária
aqui. O livro de Silva Correin foi publicado neste século
12
. E a razão pela
qual as três obras mencionadas acima foram publicadas naquela época deve -se
ao fato de que, no fim do século XVIII, começava a acirrar -se a controvérsia em
torno do tráfico de escravos, que tinha sido o principal elemento das relações
entre a Europa e a África tropical havia pelo menos 150 anos. Dalzel e Norris,
ambos recorrendo à sua experiência no comércio de escravos no Daomé, assim
como Benezet, desempenharam o papel de historiadores, mas seus trabalhos
tinham como objetivo fornecer argumentos a favor ou contra a abolição do
tráfico negreiro.
Se não fosse por isso, o se tem como certo que esses livros tivessem
encontrado compradores, pois nessa época a principal tendência da cultura
europeia comava a considerar de forma cada vez mais desfavorável as
sociedades não -europeias e a declarar que elas não possuíam uma história
digna de ser estudada. Essa mentalidade resultava sobretudo da convergência
10 CADORNEGA, A. de Oliveira. Historia General das Guerras Angolanas. Comentada por M. DELGADO
e A. CUNHA (Lisboa, 1940 -1942).
11 A edição in ‑folio da Universal History compreende 23 volumes, dos quais 16 são consagrados à história
moderna, contendo estes últimos dois volumes sobre a África.
12 Lisboa, 1937.
8
Metodologia e pré -história da África
de correntes de pensamento oriundas do Renascimento, do Iluminismo e da
crescente revolução científica e industrial. O resultado foi que, baseando -se no
que era considerado uma herança greco -romana única, os intelectuais europeus
convenceram -se de que os objetivos, os conhecimentos, o poder e a riqueza
de sua sociedade eram tão preponderantes que a civilização europeia deveria
prevalecer sobre todas as demais. Consequentemente, sua história constituía
a chave de todo conhecimento, e a história das outras sociedades não tinha
nenhuma importância. Esta atitude era adotada sobretudo em relação à África.
De fato, nessa época os europeus conheciam a África e os africanos sob
o ângulo do comércio de escravos, num momento em que o próprio tráfico
era causador de um caos social cada vez mais grave em numerosas partes do
continente.
Hegel (1770 -1831) definiu explicitamente essa posição em sua Filosofia
da História, que contém afirmações como as que seguem: A África não é um
continente histórico; ela não demonstra nem mudança nem desenvolvimento”.
Os povos negros são incapazes de se desenvolver e de receber uma educação.
Eles sempre foram tal como os vemos hoje”. É interessante notar que, já em 1793,
o responsável pela publicação do livro de Dalzel julgara necessário justificar o
surgimento de uma história do Daomé. Assumindo claramente a mesma posição
de Hegel, ele declarava:
“Para chegar a um justo conhecimento da natureza humana, é absolutamente necessário
preparar o caminho através da história das nações menos civilizadas (…) (Não
nenhum outro) meio de julgar o valor da cultura, na avaliação da felicidade humana, a
o ser atras de comparações deste tipo
13
.
Ainda que a influência direta de Hegel na elaboração da história da África
tenha sido fraca, a opinião que ele representava foi aceita pela ortodoxia histórica
do século XIX. Essa opinião anacrônica e destituída de fundamento ainda hoje
não deixa de ter adeptos. Um professor de História Moderna na Universidade
de Oxford, por exemplo, teria declarado:
“Pode ser que, no futuro, haja uma história da África para ser ensinada. No presente,
porém, ela não existe; o que existe é a história dos europeus na África. O resto são
trevas… e as trevas não constituem tema de história. Compreendam -me bem. Eu
não nego que tenham existido homens mesmo em países obscuros e séculos obscuros,
nem que eles tenham tido uma vida política e uma cultura interessantes para os
13 DALZEL, Archibald. e History of Dahomey (1793) p.v.
9
A evolução da historiograa da África
sociólogos e os antropólogos; mas creio que a história é essencialmente uma forma de
movimento e mesmo de movimento intencional. Não se trata simplesmente de uma
fantasmagoria de formas e de costumes em transformação, de batalhas e conquistas,
de dinastias e de usurpações, de estruturas sociais e de desintegração social…”.
Ele argumentava que “a história, ou melhor, o estudo da história, tem uma
finalidade. Nós a estudamos (…) a fim de descobrir como chegamos ao ponto
em que estamos”. O mundo atual, prosseguia ele, está a tal ponto dominado
pelas ideias, técnicas e valores da Europa ocidental que, pelo menos nos cinco
últimos séculos, na medida em que a história do mundo tem importância, é
somente a história da Europa que conta”. Por conseguinte, não podemos nos
permitir “divertirmo -nos com o movimento sem interesse de tribos bárbaras
nos confins pitorescos do mundo, mas que não exerceram nenhuma influência
em outras regiões”
14
.
Por ironia do destino, foi durante a vida de Hegel que os europeus
empreenderam a exploração real, moderna e científica da África e começaram
assim a lançar os fundamentos de uma avaliação racional da história e das
realizações das sociedades africanas. Essa exploração era ligada, em parte, à
reação contra a escravidão e o tráfico de escravos, e, em parte, à competição
pelos mercados africanos.
Alguns dos primeiros europeus eram impelidos por um desejo sincero de
aprender tudo o que pudessem a respeito do passado dos povos africanos e
recolhiam todo o material que encontravam: documentos escritos, quando os
havia, ou ainda tradições orais e testemunhos que descobriam sobre os traços
do passado. A literatura produzida pelos exploradores é imensa. Alguns desses
trabalhos contêm história no melhor sentido do termo, e em sua totalidade,
tal literatura constitui um material de grande valor para os historiadores. Uma
pequena lista dos principais títulos poderia incluir Travels to Discoverer the
Sources of the Nile de James Bruce (1790); os capítulos especificamente históricos
dos relatos de visitas a Kumasi, capital de Ashanti, de T. E. Bowdich (Mission
from Cape Coast to Ashantee, 1819) e de Joseph Dupuis (Journal of a Residence
in Ashantee, 1824); Reisen und Entdeckungen in Nord ‑und Zentral Afrika (1857-
-1858) de Heinrich Barth; Documents sur l’Histoire, la Géographie et le Commerce
de l’Afrique Oriental de M. Guillain (1856); e Saara und Sudan de Gustav
Nachtigal (1879 -1889).
14 Estas citações foram extraídas das notas de abertura do primeiro ensaio de uma série de cursos proferidos
pelo professor Hugh TREVOR -HOPER intitulada e Rise of Christian Europe” (A Ascensão da
Europa Cristã). Ver e Listener, 28 -11 -1963, p. 871.
10
Metodologia e pré -história da África
A carreira de Nachtigal prosseguiu numa fase inteiramente nova da história
da África: aquela em que os europeus haviam iniciado a conquista do continente
e o domínio de suas populações. Como essas tentativas pareciam necessitar
de uma justificativa moral, as considerações hegelianas foram reforçadas pela
aplicação dos princípios de Darwin. O resultado sintomático disso tudo foi o
aparecimento de uma nova ciência, a Antropologia, que é um método não-
-histórico de estudar e avaliar as culturas e as sociedades dos povos primitivos”,
os que não possuíam uma história digna de ser estudada”, aqueles que eram
“inferiores” aos europeus e que podiam ser diferenciados destes pela pigmentação
de sua pele.
É interessante citar aqui o caso de Richard Burton (1821 -1890), um dos
grandes viajantes europeus na África durante o século XIX. Trata -se de um
espírito curioso, cultivado, sempre atento e um orientalista eminente. Ele foi,
em 1863, um dos fundadores da London Anthropological Society (que tornar-
-se -ia mais tarde o Royal Anthropological Institute). Entretanto, de modo bem
mais acentuado que Nachtigal, sua carreira marca o fim da exploração científica
e imparcial da África, que havia começado com James Bruce. Encontramos,
por exemplo, em sua Mission to Gelele, King of Dahomey ( 1864), uma notável
digressão sobre “o lugar do negro na natureza (e não, como se pode notar, “o lugar
do negro na história”). Pode -se ler aí frases como esta: “O negro puro se coloca
na família humana abaixo das duas grandes raças, árabe e ariana (a maioria dos
seus contemporâneos teria classificado estas duas últimas em ordem inversa) e
o negro, coletivamente, não progredirá além de um determinado ponto, que
não merecerá consideração; mentalmente ele permaneceuma criança…
15
.
Foi em vão que certos intelectuais africanos, como James Africanus Horton,
responderam a essas colocações, polemizando com os membros influentes da
London Anthropological Society.
As coisas ficaram ainda mais difíceis para o estudo da história da África
após o aparecimento, nessa época e em particular na Alemanha, de uma nova
concepção sobre o trabalho do historiador, que passava a ser encarado mais
como uma atividade científica fundada sobre a alise rigorosa de fontes
originais do que como uma atividade ligada à literatura ou à filosofia. É evidente
que, para a história da Europa, essas fontes eram sobretudo fontes escritas, e
nesse domínio a África parecia especialmente deficiente. Tal concepção foi
exposta de forma muito precisa pelo professor A. P. Newton, em 1923, numa
15 0p. cit., edição de 1893, v. 2, p. 131 e 135.
11
A evolução da historiograa da África
conferência diante da Royal African Society de Londres, sobre A África e a
pesquisa histórica”. Segundo ele, a África não possuía “nenhuma história antes
da chegada dos europeus. A história começa quando o homem se põe a escrever”.
Assim, o passado da África antes do início do imperialismo europeu podia
ser reconstituído a partir de testemunhos dos restos materiais, da linguagem
e dos costumes primitivos”, coisas que não diziam respeito aos historiadores, e
sim aos arqueólogos, aos linguistas e aos antropólogos
16
.
De fato, o próprio Newton encontrava -se um pouco à margem do papel de
historiador tal como era concebido na época. Durante grande parte do século
XIX alguns dos mais eminentes historiadores britânicos, como James Stephen
(1789 -1859), Herman Merivale (1806 -1874), J. A. Froude (1818 -1894) e J. R.
Seeley (1834 -1895)
17
, haviam demonstrado muito interesse pelas atividades dos
europeus (ou pelo menos de seus compatriotas) no resto do mundo. Mas o sucessor
de Seeley no cargo de Regius Professor de História Moderna em Cambridge foi
Lord Acton (1834 -1902), que havia se graduado na Alemanha. Acton começara
imediatamente a preparar The Cambridge Modern History, cujos catorze volumes
apareceram entre 1902 e 1910. Essa obra é tão centrada na Europa que chega
a ignorar quase totalmente até mesmo as atividades dos próprios europeus pelo
mundo. Em consequência, a história colonial foi geralmente deixada a cargo
de homens como Sir Charles Lucas (ou, na França, Gabriel Hanotaux)
18
que,
como Stephen, Merivale e Froude, haviam se encarregado ativamente dos
assuntos coloniais.
Entretanto, com o tempo, a história colonial ou imperial se fez aceitar, mesmo
permanecendo à margem da profissão. The New Cambridge Modern History, que
começara a aparecer em 1957 sob a direção de Sir George Clark, traz alguns
capítulos sobre a África, a Ásia e a América em seus doze volumes e, por outro
lado, a coleção de história de Cambridge havia sido enriquecida nessa época
com a série The Cambridge History of the British Empire (1929 -1959), da qual
16 Africa and historical research”, J. A. S., 22 (1922 -1923).
17 STEPHEN foi funcionário no Colonial Oce de 1825 a 1847 e professor de História Moderna em
Cambridge de 1849 a 1859; MERIVALE foi professor de Economia Política em Oxford antes de
suceder STEPHEN na qualidade de Permanent Under -Secretary do Colonial Oce (1847 -1859);
FROUDE passou a maior parte de sua vida em Oxford e foi professor de História Moderna em 1892-
-1894, mas na década de 1870 serviu como emissário do Colonial Secretary na África do Sul; SEELEY
foi professor de História Moderna em Cambridge de 1869 a 1895.
18 LUCAS foi funcionário no British Colonial Oce de 1877 a 1911, tendo atingido o grau de Assis-
tant Under -Secretary; ele obteve depois um posto no All Soul’s College, em Oxford. HANOTAUX
(1853 -1944) seguiu duas carreiras: como político e homem de Estado desempenhou, na década de
1890, importante papel nas relações coloniais e exteriores da França; como historiador, foi eleito para a
Academia Francesa.
12
Metodologia e pré -história da África
Newton foi um dos diretores fundadores. Mas basta um exame superficial desse
trabalho para perceber que a história colonial, mesmo no que se refere à África,
é muito diferente da história da África.
Dos oito volumes dessa obra, quatro são consagrados ao Canadá, à Austrália,
à Nova Zelândia e à Índia Britânica. Restam então três volumes gerais,
nitidamente orientados para a política imperial (de 68 capítulos, somente quatro
referem -se diretamente às relações da Inglaterra com a África) e um volume
consagrado à África do Sul, o único lugar da África subsaariana no qual os
colonos europeus realmente se estabeleceram. A quase totalidade desse volume
(o maior dos oito) é dedicada aos intrincados negócios desses colonos europeus
desde sua chegada em 1652. Os povos africanos, que constituem a maioria da
população, são relegados a um capítulo introdutório (e essencialmente não-
-histórico) redigido por um antropólogo social, e a dois capítulos que, embora
escritos pelos dois historiadores sul -africanos mais lúcidos de sua gerão, C.
W. de Kiewiet e W. M. MacMillan, os consideram, por necessidade, sob a
perspectiva de sua reação à presença europeia. Em outros lugares, a história da
África aparecia muito timidamente em coleções mais ou menos monumentais,
como por exemplo, Peuples et Civilizations, História Geral, 20 volumes, Paris,
1927 -52; G. Glotz, editor, Histoire Gérale, organizada por G. Glotz, 10
volumes, Paris, 1925 -1938; Propyläen Weltgeschichte, 10 volumes, Berlim, 1929-
-1933; Historia Mundi, ein Handbuch der Weltgeschichte in 10 nden, Bern,
1952 ff; V semirnaja Istoriya (World History), 10 volumes, Moscou, 1955 ff.
O italiano C. Conti Rossini publicou em Roma, em 1928, uma importante
Storia d’ Etiopia.
Os historiadores coloniais profissionais estavam, assim como os
historiadores profissionais em geral, apegados à concepção de que os povos
africanos ao sul do Saara não possuíam uma história suscetível ou digna de
ser estudada. Como vimos, Newton considerava essa história como domínio
exclusivo dos arqueólogos, linguistas e antropólogos. Mas se é verdade que
os arqueólogos, assim como os historiadores, por força de sua profissão se
interessam pelo passado do homem e de suas sociedades, eles estavam quase
tão desinteressados quanto os historiadores em dedicar -se a descobrir e
elucidar a história da sociedade humana na África subsaariana. Concorriam
para isso duas razões principais. Em primeiro lugar, uma das correntes mais
importantes da Arqueologia, ciência então em desenvolvimento, professava
que, assim como a Hisria, ela deveria orientar -se essencialmente pelas
fontes escritas. Consagrava -se a problemas como encontrar o local exato da
antiga cidade de Troia ou detectar fatos ainda desconhecidos através de fontes
13
A evolução da historiograa da África
literárias relativas às antigas sociedades da Grécia, de Roma ou do Egito, cujos
principais monumentos haviam sido fontes de especulações durante culos.
A Arqueologia era e às vezes ainda é estreitamente ligada ao ramo da
História conhecido pelo nome de História Antiga. Em geral, ela se preocupava
mais em procurar e decifrar antigas inscrições do que em encontrar outras
relíquias. Só muito raramente por exemplo em Axum e Zimbabwe e em
torno desses sítios – admitia -se que a África subsaariana possuía monumentos
suficientemente importantes para atrair a ateão dessa escola de arqueologia.
Em segundo lugar, uma outra atividade essencial da pesquisa arqueológica se
concentrava nas origens do homem, tendo como consequência uma perspectiva
mais geogica do que histórica de seu passado. É verdade que, em função de
especialistas como L. S. B. Leakey e Raymond Dart, uma parte substancial
dessa pesquisa acabou finalmente por se concentrar na África oriental e do sul.
Mas esses homens buscavam um passado longínquo demais, no qual não se
podia afirmar que existissem sociedades; além disso, habitualmente havia um
abismo entre as conjeturas sobre os fósseis que esses pesquisadores descobriam
e as populações modernas cujo passado os historiadores desejavam estudar.
Enquanto a maioria dos arqulogos e dos historiadores considerava
a África subsaariana, a os anos 50, aproximadamente, não digna de sua
ateão, a imensa variedade de tipos sicos, de sociedades e de nguas desse
continente despertava o interesse dos antrologos e linguistas à medida
que suas disciplinas começavam a desenvolver -se. Foi possível a uns e outros
permanecerem durante muito tempo encerrados em seus gabinetes de trabalho.
Mas homens como Burton e S. W. Koelle (Polyglotte Africana, 1854) em boa
hora demonstraram o valor da pesquisa de campo, e os antropólogos, em
particular, tornaram -se os pioneiros desse trabalho na África. Mas, ao contrário
dos historiadores e dos arqueólogos, nem os antropólogos nem os linguistas
sentiam -se obrigados a descobrir o que ocorrera no passado. Na África, eles
encontraram uma abundância de fatos simplesmente à espera de descrão,
classificão e análise, o que representava uma imensa tarefa. Frequentemente
eles só se interessavam pelo passado na medida em que tentavam reconstruir
uma história que parecia -lhes estar na origem dos dados recolhidos e seria
capaz de explicá -los.
No entanto, nem sempre eles percebiam o quanto essas reconstruções eram
especulativas e hipotéticas. Um exemplo cssico é o do antropólogo C. G.
Seligman que, na obra Races of Africa, publicada em 1930, escrevia sem rodeios:
As civilizações da África são as civilizações dos camitas, e sua história, os anais
14
Metodologia e pré -história da África
desses povos e de sua interação com duas outras raças africanas, a negra e a
bosquímana…”
19
.
Inferimos dessa afirmação que essas duas outras raças africanas” são inferiores
e que todo o progresso que tenham conseguido seria resultante da influência
camítica” que sofreram de forma mais ou menos intensa. Em outro trecho
dessa mesma obra, ele fala da chegada, “vaga após vaga”, de pastores “camitas”
que estavam melhor armados e eram ao mesmo tempo mais inteligentes” que
os cultivadores negros atrasados” sobre os quais exerciam influência
20
. Mas, na
realidade, não nenhuma prova histórica que sustente as afirmações de que
as civilizações da África são as civilizações dos camitas”, ou que os progressos
históricos verificados na África subsaariana se devam apenas ou principalmente
a eles. O próprio livro não apresenta nenhuma evidência histórica, e muitas
das hipóteses sobre as quais ele se apóia sabe -se agora não terem nenhum
fundamento. J. H. Greenberg, por exemplo, demonstrou de uma vez por todas
que os termos “camita e camítico” não têm nenhum sentido, a não ser, e na
melhor das hipóteses, como categorias da classificação linguística
21
.
É certo que o existe, necessariamente, uma correlação entre a ngua falada por
uma população e sua origem racial ou sua cultura. Assim, Greenberg pode citar, entre
outros, este maravilhoso exemplo: os cultivadores haussa, que falam uma ngua
camítica’, eso sob a dominação dos pastores fulani que falam (…) uma ngua
ger -congolesa (isto é, uma língua negra)
22
. Ele refuta igualmente a base catica
que sustentava grande parte da reconstrução feita por Seligman da história cultural
dos negros em outras partes da África, sobretudo das populões dengua bantu.
Escolhemos particularmente Seligman porque ele se situava entre as
personalidades mais destacadas de sua profissão na Grã -Bretanha (foi um dos
primeiros a empreender sérias pesquisas de campo na África) e porque seu livro
tornou -se, de certa forma, um modelo, várias vezes reeditado. Ainda em 1966
ele era divulgado como “um clássico em seu gênero”. Mas essa adoção do mito
da superioridade dos povos de pele clara sobre os de pele escura era somente
uma parte dos preconceitos correntes na Europa no fim do século XIX e no
início do século XX. Os europeus acreditavam que sua pretensa superioridade
19 0p. cit., ed. de 1930, p. 96; ed. de 1966, p. 61.
20 0p. cit., ed. de 1930, p. 158; ed. de 1966, p. 101.
21 GREENBERG, J. H., 1953 e 1963. De fato, GREENBERG, como a maioria dos linguistas modernos,
evita empregar o termo “camítico”; eles classicam as línguas outrora denominadas camíticas, ao lado
das línguas semíticas e outras, num grupo mais amplo, o afro -asiático ou eritreu, e não reconhecem o
subgrupo “camítico de modo especíco.
22 GREENBERG, J. H., 1963, p. 30.
15
A evolução da historiograa da África
sobre os negros africanos estava confirmada por sua conquista colonial. Em
consequência disso, em muitas partes da África, especialmente no cinturão
sudanês e na região dos grandes lagos, eles estavam convictos de que apenas
davam continuidade a um processo de civilização que outros invasores de pele
clara, chamados genericamente de camitas, haviam começado antes deles.
23
O
mesmo tema reaparece ao longo de muitas outras obras do período que vai
de 1890 a 1940, aproximadamente, e que contêm uma quantidade bem maior
de elementos sérios de história do que os encontrados no pequeno manual de
Seligman. Em sua maioria, essas obras foram escritas por homens e mulheres
que tinham participado pessoalmente da conquista ou da colonização e que
não eram nem antropólogos, nem linguistas, nem historiadores profissionais.
Tratava -se sim de amadores no melhor sentido da palavra, que se interessavam
sinceramente pelas sociedades exóticas que haviam descoberto, e que desejavam
obter mais informações a seu respeito e partilhar seus conhecimentos com
outras pessoas. Sir Harry Johnston e Maurice Delafosse, por exemplo, trouxeram
contribuições notáveis para a linguística africana (assim como para outros ramos
do conhecimento). Mas o primeiro denominou seu grande estudo geral de A
History of the Colonization of Africa by Alien Races (1899, obra revista e ampliada
em 1913), e, nas seções históricas do magistral estudo de Delafosse sobre o Sudão
ocidental, Haut ‑Sénégal ‑Niger (1912), o tema geral aparece quando ele invoca
uma migração judaico -síria para fundar a antiga Gana. Flora Shaw (A Tropical
Dependency, 1906) era fascinada pela contribuição dos muçulmanos à história
da África. Margery Perham, amiga e biógrafa de Lord Lugard, refere -se com
propriedade ao movimento majestoso da história desde as primeiras conquistas
árabes da África às de Goldie e de Lugard”
24
. Um excelente historiador amador,
Yves Urvoy (Histoire des Populations du Soudan Central, 1936 e Histoire du Bornou,
1949), equivoca -se completamente a respeito do significado das interações entre
os nômades do Saara e os negros sedentários que ele descreve com precisão;
ao mesmo tempo, Sir Richmond Palmer (Sudanese Memoirs, 1928 e The Bornu
Sahara and Sudan, 1936), arqueólogo inspirado, procura sempre as origens da
ação dos povos nigerianos em lugares tão distantes quanto Trípoli ou o Iêmen.
23 É interessante notar que a edição atualmente revisada, a quarta, de Races of Africa (1966) contém na
página 61 uma frase importante que não se encontra na edição original de 1930. Os camitas são
denidos como “europeus, ou seja, pertencentes à mesma grande raça da humanidade a que pertencem
os homens brancos”!
24 PERHAM, Margery. Lugard, the Years of Authority. 1960, p. 234.
16
Metodologia e pré -história da África
No entanto, após Seligman, os antropólogos sociais britânicos conseguiram
de certa forma escapar à influência do mito camítico. Sua formação, a partir desse
momento, foi dominada pela influência de B. Malinowski e A. R. Radcliffe-
-Brown, que se opunham decididamente a qualquer espécie de história fundada
em conjeturas. De fato, o todo estritamente funcionalista adotado pelos
antropólogos britânicos entre 1930 e 1950 para o estudo das sociedades africanas
tendia a desencorajar qualquer interesse histórico, mesmo quando, graças a
seu trabalho de campo, eles se encontravam numa situação excepcionalmente
favorável para obter dados históricos. Porém, no continente europeu (e também
na América do Norte, ainda que poucos antropólogos americanos tenham
trabalhado na África antes dos anos 50) subsistia uma tradição mais antiga de
etnografia que, entre outras características, dava tanto peso à cultura material
quanto à estrutura social.
Isso gerou uma grande quantidade de trabalhos de importância histórica,
como por exemplo The King of Ganda, de Tor Irstam (1944), ou The trade of
Guinea, de Lar Sundstrom (1965). Entretanto, duas obras merecem destaque
especial; Völkerkunde von Afrika, de Hermann Baumann (1940) e Geschichte
Afrikas de Diedrich Westermann (1952). A primeira era um estudo enciclopédico
dos povos e civilizações da África que valorizava bastante as partes conhecidas
de sua história e até hoje não foi superado como manual de um volume. O
livro mais recente, Africa: its Peoples and their Culture History (1959), escrito
pelo antropólogo americano G. P. Murdock, fica prejudicado na comparação
por faltar ao seu autor experiência direta da África, o que lhe teria permitido
avaliar corretamente os materiais de que dispunha, e por ele ter fornecido alguns
esquemas hipotéticos tão excêntricos em seu gênero quanto os de Seligman,
embora menos perniciosos
25
. Quanto a Westermann, ele era sobretudo um
linguista. Sua obra sobre a classificão das línguas da África é, em muitos
aspectos, a precursora da de Greenberg; além disso, ele contribuiu com uma
seção linguística para o livro de Baumann. Mas sua Geschichte, infelizmente
deformada pela teoria camítica, é também uma compilação muito valiosa das
tradições orais africanas tais como se apresentavam em sua época.
A estes trabalhos pode -se talvez acrescentar o de H. A. Wieschoff, The
Zimbabwe ‑Monomotapa Culture (1943), ainda que seja para apresentar seu
mestre, Leo Frobenius. Frobenius era etnólogo e antropólogo cultural, mas
era também um arqueólogo disfarçado de historiador. Durante seu período
25 Ver meu resumo sobre o assunto no artigo “Anthropology, botany and history”. In: J. A. H., n. 2, 1961,
299 -309.
17
A evolução da historiograa da África
de atividade, que corresponde aproximadamente às quatro primeiras décadas
do século XX, ele foi quase com certeza o mais produtivo dos historiadores
da África. Ele empreendeu inúmeros trabalhos de campo em quase todas as
partes do continente africano e apresentou seus resultados numa série regular de
publicações (pouco lidas atualmente). Escrevia em alemão, língua que se tornou
pouco importante para a África e os africanistas. Somente uma pequena parte de
suas obras foi traduzida, e seu sentido é geralmente difícil de recuperar, porque
elas estão repletas de teorias míticas relativas à Atlântida, à influência etrusca
sobre a cultura africana, etc.
Aos olhos dos historiadores, arqueólogos e antropólogos atuais, de formação
bastante rigorosa, Frobenius parece um autodidata original cujos trabalhos
são desvalorizados não apenas por suas interpretações um tanto ousadas, mas
também por seu método de trabalho pido, sumário e às vezes destrutivo.
Contudo, ele chegou a alguns resultados que anteciparam claramente os obtidos
por pesquisadores que trabalharam com maior rigor científico e que surgiram
depois dele, e a outros difíceis ou mesmo impossíveis de obter nas condições
atuais. Parece que ele possuía um talento instintivo para ganhar a confiança dos
informantes e descobrir dados históricos. Os historiadores modernos deveriam
procurar esses dados nas obras de Frobenius e reaval-los em função dos
conhecimentos atuais, liberando -os das interpretações fantasiosas acrescentadas
por ele
26
.
As singularidades de um gênio autodidata como Frobenius, que buscava
inspiração em si mesmo, contribuíram para reforçar a opinião dos historiadores
profissionais de que a história da África não constituía um campo aceitável para
sua profissão e desviar assim a atenção de muitos trabalhos sérios realizados
durante o período colonial. O crescimento do interesse dos europeus pela África
havia proporcionado aos africanos grande variedade de culturas escritas, que
lhes permitia exprimir seu interesse por sua própria história. Foi esse o caso
principalmente da África ocidental, onde o contato com os europeus havia sido
mais longo e mais constante, e onde sobretudo nas regiões que se tornaram
colônias britânicas uma demanda pela instrução europeia existia desde o
26 É impossível num artigo desta dimensão fazer justiça à grandeza da produção de FROBENIUS. Sua
última obra de síntese foi Kulturgeschichte Afrikas (Viena, 1933) e sua obra mais notável foi, provavelmente,
a coleção em 12 volumes Atlantis: Volksmärchen und Wolksdichtungen Afrikas (Iena, 1921 -1928). Mas cabe
também mencionar os livros que relatam cada uma de suas expedições, por exemplo, para os Ioruba e
Mosso: Und Afrika Sprach (Berlim -Charlottenburg, 1912 -1913). Ver a bibliograa completa em Freda
KRETSCHMAR, Leo Frobenius (1968). Certos artigos recentes em inglês (por exemplo Dr. K. M. ITA.
“Frobenius in West African History”. J. A. H. XIII, 4 (1972) e obras citadas neste artigo sugerem um
renascimento do interesse pela obra de FROBENIUS.
18
Metodologia e pré -história da África
início do século XIX. Assim como os eruditos islamizados de Tombuctu se
puseram rapidamente a escrever seus ta’rikh em árabe ou na língua ajami, no fim
do século XIX também os africanos que haviam aprendido a ler o alfabeto latino
sentiram necessidade de deixar por escrito o que eles conheciam da história de
seus povos, para evitar que estes fossem completamente tragados pelos europeus
e sua história.
Entre os primeiros clássicos desse gênero, escritos por africanos que como os
autores dos ta’rikh antes deles haviam exercido uma atividade na religião da
cultura importada e dela haviam extraído seus nomes, pode -se citar A History
of the Gold Coast and Asante de Carl Christian Reindorf (1895) e History of the
Yorubas de Samuel Johnson (terminada em 1897 mas publicada somente em
1921). Trata -se de duas obras de história bastante sérias; até hoje ninguém pode
empreender um trabalho sobre a história dos Ioruba sem consultar Johnson. Mas
talvez fosse inevitável que a ensaios históricos desta ordem se incorporassem
as obras dos primeiros protonacionalistas, desde J. A. B. Horton (1835 -1883) e
E. W. Blyden (1832 -1912) a J. M. Sarbah (1864 -1910), J. E. Casely -Hayford
(1866 -1930) e J. B. Danquah (1895 -1965), que abordaram muitas questões
históricas mas, na maioria das vezes, com o propósito de fazer propaganda.
É provável que J. W. de Graft -Johnson (Towards Nationhood in West Africa,
1928; Historical Geography of the Gold Coast, 1929) e E. J. P. Brown (A Gold
Coast and Asiante Reader, 1929) pertençam às duas categorias. Depois deles,
porém, pode -se observar em certos ensaios uma tendência a glorificar o passado
africano no intuito de combater o mito da superioridade cultural europeia, como
por exemplo em J. O. Lucas, The Religion of Yoruba (1949) e J. W. de Graft-
-Johnson, African Glory (1954). Alguns autores europeus demonstraram uma
tendência análoga. É o caso, por exemplo, de Eva L. R. Meyerowitz, que, em seus
livros sobre os Akan, tenta outorgar -lhes gloriosos ancestrais mediterrânicos,
comparáveis aos que Lucas buscava para os Ioruba
27
.
Por outro lado, numa escala mais reduzida, muitos africanos continuaram a
registrar as tradições históricas locais de modo sério e confiável. Os contatos
com os missionários cristãos parecem ter desempenhado um papel significativo.
Assim, floresceu em Uganda uma escola importante de historiadores locais
desde a época de A. Kagwa (cuja primeira obra foi publicada em 1906); ao
mesmo tempo, R. C. C. Law anotou, para a região ioruba, 22 historiadores que
27 e Sacred State of the Akan (1951); e Akan Traditions of Origin (1952); e Akan of Ghana; their Ancient
Beliefs (1958).
19
A evolução da historiograa da África
haviam publicado trabalhos antes de 1940
28
, em geral (como aliás os autores
ugandenses) em línguas nativas. Dentre as das obras desse tipo, uma tornou -se
merecidamente célebre: A Short History of Benin de J. U. Egharevba, reeditada
diversas vezes desde sua primeira publicação em 1934.
Por outro lado, certos colonizadores, espíritos inteligentes e curiosos, tentavam
descobrir e registrar a história daqueles a quem tinham vindo governar. Para
eles, a história africana geralmente apresentava um valor prático. Os europeus
podiam ser melhores administradores se possuíssem algum conhecimento
sobre o passado dos povos que eles haviam colonizado. Além do mais, seria útil
ensinar um pouco de história da África nas escolas, cada vez mais numerosas,
fundadas por eles e seus compatriotas missionários, ainda que fosse apenas para
servir como introdução ao ensino, mais importante, da história da Inglaterra
ou da França. Isso possibilitaria aos africanos obter os school certificates e os
baccalauréats e ser recrutados depois como preciosos auxiliares pseudo -europeus.
Flora Shaw, Harry Johnson, Maurice Delafosse, Yves Urvoy e Richmond
Palmer já foram mencionados anteriormente. Mas também outros que
escreveram sobre a África obras históricas relativamente isentas de preconceitos
culturais, ainda que às vezes tenham escolhido (eles ou seus editores) títulos
bizarros. Entre esses autores podemos citar: Ruth Fisher, Twilight Tales of the
Black Baganda (1912); C. H. Stigand, The Land of Zing (1913); Sir Francis
Fuller, A Vanished Dynasty: Ashanti (1921), exatamente na tradição de Bowdich
e Dupuis; E. W. Bouill, Caravans of the Old Sahara (1933); numerosas obras
eruditas de Charles Monteil (por exemplo, Les Empires du Mali, 1929) ou
de Louis Tauxier (por exemplo, Histoire des Bambara, 1942). Parece que os
franceses foram mais bem sucedidos que os ingleses na elaboração de uma
história realmente africana. Alguns dos mais sólidos trabalhos britânicos por
exemplo, History of the Gold Coast and Ashanti (1915) de W. W. Claridge ou
History of the Gambia (1940) de Sir John Gray (exceção feita a alguns de seus
artigos mais recentes sobre a África oriental) possuíam uma forte tendência
eurocêntrica. É conveniente notar também que, quando de seu retorno à França,
alguns administradores franceses (como Delafosse, Georges Hardy, Henry
Labouret
29
) elaboraram breves histórias gerais a respeito de todo o continente
ou do conjunto da África subsaariana.
28 LAW, R. C. C. Early Historical Writing Among the Yoruba (to c. 1940).
29 DELAFOSSE, Maurice. Les Noirs de l’Afrique (Paris, 1921); HARDY, Georges. Vue Général de l’Histoire
d’Afrique (Paris, 1937); LABOURET, Henry. Histoire des Noirs d’Afrique (Paris, 1946).
20
Metodologia e pré -história da África
Isso se explica, em parte, pelo fato de que a administração colonial francesa
tendia a desenvolver estruturas mais rígidas para a formação e a pesquisa
do que a administração britânica. Pode -se citar a instituição (em 1917) do
Comité d’Etudes Historique et Scientifique de l’AOF* e de seu Bulletin, que
levaram à criação do Institut Français dAfrique Noire, sediado em Dacar
(1938), ao seu Bulletin e à série Mémoires que editou; a partir daí, surgiram
obras como o magistral Tableau Géographique de l’Ouest Africain au Moyen Age
(1961) de Raymond Mauny. Apesar disso, os historiadores do período colonial
permaneceram amadores, marginalizados da principal corrente historiográfica.
Isto ocorreu tanto na França quanto na Grã -Bretanha, pois, embora homens
como Delafosse e Labouret tivessem obtido cargos universitários quando
retornaram à França, fizeram -no como professores de línguas africanas ou de
administração colonial, e não como historiadores clássicos.
A partir de 1947, a Société Africaine de Culture e sua revista Présence Africaine
empenharam -se na promoção de uma história da África descolonizada. Ao
mesmo tempo, uma geração de intelectuais africanos que havia dominado as
cnicas europeias de investigão histórica começou a definir seu próprio
enfoque em relação ao passado africano e a buscar nele as fontes de uma
identidade cultural negada pelo colonialismo. Esses intelectuais refinaram e
ampliaram as técnicas da metodologia histórica desembaraçando -a, ao mesmo
tempo, de uma série de mitos e preconceitos subjetivos. A esse propósito
devemos mencionar o simpósio organizado pela UNESCO no Cairo em 1974,
que permitiu a pesquisadores africanos e não -africanos confrontar livremente
seus pontos de vista sobre o problema do povoamento do antigo Egito.
Em 1948, aparecia a obra History of the Gold Coast de W. E. F. Ward. No
mesmo ano, a Universidade de Londres criava o cargo de lecturer em História da
África na School of Oriental and African Studies, confiado ao Dr. Roland Oliver.
É a partir dessa mesma data que a Grã -Bretanha empreende um programa
de desenvolvimento das universidades nos territórios que dela dependiam:
fundação de estabelecimentos universitários na Costa do Ouro e na Nigéria;
elevação do Gordon College de Cartum e do Makerere College de Kampala
à categoria de universidades. Nas colônias francesas e belgas, desenrolava -se
um processo semelhante. Em 1950 era criada a Escola Superior de Letras de
Dacar que, sete anos mais tarde, adquiriria o estatuto de universidade francesa.
Lovanium, a primeira universidade do Congo (mais tarde Zaire), começou a
funcionar em 1954.
* AOF Afrique Occidentale Française (N. do T.).
21
A evolução da historiograa da África
Do ponto de vista da historiografia africana, a multiplicão das novas
universidades a partir de 1948 foi seguramente mais significativa que a
existência dos raros estabelecimentos criados antes, mas que vegetavam por
falta de recursos, tais como o Liberia College de Monróvia e do Fourah Bay
College de Serra Leoa, fundados respectivamente em 1864 e 1876.
Por outro lado, as nove universidades que existiam na África do Sul em 1940
eram prejudicadas pela política segregacionista do regime de Pretória: tanto a
pesquisa histórica quanto o ensino eram eurocentristas, e a história da África
não passava da história dos imigrantes brancos.
Todas as novas universidades, ao contrário, organizaram logo departamentos
de história, o que, pela primeira vez, levou um número considerável de
historiadores profissionais a trabalhar na África. Era inevitável, no início, que a
maioria desses historiadores fosse proveniente de universidades não -africanas.
Mas a africanização sobreveio rapidamente. O primeiro diretor africano de um
departamento de história, o professor K. O. Dike, foi nomeado em 1956, em
Ibadã. Formaram -se muitos estudantes africanos. Os professores africanos que
se tornaram historiadores profissionais sentiram necessidade de ampliar a parte
reservada à história da África em seus programas e, quando essa história fosse
pouco conhecida, de incluí -la em suas pesquisas.
A partir de 1948, a historiografia da África vai progressivamente se
assemelhando à de qualquer outra parte do mundo. E evidente que ela possui
problemas espeficos, como a escassez relativa de fontes escritas para os
períodos antigos e a consequente necessidade de lançar mão de outras fontes
como a tradição oral, a linguística ou a arqueologia. Mas, embora a historiografia
africana tenha trazido importantes contribuições no que diz respeito ao uso
e à interpretação dessas fontes, ela o se distingue fundamentalmente da
historiografia de certos países da América Latina, da Ásia e da Europa que
enfrentam problemas análogos. Aliás, o conhecimento da proveniência dos
materiais não é essencial para o historiador, cuja tarefa fundamental consiste em
fazer deles uma utilização crítica e comparativa, de modo a criar uma descrição
inteligente e significativa do passado. O importante é que, nos últimos 25 anos,
equipes de universitários africanos vêm se dedicando ao ofício de historiador. O
estudo da história africana constitui hoje uma atividade bem estabelecida, a cargo
de especialistas de alto nível. Seu desenvolvimento ulterior será assegurado pelos
intercâmbios interafricanos e pelas relações entre as universidades da África e
as de outras partes do mundo. Mas é preciso ressaltar que esta evolução positiva
teria sido impossível sem o processo de libertação da África do jugo colonial: o
levante armado de Madagáscar em 1947, a independência do Marrocos em 1955,
22
Metodologia e pré -história da África
a heroica luta do povo argelino e as guerras de libertação em todas as colônias
da África contribuíram enormemente para esse processo já que criaram, para os
povos africanos, a possibilidade de retomar o contato com sua própria história e
de controlar a sua organização. Compreendendo desde logo esta necessidade, a
UNESCO promoveu ou facilitou a realização de encontros entre especialistas.
Acertadamente, colocou como pré -requisito a coleta sistemática de tradições
orais. Respondendo aos desejos dos intelectuais e dos Estados Africanos essa
entidade lançou, a partir de 1966, a ideia da elaboração de uma História Geral
da África. A execução desse importante projeto foi iniciada sob os seus auspícios,
em 1969.
C A P Í T U L O 2
23
Lugar da história na sociedade africana
O homem é um animal histórico. O homem africano não escapa a esta
definição. Como em toda parte, ele faz sua história e tem uma concepção dessa
história. No plano dos fatos, as obras e as provas de sua capacidade criativa
estão sob nossos olhos, em forma de práticas agrárias, receitas de cozinha,
medicamentos da farmacopeia, direitos consuetudinários, organizações políticas,
produções artísticas, celebrações religiosas e refinados códigos de etiqueta. Desde
o aparecimento dos primeiros homens, os africanos criaram ao longo de milênios
uma sociedade autônoma que unicamente pela sua vitalidade é testemunha do
gênio histórico de seus autores. Essa história engendrada na prática foi, enquanto
projeto humano, concebida a priori. Ela é também refletida e interiorizada a
posteriori pelos indivíduos e pelas coletividades. Torna -se, portanto, um padrão
de pensamento e de vida: um “modelo”.
Mas sendo a consciência histórica um reflexo de cada sociedade, e mesmo de
cada fase significativa na evolução de cada sociedade, compreender -se que a
concepção que os africanos possuem de sua própria história e da história em geral
seja marcada por seu singular desenvolvimento. O simples fato do isolamento
das sociedades é suficiente para condicionar estreitamente a visão histórica.
Assim, o rei dos Mossi (Alto Volta) intitulava -se Mogho -Naba, ou seja, rei do
mundo, o que ilustra bem a influência das limitações técnicas e materiais sobre
a visão que se tem das realidades socio políticas. Desse modo, pode -se constatar
Lugar da história na sociedade africana
Boubou Hama e J. Ki ‑Zerbo
24
Metodologia e pré -história da África
que o tempo africano é, às vezes, um tempo mítico e social, mas também que os
africanos têm consciência de serem os agentes de sua própria história. Enfim,
veremos que este tempo africano é um tempo realmente histórico.
Tempo mítico e tempo social
Num primeiro contato com a África, e mesmo a partir da leitura de numerosas
obras etnológicas, tem -se a impressão de que os africanos estavam imersos e,
como que afogados no tempo mítico, vasto oceano sem margens nem marcos,
enquanto os outros povos percorriam a avenida da história, imenso eixo balizado
pelas etapas do progresso. De fato, o mito, representação fantástica do passado,
em geral domina o pensamento dos africanos na sua concepção do desenrolar
da vida dos povos. Isso a tal ponto que, às vezes, a escolha e o sentido dos
acontecimentos reais deviam obedecer a um modelo mítico que predeterminava
até os gestos mais prosaicos do soberano ou do povo. Sob forma de “costumes”
vindos de tempos imemoriais, o mito governava a História, encarregando -se,
por outro lado, de justificá -la. Num tal contexto, aparecem duas características
surpreendentes do pensamento histórico: sua intemporalidade e sua dimensão
essencialmente social.
Nesta situação o tempo não é a duração capaz de dar ritmo a um destino
individual; é o ritmo respiratório da coletividade. Não se trata de um rio que
corre num sentido único a partir de uma fonte conhecida até uma foz conhecida.
Nos países tecnicamente desenvolvidos, os próprios cristãos estabelecem uma
nítida demarcação entre o fim dos tempos” e a eternidade. Isto talvez porque
o Evangelho opõe nitidamente este mundo transitório ao mundo futuro, mas
também porque, por esta visão distorcida e por outras razões, o tempo humano
é praticamente laicizado. Ora, em geral o tempo africano tradicional engloba e
integra a eternidade em todos os sentidos. As gerações passadas não estão perdidas
para o tempo presente. À sua maneira, elas permanecem sempre contemporâneas
e tão influentes, se não mais, quanto o eram durante a época em que viviam.
Assim sendo, a causalidade atua em todas as direções: o passado sobre o presente
e o presente sobre o futuro, não apenas pela interpretação dos fatos e o peso dos
acontecimentos passados, mas por uma irrupção direta que pode se exercer em
todos os sentidos. Quando o imperador do Mali, Kankou Moussa (1312 -1332),
enviou um embaixador ao rei do Yatenga para pedir -lhe que se convertesse ao
islamismo, o chefe Mossi respondeu que antes de tomar qualquer decisão ele
precisava consultar seus ancestrais. Percebe -se aqui como o passado, através do
25
Lugar da história na sociedade africana
culto, está diretamente ligado ao presente, constituindo -se os ancestrais agentes
diretos e privilegiados dos negócios que ocorrem séculos depois deles. Da mesma
forma, na corte de numerosos reis, funcionários intérpretes de sonhos exerciam
um peso considerável sobre a ação política projetada. Esses exegetas do sonho
eram, em suma, ministros do futuro. Cita -se o caso do rei ruandês Mazimpaka
Yuhi III (fim do século XVII) que viu em sonho homens de tez clara vindos do
leste. Armou -se então de arcos e flechas mas, antes de lançar as flechas contra
eles, guarneceu -as com bananas maduras. A interpretação desta atitude ambígua,
ao mesmo tempo agressiva e acolhedora, introduziu uma imagem privilegiada
na consciência coletiva dos ruandeses e talvez contribua para explicar a atitude
pouco combativa desse povo, tradicionalmente aguerrido, face às colunas alemãs
do século XIX, semelhantes aos pálidos rostos avistados durante o sonho real
dois séculos antes. Nesse tempo suspenso”, a ação do presente é possível mesmo
sobre o que é considerado passado mas que permanece, de fato, contemporâneo.
O sangue dos sacrifícios de hoje reconforta os ancestrais de ontem. E até agora,
os africanos ainda exortam seus próximos a não negligenciarem as oferendas
em nome dos parentes falecidos, pois os que nada recebem constituem a classe
pobre desse mundo paralelo dos mortos e são obrigados a viver do auxílio dos
privilegiados, que são objeto de generosos “sacrifícios” feitos em seu nome.
De uma forma ainda mais profunda, certas cosmogonias atribuem a um
tempo mítico os progressos obtidos num tempo histórico, que não sendo
recebido como tal por cada indivíduo, é substituído pela memória histórica do
grupo. E o caso da lenda Gikuyu que explica o advento da técnica de fundição
do ferro. Mogai (Deus) havia distribuído os animais entre os homens e as
mulheres. Mas estas foram tão cruéis com seus animais que eles escaparam e
tornaram -se selvagens. Os homens então intercederam junto a Mogai em favor
de suas mulheres, dizendo: “Em tua honra, nós queremos sacrificar um carneiro;
mas não pretendemos fazê -lo com uma faca de madeira, para não incorrer nos
mesmos riscos que nossas mulheres”. Mogai felicitou -os por sua sabedoria e,
para dotá -los de armas mais eficazes, ensinou -lhes a receita da fundição do ferro.
Essa concepção mítica e coletiva era tal que o tempo tornava -se um atributo
da soberania dos líderes. O rei Shilluk era o depositário mortal de um poder
imortal, que totalizava em si próprio o tempo mítico (encarnando o herói
fundador) e o tempo social considerado como fonte da vitalidade do grupo.
Do mesmo modo, entre os Bafulero (Zaire oriental), os Bunyoro (Uganda) e os
Mossi (Alto Volta), o chefe é o sustentáculo do tempo coletivo: “O Mwami está
presente: o povo vive. O Mwami está ausente: o povo morre”. A morte do rei
constitui uma ruptura do tempo que paralisa as atividades, a ordem social, toda
26
Metodologia e pré -história da África
expressão de vida, desde o riso até a agricultura e a união sexual dos animais e das
pessoas. O interregno constitui um parênteses no tempo. Apenas o advento de
um novo rei recria o tempo social que se reanima novamente. Tudo é onipresente
nesse tempo intemporal do pensamento animista, no qual a parte representa e
pode significar o todo; como os cabelos e unhas que se impede de caírem nas
mãos dos inimigos por medo de que estes tenham poder sobre a pessoa.
De fato, é preciso atingir uma concepção geral do mundo para entender a
visão e o significado profundo do tempo entre os africanos. Veremos então que
no pensamento tradicional, o tempo perceptível pelos sentidos não passa de um
aspecto de um outro tempo vivido por outras dimensões da pessoa. Quando vem
a noite e o homem se estende sobre sua esteira ou sua cama para dormir, é o
momento que seu duplo escolhe para partir, para percorrer o caminho seguido
pelo homem durante o dia, frequentar os lugares que ele frequentou e refazer
os gestos e os trabalhos que ele realizou conscientemente durante a vida diurna.
É no curso dessas peregrinações que o duplo se choca com as forças do Bem
e do Mal, com os bons gênios e com os feiticeiros devoradores de duplos ou
cerko (em língua songhai e zarma). É no duplo que reside a personalidade de
cada um. O songhai diz que o bya (duplo) de um homem é pesado ou leve,
querendo significar que sua personalidade é forte ou frágil: os amuletos têm
como finalidade proteger e reforçar o duplo. E o ideal é chegar a confundir -se
com o próprio duplo, a fundir -se nele até formar uma só entidade, que ascende
assim a um grau de sabedoria e de força sobre -humano. Somente o grande
iniciado, o mestre (kortékonynü, zimaa) atinge esse estado em que o tempo e
o espaço não constituem mais obstáculos. Era esse o caso de SI, o ancestral
epônimo da dinastia:Assustador é o pai dos SI, o pai dos trovões. Quando ele
está com uma cárie, é então que mastiga cascalhos; quando está com conjuntivite,
é nesse momento que, resplandecente, acende o fogo. Com seus grandes passos,
ele percorre a terra. Ele está em toda parte e em parte alguma”.
O tempo social, a história, vivida assim pelo grupo, acumula um poder que
é a maior parte do tempo simbolizado e concretizado num objeto transmitido
pelo patriarca, chefe do clã ou rei ao seu sucessor. Pode tratar -se de uma bola de
ouro conservada num tobal (tambor de guerra) associado a elementos extraídos
do corpo do leão, do elefante ou da pantera. Esse objeto pode estar fechado
numa caixa ou numa arca, como as insígnias reais (tibo) do rei mossi… Entre
os Songhai -Zarma, é uma haste de ferro afiada numa das extremidades. entre
os Sorko do antigo Império de Gao, é um ídolo em forma de um grande peixe
provido de uma argola na boca. Entre os ferreiros, é uma forja mítica que às vezes,
durante a noite, torna -se rubra para expressar sua cólera. A transferência desses
27
Lugar da história na sociedade africana
 . Estatueta em bronze representando o poder dinástico dos Songhai (Tera Níger), Col. A. Salifou.
28
Metodologia e pré -história da África
objetos é que constituía a devolução jurídica do poder. O caso mais interessante
é o dos Sonianke, descendentes de Sonni Ali, que possuem correntes de ouro,
prata ou cobre, cada elo das quais representando um ancestral, e o conjunto
simbolizando a descendência dinástica até Sonni, o Grande. No decorrer de
cerimônias mágicas, estas correntes magníficas são regurgitadas diante de um
público embasbacado. No momento de morrer, o patriarca sonianke regurgita
a corrente pela última vez, fazendo com que o escolhido para seu sucessor
engula -a pela outra extremidade. Ele morre logo após ter passado sua corrente
àquele que deve substituí -lo. Esse testamento vivo ilustra com eloquência a força
da concepção africana do tempo mítico e do tempo social. Poder -se -ia pensar
que uma tal visão do processo histórico seria estática e estéril, na medida em que,
ao colocar a perfeição do arquétipo no passado, na origem dos tempos, parece
indicar como ideal para o conjunto das gerações a repetição estereotipada dos
gestos e da gesta do ancestral. O mito não seria, assim, o motor de uma história
imóvel? Ficará claro mais adiante que não podemos nos ater unicamente a esse
enfoque do pensamento histórico entre os africanos.
Por outro lado, o enfoque mítico é preciso reconhecê -lo está na origem da
história de todos os povos. Toda história é originalmente uma história sagrada.
Do mesmo modo, esse enfoque acompanha o desenvolvimento histórico,
reaparecendo de tempos em tempos sob formas maravilhosas ou monstruosas.
Entre elas está o mito nacionalista, que faz com que um determinado chefe de
Estado contemporâneo se dirija ao seu país como a uma pessoa viva, e o mito
da raça, sob o regime nazista, concretizado por rituais cujas origens remontam
a um passado longínquo, que condenou milhões de pessoas ao holocausto.
Os africanos têm consciência de ser
os agentes de sua história?
Certamente, durante alguns séculos o homem africano teve razões de sobra
para não desenvolver uma consciência responvel. Excessivas imposições
exteriores e alienantes domesticaram -no a tal ponto que mesmo quando ele
vivia longe da costa onde se dava o aprisionamento de escravos e da área de
influência do comandante branco, ele guardava num canto qualquer de sua alma
a marca aniquiladora da escravidão.
Do mesmo modo, no período pré -colonial, numerosas sociedades africanas
elementares, quase fechadas, dão a impressão de que seus membros tinham
consciência de estar fazendo história numa escala e numa medida bastante
29
Lugar da história na sociedade africana
limitadas, em geral na dimensão da grande família e no quadro de uma hierarquia
consuetudinária gerontocrática, rigorosa e pesada. Entretanto, mesmo (e quem
sabe sobretudo) nesse nível, o sentimento da auto -regulação da comunidade,
da autonomia, era vivo e poderoso. O camponês lobi e kabye na sua aldeia,
quando “senhor da casa
1
, acreditava ter amplo controle de seu próprio destino.
A melhor prova disso é que nessas regiões de “anarquia política, onde o poder
era a coisa mais bem distribuída do mundo, é que os invasores e em particular
os colonizadores tiveram maior dificuldade em se impor. O apego à liberdade
atestava aqui o gosto pela iniciativa e o repúdio pela alienação.
Em compensão, nas sociedades fortemente estruturadas a conceão
africana de chefe a este último um espaço exorbitante na história dos povos
dos quais ele literalmente encarna o projeto coletivo. Assim, não é de admirar que
a tradição relembre toda a história original dos Malinke no Elogio a Sundiata. O
mesmo acontece com Sonni Ali entre os Songhai da curva do Níger. Isto não
significa, em absoluto, um condicionamento “ideológico” que destrói o espírito
crítico, ainda que, nas sociedades em que o único canal de informações é a
via oral, as autoridades que controlam uma sólida rede de griots praticamente
monopolizem a difusão da “verdade” oficial. Mas os griots não constituíam um
corpo monolítico e “nacionalizado”.
Por outro lado, a história mais recente da África pré -colonial demonstra
que a posição dedicada aos deres africanos nas representações mentais das
pessoas provavelmente não é superestimada. É o caso, por exemplo, de Chaka,
que realmente forjou a “nação” Zulu na tormenta dos combates. O que os
testemunhos escritos e orais permitem perceber da atuação de Chaka deve
ter -se reproduzido várias vezes durante o desenvolvimento histórico africano.
Diz -se que a constituição dos clãs mande remonta a Sundiata; e a ação de Osei
Tutu ou a de Anokye na formação da nação” Ashanti parece corresponder à
ideia de nação que os Ashanti têm até hoje. Tanto mais que a ideia de um líder
que atua como motor da história quase nunca se reduz a um esquema simplista,
creditando a um homem todo o desenvolvimento humano. Geralmente trata-
-se de um grupo dinâmico, celebrado como tal. Os companheiros dos chefes
não são esquecidos, mesmo os de condição inferior (griots, porta -vozes, servos).
Eles frequentemente entram para a história como heróis.
A mesma observação vale para as mulheres que, ao contrário do que se tem
dito e repetido à saciedade, ocupam na consciência histórica africana uma posição
1 A expressão bambara so ‑tigui, equivalente, numa escala inferior, a dougou ‑tigui (chefe de aldeia), dyamani‑
‑tigui (chefe de cantão) e kele ‑tigui (general em chefe), mostra bem a força dessa autoridade.
30
Metodologia e pré -história da África
sem dúvida mais importante que em qualquer outro lugar. Nas sociedades de
regime matrilinear isto é facilmente compreensível. Em Uanzarba, perto de Tera
(Níger), onde a sucessão na chefia era matrilinear, durante o período colonial os
franceses, no intuito de reunir os habitantes dessa aldeia aos de outras aldeias
songhai, haviam nomeado um homem para comandar essa aglomeração. Mas
os Sonianke
2
não deixaram de conservar sua kassey (sacerdotisa), que continua
até hoje a assumir a responsabilidade do poder espiritual. Também em outros
lugares as mulheres são vistas como protagonistas na evolução histórica dos
povos. Filhas, irmãs, esposas e mães de reis, como essa admirável Luedji, que foi
tudo isso sucessivamente e mereceu o título de Swana Mulunda (mãe do povo
Lunda), ocupavam posições que lhes permitiam influir nos acontecimentos. A
célebre Amina, que, na região haussa, no século XV, conquistou para Zaria tantas
terras e aldeias que ainda levam o seu nome, é apenas um exemplo, entre milhares,
da ideia de autoridade histórica que as mulheres impuseram às sociedades
africanas. Esta ideia permanece viva até hoje na África, na atuação das mulheres
na guerra da Argélia e nos partidos políticos durante a luta nacionalista pela
independência ao sul do Saara. É claro que a mulher africana é utilizada também
como objeto de prazer e de decoração, como nos sugerem as que são mostradas
envoltas em tecidos de exportação ao redor do rei do Daomé ao presidir uma
festa tradicional. Mas do mesmo espetáculo participavam as amazonas, ponta
de lança das tropas reais contra Oyo e os invasores colonialistas na batalha de
Cana (1892). Pela sua participação no trabalho da terra, no artesanato e no
comércio, pela sua ascendência sobre os filhos, sejam eles príncipes ou plebeus,
por sua vitalidade cultural, as mulheres africanas sempre foram consideradas
personagens eminentes da história dos povos. Houve e ainda batalhas para
ou pelas mulheres. Porque as próprias mulheres muitas vezes desempenharam
o papel de traidoras ou sedutoras. Como no caso da irmã de Sundiata ou das
mulheres enviadas pelo rei de Segu Da Monzon às bases inimigas. Apesar de
sofrer uma segregação aparente nas reuniões públicas, todos sabem na África
que a mulher está onipresente na evolução. A mulher é a vida. E também a
promessa de expansão da vida. E através dela que os diferentes clãs consagram
suas alianças. Pouco loquaz em público, ela faz e desfaz os acontecimentos no
sigilo de seu lar. E a opinião pública formula este ponto de vista no provérbio:
As mulheres podem tudo comprometer, elas podem tudo arranjar”.
2 Neste clã, o poder se transmite pelo leite”, ainda que se admita que o laço de sangue contribua para
reforçá -lo. Entre os Cerko, porém, é unicamente através do leite que o poder é transmitido.
31
Lugar da história na sociedade africana
Em suma, tudo se passa como se na África a permanência das estruturas
elementares das comunidades de base através do movimento histórico tivesse
conferido a todo processo um caráter popular bastante notável. A frágil
envergadura das sociedades tornou a história uma questão que diz respeito
a todos. Apesar da mediocridade técnica dos meios de comunicão (ainda
que o tan -tã assegurasse a telecomunicação de aldeia para aldeia), a estreita
amplitude do espaço histórico media -se pela apreensão mental de cada um.
Daí a inspiração “democrática incontestável que anima a concepção africana da
história na maioria dos casos! Cada um tinha o sentimento de poder, em última
instância, subtrair -se à ditadura, mesmo que fosse através da secessão, para
refugiar -se no espaço disponível. O próprio Chaka passou por essa experiência
no fim de sua carreira. Este sentimento de fazer a história mesmo na escala
microcósmica da aldeia, assim como a sensação de ser somente uma molécula
na corrente histórica criada pelo rei visto como demiurgo, são muito importantes
para o historiador. Porque constituem em si mesmos fatos históricos e porque
contribuem por sua vez para criar a história.
O tempo africano é um tempo histórico
O tempo africano pode ser considerado um tempo histórico? Alguns afirmam
que não, sustentando que o africano concebe o mundo como uma reedição
estereotipada do passado. Ele não passaria então de um incorrigível discípulo
do passado repetindo a todo mundo: Foi assim que os ancestrais fizeram”, para
justificar todas as suas ações e seus gestos. Se fosse assim, Ibn Battuta teria
encontrado no lugar do Império do Mali comunidades pré -históricas vivendo
em abrigos cavados nas rochas e homens vestidos com peles de animais. O
próprio caráter social da concepção africana da história lhe uma dimensão
histórica incontestável, porque a história é a vida crescente do grupo. Ora, deste
ponto de vista pode -se dizer que para o africano o tempo é dinâmico. Nem na
concepção tradicional, nem na visão islâmica que influenciará a África, o homem
é prisioneiro de um processo estático ou de um retorno cíclico. Evidentemente,
na ausência da ideia do tempo matemático e físico contabilizado pela adição
de unidades homogêneas e medido por instrumentos confeccionados para esse
fim, o tempo permanece um elemento vivido e social. Nesse contexto, porém,
não se trata de um elemento neutro e indiferente. Na conceão global do
mundo, entre os africanos, o tempo é o lugar onde o homem pode, sem cessar,
lutar pelo desenvolvimento de sua energia vital. Tal é a dimensão principal
32
Metodologia e pré -história da África
do animismo
3
africano em que o tempo é o campo fechado e o mercado no
qual se confrontam ou negociam as forças que habitam o mundo. Defender -se
contra qualquer diminuição de seu ser, desenvolver a saúde, a forma física, a
extensão de seus campos, a grandeza de seus rebanhos, o número de filhos, de
mulheres, de aldeias, este é o ideal dos indivíduos e das coletividades. E essa
concepção é incontestavelmente dinâmica. Os clãs Cerko e Sonianke (Níger)
são antagonistas. O primeiro, que representa o passado e tenta reinar sobre a
noite, ataca a sociedade. O segundo, ao contrário, é o mestre do dia; representa o
presente e defende a sociedade. Esse simbolismo é eloquente em si. Mas vejamos
uma estrofe significativa da invocação mágica entre os Songhai:
“Não é da minha boca
É da boca de A
Que o deu a B
Que o deu a C
Que o deu a D
Que o deu a E
Que o deu a F
Que o deu a mim
Que o meu esteja melhor na minha boca
Que na dos ancestrais.
Existe assim no africano uma vontade constante de invocar o passado, que
constitui para ele uma justificação. Mas esta invocação não significa o imobilismo
e não contradiz a lei geral da acumulação das forças e do progresso. Daí a frase:
“Que o meu esteja melhor na minha boca que na dos ancestrais”.
O poder na África negra se expressa em geral por uma palavra que significa
a foa”
4
. Esta sinonímia assinala a importância que os povos africanos
outorgam à força e mesmo à violência no desenrolar da história. Mas não se
trata simplesmente da força material bruta. Trata -se da energia vital que reúne
uma polivalência de forças, que vão da integridade física à sorte e à integridade
moral. O valor ético é considerado, na verdade, como uma condição sine qua non
do exercício benéfico do poder. A sabedoria popular é testemunha dessa ideia
e em numerosos contos coloca em cena chefes despóticos que são punidos no
final, extraindo assim literalmente desse fato a moral da história. O Ta’rikh‑
3 O animismo, ou ainda melhor, a religião tradicional africana, caracteriza -se pelo culto devotado a Deus
e às forças dos espíritos intermediários.
4 Fanga (em bambara), panga (em more), pan (em samo).
33
Lugar da história na sociedade africana
‑al ‑Sudan e o Ta’rikh ‑el ‑Fattash não poupam elogios aos méritos de al -Hajj
Askiya Muhammad. É verdade que havia interesses materiais em jogo. Mas
sistematicamente as virtudes desse príncipe são relacionadas à sua “fortuna”.
Bello Muhammad pensa da mesma forma e convida Yacouba Baoutchi a
meditar sobre a história do Império Songhai: foi graças à sua justiça que Askiya
Muhammad não apenas manteve como também reforçou a herança de Sonni
Ali. E foi quando os filhos de Askiya se afastaram da justiça do Islã que seu
império se desarticulou, dividindo -se em múltiplos principados impotentes.
Para o filho de Usman dan Fodio, o mesmo princípio vale para seu próprio
governo:
“Olhe para o passado, para todos aqueles que comandaram antes de nós… Havia
antes de nós dinastias milenares no território haussa. Nelas, muitos povos tinham
adquirido grandes poderes que desmoronaram porque estavam distanciados de sua
base fundada na justiça, de seus costumes e tradições, alterados pela injustiça. Quanto
a nós, nossa força, para que seja duradoura, deve ser a força da verdade e a do isla-
mismo. Para nós, o fato de ter matado Yunfa, destruído a obra de Nafata, de Abarchi
e de Bawa Zangorzo
5
pode impressionar as gerações atuais mesmo fora da influência
do Islã. Mas as que virão depois de nós, não mais perceberão isso: elas julgar -nos-
-ão pelo valor das organizações que lhes tivermos deixado, pela força permanente
do islamismo que tivermos estabelecido, pela verdade e justiça que tivermos sabido
impor ao Estado”.
Esta visão elevada do papel da ética na história não provém somente das
convicções islâmicas do líder de Socoto. Nos meios animistas” também existe
a ideia de que a ordem das forças cósmicas pode ser alterada por procedimentos
imorais e que o desequilíbrio resultante pode ser prejudicial ao seu autor.
Esta visão do mundo em que os valores e exigências éticas são parte integrante
da própria organização do mundo pode parecer mítica. Mas ela exercia uma
influência objetiva sobre o comportamento dos homens e particularmente
sobre diversos líderes políticos da África. Nesse sentido, pode -se dizer que
se a história é, em geral, justificação do passado, ela é também exortação do
futuro. Nos sistemas pré -estatais, a autoridade moral que afiançava ou corrigia
eventualmente a conduta dos negócios públicos era assumida por sociedades
especializadas, às vezes secretas, tal como o lo do povo Senoufo ou o poro da Alta
Guiné. Essas sociedades constituíam muitas vezes poderes paralelos encarregados
de desempenhar o papel de recurso à parte do sistema estabelecido. Mas elas
5 Príncipes do Gobir.
34
Metodologia e pré -história da África
acabavam às vezes substituindo clandestinamente o poder constituído. Elas
apareciam assim às pessoas como centros ocultos de decisão, que confiscavam ao
povo o controle de sua própria história. Nesse tipo de sociedade, a organização
em classes etárias é uma estrutura de primeira importância no encaminhamento
da história do povo. Essa estrutura, na medida em que está estabelecida a partir
de uma periodicidade conhecida, permite reconstituir a história dos povos até
o século XVIII. Mas desempenhava também uma função específica na vida das
sociedades. De fato, mesmo nas coletividades rurais que desconheciam maiores
inovações técnicas e eram, consequentemente, bastante estáveis, os conflitos de
gerações não estavam ausentes. Era necessário então assumi -los, por assim dizer,
ordenando o fluxo das gerações e estruturando as relações entre elas para evitar
que degenerassem em conflitos violentos resultantes de bruscas mutações. A
geração engajada na ação delega um de seus membros à geração de jovens que
a sucede. O papel desse adulto não é o de aplacar a impaciência dos jovens, mas
de canalizar a fúria irrefletida que poderia ser nefasta ao conjunto da coletividade
ou que, na melhor das hipóteses, prepararia mal os interessados para assumir
suas responsabilidades públicas
6
.
A consciência do tempo passado era muito viva entre os africanos. No entanto,
esse tempo que tem um grande peso sobre o presente não anula o dinamismo
deste, como testemunham numerosos provérbios. A concepção do tempo tal
como a detectamos nas sociedades africanas não é, com certeza, inerente ou
consubstancial a uma espécie de natureza” africana. É a marca de um estágio
no desenvolvimento econômico e social. Prova disso são as diferenças flagrantes
que notamos ainda hoje entre o tempo -dinheiro dos habitantes das cidades e
o tempo tal como é apreendido pelos habitantes do campo. O essencial é que
a ideia de desenvolvimento a partir das origens (a serem pesquisadas) esteja
presente. Mesmo sob a forma de contos e de lendas, ou de resquícios de mitos,
trata -se de um esforço para racionalizar o desenvolvimento social. Às vezes,
têm -se verificado esforços ainda mais positivos no sentido de iniciar o cálculo do
tempo histórico. Este pode estar relacionado com o espaço, como quando se fala
em “dar um passo”, para qualificar uma duração mínima. Pode estar relacionado
também à vida biológica, como o tempo de uma inspiração ou de uma expiração.
Mas está frequentemente relacionado a fatores exteriores ao indivíduo, como
por exemplo, os fenômenos cósmicos, climáticos e sociais, sobretudo quando
6 Por exemplo, entre os Alladian de Moosu (perto de Abidjan) a organização por gerações (em número
de cinco, cada uma “reinando nove anos) permanece em vigor inclusive para tarefas de tipo “moderno”:
construção, festa de formatura ou de promoção…
35
Lugar da história na sociedade africana
eles são recorrentes. Na savana sudanesa, entre os adeptos das religiões africanas
tradicionais, geralmente conta -se a idade pelo número das estações chuvosas.
Para indicar que um homem é idoso, fala -se do número de estações das chuvas
que ele viveu ou, através de uma imagem, que ele “bebeu muita água”.
Também foram elaborados alguns sistemas de cálculo mais aperfeiçoados
7
.
Mas o passo decisivo nesse campo só será dado pela utilização da escrita. Ainda
que a existência de uma classe letrada absolutamente não garanta a tomada de
consciência de uma história coletiva por parte de todo povo, ela ao menos permite
estabelecer pontos de referência que organizam o curso do fluxo histórico.
Por outro lado, a introdução das religiões monoteístas baseadas num
determinado processo histórico contribuiu para fornecer uma outra representação
do passado coletivo, modelos” que apareciam geralmente nas entrelinhas das
narrativas. Por exemplo, sob a forma de ligações arbitrárias das dinastias às
fontes islâmicas cujos valores e ideais servirão aos profetas negros para modificar
o curso dos acontecimentos em seu país de origem.
Mas a grande reviravolta na concepção africana do tempo se opera sobretudo
pela entrada desse continente no universo do lucro e da acumulação monetária.
agora o sentido do tempo individual e coletivo se transforma pela assimilação
dos esquemas mentais em vigor nos países que influenciam os africanos
econômica e culturalmente. Descobrem então que, em geral, é o dinheiro que
faz a história. O homem africano, tão próximo de sua história que tinha a
impressão de forjá -la ele próprio em suas microssociedades, enfrenta agora, ao
mesmo tempo, o risco de uma gigantesca alienação e a oportunidade de ser
co autor do progresso global.
7 Ivor WILKS mostra, assim, ao criticar o livro de D. P. HENIGE, e cronology of Oral Tradition: Quest
for a Chimera, que os Akan (Fanti, Ashanti…) dispunham de um sistema de calendário complexo, com
semana de sete dias, mês de seis semanas e ano de nove meses, ajustado periodicamente ao ciclo solar
segundo um método ainda não completamente esclarecido. Era então possível no esquema do calendário
Akan referir -se, por exemplo, ao 18
o
dia do quarto mês do terceiro ano do reinado de Ashantihene Osei
Bonsu”. Método de datação ainda corrente nos países europeus no século XVIII e mesmo no século
XIX. Cf. WILKS, I. 1975, p. 279 e segs.
C A P Í T U L O 3
37
Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à história em geral
O objetivo deste volume e dos ulteriores é tornar conhecido o passado da
África tal como é visto pelos africanos. Trata -se de uma perspectiva justa
provavelmente a única forma de levar a termo um esforço internacional; é
também a mais aceita pelos historiadores da África, tanto na própria África
quanto no ultramar. Para os africanos, o conhecimento do passado de suas
próprias sociedades representa uma tomada de consciência indispensável ao
estabelecimento de sua identidade em um mundo diverso e em mutação. Ao
mesmo tempo, longe de ser considerada uma custosa fantasia, que pode ser posta
de lado até que estejam sob controle os elementos prioritários do desenvolvimento,
a história da África revelou -se nos últimos decênios um elemento essencial do
desenvolvimento africano. É por esta razão que, na África e em outros lugares,
a primeira preocupação dos historiadores foi ultrapassar os vestígios da história
colonial e reatar os laços com a experiência histórica dos povos africanos. Outros
capítulos e outros volumes tratarão desses reencontros, da história enquanto
tradição viva e desabrochar constante, do papel dos conhecimentos históricos na
elaboração de novos sistemas de educação para servir à África independente. Este
capítulo tratará do significado no exterior, da história da África inicialmente
aos olhos da comunidade internacional dos historiadores e em seguida para o
conjunto do grande público cultivado.
O fato de a história da África ter sido deploravelmente negligenciada até
os anos 50 é apenas um dos sintomas no domínio dos estudos históricos
Tendências recentes das pesquisas
históricas africanas e contribuição à
história em geral
P. D. Curtin
38
Metodologia e pré -história da África
de um fenômeno mais amplo. A África não é a única região a possuir uma
herança intelectual da época colonial que deve ser transcendida. No século XIX,
os europeus conquistaram e subjugaram a maior parte da Ásia, enquanto na
América tropical o subdesenvolvimento e a dominação exercida pelos povos de
origem europeia sobre as populações afro -americanas e indígenas reproduziram
as condições do colonialismo nas próprias áreas onde as convenções do direito
internacional apontavam um grupo de Estados independentes. No século XIX
e no início do século XX, a marca do regime colonial sobre os conhecimentos
históricos falseia as perspectivas em favor de uma concepção eurocêntrica da
história do mundo, elaborada na época da hegemonia europeia. A partir daí,
tal concepção é difundida por toda parte graças aos sistemas educacionais
instituídos pelos europeus no mundo colonial. Mesmo nas regiões onde jamais
se verificara a dominação europeia, os conhecimentos europeus, inclusive os
aspectos da historiografia eurocêntrica, impõem -se por sua modernidade.
Hoje, essa vio eurontrica do mundo praticamente desapareceu das
melhores obras históricas recentes; mas ela ainda predomina em numerosos
historiadores e no grande público tanto ocidental quanto não ocidental
1
. Esta
persistência deve -se ao fato de que, em geral, aprendia -se história” na escola,
não havendo mais ocasiões para rever os conhecimentos adquiridos. Os próprios
historiadores especializados na pesquisa sentem dificuldades em se manter a par
das descobertas estranhas a seu campo de atividade. Comparados às últimas
pesquisas, os manuais estão de dez a vinte anos atrasados, enquanto as obras
de história geral conservam frequentemente os preconceitos antiquados de um
saber em desuso. Nenhuma interpretação nova, nenhum elemento novo adquire
sem luta direito à cidadania.
A despeito dos prazos que separam a descoberta de sua difusão, os estudos
de história atravessam, em seu conjunto, uma dupla revolução. Iniciada logo após
a Segunda Guerra Mundial, tal revolução ainda não acabou. Trata -se, por um
lado, da transformação da história, partindo da crônica para chegar a uma ciência
social que trate da evolução das sociedades humanas; por outro, da substituição
dos preconceitos nacionais por uma visão mais ampla.
Em favor destas novas tendências, chegaram contribuições de todos os lados:
da própria Europa; de historiadores da nova escola na África, na Ásia e na
América Latina; dos europeus de ultramar da América do Norte e da Oceania.
1 O termo “Ocidente” é empregado neste capítulo para designar as regiões do mundo culturalmente
europeias ou cuja cultura deriva sobretudo da cultura europeia; ele engloba portanto, além da própria
Europa, as Américas, a União Soviética, a Austrália e a Nova Zelândia.
39
Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à história em geral
Seus esforços para ampliar o quadro da história voltam -se ao mesmo tempo para
os povos e regiões até então negligenciados, assim como para certos aspectos
da experiência humana antes ocultos sob concepções tradicionais e estreitas da
história política e militar. Nesse contexto, o simples advento da história africana
constitui em si uma preciosa contribuição. Mas isso poderia simplesmente
acabar criando mais uma história particularista, válida em si e capaz de colaborar
com o desenvolvimento da África, mas não de trazer à história do mundo uma
contribuição mais eloquente.
Não há dúvida de que o chauvinismo foi um dos traços mais profundamente
marcantes da antiga tradição hisrica. Na primeira metade do século XX,
os bons historiadores mal começavam a se desfazer da antiga tendência em
considerar a história como propriedade quase privada. Dentro desse espírito,
a história de uma dada sociedade tinha valor em si; no exterior, perdia toda
significação. No melhor dos casos, o interesse manifestado pelos estrangeiros
não passava de indiscrição; no pior, tratava -se de espionagem acadêmica. Esta
insistência em se apropriar da história é particularmente marcante na tradição
europeia do início do século XX. As autoridades responsáveis pela educação
tendem a considerar a história como uma história nacional, não como uma
história geral da Europa e menos ainda como uma visão do processo histórico
mundial. Mito confesso, a história servia para forjar o orgulho nacional e a
ideia de sacrifício pela pátria. Lord Macaulay escreveu que ela era ao mesmo
tempo um relato e um “instrumento de educação política e moral
2
. Esperava-
-se que inculcasse o patriotismo e não que inspirasse perspectivas justas sobre o
desenvolvimento da humanidade. Tal ponto de vista prevalece ainda na maioria
dos sistemas educativos.
Alguns historiadores fizeram objeções uns em nome da ciência, outros
em nome do internacionalismo –, mas a maioria deles considerou normais
os preconceitos nacionalistas, por mais indesejáveis que fossem. Na França,
é possível chegar à agregação* de história possuindo apenas conhecimentos
rudimentares sobre a Europa situada além das fronteiras francesas sem falar da
Ásia, da África ou da América. Em várias universidades inglesas, pode -se obter
um diploma em humanidades, com menção honrosa, tendo por base apenas a
história inglesa. O emprego da palavra inglês” (english) em lugar de “britânico
(british) é intencional. O estudante inglês” tem toda a probabilidade de saber
2 MACAULAY, omas Babington, 1835 e 1971.
* Admissão sob concurso ao título de agrégé (agregado), que torna as pessoas aptas a serem titulares de
uma cadeira de professor de colégio ou de certas faculdades.
40
Metodologia e pré -história da África
mais sobre a história de Roma que sobre a do País de Gales, da Escócia ou
da Irlanda antes do século XVIII. Levando em conta as variantes ideológicas,
o problema é praticamente o mesmo na Europa Oriental. Somente os países
europeus de menor importância – os do grupo do Benelux ou da Escandinávia
parecem ter mais facilidade em considerar a Europa como um todo.
Da mesma forma, o método norte -americano, fundado (como seus homólogos
europeus) na história da civilização, é sempre etnocêntrico. O problema que ele
coloca é “Como nos tornamos aquilo que somos?” e não “Como a humanidade
se tornou o que vemos hoje?”.
À medida que rejeitavam as tendências eurocêntricas de sua própria história
nacional, cabia aos historiadores de cada continente a tarefa de avançar em
direção a uma história do mundo verídica, na qual a África, a Ásia e a América
Latina tivessem um papel aceitável no plano internacional. Essa tenncia
manifestava -se particularmente nos historiadores cujos trabalhos tratavam de
culturas diferentes das suas e nos historiadores africanos que se propunham a
escrever sobre a Ásia ou a América Latina, nos europeus e nos norte -americanos
que começavam a interpretar a história da África ou da Ásia em proveito
dos povos desses continentes, esforçando -se para ultrapassar os preconceitos
eurocentristas.
No âmbito desse esforço geral, o papel dos historiadores da África na própria
África e fora dela – assumia particular importância, provavelmente pelo fato de
a história africana ter sido mais negligenciada que a das regiões não europeias
equivalentes e porque os mitos racistas a desfiguraram ainda mais que a estas
últimas. Em razão de seu caráter multiforme, o racismo é, como se sabe, um dos
flagelos mais difíceis de extirpar. Teorizado sob diversas formas desde o século
XVI, ele se encarnou na história de modo agudo, chegando ao genocídio em
certos períodos: tráfico de negros, Segunda Guerra Mundial. Sobrevive ainda
como um desafio monstruoso na África do Sul e em outras regiões, apesar dos
trabalhos da UNESCO
3
e de outras instituições para demonstrar sua natureza
irracional. Mas a cura dos preconceitos é demorada, pois o racismo se espalhou
de forma difusa e imanente nos manuais escolares, nos filmes e programas de
rádio e televisão facciosos, e na presença de dados” psíquicos mais ou menos
conscientes trazidos às vezes pela educação religiosa e com mais frequência
ainda pela ignorância e pelo obscurantismo. Nessa batalha, o ensino científico
da história dos povos constitui a arma estratégica decisiva. A partir do momento
3 Cf. capítulo 10, notas sobre “Raças e história na África”.
41
Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à história em geral
em que o racismo pseudocientífico ocidental do século XIX estabeleceu uma
escala de valores levando em conta as diferenças físicas, sendo a mais evidente
dessas diferenças a cor da pele, os africanos situaram -se automaticamente na
base dessa escala, por serem os que mais se diferenciavam dos europeus, que
automaticamente outorgaram a si mesmos o nível mais alto. Os racistas não
cessavam de proclamar que a história da África não tinha importância nem
valor: os africanos não poderiam ser os autores de uma civilização” digna desse
nome e por isso não havia entre eles nada de admirável que não houvesse sido
copiado de outros povos. É assim que os africanos se tornaram objeto e
jamais sujeito da história. Eram considerados aptos a recolher as influências
estrangeiras sem dar em troca a mínima contribuição ao mundo.
O racismo pseudocientífico exerceu sua influência máxima no início do século
XX. Após 1920, tal influência declinou entre os especialistas em ciências sociais e
naturais, e após 1945, virtualmente desapareceu dos meios científicos respeitáveis.
Mas a herança desse racismo perpetuou -se. Ao nível dos conhecimentos do
homem comum, o racismo alimentava -se de um recrudescimento das tensões
sociais urbanas que coincidiam com o aparecimento, nas cidades ocidentais,
de um número cada vez maior de imigrantes de origem africana ou asiática.
Ele se apoiava na lembrança, ainda viva na população, das lições aprendidas na
escola; para os escolares de 1910 época em que o racismo pseudocientífico
constituía a doutrina oficial da biologia – a hora da retirada só deveria soar após
1960. Bem mais insidiosa ainda foi a sobrevivência das conclusões fundadas nas
alegações racistas, depois que estas perderam sentido. O postulado a história da
África não oferece interesse porque os africanos são uma raça inferior” tornou -se
insustentável, mas certos intelectuais ocidentais se recordavam vagamente de
que “a África não tem passado”, ainda que houvessem esquecido a razão.
Sob esta ou outra forma, a herança do racismo não cessava de consolidar
um chauvinismo cultural que considerava a civilização ocidental como a única
verdadeira “civilização”. No fim dos anos 60, sob o simples título “Civilização”,
a BBC apresentou uma longa série de programas consagrados exclusivamente à
herança cultural da Europa Ocidental. Sem dúvida, de tempos em tempos outras
sociedades eram consideradas civilizadas”; mas em meados do século, o grau de
alfabetização determinava a linha de demarcação entre a civilização e o resto.
Em grande parte iletradas na época pré -colonial, as sociedades africanas eram
rebaixadas à categoria de “primitivas”. No entanto, a maior parte da África era,
de fato, letrada, no sentido de que uma classe de escribas sabia ler e escrever
mas não, certamente, no sentido de uma alfabetização maciça, que por toda parte
havia sido um fenômeno pós -industrial. A Etiópia possuía sua antiga escrita em
42
Metodologia e pré -história da África
gueze. Toda a África islâmica – a África do Norte, o Saara, a franja setentrional
da região sudanesa, do Senegal ao Mar Vermelho, e as cidades costeiras da costa
oriental até o estreito de Moçambique havia utilizado a escrita árabe. Antes
mesmo da época colonial, o árabe havia penetrado aqui e ali na floresta tropical
através dos mercadores diula, enquanto o português, o inglês e o francês escritos
serviam normalmente como línguas comerciais ao longo das costas ocidentais.
Apesar disso, o chauvinismo cultural, acompanhado pela ignorância, conduzia as
autoridades ocidentais a estabelecerem no limite do deserto a demarcação entre
a alfabetização e o analfabetismo. Reforçava -se assim a desastrosa tendência em
separar a história da África do Norte da história do conjunto do continente.
Entretanto, a exclusão dos não civilizados” do reino da história era apenas uma
das facetas de um elemento bem mais importante da tradição histórica ocidental.
As próprias massas ocidentais eram atingidas por esta exclusão, sem vida não
em vista de manifestas prevenções de classe, mas simplesmente em consequência
do caráter didático da história, uma vez que a apologia dos homens célebres era
capaz de propor modelos a serem imitados. No entanto, não é por acaso que
esses modelos eram em geral escolhidos entre os ricos e poderosos, enquanto que
a história se tornava o relato dos fatos e gestos de uma pequena elite. Os tipos
de comportamento que afetavam o conjunto da sociedade eram minimizados ou
ignorados. A história das ideias não era a história do que as pessoas pensavam:
era a história dos grandes desígnios”. A história ecomica não era a história da
economia ou dos comportamentos econômicos: era a história de determinadas
políticas econômicas governamentais importantes, de certas firmas privadas,
de determinadas inovões na vida econômica. Se os historiadores europeus se
desinteressaram tão completamente por um amplo setor de sua própria sociedade,
como poderiam interessar -se por outras sociedades ou por outras culturas?
Até aqui, as duas tenncias revolucionárias que se manifestam no interior dos
recentes estudos históricos seguiram cursos estreitamente paralelos simplesmente
porque a história eurocêntrica e a história das elites se alimentavam nas mesmas
fontes. Lentamente, porém, irá estabelecer -se a aliança potencial entre os que
trabalham para ampliar o campo de estudo da sociedade ocidental e os que se
dedicam a dar um impulso maior às pesquisas históricas para além do mundo
ocidental. No início, os dois grupos avançaram guardando certa distância um
do outro. A principal preocupação dos historiadores da África era desmentir a
afirmação segundo a qual a África não possuía passado ou só possuía um passado
sem interesse. No primeiro caso, o mais simples era, para usar uma expressão
popular, pegar o touro a unha. Aos que pretendiam que o continente africanoo
possa nenhum passado, os especialistas da África podiam opor a existência de
43
Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à história em geral
reinados e de vastos impérios cuja hisria política se assemelhava à da Europa nos
seus prirdios. As prevenções “elitistas” do público ocidental (como também
do blico africano educado à moda ocidental) podiam servir de meio de
ação para demonstrar, em última análise, a importância da história africana.
Tratava -se de um tímido início. Era suficiente para resgatar os aspectos do
passado da África que se assemelhavam ao do Ocidente, sem ratificar os mal-
-entendidos suscitados pelas divergências de cultura. Poucos historiadores
estavam convencidos, até aí, de que os impérios são em geral instituições duras
e cris, e não necessariamente um índice de progresso político. Poucos se
prontificavam a reconhecer, por exemplo, que uma das grandes realizações
da África fora provavelmente a sociedade sem Estado, fundada mais sobre a
cooperação do que sobre a opressão, e que o Estado africano se havia organizado
de maneira a realmente apresentar autonomias locais.
Essa tendência a aceitar certas particularidades da historiografia clássica
como primeiro passo para uma “descolonização” da história africana é
comumente encontrada no estudo do período colonial, nas áreas onde já
existia uma hisria “colonial oficial, que tendia a acentuar as atividades
europeias e a ignorar a parte africana. Pior ainda, tal história mostrava os
africanos como bárbaros pusilânimes ou desorientados. Seguia -se que da
Europa tinham vindo seres superiores que haviam feito o que os próprios
africanos não teriam condições de fazer. Mesmo no seu mais alto grau
de objetividade, “a história colonial só outorgou aos africanos papéis
secundários no palco da história.
Sem modificar em nada os papéis, o primeiro esforço para corrigir essa
interpretão limita -se a modificar os julgamentos de valor. De heis a
serviço da civilização em marcha, os desbravadores, governadores das colônias,
oficiais do exército, tornam -se cruéis exploradores. O africano aparece como
tima inocente, a quem se atribuem apenas atitudes passivas. É sempre a
um punhado de europeus que a África e sua história devem o que são. (Sem
dúvida, os europeus desempenharam às vezes os principais papéis durante o
período colonial, mas todas as revisões fundadas em novas pesquisas em vel
local permitem minimizar a influência europeia tal como foi vista na “história
colonial” publicada antes de 1960).
Um segundo passo em direção à descolonizão da história do período
colonial se dá paralelamente à vaga de movimentos nacionalistas pela
independência. Eis que os africanos desempenham um papel na hisria:
é necessário trazê -lo à luz do dia. Os especialistas em ciência política que
escreveram no período dos movimentos de independência derrubaram as
44
Metodologia e pré -história da África
barreiras
4
. Pouco depois, sobretudo durante os anos 60, os estudiosos começaram
a retroceder o tempo, buscando as raízes da resistência e dos movimentos de
protesto no início da época colonial e, mais longe ainda, nas primeiras tentativas
de resistência ao jugo europeu
5
. Estes trabalhos sobre os movimentos de
resistência e de protesto constituem uma importante contribuição para corrigir
os desvios da história colonial, mas ainda estamos longe de considerar a história
da África com objetividade.
No último estágio, a descolonização da história africana da época colonial
deverá derivar de uma fusão da revolta contra o eurocentrismo e do movimento
antielitista. A revolução behaviorista começou a influenciar a historiografia
africana. Trata -se de uma influência ainda recente e limitada, restando muito a ser
publicado. Certos historiadores, porém, começaram a buscar um método comum
interdisciplinar que lhes permita iniciar o estudo da história da agricultura ou da
urbanização a fim de se utilizarem das outras ciências sociais. Outros começam
a se interessar por pequenas áreas isoladas, na esperança de que tais estudos de
microcosmos revelem a trama da evolução de estruturas econômicas e sociais
mais importantes e mais complexas
6
. A pesquisa modela arrojadamente seu
caminho no domínio dos problemas peculiares à história econômica e religiosa,
mas a verdadeira descolonização da história africana está apenas no início.
Os progressos da história analítica que é também a história de campo”
baseada em investigações e questões colocadas nos próprios locais de pesquisa,
e não somente a consulta aos arquivos – constituem um importante passo nessa
direção. A independência em relação aos arquivos se mostra tão essencial para
o período colonial quanto para o período pré -colonial, cuja documentação
é relativamente rara. O problema da história colonial” sempre foi que, ao
contrário do que se passou e se passa na Europa ou nos Estados Unidos, os
arquivos foram criados e alimentados por estrangeiros. Os escritos incorporam
necessariamente os preconceitos de seus autores, seus sentimentos sobre eles
mesmos, sobre aqueles a quem governavam e sobre seus respectivos papéis. É o
caso da história da política interna da Europa ou dos Estados Unidos, na qual
o preconceito é apenas pró -governamental. No mundo colonial, o historiador
corre o risco de chegar a resultados desastrosos, se negligenciar, por pouco que
4 Consultar, por exemplo, HODGKIN, T. 1956; APTER, D. 1955; COLEMAN, J. S. 1958; JULIEN,
C. A. 1952.
5 Ver, por exemplo, SHEPPERSON, G. e PRICE, T. 1958; RANGER, Y. O. 1967; ILIFFE, J. 1969;
ROTHBERG, R. e MAZRUI, A. A. 1970; PERSON, Y. 1968.
6 Ver HILL, P. 1963.
45
Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à história em geral
seja, a possibilidade de levar em conta outro ponto de vista, que ele pode obter
através de testemunhos orais de pessoas que viveram sob o domínio colonial.
É provável que, no que se refere a técnicas recentes, os historiadores da
África estejam atrasados em relação e outros colegas; no entanto, quanto à
utilização das tradições orais da época pré -colonial, mais ainda que da colonial,
eles realizaram um trabalho pioneiro. Esse trabalho divide -se em dois períodos.
Entre 1890 e 1914, uma geração de administradores letrados, então a serviço
das potências coloniais, começou a assegurar a conservação das tradições orais
de importância histórica. O segundo período remonta ao início dos anos 60.
O decênio 1950 -1960 terminou com a opinião formulada em 1959 por G. P.
Murdock; segundo ele, “era impossível confiar nas tradições orais indígenas”
7
. A
década seguinte abriu -se com a publicação de Jan Vansina, Oral tradition. A study
in historical methodology. Ela indicava quais os controles e as críticas necessários
para a utilização científica das tradições orais. Os trabalhos históricos recentes,
baseados na tradição oral, geralmente utilizada em conjunto com outras fontes
de documentação, podem ser considerados um sucesso notável
8
. O seminário
de Dacar organizado em 1961 pelo International African Institute sobre o
tema “O historiador na África tropical” e o de Dar -es -Salam, em 1965, sobre o
tema “Novas perspectivas sobre a história africana” acentuaram vigorosamente
a necessidade de novos enfoques, sublinhando o papel insubstituível da tradição
oral como fonte da história africana assim como todo o partido que o historiador
pode tirar da linguística e da arqueologia informada pela tradição oral.
Graças a seus trabalhos sobre a época pré -colonial, os historiadores da África
influenciaram as outras ciências sociais. Tal influência se faz sentir em diversos
planos. Acima de tudo, foram eles que impuseram o reconhecimento do fato de
que a África “tradicional” não permaneceu estática. Economistas, especialistas em
ciências políticas, sociólogos, todos tendem a estudar a modernização referindo-
-se aos critérios antes” e depois”: antes”, aplicado à sociedade tradicional”,
considerada como virtualmente sem mudaas; “depois, ao processo de
modernização, que implicou uma transformação dinâmica da imagem anterior.
Observadores da evolução, os historiadores estavam à espera das mudanças que
não cessam de ocorrer nas sociedades humanas. Suas pesquisas dos últimos
7 MURDOCK, G. P. 1959, p. 43.
8 Ver, por exemplo, VANSINA, J. 1973; KENT, R. K. 1970; COHEN, D. W. 1972; o estudo de E. J.
ALAGOA, resumido em parte no seu capítulo e Niger Delta States and their Neighbours, 1609-
-1900”. In: History of West Africa, de J. F. A. AJAYI e M. CROWDER, 2 v. (Londres, 1971), I: 269 -303;
A. ROBERTS, 1968. Nairóbi; NIANE, D. T., 1960. Présence Africaine.
46
Metodologia e pré -história da África
decênios provaram que, na África pré -colonial, instituições, costumes, modos
de vida, religiões e economias mudaram tão rapidamente quanto em outras
sociedades, entre as revoluções agrícola e industrial. O ritmo não é tão rápido
quanto o ritmo pós -industrial, que não deixa de afetar a África de hoje, mas o
“imobilismo” do passado “tradicional” não ocorreu em parte alguma.
Foi aos antropólogos que a utilização de uma base, de um ponto de partida
“tradicionais”, colocou os problemas mais sérios. Desde os anos 20, a maioria dos
antropólogos de língua inglesa trabalhou a partir de um modelo de sociedade
que permite destacar o papel desempenhado por cada um dos elementos
constitutivos para manter o conjunto das atividades do todo. Eles reconheciam
que as sociedades africanas que puderam examinar haviam mudado muito desde
o início do regime colonial, fato que consideravam prejudicial a sua demonstração.
A seus olhos, era conveniente restabelecer o quadro, concentrando -se num
único período, tomado ao acaso no passado imediatamente anterior à conquista
europeia. Eles sustentavam que era possível descobrir a natureza dessa sociedade
tradicional destacando os dados das observações atuais e abstraindo tudo o que
se assemelhasse a influência exterior. O resultado foi o presente antropológico”.
Tal enfoque funcionalista deve muito a Bronislaw Malinowski, que dominou
a antropologia britânica na segunda e na terceira década deste culo. Ele
contribuiu de modo significativo para a compreensão do “funcionamento das
sociedades primitivas, e os “funcionalistas” conseguiram outros importantes
progressos gras a um método que o se limitava ao questionamento de
informantes, mas valia -se sobretudo da observação participante e da exploração
cuidadosa e prolongada do local de pesquisa. No entanto, toda medalha tem seu
reverso. Os antropólogos partiram em busca de sociedades primitivas, de ilhotas
culturais, subvertendo as ideias ocidentais sobre a civilização africana. Disto
resultaram graves lacunas na documentação relativa às sociedades africanas
maiores e mais complexas e, consequentemente, uma nova contribuição ao mito
de uma África primitiva”. Seu esforço para abstrair o presente antropológico do
presente real contribuiu para reforçar a convicção de que na África a mudança
vinha obrigatoriamente do exterior, desde que suas hipóteses pareciam negar
qualquer evolução às sociedades africanas até a chegada dos europeus. Seu esforço
para imobilizar a sociedade -testemunha, a fim de descrever seu funcionamento
básico, os levou geralmente a esquecer que esta sociedade que, para fins de
análise, estavam tratando como estática, não o era na realidade. Acima de tudo,
tal esforço iria impedi -los de se interrogarem sobre as razões e os meios desta
evolução, o que acabaria por revelar um outro aspecto da sociedade examinada.
47
Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à história em geral
Sem dúvida, o funcionalismo teria, apesar de tudo, seguido seu curso sem
o impacto da disciplina histórica. Ele sofreu a influência dos estudos sobre a
aculturação dos anos 40 e 50, enquanto Claude vi -Strauss e seus discípulos
tomavam uma outra direção nos decênios do s -guerra. No que se refere
à antropologia política e a certos aspectos da antropologia social, porém, os
trabalhos dos historiadores do período pré -colonial aclararam a dinâmica da
evolução e contribuíram para dar um novo impulso à antropologia.
O estudo das religiões e das organizações religiosas africanas modificou -se
sob a influência das recentes pesquisas históricas. Os primeiros pesquisadores
da religião africana eram, em sua maioria, ou antropólogos em busca de um
conjunto estático de crenças e práticas, ou missionários que aceitavam o conceito
de um presente antropológico ao estudar as religiões que esperavam suplantar.
Eles reconheciam o dinamismo inegável do Islã, cuja difusão durante o período
colonial foi ainda mais rápida que a do cristianismo. Todavia, os estudos mais
importantes sobre o Islã foram patrocinados pelo governo francês, na África
do norte e na África ocidental, com o objetivo de pôr em xeque uma eventual
dissidência. O tema desses estudos era menos a evolução no interior da religião
que as organizões religiosas e seus chefes. Nas últimas décadas, diversos
fatores e não apenas o trabalho dos historiadores contribuíram para dar um
novo impulso ao estudo da evolução religiosa. Os especialistas das missões se
interessaram pelo progresso das novas religiões africanas, fundadas sobre bases
parcialmente cristãs, assim como pelas igrejas independentes que se desligavam
das missões europeias. Os antropólogos apaixonados pela aculturação voltavam-
-se para trabalhos similares e, curiosos acima de tudo sobre o papel da religião
nas rebeliões coloniais e nos movimentos de protesto, os historiadores traziam
também uma contribuição positiva. Com referência ao período pré -colonial,
eles foram levados a reconhecer igualmente a importância evidente e capital da
reforma religiosa no conjunto do mundo islâmico. Disso resultou uma tomada de
consciência mais aguda da evolução das religiões não cristãs e não muçulmanas,
embora os especialistas das diversas ciências sociais tenham apenas começado
a estudar as particularidades dessa evolão tão sistematicamente como elas
o merecem. Desse ponto de vista, deve -se destacar o interesse recente pelas
religiões “animistas”, bem como por suas associações, frequentemente secretas,
que têm um papel histórico muitas vezes admirável.
Enquanto que, para os especialistas das diversas ciências sociais, parece
possível estudar em conjunto e eficientemente a religião africana, através de uma
ampla troca de ideias e de métodos, os trabalhos sobre as economias africanas
permanecem totalmente isolados. Da mesma forma que os historiadores da
48
Metodologia e pré -história da África
religião, os especialistas em economia demonstraram, nos últimos anos, que os
diferentes tipos de economia o paravam de evoluir e que essa evolução respondia
tanto a estímulos de ordem interna quanto a influências de ultramar. No entanto,
os economistas, particularmente os especialistas em desenvolvimento econômico,
prosseguem seus trabalhos sem considerar a cultura econômica que tentam
dominar. Não tendem a ignorar o mecanismo da evolução em curso, mas muitos
deles dão pouca atenção aos modelos estáticos dos antropólogos economistas.
Assim, por exemplo, para justificar a teoria do desenvolvimento econômico,
convinha assegurar ser a África, em grande medida, formada por economias de
subsistência”, nas quais cada unidade familiar produz a quase totalidade dos bens
e serviços de que necessita. Esse ponto de vista foi defendido principalmente
por Hla Myint em meados da década de 60, ao mesmo tempo que a teoria
do desenvolvimento econômico vent ‑for surplus, baseada na liberação dos
recursos e dos meios de produção insuficientemente empregados
9
. Na realidade,
nenhuma comunidade da África pré -colonial supria inteiramente suas próprias
necessidades sem se dedicar a algum comércio; e eram numerosas as sociedades
africanas que possuíam complexas redes de produção e exportação dirigidas
às necessidades de seus vizinhos. Na orla do Saara, numerosas tribos pastoris
obtinham a metade, se não mais, de seu consumo anual de calorias, trocando os
produtos de sua criação por cereais. Outras produziam e vendiam regularmente
os excedentes agrícolas, o que lhes permitia adquirir certos gêneros exóticos
sal, gado, manteiga de Galam, noz de cola, tâmaras. O erro que se dissimula
sob o quadro de uma economia africana estática é, se bem entendido, o mito
eterno da África primitiva”, erro reforçado pela tendência dos antropólogos
em escolher as comunidades mais simples e sua antiga propensão a abstrair o
tempo em suas concepções.
Os economistas e antropólogos que estudaram a economia africana in loco
ressaltaram, evidentemente, a importância do comércio na África pré -colonial.
Alguns notaram que as economias africanas evoluíram rapidamente antes da
chegada maciça dos europeus. Todavia, distanciando -se da linha de pensamento
ortodoxo, um grupo sublinhou mais as diferenças que as semelhanças entre
as culturas econômicas. Os membros desse grupo às vezes denominados
substantivistas”, em razão de sua insistência em estudar a natureza substantiva
da produção e do consumo e também de seu esforço para relacionar a forma
como o homem satisfaz suas necessidades materiais ao quadro mais amplo de
9 MYINT, H. 1964
49
Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à história em geral
uma sociedade particular, e não a uma teoria oficial tentaram provar que a teoria
econômica não é aplicável ao domínio de suas pesquisas
10
. Como resultado,
estabeleceu -se um verdadeiro abismo entre os economistas do desenvolvimento,
que, trabalhando sob a inspiração de teorias macroeconômicas, prestam pouca
ateão às realidades econômicas do momento, e os substantivistas, que
desprezam as teorias contrias. Até agora, os especialistas em história da
economia não preencheram o abismo, assim como não exerceram sobre as ideias
relativas à África uma influência comparável à que os historiadores tiveram sobre
a antropologia ou sobre o estudo das religiões.
A história africana caminhou a largos passos, especialmente nós últimos anos,
para lançar métodos novos e cobrir zonas não suficientemente exploradas. Mas
ela não tirou proveito suficiente dos novos caminhos abertos em outros lugares.
Ela não respondeu tão rapidamente quanto outras disciplinas ao desafio da
revolução behaviorista, nem aproveitou as possibilidades admiráveis da história
quantitativa, tanto em matéria política quanto no domínio da econometria.
No curso das explorações sobre o passado da África, realizadas com impulso
cada vez maior, a irradiação da nova história africana foi obra de um grupo de
historiadores profissionais que fizeram dessa história o objeto principal de seu
ensino e de seus escritos. Se, no mundo ocidental, o conhecimento da história
da África foi tão menosprezado, mesmo em relação à historiografia da Ásia ou
da América Latina, é porque era obra de historiadores amadores, pessoas que
tinham outras atividades profissionais, mas não uma posição estabelecida no
mundo universitário, e que portanto não tinham possibilidade de influenciar
os meios historiográficos em nenhum país ocidental. Alguns trabalhos de
pesquisa sobre a África eram realizados nos institutos da Escandinávia ou da
Europa central e oriental, desde antes da Segunda Guerra Mundial. Mas eles
permaneciam marginais no programa geral do ensino superior e, desse modo,
não contribuíam para a formação de historiadores. As únicas exceções são
representadas pela egiptologia e por certos aspectos do passado da África do norte
na época romana. Para o restante, antes de 1950 contam -se poucos profissionais
entre os historiadores da África. administradores coloniais e missionários;
também crigos e religiosos africanos, que empregam uma das nguas
internacionais – Carl Christian Reindorf, da Costa do Ouro; Samuel Johnson,
para os Ioruba; ou o xeque Moussa Kamara, do Senegal, cujo Zuhur ul ‑Basatin fi
Ta’rikh is ‑Sawadin não está ainda inteiramente publicado e apenas começa a ser
10 Para um resumo apropriado da posição, ver DALTON, G. 1968.
50
Metodologia e pré -história da África
consultado por outros historiadores
11
. Certos antropólogos voltaram -se também
para temas históricos; mas na África, antes de 1950, nenhuma universidade
propunha ainda um programa satisfatório de especialização em história africana
em nível de graduação. Em 1950, não houve nenhum historiador profissional
que se dedicasse exclusivamente a escrever a história africana e a ensiná -la. Vinte
anos depois, cerca de quinhentos historiadores com doutorado ou qualificação
equivalente elegeram a história da África como atividade principal.
A rapidez com que essa evolução ocorreu é surpreendente. Retrospectivamente,
ela pode ser muito bem explicada. Na África, na Europa, na América do Norte –
e em cada continente por diferentes razões a conjuntura política, intelectual e
universiria revelou -se particularmente favovel ao aparecimento de uma plêiade
de historiadores profissionais cujo trabalho se orientava para a África. Nesse
continente, a partir do fim dos anos 40, a necessidade era maior à medida que se
podia prever um movimento cada vez mais acelerado em direção à independência,
ao menos para a maior parte da África do norte e do oeste. Depois de 1950, a
fundação de novas universidades criava a necessidade de uma hisria renovada
da África, considerada de um ponto de vista africano em princípio ao vel da
universidade e, passando pelos estabelecimentos de formão pedagógica, atingindo
a escola em geral. Entre os pioneiros desse enorme esfoo de reeducação, devemos
citar K. Onwuka Dike, o primeiro de uma nova geração de historiadores africanos a
ultrapassar as etapas de uma formação pedagica normal – feita na Universidade
de Londres. Historiadores estrangeiros aderem ao movimento: J. D. Fage, da
Universidade de Gana (Costa do Ouro, na época); J. D. Hargreaves, de Forah Bay,
em Serra Leoa; Christopher Wrigley e Cyril Ehrlich, no Makerere College.
Na África de fala francesa delineou -se progressivamente um movimento
paralelo. Nos antigos territórios franceses, as universidades continuaram, muito
tempo depois da Independência dos respectivos países, a depender do sistema
francês. Em consequência, conservaram as tradões hisricas francesas.
Todavia, alguns pioneiros se orientavam para uma história da África. Neste
sentido, notáveis contribuições foram oferecidas por Amadou Mahtar M’Bow,
no Senegal; por Joseph Ki -Zerbo, no Alto Volta; pelo padre Engelbert Mveng,
em Camarões. Desde o início dos anos 50, os historiadores vindos do exterior
e estabelecidos na África de língua francesa, que teriam um papel dominante
nas universidades, dedicaram -se à pesquisa. Desde então, Jan Vansina, que iria
contribuir para o ensino da história africana na universidade de Lovanium,
11 JOHNSON, S. 1921; REINDORF, C. 1899; KAMARA, M. 1970.
51
Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à história em geral
trabalhava nas instituições de pesquisa do governo belga no Congo e em Ruanda.
No IFAN*, em Dacar, Raymond Mauny, futuro professor de história africana na
Sorbonne, dedicava -se à pesquisa sobre a África ocidental. Yves Person, ainda
administrador colonial, começava as investigações que originariam em 1968 sua
tese sobre Samori e lhe permitiriam contribuir para a introdução da história da
África nas universidades de Abidjan e Dacar. Presença Africana, através de sua
revista e dos dois grandes congressos de Escritores e Artistas Negros, realizados
em Paris e Roma em 1956 e 1959, impulsionava vigorosamente tal processo.
Todas essas atividades caminhavam simultaneamente ao desenvolvimento, na
própria África, de estudos históricos africanos. Neste reencontro da história da
África com a história do mundo, o momento capital é aquele em que progride
nos outros continentes o estudo da história africana progressos paralelos no
tempo aos da história da África nas universidades africanas. Em 1950, Roland
Oliver começou a ensinar história africana na escola de estudos orientais e
africanos da Universidade de Londres. Na União Soviética, D. A. Olderogge e
seus colegas do Instituto Etnográfico de Leningrado inauguravam um programa
sistemático de pesquisas que culminou, algum tempo depois, com a publicação
de toda a documentação conhecida sobre a África subsaariana do século XI
em diante, nas línguas da Europa oriental, com tradução e notas em russo
12
.
Durante esse mesmo decênio, foi criada na Sorbonne a primeira cadeira de
História Africana; logo havia duas, a do antigo governador das colônias, Hubert
Deschamps, e a de Raymond Mauny. Por seu lado, Henri Brunschwig assumia
a direção das pesquisas sobre a história africana na Ecole Pratique des Hautes
Etudes, enquanto Robert Cornevin publicava a primeira edição de seu resumo
da História da África, várias vezes revista e completada desde então.
Para além da Europa e da África, os progressos eram mais lentos; na própria
Europa, a história africana foi admitida inicialmente nos cursos universitários
dos pses colonizadores. Nas Américas, onde uma grande parte da população é de
origem africana, poderíamos esperar manifestações de interesse. No entanto, por
mais importantes que fossem os vestígios culturais africanos, nem o Brasil nem
as Carbas deram a atenção merecida ao assunto. No Haiti, alguns intelectuais
demonstraram solicitude com relação à cultura local baseada num africanismo
datado dos primeiros trabalhos do Doutor Price -Mars (1920). Em Cuba, sentia-
-se forte influência da cultura afro -cubana entre certas personalidades do mundo
* Institut Fondamental d’Afrique Noire (N. do T.).
12 KUBBEL, L. E. e MATVEÏEV, V. V. 1960 e 1965.
52
Metodologia e pré -história da África
das letras, entre outras, Nicolas Guillen. Todavia, tal como no Brasil, a simpatia
manifestada pela cultura afro -americana não suscitou interesse pela África nem por
sua história. Nas Antilhas brinicas, a descolonização, inclusive a descolonização
da história local, beneficiou -se de maior prioridade; no entanto, mesmo depois de
1960, o pan -africanismo político não teve ressonância hisrica entre os intelectuais
das Antilhas.
O interesse era ainda menor nos Estados Unidos antes de 1960; o pouco que
existia estava concentrado sobre a África do norte. De acordo com uma pesquisa
recente, foram apresentadas até 1960, inclusive, 74 teses de doutorado relativas
à história africana. Trata -se de um número surpreendente, mas enganador.
A maioria dessas teses refere -se à África do norte e é obra de historiadores
especializados em história ou arqueologia clássicas, na história da África do norte
e do Oriente Médio, ou ainda o mais frequente na colonização ultramarina
europeia. Só o acaso, ou quase, permitiu que os temas de tese se referissem à
África. Dos que haviam escolhido como tema a história colonial, poucos se
tornaram verdadeiros especialistas em África. Entre os pioneiros, encontra -se
Harry R. Rudin, em Yale. Desde os anos 30, ele havia publicado ensaios sobre
a história da colonização alemã na África; depois de 1950, seu interesse pela
África não parou de crescer. Os afro -americanos formavam um grupo ainda
mais importante. W. E. B. Dubois interessara -se pela África desde o início
de sua carreira, embora tenha podido dedicar -se a esse estudo quando se
aposentou e emigrou para Gana. Bem antes dele, em 1916, Carter G. Woodson
havia fundado The Journal of Negro History. Na verdade a publicação era mais
afro -americana do que africana, mas a história africana figurava oficialmente
na sua óptica, e podiam -se encontrar nele, de tempos em tempos, artigos sobre
o passado da África. Entretanto, o verdadeiro apóstolo da história da África
foi William Léo Hansberry, da Universidade de Howard, que desenvolveu
uma campanha solitária pela inclusão da história da África no programa de
ensino das universidades americanas e estando ainda em vigor a segregação
especialmente dos colégios com grande maioria negra nos Estados do sul.
Assim, em graus diversos, as condições que assegurariam a difusão da história
africana fora da África existiam antes de 1960. Próxima a esta data, a conquista
da independência na África do norte e na África tropical assegurou, no resto
do mundo, um renovado interesse pelo continente, além de ter suscitado a
curiosidade popular curiosidade voltada mais para o passado que para o
presente ou o futuro da África. Entretanto, em vários lugares os progressos da
história africana eram decepcionantes. Apesar da importância política dada à
unidade africana, era imperceptível o avanço das universidades e dos estudantes
53
Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à história em geral
da África do norte em direção a uma concepção mais continental do estudo de
seu próprio passado. O Magreb aderia fortemente ao mundo mediterrâneo, ao
mundo muçulmano, ao mundo intelectual de língua francesa, cujo centro ainda
era Paris. Esses três mundos eram suficientes para mobilizar toda a atenção
do público letrado. Diversas vezes, os porta -vozes oficiais egípcios ressaltaram
ser o Egito tão africano quanto árabe e muçulmano, mas os estudos históricos
no Egito eram frutos sobretudo do espírito de paróquia, enquanto a barragem
de Assuã e os trabalhos das equipes arqueológicas internacionais na Núbia
chamavam a atenção para o Nilo Superior.
“Espírito de paróquia era também e mais ainda a característica dos estudos
históricos na África do Sul. O controle político exercido pela população de
origem europeia na República da África do Sul não diminuía. Nas universidades,
a história africana passava mais ou menos despercebida: a história” era a da
Europa e da minoria europeia da África do Sul. Com The Oxford History of South
Africa (1969 -1971) a óptica se ampliou a ponto de incluir a maioria africana,
mas um dos autores, o historiador Leonard Thompson, não lecionava mais na
África do Sul; e ainda que apaixonada pela história, a outra, Monica Wilson,
era uma antropóloga. Em Zimbabwe, por volta de 1960, havia a tendência à
inclusão de um apanhado geral da história africana nos estudos de história, mas
a declaração unilateral de independência da minoria branca em relação à Grã-
-Bretanha alteraria o curso das coisas. Fato curioso, Zimbabwe produziu uma
porcentagem mais elevada de estudantes de história da África do que a África
do Sul. No entanto, a maioria teve de prosseguir o exercício de sua profissão
no exílio.
A África tropical foi o primeiro centro de estudo da história da África no
continente africano e se realizaram os progressos mais notáveis na primeira
década após a Independência. A história africana fazia parte do programa
de ensino das universidades dessa região, mas tratava -se agora de encontrar um
equilíbrio apropriado entre a história local, regional, africana e mundial. Resumindo,
tratava -se de descolonizar o conjunto do programa de história e não apenas de lhe
adicionar um componente africano. Foi na África de ngua inglesa que ocorreram
as maiores mudanças: as rígidas normas instituídas pelos europeus abrandaram -se
mais rapidamente nesses países que nos de língua francesa. O ensino da história
da Grã -Bretanha e de seu império cedeu lugar a outros temas: a história do
Império Britânico tendeu a desaparecer completamente e a da Grã -Bretanha a se
fundir com a da Europa. No que se refere ao ensino da história da Europa, a nova
corrente que se esboçou tendeu a subordinar as diferentes histórias nacionais ao
estudo dos grandes temas que transcendem as fronteiras, como a urbanização ou a
54
Metodologia e pré -história da África
Revolução Industrial. Ao mesmo tempo, os historiadores começaram a se interessar
também pela história de outras regiões a do mundo islâmico ao norte, insistindo
particularmente na sua influência ao sul do Saara; a da América Latina ou do
Sudeste Asiático, porque elas poderiam recuperar certos aspectos da experiência
africana; a do Leste Asiático, onde o crescimento ecomico do Japão constituía
um exemplo do qual a África poderia tirar ensinamentos. O impacto da história
africana proporcionou assim uma reorientação geral, no sentido de uma concepção
do mundo e de seu passado, verdadeiramente afrocêntrica sem se interessar
exclusivamente pela África e pelos africanos, como a velha tradição europeia se
interessava apenas pelos europeus, mas no quadro de uma Weltanschauung da qual
a África, e o a Europa, constitui o ponto de partida.
Esse objetivo não foi ainda completamente atingido, mesmo nas mais avançadas
universidades de língua inglesa. Será necessário um certo tempo para formar uma
geração de historiadores africanos inovadores que explorem novos caminhos,
escolhidos por eles mesmos. As universidades de ngua francesa estão um decênio
atrasadas: em Abidjan, Dacar e Lubumbashi (herdeira de Lovanium no domínio
da história), as mais antigas universidades de língua francesa, só a partir do início
da década de 70 é que o corpo de professores de história passou a ser composto
majoritariamente por africanos, ao passo que essa evolução havia ocorrido desde
o início dos anos 60 nas mais antigas universidades de língua inglesa. Agora que
os historiadores africanos possuem seu lugar nas universidades de língua francesa,
pode -se prever um reajustamento semelhante das concepções da história mundial.
Mas a partir de 1963 se realizou a reforma dos programas de história nas escolas
secundárias dos países de língua francesa. Ela seria imediatamente seguida pela
reforma dos programas dos estudos históricos universitários, de acordo com o
programa do CAMES (Conselho Africano e Malgaxe para o Ensino Superior).
O impacto da história africana sobre a pesquisa e o ensino de história na
Europa ocidental está ligado à antiga relação colonial. Essa é uma das razões
pelas quais a França e a Inglaterra constituíram os principais centros europeus
de estudo da história africana.
Todavia, também em outros lugares se registraram progressos no ensino da
história africana, em particular na Tchecoslováquia e na Polônia, assim como
na União Soviética, onde ela é sistematicamente ensinada na Universidade
Patrice Lumumba, de Moscou, cuja miso específica consiste em formar
estudantes africanos. Em outros lugares, especialistas solitários prosseguem
pesquisas em diferentes centros universitários, sendo que isso ocorre de forma
mais sistemática nos institutos de pesquisa que seguem a tradição alemã de
organizão universitária. Os pesquisadores que se dedicam à África estão,
55
Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à história em geral
portanto, um pouco isolados, o que poderia contribuir para explicar por que os
estudos históricos continuam a não ceder nenhum lugar à África em numerosas
universidades europeias, exceto na Inglaterra e na França.
Também nestes países a tradição geral dos estudos históricos se inspira num
espírito de campanário, mas a formação de administradores coloniais teve
um peso particular. A partir de 1955 aproximadamente, começou o processo
de repatriação desses administradores, e muitos deles iniciaram uma nova
carreira de historiadores dos países onde haviam exercido suas funções. Esse foi
o caso da França, principalmente, como demonstra o exemplo dos professores
Deschamps e Person. Para esse país, assim como para a Inglaterra, a criação e o
crescimento de novas universidades africanas, que datam dos anos 50, abriram
a possibilidade de empregos na África. Jovens historiadores escolheram temas
africanos para sua aprendizagem de pesquisa ou começaram a se interessar pela
história africana quando foram lecionar na África. Em seguida, nos anos 60 e 70,
esses historiadores estrangeiros foram progressivamente substitdos por africanos
e voltaram a lecionar na ex -metrópole, muitas vezes depois de terem passado oito
ou dez anos na África. Nem todos voltaram a ensinar a história africana, mas
o número total dos que o fizeram é significativo. O número dos historiadores
vindos das universidades africanas que entraram nas universidades brinicas entre
1965 e 1975 situa -se provavelmente entre sessenta e setenta, o que representa em
torno de 8 a 10% dos historiadores que passaram a trabalhar nas universidades
britânicas nesse período. Em 1974, três cadeiras de “História Moderna (expressão
que designava tradicionalmente a história da Grã -Bretanha moderna) estavam
ocupadas por historiadores cujos principais trabalhos de pesquisa tinham sido
dedicados à África. É ainda muito cedo para determinar a influência que tal
retorno da África terá sobre as tradições históricas britânicas em geral, mas
provavelmente será considerável.
Na França, observa -se um fenômeno semelhante, ainda que os meros
correspondentes sejam um pouco mais baixos e que os professores vindos da
África constituam uma porcentagem menor do recrutamento para o ensino
universitário. Uma nova geração de historiadores começou a se interessar pela
África. Em Paris, tanto nas diferentes universidades quanto no Centro de Estudos
Africanos, que é interuniversitário, um certo número de especialistas em história,
sociologia e arqueologia trabalharam muito tempo nas universidades africanas,
com as quais continuam mantendo estreitas relações. A situação é semelhante
em Aix, Bordeaux e Lyon. Paralelamente, as universidades britânicas e francesas
asseguraram a formação de historiadores africanos encarregados de substituir os
56
Metodologia e pré -história da África
estrangeiros que voltavam para a Europa
13
. Nesse sentido, instituições como a
School of Oriental and African Studies (SOAS) de Londres e secções esparsas da
Sorbonne e das grandes escolas em Paris, tiveram um papel especial. Na SOAS,
por exemplo, 58% dos que obtiveram doutorado entre 1963 e 1973 começaram
lecionando na África; menos de 20% do total eram britânicos e somente 13%
tiveram seu primeiro cargo numa universidade britânica
14
. Isso diminuiu em
parte o impacto direto da SOAS – instituição que congrega o mais importante
grupo de historiadores da África reunido no mundo por uma universidade –
sobre a educação britânica. Sua influência indireta, porém, foi considerável. Além
da SOAS, as universidades de Birminghan, Sussex e Edimburgo reservaram
entre seus programas um papel especial à história africana; e pelo menos outras
oito dispõem de um especialista em história africana que leciona regularmente
essa matéria a estudantes de graduação.
Esse vel particular de desenvolvimento na Grã -Bretanha talvez fosse
previsível, levando em conta os interesses colonialistas e neocolonialistas deste
país em relação às estruturas universitárias africanas. Em compensação, o enorme
crescimento da pesquisa sobre a história da África na América do Norte durante
os anos 60 era completamente inesperado, que os historiadores dos Estados
Unidos pareciam não tratar equitativamente nem a história dos afro -americanos
de sua própria sociedade. A numerosa minoria de descendentes de africanos
presente nos Estados Unidos desde suas origens não havia suscitado um interesse
notável pela África, mesmo entre a maior parte dos afro -americanos. De resto, o
impulso repentino dos estudos sobre a história africana pode ser observado tanto
no Canadá como nos Estados Unidos, embora o Canadá não tenha governado
uma parte da África, como a Grã -Bretanha, nem conte entre seus habitantes com
uma minoria afro -americana importante, como ocorre com os Estados Unidos.
Antes de 1960, a história da África mal era ensinada na América do Norte.
Em torno de 1959, pouco depois de sua fundação, o African Studies Association
contava com 21 membros, residentes nos Estados Unidos ou no Cana, que
poderiam ser considerados historiadores. Entre esses, menos da metade ocupava
cargos universitários que os obrigassem a consagrar o tempo disponível à história
da África. Por outro lado, o Primeiro Congresso Internacional de Africanistas
13 Agradeço ao professor J. F. Ade AJAYI, da Universidade de Lagos, e aos professores J. D. FAGE e
Roland OLIVER, pelas informações que me forneceram a respeito do impacto da história africana
sobre a história em geral na Europa e na África, respectivamente. No entanto, deve ser atribuído a mim
qualquer erro fatual ou de avaliação que este texto porventura apresente.
14 OLIVER, R. African Studies in London, 1963 -1973”. (Comunicação não publicada distribuída no
Terceiro Congresso Internacional de Africanistas, Adis Abeba, dezembro de 1973).
57
Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à história em geral
reuniu em Acra, em 1962, cerca de oitocentos participantes, diante dos quais o
presidente Kwame Nkrumah, no discurso inaugural, descreveu em linhas gerais
as responsabilidades da disciplina histórica para com a nova África. A partir daí
deu -se a avalanche. Em 1970, o mero de norte -americanos especializados em
história ou arqueologia africanas aproximava -se de 350. Alguns eram historiadores
que haviam iniciado sua carreira numa outra disciplina qualquer, antes de mudar
de opinião; a maioria, porém, era constituída por jovens estudantes que acabavam
de sair do secundário. Entre 1960 e 1972, as escolas americanas forneceram mais
de 300 doutores PhD em hisria africana. Entre eles, jovens africanos que
pretendem retornar. Alguns o europeus, mas a grande maioria é formada por
norte -americanos. A proporção de afro e euro -americanos é igual à desses grupos no
conjunto da população: cerca de 10% nos Estados Unidos e bem menos no Cana.
Dessa forma, no quadro dos estudos históricos, duas tendências contraditórias
impulsionaram a difusão da história da África na América do Norte. Das ideias
da comunidade afro -americana nasceu a sólida convicção de que a África era
propriedade dos povos africanos e de seus descendentes estabelecidos em outros
continentes, exatamente como na Europa as histórias nacionais tinham -se
tornado propriedade de cada nação europeia. Nesse sentido, a diferença implícita
entre os objetivos da história da África para os africanos” e da história da
África no contexto da história mundial” se manifestava com clareza. Diferença,
porém, não significa conflito. As duas histórias” não são incompatíveis, ainda
que tenham optado por acentuar diferentes aspectos do passado.
Em consequência disso, a tenncia ao etnocentrismo em hisria foi
mais seriamente abalada na América do Norte do que em outros lugares. Em
inúmeras escolas, a velha “história do mundo”, que não passava na realidade de
uma história da civilização ocidental, deu lugar nos anos 60 a novas tendências
mais autênticas de situar a história numa perspectiva mundial, em que a África
foi colocada em relação de igualdade com outras grandes zonas culturais, como
o sul ou o leste da Ásia. Numerosos departamentos de história de universidades
norte -americanas começaram a passar da antiga divisão entre história americana
e europeia a uma divisão da história em três ramificações, sendo que a terceira
a do Terceiro Mundo – se tornava igual às duas outras.
Essa evolução ainda não está terminada, mas, paralelamente à difusão da
história africana na Grã -Bretanha e na França e à reorientação do programa de
ensino de história nas universidades africanas, ela marca uma etapa no caminho
que assegurará à história africana seu pleno impacto sobre a história em geral. A
longo prazo, o êxito dependerá dos esforços conjuntos de especialistas africanos
ao escreverem a história de suas próprias sociedades, dos de historiadores não
58
Metodologia e pré -história da África
africanos que interpretam a história africana para outras sociedades e de uma
ampliação das ciências sociais internacionais até o ponto em que os especialistas
em outras disciplinas sejam obrigados a levar em consideração os dados africanos
antes de arriscarem qualquer generalização sobre a vida das sociedades humanas.
C A P Í T U L O 4
59
Fontes e técnicas especícas da história da África – Panorama Geral
As regras gerais da crítica histórica, que fazem da história uma técnica do
documento, e o espírito histórico, que pede o estudo da sociedade humana
em sua caminhada através dos tempos, são aquisições fundamentais utilizáveis
por todos os historiadores, em qualquer país. O esquecimento desse postulado
manteve durante muito tempo os povos africanos fora do campo dos historiadores
ocidentais, para quem a Europa era, em si mesma, toda a história. Na realidade,
o que estava subjacente e não se manifestava claramente, era a crença persistente
na inexistência de uma história na África, dada a ausência de textos e de uma
arqueologia monumental.
Portanto, parece claro que o primeiro trabalho histórico se confunde com o
estabelecimento de fontes. Essa tarefa está ligada a um problema teórico essencial,
ou seja, o exame dos procedimentos técnicos do trabalho histórico.
Sustentados por uma nova e profunda necessidade de conhecer e compreender
ligada ao advento da era pós -colonial, os pesquisadores fundaram definitivamente
a história africana, embora a construção de uma metodologia histórica ainda
prossiga. Setores imensos de documentação foram revelados, permitindo aos
pesquisadores formularem novas questões. Quanto mais os fundamentos da
história africana se tornam conhecidos, mais essa história se diversifica e se
constrói de diferentes formas, de modo inesperado. cerca de quinze anos
produziu -se uma profunda transformação dos instrumentos de trabalho e hoje
Fontes e técnicas especícas da história
da África Panorama Geral
T. Obenga
60
Metodologia e pré -história da África
se admite de bom grado a existência de fontes utilizadas mais particularmente
para a história africana: geologia e paleontologia, pré -história e arqueologia,
paleobotânica, palinologia, medidas de radiatividade de isótopos capazes de
fornecer dados cronológicos absolutos, geografia física, observação e análise
etno -sociológicas, tradição oral, linguística histórica ou comparada, documentos
escritos europeus, árabes, hindus e chineses, documentos ecomicos ou
demográficos que podem ser processados eletronicamente.
A variedade das fontes da história africana permanece extraordinária. Dessa
forma, devem -se buscar de forma sistemática novas relações intelectuais que
estabelam ligões imprevistas entre setores anteriormente distintos. A
utilização cruzada de fontes aparece como uma inovação qualitativa. Uma certa
profundidade temporal pode ser assegurada pela intervenção simultânea
de diversos tipos de fontes, pois um fato isolado permanece, por assim dizer,
à margem do movimento de conjunto. A integração global dos métodos e o
cruzamento das fontes constituem desde já uma eficaz contribuição da África à
ciência e mesmo à consciência historiográfica contemporânea.
A curiosidade do historiador deve seguir várias trajetórias ao mesmo tempo.
Seu trabalho não se limita a estabelecer fontes. Trata -se de se apropriar, através
de uma sólida cultura pluridimensional, do passado humano. Porque a história
é uma visão do homem atual sobre a totalidade dos tempos.
A maioria dessas fontes e técnicas específicas da história africana extraídas
das ciências matemáticas, da física dos átomos, da geologia, das ciências naturais,
das ciências humanas e sociais, estão amplamente descritas no presente volume.
Desse modo, insistiremos aqui nos aspectos e problemas não desenvolvidos em
outras partes.
Sem dúvida, o fato metodológico mais decisivo desses últimos anos foi a
intervenção das ciências físicas modernas no estudo do passado humano, com as
medidas de radiatividade dos isótopos, que asseguram a apreensão cronológica
do passado até os primeiros tempos do aparecimento do Homo sapiens (teste
do carbono 14) e das épocas anteriores a 1 milhão de anos (todo do
potássio -argônio).
Atualmente, esses métodos de datação absoluta abreviam de modo considerável
as discussões no campo da paleontologia humana e da pré ‑história
1
. Na África, os
hominídeos mais antigos datam de -5.300.000 anos pelo método K/Ar. Essa
é a idade de um fragmento de maxilar inferior com um molar intacto de um
1 BIRDSELL, J. B. 1972, p. 299.
61
Fontes e técnicas especícas da história da África Panorama Geral
hominídeo encontrado pelo professor Bryan Patterson, em 1971, em Lothagam
no Quênia. Por outro lado, os dentes de hominídeos encontrados nas camadas
villafranchianas do vale do Omo, na Etiópia meridional, pelas equipes francesas
(Camille Arambourg, Yves Coppens) e americana (F. Clark -Howell) têm 2 a
4 milhões de anos. O nível do Zinjanthropus (nível I) do célebre depósito de
Olduvai, na Tanzânia, data de 1.750.000 anos, sempre através do método do
potássio -argônio.
Assim, graças ao isótopo potássio -argônio, a gênese humana do leste africano,
a mais antiga de todas no estágio atual dos conhecimentos, constitui a gênese
humana propriamente dita, tanto mais que o monofiletismo é uma tese cada
vez mais amplamente admitida hoje na paleontologia geral. Em consequência,
os restos fósseis africanos conhecidos atualmente fornecem elementos decisivos
para responder a esta questão primordial das origens humanas, colocada de mil
maneiras ao longo da história da humanidade: “Onde nasceu o homem?
quanto tempo?”.
As velhas ideias estereotipadas, que colocavam a África praticamente à margem
do Império de Clio, estão agora completamente modificadas. Os fatos, postos
em evidência através de várias fontes e métodos desde a paleontologia humana
até a física nuclear mostram claramente, ao contrário, toda a profundidade
da história africana, cujas origens se confundem precisamente com as próprias
origens da humanidade.
As informações obtidas de outras fontes as ciências da Terra, por exemplo
iluminam igualmente a história da África, independentemente de qualquer
documento escrito. A vida e a história da população da bacia lacustre do Chade,
por exemplo, seriam dificilmente compreensíveis sem a intervenção da geografia
física. É conveniente ressaltar o valor metodológico desse enfoque.
Com efeito, a vida e os homens o se distribuem ao acaso na bacia do lago
Chade, que apresenta de forma esquemática o seguinte quadro hipsométrico:
uma planície central de acumulação situada entre 185 e 300 m de altitude;
em torno, um anel bastante descontínuo de velhos planaltos desgastados, cuja
peneplanização foi às vezes camuflada por atividades vulcânicas recentes; unindo
esses planaltos de, em média, 1000 m de altitude, e as zonas baixas de acumulação,
encostas geralmente íngremes afetadas por uma erosão ativa num clima úmido.
É precisamente a zona de solos detríticos bastante leves que recebe a chuva a que
apresenta a maior densidade demográfica, ou seja, de 6 a 15 hab/km
2
. Sob o clima
do Sahel ocorre ainda boa densidade nos aluviões fertilizados pelas infiltrações ou
inundações do Chade. Nos altos planaltos do leste e do sul, Darfur e Adamaua,
de onde descem os tributários do lago, a população reduz -se a 1 hab/km
2
. No
62
Metodologia e pré -história da África
norte, já saariano, a densidade diminui ainda mais. O aspecto humano da bacia
é, por consequência, estreitamente ligado a um problema de geografia física, de
geomorfologia, que condiciona o desenvolvimento humano.
Dessa forma, a civilização recuou diante do deserto. Ela retrocedeu até o limite
da área em que o milho -miúdo e o sorgo podem ser cultivados sem irrigação, na
latitude aproximada do Neo -Chade (as culturas irrigadas de legumes, tabaco,
trigo duro, são feitas às margens do Logone e do Chari). Agricultores, pastores
e pescadores vivem na zona meridional, onde as águas flúvio -lacustres fecundam
as terras, tornam verdes os pastos, atraem periodicamente uma multidão de
pescadores. Ao contrário, a erosão nas zonas desérticas setentrionais torna o solo
instável e a vegetação precária, caracterizada por arbustos espinhosos xerófilos.
Mas tais estruturas geomorfológicas condicionaram ainda outras atividades
humanas. Por exemplo, as invasões dos conquistadores expulsaram várias vezes
os agricultores autóctones dos planaltos salubres e das planícies férteis, fazendo-
-os recuar para as zonas (inclinações ou cumes) impróprias para a criação de
gado. Desse modo, os Fulbé empurraram os Bum e os Duru para os terrenos
menos férteis da Adamaua, e os Kiroi do norte de Camarões para os terrenos
graníticos do maciço montanhoso do Mandara. Ora, o trabalho nas terras dos
declives outrora submersos é certamente rude e ingrato para estes povos; mas
é o que melhor corresponde a suas ferramentas precárias. Por fim, a presença
periódica ou permanente de áreas palustres na zona de aluvião cria condições
para a exisncia de imensa quantidade de mosquitos (Anopheles gambiae).
Existem, por outro lado, focos da mosca tsé -tsé (Glossina palpalis) às margens do
Logone e do Chari, nas formações higrófilas baixas de Salix e Mimosa asperata
que cercam os depósitos recentes. A malária e a doença do sono, transmitidas
por tais insetos, transformam essas áreas em locais extremamente adversos.
Em resumo, para ter uma visão concreta da vida humana na bacia do Chade,
que conheceu antes várias flutuações quaternárias devidas a alterações de clima,
o historiador deve necessariamente valer -se de uma série de fontes e técnicas
particulares, extraídas das ciências da Terra e das ciências da vida, que a
atual distribuição das populações, seus movimentos migratórios passados, suas
atividades agrícolas, pastoris, etc., são estreitamente condicionadas pelo meio
ambiente.
O caso da bacia lacustre do Chade é apenas um exemplo entre outros. Todas
as vezes que a curiosidade científica se libertou de certos esquemas restritivos, os
resultados foram igualmente esclarecedores. Entre os Nyangatom ou Bumi do
vale do Omo, próximos dos Turkana do noroeste do Quênia, existe uma diferença
imunológica notável manifesta nos exames de sangue dos homens testados
63
Fontes e técnicas especícas da história da África Panorama Geral
(300 indivíduos em 1971 e 359 em 1972). Tal diferença não era observável
entre os sexos, mas entre as aldeias (que reúnem de 20 a 300 habitantes).
Essas aldeias, cuja população vive de criação, agricultura, coleta, caça e pesca,
obedecem a uma organização clânica rígida, acentuada por uma distribuição
em setores territoriais. Mas não existe nessa sociedade nenhum chefe acima
do membro mais velho. Desse modo, as diferenças originárias da organização
social territorial dos Nyangatom projetam -se na sorologia: o mapa das reações
dos soros aos antígenos arbovirais reproduz exatamente a distribuição territorial
das populações testadas
2
.
Esse exemplo de colaboração dinâmica entre o parasitólogo e o antropólogo
pode ser de grande utilidade para o historiador. É importante que ele saiba
da existência desse material documental, que pode revelar -se pertinente na
análise de comportamentos sexuais e no estudo do crescimento demográfico
dos Nyangatom.
O problema heurístico e epistemológico fundamental permanece sempre o
mesmo: na África, o historiador deve estar absolutamente atento a todos os tipos
de procedimentos de análise, para articular seu próprio discurso, fundamentando-
-se num vasto conjunto de conhecimentos.
Esta “abertura de espírito” é particularmente necessária quando se estudam
períodos antigos, sobre os quais não se dispõe nem de documentos escritos
nem mesmo de tradições orais diretas. Sabemos, por exemplo, que a base da
agricultura para os homens do Neolítico era o trigo, a cevada e o milhete, na Ásia,
na Europa e na África, e o milho, na América. Mas como identificar os sistemas
agrícolas iniciais, que surgiram tanto tempo? O que permitiria distinguir uma
população de predadores sedentários de uma de agricultores? Como e quando a
domesticação das plantas se difundiu nos diversos continentes? Quanto a isso,
a tradição oral e a mitologia prestam apenas uma pequena ajuda. Unicamente
a arqueologia e os métodos paleobotânicos podem dar uma resposta válida a tais
questões importantes, relativas a essa inestimável heraa neolítica que é a
agricultura.
A película externa do pólen é muito resistente ao tempo num solo favorável,
o ácido. A paleopalinologia fornece uma análise microscópica de tais
vestígios botânicos. Os grãos de pólen fósseis podem ser recolhidos dissolvendo
progressivamente uma amostra de terra com o emprego de ácidos quentes (ácido
fluorídrico ou clorídrico), que eliminam o silício e o calcário sem atacar o pólen,
2 Trabalhos de François RODHAIN, entomologista, e de Serge TORNAY, etnólogo, membros da missão
francesa do Omo, dirigida por M. Yves COPPENS (1971, 1972).
64
Metodologia e pré -história da África
e em seguida os húmus orgânicos (potássio). O resíduo, centrifugado e colorido,
é então colocado em gelatina, restando ao operador apenas reconhecer e contar
cada grão para construir uma tabela de porcen tagem. Esta fornece o perfil
polínico do sedimento estudado. Dessa forma, pode -se detectar a presença da
agricultura num sítio, precisar a evolução da paisagem, diagnosticar o clima
através das variações da vegetação e determinar a eventual ação do homem e
dos animais sobre a cobertura vegetal.
Tais alises permitiram revelar atividades de domesticão de plantas
alimentícias na África, atividades essas centralizadas em rios pontos e
difundidas por diversas regiões. O sorgo (inicialmente domesticado na savana que
se estende do lago Chade à fronteira entre o Sudão e a Etiópia), o milho -miúdo,
o arroz africano, a voandzeia, a ervilha forrageira, o dendezeiro (domesticado
na orla das florestas), o finger millet, o quiabo e o inhame africano eram as
principais plantas cultivadas na época.
As plantas americanas foram introduzidas relativamente pouco tempo,
como atestam desta vez certas fontes escritas. A mandioca, por exemplo,
hoje o alimento básico de vários povos da África central, penetrou o reino
do Kongo pela costa atlântica depois do século XVI. Com efeito, entre as
plantas cultivadas no planalto de Mbanza Congo, capital do reino, a Relação de
Pigafetta -Lopez (1591) menciona apenas o luko, isto é, a Eleusine coracana, cuja
semente é originária das margens do Nilo, na região em que este rio desemboca
no segundo lago
3
; o masa ma Kongo, uma gramínea que é uma espécie de sorgo;
o milho, masangu ou ainda masa ma Mputu, que é o menos apreciado e com o
qual se alimentam os porcos”
4
; o arroz, loso, que “também não tem muito valor
5
;
enfim, a bananeira, dikondo, e o dendezeiro, ba.
Fato menos conhecido, as plantas africanas também se difundiriam para
fora do continente. É certo que algumas escies africanas se expandiram
para a Índia, por exemplo, e para outras regiões asiáticas, embora em época
tardia. Com efeito, as duas espécies de milho -miúdo (milhete e finger millet)
são comprovadas arqueologicamente na Índia por volta do ano 1000 antes da
Era Cristã. O sorgo seria conhecido nessa região posteriormente, porque o
sânscrito não possui uma palavra para designá -lo.
3 PIGALETTA -LOPEZ. 1591, p. 40: Venendo sementa dal ume Nilo, in quella parte dove empie il
secondo lago”.
4 PIGAFETTA -LOPEZ. ibid.: “Ed il maiz che è il più vile de tutti, che dassi à porci”.
5 PIGAFETTA -LOPEZ. ibid.: “il roso e in pocco prezzo”.
65
Fontes e técnicas especícas da história da África Panorama Geral
Na ausência de qualquer documento escrito ou tradição oral, essas informações
da arqueologia e da paleobotânica podem informar o historiador sobre a série
de etapas que fizeram nossos ancestrais neolíticos passarem de uma economia
de coleta a uma economia de produção. Além disso, esses fatos evidenciam
por si mesmos um fluxo de relações entre as civilizações neolíticas, e não um
difusionismo.
Restos de cães, porcos, carneiros e cabras sugerem que a domesticação de
animais começou, nos centros neolíticos do Oriente Próximo, mais ou menos
na mesma época que a cultura das plantas, entre 9000 e 8000 antes da Era
Cristã. A partir disso, foi proposta uma cronologia teórica da domesticação dos
diferentes grupos de animais. De início, os necrófagos, como o cão; em seguida,
os animais nômades, como a rena; a cabra e o carneiro; e por fim os animais para
os quais se impõe uma vida sedentária: o gado grosso e os porcos. Os animais
que podem servir de meio de transporte, como o cavalo, o asno e a lhama, teriam
sido domesticados em último lugar. Esta cronologia geral, porém, não se refere
sempre à África.
O cavalo, que, como o boi e o asno, desempenhou um papel de “motor da
história” através dos tempos, aparece na África, precisamente no Egito, no
fim da invasão dos hicsos, cerca de 1600 antes da Era Cristã; como atestam
fontes iconográficas e da Sagrada Escritura. Por volta do século XIII antes da
Era Cristã, ele foi transmitido, como animal de guerra, aos líbios e mais tarde,
no início do primeiro milênio, aos núbios. Com exceção das áreas atingidas pela
civilização romana, o resto da África utilizaria amplamente o cavalo a partir
das conquistas árabes na Idade Média. Dois cavalos selados e arreados, ladeados
por dois carneiros, faziam parte dos emblemas do rei do Mali, de acordo com o
relato do escritor Ibn Battuta (1304 -1377).
Quanto ao dromedário, o camelo de uma corcova, sua chegada à civilização
africana também não é tardia. Esse animal aparece de forma suficientemente
clara numa pintura rupestre, no Saara chadiano, no século III antes da Era
Cristã. Os homens de Cambises o introduziram em 525 antes da Era Cristã no
Egito, onde ele desempenharia importante papel nas comunicações entre o Nilo
e o mar Vermelho. Sua penetração no Saara Ocidental ocorreu mais tarde. De
fato, o camelo, que é essencialmente um animal do deserto, onde substitui com
frequência o boi e o asno, foi difundido no Magreb ao que parece pelas tropas
romanas de origem síria. Os berberes, refratários à paz romana e a sua forma
de organizar a posse da terra, emanciparam -se graças ao camelo. Ele permitiu-
-lhes estabelecerem -se além do limes, nas estepes e nos desertos. Os negros
66
Metodologia e pré -história da África
sedentários dos oásis foram imediatamente repelidos para o sul ou reduzidos à
escravidão.
Tendo em vista tudo o que foi exposto acima, chega -se a uma conclusão que
constitui um avanço metodológico decisivo: um vasto material documental, rico
e variado, pode ser obtido a partir das fontes e técnicas baseadas nas ciências
exatas e nas ciências naturais. O historiador se obrigado a desenvolver esforços
de investigação por vezes audaciosos. Todos os caminhos que se abrem estão
doravante entrelaçados. O conceito de “ciências auxiliares” perde cada vez mais
terreno nesta nova metodologia, exceto se entendermos por ciências auxiliares da
história”, as técnicas fundamentais da pesquisa histórica, originárias de qualquer
campo científico e que, de resto, não foram ainda totalmente descobertas. De
agora em diante, as técnicas de investigação são parte da prática histórica e
fazem com que a história se incline de forma concreta para o lado da ciência.
Dessa forma, a história se beneficia das conquistas das ciências da Terra e
das ciências da vida. Todavia, seu aparato de pesquisa e de crítica se enriquece
sobretudo com a contribuição das outras ciências humanas e sociais: egiptologia,
linguística, tradição oral, ciências econômicas e políticas.
Até hoje a egiptologia permanece uma fonte insuficientemente utilizada pela
história da África. É conveniente, portanto, insistir no assunto. A egiptologia
compreende a arqueologia histórica e a decifração dos textos. Nos dois casos, o
conhecimento da língua egípcia é um pré -requisito indispensável. Esse idioma,
que permaneceu vivo durante cerca de 5000 anos (se levarmos em consideração
o copta), apresenta -se materialmente sob três escritas distintas:
• Escrita hieroglífica, cujos signos se dividem em duas grandes classes: os
ideogramas ou signos -palavras (por exemplo, o desenho de um cesto de vime
para designar a palavra “cesto”, cujos principais componentes fonéticos são
nb) e os fonogramas ou signos -sons (por exemplo, o desenho de um cesto, do
qual se retém o valor fonético nb e que serve para escrever outras palavras
diferentes de cesto mas que têm o mesmo valor fonético: nb, “senhor”; nb,
“tudo”). Os fonogramas, por sua vez, classificam -se em: trilíteros, signos que
combinam três consoantes; bilíteros, signos que combinam duas consoantes;
unilíteros, signos que contêm uma vogal ou consoante: trata -se, nesse
caso, do alfabeto fonético egípcio.
• Escrita hierática, ou seja, a escrita cursiva dos hieróglifos, que apareceu em
torno da III dinastia ( -2778 a -2423); é sempre orientada da direita para a
esquerda e traçada com um cálamo sobre folhas de papiro ou fragmentos de
67
Fontes e técnicas especícas da história da África Panorama Geral
cerâmica e de calcário. Teve uma duração tão longa quanto a dos hieróglifos
(o texto hieroglífico mais recente data de +394).
• Escrita demótica, uma simplificação da escrita hierática, surgiu em torno
da XXV dinastia ( -751 a -656), deixando de ser usada no século V. No
plano estrito dos grafemas, reconhece -se uma origem comum entre a escrita
demótica egípcia e a escrita meroítica núbia (que veicula uma língua ainda
não decifrada).
Considerando apenas esse nível do sistema gráfico egípcio, se colocam
interessantes questões metodológicas. Isso porque, através de uma tal convenção
gráfica, dotada de fisionomia própria, o historiador que se torna um pouco
decifrador capta por assim dizer a consciência e a vontade dos homens de
outrora, que o ato material de escrever traduz sempre um valor profundamente
humano. Com efeito, decifrar é dialogar, graças a um esforço constante de rigor
e de objetividade. Além disso, a diversidade, as complicações e as simplificações
sucessivas do sistema gráfico egípcio constituem em si mesmas parte da história:
a história das decifrações, uma das fontes essenciais de toda historicidade. Assim,
com o sistema gráfico egípcio a África toma um lugar importante nos estudos
gerais sobre a escrita, vista como um sistema de signos e de intercomunicação
humana
6
.
O problema da difusão da escrita egípcia na África negra amplia ainda mais
o aparato metodológico do historiador, abrindo perspectivas totalmente novas
à pesquisa histórica africana. Os fatos que se seguem referem -se a esse aspecto.
Os gicandi constituem um sistema ideográfico utilizado outrora pelos Kikuyu
do Quênia. Os pictogramas desse sistema oferecem notáveis analogias com os
pictogramas egípcios. Também a semelhança estrutural entre os pictogramas
nsibidi do território dos Efik (sudeste da Nigéria) e os pictogramas egípcios foi
reconhecida e assinalada desde 1912 por um especialista britânico, P. Amaury -
Talbot. Muitos dos hieróglifos epcios apresentam ainda um parentesco
escritural claro com os signos da escrita mende do sul de Serra Leoa. Fenômeno
semelhante ocorre com a maioria dos signos da escrita loma do norte da Libéria.
Existe ainda uma indubitável conexão causal entre os hieróglifos egípcios e vários
signos da escrita vai das proximidades de Monróvia (Libéria). A escrita dos
Bamun de Camarões, que inclui mais de dois sistemas gráficos, também oferece
analogias admiráveis, externas é verdade, com os hieróglifos do vale do Nilo.
Como no Egito, os hieróglifos dogon, bambara e bozo podem ser decompostos
6 DORLHOFER, E. 1959.
68
Metodologia e pré -história da África
e, portanto, analisados. Mas o fato mais significativo é que estes signos do oeste
africano fazem com que as coisas e os seres escritos com sua ajuda tomem
consciência de si mesmos, concepção típica do poder transcendente da escrita,
que encontramos literalmente no Egito, na grafia de certos textos relativos ao
destino depois da morte.
Assim, permanece grande a possibilidade de ver nascer e se desenvolver
uma epigrafia e uma paleografia absolutamente desconhecidas até aqui e cujo
objeto será o estudo rigoroso das relações mútuas entre as famílias escriturais
da África negra. O historiador tiraria proveito disso, que, através da história
da escrita e das decifrações surge a história dos homens responsáveis por essas
grafias. O exame dos sistemas gráficos é em si mesmo uma fonte preciosa da
história. O historiador, porém, que nunca deve perder o sentido do tempo,
não pode esperar revelações antigas dessas escritas em geral recentes. Sua
importância revela sobretudo a estranha profundidade temporal do impacto
egípcio. Aparentemente desaparecida desde 394 da Era Cristã, a escrita egípcia
nos apresenta, sem descontinuidade, diversos ressurgimentos, do século XVII
ao século XIX. A ruptura entre a antiguidade e o passado recente da África não
passa portanto de uma ilusão de nossa ignorância; uma via subterrânea une de
facto esses dois pólos.
Conhecer a escrita egípcia, decifrar os textos, é ter acesso direto à língua
faraônica. É recomenvel que o historiador recorra sempre que posvel
aos textos originais, pois as traduções, mesmo as melhores, raramente são
irrepreenveis. O historiador que conhece a ngua egípcia pode assim ler
diretamente os numerosos e variados textos do Egito antigo: estelas funerárias,
inscrições monumentais, atas administrativas, hinos religiosos, obras filosóficas,
tratados de medicina e matemática, composições literárias (romances, contos e
fábulas).
Uma série de textos mostra claramente que a barreira que se supunha existir
entre o Egito faraônico e as demais regiões africanas vizinhas em épocas remotas
não está de acordo com a materialidade dos fatos.
Pode -se mencionar neste sentido a carta que Neferkarê (Pépi II), faraó da
VI dinastia, enviou por volta de 2370 antes da Era Cristã a Herkhouf, chefe de
uma expedição econômica feita às regiões meridionais afastadas a Terra do Fim
do Mundo”, como diz o texto referindo -se provavelmente à região dos grandes
lagos africanos. Um pigmeu havia sido trazido dessa longínqua expedição,
que foi a quarta de uma série. Um outro texto egípcio, O Conto do Náufrago,
datado do século XX antes da Era Cristã (no princípio da XII dinastia) fornece
informações precisas e muito interessantes sobre a vida dos marinheiros dessa
69
Fontes e técnicas especícas da história da África Panorama Geral
época, a navegação no mar Vermelho, as relações econômicas entre a costa
oriental africana e o vale do Nilo. A rainha Hatshepsut, que ocupou o trono
egípcio durante 21 anos (1504 -1483), organizou várias expedições comerciais,
entre as quais se destaca a do ano 9 de seu reinado, que se dirigiu à região de
Punt (costa somaliana); essa expedição é representada nos esplêndidos baixos-
-relevos de Deir el -Bahari, no Alto Egito.
Existe uma nova linha de pesquisa, que não pode deixar indiferente o
historiador da África. É possível avaliar a importância de introduzir o ensino
do egípcio antigo nas universidades africanas. Tal ensino deve contribuir
sobremaneira para o estudo vivo do patrimônio cultural africano em toda a sua
profundidade espacial e temporal.
Em relação ao parentesco linguístico do egípcio antigo, afirma o relatório
final do importante simpósio internacional sobre O Povoamento do Egito Antigo
e a Decifração da Escrita Meroítica (Cairo, 28 de janeiro 3 de fevereiro de 1974):
“O egípcio não pode ser isolado do seu contexto africano e o semítico não
conta de seu surgimento; é legítimo portanto encontrar seus pais ou primos na
África” (relatório final, p. 29, 5).
Em termos claros, a língua faraônica não é uma língua semítica. Convém, por
conseguinte, abandonar a orientação que atribui ao antigo egípcio parentesco
com o “camito -semítico ou o afro -asiático”, seguida por certos autores que, em
geral, não são nem estudiosos do semítico nem egiptólogos.
O problema fundamental consiste em aproximar, através de técnicas
linguísticas apropriadas, o antigo egípcio e as línguas atuais da África negra,
para reconstituir, na medida do possível, formas anteriores comuns a partir
de correspondências e comparações morfológicas, lexicológicas e fonéticas.
Uma tarefa gigantesca espera o linguista. Também o historiador deverá estar
preparado para uma radical mudança de perspectiva quando for desvendada
uma macroestrutura cultural comum entre o Egito farnico e o resto da
África negra. Essa relação é, no sentido matemático dos termos, uma evidência
intuitiva que espera uma demonstração formal. Mas aqui, mais do que em outros
lugares, o historiador e o linguista são obrigados a trabalhar juntos. Isso porque a
linguística é uma fonte histórica, particularmente na África, onde as numerosas
línguas se imbricam.
Trata -se sobretudo da linguística comparativa ou histórica. O todo
empregado é comparativo e indutivo, pois o objetivo da comparação é reconstruir,
isto é, procurar o ponto de convergência de todas as línguas comparadas. Este
ponto de convergência será chamado de língua comum pré -dialetal”. Mas é
preciso ser muito prudente. O bantu comum”, por exemplo, reconstruído a
70
Metodologia e pré -história da África
partir do estudo cuidadoso de diversas línguas hoje encontradas, não é nem uma
língua antiga nem uma língua real, recuperada em todos os seus componentes.
O termo “bantu comum ou proto -bantu” designa apenas o sistema constituído
pelos elementos comuns às línguas bantu conhecidas; tais elementos remontam
a uma época em que essas línguas eram quase idênticas. O mesmo ocorre com
o indo -europeu”, por exemplo. No vel estrito da realidade, a arqueologia
linguística é, no limite, uma pura ilusão, porque, da época mais antiga, pré-
-histórica, em que se falava a língua comum recuperada, não subsiste nenhum
traço histórico ou linguístico.
O interesse da linguística histórica reside menos em reencontrar uma
língua comum pré -dialetal do que em detectar, por assim dizer, a amplitude
linguística total de diversas línguas aparentemente estranhas umas às outras.
Muito raramente uma ngua se encerra num espo claramente definido.
Na maioria das vezes, ela ultrapassa sua própria área, mantendo com outras
línguas mais ou menos distantes relações às vezes imperceptíveis à primeira
vista. O grande problema subjacente é, evidentemente, o do deslocamento das
populações. Uma comunidade linguística não se confunde forçosamente com
uma unidade racial. No entanto, ela fornece informações pertinentes sobre
uma unidade essencial, na verdade a única: a unidade cultural básica que existe
entre os povos linguisticamente unidos, mesmo que tais povos tenham às vezes
origens muito diversas e sistemas políticos completamente diferentes. A família
“Níger -Congo”, por exemplo, embora não tenha sido ainda bem estabelecida,
aponta a existência de laços socio culturais muito antigos entre os povos do
oeste atlântico, os povos Mande, Gur e Kwa, os povos situados entre o Benue e
o Congo (Zaire ), os povos do Adamaua oriental e os Bantu, da África central,
oriental e meridional.
A linguística histórica é portanto uma fonte preciosa da história africana,
assim como a tradição oral, que foi durante muito tempo desprezada. Ora, às
vezes a tradição oral constitui a única fonte imediatamente disponível. É o caso,
por exemplo, dos Mbochi do Congo. A história de suas diferentes chefias
pode ser reconstituída, no espaço e no tempo (um tempo relativamente curto, é
verdade), com a ajuda da tradição oral. Esta pode também resolver uma questão
onde o documento escrito permanece impotente. Os cronistas (Delaporte, 1753;
Droyat, 1776) são unânimes em afirmar que os reis de Loango (África central
ocidental) eram sepultados em dois cemitérios distintos: em Lubu e Luandjili.
Quando e por que ocorreu uma tal distinção? A esse respeito, os documentos
escritos até hoje conhecidos permanecem mudos. a tradição oral dos Vili
atuais permite explicar essa dualidade. De acordo com ela, foi uma querela
71
Fontes e técnicas especícas da história da África Panorama Geral
 . Baixo -relevo do Museu de Abomey (Foto Nubia).
extremamente violenta entre a corte de Maloango e os habitantes de Luandjili,
uma rica província do reino, que levou o rei e os príncipes da época a mudarem
o lugar da sepultura. O cemitério de Luandjili foi então abandonado em favor
do de Lubu. Neste caso, a tradição oral presta uma contribuição valiosa ao
documento escrito. Na África existem inúmeros casos em que a tradição oral
orienta, por assim dizer, a escavação arqueológica, esclarecendo paralelamente a
crônica escrita. Durante as escavações de Tegdaoust, cidade do reino de Gana
72
Metodologia e pré -história da África
(Sudão ocidental), conduzidas no fim de 1960 pelos professores J. Devisse,
D. e S. Robert, então na Universidade de Dacar, os pesquisadores exploraram
simultânea e combinadamente as tradições locais, as crônicas árabes medievais
e as técnicas propriamente arqueológicas. Assim, um período mal conhecido
da história africana (do século VII ao XIII) pôde ser restituído à memória dos
homens, graças evidentemente à própria arqueologia, mas também, em parte, à
tradição local e aos documentos escritos.
Esses exemplos, que poderíamos multiplicar, mostram que na África, mais
do que em outros lugares, a tradição oral é parte integrante da base documental
do historiador, que desse modo se amplia. A história africana não pode mais
ser feita como no passado, quando a tradição oral – que é uma manifestação do
tempo – era afastada da investigação histórica.
Não foi ainda suficientemente destacado um ponto importantíssimo: de um
lado, a maneira como a tradição oral apresenta o tempo, e de outro, a maneira
como ela apresenta os acontecimentos atras do tempo. De que modo o
griot apresenta a história? Essa é a questão decisiva. O griot africano quase
nunca trabalha com uma trama cronológica. Ele o apresenta a sequência
dos acontecimentos humanos com suas acelerações ou seus pontos de ruptura.
O que ele diz e reconstitui merece ser escutado em perspectiva e não pode
ser de outra forma. O griot se interessa pelo homem apreendido em sua
existência, como condutor de valores e agindo na natureza de modo intemporal.
É por isso que ele não se dispõe a fazer a síntese dos diversos momentos da
história que relata. Trata cada momento em si mesmo, com um sentido próprio,
sem relações precisas com outros momentos. Os momentos dos fatos relatados
são descontínuos. Trata -se, a rigor, da história absoluta. Essa história que
apresenta sem datas e de modo global, estágios de evolução, é simplesmente a
história estrutural. Os afloramentos e as emergências temporais denominadas
em outros lugares “ciclo (ideia de círculo), período” (ideia de espaço de tempo),
época” (ideia de parada ou de momento marcado por algum acontecimento
importante), “idade (ideia de duração, de passagem do tempo),série” (ideia de
sequência, de sucessão), momento (ideia de instante, de circunstância, de tempo
presente), etc., são praticamente deixadas de lado pelo griot africano, enquanto
expressões possíveis de seu discurso. É claro que ele não ignora nem o tempo
cósmico (estações, anos, etc.) nem o passado humano, que o que ele relata é,
de fato, passado. Mas lhe é bastante difícil esboçar um modelo do tempo. Ele
oferece de uma vez toda a plenitude de um tempo.
Ainda no domínio das ciências humanas e sociais, a contribuão dos
sociólogos e cientistas políticos permite redefinir o saber histórico e cultural.
73
Fontes e técnicas especícas da história da África Panorama Geral
Com efeito, os conceitos de “reino”,nação”, “Estado”, “império”,democracia”,
“feudalismo”, partido político”, etc., utilizados em outros lugares certamente
de maneira adequada, nem sempre são automaticamente aplicáveis à realidade
africana.
O que se deve entender, exatamente, por “reino do Kongo”, por exemplo? O
próprio povo usa a expressão nsi a Kongo, literalmente,o país (nsi) dos Kongo”.
Temos então um grupo étnico (os Kongo), uma região (nsi) e a consciência
que tal grupo tem de habitar essa região, que assim se torna o país (nsi) do
grupo étnico em questão. Os limites ou fronteiras são bastante fluidos, pois
são função da dispersão dos clãs e subgrupos da etnia considerada. A palavra
reino corresponde aqui a um território habitado exclusivamente por homens e
mulheres pertencentes a uma mesma etnia. A homogeneidade étnica, linguística
e cultural é essencial. O rei” (mfumu) é na realidade o mais velho (mfumu), o
tio materno (mfumu) de todas as famílias (nzo) e de todos os clãs matrilineares
(makanda) que reconhecem ancestrais fundadores comuns (bankulu mpangu).
Quando se examina a realidade mais de perto, o “reino do Kongo” resume-
-se, em definitivo, a uma vasta chefia, isto é, a um sistema de governo que
engloba pequenas chefias locais. O “rei” é o mais velho dos anciãos, o tio materno
mais idoso entre os vivos; por isso é um ntinu, “chefe supremo”. A expressão
reino do Kongo não designa, portanto, um Estado governado por um rei, no
sentido ocidental. Além do mais, esse sentido ocidental (reino de Luís XIV, por
exemplo) é um sentido espúrio, tardio, inadequado, em suma, um caso particular
de passagem do Estado a Estado nacional através da monarquia “absoluta”.
Ao contrário, o “reino de Danxome” (atual Benin) aproxima -se mais do tipo
de monarquia absoluta, desastrosamente encarnada, na França, pelos reinados
de Henrique IV a Luís XVI. Existe, com efeito, um terririo principal e
permanente, que, como assinala o professor M. Glélé, possui uma administração
central: o rei e seus ministros e os delegados dos ministros. O rei é a própria
essência do poder. Ele detém todos os atributos de autoridade e comando. Tem
direito de vida e morte sobre seus súditos, os anato, pessoas do povo”, entre
as quais o rei, senhor e proprietário de todas as riquezas (dokunno), escolhia e
recrutava os glesi, isto é, os agricultores que ele destinava aos seus domínios ou
oferecia como presente aos príncipes e chefes. O poder central era exercido nas
aldeias e regiões pelos chefes, em nome do rei. O “reino de Danxome” apresenta-
-se portanto como uma organização estatal fortemente centralizada, na qual
se insere o sistema de descentralização administrativa constituído pela chefia.
Existe assim um poder central que controla um povo (os Danxomenu) através
74
Metodologia e pré -história da África
das chefias. No curso da história e ao acaso das conquistas, países anexados se
unirão ao antigo núcleo étnico, ao território permanente.
Houve então, num dado momento, um processo de conquista e aculturação-
-assimilação entre os povos aparentados e vizinhos (Fon, Mahi, Alada, Savi,
Juda, etc.). O “reino torna -se, a partir daí, um Estado pluriétnico, estruturado e
centralizado graças a uma forte organização administrativa e militar, e também
a uma economia dirigida e dinâmica. Às vésperas da penetração colonial, o
reino de Danxome constituía um verdadeiro Estado -Nação, onde o diálogo e
a palavra, a adesão das populações (através das chefias), eram um princípio de
governo.
A palavra “reino não tem portanto a mesma aceão em toda a África.
Nesse sentido, os dois exemplos dados, do Kongo e de Danxome, são bastante
elucidativos. É necessário, por conseguinte, que o historiador seja bastante
cuidadoso ao empregar esse termo. Deve -se notar ainda que, enquanto no Kongo
a chefia corresponde a um sistema de governo, no antigo reino de Danxome
(Abomey), ela é um modo de descentralização administrativa.
Quanto ao termo “feudalismo”, no campo de observação constituído pela
Europa ocidental (não entendida apenas em seus limites geográficos), pode-
-se compreendê -lo no sentido dos medievalistas com tendência jurídica: o
feudalismo é o que se refere ao feudo (surgido em torno dos séculos X -XI) e
o conjunto de relações (lealdade, homenagem e obrigações) que liga o vassalo
ao senhor, proprietário do domínio. Os camponeses, que não fazem parte da
camada superior da sociedade, não são considerados nesta acepção da palavra.
Os marxistas, ao contrio, dão um sentido mais amplo ao vocábulo
feudalismo”: é um modo de produção caracterizado pela exploração econômica
das classes inferiores (os servos) pelas classes dirigentes (os senhores feudais). Os
servos estão ligados à gleba e dependem do senhor. Este o pode mais matar
o servo, mas pode vendê -lo (propriedade limitada ao trabalhador). A servidão
substitui a escravidão, mas muitos aspectos da condição desta última estão ainda
presentes. Os servos, ou os camponeses, não estão associados à geso dos negócios
públicos e também não assumem funções administrativas. Do ponto de vista da
evolução das sociedades europeias, o regime feudal é uma etapa intermediária no
processo de formação da economia capitalista. No entanto, muitos marxistas ainda
misturam a noção política de feudalismo e a noção socio econômica de senhoria,
que, graças a Marx, os historiadores aprenderam a distinguir desde 1847.
Seja qual for o sentido em que o termo é empregado, pode -se dizer que os
regimes medievais europeus se assemelham aos da África negra pré -colonial?
Só os estudos sociais comparativos (ainda bastante raros) poderão fornecer
75
Fontes e técnicas especícas da história da África Panorama Geral
respostas adequadas a esta questão e estabelecer as distinções necessárias. O
caráter “feudal” da organização dos Bariba (Daomé) já foi assinalado, sobretudo
como hipótese de trabalho. O estágio pouco avançado das pesquisas sobre a
questão do “feudalismo na África negra exige do historiador uma prudência
maior. E parece que as tendências “feudais” apresentadas pelas sociedades da
África negra não devem ser definidas em relação a direitos reais devidos à
atribuição de um “feudo”, mas sobretudo em relação a uma forma de organização
política baseada num sistema de relações sociais e econômicas particulares.
Dessa forma, as análises dos sociólogos e cientistas políticos podem constituir
fontes exploveis pelo historiador. Os “arquivos do historiador, na África,
variam enormemente em função dos materiais e períodos históricos, e também
da curiosidade do próprio historiador.
Na África, as séries documentais são estabelecidas pelos mais diversos tipos
de ciências – exatas, naturais, humanas e sociais. O relato histórico renovou -se
completamente, na medida em que a metodologia consiste em empregar várias
fontes e técnicas particulares ao mesmo tempo e de modo cruzado. Informações
fornecidas pela tradão oral, os raros manuscritos árabes, as escavações
arqueológicas e o método do carbono residual ou carbono 14 reintroduziram
definitivamente o legendário povo Sao (Chade, Camarões, Nigéria) na história
autêntica da África. A colina de Mdaga, na República do Chade, foi ocupada
por um longo período – durante cerca de 2500 anos, do século V antes da Era
Cristã à metade do século XIX da Era Cristã. Sem a exploração global e cruzada
de fontes tão diversas, teria sido totalmente impossível chegar a conclusões de
tal modo pertinentes e inesperadas.
As nões clássicas da crítica histórica, tais como “ciências auxiliares”,
escolha de fontes”, “materiais históricos nobres”, etc., são doravante abolidas da
pesquisa histórica africana, o que assinala uma importante etapa na historiografia
contemporânea.
A prática da história na África torna -se um permanente diálogo interdisciplinar.
Novos horizontes se esboçam graças a um esforço teórico inédito. A noção de
“fontes cruzadas” exuma, por assim dizer, do subsolo da metodologia geral, uma
nova maneira de escrever a história. A elaboração e a articulação da história da
África podem, consequentemente, desempenhar um papel exemplar e pioneiro
na associação de outras disciplinas à investigação histórica.
C A P Í T U L O 5
77
As fontes escritas anteriores ao século XV
A noção de fonte escrita é o ampla que chega a se tornar ambígua.
Se entendemos como escrito tudo o que serve para registrar a voz e o som,
seremos forçados então a incluir no testemunho escrito as inscrições gravadas
na pedra, disco, moeda… em suma, toda mensagem que fixa a linguagem e o
pensamento, independentemente de seu suporte
1
. Isto nos levaria a aludir neste
capítulo à numismática, à epigrafia e outras ciências “auxiliares” que, a rigor, se
tornaram independentes da esfera do texto escrito. Portanto, restringiremos
nossa investigação ao que é traçado ou impresso em signos convencionais sobre
qualquer tipo de suporte: papiro, pergaminho, osso, papel. Trata -se, já, de um
imenso campo de pesquisas e de reflexões: primeiramente, porque cobre um
período que começa com a invenção da escrita e termina no limiar dos Tempos
Modernos (século XV); depois, porque abrange um continente inteiro, com
diversas civilizações justapostas e sucessivas; e, por fim, porque as fontes são de
línguas, tradições culturais e tipos diferentes.
Examinaremos os problemas gerais suscitados por essas fontes (análises por
períodos, regiões, tipos), antes de estabelecer um inventário crítico.
1 DAIN, A. 1961, p. 449.
As fontes escritas anteriores
ao século XV
H. Djait
78
Metodologia e pré -história da África
Problemas gerais
Não existe até o momento, nenhum estudo do conjunto das fontes escritas da
história da África. Por razões de especialização cronológica ou regional, os raros
estudos realizados têm sido associados a campos específicos da pesquisa científica.
Assim, o Egito faraônico é domínio do egiptólogo, o Egito ptolomaico e romano,
do classicista, o Egito muçulmano do islamista: três períodos, três especialidades,
das quais apenas uma se origina do que é especificamente egípcio; as outras duas
navegam em órbitas mais vastas (o mundo clássico, o Islã). O mesmo acontece
com o Magreb, ainda que o especialista em civilização púnica seja ao mesmo
tempo um orientalista e um classicista, e que o estudioso da civilização berbere
seja marginal e inclassificável. O domínio da África negra, também variado,
abrange diferentes línguas e especialidades: fontes clássicas, árabes e fontes
propriamente africanas. Mas, embora encontremos a mesma trilogia do norte
do Saara, aqui ela não tem nem a mesma amplidão nem significação análoga.
Existe uma imensa área onde, antes do século XV, inexiste fonte escrita; ocorre
também que determinada fonte árabe, de segunda ordem para o Magreb, por
exemplo, adquire importância capital para a bacia do Níger. O historiador da
África negra, ao examinar um documento escrito em árabe, não o faz da mesma
maneira que o historiador do Magreb, ou que o historiador do Islã em geral.
Tais limitações e interferências traduzem a estrutura objetiva da história da
África, e também a orientação da ciência histórica moderna desde o século XIX.
É um fato que o Egito foi integrado ao mundo helenístico, ao Império Romano,
a Bizâncio e que, convertido ao Islã, se tornou um foco radiante. Também é
um fato que os Clássicos consideraram a história da África como ilustração
da história de Roma e que uma determinada África estava profundamente
envolvida no destino da civilização romana. Mas não se pode esquecer que
mesmo o historiador moderno da África romana é romanista em primeiro lugar
e africanista em segundo, e que o aspecto islâmico é excluído de seu campo
epistemológico.
Assim, apreender a história da África como um todo e considerar, nessa perspectiva,
suas fontes escritas, continua a ser tarefa delicada e particularmente difícil.
O problema da periodização
Como se justificaria, no estudo das fontes escritas, uma cesura localizada no
início do século XV? Seria porque a massa documentária de que dispomos, não
obstante as disparidades culturais e temporais, guardasse uma certa unidade
79
As fontes escritas anteriores ao século XV
estrutural interna? Ou seria pelo desenvolvimento da própria história geral,
que, amalgamando Antiguidade e Idade Média num único longo período, as
separaria de uma Idade Moderna nitidamente diferente de tudo que a precedeu?
Na verdade, os dois argumentos se sustentam e se completam: as fontes
antigas e medievais caracterizam -se por sua escrita literária; são testemunhos
conscientes em sua maioria, sejam anais, crônicas, viagens ou geografias.
a partir do século XV, tornam -se abundantes as fontes arquivísticas, que são
testemunhos inconscientes. Por outro lado, se até então a predominância era de
textos “clássicos” e árabes, a partir do século XV as fontes árabes esgotam -se, e
passamos a encontrar evidências de diferentes origens: o documento europeu
(italiano, português, etc.) e, para a África negra, o documento autóctone. Mas
essa mudança de natureza e de procedência das fontes traduz também uma
mutação no destino histórico real da África. O século XV é o século da expansão
europeia
2
, os portugueses chegam às costas da África negra em 1434; vinte anos
antes (1415), haviam se estabelecido em Sebta (Ceuta)
3
. No que diz respeito
à orla mediterrânica e islâmica da África (Magreb, Egito), entretanto, a ruptura
entre duas idades históricas já aparece no século XIV, quando essa região sentia
os efeitos da lenta expansão do Ocidente assim como a ação de forças internas de
decomposição. Mas o século XV foi decisivo porque esgotou as fontes extremo-
-orientais do comércio muçulmano, determinando, assim, o fim de seu papel
intercontinental. Daí em diante, o Islã afro -mediterrânico caminha rapidamente
para a decadência. O terminus ad quem do culo XV é, assim, amplamente
justificado desde que não o interpretemos muito rigidamente; poderia, talvez,
encontrar melhor justificação se o deslocássemos para o início do século XVI.
Isto posto, dividiremos a época em estudo em três períodos principais,
levando em consideração a dupla necessidade de diversidade e de unidade:
• a Antiguidade até o Islã: Antigo Império até +622;
• a primeira Idade Islâmica: de +622 até a metade do século XI (1050);
• a segunda Idade Islâmica: do século XI ao século XV.
Aqui, a noção de Antiguidade certamente não se compara à que vigora na
história do Ocidente, na medida em que se identifica parcialmente com a
Antiguidade “clássica”; o período não se encerra com as invasões bárbaras, mas
2 R. MAUNY propõe a data de 1434, que é a data da expansão marítima portuguesa pela África negra:
Le problème des sources de l’histoire de l’Afrique noire jusqu’à la colonization européenne. In: XII Congresso
Internacional das Ciências Históricas. Viena, 29 ago./5 set. 1965. II, Relatórios, História dos continentes,
p. 178. V. também: MAUNY, R. 1961, p. 18.
3 LAROUI, A. 1970, p. 218.
80
Metodologia e pré -história da África
com o súbito aparecimento do Islã. Precisamente pela profundidade e alcance
de seu impacto, o Islã representa uma ruptura com o passado que poderíamos
chamar antigo, pré -histórico ou proto -histórico, conforme a região. Também é
fato que, desde a época helenística, a maior parte de nossas fontes antigas são
escritas em grego e latim.
Se, pela estrutura de nossa documentação, assim como pelo movimento
histórico global, o século VII, século do aparecimento do Islã e das fontes árabes,
deve ser considerado o início de uma nova idade, o próprio período islâmico
deveria, então, ser dividido em duas subidades: a primeira, da conquista até a
metade do século XI, e, a segunda, do século XI, até o século XV. Na história da
África ao norte do Saara, a primeira fase corresponde à organização da região
segundo o modelo islâmico e à sua ligação com um império multicontinental
(Califado omíada, abássida, fatímida). Em compensão, a segunda fase
é testemunha do ressurgimento de princípios de organizão autóctone, ao
mesmo tempo que, do ponto de vista da civilização, se opera uma profunda
transformação. Em relação ao Magreb, a metade do século XI é a época da
formação do Império Almorávida, da autonomia reconquistada pelos Zíridas,
e da consequente invasão hilaliana. No Egito, a cesura política situa -se um
século mais tarde, com os Aiúbidas; mas é nessa época que os grandes centros
de atividade do comércio transportam -se do golfo Pérsico para o mar Vermelho
e que, progressivamente, se estabelece um quadro de intercâmbios, em escala
mundial, cujo alcance é considerável.
Ao sul do Saara, é também no decorrer do século XI que se desenvolvem
relações permanentes com o Islã, especialmente no plano comercial e religioso.
A natureza do material documentário altera -se. Quantitativamente, torna-
-se abundante e variado; qualitativamente, quanto mais avançamos no tempo,
maior o número de fontes inconscientes (documentos de arquivos, pareceres
jurídicos) encontradas na África mediterrânica, e mais precisas as informações
relativas à África negra.
Áreas etnoculturais e tipos de fontes
A classificão das fontes por peodos hisricos não basta por si só.
Convém levarmos em conta a articulação da África em áreas etnoculturais, cuja
caracterização resulta de uma conjugação de fatores, e a própria tipologia das
fontes disponíveis, que se coloca além dos períodos históricos e das diferenciações
espaciais.
81
As fontes escritas anteriores ao século XV
Áreas etnoculturais
Ao examinar o primeiro ponto, seríamos tentados desde logo a fazer uma
distinção elementar entre a África ao norte do Saara África branca, arabeizada
e islamizada, profundamente tocada pelas civilizações mediterrânicas e por isso
mesmo desafricanizada e a África ao sul do Saara, negra, plenamente africana,
dotada de uma irredutível especificidade etno -histórica. Na verdade, sem negar a
importância dessa distinção, um exame histórico mais aprofundado revela linhas
de divisão mais complexas e menos nítidas. O Sudão senegalês e nigeriano, por
exemplo, viveu em simbiose com o Magreb árabe -berbere e, do ponto de vista
das fontes, está muito mais próximo do Magreb que do mundo bantu. Acontece
o mesmo com o Sudão nilótico em relação ao Egito, e com o chifre oriental
da África em relação ao sul da Abia. Assim somos tentados a opor uma
África mediterrânica, desértica e de savana, incluindo o Magreb, o Egito, os dois
Sudões, a Etiópia, o chifre da África e a costa oriental até Zanzibar, a uma outra
África “animista”, tropical e equatorial bacia do Congo, costa guineense, área
do Zambeze -Limpopo, região interlacustre e, finalmente, a África do Sul. E é
verdade que essa segunda diferenciação se justifica, em grande parte, pelo critério
de abertura para o mundo exterior e, nesse caso, pela importância da penetração
islâmica. Esse fato de civilização é confirmado pelo estado das fontes escritas,
que opõem uma África bem servida de documentos com gradações norte -sul
a uma África completamente desprovida deles, ao menos no período em estudo.
Mas a dupla consideração da abertura para o exterior e do estado das fontes
escritas corre o risco de permitir julgamentos de valor e de ocultar sob o véu da
obscuridade quase metade da África (central e meridional). Muitos historiadores
chamaram a atenção para o risco do recurso às fontes árabes”, que poderia
fazer crer, pela ênfase dada à zona sudanesa, que tenha sido esta região o único
centro de uma civilização e de um Estado organizados
4
. Voltaremos a esse ponto
mais tarde. Contudo, reconheçamos desde que, se relação entre o estado
de uma civilização e o estado das fontes, essa relação jamais poderia explicar
completamente o movimento da história real. O historiador objetivo não tem o
direito de fazer julgamentos de valor com base nos documentos de que dispõe,
mas também não deve negligenciar seu potencial informativo sob pretexto de
que podem induzi -lo a erro.
Se uma história geral, que abrange a totalidade do período histórico, apoiando-
-se em todos os documentos disponíveis pode atribuir tanta importância à
4 HRBEK, I. 1965, v. V, p. 311.
82
Metodologia e pré -história da África
bacia do Zaire quanto à do Níger ou ao Egito, um estudo que se limite às
fontes escritas até o século XV não poderia fazê -lo. Considerando todas estas
observações, podemos operar a seguinte estruturação regional:
a) Egito, Cirenaica, Sudão nilótico;
b) Magreb, incluindo a franja norte do Saara, as zonas do extremo ocidente, a
Tripolitânia e o Fezzan;
c) Sudão ocidental, no sentido amplo, isto é, até o lago Chade em direção a
leste e incluindo o sul do Saara;
d) Etiópia, Eritreia, chifre oriental e costa oriental;
e) O resto da África, ou seja, o golfo da Guiné, a África central e o sul da
África.
Essa classificão tem a vantagem de não opor duas Áfricas; estrutura
o continente segundo afinidades geo -históricas orientadas dentro de uma
perspectiva africana, mas leva também em consideração o caráter particular
das fontes escritas de que dispomos. Em termos de fontes escritas, a África
central e meridional, por mais rica em civilizão que possa ser, faz pobre
figura em comparão com a menor frão das outras unidades regionais
(Fezzan ou Eritreia, por exemplo). Por outro lado, não vida de que,
além da solidariedade geral que aproxima as fontes da África conhecida,
uma solidariedade específica e mais nítida em nossa informação sobre cada
uma das zonas delimitadas acima. Um inventário detalhado deveria, então,
passar em revista os textos, simultaneamente por períodos e por regiões, mas
reconhecendo previamente que, através das áreas, e em menor grau, através dos
períodos históricos, essas fontes se resumem apenas a algumas línguas, a certos
tipos limitados, não provêm sempre da área de que tratam, nem são sempre
contemporâneas do que descrevem.
Tipologia das fontes escritas
a) São imeras as línguas em que foram escritos os documentos que
chegaram até nós, mas nem todas têm a mesma importância. As mais utilizadas,
aquelas em que foi veiculada a maior quantidade de informação são: o egípcio
antigo, o berbere, as línguas etíopes, o copta, o swahili, o haussa, o fulfulde.
As línguas mais prolíficas são as de origem não -africana: grego, latim, árabe
(ainda que acolhido como língua nacional por inúmeros povos africanos). Se
classificarmos os documentos numa ordem hierárquica que leve em conta ao
mesmo tempo a quantidade e a qualidade da informação, obteremos a seguinte
83
As fontes escritas anteriores ao século XV
lista aproximativa: árabe, grego, latim, egípcio antigo (hierático e demótico),
copta, hebraico, aramaico, etíope, italiano, swahili, persa, chinês, etc.
Em termos cronológicos, nossas primeiras fontes escritas são os papiros
hieráticos epcios datando do Novo Imrio, mas cuja primeira redação
remontaria ao início do Médio Império (início do segundo milênio), em particular,
o papiro conhecido sob o título de Ensinamentos para o rei Merikare
5
. Seguem-
-se os papiros e os ostraka do Novo Império, também em egípcio hierático; as
fontes gregas, que remontam ao século VII antes da Era Cristã e prosseguem,
sem interrupção, até época mais recente, que coincide, aproximadamente, com a
expansão do Islã (século VII da Era Cristã); as fontes em hebraico (Bíblia) e em
aramaico ( Judeus de Elefantina), que datam da 26
a
dinastia; os textos demóticos,
da época ptolomaica; a literatura latina, a literatura copta (em língua egípcia, mas
empregando o alfabeto grego enriquecido com algumas letras), que têm início
no século III da Era Cristã; fontes em árabe, chinês
6
, talvez persa, italiano, e,
mais tarde, em língua etíope, na qual o mais antigo documento escrito remonta
ao século XIII
7
.
b) Classificadas por gêneros, as fontes de que dispomos dividem -se em fontes
narrativas e em fontes arquivísticas, umas conscientemente consignadas com o
objetivo de deixar um testemunho, outras participando do movimento normal
da existência humana. No caso da África, com exceção do Egito, mas incluindo
o Magreb, as fontes narrativas são representadas quase que exclusivamente pelos
documentos escritos até o século XII; cobrem, portanto, não a Antiguidade
como também a primeira Idade Islâmica. A partir do século XII, o documento
arquivístico, embora raro, começa a aparecer no Magreb (peças almoadas, fatwas
ou pareceres jurídicos da época haféssida). No Egito, os documentos arquivísticos
tornam -se mais abundantes sob os Aiúbidas e os Mamelucos (séculos XII-
-XV), enquanto os manuscritos dos mosteiros etíopes reúnem, em apêndice,
documentos oficiais. Mas esse tipo de texto praticamente inexiste no resto
da África, durante a época aqui considerada
8
. Nosso período é caracterizado
5 GOLENISCHEFF. Les papyrus hiératiques, n. 1115, 1116A e 1116B de l’Ermitage impérial à Saint‑
‑Pétersbourg, 1913; o n. 1116A foi traduzido por GARDINER. In: Journal of Egyptian archaeology.
Londres, 1914, p. 22 e segs. Cf. a esse respeito DRIOTON, E. e VANDIER, J. 1962, p. 226.
6 Existe um texto chinês datado da segunda metade do século XI, mas o essencial das fontes chinesas,
ainda a ser explorado, diz respeito ao século XV e à costa do leste africano. Pode -se notar também os
seguintes trabalhos: DUYVENDAK, J. J. L. 1949; HIRTH, F. 1909 -1910; FILESI, T. 1962; LIBRA
1963; WHEATLEY, P. 1964.
7 SELASSIÉ, S. H. 1967, p. 13.
8 Dispomos de mahrams, cartas -patente emitidas pelos reis do Bornu e que datariam do m do século XI:
o de Umm Jilmi e o da família Masbarma. Cf. MAUNY, R. 1961 e PALMER, H. 1928, t. III, p. 3.
84
Metodologia e pré -história da África
85
As fontes escritas anteriores ao século XV
86
Metodologia e pré -história da África
pela preponderância contínua das fontes narrativas, pelo aparecimento ou
crescimento relativo das fontes arquivísticas a partir do século XII na África
mediterrânica, pela quase ausência dela, na África negra, mas, de maneira geral,
pelo aumento substancial de nosso acervo de documentos a partir do século XI,
culminando nos séculos XII -XIV.
Os tipos de fontes podem ser enumerados do seguinte modo:
Fontes narrativas
• crônicas e anais;
• obras de geografia, relatos de viagens, obras de naturalistas;
• obras jurídicas e religiosas, como tratados de direito canônico, livros santos
ou hagiografias;
• obras propriamente literárias.
Fontes arquivísticas
• documentos particulares: cartas familiares, correspondência comercial, etc.;
• documentos oficiais oriundos do Estado ou de seus representantes:
correspondência oficial, decretos, cartas -patente, textos legislativos e fiscais;
• documentos jurídico -religiosos.
Devemos observar que as fontes narrativas começam no século VIII antes
da Era Cris, com Homero, e compreendem um número considerável de
obras -primas do espírito e do saber humanos. Entre os autores, encontramos
grandes nomes, que, embora, em sua maioria, não tratem especificamente da
África, concedem -lhe um lugar mais ou menos importante dentro de uma
perspectiva mais ampla. Entre esses nomes figuram: Heródoto, Políbio, Plínio,
o Velho, Ptolomeu, Procópio, Khwarizmi, Mas’udi, Jahiz, Ibn Khaldun. A
documentação arquivística é a mais antiga do mundo: se os papiros de Ravena
são os mais antigos registros arquivísticos conservados na Europa, datando do
início do século VI da Era Cristã, os papiros do Novo Império egípcio lhes são
anteriores em vinte séculos. É verdade que, na primeira Idade Islâmica, esse
tipo de testemunho não ultrapassou os limites do Egito, tendo conhecido uma
expansão relativamente pequena até o fim de nosso período, o que talvez se possa
explicar pelo fato de a civilização islâmica medieval ter praticamente ignorado
o princípio da conservação de documentos de Estado. Dos séculos XIV e XV,
o período mais rico em peças de arquivos, o que chega até nós são sobretudo
87
As fontes escritas anteriores ao século XV
obras enciclopédicas. É somente na época moderna, otomana e europeia, que se
constituem os depósitos de arquivos propriamente ditos.
Inventário por períodos
A Antiguidade pré ‑islâmica (das origens a 622)
Esse período, em relação ao que o segue, é caracterizado pela predominância
das fontes arqueológicas e, em geral, não -literias. Entretanto, ainda que
secundários, os documentos escritos nos fornecem por vezes informações muito
importantes; ademais, vão se tornando mais numerosos e precisos à medida que
avançamos no tempo. Do ponto de vista da divisão regional, devemos notar que
estão totalmente ausentes na África ocidental e central.
Egito, Núbia, África oriental
a) As fontes escritas referentes ao Egito até o primeiro milênio o exclusivamente
egípcias; trata -se dos papiros hieráticos e dos ostraka, cuja origem não remonta
além do Novo Império, mas que podem, como dissemos, conter informões mais
antigas
9
. Papirus e ostrakon designam o suporte: no primeiro caso, trata -se de uma
planta; no segundo, de uma mina de calcário. Os signos hieráticos distinguem -se
dos signos hieroglíficos por sua aparência cursiva, prestando -se melhor ao traço
que ao entalhe. Os papiros e ostraka, numerosos na 19
a
e 20
a
dinastias do Novo
Império ou período ramessita (1314 -1085 antes da Era Cristã), referem -se tanto
à vida administrativa, como à vida privada; encontramos relatórios administrativos
e judiciários, registros de contabilidade, cartas particulares e também contos e
romances. Os papiros jurídicos
10
e os papiros literários
11
têm sido objeto de
cuidadosos estudos e, desde o século XIX, vêm sendo publicados.
9 DRIOTON, E. e VANDIER, J. 1962, p. 7 -9; YOYOTTE, J. L’Egypte ancienne. In: Histoire universalle.
Col. Pléiade.
10 Entre os documentos jurídicos, temos o papiro Abbott, os papiros Amherst e Mayer, igualmente o de
Turim... nos quais se baseia nosso conhecimento dos reinados de Ramsés IX, X e XI. São publicados: cf.
Select Papyri in the hieratic character from the collections of the British Museum. Londres, 1860; NEWBERRY.
e Amherst Papyri. Londres, 1899; PEET. e Mayer Papyri. Londres, 1920; PEET. e great tombs‑
‑robberies of the Twentieth Egyptian Dynasty. 2 v., Oxford, 1930.
11 A coleção do British Museum é rica em papiros literários. Encontramos, por exemplo, o conto da Verdade
e da Mentira, o de Horus e de Seth. G. POSENER, grande especialista no assunto, elaborou uma lista
quase completa das obras literárias egípcias e chegou a 85 títulos: Revue d’Egyptologie VI. 1951, p. 27 -48.
G. POSENER publicou, ainda, óstracos: Catalogue des ostraka hiératiques littéraires de Deir el ‑Medineh,
Cairo, 1934 -1936.
88
Metodologia e pré -história da África
Nossos conhecimentos a respeito da bia e do país de Punt baseiam-
-se unicamente em material arqueológico e epigráfico (desenhos murais em
particular), não se tendo encontrado fontes escritas até o presente momento.
b) No primeiro milênio antes da Era Cristã, especialmente a partir do século
VI, diversifica -se e se altera a contribuição de nossas fontes. Os documentos
narrativos somam -se aos documentos arquivísticos e, em certos momentos,
substituem -nos. Um exemplo é o Livro dos Reis, fragmento do Antigo Testamento,
que nos informações preciosas sobre o advento da 22
a
dinastia (cerca de -950)
e continua a ser de grande utilidade para todo o período seguinte, isto é, até
o domínio persa ( -525). O Livro dos Reis recebeu uma primeira redação antes
da destruição de Jerusalém, ou seja, antes de -586
12
, e foi retocado durante o
exílio, mas reproduz tradições que remontam ao início do primeiro milênio
antes da Era Cristã. Outras fontes estrangeiras, gregas sobretudo, trazem dados
sobre o baixo período a partir da primeira dinastia Saíta (século VIII antes
da Era Cris): Menandro, Aristodemo, Filocoro, Heródoto. Do ponto de
vista arquivístico, os papiros deste período aparecem escritos em grego ou em
demótico escrita ainda mais cursiva que o hierático. No século -V, os papiros
dos Judeus de Elefantina são nossa principal fonte, enquanto, nos séculos -IV e
-III, aparece a crônica demótica.
c) O período que se estende do estabelecimento dos Ptolomeus no Egito
(fim do século IV antes da Era Cristã) até a conquista árabe (639) cobre um
milênio que se caracteriza pela abundância de fontes gregas e pela emergência
da zona etíope -eritreia em nosso campo de conhecimento. Políbio, Estrabão,
Diodoro, Plínio, o Velho falam -nos dessa região com uma precisão relativa, que
não exclui a ignorância ou a ingenuidade. O naturalista romano nos em sua
História natural numerosas informações sobre o mundo etíope, em particular no
que diz respeito aos produtos do comércio e aos circuitos de troca. É obra de
compilação, certamente de valor desigual, mas rica em detalhes.
A informação de que dispomos torna -se mais precisa no meio milênio que
se segue ao aparecimento do Cristianismo. O Egito, como sabemos, passa a ser,
no século II, o foco principal da cultura helenística, sendo muito natural que
tenha produzido historiadores, geógrafos, filósofos e padres da Igreja. Integrado
politicamente ao Império Romano, depois Bizantino, o Egito era objeto de
inúmeros escritos latinos ou gregos externos, de ordem narrativa ou arquivística
(Código de Teodósio, por exemplo, ou Novellae de Justiniano). Notemos também
12 LODS, A. Les Prophètes d’Israël et les débuts du judaïsme. Paris, 1950, p. 7; DRIOTON e VANDIER, op.
cit. pas.; DORESSE, 1971, t. 1, p. 47 -61.
89
As fontes escritas anteriores ao século XV
que a corrente papirológica não se esgota. Dessa massa documentária interna e
externa emergem algumas obras de especial importância: a Geografia de Ptolomeu
(140 aproximadamente)
13
; o Périplo do Mar da Eritreia
14
, obra anônima que
calculamos ter sido composta em cerca de 230 (datada anteriormente do século
I); a Topografia Cristã
15
de Cosmas Indicopleustes (535 aproximadamente).
Esses escritos representam a base de nossa informação sobre a Etiópia e o chifre
oriental da África. No conjunto, esta breve exposição aponta dois descompassos:
o das fontes escritas em relação aos outros tipos de documentos, e o do nosso
conhecimento do Egito em relação ao nosso conhecimento da Núbia e do
mundo eritreu.
O Magreb antigo
A história escrita do Magreb antigo nasceu do encontro de Cartago com
Roma. Isso significa que o dispomos de nenhum documento importante
anterior ao segundo século antes da Era Cristã: apenas indicações esparsas na
obra de Heródoto, evidentemente, e nas obras de outros historiadores gregos.
O período autenticamente púnico depende da arqueologia e da epigrafia.
Além disso, a história de Cartago, tanto anterior quanto posterior a Aníbal – o
confronto com Roma e o curto período de sobrevivência que se seguiu não
deve quase nada às fontes púnicas escritas. Sabe -se hoje que o Périplo de Hanão
(em grego), cuja descrição se estende às costas norte -ocidentais da África, é falso
e não pode ter sido escrito antes do século I. Restam os trabalhos agronômicos
atribuídos a Magão, dos quais apenas alguns trechos foram conservados por
autores latinos. Entre as fontes autóctones, seria necessário mencionar as notas
de Juba II, que Plínio, o Velho, compilou em sua História Natural.
O essencial, se o a totalidade, de nossas fontes escritas relativas à história do
Magreb antigo fases cartaginesa, romana, ndala e bizantina é constituído pelas
13 Sobre os geógrafos clássicos e pós -clássicos que trataram da África, ver a obra fundamental de Yusuf
KAMEL: Monumenta cartographica Africae et Aegypti, Cairo e Leyde, 1926 a 1951, 16 vol. Convém que
esse trabalho seja reeditado com um aparato crítico novo e importante.
14 Editado por MÜLLER. Geographi Graeci minores. Paris, 1853, t.
I.
Reeditado por Hjalmar FRISK em
Göteborg em 1927. Essa importante obra vem sendo editada desde o século XVI, em 1533, e depois
em 1577.
15 COSMAS é um viajante que visitou a Etiópia e a ilha de Socotra. Sua obra gura na Patrologie grecque,
de MIGNE, t. 88, coleção que deve necessariamente ser consultada no que se refere à Antiguidade, ao
lado da Patrologie Latine, do mesmo MIGNE. A obra de COSMAS recebeu excelente edição em três
tomos das Editions du Cerf, Paris, 1968 -1970. Assinalemos a importância, para nosso conhecimento
da cristianização da Etiópia, da Historia Ecclesiastica, de RUFINO. In: Patrologie grecque, de MIGNE,
com tradução latina.
90
Metodologia e pré -história da África
obras dos historiadores e geógrafos clássicos, isto é, aqueles que escreviam em grego
ou latim. Em geral, esses autores o são africanos, mas à medida que a África se
romaniza, surgem escritores autóctones, especialmente entre os padres da Igreja.
a) No período que se estende de -200 a +100 e que corresponde ao
apogeu e à queda de Cartago, à organização da província romana da África
sob a República e o principado, temos por fontes uma grande quantidade de
documentos conhecidos, escritos em latim e grego: Políbio ( -200 a -120), nossa
fonte principal; Estrabão; Diodoro da Sicília; Salústio ( -87 a -35); Tito Lívio;
Ápio; Plínio; Tácito; Plutarco (século +I) e Ptolomeu (século +II), sem contar
os numerosos escritores menores
16
.
Seria muito útil que se reunissem os escritos dispersos relativos à África do
Norte. Até agora foram coligidos apenas os documentos referentes ao Marrocos
17
.
Assim sendo, o pesquisador -se obrigado a examinar sistematicamente as
grandes coleções clássicas, em que a erudição europeia do século XIX utilizou
todos os seus recursos de crítica e de formidável labor: Bibliotheca Teubneriana,
The Loeb Classical Library (texto e tradução inglesa), Collection G. Budé (texto
e tradução francesa), Collection des Universités de France, Scriptorum classicorum
Bibliotheca Oxoniensis. Seria conveniente acrescentar a essas fontes narrativas,
outras mais diretas, constituídas pelos textos do direito romano, embora sejam
estes de origem epigráfica
18
.
As obras escritas dos analistas, cronistas e geógrafos greco -latinos não têm
valor uniforme em todo o subperíodo considerado. Alguns tendem a compilar
as informações de seus predecessores, outros nos trazem informações originais
preciosas e às vezes até mesmo um testemunho direto. Políbio, por exemplo,
viveu na intimidade dos Cipião e provavelmente assistiu ao sítio de Cartago em
-146; o Bellum Jugurthinum, de Salústio, é um documento de primeira ordem
sobre os reinos berberes; o Bellum Civile, de sar, é a obra de um ator da
História.
A figura e a obra de Políbio dominam esse período. Políbio é, como foi dito
19
,
o filho da época e da cultura helenísticas. Nasceu em -200 aproximadamente,
isto é, no momento em que ocorre o encontro de Roma, na explosão de seu
imperialismo, com o mundo mediterrânico e, mais especificamente, com o
16 Citemos: ARISTÓTELES (Política), CÉSAR (Bellum Civile e Bellum Ajricum), EUTRÓPIO,
JUSTINO, ORÓSIO. Há mais de trinta fontes textuais apenas para a história de Aníbal.
17 ROGET, M. Le Maroc chez les auteurs anciens. 1924.
18 GIRARD, P. P. Textes de droit romain. 6.
a
ed., 1937.
19 Cambridge Ancient History, v. VIII: Rome and the Mediterranean.
91
As fontes escritas anteriores ao século XV
mundo helenístico. Prisioneiro e exilado em Roma, aprendeu as duras lições
do exílio, esse mestre violento” do historiador e do filósofo. A proteção dos
Cipião amenizou sua estada, mas lhe valeu, sobretudo, para a aquisição de vasto
conhecimento da história de Roma e de Cartago. Após 16 anos de cativeiro,
retornou à pátria, a Grécia, mas não demorou a dei -la novamente para
percorrer o mundo. Conta -se que durante sua estada na África, Cipião Emiliano
ofereceu -lhe uma frota para que pudesse explorar a costa atlântica do continente.
Em outras palavras, estamos diante de um homem de audácia, experiência e
incansável curiosidade. Políbio não é apenas nossa principal fonte para tudo
que se refere ao duelo púnico -romano; de um ponto de vista mais amplo, é
um observador de primeira ordem da África e do Egito de seu tempo. Se os
40 livros que compõem as Pragmateia tivessem chegado até nós, talvez nossos
conhecimentos fossem muito mais completos; talvez tivéssemos informações
precisas precisão que falta em toda parte sobre a própria África negra. Assim
mesmo, os seis livros que se conservaram destacam -se das demais fontes pela
qualidade da informação e inteligência da observação.
b) Após o culo I e durante os quatro séculos em que se enraíza ao máximo a
organização imperial na África, entrando, posteriormente, numa crise prolongada,
as fontes literárias tornam -se raras. Há um vazio quase total no século II e os culos
III e IV são marcados pela predominância de escritos crisos, especialmente os de
Cipriano e Agostinho. obras gerais, que ultrapassam o quadro africano para
colocar os grandes problemas religiosos e que não participam do discurso hisrico
direto, mas há também obras polêmicas e de circunstância, mais comprometidas
com os acontecimentos. O que sabemos a respeito do movimento donatista
baseia -se nos ataques do maior de seus adversários, Santo Agostinho (354 -430),
e, por isso mesmo, as precauções mais sérias mostram -se necessárias.
Do mesmo modo, no que se refere às fontes escritas relativas ao período
imperial, a patrologia apresenta -se como o principal instrumento de nosso
conhecimento, embora seja muito parcial. O pesquisador terá, também nesse
caso, acesso a grandes coleções:
• o Corpus de Berlim em grego (apenas o texto);
• o Corpus de Viena em latim (apenas o texto).
Esses monumentos da erudição alemã têm seus equivalentes na erudição
francesa, com os dois Corpus de Migne:
• a Patrologia grega (texto e tradução latina);
• a Patrologia latina (apenas o texto latino).
92
Metodologia e pré -história da África
O intermédio vândalo, a reconquista bizantina e a presença bizantina
durante mais de um século, levaram um número maior de escritores a registrar
os acontecimentos. Os documentos chamados “menores” o abundantes;
aparecem as fontes arquivísticas (correspondência, textos legislativos). Além do
mais, temos a sorte de contar com um observador fecundo e talentoso: Procópio
(século VI), que é, sem dúvida alguma, nossa fonte fundamental com seu De
Bello Vandalico. Recorreremos à Coleção Bizantina de Bonn e, secundariamente,
aos Fragmenta historicorum graecorum, para os textos gregos. Os numerosos
textos latinos encontram -se na Patrologia latina (as obras de São Fulgêncio
apresentam certo interesse para o conhecimento do período vândalo), ou nas
Monumenta Germanica historica, autores antiquissimi
20
, outro monumento da
erudão alemã, que reagrupa as “crônicas menores” do período bizantino:
Cassiodoro, Próspero Tiro, e sobretudo Victor de Vita e Coripo. Estes dois
autores merecem a maior atenção o primeiro para o período vândalo, o segundo
para o período bizantino –, pois penetram no interior do continente, fazendo
emergir da obscuridade essa África por tanto tempo esquecida
21
. Em sua obra
clássica sobre a África bizantina, Charles Diehl mostrou como se podia utilizar
conjuntamente o material arqueológico e textual para se obter a mais completa
representação da realidade histórica. Utilizou o maior mero posvel de
fontes escritas: primeiramente Procópio, depois Coripo, mas também Agathias,
Cassiodoro, Jorge de Chipre
22
, as cartas do Papa Gregório Magno e documentos
jurídicos, tais como as Novellae e o digo Justiniano, tão úteis no estudo da vida
econômica e social.
Parece pouco provel que se possa enriquecer, com novas descobertas,
a lista estabelecida de nossos documentos escritos. Em compensação, pode-
-se explorá -los melhor, estudando -os com maior profundidade, aplicando-
-lhes uma crítica rigorosa, confrontando -os com um material arqueológico e
epigráfico ainda inesgotado, sobretudo utilizando -os com mais honestidade
e objetividade
23
.
20 Nas Monumenta, de Mommsen, t. 9/1 -2 (1892) 11 (1894) e 13 (1898), encontram -se o texto de Victor
de Vita no t. 3 -1 (1879), editado por C. HOLM, e o texto de Coripo no t. 3 -2 (1879), editado por J.
PARTSCH.
21 Sobre a África vândala e bizantina, dispomos de duas obras modernas fundamentais, que fornecem detalhes
das fontes utilizáveis: C. COURTOIS, 1955, e C. DIEHL, 1959. Para o alto período, a Histoire ancienne
de l’Afrique du Nord, de S. GSELL, que, embora envelhecida, ainda deve ser consultada.
22 Descriptio orbis romani. ed. Gelzer.
23 Sobre as distorções advindas de uma leitura parcial dos textos, a crítica da historiograa ocidental apre-
sentada por Abdallah LAROUI é tão pertinente quanto bem -informada (1970).
93
As fontes escritas anteriores ao século XV
A África saariana e ocidental
A rigor, não dispomos de nenhum documento digno de confiança sobre a
África negra ocidental. Admitindo com Mauny
24
que os antigos cartagineses,
gregos, romanos não ultrapassaram o cabo Juby e a latitude das ilhas Canárias,
o que é mais que provel, somos levados a concluir que as informações
transmitidas por suas obras referem -se ao extremo sul marroquino. Certamente
alcançam a fronteira do mundo negro, mas não o penetram.
O riplo de Hanão é falso, se não inteiramente, ao menos em grande
parte
25
. É um documento composto, em que se misturam dados tomados
de empréstimo de Hedoto, Políbio, Possidônio e do Pseudo -Sila, e que
deve datar do culo I. As obras desses autores são mais dignas de crédito.
Heródoto fala -nos sobre o comércio mudo que os cartagineses praticavam
no sul do Marrocos. O continuador do Pseudo ‑Sila (século -IV) nos , por
sua vez, informações preciosas sobre as relações entre cartagineses e líbico-
-berberes. Mas é novamente Políbio que se revela a fonte mais confiável. Os
fragmentos de seu texto, interpolados em Pnio, o Velho, oferecem -nos os
primeiros topônimos identificáveis da Antiguidade; mas, também nesse caso,
sua informação interrompe -se no cabo Juby. Seria necessário completá -la, no
que se refere ao arquilago das Canárias, com as notas de Juba II recolhidas
por Pnio, Estrabão, Diodoro da Sicília. Os outros histpriadores -geógrafos do
século I antes e depois da Era Cristã apenas compilaram os autores anteriores,
salvo alguns detalhes. Finalmente, no século lI, Ptolomeu, retomando todos seus
predecessores, baseando -se principalmente em Posidônio e Marino de Tiro,
consigna em sua Geografia a evolução máxima dos conhecimentos relativos
aos contornos da África na Antiguidade
26
. O mapa da bia Interior”, do
geógrafo alexandrino, tornou acessíveis as informações recolhidas pelo exército
romano, na ocasião de suas expedições punitivas além do limes até o Fezzan: a
de Balbo em -19, a de Flaco em +70, a de Materno em +86 (que penetrou mais
profundamente no deserto líbio)
27
. Nomes de povos e regiões sobreviveram à
Antiguidade: Mauritânia, Líbia, Garamantes, Getulos, Númidas, Hespérides e
até mesmo Níger, empregado por Ptolomeu, e retomado por Leão, o Africano, e
depois pelos europeus modernos. Essa é uma das contribuições de nossos textos
24 MAUNY, R. 1970, p. 87 -111.
25 Id., p. 98; TAUXIER, L. 1882, p. 15 -37; GERMAIN, G. 1957, p. 205 -48.
26 KAMEL, Y. Monumenta, op. cit., t. II, Fasc. I, p. 116 e segs.; MAUNY, R. “L’Ouest africain chez
Ptolémée”, nas Actes de la II
e
Conférence Internationale des Africanistes de l’Ouest. Bissau, 1947.
27 MARINO DE TIRO, uma das fontes de PTOLOMEU, divulgou -o; cf. KAMEL, Y. t. I, 1926, p. 73.
94
Metodologia e pré -história da África
que, por outro lado, nos fornecem, mais do que dados reais, a representação
que a Antiguidade fazia da África. As poucas indicações existentes referem -se
ao deserto da Líbia e às costas do Saara Ocidental; em todos esses textos, a
África negra ocidental permanece marginalizada.
A primeira idade islâmica (622 ‑1050 aproximadamente)
A conquista árabe e o estabelecimento do califado tiveram por consequência
a unificação de domínios político -culturais anteriormente dissociados (Império
Sasnida, Imrio Bizantino), o alargamento do horizonte geográfico do
homem, o remanejamento das correntes de intercâmbio, a penetração de povos
até então desconhecidos. Não é, portanto, surpreendente que, pela primeira vez,
tenhamos informações mais precisas sobre o mundo negro, tanto do leste como
do oeste. Mas enquanto o Egito e o Magreb estavam integrados no corpo do
Império e depois da comunidade islâmica, o mundo negro simplesmente fazia
parte de sua esfera de influência; daí uma informação parcelar, desconexa, às
vezes mítica, mas ainda assim preciosa.
Se excluirmos as fontes arquivísticas, cuja tradição continua no Egito (papiros
coptas e gregos de Afrodite, papiros árabes do Faium e de Ashmunayn
28
,
enfim, no século X, algumas peças de arquivos fatímidas) e que concernem
especificamente a esse país, a maior parte de nossas fontes, narrativas no sentido
amplo ou indireto, é comum a toda a África. É uma característica evidente nas
obras geográficas e que pode ser percebida em vários textos jurídicos. Portanto,
parece mais cômodo proceder, nesse caso, a um inventário por gênero, destacando,
todavia, a sucessão cronológica e sem perder de vista a estrutura regional.
As crônicas
a) Não dispomos de nenhuma crônica anterior ao século IX. Mas foi no século
VIII que se elaborou a informação oral, tendo como centro incontestável o Egito,
com exceção da costa oriental da África, em ligação comercial direta com o Iraque
meridional. Por outro lado, o caráter excêntrico do Egito, do Magreb e a fortiori
do Sudão fez com que, mesmo no século IX, século da explosão da historiografia
28 São importantes os trabalhos de GROHMANN: Arabie papyri in the Egyptian Library. 5 v., 1934-
-1959; Einführung und Chrestomathie der Arabischen Papyrus ‑kinde. Praga, 1955. Os papiros gregos e
coptas foram estudados por H. BELL. Para os registros fatímidas: SHAYYAL, Majmû at al -Wathâ iq
al -Fâtimiyya, Cairo, 1958.
95
As fontes escritas anteriores ao século XV
árabe, lhe fosse reservado um pequeno lugar nas grandes tarikh
29
(al-Tabari,
al -Dinawari, al -Baladhori dos Ansab al ‑Ashraf) focalizadas no Oriente. Deve-
-se fazer exceção a uma crônica até recentemente quase desconhecida: a tarikh
de Khalifa b. Khayyat
30
. Esse livro não constitui apenas a mais antiga obra de
anais árabes (Khalifa morreu em 240 H.); conservou também materiais antigos
negligenciados por al-Tabari; a destacar, principalmente, suas indicações sobre a
conquista do Magreb. Enquanto a tradição medinense deixou na obscuridade a
conquista do Egito e do Magreb, dos Maghazi dos quais apenas os traços mais
evidentes são referidos, de modo conciso, nos Futuh al ‑Buldan de Baladhori, um
jurista egípcio dedica -se exclusivamente ao assunto, numa obra que constitui o
documento mais importante do século IX. Os Futuh Misr wa ‑l ‑Maghrib
31
, de
Ibn’Abd al -Hakam, semelhantes a uma crônica ou a uma obra de maghazi, são
na realidade uma coletânea de tradições jurídicas que distorcem a informação
histórica.
32
b) Após um século de silêncio
33
(850-950), surge uma obra fundamental
que parece não ter sido explorada em todas as suas dimensões: o Kitab Wulat
Misr wa Qudhatuha, de Kindi (morto em 961). Essa obra biográfica, que não
é uma crônica, embora possa ser tratada como tal, não apenas encerra dados
precisos e de primeira mão sobre o Egito, mas também devido aos primeiros
laços dessa província com o Magreb se revela uma das fontes mais seguras para
o conhecimento do Magreb no século VIII
34
. O século X é o século isma’iliano
do Islã e do Isafricano principalmente: consultar -se -ão, assim, os escritos
29 Todavia, é importante assinalar que um dos primeiros historiógrafos árabes, UMAR B. SHABBA nos
legou o mais antigo testemunho árabe relativo aos Negros, texto reproduzido por AL -TABARI, Ta’rikh,
t. VII, p. 609 -614. Trata -se da revolta dos “Sudan”, em Medina, em 145 H. /+762, atestando uma forte
presença africana no alto período. Esse texto não foi comentado até agora.
30 Editado em Najaf, em 1965, por UMARI com prefácio de A. S. al -ALI, 344 p.
31 Editado por TORREY em 1922, traduzido parcialmente por GATEAU, reeditado no Cairo por ’AMIR
em 1961. Sobre as precauções que devem ser tomadas para sua utilização: R. BRUNSCHWIG, “Ibn Abd
al Hakam et la conquête de l’Afrique du Nord par les Arabes”, Annales de l’Institut d’Etudes orientales
d’Alger, VI, 1942 -1947, estudo hipercrítico que não nos parece prejudicar a contribuição desse texto,
fundamental para o Egito, útil para a Ifrikya, importante para o mundo negro (eventuais contatos de
Uqba com o Fezzan negados por BRUNSCHWIG num outro artigo; o famoso tratado chamado Baqt
com os núbios).
32 Não há muita coisa para se extrair de um compilador tardio, UBAYD ALLAH B. SALIH, descoberto
e magnicado por E. LÉVI -PROVENÇAL, cf. Arabica, 1954, p. 35 -42, como uma nova fonte da
conquista do Magreb. E. LÉVI -PROVENÇAL é seguido em seu julgamento por MAUNY, in: Tableau,
op. cit., p. 34, cuja análise das fontes árabes, cuidadosa e exaustiva, não se preocupa muito com a crítica
rigorosa.
33 Com exceção de algumas crônicas anônimas interessantes como al -Iman wa -s -Siyasa, Cairo, 1904, do
pseudo -Ibn QUTAYBA e o anônimo Akhbar MADJMU’A, Madri, 1867.
34 Editado por R. GUEST em 1912 e reeditado em Beirute em 1959.
96
Metodologia e pré -história da África
xiitas, como a Sirat al ‑Hajib Ja far, mas sobretudo a Iftitah ad ‑Da wa do Cadi
al -Nu’Man, obra fundamental, sem muitas datas, mas rica em informações sobre
o início do movimento fatímida
35
.
c) A primeira metade do século XI presenciou a redação do famoso Ta’rikh,
de al -Raqiq (morto em 1028), fonte fundamental. A obra é considerada
perdida, mas o essencial foi retomado por compiladores, como Ibn al -Idhari.
Recentemente, um fragmento dedicado à alta época ifriqiyana, descoberto pelo
marroquino Mannuni, foi editado em Túnis (1968) por “M. Kaabi”, sem que,
com segurança, possamos atribuí -la a Raqiq
36
.
Em todas essas crônicas, o lugar reservado à África negra é mínimo. Além
disso, elas exigem do historiador uma crítica rigorosa, uma confrontação constante
dos dados, entre si e com os de outra origem. O historiador do Magreb e do
Egito, principalmente, não pode parar nesse ponto: um conhecimento profundo
do Oriente é absolutamente necessário. A utilização dessas fontes deve, então,
ser completada com a utilização em profundidade das crônicas orientais clássicas.
Fontes geográcas
São importantes e numerosas a partir do século IX. Quer pertençam ao
nero cartográfico do Surat al -Ardh, ilustrado por al -Khwarizmi, à geografia
administrativa, à categoria dos itinerários e países (Masalik) ou simplesmente à
de viagem mais ou menos romanceada, os documentos geográficos escritos em
árabe ilustram um desejo de apreeno da totalidade do oekumene. Assim, não é de
surpreender que a África negra esteja representada nessas fontes e que sejam elas
elemento fundamental do nosso conhecimento dessa África. A coletânea exaustiva
compilada por Kubbel e Matveïev
37
, que se interrompe no século XII, mostra que,
dos 40 autores que falaram da África negra, 21 são geógrafos, e seus textoso os
mais ricos em conteúdo. Mas não poderíamos tirar real proveito dessas fontes sem
um trabalho crítico preliminar. O historiador da África negra deve recolocar as
obras geográficas árabes dentro de seu contexto cultural próprio. Em que medida,
por exemplo, tal descrição corresponde à realidade e em que medida o é reflexo
dos temas repetidos do Adab com seus diversos componentes?
38
Qual é a parte da
35 Publicado em Túnis por M. DACHRAOUI, e em Beirute.
36 M. TALBI negou declaradamente a autoria a al -RAQIQ, in: Cahiers de Tunisie, XIX, 1917, p. 19 e segs.,
sem, entretanto, chegar verdadeiramente a convencer. A incerteza, portanto, subsiste.
37 KUBBEL, L. E. e MATVEÏEV, v. V, 1960 e 1965. Ver também CUOQ, J. 1975.
38 MIQUEL, A., 1967 e 1975.
97
As fontes escritas anteriores ao século XV
herança grega, da herança iraniana, da própria tradição árabe a da compilação, a
da observação concreta? Mas, por outro lado, deve -se exercer a crítica dos textos a
partir do interior, isto é, com um conhecimento aprofundado da história da África,
tomando -se cuidado para o ler essa história apenas em fontes essencialmente
geográficas. Mas é inadmissível o ponto de vista estritamente ideológico daqueles
que, por islamofobia
39
, preocupação mal colocada de um africanismo introvertido,
recusam o exame aprofundado dessas fontes
40
.
Da plêiade de geógrafos que, da metade do século IX a meados do século XI,
concederam um lugar à África – quase todos estão nesse caso –, somente alguns
transmitem uma informação original e séria: Ibn Khordadhbeh, Ya’kub (morto
em 897), al -Mas’udi (965), Ibn Hawkal (977), al -Biruni
41
. Ya’kub viajou pelo
Egito e Magreb, deixando -nos um relatório substancial desses países. Tanto na
sua Ta’rikh como em seus Buldan
42
, encontram -se inúmeras informações relativas
ao mundo negro: sobre a Etiópia, o Sudão, a Núbia, os Bejja, os Zendj. No Sudão,
menciona os Zghawa do Kanem e descreve seu habitat; ao descrever o importante
reino de Gana trata do problema do ouro, assim como, ao falar do Fezzan,
refere -se ao problema dos escravos. São ainda mais detalhados os Masalik
43
,
de Ibn Hawkal, que visitou a Núbia e talvez o Sudão ocidental; sua descrição
vale, sobretudo, pela ideia que das relações comerciais entre o Magreb e o
Sudão. Quase todos os outros geógrafos do século X fazem observações sobre a
África negra: Ibn al -Fakih sobre Gana e Kuki; o viajante Buzurg Ibn Shariyan
sobre a costa oriental e os Zendj; e Muhallabi, que conservou em seu tratado
fragmentos de Uswani. Finalmente, o Campos de Ouro de al -Mas’udi (965)
é rico em informações sobre os Zendj e a costa oriental. Desde cedo, esses
39 Ver sobre esse assunto a posição bastante crítica de L. FROBENIUS e a de J. ROUCH: Contribution
à l’histoire des Songhay. Dacar, 1953. Que denuncia, sobretudo, a deformação ideológica das crônicas
sudanesas.
40 É verdade que esses textos se aplicam sobretudo ao cinturão sudanês e que, por esse motivo, uma leitura
unilateral das fontes árabes, sem o auxílio da arqueologia, pode falsear a perspectiva. Mas não se pode
dizer que faltava objetividade aos autores árabes. Quanto a lastimar o caráter fragmentário e desordenado
de seus escritos, signicaria abandonar o ponto de vista do historiador para adotar o do historiador da
literatura. Encontraremos julgamentos variados em N. LEVTZION. Será útil também referirmo -nos
à comunicação de I. HRBEK no XII Congresso internacional das ciências históricas em Viena (Atas,
p. 311 e segs.). Ver também T. LEWICKI: Perspectives nouvelles sur l’histoire africaine, relatório do
Congresso de Dar -es -Salam, 1971, e Arabic external sources for the History of Africa to the South of the
Sahara, Wroclaw -Warszawa -Krakow, 1969.
41 Ver Correio da Unesco, jun. 1974.
42 Editado na Bibliotheca Geographorum arabicorum, t. 7, de GOEJE, como a maioria dos geógrafos árabes.
A tradução de G. WIST, sob o título de Livre des Pays, é útil, mas nem sempre precisa.
43 Kitab al -Masalik wa -l -Mamalik, B. G. A. II; KUBBEL, L. E. e MATVEÏEV, V. V. II, p. 33 e segs.
98
Metodologia e pré -história da África
textos chamaram a atenção dos especialistas africanistas e orientalistas, como
Delafosse, Cerulli
44
, Kramers
45
e Mauny
46
.
Fontes jurídicas e religiosas
Os tratados de direito e as viagens hagiográficas de Tabakat, desde a
Mudawwana de Sahnun até os tratados caridjitas constituem rico manancial
de informações sobre o Magreb; alguns o utiliveis para a região saariana
de contato com a África negra. A crônica sobre os imãs rustêmidas de Taher,
de Ibn al -Saghir (icio do século X)
47
, permite -nos afirmar a existência,
a partir do fim do século VIII, de relões comerciais entre o principado
ibadita e Gao. Permite -nos, também, completada por compilações posteriores,
tais como as Siyar de al -Wisyani, identificar a ocorrência desse comércio em
toda a orla saariana da África do Norte. Mas essas fontes hagiográficas
fornecem informações de maneira alusiva; devem ser lidas de acordo com
uma problemática prefixada e constantemente comparadas com outros tipos
de fontes. Não autorizam, em nossa opinião, construções e deduções ousadas,
como a que propõe Lewicki.
A segunda idade islâmica (1050 ‑1450)
O que caracteriza esse longo período é a riqueza, a qualidade e a variedade
de nossa informação. As fontes arquivísticas, sempre secundárias em relação
aos documentos “literários” escritos, são, contudo, importantes: documentos da
Geniza, cartas almorávidas e almoadas, registros de Waqf, fatwas, documentos
italianos, peças oficiais intercaladas nas grandes compilações. Os cronistas
produzem obras de primeira ordem, que valem tanto pela observação dos
fatos a eles contemporâneos como pela reprodução de antigas fontes perdidas.
Finalmente, no que se refere à África negra, nosso conhecimento atinge seu
ponto máximo, enquanto com os manuscritos etíopes surgem novos documentos
africanos.
44 Documenti arabi per la storia dell Ethiopia, 1931.
45 Djughraya, Enciclopédia do Islã; L’Erythrée décrite dans une source arabe du X
e
siècle, Atti dei
XIX
Congresso
degli Orientalisti, Roma, 1938.
46 O primeiro capítulo de seu Tableau é um inventário sistemático das fontes geográcas.
47 Publicada nas Actes du XIV
e
Congrès international des orientalistes (3
a
parte), 1908, e estudada por T.
LEWICKI, 1971, v. 13, p. 119 e segs.
99
As fontes escritas anteriores ao século XV
Fontes arquivísticas
Valem unicamente para o Egito e o Magreb.
a) Dispomos atualmente dos documentos da Geniza do Cairo, que cobrem
toda a época em consideração; a maior parte, entretanto, é do período fatímida, e
apenas alguns pertencem aos séculos mamelucos. Esses documentos constituem
um bricabraque de papéis de família, de correspondência comercial, que refletem
as preocupações da comunidade judaica do Egito e outros lugares. A utilização
dos documentos escritos em língua árabe e em caracteres hebraicos não -datados
exige um certo número de precauções técnicas. Mas, mesmo como são, eles
representam um manancial inesgotável de informações
48
.
Pode -se classificar na mesma categoria a dos arquivos particulares os
registros de Waqf, numerosos para a época mameluca, conservados pelo Cartório
do Cairo
49
, assim, talvez, como os fatwas da época haféssida.
b) Por outro lado, os documentos europeus relativos ao Egito e ao Magreb,
datados dos séculos XII, XIII e XIV, pertencem em parte ao domínio privado
e em parte ao domínio público. São mantidos nos arquivos públicos e privados
de Veneza, Gênova, Pisa, Barcelona e consistem de tratados, contratos, cartas,
em geral referentes a relações comerciais. Apenas alguns foram publicados por
Amari e Mas -Latrie
50
. Oferecem, no conjunto, uma massa documentária capaz
de ampliar o campo da investigação no domínio da história econômica e social.
c) Não temos, propriamente dito, arquivos de Estado relativos a essa época.
Mas foram conservadas e publicadas peças oficiais almorávidas e almóadas, que
lançaram uma nova luz sobre a ideologia e as instituições produzidas pelos dois
movimentos imperiais
51
. “Começamos”, comenta Laroui, a ver o almoadismo
de dentro: não é impossível escrever uma história religiosa e política da
48 São importantes os trabalhos de S. D. GOITEIN, artigo “Geniza” in: E. I. 2.
a
ed.; e Cairo Geniza
as source for mediterranean social history; Journal of the American Oriental Society, 1960. S. D. GOITEN
começou a publicar um estudo muito importante sobre as fontes da Geniza: A Mediterranean society:
the jewish communities of lhe Arab world as portrayed in the Documents of the Cairo Geniza”, v. I, Economics
Foundations, Berkeley -Los Angeles, 1967. S. SHAKED, A tentative bibliography of Geniza documents.
Paris -La Haye, 1964; H. RABIE, 1972, p. 1 -3. Um grande número desses documentos encontra -se no
British Museum e em Cambridge.
49 RABIE, H. 1972, p. 6 -8 e 200.
50 AMARI, I diplomi arabi dei R. Archivio Fiorentino, Florence, 1863; MAS -LATRIE, Traités de paix et de
commerce et documents divers concernant les relations des Chrétiens avec les Arabes d’Afrique septentrionale au
Moyen Âge. Paris, 1866, suplemento 1872.
51 Lettres ocielles almohavides, editadas por
H.
MU’NIS e A. M. MAKKI; trente ‑sept lettres ocielles
almohades, editadas e traduzidas por E. LEVI -PROVENÇAL, Rabat, 1941; Al -Baydaq, Documents
inédits d’histoire almohade, ed. e trad. francesa por E. LEVI -PROVENÇAL, Paris, 1928.
100
Metodologia e pré -história da África
dinastia
52
. De época mais antiga encontramos no Egito enciclopédias histórico-
-jurídicas que reúnem inúmeros documentos oficiais: a descrição detalhada que
nos oferecem das estruturas fiscais e institucionais do Egito provém, em geral,
de uma consulta prévia a documentos públicos. Nesse gênero meio arquivístico,
meio de crônica, podemos classificar os Qawanin al ‑Dawawin de Mammati
(época aiúbida), o Minhadj de Makhzum”, Subh -al -sha al -Kalkashandi (século
XIV), e as inúmeras obras de al -Makrizi, dentre as quais, os valiosos Khitat
(século XV)
53
. Al -Makrizi é uma fonte preciosa não para toda a história do
Egito islâmico, mas também para a história da Núbia, do Sudão e da Etiópia
54
.
Fontes narrativas
a) Crônicas: após um século de silêncio o século XII, no decorrer do qual
encontramos quase apenas o anônimo al ‑Istibsar e obras menores –, os séculos
XIII e XIV nos oferecem uma safra de crônicas, ricas em todo ponto de vista,
desde o Kamil, de Ibn al -Athir, até o Kitab al ‑Ibar, de Ibn Khalduri, passando por
Ibn al -Idhari, al -Nuwairi, Ibn Abi Zar’, al -Dhahabi. Testemunhas de seu tempo,
esses homens realizaram também um esforço de síntese dos acontecimentos dos
séculos anteriores. Nuwairi é tão importante para os Mamelucos como para a
conquista do Magreb
55
; Ibn Idhari, tanto para a história almoada como para
todo o passado da Ifrikya; e o conhecimento de Ibn Khaldun, enfim, sobre o
mundo berbere o faz autoridade suprema em matéria de história da África.
b) Geografia: os tratados de geografia aparecem em abundância nesses quatro
séculos. Seu valor varia conforme o autor e conforme a região descrita. Dois
geógrafos destacam -se da maioria pela amplitude e qualidade de sua observação:
al -Bakri (1068), no século XI, e al’Umari (morto em 1342) no culo XIV.
Enquanto obra tão notória como a de Idrisi é discutível e discutida, podemos
obter informações originais em obras geográficas menos conhecidas: a de Ibn
52 LAROUI, A. 1970, p. 162.
53 RABIE, H. 1972, p. 10 -20.
54 Seu Kitab al ‑Ilman nos uma relação dos reinos muçulmanos da Etiópia, emprestada, é verdade, de
UMARI. Um trecho foi publicado em Leyde em 1790 sob o título de Historia regum islamicorum in
Abyssinia.
55 Mas esse fragmento conserva -se, ainda, em manuscrito na Biblioteca Nacional do Cairo. Assinalemos
que IBN SHADDAD, autor de uma história, agora perdida, de Kairuan, é considerado uma das fontes
principais de IBN AL -ATHIR e de NUWAIRI. Recentemente, foi editada obra anônima, o Kitab
al ‑Uyun, em Damasco, por M. Saidi, com informações interessantes sobre o Magreb.
101
As fontes escritas anteriores ao século XV
Sa’id, por exemplo, tão interessante para o Sudão
56
. Os Masalik e Namalik
57
, de
Bakri, representam o apogeu” de nosso conhecimento geográfico do Magreb e do
Sudão. O próprio Bakri não viajou nessas regiões, mas utilizou inteligentemente
as notas de al -Warraq, hoje perdidas, assim como informações de mercadores
e viajantes.
O Livro de Roger de al -Idrisi (1154), no prelo na Itália, toma emprestado
muita coisa de seus predecessores. Confusa quando trata da Etpia, sua
descrição torna -se mais precisa para a África ocidental. Mas, aqui e ali, aparece
uma observação original, às vezes preciosa.
A Geografia de Ibn Sa’id al -Gharnata (antes de 1288) utiliza -se de Idrisi
em sua descrição da Etiópia, embora traga, também, informações novas. Mas
seu interesse principal deve -se à descrição que faz do Sudão, amplamente
baseada nos documentos escritos por um viajante do século XII: Ibn Fatima. A
obra capital do século XIV para o historiador da África negra é a de al’Umari:
Masalik al ‑Absar
58
. Testemunho de um observador de primeira ordem, ela é
nossa principal fonte para o estudo do reino do Mali, em sua organização interna
e em suas relações com o Egito e o Islã. Mas é também o relatório árabe mais
rico que temos sobre os Estados muçulmanos da Abissínia no século XIV. A
obra de al’Umari apresenta, além do interesse de sua descrição, o problema do
aparecimento do Estado no Sudão e o da islamização, como fazia, três séculos
antes, al -Bakri relativamente ao problema do grande comércio de ouro. Este
último autor evoca a profundeza dos laços entre o Magreb e o Sudão; o primeiro
sugere o deslocamento desses laços para o Egito.
A obra de Umari é completada por outra, de um observador direto da
realidade sudanesa e magrebiana: Ibn Battuta.
Mas os geógrafos menores e autores de narrativas de viagens são numerosos
e devem, de qualquer modo, ser consultados. Citemos: al -Zuhri (século XII),
Yakut, al -Dimashki (século XIV), a geografia dita Mozhaferiana, Ibn Jubayr,
al -Baghdadi, Abdari, Tijani, al -Balawi, al -Himyari.
c) Fontes de inspiração religiosa e literária: as fontes religiosas provêm de vários
horizontes. Notemos as obras de Tabakat e de hagiógrafos sunitas, caridjitas,
marabúticos e mesmo cristãos (originários da comunidade copta). Citemos
56 Para uma relação completa dos geógrafos, ver L. KUBBEL e V. V. MATVEÏV, juntamente com o
primeiro capítulo de R. MAUNY, 1961; pela nota de T. LEWICKI, 1971; e a introdução da tese de A.
MIQUEL, 1967.
57 Publicado e traduzido por DE SLANE sob o título Description de l’Afrique septentrionale, Paris, 1911.
58 Parcialmente traduzido por M. GAUDEFROY -DEMOMBYNES sob o título: L’Afrique moins l’Egypte,
Paris, 1927.
102
Metodologia e pré -história da África
 . Manuscrito árabe (verso) n. 2291, fólio 103 Ibn Battuta (2
a
parte), referência ao Mali (Fot.
Bibl. Nac. Paris).
103
As fontes escritas anteriores ao século XV
também os manuscritos das igrejas etíopes que reproduzem documentos oficiais
em suas margens. Todos esses documentos mostram -se úteis não apenas para o
conhecimento da evolução da sensibilidade religiosa e do mundo religioso, mas
também para o conhecimento do mundo social. Obras como o Riyah de Malik,
ou os Madarik de Iyadh são ricas em observações sociológicas, encontráveis no
decorrer da exposição. As fontes caridjitas, como sabemos, são importantes para
toda a região saariana do Magreb, zona de contato com os Negros. Al -Wisyani,
Darjini, Abu Zakariya e mesmo um autor tardio como al -Shammakhi são seus
principais representantes. Enfim, toda a massa de material em língua árabe ou
em copta, produzida no Egito medieval pela Igreja local, traz esclarecimentos
sobre as relações entre as igrejas e entre a hierarquia eclesiástica e o Estado
59
.
São numerosas as fontes propriamente literárias sobre esse período; referem -se
quase que exclusivamente ao Magreb e ao Egito. Ainda nessa categoria os Ras
al’Ain, de al -Qahi al Fadhil, e especialmente o grande dicionário de Safadi,
al ‑Wafibi ‑l Wafayat, ocupam um lugar à parte.
Portanto, no que diz respeito à segunda Idade Islâmica, nossa documentação
é abundante, variada e em geral de boa qualidade, em contraste com o período
precedente. Na África propriamente islâmica, esses escritos trazem muitos
esclarecimentos sobre o funcionamento das instituições e sobre as tendências
profundas da história. Já não se contentam em traçar apenas um simples quadro
político. No que concerne à África negra, o século XIV é o período do apogeu
de nosso conhecimento. Espera -se, no entanto, que documentos europeus e
autóctones nos permitam aprofundar esse conhecimento, e ampliá -lo de forma
a abranger regiões que até o momento se mantêm na obscuridade.
Conclusão
o seria exato pensar que o estado das fontes escritas do continente africano
antes do século XV seja de extrema pobreza, mas a verdade é que, no conjunto,
a África é menos provida que a Europa e a Ásia. Todavia, enquanto em uma
grande parte do continente não existem fontes escritas, nas regiões restantes
o conhecimento histórico é possível e baseia -se no caso do Egito numa
documentação excepcionalmente rica. Isso significa que uma exploração rigorosa
59 Patrologie orientale, coleção essencial. Entre as obras que nos dizem respeito, citemos as de SEVERO
DE ALEXANDRIA (século I) e de IBN MUFRAH (século XI), interessantes para a Etiópia; Kitab
Siyar al ‑Aba al ‑Batariqa. Cf. também MIGUEL, o Sírio, ed. trad. Chabot, 3 v., 1899 -1910.
104
Metodologia e pré -história da África
e atenta desses textos ainda pode contribuir muito, embora não se possam esperar
grandes descobertas. É preciso que nos dediquemos com urgência a todo um
trabalho de crítica textual, de reedição, de confrontação e de tradução, iniciado
por alguns pioneiros e que deve ser continuado.
Por outro lado, ainda que nossas fontes tenham sido redigidas no quadro de
culturas universais”, cujo ponto focal se situa fora da África culturas “clássicas”,
cultura islâmica têm a vantagem de ser em sua maioria comuns a todos podendo
ser lidas numa perspectiva africana, mantidas as devidas ressalvas quando
diante de qualquer pressuposto ideológico. Isso é particularmente verdadeiro
para o caso das fontes árabes, que continuam sendo a base essencial de nosso
conhecimento. Sua exterioridade relativa ou absoluta em relação a seu objeto
não diminui em nada seu valor, a não ser pela distância. Não obstante devam
ser reconhecidas as diferenças socio culturais, é fato que essas fontes valorizam
uma certa solidariedade de comunicação africana, à qual, até agora, islamistas e
africanistas nem sempre têm se mostrado sensíveis.
C A P Í T U L O 6
105
As fontes escritas a partir do século XV
Paralelamente a profundas mudanças em todo o mundo, e, em especial,
na África, no final do culo XV e princípio do século XVI, ocorreram
transformações no caráter, proveniência e volume das fontes escritas para a
história da África. Observa -se, em relação ao período precedente, um certo
número de novas tendências na produção desse material, algumas referentes a
todo o continente, outras, a apenas algumas partes em geral, à África ao sul
do Saara.
Inicialmente, ao lado do contínuo crescimento de todos os tipos de fontes
narrativas (narrativas de viajantes, descrições, crônicas, etc.), surgem numerosos
materiais de cater primário, como corresponncias e relatórios oficiais,
comerciais ou missionários, escrituras legais e outros documentos arquivísticos,
raramente encontrados antes desse período. Se, por um lado, a abundância
crescente desse material oferece ao historiador um auxílio muito maior, por
outro torna muito mais difícil uma visão de conjunto.
Pode -se observar, também, uma nítida diminuição no volume das fontes
narrativas árabes para a África ao sul do Saara. Não obstante, surge nesse período
a literatura histórica escrita em árabe por autóctones, e é somente a partir dessa
época que se faz ouvir a voz de autênticos africanos falando de sua própria
história. Os mais antigos e mais conhecidos exemplos dessa historiografia local
As fontes escritas a partir
do século XV
I. Hrbek
106
Metodologia e pré -história da África
provêm do cinturão sudanês e da costa africana oriental; em outras partes da
África tropical, mais tarde é que essa evolução se fará notar.
Nos últimos duzentos anos, os africanos também começaram a escrever em
suas próprias línguas, usando primeiramente o alfabeto árabe (por exemplo,
em kiswahili, haussa, fulfulde, kanembu, diula, malgaxe, etc.) e mais tarde o
latino. Mas também existem materiais históricos (e outros) em escrita de origem
genuinamente africana, como os alfabetos bamum e vai.
Uma terceira tendência, resultante da anterior, é o aparecimento de uma
literatura em inglês (e, em menor grau, em outras línguas europeias) feita pelos
africanos, escravos libertados ou seus descendentes na América, conscientes de
seu passado africano.
 . Fac-símile de manuscrito bamum (Museu do IFAN).
107
As fontes escritas a partir do século XV
Finalmente temos as narrativas em várias línguas europeias, que aos poucos
vão ocupando o espaço das fontes árabes. A quantidade de obras dessa natureza
aumenta progressivamente e, nos séculos XIX e XX, atinge um tal volume que
os livros de referência bibliográfica poderiam ser contados às dezenas.
Apesar de todas as mudanças, houve, evidentemente, uma continuidade na
historiografia de algumas regiões da África, especialmente na do Egito, Magreb e
Etiópia. Nesses países, os cronistas e biógrafos mantiveram viva a tradição herdada
do período anterior. Enquanto no Egito e, em parte, na Etiópia observou -se um
certo declínio na qualidade e mesmo quantidade desses trabalhos, o Magreb e,
em particular, o Marrocos continuaram a produzir competentes estudiosos que
contribuíram grandemente para a história de seus países.
As áreas geográficas cobertas por fontes escritas também vão registrar uma
evolução. Enquanto, ao século XVI, as margens do Sahel sudanês e uma
estreita faixa da costa oriental africana formavam os limites do conhecimento
geográfico, e, portanto, histórico, a nova época viria gradualmente acrescentar a
esse espaço novas regiões antes não mencionadas por aquele tipo de fontes. A
quantidade e a qualidade dessas fontes variam bastante, evidentemente, de uma
região para outra e de um século para outro, tornando a classificação por língua,
caráter, propósito e origem dos documentos ainda mais complexa.
De modo geral, registrou -se uma expansão da costa para o interior. O
movimento foi bastante lento, só ganhando aceleração no fim do século XVIII.
A costa africana e seu interior imediato, já no século XV, haviam sido descritos
pelos portugueses, de modo sumário. Nos séculos seguintes as fontes escritas,
então em várias línguas, começaram a registrar informes mais detalhados e
abundantes sobre as populações costeiras. Os europeus penetraram no interior
somente em algumas regiões (no Senegal e na Gâmbia, no delta do Níger e no
Benin, no Reino do Congo, e pelo Zambeze, até o Império de Monomotapa),
trazendo, assim, essas áreas para o horizonte das fontes escritas. Ao mesmo
tempo, algumas partes da África, até então praticamente inexploradas, tornaram-
-se mais conhecidas, como, por exemplo, a costa sudoeste africana e Madagáscar.
Um território muito maior era coberto por fontes escritas em árabe. A escola
historiográfica sudanesa, à medida que ia obtendo informações sobre regiões até
então desconhecidas, estendia -se a outros países, sobretudo em direção ao sul, de
modo que no século XIX toda a região entre o Saara e a floresta – e, em alguns
pontos, até a costa podia -se considerar coberta por fontes escritas locais. Já,
no interior, vastas regiões tiveram que esperar até o século XIX pela produção
das primeiras narrativas escritas dignas de confiança.
108
Metodologia e pré -história da África
Mesmo nas regiões costeiras pode -se constatar grandes diferenças no que diz
respeito à informação histórica: em geral, a costa atlântica é mais bem provida
de documentos escritos que a costa oriental, e também a quantidade de material
disponível para o antigo Congo, a Senegâmbia, a costa entre o cabo Palmas e o
delta do Níger é muito maior que para a Libéria, Camarões, Gabão ou Namíbia,
por exemplo. A situação difere também quanto aos períodos: muito mais
informação escrita para a costa oriental, Benin ou Etiópia nos séculos XVI e
XVII que no XVIII, e, para o Saara, mais na primeira metade que na segunda
metade do século XIX.
Devido a essa distribuição irregular dos materiais em relação tanto a
espaço, tempo e caráter, quanto a sua origem e língua, é preferível examiná-
-los sob diferentes critérios ao invés de adotar um único procedimento.
Consequentemente, nós os apresentaremos, em alguns casos, de acordo com as
regiões geográficas, em outros, de acordo com suas origens e caráter.
África do Norte e Etiópia
África do Norte
Os materiais para a África do Norte de língua árabe, como os de outras partes
do continente, passaram por algumas profundas mudaas em comparão
com o período anterior, o mesmo não ocorrendo, no entanto, com as narrativas
históricas locais, que continuaram, como anteriormente, a relatar os principais
acontecimentos da maneira tradicional. Nenhuma figura comparável aos grandes
historiadores árabes da Idade Média surgiu entre os cronistas e compiladores
dessa época, e a abordagem crítica do historiador, preconizada por Ibn Khaldun,
não foi seguida por seus sucessores. A historiografia árabe moderna só vai
aparecer no século XX.
As mudanças que se fazem sentir dizem respeito principalmente a dois tipos
de fontes: os documentos arquivísticos de diversas origens e os escritos europeus.
Somente a partir do início do século XVI, os materiais pririos, tanto em árabe
como em turco, começam a aparecer em maior abundância. Os arquivos otomanos
o comparáveis em volume e importância aos mais ricos da Europa, mas, àquela
época, raramente eram utilizados e estudados por historiadores dessa parte da
África. É do mesmo peodo que remontam os arquivos secunrios dos países que
faziam parte do Imrio Otomano (Egito, Tripolinia, Tunísia e Argélia)
1
. Um caso
1 DENY, J. 1930; MANTRAN, R. 1965; LE TOURNEAU, R. 1954.
109
As fontes escritas a partir do século XV
especial é o do Marrocos, que sempre conservou sua independência, e seus arquivos
preservaram um rico material histórico
2
. Os documentos o principalmente de
arquivos governamentais, administrativos e jurídicos; os materiais relativos ao
corcio, à produção, à vida social e cultural são menos numerosos, pelo menos os
de antes do século XIX. Isto se deve, em parte, à falta de arquivos particulares que
forneçam informações valiosas para a história ecomica e social da Europa. Para
alguns países e períodos esta lacuna pode ser preenchida: por exemplo, o material
sobre o Marrocos, encontrado em muitos países europeus, foi coligido e publicado
no trabalho monumental de Henri de Castries
3
. A compilão de coleções similares,
ou ao menos o arrolamento dos documentos relativos aos demais países da África
do Norte está entre as tarefas mais urgentes do futuro pximo.
Examinando, agora, as fontes narrativas em árabe, pode -se constatar uma
retração constante na quantidade e na qualidade dos escritos históricos na África
do Norte, com exceção apenas do Marrocos, onde as escolas tradicionais de
cronistas continuaram a produzir histórias detalhadas das duas dinastias xerifinas
até a época atual. Pode -se citar como exemplo a Ma’sul de Mokhtar Soussi,
em vinte volumes, e a Histoire de Tetouan, em vias de publicação
4
. Da corrente
ininterrupta de historiadores podemos indicar apenas alguns nomes entre os mais
destacados. A dinastia Sádida encontrou um excelente historiador em al -Ufrani
(morto em c. 1738)
5
, que cobriu os anos 1511 -1670; o período seguinte (1631-
-1812) foi descrito detalhadamente pelo maior historiador marroquino desde a
Idade Média, al -Zay (morto em 1833)
6
, enquanto al -Nasiri al -Slawi (morto em
1897) escreveu uma história geral de seu país com ênfase especial no século XIX,
combinando os métodos tradicional e moderno, usando, entre outros, documentos
de arquivos. Ele é o autor também de uma obra geográfica bastante rica em
informões sobre a vida social e econômica
7
. A essas obras estritamente hisricas
devem ser acrescentadas as narrativas de viajantes, em sua maioria peregrinos,
que descreveram não apenas o Marrocos, mas também outros países árabes até
a Arábia. As duas melhores narrativas desse tipo o as escritas por al -’Ayyashi
de Sijilmasa (morto em 1679) e Ahmad el -Darci de Tamgruti nas proximidades
2 MEKNASI, A. 1953; AYACHE, G. 1961.
3 Les Sources inédites de l’histoire du Maroc, 24 v., Paris, 1905 -1951.
4 VI -PROVENÇAL, E. 1922; MOKHTAR SOUSSI, Ma’sul, 20 v. publicados; DAOUD, Histoire de
Tetouan.
5 Ed. e trad. por O. HOUDAS, Paris, 1889.
6 HOUDAS, Paris, 1886.
7 Ed. no Cairo, em 1894, em 4 v. Muitas traduções parciais em francês e espanhol.
110
Metodologia e pré -história da África
do Saara (morto em 1738)
8
; outros textos interessantes são o relatório de el -
Tamghruti, embaixador marroquino junto à corte otomana em 1589 -1591
9
, e a
Rihla de Ibn Othman, embaixador do Marrocos junto à corte de Madri.
Nos países entre o Marrocos e o Egito as crônicas locais o eram tão
abundantes, nem tinham a mesma qualidade. No que diz respeito à Argélia,
histórias anônimas em árabe e em turco, de Aru e Khayruddin Barbarossa
10
, e
uma história militar que vai até 1775, de Mohammed el -Tilimsani
11
. A história
da Tunísia pode ser reconstituída graças a uma série de anais, desde el -Zarkachi
(até 1525)
12
até Maddish el -Safakusi (morto em 1818)
13
. Uma história de Trípoli
foi escrita por Mohammed Ghalboun (1739)
14
. As crônicas e biografias ibaditas,
como a de al -Shammakhi (morto em 1524), merecem atenção especial, que
fornecem muitas informações valiosas sobre o Saara e o Sudão
15
.
Biografias ou dicionários biográficos, gerais ou específicos, na maior parte
consagrados a pessoas proeminentes (eruditos, advogados, príncipes, místicos,
escritores, etc.), geralmente combinam materiais biográficos com narrativas
históricas, esclarecendo muitos aspectos da história cultural e social. Obras desse
gênero proliferaram em todos os países árabes, especialmente no Marrocos.
Mesmo algumas poesias, às vezes em dialetos vernáculos, podem servir como
fontes históricas, como, por exemplo, os poemas satíricos do egípcio el -Sijazi
(morto em 1719), em que ele descreve os principais acontecimentos de sua época
16
.
No que se refere à história do Egito otomano, deve -se recorrer a crônicas,
em grande parte ainda inéditas e inexploradas. O Egito produziu, nesse período,
apenas dois grandes historiadores um no início do domínio turco, o outro
exatamente no fim: Ibn Iyas (morto em 1524) fez um registro diário da história
de sua época, oferecendo, assim, uma riqueza de detalhes raramente encontrada
em outras obras
17
; el -Jabarti (morto em 1822) é o cronista dos últimos dias
do domínio otomano, da ocupação napoleônica e da ascensão de Mohammed
8 Ambas traduzidas por S. BERBRUGGER, Paris, 1846.
9 Traduzido por H. de CASTRIES, Paris, 1929.
10 Editado por NURUDDIN, Argel, 1934.
11 Traduzido por A. ROUSSEAU, Argel, 1841.
12 Traduzido por E. PAGNA, Constantina, S.d.
13 Publicado em Túnis, 1903.
14 Publicado por Ettore ROSSI, Bolonha, 1936. também algumas crônicas turcas da Tripolitânia.
15 LEWICKI, T. 1961.
16 Mencionado por EL -JABARTI.
17 WIET, G. Journal d’un bourgeois du Caire.
111
As fontes escritas a partir do século XV
Ali, cobrindo, portanto, um período crucial da história do Egito
18
. Embora
muitas crônicas e outras obras históricas de todos os países árabes tenham sido
publicadas, a grande maioria encontra -se ainda em manuscritos espalhados por
muitas bibliotecas tanto dentro como fora de seu país de origem, à espera de
estudo e publicação.
Nesse período as narrativas de viajantes europeus ganham imporncia
crescente. Embora o preconceito anti -islâmico de seus autores raramente
permita relatórios verdadeiramente objetivos, elas trazem muitas reflexões e
observações interessantes não encontradas em outros documentos, que os
escritores locais consideravam muitos aspectos da vida banais e desprovidos
de interesse. É incontável o número de europeus viajantes, embaixadores,
cônsules, mercadores e mesmo prisioneiros (entre eles Miguel de Cervantes)
que deixaram reminiscências e relatórios mais ou menos detalhados dos países
do Magreb, que visitaram; o mesmo aconteceu, talvez até com maior intensidade,
no caso do Egito, que atraía muitos visitantes por sua importância comercial e
a proximidade da Terra Santa
19
. De interesse particular é a obra monumental
Description de lEgypte (24 volumes, Paris, 1821 -1824), compilada pela comissão
científica da expedição de Napoleão Bonaparte, fonte inesgotável de todo tipo
de informação sobre o Egito às vésperas de uma nova época.
No século XIX, as fontes para a história da África do Norte são tão abundantes
quanto para qualquer país europeu. As crônicas locais e narrativas de viajantes
assumem um lugar secundário em relação às fontes mais objetivas arquivos,
estatísticas, jornais e outros testemunhos diretos ou indiretos –, permitindo aos
historiadores empregar os métodos e abordagens clássicos elaborados para uma
história amplamente documentada, como a da Europa.
Duas regiões de língua árabe, Mauritânia e Sudão oriental, merecem um
tratamento especial devido à sua situação particular, nos limites do mundo árabe.
Uma característica comum das fontes nesses dois países é a predominância de
biografias, genealogias e poesia, sobre os anais históricos propriamente ditos, pelo
menos até o final do século XVIII. Em relação à Mauritânia, várias genealogias
e biografias foram publicadas por Ismaël Hamet
20
, a que se acrescentam poemas
e outros materiais folclóricos recolhidos por René Basset e mais recentemente
por H. T. Norris
21
. Um exame intensivo de novos materiais foi realizado com
18 Muitas edições; uma tradução não muito digna de conança de Chek MANSOUR, Cairo, 1886 -1896.
19 CARRE, J. M. Cairo, 1932.
20 Chroniques de la Mauritaine sénégalaise, Paris, 1911.
21 BASSET, R. 1909 -1940; NORRIS, H. T. 1968.
112
Metodologia e pré -história da África
sucesso pelo estudioso da Mauritânia Mukhtar Wuld Hamidun. A primeira
obra propriamente histórica remonta ao início deste século: al Wasil, de Ahmad
al -Shinqiti, que é uma enciclopédia da história e da cultura mouriscas do passado e
do presente
22
. Existe um grande número de crônicas locais manuscritas, de maior
ou menor valor, no estilo das crônicas breves de Nema, Oualata e Shinqiti
23
. As
fontes árabes da Mauritânia são de especial interesse e importância, porque em
muitos casos cobrem não somente a Mauritânia propriamente dita, mas também
todos os países limítrofes do Sudão ocidental. Devido às estreitas relações que
existiram no passado entre a Mauritânia e o Marrocos, as bibliotecas e arquivos
marroquinos devem conter certamente um precioso material histórico para o
primeiro país. Além das fontes árabes, também a literatura narrativa europeia,
que se inicia no culo XV nas regiões costeiras, e no fim do século XVII
nas regiões fluviais. A partir do século seguinte, encontramos correspondência
diplomática e comercial, tanto em árabe como em línguas europeias.
A historiografia local no Sudão oriental parece ter começado somente nos
últimos anos do Sultanato Funj, isto é, no icio do século XIX, quando a tradição
oral foi registrada por escrito no texto chamado Crônica de Funj, do qual existem
rias versões
24
. São fontes valiosas as genealogias de rios grupos árabes
25
, assim
como o grande diciorio biográfico de estudiosos sudaneses, o Tebaqat, escrito por
Wad Dayfallah, que constitui um rico manancial de informações sobre a vida social,
cultural e religiosa do Reino Funj
26
. O mais antigo visitante estrangeiro conhecido
foi o viajante judeu David Reubeni (em 1523). A o culo XIX apenas um
pequeno mero de obras valiosas, mas entre elas se encontram as narrativas de
observadores particularmente lúcidos, como James Bruce (em 1773), W. G. Browne
(1792 -1798) e el -Tounsy (1803), sendo os dois últimos os primeiros a visitar Darfur
27
.
Na primeira metade do século XIX, o Suo foi, de toda a África tropical, a rego
mais visitada por viajantes. Suas narrativas são inumeveis e de variada qualidade
enquanto fontes históricas. A a cada de 1830, o existe nenhuma fonte escrita
para as regiões do alto vale do Nilo (ao sul da latitude 12°), mas a parte norte é
fartamente coberta por documentos arquivísticos do Egito (arquivos do Cairo) e,
22 AL -SHINQITI, A. Al‑Wasit  tarajim udaba ‘Shinqit, Cairo, 1910, e muitas edições novas. Trad. francesa
parcial, St. Louis, 1953.
23 MARTY, P. 1927; NORRIS. In: BIFAN, 1962; MONTEIL, V. In: BIFAN, 1965, n. 3 -4.
24 Estudado por M. SHIBEIKA. In: Ta’rïkh Mulk ‑al ‑Sudan, Khartum, 1947.
25 Recolhidas por H. A. MACMICHAEL. In: History of the Arabs in the Sudan, II, Cambridge, 1922,
juntamente com outros documentos históricos.
26 A edição comentada mais atualizada é de Yusuf FADL HASAN, Khartum, 1971.
27 BRUCE, J., 1790; BROWNE, W. G., 1806; EL -TOUNSY, Omar, 1845.
113
As fontes escritas a partir do século XV
em menor mero, europeus. São de extrema imporncia para os últimos vinte
anos do culo XIX os registros do Mahdiyya, que consistem em cerca de 80 mil
documentos árabes, conservados, em sua maioria, em Cartum.
Etiópia
A situação da Etiópia é análoga à da África do Norte no que respeita às fontes
escritas. Como nos países daquela região da África, na Etiópia o historiador tem
à sua disposição uma grande variedade de documentos, tanto internos como
externos. Pode até empregar material de fontes opostas, para alguns períodos
cruciais, caso, por exemplo, da invasão muçulmana de Ahmed Gran, na primeira
metade do século XVI, coberta, do ponto de vista etíope, pela Crônica Real (em
gueze) do Imperador Lebna Dengel, e, da visão muçulmana, pela detalhada
crônica escrita em 1543 pelo escriba de Gran, Arab Faqih, sem mencionar os
registros portugueses de testemunhas oculares
28
.
A redação das Crônicas Reais iniciou -se no século XIII, e há, relativas a
quase todos os reinos, mesmo durante o período de decnio, uma ou mais
crônicas detalhadas, que registram os principais eventos da época
29
. Essa tradição
perdurou por todo o século XIX e uma boa parte do século XX, como testemunha
a Crônica Amárica do Imperador Menelik II
30
. Várias obras da literatura etíope,
de diferentes gêneros, podem fornecer precioso material histórico, como, por
exemplo, as hagiografias, as polêmicas religiosas, a poesia, as lendas, as histórias
dos mosteiros, etc. Um documento único é a História dos Galla do Monge Bahrey
(1593), testemunha ocular da invasão galla da Etiópia
31
. Um século mais tarde,
Hiob Ludolf, o iniciador dos estudos etíopes na Europa, compila, a partir de
informações fornecidas por um especialista etíope, uma das primeiras histórias
gerais do país
32
.
Sendo o único país cristão que restou na África, a Etiópia naturalmente
despertou muito mais interesse na Europa que as demais partes do continente,
isso desde o século XV. Não é de surpreender o grande número de estrangeiros
viajantes, missionários, diplomatas, soldados, mercadores ou aventureiros que
visitaram esse país e dele deixaram registro. o o apenas portugueses,
28 ARAB FAQIH, 1897 -1901; CASTANHOSO, M. 1548; trad. inglesa, Cambridge, 1902.
29 Cf. PANKHURST, R. 1966; BLUNDEL, H. W. 1923.
30 Escrito por Gabré SELASSIÉ e traduzido para o francês, Paris, 1930 -1931.
31 Cf. BECKINGHAM, C. F. e HUNTINGFORD, G. W. B., 1954. Além da história de BAHREY, esse
livro contém trechos da History of High Ethiopia, de ALMEIDA, 1660.
32 LUDOLF, Hiob, 1681; tradução inglesa, 1682 -1684.
114
Metodologia e pré -história da África
franceses, italianos e ingleses, mas também muitas pessoas de vários outros
países russos, tchecos, suecos, arnios e georgianos
33
. Ocasionalmente
surgem registros turcos ou árabes, que, de diversos modos, complementam as
outras fontes
34
.
Da segunda metade do século XIX em diante, são os documentos de arquivos,
de todas as grandes potências europeias como também os de Adis Abeba e
mesmo os de Cartum que vão fornecer os principais materiais históricos. A
imporncia de um estudo minucioso dos documentos amáricos originais
para uma interpretação correta da história foi demonstrada recentemente pela
brilhante análise do tratado de Wichale (1889) feita por Sven Rubenson
35
.
África do Sul
Em comparação com outras partes do continente (com exceção dos países de
língua árabe e da Etiópia), a África do Sul oferece, para o período em estudo,
uma quantidade muito maior de interessantes materiais escritos, na forma de
arquivos e de narrativas. A falta de fontes de origem genuinamente africana
anteriores ao século XIX representa uma certa desvantagem, o obstante
muitas narrativas europeias preservarem fragmentos de tradições orais dos povos
locais. As informações mais antigas provêm de marinheiros portugueses ou
holandeses cujos navios naufragaram na costa sudeste no decorrer dos séculos
XVI e XVII
36
. Com o estabelecimento da colônia holandesa no Cabo (1652),
a produção de materiais torna -se mais rica e mais variada: consiste, por um
lado, em documentos oficiais, mantidos atualmente sobretudo em arquivos da
própria África do Sul, mas também em Londres e Haia, parcialmente publicados
ou difundidos por outros meios, mas em sua grande maioria inéditos
37
; por
33 Cf. a monumental coleção de BECCARI. Rerum Aethiopicarum Scriptores occidentales inediti a seculo
XVI ad XX curante. 15 v., Roma, 1903 -1911. Mas muitos registros anteriormente desconhecidos foram
descobertos depois de BECCARI e estão à espera de publicação e estudo.
34 Por exemplo, o famoso viajante turco Evliya CHELEBI (morto em 1679), cuja obra Siyasat ‑name (Livro
de viagens) contém em seu décimo volume descrições do Egito, Etiópia e Sudão. O embaixador iemenita
al -Khaymi al -Kawkabani deixou (em 1647) um relato vivo de sua missão junto ao Imperador Fasílidas,
para cujo reino não há nenhuma crônica etíope. Publicado por F. E. PEISER em dois volumes, Berlim,
1894 e 1898.
35 RUBENSON, Sven. “e Protectorate Paragraph of the Wichale Treaty”. JAH 5, n. 2, 1964; e discussão
com C. GIGLIO, JAH 6, n. 2, 1965 e 7, n. 3, 1966.
36 Cf. THEAL, G. M. 1898 -1903, e BOXER, C. R. 1959.
37 Trechos de diários ociais e outros documentos relativos a povos de fala san, khoi e bantu encontram -se
em MOODIE, D. 1960; v. também THEAL, G. M. 1897 -1905
115
As fontes escritas a partir do século XV
outro, em documentos narrativos representados por livros e artigos escritos
por brancos viajantes, comerciantes, oficiais, missionários e colonizadores,
todos eles observadores diretos das sociedades africanas. Durante muito tempo,
entretanto, seu horizonte geográfico permaneceu bastante restrito, e foi na
segunda metade do século XVIII que começaram a penetrar realmente o interior
das terras. Assim, é natural que as primeiras narrativas tratem dos Khoi do
Cabo (hoje desaparecidos). A primeira descrição detalhada desse povo, depois
de alguns registros do século XVII
38
, é a de Peter Kolb (1705 -1712)
39
. Durante
o período holandês, muitos europeus visitaram a colônia do Cabo, mas muito
raramente chegaram a demonstrar mais que um ligeiro interesse pelos africanos
ou a aventurar -se para o interior. Um grande mero de seus relatórios foi
reunido por Godee -Molsbergen e L’Hono-Naber, e muitos relatos menos
conhecidos têm sido regularmente publicados, desde a década de 1920, pela
Sociedade Van Riebeeck da Cidade do Cabo
40
. Um retrato mais detalhado
das sociedades africanas pode ser obtido nos arquivos de missionários
41
ou nos
registros de alguns observadores experientes do fim do século XVIII e início do
XIX, como Sparrman, Levaillant, Alberti, John Barrow e Lichtenstein
42
. Um
lugar de honra pertence a John Philips, cuja vida e trabalho foram dedicados à
defesa dos direitos africanos, sendo, por isso, sua obra, reveladora de aspectos
raramente encontrados em relatos mais conformistas
43
.
Com a expansão comercial, missionária e colonial no século XIX, material
mais rico e em maior quantidade sobre os grupos étnicos africanos mais afastados
tornou -se acessível. Embora a Namíbia fosse esporadicamente visitada no fim
do século XVIII
44
, é somente a partir de 1830 que começam as descrições mais
detalhadas da vida dos San, Nama e Herero, quando então os missionários
iniciaram suas atividades
45
e a região tornou -se alvo de pesquisadores, como J.
Alexander, F. Galton, J. Tindall e outros
46
.
38 SHAPERS, 1668; TEN RHYNE, W. 1686 e GREVEBROEK, G. 1695, Cidade do Cabo, 1933.
39 KOLB, P. 1719.
40 GODEE -MOLSBERGEN, E. C. 1916 -1932; L’HONORÉ -NABER, S. L. 1931.
41 Cf., por exemplo, MÜLLER, D. K. 1923.
42 SPARRMAN, A. 1785; LEVAILLANT, F. 1790; ALBERTI, L. 1811; BARROW, J. 1801 -1806;
LICHTENSTEIN, H. 1811.
43 PHILIPS, J. 1828.
44 WAITS, A. D. 1926.
45 A obra clássica de H. VEDDER, South West Africa in Early Times, Oxford, 1938, foi compilada
principalmente de relatórios de missionários alemães.
46 ALEXANDER, Sir James, 1836, 1967; GALTON, G. 1853; Journal of Joseph Tindall 1839 ‑1855, Cidade
do Cabo, 1959.
116
Metodologia e pré -história da África
Situação análoga é observada nas áreas ao norte do rio Orange: os relatórios
dos primeiros comerciantes e cadores o lugar a uma quantidade cada
vez maior de trabalhos escritos por pesquisadores e missionários, melhor
capacitados para a observação devido à sua maior experncia e conhecimento
das línguas africanas. Podemos citar, por exemplo, Robert Moffat, E. Casalis,
T. Arbousset e outros, sendo, o mais conhecido, evidentemente, David
Livingstone
47
. Vários documentos (arquivos, correspondência, contratos e atas
oficiais, etc.) da história antiga do Lesoto foram coletados por G. M. Theal
48
.
Uma característica positiva desse peodo é o surgimento de documentos que
expressam pontos de vista africanos, como as cartas escritas por Moshesh e
outros líderes africanos.
Diversamente da costa, o interior de Natal e da Zululândia tornou-
-se conhecido por forasteiros somente nas primeiras décadas do século
XIX. Os primeiros observadores, como N. Isaac ou N. F. Fynn
49
, em geral
eram inexperientes, raramente precisos e careciam de objetividade quando
tratavam doso -brancos. os registros das tradições orais dos Zulu foram
feitos relativamente cedo, nacada de 1880, embora só fossem publicados
mais tarde, por A. T. Bryant, cujo livro deve, todavia, ser utilizado com
cautela
50
.
Como para outras partes da África, a quantidade de materiais escritos por
europeus aumentou enormemente no decorrer do século XIX, e não cabe aqui
examinar, com mais detalhe todos os seus tipos e autores. Mais interessantes
são os registros das reões dos primeiros africanos letrados ou de alguns
chefes tradicionais, encontrados em correspondências, jornais, queixas, diários,
contratos ou, mais tarde, nas primeiras tentativas de redação da história de
seu próprio povo.
Além da volumosa correspondência entre governantes africanos Moshesh,
Dingaan, Cetwayo, Mzilikazi, Lobenguela, Witbooi, os chefes Gríqua e muitos
outros – e as autoridades coloniais, encontramos documentos tais como as Leis
47 MOFFAT, R. 1842 e 1945; CASALIS, E., Les Bassutos, Paris, 1859; ed. inglesa, Londres, 1861; T.
ARBOUSSET, Relation d’un voyage dexploration, Paris, 1842; ed. inglesa; Cidade do Cabo, 1846;
LIVINGSTONE, D. 1957.
48 THEAL, G. M., Basutoland Records, 3 v., Cidade do Cabo, 1883 (v. 4 e 5 manuscritos, não publicados,
nos Arquivos da Cidade do Cabo).
49 ISAAC, N. 1836; FYNN, N. F. 1950.
50 BRYANT, A. T. 1929. V. também sua A History of the Zulu, primeiramente publicada como uma série de
artigos em 1911 -1913 e depois como livro, na Cidade do Cabo, 1964. Cf. também BIRD, J. e Annals
of Natal, 1495 -1845, 2 v., Pietermaritsburg, 1888.
117
As fontes escritas a partir do século XV
Ancestrais (Vaderlike Wete) da Comunidade Rehoboth do ano de 1874, ou
o Diário de Henrik Witbooi
51
, ambos escritos em afriner. Há numerosas
petições e queixas de africanos mantidas nos arquivos da África do Sul ou em
Londres, assim como muitos estudos, levantamentos cadastrais e estatísticos
feitos com base na informação oral africana.
Graças ao aparecimento de jornais nasnguas vernáculas, podemos
acompanhar as ideias dos antigos representantes de uma sociedade em
mudaa. No semanário Isidigimi (publicado entre 1870 e 1880) apareceu a
primeira crítica à política europeia e seu impacto negativo na vida africana,
escrita pelos primeiros protonacionalistas, como Tiyo Soga (morto em 1871)
ou G. Chamzashe (morto em 1896), assim como a compilação das tradições
históricas dos Xhosa, por W. W. Gqoba (morto em 1888). Outro porta -voz
da opinião africana, desde 1884, foi Ibn Zabantsundu (A Voz do Povo Negro),
que por muitos anos teve como editor John T. Jabawu (morto em 1921).
Imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, havia onze jornais em línguas
africanas sendo publicados, mas nem todos defendendo a causa dos africanos.
Uma das grandes figuras da época foi Ngoki (morto em 1924), que, após haver
participado ativamente na guerra zulu de 1879, publicou (nos Estados Unidos)
suas reminisncias, assim como muitos artigos sobre a vida na África do
Sul
52
. As primeiras histórias escritas pelos próprios africanos vão aparecer
no século XX
53
, inaugurando, assim, uma nova época na historiografia sul-
-africana. Com efeito, a história dessa parte do continente foi por muito
tempo enfocada do ponto de vista da comunidade branca, que tendia a tratar
a história dos povos africanos como algo insignificante e sem importância. A
luta atualmente em curso na África do Sul em todos os domínios da atividade
humana requer tamm uma nova atitude na abordagem das fontes. Uma
ateão especial deve ser dispensada aos testemunhos escritos da árdua luta
dos africanos por seus direitos
54
. Só uma pesquisa baseada em todos estes
testemunhos e material dará condições para se escrever uma história verídica
da África do Sul.
51 As leis foram preservadas em Rehoboth e Windhoek; o Diário de WITBOOI foi publicado na Cidade
do Cabo em 1929.
52 Cf. TURNER, L. D. 1955.
53 Cf. PLAATJE, S. T. 1916 e 1930; MOLEMA, S. M. 1920; SOGA, J. H., e South ‑Eastern Bantu, 1930;
idem, Ama ‑Xoza: Life and Customs, Johannesburg, 1930; SOGA, T. B. Lovedale, 1936.
54 Cf. PLAATJE, S. T. 1916 e 1930; MOLEMA, S. M. 1920; SOGA, J. H. e South ‑Eastern Bantu, 1930;
idem, Ama ‑Xoza: Life and Customs, Johannesburg, 1930; SOGA, T. B. Lovedale, 1936.
118
Metodologia e pré -história da África
Fontes narrativas externas
Se o período entre os séculos IX e XV chega a ser chamado “era das fontes
árabes” devido à predominância de material nessa língua, o período em estudo
é marcado por um nítido declínio nesse aspecto. As razões para essa mudança
estão ligadas ao desenvolvimento político e cultural geral do mundo islâmico, que
serão discutidas mais apropriadamente num volume posterior. Isso, no entanto,
não significa que não haja fontes árabes, mas que seu número e qualidade, com
algumas exceções, não podem ser comparados nem com o período anterior nem
com fontes de outras origens.
Em árabe e em outras línguas orientais
Embora o trabalho de Leão, o Africano (conhecido originalmente como
al -Hasan al -Wuzzan el -Zayyati), tenha sido escrito em italiano, tem procedência
na tradição geográfica árabe; além disso, as viagens de Leão, o Africano, no
Sudão ocidental e central no início do século XVI foram realizadas antes de
sua conversão ao cristianismo e retiro na Itália, consequentemente como árabe
e muçulmano. O trabalho não está isento de erros, tanto geográficos como
históricos; todavia foi que supriu a Europa por quase três séculos com seu único
verdadeiro conhecimento do interior da África
55
.
Uma fonte de particular interesse é representada pelas obras sobre navegação
de Ahmad Ibn Majid (início do século XVI), o piloto que conduziu Vasco da
Gama do Malindi até a Índia. Entre seus numerosos livros sobre teoria e prática
da navegação, o que trata da costa leste da África é o mais importante, que
contém, além de uma vasta quantidade de material topográfico e um mapa das
rotas marítimas, opiniões categóricas sobre os portugueses no oceano Índico
56
.
Alguns detalhes originais sobre a África oriental e o Zanj são encontrados na
Crônica da Fortaleza de Aden, escrita por Abu Makhrama (morto em 1540)
57
.
uma crônica mais recente, que trata da mesma região, de Salil Ibn Raziq (morto
55 Publicado primeiramente em Roma, 1550; a melhor tradução moderna é de Jean -Léon, o Africano,
Description de lAfrique, de A. EPAULARD, com anotações de A. EPAULARD, T. MONOD, H.
LHOTE e R. MAUNY, 2 v., Paris, 1956.
56 SHUMOVSKIY, T. A. Tri neizvestnye lotsli Akhmada ibn Majida (Três livros desconhecidos de pilotagem,
de A. Ibn M.), Moscou, 1937.
57 Publicado por LOFGREN, O. Arabische Texte zur Kenntnis des Stadt Aden im Mittelalter, 3 v., Leipzig-
-Upsala, 1936 -1950.
119
As fontes escritas a partir do século XV
em 1873), intitulada Hisria dos Imanes e Sayyds de Omã, à qual foi incorporado
um trabalho anterior, escrito na década de 1720, por Sirhan Ibn Sirhan de Omã
58
.
O século XVIII não deixou nenhuma fonte árabe externa de grande valor
para a história da África ao sul do Saara; e somente no início do século seguinte é
que vamos assistir a um certo reflorescimento nesse domínio. El -Tounsy (morto
em 1857), citado, descreveu sua visita a Uadai na primeira crônica dedicada
àquele reino, e redigiu também um valioso relatório sobre Darfur
59
. Algumas
décadas antes, e do outro lado do cinturão sudanês, o marroquino Abd es -Salam
Shabayni registrou informações sobre Tombuctu e a região de Macina, antes da
ascensão dos Dina
60
.
A história do Império Songhai, sua queda e o posterior desenvolvimento do
vale do Níger foram registrados não pelos cronistas sudaneses mas também
por alguns dos historiadores marroquinos acima mencionados. Recentemente
muitas fontes até então desconhecidas sobre as relações entre o Magreb e o
Sudão foram descobertas em bibliotecas marroquinas e aguardam publicação
e estudo por parte dos historiadores da África. Deve haver também material
muito valioso, em árabe e turco, disperso pelos outros países norte -africanos e na
própria Turquia, e de cuja existência temos, até o presente momento, informações
extremamente escassas. Essa situação oferece perspectivas interessantes para o
historiador, e a localização, organização e tradução desse material estão entre as
tarefas mais urgentes para o futuro.
Os materiais em outras línguas orientais são ainda mais escassos que em
árabe, o que, todavia, não significa que não possamos descobrir novos materiais,
menos ou mais importantes, por exemplo em persa ou em certas línguas hindus.
Até agora, a principal fonte ainda é o viajante turco Evliya Chelebi, que visitou
o Egito e parte do Suo e da Etpia; no entanto seu conhecimento de
outras regiões da África se fez indiretamente
61
. O mesmo acontece com seu
compatriota o Almirante Sidi Ali, que copiou e traduziu do árabe trechos do
livro de Ahmad Ibn Majid, Al ‑Muhit, sobre o oceano Índico, acrescentando-
-lhes apenas alguns detalhes
62
. No início do século XIX, um estudioso de
Azerbaijani, Zain el -Abidin Shirvani, visitou a Somália, a Etiópia, o Sudão
58 Trad. por BADGER, G. P. Londres, 1871.
59 Voyage ao Ouaday. Trad. por Dr. PERRON, Paris, 1851.
60 Publicado por JACKSON, J. G. An Account of Timbuctoo and Housa, Territories in the Interior of Africa,
Londres, 1820 (reeditado em 1967).
61 CHELEBI, E. Seychatname, Istambul, 1938.
62 BITTNER, M. 1897.
120
Metodologia e pré -história da África
oriental e o Magreb, descrevendo suas viagens num livro intitulado Bustanu
s ‑Seyahe (O Jardim das Viagens)
63
. Parece que existia um nítido interesse pela
África, especialmente pela Etiópia, na Transcaucásia e especialmente entre os
armênios. No fim do século XVII, dois padres armênios, Astvacatur Timbuk e
Avatik Bagdasarian, empreenderam uma viagem pela África, da qual mais tarde
deixaram descrição, começando na Etiópia e continuando através da Núbia,
Darfur, lago Chade e Tecrur até o Marrocos
64
. Em 1821, Warga, um armênio
de Astrakhan, cruzou o Saara partindo do norte, visitou Tombuctu e chegou
à Costa do Ouro, onde escreveu, em inglês, sua narrativa, breve mas rica em
informações
65
. Outros materiais relativos à África em armênio ou georgiano
existem nas bibliotecas e arquivos nas respectivas repúblicas soviéticas
66
.
Em línguas europeias
O enorme volume da literatura europeia sobre a África tropical, desde o início
do século XVI, torna impossível uma enumeração até mesmo dos trabalhos
ou autores mais importantes. No entanto, um estudo do caráter geral e uma
avaliação dessa literatura como fonte para a história da África servirão melhor
ao propósito deste capítulo que um arrolamento interminável de nomes e títulos.
falamos das alterações nos limites geográficos: no início do século XVI toda
a linha costeira do Senegal até o cabo Guardafui era conhecida dos portugueses,
que, no fim do mesmo século, penetraram no interior, no antigo Congo, Angola
e ao longo do Zambeze. Os dois séculos seguintes acrescentaram muito pouco
ao conhecimento europeu: houve algumas tentativas esporádicas de cruzar o
Saara; contatos mais duradouros foram estabelecidos ao longo do Senegal e
Gâmbia, e um viajante foi do Zambeze até Kilwa parando no lago Malauí. Por
outro lado, as informações sobre os povos costeiros, especialmente na África
ocidental, tornaram -se mais detalhadas e variadas. A exploração sistemática do
63 Cf. KHANYHOV, M., in: Mélange Asiatique, S. Petersburgo, 1859. Os trechos relativos à África oriental
estão sendo preparados para uma tradução de V. P. SMIRNOVA em Leningrado.
64 KHALATYANC, G. Armyanskiv pamyatnik XVII v. o. geogra Abssinii i Severnoy Afrique voobchetche
(Memória Armênia do século XVII sobre a Geograa da Etiópia e da África do Norte em Geral), in:
Zemlevedenye, v. 1 -2, Moscou, 1899.
65 Cf. CURTIN, P. D. 1967, (dir. de publ.) Africa Remembered, Madison, 1967. p. 170 -89: WILKS,
I. Wargee of Astrakhan”. V. também OLDEROGGE, D. A., Astrakhanec v Tombuktu v 1821 g.”
(Um homem de Astrakan em Tombuktu em 1821), Africana/Afrikanskiy etnogratcheskiy sbornik, VIII,
Leningrado, 1971.
66 Uma série de documentos sobre a história das relações entre a Etiópia e a Armênia, dos tempos antigos
até o século XIX, está sendo publicada pelo Instituto de Estudos Orientais da RSS da Armênia, Erevan.
121
As fontes escritas a partir do século XV
interior africano iniciou -se somente no fim do século XVIII, terminando com
a divisão do continente entre as potências coloniais.
Em termos de representação nacional, pode -se dizer que os autores do século
XVI eram predominantemente portugueses; os do XVII, holandeses, franceses
e ingleses; os do XVIII, principalmente ingleses e franceses, e os do XIX,
ingleses, alemães e franceses. Outras nações europeias foram, evidentemente,
representadas no decorrer de todos esses séculos, como, por exemplo, os italianos
no Congo no século XVII e no Sudão oriental no XIX, ou os dinamarqueses na
Costa dos Escravos e na Costa do Ouro nos séculos XVIII e XIX. E há, entre os
autores de livros de viagens e descrições (mas especialmente no último século),
pessoas da Espanha, Rússia, Bélgica, Hungria, Suécia, Noruega, Tchecoslováquia,
Polônia, Suíça, Estados Unidos, Brasil, e por vezes até um grego, romeno ou
maltês. Felizmente, a maioria dos livros escritos em línguas menos conhecidas
tem sido traduzida para línguas mais acessíveis.
Ao avaliar os materiais europeus, devemos levar em consideração não tanto
a nacionalidade dos autores, mas, sim, a mudança de atitudes dos europeus em
relação aos africanos e suas sociedades em geral. Seria simplista afirmar que os
escritores portugueses estavam mais inclinados a observar com preconceitos
cristãos os povos que descreviam, do que os ingleses, por exemplo; ou que os
holandeses estavam mais propensos à observação objetiva do que os escritores
de outras nações. Evidentemente,diferença entre um cronista português do
século XVI, cuja abordagem estava impregnada dos valores medievais, e um
estudioso ou médico holandês do fim do século XVII, produto de uma cultura
já mais racional. A quantidade e variedade dos materiais à nossa disposição não
nos permitem nenhuma generalização apressada; somente a análise individual de
cada um, de acordo com seus méritos, que leve em consideração, evidentemente,
sua data e o assunto tratado, nos permitiria formalizar um julgamento. Deve-
-se também evitar a falácia de que, com o tempo, houve uma melhora gradual
na objetividade das narrativas e de que, quanto mais nos aproximamos da
atualidade, mais científicas se tornam as observações sobre a realidade africana,
o que equivaleria a admitir, aprioristicamente, que uma narrativa de um viajante
do século XIX tem, simplesmente por isso, uma credibilidade maior que uma
narrativa escrita três séculos antes. Burton e Stanley, enquanto observadores,
eram prisioneiros da ideia, apresentada como cientificamente provada, da
superioridade dos homens brancos, do mesmo modo que os autores portugueses
eram prisioneiros da pretensa superioridade de sua cristã. O peodo do
comércio de escravos não era, em geral, favorável a narrativas objetivas sobre
os africanos, mas as necessidades práticas do comércio exigiam um estudo
122
Metodologia e pré -história da África
minucioso das atividades econômicas e sistemas de governo na África, de modo
que temos, nessa época, uma série de fontes muito valiosas.
Livros sobre a África e os africanos foram escritos por missiorios,
comerciantes, funcionários públicos, oficiais da marinha e do exército, cônsules,
exploradores, viajantes, colonizadores e, alguns, por aventureiros e prisioneiros
de guerra. Cada qual tinha seus próprios interesses; assim sendo, os propósitos
e abordagens variam consideravelmente. As narrativas de viajantes”, típicas de
um certo gênero literário, estavam preocupadas com um mundo desconhecido,
exótico e estranho e deviam responder às exigências gerais de seus leitores. Essa
inclinação pelo exótico e pela aventura, ornamentada por opiniões mais ou
menos fantásticas sobre os povos africanos, ou descrevendo com complacência os
inúmeros perigos encontrados pelo heroico viajante, persistiu até o século XIX
67
.
Os missionários dispensavam alguma atenção às religiões africanas, mas
em sua maioria careciam da habilidade e boa vontade para compreendê -las, e
estavam preocupados principalmente em expor seus “erros” e “barbarismo”; por
outro lado, eles conheciam as línguas locais, estando, portanto, numa posição
melhor que os outros para apreender a estrutura social. Às vezes demonstravam
interesse pela história, passando então a coletar as tradições orais locais.
No século XIX, a maior parte da literatura narrativa provém dos exploradores,
que, de acordo com a tendência da época, tinham sua ateão voltada principalmente
para a solução de grandes problemas geográficos, de modo que sua contribuição
serviu mais para a geografia sica que para o conhecimento da sociedade africana.
A maioria deles estava mais interessada nas vias navegáveis do que nas vias da
cultura
68
. E muitos, sendo cientistas naturais, careciam de senso histórico ou
acreditavam no mito da ausência de história africana. Existem, evidentemente,
exceções a essa regra, sendo a mais famosa a de Heinrich Barth.
Por outro lado, surgiram, no decorrer do século XVIII, certas histórias
de Estados ou povos africanos, como The History of Dahomy (Londres, 1793),
de Archibald Dalzel, que, num exame minucioso, revela -se como um panfleto
antiabolicionista.
Depois de mostrar algumas deficiências das fontes narrativas europeias,
podemos agora examinar seus aspectos mais positivos. Acima de tudo, elas nos
fornecem a estrutura cronológica tão necessária na história da África, onde
a datação é um dos pontos mais fracos da tradição oral. Mesmo uma única
data, dada por um viajante ou outro autor, por exemplo, de seu encontro com
67 Cf. agora ROTHBERG, R. 1971.
68 MAZRUI, A. A. 1969.
123
As fontes escritas a partir do século XV
alguma personalidade africana, pode constituir um ponto de partida para toda
a cronologia de um povo e às vezes até para mais de um. O simples fato de
estarem registradas por escrito não significa, entretanto, que todas as datas
devam estar corretas. casos em que autores europeus, relatando boatos ou
tentando calcular um intervalo de tempo de acordo com fontes não -controláveis,
cometeram erros mais ou menos graves. Mas os europeus tinham, em geral, à
sua disposição, uma medida do tempo tecnicamente mais desenvolvida.
A literatura narrativa é de importância primordial como fonte da história
econômica: rotas comerciais, principais mercados, mercadorias e preços, agricultura
e artesanato, recursos naturais, tudo isso podia e era observado e descrito sem
preconceitos. Com efeito, os europeus necessitavam, em seu próprio favor, de
narrativas o objetivas quanto possível sobre esses assuntos. É verdade que os
recursos naturais ou possibilidades econômicas de algumas regiões foram pintados
com cores muito brilhantes, a fim de se fazerem realçar osritos do explorador.
Mas o historiador está acostumado a esses exageros e os leva em consideração.
O que os europeus mais bem registraram foram suas observações dos
aspectos exteriores das sociedades africanas, dos chamados usos e costumes”;
os documentos fornecem descrões ricas, precisas e requintadas de várias
cerinias, vestimentas, comportamentos, estragias e ticas de guerra,
técnicas de produção, etc., não obstante, às vezes, a descrição ser acompanhada
por epítetos como bárbaro”, primitivo”, absurdo”, ridículo” e outros termos
pejorativos, o que, por si só, não significa muito; trata -se somente de um
julgamento em função dos hábitos culturais do observador. Muito mais grave
é a total falta de compreensão da estrutura interna das sociedades africanas,
da complicada rede de relações sociais, da ramificação das obrigações mútuas,
das razões mais profundas para determinados comportamentos. Em suma, os
autores eram incapazes de descobrir as motivações profundas das atividades
africanas.
Apesar de tudo, a redação da história da África seria quase imposvel
sem o material fornecido pelas fontes narrativas europeias. Elas podem ter
suas deficiências: ignorar muitos detalhes, ou tratá -los de um ponto de vista
preconceituoso, parcial, ou, ainda, interpretá -los incorretamente. Mas estes são
riscos normais, inerentes a toda historiografia, e não é razão para se rejeitar esse
amplo e extremamente importante conjunto de informações. Ao contrário,
uma necessidade urgente de se reeditar o maior número possível de narrativas
desse tipo, e de publicá -las com comentários e notas apropriados, tornando
possível, assim, sua avaliação e reinterpretação à luz da nova historiografia da
África.
124
Metodologia e pré -história da África
Fontes narrativas internas
Durante o período que estamos estudando, ocorreu um novo fenômeno, de
consequências capitais: o aparecimento e desenvolvimento de uma literatura
histórica escrita por africanos da região ao sul do Saara. O meio de expressão
não era, inicialmente, nenhuma das línguas africanas locais, mas, sim, o árabe
cujo papel no mundo islâmico pode ser comparado ao que o latim representou
na Idade Média europeia, isto é, o meio de comunicação entre os povos cultos
–, e, mais tarde, também algumas das línguas europeias.
A tradição historiográfica parece ter começado ao mesmo tempo no cinturão
sudanês e na costa africana oriental, precisamente nas duas grandes regiões
cobertas até essa época pelas fontes árabes externas e nas quais o Islã exerceu
uma prolongada influência. As mais antigas crônicas existentes datam do início
do século XVI, embora relatem eventos dos períodos anteriores. A primeira,
o Ta’rikh al ‑Fattash, obra de três gerações da família Kati de Djenné, cobre
a história do Songhai e dos países vizinhos até a conquista marroquina em
1591. Mais extenso e mais rico em detalhes é o Ta’rikh al ‑Sudan, escrito pelo
historiador de Tombuctu, El -Saadi, e que cobre em parte o mesmo período,
continuando, porém, até 1655. Ambas são obras de grandes estudiosos, com um
vasto campo de interesses e um conhecimento profundo dos acontecimentos
seus contemporâneos. Mais significativo ainda é o fato de, pela primeira vez,
podermos ouvir a voz de africanos autênticos, mesmo sabendo serem os autores
francamente partidários do Islã e observarem os acontecimentos desse ponto de
vista. No século XVIII tem origem uma história anônima, mas muito detalhada,
dos paxás marroquinos de Tombuctu, entre 1591 e 1751, contendo também
material útil dos países e povos vizinhos
69
. Outro tipo de fonte é representado
pelo dicionário biográfico dos intelectuais do Sudão ocidental, compilado pelo
famoso estudioso Ahmed Baba, de Tombuctu (morto em 1627)
70
. É à mesma
região do Império Songhai que pertence o Ta’rikh Say, crônica árabe de Ibn
Adwar, escrita, segundo dizem, em 1410. Se fosse autêntica, seria o mais antigo
documento existente escrito na África ocidental. Contudo, parece ser, mais
propriamente, uma versão tardia da tradição oral
71
.
69 Tarikh al ‑Fattach. Trad. e comentado por O. HOUDAS e M. DELAFOSSE, Paris, 1913 (reed. 1964);
Tarikh al ‑Sudan, trad. e comentado por O. HOUDAS, Paris, 1900 (reed. 1964); Tadhkirat es ‑nisyan, trad.
e anotado por O. HOUDAS, Paris, 1899 (reed. 1964).
70 Publicado em Fez, 1899, e no Cairo, 1912.
71 Cf. MONTEIL, V. BIFAN 28, 1966, p. 675.
125
As fontes escritas a partir do século XV
De Tombuctu e Djenné a tradição da crônica escrita expandiu -se para outras
áreas, especialmente para o sul e oeste, na região situada entre o Sahel e a floresta
tropical, e, em alguns casos, até mais ao sul ainda. Intelectuais muçulmanos
começaram a registrar por escrito, a partir da metade do século XVIII ou até antes
disso, crônicas locais, genealogias de clãs, biografias concisas e livros religiosos. O
exemplo mais notável é Kitab Gonja, escrito depois de 1752, que é uma história
do Reino Gonja, baseada, em parte, em tradições orais
72
. muitas crônicas
de menor importância, e é de se esperar que outras surjam em outros lugares,
nessa região sob influência das comunidades diula ou haussa, ou de ambas. A
maior parte desses trabalhos está escrita em árabe. Muitas crônicas também foram
escritas em ajami, isto é, em línguas locais, mas com caracteres árabes.
A situação é análoga nas regiões de fala fulfulde, sobretudo em Futa Toro
e Futa Djalon. Na própria Guiné, assim como em Dacar e nas bibliotecas em
Paris, há muitas crônicas daquelas regiões em árabe ou em fulfulde (ou em
ambas), a maioria datando dos séculos XVIII e XIX. Os materiais de Futa
Djalon recentemente foram publicados e examinados em obras científicas,
Quanto a esse aspecto, pode -se fazer referência à coleção de Gilbert Vieillard,
mantida na biblioteca do IFAN em Dacar
73
. para Futa Toro a situação é outra:
as Crônicas dos Futa Senegaleses de Siré -Abbas Soh, um autor do século XVIII,
tornaram -se acessíveis meio século
74
. Outro antigo trabalho, um dicionário
biográfico de Muhammad el -Bartayili chamado Fath el ‑Sahkur (c. 1805), está
sendo preparado para publicão por John O. Hunwick; uma história mais
moderna dos Futa Toro, escrita em 1921 por Xeque Kamara Musa de Ganguel
e intitulada Zuhur al ‑Basatin (Flores dos Jardins), ainda não foi publicada
75
.
No norte da Nigéria também, crônicas e outras fontes em árabe surgiram em
data relativamente recente. O imame Ibn Fartuwa (fim do século XVI) deixou
um relato fascinante e detalhado da vida e da época de Mai Idris e de suas
guerras
76
. De período mais recente são as várias listas de governantes e crônicas
do Bornu. Uma fonte excepcional é representada pelos chamados mahrams,
registros de privilégios concedidos por governantes a famílias de noveis
religiosos, através dos quais podemos perceber também condições econômicas
72 V. sobre esses e outros assuntos WILKS, I. 1963, e HODGKIN, T. 1966.
73 SOW, A. I. 1968; DIALLO, T. 1968.
74 Trad. por M. DELAFOSSE e H. GADEN, Paris, 1913.
75 Mantida na biblioteca do IFAN, Dacar; cf. MONTEIL, V. 1965, p. 540.
76 Editado por H. R. PALMER, Kano, 1930; trad. in: Sudanese Memoirs I, Lagos, 1928, e in: History of the
rst twelve years of Maï Idriss Alaoma, Lagos, 1929.
126
Metodologia e pré -história da África
e sociais
77
. Não resta muita coisa do material histórico pré ‑jehad na região haussa,
embora o nível de instrução, especialmente entre os líderes religiosos fulani, fosse
relativamente alto
78
; mas alguns poemas na língua haussa ou em kanuri (Bornu)
contêm comentários sobre acontecimentos da época
79
.
O início do século XIX presenciou um renascimento da literatura árabe
no Sudão central e ocidental; além dos trabalhos naquela língua, um número
cada vez maior de livros foi escrito em línguas locais, como haussa, fulfulde,
kanuri, mandara, kotoco, etc., utilizando caracteres árabes. Os mais produtivos
foram os líderes dos jehad fulani, no norte da Nigéria, apesar de grande parte
de sua produção literária tratar de assuntos religiosos, e somente algumas obras
poderem ser consideradas verdadeiras crônicas
80
; toda essa literatura, em árabe ou
numa das línguas africanas, ajuda a construir um quadro mais coerente da vida
social e intelectual nessa região. As crônicas das cidades haussa (Kano, Katsina,
Abuja, etc.), embora originárias do fim do século XIX, baseiam -se de certa
medida em documentos mais antigos ou na tradição oral
81
. Um desenvolvimento
similar ocorreu mais a leste, em Baguirmi, Kotoco, Mandara e Uadai. Algumas
crônicas ou listas de reis já foram publicadas, mas muitas outras ainda estão em
manuscritos e espera -se descobrir outras mais, em coleções particulares
82
.
Uma crônica rimada em fulfulde descreve a vida e as atividades do grande
reformador tukulor al -Hadjdj’Umar
83
, autor de um trabalho religioso, Rimah
Hizb el ‑Rahim (Lanças do Partido do Deus Misericordioso), que contém também
muitas alusões históricas às condições de vida no Sudão ocidental
84
.
77 Recolhido por H. R. PALMER, nas suas Sudanese Memoirs, 3 v., Lagos, 1928 e em e Bornu, Sahara and
the Sudan, Londres, 1936; cf. também Y. URVOY, “Chroniques du Bornu”, Journ. Société des Africainistes,
II, 1941.
78 HISKETT, M. 1957, p. 550 -558; BIVAR, A. D. H. e HRSKETT, M. 1962, p. 104 -48.
79 Cf. PATTERSON, J. R. 1926.
80 BELLO MUHAMMAD, Infaqu l ‑maysur, editado por C. E. J. WHITING, Londres, 1951; trad.
inglesa da paráfrase haussa de E. J. ARNETT, e Rise of the Sokoto Fulani, Kano, 1922; Abdullahi
DAN FODIO, Tazyin al ‑waraqat, trad. e coment. por M. HISKETT, Londres, 1963; HAJJI SACID,
History of Sokoto, trad. por C. E. J. WHITING, Kano, s.d.; também uma tradução francesa de O. Houdas,
Tadhkirat annisyan, Paris, 1899.
81 e Kano Chronicle. Trad. por H. R. PALMER, in: Sudanese Memoirs III, 1928; sobre Katsina cf. op. cit.,
p. 74 -91; sobre Abuja, v. MALLAMS HASSAN e SHUAIBU, A Chronicle of Abuja, trad. do haussa por
P. L. HEATH, Ibadan, 1952.
82 Cf. H. R. PALMER, 1928; várias obras de J. P. LEBOEUF e M. RODINSON em Études camerounaises,
1938, 1951, 1955 e BIFAN, 1952 e 1956; M. A. TUBIANA sobre Uadai, in: Cahiers détudes africaines
2, 1960.
83 RYAM, M. A. La vie d’El Hadj Omar Qasida en Poular. Trad. por H. CAHEN, Paris, 1935.
84 Kitab Rimah Hizb al ‑Rahim, Cairo, 1927; nova ed. e trad. está sendo preparada por J. R. WILLIS.
127
As fontes escritas a partir do século XV
A costa africana oriental pode ser comparada com o Sudão quanto ao número
de suas crônicas. crônicas de muitas cidades, escritas em árabe ou em kiswahili
(em escrita árabe), que fornecem listas de reis e narrativas da vida política. Somente
a crônica de Kilwa é realmente antiga. Foi composta em 1530 aproximadamente
e chegou até nós em duas versões diferentes, uma transmitida por de Barros, e
a outra copiada em Zanzibar em 1877
85
. As crônicas, na sua maioria, foram
compiladas recentemente, embora algumas remontem à segunda metade do
século XVIII. Muitas delas se concentram em acontecimentos anteriores à
chegada dos portugueses. Constituem, de certa forma, registros de tradições
orais e devem ser tratadas e avaliadas como tais
86
. Um número considerável
de manuscritos ainda pertence a coleções particulares. Desde 1965, mais de
30 mil páginas de manuscritos swahili (e árabes também) foram descobertas,
e é de se esperar que, quando toda a costa tiver sido completamente explorada,
encontremos materiais que venham esclarecer muitos aspectos desconhecidos
da história da África oriental
87
. Além das crônicas das cidades, outros gêneros
literários podem ser utilizados com proveito pelos historiadores, como, por
exemplo, a poesia swahili, notadamente o poema al ‑Inkishafi (composto na
segunda década do século XIX), que descreve a ascensão e o declínio de Pate
88
.
A prodão literária dos africanos em nguas europeias tem início dois
séculos mais tarde que a redação em árabe. Como era de se esperar, os primeiros
exemplares foram produzidos por indivíduos da costa ocidental, onde os contatos
com o mundo exterior eram mais intensos que em qualquer outro ponto.
Apesar dos nomes de Jacobus Captain (1717 -1747), A. William Amo (c.
1703 -c. 1753) e Philip Quaque (1741 -1816), todos de origem fanti,o deverem
ser esquecidos como os pioneiros da literatura africana em língua europeia, sua
contribuição para a historiografia da África foi insignificante. Incomparavelmente
mais importantes como fontes históricaso os trabalhos dos escravos libertados,
da segunda metade do século XVIII: Ignatius Sancho (1729 -1780), Ottobah
Cugoano (c. 1745 -1800) e Oloduah Equiano (Gustavus Vasa; c. 1745 -1810?).
Todos os três estavam especialmente interessados na abolição do comércio de
escravos, e seus livros, embora polêmicos, fornecem muito material biográfico
85 Analisado por FREEMAN -GRENVILLE, G. S. P. e Medieval History of the Coast of Tanganyika,
Oxford, 1962.
86 Sobre as crônicas árabes e swahili em geral, cf. FREEMAN -GRENVILLE, G. S. P., 1962; PRINS, A.
H. J. 1958; ALLEN, J. W. T. 1959, p. 224 -27.
87 A mais importante descoberta desse tipo nos últimos anos foi a de Kitab ‑al ‑Zanj (Livro dos Zanj), que
trata da história da Somália do sul e do Quênia do norte; cf. CERULLI, E. 1957.
88 Cf. HARRIES, L. 1962.
128
Metodologia e pré -história da África
sobre a situação dos africanos, tanto na África como na Europa
89
. Do mesmo
período provém um documento único, o diário de Antera Duke, um dos principais
comerciantes de Calabar, escrito em pidgin English local e que cobre um longo
período; embora um pouco breve, esse diário nos fornece importantes dados sobre
a vida cotidiana num dos mais importantes portos negreiros”
90
.
Em Madagáscar, o grande rei merina Radama I (1810 -1828) mantinha uma
espécie de diário em escrita árabe (sura -be). Em 1850, aproximadamente, dois
outros aristocratas merina, Raombana e Rahaniraka, escreveram, no alfabeto
latino, relatos que ajudam a reconstruir uma imagem mais completa da vida
cotidiana dos Merina no século XIX
91
.
Durante o século XIX muitos africanos ou afro -americanos participaram
de viagens de exploração ou publicaram reflexões sobre a vida africana, às
vezes em combinação com polêmicas de diversa natureza. Samuel Crowther,
um ioruba, educado em Serra Leoa e na Grã -Bretanha, tomou parte das
expedições do Níger de 1841 e 1853, deixando descrão de suas viagens
92
.
Thomas B. Freeman, nascido na Inglaterra, de origem mestiça, viajou muito
na África ocidental e descreveu os povos da costa e do interior com simpatia
e inspirão
93
. Dois afro -americanos, Robert Campbel e Martin R. Delany,
foram para a Nigéria na década de 1850 em busca de área adequada para uma
posvel colônia de afro -americanos
94
. Um liberiano, Benjamin Anderson,
descreveu, com muitos detalhes e observação precisa, sua viagem no alto vale
do Níger
95
. Dois eminentes deres africanos, Edward W. Blyden e James
Africanus B. Horton, pertencem a uma classe particular. Alguns dos livros,
papeis e artigos de Blyden constituem, por si só, uma fonte histórica; outros já
têm um caráter de interpretação histórica, mas, mesmo assim, são indispensáveis
para qualquer pesquisa que trate do surgimento da consciência africana
96
. O
mesmo se pode dizer do trabalho de Horton, com a diferença de que suas
89 SANCHO, I. 1781; CUGOANO, O. 1787; e Interesting Narrative of the Life of Olaudah Equiano, or
Gustavus Vasa, the African, Londres, 1798.
90 FORDE, D. 1956. Os manuscritos originais foram destruídos na Escócia pelos bombardeios durante a
última guerra, mas foram preservadas cópias de alguns trechos de 1785 -1787.
91 BERTHIER, H., 1933; “Manuscrito de Raombana e Rahaniraka”, Bull. de l’Académie Malgache, 19, 1937,
p. 49 -76.
92 Cf. Journals of the Rev. J. J. Schön and Mr. Crowtlher, Londres, 1842; CROWTHER, S. 1855.
93 FREEMAN, T. B. 1844.
94 CAMPBEL, R. 1861; DELANY, M. R. 1861.
95 ANDERSON, B. 1870.
96 Sobre BLYDEN, cf. LYNCH. H. R. 1967.
129
As fontes escritas a partir do século XV
observações tendiam a ser mais precisas quando tratava das sociedades com
as quais manteve mais estreito contato
97
.
Esses dois homens pertencem a uma fase de transição com o grupo de
africanos que começaram a escrever a história de seus próprios países ou povos.
Uma primeira tentativa, embora com maior ênfase na etnografia, foi feita pelo
Ab. Boilat, um mulato de St. Louis, em seus Esquisses Sénégalaises
98
. Um interesse
maior pela historiografia baseada principalmente na tradição oral pode -se
observar nas regiões da África sob domínio britânico, mas somente no fim do
século XIX. C. C. Reindorf, um ga, publicou em 1895, em Basle, sua History
of the Gold Coast and Asanle e é considerado o primeiro historiador moderno
de origem africana. Com ele e Samuel Johnson cuja History of the Yorubas é
contemporânea do livro de Reindorf, mas só foi publicada em 1921 inicia -se a
cadeia ininterrupta de historiadores africanos, a princípio amadores (na maioria
missionários), mais tarde, profissionais. Suas ideias e suas obras são abordadas
no capítulo dedicado ao desenvolvimento da historiografia da África.
Todas essas fontes narrativas, escritas em árabe ou nas diversas línguas
africanas e europeias, formam um vasto e rico conjunto de materiais históricos.
Elas não cobrem, evidentemente, todos os aspectos do processo histórico e
possuem um caráter regional, oferecendo, em alguns casos, apenas uma imagem
fragmentária. As fontes escritas por muçulmanos demonstram, em geral, um
pronunciado ponto de vista islâmico, que aparece claramente quando abordam
sociedades o -muçulmanas. Os autores de fontes narrativas em línguas
europeias eram ao mesmo tempo polemistas em campanha contra o comércio
de escravos ou em favor da igualdade, e, portanto, com uma certa tendência à
parcialidade. Mas trata -se de limitações normais de todas as fontes narrativas,
e, cientes delas, devemos, ainda assim, reconhecer que possuem uma vantagem
decisiva: são vozes dos africanos, que nos revelam uma outra face da história.
que esteve sufocada pela torrente de opiniões estrangeiras.
Fontes arquivísticas particulares, relatórios
condenciais e outros testemunhos
Fontes particulares são, essencialmente, os documentos escritos que resultam
da necessidade de registrar várias atividades humanas e que, originalmente,
97 HORTON, J. A. B. 1863; Letters on the Political Conditions of lhe Gold Coast ..., Londres, 1870.
98 Paris, 1833.
130
Metodologia e pré -história da África
não eram destinados ao público, mas apenas a um pequeno grupo de pessoas
interessadas. Compreendem, assim, principalmente, a correspondência oficial
e particular, relatórios confidenciais de várias transações, registros comerciais,
estatísticas, documentos particulares de diversos tipos, tratados e acordos, diários
de bordo, etc. Esse material é a matéria -prima do historiador, que oferece
ao contrário das fontes narrativas, feitas com um propósito bem definido – um
testemunho objetivo, isento, em princípio, de quaisquer segundas intenções
visando um vasto público ou a posterioridade. Esse material é encontrado
principalmente em arquivos e bibliotecas estatais ou particulares.
A antiga ideia de que o fontes escritas particulares suficientes para a história
da África não tem fundamento. Existem o apenas coleções extremamente
ricas de documentos nas antigas metrópoles assim como extenso material na
própria África, produzidos nos períodos pré -colonial e colonial, por instituições
particulares ou ligadas aos Estados europeus, mas também coleções de material
particular originárias dos próprios africanos, escritas em línguas europeias ou em
árabe. Enquanto, anteriormente, esses documentos eram considerados raridades,
encontradas somente em alguns lugares muito especiais, está claro agora que
existe uma grande quantidade de fontes escritas de origem africana em várias
partes do continente e também nos arquivos europeus e asiáticos.
Observemos, primeiramente, o material escrito em árabe. Para o período
anterior ao culo XIX, foram descobertos até agora somente exemplares isolados de
correspondência, local e internacional, provenientes, sobretudo, da África ocidental.
cartas do sultão o otomano ao Mai Idris do Bornu (em 1578), descobertas
em arquivos turcos, e alguma correspondência do sultão do Marrocos ao Askiya
de Songhai e ao Kanta de Kebbi, tamm do fim do culo XVI. O árabe era
utilizado como ngua diplotica não apenas pelas cortes islamizadas do Sudão,
mas tamm por governantes o -muçulmanos. O caso mais conhecido é o dos
Asantehenes, que utilizaram os serviços de escribas muçulmanos, que escreviam
em árabe, para redigir sua corresponncia com seus vizinhos do norte, assim como
com os europeus da rego costeira. Algumas dessas cartas foram encontradas na
Biblioteca Real em Copenhague. A chancelaria árabe de Kumasi funcionou durante
grande parte da segunda metade do culo XIX, e o árabe também era utilizado para
manter registros de decies administrativas e judiciais, transações financeiras, etc.
No outro lado da África tem -se como exemplo o tratado, escrito em árabe, entre o
comerciante de escravos francês, Morice, e o sulo de Kilwa, no ano de 1776.
O culo XIX presenciou um aumento considerável da correspondência em árabe
em todo o continente. Com o estabelecimento de Estados centralizados no Sudão
houve um desenvolvimento das atividades administrativas e diploticas, tendo
131
As fontes escritas a partir do século XV
sido descoberto um abundante material desse tipo, principalmente no sultanato
de Socotoe em seus emirados dependentes, de Guandu a Adamaua, no Estado de
Macina ou no Estado de Liptako e no Imrio de Bornu. Todos os governantes
mulmanos de grandes ou pequenos Estados mantinham correspondência intensa
entre si e com as potências coloniais em desenvolvimento. Em muitos arquivos
dos países da África ocidental (e em alguns da Europa), encontram -se milhares
de documentos em árabe de personalidades como al -Hadjdj’Umar, Ahmadu Seku,
Ma -Ba, Lat Dyor, Mahmadu Lamine, Samory, al -Bakka’i, Rabih e muitos outros
líderes e chefes de menor envergadura. As administrações coloniais em Serra Leoa,
Gui, Nigéria e Costa do Ouro também mantinham sua correspondência com
eles em árabe. Existem cartas trocadas entre o paxá otomano de Tpoli e os xeques
bornu, entre o sultão do Darfur e o Egito, entre Tombuctu e o Marrocos. O mesmo
ocorreu com a África oriental; parece, entretanto, que os arquivos de Zanzibar não
são o ricos em documentos árabes, como poderia se esperar de uma cidade com
tão grandes interesses comerciais e políticos. Deve haver, evidentemente, um vasto
número de documentos, com diversidade de conteúdo, em coleções particulares; a
reunião e catalogação de todos eles não se uma tarefa fácil, mas é indispensável no
futuro pximo.
Muitos textos foram escritos na escrita vai, que foi inventada em 1833,
aproximadamente, por Momolu Duwela Bukele, e expandiu -se muito
rápidamente entre o povo Vai, de modo que, no fim do século, quase todos a
conheciam e empregavam correntemente, na correspondência particular e oficial,
na manutenção das contas e também na redação de leis costumeiras, provérbios,
contos e fábulas. Muitos povos vizinhos, como os Mende, os Toma (Loma), os
Gerze (Kpele) e os Basa, adotaram e adaptaram a escrita vai, empregando -a com
propósitos semelhantes
99
.
No início do século XX o Sultão Njoya de Bamum (Camarões) inventou para
a língua bamum uma escrita especial, que ele reformou quatro vezes durante
sua vida; mas, contrariamente à escrita vai, utilizada geralmente pela maioria
do povo, o conhecimento da escrita bamum permanecia restrito a um pequeno
grupo da corte do sultão. Todavia, Njoya compôs um grande volume sobre a
história e costumes de seu povo nessa escrita, um livro no qual ele continuou
a trabalhar durante muitos anos e que constitui um verdadeiro manancial de
informações valiosas sobre o passado
100
.
99 Cf. DALBY, D. A. 1967, p. 1-51.
100 Histoire et coutumes des Bamum, rédigés sous la direction du Sultan Njoya. Trad. por P. Henri MARTIN,
Paris, 1952. O original é mantido no palácio do sultão em Fumbam.
132
Metodologia e pré -história da África
Devemos acrescentar os textos em nsibidi
101
do Cross River Valley (sudeste
da Nigéria), que consistem em inscrições em santuários e formas especiais de
linguagem, utilizadas entre os membros de algumas sociedades secretas.
O material nas nguas europeias abrange o período do século XVI a
hoje. Escrito numa dúzia de nguas, é imensamente abundante e está disperso
pelo mundo inteiro em centenas de lugares diferentes, arquivos, bibliotecas
e coleções particulares. Essa situão torna sua utilização pelos historiadores
bastante difícil, especialmente em casos onde não guias nem catálogos à
disposição. Foi por essa razão que o Conselho Internacional de Arquivos,
sob os auspícios e com o apoio moral e financeiro da UNESCO, começou a
preparar uma série de guias para as fontes da história da África. O principal
objetivo era satisfazer as necessidades dos estudantes de história da África
facilitando o acesso a todo o corpo de fontes existentes. Como a pesquisa
histórica havia estado por muito tempo concentrada num número limitado
de bibliotecas de arquivos que mantêm registros do período colonial, era
importante chamar a atenção também para a existência de um extenso e muito
disperso conjunto de fontes, até agora não exploradas. Os guias são dedicados
inicialmente aos arquivos públicos e particulares, mas levam igualmente em
consideração o material de interesse hisrico conservado em bibliotecas e
museus. A série deve compreender doze volumes, com informações sobre
fontes arquivísticas que tratam da África ao sul do Saara e mantidas nos países
da Europa ocidental e nos Estados Unidos. Até agora os seguintes volumes
foram publicados:
Volume I República Federal da Alemanha (1970); Volume 2 Espanha
(1971); Volume 3 – França – I (1971); Volume 4 – França – II (1976); Volume
5 – Itália (1973); Volume 6 – Itália (1974); Volume 8 – Escandinávia (1971); e
Volume 9 Holanda (1978). O Volume 7 (Vaticano) é esperado para um futuro
próximo. Os volumes abrangendo a Bélgica, o Reino Unido e os Estados Unidos
aparecerão separadamente, mas seguirão o mesmo método de apresentação
102
.
Como foi muito apropriadamente dito por Joseph Ki -Zerbo em sua Introdução
para a série, na batalha para a redescoberta do passado africano, o guia das fontes
da história da África constitui uma nova arma estratégica e tática”
103
.
101 Cf. DAYRELL, 1910 -1911 ; MAC-GREGOR, 1909, p. 215, 217, 219.
102 Os volumes dos Estados Unidos e do Reino Unido apresentam listas de documentos relativos a todo o
continente.
103 Quellen zur Geschichte Afrikas südlich der Sahara in den Archiven der Bundesrepublik Deutschland (Guio das
fontes da história da África), v. I, Zug, Suíça, 1970. Prefácio, p. vii.
133
As fontes escritas a partir do século XV
Além desse importante projeto, alguns outros guias de fontes, preparados
principalmente por regiões ou de acordo com critérios especiais. Entre os mais
completos, constam os cinco guias da história da África ocidental, publicados
em 1962 -1973, que cobrem os arquivos de Portugal, Itália, Bélgica, Holanda,
França e Reino Unido
104
.
Mais ambiciosas e de certa forma mais vantajosas são as edões de
documentos arquivísticos in extenso ou como catálogos. Até agora esse tipo
de apresentação tem sido usado principalmente para o material em arquivos
portugueses. Sem considerar o trabalho de Paiva Manso no fim do culo
XIX
105
, agora duas importantes coleções de documentos de missionários,
provenientes de arquivos portugueses e alguns outros, um de A. da Silva Rego
106
,
e outro de A. Brasio
107
. Alguns anos atrás, foi iniciada uma coleta monumental,
preparada pelos esforços combinados dos arquivos portugueses e do Zimbabwe,
na qual todos os documentos portugueses relativos ao sudeste da África serão
publicados no original com uma tradução inglesa
108
.
também coleções restritas no que se refere ao tempo, alcance e objeto.
Essa categoria é representada, por um lado, pelos British Parliamentary Papers e
vários Livros Azuis e Brancos, principalmente do período colonial, e, por outro
lado, por seleções recentes mais científicas
109
, como o trabalho de J. Cuvelier e
L. Jadin sobre os documentos do Vaticano para a história do antigo Congo
110
,
ou a seleção de C. W. Newbury sobre a política britânica na África ocidental
e o estudo documentário de G. E. Metcalfe sobre as relações entre a Grã-
-Bretanha e Gana
111
. À mesma categoria pertence a grande coleção de material
arquivístico sobre a política italiana em relação à Etiópia e países vizinhos,
em vias de publicação por C. Giglio
112
. Muitas outras coleções desse tipo em
vários arquivos europeus tornaram acessíveis documentos para alguns aspectos
da história colonial. Mas seu ponto fraco reside precisamente em seu caráter
104 CARSON, P. 1962; RYDER, A. F. C. 1965; GRAY, R. e CHAMBERS, D. 1965; CARSON, P. 1968.
105 MANSO, P. 1877.
106 SILVA REGO, A. da. 1949 -1958.
107 BRASIO, A. 1952.
108 e Historical Documents of East and Central Africa, Lisboa -Salisbury, a partir de 1965. Compreenderá
aproximadamente 20 volumes.
109 Guides to Materials for West African History in European Archives, publicados pela Universidade de Londres
na Athlone Press, a partir de 1962. Cf. nota 104.
110 CUVELIER, J. e JADIN, L. 1954.
111 NEWBURY, C. W. 1965; METCALFE, G. E. 1964.
112 GIGLIO, C. L’Italia in Africa, Serie Storica, v. I, 1958.
134
Metodologia e pré -história da África
 . Fac-símile do manuscrito vai intitulado An Early Vai Manuscript (por Svende E. Holsoe,
publicado pelo International African Institute).
135
As fontes escritas a partir do século XV
seletivo, porque cada compilador segue, ao escolher o material, regras próprias,
subjetivas, enquanto o pesquisador que examina uma questão necessita de todas
as informações e de uma documentação completa.
Em cada Estado independente da África existe agora arquivos governamentais
que também mantêm material herdado da administração colonial anterior. Apesar
de alguns países terem publicado guias ou catálogos, a maioria dos arquivos na
África ainda es em processo de classificão sistemática e descrão
113
. A
publicação de uma série de guias de todos os arquivos africanos públicos e
particulares, como os que estão sendo publicados para os arquivos da Europa, é,
no momento atual, uma necessidade urgente.
Os arquivos governamentais da África, comparados aos das antigas
metrópoles, têm suas vantagens e também seus inconvenientes. Com algumas
exceções, a manutenção de registros detalhados teve início na África, na
década de 1880, e há muitas lacunas nesse material, que devem ser compensadas
por outras fontes, sendo as mais importantes os registros dos missionários e
comerciantes e os documentos particulares, e, evidentemente, os arquivos em
capitais europeias.
Por outro lado, as vantagens dos arquivos criados na África sobre os das antigas
capitais metropolitanas são numerosas: a diferença marcante reside no fato de
guardarem materiais e registros que têm relação mais direta com a situação local,
enquanto os arquivos coloniais da Europa contêm, principalmente, documentos
sobre a política do colonizador. Os arquivos africanos geralmente conservam
registros do período pré -colonial, como relatórios dos primeiros exploradores,
informações colhidas por comerciantes, funcionários públicos e missionários
no interior, relatórios que não eram considerados dignos de ser enviados para a
Europa, mas que são de extrema importância para a história local. Conservam,
ainda, um número muito maior de documentos produzidos por africanos que
os arquivos da Europa. Em geral, apesar da quantidade de material duplicado
em arquivos da Europa e da África, qualquer pesquisador que trabalhe somente
com fontes de antigos arquivos metropolitanos tenderá a escrever uma história
dos interesses europeus na África e não a história dos africanos. Por outro lado,
a utilização exclusiva dos arquivos mantidos na África não pode fornecer um
quadro completo, que muitos registros e documentos estão faltando ou são
incompletos.
113 Para um estudo da situação às vésperas da independência. v. P. D. CURTIN, 1960, p. 129 -47.
136
Metodologia e pré -história da África
Para concluir, devemos mencionar alguns outros tipos de documentos,
da mesma categoria. Inicialmente trataremos dos mapas e outros materiais
cartográficos. Embora, a partir do século XVI, o número de mapas impressos
da África tenha aumentado a cada ano, muitos ainda se mantêm em forma de
manuscritos, em vários arquivos e bibliotecas da Europa, alguns magnificamente
decorados e coloridos. Nesses mapas, podemos encontrar frequentemente nomes
de localidades que hoje não existem mais ou que são conhecidas por outras
denominações, mas que são mencionados em outras fontes, orais ou escritas. Por
exemplo, muitos povos Bantu orientais têm tradições que falam da migração
de uma área chamada Shungwaya; atualmente não se conhece nenhuma
localidade com esse nome, mas em alguns dos mapas antigos, por exemplo, o
de van Linschotten (1596) ou o de William H. J. Blaeu ( 1662) e outros mais,
Shungwaya aparece com várias grafias, primeiro como cidade, mais tarde como
região não distante da costa. Os mapas antigos fornecem também dados sobre
a distribuição de grupos étnicos, sobre as fronteiras dos Estados e províncias,
sobre os vários nomes dos rios, montanhas e outros aspectos topográficos.
Em resumo, oferecem um material toponímico muito útil, que por sua vez
fornecem valiosas informações históricas. Um exemplo prático de como utilizar
o material cartográfico com propósitos históricos foi demonstrado por W. G.
L. Randles em sua South ‑East Africa in the Sixteenth Century
114
. A importância
desse material já foi reconhecida, e o historiador tem à sua disposição a grande
obra de Yusuf Kamel, Monumenta Cartographica Africae et Aegypti, que contém
também muitos textos narrativos no original e em tradução, mas interrompe -se,
cronologicamente, precisamente no século XVI
115
. Devemos, portanto, endossar
o apelo de Joseph Ki -Zerbo de publicação de uma coletânea de todos os mapas
antigos da África em um atlas .com textos comentados
116
. Um primeiro passo
nesse sentido foi dado com a recente publicação, em Leipzig, de quase cem
mapas, mas sem comentários suficientes e reproduzindo apenas material
impresso
117
.
Outra categoria de material encontrado nas fontes escritas são os dados
lingsticas. que se reservou um capítulo especial neste volume para o estudo
da linguística como ciência histórica associada, deixaremos de lado as queses
metodogicas e restringiremos nossa discussão a indicações sobre o tipo de fontes
114 RANDLES, W. G. L. 1958.
115 Cairo, 1926 -1951.
116 Cf. nota 103 acima.
117 Afrika auf Karten des 12‑18. Jahrhunderts (Mapas da África do século XII ao XVIII). Leipzig, 1968.
137
As fontes escritas a partir do século XV
em que se podem encontrar dados linguísticos. A partir dos primeiros contatos com
a África, os viajantes europeus passaram a acrescentar, como atitude de bom -tom,
às suas narrativas de viagens e outros relatórios, listas mais ou menos longas de
palavras nas línguas locais. Os mais antigos vocabulários datam do século XV, e, até
o século XIX, raramente encontramos um livro sobre a África sem esse suplemento,
às vezes até acompanhado por uma breve gratica. Embora a ortografia quase
nunca seja sistemática, não é difícil identificar as palavras e línguas. A publicação
mais notável desse tipo é a grande coletânea publicada por Koelle, de vocabulários
de 160 línguas aproximadamente
118
. Curtin, Vansina e Hair
119
demonstraram que
o valor da obra é mais que lingstico. Especialmente favorecido nesse aspecto é
o antigo Reino do Congo: trabalhos que tratam do Kicongo m sido publicados
desde o século XVII uma gratica de Brusciotto (1659) e um dicionário de
de Gheel (morto em 1652)
120
. Além dessas obras impressas, existem outras em
rias bibliotecas e arquivos (Vaticano, British Museum, Besaon, etc.). Seu valor
documental para os historiadores é maior que o das listas de palavras, pois são mais
completas, permitindo um estudo diacrônico da nomenclatura social e cultural
121
.
Fontes escritas, narrativas e arquivísticas, nas línguas africanas, orientais
ou européias, representam um conjunto imensamente rico de material para a
história da África. Embora abundantes, os documentos de todo tipo, registros,
livros e relatórios conhecidos constituem, muito provavelmente, apenas um
fragmento do material existente. Dentro e fora da África devem existir inúmeros
lugares que ainda não foram explorados do ponto de vista de fontes possíveis da
história daquele continente. Essas regiões inexploradas constituem verdadeiros
espaços em branco” no mapa do nosso conhecimento das fontes da história
africana. Quanto mais cedo eles desaparecerem, mais rico será o quadro que
podemos traçar do passado africano.
118 KOELLE, S. W. 1854, reed. GRAZ, 1963.
119 CURTIN, P. D. e VANSINA, J.1964; HAIR, P. E. H. 1965.
120 Regulae quaedam pro dicillimi Congenius idiomatis faciliori captu ad Grammatica normam, redactae A. F.
Hyacintho Brusciotto, Roma, 1659; WING, J. van, e PENDERS, C. Le plus ancien dictionnaire Bantu.
Vocabularium P. Georgii Gelensis, Louvain, 1928.
121 A gramática de Brusciotto foi estudada com esses objetivos por D. A. OLDEROGGE, no seu instrutivo
artigo Sistema rodstva Bakongo v. XVII” (Sistema de parentesco Bakongo no século XVII), in:
Afrikanskiy etnogracheskiy sbornik III, Moscou, 1959.
C A P Í T U L O 7
139
A tradição oral e sua metodologia
As civilizações africanas, no Saara e ao sul do deserto, eram em grande parte
civilizações da palavra falada, mesmo onde existia a escrita; como na África
ocidental a partir do século XVI, pois muito poucas pessoas sabiam escrever,
ficando a escrita muitas vezes relegada a um plano secundário em relação às
preocupações essenciais da sociedade. Seria um erro reduzir a civilização da
palavra falada simplesmente a uma negativa,ausência do escrever”, e perpetuar
o desdém inato dos letrados pelos iletrados, que encontramos em tantos ditados,
como no provérbio chinês:A tinta mais fraca é preferível à mais forte palavra”.
Isso demonstraria uma total ignorância da natureza dessas civilizações orais.
Como disse um estudante iniciado em uma tradição esotérica: “O poder da
palavra é terrível. Ela nos une, e a revelação do segredo nos destrói” (através da
destruição da identidade da sociedade, pois a palavra destrói o segredo comum).
A civilização oral
Um estudioso que trabalha com tradições orais deve compenetrar -se
da atitude de uma civilização oral em relão ao discurso, atitude essa,
totalmente diferente da de uma civilização onde a escrita registrou todas
as mensagens importantes. Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas
como um meio de comunicão diária, mas também como um meio de
A tradição oral e sua metodologia
J. Vansina
140
Metodologia e pré -história da África
preservação da sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar
elocões -chave, isto é, a tradão oral. A tradição pode ser definida, de fato,
como um testemunho transmitido verbalmente de uma gerão para outra.
Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois palavras
criam coisas. Isso, pelo menos, é o que prevalece na maioria das civilizações
africanas. Os Dogon sem dúvida expressaram esse nominalismo da forma
mais evidente; nos rituais constatamos em toda parte que o nome é a coisa,
e que “dizer é “fazer.
A oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma
habilidade. As tradições desconcertam o historiador contemporâneo imerso
em tão grande número de evidências escritas, vendo -se obrigado, por isso, a
desenvolver técnicas de leitura rápida pelo simples fato de bastar à compreensão
a repetição dos mesmos dados em diversas mensagens. As tradições requerem um
retorno contínuo à fonte. Fu Kiau, do Zaire, diz, com razão que é ingenuidade ler
um texto oral uma ou duas vezes e supor que já o compreendemos. Ele deve ser
escutado, decorado, digerido internamente, como um poema, e cuidadosamente
examinado para que se possam apreender seus muitos significados ao menos
no caso de se tratar de uma elocução importante. O historiador deve, portanto,
aprender a trabalhar mais lentamente, refletir, para embrenhar -se numa
representação coletiva,que o corpus da tradição é a memória coletiva de uma
sociedade que se explica a si mesma. Muitos estudiosos africanos, como Amadou
Hampâté -Ba ou Boubou Hama muito eloquentemente têm expressado esse
mesmo -raciocínio. O historiador deve iniciar -se, primeiramente, nos modos de
pensar da sociedade oral, antes de interpretar suas tradições.
A natureza da tradição oral
A tradição oral foi definida como um testemunho transmitido oralmente de uma
geração a outra. Suas características particulares são o verbalismo e sua maneira
de transmissão, na qual difere das fontes escritas. Devido à sua complexidade,
não é fácil encontrar uma definição para tradição oral que conta de todos
os seus aspectos. Um documento escrito é um objeto: um manuscrito. Mas um
documento oral pode ser definido de diversas maneiras, pois um indivíduo pode
interromper seu testemunho, corrigir -se, recomar, etc. Uma definão um
pouco arbitrária de um testemunho poderia, portanto, ser: todas as declarações
feitas por uma pessoa sobre uma mesma sequência de acontecimentos passados,
contanto que a pessoa não tenha adquirido novas informações entre as diversas
141
A tradição oral e sua metodologia
declarações. Porque, nesse último caso, a transmissão seria alterada e estaríamos
diante de uma nova tradição.
Algumas pessoas, em particular especialistas como os griots, conhecem
tradições relativas a toda uma série de diferentes eventos. Houve casos de uma
pessoa recitar duas tradições diferentes para relatar o mesmo processo histórico.
Informantes de Ruanda “relataram duas versões de uma tradição sobre os Tutsi
e os Hutu: uma, segundo a qual, o primeiro Tutsi caiu do céu e encontrou o
Hutu na terra; e outra, segundo a qual Tutsi e Hutu eram irmãos. Duas tradições
completamente diferentes, um mesmo informante e um mesmo assunto! É por
isso que se inclui “uma mesma sequência de acontecimentos” na definição de um
testemunho. Enfim, todos conhecem o caso do informante local que conta uma
história compósita, elaborada a partir das diferentes tradições que ele conhece.
Uma tradição é uma mensagem transmitida de uma geração para a seguinte.
Mas nem toda informação verbal é uma tradição. Inicialmente, distinguimos o
testemunho ocular, que é de grande valor, por se tratar de uma imediata”, não
transmitida, de modo que os riscos de distorção do conteúdo são mínimos. Aliás,
toda tradição oral legítima deveria, na realidade, fundar -se no relato de um
testemunho ocular. O boato deve ser excluído, pois, embora certamente transmita
uma mensagem, é resultado, por definição, do ouvir dizer. Ao fim, ele se torna
tão distorcido que pode ter valor como expressão da reação popular diante
de um determinado acontecimento, podendo, no entanto, também dar origem
a uma tradição, quando é repetido por gerações posteriores. Resta, por fim, a
tradição propriamente dita, que transmite evidências para as gerações futuras.
A origem das tradições pode, portanto, repousar num testemunho ocular,
num boato ou numa nova criação baseada em diferentes textos orais existentes,
combinados e adaptados para criar uma nova mensagem. Mas somemte as
tradições baseadas em narrativas de testemunhos oculares são realmente válidas,
o que os historiadores do Islã compreenderam muito bem. Desenvolveram uma
complicada técnica para determinar o valor dos diferentes Hadiths, ou tradições
que se pretendiam palavras do Profeta, recolhidas por seus companheiros. Com
o tempo, o número de Hadiths tornou -se muito grande, e foi necessário eliminar
aqueles para os quais a cadeia de informantes (Isnad) que ligava o erudito que
as havia registrado por escrito a um dos companheiros do Profeta não podia
ser estabelecida. Para cada ligação, o cronista islâmico determinava critérios de
probabilidade e credibilidade idênticos aos empregados na crítica histórica atual.
Poderia a testemunha intermediária conhecer a tradição? Poderia compreendê-
-la? Era seu interesse distorcê -la? Poderia -la transmitido? E, se fosse o caso,
quando, como e onde?
142
Metodologia e pré -história da África
Notaremos que a definição de tradições apresentada aqui não implica
nenhuma limitação, a não ser o verbalismo e a transmiso oral. Inclui,
portanto, não apenas depoimentos como as crônicas orais de um reino
ou as genealogias de uma sociedade segmentária, que conscientemente
pretenderam descrever acontecimentos passados, mas também toda uma
literatura oral que fornecerá detalhes sobre o passado, muito valiosos por
se tratar de testemunhos inconscientes, e, além do mais, fonte importante
para a história das ideias, dos valores e da habilidade oral.
As tradições são também obras literárias e deveriam ser estudadas como
tal, assim como é necessário estudar o meio social que as cria e transmite
e a visão de mundo que sustenta o conteúdo de qualquer expressão de
uma determinada cultura. É por isso que nas seções seguintes trataremos
respectivamente da crítica literária e da questão do ambiente social e
cultural, antes de passarmos ao problema cronológico e à avalião geral
das tradições.
A tradição como obra literária
Numa sociedade oral, a maioria das obras literáriaso tradições, e todas
as tradições conscientes são elocuções orais. Como em todas elocuções, a
forma e os critérios literários influenciam o conteúdo da mensagem. Essa
é a principal razão das tradições serem colocadas no quadro geral de um
estudo de estruturas literárias e serem avaliadas criticamente como tal.
Um primeiro problema é o da forma da mensagem. quatro formas sicas,
resultantes de uma combinação prática de dois conjuntos de princípios. Em alguns
casos, as palavras são decoradas, em outros, a escolha é entregue ao artista. Em alguns
casos, uma rie de regras formais especiais o sobrepostas à gratica da ngua
comum, em outros,o existe tal sistema de conveões.
Formas fundamentais das tradições orais
conteúdo
xo livre (escolha de palavras)
forma
estabelecida
poema epopeia
livre
fórmula narrativa
143
A tradição oral e sua metodologia
O termo poema” é apenas um rótulo para todo o material decorado e dotado
de uma estrutura específica, incluindo canções. O termo “fórmula é um rótulo
que frequentem ente inclui provérbios, charadas, orações, genealogias, isto é,
tudo que é decorado, mas que não está sujeito a regras de composição, a não
ser às da gramática corrente. Em ambos os casos, as tradições compreendem
não só a mensagem, mas tamm as pprias palavras que lhe servem de
veículo. Teoricamente, portanto, um arquétipo original pode ser reconstruído,
exatamente como no caso das fontes escritas. Podem -se construir argumentos
históricos sobre as palavras e não apenas sobre o sentido geral da mensagem.
Todavia, acontece muitas vezes com as fórmulas, e menos com os poemas, ser
impossível reconstruir arquétipos devido ao grande número de interpolações.
Por exemplo, quando se reconhece que o lema de um cé o produto de uma
série de empréstimos de outros lemas, sem que se possa identificar aquilo que
constituía o enunciado original e específico. Pode -se muito bem compreender
por que as fórmulas se prestam tão facilmente à interpolação. Na realidade, não
existe nenhuma regra formal que impeça esse processo.
As fontes fixas são, em princípio, as mais valiosas, pois sua transmissão
é mais precisa. Na prática, raras são as que m o propósito consciente de
transmitir informações históricas. Além disso, é nesse caso que encontramos
arcaísmos por vezes inexplicados. Nas línguas bantu, seu significado pode ser
descoberto, pois é grande a probabilidade de uma língua vizinha ter conservado
uma palavra com a mesma raiz que o arcaísmo em questão. Em outros casos,
devemos nos conformar com o comentário do informante, que pode repetir
um comentário tradicional ou… inventá -lo. Infelizmente, esse tipo de registro
oral vem carregado de alusões poéticas, imagens ocultas, jogo de palavras com
múltiplos significados. Não é impossível compreender qualquer coisa dessa
elocução “hermética sem um comentário, mas também, muitas vezes, o autor
conhece todos os aspectos do seu significado. Mas ele não transmite tudo no
comentário explicativo, de qualidade variável, que acompanha a transmissão do
poema. Essa peculiaridade é bastante comum, especialmente no que se refere aos
poemas ou canções panegíricos da África meridional (Tsuana, Sotho), oriental
(a região lacustre), central (Luba, Congo) ou ocidental (Ijo).
A denominação “epopeia” significa que o artista pode escolher suas próprias
palavras dentro de um conjunto estabelecido de regras formais, como as rimas,
os padrões tonais, o número de sílabas, etc. Esse caso específico não deve ser
confundido com as peças literárias longas, de estilo heroico, como as narrativas
de Sundiata, Mwindo (Zaire) e muitas outras. No gênero de que tratamos,
a tradição inclui a mensagem e a estrutura formal, nada mais. Muitas vezes,
144
Metodologia e pré -história da África
entretanto, encontramos versos característicos, que servem para preencher
espaço ou que simplesmente lembram ao artista o quadro ou a estrutura formal.
Alguns desses versos provavelmente datam da criação da epopeia. Tais “epopeias”
existem na África? Acreditamos que sim e que algumas formas poéticas, de
Ruanda especialmente, assim como as canções -fábulas dos Fang (Camarões-
-Gabão), pertencem a essa categoria. Devemos notar que não se pode reconstruir
um verdadeiro arquétipo para esses poemas épicos porque a escolha das palavras
é deixada ao artista. Todavia, é preciso salientar que os requisitos da forma são
tais que, provavelmente, todas as versões de uma “epopeia” baseiam -se num
único original, o que frequentemente é demonstrado pelo estudo das variantes.
A última categoria é a das “narrativas”, que compreendem a maioria das
mensagens históricas conscientes. Nesse caso, a liberdade deixada ao artista
permite numerosas combinações, muitas remodelações, reajustes dos episódios,
ampliação das descrições, desenvolvimentos, etc. Torna -se, então, difícil reconstruir
um arquétipo. O artista é completamente livre, mas somente do ponto de vista
literio: o seu meio social pode, às vezes, impor -lhe uma fidelidade rígida às fontes.
Apesar dessas dificuldades, é possível descobrir a origem híbrida de uma tradição,
pela coleta de todas as suas variantes, inclusive das que não são consideradas
históricas, e recorrendo -se às variantes originárias dos povos vizinhos. Assim,
pode -se, por vezes, passar imperceptivelmente do mundo da história para o país
das maravilhas; por outro lado, eliminam -se as versões orais que o são baseadas
em narrativas de testemunho ocular. Essa abordagem crítica é essencial.
Toda literatura oral tem sua ppria divisão em gêneros literios. O
historiador não só tentará apreender o significado desses gêneros para a cultura
que está estudando, mas também colherá ao menos uma amostra representativa
de cada um, pois em todos eles pode -se esperar encontrar informações históricas,
além do que, as tradições que o interessam particularmente são mais fáceis de
se compreender quando analisadas no contexto geral. a própria classificação
interna fornece indicações valiosas. Assim, podemos descobrir se os transmissores
de uma obra literária fazem distinção, por exemplo, entre as narrativas históricas
e as de outros tipos.
Os gêneros literários também estão sujeitos a convenções literárias, cujo
conhecimento é fundamental para se compreender o verdadeiro sentido da
obra. A questão nesse caso não é mais de regras formais, mas de escolha de
termos, expressões, prefixos pouco usuais, vários tipos de licença poética. Uma
atenção maior deve ser dada às palavras ou expressões que possuem múltiplas
reverberações. Além disso, os termos -chave, intimamente ligados à estrutura
145
A tradição oral e sua metodologia
social, à concepção do mundo, e praticamente intraduzíveis, exigem que se faça
uma interpretação à luz do contexto literário no qual aparecem.
É impossível coligir tudo. O historiador -se obrigado, portanto, a levar em
consideração requisitos práticos e deverá se dar por satisfeito uma vez obtida
uma amostra representativa de cada gênero literário.
Somente através da catalogação dos vários tipos de narrativa pertencentes ao
grupo étnico em estudo, ou a outros grupos, é possível discernir não só imagens
ou expressões favoritas, mas também os episódios estereotipados, como nas
narrativas que se poderia classificar como lendas migratórias” (Wandersagen).
Por exemplo, uma narrativa luba das margens do lago Tanganica conta como um
chefe livrou -se de outro, convidando -o a sentar -se num tapete sob o qual havia
sido cavado um poço contendo estacas com pontas afiadas. O chefe sentou-
-se e morreu. O mesmo quadro pode ser encontrado dos grandes lagos até o
oceano, e também entre os Peul do Liptako (Alto Volta), os Haussa (Nigéria)
e os Mossi de Yatenga (Alto Volta). A importância desses episódios -clichês é
óbvia. Infelizmente, não possuímos nenhum livro de referências útil que trate
deles, embora H. Baumann mencione muitos temas -clichês que ocorrem em
narrativas sobre as origens de diversos povos
1
. é tempo de se estabelecerem
catálogos práticos para a pesquisa desses estereótipos. Os chamados índices de
motivos populares (Folk Motiv Index) são de difícil manuseio, e confusos, pois
se baseiam em características de menor importância, escolhidas arbitrariamente,
enquanto, nas narrativas africanas, o episódio representa uma unidade natural
em um catálogo.
Uma vez encontrado um clic desse tipo, não é correto rejeitar toda a
tradão, ou mesmo a parte que contém essa sequência de eventos, como
destituída de valor. Devemos, sim, explicar por que o clichê foi utilizado. No caso
mencionado, ele simplesmente explica que um chefe elimina outro e acrescenta
uma descrição de como isso foi feito, que é fictícia mas agrada aos ouvintes.
Com mais frequência, perceberemos que esse tipo de clicconstrói explicações
e comentários para dados que podem ser perfeitamente legítimos.
A crítica literária levará em consideração o apenas os significados literal e
pretendido de uma tradição, mas também as restrições impostas, para a expressão
da mensagem, por requisitos formais e estilísticos. Avaliará o efeito da distorção
estética, muito frequente. Afinal, mesmo as mensagens do passado não devem ser
enfadonhas demais! É neste ponto que a observação das representações sociais
1 BAUMANN, H. 1936.
146
Metodologia e pré -história da África
relativas à tradição é de fundamental importância. Dizemos representação em
lugar de reprodução, porque na maioria dos casos está em jogo um elemento
estético. Se os critérios estéticos prevalecerem sobre a fidelidade da reprodução,
ocorrerá uma forte distorção estética, refletindo o gosto do público e a arte da
pessoa que transmite a tradição. Mesmo em outros casos, encontramos arranjos
de textos que chegam a vestir as tradições de conteúdo histórico específico com o
uniforme dos pades artísticos correntes. Por exemplo, nas narrativas, uma série
de episódios que levam a um clímax formam a trama principal, enquanto outros
constituem repetições paralelas sofisticadas e outros, ainda, representam apenas
transões de uma etapa da narrativa para outra. Como regra geral, pode -se admitir
que, quanto mais uma narrativa se conforma ao modelo -padrão de excelência e
quanto mais é admirada pelo público, mais é distorcida. Numa série de variantes,
pode -se, às vezes, discernir a variante correta pelo fato de ir contra esses pades,
assim como uma variante que contradiz a função social de uma tradição tem mais
probabilidade de ser verdadeira que as outras. Não devemos esquecer, entretanto,
que nem todos os artistas da palavra são excelentes. os de pouco talento, e suas
variantes serão sempre sofríveis. Mas a atitude do público, como o cenário de uma
representação, não é exclusivamente um fato artístico. É acima de tudo um fato
social, e isso nos obriga a considerar a tradição em seu meio social.
Contexto social da tradição
Tudo que uma sociedade considera importante para o perfeito funcionamento
de suas instituições, para uma correta compreensão dos rios status sociais
e seus respectivos papéis, para os direitos e obrigações de cada um, tudo é
cuidadosamente transmitido. Numa sociedade oral isso é feito pela tradição,
enquanto numa sociedade que adota a escrita, somente as memórias menos
importantes são deixadas à tradição. É esse fato que levou durante muito tempo
os historiadores, que vinham de sociedades letradas, a acreditar erroneamente
que as tradições eram um tipo de conto de fadas, canção de ninar ou brincadeira
de criança.
Toda instituição social, e também todo grupo social, tem uma identidade
própria que traz consigo, um passado inscrito nas representações coletivas de
uma tradição, que o explica e o justifica. Por isso, toda tradição terá sua superfície
social”, utilizando a expressão empregada por H. Moniot. Sem superfície social, a
tradição não seria mais transmitida e, sem função, perderia a razão de existência
e seria abandonada pela instituição que a sustenta.
147
A tradição oral e sua metodologia
Poderíamos ser tentados a seguir alguns estudiosos que acreditavam poder
dizer a priori qual a natureza ou perfil do corpus de tradições históricas de uma
determinada sociedade, a partir da classificão das coletividades em tipos
como Estados”, “sociedades sem Estado”, etc. Embora seja verdade que as
diversas sociedades africanas possam ser, grosso modo, classificadas de acordo
com tais modelos, é fácil demonstrar que essas tipologias podem se estender ao
infinito, pois cada sociedade é diferente, e os critérios utilizados são arbitrários
e limitados. Não existem dois Estados idênticos ou mesmo semelhantes nos
detalhes. imensas diferenças entre as linhas -mestras da organização das
sociedades Massai (Quênia - Tanzânia), Embu (Quênia), Meru (Quênia) e Galla
(Quênia - Etiópia), embora todas elas possam ser classificadas como sociedades
baseadas em classes etárias e estejam situadas na mesma região da África. Se
se desejasse examinar um caso de uma sociedade dita simples, sem Estado,
composta de pequenos grupos estruturados por ltiplas linhagens, poder-
-se -ia pensar que os Gouro (Costa do Marfim) constituíssem bom exemplo.
Esperando encontrar um perfil de tradições contendo somente histórias de
linhagens e genealogias – e realmente o encontramos –, deparamo -nos também
com uma história esotérica transmitida por uma sociedade secreta. Tomemos
o caso dos Tonga do Zâmbia: encontramos novamente a história da linhagem,
mas também histórias de centros rituais animados pelos fazedores de chuva.
Não uma única sociedade desse tipo que não apresente uma instituição
importante “inesperada”. Entre os Estados, o caso extremo é, certamente, o do
reino dos Bateke (Tio), em que a tradição real não remonta a mais do que duas
gerações, embora os reinos devam ter tradições muito antigas. Podemos ir mais
longe no tempo coligindo as tradições dos símbolos mágicos dos nobres do que
seguindo as tradições relativas ao símbolo real! Generalizações apressadas sobre
o valor das tradições seriam absolutamente despropositadas. O perfil de um
determinado corpus de tradições pode ser determinado a posteriori.
É evidente que as funções preenchidas pelas tradições tendem a distorcê-
-las. É impossível estabelecer uma lista completa dessas funções, em parte
porque uma tradição pode assumir diversas funções e pode desempenhar um
papel mais ou menos preciso ou difuso em relação a elas. Mas principalmente
porque a palavra “função é por si confusa. É utilizada com frequência para
descrever tudo o que serve para fortalecer ou manter a instituição da qual
depende. Como a relação o é tangível, a imaginão pode produzir uma
lista infinita de funções a preencher”, não sendo possível nenhuma escolha.
Entretanto, não é difícil distinguir certos propósitos precisos, manifestos ou
latentes, assumidos por algumas tradições. Há, por exemplo, as “cartas míticas”,
148
Metodologia e pré -história da África
as histórias das dinastias, genealogias, listas de reis, que podem ser consideradas
como verdadeiras constituições não -escritas. Podemos ampliar essa categoria
pela inclusão de todas as tradições que tratam dos assuntos públicos legais,
por exemplo, as que mantêm os direitos públicos sobre a propriedade. Trata-
-se, geralmente, de tradições oficiais, uma vez que aspiram a uma legitimidade
universal para a sociedade. As tradições particulares, associadas a grupos ou
instituições incorporados a outros grupos, não serão tão bem conservadas, pois
têm menor importância, embora, em geral, estejam mais próximas da verdade
que as demais tradições. Todavia, convém destacar que as tradições particulares
são oficiais para o grupo que as transmite. Assim, uma história de família é
particular em comparação à história de todo um Estado, e o que ela diz sobre
o Estado está menos sujeito a controle do Estado que uma tradição pública
oficial. Mas dentro da própria família, a tradição particular torna -se oficial.
Em tudo o que diz respeito à família, ela deve, portanto, ser tratada como tal.
Compreende -se, assim, por que é tão importante utilizar histórias familiares ou
locais para esclarecer questões de história política geral. Seu testemunho está
menos sujeito a distorção e pode oferecer uma verificação efetiva das asserções
feitas pelas tradições oficiais. Por outro lado, como dizem respeito somente a
subgrupos, a profundidade e o cuidado com que são transmitidas são, de modo
geral, pouco satisfatórios, como atestam as inúmeras variantes.
Entre outras funções comuns, podemos mencionar sucintamente a religiosa e a
litúrgica (como realizar um ritual), as funções jurídicas particulares (precedentes),
as estéticas, didáticas e históricas, a função do comentário de um registro oral
esotérico e a que os antropólogos chamam de função mítica. As funções e o
gênero literário considerados em conjunto podem constituir para o historiador
uma tipologia válida, que lhe permitirá fazer uma avaliação geral das prováveis
distorções que suas fontes podem ter sofrido, fornecendo -lhe indicações relativas
à transmissão. Para tomar apenas os tipos que são obtidos por esse processo de
seleção, podemos distinguir os nomes, os títulos, os slogans ou lemas, fórmulas
rituais, fórmulas didáticas (provérbios), listas de topônimos, de antropônimos,
genealogias, etc. Do ponto de vista da forma básica, podemos classificar todos
esses casos como “fórmulas”. Poemas históricos, panericos, litúrgicos ou
cerimoniais, religiosos, pessoais (líricos e outros), canções de todos os tipos
(canções de ninar, de trabalho, caça e canoagem, etc.) são “poemas”, também
do mesmo ponto de vista. A “epopeia como forma básica é representada por
certos poemas que não correspondem ao que o termo normalmente conota. Por
último, a narrativa” inclui a narrativa geral, histórica ou outras, narrativas locais,
familiares, épicas, etiológicas, estéticas e memórias pessoais. Devemos também
149
A tradição oral e sua metodologia
incluir aqui precedentes legais que raramente são transmitidos pela tradição oral,
comentários sobre registros orais e as notas ocasionais, que são essencialmente
respostas curtas a perguntas do tipo: “Como começamos a cultivar milho?”, “De
onde veio a máscara de dança?”, etc.
Dessa lista pode -se imediatamente observar o que pode ser a ação deformadora
de uma instituição em cada um desses tipos. Mas ainda é preciso demonstrar
que essa ação realmente ocorreu ou que a probabilidade de distorção é muito
grande. Geralmente, é possível mostrar que uma tradição é válida porque não
sofreu as distorções esperadas. Por exemplo, um povo diz que é mais novo
que outro, uma crônica real admite uma derrota, uma fórmula particular que
deveria explicar a geografia física e humana de um país não se conforma mais à
realidade. Em todos esses casos a análise comprova a validade da tradição, pois
esta resistiu ao processo nivelador.
Em seu trabalho sobre o fenômeno da escrita (capacidade de ler e
escrever), Goody e Watt afirmam que uma sociedade oral tende, constante e
automaticamente, à homeostase, que apaga da memória coletiva daí a expressão
amnésia estrutural” qualquer contradição entre a tradição e sua superfície
social. Mas os casos mencionados acima mostram que essa homeostase é
parcial. Não se pode negar, portanto, o valor histórico das tradições unicamente
por desempenharem certas funções. Segue -se, ainda, que cada tradição deve ser
submetida a estrita crítica sociológica. No mesmo trabalho, esses autores afirmam
que a cultura de uma sociedade verbal é homogeneizada, isto é, que o conteúdo,
em termos de conhecimento, do cérebro de cada adulto é aproximadamente
o mesmo. Isso não é totalmente verdadeiro. Especialistas artesãos, políticos,
legistas e religiosos sabem muitas coisas que seus contemporâneos do mesmo
grupo étnico desconhecem. Cada grupo étnico tem seus pensadores. Entre os
Kuba (Zaire), por exemplo, encontramos três homens que, com base num mesmo
sistema de símbolos, haviam estabelecido três filosofias diferentes, e supomos
que o mesmo se entre os Dogon. Quanto às tradições, observamos que em
muitos grupos tradições esotéricas secretas, que são privilégio de um grupo
restrito, e tradições exotéricas públicas. Por exemplo, a família real ashanti sabia
a história secreta de sua origem, enquanto o grande público conhecia somente a
versão oficial. Em Ruanda, somente os especialistas biiru conheciam os rituais da
realeza, e, mesmo assim, eles só os conheciam na sua totalidade quando estavam
todos juntos, que cada grupo de biiru tinha conhecimento apenas de uma parte
deles. Em quase todos os rituais de entronização na África encontramos práticas
e tradições secretas. Isso significaria que a tradição esotérica é necessariamente
mais acurada que a tradição exotérica? Depende do contexto. Afinal, as tradições
150
Metodologia e pré -história da África
esotéricas também podem ser distorcidas por razões imperativas, que serão
ainda mais imperativas se o colégio que possui o segredo foi um grupo -chave da
sociedade. Devemos ressaltar que, empiricamente, conhecemos até agora muito
poucas tradições esotéricas, e porque a antiga ordem em que têm suas raízes não
desapareceu por completo. As que conhecemos provêm de sociedades que têm
sofrido importantes transformações, e muitas tradições sem dúvida desaparecerão
sem deixar registro. Todavia, a partir de fragmentos que possuímos, podemos
afirmar que certas tradições ogboni da nação Ioruba têm sido tão distorcidas que
não mais constituem mensagens válidas no que diz respeito às origens do ogboni,
enquanto as tradições biiru, por exemplo, parecem ter maior validade. Isso se
deve não ao caráter esotérico, mas ao propósito dessas tradições: as primeiras
legitimam um poder forte detido por um pequeno grupo de homens, enquanto
as segundas são apenas a memorização de um ritual prático.
Cada tradição tem sua própria superfície social. Para encontrar as tradições e
analisar a qualidade de sua transmissão, o historiador deve, portanto, conhecer,
o mais detalhadamente possível, o tipo de sociedade que está estudando. Deve
examinar todas as suas instituições para isolar as tradições, e também esmiuçar
todos os gêneros literários para obter informações históricas. É o grupo dirigente
de uma sociedade que retém a posse das tradições oficiais, e sua transmissão
é geralmente realizada por especialistas, que utilizam meios mnemotécnicos
(geralmente canções) para reter os textos. Às vezes o controle de colegas
em ensaios privados ou na representação pública associada a uma cerimônia
importante. Os especialistas, entretanto, nem sempre estão ligados ao poder. É
o caso dos genealogistas, dos tamborileiros de chefes ou de reis, dos guardas de
túmulos
2
e dos pregadores de religiões nacionais. Mas também especialistas
em outros níveis. Entre os Xhosa (África do Sul), mulheres especializadas
na arte de representar histórias engraçadas, ntsomi. também outros que
sabem fazê -la, mas não se especializam nisso. Estes geralmente tomam parte
em espetáculos populares. Alguns celebrantes de ritos religiosos também são
especialistas em tradições orais: os guardas dos mhondoro shona (Zimbabwe)
conhecem a história dos espíritos confiados à sua guarda. Alguns, como os
griots, são trovadores que reúnem tradições em todos os níveis e representam os
textos convencionados, diante de uma audiência apropriada, em certas ocasiões
casamento, morte, festa na residência de um chefe, etc. É raro não haver
especialização, mesmo no nível da história da terra ou da família. Sempre
2 Em alguns países, essas pessoas fazem parte da classe governante; é o caso, por exemplo, do Bend ‑naba
(chefe dos tambores) dos Mossi.
151
A tradição oral e sua metodologia
indivíduos socialmente superiores (os abashinga ntabe do Burundi para questões
de terra, por exemplo) ou de maior aptidão encarregados da memorização e
transmissão das tradões. Enfim, uma última categoria de pessoas bem-
-informadas (para as quais dificilmente podemos aplicar o termo especialista)
é constituída por indivíduos que vivem perto de lugares históricos importantes.
Nesse caso, o fato de se viver exatamente no local, por exemplo, onde uma
batalha foi travada, atua como meio mnemotécnico no registro da tradição.
Um exame da “superfície social” torna possível, portanto, descobrir tradições
existentes, colocá -las em seu contexto, achar especialistas responsáveis por elas e
estudar as transmissões. Esse exame também torna possível descobrir indicações
valiosas sobre a frequência e a forma das próprias representações. A frequência
é um indicador da fidelidade da transmissão. Entre os Dogon (Mali), o ritual
do Sigi é transmitido somente uma vez a cada sessenta anos aproximadamente.
Isso favorece o esquecimento; são muito raros os que viram dois Sigi e
apreenderam o suficiente na primeira representação para serem capazes de
dirigir a segunda. Somente as pessoas com 75 anos, pelo menos, podem fazê-
-lo. Podemos supor que o conteúdo do Sigi e a informação fornecida variarão
mais radicalmente que uma forma de tradição como a de um festival no sul da
Nigéria que é repetido todo ano. Mas, por outro lado, uma frequência elevada
de representações não significa necessariamente uma fidelidade acentuada na
transmissão. Isso vai depender da sociedade em questão. Se a sociedade necessita
de uma fidelidade estrita, a frequência ajudará a mantê -la. É o caso das fórmulas
mágicas, como, por exemplo, certas fórmulas para exorcizar a bruxaria. Explica-
-se, assim, por que algumas fórmulas mboon (Zaire) para fazer parar a chuva
situam -se num contexto geográfico tão arcaico que nenhum dos elementos
mencionados pode ser encontrado na região Mboon atual. Por outro lado, se
a sociedade não atribui nenhuma importância à fidelidade da transmissão, a
grande frequência da representação altera a transmissão mais rapidamente do
que uma frequência menor. Temos, por exemplo, o caso das canções à moda e
especialmente das narrativas populares mais apreciadas. Tudo isso pode e, de
fato, deve ser verificado pelo estudo das variantes coletadas. Seu número é um
reflexo direto da fidelidade da transmissão.
Ao que parece, as alterações tendem invariavelmente a aumentar a homeostase
entre a instituição e a tradição que a acompanha; nesse ponto Goody e Watt
têm certa razão. Se as variantes existem e mostram uma tendência bem definida,
podemos deduzir que as menos conformistas em relação aos objetivos e funções
da instituição são as mais válidas. Além disso, é possível, por vezes, mostrar
que uma tradição não é válida, seja em caso de ausência de variantes, quando a
152
Metodologia e pré -história da África
tradição tornou -se um clichê do tipo: Viemos todos de X”, X correspondendo
perfeitamente às necessidades da sociedade; seja quando, como na narrativa
popular, as variantes são tão divergentes que é quase impossível reconhecer o
que constitui uma tradição e a separa das outras. Nesse caso, torna -se evidente
que a maioria das versões são elaborações mais ou menos recentes, que têm
por base outras narrativas populares. Nesses dois casos extremos, entretanto, é
preciso poder demonstrar que a ausência de variantes realmente corresponde
a uma forte motivação da sociedade, assim como a proliferação de variantes
corresponde a considerações estéticas ou a uma necessidade de divertimento
que suplanta qualquer outra consideração. Ou, então, deve -se poder demonstrar
que os postulados inconscientes da civilização homogeneizaram a tradição de
maneira tal que esta se tornou um clichê sem variantes. É precisamente essa
influência da civilização que deve ser examinada agora, feita a crítica sociológica.
Estrutura mental da tradição
Por estrutura mental entendemos as representações coletivas inconscientes
de uma civilizão, que influenciam todas as suas formas de expressão e ao
mesmo tempo constituem sua concepção do mundo. Essa estrutura mental
varia de uma sociedade para outra. A nível superficial, é relativamente fácil
descobrir parte dessa estrutura, através da aplicação de técnicas clássicas da
crítica literária ao conteúdo de todo o corpus de tradições e da comparação
desse corpus com outras manifestações, sobretudo as simbólicas, da civilização.
A tradição sempre idealiza; especialmente no caso de poemas e narrativas. Ela
cria estereótipos populares. Toda história tende a tornar -se paradigmática e,
consequentemente, mítica, seja o seu conteúdo verdadeiro ou não. Assim,
encontramos modelos de comportamentos ideais e de valores. Nas tradições de
reis, os personagens tornam -se estereotipados, como num western, e, portanto,
facilmente identificáveis. Um rei é o mágico”, um outro governante é o “justo”,
outra pessoa é o “guerreiro”. Mas isso distorce a informação; algumas guerras,
por exemplo, são atribuídas ao rei guerreiro, quando as campanhas foram de
fato conduzidas por outrem. Além disso, todos os reis possuem, em comum,
características que refletem uma noção idealizada da realeza. Também não é
difícil encontrar estereótipos de diferentes personagens, especialmente de líderes,
em outras sociedades. É o caso do “herói cultural”, frequentemente encontrado,
que transforma o caos numa sociedade bem ordenada. A noção estereotipada de
caos é, no caso, a descrição de um mundo literalmente às avessas. Encontramos
153
A tradição oral e sua metodologia
também mais de um estereótipo do herói fundador. Entre os Igala (Nigéria),
alguns fundadores são caçadores, outros são descendentes de reis. Os primeiros
representam um status adquirido, os últimos, um status hereditário (atribuído).
Na tentativa de explicar por que dois tipos de status, sugeriu -se que o primeiro
estereótipo oculta a ascensão ao poder de novos grupos e que os dois estereótipos
refletem duas situações históricas bastante diferentes.
Uma explicação verdadeiramente satisfatória deveria, entretanto, revelar o
sistema completo de valores e ideais relacionados a status e papéis sociais, que
constituem a própria base de toda ação social e de todo sistema global. Isso
foi possível recentemente, quando McGaffey descobriu que os Kongo (Zaire,
República Popular do Congo) possuem um sistema estereotipado simples de
quatro status ideais feiticeiro, adivinho, chefe, profeta que são complementares.
É fácil descobrir um valor geral positivo ou negativo: a apreciação da generosidade,
a rejeição da inveja como sinal de feitiçaria, ou o papel do destino são todos
valores imediatamente observáveis nas tradições do golfo de Benin e da região
interlacustre. Mas os valores são descobertos um por um e não como sistema
coerente que compreende todas as representações coletivas, pois valores e
ideais descrevem somente as normas para um comportamento ideal ou por
vezes cinicamente realista, que devem guiar o comportamento real e os papéis
esperados de cada um. Os papéis estão relacionados às posições sociais, e estas
às instituições, e o conjunto constitui a sociedade. Teoricamente, portanto, é
preciso desmontar” uma sociedade para encontrar seus modelos de ação, seus
ideais e valores. Em geral, o historiador faz isso inconscientemente e de modo
superficial. Evita as armadilhas evidentes, mas involuntariamente tende a adotar
as premissas impostas pelo sistema como um todo. o consegue separar suas
fontes do meio que as envolve. Falamos por experiência própria, após ter passado
dezoito anos tentando detectar relações desse tipo na distorção das tradições de
origem kuba (Zaire).
Entre as representações coletivas que mais influenciam a tradição, notaremos
sobretudo uma série de categorias de base que precedem a experiência dos
sentidos. São as do tempo, do espaço, da verdade histórica, da causalidade.
outras de menor importância como, por exemplo, a divisão do espectro em cores.
Todo povo divide o tempo em unidades, baseando -se em atividades humanas
ligadas à ecologia ou em atividades sociais periódicas (tempo estrutural). As
duas formas de tempo são utilizadas em toda parte. O dia é separado da noite; é
dividido em partes que correspondem ao trabalho ou refeições, e as atividades são
relacionadas com a altura do sol, a voz de certos animais (para dividir as horas da
noite), etc. Os meses (lunares), as estações e o ano são geralmente definidos pelo
154
Metodologia e pré -história da África
ambiente e as atividades que dele dependem, mas, além disso, deve -se contá -los
em unidades de tempo estrutural. Mesmo nesse caso, a semana é determinada
por um ritmo social, como, por exemplo, a periodicidade dos mercados, que
também é associada, em muitos casos, a uma periodicidade religiosa.
Períodos mais longos que o ano são contados pela iniciação a um culto,
a um grupo de idade, por reinos ou gerações. A história das famílias pode
ser estabelecida com base nos nascimentos, que constituem um calendário
biológico. Fazem -se referências a acontecimentos excepcionais, como grandes
fomes, grandes deflagrações de doença animal, ou epidemias, cometas, pragas de
gafanhotos, mas esse calendário de catástrofes é forçosamente vago e irregular.
À primeira vista, esse tipo de computação parece ser de pouca utilidade para
a cronologia, enquanto os acontecimentos recorrentes parecem possibilitar a
conversão da cronologia relativa em cronologia absoluta, uma vez conhecida
a frequência das genealogias, grupos de idade, reinos, etc. Voltaremos a esse
assunto posteriormente.
A profundidade temporal máxima alcançada pela memória social depende
diretamente da instituição que está ligada à tradição. Cada instituição tem
sua própria profundidade temporal. A história da família não remonta à um
passado muito distante porque esta conta apenas três gerações, e porque, de
modo geral, pouco interesse em lembrar acontecimentos anteriores. Portanto,
as instituições que englobam maior número de pessoas se prestam melhor a nos
fazer mergulhar mais fundo no tempo. Isso se verifica para o clã, a linhagem
máxima de descendência, o grupo de idade do tipo massai e a realeza. Na savana
sudanesa, as tradições dos reinos e impérios de Tecrur, Gana e Mali, retomadas
por autores árabes e sudaneses, remontam ao século XI. Às vezes, entretanto,
todas as instituições são limitadas pela mesma concepção da profundidade do
tempo como, por exemplo, entre os Bateke (República Popular do Congo), onde
tudo é remetido à geração do pai ou do avô. Tudo, inclusive a história da família
real, é dividido entre par e ímpar, o ímpar pertencendo ao tempo dos pais”, e
o par, ao dos “avós”.
Esse exemplo mostra que a noção da forma do tempo é muito importante. Na
região interlacustre, casos em que o tempo é visto como um ciclo. Mas, como
os ciclos se sucedem, o conceito vai dar numa espiral. Numa outra perspectiva,
para as mesmas sociedades, distinguem -se eras, principalmente a era do caos e
a era histórica. Para outras, como entre os Bateke, o tempo não é linear: oscila
entre gerações alternadas. As consequências sobre o modo como se apresentam
as tradições são evidentes.
155
A tradição oral e sua metodologia
não é tão óbvio que a noção de espaço seja de interesse nesse contexto. Mas
há uma tendência geral a situar a origem de um povo num lugar ou direção de
prestígio: direção “sagrada” ou “profana de acordo com o pensamento de que o
homem evolui do sagrado para o profano ou vice -versa. Cada povo impôs um
sistema de direções à sua geografia. São geralmente os rios que dão o eixo das
direções cardinais. A maioria das sociedades então fixa a direção de suas aldeias,
às vezes de seus campos (Kukuya, República Popular do Congo), segundo
esse sistema de eixos, que utilizam também para orientar seus mulos. As
consequências são às vezes inesperadas. Um espaço ordenado segundo um único
eixo que faz parte do relevo muda com a disposição relativa dos elementos do
relevo. Aqui, a jusante é a oeste, ali, a norte; aqui, ir em direção ao cume é ir para
leste, ali, para oeste. Não só observamos que as migrações podem vir de direções
privilegiadas, como é o caso dos Kuba (Zaire) ou dos Kaguru (Tanzânia), e que
a narrativa correspondente é mais uma cosmologia que uma história, como
também chegamos a encontrar variações nos pontos de origem dependendo
dos acidentes do relevo geográfico. Somente as sociedades que se baseiam nos
movimentos do sol para determinar o eixo do espaço podem dar informação
exata a respeito dos movimentos migratórios gerais; esses povos infelizmente
são uma minoria, exceto talvez na África ocidental, onde a maioria refere -se ao
leste como seu lugar de origem.
A noção de causa está impcita em toda tradão oral. Geralmente, é
apresentada na forma de causa imediata e separada para cada fenômeno. Cada
coisa tem uma origem, que se situa diretamente no início dos tempos. Pode -se
compreender melhor o que é a causalidade examinando -se as causas atribuídas ao
mal. Muito frequentemente elas têm relação direta com a feitiçaria, os ancestrais,
etc., e a relação é imediata. Resulta desse tipo de causalidade que a mudança é
percebida sobretudo em alguns campos claramente definidos, como a guerra,
sucessão real, etc., em que os estereótipos intervêm. Para terminar, salientamos
que esse esboço da noção de causa é muito sumário e deve ser complementado
por noções de causa mais complexas mas paralelas a estas e que afetam somente
instituições sociais menores.
Quanto à verdade histórica, está sempre estreitamente ligada à fidelidade do
registro oral transmitido. Assim, ela pode ser ou o consenso dos governantes
(Idoma, Nigéria), ou a constatação de que a tradição está em conformidade com
o que disse a geração anterior.
As categorias cognitivas combinam -se e unem -se a expressões simbólicas
de valor, para produzir um registro que os antropólogos qualificam de mito”.
As tradições mais sujeitas a uma reestruturação mítica são as que descrevem
156
Metodologia e pré -história da África
a origem e, consequentemente, a essência, a razão de ser de um povo. Assim,
um grande número de complexas narrativas kuba, que tratam da origem desse
povo e descrevem migrações em canoas, pôde finalmente ser explicado com a
descoberta de um conceito latente de migração: para o povo Kuba, a migração
se faz em canoas, da jusante (sagrado) para o montante (profano). Da mesma
forma se explicaram nomes de migrações e de regiões de origem apresentados
em termos de cosmogonia. Na narrativa kuba a correlação não estava clara, mas
em muitos outros grupos étnicos, aparece explicitamente. É assim que muitos
etnólogos, seguindo infelizmente o exemplo de Beidelman, estruturalistas ou
sociólogos funcionalistas terminaram por negar qualquer valor às tradições
narrativas porque, dizem eles, são a expressão das estruturas cognitivas do
mundo, que sustentam todo o pensamento a priori, como categorias imperativas.
O mesmo julgamento deveria então ser aplicado ao texto que você está lendo
ou ao do próprio Beidelman… Obviamente, esses antropólogos exageram. Além
disso, muitas de suas interpretações parecem hipotéticas. O historiador deve
lembrar que, para cada caso particular, é preciso especificar as razões que se
tem para rejeitar ou questionar uma tradição. se pode rejeitar uma tradição
quando a probabilidade de uma criação de significado puramente simbólico é
realmente forte e se possa provar. Pois, em geral, as tradições refletem tanto
um mito”, no sentido antropológico do termo, como informações históricas.
Nessas circunstâncias, os manuais de história são textos de mitologia, que
todo estereótipo que se origina de um sistema de valores e interesses é não
uma mensagem mítica, mas também um código secreto histórico à espera de
decifração.
A cronologia
Sem cronologia, não história, pois não se pode distinguir o que precede do
que sucede. A tradição oral sempre apresenta uma cronologia relativa, expressa
em listas ou em gerações. Em geral, essa cronologia permite situar todo o
conjunto de tradições da região em estudo no quadro da genealogia ou da lista
de reis ou de grupos de idade que abrange a mais ampla área geográfica, mas não
permite estabelecer a sequência relativa aos acontecimentos exteriores àquela
região particular. Grandes movimentos históricos e mesmo certas evoluções
locais passam despercebidos ou restam duvidosos, porque a unidade disponível
para a cronologia é geograficamente muito restrita. A genealogia familiar é
válida apenas para determinada família e para a aldeia ou aldeias que ela habita.
157
A tradição oral e sua metodologia
A cronologia dos Embu (Quênia) , por exemplo, é baseada em grupos de idade
que cobrem apenas uma diminuta área territorial, na qual os jovens são iniciados
ao mesmo tempo. As cronologias relativas devem, portanto, ser associadas e, se
possível, convertidas em cronologias absolutas. Mas antes um outro problema
a ser resolvido: o de se assegurar que as informações utilizadas correspondem a
uma realidade não distorcida pelo tempo.
Torna -se cada vez mais claro que a cronologia oral está sujeita a processos
de distorção concomitantes e que agem em sentidos opostos: às vezes encurtam
e às vezes prolongam a verdadeira duração dos acontecimentos passados.
também uma tendência a regularizar as genealogias, as sucessões e a sequência
de grupos de idade, para conformá -las às normas ideais da sociedade no momento.
Do contrário, os dados forneceriam precedentes para litígios de todo tipo. O
processo homeostático é bastante real. Em certos casos especiais, como em
Ruanda, por exemplo, a tarefa de gerir a tradição recai sobre um complexo
grupo de especialistas, cujas afirmações têm sido corroboradas por escavações
arqueológicas.
Etnólogos mostraram que as sociedades chamadas segmentárias tendem a
eliminar ancestrais inúteis”, isto é, os que não deixaram descendentes que ainda
vivam e constituam um grupo separado. Isso explica por que a profundidade
genealógica de cada grupo numa determinada sociedade tende a permanecer
constante. Somente os ancestrais “úteis” são utilizados para explicar o presente.
Isso leva, por vezes, a uma grande condensação da profundidade genealógica.
Além do mais, acidentes demográficos às vezes reduzem um ramo de descendentes
a um número tão pequeno, em comparação com outros ramos descendentes dos
irmãos e irmãs do fundador do primeiro ramo, que este não pode mais existir
paralelamente aos grandes grupos vizinhos, sendo então absorvido por um deles.
A genealogia será reajustada, e o fundador do grupo pequeno substituído pelo do
grupo maior (que o absorve). A genealogia é, assim, simplificada. A identidade
de um grupo étnico em geral é expressa por um único ancestral colocado na
origem de uma genealogia. É o primeiro homem”, um herói fundador, etc.
Será o pai ou a mãe do primeiro ancestral útil”. Desse modo, a lacuna entre
a origem e a história consciente fica escamoteada. A operação de todo esse
processo infelizmente levou, muitas vezes, a uma situação em que é praticamente
impossível remontar, com segurança, a mais do que umas poucas gerações.
Acreditava -se que muitas sociedades africanas, e especialmente as monarquias,
tivessem escapado a esse processo. o havia razão para que a lista de sucessão dos
reis estivesse incorreta, que sua genealogia fosse duvidosa, exceto que, algumas
vezes, era falsificada quando uma dinastia substituía outra e se apoderava da
158
Metodologia e pré -história da África
genealogia da precedente a fim de se legitimar. O número de reis e gerações
continuava aparentemente correto. Estudos recentes, mais detalhados, mostram
que essa posição não se justifica inteiramente. Os processos de condensação,
alongamento e regularização podem afetar as tradições dinásticas tanto quanto
as outras. Em listas de reis, por exemplo, os nomes de usurpadores, isto é, dos que
são considerados usurpadores naquele momento, ou em qualquer época após seu
reinado, são às vezes omitidos, assim como os de muitos reis que não passaram
por todas as cerimônias de iniciação que, em geral, são muito longas. O reinado
de um rei que abdica e em seguida retorna ao poder é às vezes contado como
um único governo. Tudo isso encurta o processo histórico.
Onde a sucessão é patrilinear e primogenitiva, como na região interlacustre,
a tendência à regularização dos fatos resultou num surpreendente número de
sucessões regulares isto é, o filho sucedendo ao pai –, que ultrapassa de muito a
média, e mesmo os recordes observados em outras partes do mundo. Esse processo
de regularização produziu uma genealogia típica, retilínea, desde os mais antigos
tempos até o século XIX aproximadamente, quando se tornou arborescente. O
resultado é o alongamento da dinastia pelo aumento do número de gerações,
uma vez que os colaterais são apresentados como pais e filhos. A confusão
entre homônimos e entre nome de reino ou título e nome pessoal, assim como
outros detalhes desse tipo, pode estender ou encurtar a lista. Como, durante os
tempos coloniais, especialmente em regiões sob administração indireta, era forte
a pressão para alongar as dinastias (pois as sociedades europeias – como muitas
africanas têm um grande respeito pela antiguidade), empregaram -se todos
os meios possíveis. mesmo ambíguos, com aquela finalidade. Todos os nomes
foram, então, utilizados; ciclos de nomes reais foram desdobrados, se necessário,
ou agrupados; podaram -se os ramos colaterais a fim de alongar -se o tronco.
Por último, e sempre no caso dos reinos, encontram -se comumente lacunas
entre o herói fundador, que pertence à cosmogonia, e o primeiro rei histórico
“útil”. Somente uma investigação muito cuidadosa pode determinar se nesses
casos particulares os processos descritos realmente ocorreram. A esse respeito,
a presença de irregularidades na sucessão e nas genealogias é a melhor garantia
de autenticidade, pois denota uma resistência ao nivelamento homeostático.
Sociedades de classes de idade ainda não foram submetidas a esse tipo de
exame sistemático. Alguns casos mostram que os processos de regularização
intervêm para organizar os ciclos ou para reduzir a confusão produzida pelos
homônimos. Mas os diferentes tipos de sucessão de classes de idade ainda têm
que ser estudados. Não podemos generalizar, exceto para dizer que o problema
159
A tradição oral e sua metodologia
suscitado é análogo ao das genealogias, porque também aqui a gerão é a
unidade.
Um estudo estatístico completo, que forneceu grande parte das informações
acima mencionadas, constatou que a duração média de uma geração dinástica
es entre 26 e 32 anos. A amostra era principalmente patrilinear, mas as
dinastias matrilineares não se agrupam, por exemplo, no segmento inferior da
distribuição estatística, e a informação, portanto, seria válida para elas também.
A duração média dos reinados varia tanto com o sistema de sucessão que
nenhuma informação genérica de valor pode ser fornecida. Mesmo no caso de
tipos idênticos de sucessão, são encontradas divergências consideráveis entre
diferentes dinastias.
Com base nas informações acima expostas, pode -se converter uma cronologia
relativa de gerações em cronologia absoluta, a menos que a distorção genealógica
seja tal que torne o exercício inútil. Primeiramente, calcula -se a média entre
a primeira referência cronológica absoluta fornecida por uma data escrita e
o presente e projeta -se essa média no passado caso ela se situe entre 26 e 32
anos. No entanto, médias são apenas médias. Sua probabilidade aumenta com
o número de gerações envolvidas, e o cálculo só fornece datas razoáveis para os
inícios de sequências ou, quando muito, uma vez por século. Qualquer precisão
maior cria um erro. De todo modo, datas absolutas calculadas dessa maneira
devem ser precedidas por uma sigla para indicar o fato. Assim, T 1635 para
a fundação do Reino Kuba indicaria que a data foi calculada com base em
genealogias e listas de reis.
O mesmo procedimento pode ser aplicado para determinar a duração média
de um reinado. Mostrou -se por que essa média é menos válida que a média das
gerações. Uma das razões é que, ao se projetar a média no passado, pressupõe-
-se que não houve mudança nos sistemas de sucessão. Ora, estes podem ter
mudado ao longo dos anos. Certamente sofreram mudanças desde a fundação
da dinastia, porque fundar é inovar, e as sucessões sem dúvida levaram algum
tempo para se normalizarem. Além disso, devemos considerar as mudanças que
podem ter ocorrido na esperança de vida. Já que a margem de erro é maior, será
particularmente útil dispor de datas absolutas, determinadas por documentos
escritos ou por outros meios que remontem a um passado longínquo.
Todavia, continuando no campo da cronologia relativa, é possível tentar
coordenar diferentes sequências vizinhas, separadas e relacionadas, pelo estudo
dos sincronismos. Uma batalha entre dois reis citados fornece um sincronismo.
Torna possível harmonizar as duas cronologias relativas em questão, e combiná-
-las em uma. Demonstrou -se empiricamente que sincronismos entre mais
160
Metodologia e pré -história da África
de três unidades isoladas não mais são válidos. Pode -se mostrar que A e B
viveram na mesma época, ou que A e C viveram na mesma época, porque ambos
conheceram B. Portanto, A = B = C, mas não podemos ir além disso. O fato dos
encontros de A e C com B poderem ter ocorrido em qualquer época durante
a vida ativa de B explica por que A = C é o limite. Estudos sobre a cronologia
do antigo Oriente Médio provaram empiricamente esse ponto. No entanto,
utilizando prudentemente os sincronismos, podemos reconstruir campos únicos
razoavelmente grandes com uma cronologia relativa comum.
Após o exame dos dados genealógicos, pode -se obter uma data absoluta se
a tradição mencionar um eclipse do sol. Se mais de uma data possível para
o eclipse, deve -se mostrar qual é a mais provável. Podemos proceder do mesmo
modo com outros fenômenos astronômicos ou climáticos extraordinários que
tenham causado catástrofes. A certeza é menor nesse caso do que no dos eclipses
solares, porque há, por exemplo, mais fomes na África oriental que eclipses do
sol. Com exceção dos eclipses solares, outras informações desse tipo são úteis
principalmente para os últimos dois séculos, ainda que poucos povos tenham
preservado a memória de eclipses muito mais antigos.
Avaliação das tradições orais
Uma vez submetidas a minuciosa crítica, literária e sociológica, podemos
atribuir às fontes um grau de probabilidade. Essa apreciação não pode ser
quantificada, mas não é, por isso, menos real. A veracidade de uma tradição será
mais facilmente constatada se a informação que contém puder ser comparada com
a informação fornecida por outras tradições independentes ou por outras fontes.
Duas fontes independentes concordantes transformam uma probabilidade em
algo mais próximo da certeza. Mas deve -se comprovar a independência das
fontes. Infelizmente, contudo, tem -se constatado uma tendência muito grande
em acreditar na pureza e estanquidade inequívocas da transmissão de um grupo
étnico para outro. Na prática, caravanas de comerciantes, como as dos Imbangala
de Angola, ou talvez as dos Diula e dos Haussa, podem ter levado consigo
fragmentos de história, que foram incorporados à história local por encontrar
terreno apropriado. No início do período colonial estabeleceram -se vínculos
entre representantes de diferentes grupos, que trocaram informações a respeito
de suas tradições. Esse é notadamente o caso nas regiões sob administração
indireta, onde interesses de ordem prática encorajavam especialmente os reinos a
produzirem suas histórias. Além disso, todas essas histórias foram influenciadas
161
A tradição oral e sua metodologia
pelos primeiros modelos escritos por africanos, como o livro de Johnson sobre
o Reino Oyo (Nigéria) ou o de Kaggwa (Uganda) para Buganda. Deu -se uma
contaminação geral de todas as histórias tardiamente colocadas em forma
escrita no país Ioruba e na região interlacustre de fala inglesa, com tentativas
de sincronização visando forçar as listas dinásticas a se igualarem, em extensão,
às dos modelos. Esses dois exemplos mostram o quanto se deve ser prudente
ao afirmar que as tradições são realmente independentes. Deve -se pesquisar os
arquivos, estudar os contatos pré -coloniais e ponderar tudo cuidadosamente,
antes de se fazer qualquer julgamento.
A comparão com dados escritos ou arqueológicos pode fornecer a
confirmação de independência desejada. Mas, ainda neste caso, é preciso
que a indepenncia seja comprovada. O fato de autóctones atribrem
tradicionalmente um sítio visível aos primeiros habitantes do país, devido à
presença no local de traços de ocupação humana muito diferentes dos deixados
pelos habitantes atuais, não significa que se possa automaticamente fazer a
mesma atribuição. As fontes não são independentes pois o sítio é atribuído a
essas populações por um processo lógico e apriorístico! É um caso de iconatrofia.
Essa constatação dá origem a interessantes especulações, especialmente no que
diz respeito aos chamados vestígios de Tellem do país Dogon (Mali) assim como
aos sítios Sirikwa (Quênia), para citar somente dois exemplos bem conhecidos.
Contudo, os casos famosos dos sítios de Kumbi Saleh (Mauritânia) e do lago
Kisale (Zaire) mostram que a arqueologia pode, às vezes, fornecer provas
surpreendentes da validade de uma tradição oral.
Geralmente, estabelecer uma concordância entre fonte oral e escrita fica
difícil porque tratam de coisas diferentes. Um estrangeiro que escreve sobre
um país habitualmente se restringe a fatos econômicos e políticos, muitas vezes
ainda mal compreendidos. A fonte oral voltada para o interior menciona os
estrangeiros apenas de passagem; quando o faz. Assim sendo, em muitos casos as
duas fontes não têm nada em comum, ainda que se refiram ao mesmo período.
Casos de concordância, cronológica principalmente, são encontrados em locais
onde os estrangeiros se estabeleceram por tempo suficientemente longo para se
interessarem pela política local e entendê -la. Tem -se um exemplo disso no vale
do Senegal a partir do século XVIII.
Em caso de contradição entre fontes orais, deve -se escolher a mais provável.
A prática, muito difundida, de tentar encontrar um acordo não faz sentido.
Uma contradição flagrante entre uma fonte oral e uma fonte arqueológica se
resolve em favor da última, se esta for um dado imediato, isto é, se a fonte
for um objeto e não uma inferência, pois neste caso a probabilidade da fonte
162
Metodologia e pré -história da África
oral pode ser maior. Um conflito entre uma fonte escrita e uma oral se resolve
exatamente como se se tratasse de duas fontes orais. Devemos ter em mente
que a informação quantitativa escrita, de modo geral, é mais digna de confiança,
mas que a informação oral relativa aos motivos é geralmente mais precisa que
a das fontes escritas. Por fim, cabe ao historiador tentar estabelecer o que é
mais provável. Num caso extremo, se dispomos de apenas uma fonte oral, cujas
prováveis deformações pudemos demonstrar, devemos interpretá -la tendo em
conta as deformações e utilizá -la.
Enfim, acontece frequentemente de o historiador não se sentir satisfeito com
as informações orais de que dispõe. Pode registrar o seu descrédito em relação à
validade das informações, mas, na falta de algo melhor, é obrigado a utilizá -las,
enquanto outras fontes não forem descobertas.
Coletânea e publicação
Conclui -se de tudo que foi dito acima que todos os elementos que permitam
aplicar a crítica histórica às tradições devem ser reunidos em campo. Isso
implica num bom conhecimento da cultura, sociedade e língua ou nguas
envolvidas. O historiador pode adquirir esse conhecimento ou solicitar a ajuda
de especialistas. Mas, mesmo nesse caso, ele deve realmente absorver todas
as informações oferecidas pelo etnólogo, pelo linguista e pelo tradutor que o
estão ajudando. Por último, é preciso adotar uma atitude sistemática diante
das fontes, das quais devem ser recolhidas todas as variantes. Tudo isso implica
numa longa permanência em campo, que se tanto mais demorada quanto
menor for a familiaridade do historiador com a cultura em questão. Devemos
destacar que o conhecimento instintivo de alguém que estuda a história de
sua própria sociedade não é suficiente. A reflexão sociológica é indispensável.
O historiador deve redescobrir sua própria cultura. A experiência linguística
mostrou que, às vezes, mesmo sendo um nativo do país, o historiador o
compreende facilmente certos registros, como os poemas panegíricos, ou
encontra dificuldade porque as pessoas falam um dialeto diferente do seu.
Além do mais, é aconselhável que ao menos parte das transcrões feitas em
seu dialeto materno seja examinada por um linguista, para se assegurar que a
transcrão comporta todos os sinais necessários à compreensão da narrativa,
incluindo -se aí, por exemplo, os tons.
A coleta das tradições requer, portanto, muito tempo, paciência e reflexão.
Depois de um período inicial de experiência, é preciso estabelecer um plano
163
A tradição oral e sua metodologia
racional de trabalho, que leve em consideração as características particulares de
cada caso. De qualquer forma, devemos visitar os sítios associados aos processos
históricos em estudo. Às vezes, será necessário utilizar uma amostragem de fontes
populares, mas uma amostra não pode ser utilizada casualmente. Devemos estudar,
numa área restrita, quais as regras que determinam o nascimento de variantes
e estabelecer, a partir delas, os princípios da amostragem a serem adotados.
Coletar uma vasta quantidade de material de forma indiscriminada não pode
produzir o mesmo resultado, ainda que se possa trabalhar mais rapidamente. O
pesquisador deve ter cuidado ao estudar a transmissão. É cada vez mais comum
encontrar informantes que adquiriram seu conhecimento a partir de trabalhos
publicados sobre a história da região: livros escolares, jornais ou publicações
científicas; assim como podem -lo adquirido em conferências transmitidas
pelo rádio ou pela televisão. O problema acentuar -se -á, inevitavelmente, com a
ampliação da pesquisa.
Hoje em dia percebe -se que existe uma contaminação mais sutil. Alguns
manuscritos, às vezes muito velhos, e especialmente relatórios dos primeiros
tempos da administração colonial foram tomados pela tradição como verdades
“ancestrais. Fontes arquivísticas devem, portanto, ser cuidadosamente
examinadas, assim como a possível influência de trabalhos científicos, livros
escolares, transmissões de rádio, etc. Pois, se o fato é verificado em campo, pode-
-se frequentemente corrigir esses dados insidiosos buscando -se outras versões e
explicando -se aos informantes que o livro ou o rádio não estão necessáriamente
certos no que diz respeito àquele assunto. Mas, uma vez longe do campo, será
tarde demais.
É preciso estruturar a pesquisa de acordo com uma tida tomada de
consciência histórica. Não é possível recolher “todas as tradições”; tentar fazê -lo
nos levaria a uma massa confusa de informações. É necessário primeiramente
saber quais os problemas históricos que se quer estudar e então procurar as
fontes correspondentes. Ao eleger um objeto de estudo, o pesquisador deve,
evidentemente, ter interiorizado a cultura em questão. Ele pode, então, como
acontece frequentemente, voltar seu interesse para a história política. Mas pode
também optar por questões da história social, econômica, religiosa, cultural ou
artística, etc. Para cada caso, a estratégia utilizada na coleta da tradição será
diferente. A maior deficiência das pesquisas que se fazem atualmente é a falta
de consciência histórica. uma forte tendência em se deixar guiar pelo que
se encontra.
Falta de paciência é outro perigo. Reputa -se, por vezes, necessário dar conta
o mais depressa possível de uma grande parte do trabalho. Nessas circunstâncias,
164
Metodologia e pré -história da África
as fontes coletadas são difíceis de se avaliar; apresentam -se discrepantes e
incompletas; faltam variantes; há pouca informação sobre a transformação
de uma fonte, sua representação, sua transmiso. O trabalho é malfeito.
Uma consequência particularmente nefasta é a impressão criada entre outros
pesquisadores de que essa área foi estudada, o que diminui a probabilidade de
se fazer uma pesquisa melhor no futuro. Não se deve esquecer que as tradições
orais desaparecem, embora felizmente com menos rapidez do que se costuma
pensar. A urgência da tarefa não é razão para atamancá -la. Pode -se replicar,
como tem ocorrido, que o que advogamos aqui é utopia, perfeccionismo, coisa
impossível. Contudo, é o único modo de se fazer um bom trabalho com os meios
disponíveis num determinado lapso de tempo. Não atalhos. Se acreditamos
que, em alguns casos, todo esse trabalho produz somente uma safra muito pobre
para a história, não percebemos que contribui para enriquecer, ao mesmo tempo,
o conhecimento geral da língua, da literatura, do pensamento coletivo e das
estruturas sociais da civilização estudada.
A menos que seja publicado, o trabalho não estará completo, por o
se encontrar disponível para a comunidade dos estudiosos. Deve -se ter em
vista pelo menos uma classificão das fontes investigadas, com introdução,
notas e índice, que constitua um arquivo aberto a todos. Muitas vezes, o
trabalho é combinado com a publicação de um estudo baseado, em parte
ou completamente, nesse corpus. Nenhum editor publicaria todo o material,
variantes inclusive, e a interpretação dos dados. Além disso, uma síntese não
comporta uma vasta massa de documentos em bruto. Assim, cada trabalho
deverá explicar como as tradições foram coletadas e fornecer uma breve lista
de fontes e informantes, que possibilitará ao leitor formar uma opinião sobre a
qualidade da coleta e compreender por que o autor escolheu uma determinada
fonte em vez de outra. Pela mesma razão, cada fonte oral deve ser citada
separadamente no trabalho. O trabalho que dizA tradição conta que… faz
uma generalizão perigosa.
Resta um tipo especializado de publicação: as edições de textos. Neste caso,
seguimos as mesmas normas utilizadas na publicação de manuscritos. Na prática,
isso geralmente conduz a uma colaboração entre vários especialistas. Nem todo
pesquisador é, ao mesmo tempo, historiador, linguista e etnólogo. De fato, as
melhores edições de textos disponíveis até agora são quase todas trabalhos
interdisciplinares de colaboradores, dos quais ao menos um é linguista. A edição
de textos é uma tarefa árdua e ingrata, o que explica por que tão poucos
publicados. Entretanto, seu número vem aumentando, graças à colaboração de
especialistas em literatura oral africana.
165
A tradição oral e sua metodologia
Conclusão
Atualmente a coleta de tradições orais está se processando em todos os países
africanos. A massa de dados recolhidos refere -se principalmente ao século XIX e
é somente uma das fontes para a reconstrução histórica, sendo a outra principal
fonte para esse período os documentos históricos. cinco ou seis trabalhos,
a cada ano, apresentando estudos baseados quase inteiramente em tradições.
Tipologicamente, eles tratam, sobretudo, da história política e da história dos
reinos, e, no que diz respeito à geografia, estão concentrados principalmente na
África oriental, central e equatorial, onde as tradições, frequentemente, são as
únicas fontes. As cronologias remontam raramente além de 1700; se anteriores
a essa data, tornam -se duvidosas. Entretanto, o conhecimento cada vez mais
aprofundado da natureza das tradições permite avaliar melhor as que foram
recolhidas em épocas anteriores. Assim, a exploração das tradições registradas
por Cavazzi no século XVII se tornou possível após o estudo em campo
realizado em 1970!
Além das tradições recentes, existe um vasto corpo de informações literárias,
como as narrativas épicas, e de dados cosmogônicos, que podem ocultar
informações históricas às vezes relativas a épocas bastante remotas. A epopeia
de Sundiata é um exemplo. A tradição, por si mesma, não permite estabelecer
datas. Por exemplo, a memória deformada relativa a certos sítios históricos na
região interlacustre conservou uma lembrança que data dos primeiros séculos, ou
mesmo de antes da Era Cristã. Mas a fonte oral nada diz quanto à data. Somente
a arqueologia foi capaz de solucionar o problema. Assim também as tradições
de Cavazzi, às quais acabamos de nos referir, parecem conter um sedimento
histórico que é do maior interesse para o passado dos povos de Angola.
referências sucintas a dinastias que se sucederam, a formas de governo que se
seguiram; em resumo, sumarizam, para a região do Alto Cuango, mudanças
socio políticas que podem datar de vários séculos ou até de um milênio antes de
1500. Mas não nenhuma data como ponto de referência para essa perspectiva.
Existe uma última armadilha a ser notada. Muito frequentemente a coleta
de tradições ainda parece superficial, e sua interpretação muito literal, muito
colada à cultura em questão. Esse fenômeno vem reforçar a imagem de uma
África cuja história consiste apenas em origens e migrações, o que, sabemos, não
é verdade. Mas devemos admitir que essa é a imagem refletida pelas tradições
que procuram estabelecer uma “identidade”. A superficialidade da interpretação
e a coleta pouco sistemática de material, além do mais, dão margem à maioria
166
Metodologia e pré -história da África
das críticas dirigidas contra a utilização das tradições orais, especialmente entre
os etnólogos.
A experiência ptica provou que o valor maior das tradições reside em
sua explicação das mudanças históricas no interior de uma civilização. Isso é
tão verdadeiro que, como se pode comprovar em quase toda a parte, apesar da
abundância de fontes escritas relativas ao período colonial, temos de recorrer
constantemente aos testemunhos oculares ou à tradição para completá -las, a
fim de tornar inteligível a evolução do povo. Mas constatamos também que as
tradições são geralmente enganadoras no que diz respeito à cronologia, e aos
dados quantitativos. Além disso, qualquer mudança inconsciente, porque lenta
demais uma mutação associada a uma ideologia religiosa, por exemplo escapa
à memória da sociedade. Podemos encontrar apenas indicações fragmentárias de
mudanças nos registros que não tratam explicitamente da história e, ainda assim,
através de um complicado exercício de interpretação. Isso mostra que a tradição
oral não é uma panaceia para todos os males. Mas na prática, ela se revela uma
fonte de primeira ordem para os últimos séculos. Para um período anterior, seu
papel se reduz, tornando -se mais uma ciência auxiliar da arqueologia. Em relação
às fontes linguísticas e etnográficas, ainda não foi suficientemente explorada,
embora em princípio esses três tipos de fontes devessem, em conjunto, trazer
importante contribuição ao nosso conhecimento da África antiga, assim como
faz a arqueologia.
As tradições têm comprovado seu valor insubstituível.o é mais necessário
convencer os estudiosos de que as tradições podem ser fontes úteis de informação.
Todo historiador está ciente disso. O que devemos fazer agora é melhorar nossas
técnicas de modo a extrair das fontes toda a sua riqueza potencial. Essa é a tarefa
que nos espera.
C A P Í T U L O 8
167
A tradição viva
A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não
o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo
que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos
transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente”.
Tierno Bokar
1
Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo -nos à
tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos
africanos terá validade a menos que se apóie nessa herança de conhecimentos
de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a
discípulo, ao longo dos séculos. Essa herança ainda não se perdeu e reside na
memória da última geração de grandes depositários, de quem se pode dizer são
a memória viva da África.
Entre as nações modernas, onde a escrita tem precedência sobre a oralidade,
onde o livro constitui o principal veículo da herança cultural, durante muito
tempo julgou -se que povos sem escrita eram povos sem cultura. Felizmente,
esse conceito infundado começou a desmoronar após as duas últimas guerras,
1 Tierno Bokar Salif, falecido em 1940, passou toda a sua vida em Bandiagara (Mali). Grande Mestre da
ordem muçulmana de Tijaniyya, foi igualmente tradicionalista em assuntos africanos. Cf. HAMPA
BÂ, A. e CARDAIRE, M. 1957.
A tradição viva
A. Hampaté
168
Metodologia e pré -história da África
graças ao notável trabalho realizado por alguns dos grandes etnólogos do mundo
inteiro. Hoje, a ação inovadora e corajosa da UNESCO levanta ainda um pouco
mais o véu que cobre os tesouros do conhecimento transmitidos pela tradição
oral, tesouros que pertencem ao patrimônio cultural de toda a humanidade.
Para alguns estudiosos, o problema todo se resume em saber se é possível
conceder à oralidade a mesma confiança que se concede à escrita quando se
trata do testemunho de fatos passados. No meu entender, não é esta a maneira
correta de se colocar o problema. O testemunho, seja escrito ou oral, no fim não
é mais que testemunho humano, e vale o que vale o homem.
Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no
próprio indivíduo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o
cérebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, o escritor ou
o estudioso mantém um diálogo secreto consigo mesmo. Antes de escrever um
relato, o homem recorda os fatos tal como lhe foram narrados ou, no caso de
experiência própria, tal como ele mesmo os narra.
Nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade mais
fidedigno do que o testemunho oral transmitido de gerão a geração. As
crônicas das guerras modernas servem para mostrar que, como se diz (na África),
cada partido ou nação “enxerga o meio -dia da porta de sua casa através do
prisma das paixões, da mentalidade particular, dos interesses ou, ainda; da avidez
em justificar um ponto de vista. Além disso, os próprios documentos escritos
nem sempre se mantiveram livres de falsificações ou alterações, intencionais
ou não, ao passarem sucessivamente pelas mãos dos copistas fenômeno que
originou, entre outras, as controvérsias sobre as “Sagradas Escrituras”.
O que se encontra por detrás do testemunho, portanto, é o próprio valor do
homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmiso da qual ele faz parte,
a fidedignidade das memórias individual e coletiva e o valor atribuído à verdade em
uma determinada sociedade. Em suma: a ligação entre o homem e a palavra.
E, pois, nas sociedades orais que não apenas a função da memória é mais
desenvolvida, mas também a ligação entre o homem e a Palavra é mais forte.
onde não existe a escrita, o homem está ligado à palavra que profere. Está
comprometido por ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo
que ele é. A própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela
palavra. Em compensação, ao mesmo tempo que se difunde, vemos que a escrita
pouca a pouco vai substituindo a palavra falada, tornando -se a única prova e o
único recurso; vemos a assinatura tornar -se o único compromisso reconhecido,
enquanto. o laça sagrado e profundo que unia o homem à palavra desaparece
progressivamente para dar lugar a títulos universitários convencionais.
169
A tradição viva
Nas tradições africanas pela menos nas que conheço e que dizem respeita
a toda a região de savana ao sul do Saara –, a palavra falada se empossava, além
de um valor moral fundamental, de um caráter sagrado vinculado à sua origem
divina e às forças ocultas nela depositadas. Agente mágico por excelência, grande
vetor de “forças etéreas”, não era utilizada sem prudência.
Inúmeros fatores religiosas, mágicos ou sociais concorrem, por conseguinte,
para preservar a fidelidade da transmissão oral. Pareceu -nos indispensável fazer
ao leitor uma breve explanação sobre esses fatores, a fim de melhor situar a
tradição oral africana em seu contexto e esclarecê -la, por assim dizer, a partir
do seu interior.
Se formulássemos a seguinte pergunta a um verdadeiro tradicionalista*
africano: “O que é tradição oral?”, por certo ele se sentiria muito embaraçado.
Talvez respondesse simplesmente, após longo silêncio: “É o conhecimento total”.
O que, pois, abrange a expressão “tradição oral”? Que realidades veicula,
que conhecimentos transmite, que ciências ensina e quem são os transmissores?
Contrariamente ao que alguns possam pensar, a tradição oral africana, com
efeito, não se limita a histórias e lendas, ou mesmo a relatos mitológicos ou
históricos, e os griots estão longe de ser seus únicos guardiães e transmissores
qualificados.
A tradição oral é a grande escala da vida, e dela recupera e relaciona todos
os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que o lhe descortinam o segredo e
desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias
bem definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material o
eso dissociados. Ao passar do esotérico para o exorico, a tradição oral consegue
colocar -se ao alcance dos homens, falar -lhes de acordo com o entendimento humano,
revelar -se de acordo com as aptidões humanas. Ela é ao mesmo tempo religo,
conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação,
uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial.
Fundada na iniciação e na experiência, a tradição oral conduz o homem à
sua totalidade e, em virtude disso, pode -se dizer que contribuiu para criar um
tipo de homem particular, para esculpir a alma africana.
Uma vez que se liga ao comportamento cotidiano da homem e da comunidade,
a “cultura” africana não é, portanto, algo abstrato que possa ser isolado da vida.
Ela envolve uma visão particular do mundo, ou, melhor dizendo, uma presença
particular no mundo um mundo concebido como um Todo onde todas as
coisas se religam e interagem.
A tradição oral baseia -se em uma certa concepção da homem, do seu lugar e
do seu papel no seio do universo. Para situá -la melhor na contexto global, antes
170
Metodologia e pré -história da África
de estudá -la em seus várias aspectos devemos, portanto, retomar ao próprio
mistério da criação do homem e da instauração primordial da Palavra: o mistério
tal como ela o revela e do qual emana.
A origem divina da Palavra
Como não posso discorrer com autenticidade sobre quaisquer tradições que
não tenha vivido ou estudado pessoalmente em particular as relativas aos países
da floresta – tirarei os exemplos em que me apóio das tradições da savana ao sul
da Saara (que antigamente era chamada de Bafur e que constituía as regiões de
savana da antiga África ocidental francesa).
A tradição bambara do Komo
2
ensina que a Palavra, Kuma, é uma força
fundamental que emana do próprio Ser Supremo, Maa Ngala, criador de todas
as coisas. Ela é o instrumento da crião: Aquilo que Maa Ngala diz, é!”,
proclama o chantre do deus Komo.
O mito da criação do universo e do homem, ensinado pelo mestre iniciador do
Komo (que é sempre um ferreiro) aos jovens circuncidados, revela -nos que quando
Maa Ngala sentiu falta de um interlocutor, criou o Primeiro Homem: Maa.
Antigamente a história da gênese costumava ser ensinada durante os 63 dias
de retiro imposto aos circuncidados aos 21 anos de idade; em seguida, passavam
mais 21 anos estudando -a cada vez mais profundamente.
Na orla do bosque sagrado, onde Komo vivia, o primeiro circuncidado
entoava ritmadamente as seguintes palavras:
Maa Ngala! Maa Ngala!
Quem é Maa Ngala?
Onde está Maa Ngala?”
O chantre do Komo respondia:
“Maa Ngala é a Força infinita.
Ninguém pode situá -lo no tempo e no espaço.
Ele é Dombali (Incognoscível)
Dambali (Incriado – Infinito)”.
Então, após a iniciação, começava a narração da gênese primordial:
“Não havia nada, senão um Ser.
2 Uma das grandes escolas de iniciação do Mande (Mali).
171
A tradição viva
Este Ser era um Vazio vivo,
a incubar potencialmente as existências possíveis.
O Tempo infinito era a moradia desse Ser -Um.
O Ser -Um chamou -se de Maa Ngala.
Então ele criou ‘Fan’,
Um Ovo maravilhoso com nove divisões
No qual introduziu os nove estados fundamentais da existência.
Quando o Ovo primordial chocou, dele nasceram vinte seres fabulosos que
constituíram a totalidade do universo, a soma total das forças existentes do
conhecimento possível.
Mas, ai!, nenhuma dessas vinte primeiras criaturas revelou -se apta a tornar -se o
interlocutor (kuma ‑nyon) que Maa Ngala havia desejado para si.
Assim, ele tomou de uma parcela de cada uma dessas vinte criaturas existentes
e misturou -as; então, insuflando na mistura uma centelha de seu próprio hálito
ígneo, criou um novo Ser, o Homem, a quem deu uma parte de seu próprio
nome: Maa. E assim esse novo ser, através de seu nome e da centelha divina nele
introduzida, continha algo do próprio Maa Ngala”.
Síntese de tudo o que existe, receptáculo por excelência da Força suprema e
confluência de todas as forças existentes, Maa, o Homem, recebeu de herança
uma parte do poder criador divino, o dom da Mente e da Palavra.
Maa Ngala ensinou a Maa, seu interlocutor, as leis segundo as quais todos
os elementos do cosmo foram formados e continuam a existir. Ele o intitulou
guardião do Universo e o encarregou de zelar pela conservação da Harmonia
universal. Por isso é penoso ser Maa.
Iniciado por seu criador, mais tarde Maa transmitiu a seus descendentes tudo
o que havia aprendido, e esse foi o início da grande cadeia de transmissão oral
iniciatória da qual a ordem do Komo (como as ordens do Nama, do Kore, etc.,
no Mali) diz -se continuadora.
Tendo Maa Ngala criado seu interlocutor, Maa, falava com ele e, ao mesmo
tempo, dotava -o da capacidade de responder. Teve início o diálogo entre Maa
Ngala, criador de todas as coisas, e Maa, simbiose de todas as coisas.
Como provinham de Maa Ngala para o homem, as palavras eram divinas
porque ainda não haviam entrado em contato com a materialidade. Após o
contato com a corporeidade, perderam um pouco de sua divindade, mas se
carregaram de sacralidade. Assim, sacralizada pela Palavra divina, por sua vez a
corporeidade emitiu vibrações sagradas que estabeleceram a comunicação com
Maa Ngala.
172
Metodologia e pré -história da África
A tradição africana, portanto, concebe a fala como um dom de Deus.
Ela é ao mesmo tempo divina no sentido descendente e sagrada no sentido
ascendente.
A fala humana como poder de criação
Maa Ngala, como se ensina, depositou em Maa as três potencialidades do
poder, do querer e do saber, contidas nos vinte elementos dos quais ele foi
composto. Mas todas essas forças, das quais é herdeiro, permanecem silenciadas
dentro dele. Ficam em estado de repouso até o instante em que a fala venha
colocá -las em movimento. Vivificadas pela Palavra divina, essas forças começam
a vibrar. Numa primeira fase, tornam -se pensamento; numa segunda, som; e,
numa terceira, fala. A fala é, portanto, considerada como a materialização, ou a
exteriorização, das vibrações das forças.
Assinalemos, entretanto, que, neste nível, os termos “falar e “escutar
referem -se a realidades muito mais amplas do que as que normalmente lhes
atribuímos. De fato, diz -se que: “Quando Maa Ngala fala, pode -se ver, ouvir,
cheirar, saborear e tocar a sua fala”. Trata -se de uma percepção total, de um
conhecimento no qual o ser se envolve na totalidade.
Do mesmo modo, sendo a fala a exteriorização das vibrações das forças,
toda manifestação de uma força, seja qual for a forma que assuma, deve ser
considerada como sua fala. É por isso que no universo tudo fala: tudo é fala que
ganhou corpo e forma.
Em fulfulde, a palavra que designa “fala (haala) deriva da raiz verbal hal,
cuja ideia é “dar força” e, por extensão, “materializar”. A tradição peul ensina
que Gueno, o Ser Supremo, conferiu força a Kiikala, o primeiro homem, falando
com ele. “Foi a conversa com Deus que fez Kiikala forte”, dizem os Silatigui (ou
mestres iniciados peul).
Se a fala é força, é porque ela cria uma ligação de vaivém (yaa ‑warta, em
fulfulde) que gera movimento e ritmo, e, portanto, vida e ação. Este movimento
de vaivém é simbolizado pelos s do teceo que sobem e descem, como
veremos adiante ao falarmos sobre os ocios tradicionais. (Com efeito, o
simbolismo do ofício do tecelão baseia -se inteiramente na fala criativa em
ão).
À imagem da fala de Maa Ngala, da qual é um eco, a fala humana coloca
em movimento forças latentes, que são ativadas e suscitadas por ela – como um
homem que se levanta e se volta ao ouvir seu nome.
173
A tradição viva
A fala pode criar a paz, assim como pode destruí -la. É como o fogo. Uma
única palavra imprudente pode desencadear uma guerra, do mesmo modo
que um graveto em chamas pode provocar um grande incêndio. Diz o adágio
malinês: “O que é que coloca uma coisa nas devidas condições (ou seja, a arranja,
a dispõe favoravelmente)? A fala. O que é que estraga uma coisa? A fala. O que
é que mantém uma coisa em seu estado? A fala”.
A tradição, pois, confere a Kuma, a Palavra, não um poder criador, mas
tamm a dupla função de conservar e destruir. Por essa razão a fala, por
excelência, é o grande agente ativo da magia africana.
A fala, agente ativo da magia
Deve -se ter em mente que, de maneira geral, todas as tradições africanas
postulam uma visão religiosa do mundo. O universo visível é concebido e sentido
como o sinal, a concretização ou o envoltório de um universo invisível e vivo,
constituído de forças em perpétuo movimento. No interior dessa vasta unidade
cósmica, tudo se liga, tudo é solidário, e o comportamento do homem em relação
a si mesmo e em relação ao mundo que o cerca (mundo mineral, vegetal, animal
e a sociedade humana) será objeto de uma regulamentação ritual muito precisa
cuja forma pode variar segundo as etnias ou regiões.
A violação das leis sagradas causaria uma perturbação no equilíbrio das forças
que se manifestaria em distúrbios de diversos tipos. Por isso a ação mágica,
ou seja, a manipulação das forças, geralmente almejava restaurar o equilíbrio
perturbado e restabelecer a harmonia, da qual o Homem, como vimos, havia
sido designado guardião por seu Criador.
Na Europa, a palavra magia” é sempre tomada no mau sentido, enquanto
que na África designa unicamente o controle das forças, em si uma coisa neutra
que pode se tornar benéfica ou maléfica conforme a direção que se lhe dê. Como
se diz: Nem a magia nem o destino são maus em si. A utilização que deles
fazemos os torna bons ou maus”.
A magia boa, a dos iniciados e dos mestres do conhecimento”, visa purificar
os homens, os animais e os objetos a fim de repor as forças em ordem. E aqui
é decisiva a força da fala.
Assim como a fala divina de Maa Ngala animou as forças cósmicas que
dormiam, estáticas, em Maa, assim também a fala humana anima, coloca em
movimento e suscita as forças que estão estáticas nas coisas. Mas para que a fala
produza um efeito total, as palavras devem ser entoadas ritmicamente, porque o
174
Metodologia e pré -história da África
movimento precisa de ritmo, estando ele próprio fundamentado no segredo dos
números. A fala deve reproduzir o vaivém que é a essência do ritmo.
Nas canções rituais e nas fórmulas encantarias, a fala é, portanto, a
materialização da cadência. E se é considerada como tendo o poder de agir sobre
os espíritos, é porque sua harmonia cria movimentos, movimentos que geram
forças, forças que agem sobre os espíritos que são, por sua vez, as potências da
ação.
Na tradição africana, a fala, que tira do sagrado o seu poder criador e
operativo, encontra -se em relação direta com a conservação ou com a ruptura
da harmonia no homem e no mundo que o cerca.
Por esse motivo a maior parte das sociedades orais tradicionais considera a
mentira uma verdadeira lepra moral. Na África tradicional, aquele que falta à
palavra mata sua pessoa civil, religiosa e oculta. Ele se separa de si mesmo e da
sociedade. Seria preferível que morresse, tanto para si próprio como para os seus.
O chantre do Komo Dibi de Kulikoro, no Mali, cantou em um de seus
poemas rituais:
A fala é divinamente exata,
convém ser exato para com ela”.
A língua que falsifica a palavra
vicia o sangue daquele que mente.”
O sangue simboliza aqui a foa vital interior, cuja harmonia é perturbada pela
mentira. Aquele que corrompe sua palavra, corrompe a si próprio”, diz o adágio.
Quando alguém pensa uma coisa e diz outra, separa -se de si mesmo. Rompe a
unidade sagrada, reflexo da unidade cósmica, criando desarmonia dentro e ao redor
de si.
Agora podemos compreender melhor em que contexto mágico -religioso e social
se situa o respeito pela palavra nas sociedades de tradição oral, especialmente quando
se trata de transmitir as palavras herdadas de ancestrais ou de pessoas idosas. O que a
África tradicional mais preza é a herança ancestral. O apego religioso ao patrimônio
transmitido exprime -se em frases como:Aprendi com meu Mestre”, Aprendi com
meu pai”,Foi o que suguei no seio de minhae”.
Os tradicionalistas
Os grandes depositários da herança oral são os chamados “tradicionalistas”.
Memória viva da África, eles são suas melhores testemunhas. Quem são esses mestres?
175
A tradição viva
Em bambara, chamam -nos de Doma ou Soma, os “Conhecedores, ou
Donikeba, “fazedores de conhecimento”; em fulani, segundo a região, de
Silatigui, Gando ou Tchiorinke, palavras que possuem o mesmo sentido de
Conhecedor. Podem ser Mestres iniciados (e iniciadores) de um ramo
tradicional específico (iniciões do ferreiro, do tecelão, do caçador, do
pescador, etc.) ou possuir o conhecimento total da tradição em todos os
seus aspectos. Assim, existem Domas que conhecem a ciência dos ferreiros,
dos pastores, dos tecelões, assim como das grandes escolas de iniciação da
savanapor exemplo, no Mali, o Komo, o Kore, o Nama, o Do, o Diarrawara,
o Nya, o Nyaworole, etc.
Mas não nos iludamos: a tradição africana o corta a vida em fatias e
raramente o “Conhecedor é um “especialista”. Na maioria das vezes, é um
“generalizador”. Por exemplo, um mesmo velho conhecerá não apenas a ciência
das plantas (as propriedades boas ou más de cada planta), mas também a “ciência
das terras” (as propriedades agrícolas ou medicinais dos diferentes tipos de solo),
a “ciência das águas”, astronomia, cosmogonia, psicologia, etc. Trata -se de uma
ciência da vida cujos conhecimentos sempre podem favorecer uma utilização
prática. E quando falamos de ciências iniciatórias” ou “ocultas”, termos que
podem confundir o leitor racionalista, trata -se sempre, para a África tradicional,
de uma ciência eminentemente prática que consiste em saber como entrar em
relação apropriada com as forças que sustentam o mundo visível e que podem
ser colocadas a serviço da vida.
Guardião dos segredos da Gênese cósmica e das ciências da vida, o
tradicionalista, geralmente dotado de uma memória prodigiosa, normalmente
também é o arquivista de fatos passados transmitidos pela tradição, ou de fatos
contemporâneos.
Uma história que se quer essencialmente africana deverá necessariamente,
portanto, apoiar -se no testemunho insubstituível de africanos qualificados. “Não
se pode pentear uma pessoa quando ela está ausente”, diz o adágio.
Os grandes Doma, os de conhecimento total, eram conhecidos e venerados, e
as pessoas vinham de longe para recorrer ao seu conhecimento e à sua sabedoria.
Ardo Dembo, que me iniciou nas coisas fulani, era um Doma peul (um
Silatigui). Hoje é falecido. Ali Essa, outro Silatigui peul, ainda vive.
Danfo Sine, que frequentava a casa de meu pai, na minha infância, era um
Doma quase universal. Não somente era um grande Mestre iniciado do Komo,
mas também possuía todos os outros conhecimentos de seu tempo históricos,
iniciatórios ou relativos às ciências da natureza. Era conhecido por todos na
176
Metodologia e pré -história da África
região que se estende de Sikasso a Bamako, isto é, os antigos reinos de Kenedugu
e de Beledugu.
Seu irmão mais jovem, Latif, que havia experimentado as mesmas iniciações,
era também um grande Doma. Além do mais, tinha a vantagem de ler e escrever
árabe e de ter prestado o serviço militar (nas forças francesas) no Chade, o que
lhe permitira coletar grande quantidade de conhecimentos na savana chadiana,
que se revelaram análogos aos ensinados no Mali.
Iwa, pertencente à casta dos griots, é um dos maiores tradicionalistas do
Mande vivos no Mali, assim como Banzoumana, o grande músico cego.
Neste ponto é preciso esclarecer que um griot não é necessariamente um
tradicionalista conhecedor”, mas que pode tornar -se um, se for essa sua vocação.
Não poderá, entretanto, ter acesso à iniciação do Komo, da qual os griots são
excluídos
3
.
De maneira geral, os tradicionalistas foram postos de parte, senão perseguidos,
pelo poder colonial que, naturalmente, procurava extirpar as tradições locais a
fim de implantar suas próprias ideias, pois, como se diz, “Não se semeia nem em
campo plantado nem em terra alqueivada”. Por essa razão, a iniciação geralmente
buscava refúgio na mata e deixava as grandes cidades, chamadas de Tubabudugu,
cidades de brancos” (ou seja, dos colonizadores).
No entanto, nos diversos países da savana africana que formam o antigo
Bafur e, sem dúvida, outras partes também ainda existem “Conhecedores”
que continuam a transmitir a herança sagrada àqueles que aceitam aprender e
ouvir e que se mostram dignos de receber os ensinamentos por sua paciência e
discreção, regras básicas exigidas pelos deuses.
Dentro de 10 ou 15 anos, os últimos grandes Doma, os últimos anciãos
herdeiros dos vários ramos da Tradição provavelmente terão desaparecido.
Se não nos apressarmos em reunir seus testemunhos e ensinamentos, todo o
patrimônio cultural e espiritual de um povo cairá no esquecimento juntamente
com eles, e uma geração jovem sem raízes ficará abandonada à própria sorte.
Autenticidade da transmissão
Mais do que todos os outros homens, os tradicionalistas -doma, grandes
ou pequenos, obrigam -se a respeitar a verdade. Para eles, a mentira o é
3 A respeito dos griots, ver mais adiante.
177
A tradição viva
simplesmente um defeito moral, mas uma interdição ritual cuja violação lhes
impossibilitaria o preenchimento de sua função.
Um mentiroso não poderia ser um iniciador, nem um Mestre da faca”, e
muito menos um Doma. Se, excepcionalmente, acontecesse de um tradicionalista-
‑doma revelar -se um mentiroso, jamais voltaria a receber a confiança de alguém
em qualquer domínio e sua função desapareceria imediatamente.
De modo geral, a tradição africana abomina a mentira. Diz -se: “Cuida -te
para não te separares de ti mesmo. É melhor que o mundo fique separado de ti
do que tu separado de ti mesmo”. Mas a interdição ritual da mentira afeta, de
modo particular, todos os oficiantes” (ou sacrificadores ou mestres da faca, etc.)
4
de todos os graus, a começar pelo pai de família que é o sacrificador ou o oficiante
de sua família, passando pelo ferreiro, pelo tecelão ou pelo artesão tradicional –
sendo a prática de um ofício uma atividade sagrada, como veremos adiante. A
proibição atinge todos os que, tendo de exercer uma responsabilidade mágico-
-religiosa e de realizar os atos rituais, são, de algum modo, os intermediários entre
os mortais comuns e as forças tutelares; no topo estão o oficiante sagrado do país
(por exemplo, o Hogon, entre os Dogon) e, eventualmente, o rei.
Essa interdição ritual existe, de meu conhecimento, em todas as tradições
da savana africana.
A proibição da mentira deve -se ao fato de que se um oficiante mentisse,
estaria corrompendo os atos rituais. Não mais preencheria o conjunto das
condições rituais necessárias à realizão do ato sagrado, sendo a principal
estar ele próprio em harmonia antes de manipular as forças da vida. Não nos
esqueçamos de que todos os sistemas gico -religiosos africanos tendem a
preservar ou restabelecer o equilíbrio das forças, do qual depende a harmonia
do mundo material e espiritual.
Mais do que todos os outros, os Doma sujeitam -se a esta obrigação, pois,
enquanto Mestres iniciados,o os grandes detentores da Palavra, principal agente
ativo da vida humana e dos espíritos. São os herdeiros das palavras sagradas e
encantatórias transmitidas pela cadeia de ancestrais, palavras que podem remontar
às primeiras vibrações sagradas emitidas por Maa, o primeiro homem.
Se o tradicionalista -doma é detentor da Palavra, os demais homens são os
depositários do palavrório…
Citarei o caso de um Mestre da faca dogon, do país de Pignari (departamento
de Bandiagara) que conheci na juventude e que, certa vez, foi forçado a mentir
4 Nem todas as cerimônias rituais incluíam necessariamente o sacrifício de um animal. O “sacrifício podia
consistir em uma oferenda de painço, leite ou algum outro produto natural.
178
Metodologia e pré -história da África
a fim de salvar a vida de uma mulher procurada que ele havia escondido em sua
casa. Após o incidente, renunciou espontaneamente ao cargo, supondo que
não mais preenchia as condições rituais para assumi -lo lidimamente.
Quando se trata de queses religiosas e sagradas, os grandes mestres
tradicionais não temem a opinião desfavorável das massas e, se acaso cometem
um engano, admitem o erro publicamente, sem desculpas calculadas ou evasivas.
Para eles, reconhecer quaisquer faltas que tenham cometido é uma obrigação,
pois significa purificar -se da profanação.
Se o tradicionalista ou “Conhecedor” é tão respeitado na África, é porque ele
se respeita a si próprio. Disciplinado interiormente, uma vez que jamais deve
mentir, é um homem bem equilibrado”, mestre das forças que nele habitam. Ao
seu redor as coisas se ordenam e as perturbações se aquietam.
Independentemente da interdição da mentira, ele pratica a disciplina da
palavra e não a utiliza imprudentemente. Pois se a fala, como vimos, é considerada
uma exteriorização das vibrações de forças interiores, inversamente, a força
interior nasce da interiorização da fala.
A partir dessa óptica, pode -se compreender melhor a importância que a
educação tradicional africana atribui ao autocontrole. Falar pouco é sinal de boa
educação e de nobreza. Muito cedo, o jovem aprende a dominar a manifestação
de suas emoções ou de seu sofrimento, aprende a conter as forças que nele
existem, à semelhança do Maa primordial que continha dentro de si, submissas
e ordenadas, todas as forças do Cosmo.
Dir -se de um “Conhecedor” respeitado ou de um homem que é mestre
de si mesmo: É um Maa!” (ou um Neddo, em fulfulde), quer dizer, um homem
completo.
Não se deve confundir os tradicionalistas -doma, que sabem ensinar enquanto
divertem e se colocam ao alcance da audiência, com os trovadores, contadores
de história e animadores públicos, que em geral pertencem à casta dos Dieli
(griots) ou dos Woloso (“cativos de casa”)
5
. Para estes, a disciplina da verdade não
existe; e, como veremos adiante, a tradição lhes concede o direito de travesti -la
ou de embelezar os fatos, mesmo que grosseiramente, contanto que consigam
divertir ou interessar o público. “O griot, como se diz,pode ter duas línguas”.
Ao contrário, nenhum africano de formação tradicionalista sequer sonharia
em colocar emvida a veracidade da fala de um tradicionalista -doma,
5 Os Woloso (literalmente “os nascidos na casa”), ou “cativos de casa”, eram empregados ou famílias de
empregados ligados há gerações a uma mesma família. A tradição concedia -lhes liberdade total de ação
e expressão bem como consideráveis direitos materiais sobre os bens de seus senhores.
179
A tradição viva
. Músico tukulor
tocando o “ardin (Kayes, Mali, n.
AO -292).
F . Cantor Mvet
(Documentation Française).
180
Metodologia e pré -história da África
especialmente quando se trata da transmissão dos conhecimentos herdados da
cadeia dos ancestrais.
Antes de falar, o Doma, por deferência, dirige -se às almas dos antepassados
para pedir -lhes que venham assisti -lo, a fim de evitar que a língua troque as
palavras ou que ocorra um lapso de memória, que o levaria a alguma omissão.
Danfo Sine, o grande Doma bambara que conheci na infância em Bougouni
e que era o Chantre do Komo, antes de iniciar uma história ou lição costumava
dizer:
“Oh, Alma de meu Mestre Tiemablem Samaké!
Oh, Almas dos velhos ferreiros e dos velhos tecelões,
Primeiros ancestrais iniciadores vindos do Leste!
Oh, Jigi, grande carneiro que por primeiro soprou
Na trombeta do Komo,
Vindo sobre o Jeliba (Níger)!
Acercai -vos e escutai -me.
Em concordância com vossos dizeres
Vou contar aos meus ouvintes
Como as coisas aconteceram,
Desde vós, no passado, até nós, no presente,
Para que as palavras sejam preciosamente guardadas
E fielmente transmitidas
Aos homens de amanhã
Que serão nossos filhos
E os filhos de nossos filhos.
Segurai firme, ó ancestrais, as rédeas de minha língua!
Guiai o brotar das minhas palavras
A fim de que possam seguir e respeitar
Sua ordem natural”.
Em seguida, acrescentava:
“Eu, Danjo Sine, do clã de Samake (elefante), vou contar tal como o aprendi,
na presença de minhas duas testemunhas Makoro e Manifin
6
.
“Os dois como eu conhecem a trama
7
. Eles serão a um tempo meus fiscais
e meu apoio.”
6 Makoro e Manin eram seus dois condiscípulos.
7 Uma narrativa tradicional possui sempre uma trama ou base imutável que não deve jamais ser modicada,
mas a partir da qual pode -se acrescentar desenvolvimentos ou embelezamentos, segundo a inspiração ou
a atenção dos ouvintes.
181
A tradição viva
Se o contador de histórias cometesse um erro ou esquecesse algo, sua
testemunha o interromperia: “Homem! Presta atenção quando abres a boca!”
Ao que ele responderia: “Desculpe, foi minha língua fogosa que me traiu”.
Um tradicionalista -doma que não é ferreiro de nascença, mas que conhece as
ciências relacionadas à forja, por exemplo, dirá, antes de falar sobre ela: “Devo
isto a fulano, que deve a beltrano, etc.”. Ele renderá homenagem ao ancestral
dos ferreiros, curvando -se em sinal de devoção, com a ponta do cotovelo direito
apoiada no chão e o antebraço erguido.
O Doma também pode citar seu mestre e dizer: “Rendo homenagem a todos
os intermediários até Nunfayri…”
8
, sem ser obrigado a citar todos os nomes.
Existe sempre referência à cadeia da qual o próprio Doma é apenas um elo.
Em todos os ramos do conhecimento tradicional, a cadeia de transmissão se
reveste de uma importância primordial. Não existindo transmissão regular, não
existe magia”, mas somente conversa ou histórias. A fala é, então, inoperante.
A palavra transmitida pela cadeia deve veicular, depois da transmissão original,
uma força que a torna operante e sacramental.
Esta noção de “respeito pela cadeia” ou de “respeito pela transmissão”
determina, em geral, no africano não aculturado a tendência a relatar uma
história reproduzindo a mesma forma em que a ouviu, ajudado pela memória
prodigiosa dos iletrados. Se alguém o contradiz, ele simplesmente responderá:
“Fulano me ensinou assim!”, sempre citando a fonte.
Além do valor moral próprio dos tradicionalistas -doma e de sua adesão a uma
cadeia de transmissão”, uma garantia suplementar de autenticidade é fornecida
pelo controle permanente de seus pares ou dos anciãos que os rodeiam, que velam
zelosamente pela autenticidade daquilo que transmitem e que os corrigem no
menor erro, como vimos no caso de Danfo Sine.
No curso de suas excursões rituais pelo mato, o chantre do Komo pode
acrescentar as próprias meditações ou inspirações às palavras tradicionais que
herdou da cadeia” e que canta para seus companheiros. Suas palavras, novos
elos, vêm, então, enriquecer as palavras dos predecessores. Mas ele previne:
“Isto é o que estou acrescentando, isto é o que estou dizendo. Não sou infalível,
posso estar errado. Se estou, não se esqueçam de que, como vocês, vivo de um
punhado de painço, de uns goles de água e de alguns sopros de ar. O homem
não é infalível!”.
8 Ancestral dos ferreiros.
182
Metodologia e pré -história da África
Os iniciados e os neófitos que o acompanham aprendem essas novas palavras,
de modo que todos os cantos do Komo são conhecidos e conservados na
memória.
O grau de evolução do adepto do Komo não é medido pela quantidade de
palavras aprendidas, mas pela conformidade de sua vida a essas palavras. Se um
homem sabe apenas dez ou quinze palavras do Komo, e, as vive, então ele se
torna um valoroso adepto do Komo dentro da associão. Para ser chantre
do Komo, portanto Mestre iniciado, é necessário conhecer todas as palavras
herdadas, e vivê -las.
A educação tradicional, sobretudo quando diz respeito aos conhecimentos
relativos a uma iniciação, liga -se à experiência e se integra à vida. Por esse motivo
o pesquisador europeu ou africano que deseja aproximar -se dos fatos religiosos
africanos está fadado a deter -se nos limites do assunto, a menos que aceite
viver a iniciação correspondente e suas regras, o que pressupõe, no mínimo, um
conhecimento da língua. Pois existem coisas que não “se explicam”, mas que se
experimentam e se vivem.
Lembro -me de que em 1928, quando servia em Tougan, um jovem etnólogo
chegara ao país para fazer um estudo sobre a galinha sacrifical por ocasião da
circuncisão. O comandante francês apresentou -se ao chefe de cantão indígena
e pediu que tudo fosse feito para satisfazer ao etnólogo, insistindo para que lhe
contassem tudo”. Por sua vez, o chefe de cantão reuniu os principais cidadãos e
expôs -lhes os fatos, repetindo as palavras do comandante.
O decano da assembleia, que era o Mestre da faca local, e, portanto, o responvel
pelas cerimônias de circuncisão e da inicião correspondente, perguntou -lhe:
— “Ele quer que lhe contemos tudo?”
— “Sim respondeu o chefe de cantão.
— “Mas ele veio para ser circuncidado?”
— “Não, veio buscar informações”.
O decano voltou o rosto para o outro lado e disse:
“Como podemos contar -lhe tudo se ele não quer ser circuncidado? Você bem
sabe, chefe, que isso não é possível. Ele terá de levar a vida dos circuncidados para
que possamos ensinar -lhe todas as lições”.
Uma vez que por força somos obrigados a satisfazê -lo” – replicou o chefe do
cantão –,cabe a você encontrar uma saída para essa dificuldade”.
— “Muito bem!” disse o velho. — “Nós nos desembaraçaremos dele sem que
ele perceba,pondo -o na palha’”.
183
A tradição viva
A fórmula pôr na palha”, que consiste em enganar uma pessoa com alguma
história improvisada quando o se pode dizer a verdade, foi inventada a
partir do momento em que o poder colonial passou a enviar seus agentes ou
representantes com o propósito de fazer pesquisas etnológicas sem aceitar viver
sob as condições exigidas. Muitos etnólogos foram vítimas inconscientes desta
tática… Quantos não pensavam ter compreendido completamente determinada
realidade quando, sem vivê -la, não poderiam verdadeiramente -la conhecido.
Além do ensino esotérico ministrado nas grandes escolas de iniciação
por exemplo, o Komo ou as demais mencionadas –, a educação tradicional
começa, em verdade, no seio de cada família, onde o pai, a mãe ou as pessoas
mais idosas são ao mesmo tempo mestres e educadores e constituem a primeira
célula dos tradicionalistas. São eles que ministram as primeiras lições da vida,
não somente através da experiência, mas também por meio de histórias, fábulas,
lendas, máximas, adágios, etc. Os provérbios são as missivas legadas à posteridade
pelos ancestrais. Existe uma infinidade deles.
Certos jogos infantis foram elaborados pelos iniciados com o fim de difundir,
ao longo dos culos, certos conhecimentos esotéricos “cifrados”. Citemos,
por exemplo, o jogo do Banangolo, no Mali, baseado em um sistema numeral
relacionado com os 266 siqiba, ou signos, que correspondem aos atributos de
Deus.
Por outro lado, o ensinamento não é sistemático, mas ligado às circunstâncias
da vida. Este modo de proceder pode parecer caótico, mas, em verdade, é prático
e muito vivo. A lição dada na ocasião de certo acontecimento ou experiência fica
profundamente gravada na memória da criança.
Ao fazer uma caminhada pela mata, encontrar um formigueiro dará ao velho
mestre a oportunidade de ministrar conhecimentos diversos, de acordo com
a natureza dos ouvintes. Ou falará sobre o próprio animal, sobre as leis que
governam sua vida e a classe de seres” a que pertence, ou dará uma lição de
moral às crianças, mostrando -lhes como a vida em comunidade depende da
solidariedade e do esquecimento de si mesmo, ou ainda poderá falar sobre
conhecimentos mais elevados, se sentir que seus ouvintes poderão compreendê-
-lo. Assim, qualquer incidente da vida, qualquer acontecimento trivial pode
sempre dar ocasião a múltiplos desenvolvimentos, pode induzir à narração de um
mito, de uma história ou de uma lenda. Qualquer fenômeno observado permite
remontar às forças de onde se originou e evocar os mistérios da unidade da Vida,
que é inteiramente animada pela Se, a Força sagrada primordial, ela mesma um
aspecto do Deus Criador.
184
Metodologia e pré -história da África
Na África, tudo é História”. A grande História da vida compreende a
História das Terras e das Águas (geografia), a História dos vegetais (botânica
e farmacopeia), a História dos “Filhos do seio da Terra” (mineralogia, metais),
a História dos astros (astronomia, astrologia), a História das águas, e assim por
diante.
Na tradão da savana, particularmente nas tradições bambara e peul, o
conjunto das manifestações da vida na terra divide -se em três categorias ou
classes de seres”, cada uma delas subdividida em três grupos:
• Na parte inferior da escala, os seres inanimados, os chamados seres mudos”,
cuja linguagem é considerada oculta, uma vez que é incompreensível ou
inaudível para o comum dos mortais. Essa classe de seres inclui tudo o
que se encontra na superfície da terra (areia, água, etc.) ou que habita o seu
interior (minerais, metais, etc.). Dentre os inanimados mudos, encontramos
os inanimados sólidos, líquidos e gasosos (literalmente, “fumegantes”).
• No grau médio, os animados imóveis”, seres vivos que não se deslocam. Essa
é a classe dos vegetais, que podem se estender ou se desdobrar, no espaço,
mas cujo pé não pode mover -se. Dentre os animados imóveis, encontramos
as plantas rasteiras, as trepadeiras e as verticais, estas últimas constituindo
a classe superior.
• Finalmente, os animados móveis”, que compreendem todos os animais,
inclusive o homem. Os animados móveis incluem os animais terrestres (com
e sem ossos), os animais aquáticos e os animais voadores.
Tudo o que existe pode, portanto, ser incluído em uma dessas categorias
9
.
De todas as “Histórias”, a maior e mais significativa é a do próprio Homem,
simbiose de todas as “Histórias”, uma vez que, segundo o mito, foi feito com
uma parcela de tudo o que existiu antes dele. Todos os reinos da vida (mineral,
vegetal e animal) encontram -se nele, conjugados a forças ltiplas e a faculdades
superiores. Os ensinamentos referentes ao homem baseiam -se em mitos da
cosmogonia, determinando seu lugar e papel no universo e revelando qual
deve ser sua relação com O mundo dos vivos e dos mortos. Explica -se tanto o
simbolismo de seu corpo quanto a complexidade de seu psiquismo: As pessoas
da pessoa são numerosas no interior da pessoa”, dizem as tradições bambara
e peul. Ensina -se qual deve ser seu comportamento frente à natureza, como
respeitar -lhe o equilíbrio e não perturbar as forças que a animam, das quais não
é mais que o aspecto visível A iniciação o fará descobrir a sua própria relação
9 Cf. HAMPABÂ, A. 1972, p. 23 e segs.
185
A tradição viva
com o mundo das forças e pouco a pouco o conduzirá ao autodomínio, sendo a
finalidade última tornar -se, tal como Maa, um homem completo”, interlocutor
de Maa Ngala e guardião do mundo vivo.
Os ofícios tradicionais
Os ofícios artesanais tradicionais são os grandes vetores da tradição oral.
Na sociedade tradicional africana, as atividades humanas possuíam
frequentemente um caráter sagrado ou oculto, principalmente as atividades
que consistiam em agir sobre a matéria e transformá -la, uma vez que tudo é
considerado vivo.
Toda função artesanal estava ligada a um conhecimento esotérico transmitido
de geração a geração e que tinha sua origem em uma revelação inicial. A obra
do artesão era sagrada porque imitava a obra de Maa Ngala e completava
sua criação. A tradição bambara ensina, de fato, que a criação ainda não está
acabada e que Maa Ngala, ao criar nossa terra, deixou as coisas inacabadas para
que Maa, seu interlocutor, as completasse ou modificasse, visando conduzir a
natureza à perfeição. A atividade artesanal, em sua operação, deveria “repetir” o
mistério da criação. Portanto, ela “focalizava” uma força oculta da qual não se
podia aproximar sem respeitar certas condições rituais.
Os artesãos tradicionais acompanham o trabalho com cantos rituais ou
palavras rítmicas sacramentais, e seus próprios gestos são considerados uma
linguagem. De fato, os gestos de cada ofício reproduzem, no simbolismo que lhe
é próprio, o mistério da criação primeira, que, como foi mostrado anteriormente,
ligava -se ao poder da Palavra. Diz -se que:
“O ferreiro forja a Palavra,
O tecelão a tece,
O sapateiro amacia -a curtindo -a”.
Tomemos o exemplo do tecelão, cujo ofício vincula -se ao simbolismo da
Palavra criadora que se distribui no tempo e no espaço.
O tecelão de casta (um maabo, entre os Peul) é o depositário dos segredos
das 33 peças que compõem a base fundamental do tear, cada uma delas com
um significado. A armação, por exemplo, constitui -se de oito peças principais:
quatro verticais, que simbolizam não os quatro elementos -mãe (terra, água,
ar e fogo), mas também os quatro pontos cardeais, e quatro transversais, que
simbolizam os quatro pontos colaterais. O tecelão, situado no meio, representa
186
Metodologia e pré -história da África
o Homem primordial, Maa, no centro das oito direções do espaço. Com sua
presença, obtêm -se nove elementos que lembram os nove estados fundamentais
da existência, as nove classes de seres, as nove aberturas do corpo (portas das
forças da vida), as nove categorias de homens entre os Peul, etc.
Antes de dar início ao trabalho, o tecelão deve tocar cada pa do tear
pronunciando palavras ou ladainhas correspondentes às forças da vida que elas
encarnam.
O vaivém dos pés, que sobem e descem para acionar os pedais, lembra o
ritmo original da Palavra criadora, ligado ao dualismo de todas as coisas e à lei
dos ciclos. Como se os pés dissessem o seguinte:
“Fonyonko! Fonyonko! Dualismo! Dualismo!
Quando um sobe, o outro desce.
A morte do rei e a coroação do príncipe,
A morte do avô e o nascimento do neto,
Brigas de divórcio misturadas ao barulho de uma festa de casamento…”.
De sua parte, diz a naveta:
“Eu sou a barca do Destino.
Passo por entre os recifes dos fios da trama
Que representam a Vida.
Passo do lado direito para o lado esquerdo,
Desenrolando meu intestino (o fio)
Para contribuir à construção.
E de novo passo do lado esquerdo para o lado direito,
Desenrolando meu intestino.
A vida é eterno vaivém,
Permanente doação de si”.
A tira de tecido que se acumula e se enrola em um bastão que repousa sobre
o ventre do tecelão representa o passado, enquanto o rolo do fio a ser tecido
simboliza o mistério do amanhã, o desconhecido devir. O tecelão sempre dirá:
“Ó amanhã! Não me reserve uma surpresa desagradável!”.
No total, o trabalho do tecelão representa oito movimentos de vaim
(movimentos dos pés, dos braços, da naveta e o cruzamento rítmico dos fios do
tecido) que correspondem às oito peças da armação do tear e às oito patas da
aranha mítica que ensinou sua ciência ao ancestral dos tecelões.
Os gestos do tecelão, ao acionar o tear, representam o ato da criação e as
palavras que lhe acompanham os gestos são o próprio canto da Vida.
187
A tradição viva
Quanto ao ferreiro tradicional, ele é o depositário do segredo das
transmutações. Por excelência, é o Mestre do Fogo”. Sua origem é mítica, e, na
tradição bambara, chamam -no de Primeiro Filho da Terra”. Suas habilidades
remontam a Maa, o primeiro homem, a quem o criador Maa Ngala ensinou,
entre outros, os segredos da “forjadura”. Por isso a forja é chamada de Fan, o
mesmo nome do Ovo primordial, de onde surgiu todo o universo e que foi a
primeira forja sagrada.
Os elementos da forja estão ligados a um simbolismo sexual, sendo esta a
expressão, ou o reflexo, de um processo cósmico de criação. Desse modo, os
dois foles redondos, acionados pelo assistente do ferreiro, são comparados aos
testículos masculinos. O ar com que são enchidos é a substância da vida enviada,
através de uma espécie de tubo, que representa o falo, para a fornalha da forja,
que representa a matriz onde age o fogo transformador.
O ferreiro tradicional pode entrar na forja após um banho ritual de
purificação preparado com o cozimento de certas folhas, cascas ou raízes de
árvores, escolhidas em função do dia. Com efeito, as plantas (como os minerais
e os animais) dividem -se em sete classes, que correspondem aos dias da semana
e estão ligadas pela lei de “correspondência analógica”.
10
Em seguida, o ferreiro
se veste de modo especial, uma vez que não pode entrar na forja vestido com
roupa comum.
Todos os dias pela manhã, purifica a forja com defumações especiais feitas
com plantas que ele conhece.
Terminadas essas operações, lavado de todos os contatos com o exterior, o
ferreiro encontra -se em estado sacramental. Voltou a ser puro e assemelha -se
agora ao ferreiro primordial. então, à semelhança de Maa Ngala, pode ele
criar”, modificando e moldando a matéria. (Em fulfulde, ferreiro traduz -se por
baylo, palavra que literalmente significa “transformador”).
Antes de começar o trabalho, invoca os quatro elementos -mãe da criação,
(terra, água, ar e fogo), que estão obrigatoriamente representados na forja: existe
sempre um receptáculo com água, o fogo da fornalha, o ar enviado pelos foles e
um montículo de terra ao lado da forja.
Durante o trabalho, o ferreiro pronuncia palavras especiais à medida que vai
tocando cada ferramenta. Ao tomar a bigorna, que simboliza a receptividade
feminina, diz: “Não sou Maa Ngala, mas o representante de Maa Ngala. Ele é
10 A respeito da lei de correspondência analógica, v. HAMPATÉ BÂ, A. Aspects de la civilisation africaine,
Présence africaine, Paris, 1972, p. 120 e segs.
188
Metodologia e pré -história da África
quem cria, não eu”. Em seguida, apanha um pouco de água, ou um ovo, oferece -a
à bigorna e diz: “Eis teu dote”.
Pega o martelo, que simboliza o falo, e aplica alguns golpes na bigorna para
sensibilizá -la”. Estabelecida a comunicação, ele pode começar a trabalhar.
O aprendiz não deve fazer perguntas. Deve apenas observar com atenção
e soprar. Esta é a fase muda do aprendizado. À medida que vai avançando
na assimilação do conhecimento, o aprendiz sopra em ritmos cada vez mais
complexos, cada um deles possuindo um significado. No decorrer da fase oral do
aprendizado, o Mestre transmitirá gradualmente todos os seus conhecimentos
ao discípulo, treinando -o e corrigindo -o até que adquira a mestria. Após uma
cerimônia de liberação”, o novo ferreiro poderá deixar o mestre e instalar a sua
própria forja. Comumente, o ferreiro envia os próprios filhos para outro ferreiro
a fim de iniciarem seu aprendizado. Como diz o adágio: As esposas e os filhos
do Mestre não são seus melhores discípulos”.
Assim, o artesão tradicional, imitando Maa Ngala, “repetindo” com seus
gestos a criação primordial, realizava não um “trabalho” no sentido puramente
econômico da palavra, mas uma fuão sagrada que empregava as foas
fundamentais da vida e em que se aplicava todo o seu ser. Na intimidade da
oficina ou da forja, participava do mistério renovado da criação eterna.
Os conhecimentos do ferreiro devem abranger um vasto setor da vida.
Renomado ocultista, a mestria dos segredos do fogo e do ferro faz dele a única
pessoa habilitada a praticar a circuncisão, e, como vimos, o grande Mestre da
faca” na iniciação do Komo é invariavelmente um ferreiro. Não apenas sabe
tudo o que diz respeito aos metais, como também conhece perfeitamente a
classificação das plantas e suas propriedades.
O ferreiro de alto -forno, que ao mesmo tempo extrai e funde o mineral, é
o mais avançado em conhecimentos. À ciência de ferreiro fundidor, acrescenta
o conhecimento perfeito dos Filhos do seio da Terra” (mineralogia) e dos
segredos das plantas e da mata. De fato, ele conhece as espécies de vegetais
que cobrem a terra que contém determinado metal e detecta um veio de ouro
simplesmente examinando as plantas e os seixos. Conhece as encantações da
terra e as encantações das plantas. Uma vez que se considera a natureza como
viva e animada pelas forças, todo ato que a perturba deve ser acompanhado de
um comportamento ritual” destinado a preservar e salvaguardar o equilíbrio
sagrado, pois tudo se liga, tudo repercute em tudo, toda ação faz vibrar as forças
da vida e desperta uma cadeia de consequências cujos efeitos são sentidos pelo
homem.
189
A tradição viva
A relação do homem tradicional com o mundo era, portanto, uma relação
viva de participação e não uma relação de pura utilização. É compreensível que,
nesta visão global do universo, o papel do profano seja mínimo.
No antigo país Baúle, por exemplo, o ouro, que a terra oferecia em abundância,
era considerado metal divino e não chegou a ser explorado exaustivamente.
Empregavam -no sobretudo na confecção de objetos reais ou cultuais, mas
igualmente o utilizavam como moeda de câmbio e objeto de presente. Sua
extração era livre a todos, mas a ninguém era permitida a apropriação de pepitas
que ultrapassassem certo tamanho; toda pepita com peso superior ao padrão
era devolvida ao deus e se destinava a aumentar o “ouro real”, depósito sagrado
do qual os próprios reis não tinham o direito de usufruir. Certos tesouros reais
foram desta maneira transmitidos intactos até a ocupação europeia. A terra,
acreditava -se, pertencia a Deus, e ao homem cabia o direito de “usufruir dela,
mas não o de possuí -la.
Voltando ao arteo tradicional, ele é o exemplo perfeito de como o
conhecimento pode se incorporar não somente aos gestos e ações, mas também
à totalidade da vida, uma vez que deve respeitar um conjunto de proibições
e obrigações ligadas à sua atividade, que constitui um verdadeiro código de
comportamento em relação à natureza e aos semelhantes.
Existe, desse modo, o que se chama de “Costume dos ferreiros” (numusira
ou numuya, em bambara), “Costume dos agricultores”, “Costume dos tecelões”,
e assim por diante, e, no plano étnico, o que se chama de “Costume dos Peul
(Lawol fulfulde), verdadeiros códigos morais, sociais e jurídicos peculiares a cada
grupo, transmitidos e observados fielmente pela tradição oral.
Pode -se dizer que o ofício, ou a atividade tradicional, esculpe o ser do homem.
Toda a diferença entre a educação moderna e a tradição oral encontra -se aí.
Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais útil que seja, nem sempre
é vivido, enquanto o conhecimento herdado da tradição oral encarna -se na
totalidade do ser. Os instrumentos ou as ferramentas de um ofício materializam
as Palavras sagradas; o contato do aprendiz com o ofício o obriga a viver a
Palavra a cada gesto.
Por essa razão a tradição oral, tomada no seu todo, não se resume à transmissão
de narrativas ou de determinados conhecimentos. Ela é geradora e formadora de
um tipo particular de homem. Pode -se afirmar que existe a civilização dos ferreiros,
a civilização dos tecelões, a civilização dos pastores, etc.
Limitei -me aqui a examinar os exemplos particularmente típicos dos ferreiros
e dos tecelões, mas, de um modo geral, toda atividade tradicional constitui uma
190
Metodologia e pré -história da África
grande escola iniciatória ou mágico -religiosa, uma via de acesso à Unidade, da
qual, para os iniciados, é um reflexo ou uma expressão peculiar.
Geralmente, a fim de conservar restritos à linhagem os conhecimentos
secretos e os poderes mágicos deles decorrentes, todo grupo devia observar
proibições sexuais rigorosas em relação a pessoas estranhas ao grupo e praticar
a endogamia. A endogamia, portanto, não se deve à ideia de intocabilidade,
mas ao desejo de manter dentro do grupo os segredos rituais. Assim, podemos
perceber como esses grupos, rigorosamente especializados e harmonizados com
as “funções sagradas”, gradualmente chegaram à noção de “casta”, tal como existe
atualmente na África da savana. A guerra e o nobre fazem o escravo diz o
adágio –,mas é Deus quem faz o artesão (o nyamakala).”
A noção de castas superiores ou inferiores, por conseguinte, não se baseia
em uma realidade sociológica tradicional. Ela surgiu com o decorrer do tempo,
apenas em determinados lugares, provavelmente como consequência da aparição
de alguns impérios onde a função de guerreiro, reservada aos nobres, lhes conferia
uma espécie de supremacia. No passado distante, a noção de nobreza era sem
dúvida diferente, e o poder espiritual tinha precedência sobre o poder temporal.
Naquele tempo, eram os Silatigui (mestres iniciados peul), e não os Ardo (chefes,
reis) que governavam as comunidades peul.
Contrariamente ao que alguns escreveram ou supuseram, o ferreiro é muito
mais temido do que desprezado na África. “Primeiro filho da Terra”, mestre do
Fogo e manipulador de forças misteriosas, é temido, acima de tudo, pelo seu
poder.
De qualquer maneira, a tradição sempre atribuiu aos nobres a obrigação
de garantir a conservação das castas” ou classes de nyamakala (em bambara;
nyeenyo, pl. nyeeybe, em fulani). Tais classes gozam da prerrogativa de obter
mercadorias (ou dinheiro) não como retribuição de um trabalho, mas como o
reclamo de um privilégio que o nobre não podia recusar.
Na tradição do Mande, cujo centro se acha no Mali, mas que cobre mais
ou menos todo o território do antigo Bafur (isto é, a antiga África ocidental
francesa, com exceção das zonas de floresta e da parte oriental da Nigéria), as
castas”, ou nyamakala compreendem:
• os ferreiros (numu em bambara, baylo em fulfulde);
• os tecelões (maabo em bambara e em fulfulde);
• os trabalhadores da madeira (tanto o lenhador como o marceneiro; saki em
bambara, labbo em fulfulde);
• os trabalhadores do couro (garanke em bambara, sakke em fulfulde);
191
A tradição viva
• os animadores públicos (dieli em bambara; em fulfulde, eles são designados
pelo nome geral de nyamakala ou membro de uma casta, isto é, nyeeybe).
Mais conhecidos pelo nome francês de griot.
Embora não exista noção de superioridade” propriamente dita, as quatro
classes de nyamakala -artesãos têm precedência sobre os griots, pois demandam
iniciação e conhecimentos especiais. O ferreiro está no topo da hierarquia,
seguido pelo tecelão, pois seu ofício implica o mais alto grau de iniciação. Ambos
podem escolher indistintamente esposas de uma ou de outra casta, pois as
mulheres são oleiras tradicionais, tendo, portanto, a mesma iniciação feminina.
Na classificação do Mande, os nyamakala artesãos dividem -se em grupos
de três:
Existem três tipos de ferreiro (numu em bambara, baylo em fulfulde):
• o ferreiro de mina (ou de alto -forno), que extrai os mirios e funde metal. Os
grandes iniciados entre eles podem, igualmente, trabalhar na forja;
• o ferreiro do ferro negro, que trabalha na forja mas não extrai minérios;
• o ferreiro dos metais preciosos, ou joalheiro, que geralmente é cortesão e,
como tal, instala -se nos pátios externos dos palácios de um chefe ou nobre.
Existem três tipos de tecelões (maabo):
• o tecelão de lã, que possui o maior grau de inicião. Os motivos dos
cobertores são sempre simbólicos e estão associados aos mistérios dos
números e da cosmogonia. Todo desenho tem um nome;
• o tecelão de kerka, que tece imensos cobertores, mosquiteiros e cortinas de
algodão que podem ter até 6 m de comprimento com uma infinita variedade
de motivos. Cheguei a examinar uma dessas cortinas com 165 motivos.
Cada motivo recebe um nome e tem um significado. O próprio nome é um
símbolo que representa várias realidades;
• o tecelão comum, que confecciona faixas simples de tecido branco e que não
passa por uma grande iniciação.
Às vezes ocorre de a tecelagem comum ser feita por nobres. Assim, alguns
Bambara confeccionam faixas de tecido branco sem serem tecelões de casta. Como
o são iniciados, porém, não podem tecer nem kerka, nem lã, nem mosquiteiros.
Existem três tipos de carpinteiros (saki em bambara, labbo em fulfulde):
• aquele que faz almofarizes, pilões e estatuetas sagradas. O almofariz, onde
os remédios sagrados são triturados, é um objeto ritual feito apenas com
determinados tipos de madeira. Como na ferraria, a carpintaria simboliza
192
Metodologia e pré -história da África
as duas foas fundamentais: o almofariz representa, como a bigorna,
o lo feminino, enquanto o pilão representa, como o martelo, o pólo
masculino. As estatuetas sagradas são executadas sob o comando de um
iniciado doma, que as “carrega” de energia sagrada prevendo algum uso
particular. Além do ritual de carregamento”, a escolha e o corte da madeira
também devem ser realizados sob condições especiais, cujo segredo o
lenhador conhece.
O próprio artesão corta a madeira de que precisa. Portanto, é também um
lenhador e sua iniciação está ligada ao conhecimento dos segredos das plantas
e da mata. Sendo a árvore considerada viva e habitada por outros espíritos
vivos, não pode ser derrubada ou cortada sem determinadas precauções
rituais conhecidas pelo lenhador;
• aquele que faz utensílios ou móveis domésticos de madeira;
• aquele que fabrica pirogas, devendo ser iniciado também nos segredos da
água.
No Mali, os Somono, que se tornaram pescadores sem pertencer à etnia Bozo,
também começaram a fabricar pirogas. São eles que podemos ver trabalhando
às margens do Níger entre Kulikoro e Mopti.
Existem três tipos de trabalhadores do couro (garanke em bambara, sakke
em fulfulde):
• os que fazem sapatos;
• os que fazem arreios, rédeas, etc.;
• os seleiros ou correeiros.
O trabalho do couro também envolve uma iniciação, e os garanke geralmente
têm a reputação de feiticeiros.
Os caçadores, os pescadores e os agricultores não correspondem a castas, mas
sim a etnias. Suas atividades estão entre as mais antigas da sociedade humana:
a “colheita (agricultura) e a “caça” (que compreende “duas caças”, uma na terra
e outra na água) representam também grandes escolas de iniciação, pois não há
quem se aproxime imprudentemente das forças sagradas da Terra -Mãe e dos
poderes da mata, onde vivem os animais. A exemplo do ferreiro de alto -forno, o
caçador, de modo geral, conhece todas as encantações da mata e deve dominar
a fundo a ciência do mundo animal.
Os curandeiros (que curam por meio de plantas ou pelo “dom da fala”)
podem pertencer a qualquer classe ou grupo étnico. Normalmente eles são
Doma.
193
A tradição viva
Cada povo possui como herança dons particulares, transmitidos de geração
a geração através da iniciação. Assim, os Dogon do Mali têm a reputação de
conhecer o segredo da lepra, que sabem curar muito rapidamente sem deixar
uma única marca, e o segredo da cura da tuberculose. Além disso, são excelentes
restauradores”, pois conseguem recolocar os ossos quebrados, mesmo em caso
de fraturas graves.
Os animadores públicos ou “griots”(“dieli em bambara)
Se as ciências ocultas e esotéricas são privilégio dos mestres da faca” e
dos chantres dos deuses, a música, a poesia lírica e os contos que animam as
recreações populares, e normalmente também a história, são privilégios dos
griots, espécie de trovadores ou menestréis que percorrem o país ou estão ligados
a uma família.
Sempre se supôs erroneamente que os griots fossem os únicos
“tradicionalistas” possíveis. Mas quem são eles?
Classificam -se em três categorias:
• os griots músicos, que tocam qualquer instrumento (monocórdio, guitarra,
cora, tan, etc.). Normalmente são excelentes cantores, preservadores,
transmissores da música antiga e, além disso, compositores.
• os griots “embaixadores” e cortesãos, responsáveis pela mediação entre as
grandes famílias em caso de desavenças. Estão sempre ligados a uma família
nobre ou real, às vezes a uma única pessoa.
• os griots genealogistas, historiadores ou poetas (ou os três ao mesmo tempo),
que em geral são igualmente contadores de história e grandes viajantes, não
necessariamente ligados a uma família.
A tradição lhes confere um status social especial. Com efeito, contrariamente
aos Horon (nobres), têm o direito de ser cínicos e gozam de grande liberdade de
falar. Podem manifestar -se à vontade, até mesmo impudentemente e, às vezes,
chegam a troçar das coisas mais sérias e sagradas sem que isso acarrete graves
consequências. Não têm compromisso algum que os obrigue a ser discretos ou
a guardar respeito absoluto para com a verdade. Podem às vezes contar mentiras
descaradas e ninguém os tomará no sentido próprio. “Isso é o que o dieli diz!
Não é a verdade verdadeira, mas a aceitamos assim”. Essa máxima mostra muito
bem de que modo a tradição aceita as invenções dos dieli, sem se deixar enganar,
pois, como se diz, eles têm a “boca rasgada”.
194
Metodologia e pré -história da África
 . Tocador de Valiha. O instrumento é de
madeira com cordas de aço (Foto Museu do Homem).
F . “Griot hutu” imitando o “mwami” caído
(Foto B. Nantet).
195
A tradição viva
Em toda a tradição do Bafur, o nobre ou o chefe não só é proibido de tocar
música em reuniões públicas, mas também deve ser moderado na expressão e
na fala. “Muita conversa não convém a um Horon”, diz o provérbio. Assim, os
griots ligados às famílias acabam por desempenhar naturalmente o papel de
mediadores, ou mesmo de embaixadores, caso surjam problemas de menor ou
maior importância. Eles são “a língua de seu mestre.
Quando ligados a uma falia ou pessoa, geralmente ficam encarregados de
alguma missão corriqueira e particularmente das negociações matrimoniais. Para
dar um exemplo, um jovem nobre o se dirigi diretamente a uma jovem para
dizer -lhe de seu amor. Fará do griot o porta -voz que entraem contato com a moça
ou com sua griote para falar dos sentimentos de seu mestre e louvar -lhe os ritos.
Uma vez que a sociedade africana está fundamentalmente baseada no diálogo
entre os indivíduos e na comunicação entre comunidades ou grupos étnicos,
os griots são os agentes ativos e naturais nessas conversações. Autorizados a
ter duas línguas na boca”, se necessário podem se desdizer sem que causem
ressentimentos. Isso jamais seria possível para um nobre, a quem não se permite
voltar atrás com a palavra ou mudar de decisão. Um griot chega até mesmo a
arcar com a responsabilidade de um erro que não cometeu a fim de remediar
uma situação ou de salvar a reputação dos nobres.
É aos velhos sábios da comunidade, em suas audiências secretas, que cabe o
difícil dever de “olhar as coisas pela janela certa”; mas cabe aos griots cumprir
aquilo que os sábios decidiram e ordenaram.
Treinados para colher e fornecer informações, eles são os grandes portadores
de notícias, mas igualmente, muitas vezes, grandes difamadores.
O nome dieli em bambara significa sangue. De fato, tal como o sangue, eles
circulam pelo corpo da sociedade, que podem curar ou deixar doente, conforme
atenuem ou avivem os conflitos através das palavras e das canções.
É necessário acrescentar, entretanto, que se trata aqui apenas de características
gerais e que nem todos os griots são necessariamente desavergonhados ou cínicos.
Pelo contrário, entre eles existem aqueles que são chamados de dieli ‑faama, ou
seja, griots -reis”. De maneira nenhuma estes são inferiores aos nobres no que se
refere a coragem, moralidade, virtudes e sabedoria, e jamais abusam dos direitos
que lhes foram concedidos por costume.
Os griots foram importante agente ativo do comércio e da cultura humana.
Em geral dotados de considerável inteligência, desempenhavam um papel de
grande importância na sociedade tradicional do Bafur devido à sua influência
sobre os nobres e os chefes. Ainda hoje, em toda oportunidade, estimulam e
suscitam o orgulho do c dos nobres com suas canções, normalmente para
196
Metodologia e pré -história da África
ganhar presentes, mas muitas vezes para tamm encora-los a enfrentar
alguma situação difícil.
Durante a noite de vigília que precede o rito da circuncisão, por exemplo,
eles encorajam a criança ou o jovem a mostrar -se digno de seus antepassados
permanecendo impassível. Entre os Peul, canta -se o seguinte: “teu pai
11
, Fulano,
que morreu no campo de batalha, engoliu o mingau do ferro incandescente’
(as balas) sem piscar. Espero que amanhã tu não sintas medo da ponta da faca
do ferreiro”. Na cerimônia do bastão, ou Soro, entre os Peul Bororo do Níger,
as canções do griot animam o jovem que deve provar sua coragem e paciência
mantendo um sorriso e sem tremer as pálpebras, enquanto recebe fortes golpes
de bastão no peito.
Os griots tomaram parte em todas as batalhas da história, ao lado de seus
mestres, cuja coragem estimulavam relembrando -lhes a genealogia e os grandes
feitos dos antepassados. Para o africano, a invocação do nome de família é de
grande poder. Ademais, é pela repetição do nome da linhagem que se saúda e
se louva um africano.
A influência exercida pelos dieli, ao longo da história, adquiria a qualificação
de boa ou , conforme suas palavras incitavam o orgulho dos líderes e os
impeliam a excessos ou, como era o caso mais frequente, chamavam -nos ao
respeito de seus deveres tradicionais.
Como se vê, os griots participam efetivamente da hisria dos grandes
impérios africanos do Bafur, e o papel desempenhado por eles merece um estudo
em profundidade.
O segredo do poder da influência dos Dieli sobre os Horon (nobres) reside
no conhecimento que têm da genealogia e da história das famílias. Alguns
deles chegaram a fazer desse conhecimento uma verdadeira especialização. Os
griots dessa categoria raramente pertencem a uma família e viajam pelo país em
busca de informações históricas cada vez mais extensas. Desse modo, certamente
adquirem uma capacidade quase mágica de provocar o entusiasmo de um nobre
ao declamar para ele a própria genealogia, os objetos heráldicos e a história
familiar, e, consequentemente, de receber dele valiosos presentes. Um nobre é
capaz de se despojar de tudo o que traz consigo e possui dentro de casa para
presentear a um griot que conseguiu lhe mover os sentimentos. Aonde quer que
vão, estes griots genealogistas têm a sobrevivência largamente assegurada.
11 Teu pai”, em linguagem africana, pode muito bem designar um tio, um avô ou um antepassado. Signica
toda a linha paterna, inclusive as colaterais.
197
A tradição viva
Não se deve pensar, entretanto, que se trata de uma retribuição”. A ideia
de remuneração pelo trabalho realizado é contrária à noção tradicional de
direito dos nyamakala sobre as classes nobres
12
. Qualquer que seja sua fortuna,
os nobres, mesmo os mais pobres, são tradicionalmente obrigados a oferecer
presentes aos dieli ou a qualquer nyamakala ou woloso
13
– mesmo quando o dieli
é infinitamente mais rico do que o nobre. De um modo geral, é a casta dos Dieli
a que mais reclama presentes. Quaisquer que sejam seus ganhos, porém, o dieli
sempre é pobre, pois gasta tudo o que tem, contando com os nobres para seu
sustento. “O!” canta o dieli solicitante,a mão de um nobre não está grudada ao
seu pescoço com avareza; ela está sempre pronta a buscar em seu bolso algo para
dar àquele que pede”. E, se por acaso isso não ocorrer, é melhor que o nobre se
precavenha contra os problemas que terá com o “homem da boca rasgada”, cujas
duas línguas” podem arruinar negócios e reputações!
Do ponto de vista econômico, portanto, a casta dos Dieli, como todas as classes
de nyamakala e de woloso, é dependente da sociedade, especialmente das classes
nobres. A progressiva transformação das condições ecomicas e dos costumes
alterou, acerto ponto, esta situação, e antigos nobres ou griots passaram a aceitar
funções remuneradas. Mas o costume o morreu, e as pessoas ainda se arruínam
por ocasião de festas de batismo ou casamento para darem presentes aos griots que
m animar as festas com suas canções. Alguns governos modernos tentaram pôr
fim a esse costume, mas, que se saiba, ainda não conseguiram.
Os dieli, sendo nyamakala, devem em princípio casar -se dentro das classes
de nyamakala.
É fácil ver como os griots genealogistas, especializados em histórias de famílias
e geralmente dotados de memória prodigiosa, tornaram -se naturalmente, por
assim dizer, os arquivistas da sociedade africana e, ocasionalmente, grandes
historiadores. Mas é importante lembrarmos que eles não são os únicos a
possuir tal conhecimento. Os griots historiadores, a rigor, podem ser chamados
de “tradicionalistas”, mas com a ressalva de que se trata de um ramo puramente
histórico da tradição, a qual possui muitos outros ramos.
O fato de ter nascido dieli não faz do homem necessariamente um historiador,
embora o incline para essa direção, e muito menos que se torne um sábio em
12 “Nobre” é uma tradução bastante aproximativa de Horon. Em verdade, Horon é toda pessoa que não
pertence nem à classe dos nyamakala nem à classe dos jon (“cativos”), sendo esta última constituída por
descendentes de prisioneiros de guerra. O Horon tem por dever assegurar a defesa da comunidade, dar
sua vida por ela, assim como garantir a conservação das outras classes.
13 Sobre Woloso, “cativo de casa”, cf. n. 5.
198
Metodologia e pré -história da África
assuntos tradicionais, um “Conhecedor”. De um modo geral, a casta dos Dieli é a
que mais se distancia dos domínios iniciatórios, que requerem silêncio, discreção
e controle da fala.
A possibilidade de se tornarem “Conhecedores” está ao alcance deles, tanto
quanto ao de qualquer outro indivíduo. Assim como um tradicionalista ‑doma
(o Conhecedor tradicional no verdadeiro sentido do termo) pode vir a ser
ao mesmo tempo um grande genealogista e historiador, um griot, como todo
membro de qualquer categoria social, pode tornar -se um tradicionalista -doma se
suas aptidões o permitirem e se ele tiver passado pelas iniciações correspondentes
(com exceção, no entanto, da iniciação do Komo, que lhe é proibida).
No desenvolvimento deste estudo, mencionamos o exemplo de dois griots
“Conhecedores” que atualmente vivem no Mali: Iwa e Banzoumana, sendo que
este último é ao mesmo tempo grandesico, historiador e tradicionalista -doma.
O griot que é também tradicionalista -doma constitui uma fonte de informações
de absoluta confiança, pois sua qualidade de iniciado lhe confere um alto valor
moral e o sujeita à proibição da mentira. Torna -se um outro homem. É ele o
“griot rei do qual falamos anteriormente, a quem as pessoas consultam por sua
sabedoria e seu conhecimento, e que, embora capaz de divertir, jamais abusa de
seus direitos consuetudinários.
Quando um griot conta uma história, geralmente lhe perguntam: É uma
história de dieli ou uma história de doma? Se for uma história de dieli, costuma -se
dizer: Isso é o que o dieli diz!”, e então se pode esperar alguns embelezamentos
da verdade, com a intenção de destacar o papel desta ou daquela família
embelezamentos que não seriam feitos por um tradicionalista ‑doma, que se
interessa, acima de tudo, pela transmissão fiel.
É necessário fazer uma distinção: quando estamos na presença de um griot
historiador, convém sabermos se se trata de um griot comum ou de um griot‑
‑doma. Ainda assim deve -se admitir que a base dos fatos raramente é alterada;
serve de trampolim à inspiração poética ou panegírica, que, se não chega a
falsificá -la, pelo menos a “ornamenta”.
Um mal -entendido que ainda tem sequela em alguns dicionários franceses
deve ser esclarecido. Os franceses tomavam os dieli, a quem chamavam de griots”,
por feiticeiros (sorcier), o que não corresponde à realidade. Pode acontecer de um
griot ser korte ‑tigui, lançador de má sorte”, assim como pode acontecer de um
griot ser doma, “conhecedor tradicional”, não porque nasceu griot, mas porque
foi iniciado e adquiriu sua proficiência, boa ou ruim, na escola de um mestre
do ofício.
199
A tradição viva
O mal -entendido provavelmente advém da ambivalência do termo francês
“griot”, que pode designar o conjunto dos nyamakala (que incluem os dieli) e,
mais frequentemente, apenas a casta dos Dieli.
A tradição declara que os nyamakala são todos subaa, termo que designa um
homem versado em conhecimentos ocultos a que têm acesso os iniciados,
uma espécie de ocultista”. A tradição exclui desta designação os dieli, que não
seguem uma via iniciatória própria. Portanto, os nyamakala -artesãos são subaa.
Dentre estes, encontra -se o garanke, trabalhador do couro, que possui a reputação
de ser um subaga, feiticeiro no mau sentido do termo.
Quanto a mim, sou propenso a acreditar que os primeiros intérpretes europeus
confundiram os dois termos subaa e subaga (semelhantes na pronúncia) e que a
ambivalência do termo “griot fez o resto.
Uma vez que a tradição declara que “todos os nyamakala são subaa (ocultistas)”,
os intérpretes devem ter entendido “todos os nyamakala são subaga (feiticeiros)”,
o que, devido ao duplo uso, coletivo ou particular, da palavra “griot”, tornou -se
“todos os ‘griots’ são feiticeiros”. Daí o mal -entendido.
Seja como for, a importância do dieli não se encontra nos poderes de bruxaria
que ele possa ter, mas em sua arte de manejar a fala, que, aliás, também é uma
forma de magia.
Antes de deixarmos os griots, assinalemos algumas exceções que podem causar
confusão. Por vezes, alguns tecelões deixam de exercer seu ofício tradicional
para se tornarem tocadores de guitarra. Os Peul chamam -nos de Bammbaado,
literalmente “aquele que é carregado nas costas”, porque suas despesas são
sempre pagas por outrem ou pela comunidade. Os Bammbaado, que são sempre
contadores de histórias, também podem ser poetas, genealogistas e historiadores.
Alguns lenhadores também podem trocar suas ferramentas por uma guitarra
e se tornar excelentes músicos e genealogistas. Bokar Ilo e Idriss Ngada, que,
pelo que sei, se encontravam entre os grandes genealogistas do Alto Volta, eram
lenhadores que se tornaram músicos. Mas trata -se aqui de exceções.
Do mesmo modo, alguns nobres desacreditados podem se tornar animadores
públicos, mas não músicos
14
, e são chamados de Tiapourta (em bambara e em
fulfulde). Assim, são mais impudentes e cínicos do que o mais impudente dos
griots, e ninguém leva a sério seus comentários. Pedem presentes aos griots com
tal insistência que estes últimos chegam a fugir ao ver um Tiapourta …
14 Cabe lembrar que os Horou (nobres), peul ou bambara, jamais tocam música, pelo menos em público.
Os Tiapourta conservaram, em geral, esse costume.
200
Metodologia e pré -história da África
Se a música é, em geral, a grande especialidade dos dieli, existe também uma
música ritual, tocada por iniciados, que acompanha as cerimônias ou as danças
rituais. Os instrumentos dessa música sagrada são, portanto, verdadeiros objetos
de culto, que tornam possível a comunicação com as forças invisíveis. Por serem
instrumentos de corda, sopro ou percussão, encontram -se em conexão com os
elementos: terra, ar e água.
A música própria para encantar” os espíritos do fogo é apanágio da associação
dos comedores de fogo, que são chamados de Kursi ‑kolonin ou Donnga ‑soro.
Como tornar ‑se um tradicionalista
Na África do Bafur, como foi dito, qualquer um podia tornar -se
tradicionalista ‑doma, isto é, “Conhecedor”, em uma ou mais matérias tradicionais.
O conhecimento estava à disposição de todos (sendo a iniciação onipresente
sob uma forma ou outra) e sua aquisição dependia simplesmente das aptidões
individuais.
O conhecimento era tão valorizado, que tinha precedência sobre tudo e
conferia nobreza. O conhecedor, em qualquer área, podia sentar -se no Conselho
dos Anciãos encarregado da administração da comunidade, a despeito de sua
categoria social – horon, nyamakala ou woloso. “O conhecimento não distingue
raça nemporta paterna’ (o clã). Ele enobrece o homem”, diz o provérbio.
A educão africana o tinha a sistetica do ensino europeu, sendo
dispensada durante toda a vida. A própria vida era educação. No Bafur, até os
42 anos, um homem devia estar na escola da vida e não tinha “direito a palavra”
em assembleias, a não ser excepcionalmente. Seu dever era ficar “ouvindo e
aprofundar o conhecimento que veio recebendo desde sua iniciação, aos 21
anos. A partir dos 42 anos, supunha -se que já tivesse assimilado e aprofundado
os ensinamentos recebidos desde a infância. Adquiria o direito a palavra nas
assembleias e tornava -se, por sua vez, um mestre, para devolver à sociedade
aquilo que dela havia recebido. Mas isso não o impedia de continuar aprendendo
com os mais velhos, se assim o desejasse, e de lhes pedir conselhos. Um homem
idoso encontrava sempre outro mais velho ou mais sábio do que ele, a quem
pudesse solicitar uma informação adicional ou uma opinião. Todos os dias”,
costuma -se dizer, o ouvido ouve aquilo que ainda não ouviu”. Assim, a educação
podia durar a vida inteira.
Após aprender o ofício e seguir a iniciação correspondente, o jovem nyamakala
artesão, pronto para voar com suas próprias asas, ia geralmente de cidade em
201
A tradição viva
cidade, a fim de aumentar seus conhecimentos aprendendo com novos mestres.
Aquele que não viajou, nada viu”, diz -se. Assim, ele ia de oficina em oficina,
percorrendo, o mais extensamente possível, o país. Os homens das montanhas
desciam às planícies, os das planícies subiam às montanhas, os do Beledugu
vinham ao Mande, e assim por diante.
Com o propósito de logo se fazer reconhecer, o jovem ferreiro, em viagem,
trazia sempre o fole a tiracolo; o lenhador, o machado ou a enxó; o tecelão
carregava às costas o tear desmontado, mas mantinha a naveta ou o carretel bem
à mostra, nos ombros; o trabalhador do couro levava seus pequenos potes de
tinta. Quando o jovem chegava a uma cidade grande, onde os artesãos viviam
em corporações agrupadas por ofício, era automaticamente conduzido ao local
dos trabalhadores do couro ou dos tecelões, etc.
No curso das viagens e investigações, a extensão do aprendizado dependia da
destreza, da memória e, sobretudo, do caráter do jovem. Se era cortês, simpático
e serviçal, os velhos lhe contavam segredos que não contariam a outros, pois se
diz: “O segredo do velho não se compra com dinheiro, mas com boas maneiras”.
Quanto ao jovem horon, passava a infância na corte do pai e na cidade, onde
assistia a todas as reuniões, ouvia as histórias que se contavam e retinha tudo
o que podia. Nas sessões noturnas de sua associação de idade”, cada criança
contava as histórias que havia escutado, fossem elas de caráter histórico ou
iniciatório neste último caso, sem compreender bem todas as implicações.
A partir dos sete anos, automaticamente fazia parte da sociedade de iniciação
de sua cidade e começava a receber os ensinamentos, que, como explicamos,
abrangiam todos os aspectos da vida.
Quando um velho conta uma história iniciatória em uma assembleia,
desenvolve -lhe o simbolismo de acordo com a natureza e capacidade de
compreensão de seu auditório. Ele pode fazer dela simples história infantil
com fundamento moral educativo ou uma fecunda lição sobre os mistérios da
natureza humana e da relação do homem com os mundos invisíveis. Cada um
retém e compreende conforme sua capacidade.
O mesmo ocorre com os relatos históricos que dão vida às reuniões, narrativas
em que os grandes feitos dos antepassados, ou dos heróis do país, são evocados
nos mínimos detalhes. Um estranho de passagem contará histórias de terras
distantes. A criança estará imersa em um ambiente cultural particular, do qual
se impregnará segundo a capacidade de sua memória. Seus dias são marcados
por histórias, contos, fábulas, provérbios e máximas.
Via de regra, o jovem horon não viaja para o exterior, uma vez que es
preparado para a defesa do seu país. Trabalha com o pai, que pode ser agricultor,
202
Metodologia e pré -história da África
alfaiate ou exercer qualquer outra atividade reservada à classe dos horon. Se o
jovem é Peul, muda -se de acampamento com os pais, aprende muito cedo a
cuidar sozinho do rebanho em plena mata, tanto durante o dia quanto à noite,
e recebe a iniciação peul relativa ao simbolismo do gado.
De modo geral, uma pessoa não se torna tradicionalista -doma permanecendo
em sua cidade. Um curandeiro que deseja aprofundar seus conhecimentos tem
de viajar para conhecer as diferentes espécies de plantas e se instruir com outros
“Conhecedores” do assunto.
O homem que viaja descobre e vive outras iniciações, registra diferenças e
semelhanças, alarga o campo de sua compreensão. Onde quer que vá, toma parte
em reuniões, ouve relatos históricos, demora -se com um transmissor de tradição
especializado em iniciação ou em genealogia, entrando, desse modo, em contato
com a história e as tradições dos países por onde passa.
Pode -se dizer que o homem que se tornou tradicionalista -doma foi um
pesquisador e um indagador durante toda a vida e jamais deixará de -lo.
O africano da savana costumava viajar muito. O resultado era a troca e
a circulação de conhecimentos. É por esse motivo que a meria hisrica
coletiva, na África, raramente se limita a um único terririo. Ao contrário,
está ligada a linhas de família ou a grupos étnicos que migraram pelo
continente.
Muitas caravanas abriam caminho pela região servindo -se de uma rede de
rotas especiais, protegidas tradicionalmente por deuses e reis e nas quais se
estava livre de pilhagens e ataques. De outro modo, arriscavam -se ou a um
ataque ou à violação involuntária, por desconhecimento, de algum tabu local e
a pagar caro pelas consequências. Quando da chegada a um país desconhecido,
os viajantes iam “confiar sua caba” a algum homem de posão que dali
em diante se tornava seu garante, pois “tocar o ‘estrangeiro’ é tocar o próprio
anfitrião”.
O grande genealogista é sempre um grande viajante. Enquanto um griot pode
contentar -se em conhecera genealogia da família a que está ligado, o verdadeiro
genealogista seja griot ou não –, a fim de aumentar seus conhecimentos, deverá
necessariamente viajar pelo país para se informar sobre as principais ramificações
de um grupo étnico, e depois viajar para o exterior para traçar a história dos
ramos que emigraram.
Assim, Molom Gaolo, o maior genealogista peul que tive o privilégio de
conhecer, conhecia a genealogia de todos os Peul do Senegal. Quando a idade
avançada não mais lhe permitiu que viajasse para o exterior, ele enviou o filho
Mamadou Molom para continuar o levantamento junto às famílias peul que
203
A tradição viva
haviam migrado pelo Sudão (Mali) com al -Hadjdj’Umar. Na época em que
conheci Molom Gaolo, ele havia conseguido compilar e fixar a história passada
de quase quarenta gerações.
Ele tinha como hábito ir a todos os batizados ou funerais das principais
famílias, a fim de registrar as circunstâncias dos nascimentos e mortes, que
acrescentava ao rol guardado em sua memória fabulosa. Era capaz, também,
de declamar para qualquer Peul importante: Você é o filho de Fulano, nascido
de Beltrano, descendente de Sicrano, ramo de Fulano. .. que morreram em tal
lugar, por tal causa, e que foram enterrados em tal local”, e assim por diante.
“Fulano foi batizado em tal dia, a tal hora, pelo marabu tal e tal…” Logicamente
toda essa informação era, e ainda é, transmitida oralmente e registrada apenas
na memória do genealogista. Não se pode fazer ideia do que a memória de um
“iletrado pode guardar. Um relato ouvido uma vez fica gravado como em uma
matriz e pode, então, ser reproduzido intacto, da primeira à última palavra,
quando a memória o solicitar.
Moiam Gaolo, parece -me, faleceu por volta de 1968, aos 105 anos.
Seu filho, Mamadou Gaolo, agora com 50 anos, vive no Mali, onde continua
o trabalho do pai, pelo mesmo método, exclusivamente oral, sendo também ele
iletrado.
Wahab Gaolo, contemporâneo de Mamadou Gaolo, e ainda vivo, realizou
um levantamento das etnias de língua fulfulde (povos Peul e Tukulor) no Chade,
Camarões, República Centro -Africana e até no Zaire, para informar -se sobre a
genealogia e a história das famílias que emigraram para aqueles países.
Os Gaolo não são dieli, mas uma etnia de língua fulfulde semelhante à
classe dos nyamakala e que desfruta das mesmas prerrogativas. Muito mais
oradores e declamadores que músicos (salvo suas mulheres, que cantam com
o acompanhamento de instrumentos rudimentares), podem ser contadores de
histórias e animadores, existindo, entre eles, muitos genealogistas.
Entre os Marka (etnia mande), os genealogistas têm o nome de “Guessere”.
Dizer genealogista é dizer historiador, pois um bom genealogista conhece a
história, as proezas e os gestos de todas as personagens que cita ou, pelo menos,
das principais. Essa ciência se encontra na própria base da história da África,
pois o interesse pela história está ligado não à cronologia, mas à genealogia, no
sentido de se poder estabelecer as linhas de desenvolvimento de uma família,
clã ou etnia no tempo e no espaço.
Assim, todo africano tem um pouco de genealogista e é capaz de remontar
a um passado distante em sua própria linhagem. Do contrário, estaria como
que privado de sua “carteira de identidade”. No antigo Mali, não havia quem
204
Metodologia e pré -história da África
não conhecesse pelo menos 10 ou 12 gerações de antepassados. Dentre todos
os velhos tukulor que vieram para Macina com al -Hadjdj’Umar não havia um
que não soubesse sua genealogia no Futa Senegal (seu país de origem) e seu
parentesco com as famílias que permaneceram. Foram eles que Mamadou
Molom, filho de Molom Gaolo, consultou quando veio ao Mali para dar
prosseguimento à pesquisa de seu pai.
A genealogia é, desse modo, ao mesmo tempo sentimento de identidade,
meio de exaltar a glória da família e recurso em caso de litígio. Um conflito por
um pedaço de terra, por exemplo, poderia ser resolvido por um genealogista,
que indicaria qual ancestral havia limpado e cultivado a terra, para quem a havia
dado, sob que condições, etc.
Ainda hoje encontramos entre a populão muitos conhecedores de
genealogia e história que não pertencem nem à classe dos dieli nem à dos gaolo.
Temos uma importante fonte de informações para a história da África, pelo
menos ainda por um certo tempo. Cada patriarca é um genealogista para seu
próprio clã, e os dieli e gaolo vêm frequentemente lhes pedir informações com o
propósito de complementar seus conhecimentos. De modo geral, todo velho na
África é sempre um “Conhecedor” em algum assunto histórico ou tradicional.
O conhecimento genealógico não é, portanto, exclusividade dos griots e gaolo,
mas são eles os únicos especialistas em declamar genealogias perante os nobres
para obter presentes.
Inuência do Islã
As peculiaridades da memória africana e as modalidades de sua transmissão
oral não foram afetadas pela islamizão, que atingiu grande parte dos países
da savana ou do antigo Bafur. De fato, por onde se espalhou, o Islã o adaptou
a tradão africana a seu modo de pensar, mas, pelo contrário, adaptou -se à
tradão africana quando – como normalmente ocorria – esta não violava seus
princípios fundamentais. A simbiose assim originada foi tão grande, que por
vezes torna -se difícil distinguir o que pertence a uma ou a outra tradão.
A grande família árabe -berbere dos Kunta islamizou a região bem antes do
século XI. Logo que aprenderam o árabe, os autóctones passaram a se utilizar
de suas tradições ancestrais para transmitir e explicar o Islã.
Grandes escolas islâmicas puramente orais ensinavam a religo nas línguas
vernáculas (exceto o Coo e os textos que fazem parte da oração canica). Podemos
mencionar, entre muitas outras, a escola oral de Djelgodji (chamada Kabe), a escola
205
A tradição viva
de Barani, a de Amadou Fodia em Farimaké (distrito de Niafounké, no Mali), a
de Mohammed Abdoulaye Souadou em Dilli (distrito de Nara, no Mali) e a do
xeque Usman dan Fodio na Nigéria e no Níger, onde todo o ensino era ministrado
em fulfulde. Mais próximas de s estavam a Zauia de Tierno Bokar Salif, em
Bandiagara, e a escola do xeque Salah, o grande marabu dogon, ainda vivo.
Das crianças que saíam das escolas corânicas a maioria era capaz de recitar
de cor o Corão inteiro, em árabe e no salmo desejado, sem entender o sentido
do texto, o que demonstra a capacidade da memória africana.
Em todas essas escolas os princípios básicos da tradição africana não eram
repudiados, mas, ao contrário, utilizados e explicados à luz da revelação corânica.
Tierno Bokar, tradicionalista em assuntos africanos e ismicos, tornou -se
famoso pela intensa aplicação deste método educacional.
Independentemente de uma visão sagrada comum do universo e de uma mesma
concepção do homem e da família, encontramos, nas duas tradições, a mesma
preocupação em citar as fontes (isnad, em árabe) e nunca modificar as palavras
do mestre, o mesmo respeito pela cadeia de transmissão iniciatória (silsila, ou
cadeia”, em árabe) e o mesmo sistema de caminhos iniciatórios (no Islã, as grandes
congregações Sufi ou Tariga, plural turuq, cuja cadeia remonta ao pprio Profeta),
que tornam posvel aprofundar, atras da experiência, aquilo que se conhece pela .
Às categorias de “Conhecedores” tradicionais existentes vieram juntar -se
as dos marabus (letrados em árabe ou em jurisprudência islâmica) e dos grandes
xeques Sufi, embora as estruturas da sociedade (castas e ofícios tradicionais)
fossem preservadas, inclusive nos meios mais islamizados, e continuassem a
veicular suas iniciações particulares. O conhecimento de assuntos islâmicos
constituía uma nova fonte de enobrecimento. Assim, Alfa Ali, falecido em 1958,
gaolo de nascimento, foi a maior autoridade em assuntos islâmicos no distrito
de Bandiagara, assim como seus antepassados e seu filho
15
.
História de uma coleta
Para dar uma ilustração prática de como narrativas históricas, entre outras,
vivem e são preservadas com extrema fidelidade na memória coletiva de uma
sociedade de tradição oral, contarei de que maneira consegui reunir, unicamente
15 De modo geral, a islamização, vinda do norte e do leste, afetou mais particularmente os países da savana,
enquanto que a cristianização, vinda por mar, tocou mais as regiões deoresta da costa.o podemos falar
do encontro entre a tradição e o cristianismo por não possuirmos nenhuma informação sobre o assunto.
206
Metodologia e pré -história da África
a partir da tradição oral, os elementos que me permitiram escrever a História do
Império Peul de Macina no Século XVIII
16
.
Pertencendo à família de Tidjani, chefe da província, tive, desde a infância,
condições ideais para ouvir e reter. A casa de Tidjani, meu pai, em Bandiagara,
estava sempre cheia de gente. Noite e dia havia grandes reuniões onde todos
falavam sobre uma grande variedade de assuntos tradicionais. Estando a família
de meu pai muito envolvida nos acontecimentos da época, os relatos eram
normalmente sobre história, e cada pessoa narrava um episódio bem conhecido
de alguma batalha ou de outro acontecimento memorável. Sempre presente
nessas reuniões, eu não perdia uma palavra sequer, e minha memória, como cera
virgem, gravava tudo.
Foi que, ainda criança, conheci Koullel, o grande contador de histórias,
genealogista e historiador de língua fulfulde. Eu o seguia por toda parte e aprendia
muitos contos e narrativas que orgulhosamente recontava aos camaradas de meu
grupo de idade, a ponto de me apelidarem Amkoullel”, que significa “pequeno
Koullel”.
Circunstâncias alheias à minha vontade levaram -me a viajar, seguindo minha
família, por diversos países onde pude sempre estar em contato com grandes
tradicionalistas. Assim, quando meu pai se viu obrigado a fixar residência em
Bougouni, para onde Koullel nos havia acompanhado, travei conhecimento
com o grande doma bambara, Danfo Sine, e, em seguida, com seu irmão mais
novo, Latif.
Mais tarde, em Bamaco e em Kati, a corte de meu pai foi praticamente
reconstituída, e tradicionalistas chegavam de todos os países para se reunir
em sua casa, sabendo que encontrariam outros Conhecedores em cuja
companhia poderiam avaliar ou mesmo alargar seus próprios conhecimentos,
pois sempre se encontra alguém mais sábio.
Foi ali que comecei a aprender muitas coisas referentes à história do
Império peul de Macina, tanto na versão macinanke (isto é, a versão do povo
origirio de Macina, partidários da família de Sheikou Amadou), como
na versão dos Tukulor, seus antagonistas, e ainda na versão de outras etnias
(Bambara, Soninke, Songhai, etc.) que haviam presenciado ou participado dos
acontecimentos.
Tendo, assim, adquirido uma formação básica bastante sólida, decidi coletar
informações sistematicamente. Meu método consistia em gravar, primeiramente,
16 HAMPATÉ BÂ, A. e DAGET, J. 1962.
207
A tradição viva
todas as narrativas, sem me preocupar com sua veracidade ou com uma possível
exageração. Em seguida, comparava as narrativas dos Macinanke com as dos
Tukulor ou com as de outras etnias envolvidas. Dessa maneira, sempre se pode
encontrar, em qualquer região, etnias cujas narrativas permitam controlar as
declarações dos principais interessados.
Foi um trabalho de fôlego. A coleta de informações exigiu -me mais de 15
anos de trabalho e de jornadas que me levavam do Futa Djalon (Guiné) a Kano
(Nigéria), a fim de retraçar as rotas que Sheikou Amadou e al -Hadjdj’Umar
haviam percorrido em todas as suas viagens. Desse modo, registrei as narrativas
de pelo menos mil informantes. No final, mantive apenas os relatos concordantes,
os que eram conformes tanto às tradições macinanke e tukulor, como também
às das demais etnias envolvidas (cujas fontes citei no livro).
Constatei que, no conjunto, meus mil informantes haviam respeitado a
verdade dos fatos. A trama da narrativa era sempre a mesma. As diferenças,
que se encontravam apenas em detalhes sem importância, deviam -se à qualidade
da memória ou da verve peculiar do narrador. Dependendo do grupo étnico a
que pertencia, podia tender a minimizar certos revezes ou a tentar encontrar
alguma justificativa para eles, mas não mudava os dados básicos. Sob a influência
do acompanhamento musical, o contador de histórias podia deixar -se levar pelo
entusiasmo, mas a linha geral permanecia a mesma: os lugares, as batalhas, as
vitórias e as derrotas, as conferências e diálogos mantidos, os propósitos dos
personagens principiais, etc.
Essa experiência provou -me que a tradição oral era perfeitamente válida do
ponto de vista científico. É possível comparar as versões de diferentes etnias,
como fiz, a título de controle, mas a própria sociedade exerce um autocontrole
permanente. Com efeito, nenhum narrador poderia permitir -se mudar os fatos,
pois à sua volta haveria sempre companheiros ou anciãos que imediatamente
apontariam o erro, fazendo -lhe a séria acusação de mentiroso.
O Professor Montet certa vez referiu -se a mim como tendo relatado, no
Império Peul de Macina, narrativas que seu pai havia coletado 50 anos antes, das
quais nenhuma palavra tinha sido alterada. Isso dá uma ideia da fidelidade com
que os dados são preservados na tradição oral!
Características da memória africana
Entre todos os povos do mundo, constatou -se que os que não escreviam
possuíam uma memória mais desenvolvida.
208
Metodologia e pré -história da África
Demos o exemplo dos genealogistas que conseguem reter uma inacreditável
quantidade de elementos, mas poderíamos mencionar também o caso de certos
comerciantes iletrados (ainda conheço muitos deles) que dirigem negócios
envolvendo por vezes dezenas de milhões de francos, e emprestam dinheiro a
muitas pessoas no curso das suas viagens, guardando de memória a mais precisa
contabilidade de todos esses movimentos de mercadorias e dinheiro, sem uma
única nota escrita e sem cometer o menor engano.
O dado a ser retido fica imediatamente inscrito na memória do tradicionalista,
como em cera virgem, e permanece sempre disponível, em sua totalidade
17
.
Uma das peculiaridades da memória africana é reconstituir o acontecimento
ou a narrativa registrada em sua totalidade, tal como um filme que se desenrola
do princípio ao fim, e fazê -lo no presente. Não se trata de recordar, mas de trazer
ao presente um evento passado do qual todos participam, o narrador e a sua
audiência. reside toda a arte do contador de histórias. Ninguém é contador
de histórias a menos que possa relatar um fato tal como aconteceu realmente,
de modo que seus ouvintes, assim como ele próprio, tornem -se testemunhas
vivas e ativas desse fato. Ora, todo africano é, até certo ponto, um contador de
histórias. Quando um estranho chega a uma cidade, faz sua saudação dizendo:
“Sou vosso estrangeiro”. Ao que lhe respondem: “Esta casa está aberta para
ti. Entra em paz”. E em seguida: -nos notícias”. Ele passa, então, a relatar
toda sua história, desde quando deixou sua casa, o que viu e ouviu, o que lhe
aconteceu, etc., e isso de tal modo que seus ouvintes o acompanham em suas
viagens e com ele as revivem. É por esse motivo que o tempo verbal da narrativa
é sempre o presente.
De maneira geral, a memória africana registra toda a cena: o cenário, os
personagens, suas palavras, até mesmo os mínimos detalhes das roupas. Nos
relatos de guerra dos Tukulor, sabemos qual bubu bordado o grande herói
Oumarei Samba Dondo estava usando em determinada batalha, quem era seu
palafreneiro e o que lhe aconteceu, qual era o nome de seu cavalo e o que lhe
sucedeu, etc. Todos esses detalhes animam a narrativa, contribuindo para dar
vida à cena.
17 Esse fenômeno poderia estar relacionado com o fato de as faculdades sensoriais do homem serem mais
desenvolvidas onde necessidade de se fazer grande uso delas e se atroarem em meio à vida moderna. O
caçador africano tradicional, por exemplo, pode ouvir e identicar determinados sons a vários quilômetros
de distância. Sua visão é particularmente acurada. Alguns têm a capacidade de “sentir” a água, como
verdadeiros adivinhos. Os tuaregue do deserto possuem um senso de direção que, está próximo do
miraculoso. E como esses dezenas de exemplos. O homem moderno, imerso na multiplicidade de
ruídos e informações, suas faculdades se atroarem progressivamente. Está cienticamente provado
que os habitantes das grandes cidades perdem cada vez mais sua capacidade auditiva.
209
A tradição viva
Por essa razão o tradicionalista não consegue resumir” senão dificilmente.
Resumir uma cena equivale, para ele, a escamoteá -la. Ora, por tradição, ele não
tem o direito de fazer isso. Todo detalhe possui sua importância para a verdade
do quadro. Ou narra o acontecimento em sua integridade ou não o narra. Se lhe
for solicitado resumir uma passagem ele responderá: “Se não tens tempo para
ouvir -me, contarei um outro dia”.
Do mesmo modo, o tradicionalista não tem receio de se repetir. Ninguém
se cansa de ouvi -lo contar a mesma história, com as mesmas palavras, como
talvez já tenha contado inúmeras vezes. A cada vez, o filme inteiro se desenrola
novamente. E o evento está lá, restituído. O passado se torna presente. A vida
não se resume jamais. Pode -se, quando muito, reduzir uma história para as
crianças, resumindo certas passagens, mas então não se a tomará por verdade.
Em se tratando de adultos, o fato deve ser narrado na íntegra ou calado.
Esta peculiaridade da memória africana tradicional ligada a um contexto de
tradição oral é em si uma garantia de autenticidade.
Quanto à memória dos tradicionalistas, em especial a dos tradicionalistas
‑doma ou “Conhecedores”, que abrange vastas áreas do conhecimento tradicional,
constitui uma verdadeira biblioteca onde os arquivos não estão “classificados”,
mas totalmente inventariados.
Tudo isso pode parecer caótico para um esrito moderno, mas para
os tradicionalistas, se existe caos, é à maneira das moléculas de água que se
misturam no mar para formar um todo vivo. Nesse mar, eles se movimentam
com a facilidade de um peixe.
As fichas imateriais do catálogo da tradição oral são máximas, provérbios,
contos, lendas, mitos, etc., que constituem quer um esboço a ser desenvolvido,
quer um ponto de partida para narrativas didáticas antigas ou improvisadas.
Os contos, por exemplo, e especialmente os de iniciação, possuem uma trama
básica invariável, à qual, no entanto, o narrador pode acrescentar floreados,
desenvolvimentos ou ensinamentos adequados à compreensão de seus ouvintes.
O mesmo ocorre com os mitos, que são conhecimentos condensados em uma
forma sintética que o iniciado pode sempre desenvolver ou aprofundar para
seus alunos.
Convém considerar com atenção o conteúdo dos mitos e não “catalogá-
-los” muito rapidamente. Podem encobrir realidades de ordens muito diversas e
mesmo, por vezes, ser entendidos em vários níveis simultaneamente.
Enquanto alguns mitos se referem a conhecimentos esotéricos e “ocultam o
conhecimento ao mesmo tempo que o transmitem através dos séculos, outros
podem ter alguma relação com acontecimentos reais. Tomemos o exemplo de
210
Metodologia e pré -história da África
Thianaba, a serpente mítica peul, cuja lenda narra as aventuras e a migração pela
savana africana, a partir do oceano Atlântico. Por volta de 1921, o engenheiro
Belime, encarregado de construir a barragem de Sansanding, teve a curiosidade
de seguir passo a passo as indicações geográficas da lenda, que ele havia
aprendido com Hammadi Djenngoudo, grande “Conhecedor peul. Para sua
surpresa, descobriu o traçado do antigo leito do rio Níger.
Conclusão
Para a África, a época atual é de complexidade e de dependência. Os diferentes
mundos, as diferentes mentalidades e os diferentes peodos sobrepõem -se,
interferindo uns nos outros, às vezes se influenciando mutuamente, nem sempre
se compreendendo. Na África o século XX encontra -se lado a lado com a Idade
Média, o Ocidente com o Oriente, o cartesianismo, modo particular de pensar
o mundo, com o animismo”, modo particular de vivê -lo e experimentá -lo na
totalidade do ser.
Os jovens líderes modernos” governam, com mentalidades e sistemas de lei,
ou ideologias, diretamente herdados de modelos estrangeiros, povos e realidades
sujeitos a outras leis e com outras mentalidades. Para exemplificar, na maioria
dos territórios da antiga África ocidental francesa, o código legal elaborado logo
após a independência, por nossos jovens juristas, recém -saídos das universidades
francesas, está pura e simplesmente calcado no Código Napoleônico. O
resultado é que a população, até então governada segundo costumes sagrados
que, herdados de ancestrais, asseguravam a coesão social, não compreende por
que está sendo julgada e condenada em nome de um “costume” que não é o seu,
que não conhece e que não corresponde às realidades profundas do país.
O drama todo do que chamarei de África de base” é o de ser frequentemente
governada por uma minoria intelectual que não a compreende mais, através de
princípios incompatíveis com a sua realidade.
Para a nova inteligentsia” africana, formada em disciplinas universitárias
europeias, a Tradição muitas vezes deixou de viver. São histórias de velhos”!
No entanto, é preciso dizer que, de um tempo para cá, uma importante parcela
da juventude culta vem sentindo cada vez mais a necessidade de se voltar às
tradições ancestrais e de resgatar seus valores fundamentais, a fim de reencontrar
suas próprias raízes e o segredo de sua identidade profunda.
Por contraste, no interior da África de base”, que em geral fica longe das
grandes cidades – ilhotas do Ocidente –, a tradição continuou viva e, como já o
211
A tradição viva
disse antes, grande número de seus representantes ou depositários ainda pode
ser encontrado. Mas por quanto tempo?
O grande problema da África tradicional é, em verdade, o da ruptura da
transmissão.
Nas antigas colônias francesas, a primeira grande ruptura veio com a guerra
de 1914, quando a maioria dos jovens se alistou para ir combater na França,
de onde muitos nunca retornaram. Estes jovens deixaram o país na idade em
que deveriam estar passando pelas grandes iniciações e aprofundando seus
conhecimentos sob a direção dos mais velhos.
O fato de que era obrigatório para homens importantes enviarem seus filhos
a “escolas de brancos”, de modo a separá -los da tradição, favoreceu igualmente
esse processo. A maior preocupação do poder colonial era, compreensivelmente,
remover as tradições autóctones tanto quanto possível para implantar no lugar
suas próprias concepções. As escolas, seculares ou religiosas, constituíram os
instrumentos essenciais desta ceifada.
A educação “moderna” recebida por nossos jovens após o fim da última
guerra concluiu o processo e criou um verdadeiro fenômeno de aculturação.
A inicião, fugindo dos grandes centros urbanos, buscou refúgio na
floresta, onde, devido à atração das grandes cidades e ao surgimento de novas
necessidades, os “anciãos” encontram cada vez menos ouvidos dóceis” a quem
possam transmitir seus ensinamentos, pois, segundo uma expressão consagrada,
o ensino pode se dar “de boca perfumada a ouvido dócil e limpo” (ou seja,
inteiramente receptivo).
Estamos hoje, portanto, em tudo o que concerne à tradição oral, diante da
última geração dos grandes depositários. Justamente por esse motivo o trabalho de
coleta deve ser intensificado durante os próximos 10 ou 15 anos, após os quais
os últimos grandes monumentos vivos da cultura africana terão desaparecido
e, junto com eles, os tesouros insubstituíveis de uma educão peculiar, ao
mesmo tempo material, psicológica e espiritual, fundamentada no sentimento
de unidade da vida e cujas fontes se perdem na noite dos tempos.
Para que o trabalho de coleta seja bem -sucedido, o pesquisador deverá se
armar de muita paciência, lembrando que deve ter o coração de uma pomba,
a pele de um crocodilo e o estômago de uma avestruz”. “O coração de uma
pomba para nunca se zangar nem se inflamar, mesmo se lhe disserem coisas
desagradáveis. Se alguém se recusa a responder sua pergunta, inútil insistir; vale
mais instalar -se em outro ramo. Uma disputa aqui terá repercussões em outra
parte, enquanto uma saída discreta fará com que seja lembrado e, muitas vezes,
chamado de volta. A pele de um crocodilo”, para conseguir se deitar em qualquer
212
Metodologia e pré -história da África
lugar, sobre qualquer coisa, sem fazer cerimônias. Por último, “o estômago de
uma avestruz”, para conseguir comer de tudo sem adoecer ou enjoar -se.
A condição mais importante de todas, porém, é saber renunciar ao hábito
de julgar tudo segundo critérios pessoais. Para descobrir um novo mundo, é
preciso saber esquecer seu próprio mundo, do contrário o pesquisador estará
simplesmente transportando seu mundo consigo ao invés de manter -se à escuta”.
Através da boca de Tierno Bokar, o sábio de Bandiagara, a África dos velhos
iniciados avisa o jovem pesquisador:
“Se queres saber quem sou,
Se queres que te ensine o que sei,
Deixa um pouco de ser o que tu és
E esquece o que sabes”.
C A P Í T U L O 9
213
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
Ao descobrir um artefato, o arqueólogo geralmente começa a estu-lo
através de meios puramente arqueológicos, como o registro da camada em
que foi encontrado, a leitura do texto que o acompanha, a descrição de sua
forma, o cálculo de suas dimensões, etc. Os dados assim obtidos são estudados
estratigráfica, filológica e tipologicamente, podendo resultar daí importantes
informações no que diz respeito à idade, às origens, etc. do artefato. Na maioria
dos casos, entretanto, o arqueólogo não consegue encontrar os dados capazes
de fornecer uma resposta às suas perguntas ou ajudá -lo a chegar a conclusões
satisfatórias. Quando isso acontece, ele tem de submeter sua descoberta a outras
disciplinas, para completar a investigação. Essa investigação, por sua vez, deve
trazer -lhe informações sobre o material de que é feito o objeto, sua origem,
técnica de fabricação, idade, o uso a que se destinava, etc. Deve -se enfatizar,
no entanto, que essas pesquisas complementares constituem apenas um novo
ângulo sob o qual o arqueólogo vai enfocar o problema; os dados científicos e as
considerações de ordem estilística, filológica e estratigráfica devem formar um
todo inseparável
1
.
1 HALL, E. T. 1970, p. 135 -41.
A Arqueologia da África e suas técnicas
Processos de datação
Z. Iskander
214
Metodologia e pré -história da África
A supervisão de sítios arqueológicos enterrados, à exceção das escavações,
a conservação dos vestígios e monumentos descobertos são outros campos nos
quais as técnicas científicas podem auxiliar a Arqueologia.
Os todos científicos utilizados pela Arqueologia têm o mérito de ser
universais. Podem ser aplicados tanto na África como na Europa, Ásia ou
América, embora a maneira de aplicá -los possa variar de um lugar para outro.
O assunto é muito vasto; por isso, trataremos os temas seguintes de maneira
ampla, sem entrar em muitos detalhes de laboratório:
• Técnicas analíticas usadas em arqueometria
• Objetivos da pesquisa e da análise arqueométricas
• Técnicas de datação
• Técnicas usadas na prospecção arqueológica
• Técnicas de conservação
Técnicas analíticas usadas em arqueometria
As técnicas de análise têm -se desenvolvido tanto, que às vezes é dicil decidir
qual delas utilizar no exame de determinada amostra, para obter a informação
desejada. Os parágrafos seguintes procuram abordar todos os aspectos do problema.
Escolha do método de análise
As amostras arqueológicas são excepcionalmente valiosas por duas razões:
por um lado, a quantidade de material disponível é em geral tão pequena que mal
e mal se presta a uma análise completa e, no caso de ser totalmente usada, talvez
não possa ser substituída. Por outro lado, pelo menos uma parte da amostra deve
ser guardada para futuras referências ou exposições. Portanto, deve -se ter muito
cuidado nas análises arqueométricas, a fim de obter o maior número possível
de informações. Os critérios que determinam a escolha do método de análise a
ser adotado podem ser resumidos como segue
2
.
Importância da amostragem disponível
Se a quantidade do material disponível é suficientemente grande, procede -se,
de prefencia, à análise química em meio aquoso, para determinar a porcentagem
2 HALL, E. T. op. cit.
215
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
dos principais elementos constituintes. A análise de absorção atômica pode ser
aplicada para determinar as porcentagens de metais alcalinos tais como o sódio, o
potássio e o lítio. Entretanto, para elementos e compostos imponderáveis (traços),
as análises por meio de fluorescência ou difração de raios X são preferíveis, embora
seus resultados comportem uma margem de erro de 10 a 20%.
Se a quantidade de amostras disponíveis é mínima e vários elementos devem
ser detectados, convém recorrer à espectrofotometria ou à difração de raios X.
Quando o arqueólogo não puder fornecer um espécime completo, por menor que
seja, o material pode ser analisado por emiso espectrométrica ou fluorescência
de raios X, contanto que o tamanho e a forma do objeto permitam a utilização
desse tipo de aparelhagem.
Tipo de material analisável
Existe uma grande variedade de materiais arqueológicos. Alguns deles,
como alimentos, unguentos, resinas, óleos e ceras, são total ou parcialmente
orgânicos. Outros, como metais, pigmentos, cerâmicas, vidro e gesso,
são inorgânicos. Os materiais orgânicos são geralmente submetidos a
combustão, saponificação, dissolução, radiação infravermelha, análise
térmica e cromatográfica. Os materiais inorgânicos são submetidos às
alises normais em meio aquoso, à espectrometria, à fluorescência de raios
X, à difrão de raios X ou à ativação por nêutrons, conforme o tipo de
informação procurada.
Tipo de informação procurada
Para economizar tempo e dinheiro, deve -se proceder à análise de acordo
com um programa bem planejado, em cooperão com o arqueólogo, para se
obterem respostas a questões específicas. Por exemplo, o cobre e o bronze
antigos se parecem superficialmente. Somente o estanho permite que se
estabeleçam diferenças entre esses metais: submete -se um pequeno pedaço
da amostra a uma solução concentrada de ácido nítrico; o precipitado
esbranquiçado de ácido metastânico que se forma é a seguir diluído em
água destilada. Esse teste simples está ao alcance de qualquer arqueólogo.
Minerais de chumbo eram utilizados antigamente no Egito para vitrificar
peças de cerâmica. Desse modo, apenas o teste para detectar a presea
de chumbo já é suficiente para determinar aproximadamente a data de
fabricão de um objeto vitrificado.
216
Metodologia e pré -história da África
Apresentação dos resultados
Os arqueólogos que vão estudar os resultados da investigão científica
e usá -los em seus relatórios e conclusões raramente são cientistas. Convém,
portanto, que os resultados lhes sejam apresentados de maneira acessível. Assim,
por exemplo, em vez de utilizar submúltiplos do grama, numa amostra de 100
gramas, é bem mais útil apresentar todos os resultados em porcentagens, de
forma que sejam universalmente compreendidos. Além disso, tal procedimento
facilita a comparação dos resultados entre diferentes laboratórios.
Métodos de exame e de análise
À luz destas considerações, podemos enumerar as técnicas de análise mais
importantes usadas em arqueometria.
Exame microscópico
Um exame com uma simples lente de aumento (10X ou 20X) geralmente é
muito útil para obter uma primeira impressão de um artefato ou de uma amostra
antiga. Melhor ainda é uma lente binocular com ampliação de 7X, 10X ou 20X
e um amplo campo entre a objetiva e o plano focal. Este dispositivo permite a
observação de cavidades profundas, que uma lupa normal não poderia atingir.
Dados mais precisos são obtidos com a ajuda de um microscópio composto,
com amplião de 100, 200, 400 e 1250X e imersão em óleo. O exame
microscópico pode ser aplicado com os seguintes objetivos:
• identificação: na maior parte dos casos, é possível identificar uma amostra
(em estado puro ou composta de elementos heteroneos) estudando
microscopicamente a textura ou as particularidades cristalinas de seus
componentes;
• análise qualitativa: as técnicas atuais possibilitam a precipitação, a dissolução,
a observação da evolução gasosa e outros processos que podem ser aplicados
em uma parte minúscula da amostra
3
. Por exemplo, se um fragmento de
amostra for colocado numa lâmina de vidro e umedecido, ocorrerá ou não
sua dissolução. Se a essa solução for adicionada uma gota de nitrato de prata
e surgir, no ácido nítrico, um precipitado esbranquiçado, insolúvel, pode -se
deduzir a presença de um ânion de cloreto;
3 EWING, G. W. 1954, p. 411.
217
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
 . Microfotografia de uma secção da fateixa de cobre
pertencente ao barco de Quéops em Gizeh.
F . Radiograa frontal do peito da Rainha Nedjemet, da 21
a
dinastia. Museu do Cairo.
218
Metodologia e pré -história da África
• análise quantitativa: os métodos microscópicos são particularmente valiosos
na análise quantitativa de combinações heterogêneas complexas, dificilmente
analisáveis pelos métodos qmicos comuns
4
. Entre outros resultados,
permitem a determinação do número e do tamanho dos componentes. Se
a densidade de cada componente é conhecida, as porcentagens volumétricas
dos componentes da mistura podem ser convertidas em porcentagens
ponderáveis
5
.
Radiograa
A radiografia é muito útil no exame de obras de arte, pois permite, por
exemplo, detectar a presença de corpos estranhos no interior de uma múmia
ainda enfaixada ou incrustações decorativas escondidas sob camadas de bálsamo,
etc. Tais informações ajudam a determinar a técnica a ser adotada para retirar as
bandagens das mias; são muito valiosas também nos trabalhos de conservação
de objetos de metal, além de serem muito úteis durante os estudos científicos
e arqueológicos. No museu do Cairo, por exemplo, a radiografia de múmias
reais revelou que mesmo aquelas das quais se haviam retirado as bandagens
ainda continham joias que haviam escapado à detecção, por se encontrarem sob
espessas camadas de resina
6
.
Determinação do peso especíco
Na Antiguidade, o ouro geralmente continha prata ou cobre. Os objetos de
ouro são tão preciosos que, na maioria dos casos, nenhum fragmento, por menor
que seja, pode ser retirado para análise. Diante disso, Caley pensou em aplicar
o método de determinação do peso específico, que não traz nenhum risco de
deterioração e permite que se descubra a porcentagem de ouro dos artefatos
7
.
Este método é muito fácil e baseia -se no princípio de Arquimedes. Se o peso
do objeto ao ar livre é de W g e na água é de X g,
seu peso específico será igual a
W
W – X
.
4 CHAMOT, E. M. e MASON, C. W. 1938, p. 431.
5 KOLTHOFF, I. M., SANDELL, E. B., MEEHAN, E. J. e BRUCKENSTEIN, S. 1969.
6 HALPERN, J. W., HARRIS, J. E. e BARNES, C. 1971. p. 18.
7 CALEY, E. R. 1949, p. 73 -82.
219
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
Como o peso específico do ouro (19,3) é quase o dobro do da prata (10,5)
ou do cobre (8,9), a presença de pequenas quantidades de prata ou cobre pode
ser facilmente detectada. Supondo que o objeto não contenha platina, que o
componente de ligação (prata ou cobre) seja conhecido e que não tenha ocorrido
nenhuma contração durante a fusão, a margem de erro previsível no cálculo do
teor de ouro é da ordem de 1%.
Análise química normal em meio aquoso
Esta cnica é indispensável, em Arqueologia, para o estudo do material
de que é feito um artefato, bem como para a escolha da melhor maneira de
conser-lo. É usada nas análises qualitativas e quantitativas de argamassas,
gesso, vestígios corroídos de artefatos metálicos, restos de comida, cosméticos,
resíduos de bálsamos e produtos análogos, etc.
A descrição das técnicas utilizadas em tais análises não é do âmbito deste
capítulo, pois são familiares a todos os químicos que trabalham no campo da
Arqueologia; além disso, são descritas com detalhes em manuais de química
analítica, como por exemplo o de Kolthoff e seus co -autores
8
, relativamente
às matérias inorgânicas, e nos trabalhos de Iskander
9
e Stross
10
, relativamente
às matérias orgânicas e inorgânicas. “Objetos de ferro descobertos em Niani
(Guiné), datando do século XIII ao século XV, foram submetidos a uma análise
química, que revelou conterem cobre, fósforo, níquel, tungstênio, titânio e
molibdênio, impurezas provavelmente presentes nos minérios utilizados”
11
.
Espectrofotometria
Esta técnica tem sido utilizada na análise de vestígios antigos, tais como
bronze, cerâmica, argamassa, pigmentos, etc.
Vários fatores tornam a espectrofotometria particularmente vantajosa em
relação a outros métodos de análise desses vestígios: apresenta sensibilidade
adequada; permite detectar altas proporções (até 20%) da maioria dos elementos;
além disso, todos os elementos presentes na amostra podem ser gravados em
8 KOLTHOFF, I. M., SANDELL, E. B., MEEHAN, E. J. e BRUCKENSTEIN, S. 1969.
9 FARAG, N. e ISKANDER, Z. 1971, p. 111 -15; ISKANDER, Z., p. 59 -71, Le monastère de Phoebammon
duns la ebaide, v. III, ed. BACHATLY, Cairo, Société d’Archeologie Copte, 1961; ISKANDER, Z. e
SHAHEEN, A. E. 1964, p. 197 -208; ZAKI, A. e ISKANDER, Z. 1942, p. 295 -313.
10 STROSS, F. H. e O’DONNALL, A. E. 1972, p. 1 -16.
11 MUZUE, A. e NOSEK, E. 1974, p. 96.
220
Metodologia e pré -história da África
linhas espectrais numa chapa fotográfica durante uma única exposição, o que
proporciona um registro permanente para posteriores consultas. Uma nova
variante da espectrofotometria é o Laser Milliprobe Spectometer
12
. A análise
espectrográfica de todos os bronzes’ naturalistas de Ife (Nigéria) mostrou que
eles não são de bronze, mas de latão”
13
.
Análise por absorção atômica
Este método é perfeitamente adequado para amostras de matéria inorgânica
(metais, cimentos, soldas, vidro, esmaltes, sais, etc.). Em arqueometria, seu
emprego apresenta as seguintes vantagens: elevado grau de exatidão (margem
de erro de 1%) com amostras de 5 a 10 mg; possibilidade de detecção, em uma
mesma amostra, de elementos mais importantes, elementos menos importantes
ou simplesmente traços; enfim, é uma técnica de uso corrente. Ela facilita muito
também as comparações entre os resultados de diferentes laboratórios, e as
causas eventuais de erros experimentais são mais facilmente controláveis
14
.
Fluorescência de raios X
A excitação de um escime por meio de raios X é um método de análise muito
útil. Seu princípio é o seguinte: quando um átomo é bombardeado com raios de
alta frequência, um elétron é removido de uma órbita interior do átomo e a lacuna
assim criada será preenchida por um elétron proveniente de uma órbita externa. A
variação de energia entre os níveis externo e interno provém de raios secundários
ou fluorescentes, característicos dos elementos que compõem o espécime.
15
Como a força de penetração dos raios X é limitada, esta técnica só pode ser
utilizada na superfície dos objetos, sendo por isso aplicada apenas na análise
de vestígios inorgânicos, tais como o vidro, a faiança e a cerâmica vitrificada, a
obsidiana e a maior parte das rochas. Entretanto, os objetos metálicos antigos
sofreram a ação do tempo, ou os metais menos nobres que continham afloraram
à superfície. Desta maneira, uma análise restrita à superfície desses objetos
através do método da fluorescência de raios X pode oferecer resultados diferentes
daqueles obtidos por uma análise do objeto inteiro.
16
12 HALL, E. T. 1970, p. 135 -41.
13 WILLET, F. 1964, p. 81 -83.
14 WERNER, A. E. A. 1970, p. 179 -85.
15 KOLTHOFF, I. M., SANDELL, E. B., MEEHAN, E. J. e BRUCKENSTEIN, S. 1969.
16 HALL, E. T. 1970, p. 135 -41.
221
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
Análise por ativação de nêutrons
Nesta técnica, um grupo de amostras e de produtos químicos standard é
colocado em um reator nuclear e submetido à irradiação por utrons lentos
(ou térmicos). Alguns dos isótopos resultantes terão vida suficiente para emitir
raios gama. Como cada radioisótopo emite raios gama com comprimentos de
onda característicos, a análise desses comprimentos de onda possibilita tanto
a identificação dos elementos presentes no espécime como a determinação
de sua concentração, quer se trate de elementos importantes, quer de simples
traços.
Os nêutrons e os raios gama têm poder de penetração muito maior que os
raios X, permitindo assim que a análise atinja maior espessura em determinada
amostra. Desse modo, o afloramento de cobre à superfície dos metais pode ser
ignorado.
17
Ao realizar esse tipo de análise, deve -se tomar o cuidado para que, se o
espécime tiver de retomar ao museu, a radioatividade residual baixe a um nível
inofensivo em um lapso de tempo razoável. A título de exemplo, o isótopo da
prata radioativa tem meia -vida de 225 dias; logo, se um objeto de prata receber
uma dose muito forte de radiação, não pode ser devolvido ao museu por
centenas de anos.
18
Nesses casos, uma minúscula porção do objeto é retirada
através da fricção com um pequeno disco de quartzo rugoso. Este quartzo sofre
então irradiação no reator e é analisado, do modo habitual, para a detecção de
prata, ouro, cobre, antimônio e arsênico.
Esta técnica foi recentemente aplicada, em pesquisas arqueológicas realizadas
na África, no estudo de contas de vidro, que foram submetidas a duas ativações
de nêutrons. O primeiro bombardeamento durou pouco tempo, procedendo-
-se logo após à procura de isótopos de vida curta nas contas. o segundo foi
intenso e contínuo, durando oito horas. As amostras foram, então, deixadas de
lado por alguns dias e depois submetidas à análise, que procurou por isótopos
de vida média. A seguir, foram guardadas novamente e mais tarde testadas em
busca de isótopos de vida longa.
19
Um estudo de diversas aplicações desta técnica em Arqueologia foi publicado
por Sayre e Meyers.
20
17 Loc. cit.
18 Loc. cit.
19 DAVISON, C. C. 1973, p. 73 e 74.
20 SAYRE, E. V. e MEYERS, P. 1971, p. 115 -50.
222
Metodologia e pré -história da África
Objetivos da análise arqueométrica
Os principais objetivos da investigação científica e da análise em arqueometria
são os seguintes:
Identicação rigorosa dos objetos
É essencial que a identificação dos vestígios arqueológicos seja efetuada
escrupulosamente, para que o arqueólogo possa descrevê -los com exatidão nas
publicações especializa das e nos guias de museus. A identificação precisa da
substância dos artefatos também é muito importante, pois é do conhecimento
da verdadeira natureza das subsncias examinadas que depende o alcance
das observações correspondentes. Infelizmente, os erros de identificação são
frequentes nas publicações arqueológicas mais antigas e causaram muita
confusão. O cobre é às vezes confundido com o bronze, embora a descoberta
e o uso do bronze impliquem certa evolução cultural. O bronze, por sua vez,
é confundido com o latão e isso pode acarretar uma falsa conclusão quanto
à idade do objeto, que as primeiras produções de latão remontam mais ou
menos à metade do primeiro século antes de nossa era, enquanto o bronze
era conhecido e utilizado uns vinte séculos antes.
21
Como a maior parte dos erros de identificação provém de apreciações visuais
incorretas, convém enfatizar que, para evitar qualquer risco de interpretação
errônea, a identificão do material arqueológico deve basear -se na análise
química ou por difração de raios X.
Tradução de palavras antigas desconhecidas
Às vezes, uma identificação correta permite traduzir palavras desconhecidas.
Por exemplo, em Saqqara, Egito, foram descobertos dois recipientes de cemica na
sepultura do rei Hor -Aha (Primeira Dinastia, aproximadamente -3100). Em cada
um deles figuravam hieróglifos correspondentes à palavra seret, cujo sentido era
ignorado. A análise química revelou que os dois vasos continham queijo; concluiu-
-se então que seret significava queijo.
22
Outro exemplo é a palavra bekhen, escrita
em hieróglifos em algumas estátuas de pedra. Como a rocha em que as estátuas
foram esculpidas havia sido anteriormente identificada como grauvaca (xisto) e
21 CALEY, E. R. 1948, p. 1 -8.
22 ZAKI, A. e ISKANDER, Z. 1942, p. 295 -313.
223
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
que a palavra aparecia em textos relacionados com Uadi -el -Hammamat, concluiu-
-se que, provavelmente, bekhen significava o xisto de Uadi -el -Hammamat.
23
Detecção da origem dos vestígios arqueológicos
A presença em determinado sítio arqueológico de numerosos espécimes cuja
substância é de origem estrangeira, parece ser uma indicação clara de que esse
material foi importado através de troca ou comércio. Uma vez localizada a fonte
dessa substância, torna -se fácil estabelecer o caminho seguido por ela. Sabe -se,
por exemplo, que a obsidiana não existe no Egito; entretanto, era utilizada nessa
região desde a época pré -dinástica (antes de -3100).
A obsidiana de alguns objetos dessa época foi examinada e comparada
com a proveniente de países vizinhos. Como suas características eram muito
semelhantes às da obsidiana da Etiópia, concluiu -se que fora importada dessa
região e que os dois países mantinham relações comerciais há muito tempo.
24
Na cerâmica, a identificação de traços por meio da ativação de nêutrons
ou fluoresncia de raios X permite o estudo de rotas comerciais locais e
internacionais.
25
Vestígios de impurezas em minérios e artefatos de bronze
também podem ajudar a relacionar os artefatos ao tipo de material de que
foram feitos.
26
A detecção de níquel em um artefato antigo de ferro permite descobrir se o
ferro provém de um meteorito ou se foi manufaturado,que o ferro de origem
meteorítica sempre contém de 4 a 20% de níquel.
Recorrendo a uma emissão espectroscópica, o autor examinou o famoso
punhal de Tutankhamon e constatou que o ferro de sua lâmina continha uma
quantidade razoável de níquel, o que provou a origem meteorítica do ferro.
Investigação do uso anterior dos objetos examinados
Às vezes, é difícil saber com que finalidade determinado objeto era utilizado.
A esse respeito, a análise química pode ser de grande utilidade. Em 1956, por
exemplo, foi descoberta, na tumba de Neferwptah (aproximadamente -1800),
em Faium (Egito), uma grande jarra de alabastro contendo 2,5 kg de uma
estranha substância. A análise química revelou que se tratava de um composto de
23 LUCAS, A. 1962, p. 416, 419 -20.
24 Loc. cit.
25 PERLMAN, I. e ISARO, F. 1969, p. 21 -52.
26 FIELDS, P. R., MILSTED, J., HENRICKSEN, E. e RAMETTE, R. W. 1971, p. 131 -43.
224
Metodologia e pré -história da África
48,25% de galena (sulfeto de chumbo natural) e 51,6% de resina, na proporção
1:1, aproximadamente. Como essa composição jamais tinha sido encontrada
antes, a razão pela qual estava na tumba era completamente obscura. Entretanto,
o exame das prescrições médicas do papiro Ebers permitiu descobrir, sob o
n. 402, um novo (remédio) para remover manchas brancas que apareceram
nos dois olhos: kohl preto (galena) e khet’wa (resina) finamente pulverizados
e aplicados nos dois olhos”. A partir desse texto e da composição química do
material encontrado na jarra, concluiu -se que Neferwptah provavelmente sofria
de leucoma em um dos olhos ou em ambos. Por isso, forneceram -lhe uma grande
quantidade desse medicamento para uso na vida futura.
27
Pesquisa das antigas técnicas de fabricação
O exame metalográfico de objetos de metal fornece informações sobre as
técnicas utilizadas pelos povos antigos em suas artes e indústrias químicas. Os
exemplos seguintes são significativos a esse respeito.
Fabricação do azul do Egito
Amostras deste pigmento azul foram submetidas a exames químicos,
microscópicos e à difração por raios X. Chegou -se a reproduzir,
experimentalmente, uma “frita
28
azul análoga. Esses estudos revelaram que o
azul do Egito era feito, na Antiguidade, aquecendo, a 840
o
C, uma mistura de
areia ou quartzo pulverizado, calcário igualmente pulverizado, malaquita e sal
comum ou carbonato de sódio.
29
Exame microscópico de objetos de metal
O exame metalográfico de objetos de metal pode indicar se eles foram fundidos
ou batidos, ou se as duas técnicas foram empregadas. O exame metalográfico de
uma fateixa de cobre que pertenceu ao barco de Quéops, descoberta em 1954,
atrás da grande pirâmide de Gizeh, demonstrou que havia dendritos no metal;
conclui -se, portanto, que o objeto tinha sido batido.
30
27 FARAG, N. e ISKANDER, Z. 1971, p. 111-15.
28 Frita (fr. frite): expressão em desuso que designa a mistura de areia e soda, submetida a uma semifusão
na fabricação do vidro, da cerâmica, etc. (N. T. Fr.).
29 LUCAS, A. 1962, p. 416, 419 -20.
30 ISKANDER. Z. 1960, p. 29 -61. 1
a
parte.
225
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
Exame de resíduos de embalsamamento
O exame de resíduos de materiais para embalsamamento, descobertos em
Saqqara, Luxor e Mataria (Egito), mostrou que continham pequena proporção
de sabão de ácidos graxos sólidos, resultantes da saponificação das gorduras do
corpo, sob a ação do carbonato de sódio, durante a mumificação. A partir disso,
concluiu -se que os materiais usados serviam para preencher temporariamente
as cavidades do corpo, antes que este fosse desidratado, até se tornar uma massa
de natrão,
31
no leito de mumificação.
32
Cadinhos de “frita
Pesquisas empreendidas em Uadi el -Natrum, nas ruínas de uma vidraria,
mostraram que o vidro foi fabricado no Egito durante o período romano. Essa
indústria passou por duas etapas.
Durante a primeira etapa, obtinha -se a frita de vidro num cadinho especial
(cadinho de frita)
33
, misturando lica pura (quartzo), bicarbonato de cálcio,
natrão ou cinza vegetal, ou ambos, e aquecendo a mistura a uma temperatura
inferior a 1100
o
C. A argila desse cadinho continha grande propoão de
areia e palha cortada em pedacinhos. Tal mistura, quando cozida, produzia
uma cerâmica altamente porosa, qualidade essa procurada pelos vidreiros da
Antiguidade, porque permitia soltar facilmente o bloco de frita quebrando o
cadinho. Este, portanto, era usado só uma vez.
Na segunda fase, os vidreiros obtinham um vidro de boa qualidade e de
cores variadas. Os blocos de frita eram pulverizados até se tornarem um fino
pó homogêneo; eram, então, divididos em pequenas porções. A cada uma delas
adicionavam -se certos óxidos corantes, agentes opacificantes ou descolorantes e
reaquecia -se tudo até a fusão completa, a fim de obter o tipo de vidro necessário.
34
Testes de autenticidade
Durante muito tempo, os critérios histórico e estético eram o único método
utilizado para a determinação da autenticidade. Nos últimos anos, o progresso
31 Natrão: carbonato de sódio cristalizado.
32 ISKANDER, Z. e SHAHEEN, A. E. 1964, p. 197 -208.
33 Frita (fr. fritage): vitricação preparatória destinada a eliminar os elementos voláteis (N. T. Fr.).
34 SALEH, S. A., GEORGE, A. W. e HELMI, F. M. 1972, p. 143 -70.
226
Metodologia e pré -história da África
da pesquisa científica possibilitou um julgamento mais seguro da autenticidade
de um objeto. Os métodos mais eficientes são os seguintes:
Exame com raios ultravioleta
Esta técnica é útil principalmente no exame do marfim e do mármore. Sob
a luz ultravioleta, os diferentes tipos de mármore emitem fluorescência em
diferentes cores e a superfície dos mármores antigos projeta uma cor característica
muito diferente da cor apresentada pelas pedras mais recentes. Do mesmo modo,
alterações ou retoques em objetos de mármore ou marfim antigos, bem como
em pinturas, invisíveis à luz comum, podem ser notados distintamente quando
o objeto é examinado sob luz ultravioleta. A luz infravermelha e os raios X
também são muito úteis na detecção de falsificações.
35
Exame da corrosão supercial
Em geral, os metais antigos são corroídos lentamente e, com o tempo, a
corrosão provoca o surgimento de uma película homogênea. Nas falsificações
de objetos de metal, geralmente é aplicada uma película artificial à superfície
do objeto, o que lhe confere uma aparência antiga. Mas essa película não adere
muito bem e pode ser removida com sol ventes, tais como água, álcool etílico,
acetona ou piridina.
Além disso, nos objetos de cobre e de bronze, essa crosta
artificial compõe -se geralmente de uma camada, distinguindo -se da que se
formou naturalmente. Esta é sempre composta de pelo menos duas camadas: a
interior, de óxido de cobre vermelho, e a exterior, verde de carbonato, sulfato ou
cloreto do mesmo metal. É muito difícil reproduzir essa disposição, a ponto de
enganar um experiente químico de museu arqueológico.
Análise do material do objeto
Um notável exemplo da validade deste teste é fornecido pela análise do
grão da antiga faiança epcia. Enquanto o grão da antiga faiança epcia
autêntica é composto de quartzo vitrificado, o das falsificações modernas é
geralmente constituído de caulim, argila ou porcelana; a identificação é, deste
modo, bastante rápida e segura. Outro exemplo: como as técnicas metalúrgicas
antigas o envolviam processos de refinamento adequados, os metais da
Antiguidade contêm certas impurezas, tais como arsênico, níquel, manganês, etc.
35 CAI.EV. F. R. 1948, p. 1 -8.
227
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
 . Bloco de vitricão
mostrando a superfície superior
plana, as paredes laterais e uma parte
do cadinho ainda aderente ao lado
direito.
F . Base de uma das
colunas de arenito do templo de
Buhen. Nota -se o esboroamento
da camada superficial devido à
eorescência.
228
Metodologia e pré -história da África
Portanto, basta retirar uma pequena amostra do objeto e submetê -la à ativação
por nêutrons ou fluorescência de raios X: a ausência de vestígios de impurezas
indicará que o objeto é provavelmente falso.
Identicação de pigmentos e corantes na pintura
Os pigmentos utilizados em um quadro podem ser identificados com
razoável precisão através de técnicas microquímicas. Se o pigmento foi criado
recentemente, a idade do quadro pode ser contestada. Como exemplo, citemos o
exame feito por Young de um retrato em perfil atribuído a um pintor do século
XV. A pigmentação azul do quadro se originava do azul -ultramarino, descoberto
e usado como pigmento a partir do século XIX. Quanto ao pigmento branco,
tratava -se de óxido de titânio, utilizado na pintura depois de 1920. Provou -se,
portanto, que o quadro era falso.
36
Exame da pátina e do polimento superciais
A maior parte das rochas adquire, com o tempo, uma pátina na sua superfície:
o verniz do deserto. Este fenômeno se deve ao afloramento progressivo de sais de
ferro e manganês à superfície, onde se oxidam e formam uma espécie de epiderme
ou pátina. Essa pátina passa a fazer parte da própria rocha, confundindo -se com
a sua superfície. Não é fácil removê -la, seja com água ou solvente neutro, seja
através de raspagem. Em consequência, é possível distinguir uma superfície
autenticamente antiga de outra recente, mesmo dotada de pátina artificial.
Além da pátina formada naturalmente, as marcas de entalhe e polimento
antigos são outro meio de provar autenticidade. Essas marcas ainda aparecem
como linhas de intersecção irregular sob a pátina superficial da pedra ou do
metal. Elas podem ser facilmente distinguidas das linhas paralelas regulares
provenientes de um polimento recente, que os povos antigos não usavam
nem limas ásperas para esculpir, nem limas finas ou lixas de esmeril para polir.
Teste da termoluminescência da cerâmica
A cerâmica, assim como o solo em que foi enterrada, contém uma
porcentagem muito pequena de elementos radioativos. A radião desses
elementos causa, ao longo de milhares de anos, um acúmulo de elétrons no
corpo da cerâmica. Elevando -a a uma temperatura acima de 500
o
C, os elétrons
36 YOUNG, W. J. 1958, p. 18 -19.
229
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
acumulados emitem uma termoluminescência que varia de acordo com a idade
da cerâmica. Esta técnica permite aos conservadores de museus uma apreciação
segura da autenticidade de um objeto de cerâmica. A amostra necessária pode
ser conseguida fazendo um pequeno furo no objeto. O obtido é aquecido
a mais de 500
o
C no escuro. Se houver luminescência, a cerâmica é genuína; se
não, trata -se de falsificação.
37
Técnicas de datação
A ciência dispõe de várias técnicas para determinar a idade de materiais
antigos. As principais são as seguintes:
Datação aproximativa pela análise arqueométrica
A análise de espécimes pertencentes ao mesmo grupo de materiais (gesso,
vidro, faiança, metais e pigmentos), mas que remontam a épocas diferentes,
pode fornecer resultados passíveis de serem utilizados como pistas para a
determinação da idade aproximada de outros objetos. Os exemplos seguintes
confirmam essa ideia.
Datação através da análise de contas de vidro na África ocidental
As contas dicroicas akori, que parecem azuis à luz refletida e verdes à luz
transmitida, foram submetidas à análise por fluorescência de raios X, que permite
classificá -las em dois grupos, A e B. As contas do grupo A são mais pobres em
chumbo (menos de 0,05%) e em arsênico (menos de 0,05%) que as do grupo
B, nas quais a taxa de chumbo é de mais ou menos 27 % e a de arsênico de 2%.
A diferença em relação ao manganês é menor (grupo A: 0,3 ± 0,1% e grupo B:
aproximadamente 0,05%). Outros elementos detectados: ferro, cobalto, zinco,
rubídio, estrôncio, estanho, antimônio e bário, em relação aos quais não foi notada
nenhuma diferença significativa entre um grupo e outro. As contas do grupo A
o encontradas na África ocidental, em sítios insulares relativamente antigos (430
a 1290 da Era Cristã), enquanto as do grupo B só aparecem em contextos mais
recentes. A descoberta dessas contas em um túmulo ou em determinado estrato
permite determinar com certa precisão a idade de um ou de outro
38
.
37 AITKEN, M. J. 1970, p. 77-88.
38 DAVISON, C. C., GIAUQUE, R. D. e CLARK, J. D. 1971, p. 645 -49.
230
Metodologia e pré -história da África
Datação de pinturas rupestres pela análise
de aglutinantes albuminosos
É possível avaliar a idade das pinturas determinando o mero de aminoácidos
de seus aglutinantes albuminosos após hidrólise. Esse método foi usado para
calcular a idade de 133 pinturas rupestres do sudoeste da África, com margem
de erro de 20%. A Dama Branca (The White Lady) de Brandberg tem de 1200
a 1800 anos. As pinturas de Limpopo têm de 100 a 800 anos e as amostras de
Drakensberg, de 60 a 800 anos. O número de aminoácidos idênticos diminui,
com a idade da pintura, de 10 (nos aglutinantes com 5 a 10 anos de idade) para
1 (substâncias com 1200 a 1800 anos de idade).
39
Datação através da análise de argamassas
A análise dos diferentes tipos de argamassa utilizados no Egito mostrou que a
argamassa de cal o aparece antes de Ptolomeu I (323 -285 antes da Era Cris).
40
Qualquer monumento cujos tijolos ou pedras foram ligados com argamassa de cal
pertence, portanto, a um período posterior a 323 antes da Era Cristã.
Datação por radiocarbono
Princípio básico
Ao serem atingidos pelos raios smicos, os átomos do ar das camadas superiores
da atmosfera desintegram -se em fragmentos minúsculos, dentre os quais encontram-
-se os nêutrons. Os nêutrons produzidos bombardeiam o átomo que existe em
maior abundância no ar, o nitrogênio de massa 14, e o convertem em carbono de
peso atômico 14. O carbono 14 assim formado é radioativo; combina -se com o
oxinio do ar para formar
14
CO
2
e se mistura com o dióxido de carbono comum,
que contém principalmente átomos de carbono de massas 12 (99 %) e 13 (1%).
Esse carbono 14 penetra nas plantas juntamente com os isótopos
12
CO
2
e
13
CO
2
formando seus tecidos pelo processo de fotosntese. Como os animais se alimentam
de plantas, “todo o mundo animal e vegetal deve ser ligeiramente radioativo, devido à
presença de uma proporção nima de carbono 14 (aproximadamente um átomo de
carbono 14 para um trilo de átomos de carbono comum). O dióxido de carbono
atmosférico entra também na composão dos oceanos sob a forma de carbonato
39 DENNINGER, E. 1971, p. 80 -84.
40 LUCAS. A. 1962, p. 416, 419 -20.
231
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
dissolvido. Portanto, é provável que a água do mar também seja levemente radioativa,
assim como todas as conchas e depósitos que contém”.
41
No momento da morte, supõe -se que a matéria orgânica antiga tenha
apresentado a mesma radioatividade que a matéria orgânica viva atualmente.
Mas, depois da morte, ocorre o isolamento, ou seja, toda aquisição ou troca
de radiocarbono é interrompida e o carbono 14 coma a se degradar ou,
como disse o professor Libby, o relógio do radiocarbono começa a andar”.
42
Se a radioatividade de uma amostra antiga é medida e comparada à de uma
amostra moderna, é possível, considerando -se o tempo de vida do carbono 14
43
,
calcular a idade do espécime antigo a partir da equação relativa ao declínio da
radioatividade.
Materiais adequados à datação radioativa
Os materiais apropriados para essa técnica o os de natureza orgânica
(madeira, carvão, ossos, couro, tecidos, vegetais, alimentos, conchas, etc.),
mas os melhores são os derivados de plantas que crescem anualmente, como
junco, cereais, grama ou linho. Uma vez recolhidas, as amostras não devem ser
submetidas a nenhum tratamento químico; além disso, devem ser colocadas em
recipientes de vidro ou embalagens de náilon, a fim de evitar qualquer contato
com outros materiais orgânicos. O processo se desenvolve em quatro etapas:
purificação da amostra, combustão, purificação do dióxido de carbono obtido e,
finalmente, contagem das partículas emitidas.
Resultados e perspectivas
Para testar a precisão desse método, foi feito um estudo comparativo entre
amostras datadas com exatio, do ponto de vista histórico, e datações efetuadas com
carbono radioativo.
44
Como o método hisrico mais antigo e mais conhecido é a
cronologia do Egito, decidiu -se, em âmbito internacional, medir o carbono radioativo
de um grande número de amostras egípcias datadas com precisão arqueogica,
pertencentes ao período que vai da primeira dinastia (aproximadamente -3100)
41 AITKEN, M. J. 1961, p. X e 181.
42 LIBBY, W. F. 1970, p. 1-10.
43 O período ou longevidade do carbono 14 (duração da desintegração de metade do corpo radioativo) foi
avaliado em 5568 anos ou, mais precisamente, em 5730 ± 40 anos.
44 BERGER, R. 1970, p. 23 -26; EOWAROS, L E. S. 1970, p. 11 -19; MICHAEL, H. N. e RALPH, E.
K. 1970, p. 109 -20; RALPH, E. K., MICHAEL, H. N. e HAN, M. G. 1973, p. 1 -20.
232
Metodologia e pré -história da África
à trigésima dinastia ( -378 a -341). Diversos laboratórios procederam à datação
ao mesmo tempo, usando o meias -vidas correspondentes a 5568 anos, mas
também o novo valor de 5730 ± 40 anos, que permite maior precisão. Os resultados
obtidos por esses testes mostraram que a datação operada através da meia -vida
de 5730 anos corresponde à cronologia histórica até o tempo do rei Senusret
(ou Sesóstris), ou seja, aproximadamente -1800, mas a datação das amostras
anteriores suscitou numerosas controrsias. Entretanto, a aplicação do método de
correção de Stuvier -Suess às amostras anteriores a -1800 permite a obtenção de
resultados correspondentes à cronologia arqueológica dentro de 50 a 100 anos, no
ximo.
45
A tulo de exemplo: bambus retirados da mastaba (sepultura) de Qaa,
primeira dinastia, em Saqqara, foram datados no laboratório de pesquisas do British
Museum. A data obtida com carbono 14, depois da correção, é de -2450 ±65,
aproximando -se bastante de sua data hisrica, ou seja, 2900 antes da Era Cris.
46
Imagina -se, atualmente, que as causas dos principais desvios sejam a
diminuição do campo magnético da Terra
47
e as variações de intensidade do
vento solar, que tornam oblíquos os raios cósmicos.
48
Além disso, a meia -vida
real do carbono radioativo ainda não está inteiramente estabelecida. Algumas
outras causas estão sendo estudadas e muitos laboratórios trabalham nesse
sentido.
Se houvesse resposta para todas essas questões, seria possível datar com
maior precisão vestígios anteriores a 1800 antes da Era Cristã. Mas, até que isso
aconteça, os cálculos convencionais de radiocarbono para vestígios orgânicos
dessa época devem ser submetidos à correção indicada acima.
Datação com potássio ‑argônio
A limitação da datação por carbono 14 em aproximadamente -70000 anos cria
uma grande lacuna na cronologia da evolução biológica e geológica, prolongando-
-se dessa data até aproximadamente -10 milhões de anos. Para um período tão,
antigo, seria possível aplicar métodos geológicos radioativos baseados nos índices
de transformação de substâncias, como, por exemplo, na transformação do urânio
235 em chumbo 207, que tem meia -vida de 710 milhões de anos, ou do rubídio
45 BERGER, R. 1970, p. 23 -36; MICHAEL, H. N. e RALPH, E. K. 1970, p. 109 -20; RALPH, E. K.,
MICHAEL, H. N. e HAN, M. G. 1973, p. 1 -20; STUVIER, M. e SUESS, H. E. 1966, p. 534 -40.
46 EOWARDS, I. E. S. 1970, p. 11 -18.
47 BUCHA, V. 1970, p. 47 -55.
48 LEWIN, S. Z. 1968, p. 41 -50.
233
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
87 em estncio 87, que tem meia -vida de 13900 milhões de anos. Essa lacuna
pode ser preenchida, até um certo ponto, pela aplicação da técnica de datação
com potássio -arnio.
49
De fato, esse método é usado particularmente na datação
de idades geológicas muito remotas. No entanto, utilizando grandes amostras de
uma substância de textura relativamente fina (mas não inferior a 100 micra) e que
contenha pouco argônio atmosférico, é possível aplicá -lo a períodos mais recentes,
o que permitiria controlar os resultados obtidos graças ao carbono 14.
50
Princípio básico
O possio, tal como é encontrado na natureza, contém 93,2% de potássio 39,
6,8% de possio 41 e 0,0118% de potássio 40. No momento da formão da Terra, a
taxa de potássio 40 era de mais ou menos 0,2%, mas ele se deteriorou em grande parte,
resultando em dois derivados: o lcio 40 e o arnio 40. Mas como tem meia -vida
muito longa (1330 milhões de anos), o potássio 40 ainda se encontra presente,
numa taxa de 0,0118%. Em cada 100 átomos de potássio 40 que se degradam,
89 se transformam em cálcio 40 pelo desaparecimento das radiações beta; onze
se transformam em argônio 40 pela captura de partículas beta. O argônio é
um gás que se encontra retido entre os grãos do minério
51
.
A datação com argônio -potássio é muito aplicada pelas razões seguintes:
• O potássio presente na crosta terrestre representa 2,8% em peso, sendo um
de seus elementos mais abundantes. Além disso, está presente em quase
todos os corpos.
• A meia -vida do potássio é suficientemente longa para permitir a formação de
argônio 40 em certos minerais, ao longo de períodos interessantes do ponto
de vista geológico. Calculando a concentração do argônio 40 radioativo e o
conteúdo total de potássio de um mineral, é possível determinar a idade do
mineral, por meio de uma equação relativa à degradação da radioatividade.
52
Problemas a serem resolvidos pela datação com potássio ‑argônio
A datação com potássio -argônio foi aplicada recentemente no cálculo da
constante de primeira ordem in situ, para a racemização do ácido aspártico nos
49 AITKEN, M. J. 1961.
50 GENTNER, W. e LIPPOLT, H. J. 1963, p. 72 -84.
51 Loc. cit.; HAMILTON, E. I. 1965, p. 47 -79.
52 GENTNER, W. e LIPPOLT, H. J. 1963, p. 72 -84.
234
Metodologia e pré -história da África
ossos antigos. Uma vez aferida num tio, a reação de racemização pode ser utilizada
para datar outros ossos do depósito. As idades calculadas a partir desse método
correspondem com exatidão às idades obtidas pela datação com radiocarbono.
Esses resultados provam que a reação de racemizão é um instrumento
cronogico importante para a datação dos ossos muito antigos ou muito pequenos
para serem datados com radiocarbono. Para exemplificar a aplicação dessa técnica
na datação dos fósseis humanos, uma parte do homem da Rodésia originário de
Broken Hill (Zâmbia) foi analisada e datada provisoriamente em 110000 anos
aproximadamente.
53
A datação com potássio -argônio dos períodos do Plioceno
e Pleistoceno deverá permitir o levantamento de uma cronologia definitiva da
origem do homem, da coincidência da idade dos fósseis em diversos pontos do
globo, da origem dos tektites e outros problemas geológicos especiais.
A datação com potássio -argônio foi usada para determinar, em Olduvai, a
idade das camadas de basalto e das camadas de tufo que as revestiam, a fim de
estabelecer a idade exata dos restos do Zinjanthropus, encontrados no fundo
da primeira camada de tufo, na Bed I. Curtis e Evernden concluíram que esses
basaltos têm, pelo menos, quatro milhões de anos de idade; entretanto, não
se prestariam a uma datação precisa, em consequência de alterações químicas
visíveis nas partes finas de todos os basaltos datados de Olduvai, exceto os que
estão associados à antiga indústria de pebble tools. A opinião de Gentner e de
Lippolt sobre os diferentes resultados obtidos é a seguinte: “Como não existem
outras incompatibilidades entre as datas dos basaltos e do tufo que os recobre,
parece possível que a idade do Zinianthropus seja de dois milhões de anos”.
54
Datação arqueomagnética
Para dar uma ideia simplificada dessa técnica, conm abordar os seguintes itens:
Paleomagnetismo
Trata -se do magnetismo remanescente nos vestígios arqueológicos. Seu
estudo baseia -se no fato de que o campo magnético da Terra sofre mudanças
contínuas de direção e de intensidade. Observações feitas a partir dos últimos
cinquenta anos indicam que o campo magnético se desloca para oeste numa
53 BADA, J. L., SCHROEDER, R. A., PROTSCH, R. e BERGER, R. 1974, p. 121.
54 GENTNER. W. e LIPPOLT, H. J. 1963.
235
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
média de 0,2
o
de longitude por ano.
55
Pesquisas arqueomagnéticas baseadas no
cálculo da magnetização remanescente em cerâmicas arqueológicas e em rochas
mostraram que a intensidade magnética da Terra, durante os últimos 8500 anos,
atingiu seu grau máximo entre os anos 400 e 100 antes da Era Cristã quando o
campo alcançou 1,6 vezes sua intensidade atual, e o mínimo por volta de 4000
anos antes da Era Cristã, quando o campo diminuiu para 0,6 vezes em relação
à intensidade de hoje.
56
Esses efeitos ou variações de direção e intensidade
são chamados de variação secular”. De natureza regional, a variação secular
constitui a base da datação magnética, uma vez que as variações do campo
magnético terrestre deixam seu traço na cerâmica endurecida sob a forma de
magnetismo termo -remanescente (t.r.m.).
Aplicação do t.r.m. à datação arqueológica
Antes de iniciar a datação magnética da argila cozida que permaneceu in
situ depois do cozimento, torna -se necessário determinar o comportamento do
campo geomagnético através de mensurações efetuadas nas estruturas geológicas
de idade conhecida, dentro da região escolhida para a aplicação do método. Os
resultados são assinalados numa curva que mostra a variação secular naquela
região, durante um longo período de tempo. O conhecimento da direção do
campo magnético registrado em argila cozida de idade desconhecida, nessa
mesma região, possibilita que sua data de cozimento seja determinada através
da comparação com a curva de variação secular.
Os espécimes mais adequados à datação magnética são as argilas cozidas
provenientes de fornos, fogões e fornalhas que permaneceram em seus lugares
de origem até hoje. Como ainda não existe um magnetômetro portátil para
facilitar o cálculo in situ da direção do campo geomagnético, as amostras
devem ser removidas para medição em laboratório. É essencial que em cada
amostra figure a marca de sua orientação original, que servirá como ponto de
referência na determinação de seu magnetismo remanescente. Na prática, a
operação consiste em cobrir o objeto com gesso de Paris, cuidando para que
a superfície superior desse molde seja horizontal e que indique a direção do
Norte geográfico, antes que a amostra seja destacada. Desse modo, é possível
determinar simultaneamente a antiga declinão (D) e o antigo ângulo de
55 AITKEN. M. J. 1961; COOK, R. M. 1963, p. 59 -71.
56 RUCHA. V. 1970, p. 47 -55; BUCHA, V. 1971, p. 57 -117.
236
Metodologia e pré -história da África
inclinação (I).
57
Para compensar anomalias, seis ou mais amostras devem ser
utilizadas, de preferência retiradas de diferentes partes da estrutura, levando -se
em conta uma certa simetria.
58
Resultados arqueomagnéticos relativos à declinação e à inclinação foram
obtidos para a Inglaterra, a França, o Japão, a Islândia e a Rússia. Pelas informações
de que dispomos, o método ainda não foi testado na África. Entretanto, como
tem progredido muito nos últimos anos, espera -se que ele possa ser logo aplicado
para datação na Arqueologia da África.
Datação por termoluminescência
A termoluminescência é a emissão de luz produzida por uma substância
altamente aquecida. Difere totalmente da incandescência (obtida aquecendo ao
rubro um corpo sólido) e resulta de uma liberação da energia acumulada em
forma de nêutrons aprisionados no material aquecido.
Origem
Toda cerâmica ou porcelana contém pequenas proporções de componentes
radioativos (alguns miliosimos de urânio e tório e alguns centésimos de
potássio). Além disso, o solo próximo ao lugar em que foram descobertas as
cerâmicas pode conter impurezas radioativas; por outro lado, raios smicos
podem ter penetrado o solo, emitindo radiações que bombardearam as matérias
cristalinas da cerâmica, como o quartzo. A ionizão resultante produz
elétrons que podem ser aprisionados dentro da estrutura cristalina. Essas
armadilhas de elétrons” são metasveis e, quando uma amostra de cerâmica
é aquecida, desaparecem, liberando o excesso de energia em forma de fótons.
A intensidade dessa luz – termoluminescência – está diretamente relacionada
à idade da peça. Depende também da natureza particular dos elementos que
geram a termoluminescência presentes na amostra e nas proximidades do local
em que foi encontrada.
59
Medindo a quantidade de urânio e potássio contidos
no fragmento e no solo vizinho, pode -se calcular a intensidade da radiação
recebida anualmente pelo fragmento. Em princípio, a idade é diretamente
calculada através da relação
60
:
57 AITKEN, M. J. 1970, p. 77 -88.
58 COOK, R. M. 1963, p. 59 -71.
59 AITKEN, M. J. 1970, p. 77 -88; HALL, E. T. 1970, p. 135 -41.
60 AITKEN, M. J. 1970, p. 77 -88.
237
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
Idade =
intensidade de radião acumulada
intensidade anual de radiação
Precisão dos resultados e perspectivas
Atualmente, a precisão dos resultados é de mais ou menos 10%, um pouco
inferior, portanto, à precisão obtida com a datação por radiocarbono. A causa
dessa diferença pode ser atribuída às incertezas que surgiram, principalmente
quanto às circunstâncias em que o objeto foi enterrado e quanto ao grau de
umidade do solo adjacente, do qual depende a intensidade de radioisótopos do
fragmento. Espera -se que pesquisas posteriores resolvam tais dificuldades, mas,
por razões de ordem prática, é difícil que os resultados atinjam uma margem de
precisão maior que 5%, aproximadamente.
61
Entretanto, apesar de não apresentar uma exatidão total, essa técnica é mais
vantajosa que a datação com radiocarbono, que a cerâmica é muito mais
abundante nos sítios arqueológicos do que as matérias orgânicas; além disso,
trata -se de datar o cozimento da cerâmica, enquanto a datação com radiocarbono
de uma amostra de madeira ou carvão tende a situar o corte da árvore e não a
data de sua utilização ulterior.
No Egito, essa técnica terá uma finalidade muito importante. Até o
momento, as culturas neolíticas e p-dinásticas no Egito têm sido datadas
conforme o tipo de cemica que as caracteriza, de acordo com o Sequence
Dating System, inventado por Flinders Petrie.
62
Agora, graças à datação
por termoluminescência, será possível determinar a época exata em que se
desenvolveram essas culturas.
Técnicas utilizadas na prospecção arqueológica
O objetivo básico do emprego de técnicas científicas na prospecção do solo
é a descoberta de informações sobre sítios arqueológicos enterrados, a fim de
preparar ou substituir as escavações. Isso pode economizar tempo; esforços
e despesas. A pesquisa arqueológica através dos métodos científicos inclui as
seguintes técnicas:
61 Loc. cit.
62 PETRIE, W. M. F. 1901.
238
Metodologia e pré -história da África
Fotograa aérea
É usada sobretudo no levantamento de determinada estrutura, segundo seu
traçado geométrico. Tem duas utilizações principais: primeiramente, permite
uma visão mais distante e portanto mais clara dos pontos onde os vestígios
que afloram à supercie parecem juntar -se para formar um desenho mais
significativo.
63
O estudo das fotografias aéreas possibilita, assim, a definição das
áreas que devem ser exploradas, tendo em vista obter uma ideia de conjunto de
todo o complexo arqueológico. No Egito, esse método foi aplicado no estudo
dos templos de Karnak, em Luxor; a área do sítio onde estão os templos é de
aproximadamente 150 hectares.
Outra vantagem consiste em revelar a existência de vestígios arqueológicos
recobertos por terras cultivadas, graças às marcas da vegetação. Essas marcas
resultam das diferentes condições de umidade do solo. A vegetação que recobre
um muro de pedra enterrado se distingue levemente por uma linha mais clara;
sobre uma vala encoberta, ela é mais rica, tendo aparência mais escura. A
configuração geométrica dessas marcas permite o reconhecimento e a escavação
de ruínas enterradas.
64
Análise do solo
Vestígios de antigas cidades e de cemitérios podem ser localizados através
da análise do solo. Como o fosfato de cálcio é o constituinte principal do
esqueleto e dos diferentes detritos deixados pelo homem, sua porcentagem será
naturalmente mais elevada nas áreas antigamente habitadas ou que serviam de
cemitério. Portanto, os limites dessas zonas arqueológicas podem ser definidos
graças à medição da taxa de fosfato em amostras de solo retiradas da área em
intervalos regulares.
Análise do pólen
A polinização das plantas com flor deve -se geralmente à ação dos pássaros,
dos insetos ou do vento. As flores polinizadas pelo vento produzem grandes
quantidades de grãos de pólen, cuja maior parte cai no solo sem ser fertilizada.
Esses grãos geralmente se decompõem; mas se acontece de caírem em solo
apropriado (como turfeiras ou barro), podem fossilizar -se e ser facilmente
63 LININGTON, R. E. 1970, p. 89 -108.
64 AITKEN, M. J. 1961.
239
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
examinados ao microscópio. A identificação e a enumeração dos vários tipos de
pólen presentes numa amostra podem fornecer informações sobre o ambiente
ecológico no qual restos humanos e artefatos estão situados; o conhecimento desse
ambiente ecológico pode, por sua vez, indicar o tipo de vida que predominava
na época.
Entretanto, a análise do pólen é útil como técnica de datação se as amostras
puderem ser relacionadas a uma cronologia baseada num método de datação
direta, como o do radiocarbono.
Para maiores detalhes dessa técnica podem ser consultados Faegri e Iversen
65
e Dimbleby
66
.
Estudo da resistividade elétrica
Esta é a primeira técnica geofísica adaptada à Arqueologia. Consiste em
aplicar uma carga elétrica ao solo e medir a resistência do fluxo da corrente
elétrica. A resistência depende da natureza do solo, da quantidade de água retida
nos seus poros e da quantidade de sais solúveis. Rochas duras e compactas, como
as de granito e diorito, apresentam alta resistividade se comparadas ao solo
argiloso. Portanto, o estudo da resistividade deve ser aplicado principalmente na
detecção de estruturas de pedra enterradas em solo lamacento ou de estruturas
escavadas na rocha e recobertas de terra.
67
O sistema normalmente adotado por esse método consiste em introduzir
quatro sondas de metal no solo, fazer passar a corrente entre as duas sondas
exteriores e medir a resistividade entre as outras duas. O valor da resistência é
uma média aproximada para o material que se encontra sob as sondas interiores,
até uma profundidade de aproximadamente uma vez e meia a distância entre
elas, contanto que esse material seja razoavelmente uniforme.
68
Normalmente, quase todas as aplicações do estudo da resistividade consistem
em traçar linhas de medida conservando o mesmo esquema de conexão e as
mesmas distâncias, a fim de determinar as mudanças nos valores de resistividade.
Frequentemente essas linhas são combinadas para formar, em seu conjunto, uma
grade retangular de valores; a localização de estruturas enterradas é indicada
pelas partes que fornecem valores anormais.
65 FAEGRI, K. e IVERSEN, J. 1950.
66 DIMBLEBY. G. W. 1963, p. 139 -49.
67 AITKEN, M. J. 1961.
68 LININGTON, R. E. 1970, p. 89 -108.
240
Metodologia e pré -história da África
Essa cnica foi parcialmente substituída pela prospecção magnética, em
função de algumas desvantagens que apresenta, principalmente a lentidão do
exame e o fato de que os resultados podem ser afetados por efeitos climáticos a
longo prazo; além disso, a interpretação dos resultados tende a ser difícil, com
exceção dos casos mais simples.
69
Exame magnético
É, atualmente, a técnica mais comum em prospecção arqueológica. Consiste
em medir a intensidade do campo magnético terrestre nos pontos situados acima
da superfície do sítio que se vai prospectar. As variações dessas medidas podem
revelar a presença de estruturas arqueológicas. Através dessa técnica, é possível
detectar restos enterrados de ferro, estruturas de terra cozida, como fornos,
por exemplo, poços cavados na rocha e aterrados, ou ainda estruturas de pedra
enterradas em solo argiloso.
Os objetos de ferro enterrados provocam variações muito grandes, enquanto que
para o restante dos materiais essas variões o muito fracas. Consequentemente,
a técnica do exame magnético não tem nenhuma utilidade a menos que o
instrumento de detecção seja suficientemente sensível para detectar variações
muito pequenas; além disso, deve ser rápido e de fácil manejo.
70
O Archaeological
Research Laboratory, da Universidade de Oxford, desenvolveu com êxito um
magnemetro de próton que satisfaz todas essas exincias.
71
Come -se de duas
partes: a garrafa de detecção e o contador. A garrafa de detecção é montada sobre
um tripé de madeira e transportada por um operador de um ponto a outro da área
a ser estudada. Outro operador controla o contador e registra as medidas na forma
de um plano. A interpretação desse plano identificará a situação e os esboços das
estruturas arqueológicas contidas no solo.
72
Outros tipos de magnemetros têm
sido aperfeiçoados, como o magnetômetro diferencial de prótons, o “fluxgate
gradiometer”,
73
o magnetômetro de césio, o magnetômetro de bombeamento de
ressonância eletrônica.
74
Cada um deles apresenta certas vantagens, mas o aparelho
mais útil em quase todos os casos é o magnetômetro diferencial de prótons.
69 Loc. cit .
70 AITKEN, M. J. 1963, p. 555 -68.
71 AITKEN, M. J. 1961.
72 Loc. cit.
73 HALL, E. T. 1965, p. 112.
74 SCHOLLAR, I. 1970, p. 103 -19.
241
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
O método magnético é bem mais vantajoso que o da resistividade, pois é mais
simples e rápido e seus resultados são mais fáceis de interpretar.
75
Sondagem das pirâmides do Egito através de raios cósmicos
Os raios cósmicos consistem em uma corrente de partículas eletricamente
carregadas, conhecidas como mesons -μ ou muons”. Esses raios alcançam a Terra
com igual intensidade a partir de todos os pontos do céu. Cada metro quadrado é
atingido por aproximadamente 10000 muons por segundo, qualquer que seja sua
direção. Os raios cósmicos têm um poder de penetração extremamente grande,
muito superior à dos raios X, e sua velocidade é quase igual à velocidade da luz.
A sondagem com auxílio desses raios se baseia no fato de que os muons”
perdem energia ao atravessarem a matéria. A perda de energia (ou absorção de
muons”) é proporcional à densidade e espessura da matéria que atravessam. A
intensidade ou a quantidade de raios cósmicos que penetra pode ser calculada
por um aparelho conhecido como “câmara de faíscas”. No caso das pirâmides,
o aparelho é colocado no interior de uma câmara subterrânea. Os muons”
que atravessarem um espaço vazio (uma câmara, uma passagem desconhecida)
sofrerão menor redução de velocidade que os que atravessarem a rocha sólida;
assim, os raios cósmicos que passarem através do espaço vazio terão maior
intensidade, fenômeno que será registrado pela câmara de faíscas. Com duas
câmaras de faíscas orientadas horizontalmente e distantes uma da outra cerca
de 30 cm no sentido vertical, torna -se possível não apenas detectar qualquer
câmara secreta, mas também localizá -la no espaço de alguns metros. Assim, a
escavação será orientada para a direção indicada pelos raios.
A sondagem foi feita pela primeira vez na Pirâmide do rei Qfren, da quarta
dinastia ( -2600). As informações foram analisadas através de um computador e os
resultados anunciados no dia 30 de abril de 1969, indicando dois fatos importantes:
primeiramente, a câmara mortuária do rei não se situa exatamente no centro da
base da pirâmide, mas alguns metros para o norte. Tal descoberta coincide com
os resultados obtidos através do estudo magnético, provando assim a validade
dessa técnica na sondagem de pirâmides. Constatou -se também que a terça parte
superior da pirâmide não contém câmaras nem corredores desconhecidos.
Repetiu -se a experiência com outro aparelho, projetado para sondar a
pirâmide inteira. A análise das informações registradas indicou que a pirâmide
não contém nenhuma câmara ou corredor desconhecido, o que confirmou as
previsões arqueológicas.
75 LININGTON, R. E. 1970, p. 89 -108.
242
Metodologia e pré -história da África
Técnicas de conservação
O objetivo deste trabalho não é a descrição dos todos técnicos utilizados
na conservação de artefatos feitos de diversos materiais, como cerâmica, faiança,
vidro, marfim, osso, madeira, couro, papiro, tecidos, metais, etc. Sua variedade é
tal que excederia o espaço reservado a este capítulo. Vários livros
76
e periódicos
especializados tratam do assunto, particularmente Studies in Conservation, órgão
do International Institute for Conservation of Historic and Artistic Works, de Londres.
Entretanto, os mais sérios problemas de conservão na África estão relacionados
à fragilidade dos materiais e à violenta deterioração dos monumentos de pedra.
Fragilidade dos materiais
Devido ao excessivo calor e à aridez de numerosos países africanos, os artefatos
feitos de material orgânico (pergaminho, papiro, couro, madeira, marfim, etc.)
tornaram -se extremamente frágeis. Esses materiais devem ser manuseados com
o máximo cuidado, para não correrem o risco de se desfazer em minúsculos
fragmentos. Antes de mais nada, é preciso embrulhá -los em panos úmidos,
conservando -os por algum tempo em lugar fechado e úmido, ou tratá -los com
vapor num recipiente apropriado, para restaurar, total ou parcialmente, sua
maleabilidade. Então podem ser desenrolados ou desdobrados sem risco de
fragmentação.
Após terem readquirido sua maleabilidade, convém que esses artefatos
sejam exibidos ou conservados em museus ou depósitos com ar condicionado, a
uma temperatura de 17 ±2
o
C e umidade relativa de 60 a 65%, a fim de não se
tornarem novamente quebradiços.
A violenta deterioração dos monumentos de pedra
Este grave problema merece ser estudado detalhadamente:
Principais causas de deterioração
Os principais agentes de deterioração dos monumentos de pedra na África são:
• migração dos sais: em presença de água ou de umidade, os sais solúveis emigram,
por capilaridade, do solo salino para a pedra dos monumentos. Num clima
76 ORGAN, R. M. 1968; PLENDERLEITH, H. J. 1962; PAYDDOKE, E. 1963; SAVAGE, G. 1967.
243
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
árido, esses sais passam do interior da pedra à superfície exterior sob a forma
de soluções aquosas; podem cristalizar -se na própria superfície, provocando
sua desintegração, ou sob a superfície, fazendo com que se rompa. Esses
efeitos são mais pronunciados na base de paredes ou colunas, onde a pedra
entra em contato com o solo salino, como pode ser observado em algumas
colunas do templo de Buhen, no Sudão;
• intempéries: na África, a pedra é muito afetada pelas excessivas variações de
temperatura e umidade, que provocam a ruptura dos elementos superficiais
da maioria das rochas.
Em muitos lugares, principalmente nas regiões costeiras, os dois fatores de
degradação agem conjuntamente e provocam séria deterioração dos monumentos,
como se pode notar nos templos romanos de Leptis Magna e Sabratha, nabia.
Tratamento das superfícies e sua inecácia
Numerosas tentativas de consolidar as superfícies de pedra foram efetuadas,
através do tratamento com produtos orgânicos de conservação ou silicatos
inorgânicos. Mas esses tratamentos revelaram -se não apenas ineficazes como
também nocivos, pois aceleram a deterioração e as fraturas da pedra. O fracasso
dessas tentativas foi enfatizado no simpósio internacional sobre a conservação
de monumentos de pedra, onde se admitiu que o problema ainda está longe de
ser resolvido e que é necessário abordá -lo com o máximo cuidado.
Esforços internacionais para resolver o problema
As dificuldades inerentes ao problema e sua gravidade levaram o ICOM, o
ICOMOS e o Centro Internacional para a Conservação a formar, em 1967, um
comitê de dez especialistas para estudar a questão. Estudos foram levados a efeito
e muitos relatórios apresentados. O comitê continuou suas atividades até o fim de
1975, no intuito de propor uma série de testes -padrão que permitissem avaliar o
grau de deterioração da pedra e a eventual eficácia dos tratamentos de conservação.
Uma nova esperança
O Professor Lewin desenvolveu um novo método destinado a consolidar a
superfície do mármore e da pedra calcária.
77
Consiste em um tratamento das
77 LEWIN, S. Z. 1968, p. 41 -50.
244
Metodologia e pré -história da África
partes deterioradas com uma solução fortemente concentrada de hidróxido de
bário (aproximadamente 20%), à qual é adicionada certa quantidade de ureia
(aproximadamente 10%) e de glicerol (aproximadamente 15 %). Quimicamente
falando, o método baseia -se na substituição dos íons de cálcio da pedra deteriorada
por íons de bário. Depois do tratamento, a pedra apresenta um endurecimento
evidente e oferece maior resisncia à ão dos fatores de degradão. O
carbonato de bário assim formado incorpora -se à pedra (sem constituir um
revestimento superficial com propriedades distintas das do interior). Espera -se
que, com esse método, as superfícies tratadas não se pulverizem e que protejam
as camadas subjacentes contra o ataque das intempéries.
O tratamento foi utilizado em julho de 1973 para reforçar o pescoço da estátua
da Esfinge de Gizeh, em rocha calcária, que estava em vias de desintegração. Até
agora, o resultado tem sido satisfatório, mas é necessário manter o pescoço da
esfinge em observação ainda por uns dez anos, pelo menos, antes de consagrar
definitivamente esta técnica de proteção e conservação de rochas calcárias.
Paliativos
Por mais confiança que depositemos na técnica de Lewin, o problema da
conservação dos monumentos de pedra por tratamento químico ainda o
está resolvido. Certas medidas de ordem mecânica ainda são recomendadas
para garantir sua proteção contra os fatores de degradação. Podemos destacar
algumas delas:
• Nenhum produto que possa vedar os poros da pedra deve ser empregado
no tratamento das superfícies dos monumentos ao ar livre, diretamente
expostos aos raios solares. A camada exterior da superfície correria o risco
de destacar -se em escamas.
• Convém dessalinizar regularmente o solo sobre o qual foram construídos
os monumentos. A água utilizada deve ser retirada por um sistema de
drenagem adequado.
• Na medida do possível, os monumentos de pedra devem ser isolados dos
solos salinos, a fim de impedir que os sais solúveis migrem do solo para a
pedra. Esse isolamento pode ser efetuado com a introdução de uma folha
de chumbo ou uma espessa camada de betume sob a estátua, o muro ou a
coluna a ser protegida.
• Quando o monumento contém sais solúveis que podem provocar
eflorescência ou criptoflorescência, convém eliminar os sais lavando -os com
245
A Arqueologia da África e suas técnicas – Processos de datação
água, e cobrir as partes atingidas com argila arenosa até que a pedra esteja
completamente livre desses sais.
• Quando o monumento não é muito grande, é possível transportá -lo para um
museu ou um abrigo, a fim de proteger sua superfície dos efeitos deletérios
da ão climática. Outra solução consiste em conser-lo em seu lugar de
origem e construir sobre ele um abrigo.
• Quando o teto estiver faltando, deve -se reconstruí -lo, a fim de proteger as
pinturas murais ou os baixos -relevos interiores da ação direta da luz solar
e da chuva; assim, os desgastes causados pelas variações de temperatura e
umidade serão, até certo ponto, atenuados.
Recomendações relativas às restaurações
Como um tratamento inadequado dos artefatos ou monumentos pode causar
mais estragos ou até mesmo sua deterioração completa, julgamos conveniente
mencionar algumas regras de restaurão importantes recomendadas em
conferências internacionais:
a) A pátina dos monumentos antigos não deve, de maneira alguma, ser lavada
ou retirada para revelar a cor original da pedra. A limpeza das fachadas
deve limitar -se à retirada da poeira, de modo que a pátina fique intacta,
pois constitui a característica arqueológica mais importante do monumento.
b) Na restaurão de monumentos antigos, apenas as partes que estão
desmoronando devem ser reconstruídas em seus lugares de origem. É
preciso evitar as substituições e as adições, a menos que sejam necessárias
para sustentar as partes que desmoronam ou para proteger das intempéries
as superfícies antigas.
c) Em todos os casos de reconstrão, deve -se intercalar argamassa entre
as pedras, de modo que seu peso seja igualmente repartido sem acarretar
deformações ou fendas.
d) A argamassa utilizada para a renovação das paredes deve ser, via de regra,
idêntica à argamassa original, a menos que esta tenha sido gesso. O emprego
de cimento não é recomendado no caso de construções em rocha sedimentar,
tais como calcário ou arenito.
e) A melhor argamassa para todos os casos de reconstrução é a de cal, sem
sal; é razoavelmente maleável e porosa; consequentemente, o impede
ligeiro deslocamento de pedras devido a mudanças de temperatura. Com
seu emprego não ocorrem tensões nem fissuras.
246
Metodologia e pré -história da África
f) Dentre os todos que permitem distinguir as superfícies das pedras
adicionadas, os seguintes merecem ser mencionados:
• o novo paramento pode estar ligeiramente recuado em relação à obra
original;
• o é proibido utilizar materiais diferentes, mas deve -se respeitar as
dimensões dos blocos originais;
• pode -se também usar o mesmo tipo de material, mas nesse caso a forma
e as dimensões dos blocos podem ser diferentes da forma e das dimensões
dos elementos originais;
• as fileiras de pedras e todas as juntas podem ser alinhadas sobre as da obra
original, mas os novos blocos devem ser moldados num aglomerado de
pedras de tamanhos irregulares;
• marcas de identificação contendo a data da restauração poderão ser gravadas
em todas as pedras novas;
• a superfície das pedras novas pode ser completamente diferente da superfície
das antigas. Basta tra-la com um instrumento pontiagudo ou gravá-
-la profundamente com um buril para que adquira um certo desenho
geométrico, feito, de preferência, com linhas paralelas ou secantes.
C A P Í T U L O 1 0
247
História e linguística
Aada koy demnga woni (fulfulde)
Lammii ay dekkal demb (wolof)
É a fala que forma ao passado.
O negro africano estabelece uma ligão entre história e ngua. Essa
visão é comum ao bantu, ao ioruba e ao mandinga. Mas não é que reside a
originalidade. Na verdade, o árabe ou o grego anteriores a Tucídides concordarão
em afirmar, com os Fulbe, que a narrativa é o lugar onde se encontra o passado”:
Hanki koy daarol awratee.
O que favorece a ligação entre história e linguagem na tradição dos povos
da África negra é a concepção que esta em geral conservou dos dois fenômenos.
Tal concepção identifica, espontaneamente, pensamento e linguagem e encara a
história não como uma ciência, mas como um saber, uma arte de viver.
A história visa ao conhecimento do passado. A lingstica é a cncia da
linguagem e da fala. A narrativa e a obra hisrica o contdos e formas
de pensamento. A língua é, em si mesma, o lugar desse pensamento, o seu
suporte.
Evidentemente, a linguística e a história têm cada uma o seu donio, seu
objeto próprio e seus métodos. Não obstante, as duas ciências interagem, pelo
menos em dois aspectos. Primeiramente, a língua como sistema e instrumento
PARTE I
História e linguística
P. Diagne
248
Metodologia e pré -história da África
de comunicação é um fenômeno hisrico. Ela tem a sua própria hisria.
Em segundo lugar, como alicerce do pensamento e, portanto, do passado e
do conhecimento deste, ela é o lugar e a fonte privilegiada do documento
histórico. Assim, a linguística, entendida aqui em seu sentido mais amplo,
abrange um campo de pesquisa que fornece à hisria pelo menos dois tipos
de dados: por um lado, uma informão propriamente lingstica; por outro,
um documento que se poderia chamar supralinguístico. Graças aos fatos de
pensamento, aos elementos conceptuais utilizados numa ngua e aos textos
orais e escritos, ela permite que se leia a história dos homens e de suas
civilizões.
Estando a problemática assim definida, fica mais fácil perceber a área comum
ao historiador e ao linguista que trabalham com a África.
Ciências linguísticas e história
Todas as cncias que têm por objeto a ngua e o pensamento podem
contribuir para a pesquisa histórica. Algumas, porém, apresentam uma conexão
mais direta com a história. Essa é uma tradição muito bem estabelecida, embora
possa ser contestada à luz de uma reflexão mais profunda.
Assim, é comum dizer que o estudo do parentesco das línguas situa -se no
ponto de encontro entre a linguística e a história, mais do que na análise da
evolução do material fornecido pelos textos escritos ou orais e pelos vocábulos
de um idioma. Mas os dois tipos de pesquisa se referem a fatos de língua ou
pensamento e, portanto, de história.
A esse respeito, a historiografia europeia sugeriu uma separação entre ciência
histórica propriamente dita e história literária ou história das ideias. Mas essa
distinção se justifica em determinados contextos.
Os Bakongo de civilização bantu, os Ibo de Benin ou os Susu de cultura
sudanesa deixaram poucos textos (ou mesmo nenhum) que correspondem às
normas de uma ciência histórica moderna. Em contrapartida, produziram, como
fonte de informação, uma abundante literatura oral com gêneros distintos de
modo relativamente nítido e obras que hoje seríamos tentados a classificar como
contos, novelas, narrativas, crônicas de epopeias históricas, lendas, mitos, obras
filosóficas ou cosmogônicas, reflexões técnicas, religiosas ou sagradas. Nelas se
mesclam o verdadeiramente vivido e a ficção, o evento que pode ser datado e o
mito puramente imaginário.
249
História e linguística
A reconstrução da história dos Bakongo, dos Ibo ou dos Susu passa pela
análise crítica dessas literaturas e tradições orais. Também não pode negligenciar
a análise dos seus discursos, técnicas e conhecimentos, a decifração das linguagens,
dos conceitos e do vocabulário que tais grupos utilizaram e que continuam a
revelar a história de cada um deles.
As ciências e os métodos aos quais nos referimos aqui, como suscetíveis
de esclarecerem o historiador da África, não esgotam a lista. Talvez isso não
seja um mal, do ponto de vista da clareza. Fixando limites razoáveis para suas
pesquisas, o especialista em linguagem poderá aprofundar melhor determinados
setores. Assim, tendo em vista a dimensão linguística de suas investigações,
deixa a outros pesquisadores, historiadores das ideias, especialistas em ciências,
economia ou literatura o cuidado desses setores.
Ciência classicatória e a história dos povos africanos
Classificar as línguas é revelar o parentesco e a história dos povos que as
falam. Podem -se distinguir diversos tipos de classificação:
Classicação genética
Estabelece o parentesco e os vínculos de filiação no interior de uma família
linguística. Em consequência, ajuda a restabelecer, ao menos em parte, a unidade
histórica de povos e culturas que utilizam línguas da mesma origem.
Classicação tipológica
Reagrupa as línguas que apresentam semelhanças ou afinidades evidentes
em suas estruturas e sistemas.
nguas de origem intica ou totalmente diferente podem utilizar os
mesmos modos de formação lexical, nominal, verbal ou pronominal, ainda que
sejam muito distantes umas das outras do ponto de vista genético, histórico ou
geográfico.
A tendência a utilizar a mesma forma nominal e verbal é encontrada tanto
em wolof como em inglês:
liggeey, trabalhar; liggeey bi, o trabalho
to work, trabalhar; the work, o trabalho
No entanto, apesar dessa semelhaa tipogica, os dois idiomas estão
genética e geograficamente muito afastados um do outro. Pode acontecer,
250
Metodologia e pré -história da África
por outro lado, de as línguas pertencerem à mesma família e serem de tipos
diferentes. Seu parentesco é estabelecido a partir de um vocabulário comum
convincente, mesmo que tenham evoluído em bases estruturais divergentes. Às
vezes, devido ao empréstimo e ao abandono de vocabulário, a diferença pode
aparecer mesmo no plano do léxico. As classificações elaboradas para as línguas
africanas não agrupam, por exemplo, certos elementos das famílias chádica
e senegalês -guineense. Contudo, a consideração dos sistemas fonológicos, da
morfologia e da estrutura sintática impõe o reagrupamento tipológico de pelo
menos a maior parte dessas línguas.
Classicação geográca
Reflete sobretudo uma tendência instintiva para comparar e reagrupar línguas
que coexistem numa área. Quase sempre é resultado de informação insuficiente.
As classificões propostas para a África o muito frequentemente
geográficas em setores essenciais. Por esse motivo, elas deixam de lado alguns
fenômenos como a migração e a imbricação dos povos. Koelle, M. Delafosse, D.
Westermann e J. Greenberg fazem referência principalmente a denominações e
agrupamentos topológicos e geográficos. Eles estabelecem categorias tais como
oeste -atlântico”,níger -congo”,senegalês -guineense”,nígerochádico”, etc.
Uma classificação rigorosa das línguas africanas requer procedimentos que
demonstrem que as formas, o vocabulário e as estruturas linguísticas propostas
como elementos de comparação são não apenas representativos, mas fazem parte
do patrimônio original das línguas comparadas. A semelhança não deve ser,
portanto, resultado de empréstimos ou de contatos antigos ou recentes.
Sabemos que, por motivos históricos, o árabe e as línguas semitas, como
também o francês, o português, o africâner e o inglês depositaram, por vários
séculos e mesmo alguns milênios, uma quantidade considerável de vocabulário
em muitas línguas africanas. Algumas variantes do kiswahili, que é uma língua
bantu, contêm mais de 60% de empréstimos lexicais do árabe. Daí a concluir
por paixão religiosa ou falta de precaução científica que o kiswahili pertence ao
grupo semito -árabe, apenas um passo. Algumas vezes, chegou -se realmente
a essa conclusão.
Com o tempo, as formas originalmente comuns a mais de uma língua podem
ter sofrido transformações de ordem fonética, morfológica ou estrutural. Essa
evolução, que obedece a certas leis, é um fenômeno conhecido e analisável.
O significado dessas formas, o significado das palavras que fazem parte do
vocabulário a ser comparado, pode ter variado dentro dos limites de um campo
251
História e linguística
semântico passível de ser mais ou menos apreendido. Em sua forma moderna,
por exemplo, o wolof mostra um emudecimento da vogal final depois de uma
consoante dupla: Bopp ou fatt em vez de Boppa ou fatta, como ainda dizem os
gambianos e os Lebu. A forma neds do egípcio antigo transforrriou -se em neddo
em fulfulde moderno e nit em wolof. O bantu diz mutumuntu; o haussa, mutu;
o mandinga, mixi ou moxo; o fon, gbeto; o mina, agbeto, etc. A palavra egípcia
kemit significou queimado ou preto”. Hoje significa cinzas, queimaduras, etc.
A reconstrução de uma língua
A reconstrução histórica de uma língua
Como técnica de redescoberta do vocabulário e do patrimônio estrutural
comum, a reconstrução histórica de uma língua leva em conta as mudanças
descritas acima. Como procedimento, permite retraçar a história de uma língua
ou de uma família linguística, ajudando a estabelecer a protolinguagem original e
a datar os períodos de separação dos diversos ramos. Nesse sentido, a reconstrução
constitui uma ajuda valiosa para a ciência classificatória propriamente dita.
Vários critérios e técnicas são utilizados para reconstruir uma língua e
reinventar seus dados originais. A correspondência de sons desempenha papel
primordial na reconstrução de uma protolinguagem ou no estabelecimento de
um parentesco. Quando se diz, por exemplo, que o p se torna f numa variante
e que noutra o u se transforma em o, é possível, fazendo Fa = Pa, Lu = Lo,
reconstruir o sistema fonético e as formas originais.
Reconstrução fonológica
Esta técnica é uma etapa para a reconstrução do repertório léxico e
do vocabulário original. Os fonemas não são os únicos elementos a mudar:
a morfologia e as estruturas também evoluem. A fuão sujeito em latim é
marcada por um fonema chamado nominativo; nas línguas de origem latina ou
de influência latina, essa função é determinada principalmente pela sintaxe de
posição: Homo vidit = vidit homo = o homem viu.
No estabelecimento das protolínguas (protobantu, protocdico, etc.),
sempre se faz referência ao vocabulário, ao repertório lexical comum. Podem -se
assim estabelecer porcentagens” de palavras comuns, elaborando quadros de
contagem lexical” ou lexical count. A classificação de J. H. Greenberg
1
recorre
1 GREENBERG, J. H. 1963.
252
Metodologia e pré -história da África
frequentemente a essa técnica. Em seu trabalho sobre o grupo oeste -atlântico,
D. Sapir também a utiliza
2
. Ele indica que o seereer e o pulaar, colocados no
mesmo grupo, têm 37% de palavras em comum; o baga koba e o temne, 79%; o
temne e o seereer, apenas 5%; o basari e o safeen, também 5%.
Esses idiomas são todos agrupados na mesma família, mas o vocabulário
comum (que pode ser abundantemente emprestado) não é suficiente para negar
ou afirmar uma relão histórica. Tem -se recorrido tamm à similaridade
de “traços tipológicos” ou à identidade de estrutura (comparação dos sistemas
pronominal, verbal ou nominal, etc.).
O componente tipológico, associado aos dados fornecidos pela análise lexical e
fonológica, possibilita atingir resultados que se tornam tanto mais comprobatórios
quanto forem consideradas a história e as influências. A reconstrução também
visa a datar a época em que essa herança comum foi dividida no interior de
uma protolíngua e depois empregada por línguas aparentadas e que estavam
diferenciando -se progressivamente. Além disso, preocupa -se em identificar a
natureza da língua primitiva que deu origem aos vários falares que podem ser
ligados a uma mesma protolíngua.
Reconstrução e datação
Permitem determinar a idade dos materiais léxicos e estruturais coligidos
durante o estudo das línguas, com o objetivo de, por comparão, precisar
com maior ou menor certeza o nível em que se situa o parentesco linguístico.
Portanto, essas técnicas oferecem pontos de referência precisos à história da
separação dos povos que pertenciam ao mesmo universo cultural e linguístico.
Ao mesmo tempo, iluminam de forma abrangente a história das etnias e das
civilizações multinacionais e multiétnicas.
No contexto de uma pesquisa sobre uma época recente e a prosito
de línguas escritas, o esfoo é relativamente menor. Em contrapartida, a
raridade dos documentos posteriores ao IV milênio antes da Era Cristã
geralmente dificulta a tarefa. Nesse caso, entretanto, trata -se de elucidar
a história de períodos decisivos de mutação linguística. Os processos de
mudança do vocaburio ou das estruturas examinados com esse propósito
o, como veremos mais tarde, muito lentos e diceis de determinar. Para
atenuar essa escassez de informão, é necessário recorrer a cnicas mais
ou menos eficientes.
2 SAPIR, D. 1973.
253
História e linguística
A glotocronologia
Essa técnica, que foi aplicada na África, é uma das mais recentes no campo
dos estudos linguísticas. Seu princípio básico é a datação da evolução lexical de
uma língua, tomando como referência o ritmo das mudanças no vocabulário:
vocabulário cultural (conceitos filosóficos, técnicos, etc.) e vocabulário básico
(nomes das partes do corpo humano, números de um a cinco, vocábulos que
designam os fenômenos naturais, etc.). A glotocronologia visa, portanto, a
dar informações sobre a idade, as etapas e o estado de evolução dos termos
e das formas do léxico. A evolução do vocabulário fundamental ou básico é
relativamente lenta nas sociedades antigas, pelo menos quando não mudanças
súbitas causadas por acontecimentos decisivos. Particularmente na África negra,
graças aos trabalhos de Delafosse, foi possível formar uma ideia desse ritmo de
evolução, através do levantamento de palavras registradas por escrito desde o
século XI. O trabalho de Delafosse trata do vocabulário das línguas sudanesas,
recolhido nos textos árabes. Esses termos não sofreram quase nenhuma mudança
depois de um milênio de história. Mas os defensores do método vão ainda
mais longe: a evolução do vocabulário básico não seria lenta, mas também
constante em todas as línguas. Tal é a opinião de E. Swadesh, que tentou aplicar
essa teoria a línguas africanas. Em alguns casos precisos, os testes efetuados
parecem ser comprobatórios.
A glotocronologia postula um ritmo de transformação dos elementos do
vocabulário básico, que pode ser medido em porcentagem. A taxa de retenção
do vocabulário estaria entre 81 ±2 e 85 ±0,4% por um período de 1000 anos.
Baseando -se nisso, a glotocronologia chegou a algumas conclusões, reunidas na
célebre fórmula:
t = log c
1,4 log r
onde t representa a duração, e a porcentagem de termos comuns às línguas
comparadas e r a taxa de retenção.
Diante dos resultados obtidos, pode -se considerar a glotocronologia como
uma medida temporal válida, uma espécie de relógio histórico? As descobertas
ficam aquém das expectativas por uma razão simples: num contexto de imbricação
linguística e de interferência de léxicos cuja extensão é mal conhecida e sem
documentos precisos, escritos ou não, não é fácil, no estado atual das pesquisas,
seriar os dados e distinguir, por exemplo, entre mudanças normais e mudanças
causadas por empréstimo, mesmo no léxico básico.
254
Metodologia e pré -história da África
No entanto, uma ciência classificatória que empregasse todas essas técnicas
forneceria a chave da relação étnica e linguística.
Classicações linguísticas e parentescos etnoculturais
Apesar de alguns trabalhos notáveis, o problema do parentesco linguístico e
étnico está longe de ser resolvido na África. Em muitas áreas, a intuição de que
existe essa relação ainda sobrepuja a prova estabelecida cientificamente.
A ideia e a noção de uma comunidade bantu reunindo a grande maioria dos
povos da África central e meridional nasceram no século XIX com os trabalhos
de W. Bleek. Numa obra célebre publicada em 1862, ele estabeleceu o parentesco
das línguas e das variantes dialetais faladas numa área muito vasta, habitada
por numerosos grupos étnicos, usando falares com maior ou menor grau de
intercompreensão. Evidentemente, o parentesco de língua e de cultura é muito
mais perceptível à primeira vista para as etnias que vivem lado a lado. É o que
ocorre com os Bantu.
Em alguns casos, a distância no espaço e no tempo cria problemas. Os Fulbe
são um bom exemplo. Da bacia do Senegal à bacia do Nilo, eles constituem
comunidades frequentemente isoladas, em meio a áreas habitadas por etnias às
vezes muito diferentes.
Os Duala do Camarões falam uma língua bantu; na prática, o duala pode
ser considerado uma variante desse grupo, da mesma natureza que o lingala, tal
como os falares de Mbandaka ou Kinshasa, apesar da distância e do isolamento
relativo que existem entre os Duala e as comunidades que falam estes dois
últimos idiomas.
O egípcio faraônico, que era falado 5000 anos, apresenta seme lhanças
espantosas com o haussa, o wolof ou o songhai.
3
Ocorrem ainda fenômenos de imbricação. Grandes línguas de unificação
continuam, por motivos diversos (políticos, econômicos, culturais, etc.), a servir
de suporte à integração de etnias diferentes. Elas apagam, por meio da pressão
social e do peso histórico, os falares e as culturas, dos quais restam frequentem
ente apenas alguns vestígios.
O lingala, o haussa, o kiswahili, o ioruba, o twi, o ibo, o bambarajula, o
fulfulde, o árabe ou o wolof são falados por milhões, talvez até por dezenas
3 A esse respeito, podemos citar os trabalhos da Srta. HOMBURGER, os capítulos deste livro escritos
pelos professores GREENBERG e OBENGA e o relatório do Simpósio do Cairo (volume II).
255
História e linguística
de milhões de pessoas de origens diferentes. Como veículos de comunicação,
ultrapassaram largamente seu contexto étnico e geográfico original, para se
tornarem línguas de civilização comuns a povos inicialmente muito diferentes.
Os Peul e os Seereer constituem, no Senegal, a imensa maioria dos falantes
de wolof. O wolof era originariamente a língua de uma etnia lebu, cujos traços
foram encontrados na fronteira entre o Senegal e a Mauritânia. Hoje em dia,
os Lebu constituem apenas uma pequena minoria, confinada na península do
Cabo Verde. No entanto, com a urbanização do Senegal, a cultura e a língua
wolof estão fazendo muitas línguas e dialetos desaparecerem sob nossos olhos: o
seereer, o lebu, o fulfulde, o diula, o noon, etc. Esses idiomas, porém, pertencentes
a povos diversos, desempenharam apenas alguns séculos importante papel
na história da região.
Esta evolução é geral. O kiswahili, falado por dezenas de milhões de pessoas
de fala bantu, nasceu de uma variante zanzibarita usada inicialmente em algumas
aldeias. Expandiu -se depois com muita facilidade por uma área linguística bantu
relativamente homogênea, para constituir hoje, juntamente com o lingala, o
principal veículo de comunicação na África central e meridional. Cinquenta
ou sessenta milhões de pessoas falam uma dessas duas línguas, ou uma variante
próxima, nos seguintes países: Zaire, República Popular do Congo, República
Centro -Africana, Uganda, Tanzânia, Quênia, Zâmbia, Malavi, África do Sul,
Sudão e Etiópia.
O pensamento africano tradicional tem -se mostrado com frequência bastante
consciente, não dessa imbricação, mas também do papel explicativo que o
fenômeno linguístico pode representar na elucidação da história. Nas tradições
africanas, numerosas anedotas sobre o parentesco entre as línguas ou sobre
a origem mais ou menos mítica de sua diferenciação. Frequentemente trata-
-se de observações justas. É o caso das aproximações que os Peul e os Seereer
fazem, afirmando quase intuitivamente seu parentesco étnico e linguístico. Os
Mandinga, os Bantu, os Akan e os Peul, que. se apresentam como falantes da
mesma língua, têm às vezes, enquanto grupos e subgrupos, a intuição de formar
uma grande família comum. Na maior parte dos casos, contudo, o parentesco
afirmado nasce apenas da necessidade de integrar a história de uma comunidade
que “deve” aparecer de um modo ou de outro no universo de uma certa etnia,
ou ainda de coexistir com ela. Para a coerência de uma saga tradicional, é
indispensável que os grupos que hoje povoam um habitat comum tenham
ligações verdadeiras ou míticas uns com os outros.
No entanto, o saber linguístico tradicional das sociedades africanas o
fornece indicações precisas que permitam evocar a existência de uma ciência
256
Metodologia e pré -história da África
antiga ou de uma reflexão sistemática sobre tais parentescos, ao contrário do
que se pode notar em outras áreas, como, por exemplo, na ciência etimológica,
na própria análise da língua, ou ainda nos fenômenos lexicais. O mestre da
palavra e da eloquência peul, bantu ou wolof possui em geral um interesse muito
consciente e uma boa informação sobre a origem das palavras. O historiador
de Cayor, por exemplo, terá prazer em descobrir as palavras emprestadas ou
decompor um vocábulo para revelar sua origem: Barjal, diz o guardião da
tradição de Cayor, vem de Baar e Jall. E explica ao mesmo tempo a contração
formal sofrida pelos componentes do termo, o contexto e o sentido da palavra.
Em um artigo de A. Tall
4
, há alguns exemplos desse tipo de trabalho, feito por
etimologistas tradicionais entre os Mossi e os Gurmanche.
O início da ciência classificatória em linguística ocorre com S. Koelle, Bleek
e a pesquisa europeia. Esta inaugura -a no século XIX com os trabalhos dos
comparatistas indo -europeus de quem os pesquisadores da linguística africana
foram discípulos.
W. H. Bleek
5
foi um dos primeiros que se propôs a estabelecer o parentesco
das línguas bantu, precedendo nessa área autores como Meinhof ou H. Johnston.
A contribuição de Delafosse
6
às línguas africanas do oeste é bem conhecida. O
mesmo pode ser dito sobre os trabalhos de C. R. Lepsius
7
, A. N. Tucker
8
e G. W.
Murray
9
para as línguas nilóticas e de Basset para as línguas berberes. O estudo
do egípcio antigo, essencial à pesquisa negro -africana, o das línguas semíticas ou
indo -europeias da África do Norte e até mesmo o de línguas púnicas e greco-
-latinas tiveram também notável valor.
Como enfatiza J. H. Greenberg
10
, autor da classificação das línguas africanas
mais recente e atualmente mais discutida, os trabalhos modernos de maior
interesse para o continente como um todo são os de Drexel
11
e Meinhof
12
. Mas
4 Cf. Tradition Orale. Centre Régional de Documentation pour la Tradition Orale de Niamey, 1972.
5 BLEEK, W. H. I. 1862 -1869.
6 DELAFOSSE, M. In: MEILLET, A. e COHEN. 1924; HOMBURGER, L. 1941. Dentre os autores
que propuseram classicações, devemos citar A. WERNER, 1925 e 1930.
7 LEPSIUS, C. R. 1888.
8 TUCKER, A. N. 1940.
9 MURRAY, G. W. v. 44.
10 GREENBERG, J. H. 1957. Principalmente a análise crítica feita em “Nilotic hamitic -semito -hamitic”.
In: Africa, 1958 e também e Languages of Africa, e Hague, 1963.
11 Cf. GREENBERG, J. H.
12 MEINHOF, C. 1904, 1906, 1912 e 1932.
257
História e linguística
estes não são os primeiros nem os únicos. Koelle
13
, a partir de 1854, e Migeod
14
,
em 1911, propuseram métodos e modos de classificação, enquanto Bauman e
Westermann
15
apresentaram, em 1940, um sistema interessante sobre o mesmo
tema.
Entretanto, esses trabalhos continuam discutíveis e discutidos por muitas
razões. A primeira é que a lingstica da África não escapou à ideologia
etnocentrista. Sob esse aspecto, as críticas recentes do próprio J. H. Greenberg
concordam perfeitamente com as que Cheikh Anta Diop exprimia há 20 anos,
em Nations Nègres et Cultures, e que T. Obenga retomou, acrescentando -lhes
novas informações em sua conferência no Festival de Lagos, em 1977. A segunda
razão é de ordem puramente científica. Quase todos os linguistas consideram
prematuras as tentativas de classificão. o são tomadas as precauções
metodológicas indispensáveis e ainda não se reuniu material devidamente
analisado e preparado para uma comparação genética ou mesmo tipológica das
línguas africanas.
Insuciência dos trabalhos
Até mesmo a simples enumeração das línguas africanas encontra obstáculos,
que o levantamento desses idiomas ainda não atingiu resultados muito precisos.
Estima -se que existam no continente de 1300 a 1500 idiomas classificados como
línguas. As monografias existentes sobre tais falares resumem -se às vezes à
coleta de uma vintena de palavras mais ou menos bem transcritas. A ausência
de uma análise profunda da estrutura, do léxico e da possível intercompreensão
é um fato corrente no estudo da imensa maioria dos falares africanos. Assim,
as classificações propostas periodicamente tornam -se caducas muito depressa.
Diversos falares classificados como línguas” são apenas variantes dialetais de um
mesmo idioma. A partir de testemunhos vagos, que apóiam conclusões de autores
ou informantes desavisados, as variantes foram rapidamente classificadas não
apenas como línguas diferentes, mas como elementos de famílias diferentes. E
como afirmar que o bambara é uma língua diferente do mandinga de Casamance
ou que o ioruba de Benin é diferente do de Ife. Em ambos os casos, trata -se
de variantes. Meinhof tornou -se conhecido pelos erros dessa gravidade que
cometeu no estudo das línguas de Kordofan.
13 KOELLE, S. W. 1854.
14 MIGEOD, F. W. 1911.
15 BAUMAN. H. e WESTERMANN, D. 1962.
258
Metodologia e pré -história da África
É certo que alguns progressos se verificaram recentemente. Contudo, não
existe contexto favorável a um trabalho de síntese rigoroso. De fato, não é possível
classificar línguas que ainda não foram identificadas com exatidão e analisadas
precisamente. Alguns exemplos concretos ilustram a amplidão das controvérsias
e o grau das incertezas. Os dois primeiros referem -se aos falares da fronteira
geográfica atual entre a família camito -semítica e a família negro -africana. O
terceiro refere -se ao grupo “oeste -atlântico”, ou ainda “senegalês -guineense”.
Dos trabalhos de C. Meinhof (1912)
16
, M. Delafosse (1924)
17
, C. Meek
(1931)
18
, J. Lukas (1936)
19
e M. Cohen (1947)
20
aos de J. H. Greenberg, em
1948, ou de A. Tucker e A. Bryan, em 1966
21
, e às críticas recentes de T.
Obenga
22
, não há perfeita concordância sobre os dados nem sobre o método, os
componentes dos grupos ou a gênese e a natureza das relações entre os falares.
O contato e sobretudo a geografia realmente unem, de modo indiscutível, as
línguas faladas do Nilo à bacia do Chade. A coexistência milenar do negro-
-africano e do semítico abriga um fundo comum de empréstimo mútuo
considerável. Essas contribuições recíprocas dificultam a separação entre os
dados originais e a aquisição exterior.
O problema é saber em que medida o vocabulário próprio do egípcio antigo,
do haussa, do copta, do baguirmiano, do sara e das línguas chádicas, que pode
ser encontrado no berbere e nas línguas semíticas tais como o árabe e o amárico,
atesta parentesco entre tais idiomas ou simples influência de uns sobre outros.
As informações sobre o egípcio antigo remontam a 4000 anos e sobre o semítico
a 2500 anos. O chádico, o berbere e o cuxita, analisados no mesmo contexto,
fornecem informações consistentes nos séculos XIX e XX da Era Cristã.
Em 1947, M. Cohen publica seu Essai Comparatif sur le Vocabulaire et la
Phonétique du Chamito ‑Sémitique, em que compara o egípcio, o berbere, o setico,
o cuxita e o haussa, que evoca esporadicamente. Desde 1949, Leslau
23
e Hintze
24
questionam as conclusões de Cohen e até mesmo seus métodos. J. H. Greenberg,
16 MEINHOF, C. 1912.
17 DELAFOSSE, M. 1924.
18 MEEK, C. 1931.
19 LUKAS, L. 1936.
20 COHEN, M. 1947; GREENBERG, J. H. 1948. “Hamito -Semitic. SJA 6.47.63.
21 TUCKER, A. e BRYAN, A. 1966.
22 OBENGA, T. 1977. Comunicação no Festival de Lagos
23 LESLAU, W. 1949.
24 HINTZE, F. 1951.
259
História e linguística
considerando que é contestado o próprio princípio de um domínio camito-
-semítico”, aumenta os componentes do grupo, sugerindo um quinto elemento
distinto, o chádico. Ele ao grupo todo o nome de camítico e, depois, de afro-
-asiático”. Essas conclusões são objeto de controvérsia a partir de sua publicação.
Polotsky
25
põe em dúvida que, no estágio atual, seja possível afirmar a existência
de cinco ramificações. Note -se que Greenberg repete, embora de modo não
convincente, a tese predominantemente geográfica a respeito do chádico e de
suas ligações contida em Languages of the World. Basta consultar as classificações
divergentes de Greenberg, Tucker e Bryan, constantemente questionadas até pelos
próprios autores, para ter uma ideia do caráter provisório das conclusões.
Os trabalhos recentes já dão consistência à noção de uma realidade chádica,
cujas fronteiras se mostram bem mais distantes que as margens do lago. Newman
e Ma
26
, em 1966, e Illie Svityè
27
, em 1967, aprofundaram o conhecimento do
protochadiano. Os trabalhos de Y. P. Caprille
28
limitaram sua extensão ao
próprio Chade. Com base em observações sistemáticas, pode -se sugerir um
laço genético entre o grupo sara, o grupo chadiano e várias línguas classificadas
como oeste -atlânticas (seereer, pulaar, wolof, safeen, etc.)
29
. Em si mesmas, essas
contribuições lançam dúvidas sobre todos os esforços de classificação, destaca
C. T. Hodge num excelente artigo
30
.
O principal problema, a natureza das relações entre as línguas da fronteira
negro -africana e indo -europeia, ainda não está resolvido. O peso dos trabalhos
que assimilam o mundo cultural africano ao semítico permanece como problema.
É verdade que a questão da identidade e dos componentes do negro -africano
continua a existir. Ela é enfatizada no simpósio sobre Le Peuplement de lEgypte
Ancienne, organizado pela Unesco em 1974, no Cairo. Nessa ocasião, S. Sauneron
lembrava, para ilustrar tais incertezas, que a língua egípcia, por exemplo, não
pode ser isolada de seu contexto africano e que o semítico não pode explicar
seu nascimento”.
O cuxita é outro exemplo que ilustra a atual incerteza da pesquisa e das
classificações. Greenberg, Tucker e Bryan e o soviético Dolgopoljskij propõem
atualmente três classificações diversas, se não contraditórias, para o mesmo
25 POLOTSKY, H. 1964.
26 NEWMAN, P. e MA, R. “Comparative Chadic”. JWAL 5.2.18.25.
27 SVITYE, Illie. e History of Chadi Consonantism. Cf. HODGE, C. 1968.
28 CAPRILLE, Y. P. 1972.
29 Cf. DIAGNE, P. 1976.
30 HODGE, C. T. 1968.
260
Metodologia e pré -história da África
complexo de línguas chamado cuxita (somali, galla, sidamo, mbugu, etc.). A
classificão de Dolgopoljskij articula -se sobre uma reconstrução de ordem
fonológica a partir de exemplos limitados. Ele compara, particularmente, as
labiais (p, b, f) e as dentais (t, d) das línguas que analisa e classifica numa dezena
de subgrupos, enquanto seus colegas identificam de três a cinco.
J. H. Greenberg, por sua vez, negligencia os dados fonológicos, morfológicos
e gramaticais, concentrando -se principalmente na comparação do vocabulário.
Mas aqui os empréstimos representam um papel considerável. A classificação
de A. Tucker e A. Bryan, que fazem críticas ao método de Greenberg, baseia -se
numa comparação do sistema pronominal e da estrutura verbal. Eles próprios
consideram ambíguos” alguns dos idiomas que reagrupam e enfatizam que seu
esforço tem o caráter de pura tentativa.
Pode -se constatar que as conclusões adiantadas aqui valem principalmente
por seu aspecto provisório.
Reencontramos as mesmas dificuldades no que diz respeito às línguas
geograficamente delimitadas pelo oeste atlântico, localizadas na costa que vai do
sul da Mauritânia à Serra Leoa. Em 1854, Koelle as classifica em seu Polyglotta
Africana sob a rubrica “oeste -atlântico e baseia sua identificação nas mudanças
de prefixos ou na inflexão inicial ou final que apresentam. Esse é um traço típico
do bantu, mas não é suficiente para definir um grupo.
De resto, Koelle vai considerar mais tarde o conjunto dessas línguas como
não classificadas”. M. Delafosse em 1924
31
e D. Westermann em 1928 afirmam
que se trata de um grupo genético. Em 1963, Greenberg
32
adota o mesmo ponto
de vista, considerando -as o grupo mais ocidental da família níger -congo.
No mesmo ano, contudo, Wilson
33
e D. A. Dalby
34
, embora notando as
semelhanças tipológicas no interior do conjunto, negam qualquer possibilidade
de o encarar como um grupo linguístico homogêneo e aparentado. Em detalhes
de morfologia, sintaxe e vocabulário, escreve Wilson, o grupo oeste -atlântico
ou senegalês -guineense está longe de representar uma unidade. De fato, os
trabalhos recentes publicados em 1974 por D. Sapir
35
mostram que não
mais de 5 a 10% de vocabulário comum entre a grande maioria dessas línguas,
parecendo ser a geografia o único fator que as unifica na maior parte dos casos,
31 DELAFOSSE, M. 1924.
32 GREENBERG, J. H. 1963.
33 WILSON, W. 1966.
34 DALBY, D. A. 1965.
35 SAPIR, D. 1974.
261
História e linguística
como foi dito antes. O processo de migração misturou aqui, como na área nilo-
-chádica, povos de origens diferentes; o parentesco entre eles é estabelecido
talvez depressa demais, na ausência de informações mais precisas que esclareçam
a história e o historiador.
É nesse plano, aliás, que são amplos os atuais limites da linguística como
instrumento de investigação histórica. O pesquisador se confronta aqui com
o duplo obstáculo mencionado acima. A pesquisa não atingiu seus objetivos
porque se conserva parcial e embrionária. Além disso, seus resultados provisórios
o frequentemente inexploráveis porque falsificados pela ideologia e por
perspectivas deformantes.
A ideologia deformante
A história é por excelência o lugar da ideologia. Os primeiros trabalhos sobre
as línguas e o passado da África coincidiram com a expansão colonial europeia.
Assim, foram fortemente marcados pelas visões hegemonistas da época.
O discurso etnocentrista exprime a preocupação instintiva de julgar valores
de civilizações com referência a si mesmo. Ele levou à apropriação dos fatos
de civilizão mais marcantes para legitimar -se como pensamento e poder
dominantes no mundo. As teses sobre a primazia do indo -europeu, do ariano
ou do branco civilizadores testemunham um excesso cujos ecos profundos são
encontrados ainda hoje em muitas obras de história e de linguística da África
36
.
É por isso que o Egito foi por muito tempo colocado entre parênteses com
relação ao resto do continente. Com base em especulações feitas ao acaso,
continua -se às vezes a atribuir -lhe menos idade, em benefício da Mesopotâmia
ou de outros centros supostamente indo -europeus ou semitas. Frequentemente,
foram procurados imaginários iniciadores da arte do Benin. Montou -se uma
teoria “camítica”
37
, peça por pa, com a finalidade de explicar, atras de
influências externas, qualquer fenômeno cultural positivo na África negra.
36 Ver adiante J. H. GREENBERG sobre essa questão.
37 As palavras “camita” e “camítico foram largamente utilizadas no mundo ocidental durante vários séculos,
tanto no vocabulário erudito como no cotidiano. Procedem de leituras deformantes e tendenciosas
da blia, das quais se originou o mito da maldição dos descendentes negros de Cã. Esses termos
adquiriram uma signicação aparentemente menos negativa (pelo menos sem conotação religiosa)
graças à pesquisa de linguistas e etnólogos no século XIX, mas nem por isso deixaram de funcionar
como critério de discriminação entre certos negros considerados superiores e os outros. Em todo caso, o
comitê cientíco internacional estimula os estudos críticos em andamento, que tratam dos usos históricos
desse vocabulário que deve ser utilizado com reservas expressas.
262
Metodologia e pré -história da África
Procurando promover uma metodologia rigorosa e científica, J. H. Greenberg
cuja contribuição, embora discutível em parte, ainda continua nova e importante
torna -se algumas vezes eco desse impacto negativo da ideologia etnocentrista.
Seligman, Meinhof e, depois deles, autores importantes como Delafosse,
Bauman, Westermann ou Müller, desenvolvem argumentos de uma fragilidade
científica consternadora, pois baseiam -se em preconceitos do tipo que Meinhof
exprime na seguinte fórmula: “No curso da história, repete -se constantemente o
fato de que os povos camitas têm subjugado e governado os povos de pele negra”.
Essas constatações fundamentam a prudência com que deve ser utilizado
o material que os trabalhos linguísticos oferecem aos historiadores ou aos
especialistas das ciências humanas em geral.
Segundo Greenberg,
o emprego vago do termo camita como categoria linguística e sua utilização na
classificação das raças para designar um tipo considerado fundamentalmente cauca-
sóide, conduziram a uma teoria racial. Ela vê, na maioria das populações originárias
da África negra, o resultado de uma mistura entre camitas e negros”.
Assim, a denominação de povos de língua nilo -camítica refere -se à obra
de C. G. Seligman, Races of Africa. “Esses povos são considerados racialmente
meio -camitas.” Os Bantu constituiriam também uma outra variedade de negros
camitizados. E isso, comenta ainda Greenberg:
Tomando por base as especulações de Meinhof, para as quais, aliás, ele nunca
forneceu a menor prova, pela simples razão de que não há prova possível para que o
bantu, como diz Seligman, seja uma língua mista e o homem bantu, por assim dizer,
descendente de pai camita e mãe negra”.
De fato, conclui J. H. Greenberg, essa ideologia falseia totalmente, ainda
hoje, a elaboração de uma ciência linguística capaz de esclarecer as verdadeiras
relações entre línguas e civilizações na África.
A migração dos povos africanos no sentido leste -oeste e norte -sul tornou
confuso o quadro étnico, racial e linguístico do continente. Isso é indicado, como
se pode ver em muitos trabalhos, pelos nomes de pessoas e lugares e pelos fatos
de linguística pura relativos ao próprio vocabulário essencial. As línguas do
Senegal, como o wolof, o diula, o fulfulde ou o seereer, atestam semelhanças mais
profundas com as línguas bantu da África do Sul, da Tanzânia, de Camarões e
do Zaire do que com as línguas da família mandinga no interior das quais são
geograficamente inseridas. O léxico, a estrutura e mesmo os princípios da escrita
egípcia antiga, como veremos mais tarde, estão mais próximos da realidade
263
História e linguística
de línguas como o wolof e o haussa ou da tradição gráfica daomeana que das
estruturas linguísticas semíticas ou indo -europeias às quais são anexadas sem
critério.
A antiga língua egípcia, o haussa, as línguas dos pastores ruandenses, dos
abissínios, dos Peul e dos núbios são naturalizadas semitas ou indo -europeias
sobre bases de evidente fragilidade ou a partir de uma metodologia e de uma
escolha de critérios muito pouco convincentes.
Os Peul talvez sejam mestiços, do mesmo modo que os Baluba, os Susu, os
Songhai e muitos povos negros que mantiveram, em seu habitat antigo ou atual,
contatos com populações brancas. Essa hipótese de mestiçagem, contudo, é hoje
bastante questionada a partir de descobertas recentes a respeito dos processos
de mutação da pigmentação.
Por sua fonologia, seu léxico e sua estrutura, o fulfulde apresenta semelhanças
com o seereer, mais do que com qualquer outra língua conhecida, a tal ponto que
os próprios Seereer e Peul sugerem haver entre eles um parentesco não apenas
linguístico mas também étnico. Isso não impediu pesquisadores como F. Müller,
W. Jeffreys, Meinhof, Delafosse e Westermann de tentar estabelecer uma origem
branca para os Peul, afirmando que o fulfulde é protocamítico
38
. W. Taylor chega
mesmo a escrever: Pela riqueza de seu vocabulário, a sonoridade de sua dicção
e as delicadas nuances de significação que é capaz de expressar, o peul não pode
pertencer à família negra sudanesa”. Todas essas observações nos mostram até
que ponto está generalizada a confusão entre categorias tão diferentes como a
língua, o modo de vida e a raça”, sem contar o conceito de etnia, que é utilizado,
conforme o caso, com referência a uma ou várias dessas categorias.
Como nota J. H. Greenberg, a relação simplista estabelecida entre gado
grosso, conquista e língua camítica se mostra falsa em todo o continente africano.
Escreve ele:
“No Sudão ocidental, é uma ironia constatar que os agricultores de línguas camíticas
estão submetidos à autoridade dos pastores peul que falam uma língua sudanesa
ocidental (ou ger -congo). Teria sido outra ironia, se seguíssemos os clics
estabelecidos, constatar a antiguidade e a permanência das hegemonias mandinga
ou wolof, de família linguística sudanesa, sobre povos tão rapidamente assimilados
ao ‘camítico como os assim chamados Peul pré -camíticos ou os Berberes”.
Nenhuma das classificações estabelecidas no plano continental ou regional
oferece, até agora, garantias científicas inquestionáveis. O etnocentrismo tem
38 GREENBERG, J. H. Op. cit.
264
Metodologia e pré -história da África
contribuído bastante para distorcer a análise do material. Em muitos casos,
nos restam conjecturas, petições de princípio e abordagens superficiais.
um certo número de condições necessárias para o estudo das línguas
africanas de acordo com prinpios estritamente cienficos que ajudem a
esclarecer a história dos povos e civilizações do continente. Em primeiro lugar,
esse trabalho deve estar livre das obsessões de um pré -julgamento a partir do
semita ou do indo -europeu, ou seja, a partir do passado histórico do homem
europeu. Além disso, para estabelecer o parentesco entre as línguas africanas,
será necessário fazer referência ao material linguístico antigo e não aos dados
geográficos atuais, às influências antigas ou tardias, aos esquemas explicativos
escolhidos a priori ou aos traços linguísticos marginais em relação aos fatos
dominantes dos sistemas.
Ciências auxiliares
A análise aculturalista
A análise aculturalista ou “topológica”
39
, na terminologia inglesa, releva uma
ciência que tem por objeto o estudo da origem e dos processos de difusão
dos traços culturais (ideias, técnicas, etc.). Os pesquisadores alemães foram os
primeiros a aplicar esse método na prática, com o estudo dos “ciclos culturais”
de Frobenius, Westermann -Baumann, etc.
Esses estudos muitas vezes tomaram por objeto a difusão das técnicas e
produções agrícolas, os métodos pastoris, a invenção e a difusão das técnicas de
trabalho com o ferro e outros metais, o uso do cavalo e a elaboração de noções
ontológicas, do panteão dos deuses ou das formas artísticas.
Entretanto, a topologia muitas vezes foi além de seu domínio. Particularmente,
introduziu muitos erros no âmbito da ciência classificatória. Com efeito, vários
autores incautos pensaram poder inferir um parentesco linguístico a partir de
uma simples constatação de traços culturais, quando esses fatos geralmente se
devem a fenômenos de empréstimo, contato ou convergência.
A ciência onomástica
Onomástica é a cncia dos nomes de lugares (topônimos), de pessoas
(antropônimos) ou de cursos de água (hidrônimos).
39 GUTHRIE, M. 1969.
265
História e linguística
A onomástica está intimamente relacionada ao xico das línguas. As
comunidades étnicas que se têm mantido relativamente homogêneas por um
período de tempo, assim como os grupos etnolinguísticos mais heterogêneos mas
que falam um idioma comum, criam seus nomes principalmente em referência
às realidades de suas línguas. Eles povoam o universo territorial e geográfico
que lhes serviu ou serve de habitat com nomes que constroem nas mesmas
perspectivas. Assim, seguindo a pista dos nomes de pessoas, identificam -se ao
mesmo tempo os elementos étnicos que constituem uma comunidade. Em geral,
os Seereer são chamados Jonn, Juuf, Seen, etc.; os Peul, Sow, Jallo, Ba, Ka, etc.;
os Mandinga, Keita, Touré, Jara, etc. Os Berberes e os Bantu têm famílias de
nomes que lhes são próprios.
A antroponímia desempenha um papel importante no estudo da história
das etnias e das comunidades políticas ou culturais. O estudo dos nomes em
uso entre os Tuculero do Senegal mostra, por exemplo, que estamos diante de
uma comunidade etnolinguística bastante heterogênea. Entretanto, do ponto
de vista cultural, esse grupo de fala fulfulde que se fixou no Senegal, ao longo
do rio, na fronteira entre o Mali e a Mauritânia, é muito homogêneo. Daí um
sentimento nacional bem desenvolvido. De fato, a comunidade forjou -se a
partir de elementos peul (cuja língua se impôs), mandinga, seereer, lebu -wolof
e berberes.
A toponímia e a hidronímia constituem também ciências indispensáveis ao
estudo das migrações dos povos. A partir dos nomes de cidades desaparecidas ou
que ainda existem, podem -se elaborar mapas precisos mostrando os movimentos
dos Mandinga, cujas cidades têm nomes que foram compostos a partir de Dugu.
Da mesma maneira, pode -se estabelecer o mapa toponímico dos habitat antigos
ou atuais dos Peul, que usam o termo Saare para nomear seus povoados, dos
Wolof, que usam o termo Kër, dos árabe -berberes, que utilizam o termo Daaru,
dos Haussa, e assim por diante.
Antropologia semântica
A antropologia semântica ou etnolinguística constitui uma nova abordagem
que tenta revelar a cultura do homem através de sua língua. Baseia -se numa
análise global do conjunto de dados fornecidos pela língua de uma etnia ou
de uma comunidade heterogênea que tem um falar comum, para evidenciar ao
mesmo tempo sua cultura, seu pensamento e sua história.
O método vai além da mera coleta de tradições e literaturas escritas ou orais.
Implica o recurso a uma reconstrução da totalidade das ideias que uma língua
266
Metodologia e pré -história da África
traz consigo e que não depende necessariamente de uma obra ou de um discurso
sistemático. Nesse plano, a pesquisa opera nos níveis infra e supralinguístico.
Decifra, a partir do vocabulário e da divisão do pensamento, os processos de
formalizão, conceptualizão e estruturação de uma língua, as diferentes
formas de conhecimento dentro das quais se cristalizam a visão de mundo e
a história própria à comunidade que pratica um certo falar. A etnolinguística
acaba por revelar sistemas: concepção metafísica, ética, ontologia, estética, lógica,
religião, técnicas, etc.
Assim, a literatura escrita ou oral sobre o passado dos Haussa, com seus
documentos religiosos, fábulas e pticas jurídicas, dicas, metalúrgicas e
educacionais, fornece indicações não apenas sobre a evolução do conteúdo do
pensamento dos Haussa mas também sobre sua história e sua cultura.
Nas civilizações predominantemente orais, em que os textos de referência
são raros, a interpretação diacrônica baseada na comparação de textos de épocas
diferentes praticamente não existe. A linguística torna -se, então, um meio
privilegiado de redescobrir o patrimônio intelectual, uma escala para retroceder
no tempo.
As culturas de expressão oral localizadas pela antropologia semântica
apresentam não apenas obras a serem coletadas e registradas, mas também
autores e as respectivas áreas de especializão. Toda cultura africana oral
ou escrita deixou, como a dos Wolof, seu filósofo, como Ndaamal Gosaas,
seu politicólogo, como Saa Basi ou Koco Barma, seu mestre da palavra e da
eloquência, seu mestre da epopeia ou do conto, como Ibn Mbeng
40
, mas também
seus inventores de técnicas em matéria de farmacopeia, medicina, agricultura
ou astronomia
41
. Esses trabalhos e seus autores constituem excelentes fontes de
análise do dinamismo evolutivo da cultura numa sociedade sob suas diversas
formas.
A ontologia bantu pode ser decifrada e até mesmo interpretada e
sistematizada por referência aos vobulos bantu sobre o estar no mundo, a
partir do trabalho de elaborão e conceptualização que, através das palavras
e enunciados do bantu, dá forma às concepções que essangua tem acerca de
tais fenômenos.
40 Todos célebres personagens históricos da cultura wolof.
41 As obras de S. JOHNSTON sobre os Ioruba, de TEMPELS sobre os Bantu, de M. GRIAULE
sobre os Dogon, de TRAORE sobre medicina africana, de M. GUTHRIE sobre a metalurgia, etc.,
constituem, com os clássicos literários registrados” importantes contribuições à antropologia semântica.
Cf. DIAGNE, P. 1972.
267
História e linguística
Como a língua é o lugar de cristalização de todos os instrumentos mentais ou
materiais construídos pelas gerações sucessivas, pode -se dizer que a experiência
histórica de um povo es depositada em camadas consecutivas no próprio
tecido da língua.
Suporte do documento e do pensamento histórico
A importância da tradição oral na história da África é hoje aceita por todos.
Chega -se mesmo a solicitar a presença de griots tradicionalistas nos congressos.
sugestões para que lhes sejam criadas cadeiras nas universidades e mesmo
para que eles se incumbam da pesquisa e do ensino de história.
De modo geral, a primazia da fala sobre a escrita é ainda hoje uma realidade
em culturas tradicionais com predominância rural, tanto na África como em
outros lugares.
A oralidade como meio de elaborar e fixar os produtos do pensamento
tem suas próprias técnicas. Embora as formas de pensamento escritas ou orais
abranjam a mesma área, os meios e os métodos de sua concepção e transmissão
nem sempre são os mesmos
42
.
Devemos notar simplesmente que o pensamento escrito, ou seja, a literatura
no sentido etimológico, ao se fixar tende, com mais facilidade, a cristalizar -se
sob uma forma permanente. Desse modo, rompe com uma tradição verbal que
oferece um campo mais vasto à invenção e à criação de mitos. No nível da
linguagem, a palavra falada tem também um potencial maior de dialetização
porque menos controle de seu desenvolvimento. Uma língua de expressão
predominantemente oral permanece mais popular, mais sensível às distorções
impostas pela prática no plano de sua estrutura, dos sons que utiliza e até mesmo
das formas que toma de empréstimo.
Uma língua literária, ao contrário, é mais trabalhada no sentido da
unificação. Aliás, apresenta maior dimensão visual e integra, como elementos
expressivos, dados gráficos que lhe conferem certa especificidade: ortografia
em ruptura com a fonologia, pontuação, etc. a linguagem oral utiliza mais
o elemento sonoro. Transmite significação através da cadência, dos ritmos, das
assonâncias ou dissonâncias, das evidências do discurso. A importância do papel
desempenhado pela memória, para suprir a ausência de um suporte gráfico,
também afeta o caráter da oralidade em suas formas de expressão. Chega mesmo
a ser imprescindível, com as técnicas de memorização, uma ciência específica
42 Cf. DIAGNE, P. 1972.
268
Metodologia e pré -história da África
para a retenção de textos. Assim, o documento escrito e a tradição oral passam
a ser complementares, conjugando suas respectivas qualidades
43
. Além disso, os
relatos orais, uma vez transcritos, tornam -se textos literários
44
.
Tradição gráca as escritas africanas
A invenção da escrita atende a necessidades cuja natureza e origem, conforme
os contextos, nem sempre se soube evidenciar. A escrita, instrumento do
comércio e da administração, sustenta normalmente as civilizações urbanas;
mas as motivações iniciais podem variar notavelmente. Na África, tanto na
época dos faraós como durante o reinado dos soberanos do Daomé ou dos
Mansa Mandinga, o uso da escrita atendeu principalmente a necessidades de
ordem não material. A escrita egípcia, a dos baixos -relevos daomeanos e ainda
os ideogramas bambara ou dogon tiveram, em seu contexto original, uma dupla
função: primeiramente, materializar o pensamento e, através disso, realizar uma
ação de caráter religioso ou sagrado. A escrita egípcia, inventada segundo a
lenda pelo deus Thot, ficou por muito tempo confinada sobretudo nos templos,
nas mãos dos sacerdotes; encerrava segredos e servia como instrumento de ação
para um pensamento percebido como substância agente e materializável em
forma de verbo ou de grafia. A segunda grande função atribuída à escrita nas
civilizações africanas coincide com a necessidade de perpetuação histórica. A
escrita egípcia, como a dos palácios de Abomey, é uma glorificação de soberanos
e de povos preocupados em deixar atrás de si a lembrança de seus grandes feitos.
Os Bambara ou os Dogon, ao inscreverem seus signos ideográficos nas muralhas
de Bandiagara, visam ao mesmo objetivo.
Entre a Récade do rei Glélé, machado de cerimônia que traz em si uma
mensagem, e a Palette de Narmer, mais do que simples afinidades. Não apenas
o espírito é o mesmo, mas também os princípios e as técnicas de escrita
45
.
A escrita egípcia é atribuída ao deus Thot, que também é o inventor da magia
e das ciências, a exemplo do deus com cabeça de chacal dos Dogon, ele próprio
depositário do verbo, do conhecimento e da fala eficaz.
43 Cf. DIAGNE, P. Op. cit.
44 Cf. as numerosas publicações a esse respeito: trabalhos de A. HAMPATÉ BÂ, A. Ibrahim SOW,
MUFUTA, E. de DAMPIERRE, K. MOEENE, F. LACROIX, M. GRIAULE, G. DIETERLEN,
WHITLEY, E. NORRIS, L. KESTELOOT, D. T. NIANE, M. DIABATE, J. MBITI, etc. Estes
autores publicaram obras clássicas sobre o assunto nas coleções de Oxford, Julliard, Gallimard, no Centro
de Niamey, etc.
45 GLÉLÉ. M. 1974.
269
História e linguística
Os raros especialistas que se debruçaram, frequentemente com notável
minúcia, sobre os sistemas de escrita originários da África, em geral não se
interessaram pelo vínculo aparentemente óbvio e tecnicamente demonstrável
entre os hieróglifos e as escritas mais conhecidas na África negra. O hieróglifo
egípcio permaneceu fundamentalmente pictográfico em sua fuão original
de instrumento dos templos e, como seu homólogo daomeano, faz referência
à imagem tanto quanto posvel. Trata -se de uma escrita voluntariamente
realista, preocupada em materializar os seres, os objetos e as ideias, o que faz da
maneira mais concreta e substancial, em parte para restituir -lhes ou conservar
suas qualidades naturais.
Não é por acaso que a deformação da escrita pictográfica pelo uso do cursivo,
que altera e desfigura os elementos representados, é permitida fora dos
templos. A escrita hierática, usada sobretudo com finalidades laicas (ao contrário
do que sugere a etimologia grega da palavra), e o demótico popular”, ainda mais
simplificado em seu traçado, são as grafias não -sagradas e utilitárias. No espírito
do sacerdote egípcio, o hieróglifo encerra “um poder mágico de evocação”, como
tão bem demonstra M. Cohen. Em sua opinião, isso explica o fato de “que
as representações de seres nefastos são evitadas ou mutiladas”. Aqui, estamos
diante de uma concepção ontológica que se enraíza e mergulha profundamente
na tradição negro -africana. Por milhares de anos, essa tradição não foi capaz de
dessacralizar – como o fizeram os indo -europeus, particularmente os gregos – o
pensamento e seus suportes orais e gráficos. Os Bambara, os Ioruba, os Nsibidi
e os sacerdotes dogon têm uma visão idêntica dos sistemas gráficos que utilizam
em seus templos ou em suas sessões de adivinhação.
A unidade das grafias inventadas na África não reside apenas nos pressupostos
ideológicos que conferem a esses sistemas suas funções e sua natureza, mas
também na própriacnica de transcrição. Encontra -se, na história das
escritas africanas, uma referência constante a três técnicas de fixação gráfica
do pensamento: o recurso à imagem do ser ou do objeto, copiada através de
pictogramas; o recurso ao símbolo para representar uma realidade através de
ideogramas, que são signos sem relação imediata de semelhança física com a
noção que simbolizam; finalmente, o uso do fonograma para representar todos
os homófonos, ou seja, todas as realidades designadas pelo mesmo som ou grupo
de sons; é o princípio da escrita pictofonográfica.
A comparão entre a Palette de Narmer e as cades de G ou de
Dakodonu é reveladora. Elas transcrevem o discurso segundo os mesmos
princípios. Na Palette de Narmer, temos a imagem de um rei. Ele segura pelos
cabelos um inimigo vencido e o golpeia, enquanto o exército derrotado foge, sob
270
Metodologia e pré -história da África
os pés do gigantesco faraó. Os pictogramas são claros e eloquentes. Os outros
signos são ideogramas. Distingue -se um “ta” oval simbolizando a terra. Em
cima, um grupo de signos e um quadrado para emoldurar o nome do far,
Horus. Um peixe e um pássaro formam o nome faraó”. Essas duas imagens são
pictofonogramas.
A Récade de Gezo mostra o soberano do Daomé sob a forma de um búfalo
(assim como o far é simbolizado por um falcão) que mostra os dentes,
significando o terror que semeia entre seus inimigos. Trata -se, neste caso, de
uma aproximação simbólica. Mas outros mais importantes.
A Récade do rei Dakodonu ou Dokodunu, mais antiga (1625 -1650) e descrita
por Le rissé, mostra com mais clareza ainda o prinpio do hieglifo”
daomeano. O texto da lâmina do machado pode ser lido da seguinte maneira:
há um símbolo pictográfico que representa um sílex, “da”, e embaixo o desenho
da terra, ko”, com um furo no meio, “donon”. Esses signos são pictogramas,
utilizados aqui como pictofonogramas. Juntando -os, como no caso do nome
do faraó na Palette de Narmer, pode -se ler o nome do rei daomeano, Dakodonu.
A escrita daomeana assemelha -se aos hieróglifos faraônicos em seus próprios
princípios e em seu espírito, revelando as três técnicas usadas pela grafia egípcia:
a imagem pictogfica, o mbolo ideográfico e o signo pictofonogfico
46
.
Num notável artigo de síntese o soviético Dmitri A. Olderogge aponta,
como o tinha feito Cheikh Anta Diop, o fato de que o sistema hieroglífico
sobreviveu na África negra até uma época tardia.
Em sua Description Historique des Trois Royaumes du Congo, du Matamba et
de l’Angola, publicada em 1687, Gavassi de Motocculuo afirma que a escrita
hieroglífica era utilizada nessas regiões.
Em 1896 foi descoberta uma inscrição hieroglífica nos rochedos de Tete,
em Moçambique, ao longo do rio Zambeze, cujo texto foi publicado na época.
Cheikh Anta Diop nota, em outro trabalho, o uso de uma grafia pictográfica
tardia no Baol, onde recentemente foram descobertos traçados hieroglíficos em
baobás muito antigos. Os Vai da Libéria utilizaram, durante muito tempo, uma
escrita pictográfica em tiras de casca de árvores.
A escrita meroítica, que nasceu na periferia meridional do Egito antigo,
continuação à escrita faraônica, na qual se inspirava, a menos que a tenha
originado ou que partilhe com ela a mesma origem.
46 Ver capítulo 4.
271
História e linguística
 . Estela do rei serpente (Foto Museu do Louvre).
272
Metodologia e pré -história da África
F . cade representando uma
cabaça, símbolo de poder (Foto Nubia).
F . Récade dedicada a
Dakodonu (Foto Nubia).
F . Leão semeando o terror
(Foto M. A. Glélé, Nubia) .
273
História e linguística
Pictogramas egípcios
(por volta de 4000 antes da Era Cristã)
Pictogramas nsibidi
34
A
27
F
32
I
1
I
14
N
3
N
11
homem correndo com um
braço estendido; inw = men-
sageiro.
ventre de mafero; h.t. = ven-
tre, corpo.
lagarto; s 3 = numeroso, rico.
verme ou serpente (h f w);
verme (d d f t).
sol brilhando; wbn: aparecer.
lua crescente; i h = lua
DAYRELL
107
, homem cor-
rendo com um braço estendido.
MACGREGOR (p. 212),
um mensageiro.
DAYRELL
127
, símbolo que
contém um peixe.
TALBOT
51
, lagarto.
MACGREGOR (p. 212),
serpente.
DAYRELL
104
, serpente
muito longa; uruk ikot, cobra
em Efik e shaw, em Uyanga.
TALBOT
35
, sol brilhando:
utinn, sol em Efik e duawng,
em Uyanga.
TALBOT
34
, lua crescente;
ebi = lua, em Uyanga.
F . Pictogramas egípcios e nsibidi (extraído
de LAfrique dans lAntiquité: a nota 34 remete a J.
K. MACGREGOR, 1909; E. DAYRELL, 1911;
TALBOT, 1923).
F . Palette de Narmer (extrdo de C. A.
DIOP, 1955).
* Quanto aos signos nsibidi, cf. principalmente: J. K.
MACGREGOR. Op. cit. p. 215, 217 e 219: os sig-
nos são numerados de 1 a 98; E. DAYRELL. Op.
cit., pranchas LXV–LXVII: ao todo, 363 signos; P.
A. TALBOT. Op. cit. Apêndice G: “Nsibidi signs”, p.
448-61: 77 signos e 8 textos.
274
Metodologia e pré -história da África
F . Amostras de várias escritas africanas antigas (extraído de D. DALBY. 1970, p. 110 -11).
As escritas bagam e guro (nenhum registro disponível), a escrita “sagrada
ioruba e a escrita gola (ambas indecifradas) são excluídas deste quadro.
275
História e linguística
F . Primeira página do principal capítulo do Alcorão em vai (extraído de L’Afrique dans l’Antiquité,
OBENGA, T. Présence Africaine. 1973).
276
Metodologia e pré -história da África
F . Sistema gráco vai (extraído de L’Afrique dans l’Antiquité, OBENGA, T. Psence Africaine, 1973).
277
História e linguística
278
Metodologia e pré -história da África
Palavra Mum Significação
Signo
coletado em
1900 (Clapot)
Signo
coletado em
1907 (Göhring)
Pé Noz de cola
Fom rei
Ntab casa
Nyad boi
F . Sistema gráfico mum
(extrdo de L’Afrique dans l’Antiquité,
OBENGA, T. Présence Africaine. 1973).
F . Sistema pictográco.
F . Sistema ideográfico e
fonético -silábico
= pwen ou pourin, as pessoas.
= ngou ou ngwémé, país.
= ndya, hoje.
= nsyé, a terra.
= you – yoū, comida.
= poū, nós.
= , e.
= gbèt, fazer.
= , mim.
= fa, dar.
= pwam ou mbwèm, admirar.
= sílaba ba, de iba, que significa:
dois.
= ben, de ben: daa (tipo de –).
= , de byèt: circuncidar, ou de
byê: segurar.
= cha, de ncha: peixe.
279
História e linguística
Os sistemas de escrita ideográfica, contudo, parecem ter resistido melhor que
os hieróglifos em solo negro -africano ocidental. Na prática, a grande maioria
dos povos negros da África está familiarizada com o ideograma, seja através das
técnicas divinatórias, seja pelo uso que delas fizeram os sacerdotes do culto, os
gravadores de obras de arte, etc.
A geomancia dos Gurmanche é muito elaborada. O tambipwalo (geomante)
desenha signos na areia e os interpreta. Depois administra uma espécie de
receita”, que consiste em signos gravados a faca num pedaço de cabaça. Esses
signos abstratos designam os altares, os lugares aos quais é preciso ir para realizar
os sacrifícios, o tipo de animal que deve ser imolado, quantas vezes, e assim por
diante. Trata -se, de fato, de uma “escrita codificada”.
A adivinhação através dos signos do Fa também apresenta uma riqueza
admirável. O adivinho joga nozes de palma de uma mão para outra oito vezes
e, de acordo com o número de nozes que ficam em sua mão esquerda a cada
vez, faz uma inscrição no solo ou numa bandeja polvilhada com areia. São assim
formados os quadros (há 256 possíveis), dos quais os 16 mais importantes são
os du, que constituem os “fios” ou as palavras dos deuses governados por Fa, o
destino. Todos devem cultuar o seu du mas, ao mesmo tempo, ter em conta os de
seus parentes e ancestrais, os de sua região, e assim por diante. Como existe uma
quantidade enorme de arranjos, os du são combinados num tipo de estratégia
mitológica que é também uma técnica grafológica. Pratica -se a adivinhação do
Fa em toda a costa do Benin.
A coleta dos sistemas ideográficos
47
foi abundante, principalmente nos países
de savana que mantiveram suas tradições e o foram muito afetados pela
islamização.o é por acaso que isso ocorre. Os especialistas, dentre os quais F.
W. Migeod foi um dos primeiros a revelarem alguns desses sistemas. A escrita
ideográfica dogon foi apresentada por M. Griaule e G. Dieterlen, responsáveis
pela análise do sistema bambara e por uma boa síntese das grafias da região.
A ideografia nsibidi, usada entre os Ibo do sul da Nigéria, foi descoberta pelos
europeus no fim do culo passado. Baseia -se em princípios de transcrição
largamente difundidos em toda a costa da Guiné.
As escritas fonéticas
48
sistematizam o uso de fonogramas representando
sons simples ou complexos através de signos regulares; em nossa opinião, o
47 Cf. BOUAH, Niangoran. “Recherches sur les poids à peser lor chez les Akan”. Tese de doutoramento
PhD defendida em 1972.
48 D. A. DALBY propõe, a esse respeito, uma atualização interessante em Language and History in Africa,
Londres, 1970.
280
Metodologia e pré -história da África
aparecimento de tais escritas na África resulta de uma evolução tardia. Os
hieróglifos do antigo Egito, como os do Daomé, representam muitos sons
através de signos. Mas os sistemas puramente fonéticos baseados na palavra, na
sílaba ou no fonema simples transcrição alfabética marcam uma nova etapa
49
.
A escrita berbere, usada entre os Tuaregue do Saara e conhecida também
pelo nome de tifinar, poderia ter -se desenvolvido sob influência púnica, pelo
contato com Cartago.
O sistema de escrita núbio formou -se no século X, através do contato com
a grafia copta que, por sua vez, nasceu sob a influência grega. A grafia etíope
de Tigrina e de Amhara é derivada da escrita sabeana da Arábia meridional.
As escritas silábicas e alfabéticas da África ocidental, muito difundidas desde
o fim do século XVIlI nas costas da Guiné e nas regiões sudanesas, podem
ter nascido de uma evolução interna ou ter tomado sua forma definitiva sob
a influência mais ou menos distante de uma contribuição externa, de origem
árabe ou europeia
50
.
A escrita vai, divulgada na Europa em 1834 gras aos trabalhos do
americano Eric Bates, e aos de Koelle em 1849, desenvolveu -se numa área onde
foram descobertos traçados do sistema hieroglífico. Momolu Masakwa, cônsul
da Libéria na Inglaterra no século XIX, descreveu os princípios do sistema
hieroglífico usado naquela época em sua região
51
.
De acordo com os informes de Momolu, para expressar a vitória sobre o
inimigo os Vai desenham, numa casca de árvore que lhes serve de papiro, a silhueta
de um homem correndo com as mãos na cabeça. Ao lado da imagem do fugitivo
junta -se um ponto, para indicar que se trata de um grande número de fugitivos,
de um exército derrotado. Nessa utilização do ponto para denotar o plural, em
lugar dos traços empregados no antigo vale do Nilo, encontramos elementos
da escrita faraônica. Assim, os Vai conseguiram alterar seu antigo sistema no
sentido de uma transcrição fonética. Hoje existem modelos análogos à escrita vai
entre muitos povos da Africa ocidental: Malinke, Mande, Basa, Guerze, Kpele,
Toma, etc. Os Wolof e os Seereer também adotaram, recentemente, uma grafia
inspirada nesses princípios.
49 HAU, E. 1959.
50 As graas sudanesas associam pictogramas (imagens realistas) a ideogramas (signos e signicações
simbólicas). Cf. GRIAULE, M. e DIETERLEN, G. A combinação desses signos permite a transcrição
e a xação de um discurso decifrável pelo iniciado na escrita e no saber que ela contém.
51 Cf. o excelente artigo de síntese de D. OLDEROGGE,Ecritures méconnues de l’Afrique noire”. In:
Courrier de l’Unesco, março de 1966.
281
História e linguística
Ao contrário do que em geral se acredita, a existência da escrita é um elemento
permanente na história e no pensamento africanos, da Palette de Narmer à
Récade de Glélé. A abundância de sistemas gráficos e de evidências de seu uso
comprova esse fato.
Por diversas razões, as escritas africanass -faraônicas seguiram um
curso normal de evolução. Esse curso simplesmente se adaptou ao contexto
e às exigências da história de uma sociedade e de uma economia rurais de
autossuficiência. Os membros dessa sociedade não foram impelidos a consolidar,
em sua época, suas conquistas materiais ou intelectuais, já que estas não estavam
permanentemente ameaçadas. Um bom equilíbrio ecológico, uma proporção
adequada entre recursos e população assegurou, durante muito tempo, à maior
parte das civilizações africanas e a seus fatos culturais, o poder de ampliar-
-se e retrair -se formalmente no espaço, conservando apenas o essencial: seus
princípios. No plano do equilíbrio interno, o risco não era muito grande. Mas
em face do exterior e do acúmulo do progresso, essa fragilidade era prejudicial.
Conclusão
A linguística é indispensável à elaboração de uma ciência histórica africana.
Contudo, chegará a desempenhar tal papel se for empreendido um grande
esforço em sua área de pesquisa. Até agora, sua contribuição foi pequena e,
muitas vezes, bastante insegura no plano científico. Pesquisas ainda estão em
andamento. Os métodos ganharam maior precisão e o campo de investigação
ampliou -se notavelmente. Nesse contexto, podemos esperar que a alise
das línguas africanas contribua, num futuro próximo, para elucidar aspectos
importantes da história do continente.
C A P Í T U L O 1 0
283
Teorias relativas às “raças” e história da África
O conceito de raça é um dos mais difíceis de definir cientificamente. Se
admitirmos, como a maioria dos especialistas posteriores a Darwin, que a
espécie humana pertence a um único tronco
1
, a teoria das “raças” pode ser
desenvolvida cientificamente dentro do contexto do evolucionismo.
Com efeito, a raciação se inscreve no processo geral da evolução
diversificadora. Como observa J. Ruffie, ela requer duas condições: em primeiro
lugar, o isolamento sexual, frequentemente relativo, que provoca pouco a pouco
uma paisagem genética e morfológica singular. A raciação, portanto, baseia -se
num estoque gênico diferente, causado quer por oscilação genética (o acaso na
transmissão dos genes faz com que um deles se transmita com mais frequência
que outro, ou, ao contrário, que seu alelo seja o mais largamente difundido),
quer por seleção natural. Esta conduz a uma diversificação adaptativa, graças à
qual um grupo tende a conservar o equipamento genético que o adapte melhor
a um certo meio. Na África, ambos os processos devem ter ocorrido. De fato, a
oscilação genética, que se exprime ao máximo em pequenos grupos, operou em
etnias restritas, submetidas a um processo social de cissiparidade por ocasião
das disputas de sucessão ou de terras e em virtude das grandes áreas virgens
disponíveis. Esse processo marcou particularmente o patrimônio genético das
1 Quanto às teorias policêntricas e suas variantes, ver os trabalhos de G. WEIDENREICH, COON e as
refutações de ROBERTS.
PARTE II
Teorias relativas às “raças” e
história da África
J. Ki ‑Zerbo
284
Metodologia e pré -história da África
etnias endógamas ou florestais. Quanto à seleção natural, ela teve a oportunidade
de entrar em jogo em ecologias tão contrastantes como as do deserto e da floresta
densa, dos altos planaltos e das costas recobertas de mangues. Em resumo, do
ponto de vista biológico, os homens de uma “raça têm em comum alguns fatores
genéticos que num outro grupo racial” são substituídos por seus alelos; entre os
mestiços, coexistem os dois tipos de genes.
Como era de esperar, a identificação das “raças” se fez em primeiro lugar a
partir de critérios aparentes, para em seguida ir considerando, pouco a pouco,
realidades mais profundas. Aliás, as características exteriores e os fenômenos
internos o estão absolutamente separados. Se certos genes comandam os
mecanismos heredirios que determinam cor da pele, por exemplo, esta
também está ligada ao meio ambiente. Observou -se uma correlação positiva
entre estatura e temperatura mais elevada do mês mais quente e uma correlação
negativa entre estatura e umidade. Da mesma forma, um nariz fino aquece
melhor o ar num clima mais frio e umidifica o ar seco inspirado. É assim que o
índice nasal aumenta consideravelmente nas populações subsaarianas, do deserto
para a floresta, passando pela savana. Embora possuindo o mesmo número de
glândulas sudoríparas que os brancos os negros transpiram mais, o que mantém
seu corpo e sua pele numa temperatura menos elevada.
Existem, portanto, diversas etapas na investigão científica no que diz
respeito às raças.
A abordagem morfológica
Eickstedt, por exemplo, define as ras como “agrupamentos zoológicos
naturais de formas pertencentes ao gênero dos hominídeos, cujos membros
apresentam o mesmo conjunto típico de caracteres normais e hereditários no
nível morfológico e no nível comportamental”.
Desde a cor da pele e a forma dos cabelos ou do sistema piloso, a os
caracteres métricos e não métricos, a curvatura femural anterior e as coroas e
os sulcos dos molares, foi construído um verdadeiro arsenal de observações e
mensurações. Deu -se atenção especial ao índice cefálico, por estar relacionado
à parte da cabeça que abriga o cérebro. É assim que Dixon estabelece os
diversos tipos em função de três índices combinados de vários modos: o índice
cefálico horizontal, o índice cefálico vertical e o índice nasal. Contudo, das 27
combinações possíveis, apenas oito (as mais frequentes) foram aceitas como
representativas dos tipos fundamentais, tendo sido as 19 restantes consideradas
285
Teorias relativas às “raças” e história da África
misturas. No entanto, as características morfológicas são apenas um reflexo
mais ou menos deformado do estoque gênico; sua conjugação num protótipo
ideal raramente se realiza com perfeição. De fato, trata -se de detalhes evidentes
situados na fronteira homem/meio ambiente, mas que, justamente por isso, são
muito menos inatos que adquiridos.
Reside uma das maiores fraquezas da abordagem morfológica e tipológica,
na qual as exceções acabam por ser mais importantes e mais numerosas que a
regra. Além disso, não se devem negligenciar as querelas acadêmicas sobre as
modalidades de mensuração (como, quando, etc.), que impedem as comparações
úteis. As estatísticas de distância multivariada e os coeficientes de semelhanças
raciais, as estatísticas de “formato” e de “forma”, a distância generalizada de
Nahala Nobis requerem tratamento por computador. Ora, as raças são entidades
biológicas reais que devem ser examinadas como um todo e não parte por parte.
A abordagem demográca ou populacional
Este método vai insistir, de imediato, sobre fatos grupais (reservatório gênico
ou genoma), mais estáveis que a estrutura genética conjuntural dos indivíduos.
De fato, na identificação de uma ra, é mais importante a frequência das
características que ela apresenta do que as próprias características. Como o
método morfológico está praticamente abandonado
2
, os elementos serológicos
ou genéticos podem ser submetidos a regras de classificação mais objetivas.
Para Landman, uma raça é um grupo de seres humanos que (com raras
exceções) apresentam entre si mais semelhanças genotípicas e frequentemente
também fenotípicas do que com os membros de outros grupos”. Alekseiev
desenvolve também uma concepção demográfica das raças com denominações
puramente geográficas (norte -europeus, sul -africanos, etc.). Schwidejzky e Boyd
acentuaram a sistemática genética: distribuição dos grupos sanguíneos A, B e
O, combinações do fator Rh, gene da secreção salivar, etc.
O hemotipologista tamm leva em conta a anatomia, mas no nível da
molécula. No que diz respeito à micromorfologia, descreve as células humanas
cuja estrutura imunológica e cujo equipamento enzimático são diferenciados,
sendo o tecido sanguíneo o material mais prático para isso. Os marcadores
sanguíneos representam um salto histórico qualitativo na identificação científica
dos grupos humanos. Suas vantagens em relação aos critérios morfológicos
2 Cf. WIERCINSKY, 1965.
286
Metodologia e pré -história da África
são decisivas. Primeiramente, eles são quase sempre monométricos, isto é, sua
presença depende de um gene, enquanto o índice cefálico, por exemplo, é o
produto de um complexo de fatores dificilmente localizáveis
3
.
Além disso, enquanto os critérios morfológicos são traduzidos em números
utilizados para classificações com fronteiras arbitrárias ou mal definidas, como
por exemplo entre o braquicéfalo típico e o dolicocéfalo típico, os marcadores
sanguíneos obedecem à lei do tudo ou nada. Uma pessoa é ou não do grupo
A, tem fator Rh+ ou Rh - e assim por diante. Além disso, os fatores sanguíneos
independem quase inteiramente da pressão do meio. O hemótipo é fixado para
sempre, desde a formação do ovo. Eis por que os marcadores sanguíneos escapam
ao subjetivismo da tipologia morfológica. Aqui, o indivíduo é identificado por
um conjunto de fatores gênicos, e a população por uma série de frequências
gênicas. A grande precisão desses fatores compensa seu cater parcial em
relação à massa dos genes no conjunto de um genoma. Isso tornou possível
elaborar um atlas das “raças” tradicionais.
Três categorias de fatores sanguíneos foram estabelecidas. Algumas, como
o sistema ABO, são encontradas em todas as raças” tradicionais sem exceção.
Certamente elas preexistiam à hominização. Outros fatores como os do sistema
Rh são onipresentes, mas com certa predominância racial. Assim, o cromossomo
r existe principalmente entre os brancos. O cromossomo Ro, conhecido como
cromossomo africano”, tem uma frequência particularmente alta entre os negros
ao sul do Saara. Trata -se, certamente, de sistemas que datam do momento
em que a humanidade começava a se propagar em nichos ecológicos variados.
Outra categoria de sistemas denota uma repartição racial mais marcada, como
os fatores Sutter e Henshaw, encontrados quase que unicamente entre os negros,
e o fator Kell, presente sobretudo entre os brancos. Embora eles nunca sejam
exclusivos, foram qualificados de “marcadores raciais”. Enfim, alguns fatores são
geograficamente muito circunscritos como, por exemplo, a hemoglobina C para
as populações do planalto voltense.
Embora os fatores sanguíneos sejam desprovidos de valor adaptativo, não
escapam inteiramente à ação do meio infeccioso ou parasitário; este pode exercer
sobre eles uma triagem com valor seletivo, levando, por exemplo, à presença
de hemoglobinas características. Isso ocorre com relação às hemoglobinoses S,
ligadas à existência de células falciformes ou drepanócitos entre as hemácias.
Elas foram detectadas no sangue dos negros da África e da Ásia. Perigosa
3 Cf. RUFFIE, J. (?)
287
Teorias relativas às “raças” e história da África
apenas no caso dos homozigotos, a hemoglobina S (Hb S) é um elemento de
adaptação à presença de Plasmodium falciparum, responsável pelo paludismo. O
estudo dos hemótipos em grandes áreas permite o traçado de curvas isogênicas
que mostram a distribuição geográfica dos fatores sanguíneos por todo o mundo.
Associado ao cálculo das distâncias genéticas, ele dá uma ideia de como as
populações se situam umas em relação às outras, enquanto o sentido dos fluxos
gênicos permite reconstituir o processo prévio de sua evolução.
Apesar de seus desempenhos excepcionais, contudo, o método hemotipológico
e populacional encontra dificuldades. Primeiramente, porque seus parâmetros
se multiplicam enormemente e estão apresentando resultados estranhos a
ponto de serem encarados por alguns como aberrantes. É assim que a árvore
filogênica das populações elaborada por L. L. Cavalli -Sforza difere da árvore
antropométrica. Esta coloca os Pigmeus e os San da África no mesmo ramo
antropométrico que os negros da Nova Gui e da Austrália; na árvore
filogênica, esses mesmos Pigmeus e San aproximam -se mais dos franceses e
ingleses e os negros australianos dos japoneses e chineses
4
. Em outras palavras,
os caracteres antropométricos são mais afetados pelo clima que os genes, de
modo que as afinidades morfológicas são mais uma questão de meios similares
que de hereditariedades similares. Os trabalhos de R. C. Lewontin, com base nas
pesquisas dos hemotipologistas, mostram que, no mundo inteiro, mais de 85%
da variabilidade situa -se no interior das nações. Somente 7% da variabilidade
separa as nações que pertencem à mesma raça tradicional e também apenas 7%
separam as raças tradicionais. Em resumo, os indivíduos do mesmo grupo racial
diferem mais uns dos outros que as “raças”…
É por isso que cada vez mais especialistas adotam a posição radical que
consiste em negar a existência de qualquer raça. Segundo J. Ruffie, nas origens
da humanidade pequenos grupos de indivíduos separados em zonas ecológicas
diversificadas e afastadas, obedecendo a pressões seletivas muito fortes enquanto
os meios técnicos eram extremamente limitados –, puderam se diferenciar a
ponto de dar origem às variantes Homo erectus, Homo neanderthalensis e o mais
antigo Homo sapiens. O bloco facial, que é a parte do corpo mais exposta a
meios ambientes específicos, evoluiu diferentemente; a riqueza de pigmentos
melanínicos na pele desenvolveu -se em zona tropical, etc. Mas essa tendência
4 Citado por J. RUFFIE, 1977, p. 385. Da mesma forma, com base em certos caracteres genéticos (o gene
Fy
a
no sistema de DUFFY, o alelo Ro, etc.), a porcentagem de mescla branca entre os negros americanos
resultante da mestiçagem que se vem operando nos Estados Unidos seria de 25 a 30%. Alguns cientistas
concluíram, a partir disso, que se trata de um novo grupo, precipitadamente batizado como “raça norte-
-americana de cor”.
288
Metodologia e pré -história da África
especializante, rapidamente bloqueada, permaneceu embrionária. Em toda parte,
o homem se adapta culturalmente (roupas, habitat, alimentos, etc.), e não mais
morfologicamente, a seu meio. O homem nascido nos trópicos (clima quente)
evoluiu por muito tempo como australopiteco, Homo habilis e até mesmo Homo
erectus.
“Foi apenas durante a segunda glaciação que, graças ao controle eficaz do fogo, o Homo
erectus optou por viver em climas frios. A espécie humana transforma -se de politípica
em monotípica e esse processo de desraciação parece irreversível. Hoje, a humanidade
inteira deve ser considerada como um único reservatório de genes intercomunicantes.”
5
Em 1952, Livingstone publicava seu famoso artigo “Da não existência das
raças humanas”. Diante da enorme complexidade e, portanto, da inconsistência
dos critérios adotados para qualificar as raças, ele recomendava a renúncia ao
sistema lineano de classificação, sugerindo uma árvore genealógica”. De fato,
nas zonas não isoladas, a frequência de certos caracteres ou de certos genes
evolui progressivamente em várias direções e as diferenças entre duas populações
são proporcionais a seu distanciamento físico, de acordo com uma espécie de
gradiente geográfico (cline). Relacionando cada traço distintivo aos fatores de
seleção e adaptação que podem -lo favorecido, notamos frequências ligadas,
ao que parece, muito mais a fatores tecnológicos, culturais e outros, que não
coincidem de maneira nenhuma com o mapa das raças”
6
. Dependendo do critério
adotado (cor da pele, índice cefálico, índice nasal, características genéticas e
assim por diante), obtêm -se mapas diferentes. É por isso que alguns especialistas
concluem, a partir daí, que “toda teoria das raças é insuficiente e mítica”. “Os
últimos progressos da genética humana são tais hoje em dia que nenhum biólogo
admite a existência de raças na espécie humana
7
. Biologicamente, a cor da pele é
um elemento negligenciável em relação ao conjunto do genoma. De acordo com
Bentley Glass, não mais de seis pares de genes pelos quais a raça branca difere
da raça negra. Os brancos frequentem ente diferem entre si num grande número
de genes, o mesmo acontecendo com os negros. É por isso que a UNESCO,
depois de ter organizado uma confencia de especialistas internacionais,
declarou: A raça é menos um fenômeno biológico do que um mito social”.
8
5 MAYR, E. citado por RUFFIE, J. p. 115.
6 Cf. MONTAGU. “Le Concept de Race”.
7 RUFFIE, J. p. 116.
8 Quatro declarações sobre a Questão Racial, UNESCO, Paris, 1969.
289
Teorias relativas às “raças” e história da África
Isso é tão verdadeiro que, na África do Sul, um japonês é considerado como
branco honorário” e um chinês como “homem de cor”.
Para Hiernaux, a espécie humana parece uma rede de territórios genéticos,
de genomas coletivos que constituem populações mais ou menos semelhantes,
cuja distância qualitativa é expressa por uma avaliação quantitativa (taxonomia
numérica). As fronteiras desses territórios, definidos a partir do cline, flutuam
com todas as mudanças que afetam os traços aparentes (fenótipos) e os dados
serológicos (genótipos) das coletividades.
Dessa maneira, qualquer raça”, em conformidade com a brilhante intuição de
Darwin, seria em suma um processo em marcha, dependendo de algum modo da
dinâmica dos fluidos; e os povos seriam todos mestiços ou estariam em vias de
-lo. De fato, cada encontro de povos pode ser analisado como uma migração
nica e esse fluxo genético volta a questionar o capital biológico de ambos.
Porém, mesmo que essa abordagem fosse mais científica, mesmo que esses
territórios genéticos mutáveis fossem realmente aceitos pelas comunidades em
questão, poderíamos dizer que os sentimentos de tipo “racial” seriam suprimidos,
uma vez que conservariam sua base material visível e tangível, sob a forma de
traços fenotípicos?
Desde que os nazistas, a começar por Hitler, e em seguida outros
pseudopensadores afirmaram que o homem mediterrâneo representa um nível
intermedrio entre o ariano, Prometeu da humanidade”, e o negro, que é
por sua origem um meio -macaco”, o mito racial tem permanecido vivo. Os
morfologistas impenitentes continuam a alimentar esse fogo ignóbil com alguns
galhos mortos
9
. Lineu, no século XVIII, dividia a espécie humana em seis raças:
americana, europeia, africana, asiática, selvagem e monstruosa. Com certeza, os
racistas se encontram numa ou noutra das duas últimas categorias.
De todas essas teses, hipóteses e teorias, devemos conservar o caráter dinâmico
dos fenômenos raciais”, tendo em mente que se trata de um dinamismo lento
e espesso, que se exerce sobre uma enorme quantidade de registros, nos quais a
cor da pele (mesmo que ela seja medida por eletroespectrofotômetro) ou a forma
do nariz constituem apenas um aspecto quase irrisório. Nessa dinâmica, devem
ser levados em conta dois componentes que agem em conjunto: o patrimônio
9 J. RUFFIE cita um dicionário francês de medicina e biologia que, em 1972, mantém o conceito de
raça segundo o qual existem três grupos principais (brancos, negros, amarelos), baseados em critérios
morfológicos, anatômicos, sociológicos… e também psicológicos… No início do século, C. SEIGNOBOS,
em sua Histoire de la Civilisation, escrevia: “Os homens que povoam a terra… também diferem em língua,
inteligência e sentimentos. Essas diferenças permitem dividir os habitantes da terra em vários grupos
conhecidos como ‘raças’”.
290
Metodologia e pré -história da África
genético, que pode ser considerado um gigantesco banco de dados biológicos em
ação, e o meio ambiente, em sentido amplo, pois começa já no meio fetal.
As mudanças que resultam da interação desses dois fatores básicos intervêm
seja sob a forma incontrolável da seleção e da migração gênica (mestiçagem),
seja sob a forma casual da oscilação genética ou da mutação. Em resumo, é toda
a história de uma população que explica sua presente facies racial”, incluindo,
através da interpretação das representações coletivas, as religiões, os costumes
alimentares, de vestuário e outros.
Nesse contexto, o que dizer da situação racial do continente africano? A difícil
conservação dos fósseis humanos devido à umidade e à acidez dos solos dificulta a
análise histórica sob esse ponto de vista. Contudo, pode -se dizer que, ao contrário
das teorias europeias que explicam o povoamento da África pelas migrações vindas
da Ásia
10
, as populações desse continente o em grande parte autóctones. Quanto
à cor da pele dos habitantes mais antigos do continente nas latitudes tropicais,
vários autores pensam que ela deveria ser escura (Brace, 1964), pois a própria
cor negra é uma adaptação protetora contra os raios nocivos, principalmente os
ultravioleta. A pele clara e os olhos claros dos povos do norte seriam caracteres
secundários ocasionados por mutação ou por pressão seletiva (Cole, 1965).
Hoje, embora não se possa traçar uma fronteira linear, dois grandes grupos
raciais” são identificáveis no continente africano dos dois lados do Saara: no
norte, o grupo árabe -berbere, com patrimônio genético mediterrâneo” (líbios,
semitas, fenícios, assírios, gregos, romanos, turcos, etc.); no sul, o grupo negro.
Convém notar que as mudanças climáticas, que às vezes anularam o deserto,
provocaram durante milênios numerosas mesclas populacionais.
A partir de várias dezenas de marcadores sanguíneos, Nei Masatoshi e A.
R. Roy Coudhury estudaram as diferenças genéticas inter e intragrupos em
caucasoides e mongoloides
11
. Eles definiram coeficientes de correlação, a fim de
estabelecer o período aproximado em que esses povos se separaram e constituíram
grupos distintos. Ao que tudo indica, o grupo negroide tornou -se autônomo
120.000 anos, enquanto os mongoloides e caucasoides individualizaram -se
apenas 55.000 anos. Segundo J. Ruffie, esse esquema ajusta -se à maior parte dos
dados da hemotipologia fundamental
12
. A partir dessa época, muitas misturas
se realizaram no continente africano.
10 A teoria camítica (SELIGMAN e outro) que se deve, por um lado, à ignorância de certos fatos e, por
outro, à vontade de justicar o sistema colonial é a forma mais racista dessas montagens pseudocientícas.
11 MASATOSHI, N. e ROY COUDHURY, A. R. 1974, p. 26, 421.
12 RUFFIE, J. p. 399.
291
Teorias relativas às “raças” e história da África
Tentou -se mesmo visualizar as distâncias biológicas das populações graças
à técnica matemática dos componentes principais. A. Jacquard estudou 27
populações espalhadas desde a região do Mediterrâneo ao sul do Saara
13
,
utilizando cinco sistemas sangneos que compreendiam 18 fatores. Ele
obteve três grupos principais repartidos em quatro agregados: um ao norte, os
caucasoides, composto de europeus, Regueibat, árabes sauditas e Tuaregue Kel
Kummer; um ao sul, que consistia nos grupos negros de Agadês; agregados
intermediários, incluindo os Peul Bororo, os Tuaregue de Air e de Tassili, os
etíopes, etc.; e ainda os Harratin, tradicionalmente considerados negros. Assim,
seria um engano pensar que essa subdivisão confirma a classificação tradicional
em “raças”, uma vez que, independentemente do que foi dito acima, a forma
geral da subdivisão resulta da quantidade de informações considerada; se esta é
muito pequena, todos os pontos podem ser reunidos.
Além disso, a respeito do homem subsaariano, é preciso notar que seu nome
original, atribuído por Lineu, era Homo afer (africano). Depois, eles foram
chamados negros” e, mais tarde, pretos”. O termo “negroide”, mais abrangente,
era usado às vezes para designar todas as pessoas que, às margens do continente
ou em outros continentes, se pareciam com os pretos. Hoje, apesar de algumas
notas dissonantes, a grande maioria dos especialistas reconhece a unidade getica
fundamental dos povos subsaarianos. Segundo Boyd, autor da classificação getica
das raças” humanas, existe apenas um grupo negroide que compreende toda a
parte do continente situada ao sul do Saara e também a Etiópia; esse grupo difere
sensivelmente de todos os demais. Os trabalhos de J. Hiernaux estabeleceram essa
tese com novel clareza. Sem negar as variantes locais aparentes, ele demonstra,
pela análise de 5050 distâncias entre 101 populões, a uniformidade dos povos no
hiperespaço subsaariano, que engloba tanto os “Sudaneses quanto os Bantu”; tanto
os habitantes das regiões costeiras quanto os Sahelianos; tanto os “Khoisan quanto
os Pigmeus, os Nilotas, os Peul e outros “Etiópidas. Em compensão, ele mostra a
grande distância genética que separa osnegros asiáticos dos negros africanos.
Mesmo no campo da lingstica, que nada tem a ver com o fato racial mas
que foi utilizada em teorias racistas para inventar uma hierarquia das nguas que
refletisse a pretensa hierarquia das raças”, na qual os “verdadeiros negros ocupavam
o grau mais baixo da escala, as classificações evidenciam cada vez mais a unidade
fundamental das línguas africanas. As variantes soticas podem ser explica das
cientificamente pelas causas das mudanças discutidas acima, especialmente os
13 JACQUARD, A. 1974, p. 11 -124.
292
Metodologia e pré -história da África
btipos que ora o origem a agregados de populões mais compósitas (vale do
Nilo), ora a grupos populacionais isolados, que desenvolvem características mais
ou menos atípicas (montanhas, florestas, ntanos, etc.). Por fim, a história explica
outras anomalias através das invasões e migrões, sobretudo nas zonas periricas. A
influência biogica da península Abica no chamado “Chifre da África tamm se
evidencia nos povos dessa rego, como os Somali, os Galla e os etíopes, mas também,
com certeza, nos Tubu, Peul, Tukulor, Songhai, Haussa, etc. Já tivemos oportunidade
de ver alguns Marka (Alto Volta) com um perfil tipicamente semita.
Em suma, a admivel variedade dos fetipos africanos é sinal de uma evolução
particularmente longa desse continente. Os fósseis pré -históricos de que dispomos
indicam uma implantão semelhante às encontradas no sul do Saara, numa área
muito vasta, que vai da África do Sul a o norte do Saara, tendo a rego sudanesa
representado, ao que parece, o papel de encruzilhada nessa difusão.
Com certeza, a história da África não é uma história de “raças”. Contudo,
para justificar uma certa história, abusou -se demais do mito pseudocientífico da
superioridade de algumas “raças”. Ainda hoje, o mestiço é considerado branco
no Brasil e preto nos Estados Unidos da América. A ciência antropológica, que
já demonstrou amplamente não haver nenhuma relação entre a raça e o grau de
inteligência, constata que essa coneo às vezes existe entre raça e classe social.
A preeminência histórica da cultura sobre a biologia é evidente desde a
aparição do Homo no planeta. Quando irá tal evidência impor -se aos espíritos?
293
Teorias relativas às “raças” e história da África
Alelo Cada um dos elementos que
forma o par de genes.
Migração gênica Passagem de indivíduos
reprodutores de sua população de origem
a uma população adotiva (mestiçagem).
A mestagem, que é considerada pelos
racistas como uma degenerescência
para a raça superior, representa aqui,
ao contrário, um enriquecimento do
fundo comum de genes da humanidade.
Biologicamente positiva, ela apresenta,
no entanto, problemas sociogicos.
Mutação Aparecimento de uma
alteração numa característica herediria
atras da modificação de um ou mais
genes.
Oscilação genética Perturbação do
patrimônio genético num grupo humano
reduzido e isolado, resultante de um
acidente que provoca a baixa de frequência
ou o desaparecimento de um alelo.
Seleção Reprodução diferencial dos
genótipos de uma geração a outra.
GLOSSÁRIO
N.B. Estudos sobre esta questão encomendados pela UNESCO, como parte do
projeto da História Geral da África:
HIERNAUX, J. Rapport sur Le Concept de Race. Paris, 1974.
RIGHTMIRE, G.P. Comments on Race and Population History in Africa. Nova
Iorque, 1974.
STROUHAL, E. Problems of Study of Human Races. Praga, 1976.
C A P Í T U L O 1 1
295
Migrações e diferenciações étnicas e linguísticas
Durante muito tempo, os historiadores acreditaram que os povos da África
não haviam desenvolvido uma história autônoma, no quadro de uma evolução
que lhes fosse peculiar. Tudo o que representava uma aquisição cultural parecia
ter sido levado até eles do exterior por vagas migratórias vindas da Ásia. Essas
teses são encontradas com frequência nos trabalhos de muitos pesquisadores
europeus do século XIX. Elas serão sistematizadas e cristalizadas sob forma de
doutrina por estudiosos alemães, etnógrafos e linguistas, nos primeiros decênios
do século XIX. Nessa época, a Alemanha era o principal centro de estudos
africanos. Após a partilha do continente africano entre potências imperialistas,
começaram a aparecer em profusão na Inglaterra, França e Alemanha trabalhos
que descreviam a vida e os costumes dos povos colonizados. Foi sobretudo na
Alemanha que se reconheceu a importância de um estudo científico das línguas
africanas. O ano de 1907 viu o estabelecimento, em Hamburgo, do Instituto
Colonial, que depois se tornou um grande centro de pesquisa científica, onde
foram elaborados os mais importantes trabalhos teóricos da escola alemã de
estudos africanos. A Alemanha estava muito avançada nessa área, em relação
às outras potências colonizadoras: na Inglaterra, o ensino de línguas africanas
se iniciou em 1917, na Escola de Estudos Orientais, enquanto, na França,
nessa época, a Escola de Línguas Vivas Orientais não mantinha nenhum curso
nessa área. Foi somente em 1947 que a Escola de Estudos Orientais de Londres
Migrações e diferenciações
étnicas e linguísticas
D. Olderogge
296
Metodologia e pré -história da África
passou a se chamar Escola de Estudos Orientais e Africanos. Também na França,
o ensino sistemático dessas línguas foi introduzido um pouco mais tarde.
As teorias da escola alemã e as descobertas recentes
A Alemanha ocupava, portanto, um lugar de destaque nos estudos históricos,
etnográficos e linguísticos africanos, no período que precedeu imediatamente
a Primeira Guerra Mundial; os trabalhos publicados na Inglaterra, França e
Bélgica baseavam -se nas teorias dos estudiosos alemães. Assim, os etnógrafos
da Europa ocidental, no início do século XX, permaneceram apegados à ideia
difundida pelos alemães de que os povos da África nunca tinham tido história
própria. Com base nesse ponto de vista, os linguistas formularam a teoria
conhecida como Camítica, segundo a qual o desenvolvimento da civilização
na África foi devido à influência de povos camíticos provenientes da Ásia,
Um estudo dessas ideias mostra uma forte influência de Hegel, que dividiu
os povos do mundo em dois tipos: povos históricos, que contribuíram para
o desenvolvimento da humanidade, e povos não -históricos,que se colocam à
margem do desenvolvimento espiritual universal.
Segundo Hegel, não evolução histórica na África propriamente dita. Os
destinos da costa setentrional do continente estariam ligados aos da Europa.
Enquanto colônia fenícia, Cartago não passava de um apêndice da Ásia, e o
Egito era alheio ao espírito africano. As ideias de Hegel exerceram considerável
influência em quase toda pesquisa científica relativa à África no século XIX; tal
influência é marcante na obra de H. Schürz, o primeiro pesquisador a tentar um
esboço da história da África. Esse autor compara a história das raças da Europa
à vitalidade de um belo dia de sol, e a das raças da África a um pesadelo que
logo se esquece, ao acordar.
Para Hegel, foi na Ásia que a luz do espírito despertou e que a história da
humanidade teve seu início. Os estudiosos europeus tinham por indiscutível a
ideia de que a Ásia, berço da humanidade, foi lugar de origem de todos os povos
que invadiram a Europa e a África. Assim, parecia evidente para o etnógrafo inglês
Stow que os mais antigos habitantes da África – os San tivessem vindo da Ásia
em duas vagas migratórias distintas, os San pintores e os San gravadores; esses
dois grupos teriam seguido trajetórias diferentes, cruzando o mar Vermelho pelo
estreito de Bab el -Mandeb. Após terem atravessado as florestas equatoriais, os
dois grupos reencontraram -se no extremo sul do continente africano. Encontra-
-se nas obras de F. Stuhmann, geógrafo e viajante alemão, a mais completa
297
Migrações e diferenciações étnicas e linguísticas
aplicação das teses propostas pela escola germânica, construídas sobre sua base
histórico -cultural e tendo por objeto o processo de povoamento do continente
africano através de sucessivas vagas migratórias. De fato, no fim do século XIX e
início do XX, foi lançada uma vigorosa ofensiva contra a doutrina evolucionista,
que constituiu a base teórica dos trabalhos de R. Taylor, L. H. Morgan, Lubbock
e outros. A escola de orientação histórico -cultural repudiou a teoria de um
desenvolvimento uniforme e integral da humanidade, apresentando uma teoria
diametralmente oposta, que postulava a existência de círculos de civilização
diferenciados, identificáveis por critérios intrínsecos derivados principalmente
das culturas materiais. Segundo esses autores, a difusão de aquisições culturais
deveu -se principalmente às migrações. O estudioso alemão Leo Frobenius foi
o primeiro a enunciar essa ideia; depois, Ankermann descreveu a difusão dos
círculos de civilização através da África. Mas foi Stuhlmann quem elaborou
o quadro mais detalhado do desenvolvimento das culturas africanas. Afirmou
que a população autóctone da África era constituída de povos de baixa estatura
os Pigmeus e os San –, que virtualmente não possuíam quaisquer elementos
culturais. Depois, povos negros de pele escura e cabelos crespos chegaram em
vagas migratórias originárias do sudeste da Ásia. Espalhando -se por toda a
savana sudanesa, penetraram na floresta equatorial, introduzindo uma agricultura
rudimentar, o cultivo de bananas e de colocásias, o uso de arco e flecha e de
utensílios de madeira e a construção de cabanas circulares ou quadradas. Esses
povos falavam línguas de tipo isolante. A eles se teriam seguido vagas de proto
camitas, também provenientes da Ásia, mas de regiões situadas ao norte das
terras de origem dos negros. Os recém -chegados falavam línguas aglutinantes
com classes nominais. Teriam ensinado aos povos autóctones o uso da enxada
na agricultura, o cultivo do sorgo e de outras gramíneas, a criação de gado
corgero de pequeno porte, etc. O cruzamento dos proto -camitas com os
povos negros teria originado os povos bantu. Seguiram -se invasões de camitas
de pele clara, que chegaram à África seja através do istmo de Suez seja pelo
estreito de Bab el -Mandeb. Esses povos seriam os ancestrais dos Peul, Masai,
Bari, Galla, Somali e Khoi -Khoi. Teriam introduzido novos elementos culturais,
como o gado cornígero de grande porte, a lança, os múltiplos usos do couro, o
escudo, etc. Segundo Stuhlmann, esses camitas de pele clara são originários das
estepes da Ásia ocidental. A vaga seguinte seria constituída por povos semitas,
que teriam lançado os fundamentos da civilização do Egito antigo. Teriam
introduzido o cultivo de cereais, o uso do arado e do bronze. Depois, chegaram
ao Egito os Hicsos e Hebreus, enquanto os Habashat e os Mehri fixavam -se nas
terras altas da Etiópia. Por último, vieram os árabes, no século VII. Todos esses
298
Metodologia e pré -história da África
povos trouxeram para a África novos elementos de civilização, absolutamente
desconhecidos das populações anteriores. O trabalho de Stuhlmann foi publicado
em Hamburgo, em 1910, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, mas suas
ideias sobre a construção gradual da civilização africana por raças estrangeiras
foram retomadas e desenvolvidas, mais tarde, por outros etnógrafos: Spannus e
Lushan na Alemanha, Seligman na Inglaterra, Honea na Áustria, etc.
Paralelamente às teorias da escola histórico -cultural, aparece, em linguística,
um conjunto de teses denominado teoria camítica. O iniciador dessa teoria,
Meinhof, acreditava que os ancestrais dos San eram os auctones mais
antigos da África. Representando uma raça nitidamente distinta de todas as
outras, falavam línguas que apresentavam consoantes cliques. os negros
considerados autóctones nas zonas equatorial e sudanesa falavam nguas
isolantes tonais e com radicais monossibicos. Em seguida, povos camitas
vindos da Arábia chegaram ao Sudão, passando pela África do Norte. Falando
línguas flexionadas e dedicando -se à criação de gado, teriam pertencido a uma
cultura muito superior à dos negros. Contudo, parte da invasão camita atingiu
as savanas da África oriental; a miscigenação dos camitas com a população
indígena teria dado origem aos povos de língua bantu.
Em resumo, esse modelo de evolução pode ser reduzido a um filme em quatro
sequências. No início, as línguas com cliques, depois, as línguas isolantes, bastante
rudimentares, faladas pelos negros sudaneses. A mistura destas com as línguas
camíticas produz as línguas bantu, do tipo aglutinante, mais nobres, portanto.
Finalmente, as nguas faladas pelos conquistadores camitas introduzem as línguas
flexionadas, eminentemente superiores. A teoria camítica foi sustentada por muitos
linguistas e difundida da Alemanha para além da Europa ocidental.
No período entre as duas guerras, contudo, essa teoria deveria desmoronar. O
primeiro golpe veio com a descoberta do Australopithecus, na província do Cabo
(África do Sul), em 1924. Seguiram -se outras descobertas, que prosseguem ainda,
tanto no norte como no sul da África, e em particular no leste, na Tanzânia, no
Quênia e na Etiópia. Todos esses documentos demonstram, de maneira cabal,
que o desenvolvimento do homem em toda a sua variedade racial teve lugar,
desde as origens, no interior do continente africano. Assim, a teoria segundo a
qual a África foi povoada por vagas migratórias provenientes do exterior tornou-
-se insustentável. Como aponta o célebre antropólogo C. Arambourg, a África
é o único continente onde se encontram, numa linha evolutiva ininterrupta,
todos os estágios do desenvolvimento do homem: australopitecos, pitecantropos,
neandertalenses e Homo sapiens sucedem -se, com os respectivos utensílios,
das épocas mais distantes até o Neolítico. Fica assim confirmada a teoria de
299
Migrações e diferenciações étnicas e linguísticas
Darwin, que apontava a África como o lugar de origem do homem. Além
disso, essas descobertas provaram que seria totalmente errôneo negar à África
um desenvolvimento cultural endógeno. A esse respeito, as pinturas e gravuras
rupestres do Atlas, do sul da África e do Saara constituem um testemunho
indiscutível, de grande importância.
Não mais sombra de dúvida quanto à antiguidade dos vestígios arqueológicos,
uma vez que a cronologia relativa (baseada na forma e no tratamento dos objetos
e em sua posição estratigráfica) é atualmente complementada pela cronologia
absoluta, baseada em métodos cronométricos científicos, tais como o carbono 14
e o potássio -arnio. O modelo de evolução cultural dos povos africanos sofreu
profundas transformações. Por exemplo, descobriu -se que nas latitudes saarianas
e saelianas o Neolítico remonta a uma época anterior à que se imaginava, o que
vem alterar completamente o quadro do desenvolvimento cultural africano em
relação ao mundo mediterrânico, particularmente o Oriente Próximo.
Os restos descobertos em Tassili n’Ajjer, assim como em Tadrart -Acacus,
na fronteira entre a Argélia e a Líbia, são bastante conclusivos. O exame das
lareiras e dos fragmentos de cerâmica descobertos demonstra que a cerâmica
era utilizada desde 8000 anos B.P. Em Acacus, foi encontrado um esqueleto
do tipo negroide com traços de vestimentas de couro. Os materiais examinados
foram datados de 9000 anos B.P. Uma idade análoga foi atribuída aos restos
descobertos no Hoggar, que foram submetidos a análise em três laboratórios
diferentes. Conclui -se que o Neolítico de Tassili n Ajjer e de Ennedi é, ao que
parece, anterior ao do Magreb e contemporâneo ao da Europa meridional e da
Cirenaica.
O exame dos restos orgânicos coletados nos campos neolíticos da Baixa
Núbia levou a conclusões ainda mais significativas. Estima -se que, no ano
-13000 aproximadamente, se praticava na região a colheita e a preparação
de grãos de cereais selvagens. A análise por radiocarbono dos vestígios fósseis
encontrados no distrito de Ballana indicou a data de -12050 ±280. O mesmo
método de exame, aplicado a restos provenientes de Toshké, apresenta a data
de -12550 ± 490. Isso significa que, no vale do Nilo, a vegecultura foi praticada
4 mil anos mais cedo que no Oriente Próximo.
Segundo uma tradição fortemente arraigada, todo relato da história da África
começava com o Egito. Hoje em dia, entretanto, convém revermos esse hábito. O
egiptólogo americano Breasted deu o nome de “Crescente Fértil” ao conjunto dos
países formado pelo Egito, a Palestina e a Mesopomia. De fato, essa zona lembra
um vasto crescente, que propiciou o desenvolvimento da civilização faraônica e
das cidades -Estado de Sumer e Akkad. Ora, todo esse processo tomou impulso
300
Metodologia e pré -história da África
em -5000 ou -6000 aproximadamente, enquanto, muito antes disso, a existência
de condições climáticas adequadas ao desenvolvimento da criação de gado e
da protocultura na área entre o vale do Indus e o oceano Atlântico favorecia o
surgimento de uma sociedade onde começam a se delinear as classes e o Estado.
Assim, o Crescente Fértil representa apenas o desenvolvimento final e o
testemunho de um vasto domínio fervilhante de vida, onde os homens iam aos
poucos se familiarizando com as gramíneas selvagens, passando a domesticá -las
assim como ao gado de grande porte, ovinos e caprinos. Esse cenário grandioso
é atestado pelo estudo de pinturas e gravuras rupestres do Saara, pela datação
obtida por radiocarbono, pela análise de polens fósseis, etc. Pode -se esperar que
alguns esquemas cronológicos sejam reajustados dependendo da precisão que
se puder obter futuramente. No entanto, desde já, podemos afirmar que a teoria
sobre o povoamento da África aqui referida está completamente desacreditada.
Deve -se reconhecer o papel da África como lo de disseminação, no que
se refere tanto aos homens quanto às técnicas, em um dos mais importantes
períodos da história humana (Paleolítico Inferior). Em épocas posteriores,
vêem -se aparecer correntes migratórias inversas, de volta ao continente africano.
Problemas antropológicos e linguísticos
Em geral, os indicadores antropológicos fornecem referências mais estáveis
que os fatos da língua, que sofrem transformações rápidas, por vezes no espaço
de algumas gerações. É o que acontece quando um povo emigra para um novo
meio linguístico, ou, ainda, em caso de invasão, quando os conquistadores e os
autóctones falam línguas diferentes. Assim, observa -se que a população negra
norte -americana manteve praticamente intacto seu tipo antropológico original,
sob um clima e num meio geográfico muito diferentes dos que prevaleciam
em seu continente de origem, enquanto do ponto de vista linguístico e cultural
assemelha -se à população branca dos Estados Unidos. Os elementos da antiga
civilização africana subsistem apenas nos domínios cultural e espiritual: música,
dança e crenças religiosas. Um caso semelhante é o dos Sidi, descendentes dos
africanos que foram transferidos, séculos atrás, da costa leste da África para
a Índia. No início do século XIX, esses povos ainda conservavam sua própria
língua, mas atualmente falam as línguas dos povos hindus entre os quais vivem
gujarati, urdu e outras –, sendo o tipo físico o único indício de sua origem
africana.
301
Migrações e diferenciações étnicas e linguísticas
Em ambos os casos, os africanos expatriados mudaram de idioma muito
rapidamente, por vezes no decurso de uma ou duas gerações.
A história das línguas faladas pelos autóctones da África do Norte também
merece ser citada. Após a conquista dos países do Magreb pelos árabes, e
particularmente após as invasões das “tribos árabes no culo XI, os povos
da África do Norte tornaram -se árabes quanto à língua e à civilização. Suas
línguas originais sobrevivem apenas em certas regiões do Marrocos, na Kabylia,
no djebel Nefusa e nos oásis. De acordo com os antropólogos, as principais
características do tipo físico original não sofreram mudanças, o que mostra
que os traços antropológicos, em seu conjunto, resguardam -se da influência
do biótopo no organismo, sendo, portanto, mais estáveis que os elementos da
língua e da cultura.
Pode -se afirmar, com base nos fatos de que dispomos atualmente, que a
distribuição dos tipos “raciais” modernos no continente africano reproduz, em
essência, o modelo antigo dos grandes grupos antropológicos denominados,
por vezes precipitadamente, de “raças”. Os vários tipos da “raça mediterrânica
o representados no norte da África desde uma era muito longínqua. A
África oriental foi habitada por povos do tipo etiopoide, como confirmaram
as descobertas dos paleoantropólogos no Quênia, enquanto a parte sul do
continente foi ocupada por grupos San. As florestas tropicais e equatoriais
ocupavam, no passado, uma área muito maior que a atual; foi ali, provavelmente,
que os Pigmeus apareceram, constituindo um grupo distinto, cujo tipo físico
desenvolveu -se num meio ambiente de clima extremamente úmido e virtual
ausência de luz.
A “raça” negra de tipo conhecido como sudanês ou congolês” individualizou-
-se para se adaptar às condições das latitudes tropicais, principalmente na África
ocidental. Poucos restos de esqueletos foram encontrados para identificação
e datão, provavelmente porque a desagregação qmica devida à acidez
dos solos não é favorável à preservação dos fósseis. Apesar disso, depois das
descobertas feitas em Asselar, esqueletos do tipo negroide de várias épocas
(às vezes extremamente antigos) foram encontrados no Saara e na Nigéria
meridional, fato que sugere ter sido a região foco original desse tipo humano.
O problema do povoamento inicial do Saara foi objeto de muitas discussões.
Mas fica claro, a partir do estudo das pinturas rupestres, que a população negra
predominou nessa área, embora outros tipos possam ser detectados, tais como
os grupos com características afro -mediterrânicas, também habitantes antigos
da região. No Egito, documentos e inscrições em monumentos que remontam
ao Antigo Império fazem alusão a povos líbios Tamehu, com pele clara e olhos
302
Metodologia e pré -história da África
 . Mulher haratina de Idélès, Argélia (Foto A.A.A., Naud).
F . Marroquino (Foto Hoa -Qui, Richer).
F . Mulher e criança argelinas (Foto A.A.A., Géhant).
303
Migrações e diferenciações étnicas e linguísticas
azuis, assim como a povos Tehenu, de pele mais escura. Também nas fontes
históricas gregas encontram -se referências a etíopes de pele clara e a etíopes de
pele mais escura, no sul. Portanto, a antiga população da Líbia, ao que parece,
era bastante heterogênea. A esse respeito, diz um autor latino que alguns dos
líbios parecem etíopes, outros são originários da ilha de Creta”
1
. A composição
étnica da população do vale do Nilo parece ter sido complexa. O dessecamento
do Saara fez com que os povos da região procurassem a umidade do vale. Grupos
etiopoides e afro -mediterrânicos misturaram -se a negros do tipo sudanês. O
mesmo tipo de miscigenação provavelmente ocorreu, pelas mesmas razões, em
todas as bacias fluviolacustres vizinhas ao deserto: Baixo Senegal, Médio Níger,
Chade.
Na medida em que, como foi mencionado, os perfis antropológicos
apresentam uma constância notável, frequentemente multimilenária, não é errôneo
extrapolar para a pré -história algumas das principais características do quadro
étnico atual. De qualquer modo, o processo de formação das raças” é a resultante
de uma interação de múltiplos fatores, que produzem, de maneira gradual, a
diferenciação dos traços herdados, mas também transmitem hereditariamente
os traços diferenciados. Estes se individualizaram essencialmente em função da
adaptação ao meio ambiente: insolação, temperatura, cobertura vegetal, umidade,
etc. Como regra geral, sem dúvida enfraquecida por numerosas exceções, os
antropólogos supõem que o africano da floresta tinha estatura baixa e pele clara,
enquanto o africano da savana e do Sahel seria esguio e de pele escura. Entretanto,
cabe evitar uma visão parcial, que muitos fatores operam simultaneamente. Por
exemplo, a migração de grupos com heranças genéticas diferentes mobilizava,
imediatamente, duas fontes possíveis de mutação: primeiro, a mudança de biótipo,
em seguida, o encontro de grupos diferentes, com a possibilidade de cruzamento.
Quando se observa uma semelhança somática notável entre dois grupos étnicos
muito distantes no espaço, como entre os Dinka do Alto Nilo e os Wolof do
Senegal, ambos de pele escura e estatura alta, a situação em uma mesma latitude
parece constituir uma explicação suficiente. No entanto, deve -se ter sempre em
mente a combinação dos fatores postos em jogo pelo próprio movimento da
história
2
. A esse respeito o caso altamente controverso dos Pigmeus e dos San
merece ser estudado com maiores detalhes.
No passado, presumia -se existir uma identidade racial entre os Pigmeus da
África e os da Ásia meridional. Atualmente essa teoria parece ter sido rejeitada.
1 FOERSTER, R. I. Bd. 1893. v. I, p. 389.
2 Cf. J. HIERNAUX. 1970, vol. I, p. 53 e 55.
304
Metodologia e pré -história da África
 . Voltense (Foto A. A. A. Naud).
F . Mulher sarakole, Mauritânia, grupo
Soninke, da região do rio (Foto B. Nantet).
F . Chefe nômade de Rkiz, Mauritânia
(Foto B. Nantet).
305
Migrações e diferenciações étnicas e linguísticas
Tudo leva a crer que se trata do resultado de uma adaptação muito antiga de um
certo tipo físico ao meio ambiente e que esse processo ocorreu durante um longo
período de isolamento. Atualmente os Pigmeus podem ser encontrados nas
florestas dos Camarões, no Gabão e em algumas regiões da República Centro-
-Africana, no Zaire e em Ruanda. Parece certo, porém que no passado ocuparam
uma área muito maior. Nas tradições orais de certos povos da África ocidental
faz -se referência a grupos de anões que viviam na floresta antes da chegada dos
povos de maior estatura. É certo que também na Europa ocidental algumas
lendas falam de gnomos ferreiros que habitavam as montanhas. As tradições
africanas, porém, não parecem provir unicamente da imaginação popular, na
medida em que coincidem com certas fontes históricas que indicam a existência
de Pigmeus em regiões onde atualmente eles são encontrados.
A mais antiga menção aos Pigmeus é encontrada no Egito, em inscrições
que datam da sexta dinastia do Antigo Império. Nas paredes do túmulo de
Herkhuf
3
, em Assuã, está inscrito o texto de uma carta do faraó Pépi II, em que
o jovem rei agradece o monarca por ter -lhe presenteado com um anão chamado
Deng, palavra que é encontrada nas línguas modernas da Etiópia: em amárico
e seus diversos dialetos, e também nas línguas tigrina, galla, kambatta e outras,
nas formas denk, dank, dinki, donku, dinka
4
. A carta refere que, um século antes,
sob a V dinastia, um anão semelhante tinha sido levado ao faraó Isesi. Cabe
lembrar, em relação a esses fatos, o relato de um viajante inglês mencionando
a presença de anões doko na Etiópia meridional. Pode -se assim deduzir que no
passado existiram anões nas regiões atualmente ocupadas pela República do
Sudão e pela Etiópia.
Os pigmeus da floresta equatorial e tropical foram aos poucos cedendo lugar a
novas populações, constituídas de indivíduos de alta estatura que falavam línguas
bantu. Os pigmeus autóctones recuaram progressivamente para as regiões mais
remotas das florestas de Ituri e Uele, como testemunha o Nsong -a -Lianja, ciclo
épico dos Mongo sobre o povoamento do vale do Zaire. Outros povos bantu
possuem relatos semelhantes. Assim, pode -se concluir que os grupos isolados de
Pigmeus que subsistem atualmente são os testemunhos de uma população mais
extensa, que ocupava as florestas tropicais e equatoriais da África.
Os San constituem outro grupo muito original do continente africano. São
de pequena estatura, têm a pele amarelada ou acobreada e cabelo em pequenos
tufos. Nos estudos antropológicos, eles ainda são colocados junto aos Khoi -Khoi,
3 A transliteração correta desse nome é Hrw -hwif - hwif (Herzog, R. 1938, p. 95).
4 LESLAU, W. 1963, p. 57.
306
Metodologia e pré -história da África
 . Mulher peul bororo, Tahoura,
Níger (Foto B. Nantet).
F . Criança tuaregue de Agadès, Níger
(Foto B. Nantet).
F . Mulher djerma songhay de
Balayera, Níger (Foto B. Nantet).
307
Migrações e diferenciações étnicas e linguísticas
na raça Khoisan. Trata -se, sem dúvida, de uma extrapolação da classificação
linguística, que reúne as línguas dos San e dos Khoi -Khoi num mesmo grupo,
caracterizado pela presença de consoantes cliques com valor fonêmico. O termo
Khoisan, proposto por J. Shapera e adotado em inúmeros trabalhos, é uma
combinação de duas palavras khoi -khoi: khoi, que significa homem”, e san,
cuja raiz sa significa acumular, colher frutos, arrancar raízes da terra, capturar
pequenos animais”. Trata -se, portanto, da qualificação de um grupo humano
em função de seu gênero de vida e modo de produção. Mas, de fato, os San e os
Khoi -Khoi têm muito poucas características em comum; podem -se destacar a
cor clara da pele e a presença de consoantes clique em ambas as línguas. Deve-
-se lembrar, entretanto, que esta última característica não é específica, sendo
também encontrada nas línguas bantu do sudeste, como o zulu, xhosa, sotho,
swazi, etc.
O exame das características antropológicas desses dois grupos mostra que os
Khoi -Khoi e os San diferem em muitos aspectos: os Khoi -Khoi são nitidamente
mais altos que os San, distinguindo -se também pelas características cranianas
5
,
disposição dos cabelos e esteatopigia, frequente entre as mulheres, enquanto
a presença do epicanto é específica dos San. Além disso, as línguas khoi -khoi
e san diferem tanto pela estrutura gramatical como pelo vocabulário. E. O. J.
Westphal, grande especialista no assunto, mostrou que, entre os Khoi -Khoi,
os pronomes, que constituem a parte mais antiga e estável do discurso, têm
formas particularmente desenvolvidas: distinguem -se dois gêneros, três números
(singular, dual e plural) assim como formas inclusivas e exclusivas, enquanto não
nada parecido nas línguas san
6
. Portanto, não elementos suficientes para se
classificarem as línguas san e khoi -khoi em um grupo. Quanto às culturas desses
povos, diferem em todos os aspectos, como fora observado pelos primeiros
viajantes que visitaram a África meridional no século XVII, como Peter Kolb.
Os Khoi -Khoi viviam em Kraals, trabalhavam o metal e criavam gado, enquanto
os San eram nômades, vivendo da caça e da coleta. Assim, a antropologia e a
linguística opõem -se à reunião desses dois povos num único grupo. Cada um
deles teve um desenvolvimento histórico específico. Os San constituem, com
certeza, os remanescentes do povoamento original do extremo sul do continente
africano. Atualmente, estão confinados às regiões inóspitas e áridas da Namíbia
e do Calaari. Grupos isolados também podem ser encontrados em Angola. No
passado, eles habitavam as savanas da África meridional e oriental até os limites
5 Cf. ALEKSEIEV, K.
6 Cf. WESTPHAL, E. O. J. 1962, p. 30 -48.
308
Metodologia e pré -história da África
 . Pigmeu twa,
Ruanda (Foto B. Nantet).
F . Grupo San
(Foto F. Balsan, Col. Museu do
Homem).
F. Pigmeu do Congo
(Foto Congo Press, Danday, Col.
Museu do Homem).
309
Migrações e diferenciações étnicas e linguísticas
do Quênia, como testemunham a toponímia e a hidronímia dessas regiões,
sendo os nomes locais de rios e montanhas emprestados das línguas san. As
consoantes cliques, características das línguas san, foram emprestadas por várias
línguas bantu. Finalmente, as pinturas rupestres dos planaltos da África do
Sul mostram cenas de combate entre os San, de pequena estatura e pele clara,
e guerreiros negros de alta estatura, cuja origem étnica pode ser facilmente
identificada pela forma dos escudos que carregam.
Os Hadzapi, pequeno grupo étnico que vive nas proximidades do lago Eyasi,
na Tanzânia, podem ser considerados testemunhos da extensão dos antigos
povoados San por toda a África. Embora a língua dos Hadzapi ainda não tenha
sido estudada em profundidade,razões para se pensar que esteja próxima das
línguas san. Por vezes, no intuito de apoiar a tese de que os San ocuparam
área muito maior, aponta -se a presença de pedras redondas, furadas no centro,
encontradas na África oriental. Essas pedras, chamadas kwe pelos San, serviam
para lastrear estacas, com as quais desenterravam raízes comestíveis. Entretanto,
não se provou que essa técnica tenha sido difundida pelo grupo San. Assim, por
exemplo, entre os Galla da Etiópia meridional e da região do Harar, utiliza -se
o dongora, longa estaca lastreada com uma pedra em forma de anel, para cavar
a terra. O mesmo dispositivo é usado para tornar mais pesado o pilão com que
se amassa o tabaco.
De qualquer modo, a mais antiga população da África meridional não deve
ser restringida aos Pigmeus nas florestas e aos San nas savanas. Ao lado destes,
outros povos devem ter existido. Descobriu -se em Angola o grupo dos Kwadi,
que, pela língua e pelo gênero de vida, aproxima -se muito dos San. No início
do século XX, Vedder estudou os Otavi, remanescentes de grupos antigos. Esses
povos têm estatura pequena e vivem da caça e da coleta, distinguindo -se dos
San pela tez muito escura e lábios grossos. Autodenominam -se Nu -khoin, isto
é, homens negros”, em oposição aos Khoi -Khoi, a quem chamavam “homens
vermelhos”. Seu sistema de numeração, muito original, difere nitidamente do
sistema decimal usado pelos Khoi -Khoi. Grupos como esses, que subsistem
provavelmente em outras regiões, ajudam a esclarecer a história tão complexa
do povoamento original das florestas e savanas da África central e meridional.
Tal complexidade transparece nos planos lexical e fonético das línguas bantu;
a presença de cliques, por exemplo, sugere contatos interétnicos muito antigos.
Assim, existem discrepâncias entre as línguas bantu, às vezes mesmo no nível da
estrutura dos radicais, como no caso do grupo Dzing, no noroeste da área bantu.
Essa anomalia é, sem dúvida, resultado da influência de um substrato linguístico
preexistente. Os Pigmeus e os San constituem hoje grupos numericamente
310
Metodologia e pré -história da África
muito pequenos, em relação ao grupo negro” predominante e mesmo à raça
afro -mediterrânica da África do Norte.
Atualmente, o mapa linguístico da África não coincide com a distribuição dos
tipos raciais”, embora tal concordância possa ter ocorrido num passado remoto.
Mas durante um longo período os antigos grupos étnicos se multiplicaram,
migraram e se cruzaram, o mais havendo coincidência entre a evolão
linguística e o processo de formação dos tipos “raciais”. Por processo de formação
de tipos raciais” entende -se a herança genética e a gradual adaptação ao meio
ambiente. A não -concordância entre as distribuições “racial e linguística é
patente no caso dos povos do Sudão, zona de confluência de dois tipos diferentes
de famílias linguísticas.
A África do Norte, incluindo a Mauritânia e a Etiópia, pertence à vasta área
das línguas camito -semíticas. Essa denominação não parece pertinente, pois
sugere que as línguas dessa família se dividem em dois grupos, um semítico e
outro camítico. De fato, no século XIX, denominavam -se semíticas as línguas
desse grupo faladas no Oriente Próximo, e camíticas as línguas faladas na África.
Mas o semilogo frans M. Cohen observou o haver argumentos que
justificassem essa divisão em dois grupos. Atualmente, costuma -se classificar
as línguas dessa família em cinco grupos: semítico, cuchítico, berbere
7
, egípcio
antigo
8
e o grupo linguístico do Chade. Assim, as línguas dessa grande família
linguística são faladas por diversas “raças” semíticas e negras.
No extremo sul do continente africano, as línguas san, às quais devem ser
acrescentadas as línguas kwadi, em Angola, e hadzapi, na Tanzânia, parecem
pertencer a um grupo específico, tendo como característica comum a presença
de c1iques e a estrutura isolante. Talvez fosse mais prudente chamá -las línguas
paleoafricanas, assim como se usa o termo paleoasiático para as línguas das
reges do extremo nordeste da Ásia. As nguas khoi -khoi, cujo sistema
gramatical é diferente, não deveriam ser incluídas neste grupo. Os Khoi -Khoi o
criadores de gado que sem dúvida emigraram do nordeste para o sul da África,
estabelecendo -se em meio a grupos autóctones San. Alguns destes adotaram a
língua dos Khoi -Khoi, como é o caso dos povos encontrados nos montes Otavi,
e talvez mesmo dos Naron do núcleo central. A hipótese de que o itinerário
acima indicado corresponda realmente ao da expansão dos Khoi -Khoi através
das savanas da África oriental a partir do Alto Nilo parece confirmada pelo fato
7 De acordo com alguns autores, o berbere faz parte do grupo semítico.
8 De acordo com alguns egiptólogos africanos. o egípcio antigo é uma das línguas “negro -africanas” (ver
cap. 1, v. II).
311
Migrações e diferenciações étnicas e linguísticas
 . Mulheres zulu (Foto A.Robillard, Col. Museu do Homem).
312
Metodologia e pré -história da África
de existir na Tanzânia, perto do lago Eyasi, o grupo Sandawe, cuja língua parece
relacionada à dos Khoi -Khoi. A história dos Khoi -Khoi permanece, contudo,
um dos pontos mais obscuros da evolução étnica da África. Segundo Westphal,
os diques das línguas khoi -khoi teriam sido emprestados às línguas dos San.
Teoria interessante, mas até agora não provada.
As savanas da África oriental foram, sem dúvida, a primeira região do
continente a ser povoada. Hoje são habitadas por negros de língua bantu, que
foram precedidos pelos grupos San e Khoi -Khoi, cujos remanescentes são os
Sandawe e os Hadzapi. Outros povos da mesma região falam línguas cuchíticas
ou pertencentes a outros grupos, como, por exemplo, o Iraqw. Todas essas línguas
são anteriores à expansão das línguas bantu, algumas das quais apareceram em
épocas relativamente recentes.
Entre a área das línguas camito -semíticas do norte e a das línguas
paleoafricanas do sul, intercala -se o vasto domínio das línguas chamadas por
M. Delafosse de “negro -africanas”, por Meinhof e Westermann de sudanesas
e bantu, enquanto J. Greenberg as coloca nas famílias Congo -Kordofaniana e
nilo -saariana. Em 1963, reconhecendo a unidade dessas línguas, propus chamá-
-las línguas zindj. Dentro dessa categoria geral, famílias ou grupos linguísticos
poderiam eventualmente ser distinguidos, segundo o resultado das pesquisas.
A “expressão línguas negro -africanas” é insatisfatória. O primeiro termo
parece confundir as noções de ra e língua. Ora, os habitantes negros das
Américas e da própria África falam línguas totalmente diferentes. O segundo
termo da expressão africanas também é inadequado, posto que todas as
línguas faladas pelos habitantes da África, inclusive o africâner, são línguas
africanas.
Além disso, a divisão das línguas negro -africanas em dois grupos sudanesas
e bantu também parece errônea, uma vez que os estudos de D. Westermann
demonstraram que as línguas da África ocidental têm muitas características em,
comum com as línguas bantu do ponto de vista lexical e estrutural. Esse trabalho
preparou o caminho para uma revisão geral da classificação das línguas africanas,
que a escola linguística alemã lançou de maneira tão desastrosa. A classificação
proposta por Greenberg é baseada no método denominado mass comparison”.
Tendo em conta os tros fundamentais do sistema gramatical, baseia -se
principalmente no léxico. Aplicando esse método, Greenberg distinguiu, em
1954, 16 famílias linguísticas na África, e mais tarde apenas 12. Em 1963, esse
número foi reduzido a quatro. Uma queda tão rápida no número de famílias
linguísticas indica claramente que o método não foi suficientemente elaborado
e que houve pressa excessiva em produzir, a todo custo, uma classificação.
313
Migrações e diferenciações étnicas e linguísticas
 . Mulher peul
(Foto Archives outre -mer).
F . Mulher peul
das proximidades de Garoua-
-Boulay, Camarões (Foto Hoa-
Qui).
F . Jovem peul do
Mali (Foto A. A. A. Naud).
314
Metodologia e pré -história da África
Das quatro famílias mantidas por Greenberg, o grupo afro -astico
corresponde, na verdade, à própria família camito -semitica. Quanto à família
dita de línguas com cliques, mais tarde chamada khoisan, compreende as línguas
dos povos San e Khoi -Khoi. Como já foi afirmado, essa combinação é errônea.
Além da família níger -congo, à qual Greenberg juntou mais tarde as línguas do
Kordofan, ele distingue um quarto grupo, formado pelas línguas nilo -saarianas,
cuja estrutura, porém, até agora foi muito pouco estudada. Em 1972, Edgar
Gregersen, usando o método de Greenberg, chegou à conclusão de que todas
as línguas dessas duas últimas famílias podiam ser reunidas em uma família
linguística, para a qual propôs o nome de congo -saariana. Essa opinião vem de
encontro à minha proposta de reunir todas essas línguas sob a denominação
de grupo zindj. O grupo é caracterizado pelo uso de tons variantes e classes
nominais, ao contrário das línguas camito -semíticas ou eritreias, cujos traços
específicos são o acento e o gênero gramatical. É possível que estudos posteriores
revelem o caráter específico de uma língua em particular ou grupos de línguas
dentro da família zindj ou congo -saariana, mas esta, por ora, apresenta o mesmo
tipo de coerência que a família indo -europeia, por exemplo.
Dentro da grande família zindj, as línguas bantu apresentam, sem dúvida,
um aspecto de grande homogeneidade, como demonstram os trabalhos de W.
H. I. Bleek, C. Meinhof e M. Guthrie. Dentre os subgrupos identificados por
D. Westermann nos grupos linguísticos sudaneses, o mande é, com certeza, o
de identidade mais definida.
A leste e oeste do grupo mande estão as línguas que Westermann denominou
oeste -atlânticas ou gur. Contudo, essas línguas estão longe de apresentar a
mesma homogeneidade que as línguas mande, de tal forma que os linguistas
britânicos identificaram entre elas um grupo distinto, que denominaram línguas
mel. De fato, essa região do extremo oeste africano foi um refúgio, onde vagas
sucessivas de pequenos povos se comprimiram, pressionadas pela chegada de
novas populações. Algumas dessas línguas ainda conservam traços característicos
das línguas bantu, sendo o caso mais notável o da língua bullom. A hipótese
anterior da unidade das línguas gur foi derrubada pelos trabalhos de Manessy,
autoridade eminente na área. A presença, nessas línguas, de classes nominais
formadas de maneiras variadas pelo uso de prefixos, sufixos e mesmo infixos,
reflete a complexidade étnica dessa área, que serviu de refúgio a muitos dos assim
chamados grupos paleonegríticos, que se distribuem pelas áreas montanhosas
em todo o Sudão, do Senegal ao Kordofan. São considerados remanescentes
dos mais antigos habitantes autóctones do Sudão, o que, todavia, parece pouco
provável, dada a diversidade linguística e a variedade de tipos físicos do mosaico
315
Migrações e diferenciações étnicas e linguísticas
de grupos que se acumularam nessas áreas inóspitas. As crônicas sudanesas
referem -se a alguns desses eventos, demonstrando, assim, que não se trata de
um processo muito antigo. Por isso, a fragmentação dialetal na África deve ser
ligada, antes de tudo, a causas históricas que impulsionaram vagas ou infiltrações
migratórias.
Dentre as línguas do Sudão oriental, que são as menos estudadas, as nilóticas
constituem, talvez, um grupo à parte, uma espécie de família geneticamente
integrada, que deve ter se desenvolvido durante um longo período de isolamento.
A extrema complexidade da composição étnica e linguística dos povos do
Sudão oriental é mostrada no notável trabalho dos linguistas ingleses M. A.
Bryan e A. N. Tucker. Seguindo um método, ao que parece, bastante racional,
utilizaram como critérios certos traços linguísticos característicos, opondo as
línguas T/K e N/K. Dentre os grupos linguísticos dessa grande família congo-
-saariana, as línguas bantu apresentam um parentesco genético tão notável que
pode ser encarado como um fenômeno relativamente recente. Não só linguistas
como também historiadores e arqueólogos empenharam -se em elucidar a “gênese
dos Bantu”. Mas as hipóteses diferem. Alguns presumem que a migração bantu,
partindo do norte, mais precisamente da região do Camarões ou da bacia do
Chade, teria margeado a floresta de modo a contorná -la a leste e, passando pela
África oriental, ter -se -ia difundido na África meridional. Outros, como Sir H.
Johnston, acreditam que os Bantu vieram diretamente da região centro -africana,
através da floresta do Zaire. Por fim, alguns estudiosos, de acordo com a teoria
do linguista M. Guthrie, que situa o núcleo linguístico protótipo dos Bantu entre
os Luba e Bemba no Alto Zaire, apontam essa região como seu lugar de origem.
Avançando ainda mais, chega -se a apresentar os povos de língua bantu como
uma unidade cultural e biológica, esquecendo -se que o termo bantu é apenas
uma referência linguística. Todavia, alguns arqueólogos associam a difusão do
ferro na parte meridional do continente à migração dos Bantu, que teriam
introduzido uma tecnologia superior. Ora, ao desembarcar na ilha de Fernando
Pó, no fim do século XV, os portugueses encontraram uma população que falava
bubi, língua bantu, mas que desconhecia o uso do ferro. Esse erro, que consiste
em confundir língua e modo de vida ou de produção, tinha sido cometido pelos
etnógrafos, que acumularam no conceito de camita uma unidade de raça, língua
e civilização; ora, importa não insistir em se procurar tipos puros na evolução
histórica. De fato, os povos Bantu diferem grandemente do ponto de vista
antropológico: cor da pele, altura, dimensões corporais, etc. Assim, os Bantu das
florestas têm características somáticas diferentes dos Bantu que vivem na savana.
Também há grandes variações no tipo de atividade econômica e na organização
316
Metodologia e pré -história da África
social. Alguns grupos Bantu são matrilineares, outros, patrilineares; uns usam
máscaras e mantêm sociedades secretas, outros não têm nada semelhante. O
denominador comum é a estrutura linguística baseada em classes nominais,
tendo sempre os índices dessas classes uma expressão fonética similar fundada
num sistema verbal único.
Nas savanas do Sudão, povos que falavam línguas com classes nominais em
que as diferenças de tonalidade tinham um papel importante, aparentemente
coexistiram durante longo tempo. À medida que o Saara se dessecava, esses povos
se retiravam para áreas mais úmidas: as montanhas do norte, o vale do Nilo a
leste, e o grande lago paleochadiano ao sul. Esses grupos de caçadores e criadores
de gado suplantaram os povos autóctones, que foram forçados a se retirar para
o sul, penetrando a floresta ou contornando -a pelo leste. Essas migrações não
estão necessariamente relacionadas com o início da difusão do ferro, mas é certo
que o conhecimento de metalurgia que possuíam os povos recém -chegados
conferia -lhes vantagem sobre os autóctones. As jazidas de cobre assim como
o trabalho antigo deste metal situam -se na mesma região que foi identificada
por Guthrie como o ponto focal do domínio bantu, onde as línguas luba e
bemba apresentam a maior porcentagem de palavras pertencentes ao vocabulário
comum a todas as línguas bantu”. O desenvolvimento da manufatura do cobre
impulsionou a posterior expansão da civilização. Quanto maior a distância do
ponto focal, menor a pureza do tipo linguístico bantu, pois, na medida dessa
distância, aumenta a miscigenação dos povos de língua bantu com povos de
outras línguas.
Esse caso específico nos mostra que os conceitos de língua, tipo antropológico
e civilização nunca devem ser confundidos, mas que, no povoamento gradual
do continente por diferentes grupos humanos, o modo de produção deve ter
frequentemente atuado como vetor principal da expansão linguística e mesmo
da predominância de determinadas características biológicas.
C A P Í T U L O 1 2
317
Classicação das línguas da África
Como qualquer outro conjunto de entidades, as línguas podem ser classificadas
de infinitas maneiras. Um método particular, porém, comumente chamado de
método de classificação genética, possui características singulares e importantes,
de modo que ao empregarmos o termo “classificação sem outras especificações
em relação à língua, estaremos referindo -nos a este tipo de classificação. É o
método em que se baseará a minuciosa classificação apresentada nas últimas
seções deste capítulo.
Natureza e objetivos da classicação das línguas
Uma classificação genética apresenta -se sob a forma de conjuntos de unidades
hierquicas que possuem a mesma organização gica de uma classificação biológica
em espécies, neros, famílias, etc., em que os membros do conjunto situado em
um determinado vel se incluem em conjuntos de um vel superior. Poder -se -ia
apresentá -la também sob a forma de uma árvore geneagica. O fato de duas ou mais
nguas compartilharem de um ancestral imediato numa arvore geneagica significa
serem elas provenientes de dialetos de uma mesma língua que se diferenciaram pela
evolução. Tal classificão pode ser ilustrada com o exemplo bastante conhecido do
indo -europeu. Uma vez que ainda o se conseguiu estabelecer que o indo -europeu
tenha pertencido a um grupo mais abrangente, conside -lo -emos o nível mais alto.
PARTE I
Classicação das línguas da África
J. H. Greenberg
318
Metodologia e pré -história da África
A família indo -europeia divide -se em um certo mero de ramificações, em que
figuram, entre outros, o germânico, o celta, o eslavo e o indo -iraniano.
Equivale a dizer que a primeira comunidade linguística indo -europeia dividiu-
-se em um certo número de dialetos: o germânico, o celta, etc. O germânico,
por sua vez, dividiu -se em três dialetos: o gótico, o germânico ocidental e o
escandinavo. O tico extinguiu -se, tendo chegado ao nosso conhecimento
através de antigos registros, ao passo que o germânico ocidental se diferenciou
em anglo -frio, baixo -aleo e alto -alemão. Atualmente, cada um deles
constitui um grupo de dialetos locais, sendo que alguns servem de base a línguas
padronizadas, como, por exemplo, o alemão (dialeto alto -alemão), o neerlandês
(dialeto baixo -alemão) e o inglês (dialeto anglo -frisão).
A importância das classificações realizadas segundo tais princípios reside
principalmente no fato de refletirem a história real da diferenciação étnica
dentro do domínio da língua. Além disso, formam a base necessária à aplicação
dos métodos da linguística comparativa, que permite reconstruir grande parte
da história linguística de vários grupos. Por fim, esse conhecimento da história
linguística fornece a base necessária para inferências acerca da história cultural
não -linguística dos grupos em questão.
História da classicação das línguas da África
Evidentemente,o seria possível empreender uma classificação completa das
línguas da África sem uma compilação exaustiva de dados empíricos relativos a
essas línguas. Somente no início do século XIX é que se puderam reunir elementos
suficientes para uma primeira tentativa de classificação. Antes disso, porém,
se tinham feito algumas observações relevantes para a classificação, com base
em uma compilação de dados cujo início pode ser fixado no século XVII, época
em que surgem as primeiras gramáticas e dicionários de línguas africanas
1
. Para
exemplificar, no início do século XVII Luis Moriano observou que a língua
malgaxe assemelhava -se muito ao malaio, o que prova de maneira quase cabal
que os primeiros habitantes vieram dos portos de Malaca
2
. Pela mesma época,
1 Para maiores informações sobre a história da linguística africana, ver C. M. DOKE e D. T. COLE, 1961;
D. T. COLE. In: T. A. SEBEOK (dir.), 1971, p. 1 -29. Encontram -se, por vezes, palavras provenientes
de línguas africanas nas obras de autores medievais. Ver, a esse respeito, M. DELAFOSSE, 1912 -1914,
p. 281 -88 e C. MEINHOF, 1919 -1920, p. 147 -52.
2 “Relation du voyage de découverte fait à l’île Saint -Laurent dans les années 1613 - 1614…”, manuscrito
português publicado em tradução francesa. In: A. e G. GRANDIDIER, 1903 -1920, p. 22.
319
Classicação das línguas da África
vários pesquisadores portugueses observaram a semelhança entre as línguas de
Moçambique, na costa oriental da África, e as de Angola e do Congo, a oeste,
prenunciando assim o conceito de uma família de línguas bantu a abranger a maior
parte do terço meridional do continente. O outro exemplo são as descrições do
gueze e do amárico feitas por Hiob Ludolf no século XVII, que mostram terem
essas línguas etíopes algum parentesco com o hebraico, o aramaico e o árabe.
O século XVIII pouco contribuiu para o conhecimento das línguas africanas.
Perto do fim desse período, contudo, constatamos que o conceito básico de
classificação genética começa a tornar -se mais claro sob a forma de hipóteses
específicas a respeito da existência de certas famílias de línguas, hipóteses estas
que constituíram, no século XIX, a base do desenvolvimento da linguística
enquanto ciência histórico -comparativa.
As obras sobre história da linguística comumente citam a afirmão de
William Jones (1786) acerca do parentesco das línguas indo -europeias como o
fator decisivo para esse desenvolvimento. Tais ideias pairavam no ar: cinco anos
antes, Marsden enunciara, pelo menos com igual clareza, hipótese semelhante
a propósito das línguas malaio -polinésias, assim como fizera Gyarmathy em
relação às línguas fino -úgricas.
Tal evolução se fez acompanhar de uma verdadeira mania de coletar
materiais comparativos sobre um grande número de línguas. A primeira obra
dessa natureza foi o Glossarium Comparativum Linguarum Totius Orbis, de 1787,
patrocinado por Catarina, a Grande, imperatriz da Rússia; a edição revisada de
1790 -1791 incluía dados de trinta línguas africanas.
No início do século XIX, assistimos a uma acentuada aceleração na produção
de gramáticas e dicionários de línguas africanas, assim como na publicação de
listas comparativas de palavras de um considerável número dessas línguas, como
as de Kilham (1828), Norris (1841) e Clarke (1848)
3
.
A mais importante dessas listas, tanto pela extensão quanto pelo caráter
sistemático de sua organização e de sua simbolização fonética, é sem dúvida a
clássica Polyglotta Africana, compilada em Freetown (Serra Leoa) por S. W. Koelle
4
.
O amulo de dados no início do culo XIX foi concomitante às primeiras
tentativas de classificação de conjunto, como, por exemplo, as realizações de Balbi e,
nas sucessivas edições de Inquiry into the Physical History of Mankind, as de Prichard
5
.
3 KILHAM, H. 1828; NORRIS, E. 1841; CLARKE, I. 1848.
4 KOELLE, S. W. 1963.
5 BALBI, A. 1826. A última edição de J. C. PRICHARD foi revista e aumentada por E. NORRIS;
PRICHARD, J. C. 1855.
320
Metodologia e pré -história da África
Embora diferindo em detalhes, certas conclusões geralmente aceitas
emergiram no decorrer da primeira metade do século XIX. Algumas foram
comprovadas por pesquisas posteriores, enquanto outras tiveram pelo
menos o mérito de levantar questões que os classificadores vieram a resolver
posteriormente. Os resultados a que se chegou em 1860 podem ser resumidos
da seguinte forma:
• O termo “semítico”, introduzido por Schlözer em 1781, já possuía
praticamente a acepção atual
6
. A existência de um ramo etíope desta família,
incluindo o gueze (etíope clássico) e as línguas modernas, como o amárico
e o tigrina, estava bem estabelecida.
• havia sido observada a semelhança e provável parentesco de algumas
outras línguas com o semítico; entre elas se incluíam o antigo egípcio, o
berbere e o cuxita. Estas últimas são faladas principalmente na Etiópia e na
Somália. Alguns autores incluíram na mesma categoria o haussa da África
ocidental. Essas línguas foram por vezes chamadas de subsemíticas. O termo
camítico” foi proposto por Renan em 1855
7
.
• Atribui -se a Lichtenstein o mérito de ter sido o primeiro a distinguir
claramente, entre as línguas da África do Sul, as línguas khoi e san, de um
lado, e as línguas bantu de outro
8
. se reconhecia claramente na época a
existência deste último grupo de línguas estreitamente aparentadas, também
chamado família cafre ou família de línguas sul -africanas. O termo bantu,
extraído da palavra que significa homens” em um grande número dessas
línguas, foi proposto pela primeira vez por W. H. I. Bleek, que, em 1851,
estabeleceu as bases do estudo comparativo das línguas bantu. Trata -se de
um termo universalmente empregado até hoje.
• Restava ainda um grupo muito extenso, que compreendia a maior parte
das línguas faladas no Sudão ocidental e oriental e que não podiam ser
classificadas dentro dos grupos acima mencionados: as nguas que não
eram nem semíticas, nem camíticas, nem san, nem bantu. Eram chamadas,
de modo geral, línguas “negras e constitam o maior problema dos
classificadores. Norris, em sua revisão da obra de Prichard em 1855, admitiu
que elas escapavam à classificação e que os Negros até então haviam sido
6 SCHLOZER, A. L. Von, parte 8, 1781, p. 161.
7 RENAN, E. 1855, p. 189.
8 LICHTENSTEIN, H. 1811 -1812.
321
Classicação das línguas da África
considerados como constituintes de uma raça mais por razões fisiológicas
do que filológicas”
9
.
• Embora até recentemente todas as classificações de conjunto das línguas
africanas separassem completamente as nguas bantu das nguas ditas
negras”, alguns observadores notaram que muitas das línguas consideradas
negras”, principalmente as da África ocidental, mostravam parentesco com
o grupo bantu. Ao que parece, o primeiro a atentar para esse fato foi o
bispo O. E. Vidal em sua introdução à gramática do ioruba, de Samuel
Crowther
10
. Bleek deu uma definição geral ao termo bantu” estendendo
sua aplicação à maior parte da África ocidental até o 13
o
grau de latitude
norte, do Senegal ao Nilo superior
11
. Essa ideia fundamental foi retomada
por Westermann muito tempo depois sob forma modificada, e, de modo
mais explícito, por Greenberg, na classificação corrente nos dias de hoje.
• A filiação do malgaxe ao malaio -polinésio e, consequentemente, o seu não-
-parentesco com as nguas da África haviam sido observados, como
vimos, no século XVII, e eram geralmente aceitos.
A década de 1860 destacou -se pela publicação de duas classificações
completas que deveriam dominar o campo até quase 1910. A primeira foi a
de Lepsius, que apareceu em duas versões, em 1863 e 1880
12
. A outra foi a de
Friedrich Müller, que também teve duas versões, a de 1867 e a de 1884
13
. A
obra de Müller forneceu a base para o importante estudo de R. N. Cust, que
contribuiu para difundir sua obra nos países de língua inglesa. O estudo de Cust
é uma fonte extremamente preciosa para a bibliografia da linguística africana
até aquela época.
Tanto Lepsius como Müller excluíram de suas classificações o malgaxe,
considerando -o uma língua não -africana. Para os demais linguistas, o principal
problema era o das línguas negras” e sua posição em relação ao bantu, por
ser este, dentre todos os grupos de línguas faladas pelos povos negros, o único
extenso e bem determinado. Tanto na classificação de Müller como na de
Lepsius, as considerações raciais representaram um papel muito importante,
embora de modo diferente.
9 PRICHARD. J. C. 1855, v. I, p. 427.
10 VIDAL, O. E. In: CROWTHER, S. 1852.
11 BLEEK. W. H. I. 1862 -1869, v. I, p. 8.
12 LEPSIUS, C. R. duas edições, 1863 e 1880.
13 MÜLLER, F. 1867; 1876 -1884. Para as línguas africanas. ver I, 2 (1877) e III, 1 (1884).
322
Metodologia e pré -história da África
Lepsius adotou como base de sua classificão o cririo dos tipos de
classificação do substantivo. Tal enfoque provinha do trabalho anterior de
Bleek (1851)
14
. Bleek ficara impressionado com o que considerava a diferença
fundamental entre as línguas bantu, que possuíam sistemas complexos de classes
nominais em que o nero baseado em sexo não desempenhava nenhuma
função, e as línguas semíticas e camíticas, que tinham a distinção de gênero
baseada no sexo como princípio de classificação nominal. Aplicando tal critério,
Bleek classificou o khoi -khoi entre as línguas camíticas por possuir este tipo
de distinção de gênero, apesar de se assemelhar às línguas san em quase todos
os outros aspectos.
Lepsius, tomando como ponto de partida a ideia geral de Bleek, considerou
que, dentre as línguas faladas por populações negras, o bantu em que a
classificação nominal não se baseia no sexo – era a língua original, ao passo que
as demais tornaram -se mistas pela influência das línguas camíticas. Classificou
as línguas em quatro grupos: 1. bantu; 2. negro misto; 3. camítico; 4. semítico.
No entanto, existem duas categorias fundamentais: a) línguas bantu e negras
mistas (línguas com classes nominais); b) línguas semíticas e camíticas (línguas
com distinção de gênero). Afinal, haveria a possibilidade de se demonstrar
que estas últimas m parentesco com o indo -europeu, que também possui
distinção de gênero baseada no sexo. De fato, Lepsius agrupava o indo -europeu,
o semítico e o camítico numa mesma família, que chamou de “noíta”, com três
ramos que representavam os três filhos de Noé: Sem, Cam e Jafet. Declara
explicitamente a superioridade das línguas com distinção de gênero: Parece
indubitável, no entanto, que os três grandes ramos das línguas com distinção de
gênero não tenham sido no passado os depositários e os órgãos do processo
histórico da civilização humana, mas tamm que neles, e particularmente
no ramo mais jovem, o jafético, repousa a esperança futura do mundo
15
. O
parentesco intelectual das “teorias camíticas é evidente, desde Bleek até as
teorias posteriores de Meinhof, passando pelas de Lepsius.
Na obra exaustiva de Müller, publicada em 1884, todas as línguas conhecidas
do mundo são classificadas segundo a hipótese de uma relação fundamental
entre o tipo físico do falante e a língua. Suas principais divisões são “as línguas
dos povos de cabelos lisos”,as línguas dos povos de cabelos crespos”, etc. Essa
hipótese o leva, por exemplo, a classificar o khoi -khoi não entre as línguas
camíticas, como faz Lepsius, mas entre as línguas das raças de cabelos ondulados,
14 BLEEK. W. H. I. 1851.
15 LEPSIUS, C. R. 1880, p. 90.
323
Classicação das línguas da África
juntamente com o papua. A maioria das línguas “negras” distribuem -se entre as
línguas negro -africanas e bantu. Sua hipótese sobre essa questão é exatamente
oposta à de Lepsius, uma vez que considera as primeiras como representantes
do tipo original, e as segundas suas derivadas. Para ele, certo número de línguas
faladas por populações negras pertence a um grupo culturalmente mais avançado
chamado nuba -fula, cujos falantes são fisicamente semelhantes aos mediterrânicos
e aos dravídicos, classificados como populações de cabelos encaracolados. Nos
trabalhos de Cust, que divulgam as opiniões de Müller aos leitores de língua
inglesa, as línguas da África aparecem divididas em seis grupos: 1. semítico; 2.
camítico; 3. nuba -fula; 4. negro; 5. bantu; 6. khoisan.
As discussões em torno da classificação ficaram suspensas durante algum
tempo, e o interesse dos linguistas concentrou -se na árdua tarefa científica de
descrever as línguas africanas. A obra de Westermann sobre as línguas sudanesas
(1911) e a de Meinhof sobre as camíticas (1912) inauguram o período moderno
16
.
A primeira dessas obras, cuja tese fundamental foi, ao que parece, inspirada
em Meinhof, introduziu o termo “sudanês”, que abrangia quase todas as línguas
da África não incluídas nos grupos semítico, camítico (em seu sentido mais
amplo dado por Meinhof), bantu e san. Portanto, designava essencialmente
todas as línguas antes chamadas línguas negras”. Dentro dessa vasta coleção,
Westermann selecionou oito línguas (sem fornecer, entretanto, a lista completa),
das quais cinco eram do Sudão ocidental e três do Sudão oriental, e procurou
estabelecer parentesco entre elas através de uma série de etimologias e de formas
ancestrais reconstituídas.
Meinhof, célebre por sua obra fundamental sobre o estudo comparativo
do bantu, procurou, em seu livro sobre as línguas camíticas, estender os limites
da família camítica para além dos geralmente aceitos, incluindo línguas como o
fulfulde, o massai e, seguindo Lepsius, o khoi -khoi, baseando -se essencialmente
no critério do gênero. A obra deixava transparecer claramente sua convicção da
superioridade racial camítica
17
.
Do trabalho conjunto de Meinhof e Westermann surgiu uma divisão em
cinco grupos (semítico, camítico, sudanês, bantu e san). Essas conclusões foram
difundidas nos países de língua inglesa por Alice Werner e tornaram -se norma
nos manuais de antropologia e de linguística
18
.
16 WESTERMANN, D. 1911; MEINHOF, C. 1912.
17 A hipótese camítica tornou -se a base de uma interpretação cultural e histórica muito desenvolvida. Sobre
essa questão, ver E. R. SANDER, 1969, p. 521 -32.
18 WERNER, A. 1915 e 1930.
324
Metodologia e pré -história da África
Tal classificão não permaneceu inconteste durante seu período de
predomincia (aproximadamente 1910 -1950). Embora não figurasse nos
manuais comuns, a crítica mais importante veio do próprio Westermann em
seu relevante trabalho sobre as línguas sudanesas ocidentais (1927)
19
. Nesta obra,
ele restringe sua concepção anterior das línguas sudanesas às línguas do oeste
da África e identifica, através de minuciosa documentação léxica e gramatical,
um certo número de subgrupos distintos no interior do sudanês ocidental
(por exemplo, o atlântico ocidental, o kwa e o gur). Mais importante ainda é
o fato de ter assinalado as semelhanças de detalhe entre o sudanês ocidental
e o bantu quanto ao vocabulário e à estrutura gramatical, sem, entretanto,
afirmar seu parentesco de modo explícito. De fato, Sir Henry Johnston, em
sua extensa obra sobre o bantu e o semibantu, tinha considerado muitas
línguas da África ocidental como sendo aparentadas ao bantu
20
. Tais línguas
eram por ele denominadas “semibantu”. Continuou, entretanto, a respeitar o
critério tipológico, da classificação do nome, de modo que, se entre duas línguas
estreitamente relacionadas, uma possuísse classes nominais, era considerada
semibantu, enquanto a outra não.
É necessário ainda mencionar brevemente outras classificações do período entre
1910 e 1950, das quais apenas a de Delafosse alcançou alguma difusão. A classificação
proposta por A. Drexel procurou demonstrar a relação entre as famílias de línguas
africanas e as culturas, relação esta postulada pela Kulturkreislehre. O africanista
francês M. Delafosse, contrariamente aos pesquisadores alees da época, limitou
o camítico ao berbere,
21
ao egípcio e ao cuxita e reuniu todas as outras línguas que
o eram semíticas nem khoisan numa grande família negro -africana
22
. Além de
identificar dezesseis ramíficações não -bantu, muitas das quais fundamentadas em
critérios geográficos e não puramente linguísticos, Delafosse considerava, ao que
parece, que o bantu deveria estar incluído entre as línguas negro -africanas. Parte
da terminologia de Delafosse é ainda utilizada correntemente entre africanistas de
expressão francesa. Deve -se também mencionar Mlle. Homburger que, partindo
19 WESTERMANN, D. 1927.
20 JOHNSTON, S. H. 1919 -1922.
21 Nota acrescentada a pedido de um membro do Comitê: Esta classicação não é apenas contrária às
opiniões de pesquisadores alemães, mas também à verdade cientíca pura. Os linguistas norte -africanos
apontaram os motivos políticos que levaram a escola colonialista francesa a classicar a língua berbere
entre as línguas camito -semíticas. A realidade é que o berbere é uma língua semítica, e mesmo uma das
mais antigas línguas dessa família, juntamente com o acadiano e o hebraico. Assim, não é nem camito-
-semítico nem afro -asiático, como se diz em outras partes deste capítulo. Ver, particularmente, em árabe:
M. El -Fasi: “O berbere, língua -irmã do árabe”, Atas da Academia do Cairo, 1971.
22 DELAFOSSE, M. 1924, p. 46–560.
325
Classicação das línguas da África
igualmente da noção de unidade linguística africana, concebida, entretanto, de
modo ainda mais amplo, adotou a teoria de uma fonte egípcia como explicação
dessa unidade e mesmo, sem atentar para a contradição, a de uma derivação
longínqua a partir das línguas dravídicas da Índia
23
.
Entre 1949 e 1950, o autor do presente capítulo definiu, em uma série de
artigos publicados no Southwestern Journal of Anthropology, uma classificação nova
em muitos aspectos, que acabou por obter aceitação geral
24
. Por seu método,
diferia em vários pontos das classificações anteriores. Era estritamente genética,
no sentido definido na introdução deste capítulo. Portanto, considerava probantes
as grandes semelhanças entre grupos de línguas, que envolviam ao mesmo tempo
som e significado, quer se tratasse de raízes (do vocabulário) quer de formantes
gramaticais. As semelhanças relativas apenas ao som, por exemplo, a presença de
tons, ou as que se referem apenas ao significado, como por exemplo, a existência
do gênero gramatical sem concordância das formas fonéticas das desinências,
eram consideradas irrelevantes. Tais características tipológicas, como vimos,
desempenhavam um papel importante nas classificações precedentes. Assim, a
existência, por exemplo, dos gêneros masculino e feminino o era considerada
por si só uma prova de parentesco, pois essa distinção de gênero pode aparecer –
e de fato aparece independentemente em diversas partes do mundo. Por outro
lado, a existência de um marcador do gênero feminino t em todas as ramificações
do afro -asiático (camito -semítico) constitui um índice positivo de parentesco.
Do mesmo modo, a ausência de distinção de gênero por perda da categoria o
constitui em si uma prova negativa. Esses princípios o geralmente aceitos nas
áreas onde ostodos comparativos eso bem estabelecidos como, por exemplo,
no indo -europeu. O persa, o armênio e o hitita, entre outros, não fazem distinção
de gênero, o que já não ocorre com a maior parte das demais línguas da família.
As antigas classificões, como a de Lepsius, não utilizavam nem citavam
provas concretas para seus agrupamentos. Em sua obra sobre o sudanês,
Westermann forneceu etimologias, mas apenas para oito línguas, tomadas
entre centenas. A única obra anterior a 1950 a apresentar provas detalhadas
foi o trabalho de Westermann sobre o sudas ocidental, referente apenas a
uma parte da África. Na classificação do autor do presente capítulo, foram
apresentadas etimologias e características gramaticais comuns específicas
23 HOMBURGER, L. 1941.
24 Para a versão mais recente da classicação de GREENBERG, ver J. H. GREENBERG, 1966 (b). Uma
bibliograa da literatura onde se discute essa questão é encontrada em D. WINSTON, “Greenberg’s
classication of African languages”, African Language Studies. v. 7, 1966. p. 160 -70. Para um ponto de vista
diferente, ver o capítulo 11, da autoria do Professor D. OLDEROGGE. Ver também Ch. A. DIOP.
326
Metodologia e pré -história da África
para todos os grupos importantes, de acordo com um estudo exaustivo da
literatura.
As propostas concretas mais importantes, algumas das quais provocaram
acirradas controvérsias entre os especialistas, são as seguintes:
• Admite -se o parentesco do bantu com o sudas ocidental, com base
nos dados de Westermann. O bantu tornou -se o um ramo distinto
dessa família mais ampla, mas apenas um subgrupo dentro do que
Westermann denominou subgrupo benue -congo (semibantu) do
sudanês ocidental. Ademais, muitas outras línguas, faladas mais a leste
(ramo adamaua oriental) fazem parte dessa falia, que recebeu o novo
nome de níger -congo.
• Dentre as extensões do camítico propostas por Meinhof, somente o
haussa se conservou. Além disso, o haussa é apenas um membro de um
extenso ramo (chádico) do camito -semítico. O semítico se inclui,
mas simplesmente como um ramo da mesma classe dos outros. Assim,
o catico torna -se somente um nome arbitrio para os ramos não-
-semíticos da família maior, agora chamada de afro -asiática e considerada
como sendo constituída por cinco ramos: 1. berbere; 2. egípcio antigo; 3.
semítico; 4. cuxítico; 5. chádico
25
.
• As línguas negras” não incluídas no grupo níger -congo foram classificadas
em um outro grande grupo, o nilo -saariano.
• O khoi -khoi foi classificado como uma língua “san”, pertencente ao grupo
central do khoisan da África do Sul.
O resultado global é que as nguas africanas (excluindo -se o malgaxe)
classificam -se em quatro famílias principais, que, nas seções que se seguem,
serão examinadas individual e pormenorizadamente
26
. Nesta exposição
mencionam -se, conforme o caso, propostas recentes para modificar ou estender
a classificação original, bem como as críticas mais fundamentais.
25 LUKAS, I. 1938, p. 286 -99; COHEN, M. 1947.
26 Para listas de línguas mais detalhadas (que não é possível fornecer aqui devido à limitação de espaço),
ver I. H. GREENBERG, 1966 (b), nos volumes da série Handbook of African Languages publicado
pelo International African Institute de Londres e C. F. e F. M. VOEGALIN, lndex of the Worlds
Languages, Washington, U. S. Department of the H. E. W., Oce of education, bureau of research,
maio 1973, 6 partes.
327
Classicação das línguas da África
Línguas afro ‑asiáticas
27
Estas línguas, também chamadas de camito -semíticas, cobrem toda a África
do Norte e quase todo o chifre da África (Etiópia, Somália); algumas línguas
do ramo cuxítico estendem -se ao sul até a Tanzânia. Ademais, o ramo semítico
inclui línguas que, atualmente ou em épocas anteriores, abrangiam quase todo
o Oriente Médio. Em geral considera -se que o afro -asiático compreende cinco
divisões quase igualmente diferenciadas: o berbere,
28
o egípcio antigo, o semítico,
o cuxítico e o chádico. No entanto, Fleming aventou recentemente que o grupo
de línguas até agora classificado como cuxítico -ocidental, em que se incluem o
kafa e outras línguas do sudoeste da Etiópia, na verdade constitui um sexto ramo
para o qual se propuseram os nomes “omótico e “ari -banna”.
29
O ramo berbere do afro -asiático apresenta menos diferenciação interna do
que qualquer outro ramo da família, com exceção do egípcio. Sua principal
divisão parece estar entre as nguas de diversos grupos tuaregue do Saara e
o berbere propriamente dito, falado na África do Norte e na Mauritânia. É
provável que a língua extinta dos guanchos das Ilhas Canárias fosse aparentada
ao berbere. É necessário mencionar ainda a existência de inscrições em Líbio
antigo, que embora não sejam perfeitamente compreensíveis, representam
possivelmente uma forma primitiva do berbere.
Um segundo ramo do afro -asiático, o egípcio, está documentado, em seu
estágio mais primitivo, nas inscrões hieroglíficas, nos papiros hieráticos e,
mais recentemente, nos documentos em escrita demótica. Todas essas escritas
representam a mesma língua falada. No período cristão, essa língua continuou
a ser falada e desenvolveu extensa literatura escrita em um alfabeto adaptado
do grego. Nesta forma mais tardia, chamada copta, existiam alguns dialetos
literários, entre os quais o boáirico, que ainda sobrevive como língua litúrgica
da igreja copta. Após a conquista do Egito pelos árabes, a antiga língua egípcia
foi pouco a pouco perdendo terreno e se extinguiu enquanto ngua falada
provavelmente no século XVII.
27 No Simpósio sobre o povoamento do Egito antigo realizado no Cairo, os pesquisadores africanos
ressaltaram que a classicação do Professor GREENBERG havia negligenciado um dado fundamental:
o estabelecimento de regras fonéticas. A posição desses pesquisadores é também a do Professor Tstvan
Fodor. Estes mesmos pesquisadores levantaram argumentos para provar o parentesco linguístico genético
do egípcio e das línguas africanas modernas.
28 Cf. nota 21 acima.
29 FLEMING, H. C. 1969, p. 3 -27.
328
Metodologia e pré -história da África
O ramo semítico do afro -asiático apresenta muito mais diferenciação interna
do que o berbere e o egípcio. Admite -se geralmente que a principal divisão do
semítico seja a existente entre o semítico oriental e o semítico ocidental. O
primeiro é representado apenas pela língua acadiana de escrita cuneiforme,
muito extinta. Possuía dois dialetos regionais básicos, o do sul (babilônio) e
o do norte (assírio). Por sua vez, o semítico ocidental divide -se em semítico do
noroeste e semítico do sudoeste. O primeiro compreende o cananeu (hebraico,
moabita, fenício e, provavelmente, ugarítico) e o aramaico. Destas línguas
apenas sobrevivem o hebraico, ressuscitado como língua de Israel no decorrer do
século passado, e alguns dialetos do aramaico. As formas modernas do aramaico
representam os descendentes do aramaico ocidental, no Anti -Líbano da Síria, e
do aramaico oriental, principalmente no norte do Iraque.
O semítico do sudoeste também possui duas divisões, a do norte e a do
sul. O ramo do norte compreende a maior parte dos dialetos da península
árabe e seus descendentes modernos, que dominam uma vasta área a abranger
a África do Norte, o Oriente Médio e partes do Sudão (ou seja, o mundo árabe
propriamente dito). O ramo do sul compreende, por um lado, o árabe do sul, e
por outro, as línguas semíticas da Etiópia. O árabe do sul é conhecido em sua
forma primitiva através de inscrições mineias, sabeias e catabânicas e, em suas
formas contemporâneas, do mehri e do shahri, da Arábia do Sul, e do socotri,
língua da ilha de Socotra, no Oceano Índico.
As línguas semíticas etíopes dividem -se em dois grupos, norte (tigrina, tigre
e gueze ou etíope clássico) e sul (amárico, gurague, argoba, gafat e harari).
O quarto grupo de línguas afro -asiáticas, o cuxítico, compreende um grande
número de línguas que se repartem em cinco ramos bastante diferenciados:
setentrional, central, oriental, meridional e ocidental. O cuxítico setentrional é
formado essencialmente por uma única língua, o beja. As línguas do cuxítico
central são por vezes chamadas línguas agaw. É provável que tenham sido faladas
em uma área contínua, mas seus antigos falantes passaram a adotar, em grande
proporção, as línguas semíticas etíopes. Os falasha, ou judeus etíopes, falavam
antigamente uma língua agau. As línguas do cuxítico central compreendem
um grupo norte (bilim, khamir, qemant) e o awiya, no sul. O cuxítico oriental
compreende as duas línguas cuxíticas com o maior número de falantes, o somali
e o gala. As línguas do cuxítico oriental repartem -se nos seguintes grupos: l.
afar, saho; 2. somali, baiso, rendille, boni; 3. gala, conso, gidole, arbore, warazi,
tsamai, geleba, mogogodo; 4. sidamo, alaba, darassa, hadiya, kambatta, burdji.
O último destes grupos, ou sidamo -burdji, deve provavelmente ser considerado
como um único ramo em oposão aos outros três grupos. As nguas do
329
Classicação das línguas da África
cuxítico meridional são faladas na Tanzânia, abrangendo o burungi, o goroa, o
alawa, o ngomvia (asu), o sanye e o mbugu. Este grupo meridional encontra-
-se linguisticamente mais próximo do cuxítico oriental e pode ser classificado
simplesmente como um subgrupo deste. O mbugu, língua cuxítica meridional,
sofreu forte influência do bantu, tanto gramatical como lexical, de modo que
alguns pesquisadores a consideram uma língua mista.
As línguas do cuxítico ocidental são extremamente divergentes das outras
línguas tradicionalmente consideradas cuxíticas. O cuxítico poderia ser dividido
em pelo menos dois grupos, o ocidental e o restante. Como assinalamos
anteriormente, Fleming propôs que o cuxítico ocidental fosse considerado um
sexto ramo distinto do afro -asiático. As línguas que o compõem podem ser
divididas em dois grupos: o ari -banna (o termo “bako foi empregado em lugar
de “ari na literatura antiga) e as demais, que, por sua vez, podem ser agrupadas
da seguinte forma: 1. madji, nao, sheko; 2. djandjero; 3. kaffa, mocha, shinasha,
mao do sul; 4. gimira; 5. grupo ometo (“sidamo ocidental”), que engloba o chara,
o male, o basketo, o complexo welamo, o zaysse e o koyra -gidicho.
O último ramo do afro -asiático a ser considerado é o chádico. Compreende
o haussa, a ngua mais falada na África ocidental, e provavelmente outras cem
línguas, pelo menos, faladas por populações menos numerosas. De acordo com
Greenberg (1963), as nguas chádicas dividiam -se em nove subgrupos: 1. a) haussa,
gwandara, b) bede -ngizim, c) i. grupo do warjawa (bauchi do norte), ii. grupo do
barawa (bauchi do sul), d) i. grupo do bolewa, ii. grupo do angas, iii. grupo do ron;
2. grupo kotoko; 3. bata -margi; 4. a) grupo musgoi, b) grupo marakam; 5. gidder;
6. mandara -gamergu; 7. musgu; 8. grupo masa -bana; 9. chádico oriental: a) grupo
somrai, b) grupo gabere, c) grupo sokoro, d) modgel, e) tuburi, f) grupo mubi.
Newman e Ma sugeriram que, dentre as subfamílias acima, as de número
3 e 6 são particularmente próximas uma da outra, o mesmo ocorrendo com as
subfamílias 1 e 9. Para o primeiro desses pares, propõem o nome de biumandara
e para o segundo, de plateau -sahel.
30
Estes autores não propõem nenhuma
modificação no que concerne aos outros subgrupos.
Níger ‑Kordofaniano
Esta família possui dois ramos bastante desiguais em número de falantes e
em exteno geográfica. O primeiro, níger -congo, compreende grande parte da
30 NEWMAN, P. e MA, R. 1964, p. 218 -51.
330
Metodologia e pré -história da África
África ao sul do Saara, incluindo quase toda a África Ocidental, partes do Suo
central e oriental, sendo que seu sub -ramo bantu ocupa a maior parte da África
central, oriental e meridional. Outro ramo do níger -kordofaniano, o kordofaniano
propriamente dito, confina -se a uma zona limitada da região do Kordofan no Sudão.
A divisão fundamental do grupo níger -congo está entre as línguas mande e
o restante. O mande distingue -se pela ausência de muitos dos itens lexicais mais
comuns encontrados nas línguas do níger -congo e pela ausência de qualquer
traço preciso de classificação nominal, geralmente encontrados no kordofaniano
e no resto do níger -congo. Existem, por certo, muitas línguas distintas no níger-
-congo que perderam tal sistema. Devido a essa divergência, Mukarovsky sugeriu
que o mande fosse considerado um ramo do nilo -saariano, a outra grande família
de línguas negras, mas o célebre especialista em línguas mande, William E.
Welmers, não aceita essa proposição.
31
Hoje admite -se universalmente que a divisão do mande em mande -tan e
mande -fu, proposta por Delafosse
32
e baseada na palavra que designa o número
dez, é inteiramente desprovida de valor. As línguas mande podem ser classificadas
do seguinte modo:
Grupo noroeste: 1. subgrupo norte: susu -yalunka, soninke, kwela -numu, ligbi,
vai -kono, khassonke e maninka -bambara -diula; 2. subgrupo sudoeste: mande-
-bandi, loko, loma, kpelle.
Grupo sudeste: 1. subgrupo sul: mano, dan, tura, mwa, nwa, gan, guro; 2.
subgrupo oriental: samo, bisa, busa. Uma única língua, o sya (bobofing),
o se enquadra nesta lista. Ela é claramente mande, mas talvez deva ser
corisiderada como a primeira ramificação diferenciada desse grupo, de modo
que, geneticamente, representaria um dos dois grupos, sendo o outro mande
propriamente dito.
As outras línguas níger -congo são classificadas por Greenberg (1963) em
cinco ramos: 1. oeste -atlântico; 2. gur; 3. kwa; 4. benue -congo; 5. adamaua
oriental. Entretanto, os grupos 2, 3 e 4 são particularmente próximos e formam
uma espécie de núcleo no interior do qual o limite entre o benue -congo e o kwa,
em particular, não está bem definido
33
.
O termo línguas oeste -atlânticas foi introduzido por Westermann em
1928 e abrange sensivelmente as mesmas línguas que o senegalês -guíneense
de Delafosse e dos pesquisadores franceses que o sucederam. Essas línguas
31 MUKAROVSKY, H. G. 1966, p. 679 -88.
32 DELAFOSSE, M. 1901.
33 Sobre esta questão, ver J. H. GREENBERG. 1963 (c), p. 215 -17.
331
Classicação das línguas da África
constituem dois grupos claramente delimitados, um norte e um sul. Este
fato, associado à diversidade interna, principalmente do grupo norte, levou
Dalby a sugerir que se abandonasse o conceito de oeste -atlântico e que se
considerasse independente o subgrupo sul, constituído pelo grupo sudoeste-
-atlântico de Greenberg, com exceção do limba. Para este grupo, ele propõe o
termo “mel”
34
. No entanto, num estudo mais recente, David Sapir, apoiado em
evidências glotocronológicas, reafirma a unidade básica do oeste -atlântico, tal
como foi concebido tradicionalmente, e inclui o limba no ramo sul
35
. Como
principal inovação, esse estudioso propõe que se classifique o bidjago, língua
das ilhas Bidjago, em um ramo separado, da classe dos ramos norte e sul, o que
corresponde à minha impressão sobre a divergência desta língua. Convém notar
que o fulfulde (fula ou fulea), considerado como língua camítica por Meinhof e
objeto de muita controvérsia, se inclui agora, de comum acordo, no grupo oeste-
-atlântico. A classificação do oeste -atlântico é, portanto, a seguinte:
Ramo norte: 1. a) fula, seereer, b) wolof; 2. grupo noon; 3. dyola, mandjaco,
balante; 4. a) tenda, basari, bedik, konyagi, b) biafada, pajade, c) kobiana, banhum,
d) nalu.
Ramo sul: 1. sua (kunante); 2. a) temne -baga, b) sherbro -krim, kisi, c) gola;
3. limba.
Bidjago.
Outro grupo importante dentro do níger -congo é o gur, também chamado
voltense, sobretudo na literatura francesa. As sugestões mais recentes para a
subclassificação do grupo gur o as de Bendor -Samuel, de quem seguimos aqui
as linhas básicas. Convém observar que a maior parte das nguas consideradas
gur pertencem a um subgrupo bastante grande que Bendor -Samuel denomina
gur central
36
; esse subgrupo corresponde ao grupo mossi -grunshi das pesquisas
anteriores. O gur central pode ser dividido em três subgrupos: 1. more -gurma; 2.
grupo grusi; 3. tamari. Os outros subgrupos do guro: 1. bargu (bariba); 2. lobiri;
3. bwamu; 4. kulango; 5. kirma -tyurama; 6. win; 7. grupo senufo; 8. seme; 9. dogon.
Ainda que se admita a existência de um grupo kwa, distinto do benue -congo
acima mencionado, existem dois subgrupos, o kru no extremo oeste e o ijo no
extremo leste cuja pertinência ao kwa pode ser considerada duvidosa. Feitas
34 DALBY, D. A. 1965, p. 1 -17.
35 Ver SAPIR, D., p. 113 -40, na coleção dirigida por SEBEOK. SAPIR, no entanto, faz algumas ressalvas
a respeito das conclusões citadas no texto.
36 Para detalhes sobre os subgrupos, estou seguindo J. T. BENDOR -SAMUEL. In: T. A. SEBEOK, op.
cit., p. 141 -78.
332
Metodologia e pré -história da África
essas ressalvas, os principais subgrupos do kwa são os seguintes, relacionados,
tanto quanto possível, segundo a direção oeste -leste: 1. línguas kru; 2. kwa
ocidental, que compreende o ew -fõ, o akan -guang (atualmente chamado, por
vezes, de volta -camoe), o -adangme e as línguas residuais do Toga; 3. ioruba,
igala; 4. grupo nupe; 5. grupo edo; 6. grupo idoma; 7. ibo; 8. ijo. O benue-
-congo é essencialmente o mesmo subgrupo do níger -congo que Westermann
denominou benue -cross ou semibantu, com a inclusão do bantu no interior da
subdivisão bantóide. Existem quatro divisões fundamentais dentro do benue-
-congo: 1. línguas do planalto; 2. jukunóide; 3. rio Cross, cuja principal língua
é a da comunidade efik -ibibio; 4. bantóide, que compreende o bantu, o tiv e um
grande número de línguas menores faladas na área do curso dio do Benue.
Certas línguas da Nigéria, antes consideradas semibantu, no sentido amplo,
são em geral classificadas como bantu atualmente; é o caso dos grupos ekoi e
jarawa. A principal divisão no interior do próprio bantu pode situar -se entre
essas línguas e o bantu no sentido tradicional. O bantu, neste último sentido,
parece dividir -se em bantu oriental e bantu ocidental. Para uma subdivisão mais
detalhada, emprega -se geralmente a divisão de Guthrie em zonas designadas por
letras, modificadas de maneiras diversas por vários especialistas
37
.
A classificação do grupo bantu, tomado em seu conjunto, como subgrupo
do benue -congo, ele mesmo um ramo da grande família níger -congo, constituiu
um dos aspectos mais controvertidos da classificação de Greenberg. Guthrie,
em particular, adotou a tese de que o bantu é geneticamente independente, e as
inúmeras semelhanças encontradas entre o bantu e outras línguas do níger -congo
resultam de influências bantu sobre um grupo de línguas fundamentalmente
diferentes. Dessa hipótese, deduziu que o ponto de origem do bantu é o núcleo”
do Shaba meridional, ao passo que Greenberg o situa no vale médio do Benue,
na Nigéria, porque as línguas de parentesco mais estreito do subgrupo bantóide
do benue -congo são faladas nessa região
38
.
O último grupo do níger -congo é o ramo adamaua oriental. O grupo adamaua
compreende um grande mero de comunidades linguísticas relativamente
pequenas, dentre as quais pode -se citar como exemplos o tchamba e o mbum.
O ramo oriental compreende algumas línguas de maior importância como por
exemplo o gbeya, na República Centro -Africana, e o zande
39
.
37 A respeito desta classicação, ver M. GUTHRIE, 1948.
38 Sobre a controvérsia a respeito do bantu, ver M. GUTHRIE, 1962, p. 273 -82; R. OLIVE R, 1966, p.
361 -76 e J. H. GREENBERG, 1972, p. 189 -216.
39 Uma lista detalhada das línguas adamaua oriental encontra -se em J. H. GREENBERG, 1966, p. 9.
333
Classicação das línguas da África
Contrariamente à vasta família níger -congo, que acabamos de examinar,
o outro ramo do níger -kordofaniano, ou seja, as línguas kordofanianas
propriamente ditas, não compreende nenhuma língua de importância e partilha
as colinas do Kordofan com várias línguas da família nilo -saariana. Pode ser
dividido em cinco subgrupos bastante diferenciados, dos quais o grupo tumtum
é o que apresenta maior grau de diverncia: 1. koalib; 2. tegali; 3. talodi; 4. katla;
5. tumtum (também chamado kadugli -krongo)
40
.
Família Nilo ‑Saariana
A outra grande família de línguas negro -africanas é a nilo -saariana. De modo geral,
é falada a norte e a leste das nguas níger -congo e predomina no vale superior do
Nilo e nas porções orientais do Saara e do Suo. Entretanto, possui um alongamento
ocidental no Songhai, no baixo vale do Níger. Compreende um ramo muito extenso,
o chari -nilo, que engloba a maior parte das nguas da falia. As ramificações do
nilo -saariano o as seguintes (indo de oeste para leste na medida do posvel): 1.
songhai; 2. saariano: a) kanuri -kanembu, b) teda -daza, c) zaghawa, berti; 3. maban;
4. furian; 5. chari -nilo (para maiores detalhes, ver os pagrafos seguintes); 6. coman
(koma, ganza, uduk, gule, gumuz e mao).
As línguas chari -nilo compreendem dois grupos principais, o sudas oriental e
o sudas central, bem como duasnguas isoladas, o berta e o kunama.
O sudanês oriental é o grupo mais importante do nilo -saariano. Contém dez
subgrupos: 1. bio: a) bio do Nilo, b) bio do Kordofan, c) midob, d) birked;
2. grupos murle -didinga; 3. barea; 4. ingassana (tabi); 5. nyima -afitti; 6. temein,
tois -um -danab; 7. grupo merarit; 8. dagu (grupo dajo); 9. nitico, dividido em: a)
nilótico ocidental: burum, grupo luo e dinka -nuer; nilótico oriental: (i) grupo bari,
(ii) karamojong, teso, turkana, masai; nitico meridional: nandi, suk, tatoga; 10.
nyangiya, teuso (ik)
A classificação de dois subgrupos do nilótico, o oriental e o meridional, foi
motivo de calorosas controvérsias. Meinhof, classificando o masai entre as línguas
camíticas, tinha, ao que parece, a intenção de incluir outras línguas desses dois
grupos, apesar de sua estreita semelhança com as línguas aqui classificadas no
grupo nilótico ocidental, como o chilluk, o luo e o dinka. A separação de línguas
o semelhantes como o chilluk e o masai, por exemplo, deve -se principalmente ao
40 Informações mais detalhadas sobre as línguas kordofanianas são encontradas em J. H. GREENBERG,
1966, p. 149.
334
Metodologia e pré -história da África
fato de esta última possuir distinção de gênero. Westermann assumiu uma posição
de compromisso ao chamar de nilo -camíticas as línguas dos nilotas orientais e
meridionais, baseado provavelmente na hipótese de que eram línguas mistas. Ele
conservou apenas o termo nilótico ocidental. Tucker foi inicialmente do mesmo
parecer, mas acabou por reaproximar essas línguas do nilótico, denominando-
-as paranilóticas
41
. ainda um outro caso recente de divergência de opiniões:
Hohenberger compara o masai ao semítico enquanto Huntingford procura
aparentemente fazer reviver a velha suposição de Meinhof de que essas nguas
o camíticas
42
.
O outro grupo importante do chari -nilo é o sudanês central. Pode -se dividi-
-lo em seis subgrupos, a saber: l. bongo -bagirmi; 2. kreish; 3. moru -madi; 4.
mangbetu; 5. mangbutu -efe; 6. lendu.
Família Khoisan
Todas as línguas khoisan possuem cliques entre as consoantes e a maioria de seus
falantes pertence ao tipo san, fisicamente característico.
A maior parte das línguas khoisan é falada na África do Sul. Entretanto, existem
dois pequenos grupos de populações, os Hatsa e os Sandawe, situados muito mais ao
norte, na Tanzânia, cujas nguas diferem acentuadamente tanto entre si quanto das
línguas do grupo da África do Sul. Desse modo, a falia divide -se em três ramos:
1. hatsa; 2. sandawe; 3. khoisan sul -africano. O khoisan sul -africano compreende três
grupos de línguas: 1. grupo norte, que engloba as nguas san do norte, dos Auen e dos
Kung; 2. khoisan central, dividido em dois grupos: a) kiechware, b) naron, khoi -khoi;
3. san do sul, grupo que apresenta a maior diferenciação interna, com um mero
considerável de línguas san distintas
43
.
Como vimos nos parágrafos que tratam da história da classificão, alguns
linguistas – Bleek, Lepsius e mais tarde Meinhof – separaram o khoi -khoi do
san e o incluíram no camítico. Uma forma modificada dessa teoria é atualmente
sustentada por E. O. J. Westphal
44
, que divide o grupo aqui denominado khoisan
em duas falias independentes. Uma delas, sandawe -khoi -khoi, compreende o
41 Ver TUCKER, A. N. e BRYAN, M. A. 1966.
42 Sobre estes desenvolvimentos, ver G. W. B. HUNTlNGFORD, 1956, p. 200 -22; J. HOHENBERGER,
1956, p. 281 -87 e J. H. GREENBERG, 1957, p. 364 -77.
43 Ver a opinião contrária do Professor D. OLDEROGGE, capítulo 11.
44 WESTPHAL, E. O. J. 1966, p. 158 -73.
335
Classicação das línguas da África
sandawe e as nguas do khoisan central. Todas estas nguas, exceto o kiechware,
fazem distinção de gênero. Nada se diz a respeito de um possível parentesco com o
camito -semítico. A outra falia, handza -san, compreende o hatsa e as nguas san
do norte e do sul. Na opino de Westphal, porém, o parentesco entre o hatsa e as
línguas san não está completamente definido.
A ngua malgaxe, que veio a dominar as línguas de origem africana faladas em
algumas reges da ilha de Madagáscar, o se inclui na classificação acima. Jamais se
discutiu sua pertincia à família austronesiana (malaio -polinésia), Seu parente mais
próximo dentro da falia é provavelmente a ngua maanyan de Boro
45
. Outra
língua que não se menciona na classificão é o mertico
46
,ngua morta escrita em
um alfabeto que adota duas formas, a hierogfica e a cursiva. Extinguiu -se por volta
do culo IV da nossa era e é conhecida apenas atras de vestígios arqueogicos
encontrados em uma área que vai aproximadamente de Assuã, no sul do Egito,
a Cartum, no Sudão. Apesar de se ter determinado o valor fonético das letras, o
conhecimento do xico e da gramática é limitado e impreciso devido à ausência
de inscrições bingues. Segundo Griffith, autor da primeira teoria a esse respeito,
o mertico corresponderia ao bio. A hitese camítica (Meinhof, Zyhlarz) foi
refutada em um importante artigo de Hintze. Mais recentemente, a hitese núbia
foi retomada de forma desenvolvida, por Trigger, que sugere pertencer ela ao sub-
-ramo sudanês oriental do nilo -saariano, o qual, na classificação de Greenberg,
tamm compreende obio
47
.
Finalmente, faz -se necessário mencionar as línguas europeias e indianas, de
importação recente, que, em alguns casos, são faladas atualmente por populações
nascidas na África. O inglês, além de falado na África do Sul e no Zimbabwe,
é a língua dos descendentes de negros americanos que fundaram a Libéria; é
falado também, na forma crioula (krio), em Freetown, Serra Leoa. O africâner,
parente próximo do neerlandês, é falado na África do Sul. Existe na África do
Norte uma importante população de línguas francesa, espanhola e italiana. Uma
forma crioula do português constitui a primeira língua de alguns milhares de
falantes da Guiné e de outras regiões. Finalmente, algumas línguas originárias
da Índia são utilizadas na África oriental. Compreendem as línguas arianas e
dravidianas, sendo a mais importante o gujarati.
45 As provas que sustentam esta hipótese são apresentadas em O. C. DAHL, 1951.
46 Cabe lembrar que no importante simpósio realizado no Cairo em janeiro -fevereiro de 1974 relatou -se
em que estágio se encontram as pesquisas referentes à decifração da escrita meroítica (ver volume II).
47 Sobre esta questão, ver F. HINTZE, 1955, p. 355 -72 e B. G. TRIGGER, KUSH, v. 12, p. 188 -94.
336
Metodologia e pré -história da África
Diferentes Etapas da Classicação de Greenberg
I. (1949 ‑1950)
1. Níger -Congo
2. Songhai
3. Macro -sudanês (I.5 sudas
oriental; I.3 sudas central;
I.14 “berta”; I.15 kunama)
4. Saariano central
5. Afro -asiático
6. “Clique
7. Maban (I.8 Maban; I.9 Mimi of
Nachtigal)
8.Fur
9. Temainiano
10. Kordofaniano
11.Koaman
12.Nyangiya
1. Nígero -kordofaniano (II.1 Níger -Congo; II.10 Kordofaniano)
2. Afro -asiático
3. Khoisan (cf. II.6 Clique)
4. Nilo -Saariano (II.2 Songhai; II.4 Saariano (cf. Saariano central); II.7
Maban; II.8 Fur; II.11 Koman; Chari -Nilo, incluindo II.3 Macro-
-sudanês”, II.9 Temainiano, II.12 Nyangiya)
Referências
I. Southwestern Journal of Anthropology, 1949, 1950.
II. Southwestern Journal of Anthropology, 1954.
III. Languages of Africa, 1963.
III. (1963)
1. Níger -Congo
2. Shongai
3. Sudanês central
4. Saariano central
5. Sudanês oriental
6. Afro -asiático (camito -semítico)
7. “Clique
8.Maba
9.Mimi de Nachtigal”
10.Fur
11. Temainiano
12. Kordofaniano
13.Koman
14.Berta”
15.Kunama
16.Nyangiya
II. (1954)
C A P Í T U L O 1 2
337
Mapa linguístico da África
Embora tenha uma densidade populacional inferior à do mundo tomado
como um todo
1
, a África possui um grau de complexidade linguística mais
elevado do que qualquer outro continente
2
. Isso explica por que não existe, até o
momento, um mapeamento linguístico detalhado do continente africano, apesar
de tão necessário aos historiadores e outros estudiosos. O mapa etnodemográfico
da África estabelecido pela União Soviética é provavelmente o que mais se
aproxima da precisão até esta data
3
, embora peque por falta de clareza: torna-
-se confuso no tocante a distinções linguísticas e étnicas, e sobrecarrega -se de
dados demográficos e “etnolinguísticos”; além disso, todos os nomes africanos
são transcritos em alfabeto cirílico. Outros mapas do continente, que indicam
mais os grupos étnicos que os linguísticos, o, de modo geral, por demais
simplificados para apresentarem algum valor científico
4
.
1 Ocupando aproximadamente 20% da superfície terrestre total do globo, a África representa pouco menos
de 10% da população mundial.
2 A Nova Guiné (pouco mais de um quarto da superfície total da África) possui um grau de complexidade
linguística igual ou até mesmo superior ao do continente africano, mas em nenhuma outra parte
do mundo existe uma zona de “fragmentação” linguística tão importante, por sua extensão geográca,
quanto à região da África situada ao sul do Saara.
3 NARODNI AFRIKI, Moscou, 1960. V. tb. KARTA NARODOV AFRIKI, Moscou, 1974.
4 Por exemplo,Tribal map of Africa”, in: G. P. MURDOCK, 1959, ou “Map of the tribes and nations of
modern Africa”, de Roy LEWIS e Yvonne FOY publicados pelo TIMES no início da década de 1970.
PARTE II
Mapa linguístico da África
D. Dalby
338
Metodologia e pré -história da África
 . Mapa diagramático das línguas da África.
Não se pode, é claro, evitar um certo excesso de simplificação ao se tentar
obter uma imagem de conjunto da distribuição das línguas no continente
africano e das relações existentes entre elas. Para que um mapa tivesse precisão
339
Mapa linguístico da África
absoluta, seria necesrio que cada habitante do continente africano fosse
representado por um ponto luminoso isolado; esse ponto se moveria, indicando
o deslocamento de cada indivíduo no território e deveria assumir um dentre dois
mil matizes, conforme a língua falada pela pessoa num determinado momento.
Dada a impossibilidade material de estabelecer um tal mapa, devemos nos
contentar com um documento que, sem atingir a perfeição, é, esperamos, mais
detalhado e mais exato que os atualmente disponíveis.
Há dez anos desenvolve -se um trabalho no sentido de se elaborar um mapa
da África especificamente linguístico (em oposição ao étnico). O presente artigo
volta sua atenção para os aspectos desse trabalho que são relevantes para a
história da África
5
.
o obstante sua aparência técnica, o estudo comparativo das línguas africanas
tem sido realizado, frequentemente, de maneira demasiado simplista, existe uma
tendência a admitir que o complexo mapa linguístico da África de hoje evoluiu
de um antigo mapa muito mais simples, e que as relações linguísticas podem
ser expressas sob a forma de “árvores genealógicas” que se subdividem segundo
uma hierarquia descendente de níveis (“famílias”, “subfamílias”, ramos”, etc.).
A crença de que as muitas centenas de línguas modernas da África podiam
remontar, em ordem ascendente regular, a algumas línguas -mãe levou os
especialistas em linguística comparada a examinarem todas as relações possíveis
das línguas africanas, inclusive as mais distantes, antes de estabelecerem suas
relações imediatas sobre uma base lida. Levou -os ainda a considerarem
essencialmente o processo histórico de divergência entre as línguas com uma
suposta origem comum, excluindo o processo de convergência das línguas não-
-aparentadas ou de reconverncia das línguas aparentadas. As lastiveis
consequências de tal abordagem agravaram -se ainda mais pelo fato de que as
classificações pseudo -históricas obtidas por esses meios serviram igualmente de
quadro de referência (não apenas para as línguas africanas, mas também para os
povos africanos) e, por conseguinte, influenciaram indevidamente o pensamento
dos historiadores da África.
5 LANGUAGE MAP OF AFRICA AND THE ADJACENT ISLANDS, em curso de elaboração
pela School of Oriental and African Studies (SOAS) e pelo International African Institute (IAI). O
mapa tem por objetivo mostrar a distribuição atual e as relações linguísticas das línguas “maternas” ou
primeiras”, na escala de 1:5000000; neste mapa guram igualmente as regiões de maior complexidade
linguística na escala de 1:2500000 e 1:250000. O IAI procede atualmente (1977) à publicação de uma
edição provisória, contendo uma lista sistemática das línguas africanas (em vista de uma edição denitiva,
a ser publicada ulteriormente pela Longmans).
340
Metodologia e pré -história da África
É conveniente, pois, antes de mais nada, procurar esclarecer a confusão do
mapa linguístico da África, reduzindo -o a seus componentes mais simples, a
saber: de um lado, grupos linguísticos que mantenham entre si uma relação
estreita e harmônica e que possuam uma unidade tanto externa quanto interna
6
(unidades complexas); de outro, línguas distintas que não participem de nenhum
desses grupos (unidades simples). Tal procedimento revela uma importante
característica do mapa linguístico que permanecia encoberta pelas classificações
anteriores: de um total de cerca de 120 unidades complexas e simples de
toda a África, mais de 100 confinam -se a uma única zona, que se estende do
litoral senegalês, a oeste, até os planaltos da Etiópia e da África oriental, a
leste
7
. Considerando -se todas as diferentes nguas do continente africano
8
,
aproximadamente dois terços são faladas nesta zona, com cerca de 5600 km
de extensão e apenas 1100 km, em média, de largura. Essa zona estende -se ao
longo do Saara, podendo ser denominada, por comodidade, zona de fragmentação
subsaariana devido à sua situação geográfica e complexidade linguística. Seus
limites podem ser determinados pela geografia física e linguística: grosso modo,
limita -se ao norte com o Saara, a leste com os contrafortes montanhosos,
ao sul com a orla da floresta e a oeste com o litoral atlântico. Do ponto de
vista da geografia física, as áreas de fragmentação máxima situam -se ao longo
das margens norte -oriental, central e ocidental da zona de fragmentação, na
extremidade meridional do chifre da África e num bloco que cobre uma grande
parte da África ocidental. Do ponto de vista das relações estruturais e lexicais
de conjunto, a área mais fragmentada situa -se provavelmente no interior e ao
redor da extremidade do chifre da África, onde as línguas que representam
6 Se se estabelece uma relação entre as línguas A”, “B” e e”, pode -se considerar que possuem uma “unidade
interna”. Esse agrupamento, no entanto, não tem sentido, se as línguas em questão não possuírem
também uma “unidade externa”, isto é, se a relação entre “A e “B” entre “A e “e” ou entre “e” e “B” é em
cada um desses casos mais íntima que entre’ uma dessas três línguas e qualquer outra que não faça parte
desse grupo.
7 Entre as restantes, não menos que nove unidades compreendem as línguas faladas nos limites da zona
de fragmentação (excluindo -se apenas unidades “não -bantu” do sul da Africa e de Madagáscar).
8 No caso de muitos grupos de formas de linguagem mais ou menos estreitamente aparentados, se
podem estabelecer distinções arbitrárias entre as línguas” e os “dialetos” das “línguas”. Se se considera
os grupos de formas de linguagem mais ou menos inteligíveis como línguas” distintas, o total na África
será da ordem de 1250. Se se considera cada uma das formas de linguagem como uma língua em si, onde
aparece como tal para seus falantes e onde possui nome distinto, o total, então, aproxima -se de 2050. Se
este último método fosse aplicado à Europa, deveria -se considerar o sueco, o norueguês e o dinamarquês
como línguas distintas, mas, segundo o outro método, seriam consideradas como uma única língua. A
m de se obter uma “ordem de grandeza” para o número de línguas faladas na África, propõe -se que seja
tirada a média destas duas avaliações, isto é, aproximadamente 1650 línguas, das quais 1100 (calculadas
pelo mesmo processo) são faladas no interior da zona de fragmentação.
341
Mapa linguístico da África
as quatro “famílias africanas postuladas por Greenberg são faladas em um
raio que não ultrapassa 40 km. Nesse caso, e no caso das colinas do Togo, do
planalto de Jos, dos planaltos de Camarões, dos montes Nuba e dos planaltos
da Etiópia ocidental, parece existir uma correlação entre os países montanhosos
e a intensa fragmentação linguística
9
. Deve -se observar ainda que as relações
internas de certas unidades complexas, representadas por línguas pertencentes
ou não à zona de fragmentação, tornam -se cada vez menos nítidas nos pontos
de interpenetração da zona de fragmentação
10
.
A importância lingstica e histórica da zona de fragmentão ficou
obscurecida pela sobreposição de uma rede de “famílias” e de subfamílias” de
línguas postuladas por linguistas europeus e americanos. Dentre elas, as duas
famílias mais extensas ultrapassam em interesse e validade as outras duas grandes
“famílias” da classificação de Greenberg, ou até mesmo as várias subfamílias”
em que foram tradicionalmente “divididas”. Uma vez que a palavra “família
implica uma ordem de descendência de natureza humana e biológica, que não
convém ao fenômeno da linguagem, poder -se -ia utilizar o termo região de
maior afinidade” para designar adequadamente cada uma dessas duas famílias”,
notadamente por ocuparem áreas mais ou menos contíguas do continente
africano. A primeira dessas áreas, a “região setentrional de maior afinidade”, é
tradicionalmente conhecida como “camito -setica” e, mais recentemente,
como afro -asiática (Greenberg) ou eritreia (Tucker). A segunda, ou “região
meridional de maior afinidade”, foi recentemente denominada de níger -congo”
e de “congo -kordofaniano (Greenberg) ou de nigrítica” (Murdock)
11
. Não
controvérsia sobre a validade global dessas duas regiões de maior afinidade,
evidentes para os linguistas europeus desde o século XVII
12
e, sem dúvida,
muito mais tempo, para os observadores africanos. A relativa importância dessas
duas regiões de maior afinidade se expressa pelo fato de compreenderem mais
9 Como ponto de comparação interessante, cabe notar que existe uma “zona de fragmentação” análoga
para as línguas indígenas da América do Norte. Essa zona, essencialmente montanhosa, tem mais de
3000 km de comprimento e aproximadamente 300 km de largura; estende -se paralelamente à costa do
Pacíco, do sul do Alasca até a fronteira mexicana, e inclui uma área de fragmentação máxima ao norte
da Califórnia (onde representantes de seis dentre oito das principais famílias postuladas para as línguas
indígenas norte -americanas situam -se num raio de cerca de 160 km).
10 A saber, línguas semíticas, “cuxítico do leste e bantu (incluindo -se as línguas “bantoides”).
11 A família “congo -kordofaniana” de GREENBERG compreende sua família “níger -congo” mais um
pequeno grupo de línguas com classes, de parentesco mais distante, no Kordofan. “Nigrítico” é um termo
de classicação mais antigo retomado em 1959 por MURDOCK.
12 Ver o capítulo de GREENBERG, neste volume. GREENBERG também ressalta o fato de que a relação
entre o malgaxe e o malaio já fora observada, da mesma maneira, no século XVII.
342
Metodologia e pré -história da África
de 80% das línguas faladas na África, sendo que a área meridional de maior
afinidade abrange aproximadamente 66% das diferentes línguas do continente.
Segundo a classificação tradicionalista empregada no atual mapa linguístico, as
línguas da região setentrional de maior afinidade dividem -se em um total de 17
unidades complexas e simples (12 das quais situam -se integralmente na zona
de fragmentação) e as línguas da região meridional de maior afinidade, em um
total de 58 unidades complexas e simples (57 das quais situam -se integralmente
na zona de fragmentação)
13
.
uma razão importante para não se estabelecerem níveis intermediários
nas relações entre as zonas fundamentais de maior afinidade a nível continental
e as unidades simples ou complexas a nível relativamente local. Por uma razão
ainda não determinada, esses níveis intermedrios de relação lingstica
são muito mais obscuros e difíceis de definir do que os níveis fundamentais
e imediatos. Assim é que a unidade da família oeste -atlântica”, kwa”, “gur”
ou benue -congo”, no interior da região meridional de maior afinidade, ou a
unidade da família “cuxítica ou “chádica”, no quadro da região setentrional de
maior afinidade nunca foram demonstradas de maneira cabal. Embora se tenha
apontado, anos atrás, esta importante falha da classificação tradicional europeia
e americana das línguas africanas,
14
esses níveis intermediários de classificação
continuam ocupando lugar de destaque na literatura especializada. A sustentação
dessas divisões arbitrárias impostas ao mapa linguístico da África podem, de
certo modo, ser comparadas à história das divisões coloniais arbitrárias impostas
ao mapa político do continente.
Greenberg prestou um grande serviço à linguística africana chamando a
atenção para o uso arbitrário do termo camítico” como nível intermediário
de classificação
15
, mas, infelizmente, é o responsável pela perpetuação do uso
arbitrário de muitos outros. Vários desses níveis
16
, haviam sido questionados
pelos linguistas, mas o Professor Stewart publicou recentemente uma refutação
ainda mais clara do grupo benue -congo”, a maior das “subfalias da
classificação postulada por Greenberg:
13 Dentro da região meridional de maior anidade, a única unidade complexa situada (em grande parte)
fora da zona de fragmentação é o bantu. Por outro lado, esta unidade complexa compreende quase tantas
línguas (cerca de 500) quanto o total das outras 57 unidades dessa região de maior anidade.
14 Ver D. DALBY, 1970, p. 147 -71 (em particular, 157 -61).
15 Ver o artigo de J. GREENBERG, neste volume.
16 Ver D. DALBY, op. cit., p. 160.
343
Mapa linguístico da África
“Um resultado importante de todo este (recente) trabalho sobre as línguas do grupo
‘benue -congo foi colocar em dúvida a validade deste grupo enquanto unidade genética,
Primeiramente, admitira -se de modo incontestável que Greenberg estava com a
razão ao afirmar que muitas inovações comuns poderiam ter valor de prova, embora
na realidade mencionasse apenas uma: a palavra que significa ‘criança’. Williamson
relata, entretanto, que quando se levam em consideração correspondências fonéticas
regulares, observa -se que tal particularidade não se limita às línguas benue -congo
e, assim, não constitui prova convincente; acrescenta que, em todo o volume I de
Benue ‑Congo Comparative Wordlist não existe um único exemplo que constitua uma
prova convincente...”
17
.
Quando Stewart nos aponta as dúvidas antigas acerca da unidade externa
do grupo benue -congo, não se pode deixar de imaginar por que os especialistas
da linguística comparada relutaram tanto em abandoná -lo em seus sistemas de
classificação. Infelizmente, parece ter -se perdido toda a lição prática do benue-
-congo e ao invés de abandonar este e outros níveis não comprovados de
classificação intermediária Stewart prefere perpetuar o esquema de Greenberg,
amalgamando “benue -congo com kwa e gur” (estes, dois conceitos igualmente
arbitrários) para formar uma outra subdivisão, também arbitrária, do níger-
-congo”, conhecido agora como volta -congo
18
”. Sem dúvida, teremos de esperar
pelo resultado de outros trabalhos de linguística comparada antes que o “volta-
-congo de Stewart se amplie ainda mais, de modo a incluir todo o “níger -congo
ou a região setentrional de maior afinidade, único nível fundamental de unidade
externa e interna que permanece claro e inconteste.
Os historiadores deveriam notar que a “grande aceitação da classificação
standard de Greenberg repousa principalmente, com respeito ao níger -congo,
em sua própria aceitação dos Gruppen de Westermann ou subfamílias” das
línguas da África ocidental. Como foi ressaltado, Westermann o estabeleceu
a unidade externa de seus “Gruppen
19
, enquanto sua unidade interna demonstra
apenas pertencerem as línguas que os constituem à região setentrional de maior
afinidade.
17 J. M. STEWART, 1976, p. 6.
18 Ironicamente, constata -se que o mande é a única “subfamília intermediária da família “níger -congo” de
Greenberg que se apresenta clara e incontestável. A nitidez dessa divisão reete o fato de ser ela a única
de suas “subfamílias” putativas cuja pertinência fundamental à família “níger -congo” não pode ser posta
em dúvida.
19 D. DALBY, op. cit.
344
Metodologia e pré -história da África
Embora os historiadores não devam aceitar sem reservas as classificações
existentes das nguas africanas, não seria demais ressaltar a importância do
mapa linguístico da África enquanto fonte de informações sobre a pré -história
do continente. Obras de maior profundidade ainda estão por vir e aguarda-
-se uma nova geração de historiadores das línguas que sejam, eles próprios,
falantes de línguas africanas. Estarão estes habilitados a consolidar os trabalhos
preliminares imprescindíveis à realização de uma comparação exata e minuciosa
de línguas próximas e estreitamente aparentadas. A partir daí, então, será possível
voltar -se para uma interpretação mais estratégica do mapa linguístico da África
como um todo. Embora possua um grau de complexidade linguística maior do
que qualquer outro continente, a África se notabiliza pelo fato de que dois terços
de suas línguas pertencem a uma só área de maior afinidade e de que esses dois
terços, compostos de modos diferentes, confinam -se à zona de fragmentação
subsaariana. A África de língua bantu é a única região do continente a ter
constituído objeto de discussões importantes a respeito da interpretação pré-
-histórica de dados linguísticos. A chave para a interpretação p-histórica
desses dados, em escala continental, será uma melhor compreensão, de nossa
parte, das relações linguísticas no interior da zona de fragmentação. Entretanto,
a extensão da tarefa não poderia ser subestimada.
C A P Í T U L O 1 3
345
Geograa histórica: aspectos físicos
É dicil, sem dúvida, separar a história africana de seu cenário geográfico. No
entanto, seria inútil apoiar -se em reflexões deterministas para compreender, em
toda a sua complexidade, as relações estabelecidas entre as sociedades africanas
e seu respectivo meio ambiente. Cada comunidade, de fato, reagiu de maneira
peculiar em relação ao meio. Assim, as tentativas mais ou menos bem sucedidas de
ordenação do espaço testemunham, aqui e ali, o grau de organização dos homens
e a eficácia de suas técnicas de exploração dos recursos locais. Para uma África em
mudança, porém, é importante examinar determinadas particularidades geogficas
capazes de elucidar os principais acontecimentos que marcaram a longa perspectiva
geo -histórica do continente. Com respeito a este ponto, as características da
arquitetura da África como um todo, sua extraordinária zonalidade climática
e a originalidade de seus meios naturais constituem heranças que impediram
ou facilitaram a atividade humana, sem jamais determinar seu desenvolvimento.
Decididamente, nada é simples nas relações íntimas entre a natureza africana e
os homens que a ocupam, exploram, ordenam e transformam de acordo com sua
organização política, recursos técnicos e interesses econômicos.
Características da arquitetura do continente africano
Admite -se, em geral, que a África pertence a um continente muito antigo
que, antes de se desunir e se deslocar vagarosamente, compreendia a América,
Geograa histórica:
aspectos físicos
S. Diarra
346
Metodologia e pré -história da África
o sul da Ásia e a Austrália. Este continente, Gonduana, seria a manifestação
dos primeiros esforços orogênicos da crosta terrestre que deram origem a
grandes cordilheiras, orientadas geralmente na direção sudoeste -nordeste. Estes
dobramentos, fortemente desgastados por longa denudação, foram reduzidos a
peneplanos, cujos maiores exemplares são encontrados na África.
Originalidade geológica da África
A originalidade do continente africano é atestada, primeiramente, pela
extensão excepcional do embasamento pré -cambriano, que ocupa a maior
parte da superfície. Ora na forma de afloramentos, que cobrem um terço do
continente, ora coberto por uma camada de espessura variável de sedimentos
ou de material vulcânico, este embasamento compreende rochas metamórficas
(xisto, quartzito, gnaisse) e rochas cristalinas (granito) muito antigas e de grande
rigidez. Com exceção do sistema alpino do Magreb e das dobras hercinianas
do Cabo e do sul do Atlas, o conjunto da África e Madagáscar formam
uma plataforma antiga e estável, constituída por um escudo que não sofreu
dobramentos apreciáveis desde o Pré -Cambriano. Sobre o pedestal, arrasado
por uma longa erosão, depositaram -se em discordância formações sedimentares
dispostas em camadas suborizontais de idades variadas, desde o começo do
período Primário até o Quaternário. Essas séries sedimentares, compostas de
material grosseiro e geralmente arenoso, são de natureza mais continental que
marinha, pois as transgressões marinhas só recobriram o pedestal temporária e
parcialmente. Na África ocidental os arenitos primários formam uma auréola
no interior dos afloramentos da plataforma pré -cambriana. Na África austral,
grandes depósitos permotriássicos continentais constituem o sistema do Karroo,
no qual as séries de arenitos atingem 7000 metros de espessura. Ao norte do
continente, particularmente no Saara oriental e na Núbia, os arenitos jurássicos
e cretáceos são “continentais intercalados”. No período Secundário, porém, as
séries marinhas acumularam -se do Jurássico ao Eoceno nas regiões costeiras e
nas bacias interiores. Podem ser observadas nos golfos do Senegal -Mauritânia,
Benin, Gabão e Angola, na bacia do Chade e nas planícies costeiras da África
oriental, da Somália a Moçambique. A partir do Eoceno, os depósitos fluviais e
eólicos do continental terminal” acumularam -se nas grandes bacias interiores da
África. Todas estas séries de camadas, que repousam sobre o rígido embasamento,
não foram afetadas pelos dobramentos, mas sim por deformações de grande
raio de curvatura que ocorreram desde o Primário até uma era mais recente.
Os soerguimentos em molhe e afundamentos de grande amplitude explicam
347
Geograa histórica: aspectos físicos
 . África física (segundo J. Ki -Zerbo, 1978).
348
Metodologia e pré -história da África
a estrutura em dobras e bacias, tão comum na África. No período Terciário,
durante o paroxismo da orogênese alpina, movimentos verticais mais violentos
provocaram grandes fraturas na África oriental. Estas fraturas formam grandes
fendas submeridianas emolduradas por falhas, os rift valleys. Por vezes, fazem-
-se acompanhar de derramamentos vulcânicos que dão origem às mais sólidas
elevações, como o Monte Kilimandjaro, coroado por uma geleira que culmina
a 6000 m. A oeste as fraturas são menos importantes, mas a existente no fundo
do golfo da Guiné manifestou uma intensa atividade vulcânica, cujo imponente
testemunho é o monte Camarões (4070 m).
Inuências paleoclimáticas
O continente africano foi afetado por longas fases de erosão consecutivas
aos movimentos orogenéticos, aparentemente bastante lentos em todas as
eras geológicas. Assim, as fases de estabilização fizeram -se acompanhar por
retomadas de erosão, o que resultou na formação de vastas superfícies aplainadas,
Nesse processo de evolução das formas do relevo, o fator mais importante foram
as variações climáticas, das quais as mais notáveis ocorreram no Quaternário.
A alternância de climas úmidos e semi ridos traduziu -se por fases de
alteração das rochas e de erosão linear ou em lençol. Desse modo, as áreas
baixas foram preenchidas e as rochas duras tornaram -se salientes, formando
com frequência elevações isoladas que emergem abruptamente das superfícies
aplainadas. Esses inselbergues são muito comuns nas regiões ao sul do Saara.
No Quaternário, as mudanças climáticas e variações no nível do mar foram
acompanhadas de importantes ajustamentos no dispositivo estratificado do
modelado africano produzido por ciclos sucessivos de desnudação e acumulação
durante os períodos anteriores. Os paleoclimas são responsáveis pela existência
do Saara, onde a presença de numerosos vestígios líticos e de fósseis de uma
fauna do tipo equatorial prova que em tempos remotos houve um clima úmido
favorável à fixação do homem. Mas, durante o Quaternário, a extensão das
zonas climáticas atuais, tanto para o norte quanto para o sul, foi consequência
do aumento ou diminuição das chuvas. Dessa forma, os períodos pluviais
aumentaram consideravelmente a proporção da superfície total do continente
favorável à vida humana. Os períodos áridos, por outro lado, favoreceram a
extensão de superfícies desérticas para além de seus limites atuais, tornando o
Saara um hiato climático entre o Mediterrâneo e o mundo tropical. No entanto
esse deserto, que cobre aproximadamente um terço do continente e se estende
por cerca de 15
o
de latitude, nunca constituiu uma barreira absoluta entre o
349
Geograa histórica: aspectos físicos
norte e o sul. Habitado por nômades, é cruzado por rotas de caravanas
séculos. Embora não tenha impedido a comunicação entre a África tropical e
o Mediterrâneo, desde a Antiguidade até a época moderna, o Saara agiu como
um filtro, limitando a penetração de influências mediterrâneas, especialmente
no domínio da agricultura, da arquitetura e do artesanato. Desse modo, o maior
deserto do mundo desempenhou um papel capital no isolamento geográfico de
uma grande parte da África.
A natureza maciça do continente africano
O vigor e a nitidez das características físicas da África distinguem -na de
todos os outros continentes. A natureza maciça desse continente e seu relevo
pesado são resultado de uma longa história geológica. Basta observar um mapa
para perceber que a África, com seus 30 milhões de quilômetros quadrados,
estende -se por quase 72
o
de latitude de Ras ben -Sakka (37°21’ N, perto de
Bizerta) ao cabo das Agulhas (34°51’ S). Cerca de 8000 km separam essas duas
extremidades do continente, enquanto que, no sentido longitudinal, conta -se
7500 km entre o Cabo Verde e o cabo Guardafui. A maior parte do continente
fica acima do Equador, visto que o bloco setentrional cobre os dois terços do
continente que se estreita no hemisfério sul. O cater maciço da África é
realçado pela ausência de recortes profundos na costa, presentes, por exemplo,
na Europa e na América Central. Além disso, as ilhas não constituem uma
parte significativa do continente, cuja forma esculpida é fortemente acentuada
pela simplicidade do contorno e pelo fraco desenvolvimento da plataforma
continental. Um rebaixamento do nível do mar pouco afetaria a configuração da
África, pois a curva batimétrica de 1000 m geralmente fica próxima da costa. O
continente parece ainda mais maciço devido ao pesado relevo, frequentemente
representado por planaltos cujas bordas se erguem para formar dobras costeiras
que os complexos fluviais atravessam com dificuldade. Apesar de possuir poucas
cordilheiras de dobramento, a África se caracteriza pela considerável altitude
média de 660 m, decorrente das pressões orogênicas marcadas no Plioceno
por fraturas e elevações do embasamento. A aparente simplicidade do relevo
encobre apreciáveis diferenças regionais. O Magreb, por exemplo, tem uma
marcante individualidade, assemelhando -se ao mundo europeu por suas
cordilheiras e seu relevo compartimentado. Podem -se distinguir dois grandes
conjuntos montanhosos: as cordilheiras do Tell e do Rif ao norte, e o Atlas ao
sul. Essas cordilheiras estão dispostas em faixas alongadas de oeste a leste, entre
o Mediterrâneo e o Saara.
350
Metodologia e pré -história da África
Uma outra família de relevos é encontrada na imensa região que compreende
a África do nordeste, a África ocidental e a bacia do Zaire. predominam as
planícies, bacias e baixos planaltos, circundados por dobras montanhosas. As
maiores bacias dessa área, o coração do continente, são as do Níger, Chade,
Zaire e Bahr el -Ghazal.
Por fim, a África ocidental e austral representa o domínio das terras altas
do continente, onde são comuns as altitudes superiores a 1500 m. Os planaltos
do sul são circundados por uma dobra marginal: o grande escarpamento, que
domina o litoral com uma parede rochosa que chega a atingir 3000 m de altura.
Mas a originalidade da África oriental reside na imponência de suas elevações,
causadas pelos movimentos tectônicos do Terciário. O pedestal violentamente
erguido sofreu profundos cortes de falhas e fraturas. Ao mesmo tempo, foi
afetado por uma intensa atividade vulcânica. O topo do maciço abissínio, que
consiste de um grande molhe ao qual se sobrepõem quase 2000 m de lava, eleva-
-se a mais de 4000 m. Os rift valleys estendem -se por 4000 km desde o mar
Vermelho até Moçambique. Os rift valleys, que tiveram um papel importante
no movimento e fixação dos povos, abrigam uma série de lagos, incluindo o
Niassa, o Tanganica, o Kivu, o Eduardo, o Mobutu (antigo Alberto), o Vitória
e o Turkana (Rodolfo). São circundados por gigantescas montanhas vulcânicas,
sendo as mais conhecidas os montes Quênia e Kilimandjaro.
O isolamento geográco
Devido à sua natureza maciça e seu relevo pesado, a África ficou isolada até
uma época recente. Com exceção da África do Norte, voltada para o mundo
mediterrâneo, o continente permaneceu por séculos fora das principais rotas
de comércio. É certo que esse isolamento nunca foi completo; mas exerceu
grande influência sobre muitas sociedades que se desenvolveram no isolamento
geográfico. Separada do Velho Mundo após a deriva dos continentes, a África
apresenta, no entanto, um ponto de contato com a Ásia: o istmo de Suez, que
foi o corredor de passagem privilegiado das grandes migrações p-históricas.
A maior parte da linha costeira africana é banhada por dois oceanos,
utilizados de maneira desigual até os tempos modernos. O Atlântico não foi
frequentado até o século XV, quando tiveram início as grandes expedões
marítimas europeias. Antes dessa época, as cnicas de navegação a vela não
permitiam que navegadores árabes, por exemplo, viajassem para além das
costas do Saara, dada a impossibilidade de velejarem contra os alísios que
sopravam permanentemente em direção ao sul. O oceano Índico, ao contrio,
351
Geograa histórica: aspectos físicos
sempre favoreceu o contato entre a África oriental e o sul da Ásia. Os veleiros
árabes e indianos foram capazes de empreender expedões rumo à África e
retomar aos portos de origem, gras ao regime de alternância das monções
do oceano Índico. As intensas relações estabelecidas entre a África oriental e
o mundo do oceano Índico limitaram -se à costa, pois aos povos navegadores
da Ásia interessava mais fazer comércio do que colonizar o interior. Em suma,
a influência das civilizações marítimas de outros continentes não penetrou em
profundidade no interior da África tropical, que em grande parte permaneceu
afastada do Velho Mundo.
Tradicionalmente, o caráter inóspito das costas africanas tem sido apontado
como fator para o isolamento do continente. A reduzida presença de recortes
na costa priva de abrigos o litoral, frequentemente baixo e arenoso. As costas
rochosas, raras na África ocidental, aparecem com frequência no Magreb, no
Egito, ao longo do mar Vermelho e na extremidade meridional da África do
Sul. Na África ocidental, as costas do sul do Senegal à Guiné e as costas do
Gabão e Camarões têm como característica as rias. Trata -se de vastos estuários
que resultaram da submersão de antigos vales fluviais, mas a maior parte deles
apresenta consideráveis depósitos de vasa. Em algumas costas baixas, invadidas
pelas marés, aparecem mangues, especialmente na região dos “rivières du sud
até a Serra Leoa, no delta do Níger e ao longo do litoral do Gabão. Em outras
partes, cordões litorâneos orlam o continente, por vezes isolando lagoas, como
as do golfo da Guiné. Finalmente, há os recifes de coral, que se estendem ao
longo das margens africanas do mar Vermelho, do canal de Mambique e da
costa oriental de Madagáscar. A hostilidade do litoral africano foi atribuída,
em grande parte, à rebentão das vagas em rolos violentos e regulares, que
dificultam o acesso a certas reges costeiras do continente. Há, entretanto,
um certo exagero em torno dessa hostilidade: as costas mediterrâneas não
impediram que a África do Norte participasse, durante longos séculos, de
intercâmbios com o exterior. A ausência de portos naturais também é utilizada
como justificativa para o isolamento da África negra até épocas recentes.
Entretanto, basta inventariar os locais favoráveis à navegão para se constatar
a riqueza do litoral africano neste aspecto, tanto na costa do Atlântico como
na do Índico. De resto, os obstáculos citados nunca foram intransponíveis, pois
as influências asiáticas e, mais tarde, europeias marcaram fortemente os povos
da África, cujo isolamento foi apenas relativo. Os fatores humanos sem dúvida
explicariam melhor o fraco interesse das populações litorâneas africanas pelas
grandes expedições marítimas.
352
Metodologia e pré -história da África
A zonalidade climática da África
As condões de vida na África dependem principalmente dos fatores
climáticos. A simetria e a grande extensão do continente em ambos os lados do
Equador, sua natureza maciça e seu relevo relativamente uniforme se combinam
para conferir ao clima uma zonalidade inigualável em outras partes do mundo.
Uma notável originalidade do continente africano é a suceso de faixas
climáticas ordenadas paralelamente ao Equador. Em ambos os hemisférios,
os regimes pluviométricos africanos diminuem progressivamente em direção
às altas latitudes. Por possuir a maior parte do território na zona intertropical,
a África é o continente mais uniformemente quente do mundo. Este calor se
faz acompanhar de seca, crescente em direção aos trópicos, ou de umidade,
geralmente mais elevada nas baixas latitudes.
Fatores cósmicos
Neste continente intertropical por excelência, as diferenciações climáticas
dependem muito mais das chuvas que das temperaturas, que na maior parte
das regiões são elevadas em todas as estações. De qualquer modo, os regimes
pluviométricos e térmicos estão, em primeiro lugar, ligados aos fatores cósmicos,
isto é, à latitude e ao movimento aparente do sol. O sol atinge o zênite duas vezes
por ano em todas as regiões intertropicais, mas somente uma vez nos trópicos de
Câncer e Capricórnio, respectivamente a 21 de junho, data do solstício de verão,
e 21 de dezembro, data do solstício de inverno no hemisfério norte. Atinge o
zênite duas vezes ao ano no Equador, no equinócio de primavera (21 de março)
e no equinócio de outono (21 de setembro). Em seu movimento aparente, o sol
nunca desce muito abaixo do horizonte. Por essa razão, as temperaturas são altas
durante todo o ano na zona intertropical. Nas regiões próximas ao Equador,
onde a posão aparente do sol oscila em torno do zênite, observa -se uma
ausência de estação térmica, pois há poucas variações sazonais de temperatura.
As amplitudes anuais são da ordem de 3
o
a 4
o
. À medida que nos aproximamos
dos trópicos do norte e do sul, porém, observamos um crescente contraste de
temperaturas. No Saara registram -se fortes amplitudes da ordem de 15
o
entre as temperaturas médias de janeiro e julho. As extremidades setentrional
e meridional do continente, que pertencem às zonas temperadas, apresentam
regimes térmicos contrastados, pois as fortes amplitudes anuais resultam da
oposição entre os invernos frios e os verões quentes. Além disso, as variações
diurnas podem ser tão elevadas na região do Mediterrâneo quanto na zona
353
Geograa histórica: aspectos físicos
intertropical. Resumindo, os fatores cósmicos determinam dois tipos principais
de regimes térmicos: regular nas latitudes equatoriais e progressivamente
contrastado à medida que nos aproximamos dos trópicos.
Mecanismo pluviométrico
A explicação para as variações sazonais do clima africano está na existência
de grandes centros de atividade atmosférica que põem em movimento massas de
ar do tipo tropical e equatorial, marítimas ou continentais. Há dois anticiclones
tropicais ou centros de alta pressão permanentes sobre o Atlântico, um no
hemisfério norte (anticiclone dos Açores) e outro no hemisfério sul (anticiclone
de Santa Helena). Existem outras duas células anticiclônicas, uma sobre o Saara,
outra sobre o Calaari. Esses anticiclones continentais, de caráter sazonal,
desempenham papel importante durante o inverno boreal ou austral. No verão,
eles se enfraquecem e são varridos para as extremidades do continente. Os
centros de atividade atmosférica compreendem, por fim, uma zona de baixas
pressões centrada no Equador térmico, oscilando de 5
o
de latitude sul em janeiro
a 11
o
de latitude norte em julho. Os anticiclones emitem os alísios – que varrem
a área intertropical em direção à zona equatorial de baixa pressão dos ventos
de superfície. Do anticiclone dos Açores partem ventos frescos e constantes – os
alísios atlânticos, de direção nordeste que afetam somente uma estreita faixa
da costa do Saara até o Cabo Verde. O anticiclone de altitude do Saara é a fonte
dos ventos de nordeste, os alísios continentais, secos e relativamente frescos, mas
aquecidos à medida que se movem em direção ao sul. Trata -se do harmatã, de
direção leste, abrasador e seco, que sopra com grande regularidade sobre todo
o Sahel, do Chade ao Senegal. É acompanhado por turbilhões ascendentes que
carregam areia ou poeira, originando névoa seca. No hemisfério sul, durante o
inverno austral, manifestam -se também ventos relativamente secos e quentes em
algumas partes da bacia do Zaire. Mas sobretudo nesta estação, que corresponde
ao verão boreal, as baixas pressões continentais centradas no sul do Saara atraem
os alísios marítimos provenientes do anticiclone de Santa Helena; estes se
desviam para nordeste após cruzar o Equador. É a monção da Guiné, que sopra
sob o harmatã, afastando -o para o norte e elevando -o. O encontro dessas massas
de ar de direção, temperatura e umidade diferentes é a zona de convergência
intertropical ou frente intertropical, que determina as estações chuvosas.
Durante o verão boreal (maio -setembro) a frente intertropical, de direção
leste -oeste, desloca -se entre 10
o
e 20
o
de latitude norte. O alísio vindo do sul
carrega, então, massas de ar úmidas para a costa da Guiné, dando início à estação
354
Metodologia e pré -história da África
chuvosa. No inverno, a zona de convergência forma -se no golfo da Guiné,
abordando o continente pela costa de Camarões e cortando a metade sul do
continente, para atravessar o canal de Moçambique e o noroeste de Madagáscar.
Ao norte do Equador, reinam os ventos continentais muito secos na África
ocidental. Ao sul do Equador, a convergência do alísio continental austral e das
massas de ar do alísio marítimo proveniente do norte do oceano Índico provoca
precipitações.
O mecanismo geral do clima pode ser modificado por fatores geográficos,
tais como as correntes marinhas, o relevo e a orientação da costa. As correntes
frias constantes da fachada atlântica da África atuam simetricamente em ambos
os lados do Equador. Ao norte, a corrente das Canárias, movida pelos ventos
do anticiclone dos Açores, segue a costa desde Gibraltar até Dacar, trazendo
baixas temperaturas e neblina. Perto dos 15
o
de latitude, a corrente das Canárias
volta -se para oeste. Sua réplica no hemisfério sul é a corrente de Bengala, posta
em movimento pelos ventos do anticiclone de Santa Helena e acompanhada de
temperaturas baixas e densos nevoeiros ao longo das costas do sudoeste africano,
antes de seguir para oeste na altura do cabo Frio. Assim se explicam os desertos
costeiros da Mauritânia e da Namíbia. Entre as duas correntes frias da fachada
atlântica insinua -se a contracorrente equatorial da Guiné, que desloca massas
de água quente de oeste para leste, aumentando a umidade e a instabilidade
atmosféricas e, consequentemente, a possibilidade de chuva ao longo da costa,
de Conakry a Libreville.
A circulação das correntes marinhas na fachada do oceano Índico manifesta-
-se de forma diferente. As águas equatoriais, impelidas em direção ao continente
pelos ventos de sudeste provenientes do anticiclone centrado no leste de
Madagáscar, formam a corrente quente de Moçambique, que se dirige para o
sul e tem como prolongamento a corrente das Agulhas. Traz umidade para a
costa sudeste da África. Ao norte do Equador, as correntes marinhas se invertem
com a mudança de direção dos ventos. Assim, no verão, uma corrente quente de
direção nordeste passa ao longo da costa da Somália. No inverno, essa mesma
costa é banhada por uma corrente fria proveniente da Arábia que se move em
direção ao Equador.
O relevo da África, não obstante sua relativa uniformidade, exerce influência
sobre o clima, uma vez que opõe as elevações litorâneas verdadeiras telas a
impedir o acesso das massas de ar úmidas às bacias centrais, planaltos interiores
e vales de abatimento tectônico, onde prevalecem graus variados de aridez.
A disposição do litoral em relação à direção dos ventos portadores de chuva
também constitui um fator de diferenciação climática. As áreas diretamente
355
Geograa histórica: aspectos físicos
expostas à moão de sudoeste, especialmente quando montanhosas, apresentam o
mais alto índice pluviotrico da África ocidental (aproximadamente 5000 mm na
República da Guiné). Na África austral e em Madascar, as costas perpendiculares à
direção dos alísios marítimos recebem fortes precipitações. os setores costeiros
paralelos à direção dos ventos e sem relevo marcante, como no Benin e na
Somália, recebem menos chuva.
Na África, os ritmos climáticos sazonais são determinados principalmente
pela pluviosidade. O volume das precipitões decresce gradualmente do Equador
aos trópicos, e os desertos de Saara e Calaari recebem menos de 250 mm de
chuva por ano. Essa diminuição dos totais pluviométricos é acompanhada de
modificações nos ritmos sazonais das precipitações, que apresentam maior
contraste à medida que se vai para o norte. Nas regiões próximas ao Equador,
portanto submetidas à influência permanente das baixas pressões, as chuvas
manifestam -se durante o ano inteiro, embora diminuindo sensivelmente nos
solstícios. Em direção ao norte e ao sul, as chuvas se concentram em um único
período, que corresponde ao verão de cada hemisfério. Assim, uma estação
chuvosa se opõe a uma estação seca, que se torna mais longa à medida que nos
aproximamos dos trópicos. Mas as duas extremidades do continente, o Magreb
e a província do Cabo, apresentam uma originalidade marcada pelas chuvas
de estação fria. Essas regiões têm um índice pluviométrico médio, distribuído
irregularmente no espaço.
Zonas climáticas
As variações dos regimes pluviométricos, tanto nos totais anuais quanto na
distribuição sazonal, orientam a divisão da África em grandes zonas climáticas.
Climas equatoriais
Caracterizam as regiões centrais que, em ambos os lados do Equador,
deparam com duas passagens equinociais da frente intertropical, às quais são
ligadas fortes precipitações. Desde o sul de Camarões à bacia do Zaire, ocorrem
chuvas abundantes durante o ano todo. O ar fica saturado de vapor de água
em todas as estações. O total pluviométrico anual geralmente ultrapassa os
2000 mm. Nessa atmosfera úmida, observa -se uma fraca variação mensal de
temperatura; a média anual é de 25
o
C.
A leste, nas regiões equatoriais sob influência climática do oceano Índico,
encontramos os mesmos ritmos pluviométricos, mas com um total anual inferior
a 1500 mm. As variações anuais da temperatura apresentam -se mais acentuadas
356
Metodologia e pré -história da África
do que as da fachada atlântica da zona equatorial. As amplitudes diurnas são
mais altas nas regiões que pertencem climaticamente ao mundo índico.
Climas tropicais
Manifestam -se na vasta área influenciada pelos deslocamentos da frente
intertropical, ao norte e ao sul da zona equatorial. O noroeste da África, entre
os 4
o
de latitude e o Trópico de Câncer, possui uma gama variada de climas,
desde as duas passagens equinociais ao sul à passagem solsticial única ao norte.
No litoral do golfo da Guiné, o clima é subequatorial ou guineense, sem estação
seca, mas apresentando uma pluviosidade mais acentuada quando das duas
passagens do sol pelo zênite. O efeito orográfico da barreira costeira provoca a
condensação de uma forte umidade trazida pela monção do sudoeste. A faixa
costeira, desde a República da Guiné até a Libéria, recebe mais de 2000 mm
de precipitações anuais.
A região do Sudão, localizada mais ao norte, apresenta vários aspectos de
clima intertropical. Distingue -se uma variedade seca que anuncia o deserto.
Em latitudes mais altas, as duas estações, a úmida e a seca, alternam -se na zona
intertropical. Entre os dois extremos fortes chuvas equatoriais e a aridez do
Trópico de Câncer encontramos as seguintes gradações:
a) A primeira subzona caracteriza -se por apresentar índices pluviométricos
anuais entre 1500 e 2000 mm e precipitações que duram mais de seis meses.
As amplitudes térmicas anuais aumentam em relação às da zona equatorial.
b) A subzona central é mais seca, pois as precipitações ocorrem somente de
três a seis meses por ano, totalizando de 600 a 1500 mm. As amplitudes
térmicas mostram sensível aumento.
c) A subzona setentrional, conhecida como Sahel na África ocidental, recebe menos
de 600 mm de precipitações, que ocorrem durante menos de três meses. As
chuvas são cada vez mais irregulares e as variações de temperatura o crescentes.
d) Ao sul do Equador, distingue -se a mesma distribuão latitudinal das variedades
cliticas tropicais. Observam -se, pom, gradações mais tidas, por ser a África
austral menos maca e devido à importância das altas elevões que dominam as
planícies costeiras banhadas pelo oceano Índico. A converncia do ar matimo
equatorial do noroeste e do ar marítimo tropical do leste provoca chuvas
abundantes nas costas de Moçambique e na fachada oriental de Madascar.
A costa atntica, ao contrário, é seca devido à presença da corrente quente de
Benguela, responvel pela existência do deserto da Namíbia.
357
Geograa histórica: aspectos físicos
Climas desérticos
Os climas desérticos caracterizam as regiões situadas de ambos os lados
dos trópicos. O índice pluviométrico é inferior a 250 mm e as precipitações
bastante irregulares. O Saara, o maior deserto quente do mundo, recebe no
total menos de 100 mm de chuva por ano. Entretanto, observam -se gradações
devidas à oscilação do anticiclone do Saara que, entre os solstícios, sobe para
o Mediterrâneo ou desce para baixas latitudes. No primeiro caso, facilita a
penetração de infiltrações da monção, enquanto no segundo favorece incursões
de ar polar. Tais oscilões permitem distinguir o Saara setentrional, com
chuvas mediterneas na estação seca, do Saara central, onde praticamente
não ocorrem precipitações, e do Saara meridional, com chuvas tropicais na
estão quente.
Situado no Trópico de Capricórnio, o deserto do Calaari é mais aberto que
o Saara às influências oceânicas do sudoeste, pois o estreitamento do continente
atenua a influência da célula anticiclônica sobre o clima. Dessa forma, há maior
umidade e menores amplitudes térmicas.
Climas mediterrâneos
Os climas mediterrâneos do Magreb e da extremidade meridional da África
têm por peculiaridade a divisão do ano em duas estações, uma fresca e chuvosa e
outra quente e seca. A região mediterrânea, submetida ao regime dos ventos da
zona temperada, caracteriza -se pela passagem, no inverno, de ciclones oceânicos
carregados de umidade. Por vezes, ocorrem invasões de ar polar, que ocasionam
frio intenso acompanhado de geada e neve, em particular nas cordilheiras do
Magreb. A aridez e o calor do verão originam -se da influência dos ventos que
sopram dos desertos vizinhos: o Saara no hemisrio norte e o Calaari no
hemisfério sul.
Meios bioclimáticos africanos
Na África, mais do que em qualquer outra parte do mundo, a vida humana
se organizou em contextos naturais que se revelam, antes de tudo, meios
bioclimáticos. O clima e o relevo combinam seus efeitos para determinar as
grandes regiões, individualizadas pela hidrologia, características pedológicas e
botânicas.
358
Metodologia e pré -história da África
O escoamento das águas continentais
A diversidade climática reflete -se na hidrografia. Na África, pom, o
escoamento das águas para os oceanos exerce uma função muito menos
importante do que aquela que um julgamento precipitado poderia sugerir. Mais
da metade da superfície do continente compõe -se de regiões de drenagem arréica
ou endorréica. Além disso, os sistemas fluviais encontram obstáculos no seu
percurso. De fato, seus contornos são formados por trechos de fraca declividade
unidos abruptamente por rápidos, quedas d’água e cataratas. Assim, grande parte
das águas que eles drenam sofre infiltração permanente e, sobretudo, intensa
evaporação, resultante da estagnação nas bacias, fossas e depressões do pedestal.
Organização das redes hidrográcas
As vastas áreas do continente onde as chuvas são escassas ou inexistentes
não possuem cursos d’água permanentes. Mas a área seca mediterrânea recebe
algumas chuvas violentas que originam lençóis de escoamento que por vezes
se acumulam em uedes. Estes terminam por esvaziar -se devido à evaporação
e infiltração das águas. Nas regiões de índice pluviométrico satisfatório, em
clima tropical ou equatorial, os grandes rios e seus principais afluentes formam
redes organizadas que coletam parte da água das bacias, assegurando -lhes o
sangramento em condições frequentem ente difíceis. De fato, as bacias em que se
formou a maioria dos rios africanos apresentam soleiras periféricas desfavoráveis
a um bom escoamento para o mar. Assim, as águas continentais escoam -se
através das dobras costeiras por vales estreitos e profundos, que apresentam
frequentes rupturas de declive no curso inferior de alguns dos principais rios. O
Zaire possui trinta e dois rápidos entre Stanley Pool e o estuário. O Zambeze
salta 110 m nas cataratas de Vitória, antes de mergulhar na Garganta de Kariba
e atravessar várias cataratas basálticas. A jusante de Cartum, o Nilo passa por
seis rápidos, denominados cataratas, antes de chegar ao Mediterrâneo. Todos os
demais grandes rios – Níger, Senegal, Orange, Limpopo – têm perfil em forma
de escada, principalmente nos cursos inferiores. É fácil entender, desde logo, as
dificuldades de navegação nos rios da África, que têm a aparência de medíocres
canais de comunicão. Entretanto, foram eles que permitiram, no passado,
contatos proveitosos entre os diferentes povos do continente.
Entre as grandes redes hidrográficas, observam -se confusas redes de córregos,
lagoas e pântanos, desordenados e sem drenagem regular para o exterior. Trata-
-se, por vezes, de águas estagnadas, ou de escoadouros das águas provenientes
359
Geograa histórica: aspectos físicos
do transbordamento dos rios adjacentes, ou ainda, ao contrário, de afluentes
desses cursos d’água. Estes se formaram, ao longo das eras geológicas, nas
bacias de subsidência, no fundo das quais as águas continentais carregadas de
aluvião acumularam -se em lagos. A drenagem tornou -se possível pela ão
de movimentos tectônicos que afetaram o embasamento. Assim, os imensos
lagos interiores escoaram suas águas através dos vales de abatimento tectônico
ou das falhas. Fenômenos de captura resultantes do fraturamento do pedestal
ou da evolução morfológica contribuíram, sem dúvida, para a organização das
redes hidrográficas. O endorreísmo ainda se manifesta, entretanto, nas bacias
do Chade e Okovango, ocupadas por lagos rasos e pântanos que adquirem
dimensões impressionantes ao receber a contribuição sazonal dos lençóis de
escoamento superficial. Outras bacias de subsincia, embora providas de
saída para o mar, apresentam uma tendência análoga ao endorreísmo. Assim
se formaram os pântanos de Macina ou “delta interior do Níger”, os do Bahr
el -Ghazal no Sudão e os da bacia do Zaire.
Regimes dos rios africanos
Por toda a África, os ritmos pluviométricos regulam os regimes hidrológicos,
o que equivale a dizer que as variações sazonais dos bitos fluviais estão
diretamente ligadas ao regime anual de precipitações. Os cursos d’água das
regiões equatoriais são regulares e caudalosos o ano inteiro. No entanto,
apresentam dois períodos de cheia, correspondentes às chuvas equinociais.
Na zona tropical, um período de cheia correspondente à estação das chuvas,
isto é, ao solstício de verão, é seguido por um período de pronunciada estiagem
durante a estação seca. O regime é, portanto, bastante contrastado. Ademais,
um intervalo entre o período de precipitações e a subida das águas, devido
ao lento escoamento das mesmas sobre superfícies de declividade geralmente
fraca. Nas regiões subáridas, o escoamento intermitente dos uedes manifesta-
-se quando das raras chuvas violentas, que provocam cheias repentinas mas de
curta duração, visto que as águas se perdem rio abaixo. Na zona mediterrânea,
as fortes chuvas e a presença de relevos montanhosos transformam os rios em
torrentes. Esses rios têm regimes bastante irregulares, caracterizados por cheias
no inverno e estiagem acentuada no verão. Nesta zona climática, muitos cursos
d’água são uedes de escoamento intermitente.
Os grandes rios africanos, com redes que se estendem sobre várias zonas
climáticas, escapam aos esquemas simples anteriormente mencionados.
360
Metodologia e pré -história da África
Caracterizam -se por regimes complexos variáveis, ou seja, por variações sazonais
de débito que se modificam de montante a jusante.
Os grandes rios africanos
Na África, uns poucos rios de grande porte, que se colocam entre os mais
importantes do mundo, drenam imensas bacias, quase todas situadas na zona
intertropical. Os regimes desses rios estão ligados às condições de alimentação
pluvial das vertentes de suas bacias.
O Zaire é o exemplo mais típico de rio equatorial com duas máximas
equinociais. Sua rede estende -se por quase 4 milhões de quilômetros quadrados,
entre 12
o
S e 9
o
N. Assim, por intermédio do Kasai e do Lualaba, ele cruza
regiões austrais com máxima pluvial nos solstícios. Seu principal afluente do
hemisfério norte é, ao contrário, alimentado pelas chuvas do solstício boreal,
enquanto uma grande parte de seu curso se estende por regiões com duas
máximas pluviais equinociais, A combinação de diferentes intumescências gera,
em Kinshasa, um regime hidrológico com duas máximas (em março e em julho).
O Zaire é um rio abundante e regular, cujo débito médio anual de 40.000 m
3
/s
é superado pelo do Amazonas.
O Nilo, que através de seu braço de origem, o Kagera, tem suas cabeceiras
em Ruanda e Burundi, recebe águas equatoriais que se espalham pelos pântanos
do Bahr el -Ghazal. Após atravessar o lago Vitória, é reforçado pelos afluentes
tropicais provenientes das montanhas da Etiópia. O Nilo Azul e o Atbara, que
têm um regime de máxima solsticial, permitem que o Nilo atravesse uma imensa
área desértica antes de alcançar o Mediterrâneo. Apesar de sua grande extensão,
sem igual na África (6700 km), o Nilo é pouco volumoso, possuindo um débito
médio anual inferior a 3000 m
3
/s. Porém tem sido, desde a Antiguidade, um
dos rios mais úteis do mundo.
O Níger, cuja bacia se estende de N a 16° N, possui um regime mais
complexo. Ele descreve uma extensa curva, de traçado bastante original. Nasce
na faixa montanhosa do Atlântico e dirige -se para o Saara, orientando -se,
depois, para o golfo da Guiné, onde deságua por um vasto delta. Assim, os cursos
superior e inferior atravessam regiões meridionais de clima tropical úmido. O
curso médio demora -se em um “delta interior de clima saheliano e curva-
-se com dificuldade na região subdesértica de Tombuctu, antes de receber um
volume de água cada vez maior em direção à jusante. A estação chuvosa traz
duas cheias simultâneas, uma no curso superior e outra no curso inferior. Mas a
primeira, que se manifesta até o Níger, declina gradualmente em consequência
361
Geograa histórica: aspectos físicos
da evaporação e da infiltração na zona tropical seca. A segunda, visível desde o
norte do Benin, continua a jusante devido às chuvas locais de máxima solsticial.
O Níger recebe, no curso inferior, o Benue, seu principal afluente.
Solos africanos
A distribuição geográfica dos solos segue um zoneamento estreitamente
vinculado ao clima. As várias formações pedológicas resultam principalmente
da ão da água e da temperatura nas rochas locais. Nas regiões tropicais, as
chuvas quentes, abundantes e ácidas lavam as rochas, dissolvendo os minerais
básicos e carregando -os para as camadas inferiores do solo. Nas baixas latitudes
muito úmidas, até 10
o
ao norte e ao sul do Equador, a decomposição química
das rochas resulta na formação de solos ferralíticos. Trata -se geralmente de
argilas móveis avermelhadas, de vários metros de espessura. Originam -se da
transformação da rocha -mãe em elementos coloidais, incluindo o caulim, a
hematita e a sílica (cerca de 30% do total). Embora protegidos da erosão pela
cobertura florestal, os solos ferralíticos contêm pouca matéria orgânica e húmus.
Nas regiões sudanesas com estação seca definida, formam -se solos tropicais
ferruginosos menos profundos que os anteriores, ricos em óxidos de ferro,
possuindo supercie arenosa e interior argiloso. Pouco estáveis, são sensíveis
à erosão pluvial e lea. Sua estrutura se deteriora muito rapidamente na
superfície se a cobertura vegetal estiver ausente. Esses solos frequentemente
sofrem laterização na África ocidental, onde o processo de lixivião, que
ocorre durante a estação chuvosa, alterna -se com um intenso dessecamento
na estão seca, especialmente quando sopra o harmatã. Em algumas regiões
situadas ao norte da faixa costeira do golfo da Guiné, antigas superfícies
desnudadas pela erosão, cujos solos apresentam carapas ou couras
denominadas bowé. Tais formações pedológicas caracterizam -se por um forte
acúmulo de óxido de ferro e alunio seguido de endurecimento nos níveis
menos profundos. Mas um bom número desses bowé antigos data do Terciário.
Suas superfícies lateríticas afloraram em consequência da erosão dos níveis
veis superiores. O valor agronômico desses solos é, em toda parte, muito
limitado. Solos semelhantes são encontrados em Madagáscar nos tampoketsa
do noroeste de Antananarivo. Mais ao norte, no hemisfério boreal, formaram-
-se, sob um clima de estações contrastantes e sob uma cobertura herbácea,
solos pardos, estruturados, de grande valor agronômico. Apesar de sensíveis à
lixivião, permitiram o desenvolvimento de culturas agrárias associadas aos
grandes impérios sudaneses da época pré -colonial.
362
Metodologia e pré -história da África
Ao sul do Equador, nos países banhados pelo Zambeze, formaram -se sob a
cobertura da floresta seca solos ligeiramente lixiviados, semelhantes a formações
podzólicas.
Ao norte e ao sul, nas regiões subáridas vizinhas ao Saara e ao Calaari,
encontram -se solos castanhos de estepe, que correspondem a areias dunares
mais ou menos fixas, ou a formações argilo -arenosas nas depressões. Leves e
soltos, são adequados para o plantio, mas sua regeneração requer a prática de
longos alqueives de arbustos ou herbáceas. Nas regiões áridas onde predominam
as formas de erosão mecânica, as fortes variações de temperatura favorecem a
fragmentação das rochas, que sofrem igualmente a ação violenta do vento e das
raras chuvas, estas responsáveis pelo escoamento em lençol do material detrítico.
Observam -se, nessas regiões, areias estéreis constituindo ergs, cascalheiras ou
regs que cobrem grandes extensões e crostas argilosas nas planícies. Excetuando-
-se os oásis, os desertos não oferecem solo utilizável para o plantio.
No meio ambiente mediterrâneo, a ação da água e das estações contrastadas
ocasionam uma menor alteração química das rochas, em relação ao fenômeno
de decomposição observado na região tropical úmida. Os solos assemelham -se
aos dos trópicos secos, apresentando coloração vermelha, cinza ou castanha. Em
geral são ricos em sais. Alguns deles, como os solos estépicos, ricos em calcário,
introduzem o meio temperado. Outros, formados de crostas de calcário ou gipso,
são bastante característicos da zona mediterrânea.
Regiões biogeográcas
Fatores climáticos e pedológicos respondem pela diversidade das condições
mesológicas nas quais se constituem as paisagens botânicas.
Florestas densas pluviais
A paisagem botânica mais imponente localiza -se no centro do continente,
entre 5
o
N e 5
o
S. A vegetação caractestica é a floresta densa, úmida e alta,
que se divide em diversos estratos sucessivos. Lianas e efitas acentuam a
obscuridade causada pela superposição das folhagens sempre verdes. Existem,
porém, gradações; é o caso dos cerrados pantanosos sobre poto ‑poto
1
ou das
clareiras que anunciam a passagem para formas características de climas
mais secos. A extrema diversificão das escies da floresta pluvial, bem
1 Solo lamacento de alguns centímetros de profundidade constituído essencialmente de argila.
363
Geograa histórica: aspectos físicos
como sua distribuição espacial anárquica, tornam difícil sua explorão. O
calor e a umidade constantes, aliados à exuberância da vegetão, favorecem
a multiplicão de microrganismos, vermes e insetos. Trata -se de um meio
geralmente hostil ao homem, que, apesar de silencioso, é habitado por uma
grande variedade de animais, tais como o hipopótamo, o elefante, o porco-
-selvagem e a pantera. Mas são os pássaros, pteis e mamíferos arborícolas
que encontram maior facilidade de locomão e reprodão, apesar de fatores
adversos como a abundância de parasitas. Fora da zona equatorial, a grande
floresta fluvial pode existir em terras altas expostas por muito tempo aos ventos
carregados de umidade, de que é exemplo a vertente oriental dos planaltos de
Madagáscar.
Savanas e orestas abertas
A zona da floresta ombrófila limita -se com a floresta seca de folhas caducas,
característica das regiões onde as chuvas se concentram nos solstícios. Aparece,
na maioria dos casos, como uma formação aberta em que a população arbórea
cobre apenas parcialmente uma vegetação arbustiva e herbácea. Quando sofre
depredação humana, lugar a paisagens herbáceas características de regiões
com estação seca mais definida. Assim, a savana tropical aparece à medida que
nos afastamos das baixas latitudes. Essa vegetação, característica de regiões com
estações contrastadas, apresenta algumas nuances relacionadas às variedades
mais ou menos úmidas de climas tropicais.
Na orla da floresta, a savana pré -florestal comporta ainda grandes árvores,
que são, todavia, menos numerosas que os arbustos; a cobertura herbácea
adquire maior importância. As florestas -galerias acompanham os cursos
d’água em faixas mais ou menos largas. A floresta -parque justae espaços
arborizados a superfícies com menor cobertura, onde aparecem principalmente
gramíneas altas. As savanas herbáceas destituídas de árvores resultam, sem
vida, do desmatamento efetuado pelo homem e da laterizão do solo.
Mais am da floresta densa, a savana herbácea, constituída de um tapete
contínuo de ervas altas, cede gradualmente lugar à savana arbustiva, onde
com frequência o solo aparece desnudado entre trechos de cobertura herbácea.
Nos diferentes tipos de savanas, os animais hervoros encontram condões
favoráveis de existência. Dessa forma, a caça é abundante, e existem condições
propícias à criação de gado. Nessas terras de cil desbravamento, o homem
pode igualmente dedicar -se à ptica da agricultura.
364
Metodologia e pré -história da África
Paisagens de estepe
A estepe caracteriza as regiões que apresentam uma longa estação seca.
Compõe -se de tufos de gramíneas e arbustos espinhosos, principalmente
acácias. Essa formação aberta é encontrada nas regiões setentrionais da África
ocidental e oriental e, mais esporadicamente, na África do Sul, no deserto de
Calaari e no sudoeste de Madagáscar. A vegetação subdesértica, constituída por
uma estepe progressivamente empobrecida, é encontrada nas regiões de índice
pluviométrico inferior a 200 mm.
Formações vegetais mediterrâneas
As extremidades do continente africano apresentam estepes arbustivas
ou graminosas nas reges mais secas. Nas reges mais úmidas, porém,
principalmente nas cordilheiras do Magreb, aparecem florestas secas de carvalhos,
sobreiros, pinheiros e cedros. São formações vegetais perenifólias que dominam
uma vegetação rasteira arbustiva.
Conclusão
A África aparece como um velho continente que, desde épocas remotas,
foi ocupado por povos que cedo desenvolveram esplêndidas civilizações. A
geografia africana, tanto em seus aspectos estruturais como em seus meios
naturais, mostra traços vigorosos herdados de um longo passado geológico.
O espaço africano é mais maciço e continental do que qualquer outro. Vastas
regiões no coração do continente, a uma distância de mais de 1500 km do
mar, permaneceram durante muito tempo à margem das grandes correntes
de circulação, o que explica a importância das depressões meridianas, como o
Rift Valley da África oriental, para a fixação do homem desde a Pré -História.
O isolamento geográfico acentuou -se nas proximidades dos trópicos devido às
variações climáticas do Terciário e do Quaternário. Durante milhares de anos, o
Saara úmido foi um dos maiores centros de povoamento do mundo. Mais tarde,
os períodos secos contribuíram para a formação de imensos desertos como o
Saara e o Calaari. Os intercâmbios de todo tipo entre as diversas civilizações do
continente foram, por conseguinte, prejudicados, mas não interrompidos. Dessa
forma, o clima constitui um fator essencial para a compreensão do passado
africano. Ademais, os ritmos pluviométricos e os meios bioclimáticos exercem
uma influência efetiva na vida do homem atual. As sociedades africanas tiraram
365
Geograa histórica: aspectos físicos
proveito da complementaridade das zonas climáticas para estabelecer entre si
as correntes de intercâmbio mais antigas e vigorosas. Finalmente, a história da
África foi particularmente influenciada pela riqueza mineral, que constitui um
dos principais fatores da atração que o continente sempre exerceu sobre os povos
conquistadores. Assim, o ouro da Núbia e de Kush foi explorado pelas dinastias
do antigo Egito. Mais tarde, o ouro da África tropical, principalmente da região
sudanesa e do Zimbabwe, tornou -se fonte de prosperidade das sociedades do
norte da África e do Oriente Próximo e suporte dos grandes impérios africanos
do sul do Saara. Em tempos remotos, o ferro foi objeto de troca entre a floresta
e as regiões tropicais da África. As salinas da orla do Saara tiveram um papel
importante nas relações entre os Estados negros do Sudão e dos povos árabe-
-berberes do norte da África. Mais recentemente, a riqueza mineral da África
tem sido explorada pelas potências coloniais. Atualmente é, em grande parte,
exportada como matéria -prima.
C A P Í T U L O 1 4
367
Geograa histórica: aspectos econômicos
Segundo Gilbert, o verdadeiro objetivo da geografia histórica é a reconstrução da
geografia regional do passado.
1
Num volume como este, tal definição deveria levar-
-nos a apresentar uma geografia regional da pré -história africana, com ênfase nos
aspectos econômicos. Tal prosito implicaria, sem vida, em um exame completo
das condões físicas e humanas vigentes num passado remoto, o que inevitavelmente
acabaria por invadir o objeto de estudo de alguns tantos outros capítulos deste
volume. Assim sendo, o presente capítulo trata fundamentalmente de considerar os
recursos naturaissicos em termos da forma como foram descobertos e utilizados
na África desde a Pré -História. Tal enfoque, além de revelar a vasta gama de riquezas
naturais do continente como as conhecemos na atualidade, procurará destacar
aquelas que foram consideradas como tais num passado remoto, os lugares onde
foram descobertas, a maneira como foram utilizadas e em que medida facilitaram
ou frearam o controle do homem sobre extensas áreas do continente.
Os minérios e o desenvolvimento da tecnologia humana
Os minerais talvez constituam o mais significativo dos recursos naturais
que permitiram ao homem o controle de seu meio ambiente. Os minérios são
1 GILBERT, E. W. 1932, p. 132.
Geograa histórica:
aspectos econômicos
A. Mabogunje
368
Metodologia e pré -história da África
o material -chave do universo. Seu processo de formação é extremamente lento,
podendo estender -se por milhões de anos. Comparada à ocupação da Terra
pelo homem, a qual talvez remonte a três milhões de anos, a escala temporal
geológica é bastante longa, abrangendo mais de cinco bilhões de anos.
Vastas zonas da África repousam sobre massas rochosas classificadas entre
as mais antigas do planeta. As rochas cristalinas antigas, consideradas como
o “pedestal” rochoso do continente, recobrem pelo menos um terço de sua
superfície. Compreendem sobretudo granitos e rochas metarficas, como
os xistos e os gnaisses. Algumas são altamente mineralizadas. Entre as mais
importantes dessas formações, convém destacar as da zona cuprífera do Shaba
(Zaire), cuja extensão ultrapassa 300 km. Esta zona contém não as maiores
jazidas de cobre do mundo, como também algumas das mais ricas jazidas de
rádio e cobalto. No Transvaal (África do Sul), o complexo ígneo do Bushveld,
com uma superfície de 6000 km
2
, e o Great Dike, que atravessa o Transvaal
numa extensão de 500 km até o Zimbabwe, são igualmente abundantes em
minérios, como a platina, o cromo e o amianto. A zona diamantífera africana não
tem correspondente no resto do mundo. É na África do Sul que atinge sua maior
concentração, embora haja outras jazidas na Tanzânia, em Angola e no Zaire. A
África do Sul, Gana e o Zaire possuem minas de ouro; o estanho é encontrado
no Zaire e na Nigéria. Ressaltemos também a presença de importantes jazidas
de minério de ferro na África ocidental, como as da Libéria, da Guiné e de
Serra Leoa. Somente a Guiné possui mais da metade das reservas mundiais de
bauxita, minério de alumínio.
O antigo embasamento da África sofreu inúmeras fraturas vulcânicas,
que remontam além do Pré -Cambriano. Essas fraturas provocaram intrusões
graníticas portadoras de ouro e estanho, bem como imbricações de rochas básicas
e ultrabásicas. Produziram igualmente rochas eruptivas ou efusivas, em grande
parte de formação mais recente, que, além de desagregar -se para formar solos
ricos e férteis, também produziram minérios e rochas de grande importância na
história do continente, como o basalto de obsidiana do Quênia.
O resto da África, ou seja, cerca de dois terços do continente, apresenta
antigas rochas sedimentares que remontam ao Pré -Cretáceo. Devido à sua
idade, estas rochas também contêm inúmeros depósitos minerais. Ao longo
da margem norte do continente, por exemplo, numa área que se estende do
Marrocos à Tunísia, atravessando a Argélia, encontra -se o grande cinturão dos
fosfatos associados às jazidas de ferro, extremamente ricas. Importantes jazidas
de minério de ferro de origem sedimentar podem ser encontradas, ainda, na
região de Karoo, na África do Sul, e nas Damara, na Namíbia. Em contrapartida,
369
Geograa histórica: aspectos econômicos
excetuando -se. umas poucas ocorrências no High Veld da África do Sul e no
Wankie Field do Zimbabwe, o carvão praticamente inexiste no continente. Como
que para compensar essa deficiência, as rochas sedimentares mais recentes do
Pós -Cretáceo encerram, no Saara e no litoral da África ocidental, vastos lençóis
de petróleo e gás natural.
Esta riqueza mineral contribuiu em grande parte para sustentar a organização
e a exploração humanas durante um longo período da história. Supõe -se, por
exemplo, que o controle do comércio do ouro entre o oeste e o norte da África
através do deserto foi, durante o período medieval, uma das principais razões
do surgimento e da queda de impérios e reinos no Sudão ocidental. É certo
que, a partir do último milênio, o comércio do ouro e do minério de ferro
atraiu os árabes à África oriental. Por outro lado, inicialmente seduzidos pelas
riquezas minerais da América Latina, os europeus, no decorrer dos últimos
séculos, concentraram -se na África, transformando -a em reservatório colonial
de minérios brutos para alimentar o crescimento das indústrias europeias.
Todavia, durante o período p -hisrico, os minérios de imporncia
capital para o progresso tecnológico do homem eram de tipo mais modesto,
e sua distribuição mais difusa. Os mais importantes são os minérios líticos, de
estrutura homogênea e grande dureza, oferecendo excelentes possibilidades de
fissão.
2
Distinguem -se, nessa categoria, as rochas ígneas vitrosas encontradas nas
regiões vulcânicas da África oriental, particularmente nos arredores do Gregory
Rift Valley. Estas rochas foram a base da indústria paleolítica capsiense do
Quênia, que produziu longas lâminas e diversos utensílios microlíticos.
Outro material de boa qualidade são as formas siliciosas, como o quartzito,
e as rochas de textura fina endurecidas, como o sílex, os xistos e os tufos. No
Zimbabwe, a indústria mesolítica bambata consumiu grandes quantidades de
calcedônia, enquanto o sílex e a sílica do Eoceno eram utilizados no planalto da
Tunísia e no Egito, para onde se supõe tenham sido importados. O quartzito,
dentre todos o mais difundido na África, sobretudo na forma de seixos presentes
nos cursos d’água, foi a base das indústrias acheulenses do Paleolítico. Em certos
lugares, como no curso médio do Orange, na África do Sul, os xistos endurecidos
foram utilizados com a mesma finalidade que o quartzito.
São, no entanto, inferiores as propriedades líticas dos anfibolitos de textura
fina, conhecidos pelo nome de greenstones, e das rochas ígneas profundas ou
intermediárias, como o basalto, o dolerito e o diorito todas oferecendo material
2 ROSENFELD, A. 1965, p. 138.
370
Metodologia e pré -história da África
apropriado para a fabricação de machados e enxós. Estas rochas serviam também
para a confecção de armas, como as pedras de arremesso, e de pontas de flecha.
De todas as rochas ígneas de grande consumo, talvez o basalto tenha sido a mais
utilizada na manufatura de recipientes de pedra, embora praticamente todas as
variedades de rochas disponíveis tenham sido empregadas com esta finalidade.
Os granitos, o diorito e o porfirito, rochas ígneas, foram utilizados localmente e
de forma intensiva. Também eram conhecidas as rochas de menor dureza, como
as calcárias; no Egito, por exemplo, chegaram a ser utilizadas rochas como a
esteatita e a serpentina. Além do mais, a argila constituiu, em toda a África, a
base da indústria da cerâmica, amplamente difundida e altamente diversificada,
remontando ao Mesolítico.
A importância dos minerais no desenvolvimento da tecnologia humana
durante a pré -história vai além da simples fabricação de ferramentas, armas e
recipientes: abrange também a construção de moradias, onde o barro substituía
o gesso. Edifícios públicos importantes, monumentos como as pirâmides do
Egito exigiram grandes quantidades de rochas graníticas duras ou de quartzito.
Os minerais forneceram os pigmentos para as pinturas rupestres, algumas das
quais, no Saara e na África austral, conservaram -se admiravelmente até nossos
dias. Os pigmentos eram obtidos através da trituração de diferentes tipos de
rochas, como a hematita, o manganês e o caulim, misturando -se o resultante
com elementos gordurosos ou resinosos.
Mas foi certamente o ferro o minério de maior importância para o
desenvolvimento da África no fim da era pré -histórica. A tecnologia moderna,
devido a sua mecanização complexa e aos pesados investimentos econômicos que
acarreta, torna necessária a exploração de jazidas relativamente ricas em minérios
e em geral próximas umas das outras. Mas a situação na pré -história era menos
restritiva. O laterito, ou crosta ferruginosa, recobre vastas zonas nas savanas
herbosas da África e também reveste grande variedade de rochas. nos antigos
platôs peneplanizados. Algumas variedades são tão ricas que constituíram a
base das primeiras atividades da metalurgia do ferro. o logo foi descoberta,
a técnica expandiu -se com rapidez de ponta a ponta do continente, marcando
forte contraste com o cobre e o estanho, que, por se concentrarem em áreas
muito restritas, não permitiram a ampla difusão da cultura do bronze na África, à
exceção de algumas comunidades pré -históricas que faziam uso do cobre, como
os habitantes do planalto do nordeste da Etiópia e os grupos Luba e Shaba.
Deve -se, porém, salientar a existência de uma idade do cobre na Mauritânia,
pelo menos cinco séculos antes da Era Cristã.
371
Geograa histórica: aspectos econômicos
Os recursos vegetais e o crescimento populacional
Graças a seus recursos vegetais, o continente africano de suprir as
necessidades de uma população cuja densidade não cessou de aumentar. Como
ressaltamos, a África é, antes de tudo, um continente de pradarias. Uma
grande variedade de ervas vivazes cobre mais de 50% de sua superfície total;
em seguida vem o deserto, com cerca de 30%; depois a floresta, com menos
de 20%. No plano da ocupação humana, essa diversidade de meios ambientes
foi importante na medida em que eles asseguravam a subsistência da ca,
forneciam frutas ou raízes comestíveis, bem como materiais para a fabricação
de utensílios, vestimentas, abrigos, e, finalmente, ofereciam cultígenos passíveis
de aclimatação e transformação em culturas agrícolas.
A zona das pradarias é, por essência, a reserva da caça africana, com sua
grande variedade de antílopes, gazelas, girafas, zebras, leões, búfalos, búbalos,
elefantes, rinocerontes, hipopótamos, sem contar a ca de pequeno porte.
Assim, como salientou Clark, não é de surpreender que encontremos alguns
dos mais antigos sítios de ocupação humana ao longo dos cursos d’água ou
dos grandes rios, à beira dos lagos ou do mar, numa paisagem que, hoje, é a
pradaria, a savana, o Sahel semidesértico ou o deserto.
3
A floresta era, em geral,
despovoada. Com o tempo, porém, o crescimento populacional bem como o
grande desenvolvimento das técnicas incitaram o homem a ocupar todo tipo de
região: do litoral aos altos planaltos montanhosos; do que é hoje deserto árido
às profundezas da floresta densa.
Conm lembrar, no entanto, que as atuais zonas de vegetação não
correspondem necessariamente à situação existente nos tempos pré -históricos.
Diversos ciclos de grandes variações climáticas marcaram o Saara, que, durante o
Quaternário Inferior, foi mais úmido e apresentou uma vegetação de tipo savana,
que fornecia alimento para animais como o boi, o porco selvagem (Phacochoerus),
o antílope e o hipopótamo. Acredita -se que, por sua vez, a floresta equatorial
tenha, simultaneamente, atravessado períodos mais áridos.
Ao mesmo tempo em que se beneficiava das riquezas animais oferecidas
pelas diferentes zonas de vegetação, o homem explorava essas mesmas áreas
para abastecer -se de frutas e raízes comestíveis. A presença de florestas -galerias
ao longo dos cursos d’água nas regiões de pradarias, permitia ao homem do
Acheulense a coleta de frutas, sementes e nozes das florestas e das savanas.
3 CLARK, J. D. 1970, p. 93 -94.
372
Metodologia e pré -história da África
Segundo Clark, muitos frutos selvagens, nozes e plantas da savana, acessíveis no
norte da Zâmbia aos Nachikufu do Paleolítico Superior tais como os frutos
do mubuyu e do musuku –, são ainda hoje coletados regularmente e consumidos
pelos povos de língua bantu.
4
Quando o crescimento populacional atingiu uma
tal proporção que todos os tipos de meio ambiente foram virtualmente ocupados,
a gama de produtos adequados ao consumo do homem deve ter aumentado
consideravelmente. Acredita -se, por exemplo, que a grande imporncia
atribuída a certos cereais pelas comunidades que viviam da coleta no vale do
Nilo antecipou o plantio intencional de grãos e conduziu à era da expansão
agrícola, de efeito decisivo na ocupação humana da África.
Além da ca e da coleta, as riquezas vegetais tinham uma imporncia
capital no que concerne à provisão de utensílios, à indumentária e à moradia. Na
extremidade sul do lago Tanganica, nas proximidades de Kalambo Falls, foram
descobertos utensílios de madeira em ótimo estado de conservação. Trata -se
de alguns instrumentos curtos, afiados numa ou nas duas extremidades, e de
bastões talhados de forma oblíqua, provavelmente utilizados como pá, todos
remontando ao Paleolítico Inferior. Embora utensílios de madeira raramente
tenham se conservado em outros lugares, parece que sua utilização era comum.
Na floresta equatorial, o complexo industrial lupembiense do Paleolítico reflete
nos seus bifaces nucleiformes toda a importância da técnica da madeira. Da
mesma forma, a presença, na savana herbosa da Zâmbia e do Malavi, de diversos
tipos de raspadores pesados entre os instrumentos líticos-nachikufuenses do
Paleolítico Superior pressupõe o uso constante da madeira e de seus sucedâneos
na confecção de muitas espécies de cercas, estacas e armadilhas de caça.
Nos locais em que a caça de grande porte era insuficiente para garantir
o suprimento de peles nas regiões arborizadas, por exemplo usava -se a
casca das árvores como vestimenta. É provável que os machados cortantes e
encabados, como os encontrados nos arredores dos rochedos do Mwela, no
norte da Zâmbia, tenham servido para extrair a casca das árvores e prepará-
-las para a confecção de roupas, recipientes e cordas. A partir do Mesolítico,
principalmente, os produtos vegetais passaram a ser utilizados na construção de
abrigos, que substituíam a habitação nas cavernas. Assim, com galhos de árvores,
colmo e palha traada, construiu -se o corta -vento mesolítico, cujas rnas
encontradas em Gwisho Springs datam de meados do III milênio antes da Era
Cristã. No Neolítico, especialmente nas zonas onde havia sido descoberta a
4 CLARK, J. D. 1970, p. 178.
373
Geograa histórica: aspectos econômicos
agricultura, multiplicaram -se e difundiram -se abrigos feitos de matérias vegetais
e, às vezes, de barro e vegetais. Constituem, sem dúvida, o marco inicial do
domínio cultural do homem sobre a paisagem.
Mas, se a presea de moradias tão simples assinalou os prirdios da
ocupação efetiva da superfície do globo pelo homem, foi a aptidão para escolher
e domesticar novas plantas dentre as espécies selvagens que o cercavam que
consagrou, finalmente, a sua superioridade. As condições que permitiram ao
homem criar novas espécies cultiváveis (os cultígenos) a partir de suas variedades
selvagens constituem ainda um tema controvertido para os cientistas. A
contribuição da África para este importante evento, os enigmas que o cercam,
são também objeto de polêmica. No atual estágio de nossos conhecimentos, de
modo geral se admite que essa participação foi menos notável que a da Ásia.
Empreendidas após a redação da obra monumental do botânico russo Vavilov
que se recusou a admitir a existência, na África, de outro centro de seleção
digno deste nome que não as terras altas da Etiópia pesquisas mais recentes
passaram a apresentar uma perspectiva melhor orientada no que diz respeito à
contribuição endógena da África para o desenvolvimento das culturas agrícolas.
5
Nesse aspecto, é incontestável que, a savana foi sensivelmente mais importante
que a floresta. Foi na savana que, entre o IV e o II milênio antes da Era Cristã,
selecionou -se grande número de variedades indígenas apropriadas ao cultivo;
Grande número de cultígenos constituíram o “complexo da agricultura com
sementes”, caracterizado pela semeadura como preparação ao cultivo.
6
Em contrapartida, algumas aclimatações empreendidas na floresta faziam
parte do complexo das vegeculturas que implicam, enquanto fase precedente
ao cultivo, o preparo de brotos, mudas, rizomas ou tubérculos. A aclimatação
mais importante nessa região foi a do inhame (Dioscorea spp), do qual inúmeras
espécies são atualmente cultivadas. Outra planta domesticada na mesma região
foi a palmeira -do -azeite ou dendezeiro (Elaeis guineensis).
Apesar do número restrito de culturas aclimatadas, a descoberta da
agricultura implicou uma nova e fecunda relação entre o homem e o seu biótopo.
Significou sobretudo uma certa receptividade às inovações, como a difusão de
cultígenos provenientes de outros horizontes. A África deve à Ásia e à América
do Sul bom mero dessas novas culturas. No quadro das riquezas vegetais
naturais, o estabelecimento de uma preferência por um número limitado de
plantas, indígenas ou estrangeiras, significou que o homem não só era capaz de
5 VAVILOV, N. L. 1935. Ver Cap. 27.
6 PORTERES, R. 1962, p. 195 -210. Ver Cap. 27.
374
Metodologia e pré -história da África
extrair sua subsistência do meio natural, como também se punha a caminho de
modificações biológicas maiores. A necessidade de arrotear terras para implantar
novas culturas e de eliminar outras plantas que pudessem disputar com elas
os elementos nutritivos do solo acarretou em toda a África mudanças radicais
no caráter da vegetação. O fogo talvez tenha sido o elemento mais poderoso
utilizado com aquela finalidade. Os testemunhos de sua utilização pelo homem
africano remontam à fase mais recente do Paleolítico Inferior; permitiram
concluir que o homem o empregava comum ente na África 60.000 anos.
Entretanto parece que, a princípio, ele o utilizou apenas para sua proteção,
para a confecção de utensílios; talvez mesmo nas caçadas, incendiando o mato
para desalojar a caça. Com a descoberta do cultivo, era natural que o homem
usasse o fogo também para eliminar a vegetação nociva. Esta luta travada pelo
fogo contra a vegetação e em benefício do cultivo afetou de maneiras diversas
as plantas herbáceas e as árvores. Na savana, especialmente durante a estação
seca, a erva queimava até o nível do solo, mas as raízes, enterradas, impediam
sua destruição. As árvores, ao contrário, quando protegidas por cascas espessas,
morriam ou tornavam -se disformes e retorcidas.
A introdução do fogo no ambiente natural acarretou, assim, uma transformação
considerável na paisagem, provocada pelo homem ao longo dos tempos. Como
consequência das queimadas frequentes, que acabavam por destruir as espécies
vulneráveis da floresta densa, criavam -se novas condições, favoráveis à expansão
progressiva das pradarias. Na África ocidental, este processo mostrou -se
suficientemente dinâmico para estabelecer uma zona de savana derivada”, ou
antrópica, que se estende do sul até 6
o
de latitude norte.
7
Na savana propriamente
dita, constata -se que, sob o impacto de duas queimadas anuais, o caráter da
vegetação modifica -se segundo as características menores da paisagem, passando
de pradaria, nas planícies, a uma savana arborizada nos terrenos mais rochosos.
De fato, a preservação dessas matas residuais em terrenos rochosos levou a se
pensar que, em uma grande parte do que hoje é a pradaria, a vegetação principal
deva ter sido a floresta.
8
De qualquer forma, as pradarias africanas proporcionaram ao homem do
passado consideráveis fontes de recursos: não eram mais fáceis de arrotear,
como também permitiam fácil locomoção. A facilidade de locomoção foi fator
decisivo para o povoamento da África que é, por excelência, o continente das
grandes migrações humanas, algumas das quais puderam ser reconstituídas
7 MORGAN. W. B. e PUGH, J. C. 1969, p. 210.
8 EYRE, S. R. 1963.
375
Geograa histórica: aspectos econômicos
graças a testemunhos arqueológicos, etnológicos, linguísticos e históricos. Esses
grandes movimentos de população foram importantes dada a rapidez de difusão
de ideias novas e principalmente de técnicas e instrumentos. A propagação foi
por vezes tão rápida que as pesquisas para identificar os sítios de origem de uma
determinada inovação quase sempre enfrentam grandes dificuldades.
A mobilidade do homem sempre foi um fator vital na organização das
populações em entidades políticas. Dessa maneira, as savanas africanas tiveram
influência benéfica, proporcionando as condições preliminares à criação dos
Estados. Dotados de meios de coerção, esses Estados procuraram dominar outros
grupos que dispunham de organização ou equipamentos militares inferiores
aos seus. Uma vez vencidos, tais grupos deixavam -se assimilar ou refugiavam-
-se em redutos menos acessíveis ou hospitaleiros. Em resumo, o corolário do
surgimento dos Estados na zona das savanas foi a dispersão dos grupos mais
fracos, menos organizados, para ambientes hostis: zonas montanhosas íngremes,
desertos, florestas densas.
Vê -se, portanto, que as riquezas vegetais desempenharam um papel
preponderante na evolução histórica do homem na África. Além de provê -lo
com abundantes reservas de frutas e tubérculos, permitiram a criação de culturas
que, cuidadas e protegidas, proporcionaram -lhe novos e mais ricos meios de
subsistência. O incremento dos recursos alimentares facilitou o crescimento
regular da população africana. Segundo Carr Saunders, até 1650, o continente
só perdia para a Ásia em termos de população. Seus 100 milhões de habitantes
representavam mais de 20% do total mundial.
9
Um dos fatores importantes
do crescimento populacional foi também a maior segurança oferecida pelas
entidades socio políticas melhor organizadas. Dada sua expansão mais acentuada
na zona das savanas, torna -se fácil entender por que, à época, eram estas as regiões
proporcionalmente mais povoadas do continente. Esta proporção irá modificar-
-se aos poucos a partir do século XVI, especialmente na África ocidental, com
o tráfico de escravos e a colonização estrangeira.
Recursos animais e diversidade cultural
A distribuição das riquezas animais está estreitamente relacionada com a das
riquezas vegetais. A África sempre foi considerada um continente particularmente
9 CARR SAUNDERS, A. M. 1964. Atualmente, a população da África representa apenas cerca de 10%
do total mundial.
376
Metodologia e pré -história da África
rico em mamíferos. De fato, afirma -se que, excluindo o morcego, existem 38
famílias de mamíferos africanos.
A distribuição desses animais no continente evoluiu no tempo e no espaço.
Vestígios fósseis indicam que todas as regiões da África, em determinado
momento, foram povoadas por grandes espécies selvagens. A região mediterrânea
da África do Norte abrigou animais como o leão e o elefante, vários dos quais
acredita -se tenham sido afugentados pelas grandes secas do Pleistoceno. A
maior parte dos que restaram foi vítima, no decorrer dos dois últimos milênios,
de um apresamento desmesurado; é o caso, por exemplo, do fornecimento de
animais aos anfiteatros romanos. Mais recentemente, em meados do século XIX,
as tropas francesas do duque de Aumale descobriram grandes quantidades de
animais selvagens, inclusive leões, por onde quer que passassem na Argélia, das
rochas íngremes do Constantino às planícies de Oran.
O próprio deserto ainda conserva uma série de espécimes da fauna selvagem:
gazelas dorca e dama, o ádax, o órix com chifres em cimitarra, o órix algazel, etc.
Sabe -se que no decorrer de períodos mais úmidos, muito remotos, essas riquezas
foram incomparavelmente superiores, incluindo animais como o hipopótamo, a
girafa, o búfalo gigante, hoje extinto, e antílopes de porte maior.
São as savanas africanas, no entanto, o verdadeiro reduto da maior parte
da caça de grande porte.
10
Nas savanas do oeste, leste, centro e sul da África,
encontram -se animais carnívoros, como, por exemplo, o leão, o leopardo, o gato-
-tigre africano e a hiena. Ali vivem também o búbalo, o topi, a gazela, o facoquero,
o antílope ruão, a zebra, a girafa e a avestruz. É habitat natural do elefante, do
búfalo, do rinoceronte -negro, do alce -de -Derby e do alce -do -Cabo, do cefalofo,
do cob singsing e do cob -dos -juncais. A extensão do território ocupado por
cada espécie modificou -se ao longo dos séculos. Todos esses animais sofreram,
por parte do homem, grandes devastações. Na luta pela sobrevivência, certas
espécies cederam lugar a outras, à medida que se modificavam as condições do
meio ambiente. Assim, pode -se, por exemplo, atribuir a ausência do rinoceronte-
-branco entre o Zambeze e o alto Nilo Branco às modificações do clima e da
vegetação durante o Pleistoceno, as quais beneficiaram o rinoceronte -negro,
mais agressivo.
Embora a maior parte da caça selvagem se encontre na floresta da África
tropical, essa região é, em seu conjunto, menos favorecida no plano das riquezas
animais. Entre os mais notáveis habitantes da floresta, encontram -se o bush
10 SOMMER, F. 1953, p. 64. Ver Cap. 20.
377
Geograa histórica: aspectos econômicos
pig, ou porco -do -mato, o javali -gigante, o bongo, os grandes macacos, como o
chimpanzé e o gorila, bem como o ocapi. Nesse caso também, as modificações
do meio afetaram a extensão de territórios anteriores. Os vazios constatados nos
povoamentos de bongos devem -se ao estreitamento do que outrora devia ser
uma floresta densa cobrindo toda a África equatorial.
A abundância de recursos animais foi sem dúvida bastante útil ao homem
durante o longo período em que se dedicou basicamente à caça. As reservas
pareciam a tal ponto inesgotáveis, que algumas comunidades africanas até hoje
não ultrapassaram esse estágio de desenvolvimento.
Os peixes representam outra categoria importante de recursos animais, sendo
igualmente “caçados” desde o Mesolítico. Não só os cursos d’água, mas também
os lagos de água doce – Rodolfo, Nakuru e Eduardo na África oriental e central,
Chade na África ocidental atraíram os primeiros grupos de homens por sua
piscosidade.
11
Entre os rios, o Nilo teve, evidentemente, uma importância especial.
Às suas margens foram encontrados vestígios de comunidades que utilizavam
arpões e anzóis feitos de osso e que também caçavam e consumiam hipopótamos
e crocodilos. Observa -se ainda hoje, em toda a África, o uso de simples canoas
esculpidas em troncos de árvore para a pesca nas águas do interior. Algumas
poucas comunidades de pescadores chegaram a construir canoas relativamente
grandes para se aventurar na pesca no litoral marítimo. Em nenhum lugar, até
época recente, a evolução técnica foi suficiente para permitir a exploração dos
abundantes recursos dos oceanos que rodeiam o continente.
A extraordinária riqueza e variedade da fauna terrestre forneceu uma enorme
reserva potencial de animais domésticos. Contudo a domesticação de animais
na África restringiu -se praticamente ao jumento, ao gato, à galinha -d’angola,
ao carneiro e ao boi.
12
Essa modesta performance deve -se à influência, durante o
Neolítico, de métodos mais antigos e eficazes experimentados na Ásia. Foi nesse
período que o continente se iniciou no pastoreio. Segundo Clark:
“Os primeiros pastores ‘neolíticos’ apareceram no Saara no decorrer do V milênio
antes da Era Cristã, ou talvez ainda mais cedo. Conduziam rebanhos de gado de
chifres longos ou curtos, cabras e carneiros. E assim prosseguiram até que a crescente
dessecação do Saara de os expulsasse”.
O pastoreio, todavia, não se desenvolveu de maneira uniforme em todos os
meios do continente. Enquanto a maior parte das comunidades logrou dominar
11 Cf. PUTTON. Ver Cap. 20.
12 CLARK. J. D. 1970, p. 204.
378
Metodologia e pré -história da África
as variedades menores de gado, apenas uma minoria conseguiu domesticar as
maiores, como foi o caso dos Tuareg do Saara, dos Peul da savana da África
ocidental, e dos Massai das pradarias da África oriental, que continuaram ligados
à vida pastoril, renunciando a qualquer tentativa de combinar este modo de vida
com o agrícola. Seguindo incessantemente seus rebanhos em busca de água e
pastagens, essas comunidades mantêm até hoje uma vida nômade na sua mais
pura forma. Alguns grupos Bantu da África oriental conseguiram, entretanto,
associar a criação de gado à prática agrícola, em proveito de ambas as atividades.
Pode -se apontar como um dos elementos que detiveram o desenvolvimento
do pastoreio na África a proliferação de outras espécies animais, que exerceram
influência particularmente negativa sobre a expansão das riquezas do continente.
O primeiro caso a se mencionar é o da mosca tsé -tsé. Grande e bastante móvel,
é ela o principal não o único transmissor da tripanossomíase, infecção que
provoca no homem a doença do sono e que é mortal para os animais.
A mosca tsé -tsé é encontrada atualmente numa faixa que atravessa a África
entre 14
o
N e 14
o
S, com exceção apenas dos territórios com altitude superior a
1000 m, relativamente frios, e das regiões de vegetação rasa, onde a estação seca
é demasiado quente e árida para permitir a reprodução da mosca.
A presença da tsé -tsé na África data de épocas muito remotas. Impressões
fossilizadas desse inseto encontradas na América do Norte em camadas do
Mioceno permitiram concluir que sua propagação foi bem maior nos tempos
pré -históricos.
13
Seu desaparecimento de certas regiões da África ou de outras
partes do mundo pode ter -se devido a uma combinação de mudanças climáticas,
barreiras naturais e glaciação. É provável que, mesmo na África, as alternâncias
climáticas do Pleistoceno tenham exercido influência considerável não só sobre
a distribuição das diferentes espécies de tsé -tsé como também sobre seu grau
de nocividade.
As regiões infestadas por essas moscas constituíram uma barreira muito eficaz
ao desenvolvimento da criação. Os pastores depressa devem ter compreendido
que seus rebanhos corriam grandes riscos ao atravessar as zonas infestadas.
Assim, descida dos rebanhos para o sul, a partir da África do Norte, ficou
condicionada à existência de corredores livres de moscas, tanto naturais quanto
criados por comunidades agrícolas organizadas e suficientemente densas. Um
bom exemplo desses últimos é dado pela migração, há cerca de nove séculos, de
13 COCKERELL, T. D. A. 1907; 1909; 1919, p. 301 -11.
379
Geograa histórica: aspectos econômicos
pastores -criadores que formaram, graças à fusão com outros povos, a sociedade
dos Tutsi e Hutu de Ruanda e do Burundi atuais.
Sem dúvida, a história da África teria sido diferente se o continente não
tivesse conhecido a tsé -tsé. Uma vez que a presença dessa mosca impossibilitava
a utilização do gado de grande porte pelas comunidades agrícolas, esses animais
nunca foram empregados para tração. Tampouco se criaram condições para a
descoberta da roda, de fundamental importância. Por outro lado, a facilidade de
deslocamento de certos povos, propiciada pela presença do gado de montaria,
não deixou de incitá -los à agressão e, eventualmente, ao domínio político sobre
povos sedentários.
14
O mosquito transmissor da malária e o gafanhoto representam também
fatores zoológicos adversos. Dentre as muitas espécies de mosquitos capazes de
transmitir os diferentes tipos de parasitas da malária, algumas são mais atraídas
pelo sangue humano que outras. O mosquito transmissor mais frequente na África
é o Anopheles gambiae, de difícil erradicação pois, alimentando -se também do
sangue animal, consegue sobreviver mesmo quando temporariamente impedido
de atacar o homem. O mosquito em geral procria em águas estagnadas, sendo
mais incidente nas imediações de pântanos e rios. Sua reprodução cresce com o
aumento das chuvas, e as altas temperaturas estimulam tanto o desenvolvimento
de suas larvas quanto o ciclo do plasmódio no inseto adulto. Já as temperaturas
mais frias dos locais de maior altitude reduzem sua virulência. Assim, a malária
endêmica tende a desaparecer em altitudes acima de 1000 metros, ainda que
sua transmissão possa persistir.
Não se sabe ao certo desde quando esse mosquito é parte integrante do meio
humano na África. A grande porcentagem de células de Golgi encontradas em
muitas populações africanas parece indicar uma longa e estreita relação entre
essas células e a evolução da população na África. Tal peculiaridade certamente
se deve ao impacto multissecular da seleção, que favoreceu a sobrevivência dessas
populações em condições de infecção hiperendêmica da malária.
Na medida em que tornou bem menores as chances de sobrevivência de
grupos humanos não -adaptados, o mosquito da malária também desempenhou
papel importante na história do continente. Até o século XX, ele efetivamente
desencorajou os europeus na tentativa de se instalarem sob o clima quente e
úmido da África ocidental, resguardando, assim, a região dos problemas inter-
-raciais que abalaram a história das terras altas da África do norte, do leste, do
centro e do sul, vítimas da colonização.
14 Ver a esse respeito o papel da cavalaria na formação dos Estados, sobretudo ao norte do equador.
380
Metodologia e pré -história da África
Os gafanhotos fazem parte das pragas tradicionais da África. São insetos
grandes, que normalmente vivem solitários ou em pequenos grupos. São
encontrados nas zonas de transição das vegetações, às margens do deserto ou da
savana herbosa e da floresta. Ao sul do Saara encontram -se três tipos principais: o
gafanhoto vermelho, o gafanhoto migrador africano e o gafanhoto do deserto. Os
três requerem dois tipos diferentes de habitat: solo desértico para depositar os ovos
e paisagem verde para alimentar -se. Quando, por motivos diversos, seu terreno de
alimentação se restringe demasiadamente, esses insetos se agrupam em enormes
enxames e invadem zonas próximas ou distantes. Exemplos de tais invasões
em passado muito remoto não são facilmente identificáveis, embora o Antigo
Testamento faça referência ao gafanhoto como uma das pragas que afligiram
o Egito ao tempo de Moisés. A partir do século XIX, os registros de invasões
tornam -se mais abundantes. Sabe -se que a África central sofreu sucessivos ataques
de gafanhotos entre 1847 e 1854, 1892 e 1910 e, mais recentemente, entre 1930
e 1944. Para as populões agrícolas sedentárias, as depredações causadas pelas
nuvens de gafanhotos, sobretudo quando ocorrem logo antes da colheita, podem
significar uma passagem brutal da abundância à fome. Quando, no passado,
condições climáticas adversas, como a seca, por exemplo, coincidiam com essas
invasões, sobrevinham grandes transtornos políticos e sociais.
As reservas de água e a mobilidade humana
Não se deve subestimar a importância das reservas de água na evolução
da história da África. Se áreas do continente com os mais altos índices
pluviométricos do mundo, outras há que apresentam os índices mais baixos. As
imensidões do Saara e do Calaari são o testemunho irrefutável da implacável
aridez de grandes porções da África. Mas, além dos desertos, a vasta zona das
savanas recebe precipitações apenas satisfatórias, o que torna a vida humana,
nessas regiões, em grande parte, dependente das caprichosas flutuações dos
ventos portadores de chuva. O fato não seria tão alarmante se fosse possível
recorrer a outras fontes de água, como rios, lagos e lençóis freáticos.
Em extensas áreas do continente, todavia, e em especial nas reges
relativamente quentes das terras baixas, os vales fluviais estão infestados de insetos
nocivos, tornando -se impprios ao estabelecimento do homem. Além do mais, o
regime dos rios acompanha de perto o das chuvas, sendo de pouca ajuda durante
os períodos de precipitações insuficientes ou de prolongada estiagem, quando
secam até mesmo os leitos dos rios. Excetuando -se o vale do Nilo, a tecnologia
381
Geograa histórica: aspectos econômicos
tradicional não conhecia meios de armazenar água para as épocas de seca. O
pequeno desenvolvimento tecnológico impedia também o aproveitamento das
águas subterrâneas localizadas além de certa profundidade, mesmo em áreas de
bacias artesianas, por exemplo, onde as estruturas geológicas favorecem a retenção
de grandes reservas. O embasamento rochoso de grande parte do continente reduz
a capacidade de armazenamento de água em lençóis abundantes, tornando os
habitats humanos exclusivamente dependentes das precipitações anuais.
A escassez de água resultante das condições de seca rigorosa sempre foi uma
das características da vida africana: A história climática do Pleistoceno mostra
que nas várias regiões do continente houve provavelmente um regime cíclico de
longos períodos de precipitações mais ou menos intensas. De qualquer forma,
a seca representa uma pressão do meio ambiente sobre os grupos humanos;
ela os força a reagir. Quase sempre essas reações se traduzem pela procura
de zonas mais irrigadas para estabelecimento definitivo ou temporário. Tais
movimentos migratórios podem ser pacíficos, porém muito frequentemente
tendem à agressividade, o que vai depender do modo como estão organizados
e como são dirigidos. A história de muitas comunidades africanas registra suas
migrações ou as incursões que sofreram por parte de grupos migratórios mais
poderosos, que as submeteram, obrigando -as a uma reorganização social.
Nas reges em que existe água em quantidade suficiente, pluvial ou
subterrânea, em que a agricultura pôde desenvolver -se, uma população organizada
cresce segundo um processo de evolução social progressiva no árduo caminho
do domínio da natureza. As safras amadurecem, ricas e variadas, chegando
o ritmo de sua maturação a determinar o ritmo da vida social. A época da
colheita adquire especial importância, e são instituídos rituais para santificar
o inexplicável evento, atribuído a alguma força natural benigna. A ascensão na
escala social dessa população organizada depende de alguns fatores, sendo um
dos principais a abundância dos recursos alimentares, que permitirá a divisão
do trabalho no seio da comunidade, favorecendo a emergência de grupos
especializados em determinadas atividades. Essa evolução depende não das
reservas de água como também da fertilidade dos solos.
Os recursos do solo e a evolução social das comunidades
As características geológicas de extensas regiões da África são, em grande
parte, determinantes da qualidade dos solos. Dada a variedade de rochas do
embasamento, o caráter dos solos que se formaram sobre elementos análogos é
382
Metodologia e pré -história da África
também extremamente variável. No entanto, sua fertilidade é, frequentemente,
medíocre. Essas rochas apresentam, em geral, reservas suficientes da maioria dos
elementos minerais necessários à alimentação das plantas, mas sua variabilidade
implica mudanças abruptas dessas condições em curto raio geográfico. Os solos
formados sobre rochas sedimentares tendem a manter maior uniformidade em
grandes áreas; todavia, nada têm em comum com as extensas regiões de solos
altamente produtivos, como o tchernoziom dos trigais da Ucrânia e das pradarias
da América do Norte.
A interão de caractesticas do solo e fatores climáticos determinou a
fertilidade da terra e sua capacidade de suprir, por longo peodo, as neces
sidades de uma população densa. Nas regiões úmidas, por exemplo, a ilusão
de fertilidade provocada pelo crescimento luxuriante da vegetação dissimula a
natureza frágil do solo. Uma vez removida a vegetação natural, as substâncias
orgânicas do solo rapidamente se desintegram sob o efeito de uma intensa ação
bacteriana estimulada por temperaturas geralmente elevadas. Em pouco tempo,
a fertilidade decresce, o produto das colheitas diminui, e a população humana é
forçada a procurar novos sítios.
Nas regiões subúmidas, por outro lado, a fertilidade do solo é muito maior.
No entanto, as variações periódicas de umidade favorecem a formação de
grandes crostas de laterito, impróprias para o cultivo. A presença dessas crostas
acarreta a disseminação de solos moderadamente férteis, cujas possibilidades de
alimentar densas populações humanas são bastante reduzidas. Tais condições são
características dos solos encontrados na África ocidental, ao norte da zona da
floresta, e nos planaltos da África central, às margens da bacia do Zaire. Nas terras
semi -áridas, sujeitas a precipitações moderadas, também são encontradas essas
mesmas crostas ferruginosas, embora mais disseminadas. Consequentemente,
os solos castanhos arenosos dessa região são mais férteis e produzem safras
razoáveis em anos de pluviosidade satisfatória. O solo do deserto, que aparece
mais ao norte, é superficial e de perfil pouco desenvolvido, carecendo de matérias
orgânicas.
Uma das características marcantes da geografia da África reside, portanto, na
pequena extensão dos solos realmente férteis e em sua extrema disseminação.
Compreendem eles os solos argilosos profundos, derivados do basalto e de
outras rochas vulcânicas do Pleistoceno e de épocas mais recentes, encontrados
principalmente em regiões da África oriental. Na floresta densa, apresentam
superficialmente uma coloração chocolate, sendo de cor vermelha nos níveis
inferiores. Igualmente férteis são os ricos solos aluviais, derivados dos mesmos
tipos de rochas e encontrados nas planícies de inundação de rios como o Nilo.
383
Geograa histórica: aspectos econômicos
Possibilitando abundantes colheitas, esses dois tipos de terreno favoreceram o
crescimento de densas populações humanas. Quando tal concentração conduziu
a um alto grau de organização social e de controle do meio ambiente como
ocorreu no vale do Nilo durante o Neolítico Pré -Dinástico reuniram -se as
condições para uma aceleração do progresso. Isso implicou, no caso citado,
o desenvolvimento de uma civilização urbana, a diferenciação de classes, um
artesanato refinado, uma arquitetura monumental e, finalmente, o uso da escrita.
Foi o resultado não só de relações cada vez mais regulares com a Mesopotâmia
mas também da possibilidade de manter uma população densa, composta de
vários grupos sociais, graças à prosperidade de uma agricultura, que, para a
época, deve ter sido impressionante.
Condições semelhantes estabeleceram -se, mais tarde, em outras regiões da
África; por exemplo, na curva do Níger, quando da criação do império de Gana,
no início do período medieval”. Mas, apesar de outras áreas apresentarem solos
relativamente férteis, vastas extensões do continente, em particular as planícies de
altitude, que há milhões de anos vêm sofrendo os efeitos da lixiviação, possuem
solos de pequena espessura que carecem de nutrientes, sendo ainda hoje de
limitado interesse para a agricultura. Nessas regiões, foi unicamente através da
alternação de culturas que o homem conseguiu sobreviver desde o Neolítico.
Esse tipo de economia representa evidente desperdício no que concerne ao
uso do solo, tendo sido obstáculo à formação de comunidades relativamente
densas. A distribuição esparsa da população em extensas áreas do continente,
bem como os efeitos dessa dispersão na evolução social devem ser considerados
como um fator nefasto na história da África. É indiscutível que a fertilidade
de qualquer região depende tanto de suas características próprias quanto da
eficácia da exploração do solo. Também é certo que, em outras regiões do mundo,
sociedades que hoje atingiram um alto nível de evolução social atravessaram
fases em que sua economia dependeu, igualmente, de culturas acidentais. Na
África, a exploração racional do solo é de fundamental imporncia para a
evolução social. Determinante no passado, ela indica o caminho a seguir para
encetar seriamente o ciclo de um progresso decisivo.
Conclusão
A geografia histórica da África – sobretudo no que diz respeito aos aspectos
econômicos apresenta a imagem de um continente com o qual a natureza
se mostrou de uma benevolência extrema, ao menos superficialmente. Esse
384
Metodologia e pré -história da África
caráter aparente da magnanimidade da natureza, tão bem ilustrado pela frágil
exuberância da floresta tropical, constituiu uma espécie de armadilha para os
povos do continente. Encontrando condições fáceis de sobrevivência, certas
comunidades ignoraram os imperativos prementes da evolução social. Sem
vida, aqui e ali, apareceram alguns homens ou grupos que procuraram
estimular seus semelhantes ao progresso. Suas exortações, entretanto, muitas
vezes ficaram sem resposta. Mais que qualquer outro fator, a intervenção
estrangeira teve, certamente, um efeito sinistro sobre o desenvolvimento geral
do continente no decorrer da longa e implacável história do comércio escravo.
Mas o fato de uma tal intervenção ter sido possível não constituiria uma severa
advertência aos riscos a que está exposto todo grupo humano que deixa de zelar
continuamente pela constituição de organizações sociais cada vez mais coesas,
extensas, complexas e fortes, que possibilitem fazer frente a eventuais desafios?
A história da África de nada nos servirá se não salientar esse fato. A geografia
contemporânea da África revela um continente ainda rico em recursos naturais,
como na Pré -História. Seu passado colonial recente contribuiu, no entanto, para
criar uma situação em que grande parte dessa riqueza foi largamente explorada
e exportada como matéria -prima para atender à demanda de outras sociedades.
Além disso, a exploração desses recursos, por exigir avançada tecnologia,
se faz possível com a condição de que os povos africanos se organizem em
grandes comunidades integradas, de forma a constituir bases sólidas para um
real desenvolvimento.
A história de duas décadas de independência política deixa uma impressão
ambígua: ao que parece, ainda está longe de ser compreendida a necessidade de
se edificar tais complexos para fazer frente a outras comunidades similares, cada
vez mais numerosas.
O propósito deste esboço de uma geografia hisrica e econômica do
continente africano, se é que se pode defini -lo, é o de lembrar que a natureza não
determina nem o destino de um povo nem sua trajetória. o coage; no máximo,
influencia. Os povos, bem como os indivíduos, sempre foram e continuarão
sendo os arquitetos de seu próprio destino.
385
Geograa histórica: aspectos econômicos
 . Os recursos minerais da África (mapa extraído de l’Afrique”, coleção A. Journaux, Hatier,
1976).
C A P Í T U L O 1 5
387
Os métodos interdisciplinares utilizados nesta obra
A interdisciplinaridade
A interdisciplinaridade na pesquisa histórica é um tema em voga. Mas sua
aplicão torna -se difícil, quer pela disparidade das metodologias próprias
de cada disciplina, quer pela influência dos hábitos particularistas em que se
acham enquistados os próprios pesquisadores, zelosos de manter uma espécie de
soberania territorial epistemológica. Essa tendência à especialização se faz sentir
na própria apresentação dos resultados da pesquisa, que continua a distinguir
na vida de um povo, em capítulos bem isolados, a vida econômica, a sociedade,
a cultura, etc. Quando, porventura, se tenta uma abordagem interdisciplinar,
frequentem ente ela se faz em termos de fagocitose. Nessa guerra por primazia
e hegemonia, a história ocupa uma posição ambígua. De fato, ela é essencial a
todas as disciplinas. Mas, como não dispõe do vocabulário específico mais ou
menos esotérico que para as outras ciências funciona como uma fortificação
em que se entrincheiram os especialistas, aparece como disciplina -cômpito,
arriscando pagar com a legitimidade sua onipresença.
Disciplina -orquestra, a história dispunha, tradicionalmente, de um maestro
o documento escrito. Mas a história da África, ao sul do Saara principalmente,
caracteriza -se pela relativa pobreza de fontes escritas, sobretudo antes do século
XVI e, mais ainda, antes do século VII da Era Cristã. Ora, “quem não tem
Os métodos interdisciplinares
utilizados nesta obra
J. Ki ‑Zerbo
388
Metodologia e pré -história da África
mãe mama na avó
1
, diz um provérbio africano. Na ausência de fontes escritas,
a história da África deve coligar todas as fontes disponíveis para reconstituir
o passado. E a carência pode, afinal, transformar -se quase num fator positivo,
na medida em que permite fugir ao peso esmagador da escrita, que por vezes
acarreta uma depreciação implícita das outras fontes. Por outro lado, a pesquisa
histórica e das ciências humanas na África sofreu, por longo tempo, de dois
males contraditórios. Em primeiro lugar, a deformação historicista, que leva a
considerar o fluxo do processo social como um rosário cujas contas são eventos
datados; em segundo lugar, a obsessão de reconstituir um calendário que torne
inteligível a evolão dos povos, e a indiferença por tudo mais (economia,
estruturas sociais, culturas).
Daí essa história linear, genealógica, fatual, em suma, esquelética, pois que
desprovida da própria carne da vida. Um outro desvio, ainda mais pernicioso,
oriundo talvez, em parte, do preconceito de primitivismo aplicado à realidade
africana por um evolucionismo sumário, analisa estruturas atemporais, abolindo
a profundidade histórica, sem a qual, no entanto, as referidas estruturas perdem
seu significado tanto objetivo quanto subjetivo. É o que acontece com certos
pesquisadores a quem as disciplinas enchem de auto -suficiência: esses linguistas
alérgicos a toda e qualquer interferência cultural e esses etnólogos funcionalistas
que recusam toda dimensão histórica. Felizmente, essas muralhas da China”
disciplinares vão desmoronando progressivamente. J. Desmond Clark escreveu:
A constatação de que arqueólogos, linguistas, antropólogos culturais ou etnógrafos
se defrontam, a maior parte do tempo, com os mesmos problemas e de que a melhor
forma de solucioná -los é a equipe interdisciplinar, é hoje um dos fatores mais
animadores e estimulantes dos estudos africanos”.
2
A pseudo -história marcada pelo fascínio exclusivo da cronologia, bem como
a miragem da análise estrutural puramente estática e formal vão aos poucos
desaparecendo, conforme atestam as escolas que introduzem a diacronia e o
conflito em seus métodos analíticos, integrando, como Calame -Griaule e Houis,
fato cultural e fato linguístico, ou abandonando, como Balandier, a abordagem
imóvel dos “sociólogos” em favor de uma abordagem dinamista, que adota como
instrumentos de análise o movimento e a comparação. Não é a contradição parte
1 A lactação parece ser um processo reexo. Todavia, a farmacopeia africana dispunha de receitas para
ativá -lo.
2 CLARK, J. D. African prehistory; opportunities for collaboration between archaeologists, ethnographers
and linguists. In: CASS, F. Language and History in Africa. 1970.
389
Os métodos interdisciplinares utilizados nesta obra
integrante da realidade? O que está claro é que nenhuma disciplina se beneficia
com uma abordagem individual da realidade densa e emaranhada do mundo
africano. Seria como querer partir o górdio a golpes de sabre. É o caso dos
pesquisadores que pensam encontrar o princípio de explicação fundamental
de uma determinada sociedade africana num único elemento: por exemplo, na
análise estrutural do parentesco ou no sistema de representações, crenças, mitos
e símbolos considerados como que dotados de uma autonomia e de uma lógica
própria, independente, por exemplo, das relações de produção.
3
Ao passo que,
em se tratando do parentesco, sua análise revela, na África, sistemas menos
puros”, mais complexos que na Austrália; por exemplo, estruturas que, admite
Lévi -Strauss, são igualmente condicionadas por outros elementos (econômicos
e políticos) além do simples mecanismo das regras de parentesco.
A história africana, menos que qualquer outra disciplina, não pode acomodar-
-se ao gueto. Nem mesmo para estabelecer aquilo que, no entanto, parece pertencer
justamente ao monopólio da história: a cronologia. Com frequência, a solução
de um problema de cronologia só pode ser corretamente alcançada com a ajuda
combinada de quatro fontes distintas de informações: os documentos escritos,
a arqueologia, a linguística e a tradição oral. O historiador, reconstituindo a
estrada do tempo, assemelha -se mais a um automobilista, que, para avaliar as
distâncias, dispõe de vários instrumentos: o velocímetro de seu carro, seu relógio,
os marcos de quilometragem e, eventualmente, o testemunho de um autóctone.
Essa conivência necessária revela -se um fator favorável para garantir a restituição
clara e integral da imagem do passado, o que não ocorreria de modo perfeito se
se recorresse a uma única fonte. A descrição de Kumbi Saleh feita por al -Bakri
no Routier permaneceria lacunar se os arqueólogos não tivessem exumado e
explicado as ruínas, ainda mais eloquentes que o cronista árabe. Ressaltemos
que, também nesse caso, a tradição oral marcou presença, pois foi graças a ela
que se descobriu o sítio de Kumbi Saleh. Nestas condições, poder -se -ia falar
de fontes nobres e fontes vulgares, classificando -as numa escala discriminatória
em cujo topo estivessem os documentos escritos e, no último escalão, a tradição
oral? Ao que parece, não. O valor de uma fonte não é uma realidade em si; varia
de acordo com o objeto específico da pesquisa empreendida. Assim, para cada
caso concreto, existe no feixe dos testemunhos disponíveis uma fonte axial, a
fonte -mestra, que pode diferir segundo o tema. Para a pré -história africana e
para as sociedades de pigmeus, os documentos escritos não constituem, por
3 Cf. GRIAULE, M. e DIETERLEN, G. 1965.
390
Metodologia e pré -história da África
definição, a melhor fonte, pois não existem. Conforme o momento e a região
da África, a panóplia de provas históricas é comandada por essa ou aquela fonte
axial, desempenhando as demais um papel auxiliar e adventício. Dependendo
do tema uma desconhecida tribo Getula ou o reino de Jugurta, os Kirdi do
norte de Camarões ou os Ashanti de Gana, os Kabye do norte do Togo ou o
império de Gao retratado por Ta’Rikh al -Fattash a fonte -mestra não será a
mesma. Somente após a conclusão da pesquisa é que se a reconhecerá. Pois, se
é a fonte que condiciona o resultado, é este que a justifica. Se tal for verdade,
pode -se antecipar, sem risco de erro, que, em se tratando da história da África,
a interdisciplinaridade, longe de ser um luxo, é um dos dados fundamentais do
método. De fato, não existe outra alternativa.
A complementaridade das fontes
As fontes da história da África são nitidamente complementares, tanto que
cada uma delas, isolada, apresenta -se com frequência mutilada, transmitindo
apenas uma imagem imprecisa do real, que a intervenção de outras fontes
pode ajudar a definir.
Isolada, a arqueologia corre o risco de tornar -se uma descrição árida, uma
atestação quase fúnebre pronunciada impudentemente com base em pequena
amostragem. E, se a única forma de corroborar ou invalidar as hipóteses
formuladas fosse aguardar o resultado de outras escavões, o ritmo das
descobertas tornar -se -ia intoleravelmente lento. Recolocada, ao contrário, no
contexto multiforme de vida que ela pretende exumar, a arqueologia presta
eminentes serviços às outras disciplinas ao mesmo tempo que delas se beneficia.
Com efeito, a explicação de seus achados encontra -se frequentemente fora dela
mesma. No Zimbabwe, por exemplo, foram as minas de ouro e a sua defesa,
bem como a religião, que deram significado à maior parte das subestruturas e
superestruturas. Alhures, o conteúdo das tumbas e a posição dos mortos nos
mausoléus encontram explicação nas crenças dos povos e na sua representação
do além. Em contrapartida, quando, no norte de Gana, escavações desvendam
um plano arquitetônico semelhante aos do Sudão saheliano, a arqueologia
levanta ou resolve um interessante problema de influência cultural.
O mesmo se com relação à arte africana, que, para iluminar a história,
deve ser por ela iluminada. Com efeito, a arte, sobretudo a arte pré -histórica, é
condicionada por uma multiplicidade de fatores, desde a geologia até as religiões,
mitos, cosmogonias, passando pelas estruturas sócio -políticas e a sede de poder
391
Os métodos interdisciplinares utilizados nesta obra
dos reis. Nessas condições, a estética é intimamente governada pela ética e, ao
mesmo tempo, servida por ela. Por outro lado, a arte muitas vezes apresenta -se
como um conservatório, um museu de antropologia cultural e mesmo física
devido aos ritos, escarificações, penteados, costumes e cenários que reproduz.
Mas a compreensão da arte em si, enquanto cnica inspirada, não pode
ocorrer fora da história. A estilística é frequentemente explicada pela organização
social. No Benin, por exemplo, os mesmos artistas (egbesanewa) esculpem a
madeira e o marfim, enquanto outros trabalham a terracota e o bronze. É
evidente que a passagem de um material para outro explica em grande parte
a feitura dos objetos em marfim ou bronze assim como a forma e a decoração
das cerâmicas pré -históricas se explicavam por sua, invenção a partir de
cestos de palha trançada. Que dizer então das máscaras, em cuja confecção os
africanos manifestaram uma imaginação sem limites? As máscaras bobo, por
exemplo, sobretudo as três principais kele (máscara de antepassado), kimi
(cabeça de marabu) e tiebele (crânio de búfalo) –, são verdadeiras personalidades
reconhecidas na aldeia, que, além de representarem testemunhos da história, dela
participam ativamente.
4
Que dizer dos cauris – já mencionados por Ibn Battuta
em 1352, na corte do Mali –, cujo fim primeiro era monetário, mas que também
serviam de adorno quando artisticamente dispostos, tendo, ainda, um valor
especial nos compromissos sociais e cerimônias religiosas? A arte, nesse caso,
encontra -se imersa num complexo que lhe dá significado e que ela, por sua vez,
vivifica. Empreender a história de certas sociedades africanas sem compreender
a linguagem múltipla dos cauris e das máscaras é como entrar numa sala de
arquivo sendo analfabeto: a leitura” de sua evolução seria necessariamente
truncada.
O mesmo ocorre com a tradição oral, assunto amplamente discutido, aliás. A
tradição oral é a história vivida, transportada pela memória coletiva com todas as
suas contingências e singeleza mas também com toda a sua força e vigor. Existe
na tradição, como na língua de Esopo, o melhor e o pior. Por certo a tradição oral
frequentemente ignora fatores econômicos e sociais, mas ainda assim se presta
a detectar outras fontes, em geral mais pertinentes, como os manuscritos e os
4 A grande máscara dos oráculos ou ‘espírito de Deus’ é o Go Gê, guardado por um sacerdote supremo
chamado Gonola. A grande scara tem uma participação importante no sistema político dessas
sociedades, extensão prática do culto dos antepassados, funcionando muito secretamente à noite.
Por ocasião das sessões do Poro, a grande máscara é previamente levada ao bosque sagrado, coberta
por um pano branco. O Gonola atua como chefe e sacerdote, dispensador da verdade insuada pelos
antepassados. O Go Gê é também um legislador, pois suas decisões são apregoadas na aldeia e têm força
de Lei”. HOUIS, M. In: Études guinéennes, 1951; HARLEY, G. W. 1950.
392
Metodologia e pré -história da África
sítios arqueológicos. Por esse motivo, recomenda -se a coleta das tradições locais
antes de empreender qualquer programa de escavações. A tradição oral ajuda
também a corrigir os erros de interpretação oriundos de um enfoque puramente
externo. Além do mais, permite limitar o número de hipóteses e reduzir o leque
de opções.
5
Porém, caso existam versões múltiplas de uma mesma tradição, será
a consulta a uma outra fonte por exemplo, o mapa das zonas afetadas por
determinado eclipse que permitirá decidir por uma delas. Ligados à tradição, os
tambores constituem um dos grandes livros vivos da África. Alguns são oráculos;
outros, estações de transmissão; outros, gritos de guerra que fazem brotar o
heroísmo; outros, ainda, cronistas que registram as etapas da vida coletiva. Sua
linguagem é, fundamentalmente, uma mensagem repleta de história. A esse
respeito, estabeleceu -se uma distinção entre a etnomusicologia interna ou
técnica e a etnomusicologia externa, ou seja, ligada à trama social e cultural.
6
As grandes epopeias ou crônicas são frequentemente cantadas por grupos sociais
organizados para esse fim, e de um modo peculiar à África, no quadro de uma
participação ativa. Pois a música nunca é recebida passivamente: é executada
por todo o grupo. Trata -se de uma celebração coletiva onde a trilogia canto-
-dança -música nos convida a uma interpretação sintética, em que a linguística,
a história, a botânica, a psicologia social, a psicologia, a fisiologia, a psicanálise,
a religião, etc., têm todas algo a dizer. Sem esperar muito da musicocronologia,
o estudo comparativo dos instrumentos e da substância musical por intermédio
de medidas aritméticas tratadas pela alise estatística pode dar resultados
convincentes quanto à difusão e ao desenvolvimento cultural. O universo musical
africano extingue -se diante da invasão de músicas de qualidade geralmente mais
pobre, porém introduzidas por sistemas econômicos mais ricos. O próprio tantã,
que fez a história, não será em breve um objeto da história?
A linguística, por seu turno, é cada vez mais uma companheira jovem,
fiel e fecunda da história, pois as línguas o um museu vivo em que se
preserva a tradição, e, para extrair -lhes a essência real”, é necessário possuir a
5 Devemos evidentemente situar a tradição oral no seu contexto. Num interessante quadro metodológico
de análise de contos e lendas, alguns estudiosos estabeleceram, em sete colunas, os dados internos
(semântica, retórica) e os dados externos ao conto, dos quais uns estão vinculados a um contexto cultural
e civilizacional, ao passo -que os outros estão fora desse contexto. Cf.Littérature orale arabo -berbère”.
4
o
Bulletin de Liaison, 1970. Centre d’Études maghrébines, Musée de l’Homme, Paris.
6 Com esse procedimento, o pesquisador pode atingir setores mais especícos: as relações entre a música
e a linguagem; os símbolos sociais e losócos ligados à música; a relação dos ritmos com os fenômenos
de possessão; as relações entre a música e o meio ambiente ecológico e econômico; as relações entre
as diversas músicas de diferentes etnias”. AROM, Simha e CONSTANT, Denis. In: MARTIN, D. e
YANNOPOULOS, T. Guide de recherches l’Afrique noire. Armand -Colin, Paris, 1973.
393
Os métodos interdisciplinares utilizados nesta obra
ciência da linguagem. Toda língua é não uma criação mental como também
um fenômeno social. Seu vocabulário, por exemplo, é o reflexo das realidades
forjadas pela história de cada povo. É, por outro lado, a língua, a palavra, que
instila um sistema de conceitos e normas de comportamento na mentalidade
e nas motivações dos povos. Certos conceitos de uma ngua o difíceis
de expressar de forma idêntica em outra, relacionada a um contexto global
diferente. É o caso do conceito de sanakuya (em mande) e rakire (em more),
aproximadamente traduzido por “parentesco de brincadeira e que desempenha
um papel histórico de grande importância na região sudano -saheliana. É o
caso, também, do conceito de dyatigui (em mande), que está longe de coincidir
com a simples noção de hospedeiro”; ou do conceito de tengsoba, traduzido
literalmente por “chefe da terra”, embora sem uma exata correspondência
semântica. A crítica linguística é constantemente solicitada pelo historiador, de
par com outras fontes. A cronologia e a origem das ruínas circulares da região de
Lobi, por exemplo, são o resultado de um conjunto de provas que se eliminam
e se reforçam mutuamente: rejeição da hipótese de uma origem portuguesa
baseada num texto de Barros, contradita pelo traçado da estrada supostamente
utilizada e pelo exame do revestimento de reboco, cujo estado de conservação
não justifica um horizonte temporal muito remoto; denominação wilé e birifor
dessas ruínas kol na wo significando “estábulos das vacas dos estrangeiros”;
identificação desses estrangeiros na pessoa dos Kulango, através do estilo das
cerâmicas encontradas nas ruínas; por fim, estimativa cronológica ligada às
tradições de migração dos povos da região. Nesse caso específico, percebe -se
concretamente o papel decisivo da linguística na tentativa de interpretação de
um determinado acontecimento histórico.
7
Mas seria uma aberração grosseira assimilar o fenômeno linguístico, que
é cultural, ao tribalismo ou ao fato biológico da raça. A língua dos cavaleiros
Dagomba, invasores das terras da bacia do Volta no século XIV, talvez tenha
caído em desuso, sendo substituída pela língua das mulheres Kusase que eles
desposaram no local e que se tornaram mães de seus filhos. Este é um exemplo
de contaminação linguística que teria ocorrido como por vezes acontece às
custas dos que detinham o poder político. A etno -história, reduzida ao presente
etnográfico quase inerte dos funcionalistas, também não é uma verdadeira história
e não poderia desempenhar papel positivo nesta conjugação das fontes, em que
cada uma constitui não um elemento estático mas uma variável transportada
7 Cf. PARENKO, P. e HERBERT, R. P. J. 1962.
394
Metodologia e pré -história da África
pelo fluxo do processo histórico. Aliás, a etno -história funcionalista negligencia
frequentem ente as culturas materiais e aquele movimento geral de produtos
no qual Leroi -Gourhan detectava a matriz das civilizações. O par mercantil
transaariano sal por ouro do Sudão, e o par cativos por fuzis que o substituiu alguns
séculos mais tarde não constituem as bases mais importantes da edificação de
reinos e impérios no oeste africano?
Nessas condições, uma sociologia dinamista representa também um dos
meios essenciais para o exercício da crítica histórica africana. Com efeito, não
se trata de transferir sem discernimento os instrumentos de análise de uma
determinada trama cio -política para outra, seja no tempo, seja no espaço,
pois haveria o risco de se criar novos problemas ao invés de solucionar os
existentes. No cálculo da duração média dos reinados, por exemplo, não se pode
simplesmente extrapolar para o passado a duração média estabelecida para um
período contemporâneo conhecido, pois a estabilidade ou instabilidade política e
social não são necessariamente as mesmas. Da mesma forma, a sucessão colateral
(de irmão para irmão) do reino Mossi do Yatenga não poderia apresentar médias
idênticas às do reino de Uagadugu, onde a sucessão se fazia preferencialmente
em linha direta (de pai para filho). No caso de Uagadugu, a duração média dos
reinados tenderia a ser mais longa, e o número de gerações, mais elevado. Ainda
que fatores religiosos possam também ser considerados. Porém, se analisarmos
as dinastias dos reis dos Gan (Gan -Massa), sistematicamente eleitos entre os
homens maduros mais jovens, a média de duração dos reinados será ainda mais
elevada. Em outras palavras, a determinação do horizonte cronológico não pode
ser feita independentemente do conhecimento da sociologia política de um
determinado país. Mas o próprio conceito de estabilidade não é um “modelo
prêt ‑à ‑porter invariável para todos os períodos e todos os países. A estabilidade
pode ser apenas aparente, ou adquirida a um preço social bastante elevado.
Na Etiópia e no reino de Uagadugu, a eliminação ou degredo dos candidatos
desafortunados e dos colaterais garantia uma certa estabilidade, porém às
custas de severas perdas humanas, que a história deve considerar em termos de
instabilidade para explicar com pertinência a evolução desses países.
Recorrer -se também às ciências naturais ou exatas para apreender ou afinar
a imagem do passado da África, a começar pelo computador para o tratamento
de certos dados numéricos; os processos técnicos, físicos, químicos e bioquímicos
de datação, de análise dos metais, das plantas e dos gêneros alimentícios, do
gado e de seu pedigree; a epidemiologia e o estudo das catástrofes naturais,
vinculado à climatologia. o é gratuitamente que, nas tradições africanas,
atribui -se tanta importância aos períodos de grandes fomes, que, assim como
395
Os métodos interdisciplinares utilizados nesta obra
as guerras, são usadas como referências cronológicas. O papel da violência na
evolução da África foi, sem dúvida, comparável ao que se verificou na história
de outros continentes; todavia, se por um lado o baixo nível de desenvolvimento
tecnológico reduziu -lhe o impacto absoluto, por outro, o impacto relativo viu -se
aumentado, pois o menor avanço de um povo em relação a outro nesse âmbito
revestia -se de grande importância. Não foi a diferença de armamento fator
determinante na instauração da hegemonia dos assírios no Egito, dos primeiros
dinastas de Gana, e de Chaka, o Zulu? A estatística também deverá contribuir
de modo substancial, dando uma consistência quantificada a realidades que, sem
isso, seriam deformadas, mesmo qualitativamente, que, a partir de um certo
estágio, pode -se falar de um salto” qualitativo na natureza dos fenômenos. As
estruturas de dois povos, um com dez mil e outro com dez milhões de pessoas,
não podem ser da mesma natureza. Em se tratando de invasões, de exércitos
africanos do século XIV, a armadilha do anacronismo consiste em imaginar essas
mobilizações através do crivo conceptual do século XX. A referência estatística,
mesmo na forma de estimativas aproximadas, ajudará a colocar as coisas numa
escala de grandeza natural, mais compatível com o desenvolvimento real dos
acontecimentos.
Aliás, o estudo das guerras africanas pode contribuir de forma relevante
para a história da África se relacionado à religião, à qual está intimamente ligado,
por ser a arte da guerra, em parte, um exercício de magia. Para convencer -se, basta
olhar a vestimenta de combate de al -Boury N’Diaye, repleta de amuletos. Esse
costume ainda era adotado pelos atiradores africanos nas duas guerras mundiais.
Quanto à antropologia física, pode, também, contribuir para a construção de
uma história autêntica. Os mitos racistas, como a teoria camítica”, baseados em
frágeis aparências, infestaram durante muito tempo esse setor da pesquisa, o qual
poderá ser saneado graças ao método interdisciplinar, que associa várias provas
para chegar à verdade. As pinturas rupestres pré -históricas podem indicar o
caminho de algumas identificações, embora não se deva confundir modo de vida
(tal como é retratado nas rochas) com raça. Todavia, não esqueçamos que certas
deformações do esqueleto, como a elongação craniana praticada pelos Mangbetu,
estão relacionadas ao modo de vida e à cultura. Por outro lado, se a análise
serológica pode ajudar a esclarecer certas confusões, ela também revela que até
os grupos sanguíneos podem adaptar -se ao meio, o que denota a influência
decisiva do biótopo sobre a raça. Esta última só poderá ser entendida, portanto,
se recolocada – como quase tudo o que diz respeito à história – entre a natureza
e a cultura, passando pela biologia. A natureza africana teve grande influência
na história. É por isso que, sem cair num determinismo mecânico qualquer,
396
Metodologia e pré -história da África
jamais se devem perder de vista as condições geográficas.
8
A especificidade das
culturas e da evolução pré -histórica da África central, como salienta de Bayle des
Hermens, só pode ser compreendida se se pensar na presença opaca da floresta,
que nos lembra a influência do espaço sobre o tempo.
9
Como falar dos primeiros
habitantes do vale do Nilo sem recorrer à geomorfologia e à paleoclimatologia?
10
Como?
Como vimos, são múltiplas as associações e conjugações de disciplinas
que se impõem ao historiador da África. Mas como organizar essa frente
unida de disciplinas tão heterogêneas na luta pela conquista da antiga face da
África? Pode -se conceber uma associação de esforços extremamente lassa, que
consistiria simplesmente em fixar algumas intenções comuns, deixando que
cada um avançasse de acordo com a problemática de sua própria disciplina,
reencontrando -se todos na linha de chegada para uma confrontão dos
resultados. Essa estratégia não parece satisfatória, pois deixa subsistirem todos
os handicaps de cada disciplina, sem tirar proveito, se não de todas as virtudes
de cada uma delas, ao menos dos benefícios decorrentes da íntima associação
de seus procedimentos. A uma interdisciplinaridade por justaposição, deve -se
preferir uma interdisciplinaridade por enxerto de abordagens e disciplinas. A
estratégia geral da pesquisa, bem como as etapas táticas, devem ser estabelecidas
em conjunto. Após ter definido, de comum acordo e à medida que forem
surgindo, as interrogações essenciais, passa -se a dividi -las em grupos, segundo
requeiram a intervenção desta ou daquela disciplina. Em prazos determinados
ou a pedido de uma das instâncias envolvidas na pesquisa, devem -se fazer
ajustes ou combinações, espécie de briefings, que recolocarão os problemas em
termos diferentes, renovados com a progressão das diligências comuns. Em tal
circunstância, os nós ou pontos de estrangulamento detectados quando dos
acertos serão objeto de programas de emergência e da concentração intensiva
dos esforços.
8 A natureza propõe e o homem dispõe”, escreveu Vidal de La BLACHE; mas, como foi sugerido por Pe.
Teilhard de Chardin: “Não será a história, vista de cima, o mais recente capítulo da história natural?”.
9 Cf. H. LEFEBVRE, 1974, obra vigorosa em que o autor discute a teoria unitária do espaço (físico, mental
e social).
10 Testes químicos com o cálcio, o fosfato, os pólens e as proteínas podem ajudar a reconstituir os hábitos
alimentares que, por sua vez, dão indicações sobre a demograa e o período de ocupação de um sítio.
Os palinologistas estão se empenhando em constituir um banco de pólens africanos.
397
Os métodos interdisciplinares utilizados nesta obra
Essa associão permanente, essa pesquisa coletiva, deve dispor de um
mestre -de -obras” para o conjunto do trabalho ou do programa. No entanto,
podem -se designar líderes diferentes para suas diversas fases, conforme
determinado momento da investigação requeira preferencialmente um linguista,
outro, um sociólogo, etc. Uma tal estratégia interdisciplinar deverá promover o
enriquecimento mútuo do enfoque de cada disciplina e apurar sua apreensão do
tema comum da pesquisa. Ela permite frear rapidamente a progressão às cegas
em situações de impasse e abrir o maior número possível de caminhos fecundos
e atalhos. Esse tipo de pesquisa colegial, que levaria historiadores, antropólogos
culturais, especialistas da arte, botânicos, a visitarem os sítios junto com os
arqueólogos, revela -se como uma rede gigante, capaz de recolher tanto em
extensão quanto em profundidade a substância da realidade histórica global. Isso
pressupõe que os institutos de estudos africanos, que já são numerosos, possam
adaptar suas estruturas a esse tipo de ação. Pressupõe, sobretudo, a instauração
de uma nova mentalidade entre os próprios pesquisadores.
Na verdade, qual é o objetivo desse exercício? É restituir aos africanos uma
visão e uma consciência de seu passado, que não pode ser uma fotocópia da vida
passada, mas deve, um pouco como na caverna de Platão, reproduzir cenas que
outrora foram reais. A vida é essencialmente integração e coerência, adesão de
forças distintas a um projeto comum. A morte é, por definição, desagregação,
incoerência. A vida individual ou coletiva não é unilinear nem unidimensional;
é um tecido denso e compacto. Por vezes, o romance histórico empreende com
sucesso (em condições certamente mais fáceis) este projeto raramente realizado
por historiadores: a ressurreição do passado. Professores de história, economia,
sociologia, etc. poderiam encontrar matéria para um estudo conjunto nesses
afrescos vivos que são As vinhas da ira, de Steinbeck; A condição humana, de
Malraux; e Tchaka, de T. Mofolo.
Sem cair no romance, devemos objetivar a recuperação dessa densidade,
pois, no caso, a vida real foi ainda mais palpitante que o romance. A realidade
ultrapassa a ficção. Todo movimento histórico depende do conjunto de todos
os aspectos da realidade social. E a reconstituição histórica que deixasse de
considerar todos esses aspectos seria, se não uma anti -história, no mínimo uma
outra história: uma visão facciosa posto que parcial. Evidentemente podemos
nos concentrar num ponto específico do quadro histórico para ampliá -lo, desde
que não nos esqueçamos de que está situado no quadro, sem o qual, mesmo
enquanto ponto, não pode ser perfeitamente compreendido. Essa observação é
ainda mais pertinente em se tratando do conjunto do quadro. Os fatos históricos
importantes, como a expansão mande no oeste da África, são resultantes de
398
Metodologia e pré -história da África
um encontro, de uma conjugação de foas: a tecnologia, o equipamento
material, o comércio, as vantagens da ngua, a pertinência da organizão
política, o impulso do sentimento religioso, etc. Privilegiar de forma abusiva,
como frequentemente acontece, a causa motriz antes de tentar retratar, em sua
profusão vital, a intervenção de todas as causas, é erigir um edifício conceptual
ao invés de procurar reeditar mentalmente o passado. O apanhado global da
história a partir de muitas fontes torna -se ainda mais imperativo em se tratando
de sociedades onde a vida é mais integrada, menos dicotômica que nos países
onde se consumou a divisão em classes antagônicas. Na África, talvez com
excessiva facilidade, fez -se uma distinção entre as sociedades com Estado e
as sociedades sem Estado, definindo -se evidentemente este último termo em
função das normas da experiência coletiva do estudioso.
11
Esquece -se, talvez,
que mesmo em um império como o Mali, a falta de estradas transitáveis e de
administração burocrática, bem como a opção deliberada dos dirigentes em
favor da descentralização ditada pelos fatos, fizeram com que a vida real da
maioria da população se desenrolasse fora do “Estado”, em vilarejos dotados
de uma autonomia milenar e que não estavam ligados ao centro, nem por um
vínculo material concretizado por um feudo, nem pela realidade física das auto-
-estradas ou das vias férreas, nem pela material idade das folhas de impostos e
de decretos de ministérios ou prefeituras. Ignorar tudo isso é condenar -se ao
enfoque simplista que consiste no estabelecimento de listas de reis e príncipes a
respeito dos quais conhecemos apenas um ou dois grandes feitos num reinado de
quinze ou vinte anos, que consagramos como marcos indiscutíveis da vida real
dos povos. A imensa maioria dos povos africanos vivia em sociedades totais, se
não totalitárias, onde tudo estava interligado, desde a confecção de utensílios até
os ritos agrários, passando pelo cerimonial do amor e da morte. No tocante a
isso, a sociedade regida pelo animismo” não é menos integrada que a sociedade
governada pelo islã. Sob vários aspectos, não se tratava de uma sociedade laica.
E considerá -la como tal é desprezar uma parte importante da realidade. Em
suma, nesses países também existe centralização, diferente, porém, da que vigora
no Estado moderno,
12
onde é o preço – e o antídoto – da divisão extremada do
trabalho social. Por exemplo, entre os Senufo (Poro), os Lobi (Dyoro) e os Diula,
a iniciação desempenhava um papel central em torno do qual se organizava toda
11 AQUET, J. J. 1961. O autor utiliza alternadamente a análise econômica, sociológica e política para tentar
denir um modelo aplicável à sociedade soga.
12 O episódio do povo do Bure, narrado por Ibn Battuta, o prova nitidamente: após uma fracassada tentativa
de assimilação, o imperador do Mali acabou por reconhecer-lhe a autonomia cultural.
399
Os métodos interdisciplinares utilizados nesta obra
a vida da coletividade. Da mesma forma, verdadeiras federações de aldeias foram
erigidas em torno de um altar ou de um culto comum, como na região de Samo
(Alto Volta) e em Ibo.
Os pses africanos onde as forças produtivas permaneceram num vel
muito baixo, gozam, por outro lado, de uma atividade cultural intensa. Enquanto
a dependência da natureza era quase total, toda vestimenta era adorno. Todo
instrumento ou utensílio era trabalhado artisticamente, e até mesmo as
escarificações corporais em profundidade ou em relevo tinham a dupla função
de afirmar uma identidade étnica e manifestar uma intenção estética. Verifica-
-se o mesmo fenômeno com relação às moedas de ferro (guinze) utilizadas
pelos Loma (Toma); Kissi, Konianke, Mande, Kuranko da Guiné, de Serra
Leoa e da Libéria. Os guinze eram ao mesmo tempo moedas, protetores das
moradias e dos campos, asilos dos espíritos dos defuntos e antepassados, e seria
errôneo reduzi -los a uma única dimensão. Essas sociedades totais requerem
manifestamente uma história integral à sua imagem. Assim sendo, a melhor
forma de retratá -las é o trabalho interdisciplinar. Como exemplo, temos a obra
conjunta de D. Tait, antropólogo, e de J. Fage, historiador, sobre os Konkomba.
Citemos ainda o enfoque sintético de J. Berque da hisria social de uma
aldeia egípcia.
13
Além disso, o método global irá requerer uma abordagem que
considere todos os fatores externos, assim como os elementos domésticos. Exige
que se transcendam as fronteiras da África de modo a integrar as contribuições
asiáticas, europeias, indonésias e americanas à personalidade histórica africana.
Evidentemente, o na forma de um expansionismo sumário, pois mesmo
havendo intervenção externa, esta é orientada pelas forças internas em ação.
Como diz a máxima escolástica: Quidquid recipitur, ad modum recipientis recipitur
(Tudo o que é recebido o é na medida e de acordo com o formato do recipiente).
É por esse motivo que o arroz asiático foi cultivado onde existia o oryza
aborígene africano, e a mandioca, onde existia o inhame. A cultura africana é um
sofisticado complexo de fatores. Não poderia reduzir -se à soma numérica desses
fatores, pois eles não são meros produtos de mercearia que se alinha e se conta.
A cultura africana é tudo aquilo que assume e transcende qualitativamente os
elementos constituintes. E o ideal da história da África é apoiar -se em todos
esses elementos para retratar a própria cultura no seu desenvolvimento dinâmico.
Em outras palavras, o método interdisciplinar deveria finalmente conduzir a um
projeto transdisciplinar.
13 BERQUE, J. 1957.
C A P Í T U L O 1 6
401
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
É nosso objetivo aqui apresentar uma exposição geral de algumas das
mudanças ocorridas nos aspectos físicos do continente africano durante o
Pleistoceno e o Holoceno. Durante esse período de cerca de 2 milhões de
anos, os climas e os ambientes da Terra sofreram mudanças consideráveis. Uma
série de eventos climáticos marcantes ocorridos durante essa época submeteu
as latitudes setentrionais do globo, em quatro ocasiões sucessivas, a avanços
e recuos de geleiras (denominados Günz, Mindel, Riss e Würm nos Alpes).
Formaram -se os vales e os terraços fluviais, estabeleceram -se as atuais linhas da
costa e ocorreram grandes mudanças na fauna e na flora do globo. As formas
proto -humanas diferenciaram -se dos primatas ancestrais no início do Holoceno,
e os mais antigos utensílios identificáveis são encontrados nos horizontes do
Pleistoceno Superior. Em grande parte, o desenvolvimento da cultura, a partir
do surgimento do homem enquanto mamífero que se utiliza de instrumentos,
parece ter sido profundamente influenciado pelos fatores ecológicos que
caracterizaram os sucessivos estágios do Pleistoceno.
Firmou -se na Europa a ideia segundo a qual, em rios episódios do
Pleistoceno, os glaciares foram bem mais extensos do que na época presente,
tornando -se logo evidente que esses episódios europeus de deterioração climática
não tinham caráter meramente local. Os trabalhos realizados na África, por
exemplo, revelaram que o continente sofreu mudanças climáticas de dimensões
significativas durante o Holoceno. Embora esses eventos ainda não tenham sido
Quadro cronológico das fases
pluviais e glaciais da África
PARTE I
I. R. Said
402
Metodologia e pré -história da África
correlacionados de modo conclusivo aos que ocorreram na parte setentrional do
globo, estão em grande parte ligados a estes últimos de uma forma que ainda
está por ser interpretada.
Durante a última década, ampliaram -se consideravelmente as perspectivas de
se estabelecer uma escala de tempo para o final do Cenozoico e do Pleistoceno.
Os programas de perfuração em mar profundo m fornecido informações
extremamente valiosas sobre uma sequência de sedimentos mais ou menos
contínua que registra os eventos da última parte da história da Terra. Estudos
multidisciplinares detalhados dos testemunhos obtidos nesses programas,
progressos na geofísica, e especialmente nos estudos de paleomagnetismo, bem
como o aperfeiçoamento das técnicas de medidas radiométricas, têm contribuído
para a elaboração de uma escala de tempo razoavelmente bem fundamentada
para a última parte da história da Terra. muito por ser feito neste campo,
visto que ainda não foi possível estabelecer uma correlação definitiva entre os
eventos de diferentes áreas. No entanto, a cronologia da última parte da história
da Terra está entre as mais bem fundamentadas, embora seja ainda questão
bastante controversa a demarcação dos limites do Pleistoceno, em virtude da
grande confusão gerada ao se procurar classificar os estratos -tipo clássicos do
Plioceno e do Pleistoceno na sequência estabelecida a partir do fundo do mar.
Apresentamos a seguir a classificação que será utilizada no presente capítulo.
A escala de tempo geomagnética dos últimos 5 milhões de anos (M.A)
mostra que o campo magnético da Terra passou alternadamente da posição
normal à reversa. Essas diferentes épocas foram interrompidas por eventos
menores marcados por uma inversão. As épocas são, da mais recente para a mais
antiga: Brunhes (0,69 M.A até o presente), Matuyama (2,43 -0,69 M.A), Gauss
(3,22 -2,43 M.A.), e Gilbert (5,4 -3,32 M.A). O intervalo magnético Gilbert-
-Gauss caracterizou -se por uma grande deterioração climática, observável em
muitas regiões do globo (sobre esse assunto, ver Hays et alii, 1969). Este episódio
frio corresponde ao início da glaciação de Nebraska (registrada no golfo do
México), ao surgimento de depósitos glaciais no Atlântico norte e à fauna
continental do Villafranchiano médio. De acordo com alguns autores, para
os quais o início da primeira deterioração climática constitui o limite entre o
Plioceno e Pleistoceno, este evento marcaria o começo do Pleistoceno. Contudo,
a adoção desse limite estaria em desacordo com o limite definido pelo Congresso
de 1955 da Associação Internacional de Pesquisa do Quaternário (INQUA), de
vez que implicaria que os conjuntos faunianos da seção clássica de Castellarquato,
na Itália, deveriam ser excluídas do Plioceno. É preferível, pois, fixar -se o limite
em -1,85 M.A., correspondendo ao início do Calabriano e ao evento magnético
403
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
de Olduvai da época Matuyama. Pesquisas recentes mostraram que esse foi um
período antes de aquecimento que de resfriamento. Nas latitudes temperadas, as
primeiras grandes glaciações do Pleistoceno ocorreram. em torno de -500000 no
intervalo Brunhes -Matuyama. Esta glaciação pode corresponder à Günz alpina.
O Pleistoceno, portanto, pode ser dividido em duas partes, representando a mais
recente o período glacial, e a mais antiga um Pleistoceno pré -glacial. A glaciação
alpina de Riss ocorreu em 120 -130000 B.P. aproximadamente, ao passo que a
de Würm começou em 80000 B.P. Esta última glaciação é talvez a mais bem
datada e estudada. Ela continuou até o Holoceno, que foi fixado em 10000 B.P.
aproximadamente.
Como dissemos, é objetivo deste capítulo estudar as mudanças físicas mais
notáveis ocorridas no continente africano em resposta às variações climáticas do
Pleistoceno. Um continente tão grande como a África compreende uma série
de ambientes distintos, que responderam de diferentes maneiras e em graus
variados às grandes mudanças paleoclimáticas do Pleistoceno. Procuraremos,
portanto, estudar essas mudanças no quadro das principais regiões climáticas
atuais do continente. Essas regiões podem ser classificadas em duas categorias:
zonas equatorial e subequatorial; e zonas tropical e subtropical.
Zonas equatorial e subequatorial
A zona equatorial cobre atualmente a região da bacia do Zaire, no oeste da
África, caracterizada por ventos pouco variáveis, ligeiras diferenças sazonais
de temperatura e umidade, tornados e tempestades frequentes. Esta zona é
atualmente coberta por florestas equatoriais. A zona subequatorial abrange a
maior parte da região média da África, caracterizando -se pela presença de massas
de ar de tipo equatorial no verão e de tipo tropical no inverno. O inverno é seco
e ligeiramente mais fresco que o verão. A maior parte desta zona compreende
áreas com umidade abundante que sustenta uma vegetação de savana tropical.
As bordas setentrional e meridional, entretanto, apresentam atualmente uma
vegetação de estepe tropical.
As variações de pluviosidade nessas zonas durante o Pleistoceno permitem
subdividir esta época em uma sucessão de pluviais e interpluviais. Os pluviais
conhecidos como Kagueriano, Kamasiano, Kanjeriano e Gamblianoo
considerados como correspondentes às quatro glaciações mais importantes do
hemisfério norte, embora esta correlação não tenha sido comprovada. Foram
identificados dois subpluviais no Holoceno: Makaliano e Nakuriano.
404
Metodologia e pré -história da África
Os pluviais são evidenciados por um maior acúmulo de sedimentos lacustres
ou por uma elevação das linhas de margem deixadas em várias bacias fechadas
como resultado da expansão dos lagos. Os interpluviais caracterizam -se por
uma intensificação da atividade eólica, durante a qual as areias transportadas
pelo vento foram depositadas ou redistribuídas muito mais ao sul do limite
meridional atual das dunas móveis, e que corresponde a mudanças radicais
na vegetação. Vários cumes vulcânicos localizados nessas zonas apresentam
características glaciais em altitudes inferiores à linha de neve atual, indicando
a existência de climas mais frios em tempos passados. Nas seções seguintes do
presente capítulo, encontram -se alguns exemplos dessas mudanças ocorridas na
África equatorial e subequatorial.
Bacias lacustres da África oriental
A África oriental, notadamente por suas bacias lacustres, constitui uma área
típica dos pluviais e interpluviais propostos para descrever a evolução da África
subequatorial. Os lagos da África oriental situam -se no sistema do rift africano.
Os que preenchem os fundos do ramo oriental do rift, com exceção do lago
Vitória, não possuem saídas e estão localizados em climas muito mais secos.
Por outro lado, os principais lagos do ramo ocidental estão preenchidos até o
nível de transbordamento.
Fica claro, desde o início, que os vestígios de níveis lacustres mais elevados
em uma zona altamente sismoativa como o leste da África deve conduzir à
formulação de hiteses, mas o permite que se tirem conclusões. Nesta
região extremamente instável, deve ser levada em consideração a possibilidade
de deslocamento tectônico das linhas de margem, de modificação dos níveis de
transbordamento dos lagos e oscilação das bacias lacustres. Por esta razão caiu
em desuso o conceito de pluviais do Pleistoceno inferior ao dio (Cooke,
1958; Flint, 1959; Zeuner, 1950). Estudos recentes das bacias lacustres da
África oriental têm restringido o uso desta evidência climatoestratigráfica ao
pluvial Gambliano, em que são registrados, em certos locais, sedimentos que não
sofreram deformações tectônicas.
Contudo, grande número de evidências geológicas provam de maneira cabal
que os limites das principais florestas equatoriais variaram consideravelmente
no passado. As grandes florestas das bacias de drenagem do oeste constituíram
um importante fator no condicionamento da vida humana durante o período
para o qual se dispõe de registros arqueológicos. O famoso sítio da garganta de
Olduvai, no norte da Tanzânia, inclui em sua base uma fauna de vertebrados
405
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
otimamente preservada, que data seguramente do Pleistoceno inferior. As
correlações climáticas indicam um período de alta pluviosidade (Kagueriano ou
Olduvai I). Acima encontram -se duas formações que indicam, respectivamente,
um intervalo mais seco seguido de um período de pluviosidade relativamente
intensa. Existe, nesta localidade, uma sequência estratigráfica que possui a série
evolutiva mais completa de machadinhas, das formas mais primitivas às variantes
especializadas mais importantes deste tipo de artefato do Paleolítico Inferior, tal
como é conhecido na Europa e na Ásia ocidental.
As evidências do pluvial Gambliano são constituídas principalmente pelas
praias elevadas e pelos depósitos fossilíferos de três lagos outrora contíguos,
situados a noroeste de Nairóbi (Nakuru, Elmenteita e Naivasha). O Naivasha
apresenta um nível de praia elevado, que data de um período ligeiramente
anterior ao Paleolítico Superior, indicando que o lago teve uma profundidade
máxima de 200 m e que, provavelmente, escoava suas águas através de uma linha
de festo próxima. As pequenas dimensões da concha do lago e o fato de os lagos
modernos não ultrapassarem 10 m de profundidade são dados que permitem
considerar a extensão anterior do lago como uma indicação da ocorrência de
climas mais úmidos no passado.
Em um abrigo sob rocha que domina os lagos atuais de Nakuru e Elmenteita,
um sítio bem estratificado com uma verdadeira indústria sistemática de lâminas
foi descoberto por Leakey, na caverna de Gamble, no Quênia. O depósito
inferior é descrito como uma aglomeração de seixos de praia laeustre sobre
o piso rochoso do abrigo, a cerca de 200 m acima do nível atual do lago. Os
depósitos que contêm utensílios situam -se sobre esta aglomeração e consistem
em um depósito móvel de cinza, poeira, osso e obsidiana”. A fauna associada é,
indubitavelmente, do tipo moderno. Segundo Leakey, os depósitos de utensílios
pertencem ao fim de um período de alta pluviosidade (o qual ele denomina
Gambliano, segundo o local em questão); este sucede imediatamente ao período
a que pertencem os últimos níveis do Olduvai, que continham utensílios do
Acheulense e restos de uma fauna extinta bastante característica.
O clássico trabalho de Nilsson (1931, 1940) sobre as bacias lacustres da África
oriental apresenta um dos estudos mais bem documentados das flutuações de
seus níveis no passado. Esse autor descreve as linhas de margem elevadas do lago
Tana (nível da superfície: 1830 m), fonte do Nilo Azul, e registra cinco linhas de
margem principais até +125 m, com um nível menos distinto a +148 m. Nilsson
também mostra que quatro lagos do Rift Valley (Zway, Abyata, Longana e
Shela) eram interligados e escoaram para o rio Awash durante um certo tempo.
406
Metodologia e pré -história da África
Os registros paleoclimatológicos do lago Vitória mostram que ele foi pouco
profundo e endorréico por um peodo de duração indeterminada, anterior
a 14.500 B.P., quando prevalecia uma vegetação de savana herbosa. O lago
começou a se expandir em 12000 B.P. aproximadamente, quando então apareceu
uma vegetação de floresta nas bordas das suas margens setentrionais. Porém,
por um curto período de tempo, em torno de 10000 B.P., é possível que o seu
nível tenha descido a 12 m abaixo do nível atual. Entre 9500 e 6500 B.P. o
lago Vitória esteve completamente cheio, rodeado por uma floresta perene. O
nível do lago foi, em parte, influenciado pela incisão de seu escoadouro, porém
os baixos níveis anteriores, bem como a sequência palinológica, certamente
independem desse fator.
Butzer et alii (1972) realizaram um estudo pormenorizado das bacias lacustres
da África oriental e fornecem datações por radiocarbono de alguns sedimentos
de suas antigas praias. Os eventos e datações do Quaternário Superior dos
lagos Rodolfo, Nakuru, Naivasha e Magadi coincidem em grande parte. O lago
Rodolfo, com uma superfície atual de 7500 km
2
, é o maior lago endorréico da
África. Situado em uma zona de subsidência a leste do Rift, seu principal afluente
é o rio Orno, que nasce nas terras altas do oeste da Etiópia. O trabalho de Butzer
mostra que o litoral, os leitos deltaicos e fluviais associados a esse lago situavam-
-se 60 m acima do nível atual em 130000 B.P. aproximadamente, e 60 -70 m
acima do nível atual em 13000 B.P. aproximadamente. Entre este último período
e 9500 B.P. o lago tornou -se menor que o atual e o clima mais árido. A partir
desta última data, o volume do lago cresceu novamente e seu nível variou entre
60 e 80 m acima do nível atual até 7500 B.P., quando o lago Rodolfo reduziu -se.
Houve em seguida níveis mais altos em 6000 B.P. aproximadamente, e a partir
de 3000 B.P. o lago reduziu -se até atingir suas dimensões atuais.
As evidências de outros lagos da África oriental, estudados por Butzer et alii,
mostram uma história semelhante para o Quaternário Superior.
Bacias do Chade e do Sudd
A bacia do Chade merece atenção especial em virtude de sua localização na
extremidade meridional do Saara e da grande superfície do mar interior que
ocupou toda a bacia durante o Pleistoceno. O atual lago Chade é um vestígio
desse antigo mar interior (cf. Monod, 1963, e Butzer, 1964). As águas da bacia
provêm das savanas da África central.
O lago atual situa -se a uma altitude de 280 m, e sua superfície oscila entre
10000 e 25000 km
2
; a profundidade dia varia entre 3 e 7 m, com uma
407
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
profundidade máxima de 11 m. O lago está separado de duas grandes depressões,
Bodélé e Djourab, por um divisor de águas de pequena altitude, cortado pelo
vale seco do Bahr el -Ghazal. A mais baixa linha de margem do lago Chade
atual, 4 -6 m, permitiria que suas águas transbordassem na depressão de Bodélé,
a 500 km de distância. No seu nível mais alto, 322 m, o ancestral do Chade
no Pleistoceno deixou linhas de margem bastante nítidas a 40 e 50 m, o que
corresponde a uma área de 400000 km
2
. Foram também registrados vestígios
mais descontínuos de linhas de margem intermediárias. Grove e Pullan (1963)
mostram que a grande perda por evaporação do lago atual é amplamente
compensada pelo débito do Logone e do Chari, ao sul. Esses autores calculam
que a evaporação do lago no Pleistoceno deve ter sido seis vezes maior, de sorte
que teria recebido, anualmente, um volume de água igual a um terço do débito
anual do Zaire.
Butzer (1964) afirma com razão que o antigo mar do Chade representa,
portanto, excelente testemunho em favor de uma maior umidade nas latitudes
tropicais subúmidas. Infelizmente, não foi possível correlacionar as linhas de
margem das diferentes partes da bacia. A camada de terrenos do Pleistoceno de
600 m de espessura subjacente a algumas partes da bacia mostra a complexidade
e a longa história deste mar interior. No caso do Nigéria, Grove e Pullan (1963)
sugerem que, após um período em que o nível do lago ultrapassava o nível atual
de 52 m, durante o Pleistoceno Superior, o clima tornou -Se seco, com formação
de grandes dunas no antigo tio do lago. Ao estabelecimento posterior de
uma nova rede hidrográfica, seguiu -se um outro período úmido, tendo o nível
do lago aumentado de pelo menos 12 m durante o Holoceno. Pode -se dizer,
por conseguinte, que dois movimentos positivos do lago, ainda mal analisados,
parecem ter ocorrido antes de 21000 B.P. Sucedeu -se um longo intervalo de
dessecação e atividade eólica até pouco antes de 12000 B.P., quando o lago
reiniciou sua expansão, atingindo um nível máximo cerca de 10000 anos B.P.,
com transbordamentos ao menos intermitentes. Este período de cheia durou até
4000 B.P. aproximadamente.
A história deste mar interior no Pleistoceno Superior e no Holoceno parece,
assim, coincidir, salvo em alguns detalhes, com a das bacias da África oriental.
O lago Sudd, no Sudão meridional, representa, na opinião do autor deste
catulo, outro grande mar interior que teve provavelmente uma hisria
semelhante à da bacia do Chade. O Sudd é um lago extinto que se supõe ter
coberto a região da bacia superior do Nilo, estendendo -se até o Nilo Branco,
partes do Nilo Azul e do Bahr el -Ghazal. A ideia da existência deste antigo
lago partiu de engenheiros de irrigação que trabalhavam no Egito (Lombardini,
408
Metodologia e pré -história da África
Garstin e Willcocks) e foi elaborada por Lawson (1927) e Ball (1939). Todos
ficaram impressionados com o nivelamento das planícies do Sudão central e
meridional e admitiram que um pequeno aumento novel dos Nilos Branco
e Azul poderia inundar extensas áreas. O lago Sudd, pelos cálculos de Ball,
ocupou uma área de 230000 km
2
(a região limitada pela curva dos 400 m,
altitude de Shambe). Esta região é coberta pela formação de Um Ruwaba,
recentemente mapeada, que é constitda de uma longa série de desitos
fluviais, deltaicos e lacustres. O ponto culminante dessa formação ultrapassa
500 m, altitude bastante superior à do mais baixo vel de escoamento do
cume de Sabaluka, ao norte de Cartum (434 m), que se supõe ter formado
o limite setentrional do lago. Como observou Said (MS), este cume situa-
-se numa das principais linhas de falha que limitam a borda meridional do
maciço da Núbia, núcleo de grande atividade sísmica. Essa altitude, pela razão
exposta e por outras relacionadas à incisão da garganta de Sabaluka por uma
erosão ulterior, não pode ser ti da como representante da altitude do cume
durante o preenchimento do lago. Uma outra complicão provém do efeito
de barragem produzido pelas águas do Nilo Azul ao se precipitar no Nilo
Branco em época de cheia. Embora a história do lago Sudd não seja conhecida
em pormenores, sua grande extensão é comprovada pelos 382 m de praia que
margeiam amplas áreas do Nilo Branco. Como a bacia do Chade, parece ter
sido muito extenso entre 12000 e 8000 B.P. Ao norte, deve ter chegado a 50
km de largura (Williams, 1966). Depois, o lago reduziu -se e, em torno de
6000 B.P., a pluviosidade anual diminuiu, atingindo cerca de 600 mm nas
proximidades de Cartum, e o nível do Nilo Branco baixou para 0,5 -1 m acima
de seu vel dio atual em época de cheia.
Fenômenos glaciais
A antiga glaciação da África está estreitamente ligada às geleiras atuais, que,
por sua vez, dependem principalmente da distribuição das grandes elevações.
Com exceção das montanhas do Atlas, todos os picos com geleiras encontram-
-se na África oriental, a poucos graus do equador. As altitudes variam de
aproximadamente 3900 a 6100 m. Flint (1947, 1959) apresenta um resumo
dos dados importantes referentes a essas regiões, afirmando que as nevadas
que alimentavam as geleiras eram, provavelmente, produzidas pela precipitação
orográfica da umidade das massas de ar marítimo que se deslocavam para leste,
provenientes do Atlântico sul e, em menor grau, para oeste, provenientes do
oceano Índico.
409
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
A altitude do monte Quênia (lat. 0°10’ S; longo 37°18’ L) é de 5158 m e a
atual linha de neve está a 5100 m; estima -se que a linha de neve no Pleistoceno
tenha descido no máximo a 900 m (Flint, 1959). O monte Kilimandjaro na
Tanzânia (lat. 3°05’ S; longo 37°22’ L) tem uma altitude de 5897 m e parece
situar -se atualmente pouco acima da linha de neve; a linha de neve mais baixa,
no Pleistoceno, esteve acima de 1300 m (Flint, 1959). O monte Elgon, em
Uganda (lat. 1 °08’ N; longo 34°33’ L), tem uma altitude de 4315 m e situa -se,
atualmente, bem abaixo da linha de neve, tendo apresentado geleiras durante o
Pleistoceno. O monte Ruwenzori (lat. 0°24’ N; longo 29°54’ L) tem uma altitude
de 5119 m e sua atual linha de neve situa -se a 4750 m na vertente oeste (Zaire)
e 4575 m na vertente leste (Uganda). As geleiras do Pleistoceno desciam a
2900 m na vertente oeste e a cerca de 2000 m na vertente leste.
Atualmente não existem geleiras nas terras altas da Etiópia, porém os
montes Semien (lat. 13°14’ N; longo 28°25’ L) parecem ter apresentado geleiras
durante o Pleistoceno. Nilsson (1940) demonstra a existência de duas antigas
glaciações em alguns picos desta cadeia (altitude de aproximadamente 4500
m) com linhas de neve a 3600 -4100 m e 4200 m. Um recuo glacial associado
ao Pleistoceno Superior corresponde a uma linha de neve a 4400 m. Nilsson
também descreve uma glaciação do Pleistoceno Superior no monte Kaka (lat.
7°50’ N; longo 39°24’ L), com uma linha de neve a 3700 m. Foram também
descritas glaciões em outros picos vulnicos da Etpia, que atualmente se situam
bem abaixo da linha de neve: monte Guna (lat. 11°43 N; longo 38°17 L); Amba
Farit (lat. 10053 N; longo 350 L) e monte Chillale (lat.50 N; longo 310 L).
evidências convincentes de pelo menos duas gIaciões nas zonas
equatorial e subequatorial da África, e de um clima consideravelmente mais frio
durante o período que corresponde à glaciação de Würm. Além dos femenos
glaciais observados em alguns picos desta zona, descobriram -se na Etpia vestígios
de solifluxão e de modificão dos solos por congelamento (4200 -9300 m). De
acordo com Budel (1958), o limite inferior dos fenômenos de solifluxão durante
o período de Würm alcançou 2700 m. Também foram registrados depósitos
glaciofluviais em muitas áreas da África equatorial. Os depósitos do monte
Ruwenzori foram estudados por de Heinzelin (1963), que constatou serem
eles paralelos aos terraços gamblienses do rio Semliki. O Semliki, que une os,
lagos Eduardo e Alberto na fronteira do Zaire com Uganda, possui espessas
camadas de seixos grandes e médios, areias e terra vermelha agrupadas junto
com os depósitos coluviais. De Heinzelin demonstra que os terraços sangoenses-
-lupembienses o contemponeos dos desitos glaciofluviais do monte
Ruwenzori.
410
Metodologia e pré -história da África
Zonas tropical e subtropical
A atual zona tropical da África possui um regime de ventos provenientes
sobretudo do leste e nítidas variações sazonais de temperatura. A parte ocidental
desta zona, situada na costa do Atlântico, apresenta alísios estáveis, temperatura
amena, alta umidade atmosférica e baixíssima pluviosidade. A parte restante
abrange os grandes desertos do norte e do sul do continente. São regiões quentes
e áridas, com uma grande variação diurna de temperatura e um máximo absoluto
de temperatura. A zona subtropical compreende as extremidades setentrional e
meridional do continente e se caracteriza pela presença de massas de ar tropicais
no verão e de massas de ar de tipo temperado no inverno. A temperatura e
a pluviosidade sazonais variam consideravelmente. As regiões de clima
mediterrâneo apresentam tempo bom e claro no verão, e chuvoso no inverno.
O Saara
O Saara representa talvez o elemento mais notável desta zona. Estendendo-
-se por mais de 5500 km do mar Vermelho ao Atlântico, e tendo de norte a sul,
uma largura média superior a 1700 km, cobre quase um quarto da área total
do continente africano. Em toda essa região, a pluviosidade, embora muito
desigualmente distribuída, é superior a 100 mm/ano em certos locais e, em
média, muito inferior. Consequentemente, não se conhecem rios perenes no
Saara, com exceção do Nilo, que recebe suas águas de fontes situadas fora do
deserto. Os lençóis permanentes e efêmeros resultantes do escoamento superficial
não têm importância para a vida humana atual, ao contrário dos poços e fontes
alimentados por lençóis subterrâneos.
O Saara é constituído por um rígido embasamento de rochas pré -cambrianas
recobertas por sedimentos do Paleozoico ao Cenozoico, os quais permaneceram
estáveis durante a maior parte do Fanerozoico. Ocorreram dobramentos e
arqueamentos da crosta somente na cadeia do Atlas, do golfo de Gabes ao
Marrocos, e nas colinas do mar Vermelho, a leste do Nilo. Uma atividade
semelhante é observada em Cirenaica e no subsolo da costa setentrional da
África. Estes dobramentos pertencem ao sistema alpino de orogênese do
Cenozoico Superior e do Quaternário. A cadeia do mar Vermelho, por outro
lado, está ligada aos movimentos tectônicos e à extensão do grande Rift Valley
africano.
A mais extensa área de elevações é a do maciço do Atlas, que apresenta a
maior pluviosidade. Elevações menores estão presentes em Cirenaica e nos
411
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
maciços do Ahaggar e do Tibesti do Saara central. Estes últimos constituem
duas regiões de topografia montanhosa ligadas pela selle basse de Tummo. Essa
região tem uma altitude média de 2000 m, com picos de até 3600 m. A maioria
dos picos é constituída de rochas vulcânicas, formadas durante um longo
período de atividade vulcânica que alcançou o Pleistoceno. Encontram -se áreas
menores de rochas vulcânicas nos maciços de Aïr, no sudoeste de Ahaggar, no
Uweinat, que se ergue abruptamente entre o Tibesti e o Nilo, no monte Ater,
etc. Atualmente, esses maciços exercem uma influência insignificante sobre o
clima, mas muitas evidências geológicas de que a região do Saara, durante
vários episódios do Pleistoceno, foi bem menos árida que no presente.
O principal fator de erosão no deserto, tanto atualmente como durante todos
os demais períodos de aridez, é a erosão eólica, responsável pela formação da
grande peneplanície do Saara. As areias grosseiras transportadas pelo vento
acumulam -se em extensões conhecidas por erg ou reg, enquanto que os materiais
mais finos são transportados em altitude na atmosfera, permanecendo em
suspensão parcial por longos períodos de tempo. A superfície rochosa denudada
resultante dessa erosão é conhecida como Hammada. Ocorrem bacias e depressões
nessas superfícies, que variam de bacias rasas e pequenas a grandes depressões
que atingem, em alguns locais, uma profundidade de 134 m abaixo do nível do
mar (depressão de Oattara). Essas depressões tornaram -se, nas fases pluviais,
em sítios de aluvionamento; ao atingirem o nível dos lençóis subterrâneos,
surgiram fontes e iniciou -se uma atividade de sedimentação lacustre. As grandes
depressões situam -se principalmente nas bordas dos escarpamentos, mas são
raramente circundadas por estes. Certamente foram formadas por erosão eólica,
que constituem bacias interiores sem saída.
divergência de opiniões quanto à história geológica do Saara. Alguns
autores sustentam que foi um deserto durante todo o Fanerozoico e que os
períodos úmidos representam variações anormais na história de uma aridez
contínua. Outros sustentam que a desertificão é um fenômeno recente,
correspondente ao atual sistema de distribuição das massas de ar.
São irrefutáveis as evidências de que, no passado, o deserto conheceu climas
mais úmidos. Dentre essas evidências incluem -se tanto o sistema de distribuição
da fauna quanto certas características sedimentares que só podem ser explicadas
pela hipótese da existência de um clima mais úmido no passado. Sabe -se que
determinados animais nativos da África central viveram no deserto, e não
poderiam ter migrado para a não ser através de corredores de vegetação ou
água. Encontraram -se espécimes do crocodilo da África central em covas d’água
no interior de ravinas profundas dos maciços de Ahaggar e Tibesti; o mudfish
412
Metodologia e pré -história da África
africano foi encontrado no norte até o oásis de Biskra, ao sul da Tunísia. As
características do sistema de drenagem do deserto indicam a ocorrência, no
passado, de índices pluviométricos mais elevados. A oeste de Ahaggar, uma
planície imensa estende -se a poucas centenas de quilômetros do Atlântico,
declinando suavemente a partir das margens da depressão de El Juf. Vê -se
claramente que, no passado, tal planície formava a bacia de evaporação de um
vasto sistema hidrográfico. São significativas as linhas de drenagem que se
dirigem para o sul a partir das encostas meridionais do Atlas, destacando -se
o uede Saura, com mais de 500 km de extensão. Trata -se de um vale que, no
passado, suportou um volume de água suficiente para remover as areias eólicas
que hoje obstruem seu curso médio.
Das colinas do mar Vermelho, alguns uedes alcançam até 300 km, drenando
áreas de aproximadamente 50000 km². Um deles, o wadi Jharit, que desemboca
na planície de Kom Ombo ao norte de Assuã, é cercado por delgadas camadas
aluviais de siltitos finos com mais de 100 m de profundidade; Estes foram
certamente depositados por um rio perene de débito considerável.
Monod (1963) fez um estudo dos principais trabalhos sobre as divisões
c1imatoestratigráficas do Saara. Ele cita o trabalho de Alimen, Chavaillon e
Margat (1959) sobre a clássica bacia do Saura, para a qual foram sugeridos os
seguintes períodos, do mais antigo ao mais recente:
• Pluvial Villafranchiano (= Aidiano): areia, cascalho, conglomerados de cor
rosa -avermelhado sobre rochas mais antigas.
• Pós -Villafranchiano árido: brechas de talude, loess arenoso etc., recobertos
por um paleossolo marrom -avermelhado. Utensílios de seixos grosseiramente
lascados foram observados em um sítio na Argélia.
• Primeiro pluvial Mazzeriano (Q/a): conglomerados e areias.
• Pós -Mazzeriano árido: depósitos de argila arenosa, areias eólicas, entulho.
• Segundo pluvial Taourirtiano (ou ougartiano I) (Q/b): conglomerados,
cultura de seixos bem desenvolvida, possivelmente do Acheulense Médio.
• Pós -Taourirtiano árido: erosão.
• Terceiro pluvial (ou Ougartiano II): seixos de várias cores e areias ou um
paleossolo vermelho -castanho.
• Pós -Taourirtiano árido: erosão.
• Quarto pluvial (Q
1
) sauriano: areias cinza -esverdeadas, materiais detríticos,
solos fósseis negros Ateriense.
• Pluvial pós -sauriano: crosta de arenito – Neolítico.
• Fase úmida guiriana (Q
2a
): Neolítico.
413
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
De acordo com Arambourg (1962), os quatro pluviais principais Mazzeriano,
Ourgartiano I, Ougartiano II e Sauriano do norte do Saara poderiam
corresponder aos pluviais da África oriental Kagueriano (Olduvai I),
Kamasiano, o Kanjeriano e Gambliano. O Guiriano do noroeste da África
poderia corresponder às fases úmidas do pós -Gambliano.
O Nilo
O Nilo tem de há muito atraído a atenção dos estudiosos, e é vasta
a literatura dedicada a seus vários aspectos. A p -história e a evolução
geogica deste rio foram objeto de recentes estudos realizados por Wendorf
(1968), Butzer e Hansen (1968), de Heinzelin (1968), Wendorf e Schild
(MS), Giegengak (1968) e Said. As notas seguintes são o resultado de
um estudo realizado por este último autor, com base no mapeamento de
campo, nos depósitos fluviais e nos sedimentos associados e no exame de
um grande número de perfurações, profundas e rasas, para prospecção de
água ou petróleo. Pode -se dizer que o Nilo passou por cinco episódios
principais desde a abertura de seu curso no Mioceno Superior. Cada um
destes epidios caracterizou -se por um rio alimentado principalmente por
fontes exteriores ao Egito. Por volta do fim dos quatro primeiros episódios
(o último ainda está em andamento), o rio parece ter diminuído ou deixado
completamente de fluir no Egito. Essas grandes fases de recessão foram
acompanhadas de importantes mudanças sicas, climáticas e hidrológicas.
Na primeira dessas recessões, o mar parece ter avançado terra adentro,
formando um golfo que ocupou o vale escavado até o sul de Assuã. Durante
a segunda recessão, que se iniciou com o Pleistoceno árido e continuou
por mais de 1100000 anos, um clima hiperárido desenvolveu -se no Egito,
transformando -o em um verdadeiro deserto. Durante esse episódio, em que
houve intensa atividade eólica, comaram a se formar as grandes depreses
do deserto e foi destruída a vegetão que cobrira o Egito por quase todo
o Plioceno. Há evidências de uma fase pluvial relativamente curta no início
deste período, em que surgiram torrentes efêmeras que derivavam suas águas
somente do Egito. Os cinco cursos d’água que ocuparam o vale do Nilo,
desde sua escavão no Mioceno superior, são chamados: Eo -Nilo (Tmu);
Paleo -Nilo (Tplu); Proto -Nilo (Q
1
); Pré -Nilo (Q
2
); e Neo -Nilo (Q
3
).
As variações climáticas registradas no Egito podem ser resumidas na seguinte
tabela, da mais antiga para a mais recente:
414
Metodologia e pré -história da África
Pluvial Plioceno
(Tplu), de 3320000 a 1850000 B.P.
Os sedimentos do Paleo -Nilo apresentam -se em sua maior parte na forma
de finas camadas de clásticos e argilas, observáveis no subsolo do vale e em
afloramentos ao longo das margens dos uedes. As cabeceiras do Paleo -Nilo
encontravam -se no Egito e tamm na África equatorial e subequatorial.
Presença de considerável cobertura vegetal, desintegração química intensa e
escoamento reduzido. Chuvas provavelmente distribuídas de forma regular
durante o ano.
Fase hiperárida do Pleistoceno Inferior
(Intervalo Tplu/Q
1
), de 1850000 a 700000 B.P.
O Egito transforma -se em um deserto, o vale do Nilo torna -se sismicamente
ativo e a atividade eólica atinge seu máximo. Esta fase é interrompida por um
curto pluvial (Armant), com a formação de camadas de cascalhos alternadas com
camadas de areia selecionada ou de marga encaixadas em uma matriz amarelo-
-avermelhada e recobertas por brecha vermelha cimentada. Nenhum utensílio
foi encontrado nestes depósitos.
Pluvial Edfon
(Q
1
), de 700000 a 600000 B.P.
Voltam as condições climáticas do Paleo -Nilo; o Proto -Nilo, com fontes
idênticas às de seu predecessor, entra no Egito seguindo um curso paralelo ao do
Nilo moderno e situado a oeste deste. Os sedimentos do rio tomam a forma de
camadas de cascalho de quartzo e quartzito encaixados em uma matriz de solo
vermelho -tijolo. Esses sedimentos provinham de um terreno profundamente
desintegrado e muito lixiviado. No deserto, sedimentos comparáveis aos
conglomerados dos uedes são conhecidos sob a forma de canais invertidos.
registros nestes depósitos de utensílios de tradição chellense.
Fase árida do Pré ‑Nilo
(Q
2
), de ?600000 a 125000 B.P.
Um novo rio entra no Egito, alimentado pelas águas das terras altas da
Etiópia. A composição mineral dos sedimentos do Pré -Nilo mostra a presença
do mineral augita (mineral característico dos sedimentos do Nilo moderno
415
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
oriundos das terras altas da Etiópia), bem como uma abundância de epídoto,
o que distingue estes depósitos daqueles do Neo -Nilo e do Nilo moderno.
Assinala -se um pluvial menor durante as fases iniciais deste intervalo.
Pluvial Abbassia
De 125000 a 80000 B.P.
O Pré -Nilo ra de correr no Egito, suas cabeceiras são cortadas pela
elevão do maciço da Núbia. Este pluvial caracteriza -se pela presença de
cascalhos poligênicos, oriundos das colinas do mar Vermelho, cuja superfície
foi profundamente desintegrada mas pouco lixiviada. Nestes cascalhos são
encontrados utensílios do Acheulense Superior em grande quantidade.
Fase árida Abbassia/Makhadma
De 80000 a ?40000 B.P.
Erosão.
Subpluvial Makhadma
De ?40000 a 27000 B.P.
Registros de enxurradas, utensílios de tradição sangoense -lupembiense em
vários declives do leito erodido do Pré -Nilo. No deserto, encontram -se por toda
parte artefatos de tradição musteriense e ateriense.
Fase árida do Neo ‑Nilo
(Q
3
) de 27000 B.P. até o presente.
Um rio (o Neo -Nilo) com cabeceiras e regime similares aos do Nilo moderno
entra no Egito. O Neo -Nilo passou por fases de recessão que formaram máximos
subpluviais: o subpluvial Deir el -Fakhuri (15000 a 12000 B.P.); subpluvial
Dishna (10000 a 9200 B.P.) e Neolítico (7000 a ?6000 B.P.).
Pode -se afirmar, portanto, que os sedimentos do vale do Nilo não são muito
diferentes dos registrados no Saara. Generalizando, é possível relacionar o
pluvial Armant egípcio ao pluvial Villafranchiano do noroeste do Saara, o Edfon
ao Mazzeriano, o Abbassia ao Ougartiano, o Makhadma ao Sauriano, o Deir
el -Fakhuri, o Dishna e o Neolítico ao Guiriano.
Concluindo, cabe observar que os pluviais africanos têm possivelmente suas
origens nas variações climáticas do globo que, em teoria, corresponderiam às
416
Metodologia e pré -história da África
glaciações da Europa e da América do Norte. Embora tal fato não tenha sido
comprovado, é possível afirmar que, em geral, o Ougartiano (do noroeste da
África), o Abbassia (do nordeste da África) e o Kanjeriano (Olduvai IV) do
leste da África podem ser correlacionados à glaciação alpina de Riss. Antes
que se possa tirar qualquer conclusão definitiva, fazem -se necessários estudos
suplementares, principalmente no campo das medidas paleomagticas e
radiométricas.
C A P Í T U L O 1 6
417
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
Os últimos milhões de anos da história de nosso planeta foram marcados pela
alternância de profundas modificações climáticas. O fenômeno mais importante,
bem conhecido mais de um século, é sem dúvida o extraordinário avanço
e recuo das geleiras nas altas latitudes e altitudes. Este fenômeno é reflexo
dos consideráveis resfriamentos que exerceram profunda influência sobre o
ambiente e a vida dos hominídeos. Na África, a manifestação mais espetacular
das variações climáticas do Quaternário foi a extensão das áreas lacustres em
zonas atualmente áridas, e o desenvolvimento de grandes extensões de dunas
em regiões que hoje apresentam um clima mais úmido.
No curso da década passada, observou -se um progresso considerável na datação
de eventos climáticos ocorridos durante os últimos 30000 anos, graças ao uso
sistemático de medidas radiocronológicas (carbono 14). Para os últimos milhões
de anos, a cronologia das inversões magticas, baseada nas medidas radiométricas
pelo método potássio -argônio, permite a correlação com outras regiões onde esses
métodos são também empregados, especialmente as regiões oceânicas.
Antes da utilização desses métodos de correlação cronológica, a estratigrafia
do Quaternário baseava -se principalmente na sucessão dos eventos climáticos,
tida como um quadro cronológico. Estabeleciam -se as correlações de uma região
a outra comparando -se épocas sucessivas caracterizadas por climas semelhantes.
Assim, sugeriu -se, por exemplo, uma correspondência um tanto arbitrária entre
Quadro cronológico das fases
pluviais e glaciais da África
PARTE II
H. Faure
418
Metodologia e pré -história da África
 . Grácos mostrando analogias entre isótopos de oxigênio (ou variações de temperatura) e a
intensidade do campo magnético da Terra, em um testemunho de fundo de mar, para os últimos 450000 anos
(segundo Wollin, Ericson e Wollin, 1974).
419
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
 . Grácos mostrando analogias entre temperaturas indicadas pela microfauna e a inclinação
magnética para os últimos 2 milhões de anos (segundo Wollin et alii, 1974).
420
Metodologia e pré -história da África
os períodos glaciais europeus e as fases pluviais africanas. Esta proposta foi
recusada por vários autores (Tricart, 1956; Balout, 1952; e outros).
A resposta a essa questão de correlação mostra -se muito mais complexa na
realidade e somente agora começa a ser divisada, graças, por um lado, a um
melhor conhecimento dos mecanismos de climatologia global e, por outro, à
cronologia climática detalhada dos últimos milhares de anos.
Magnetoestratigraa e cronologia radiométrica
Além das observações feitas acima por Rushdi Said, é preciso notar que
frequentemente se confundem as unidades litoestratigficas, bioestratigráficas e
cronoestratigráficas, de sorte que a falta de precisão nas definões acabou por criar
uma nomenclatura de difícil utilização em um quadro cronológico mais rigoroso.
Assim, determinados elementos do campo magnético, como inclinação ou
intensidade, parecem estar estreitamente relacionados a elementos climáticos
(Figs. 1 e 2).
Glaciações quaternárias e cronologia
É provável que, no Quaternário, pelo menos doze resfriamentos importantes
tenham sido registrados nos desitos connuos acumulados no fundo dos oceanos
(ver Fig. 2). Cerca de oito somente foram reconhecidos nos desitos continentais
do norte da Europa. Os terraços fluviais e os desitos glaciais da região alpina são
relacionados a quatro (ou seis) glaciações clássicas: nz, Mindel, Riss, Würm (e
Donau, Biber), cada uma das quais pode compreender vários estádios”.
A natureza descontínua das evidências continentais torna difícil, e quase sempre
ilusório, estabelecer correlações entre os períodos glaciais de regiões distantes
quando não estão situadas com confiabilidade numa escala magnetocronológica
ou radiométrica. De fato, é imprecisa a cronologia estabelecida para as glaciações
alpinas. Os termos Günz, Mindel, Riss, Würm e Biber têm sido empregados
em diferentes regiões para indicar formações não sincrônicas. Assim, de acordo
com a datação potássio -argônio das rochas vulcânicas intercaladas nos terraços
do Reno, as formações conhecidas como Mindel I e II teriam 0,3 e 0,26 M.A.,
e os terraços denominados Günz I e II teriam 0,42 -0,34 M.A. Porém o termo
Günz é por vezes aplicado ao período frio que antecede o Cromeriano, que teria,
portanto, uma idade de 0,9 a 1,3 M.A., coincidindo com o período frio que
421
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
precede o evento de Jaramillo nos testemunhos submarinos. Segundo a última
interpretação, o Donau, o período frio anterior, incluiria o evento de Gilsa e
seria equivalente ao Eburoniano.
Compreende -se, a partir deste exemplo, o quanto é arriscado estender
de uma região a outra uma cronologia baseada numa suceso clitica
continental: observando -se o número de eventos frios identificados, bem
como a nomenclatura que lhes é arbitrariamente atribuída, verifica -se que as
divergências tornam precária qualquer correlação das evidências das glaciações
alpinas com os resfriamentos sucessivos medidos nos testemunhos oceânicos.
Um registro completo e contínuo de todos os fenômenos climáticos, bem
como das referências magnetoestratigráficas e radiométricas, são requisitos
fundamentais para se construir uma escala estratigráfica, ainda que aproximada,
que possibilite uma comparação razoável entre duas regiões.
A inversão magnética Matuyarna -Brunhes (0,69 M.A.) foi identificada no
estágio Cromeriano através da palinologia, e o evento de Gilsa (1,79 M.A.) no
Eburoniano (Van Montfrans, 1971).
Transgressões quaternárias e cronologia
Cada glaciação causa uma regressão glacioeustática do mar, que pode atingir
uma centena de metros. Portanto, as transgreses marinhas determinadas
pelo derretimento dos gelos permitem que, nas zonas litorâneas, a cronologia
climatoestratigráfica seja vinculada à cronologia dos ciclos marinhos.
Nas regiões onde as formações marinhas são coralinas (Barbados, Bermudas,
Nova Guiné, mar Vermelho), a datação pelos métodos baseados no desequilíbrio
do unio aplicados à aragonita dos corais permitiu precisar a idade das
transgressões marinhas dos últimos interglaciais (200000, 120000, 105000,
85000 B.P. aproximadamente). Dentro da margem de erro físico dos diversos
métodos de datação radiométrica, observa -se que estes altos níveis marinhos
correspondem razoavelmente às fases de temperaturas mais elevadas, indicadas
pela microfauna marinha, polens e isótopos de oxigênio.
Mecanismo da climatologia global
O clima não constitui um meio simples de correlação cronológica. Devido
à complexidade dos fatores a ele relacionados em um momento dado (ou em
422
Metodologia e pré -história da África
uma época que se estenda por séculos ou milênios), está fora de cogitação o uso
de dados que não forem adequadamente datados como critério estratigráfico
ou cronológico.
Os fatos que levam a essas observações são de duas especies:
• O conhecimento da evolução clitica global no decorrer de algumas
cadas (ou de alguns séculos, com base em dados hisricos) mostra
a complexidade do problema em uma escala global. É necessário o
conhecimento da evolução de todos os fatores: constante solar, circulação
oceânica, situação das frentes polares, distribuição das temperaturas, chuvas
(não somente suas médias, mas sua variabilidade).
• O conhecimento das variões de determinados fatores climáticos
nos últimos 25000 anos (fim do Pleistoceno e Holoceno), através de
medidas radiométricas, mostra -nos, por um lado, a rapidez das mudanças
significativas para as quais evidência confiável e, por outro, a complexidade
das correlões em uma escala global. A escala de tempo considerada
desempenha, então, um papel importante.
O sistema climático, conforme definido pela Academia Nacional de
Ciências, em Washington (1975), é constituído pelos processos e propriedades
responsáveis pelo clima e suas variações (propriedades térmicas: temperatura
do ar, da água, do gelo, dos solos; propriedades cinemáticas: vento, correntes
oceânicas, movimentos dos gelos, etc.; propriedades aquosas: umidade do ar,
nuvens, lençóis de escoamento superficial ou aquíferos, gelo, etc.; propriedades
estáticas: pressão, densidade atmosférica e oceânica, salinidade, etc.; assim como
os limites geométricos e as constantes do sistema). Todas as variáveis do sistema
são inter -relacionadas pelos processos físicos que nele ocorrem: precipitação,
evaporação, radiação, transferência, convecção, turbulência.
Os componentes físicos do sistema climático são: atmosfera, hidrosfera,
criosfera, litosfera, biosfera. Os processos físicos responsáveis pelo clima podem
ser expressos quantitativamente pelas equações dinâmicas do movimento, a
equão da energia termodinâmica e a equação de continuidade de massa e
de água.
As variações climáticas tornam -se mais complexas na medida em que aumenta
o número de interações entre os elementos do sistema climático. Desse modo, as
causas das mudanças climáticas são muitas e variadas, especialmente em função
da escala de tempo utilizada e dos mecanismos de interão (feedback). Os
oceanos desempenham um importante papel nas mudanças climáticas, através
423
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
dos processos na interface água -ar, os quais regem as trocas de calor, umidade
e energia.
Estas considerações preliminares mostram que a climatoestratigrafia do
Ouaternário foi uma etapa, uma aproximação necessária, que gradualmente
lugar à procura de uma compreensão dos mecanismos implicados em situações
bem determinadas, em diferentes escalas de tempo. Por esta razão, examinaremos
aqui diversos exemplos de resultados recentes relacionados à era presente, ao
Holoceno, ao Pleistoceno e ao Plio -Pleistoceno.
Climatologia atual e recente na África
Na África, o ritmo anual de alternação de uma estação seca e de uma estação
úmida na zona intertropical está ligado ao deslocamento da zona de convergência
intertropical (C.I.T.).
No recente resumo de J. Maley (1973) e L. Dorize (1974), a C.I.T. representa
o ponto de encontro da monção (ar úmido proveniente das regiões equatoriais
ou alísio marítimo do hemisfério sul) e o harmatã (ar seco do Saara). A C.I.T.,
orientada aproximadamente na direção oeste -leste, desloca -se do sul para
o norte durante a primavera e nos dois primeiros meses do verão e, depois,
do norte para o sul. Esta oscilação sazonal ocorre entre N e 20 -23° N. A
superfície de descontinuidade entre o ar úmido e o ar seco eleva -se lentamente
do norte para o sul. A camada úmida da monção constitui, no verão, uma delgada
cunha de ar frio em direção ao norte, causando apenas fracas precipitações. É
necessário que o ar úmido tenha uma espessura de 1200 a 1500 m para que
ocorram precipitações consideráveis. Estas condições só são encontradas de 200
a 300 km ao sul da linha da C.I.T. (L. Dorize, 1974). A posição da C.I.T. varia
muito, não apenas de estação para estação, mas também de dia para dia, em
função do campo de pressão de toda a África e do oceano Atlântico. Como foi
demonstrado por P. Pedelaborde (1970), o impulso originário do Atlântico sul,
combinado com a atividade da frente polar meridional, representa a principal
força de deslocamento da zona de convergência para o norte. O retraimento da
C.I.T. em direção ao sul (em setembro) seria, pois, devido ao enfraquecimento
do anticiclone do Atlântico sul e à influência do hemisfério norte. As raras
intervenções do ar boreal, dessecado após atravessar o Saara, causam apenas
pequenas chuvas nas regiões montanhosas do Saara. Ao contrário, o ar austral,
após cruzar o oceano, traz umidade potencial.
424
Metodologia e pré -história da África
A atual crise climática na zona do Sahel deve -se à permanência da C.I.T. em
uma posição de 3 a mais austral que sua posição média. Por outro lado, durante
a década úmida de 1950 -59, a área do Saara diminuiu. Como demonstrou J.
Maley (1973), a fase úmida coincidiu com uma queda das temperaturas máximas
em seus limites meridionais.
Ora, quanto mais frio o ar polar, mais fortes são as frentes polares e maior é a
sua extensão em direção ao equador. Nesta relação, Maley (1973) distinguiu dois
mecanismos, o dos períodos glaciais e o evidenciado no tempo atual. No primeiro
caso, a área de inlandsis do hemisrio norte aumentou consideravelmente,
enquanto que na Antártida teria variado pouco. A frente polar norte tinha,
então, uma influência preponderante, dirigindo a monção para o sul no verão.
A aridificação deu -se, pois, em conjunto com a expansão glacial. Por ocasião
do aumento das temperaturas no Holoceno, antes de 5000-4000 B.P., o centro
da ão polar enfraqueceu. Durante o verão boreal, a regressão da frente polar
norte favorecia a extensão da monção ao norte do equador, ao passo que a frente
polar sul impelia os anticiclones subtropicais em direção ao equador. Durante o
inverno boreal, a frente polar podia novamente estender sua ação sobre o Saara e
causar chuvas. A ocorrência de chuvas tanto no verão quanto no inverno poderia
explicar o clima úmido que prevaleceu no sul do Saara e a retração do deserto
durante a primeira metade do Holoceno.
Nos últimos 5000 anos, a regressão do inlandsis do Ártico reduziu a resistência
da frente polar norte, ao mesmo tempo que o centro de ação antártica também
teve sua força diminuída. A diminuição conjunta do impulso da monção e da
influência do ar polar boreal sobre o Saara explicariam, portanto, a progressiva
aridificação do Saara.
Estes mecanismos meteoro lógicos podem nos ajudar a entender as mudanças
climáticas que ocorreram na África durante o Quaternário.
Cronologia e climas nos últimos 25000 anos
Os últimos 25000 anos do Quaternário (fim do Pleistoceno e do Holoceno)
constituem um exemplo recente, e hoje bem documentado, de um avanço glacial
amplo e da subsequente regreso até o interglacial presente. Durante o mesmo
período, as regiões intertropicais passaram por uma aridez extrema, seguida de
uma fase úmida e de nova aridificação. Esta é a única flutuação climática que
pode ser estudada em um período de alguns culos ou milênios, permitindo uma
comparação dos elementos do sistema climático e de suas variões em inúmeras
425
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
regiões do globo, situadas em quase todas as latitudes. Am disso, para este peodo,
as indicações fornecidas por polens, diatoceas e fauna idênticos às espécies atuais,
permitem uma quantificação precisa da magnitude das variações do meio geogfico.
Ademais, o vel dio dos mares é conhecido o bastante para que se possa ter, a
todo momento, uma ideia do volume geral dos gelos e das relões isotópicas do
oxinio nos principais reservatórios (oceanos, glaciares). (Cf. Morner, 1975.)
Na África saariana, desde os primeiros trabalhos baseados na datação por carbono
14 (Butzer, 1961; Monod, 1963; Faure, 1967 e 1969), os estudos mais recentes que
podem servir de base a uma cronologia detalhada das variações cliticas são os de
M. Servant e S. Servant no Chade e no Níger; e de F. Gasse em Afar. Para o leste
da África, os trabalhos dos grupos de Van der Zinderen Bakker e Livingstone, de
Richardson, de Williams, de Wickens, e outros. Suas averiguões o comparáveis
às de muitos trabalhos sobre as regiões de altas latitudes, em especial os de Velitchko,
Dreimanis, e outros. A região do oceano Atntico é conhecida na sua totalidade
através do trabalho do grupo CLIMAP
1
e de McIntyre, enquanto o hemisfério sul
é conhecido pelas publicações de Van der Hammen, Williams, Bowler et alii.
Para situar a evolução do clima da África nos últimos 25000 anos em uma
perspectiva global, podem -se distinguir várias etapas cronológicas.
De 25000 a 18000 B.P.
Altas latitudes
O período de tempo compreendido entre 25000 e 18000 B.P. corresponde
ao fim da extensão máxima das calotas glaciais no hemisfério norte. Esta última
extensão da glaciação de Würm (= Wisconsin = Weichselien = Valdar) cobriu
de gelo uma área que representa de 90 a 95% daquela ocupada por todas as
glaciações anteriores do Ouaternário (Flint, 1971). Trata -se, pois, de um modelo
de glaciação bastante representativo.
Nas zonas periglaciais, o permafrost (solo permanentemente congelado)
parece ter sido mais extenso que durante as outras glaciações (Velitchko, 1973 e
1975). Esta grande extensão de permafrost estaria associada, fora dos continentes,
aos gelos marinhos, bastante extensos nos mares do Ártico, que contribuíram
para uma redução da evaporação na interface ar -mar.
1 CLIMAP: Climatic Long ‑Range lnterpretation, Mapping and Prediction da cada Internacional de
Exploração Oceânica (IDOE).
426
Metodologia e pré -história da África
 . Mapa das isotermas da água de superfície do oceano Atlântico em fevereiro, 18000 B.P.
As isotermas em pontilhado são interpretativas. As grandes massas de gelo continental são delineadas por
contornos hachurados; a banquisa permanente por contornos granulados. A linha de costa glacial é traçada
para um nível do mar inferior em 85 m ao atual (segundo Mc Intyre et alii, 1975).
Oceanos
Combinado com a redução da superfície livre devido aos gelos marinhos,
o abaixamento do nível médio dos oceanos, passando de cerca de -50 a cerca
de -100 m, contribuiu para uma redução suplementar da área dos oceanos de
aproximadamente 10%. No fim do período em consideração, emergiram quase
todas as plataformas continentais.
Os pesquisadores do grupo CLIMAP (McIntyre et alii, 1974, 1975; Hays
in CLIMAP, 1974, etc.) estabeleceram mapas das temperaturas das águas de
427
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
 . Mapa mostrando diferenças na temperatura da água de superfície entre a época atual a
17000
B.P. (segundo Mc Intyre et alii, 1975). F .: inverno; F .: verão.
428
Metodologia e pré -história da África
superfície do oceano Atlântico para a época do máximo glacial (18000 B.P.) (Fig.
3). Comparados com mapas de situações atuais (que são as de um interglacial),
estes mapas mostram uma média geral das diferenças de temperatura de apenas
2,5° entre o máximo glacial e o interglacial presente. Contudo, a distribuição
das diferenças de temperatura mostra um máximo nas latitudes médias (de 6
a 10° de diferença) e diferenças muito menores (inferiores a 3°) nas latitudes
intertropicais (Figs. 4 e 5). Assim, por exemplo, no ponto 5 N 30° W, a
temperatura de superfície no inverno foi de 7,3 a 12,7° mais baixa em 18000 (ou
17000) B.P. que atualmente. No verão, a diferença caiu de 1,2 a 6,6° (CLIMAP,
1974).
Em ambos os hemisférios, a migração das águas polares foi o fator dominante
nesta fase glacial. No Atlântico norte, as águas polares desceram até 42° N (a
partir de uma posição próxima à atual; em torno de 60° N), causando um rápido
gradiente das temperaturas ao sul do paralelo 42° N, que foi, portanto, o eixo
provável dos ventos oeste (westerlies) na época glacial. Ao sul deste limite, o padrão
permanece muito semelhante ao atual, mas observa -se que as isotermas, paralelas
às costas da África, revelam a existência de . águas relativamente frias, em especial
no inverno, devido a um considerável upwelling (Gardner, Hays, 1975).
As frentes polares e o eixo dos ventos oeste deslocaram -se mais de 2000 km
em direção ao equador no Atlântico norte, e somente 600 km no Atlântico sul.
No oceano Pacífico, as frentes polares parecem ter -se deslocado muito pouco nos
períodos glaciais. Isto explicaria a diminuição da penetração da monção no Saara
(cf. Maley, 1973, p. 7 -8) e a aridez da zona do Sahel no fim do período glacial.
África
Nas reges do Saara meridional e do Sahel, a evolução geral do clima
nos últimos 25000 anos mostra uma tendência muito semelhante das costas
do Atlântico ao mar Vermelho. Este período de tempo compreende o fim de
uma fase úmida do Pleistoceno superior (que durou de 30000 a 20000 B.P.
aproximadamente) e o começo de uma fase árida, que findou ao redor de
12000 B.P.
O estudo de depósitos lacustres na bacia do Chade mostrou que a relação
entre precipitação e evaporação (P/E) foi suficiente para que existissem extensos
lagos de 40000 até 20000 B.P. aproximadamente (M. Servant, 1973). Durante
os oito milênios seguintes, a zona árida estendeu -se, ultrapassando seus limites
atuais em mais de 400 km em direção ao sul.
429
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
Esta transição de um episódio lacustre a uma época muito árida é também
observável nos depósitos dos lagos de Afar, onde F. Gasse mostrou a existência
de três fases lacustres no Pleistoceno Superior. Entre 20000 e 17000 B.P.,
o ambiente lacustre degenerou e o leito seco do lago Abbé foi ocupado por
gramíneas (Gasse, 1975).
Analisando a literatura mais recente, M. Servant (1973) e F. Gasse (1975)
constatam uma evolução comparável em outros lagos do leste da África em
diversas altitudes e latitudes: trabalhos de Richardson, Kendall, Butzer et alii,
Livingstone, sobre os lagos Rodolfo, Nakuru, Naivasha, Magadi, Alberto, etc.
De 18000 a 12000 B.P.
Altas latitudes
Em regiões de alta latitude, este período corresponde ao fim do máximo
glacial e à desglaciação. As calotas glaciais que cobriam o leste da América
do Norte e a Escandinávia, e que alcançaram sua maior extensão entre 22000
e 18000 B.P., entraram em fusão imediatamente após este lapso de tempo. A
calota da cordilheira norte -americana alcançou seu máximo somente em torno
de 14000 B.P. e desapareceu em 10000 B.P. aproximadamente. A desglaciação
generalizada iniciou -se, portanto, em 14000 B.P. aproximadamente. No
hemisfério sul, por outro lado, a calota glacial continental do leste da Antártida
parece ter variado pouco, enquanto que a do oeste, cuja base se acha abaixo
do nível do mar, diminuiu consideravelmente (National Academy of Sciences,
Washington, 1975).
Oceanos
As imensas superfícies recobertas por gelo marinho certamente desapareceram
com o pido aumento do nível do mar que se seguiu à desglaciação. Este
aumento atingiu em média 1,5 m/século entre 15000 e 12000 B.P., sendo
que nesta última data ocorreu provavelmente a metade, senão os dois terços
do aumento. Ao mesmo tempo, as águas polares do Atlântico retomavam às
latitudes mais setentrionais.
África
A grande aridez do período compreendido entre 18000 e 12000 B.P. é o
fenômeno mais bem documentado de todos os que abrangeram grandes áreas
430
Metodologia e pré -história da África
do continente africano. É bem evidenciado nos gráficos que mostram a evolução
dos níveis lacustres do Níger e do Chade (Servant, 1973), do Afar (Gasse,
1975), do Sudão (Williams, 1975; Wickens, 1975), etc. O desaparecimento
da vegetação permitiu que as dunas avançassem devido à ão dos ventos,
de 400 a 800 km em direção ao equador e sobre as plataformas continentais
emergidas. Não há dúvida de que o Saara, tendo sua área ampliada, foi durante
vários milênios uma barreira muito mais hostil ao homem do que o Saara
atual. Esta aridificão parece ter -se generalizado e vários indícios de que
as zonas intertropicais sofreram uma relativa dessecação na África (de Ploey,
Van der Zinderen Bakker et alii, in Williams, 1975) e na Ásia, principalmente
na Índia (Singh, 1973).
Tendo revisto recentemente a literatura referente a esta época árida,
Williams (1975) demonstrou sua extensão excepcional e aproximadamente
sincrônica.
Bacia do Mediterrâneo
Embora a evolução do clima durante a última glaciação (cerca de 100000
anos atrás) pareça bastante complexa na bacia do Mediterrâneo (ver p. 413),
achados palinogicos (Bonatti, 1966) e pedogicos (Rohdenburg, 1970)
indicam que, no máximo glacial, o clima foi frio e seco. A zona mediterrânea
era ocupada por uma estepe muito seca entre 16000 e 13000 B.P., e crostas
calcárias desenvolviam -se sobre os solos.
Hemisfério sul
Na Austrália, o estudo dos polens indica que houve uma queda gradual nas
temperaturas até cerca de 18000 ou 17000 B.P., durante o estabelecimento da
seca e a extensão das dunas sobre a plataforma continental emersa (Bowler
et alii, 1975). A glaciação ocupou a Tasmânia e as Snowy Mountains, ao
passo que os lagos do sul da Austrália secaram ao redor de 16000 B.P.
Temperaturas mais elevadas, indicadas por um aumento na altitude do limite
clitico (timberline), estabeleceram -se por volta de 15000 B.P., mas o novo
preenchimento dos lagos do sul da Austrália só teve início após 11000 B.P.
(Bowler et alii, 1975).
Van der Hammen (1975) e Williams (1975) mostraram as analogias que
caracterizam os climas de ambos os hemisférios durante o último máximo glacial
(18000 B.P. aproximadamente). Uma aridez generalizada persistiu durante
431
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
vários milênios em todas as regiões do globo situadas nas baixas latitudes, com
exceção do sudoeste dos Estados Unidos.
De 12 000 B.P. até o presente
Altas latitudes
Este período é caracterizado pelo fim da glaciação e por um notável aumento
das temperaturas, que culminou entre 7300 e 4500 B.P. (o ótimo climático”,
ainda denominado na Europa de peodo Atlântico”). A calota glacial da
cordilheira fundiu -se muito rapidamente e desapareceu em torno de 10000 B.P.;
a da Escandinávia desapareceu logo em seguida (9000 B.P.). Registram -se
flutuações nítidas e rápidas a intervalos de cerca de 2500 anos (por exemplo, o
resfriamento do Dryas jovem entre 10800 e 10100 B.P.).
Quanto à glaciação, o norte da Europa atingiu condições comparáveis às
que prevalecem no presente ao redor de 8500 B.P., e a América do Norte, ao
redor de 7000 B.P. (Nat. Acad. Sci., 1975). Nessa época, reduziu -se igualmente
a calota glacial do oeste da Antártida.
Oceanos
O aumento do nível do mar, que reflete o estado médio de fusão de todas
as geleiras da Terra, foi ainda bastante rápido entre 12000 e 7000 B.P. (mais
de 1 m/século em média, mas com uma considerável desaceleração ou queda
ao redor de 11000 B.P.). Os oceanos parecem ter alcançado um nível muito
próximo do atual a partir de 6000 B.P., e ter oscilado, desde então, em torno
desse nível, com uma amplitude que não excedia alguns metros. A essa tendência
geral superpõern -se flutuações vinculadas a variações climáticas gerais (Morner,
1973).
As zonas em que a sedimentação marinha foi razoavelmente rápida, zonas estas
estudadas por Wollin e Ericson, também nos permitem acompanhar mudanças
na distribuição dos foraminíferos e, em especial, a variação da porcentagem do
sinistrógiro Globorotalia truncatulinoides. De acordo com Morner (1973), os
picos das curvas correspondentes poderiam estar em correlação com os picos
das curvas das mudanças climáticas registradas através de exames isotópicos
dos gelos da Groenlândia, escalas palinológicas e flutuações do nível do mar.
Contudo, chega -se aqui ao limite de precisão do método de datação radiométrica
e fazem -se necessárias interpolações lineares entre as datas, levando -se em
consideração as variações das taxas de sedimentação. Além disso, a distorção da
432
Metodologia e pré -história da África
escala cronológica do carbono 14 em relação à escala de tempo exige correções
que dificultam a correlação de fenômenos cujos limites se inscrevem no decurso
de um ou dois séculos apenas.
África
Após a extrema aridez do período que se estende de 16000 a 14000 B.P. e
a partir de 12000 B.P., os lagos das regiões saarianas, das costas do Atlântico
ao mar Vermelho; expandiram -se de forma notável. Em quase todas as regiões
baixas são observados depósitos lacustres, frequentemente constituídos de
diatomáceas.
No Níger e no Chade, M. Servant (1973) elaborou uma curva contínua
da relação P/E (Fig. 6) com base em um estudo de diferentes tipos de lagos,
levando em conta seu modo de alimentação e sua situação hidrogeológica e
geomorfológica.
Esta curva climática ilustra as grandes oscilações que parecem ter um caráter
geral: grande extensão dos lagos ao redor de 8500 B.P., retração ao redor de
4000 B.P. e flutuações menores após 3000 B.P. Estas variações principais
são igualmente observadas nos diversos lagos do Afar, embora com algumas
nuances devidas a seus modos de alimentação (Gasse, 1975) (Fig. 7). Nota -se
uma analogia manifesta entre a curva do Chade e a curva da umidade da zona
continental siberiana.
O estudo dos demais lagos africanos mostra uma linha geral de evolução
muito semelhante. Livingstone e Van der Zinderen Bakker julgam haver um
paralelismo estreito entre a evolução climática do leste africano e a da Europa.
A extensão dos lagos do Saara até 8000 B.P. parece estar relacionada a uma
melhor distribuição das chuvas durante o ano e a uma nebulosidade densa o
suficiente para reduzir a evaporação. M. Servant (1973) acredita que a circulação
atmosférica de então tenha sido diferente da atual. A presença de vários níveis
de diatomáceas de clima “frio” leva -o a postular possíveis intrusões de ar polar
sobre o Saara. O mecanismo climático atual ter -se -ia estabelecido somente a
partir de 7000 B.P.
Hemisfério sul
Bowler et alii situam em 8000 B.P. (Mt. Wilhem) o desaparecimento das
geleiras no norte da Austrália e na Nova Guiné, em concomitância com o
aumento das chuvas, que apresenta f1utuações menores. Entre 8000 e 5000
433
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
. Evolução relativa da razão pluviosidade/evaporação nos últimos 12000 anos na bacia do Chade
(13° 18° de lat. N). Esta evolução foi determinada a partir de um estudo comparativo das variações dos
níveis de diversos lagos, alimentados principalmente por lençóis subterrâneos, riachos ou rios (segundo M.
Servant, 1973, p. 40 -52).
434
Metodologia e pré -história da África
 . Variações dos níveis lacustres nas bacias do Afar. As curvas relativas aos lagos Abhé, Hanlé-
-Dobi e Asal, situados no Afar central, estão representadas no mesmo gráco. A do lago Afrera é independente.
Pode -se estabelecer comparação com a curva de oscilação de P/E na bacia do Chade (segundo F. Gasse, 1975).
435
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
B.P., a temperatura média teria sido 1 ou 2
º
mais elevada que a atual. O ótimo
climático (Hipsotérmico) teria um valor global; a floresta de zona quente e úmida
(rain forest) desfrutou, entre 7000 e 3000 B.P., das condições de desenvolvimento
mais favoráveis (desde o interglacial precedente, 60000 anos antes). Da mesma
forma, os lagos do sul da Austrália, secos em 15000 B.P., começaram a ser
preenchidos em 11000 B.P., atingindo altos níveis em 8000 e 3000 B.P.
Retração pouco antes de 7000 B.P., nova expansão em torno de 6500 B.P.:
é provável que o aumento da temperatura e da umidade nas zonas de baixa
latitude seja um fenômeno geral durante a primeira metade dos últimos 12000
anos, e que tenha conduzido às condições características do interglacial presente.
Cronologia climática dos últimos 25000 anos: conclusão
Este período nos apresenta um quadro da evolução climática quando do
máximo glacial (ao fim de um período glacial) e durante uma desglaciação que
levou a um interglacial (o presente).
Este modelo de meio -ciclo de desglaciação mostra uma aridez generalizada
que se estende por cerca de 5000 anos na África, caracterizando o fim de uma
glaciação seguida de uma fase úmida de duração comparável, flutuante, mas que
retorna gradualmente a um estágio árido.
Estas pulsações climáticas podem ser explicadas, numa escala de tempo
de 20000 anos, pelo deslocamento das frentes polares e seus efeitos na frente
intertropical (FIT) e pelos dois tipos extremos de circulação, rápida ou lenta.
É também provável que este modelo seja representativo de outras
situões comparáveis e de mesma escala no Quaterrio, isto é, de durão
e amplitude análogas. Entretanto, cabe não extrapolá -lo para todo um
período glacial de 100000 anos de durão, ou a fortiori para o conjunto
das glaciações do Quaternário, que cobre um período de vários miles de
anos. Por esta razão, examinaremos agora a cronologia de um período glacial
como um todo.
Cronologia e climas nos últimos 130000 anos
Os últimos 130000 anos (ou Pleistoceno Superior) permitem o estudo de
um modelo climatoestratigráfico na escala de tempo de um período glacial
interglacial completo. A cronologia deste período ultrapassa de muito o
alcance da datação por radiocarbono, que possibilitou estabelecer uma sucessão
436
Metodologia e pré -história da África
relativamente precisa (com a precisão de séculos ou de milênios aproximados)
dos últimos 25000 anos. Contudo, o intervalo de tempo que corresponde ao
último grande interglacial (eemiense, anterior ao atual) e à última grande
glaciação (Würm = Wisconsin = Weichselien = Valdaï) é relativamente bem
conhecido, com uma precio cronológica da ordem de 10 ou 20% para o
período mais remoto.
De fato, nos oceanos e bacias sedimentares obtêm -se dados cronológicos
adicionais pela extrapolação das velocidades de depósito conhecidas e pela
aplicação dos todos do desequilíbrio do urânio e do potássio -argônio no
limite superior de seu alcance. A interpolação linear entre os pontos datados
de uma sequência contínua fornece uma cronologia aproximada. Contudo, não
se podem fazer, com suficiente precisão, correlações de grande distância entre
eventos que não ultrapassaram alguns milênios. Logo, são principalmente as
tendências gerais de período médio (10000 anos) que terão melhor definição e
que poderão ser comparadas de uma região a outra.
Comparação entre regiões
Altas latitudes
A vegetão do interglacial eemiense indica que, durante as fases mais
quentes desse interglacial (entre cerca de 125000 e 80000 B.P.), a temperatura na
Eurásia e na América do Norte era bastante semelhante à do período Atlântico
(entre 7000 e 5000 B.P.), isto é, pouco diferente da atual. Estes dois interglaciais
ocorreram subitamente após uma queda considerável das temperaturas (último
estágio muito frio do Riss: 135000 B.P., e último estágio muito frio do Würm:
20000 B.P.).
Oceanos
As variações do nível dos oceanos registram de maneira bastante clara os
dois máximos glaciais, caindo consideravelmente ( -110 m ±20 para o segundo
máximo em torno de 20000 -18000). Os níveis mais altos alcançados durante
o interglacial eemiense e o presente são comparáveis entre si (com um desvio
de 5%). As elevações do nível do mar durante os interestadiais (45000 e 30000
B.P.) podem ter alcançado entre 60 e 80% da elevação máxima (o Inchiriense
na Mauritânia, por exemplo). Elas confirmam a fusão de uma massa de gelo
equivalente durante o interestadial.
437
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
África
Como no caso dos oceanos, a repercussão dos fenômenos glaciais
provavelmente atenuou -se na direção das latitudes intertropicais. As diferenças
entre as temperaturas de um estágio glacial e de um estágio interglacial, de 5
a 10
o
nas médias latitudes, podem ter sido de 2 a 3
o
apenas entre os trópicos.
Os efeitos da glaciação na distribuição e quantidade de chuvas constituem o
fenômeno mais facilmente observável na África.
Poucas reges da África possuem uma cronologia radiotrica bem
estabelecida para os últimos 130000 anos. No entanto, através de sondagens no
lago Abbé, F. Gasse (1975) pôde distinguir três estágios lacustres no Pleistoceno
superior, antes da aridificação de 20000 a 14000 B.P., a saber: o período que se
estende de 30000 a 20000 B.P. (clima tropical temperado úmido), separado de
uma outra extensão lacustre ocorrida por volta de 40000 a 30000 B.P. por
uma considerável regressão ao redor de 30000 B.P. O estágio lacustre mais antigo
dataria de 50000 a 60000 B.P. (ou talvez de 60000 a 80000?), correspondendo a
um período mais frio acusado pelas diatomáceas.
Uma outra indicação de variação climática de datação incerta no Pleistoceno
Superior foi obtida por meio de um estudo de polens no vale superior do Awash
(Afar), onde R. Bonnefille (1973, 1974) distinguiu um clima nitidamente mais
úmido que o presente, talvez mais frio, caracterizado por uma vegetação estépica
de planalto.
Bacia do Mediterrâneo
Situada entre as duas zonas geográficas acima estudadas, a bacia do
Mediterrâneo constitui um importante domínio climático, cuja evolução parece
complexa. As glaciações, em particular, não mais podem ser consideradas como
causa única do estabelecimento de um clima úmido na região.
Analisando os estudos palinológicos, micropaleontológicos e isotópicos
realizados no Mediterrâneo oriental, na Grécia e em Israel (Emiliani, 1955;
Vergnaud -Grazzini e Herman -Rosenberg, 1969; Wijmstra, 1969; Van der
Hammen, 1971; Rossignol, 1969; Issard, 1968; Issard e Picard, 1969), Farrand
(1971) chega à concluo de que a queda da temperatura durante a última glaciação
pode ter sido de 4
o
no ar, e de 5 a 10
o
no mar. Na Grécia, a seca foi mais acentuada
durante o período glacial, ao passo que o inverso ocorreu nas costas de Israel.
Por outro lado, o estudo de microrrestos de mamíferos (roedores) (Tchernov,
1968, in Farrand, 1971) parece indicar uma evolução gradual de condições
438
Metodologia e pré -história da África
 . Mapa das localidades fossilíferas do Plio -Pleistoceno da África oriental. Legenda: M, Mursi;
U, Usno; S, Shungura, formações da bacia inferior do Orno; I, Ileret; KF, Koobi Fora, setores ocidentais do
lago Rodolfo; L, Lothagan; K/E, Kanapoi e Ekora, da bacia hidrográca do baixo Kerio; C, Chermeron; CH,
Chesowanja, localidades da bacia do Baringo; K, Kanam, golfo de Kavirondo; P, Peninj, bacia do Natron;
OG, Garganta de Olduvai; LA, Laetolil, planície de Serengeti. Mapa básico 1:4000000, Geologia da África
Oriental (Quênia) (segundo F. Clark Howell, 1972).
439
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
a . Cronologia radiométrica e paleomagnética do Plioceno/Pleistoceno da África oriental, do
sudoeste da Europa e do noroeste da América. As importantes sucessões fornecidas pelas medições efetuadas
nas áreas de Ileret e Koobi Fora (setor oriental do lago Rodolfo) ainda estão sendo estudadas. As colunas
correspondentes foram deixadas em branco (segundo Clark Howell, 1972).
440
Metodologia e pré -história da África
úmidas para condições áridas durante os 80000 últimos anos. Ao redor de
20000 B.P., o vel do lago Lisan (Israel) baixou 190 m em 1000 anos, em
consequência de um dessecamento (combinado a movimentos tectônicos do
rift do mar Morto) e, como vimos, o fim da extensão máxima do frio würmiano
corresponde a condições frias e áridas em toda a bacia do Mediterrâneo.
Como na África, a complexidade da situação geoclimática da bacia do
Mediterrâneo requer ainda estudos muito detalhados, no sentido de precisar
sua evolução climática no Würm.
Cronologia e climas nos últimos 130000 anos: conclusão
O último período glacial nos apresenta um modelo de ciclo clitico
completo na escala de 100000 anos (interglacial -glacial -interglacial), com
flutuações interestadiais e estadiais de durão da ordem de 10000 anos.
Na África, esse período se caracterizou por extensões lacustres (de duração
comparável) separadas por estádios de dessecação.
No estado atual dos nossos conhecimentos, a datação não é suficientemente
exata para permitir uma correlação confiável entre estádios frios ou quentes e
estádios úmidos ou secos na África. Espera -se que as pesquisas em andamento,
baseadas em cortes e sondagens que apresentam uma sucessão contínua de
eventos, permitam responder a esta questão no futuro.
Cronologia e climas nos últimos 3500000 anos
A lenta tendência ao resfriamento, característica do Quaternário, começou
aproximadamente 55 milhões de anos (“Cenozoic climatic decline”) (National
Academy of Sciences, 1975). A calota glacial da Antártida, que já se formara há
cerca de 25 M.A., expandiu -se consideravelmente cerca de 10 M.A. e depois,
novamente, há cerca de 5 M.A., quando praticamente atingiu seu volume atual.
A calota do Ártico, que se estendeu sobre os continentes próximos do Atlântico
norte, surgiu cerca de 3 M.A. O primeiro grande resfriamento dos oceanos
teve início há cerca de 1,8 M.A. (Bandy, in Bishop e Miller, 1972), pouco antes
da base do estágio marinho Calabriano, este quase simultâneo ao evento de
Gilsa (1,79 M.A.).
Na África, várias regiões (Chade, leste da África, etc.) revelaram uma rica
fauna de vertebrados, de início atribuída ao Villafranchiano (entre 3,3 e 1,7
ou 1 M.A.). Certas associações de mamíferos implicam condições muito mais
441
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
úmidas que as que caracterizam o ambiente atual dos depósitos. Foram, portanto,
consideradas como características dos “pluviais” da África.
As estratigrafias mais detalhadas, baseadas nas datões pelo possio-
-argônio e paleomagnéticas, são as dos depósitos do rift leste -africano. Neste
tipo de preenchimento sedimentar, é mais difícil perceber o efeito do clima que
o das atividades tectônicas e vulcânicas e as mudanças topográficas que elas
acarretam; por esse motivo, os autores atuais têm abandonado a tentativa de
estabelecer uma sucessão climática detalhada. Por outro lado, a cronoestratigrafia
está bem estabelecida e constitui uma referência mundial.
Nos diversos depósitos de vertebrados e hominídeos da África oriental (Figs.
8 e 9), as sucessões sedimentares datadas são as seguintes:
• Omo (Etiópia): a formação de Shungura, com cerca de 1000 m de espessura,
estende -se de 3,2 a 0,8 M.A., a formação de Usno, de 3,1 a 2,7 M.A.
(segundo de Heinzelin, Brown e Howell, 1971; Coppens, 1972; Bishop e
Miller, 1972; Howell, 1972; Brown, 1972, 1975). Um estudo de pólens da
formação de Shungura revelou uma importante mudança climática para
condições mais secas há aproximadamente 2 M.A., com o desenvolvimento
de uma savana de gramíneas (Bonnefille, 1973, 1974). Esta mudança é
confirmada pelo estudo da fauna. Poder -se -ia sugerir que fosse comparada
a um estádio do resfriamento mundial dos oceanos (1,8 M.A.).
• Olduvai (Tanzânia): a sucessão das formações clássicas e sua cronologia é
a seguinte:
Ndutu Beds
0,032 M.A.
0,4 M.A.
Masen
Beds 0,6 M.A.
Beds IV 0,8 M.A.
Kanjeriano inferior
Bed III 1,15 M.A.
Bed II 1,7 M.A.
Kamasiano inferior Bed I 2,1 M.A.
(segundo Leakey, Cook e Bishop, 1967; Howell, 1972; Hay, 1975).
• East Rudolf (Quênia): a estratigrafia resumida na Fig. 10, estabelecida por
Brock e Isaac (1974), diz respeito a 325 m de depósitos acumulados em um
período que se estende de cerca de 3,5 a 1,5 M.A. (segundo Bowen, Brock
e Vondra, 1975).
442
Metodologia e pré -história da África
. Cronologia e ritmo da evolução das civilizações durante o Pleistoceno, com relação à evolução
dos hominídeos (W. W. Bischop e J. A. Miller, 1972, p. 381 -430, g. 9; segundo G. L. Isaac). Os principais
horizontes culturais estão relacionados a uma escala de tempo logarítmica. As datas ou ries de datas
particularmente bem determinadas estão assinaladas por símbolos em traço grosso.
443
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
 . Tendências gerais do clima global para o último milhão de anos. (a) Mudanças da média
quinquenal das temperaturas de superfície, na região 0
o
-80
o
N durante os últimos 100 anos (Mitchell, 1963).
(b) Índice do rigor do inverno na Europa oriental durante os últimos 1000 anos (Lamb, 1969). (c) Tendências
gerais da temperatura do ar nas latitudes médias do hemisfério norte durante os últimos 15000 anos, com
base na altitude máxima das árvores (La Marche, 1974), nas utuações marginais das geleiras alpinas e
continentais (Denton e Karlen, 1973), e nas mudanças dos padrões de vegetação registradas pelos espectros
de pólen (Van Der Hammen et alii, 1971). (d) Tendências gerais da temperatura do ar no hemisfério norte
durante os últimos 100000 anos, com base nas temperaturas das águas de superfície nas latitudes médias, nos
registros de pólens e nos registros do nível dos mares. (e) Variações no volume global dos gelos durante o
último milhão de anos, com base nas mudanças da composição isotópica do plâncton fóssil nos testemunhos
de fundo do mar V 28 -238 (Shackleton e Opdyke, 1973).
444
Metodologia e pré -história da África
• Hadar, Afar central (Etiópia): finalmente, as formações de Hadar (Afar
central), que encerram hominídeos e grande quantidade de fósseis, e que
foram estudadas pela Expedição Internacional de Pesquisa de Afar (IARE),
teriam aproximadamente 3 M.A., segundo Johanson e Taieb e outros (1974,
1975).
Em poucos anos, o trabalho ativamente empreendido nestas reges da
África oriental possibilitará o estabelecimento de um novo modelo de evolução
climática, baseado na sedimentologia e na ecologia vegetal e animal e tendo em
conta a intervenção de fatores tectônicos e vulcânicos.
Outras regiões da África, tais como o Saura (Alimen et al., 1959; Alimen,
1975), o vale do Nilo (Wendorf, 1968; Butzer e Hansen, 1968; de Heinzelin,
1968; Giegengak, 1968; Said, no prelo), o Chade (Coppens, 1965; Servant, 1973)
e a África do norte, foram objeto de intensos estudos. As variações climáticas
propostas baseiam -se na sucessão de depósitos e escavações fluviais ou nas
sucessões de faunas de mamíferos. Devido à falta de uma datação radiométrica
ou magnetoestratigráfica, ainda não é possível correlacionar estas variações com
as flutuações glaciais europeias.
Conclusão
O Cenozoico superior caracteriza -se, nos últimos 5 milhões de anos, pela
acentuão dos gradientes rmicos do globo, ligada a grandes mudanças
climáticas no decorrer do tempo. Esta acentuação provocou, nas altas latitudes,
consideveis variações de temperatura, responsáveis pelos períodos glaciais
e interglaciais. Nas latitudes intertropicais, as flutuações térmicas foram
relativamente atenuadas, mas as circulações atmosféricas, perturbadas pelo
fortalecimento ou enfraquecimento das frentes polares, provocaram variações
consideráveis na distribuição e quantidade de chuvas, que contribuíram para
mudar profundamente o ambiente das diferentes zonas climáticas. Modificando
periodicamente o meio geográfico e vegetal, cenário em que vive a fauna e se
desenvolvem os horninídeos, estas variações climáticas estabelecem o ritmo
da história da evolução da África de forma mais discreta que as glaciações na
Europa.
O que se deve reter dessa breve análise do estado atual dos conhecimentos
sobre a cronologia e as mudanças climáticas na África é a necessidade de dar
prosseguimento aos trabalhos de observação e mediação antes de cristalizar
as informações dispares de que dispomos na rígida estrutura de uma teoria.
445
Quadro cronológico das fases pluviais e glaciais da África
Por outro lado, percebe -se a importância da escala de tempo das diferentes
manifestações de mudança climática. Deve -se ter o cuidado de colocar cada
observação e cada fenômeno na escala de tempo adequada. Isto é ilustrado, a
título de conclusão, pela Fig. 11, extraída da publicação da National Academy
of Sciences, Washington (1975), em que são apresentados cinco exemplos de
variações climáticas para escalas de tempo que vão de um século a milhões de
anos.
C A P Í T U L O 1 7
447
A hominização: problemas gerais
Os dados paleontológicos
O homem é um mamífero, mais exatamente, um mamífero placentário
1
.
Pertence à ordem dos Primatas.
Critérios paleontológicos
Os primatas diferenciam -se dos outros maferos placentários pelo
desenvolvimento precoce do cérebro, pelo aperfeiçoamento da visão, que se
torna estereoscópica, pela redução da face, pela substituição das garras por unhas
chatas, e pela oposição do polegar aos outros dedos. Os primatas classificam-
-se em prossímios e símios. O homem pertence a este segundo grupo, que se
caracteriza por um aumento da estatura, pelo deslocamento das órbitas na face
e consequente melhoria da visão, e pela independência das fossas temporais.
Uma repentina proliferação de formas ocorre entre esses símios no Oligoceno
Superior, há cerca de 30 milhões de anos, o que leva a supor que a diferenciação
da família Hominidae poderia datar dessa época. Para poder escrever a história
1 Os mamíferos representam a mais evoluída das cinco classes de vertebrados. Os mamíferos placentários
são os mais evoluídos dentre os mamíferos; dispõem de um novo órgão, a placenta, destinado à respiração
e nutrição do feto.
A hominização: problemas gerais
PARTE I
Y. Coppens
448
Metodologia e pré -história da África
desses homideos, devemos pesquisar, portanto, entre os sseis de mios
dos últimos 30 milhões de anos, cujas tendências evolutivas se orientam para
os traços que caracterizam o gênero Homo, ao qual pertencemos: locomoção
sobre os membros posteriores com as consequentes transformações dos pés, das
pernas, da bacia, da orientação do crânio, das proporções da coluna vertebral;
desenvolvimento da caixa craniana; redução da face; arredondamento da arcada
dentária; redução dos caninos; curvatura do palato, etc.
O Propliopithecus do Oligoceno Superior apresenta alguns discretos sinais
dessas tendências, o que explica o entusiasmo sem dúvida prematuro de certos
autores, em considerá -lo como pertencente ao nosso gênero.
As tendências observadas no Ramapithecus são mais relevantes: seu cérebro
parece ter atingido 400 cm³, o tamanho da face é reduzido, a arcada dentária
é arredondada, e os incisivos e caninos, também reduzidos, estão implantados
verticalmente. Um outro primata, o Oreopithecus, de quem conhecemos o
esqueleto completo, apresenta essas mesmas características cranianas e uma bacia
de bípede ocasional. Podemos supor, portanto, que o esqueleto pós -craniano
2
do Ramapithecus, que ainda não conhecemos, possa apresentar também esses
primeiros indícios de adaptação à postura ereta.
Por outro lado, as tendências evolutivas do Australopithecus não deixam
margem a dúvidas. Essespedes permanentesm pés humanos,os
modernas, cérebro com nítido aumento de volume, caninos pequenos e face
reduzida. Não podemos deixar de considerá -los hominídeos.
O gênero Homo, fim da cadeia, distingue -se dos Australopithecus por aumento
da estatura, melhoria na postura ereta, crescimento do volume do cérebro, que, a
partir da espécie mais antiga, pode atingir 800 cm³, e transformação da dentição
com maior desenvolvimento dos dentes anteriores em relação aos laterais, em
consequência da mudança do regime alimentar, de vegetariano para onívoro.
Vemos que o trabalho do paleontólogo é um estudo de anatomia comparativa
e dinâmica ao mesmo tempo. Sabendo que a evolução parte sempre do mais
simples para o mais complexo e do indiferenciado para o especializado, precisa
encontrar fósseis que sejam suficientemente semelhantes mas também, levando
em conta a idade geológica, suficientemente diferentes do homem, cujos
ancestrais ele está procurando.
Os mais antigos primatas são os prossímios, grupo hoje representado pelos
lêmures de Madagáscar, os tarsídeos das Filipinas e da Indonésia e pelo pequeno
galago da África tropical.
2 Esqueleto pós -craniano é o conjunto do esqueleto menos o crânio.
449
A hominização: problemas gerais
A partir do Eoceno
3
, os mios se dividiram em dois grandes grupos: os
platirrinos
4
ou macacos do Novo Mundo, que têm um septo nasal largo e 36
dentes, e os catarrinos ou macacos do Velho Mundo, que têm um septo nasal
estreito e 32 dentes.
Os catarrinos, por sua vez, dividiram -se em um certo número de famílias:
Cercopithecidae, Pongidae, Hominidae, Hylobatidae, Oreopithecidae, Silvapithecidae,
Gigantopithecidae, etc.
Entre 20 e 40 milhões de anos atrás
A falta de evidências torna difícil saber o que se preparava no Eoceno e no
Oligoceno, entre 20 e 40 milhões de anos atrás.
Entretanto o Faium, jazida muito rica situada a algumas dezenas de
quilômetros ao sul do Cairo, revelou às várias expedições que ali foram pesquisar
uma incrível variedade de primatas: o Parapithecus, o Apidium, o Oligopithecus, o
Propliopithecus, o Aeolopithecus, o Aegyptopithecus.
O Parapithecus e o Apidium têm, como característica interessante três pré-
-molares, isto é, possuem 36 dentes, como os prossímios e os macacos do Novo
Mundo, os platirrinos. Um terceiro nero, com morfologia semelhante, o
Amphipithecus da Birmânia, completa o grupo. Entretanto muitos outros traços
assemelham esses primatas aos catarrinos, caracterizados por 32 dentes. São,
portanto, ancestrais dos catarrinos, ou protocatarrinos.
Assim, o nosso primeiro olhar para o passado revela uma espécie de estágio
introdutório dos pré -hominídeos, o protocatarrino com 36 dentes, representado
por aqueles três tipos, Parapithecus, Amphipithecus e Apidium.
O Oligopithecus, o Propliopithecus, o Aeolopithecus, o Aegyptopithecus têm dois
pré -molares. São catarrinos propriamente ditos com 32 dentes.
O Oligopithecus, pequeno primata de 30 cm de altura, tem molares de tipo
primitivo; é considerado ancestral dos cercopitecóides e é o mais antigo dos
primatas conhecidos com 32 dentes.
O Aeolopithecus tem caninos enormes e molares com cúspides
independentes; poderia ser o predecessor dos gibões. O Pliopithecus do
3 Lembramos que o tempo geológico se divide em períodos: Primário, Secundário, Terciário e Quaternário.
Os primatas que aparecem no m do Secundário, 70 milhões de anos, desenvolvem -se durante o
Terciário e o Quaternário. O Terciário se divide em cinco grandes épocas, que são, da mais antiga à mais
recente: Paleoceno, Eoceno, Oligoceno, Mioceno e Plioceno. O Quaternário compreende apenas duas
épocas, o Pleistoceno e o Holoceno.
4 Anexo a este capítulo há um glossário com o signicado dos diversos termos cientícos utilizados.
450
Metodologia e pré -história da África
 . Reconstituição do meio ambiente do Faium há 40 milhões de anos. Desenhos de Bertoncini-
-Gaillard sob a direção de Yves Coppens (Exposição “Origens do Homem”, Museu do Homem, set. 1976 -abr.
1978; Foto Y. Coppens. Col. Museu do Homem).
F . Depósitos eocênico e oligocênico do Faium, Egito (Col. Museu do Homem. Foto Elwyn
Simons).
451
A hominização: problemas gerais
Mioceno da Europa e o Limnopithecus do Mioceno do Quênia e de Uganda
assemelham -se a ele.
O Aegyptopithecus também tem grandes caninos e pré -molares heteromorfos
5
.
É o ancestral do Dryopithecus encontrado em todo o Velho Mundo, e
provavelmente também dos chimpanzés.
O Propliopithecus tem caninos mais frágeis e um primeiro pré -molar inferior
com uma cúspide proeminente e outra parcialmente desenvolvida, o que se
considera como prenúncio da homomorfia dos dois p-molares inferiores,
característica dos hominídeos. Seria esse o ancestral do grupo ou, mais
modestamente, o ancestral comum aos grandes macacos e aos homens, ou
seria um pongídeo?
Qualquer que seja a relação de parentesco entre esses primatas, o interessante
do período está em mostrar que, 30 milhões de anos, havia no nordeste da
África uma grande variedade de pequenos primatas prenunciando todos os
que existem hoje: Cercopithecidae, Pongidae, Hylobatidae e Hominidae. As linhas
fundamentais estavam traçadas.
Entre 10 e 20 milhões de anos atrás
Outros progressos aconteceram nesse período. No Quênia e em Uganda,
L.S.B. Leakey descobriu os restos de um pequeno primata, Kenyapithecus
africanus, que classificou como hominídeo. Esse pequeno primata de 20 milhões
de anos tem a arcada denria arredondada, os dentes laterais
6
superiores
divergentes e prognatismo
7
fraco; seus incisivos e caninos estão implantados
verticalmente, e as coroas de seus p-molares e molares são baixas. Muitos
autores, porém, encontraram nele caractesticas dos grandes macacos. No
Quênia, em Fort Ternan, Louis Leakey encontrou também o que considera uma
outra espécie do mesmo gênero, Kenyapithecus wickeri, datada de 14 milhões de
anos. Outros autores, baseando -se em outras características ou interpretando de
modo diferente as características descritas, classificam ainda esse primata como
Pongidae. Leakey, todavia, apresentou a favor de seu novo candidato argumentos
5 Os pré -molares e os molares têm coroas divididas por sulcos em pequenas protuberâncias chamadas
cúspides. Nos grandes macacos (pongídeos), o primeiro pré -molar inferior assemelha -se a um canino,
apresentando apenas uma spide. Nos hominídeos esse dente se assemelha ao segundo pré -molar,
tendo duas cúspides. No primeiro caso, falamos de heteromora dos pré -molares, e, no segundo, de
homomora.
6 Chamamos dentes laterais os pré -molares e os molares.
7 Prognatismo quer dizer maxilas para a frente”. Signica a projeção de toda a face ou da parte da face
abaixo do nariz.
452
Metodologia e pré -história da África
de peso, ou seja, argumentos culturais. No Congresso Pan -Africano de Dacar,
em 1967, exibiu pedras de basalto cujos gumes naturais mostravam traços de uso.
Em 1971, em Adis Abeba, declarou que a maior parte das ossadas de animais
descobertas em associação com o Kenyapithecus wickeri tinha sido quebrada
artificialmente. É, sem dúvida, impressionante imaginar esse pequeno primata
africano escolhendo pedras pontiagudas ou cortantes para preparar seu alimento.
Teoricamente, pelo menos, isso não é impossível.
Desde 1934, conhecemos um outro primata, Ramapithecus puniabicus,
descoberto nas formações miopliocênicas do norte da Índia e do Paquistão e
que também tem de 8 a 14 milhões de anos. Simons de Yale o reexaminou e
associou a ele restos atribuídos ao Bramapithecus. O Ramapithecus punjabicus é
um pequeno primata que pesa entre 18 e 36 quilos. Sua face curta, sua mandíbula
maciça com ramo ascendente vertical, a implantação vertical de seus caninos
em processo de redução e de seus pequenos incisivos, o nascimento tardio de
seus molares e a homomorfia de seus pré -molares inferiores levaram muitos
autores, mas nem todos, a classificá -lo como um hominídeo. Simons, inclusive,
associou esse fóssil indiano ao Kenyapithecus da África oriental e a algumas
descobertas isoladas da China e da Europa, como evidências para se estabelecer
uma área pré -homínida miocênica abrangendo todo o Velho Mundo. Aliás,
ele não estava enganado, pois as pesquisas realizadas nesses três últimos anos
levaram à descoberta desse Ramapithecus na Turquia (L. Tekkaya) e na Hungria
(M. Kretzoi), ao mesmo tempo que novos documentos paquistaneses (expedição
D. Pilbeam) forneciam numerosas informações sobre esse primata.
Um enorme primata, o Gigantopithecus, foi encontrado na China e na Índia.
Chama -se Gigantopithecus blacki na China e Gigantopithecus bilaspurensis na Índia,
onde sua idade é estimada em alguns milhões de anos. Tem incisivos pequenos e
caninos não muito grandes, mas que não são homínidas; seu primeiro pré -molar
inferior tem duas cúspides; seus dentes laterais são grandes, fortes e mostram um
desgaste considerável; sua face é curta e sua mandíbula possante tem um ramo
ascendente longo e vertical. Mas, hoje, praticamente todos os autores o rejeitam
como possível ancestral do homem. Pesquisas realizadas na Grécia sob a direção
de L. de Bonis descobriram um primata de 10 milhões de anos, o Ouranopithecus
macedoniensis, que poderia ser o ancestral do Gigantopithecus.
Para terminar, relacionaremos um outro primata, o Oreopithecus que,
12 milhões de anos, balançava -se nos galhos das florestas da Toscana, e
provavelmente também do Quênia, Descoberto em 1872 por Gervais, foi
descrito por um excelente paleontólogo suíço, Johannes Hürzeler, que retomou
as escavações em Grossetto, na Toscana, e teve a sorte de encontrar um esqueleto
453
A hominização: problemas gerais
praticamente inteiro de Oreopithecus bambolii. Este tem uma face curta; os ossos
do nariz são salientes em relação ao perfil facial; os incisivos e caninos são
pequenos; o primeiro pré -molar inferior é bicúspide; a bacia é a de um bípede,
mas os membros anteriores são extremamente longos. O Oreopithecus talvez
seja um pequeno hominídeo; em todo caso, é um primata braquial
8
, adaptado
à vida nas florestas.
Kenyapithecus africanus, Kenyapithecus wickeri, Ramapithecus puniabicus,
Gigantopithecus blacki, Gigantopithecus bilaspurensis, Oreopithecus bambolii: o
importante no momento não é saber quem é o ancestral de quem. Aliás, várias
linhagens estão representadas aqui. Mas, com esses quatro gêneros do Mioceno e
do Plioceno, vem -nos a imagem de um primata que, vivendo na floresta, parece,
pela primeira vez, ir procurar parte de seu alimento em zonas abertas, em torno
dos lagos e nas margens dos rios. Novos modos de vida vão evidentemente surgir
com essa saída da floresta. E, ao mesmo tempo, vai se caracterizar uma redução
no tamanho dos dentes anteriores, uma redução facial e a tendência do primeiro
pré -molar a duplicar sua cúspide inicial, já não mais impedido pelo canino. É o
prenúncio da conquista das planícies e, com ela, do bipedismo
9
.
Entre 10 e 1 milhão de anos atrás
No Plioceno e no Pleistoceno, entre 10 e 1 milhão de anos atrás, encontramo-
-nos na presença de um grupo ao mesmo tempo polimorfo e muito localizado,
os australopitecíneos. Um breve histórico de sua descoberta vai -nos permitir,
também, delimitá -los geograficamente.
Histórico
Foi em 1924 que o professor Raymond Dart descreveu e batizou o primeiro
espécime australopitecíneo. Tratava -se do crânio de uma criança de cinco a
seis anos, descoberto na brecha de uma caverna de Bechuanalândia (Botsuana)
chamada Taung. A essa descoberta seguiram -se muitas outras, feitas a partir
de 1936 pelos professores R. Broom e J. Robinson, e depois pelos professores
Dart e P. Tobias em quatro cavernas do Transvaal: Sterkfontein, Swartkrans e
Kromdraai, perto de Joanesburgo, e Makapansgat, perto de Potgietersrus.
8 A braquiação é um modo de locomoção arborícola que consiste em se deslocar de galho em galho
suspenso pelos membros anteriores.
9 O bipedismo é um modo de locomoção terrestre que consiste em se deslocar, em postura ereta, sobre os
dois membros posteriores.
454
Metodologia e pré -história da África
 . Os dados paleontológicos.
455
A hominização: problemas gerais
 . Garganta de Olduvai, Tanzânia, escavações de Louis e Mary Leakey (Foto Y. Coppens. Col.
Museu do Homem).
F . Crânio de Australopithecus africanus. Da direita para a esquerda, perl de criança (Taung,
Botsuana) e de adulto (Sterkfontein, Transvaal), (Foto Y. Coppens. Col. Museu do Homem).
456
Metodologia e pré -história da África
Em 1939, o professor alemão L. Kohl Larsen descobriu em Garusi ou
Laetolil, a nordeste do lago Eyasi, na Tanzânia, um maxilar de Australopithecus,
estendendo a área de distribuição desses hominídeos até a África oriental. Os
trabalhos nesse local foram retomados por Mary Leakey com muito sucesso, pois
ela descobriu uma série bastante interessante de hominídeos fósseis relacionados
provavelmente com os australopitecíneos.
Em seguida, vieram os célebres trabalhos da família Leakey na garganta de
Olduvai, na Tanzânia. De 1955 para cá, os Leakey descobriram aproximadamente
setenta espécimes relacionados a hominídeos, alguns notáveis.
Em 1964, R. Leakey e G. Isaac acrescentaram uma terceira jazida aos sítios
paleontológicos da Tanzânia ao encontrar uma mandíbula de australopiteco
perto do lago Natron. Em seguida, as descobertas deslocaram -se para o norte.
Em 1967, uma expedição internacional retomou a exploração das jazidas
paleontológicas na margem ocidental do baixo vale do rio Omo, na Etiópia.
Essa expedição era composta por três equipes: uma francesa, sob a direção dos
professores C. Arambourg e Y. Coppens; uma americana, dirigida pelo Professor
F. Clark Howell; e uma do Quênia, pelo Dr. Leakey e seu filho Richard. Esses
sítios paleontológicos descobertos no início do século por viajantes franceses
haviam sido explorados em 1932 -1933 por uma expedição do Museu Nacional
de História Natural de Paris, sob a direção de C. Arambourg. No primeiro
s, a nova expedão teve a sorte de descobrir a primeira mandíbula de
australopitecíneo desse local. Essa descoberta seria seguida por muitas outras.
Em nove temporadas, as equipes francesa e americana conseguiram um resultado
realmente excepcional: aproximadamente quatrocentos restos de hominídeos.
A equipe do Quênia tinha deixado o Omo em 1968 para ir explorar, sob a
direção de R. Leakey, as margens orientais do lago Turkana, no Quênia. Em dez
temporadas, essa equipe pôde encontrar mais de cem fragmentos de hominídeos,
alguns muito importantes.
Nas margens sudoeste do mesmo lago, uma expedição americana de Harvard,
sob a direção de B. Patterson, explorava, na mesma época, três pequenas jazidas,
em duas das quais encontram -se restos de hominídeos.
Uma equipe inglesa do Bedford College de Londres, que se propunha
levantar o mapa geológico da bacia do lago Baringo, no Quênia, descobriu
restos paleoantropológicos em cinco sítios.
A partir de 1973, uma expedição, sob a direção de Maurice Taieb, Yves
Coppens e Donald C. Johanson, descobriu em Hadar, na região Afar etíope,
em quatro temporadas, mais de trezentos fragmentos paleoantropológicos em
excepcional estado de conservação, os quais pertenciam a uma ou duas formas
457
A hominização: problemas gerais
 . Garganta de Olduvai, Tanzânia, escavações de Louis e Mary Leakey (Foto Y. Coppens. Col.
Museu do Homem).
F . Sítio do Omo, Etiópia (Foto Y. Coppens. Col. Museu do Homem).
458
Metodologia e pré -história da África
 . Sítio do Omo, Etiópia (Foto Y. Coppens. Col. Museu do Homem).
F . Crânios de Australopithecus boisei, sítio do Omo, Etiópia (Expedição Y. Coppens, 1976. Fotos
J. Oster, n. D -77 -1497 -493 e D -77 -1496 -493. Col. Museu do Homem).
459
A hominização: problemas gerais
 . Sítio de Afar, Etiópia (Expedição M. Taieb, Y. Coppens e D. C. Johanson; Foto M. Taieb,
Col. Museu do Homem).
F .
Crânio de Cro -Magnoide de Afalu, Argélia (Foto 1. Oster, n. C.77 -60 -493. Col. Museu do
Homem, Instituto de Paleontologia Humana).
460
Metodologia e pré -história da África
homínidas. Uma segunda expedição ao Afar, derivada da primeira, encontrou
um crânio que pode ser atribuído a um Pithecanthropus.
Para finalizar, em 1975 e 1976, após nove anos de pacientes escavações, Jean
Chavaillon descobriu em Melka Konturé, perto de Adis Abeba, três interessantes
fragmentos associados às indústrias olduvaienses e acheulenses.
Esse conjunto de descobertas limita a área de distribuição do Australopithecus
às regiões oriental e meridional da África.
Datação
A mais antiga dessas jazidas é a de N’Gororá na bacia do lago Baringo,
no Quênia, que tem de 9 a 12 milhões de anos. Apenas um molar superior
de homideo de tipo indeterminado foi encontrado, mas, evidentemente,
temos muita esperança em futuras escavações nesse sítio. A coroa do molar
encontrado é baixa como a dos dentes de Ramapithecus, mas a estrutura de suas
cúspides se assemelha à dos australopitecíneos. Trata -se possivelmente de um
Sivanpithecus. Em uma outra jazida da bacia do lago Baringo, Lukeino, datada
de 6 a 6.500.000 anos, também foi encontrado um molar. É um molar inferior
bastante semelhante ao do Australopithecus.
Em Lothagam, no sudoeste do lago Turkana (Quênia), B. Patterson descobriu
um fragmento de mandíbula com um dente cuja morfologia lembra a de um
australopitecíneo. A fauna de vertebrados associada a esse fragmento indica uma
idade pliocênica estimada entre 5 e 6 milhões de anos.
Em dois sítios do Quênia, Chemeron, na bacia do lago Baringo, e Kanapoi,
na bacia do lago Turkana, estimados em 4 milhões de anos, foram descobertos,
respectivamente, um osso temporal e um úmero homínidas.
A jazida de Laetolil, na Tanzânia, foi estimada em pelo menos 3.500.000
anos; seus hominídeos fósseis são espantosamente semelhantes aos encontrados
em Radar, na região Afar etíope, e datam de 2.800.000 a 3.200.000 anos.
As jazidas do Omo são constituídas de um conjunto sedimentar com mais de
1000 m de profundidade, composto por camadas sucessivas de areias fossilíferas,
argilas e depósitos vulcânicos, permitindo datações absolutas. Assim, a sequência
de camadas pôde ser datada em mais de 4 milhões de anos na base e em menos
de 1 milhão no topo. Os restos de hominídeos encontram -se a partir da camada
de 3.200.000 anos até o topo, ou seja, de maneira contínua por mais de 2 milhões
de anos.
As jazidas do leste do lago Turkana, onde foram encontrados restos de
hominídeos, abrangem um período entre 3 e 1 milhão de anos.
461
A hominização: problemas gerais
 . Canteiro de escavações em Olduvai (Foto J. Chavaillon. Col. Museu do Homem).
F . Crânios de Australopithecus robustus, à direita, e Australopithecus gracilis, à esquerda (Foto de
J. Robinson. Col. Museu do Homem).
462
Metodologia e pré -história da África
Através da comparação das faunas, as mais antigas cavernas de
australopiteneos da África do Sul, Makapansgat e Sterkfontein, foram
recentemente datadas de 2,5 a mais de 3 milhões de anos, estimativa essa ainda
muito discutida.
Na garganta de Olduvai, na Tanzânia, encontram -se restos de hominídeos e
de suas indústrias, ao longo de 100 m de depósito, datados de 1.800.000 anos
na base.
Duas outras cavernas com restos de australopitecíneos na África do Sul,
Swartkrans e Kromdraai, talvez sejam contemponeos das camadas mais
antigas de Olduvai ou pouco anteriores (de 2 a 2,5 milhões de anos).
Por último, em Chesowanja, na bacia do lago Baringo (Quênia), no sítio do
lago Natron (Tanzânia) e talvez na brecha de Taung (África do Sul), encontram-
-se sem dúvida os mais jovens australopitecíneos, pois mal ultrapassam 1 milhão
de anos.
Os australopitecíneos, portanto, parecem ter surgido entre aproximadamente
6 e 7 milhões de anos atrás e ter desaparecido cerca de 1 milhão de anos.
O que foi descoberto nesses depósitos? Vários hominídeos, alguns
contemporâneos entre si. Um deles é chamado Australopithecus robustus, ou
Paranthropus, ou Zinjanthropus. Um outro é chamado Australopithecus gracilis, ou
Australopithecus propriamente dito, ou Plesianthropus, ou Paraustralopithecus. Um
terceiro é chamado Homo habilis, ou Australopithecus habilis. Enfim, um quarto
é chamado Homo erectus, Telanthropus ou Meganthropus.
Os hominídeos
a) Australopithecus robustus: foi encontrado na África do Sul em cavernas de
2 -2,5 milhões de anos, no vale do Omo (Etiópia), no leste do lago Turkana
(Quênia), e em Olduvai, com aproximadamente 1.800.000 anos, e em
Chesowanja, com 1.100.000 anos. É chamado robusto por ser realmente
mais forte e maior que os outros. A morfologia craniana revela um aparelho
de mastigação possante: com efeito, seus molares e pré -molares são enormes.
Apresenta, ainda, mandíbula robusta, músculos de mastigação solidamente
fixados, arcada zigomática
10
vigorosa e uma crista sagital
11
impressionante
para os músculos temporais. A testa é fugidia. A face é longa e chata, e
10 A arcada zigomática é uma ponte óssea do crânio que une a têmpora à face.
11 A crista sagital é uma expansão óssea que forma, no alto do crânio, uma lâmina semelhante à cimeira de
um capacete.
463
A hominização: problemas gerais
 . Homo habilis (Foto Museus Nacionais do Quênia).
464
Metodologia e pré -história da África
os dentes anteriores pequenos, o que facilita os movimentos laterais de
trituração. A mandíbula tem, consequentemente, um longo ramo ascendente,
o que incrementa a ação mastigatória dos músculos masseter e pterigoide.
O corpo é mais maciço que o de outras espécies de Australopithecus. Para
uma altura de 1,55 m, seu peso é estimado entre 35 e 65 kg. A locomoção
sobre os membros posteriores não era perfeita, pois os fêmures têm apófises
pequenas e colos longos. A capacidade craniana foi estimada em 530 cm³
tanto para os espécimes de Swartkrans como para os de Olduvai. Deve -se
ressaltar o desenvolvimento do cerebelo, indicando possivelmente um maior
grau de controle dos movimentos (da mão e da locomoção, por exemplo).
b) Australopithecus gracilis: foi descoberto em Makapansgat e Sterkfontein, na
África do Sul. Acredita -se ter sido encontrado também no Omo e em Afar
(Etiópia), em Garusi ou Laetolil (Tanzânia) e em Lothagam (Quênia).
Estima -se sua altura entre 1 e 1,25 m, e seu peso entre 18 e 31 kg. A
face é mais proeminente que a do Australopithecus robustus. As arcadas
supra orbitárias
12
, moderadamente desenvolvidas, sustentam uma fronte
relativamente desenvolvida. Os incisivos são espatulados e implantados
verticalmente; os caninos, pequenos, assemelham -se a incisivos. Os dentes
laterais são divergentes, formando uma arcada denria parabólica; são
dentes grossos, com spides redondas, esmalte espesso e eso gastos
até a raiz. Ainda que esse australopitecíneo tenha tido uma dieta mais
variada que a do Australopithecus robustus, sua alimentação devia ser também
basicamente vegetariana. A largura da mandíbula, a espessura do esmalte,
o desgaste dos dentes até as gengivas, a face curta e o grande tamanho dos
pré -molares e dos molares indicam, com efeito, um possante aparelho de
mastigação. O nascimento tardio dos dentes aliado à espessura do esmalte
significa adaptação a uma vida, e particularmente a uma adolescência mais
longas. A capacidade endocraniana varia de 428 a 485 cm³, ou seja, tem
444 cm³ em média, na forma sul -africana. Seus ossos longos, em particular
o úmero e a omoplata, lembram a braquiação de seus ancestrais; entretanto,
o Australopithecus gracilis é um bípede permanente.
c) Homo habilis: foi descrito em Olduvai (Tanzânia), em 1964 e talvez tenha
sido encontrado igualmente no Omo (Etiópia), na margem leste do lago
Turkana e em Kanapoi (Quênia). Seus dentes laterais mostram dimensões
menores que as do Australopithecus gracilis da África do Sul. Esses dentes
12 As arcadas supra orbitárias são as bordas ósseas superiores das órbitas que contêm os olhos.
465
A hominização: problemas gerais
 . Os sítios de Siwalik no Norte do Paquistão (Expedição D. Pilbeam. Foto H. omas. Col.
Museu do Homem).
F . Reconstituição do crânio de Ramapithecus (Foto J. Oster, n. D.78.1043.493. Col. Museu do
Homem).
F . Esqueleto de Oreopithecus bambolii, com 12 milhões de anos, encontrado em Grossetto
(Toscana) por Johannes Hürzeler, em 1958 (Foto J. Oster. Col. Museu do Homem).
466
Metodologia e pré -história da África
 . Reconstituição do meio ambiente do Homo erectus de Chu -Ku -Tien (ou Sinantropo), China
(400 mil anos), (Foto Y. Coppens. Col. Museu do Homem, exposição “Origens do Homem”, nov. 1976 -abr.
1978. Desenho de Bertoncini -Gaillard sob a direção de Y. Coppens).
Figura 17.19 Homo erectus de Chu -Ku -Tien (reconstituição), (Perl n
o
D75 -371 -493; e face n
o
77 -61 -493.
Fotos J. Oster. Col. Museu do Homem).
467
A hominização: problemas gerais
têm, aliás, proporções diferentes: são mais alongados e mais estreitos. Com
base nos parietais, sua capacidade endocraniana foi estimada em 680 cm³;
um crânio encontrado na margem leste do Turkana tem um volume de
quase 800 cm³. Por essas tendências evolutivas dos dentes e do cérebro,
parece tratar -se de um ser mais próximo de nós que o Australopithecus.
Entretanto, seu esqueleto s -craniano aproxima -o do Australopithecus
gracilis; como no caso deste último, sua clavícula lembra a ancestral idade
braquial. Sua altura foi estimada entre 1,20 e 1,40 m.
d) O Homo erectus: os pesquisadores descobriram o Homo erectus, hominídeo
mais evoluído que todos os anteriores, em Swartkrans, na África do Sul, com
2.500.000 anos; em Olduvai, na Tanzânia, com 1.500.000 anos; na margem
leste do lago Turkana, no Quênia, com 1.500.000 anos; em Melka Konturé,
em Bodo e no Omo, na Etiópia, com 500.000-1.500.000 anos.
Em Swartkrans, Broom e Robinson isolaram algumas ossadas (1949),
atribuídas por eles a uma forma mais homínida, o Telanthropus capensis. Em
1957, Robinson teve a ideia de relacionar essa forma aos pitecantropine,
classificando -a como Homo erectus.
Em 1969, Ron Clarke, Clark Howell e Brain, trabalhando com os espécimes
de Swartkrans, notaram que o crânio do Australopithecus robustus SK 847
ajustava -se perfeitamente ao maxilar do Telanthropus. Essa montagem produz
uma figura interessante, que confirma as suposições de Robinson: acima de um
torus supraorbitalis
13
pronunciado, a fronte com curvatura ascendente contrasta
com a ausência de fronte do Australopithecus robustus. O crânio apresenta grandes
sinus
14
frontais; a constrição pós -orbitária
15
é pouco pronunciada; os ossos do
nariz são proeminentes; a arcada dentária é curta, o que indica uma mandíbula
pequena com ramo ascendente curto; a dentição e a estrutura do esqueleto facial
aproximam -no do gênero Homo, mais especificamente do Homo erectus.
O Hominídeo 13 de Olduvai tem uma mandíbula menor e uma dentadura
20% mais reduzida que a do Homo habilis; o Hominídeo 16 tem uma arcada
supra orbitária proeminente. Leakey e Tobias tendem a classificá -los como Homo
erectus. Mas, se esses dois fósseis têm uma classificação incerta, o mesmo não
acontece com o Hominídeo 9, que apresenta uma incontestável calota craniana
de Homo erectus.
13 Quando a borda superior da órbita tem uma expansão óssea em forma de viseira, é chamada torus
supraorbitalis.
14 Os sinus são cavidades.
15 O crânio se contrai lateralmente, atrás das órbitas. É o que chamamos constrição pós -orbitária.
468
Metodologia e pré -história da África
A leste do lago Turkana, no Quênia, um grande número de descobertas
guarda parentesco com essa espécie em evolução do gênero Homo. Devemos
citar, em particular, a recente descoberta de três crânios de épocas diferentes,
que ilustram muito bem o desenvolvimento das tendências evolutivas no seio
dessa espécie.
Lembremos também que uma recente datação do mais antigo espécime
de Pithecanthropus javanês o crânio de criança de Modjokerto teria dado
1.900.000 anos, mas tratar -se -ia realmente de um Homo erectus?
Comparações feitas em Cambridge por Tobias e von Koenigswald entre peças
originais javanesas e tanzanianas permitiram concluir que uma identidade
morfológica entre o mais antigo Homo habilis, e o Meganthropus palaeojavanicus
e talvez o Hemianthropus peii da China. Do mesmo modo, concluíram que existe
uma identidade morfológica entre o Homo habilis mais recente (Hominídeo 13)
e o Pithecanthropus IV, o Sangiran B e o Telanthropus capensis.
Indústrias
Pela primeira vez na hisria dos Primatas esses restos se encontram
associados a utensílios fabricados.
Nas jazidas do Omo, a expedição francesa descobriu, em 1969, alguns
utensílios de pedra e de osso com mais de 2 milhões de anos. No ano seguinte, na
margem leste do lago Turkana, a expedição do Quênia descobriu, numa camada
vulcânica de 2 milhões de anos, uma indústria de pedra e de osso semelhante
aos utensílios do Omo.
Mais recentemente, as missões americana e francesa conseguiram assinalar
doze camadas arqueológicas de 2 milhões de anos. Pode -se afirmar que em três
anos, devido a essas descobertas da bacia pliopleistocênica do lago Turkana, a
idade dos primeiros instrumentos lascados recuou para mais de 2.500.000 anos,
talvez mesmo 3 milhões, ultrapassando em quase 2 milhões de anos a idade das
mais antigas indústrias conhecidas até então.
Essa primeira indústria da história é constituída por uma grande quantidade
de lascas obtidas artificialmente por percussão e utilizadas por causa de seu
gume, de seixos cuja ponta ou gume foi aguçado e de ossos ou dentes trabalhados
ou utilizados diretamente, quando sua forma assim o permitia (por exemplo,
caninos de hipopótamos ou de suínos).
Esses instrumentos podem ser classificados em um certo número de tipos;
cada um desses tipos é representado por uma determinada quantidade de
exemplares. Isso significa que sua forma é resultado de uma pesquisa, a aquisição
de uma experiência transmitida de uma geração a outra, implicando um certo
469
A hominização: problemas gerais
grau de vida social. Em outras palavras, não estamos, 2.500.000 anos, na
origem dos utensílios, mas provavelmente nos aproximamos dos limites de sua
percepção; antes daquela data, o artefato se confunde com os objetos naturais.
Em Makapansgat, na África do Sul, foi descoberta uma indústria de
utensílios feitos de ossos, chifres e dentes qualificada, por essa razão, de
osteodontoquerática” que parece ser também muito antiga; isso poderá ser
confirmado caso as recentes tentativas de correlações entre as cavernas sul-
-africanas e as grandes jazidas leste africanas revelarem -se exatas. De qualquer
modo, as constatações que podemos fazer são as mesmas que para a bacia do
lago Turkana: os diversos tipos de utensílios encontram -se reproduzidos em
série, o que prova que têm uma história.
Em Hadar, H. Roche descobriu recentemente uma indústria de seixos
trabalhados, semelhante à de Olduvai, numa camada que pode ser datada de
2.500.000 anos.
A partir das camadas mais antigas de Olduvai (1.800.000 anos), os
instrumentos estão em toda parte, abundantes e constantes na forma; os seixos
lascados, particularmente frequentes, tornaram essa indústria conhecida como
Pebble Culture ou Olduvaiense (do tonimo Olduvai). Escavando o nível
mais antigo de Olduvai, o Dr. Leakey notou, um dia, uma grande acumulação
de calhaus de basalto; à medida que a escavação progredia, ele percebeu que
esses calhaus, longe de estarem espalhados aleatoriamente, ordenavam -se em
pequenos montes, formando um círculo. É possível que cada um desses montes
servisse para calçar uma estaca. Se imaginarmos um círculo de estacas ou de
arcos, e peles ou folhagens estendidas de um a outro, poderemos ser tentados
a ver naqueles montículos os restos de uma construção. Estaríamos, então, na
presença de uma estrutura de habitação de uns 2 milhões de anos!
Em Melka Konturé, perto de Adis Abeba, Jean Chavaillon descobriu
recentemente, no nível olduvaiense mais antigo do sítio (1.500.000 anos), uma
estrutura bastante semelhante. Exatamente no meio de um solo de ocupação
recoberto de utensílios, ele descobriu uma superfície circular de 2,50 m de
diâmetro desprovida de artefatos, elevada de 30 cm em relação ao resto do solo
e circundada por um sulco de 2 m de comprimento; pequenos montes de calhaus
sugerem, também neste caso, a presença de estacas.
Alguns pretendem que o Australopithecus robustus tenha sido o macho do
Australopithecus gracilis. Outros pensam que o Homo habilis era um Australopithecus
gracilis um pouco mais jovem e mais evoluído que o sul -africano. Outros, ainda,
dizem que o Telanthropus ou Homo erectus de Swartkrans poderia ser classificado
nos limites inferiores de variações do Australopithecus robustus da mesma jazida;
470
Metodologia e pré -história da África
que o Meganthropus javanicus era um Australopithecus, e mesmo que certos
australopitecine (em Olduvai e em Swartkrans) eram pitecantropine. Dessa
aparente confusão surge, todavia, uma tese muito clara. Foi no interior desse grupo
de Australopithecus – de início limitados ao leste e ao sul da África, e em seguida
(sob a forma de Australopithecus ou sob forma mais evoluída) estendendo -se
até a Ásia ao sul do Himalaia que apareceram o gênero Homo e o utensílio
fabricado. Este logo se torna a característica distintiva de seu artesão; vários tipos
de instrumentos o rapidamente criados para finalidades precisas; sua fabricação
é ensinada. Por último, aparecem estruturas de habitação. É a partir desse ponto de
vista que se pode falar de uma origem africana da humanidade.
Conclusão
O homem aparece, portanto, ao fim de uma longa história, como um primata
que um dia aperfeiçoa o utensílio que vem usando já há muito tempo. Utensílios
fabricados e habitações revelam de súbito um ser racional que prevê, aprende e
transmite, constrói a primeira sociedade e lhe dá sua primeira cultura.
Atribuiu -se recentemente a idade de 2 milhões de anos a certos restos fósseis
de hominídeos de Java. Seixos lascados de várias jazidas do Sul da França foram,
em alguns casos, considerados daquela mesma idade. Mas, no atual estágio dos
nossos conhecimentos, a África continua vitoriosa pelo número e importância
das descobertas de tão remota antiguidade.
E como se, 6 ou 7 milhões de anos, nascesse no quadrante sudeste do
continente africano um grupo de hominídeos denominados australopitecíneos,
e, entre 2,5 e 3 milhões de anos atrás, emergisse desse grupo polimorfo um ser,
ainda Australopithecus ou Homem, capaz de trabalhar a pedra e o osso, construir
cabanas e viver em pequenos grupos, representando, através de todas as suas
manifestações, a origem propriamente dita da humanidade criadora, do Homo
faber.
O último milhão de anos
O último milhão de anos viu nascer o Homo sapiens e assistiu, durante os
últimos séculos, à sua alarmante proliferação. Foram necessários 115 anos para
que a população mundial passasse de um bilhão para 2 bilhões de indivíduos,
35 anos para que atingisse os 3 bilhões e mais 15 anos para que chegasse aos 4
bilhões. E a aceleração continua...
C A P Í T U L O 1 7
471
A hominização: problemas gerais
Os dados arqueológicos
Ao tratar do problema da hominizão” na África, o procedimento do
pré -historiador é bastante diferente daquele empregado pelo paleontólogo.
Para este último, a hominizão é o desenvolvimento progressivo do cérebro
que permite ao homem conceber e criar, aplicando cnicas cada vez mais
elaboradas, um conjunto de utensílios (na mais ampla acepção do termo) tão
diversificado e eficiente que multiplica, ao longo dos milênios, sua ação sobre
o meio ambiente, a ponto de romper, em seu próprio proveito, o equilíbrio
biogico. A evolão paleontológica que conduz ao homem o permite
definir facilmente o limiar da hominizão; a pedra lascada demonstra que
esse limiar já foi transposto. P. Teilhard de Chardin definiu numa fórmula
célebre:
“O homem fez sua entrada sem alarde. […] Na verdade, caminhou tão silenciosamente
que, quando começamos a percebê -lo, denunciado pelos instrumentos de pedra indeléveis
que multiplicam sua presença, ele cobre […] todo o Velho Mundo”.
A posição do p-historiador justifica -se: o verdadeiro missing link (elo
perdido) não é a forma intermediária entre australopitecíneos e pitecantropíneos,
entre o homem de Neandertal e o Homo sapiens. Está entre as pedras ou os ossos
lascado e esses fósseis. As indústrias pré -históricas, atribuídas com absoluta
A hominização: problemas gerais
PARTE II
L. Balout
472
Metodologia e pré -história da África
certeza ao Homo sapiens, a partir do Paleolítico Superior, e com uma evidência
pouco discutível ao homem de Neandertal no Paleolítico Médio, podem
ser relacionadas hipoteticamente aos pitecantropíneos e australopitecíneos.
Na verdade, é a única hipótese que se pode formular cientificamente. Mas a
indústria que acompanha os sinantropíneos não é a mesma descoberta junto
aos pitecantropíneos, e esta é diferente em Java (Pithecanthropus), na Argélia
(Atlanthropus) e na África oriental. Quanto aos australopitecíneos, representam
um grupo heteroneo onde ainda é difícil descobrir os posveis, se o
prováveis, autores da Cultura Osteodontoquerática e da Pebble Culture.
Portanto, se para o paleontólogo existe um limiar da hominizão o
“Rubicão cerebral”, que o Professor Vallois definiu como sendo a capacidade
cerebral de 800 cm³ –, para o pré -historiador existe um limiar técnico que, uma
vez transposto, abre o caminho do progresso até nós. A definição desse limiar
exige a solução de dois problemas: como e quando. O primeiro problema implica
eliminar todas as causas naturais para poder reconhecer no utensílio a mão do
homem. O segundo implica dispor de esquemas cronológicos que permitam
datar, com um grau de aproximação aceitável, as mais remotas evidências da
indústria humana.
Até o presente momento, somente a África forneceu respostas para esses
dois problemas.
Visto que a teoria do monogenismo é universalmente aceita, a África é
considerada hoje como o berço da humanidade. Esse berço sobre rodas”
segundo a definição espirituosa do Abade Breuil –, que por muito tempo se
moveu entre os picos do Pamir e as planícies do Eufrates, fixou -se, por enquanto,
na África oriental. Esse fato teria ocorrido uns 3 milhões de anos, no mínimo.
Na verdade, o Antigo Testamento (Livro do Gênesis) situa o Paraíso terrestre,
o Éden, numa paisagem de jardins e plantas cultivadas. Deus destinava Adão
à agricultura e à criação de animais, a um gênero de vida “neolítica” numa
região onde todo um período Paleolítico iria pouco a pouco se revelar. Todas as
cronologias tiradas da Santa Escritura situam a criação do homem entre 6484
e 3616 antes da Era Cristã. O Oriente Próximo foi, com toda a certeza, um
dos antigos, se não o mais antigo centro de neolitização; entretanto, além dessa
particularidade, nada mais existe que nos permita afirmar que foi o Oriente
Próximo o berço da humanidade.
O homem fez sua entrada em silêncio, e o as pedras por ele lascadas
que, muito tempo depois, denunciam sua existência. A espécie humana não
modificou nada na Natureza no momento de seu aparecimento […] ela emerge
fileticamente diante de nossos olhos exatamente como qualquer outra espécie”
473
A hominização: problemas gerais
(Teilhard de Chardin). A responsabilidade do pré -historiador torna -se, então,
enorme, pois ao identificar os mais antigos traços perceptíveis de indústrias
humanas, ele fornece um elemento de prova que a Paleontologia é incapaz de
dar: “Através do utensílio, chegar ao homem. Esta é a finalidade admirável da
Pré -História”.
O pré -historiador da África deve, antes de tudo, responder a três perguntas:
1) O utensílio é, sem sombra de dúvida, um critério de hominização?
2) O utensílio nos permite delimitar o início da hominização?
3) O utensílio humano, no estado de preservação em que chegou até nós, pode
ser identificado com toda a segurança?
O utensílio é, sem sombra de dúvida, um critério de hominização?
Os dados desse problema são em grande parte de origem africana. Nos
últimos anos de sua vida, o Abade Breuil, bastante impressionado com o
comportamento de certos animais, confiou -me que perguntava a si mesmo se
o utensílio realmente marcaria a transposição do limiar da hominização, e se
não deveríamos escolher a arte como critério, o que equivaleria a distinguir um
Homo verdadeiramente sapiens, o pintor de Lascaux, nosso ancestral direto, de
uma série de seres industriosos faber, que o teriam precedido.
Como disse sabiamente Madame Tetry, o uso de utensílios que não sejam
órgãos do corpo, considerados como “utensílios naturais”, não é característica
exclusiva nem do homem, nem mesmo dos primatas. Comprovam esse fato
a vespa amófila e a formiga cortadeira, entre os insetos; o tentilhão das ilhas
Galápagos, a gaivota, o abutre, o urubu, o tordo cantor, entre as aves; a lontra -do-
-mar, o castor e muitos outros animais. Na ordem dos primatas, o chimpanzé é o
vizinho mais próximo do homem. No seu cotidiano, ele utiliza instrumentos ou
armas para se defender de predadores tais como a serpente. Um reflexo de medo
e de defesa leva -o a recolher e brandir bastões
1
. Esse comportamento, observado
em jardins zoológicos, foi também notado nas reservas da Tanzânia, entre 1964
e 1968. Vivendo em grupos de mais de trinta indivíduos, os chimpanzés sabem
escolher os menores gravetos para desenterrar cupins, sabem utilizar bastões
para romper ninhos ou alcançar mel, servir -se de folhas para recolher a água das
cavidades dos troncos, encabar varas para apanhar bananas. Quanto às pedras,
utilizam -nas para rachar os frutos e, assim como fazem com os bastões, para
1 Current Anthopology, jun. 1967.
474
Metodologia e pré -história da África
afugentar os predadores rivais, atirando -as por cima e por baixo do braço. E,
ainda, comunicam -se entre si através de sinais sonoros. Observações semelhantes
foram feitas em relação aos gorilas de Ruanda
2
.
Desse modo, para que um utensílio possa ser considerado critério de
hominizão, não basta o conceito do emprego de um objeto externo aos
“utensílios naturais” do ser vivo. Devemos considerar necessariamente o aspecto
da transformação deliberada, da preparação desse instrumento. Essa concepção
do utensílio vai -nos permitir dar uma resposta afirmativa à terceira pergunta,
mas não à segunda.
O utensílio nos permite delimitar o início da hominização?
Na verdade, o utensílio não nos permite delimitar o início da hominização.
Em primeiro lugar porque o que chegou até nós foram apenas ossadas fósseis
e pedras. Sem querer fazer uma comparação etnogfica absurda, devemos
lembrar que um grupo humano pode perfeitamente obter todos os seus
utensílios exclusivamente do reino vegetal. Como exemplo, são sempre citados
os Menkopis das ilhas Andaman. E, ao mesmo tempo, é tão indemonstrável
quanto plausível o fato de que a árvore tenha oferecido aos primeiros hominídeos
seus primeiros instrumentos na savana arborizada dos planaltos africanos. E,
quanto às ossadas fósseis e aos dentes, R. Dart atribuiu aos australopitecíneos do
Transvaal uma indústria baseada em ossos, dentes e chifres, que ele denominou
osteodontoquerática e que ficou por muito tempo sub judice; adiante voltaremos
ao assunto. R. van Riet Lowe distinguiu split e trimmed pebbles na Pebble
Culture. Os primeiros, seixos simplesmente partidos, foram, de modo geral,
postos em dúvida. Está claro que, se a pedra que a mão humana apanhou e
atirou não guardou nenhum traço visível dessa utilização, mesmo o seixo lascado
pode ser um produto da natureza: as quedas d’água dos rios e as ressacas do
mar fragmentam as pedras de modo que nada as diferencia das que foram
deliberadamente lascadas pelo homem. A indústria do Kafuense não sobreviveu
a esse teste.
O texto de Teilhard de Chardin, do qual citei um trecho no início desta
exposição, apresenta grandes erros e uma grave lacuna:
“O homem fez sua entrada sem alarde. […] Na verdade, caminhou tão silenciosamente
que, quando começamos a percebê -lo, denunciado pelos instrumentos de pedra
2 Nat. Geogr. Soc., Washington, out. 1971.
475
A hominização: problemas gerais
 .  . Detalhe do solo olduvaiense, observam -se vários objetos, entre os quais, poliedros e
um grande osso de hipopótamo (Fotos de J. Chavaillon. Col. Museu do Homem).
476
Metodologia e pré -história da África
indeléveis que multiplicam sua presença, ele cobre, do Cabo da Boa Esperança a
Pequim, todo o Velho Mundo. Certamente já fala e vive em grupos. utiliza o fogo.
E, afinal de contas, não é exatamente isso que deveríamos esperar? Cada vez que uma
nova forma emerge diante de nós das profundezas da história, não sabemos que ela
surge completamente formada e constituindo já uma legião?”.
No entanto, a espécie Homo loquens parece ter surgido somente na época
dos pitecantropíneos; antes destes, pelo menos na África, não temos nenhuma
indicação válida da existência do fogo, erroneamente atribuído ao Australopithecus
prometheus. Por outro lado, os instrumentos de pedra indeléveis” do Olduvaiense
não denunciam, certamente, um começo. A variedade de suas formas, sua
quantidade e o lasqueamento sistemático revelam antes um desenvolvimento
que um início. Foram os pré -historiadores da África que reivindicaram esse
milhão de anos anterior ao Bed I de Olduvai que as recentes descobertas no
Omo e em Koobi Fora lhes tornaram possível constatar. E isso ainda não nos
satisfaz!
O utensílio humano pode ser identicado?
Concluindo do que acima expusemos, devemos nos limitar a resolver o
terceiro problema, que consiste em provar a ação intencional do homem sobre os
“utensílios” mais rudimentares, menos elaborados. Só a África fornece material
suficiente para essa pesquisa, que se concentrará em duas áreas: o osso e a pedra.
a) A instria osteodontoquerática. A hipótese formulada em 1949 por R.
Dart foi reexaminada por Donald L. Wolberg em Current Anthropology
(fevereiro de 1970). o Abade Breuil, estudando os ossos encontrados
com os sinantropíneos de Chu -Ku -Tien, tinha formulado a hipótese de que
uma “Idade do Osso poderia ter precedido a “Idade da Pedra”. Teria havido
um período “Pré -Lítico” anterior ao Paleolítico. Antes das descobertas
feitas em 1955 (África do Sul), em 1959 -1960 (Olduvai, Tanzânia), em
1969 (Omo, Etiópia) e em 1971 (lago Rodolfo, Quênia), não se conhecia
nenhuma indústria tica associada às jazidas de australopitecíneos. Por
outro lado, R. Dart tornou -se defensor de uma indústria óssea, baseada em
ossadas, dentes e chifres, que ele consagrou como Osteodontokeratic Culture.
Infelizmente, não dispomos de uma boa cronologia, relativa ou absoluta,
dos australopitecíneos da África meridional, menos favorecida nesse ponto
que a Etiópia, o Quênia e a Tanzânia. R. Dart sustentou a existência de
uma indústria osteodontoquerática de 1949 a 1960, baseando -se no exame
477
A hominização: problemas gerais
das fraturas cranianas de babuínos e de australopitecíneos, na evidência
de seleção de ossadas em Makapansgat (336 úmeros e 56 fêmures, por
exemplo), e nas vértebras cervicais (atlas e áxis), que representavam 56%
das vértebras recolhidas com os crânios de bovídeos. Na sua opinião, as
ossadas animais das brechas onde foram encontrados australopitecíneos
são montes de refugo, restos da cozinha de um caçador -predador que
tinha então as mãos livres para utilizar armas e instrumentos, pois se
locomovia sobre os membros posteriores. Examinando cinquenta crânios
de babuínos e seis de australopitecíneos, Dart constatou, em 80% dos casos,
a existência de traumatismos causados por golpes de arma, que, em geral,
foram desfechados frontalmente. Esses traumatismos às vezes são duplos, o
que indica uma arma com duas cabeças. Em Makapansgat, muitos úmeros
de ungulados mostram traços de desgaste anteriores à fossilização, enquanto
outros ossos longos estão intactos, o que levou Dart a concluir que “o
utensílio característico do australopiteco é uma maça de osso, de preferência
um úmero de ungulado”. O caçador utilizou também mandíbulas; fraturas
por torção (fratura espiralada) nos úmeros e nos ossos da canela implicam
também a intervenção da mão, como Breuil e Teilhard de Chardin haviam
sugerido com relação a Chu -Ku -Tien nos loci de sinantropíneos. Um chifre
direito fossilizado de Gazella gracilior enterrado num mur de antílope,
onde a calcita o fixou, quer se trate de utensílio encabado, quer tenha sido
utilizado para partir o fêmur, indica uma ação humana, da mesma forma
que o crânio da hiena com um calcâneo de antílope enterrado entre a calota
e a arcada zigomática.
Teria existido, portanto, um estágio osteodontoquerático, pré -lítico,
depois paleolítico, seguido da Pebble Culture e das indústrias de bifaces, o
qual marcaria o início de uma “cultural implemental activity”.
Tal hipótese deveria, evidentemente, levantar ardentes discussões em
torno do tema “caçador ou caça (the hunters or the hunted). Para alguns,
todos os ossos, inclusive os dos australopitecíneos, não passam de restos de
banquetes de carnívoros. Outros os consideram como restos acumulados em
covis de hienas, o que não corresponde aos hábitos desse animal. Outros
ainda os atribuem a porcos -espinhos. Entretanto, dos 7159 fragmentos
ósseos descobertos em Makapansgat antes de 1955, apenas 200 estavam
roídos. Além disso, as hienas vivem entre ossadas de outras hienas. Uma
jazida datada do Riss -Würm mostrou que, para um total de 130 animais,
havia 110 hienas, enquanto, em Makapansgat, encontramos apenas 17 para
433 indivíduos. Na brecha de australopitecine foram encontrados 47 dentes
478
Metodologia e pré -história da África
isolados de hienas para um total de 729; na jazida do Riss -Würm, 1000,
para um total de 1100.
Pouco a pouco, todavia, afirmou -se uma tendência favorável à indústria
osteodontoquetica, sem um juízo prévio do tipo de australopitecíneo
que seria considerado o caçador. A coexistência de uma indústria tica
(Sterkfontein, 1955) veio corroborar essa teoria, mas foi a indústria óssea
de Olduvai, admiravelmente descrita por Mary Leakey
3
, que trouxe a prova
definitiva e indiscutível, abrindo caminho para a indústria semelhante
atribuída aos pitecantropíneos da África, Ásia (Chu -Ku -Tien) e Europa
(Torralba e Ambrona, por exemplo). Encontramos, em toda a pré -história
e desde o seu início, um tipo de indústria óssea paralela à indústria lítica.
Embora sendo de análise mais difícil, sabemos que ela existe, e em nenhum
outro lugar é, mais antiga que na África; contudo, não es provada a
existência de um estágio “pré -lítico”.
b) A indústria lítica. Desde que a hipótese dos “eólitos” foi abandonada,
os seixos lascados da assim chamada Pebble Culture representam a mais
antiga indústria lítica conhecida. Em 1919, E. J. Wayland, então diretor do
Serviço Geológico de Uganda, notou a existência, nessa região da África
oriental, de seixos lascados semelhantes aos descobertos no Ceilão antes
de 1914. Em 1920, ele criou os termos Pebble Culture e Kafuense (do rio
Kafu) e, em 1934, distinguiu quatro estágios evolutivos nessa indústria. Foi
Wayland também quem sugeriu a Louis Leakey, em 1936, a criação do
termo “Olduvaiense” para designar a evoluída Pebble Culture da garganta de
Olduvai (Tanzânia). Em 1952, van Riet Lowe tentou fazer uma primeira
classificação técnica e morfológica da Pebble Culture. Mas foi da Ásia que
veio a definição das foas consideradas essenciais, apresentada por H.
Movius: o chopper, o chopping ‑tool, o hand ‑axe (1944). Aos poucos, os pré-
-historiadores de toda a África (mas nem sempre os da Europa) foram -se
convencendo: C. Arambourg (Argélia), P. Biberson (Marrocos), H. Hugot,
H. Alimen, J. Chavaillon (Saara), Mortelmans (Katanga), etc. Classificações
morfológicas baseadas nas técnicas de lascamento foram propostas por L.
Ramendo e P. Biberson. Dois fatos foram imediatamente constatados:
em primeiro lugar, a Pebble Culture era bastante complexa, com formas
muito variadas, rígidas e sistemáticas para representar o início das indústrias
líticas; em segundo lugar, a Pebble Culture continha em potencial todas as
possibilidades evolutivas que levariam às indústrias clássicas do Paleolítico
3 Olduvai Gorge, t. III.
479
A hominização: problemas gerais
 . Uma das mais antigas pedras
lascadas do mundo (escavações J. Chavaillon).
 . Uma das primeiras pedras lascadas
do mundo (escavações J. Chavaillon).
480
Metodologia e pré -história da África
Inferior africano, os bifaces e as achas de mão. Vamos nos deter apenas no
primeiro ponto.
Em rao da complexidade e da difusão da Pebble Culture, os pré-
-historiadores dá África desejavam uma cronologia mais longa que aquela,
já de difícil aceitação, que conferia 1 milhão de anos ao Quaternário, sendo
a datação da indústria olduvaiense pelo método do potássio -argônio (de
1.850.000 a 1.100.000 anos para a Bed I) reforçada pela do chopping ‑tool
do Omo (entre 2.100.000 e 2.500.000 anos) e em seguida pela datação da
jazida do lago Turkana (2.600.000 anos). Mas esta última indústria, embora
contenha muitos seixos trabalhados, não pertence em sua totalidade à Pebble
Culture. É uma indústria de lascas. Em 1972, recolheram -se lascas, talvez
menos conclusivas, no Omo. Podemos indagar, portanto, se a transformação
dos seixos em pebble ‑tools não foi precedida pelo uso de lascas destacadas
de um bloco qualquer de matéria -prima. Mas nesse ponto chegamos aos
limites da possibilidade de atribuição a uma causa não -natural: se os sinais
de lascamento o são claros (talão -bulbo), se devemos dar ênfase aos
retoques para utilização”, voltamos ao velho problema dos eólitos.
Então, a única explicação possível é a intervenção de um hominídeo.
Mas até onde devemos ousar? A hipótese mais audaciosa foi levantada por
L. Leakey, que atribuiu ao Kenyapithecus bone ‑bashing activities”, ou seja,
sugeriu que ele teria utilizado um pedaço de lava (lump of lava), lascado por
percussão (battered) e marcado (bruised) pelo uso, e um osso longo com uma
depressão causada por fratura (depressed fracture)
4
.
Neste ponto, os problemas das indústrias do osso e da pedra em sua origem
são os mesmos. Nenhuma prova tecnológica ou morfológica pode ser obtida. Não
nenhum sinal “clássico de ação humana. De fato, o único argumento positivo
é a existência inexplicável de lascas junto aos restos do Kenyapithecus. Mas a
eliminação do trabalho da natureza (lusus naturae) não afasta a possibilidade do
uso por um antropoide pré -homínida. O que anteriormente dissemos a respeito
do comportamento dos chimpanzés demonstra a pertinência dessa hipótese.
Na opinião dos pré -historiadores da África, ainda que os instrumentos de
osso e de pedra atestem que mais de 2.500.000 anos estava em marcha um
processo cerebral de hominização, não foi nessa época que ele se iniciou.
4 LEAKEY, L. S. B.Bone smashing by Late Miocene Hominid”, Nature, 1968.
481
Glossário
A
Abbevilliense. Fácies industrial defi-
nida por H. Breuil em Abbeville, vale do
rio Somme, França. Caracteriza -se por
bifaces desbastados, em grandes lasca-
mentos, com um percutor duro (pedra).
Definido na Europa, onde corresponde
ao início do Paleolítico Inferior.
Acha de mão (coup ‑de ‑poing). Instru-
mento de pedra em forma de amêndoa,
lascado nas duas faces, que devia servir
para escavar e esfolar. Antiga denomi-
nação do biface.
Acheulense. De Saint -Acheul, no vale
do Somme. É a principal fácies cultural
do Paleolítico Inferior. Durou da gla-
ciação de Mindel ao fim do período
interglaciário. Riss -Würm. O instru-
mento típico é um biface mais regular
que o do Abbevilliense, lascado com um
percutor mole (madeira ou osso).
Amazonita. Variedade verde de
microlina.
Amiríense. Ciclo continental mar-
roquino contemporâneo do Mindel
europeu.
Anfaciense. De Anfa, Marrocos. Ter-
ceira transgressão marinha quaternária
no Marrocos.
Ateriense. De Bir el -Ater, Arlia
oriental. Indústria paleolítica da África
do Norte, entre o Musteriense e o Cap-
siense. Compreende pontas e raspa-
dores pedunculados e algumas pontas
foliáceas. O Ateriense desenvolveu -se
Glossário
482
Metodologia e pré -história da África
durante parte do Wum e provavel-
mente é, em parte, contemporâneo do
Paleolítico Superior da Europa.
Atlantropo. ssil do grupo dos
Arcanthropus, definido por C. Aram-
bourg na jazida de Ternifine, Argélia.
Os restos são datados do fim do Pleis-
toceno Inferior.
Augita. Silicato natural de cálcio,
magnésio e ferro. Esse mineral entra
na composição do basalto.
Aurignacense. De Aurignac, alto
Garona, França. Indústria pré -histórica
do início do Paleolítico Superior. Esse
nome, criado por H. Breuil e E. Car-
tailhac em 1906, designa as indús-
trias situadas cronologicamente entre
o Musteriense e o Perigordiense.
Caracteriza -se por pontas de zagaia
feitas de chifre de rena, raspadores
grossos, lâminas longas com contínuos
retoques planos e em forma de esca-
mas, alguns buris. Surgem as primeiras
obras de arte figuras esquemáticas de
animais, e sinais sumariamente grava-
dos em blocos de calcário. Inicia -se há
aproximadamente 30 mil anos.
Australopiteco (lat. australis: meri-
dional; gr. pithekos: macaco). Nome
de gênero, criado por Dart, em 1924,
para designar vários fósseis da África
do Sul que apresentavam característi-
cas simiescas mas anunciavam aspec-
tos humanos. Em seguida, foram feitas
descobertas semelhantes na África
oriental e meridional.
B
Basalto. Rocha vulcânica.
Biface. Instrumento de pedra lascada
nas duas faces, em forma de amêndoa.
Inicialmente denominado machado,
em seguida, coup ‑de poing, parece ter
sido utilizado para cortar e, às vezes
para raspar. É característico do Paleo-
lítico Inferior.
C
Calabriano. De Calábria. É o mais
antigo estágio do Quaternário mari-
nho, identificado por M. Gignoux em
1910.
Calcedônia. Variedade fibrosa de
sílica, formada de quartzo e opala.
Calcita. Carbonato de cálcio natural
cristalizado, encontrado na greda, no
mármore branco, no alabastro calcário,
etc.
Capsiense. De Capsa, nome latino
de Gafsa, Tunísia meridional. Indús-
tria do fim do Paleolítico africano,
identificada por J. de Morgan. O
Capsiense associa a instrumentos típi-
cos do Paleolítico Superior numero-
sos micrólitos e pequenos furadores
grossos que provavelmente serviam
para perfurar fragmentos de cascas
de ovos de avestruz para a confec-
483
Glossário
ção de colares. Data de 11 mil anos
aproximadamente.
Catarrino. Macaco do Velho Mundo,
com 32 dentes e septo nasal estreito.
Cenozoico. Sinônimo para Terciário
e Quaternário; começou com o
Paleoceno 65 miles de anos,
compreendendo também o Eoceno
( -55 miles de anos), o Oligoceno
( -45 miles de anos) , o Mioceno
( -25 miles de anos) , o Plioceno
( -11 milhões de anos), o Pleistoceno
e o período recente.
Cercopiteco (gr. kerkos: cauda, e
pithekos: macaco). Macaco africano
de cauda longa.
Chadantropo (h omem do
Chade). Hominídeo fóssil situado, do
ponto de vista anatômico, entre o Aus‑
tralopithecus e o Pithecanthropus.
Chellense. De Chelles, França. Fácies
do Paleolítico Inferior descrita por G.
de Mortillet. Antiga denominação do
Abbevilliense.
Clactoniense. De Clacton -on -Sea,
Grã -Bretanha. Indústria pré -histórica
do Paleolítico Inferior, descrita por H.
Breuil em 1932. Caracteriza -se por
lascas de sílex com plano de percussão
liso e largo. O Clactoniense parece ser
contemporâneo do Acheulense.
Cornalina. Calcedônia vermelha.
D
Diabásio. Rocha da família do gabro
e da diorita, geralmente verde.
Diorita. Rocha de textura granular.
Discoide. Instrumento de pedra em
forma de disco, do final do Acheulense,
talhado nas duas faces.
Dolerito. Rocha da família do gabro
cujos minerais são visíveis a olho nu.
E
Eneotico (lat. aeneus: bronze; gr./
ithos: pedra). Sinônimo de Calcolí-
tico. Período pré -histórico em que se
começa a utilizar o cobre.
Eoceno. Segunda época do Terciário,
entre -55 miles e -45 milhões de
anos.
Epídoto. Silicato hidratado natural
de alumínio, cálcio e ferro.
F
Fauresmith. Localidade do Estado de
Orange, África do Sul. Indústria lítica
que compreende raspadores e pon-
tas com retoques unifaciais, bifaces e
pequenas machadinhas. Corresponde
ao Paleolítico Médio da Europa.
G
Galena. Sulfeto natural de chumbo.
484
Metodologia e pré -história da África
Gabliano. Quarto pluvial africano, iden-
tificado em torno dos lagos Nakuru,
Naivacha e Elmenteita, no Quênia.
Contemporâneo da época glaciária de
Würm. Esse termo o é mais utilizado.
Günz. Do nome de um rio da Alema-
nha. A mais antiga glaciação quaterná-
ria alpina.
H
Hand axe. O mesmo que acha de
mão, machadinha.
Haruniano. Quarta transgressão
marinha do Quaternário do Marrocos
atlântico.
Hematita. Óxido de ferro natural.
Holoceno. O mais recente período do
Quaternário. Começou há 10 mil anos.
Hominidae. Família zoológica de
primatas superiores representada pelos
homens fósseis e modernos.
Homo. Nome de nero dado na
classificação zoológica ao homem fós-
sil e ao contemporâneo.
Homo habilis. Nome criado por
Leakey, Tobias e Napier para designar
fósseis com um grau de evolução anatô-
mica intermediário entre o dos austra-
lopitecíneos e o dos pitecantropíneos.
Homo sapiens (homem racio-
nal). Denominação de C. Lineu (1735)
atualmente dada às formas modernas ou
neo -antrópicas, para designar o homem
que alcançou, graças à sua inteligência,
um estado de adaptação ao meio que
lhe permite pensar e refletir livremente.
Ibero ‑maurusiense. Fácies cultural
do Paleolítico Final e do Epipaleolítico
do Maghreb, cuja evolução foi marcada
pela multiplicação dos instrumentos
microlíticos e que durou do décimo ao
quinto milênio.
J
Jadeíta. Silicato de alumínio natural
de sódio, com pouco cálcio, magnésio
e ferro.
Jaspe. Calcedônia impura, com listras
ou manchas, geralmente vermelhas.
K
Kafuense. Do rio Kafu, em Uganda.
Fácies industrial do começo do Pale-
olítico Inferior da África oriental,
caracterizada por seixos planos, suma-
riamente lascados, sem retoques. Sua
origem humana é contestada.
Kagueriano. Do rio Kaguera, Tannia.
Primeiro pluvial africano, identificado
por E. J. Wayland em 1934, contempo-
râneo da glaciação de Günz nos Alpes.
Esse termo não é mais empregado.
Kamasiano. De Kamasa, Quênia.
Segundo pluvial africano, corrente-
mente chamado Kamasiano I, con-
485
Glossário
temporâneo de Mindel. Não é mais
utilizado.
Kanjeriano. De Kanjera, Quênia.
Terceiro pluvial africano, identificado
por L. S. B. Leakey. Comumente cha-
mado Kamasiano II, corresponde nos
Alpes época glaciária de Riss. Termo
não mais utilizado.
L
Lápis lazúli. Pedra azul -celeste
empregada em mosaicos, cujo pó
é usado para obter o pigmento
ultramarino.
Laterita (lat. later: tijolo). Solo
vermelho -vivo ou marrom-
-avermelhado, muito rico em óxido de
ferro e alumínio, formado pela lixivia-
ção em climas quentes.
Levallois (técnica). De Levallois-
-Perret, Alto Sena, França. Técnica de
debitar a pedra que permite obter, com
a preparação do núcleo, grandes lascas
de forma predeterminada.
Levalloisiense. Fácies industrial defi-
nida por H. Breuil em 1931, caracte-
rizada por lascas geralmente pouco ou
nada retocadas, extraídas de núcleos de
tipo Levallois. Não é mais reconhecida
como fácies genuína.
Lidianita. Xisto endurecido.
Lupembiense. De Lupemba, Kasai,
Zaire. Fácies industrial do fim do Pale-
olítico caracterizada pela associação de
instrumentos maciços (picões e cin-
is) e pontas lanceoladas finamente
retocadas nas duas faces, datando de
aproximadamente 7 mil anos antes da
Era Cristã.
M
Maarifiano. Do Maarif, Marrocos.
Segunda transgressão marinha qua-
ternária do Marrocos atlântico.
Machadinha. Instrumento maciço
feito com uma lasca e que apresenta
gume afiado resultante do atrito entre
duas supercies. Característico do
Acheulense africano, é encontrado
também no Paleolítico Inferior e
Médio de algumas jazidas do sul da
França e da Espanha.
Magosiense. De Magosi, Uganda.
Indústria lítica descoberta por Wayland
em 1926, situada entre o Gambliano
e o Makaliano. Associa objetos de
aspecto musteriense, núcleos, discoides
e pontas, peças lanceoladas com reto-
ques bifaciais e micrólitos geométricos.
Makaliano. Do rio Makalia, Quênia.
Fase úmida do Quaternário africano,
contemponeo do primeiro s -glacrio
da Europa.o é mais utilizado.
Malaquita. Carbonato básico natural
de cobre, de cor verde.
486
Metodologia e pré -história da África
Mazzeriano. Primeiro pluvial do
Saara, equivalente ao Kagueriano.
Mesolítico (gr. mesos: no meio de, e /
ithos: pedra). Palavra empregada por
muito tempo para designar o con-
junto de fácies culturais situadas entre
o Paleotico e o Neolítico. Atual-
mente estão relacionadas a uma fase
Epipaleolítica.
Micoque. Sítio pré -histórico situado
ao norte de Les Eyzies, a 25 km a nor-
deste de Sarlat. Nele foi encontrada a
indústria micoquiense (forma muito
evoluída do Acheulense, contemporâ-
nea da glaciação de Würm).
Mindel. Do nome de um rio da
Baviera. Segunda glaciação quaternária
alpina. Parece situar -se entre - 300.000
e - 400.000 anos.
Mioceno (gr. meion: menos, e kainos:
recente). Ou seja, que contém menos
formas recentes que o sistema seguinte.
É uma época do Terciário entre - 25000
e - 10 000 000 de anos.
Moulouyano. Do vale do Moulouya,
Marrocos. Termo empregado por
Biberson. Villafranchiano Médio do
Marrocos.
Musteriense. De Moustier, Dordo-
nha, Fraa. Indústria pré -histórica
do Paleolítico Médio que se expan-
diu na segunda metade do último
interglaciário. Reconhecida desde
1865 por E. Lartet, caracteriza -se
pela abundância de pontas e raspa-
dores obtidos por retoque numa das
faces das lascas.
N
Nakuriano. Fase úmida definida no
lago Nakuru, Quênia, pelos depósitos da
praia abaixo do nível dos 102 m. Nessas
camadas foram descobertas indústrias
de estilo neolítico que poderiam datar
de aproximadamente -3000 anos.
Neandertal. Do nome do vale da
bacia do Düssel, Alemanha, onde
o primeiro escime foi descoberto
pelo Dr. Fuhlrott em 1856. Repre-
sentante de um grupo particular do
gênero Homo, viveu na Europa ociden-
tal durante o Pleistoceno Superior e
extinguiu -se bruscamente, sem deixar
descendentes.
Neolítico (gr. neos: novo, e lithos:
pedra). Idade da Pedra com produção
de alimentos (agricultura e pastoreio).
Termo criado em 1865 por J. Lubbock.
O
Obsidiana. Rocha vulcânica vítrea,
compacta, semelhante ao vidro escuro.
Olduvaiense. Da garganta de Olduvai,
Tanzânia setentrional. Complexo de ins-
trumentos ticos antigos (seixos lasca-
dos) descoberto por Katwinkel em 1911,
487
Glossário
onde Leakey identificou onze níveis,
do Olduvaiense I, que corresponde ao
Chelense antigo, até o Olduvaiense XI,
que corresponde ao Acheulense VI, com
instrumentos levalloisienses.
Oligoceno. Terceira época do Terci-
ário, entre -45.000.000 e -25.000.000
de anos.
Osteodontoquerática. Indústria pré-
-histórica feita com ossos (gr. osteon),
dentes (gr. odous, odontos) e chifres (gr.
keras, keratos), encontrada em Makapans-
-gat, na África do Sul, por R. A. Dart.
Ougartiano I. Segundo pluvial do
Saara, equivalente ao Kamasiano.
Ougartiano II. Terceiro pluvial do
Saara, equivalente ao Kanjeriano.
P
Paleolítico (gr. paleos: antigo e lithos:
pedra). Designa a Idade da Pedra sem
produção de alimentos. Termo criado
por J. Lubbock em 1865.
Paleozoico. Sinônimo de Primário.
Parantropo. Australopiteco robusto des-
coberto, em 1948, no Pliopleistoceno de
Kromdraai (Transvaal) – Zinianthropus
Paraustraiopithecus. Esse tipo arcaico
apresenta numerosas características
simieséas, mas possui, principalmente
na sua estrutura dentária, traços que o
situam mais perto do homem que dos
antropoides.
Pebble Culture. Indústria de seixos
trabalhados, a mais antiga indústria
lítica conhecida, composta essencial-
mente de seixos com gume feito atra-
vés de um ou mais lascamentos.
Pitecantropo (macaco -homem). Fós-
sil que apresenta ao mesmo tempo
características bastante próximas do
homem moderno para pertencer ao
gênero Homo e outras bastante dife-
rentes para caracterizar uma outra
espécie. O primeiro foi descoberto por
E. Dubois em Java, em 1889. Pertence
à espécie Homo erectus.
Platirrino. Macaco do Novo Mundo,
com 36 dentes e septo nasal largo.
Pleístoceno (gr. pleistos: muito, e kai‑
nos: recente). Subdivisão geogica
do Quaternário, compreendendo o
início e a maior parte desse período.
Termo criado por C. Lyell em 1839,
corresponde ao momento das grandes
glaciações quaternárias e precede o
Holoceno, que teve início 10 mil anos
antes da Era Cristã.
Plesiantropo. Australopithecus graci‑
lis do início do Pleistoceno, descoberto
no Transvaal em 1936.
Plioceno. Época final do período
Terciário. Começou -5.500.000
anos e terminou - 1.800.000 anos.
488
Metodologia e pré -história da África
Pongídeo. Família de macacos antro-
poides à qual pertencem o orango-
tango, o gorila, o gibão e o chimpanzé.
Pré ‑cambriano. A mais antiga forma-
ção geológica. Durou da formação do
globo terrestre (estimada em 4 bilhões
de anos) até o período Primário ( -500
milhões de anos).
Pré ‑soltaniano. Período continental
marroquino correspondente ao fim da
glaciação de Riss e que vem antes do
Soltaniano (de Dar es -Soltan).
Q
Quartzita. Rocha dura, formada
principalmente de quartzo.
R
Ramapiteco. Ramapithecus wickeri:
primata onívoro do Mioceno, possi-
velmente ancestral dos homideos,
datando de 12 a 14 milhões de, anos.
Foi descoberto nas montanhas Siwa-
lik (Norte da índia). Outros espécimes
foram encontrados na China, na Tur-
quia, em Fort Ternan (na África) e na
Europa (Fraa, Alemanha, Grécia,
Áustria, Espanha e Hungria).
Riss. Do nome de um rio da Baviera.
Penúltima glaciação quaternária alpina,
que ocorreu entre -200.000 e -120.000
anos.
S
Sangoense. Sítio epônimo em Sango
Bay, no lago Vitória, em Uganda.
Complexo lítico descoberto por
Wayland em 1920, caracteriza -se por
um instrumental que associa a objetos
feitos com lascas obtidas pela técnica
de Levallois, picões maciços, bifaces
e peças lanceoladas. Desenvolveu -se
entre o Kamasiano e o Gambliano.
Sauriano. De Saura, uede do Saara
argelino. Quarto pluvial do Saara,
equivalente ao Gambliano.
Serpentina. Silicato hidratado de
magnésio.
Sinantropo (lat. sinensis; chis; gr.
anthropos: homem.). Fóssil que apre-
senta ao mesmo tempo características
bastante semelhantes às do homem
moderno para pertencer ao gênero
Homo e outras bastante diferentes
para caracterizar uma outra escie.
O sítio de Chu -Ku -Tien (a sudoeste
de Pequim) foi explorado de 1921 a
1939 pelo Dr. Pei e por M. Black, Pe.
Teilhard de Chardin e F. Weidenreich.
Pertence à espécie Homo erectus.
Solutrense. De Solut, Saône -et-
-Loire, França. Indústria pré -histórica
do Paleolítico Superior que se carac-
teriza por lâminas de sílex muito finas.
Os instrumentos típicos devem seu
aspecto a um trabalho de retoques
489
Glossário
rasantes, paralelos, invadindo os dois
lados da peça.
Stillbayense. De Still Bay, Província
do Cabo, África do Sul. Indústria lítica
rica em peças lanceoladas com reto-
ques bifaciais, lembrando as folhas de
louro do Solutrense francês. Contem-
porâneo do Gambliano.
T
Tectita. Vidro natural rico em sílica e
em alumínio, de origem provavelmente
cósmica.
Telantropo. Termo genérico dado por
Broom e Robinson a dois fragmentos
de mandíbula encontrados em 1949
no sítio de Swartkrans, África do Sul,
e cuja morfologia lembra a de certos
arcantropianos.
Tensiftiano. Do uede Tensift, no
Marrocos ocidental. CicIo continental
marroquino que corresponde à pri-
meira parte do Riss.
Tschitoliense. Termo criado para
designar um complexo tico desco-
berto em Tschitolo, Kasai, Quênia.
Fácies industrial epipaleoIítica que se
caracteriza pela presença constante de
instrumentos maciços mas de dimen-
sões menores que no Lupembiense, e
pela profusão de pontas de flecha reto-
cadas nas duas faces.
Tufo. Rocha vulcânica porosa, leve e
mole.
V
Villafranchiano. De Villafranca
dAsti, Piemonte, Itália. Formação
sedimentária que corresponde à tran-
sição entre os períodos Tercrio e
Quaternário.
W
Wiltoniense. Do sítio de Wilton,
oeste da Província do Cabo, África do
Sul. Indústria Iítica que data de apro-
ximadamente 15 mil anos. Compre-
ende pequenos raspadores inguiformes;
micrólitos em segmento de círculo e
trapezoidais, furadores e peças com bor-
dos denticulados. cies tardia, que se
prolongou até a introdução do ferro.
Würm. Do nome de um lago e de
um rio da Baviera. A mais recente das
glaciações alpinas. Começou há 75 mil
anos e terminou por volta de 10 mil
anos antes da Era Cristã.
X
Xisto. Rocha sedimentária sílico-
-alumínica de aspecto folheado e que
se parte facilmente em lamelas.
C A P Í T U L O 1 8
491
Os homens fósseis africanos
África, o berço da humanidade
Charles Darwin foi o primeiro cientista a publicar uma teoria importante
sobre a origem e a evolução do homem. Foi também o primeiro a apontar a
África como o lugar de origem do homem. Pesquisas realizadas nos últimos cem
anos vieram em abono da teoria de Darwin, confirmando inúmeros aspectos
do seu trabalho pioneiro. Atualmente não mais é possível considerar a evolução
como uma simples hipótese teórica.
As provas do desenvolvimento do homem na África estão ainda incompletas,
mas nesta última década houve um aumento substancial do número de espécimes
fósseis estudados e interpretados.boas razões para se acreditar que a África
seja o continente onde os hominídeos surgiram pela primeira vez e onde, mais
tarde, desenvolveram a postura ereta e o bipedismo, elementos decisivos à sua
adaptação. Quando e por qual processo o homem foi capaz de realizar essa
adaptação é questão de extremo interesse. O período evolutivo é longo, sendo
possível que muitas de suas fases não estejam representadas por espécimes fósseis,
uma vez que a conservação desses fósseis só se dá em condições muito especiais.
A fossilizão requer condições geogicas em que a sedimentação seja
rápida e a composição química dos solos e das águas de percolação permita
que elementos minerais substituam elementos orgânicos. Os fósseis que desse
Os homens fósseis africanos
R. Leakey
492
Metodologia e pré -história da África
 . África: alguns dos sítios mais importantes de hominídeos.
493
Os homens fósseis africanos
modo se formam ficam enterrados a grande profundidade sob os sedimentos
acumulados, e talvez venham a ser descobertos pelo homem moderno caso
intervenham fenômenos naturais, como a erosão ou os movimentos tectônicos.
Tais sítios são pouco numerosos e se encontram bastante dispersos. Ainda que
se descubram, a cada ano, novas jazidas, grande parte da África jamais revelará
evidências fósseis do aparecimento do homem.
Seria interessante comentar as razões pelas quais certas partes, da África
são tão ricas em testemunhos p-históricos. A primeira é a diversidade de
habitats. O continente é vasto, estendendo -se acima e abaixo do Equador até
as zonas temperadas do norte e do sul. Esse fato, por si só, implica a variedade
de climas; no entanto, as terras altas da região equatorial introduzem uma
dimensão suplementar. Essa massa de terra se eleva, a partir da franja litorânea,
em uma série de planaltos, até as cadeias de montanhas e picos, alguns dos
quais cobertos de neves eternas, apesar do clima bastante seco e quente. As
elevações variadas propiciam uma diversidade de ambientes, pois a temperatura
diminui à medida que aumenta a altitude. Ora, esses fatores sempre existiram
na África, e, embora alterações climáticas tenham certamente ocorrido, parece
que o continente africano sempre ofereceu um habitat adequado ao homem.
Quando uma determinada área se tornava muito quente ou fria, era possível
migrar para ambientes mais apropriados.
Formulou -se a hipótese de uma correlação entre os períodos glaciários do
hemisfério Norte e os períodos úmidos da África, pois se constatam grandes
variações nos níveis dos lagos, que cor respondem a variações pluviométricas.
Essa questão vem sendo objeto de minuciosos estudos nos últimos anos. Embora
um avanço glaciário deva ter exercido um efeito global sobre a meteorologia, a
correlação automática entre ambos não se evidencia claramente
1
. Não obstante,
o acúmulo de sedimentos nas bacias dos lagos africanos durante o Pleistoceno
concorre para reforçar a teoria de que as chuvas foram mais abundantes nesse
período.
Essa sedimentão foi de grande amplitude. Muitos lagos do Pleistoceno
africano eram pequenos e pouco profundos, provavelmente de caráter
sazonal, com variações anuais de nível – reflexo do clima tropical, com chuvas
abundantes durante apenas alguns meses do ano. Esses lagos eram perfeitas
bacias de captação para os sedimentos que se depositavam anualmente nas suas
margens planas e em torno das embocaduras dos rios que neles desaguavam
1 Ver capítulo 16.
494
Metodologia e pré -história da África
e que inundavam suas ribanceiras durante o período de cheias. Restos de
animais mortos perto das margens dos lagos iam sendo, assim, constantemente
recobertos pela areia ou pela vasa depositada durante as enchentes. Esse
processo durou milhões de anos, sendo detectados vestígios animais em
diferentes níveis das seqncias sedimentares, cuja espessura total chega a
ultrapassar 500 m.
Com a colmatagem dos lagos e a mudança do regime das chuvas, algumas
bacias secaram enquanto outras foram -se formando. O processo de fossilização
é lento, mas o Pleistoceno se estende por mais de 3 milhões de anos, período
durante o qual restos de animais foram sendo depositados em sedimentos
favoráveis à sua conservação.
A localização desses restos constitui, evidentemente, um problema capital
para o paleontólogo mas, também nesse ponto, certos fatores contribuíram para
diminuir as dificuldades na África, especialmente na África oriental. Durante o
Pleistoceno, em particular na sua última fase, a África oriental passou por um
período de movimentos tectônicos associados a uma ruptura da crosta terrestre,
hoje chamada Rift Valley, Esses movimentos tectônicos originaram falhas e, em
muitos lugares, provocaram a elevação de massas de sedimentos. A erosão que
se seguiu expôs as camadas onde se tinham formado fósseis. Por essa razão, a
procura de restos fósseis concentra -se, em geral, em antigas bacias lacustres onde
as formações sedimentares sofreram falhas e aparecem sob a forma de terras
áridas com ravinamentos.
Entretanto, outras possibilidades, como prova a grande quantidade de
restos de hominídeos encontrados na África do Sul. Esses fósseis se formaram
em cavernas calcárias, onde o acúmulo de ossadas foi recoberto por uma camada
estalagmítica ou pelo desmoronamento do teto das cavernas. Os ossos foram
levados para essas cavernas por vários agentes, mais provavelmente por animais
necrófagos ou predadores, como leopardos e hienas. Existem certos indícios de
que as cavernas tenham sido ocupadas por hominídeos, os quais também seriam,
portanto, responsáveis por restos ósseos fossilizados. O grande problema desse
tipo de sítio reside no fato de praticamente inexistirem critérios de estratigrafia,
sendo assim muito difícil determinar a idade relativa dos fósseis descobertos.
Em muitas reges da África não existiram, no Pleistoceno, condições
adequadas à fossilização de restos animais. Consequentemente, não razão
para se supor que o homem primitivo não tivesse vivido nessas regiões, apesar
da ausência de vestígios. Novas pesquisas ainda podem revelar novos sítios.
Os instrumentos de pedra são mais comuns que os fósseis ósseos, pois que
mais duradouros. A pedra não precisa ser rapidamente coberta por sedimentos
495
Os homens fósseis africanos
para que esteja garantida sua preservação. Dessa forma, os arqueólogos puderam
reunir grande número de dados sobre a tecnologia primitiva na África, fornecendo
muitas informações acerca do aparecimento do homem.
O homem, ou mais especificamente o gênero Homo, poderia ser considerado
como o único animal capaz de fabricar instrumentos de pedra; no entanto, nesse
aspecto, como em outros setores da pesquisa relacionada à origem do homem,
as opiniões dos especialistas divergem.
O estudo da origem do homem baseia -se em grande parte numa
abordagem pluridisciplinar, que não se limita ao estudo de ossadas fósseis e
vestígios arqueológicos; a geologia, a paleontologia, a paleoecologia, a geofísica
e a geoquímica desempenham papel preponderante, e, para os estágios mais
recentes, quando os hominídeos começaram a usar instrumentos, a arqueologia
é fundamental. O estudo dos primatas vivos, inclusive o homem, é muitas vezes
útil para uma melhor compreensão da pré -história do nosso planeta.
Os fósseis da família do homem, os hominídeos, podem ser considerados
como distintos e separados dos grandes macacos atuais, os pongídeos, desde
o Mioceno, mais de 14 milhões de anos. As evidências mais antigas estão
incompletas, e existe uma grande lacuna em nosso conhecimento sobre a
evolução do homem no período que vai de 14 milhões a pouco mais de 3
milhões de anos. Foi durante esse período que a diferenciação parece ter -se
efetuado, pois são conhecidas formas diferenciadas de hominídeos fósseis a
partir de -5 milhões de anos.
Os testemunhos fósseis de outros grupos de animais que não o homem
são, em geral, mais bem conhecidos e comportam material mais completo. São
de grande interesse pois permitem tentar a reconstituição do meio ambiente
primitivo dos hominídeos durante os primeiros estágios de sua evolução.
existem dados sobre vários períodos importantes em que numerosas espécies
animais sofreram mudanças muito pidas, em resposta a pressões do meio
ambiente.
Demonstrou -se também que o homem passou por diversos estágios antes
de se tornar o bípede com cérebro desenvolvido que é hoje. Em certas épocas,
existiram vários tipos de homens, e cada um poderia representar uma adaptação
específica. As mudanças ocorridas a partir da forma simiesca do hominídeo do
Mioceno devem ser o resultado de algum tipo de especialização ou adaptação, que
nos cabe elucidar. Embora os dados disponíveis estejam bastante incompletos,
conhecem -se alguns detalhes dessa complexa evolução. Examinaremos os fósseis
mais recentes para, a partir deles, chegarmos aos mais antigos.
496
Metodologia e pré -história da África
O homem moderno e o Homo sapiens
A clássica definição de homem encontrada nos dicionários está longe de ser
satisfatória: “Ser humano, a raça humana, adulto do sexo masculino, indivíduo (do
sexo masculino)”. Um dos problemas dessa definição é que o homem moderno
constitui talvez a mais diversificada espécie conhecida, tantas são as diferenças
comportamentais e físicas existentes entre as populações do mundo, diferenças
essas que devem ser consideradas. Mas apesar das diferenças aparentes, o homem
constitui hoje uma única espécie, e todos os homens partilham a mesma origem
e a mesma história na sua evolução primitiva. É provável que nos últimos
milênios a escie tenha passado a apresentar variantes superficiais. Possa
essa noção contribuir a que os homens mais rapidamente se conscientizem da
identidade de sua natureza e de seu destino.
O homem atual, que pertence integralmente à espécie Homo sapiens sapiens,
é capaz de viver em habitats muito diferentes gras ao desenvolvimento
tecnológico. A vida em cidades superpovoadas contrasta com a dos nômades
pastores de camelos no deserto, e ambas contrastam, por sua vez, com a vida dos
caçadores no seio das densas florestas tropicais da África ocidental. O homem
é capaz de viver longos períodos no fundo do mar, a bordo de submarinos,
e em órbita terrestre, no interior de psulas espaciais. A chave explicativa
de todos esses casos é a adaptação pela tecnologia. Os requisitos fisiológicos
fundamentais são um cérebro complexo e volumoso, mãos livres de qualquer
função locomotriz e disponíveis para a manipulação, e o bipedismo permanente.
Essas características podem ser identificadas no tempo, assim como os vestígios
não -perecíveis da atividade técnica do homem. O grau de desenvolvimento do
cérebro, a habilidade da manipulação e o bipedismo podem ser considerados os
melhores pontos de referência de que dispomos para traçar o caminho percorrido
pela nossa espécie ao longo do tempo.
Várias descobertas importantes atestam a presença do Homo sapiens primitivo
no continente africano há mais de 100 mil anos. Tudo indica que nossa espécie
é tão antiga na África quanto em outras partes do mundo, sendo provável que
pesquisas futuras possibilitem datar com precisão o mais remoto vestígio, cuja
idade talvez esteja próxima dos 200 mil anos.
Em 1921, um crânio e alguns fragmentos de esqueleto foram encontrados
em Broken Hill, Zâmbia; sendo esse país a antiga Rodésia do Norte, o espécime
tornou -se conhecido como homem da Rodésia ou Homo sapiens rhodesiensis.
Data aproximadamente de -35000, ao que se crê, e certamente pertence à nossa
espécie. Talvez remonte a uma época mais remota, porém não foi possível datar
497
Os homens fósseis africanos
sequer o crânio. Apresenta características muito semelhantes às do neandertalense
da Europa, tratando -se, com certeza, de um exemplo africano dessa espécie.
Traços ainda mais antigos do Homo sapiens foram descobertos na África oriental.
Em 1932, o Dr. L. S. B. Leakey encontrou fragmentos de dois crânios no
sítio de Kanjera, no oeste do Quênia. Pareciam estar associados a uma fauna
fóssil do fim do Pleistoceno Médio tardio, o que implicaria uma idade de cerca
de 200 mil anos. Esse sítio ainda não foi datado com precisão, fato lamentável,
visto que os fósseis encontrados dois crânios e um fragmento de fêmur
parecem pertencer à espécie Homo sapiens e poderiam constituir as evidências
mais antigas da espécie, conhecidas até agora na África.
Em 1967, foram descobertos restos de dois indivíduos em um sítio do vale
do Omo, no sudoeste da Etiópia. Consistem em um fragmento de crânio, partes
de um esqueleto pós -craniano e a calota de um segundo crânio. Os dois fósseis
provêm de camadas com idade estimada em pouco mais de 100 mil anos. O
vale do Omo é, provavelmente, mais conhecido por seus fósseis antigos, mas
uma grande quantidade de depósitos recentes que podem constituir uma
fonte de dados novos sobre os primeiros Homo sapiens da África. Além disso,
encontrou -se cerâmica primitiva em sítios da mesma área, suscetíveis, portanto,
de fornecer informações acerca dos antigos usos da cerâmica.
Assim, embora existam poucos espécimes do Homo sapiens primitivo entre
os fósseis, parece razoável supor que essa espécie gozava de ampla difusão tanto
na África quanto em outras partes do globo.
O pré ‑Homo sapiens
Existe uma tendência a se relacionar as espécies fósseis com as espécies
modernas; essa relação, contudo, deve ser entendida em termos muito genéricos.
Propomos aqui considerar a origem do Homo sapiens dentro de uma linhagem que
pode remontar a vários milhões de anos. Em diferentes épocas, provavelmente
existiram nessa linhagem vários tipos distintos do ponto de vista morfológico,
devendo a composição genética do homem moderno refletir, em parte, essa
herança compósita.
A denominação das espécies fósseis tem causado dificuldades;
frequentemente, o desejo de dar um novo nome a cada espécime descoberto
provoca confusão. A prática habitual é classificar espécimes semelhantes em uma
mesma espécie; as diferenças menores servem de base para uma diferencião
da espécie, enquanto as mais importantes distinguem o gênero. Não é difícil
498
Metodologia e pré -história da África
classificar as espécies animais vivas; um excelente sistema de classificação foi
criado pelo grande naturalista Lineu. O problema dos paleontólogos es em
considerar a evolão, no tempo, de uma determinada espécie que pode ter
sofrido transformações bastante rápidas. A expressão espécie morfológica” será
utilizada, aqui, na descrão de fósseis que apresentam caractesticas físicas
semelhantes. Cabe ressaltar que grande parte da controrsia relacionada ao
estudo da origem do homem se deve à divergência de opiniões quanto ao uso
da terminologia.
Pelo menos dois gêneros e várias espécies de hominídeos foram identificados
entre os fósseis dos últimos 3 milhões de anos. Essas formas são básicas para
compreendermos a origem de nossa espécie. Até recentemente, pensava -se
que a evolução se processara em ritmo uniforme; hoje, porém, acredita -se que
populações locais de uma determinada espécie podem ter reagido diferentemente
às pressões da seleção. Formas primitivas” podem ser contemporâneas de formas
avançadas ou “progressivas”. A identificação de caracteres primitivos” numa
espécie registrada em um longo período de tempo é menos difícil que numa
amostra limitada, pois permite identificar tendências e adaptações que ajudam
a explicar o processo de sobrevivência por modificações progressivas.
Os restos humanos fósseis da África, por suas características, podem ser
unidos em dois grupos principais. Propomos considerá -los como linhagens
evolutivas, uma das quais, representada pelo gênero Homo, pode ser seguida até
hoje, sendo que a outra, representada pelo gênero Australopithecus, aparentemente
extinguiu -se cerca de 1 milhão de anos.
É possível, também, considerar as formas primitivas descobertas em depósitos
onde não existem formas mais avançadas, as quais, todavia, são encontradas em
estratos mais antigos. Tal fato poderia ser interpretado como uma regressão,
porém é mais provável que a continuação de uma espécie progressiva não esteja
representada entre os espécimes disponíveis para estudo unicamente por ter
ocupado áreas que não se prestavam à sua preservação pela fossilização.
Para os objetivos deste catulo, propomos considerar os homideos
anteriores ao Homo sapiens com base nestas duas linhagens. A forma ancestral
comum a ambas não pode ser facilmente identificada, pois os testemunhos
fósseis são bastante fragmentários. O mais antigo hominídeo da África provém
de Fort Ternan, no Quênia, onde foram encontrados rios fragmentos de
maxilar superior, um fragmento de mandíbula e alguns dentes. O sítio foi datado
de 14 milhões de anos, e seus fósseis provam que nessa época já havia ocorrido
a diferenciação entre os hominídeos e os pongídeos. Portanto a redução dos
499
Os homens fósseis africanos
 . Crânio de Homo
habilis (KNM -ER 1470). Vista
lateral. Koobi Fora, Quênia
(Museus Nacionais do Quênia).
F. Crânio de Homo
erectus (KNM -ER 3733). Vista
lateral. Koobi Fora, Quênia
(Museus Nacionais do Quênia).
500
Metodologia e pré -história da África
caninos, traço característico dos hominídeos, se acentuara ligeiramente a partir
dos caracteres propriamente simiescos.
Os testemunhos fósseis entre 14 milhões e 3.500.000 de anos estão bastante
incompletos. Dispomos apenas de quatro espécimes que podem ser relacionados
a esse período, todos provenientes do Quênia: um fragmento de mandíbula em
péssimo estado de conservação, encontrado em Kanam pelo Dr. L. S. B. Leakey,
em 1932; um fragmento de úmero descoberto em Kanapoi; um fragmento de
mandíbula com uma coroa dentária encontrado em Lothagam, e um molar
isolado descoberto em Ngorora. Os três primeiros espécimes provêm de depósitos
datados de 4 milhões a 5.500.000 de anos; quanto ao dente isolado, considera -se
que seja proveniente de depósitos estimados em 9 milhões de anos. Entretanto,
nenhum desses espécimes é bastante significativo, pois são muito fragmentários.
Atribuiu -se o fragmento de mandíbula de Lothagam ao Australopithecus; mas, no
atual estágio de nossos conhecimentos, essa identificação é bastante discutível,
na opinião de muitos antropólogos.
A partir do início do Pleistoceno, cerca de 4 milhões de anos, a o
aparecimento do Homo sapiens, os dados sobre a evolução dos hominídeos na
África tornaram -se nitidamente mais substanciais. Em 1973, foram realizados
trabalhos de pesquisa em duas novas jazidas, onde se encontrou grande número
de fósseis em camadas datadas de 3 a 4 milhões de anos. Esses sítios, Laetolil
(Tanzânia) e Hadar (Etiópia), merecem comentário especial, tal a sua importância
no que diz respeito ao aparecimento do gênero Homo.
Laetolil está localizado a aproximadamente 50 km da famosa garganta
de Olduvai, nas encostas dos montes Lemagrut, dominando a extremidade
norte do lago Eyasi. Sua idade foi estimada em cerca de 3.500.000 anos, fato
bastante significativo na medida em que se propôs relacionar os diversos fósseis
de hominídeos primitivos encontrados ao gênero Homo. Trata -se de maxilares,
dentes e um fragmento de membro.
As jazidas de Hadar, situadas na depressão de Afar, Etiópia, têm a mesma
idade, ou talvez sejam um pouco mais recentes. A partir de 1973, descobriu-
-se no local grande quantidade de material, incluindo excelentes espécimes de
esqueleto craniano e pós -craniano, entre os quais se podem distinguir três tipos
relacionados a Homo habilis, Australopithecus gracilis e Australopithecus robustus.
Assim, todo esse primeiro período praticamente nada revela sobre a origem
do Homo e do Australopithecus. Em compensação, o período entre 3 e 1 milhão
de anos é relativamente rico em testemunhos fósseis.
A amostra bastante grande de espécimes encontrados em sítios com
menos de 3 milhões de anos indica a existência de dois gêneros distintos de
501
Os homens fósseis africanos
hominídeos primitivos, que por vezes ocupavam a mesma área. Presume -se
que essas duas formas, Homo e Australopithecus, habitassem nichos ecológicos
diferentes e, embora seu territóriosico pudesse coincidir, a competição por
comida, ao que parece, não era suficiente para que uma forma excluísse a
outra. Ainda temos muito a aprender sobre a adaptão de cada um desses
hominídeos, porém a coexisncia dos doisneros por um período superior
a 1.500.000 de anos é fato comprovado atualmente e atesta a distinção entre
os dois.
Foi o Australopithecus o ancestral do Homo? Essa pergunta geralmente recebe
resposta afirmativa; no entanto, com os novos dados disponíveis, não mais é
possível ter tanta certeza. Alguns especialistas (inclusive o autor) tendem a
pensar que as duas formas têm um ancestral comum, distinto de ambas. Para
estabelecer essa tese, é necessário examinar os dois gêneros do ponto de vista
de suas adaptações específicas” e considerar o grau de variação, se houver, em
cada grupo. Para isso, é essencial definir claramente as características típicas de
cada um que se mostraram permanentes no tempo.
Para finalizar, cabe observar que alguns pesquisadores classificam todos
esses fósseis num mesmo gênero, o qual apresentaria uma grande variabilidade
intragenérica e um acentuado dimorfismo sexual.
O gênero Homo (pré ‑sapiens): Homo erectus
A forma pré -sapiens mais conhecida do gênero Homo é a que foi atribuída
a uma espécie morfológica bastante diversificada que se expandiu amplamente:
Homo erectus. Essa espécie foi encontrada pela primeira vez no Extremo Oriente
e na China; mais recentemente, foi descoberta na África do Norte, na África
oriental e talvez no sul da África. Não datação absoluta para os espécimes
da Ásia, embora tenha sido publicada uma data inferida para parte do material,
sugerindo que o Homo erectus ocorre em sítios com 1.500.000 a 500 mil anos. A
datação dos sítios da África do Norte e do Sul onde se descobriu o Homo erectus,
foi igualmente inferida, situando -os aparentemente no Pleistoceno Médio. Os
espécimes da África oriental provêm de sítios onde foi possível fazer datações
físico -químicas, tendo sido datado de aproximadamente 1.600.000 de anos o
mais antigo exemplar de Homo erectus. Essa data tão remota poderia indicar uma
origem africana para o Homo erectus, e muitos especialistas são favoráveis à ideia
de que todos os testemunhos dessa humanidade descobertos fora do continente
africano seriam provenientes de populações que teriam emigrado no início do
502
Metodologia e pré -história da África
Pleistoceno. Existem, no entanto, algumas novas datas, extremamente antigas,
para o Homo erectus de lava.
Atualmente, não dispomos de material em quantidade suficiente para a
realização de estudos gerais e sintéticos. Entretanto, os dados existentes mostram
que essa espécie encontrava -se amplamente distribuída na África, ocorrendo
também na Ásia e na Europa. Os fragmentos de membros indicam uma postura
ereta, adaptação para a marcha e bipedismo com características próximas às do
homem moderno. O grau de inteligência pode ser avaliado, muito precariamente,
estimando -se o volume da caixa craniana. Tomando -se por base o material
conhecido, calcula -se o volume endocraniano entre 750 cm³ e 1000 cm³ para
o Homo erectus, enquanto para o Homo sapiens a média é significativamente
superior: 1400 cm³.
A tecnologia utilizada pelo Homo erectus pode ser inferida da observação
dos vestígios. O Homo erectus fabricava e usava instrumentos de pedra e vivia de
caça e coleta nas savanas, na África. Os especialistas são unânimes em relacionar
o biface da indústria acheulense ao Homo erectus; esse tipo de material lítico é
distintivo e aparece em sítios da África, Europa e, em menor escala, da Ásia. Se
o Homo erectus é o estágio final de desenvolvimento que levou ao Homo sapiens é
fato ainda não comprovado. Portanto, é aconselhável deixar a questão em aberto,
à espera de novas informações sobre essa espécie.
Antes de deixarmos o Homo erectus, apresentaremos rapidamente suas
características. Os traços mais característicos aparecem no crânio: as arcadas
supra -orbitárias proeminentes e espessas, a testa baixa e o formato do occipital.
Os dentes talvez constituam um outro traço distintivo, mas é possível que outras
escies morfogicas da linhagem Homo tenham apresentado morfologia
dentária muito semelhante. O mesmo se diga da mandíbula, cuja morfologia é
menos característica do que em geral se supõe. Alguns espécimes, que se alega
pertencerem ao Homo erectus e que consistem apenas em dentes e maxilares,
poderiam, na verdade, representar uma espécie morfológica diferente dentro do
mesmo gênero.
O gênero Homo (pré ‑sapiens): Homo habilis
Os fósseis atribuídos à linhagem Homo, mas anteriores ao Homo erectus,
limitam -se, atualmente, à África oriental. As formas mais antigas talvez sejam
as de Hadar e Laetolil, que, embora requerendo ainda estudo mais aprofundado,
podem ser tidas como ancestrais de espécies mais recentes. Essa espécie
503
Os homens fósseis africanos
. Crânio de
Australopithecus boisei (OH5).
Vista lateral. Garganta de Olduvai,
Tannia (Museus Nacionais do
Quênia).
F . Mandíbula de
Australopithecus boisei (KNM -ER
729). Vista em face oclusiva. Koobi
Fora, Quênia (Museus Nacionais
do Quênia).
504
Metodologia e pré -história da África
intermediária se ela realmente o é poderia ser chamada Homo habilis. Sua
definição baseia -se em espécimes descobertos em Olduvai e, mais recentemente,
em Koobi Fora, na margem leste do lago Turkana.
As principais características do Homo habilis seriam cérebro relativamente
desenvolvido (podendo a capacidade craniana exceder 750 cm³), crânio de ossos
relativamente pouco espessos com abada alta, constrão s -orbiria reduzida.
Os incisivos são relativamente grandes, os molares e pré -molares mais reduzidos, e a
mandíbula apresenta um contraforte externo. Os elementos do esqueleto s -craniano
têm características morfológicas bastante semelhantes às do homem moderno.
Os exemplares mais completos de Homo habilis provêm de Koobi Fora, onde
foram descobertos vários crânios, mandíbulas e ossos longos. O crânio mais bem
conservado é conhecido como KNM -ER 1470 (Fig. 1).
O gênero Australopithecus
O problema da definição de eventuais espécies no gênero Australopithecus
está longe de ser resolvido; porém, penso que há suficientes evidências na
formação de Koobi Fora para que se possam definir, com certa convicção, duas
espécies desse nero. A mais evidente, Australopithecus boisei, é bem típica,
apresentando mandíbulas maciças, molares e pré -molares grandes em relação
aos caninos e incisivos, capacidade craniana inferior a 550 cm
3
; o dimorfismo
sexual revela -se por características externas do crânio, tais como cristas sagitais
e occipitais acentuadas nos indivíduos do sexo masculino (Figs. 3 e 4). Os
elementos conhecidos do esqueleto pós -craniano fêmur, úmero e astrágalo
são, igualmente, característicos.
Essa escie distribuía -se por ampla área, tendo sido encontrada em Chesowanja,
Peninj e na garganta de Olduvai, situada na porção meridional do Rift Valley do leste
africano. Entretanto,o se pode afirmar com certeza que o A. boisei constituía uma
espécie; talvez venha a ser classificado como subespécie regional da forma sul -africana
do A. robustus. Novas descobertas poderão trazer solução a esses problemas, que
sempre apresentarão semelhantes sutilezas taxomicas no campo da paleontologia
dos vertebrados. Portanto, parece prefevel, no momento, mantermos a hitese da
existência de duas escies robustas aparentadas mas geograficamente separadas.
Os testemunhos da presea de uma forma grácil de Australopithecus no leste da
África o menos probantes. No entanto, o grau de variação parece consideravelmente
grande se incluirmos todos os espécimes descobertos numa escie.
505
Os homens fósseis africanos
. Crânio de
Australopithecus africanus (KNM-
-ER 1813). Vista lateral. Koobi
Fora, Quênia (Museus Nacionais
do Quênia).
F . Mandíbula de
Australopithecus africanus (KNM-
-ER 992). Vista em face oclusiva.
Koobi Fora, Qnia (Museus
Nacionais do Quênia).
506
Metodologia e pré -história da África
O melhor exemplar da forma grácil no leste da África seria o espécime
KNM -ER 1813, encontrado na formação de Koobi Fora (Fig. 5). Diversas
mandíbulas e alguns fragmentos do esqueleto pós -craniano poderiam
também ser associados a essa forma, não se devendo esquecer a dificuldade de
classificação das mandíbulas. Nenhuma tentativa de definição dessas formas
gráceis da África foi proposta até o presente momento; contudo, devem -se
considerar a variabilidade das mandíbulas com pré -molares e molares pequenos,
uma capacidade craniana de pelo menos 600 cm³ e cristas sagitais raramente
presentes ou inexistentes. O esqueleto s -craniano parece ser comparável ao do
A. boisei, embora em escala menor, sendo tamm menos robusto. Nas duas espécies,
um dos tros mais caractesticos é a efise proximal do mur: o colo é longo,
comprimido de frente para trás; a caba é pequena e subesrica. Haveria ainda
outros traços a serem definidos, mas pouco se sabe sobre a variação interna dessas
espécies, e a amostrao oferece possibilidade de conclues.
No entanto, considero essa escie muito próxima do A. africanus grácil da África
do Sul, do qual poderia ser um cies mais setentrional. Conhecemos o osso ilíaco
do A. africanus e do A. robustus da África do Sul, e pequenas diferenças puderam
ser notadas entre as duas formas. Nenhum espécime remanescente desse osso é
atribuível ao Australopithecus na África oriental; entretanto, o Homo está representado
por dois espécimes contemporâneos, que mostram difereas acentuadas entre os
dois gêneros. Essas diferenças o maiores do que as que se poderia esperar no interior
de uma única escie, ainda que sua área de distribuão fosse extensa.
Utensílios e habitações
A maior quantidade de restos de utensílios e de sítios de habitação provém
do lago Turkana (Quênia) , de Melka Kontu (Etiópia) e da garganta de
Olduvai (Tanzânia), onde foram feitas inúmeras escavações nos últimos trinta
anos. A evolão a partir dos mais rudimentares seixos trabalhados até os
complexos e aperfeiçoados bifaces está bem documentada nessa área. Podem-
-se fazer algumas inferências sobre a organização social (tamanho do grupo) e
hábitos de caça, com base no material encontrado nesses sítios. Em Olduvai,
descobriram -se restos de uma estrutura de pedra – talvez a base de uma cabana
circular datados muito provavelmente de 1.800.000 anos. Em Melka Konturé,
foi descoberta uma plataforma elevada, também circular.
507
Os homens fósseis africanos
E difícil situar com precisão o início das habilidades técnicas dos hominídeos;
pode -se, quando muito, sugerir que tenha aparecido durante o Pleistoceno, talvez
como uma resposta adaptativa, chave do processo de diferenciação do gênero Homo.
Durante o Pleistoceno Inferior, por volta de 1.600.000 anos ats, apareceram
instrumentos bifaces rudimentares. Sua evolão a partir do seixo lascado pode ser
acompanhada em Olduvai e é confirmada por descobertas feitas em outros sítios do
leste da África. Até recentemente, as mais antigas instrias líticas encontradas na
Europa eram as de bifaces. Na minha opino, os dados dispoveis poderiam sugerir
uma migrão de grupos humanos que fabricavam bifaces, da África para a Europa e
Ásia, no Pleistoceno Antigo ou mesmo um pouco antes. O desenvolvimento ulterior
das instrias de pedra é bastante complexo, havendo testemunhos em abundância
em todo o mundo. Aindao foi provado, mas podemos levantar a hipótese de que
o aparecimento das instrias s -acheulenses está ligado à emerncia do Homo
sapiens. Indústrias líticas raramente se encontram associadas a restos de homideos
primitivos, e muitos sítios do Pleistocenodio e Superior apresentam apenas um
ou dois espécimes, com algumas importantes exceções, todavia.
Extraordinários progressos foram feitos nos últimos anos no que diz respeito à
descoberta de testemunhos sseis, e certamente novos dados seo revelados pelas
pesquisas em curso. Dispomos, no momento, de claras evidências de uma considerável
diversidade morfológica dos homideos do Pliopleistoceno na África, interpretada
como consequência de uma diferenciação durante Plioceno, seguida de diferentes
tendências evolutivas, que continuaram até início do Pleistoceno. A presença
simultânea de pelo menos três espécies na África oriental pode ser determinada
com base no material craniano e pós -craniano. Qualquer reexame desta maria deve
incluir a alise do conjunto dos fósseis descobertos.
Lista dos espécimes de Homo erectus descobertos na África
Região País Sítio Detalhes dos espécimes
Noroeste Argélia Ternifine 3 mandíbulas e 1 fragmento de crânio
Noroeste Marrocos
Sidi
Abderrahmane
2 fragmentos de mandíbula
Noroeste Marrocos Rabat 1 fragmento de mandíbula e 1 crânio
Noroeste Marrocos Temara Mandíbula
Leste Tanzânia Olduvai
Crânio, alguns restos pós- cranianos
e uma possível mandíbula
Sul
África
do Sul
Swartkrans
Um crânio incompleto e alguns
fragmentos de mandíbula
508
Metodologia e pré -história da África
Terminologia
Os termos Middle Stone Age, Early Stone Age, Late Stone Age o
são traduzidos nesta obra, de acordo com a decisão tomada no 8
o
Congresso
Pan ‑Africano de P‑História e do Estudo do Quaternário, realizado em Nairobi
(Quênia); em setembro de 1977, de manter, para a África ao sul do Saara, a
terminologia inglesa.
509
Os homens fósseis africanos
Períodos e Indústrias da Pré -História da África (quadro de equivalência elaborado por
H. J. Hugot).
C A P Í T U L O 1 9
511
A Pré -História da África Oriental
A pesquisa pré ‑histórica: introdução à metodologia
Foi na parte oriental da África que o homem surgiu, aproximadamente
3 milhões de anos, como um animal de postura ereta fabricante de utensílios.
Por esse motivo, a história dessa parte do mundo é mais longa do que a de
qualquer outro lugar; a Idade da Pedra, em particular, foi mais extensa que
em outros continentes e em outras regiões da África. Teve início quando os
primeiros hominídeos começaram a fabricar, de maneira regular, utensílios de
pedra reconhecíveis enquanto tal, com formas e padrões predeterminados. Essa
associação de capacidades físicas e mentais para fazer utensílios em outras
palavras, a superação de sua condição biológica e a crescente dependência
dessas habilidades e atividades extrabiológicas, ou seja, culturais, distinguem o
homem dos outros animais e definem a humanidade. A evolução do homem para
um estágio de animal terrestre, capaz de sentar -se, de manter -se na postura ereta
e de locomover -se sobre os pés diferentemente dos macacos e outros mamíferos
quadrúpedes e quadrímanos facilitou o uso e a fabricação de utensílios por
liberar os braços e as mãos para segurar, carregar, agarrar e manipular. Além
disso, essa evolução foi necessária para a sobrevivência e o progresso do homem
no mundo, especialmente na obtenção e preparação dos alimentos. Cada nova
geração tinha de aprender as habilidades culturais e técnicas e os conhecimentos
A Pré -História da África Oriental
J. E. G. Sutton
512
Metodologia e pré -história da África
 . A pré -história na África Oriental (1974).
acumulados por seus pais. É possível que os primeiros utensílios feitos pelo
homem continuem desconhecidos, pois, por serem o rudimentares e tão
pouco distinguíveis de objetos naturais,o podem ser reconhecidos. É também
provável que outros materiais, que se teriam decomposto sem deixar vestígios,
como a madeira, o couro e o osso, fossem usados e trabalhados pelo menos na
513
A Pré -História da África Oriental
mesma época que a pedra. Entretanto, os progressos no emprego desses outros
materiais devem ter sido limitados, até o momento em que o homem tivesse
dominado a técnica básica de produzir com regularidade um utensílio cortante,
de gume afiado, batendo e quebrando com precisão uma determinada pedra com
outra pedra ou com um objeto duro apropriado.
Portanto, a fabricação de utensílios e a humanidade – podem ter começado
antes da data sugerida pelos testemunhos abalizados de que dispomos sobre
aqueles importantes desenvolvimentos. Esses testemunhos consistem nos
primeiros utensílios líticos identificáveis, marco inicial da Idade da Pedra, assim
chamada por convenção.
A Idade da Pedra iniciou -se aproximadamente 3 milhões de anos e
durou até uma fase bem mais recente da história humana, quando a pedra foi
substituída pelo metal enquanto material básico para o desenvolvimento de uma
tecnologia, para a fabricação de utensílios e para a produção de gumes afiados. A
transição de uma indústria da pedra (ou lítica) para uma outra, do metal, deu-
-se em épocas ligeiramente diferentes nas diversas partes do mundo. Na Ásia
ocidental, as técnicas de trabalhar o cobre começaram a ser utilizadas entre 6 e
9 mil anos atrás. Na África oriental, o ferro, primeiro e único metal usado com
regularidade, começou a ser trabalhado há aproximadamente 2 mil anos.
Podemos questionar, do ponto de vista histórico, a validade da expressão
“Idade da Pedra”, por designar um período que cobre os 999 milésimos do
tempo de permanência do homem na África oriental, e por enfatizar, ademais,
o aspecto tecnológico do desenvolvimento humano, em detrimento dos aspectos
econômicos e culturais de caráter mais geral. Pode -se argumentar que uma tal
expressão é ampla demais do ponto de vista cronológico, e por demais restrita
do ponto de vista cultural. Mas é possível responder a essas objeções, e “Idade
da Pedra” continua sendo uma expressão e um conceito válidos, tendo em
conta certos fatores. Assim, como esse longo período é conhecido através
de testemunhos arqueológicos – ainda assim parciais, porque nada restou senão
pedras e não através da tradição oral ou de documentos escritos, precisaram os
historiadores criar um nome, ou nomes, para designá -lo, estudá -lo e descrevê -lo.
Por outro lado, a Idade da Pedra não foi um período estático da história. A
evolução tecnológica durante o Paleolítico e o Neolítico é facilmente demonstrada
pela transformação e diversificação dos utensílios de pedra, pela maior eficácia
do instrumental lítico, bem como de seus métodos de fabricação. É possível,
portanto, e mesmo necessário, dividir a Idade da Pedra em períodos e introduzir-
-lhes subdivisões complementares cronológicas e geográficas. Pode ser fascinante
olhar coleções de utensílios de pedra, especialmente se bem selecionados e
514
Metodologia e pré -história da África
apresentados com habilidade; porém, se não forem organizadas e compreendidas
em função de uma cronologia e de um estágio de desenvolvimento, essas coleções
terão pouco a dizer. Expressões populares como “vivendo na idade da pedra” e
“homem da idade da pedra tornam -se igualmente vazias de sentido, quando
baseadas na falsa ideia de que o homem e seu modo de vida permaneceram
estáticos naquela época histórica. Com efeito, o instrumental das populações da
Idade da Pedra diferia conforme o período e a região, e as próprias populações
evoluíam cultural e fisicamente. A Idade da Pedra foi testemunha de mutações
e diferenciações no corpo e no cérebro humanos, na economia, na organização
social e na cultura, a par do desenvolvimento técnico revelado por testemunhos
arqueológicos. Convém observar que, se as mudanças em todos os períodos da
Idade da Pedra foram lentas em relação aos padrões modernos, nos primeiros
tempos o foram ainda mais. Essas mudanças são tanto mais rápidas quanto mais
nos aproximamos da época atual. Assim, o período mais recente da Idade da
Pedra foi o momento de uma maior especialização e diversificação regionais.
Algumas vezes, características lentamente desenvolvidas em um determinado
local aparecem sob forma acabada em outra região em conseqncia de
migrações ou contatos culturais –, dando a ideia de que nesta última tivesse
ocorrido uma “revolução”. Desse modo, em termos de desenvolvimento, duas
ou três gerações do fim da Idade da Pedra poderiam equivaler a meio milhão
de anos no período inicial.
Constatamos, então, que o estudo histórico da Idade da Pedra não se limita
às pedras e aos utensílios. Ocasionalmente, o arqueólogo tem a sorte de fazer
outras descobertas, sobretudo em sítios de habitação do fim da Idade da Pedra
onde se preservaram testemunhos diretos de cozinha e de alimentos, sob a forma
de pedaços de carvão, vestígios de fogueiras e fragmentos de ossos de animais.
Restos orgânicos primitivos são extremamente raros na África, exceto em alguns
sítios onde as condições minerais favoráveis provocaram a fossilização de ossos
antes que estes se decompusessem. Mas mesmo dispondo apenas de pedras,
o arqueólogo deve tentar estender suas deduções e interpretações a domínios
mais amplos.
Em primeiro lugar, importa não o utensílio descoberto e examinado
isoladamente, mas o conjunto dos utensílios encontrados em um sítio de que
constam diferentes variedades de objetos quer tenha sido este o local de
habitação de um grupo, um acampamento temporário de caçadores, ou uma
oficina onde se fabricavam utensílios.
Muito mais comuns que os utensílios acabados são as lascas da debitagem e
os núcleos de pedra (respectivamente, fragmentos lascados da massa primitiva
515
A Pré -História da África Oriental
durante a fabricação, e restos de lascamento). O estudo desses restos deve ser
feito juntamente com o dos utensílios acabados, pois eles indicam as técnicas
de fabricação e o nível de habilidade alcançado. Além do mais, nem sempre
eram jogados fora; muitas vezes, sobretudo nos primeiros estágios da Idade da
Pedra, várias dessas lascas, como tivessem bordos cortantes e tamanho e forma
adequados ao manejo fácil, poderiam vir a complementar os utensílios acabados
mais maciços, constituindo, assim, parte integrante do instrumental. A coleta
e o estudo que se restringem aos produtos mais elaborados, como os bifaces e
machadinhas, trazem uma visão limitada e bastante distorcida da tecnologia
e das atividades das populações pré -históricas. Nos períodos mais recentes da
Idade da Pedra, os instrumentos pesados do tipo biface foram substituídos
por outros menores, mais delicados e precisos, produzidos frequentemente de
modo a se fixarem em cabos de madeira ou punhos de osso, após uma hábil
preparão do cleo seguida de complicados retoques na mina ou lasca
extraída. Também nesse caso, para análises e deduções proveitosas, é essencial
dispor de um conjunto tão completo quanto possível de peças acabadas e de
resíduos de debitagem.
A variedade de utensílios de pedra com seus diversos tipos de gumes e
pontas para cortar, aparar, esfolar, raspar, furar, entalhar, bater, fender e cavar
permiti (mesmo levando em conta certas dúvidas inevitáveis quanto às
suas verdadeiras finalidades e usos) determinar a existência de outros utensílios
feitos com materiais perecíveis de origem animal e vegetal, utilizados por uma
comunidade. Por exemplo, as peles de animais, depois de limpas de toda a gordura,
secas e curtidas, poderiam ser cortadas para fabricar cordas e correias. Vários
instrumentos, armas de madeira e de pedra deveriam também ser necessários
para capturar, matar e retalhar animais. As correias podiam ser combinadas
com instrumentos de pedra, servindo para atar projéteis usados na caça, ou para
fixar,com o auxílio de uma resina vegetal, uma lâmina de pedra ou uma ponta na
extremidade de uma haste de madeira, a modo de lança ou flecha. Além dessas
armas, é possível reconstituir, a partir do estudo dos vestígios líticos do fim da
Idade da Pedra, utensílios compósitos comuns, que consistiam de pequenas
lascas e lamelas de pedra, minuciosamente trabalhadas, cuidadosamente fixadas
e coladas em punhos e cabos de madeira ou de osso, embora não existam
testemunhos diretos dos elementos de osso e madeira. Contudo, antes mesmo
de serem combinados, os utensílios de pedra e de madeira mais rudimentares
eram interdependentes. Por exemplo, uma laa de madeira poderia ser
cortada no comprimento exato com uma faca de pedra, mas certamente teria
de ser desbastada e aplainada com um raspador de pedra ou qualquer outro
516
Metodologia e pré -história da África
instrumento utilizado para desbastar – talvez mesmo com uma correia de couro
ou de fibra vegetal antes de estar pronta para o manejo e arremesso. Além
disso, a preparação da ponta da lança devia requerer instrumentos de pedra
afiados; em seguida, ela seria enrijecida ao fogo, como indicam alguns espécimes
encontrados. No período mais recente da Idade da Pedra, o encaixe bem -feito de
uma ponta de pedra em uma lança de madeira dependia de um delicado trabalho
de desbaste e de entalhe executado com instrumentos de precisão.
Esses são alguns exemplos do que é possível se obter de um estudo inteligente
e imaginativo do instrumental lítico, para desfazer sua imagem petrificada e
torná -la mais vivo. Seria possível estabelecer o mesmo tipo de relações no que
diz respeito aos usos da madeira e das peles na fabricação de tendas e abrigos,
Aqui, como no caso dos utensílios e armas que acabamos de citar, extrapolamos
o ponto de vista tecnológico restrito para propor uma interpretação econômica e
cultural mais ampla dos espécimes descobertos e reconstituir a vida das diferentes
comunidades de caçadores -coletores dos vários períodos da Idade da Pedra.
Um ponto importante a ser notado é que durante a Idade da Pedra a maioria
dos utensílios, mesmo os de pedra, não eram armas. Embora a caça tivesse sido
sempre de grande valor como fonte de proteínas (exceto nos locais onde havia
peixe em abundância e se conheciam meios para fisgá -las), a coleta de alimentos
vegetais, em particular raízes feculentas e tubérculos, era igualmente importante
e assegurava o essencial do regime alimentar. A maior parte dos utensílios era
fabricada para essas atividades, para uso doméstico em geral e para trabalhar a
madeira.
As dificuldades do transporte da água deviam restringir consideravelmente a
escolha de locais de acampamento. Um acampamento temporário de um grupo
familiar tinha de estar situado perto de um curso d’água ou de um lago. Em
um sítio desse tipo haveria, naturalmente, vegetação mais abundante e maior
variedade de alimentos, atraindo assim a caça.
Numa abordagem que combine bom senso e imaginação, o estudo das
técnicas da Idade da Pedra pode contribuir para a reconstituição das condições
econômicas e culturais da época. Não podemos negar, entretanto, que as
evidências são escassas, mesmo para o período mais recente da Idade da Pedra
na África oriental, e que as tentativas de uma interpretação mais ampla são
inevitavelmente especulativas. É preciso, certamente, resistir a conjeturas
teóricas audaciosas. Todavia, aceita essa colocação, de nada adianta lamentar
a escassez dos restos fósseis disponíveis; vale mais estudá -los com inteligência
e imaginação para determinar que fatos e ideias podem ser deduzidos a partir
517
A Pré -História da África Oriental
deles. Tal procedimento cria estímulos para novas abordagens e para a busca de
outros documentos.
A seguir, examinaremos algumas das maneiras possíveis de obter informações
adicionais e chegar a conclusões mais interessantes.
Como mencionamos, encontram -se ocasionalmente ossadas de animais
fossilizados em certos sítios antigos, e restos ósseos não fossilizados em sítios
recentes, principalmente em abrigos sob rocha. São testemunhos diretos das
variedades de animais que eram cados e consumidos. Por vezes o exame
minucioso dos ossos no sentido de se encontrar marcas de instrumentos e
de fraturas, e mesmo da forma como estão distribuídos no local onde foram
encontrados pode indicar como o animal foi abatido e consumido. No entanto,
mesmo essas evidências diretas podem representar apenas uma parte da história.
Por exemplo, é possível que pequenos mamíferos, répteis, pássaros e insetos
tenham sido capturados; não existe, entretanto, nenhum traço deles, seja porque
seus ossos ou partes duras eram frágeis demais para subsistir, seja porque o
caçador devorou essas presas tão pequenas no local da captura em vez de levá-
-las para o acampamento. O mesmo pode ter ocorrido com o mel, frutas, bagas,
nozes e mesmo ovos de pássaros; consumidos no próprio local, dispensavam
o uso de utensílios de pedra para sua coleta e preparo. Na verdade, restos de
alimentos vegetais pré -históricos são raramente descobertos. No entanto, o
regime alimentar das populações primitivas de cadores -coletores deve ter
sido relativamente equilibrado; uma reconstituição plausível deste regime deve
ser igualmente equilibrada, fazendo -se uma avaliação inteligente tanto das
evidências arqueológicas quanto dos recursos alimentares que o meio ambiente
local pôde oferecer.
Em certas regiões (por exemplo, na região central da Tanzânia), os testemunhos
arqueológicos do modo de vida dos grupos de caçadores -coletores do fim da
Idade da Pedra são notavelmente complementados por pinturas rupestres. Sem
contar a habilidade técnica, senso artístico e maturidade demonstrados em muitas
dessas pinturas, encontramos dados valiosos sobre os tipos de animais caçados
assim como sobre os métodos de caça com lança, arco e flecha e sobre os diversos
tipos de armadilhas. outras técnicas para a obtenção de alimentos, como a
de arrancar raízes e a de recolher o mel, são mais raramente representadas. A
pintura rupestre concorre para dar maior clareza e ampliar nossa visão da vida
pré -histórica, especialmente porque algumas das atividades representadas podem
ser comparadas com as práticas recentes ou atuais de povos da África oriental.
As informações que essa arte nos fornece m de ser confrontadas com
o material técnico de finalidade econômica ou cultural. Uma vez esbado
518
Metodologia e pré -história da África
um quadro referencial, podemos levantar questões e fazer conjeturas sobre os
métodos de caça, de coleta, de preparação de armadilhas; sobre o tamanho do
grupo de cadores e, indo mais além, sobre a comunidade como um todo,
sua área territorial e o tipo de organização social que criou para se manter.
A comprovação dessas conjeturas encontra -se ainda em estágio experimental,
de modo que as respostas às questões levantadas raramente se exprimem com
total segurança. No entanto, foram alcançados indiscutíveis progressos, cuja
continuidade depende fundamentalmente de testemunhos arqueológicos
provenientes de diversos tios. É, portanto, necessário que a coleta desses
testemunhos se opere segundo os métodos mais sistemáticos, mais cuidadosos
e, se possível, mais sofisticados.
Não são raros, na África oriental, jazidas em que aparecem indústrias líticas.
Foram descobertas a partir do início do século XX. Após o trabalho pioneiro
de levantamento realizado pelo Dr. Louis Leakey no Quênia na cada de
20, um número cada vez maior de sítios de todos os períodos da pré -história
foram descobertos na África oriental; muitos ainda serão certamente revelados.
São, em geral, expostos pela erosão ou por outras perturbações do terreno.
Utensílios e resíduos de preparação são carregados pela água para ravinas, leitos
de rios ou abrigos sob rocha, ou então, trazidos à superfície pelo cultivo da
terra, pela passagem de rebanhos ou por trabalhos de construção. Esses sítios
e objetos são descobertos não apenas por arqueólogos profissionais, mas na
maior parte dos casos – por amadores, fazendeiros, estudantes, etc. A descoberta
de um sítio, qualquer que seja, é muito importante e deve ser comunicada às
autoridades competentes. Todos os utensílios e outros materiais arqueológicos
encontrados devem ser guardados em museus, onde estarão disponíveis para
estudo e comparação com outras coleções locais. O bito dos arqueólogos
estrangeiros de levar suas descobertas para os museus de seu país de origem
nunca prevaleceu no caso particular da África oriental e, felizmente, cessou.
Apesar de algumas coleções de material recolhido no início deste século na
África oriental se encontrarem em museus europeus, a maior parte e, sem dúvida,
os mais valiosos restos arqueológicos estão nos museus nacionais dos países onde
foram descobertos.
Uma coleção de superfície, por si só, nos revela muito pouco, uma vez que
os utensílios e os resíduos de preparação foram removidos de seu sítio original
e que a própria coleta é, geralmente, seletiva. Porém, mesmo uma pequena
coleção de superfície poderá fornecer -nos alguns indícios: o tipo ou o modo de
fabricação dos utensílios informarão sobre “O período ao qual pertencem e sobre
519
A Pré -História da África Oriental
sua relação com outros sítios conhecidos. Isso ajudará a determinar o interesse
de investigações e escavações mais detalhadas e completas.
As escavações devem ser planejadas e empreendidas por arqueólogos com
experiência no tipo de sítio em questão. Todavia, como dissemos, arqueólogos
especializados dependem das informações locais fornecidas por amadores ou
estudantes. Estes últimos podem, ainda, auxiliar nas escavações, iniciando -se,
assim, nesse tipo de trabalho. Somente através do emprego de métodos corretos,
de técnicas modernas de escavação e de exame dos vestígios, tanto no seu lugar
de origem quanto após seu registro e remoção, é que o arqueólogo terá condições
de coletar, num sítio, um máximo de informações, e de elaborar um quadro,
se não exaustivo, ao menos o mais completo possível das atividades de que
o local foi palco. Deve -se ressaltar que alguns dos trabalhos de escavação em
sítios da Early Stone Age na África oriental empreendidos nos últimos anos
contribuíram para estabelecer um modelo de pesquisa para outras partes do
mundo, em termos de método, análise e interpretação.
Nas escavações, o interesse do arqueólogo o se limita à descoberta de
espécimes isolados; para ele, importa mais a busca do maior número possível de
dados sobre o modo de vida de uma comunidade antiga, através da identificação
e do estudo exaustivo da maior parte do “conjunto cultural”, e da coleta de
toda informação disponível sobre o meio ambiente. Esse trabalho pode exigir
métodos de escavação meticulosos e muito lentos, de vez que todos os objetos
devem ser coletados, e todas as características do solo de um sítio de habitação,
mesmo as pequenas irregularidades da supercie ou mudaas de cor do
solo, que poderiam ser indícios do uso do fogo ou de alguma outra atividade,
devem ser registradas. Em geral, é necessário peneirar o solo dos locais onde há
possibilidade ou certeza de existirem pequenos objetos, como lascas de pedra,
fragmentos de ossos e a mesmo sementes vegetais. Essa ptica é muito
frequente em abrigos sob rocha recentes, onde os depósitos tendem a ser móveis
e semelhantes a cinzas. Habitualmente em abrigos sob rocha, e com frequência
em sítios ao ar livre, os materiais não representam apenas uma ocupação, mas
várias ocupações sucessivas. Cada uma delas deixou seus restos sobre a camada
de restos da anterior, requerendo, assim, um estudo à parte. Portanto, o escavador
tem de dar uma atenção especial à estratigrafia, pois a interpretação resultaria
lamentavelmente distorcida no caso de um objeto de determinado período de
ocupação misturar -se aos de outro período.
Embora a responsabilidade de identificar, registrar e estudar todas as
descobertas caiba ao próprio arqueólogo, ele necessita da assistência de outros
cientistas. Esta pode intervir ulteriormente em laborario, por exemplo,
520
Metodologia e pré -história da África
para a identificação de ossadas animais. Do mesmo modo, se o arqueólogo
encontrar restos vegetais que se preservaram, como sementes, nozes ou pedaços
de madeira carbonizados, precisará enviá -los a um especialista em botânica,
após submetê -los a tratamento especial no próprio local. A identificação e o
estudo de amostras desse tipo contribuirão para aumentar as informações sobre
o regime alimentar e a economia da comunidade, bem como sobre o meio
ambiente daquela época. Se, por sorte, forem encontrados pólens fósseis, um
exame palinogico pode dar uma ideia da vegetação então existente e das
mudanças que ela sofreu. Podem também ser reveladoras as amostras de solos
que contêm microrganismos ou conchas de moluscos, pois estes seres ajudam a
identificar o tipo de vegetação dominante e, em consequência, o clima da época.
O estudo da geologia, da geomorfologia e da estrutura dos solos também é
útil para a tentativa de reconstituição do meio ambiente antigo e dos recursos
que uma comunidade pré -histórica poderia explorar. É óbvio que grande parte
dessa investigação, para ser profunda e confiável, deve aproveitar a presença de
diferentes especialistas no sítio de escavação, ao menos durante uma parte do
tempo, pois não são apenas as amostras colhidas e levadas para os laboratórios
que contêm indícios. As amostras devem ser cuidadosamente selecionadas e
controladas no próprio tio. Grandes modificões podem ter ocorrido na
paisagem entre o período estudado e a época atual, como consequência de
alterações climáticas, movimentos geológicos ou, mais frequentemente ainda,
devido à atividade humana, sobretudo a agricultura e o desmatamento em
épocas recentes. A abordagem do passado deve ser feita sempre através de um
estudo inteligente do tio no estado em que foi encontrado e de todos os
vestígios, arqueológicos ou não, que ele contém.
Há diversos outros estudos relacionados à pesquisa arqueológica que, se não
apresentam evidências diretas do período pré -histórico, podem, indiretamente,
fornecer preciosos esclarecimentos. Em primeiro lugar, temos a pesquisa
antropológica realizada nas poucas comunidades de caçadores -coletores ainda
existentes no mundo, especialmente as da África. De fato, muitas das considerações
tecidas acima foram sugeridas explícita ou implicitamente pelo modo de vida
dos atuais caçadores -coletores, como os Hadza da Tanzânia setentrional e os San
do Calaari, que vêm sendo objeto de interesse dos pesquisadores nos últimos
anos. Os hábitos dos Hadza e dos San fornecem muitas indicações úteis sobre
a viabilidade, organização e limitações de um modo de vida baseado na caça
e na coleta; além disso, sugerem inúmeros pontos que teriam, de outra forma,
escapado à atenção dos arqueólogos. Todavia, estaríamos incorrendo em grave
521
A Pré -História da África Oriental
erro se considerássemos essas comunidades como réplicas exatas das sociedades
da Idade da Pedra, ou como simples remanescentes dessa época.
É bem verdade que o modo de vida de certos grupos modernos de caçadores-
-coletores, principalmente dos San do sul da África, ainda reflete as condições
das populações da Late Stone Age e pode, portanto, esclarecer alguns problemas
daquele período. No contexto da Late Stone Age, por exemplo, é comum
descobrirem -se pedras nas quais foi praticado um orifício circular. Atualmente,
os San por vezes utilizam pedras perfuradas como lastro para bastões de
madeira apontados que servem para desenterrar raízes comestíveis; existem
pinturas rupestres na África do Sul que aparentemente representam essa prática.
Entretanto, correlações específicas como essa são raras. A sociedade San sofreu
algumas modificações por diversos motivos, inclusive pelo contato próximo
ou remoto com povos que utilizavam o ferro e viviam em uma economia
de produção de alimentos. Poucos San continuam a trabalhar a pedra com
regularidade, pois é possível obter o ferro através de troca ou em sucatas, fato
que leva a ineviveis mudanças nos veis tecnológico e cultural. Outros
grupos sobreviventes de caçadores -coletores misturaram -se mais intimamente
a populações produtoras de alimentos; outros, ainda, não são verdadeiramente
aborígines; tendo retornado, nos últimos tempos, a esse modo de vida, subsistem
graças à troca de produtos da floresta com seus vizinhos agricultores e pastores.
Essa dependência recíproca é característica de muitos grupos, conhecidos sob
a denominação de Dorobo, que ainda habitam as terras altas do Quênia e da
Tanzânia. Esses exemplos mostram os riscos de se estabelecer paralelos entre
as populações atuais de caçadores -coletores e as da pré -história recente, riscos
que se multiplicam quando estudamos épocas ainda mais remotas. Apesar disso,
podemos obter informações valiosas sobre os recursos alimentares do território
e a organização necessária à sua exploração.
Outra inestimável fonte de informões é o estudo da vida e das
sociedades de primatas, particularmente dos atuais parentes mais próximos
do homem, o chimpanzé e o gorila, assim como dos babuínos. Estes últimos
não são biologicamente tão próximos do homem, mas, do ponto de vista do
comportamento, são de especial interesse para o estudo da sociedade humana.
Mais que os outros primatas, os babnos vivem a maior parte do tempo
em grupos, no solo, sendo relativamente fácil obser-los, Como já foi dito
anteriormente, o homem não descende desses macacos, e não estamos sugerindo
aqui que quaisquer comunidades pré -históricas, nem mesmo as mais antigas,
estivessem significativamente mais próximas deles do que o homem moderno.
Todavia, ao estudar o comportamento sico dos primatas e os hábitos que
522
Metodologia e pré -história da África
o homem herdou de seus ancestrais pré -humanos, e ao tentar compreender
como esses ancestrais imediatos do homem, que não tinham a capacidade ou
o costume de fabricar utensílios, asseguravam sua subsistência essencialmente
vegetariana, constatamos que há muito a se aproveitar desses estudos de campo,
realizados em sua maioria na África oriental.
Como já fizemos notar, a pré -história foi extremamente longa e, ao fim
desse período, as populações humanas já haviam alcançado grandes progressos,
diferenciando -se bastante de seus ancestrais dos primeiros tempos. Além disso,
os habitantes da África oriental na Late Stone Age, alguns dos quais subsistiram
até épocas bem recentes, eram nitidamente africanos. Uns aparentavam -se aos
San, outros foram assimilados às populações negroides da Idade do Ferro. Por
outro lado, as populações da Early Stone Age, em especial as do seu estágio
mais antigo, embora bem representadas na África oriental e, por longo tempo,
só conhecidas nessa região, foram também os ancestrais de toda a humanidade.
Esses primitivos fabricantes de utenlios de pedra, cujas ossadas foram
descobertas nas camadas mais profundas da garganta de Olduvai (norte da
Tanzânia) e na região do lago Turkana (norte do Quênia e sul da Etiópia), são
geralmente classificados como Homo, embora diferissem do homem moderno
(Homo sapiens sapiens) tanto no corpo quanto no cérebro. A antiga história da
África oriental confunde -se, portanto, com a história da humanidade, fato que
lhe confere uma importância universal. Por encerrar informações inestimáveis
sobre o homem primitivo, sua cultura e a ecologia dos primatas, a África oriental
tornou -se merecidamente o centro mundial das pesquisas sobre a vida, o meio
ambiente e a origem do homem.
Cronologia e classicação
Enquanto na maior parte da Ásia, Europa e da África do Norte a Idade da
Pedra foi dividida convencionalmente em Paleolítico, Mesolítico e Neolítico,
esse sistema foi abandonado pela maioria dos especialistas para a África ao sul
do Saara. Nessa região, a “Stone Age” é considerada e estudada em três grandes
períodos Early, Middle e Late que se distinguem em grande parte por
mudanças importantes e características na tecnologia (que têm, obviamente,
implicações culturais e econômicas mais amplas). Esses sistemas de classificação
não são duas maneiras de dizer a mesma coisa; tanto do ponto de vista conceptual
quanto do cronológico, os critérios de classificação são completamente diferentes
(ver Quadro e notas correspondentes).
523
A Pré -História da África Oriental
 . África oriental: principais jazidas da Idade da Pedra (1974).
524
Metodologia e pré -história da África
Os três períodos da África são datados aproximadamente da seguinte maneira:
a) Early Stone Age (ou Old Stone Age): da época dos primeiros utensílios de
pedra (isto é, 3 milhões de anos) até por volta de 100 mil anos atrás.
b) Middle Stone Age: de aproximadamente 100 mil anos até 15 mil anos atrás.
c) Late Stone Age: de 15 mil anos atrás até o início da Idade do Ferro (que
ocorreu há 2 mil anos na maioria das regiões).
Devemos enfatizar que essas datas são aproximadas e têm causado
controvérsias. Até recentemente, sugeriram -se datas em geral mais tardias para
a transição da Middle Stone Age à Late Stone Age e, em particular, para a
transição da Early Stone Age à Middle Stone Age. Essa atitude conservadora
devia -se, em parte, à raridade de sítios e de coleções líticas satisfatoriamente
definidos, descritos e datados, aliada ao fato de ter a primeira transição (da
Early para a Middle Stone Age) ocorrido em uma época cuja data não pode
ser estabelecida com precisão pelo método do radiocarbono. Embora tenham -se
obtido (e sejam frequentemente mencionadas) datações entre 50 e 60 mil anos,
é provável que se trate de datas mínimas, e não de datas estritamente exatas.
Na verdade, a cronologia detalhada não só do início da Middle Stone Age, mas
também de toda a última parte da Early Stone Age, é ainda bastante incerta.
Novas técnicas de datação, explicadas em outra parte deste volume, estão sendo
testadas. O método do potássio -argônio, em particular, ajudou a traçar um
quadro cronológico aproximativo para períodos de mais de meio milhão de anos.
No entanto, é sempre necessário recorrer à datação relativa, deduzida a partir da
estratigrafia arqueológica ou geológica e da tipologia.
Por esses motivos, as datas aqui sugeridas para a divisão da Idade da Pedra
em períodos são mais antigas que as datas encontradas comumente em estudos
anteriores, mas não tão radicais quanto alguns estudiosos do assunto gostariam
que fossem. Mesmo a escola revisionista é menos radical do que aparenta, pois
as questões que levanta estão relacionadas mais com definições que com datas
reais.
Além de se ter em conta que as datas para a divisão da Idade da Pedra em
Early, Middle e Late são imprecisas e controvertidas, é importante não esquecer
que esses períodos não foram estáticos e indiferenciados, e que as mudanças de
um para outro não se deram repentinamente. Desenvolvimentos tiveram lugar
tanto no decorrer de cada um dos três períodos quanto na passagem de um
para outro. Ademais, as transições entre as tecnologias próprias de cada um são
complexas. Por esse motivo, alguns autores falam de períodos “intermediários”.
Entretanto, a tendência atual é não considerá -los como períodos oficiais” no
525
A Pré -História da África Oriental
quadro cronológico da Idade da Pedra. De qualquer modo, o Second Intermediate,
entre a Middle Stone Age e a Late Stone Age, sempre foi definido de modo
muito pouco satisfatório. O First Intermediate, que compreende as indústrias
conhecidas como Fauresmithiense e Sangoense, é por vezes considerado como
uma fase final da EarIy Stone Age. Neste estudo, todavia, nós o incluímos na
Middle Stone Age, o que explica a datação mais recuada para o início desse
último período.
O abandono dos “Intermediates” é mera questão de conveniência e não
significa uma simplificação dos quadros relativos ao desenvolvimento tecnológico,
cultural e econômico do homem na pré -história. O que se tem admitido é
exatamente o contrário. Em primeiro lugar, durante todas as épocas da Idade
da Pedra, diferentes tecnologias puderam ser empregadas simultaneamente,
mesmo no interior de áreas restritas. Em certos casos, esses contrastes podem ser
explicados pelas diferenças do meio ambiente. Determinada tradição tecnológica
poderia surgir em regiões florestais ou nas margens dos cursos d’água, e uma
outra, distinta, poderia aparecer simultaneamente em áreas mais secas ou com
vegetação menos densa, onde as fontes de alimento e os métodos para obtê -lo
teriam imposto uma tecnologia e um ajustamento cultural diferentes.
1
Contudo,
uma explicação correta nem sempre é tão evidente. Por vezes, as atividades de
uma única comunidade, algumas delas temporárias (caça de animais de pequeno
e grande porte, preparação de armadilhas, coleta de raízes e tubérculos, trabalho
da madeira e do couro, etc.), parecem suficientemente variadas para explicar a
presença de diferentes tipos de utensílios de uma mesma época em determinada
localidade. Por outro lado, pode haver difereas que indicam divergências
culturais e especializações econômicas, muito mais profundas, que se atribuem
presumivelmente a comunidades ou raças distintas – ou, durante a Early Stone
Age, a diferentes espécies de Homo. O assunto é controvertido, mas as descobertas
mais recentes na África oriental mostram que duas culturas antes consideradas
como dois períodos distintos da Old Stone Age as indústrias de seixos lascados
(ou Olduvaiense) seguidas por, ou se transformando em indústrias de bifaces
(ou Acheulense) coexistiram por um longo período, que durou pelo menos
meio milhão de anos. É difícil justificar essa constatação de maneira satisatória
com a “teoria do modo de atividade”. Alguns estudiosos interpretariam essas
duas indústrias como indícios de tradições culturais distintas de dois grupos
separados, vivendo lado a lado e explorando recursos alimentares diferentes.
1 Ver em particular, a exposição sobre a Middle Stone Age, mais adiante.
526
Metodologia e pré -história da África
Ademais, observam -se por vezes justaposições das divisões arbitrárias entre
a Early Stone Age, Middle Stone Age e Late Stone Age. É possível encontrar
utensílios característicos da Early Stone Age ou evidências da utilização de
técnicas primitivas de fabricação em um contexto típico da Middle Stone Age. A
coexistência de características inovadoras e conservadoras pode representar uma
mudança gradativa, mas nem sempre é possível encontrar sinais de transição. Em
alguns sítios com sequência estratigráfica nítida, pode ocorrer o aparecimento de
uma tecnologia nova plenamente desenvolvida, sem nenhum traço de evolução
local. Esse fato sugere a difusão cultural de uma região para outra, que pode ser
(embora não necessariamente) resultado da migração de populações. As alterações
climáticas, com seus efeitos sobre o meio ambiente, também constituíram um
estímulo para a adaptação cultural e o avanço tecnológico; neste caso, todavia,
o arqueólogo deve se precaver contra interpretações deterministas simplistas.
Essa divisão bastante arbitrária da Idade da Pedra é um sistema de referência
útil no estágio atual dos nossos conhecimentos; deve, no entanto, guardar certa
flexibilidade para que possa sofrer constantes modificações. É possível que, no
futuro, esse sistema venha a perder sua utilidade, caráter que poderá estar
comprometido por uma aplicação muito formal ou muito rígida com finalidades
para as quais ele não foi previsto.
No Quadro da p. 527 apresentamos um esquema mais detalhado para ilustrar
a maneira pela qual as diversas culturas e as indústrias líticas da Idade da Pedra,
reconhecidas por arqueólogos na África oriental, se enquadram nessa divisão
em três períodos. Esse quadro se propõe a servir de guia para os conhecimentos
atuais e para os principais estudos em curso e não tem a pretensão de ser a
interpretação “correta nem de permanecer inalterado diante dos resultados de
futuras pesquisas ou do reexame de trabalhos realizados. Deve ser considerado
simplesmente como um guia, e um guia flevel. Algumas das culturas aqui citadas
(e outras deliberadamente omitidas) foram classificadas separadamente com base
em pesquisas ou descrições insuficientes, fundadas na exploração e descrição
completa de um único sítio; portanto, sua validade enquanto unidades culturais
pode ser posta em dúvida. Outras têm uma extensão temporal ou geográfica
enorme. A cultura acheulense da Early Stone Age cobre mais de 1 milhão de anos
na África oriental e estende -se não pelo continente africano como também
por grande parte da Eurásia meridional e ocidental. Na primeira fase da Middle
Stone Age, a indústria sangoense espraiou -se de certas regiões da África oriental
e meridional até o extremo oeste do continente. Entre as mais recentes indústrias
representadas na África oriental, a stillbayense e a wiltoniense foram descritas
pela primeira vez na Província do Cabo, na África do Sul. Alguns especialistas
527
A Pré -História da África Oriental
528
Metodologia e pré -história da África
no assunto preferem dar nomes novos e distintos às variantes da África oriental.
Neste capítulo, no entanto, preferimos adotar uma abordagem mais simplificada,
apontando algumas dificuldades evidentes e prováveis revisões em certos pontos.
Os leitores que o desejarem podem acompanhar os novos progressos e debates
tomando por base as obras citadas em nossa bibliografia poderão, assim, tentar
a aplicação de uma terminologia mais sofisticada.
Este texto e o Quadro (e as respectivas notas) não estão consagrados à
terminologia em si; isolada, a terminologia perde seu significado, e valorizá-
-la demais seria prejudicar a compreensão. Por outro lado, a Idade da Pedra,
enquanto período pré -histórico, só pode ser conhecida, discutida e estudada por
meio de termos e símbolos criados pelos arqueólogos. Toda tentativa séria de
compreensão desse período e da abundante literatura que lhe é dedicada, quer
o consideremos num todo ou o analisemos em partes, exige o conhecimento
da terminologia empregada pelos diversos autores, por mais inconsistente e
arbitria que possa ser. Este capítulo, portanto, constitui uma tentativa de
introdução à literatura e à compreensão histórica da África oriental da Idade
da Pedra.
Notas referentes ao Quadro (p. 527)
As duas colunas da direita indicam correlações aproximadas com os períodos
geológicos e com a divisão cronológica do Paleolítico aplicada à região do
Mediterrâneo, no norte da África e na Eurásia. Elas foram incluídas para simples
referência, especialmente em relação a outros capítulos deste volume e outras
publicações (inclusive obras anteriores sobre a arqueologia na África oriental),
e não são essenciais para a leitura deste capítulo.
Os termos “Inferior”,Médio e “Superior” dos quais “Inferior designa a
época mais antiga – seguem a prática geológica normal, baseada em sequências
estratigráficas. Por isso, na maioria das obras geológicas, e em muitas obras
arqueológicas, esses quadros são apresentados em ordem lógica, ou seja, de
baixo para cima. Nosso quadro ordena -se de cima para baixo, de acordo com os
quadros cronológicos históricos.
Como está indicado, o termo Paleolítico (ou Antiga Idade da Pedra) não é
equivalente ao Early Stone Age africano. Paleolítico, tal como foi empregado
inicialmente e como ainda é utilizado na Europa, significa Idade da Pedra
sem produção de alimentos”, opondo -se a Neolítico (ou Nova Idade da Pedra),
que designa Idade da Pedra com produção de alimentos”, isto é, agricultura
e/ou criação de animais precedendo o uso de metais. Uma interpretação do
529
A Pré -História da África Oriental
“Neolítico ligeiramente diferente por vezes encontrada prefere os indicadores
de uma cultura material avançada, em particular a cerâmica ou a pedra polida,
ao testemunho espefico de produção de alimentos. Em algumas partes
do mundo, pode -se distinguir um período de transão (ou um período de
estagnação cultural, segundo alguns autores) denominado Mesolítico, ao qual
nos referiremos, neste capítulo, apenas para notar que não tem qualquer relação
com a Middle Stone Age africana engano muito frequente em obras gerais
sobre a história da África.
Em quase todo o continente africano ao sul do Equador, não encontramos
nenhum período equivalente ao Neolítico de outras partes do mundo, pois a
produção de alimentos só se difundiu no início da Idade do Ferro.
2
No entanto,
nas terras altas do Quênia e do norte da Tanzânia, indícios de produção de
alimentos (criação de animais, se não um pouco de agricultura) no fim da Late
Stone Age, entre 2 mil e 3 mil anos atrás. Essa cultura, com sua cerâmica e
tigelas de pedra, é chamada de “neolítica por alguns autores.
Early Stone Age
Primeira fase
Os mais antigos utensílios de fabricação humana conhecidos datam de um
período entre 2 ou 3 milhões de anos e ao menos 1 milhão de anos passados.
Foram descobertos nas margens de antigos lagos ou pântanos próximos ao Rift
Valley no norte da Tanzânia, no Quênia e na Etiópia. Talvez os mais antigos
utensílios talhados sejam as pequenas lascas de quartzo desbastadas que foram
encontradas em vários sítios do lago Turkana e do vale do Omo na Etiópia,
e cuja finalidade ainda é controvertida. Contemporâneos ou ligeiramente
posteriores a estas são os seixos lascados, bem mais conhecidos e abundantes.
São seixos do tamanho de um punho e pequenos blocos de pedra que sofreram
desbaste por lascamentos operados com o auxílio de outra pedra para produzir
utensílios cortantes, grosseiros mas eficazes. Enquanto trabalhos mais pesados,
como cortar a pele de um animal, partir ou triturar materiais vegetais rijos,
deviam normalmente exigir o emprego do instrumento principal empunhado
com firmeza, um grande número de lascas (em geral, mas erroneamente, descritas
como resíduos de preparação), mais finas e portanto mais cortantes, conviriam a
trabalhos mais leves e mais precisos, como a preparação de um animal abatido,
2
Muitos autores discordam dessa opinião.
530
Metodologia e pré -história da África
 . Garganta de Olduvai, Tanzânia setentrional. A garganta, que se aprofunda a mais de 100 m
na planície, revela uma sequência de camadas (a maioria, antigos leitos lacustres). As mais profundas, com
aproximadamente 2 milhões de anos, contêm os restos de alguns dos mais antigos hominídeos, seus utensílios
(do tipo olduvaiense) e restos de alimento. Nas camadas superiores encontram -se bifaces e outros objetos do
tipo acheulense (segunda fase da Antiga Idade da Pedra), (Foto J. E. G. Sutton).
F . Early Stone Age, primeira fase: utensílios olduvaienses típicos (“seixos lascados”).
531
A Pré -História da África Oriental
a fabricação de armas de madeira ou o trabalho doméstico no acampamento.
Na verdade, estudos mais aprofundados sobre essas indústrias denominadas
“indústrias do chopper ou do seixo lascado –, particularmente os realizados pela
Dra. Mary Leakey na garganta de Olduvai, onde esses utensílios aparecem
nos níveis mais inferiores, e por J. Chavaillon em Melka Konturé na Etiópia,
revelam uma variedade de tipos e uma sofisticação tecnológica maiores do que
até então se supunha. Tanto a expressão “seixo lascado quanto civilização do
seixo lascado”, esta última empregada com frequência em relação à primeira fase
da Early Stone Age, são inexatas, principalmente porque as pedras escolhidas
para a fabricação dos choppers, das lascas e de outros utensílios nem sempre eram
seixos. Ademais, o osso e, sem dúvida, a madeira eram igualmente utilizados. Por
esse motivo, a maioria dos arqueólogos prefere chamar essa fase de Olduvaiense,
de Olduvai, no norte da Tanzânia, onde esses utensílios foram descobertos e
descritos pela primeira vez. Isso não significa, é evidente, que tenham sido
fabricados inicialmente em Olduvai
3
.
Até certo tempo atrás, pensava -se que os fabricantes desses utenlios
de seixos lascados eram capazes de caçar e abater apenas pequenos animais,
como pássaros, lagartos, tartarugas e daimões, para complementar sua coleta
de frutos, vegetais e insetos. Atualmente evidências de que eles abatiam
também animais de grande porte. Entre os restos fósseis encontrados ao lado de
utensílios nos sítios de acampamento ou perto deles, figuram ossos de elefantes
e grandes antílopes. É possível que alguns desses animais tenham morrido de
causa natural, ou que tenham sido feridos por acidente ou, ainda, mortos por
leões e outros predadores. Mas é provável que, nessa época remota, alguns
desses animais fossem apanhados em armadilhas ou conduzidos para as margens
de pântanos por grupos de caçadores que os matavam com chuços e maças de
madeira e talvez com projéteis de pedra.
Sem vida, parte da carne era consumida pelos cadores no próprio
local onde o animal fora abatido, mas parte era frequentem ente levada para o
acampamento e dividida com o resto do grupo, inclusive mulheres e crianças.
Os restos que chegaram até nossa época compreendem ossos de várias espécies
de animais e diversos instrumentos para cortar, raspar e triturar; eles constituem
uma notável evidência do que podia ser um local de habitação no mais primitivo
estágio da humanidade. Além disso, o estudo da distribuição dos restos sugere
a construção de abrigos; em Olduvai, acredita -se que algumas pedras dispostas
3 O nome do local é de origem masai. Sua forma mais correta seria Oldupai. Encontra -se também a graa
“oldowaiense”, derivada da forma alemã do nome Oldoway, que aparece nos primeiros mapas.
532
Metodologia e pré -história da África
em círculo tenham servido de base para o vigamento de uma cabana ou de um
abrigo possivelmente coberto com peles. Em Melka Konturé, uma plataforma
artificial parece ter servido ao mesmo propósito.
Além dos vários sítios das margens lacustres que se estendem de Olduvai
até o lago Turkana (entre os quais figuram os mais antigos sítios conhecidos),
foram descobertas jazidas de seixos lascados desde a África do Sul até as costas
do Mediterrâneo. Datam possivelmente de um estágio mais evoluído que a
fase mais antiga da África oriental. É provável que aquele tipo de indústria
tenha -se originado na África central ou oriental, espalhando -se em seguida
por todo o continente. Em razão de sua datação e, mais ainda, por terem
sido ocasionalmente descobertos na África oriental junto a ossos humanos,
esses utensílios podem ser atribdos aos mais primitivos hominídeos, os
Australopithecine ou, especificamente, ao Homo habilis
4
, tese ardorosamente
defendida por alguns autores.
Segunda fase
O Acheulense ou “civilização dos bifaces” encontra -se tão difundido na África
quanto o Olduvaiense, e os sítios a ele relacionados são muito mais numerosos,
fato que se pode atribuir não só a uma população maior, como também à
crescente produção de utensílios de grandes dimensões, facilmente identificáveis.
Ao contrário do Olduvaiense, o Acheulense estende -se para além do continente
africano – onde teve início há mais de 1 milhão de anos – até o oeste e o sul da
Ásia, e pela Europa ocidental e meridional. A tradição acheulense perdurou por
mais de 1 milhão de anos até épocas relativamente recentes, isto é, não mais que
100 mil anos atrás. Esse período foi marcado por mudanças climáticas em escala
mundial
5
, sendo pouco provável que todas as regiões onde foram encontrados
utensílios daquela cultura fossem habitadas permanentemente. Além disso, a
leste da Índia, são raras ou inexistem verdadeiras indústrias acheulenses, e, ao que
parece, a Ásia oriental conservou uma tecnologia lítica distinta, mais próxima
do tipo “seixo lascado evoluído. Esse fato pode representar uma delimitação
cultural importante entre Oriente e Ocidente. As indústrias acheulenses, das
quais o biface é o instrumento mais conhecido, são em geral associadas ao
Homo erectus, uma forma intermediária entre os Australopithecine e o homem
4 Ver capítulo 17 deste volume.
5 Ver capítulo 16 deste volume.
533
A Pré -História da África Oriental
 . Early Stone Age, segunda fase: instrumentos acheulenses típicos (vista frontal e lateral). 1. picão;
2. machadinha; 3. biface.
534
Metodologia e pré -história da África
moderno. Entretanto, por volta do fim da fase acheulense, a evolução de Homo
erectus para os primeiros tipos de Homo sapiens estava em curso.
A África foi um dos cenários da evolão do Homo erectus, a qual se
fez acompanhar de um desenvolvimento cultural atestado pelas técnicas
acheulenses de fabricão de utensílios e pelo modo de vida mais eficiente
que possivelmente permitiram. No entanto, as tradições culturais antigas (e
provavelmente os tipos físicos mais primitivos) mantiveram -se ainda, durante
certo tempo, ao lado das novas tradições. O melhor exemplo desse fato é dado
pelos sucessivos níveis de antigas margens de lagos em Olduvai, lugar onde
utensílios distintos, olduvaienses e acheulenses, foram produzidos e usados
simultaneamente por várias centenas de milênios, há cerca de 1 milhão de anos.
O Acheulense compreende numerosos estágios e variações, mas, para propósitos
mais genéricos, basta -nos a divisão principal entre o Acheulense Antigo, mais
simples e rudimentar, e o Acheulense Evoluído, ao qual pertencem os mais belos
bifaces e machadinhas manufaturados. Existem coleções desses instrumentos
enriquecendo o acervo dos museus da África oriental, sendo que as provenientes
de Isimila (sul das terras altas da Tanzânia) classificam -se entre as mais belas
do mundo. Evidentemente, o Acheulense Evoluído começou a se desenvolver
a partir de certo ponto do Acheulense Antigo, tendo as novas técnicas, em
consequência, coexistido durante certo tempo com as antigas tradições.
No Acheulense, a África oriental foi apenas uma das muitas regiões do Mundo
Antigo habitadas pelo homem, mas se descobriram sítios que forneceram
algumas das mais valiosas informações sobre a tecnologia e a economia do Homo
erectus e do Homo sapiens primitivo. Além de Olduvai – com suas incomparáveis
sequências estratigráficas e de outros depósitos na mesma região, os sítios
de Olorgesailie e Kariandusi, no Rift Valley do Quênia, e várias jazidas a leste
do lago Turkana; Nsongesi e outros sítios próximos da fronteira entre Uganda e
Tanzânia; Isimila e Lukuliro, no sul da Tanzânia; e Melka Konturé, na Etiópia,
onde várias fases do Acheulense foram descobertas.
As denominações biface” e machadinha”, usadas para designar os dois tipos
mais característicos de instrumentos acheulenses, são evidentemente termos
arqueológicos convencionais. O biface ou hand ‑axe (acha de mão) não era um
machado, mas, certamente, um instrumento para uso geral, cuja extremidade
pontiaguda e longos bordos afiados poderiam servir para cavar e esfolar,
entre outras coisas. A machadinha (cleaver), com bordo cortante em formato
ligeiramente quadrangular, serviria propriamente para esfolar animais. A diferença
entre a tecnologia olduvaiense e a acheulense é, em grande parte, quantitativa:
os conjuntos de utensílios bem como os utensílios isolados acheulenses são
535
A Pré -História da África Oriental
 . Isimila, terras altas da Tanzânia meridional. Vista da ravina erodida mostrando as camadas
onde foram encontrados utensílios acheulenses (Foto J. E. G. Sutton).
F . Concentração de bifaces, machadinhas e outros utensílios acheulenses (a pequena colher de
pedreiro no centro serve como escala), (Foto J. E. G. Sutton).
536
Metodologia e pré -história da África
mais facilmente identificados. Além disso, as técnicas acheulenses, com um
lascamento mais preciso, regular e sistemático nas duas faces, executado mais
frequentemente com um percutor de madeira cilíndrico ou osso longo de animal
que com um percutor de pedra (como no Olduvaiense), permitiriam a produção
de instrumentos maiores, com bordos cortantes mais longos e de lascas mais
afiadas, utilizadas como facas.
Durante a Early Stone Age, as populações consistiam de bandos de caçadores-
-coletores que se deslocavam a cada estação, nas savanas e nas regiões menos
arborizadas, seguindo a flutuação dos recursos vegetais e animais. É bastante
provável que esses bandos se dividissem em certas épocas do ano e se reunissem
ao fim da estação seca, formando grupos maiores à beira de lagos ou em qualquer
outro território onde houvesse abundância de recursos. Levantou -se a hipótese
de que as enormes concentrações de utensílios acheulenses finamente executados
encontradas em sítios como Isimila e Olorgesailie poderiam ser testemunhos
dessas reuniões, verdadeiros jamborees anuais.
As primeiras evidências do uso do fogo na África oriental foram descobertas
em contextos arqueológicos que continham indústrias do Acheulense Evoluído.
Obras publicadas até recentemente situam essa descoberta há 50 mil anos
aproximadamente, data, sem dúvida, bastante parcimoniosa. Na Ásia oriental
e na Europa existem boas evidências de que o Homo erectus utilizava o fogo e
cozia meio milhão de anos; embora ainda não se tenha absoluta certeza, é
muito provável que na África o fogo fosse conhecido e alimentos cozidos fossem
frequentemente consumidos durante grande parte do Acheulense.
Middle Stone Age
As populações da Middle Stone Age pertenciam à espécie Homo sapiens, mas
talvez pertencessem inicialmente a subespécies do Homo sapiens ligeiramente
diferentes do homem moderno. Entretanto, por volta do fim desse período, não
o homem moderno (Homo sapiens sapiens) devia ter surgido, como também
estariam bastante desenvolvidas, na África e em outras regiões, as características
físicas das raças hoje existentes.
Em termos tecnológicos, houve progressos significativos na Middle Stone
Age. Abandonou -se a técnica básica de fabricão de utensílios de pedra,
segundo a qual extraíam -se lascas de um núcleo até que se aproximasse de uma
formá -padrão com arestas cortantes utilizáveis. Tornou -se cada vez maior o
emprego de uma técnica mais complexa, que consistia na preparação dos núcleos
por lascamentos precisos, para lhes dar a forma e as proporções favoráveis ao
537
A Pré -História da África Oriental
 . Middle Stone Age e utensílios de transição: o exemplo da direita é uma ponta na podendo ser
encabada, talvez como ponta de lança.
F . Olorgesailie, no Rift Valley do Quênia. Escavações em um sítio de ocupação acheulense (Foto
J. E. G. Sutton).
538
Metodologia e pré -história da África
destacamento de um utensílio acabado. Paralelamente, era utilizada a técnica de
extração de lascas ao acaso, que, em seguida, recebiam uma forma por meio de
retoques. Essa técnica permitiu a produção de utensílios menores, mais finamente
trabalhados, em geral mais delgados que os da Early Stone Age e, portanto, mais
eficientes, e deu ensejo, na segunda fase da Middle Stone Age, a uma inovação
com implicações de longo alcance – o encaixe de utensílios de pedra lascada em
um cabo de madeira ou de outro material. As pontas foliáceas, características
das indústrias stillbayenses, retocadas por pressão com grande precisão, eram
frequentemente fixadas e coladas em uma fenda praticada na extremidade de um
cabo de madeira para formar uma lança. Muitos utensílios domésticos deviam
ser produzidos de maneira semelhante, o que implicava não o preparo de
gomas de resinas vegetais, mas também um trabalho mais complexo de desbaste
e entalhe da madeira, facilitado por um tratamento ao fogo.
Paralelamente ao avanço tecnológico da Middle Stone Age, verificou -se um
desenvolvimento econômico ou, pelo menos, certas modificações no processo
de adaptação ao meio. Neste ponto, colocam -se duas questões que se acham
relacionadas entre si. A primeira diz respeito às alterações climáticas
6
. Suas
particularidades, datação e correlação com os testemunhos arqueológicos ainda
são pouco conhecidas, e seria arriscado tentar explicar umas através de referências
fáceis às outras. Além do mais, as alterações climáticas mudanças de climas
mais secos para mais úmidos e vice -versa, afetando a expansão e o recuo das
florestas, a frequência e o tamanho dos lagos e rios e, portanto, a distribuição
e a abundância das diversas fontes de alimento não tinham nada de novo.
Devemos indagar por que as alterações climáticas não levaram a um avanço
econômico e tecnológico numa fase anterior da Middle Stone Age. No atual
estágio das pesquisas, ainda não é possível responder satisfatoriamente à questão,
embora se suponha que o crescimento demográfico tenha forçado a procura de
modos mais eficazes e variados de exploração do meio ambiente. Qualquer que
tenha sido a causa, foi isso certamente o que ocorreu na Middle Stone Age.
Nossa segunda questão refere -se à especializão regional. Os homens
começaram a povoar novos territórios. No mundo inteiro, o Homo sapiens exercia
sua capacidade inata de adaptação, forçando os limites dos lugares onde se
estabelecia. Surgiu na África uma nítida divisão cultural entre os povos das
regiões de vegetação rasteira e das savanas com árvores esparsas, e os povos que
penetraram nas regiões mais úmidas, de florestas densas. Entre os primeiros
6 Ver capítulo 16 deste volume.
539
A Pré -História da África Oriental
desenvolveu -se a tradição da caça de animais de grande porte com lança (sem
que por isso fosse excluída a coleta de alimentos), ao passo que os últimos se
dedicaram mais à coleta de vegetais e frutos, à pesca e à captura de animais à
beira d’água, com lanças e, certamente, vários tipos de armadilhas.
Durante a primeira fase da Middle Stone Age, essa especialização regional
não foi tão acentuada quanto às vezes se supõe. Nas terras altas do Quênia, nas
proximidades ou mesmo no interior das florestas, foram coletados utensílios
pertencentes a uma indústria conhecida como Fauresmithiense, semelhante às
indústrias de Gondar e de Garba III, em Melka Konturé. É, em muitos aspectos,
um Acheulense Evoluído, apresentando o mesmo tipo básico de instrumentos
que são, todavia, menores e combinam novas técnicas de fabricação. Contrastam
com as indústrias sangoenses, mais difundidas, cujos melhores exemplares
na África oriental foram recolhidos nos arredores do lago Vitória e no Rift
Valley ocidental, no sul de Uganda, em Ruanda e no oeste da Tanzânia. As
indústrias sangoenses apresentam também uma mistura de instrumentos do tipo
acheulense e novas técnicas, mas seus traços predominantes são diferentes dos
que distinguem a fácies do Fauresmith. O que primeiro nos chama a atenção
nas séries sangoenses é seu aspecto rudimentar, que não é um sinal de retrocesso
cultural, mas, provavelmente, de uma atividade tecnológica mais variada. Na
realidade, muitos desses utensílios de aspecto rudimentar seriam utilizados para
fabricar outros utensílios, especialmente os de madeira. Por outro lado, os picões
maciços deviam ser úteis para cavar raízes, que constituíam parte da dieta nas
regiões arborizadas.
A indústria sangoense é encontrada na África oriental sob forma
desenvolvida, o que leva a crer que sua origem e evolução a partir de uma
fonte acheulense deva ter ocorrido em alguma outra região na parte central
ou ocidental do continente. É possível que ela tenha -se introduzido na parte
ocidental da África oriental durante um período úmido, quando os limites
da floresta equatorial se estenderam, fato, no entanto, bastante discutível. É
provável que os sítios de acampamento se situassem nas zonas arborizadas e nas
margens de rios e lagos e não no interior das grandes florestas. Cabe notar que
a distribuição dos sítios sangoenses inventariados na bacia do Zaire mostra que
a penetração na floresta equatorial foi apenas um pouco maior do que durante
o Acheulense. Entretanto, na segunda fase da. Middle Stone Age, os artesãos
da indústria lupembiense (uma forma evoluída e refinada do Sangoense, famosa
pelo trabalho requintado de suas pontas de lança de pedra) pertenciam, mais
nitidamente, ao meio florestal.
540
Metodologia e pré -história da África
 . Late Stone Age: lâmina
com bordo de preeno retocado
(à direita); segmento de rculo
(no centro); raspador e micrólito
esquerda), feitos de obsidiana no Rift
Valley do Quênia.
F . Apis Rock (Nasera),
Tanzânia setentrional. As escavações
sob o abrigo, bem visível, à direita
revelaram uma sucessão de ocupações
humanas da Idade da Pedra Recente
(Foto J. E. G. Sutton).
541
A Pré -História da África Oriental
O Lupembiense é encontrado também nos arredores do lago Vitória, em
outras regiões ocidentais da África oriental e na bacia do Zaire, contrastando
com o Stillbayense das pontas foliáceas, presente nas terras altas ao longo do Rift
Valley, no Quênia, e na Etiópia, perto do lago Tana (abrigo de Gargora) ou de
Dire Daoua (caverna do Porco -Espinho). Em outras regiões, principalmente no
sudeste da Tanzânia, predominam diferentes tipos de indústrias da Middle Stone
Age, menos características ou, antes, não especificadas por falta de informações
mais amplas. Algumas delas podem ter semelhanças gerais com o Sangoense-
-Lupembiense. Havia, provavelmente, numerosas tradições regionais resultantes,
talvez, de adaptações ao meio ambiente local e que, uma vez estabelecidas, teriam
mantido muitas de suas características distintivas, tanto por razões culturais
quanto por pressões econômicas e ambientais. Tais fatores culturais regionais
podem ser responsáveis pela variabilidade que se fará evidente na África oriental
após a adoção das inovações tecnológicas da Late Stone Age.
Late Stone Age
Entre 10 e 20 mil anos atrás, essas técnicas ainda mais complexas de fabricação
de utensílios de pedra tornaram -se comuns. Ao contrário da Middle Stone Age,
em que se dava ênfase à produção de lascas extraídas de núcleos preparados,
a Late Stone Age concentrou -se na produção de lâminas pela debitagem, por
percussão direta ou indireta, de fragmentos com bordos paralelos, longos e
delicados. Essas lâminas podiam ser em seguida retocadas, tendo em vista uma
variedade de formas e finalidades. Em geral, as peças retocadas eram muito
pequenas (micrólitos), às vezes com menos de 1 cm de comprimento. Uma
forma comum, chamada pelos arqueólogos de segmento de círculo”, tem gume
reto e dorso curvo e sem corte. Não constituíam utensílios acabados, destinando-
-se a serem fixados a cabos de osso e de madeira. O encabamento se tornara
uma prática evoluída e comum. Frequentemente, vários micrólitos eram fixados
em sequência numa fenda de um cabo de madeira, constituindo, assim, um
“instrumento compósito”, como uma faca ou serra. Em regiões onde as rochas
eram adequadas à produção de lâminas principalmente o sílex, ou, melhor ainda,
o vidro vulcânico opaco (obsidiana), encontrados em locais próximos ao Rift
Valley, no norte da Tanzânia e no Quênia podiam ser confeccionados belos
segmentos de círculo, lâminas com bordo de preensão retocado, furadores, buris
para entalhar, raspadores e outros utensílios típicos. Mas em certas regiões
existia quartzo ou pedras de qualidade inferior, menos adequadas ao lascamento.
Com esse tipo de material produziram -se utensílios eficazes que, no entanto, são
542
Metodologia e pré -história da África
de aspecto grosseiro e irregular. Por vezes, os arqueólogos encontram milhares
de lascas e fragmentos de quartzo em um solo de ocupação da Late Stone Age,
mas só conseguem reconhecer e classificar como utensílios 2 ou 3% deles.
Com base nessas inovações tecnológicas, é possível reconhecer ou deduzir
um certo mero de inovões culturais e econômicas. Foi provavelmente
nessa época que o arco e a flecha começaram a ser utilizados na caça. Um ou
dois micrólitos podiam ser fixados na extremidade de uma haste de madeira
formando uma ponta; outros, colocados mais embaixo, poderiam servir como
farpas. O preparo de venenos para tais flechas remonta, muito provavelmente, a
essa época, sendo sugerido, assim como o uso de redes em áreas arborizadas, pelas
práticas das populações de caçadores -coletores atuais ou recentes entre as quais
se mantiveram algumas das tradições da Late Stone Age. O osso era certamente
muito utilizado; a descoberta de furadores de pedra e de osso indica que as
peles eram costuradas, para a confecção de vestimentas e abrigos. Contas feitas
de sementes, osso, cascas de ovos de avestruz, e, mais tarde, de pedra, poderiam
ser pregadas nessas vestimentas ou utilizadas na confecção de colares. As mós,
que aparecem em algumas séries da Late Stone Age, eram usadas, entre outras
coisas, para triturar o ocre vermelho, mas é provável que tivessem igualmente
uma finalidade econômica mais fundamental: moer alimentos vegetais.
Alguns acampamentos da Late Stone Age localizavam -se em campo aberto,
perto de cursos d’água ou lagos, e é possível imaginar a existência de abrigos ou
choças feitos com estacas, arbustos e talvez cobertos com peles.
Nessa mesma época, era comum a ocupação de abrigos sob rocha (às vezes
incorretamente descritos como cavernas). Esses abrigos naturais localizavam -se
sob falésias, ao longo de certos vales, ou sob enormes blocos de granito, onde
quer que houvesse proteção contra a chuva e o vento forte sem que se reduzisse
muito a claridade. Alguns deles situavam -se em locais privilegiados, altos, de
onde se podia observar os movimentos da caça em grande extensão da planície.
Em tais abrigos, um grupo de caçadores poderia pernoitar, ou uma família ou
grupo de famílias poderia se instalar durante uma estação. Alguns abrigos foram
habitados de maneira regular ou intermitente por centenas e mesmo milhares
de anos durante a Late Stone Age. Esse fato explica as sucessivas camadas de
restos, geralmente cinzas das fogueiras ossos dos animais consumidos, utensílios
de pedra e resíduos de sua fabricação.
Em uma região no centro -norte da Tanzânia, as paredes rochosas de muitos
desses abrigos foram decoradas, como já dissemos anteriormente, com pinturas
de animais, cenas de caçadas e outros desenhos. Embora raramente seja possível
estabelecer uma ligação entre determinadas pinturas isoladas e certas camadas
543
A Pré -História da África Oriental
da sequência da Late Stone Age encontradas nos abrigos, a existência de uma
relação mais genérica entre ambas é evidente. Além disso, a maior parte desses
desenhos pertence provavelmente aos últimos milênios da Late Stone Age, e
parte deles deve ter sido contemporânea do período de difusão das comunidades
da Idade do Ferro. Entretanto, a origem dessa arte de caçadores – e das crenças
e cosmologias correspondentes deve ser muito mais remota.
A existência de uma antiga tradição comum, remontando a vários milênios
até o início da Late Stone Age, talvez até a Middle Stone Age, poderia explicar
as semelhanças gerais entre a arte dos caçadores da Tanzânia e a dos caçadores
do sul da África. O mesmo acontece com as indústrias líticas dessas duas regiões,
as quais, embora não sendo idênticas, têm em comum algumas características
gerais (descritas frequentemente, por aproximação, como wiltonienses). No sul
da África, demonstrou -se que certos exemplares recentes de arte rupestre e de
indústrias líticas wiltonienses eram obra dos San, entre os quais alguns grupos
ainda mantêm um modo de vida baseado na caça e na coleta. As características
físicas “San e as línguas Khoisan (com cliques) são distintivas dessas populações.
Atualmente, na África oriental, há apenas uma pequena região onde são faladas
línguas com diques e é exatamente a região da arte rupestre, no centro -norte
da Tanzânia. As populações de línguas Khoisan, além de apresentarem algumas
características somáticas de possível origem San, ainda mantêm uma tradição
cultural muito forte de caçadores -coletores
7
.
Não se pode considerar esse fato como decorrente de uma migração San
relativamente recente, vinda do sul da África. Deve ter havido, em certa época,
um continuum desses caçadores -coletores, do norte da Tanzânia ao Cabo da Boa
Esperança, que foi interrompido pela expansão, nos últimos três milênios, de
povos de línguas, culturas e economias diferentes, de vida pastoril e agrícola. As
origens desse continuum cultural das savanas do leste e do sul da África datam
certamente da Late Stone Age, talvez da fase stillbayense da Middle Stone Age.
Entretanto, devemos deixar em aberto a questão da antiguidade dessas origens
até que se possa reconhecer e entender melhor, nos seus entremeios, a segunda
fase da Middle Stone Age e a transição para a Late Stone Age, representadas
pelas indústrias erroneamente definidas como magosienses. Observa -se, na
Etiópia, que o Magosiense sucede diretamente o Stillbayense em vários sítios,
sendo testemunho, em relação a este último, de uma grande diversificação.
7 Ver capítulo 11 deste volume.
544
Metodologia e pré -história da África
A suposta existência de uma longa tradição entre as culturas de savana
da Late Stone Age poderia explicar algumas variões regionais incluídas na
categoria geral do Wiltoniense. Era tendência dos arqueólogos, no passado,
incluir nessa categoria quase todas as instrias em que abundasse o elemento
microlítico, tanto do leste quanto do sul da África. É possível que algumas
dessas instrias nas áreas setentrionais da África oriental tenham pouca
ou nenhuma relão com as populões San do sul. Além disso, na parte
ocidental da África oriental, poder -se -ia encontrar uma tradição distinta,
ligada à bacia do Zaire, onde floresceram as indústrias do Tshitoliense,
derivadas do Sangoense -Lupembiense, indústrias das florestas e das regiões
arborizadas da Middle Stone Age. Mas essa ligão não é muito evidente,
exceto em Ruanda.
Uma região, no entanto, contrasta nitidamente com as demais. Trata -se
das terras altas e do Rift Valley do Quênia. Algumas indústrias da Late Stone
Age que apresentam traços em comum com as indústrias wiltonienses podem
ser encontradas nessa área, além de outras em que utenlios fabricados com
lâminas longas predominam sobre os micrólitos. Essas indústrias, denominadas
Capsiense do Quênia, utilizavam a obsidiana local, datando de um período
entre -10000 e -5000. A melhor rie é a que foi recolhida pelo Dr. Leakey
em Gamble’s Cave, perto de Nakuru, na década de 20. Indústrias relacionadas
a essa ou derivadas dela continuaram a existir até o fim da Idade da Pedra.
O Capsiense do Quênia tem analogia com uma tradão de lâminas mais
antiga que se difundiu por grande parte do nordeste da África e da região
do Mediterneo. Mas a comparão entre as indústrias líticas não é a única
considerão importante. Devemos notar que o Capsiense do Quênia e seus
arteos representam o ramo sul -oriental da civilizão negra fundada na
explorão de recursos aquáticos, que se estendeu pela África numa faixa
ao sul do Saara e acima do vale do Nilo, até a África oriental. A ocupão
dessa área parece ter ocorrido durante um período úmido temporário, em
que os veis dos lagos eram elevados, e os rios, caudalosos. O apogeu dessa
civilizão ocorreu em torno do sétimo minio antes da Era Cris. As
populações ribeirinhas apanhavam peixes e animais aquáticos com lanças e
ares de osso característicos, feitos com instrumentos de pedra. Estes podem
ser encontrados no lago Eduardo (Rift Valley ocidental), no lago Rodolfo e
nas antigas margens do lago Nakuru. era conhecida a fabricação de cestos
e da cerâmica, representando esta última uma das mais antigas evidências do
uso do cozimento da cerâmica no mundo. Todas essas características indicam
uma sociedade sedentária, cujo habitat principal se situava à beira da água.
545
A Pré -História da África Oriental
O Neolítico
alguns anos, por falta de provas arqueológicas, acreditava -se que a criação
de animais e sobretudo a agricultura se tivessem desenvolvido muito pouco na
África oriental antes do primeiro milênio, com exceção dos sítios ao longo do
vale do Nilo, ligados ao Neolítico de Cartum. É ainda especulativa a afirmação
de que grupos de pescadores parcialmente sedentários, vivendo à beira dos
grandes lagos e rios a partir do sétimo e do sexto milênios, deram origem à
criação de animais e talvez à agricultura, sendo essa mudança no seu modo de
vida causada, por um lado, pelas pressões ambientais (a repentina aceleração do
processo de desertificação do Saara no início do terceiro milênio) e, por outro,
pela sua avançada tecnologia (já conheciam até a cerâmica). Pode -se supor,
entretanto, que esses povos foram receptivos às técnicas de produção coletiva de
alimentos, em particular a domesticação de animais e vegetais, que vão difundir
por toda a região a partir do terceiro milênio, atenuando, assim, o impacto da
mudança climática sobre os recursos naturais.
O sítio mais conhecido desse período é Esh Shaheinab (Sudão), situado em
um antigo terraço pouco ao norte da confluência do Nilo Azul e do Nilo Branco.
Além de uma indústria lítica de micrólitos geométricos, A. J. Arkell encontrou
arpões perfurados na base e anzóis feitos de conchas (que atestam a existência da
pesca como atividade permanente), enxós de riolito, goivas, pequenos machados
de osso polido, cerâmica decorada com pontos e linhas onduladas. Os restos
ósseos incluem espécies selvagens, em grande parte peixes, mas também cabras
e ocasionalmente carneiros. Data da segunda metade do quarto milênio. No
sítio de Kadero, próximo a Esh Shaheinab e apresentando material semelhante,
nove décimos dos restos ósseos coletados pertencem a espécies domesticadas,
inclusive da família Bovidae.
Em Agordat, na província de Eritreia (Etiópia), foram descobertos vestígios
de quatro sítios de habitação semipermanente. Embora o estudo desse sítio
tenha -se limitado às camadas superficiais, foram encontrados machados, maças
de pedra polida, discos e braceletes de pedra, cerâmica decorada (em relevo ou
por incisão) com motivos em ziguezague, contas, ornamentos para os lábios
e colares. A descoberta de mós, de almofarizes e de uma estatueta de pedra
representando um bovídeo semelhante aos da espécie criada pelas populações
do Grupo C (populações centradas na Núbia e a oeste desta) sugere a existência
de uma economia pastoril e agrícola, embora não seja suficiente para prová-
-la. No abrigo de Godebra, próximo de Axum e datado do terceiro milênio,
foram descobertos grãos de milho -miúdo da variedade Eleusine coracana, junto
546
Metodologia e pré -história da África
a uma indústria de micrólitos geométricos e cerâmica. Na Etiópia, ainda não se
descobriu nenhum vestígio do antigo cultivo do teff (Eragrostis tef) ainda o
cereal básico, de alto valor nutritivo, para muitos grupos étnicos do norte do país
– nem da banana -da -abissínia (Ensete edule), mais cultivada no sul, e tampouco
do trigo e da cevada.
Embora ainda não haja provas da existência de uma agricultura no Quênia,
muitos vestígios de atividades pastoris em todo o Rift Valley, até a Tanzânia, e nas
terras altas. São encontrados em locais de sepultamento (Njoro River Cave, perto
de Nakuru, e Keringet Cave, perto de Molo, ambos sítios de cremação; Ngoron-
-goro Crater, no norte da Tanzânia, sepultura sob um cairn onde o esqueleto
se encontra em posição fletida) contendo abundante material arqueológico,
principalmente mós e pilões; aparecem também em sítios de habitação, como
Crescent Island, perto do lago Naivasha, e Narosura, no sul do Quênia. Em
Narosura, 95% da fauna identificada consiste em animais domésticos, dos quais
57% são cabras e carneiros, e 39%, bovídeos. Um estudo dos ossos revelou que
animais maiores eram abatidos quando velhos, enquanto cabras e carneiros
eram mortos bem mais jovens. Deduziu -se que o gado era criado antes para
o consumo do leite e talvez do sangue, como entre os atuais Masai que da
carne. Também em Narosura a presença de mós e pilões constitui apenas uma
prova indireta da existência de algum tipo de agricultura.
No que se refere à África oriental, a introdução da criação de animais e da
agricultura – frequentemente ligadas em uma economia mista – foi apresentada
muitas vezes como o resultado de duas influências, uma proveniente do sul
do Saara atual, estendendo -se até o Sudão, e a outra proveniente do Egito,
estendendo -se até a Núbia (Cartum). É possível que o processo de neolitização
tenha chegado às terras altas da Etiópia, e daí tenha sido levado para o sul por
povos de língua cuxítica, em migrações de pequena escala. Entretanto, como
em geral acontece, a passagem para uma economia de produção foi gradativa.
As descobertas arqueológicas mostram que o substrato existente continuou a
exercer um importante papel tanto no plano tecnológico quanto no econômico.
A caça ea pesca foram mantidas; o houve ruptura na continuidade da
cultura material dos pequenos grupos de pescadores, que se tinham tornado
parcialmente sedentários muito antes do terceiro milênio, nem mesmo na
cultura dos caçadores -coletores, que desconheciam o uso da cerâmica (Capsiense
do Quênia -Elmenteitiense). Embora até o momento poucas sejam as evidências
do desenvolvimento da agricultura, sabemos que ela existia, e que a criação de
carneiros, de cabras e, depois, de bovídeos desenvolveu -se rapidamente a partir
do terceiro milênio, principalmente durante o segundo milênio. Quando se
547
A Pré -História da África Oriental
iniciou a Idade do Ferro, os povos da África oriental provavelmente tinham
ultrapassado o estádio pré -agrícola.
A tradição dos pescadores da África central e oriental
8 -10 mil anos, o clima da África era muito úmido, de modo que os
lagos eram maiores e mais numerosos, os pântanos, mais extensos, os rios, mais
longos e caudalosos e os cursos d’água temporios, mais regulares. Nessas
condições, um modo de vida bastante característico, intimamente ligado aos
cursos d’água, às terras por eles banhadas e suas fontes de alimento, e marcado
por avançadas técnicas de pesca e de construção de embarcações difundiu -se
por todo o continente, da costa atlântica até a bacia do Nilo, numa larga faixa
de território situada entre um Saara extremamente reduzido e uma floresta
equatorial consideravelmente ampliada. Essa “civilizão aquática”, como
poderíamos chamá -la, foi encontrada em numerosos sítios arqueológicos nas
terras altas do Saara e na orla sul do deserto, desde o Alto Níger, passando pela
bacia do Chade, até o Nilo Médio, e desse ponto para o sul, até os vales de
desabamento (rift valleys) da África oriental e Equador. No Rift ocidental, foi
encontrada em Ishango, na margem congolesa do lago Eduardo; no Rift oriental,
os sítios localizam -se ao longo das mais elevadas linhas de margem fósseis dos
lagos Turkana e Nakuru no primeiro, no fundo da depressão; no segundo, mais
ao sul, na parte montanhosa do Rift Valley. O sítio mais importante, localizado
nas proximidades do lago Nakuru, foi denominado Gamble’s Cave; trata -se,
na realidade, de um abrigo sob rocha, explorado pelo Dr. L. S. B. Leakey na
década de 20. A camada de ocupão mais profunda continha vestígios da
Late Stone Age, atribuídos ao Capsiense do Quênia. Entretanto, a presença
de cerâmica e de uma indústria óssea típicas, aliada à recente datação dessa
camada (aproximadamente -6000 anos), permitem -nos considerar o Capsiense
do Quênia como a forma local da grande tradição “aquática da África.
A presença de espinhas de peixes, conchas de moluscos, assim como de
ossadas de mamíferos e répteis aquáticos (ratos d’água e tartarugas, e às vezes
hipotamos e crocodilos) nesses antigos acampamentos ou habitações à
beira d’água sugere importantes dados econômicos. Animais terrestres eram
igualmente caçados, e é provável que as plantas nutritivas de águas correntes
e ntanos fossem sistematicamente colhidas e consumidas. A tecnologia
empregada na obtenção e na preparação de alimentos apresentava algumas
características muito avançadas pontas de arpão esculpidas em osso (com
instrumentos de pedra) e recipientes de cerâmica. Os arpões eram fixados com
548
Metodologia e pré -história da África
fibra na extremidade de lanças de madeira, sendo usados para apanhar peixes
e outros animais aquáticos, tanto em embarcações quanto à beira d’água. A
cerâmica, de grandes proporções, era frequentem ente decorada com espinhas
de peixe ou conchas, em motivos conhecidos como wavy line e dotted wavy
line. Embora tenha sofrido variações, a tradição wavy line e dotted wavy line
é característica o suficiente para ser distinguida de outros tipos mais recentes
de cemica dessas regiões. Alguns dos padrões decorativos, assim como a
forma mais aberta dos recipientes, podem ter sido inspirados pelos cestos, que
provavelmente eram usados para carregar os peixes após a pesca.
Nos tios às margens dos lagos da África oriental, ao longo do Nilo
Médio e no Saara, o desenvolvimento da “civilização aquática” foi datado entre
-8000 e -5000. Seu apogeu e maior expansão ocorreram no sétimo milênio.
Os primeiros arpões foram, sem dúvida, esculpidos um pouco mais cedo, ao
passo que a descoberta da cerâmica o deve remontar além de -6000. Os
recipientes de cerâmica são os mais antigos da África e encontram -se entre os
primeiros fabricados no mundo. É quase certo que essa invenção tenha ocorrido
espontaneamente em alguma parte da faixa central do continente africano.
Não existe nenhum indício de que as populações ribeirinhas praticassem a
agricultura entre 7 mil e 10 mil anos atrás, na África oriental ou em qualquer
outro ponto do extenso território que ocupavam. No entanto, a ppria
magnitude da expansão dessas populações e a rapidez com que ocorreu, aliadas
à complexidade tecnológica desse novo modo de vida, demonstram seu prestígio
e domínio cultural durante todo aquele período úmido. Considerar essa cultura
como simples variante das culturas baseadas na caça e coleta da Late Stone
Age seria negar suas características distintivas e suas realizações. É possível que
essas populações não vivessem em comunidades verdadeiramente permanentes,
mas, com fontes de alimento asseguradas pelos grandes lagos e rios e com
uma tecnologia que lhes permitia explorar eficazmente esses recursos, foram
capazes de manter instalações comunitárias maiores e mais estáveis do que
as de quaisquer outras populações anteriores. Esses fatores propiciaram não
o crescimento demográfico, como também a criação de um novo ambiente
social e intelectual, caracterizado por um artesanato complexo, indispensável à
fabricação de embarcações, arpões, cestos e cerâmica, e pelo modo de vida mais
evoluído que o uso desses objetos impunha.
O papel da cerâmica é particularmente importante, mais do que em geral
supõem historiadores e até mesmo arqueólogos. Devido à sua fragilidade, a
cerâmica tem uma utilidade limitada para sociedades nômades, sem bases fixas,
ou seja, para a maior parte das sociedades de caçadores -coletores. Mas, para
549
A Pré -História da África Oriental
as comunidades permanentes, organizadas, a cemica tem um significado
carregado de civilização, permitindo maior versatilidade com a introdução ou o
aperfeiçoamento dos modos de preparar e cozinhar os alimentos.
A morfologia dos povos ribeirinhos da África ocidental e oriental
provavelmente evoluiu; entretanto, os poucos restos de esqueletos descobertos
indicam que sua origem era basicamente negroide
8
. Ao que parece, foram
justamente a expano e o progresso da cultura e da economia “aquáticas”
9 mil ou 10 mil anos que favoreceram a predominância de um tipo
definitivamente negroide em toda a região do Sudão ao Médio e o Alto
Nilo e a parte setentrional da África oriental. Esse fato provavelmente es
associado à expansão geográfica e à subsequente dispersão e diferenciação da
grande família (ou phylum) linguística que Greenberg chamou de nilo -saariana,
e que atualmente se encontra bastante fragmentada na região que vai do Alto
Níger até a Tanzânia central. Para um phylum tão amplamente difundido, tal
fragmentação é indício de uma antiguidade de vários milhares de anos, maior
ainda que a de outras famílias linguísticas (Níger -Congo e diversos ramos do
afro -asiático) que penetraram nessa área da África central. Entre as áreas onde
o nilo -saariano se manteve – inclusive seu ramo oriental, o Chari -Nilo –, estão
as regiões ricas em lagos, pântanos e rios, nas quais o antigo modo de vida
aquático”, intimamente associado à língua nilo -saariana, conseguiu subsistir
por mais tempo, embora tenha sofrido modificações.
Essa exposição sobre a grande civilização dos meios aquáticos e as línguas nilo-
-saarianas levou -nos mais longe do que conviria para o presente capítulo e para
este volume. No entanto, é um aspecto muito importante até hoje negligenciado
da história dos povos da África, tendo influenciado consideravelmente as
populões seguintes, suas culturas e economias, em grande extensão do
continente, inclusive na África oriental.
A partir de aproximadamente 5 mil anos antes da Era Cristã, os efeitos do
ressecamento geral do clima começaram a ser sentidos. O nível dos lagos baixou,
e a economia de exploração dos recursos aquáticos sofreu um declínio, embora
persistisse por mais algum tempo no Rift Valley do Quênia. Durante o segundo
e o primeiro milênios antes da Era Cristã, novas populações, vindas da Etiópia,
chegaram à região, trazendo gado e provavelmente algumas praticas agrícolas.
8 A armação frequentemente encontrada relativa a origem caucasoide das populações do Capsiense do
Quênia baseia -se em uma interpretação incorreta dos trabalhos de Leakey em Gambles Cave e em
outros sítios. Ver J. Afr. Hist. XV, 1974, p. 534.
C A P Í T U L O 2 0
551
Pré -História da África austral
Os primeiros hominídeos
Darwin e Huxley consideravam os trópicos, incluindo talvez o continente
africano, como o habitat original do homem, pois é nessa região que são
encontrados o chimpanzé e o gorila, seus parentes mais próximos entre os
primatas. Assim como o ancestral comum ao homem e aos macacos antropoides,
esses pongídeos são arborícolas; as características morfológicas indicam que sua
evolução deve ter -se completado no decorrer de um longo período de adaptação
à vida nas florestas tropicais das áreas de montanhas médias e terras baixas.
O homem, por sua vez, não evoluiu na floresta, mas nas savanas. Na África
oriental e austral os mais antigos fósseis de hominídeos foram encontrados nas
pradarias semi ridas e nas matas de vegetação decídua. Ali, seus ancestrais
tiveram de enfrentar problemas de sobrevivência completamente diferentes,
contando com recursos em potencial infinitamente mais variados que aqueles
de que dispunham os antropoides.
Até agora, ainda não se chegou a um acordo sobre a época em que as famílias
dos hominídeos e dos pongídeos se diferenciaram. A partir da interpretação dos
testemunhos paleontológicos, calculou -se que essa diferenciação ocorreu durante
o Cenozoico Antigo, no decorrer do Mioceno Inferior, há aproximadamente 25
milhões de anos. Por outro lado, trabalhos recentes de bioquímica comparada
P-História da África austral
J. D. Clark
552
Metodologia e pré -história da África
dos primatas (cromossomos, proteínas do sérum, hemoglobina e diferenças
imunológicas entre o homem, os antropoides e os macacos do Velho Mundo)
sugerem que a diferenciação não foi anterior a 10 milhões de anos, talvez nem
mesmo a 4 milhões. Poderíamos crer que as evidências fornecidas pelos próprios
fósseis fossem mais concretas, mas infelizmente não é o que acontece. Se a
cronologia longa estiver correta, o período crucial durante o qual os hominídeos
estariam sensivelmente diferenciados da linhagem dos macacos antropoides
Mioceno Recente/Plioceno Antigo (entre -12 e -5 milhões de anos) forneceu-
-nos até agora pouquíssimos fósseis de primatas na África. a partir do fim
do Plioceno dispomos novamente de material fóssil fragmentário, e não a
menor dúvida de que entre esses fósseis existem hominídeos.
O fóssil Ramapithecus wickeri, do Mioceno Recente, descoberto em Fort
Ternan, na bacia do lago Vitória, tem de 12 a 14 milhões de anos. Infelizmente,
desse fóssil existem apenas fragmentos da face e dentes, mas as características
desse material levam a classificar tal fóssil como hominídeo. Entretanto, para
termos certeza de que o resto de sua anatomia e seu sistema de locomoção não
diferiam radicalmente daqueles dos hominídeos, são necessários restos menos
fragmentários e principalmente os ossos do esqueleto pós -craniano. Se esse
espécime se diferenciara suficientemente ou não como hominídeo, é uma
questão que deve, portanto, ficar em suspenso pelo menos por enquanto. O
Ramapithecus ocupava um habitat onde predominavam florestas -galerias, cursos
de água e savanas, numa época em que as florestas perenes, que existem hoje
somente ao sul da Grande Escarpa na África do Sul, eram muito mais extensas
que atualmente. Visto que o Ramapithecus foi descoberto tanto na África oriental
quanto no noroeste da Índia, é provável que vivesse também nas savanas do sul
da África.
Os primeiros indícios inequívocos da presença de hominídeos remontam
a cerca de 5 miles de anos atrás, época em que os australopithecos ou
homens -macacos” tinham surgido na parte oriental do Rift Valley. Esses
australopithecos ocupavam tanto as savanas do sul quanto as da África oriental.
Acredita -se que os mais antigos fósseis da África do Sul datem do fim do
Plioceno ou do Pleistoceno Antigo entre -2,5 e -3 milhões de anos.
A maior parte do Plioceno caracterizou -se por um clima relativamente
estável, que facilitou o desenvolvimento e a expansão nas savanas de espécies
biologicamente adaptadas. Esse período de relativa estabilidade chegou ao fim
com a diminuição da temperatura no mundo inteiro e com grandes movimentos
tectônicos e fenômenos vulcânicos, em particular em toda a extensão do Rift
Valley. Nessa época, o sistema de drenagem de inúmeras bacias fluviais e lacustres
553
Pré -História da África austral
africanas também sofreu modificações, muitas vezes consideráveis, devido aos
dobramentos tectônicos da crosta terrestre. As baixas temperaturas que marcam
o início do Pleistoceno foram acompanhadas de uma diminuição do índice
pluviométrico e de um ressecamento crescente, de tal modo que a vegetação árida
do Karroo alastrou -se no sul da África em detrimento das pradarias e florestas.
Essas mudanças importantes no clima e no meio ambiente impuseram aos
hominídeos ajustamentos significativos e uma concomitante diversificação
morfológica, ditada provavelmente por reações de adaptação às novas pressões
ambientais
1
. É certo que nessa época, tendo abandonado a floresta para viver nas
savanas em algum momento do Plioceno ou mesmo antes, a forma ancestral dos
hominídeos (quer ela fosse quadrúmana ou parcialmente bípede) havia passado
por uma evolão genética relativamente pida, que lhe permitia adaptar -se a rios
nichos ecológicos novos. Eis porque já no Pleistoceno Inferior parece ter havido
no sul da África pelo menos ts formas de hominídeos, muito provavelmente da
mesma espécie, capazes de se reproduzirem por entrecruzamento.
O primeiro fóssil de australopiteco, uma criança, foi encontrado em 1924
em uma brecha colmatada por calcário numa caverna de Taung, no norte
da província do Cabo, na África do Sul. O primeiro indivíduo adulto foi
descoberto em 1936, novamente em antigos depósitos de caverna, na região de
Krugersdorp, no Transvaal. Desde então, inúmeros fósseis de australopitecos e
de outros hominídeos foram descobertos como resultado de trabalhos intensivos
empreendidos por equipes no nível dos sedimentos depositados pela água na
depressão do Rift na África oriental e nas profundas cavernas do planalto
calcário da África do Sul, onde as condições são favoráveis à preservação de
fósseis dessa época.
Além dessas regiões, o único fóssil relacionado aos australopitecos foi
encontrado em Korotoro, na bacia do lago Chade; entretanto, atualmente
esse espécime é considerado mais recente. Assim, embora muitos fósseis de
australopitecos sejam conhecidos hoje, eles provêm de um número limitado de
localidades em sua maioria de cavernas da África do Sul e de sítios do Rift
Valley , pois raramente existem condições favoráveis à preservação de ossos
1 No sul da África, a única localidade importante onde foram descobertos sseis desse período é
Langebaanweg, no oeste da província do Cabo. Esse sítio localiza -se perto do litoral e seu meio ambiente
é ao mesmo tempo terrestre e o de um estuário. Encontra -se aí uma fauna abundante e rica em mamíferos
africanos de formas arcaicas, que datam de cerca de 3 a 5 milhões de anos. Embora ainda não tenha sido
encontrado nenhum traço de hominídeo, existem fósseis de primatas; é bem possível que as pesquisas
futuras possam revelar restos de hominídeos para comparação com outros da mesma época provenientes
da África oriental.
554
Metodologia e pré -história da África
F . Localização dos
depósitos fauresmithienses (
) e
sangoenses (
) na África austral
(Apud CLARK, J. D. e Prehistory
of Africa. Londres, Thames and
Hudson, 1970. Fig. 21).
F . Depósitos de fósseis
humanos do Pleistoceno Superior
(
) e alguns do Pós -Pleistoceno ( )
na África austral (Apud CLARK, J.
D. e Prehistory of Africa. Londres,
ames and Hudson, 1970. Fig. 25).
555
Pré -História da África austral
fósseis. Em muitas regiões africanas, como na região das densas florestas da
África ocidental, os solos ácidos, a erosão e outros fenômenos impediram a
preservação de fósseis. No entanto, existem boas razões para crer que várias
formas diferenciadas de hominídeos habitavam as savanas tropicais 2 ou 3
milhões de anos atrás. Na África oriental, a datação dos fósseis tem -se tornado
cada vez mais precisa graças aos métodos radiométricos e à cronologia das
reversões paleomagnéticas. Até agora, os fósseis da África do Sul puderam
ser datados por cronologia relativa, através de comparações paleontológicas e
geomorfológicas. As estimativas mais recentes, baseadas no estudo de suínos,
elefantes e hienas, indicam que os mais antigos fósseis do Transvaal têm pelo
menos 2,5 milhões de anos. As brechas das cavernas onde esses fósseis foram
descobertos a pedreira calcária de Makapan e o sítio -tipo de Sterkfontein
contêm algumas espécies de mamíferos presentes nos complexos faunísticos da
África oriental, as quais têm características morfológicas semelhantes às dos
fósseis da transição Plio -Pleistoceno.
Os mais antigos espécimes de australopitecine da África do Sul apresentam,
em sua maioria, morfologia grácil (A. africanus), com uma média de 1,40 m de
altura, postura ereta, os membros inferiores adaptados à locomoção totalmente
bípede e os superiores ao uso de instrumentos. A cabeça está centrada no alto
da coluna vertebral, que é sustentada por uma bacia de forma basicamente
humana. A capacidade craniana os aproxima mais do gorila (450 a 550 cm³)
que do homem moderno, embora o esqueleto pós -craniano e a dentição revelem
características essencialmente humanas.
A face, todavia, é mais simiesca, com prognatismo, malares salientes e arcadas
supra -orbitárias espessas. Os pontos de inserção dos músculos da nuca e dos
músculos mastigatórios indicam que estes eram muito possantes.
Em sítios mais recentes, as cavernas de Swartkrans e Kromdraai (e muito
provavelmente também Taung, como se acredita hoje), o tipo predominante
é muito mais robusto (A. robustus). Trata -se de indivíduos bem mais pesados,
com aproximadamente 68 kg. Os do sexo masculino têm cristas ósseas, uma no
alto outra na base do crânio, o que permitia a inserção de possantes músculos
mastigatórios e da nuca. Acreditava -se que as formas mais antigas fossem todas
do tipo grácil (A. africanus) e as mais recentes todas robustas (A. robustus).
Estudos antropométricos recentes, porém, mostram que a diferenciação não
é tão clara como se pensava, sabendo -se hoje que ambas as formas podem ser
contemporâneas; isso ocorre em pelo menos um dos sítios da África do Sul
(Makapan). Acontece o mesmo no Pleistoceno Inferior da África oriental; os
fósseis descobertos nessa região parecem indicar que a diferenciação entre estas
556
Metodologia e pré -história da África
F . Principais depósitos
de fauna e fósseis humanos do m do
Plioceno (fauna =
; fósseis humanos = )
ao início do Pleistoceno (
; ) na
África austral (Apud CLARK, J. D. e
Prehistory of Africa. Londres, ames
and Hudson, 1970. Figs. 9).
F . Localização dos
principais desitos acheulenses na
África austral. Acheulense Inferior =
;
Superior =
(Apud CLARK, J. D. e
Prehistory of Africa. Londres, ames
and Hudson, 1970. Figs. 18).
557
Pré -História da África austral
duas linhagens, a partir de um ancestral comum mais próximo da forma grácil,
pode ter acontecido 5 milhões de anos.
Recentemente, em 1972, na parte nordeste da bacia do lago Turkana, foram
encontrados um crânio (com uma capacidade craniana de aproximadamente 810
cm
2
), ossos longos e outros fragmentos de ossos cranianos e pós -cranianos, que
datam de um período entre -3 e -2,6 milhões de anos. Esses fósseis apresentam
muitas afinidades com o Homo, embora tenham também características que
os relacionam aos australopitecos, em particular na face e na dentição. Em
outros depósitos da África oriental, principalmente na garganta de Olduvai
(norte da Tanzânia), foram descobertos outros fósseis relacionados a esses, com
considerável capacidade craniana e que são classificados como australopitecos
evoluídos ou como Homo primitivo (H. habilis). Tais fósseis datam de um período
entre -2 e -1,75 milhões de anos
2
. É muito provável que uma forma primitiva de
Homo existisse no sul da África nessa época, mas ainda não foram encontrados
fósseis característicos. Essa probabilidade é reforçada pela descoberta feita em
1975, em Hadar, na parte etíope do Rift Valley conhecida como Triângulo de
Afar, de fósseis hominídeos com aproximadamente 3 milhões de anos. O Dr.
D. Johanson sugeriu que os doze indivíduos descobertos poderiam pertencer a
três taxa diferentes: um hominídeo grácil representado por um esqueleto muito
bem preservado, uma forma robusta semelhante ao A. robustus e uma terceira
forma identificada pelos maxilares superior e inferior, mais próxima do Homo
sapiens. Se esse fato fosse confirmado, poderia concluir -se que a linhagem Homo
e.stava diferenciada dos australopitecíneos 3 milhões de anos.
O modo de vida dos primeiros hominídeos
Embora muitos fósseis de hominídeos australopitecos tenham sido
encontrados em cavernas da África do Sul, parece pouco provável, até mesmo
improvável, que os sítios onde foram descobertos fossem seus locais de habitação.
Pensava -se que os hominídeos habitavam as profundas cavernas calcárias do
Transvaal e que os ossos fósseis ali encontrados fossem restos de animais que
eles tinham levado para as grutas para fazerem armas e outros instrumentos. No
entanto, é mais provável que os produtos dessa indústria osteodontoquerática”,
2 Acredita -se atualmente que o fragmento facial e o palato encontrados em Chesowanja, na bacia do lago
Baringo, tenham mais de 3 milhões de anos. Como esses fragmentos apresentam algumas características
que os ligam ao Homo (espécie indeterminada), é possível que pertençam a uma época próxima àquela
em que a linhagem Homo começou a se diferenciar dos australopitecíneos.
558
Metodologia e pré -história da África
como é denominada, constituam apenas os restos da alimentação de algum
carnívoro. Estudos cuidadosos dos restos de fauna da jazida de Swartkrans
indicam que o acúmulo de fósseis de australopitecos e de outros mamíferos nas
grutas pode ter várias causas, sendo a mais provável a atividade predatória de
grandes carnívoros, como leopardos ou tigres. Entretanto, ainda não se chegou
a um consenso sobre esse ponto (cf. Capítulo 17, segunda parte).
Como a maioria dos materiais são rapidamente destruídos, exceto em
circunstâncias excepcionais, dos primeiros artefatos do homem sobreviveram
os que são feitos de pedra. No entanto, nas brechas das cavernas da África do
Sul (Makapan, Sterkfontein) onde foram descobertos os fósseis dos hominídeos
mais antigos, não aparece nenhum artefato tico reconhecido como tal, embora
tenham sido encontrados utensílios de pedra em três sítios de hominídeos na
África oriental, que datam de -2,5 milhões de anos ou mais. Na África oriental,
os sítios de habitação localizavam -se perto das margens de um lago ou de um
curso de água que desembocava num lago; tais sítios podem ser reconhecidos
por uma concentração localizada de ossadas e artefatos de pedra. Considerando
a variedade de espécies e o número de animais evidenciados pelos restos de ossos
sistematicamente partidos encontrados nesses depósitos, não dúvida de que se
trata de vestígios de atividades coletivas (caça e necrofagia) dos hominídeos, que
usavam os instrumentos de pedra para, entre outras coisas, cortar a carne, os ossos e
também os alimentos vegetais, que deviam constituir a maior parte de sua dieta. A
variedade dos restos e a diversidade de seu grau de conservação sugerem que esses
acampamentos foram ocupados em repetidas ocasiões, e não apenas numa parada
passageira. No entanto, existem também os chamados sítios de abate” onde apenas
um animal de grande porte foi morto e esquartejado por um grupo. Em geral,
a área coberta pelos restos de ocupação deixados nos escarpamentos é pequena,
indicando que o grupo provavelmente era pouco numeroso, apenas duas ou três
famílias. E discutível até que ponto é verdadeiro o papel de matador -predador
por vezes atribuído aos primeiros hominídeos. Embora a carne constituísse uma
parte cada vez mais importante de sua alimentação, parece pouco provável que
eles fossem mais agressivos que outros carnívoros de grande porte; talvez fossem
até menos, porque não dependiam apenas da carne, mas também se utilizavam
amplamente de recursos vegetais. É evidente, no entanto, que foi a organização da
caça que estimulou o homem primitivo a desenvolver um sistema sócio -econômico
mais estruturado, possibilitado pela sua habilidade para fabricar utensílios com
propósitos definidos. Na África oriental, os vestígios dos acampamentos, para os
quais eram levados regularmente os produtos da caça e da coleta, indicam que os
hominídeos do fim do Plioceno e do Pleistoceno Inferior estavam provavelmente
559
Pré -História da África austral
organizados em grupos sociais flexíveis, cuja composição poderia mudar com
frequência. Esses grupos deviam manter -se unidos pela prática de compartilhar o
alimento e pela fase em que os jovens dependiam de seus pais para alimentação e
aprendizado (como as crianças de hoje). As atividades que provavelmente levaram
os hominídeos a trabalharem a pedra para obter lascas afiadas foram a caça e
o consumo da carne. A caça exigia organização e comunicação eficazes entre
os participantes, o que levou, com o passar do tempo, ao desenvolvimento da
linguagem. A divisão de tarefas entre homens e mulheres deve ter começado mais
ou menos nessa época; os homens passaram a se dedicar à caça e as mulheres à
coleta de alimentos e aos cuidados com as crianças.
Se as cavernas do Transvaal não eram os locais de habitação dos hominídeos,
mas a despensa de algum outro carnívoro de grande porte, do qual os próprios
hominídeos podem ter sido às vezes vítimas, parece provável, no entanto, que
os australopitecos vivessem nas suas imediações. Isso porque nas brechas mais
recentes do grupo de cavernas de Sterkfontein (Swartkrans, Kromdraai e de
Sterkfontein Extension Site), que podem ter 1,5 milo de anos, foram descobertos
utensílios de pedra rudimentares junto aos fósseis. Eles são feitos de rochas que
o são encontradas nas proximidades das cavernas – seixos de quartzito, quartzo
e diabásio – e presume -se que sejam provenientes de um acampamento pximo.
Visto que a maioria dos restos de hominídeos encontrados nas brechas mais
recentes de Swartkrans e Kromdraai são de australopitecos robustos, supôs -se
que fossem estes os fabricantes dos utensílios. Pensava -se o mesmo a respeito de
Sterkfontein (Extension Site). Entretanto, fragmentos de um crânio e de uma
face e alguns ossos pós -cranianos pertencentes a uma espécie primitiva de Homo
foram encontrados no mesmo depósito de Swartkrans e é mais provável que seja
essa a espécie responsável pelos utensílios. Tal fato não exclui a possibilidade de
que os australopitecos também fabricassem utensílios: um recente experimento
realizado em Bristol demonstrou de maneira pitoresca que um jovem orangotango
podia fazer lascas a fim de obter comida, depois de lhe ter sido ensinado o
processo e de ele ter percebido o uso possível das lascas. Como os fósseis de
australopitecos e de Homo são encontrados nas mesmas localidades na África
oriental e meridional e como ocupavam nichos ecológicos idênticos ou muito
semelhantes, é ainda mais provável que o Australopithecus robustus fosse capaz
de fabricar utensílios rudimentares, como aqueles que pertencem à mais antiga
indústria conhecida, a Olduvaiense embora se possa duvidar de que ele tivesse
capacidade intelectual para tanto e a fabricação de utensílios pareça relacionada
mais especificamente com o surgimento de formas primitivas do Homo (H. habilis
e outros) há aproximadamente 2,5 milhões de anos.
560
Metodologia e pré -história da África
Os primeiros utensílios de pedra:
as indústrias olduvaienses
Embora os primeiros utensílios do homem que sobreviveram sejam feitos
de pedra, é necessário lembrar que outros materiais poderiam também ter sido
empregados – madeira, casca de árvore, osso, chifre, pele, etc.
É provável que um longo período de utilização de utensílios durante o qual
os objetos que por sua forma natural se adequavam a determinado uso receberam
pouca ou nenhuma modificação tenha precedido sua fabricação intencional,
que implicava a vontade expressa de produzir um pequeno número de tipos
de utensílios a partir de materiais que, sem modificações, seriam inutilizáveis.
Após o lascamento ou outra transformação, esses materiais eram desbastados
até uma determinada forma e depois aprimorados por retoques. Desde o início,
os utensílios de pedra demonstram a habilidade dos hominídeos para talhar esse
material e assimilar os princípios da tecnologia lírica.
A mais antiga indústria lítica conhecida no mundo foi chamada de Olduvaiense
referindo -se à garganta de Olduvai, na Tanzânia e os exemplares mais antigos
da África oriental datam de 2,6 milhões de anos atrás
3
. É possível que algumas
das descobertas feitas no cascalho de antigos terraços fluviais (do Vaal ou do
Zambeze), ou em altas falésias das costas do sul da África, pertençam também
a essa época. Entretanto, como tais utensílios ainda não foram encontrados em
estratigrafia, associados a elementos que permitam sua datação, não se pode
afirmar nada sobre sua antiguidade, pois eles poderiam ser bem mais recentes.
Poderíamos pensar que, tal como no grande vale do Rift da África oriental, no
Rift do Malavi tivessem sido preservados tanto utensílios dessa época quanto
fósseis de hominídeos. Na extremidade norte do Malavi foram encontrados
restos de animais do Plio -Pleistoceno, que constituem o único elo importante
entre os vestígios do leste e do sul da África. No entanto, por alguma razão
desconhecida, essa área só foi ocupada pelo homem primitivo muito mais tarde
e apenas raramente se encontram primatas nos sedimentos das profundas bacias
da fossa austral.
Os utensílios dos depósitos mais recentes de australopitecíneos (Swartkrans,
Kromdraai e Sterkfontein Extension), perto de Krugersdorp, pertencem a vários
3 Os utensílios do tufo KBS de Koobi Fora haviam sido datados de 2,6 milhões de anos pelo método do
potássio -argônio (K/Ar). Entretanto, resultados mais recentes e correlações da fauna com a formação
de Shunguna, na bacia do Orno, e com a de Koobi Fora, no lago Turkana, indicam que sua antiguidade
pode ter sido superestimada e que uma datação mais provável seria 1,8 milhão de anos.
561
Pré -História da África austral
tipos característicos: choppers obtidos pela retirada de lascas de uma ou duas faces
de um seixo ou de um pequeno bloco, formando um bordo afiado irregular;
poliedros que mostram com frequência sinais de golpes, mostrando terem sido
feitos através de violenta martelagem; instrumentos com base plana e borda de
preensão arredondada com uma borda ativa feita em parte da circunferência,
formando um raspador; lascas adequadas para cortar e despedaçar e núcleos de
onde essas lascas foram intencionalmente debitadas. Em geral, as lascas e os
resíduos de preparação são geralmente raros em Sterkfontein Extension e em
Swartkrans, o que reforça a suposição de que não se trata de lugares de habitação.
No entanto, à medida que prosseguem as escavações sistemáticas nas brechas
desses sítios, revelando conjuntos mais completos de utensílios, podemos esperar
obter maiores dados sobre os artefatos dos primeiros hominídeos.
Comparados com as indústrias dos sítios da África oriental, esses utensílios da
África do Sul revelam características mais próximas do Olduvaiense Recente que
do Antigo; portanto, podem ser considerados como pertencentes ao Olduvaiense
Evoluído. Na África oriental, o Olduvaiense Evoluído mais antigo data de
aproximadamente 1,5 milhão de anos atrás; tomando por base também os restos
de animais fósseis, admite -se hoje que os sítios mais recentes de australopitecos
da África do Sul pertencem a essa mesma época
4
. Estão presentes então duas
linhagens bem distintas de hominídeos: a do Australopithecus robustus e uma
outra, correspondente aos primeiros representantes da verdadeira linhagem
Homo.
O complexo acheulense
Pouco mais ou menos nessa época, surgiu uma segunda indústria, a acheulense,
caracterizada por grandes instrumentos cortantes conhecidos como bifaces e
machadinhas. Ela se distingue da olduvaiense pelos utensílios maiores, feitos com
grandes lascas, cuja obtenção a partir de blocos ou boulders exigia força e perícia.
Em contraste, todos os utensílios olduvaienses podem ser seguros na palma da
mão ou, para trabalhos mais delicados, entre o polegar e os outros dedos. O
Olduvaiense Evoluído e o Acheulense foram descritos como duas indústrias
4 Recentemente, o Dr. C. K. Brain armou que a brecha mais antiga, que contém restos de Australopithecus
e de Homo, poderia ser dividida em dois níveis. No nível I, o mais antigo, foram encontrados A. robustus e
Homo sapiens e apenas um utensílio de pedra indiscutível; o nível II, mais recente, contém Homo sapiens
(Telanrhropus) e uma indústria lítica onde aparecem duas machadinhas acheulenses. O nível II data
provavelmente de 500.000 anos (BRAIN, C. K. Comunicação pessoal).
562
Metodologia e pré -história da África
contemporâneas, algumas vezes encontradas sob uma forma olduvaiense pura ou
acheulense pura e algumas vezes misturadas, em proporções variáveis, no mesmo
sítio. Essas duas tradições tecnológicas m sido interpretadas de maneiras
diferentes. foi sugerido que cada uma delas é produto de uma espécie diferente
de hominídeos, ou ainda, que são o resultado de atividades diversas que exigiam
conjuntos de utensílios diferentes, relacionados com padrões de comportamento
distintos (ver Capítulo 19). Essas duas tradições persistem e são encontradas em
inúmeras combinações até por volta de -200.000 anos, ou seja, bem depois da
extinção do A. robustus em consequência de sua competição com o Homo, Por
essa razão, adotamos aqui a tese de que a existência desses dois tipos distintos
de utensílios se deve a diferenças de atividades ou de modos de exploração
de recursos e a escolhas baseadas na tradição ou em preferências individuais,
tendo sido tais artefatos produzidos por apenas uma população de hominídeos,
conforme as circunstâncias exigiam. O aparecimento relativamente repentino
do Acheulense indica, portanto, que novos recursos estavam sendo explorados
ou que melhores métodos tinham sido inventados para utilizar os recursos até
então explorados com utensílios do tipo olduvaiense.
Os mais antigos conjuntos sul -africanos de utensílios do Acheulense, e que
podem ser praticamente contemporâneos dos hominídeos Homo sapiens e A.
robustus de Swartkrans, provêm de duas jazidas próximas, situadas na confluência
do Yaal e de seu afluente Klip, perto de Yereeniging. Foram encontrados em um
terraço de cascalho, dez metros acima do rio atual; em sua maioria, os utensílios
são rolados e desgastados pelo atrito, estando em posição derivada e não no seu
contexto espacial de origem. Uma série de utensílios foram encontrados: bifaces
pontiagudos feitos com a remoção de algumas lascas grandes, machadinhas,
poliedros, seixos lascados, raspadores nucleiformes e rios utensílios feitos
sobre lascas e pouco retocados, bem como núcleos e resíduos de preparação.
Todos eles revelam o emprego da técnica de percussão com um percutor duro
e nesse aspecto são equivalentes ao Abbevilliense da Europa. A presença de
dois utensílios semelhantes a bifaces em Sterkfontein Extension Site parece
confirmar que esse sítio não está afastado no teinpo dos sítios do rio Klip
(Three Rivers e Klipplaatdrif). Algumas descobertas de outros conjuntos de
utensílios de aparência antiga foram feitas em diversas partes do sul da África,
por exemplo, em antigos terraços fluviais de Stellenbosch, na província do Cabo,
ou perto de Livingstone, em Zâmbia; são, porém, incompletos e datados de
maneira imprecisa.
563
Pré -História da África austral
F . Acheulense Inferior, Sterkfontein:
biface, lasca cuboide e dois núcleos (Apud MASON, R.
Prehistory of the Transvaal. Johannesburg, Witwatersrand
University Press, 1962. Fig. 83).
F . Utensílios do Acheulense Superior,. de
Kalambo Falls, datados de mais de 190.000 anos B.P.; os
utensílios grandes são feitos de quartzito e os pequenos
de lex negro: 1. raspador convergente; 2. raspador
côncavo; 3. raspador denticulado; 4.machadinha com
arestas divergentes; 5. faca sobre lasca com bordos
retocados; 6.machadinha com arestas paralelas; 7. biface
oval; 8. esferoide; 9. furador; 10. biface oval alongado;
11. biface lanceolado.
F . Utensílios provenientes dos depósitos de
Howiesonspoort: 1, 2, 4 e 5. segmentos de círculo com
bordo de preensão retocado; 3. trapézio com bordo de
preensão retocado; 6. núcleo levalloisiense; 7. buril; 8.
artefato retocado; 9. furador; 10 e 13. pontas bifaces; 11.
raspador; 12. raspador bilateral. Os exemplares 2, 3 e 5
provêm de Howiesonspoort; todos os outros provêm da
caverna do Túnel (Apud SAMPSON, C. G. e Stone
Age Archaeology of Southern Africa. Nova York, Academic
Press, 1974. Fig. 84).
564
Metodologia e pré -história da África
Em algum ponto, entre 1 milhão e 700.000 anos atrás, a primitiva linhagem
Homo (representada pelo crânio hominídeo 1470 de Koobi Fora, a leste do lago
Turkana, e pelos fósseis de Homo habilis da garganta de Olduvai, da bacia do
Orno e de outros sítios) foi suplantada por um tipo mais robusto e com maior
capacidade craniana, conhecido como Homo erectus. Na mesma época, ou um
pouco antes, tinha havido uma rápida difusão de grupos hominídeos em direção
ao norte da África e, fora do continente africano, na Europa e na Ásia. Fósseis do
Homo erectus e restos de sua cultura são encontrados em várias partes do Velho
Mundo, bastante distanciadas umas das outras. Na África, foram descobertos
fósseis de Homo erectus na parte superior do Bed II da garganta de Olduvai
(uma forma com cérebro desenvolvido), em Melka Konturé na Etiópia e em
sítios no litoral e no interior da região noroeste da África e no Magreb, onde
estão associados a indústrias do Acheulense Antigo. É muito provável que os
vestígios acheulenses do sul da África tenham sido deixados pelo Homo erectus,
embora até o momento não se tenha descoberto nenhum fóssil desse hominídeo
naquela região.
É a partir do Acheulense Recente ou Evoluído, que começamos a encontrar
no sul da África, assim como em todo o continente africano, uma proliferação
de sítios que sugere um aumento geral de número e tamanho dos grupos de
hominídeos. A pequena quantidade de sítios de períodos mais antigos pode ser
parcialmente atribuída à relativa escassez de sedimentos dessa época, preservados.
Provavelmente, porém, esse não é o principal motivo para explicar o aumento
acentuado do número de sítios descobertos pertencentes ao Acheulense Evoluído
e sua ampla extensão geográfica. De acordo com o Atlas de P‑História Africana,
são conhecidos na África do Sul 389 sítios desse período, tendo -se encontrado
conjuntos de machadinhas e bifaces típicos na maioria dos sistemas fluviais
explorados. Apesar do grande número de depósitos conhecidos, apenas alguns
foram escavados e poucos estão em seu contexto de origem
5
, que preservaria a
distribuição de utensílios e outros sinais de ocupação depois de o sítio ter sido
abandonado por seus habitantes.
Os sítios explorados mostram a variedade de habitats e alguns aspectos do
comportamento do homem do Acheulense. Nenhum desses sítios foi ainda
datado com precisão, pois sua idade ultrapassa em muito o alcance da datação
pelo radiocarbono; além disso, as rochas e os sedimentos com os quais estão
5 Por exemplo, grandes quantidades de utensílios acheulenses foram encontradas na parte ocidental do vale do rio
Vaal e de muitos de seus auentes. Apesar de alguns desses conjuntos de utensílios testemunharem mudaas
tecnogicas interessantes, todos foram deslocados pela erosão e estão em contexto espacial derivado.
565
Pré -História da África austral
associados não se adequam ao método do potássio -argônio ou ao da cronologia
baseada nas reversões paleomagnéticas. O sítio localizado mais ao norte é o de
Kalambo Falls, na fronteira entre Zâmbia e Tanzânia, na África central, onde
uma excepcional série de circunstâncias permitiu a conservação de madeira
em vários níveis de ocupação. É possível datar essa madeira, e uma amostra de
uma das camadas mais recentes foi datada de -190.000 anos através do método
da racemização dos aminoácidos (J. Bada, comunicão pessoal). Essa data
corresponde àquela que foi obtida em Isimila, na Tanzânia central, onde uma
série estratificada acheulense semelhante foi datada de cerca de -260.000 anos
pelo método do urânio -tório. É improvável que alguma dessas indústrias seja
anterior a -700.000 anos, quando terminou a última grande época de reversão
paleomagnética (época de Matuyama), nem mais recente que -125.000 anos,
quando começou o último período interglaciário (Eemiano), durante o qual
surgiram indústrias mais avançadas. Portanto, pertencem essencialmente à época
definida como Pleistoceno Médio.
Os sítios de ocupação de Kalambo Falls localizavam -se nos bancos de areia à
beira do rio ou possivelmente no interior das florestas que cobriam as margens
nessa época. O estudo do pólen mostra que no início do Acheulense a temperatura
era mais elevada e as precipitações um pouco menos abundantes do que hoje;
no entanto, a transição para um clima mais árido era insuficiente para modificar
sensivelmente a vegetação que, como agora, consistia numa floresta ripícola
perene com vales pouco profundos e cheios de relva, periodicamente inundados
(dambos) e em matas de Brachystegia nas encostas mais altas. Todavia, por volta
do fim do Acheulense, o estudo do pólen. e dos vestígios vegetais macroscópicos
indica uma baixa da temperatura e um certo aumento nas precipitações; tais
alterações permitiram que algumas espécies vegetais, que existem atualmente
300 m mais acima, descessem até o nível da bacia local do Kalambo. Acredita-
-se que cada um dos níveis de habitação era ocupado apenas durante uma ou
duas estações; depois a superfície era coberta por depósitos de areia, barro e
lama do rio, sobre os quais se estabelecia uma nova ocupação. Esses horizontes
mostram concentrações claramente delimitadas, onde foi encontrado um grande
número de bifaces e machadinhas, muitos utensílios feitos sobre lascas retocadas,
raspadores nucleiformes e, em menor quantidade, picões, poliedros e esferoides.
Associados a esta indústria lítica, encontraram -se vários utensílios de madeira:
um chuço, bastões de cavar, bastões curtos e pontiagudos (provavelmente usados
também para cavar), um utensílio fino em forma de lâmina e fragmentos de casca
de árvore que podem ter sido usados como bandejas. Alguns desses horizontes
fornecem numerosos traços do uso do fogo: troncos de árvores carbonizados,
566
Metodologia e pré -história da África
carvão vegetal, cinzas e concentrações ovais, côncavas, de grama e de plantas
lenhos as partidas e carbonizadas que poderiam ter servido de leitos. Além
disso, havia grande quantidade de grãos e frutos carbonizados pertencentes a
gêneros e espécies de plantas comestíveis que ainda hoje crescem na bacia do
Kalambo. Como essas plantas amadurecem no fim da estação seca (setembro
e outubro), presume -se que tais instalações acheulenses eram acampamentos
ocupados durante essa estação.
Nenhum resto de fauna foi preservado em Kalambo Falls. Em Mwanganda,
porém, perto de Karonga, na extremidade noroeste do lago Malavi, existe um
outro sítio do Pleistoceno Médio, onde, próximo a um curso de água que corre
na direção leste até o lago, foi esquartejado um elefante. Ao que parece, pelo
menos três grupos de indivíduos tomaram parte nessa atividade, pois foram
descobertos três conjuntos distintos de ossos, cada um deles associado a utensílios
de pedra utilizados naquele local e depois abandonados. Esses utensílios são,
em sua maioria, lascas com poucos retoques, pequenos raspadores e alguns
seixos lascados; trata -se, na verdade, de utensílios do Olduvaiense Evoluído que
refletem características do Olduvaiense Primitivo. Em Oppermansdrif, perto de
Bloemhof, às margens do rio Vaal. As escavações revelaram interessantes dados
sobre a eficiência do homem do Acheulense como caçador, assim como sobre
sua técnica de cortar a carne e se desfazer dos restos de ossos. Estes formam
vários montes próximos ao curso de água, misturados a bifaces provenientes do
mesmo horizonte.
Os utensílios acheulenses são encontrados às vezes associados a afloramentos
de matéria -prima e em meio a fragmentos de rocha e resíduos de preparação.
Sítios desse tipo (por exemplo, Gwelo Kopje, em Zimbabwe) fornecem -nos
poucas informações sobre o meio ambiente, mas parecem ter sido ocupados
regularmente. Em Wonderboompoort, perto de Pretória, no Transvaal, foram
encontrados restos que formam uma camada de 3 m de espessura; esse depósito
parece estar associado a um dos pontos de passagem da cadeia de Magaliesberg,
numa rota de migração de animais entre o middleveld e o highveld.
Todavia, os locais de habitação preferidos durante o Acheulense situavam-
-se sempre perto da água, em dambos, por exemplo, onde a caça se concentrava
e onde sempre havia água disponível. Um sítio desse tipo existe em Kabwe
(Broken Hill), próximo ao famoso Kopje onde foram descobertos o crânio
e outros restos do Homo rhodesiensis. Nesse local, foram encontrados alguns
grandes utensílios cortantes junto a esferoides e inúmeros utensílios pequenos
de quartzo. Em Lochard, no Zimbabwe, na região drenada pelos rios Zambeze
e Limpopo, um outro sítio localizado em um dambo, que ainda não foi
567
Pré -História da África austral
escavado mas onde foram encontrados muitos bifaces e machadinhas. Um outro
exemplo é a localidade de Cornélia, no norte do Estado Livre de Orange (África
do Sul). Ao contrário dos dois depósitos anteriores, em Cornélia encontraram -se
muitos vestígios de fauna, alguns dos quais podem estar relacionados com uma
indústria que compreende alguns bifaces e machadinhas e um certo número
de poliedros, seixos lascados e pequenos utensílios. Os animais, em particular
búbalos gigantes, foram provavelmente empurrados para o lamaçal dos dambos
e então mortos. razões para crer que nessa época o high veld era bem irrigado
e coberto por relva curta, com bosques esparsos e florestas ribeirinhas, o
muito diferente do que é hoje. Na vegetação estépica do Karroo, no norte da
província do Cabo e em Botsuana, a população do acheulense instalou -se em
torno das depressões e bacias lacustres rasas que então existiam em grande
número na região. Um exemplo característico desse tipo de assentamento é
Doomlagte, perto de Kimberley, onde se encontrou toda uma série de utensílios,
aparentemente em seu contexto original, incrustados numa crosta calcária.
sinais de repetidas ocupações por um período bastante longo, mas não existem
restos de animais.
Em Elandsfontein, perto de Hopefield, no oeste da província do Cabo, as
áreas em torno dos charcos ou vleis e as depressões situadas entre as antigas
dunas de areia estabilizadas constituíam para o homem do Acheulense ótimos
locais para caça de grandes mamíferos. A fauna é a do Pleistoceno Médio e,
em geral, caractestica da fauna histórica do Cabo: elefantes, rinocerontes,
hipopótamos, girafas, antílopes de grande e médio porte, Equus e javalis. Também
aqui os animais parecem ter sido mortos depois de conduzidos para terrenos
pantanosos; além disso, sinais da prática de envenenar aguadas. Nesse sítio foi
encontrada a calota craniana de um hominídeo muito semelhante ao de Kabue
(Broken Hill) e inegavelmente mais avançado que o Homo erectus. Quanto ao
meio ambiente do oeste da província do Cabo, nada indica que fosse muito
diferente do que é hoje.
Os homens do Acheulense viveram também no litoral, como mostra o
importante sítio descoberto mais ao sul, na estreita planície costeira, no cabo
Hangklip (False Bay), nas dunas de areias consolidadas que recobrem a praia
de 18 m. Não restos de fauna, mas foi encontrada uma grande quantidade
de bifaces bem acabados e um pequeno número de machadinhas, bem como
raspadores sobre lascas, raspadores nucleiformes, e pequenos utenlios.
Entretanto, é importante notar que, nessa época, tanto nas margens atlânticas
do Marrocos quanto na bacia mediterrânea, o homem não se alimentava de
peixes e mamíferos marinhos, mas quase tão só de mamíferos terrestres.
568
Metodologia e pré -história da África
Foram ainda ocupadas pelo homem do Acheulense áreas à beira de fontes,
como a de Amanzi, na zona das chuvas de inverno ao sul da Grande Escarpa,
perto de Port Elizabeth. Nesse local, várias nascentes que, quando ativas,
depositaram uma série de camadas estratificadas de areia; durante as épocas
de inatividade, quando cresciam no local caniços e outros tipos de vegetação,
formaram -se camadas de turfa. O homem do Acheulense frequentava
regularmente essas fontes e acampava em suas imediações, onde os utensílios
que ele abandonava foram pisoteados por elefantes e outros animais também
atraídos pela água. As pesquisas revelaram vários conjuntos esparsos de utensílios
e, com base nos vestígios de madeira, plantas e pólen, parece que a vegetação
não era muito diferente da que existe hoje no cabo Macchia.
Finalmente, na África meridional, o homem do Acheulense ocupou às vezes
cavernas, das quais duas devem ser mencionadas. A primeira, Cave of Hearths,
situa -se em Makapan, no bushveld do norte do Transvaal, e contém 9 m de depósitos
com fogueiras e níveis de ocupação acheulense. A análise dos sedimentos indica
que as chuvas eram mais abundantes então do que agora. A fauna pertence em
geral ao Pleistoceno Médio e assemelha -se à do bushveld atual. Neste depósito
encontrou -se também um fragmento de maxilar humano, de um indivíduo jovem
que pode ter afinidades com os fósseis neandertaloides ou talvez “rodesioides”
6
.
Os artefatos assemelham -se aos de Kalambo Falls, Hangklip e outros sítios
onde foram descobertos grandes utensílios cortantes junto a um bom número
de artefatos pequenos. A segunda caverna é a de Montagu, no sul da província
do Cabo, e fica próxima a uma nascente e a um curso de água permanentes, no
meio da vegetação de maqui. Ela também apresenta uma série de camadas de
ocupação superpostas do Acheulense Recente, mas infelizmente nenhum resto
de fauna.
Esses diversos sítios constituem bons exemplos dos diferentes tipos de
habitat ocupados e da variedade do instrumental acheulense do Pleistoceno
Médio. Todos os habitats têm certas características em comum. Todos se situam
em campo aberto, desde matas decíduas (Kalambo Falls e Kabue Broken Hill)
até pradarias e parques naturais (Lochard e Cornélia) e maquis (Montagu e
Amanzi). Todos se localizam perto da água, onde as árvores forneciam sombra
e frutos comestíveis e a caça tendia a se concentrar à medida que a estação seca
avançava. Todos ficam em locais onde hoje existem associações de vários tipos
distintos de vegetação (ou seja, áreas chamadas ecótones); se o quadro geral era o
6 Ver p. 581.
569
Pré -História da África austral
mesmo no passado, como indicam os vestígios atuais, todos esses diferentes tipos
de vegetação poderiam ser explorados não muito longe dos locais de habitação.
Nas áreas em que a fauna foi preservada, nota -se que havia uma predileção por
animais de grande porte, como elefantes, hipopótamos, girafas, grandes bovídeos
e Equus; mas também aparecem restos de pequenos bovídeos, suínos, etc.
Uma grande variedade de matérias -primas foi usada na fabricão de
utensílios de pedra, dependendo do material disponível no local. Isso demonstra
que o homem do Acheulense possuía grande versatilidade e habilidade para
lascar muitas rochas usando percutores duros e moles, e para fabricar utensílios
bem talhados e refinados. Demonstra também sua habilidade em selecionar,
entre as diversas técnicas, a mais adequada ao material que estava sendo usado.
Nas áreas onde grandes seixos de lex ou quartzito constituíam a matéria-
-prima, eles faziam os bifaces lascando diretamente o seixo. No entanto, quando
era necessário usar blocos de pedra maiores, desenvolveram vários todos
engenhosos
7
preparavam e lascavam um núcleo de tamanho considerável a fim
de obter grandes lascas, com as quais eram feitos os bifaces e as machadinhas.
No sul da África, é provável que o Acheulense Recente tenha tido uma
duração quase igual à desse período na África oriental, onde se estendeu de
-700.000 a -200.000. Entretanto, não existe ainda nenhum método de datação
suficientemente preciso para medir as diferenças de idade entre as rias
indústrias acheulenses. Quando dispusermos de tais todos e quando for
encontrado maior número de indústrias em contextos estratigráficos, talvez se
possam definir em termos quantitativos as tendências gerais da tecnologia dos
utensílios e estabelecer a possível relação entre as diversas variantes identificadas
dentro do complexo acheulense, bem como a paleoecologia de um determinado
sítio na época em que foi ocupado.
Conforme mostrou este breve resumo, as indústrias acheulenses ajustam-
-se a certos pades gerais que se encontram reproduzidos por todo o
mundo acheulense. indústrias que consistem principalmente em bifaces e
machadinhas; outras compreendem seixos lascados e utensílios menores com
características do Olduvaiense Evoluído; há ainda as que mostram diversas
combinações dessas duas tradões e aquelas em que predominam pies,
raspadores nucleiformes e outros utensílios pesados”. Portanto, embora exista
uma infinita variedade na composição das indústrias e na natureza do habitat
7 Por exemplo, pseudolevalloisiense, protolevalloisiense, levalloisiense de Tachengit e de Kombewa. Ver
Brézillon. M. N. La dénomination des objets de pierre taillée”. Gallia Préhistoire, Paris. Supl. IV. p.
79-96 e 101 -2.
570
Metodologia e pré -história da África
e de seus recursos, certas características gerais parecem comuns ao Acheulense
como um todo, indicando que o modo de vida não variou quase nada de um
extremo a outro no mundo dos bifaces. O panorama do comportamento dos
hominídeos no Pleistoceno Médio mostra -nos grupos de caçadores -coletores,
em geral com o mesmo estilo de vida e que tendiam a se agrupar e a estabelecer
comunicação entre si com certa eficiência. Viviam em grupos maiores que
nas épocas anteriores e ocupavam determinadas áreas com mais regularidade,
seguindo um padrão sazonal estabelecido. A estrutura social deveria ser ainda
flexível, permitindo a livre circulação de indiduos e ideias. No entanto,
grandes áreas do continente, inclusive as florestas, permaneciam despovoadas;
a distribuição esparsa do conjunto da população implicava provavelmente o
isolamento quase total de cada um desses grupos em relação a seus vizinhos.
O acheulense nal ou “fauresmithiense”
Sabe -se muito tempo que certas indústrias exrstiram nos planaltos elevados
do interior do continente. Elas se caracterizam pela presença de bifaces bem
acabados e geralmente de tamanho menor, de uma grande série de utensílios
feitos sobre lascas, de raspadores nucleiformes e de um número relativamente
pequeno de machadinhas. É provável que sejam de uma época mais recente que
o Acheulense visto acima; nesse caso, representam possivelmente um estágio
final da tradição dos bifaces. Entretanto, a maioria delas consiste em coleções
de superfície e que, por esse motivo, podem estar misturadas com materiais mais
recentes. A matéria -prima utilizada era geralmente a lidianita (xisto endurecido),
nas regiões onde essa rocha é abundante; em outras áreas o quartzito era mais
usado.
Apenas uma pequena quantidade de séries dessas indústrias prom de
escavações e pouqssimas podem ser consideradas representativas. Uma
delas origina -se de uma antiga depressão, perto de Rooidam, a oeste de
Kimberley. Ali a indústria estava contida dentro de um depósito de cerca de
5 m de sedimentos, cobertos por uma camada espessa de calcário estépico;
tais sedimentos representam a acumulação progressiva de coluvião provocada
pelas enxurradas. Às vezes de dimensões reduzidas, os bifaces são em geral
rudimentares; a maior parte dos utensílios consistem em pequenos raspadores
e outros pequenos artefatos retocados, todos de lidianita. Nesse conjunto de
utensílios, pode -se observar um método de preparação do núcleo conhecido
como “técnica do núcleo discoide”, que permite obter várias lascas pequenas.
A técnica levalloisiense, ao contrário, pela qual se obtém apenas uma grande
571
Pré -História da África austral
lasca em cada preparação do núcleo, parece não ter sido utilizada. Dois outros
depósitos (no rio Vaal, perto de Windsorten e na área da barragem de Verwoerd,
no rio Orange) contêm uma indústria semelhante, mas com a presença de ambas
as técnicas do núcleo discoide e levalloisiense. Parece que a tradição e talvez
outros fatores, como o tempo, poderiam explicar parcialmente tal variedade nas
formas das lascas e dos núcleos.
Essas indústrias receberam o nome de Fauresmithiense, em referência à região
do Estado Livre de Orange onde os bifaces característicos em forma de amêndoa
foram pela primeira vez encontrados em grandes quantidades na superfície.
Entretanto, ainda não se sabe se essas indústrias apresentam características
suficientemente diversas do Acheulense para merecerem um nome distinto. Elas
são encontradas com mais frequência nas pradarias, na vegetação do Karroo e no
maqui da África do Sul e da Namíbia. A única indicação de sua provável idade
é uma datação do carbonato de Rovidam feita pelo método do urânio -tório, que
indicou 115.000 ±10.000 anos B.P.
8
Permanece desconhecida a época em que
as indústrias fauresmithienses foram suplantadas por uma nova tradição ou um
novo complexo tecnológico, concentrado na produção de utensílios feitos sobre
lascas e lâminas e que marca o início da Middle Stone Age. E possível que essa
mudança tenha ocorrido entre -100.000 e -80.000.
Nas regiões da África central com precipitações pluviométricas maiores
e vegetão mais densa, o Acheulense Recente foi substituído, o pelo
Fauresmithiense, mas por indústrias que apresentavam uma grande quantidade
de utensílios pesados: picões, bifaces, seixos lascados e raspadores nucleiformes.
Evidentemente, esses tipos de utensílios apareciam nas indústrias acheulenses;
no entanto, com exceção de uma fácies pouco conhecida, nessa época jamais
tinham prevalecido sobre os demais. Mais tarde, porém, esse equipamento pesado
tornou -se predominante nas áreas de maiores precipitações e temperaturas mais
elevadas, onde se encontra junto com uma série de utensílios leves feitos sobre
lascas e fragmentos. Ele é encontrado em Zâmbia, Zimbabwe, partes do sudeste
da África (em particular na planície de Moçambique) e nas regiões costeiras
de Natal, e pertence ao chamado complexo sangoense. Em sua maioria, as
indústrias sangoenses não são datadas, a não ser de modo relativo pelo método
estratigráfico; não se sabe ao certo se elas são contemporâneas do Acheulense
Final (Fauresmithiense) das savanas ervosas, ou mais recentes que ele.
8 B.P. (before present): “Antes do presente”, tomando o ano de 1950 como ponto de referência, pois foi
nesse ano que se usou pela primeira vez o método do carbono 14.
572
Metodologia e pré -história da África
F . Utensílios da Middle Stone Age,
provenientes de Witkrans Cave. Exceto o de número 6,
que é de xisto, todos os demais são de sílex negro: 1 e 2.
pontas unifaces; 3. lâmina utilizada; 4, 6 e 7. raspadores
simples; 5. buril sobre truncatura; 8. raspador; 9. lasca
levalloisiense; 10. núcleo levalloisiense (Apud CLARK,
J. D. Human behavioural dierences in Southern
Africa during de Later Pleistocene. American
Anthropologist. “1971. v, 73. Fig. 11).
F . Utensílios do Lupembiense Médio, de
Kalambo Falls, entulho I, jazida B1, 1956: 1. raspador
ncavo simples (sílex); 2. raspador denticulado,
convergente e pontiagudo (sílex); 3. ponta uniface
(sílex); 4. buril diédrico (crosta silicosa); 5. machado
nucleiforme (sílex); 6. raspador nucleiforme (sílex) ;
7. trinchante (quartzito); 8. ponta lanceolada (sílex).
F . Distribuição de lâminas e fragmentos
de lâminas utilizadas, com relação a estruturas de
blocos de dolerito, no horizonte primário em Orangia
(Apud SAMPSON, C. G. e Stone Age Archaeology of
Southern Africa. Nova York, Academic Press, 1974, p.
166. Fig. 58).
573
Pré -História da África austral
Em Kalambo Falls, a fácies local do Sangoense (indústria de Chipeta)
data de 46.000 a 38.000 B.P., segundo doze resultados obtidos pelo método
do radiocarbono. Em Mufo, no nordeste de Angola, uma fase semelhante
data de aproximadamente 38.000 B.P. Em Zimbabwe, o Sangoense local
(indústria de Gwelo) é comparável a indústrias anteriormente denominadas
“Proto -Stillbayense”
9
, mas poderia ser anterior a elas. É extremamente difícil
estabelecer uma correlação entre essas indústrias de tipo sangoense, visto que
é preciso considerar fatores ecológicos e outros. Nas regiões onde o habitat,
a tradição ou considerações particulares favoreceram o uso desses utensílios
pesados, é provável que eles tenham exercido desde logo um papel importante
e que tal papel tenha persistido por tanto tempo quanto as razões que levaram
à sua adoção. Não se pode negar a existência de uma correlação entre esse tipo
de utensílios e áreas com maior precipitação pluviométrica e, consequentemente,
vegetação mais densa. Portanto, esses elementos pesados podem ser considerados
mais como resultantes de determinações ecológicas que como representantes de
um determinado período ou estágio cultural na evolução do instrumental lítico.
Como essas indústrias sangoenses estão ligadas a áreas de vegetação mais densa,
pode -se esperar que suas primeiras manifestaçõe -s tenham sido contemporâneas,
nessas regiões, dos estágios finais do Acheulense (Fauresmithiense ) nas savanas
ervosas e que não tenham ocorrido em habitats mais abertos, nos quais, como
vimos, era enfatizada a fabricação de outros tipos de utensílios. Indústrias de tipo
sangoense foram descobertas em Zâmbia, Malavi, Zimbabwe, Moçambique e
Angola, bem como no norte e no sudeste da África do Sul. No Fauresmithiense
e no Sangoense, portanto, podemos perceber o começo de uma especialização
regional dos utensílios, que reflete padrões de adaptação diferentes conforme se
trate de pradarias, florestas claras ou florestas densas.
Middle Stone Age
A necessidade de considerar os utensílios de pedra do homem pré -histórico
que, em geral, é tudo o que restou dele como produto da atividade e das
necessidades imediatas de seus fabricantes, e não como obra de populações
necessariamente distintas do ponto de vista genético e étnico, impõe -se
9 A composição desses conjuntos proto -stillbayenses em Zimbabwe pode ser melhor observada nos
depósitos de cavernas em estratigraa, como as de Pomongwe e Bambata, e no sítio aberto do planalto
de Chavuma, em referência ao qual essa indústria foi recentemente rebatizada como indústria de
Chavuma”. Embora não existam datações precisas, parece que a indústria de Chavuma é anterior a
42.000 B.P. Consequentemente, a indústria de Gwelo é ainda mais antiga.
574
Metodologia e pré -história da África
particularmente em relação aos vários componentes das indústrias regionais
contemporâneas do período conhecido por muito tempo como Middle
Stone Age. Para classificar um complexo como pertencente à Middle Stone
Age tomavam -se por base principalmente certas caractesticas cnicas e
tipológicas, bem como o fato de que, do ponto de vista da estratigrafia, ele se
situava entre a Early Stone Age e a Late Stone Age. Esses termos evolucionistas,
cronoestratigráficos, m pouco significado atualmente, pois sua definição
permanece tão insatisfatória quanto na primeira vez em que foram usados.
Além disso, a datação pelo radiocarbono tem demonstrado que os estágios
tecnológicos sobre os quais se fundamentam esses conceitos são antes conjecturais
que reais e que as técnicas e os tipos de utensílios que eram seu produto final
transcendem limites horizontais tão artificiais como esses. Como seu trabalho
está intimamente ligado aos artefatos de pedra, o pré -historiador tende às vezes
a negligenciar o fato de que eles representam apenas uma fração de uma vasta
gama de materiais e utensílios que não foram preservados. Se esses materiais e
instrumentos que se perderam estivessem disponíveis para estudos, certamente
modificariam drasticamente nossas concepções sobre a tecnologia pré -histórica.
Além disso, onde necessidade, a tecnologia muda como resultado de novas
pressões e da capacidade de seleção e adaptação do grupo. Esses dois fatos
devem ser levados em conta ao estudar as indústrias líticas que testemunham o
comportamento cultural durante o Pleistoceno Recente e o Holoceno.
Num certo momento entre -100.000 e -80.000, o nível do mar começou a
baixar em relação ao alto nível de +5 a 12 m, bem representado pelos restos de
praias elevadas em um certo número de localidades do litoral sul do continente
10
;
é logo após essa época, que o homem começou a ocupar locais favoráveis nessas
praias liberadas pelo mar. Alguns desses locais eram cavernas e, apesar das
particularidades locais, a tecnologia desse período é geralmente semelhante na
bacia do Mediterrâneo e no sul da África.
O início do último período glaciário no hemisfério norte corresponde nos
trópicos a uma diminuição da temperatura (aproximadamente de 6 a 8
o
C) e
a um clima mais seco, embora um decréscimo nas taxas de evaporação tenha
assegurado um suprimento regular de água de superfície e talvez até maior do
que atualmente. Na mesma época, o clima semi -árido que então existia na bacia
do Zaire, na região equatorial, reduziu consideravelmente a floresta perene ou
substituiu -a por campos ou matas mais abertas, oferecendo, desse modo, um
10 Acredita -se que esse último nível elevado do mar corresponda à transgressão marinha do último interglaciário
(Eemiano) na bacia do Mediterrâneo, onde o nível do mar é geralmente semelhante – entre 6 e 8 m.
575
Pré -História da África austral
habitat muito favorável ao homem e aos animais de caça. Assim, tanto uns quanto
outros começaram a migrar para essa região anteriormente desabitada. Da mesma
forma, durante o Pleistoceno Recente, o deserto de Namíbia, hoje tão inóspito,
foi ocupado por grupos de caçadores que deixaram seus utensílios nos locais de
acampamento.
Durante a Middle Stone Age, a sequência estratigráfica de cada grande
região mostra um padrão coerente de progresso tecnológico, que se exprime
pela fabricação de utensílios cada vez mais elaborados e pela diminuição
progressiva no tamanho dos artefatos. Entretanto, o desenvolvimento cultural
em uma região não é necessariamente semelhante ao que se verifica em outra,
embora possam existir tendências e características comuns. Provavelmente,
muitos fatores ecológicos, tecnológicos e sociais foram responsáveis pelas
variações regionais que caracterizam essas indústrias do Pleistoceno Superior.
Modos de vida diferentes exigiam utensílios diversos ou impunham outros usos
para os mesmos utensílios; e embora desenvolvimentos tecnológicos em escala
continental possam ter determinado a época de introdução de uma característica
aparentemente nova, é provável que a natureza dos recursos existentes e os
métodos tradicionais de exploração tenham sido os fatores decisivos para a
aceitação de determinado aperfeiçoamento e para a data em que foi adotado.
Nessa época, as técnicas básicas eram o método levalloisiense e o dos núcleos
discoides, utilizados para extrair lascas, debitar as minas, inicialmente por
percussão direta e, mais tarde, com a ajuda de uma peça intermediária. Com as
lascas e lâminas fazia -se uma série de utensílios leves, que eram retocados para
formar pontas, raspa dores, facas, buris (cinzéis), furadores, etc. No sul da África,
as indústrias regionais podem ser agrupadas, com base em sua tecnologia, em
três unidades maiores, que são em grande parte, senão inteiramente, também
unidades cronológicas. Por esse motivo, é mais fácil considerá -las como grupos
ou fases do que como estágios, que implicariam relações cronológicas.
O primeiro desses grupos ou fases (Grupo 1) caracteriza -se por grandes
lascas preparadas pelo método levalloisiense e por longas minas obtidas
por percussão direta. Apenas alguns conjuntos esparsos desses utensílios são
conhecidos
11
. Nos poucos sítios onde existe uma sequência estratigráfica, os
elementos mais evoluídos tecnicamente são encontrados nas camadas superiores
11 O Pietersburgiense Inferior da camada 4 da Gruta das Lareiras em Makapan; o Middle Stone Age I,
imediatamente acima da praia de 6 -8 m, na embocadura do rio Klassies; um sítio ao ar livre no Orange River
Scheme (Elandskloof); e um tio no Transvaal central (Koedoesrand). Além dessas ainda a indústria
de Nakasasa, em Kalambo Falls, caracterizada por formas semelhantes, embora tamm contenha certos
instrumentos bifaciais pesados, como os que se espera encontrar em indústrias das matas de Brachystegia.
576
Metodologia e pré -história da África
e os conjuntos líticos do Grupo I são os mais antigos (por exemplo, em Cave of
Hearths e em Kalambo Falls); no entanto, parece não haver nenhuma coerência
cronológica entre as diferentes regiões. Por exemplo, acredita -se que a Middle
Stone Age I do rio Klassies date de aproximadamente -80.000 anos, enquanto
a indústria de Nakasasa, em Kalambo Falls, data de um período entre 39.000 e
30.000 anos B.P. As demais séries ainda não foram encontradas em contextos
que permitam sua datação.
Outras indústrias que pertencem ao início do Pleistoceno Superior, portanto,
anteriores a 40.000 anos B.P., mas que não são classificadas no Grupo I,
apresentam uma série diferente de características. É o caso de uma indústria
de lascas, núcleos, raspadores nucleiformes, poliedros, bigornas e instrumentos
de moagem feitos de dolerito, que provém do nível I da camada de turfa de
Florisbad, no Estado Livre de Orange. Esses utensílios são em geral atípicos e
é possível que não representem toda a gama de artefatos produzidos nessa época
no local; mas também é possível que apenas uma lâmina longilínea e retocada
possa ser associada a eles. Nesse mesmo nível, foram descobertos um fragmento
de crânio de hominídeo e o que parece ser o cabo de uma arma de arremesso
curva, feita de madeira. Este horizonte de Florisbad é anterior a 48.000 anos
B.P. Uma outra indústria, diferente mas provavelmente contemporânea das do
Grupo 1, é a de Chavuma, em Zimbabwe, que é anterior a 42.000 anos B.P.,
como dissemos anteriormente. Caracteriza -se por picões, uns poucos bifaces e
um importante conjunto de utensílios leves, entre os quais pontas, raspadores
e lâminas com sinais de utilização. Tais utensílios são feitos de matérias -primas
bastante variadas: calcedônia, opalina, quartzito, quartzo e outras. A indústria
de Twin Rivers, em Zâmbia (datada de 22.800 ±1000 B.P.), assemelha -se à
de Chavuma. Tal datação, porém, se estiver correta, acentua o fato de que um
método baseado na tecnologia tem hoje pouco valor como meio de correlação
entre indústrias de diferentes regiões.
Muitas séries provenientes de cavernas e sítios de superfície são classificadas
num segundo grupo (Grupo II)
12
. Em geral, elas datam de um período entre
40.000 e 20.000 anos B.P., mas podem às vezes prolongar -se como, por
exemplo, no litoral sul. Tais indústrias caracterizam -se pelo uso diversificado
das técnicas do núcleo discoide e levalloisiense, principalmente no que diz
respeito à debitagem de lascas triangulares, e pela produção de grande número
12 Exemplos de indústrias do Grupo II: camada 5 da Gruta das Lareiras; camada I da caverna de Mvulu,
no Transvaal; Middle Stone Age II do rio Klassies; indústrias de Mossel Bay e da caverna de Skildergat,
no sul da província do Cabo; e indústria stillbayense, da caverna de Mumbwa, em Zâmbia.
577
Pré -História da África austral
de lâminas. Lascas triangulares e lâminas, feitas frequentemente de quartzito e
lidianita, são comuns nas áreas de chuvas de inverno ao sul da Grande Escarpa
do sudoeste da África e no highveld do Estado Livre de Orange e do Transvaal.
Nesses utensílios do Grupo II, o trabalho de retoque nunca é muito extenso,
limitando -se geralmente aos bordos, que são frequentemente denticulados. Nas
matas tropicais claras do norte de Limpopo, onde a utilização do quartzo era
mais difundida, a produção concentrava -se em lascas mais curtas, transformadas
em raspadores e em diversas outras formas, também com retoques limitados.
Nesse sítio, uma pequena mas significativa parte do conjunto é composta de
utensílios pesados cuja produção foi possível, como se acredita, graças à maior
utilização da madeira e de seus produtos.
Um terceiro grupo de indústrias (Grupo III)
13
situa -se aproximadamente entre
35.000 e 15.000 B.P. e distingue -se por um número maior de utensílios bastante
retocados. O retoque dos raspadores é semi -invadente e não são raras as formas
com estrangulamento; as pontas foliáceas podem ser retocadas inteiramente
em uma ou ambas as faces; os furadores e trituradores são característicos. De
modo geral, os utensílios têm dimensões menores e apresentam um trabalho de
retoque mais refinado do que o dos grupos anteriores.
Além dos três grupos descritos, um quarto (Grupo IV) que se destaca
por algumas diferenças significativas em relação aos outros. Tal complexo
conhecido como Magosiense ou Second Intermediate combina uma forma
evol uída e frequentemente miniaturizada das técnicas do núcleo discoide e do
levalloisiense com a produção de lâminas delicadas, de bordos paralelos, debitadas
com o auxílio de uma peça intermediária de osso, chifre ou madeira dura. As
matérias -primas escolhidas eram geralmente rochas criptocristalinas; as pontas
triangulares ou foliáceas e os raspadores feitos com essas rochas, frequentemente
pelos métodos do núcleo discoide e levalloisiense, são delicadamente retocadas,
às vezes, acredita -se, por pressão. Ao lado desses utensílios tradicionais da Middle
Stone Age, foram encontrados outros feitos com lâminas ou fragmentos de
lâminas, muitos deles de tamanho reduzido, com um bordo desbastado, ou ainda
utilizados e retocados de diversas maneiras, bem como vários tipos de buris,
principalmente uma forma carenada ou poliédrica. Esse tipo de utensílios parece
ser próprio de certas partes do subcontinente, por exemplo, Zimbabwe, Zâmbia,
a parte leste do Estado Livre de Orange, o sul da província do Cabo e algumas
13 Exemplos: a indústria do Pietersburgiense Superior da Gruta das Lareiras e daGruta de Mvulu ou da
Gruta de Border, em Natal; a parte superior da indústria stillbayense da gruta de Peer, na província do
Cabo; a indústria Bambata das cavernas Khami, em Zimbabwe.
578
Metodologia e pré -história da África
F . Civilização sangoense de Zimbabwe,
variante do Zambeze (divisão superior): 1 e 2. picões;
3 e 8. machados nucleiformes; 4. núcleo discoide; 5 e
6. lascas retocadas; 7. esferoide (Apud CLARK, J. D.
e Stone Age Cultures of Northern Rhodesia. Cidade
do Cabo, South African Archaeological Society, 1950.
Prancha XII).
F . Instrias da Middle Stone Age,
provenientes de Twin Rivers (mbia), datadas de
32.000 a 22.000 anos B.P.: 1. raspador angular; 2. lasca
utilizada, destacada de um núcleo discoide de tamanho
reduzido; 3. raspador convergente; 4. raspador sem
ponta; 5. pequeno raspador; 6 e 7. bifaces pesados;
8. biface. Todos os exemplares são feitos de quartzo,
exceto o n. 3 (sílex negro) e o n. 8 (dolerito) (Apud
CLARK, J. D. The Prehistory of Africa. Londres,
ames and Hudson, 1970. Fig. 34).
F . Indústrias de Pietersburg e Bambata,
provenientes da gruta das Lareiras (Cave of Hearths),
no Transvaal, e da gruta de Bambata, em Zimbabwe.
Instrumentos característicos das regiões de arbustos
espinhosos e do bushveld (Apud CLARK, J. D. e
Prehistory of Africa. Londres, ames and Hudson,
1970. Fig. 35).
579
Pré -História da África austral
áreas da Namíbia. No entanto, esses utensílios aparentemente não existem na
maior parte da região central do planalto interior, onde a lidianita constituía a
principal matéria -prima. Se essa distribuição tem uma base ecológica, cabe -nos
tentar determinar o que havia em comum entre as regiões onde as indústrias do
Grupo IV foram encontradas.
Pensava -se que essas indústrias evoluídas” representavam uma fusão entre
as técnicas do “núcleo preparado da Middle Stone Age e a da debitagem de
lâminas por meio de percutor do Paleolítico Superior”. Nesse caso, elas não
seriam muito anteriores a um período entre 15.000 e 20.000 B.P.; realmente,
um certo número de datações enquadra -se nesse intervalo. Mais recentemente,
porém, várias datações muito anteriores a essas
14
foram obtidas para as indústrias
do Grupo IV, que foram denominadas magosienses ou, na África do Sul,
“Howiesons Poort (do nome do sítio, perto de Grahamstown, onde os primeiros
utensílios caractesticos foram encontrados). Infelizmente, com excão da
caverna de Montagu na província do Cabo e da indústria de Tshangula em
Zimbabwe, ainda não existem informações precisas sobre a composição dessas
descobertas, de modo que não sabemos se formam um conjunto homogêneo ou
se existe mais de uma indústria entre elas.
Supondo, por enquanto, que tais complexos sejam homogêneos, essas datas
antigas indicam que uma tecnologia desenvolvida de lâminas coexistiu no sul da
África com as tecnologias tradicionais das lascas preparadas da Middle Stone
Age. O mesmo ocorre no norte da África, onde dois complexos contemporâneos,
a cultura de Daba e o Ateriense, se diferenciam regionalmente. No passado,
a evolução e a sucessão de indústrias líticas eram, em geral, explicadas pelos
movimentos migratórios de populações geneticamente diferentes. Todavia, essa
hipótese não é apoiada por outras evidências, sendo mais provável que o grau
de adoção e difusão de utensílios entre populações de caçadores -coletores tenha
dependido muito mais das vantagens de tais utensílios e de sua superioridade
sobre o equipamento tradicional, sobretudo onde seu emprego facilitasse a
exploração de novos recursos. A menos que implicassem a ocupação de regiões
desabitadas, como o Novo Mundo ou a bacia do Zaire e as zonas florestais da
África ocidental no fim do Pleistoceno Médio, as migrações de longa distância
eram provavelmente raras entre os grupos de caçadores -coletores, relacionando -se
14 As indústrias do Grupo IV receberam as seguintes datações: na caverna de Montagu, entre -23.200 e
-48.850; no rio Klassies, no sul da província do Cabo, em torno de 36.000 B.P.; na caverna de Rose Cottage,
no Estado Livre de Orange, -50.000; para o “Epi -Pietersburgiense” na caverna de Border, -46.300. A
indústria de Tshangula , em Zimhahwe. situa -se entre 21.700 ±780 e 25.650 ± 1800 anos B.P.
580
Metodologia e pré -história da África
F . De 1 a 12. utensílios em lex e calcedônia, das
indústrias wiltonienses da província do Cabo, na África do Sul,
(segundo BURKITT, M. C. 1928): 1, 2 e 3, raspadores curtos; 4
e 5. micrólitos retos com bordo não ativo aparado; 6. furador; 7, 8
e 9. segmentos de círculo; 10 e 11. “crescentes duplos”; 12. contas
de casca de ovo de avestruz. Os exemplares 3, 4 e 12 provêm do
abrigo na rocha de Wilton e os demais, da planície do Cabo. De
13 a 20, utensílios das indústrias de Matopan (Wiltoniense de
Zimbabwe), provenientes da caverna de Amadzimba, Matopos
Hills, em Zimbabwe (segundo COOKE, C. K. e ROBINSON, K.
R. 1954): 13. furador espatulado de osso; 14. ponta de osso com
talão em bisel; 15. elemento cilíndrico; 16, 17, 18 e 19. segmentos
de círculo e crescentes espessos, em quartzo; 20. pingente de ardósia,
(Apud CLARK, J. D. e Prehistory of Africa, Londres, ames and
Hudson, 1970, Fig. 56).
F . Utensílios de madeira provenientes de depósitos do
Pleistoceno na África austral: 15. cabo de propulsor esquerda)
proveniente do nível I da camada de turfa de Florisbad Mineral
Spring, datado de cerca de 48.000 B.P.; comparar com o cabo
de um propulsor australiano direita), com entalhes para evitar
o deslizamento da mão; 16. maça e utensílio com duas pontas,
provenientes do nível de ocupação acheulense de Kalambo Falls
(Zâmbia), datados de 190.000 B.P. (Apud CLARK, J. D. e Prehistory
of Africa, Londres, ames and Hudson, 1970, Pranchas XV e XVI).
F . Lasca -en em forma de crescente feita de sílex
negro, montada por meio de mástique sobre um cabo de chifre de
rinoceronte, proveniente de uma caverna da baía de Plettenberg, no
leste da província do Cabo (segundo CLARK, J. D. 1970).
581
Pré -História da África austral
mais com as populações agrícolas. A mais provável explicação para as mudanças
observadas nos utensílios é a invenção independente por comunidades quase
isoladas que dispunham de recursos e todos de explorão semelhantes;
portanto, as mudanças seriam devidas mais à difusão de estímulos do que a
grandes migrações étnicas.
A título de explicação, é necessário examinar rapidamente os testemunhos
fósseis do sul da África após o fim do Acheulense, aos quais o crânio de Saldanha
parece estar associado. Como o crânio descoberto em Kabue (Broken Hill) se
assemelha bastante ao de Saldanha, é provável que não haja um intervalo de
tempo muito grande entre os dois. O pequeno número de artefatos e esferoides
leves provenientes de Kabue, que parecem estar relacionados aos restos de
hominídeos, não são característicos e poderiam pertencer a qualquer período
entre o Acheulense Recente e o início da Middle Stone Age. Nesse depósito
foram encontrados horizontes de habitação em estratigrafia atribuídos a esse
período, de forma que, embora se possa presumir que o crânio quase completo
e outros restos sejam representativos da família de hominídeo responsável pelo
Sangoense local ou pelo Acheulense Final, esse fato não poderá ser comprovado
até que o próprio fóssil seja datado por um método mais preciso. Entretanto, as
semelhanças entre os fósseis de Saldanha e de Kabue (Broken Hill), bem como
entre o fragmento craniano (H. 12) do Bed IV de Olduvai e o de Njarassi,
no Rift do lago Eyasi, na África oriental, parecem indicar que essas formas
“rodesioides” e outras formas aparentadas ao Homo sapiens substitram o
Homo erectus durante a última parte do Pleistoceno Médio (como o homem de
Neandertal, na Eurásia) e que, no início do Pleistoceno Superior, encontravam-
-se amplamente distribuídas nas regiões tropicais da África subsaariana
15
.
As alterações climáticas (que, de acordo com estudos palinogicos,
limnológicos e outros, ocorreram na África simultaneamente às que
acompanharam a última glaciação na Eurásia), bem como a distribuição esparsa
e o relativo isolamento das populações de hominídeos causaram certamente
transformações e desenvolvimentos em várias direções diferentes, no momento
em que os hominídeos se adaptavam de modo mais eficiente, nos planos cultural
e genético, aos ambientes diversos que tinham conseguido ocupar.
Quaisquer que tenham sido as causas domínio da linguagem, evolução
da estrutura social, tecnologia avaada ou outras que deram ao homem
moderno (Homo sapiens sapiens) uma vantagem inegável sobre as outras formas
15 Novas datações de dois dos fósseis de hominídeos, obtidas através do método de racemização, indicam
um período entre 100.000 e 200.000 B.P. (BADA, J. Comunicação pessoal).
582
Metodologia e pré -história da África
de hominídeos, é claro que elas são a base do intercâmbio genético acarretado
pela substituição relativamente rápida das formas neandertaloides, rodesioides e
outras não tão bem adaptadas. O homem moderno (representado pelos crânios
descobertos na “Formação de Kibish”, na bacia inferior do Orno e em Kangera,
na bacia do lago Vitória) apareceu na África oriental cerca de 200.000 anos B.P.
Na África do Sul, o crânio de Florisbad, que tem mais de 48.000 anos, pertence a
uma forma primitiva e robusta, próxima do homem moderno. Um certo número
de fósseis mais recentes, mas datados com menor precisão e que, na maioria,
pertencem ao período entre -35.000 e -20.000 (provenientes de Boskop, caverna
de Border, Tuinplaas, Skildergat caverna de Peer –, Mimbwa e outros sítios)
representam várias populações já modernas, diferenciadas regionalmente e
responsáveis por algumas variantes culturais da Middle Stone Age.
Por volta do fim do Pleistoceno, cerca de 10.000 anos atrás, populações
geneticamente aparentadas, mas distintas do ponto de vista regional, ancestrais
longínquos de alguns povos atuais, tinham -se diferenciado: os troncos de San
grandes e pequenos no sul e no centro -leste da África; os negroides, na
África equatorial e ocidental; e a forma nilótica na África oriental. Os fósseis
são fragmentários e, em geral, limitam -se a apenas um espécime. Raramente se
encontram indicações suficientes sobre a amplitude das variações que podemos
esperar dentro de uma só população. Mesmo assim, torna -se claro que as “raças”
africanas autóctones têm uma considerável antiguidade no continente, onde
podemos considerar terem elas evoluído durante o Pleistoceno Superior e os
primórdios do Holoceno, através de um longo período de adaptação e seleção
nas principais regiões biogeográficas.
Como foi mencionado anteriormente, as minas obtidas por percussão
indireta e diversos utensílios pequenos feitos com lâminas com bordo aparado ou
truncamento, descobertos entre os utensílios do Grupo IV (Howiesons Poort),
foram considerados no passado como uma evidência de movimentos migratórios
das populações; tais utensílios teriam sido introduzidos por grupos imigrantes
de homens modernos”. É necessário aguardar o resultado de estudos definitivos
sobre os sítios escavados para verificar se essa “hipótese étnica será confirmada
ou se tal complexo reflete a aceitação de novas técnicas transmitidas pela difusão
de um estímulo e adotadas porque permitiam uma melhor exploração dos
recursos locais, ou ainda se é produto de fatores totalmente diferentes. Qualquer
que tenha sido a causa, quase não dúvida de que a introdução da tecnologia
das lamelas está ligada ao desenvolvimento dos utensílios compostos, nos quais
duas ou mais peças e/ou materiais eram combinados para fazer um utensílio
mais aperfeiçoado e mais eficiente. O encabamento dos utensílios de pedra ou
583
Pré -História da África austral
de outro material para obter uma eficiência maior começou provavelmente na
época das indústrias do Grupo II: os traços de adelgaçamento nas faces dorsais
das pontas de Mossel Bay ou a retirada do talão por retoques inversos parecem
indicar modificações relacionadas com a fixação de cabos. Na África, o meio
mais simples de montar, por exemplo, uma faca de pedra ou uma ponta de
projétil era provavelmente utilizar diversas formas de mástique (resina, goma,
látex, etc.) com ligamentos de fibras e tendões.
O aparecimento do homem moderno na pré -história está associado a uma
série de práticas e características culturais inovadoras. Os sedimentos acumulados
nas cavernas e abrigos sob rochas e em alguns sítios favoráveis ao ar livre indicam
que desde então as ocupações sazonais tornaram -se regra geral. Ao que parece,
estamos diante de grupos muito mais estrutura dos, embora ainda abertos e de
composição sujeita a frequentes alterações. A multiplicidade e a padronização
dos diferentes tipos de utensílios, a maior frequência de sepulturas intencionais
e o hábito de colocar junto ao morto objetos e alimentos para que ele pudesse
enfrentar o além, o uso mais regular de pigmentos na decoração e possivelmente
no ritual, e até mesmo o gosto pela música presente na África do Norte - tudo
testemunha as indiscutíveis vantagens genéticas do Homo sapiens sapiens. Um
dos aspectos da maior especialização regional dos utensílios pode ser explicado
pelas preferências locais por certas espécies de animais de caça e no crescente
uso de certos alimentos vegetais que precisavam ser moídos e triturados. O
material de moagem aparece pela primeira vez com as indústrias dos grupos III
e IV e mais particularmente pouco depois de -25.000. Um conjunto significativo
de utensílios pesados acompanha os utensílios leves do norte e do nordeste de
Zâmbia, refletindo um sistema de exploração com recursos muito semelhantes
aos do Zaire e de Angola.
A visão tradicional da Middle Stone Age como um conjunto de variantes
regionais distintas (Stillbay, Pietersburg, Mossel Bay, Howiesons Poort, etc.),
todas mais ou menos contemporâneas e caracterizadas por uns poucos fósseis-
-guias, parece hoje excessivamente simplificada. As indústrias da Middle Stone
Age podem ser consideradas como produtos de uma adaptação contínua a
regiões ou zonas biogeográficas distintas, onde as necessidades e atividades dos
grupos humanos determinaram a escolha das matérias -primas a serem usadas na
fabricação dos utensílios. Podemos compreender melhor a importância relativa,
para o grupo, desses diferentes materiais madeira, pedra, osso, chifre, etc.
a partir de uma comparação entre os dados paleoecológicos e os obtidos
através de estudos do tipo site catchment analysis (análise de área de captação de
584
Metodologia e pré -história da África
recursos).
16
Um conjunto de utensílios de pedra comuns não é necessariamente
sinal de mediocridade, nem um conjunto de utensílios mais “refinados
representa superioridade. Por si só, os utensílios líticos podem fornecer apenas
uma quantidade mínima de informações sobre o comportamento de quem os
produziu. Realmente significativa é a associação entre esses utensílios e todos
os outros produtos da atividade humana preservados, referentes a uma fase de
ocupação. A estrutura dos sítios da Middle Stone Age é menos conhecida que a
dos sítios do Acheulense e de épocas anteriores. A Cave of Hearths nos fornece
a prova da existência de fogueiras, enquanto a caverna de Montagu nos informa
sobre a distribuição de artefatos em volta das fogueiras em cada horizonte. No
sítio de Orange I foram encontradas “fundações” de pedra de vários pequenos
abrigos e em Zeekoegat 27, na região do Orange River Scheme, há vestígios de
uma grande área de atividade abrigada. Pilhas de ossos de uma ou várias caçadas
bem sucedidas foram descobertas em Kalkbank, na região central do Transvaal;
finalmente, descobertas feitas na caverna dos Leões na Suazilândia, parecem
indicar que a hematita começou a ser extraída para fabricar pigmento cerca
de 28.000 anos atrás. Bigornas calçadas para debitagem de pedras aparecem
nos horizontes do Rubble I, em Kalambo Falls, e datam de aproximadamente
27.000 B.P. No mesmo sítio, pequenos círculos de pedras parecem ter delimitado
antigas fogueiras, enquanto em Botsuana foram encontrados vestígios de um
acampamento temporário da indústria Bambata, dispersos às margens do rio
Nata. Restos de fauna sob a forma de resíduos de alimentação indicam que a
fonte principal de abastecimento era constituída pelos grandes animais; alguns,
como búfalos, gnus, búbalos, zebras e suínos, estavam entre as espécies levadas
com mais frequência para os locais de habitação. Em geral, parece existir nos
sítios da Middle Stone Age uma variedade maior de espécies do que nos do
Acheulense. As descobertas sugerem que, embora melhores armas permitissem
cadas mais produtivas, as espécies capturadas continuavam a ser muito
variadas; foi apenas durante a Late Stone Age que a caça assumiu um caráter
mais seletivo.
Em resumo, não é mais posvel considerar as indústrias da Middle
Stone Age como uma progressão simples e linear para uma tecnologia mais
refinada e evoluída. Se as datações estão corretas, essas indústrias mostram,
16 A site catchment analysis (análise de captação de recursos) é um método desenvolvido por C. VITA-FINZI
e E. S. HIGGS, 1970, para estabelecer o potencial de recursos de uma região explorada a partir de um
determinado sítio pré -histórico. Para tanto, é necessário identicar os limites territoriais e em que medida
o habitat e a bioma diferiam dos atuais. VITA-FINZI, C. e HIGGS, E. S. “Prehistoric economy in the
Mount Carmel area of Palestine: site catchment analysis”. Proc. of the Preh. Soc. 1970, 36, p. 1 -37.
585
Pré -História da África austral
ao contrário, várias técnicas diferentes com uma base essencialmente
econômica. Essas técnicas influenciam -se mutuamente em graus diversos e
podem evoluir em função das necessidades materiais. As diversas variantes
identificadas provavelmente refletem preferências regionais quanto aos
recursos e à sua extrão, embora a maioria dessas variantes ainda precise ser
mais bem definida. Em algumas regiões, certos tios com estratigrafia (Cave
of Hearths, por exemplo) apresentam uma clara sequência evolutiva, enquanto
em outras (Klassies River, na costa meridional da África do Sul, e a caverna
de Zombepata, em Zimbabwe) a sequência estratigráfica mostra um padrão
semelhante ao das tradições do Musteriense do oeste da França, e certos grupos
podem se suceder sem continuidade aparente. A substituão de um grupo por
outro pode ter tido uma origem econômica e refletir alterações ecológicas,
indicando portanto novas preferências alimentares. Os raros testemunhos de
que dispomos confirmariam essa hitese; mas ainda não possuímos análises
detalhadas da fauna nem dados sobre o pólen que permitam estabelecer se tais
transformações ocorreram simultaneamente em vastas regiões biogeográficas
ou se refletem apenas uma evolão temporal dos recursos alimentares deste
ou daquele habitat.
Embora a Middle Stone Age no sul da África seja em grande parte
contemporânea do Paleolítico Superior na Europa, seus estágios mais antigos,
apesar de pouco conhecidos, parecem ser contemporâneos do Musteriense ou
do Jabrudiense (Pré -Aurignaciense) do Oriente Médio.
Late Stone Age
No sul da África, a imagem clássica da Late Stone Age é a de um conjunto de
indústrias compostas principalmente de utensílios microlíticos, chamadas comum
ente de wiltonienses (do nome da caverna no oeste da província do Cabo onde
as indústrias características foram encontradas e descritas pela primeira vez), da
mesma forma que a indústria de raspadores smithfieldiense na área de lidianita
do highveld. Entretanto, em algumas partes do subcontinente, encontraram-
-se indústrias que foram denominadas pré -wiltonienses. Elas surgiram há
pouco mais de 20.000 anos e assinalam uma mudança radical na tecnologia
dos utensílios de pedra. Os núcleos preparados” da Middle Stone Age dão
lugar a núcleos sem forma precisa dos quais são extraídas lascas irregulares. Os
únicos utensílios que parecem preservar uma forma regular são diversos tipos de
raspadores grandes, raspadores feitos sobre lascas ou abruptos e vários raspadores
menores convexos. Espécimes desses utensílios foram encontrados em sítios do
586
Metodologia e pré -história da África
litoral sul
17
do Estado Livre de Orange
18
, do Transvaal
19
e da Namíbia
20
, onde
estão associados à matança de três elefantes.
Em Zimbabwe, a indústria equivalente é o Pomongwiense, que se situa entre
±9400 e 12.200 B.P. Ela está particularmente associada a extensas fogueiras de
cinzas brancas, e algumas das primeiras pontas de osso pertencem a essa época.
Uma indústria possivelmente relacionada à pomongwiense é um dos níveis da
caverna de Leopards Hill, em Zâmbia, que data de 21.000 a 23.000 B.P. Outras
descobertas desse tipo, até agora sem datas, foram feitas em Pondoland (caverna
de Umgazana), no vale do médio Zambeze, em Zâmbia (Lukanda) e em outras
regiões. Essa distribuição geográfica indicaria que tal mudança tecnológica
radical pode ter sido bem geral entre ± 20.000 e 9000 anos atrás. Suas causas
são ainda incertas, mas o autor deste capítulo presume que ela poderia ser o
resultado de uma associação entre alterações ambientais ocorridas nessa época
(e que, segundo se acredita, deixaram vestígios em alguns sítios do sul da África,
por exemplo, na baía de Nelson, em Zombepata etc.) e o desenvolvimento ou
a difusão de equipamentos e técnicas mais eficientes, relacionados em especial
com novos métodos de caça.
Algumas evidências indicam que essas indústrias pré -wiltonienses estavam
associadas à caça de grandes animais ungulados: búbalos, gnus, antílopes azuis
e zebras. Além disso, na caverna da baía de Nelson, elas parecem coincidir
com uma alteração ecológica ocorrida pouco depois de 12.000 B.P., quando a
fauna das pradarias foi substituída por espécies da floresta perene. Além disso,
o aparecimento de uma grande quantidade de animais marinhos entre os restos
indica que o aumento do nível do mar nos estágios finais do Pleistoceno tinha
tornado possível a exploração direta da fauna marinha a partir dessa caverna.
Acredita -se hoje que as indústrias de lamelas com uma alta porcentagem de
utensílios microlíticos com bordo aparado tenham surgido no sul da África central
muito antes do que se pensava inicialmente. Uma das primeiras é representada
pelo estágio mais antigo Nachikufiense (Nachikufu I) em Zâmbia, em que a
data mais antiga é 16.715 ±95 B.P. Uma indústria wiltoniense local surgiu em
17 A caverna da baía de Nelson, datada entre 18.000 e 12.000 B.P.; Matjes River, datada entre 11.250 e
10.500 B.P.; e Oakhurst. Na caverna da baía de Nelson, uma indústria que recobre a indústria de ras-
padores abruptos data de 12.000 a 9000 B.P. A maioria dos utensílios são feitos sobre lascas grandes;
não há formas microlíticas. Uma indústria pré -wiltoniense semelhante é encontrada em outros sítios na
região montanhosa do sul, por exemplo, em Melkhoutboom, onde data de 10.500 ±190 anos B. P.
18 Smitheld A, por exemplo a. indústria da Fase I de Zeekoegat 13.
19 Uitkomst, datado de 7680 B.P.
20 Windhoek. datado de ±10.000 B.P.
587
Pré -História da África austral
Zimbabwe aproximadamente em 12.000 B.P. (gruta de Tshangula) e na África
do Sul um pouco mais tarde (8000 a 5000 B.P.). Esses exemplos da África
centro -sul encontram paralelo nas indústrias puramente microlíticas de lâminas
com bordos, provenientes de sítios da África oriental – os de Uganda (gruta de
Munyama, ilha de Buvuma, 14.480 ±130 B.P.), do Rift de NakurujNaivasha,
em Quênia (Prolonged Drift, 13.300 ±220 B.P.) e da Tanzânia central (abrigo
sob rocha de Kiesese, 18.190 ±300 B.P.). Uma indústria relacionada a essas, mas
distinta regionalmente, é o Tshitoliense, na bacia do Zaire (12.970 ±250 B.P.).
A tradição dos micrólitos coincide com o desenvolvimento de formas cada vez
mais eficientes de utensílios compostos, entre os quais um dos mais significativos
foi o arco e flecha.o se. sabe em que data essas armas surgiram pela primeira
vez na África, o que ocorreu provavelmente durante a última fase do Pleistoceno.
Tão importantes quanto os segmentos de círculo e outros. utensílios de pedra
com bordo aparado, usados como armaduras de flechas, foram os diversos tipos
de pontas de osso e pontas de arremesso, provavelmente também utilizados
como pontas de flechas. Alguns deles, sem dúvida, remontam a 12.000 anos B.P.
Acredita -se que seja possível reconhecer seqncias evolutivas nessas
indústrias microlíticas em diversas partes do sul da África; em outras regiões,
porém, como no noroeste de Zâmbia, o núcleo discoide persistiu aparentemente
até o segundo milênio antes da Era Cristã, enquanto em outras partes (no
Estado Livre de Orange, por exemplo), os elementos microlíticos wiltonienses.
Parecem ter desaparecido, dando lugar a indústrias onde predominaram os
raspadores (Smithfield B).
Conhecemos um número maior de sítios da Late Stone Age que da Middle Stone
Age e há raes para supor que o início do Holoceno foi um período de crescimento
demogfico. Foi tamm a partir dessa época (por volta de 10.000 B.P.), que as
cavernas e os abrigos sob rochas passaram a ser ocupados com freqncia cada vez
maior. Os recursos locais foram explorados mais intensamente que antes e os restos
de fauna encontrados nos sítios de habitão mostram a crescente importância dada
à caça e à captura de determinados animais. O sistema de explorão provavelmente
não se diferenciava muito do que é utilizado hoje pelos San do Calaari e por outros
grupos de caçadores -coletores da zona tropical árida.
Os deslocamentos e o território de um grupo eram determinados pela
disponibilidade sazonal de recursos de água, vegetais e animais, havendo sem dúvida
contatos regulares entre grupos vizinhos. Os que viviam perto do mar ou de fontes
de água doce exploravam agora os recursos locais: peixes, moluscos e maferos
aquáticos. Outros caçavam sobretudo as grandes manadas de anlopes, e outros
ainda animais de pequeno porte. Na rego montanhosa do sul da província do
588
Metodologia e pré -história da África
Cabo, às formas mais comuns de utensílios de pedrao diversos tipos de pequenos
raspadores; os resíduos de alimento provêm, em sua maioria, de pequenos maferos,
provavelmente capturados com o auxílio de armadilhas. Por outro lado, em
Zimbabwe, Zâmbia e outras regiões, nas pradarias e florestas claras, as instrias
conm grandes quantidades de segmentos de rculo microlíticos e lamelas com
bordo aparado associados aos restos de grandes maferos. Esses utensílios indicam
que as principais armas eram provavelmente o arco e a flecha; os micrólitos eram
encabados sozinhos ou aos pares, formando largas pontas cortantes, semelhantes às
do Egito dinástico e às poucas flechas feitas pelos San da época histórica e que foram
preservadas. A extensão territorial dos grupos de caçadores dependia provavelmente
de rios fatores ecogicos. Na região oeste da província do Cabo (De Hangen),
demonstrou -se que os grupos pré -históricos de San passavam o inverno na costa,
nutrindo -se principalmente de alimentos marinhos, e o verão, nas montanhas, cerca
de 140 km para o interior, onde a dieta consistia em diversos vegetais, daies,
tartarugas e outros pequenos animais.
Nas regiões muito favoráveis do sul da África, os caçadores -coletores da
Late Stone Age ocuparam algumas das áreas mais ricas do mundo em recursos
alimentares vegetais e animais. Em regiões como essas, nas quais as fontes de
caça eram praticamente inesgotáveis, os caçadores tinham tempo suficiente para
se dedicarem a atividades intelectuais, como prova a magnífica arte rupestre
dos montes Drakensberg, de Zimbabwe e da Namíbia. Embora muitas dessas
obras de arte não tenham mais de 2000 ou 3000 anos, elas fornecem um registro
incomparável do modo de vida desses caçadores -coletores pré -históricos, que,
em muitos aspectos, se perpetuou até hoje entre os San do Calaari central. É
evidente que as origens dessa arte remontam a épocas muito longínquas; as mais
antigas pinturas descobertas até agora na África austral provêm do abrigo sob
rocha Apollo II, no sudoeste africano (Namíbia), onde aparecem nas superfícies
do rochedo, numa camada de 28.000 anos B.P.
Nos primeiros séculos da Era Cristã, as populações de caçadores -coletores
da Late Stone Age foram substituídas, em grande parte do sul da África, por
povos agricultores que conheciam a metalurgia. Esses povos foram provavelmente
os precursores de grupos de língua bantu que migraram para o subcontinente
vindos de uma rego situada no noroeste (Chade e Camarões). No sul da África,
portanto, o há provas seguras da existência de cultura neolítica, o que significa
que o havia povos agricultores que fabricassem cerâmica, mas apenas populações
que utilizavam utensílios de pedra, em particular machados amolados e polidos.
Todavia, é necessário salientar que, embora não haja traços seguros de agricultura
antes da chegada dos povos do início da Idade do Ferro, é certo que, no sudoeste da
589
Pré -História da África austral
África, já no primeiro século antes da Era Cristã e quase certamente antes ainda,
alguns grupos da Late Stone Age recente possuíam carneiros, e depois bovinos.
Alguns desses povos podem ser identificados com os Khoi Khoi históricos, ou
seja, com pastores nômades que não praticavam a agricultura, mas fabricavam um
tipo determinado de cerâmica. No entanto, nenhum vestígio de habitat pastoril
claramente identificado foi descoberto até agora; portanto, que não podemos
recorrer às pesquisas arqueogicas, nossas informações sobre tais grupos devem ser
obtidas em fontes históricas. Uma questão que também está sem resposta refere -se
à origem de seu gado. Com base em dados linguísticos, alguns autores sugerem
que ele provinha de povos que falavam línguas do Sudão central e oriental; outros,
pom, acreditam que esses animais vinham de povos migrantes do início da Idade
do Ferro. Qualquer que seja sua origem, é pouco provável que essa fase pastoril
seja anterior a 300 anos antes da Era Cristã, tendo terminado no século XVIII.
Assim, os dados fornecidos pelos estudos da pré -história na África austral
mostram o importante papel desempenhado pelo alto planalto interior na
evolução do homem como fabricante de utensílios. A crescente engenhosidade
e eficiência com que as sucessivas populações de hominídeos desenvolveram
padrões de comportamento e equipamento cultural que lhes permitiram explorar
de modo cada vez mais intenso os recursos dos ecossistemas onde viviam, ajudam
a explicar as diferenças étnicas e culturais que distinguem os povos autóctones
do sul da África hoje (San, Khoi Khoi, BergDama, OvaTjimba, Twa e Bantu).
Além disso, demonstram ainda a grande antiguidade e a continuidade de muitas
características de comportamento que persistem até os dias de hoje.
C A P Í T U L O 2 1
591
Pré -História da África Central
A bacia do Zaire estende -se geograficamente do golfo da Guiné, a oeste, até
a zona dos grandes lagos, a leste, e entre o décimo paralelo ao sul do equador, em
Angola e no Shaba (ex -Catanga), e o diviso r de águas das bacias hidrográficas
do Chade e do Zaire, ao norte
1
.
Representa hoje a zona essencialmente equatorial, e sua cobertura vegetal,
constituída pela grande floresta, é a mais densa de toda a África. Por outro lado,
sabe -se também que essa zona florestal se estendeu, em alguns períodos muito
úmidos, muito mais ao norte do que atualmente. No decorrer dos milênios a
floresta regrediu, subsistindo somente em galerias de amplitude variável, ao
longo dos rios. Insistimos nessa cobertura vegetal porque foi um fator primordial
no desenvolvimento e na evolução das civilizações pré -históricas da região.
Segundo os trabalhos e os conhecimentos atuais, as culturas pré -históricas e,
mais particularmente, ao que parece, as que sucederam ao Acheulense evoluíram
no próprio local, condicionadas pela floresta primária e sem contato com as
populões que viviam nas zonas de vegetão menos densa. Ao norte, as
grandes migrações do Neolítico, deslocando -se de leste para oeste, contornaram
a floresta sem penetrá -la, como se representasse uma barreira, um mundo no
qual não se aventuravam as populações habituadas a viver nas zonas de savanas
1 Entendemos por África Central os seguintes países: Zaire, República Centro -Africana, República
Popular do Congo, Gabão, Camarões e, em parte, Angola, Ruanda e Burundi.
P-História da África Central
PARTE I
R. de Bayle des Hermens
592
Metodologia e pré -história da África
F . Variações climáticas e indústrias pré -históricas da bacia do Zaire (segundo G. Mortelmans, 1952).
e nos grandes espaços desbastados. Nada do que conhecemos das indústrias do
Paleolítico Médio e Superior, do Neolítico, da arte rupestre – pouco conhecida,
aliás, na bacia do Zaire –, permite afirmar que tenha havido contatos com
populações que viviam em um Saara que ainda não era o grande deserto árido
de hoje. Se pensamos encontrar sinais de contatos, é para o leste e para o sul
da África que nos devemos voltar e ali, então, procurar o ponto de partida das
migrações dos grupos humanos que povoaram a grande floresta equatorial do
oeste.
593
Pré -História da África Central
Do ponto de vista clitico, o Quaternário dessa região estaria muito mais
próximo do Quaterrio da África oriental, ainda que com variações locais devidas
à altitude elevada das zonas montanhosas. Segundo G. Mortelmans (1952), teria
havido quatro períodos pluviais e dois episódios úmidos
2
:
Nakuriano – 2
o
úmido
Makaliano – 1
o
úmido
Gambliano – 4
o
pluvial
Kanjeriano – 3
o
pluvial
Kamasiano – 2
o
pluvial
Kagueriano – 1
o
pluvial
Dessa alternância de períodos relativamente secos com outros muito úmidos
depende, em certa medida, o povoamento de uma região, e isso devido a modificações
no que hoje chamamosmeio ambiente”.
A penetração difícil na grande floresta fez com que vários pré -historiadores
pensassem que o povoamento dessa zona tenha sido pouco significativo no período
que vai do Paleolítico Inferior ao Neotico. De nossa parte, o concordamos com esse
ponto de vista, sendo oportuno desfazer o mito relativo à dificuldade de povoamento
da região. Se em toda a rego as coletas de utensílios líticos foram, até certo ponto,
de pouca monta, isto ocorreu porque os estudiosos hesitaram em empreender
pesquisas de longa durão sob condições adversas. Em vista dos resultados obtidos
recentemente por várias missões em Angola, na Reblica Centro -Africana e no
Zaire, e considerando a enorme quantidade de pedras lascadas coletadas, devemos
reconhecer que o povoamento pré -histórico do que se convencionou chamar a
grande floresta é tão significativo quanto o de outros setores da África.
Finalmente, devemos observar que na zona equatorial úmida os vestígios ornicos
não se conservaram devido à acidez dos terrenos e que, portanto, com rassimas
exceções relativas a peodos muito recentes e mesmo hisricos, os sseis humanos,
os restos de fauna e o instrumental ósseo estão totalmente ausentes.
2 Nakuriano. Fase úmida denida pelos depósitos da praia inferior à dos 102 m do lago Nakuru, no Quênia.
Makaliano. Fase úmida reconhecida nas praias lacustres dos 114 m e 102 m do lado Nakuru.
Gambliano. Pluvial denido ao redor dos lagos Nakuru, Naivasha e sobretudo Elmenteita (Gamble’s
Cave) no Quênia.
Kanjeriano. 3
o
pluvial denido por L. S. B. LEAKEY com base em um depósito fossilífero descoberto
em Kanjera em Kavirondo Gulf.
Kamasiano. 2
o
pluvial, cujo nome se deve a depósitos de diatomitas estudados por Grégory em Kamasa
no Kenya Rift Valley,
Kagueriano. 1
o
pluvial assim chamado com base no sistema de terraços do rio Kaguera, na Tanzânia,
descoberto por E. J. Wayland em 1934.
594
Metodologia e pré -história da África
Histórico das pesquisas
A pré -história da zona da floresta equatorial da bacia do Congo permaneceu
ignorada durante muito tempo, em razão de sua enorme cobertura vegetal e
de suas maciças formações lateríticas, nas quais se encontram encerradas as
indústrias de várias culturas pré -históricas.
Foi preciso esperar o desenvolvimento das grandes obras públicas (construção
de estradas de ferro, rodovias, pontes e canais de saneamento) e as prospecções
de minerais para que se começasse a conhecer a pré -história desse setor, para que
os geólogos e pré -historiadores tivessem acesso aos cortes geológicos reveladores
de instrumental lítico.
No Zaire, as primeiras descobertas isoladas de utensílios p -históricos
parecem ser as do Comandante C. Zboïnsky, durante a construção das
linhas de estrada de ferro. Foram estudadas em 1899 por X. Stainer, que
tentou uma ntese provisória, apesar da auncia de qualquer estratigrafia.
De 1927 a 1938, desenvolvem -se as pesquisas e importantes trabalhos o
publicados, em particular os de J. Colette, F. Cabu, E. Polinard, M. Bequaert,
G. Mortelmans, o do Rev. A. Anciaux de Favaux e do Ab. H. Breuil. Os mais
recentes são os de H. van Moorsel, F. van Noten e D. Cahen, cujas pesquisas
ainda prosseguem.
Quanto à República Popular do Congo, zona essencialmente florestal, os
trabalhos publicados são menos numerosos; convém, entretanto, assinalar as
pesquisas e estudos de J. Babet, R. L. Doize, G. Droux, H. Kelley, J. Lombard
e P. Leroy, particularmente relacionados com as descobertas efetuadas ao longo
da estrada de ferro que liga Ponta Negra a Brazzaville.
A pré -história do Gabão é conhecida pelos trabalhos de Guy de Beauchene,
B. Farine, B. Blankoff e Y. Pommeret, mas as informações são bastante limitadas,
e nenhuma estratigrafia foi estabelecida com precisão.
Os primeiros trabalhos efetuados na República Centro -Africana foram os
do Prof. Lacroix, que, por volta de 1930, descobriu utenlios p-históricos
nas aluviões dos rios do planalto de Muka. Essas descobertas foram publicadas
em 1933 pelo Ab. H. Breuil, e, no mesmo ano, Félix Eboassinalava num
estudo de etnografia alguns utensílios de pedra descobertos no decorrer de
outros trabalhos. Finalmente, entre 1966 e 1968, foram efetuadas pesquisas
sistemáticas no país por R. de Bayle des Hermens. As publicações que se
seguiram permitem que se tenha uma ideia bastante precisa das indústrias
pré -históricas encontradas numa zona onde praticamente nada se conhecia.
595
Pré -História da África Central
Até os últimos anos, muito pouco se sabia sobre a pré -história de Camarões,
e foi preciso esperar os trabalhos de N. David, J. Hervieu e A. Marliac para se
ter uma ideia geral de mais uma região da África cuja prospecção arqueológica
ainda está por ser feita.
Sobre Angola, podemos citar os nomes de J. Janmart, H. Breuil e J. D.
Clark, que efetuaram seus trabalhos nos ricos depósitos de aluviões das minas
de diamantes.
Bases cronológicas
Utilizaremos para este parágrafo os trabalhos de cronologia do Quaternário
da bacia do Zaire elaborados por G. Mortelmans (1955 -1957), que, frente aos
atuais conhecimentos, são os mais aceitáveis.
O pluvial Kagueriano
Parece ser o pluvial mais importante dos quatro que se sucederam. Foi um
período de escavação intensa dos vales e de formação de velhos terraços de
cascalhos, onde se encontram as mais antigas indústrias da bacia do Zaire.
Constituídas na quase totalidade por seixos lascados, essas instrias são
classificadas num Pré -Acheulense Inferior (Kafuense, segundo G. Mortelmans).
Um período árido importante sucede ao pluvial Kagueriano, e os antigos
terraços cobrem -se de uma maciça camada de laterito, onde se encontra um
Pré -Acheulense mais evoluído, porém mal situado cronologicamente devido à
falta de estratigrafia.
O pluvial Kamasiano
Situa -se no estágio final do Pleistoceno Inferior e abrange todo o Pleistoceno
Médio. Na realidade, divide -se em duas fases, separadas por um período mais
seco. Na bacia do Kasai, atribuem -se a esse período os terraços de 30 m e de
22 -24 m; no Shaba (Catanga) e, ao que parece, no oeste da República Centro-
-Africana, os cascalhos de terraços, de fundo de talvegues e dos leitos fósseis
dos cursos d’água. Ocorre, nesse caso, nas regiões de relevo pouco acentuado, a
colmatagem de certos leitos de rios e a escavação de novos cursos. Nas camadas
profundas desses leitos fósseis encontra -se um instrumental pré -acheulense mais
evoluído que o dos antigos terraços do Kagueriano. Alguns bifaces começam a
aparecer, mas seu lugar cronológico não está estabelecido com exatidão.
596
Metodologia e pré -história da África
No fim do período maximal do Kamasiano, o Acheulense Inferior sucede
às indústrias de seixos lascados. Estas ainda se apresentam em grande número,
porém novos utensílios começam a aparecer: os bifaces e as machadinhas em
particular. Estas últimas, bastante raras no início, rapidamente passam a ocupar
um lugar importante no conjunto de utensílios daquela cultura.
O primeiro máximo kamasiano é seguido por uma fase moderadamente
seca, durante a qual ocorrem novas formações de lateritos, ruptura de declives
e depósitos de limos fluviais. A esse período está relacionado um Acheulense
Médio, cujos utensílios em geral são feitos a partir de lascas frequentemente
obtidas por meio de uma técnica de debitagem lateral chamada Victoria West I
3
.
No segundo máximo do Kamasiano
4
menos acentuado que o primeiro, novos
cascalhos são depositados, formando -se os terraços de 15 m no Kasai. O ciclo
termina com o início de um novo período seco, em que ocorre a formação de
novos lateritos. A evolução do Acheulense prossegue com uma nova técnica
de debitagem a Victoria West II e com o desenvolvimento de um novo
instrumento o picão que vai ocupar, na zona florestal, lugar de destaque
dentre os conjuntos industriais que sucedem ao Acheulense.
O período árido Pós -Kamasiano é o mais importante conhecido nessa região.
O Saara estende -se em direção ao sul, e o deserto do Calaari, em direção ao norte.
Alguns autores acreditam que a floresta equatorial tenha praticamente desaparecido,
subsistindo apenas como florestas ciliares. Areias vermelhas desérticas acumulam-
-se, em espessuras às vezes consideráveis; o Acheulense desaparece ou, antes,
parece transformar -se, naquele mesmo local, em uma nova indústria denominada
Sangoense, em particular na África equatorial e nas zonas florestais.
Os utensílios se transformam. As machadinhas tornam -se raras e acabam por
desaparecer; os bifaces passam a ser mais espessos e maciços; os picões tornam -se
muito abundantes, e novos objetos, totalmente desconhecidos no Acheulense, m
figurar no conjunto de utensílios: peças bifaces alongadas, de grandes dimensões.
Esses instrumentos seriam adaptados à vida em meio florestal. Há, entretanto,
uma contradição no que diz respeito ao meio ambiente onde se desenvolveu o
Sangoense, se se admite que a floresta equatorial tenha praticamente desaparecido
no árido Pós -Kamasiano em que se situa essa indústria. Deve -se reconhecer que o
Sangoense é uma das indústrias africanas menos conhecidas atualmente.
3 Nome dado a duas técnicas de debitagem levalloisiense observadas particularmente nas indústrias
recolhidas nas proximidades das quedas do Zambeze, em Vitória (Victoria Falls).
4 Alguns autores consideram este segundo máximo kamasiano o “Kanjeriano”, o que quatro períodos
úmidos em vez de três, dos quais um apresentaria duas fases bem distintas.
597
Pré -História da África Central
O pluvial Gambliano
O pluvial Gambliano assiste à reconstituição da floresta equatorial, enquanto
os rios escavam os vales e depositam às aluviões dos terraços baixos, constituídas
de areias eólias acumuladas por ocasião do último peodo árido. No Zaire
ocidental e no Kasai, o Sangoense evolui para uma nova indústria, menos
maciça, o Lupembiense, também considerada uma cultura florestal. As regiões
do sudeste vêem desenvolverem -se indústrias semelhantes às da África do Sul
e do Quênia: indústrias de lascas e lâminas com fácies musteroides, conhecidas
pelo nome de Middle Stone Age (Média Idade da Pedra), mal situadas tanto na
sua estratigrafia, em geral inexistente, quanto na sua tipologia.
O Makaliano e o Nakuriano, fases úmidas pós ‑gamblianas
Esses dois períodos são muito menos acentuados que os pluviais precedentes:
entre eles intercala -se uma curta fase seca, não sendo o Nakuriano nitidamente
conhecido na bacia do Zaire. No Makaliano os rios escavam ligeiramente seu leito,
havendo, depois, nova colmatagem. O Lupembiense evolui no mesmo local: os
utensílios tornam -se cada vez menores, enquanto os trinchetes e pontas de flecha
aparecem em muito maior número no Tshitoliense, civilização de caçadores. No
Zaire oriental, no Shaba, e em Angola, desenvolvem -se inúmeras fácies incluídas
na Late Stone Age (Alta Idade da Pedra), conjunto que, aliás, precisa ser seriamente
reexaminado, pois compreende várias indústrias tão diferentes e discordantes que
não se consegue situá -las cronologicamente com exatidão.
Durante e após o período úmido Nakuriano, as indústrias neolíticas entre
as quais, o Tshitoliense invadem toda a África equatorial, onde parecem ter
duração muito mais longa que em outros lugares. As civilizações do couro e do
ferro só mais tarde penetrarão nessa região de difícil acesso, o que mostra mais
uma vez a evolução local das culturas pré -históricas.
As indústrias pré ‑históricas da bacia do Zaire
As indústrias pré ‑acheulenses
Em toda a bacia do Zaire conhecem -se indústrias pré -históricas muito antigas,
constituídas de seixos partidos. Encontram -se em geral enterradas sob velhos
lateritos, como na bacia do Alto Kafila, no Zaire, e, na República Centro -Africana,
nas formações lateríticas do planalto de Salo, no Alto Sanga. São encontradas,
ainda, nas aluviões profundas dos leitos fósseis de rios dessa mesma região. Em
598
Metodologia e pré -história da África
Angola, estão presentes nas aluviões profundas de elementos pesados de inúmeros
rios.
Essas culturas pré -históricas antigas, chamadas culturas do seixo lascado”,
Pebble Culture, Early Stone Age, recebem nomes diferentes conforme os lugares
ou os pré -historiadores que as assinalaram pela primeira vez. Na verdade, todas
são parte de uma lenta evolução das técnicas de lascamento, que durou cerca de
2 milhões de anos.
O Kafuense
tio epônimo: vale do Kafu, em Uganda, descoberto por E. J. Wayland
em 1919. A indústria é constituída de seixos de rio, em geral apresentando
destacamentos de três lascas em três direções diferentes, raramente numa ,
o que determina um gume grosseiro. Atualmente o Kafuense subdivide -se em
quatro níveis: Kafuense Arcaico, Kafuense Antigo, Kafuense Recente e Kafuense
Evoluído. Esses quatro estágios são encontrados em Nsongesi (sul de U ganda),
nos terraços de 82 e 61 m. O Kafuense Evoluído é muito semelhante ou mesmo
idêntico ao Olduvaiense. Alguns pré -historiadores consideram que os níveis
antigos do Kafuense não apresentam evidências do trabalho humano, sendo os
seixos fendidos ali encontrados resultantes de fraturas naturais.
O Olduvaiense
Sítio epônimo: Olduvai, na Tanzânia, na planície de Serengeti, descoberto por
Katwinkel em 1911, e que se tornou célebre a partir de 1926, com os trabalhos
e descobertas de L. S. B. Leakey.
A garganta de Olduvai corta profundamente os depósitos de um antigo lago
do Pleistoceno Médio e Superior. Ali foram identificados onze níveis “cheles-
-acheulenses” sobre um P-Acheulense que constitui o Olduvaiense.
O Olduvaiense é uma indústria formada a partir de seixos de rio, em geral
menos planos que os do Kafuense. O lascamento é mais desenvolvido, e o gume
sinuoso é obtido por meio de destacamentos alternados, que no último estágio
dessa indústria acabam por apresentar uma ponta, anunciando as culturas
com bifaces. O Olduvaiense foi encontrado no Shaba, no oeste da República
Centro -Africana (depósitos de aluviões do Alto Sanga), e, ao que parece, está
presente no nordeste de Angola. Contudo não foi identificado com segurança
em Camarões, no Gabão e na República Popular do Congo, apesar da descoberta
isolada de seixos lascados nesses países às margens do golfo da Guiné.
599
Pré -História da África Central
O Acheulense
O Acheulense é uma cultura particularmente bem representada na bacia do Zaire,
sendo certas jazidas de aluves ou de terraços de uma riqueza excepcional. As divies
do Acheulense em quatro ou cinco esgios, conforme os autores, correspondem mais
especialmente às cnicas de lascamento e de acabamento dos utenlios; o mais
tipológicas do que estratigráficas. As jazidas acheulenses o constituídas em grande
parte pelas aluviões de cursos d’água antigos, depositadas sob forma de terros
em cascalhos e em areias de talvegue e nos leitos fósseis de pequenos rios cujos
cursos foram deslocados. As instrias o se encontram em seu lugar de origem;
foram transportadas, concentradas pelo escoamento, sofrendo desgaste durante esse
processo. Em conseqncia, o estudo do Acheulense nessas jazidas fundamenta -se
sobretudo na tipologia e o na estratigrafia, como em Olduvai, onde os desitos
lacustres que encerram as instrias m uma espessura de 100 m aproximadamente.
A indústria acheulense caracteriza -se por utensílios bastante variados e
muito mais elaborados do que os das culturas pré -acheulenses. O seixo lascado
permanece e, embora se torne mais raro à medida que a indústria evolui, não chega
a desaparecer. Utensílios novos adquirem grande importância: em primeiro lugar,
o biface, objeto feito a partir de um seixo ou de uma lasca com destacamentos nas
duas faces, como o próprio nome indica; apresenta forma oval ou amigdaloide,
ponta mais ou menos pronunciada, base geralmente arredondada, seção na maioria
das vezes lenticular e dimensões muito variáveis. Um outro utensílio importante é
a machadinha, caracterizada por um gume oposto à base e talhada a partir de uma
lasca. ainda os picões, pouco numerosos no Acheulense Inferior e Médio, mas
muito abundantes no Acheulense Final. Juntamente com esses quatro utensílios,
figuram no conjunto inúmeras lascas, de dimensões muito variadas, utilizadas em
estado bruto ou retocadas de modo a formar raspadores e outros utensílios menos
elaborados, como as peças denticuladas, por exemplo.
Há cinco subdivisões do Acheulense baseadas na tipologia e nas técnicas de
debitagem.
Acheulense I
(Abbevilliense ou Chellense Antigo, para alguns autores)
O instrumental inclui lascas muito grandes, obtidas pela percuso de
blocos rochosos sobre uma bigorna fixa. Essas lascas clactonienses, também
utilizadas em estado bruto, na maioria das vezes são transformadas em bifaces
e em machadinhas, instrumentos pesados e maciços, com arestas laterais muito
600
Metodologia e pré -história da África
sinuosas. O corte de seixos lascados não desapareceu; ao contrário, desenvolveu-
-se, pois alguns bifaces ditos de base reservada são resultado do aperfeiçoamento
do lascamento de seixos do Pré -Acheulense.
Este estágio é representado no Shaba pelas jazidas de Kamoa e de Luena,
descobertas por F. Cabu. No sul de Angola, foi reconhecido na bacia do Luembe.
Algumas jazidas do oeste da República Centro -Africana também pertencem
ao Acheulense I. Com frequência os utensílios desse estágio recolhidos nas
aluviões de terraços ou de leitos fósseis de rios apresentam -se muito desgastados
devido ao transporte fluvial. É particularmente o caso das jazidas de Lopo e de
Libangue, na República Centro -Africana.
Acheulense II
(Abbevilliense Recente ou Acheulense Inferior)
É uma indústria muito semelhante à anterior, encontrável igualmente nos
cascalhos dos rios de Angola e do Shaba; seus utensílios sofreram, no entanto,
um desgaste menor, sendo mais bem -acabados, do ponto de vista do lascamento
secundário, que os do Acheulense I. As arestas dos bifaces e das machadinhas
tornam -se mais retilíneas, ao que parece, em consequência de retoques com
percutor mole, de madeira ou de osso.
Acheulense III
(Acheulense Médio)
Esse estágio é encontrado na superfície, sobre os cascalhos de Luena e Kamoa,
onde se acha incorporado aos limos fluviais. Nele se opera uma verdadeira
revolução nas técnicas de debitagem: a preparação dos núcleos com o objetivo
de obter grandes lascas. Essa técnica, bem conhecida na África meridional, é
chamada Victoria West I. É a técnica protolevalloisiense. A preparação do núcleo
resulta em um plano de percussão facetado. A lasca é retirada lateralmente e em
seguida cuidadosamente retocada para a obtenção de um biface, machadinha
ou raspado r. O corte é feito com percutor manual mole. Os instrumentos são
bastante regulares e simétricos, tornando -se as arestas laterais praticamente
retilíneas. As machadinhas são talhadas por retoque alterno dos bordos laterais,
o que lhes uma seção retangular.
601
Pré -História da África Central
Acheulense IV
(Acheulense Superior)
Nesse estágio as técnicas de debitagem permanecem basicamente as mesmas,
mas são aperfeiçoadas (técnica Victoria West II). Trata -se de um núcleo muito
mais circular, com plano de percussão facetado, de onde são destacadas grandes
lascas com bulbo situado numa base estreita, diferente da base larga usada na
técnica Victoria West I. Essas lascas servem para a fabricão dos utensílios,
bifaces, raspadores e machadinhas, todos finamente retocados. A são das
machadinhas é trapezoidal ou lenticular. Esse Acheulense Superior encontra-
-se em Kama, nos limos do Kamasiano II, e no Kasai, nos terraços de 15 m.
Acheulense V
(Acheulense Evoluído e Final)
O Acheulense Final presencia uma diversificação cultural em expressões
regionais mais bem adaptadas, ao que parece, ao meio ambiente climático e
vegetal. Corresponde à instalação do homem nos médios e baixos terraços secos.
Além das técnicas conhecidas, começa a aparecer a técnica de debitagem
Levallois. O restante do instrumental não apresenta diferenças em relação aos
estágios precedentes, exceto quanto à perfeição, ao acabamento e ao surgimento
de bifaces e de machadinhas de dimensões muito grandes, algumas com mais de
30 cm de comprimento. Um utensílio desenvolve -se de maneira considerável:
o picão, robusto e maciço, de seção triangular ou trapezoidal; adaptado talvez
para o trabalho em madeira, com grandes peças bifaciais alongadas, anuncia
o complexo Sangoense. Encontram -se, ainda, esferas de pedra cuidadosamente
preparadas, compaveis às bolas”. As jazidas do rio Mangala, a oeste da
República Centro -Africana, forneceram uma série particularmente importante
dessas bolas”. Esse Acheulense Final é encontrado no Shaba, em Kamoa, e nos
arredores de Kalina, no Zaire. Também está representado em Angola, talvez nas
proximidades de Brazzaville, e na República Centro -Africana pelas ricas jazidas
do rio Ngoere, no Alto Sanga.
Em toda a bacia do Zaire, desconhecem -se, infelizmente, os criadores dessa
cultura, em consequência da acidez dos terrenos, que não permitiu a consêrvação
de restos orgânicos.
602
Metodologia e pré -história da África
O Sangoense
O sítio epônimo que deu nome a essa cultura é Sango Bay, na margem do
lago Vitória, na Tanzânia, descoberto por E. J. Wayland em 1920.
O Sangoense é uma indústria derivada diretamente do substrato acheulense
local e sem introdução de elementos externos. Ocupa o fim do pluvial Kanjeriano
e continua durante uma fase de transição entre esse pluvial e o grande período
árido que o sucede. É uma indústria relativamente mal conhecida, que apresenta
várias fácies locais. Estas parecem ter seguido uma evolução interna e se adaptado
a um meio florestal ou, pelo menos, a um ambiente relativamente arborizado,
uma vez que tal indústria coincide com o início de um período árido. Cinco
estágios foram identificados nessa cultura: Proto -Sangoense, Sangoense Inferior,
Sangoense Médio, Sangoense Superior e Sangoense Final.
Do conjunto de utensílios líticos sangoenses, o único que chegou até nós
sofreu profundas modificações em relação ao Acheulense Final, que o precede.
No início de sua evolução, os bifaces continuam a tradição acheulense; aos poucos
vão -se tornando mais maciços, mais largos e mais curtos, surgindo também
alguns outros, semelhantes aos picões, com duas extremidades pontiagudas.
Por outro lado, as machadinhas desaparecem rapidamente, e as poucas que
subsistem são de pequenas dimensões com bordos laterais, muito sinuosas e
talhadas em lascas largas. Os seixos lascados ainda estão presentes, embora
não sejam muito abundantes. Os picões que apareceram no fim do Acheulense
passam a ocupar um lugar importante no conjunto de utensílios. Com grandes
dimensões, seção triangular, losangular ou trapezoidal, quando associados a
inúmeros raspadores, parecem adaptar -se ao trabalho da madeira. O fenômeno
mais notável é o aparecimento de peças bifaciais longas e estreitas, lascadas por
percussão e geralmente de grande delicadeza. Essas peças chegam a representar
cerca de um quarto do total conhecido dos instrumentos do Sangoense. Foram
classificadas em diversos tipos: picões, plainas, buris, goivas e punhais, que
em geral se associam para dar origem a instrumentos múltiplos: picões -buris,
picões -plainas, picões -goivas, picões -punhais. Algumas dessas peças atingem
por vezes dimensões excepcionais, ultrapassando 25 cm de comprimento. Com
a evolução do Sangoense, estes utensílios, que praticamente não variam quanto
ao tipo, diminuem em dimensões, e o lascamento atinge grande perfeição.
O Sangoense é muito abundante na bacia do Zaire. É conhecido, no Zaire,
na planície de Kinshasa e no Alto Shaba, onde difere do Sangoense das zonas
ocidentais pela ausência de punhais e de pontas foliáceas; por outro lado, incluem-
603
Pré -História da África Central
F . Monumento
megatico da região de Buar
na República Centro -Africana
(Clichê R. de Bayle des
Hermens).
F . Acheulense
Superior. República Centro-
-Africana, rio Ngoere, Alto
Sanga. 1. Machadinha; 2. biface
(Fotos Museu de História
Natural) .
604
Metodologia e pré -história da África
-se na indústria inúmeras bolas, poliedros facetados ou esferas cuidadosamente
acabadas com picoteamento, e numerosas lascas aproveitadas. Foi recolhido nas
aluviões do rio Luembe, em Candala e Lunda no nordeste de Angola, onde
muitas vezes aparece misturado com indústrias mais antigas ou mais recentes,
em consequência de sua posição nos cascalhos revolvidos. Existe igualmente na
República Popular do Congo, na margem direita do Stanley Pool e no Gabão,
onde recentemente foi identificado. Na República Centro -Africana é conhecido
pelas jazidas excepcionalmente ricas do centro -este do país, onde as aluviões das
minas de diamantes no Nzako a Ambilo, do Téré, Tiaga e Kono forneceram
milhares de utensílios em notável estado de conservação, que se classificam como
pertencentes a um Sangoense Médio ou Superior.
Até hoje, o Sangoense não apareceu verdadeiramente diferenciado em
Camarões; a propósito, discute -se sua extensão para o oeste da África. Alguns
autores assinalaram sua presença no Senegal; trata -se, na realidade, de indústrias
com peças bifaciais idênticas ou muito próximas das do Sangoense, mas ainda
muito mal situadas na cronologia pré -histórica. É possível que grupos humanos
tenham -se deslocado em direção ao oeste na zona da grande floresta, mas até o
presente não temos meios de identificar suas influências.
Como o Acheulense, o Sangoense evolui localmente, sem grandes contatos
com o mundo exterior ao seu meio ambiente florestal. É sucedido por uma
indústria chamada Lupembiense, surgida de condições ainda pouco definidas,
e que apresentaremos a seguir.
O Lupembiense
O Lupembiense
5
é, segundo a classificação recomendada no Congresso Pan-
-Africano de 1955, uma indústria da Middle Stone Age. Entretanto, o termo Middle
Stone Age deve ser usado com precaução, pois abarca um conjunto de instrumentos
bastante heterogêneos, cuja posição exata não foi ainda bem definida.
O Lupembiense desenvolve -se no momento em que as condições de
pluviosidade voltam ao normal, no início do quarto pluvial, chamado Gambliano;
atinge o ápice no decorrer da segunda parte desse período muito úmido, e a
datação absoluta indica uma duração de aproximadamente 25 mil anos. Assim
como o Acheulense Final, que se desenvolveu localmente, o Sangoense também
se modificou, refinou -se, adquiriu novas técnicas de lascamento, que tiveram seu
apogeu no Lupembiense, sem que houvesse contatos com elementos estranhos à
5 Lupembiense. tio epônimo: estação pré -histórica de Lupemba no Kasai; termo criado pelo Abade H. BREUIL.
605
Pré -História da África Central
grande floresta, a qual continuou a representar um papel protetor. No início do
Lupembiense subsistem ainda na indústria alguns bifaces, que logo desaparecem;
não foram encontradas machadinhas. Do ponto de vista da debitagem, a técnica
levalloisiense predomina na obtenção de minas e lascas; o retoque é feito
por percussão. Num estágio posterior, a cnica levalloisiense continua a ser
empregada na obtenção de lascas, mas uma outra técnica, muito mais avançada,
a debitagem por pressão, é utilizada na produção de lâminas bastante grandes,
que vão permitir a fabricação de peças longas, estreitas e notavelmente retocadas.
Os últimos trabalhos relativos ao Lupembiense permitiram identificar cinco
estágios.
Lupembiense I
É encontrado em toda a bacia ocidental do Zaire, onde constitui uma evolução
local do Sangoense. Os elementos acheulenses desaparecem totalmente; o
lascamento e o retoque são feitos por percussão. Os instrumentos do Sangoense
subsistem, mas evoluem, diminuindo em dimensões absolutas. Os picões,
picões -plainas, picões -planos não têm mais do que 15 cm. Surgem as goivas,
buris, peças cortantes e serras talhadas a partir de lâminas. Com essas peças de
cuidadoso acabamento, a base dos instrumentos ainda é constituída de lascas
grosseiras. No final do Lupembiense I começam a aparecer pontas, punhais e
verdadeiras pontas de flechas.
Lupembiense II
Este estágio foi definido em Pointe Kalina por J. Colette, mas é conhecido
também no Stanley Pool. Os buris foliáceos do Lupembiense I evoluem,
transformando -se em machados. Buris com bordo retilíneo e um novo tipo de
trinchete com gume oblíquo substituem as formas conhecidas no Sangoense. As
armas compreendem punhais de 15 a 35 cm de comprimento e pontas foliáceas
delicadamente talhadas e muito finas.
Lupembiense III
Foi identificado nos depósitos de superfície do Stanley Pool e em alguns
depósitos de Angola. Nesse estágio a cnica de debitagem da pedra atinge seu
apogeu com o retoque -pressão. As lascas obtidas por uma técnica levalloisiense
evoluída são triangulares, retangulares ou ovais. Surge um instrumental
pedunculado, que se desenvolve e se torna mais frequente. Os utensílios do
606
Metodologia e pré -história da África
Lupembiense Antigo são encontrados aqui, mas com dimensões mais reduzidas:
picões, buris, pequenos bifaces, alguns raspadores, lesmas, trinchetes com gume
reto ou oblíquo e lâminas com bordo desbastado. Os punhais chegam a atingir
dimensões consideráveis (até 46 cm). As pontas são denticuladas, constituindo
armas mortais; os machados tornam -se mais comuns, embora não abundantes.
Fato importante é o aparecimento de pontas de flechas de diversos tipos,
foliáceas, losangulares, pedunculadas ou não, com bordos às vezes denticulados
e de grande perfeição.
Em Angola, um estágio tardio do Lupembiense foi datado pelo método
do C14: 14.503 ±560 anos, ou seja, 12.500 antes da Era Cristã. Em relação à
Europa, situa -se no Paleolítico Superior.
Lupembiense IV
O Lupembiense IV é muito mal conhecido. Sua principal característica seria
a técnica epilevalloisiense de debitagem.
Lupembo Tshitoliense
Este último estágio parece ter ocorrido, do ponto de vista estratigráfico, na fase
árida em que termina o Pleistoceno, na África central e oriental, imediatamente
antes do primeiro período úmido Makaliano. As jazidas conhecidas localizam -se
nas aluviões cascalhosas ou na base da camada úmida que as recobre, muitas
vezes em ilhas fluviais.
A cnica de debitagem não se modifica em relão aos outros estágios
do Lupembiense; ainda é epilevalloisiense. Por outro lado, o retoque associa
à percussão e à pressão uma nova técnica: o retoque abrupto, que caracteriza
o Mesolítico. O instrumental ainda compreende buris, goivas e bifaces, mas
desaparecem os raspadores e lâminas com dorso. Aos trinchetes vem juntar -se
um “microtrinchete” com retoque abrupto dos bordos, que pode ser considerado,
em certos casos, como uma armadura de gume transversal. As pontas de flechas
são mais variadas: foliáceas, losangulares, farpadas, raramente denticuladas e
pedunculadas.
Em Angola, uma indústria classificada no Lupembo -Tshitoliense data de
11.189 ±490 anos.
O Lupembiense ainda não foi encontrado na República Centro -Africana e
em Camarões. Por outro lado, foi assinalado na República Popular do Congo
607
Pré -História da África Central
e no Gabão, mas, pelo fato das jazidas situarem -se em regiões de difícil acesso,
continua mal definido.
Culturas pré ‑históricas de caráter não ‑orestal
Enquanto o Lupembiense ocupa a zona florestal do oeste da bacia do Zaire,
no Shaba e no leste de Angola desenvolvem -se culturas de caracteres o-
-florestais: o Proto -Stillbayense, o Stillbayense e o Magosiense. Essas culturas
vão apresentar uma grande expansão na África do leste e do sul.
O Proto ‑Stillbayense
O sítio epônimo é Stillbay, jazida do litoral da província do Cabo. O Proto-
-Stillbayense é uma indústria caracterizada por pontas unifaciais, raspadores,
ferramentas denticuladas, pedras de arremesso, raros bifaces de pequenas
dimensões, pontas semifoliáceas de seção espessa, grosseiramente retocadas em
buris, também pouco numerosos. Esses instrumentos são obtidos por retoque
relativamente abrupto.
O Stillbayense
No Stillbayense a natureza dos instrumentos não varia sensivelmente em
relação ao estágio anterior, mas se nota uma grande perícia nas técnicas de
debitagem epilevalloisiense. Uma aquisição importante é o retoque -pressão,
utilizado sobretudo na feitura de armas e de pontas musteroides unifaciais
ou bifaciais, que de modo geral conservam seu talão facetado. Em um último
estágio, conhecido somente no Quênia, figuram as lamelas com dorso, buris e
segmentos de círculo.
O Proto -Stillbayense é muito abundante no Shaba; o Stillbayense é menos
comum. Os restos humanos mais antigos descobertos no Zaire pertencem ao
Stillbayense. Trata -se de dois molares encontrados junto a quartzos lascados e
uma ponta bifacial, pelo Rev. A. Anciaux de Favaux, nas brechas ossíferas de
Kakontwe.
O Magosiense
O sítio epônimo dessa indústria é Magosi, em Uganda, descoberto por
Wayland em 1926. É uma cultura na qual se encontram as principais peças
do Stillbayense. Utenlios microticos lamelas com bordos desbastados,
608
Metodologia e pré -história da África
segmentos de círculo, triângulos, raspadores unguiformes, pequenos buris e
contas feitas de casca de ovo de avestruz completam a indústria. O Magosiense
parece ter existido em Catanga, mas nenhum sítio bem defínido foi até agora
registrado com segurança.
Uma indústria mesolítica: O Tshitoliense
No final do Pleistoceno dois períodos relativamente secos provocam um recuo
da cobertura florestal, especialmente nas altitudes. É nesses solos desbastados, nos
arredores das fontes, muitas vezes no cume de colhias tabulares ou em desfiladeiros,
que se instalam os homens do Tshitoliense
6
. As jazidas desse tipo são conhecidas
no planalto Bateke, no Stanley Pool, na planície de Kinshasa e no nordeste de
Angola. O instrumental encontrado varia de uma para outra, contando ainda com
um mero proporcionalmente grande de utenlios florestais, mas de dimenes
muito reduzidas. Aparecem utensílios novos, ou pouco conhecidos nas indústrias
precedentes: plainas, lâminas com ponta retocada, facas com dorso e, sobretudo,
elementos microlíticos e geométricos: trapézios, triângulos, gomos de laranja e
microtrinchetes. As pontas de flechas apresentam uma grande variedade de tipos
e de formas: foliáceas, losangulares, ovais, triangulares, farpadas, pedunculadas,
denticuladas e com gume transversal. Em sua quase totalidade, o talhadas por
retoque -preso, o que lhes dá grande elegância.
O Tshitoliense, por seu armamento reduzido às pontas de flecha, pode ser
considerado um P -Neolítico que o inclui cerâmica nem machados polidos.
Aparece como uma expressão tardia das culturas florestais africanas antes do
desenvolvimento do Neotico do Zaire ocidental, aparentemente de cater intrusivo.
O Neolítico
Em toda a bacia do Zaire, no sentido amplo do termo, as civilizões
pré -históricas mencionadas nos parágrafos anteriores constituem, do Pré-
-Acheulense ao Tshitoliense, etapas sucessivas de um complexo cultural imenso
desenvolvido em meio florestal, que, como foi dito, evoluiu localmente, sem
contribuições sensíveis do mundo exterior.
As fácies neolíticas pois é preciso desde logo deixar claro que houve
várias fácies, por vezes muito diferentes umas das outras desenvolvem -se
6 Tshitoliense. Termo criado com base no instrumental lítico recolhido em Tshitolo, no Kasai.
609
Pré -História da África Central
no decorrer do último e breve período úmido: o Nakuriano. O clima de então
é sensivelmente o mesmo que conhecemos hoje. A cobertura florestal é mais
densa, pois ainda não sofreu a ação devastadora do homem, e as espécies vegetais
são as que existem atualmente.
É portanto, no interior de uma floresta tropical muito densa que, vindos
do norte, depois de atravessar o rio nos arredores dos rápidos de Isanghila, os
criadores de uma cultura neolítica conhecida como do Congo ocidental” vão
aos poucos se instalando. São eles portadores de novas técnicas, que, em maior
ou menor grau, irão fundir -se com as já existentes no local. Esse Neolítico
distingue -se pelo emprego quase exclusivo de rochas difíceis de trabalhar, como
os xistos, quartzos e a jadeíta. As lascas são, portanto, muito malfeitas, resultando
um instrumental medíocre. Os conjuntos de utensílios variam conforme os
tios. Incluem picões grosseiramente elaborados, buris, seixos lascados, de
pequenas dimensões, pedras perfuradas de várias formas, pesos e materiais e,
sobretudo, um grande mero de machados. Estes últimos são inicialmente
lascados e parcialmente polidos; depois, picoteados e polidos cuidadosamente.
No Zaire são conhecidos imeros polidores, que certamente serviram ao
polimento de machados. As pontas de flechas não estão ausentes, mas em geral
são de fabricação muito medíocre e talhadas em lascas de quartzo. Em alguns
sítios, mais especificamente em Ishango, a indústria apresenta utensílios de osso,
em particular arpões com uma e, mais tarde, com duas camadas de farpas. Ao
lado desse instrumental lítico e ósseo, figura em algumas jazidas uma cerâmica
abundante, muito bem decorada e ornamentada.
As jazidas neolíticas são conhecidas no Cuango ocidental, em associação
com o Tshitoliense; em ambas as margens do rio Zaire, entre o Pool e Congo
dia Vanga; e em vários pontos da República Popular do Congo. Uma fácies
que apresenta grande número de machados de hematita com polimento
particularmente cuidadoso é encontrada em Uele, no norte do Zaire. O Neolítico
é conhecido (sob diversas fácies, como indicamos) em Camarões, no Gabão
e na República Centro -Africana. Nesse último país, a jazida de Batalimo, em
Lobaye, encerra uma indústria em jadeíta na qual inúmeros machados lascados
encontram -se associados a uma cerâmica muito fina. A datação dessa indústria,
feita pelo método de termoluminescência, é 380 ±220 da Era Cristã. A data,
à primeira vista, pode parecer anormal; contudo, pelo que atualmente se sabe,
o Neolítico na zona da grande floresta parece ter durado muito mais tempo
que nas outras regiões, prolongando -se até um período histórico. A introdução
dos metais no local teria ocorrido bem mais tarde. Alguns autores situam o
advento do ferro num período próximo do século IX da Era Cristã.
610
Metodologia e pré -história da África
Os monumentos megalíticos
As culturas megalíticas desenvolveram -se sob diversas formas na África,
particularmente na África do norte e no Saara. A bacia do Zaire, com exceção
do noroeste da República Centro -Africana, não conheceu tais culturas. Em
Angola, no Zaire, no Gabão, na República Popular do Congo, não foi encontrado
nenhum monumento megalítico, e, em Camarões, somente algumas pedras
colocadas em sentido vertical.
Em contrapartida, a República Centro -Africana, na região de Buar, possui
megálitos particularmente notáveis. Ocupam eles uma faixa de 130 km de
F. Vaso neolítico de fundo plano. República Centro -Africana, Batalimo, Lobaye (Foto Laboratório
de Pré -História. Museu de História Natural).
611
Pré -História da África Central
comprimento e 30 km de largura na linha divisória das águas das bacias do
Zaire e do Chade. Ao que parece, não são conhecidos em Camarões e tampouco
em outros lugares da República Centro -Africana. Essa cultura encontra -se, pois,
confinada geograficamente ao noroeste do país.
Os monumentos apresentam -se sob a forma de túmulos, com dimensões
varveis, encimados por um certo mero de algumas unidades a várias
dezenas de pedras verticalmente colocadas, e cuja altura acima do solo chega
a ultrapassar 3 m. As escavações realizadas em vários desses monumentos
revelaram sua estrutura interna, mas forneceram poucos elementos arqueológicos
quartzo lascado, cerâmica e objetos de metal nas camadas superiores. Por outro
lado, os cares vegetais recolhidos permitiram fazer datações pelo método
do C14
7
. Os resultados obtidos fornecem datas extremamente importantes: as
primeiras, relativas às camadas profundas dos monumentos: 7440 ±170 B.P., ou
seja, 5490 antes da Era Cristã, e 6700 ±140 B.P., ou 4750 antes da Era Cristã;
as segundas: 1920 ±100 B.P., isto é, 30 da Era Cristã, e 2400 ±110 B.P., ou 450
da Era Cristã. Essas duas séries de datações indicam, para as camadas mais
antigas, a idade da edificação dos megálitos e, para as mais recentes, a idade de
uma nova utilização, aliás confirmada por alguns objetos metálicos recolhidos
nas camadas superiores. No estágio em que se encontram, as pesquisas não
permitem atribuir com certeza os megálitos de Buar ao Neolítico, mas pode -se
dizer que a civilização que os edificou é ao menos contemporânea desse período.
A arte rupestre
Situada entre as duas grandes regiões de arte rupestre Saara e África do
Sul –, a bacia do Zaire também possui uma arte rupestre, embora não tão rica
quanto se podia esperar em vista de sua localização.
No Chade, no Ennedi e no Borku desenvolveu -se uma arte rupestre que faz
parte dos grandes complexos saarianos. Em Camarões conhece -se um sítio de
gravuras sobre lajes horizontais, polidas e desgastadas pela erosão, no norte do
país, em Bidzar. As representações são essencialmente geométricas: círculos e
arcos, ora isolados, ora em grupo.
Em Angola existem gravuras na região de Calola. Apresentam -se sobre
lajes horizontais, e os motivos são geométricos, como em Camarões. Pinturas
aparentemente mais recentes foram assinaladas nessa mesma região. No Zaire
conhecem -se vários sítios de diferentes épocas. O Shaba parece ser a província
7 BAYLE DES HERMENS, R. e VIDAL, P. 1971, p. 81 -82.
612
Metodologia e pré -história da África
mais rica em arte rupestre e pertencer ao mesmo grupo que a Zâmbia e
Angola do leste. Esse grupo é caracterizado por uma arte esquetica, eo
naturalista como a da África do Sul. Em 1952, o Ab. Henri Breuil publicava
as figuras gravadas e pontuadas da gruta de Kiantapo
8
, e G. Mortelmans, um
ensaio de síntese dos desenhos rupestres do Shaba
9
chamando a ateão para
as dificuldades de datão dos diferentes estilos devido à falta de documentos
arqueogicos. Foram descobertas lajes gravadas no Baixo Zaire, tendo a arte
rupestre, nessa região, subsistido a época muito recente. Séries de gravuras
do Monte Gundu, no Dele, parecem relacionadas aos ritos da água e do fogo.
Na República Centro -Africana a arte rupestre atualmente conhecida
está situada no norte e no leste do ps. Ao norte, os abrigos de Toulou,
da Koumbala e do Djebel Mela apresentam pinturas tratadas com ocre
vermelho, preto e branco: personagens e signos diversos, mas auncia de
representões animais. No leste, as jazidas de Lengo e do Mpatou perto de
Bakouma apresentam uma arte gravada sobre lajes horizontais de laterito, ao
que parece relativamente recente e executada por homens que conheciam
o ferro, tendo -se em conta as inúmeras facas de arremesso e pontas de lança
ali encontradas.
A arte rupestre da bacia do Zaire não tem nenhuma semelhança com a do
Saara. Seu eixo de penetração deve ser buscado em direção à África do sul e do
leste. Ela é bastante similar à que se conhece na região bantu; é, pois, recente,
e até mesmo histórica. Entretanto, tem grande importância para o estudo das
migrações e movimentos de populações de um período muito mal conhecido
da preto -história ou mesmo da história da África tropical.
Conclusão
De tudo o que expusemos sobre a pré -história da bacia do Zaire, infere-
-se que até o Acheulense Superior as indústrias pré -históricas distinguem -se
muito pouco do que se conhece nas outras regiões da África subequatorial. É a
partir do complexo Sangoense que tem início a grande diversificação regional
das culturas de fácies florestal, com um fato notável: o isolamento quase total
em que viveram os homens dessa região até a chegada dos neolíticos vindos do
norte, fugindo, talvez, das zonas saarianas em razão do dessecamento.
8 BREUIL, H. 1952, p. 1 -32, 14 pranchas.
9 MORTELMANS, G. 1952, p. 35 -55, 9 pranchas.
613
Pré -História da África Central
A grande floresta equatorial constituiu uma barreira natural, limitando os
contatos com o norte e o sul do Equador. Nessa área as culturas neolíticas
tiveram uma duração muito maior do que em qualquer outra, uma vez que
continuaram isoladas e protegidas numa época em que outras regiões já haviam
entrado há muito tempo na história, com a utilização dos metais e do ferro.
C A P Í T U L O 2 1
615
Pré -História da África Central
A África Central, tema deste capítulo, compreende o Zaire e alguns países
limítrofes: a República do Congo, o Gabão, o Rio Muni, a República Centro-
-Africana, Ruanda, Burundi e Angola.
Desde o final do século XIX, essa parte do continente atraiu a atenção dos
arqueólogos, mas as pesquisas sempre foram muito dispersas.
Os primeiros pesquisadores que se interessaram pela África Central quiseram
inicialmente reconhecer na região períodos semelhantes aos descritos na Europa.
Foi X. Stainer quem tentou um primeiro estudo de conjunto em 1899, mas a J.
Colette cabe o mérito de ter realizado escavações desde 1925 (Bequaert, 1938).
Entretanto, pode -se dizer que a pesquisa científica se ampliou realmente
depois da Segunda Guerra Mundial. A partir de então, estudos sistemáticos
foram efetuados por J. D. Clark na Zâmbia e em Angola, R. de Bayle des
Hermens na República Centro -Africana, J. Nenquin em Ruanda e no Burundi,
G. Mortelmans, J. de Heinzelin e H. van Moorsel no Zaire, e pela Sociedade
Pré -Histórica e Proto -Histórica Gabonense no Gabão.
No Zaire, os trabalhos se desenvolveram principalmente a partir da criação
do Instituto dos Museus Nacionais em 1970.
Nossos conhecimentos, entretanto, ainda são bastante fragmentários. Embora
Colette tenha sido um pioneiro realizando o primeiro estudo cronoestratigráfico,
seu exemplo foi muito pouco seguido, e em várias partes da área considerada
P-História da África Central
PARTE II
F. Van Noten com a colaboração de:
P. de Maret, J. Moeyersons, K. Muya, E. Roche
616
Metodologia e pré -história da África
F . Zonas de vegetação da África Central.
617
Pré -História da África Central
nossos conhecimentos baseiam -se unicamente nas coletas de superfície. Mas é
preciso ter em conta que a arqueologia na África Central se depara com muitas
dificuldades. Algumas áreas, como o norte, por exemplo, não se prestam muito
bem a escavações em razão das espessas crostas lateríticas, enquanto que na
floresta as prospecções são difíceis.
Outros fatores dificultam ainda mais a tarefa; de modo geral, as condições
climáticas e a acidez dos terrenos não permitiram a conservação dos restos
ósseos, o que explica sua ausência na maioria dos sítios estudados. Há, entretanto,
exceções notadamente em Ishango e em Matupi, onde o meio calcário possibilitou
a boa conservação do material.
A nomenclatura tem sido constantemente revisada, e as subdivisões,
discutidas com frequência. A sucessão das antiga, média e recente idades da
pedra, entrecortada por períodos intermediários, parece não ser mais aceitável,
nem cronológica, nem tipologicamente. Após um período de rigorosas tentativas
de classificação, volta -se a considerar muito relativas e provisórias essas amplas
categorias.
O estudo de sítios novos escavados e datados sistematicamente confirma
esse procedimento. Citemos como exemplo a recente Idade da Pedra: em 1959,
J. D. Clark situava o início desse período por volta de 7500 B.P. Em 1971,
obtínhamos para a gruta de Munyama, em Uganda, uma data aproximada de
15.000 B.P. (van Noten, 1971) e, seis anos mais tarde, a indústria microlítica
de Matupi era datada de 40.000 B.P. aproximadamente (van Noten, 1977). Há,
portanto, evidentes contradições entre a antiga classificação e as descobertas
recentes.
Ainda que os arqueólogos do mundo inteiro comecem a demonstrar um
especial interesse pelo modo de vida do homem pré -histórico, estudando seu
meio ambiente e tentando compreender as relações que mantinha com esse
meio, a pré -história na África Central permaneceu durante muito tempo como
um estudo de tipologia e de cronologia. Nessa nomenclatura, o espaço dedicado
ao homem é mínimo.
Em lugar de organizar um catálogo exaustivo de sítios, os quais, na maior
parte das vezes, mostram apenas descobertas de superfície, iremos concentrar-
-nos nas raríssimas escavações sistemáticas que forneceram elementos para
datações: Ishango, Gombe, Bitorri, Kamoa, Matupi e Kalambo. Esses conjuntos
de dados extremamente dispersos deverão ser complementados com informações
fornecidas pelo estudo de outras localidades.
Estamos mais do que nunca convencidos da impossibilidade de estabelecer
grandes áreas culturais bem definidas. Devemos nos limitar à constatação da
618
Metodologia e pré -história da África
presença do homem num momento determinado, sem poder afirmar ainda se ele
evoluiu localmente ou se veio de fora. Certamente ele cedo se adaptou a meios
bem definidos, com clima, flora e fauna próprios. O caçador -coletor primitivo
precisava explorar esses meios para sobreviver, e a escolha do material existente
ditava seu procedimento quando da fabricação dos utensílios. É claro que o
homem deve ter respondido de diferentes maneiras às diferentes condições
criadas pela diversidade dos meios ambientes da África Central. Resultou,
daí, a existência de áreas distintas que por vezes mostram traços comuns mas,
ao mesmo tempo, adaptações regionais, e mesmo locais, que não se explicam
simplesmente pela influência de condições ecológicas diferentes. Entretanto
seria prematuro falar em áreas culturais.
Quadro geográco
Os traços gerais da morfologia da imensa região chamada África Central são
o resultado de uma série de movimentos tectônicos que já haviam começado no
início do Terciário, e que provavelmente ainda não cessaram.
A bacia central, cuja altitude não ultrapassa 500 m, é rodeada por um
cinturão de planaltos, de colinas ou de montanhas, formados nas camadas
geológicas que recobrem o embasamento cristalino pré -cambriano. Este aflora
na periferia; é muito acidentado particularmente em Kivu, onde chega a
elevar -se acima de 3000 m e bastante recortado pela erosão. Relevos muito
elevados dominam o embasamento em alguns lugares: os planaltos basálticos
(cerca de 3000 m) da margem sudeste do lago Kivu e da Adamaua (cerca
de 2500 m), os picos vulcânicos na região das Virunga (cerca de 4500 m), o
horst do Ruwenzori (5119 m) e o planalto do Huambo (cerca de 2600 m). Os
movimentos tectônicos que afetaram as terras altas provocaram a formação de
grabens, tais como a fossa a leste da África Central e o “buraco” do Benue.
Exceto na região costeira ao sul de Angola e na bacia do Cubango -Zambeze,
a África Central recebe chuvas abundantes. Na bacia, as precipitações são
regulares o ano todo: representam mais de 1700 mm de água por ano. Nas costas
do Gabão, no Rio Muni e em Camarões podem atingir 4000 mm. Nas regiões
onde há uma estação seca (três a sete meses) as precipitações ainda atingem de
800 a 1200 mm.
Na África Central, a floresta densa e úmida, que se desenvolve sob regime
pluvial elevado entre as latitudes 50 N e 4
o
S, cobre a bacia do Zaire, a maior parte
da República Popular do Congo, o Gabão, o Rio Muni e o sul de Camarões. A
619
Pré -História da África Central
F . Mapa da África Central com os nomes dos lugares citados no texto.
leste, a floresta transforma -se, por formações de transição, em florestas densas
de montanha que ocupam entre 2
o
N e 8
o
S, as cristas e as vertentes muito
bem regadas do leste do Zaire, de Ruanda e do Burundi. Nos lugares onde
sofreu degradação, a floresta densa foi substituída por nova vegetação e florestas
secundárias.
620
Metodologia e pré -história da África
A floresta equatorial é margeada por florestas densas semidecíduas,
frequentemente bastante degradadas, todavia capazes de sobreviver a uma
estação seca de dois a três meses. Ao norte, elas constituem uma franja pouco
extensa em latitude, que vai de Camarões ao lago Vitória, passando pelo sul
da República Centro -Africana e na região entre os rios Bomu e Uele. Ao sul
formam, com as savanas de origem antrópica, um mosaico vegetal que cobre
parte da República Popular do Congo, o Baixo Zaire, as terras baixas do Cuango,
o Kasai -Sankuru e o Lomami.
Dispostas em arco ao redor da zona das florestas densas guineenses, as
florestas abertas e as savanas sudano -zambezianas cobrem regiões onde a estação
seca chega a atingir sete meses: o centro de Camarões, a República Centro-
-Africana, o Sudão Meridional, o leste de Ruanda e do Burundi, o Shaba no
Zaire, a Zâmbia e Angola.
Grandes depressões pantanosas são encontradas ao longo dos rios, sobretudo
no curso do Nilo Branco ao sul do Sudão, na bacia e na depressão do Upemba
no Zaire, na bacia do Zambeze em Angola e na Zâmbia.
Evolução do meio ambiente
A reconstituão do meio ambiente do homem pré -hisrico tornou -se
um elemento importante das pesquisas arqueológicas. Os primeiros estudos
a respeito foram realizados no leste da África. Vários pesquisadores, como E.
J. Wayland (1929, 1934), P. E. Kent (1942) e E. Nilsson (1940, 1949), haviam
observado, no Quaternário, alternâncias de períodos úmidos (pluviais) e períodos
secos (interpluviais).
Os pluviais foram considerados contemporâneos das glaciações do
Hemisfério Norte e chamados, do mais antigo ao mais recente, Kagueriano,
Kamasi ano e Gambliano. Posteriormente foram reconhecidas duas fases úmidas
do início do Holoceno, o Makaliano e o Nakuriano. L. S. B. Leakey (1949), J.
D. Clark (1962, 1963) e outros tentaram depois estender o uso desses nomes,
que haviam adquirido uma significação estratigfica específica no leste da
África, a outras partes do continente. Por sua vez, autores como T. P. O’Brien
(1939), H. B. S. Cooke (1958), R. F. A. Flint (1959), F. F. Zeuner (1959) e W.
W. Bishop (1965) expressaram suas reservas quanto à generalização da teoria:
as pesquisas efetuadas na África Central mostraram que existem intervalos de
tempo consideráveis entre as fases pluviais das duas regiões.
621
Pré -História da África Central
J. de Ploey (1963) foi o primeiro a reconhecer na África Central a existência
de um período semi -árido no Pleistoceno Superior, ao menos em grande parte
contemporâneo da glaciação de Würm na Europa. Diversos autores (J. Alexandre,
S. Alexandre, 1965; J. Moeyersons, 1975) constataram a presença dessa fase no
Shaba. Uma oscilação mais úmida por volta de 6000 B.P. foi descoberta por J.
de Ploey (1963) no Baixo Zaire, em Mose no Shaba (Alexandre, comunicação
pessoal) e em Moussanda no Congo (Delibrias et al., 1974, 47). Os estudos
em Kamoa mostraram que essa fase foi precedida por uma outra oscilação
úmida entre 12.000 B.P. e 8000 B.P., separada da oscilação de 6000 B.P. por
uma curta fase de erosão, ligada a uma nova ocorrência da seca. A oscilação
úmida entre 12.000 B.P. e 8000 B.P. é contemporânea da extensão dos lagos
no leste da África, encontrada por K. W. Butzer et al. (1972). Os estudos de J.
de Ploey (1963, 1965, 1968, 1969) no Baixo Zaire e de J. Moeyersons (1975)
em Kamoa indicam que os períodos mais secos eram caracterizados por uma
intensificação dos processos morfogenéticos. Assim, na região de Kinshasa,
durante o Leopoldvilliano, as colinas foram fortemente desnudadas, havendo,
em consequência, intensa sedimentação na planície. Do mesmo modo, em
Kamoa, esse período presenciou uma evolução muito grande das vertentes sob
forma de estreitamento das bordas dos vales. Tudo isso vem confirmar a hipótese
de H. Rhodenburg (1970) da alternância de fases morfodinâmicas identificadas
com os períodos secos, e fases estáveis, úmidas.
A evolução do meio ambiente na África Central foi, portanto, fortemente
marcada pelas condições climáticas dos últimos cinquenta milênios. Os estudos
relativos às formações vegetais atuais e ao seu equilíbrio com o clima, bem
como as análises palinológicas de diversos sítios permitiram a reconstituição da
cobertura vegetal antiga e das condições climáticas que a determinaram.
É nas regiões montanhosas do leste que se pode perceber melhor alterações
climáticas que acompanham as mudanças dos estágios de vegetão. Os
diagramas polínicos das turfeiras de altitude refletem uma sucessão de floras
frias, floras quentes e úmidas e floras secas, a qual se evidencia sobremaneira no
sítio de Kalambo Falls, situado a 1200 m de altitude na Zâmbia. J. D. Clark e E.
M. van Zinderen Bakker (1964) descobriram no local uma longa fase seca entre
55.000 B.P. e 10.000 B.P., com duas oscilações úmidas por volta de 43.000 B.P.
e 28.000 B.P., e o início de uma fase úmida mais longa por volta de 10.000 B.P.
Durante os períodos áridos a temperatura baixou sensivelmente nas terras altas
ao redor do graben, como J. A. Coetzee e E. M. van Zinderen Bakker (1970)
haviam assinalado no monte Quênia, onde evidenciaram a “Mount Kenya
glaciation entre 26.000 B.P. e 14.000 B.P.
622
Metodologia e pré -história da África
J. D. Clark e E. M. van Zinderen Bakker (1962) tamm estudaram a
evolução da cobertura vegetal na região de Lunda. Uma floresta aberta seca de
Brachystegia ocupou a região entre 40.000 B.P. e 10.000 B.P., dando lugar depois
a uma floresta mais cerrada durante a fase úmida de 10.000 B.P. a 5000 B.P.
Segundo o estudo palinológico do sítio de Kamoa feito por E. Roche (1975),
em complementação ao estudo geomorfológico de J. Moeyersons (1975), parece
ter havido um período seco do Acheulense Final a15.000 B.P. Observa-
-se a evolução progressiva de uma savana estépica para a floresta aberta, e,
posteriormente, a instalação de uma floresta mais densa, com a extensão das
galerias florestais consecutiva à umidificação do clima a partir de 12.000 B.P.
Segundo M. Streel (1963), as florestas abertas secas e as savanas de Acacia
teriam se estendido grandemente entre 50.000 B.P. e 20.000 B.P. Essa extensão,
que supostamente começou no Zambeze oriental, teve como efeito o recuo da
floresta densa em direção à bacia. Para P. Duvigneaud (1958), o Shaba pode
ser considerado um cruzamento, onde a vegetação é o reflexo de influências de
diversas regiões: guineo -congolesa, zambeziana e afro -oriental.
Baseando -se na teoria da mobilidade do equador térmico enunciada por
Milankovitch, A. Schmitz (1971) acredita que um deslocamento de 8
o
ao sul
durante uma fase quente e úmida que estaria situada entre 12.000 e 5000 B.P.
tenha provocado um grande desenvolvimento da floresta densa. Esta se teria
estendido por todo o Zaire e mesmo a parte de Angola, o que é atestado pela
presença de faixas de floresta densa mais seca nas florestas abertas atuais. As
florestas também teriam sido mais extensas ao norte, cobrindo a maior parte de
Camarões e da República Centro -Africana.
Durante esse período úmido, as florestas abertas e as savanas subsistiram
em estações que lhes eram favoráveis, ou seja, nos planaltos e solos pobres. É
bem provável que os planaltos do Zaire meridional e de Angola jamais tenham
conhecido uma vegetação realmente cerrada, e que tenha sido a partir dessa
região que a floresta aberta começou a estender -se novamente quando o clima
voltou a ser seco depois de 5000 B.P. A. Schmitz (1971), no entanto, acredita
que tenha sido fundamentalmente uma ação antrópica que provocou, no último
milênio, o recuo da floresta densa.
Concluindo, a África Central conheceu entre 5000 B.P. e 10.000 B.P.
uma longa fase seca contemporânea da glaciacão de Würm, enquanto a fase
úmida que se iniciou por volta de 12.000 B.P. corresponderia às oscilações
climáticas que marcaram o início do Holoceno. Durante esse longo período seco,
provavelmente interrompido por uma oscilação úmida por volta de 28.000 B.P.,
foram intensos os processos morfodinâmicos, e a floresta aberta ganhou maior
623
Pré -História da África Central
extensão. No período úmido do início do Holoceno, a floresta densa estendeu-
-se sobre a maior parte da África Central, e seu recuo atual é atribuído à ação
do homem.
Povoamento da África Central
Na ausência de ossadas humanas, admite -se, de modo geral, que a primeira
manifestação da presença do homem sejam os seixos fraturados, denominados
seixos lascados”. Estes se comparam aos artefatos do Olduvaiense, do sítio
epônimo de Olduvai, na Tanzânia. Verifica -se a ocorrência de objetos semelhantes
em quase toda a África Central: no Zaire na bacia do Kasai e no Shaba, em
Camarões, no Gabão, no Congo, na República Centro -Africana e no nordeste
de Angola, onde são encontrados nos aluviões. Mas nem sempre é fácil saber
se esses seixos foram lascados pelo homem ou por agentes naturais. Não nos
parece correto (embora o fato seja muito frequente) considerar utensílios todos
os seixos que indubitavelmente apresentam marcas de lascamento intencional,
uma vez que se verifica serem, na maior parte, núcleos de onde foram destacadas
lascas. Estas é que foram empregadas, quer como utensílios para fins diversos,
quer como raspadores.
Nenhum habitat que remonta a essa época foi até hoje assinalado. Faltam
tamm artefatos de madeira e de osso, que devem ter representado parte
bastante significativa no conjunto de utensílios. Podemos imaginar que os
seixos lascados foram produzidos pelo Australopithecus ou pelo Homo habilis,
que, segundo observações feitas em vários lugares da África, certamente eram
necrófagos. Entretanto, a vida social deve ter -se organizado a partir desse
momento. Tal período da história do homem iniciou -se mais de 2 milhões
de anos, prolongando -se até cerca de 500 mil anos atrás.
Mas foi somente com o instrumental do Acheulense que obtivemos
a primeira prova indiscutível da presea do homem na África Central. O
estágio mais antigo, o Acheulense Inferior, é conhecido na região de Lunda
(Clark, 1968). O Acheulense Superior, em geral encontrado em meios áridos,
foi descoberto em diferentes pontos da periferia da bacia central; J. D. Clark
descreveu -o em Angola; J. Nenquin, em Ruanda e no Burundi; e R. de Bayle
des Hermens, na República Centro -Africana. Kalambo, na Zâmbia, e Kamoa,
no Zaire, constituem os melhores sítios de referência.
O Acheulense caracterizou -se pelos bifaces e machadinhas, que foram objeto
de inúmeras tentativas de classificação morfológica (Cahen, Martin, 1972).
624
Metodologia e pré -história da África
Alguns autores quiseram ver neles uma transformação de um estágio arcaico
para outro mais evoluído e estabeleceram uma sucessão de cinco estágios do
Acheulense (de I a V), porém essas diferenças tipológicas nem sempre têm grande
significação cronológica. Como o próprio nome indica, o biface é um artefato
talhado nas duas faces a partir de um seixo ou de uma lasca grande. Caracterizado
por uma ponta mais ou menos saliente, tem base quase sempre arredondada.
Além do biface, outro instrumento muito característico é a machadinha, que
termina por um gume. Ao lado desses utensílios, encontram -se artefatos menos
característicos, tais como triedros, picões, facas, esferoides e outros de pequenas
dimensões. Embora as descobertas do Acheulense sejam abundantes, os sítios
onde essa indústria pode ser considerada como estando arqueologicamente em
seu próprio contexto, ou mesmo representada de forma homogênea, ainda o
raros. Um dos únicos sítios onde o Acheulense foi encontrado em estratigrafia
localiza -se às margens do rio Kamoa, no Shaba (Cahen, 1975). Este sítio tem
vários hectares de extensão. Os caçadores -coletores que o habitavam deixaram
no local seus utensílios e os resíduos de preparação. Pode -se, então, deduzir que
se trata de um tipo de oficina -habitat. Em vista da homogeneidade da indústria,
na qual não se distingue evolução, pode -se pensar ainda numa acumulação de
ocupações sazonais. A matéria -prima era trazida de um lugar a 1,5 km do sítio,
onde se encontram enormes núcleos dormentes. As lascas eram transportadas ao
sítio onde a debitagem e o acabamento dos utensílios deviam ser realizados. O
Acheulense Evoluído ou Final de Kamoa é análogo às indústrias encontradas no
Saara e na África do Sul. A data de 60.000 B.P. proposta deve ser considerada
um terminus ante quem; a data real, em nossa opinião, deve ser muito mais antiga.
De acordo com descobertas feitas em outras regiões da África, sabemos que
essa indústria deve ser atribuída ao Homo erectus. Esse hominídeo devia depender
da caça e da coleta para subsistir. Supõe -se que a vida social continuasse a se
desenvolver e que o homem tivesse alcançado o domínio do fogo.
Evolução tecnológica e adaptação
Após o Acheulense distinguimos várias regiões cujas indústrias, embora
bastante diferentes, dão a impressão de uma certa unidade. Consideremos,
de maneira genérica, uma parte ocidental e uma parte oriental, podendo esta
última ser subdividida em duas, embora a falta de dados para o norte e o sul da
referida área torne as subdivisões bastante conjeturais. A parte ocidental, que
se estende de Angola até o Gabão, é a região mais estudada. Engloba o Baixo
625
Pré -História da África Central
Zaire, Kinshasa, a região de Lunda, o Cuango e o Kasai, isto é, o sudeste da
bacia do Zaire. A parte oriental abrange a região interlacustre e a região Shaba
lago Tanganica.
Na parte ocidental acredita -se reconhecer uma série de indústrias, usualmente
descritas como uma sucessão tipológico -cronológica: o Sangoense, seguido do
Lupembiense, por sua vez seguido do Tshitoliense. O Sangoense representaria
a passagem entre o Acheulense e o Lupembiense e estaria situado no primeiro
período intermediário. O Lupembiense constituiria a Middle Stone Age, enquanto
o Lupembo -Tshitoliense corresponderia ao segundo período intermediário,
indo redundar finalmente no Tshitoliense, contemporâneo da Late Stone Age da
África Oriental e Austral. Como que prolongando a técnica acheulense, todas
essas indústrias são caracterizadas pelo lascamento bifacial, enquanto a técnica
levalloisiense raramente aparece.
A parte oriental da África Central apresenta uma mistura mais complexa
de indústrias. Estas são comparáveis às da parte ocidental mas o lascamento
bifacial não é tão abundante. Em contrapartida, as técnicas de debitagem
denominadas musteriense e levalloisiense são muito desenvolvidas, e as lâminas
e lascas laminares, numerosas. Desde o segundo período de transição notam -se
mudanças muito profundas, e a tradição interrompe -se definitivamente para dar
lugar às indústrias microlíticas, as quais parecem não ter ligação alguma com
as indústrias anteriores. Bem características, as indústrias de tipo Sangoense e
Lupembiense dessas regiões permitem distinguir duas áreas diferentes: uma que
abrangeria a parte setentrional, isto é, a região interlacustre, caracterizada por
bifaces foliáceos, lanceolados, e punhais; a outra a abranger a parte meridional,
isto é, a região do Shaba e as margens do lago Tanganica, caracterizada pela
ausência de pontas e pela presença de utensílios bifaces de tipo burilou goiva,
que curiosamente quase não aparecem na rego interlacustre. Isso ilustra
bem o absurdo da distinção entre indústrias de floresta e de savana. Aliás,
nessa época, nenhuma região parece ter sido mais arborizada que outra. Ao
contrário, o clima devia ser nitidamente mais seco do que hoje; foi somente
por volta do fim desse período que a floresta ganhou extensão. O tio de
Masango reflete bem o caráter das indústrias da região. Observa -se ali toda
uma gama de pontas bifaces ao lado de elementos grosseiros, tais como picões.
O traço levalloisiense encontra -se muito bem representado (Cahen, Haesaerts,
van Noten, 1972). Uma sequência de indústrias líticas, do Sangoense à Late
Stone Age, teria sido descoberta em Sanga, mas ainda não foi detalhadamente
estudada (Nenquin, 1958).
626
Metodologia e pré -história da África
Este quadro apresenta os nomes das indústrias de acordo com os diferentes autores, as datações por carbono
14 existentes, a evolução do meio e da ora.
Examinemos agora a região ocidental mais de perto. Suas indústrias agrupam
toda a gama de elementos encontrados nas regiões orientais, o que lhes confere
uma maior variedade tipológica, correspondendo melhor à ideia que em geral
se faz do Sangoense e do Lupembiense. Encontram -se picões grosseiros que,
presentes no Acheulense, persistem ainda até o Tshitoliense. Esse artefato,
considerado o fossile directeur do Sangoense, na realidade não tem significação
cronológica. Mas encontramos também, associado a ele, um instrumental muito
elaborado, com belas pontas de lanças foliáceas e longos punhais. Em seguida,
627
Pré -História da África Central
vêem -se igualmente aparecer pontas de flechas, provando que o homem havia
descoberto o uso do arco.
O Homo sapiens parece ter sido o responsável por tais adaptações, apesar
de não se ter encontrado até agora restos fósseis pertencentes a essa espécie.
São raros os sítios onde se podem encontrar vários níveis em estratigrafia.
Foi na ponta de Gombe que J. Colette descobriu a primeira sequência dessas
indústrias da África Central, fornecendo evidências de quatro: o Kaliniense, o
Djokociense, o Ndoliense e o Leopoldiense, seguido de traços da Idade do Ferro.
O Primeiro Congresso Pan -Africano de Pré -História, realizado em Nairobi em
1947, não considerou os nomes das indústrias definidas por J. Colette e adotou
os termos Sangoense e Lupembiense, que não tinham nenhuma fundamentação
arqueológica ria. Esses novos nomes entraram para a literatura e foram
empregados indiscriminadamente,o na África Central, mas também muito
além de seus limites. A ponta de Gombe, único tio conhecido onde seria
possível estabelecer uma cronologia, foi novamente escavada por D. Cahen em
1973 e 1974 (Cahen, 1976) no intuito de precisar e datar a sequência que J.
Colette havia descoberto. Excluindo algumas peças que evocam o Acheulense, a
sequência inicia -se com o Kaliniense, caracterizado por picões grosseiros feitos
a partir de seixos ou lascas, raspadores maciços, espessos utensílios denticulados
e plainas de grandes dimensões. Encontram -se também bifaces lanceolados,
raspadores convergentes, am de utensílios bifaces ou unifaces estreitos,
com bordos mais ou menos paralelos. A esse conjunto somam -se inúmeras
armaduras com gume transversal feitas a partir de lascas (pequenos trinchetes)
e núcleos circulares de tipo musteriense. A debitagem comporta lascas do tipo
levalloisiense e algumas lâminas de qualidade. Os elementos espessos lembram
o Sangoense, e os utensílios finos, o Lupembiense e mesmo o Tshitoliense. O
nível seguinte, o Djokociense, caracteriza -se principalmente por pontas de flecha
pedunculadas ou foliáceas, frequentemente retocadas por pressão; a debitagem
é a mesma que no Kaliniense. O Djokociense evoca o Lupembiense Recente
da planície de Kinshasa (Moorsel, 1968), o Lupembo -Tshitoliense, na verdade
o Tshitoliense Antigo, como foi definido por G. Mortelmans (1962) e J. D.
Clark (1963). O terceiro nível, o Ndoliense, apresenta -se somente sob a forma
de pequenas concentrações. As pequenas pontas de flecha foliáceas são típicas;
a debitagem bipolar era praticada no próprio local, o que explica a presença de
peças estilhaçadas”. Essa indústria é similar ao Tshitoliense Tardio (Moorsel,
1968; Cahen, Mortelmans, 1973).
Uma das datas obtidas para o Kaliniense coincide com a idade estimada
para o Sangoense (Clark, 1969, 236), e, uma outra, com as fases antigas do
628
Metodologia e pré -história da África
Lupembiense (Clark, 1963, 18 -19; Moorsel, 1968, 221). As datas estimadas
para as amostras do nível Djokociense não diferem das que foram calculadas em
outros lugares para indústrias análogas. Entre as datas associadas ao Ndoliense,
uma delas corresponde às do Tshitoliense Tardio, obtidas anteriormente na
planície de Kinshasa e na região de Lunda.
De maneira geral, pode -se dizer que as indústrias encontradas em
estratigrafia em Lunda, em Gombe e na planície de Kinshasa são comparáveis
tipologicamente e coincidem cronologicamente. O Sangoense -Lupembiense
Inferior estaria situado entre 45.000 e 26.000 B.P., o Lupembiense Inferior iria
de 10.000 a 7000 B.P., e o Tshitoliense Superior, de 6000 a 4000 ou 3500 B.P.
(cf. quadro).
Uma trincheira de prospecção escavada por P. de Maret na gruta de Dimba
mostrou uma suceso de quinze camadas arqueogicas e uma data de 20.000 ±650
B.P. para uma indústria do tipo Lupembiense Superior ou Lupembo -Tshitoliense.
Parece que uma data aproximada de 25.000 B.P. reduziria o hiato existente nas
datações entre 27.000 B.P. e 15.000 B.P. assinalado por D. Cahen (1977).
A gruta de Hau, único sítio que talvez se encontrasse na floresta
equatorial durante sua ocupação e onde F. van Noten descobriu uma indústria
“Lupembiense” seguida de uma Late Stone Age”, não produziu datações de
radiocarbono aceitáveis.
J. P. Emphoux (1970) escavou em 1966 a gruta de Bitorri, encontrando
vinte níveis de ocupação da Idade da Pedra. Um dos níveis forneceu uma data
por radiocarbono de 3930 ±200 B.P., e um outro, inferior, uma data de 4030
±200 B.P. O material tico, que não evoluiu de um nível a outro, pode ser
considerado como formando uma unidade tipo lógica, cuja indústria lembra o
Tshitoliense Superior. O mesmo pesquisador datou de 6600 ±130 B.P. um nível
Tshitoliense Médio em Moussanda (Delibrias et al., 1974, p. 47).
No Gabão, indústrias ditas lupembienses foram rias vezes assinaladas
(Blankoff, 1965; Hadjigeorgiou, Pommeret, 1965; Farine, 1965).
Caçadores ‑coletores especializados
Em um dado momento, provavelmente entre 50.000 B.P. e 40.000 B.P.,
surgem os micrólitos geométricos: segmentos de círculo, triângulos, retângulos
e trapézios. Os mais característicos parecem ser os segmentos, ainda que na
África do Sul tenham sido encontrados no final da Middle Stone Age, quando
629
Pré -História da África Central
provavelmente eram empregados como farpas na base de pontas de lanças
1
. Por
outro lado, na Late Stone Age, esses micrólitos, isolados, serviam como armaduras
de flechas, de lanças, de arpões, de facas ou de buris.
Como para o período anterior, a região estudada pode ser dividida em duas
zonas distintas. Na parte ocidental, que abrange o norte de Angola, o Kasai, o
Cuango, o Baixo Zaire e a República Popular do Congo, observa -se a persistência
da tradição dita lupembiense, como se o Lupembiense, evoluindo no próprio
local, tivesse originado o Tshitoliense. Os micrólitos geométricos tornam -se
numerosos, mas não dominam da mesma forma que na parte oriental, onde
representam o elemento essencial do conjunto de utensílios. S. Miller (1972), que
analisou o Tshitoliense e resumiu os trabalhos anteriores, definiu essa indústria
pela presença de utensílios bifaciais do tipo picão -buris, de pontas foliáceas,
de pontas pedunculadas, de pequenos trinchetes e de micrólitos geométricos.
A região de Lunda teria fornecido uma indústria que reagrupava todos esses
elementos, ainda que geralmente representados de maneira incompleta nos
diferentes sítios. Distingue -se, assim, uma fácies de vale com abundância de
pequenos trinchetes, como em Dinga, e uma fácies de planalto, onde a armadura
era constituída principalmente de pontas pedunculadas (Bequaert, 1952). Um
sítio do Planalto de Bateke, onde G. Mortelmans realizou uma escavação de
salvamento em 1959 (Cahen, Mortelmans, 1975), produziu uma indústria dita
completa”, como a descrita na região de Lunda. O arenito polimorfo, que foi
praticamente o único material utilizado no instrumental descoberto, provém
de depósitos dos quais os mais próximos estão a cerca de 10 km do sítio. Essa
indústria caracteriza -se por uma grande proporção de lascas e de resíduos de
lascamento (96,1%), alguns núcleos (1,4%) e alguns instrumentos (2,4%). Ao lado
de pontas de flecha foliáceas e pedunculadas, foi encontrado um grande número
de micrólitos geométricos e uma grande lasca com gume polido. A maioria dos
núcleos é do tipo circular ou lamelar; há também numerosos núcleos pequenos,
totalmente gastos. A debitagem, nos casos em que a massa é composta dos
resíduos de retoque, apresenta algumas lascas levalloisienses, lâminas e lamelas.
estão as características de um Tshitoliense Tardio. Este sítio parece ter sido
um acampamento de caça, pois, embora o planalto Bateke seja nitidamente
estépico, é recortado por galerias florestais, que devem ter atraído o homem
pré -histórico à procura de caça. Se a matéria -prima utilizada era para lá levada,
muitos utensílios devem ter sido talhados no próprio local, sendo possível que o
1 CARTER, F. Comunicação pessoal.
630
Metodologia e pré -história da África
látex e o copal encontrados em escavação tenham servido como massa para fixar
os micrólitos às hastes das lanças e às flechas. Os raspadores, buris e machados
certamente eram usados para a fabricação dos utensílios compósitos, nos quais
se empregavam gumes transversais e pontas de flechas pedunculadas bifaces.
A região de Lunda, estudada por J. D. Clark, apresentou um Tshitoliense
que estaria situado entre 13.000 e 4500 B.P. (Clark, 1963, 18 -19), mas essa
indústria teria continuado até o início da Era Cristã (Clark, 1968, 125 -149). O
Tshitoliense da planície de Kinshasa, por sua vez, estaria localizado entre 9700
e 5700 B.P. (Moorsel, 1968, p. 221).
Pode -se aqui perguntar a que correspondem as cies reconhecidas no
Tshitoliense. Tratar -se -ia de adaptações a meios variados e, por exemplo, de uma
especialização das técnicas de caça, ou seriam diferenças unicamente “culturais”?
Na parte oriental, na periferia da floresta equatorial, da República Centro-
-Africana ao Shaba, encontram -se as indústrias ditas da Late Stone Age. As
indústrias mais antigas não são tipologicamente diversificadas, pois mais tarde
surgiu um instrumental mais especializado. É o que se observou na gruta de
Matupi, onde duas estações de escavações sucessivas, em 1973 e 1974, revelaram
vestígios de uma longa ocupação humana, iniciada bem antes de 40.000 B.P.,
e continuando sem interrupção perceptível até 3000 B.P. (van Noten, 1977). O
material por ora estudado provém de um único metro quadrado, que forneceu
8045 artefatos; foi lascado quase exclusivamente sobre quartzo por um processo
característico das indústrias puramente microlíticas: a cnica bipolar. Os
resíduos de lascamento representam 90%; o instrumental propriamente dito,
apenas 5,4%, a que se devem acrescentar as peças que apresentam traços de
utilização sem, entretanto, serem instrumentos acabados, e que representam
5%. A indústria é tipicamente microlítica o comprimento máximo das lascas
atinge cerca de 17,7 mm. Todo o instrumental propriamente dito consiste, em
ordem de ocorrência, em peças entalhadas, raspadores, furadores, buris, lascas
e lamelas com bordo desbastado, lascas retocadas, peças quebradas e alguns
micrólitos geométricos (segmentos, semicírculos, triângulos). O instrumental
macrolítico, feito de quartzito, arenito ou xisto, consiste em mós, moedores,
bigornas, percutores, raspadores ncavos e alguns buris. Um fragmento de pedra
furada e decorada com incisões foi datado de cerca de 20.000 B.P.
2
Os restos
ósseos da fauna estão bem conservados; indicariam um meio ambiente mais seco
que o atual. Os ocupantes da gruta caçavam, em ordem decrescente, bovídeos
2 Conhecidas também sob o nome de Kwé, as pedras perfuradas que fazem parte das indústrias da Late
Stone Age eram provavelmente empregadas como lastros de bastões usados para escavar.
631
Pré -História da África Central
(antílopes e búfalos), damões, roedores (principalmente Thryonomyidea), suínos
e, em menor proporção, cercopitecídeos e porcos -espinhos. Essa caverna, que
hoje se encontra na floresta equatorial, devia situar -se em savana durante
quase toda sua ocupação, mas não longe de florestas -galerias, como indicam as
análises palinológicas. Foi ocupada sem interrupção, enquanto a indústria muito
pouco característica do início se transformava em uma outra, mais clássica, que
forneceu micrólitos geométricos, raros utensílios em osso, hematita vermelha,
empregada como corante, e rodelas perfuradas de casca de ovo de avestruz.
Em vista da pobreza de utensílios que pudessem servir como instrumentos ou
armas, sobretudo nas camadas antigas, acreditamos que o instrumental deva ter
sido, em grande parte, de madeira, como observamos em Gwisho (Fagan, van
Noten, 1972).
As escavações feitas por J. de Heinzelin, em 1950, em Ishango, revelaram
três indústrias microlíticas (Heinzelin, 1957). A mais antiga não apresenta
micrólitos geométricos; a seguinte os mostra em grande quantidade, e, na mais
recente, eles são abundantes. O caráter tipológico é, em geral, muito rudimentar;
a debitagem associa todas as técnicas e deixa -se guiar pela natureza do quartzo
de má qualidade utilizado como matéria -prima. Esses elementos lembram
incontestavelmente a evolução observada em Matupi. Ishango forneceu uma
série de arpões, que devem ter sido empregados na caça e pesca e que mostram
uma nítida evolução, variando entre exemplares de duas fileiras de farpas, nas
camadas inferiores, e outros de uma só fileira, em níveis mais recentes. Uma das
descobertas mais .espetaculares é um bastonete de osso decorado com estrias
e que serve de cabo para uma lasca de quartzo. A data atribuída à indústria de
Ishango foi de 21.000 ±500 B.P., que pareceu muito antiga à época da publicação
da monografia do sítio; contudo, em vista das datações obtidas em Matupi,
esse resultado parece atualmente muito menos improvável. Os habitantes de
Ishango viviam da pesca e da caça, sobretudo da caça do hipopótamo e do
topi, além de outros mamíferos, muitos dos quais estão hoje desaparecidos. Os
pássaros também eram caçados. Entre os peixes, encontram -se principalmente os
silurídeos, os ciclídeos e os protopterídeos. Os restos humanos, descobertos entre
os resíduos de cozinha, foram estudados por F. Twiesselmann (1958); mostram
que o sítio era habitado por uma população cujas características biométricas
atípicas e rudes não apresentam nenhum vínculo direto com qualquer outra
população moderna.
Ao lado dessas indústrias puramente microlíticas, surgem na região
interlacustre, no Shaba e nas margens do lago Tanganica, instrias
tipologicamente intermediárias entre um microlítico puro e as indústrias típicas
632
Metodologia e pré -história da África
da parte ocidental da África Central. Aliás, é possível pensar que, por seu caráter
heteróclito, essas indústrias representem um prolongamento da tradição da
Middle Stone Age acima descrita. J. Nenquin deve ter inventado o nome de
Wilton/Tshitoliense” para descrever a Late Stone Age em Ruanda e no Burundi
(Nenquin, 1967), onde infelizmente muito poucos sítios foram datados. Estima-
-se em 15.000 —12.000 B.P. a idade da indústria de transição de Kamoa, que pode
ser comparada ao Lupembo -Tshitoliense da parte ocidental. No mesmo sítio, a
Late Stone Age, que é pobre e pouco característica, é datada de aproximadamente
6000 a 2000 B.P. (Cahen, 1975). Parece, portanto, que diferentes tradições
puderam subsistir durante muito tempo lado a lado; e, efetivamente, junto a
indústrias de caráter misto, encontram -se outras puramente microlíticas, como
em Mukinanira (van Noten, Hiernaux, 1967) e nos lagos Mokoto (van Noten,
1968 -a).
Na África Central ainda não foi encontrado um sítio de riqueza excepcional,
que permitisse a reconstituição detalhada do modo de vida desses caçadores cuja
existência devia ser comparável à que ainda hoje levam os San no Calaari. O sítio
de Gwisho, na Zâmbia,uma ideia bastante completa de como era a vida na
Late Stone Age no V milênio B.P. Ao lado de utensílios polidos, foi encontrada
- acontecimento excepcional – uma grande quantidade de objetos de madeira e
de osso, que provam a importância do trabalho da madeira mesmo em savana
aberta (Fagan, van Noten, 1972).
Fim das idades da pedra
A abundância de utensílios polidos em certas regiões fez com que fossem
eles considerados o indício de um neolítico; mas vimos que tais instrumentos
são encontrados desde a Late Stone Age e que eram fabricados e utilizados ainda
no século XIX na região do Uele (van Noten, 1968). Assim sendo, a descoberta
de utensílios polidos fora de qualquer contexto arqueológico não tem grande
significação. Entretanto a distribuição dos vestígios apresenta certo interesse,
pois esses objetos foram assinalados apenas na bacia central. No leste, tais
descobertas são extremamente raras; quando muito, conhecem -se no Burundi
dois machados polidos e uma gruta com polidores (van Noten, 1969; Cahen,
van Noten, 1970). O número de descobertas cresce um pouco em direção ao
sudeste, onde alguns machados polidos e polidores são assinalados no Shaba,
enquanto no Kasai, embora ainda se encontrem polidores, os utensílios polidos
praticamente inexistem (Celis, 1972).
633
Pré -História da África Central
Por outro lado, esses elementos representam o essencial das descobertas
arqueológicas realizadas ao norte da grande floresta. Na bacia do Uele e até
Ituri, mais de 400 utensílios foram recolhidos, inclusive alguns esplêndidos
machados de hematita cuidadosamente polidos e inúmeros polidores. Até agora
um mapa da distribuição desses utensílios pôde ser levantado (van Noten,
1968). Ao menos parcialmente, o “Neolítico Uelense” não remontaria além do
século XVII, pertencendo, portanto, à Idade do Ferro, como parecem indicar as
escavações feitas em Buru (F. e E. van Noten, 1974).
Mais a oeste, na região onde o Ubangui penetra na floresta, observou -se uma
outra concentração de machados polidos. Muito menos trabalhados que os do
Uele, em geral são polidos apenas parcialmente. Uma prospecção empreendida
nessas regiões não permitiu que se descobrissem semelhantes utensílios em
contexto arqueológico. Mas do outro lado do rio, em Batalimo, na República
Centro -Africana, R. de Bayle (1975) encontrou pela primeira vez em escavação
um machado com gume polido associado a uma indústria não -microlítica e a
cerâmica. Esta última apresenta um fundo plano e com frequência é inteiramente
decorada, combinando caneluras, incisões e impressões, feitas principalmente
com um pente. Datada por termoluminescência, essa cerâmica não seria anterior
ao século IV da Era Cristã, o que parece bem recente para uma tal indústria.
Embora se tenham recolhido isoladamente outros machados polidos em
diversos pontos da República Centro -Africana, não existe, que seja do nosso
conhecimento, um polidor nessas regiões.
Antes de abordar a última zona de concentração, é preciso assinalar que na
ilha de Fernando Pó, nos Camarões, machados polidos associados a cerâmica
foram datados do século VII (Martin dei Molino, 1965) e permaneceram em
uso até época recente.
A última zona estende -se paralelamente à costa atlântica, do Gabão até o
noroeste de Angola. Os utensílios neolíticos” encontrados nessa imensa área
são geralmente lascados, sendo apenas o gume polido.
No Gabão, os machados apresentam bordos sinuosos formando um encaixe
característico (Pommeret, 1966). Um pote, descoberto por ocasião de trabalhos
de grande escala, continha um fragmento de utensílio polido e de carvão vegetal
que, infelizmente, não foi datado (Pommeret, 1965). Na República Popular
do Congo, bem como em Angola (Martins, 1976), conhecem -se apenas
descobertas de superfície. Em contrapartida, na ponta de Gombe, J. Colette
encontrou um machado polido aparentemente associado a cerâmica de fundo
plano (Bequaert, 1938); criou o termo “neolítico leopoldiense”, que passou a ser
usado para designar inúmeros machados polidos encontrados no Baixo Zaire.
634
Metodologia e pré -história da África
Mortelmans (1959) recolheu em superfície, no Congo dia Vanga, machados
polidos, quartzos lascados atípicos e uma cerâmica rudimentar de fundo plano.
A mesma cerâmica é encontrada nas grutas de Ntadi -ntadi, Dimba e Ngovo,
associada, nesses dois últimos sítios, a machados polidos. Por quatro vezes o
carvão vegetal das proximidades foi datado de dois séculos antes da Era Cristã
(Maret, 1977 -a). Infelizmente, trata -se de sondagens muito limitadas para que
se possa excluir definitivamente a possibilidade de atribuição desses vestígios
à Idade do Ferro, visto que novas escavações mostram que o Leopoldiense
da ponta de Gombe talvez avance pela Idade do Ferro (Cahen, 1976). Mas
como esse sítio sofreu grandes perturbações, é possível tratar -se de uma simples
contaminação dos horizontes superiores.
Em Dimba e Ngovo, único sítio onde as ossadas se conservaram, a análise
da fauna associada não revelou até agora a presença de animais domésticos. Na
ausência de outros dados socioeconômicos, é prematuro admitir um verdadeiro
neolítico cujos responsáveis houvessem empregado utensílios polidos e cerâmica
e criado gado ou praticado a agricultura. O mesmo acontece com todas as outras
indústrias de aspecto neolítico coletadas até o momento na África Central; não
lhes conhecemos nem os utilizadores, nem a época, nem o sistema econômico.
Entretanto, lançou -se recentemente a hipótese de que alguns dos vestígios em
questão pertenceriam a um estágio final da Idade da Pedra, a que corresponderiam
talvez as primeiras etapas da expansão das populações de língua bantu, por volta
do último milênio antes da Era Cristã, isto é, antes de adquirirem o domínio do
ferro (Phillipson, 1976; Maret, 1977 -b; van Noten, 1978).
Devemos também mencionar aqui os megálitos descobertos na região
de Buar; remontariam ao V ou I milênio antes da Era Cristã, podendo, no
entanto, tratar -se de um caso de reutilização (Bayle des Hermens, 1975). Por
suas dimensões, esses monumentos parecem ser obra de populações sedentárias,
que, supõe -se, tinham ultrapassado o estágio da caça e da coleta. Queremos
notar que os pavimentos megalíticos de Api constituem um fenômeno natural
e, de modo algum, trabalho humano (van Noten, 1973), como é o caso de todas
as outras construções consideradas megálitos conhecidas até hoje no Zaire.
Sequência idealizada?
Por ocasião do Congresso Pan-Africano em Dacar em 1967, J. D. Clark
tentou estabelecer uma sequência na nomenclatura da bacia do Zaire (Clark,
1971). Retrando o histórico das diferentes nomenclaturas utilizadas para
635
Pré -História da África Central
designar as indústrias s -acheulenses da região aqui estudada, D. Cahen
mostrou claramente que se trata de um extraordinário imbróglio (Cahen, 1977).
As recentes escavações feitas em Gombe permitiram restabelecer e datar
a sequência arqueológica definida por J. Colette. Mas as associações entre as
peças provenientes de diferentes profundidades mostram que o sítio sofreu
muitas perturbações e que as instrias o são homogêneas (Cahen, 1976).
Os objetos movimentaram -se no solo, como confirmaram as experncias em
laboratório (Moeyersons, 1977). Portanto, é possível que fenômenos similares
tenham ocorrido em outros tios onde os vesgios arqueológicos foram
depositados em areias Calaari revolvidas, como no nordeste de Angola, no
Baixo Zaire, no Kasai, no Shaba e no Congo (Cahen, Moeyersons, 1977).
Entretanto, não se sabe em que proporção as diferentes indústrias foram
afetadas por essas perturbações. Por outro lado, observa -se uma convergência
tipológica e cronológica impressionante entre os diferentes sítios pré-
-históricos da bacia meridional do Zaire, e em menor escala, na da África
Central. D. Cahen (1977) propôs reagrupar esses conjuntos p-hisricos
convergentes em um único complexo industrial pós -Acheulense da África
Central, que se fosse reduzindo em abrangência a limitar -se ao sudoeste
da bacia do Zaire. Além disso, o mesmo autor considera que termos como
Sangoense, Lupembiense e Tshitoliense não correspondem a nenhuma
realidade cientificamente estabelecida. Entretanto, como tentamos demonstrar
neste capítulo, parece -nos posvel, após o Acheulense, distinguir variantes
regionais nas indústrias líticas e seguir sua evolão. Por mais esquemáticas e
discutíveis que sejam, essas distinções refletem uma certa realidade, a qual, sem
dúvida, parece agora muito mais complexa do que inicialmente se supunha. É
aperfeiçoando nossa taxonomia com base em novas escavações que chegaremos
a compreender melhor a extraordinária diversidade apresentada pela África
Central no decorrer das Idades da Pedra. A nomenclatura existente pode, em
nossa opinião, ser mantida como um instrumento de trabalho provisório.
Conclusão
O passado da África Central é ainda pouco conhecido, pois só recentemente
passou a ser estudado de maneira sistemática; mas a arqueologia já registra seus
primeiros resultados. Assim, no espaço de alguns anos, o número de datações
por carbono 14 quase quintuplicou (Maret, van Noten, Cahen, 1977) e puderam
ser esboçadas as primeiras sínteses (van Noten, em preparação).
636
Metodologia e pré -história da África
O objetivo primordial das novas pesquisas era efetuar uma série de escavações,
abrangendo regiões e períodos diferentes, a fim de chegar, em prazo razoável, ao
estabelecimento de um quadro cronoestratigráfico geral para a África Central.
Esse projeto ambicioso deve ser provisoriamente relegado a segundo plano: um
sítio -chave, como o de Gombe, colocou em questão não as nomenclaturas
existentes, mas tamm a validade das observações estratigráficas; outros
sítios, como Matupi, forneceram novas indústrias cujas datações questionaram
sua inserção num amplo quadro onde indústrias” e “culturas” encontrariam
definitivamente seu “lugar”.
Parece cada vez mais claro que a cada descoberta de novos sítios sempre se
encontra algo de original e inesperado. Isso vem em acordo com uma de nossas
hipóteses de trabalho, que previa uma diversidade muito grande em cada uma
das indústrias” ou “culturas”. O homem, frente a um microambiente específico,
teve que adaptar seu instrumental a esse meio. Comprazemo -nos a imaginá-
-lo, nos limites de seu território, a levar uma vida mais sedentária que a vida
de nomadismo absoluto atribuída com demasiada frequência aos caçadores-
-coletores. Longe de perseguir infatigavelmente a caça, essas populações devem
ter desenvolvido uma cultura própria, síntese harmoniosa entre o meio ambiente
e as tradições ancestrais. Não acreditamos em um determinismo absoluto
do meio. Uma vez estabelecido o equilíbrio ecológico, o instrumental pode
permanecer imutável por longos períodos. Nesse caso, responde plenamente às
exigências do meio e de seus habitantes; enquanto esse delicado equilíbrio foi
mantido, nada houve que impeliu o homem a evoluir rapidamente.
C A P Í T U L O 2 2
637
Pré -História da África do Norte
Próximos à Europa e mediterrâneos pela costa marítima setentrional, os
países do Magreb foram percorridos mais de um século pelos primeiros
pesquisadores interessados em sua p -história. Assim, acumulou -se uma
bibliografia abundante de valor altamente variável, que foi mais tarde selecionada
e classificada (1952 -1955 -1974). Mas a pesquisa pré -histórica dessa parte do
norte da África não conservou a dianteira que obteve durante muito tempo;
apresenta, ao contrário, certo atraso em dois aspectos essenciais: nos métodos de
escavação, com exceções muito raras, e na cronologia absoluta, essencialmente
limitada às possibilidades do radiocarbono. Nesses aspectos, a África oriental
realizou um progresso infinitamente maior.
Pela falta de fósseis humanos do Pleistoceno Inferior, de datas obtidas
pelo método do potássio -argônio (K/Ar) e de solos de ocupação paleolítico,
atualmente é possível avaliar a antiguidade da implantação de hominídeos
no Magreb e no Saara por correlações hipotéticas sobre a fauna e a tipologia
das indústrias líticas.
Por falta também de estratigrafias suficientemente extensas e numerosas,
tem sido difícil estabelecer a continuidade da ocupação humana, aliás bastante
provável. As jazidas essenciais encontram -se isoladas tanto no tempo quanto
no espaço: Ternifine (atlantropo) na Argélia, por exemplo. Aguardam ainda em
grande parte uma solução os problemas do Musteriense, de suas relações com
P-História da África do Norte
L. Balout
638
Metodologia e pré -história da África
o Ateriense, do homem desta última civilização, da passagem do Ateriense ao
Iberomaurusiense, da estratigrafia do Capsiense, dos estágios de neolitização.
A pesquisa p-histórica forneceu dados importantes ao conhecimento do
Quaternário no que diz respeito à estratigrafia e à paleontologia. Permitiu o
estabelecimento de uma tipologia cujo alcance ultrapassa os limites do Magreb.
Deve adotar de agora em diante uma óptica paleoetnológica: passar do “homem
e seu meio” ao “homem em seu meio”.
As mais antigas indústrias humanas: o “Pré ‑Acheulense”
Não há falta de testemunhos, mas qualquer interpretação além da tipológica
é delicada. Baseia -se na estratigrafia do Quaterrio litoral do Marrocos
(Biberson), na paleontologia animal da Argélia (Ain Hanech, perto de Sétif,
escavações feitas por C. Arambourg) e da Tunísia (Ain Brimba, perto de Kebili),
e unicamente na tipologia do Saara (Reggan, In Afaleleh, etc.). Ligações mais ou
menos frágeis podem ser estabelecidas entre as jazidas da Tanzânia, do Quênia
e da Etiópia. Dizemos frágeis porque somente o litoral atlântico do Marrocos
permitiu o estabelecimento de uma evolução dos “seixos lascados” nas bases
utilizadas por P. Biberson e que são parcialmente contestadas; porque a fauna
não é necessariamente contemporânea; porque presença arqueológica de um
lado e estrutura arqueológica de outro; porque os métodos de análise tipológica
são diferentes na África “de língua francesa e de “língua inglesa”, etc.
Atualmente não parece verossímil que a presença de hominídeos no Magreb
e no Saara seja tão antiga quanto na África oriental e meridional. Ainda não
foram identificadas as indústrias sobre lascas que precederam os seixos lascados.
Não traços de uma osteodontokeratic culture, nem restos de australopitecos.
Entretanto, acreditamos que os seixos lascados do Marrocos, da Argélia e do
Saara façam parte de uma cronologia paralela à de Olduvai, isto é, entre 2 e 1
milhão de anos (2,5 milhões se considerarmos o seixo com lascamento bifacial
do Omo).
As investigações concentraram -se, sem dúvida, numa correlação
cronoestratigrafia/evolução tipológica, que resultou no estabelecimento de listas
tipológicas com implicações cronológicas testadas pelo trabalho de P. Biberson no
Marrocos, H. Hugot e L. Ramendo no Saara central, H. Alimen e J. Chavaillon
no Saara ocidental. A análise é baseada nas características técnicas cuja repetição
criou formas sistemáticas. A classificação procede do simples ao complexo
lascamento unifacial, bifacial, poliédrico – e corresponde, provavelmente, a uma
639
Pré -História da África do Norte
F . Evolução da
Pebble Culture
para as formas do Acheulense: os números e guras referem-
-se
à
classicação tipológica usada para o Pré -Acheulense africano – H
=
machado (Foto M. Bovis).
640
Metodologia e pré -história da África
sequência cronológica. P. Biberson e J. Chavaillon edificaram sistemas de aspecto
regional, respectivamente nas praias quaternárias do Marrocos atlântico e nos
terrenos de Saura. Foi baseando -se na paleontologia que os “esferoides facetados”
do Ain Hanech foram situados na evolão da fauna do Villafranchiano,
conhecida no Marrocos (Fouarat), na Argélia (Ain Boucherit, Ain Hanech) e
na Tunísia (lago Ischkeul, Ain Brimba).
Após essas considerações, apoiamo -nos em uma estratigrafia do
Villafranchiano baseada em grande parte na paleontologia animal. Nesta série
aparecem as indústrias humanas, e a evolução em direção aos bifaces e machados
do Paleolítico Inferior Clássico pode ser provada; mas não há em parte alguma
estrutura arqueológica e, portanto, nenhum quadro paleoetnológico, como na
Tanzânia (Olduvai), no Quênia e na Etiópia.
As indústrias acheulenses
Desde o Simpósio de Burg Wartenstein (1965) e o Congresso Pan -Africano
de P-História em Dacar (1967), agrupa -se sob o termo Acheulense africano”
todo o Paleolítico Inferior que, na Europa ocidental, corresponde ao Abbeviliense
e ao Acheulense, e também ao “Clactoniense” e ao “Levalloisiense”, ambos muito
discutidos.
O Acheulense é abundante no Magreb e, excluindo as estações de superfície,
apresenta -se em três tipos de jazidas bastante particulares:
a) As jazidas relacionadas ao Quaternário litoral, continental e até mesmo
marinho. É o caso do Marrocos atlântico, onde P. Biberson pôde propor
uma sequência acheulense partindo dos seixos lascados da Pebble Culture do
Pré -Acheulense e chegando ao Paleolítico Médio (Ateriense). Por razões
relacionadas à geomorfologia do litoral, a Argélia não foi tão favorecida.
Entretanto, foram assinaladas jazidas” na costa kabyle (Djidjelli) e perto
de Annaba (Bône). Não conheço nenhuma jazida acheulense desse tipo no
litoral tunisiano.
b) As jazidas de aluviões fluviais ou lacustres. As primeiras são infinitamente
mais raras e pobres que as da Europa, e as relões estratigráficas e
paleontológicas são, na maioria das vezes, muito imprecisas. É o caso de
vários sítios marroquinos (Uede Mellah) e argelinos: Ouzidane (perto de
Tlemcen), Champlain (perto de Médéa), Tamda (Uede Sebaou), Mansura
(Constantina), Clairfontaine (norte de Tebessa), S’Baikid e sobretudo El -Ma
641
Pré -História da África do Norte
F . Biface Acheulense – o mais evoluído da jazida de Ternine (Argélia ocidental. Escavações C.
Arambourg, 1954 Desenho M. Dauvois).
642
Metodologia e pré -história da África
El -Abiod (sul de Tebessa). Na Tunísia há o Acheulense de Redeyef (Gafsa).
Vamos apenas mencionar as jazidas de margens de lagos, tão extraordinárias
na África oriental (por exemplo, Olorgesailie, no Quênia). Há o lago Karar
(Tlemcen), onde se encontram escavações muito antigas e mal dirigidas por
M. Boulle, e Abuquir (Mostaganem), ainda menos conhecida. Um único
sítio emerge desta imprecisão, o de Sidi Zin (Le Kef, Tunísia), onde uma
camada contendo machados foi encontrada entre duas outras de bifaces, sem
machados. Por outro lado, o Acheulense ligado às jazidas lacustres aparece
com bastante frequência desde a Mauritânia até a Líbia.
c) As jazidas relacionadas às antigas fontes artesianas, que parecem ter atraído
os homens do Acheulense ao Ateriense. A princípio, é o caso de Tit Mellil
(Casablanca) e de Ain Fritissa (sul de Ujda) no Marrocos; do já citado
lago Karar na Argélia, e de Chetma (Biskra), sobre o qual não se tem
quase informações, e principalmente de Ternifine (Mascara). Apenas
esta última foi objeto de escavações recentes (1954 -1956) e sistemáticas,
confiadas ao professor C. Arambourg pela Argélia. Todavia, não devemos
alimentar muitas ilusões: a indústria é extremamente interessante, a fauna
é de uma riqueza prodigiosa e foi que se descobriu o atlantropo; mas a
estratigrafia desta notável jazida apresenta problemas, o que deixa em aberto
o elenco cronológico no qual se insere o conjunto de documentos. Talvez a
própria natureza do sítio, com areias constantemente revolvidas pelas fontes
artesianas, tenha impedido o estabelecimento de uma cronoestratigrafia.
Isto porém não foi demonstrado. O estudo dos utensílios parece provar que
não se trata de oficinas de lascamento, mas sim de locais onde se faziam
emboscadas à caça.
O Acheulense do Magreb e o do Saara não diferem fundamentalmente
daquele que foi definido na França. Os métodos de análise (Bordes, 1961 e
Balout, 1967) não indicam nenhuma diferença básica entre os bifaces. O mesmo
acontece com os triedros. A existência de lascas e de uma pequena indústria
em Ternifine, por exemplo, não nos surpreende. A utilização do percutor
mole apareceu mais ou menos no fim do Acheulense Antigo (lascamento ou
relascamento): uma única pa foi encontrada em Ternifine (biface). Vê -se
também aparecer o “golpe de trinchete” no desprendimento da extremidade
distal dos triedros. O traço mais original, assinalado muito tempo, é a
importância dos machados sobre lasca. É que se pode sugerir a existência
de um utensílio (espécie de machado) estritamente africano. Na verdade, não
se apresenta sempre no Acheulense da África desconhecido no admirável
643
Pré -História da África do Norte
F . Machados de riolito do Acheulense encontrados no sítio de Erg Tihodaine (Foto M. Bovis).
F . Ponta do Musteriense, El -Guettar (Tunísia. Escavações Dr. Gruet. Foto M. Bovis).
F . “Esferoides facetados” de Ain Hanech (Foto M. Bovis).
644
Metodologia e pré -história da África
conjunto de El -Ma El-Abiod, na Argélia, para citar um único exemplo); por
outro lado, é encontrado desde o Oriente Próximo até a península indiana. Sua
presença na Espanha (Rio Manzanares, perto de Madri) e a passagem pelos
Pirineus levaram H. Alimen a reconsiderar, recentemente (1975), o problema da
travessia do estreito de Gibraltar bem antes da navegação neolítica. Concluiu -se
pela existência de uma ligação através do fundo alto e raso do estreito que se
tornou transitável no decorrer das regressões de Riss.
Deve -se a J. Tixier a alise tipológica mais pertinente dos machados do
Magreb. Duas constatações são de importância capital. A primeira é a aparição
de método de corte Levallois desde o Acheulense Antigo, que resulta
na inacreditável estandardizão dos machados Tabelbala -Tachenghit (Saara
argelino ocidental). A segunda é a técnica da lasca -núcleo”, que permite obter
lascas de duas faces de debitagem opostas, determinando um gume perfeito
em todo o contorno (técnica de Kombema na África meridional). Teriam
esses métodos tão elaborados sido transmitidos pela África à Europa, onde a
primeira desempenhou um papel pelo menos significativo antes do Paleolítico
Médio?
A definição do Acheulense sempre foi de ordem arqueológica. As
indústrias associadas aos bifaces abrangem duas glaciões (Mindel - Riss),
a interglaciária que as separa e os interestádios que as subdivide. P. Biberson
tentou estabelecer um paralelismo com as transgressões e regressões marinhas:
Amiriense = Mindel; Anfatiense = Riss; Tensiftiense = Riss. Essas correlações
são sempre hipotéticas. Um prolongamento na interglaciária Riss -Würm é
perfeitamente plausível.
Por falta de datações absolutas, devemos apoiar nossas teorias na paleontologia.
A fauna perde seus componentes oriundos do Villafranchiano Superior e torna-
-se a “grande fauna chadiano -zambeziana”, como a qualificava C. Arambourg.
Ainda não conhecemos nada a respeito nem da microfauna nem da flora de
Ternifine.
O atlantropo, tanto o de Ternifine (Atlanthropus Mauritanicus) quanto
os descobertos no Marrocos Homem de Rabat(?) e de Sidi Abderrahman
(Casablanca) pertencem ao Homo erectus. Esses pitecantropos, aliás muito
semelhantes aos sinantropos de Pequim, situam -se de modo muito impreciso
numa cronologia: 400.000 a 500.000 anos parece a hipótese mais plausível.
Em outras regiões esses homens dominaram o fogo e talvez tenham tido uma
linguagem rudimentar. O Magreb o nos acrescenta nenhum dado nesse
campo.
645
Pré -História da África do Norte
Musteriense ‑Ateriense
Em 1955, escrevi que duvidava da existência de um Musteriense autônomo
na África do norte. Fui severamente repreendido pelo Dr. Gobert, que tinha
toda razão. Posteriormente (1965), modifiquei meu julgamento, mas o problema
não estava resolvido; estava simplesmente transferido. Havia, com certeza,
jazidas genuinamente musterienses no Magreb, mas situadas em condições
geográficas extraordinárias, contrárias a algumas concepções aceitas de etnia pré-
-histórica. Seis jazidas na Tunísia: Sidi Zin (Le Kef), Ain Mhrotta (Kairuan ) ,
Ain Meterchem (Djebel Chambi), Sidi Mansour de Gafsa, El-Guettar (Gafsa),
Uede Akarit (Gabes); uma única na Argélia: Retaimia (vale do Chelif); três
no Marrocos: Taforalt (Ujda), Kifanbel Ghomari (Taza), Djebel Irhoud (Safi);
nenhuma no Saara. Há, entretanto, centenas de sítios pré ou pós -musterienses.
Isto não reflete o estado das pesquisas, pois a descoberta do Musteriense era
uma preocupação essencial dos pré -historiadores formados na França, onde ele é
abundante, como também nas penínsulas Ibérica e Italiana desde Gibraltar, por
exemplo. 800 km de Sidi Zin (Le Kef) até Retaimia, 360 km deste sítio à
gruta de Taforalt, e ainda 700 km até atingir o Djebel Irhoud. Trata -se, entretanto,
de Musteriense perfeitamente caracterizado, assimilável às fácies europeias, em
particular à técnica de lascamento Levallois. Em duas extremidades geográficas
temos o testemunho dos homens: os neandertalenses do Djebel Irhoud e o mais
antigo monumento ritual conhecido, o cairn ou Hermaion de El -Guettar,
do qual apenas o cume emergia da fonte, à qual ele era sem dúvida consagrado.
Exceto em Uede Akarit, nenhuma jazida musteriense está próxima do litoral.
Mas onde estaria então situada a costa do golfo de Gabes? O Musteriense do
Magreb pode ter vindo do leste. O mais notável é que este Musteriense
conheceu rapidamente uma evolução original: transformou -se, no próprio local,
em Ateriense”. Baseando minhas deduções numa aplicação rigorosa das regras
de classificação geológica pelos “fósseis mais recentes”, considerei aterienses
esses desitos industriais do Musteriense onde se encontrava uma ponta
pedunculada ateriense (El -Guettar, Ain Metherchem, etc.). Não acredito que
esta peça seja uma prova de contemporaneidade de musterienses e aterienses;
penso que o Musteriense do Magreb tenha sofrido uma mutação diferente
da evolão de todos os outros Musterienses. J. Tixier mostrou que não se
trata de uma associação de pontas ou de raspadores pedunculados, mas de uma
transformação de cerca de trinta formas musterienses em formas aterienses
pelo lascamento de um pedúnculo basilar. Na Europa, e particularmente na
646
Metodologia e pré -história da África
França, o complexo Musteriense seguiu outros caminhos. O desenvolvimento
do Magrebiense foi tão original que se chegou a adotar uma distinção específica,
hoje não mais defensável. O Ateriense não passa de uma fácies evolutiva
própria de uma parte da África do Musteriense; coincide com ele ano
plano cronológico. A definição de R. Vaufrey de um “Paleolítico Superior” não
é mais válida.
Anteriormente, alguns autores já haviam sugerido a existência de um
Musteriense de utenlios pedunculados”, da mesma forma como hoje
empregamos o termo musteriense de denticulados”. E, como a indústria da
jazida epônima do Ateriense (Uede Djebbana, perto de Bir el -Ater, sul de
Tebessa) nunca foi analisada a fundo pelo seu descobridor, Ateriense” permanece
um nomen nudum, como dizia M. Antoine. Trata -se de uma evolução precoce
do Musteriense, abrangendo o Magreb e o Saara de norte a sul, e ao mesmo
tempo coincide cronologicamente com uma parte do Paleolítico Médio e com
pelo menos o início do Paleolítico Superior.
Entretanto, nossas referências cronológicas ainda são muito imprecisas. As
correlações propostas por G. Camps com as datas obtidas por MacBurney em
Cirenaica são frágeis, pois a identidade das indústrias não foi demonstrada.
O Ateriense é “muito discutível” (Camps) e o Iberomaurusiense não existe
(Tixier). Relações estratigráficas puderam ser estabelecidas com o Quaternário
continental ou marinho, tanto no Saara quanto no Magreb, e tanto em cronologia
relativa quanto absoluta. O quadragésimo milênio antes da Era Cristã não é, sem
dúvida, a data mais antiga que pode ser atribuída à aparição do Ateriense. Nossa
dificuldade vem dos limites da fidedignidade do C14. Mas as datas obtidas no
Magreb e no Saara inscrevem -se entre -37.000 a -30.000, e constituem uma
sequência coerente e plausível. O Ateriense é, portanto, no início, um Paleolítico
Médio. Em seguida, é contemporâneo do Castelperroniense e do Aurignaciense,
isto é, da primeira parte do Paleolítico Superior, ao menos na França. As relações
com as formações quaternárias são concordantes.casos em que o Ateriense
foi encontrado, em condão original, nas praias neotirrenienses, emergidas
exatamente no início da última grande regressão (em Karouba, por exemplo,
perto de Mostaganem, Argélia ocidental). O fim deste interestádio Würmiano
(Würm 1/2) ocorreu por volta de -48.000. As formações continentais que
recobrem estas praias submersas no mar atual, geralmente rubificadas e ricas
em Ateriense, datam da regressão que pode ter atingido 150 m.
Seria muito delicado determinar lima data para o fim do Ateriense. A
conquista do Saara é um fato, do mesmo modo que a evolão técnica da
indústria em formas mais ou menos anunciadoras do Neolítico.
647
Pré -História da África do Norte
F. Ateriense do Uede Djouf el -Djemel (Argélia oriental): pontas e raspadores pedunculares,
“racloirs” núcleos Levallois (Foto M. Bovis).
F . Indústria do Capsiense típico (Foto M. Bovis).
F . Indústria de armaduras do Capsiense superior: triângulos escalenos, trapézios e microburis,
serras, lâminas denticuladas, pequeno buril de ângulo, furadores, raspadores, núcleos “canelados”, etc. (Foto
M. Bovis).
F . Indústria do Capsiense superior: micrólitos geométricos: trapézios, triângulos escalenos,
microburis e instrumentos em forma de crescente (Foto M. Bovis).
648
Metodologia e pré -história da África
Para H. Hugot, o Ateriense não transpôs a barreira dos grandes lagos,
repletos de diatomáceas ao sétimo milênio antes da Era Cristã. A prova
desse Ateriense “Pré -Neolítico não se mostrou tão sedutora quanto a hipótese.
Entretanto, não se conhece a indústria intermediária, e o principal obstáculo,
de ordem antropológica, está em processo de desintegração: todas as recentes
descobertas feitas no Marrocos reforçam a hipótese de que o homem ateriense
não é mais um neandertalense como os musterienses do Djebel Irhoud, mas
um Homo sapiens.
Paleolítico Superior e Epipaleolítico
Quaisquer que possam ter sido os prolongamentos aterienses no Saara, no
Magreb as coisas se passaram de outro modo. É inútil voltar aqui à história
da refutação das hipóteses de R. Vaufrey, encaradas como autoridade durante
decênios. Mais vantajoso é, sem dúvida nenhuma, localizar os conhecimentos
atuais. Estes conhecimentos organizam -se em torno de quatro ideias básicas:
• O Iberomaurusiense, que separei do Capsiense por razões antropológicas e
paleoetnológicas, é muito mais antigo do que se imaginava. É contemporâneo
do Magdaleniense francês, e é, portanto, uma civilização do Paleolítico
Superior.
• A controvérsia sobre o “Horizonte Collignon”, que opôs R. Vaufrey ao Dr.
Gobert e a mim mesmo, está terminada: esta indústria de lamelas, mais
próxima do Iberomaurusiense do que do Capsiense, é anterior a esta última.
• A distinção estabelecida por R. Vaufrey, de um Capsiense “típico substituído
por um Capsiense “superior” ou “evoluído”, dá lugar a uma proliferação das
indústrias capsienses, apoiada sobre um número bastante grande de datas
radiométricas, nem todas prontamente aceitas.
• O “Neolítico de tradição capsiense” criado por R. Vaufrey em bases muito
estreitas, mas estendido por ele mesmo a uma grande parte da África, deve ser
restrito às suas dimensões originais e ceder as grandes áreas indevidamente
conquistadas a outras fácies da neolitização africana.
O lberomaurusiense
A antiga definição de Pallary (1909), ainda citada, não é mais aceitável. Ele
enfatizou insistentemente a profusão de uma técnica, a da borda de preensão
retocada das lamelas, que marcou quase todo o instrumental lítico. Será preciso
649
Pré -História da África do Norte
esperar as minuciosas alises tipogicas de J. Tixier para substituir um
conjunto de formas precisas, por uma técnica global, o que havia sido mais
ou menos percebido por certos pré -historiadores, em particular o Dr. Gobert,
na Tunísia. As novas escavações feitas por E. Saxon na jazida de Tamar Hat
(cornija de Bejaia, Argélia) tornaram possível obter datas isotópicas muito altas
e compreender melhor estes caçadores de carneiros monteses, habitantes de
grutas litorâneas separadas do mar por pântanos e uma plataforma continental
emersa, rica em mariscos. O Iberomaurusiense é, na realidade, uma civilização
litorânea e teliense que, entretanto, conheceu penetrações continentais. Destas,
a jazida menos discutível é a de Columnata (Tiaret, Argélia). Isto não impede
que a região de Tânger e a costa do Sahel tunisiano pareçam muito vazias. A
ausência de Iberomaurusiense na região que vai da Tunísia até o sul do Uede
Medjerda pode ser atribuída a um desenvolvimento separado, que será exposto
mais adiante.
Mesmo analisado em detalhe, o instrumental Iberomaurusiense permanece
pobre. Algumas centenas de microburis recolhidos bem depois das escavações,
na jazida típica da Mouila (perto de Maghnia, Argélia), confirmaram estarem
eles vinculados à fabricação de pontas em triedro pontiagudo (chamadas pontas
da Mouila”) e não à de micrólitos geométricos, como no Capsiense. A indústria
óssea é muito pobre, e somente uma forma original: o “trinchete”. Não
nem arte mobiliária, nem arte parietal. Estamos no tempo de Altamira e de
Lascaux, e os homens são, tanto ao norte como ao sul do Mediterrâneo, do tipo
Cro -Magnon, o mesmo de “Mechta el -Arbi”.
o há provas satisfatórias da hipótese tradicionalmente aceita sobre
uma cultura de origem oriental dividida em dois ramos: o Cro -Magnon
europeu ao norte do Mediterrâneo, e ao sul, ao longo dos rios africanos, o
Homem de Mechta el -Arbi. No plano antropológico podem ser vistos como
descendentes dos neandertalenses por interdio do homem ateriense. Por
mais sedutora que seja esta hitese, ela o explica o desenvolvimento de
uma indústria sem nenhum ponto de comparão com o Musteriense e até
mesmo com o Ateriense, que a precederam. Sugerir que não tenham sido
os iberomaurusienses os portadores desta civilizão é pouco concebível,
uma vez que ela não tem raízes locais. E não é este o único problema.
Estes Cro -Magnon do Magreb tiveram uma vocação e um destino
diametralmente opostos aos dos europeus. A indústriatica, contemporânea
do Magdaleniense, ao menos nos estágios mais antigos, era “mesolítica”,
na medida em que foi outrora descrita como um Aziliense barbaresco”;
a instria óssea não teve equivalência com a dos magdalenienses, e não
650
Metodologia e pré -história da África
houve nem arte mobiliária, nem arte parietal, apesar das informações
em contrário no Marrocos. Por outro lado, sobreviveram a o Neolítico
e chegaram a colonizar o arquipélago das Canárias por volta do fim do
terceiro milênio antes da Era Cristã. Há ainda muitas outras características
próprias do Magreb, como as mutilões denrias, os cemirios em grutas
ou sob abrigos (Afalou -bou -Rhummel, Arlia; Taforalt, Marrocos) e os
monumentos funerários (Columnata).
O “horizonte collignon” e as outras indústrias lamelares
pré ‑capsienses
Atualmente está provado em bases estratigráficas e geomorfológicas
que as instrias de lamelas da Tunísia Pré -Saariana (Gafsa, Lalla, região
dos Chotts, etc.) o anteriores a toda a rie capsiense. Em Gafsa (Sidi
Mansour) o horizonte Collignon insere -se num aterro fluvial; o esgio final
de sedimentação nos lagos é marcado por importantes formões gipsíferas.
Iniciada uma nova sedimentação, ela é imediatamente interrompida por
um abaixamento de nível da bacia de Gafsa, que causa uma nova eroo.
O Capsiensepico e evoluído ocupa a superfície dessa erosão, como
o testemunham os outeiros. Ainda não se pode estabelecer nenhuma
posição cronogica, a não ser que há um pouco de Musteriense na base
da sedimentação. Estas indústrias lamelares só podem ser associadas ao
Iberomaurusiense na medida em que diferem especificamente do Capsiense.
A tipologia é diferente, exceto a proliferão da técnica da borda de preeno
retocada. Sem dúvida, sua origem deve ser pesq uisada em direção ao leste
(Cirenaica, Egito, Oriente Próximo). Outras indústrias epipaleolíticas
originais podem ser situadas no local, entre o Iberomaurusiense e fácies
capsienses. O “Columnatiense” ao qual se associa a necrópole foi caracterizado
no timo milênio por uma indústria extremamente microtica. Outros sítios
foram descobertos e o mais importante é o de Koudiat Kifêne Lahda (Ain
M’Lila, Argélia oriental), onde a indústria anterior ao Capsiense remonta,
igualmente, do sétimo milênio. O termo “elassolítico” foi proposto para
designar este conjunto ultramicrotico ligado a um gênero de vida que não
pode ser definido. Outras fácies foram assinaladas na Argélia ocidental,
em particular oKeremiense e oKristeliense”. A lista ainda está longe de
se concluir, pois, na verdade, entre o Iberomaurusiense, em grande parte
paleolítico, e o Capsiense, houve uma proliferão de indústrias comparável
ao que ocorreu no Mesolítico europeu.
651
Pré -História da África do Norte
As fácies capsienses
A “série capsiense” foi a mola mestra das hipóteses de R. Vaufrey: Capsiense
“típico”, “superior” e “de tradição capsiense”. Embora essa estrutura simplista
tenha sido justamente criticada, com base sobretudo em inúmeras datas
radiométricas, deve -se reconhecer que as pesquisas realizadas a este respeito
não atingiram os progressos desejados nos últimos vinte anos. Salvo exceções
muito raras, as escavações nos viveiros de caracóis” ainda não possibilitaram um
meio de identificar as estratigrafias nem as estruturas arqueológicas.
Enquanto não dispusermos de cortes suficientes para observar as superposições
das diversas fácies capsienses, basearemos as contemporaneidades e as sequências
nas datas C14, muito menos confiáveis que uma boa estratigrafia. Tendo sido
estabelecida em vários pontos, a superposição Capsiense Superior/Capsiense
típico permanece o ponto de partida de toda a classificação. Em ambos os
casos as jazidas reúnem grande quantidade de resíduos revolvidos, uma mistura
de cinzas e seixos queimados, milhares de conchas de caracóis, fragmentos de
ossadas de animais consumidos pelo homem, sua indústria lítica e óssea, objetos
de adorno, arte mobiliária, restos humanos, etc. Admitimos até certa especulação
a respeito de habitats sob cabanas que deram origem a esses resíduos; talvez
cabanas de caniços ligados entre si por argila, se considerarmos uma descoberta,
infelizmente demasiado antiga, feita na região de Khenchela (Argélia oriental).
A indústria lítica do Capsiense típico é de uma qualidade notável. Os buris
de ângulo sobre truncatura são excepcionalmente frequentes. Menos numerosas,
mas também características, são as grandes lâminas com borda de preensão
retocada, conhecidas às vezes por “facas” com dorso ocreado. As lamelas
com borda de preensão retocada representam de 1/4 a 1/3 do instrumental
lítico, sendo às vezes obtidas por meio de retoque das extremidades dos buris
(aiguillons droits de Gobert). existem microburis que não provêm, como no
Iberomaurusiense, da fabricação das pontas da Mouila”, mas da manufatura de
verdadeiros micrólitos geométricos (trapézios, triângulos escalenos). A indústria
óssea é pobre. O Capsiense típico é conhecido numa zona bem delimitada,
em ambos os lados da fronteira da Argélia com a Tunísia, mais ao sul do que ao
norte do paralelo 35. Se considerarmos as datações radiométricas, o Capsiense
típico abrangeria somente o sétimo milênio. Seria portanto, nesta mesma zona,
contemporâneo do Capsiense “superior”, fato que contraria as estratigrafias
conhecidas. Só acreditarei nessa teoria quando o Capsiense “superior for
encontrado sob o Capsiense típico! Neste caso, de onde surgiria o Capsiense
652
Metodologia e pré -história da África
qualificado como evoluído?” Além disto, não temos dados suficientes a respeito
do homem da civilização do Capsiense “típico”…
O Capsiense evoluído apresenta uma proliferação de fácies que invadiram o
oeste argelino e pelo menos uma parte do Saara. Devemos ainda ser prudentes e
não cometer o erro de R. Vaufrey, de estender o “Neolítico de tradição capsiense”,
por adições sucessivas, a uma grande parte do continente africano.
Com exceção do que denominei “fácies tebessiano”, ainda sobrecarregado de
utensílios pesados do Capsiense típico, o Capsiense evoluído é uma indústria
de objetos de tamanho pequeno, rica em micrólitos geométricos de qualidade
técnica geralmente excepcional, sobretudo os triângulos e alguns trapézios.
As distinções feitas em bases “estatísticas” não são válidas, pois trata -se de
coleções de museus, de uma escolha e de uma seleção de escavações em geral
mal feitas, esporádicas, de camadas” artificiais, de espessura variável conforme
os escavadores. Um escargotière que estudei, o de Ain Dokkara, foi ocupado
pelo homem durante mil anos, desde meados do sétimo milênio até meados
do sexto milênio antes da Era Cristã. Seria possível caracterizar a indústria por
uma estatística global?
O Capsiense superior”, ou pelo menos sua extensão setentrional até o quinto
milênio antes da Era Cristã, perdurou até o processo de neolitização, que abrangeu
um período muito longo. Assim, pode -se sustentar a contemporaneidade, em
regiões diferentes, de indústrias do Capsiense típico e superior e do Neolítico
de tradição capsiense”.
A civilização capsiense durou, portanto, quase 2000 anos, alguns séculos a
menos que a do Egito faraônico. Se somos incapazes de escrever sua história,
ao menos agruparemos os elementos essenciais de uma etnia. Os homens
do Capsiense não pertencem ao tipo cro -magnoide de Mechta -Afalou: são
mediterrâneos, e o espécime mais completo e mais conservado, em condições
estratigráficas indiscutíveis, é o Homem de Ain Dokkara (Tebessa), que remonta
à metade do sétimo milênio. Os habitats capsienses contam -se às centenas e
perduraram durante séculos, chegando alguns a ultrapassar um milênio. Um tal
sedentarismo, pré -pastoral e pré -agrícola, é digno de nota. Todavia, as habitações
não passavam de cabanas de junco e de ramos, revestidas de argila ou cobertas
com peles. O papel reservado à caça não era primordial, se considerarmos a
pequena quantidade de restos de animais, e não sua variedade. Os moluscos
terrestres tiveram uma importância que não deve ser minimizada; a colheita
de vegetais desempenhou um papel que não podemos medir sem excesso de
imaginação, nem as “foices” de Columnata, nem as esferas de pedra perfurada,
nem as moletas, nem o lustro das colheitas” provam a existência de agricultura.
653
Pré -História da África do Norte
A etnia capsiense inuma seus mortos segundo ritos variados, frequentemente
em decúbito lateral fletido. O emprego contínuo do ocre permanece um mistério.
Mais surpreendente ainda é a utilização das ossadas humanas; a mais inesperada
é o crânio troféu”, usado talvez como máscara, descoberto em Faid Souar (Ain
Beida, Argélia). Quanto aos vivos, os capsienses praticavam mutilações dentárias;
nas mulheres, tal prática chegava a atingir os oito incisivos.
Entretanto, são os primeiros artistas do Magreb: objetos de adereço, cascas de
ovos de avestruz gravadas desde o Capsiense típico, plaquetas gravadas, pedras
esculpidas que podem até prenunciar a arte parietal.
Neolitização e neolíticos
Desde 1933, a visão que podemos ter do Neolítico na África do norte foi
ordenada, sistematizada e uniformizada por R. Vaufrey. O Neolítico de Tradição
Capsiense”, que este autor localizou por todo o Magreb, o Saara e uma parte da
África ao sul do Saara, tornou -se tão aceito que a sigla “NTC” passou a ser de
uso corrente. Entretanto, Dr. Gobert e eu mesmo tínhamos expressado grandes
dúvidas a respeito do caráter artificial dessa construção, baseada num processo
de adições sucessivas cujo conjunto nos parecia discordante.
Na verdade,o havíamos compreendido a linha das deduções de R. Vaufrey.
Por que havia ele tomado como sítio de referência a jazida mais pobre da Meseta
de Jaatcha (Tunísia)? Em sua tese (1976), G. Roubet expôs o encaminhamento
do raciocínio de R. Vaufrey. Não é o Neolítico em si que o interessa; ele quer
apenas mostrar a conservação de uma tradição capsiense que se atenua
progressivamente ao distanciar -se das fontes originais. Assim, o Neolítico foi
apenas um epifenômeno do Capsiense. A extensão pretendida para o NTC
justifica -se pelo enxerto de elementos culturais considerados neolíticos, o
que resulta numa concepção “tipológica” do Neolítico e não considera o que
ultrapassa e explica as revoluções técnicas: a perturbação do gênero de vida. De
fato, a persistência da tradição capsiense refuta a teoria do desenvolvimento de
uma cultura neolítica. As pontas projéteis, pontas de flechas”, tão abundantes no
Saara, são testemunhas do prolongamento de um gênero de vida de caçadores-
-predadores que não se poderia qualificar como neolítico.
Nessas condições, deve -se confinar o Neolítico de tradição capsiense aos
limites originais. Foi o que fez C. Roubet, baseando -se nas escavações da gruta
Capeletti (Aurês, Argélia). Ao lado da indispensável tipologia, a ecologia torna-
-se essencial, ou seja, o conhecimento do meio em que os homens viviam. Assim,
pode ser definida uma economia pastoral pré -agrícola, transumante, que não é
654
Metodologia e pré -história da África
F . Neolítico de
tradição capsiense do Damous
el -Ahmar, Argélia oriental. e
moleta. Tros de carvão e ocre.
Fragmentos de conchas de Helix
(Foto M. Bovis).
F . Pequena placa
calcária gravada. Capsiense superior
do Khanguet el -Mouhaad, Argélia
oriental (Foto M. Bovis).
655
Pré -História da África do Norte
F . Ain Hanech, seixos
com lascamento unifacial (chopper)
ou bifacial (chopping ‑tool), (Foto M.
Bovis).
F. Perônio humano
em forma de punhal Capsiense
superior Mechta el -Arbi, Argélia
oriental), escavações feitas em 1952
(Foto M. Bovis).
656
Metodologia e pré -história da África
mais o fim da Pré -História, mas o ponto de partida da civilização montanhesa
atual dos Ghaouia de Aurês, pequenos pastores de carneiros e cabras.
Houve, portanto, entre o quinto e o segundo milênios antes da Era Cristã,
muitas outras formas de neolitização do Magreb além do NTC stricto sensu.
Em primeiro lugar, as regiões que permaneceram isoladas do Capsiense
tiveram uma evolução original com duas características essenciais: suceder ao
Iberomaurusiense e relacionar -se muito cedo com a Europa mediterrânea (desde
o quinto milênio). A partir disso é que se levantou o problema da navegação.
várias fácies litorais do Neolítico, completamente independentes de qualquer
tradição capsiense, que atestam esses contatos com a Europa por sua cerâmica e
pela obsidiana importada. O mesmo aplica -se ao litoral atlântico no Marrocos.
Em contrapartida, o Neolítico de tradição capsiense não pode ser estendido,
como sugeriu G. Camps, ao Saara setentrional; e menos ainda às regiões mais
meridionais do Saara, onde se encontra a arte rupestre de Ahaggar e do Tassili
n’Ajjer.
Entretanto, a associação da arte rupestre com o Neolítico, proposta por R.
Vaufrey, permanece bastante válida, por mais discutível que seja a atribuição da
tradição capsiense ao Neolítico. Trata -se ainda apenas de uma parte das obras
gravadas, pertencendo a outra à época proto -histórica. Estas primeiras obras de
estilo naturalista não estariam ligadas nem à Europa nem ao Saara; sua origem
deve ser pesquisada na neolitização capsiense, mas a articulação “Indústria -Arte”
ainda precisa ser provada.
Assim, apesar da riqueza de testemunhos, a pré -história do Magreb não foi
ainda bem compreendida. Somente com grandes escavações e com o auxílio de
modernos métodos científicos é que ela poderá progredir.
C A P Í T U L O 2 3
657
Pré -História do Saara
O Saara é um imenso deserto que cobre a maior parte do norte da África.
o é fácil delimitá -lo nem tampouco defini -lo. A aridez é, contudo, o
denominador comum das diversas regiões que o constituem. Estendendo -se
de leste a oeste por 5700 km entre o mar Vermelho e o Atlântico, e de norte
a sul por 1500 km entre o Atlas pré -saariano e o Sahel sudanês, as condições
derticas se instalaram numa área de quase 8,6 milhões de km
2
. O Saara
como o conhecemos hoje, entretanto, tem um aspecto muito diferente do que
apresentou no decorrer de diversos períodos da Pré -História.
O que lhe confere a unidade atual é a notável indigência da higrometria, uma
das mais baixas do mundo. As principais características desse deserto são, além
da extrema raridade de água, grandes diferenças entre as temperaturas diurnas
e noturnas e a abundância de areia, que, eternamente mobilizada pelo vento,
inflige intensivo desgaste a um modelado senil.
Embora seja hoje um deserto, o Saara foi bastante povoado em vários
períodos. Atribui -se o abandono da região pelas últimas etnias que a ocuparam
à instalação de um clima cada vez mais seco e quente, que provocou a rarefação
das precipitações e o esgotamento das fontes e dos rios. O consequente
desaparecimento da cobertura vegetal e da fauna, fonte de subsistência do
homem, forçou -o a procurar regiões periféricas mais clementes.
P-História do Saara
H. J. Hugot
658
Metodologia e pré -história da África
Muitos especialistas dedicaram -se ao problema das causas e consequências
da desertificação do Saara, entre eles, E. F. Gautier
1
, T. Monod
2
, R. Capot -Rey
3
,
J. Dubief
4
, L. Balout
5
, K. Butzer, S. A. Huzayyin
6
, etc., para citar apenas alguns.
Conhecem -se hoje as razões teóricas pelas quais a “monção do golfo da Guiné”
e a “frente fria polar deixaram de ser para o Saara as duas fontes de umidade
que comandavam a fertilidade que fez dele, na pré -história, uma região populosa
e próspera. Mas não há unanimidade quanto ao problema da evolução do clima
saariano. Ainda não sabemos se a deterioração climática atingiu seu grau
máximo, ou se ainda deverá atingi -lo. Não sabemos também de que forma se
deu a desertificação”: ter -se -ia propagado regularmente em torno de um ponto
central, ou teriam as margens do Saara se deslocado num movimento oscilatório
que atingia ora o norte, ora o sul?
Quanto à ppria suceso de epidios climáticos que por diversas
vezes possibilitaram o estabelecimento de populações no Saara, falta muito
para que estejamos capacitados a reconstituir sua cronologia exata. Embora
alguns trabalhos de grande envergadura tenham sido elaborados aqui e acolá,
devemos reconhecer que são raros e que nada de sério se fez para desenvolvê-
-los. Entretanto, são eles de uma importância capital, não somente no plano da
ciência, mas também no plano de uma melhor compreensão de um fenômeno
que interessa à vida humana. O conhecimento das modificações climáticas
do Saara durante o Quaternário é doravante de interesse fundamental para o
estudo das transformações ecológicas. Quando cada metro quadrado tornar -se
vital para a humanidade, esse maravilhoso deserto” representará um papel tão
importante que seu passado será conhecido com exatidão.
Histórico
O desaparecimento de toda a publicação bibliogfica regular relativa à pesquisa
pré -histórica do Saara como um todo tornou difícil a compilação dos trabalhos
ali realizados. No que diz respeito ao peodo colonial, possuímos muitas dessas
1 GAUTIER, E. F. 1928.
2 MONOO, T. 1945. Burg -Wartenstein Symposium, 1961.
3 CAPOT -REY, R. 1953.
4 DUBIEF, J. 1959.
5 BALOUT, L. 1952, p. 9 -21.
6 BUTZER, K. W. 1958; HUZAYYIN, S. A. 1936, p. 19 -22.
659
Pré -História do Saara
bibliografias que, no entanto, o incompletas e às vezes encontram -se dispersas.
O fato de algumas descobertas importantes estarem, por exemplo, consignadas em
relatórios militares torna o acesso a elas bastante delicado. Com efeito, a divio
política do Saara explica, por outro lado, a dispersão de trabalhos consagrados às suas
riquezas pré -históricas, ingleses, espanis, franceses e italianos, e mais recentemente
alees, japoneses, russos, etc., deram uma grande contribuão cienfica à descoberta
do passado do Saara.
Entretanto, a penetração no deserto é relativamente recente.
A primeira observação ria relativa à pré -história saariana foi provavelmente a
publicada pelo Abade Richard em 1868
7
, a respeito do Saara argeliano. No Egito as
pesquisas começam quase na mesma época, tendo como ponto de partida uma carta
de A. Arcelin datada de fevereiro de 1867
8
. No oeste, as pesquisas só terão início no
começo doculo.
As que concernem ao Saara central devem muito às explorações realizadas por
Foureau a partir de 1876
9
, culminando com a grande miso de 1898 -1900
10
. Nesse
meio tempo O. Lenz
11
assinala a presea de objetos pré -históricos em Toudenit,
em 1886. Logo depois, os estudos da pré -história saariana iriam atingir uma certa
notoriedade, arrefecendo -se apenas em virtude das duas guerras mundiais.
Com efeito, muitos cientistas foram atraídos pela riqueza pré -histórica do
Saara. Seria imposvel apresentar uma lista completa de todos eles; mas a leitura
de trabalhos antigos se sempre surpreendente, tal a riqueza que encerram. Os de
G. B. M. Flamand
12
, de Frobenius
13
, de C. Caton -Thompson
14
, por exemplo, o
indispensáveis para se iniciar qualquer estudorio da p -hisria saariana.
A pesquisa pré -histórica ressentiu -se, no deserto mais do que em qualquer
outro lugar, de preocupões circunstanciais, a que se somou um fenômeno muito
particular, que por longo tempo impediu a compreeno dos problemas dessa rego.
De fato, a pré -história foi frequentemente considerada ciência anexa no conjunto
dos interesses das missões que se lançavam pelo Saara. Assim sendo, esteve confiada
a amadores ou a especialistas em outras áreas, que não dispensaram ao seu conteúdo
7 RICHARD, Abade. 1868, p. 74 -75.
8 ARCELIN, A. Em uma carta endereçada à redação da revista Matériaux pour l’histoire primitive de
l’homme, publicada no t. V de 1869.
9 FOUREAU, F. 1883.
10 FOUREAU, F. 1905.
11 LENZ, O. 1884.
12 FUMAND, G. B. M. 1902, p. 535 -38, 114 -15; PERRET, R. 1937, lista dos sítios estudados.
13 FROBENIUS, L. 1937.
14 CATON -THOMPSON, G. e GARDNER, E. W. 1934.
660
Metodologia e pré -história da África
a devida ateão. Além disso, em um meio de dicil penetração, onde a vida depende
de cada quilo de carga transportado, o volume, o peso e a dificuldade de acesso aos
documentos pré -hisricos fizeram com que eles fossem negligenciados. Acrescenta-
-se também o fato de o Saara o ser o lugar ideal para viagens e, sobretudo, para
dar aos viajantes o tempo e os meios para proceder a investigações detalhadas. Sem
dúvida, isso explica por que durante muito tempo se falou em “instrias infundadas”,
de ausência completa de estratigrafia”, de nomen nudum, etc. Na verdade, a pré-
-história do Saara éo rica quanto qualquer outra.
Quando se concederam tempo e meios a missões especializadas, as coisas
mudaram rapidamente. Foi o que ocorreu as a Segunda Guerra Mundial, fazendo
surgir um mero infelizmente pouco elevado de excelentes monografias, que se
ocuparam, em especial, do Hoggar, de Saura, do Chade, da Mauritânia, do deserto
líbio, do Fezzan, etc.
A colaboração da indústria e da ciência permitiu que fossem atingidos os
surpreendentes resultados registrados nos “Documents scientifiques des missions
Berliet -Ténéré -Tchad (Documentos Científicos das Missões Berliet -Tenere -Chade)
15
.
No entanto, a p -hisria do Saara,o obstante seu alto grau de interesse e sua
riqueza, es longe de poder ver -se representada em um manual”. o sequer
uma obra de divulgão a respeito, numa época em que, no entanto, se vai à Lua.
Resta -nos simplesmente lembrar que ela é objeto de um grande mero de estudos
específicos e de alguns catulos de obras gerais, particularmente em H. Alimen
16
,
H. J. Hugot
17
e R. Vaufrey
18
.
Pesquisa de uma cronologia
Desde seus prirdios, a p -história do Saara procurou suas séries de comparação
na Europa e, principalmente, na França. Eram comuns termos como “Clacto-
-Abbevilliense”, “Chelles -Acheulense”, “Musteriense”, lâminas aurignacienses”,
pontas foliáceas solutrenses”, etc. Sentem -se ainda hoje os efeitos dos erros cometidos
por essa visão simplista. Ora, como para todas as pré -histórias do mundo, a do Saara
pode nascer da análise de monografias exaustivas consagradas a suas diversas
indústrias, e essas monografias ainda eso sendo aguardadas. Uma outra consequência
15 HUGOT, H. J. 1962.
16 ALIMEN, H. 1960.
17 HUGOT, H. J. 1970.
18 VAUFREY, R. 1969.
661
Pré -História do Saara
F . Principais sítios
de pinturas e gravuras rupestres
saarianas.
F . Machado plano com
entalhes, Gossolorum
(Níger).
F . Machadinha de
Ti -n -Assako (Mali).
662
Metodologia e pré -história da África
lastivel da indisciplina da pesquisa pré -hisrica no Saara é a atribuição, conforme
as necessidades, de status sociais precisos a etnias desaparecidas, mesmo sem nenhuma
prova concreta da realidade dos fatos que as originaram.
Duas observações devem ser feitas a respeito da cronologia
19
. A primeira é que
não conhecemos ainda, em nenhum ponto do Saara, uma estratigrafia
20
bastante
abrangente para nos permitir estabelecer a sucessão dos estágios pré -hisricos com
precisão. A segunda é que, salvo para o Neotico, o possuímos datas que nos
permitam estabelecer uma cronologia absoluta. Apesar de todas essas dificuldades,
dispomos dos excelentes trabalhos de J. Chavaillon para Saura
21
H. Faure para o
Chade
22
, de P. Chamard
23
para a Mauritânia, todos baseados em lidos estudos
periricos sobre a Argélia
24
, o Marrocos
25
, a Líbia
26
, etc.
À luz desses trabalhos pode -se fazer uma ideia relativamente precisa das
grandes linhas do quadro cronológico da pré -história do Saara. Entretanto,
a pobreza de documentos paleontológicos e, em geral, de matérias orgânicas
utilizáveis para datações através da medida da radiatividade subsidente relativos a
esse período não permitiu estender a cronologia absoluta para além do Neolítico
(cf. Quadro seguinte).
19 Cronologia quaternária: sucessão no tempo de diversas fases climáticas. No que se refere ao Saara, pobre
em estratigraa, em muitos casos conta -se apenas com elementos de cronologia relativa. Uma das
melhores cronologias foi apresentada por J. CHAVAILLON (1964). Da base ao cume de Saura, no
noroeste do Saara, o autor distinguiu:
Quaternário Antigo (Villafranchiano)
Aidiense
Mazeriense
Quaternário Médio
Taourirtiense
Ougartiense
Quaternário Recente
Sauriense
Guiriense
20 Estratigraa: sendo a estratigraa a leitura e interpretação das camadas que se depositaram sucessivamente
num local para formar o solo, é compreensível que o Saara, atingido por grandes cataclismas climatológicos,
não tenha conservado muitos documentos. Existe, porém, o suciente para mostrar que em diversos
lugares uma série de três terraços chamados antigo, médio e recente, que são os testemunhos de
três grandes episódios climáticos. Mas não se deve esquematizar demais. Na verdade, considerando os
microclimas, o problema dos episódios climáticos legíveis na estratigraa é extremamente complexo. A
estratigraa revela que por volta do ano 1000 antes da Era Cristã a deserticação se consumara.
21 CHAVAILLON, J. 1964.
22 FAURE, H. 1962.
23 CHAMARD, P. 1966 -1970.
24 BALOUT, L. 1955.
25 BIBERSON, P. 1961.
26 MACBURNEY, C. B. M. e HEY, R. W. 1955
663
Pré -História do Saara
Naturalmente, o quadro que apresentamos essimplificado ao extremo.
Em particular, ele não apresenta um importante complexo de grandes lascas,
frequentemente de técnica levalloisiense, encontradas em um terreno de bifaces
finos, de tamanho e peso reduzidos, e provavelmente situadas no fim do
Acheulense. Complexos desse tipo ocorrem em Tiguelguemine
27
, Broukkou
28
,
etc., Enfim, notaremos que até o momento presente nada foi encontrado que
nos autorize a falar de um Paleolítico Superior
29
no Saara: o termo não tem
27 HUGOT, H. J. 1962.
28 HUGOT, H. J. 1962.
29 Paleolítico: a nova divisão cronológica devida ao reconhecimento do Homo habilis como ancestral provável
da linha atual do homem não modicou os problemas relativos ao Saara. Em particular, atualmente
parece não ter existido nem o Paleolítico Médio nem o Epipaleolítico. Ter -se -ia um Paleolítico Terminal,
representado pelo Ateriense, portanto posterior ao Musteriense, e separado do Neolítico por um breve
hiato.
Cronologia da pré-história saariana.
664
Metodologia e pré -história da África
confirmação nos fatos. Seria mais perigoso ainda falar em Mesolítico, termo que
tende a cair em desuso.
O quadro anterior pode dar ensejo a uma cronologia mais detalhada. Relaciona
as grandes linhas do que conhecemos da climatologia com o povoamento
pré -histórico.
O Saara forneceu poucos esqueletos acompanhados de indústrias que
possibilitassem sua classificação. Entretanto, os que foram encontrados indicam
a antiguidade bastante remota do homem.
O Paleolítico
O aparecimento do homem no Saara e a indústria de seixos lascados
Nas margens de antigos rios extintos observam -se, com muita frequencia,
terraços formados na época em que os rios ainda não haviam secado. Esses
terraços apresentam três níveis muito distintos, que para maior comodidade são
denominados terraços antigo, médio e recente. No djebel Idjerane
30
, a 120 km a
leste de In Salah (Saara argeliano), o terraço antigo apresentou seixos lascados”.
Sabe -se que esses seixos são os primeiros utensílios com marcas observáveis de
trabalho humano. Na maioria dos casos, são meros seixos de rios, de alguns dos
quais foram destacadas lascas para a obtenção de um gume grosseiro e sinuoso.
Aventou -se a ideia de que esses objetos seriam específicos da indústria do Homo
habilis.
No Saara nigeriano, nas ribanceiras do Tafassasset
31
antigo afluente do
lago Chade, existem também grandes quantidades de seixos lascados, mas
em posição menos significativa que em Idjerane. Outros conjuntos, como o
de Aoulef
32
, foram revolvidos ou destruídos. Quanto à série proveniente de
Saura
33
, é numericamente pouco importante para fornecer material suficiente
para um estudo. O que se pode afirmar é que a cultura dos seixos lascados
estendeu -se por todo o Saara, então úmido e muito diferente do deserto que hoje
conhecemos. Infelizmente, nenhum fóssil animal ou humano da época chegou
até nós, restando -nos simplesmente formular a hipótese de que esses utensílios
muito rudimentares, que, fora dos sítios onde estão agrupados, encontram -se
30 BONNET, A. 1961, p. 51 -61.
31 HUGOT, H. J. 1962, p. 151 -52.
32 HUGOT, H. J. 1955, p. 131 -49.
33 CHAVAlLLON, J. 1956.
665
Pré -História do Saara
dispersos por todo o Saara, são exatamente os que foram lascados e utilizados
pelos nossos mais antigos ancestrais.
O Homo erectus, fabricante de bifaces
O final da civilizão dos seixos lascados deixa aparecer uma evolução
técnica que conduz a formas não abandonadas no início do Paleolítico Inferior.
O mistério que envolve a grande mutação humana e técnica que assinala o
aparecimento do biface permanece intato. No Saara, não se descobriu nenhum
esqueleto dos autores desse notável utensílio e seu derivado, a machadinha,
a qual evoca um horizonte florestal, que à época devia predominar. Apesar
de ignorarmos a ecologia dos inventores do seixo lascado, estamos um pouco
mais bem informados sobre a de seus sucessores. Enquanto região de grandes
lagos, o Saara apresentava uma hidrografia bastante significativa, precipitações
suficientes para manter um tipo de vegetação indicadora de um clima tendendo
a frio. Evidentemente a grande fauna etíope fazia -se presente em todo o Saara.
Fato marcante, as chuvas torrenciais que caracterizaram o período seguinte
destruíram ou danificaram grandemente, em quase toda parte, os depósitos
constituídos nos grandes lagos da época. Além disso, uma sequência muito seca
entre a época precedente e o período de que tratamos pode ter acelerado os
processos de destruição.
Em razão dessas destruições, os testemunhos estratigráficos são muito raros,
embora o número de bifaces encontrados no Saara seja enorme.
Não podemos afirmar que o hominídeo fóssil do Chade
34
tenha sido um
fabricante de bifaces. Vaufrey
35
coloca -o encabando seu capítulo sobre “o
Paleolítico Inferior e Médio” do Saara. Mas esse venerável ancestral, a respeito
de quem ignoramos se foi um fabricante de utensílios, representa apenas uma
interessante descoberta paleontológica.
Em Tihodaine, mencionada pela primeira vez por Duveyrier em 1864
36
e visitada por E. F. Gautier e M. Reygasse em 1932
37
, foi encontrada uma
indústria aeheulense” com restos de rinoceronte, elefante, hipopótamo, bovídeos,
búfalo, facoquero, zebra, crocodilo, gazela, etc. Todas as evidências mostram que
a indústria acheulense de Tihodaine é evoluída, em geral talhada em osso ou
34 COPPENS, Y. 1962, p. 455 -9.
35 VAUFREY, R. op. cit. (póstumo), 1969, p. 21.
36 DUVEYRIER, H. 1864.
37 GAUTIER, E. F. e REYGASSE, M. 1934.
666
Metodologia e pré -história da África
F .  . Seixos lascados (Pebble Culture), Aoulef (Saara argeliano).
F . Biface do Paleolítico Inferior, Tachenghit (Saara argeliano).
F . Machadinha do Paleolítico Inferior, Tachenghit (Saara argeliano).
667
Pré -História do Saara
madeira. A indústria já se encontra, pois, num estágio avançado do Acheulense,
não sendo uma continuação direta da civilização precedente.
Não longe de Tihodaine existem duas grandes jazidas acheulenses que
apresentam uma mistura de bifaces, por vezes de formas bem reduzidas, quase
s’baikienses”, e de machadinhas. Trata -se da jazida do erg de Admer
38
, descoberta
por um militar em 1934 e publicada pela primeira vez por H. Lhote e H. Kelley
em 1936
39
. Essa jazida de superfície está mal datada, assim como também a do
uede Tafassasset
40
, descoberta pela missão Berliet -Tenere, mas sua importância
não inspirou os trabalhos que teriam permitido mostrar sua grande valia.
Tabelbala e Tachenghit
41
são conhecidos pelos bifaces em arenito quartzoso
avermelhado, e principalmente pela série impressionante de machadinhas, que
revelam uma técnica muito evoluída.
Nessa mesma parte da África os trabalhos de J. Chavaillon e de H. Alimen
mostraram a presença, em seu próprio contexto, de um Acheulense Evoluído
que precederia imediatamente as indústrias de lascas, ou estaria incluído em um
Aeheulense Médio. É o mesmo caso de Mazer, Béni -Abbès e Kerzaz
42
.
Em Chebket Mennouna (Saura, Saara argeliano)
43
haveria uma série
significativa; infelizmente ela é muito reduzida em número.
Em In -Ekker, como em Meniet e Arak
44
, o Acheulense Médio encontra -se
sob as aluviões que contêm o Ateriense em difusão.
O Acheulense também é encontrado em grande quantidade em Aoulef
45
, em
Sherda
46
, em el -Beyed
47
, em Esh Shaheinab
48
, no Saara ocidental
49
, em Kharga,
no deserto da Líbia
50
. Decididamente o Acheulense cobre toda a superfície do
Saara, mas estamos ainda impossibilitados de classificá -lo cronologicamente, pois,
38 Essa jazida de superfície ilustra bem as diculdades de fazer uma distinção entre a indústria dominante
e as contaminações posteriores por outros objetos mais recentes.
39 LHOTE, H. e KELLEY, H. 1936, p. 217 -26.
40 HUGOT, H. J. 1962.
41 CHAMPAULT, B. 1953.
42 ALIMEN, H. 1960, p. 421 -23.
43 CHAVAILLON, J. 1958, p. 431 -43; 1956, p. 231, ID.
44 HUGOT, H. J. 1963.
45 POND, W. P., et al. 1938, p. 17 -21.
46 DALLONI, M. 1948.
47 BIRERSON, P. 1965, p. 173 -89.
48 ARKELL, A. J. 1954, p. 30 -34.
49 ALMAGRO -BASCH, M. 1946.
50 CATON -THOMPSON, G. 1952.
668
Metodologia e pré -história da África
à exceção de quatro ou cinco casos, ele não se encontra em posição estratigráfica.
O essencial ainda está por fazer: escavações e sondagens seriamente conduzidas.
Um ponto obscuro: as indústrias de lascas
O Paleolítico Inferior na Europa e no Saara caracterizou -se por um objeto
que foi essencial, o biface. Partindo das mais grosseiras formas, agrupadas
inicialmente sob o nome de “Chellense”, evoluiu em peças elegantes, equilibradas,
perfeitamente lascadas e bem -acabadas, como as de Micoque. No Saara os
primeiros bifaces foram anunciados pelos últimos seixos lascados. Rapidamente
se opera uma transformação radical na técnica de lascamento, e essa habilidade
nova da difícil arte de preparar a pedra não desconhece o alijamento e a perfeição
das formas. Na Europa e no Saara, esses progressos se tornaram possíveis
graças à descoberta da eficácia do percutor mole, de osso ou de madeira, que
substituiu o martelo de pedra, de pouca precisão, dada a violência de seu impacto.
No entanto, apesar de o biface ser essencial – o fossile directeur, por assim dizer,
do Paleolítico Superior –, está longe de ser o único objeto manufaturado pelo
Homo erectus. Temos muitas razões para acreditar que, desde a mais remota
origem da técnica, as lascas foram igualmente utilizadas; e não somente elas, mas
também uma boa parte dos resíduos múltiplos provenientes do lascamento dos
núcleos. Por isso, é normal a preponderância da lasca no alvorecer do Paleolítico
Médio
51
. A lasca não é, portanto, uma descoberta; é uma transformação. Essa
transformão se fará notar também pela miniaturizão dos bifaces, que
aos poucos se tornarão armaduras. Em contra partida, o revolucionário é a
generalização da técnica levalloisiense. No Saara, ela aparece muito cedo; é dela
que provém o processo de fabricação de certos bifaces de Tachenghit
52
; é a ela,
ainda, que se deve a indústria de Broukkou ou de Timbrourine. Mas, apesar
desse aparecimento precoce, não parece que o modo de vida dos inventores
tenha -se modificado. Esses precursores certamente não são os neandertalenses,
pois então eles teriam, sem dúvida, adotado um modo de vida diferente, que
exigiria a utilização de um armamento e um instrumental mais leves, opostos
na sua concepção ao peso do biface e da machadinha. Na verdade, o fato mais
impressionante, a que não se tem prestado muita atenção, não é tanto a ausência
de um Musteriense legítimo no Saara ou de qualquer outra forma musteroide
51 Não se deve esquecer, no entanto, que a verdadeira mutação é humana e assinalada pelo aparecimento
do Homem de Neandertal, autor das indústrias musterienses.
52 TIXIER, J. 1957.
669
Pré -História do Saara
se operando, mas, sim, o fato do Ateriense, que o substituiu e que é, com efeito,
musterizante”, ser por excelência uma indústria de caçadores. O pedúnculo
evoca não simplesmente um cabo, mas também a azagaia, as bolas; as grandes
lascas -pontas levalloisienses fazem pensar em instrumentos de caçadores. Em
resumo, é uma indústria de migrantes e, por isso mesmo, leve, se comparada às
indústrias que a precedem.
O Ateriense
No estágio atual da pesquisa, o Ateriense
53
toma, no Saara, o lugar ocupado
em outras regiões pelo Musteriense. Apresenta vários traços deste último, pelo
destaque que dá à técnica levalloisiense, a qual se faz notar não só pela natureza
dos retoques mas também pela tipologia dos objetos acabados. Entretanto, dele
se distancia por duas características essenciais:
• a presença de um objeto pedunculado, que pode ser uma ponta com ou sem
retoque, um raspador, um buril, ou até mesmo um furador;
• diferenças sensíveis no plano estatístico em relação à indústria musteriense
clássica; mas, excluído esse fato, persiste a ideia de “substrato musteroide”,
e, apesar de não possuirmos nenhum esqueleto ateriense, é hábito atribuir
essa interessante indústria a um parente do Homem de Neandertal.
O Ateriense, como se sabe, é uma indústria norte -africana que se difundiu
intensamente em direção ao sul
54
para se fixar ao longo das margens dos
grandes lagos do Saara meridional. À medida que se estendia para o sul, foi -se
transformando até produzir a deslumbrante fácies do Adrar Bous
55
, onde se
reúnem ao cabedal clássico dos núcleos, lâminas, lascas, raspadores, ferramentas
denticuladas, pontas duplas foliáceas de técnica bifacial e bolas de pedra, pontas
pedunculadas das muito bem -acabadas, também de técnica bifacial. Uma delas
chega a ter 19 cm de comprimento.
53 Ateriense: indústria de origem norte -africana, composta essencialmente por uma base musteroide, a que
se reúne uma série de objetos pedunculados. Cronologicamente o Ateriense é posterior ao Musteriense.
Bastante inuenciado pela técnica levalloisiense, esse notável instrumental lítico desenvolveu -se à medida
que penetrava o Saara. Seu limite meridional parece ter -se constituído pelos grandes lagos do sul
extintos, com exceção do Chade. Foi na margem nordeste do Chade antigo que se encontraram sítios
datados de -9000 a -8000. Esta indústria deve ser atribuída antes a um Paleolítico Terminal que a um
Paleolítico Médio.
54 HUGOT, H. J. 1967, p. 529 -56.
55 HUGOT, H. J. 1962, p. 158 -62.
670
Metodologia e pré -história da África
F . Grande ponta dupla bifacial
ateriense, Timimoum (Saara argeliano).
F . Pontas aterienses, Aoulef (Saara
argeliano).
F . Ponta dupla bifacial ateriense,
Adrar Bous V (Níger).
671
Pré -História do Saara
O Ateriense difundiu -se imensamente. É encontrado na Tusia
56
, no
Marrocos
57
, na Argélia
58
, em Saura, no Tidikelt onde utiliza com sucesso
o material de primeira qualidade fornecido por uma Arauearia ssil
59
, na
Mauritânia, onde o Adrar estabelece grosso modo sua fronteira
60
. Encontra -se em
toda parte no Hoggar
61
no erg de Admer
62
, em Tihodaine
63
, e no Adrar Bous
64
;
pode -se assinalá -lo ainda no Fezzan, no Zumri, sendo Kharga, no Egito
65
, seu
derradeiro bastião oriental.
É muito difícil situar o Ateriense em uma sequência cronogica. Seu
aparecimento pode ter -se dado por volta de -35.000. Às margens do lago Chade,
sua progressão parece ter sido estancada pelo último alto nível das águas. Nessas
condições, ele se estenderia entre -9000 e -7000. Mas são apenas hipóteses.
Parece lógico que a essa indústria tão marcada por influências do Musteriense
deveria suceder um Paleolítico Superior. Mas aqui se colocam duas questões.
Em primeiro lugar, podemos situar o Ateriense, afinal muito tardio, em um
Paleotico Médio? Em sua tese magistral, L. Balout acreditava o dever
ceder a essa tentação. Em segundo lugar, o que na verdade sabemos sobre um
Epipaleolítico legítimo no Saara? A bem dizer, muito pouco; a indústria do uede
Eched, descoberta por R. Mauny
66
, não revelou seu segredo. Os conjuntos líticos
de estilo capsiense encontrados na orla meridional do Tademaït
67
continuam
sendo objeto de discussão. Apenas a série antiga de Merdjouma (uede Mya,
planalto do Tademaït, Saara central argeliano) pode atestar a implantação de
um grupo de capsienses verdadeiros numa região hoje abrangida pelo Saara. É
muito pouco para que tenhamos alguma certeza.
Por esse motivo, para que fosse encontrada uma solução cronológica, pros -se
agrupar o Ateriense sob o título pouco comprometedor de Paleolítico Terminal.
56 GRUET, M. 1934.
57 ANTOINE, M. 1938.
58 REYGASSE, M. 1922, p. 467 -72.
59 GAUTIER, E. F. 1914; SAINT -MARTIN, M. de. 1908; REYGASSE, E. F. 1923.
60 GUITAT, R. 1972, p. 29 -33.
61 HUGOT, H. J. 1962, p. 47 -70.
62 BOBO, J. 1956, p. 263 -68.
63 BALOUT, L. In: ARAMBOURG, C. e BALOUT, L. 1955, p. 287 -92.
64 HUGOT, H. J. 1962, p. 158 -62.
65 CATON -THOMPSON, G. 1952 e 1946.
66 Indústria inédita depositada no departamento de pré -história do IFAN da Universidade de Dacar.
67 HUGOT, H. J. 1952; 1955, p. 601 -03.
672
Metodologia e pré -história da África
O Hiato
Recentemente, para qualificar uma indústria evoluída pós -ateriense do Adrar
Bous (Níger), J. D. Clark empregou a palavra mesolítico”. Num plano geral,
esse termo que felizmente tende a cair em desuso não tem sentido. Não
corresponde a nada que se conheça no Saara, e seu uso só viria consagrar o erro
de Arkell
68
, bastante compreensível no tempo em que esteve trabalhando no
Nilo. No atual estado da pesquisa, os pré -historiadores franceses não concordam
com o emprego do termo.
Isso não quer dizer que o problema do Epipaleolítico não exista: o Sebiliense
III do Egito, invadido pelos micrólitos geométricos
69
, precede o Neolítico A sem
se confundir com ele, e alguns indícios muito raros, é verdade permitem
supor que ele possa ter ultrapassado os limites das zonas onde foi reconhecido.
O Neolítico
Ignoramos o essencial a respeito da gênese das etnias neolíticas
70
. Parecem
ter -se expandido pelo Saara partindo de pontos diferentes. Segundo M. -C.
Chamla
71
, uma constante no povoamento neolítico do Saara: a mestiçagem
entre Negros em um extremo, e, em outro, Brancos, de origem mesoriental,
agrupados ordinariamente sob o nome de “mediterrânicos”.
Primeiro povoamento: neolíticos de tradição sudanesa
O povoamento neotico do Saara está longe de ser homogêneo. Se se
considerar uma sequência no estabelecimento dos grupos humanos, a onda
mais antiga parece ser a que, formada às margens do Nilo, na altura de Cartum
e Esh Shaheinab, realizou um movimento de leste para oeste ao longo dos
68 ARKELL, A. J. 1949; 1953.
69 VIGNARD, E. 1923, p. 1 -76.
70 Neolítico: termo utilizado para designar o aparecimento de novas técnicas, em particular a arte da
cerâmica, o polimento da pedra, o início da domesticação, da agricultura, do urbanismo, etc., que se
juntam à base altamente evoluída da indústria lítica do Epipaleolítico. No Saara, ao que parece, os
mais antigos sítios neolíticos podem ser atribuídos ao V -VI milênio antes da Era Cristã. Sabe -se que o
Neolítico não resultou necessariamente do conhecimento de todas as técnicas mencionadas. Entretanto,
um dos fenômenos mais notáveis, que convém considerar, é o cozimento dos alimentos, que, por suas
transformações químicas irá inuir de forma decisiva na evolução siológica do homem. O Neolítico
saariano e suas múltiplas correntes são o admirável exemplo de uma “explosão técnica e não de uma
revolução, como muitas vezes se armou.
71 CHAMLA, M. -C. 1968.
673
Pré -História do Saara
grandes lagos. Parece não ter ultrapassado muito a franja oriental de Aoukâr,
nem ter penetrado na floresta. Em contrapartida, fez ao menos duas incursões
ao norte: uma em Hoggar, até a margem setentrional da região pré -tassiliana,
e outra em direção a Saura, partindo do Tilemsi. Reconhece -se facilmente essa
brilhante civilização pelo caráter particular e pela riqueza da decoração aplicada
à cerâmica. No plano industrial, entretanto, é extremamente difícil defini -la, pois
os “neolíticos de tradição sudanesa souberam tirar proveito de tudo. Primeiros
habitantes do Saara, foram eles pescadores -caçadores -coletores. Eram grandes
apreciadores do hipopótamo e de bagas de lódão -bastardo (celtis sp), mas não
desprezavam o peixe dos lagos, nem a tartaruga de água doce, nem a melancia.
O fato de terem fabricado em profusão enxós, enxadas, moedores, mós, etc.,
não significa absolutamente que tenham empregado qualquer forma de prática
agrícola
72
. A presença constante de potes com bagas de dão -bastardo e a
frequente descoberta de sinais de grãos de cucurbitáceas na escavação dos sítios
podem sugerir uma hipótese de protocultura. Constata -se uma divio do
trabalho em função das tarefas especializadas. O polimento da pedra foi muito
difundido, e a panóplia das armaduras, muito rica. Caçava -se com arco ou com
lança; utilizava -se o arpão e o anzol feitos de osso. Machados, enxadas, enxós de
pedra polida ocupam um lugar expressivo no equipamento. Hábeis na confecção
de contas de pedra dura (amazonita, calcedônia, hematita, cornalina, etc.), os
especialistas elaboraram um equipamento de perfuração muito engenhoso
73
,
que comporta estilhaços de buris, agulhas, furadores, empregados juntamente
com resinas e areia fina. O equipamento de trituração é numeroso e requintado.
Prova a existência, se não de uma verdadeira indústria de moagem, ao menos
do conhecimento da arte da trituração. O produto triturado era com certeza o
ocre, mas talvez também grãos selvagens, bagas, ervas secas, corantes vegetais,
produtos farmacêuticos, etc. A cerâmica merece menção especial, não pela
riqueza de sua decorão, mas também pela beleza das formas realizadas.
Queremos observar que não foram encontradas as bases cônicas com pequenas
72 Agricultura: “Cultura racional de plantas selecionadas em áreas do solo, especialmente preparadas”. A
prova do conhecimento de uma agricultura pode resultar:
• de provas palinológicas estatisticamente válidas;
• da existência de traços de terrenos cultivados;
• da coleta de vegetais fósseis identicados.
Isoladamente a presença de um instrumental considerado agrícolao tem signicado preciso. A enxada
pode ter servido para extrair a argila para a fabricação da cerâmica; a mó, para triturar corantes, grãos
selvagens, produtos medicamentosos, etc. A adjetivação “agrícola resulta, portanto, de regras precisas e
não de hipóteses não vericadas.
73 GAUSSEN, M. e GAUSSEN, J. 1965, p. 237.
674
Metodologia e pré -história da África
cavidades nem as formas alongadas em ânfora. Mas foram assinalados alguns
bicos invertidos, asas e botões.
Essa primeira onda neolítica é, pois, bastante conhecida.
O Neolítico guineense
A primeira vaga é seguida, mais ao sul, pela progressão de uma outra etnia
africana, que vai ocupar a floresta e que, apesar de sua importância, permanecerá
por muito tempo desconhecida, ocultada pela cobertura florestal. Esse Neolítico,
bem identificado na Guiné, será chamado, por essa razão, embora provavelmente
se tenha originado na África Central, de Neolítico guineense
74
.
O Neolítico de tradição capsiense
Um pouco mais tarde, o Neolítico de tradão capsiense, produto da
neolitização, no próprio local, do antigo Capsiense norte -africano, vai começar
a movimentar -se em direção ao sul. Chegará ao nordeste da Mauritânia, e
atingirá o Hoggar, que em Meniet foi descoberto abaixo da superfície dos
sítios do Neolítico de tradição sudanesa. Seu limite a leste é mais impreciso,
devido à falta de monografias líbias utilizáveis. O Neolítico de tradição capsiense
é mais austero que o de tradição sudanesa. Sua cerâmica tem pouco ou nenhum
ornamento, mas, enquanto a indústria lítica de tradição sudanesa é, de modo
geral, oportunista, a de tradição capsiense é de uma técnica rigorosa, e sua
cies saariana acha -se enriquecida por uma quantidade deslumbrante de
armaduras de pontas de flechas. A pedra polida é, em geral, muito bonita e,
para desfazer a impressão produzida pela cerâmica, as vasilhas de pedra dura
e as estatuetas
75
zoomórficas são verdadeiras obras -primas. Com essa fácies do
Neolítico encontram -se grãos perfurados, que são, em alguns casos, fragmentos
de encrina, mas, de modo geral, rodelas confeccionadas com pequenos pedaços
de casca de ovo de avestruz. Ovos inteiros foram esvaziados e transformados
em recipientes, e alguns foram gravados com desenhos a traço.
Sabe -se que os iberomaurusienses não são os capsienses. Enquanto estes
últimos ocuparam principalmente os altos planaltos argelianos, onde deixaram
curiosos montes de conchas conhecidos com o nome de escargotières, os
iberomaurusienses estabeleceram -se na orla do Mediterrâneo entre a Tunísia e
74 DELCROIX, R. e VAUFREY, R. 1939, p. 265 -312.
75 Coleções pré -históricas, Museu de Etnograa e de Pré -história do Bardo (Argel); álbum n
o
1, A. M. G.
ed., Paris, 1956, pr. 107 -10.
675
Pré -História do Saara
F . Cerâmica neotica,
Dhar Tichitt (Mauritânia).
F . Cerâmica de Akreijit,
Mauritânia.
676
Metodologia e pré -história da África
o Marrocos; não se sabe muito bem como estes cro -magnoides se instalaram na
África do Norte, nem como se dividiram nas duas etnias. O certo é que ambos
foram neolitizados” no próprio local. Os neolíticos de tradição iberomaurusiense
que viviam próximos ao mar não puderam evitar sua influência. Caminhando ao
longo da costa atlântica marroquina em direção ao sul, constata -se a existência
de kiokennmöddings formados com conchas de moluscos e ostras, em seguida
com arcas (Arca senilis), aliás, ainda consumidas no Senegal. O litoral do Saara
marroquino e da Mauritânia foi ocupado por essa fácies muito particular, pouco
ou nada estudada, que se caracteriza por uma cerâmica pouco ornada, rude, de
pedras de fogueira e por uma indústria lítica rara. Seria muito interessante saber
como se formou e qual a sua origem, pois embora possa ter sofrido a influência
de sua homóloga, o Iberomaurusiense, no Marrocos, nada sabemos sobre seus
elementos constitutivos.
O tenerense
Uma quinta corrente que suscitou o interesse dos especialistas foi a identificada
no Adrar Bous e batizada, por essa razão, com o nome de Tenerense”.
pouco tempo, J. D. Clark, que esteve no local, sugeriu que tal corrente pode ser
representativa do “Neolítico saariano”. Isso é impensável, a menos que o adjetivo
saariano” corresponda a uma região geográfica muito extensa!
Por suas armaduras em flor de lótus, discos, raspadores côncavos espessos,
elementos de serra, machados com garganta, assim como por sua tipologia e
composição estatística, o Tenerense, descoberto por Joubert em 1941
76
, não
pode ser considerado um Neolítico saariano clássico, pois esse termo se aplica
mais especialmente às fácies sudanesas e capsienses, que cobrem a maior parte
do Saara. Vaufrey, frequentem ente tentado pelo desejo de agrupar tudo no
Neolítico de tradição capsiense
77
, afirma: As influências egípcias reconhecidas
no Saara argeliano penetraram em sua mais perfeita forma até o Hoggar”; e mais
adiante: “Essas estações do Tenere representam um apogeu da indústria neolítica
saariana, que evoca irresistivelmente o Pré -Dinástico egípcio
78
. Assinalemos,
entretanto, que, excluindo o Tenere, a influência egípcia não aparece nitidamente,
a despeito do que afirma Vaufrey.
76 JOUBERT, G. e VAUFREY, R. 1941 -1946, p. 325 -30.
77 VAUFREY, R. 1938, p. 10 -29.
78 VAUFREY, R. 1969, p. 66.
677
Pré -História do Saara
Resta, pois, descobrir por que via a magnífica indústria tenerense, obtida
essencialmente a partir de um jaspe verde, recebeu as influências que tão bem
ilustra.
É preciso, porém, ter cuidado para não estender demais a noção de “fácies”.
Atualmente sabemos que uma mesma etnia pode ter respondido com exuberância
aos determinismos impostos pela ecologia, subsolo, minerais, etc. Onde o jaspe e
o sílex permitem obter obras -primas a partir da pedra, a indústria será diferente
da confeccionada com arenitos frágeis. O Adrar Bous e o Gossolorum
79
são uma
e mesma coisa, mas só depois de ter estudado a cerâmica, discos, machados,
etc., é que se pode acreditar nisso. As duas indústrias têm em comum apenas a
qualidade de seu lascamento.
Resta ainda dizer algumas palavras a respeito de uma enorme fácies neolítica
encontrada no sudeste da Mauritânia, exatamente ao longo do Dhar Tichitt
80
.
Importantes trabalhos realizados nessa região mostram que a indústria, bastante
tardia, está ligada a um excepcional conjunto de aldeias em pedras secas, onde o
urbanismo
81
e a arte das fortificações são do maior interesse. Obteve -se, enfim,
a prova de que desde -1500 as comunidades locais consumiam milho -miúdo, o
que vem dar um sentido preciso ao enorme equipamento de moagem existente
nas ruínas das aldeias. Tanto a cerâmica quanto outras características particulares
demonstram ser africana a civilização do Dhar Tichitt; essa civilização sem
dúvida proveio do leste, mais especificamente do vizinho Tilemsi, mas isso é
apenas uma hipótese de caráter provisório.
Assim, o Neolítico pode ser reduzido a algumas linhas de força geradoras
de correntes secundárias, que se caracterizam por sua base cultural comum,
identificada pela cerâmica e, mais raramente, pelas particularidades técnicas
aplicadas à indústria lítica ou óssea.
Em suma, o Neolítico estender -se do V milênio antes da Era Cristã ao
início do I milênio. Durante esse período o nível dos lagos não cessará de baixar.
Em consequência, a grande fauna etíope abandona as margens, principalmente
no sul; a flora se degrada, e o homem, por sua vez, emigra com seus rebanhos.
79 HUGOT, H. J. 1962, p. 154 -63 e 168 -70.
80 HUGOT, H. J. et al. 1973.
81 Urbanismo: estudo do plano de um conjunto de habitats geralmente ocupados por uma população
sedentária e organizados, de acordo com um plano preciso, em função da divisão do trabalho e das
ideias religiosas dos ocupantes, O único conjunto que responde a essa denição é o do Dhar Tichitt, na
Mauritânia, cujo início foi datado de -2000.
678
Metodologia e pré -história da África
A fauna e a ora
A fauna é herdada do Ateriense, que termina no momento em que os lagos
atingem o último alto nível; identifica -se então, nas margens ou na própria
água, a fauna dita etíope, com a presença de rinocerontes, crocodilos (Crocodilus
niloticus), hipopótamos, elefantes, zebras, girafas, búfalos e facoqueros.
Grandes siluros (Clarias), percas -do -nilo (Lates niloticus) e tartarugas de água
doce (Trionyx) abundam nas águas. Os pastos são percorridos por caprinos,
antílopes, etc. Essa enumeração surpreende apenas pelo lugar a que se aplica:
o Saara. A flora confunde -se totalmente. No início do Neolítico ainda são
encontradas nogueiras, tílias, salgueiros e freixos! Uma concha de um limnófilo
descoberto em Meniet (Mouydir, Saara argeliano), indica uma precipitação
de pelo menos 500 mm de água; a urze cobre alguns estágios das montanhas.
Muito rapidamente, entretanto, essa vegetação se degrada e cede lugar a uma
outra, mais característica de zona árida: cedro, pinho de Alep, zimbro, oliveira,
almecegueira e, entre outras, o lódão -bastardo, muito importante na alimentação
dos autóctones.
Nos lagos também grande quantidade de moluscos; encontram -se, em
certos lugares, traços de enormes depósitos de valvas de únio.
Com efeito, uma das características do Saara neolítico nos alvores dessa
civilização é a presença de um conjunto de lagos isolados. É às margens desses
lagos que os neolíticos de tradição sudanesa irão desenvolver -se. São eles que
tornarão possível, por seus inúmeros recursos, o estabelecimento humano.
O Saara, berço agrícola
A ideia foi lançada em diferentes oportunidades e, por várias vezes, sem
verificação das possibilidades do emprego de um termo com implicações tão
graves.
Não se pode provar a prática da agricultura com base apenas na presença de
objetos ou utensílios tidos como de uso agrícola. A agricultura fica demonstrada,
ao contrário, quando os fósseis, grãos ou pólens justificam a hipótese aplicada
aos objetos ou utensílios. Os sacos de milho -miúdo encontrados em Tichitt
(Mauritânia) confirmam as ideias de Munson
82
e as de Monod
83
a respeito.
82 MUNSON, P. 1968. p. 6 -13.
83 MONOD, T. 1961.
679
Pré -História do Saara
Quanto ao mais, sabemos que os neolíticos do Saara acumularam grandes
quantidades de bagas de celtis sp, ou lódão -bastardo, que certamente foram
usadas na alimentação. Observou -se ainda em Meniet e Tichitt a presença de
grãos de cucurbitáceas, que provavelmente são de melancia e não de citrulus
colocinthis. Esses dois vegetais pressupõem a coleta; no máximo, a protocultura,
mas não a agricultura, que se constitui na preparação do solo em vista de uma
cultura racional de plantas selecionadas.
O quadro, portanto, é bastante pobre. Em Meniet
84
a análise palinológica de
sedimentos neolíticos não forneceu nenhuma indicação precisa do conhecimento
de qualquer forma de agricultura. No Adrar Bous uma análise sumária não
acrescentou nenhum dado novo, tampouco em Ti -n -Assako e nos inúmeros
sítios estudados desse ponto de vista. Os únicos traços certos de um consumo de
produtos vegetais nos sítios neolíticos saarianos são os de grãos: ziziphus, lotus,
celtis sp, diversas gramíneas selvagens; devem -se acrescentar ainda os sinais de
Pennisetum evidenciados por Munson e os grãos de milho -miúdo descobertos
em Tichitt nas turfas fossilizadas.
No entanto, é preciso fazer a análise sistemática dos sedimentos neolíticos
antes de tirar qualquer conclusão. Apesar de seu enorme interesse, a palinologia
foi muito pouco aplicada no Saara. De todo modo, embora algumas plantas
tenham sido cultivadas no Saara, parece improvável que essa região tenha sido
o lugar privilegiado onde se desenvolveram as plantas de consumo corrente no
norte da África.
Finalmente, depois de muito tempo, foram os criadores que, em quase todas
as regiões, sucederam aos “caçadores -pescadores -coletores”. O fato de um
instrumental de pedra, constituído de enxadas,s, moedores, pesos para lastrar
bastões de escavação e picões, ser encontrado em quase toda a região não implica,
ipso facto, a existência de uma agricultura no sentido real do termo. Em todo o
Egito, onde esse fenômeno se desenvolveu amplamente, encontram -se traços
precisos de sua presença, assim como em Tichitt, na Mauritânia, onde poderiam
ser explicados pela existência de aldeias sedentárias. Contudo, em outras regiões,
de acordo com o atual estágio de nossos conhecimentos, é pouco provável que
o mesmo se tenha dado. E, de qualquer forma, não se deve esquecer que em
-1000 havia praticamente ocorrido a desertificação do Saara. A cessação das
chuvas não favoreceu a agricultura, mas isso não implica o desconhecimento
de toda a protocultura, ou da coleta seletiva que a precedeu. Além disso, com
84 FLAMAND, G. B. M. 1921.
680
Metodologia e pré -história da África
certeza a experimentação de alimentos de origem vegetal deve ter estimulado a
busca de espécies determinadas, que seria uma primeira forma de seleção. Mas
possibilidade de cultura no quadro de uma sedentarização ou de uma
fixação sazonal. Ora, em grande parte do Saara o Neolítico em seu apogeu faz
pensar antes em acampamentos nômades que em aldeias organizadas, as quais,
no entanto, existiram.
A origem da domesticação e o Saara
O Saara neolítico teve vida própria. Embora os criadores bovidianos do
Tassili n’Ajjer sejam contemporâneos das carroças a solto galope” de idade
imprecisa mas que podem ser contemporâneas das invasões dos “povos do mar”,
que foram dispersados ao tentarem conquistar o Egito , não deixaram de
desenvolver localmente a arte da criação do gado, que sempre surpreende o
não -iniciado. A civilização bovidiana parece ter desenvolvido em seu apogeu
métodos tão perfeitos de criação que fazem pressupor um longo aprendizado.
Os egípcios dedicaram -se a múltiplas experiências de domesticação de animais,
informação que nos é dada pelos baixos -relevos, que mostram ter -se tentado
domar felinos e gazelas, canídeos e até mesmo hienas! Qual era a situação no
Saara? O galgo sudanês, precioso auxiliar dos caçadores nemadi, parece ser de
origem muito antiga. É ele provavelmente que está representado nas pinturas
bovidianas. também outros indícios, mas, afinal, nenhuma prova absoluta.
Sabe -se que em -2000 o boi e o cachorro eram encontrados em Aoukâr, mas
os rupestres não nos mostram que animais o homem teria tentado domesticar
em períodos anteriores.
A vida neolítica
Sabemos que os homens do Neolítico de tradição sudanesa foram de uma
curiosidade ilimitada no que diz respeito a novas técnicas. Continuaram a lascar
a pedra, obtendo, assim, uma maravilhosa panóplia de armaduras de pontas de
flechas e um instrumental em geral muito leve, composto de lamelas retocadas
de diversas maneiras, furadores, raspadores de formas ltiplas, micrólitos
geométricos, serras, etc. A característica nova é a técnica sutil do polimento
da pedra, aplicada aos machados, enxadas, goivas e buris. Por vezes recipientes
de pedra dura, labrets, contas de amazonita, cornalina e quartzo, e bolas, talvez
usadas como projéteis de funda, vêm completar essa panóplia. A ela se acrescenta
uma profusão de mós fixas e de moedores que não consistem necessariamente
681
Pré -História do Saara
F . Pontas de echas neolíticas, In Guezzam (Níger).
F . Machado com garganta neolítica, Adrar Bous (Níger).
F . Machado polido neolítico, região de Faya (Chade).
682
Metodologia e pré -história da África
em prova do conhecimento da agricultura – e kwes – pedras para lastrar bastões
para escavação, recentemente ainda em uso na África do Sul e também entre
os Pigmeus. O conjunto é completado por uma admirável série de vasos de
cerâmica, cujas formas e decoração são bem negro -africanas”. O osso foi
trabalhado, servindo para confeccionar ares, puões, agulhas, pentes de
oleiro, brunidores e talvez punhais. Os neolíticos de tradição sudanesa souberam
adaptar -se maravilhosamente ao determinismo mineralógico das regiões que
ocupavam, o que levou a acreditar numa multiplicidade de bases étnicas, apesar
de, ao contrário, parecerem muito estáveis e culturalmente muito unidos, fato
que se deveria à homogeneidade da inspiração das decorações de sua cerâmica.
Devemos acrescentar que esses homens, formados no cadinho da vida socializada,
devem ter conhecido a navegação, e que é possível que tenham circulado nos
lagos com barcos de caniços, iguais aos que se conhecem no Chade com o nome
de kaddei. Os neolíticos de tradição capsiense opõem -se em muitos pontos aos
seus homólogos e predecessores de tradição sudanesa. Esses últimos, partindo
do Sudão, caminharam em diversas vagas de leste para oeste, sem atingir, ao
que parece, a costa atlântica. Eram melanodermas e, quase sempre, africanos
autênticos. Os homens que partiram dos altos planaltos argelianos eram mais
mediterrânicos e herdaram de seus predecessores capsienses um dom notável para
o lascamento do sílex. O inventário de seu instrumental é surpreendente; as finas
lamelas com retoques quase invisíveis lembram joias. Furadores, pontas agudas,
pequenos raspadores juntam -se a micrólitos geométricos formados de resíduos
de lâminas – trapézios, retângulos, triângulos e segmentos de círculo. Mas nem
por isso ignoravam a arte da caça, pois confeccionavam inúmeras armaduras de
pontas de flechas, que são hoje, lamentavelmente, objeto de um grande comércio
turístico. Os machados polidos são numerosos e desconhecem a forma espessa
e reduzida, frequente no Neolítico de tradição sudanesa. Diferentemente deste,
a tradição capsiense deu maior importância ao instrumental lítico, cuja técnica
foi também mais variada. Mas sabia, igualmente, polir vasilhas de pedra dura,
trabalhar em alto -relevo maravilhosas estatuetas, como a do bovídeo de Silet, o
carneiro de Tamentit, a gazela do Imakassen. A cerâmica, entretanto, é muito
menos rica em formas e decoração. Não que faltasse imaginação aos artesãos.
Ao contrário, eles puderam demonstrá -la com sua aptidão para decorar ovos
de avestruz, com os quais, inteiros, faziam recipientes e, partidos, inúmeras
contas. Muitos fragmentos de casca ainda conservam finos desenhos a traço.
Evidentemente, nesse contexto existem também mós fixas e moedores. Sabe-
-se com certeza que uma parte desse material serviu para triturar corantes,
provavelmente utilizados nas pinturas corporais.
683
Pré -História do Saara
O Neolítico litoral é pouco conhecido. Os trabalhos a respeito ainda não
foram publicados, más é sabido que em toda a extensão da costa atlântica, a partir
do Marrocos, existem inúmeros depósitos de conchas, por vezes verdadeiros tells,
misturados com cinzas e fragmentos de cerâmica. Isto ocorre até o Senegal,
parecendo que a esta latitude um movimento étnico proto -histórico passa a
predominar. Mantém -se inexplicável a razão pela qual na fronteira da Mauritânia
e Saara Ocidental a cerâmica de base redonda ou plana conhecida no Saara dá
lugar a uma cerâmica maravilhosa de base nitidamente cônica. Entretanto, nada
foi publicado a respeito dessa nova fácies.
Mais a leste, no Air, no Adrar Bous, uma jazida sobressai claramente em
relação a outras fácies conhecidas do Neolítico saariano de qualquer origem.
É a que se chamou Tenerense. Obtido de um jaspe verde -vivo e irrompendo
num magnífico instrumental, esse Neolítico é rico em formas que evocam o
Eneolítico egípcio. Discos planos, armaduras em flor de lótus, raspadores com
entalhe chamados crescentes”, enxadas com gume polido pelo uso podem ser,
com efeito, coincidências, mas a essa altura seria verdadeiramente estranho que
fossem casuais. Acrescentamos, ainda, que certos tipos de mós fixas associadas
a esse brilhante complexo são os mesmos que foram encontrados diante dos
baixos -relevos egípcios, e somos levados a crer que o Adrar Bous foi colonizado
por homens que teriam tido contatos estreitos com o Nilo, apesar de ser estranho
o fato de terem utilizado uma cerâmica semelhante, em todos os aspectos, à do
Neolítico de tradição sudanesa. Mas esta última o teve seus arquétipos em Esh
Shaheinab?
Ao sul da linha dos lagos, em uma época mais úmida, a floresta deve ter
sido mais densa e mais verde do que hoje. Isso sem dúvida explicaria que se
tivesse constituído numa barreira que os habitantes do Saara não conseguiram
transpor. O estudo do Neolítico florestal, que por razões de comodidade e de
anterioridade foi denominado “guineense” mas que na verdade parece ter -se
originado em local muito mais distante, no Congo, talvez, está apenas começado.
Conclusão
O apaixonante estudo do passado do Saara está ainda engatinhando.
Oferece aos especialistas e aos homens de boa vontade uma oportunidade
excepcional que urge aproveitar antes que a exploração das últimas reservas
naturais faça desaparecer para sempre a possibilidade de desvendar o mistério
dos problemas que decididamente dizem respeito ao passado do homem. Ora,
684
Metodologia e pré -história da África
é tomando consciência do passado que a humanidade poderá forjar seu futuro:
nossa experiência não se limita ao presente, mas vem em linha direta da pré-
-história. Negá -lo é tirar -lhe toda base racional, todo valor científico. Mas a
pesquisa da pré -história do Saara deixou de ser individual para tornar -se um
empreendimento coletivo, de equipe, portanto que precisa de meios para sua
realização. É impressionante constatar como ela se encontra abandonada. Cabe
aos interessados em reconstituir a história desse grande e rude deserto formar
os homens que saberão desvendar os seus segredos.
C A P Í T U L O 2 4
685
Pré -História da África ocidental
As principais zonas climáticas e fitológicas atravessam toda a África ocidental,
de leste a oeste. As precipitações mais fortes ocorrem perto da costa, e diminuem
à medida que se vai para o norte e para o interior. Ao norte, o lado meridional do
deserto faz limite com a faixa seca do Sahel; mais ao sul, encontra -se a zona da
grande savana; entre a savana e a floresta tropical, densa e úmida, que se limita
com a costa, fica uma zona de floresta desmoitada, que antes havia sido floresta
e que a ão do homem transformou em savana.
O clima e o meio ambiente
As precipitações na área são nitidamente sazonais: no sul, elas predominam
de abril a outubro (com máxima em julho e outubro); no norte, de junho a
setembro. Essas chuvas são trazidas pelos ventos de sudoeste, que se enchem
de umidade no Atlântico. Porém, a frente intertropical corta a África ocidental
de leste a oeste, separando a massa de ar tropical marítima, formada sobre o
sul do Atlântico, da massa de ar continental e seca do Saara. A posão da
frente varia de acordo com as estações do ano. Em janeiro, está no extremo
sul, de modo que os ventos alísios do nordeste, vindos da massa setentrional
de ar seco, descem diretamente na costa da Guiné, provocando um grande
declínio de umidade.
P-História da África ocidental
T. Shaw
686
Metodologia e pré -história da África
F .
Zonas de vegetação da África ocidental.
687
Pré -História da África ocidental
Para conhecer a pré -hisria e a arqueologia da África ocidental, é
imprescindível que se tenha conhecimento dos padrões climáticos e vegetais: a
localização e a extensão das diferentes zonas de vegetação, bem como a posição
da frente intertropical, sofreram variações no passado, afetando as condições em
que o homem vivia, em diferentes períodos, na África ocidental.
Dentro dessas zonas de vegetação existem certas particularidades geográficas
que provocam modificações locais no padrão geral: o maciço de Futa Djalon, as
terras altas da Guiné; no Togo, a cordilheira Atakora; em Camarões, o planalto
de Bauchi e as terras altas de Mandara; o delta interior do Níger e sua grande
curva em direção ao norte, o lago Chade e o delta da foz do Níger. Entre Gana
e Nigéria, uma quebra de continuidade no cinturão de floresta tropical úmida,
que é conhecida como a “passagem de Daomé”.
O homem pré ‑histórico
Vestígios paleontológicos
A o momento, a África ocidental o apresentou vestígios de formas humanas
primitivas nem de hominídeos comparáveis aos que foram achados na África
oriental e meridional
1
, nem tampouco artefatos da época correspondente
2
. Apesar
disso, poderíamos supor que tais seres existiram na África ocidental? A atual falta
de dados significa que esses hominídeos realmente não viveram na África ocidental
naquela época, ou que as evincias ainda o foram encontradas? Essa é uma
pergunta impossível de ser respondida no momento; entretanto, na África ocidental
o foi realizado nenhum esforço de pesquisa comparável ao que teve lugar na África
oriental. Devemos admitir tamm que os depósitos de mesma idade parecem ser
raros na África ocidental, e é evidente que, devido ao alto grau de umidade e acidez
do solo, as condões de preservação são muito piores
3
. Esse fato é ilustrado por
dados de um período muito mais recente: um mapa de distribuição, na África,
das descobertas de vestígios paleontogicos da Late Stone Age, aponta um espaço
em branco na região da África ocidental -Zaire
4
. Mas, depois da elaboração desse
mapa, descobertas referentes a essa época feitas na Nigéria e em Gana revelam que
o espaço em branco indicava uma dada situação de pesquisa e não a ausência de
1 LEAKEY, R. E. F. 1973.
2 LEAKEY, M. 1970.
3 CLARK, J. D. 1968, p. 37.
4 GABEL, C. 1966, p. 17.
688
Metodologia e pré -história da África
ocupação humana
5
. O mesmo podemos dizer em relão ao período anterior, que
vamos abordar
6
, e tamm quanto ao mapa de distribuição dos depósitos fósseis de
vertebrados do Pleistoceno Médio e Superior, que mostra um espaço em branco
semelhante
7
. Até onde podemos remontar, deve ter havido em certas partes da
África ocidental condões ecológicas muito semelhantes àquelas que favoreceram
o desenvolvimento dos australopitecos da África oriental o que o significa
que essas regiões foram de fato ocupadas. muitas regiões da floresta tropical
que poderiam, atualmente, prover as necessidades dos gorilas, mas na verdade, eles
o encontrados apenas em duas regiões bem delimitadas
8
; e, apesar de uma certa
similaridade de condões, a savana da África ocidental não sustenta uma caça tão
rica em número e em variedade como a da África oriental
9
.
A porção craniofacial de uma caixa craniana encontrada a 200 km a oeste-
-sudoeste de Largeau é uma evidência positiva que fala a favor da possibilidade de
serem encontrados, na África ocidental, alguns dos primeiros homideos do começo
do Pleistoceno. Esse espécime foi chamado de Tchadanthropus uxoris
10
; inicialmente
pensou -se que se tratava de um australopiteco
11
, mas depois consideraram -no mais
próximo do Homo habilis
12
. De fato, é dicil fazer um julgamento, devido à falta de
datas exatas e por causa da fragmentão do crânio. Um estudo mais minucioso dessa
peça, com capacidade craniana de 850 a 1200 cm
2
e que apresenta características
arcaicas e desenvolvidas, sugere uma evolução para o Homo erectus
13
, um esgio mais
complexo dos homideos. Convém repetir que na África ocidental o há exemplos
dessa forma, embora tenham sido encontrados na Argélia
14
alguns escimes desse
mesmo tipo, chamados de Atlanthropus mauritanicus.
As indústrias
Embora o homem da pré -história tenha feito utensílios tanto de osso e madeira
quanto de pedra, a madeira raramente é preservada e as condões do solo na África
5 SHAW, T. 1965; 1969b; BROTHWELL, D. e SHAW, T. 1971; FLIGHT, C. 1968, 1970.
6 COPPENS, Y. B.I.F.A.N. 1966, p. 373.
7 COPPENS, Y. B.I.F.A.N. 1966, p. 374.
8 DORST, J. P. e DANDELOT, P. 1970, p. 100.
9 DORST, J. P. e DANDELOT, P. 1970, p. 213 -23.
10 CAMPBELL, B. G. 1965, p. 4 -9.
11 COPPENS, Y. 1961.
12 COPPENS, Y. 1965a; 1965b; COOKE, H. B. S. 1965.
13 COPPENS, Y. 1966, Anthropologia.
14 ARAMBOURG, C. e HOFSTETTER, R. 1954, 1955; ARAMBOURG, C. 1954, 1966.
689
Pré -História da África ocidental
ocidental não o favoveis à conservação do osso. Além das lascas trabalhadas
de modo rudimentar, os utensílios de pedra mais simples e mais primitivos são os
seixos ou blocos, talhados por percussão constituindo instrumentos que apresentam
um gume de 3 a 12 cm de comprimento. Eles são conhecidos como indústria do
seixo lascado ou utenlios olduvaienses, referindo -se à garganta de Olduvai, na
Tanzânia. São bastante frequentes na África, sendo que os homens primitivos que
as fabricaram podem muito bem ter -se espalhado pela maior parte das savanas e
matas do continente. exemplos desses utensílios em diversos lugares da África
ocidental
15
, mas até o momento não é posvel ter certeza se algum deles data
genuinamente do mesmo período da indústria olduvaiense, que, na África oriental;
situa -se entre -2 e -0,7 milhões de anos. Um estudo minucioso dos seixos lascados
encontrados ao longo do rio mbia, no Senegal, demonstrou ser bem provável que
alguns deles tenham origem neolítica, enquanto outros possivelmente remontariam
à Late Stone Age; não evidências estratigráficas que permitam considerá -los
como indústria da época pré -acheulense
16
. Então, podemos ter certeza de que
esses seixos lascados pertencem a um período anterior quando eles são datados
independentemente, por terem sido encontrados in situ em desitos que podem
ser datados, seja de modo relativo, seja de modo absoluto. A paleontologia permite
que se estabeleçam datas relativas para os depósitos de Yayo, que revelaram o
Tchadanthropus; mas, infelizmente, não foi encontrada nenhuma indústria
associada. A partir das indicações fornecidas pelos ossos de fósseis do extinto
Hippopotamus imaguncula, extraídos de um poço com profundidade de 58 m,
situado em Bornu
17
, é provável que os sedimentos da bacia do Chade contenham
material paleontológico e, semvida, arqueogico do Pleistoceno; esse material,
porém, repousa sob uma camada muito espessa de aluviões mais recentes.
Mudanças climáticas
Na Europa, ocorreram várias glaciações durante o Quaternário, e as quatro
principais receberam o nome de rios da Alemanha. Sabe -se agora que, apesar
de os fenômenos glaciais apresentarem ritmo e padrão gerais, muitas variações
locais devem ser levadas em consideração; por isso, também se usam nomes
15 DAVIES, O. 1961, p. 1 -4; DAVIES, O. 1964, p. 83 -91; MAUNY, R. 1963; SOPER, R. C. 1965, p. 177;
HUGOT, H. J. B.I.F.A.N. 1966.
16 MAUNY, R. 1968, p. 1283; BARBEY, C. e DESCAMPS, C. 1969.
17 TATTAM, C. M. 1944, p. 39.
690
Metodologia e pré -história da África
locais para cada região particular. Embora o quadro resultante seja muito mais
complexo, é provavelmente bem mais próximo da realidade
18
.
A mesma coisa aconteceu na África, quando, nos vestígios de praias lacustres
elevadas gras a fases de erosão e de depósitos de cascalhos, os primeiros
pesquisadores encontraram traços característicos de períodos do Quaternário, ao
longo dos quais o clima africano tinha sido muito mais úmido que atualmente.
Esses períodos de precipitações mais abundantes foram batizados de “pluviais”.
A partir do momento em que o conceito de períodos glaciais foi aceito para as
zonas temperadas setentrionais, o que há de mais natural do que a ideia de que
houve, no calor dos trópicos, um período pluvial correspondente aos períodos
glaciais da Europa e da América do Norte?
19
Com o tempo, a ideia de três e
depois de quatro períodos pluviais africanos tornou -se crença ortodoxa
20
; supôs-
-se que eles correspondiam às glaciações da era glacial europeia
21
, embora tenha
sido proposta uma nova teoria, segundo a qual um período pluvial africano
corresponderia a duas glaciações setentrionais
22
. O fato de ter sido possível
expor pontos de vista tão diferentes mostra a quase impossibilidade de qualquer
correlação cronológica exata. De qualquer forma, como se trata de grandes
distâncias, as correlações geológicas não deveriam ser estabelecidas em função
de climas e sim de formações rochosas. Além disso, os vestígios dos períodos
pluviais dão lugar a muita confusão, quando comparados com os traços das
glaciações
23
. Com o tempo, a própria hipótese de quatro períodos pluviais na
África foi posta em dúvida
24
.
A África ocidental não escapou à extrapolação, e esforços têm sido feitos no
sentido de utilizar os resultados obtidos em outras partes do continente para
conferir uma certa significação aos dados que, de outro modo, ficariam isolados
ou difíceis de interpretar
25
. Mais recentemente, entretanto, dois elementos
contribuíram para o progresso da abordagem científica em relação à África
18 FLINT, R. F. 1971; SPARK, B. W. e WEST, R. G. 1972.
19 WAYLAND, E. J. 1934; 1952.
20 LEAKEY, L. S. B. 1950; LEAKEY, L. S. B. 1952, Resolução 14 (3), p. 7; CLARK, J. D. 1957, p. XXXI,
Resolução 2.
21 NILSSON, E. 1952.
22 SIMPSON, G. C. 1957.
23 CLARK, J. D. 1957, p. XXXI, Resolução 4; BUTZER, K. W. 1971, p. 312 -15.
24 FLINT, R. F. 1959.
25 BOND, G. 1956, p. 197 -200; FAGG, B. E. B. 1959, p. 291; DAVIES, O. 1964, p. 9 -12; PIAS, J. 1967.
691
Pré -História da África ocidental
ocidental: uma pesquisa mais aprofundada sobre esse assunto
26
, e o surgimento
de uma nova teoria sobre as mudanças climáticas na África
27
.
No que diz respeito a essas mudanças climáticas, a África ocidental não
oferece nenhuma informação geológica ou geomorfológica digna de fé, que
remonte a um período anterior a antes da última glaciação na Europa. O
estudo do lago Chade evidenciou a existência de altos níveis lacustres a partir
de -40.000
28
. Esse nível alto é marcado pelo espinhaço de Bama, sobre o qual
se eleva Maiduguri, que nesse local tem direção noroeste -sudeste. Depois, as
duas extremidades estendem -se em direção nordeste, cercando Largeau, toda
a depressão do Bodele e o Bahr el -Ghazal. Esse espinhaço, considerado mais
uma barra de lagoa do que o traçado real de uma margem, pode ter levado 6000
anos para se formar
29
. O antigo lago ficava a uma altura de 332 m acima do
nível do mar, ao passo que atualmente a altitude do lago Chade é de 280 m; às
vezes acontecia de ele transbordar na passagem de Bongor e drenar o Benue.
Durante esse período mais úmido, tudo indica que a floresta da África ocidental
estendia -se bem mais para o norte do que atualmente; no entanto, é impossível
afirmar que ela tenha atingido a latitude de 11
o
N
30
ou a atual linha isoieta dos
750 mm
31
enquanto a palinologia não nos tiver fornecido essa confirmação.
Aproximadamente na época do último máximo da última glaciação no norte
da Europa (mais ou menos por volta de -20.000), parece que a África ocidental
era muito mais seca do que agora. Nessa época, os rios da região despejavam
suas águas num oceano que ficava 100 m abaixo do nível de hoje, pois uma
grande quantidade de água ficou bloqueada nas calotas glaciais dos pólos. Assim,
em Makurdi, o Benue cavou um leito cerca de 20 m abaixo do nível atual do
mar, que se mostra ainda mais profundo em Iola; enquanto isso, em Jebba, o
leito fóssil do Níger se encontra 25 m abaixo do nível do mar e se aprofunda
ainda mais em Onitsha
32
. Também o Senegal corria num leito bem abaixo
do nível de agora; mas grandes dunas de areia bloquearam sua foz, o mesmo
acontecendo com o curso médio do Níger. Nessa época, o lago Chade era seco;
26 Associação Senegalesa para o Estudo do Quaternário, 1966, 1967, 1969; BURK, K. et al., 1971; BUT-
ZER, K. W., 1972. p. 312 -51.
27 ZINDEREN -BAKKER (E. M. van), 1967.
28 SERVANT, M. et al., 1969; GROVE, A. 1. e WARREN, A., 1968; BURKE, K. et al., 1971.
29 GROVE, A. T. e PULLAN, R. A., 1964.
30 DAVIES, O., 1964.
31 DAVIES, O., 1960.
32 VOUTE, C., 1962; FAURE, H. e ELOUARD, P., 1967.
692
Metodologia e pré -história da África
dunas de areia formaram -se no fundo do lago e em certas regiões da Nigéria
setentrional indicando que havia precipitações anuais inferiores a 150 mm, ao
passo que atualmente elas ultrapassam 850 mm. Embora apenas os depósitos da
foz do Senegal e das proximidades do lago Chade possam ser datados de modo
absoluto, todas as outras evidências indicam que houve um período seco por
volta de -18.000. Se as dunas de areia foram formadas na latitude de Kano, a
região florestal e a savana devem ter sido empurradas para bem longe, em direção
ao sul; na verdade, é provável que a maior parte da floresta tenha desaparecido,
com exceção de florestas relíquias em áreas com precipitações mais elevadas, tais
como a costa da Libéria, parte do litoral da Costa do Marfim, o delta do Níger
e as montanhas de Camarões.
Aproximadamente no ano -10.000, as condições parecem ter evoluído para
uma umidade maior. O ger do Mali transbordou sobre o Taoussassill, e o
Mega -Chade, como foi chamado
33
, recobriu novamente uma vasta superfície;
as dunas de areia formadas durante o período seco anterior ficaram com
uma cor avermelhada, devido às estações mais úmidas. Vestígios de carvão
vegetal dispersos em Igbo Ukwu, que datam do décimo primeiro e do timo
milênio antes da Era Cristã, podem talvez indicar queima de arbustos e a
existência, nessa latitude e nessa época, de uma vegetão do tipo savana
34
.
É possível que nesse período a floresta tivesse se espalhado outra vez em
direção ao norte, a partir das zonas -refúgios do litoral, onde ela sobreviveu
no período seco precedente. A teoria mais satisfatória para relacionar os
acontecimentos climáticos do fim do Quaternário na África ocidental aos
do norte da Europa baseia -se em provas, cada vez mais numerosas, de que
as variações de temperatura são um fenômeno mundial; elas provocaram um
deslocamento das zonas climáticas nos dois lados do equador, deslocamento
esse modificado pela configuração das grandes massas terrestres e oceânicas
35
.
Quando as temperaturas do planeta caíram, o resultado foi uma glacião nas
latitudes norte, que empurrou o anticiclone polar para o sul; as zonas climáticas
situadas mais além foram comprimidas em direção ao equador, de modo que
a frente intertropical norte foi deslocada para o sul de sua posição atual. Em
consequência disso, os ventos secos do nordeste sopravam por mais tempo e
com maior força, de uma extremidade a outra da África ocidental, enquanto
os ventos pluviais do sudoeste, chamados ventos de monções, sopravam com
33 MOREAU, R. E. 1963; SERVANT, M. et al. 1969.
34 SHAW, T. 1970, p. 58, 91.
35 ZINDEREN -BAKKER (E. M. van). 1967.
693
Pré -História da África ocidental
menos força, numa distância menor, durante a estação úmida. Esse fato explica
a coincidência entre um período seco na África ocidental e um período glacial
setentrional. Nessa mesma época, o norte do Saara era mais úmido do que
atualmente, pois a trajetória das tempestades do Atlântico desembocava no
sul da cadeia do Atlas, ao invés de passar ao norte da mesma.
Depois, quando as temperaturas mundiais se elevaram, as calotas glaciais e a
frente intertropical afastaram -se para o norte e o nível do mar atingiu a altura
de hoje. Devido ao deslocamento da trajetória das tempestades do Atlântico
em direção ao norte, o Saara do norte ficou mais seco; porém, suas reservas
aquáticas e vegetais foram suficientes para adiar o dessecamento final, que
acabou ocorrendo por volta de -3000. Quando a aridez se tornou tão intensa que
a população não tinha mais condições de viver no Saara, tal fato naturalmente
teve repercussões nas zonas situadas mais ao sul.
A Idade da Pedra
Os termos paleotico”, “epipaleolítico” e “neolítico” ainda estão em uso
no norte da África; em compensação, os arqueólogos da África subsaariana,
depois de muito tempo, acharam preferível utilizar sua própria terminologia,
baseada na realidade de um continente e não num sistema europeu, imposto
de fora. Essa nova terminologia foi adotada oficialmente cerca de vinte
anos, no 3
o
Congresso Pan -Africano sobre Pré -História. Nós usaremos então
os termos “Early Stone Age”, “Middle Stone Age e “Late Stone Age”
36
. Os
limites cronológicos dessas divisões da Idade da Pedra variam um pouco de
região para região. Bem aproximadamente, podemos estabelecer o período que
vai de -2.500.000 a -50.000 para a Early Stone Age; de -50.000 a -15.000
para a Middle Stone Age; e, finalmente, de -15.000 a -5000 para a Late
Stone Age. Com o acúmulo de novas informações, essas divisões e datas tão
simples passam a ser modificadas e a exigir um quadro mais completo. O
próprio termo “neolítico” está sendo cada vez mais criticado quando aplicado
à África subsaariana; na verdade, trata -se de um termo ambíguo que não se
sabe se indica um período, um tipo de tecnologia, um tipo de economia ou a
combinão dos três
37
.
36 CLARK, J. D. 1957, Resolução 6.
37 BISHOP, W. W. e CLARK, J. D. 1967, p. 687 -899; SHAW, T. 1967, p. 9 -43; VOGEL, J. C. e BEAU-
MONT, P. B. 1972.
694
Metodologia e pré -história da África
A Early Stone Age na África ocidental
O Acheulense
No sul, no leste e no noroeste da África, o complexo industrial olduvaiense
cedeu seu lugar ao complexo que conhecemos sob o nome de acheulense,
caracterizado por bifaces. Os bifaces são utenlios de forma oval ou oval
apontada cujo gume, em todo o contorno, foi cuidadosamente talhado nos
dois lados; um outro tipo de biface, a machadinha, tem um gume transversal
retilíneo. Embora as mulheres e as crianças provavelmente se encarregassem do
fornecimento de pelo menos metade do alimento, através da coleta de bagas,
grãos e raízes, os homens agrupavam -se e coordenavam seus esforços para caçar
animais de grande porte. O fogo era conhecido na África desde o final do
período acheulense. O responsável pela fabricação dos utensílios acheulenses,
em todos os locais onde foram encontrados, é o Homo erectus. Sua capacidade
cerebral é bem inferior à do homem moderno, mas, por outro lado, ele está bem
próximo deste último quanto à estrutura corporal.
Os tipos de bifaces geralmente considerados como primitivos (mais tarde
chamados de “chelenses”) o existem no Saara, mas foram encontrados no
Senegal
38
, na Reblica da Guiné
39
, na Mauritânia
40
e em Gana, bastante
rolados, na estratigrafia dos aluviões do terraço médio
41
qualquer que seja
o significado dessa situação em termos de cronologia relativa. Sua área de
distribuição foi objeto de mapas
42
que pareciam indicar uma colonizão a
partir do rio Níger, ao longo da cadeia montanhosa de Atakora e das colinas
do Toga.
Os últimos estágios do Acheulense, caracterizados por belos bifaces talhados
com percutor de osso ou madeira, são prolíficos no Saara, ao norte do paralelo
16. Talvez seja conveniente relacionar essa distribuição ao penúltimo período
glacial na Europa (Riss), ou, talvez, ao primeiro máximo da última glaciação
(Würm); nessa época as chuvas devem ter sido mais abundantes no norte do
Saara e a região desértica recuou para o sul, oferecendo poucos atrativos para os
caçadores -coletores. As terras elevadas do planalto de Jos parecem ter escapado
à regra: é possível que o clima não tenha sido tão árido e que tenha favorecido
38 CORBEIL, R. 1951.
39 CREACH, P. 1951.
40 MIAUNY, R. 1955, p. 461 -79.
41 DAVIES, O. 1964, p. 86 -91.
42 DAVIES, O. 1959.
695
Pré -História da África ocidental
a existência de vastas campinas levemente arborizadas, do tipo procurado pelo
homem do Acheulense. Esse planalto apareceu como um promontório de terras
habitáveis projetado para o sul de Air e da principal região acheulense do Saara
(norte do paralelo 16). Com base no método do carbono 14, estabeleceu -se
que o material associado aos utensílios acheulenses, nos cascalhos de base que
enchem os canais cavados durante o período úmido anterior, data de uma época
anterior a 39.000 B.P.”
43
.
Quando o homem do Acheulense habitava o planalto de Jos, é provável
que o maciço de Futa Djalon também tivesse sido favorável à ocupação pelo
homem; alguns utensílios acheulenses foram descobertos nessa região
44
. Há
também vestígios do Acheulense Médio e Superior nos arredores e ao norte do
alto Senegal; tais vestígios poderiam ser considerados um elo de ligação entre a
região de Futa Djalon e os prolíficos sítios arqueológicos da Mauritânia.
Traços do Acheulense foram registrados
45
no sudeste de Gana e ao longo das
cadeias montanhosas do Toga e de Atakora; esses traços sugerem a possibilidade
de uma penetração pelo norte dessas regiões, que deviam ter um meio ambiente
favorável. Entretanto, essa penetração parece não ter sido muito significativa.
Na verdade, nenhum vestígio do Acheulense foi descoberto na região através da
estratigrafia e é muito difícil, usando apenas a tipologia, classificar definitivamente
como acheulenses pequenas coleções e raros espécimes. Isso acontece porque
algumas formas tendem a sobrepor -se às formas mais recentes da indústria
sangoense
46
ou a confundir -se com elas.
O Sangoense
É difícil definir o complexo industrial sangoense
47
e até se põe em dúvida
a sua existência na África ocidental
48
. Sucedendo o Acheulense e conservando
certas peças de seu instrumental, tais como picão e o biface, vem à luz um
novo complexo industrial; a machadinha desapareceu, os esferoides tornaram-
-se raros e deu -se prioridade aos picões, geralmente de forma pesada e maciça.
Encontramos também choppers, em geral talhados sobre seixos.
43 BARENDSON, G. W. et al. 1965.
44 CLARK, J. D. Atlas, 1967.
45 DAVIES, O. 1964; CLARK, J. D. Atlas, 1967.
46 DAVIES, O. 1964, p. 83 -97, 114, 137 -39.
47 CLARK, J. D. 1971.
48 WAI -OGUSU, B. 1973.
696
Metodologia e pré -história da África
F . Cerâmica do Cabo
Manuel, Senegal; fragmentos decorados
(Foto I. Diagne, Museu do IFAN).
F . Brunidor de osso,
encontrado no sítio neolítico do Cabo
Manuel (Foto I. Diagne, Museu do
IFAN).
697
Pré -História da África ocidental
Na África ocidental, a distribuição dos elementos do Sangoense é mais
meridional que a do Acheulense
49
, sugerindo um novo modo de fixação. No
cabo Manuel, em Dacar, uma indústria antes considerada neolítica
50
, agora
é reconhecida como sangoense
51
ou, eventualmente, como uma de suas
sobrevivências tardias. O mesmo pode -se dizer de certos elementos coletados
em Bamaco
52
. Na Nigéria, os vestígios sangoenses situam -se, sobretudo, na parte
do país que se estende do sul do planalto de Jos para o norte da floresta tropical
e densa; eles também são encontrados ao longo dos vales fluviais, em cascalhos
existentes entre 10 e 20 m acima do nível atual do rio
53
. No vale do Níger,
perto de Bussa, existe uma indústria constituída, sobretudo, de seixos lascados
e que não apresenta indícios de picões; entretanto, por razões geológicas, ela
é considerada contemporânea do Sangoense
54
. Constatamos a presença de
utensílios sangoenses espalhados no pé da cadeia montanhosa do Atakora-
-Togo e ao sul de Gana
55
. Esse material é raro no norte de Gana, mas aparece
com certa frequência no sul.
Em outras partes da África
56
atribuem -se ao Sangoense datas que remontam
a -50.000 e sugeriu -se que o complexo industrial sangoense poderia refletir a
necessidade de adaptar -se a uma região mais arborizada durante um período
cada vez mais seco
57
. Na África ocidental, a indústria sangoense não foi datada
pelo método do carbono 14; no sul de Gana, o material sangoense do atalho da
estrada de ferro de Asokrochona é, em sua totalidade, anterior ao “Beach IV
de Davies, que ele próprio compara ao interestadial de Gottweig
58
posição
estratigráfica que não fez nada mais do que dar o terminus post quem, que nós já
devíamos esperar. Se, perto de Jebba, os cascalhos situados de 10 a 20 m acima
do Níger foram depositados quando o leito do rio correspondia ao nível do alto
mar do Inchiriense Superior
59
, a presença entre eles de utensílios sangoenses
não rolados sugere uma data perto de -30.000; os espécimes rolados poderiam
49 CLARK, J. D. Atlas, 1967.
50 CORBEIL, R. et al. 1948, p. 413.
51 DAVIES, O. 1964, p. 115; HUGOT, H. J. 1964, p. 5.
52 DAVIES, O. 1964, p. 113 -14.
53 DAVIES, O. 1964, p. 113 -4; SOPER, R. C. 1965, p. 184 -86.
54 SOPER, R. C. 1965, p. 186 -88.
55 DAVIES, O. 1964, p. 98, 100.
56 CLARK, J. D. 1970, p. 250.
57 CLARK, J. D., 1960, p. 149.
58 DAVIES, O. 1964, p. 23, 137 -42.
59 FAURE, H. e ELOUARD, P. 1967.
698
Metodologia e pré -história da África
ser contemporâneos ou mais antigos. É possível que a distribuição meridional
do Sangoense, num meio florestal e ao longo dos rios, testemunhe um modo de
vida adaptado à seca, anterior a -40.000; depois disso, o lago Chade começou a
encher -se e a espalhar -se. Talvez os animais que eram caçados outrora tenham
se tornado raros, fugindo em direção ao sul; o aumento na quantidade de picões
pode ser uma resposta à necessidade tanto de arrancar raízes e tubérculos quanto
de cavar fossos para pegar animais, pois não era tão fácil caçar em espaço
aberto.
A Middle Stone Age na África ocidental
O termo Middle Stone Age serve para descrever um conjunto de complexos
industriais aproximadamente de -35.000 a -15.000.
Na África ocidental, as indústrias pertencentes à Middle Stone Age foram
identificadas com menos certeza do que no resto da África subsaariana.
Alguns espécimes raros do Lupembiense foram encontrados em Gana
60
e na
Nigéria
61
, mas nenhum deles oferece indicações estratigráficas satisfatórias para
sua datação. No planalto de Jos e ao norte do mesmo, nas colinas de Lirue,
descobriram -se ries importantes de um material caracterizado por talões
facetados, que foram classificadas como pertencentes à Middle Stone Age
62
;
em Nok, essas séries estão em estratigrafia entre os cascalhos de base contendo
utensílios acheulenses e os depósitos. mais recentes, que apresentam elementos
da cultura Nok
63
. Sem relação com o complexo industrial lupembiense, tais séries
teriam mais pontos em comum com as indústrias do Paleolítico Médio do norte
da África, do tipo geral musteriense”, e provavelmente refletem um modo de
vida mais adaptado à savana. Indústrias semelhantes foram encontradas em
Gana, na Costa do Marfim
64
, em Dacar
65
e no Saara Centrai
66
. Um fragmento
de madeira proveniente dos depósitos de Zenebi, no norte da Nigéria, um dos
sítios aluviais que continham vestígios musterienses, fornece uma data de -3485
±110; entretanto, a posição exata desse fragmento de madeira em relação aos
60 DAVIES, O. 1964, p. 108 -13.
61 Achado na superfície, na região de Akpo, pelo professor D. D. Hartle e anteriormente nas coleções da
Universidade da Nigéria, Nsukka.
62 SOPER, R. C. 1965, p. 188 -90.
63 FAGG, B. E. B. 1956a, p. 211 -14.
64 DAVIES, O. 1964, p. 124 -42; CLARK, J. D. Atlas, 1967.
65 CORBEIL, R. et al. 1948; CORBEIL, R. 1951; RICHARD. 1955.
66 CLARK, J. D. Atlas, 1967.
699
Pré -História da África ocidental
utensílios de pedra não foi precisada, e a data é bem mais recente do que se
poderia esperar de uma indústria desse tipo
67
.
Em Tiemassas, perto da costa do Senegal, as escavações arqueogicas
revelaram, entre outras, pontas bifaciais misturadas a utensílios do tipo Paleolítico
Médio e Superior. No início, considerou -se que se tratava de uma mescla de
elementos neolíticos e mais antigos
68
. Entretanto, um exame mais meticuloso
mostrou que essas pontas bifaciais eram parte integrante de uma indústria
em estratigrafia, não comportando outros elementos neolíticos; ela também
foi considerada como um exemplo de indústria musteriense, caracterizada
localmente por esses elementos e que substituiria, aqui, o ateriense
69
encontrado
mais ao norte. Esse último complexo industrial, pertencente ao final do
Paleolítico Médio na Argélia, estende -se em direção ao sul, no deserto. Davies
na África ocidental um prolongamento dessa indústria que ele chama de
ateriense guineense”
70
; seus argumentos, porém, não são convincentes, sendo
postos em dúvida pela maior parte dos pesquisadores
71
.
A Late Stone Age
Em quase toda a África a Late Stone Age é caracterizada pelo desenvolvimento
de pequenos utensílios de pedra, que por essa razão foram chamados de
micrólitos”. Trata -se de peças minúsculas cuidadosamente talhadas para serem
cravadas nas hastes das flechas, formando pontas e farpas, ou para constituírem
outros tipos de utensílios compostos. Elas mostram que seus autores possuíam o
arco e que a caça a arco desempenhava um papel importante em sua economia.
Nesse ponto, ficamos confusos com o termo neolítico e com a ambiguidade
de seu significado; sempre que possível, é conveniente evitar seu uso na África,
principalmente na África subsaariana
72
, mas deve -se levar em conta a persistência
desse termo no norte da África e no Saara. Nesse deserto, encontramos muitas
indústrias que foram chamadas de neolíticas por causa de suas formas, e que na
região central, datam do sexto milênio antes da Era Cristã. O clima era mais
úmido que atualmente, o que resultou numa flora do tipo mediterrâneo e numa
67 BARENDSON, G. W. et al. 1965.
68 DAGAN, T. 1956.
69 GUILLOT, R. e DESCAMPS, C. 1969.
70 DAVIES, O. 1964, p. 116 -23.
71 HUGOT, H. J. 1966a.
72 BISHOP, W. W. e CLARK, J. D. 1967, p. 898, Resolução Q; CLARK, J. D. 1967; SHAW, T. 1967, p.
35, Resolução 13; MUNSON, P. 1968, p. 11. Alguns autores não compartilham dessa opinião.
700
Metodologia e pré -história da África
F . feita de rocha vulcânica, encontrada no sítio neolítico de Ngor (Foto I. Diagne, Museu
do IFAN).
F . Pendentes de pedra basalto do sítio neolítico de Patte d’Oie (Foto I. Diagne, Museu do IFAN).
701
Pré -História da África ocidental
população de pastores, que podem ou não ter sido agricultores
73
. Não restam
dúvidas acerca da presença de agricultores em Cirenaica em -4800
74
; atualmente,
porém, ficou demonstrado que o Neolítico de tradição capsiense, largamente
espalhado pelo noroeste da África e que sucedeu às culturas epipaleolíticas,
não apresentava práticas agrícolas, embora ele tenha se estendido para além do
segundo milênio antes da Era Cristã
75
. Houve um tempo em que as descobertas
feitas em Rufisque, no Senegal, foram classificadas como pertencentes ao
Neolítico de tradição capsiense
76
, mas é preferível considerá -las como fazendo
parte do continuum microlítico espalhado pela África ocidental
77
. Além dessas
escavações perto de Dacar, esse continuum microlítico ou Microlítico da Guiné
está amplamente distribuído na metade leste da África ocidental; na metade
oeste, porém, ele parece estar ausente nos sítios mais meridionais, na região da
Libéria, da Serra Leoa e do sul da República da Guiné. Foi na Guiné, num certo
número de cavernas e abrigos sob rochas que foram feitas as primeiras escavações
arqueogicas da África ocidental. Algumas dessas escavações aconteceram
mais de setenta anos atrás
78
. Em alguns sítios existem peças bifaciais que
lembram formas anteriores à Late Stone Age; entre essas peças, algumas parecem
pequenas enxadas, o que não deixa de ser um testemunho indireto de que se
praticou a agricultura. Essa possibilidade certamente não deve ser descartada,
pois nessa época o arroz substitui o inhame como principal colheita na metade
oeste da África ocidental; esse arroz africano, o Oryza glaberrima, provavelmente
foi domesticado na zona do delta do médio Níger
79
. Existem também em Gana
grandes fragmentos de quartzo com os contornos mal delineados
80
, que também
parecem enxadas e que têm sido considerados como uma prova da existência
de práticas agrícolas no local; mas não datas nem maneiras válidas de se
comprovar isso. A maior parte dos tios da República da Guiné revelaram
micrólitos, machados de pedra polida, mós e cerâmica, o mesmo acontecendo
na Guiné -Bissau
81
. Alguns sítios guineenses continham cerâmica, se bem que
73 HUGOT, H. J. 1963, p. 148 -51; MORI, F. 1965; CAMPS, G. 1969.
74 MCBURNEY, C. B. M. 1967, p. 298.
75 ROUBET, C. 1971.
76 VAUFREY, R. 1946; ALIMEN, H. 1857, p. 229 -33; DAVIES, O. 1964, p. 236.
77 HUGOT, H. J. 1957, 1964, p. 4 -6; SHAW, T. 1971a, p. 62.
78 HAMY, E. T. 1900; GUEBHARD, P. 1907, 1909; DESPLAGNES, L. B.S.G.C., 1907; HUE, 1912;
HUBERT, R. 1922; BREUIL, H. 1931; DELCROIX, R. e VAUFREY, R. 1939; SHAW, T. 1944.
79 PORTERES, R. 1962, p. 197 -99.
80 DAVIES, O. 1964, p. 203 -30.
81 MATEUS, A. 1952.
702
Metodologia e pré -história da África
na gruta de Kakimbon ela só apareceu na camada superior
82
. As escavações
efetuadas no abrigo sob a rocha de Blande, na extremidade sudeste da República
da Guiné, revelaram igualmente uma indústria que incluía machados de pedra e
cerâmica, junto com instrumentos bifaciais de grande porte que lembram as das
cavernas de Kindia e Futa Djalon, mas sem qualquer elemento microlítico
83
. Os
micrólitos também não aparecem na caverna de Yengema, em Serra Leoa, onde
o nível mais antigo revelou a presença de uma pequena indústria de lascas de
quartzo, comparada pelo pesquisador à indústria de Ishango, do lago Eduardo;
no nível médio, os picões e as “enxadas” bifaciais – que se parecem com parte do
material das cavernas guineenses são considerados pelo pesquisador como um
complexo industrial lupembiense; por fim, o nível superior revelou machados
de pedra e cerâmica que foram situados, com base em duas datações feitas por
termoluminescência, no período de -2000 a -1750
84
. De qualquer modo, aparece
um elemento microlítico nos dois outros abrigos sob a rocha, explorados mais ao
norte de Serra Leoa, em Yagala e Kamabai; as datações feitas por radiocarbono
indicam aqui uma fase da Late Stone Age que vai de -2500 até o século VII
da Era Cristã
85
.
Parece que nessa parte oeste da África ocidental, nos sítios mais meridionais,
teria sobrevivido relativamente inalterada uma tradição da Middle Stone Age
(que pode também existir em Dacar e Bamaco); parece também que ela não teria
nem inventado nem adotado a técnica microlítica; é bem possível que as razões
sejam de ordem ecológica, pois a técnica microlítica está associada à economia da
região das savanas, onde a caça desempenhava um papel relevante. Se assinalarmos
a distribuição dos sítios sem micrólitos (Conacri, Yengema, Blandé) e traçarmos
uma linha de demarcação entre esses últimos e os sítios que possuem micrólitos
(Kamabai, Yagala, Kindia, Nhampassere), perceberemos que essa linha é bem
próxima da que separa a floresta da savana. As novas técnicas de machados
polidos e de cerâmica chegaram a essa região posteriormente, provenientes
do norte. A data da aparição dessas influências situa -se aproximadamente na
metade do terceiro milênio antes da Era Cristã, o que corresponde ao momento
em que o dessecamento do Saara se completa; é pois razoável aproximar esses
dois eventos e ver neles a influência da migrão das populações para fora
do Saara. Embora não tenhamos ainda nenhuma evidência osteológica a esse
82 HAMY, E. T. 1900.
83 HOLAS, B. 1950, 1952; HOLAS, B. e MAUNY, R. 1953.
84 COON, C. S. 1968.
85 ATHERTON, J. H. 1972.
703
Pré -História da África ocidental
respeito, é provável que nessa migração tais populações tenham também trazido
gado, entre outras talvez a cepa ancestral da raça Ndama de Futa Djalon, que é
imune à tripanossomíase.
Em quase todo o restante da África ocidental, um continuum microlítico
precede as técnicas de fabricação de cerâmica e de machados de pedra polida;
estes últimos, mais parecem fazer parte da tradição microlítica do que -la
substituído.
Em Kourounkorokale, perto do Bamaco, uma camada inferior com micrólitos
e objetos de osso rudimentares está subjacente a uma camada que apresenta
micrólitos mais sofisticados, machados de osso polido e cerâmica
86
.
Na Nigéria, os abrigos sob a rocha de Rop
87
, no planalto de Bauchi, e em Iwo
Eleru, no Western State, revelaram níveis microlíticos sem peças de cerâmica
e sem machados polidos, sob camadas de indústrias microlíticas que possuíam
esses últimos. Em Iwo Eleru, obteve -se uma datação de radiocarbono de -9200,
perto da base da camada inferior; a transição para a camada superior parece
ser pouco posterior a -3000
88
. Em Old Oyo, na caverna de Mejiro, encontrou-
-se uma indústria microlítica desprovida de cerâmica e de machados de pedra
polida; essa amostra, porém, é pequena e não está datada
89
. Em Gana, a caverna
de Bosumpra, em Abetifi, revelou uma associação de peças de cerâmica,
micrólitos e machados de pedra polida, também sem data
90
. Ainda em Gana,
fácies remanescentes da Late Stone Age, chamadas de cultura de Kintampo”.
Sucedendo a uma fase anterior dotada de cerâmica e de micrólitos, a cultura de
Kintampo apresenta machados de pedra polida, braceletes de pedra (conhecidas
a partir dos sítios neolíticos do Saara) e um tipo especial de moedor de pedra.
A fase antiga (Punpun) data de -1400, enquanto a fase recente apresenta gado
doméstico e cabras -anãs de uma raça parecida com a Dwarf Shorthorn ou anãs-
-de -chifre -curto da África ocidental
91
. Até mesmo no sul da Mauritânia, na
fase mais antiga (Akreijit) da sequência de Tichitt, os micrólitos estão presentes
86 SZUMOWSKI, G. 1956.
87 FAGG, B. E. B. 1944, 1972; EYO, E. W.A.J.A., 1972; ROSENFELD, A. 1972; FAGO, A. 1972b.
88 SHAW, T. 1969b.
89 WILLETT, F. 1962b.
90 SHAW, T. 1944.
91 DAVIES, O. 1962; 1964, p. 239 -46; 1967b, p. 216 -22; FLIGHT, C. 1968, 1970; CARTER, P. L. e
FLIGHT, C. 1972.
704
Metodologia e pré -história da África
F. Machados polidos
de “Bel Air em dolerito (Foto I.
Diagne, Museu do IFAN).
F . Cerâmica
neolítica de “Bel Air”, do sítio
de Diakité, no Senegal (Foto I.
Diagne, Museu do IFAN).
705
Pré -História da África ocidental
junto com a cerâmica e os machados de pedra; mas eles desaparecem em todas
as fases subsequentes
92
.
Ao longo das margens setentrionais de nossa área, na zona do Sahel,
imediatamente ao sul do deserto saariano, a situação é um pouco diversa na
última fase da Late Stone Age, com adaptações locais à ecologia, evidenciadas
na cultura material. Em Karkarichinkat, ao norte de Gao, entre -2000 e -1500,
as populações pastoris viviam em colinas acima do nível dos cursos de água
sazonais; elas conheciam a cerâmica e possuíam um equipamento tico que
incluía machados de pedra polida, pontas de flechas bifaciais do tipo saariano
(mas sem base côncava)
93
e raros micrólitos; a pesca era um aspecto importante
da economia, como ficou largamente evidenciado no sul do Saara, nos tempos
do Neolítico recente
94
. No nordeste da Nigéria, em Daima, constatou -se, mil
anos mais tarde, uma situação quase análoga: é muito provável que os criadores
de gado tenham cultivado o sorgo na argila fértil deixada pela retração do lago
Chade, e, embora eles tivessem utilizado peças de cerâmica, machados polidos
e uma grande quantidade de objetos de osso, não conheciam a indústria de
micrólitos
95
.
Na extremidade oposta de nossa região, ao longo das margens meridionais da
África ocidental na costa atlântica, ocorreu uma adaptação a um meio ecológico
totalmente diferente. Nesse lugar, os povos da Late Stone Age utilizavam
moluscos, abundantes nas lagoas e nos estuários, tanto como iscas para pescar,
quanto para a própria alimentação, deixando atrás de si grande acúmulo de
conchas. Na Costa do Marfim, tais concheiras existiram desde -1600 até o século
XIV da Era Cristã
96
. No Senegal, descobriu -se numa delas um machado feito
de osso
97
. Sítios análogos que foram objeto de estudos na região de Casamance
são posteriores à Idade da Pedra
98
.
Em Afikpo, no sul da Nigéria, foi encontrado um sítio contendo cerâmica,
machados de pedra polida e uma indústria lítica sem micrólitos; a datação
por radiocarbono situa essa indústria entre -3000 e -1000
99
. Em Fernando
92 MUNSON, P. 1968, 1970.
93 MAUNY, R. 1955b; SMITH, A. 1974.
94 MONOD, T. e MAUNY, R. 1957.
95 CONNAH, G. 1967, 1969, 1971.
96 MAUNY, R. 1973; OLSSON, I. V. 1973
97 JOIRE, J. 1947; MAUNY, R. 1957, 1961, p. 156 -62.
98 LINARES DE SAPIR, O. 1971.
99 HARTLE, D. D. 1966, 1968.
706
Metodologia e pré -história da África
Pó, distinguimos quatro fases principais num complexo da Late Stone Age
100
que apresenta peças de cerâmica e machados de pedra polida mas não tem
micrólitos; uma datação por radiocarbono indica o século VI da Era Cristã para
a fase mais antiga, o que, salvo engano, torna essa sequência bastante tardia; a
forma curvada dos machados apresenta pontos em comum com a dos machados
provenientes do sudeste da Nigéria
101
, de Camarões e da República do Chade
102
.
Em resumo, a Late Stone Age na África ocidental pode ser dividida em
duas fases: a fase I, cujo início não ultrapassou -10.000, tem duas fácies: a fácies
A apresenta uma indústria de micrólitos, associada à caça na savana; a fácies
B pertence à zona florestal na extremidade sudoeste da África ocidental e não
apresenta micrólitos. A fase II, que começou logo depois de -3000, tem quatro
fácies: a cies A, na maior parte da savana, apresenta peças de cerâmica e
machados de pedra polida associados aos micrólitos; a fácies B, no Sahel, inclui
a pesca em sua economia e praticamente não apresenta micrólitos, apesar de ter
uma indústria de objetos de osso como arpões, anzóis, etc.; a fácies C é costeira
e sua economia é adaptada à exploração de recursos das lagunas e dos estuários;
a fácies D, associada à paisagem da floresta, apresenta pas de cerâmica e
machados de pedra polida, mas não dispõe de micrólitos.
Durante o terceiro milênio, quando os pastores do Saara emigraram pela
primeira vez para o sul, eles não somente encontraram caçadores microlíticos”,
mas também abandonaram uma região onde o sílex era abundante e foram para
outra, onde as armaduras e as farpas de flechas podiam ser feitas de quartzo
ou outros tipos de pedras com as quais era extremamente difícil fazer pontas
bifaciais. Assim, em sua maioria eles parecem ter adotado a técnica microlítica
local para armar e farpar suas flechas; essa técnica era eficaz, embora o resultado,
do ponto de vista estético, não fosse muito agradável a olhos modernos. Os
que chegaram até Ntereso, no centro de Gana, durante a segunda metade do
segundo milênio, e conservaram suas pontas de flechas bifaciais características,
constituem uma exceção
103
.
Se essa migração das, populações do Saara em direção ao sul representou
a introdução de um elemento novo na populão autóctone, ela o teve
influência visível no tipo físico: todos pertenciam igualmente à raça negra
104
. Se,
100 MARTIN DE MOLINO. 1965.
101 KENNEDY, R. A. 1960.
102 CLARK, J. D. 1967, p. 618.
103 DAVIES, O. 1966a; 1967a; 1967b, p. 163; SHAW, T. 1969c, p. 227 -28.
104 CHAMLA, M. C. 1968; BROTHWELL, D. e SHAW, T. 1971.
707
Pré -História da África ocidental
como parece provável, os imigrantes falavam o protonilo -saariano, os pequenos
grupos devem ter perdido seus dialetos particulares e adotado o níger -congo que
predominava na região; somente os grandes grupos, tais como os ancestrais dos
Songhai, teriam conservado seu próprio idioma
105
.
A economia de produção
A passagem de uma situação na qual o homem dependia da caça, da pesca e
da coleta de frutas silvestres, para a prática da agricultura e da criação de gado,
é o passo mais importante dado por nossos ancestrais no decorrer dos dez
últimos milênios. Essa revolução não aconteceu num único ponto do mundo
para depois espalhar -se por todos os lugares, mas sim num número limitado
de “focos”. Para a Europa, a Ásia ocidental e o nordeste da África, o foco mais
importante se encontra na região montanhosa de Anatólia, do Irã e do norte do
Iraque. Foi nesses lugares que se desenvolveram a cultura do trigo e da cevada
e a domesticação da ovelha, da cabra e dos bovinos. Mais tarde, a técnica de
produção de alimentos foi introduzida nos grandes vales fluviais do Tigre e do
Eufrates, do Nilo e do Indo, aprimorada pela drenagem e pela irrigação
106
. No
quinto milênio, ovinos e bovinos foram domesticados no Egito, onde também
se cultivaram cereais
107
. Atualmente, temos provas de que o gado domesticado
existia anteriormente nas terras altas saarianas, e temos indicações, embora
insuficientes, do cultivo de cereais
108
. Como mostra o exemplo do vale do Nilo,
a dificuldade encontrada no cultivo de cereais na África subsaariana reside no
fato de que as mais antigas plantas cultivadas – o trigo e a cevada dependem
das chuvas de inverno e só com bastante dificuldade conseguem desenvolver -se
ao sul da frente tropical, na região das chuvas de verão. Foi necessário cultivar
gramíneas selvagens apropriadas, de onde se originaram diversos tipos de
milhetes africanos. Dessas gramíneas, a mais importante é a Sorghum bicolor
ou milho da Guiné, cuja cultura se iniciou na primeira metade do segundo
milênio, na região situada entre o deserto e a savana, entre o Nilo e o lago
Chade
109
. Foram cultivadas outras gramíneas selvagens, de onde se originaram
105 GREENBERG, J. H. 1963b.
106 CLARK, G. 1969, p. 70 e segs.; UCKO, P. J. e DIMBLEBY; G. W. 1969.
107 CATON -THOMPSON, G. e GARDNER, E. W. 1934; SEDDON, D. 1968, p. 490; WENDORF, F.
et al. 1970, p. 1168
108 MORI, F. 1965; CAMPS, G. 1969.
109 DE WET, J. M. J. e HARLAN, J. R. 1971
708
Metodologia e pré -história da África
o milhete perolado e o milhete coracan ou finger millet; o arroz africano foi
mencionado
110
. No sul da Mauritânia, ao redor de Tichitt, traços do consumo
de grãos de gramíneas locais, mais aproximadamente em -1000; a proporção
de milhete perolado sobe de 5 para 60%
111
. Nas regiões mais úmidas da África
ocidental, o principal tubérculo era o inhame, havendo mais de uma variedade
africana
112
; todavia, embora essa cultura tenha existido 5000 anos atrás, ainda
não ternos dados arqueológicos e botânicos que possam provar isso; uma longa
história do cultivo do inhame complementado pelo uso de outros produtos
nutritivos como as bagas de palmeiras oleaginosas, protegidas ou conservadas,
ajudariam a explicar a densidade populacional do sul da Nigéria
113
.
Apesar de ser um pré -requisito para a urbanização, o desenvolvimento da
prodão de alimentos não implica automaticamente e por si no crescimento de
vilas e cidades. Parece que outros elementos entram em jogo, tais como o aumento,
até um certo vel, da pressão demográfica e a diminuão das terras cultiváveis
114
.
Na África subsaariana, a incidência da malária aumentou em consequência do
desmatamento em função da agricultura e da presença de comunidades estáveis
mais importantes; tamm o crescimento populacional resultante da prática da
agricultura foi mais lento do que deveria ter sido
115
e, na maior parte das zonas
subsaarianas, o havia na época falta de terras cultiváveis
116
. Entretanto, no começo
do primeiro minio da Era Cristã estabeleceu -se uma economia agrícola suficiente
para satisfazer as necessidades de antigos reinos como Gana, Mali, Songhai, Benin
e Ashanti.
O advento do metal
Apesar das propostas feitas já há muito tempo, baseadas em razões
metodológicas válidas, para que se abandonasse na Europa o sistema das “três
110 PORTERES, R. 1951, 1958, 1972.
111 MUNSON, P. 1968, 1970.
112 COURSEY, D. G. 1967, 1972.
113 SHAW, T. 1972, p. 27 -28; REES, A. R. 1965.
114 WEBB, M. C. 1968.
115 LIVINGSTONE, F. B. 1958; WIESENFELD, S. L. 1967; COURSEY, D. G. e ALEXANDER, J.
1968.
116 SHAW, T. 1971b, p. 150 -53.
709
Pré -História da África ocidental
F . Vaso de fundo plano da Idade do Ferro (Foto de I. Diagne, Museu do IFAN).
idades” Idade da Pedra, Idade do Bronze e Idade do Ferro
117
ele continuou
a ser usado por se mostrar conveniente.
117 DANIEL, G. 1943.
710
Metodologia e pré -história da África
No seu conjunto, a África ocidental mal teve a Idade do Bronze. No entanto,
vinda da Espanha e do Marrocos, uma de suas fácies se manifestou na Mauritânia,
onde foram descobertos cerca de 130 objetos de cobre e onde foram exploradas
as ricas minas de Akjujt, que uma datação em radiocarbono situa no século V
antes da Era Cristã; além disso, foram encontradas pontas de flechas achatadas,
feitas de cobre, no Mali e no sudeste da Argélia
118
.
Por que a África ocidental não conheceu a Idade do Bronze? Por que ela
não foi mais influenciada pela antiga civilização egípcia? As razões residem
parcialmente no fato de que o terceiro milênio durante o qual a metalurgia,
a escrita, a constrão dos monumentos de pedra, a utilizão da roda e a
centralização do governo se estabeleceram solidamente no Egito foi também a
época do dessecamento final do Saara. Desse modo, as populações abandonaram
o deserto e ele não mais serviu de elo indireto entre o Egito e a África ocidental.
Esse elo só foi restabelecido cerca de 3000 anos mais tarde, graças ao camelo. As
outras razões estão ligadas ao estabelecimento, mais tardio e mais lento, de uma
economia agrícola na África ocidental, como foi descrito acima. Preocupados
em conferir certa dignidade e brilho à história da África ocidental, alguns
autores tentaram estabelecer uma ligação entre esta e o antigo Egito, para que
ela partilhasse da mesma glória
119
; isso parece -nos totalmente desnecessário
120
.
O início da Idade do Ferro (de aproximadamente ‑400 a 700)
Durante todo o início da Idade do Ferro, muitas regiões da África ocidental
permaneceram isoladas do exterior, e, na maioria dos casos, os contatos que
porventura existiram com o mundo antigo conhecido foram indiretos, esporádicos
e sem importância
121
. Muito se tem falado acerca da pretensa viagem de Hanão,
mas sua narrativa provavelmente é uma invenção
122
. O relato de Heródoto sobre
o “comércio mudo dos cartagineses com o ouro da África ocidental é quase com
certeza baseado em fatos
123
. Seguramente devem ter existido alguns motivos
de contato com o mundo exterior, pois foi no começo desse período que o
conhecimento do ferro chegou à África. Não se trata apenas da importação de
118 MAUNY, R. 1951; MAUNY, R. e HALLEMANS, J. 1957; LAMBERT, N. 1970, 1971.
119 LUCAS, J. O. 1948; DIOP, C. A. 1960, 1962.
120 SHAW, T. 1964a, p. 24.
121 LAW, R. C. C. 1967; FERGUSSON, J. 1969; MAUNY, R. 1970b, p. 78 -137.
122 PICARD, G. C. 1971; MAUNY, R. 1970a; 1971, p. 75 -7.
123 HERÓDOTO. 1964, Livro IV, p. 363.
711
Pré -História da África ocidental
F. rculo megalítico, Tiekene Boussoura,
Senegal: o “túmulo do rei” aparece em primeiro plano
(Foto I. Diagne, Museu do IFAN).
F . Estatueta antropomórca encontrada
em iaroye, no Senegal (Foto I. Diagne, Museu do
IFAN).
712
Metodologia e pré -história da África
objetos de ferro, mas também do conhecimento da técnica de transformação
do metal, difícil de considerar como uma invenção autônoma, que na época
não se conhecia nada sobre metalurgia
124
. Em Taruga, na Nigéria central,
estudou -se um certo número de sítios de fundição de ferro; o radiocarbono
indica datas que vão do século V ao III antes da Era Cristã
125
. As escavações
feitas nos outeiros habitados do vale do Níger também indicam a presença
do ferro aproximadamente no século II antes da Era Cristã
126
. Parece quase
certo que o conhecimento da técnica da metalurgia do ferro tenha chegado à
África ocidental vinda não de Meroé, como foi sugerido com frequência
127
, mas
da região da África do norte então submetida à influência de Cartago; talvez
os garamantes, utilizadores de carros, tenham servido de intermediários:
gravuras rupestres desses carros ao longo da estrada que liga o Fezzan à curva do
médio Níger
128
. Mais a oeste, as pinturas rupestres revelam um outro itinerário
de carros, que ligava o Marrocos ao sul da Mauritânia; talvez tenha sido sob a
pressão dos nômades que sabiam manejar o ferro (a lança de ponta de metal
torna -se a arma mais usada e substitui o arco nas gravuras sobre rochas) que os
homens da Late Stone Age de Tichitt (fase Akinjeir) se decidiram a fortificar
suas aldeias a partir do século V ou IV antes da Era Cristã
129
. Em Taruga, as
descobertas feitas por ocasião das escavações foram associadas às estatuetas de
terracota desse estilo tão característico ao qual se deu o nome da aldeia nigeriana
de Nok, onde elas foram encontradas pela primeira vez e em maior número,
durante a exploração de minas de estanho
130
. Levando em conta que elas eram
provenientes de aluviões contendo estanho, foram geralmente as cabeças das
estátuas mais sólidas e resistentes que o resto do corpo que permaneceram
intatas. Foi difícil, no início, saber se os outros objetos descobertos no cascalho
eram todos contemporâneos das estátuas ou se eles representavam uma mistura
de objeto da mesma época e de outras mais antigas; pois, além dos objetos de
ferro e de tubos que serviam para tirar o ferro fundido, foram encontrados
machados de pedra polida e instrumentos menores do tipo da Late Stone Age
131
.
124 DAVIES, O. 1966b; SHAW, T. 1969b, p. 227 -28.
125 FAGG, B. E. B. 1968, 1969.
126 PRIDDY, A. J. 1970; HARTLE, D. D. 1970; YAMAZAKI, F. et al. 1973, p. 231 -32.
127 CLARK, G. 1969, p. 201.
128 MAUNY, R. 1952; LHOTE, H. 1966; SHAW, T. 1969c, p. 229; DANIELS, C. 1970, p. 43 -4; HUARD,
P. 1966.
129 MAUNY, R. 1947 e 1971, p. 70; MUNSON, P. 1968, p. 10.
130 FAGG, B. E. B. 1945; 1956b; 1959.
131 FAGG, B. E. B. 1956b.
713
Pré -História da África ocidental
Atualmente, parece que o material da Late Stone Age é mais antigo e deve-
-se a um depósito aluvial
132
. Em Taruga não nenhum vestígio da Idade da
Pedra, embora se tenha achado um machado de pedra polida num dos raros
sítios de ocupação da área
133
. A datação dos cascalhos situa as estatuetas entre
-500 e o ano 200 da Era Cristã lapso de tempo posteriormente confirmado
e tornado mais preciso com o auxílio de datações por radiocarbono feitas em
Taruga, no sítio de ocupação mencionado (século III antes da Era Cristã), e
por uma outra datação por termoluminescência ( -620 ±230)
134
. Embora não seja
constante, o estilo das terracotas representa uma realização artística admirável e
alguns especialistas de história da arte consideram -nas como predecessoras de
certas formas de arte ioruba, que será descoberta mil anos mais tarde, a 600 km
além, na direção do sudeste
135
. As descobertas da civilização de Nok ocorreram
numa vasta região que se estende de sul a oeste do planalto de Jos, com cerca
de 500 km de comprimento.
Perto do rio Gâmbia, no Senegal e em Gâmbia, um distrito no qual se
encontra um grande número de pilares de pedra dispostos verticalmente, isolados
ou distribuídos em círculos; os megalitos mais bem trabalhados são duplos e
tendem a representar uma lira. As escavações realizadas foram esclarecidas por
três datações através de radiocarbono, que indicaram os séculos VI e VIII, sem
considerar duas datas do século I, provenientes do antigo solo sob os megalitos e
que revelam um terminus post quem para sua construção; parece que se tratava de
monumentos funerários
136
. Em Tondidarou, na curva do médio Níger, um notável
conjunto de monumentos de pedra de forma fálica foi arruinado pela ignorância
e pelo entusiasmo ingênuo de pesquisadores e administradores do século XX.
Consequentemente, não temos um conhecimento mais profundo sobre eles;
talvez pertençam à mesma época que os monumentos senegambienses
137
.
No final do período dos primeiros contatos, na orla norte da África ocidental,
as populações negras se relacionaram com os berberes nômades do deserto,
que a partir de então dispunham de camelos e transportavam para o norte o
132 SHAW, T. 1963, p. 455.
133 FAGG, A. 1972 b.
134 FAGG, B. E. B. e FLEMING, S. J. 1970.
135 FAGG, W. e WILLETT, F. 1960, p. 32; WILLETT, F. 1960, p. 245; 1967, p. 119 -20, 184; 1968, p. 33;
RUBIN, A. 1970.
136 OZANNE, P. 1966; BEALE, F. C. 1966; CISSÉ, K. e THILMANS, G. 1968; FAGAN, B. M. 1969,
p. 150; DESCAMPS. 1971.
137 DESPLAGNES, A. M. L. 1907a, p. 40 -41; MAES, E. 1924; MAUNY, R. 1961, p. 129 -34; 1971a, p.
133 -36.
714
Metodologia e pré -história da África
ouro da África ocidental, através do Saara. No final do século VIII, a fama de
“Gana, a terra do ouro tinha chegado a Bagdá
138
. Essas regiões setentrionais
da África ocidental possuíam agora noções rudimentares de agricultura e uma
tecnologia do ferro. Elas estavam prontas para iniciar o desenvolvimento político
e a formação de Estados, para fazer frente à pressão dos nômades vindos do
norte, para apoderar -se, enfim, do controle lucrativo do comércio do ouro. Mais
ao sul, ao norte da Serra Leoa, a passagem para a utilização do ferro não parece
ter ocorrido até o século VIII e, assim mesmo, fez -se bem lentamente
139
.
138 LEVTZION, N. 1971, p. 120.
139 ATHERTON, J. H. 1972, 1973.
C A P Í T U L O 2 5
715
Pré -História do vale do Nilo
Sudão, Núbia e Egito, três regiões bem diferentes ligadas entre si apenas por
um rio, constituem um único vale. Atualmente, porém, é difícil imaginar que
o imenso deserto que circunda o vale nos dois lados outrora tenha oferecido,
dependendo das flutuações climáticas e ecológicas, pontos de parada, locais de
passagem ou barreiras intransponíveis com o resto do continente africano. Esses
mesmos fatores físicos também condicionaram o modo de vida dos primeiros
habitantes do vale, na sua luta interminável para adaptar -se a meios hostis ou
favoráveis à sua expansão.
Nesse contexto, traçaremos um relato conciso da longa evolução de tais povos,
desde as origens da hominização até o apogeu faraônico. Determinadas culturas,
em determinados momentos, são bem conhecidas; em muitos outros casos,
o caráter ainda incompleto das pesquisas, de um lado, e a tendência exagerada
à classificação, de outro, levaram a uma fragmentação que, no futuro, poderia
tornar -se artificial e, às vezes, até abusiva: a multiplicação de “tipos”, em certos
casos somente a alguns quilômetros de distância, tem algo de pouco verossímil.
Os historiadores descontentes com essa dispersão procuraram reagrupar os
“tipos” conhecidos em grandes categorias cronológicas, embora algumas delas
possam, com o tempo, tornar -se inadequadas ou imperfeitas.
P-História do vale do Nilo
F. Debono
716
Metodologia e pré -história da África
Olduvaiense
1
Esta cultura é, em toda parte, caracterizada pelos seixos lascados (choppers).
Descobertas recentes relativas à origem do homem permitem afirmar que não
apenas em outras partes da África, mas também no vale do Nilo existem alguns
dos primeiros traços deixados pelo homem.
No Sudão, a partir de 1949, foram descobertos em Nuri e Wawa vestígios
muito antigos desses seres humanos, tais como seixos grosseiramente lascados
formando rústicos utensílios. No entanto, esses achados isolados e superficiais
não podem constituir uma prova definitiva. Somente a partir de 1971, depois de
pesquisas sistemáticas efetuadas em Tebas, no Alto Egito, foi possível certificar-
-se a respeito desse ponto. A exploração de 25 depósitos aluviais do Quaternário
Antigo teve como resultado uma rica coleção desses utensílios primitivos. A
descoberta, em 1974, de três sítios estratificados contendo choppers forneceu
informações importantes que acabaram com as últimas dúvidas. As camadas de
seixos lascados eram subjacentes ao Acheulense antigo (Old Stone Age), que
em suas camadas mais antigas caracteriza -se sobretudo por triedros. bem
pouco tempo, um dente de um hominídeo foi encontrado nas antigas aluviões
da montanha tebana, associado aos choppers. Lembramos que, em meados de
1925, foi encontrada uma sequência parecida nas aluviões de Abbassieh, perto
do Cairo; na época, porém, os seixos lascados dessa camada foram classificados
na categoria dos eólitos. Uma contribuição suplementar para o estudo desse
período remoto foi dada bem recentemente, como resultado de nossas escavações
em Adeimah, em 1974, no Alto Egito (expedição do IFAO
2
); trata -se de um
novo depósito que ainda está sendo estudado, mas que parece ser semelhante
aos anteriores.
Old Stone Age
3
A bela indústria lítica desse período, caracterizada pelos bifaces de
extremidades estreitadas, existe praticamente em toda a África. Ela pode
mesmo ter surgido nesse continente, a partir dos seixos lascados do período
1 Esse período recebe esse nome por causa dos achados na garganta de Olduvai (ver capítulo 28);
anteriormente foi por vezes chamado de Pré -Acheulense ou Paleolítico Arcaico.
2 Instituto Francês de Arqueologia Oriental.
3 Corresponde, grosso modo, ao Paleolítico Inferior, também frequentemente denominado Acheulense,
período que vai de cerca de -600.000 a -200.000.
717
Pré -História do vale do Nilo
anterior, e depois se espalhado pelo resto do. mundo. No vale do Nilo, os
testemunhos dessa civilizão manifestam -se sem interrupção aparente desde
o Sudão até o Egito. Gras a trabalhos recentes, essa cultura é mais bem
conhecida no norte do Sudão que nas regiões meridionais. Em Atbara, Wawa
e Nuri, o Acheulense Inferior, ilustrado por bifaces grosseiros com bordos
sinuosos, é acompanhado de seixos lascados. Em Nuri, ele desenvolve -se
com um complexo de transição. O Acheulense Superior e dio, estudado
sobretudo no norte, distingue -se pela melhoria no acabamento e pela
aparição de indústrias paralevalloisienses. Essas últimas, que mais tarde
deram origem à técnica de debitagem levalloisiense, podem ser vistas ainda
em Khor Abu Anga. Enquanto o Acheulense é encontrado também em
outros continentes, um tipo sangoense a versão final do Acheulense (que
persistiu durante muito tempo) é peculiar à África. Identificado até então
principalmente na África central e meridional, começa agora a ser detectado
também no Sudão, em Khor Abu Anga e Sai. A partir de Uadi Halfa, ele
parece perder rias de suas características. Ao que tudo indica, no Sudão
existem muito poucas machadinhas bifaciais com bisel distal.
Na Núbia egípcia, o Acheulense foi encontrado nos antigos terraços do rio.
Podemos observar uma evolução baseada no aperfeiçoamento da técnica de
lascamento. Suas características tipológicas, porém, não são suficientemente
conhecidas. No Egito, em compensação, os sítios estratificados de Abbassieh
(perto do Cairo), que estudamos recentemente (1974) em Tebas, e os velhos
terraços do Nilo revelam indústrias acheulenses em estágios sucessivos. O nível
olduvaiense, caracterizado pelos seixos lascados, é sucedido por um Acheulense
que apresenta triedros, bifaces grosseiros e também seixos lascados. No nível
seguinte há bifaces mais evoluídos e peças protolevalloisienses. O sítio de
Kharga tem camadas superpostas de um Acheulense mais recente, terminando
na Middle Stone Age. Se os bifaces mostram as formas clássicas encontradas
em outros lugares, às vezes acham -se exemplares cuja extremidade distal foi
retrabalhada em forma de machadinha; no momento, esse é o único tipo de
machadinha conhecido no Egito. São também característicos do Egito os
bifaces trabalhados segundo uma técnica parecida com a de Victoria -West”,
que precedeu a clássica técnica de lascamento levalloisiense
4
. Outros bifaces do
tipo sangoense, talvez mais recentes, são encontrados não muito longe do Cairo.
4 Uma grande lasca é destacada por percussão, em geral num dos lados, mais raramente numa das
extremidades; a própria lasca é utilizada como utensílio.
718
Metodologia e pré -história da África
Middle Stone Age
5
Mudanças nas condições de vida levaram, nesse momento, ao uso generalizado
da lasca, ao invés do biface, que tornou -se raro e depois desapareceu. Essas lascas
com talões facetados, geralmente feitas a partir da técnica paralevalloisiense
mencionada, provêm de um núcleo especial que produzia lascas de formas
predeterminadas. Em algumas partes da África, esse procedimento perdurou
até o Neolítico, o que indicava ser o resultado de uma reflexão tecnológica
avançada.
A indústria musteriense, que usava a técnica de debitagem levalloisiense, foi
pouco estudada no sul do Sudão, embora ela provavelmente exista em Tangasi
e, sob uma forma mais evoluída, em Abu Tabari e Nuri. Por outro lado, uma
recente pesquisa realizada no norte estabeleceu quatro conjuntos distintos: o
Musteriense núbio, o Musteriense denticulado, o Sangoense lupembiense e o
Khormusiense.
O Musteriense núbio aproxima -se do musteriense da Europa mas não é
idêntico a ele. Nota -se uma pequena porcentagem de lascas levalloisienses
e utensílios do tipo musteriense, pobremente retocados, comparáveis aos do
Paleolítico Superior, e em alguns casos, aos bifaces acheulenses (mais ou menos
de -45.000 a -33.000). O Musteriense denticulado também apresenta algumas
lascas levalloisienses e pouquíssimas lâminas, ao passo que as peças denticuladas
aparecem em grande quantidade. O Sangoense Lupembiense caracteriza -se
por um incremento da técnica de lascamento levalloisiense, à qual se juntam
bifaces, raspadores laterais, peças chanfradas ou denticuladas, lascas truncadas
e bifaces pontudos com retoques foliáceos. O Khormusiense estende -se desde
Gemai até as imediações de Dongola e compreende uma grande quantidade
de lascas levalloisienses retocadas, peças denticuladas e, mais raramente, buris;
por meio de trabalhos recentes, esse período foi datado de cerca de -25.000 a
- 16000. Ultimamente essas estimativas foram revistas e estabeleceu -se nova
data: -41.490 a -33.800.
Em comparação com o norte do Sudão, os dados colhidos na Núbia egípcia
são insuficientes. Os antigos trabalhos de Sandford e Arkell estabeleceram a
predominância da técnica de debitagem levalloisiense, algumas vezes de tradição
acheulense. Pesquisas mais atuais (1962) fazem menção a essa técnica em Afyeh
e em Khor Daoud. s mesmos a detectamos em Amada, em 1962 -1963,
5 Esse termo abrange, de forma genérica, o Paleolitico Médio, aproximadamente desde -200.000.
719
Pré -História do vale do Nilo
numa forma levalloisiense pura. Em Uadi Sebua, estudamos umà indústria que,
com toda certeza, pertence à fase final desse período e é associada a lascas não-
-levalloisienses, incluindo muitos buris.
O Ateriense, indústria típica do Magreb e do Saara meridional, distingue -se
por lascas de base peduncular acentuada e pelo uso de retoques foliáceos. Tendo
começado, sem dúvida, com o Musteriense, ele sobreviveu acidentalmente em
algumas áreas até o período Neolítico. Na Núbia egípcia, ele foi pouco tempo
identificado no deserto líbio, a noroeste de Abu Simbel
6
, associado a uma fauna
muito rica: rinocerontes brancos, grandes bovinos, asnos selvagens, duas espécies
de gazela, antílopes, raposas, chacais, facocheros, avestruzes, uma espécie extinta
de dromedário e tartarugas. Na Núbia, o Ateriense parece relacionar -se com
o Amadiense, uma instria de tradão mustero -levalloisiense. No Egito,
ele existe em estado puro nos oásis do leste, em Siwa, Dakhla e Kharga. No
deserto oriental, é encontrado em Uadi Hammamat. No próprio vale do Nilo
ele se espalha em pequenos lotes em Tebas e Dara (?). Pode ter influenciado
o Hawariense no período seguinte, em Esna e Tebas. Ele se apresenta em
dimensões microlíticas, nessa mesma indústria, em Abbassieh e Jebel Ahmar,
perto do Cairo (desde no mínimo -44.000 até pelo menos -7000).
Apesar dos numerosos vestígios das culturas da Middle Stone Age no Egito,
um estudo tipológico exaustivo de seu instrumental está longe de ser completado.
Os primeiros trabalhos sobre os velhos terraços do vale do Nilo e do Faium
permitiram uma visão geral da civilização que existia nesse período. No entanto,
nossas recentes escavações sistemáticas na montanha de Tebas, desde 1971, sob
os auspícios da UNESCO, revelaram algo de novo. Ocorrências estratificadas
nos depósitos geológicos e numa centena de sítios desse período, colocados em
estágios cronológicos sucessivos, permitem já esboçar em suas grandes linhas a
evolução dessa indústria, que se anuncia predominantemente levalloisiense. Todas
essas pesquisas convergem para demonstrar a existência de um antigo período
acheulense -levalloisiense seguido de outro, marcado por núcleos maciços que
se tornam progressivamente menores e mais refinados. Numa fase mais recente,
aparecem sobre as lascas laminares
7
muitos retoques secundários de aparência
musteriense, assim como diversos utensílios. Se essas indústrias apresentam
elementos semelhantes aos de outras indústrias africanas, devemos mencionar
ainda uma tipicamente egípcia, que nunca foi encontrada em nenhum outro
6 Essas descobertas datam de 1976. Elas foram feitas em Bir Terfawi e Bir Sahara.
7 A partir desse período encontraram -se duas técnicas de lascamento: a levalloisiense clássica e o
desprendimento de lâminas alongadas. Entre essas duas técnicas, existem muitas outras formas de transição.
720
Metodologia e pré -história da África
F . O Vale das Rainhas (Foto J. Devisse).
F . Pontas de dardos em sílex de Mirgissa, Sudão (escavações conduzidas por J. Vercautter, Missão
Arqueológica Francesa no Sudão).
721
Pré -História do vale do Nilo
lugar. Trata -se de uma indústria muito numerosa, denominada Jebel -Suhan,
caracterizada pelo uso de núcleos lascados pela técnica levalloisiense, com planos
de percussão bipolares, que depois de usados foram retrabalhados em uma das
extremidades para dar origem a um raspador côncavo.
No que diz respeito ao homem dessa época, descobrimos em Silsileh, em
1962, dois fragmentos de uma calota craniana que provavelmente datam desse
período
8
. Seu estudo ainda está inacabado, mas revelou algumas características
arcaicas associadas a outras, mais recentes. O prosseguimento desses trabalhos
pode elucidar a controvertida questão da origem do homem africano no
Paleolítico Médio, muito pouco conhecido até o momento através de achados
isolados ocorridos em Cirenaica, Marrocos e Zâmbia.
Late Stone Age
Na Europa e em outras regiões da África, a transição do período anterior
para este é, em geral, marcada por uma ruptura extremamente brutal e rápida,
em termos tecnológicos e, às vezes, até em termos humanos. Isso, porém,o se
verifica no vale do Nilo. A dificuldade em descobrir linhas nítidas de demarcação
entre um período e outro torna complicada a tarefa de estabelecer sequências
cronológicas. No mesmo lugar, a partir do período anterior, a evolução deu
origem a fácies regionais novas, por vezes paralelas, ajustadas às condições locais.
Ao mesmo tempo, as mudanças nas condições ambientais parecem ter alterado
o relacionamento entre os habitantes do vale e seus vizinhos; antigas relações
foram cortadas e estabeleceram -se novas alianças. A lista dos tipos culturais
recentemente identificados a impressão de uma dispersão muito grande. Essa
é, no entanto, uma interpretação provisória, até que análises mais detalhadas
tornem possível estabelecer uma síntese desses tipos. Tais comentários aplicam-
-se também ao período seguinte, o Epipaleolítico.
Este período acabou de ser estudado no setor norte do Sudão, e mostra duas
indústrias distintas:
• o Jemaiense, nos arredores de Uadi Halfa, apresenta poucas lascas
levalloisienses, pontas levemente retocadas, e caracteriza -se por raspadares
laterais e distais, buris e peças denticuladas (cerca de -15.000 a -13.000);
8 Informações cedidas por M. P. Vandermeersh (do Laboratório de Paleontologia Humana, Faculdade de
Ciências, Universidade de Paris VI), a quem foi conado o estudo desses documentos.
722
Metodologia e pré -história da África
• o Sebiliense, encontrado anteriormente em Kom Ombo no Egito, aparece
agora no Sudão, em Uadi Halfa, no estágio I. Suas lascas com truncamentos
retocados provêm de núcleos discoides ou levalloisienses cerca de -13.000
a -9000).
Na Núbia egípcia são conhecidas duas indústrias:
• o Amadiense, descoberto por nós em Amada (expedições do Instituto
Alemão, 1963), apresenta um instrumental variado predominantemente
levalloisiense, associado a raspadores -limpadores, furadores, peças feitas pela
técnica de Kharga (veja mais adiante) e exemplos ocasionais de retoques
foliáceos que lembram a indústria ateriense;
• o Sebiliense, identificado por s em Sebua (expedição do IFAO, 1964)
em várias localidades, também pertence ao estágio I, misturado com lascas
simples ou levalloisienses, alguns raspadores e muitos buris. Provavelmente,
ele existe também em Khor Daoud.
Foram identificadas ainda as seguintes indústrias pertencentes a esse período:
• Gizeense, encontrada perto do Cairo desde 1938. Compreende a técnica
Levallois; as formas quase geotricas de suas lascas parecem ter
semelhanças com o Khormusiense.
• Hawariense (antes conhecido como Epilevalloisiense)
9
, indústria microlítica
que se estende pelo menos de Esna, no Alto Egito, até o ápice do Delta e
áreas vizinhas (Uadi Tumilat). Com técnica de retalhamento levalloisiense,
como o Sebiliense (mas não possuindo formas geométricas), compreende
estágios e fácies diversos, ainda em estudo. É caracterizado também pelo
número de núcleos bipolares provavelmente derivados do chamado núcleo
“Jebel -Suhan”, mencionado na Middle Stone Age. Alguns núcleos,
talvez mais recentes, que produziram simultaneamente lascas e lamelas de
extremidades facetadas, constituem a transição para as lamelas de talão liso,
predominantes na Late Stone Age e no Epipaleolítico. O Hawariense de
Esna e de Tebas sofreu influência ateriense, pois ocasionalmente aparecem
retoques foliáceos e pas bridas. Por outro lado, lascas microticas
pedunculadas, tipologicamente aterienses, são encontradas no Hawariense,
9 No início, o Sebiliense pareceu caracterizar todo esse período, em todos os lugares, mas as pesquisas mostra-
ram que ele caracterizou apenas a área de Kom Ombo. Depois disso, foi descoberto um tipo contemporâneo
porém diferente, ao qual o termo epilevalloisiense foi aplicado. Após discussões entre especialistas, o autor,
rejeitando a ideia de designar uma cultura unicamente por suas técnicas, preferiu desig-la pelo nome do
lugar onde ela havia sido descoberta. Assim, o Epilevalloisiense passou a ser o Hawariense.
723
Pré -História do vale do Nilo
de Abbassieh e de Jebel Ahmar, perto do Cairo. Poderiam essas influências
ser o resultado de invasões do vale pelos povos do deserto?
• Kharguiense, mais ou menos contemporâneo do Hawariense e cuja existência
é contestada por alguns pré -historiadores. Aparece no oásis de Kharga com
uma técnica Levallois -Kharguiense que precede a forma Kharguiense pura.
Essa indústria de lascas levalloisienses com retoques abruptos, de aparência
disforme, ocorre também no oásis de Karkur, no Egito, e em Oara e Tebas.
Em Esna (Alto Egito) e em Amada (Núbia egípcia) é associada a outras
indústrias.
Epipaleolítico
No vale do Nilo, em geral, esse período difere do anterior graças à substituição
das técnicas de destacamento de lascas pelas de produção de lâminas e lamelas
microlíticas, de talões facetados, exceto em casos de repetição, sobrevivência
ou duplicação. As pesquisas efetuadas no norte do Sudão e no sul da Núbia
egípcia revelaram um complexo de instrias que, às vezes, representam
indubitavelmente fácies de uma mesma cultura.
• O Halfiense, de Uadi Halfa (Khor Koussa), seria identificado também ao
norte de Kom Ombo (Egito). Ele representaria uma transição precoce do
retalhamento levalloisiense da época precedente para a técnica microlítica
que utiliza a lasca ou a lamela. O uso da técnica de retoque de Ushtata seria
uma prática avançada que apareceria mais tarde, com o Ibero -maurusiense
do Magreb. Observa -se no Halfiense o emprego sucessivo de lascas e
lamelas com dorso, raspadores, buris e peças escamadas e denticuladas
(aproximadamente de -18.000 a -15.000).
• O Ballaniense, mais recente em Uadi Halfa e em Ballana, compreende
micrólitos truncados, outros com o dorso levemente retocado, lascas
truncadas, raspadores, buris, pontas e núcleos simples ou com planos de
percussão opostos (aproximadamente de -14.000 a -12.000).
• O Qadiense, proveniente de Abka e de Toshké na Núbia, compreende um
conjunto de utensílios que consiste de lascas inicialmente microlíticas e
depois lamelares. Inclui raspadores, dorsos arredondados, buris, utensílios
truncados e pontas que depois se degeneram. As sepulturas ovais situadas
dentro ou fora das casas são cobertas com lajes. Elas revelam a presença de
724
Metodologia e pré -história da África
um povo muito parecido com o Cro -Magnon do Magreb (aproximadamente
-12.000 a -15.000).
• O Arkiniense, no Egito, conhecido através de um único sítio perto de Uadi
Halfa, é sobretudo uma indústria de lascas. Compreende raspadores distais,
lamelas com dorso com retoques de Ouchtata, semicírculos, peças escamadas
e pequenos pilões (aproximadamente em -7400).
• O El Kabiense, perto de El -Kab, foi identificado em três camadas de ocupação
sucessivas. Uma delas revelou o que parece ser uma paleta retangular, em
osso polido (mais ou menos em -5000).
• O Shamakiense, na região de Uadi HaIfa, tem núcleos multidirecionais e em
sua última fase apresenta utensílios de forma geométrica associados a peças
mais grosseiras. Seria um desenvolvimento lateral do Capsiense do Magreb
(mais ou menos de -5000 a -3270).
• O Silsiliense, estudado por nós (e por outros depois de nós) no Egito, na
região do Djebel Silsileh, perto de Kom Ombo, comporta três estágios.
O Silsiliense I apresenta lamelas levemente retocadas, às vezes providas
de espiga, triângulos irregulares que ocasionalmente também têm espigas,
microburis, uns poucos buris e raspadores, além de uma instria de
ossos. Os vestígios humanos parecem ser do tipo Cro -Magnon (cerca de
-l3.000). O Silsiliense II
10
apresenta lâminas e lamelas longas com retoques
descontínuos, às vezes com espigas, buris, raspadores e uma instria
de ossos (mais ou menos -12.000). O Silsiliense III; ainda em estudo,
apresenta uma grande quantidade de lamelas geralmente pouco retocadas,
pedras de fogão e uma cabana redonda, a mais antiga achada ahoje no
Egito.
• O Fakuriense, estudado na região de Esna, parece guardar um certo
parentesco com o Ibero -Maurusiense. Provavelmente ele existiu tamm
em outros lugares do Egito (mais ou menos em -13.000). Essa indústria
caracteriza -se por delicadas lamelas retocadas, furadores e flechas
pequenas.
• O Sebiliense, que conserva a técnica de lascamento levalloisiense, caracteriza-
-se por lascas de formas geométricas e com bases retocadas. Indústria
meridional no Egito, aparece principalmente em setores de Kom Ombo e
10 Denominação dada por P. Smith (1966) relembrando o deus Sebek, personicado por um crocodilo,
divindade associada a essa região. Tendo feito escavações nesse sítio, nós sugerimos o termo Silsiliense II
(de Djebel Silsileh, situado nessa área) como estando mais de acordo com a regra habitual de dar nomes
às culturas baseando -se na toponímia.
725
Pré -História do vale do Nilo
de Silsileh, e em Darau, mais particularmente no estágio II. Confirmada na
Núbia, essa indústria é muito mais rara no norte, sendo por vezes atípica.
Nossos trabalhos em Silsileh revelaram também um conjunto de utensílios
de osso, mós e moletas, além de restos humanos que provêm de nossas
escavões ainda em estudo (aproximadamente -11.000). O exemplo
do Sebiliense é interessante para discutir. As datações sico -qmicas
sugerem uma cronologia que, à primeira vista, contradiz as informações
tecnológicas fornecidas por essa cultura. O fato se torna ainda mais notável
se lembrarmos que o Sebiliense não está afastado, nem no tempo nem no
espaço, do Fakuriense.
• O Menchiense (região de Silsileh) compreende uma indústria lítica um
pouco aparentada ao Aurignaciense do Levante e uma indústria de ossos –
moletas, lamelas com bordos brilhantes, objetos de adorno e restos humanos.
Uma relativa contemporaneidade com o Sebiliense II ressalta da analogia
de certos instrumentos novos, de tipo intermediário.
• O Lakeitiense, identificado por nós no deserto oriental, caracteriza -se
por serras fortemente denticuladas, acompanhadas de pequenas flechas
pedunculadas.
• O Helwaniense, que nós detectamos nas cercanias de Heluan, no sul do
Cairo, compreende quatro fases distintas: a primeira revela uma grande
quantidade de lâminas e lamelas, às vezes levemente retocadas no estilo
oushtata; a segunda distingue -se por micrólitos que consistem em triângulos
isósceles e escalenos, segmentos de círculos e microburis; a terceira apresenta
segmentos de círculos; a quarta e última oferece um novo tipo de segmento
de círculo com base retilínea.
• O Natufiense, da Palestina, teria feito incursões sucessivas em território
egípcio. Em Heluan, foi identificada uma fase dessa indústria caracterizada
por peças com dorso retocado por retoques cruzados. Quanto às pontas
de flechas com bases simetricamente entalhadas, de início atribuídas ao
Natufiense, havia referências a elas na área desde 1876. Nós mesmos
encontramos algumas nessa região em 1936, e, mais recentemente, em 1953,
as descobrimos também na parte norte do deserto oriental (cerca de -8000
a -7000). Depois elas foram achadas em El -Khiam e Jericó, na Palestina,
sendo conhecidas entre os especialistas como “pontas de El -Khiam”. A
hipótese de infiltrações natufienses tem ainda de ser verificada com bastante
cuidado.
726
Metodologia e pré -história da África
Neolítico e Pré ‑Dinástico
Esse longo período que, grosso modo, cobre dois milênios (mais ou menos
de -5000 a -3000) é analisado aqui detalhadamente. Os aspectos materiais de
cada uma das culturas” ou horizontes culturais” que constituem tal período
são descritos minuciosamente. Compõem assim um repertório indispensável
àqueles que desejam apreciar, em seu contexto sico, a lenta evolução que,
grupos de povos nômades ou seminômades, conduz pouco a pouco à formação
de sociedades, seja fortemente centralizadas, como no Egito, seja organizadas
em pequenos principados independentes, como no Sudão nilótico. Quanto
ao desenvolvimento histórico dessas sociedades neolíticas e pré -dinásticas, ele
é tratado no capítulo 28 do presente volume. Os dois relatos são, portanto,
complementares, abordando os problemas sob ângulos diferentes. As referências
necessárias para permitir que o leitor localize uma determinada cultura”, descrita
neste capítulo, no contexto mais geral da evolução histórica do conjunto dos
“horizontes culturais” do capítulo 28, são dadas nas notas de rodapé.
Esse novo período marca uma etapa decisiva da história da humanidade.
Tendo mudado de uma vida nômade ou seminômade para uma vida sedentária,
o homem do Nilo criou as características principais da civilizão como a
conhecemos hoje. O habitat fixo determinou o uso da cerâmica, a domesticação
e a criação de gado, a agricultura e a multiplicidade de utensílios que visam
satisfazer às necessidades crescentes dos homens.
• O Cartumiense
11
é talvez a cultura mais antiga desse período no Sudão
12
.
Ele é encontrado em mais de uma dezena de localidades, espalhadas por
uma vasta região, estendendo -se desde Kassala, no leste, e sobre 400 km
em pleno deserto, no oeste, até Dongola, no norte, e quase até Abu Higar,
às margens do Nilo Branco, no sul. Os dados obtidos através de escavações
em Cartum, das quais participamos, fornecem as provas de um habitat
fixo: a utilização de cabanas guarnecidas de cerca, o uso em larga escala de
uma cerâmica elaborada e o emprego de mós. A cerâmica, constituída de
tigelas, caracteriza -se por uma decoração de linhas sinuosas cavadas por
incisão (wavy lines) e por pontos impressos (dotted lines). O instrumental
lítico abundante, feitos de quartzo, nitidamente microlítico e geométrico,
11 É a “antiga Cartum do capítulo 28, p. 820. Nós preferimos conservar o termo “Cartumiense”, prevenindo-
-nos para futuras descobertas que possam revelar fases anteriores a esta.
12 Ver capítulo 28, p. 820-21.
727
Pré -História do vale do Nilo
compreende tipos variados: semicírculos e segmentos de círculos, triângulos
escalenos, retângulos, trapézios, lascas escamadas e furadores. Os semicírculos
e os segmentos de círculos, retocados até no gume, mostram semelhanças
com os do Wiltoniense e do Neolítico de Hyrax Hill, em Zimbabwe. Os
instrumentos, feitos de uma rocha dura chamada riolito são maiores que os
de quartzo, incluindo lascas e lâminas simples, algumas com talão retocado
(raspadores), semicírculos volumosos e uns poucos raspadores. Os arpões
de osso com farpas, em geral unilaterais, também são característicos do
Cartumiense.ainda pequenos pilões de pedra com uma cúpula central,
moedores, percutores, discos com uma perfuração central, algumas mós
e contrapesos para rede de pesca, provavelmente do mesmo tipo das de
Faium, em El Omari (Egito) e no Saara nigeriano. Os objetos de adorno
incluem contas em forma de disco, feitas de casca de ovo de avestruz e
alguns pingentes; o ocre vermelho ou amarelo era usado para pintar o
corpo. Os mortos eram enterrados em suas próprias casas, deitados de lado,
e pertenciam a uma raça negra, a mais antiga da África. Em vida, eles
sofreram mutilações dentárias rituais, como as praticadas entre os capsienses
e os ibero -maurusienses do Maghreb e entre os povos neolíticos do Quênia.
Essa prática persistiu por muito tempo no Sudão e em outras partes da
África. A fauna identificada consistia principalmente de búfalos, antílopes,
hipopótamos, gatos selvagens, porcos -espinhos, camundongos, crocodilos e
uma enorme quantidade de peixes (cerca de -4000?).
• O Shaheinabiense aparece em numerosos sítios espalhados pelo sul da Sexta
Catarata. As escavações em Esh Shaheinab revelam elementos de uma
cultura claramente derivada do Cartumiense. Suas características peculiares
são uma cerâmica especial e o uso de goivas e de machados de osso polido.
A cerâmica consiste em tigelas, decoradas às vezes com dotted lines, como no
Cartumiense; entretanto, o que o individualiza é o alisamento das superfícies,
o engobe vermelho, a presença de bordas negras e a decoração em triângulos
incisos. O equipamento lítico enriqueceu -se ainda com peças microlíticas,
machados polidos, goivas polidas (“planas”) e cabeças de maças planas ou
convexas. Os arpões em osso continuam, ao passo que aparecem anzóis em
madrepérola, além de contas em amazonita ou em cornalina e batoques,
ainda usados atualmente. Búfalos, antílopes, girafas e facocheros eram
caçados e a cabra -anã domesticada. Não traços de habitações frágeis,
mas encontram -se fogueiras cavadas na terra. O Shaheinabiense
13
tem
13 Às vezes denominado “Neolítico de Cartum”.
728
Metodologia e pré -história da África
características similares às de um dos estágios do Faiumiense egípcio, como
por exemplo, o uso de plainas, goivas, arpões, cabeças de maças, amazonita e
fogueiras escavadas na terra. Ele se liga ao Pré -Dinástico Antigo do Egito
pela cerâmica lisa e a de bordas negras do Alto Egito. Os pontos em comum
com o oeste (Tibesti) são sugeridos pela amazonita, a goiva e a cerâmica
com decoração incisa; a cabra -anã liga -o com o noroeste. O sítio de Kadero,
que ainda está sendo escavado e pertence a um período mais recente, revelou
a presença de sepulturas (cerca de -3500 a cerca de -3000).
As escavações ainda em curso (1976 -1977) em Kadada, na região de Shendi,
estão fornecendo uma terceira variante do Shaheinabiense, provavelmente
posterior, que compreende sepulturas associadas às habitações. Suas características
peculiares parecem ser machados de pedra polida de grandes dimensões, paletas
de pintura de forma quase romboidal, discos furados de uso ainda indeterminado,
vasos caliciformes e jarros usados como sepultura de crianças.
• O Abkiense
14
do norte e do sul do Suo, pelo menos até Sai, seria
contemporâneo sucessivamente do Cartumiense e do Shaheinabiense. Ele se
prolongaria mesmo além dessa época, passando por quatro etapas: a primeira
é pobre em cerâmica e deriva talvez do Oadiense; a segunda compreende um
conjunto de peças de cerâmica com orifícios incisos e superfície decorada
com traços gravados em ziguezague e pontilhados redondos ou retangulares;
a terceira apresenta utensílios líticos incluindo furadores feitos sobre lascas
às vezes múltiplas e lamelas simples ou com bordos retocados; a última
possui cerâmica com bordas negras e superfícies vermelhas polidas ou
estriadas mais ou menos semelhante ao Shaheinabiense, ao Grupo A da
Núbia e ao Egito pré -dinástico (cerca de -3380 a -2985).
• O Pós ‑Shamakiense, encontrado somente em dois sítios é caracterizado por
micropontas, lamelas entalhadas, lascas laterais e plainas, sugerindo contatos
com o Faium e o oásis de Kharga (aproximadamente -3650 a -3270).
A ausência, na Núbia egípcia, das culturas acima mencionadas ou de culturas
cronologicamente correspondentes explicar -se -ia por uma conjuntura ecológica
particular, pela raridade dos sítios ou talvez mais simplesmente por uma
exploração incompleta. Por outro lado, a Núbia egípcia, salvo particularidades
locais, mostra uma afinidade bastante clara com as civilizações do Pré -Dinástico
egípcio, e mesmo com o Badariense.
14 Comparar com o Abkiense do capítulo 28, p. 821.
729
Pré -História do vale do Nilo
• O Nagadiense I
15
aparece, entre outros, em Eneiba, Sebua, Shellal e Khor
Abu Daoud (Núbia), até agora o único local onde se encontrou uma área
de habitação com depósitos para provisões.
• O Nagadiense II
16
aparece perto de Abu Simbel e em Khor Daoud, Sebua,
Bahan e Ohemhit. A partir da primeira dinastia, os contatos entre a Núbia
e o Egito diminuíram. As indústrias da Núbia evoluíram no mesmo local
em que já existiam, mantendo suas características pré -históricas até o Novo
Império, sob os nomes sucessivos de Grupo A
17
, Grupo B e Grupo C núbios.
No Egito, diferentes condições geográficas e ambientais fizeram evoluir dois
grupos culturais distintos, que se desenvolveram paralelamente em território
egípcio, no sul e no norte. Eles preservaram esta .independência de culturas, até
que o país foi unificado sob a primeira dinastia. O uso do cobre desempenha
um papel secundário, pois ele se verificou no sul muito antes que no norte, por
causa da proximidade de pequenos depósitos desse mineral, suficientes para
uso limitado.
O grupo cultural do sul (Alto Egito)
O grupo do sul manifestou -se desde o começo como uma civilização avançada.
Ela foi descrita com base no estudo de grandes e numerosos cemitérios e de
vestígios pouco importantes de regiões habitadas.
• O Tasiense, ainda sumariamente analisado e até mesmo contestado por alguns
pré -historiadores, aparece no Médio Egito em Tasa, Badari, Mostagedda e
Matmar. Estudado nas sepulturas e através de parcos vestígios de aldeias,
ele apresenta características peculiares desconhecidas em outros lugares. A
cerâmica, em sua maioria tigelas escuras, mais raramente vermelhas e com
bordas negras, às vezes com superfícies enrugadas, distingue -se pelo ângulo
pronunciado entre a parte superior reta ou oblíqua e a base estreita. Os
vasos caliciformes com decoração incisa ou pontilhada ilustram um outro
tipo original, de caráter inteiramente africano. O equipamento lítico inclui
sobretudo machados polidos de grandes proporções, em calcário silicificado,
raspadores, facas, furadores, etc. Paletas de pintura de forma retangular,
quase sempre em alabastro, anéis, braceletes de marfim e conchas marinhas
15 Pré -Dinástico Antigo do capítulo 28, p. 825.
16 Pré - Dinástico Médio do capítulo 28, p. 826.
17 Ver capítulo 28, p. 832 -33.
730
Metodologia e pré -história da África
perfuradas completam a série de objetos de adorno. Há também colheres e
anzóis de osso. No que diz respeito a costumes funerários, os túmulos são
ovais ou retangulares, apresentando às vezes um nicho lateral que abriga um
corpo em decúbito lateral, com braços e pernas fletidos, a cabeça apontada
para o sul e o rosto voltado para o oeste. Junto ao morto eram colocados
vasos, utensílios e enfeites pessoais.
• O Badariense
18
, civilização brilhante especialmente no Médio Egito, aparece
em Badari, Mostajedda, Matmar e Hémamh. Seu cater original é
realçado por uma cerâmica muito bonita, que abrange vasos de diversas
cores vermelho, marrom, cinza ou vermelhos com bordas negras, em
geral recobertos de linhas finamente incisas, sobretudo em posição oblíqua.
São, em especial, gamelas estreitas, carenadas ou com boca larga. também
tigelas e copos de basalto, além de vasos de marfim. A parte interna é, por
vezes, ornamentada com motivos vegetais incisos. O instrumental tico
inclui armaduras bifaciais com gume denticulado e convexo, cabeças de
flechas com base côncava ou em forma de folha de louro, como também
outros utensílios lamelares. As conchas de cozinha, os pentes, as pulseiras,
os anzóis e as estatuetas de marfim ou osso são de grande valor artístico. As
estatuetas de mulheres e as de hipopótamos têm uma função ritual. Entre
os enfeites pessoais encontram -se contas de quartzo encaixadas em cobre
fundido, conchas, paletas de pintura em xisto, retangulares e em geral - com
extremidades côncavas. Cultivam -se o trigo, a cevada e o linho; o boi e o
carneiro são domesticados, ao passo que a gazela, a avestruz e a tartaruga
são caçadas para servirem de alimento. Não há vestígios das habitações, que
não passavam de frágeis cabanas.
Os mortos, contraídos e deitados de lado com a cabeça apontada para o sul
e o rosto voltado para oeste, eram enterrados em túmulos redondos, ovais ou,
mais raramente, retangulares; levavam consigo, para a vida no além, os vários
objetos mencionados. É provável que algumas ramificações desiguais dessa
cultura sejam descobertas no deserto oriental (Uadi Hammamat), em Armant
(Alto Egito), na região de Adaima (Alto Egito) e até mesmo na Núbia.
• O Negadiense I
19
é encontrado em mamh e em Mostagedda em
estratigrafia, abaixo do Badariense, desde o Médio Egito, a Núbia e até
mesmo o deserto oriental (Uadi Hammamat). A cerâmica de superfície
18 Pré -Dinástico Primitivo, capítulo 28, p. 824
19 Pré -Dinástico Antigo do capítulo 28, p. 825, às vezes conhecido como Amratiense.
731
Pré -História do vale do Nilo
lisa ou polida, e de cor vermelha, marrom ou preta é diferente da do
Badariense. Uma característica típica do Negadiense I é a decoração na
cerâmica: os desenhos não são mais gravados e sim pintados em branco
sobre vermelho, assumindo formas lineares ou apresentando motivos
vegetais e composições e estilo naturalista. Os vasos de pedra, tubulares,
em geral de basalto com alças perfuradas, terminam por uma base cônica. O
instrumental lítico bifacial inclui flechas com base côncava, facas em forma
de losango e de vírgula, além de outras com extremidade bifurcada em forma
de U, machados polidos, instrumentos lamelares e cabeças de maça discoides
ou cônicas. As paletas de pintura, feitas sobretudo em xisto, têm no início a
forma de losango e, depois, a forma de animal. Os objetos em marfim e osso,
pertencentes a uma nova tradição,o enfeitados, assim como os pentes e os
alfinetes, com figuras humanas ou de animais. Eles eram utilizados para fins
mágicos, mas, às vezes, serviam também como arpões. As casas, identificadas
em Mahasna, são abrigos frágeis cercados por paliçadas.
O uso do cobre aumenta cada vez mais. Em geral, guardavam -se as provisões
em depósitos cavados na terra; no entanto, em Mostagedda e Deir el -Medineh
elas eram guardadas em vasos. No que diz respeito aos costumes funerários, os
mortos eram enterrados em túmulos retangulares, deitados de lado e com as
pernas encolhidas, a cabeça apontada para o sul e o rosto para oeste; exemplos
de inumações múltiplas e de corpos desmembrados (cerca de -4000 a -3500).
• O Negadiense II
20
, estratigraficamente posterior ao Negadiense I em
mamiéh, Mostagedda e Armant, é encontrado desde a entrada de
Faium, em Gerzeh, até o sul da Núbia egípcia. A cerâmica tradicional do
Negadiense I desenvolve -se adquirindo orifícios mais estreitos e bordas
pronunciadas. A cerâmica com decoração branca é substituída por outra,
cor -de -rosa, decorada em marrom, com motivos simbólicos estilizados:
espirais, barcos, plantas e figuras com braços erguidos. Também são típicos
os vasos bojudos com alças onduladas, que mais tarde se tornarão tubulares
e que, na proto -história, perderão suas alças. Os vasos feitos de vários tipos
de pedra, em geral muito evoluídos, reproduzem frequentemente as formas
da cerâmica rosa. Os instrumentos de pedra, também bastante evoluídos,
incluem facas bifendidas com extremidades em forma de V e outras que
apresentam gumes opostos, um côncavo e outro convexo, com retoques bem
regulares sobre uma das faces, previamente polida. Algumas vezes os cabos
20 Pré -Dinástico Médio ou Gerzeense do capítulo 28, p. 826.
732
Metodologia e pré -história da África
são cobertos com uma folha de ouro ou de marfim. As cabeças das maças
são piriformes. A indústria do cobre, mais evoluída, produz pontas, alfinetes
e machados. As paletas, cada vez mais estilizadas, tornam -se finalmente
arredondadas ou retangulares. As estatuetas de osso ou marfim também se
estilizaram bastante. As práticas funerárias acusam um refinamento maior:
as paredes das covas ovais ou retangulares se revestem de madeira, lama ou
tijolo. As recentes escavações realizadas por nós em Adeimah (expedição do
IFAO, 1974) revelaram túmulos de um tipo novo, em forma de banheira,
datando do final dessa civilização. Nesse período, a disposição das oferendas
segue determinados padrões; às vezes, elas são colocadas em anexos laterais.
Encontram -se ainda corpos desmembrados, mas os túmulos ltiplos
desaparecem. Além disso, a orientação dos mortos não é mais uniforme.
As habitações consistem em cabanas redondas ou semi -redondas, feitas de
argila, em abrigos frágeis e em estruturas de terra, retangulares, como as
encontradas em El -Amra (mais ou menos de -3500 a -3100).
O grupo cultural do norte (Baixo Egito)
O grupo cultural do norte diferencia -se sensivelmente do do sul, sobretudo
devido à extensão das regiões habitadas, à cerâmica monocrômica e ao costume
passageiro de inumar os mortos em suas próprias casas.
• O Faiumiense B
21
, ainda pouco conhecido, foi estudado ao norte do lago
Faium e pertenceria ao final do Paleolítico, ou melhor, ao Neolítico pré-
-cerâmico. Ele compreende lamelas simples e microticas com dorso
retocado, ares de osso e pequenos pilões. As mais recentes pesquisas
identificaram um estágio intermediário entre o Faiumiense B, mais antigo,
e o Faiumiense A, mais próximo de nós. Esse estágio, que propomos chamar
de Faiumiense C, apresenta goivas e pontas de flechas bifaciais pedunculadas
parecidas com as do deserto ocidental (oásis de Siwa, na Líbia) e constituiria
um elo de ligação com o Saara, podendo ser datado de aproximadamente
-6500 a -5190.
• O Faiumiense A
22
, bem melhor estudado em seus locais de habitação, apresenta
um tipo grosseiro de cerâmica monocrômica lisa ou polida vermelha,
marrom ou preta, compreendendo tigelas, copos, xícaras, selhas retangulares
e vasos com ou com bordas guarnecidas de saliências arredondadas, como
21 Ver Neolítico ‑Faium B, capítulo 28, p. 820.
22 Pré -Dinástico Primitivo do capítulo 28, p. 821.
733
Pré -História do vale do Nilo
no Badariense. A indústria lítica, de técnica bifacial avançada, compreende
flechas com bases triangulares ou côncavas, pontas, armaduras de foices
montadas em cabos retos de madeira, machados polidos e uma cabeça de
maça discoide. Em osso, encontramos alfinetes, furadores e pontas com
bases pedunculadas. As paletas de pintura, grosseiras, são de pedra calcária
ou mais raramente de diorito. Conchas do mar e fragmentos de cascas
de ovos e de microclínio (amazonita) foram usados para fazer cordões de
contas. Nos locais de habitação, não ficou traço algum dos abrigos, sem
dúvida muito frágeis, mas há muitas fogueiras cavadas no solo, semelhantes
às achadas em Shaheinab, no Sudão. Silos constituídos de cestos enterrados
no chão, agrupados perto das habitações, teriam sido usados para armazenar
trigo, cevada, linho e outros produtos. O porco, a cabra, o boi, o hipopótamo
e a tartaruga serviam de alimento para a população. Até o momento não há
vestígios de cemitérios, que, sem dúvida, ficavam um pouco afastados. Essa
cultura (cerca de -4441 a -3860) poderia ser contemporânea do Badariense.
• O Merindiense
23
ocupa uma extensa área habitada de mais de 2 hectares a
oeste do delta do Nilo. As escavações, ainda por terminar e com resultados
publicados somente em forma de relatos preliminares, atestam três camadas
sucessivas de restos arqueológicos que traçam a evolução de uma mesma
cultura no decorrer das épocas. Trata -se de uma cultura original, mas típica
do grupo do norte. A cerâmica monocrômica lisa, polida ou rugosa
apresenta tipos variados, principalmente tigelas, copos, pratos e bilhas,
mas não nenhuma peça com bocal de bordos estreitados. As formas
específicas incluem conchas de cozinha como as do Badariense, tigelas
com saliências arredondadas como as do Badariense e do Faiumiense,
além de vasos com pés como os do Faiumiense. Às vezes esses vasos são
decorados com pontos escavados na borda, linhas verticais incisas, motivos
em relevo ou ainda com um desenho em forma de folha de palmeira.
uns poucos vasos feitos de basalto ou de pedra verde dura, terminados
por um pé, do tipo Negadiense I. O instrumental lítico bifacial contém os
mesmos tipos que aparecem no Faiumiense. também uma cabeça de
maça piriforme ou globular. Sovelas, agulhas, furadores, arpões, espátulas e
anzóis são feitos de osso ou marfim. Os objetos de adorno incluem grampos
de cabelo, pulseiras, anéis, conchas perfuradas e contas de vários materiais.
São dignas de menção duas paletas de pintura, uma escutiforme em xisto e
23 Ver capítulo 28, p. 820.
734
Metodologia e pré -história da África
outra em granito, materiais importados do sul. As habitações, inicialmente,
são cabanas espaçosas, frágeis e ovais, sustentadas por estacas; depois vêm
as cabanas mais resistentes e menores; por fim, as casas ovais com paredes
feitas de massa de argila comprimida, formando até alinhamentos de ruas.
Silos do tipo faiumiense juntam -se às cabanas, sendo posteriormente
substituídos por jarros enterrados no solo. Os mortos (nem todos, é claro)
eram enterrados em covas ovais, sem aparato funerário, entre as habitações e
voltados, ao que parece, em direção às suas casas. Domesticavam -se o porco,
o carneiro, a cabra e o cão e caçavam -se hipopótamos, crocodilos, tartarugas,
entre outros. A pesca também era praticada. Tendo -se desenvolvido entre
-4180 e -3580, essa cultura poderia ser contemporânea do Faiumiense e
prolongar -se até o começo do Negadiense I.
• O Omariense A
24
, outra cultura do grupo do norte, apareceu perto de Heluan,
entre os restos de uma vasta região habitada com mais de 1 km de extensão,
na entrada de Uadi Hof. Um anexo dessa aldeia pré -histórica ergue -se
sobre um planalto, no topo de uma falésia abrupta, exemplo único no Egito.
Escavações feitas por nós e ainda inacabadas revelaram os elementos de
uma nova civilização, diferente da encontrada no sul, como em Merinde
e em Faium. A cerâmica de refinada qualidade e com um estilo mais
evoluído que o da dos dois sítios mencionados, embora monocrômica
compreende uma grande variedade de tipos. Entre os dezessete formatos
de vasos – lisos ou polidos, de cor vermelha, marrom ou preta enumeram -se
alguns com aberturas estreitadas, outros ovoides, outros ainda cilíndricos,
tachos com boca larga ou côncavos, outros cônicos, além de copos e alguns
jarros. Somente os vasos com saliências arredondadas assemelham -se aos de
Merinde e Faium. Vasos de basalto ou calcita foram muito pouco usados.
A indústria lítica bifacial de sílex não difere, no todo, das encontradas nos
sítios precedentes; a indústria lamelar apresenta algumas características
particulares, novas no Egito. Trata -se de facas com dorso arqueado, aparadas
perto da ponta, com um pequeno cabo na base, formado a partir de um
duplo entalhe; são, talvez, uma sobrevivência do Matufiense, que ocupou
a região durante o período anterior. Podemos citar ainda contrapesos para
rede de pesca de um tipo encontrado no Cartumiense, no Faiumiense e no
Saara nigeriano, onde também existe uma abundante indústria de lascas.
A indústria de ossos, de boa qualidade, apresenta os tipos clássicos. Os
24 Ver capítulo 28, p. 820.
735
Pré -História do vale do Nilo
anzóis, porém, são feitos de chifre. Os objetos de adorno, mais numerosos,
incluem conchas de gastrópodes no mar Vermelho e contas feitas com
ovos de avestruz, ossos, pedras e rtebras de peixes. Os numulitídeos
sseis, perfurados, serviam como pingentes. A galena e a resina eram
importadas. Quanto às paletas para triturar o ocre, são grosseiras e feitas
em calcário e quartzito. A fauna compreende bovinos, cabras, antílopes,
porcos, hipopótamos, uma espécie de cachorro, avestruzes, lesmas, tartarugas
e uma grande quantidade de peixes. Cultivavam -se trigo, cevada e linho.
A vegetação inclui principalmente sicômoros, tamareiras, tamargas e alfas.
As habitações são de dois tipos: ovais, com tetos sustentados por estacas,
ou redondas, parcialmente enterradas no chão, distinguindo -se dos silos
dispostos por toda parte por serem maiores que eles. Os mortos, sepultados
na própria aldeia, de maneira mais concentrada que em Merinde, estão
em geral dispostos segundo uma orientação constante, num vaso de barro,
com a cabeça apontada para o sul e o rosto para o oeste. Um dos cadáveres,
provavelmente o de um chefe, segurava um cetro de madeira (o cetro
Amés”) com uma forma conhecida no norte do país na época faraônica
(aproximadamente -3300?).
• O Omariense B
25
aparece e se desenvolve no começo do Negadiense I. Foi
identificado por nós a leste do sítio precedente e difere dele no que diz
respeito às práticas funerárias e à indústria. Assim, o cemitério era bastante
afastado da região habitada e consistia em sepulturas cobertas por um
amontoado de pedras. Nenhuma regra constante orienta o alinhamento
dos corpos. A região habitada é bem menor que a do Omariense A,
mas nossas pesquisas nesse campo ainda estão longe de se completarem.
Enquanto a cerâmica mostra pontos em comum com a do período anterior,
o equipamento lítico é totalmente diferente. Baseado na técnica laminar,
ele compõe -se de pequenas facas, de raspadores de dimensões reduzidas,
chatos e arredondados, e também de pequenas talhadeiras. Enquanto nossos
trabalhos não forem retomados, não temos condições de estabelecer datas
para esse sítio em relação ao Omariense A.
• O Meadiense
26
foi revelado por escavações ainda incompletas, efetuadas
numa extensa aglomeração próxima de duas necrópoles em Meadi, perto
25
Talvez possa ser colocado no
Pré -Dinástico
Recente (também conhecido como
Gerze
ense Recente,
do capítulo 28, p. 827), embora a data ainda permaneça incerta.
26 Talvez pertença, ao menos em parte, ao Pré -Dinástico Recente ou Gerzeense Recente (ver capítulo 28,
p. 827), mas pode também ser contemporâneo do Pré -Dinástico Médio ou Gerzeense (ver capítulo 28,
p. 827 -28).
736
Metodologia e pré -história da África
do Cairo, e também por nossas próprias escavações numa terceira necrópole
descoberta em Heliópolis, um subúrbio do Cairo. Trata -se de uma cultura
bastante diferente das demais, e não segue direta e cronologicamente a cultura
omariense, representando um conjunto cultural secundário dentro do grupo
do norte. Sua cerâmica monocrômica, em geral lisa, de cor negra ou marrom
mas às vezes vermelha ou coberta de engobe branco, é menos refinada que
a do Omariense. Os modelos mais comuns são vasos ovoides alongados
com bordas pronunciadas, embora haja pequenos vasos de gargalo globular,
geralmente com uma decoração de pontos gravados. Mais característicos são
os vasos com anéis circulares na base (base ‑ring), que lembram os vasos de
basalto desse tipo encontrados em outras regiões e presentes também aqui.
Parecem ser muito raros, provavelmente importados do sul, os vasos com
decoração marrom do Negadiense II. Vasos bojudos e com alças onduladas,
existentes no Negadiense II e na Palestina, também foram encontrados no
Meadiense. Eles refletem a continuação dos contatos culturais entre o Nilo e
a Palestina. Da mesma forma, os vasos tubulares de basalto são semelhantes
aos do Alto Egito na época do Negadiense I. Manifesta -se em profusão uma
bela indústria de lâminas de pedra, trabalhadas em instrumentos típicos
dessa cultura. Mais raras, e talvez igualmente importadas do Negadiense I,
são as facas bifendidas em forma de U. É pequena a quantidade de objetos
de adorno. As poucas paletas de xis to em forma de losango também vêm
do Negadiense I; as demais são de quartzito ou simples blocos de lex
achatados.
Um ponto importante é que a cultura meadiense, pela primeira vez entre as
culturas pré -dinásticas do norte do país, faz uso do cobre e em escala bastante
grande. O Faiumiense, o Merindiense e o Amariense não o conheciam, embora
no Alto Egito ele tenha sido usado em períodos bem anteriores. Desde o
Badariense, e sobretudo a partir do Negadiense, os povos do vale do Nilo
exploraram os pequenos depósitos vizinhos, no sul do deserto oriental. De
fato, foram achados alfinetes, cinzéis, furadores, anzóis e machados de cobre.
Ao mesmo tempo, parece ter havido uma espécie de afluxo do mineral. Em
Meadi, esse metal começou a ter uma importância notória. Em nosso ponto de
vista, tal fato se deve aos contatos dos meadienses com os depósitos minerais
do Sinai. Esses contatos são confirmados pelas várias características em comum
com as culturas do leste. Além da cerâmica, já citada, presente também na
Palestina, podemos citar alguns utensílios de sílex e de manganês. A fauna
737
Pré -História do vale do Nilo
compreende bovinos, carneiros, cabras, porcos, hipopótamos, tartarugas e peixes.
Os recursos vegetais são o trigo, a cevada, o rícino e a alfa.
Na região habitada foi encontrado um grande número de estacas cravadas
no chão, que permitem provar a existência de cabanas ovais, além de vestígios
de abrigos toscos. Também foram descobertas cabanas mais evoluídas, de forma
retangular e construídas com tijolos, como em Mahasna, e outras subterrâneas,
às quais se tinha acesso através de degraus. Jarros enterrados no solo serviam de
silos para cereais, havendo ainda escavações circulares que constituíam armazéns
para provisões, nos quais frequentem ente foram descobertos vasos, como no
Negadiense. Os cemitérios, afastados das aldeias, continham tumbas ovais ou
redondas, nunca retangulares, que preservavam corpos fletidos, em decúbito
lateral, quase sempre com a cabeça apontada para o sul e o rosto para o leste;
junto com o corpo comumente havia vasos. As gazelas sem dúvida animais
sagrados – eram também enterrados nesse cemitério, acompanhadas de muitos
vasos. Na necrópole de Heliópolis, no limite do cemitério, desenterramos uma fila
de cães, dispostos em todos os sentidos e sem aparato funerário, provavelmente
destinados ao papel de guardiães, como o que tinham desempenhado em vida.
Essa cultura não sucedeu imediatamente à Omariense; ela apareceu no
fim do Negadiense I e prosseguiu seu desenvolvimento até quase o fim do
Negadiense II do Alto Egito.
A continuação do uso da pedra no período faraônico
Após ter descrito as várias tendências existentes no Egito durante o período
pré -dinástico, vamos fazer um resumo de suas principais características, tentando
explicar as causas de suas disparidades e mostrar como elas se encontraram na
época faraônica.
Durante a longa história dos faraós, têm -se feito alusões aos dois Egitos – o
do norte e o do sul unificados pelo legendário Menés, fundador da primeira
dinastia. Essas alusões repousam sobre fatos constatados, que remontam a um
período muito antigo da pré -história. Escavações recentes atestaram a veracidade
dessa tradição e estabeleceram que esse dualismo regional entre norte e sul do
país prevalecia no estágio conhecido como Neolítico”. As diferenças não
eram meramente geogficas; elas envolveram diversos aspectos da vida do
homem, a ponto de originarem dois grandes grupos culturais específicos, que
tiveram suas raízes em condições geográficas e ambientais diferentes. O grupo
do sul surgiu ao longo do estreito corredor do Nilo, cercado por duas falésias
738
Metodologia e pré -história da África
áridas. O grupo do norte delineou -se no vasto leque do fértil delta de horizontes
sem fim.
O grupo do norte revelou muitas culturas, semelhantes em suas grandes
linhas mas diversificadas nos detalhes, que são mais ou menos sucessivas
cronologicamente. o grupo do sul acusa, num fundo comum, divergências bem
mais pronunciadas que as existentes entre as culturas do norte. Tais distinções
opõem -se nos caracteres desses dois conjuntos que, mais tarde, constituirão o
Grande Egito. Assim, desde os primeiros estágios o norte apresenta um progresso
notável no que diz respeito ao desenvolvimento urbano. No Faium, achamos
pequenos lugarejos, um bem próximo ao outro, e em Merinde, uma verdadeira
aldeia de quase 2 hectares, com alinhamentos de casas. El -Omari estende -se
por mais de 1 km e Meadi por 1,5 km. No sul, ao contrário, tendo em vista a
exiguidade aparente dos sítios, muito poucos vestígios urbanos sobreviveram
até aqui.
Quanto às outras manifestações concernentes à vida do homem e às suas
realizações no Egito durante esse período, a cerâmica do norte seja ela marrom,
preta ou vermelha – apesar da evolução das formas, preserva uma monocromia
imutável, caracterizada pela ausência quase total de decorão. No sul, em
compensação, as características distintivas são a multiplicidade de formas e
a decoração bastante elaborada, com a presença dos famosos vasos de bordas
negras.
Se a cerâmica do norte parece acusar uma certa inferioridade, o mesmo não
acontece com a indústria do sílex, que revela um extraordinário aperfeiçoamento
em sua feitura. Isso não significa que no sul o acabamento de algumas peças não
tenha atingido um nível elevado. No campo da arte pura, o norte mostra uma
indigência absoluta, que contrasta com o grande impulso obtido no sul. Esse
impulso manifestou -se desde o Badariense, através de estatuetas de terracota,
osso e marfim, e também de objetos de uso diário, como pentes, conchas de
cozinha, pingentes, belas paletas para triturar cosméticos e amuletos talhados
em xisto verde.
Assim sendo, constatamos que grandes difereas, nos mais variados
campos, entre as duas partes do Egito. Poderíamos dizer que, enquanto o norte
mostra um desenvolvimento superior sob o ponto de vista da economia e da
urbanização, o sul atingiu um estágio muito adiantado em termos de habilidade
arstica, prenunciando a época dos faraós. A unificação dessas culturas
complementares certamente será responsável pela grandeza do Egito faraônico.
Entretanto, o advento do período histórico com a introdução da escrita,
a unificação do Egito sob um único rei e o desenvolvimento do uso do metal
739
Pré -História do vale do Nilo
não modificou certos aspectos do modo de vida dos povos do vale do Nilo.
Referimo -nos, em particular, à persistência no uso do sílex, material muitíssimo
eficiente e abundante no país, que prosseguiu ao longo do período faraônico.
É importante ressaltar aqui que o domínio do trabalho em sílex realmente
alcançou seu apogeu sob as primeiras dinastias, como o testemunham as
extraordinárias facas ditas de “sacrifício dos túmulos reais de Abidos, no Alto
Egito, e de Saqqara e Heluan, perto do Cairo; a perfeição com que são elaboradas
e o seu tamanho são impressionantes. Os vestígios de habitações dessa época
revelaram todo um instrumental doméstico em sílex e somente alguns objetos de
cobre, encontrados em Hieracômpolis e em El -Kab, no Alto Egito, e em Uadi
Hammamat, no deserto oriental.
Entre os vestígios do Médio Império, da antiga Tebas a Karnak, recentemente
descobertos, encontramos uma grande quantidade de peças em sílex; elas não
diferem, em termos de técnica de fabricação e de tipos, dos instrumentos utilizados
durante o Paleolítico Superior e o Epipaleolítico. mesmo numerosos buris
e alguns miclitos. Além disso, as explorações sistemáticas, empreendidas por
nós desde 1971 na montanha tebana em Luxor revelaram que, entre as duzentas
oficinas de lascamento de sílex, mais da metade não data da p -história e sim do
Novo Império. Elas abasteciam a capital de grande quantidade de instrumentos
produzidos através de uma técnica mais rudimentar que a utilizada no Médio
Império. Esses instrumentos consistiam quase exclusivamente em minas de facas
e armaduras de foices. Essas últimas persistiram ainda durante a Época Baixa.
No tempo dos faraós o sílex não foi reservado somente aos utensílios de uso
doméstico. Os crescentes de lex serviram para furar braceletes de xisto em
Uadi Hammamat, objetos de adorno usados desde a proto -história até o fim da
época arcaica. No fim da terceira dinastia, num certo momento, os crescentes
foram empregados para cortar blocos de pedra para a pirâmide de degraus do
faraó Djoser, em Saqqara. Os vasos de pedra macia foram trabalhados com a
ajuda desses mesmos instrumentos nas oficinas de Faium, perto dos depósitos
de calcita, até o Antigo Império.
Desde as primeiras dinastias até o final do Novo Império, as flechas dos
guerreiros egípcios eram armadas com pontas cortantes de sílex. As da época
do faraó Tutankhamon (XVIII dinastia) eram feitas de vidro, material de luxo
tão eficiente quanto o sílex.
O Egito faraônico também usou rochas menos frágeis que o sílex para a
fabricação de utensílios com fins específicos. Os picões e os malhos destinados
aos trabalhos em minas e pedreiras, providos de encabadouros, eram feitos de
pedras duras durante o Antigo Império. No Médio e no Novo Império eram
740
Metodologia e pré -história da África
mais toscos e feitos de calcário silicificado. Os hipogeus funerários do Antigo
Império em Gizeh, perto do Cairo, os do Médio Império, no Médio Egito, e
os do Novo Império, na montanha tebana, foram escavados e construídos com
essas mesmas ferramentas grosseiras.
Na bia egípcia e em parte da bia sudanesa, agora submersas, as pesquisas
arqueológicas não foram levadas muito adiante por ocasião das operações de
salvamento. Isso nos priva, daqui para a frente, de valiosos informes sobre o
passado dessas regiões, entre outras as que se referem à persistência no uso da
pedra em épocas históricas.
Mas o material arqueológico trazido de uma aldeia do Grupo C bio
(Médio Império), em es -Sebua, permitiu -nos identificar uma série de lâminas,
lamelas e armaduras de foices em sílex. Estas últimas, sem dúvida importadas
do Egito, são similares, em todos os aspectos, às que foram descobertas em
Karnak, mencionadas acima, e que pertencem ao mesmo período. Por outro
lado, em Amada, outra aldeia do Grupo C, ainda na Núbia egípcia, escavada
por nós algum tempo atrás, encontramos provas suplementares relativas à
sobrevivência da Idade da Pedra durante a Idade do Metal. Do mesmo modo
que em es -Sebua, havia lâminas, lamelas e armaduras de foices em lex, de
origem egípcia; além disso, ligadas a essa indústria lítica importada, descobrimos
no sítio de Amada minúsculas pontas de flechas transversais em ágata e em
cornalina, como também machados de pedra dura polida, de fabricação local.
Quanto à Núbia sudanesa, as escavações empreendidas na fortaleza egípcia
de Mirgissa revelou, como era de esperar, a presença de armas. Elas datavam da
28
a
dinastia e incluíam flechas do tipo clássico, isto é, com pontas cortantes de
pedra, como as descritas anteriormente. Mas, fato novo, as cabeças das lanças
não eram de metal, como no Egito faraônico naquela época, mas de sílex,
feitas segundo uma técnica de lascamento bifacial perfeita, semelhante à usada
no peodo Neolítico. O reaparecimento desse método tinha por finalidade
reproduzir o mais fielmente possível as cabeças de lança de metal. A dificuldade
em obter o metal foi, com certeza, o que motivou esse retorno a uma técnica de
fabricação esquecida milênios.
Conclusão
Depois de ter traçado este panorama sumário da história dos primeiros
homens que habitaram o vale do Nilo, resta -nos fazer um balanço final: reunir
as evidências obtidas e apontar as várias e importantes lacunas que restam.
741
Pré -História do vale do Nilo
No que diz respeito aos períodos mais remotos, descobertas bastante recentes
confirmam a presença do homem mais primitivo de que se tem notícia o
olduvaiense não somente na África do sul e do leste, mas também na parte norte
do vale do Nilo. Nós o conhecemos através de um abundante instrumental lítico.
Mas seria conveniente continuar as pesquisas para completar a documentação
osteológica, representada até agora por um único dente humano. Explorações
semelhantes relativas a essa época deveriam ser feitas no setor sudanês, que é
um ponto de contato com a Etiópia, onde se fizeram achados importantíssimos
para esse período.
O conjunto de instrumentos ticos da Old Stone Age foi muito bem
analisado em sua tipologia, quase unicamente na região de Uadi Halfa. A região
de Tebas, por sua vez, forneceu dados sobre uma das fases mais remotas. Porém,
existem ainda numerosos problemas para serem resolvidos, entre outros os que
se relacionam com as “raças” humanas desse período.
Quanto à Middle Stone Age, os testemunhos líticos aparecem em grande
número ao longo de todo o vale do Nilo. Progressos conseguidos na região de
Uadi Halfa permitiram -nos compreender melhor a morfologia dos utensílios
de pedra nesse determinado setor. As proveitosas coletas feitas na montanha
de Tebas estão ainda em estudo, e permitirão comparações importantes com
o material recolhido no sul. Os fragmentos de um osso occipital são ainda os
únicos vestígios humanos encontrados até agora. No deserto líbio, a noroeste
de Uadi Halfa, foi descoberto pela primeira vez um conjunto de utensílios de
pedra associado a uma fauna. Para esse período, ainda vastas regiões do Sudão
a serem exploradas.
O Ateriense, quase contemporâneo, foi pouco tempo constatado no deserto,
a noroeste de Abu Simbel. Associada a uma fauna, essa indústria originária do
noroeste africano espalhou -se muito tarde pela região. Seria interessante ver até
que ponto ela dataria do mesmo período que as outras descobertas no Egito, e
se ela pôde influenciar as indústrias tipicamente egípcias.
Quanto à Late Stone Age e ao Epipaleolítico, os achados provenientes apenas
de setores bem definidos forneceram numerosos dados antes desconhecidos.
Contudo, talvez pela falta de evidências estratigráficas, abusou -se das
denominações novas, apoiadas em estudos estatísticos e análises físico -químicas
imperfeitas.
Houve progressos inegáveis no que diz respeito ao Neolítico (termo que
não tem um sentido preciso no Egito) e ao Pré -Dinástico ao longo do vale
do Nilo. Assim, no Egito, os sítios do grupo cultural do sul revelaram uma
copiosa documentação obtida principalmente nos cemitérios. Mas é necessário
742
Metodologia e pré -história da África
fazer pesquisas em grande escala nas regiões habitadas, de modo a conseguir
informações mais completas sobre as habitações, a cerâmica doméstica e os
utensílios de pedra.
Pelo fato de ocuparem uma área bem vasta, os sítios do norte do Egito
não foram exaustivamente explorados e, portanto, são conhecidos apenas por
relatos parciais. Apesar disso, forneceram dados bem mais completos que os
sítios contemporâneos que ficam ao sul, graças às pesquisas realizadas tanto nas
habitações quanto nos cemitérios. Seria conveniente então que as investigações
levadas a efeito nessa parte do Egito interrompidas alguns anos por diversas
razões fossem retomadas a fim de se completar a documentação.
Quanto à Núbia sudanesa, várias civilizações específicas pertencentes a esses
períodos foram estudadas cuidadosamente. Até agora, as mais representativas
dentre elas parecem ser a Cartumiense e a Shaheinabiense. Mas há muito
trabalho ainda por fazer, pois foram descobertas dezenas de sítios aparentemente
relacionados a essas culturas ou a fases diferentes, e que estão esperando pelas
escavações. O objetivo dessa pesquisa é contribuir para o ajustamento dos elos
da corrente da história africana antes do período faraônico.
C A P Í T U L O 2 6
743
A arte pré -histórica africana
A arte pré -histórica africana
J. Ki ‑Zerbo
Com o aparecimento do homem, surgem não utensílios, mas também
uma produção artística. Homo faber, homo artifex. A pré -história africana não
foge à regra.
minios as requias p-hisricas deste continente m sofrendo
degradações provocadas tanto pelo homem quanto pelos elementos naturais.
na p-história, movido por uma iconoclastia ritual, o homem perpetrou
por vezes atos de destruição. Os colonizadores civis ou militares, os turistas, os
industriais do petróleo, os autóctones, entregam -se ainda a essas depredações e
pilhagens desavergonhadas” de que fala L. Balout no prefácio da brochura de
apresentação da exposição: “O Saara antes do deserto
1
.
De maneira geral, a arte pré -histórica africana ornamenta a África na região dos
planaltos e dos maciços, enquanto a África das altas cordilheiras, das depressões
e das bacias fluviais e florestais da zona equatorial é incomparavelmente menos
rica nesse campo.
1 H. LHOTE refere -se a militares franceses que em 1954, na Argélia, cobriram com uma camada de tinta
a óleo o magníco painel de elefantes de Hadjira Mahisserat, para melhor fotografá -lo. Outros criva-
ram de balas de metralhadora a parede próxima à grande gravura do escorpião, em Geret et -Taleb. Em
Beni Unif, as cristas decoradas com gravuras foram demolidas e as pedras utilizadas como material de
construção, etc. Cf. H. LHOTE, 1976. Mesmo certos especialistas não estão isentos de culpa; inúmeras
obras foram recortadas e enviadas para Viena por Emil Holub, no m do século XIX.
744
Metodologia e pré -história da África
Nos setores privilegiados, os tios localizam -se essencialmente no vel
das falésias, formando o rebordo das terras altas, sobretudo quando avaam
sobre os talvegues de rios atuais ou já desaparecidos. Os dois centros mais
importantes são a região do Saara e a África austral. Entre o Atlas e a
floresta tropical de um lado, e o mar Vermelho e o Atlântico de outro, foram
localizados imeros sítios, contendo dezenas, talvez centenas de milhares de
gravuras e pinturas. Alguns desses centros são hoje mundialmente conhecidos,
graças aos trabalhos de p-historiadores franceses, italianos, anglo -saxões e,
cada vez mais, africanos. Bons exemplos podem ser encontrados na Argélia
o sul oranês, o Tassili n’Ajjer ( Jabbaren, Sefar, Tissoukai, Djanet, etc.) –, no
sul do Marrocos, no Fezzan (Líbia), no Air e no Tenere (Níger), no Tibesti
(Chade), na Núbia, no maco da Etiópia, no Dhar Tichitt (Mauritânia),
em Moçâmedes (Angola). O segundo epicentro importante situa -se no cone
meridional da África, entre o oceano Índico e o Atlântico; tanto no Lesoto
quanto em Botsuana, em Malavi, em Ngwane, na Namíbia e na República
Sul -Africana, particularmente nas regiões de Orange, do Vaal e do Transvaal,
etc. Nessas regiões as pinturas encontram -se em abrigos rochosos, ao passo
que as gravuras estão a u aberto. As grutas, como a de Cango (Cabo), são
excepcionais. Raros são os países africanos em que o se tenham descoberto
vestígios estéticos, embora, é verdade, nem sempre sejam pré -históricos. A
prospecção, no entanto, está longe de se completar.
Por que esse florescimento nos desertos e nas estepes? Em primeiro lugar,
porque, na época, a região não era de desertos e estepes. Em segundo, porque,
ao tornar -se como é hoje, transformou -se num meio propício à conservação,
graças à própria secura do ar; no Saara, por exemplo, descobriram -se objetos
que estavam in situ há minios. Por que à beira dos vales que recortam os
macos? Por razões de habitat, de defesa e de aprovisionamento de água
e de ca. No Tassili aretico situado ao redor do núcleo cristalino dos
montes do Hoggar, que avança para o sul por uma falésia de 500 m, as
alterncias de calor e frio sensíveis sobretudo no vel do solo, juntamente
com os pequenos cursos de água, cavaram na base das montanhas coberturas
e abrigos, grandiosos que dominavam os talvegues dos rios. Um dos exemplos
mais impressionantes é o abrigo sob rocha de Tin Tazarift. Por outro lado, os
arenitos tabulares foram escavados e sulcados pela erosão eólica, formando
galerias naturais, logo exploradas pelo homem. Tal é o quadro de vida traçado
com tanta fidelidade e brio pelas obras -primas da arte mural africana.
745
A arte pré -histórica africana
Cronologia e evolução
Métodos… e diculdades de datação
A aplicação dotodo estratigráfico à rocha in situ frequentemente se revela de
pouca utilidade, pois o clima úmido que perdurou por longos períodos da pré -hisria
provocou uma lixiviação profunda das camadas que recobrem o solo dos abrigos.
Contudo, na África do Sul encontram -se às vezes gravuras sob as pinturas; os restos
de matérias orgânicas (pintura) caídos das paredes numa camada o explorada
podem fornecer alguns incios. Mas os aterros e desaterros, às vezes intencionais,
dessas camadas confundem a datação, mesmo relativa, que se poderia esperar obter.
Recorre -se então, algumas vezes, às pátinas dos quadros e das rochas -suporte,
fazendo -se um estudo comparado de suas modificações cromáticas. Este método,
que se mostra adequado já que leva em conta o próprio objeto em estudo, parte
do princípio de que as pátinas mais claras e mais distintas da rocha -mãe são
as mais recentes. Com efeito, a formação da pátina opera -se lentamente sobre
todas as rochas, inclusive os arenitos brancos. Trata -se de um processo análogo à
laterização, através da qual os óxidos e carbonatos infiltrados sob forma líquida
pela chuva ou pela umidade voltam à superfície por capilaridade e, graças à
evaporação, formam uma crosta sólida, mais ou menos escura conforme sua
antiguidade. Ter -se -ia então, tomando como referência a rocha local, uma base
teórica de cronologia relativa. Mas são muitos os obstáculos: tudo vai depender
da natureza da rocha, de ela estar ou não exposta ao sol, de ficar na direção do
vento ou contra ele, etc. Essa cronologia é, pois, dupla ou triplamente relativa
2
.
Outras vezes, para avaliar a antiguidade dos quadros, tomam -se por base os
animais representados, que nem todas as espécies viveram nos mesmos grandes
períodos. O búbalo, por exemplo, é uma espécie muito antiga, hoje extinta,
conhecida apenas através das ossadas fósseis. Mas esses animais não podem ter
sido reproduzidos como lembrança de um período anterior? Os estilos também
não constituem, como veremos, um ponto de referência preciso; longe disso. É
bem verdade que, no começo, a observação parece ter sido predominante, donde
uma veia seminaturalista característica. Por outro lado, as gravuras bubálicas do
Saara são, em geral, anteriores às pinturas. Os objetos subjacentes que têm o
mesmo tipo de decoração que as pinturas são, em princípio, contemporâneos
destas. Mas não há, absolutamente, nenhuma regra geral.
2 A deformação do perl do traço que, nas gravuras, sob o efeito de processos físico -químicos, passa do V
original para uma forma alargada e rebaixada, fornece apenas indicações muito vagas sobre a idade do
quadro.
746
Metodologia e pré -história da África
Outro procedimento que também se utiliza às vezes é a datação relativa
a partir de traçados superpostos, ou seja, traços que recobrem outros traços
e que, portanto, são mais recentes. Contudo, nem sempre se encontram tais
superposições, e, além disso, a deterioração das rochas e a alteração dos pigmentos
frequentemente tornam a interpretação arriscada e contraditória
3
.
Resta, é claro, o método do C14, que é o ideal mas cuja aplicação é muito
rara, devido às razões mencionadas. Além do mais, impõem -se numerosas
precauções: o fragmento de pintura não esteve em contato com matérias orgânicas
recentes? O fragmento de carvão não provém de um incêndio provocado por um
raio? Apesar de tudo, as datas obtidas por esse método multiplicam -se pouco
a pouco. Em Meniet, por exemplo (Mouydir), no Saara central, um carvão
recolhido numa camada profunda forneceu a data de 5410 +300 B.P.
A política também pode se imiscuir na cronologia. Os observadores eres, por
exemplo, estão muito pouco dispostos a aceitar a grande antiguidade da civilização
artística dos autóctones africanos. Tendem, pois, a reduzir -lhe o desenvolvimento,
seja por omissão, seja aplicando mecanicamente métodos de avaliação utilizados
para os rupestres europeus. Nessas condições, as representões do Drakensberg
o situadas por eles como posteriores ao século XVII, isto é, muito tempo depois
da chegada dos Bantu. Ora, sem contar que a arte rupestre sul -africana representa,
por vezes, animais que datam de épocas muito anteriores nessa região, parece
pouco provável que os San tenham esperado os conflitos com os Bantu para
desenvolver uma forma de arte para cuja prática seria necessário um mínimo de
estabilidade. Conm, portanto, reexaminar a questão dos períodos.
Períodos
Quando se deseja classificar os achados da arte pré -histórica em sequências
temporais inteligíveis, a primeira abordagem deve ser geológica e ecológica,
que era o meio mais determinante do que hoje para os povos então
mais desprovidos tecnicamente que estabelecia e impunha o quadro geral
da existência. O biótopo, particularmente, condicionava a vida das espécies
representadas, inclusive a do próprio homem, suas técnicas e seus estilos. Se
3 J. D. LAJOUX aplicou as mais recentes técnicas fotográcas nas pinturas de Inahouanrhat (Tassili).
Personagens vermelhas pareciam ter sido pintadas sobre a gura de uma mulher mascarada de cor
marrom -esverdeada, mas os ornamentos brancos da mulher foram acrescentados mais tarde sobre as
guras vermelhas. É comum entre os aborígines da Austrália a prática de repintar as representações
rupestres (wondjina), a m de revigorá -las; essa prática é acompanhada de narrativas míticas para invocar
a chuva. L. Frobenius observou o mesmo costume entre os jovens senegaleses.
747
A arte pré -histórica africana
é verdade que, segundo a expressão de J. Ruffie, o homem na origem é um
animal tropical africano, as condições temperadas do norte após as grandes
glaciações permitiram a colonização humana da Europa, que culminou com o
esplêndido desabrochar da arte das galerias subterrâneas, quarenta séculos.
A arte mural africana é muito posterior. Na opinião de certos autores, como E.
Holm, suas origens datam do Epipaleolítico; mas ela marcou essencialmente o
período Neolítico
4
.
Tomou -se o hábito de batizar os grandes períodos da arte mural com o
nome do animal que lhe serve de referência tipológica. Assim, quatro grandes
sequências foram caracterizadas pelo búbalo, o boi, o cavalo e o camelo.
O búbalo (Bubalus antiquus) era uma espécie de búfalo gigantesco que data,
segundo os paleontólogos, do início do Quaternário. É representado desde o
começo da arte rupestre (aproximadamente 9000 B.P.) até cerca do ano 6000
B.P. Outros animais que marcam este período são o elefante e o rinoceronte.
Quanto ao boi, trata -se tanto do Bos ibericus ou bachyceros, com chifres curtos e
grossos, como do Bos africanus, dotado de magníficos chifres em forma de lira.
Ele aparece por volta do ano 6000 B.P.
O cavalo (Equus caballus) aparece por volta do ano 3500 B.P., por vezes
atrelado a um carro
5
. O estilo do galope aéreo, embora não seja realista, é
naturalista na trilha ocidental do Marrocos ao Sudão, sendo, contudo, muito
esquematizado na “rota oriental do Fezzan
6
. Aqui estamos muito no
período histórico em que o hipopótamo desaparece das representações rupestres,
o que sem dúvida indica o fim das águas perenes. O camelo fecha a fila desta
4 O Neolítico saariano mostra -se cada vez mais antigo à luz das descobertas recentes. Um sítio neolítico
que continha cerâmica no maciço de Hoggar foi datado de 8450 B.P. pelo método do carbono 14; é,
pois, praticamente contemporâneo do Neolítico do oriente próximo. Ver também as datas sugeridas por
D. Olderogge no Capítulo XI para dois sítios na Núbia: Ballana (12.050 B.P.) e Toshké (12.550 B.P.).
Em In -Itinem foram encontrados restos de alimentos em um abrigo sob rocha decorado com pinturas
do período bovidiano. A ocupação mais antiga foi datada pelo carbono 14 de 4860 ±250 B. P. No maciço
de Acacus (Líbia), F. Mori encontrou, entre duas camadas com restos de ocupação, um fragmento de
parede desabada com pintura do período bovidiano. As duas camadas foram datadas, descobrindo -se
que o fragmento de parede data de 4730 B.P. (Ver H. LHOTE, 1976, p. 102 e 109). Também é citada
a data de 7450 B.P. para o período bovidiano médio de Acacus, cf. H. J. HUGOT, 1974, p. 274. J. D.
CLARK indica uma data de 6310 ±250 B.P. para Solwezi (Zâmbia). Por outro lado, a data indicada na
tese de J. T. LOUW para o abrigo de Mattes (Província do Cabo, 11.250 ±400 B.P.) é considerada pouco
segura. O caso de Tin -Hanakatem é extraordinário: pode -se estabelecer uma correlação entre os afrescos
e toda uma série de níveis neolíticos e proto -históricos que contêm esqueletos, ou seja, uma estratigraa
humana fácil de datar, incluindo até mesmo um nível ateriense. Cf. “Découverte exceptionnelle au
Tassili”, Archeologia, n. 94, maio 1976, p. 28 e 29.
5 A chegada do cavalo à África é frequentemente relacionada à chegada dos hicsos ao Egito. Ver a esse
respeito J. KI -ZERBO, 1973, p. 99.
6 A respeito das “rotas dos carros”, ver R. MAUNY, 1961.
748
Metodologia e pré -história da África
caravana histórica. Levado para o Egito aproximadamente no ano -500 pelos
conquistadores persas, aparece com frequência no início da Era Cristã
7
.
Em se tratando da pré -história, o principalmente os dois primeiros períodos e o
icio do peodo equidiano que nos interessam neste trabalho. São eles que marcam
a vida ativa desse espaço imenso, que mais tarde se tornaria o deserto do Saara.
Por outro lado, no interior de cada grande peodo, os especialistas, obcecados pela
subdivio cronogica, discutem os subpeodos. Mas as descobertas prosseguem; e
é preciso tomar cuidado para não colar apressada e rigidamente etiquetas zoológicas
sobre períodos inteiros de um passado o pouco conhecido. Trata -se antes, se é
que posso me expressar assim, de dinastias animais iconograficamente muito vagas,
com inúmeras superposições. O carneiro, por exemplo, classificado como posterior
ao balo e ao elefante, parece ser às vezes seu contemporâneo. Es presente nas
mesmas paredes, representado com as mesmas cnicas e apresentando a mesma
pátina. Talvez ele fosse pré -domesticado ou mantido em cativeiro, para fins religiosos.
Da mesma forma, os grandes bois gravados de Dider (Tassili), um deles com mais de
5 m, com grandes chifres em lira incorporando um símbolo, parecem contemponeos
do búbalo. O boi com pingente de Oued Djerat é colocado por alguns especialistas no
período bubálico. Por outro lado,o frequentes as representações de novos animais,
como por exemplo as corujas de Tan -Terirt, que, em número de aproximadamente
quarenta, sobrepõem -se às imagens de bovinos.
Fora da região do Saara, os grandes peodos geralmente o posteriores e se
definem por cririos que variam de autor para autor, sobretudo entre os que, para
estabelecer uma periodizão, apóiam -se, às vezes, emcnicas,neros e estilos
8
.
Técnicas, gêneros e estilos
Técnicas
As gravuras
As gravuras encontradas nos locais onde também existem pinturas são, em
geral, anteriores a estas, e sua melhor técnica surge nos períodos mais recuados.
Aparecem sobre rochas areticas menos duras, mas tamm em granitos
7 Entretanto, o camelo parece ser conhecido desde o período faraônico. Cf. E. DEMOUGEOT, 1960, p.
209 -47.
8 Na África meridional, com base na forma do traço, na técnica de trabalho da rocha (incisão, martelagem
mais ou menos acentuada, polimento, etc.) e no tipo de seres representados, certos autores distinguem
dois grandes períodos, o primeiro com duas fases e o segundo com quatro.
749
A arte pré -histórica africana
F . Rinoceronte, Blaka, Níger (Foto H. J. Hugot).
F . Gazela, Blaka, Níger (Foto H. J. Hugot).
F . Bovino, Tin Rharo, Mali (Foto H. J. Hugot).
F . Elefante, In -Ekker, Saara argelino (Foto H.
P. C. Haam).
750
Metodologia e pré -história da África
e quartzitos, sendo executadas com uma pedra apontada golpeada com um
percutor neolítico. Alguns exemplares de percutores foram encontrados nos
locais das gravuras. Dispondo apenas desse equipamento mínimo, conseguiu-
-se grande precisão técnica. O elefante de Bardai é delineado com um traço
leve e simples; é quase um esboço, mas mostra o essencial.os elefantes de In
Galjeien (Mathendous) e de In -Habeter II e o rinoceronte de Gonoa (Tibesti)
são profundamente burilados com um traço ao mesmo tempo pesado e cheio
de vida. Os entalhes, em forma de V ou de U, têm aproximadamente 1 cm de
profundidade; foram feitos com uma machadinha de pedra ou com um pedaço
de madeira bem dura, utilizando talvez areia úmida como abrasivo. Algumas
vezes, parece que várias técnicas foram combinadas; por exemplo, a martelagem
delicada e a incisão em forma de V. A piquetagem prévia deixou, aqui e ali, traços
de asperezas no fundo da ranhura. O polimento final era acompanhado por um
trabalho de cinzelamento. Indiscutivelmente, a execução dessas gravuras exigiu
por vezes habilidades atléticas. No Oued Djerat, por exemplo, um elefante
de 4,5 m de altura e esboços de um rinoceronte de 8 m de comprimento.
Acredita -se que, na África central e meridional, as gravuras de contornos
profundamente entalhados estivessem relacionadas a finalidades religiosas,
enquanto os desenhos feitos com ranhuras mais delicadas teriam uma finalidade
pedagógica ou de iniciação. O refinamento provém do fato de que algumas
superfícies, vazadas e polidas com brilhantismo, representam as cores das
peles dos animais ou dos objetos carregados por eles. Encontramos uma
prefiguração dos baixos -relevos do Egito faraônico. Com efeito, a figura aparece,
por vezes, como um relevo entalhado na rocha vazada com essa finalidade
(camafeu). A rocha -matriz é utilizada de maneira muito apropriada. Citamos
como exemplo uma girafa que foi gravada num bloco alongado de diabásio
cujo formato combina perfeitamente com o da girafa (Transvaal ocidental).
Na região de Leeufontein, um rinoceronte foi entalhado sobre uma rocha de
superfície áspera e com arestas angulosas que reproduzem exatamente a carapaça
do animal. Na colina de Maretjiesfontein (Transvaal ocidental), uma zebra
quagga foi representada por entalhe e piquetagem sobre um bloco de diabásio e
seu maxilar inferior coincide com uma pequena saliência da pedra que lembra
sua forma anatômica. No Museu do Transvaal há um esplêndido anlope
macho cuja crina foi reproduzida por linhas piquetadas, e a mecha frontal,
por entalhes delicados. As cores interna (azul) e superficial (ocre vermelho) da
rocha são utilizadas com perfeição para realçar os contrastes. Outra obra -prima
dos gravadores pré -históricos africanos é o grupo de girafas de Blaka, com suas
pelagens manchadas, suas patas em posições extremamente naturais e mesmo
751
A arte pré -histórica africana
suas caudas em movimento oscilante. Em seu aspecto global, porém, a técnica
começou a decair. durante o período chamado bovidiano, as gravuras são
frequentemente medíocres, como é o caso das girafas de El Greiribat, entalhadas
com piquetagem larga e grosseira.
As pinturas
As pinturas não devem ser completamente dissociadas das gravuras. Em
Tissoukai, por exemplo,esboços gravados sobre as paredes, sugerindo que os
artistas gravavam antes de pintar. Também aqui os trabalhos artísticos exigiam, às
vezes, proezas atléticas. Em Uede Djerat, há uma pintura do período equidiano
com 9 m de comprimento, feita num teto com uma inclinação abrupta. Em
alguns sítios do Tassili, como Tissoukai, as pinturas aparecem a mais de 4 m de
altura, como se a intenção fosse evitar as partes inferiores ao alcance do homem;
para isso, foi necessário utilizar escadas rudimentares e até mesmo andaimes.
As pinturas são monocromáticas ou policromadas, conforme o caso
9
. No
baixo Mertoutek, era usado o caulim roxo; no abrigo da face sul do Enneri
Blaka, o caulim ocre vermelho de tipo sangneo; em outros locais, uma
paleta furta -cor com uma tal combinação de tons que era capaz de recriar
as condições e o equilíbrio da realidade. Para tanto, fazia -se necessária uma
técnica bastante complexa, tendo sido encontrados vestígios de ateliês. Em
In -Itinem, por exemplo, pequenas mós chatas e minúsculos trituradores para
pulverizar rochas, assim como pequenos godês de pintura, foram descobertos
nas escavações. Os pigmentos revelaram -se muito resistentes, conservando
até hoje um viço e um frescor extraordinários. A gama relativamente rica é
constituída de algumas cores básicas: o vermelho e o marrom, provenientes do
ocre tirado do óxido de ferro; o branco, obtido a partir do caulim, do excremento
de animais, do látex ou de óxidos de zinco; o preto, extraído do carvão vegetal,
de ossos calcinados e triturados ou da fumaça e da gordura queimada. Além
dessas cores, eram utilizados também o amarelo, o verde, o violeta, etc. Depois
de finamente triturados num almofariz com um pilão, esses ingredientes eram
misturados com um quido, talvez leite (cuja caseína é uma excelente liga),
gordura derretida ou, ainda clara do ovo, mel, ou tutano cozido. Isso explica o
viço dos tons que perdura milênios. As cores eram aplicadas com os dedos,
com penas de pássaros, com espátulas de palha ou de madeira mascada, com
pêlos de animais presos a um graveto por meio de tendões, e também por um
9 LAJOUX, J. D. 1977, p. 151.
752
Metodologia e pré -história da África
processo de pulverização em que o líquido era borrifado com a boca. Foi através
desse último processo que foram realizadas as mãos em negativo, visíveis até
hoje nas paredes rochosas, e que constituem uma espécie de assinatura original
dessas obras -primas.
Algumas vezes faziam -se correções nas pinturas, mas sem apagar os traços
anteriores. É essa a origem dos bovinos com quatro chifres, homens com três
braços, etc. Também nas pinturas as características da rocha eram utilizadas de
modo engenhoso, como, por exemplo, em Tihilahi, onde uma fenda natural da
parede tornou -se o bebedouro sobre o qual a manada se inclina
10
.
As joias
A arte ligada aos adornos não exige uma cnica menos desenvolvida,
muito pelo contrário. Algumas contas são de cornalina, rocha extremamente
dura. As técnicas dos joalheiros podem ser reconstituídas através do estudo
dos restos deixados em diversas etapas de seu trabalho. Inicialmente, discos
planos eram desprendidos por percussão, depois por fricção. Em seguida, uma
lasca pontiaguda, grossa e quadrangular era destacada de um bloco de sílex e
servia como buril. Sua ponta aguçada era cravada no centro do disco em ambos
os lados, alternadamente, produzindo dois furos alinhados. O momento mais
delicado do trabalho era fazer os dois furos coincidirem. O estilete de sílex se
transformava então numa broca giratória e, com a ajuda de areia fina misturada
com resina vegetal, limava o furo central até abri -lo por completo. Outras pedras
igualmente duras (amazonita, hematita, calcedônia) também eram utilizadas,
assim como o osso e o marfim, na confecção de pingentes, braceletes e adornos
para o tornozelo. A pedra -pomes era usada para polir esses ornamentos. Em
Tin Hanakaten, foram descobertas algumas brocas de microdiorito no meio de
contas feitas com casca de ovo de avestruz.
A cerâmica
A pasta para a cerâmica era preparada com uma liga feita com estrume de
ruminantes. A seguir, um cordel desse material era enrolado sobre si mesmo e
trabalhado com os dedos e com um instrumento alisador. O gargalo desses potes
tem ltiplas formas: anelados, alargados, inclinados, curvos. O cozimento
devia ser impecável, a julgar pelas cores matizadas que vão do rosa ao marrom-
10 LAJOUX, J. D. 1977, p. 151.
753
A arte pré -histórica africana
-escuro. O engobe era conhecido, assim como o verniz vegetal, utilizado ainda
hoje na cerâmica da África e para laquear ou ornamentar o assoalho, o telhado
ou as paredes das casas. As decorações, magníficas, eram feitas com pentes de
osso, espinhas de peixe, impressões de espigas de milho, corda e grãos, com
uma riqueza de imaginação que se expressa através de uma grande variedade
de motivos. Em Uede Eched, no norte do Mali, fornos de ceramistas agrupados
em local isolado atestam a importância do trabalho desses artífices, que nada
ficava a dever à habilidade de seus congêneres de Es -Shaheinab, no Sudão
Cartumiense
11
.
A escultura
A escultura também está presente, limitando -se, no entanto, a miniaturas: um
ruminante deitado em Uede Amazzar (Tassili); um boi deitado em Tarzerouck
(Hoggar); uma pequena lebre com longas orelhas caídas sobre o corpo em
Adjefou; uma impressionante cabeça de carneiro em Tamentit, no Touat; uma
escultura de pedra antropomórfica em Ouan Sidi, no Erg oriental; uma cabeça
de coruja esplendidamente estilizada em Tabelbalet; estatuetas de argila que
representam formas estilizadas de pássaros, mulheres e bovídeos, um dos quais
ainda apresenta dois pequenos ramos à guisa de chifres, em Tin Hanakaten.
Tipos e estilos
Em termos gerais, é possível distinguir no Saara três grandes tipos e estilos
que coincidem aproximadamente com os períodos mencionados acima.
O primeiro é o tipo arcaico, de tamanho monumental, seminaturalista ou
simbolista. O homem parece estar ainda sob o impacto das primeiras emoções
perante a força dos animais selvagens que é preciso dominar, eventualmente
através da magia. Podemos distinguir dois estágios. O primeiro é o estilo
bubálico”, localizado sobretudo no sul de Orã, no Tassili e no Fezzan, que
apresenta gravuras caracterizadas por um agudo senso de observação. As figuras
são exclusivamente de animais, em geral de grande porte, e com frequência
isolados. O estilo seminaturalista, despojado e austero, limita -se aos traços
essenciais, feitos com maestria. Exemplos desse estilo são o rinoceronte e os
pelicanos do Uede Djerat (Tassili), o elefante de Bardai (Chade), o elefante de In
Galjeien no Uede Mathendous. O segundo estágio se caracterizou por antílopes
11 Cf. HUGOT, J. H. 1974, p. 155.
754
Metodologia e pré -história da África
F . Pintura rupestre,
Namíbia (Foto A. A. A., Myers,
n. 3672).
F . Pintura rupestre,
Tibesti, Chade (Foto Hoa -Qui,
n. ART 11003).
755
A arte pré -histórica africana
e argalis, geralmente pintados. Os homens estão em toda a parte, com suas
cabeças redondas”. O estilo ainda é seminaturalista e, às vezes, simbolista; mas
as linhas, em vez de sóbrias, são ao contrário animadas, até mesmo dinâmicas
ou patéticas. Os ritos mágicos estão próximos; podemos senti -los nos animais
totens, nos homens mascarados, nas danças rituais, etc. As figuras isoladas não
são próprias desta fase. Existem representações de pequeno porte, mas também
frisos e afrescos compostos, os maiores do mundo. Esse estilo, concentrado no
Tassili, é visto em cenas que retratam argalis com chifres poderosos, dançarinos
mascarados como em Sefar (sítio epônimo, segundo J. Lajoux), a sacerdotisa de
Ouanrhet (chamada de Dama Branca).
O segundo grande tipo é o da pintura e da gravura naturalistas com figuras
de tamanho pequeno, isoladas ou em grupos. O estilo é claramente descritivo.
se pode sentir que o homem é ativo e que domina e controla os bovinos,
caninos, ovinos e caprinos. As cores se multiplicam. É o Saara das aldeias e dos
acampamentos. O sítio epônimo seria Jabbaren.
O terceiro tipo estilístico é esquemático, simbolista ou abstrato. As técnicas
anteriores são conservadas, mas frequentemente entram em decadência. Todavia,
não se deve crer que tal decadência tenha sido generalizada. As técnicas de
gravura, sobretudo, decaem: os contornos são vagos, o pontilhado e a piquetagem
grosseiros. Na pintura, porém, o estilo do traço fino, apesar de inferior em
certos aspectos ao traço austero e vigoroso dos estágios anteriores, permite
apreender melhor o movimento, às vezes de três quartos de perfil; ele se presta
bem à estilização e às fórmulas novas. A elegância dos traços do homem de
Gonoa (Saara do Chade), por exemplo, lembra um bico -de -pena, em que
os olhos, as pupilas, os cabelos, a boca e o nariz são representados com uma
precisão quase fotográfica. Também a técnica da aquarela permite obter nuances
muito delicadas, como no caso do pequeno antílope de lheren (Tassili) com
patas vacilantes, que vem mamar em sua mãe que abaixa ternamente a cabeça.
Este gênero é adequado à estilização de cavalos e carroças, posteriormente de
dromedários, e também do homem que é representado com dois triângulos,
como em Assedjen Ouan Mellen, ou que tem apenas um longo pescoço em
lugar de caba. Existem, portanto, tenncias simultâneas à precio do
traço e ao esquematismo geométrico um pouco descuidado, que se combina,
no fim do período, com os caracteres alfabéticos líbico -berberes ou tifinagh.
Um grande mero de detalhes, como as selas árabes com contraborraina,
obviamente posteriores ao século VII da Era Cristã, permitem comprovar que
essas composições não pertencem à pré -história.
756
Metodologia e pré -história da África
Alguns comentários se fazem necessários a propósito desses estilos que
evoluem sem limites cronológicos precisos. O segundo estágio do estilo arcaico,
em particular, é bastante heterogêneo. O bovino que anda a passo lento, de Sefar,
não tem nada em comum com as cabeças mascaradas e os motivos simbolistas.
Por outro lado, certos estereótipos atravessam vários tipos e estilos, tal como a
técnica pictórica que consiste em representar os bovídeos com os chifres de frente
e a cabeça de perfil, encontrada em Ouan Render. São também estereotipados
certos gestos e atitudes, como a dos pastores que têm um braço estendido
enquanto o outro está dobrado sobre a cintura. Enfim, nota -se claramente a
existência de certos temas regionais: o carneiro no sul de Orã, a espiral no Tassili,
que não aparece no Fezzan nem no sul de Orã. Em compensação, os temas
sexuais caracterizam sobretudo o Fezzan e o Tassili.
No que diz respeito ao estilo dos adornos, foram encontrados no Capsiense
Superior ovos de avestruzes gravados com motivos geométricos. Mas é
sobretudo ao Neolítico de tradição sudanesa que devemos os instrumentos e
armas artísticas, os esplêndidos broches de sílex jaspeado, envernizados em verde
e vermelho -escuro, a cerâmica decorada com linhas onduladas (wavy line), as
pontas de flechas de Tichitt, com suas denticulações cuidadosamente polidas e
seu perfeito formato triangular.
Nas outras regiões da África, a tipologia ainda es sendo estudada. Na
Namíbia, por exemplo, um autor menciona a existência de vinte estratos e estilos
de cores diferentes, com quatro grandes fases: 1. fase dos grandes animais em
estilo arcaico, sem figuras humanas; 2. painéis de pequenas dimensões com
representações humanas; 3. fase monocromática com cenas de caça e danças
rituais cheias de vida; 4. fase policromada que atinge o apogeu estético, como
no abrigo de Philipp Cave (Damaraland) e nas pinturas de Brandberg, datadas
do ano 1500 B.P.
L. Frobenius, por sua vez, distingue dois estilos principais de arte rupestre
na África meridional. Na ponta sul do continente, do Transvaal ao Cabo, do
Drakensberg oriental às falésias da costa da Namíbia, trata -se de uma arte
naturalista”, na qual predominam os animais, quase sempre representados
isoladamente, com uma habilidade consumada que reproduz com exatidão as
dobras da pele de um paquiderme e as listras da pelagem de uma zebra. Mas essa
arte é inanimada e fria, ainda que as pinturas sejam policromadas e compostas,
e as cores aplicadas por fricção com notável habilidade. Trata -se de cenas bem
estruturadas de caçadas, de danças, de procissões e de conselhos. Por outro lado,
do centro do Transvaal ao Zambeze (Zâmbia, Zimbabwe, Malavi), a arte é
fundamentalmente monocromática, baseada no vermelho ou no ocre dos óxidos
757
A arte pré -histórica africana
de ferro, às vezes aproximando -se do violeta. A rocha -suporte é o granito e não o
arenito, como no caso precedente. A técnica utilizada é o desenho, que é tão fiel
ao real quanto as “aquarelas” do sul; no entanto, não se trata de uma fidelidade
mecânica. A realidade é, algumas vezes, interpretada em composições cênicas
em que se nota uma prodigiosa fertilidade de imaginação
12
.
O homem é retratado com ombros largos e cintura estreita, ou seja,
“cuneiforme”. Visto de frente, seus membros aparecem de perfil, como nos
baixos -relevos egípcios. No sul, os personagens são mais naturais, com membros
mais harmoniosos, em cenas de caça e de combate, que às vezes se confundem.
No norte, cenas de funerais solenes, talvez exéquias reais, com personagens
demonstrando sentimentos pungentes de pesar. A fauna, ao contrário, na grande
caverna de Inoro, por exemplo, desfila não como uma arca de Noé, cuidadosamente
organizada, mas como um bestiário fantasmagórico: pássaros gigantescos com
bicos semelhantes a mandíbulas de crocodilos, elefantes enormes com o dorso
denticulado, animais bicéfalos. Por vezes, são mitos elaborados, como o da chuva.
O pano de fundo desses afrescos fantásticos consiste em verdadeiras paisagens
onde os rochedos estilizados, as árvores identificáveis do ponto de vista botânico
e os lagos piscosos estão dispostos de maneira inteligente. Essa é a arte do
Zimbabwe, menos animada fisicamente que a do Sul, mas carregada de emoções
tumultuosas ou pungentes. Segundo Frobenius, o estilo “cuneiforme” estaria
ligado a uma civilização altamente desenvolvida, e sabemos que na região de
Zimbabwe existiram tais civilizações. Também de acordo com ele, esse estilo
anguloso e austero foi substituído por um estilo de traços mais arredondados e
flexíveis, mais afetado e efeminado, quando as sociedades que o haviam inspirado
entraram em decadência
13
.
No Alto Volta, as gravuras rupestres no norte do país (Aribinda) têm um
estilo seminaturalista ou esquemático, enquanto no sul elas são sobretudo de
forma geométrica. Também existem pinturas nas cavernas da falésia de Banfora.
Na África central, as pesquisas revelaram sítios que comprovam a ocupação
humana desde o pré -Acheulense até a Idade dos Metais. Foram localizados
alguns centros de arte rupestre: o abrigo de Toulou na região de Ndele, habitado
desde a pré -história até hoje, e que apresenta personagens estilizados, pintados
de vermelho e muito antigos, e figuras pintadas de branco, com as mãos na
12 A representação da caça e dos animais é, no conjunto, naturalista, às vezes, por razões mágicas, pois a
imagem deve reproduzir o mais exatamente possível o objeto do rito. Por outro lado, as efígies humanas
são, com frequência, deliberadamente esquemáticas; trata -se de protegê -las contra as inuências mágicas.
13 HABERLAND, E. 1973, p. 27.
758
Metodologia e pré -história da África
cintura; o abrigo de Koumbala; os sítios de gravuras nas cabeceiras do Mpatou
e os sítios de Lengo (Mbomou). Essa arte tem muito pouco em comum com a
do Saara, relacionando -se mais com as pinturas da África oriental e meridional
14
.
Motivações e interpretações
As representações rupestres foram denominadas petroglifos. De fato, mais
que qualquer outra, essa arte representa uma linguagem de signos, isto é, uma
ponte entre o real e a ideia. É um símbolo gráfico que requer uma chave para
ser entendido. O desconhecimento das condições sociais de produção dessa
arte é, na verdade, a maior desvantagem para sua correta explicação. Por isso, é
importante não fazer interpretações apressadas, omitindo a etapa da descrição do
próprio signo, ou seja, a análise formal. Ora, frequentemente, a própria descrição
é feita em termos de interpretação. O ideal seria uma abordagem estatística,
que permitiria proceder ao levantamento de dados quantitativos e qualitativos
do maior número possível de pinturas, a fim de tornar viável uma análise
comparativa
15
. Seria possível verificar, por exemplo, se os conjuntos de signos
encontrados num certo número de quadros obedecem a uma dinâmica qualquer
no tempo e no espaço. Mas a sequência evolutiva reconstituída será tanto mais
plausível quanto mais completa a documentação. Enfim, essas hipóteses, que
resultam da análise formal, poderão ser confirmadas se concordarem com a
massa de dados que constituem o sistema global dessa sociedade. De fato, um
quadro pré -histórico é apenas uma parcela mínima de um macro -sistema de
informação, isto é, de uma cultura que compreende muitos outros semelhantes.
Nesse nível de análise, verificamos o quanto é complexo o sistema de signos
a que precisamos chegar para apreender o verdadeiro significado de uma
representação estética. Sem contar que esta última, além do significado óbvio,
pode apresentar um outro oculto, pois o signo é não somente signo de algo,
mas também signo para alguém (simbolismo). É necessário, portanto, passar da
morfologia à sintaxe social e do simples comentário de um quadro puramente
naturalista; cujo significado é evidente, à decodificação da mensagem cifrada de
um quadro abstrato. E nesse ponto que a referência ao contexto cultural se torna
14 R. de BAYLES des HERMENS, 1976.
15 Essa abordagem quantitativa pode eventualmente passar por uma análise de computador, com as devidas
precauções. A esse respeito, ver os trabalhos de A. Striedter no Instituto Frobenius de Frankfurt, dirigido
pelo Professor Haberland.
759
A arte pré -histórica africana
indispensável, pois os objetos são representados de maneiras diferentes segundo
as culturas. Quanto mais um signo está afastado do objeto designado, mais ele
é específico de uma cultura, mais ele serve de indicador. Exatamente como uma
mesma onomatopeia que, presente em várias línguas, não caracteriza nenhuma
delas de modo especial; nada mais é que o reflexo de uma mesma natureza
comum. Isso não ocorre com uma palavra típica de uma determinada língua.
Podemos então considerar as grandes galerias de arte como estações emissoras
de mensagens culturais. Mas, quais são os receptores? Será que essas estações
não emitiam mensagens sobretudo para os próprios produtores e também para
o conjunto de sua sociedade, a qual nos deixou uma quantidade demasiado
pequena de outros vestígios que pudessem facilitar a leitura e a decodificação
dessas mensagens? Em resumo, a problemática e os métodos de exploração
estética devem chegar a uma definição dos tipos de cultura que o a base
dessas manifestações parciais. Delimitando os espaços culturais em que estão
mergulhados, podemos reconstituir o contexto histórico em que elas se inseriam.
É por esse motivo que a descrição de pinturas rupestres africanas por meio
de fórmulas ou legendas, como Os juízes de paz, A dama branca, O arrancador
de dentes, Josefina vendida pelas irmãs, Os marcianos, é inadequada, pois transfere
e aliena todo um conjunto cultural, interpretando -o através do código de um
único observador ou de uma outra civilização
16
. Podemos estabelecer como
princípio geral que a arte pré -histórica africana deve ser interpretada sobretudo
a partir de referências autóctones. Apenas quando a solução para um problema
não for encontrada no ambiente espaço -temporal e cultural do lugar, da região
ou do continente, é que podemos procurar suas causas em outra parte.
Assim, existem duas abordagens principais para a interpretação da arte pré-
-histórica: a idealista e a materialista. Segundo a explicação idealista, essa arte
expressava principalmente a visão de mundo das populações da época.
Essas concepções, sozinhas, explicam tanto o conteúdo quanto a própria
execução das representações. E importante, pois, que nos libertemos do jugo
racionalista: A arte do sul da África”, escreve Erik Holm, aparece sob sua
verdadeira forma se a consideramos como a manifestação do fervor religioso e
da necessidade de transcender as coisas; essa foi a metafísica da humanidade
primitiva e as imagens zoomorfas o apenas uma scara que disfarça a
16 Sobre esse assunto, ver as observações pertinentes de J. D. LAJOUX, 1977, p. 115 et seqs. Sem negar o
direito ao humor nem a imensa cultura do Abade Breuil e os eminentes serviços que prestou ao estudo
da pré -história em geral e da África em particular, devemos dizer que frequentemente ele se deixou levar
por essa tendência.
760
Metodologia e pré -história da África
F . “Pista da Serpente”, pintura rupestre (Foto A. A. A., Mauduit, n. 35 C).
F . Dama Branca, pintura rupestre (Foto A. A. A., Duverger, n. DUV -4852).
761
A arte pré -histórica africana
verdadeira natureza das aspirações humanas. Em vez de nos deixarmos levar
por polêmicas, contentemo -nos com as indicações fornecidas pelo mito; elas
são suficientemente explícitas”
17
.
Nessas condições, o simbolismo mitológico e cosmonico é a chave
principal para explorar o universo da arte rupestre. L. Frobenius desenvolveu
brilhantemente as mesmas teses, embora ele acrescente também considerações
sociológicas.
Diz -se que, em Leeufontein, o leão foi gravado sobre a face lateral da rocha
para ser iluminado pelos primeiros raios do sol porque ele representa o astro
do dia, enquanto o rinoceronte está voltado para o poente por ser espírito da
noite e da escuridão. O rinoceronte, cujos chifres simbolizam o crescente da lua
nova, é considerado pela tradição como o assassino da lua. E. Holm refere -se
também à “finalidade ritual das cavernas situadas nos maciços afastados. A
lenda cosmogônica, coletada entre os San no século XIX pelo filólogo alemão
Willem Bleek, levou -o a afirmar que eles não fazem distinção entre a matéria e
o espírito”. O antílope do Cabo desenhado com os membros atrofiados simboliza
a lua nascente. Quando aparece diante de figuras humanas, como na galeria de
Herenveen (Drakensberg), presume -se que esteja sendo adorado. O ágil cabrito
montês listrado de vermelho simboliza a tempestade, o louva -a -deus simboliza
o raio e o elefante, a nuvem de chuva (como vemos no Monte Saint -Paul,
Drakensberg). Esse mito pode ser encontrado não somente em outras partes da
África (Philipp Cave na Namíbia, Djebel Bes Seba e Ain Guedja na Argélia),
mas também num marfim gravado em La Madeleine, na França.
O magnífico antílope do Cabo, no museu do Transvaal, apresenta uma
pelagem cor de mel; isso indicaria simplesmente que o antílope foi criado pelo
louva -a -deus, encarnação do sol, e que o louva -a -deus, a fim de lustrar o pelo
do animal, ungiu -o com mel puro. Se, por vezes, a zebra quagga foi pintada
sem listras, como na caverna de Nswatugi, nos montes Matopo, no Zimbabwe,
é porque originariamente a zebra não era listrada. Ela adquiria as marcas
em sua pelagem depois de seu dorso ter sido queimado pelos raios do sol. De
acordo com esse ponto de vista, bastaria possuir, nos seus menores detalhes, o
metabolismo panteísta das origens africanas para dispor de uma espécie de
chave mestra que permitiria decifrar todos os enigmas da arte rupestre africana,
qualificada como atemporal como omito”. Mas, confessemos, isto é mais bonito
que verdadeiro.
17 HOLM, E. L Art dans te Monde. L’Age de pierre, p. 183 et seqs.; p. 170 et seqs., etc.
762
Metodologia e pré -história da África
Os adeptos da abordagem materialista, por outro lado, afirmam que a arte
pré -histórica, como qualquer outra, nada mais é que o reflexo da existência
concreta dos homens de uma determinada sociedade: um momento ideológico
e um instrumento superestrutural que expressa um certo equilíbrio ecológico e
sociológico e permite ao homem preser-lo ou melhorá -lo em seu favor.
Em nossa opinião, é possível fazer uma síntese dessas duas abordagens, que,
isoladas, seriam incompletas. A arte pré -histórica africana foi incontestavelmente
um veículo de mensagens pedagógicas e sociais. Os San, que constituem hoje o
povo mais próximo da realidade das representações rupestres, afirmam que seus
antepassados lhes explicaram sua visão do mundo a partir desse gigantesco livro
de imagens que são as galerias. A educação dos povos que desconhecem a escrita
está baseada sobretudo na imagem e no som, no audiovisual, fato comprovado
até hoje pela inicião dos jovens na África subsaariana. Os petroglifos da
arte são algo semelhante. No entanto, é evidente que o mito não explica tudo,
pois, antes de produzir o mito, é necessário produzir e reproduzir a própria
sociedade. Assim, o mito pode se tornar um meio privilegiado para melhorar
(ou deteriorar) as forças produtivas e as relações de produção. Aliás, o próprio
E. Holm sugere isso quando cita o caso do jovem San convencido de que a
ponta de flecha talhada em quartzo brilhante é uma parte da estrela que ele
invoca ao afiar o gume: Você, que nunca erra o alvo, você, que é infalível, faça-
-me atingir minha presa!” Essa frase é de alcance essencialmente utilitarista, ao
contrário da conclusão idealista de Holm. Para sobreviver, o homem ordena e
mobiliza o Universo. É essa a função do mito, mas não creio que seja a única
18
.
Não devemos permitir que a floresta de símbolos nos impeça de ver as árvores
da realidade concreta.
Na verdade, às vezes a função espiritual pode existir de modo autônomo,
servindo então subjetivamente não mais como um meio, mas como um fim em
si. O mito representa para o homem um modo de compreender o Universo,
organizando -o, ou seja, racionalizando -o de uma determinada maneira, visto que
uma certa lógica imanente no discurso mitológico. A finalidade espiritual existe,
portanto, mesmo quando carregada de conteúdos infra -estruturais. Representar
um ser temido é, de fato, libertar -se dele; mantê -lo sob nosso olhar significa
dominá -lo. O silêncio mineral quase palpável que existe nos corredores rochosos
18 Do ponto de vista propriamente historiográco, devemos assinalar que os mitos estão, às vezes, repletos de
ensinamentos. Assim, segundo os San, o sol, cansado de ser carregado nas costas da zebra, abandonou -a
para se refugiar entre os chifres de um touro. Isso nos leva ao outro extremo do continente, às gurações
norte -africanas (sul de Orã, Saara, Egito) de bovídeos com discos solares. Teria Hátor, a deusa -vaca,
nascido de um mito pan -africano?
763
A arte pré -histórica africana
secretos e fechados em In -Itinem e Tissoukai significaria o recolhimento dos
santuários e locais de iniciação ou o esconderijo de animais encurralados ou
roubados? Talvez os dois. As figuras mascaradas com cabeças zoomorfas e os
animais com atributos cefálicos (discos, auréolas, barras, etc.)
19
, frequentemente
associados no sul de Orã e no Oued Djerat, fazem lembrar personagens em
posição de oração diante dos animais. Também os três caçadores mascarados
de Djerat, que parecem cercar um búfalo que traz um disco sobre a cabeça,
representam talvez uma cena de magia. Sendo as máscaras ainda hoje utilizadas
por alguns povos africanos, por que não basear a interpretação de tais cenas
nessa problemática cultural, em vez de nos entregarmos à pura especulação?
Descobriríamos que nem sempre a explicação é de fundo religioso. Até hoje, os
caçadores da zona do Sahel usam uma cabeça de calau que balançam para cima
e para baixo, imitando esse pássaro, para, andando de quatro, se aproximarem
de um antílope antes de atirarem suas flechas. Às vezes, porém, a desproporção
entre os meios e o resultado é tamanha que sugere fortemente o uso da magia,
como quando um homem mascarado arrasta sem esforço um rinoceronte
abatido com as patas para o ar, numa gravura de In -Habeter (Líbia). Certos
ritos de fecundidade aparecem claramente no comportamento das figuras que
parecem entregues a cópulas rituais, como o coito entre uma mulher e um
homem mascarado em Tin Lalan (Líbia), ou nas figuras com falos protuberantes
que executam danças animadas. De fato, a fertilidade era o que mais importava,
sobretudo no fim do período pré -histórico no Saara ou no deserto da Namíbia,
quando todo vestígio de vida recuava diante da seca crescente e implacável.
No sítio neolítico de Tin Felki, foi encontrado um adorno de cornalina
com formato hexagonal, identificado por Hampaté Ba como um talismã de
fertilidade, utilizado até hoje pelas mulheres peul
20
. Nesse caso específico, não
devemos deixar de considerar também a motivação estética. Como os homens e
as mulheres do Neolítico africano pertenciam à categoria sapiens como nós, não
podemos lhes negar um sentimento característico de nossa espécie: o prazer
de criar formas pelo simples e puro gosto de contemplá -las. A admiração que
experimentamos hoje diante dessas criações era ainda mais intensa quando os
quadros acabavam de ser criados, e seus modelos fervilhavam nas vizinhanças.
Os pequenos pilões para pós cosméticos, as contas de amazonita, calcedônia ou
de casca de ovo de avestruz do Ténéré, assim como os contornos soberbamente
19 Ver os célebres exemplos do boi de Maia Dib (Líbia) e do carneiro de Boualem (Atlas Saariano).
20 A cruz de Agadès ou de Iferouane teria se originado do signo de Tanit, símbolo sexual feminino.
764
Metodologia e pré -história da África
F . Detalhe de uma
gravura rupestre, Alto Volta
(Foto J. Devisse).
F . Pintura rupestre,
Namíbia (Foto A. A. A., Myers,
n. 3808).
765
A arte pré -histórica africana
modelados dos machados com garganta são testemunhas do elevado gosto
estético dos africanos daquela época.
São relativamente numerosos os esboços abandonados como insatisfatórios.
Por outro lado, inúmeros quadros estão de tal maneira expostos ao ar livre e aos
transeuntes que não sombra de dúvida acerca de seu caráter profano. Tratava-
-se, em geral, da arte popular. Popular também no sentido de que provavelmente
havia uma intenção histórica na sua criação. De fato, o prazer de recordar e
o desejo de perpetuar a lembrança de feitos individuais ou coletivos também
fazem parte das características de nossa espécie humana. O homem nasceu
cronista, e os artistas da pré -história são os primeiros historiadores africanos,
pois eles nos legaram em termos legíveis os estágios progressivos do homem
africano em suas relações com o meio natural e social.
O peso da história, ou a arte como documento
Em que medida a arte pré -histórica africana é a edição ilustrada do primeiro
livro de história da África?
O meio ambiente ecológico
Em primeiro lugar, a arte pré -histórica constitui um filme documentário
sobre a infra ‑estrutura das primeiras sociedades que viveram em nosso
continente; por exemplo, sobre o seu ambiente ecológico. Esse biótopo pode
ser comprovado diretamente, como no caso dos objetos encontrados in situ, mas
pode também ser deduzido do conteúdo das pinturas. Cabe lembrar, como alerta,
que uma representação estética não é necessariamente uma descrição objetiva
do meio ambiente que lhe é contemporâneo. O artista poderia ter reproduzido
lembranças antigas ou ter materializado miragens e sonhos. Mas, neste caso,
não há nenhuma dúvida, pois os testemunhos concordam com os resultados da
análise geomorfológica que determinou a extensão dos lagos pré -históricos e das
antigas bacias hidrográficas. Num sítio em Adrar Bous, datado de 5140 B.P. pelo
método do C14, H. Lhote descobriu ossos de hipopótamos, o que confirma, por
exemplo, a autenticidade histórica do grupo de hipopótamos reproduzidos em
Assedjen Ouan Mellen. Ora, esse animal é um verdadeiro indicador ecológico,
pois necessita de águas perenes para sobreviver. Um outro indicador é o elefante,
que consome diariamente enormes quantidades de vegetais. O Saara das pinturas
pré -históricas deve ter sido um grande parque com vegetação mediterrânea, da
766
Metodologia e pré -história da África
F . Pinturas rupestres, planalto do Tassili n’Ajjer, Argélia (Fotos A. A. A., 1 e 4 Naud, n
o
12599,
12379; 2 e 3, Sudriez, n
o
31, 43
767
A arte pré -histórica africana
qual ainda hoje restam alguns vestígios. Esse meio ecológico foi substituído
gradativamente por um biótopo “sudanês e saheliano
21
. No período do cavalo
e da carroça, o encontradas algumas representações de árvores, tais como
palmeiras, que sem dúvida indicam a existência de oásis.
Na África meridional, o estilo nórdico (ou rodesiano) é marcado por grande
número de desenhos de árvores, sendo possível identificar algumas delas. Nos
abrigos e nos lugares hoje desertos, havia uma fauna abundante e variada,
ressuscitando, por assim dizer, uma espécie de arca de Noé, um jardim zoológico
petrificado: gravuras de peixes, de animais selvagens, hirsutos e fortes, como
o antigo búbalo com seus chifres enormes de até 3 m de diâmetro, de felinos,
como o guepardo e o protelo, de macacos cercopitecos ou cinocéfalos (em Tin
Tazarift), de avestruzes, corujas, etc. Em todos os lugares aparecem cenas de caça
que lembram a eterna luta entre o homem e os animais selvagens. Essas cenas
cheias de vida e, às vezes, de violência, em que se a vitória da inteligência
sobre a força bruta, não deixam de lembrar os cadores mencionados por
Yoyotte no vale do Nilo pré -dinástico, com bolsas fálicas entre as pernas, suas
armas curvas e “caudas postiças” que, na realidade, como ainda hoje na África
tropical, nada mais eram que uma pele de animal levada a tiracolo. Em Iheren,
uma cena de caça ao leão onde a fera está cercada por lanças ameaçadoras.
Em Tissoukai, um onagro abatido está prestes a ser esquartejado. No vale do
Nilo, na Líbia e em todo o Saara, uma enorme quantidade de pinturas de
armadilhas, demonstrando a engenhosidade multiforme dos homens de então,
que adaptavam suas técnicas ao habitat e aos costumes dos animais
22
.
Essa profusão de pinturas cineticas encontradas desde o Nilo até o
Atlântico evidencia a existência de uma verdadeira civilização de caçadores.
Não escapavam nem mesmo os animais de grande porte, como o elefante, como
se pode ver na grande cena de caça do alto Mertoutek. Em quase toda parte as
armadilhas estão associadas aos símbolos dos caçadores, num padrão cultural
de grande originalidade, que existiu em quase toda a África durante dezenas de
milhares de anos, até uma época bastante avançada no período histórico, como
indica a lenda de Sundiata.
21 Y. e M. Via, 1974.
22 paliçadas e redes, armadilhas com disparador, fossos ou trápolas, mundéus, armadilhas de bloqueio,
de tensão ou torção, como em Dao Timni, na fronteira entre o Níger e o Chade, onde uma girafa está
imobilizada por complexo sistema de tensão que lhe abaixa o pescoço até à horizontal. Para detalhes
das pesquisas sobre esse importante assunto, ver P. Huard e J. Leclant, 1973, p. 136 et seqs.
768
Metodologia e pré -história da África
Essas representações nos mostram também a passagem gradativa do estágio
de espreita ou captura dos animais, para o de seu aprisionamento e, em seguida,
o de sua domesticação. Vemos um homem armado com um arco e conduzindo
um animal preso por uma trela, enquanto uma caçada ao argali, em Tissoukai, é
feita com a ajuda de cães. O galgo saluki representado em Sefar, com sua cauda
enrolada, atravessou os tempos como o companheiro do homem do deserto. Uma
cena de Jabbaren mostra um caçador à espreita diante de um animal selvagem;
equipado com uma arma curva, ele está sendo seguido por um outro animal
também à espreita, mas que parece domesticado. As variedades de bovídeos são
retratadas: Bos ibericus com chifres curtos e espessos no sul, Bos africanus com
grandes chifres em forma de lira em Taghit, Jabbaren, etc. Às vezes esses animais
aparecem com um pingente no pescoço (Oued Djerat).
Existem ainda bovídeos com chifres esplendidamente trabalhados e
decorados, artificialmente retorcidos em forma de espiral como em In -Itinem.
A variedade de jumento caçada em Tissoukai é a mesma domesticada desde
o Neolítico, quando é visto montado por um homem. também ovinos e
caprinos. Até mesmo embarcações são reproduzidas, como em Tin Tazarift, com
um perfil que lembra os barcos de papiro dos lagos e rios do Sudão chadiano
e da Núbia.
O contexto humano
Em In -Itinem, pinturas que mostram homens inclinados para o chão,
manejando instrumentos angulares que lembram as cenas de colheita com foices
dos baixos -relevos faraônicos. As pinturas de mulheres curvadas na postura
característica de quem está joeirando ou respigando parecem indicar o cultivo
de cereais durante o Neolítico no Saara, aparentemente comprovado pela
abundância de mós e pilões para grãos
23
. No entanto, os estudos palinológicos
de amostras saarianas apontam para a necessidade de uma certa prudência.
Talvez se trate de coleta, embora seja difícil traçar os limites entre a vegecultura
ou protocultura e a agricultura propriamente dita. Em Battle Cave, moças San
partem para a colheita, tendo sobre o ombro um bastão para cavar. De qualquer
maneira, a profusão de obras de arte rupestre e de utensílios descobertos em
vastas regiões da África, em particular nas áreas hoje desérticas, uma ideia
interessante sobre a densidade demográfica dessas regiões. A grande quantidade
de artefatos sugere, às vezes, uma produção semi -industrial, como no nordeste
23 Os que foram descobertos pela missão Berliet -Tenere classicam -se entre os mais belos.
769
A arte pré -histórica africana
de Béchard e no erg Erroui, e mesmo em Madjouba (Saara ocidental), como
provam as observações de T. Monod.
A arte p -histórica africana tamm fornece muitos dados sobre as
vestimentas dos homens de então. Como é comum acontecer em épocas
primitivas, os homens usavam muito mais adornos que as mulheres até o período
bovidiano, quando a tendência parece inverter -se.
Vestindo peles de animais, enfeitando a fronte com faixas decoradas ou
usando mantos de plumas, os homens ostentam diversas insígnias, às vezes
enigmáticas: colares, braçadeiras, braceletes, etc. Frequentemente as mulheres
aparecem com um mínimo de roupas, portando às vezes a lempe (faixa de algodão
passada entre as pernas e presa com um cinto, com as pontas soltas caídas na
frente e atrás), comum entre as jovens da região sudanesa. Mas também a
tanga com os panos dispostos de diversas maneiras, vestidos colantes, várias
espécies de porta -seios, inúmeros tipos de adornos de cabeça, inclusive um em
forma de crista, como em Jabbaren.
As habitões são quase sempre representadas de forma esquemática:
as cabanas o semi -esferas nas quais vemos mobília e cenas dosticas.
As descobertas nos penhascos de Tichitt (Mauritânia), onde 127 aldeias
foram identificadas, demonstram que os africanos do Neolítico também eram
construtores. Situadas sobre os contrafortes que formam a extensão meridional do
Dahr, essas aglomerações em pedra seca, cada uma agrupando aproximadamente
3000 pessoas, apoiavam -se em geral sobre um alicerce de rochas ciclópicas,
lembrando os zimbabwe da África central e austral. Essa arte arquitetônica,
notável para a época, é caracterizada pelos pilares de sustentação feitos de pedra
talhada
24
.
Portanto, por meio dos afrescos da arte rupestre africana, podemos entrever
toda uma sociedade que se anima até quase adquirir a terceira dimensão, a da
vida. Em Takedetoumatine, por exemplo, mulheres de formas rolas e que
parecem terem sido bem alimentadas com leite, estão sentadas com seus filhos
na frente das cabanas; novilhos estão cuidadosamente amarrados em fila com
uma corda, enquanto homens ocupam -se em ordenhar vacas. É uma cena de
crepúsculo, impregnada de serenidade pastoril. Poderia o número de mulheres
ser indício de um regime poligâmico? Em Orange Springs e em Nkosisama
Stream (Natal), cenas de danças cheias de vida, que mostram as pessoas
24 Ver os trabalhos de H. J. Hugot sobre Tichitt.
770
Metodologia e pré -história da África
F . Cena erótica, Tassili (Foto P.
Colombel, n. 75321).
F . Cena erótica, Tassili (Foto P.
Colombel, n. 731075).
771
A arte pré -histórica africana
reunidas, principalmente mulheres, batendo palmas em torno de dançarinos
mascarados.
Em Jabbaren, uma mulher arrasta seu filho rebelde. Em Sefar, um homem
puxa o cabresto de novilhos, ainda hoje objeto sagrado (dangul) entre certos
pastores peul. O grandioso afresco do abrigo de Iheren, um dos pontos altos da
pintura pré -histórica, mostra uma fila de bois finamente ajaezados, com odres
de água pendurados nos flancos, montados por mulheres que ostentam ricos
adornos. Alguns animais inclinam -se para o bebedouro, enquanto um imenso
rebanho avança de modo majestoso. Mulheres enfeitadas estão indolentemente
instaladas em frente de suas casas e homens com plumas nos cabelos parecem
ter parado para saudá -las. Dentro das cabanas, podem -se ver várias peças de
mobília.
Em In -Itinem, uma cena onde aparecem figuras eminentes em trajes
luxuosos e guerreiros uniformizados, o que demonstra o icio de uma
hierarquização social. Arqueiros vestidos com mantos parecem organizados em
grupos de patrulha com um comandante. aqui um certo bafio de “forças
policiais”.
No sul da África, são abundantes as cenas de guerra, retratando os inúmeros
conflitos entre os San e os Bantu.
Entretanto, nada disso abolia o amor. Muitas cenas demonstram que os
artistas pré -históricos africanos não alimentavam nenhum sentimento de falso
pudor quanto a esse aspecto da vida de sua sociedade. Existem representações
de animais no cio, como no contraforte oeste de Blaka, onde se vêem dois
rinocerontes, um dos quais cheira os órgãos sexuais do outro. Noutra parte,
um bode no ato de cobrir uma cabra. As cenas de cópula humana em posições
variadas demonstram com ingenuidade e realismo que o homem não inventou
nada de essencial nessa área desde os tempos antigos. No rochedo Ahanna, no
Uede Djerat (Tassili), uma série de homens mascarados com gigantescos
falos eretos, prestes a penetrarem mulheres em posição ginecológica. Todos
os detalhes estão presentes. O grande afresco de Tin Lallan (Acacus, Líbia)
também é consagrado principalmente a esse mesmo tema orgíaco (Hugot-
-Bruggman, n. 164).
Em Inahouanrhat, uma cena mais prosaica de coito a tergo, enquanto
em Timenzouzine (Tassili) um casal copulando está cercado por outros três,
ainda em pé, e a atitude de resistência mais ou menos fingida das mulheres é
perfeitamente reproduzida.
Quanto à magia e à religião, somos obrigados a admitir que o significado
de um grande mero de quadros ainda permanece obscuro, pois eles estão
772
Metodologia e pré -história da África
cercados pelo mistério dos mitos. O que significam os bois bicéfalos ou os
bois com dois corpos hermafroditas e uma cabeça encontrados no Uede
Djerat? E as espirais magnificamente gravadas, associadas a inúmeros animais,
como a que está representada sobre o búbalo do Uede Djerat? Esse motivo,
também encontrado na cerâmica de Guerze, parece estar ligado aos ritos de
caça (encantamento) assim como a espiral da serpente Mehen da época tini
ta (I e II dinastias faraônicas)
25
. Para alguns especialistas, a espiral significa a
continuidade da vida. Quanto ao cordão umbilical existente entre duas pessoas,
partindo, por exemplo, da intersecção das coxas de uma mulher e chegando ao
umbigo de um arqueiro que está caçando, parece significar um fluxo místico
que parte da mãe em prece, com as mãos erguidas, e chega até o filho, que se
encontra em situação de perigo. Da mesma forma, no sul da África (Botsuana)
um animal “que faz chover” é conduzido através da região atado a uma corda
puxada por uma procissão de pessoas atentas. Os motivos ligados ao sol fazem
parte do mesmo fundo religioso. Entretanto, somente a referência ao contexto
cultural e cultual genuinamente africano permitirá a compreensão de quadros
cujo significado ainda permanece obscuro. Foi o que aconteceu quando A.
Hampaté reconheceu numa cena de Tin Tazarift, denominada até então
Os bois esquemáticos (como as patas desses animais pareciam reduzidas a tocos,
supunha -se que estivessem deitados), o cerimonial de lotori, em que os bois são
levados à água em celebração à sua origem aquática. Ao lado dessa cena há um
motivo digital indecifrável, no qual Hampaté detectou uma alusão ao mito
da mão de Kikala, o primeiro pastor. Essa mão simboliza os clãs peul, as cores
da pelagem dos bois e os quatro elementos naturais
26
.
Em geral, o desenvolvimento indica a transição da magia, às vezes ligada às
danças paroxísticas, para a religião, como é atestado pela sequência do grande
friso em In -Itinem que representa o sacrifício de um carneiro.
Relações e migrações
A tendência a explicar todas as características culturais africanas através
da teoria das influências exteriores deve ser rejeitada. Todavia, isso não quer
dizer que devamos negar essas influências, mas sim defini -las com precisão.
A arte rupestre franco -cantábrica, que data de 40.000 anos aproximadamente,
25 Ver também o papel da serpente nas cosmogonias africanas.
26 É preciso cuidado para não extrapolar automaticamente os mitos e lendas modernos para explicar cada
detalhe dos símbolos encontrados na pré -história. Cf. J. D. LAJOUX, 1977.
773
A arte pré -histórica africana
pertence ao Paleolítico, sendo portanto anterior à arte pré -histórica africana.
Por outro lado, o Neolítico do Saara é anterior ao da Europa
27
. Desse modo,
foi grande a tentação de atribuir à inspiração dos artistas do continente uma
origem setentrional. Chegou -se mesmo a falar de uma arte eurafricana cujo
foco teria sido europeu, sugerindo assim uma espécie de teoria hamítica da arte
pré -histórica africana.
Uma civilização autóctone
Não nada de verdadeiro na teoria referida acima. Além do fato de pelo
menos 15.000 anos separarem os dois movimentos estéticos, já foi reconhecido
que a arte do Levante espanhol, que deveria ser o elo de ligação no caso de uma
eventual influência, nada tem em comum com a arte originária do sul de Orã,
do Tassili e do Fezzan. L. Balout salientou insistentemente não haver conexão
entre a pré -história da África do norte e a da Espanha durante o Paleolítico
Superior. Além disso, a origem capsiense das gravuras do sul de Orã e do Saara
é rejeitada por quase todos os autores. A arte pré -histórica originou -se de fato
nos montes Atlas e seus pólos ou epicentros são genuinamente africanos.
Pergunta -se também se não foi a partir do Leste, ou seja, do vale do Nilo,
que essa arte expandiu -se para o interior do continente. Ora, é evidente que o
desenvolvimento artístico do vale egípcio do rio é bem posterior ao da África
saariana e sudanesa. As representações saarianas de bovídeos com círculos entre
os chifres são bastante anteriores às da vaca celeste Hátor. Também o falcão
finamente cinzelado sobre a placa de arenito em Hammada -el -Guir é bem
anterior às representações, do mesmo gênero porém menores, que aparecem nas
paletas das tumbas pré -dinásticas egípcias prefigurando Hórus. O magnífico
carneiro com esfera de Boualem é bastante anterior ao carneiro de Amon,
que surge no Egito apenas durante a XVIII dinastia. Malraux considerou as
cabeças zoomorfas de Uede Djerat como prefigurações da zoolatria egípcia”. O
mesmo pode -se afirmar acerca das deusas com cabeça de pássaro de Jabbaren. O
seminaturalismo surge no Egito somente na época guerzeense, assemelhando -se
ao das gravuras saarianas do período dos bovinos. É o caso dos quadros em Uadi
Hammamat que são, aliás, de execução medíocre. Os admiráveis barcos de tipo
egípcio do Saara (Tin Tazarift) são, sem dúvida, simplesmente de tipo saariano.
As silhuetas de Rhardes (Tissoukai) – que supostamente representariam Hicsos,
27 “O Neolítico saariano data pelo menos do oitavo milênio antes da Era Cristã. Até pouco tempo atrás,
prevalecia a opinião de que era posterior ao Neolítico da África do Norte, do Egito e do Oriente
Próximo”. H. LHOTE, 1976, p. 227.
774
Metodologia e pré -história da África
o Faraó, Antinea com um adorno de cabeça que lembra o pschent faraônico
devem, em minha opinião, ser reavaliadas no sentido inverso, em termos de
perspectiva histórica. É certo que o Egito exerceu uma importante influência
sobre o interior da África, mas é certo também que essa influência foi limitada.
No entanto, mais evidente ainda é a anterioridade da civilização do Saara pré-
-histórico. também o fato de nenhum obstáculo, além da distância, separar
os povos de Hoggar, Tassili e Fezzan do vale do Nilo, que foi por muito
tempo (até o ressecamento do Saara) uma região hostil, coberta de pântanos.
Foi somente a partir do período histórico” que o Egito adquiriu o esplendor
responsável pela tendência atual de tudo lhe atribuir, segundo o princípio de
que se empresta aos ricos”. Mas, em matéria de arte e de técnica, os pólos
estavam situados originariamente no Saara, no Sudão Cartumiense, na África
oriental e no Oriente Próximo. Aliás, o Saara pré -histórico deve muito mais
às influências do sudeste da África que às do Oriente Próximo. as relações
entre o sul da África e a região do Saara não parecem estar baseadas em provas
concretas, embora Frobenius tenha chamado a atenção para um certo número
de analogias
28
. Chegou -se mesmo a falar de uma “civilização magosiense”
que, segundo E. Holm, teria sido quase pan -africana, mas não nada muito
claro sobre isso. De qualquer modo, a produção artística da pré -história sul-
-africana é, em geral, posterior à da África do norte do equador; apesar de
o povoamento da parte meridional do continente ser extremamente antigo
29
.
Como dissemos, certos autores atribuem erroneamente ao século XVII grande
período das representações do maciço do Drakensberg, ou seja, após a chegada
dos Bantu. Em todo caso, do ponto de vista estilístico, parece que a pintura do
sul não tem afinidades com o período chamado de “Cabeças redondas” do Saara,
relacionando -se apenas com o período bovidiano. Ela se distingue também por
motivos típicos, como a vegetação abundante, as paisagens com representações
estilizadas de rochas, os temas funerários, etc. De qualquer maneira, o estudo
comparativo deve ser mais desenvolvido e, principalmente, o quadro geral da
história do Homo sapiens pré -histórico africano deve ser melhor elucidado, antes
de podermos traçar eventuais flechas que representem a direção de correntes
artísticas.
28 HAUERLAND, E. 1973, p. 74.
29 Cf. J. D. CLARK, capítulo 20 deste volume. Alguns autores sugerem que a arte rupestre difundiu -se a
partir do Zimbabwe em direção à Namíbia e ao Cabo, em seguida, em direção ao Transvaal e à região
de Orange; quanto às obras policromadas evoluídas, novamente do Zimbabwe em direção à Namíbia.
Cf. A. R. WILLCOX, 1963.
775
A arte pré -histórica africana
Esquematismo das teorias raciais
Essa observação é ainda maislida quando consideramos as “raças”
responsáveis pela produção artística. Mas não seria um abuso de linguagem utilizar,
neste caso, o conceito de raça?
30
Poderiam os poucos esqueletos ou restos ósseos
disponíveis autorizar a elaboração das ousadas teorias sobre o povoamento por
raças” pré -históricas? Entretanto, certos autores esquematizaram um processo
demográfico de rara complexidade, que passamos a relatar. Após o povoamento
original por “africanos” autóctones, povos neandertalenses do Oriente Próximo
teriam emigrado para a África em dois ramos, um avançando até o Marrocos
e o outro em direção aos planaltos elevados do leste africano através do Chifre
da África. São os aterienses do Paleolítico Médio. Em seguida, após uma fase
epipaleolítica, provavelmente relacionada ao Sebiliense do Egito, uma outra
vaga de povos cro -magnoides teria atingido a África do Norte, comportando
um núcleo ibero -maurusiense e um núcleo capsiense. Sem dúvida, esses grupos
teriam passado por um processo de neolitização em seus novos habitats, dando
origem, em particular, ao Neolítico de tradição capsiense que ocupa, entre outras
regiões, o norte do Saara. No entanto, outros centros apresentam uma notável
diversificação técnica e artística. Devemos citar, sobretudo, a forte influência das
tradições neolíticas sudanesa e “guineense”, com centros secundários em Ténéré
e no litoral atlântico ao norte da Mauritânia
31
. Na opinião de certos autores,
o período bubaliano da arte rupestre seria devido a povos “mediternicos
mal definidos, brancos segundo alguns, mestos de acordo com outros. O
período das “Cabeças redondas” seria atribuído a grupos negroides” os quais,
consideram alguns, ter -se -iam miscigenado com povos do Oriente Próximo
e constituiriam o Neolítico de tradição sudanesa. O período bovidiano seria
obra dos ancestrais dos peul. Finalmente, mais ao sul, a tradição denominada
guineense teria influenciado até as constrões sobre a falésia de Tichitt
(Mauritânia). É preciso salientar que todas essas reconstituições são demasiado
frágeis e privilegiam enormemente as influências extra -africanas. Chega -se ao
ponto de falar de nítida influência africana” numa representação rupestre do
Saara. Mas, sobretudo, essas reconstituições tendem a estabelecer equivalências
entre conceitos tão diversos quanto raça, etnia, gênero de vida e civilização.
referências a negros, brancos, peul, africanos, capsienses, sudaneses, sem
30 O processo de especiação a que se refere J. Rué deveria estar, em grande parte, abolido, sobretudo
com as miscigenações facilitadas pela ecologia bastante homogênea do habitat saariano. Ver capítulo 10,
parte II,Teorias relativas às ‘raças’ e história da África”, p. 277 -286.
31 Cf. H. J. HUGOT, 1979, p. 62 et seqs.
776
Metodologia e pré -história da África
que, por razões óbvias, se defina precisamente nenhum desses vocábulos.
Lhote, por exemplo, rejeita a influência dos capsienses nas gravuras do período
bubaliano
32
. Entretanto, ele declara que nas gravuras em Oued Djerat não
um só perfil genuinamente negroide; todos os que aparecem com distinção são
incontestavelmente caucasoides. Devemos presumir, portanto, que se tratava de
brancos, exatamente a impressão que temos após examinar as figuras do sul de
Orã e do Fezzan”. “Que pena”, disse -me um dia um colega sul -africano, que
não possam falar.
33
É com base nessas mesmas frágeis indicações de morfologia antropológica que
o período das “Cabeças redondas” é atribuído aos negros e o período bovidiano aos
peul. Mas a identificação racial é frequentemente baseada também nos modos de
vida e nas culturas, o que constitui uma grande aberração. Os povos neolíticos de
tradição sudanesa são definidos como a etnia dos caçadores -pastores originários
do leste”. Os “traços finos, as técnicas pastoris, os ornatos de cabeça em forma
de crista das mulheres e a trança de cabelos usada pelos homens” bastam para
atribuir aos Peul toda a arte rupestre que reproduz essas características, embora
hoje eles não demonstrem nenhum gosto estético desse gênero e nem mesmo
tenham conservado sua lembrança, ao contrário do que ocorre entre os San,
por exemplo. E também apesar de todos os “estágios e estilos, assim como
todos os perfis antropológicos estarem largamente reproduzidos na arte rupestre,
sobrepondo -se uns aos outros. Ainda hoje, em quase todas as regiões da África
tropical, é possível reconstituir a gama de perfis encontrados nas pinturas do
Saara
34
. Sem contar que um pintor “peul pode ter reproduzido dançarinos
mascarados, da mesma forma que um artista “negro” pode perfeitamente ter
retratado cenas da vida pastoril ou ter transformado os traços de seus heróis e
heroínas, como fazem atualmente certos pintores senegaleses. Os San, que são
homens pequenos, frequentemente não se retratam altos, esbeltos e elegantes,
com anatomias forçadas? Toda arte é convenção e jamais alguém viu um povo
negro composto apenas de “cabeças redondas”. Além disso, seria a especialização
agricultores -pastores” tão acentuada quanto atualmente?
35
32 Cf. H. LHOTE, 1976, p. 110.
33 Cf. H. LHOTE, 1976, p. 41.
34 P. V. TOBIAS salienta também que todos os tamanhos e formas de crânios são encontrados entre os
hotentotes do Cabo.
35 “É surpreendente que não conheçamos nenhum critério seguro para distinguir os homens do período
bubaliano dos homens do primeiro peodo pastoril (bovino I). A existência de bovídeos, quase
certamente domesticados desde a época das belas gravuras naturalistas, faria recuar consideravelmente
o surgimento da criação de animais”. . Monod, janeiro, 1951.
777
A arte pré -histórica africana
Bem a prosito, H. J. Hugot escreve sobre os homens neolíticos da
Mauritânia: “Quando chegaram, os homens negros de Tichitt traziam consigo
seus bois”. Mais adiante, ele diz que “durante a fase pastoril média chegam os
elementos negroides. E o grande período bovidiano, com as manadas de bois
retratadas em profusão
36
. Portanto, o pastoreio o é um critério suficiente, assim
como não o são a craniometria e as impressões subjetivas sobre as características
físicas. Não são as “raças” que fazem a história, e a ciência moderna não inclui
a raça entre os caracteres somáticos superficiais
37
. Todas as “damas brancas” das
pinturas rupestres africanas, como a que existe na África do Sul, que tem apenas
o rosto branco e que lembrava a Breuil os afrescos de Cnossos e a passagem
de colunas de prospectores vindos do golfo Pérsico”, representam sem dúvida
sacerdotes, caçadores ou jovens africanas saindo de cerimônias de iniciação,
como fazem ainda hoje, pintadas com caulim branco, cor que denota a morte
de uma personalidade anterior e a ascensão a um novo status
38
.
Também existem controvérsias a respeito da autoria das obras de arte
rupestre no sul da África. Mas, neste caso, o quadro histórico geral é um pouco
mais conhecido. Trata -se, inicialmente, das relações entre os Khoi -Khoi e os
San, depois entre os Khoisan e os Bantu.muitos quadros que retratam essa
dinâmica histórica. A comparação estatística das mãos positivas desenhadas
sobre as rochas corresponde à compleição dos San, como também a esteatopigia,
a semi -ereção do pênis, etc. Quanto às gravuras do período dos cavalos e das
carroças elas relacionam -se à época histórica.
Podemos nos indagar se os pintores e os gravadores pertenciam a povos
diferentes, os primeiros trabalhando nos abrigos, e os segundos nas colinas.
Tudo indica que não. De fato, os pintores geralmente não podiam trabalhar ao
ar livre; se o fizeram, suas obras certamente perderam as cores e desapareceram.
Por outro lado, o dolerito e o diabásio dos kopje eram as melhores rochas para a
gravação, pois ofereciam um belo contraste entre a pátina ocre e o interior cinza
ou azul da rocha, o que não ocorria com o calcário dos abrigos. Aliás, encontram-
-se por vezes pinturas e gravuras nos mesmos locais, e também gravuras que
36 HUGOT, H. J. op. cit., p. 225 -74.
37 Cf. capítulo 10, parte II, “Teorias relativas às ‘raças’ e história da África”, p. 277 -86.
38 Segundo inúmeros autores, “a Dama Branca” de Brandberg, cujas reproduções não fazem justiça ao
quadro real, seria, na verdade, um rapaz, a julgar pelo seu arco, suas nádegas estreitas e seu órgão sexual
protuberante (como acontece frequentemente entre os San, cujo pênis é semi -ereto). Quanto à sua cor,
devemos salientar que a face não é pintada, mas representada pela própria rocha, enquanto o corpo é rosa
dos pés até a cintura e negro mais acima. Aliás, a cor não signica nada, pois existem elefantes, macacos
e mulheres pintados de vermelho e homens de branco. Cf. A. R. WILLCOX, 1963, p. 43 -45.
778
Metodologia e pré -história da África
foram inicialmente pintadas, como no distrito de Tarkestad. Acontece, ainda,
de uma mesma convenção estética ser encontrada tanto nas gravuras quanto
nas pinturas.
Estética
No âmbito estético propriamente dito, a arte pré -histórica africana é a fonte
de inspiração, a introdução brilhante da arte africana moderna cujas raízes foram
o pouco exploradas até agora. nela uma riqueza de estilos dos quais se pode
acompanhar a evolução, às vezes quase passo a passo, até as criações estéticas
modernas. A arte africana moderna foi muito influenciada pela arte árabe e pela
europeia, mas existe também uma antiga tradição cuja matriz se encontra nos abrigos
sob rocha e nas galerias pré -hisricas. A pintura baseia -se em cores simples como
o ocre vermelho, o branco, o preto, o amarelo e, acessoriam ente, o azul e o verde.
Ainda hoje, essas cores podem ser vistas nas scaras e nos adornos dos dançarinos.
Trata -se de uma arte fundada na observação, na atenção quase amorosa
e por vezes reverente diante da realidade. Tanto a gravura quanto a pintura
apresentam esse aspecto, mas de modos diferentes. O bovino de, Augsburgo
(Botsuana), do qual se conservou apenas a parte anterior, é delineado com um
traço impecável que reproduz os detalhes anatômicos mais precisos do focinho,
dos olhos, das orelhas, dos pêlos, etc. A girafa em Eneri Blaka é uma verdadeira
escultura realista; as manchas do pelame foram feitas por martelagem, com
entalhes delicadamente sombreados para mostrar o contorno da cabeça, das
arcadas zigomáticas, dos chifres, dos olhos globulosos, das narinas e dos cascos
fendidos, brilhantes. O aspecto natural provém da maestria do traço que delineia
soberbamente o perfil, da martelagem que refina os detalhes interiores e também
da presença de um filhote que se apóia em sua mãe com um movimento de
espontaneidade tocante.
Essa veia de observação também é encontrada no afresco de Iheren, onde se
comprimem sem jamais se confundirem, tal a segurança do traço, dezesseis girafas
combinadas com graça, grupos de mulheres cobertas de adornos viajando em
seus bois de carga, gazelas e antílopes (dorca, dama, oryx, búbalos) identificados
respectivamente pelos chifres finos, pela pelagem branca, pelos longos chifres
voltados para trás e pela cabeça alongada. No mesmo painel, uma girafa recém-
-nascida, ainda ligada pelo cordão umbilical, tenta equilibrar -se sobre as patas.
Um leão com um carneiro entre as garras espreita os homens armados que o
perseguem, enquanto outros carneiros fogem aterrorizados. Um boi se aproxima
779
A arte pré -histórica africana
de uma poça de água para beber, o que faz as rãs saltarem. E a agitação brilhante
e patética da natureza, onde o homem -rei é o intruso.
Mas o naturalismo dos detalhes jamais exclui o recurso ao essencial e uma
arte da composição cênica que deriva de uma espécie de abordagem escultural
da pintura. Assim, personagem principal é apresentado em primeiro plano,
dominando os outros, que são relativamente menores. É o caso dos grandes
caçadores mascarados que se destacam das feras por seu tamanho; do far
abatendo seus inimigos, ou do oba de Benin engrandecido em relação a seus
súditos.
A ênfase no essencial origem às formas simbolistas, antítese do barroco.
Combinada com a técnica da escultura, produz esse ritmo característico que
vida tanto ao búbalo desenhado com um traço seco e despojado, quanto à
manada de bovinos de Jabbaren, da qual temos a impressão de ouvir o ruído
surdo dos cascos, a respiração quente e os mugidos.
A atualidade da arte pré ‑histórica africana
Popular e quotidiana, essa arte é animada por um senso de humor que é a
ironia alegre ou amarga da vida. Esotérica, ela vibra como um fervor místico
levado pelo estilete ou pelo pincel do artista, e nos alguns dos mais belos
florões da arte universal, como o carneiro com um disco solar, de Boualem,
cuja atitude hierática anuncia o mistério e convida à meditação
39
. Essa dupla
abordagem traduz bem a dupla condição do homem africano moderno: tão
espontâneo e quase trivial no dia -a -dia, tão sério e místico quando tomado pelo
ritmo de uma dança religiosa.
Em suma, a arte pré -histórica africana o está morta. Ela vive, ainda que apenas
nos topônimos que perduram. Um vale afluente do Uede Djerat, denominado Tin
Tehed, ou seja, o lugar da jumenta”, é efetivamente marcado por uma bela gravura
de asno. Issoukai -n -Afella tem a fama de ser assombrado por espíritos (djenoun)
talvez porque, diante de um monte de seixos constituídos por arremessos de pedras
votivas, exista uma figura zoomorfa assustadora, que reúne os atributos da raposa
aos da coruja, sem falar num sexo de tamanho descomunal.
39 É notável que certos autores mencionem a existência de dois carneiros encarregados de proteger o rei
contra o mau -olhado na corte do imperador do Mali, no século XIV. O carneiro existe também em
outras cortes africanas: Meroé, Akan (Gana), Kuba (Zaire) e Kanem (Chade).
780
Metodologia e pré -história da África
Essa arte mereceria ser reintroduzida na vida dos africanos, ao menos através
de programas escolares, pois a distância que dela os separa constitui uma barreira
atravessada pelos estudiosos e especialistas dos países ricos.
Ela deveria ser ciosamente protegida de danos de todo tipo que constantemente
a ameaçam, pois é um patrimônio sem preço
40
. Um registro completo deveria
ser organizado, para permitir um estudo comparativo.
De fato, a arte é o homem. E na medida em que a arte pré -histórica é um
testemunho integral do homem africano primitivo, desde seu meio ecológico até
suas emoções mais elevadas, na medida em que a imagem é um signo às vezes
tão eloquente quanto a escrita, podemos afirmar que a arte mural africana é o
primeiro livro de história desse continente. Mas trata -se evidentemente de um
testemunho ambíguo e enigmático, que precisa do respaldo de outras fontes
de informação, como a paleontologia, a climatologia, a arqueologia, a tradição
oral, etc.
Sozinha, a arte pré -histórica não revela senão a parte visível de um iceberg,
É a projeção, sobre o quadro mineral e congelado dos abrigos sob rocha, de um
cenário vivo desaparecido para sempre. A arte é reflexo e força motriz. Por meio
da arte pré -histórica o homem africano proclamou, através dos tempos, sua luta
encarniçada para dominar a natureza, mas também seu afastamento consciente
dessa natureza, para alcançar o prazer infinito da criação, o êxtase do homem
demiurgo.
40 Em 1974, um decreto do governo argelino transformou toda a zona das pinturas e gravuras do Tassili
em parque nacional.
C A P Í T U L O 2 7
781
Origens, desenvolvimento e expansão das técnicas agrícolas
Durante muito tempo, as ideias sobre as origens da agricultura foram
fortemente influenciadas pelo etnocentrismo. A tendência era (e ainda é, por
vezes) a de considerar o berço agrícola e pastoril do Oriente Próximo, sede
da “revolução neolítica definida por Gordon Childe
1
não somente como o
local de surgimento da cultura dos cereais mais importantes (trigo, cevada,
etc.) e da criação de animais (cabras, carneiros; mais tarde, bovinos), que são
as bases materiais da civilizão ocidental, mas também como o núcleo de
origem da própria civilização, ao menos no que diz respeito ao Velho Mundo”.
Sem vida, as pesquisas arqueológicas realizadas desde a Segunda Guerra
Mundial, sobretudo nos últimos vinte anos, contribuíram para modificar
em parte esse ponto de vista limitado e, de certo modo, pretensioso. Essas
* Roland Portères, professor do Museu Nacional de História Natural de Paris, faleceu em 20 de março
de 1974. Encarregado pelo Comitê Cientíco Internacional para a Redação de uma História Geral
da África de redigir este capítulo sobre as origens e o desenvolvimento das técnicas agrícolas, chegou
a fazer um esboço que foi, no entanto, uma de suas últimas tarefas. A obra cou, portanto, inacabada;
baseando -me nas inúmeras publicações de Roland Portères, nas suas anotações e nas nossas frequentes
conversas sobre o assunto, propus -me levar a cabo este trabalho, procurando permanecer el ao interesse
apaixonado que Portères dedicava à fascinante natureza da África, a seus países, povos e civilizações.
Ainda que imperfeita, esta contribuição à sua obra é uma homenagem prestada ao mestre e ao amigo que
tanto fez para um melhor conhecimento da agricultura e das plantas cultivadas do continente africano.
– Jacques Barrau.
1 1942 (revisto em 1954).
Origens, desenvolvimento e expansão
das técnicas agrícolas
R. Portères* e J. Barrau
782
Metodologia e pré -história da África
pesquisas certamente mostraram a importância do “crescente fértil” na história
da agricultura mundial
2
, mas também revelaram o papel de outras partes do
globo nessa evolução tão importante na história da humanidade: a produção
de alimentos que, até então, tinham sido coletados no meio ambiente natural.
Desse modo, tornou -se mais evidente a significação das invenções agrícolas e do
cultivo de vegetais na América
3
, assim como a relativa anterioridade do centro
agrícola do sudeste asiático tropical
4
e, finalmente, a contribuição africana para
a história dessa agricultura mundial.
No entanto, o célebre agrônomo e geneticista russo N. I. Vavilov
5
reconhecia,
quase meio século, a existência de centros de origem de plantas cultivadas
na África; mais tarde, um de seus colaboradores, A. Kuptsov
6
, demonstrou a
presença de berços agrícolas primários nesse continente. Alguns anos depois, um
dos autores deste capítulo definiu com precisão a localização, o número e o
papel desses berços
7
.
Por muito tempo, todavia, o papel da África no desenvolvimento da
agricultura, de suas técnicas e de seus recursos foi minimizado, a mesmo
ignorado, devido a preconceitos coloniais e ao desconhecimento da origem de
vários cultígenos africanos e, em geral, da pré -história do continente.
Essa situação mudou radicalmente e, nos últimos anos, tem -se manifestado
um grande interesse pelo estudo das origens da agricultura africana, como
o comprovam, por exemplo, os ensaios publicados em 1968 em Current
Anthropology
8
e os inúmeros comentários que provocaram. A esse respeito,
devemos citar também os estudos reunidos por J. D. Fage e R. Oliver
9
e ainda,
mais recentemente, a contribuão de W. G. L. Randles para a história da
civilização bantu
10
. Mas, antes de tentar uma breve síntese dos conhecimentos
sobre a pré -história e a história agrícolas da África, é conveniente descrever em
traços gerais o quadro ecológico em que se desenrolaram.
2 Ver, por exemplo, BRAIDWOOD, R. L. 1960.
3 Sobre esse assunto, ver, por exemplo, MACNEISH, R. S. 1964.
4 Ver BARRAU, J. 1975.
5 VAVILOV, N. I. 1951, p. 1 -6.
6 KUPSTOV, A. 1955 e DARLINGTON, C. D. 1963.
7 Ver PORTÈRES, R. 1962.
8 DAVIES, O. e origins of agriculture in West Africa.” HUGOT, H. J. e origins of agriculture:
Sahara.” SEDDON, D.e origins and development of agriculture in East and Southern Africa.”
9 FAGE, J. D. e OUVER, R. 1970.
10 RANDLES, W. G. L. 1974.
783
Origens, desenvolvimento e expansão das técnicas agrícolas
O meio ambiente e as origens da agricultura africana
É evidente que as origens, a diversificão e o desenvolvimento das cnicas
agrícolas estavam estreitamente relacionados às condições do meio ambiente
(clima, hidrografia, relevo, solos, vegetão, tipos de plantas originariamente
utilizadas e alimentos que forneciam, etc.). Embora esses fatores tenham
desempenhado um papel importante, até mesmo preponderante, na origem
da agricultura e da criação de animais, não foram, entretanto, os únicos a
interferir, pois esses processos implicavam também fatos de cultura e de
civilização.
Mesmo nas épocas pré -agrícolas e nos períodos iniciais da agricultura,
os homens levavam consigo, nas migrações ou deslocamentos, seus
instrumentos, técnicas, modos de compreender e interpretar o ambiente,
maneiras de adaptar e utilizar o espaço, etc. Carregavam também toda uma
rie de atitudes e comportamentos criados a partir de suas relões com
a natureza em seus habitats de origem. Assim, em uma época em que a
Europa apenas emergia do Paleotico, o cultivo de vegetais e a criação de
animais já estavam bem estabelecidos no Oriente Próximo, onde as primeiras
cidades comavam a surgir. Ora, foi do Oriente Próximo que essa Europa
um pouco atrasada recebeu as invenções técnicas e consequentes ideologias
que iam tornar possível a sua “revolão neolítica”, baseada na agricultura e
na criação de animais.
Fenômenos semelhantes de difusão ou de intercâmbio aconteceram em
outras partes do mundo e, evidentemente, também na África, em razão das
migrações internas e externas que afetaram esse continente.
É essencial, todavia, compreender as implicações das invenções agrícolas e
pastoris, assim como do cultivo de plantas e domesticação de animais. O homem
passou da apropriação de alimentos (coleta, caça) à produção (cultivo, criação).
Desse modo, progressiva e parcialmente, o homem se liberou das imposições
dos ecossistemas a que pertencia e onde, até o surgimento da agricultura e da
criação, levava uma vida biocenótica” como os outros organismos, sujeitos ao
curso normal dos processos da natureza.
A introdução da agricultura e da criação de animais foi a mudança
fundamental que permitiu ao homem adaptar -se a diversos ambientes e
modificar os complexos biogicos, fazendo -os produzir mais ou fornecer
gêneros outros que os produzidos por meios naturais. Em consequência do
novo papel do homem, agricultor ou criador, operaram -se transformações mais
784
Metodologia e pré -história da África
ou menos profundas nos meios naturais, bem como na quantidade e qualidade
dos seus produtos.
No entanto, apesar do donio do homem sobre os elementos de seu
ambiente natural, ele não foi capaz de se libertar completa e imediatamente de
todas as imposições desse ambiente. Assim, devemos, primeiramente, considerar
as características ambientais que podem ter exercido um papel preponderante na
pré -história e na história agrícolas. No caso da África, faz -se necessário traçar
um esboço do meio ambiente: a África parece estar dividida em largas faixas
latitudinais, diferenciadas do ponto de vista ecológico e dispostas simetricamente
dos dois lados do Equador.
Como salienta Randles (op. cit.), algumas dessas faixas podem ter servido
como barreiras para as correntes migratórias norte -sul. E o caso do Saara, da
grande floresta equatorial, da estepe” da Tanzânia e do deserto do Calaari.
Outras faixas, ao contrário, ofereciam espaços a essas correntes que nelas poderiam
encontrar “nichos” favoráveis: é o caso das savanas do norte e do sul. Randles
salienta igualmente que nenhuma dessas barreiras era totalmente intransponível;
o Saara e a grande floresta, por exemplo, permitiam, até certo ponto, a circulação
humana.
Na África, a latitude não é o único fator a permitir uma delimitação sumária
das grandes zonas ecológicas. O relevo e, portanto, a altitude também interferem;
assim, a dorsal Zaire -Nilo separa as terras altas do leste da África do peneplano
do oeste, que por sua vez é dividido por um pequeno eixo elevado que se estende
da ilha de Príncipe até o Chade.
Há, portanto, exceções nesse zoneamento ecológico latitudinal do continente
africano. Talvez a mais importante dessas exceções sejam as terras altas que
se estendem, paralelamente ao Rift, do norte do lago Viria aos montes
Munchinga e que, citando Randles novamente, constituem um estreito corredor
salubre através da barreira equatorial (mapa 1). também o “reduto” da
Etiópia, cuja importância para a origem africana das plantas cultivadas será
mencionada mais adiante.
Se combinarmos agora esses dados diversos, por mais sumários que sejam,
veremos que a África comporta, ao norte, a leste e ao sul, uma zona quase
semicircular de savanas e estepes rodeando um núcleo de florestas equatoriais;
depois, tanto ao norte como ao sul, duas zonas áridas, o Saara e o Calaari;
finalmente, no extremo norte e no extremo sul, duas estreitas zonas quase
homocliticas que, simplificando bastante, poderíamos descrever como
mediterrâneas quanto ao clima evidentemente embora existam certas
peculiaridades ecológicas no extremo sul da África (mapa 2). Partindo do
785
Origens, desenvolvimento e expansão das técnicas agrícolas
F . Zoneamento ecológico latitudinal.
F . Diferentes ecossistemas.
786
Metodologia e pré -história da África
coração florestal e deixando de lado as regiões litorâneas, temos, portanto, um
gradiente que vai do muito úmido ao muito seco, de “ecossistemas generalizados”
do tipo “floresta tropical úmida a ecossistemas” mais especializados” do tipo
savana ou “estepe” e vegetação de deserto
11
.
A propósito dos desertos, mais especificamente do Saara, é preciso lembrar
que nem sempre foram regiões áridas, tendo permitido, no passado, a prática
da agricultura e da criação de animais. Diversos autores
12
sugeriram que certos
berços agrícolas e pastoris poderiam estar situados no Saara.
Retomemos o mapa ecológico do continente africano que acabamos de
ver. Em nossa opinião, é possível presumir que, na época pré -agrícola, fossem
praticadas no ecossistema generalizado da grande selva tropical formas de coleta e
de caça semelhantes às existentes ainda hoje entre os pigmeus. Cabe notar que
os recursos alimentares, vegetais e animais, desses ecossistemas são tão variados e
abundantes quanto os componentes de suas biocenoses.
Nossas observações sobre a economia de grupos de pigmeus revelaram que
esses recursos, levando -se em conta sua abundância e a densidade das populações,
asseguravam -lhes a subsistência sem exigir grandes esforços.
A mesma constatação é válida para os caçadores -coletores de ecossistemas
mais especializados de regiões áridas ou semi ridas, como os San Kung do
Calaari, estudados por R. B. Lee
13
. No caso desse povo, entretanto, os recursos
são menos variados e sua exploração é limitada pelo suprimento de água: em
consequência da acentuada variação pluviométrica sazonal, só são explorados os
recursos próximos a fontes de água.
Após o fim do Pleistoceno, ocorreu uma fase úmida, o Makaliense ( -5500
a -2500), que facilitou os contatos entre o litoral mediterrâneo e as regiões
ao sul do Saara, enquanto a elevação do nível dos cursos d’água e dos lagos
tornou possível, mesmo no coração do continente, o desenvolvimento da pesca
e a relativa sedentarização das populações que se dedicavam a essa atividade,
condição propícia a uma transição progressiva pata a produção agrícola
14
. Esse
processo foi acelerado, sem dúvida, pelas migrações provenientes dos berços
agrícolas do Oriente Próximo e do Mediterrâneo
15
.
11 Sobre os termos “ecossistema especializado” e “ecossistema generalizado”, ver HARRIS, D. 1969.
12 Por exemplo, CHEVALLIER, A. 1938; HUGOT, H. J., op. cit. e HESTER, J. J. 1968.
13 LEE, R. B. 1966.
14 A respeito da sedentarização dos pescadores e suas relações com as origens da agricultura, ver SAUER,
C. O. 1952.
15 Sobre esse assunto, ver CLARK, J. D. 1970.
787
Origens, desenvolvimento e expansão das técnicas agrícolas
Ademais, desde o fim do Pleistoceno, ou seja, entre -9000 e o início do
Makaliense, parecem ter existido no continente africano locais privilegiados
onde a coleta abundante certamente encorajou a concentração de populações
humanas. Foi o que aconteceu nas zonas de transição entre floresta e savana
situadas na periferia da floresta equatorial, nos planaltos herbosos do leste da
África, nas margens dos lagos e grandes rios, inclusive o Nilo, assim como nas
regiões litorâneas ao norte e ao sul do continente
16
.
Essas zonas de transição, particularmente a interface floresta -savana, tornaram-
-se, muito mais tarde, nichos privilegiados para o desenvolvimento da agricultura
e, consequentemente, para a emergência de algumas das civilizações africanas.
Randles (op. cit.) escreve a esse respeito que é nos limites das duas savanas (sahel
e orlas de florestas) que se situam as mais prestigiosas civilizações bantu”.
Passamos agora a considerar mais detalhadamente as possibilidades de
domesticação vegetal que o continente africano oferecia,que, de acordo com
a lógica da ecologia, são as plantas os produtores primários.
A origem africana de certas plantas cultivadas
As ciências naturais começaram a se interessar pela origem das plantas
cultivadas relativamente pouco tempo. Na verdade, com exceção da notável
obra de A. de Candolle, publicada em 1883, foi com os trabalhos do geneticista
soviético N. I. Vavilov e de sua equipe, logo as a revolão de outubro
de 1917, que se desenvolveu uma abordagem sintica, em escala mundial,
dessa questão de fundamental importância para a história da humanidade: a
adaptação do meio ambiente e a utilização de seus recursos
17
. Combinando
uma análise sistemática de dados botânicos e fitogeográficos com levantamentos
agrobotânicos e estudos genéticos, Vavilov e seus colaboradores, com base na
variabilidade das plantas cultivadas, reconheceram a existência de oito centros de
origem de plantas cultivadas (dos quais três são centros secundários, isto é, ligados
a centros regionais importantes). Apenas um desses centros, o Abissínio, está
situado na África, enquanto um outro, o Mediterrâneo, compreende uma parte do
continente africano (África do Norte, Egito) e apresenta, igualmente, afinidades
com o vasto e importante centro do Oriente Próximo onde surgiram, entre outras
plantas cultivadas, os cereais mais importantes (trigo, cevada, centeio).
16 Ver CLARK, J. D. 1970.
17 Sobre a vasta obra de N. I. VAVILOV ver 1951, op. cit.
788
Metodologia e pré -história da África
No que diz respeito à África, as descobertas de Vavilov representaram
um progresso senvel em relão às conclues de Candolle (op. cit.) que
reconhecia apenas três principais centros de origem para a agricultura e a
domesticão de vegetais: China, Sudeste Asiático (com uma extensão até o
Egito) e América.
A contribuão de Vavilov para o conhecimento da origem das plantas
cultivadas foi também da maior importância no plano teórico, tendo
evidenciado a necessidade de distião entre um centro de varião primária,
caracterizado por uma grande diversidade de formas de uma planta, com
manifestação majoritária de caracteres dominantes, e áreas de variação secundária
que apresentam grande número de caracteres recessivos, encobertos no centro
de variação primária.
A localização e a distribuição geográficas desses diversos centros de variação
permitem determinar o local de um berço agrícola; se as áreas desses centros
coincidem total ou parcialmente, pode -se supor que, nessa região, civilizações
exerceram por muito tempo atividades de domesticação e transformação de
certas espécies vegetais.
É importante salientar que o centro de origem botânica de uma escie
vegetal cultivada não coincide necessariamente com as áreas de variabilidade
relacionadas às intervenções do homem. Em outras palavras, a zona ocupada
pelas possíveis formas selvagens de um cultígeno distingue -se frequentemente,
e de maneira clara, das regiões em que esse cultígeno surgiu em decorrência da
ação do homem (cultivo, seleção e diversificação). pelo menos uma explicação
para esse fato: a transferência frequente de espécies selvagens para fora de seu
habitat de origem durante a época da coleta
18
.
Quanto ao continente africano, um dos autores deste capítulo pôde completar
o quadro estabelecido por Vavilov
19
, demonstrando que, além do centro abissinio e
da parte africana do centro mediterrâneo, havia também um centro afro ‑ocidental e
um afro ‑oriental, sendo este último provavelmente um prolongamento do centro
abissínio nas terras altas equatoriais
20
.
Agrupando e resumindo os dados relativos aos diversos focos ou centros de
origem e diversificação das plantas cultivadas, temos o seguinte quadro:
18 Ver BARRAU, J. 1962.
19 Ver PORTÈRES, R. 1950, p. 9 -10; 1951, p. 239 -40.
20 Sobre esse assunto, ver também SCHNELL, R. 1957.
789
Origens, desenvolvimento e expansão das técnicas agrícolas
Centro mediterrâneo (porção africana)
A esse centro corresponde todo um grupo de plantas cultivadas características
das regiões mediterrâneas; a presença de cereais (trigo e cevada, principalmente)
e leguminosas com grãos comestíveis (Cicer, Lens, Pisum, Vicia, etc.), denota
a afinidade desse centro com o do Oriente Próximo. Encontramos também
uma série de “culgenos” mediterrâneos, como a oliveira (Olea europea L.)
e a alfarrobeira (Ceratonia siliqua L.). Algumas dessas plantas, todavia, são
próprias da África como a Argania sideroxylon Roem., árvore marroquina que
fornece óleo e goma. Esse centro inclui o Egito, cujos laços com o centro do
Oriente Próximo são evidentes e cuja influência sobre a história da agricultura
e da criação de animais na África setentrional foi importante. O Egito divide
com a Síria a origem de uma planta de grande interesse econômico, o bersim
ou trevo de Alexandria (Trifolium alexandrinum L.). Embora essa poão
africana do centro mediterrâneo não tenha desempenhado um papel direto na
história agcola da África tropical, ela influenciou profundamente o Saara
quando este atravessava uma fase climática mais favorável ao desenvolvimento
agrícola e pastoril
21
.
Centro abissínio
Encontram -se plantas cultivadas comuns ao centro do Oriente Próximo (trigo,
cevada, leguminosas como Cicer, Lens, Pisum, Vicia) e aos centros propriamente
africanos (Sorghum ) sobre os quais falaremos mais adiante. Além disso, é fato
comprovado que plantas originárias da Ásia tropical passaram por esse centro ao
penetrarem na África. Entretanto, esse centro possui cultígenos” característicos,
como o cafeeiro da Arábia (Coffea arabica L.), a bananeira abissínia (Musa
ensete I. F. Gmelin), o teff (Eragrostis abyssinica Schrad.) e o niger de sementes
oleaginosas (Guizotia abyssinica L. F. Cass).
Centro leste ‑africano
Caracteriza -se pelas variedades de sorgo diferenciadas a partir do Sorghum
verticilliflorum Stapf., variedades de milhetes penicilares como Eleusine coracana
Gaertn., variedades de gergelim, etc.
21 Sobre esse assunto, ver CLARK, J. D. e HUGOT, H. J. Op. cit.
790
Metodologia e pré -história da África
Centro oeste ‑africano
É o local de origem de diversas variedades de sorgo derivadas do Sorghum
arundinaceum Stapf., de milhetes penicilares como Pennisetum pychnostachyum
Stapf. e Hubb. e P. Gambiense Stapf. e Hubb., variedades de milhetes digitários
como o iburu (Digitaria iburua Stapf.) e o fonio (D. exilis Stapf.) e vários tipos
de arroz sobre os quais voltaremos a falar
22
. Nesse centro, podemos distinguir
dois grandes setores: tropical e subequatorial. O setor tropical se subdivide
em vários subsetores (Senegambiano, Níger central, Chade -nilótico), cada um
caracterizado por plantas cultivadas específicas, principalmente cereais, mas
também por plantas tuberculares (Coleus dazo Chev.) e oleaginosas, como
Butyrospermum parkii (Don.) Kotschy (conhecido igualmente pelos botânicos
como Vitellaria paradoxa Gaertner).
No setor subequatorial, existem principalmente inhames (Dioscorea cayenensis
Lamk., D. dumetorum Pax, D. rotundata Poir.), plantas de sementes oleaginosas
(Elaeis guineensis Jacq., Telfairia occidentalis Hook. F., etc.) e plantas estimulantes
(Cola nitida A. Chev.). Na verdade, esse centro se estende até a África central,
assim como as áreas de distribuição de certos gêneros de vegetais citados acima
(Cola, Coleus, Elaeis, etc.). A “ervilha da terra (Voandzeia subterranea Thon.) e a
leguminosa geocárpea africana Kerstingiella geocarpa Harms. pertencem também
ao centro oeste ‑africano.
Em nossa opinião, a leste e ao sul do núcleo formado pela floresta equatorial,
existiu inicialmente um complexo de cultígenos semelhante ao encontrado no
centro oeste ‑africano; tal complexo se prolongava em uma faixa que envolvia o
núcleo florestal e margeava o centro leste ‑africano, ocupando aproximadamente
a zona do perímetro florestal onde a coleta era mais intensa
23
.
Os “berços” agrícolas
As conclusões precedentes nos levaram
24
a considerar a existência de um
certo número de berços agrícolas no continente africano. Portanto, de norte a sul,
temos os seguintes berços (mapa 3):
22 Ver PORTÈRES, R. 1962, op. cit.
23 Ver SEDDON, D. 1968, op. cit.
24 Ver PORTÈRES, R. 1962, op. cit.
791
Origens, desenvolvimento e expansão das técnicas agrícolas
F . Os berços agrícolas africanos.
F . Mapa geoagrícola da África.
792
Metodologia e pré -história da África
• O berço afro ‑mediterrâneo que, estendendo -se do Egito ao Marrocos,
influenciou a agricultura e a criação de animais no Saara e trocou influências
com o berço do Oriente Próximo através do Egito;
• O berço afro ‑ocidental, a oeste, com dois setores, tropical e subequatorial;
• O berço nilo ‑abissinio, a leste, com dois setores, nilótico e abissínio;
• O berço afro ‑central;
• A leste deste último, o berço afro ‑oriental, que se estende para o oeste, na
direção de Angola.
Mais ao sul, parece que as populações de coletores, supridas de recursos
abundantes e protegidas pela aridez do Calaari, resistiram por muito tempo à
penetração da agricultura e do pastoreio a partir dos berços que acabamos de
descrever, particularmente a partir do afro ‑oriental
25
.
Centro hortícola e centro agrícola
Na verdade, o conceito de berço tem o inconveniente de dar a impressão de
um patchwork”, em se tratando de pré -história e história agrícolas. Entretanto,
com base nas conclusões precedentes, parece -nos possível apresentar um quadro
geral mais coerente:
a) Ao núcleo central de florestas, ecossistema “generalizado”, corresponde um
centro de “vegecultura” (para empregar esse termo insatisfatório criado por
R. J. Braidwood e C. A. Reed)
26
que preferimos chamar de centro hortícola
onde, no entanto, a produtividade da coleta no meio florestal permitiu
que ela continuasse a existir. Devemos salientar que o potencial de plantas
domesticáveis desse centro não era tão grande quanto o das florestas
tropicais úmidas da Ásia ou da América.
b) À orla das savanas desse núcleo florestal, ecossistema mais especializado,
corresponde um centro agrícola de cereais que se estendia da África ocidental
à África oriental e se prolongava para o sul na direção de Angola.
Ao norte, na parte mediterrânea do continente africano, a influência da
agricultura de cereais da Mesopotâmia se fez sentir nitidamente através do
Egito. Também o Saara sofreu essa influência na época em que desfrutava de
condições favoráveis. Esse fato poderia explicar certas difusões, tanto para o sul
do deserto atual como para o norte, a partir da África subsaariana.
25 Ver SEDDON, D. 1968, op. cit.
26 BRAIDWOOD, R. J. e REED, C. A. 1957.
793
Origens, desenvolvimento e expansão das técnicas agrícolas
A influência mesopotâmica atingiu também o “reduto” etíope que apresenta,
entretanto, semelhanças com o centro agcola das savanas e estepes e possui
características cultigênicas próprias.
Um centro horcola difere de um centro agrícola pela predomincia de
tubérculos multiplicados por via vegetativa e pelas práticas agrícolas semelhantes
às da jardinagem. No campo, o ager das savanas e estepes se opõe, de uma certa
maneira, ao jardim -pomar, o hortus da floresta e de sua orla.
No continente africano como um todo, os principais implementos agrícolas
eram a enxada e a vara para cavar (assim como suas variações) mas, através do
Egito e da Etiópia, um arado primitivo introduziu -se em parte do centro agrícola
cerealífero.
O cultivo do sorgo e do arroz
Em contraste com o centro hortícola da floresta tropical, localizado em um
ecossistema generalizado, o centro agrícola africano, no ecossistema relativamente
especializado das savanas e das estepes, caracteriza -se pela utilização
predominante da reprodução das plantas cultivadas por via sexuada (semeadura)
e pela importância dos cereais no regime alimentar.
Os tipos de agricultura que se desenvolveram nesse centro baseavam -se
em um “cultivo em massa” dos vegetais, em oposição ao “cultivo individual
da horticultura. As civilizações do centro agrícola certamente estenderam seus
campos à custa da floresta durante sua expansão territorial que, aliás, deve
ter contribdo para o incremento da savana. Em termos ecológicos, esse
aumento da área ocupada pela savana corresponde a uma especialização” de
ecossistemas originariamente generalizados. Portanto, tudo se passou como se essas
civilizações agrícolas tivessem desse modo adaptado o meio ambiente natural
às suas técnicas, ou melhor, à sua maneira de perceber esse meio. Durante a
penetração da agricultura na floresta, também é possível que tenha ocorrido
o processo inverso, por exemplo, o abandono do cultivo de cereais em favor
de culturas características das florestas e até mesmo a hipótese não pode ser
ignorada a eventual adoção da coleta de plantas como meio de subsistência
por povos agricultores das savanas, obrigados a viverem nas florestas durante
suas migrações.
O fato é que os cereais permanecem como culturas características das savanas
e das estepes. Entre esses cereais e apesar da existência de outras espécies
794
Metodologia e pré -história da África
F . Aspecto de uma queimada (após a combustão) Futa Djalon: Pita, Timbi -Madina (Foto R.
Portères).
F . Terra lavrada com o Kadyendo pelos Diula de Oussouye (Casamance) antes do replantio do
arroz (Foto R. Portères).
795
Origens, desenvolvimento e expansão das técnicas agrícolas
cultivadas nos diversos berços do centro agrícola o sorgo (Sorghum sp.) ou
milhete grande aparece como o cereal comum a todas as áreas desse centro.
A origem do sorgo, ou melhor, das diversas variedades de sorgo, foi objeto de
opiniões contraditórias
27
, mas, ao que parece, sua origem é realmente africana,
tendo as várias espécies surgido independentemente no interior do centro agrícola
africano.
A espécie selvagem Sorghum arundinaceum Stapf., cuja área cobre a zona
tropical úmida do Cabo Verde ao oceano Índico, deu origem à variedade de
sorgos cultivados no oeste da África: S. aterrimum Stapf., S. nitens Snowd., S.
drummondii Millsp. e Chase, S. margaritiferum Stapf., S. guineense Stapf., S.
gambicum Snowd., S. exsertum Snowd., etc.
A espécie selvagem S. verticilliflorum Stapf. da África oriental, da Eritreia ao
sudeste da África, deu origem a dois grupos de sorgos cultivados: um grupo do
sudeste africano, os sorgos “Kafir” (S. caffrorum Beauv., S. coriaceum Snowd. e S.
dulcicaule, sorgo doce) e um grupo nilo -chadiano, do Sudão nigeriano à Eritreia
(S. nigricans Snowd. e S. caudatum Stapf.).
A espécie selvagem S. aethiopicum Rupr., da Eritreia e da Abissínia, deu
origem ao S. rigidum Snowd. do Nilo Azul, ao S. durra Stapf. cultivado do
Chade à Índia e em todas as regiões semidesérticas, ao S. cernum Host., ao S.
subglabrescens Schw. e Asch das regiões nilóticas e ao S. nigricum do delta central
do Níger.
No subsetor do Níger central, setor tropical do beo afro ‑ocidental (ver
acima), existe uma variedade especial de sorgo cultivado, S. mellitum Snowd.
var. mellituni Snowd., que, por ser rico em açúcar, é utilizado no preparo de uma
bebida alcoólica
28
. Aliás, diversos tipos de sorgo são utilizados para preparar a
cerveja de milhete”.
Efetuaram -se cruzamentos entre esses diversos grupos de sorgos cultivados,
como prova a existência do S. conspicuum Snowd. (da Tanzânia ao Zimbabwe
e a Angola) e do S. roxburghii Stapf. (Uganda, Quênia, Zimbabwe, África do
Sul), que parecem ser o resultado do cruzamento entre sorgos da espécie S.
arundinaceum e da espécie S. verticilliflorum.
Entre as variedades citadas, uma delas, o S. durra, merece uma menção
especial em razão de sua vasta distribuição: do Sudão oriental à Ásia Menor e
à Índia, da Mesopotâmia ao Irã e ao Guzerate.
27 Ver PORTERES, R. 1962, op. cit.
28 Ver SCHNELL, R. 1957, op. cit.
796
Metodologia e pré -história da África
F . O Soung ou entre os Seereer Gnominka, pescadores -rizicultores das ilhas da Petite Côte,
no Senegal. Esse instrumento é utilizado para arar e sulcar o solo dos arrozais de mangue e corresponde ao
Kadyendo dos Diula Bayott de Casamance e ao Ko ou Kop dos Baga do litoral da Guiné (Foto R. Portères).
797
Origens, desenvolvimento e expansão das técnicas agrícolas
Como vimos, é grande a importância desses cereais para a economia do centro
agrícola das savanas e das estepes africanas; tal importância ultrapassa, aliás, os
limites do continente africano, pois muito tempo certas variedades de
Sorghum são cultivadas em outras regiões do mundo.
Assim, a África parece ser ao mesmo tempo um conjunto de berços agrícolas
originais e um mosaico de centros de origem de plantas cultivadas, algumas das
quais adquiriram uma importância econômica de escala mundial.
A África foi o local de origem de outros cereais importantes, entre os quais
se destaca o arroz. Inicialmente, a rizicultura baseou -se nas variedades de arroz
propriamente africanas, que merecem atenção. Elas são originárias do berço afro‑
‑ocidental, mais precisamente do subsetor do Níger central (centro primário) e
do subsetor senegambiano (centro secundário).
Já na Antiguidade, Estrabão referiu -se a uma rizicultura africana e no século
XIV, Ibn Battuta mencionou que o arroz era cultivado na região do ger
29
. Esses
testemunhos foram frequentemente ignorados e por muito tempo acreditou -se
que a rizicultura na África tivesse por origem o arroz asiático (Oryza sativa
L.). Por volta de 1914 apenas é que se reconheceu a existência de um arroz
especificamente africano, O. glaberrima Steudel, com panículas rígidas e eretas e
cariopses marrons ou vermelhas. Esse arroz pode ser explorado através de coleta,
mas pode, igualmente, ser cultivado; parece estar relacionado ao O. breviligulata
A. Chev. e O. Roer, encontrado em grande parte da África tropical.
O arroz africano fornece uma boa ilustração das teorias propostas por N.
I. Vavilov quanto à origem das plantas cultivadas: grande extensão da área da
espécie selvagem; possibilidade máxima de variação do arroz africano com
predominância de características dominantes no delta central do Níger (centro
pririo); diversificão em variedades com caracteres recessivos no Alto
Gâmbia e Casamance (centro secundário).
Portanto, a partir do delta central do Níger, as variedades cultivadas de arroz
africano se difundiram por todo o oeste da África até o litoral da Guiné. A
coleta da espécie selvagem O. glaberrima é, sem dúvida, muito antiga. Esse
cereal devia ser abundante nas regiões de coleta relativamente intensiva, onde
as condições favoreceram o início do cultivo de vegetais. Podemos, portanto,
supor que o cultivo desse arroz é, pelo menos, tão antigo quanto o dos outros
cereais africanos.
29 Ver SCHNELL, R. 1957, op. cit.
798
Metodologia e pré -história da África
F . Arrozais em solos hidromorfos sujeitos a cheias temporárias na estação das chuvas (rizicultura
de impluvium), Casamance: aldeia bayoyy de Niassa (Foto R. Portères).
F . Ilhas articiais para a cultura do arroz em arrozais aquáticos muito profundos onde o nível da
água não baixa o suciente. Durante a estação seca, a terra é ocupada por Scirpus littoralis Schrader; Nymphae
Lotus em or. Guiné Bissau: Kassabol, nas proximidades de Cap Varella (Foto R. Portères).
799
Origens, desenvolvimento e expansão das técnicas agrícolas
Mais tarde, as variedades de arroz cultivadas da Ásia (O. sativa) foram
introduzidas na África, possivelmente a partir do século VIII pelos árabes (na
costa oriental), ou a partir do século XVI pelos europeus (na costa ocidental).
Estabelecida a origem de rias espécies cultivadas (no presente capítulo
pudemos apresentar um resumo), aparece de maneira clara o caráter
endógeno das civilizações agrícolas da África, a partir dos recursos vegetais dos
meios ambientes naturais locais e sem necessariamente implicar influências
extra -africanas.
Relações entre a África e a Ásia
Como dissemos acima, as difusões provenientes do berço agrícola e pastoril
do Oriente Próximo mesopotâmico devem certamente ter desempenhado papel
importante na história antiga da agricultura na África. Assim, da Abissínia à África
do Norte, passando pelo vale do Nilo, existe uma zona que se pode considerar
como pertencente ao domínio paleomediterrâneo definido por Haudricourt e
Hedin (1943, op. cit.). No entanto, mesmo nessa zona, encontramos espécies
cultivadas propriamente africanas, na Etiópia sobretudo mas também no Egito
e na África do Norte.
Mais interessante, mas talvez menos conhecida, é a história das relações
antigas entre a África e a Ásia. A África deu à Ásia vegetais domésticos, como
o sorgo, por exemplo, mas recebeu em troca não apenas cultígenos do Oriente
Próximo (variedades de trigo, cevada, etc.), como também plantas vindas do
sudeste tropical da Ásia. Com efeito, parece provável que seja através da via
sabeia do sul da Arábia e leste da África, seja através de antigos navegadores que
aportaram na costa sudeste – tenham sido introduzidas no continente africano,
no passado, as bananeiras, o inhame grande (Dioscorea alata L.), o taro (Colocasia
esculenta L. Schott) e talvez a cana -de -açúcar (Saccarum officinarum L.).
Algumas dessas plantas cultivadas originárias da Ásia, sobretudo as bananeiras,
permitiram uma penetração mais fácil da agricultura nas regiões de florestas
tropicais da África.
O sorgo é um bom exemplo desse intercâmbio entre a África e a Ásia
30
. Com
efeito, existem na Ásia variedades de sorgos cultivados de origem africana, além
das já mencionadas. É o caso do S. bicolor Moench que parece ser o resultado do
cruzamento entre cultígenos do S. aethiopicum e a espécie selvagem S. sudanense.
30 Ver PORTÈRES, R. 1962, op. cit.
800
Metodologia e pré -história da África
Ao S. bicolor podemos relacionar principalmente o S. dochna Snowd. da Índia, da
Arábia e da Birmânia, reintroduzido mais recentemente na África, assim como o
S. miliforme Snowd. da Índia, introduzido recentemente no Quênia. Uma outra
variedade de sorgo cultivado, S. nervosum Bess., parece estar relacionado ao S.
aethiopicum e ao S. bicolor; é possível que sorgos da Birmânia e da China, entre
outros, estejam relacionados a essa variedade.
Sem entrar nos detalhes necessariamente complexos desse “coquetel
genético, devemos salientar que existem incios de antigos contatos entre
sorgos africanos e asiáticos. Tudo leva a crer que houve relações muito antigas
entre a África oriental e a Ásia, bem como intercâmbio de vegetais, fato que
parece confirmado pela existência, em épocas pré -coloniais, de alguns cultígenos
(ver acima) originários do sudeste asiático tropical.
Não se pode excluir a possibilidade anteriormente mencionada de que a
penetração da agricultura na floresta africana foi facilitada pela chegada de
cultígenos (bananeiras, taro, etc.), originárias do ecossistema generalizado que é a
floresta tropical úmida do sudeste da Ásia e das Índias Orientais. Desta última
região, aliás, vieram os primeiros grupos migrantes que, com algumas de suas
plantas cultivadas, atingiram Madagáscar e a costa oriental da África.
Se, em épocas passadas, houve um intercâmbio de plantas cultivadas entre a
África e a Ásia, parece claro, no entanto, que a África deve muito à Ásia no que diz
respeito aos animais dosticos. Certas espécies de suínos da África oriental parecem
relacionados aos suínos domesticados na Ásia. Como observa C. Wrigley
31
: “É quase
certo que a crião de animaiso se desenvolveu independentemente na África ao
sul do Saara, onde a fauna o inclui e não incluía nenhum possível ancestral dos
bovinos, caprinos e ovinos dosticos. Essas escies vieram do Egito através do
vale do Nilo. Entretanto, deve -se notar que há uma boa possibilidade de que certos
animais tenham sido domesticados na parte africana do donio paleomediterrâneo
(ver acima), sobretudo os bovinos no Egito, onde os homens do pré -neotico caçavam
as espécies Bos primigenius e B. brachyceros.
O esboço que apresentamos mostra o quanto a África es longe de ser esse
continente que – segundo a ideia por muito tempo propalada recebeu o essencial
de seu desenvolvimento agcola e pastoril de outras regiões do mundo. É evidente
que, assim como a Europa e a Ásia, a África dos tempos antigos o era refraria às
influências exteriores. Tamm é verdade que o norte do continente africano pertence,
como a Europa e a Ásia, a um donio mediterrâneo que, no passado, apresentou uma
31 WRIGLEY, C. 1970.
801
Origens, desenvolvimento e expansão das técnicas agrícolas
continuidade ecogica maior do que atualmente. No entanto, a África desenvolveu
uma agricultura e uma horticultura baseadas principalmente no cultivo de vegetais
peculiares ao continente, vegetais esses que, aliás, beneficiaram o resto do mundo,
como o sorgo, por exemplo. O fato de que a coleta e a caça permaneceram por muito
tempo, em algumas reges da África, como fontes de subsisncia, o significa
um atraso, mas é resultado da abunncia e diversidade dos recursos naturais, que
permitiram ao homem viver sem muito esforço nos diversos ecossistemas sem ter
necessariamente de transformá -los.
À guisa de conclusão
Ao lado da coleta, encontramos na África essa forma de agricultura nascente
que consiste em ajudar, em favorecer o desenvolvimento de um vegetal sem, no
entanto, intervir diretamente na sua reprodução. É o que ocorre ainda hoje com
plantas alimentícias arborescentes, como a cola, a sapotácea ou o dendezeiro.
Mas encontramos igualmente todos os estágios da evolução da horticultura e
da agricultura. Há, em resumo, uma grande diversidade de técnicas agrícolas
tradicionais, que incluem toda uma série de utilizações engenhosas dos solos
para a cultura das variedades africanas de arroz, bem como diversas formas de
queimada e de arroteamento com inúmeras variações e ainda sistemas agro-
-silvo -pecuários, etc.
O início e o desenvolvimento da agricultura na África estão ligados
essencialmente a três centros principais (mapa 4):
• O primeiro, que compreendia o norte do continente, do Egito ao Marrocos,
pertencia ao domínio mediterrâneo e sofreu certamente a inflncia do
berço agrícola e pastoril do Oriente Próximo, embora tenha sem dúvida
desenvolvido recursos próprios.
• O segundo compreendia a faixa periférica de savanas e estepes, ao redor
do coração florestal da África; foi onde se desenvolveu uma agricultura de
cereais (sorgo, milhete, etc.).
• O terceiro, finalmente, localizava -se na floresta e em sua orla; caracterizava-
-se por uma horticultura associada à coleta. Algumas das espécies vegetais
colhidas deram origem a espécies cultivadas.
Entre esses centros não existiam barreiras intransponíveis. Nas proximidades
das culturas dos oásis, encontramos variedades de trigo, sorgo e milhete; nas
savanas, são encontradas plantas alimentícias originárias da horticultura da
802
Metodologia e pré -história da África
orla florestal, a qual por sua vez cultivou vegetais caractesticos da coleta
especializada praticada na selva tropical. A Etiópia, por exemplo, possui em sua
flora econômica tradicional, além das espécies que lhe são próprias, espécies
pertencentes ao domínio mediterrâneo, outras originárias do centro agrícola das
savanas e das estepes africanas e, ainda, outras vindas da Ásia.
Dentre todos esses centros, o que parece ter maior significação para a história
da agricultura na África é o centro agrícola das savanas e estepes, sobretudo suas
áreas próximas da floresta, dos rios e dos lagos mais importantes.
Ainda é difícil datar com precisão a pré -história e a história da agricultura
na África. Entretanto, pode -se presumir que o período decisivo do início da
agricultura realmente africana foi o final do Pleistoceno, entre -9000 e -5000.
Nessa época, na periferia do núcleo central constituído por florestas, ocorreu,
ao que parece, uma intensificação, até mesmo uma especialização na coleta de
plantas. Nos rios e lagos do interior, a pesca se desenvolveu, levando a uma relativa
sedentarização. Em resumo, surgiram condições propícias às domesticações.
Enquanto esperamos que a arqueologia confirme ou não esse ponto de vista,
podemos presumir ter sido essa a origem da agricultura na África, ao passo que,
no “crescente fértil” do Oriente Próximo, constituíam -se as bases agrícolas e
pastoris das civilizações da Europa.
C A P Í T U L O 2 8
803
Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos sistemas sociais até o século V antes da Era Cristã
Na história geral da África, o vale do Nilo ocupa um lugar de destaque.
Apesar dos obstáculos, às vezes exagerados
1
, representados pelas cataratas, o
Nilo, com seus 6500 km de extensão aproximadamente, constitui, de norte a
sul, um meio de comunicação e de intercâmbio transcontinental de considerável
importância. O vale do Nilo, estendendo -se ao norte para além do 16
o
paralelo,
e ultrapassando os desertos de Bayouda a oeste e de Butana a leste, atinge
uma região de chuvas anuais e permite alcançar a grande via fluvial leste-
-oeste da África, que, através dos vales e depressões do Níger e do Chade, dos
planaltos do Darfur e do Kordofan e das planícies de piemonte do Atbara e do
Baraka, vai do Atlântico ao mar Vermelho. Assim, às vantagens de um eixo de
comunicação norte -sul, que se estende dos Grandes Lagos da África equatorial
ao Mediterrâneo, somam -se as do eixo leste -oeste, com a bacia do Nilo dando
acesso às bacias do Zaire, do Níger e do Senegal.
Essa vasta região que ocupa a extremidade nordeste do continente é,
portanto, de excepcional importância, desde os primórdios da História da África.
Infelizmente, continua arqueológica e historicamente mal explorada. O vale
inferior do Nilo, da Segunda Catarata ao Mediterrâneo, é relativamente bem
conhecido graças aos esforços dos arqueólogos que o vêm explorando desde o
1 Sobre as cataratas e seus obstáculos reais ou imaginários, a obra mais detalhada continua a ser a de A.
CHELU, 1891, p. 30 -73, que descreve cada uma das cataratas e apresenta os mapas dos canais navegáveis.
Descoberta e difusão dos metais e
desenvolvimento dos sistemas sociais
até o século V antes da Era Cristã
J. Vercoutter
804
Metodologia e pré -história da África
início do século XIX até os nossos dias. Mas o mesmo não ocorre com o vale
médio do rio (entre a Segunda e a Sexta Cataratas), nem com o vale superior
(de Cartum aos Grandes Lagos) e com as regiões desérticas próximas ao Nilo e
seus afluentes. Toda essa área, a leste e a oeste do Nilo, continua inexplorada do
ponto de vista arqueológico, e o conhecimento que se tem de sua História está
inteiramente fundamentado em hipóteses, muitas vezes baseadas em observações
quantitativa e qualitativamente insuficientes ou falhas.
Neste catulo, seguiremos simultaneamente as ordens cronogica e
geográfica. Faremos uma divisão em dois peodos: primeiro, do Neotico
até princípios do terceiro milênio, quando aparecem documentos escritos no
vale inferior do Nilo; sobre esse período apresentaremos partindo do mais
conhecido para o desconhecido, a saber, do norte para o sul – tudo o que se sabe
a respeito das civilizações que viveram às margens do rio. O segundo período,
que vai de princípios do terceiro milênio até o século V antes da Era Cristã,
será geograficamente estudado, como o primeiro período, do vale inferior ao
vale superior do Nilo.
Do Neolítico ao terceiro milênio antes da Era Cristã
Nesse período, que abrange aproximadamente dois milênios, de -5000 a
-3000, ocorre a descoberta e a difusão do metal no vale do Nilo e a manifestação
dos primeiros sistemas sociais. Do ponto de vista histórico é, portanto, um dos
períodos mais importantes, senão o mais importante.
Por ser difícil falarmos dos séculos obscuros da proto -história nilótica do
quarto milênio antes da Era Cristã (de -3800 a -3000) sem nos referirmos, ao
mesmo tempo, às culturas que os precederam, recapitularemos rapidamente, e sem
nos determos em seus aspectos materiais, as culturas neolíticas do vale do Nilo
estudadas nesta obra (cf. capítulo 2). Com efeito, todas as pesquisas recentes na
Núbia e no Egito confirmaram amplamente o fato de que a descoberta do metal
não representa uma quebra na evolução geral das civilizações do nordeste da
África. As culturas da idade do cobre são as descendentes legítimas e diretas das
culturas do Neolítico, sendo frequentemente impossível distinguir, in loco, um
sítio arqueológico do fim do Neolítico de um outro do Calcolítico. O primeiro
rei da dinastia tinita no Egito é o descendente legítimo dos chefes das últimas
etnias neolíticas, exatamente como os grandes faraós da época tebana descendem
dos chefes do Império Menfita.
805
Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos sistemas sociais até o século V antes da Era Cristã
O vale inferior do Nilo, de ‑4500 a ‑3000
2
A organização social que se vê, ou melhor, que se imagina instalar -se no
vale inferior do Nilo, no Egito, a partir de -3000, resulta incontestavelmente
das técnicas requeridas pela irrigação para a valorização agrícola do vale. Esta
tomada de posse do vale pelo homem teve início no Neolítico, prosseguindo até
o aparecimento de um sistema monárquico unificado.
Heródoto disse, e muitos autores repetiram posteriormente: “O Egito é
uma dádiva do Nilo”. Desde o início da época histórica, quando chegava ao fim
o processo de dessecação da África saariana, do Atlântico ao mar Vermelho, o
Egito não poderia ter vivido sem a inundação anual do rio; sem a enchente,
seria como o próprio Saara ou o Neguev. Mas esse presente que recebe do
Nilo, que lhe dá vida, pode também transformar -se em catástrofe. No ano 3 de
Osorkon III ( -754), a inundação foi tão grande que nenhum dique resistiu e
os templos de Tebas ficaram como um pântano”; o Sumossacerdote de Amon
teve de suplicar ao deus que impedisse as águas de subirem. A mesma catástrofe
ocorreu no ano 6 de Taharqa ( -683), quando todo o vale “transformou -se em
oceano embora o rei, temendo perder prestígio, tenha apresentado o fenômeno
como uma bênção do Céu!
As enchentes variam bastante: excessivamente grandes ou pequenas,
raramente como se desejaria que fossem
3
. Assim, de 1871 a 1900, foram
registradas três enchentes fracas, três medíocres, dez benéficas, onze muito
volumosas e três perigosas. Em trinta enchentes, apenas dez puderam ser
consideradas satisfatórias
4
.
Portanto, devemos reconhecer que a história da civilização na África nilótica
é também a da “domesticação”, por assim dizer, do Nilo pelo homem. Essa
domesticão exige a construção de diques ou aterros uns paralelos, outros
perpendiculares em relação ao curso do rio. Esse sistema permite a construção,
em ambas as margens, de bacias artificiais, ou hods, destinadas a diminuir a
força da enchente, a contê -la e a estendê -la às terras que normalmente não
atingiria.
2 Sobre a formação do Egito (anterior ao Neolítico e ao Calcolítico, que presenciam o desenvolvimento
dos primeiros sistemas sociais) ler o excelente estudo de W. C. HAYES, 1965. Essa obra póstuma,
editada por K. C. SEELE, contém um capítulo inteiro sobre a formação do Egito: I, p. 1 -29, com uma
abundante bibliograa analítica nas p. 29 -41.
3 Sobre os perigos da inundação, cf. J. BESANÇON, 1957, p. 78 -84.
4 BESANÇON, op. cit, p. 82 -83; bibliograa, p. 387 -88.
806
Metodologia e pré -história da África
Fruto de uma longa experiência, tal sistema pôde ser implantado
progressivamente
5
. Com efeito, para terem real eficácia, as bacias artificiais
deviam ser metodicamente planejadas para todo o território, ou pelo menos para
vastas regiões. Consequentemente, foi necessário um acordo prévio entre grande
número de homens para a realização desse trabalho comunitário. Eis a origem
dos primeiros sistemas sociais no vale inferior do Nilo: primeiro, agrupamento
de etnias em torno de um centro agrícola provincial; em seguida, união de vários
desses centros e, finalmente, formação de dois agrupamentos políticos maiores,
um no sul e outro no norte
6
.
A documentação de que dispomos referente a esse período de -5000 a -3000
– não permite determinar a natureza do sistema social que é a base da ocupação
e valorização do vale inferior do Nilo. O próprio termo etnia”, que acabamos
de empregar, certamente não é correto. Nada nos autoriza a afirmar que houve,
nessa época, grupos étnicos muito diferenciados ao longo do vale do Nilo, embora
pareça confirmada a existência de grupos políticos ou político -religiosos. A única
indicação de que dispomos fundamenta -se nas representações que aparecem em
monumentos votivos de pequenas dimensões: paletas para maquilagem, clavas
cerimoniais de significado mágico -religioso. Essa documentação reflete apenas,
e bem sumariamente, a situação no final do período, nas últimas gerações do fim
do quarto milênio
7
. Pode -se admitir, todavia, que o sistema social praticamente
não evoluiu ao longo dos dois milênios que durou o período, de acordo com as
observações feitas a partir dessa documentação.
O início da história escrita coincide, em geral, com a fusão dos agrupamentos
do norte e do sul em um sistema e sob a autoridade de um único rei. Temos aí,
esquematicamente, a história do vale inferior do Nilo, de -5000 a -3000, história
como se vê, dominada não apenas pela descoberta do metal, acontecimento na
verdade de importância menor, mas principalmente pelo domínio do homem
sobre todo o vale. Esse domínio, independentemente da construção de diques e
barragens, exigiu o aplanamento do solo a fim de que a água não se estagnasse
nas terras baixas e, por outro lado, se espalhasse a grande distância para ampliar
5 As obras gerais sobre a irrigação no Egito não examinam, ao que sabemos, a questão do aparecimento
e desenvolvimento progressivo da irrigação no Egito. O sistema já estabelecido é descrito em J.
BESANÇON, op. cit., p. 85 -97, e em F. HARTMANN, 1923, p. 113 -18. L. KRZYZANIAK, 1977,
distingue um período de irrigação natural, p. 52 -123, e um período de irrigação controlada, p. 127 -67.
Esta teria começado no Gerzehense (Nagada II), cf. ibid. p. 137, por volta de -3070 ±290. Quanto a essa
data, ver H. A. NORDSTROM, 1972, p. 5.
6 J. VERCOUTTER, 1967, p. 253 -57.
7 Sobre esses problemas, cf. J. -L. de CENIVAL, 1973, p. 49 -57.
807
Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos sistemas sociais até o século V antes da Era Cristã
as terras cultiváveis do vale. Trata -se, sem dúvida, de uma vitória do camponês
sobre uma natureza indiscutivelmente hostil.
O Neolítico
Encontraremos no capítulo 25 do presente volume uma descrição detalhada
do aspecto material das diferentes “culturas ou horizontes culturais” que
constituem, por assim dizer, a trama da evolução social dessas culturas agrupadas
sob os termos gerais de “Neolítico e de “Pré -Dinástico” no vale do Nilo, tanto
no Sudão como no Egito. Nas páginas seguintes, preocupamo -nos unicamente
em realçar os aspectos sociais e o desenvolvimento histórico dessas culturas.
Com efeito, Neolítico e Pré -Distico constituem no vale do Nilo um
continuum cultural. Apenas para citar um exemplo, o “Badariense”, analisado
detalhadamente no capítulo 25, é apenas uma etapa na evolução de uma cultura
que, tendo começado no Tasiense”, termina no Negadiense II” e nas sociedades
pré -tinitas”. Em outras palavras, apresentamos aqui, de forma sintética, o que
está descrito de forma analítica no capítulo 25. Os dois aspectos dos problemas
levantados são complementares, e encontraremos entre colchetes [] as
referências que permitirão ao leitor voltar facilmente à descrição detalhada das
culturas” que são abordadas, no presente capítulo, apenas de modo genérico.
O período Neolítico no Egito é conhecido somente através de um pequeno
número de sítios que muitas vezes não são contemporâneos. O mais antigo
localiza -se às bordas da depressão do Faium [= Faiumiense B], a oeste do vale,
no Médio Egito
8
. Ao norte, são conhecidos os sítios de Merinde -Beni -Salame
9
[= Merindiense], no Delta ocidental, à beira do deserto, cerca de 50 kma
noroeste do Cairo, e de El -Omari
10
[= Omariense A e B], próximo ao Cairo,
perto de Heluan. No Médio e no Alto Egito existem os sítios de Deir Taza, no
sudeste de Assiut e, menos importantes, os de Toukh e de Armant -Cebelein,
na região de Tebas
11
. As comparações que podem ser estabelecidas entre esses
sítios para se determinar a natureza e a extensão dos diferentes aspectos do
8 Sobre o Neolítico do Faium, cf. W. C. HAYES, 1965, p. 93 -99, e 139 -40; ver também as observações de
F. WENDORF, R. SAID e SCHILD, 1970, p. 1161 -171.
9 Sobre o sítio de Merinde -Beni -Salame, cf. W. C. HAYES, op. cit. p. 103 -16 e 141 -43; ver também, para
a cerâmica, L. HJALMAR, 1962, p. 3 e segs.
10 Cf. W. C. HAYES, op. cit., p. 117 -22 e 143 -44.
11 Infelizmente não dispomos dos estudos e da bibliograa crítica de W. C. HAYES sobre o Alto Egito;
a obra cou incompleta em virtude do falecimento do autor (cf. op. cit., p. 148, n. 1). Tomaremos como
ponto de referência o estudo de J. VANDIER, 1952, p. 166 -80.
808
Metodologia e pré -história da África
Neolítico que representam tornaram -se ainda mais difíceis devido ao fato de
não serem contemporâneos, segundo as análises do carbono 14. O sítio mais
antigo, o de Faium A, data de -4400 (±180); em seguida vêm os de Merinde,
de -4100 (±180) e de El -Omari, de -3300 (±230); por último, o de Taza, que
data do fim do Neolítico
12
.
Em outras palavras, os sítios explorados nos elucidam, por um lado, a fase
inicial do Neolítico no Faium e no Delta e, por outro, a fase final desse período
no extremo sul do Delta e no Médio Egito. No entanto, de -4000 a -3300, isto
é, durante sete séculos, nada sabemos, ou muito pouco, sobre a evolução geral do
Neolítico egípcio na sua totalidade. O mesmo ocorre em relação à região ao sul
do Médio Egito. É certo que as descobertas de superfície nas proximidades do
vale e no deserto são numerosas; provam a existência do que se chama “intervalo
úmido”, ou “Neolítico subpluvial”
13
, no fim do sexto milênio, que representa uma
pausa no processo de dessecação climática do nordeste da África. Mas essas
descobertas, que são vestígios das culturas neolíticas, pouco nos elucidam, dada a
falta de escavações sistemáticas; os únicos estudos proveitosos continuam sendo
os que se apóiam nos sítios arqueológicos mencionados acima. Vastas regiões e
longos períodos permanecem ainda inexplorados. Esse desconhecimento é ainda
mais lamentável por ser geralmente aceito que a “revolução” neolítica chegou
ao Egito proveniente do Oriente Próximo siro -palestiniano, o “crescente fértil”,
onde foi comprovada há muito tempo. Foi dessa forma que o protoneolítico de
Jericó pôde ser datado de -6800; é, portanto, bem anterior ao Neolítico do Faium.
Mas para provar que o Neolítico no vale inferior do Nilo e principalmente no
Delta e no Faium veio realmente da Ásia, seria necessário conhecer os sítios da
orla marítima e da parte oriental do Delta, até a altura de Mênfis. E são essas
justamente algumas das áreas pouco conhecidas por nós. Consequentemente, a
origem asiática do Neolítico egípcio continua sendo uma hipótese
14
. Hipótese
que agora está a exigir confirmação porque, no último decênio, as pesquisas
arqueológicas no Saara provaram que o Neolítico também é muito antigo no
local, principalmente no Ahaggar, onde o sítio de Amekni é quase contemporâneo
12 Sobre o Neolítico “Tasiense”, cf. G. BRUNTON, 1937, p. 5 -33. Quanto à data, cf. W. F. LIBBY, 1955,
p. 77 -78.
13 BUTZER, 1964, p. 449 -53 e G. CAMPS, 1974, p. 222.
14 Estudando o problema da origem do povoamento do Egito pré -dinástico, E. BAUMGARTEL rejeitou,
em 1955, a possibilidade das procedências ocidental, setentrional e oriental (cf. E. BAUMGARTEL,
1955, p. 19). Os recentes trabalhos dos arqueólogos no Saara (cf. abaixo) revelaram que essa posição
devia ser modicada no que diz respeito ao oeste; todavia continua válida para o leste.
809
Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos sistemas sociais até o século V antes da Era Cristã
ao de Jericó protoneolítico
15
. Não obstante, observaremos que as datas desse
Neolítico saaro -sudanês são todas anteriores às do Neolítico egípcio, pelo menos
para os sítios do Faium e de Merinde -Beni -Salame
16
, atualmente datados, e
às do Neolítico nubiano
17
. Além disso, os objetos de cerâmica talvez tenham
aparecido primeiro na Núbia e depois no Egito
18
, isso, bem entendido, se nos
basearmos nas fontes de que dispomos atualmente.
Levando -se em conta a antiguidade do Neolítico saaro -sudanês, -se que
não está excluída a priori a possibilidade de o Neolítico do vale do Nilo, tanto
no Egito como na Núbia, ser o descendente desse Neolítico africano. Porém,
é necessário certa prudência, considerando -se, por um lado, a enorme raridade
dos sítios neolíticos no vale inferior do Nilo, no Egito; e, por outro lado, o fato
de somente as margens do rio terem sido cuidadosamente exploradas na Núbia,
e apenas entre a Primeira Catarata e o sul da Segunda Catarata. A faixa que se
estende entre o vale do rio e o Saara Oriental é ainda desconhecida, do ponto
de vista arqueológico. Mesmo assim, as influências exercidas no Capsiense e
no Ibero -Maurusiense da África do Norte em direção à Núbia, e no Sebiliense
e médio Paleolítico da África central igualmente rumo à Núbia
19
, podem ter
persistido no protoneolítico. O Delta egípcio, constituindo um cruzamento de
vários caminhos, pôde ser o ponto de encontro de influências vindas tanto do
oeste e do sul, como do leste e do nordeste.
Desde a emergência do Neolítico no vale inferior do Nilo, constata -se uma
diferenciação cultural entre o grupo do norte e o do sul. É certo que nos dois
grupos as populações são constituídas por agricultores e pastores, que continuam
a praticar a caça e a pesca; todavia o próprio material que nos deixaram difere
sensivelmente de um grupo a outro em natureza, qualidade e quantidade [25].
O mesmo ocorre em relação a certos costumes.
No norte, as casas melhor agrupadas podem sugerir uma estrutura social
coerente; os mortos são enterrados nas aldeias como se continuassem a pertencer
a uma comunidade organizada
20
. no sul as sepulturas são cavadas à beira
do deserto; as casas estão dispersas, mas parece existir uma organização mais
15 G. CAMPS, 1974, p. 224; 1969. Amekni data de 6700 antes da Era Cristã; o protoneolítico de Jericó
de 6800 antes da Era Cristã.
16 H. NORDSTROM, op. cit., p. 5.
17 H. NORDSTROM, op. cit., p. 8, 16 -17 e 251.
18 F. WENDORF, 1968, p. 1053. A cerâmica aparece na Núbia no “Shamarkiense” em -5750, mas somente
em 6391 B.P., ou seja, por volta de -4400 no Faium.
19 F. WENDORF, op. cit., p. 1055, g. 8.
20 H. JUNKER, 1930, p. 36 -47. Para a bibliograa completa do sítio, cf. capítulo 25.
810
Metodologia e pré -história da África
próxima à familiar. As diferenças entre os dois grupos são também perceptíveis
nas técnicas utilizadas por um e outro: os artesãos do norte dispõem de um
método mais refinado para o trabalho em pedra e passam a fabricar vasos de
pedra, dando início a uma técnica que se tornará uma das mais características do
Egito faraônico arcaico. Quanto à cerâmica, em compensação, se o norte conhece
maior variedade de formas, o sul possui melhor técnica de fabricação. É nessa
época, de fato, que aparece, ao lado da cerâmica preta com decoração branca, a
notável cerâmica vermelha com bordos pretos que será igualmente transmitida
ao Egito pré -dinástico e arcaico, transformando -se numa das indústrias mais
peculiares do vale do Nilo, tanto no Sudão como no Egito.
Assim, desde o Neolítico delineia -se a separação entre dois grupos culturais
e talvez entre dois sistemas sociais. Um situa -se ao redor da região de Mênfis,
Faium e extremidade noroeste do Delta; o outro, no Médio e no Alto Egito,
entre Assiut e Tebas
21
. Essa diferença cultural, embora não exclua pontos de
contato entre os grupos, vai -se tornando mais nítida nos últimos séculos do
quarto milênio, antes da fusão, quando se constituíram numa única civilização
com características comuns. Esse fato ocorreu pouco antes do advento da
monarquia unificada no vale egípcio do Nilo, por volta de -3000
22
.
O Pré‑Dinástico
É frequente qualificar -se o P -Dinástico egípcio de Eneolítico ou Calcolítico,
como se o aparecimento do metal representasse um acontecimento capital,
um momento decisivo no desenvolvimento do vale. Devemos salientar que,
na verdade, não nenhuma ruptura entre o Neolítico e o Eneolítico no vale
inferior do Nilo. Pelo contrário, a continuidade do desenvolvimento é evidente;
esta a razão pela qual preferimos manter o termo Pré ‑Dinástico para qualificar
esses séculos obscuros, mas de importância primordial para a História da África.
O advento do metal no Egito é lento e não parece ter sido obra de povos
invasores. Contrariamente ao que ocorre em outras civilizações, o cobre aparece
antes do ouro
23
, embora este último seja mais facilmente encontrado em estado
natural, em jazidas localizadas nas proximidades do vale. Os primeiros objetos
de cobre, de pequenas dimensões, aparecem, no grupo do sul, no sítio de Badari
21 Convém observar que o grupo do norte não se expande até o mar; é tão “continental” quanto o grupo
do sul, cf. J. -L. de CENIVAL, op. cit., Mapa A, p. 50.
22 J. VERCOUTTER, 1967, p. 250 -53.
23 Cf. A. LUCAS, 1962, p. 199 -200.
811
Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos sistemas sociais até o século V antes da Era Cristã
(que deu nome à cultura Badariense)
24
, e no grupo do norte, em Demeh, Kasr-
-Maroun e Khasmet -ed -Dib, no Faium; esse conjunto de sítios é denominado
Faium -A para diferenciá -lo do Faium neolítico ou do Faium -B.
discussões a propósito da origem da metalurgia do cobre no Egito
25
. É
possível que tenha sido trazida do exterior, do Oriente Próximo; nesse caso,
porém, somente em escala muito limitada: uns poucos indivíduos revelando
aos habitantes do vale a técnica do cobre. Entretanto não se poderia afastar a
hipótese de um fenômeno de convergência: os próprios habitantes do vale do
Nilo descobrindo o metal praticamente na mesma época em que era descoberto
no “crescente fértil”. Com efeito, foi nessa época que, talvez acidentalmente,
as populações badarienses descobriram o esmalte azul, ao aquecer pedras ou
paletas nas quais havia sido triturado material para a pintura dos olhos à base
de malaquita, que é um minério de cobre
26
. Assim, os habitantes do vale teriam
descoberto simultaneamente o cobre, que trabalhavam a frio, e a chamada
“faiaa egípcia”, isto é, o esmalte azul, que logo passou a ser utilizado na
fabricação de contas de adorno.
Qualquer que seja a origem do metal, asiática ou autóctone, sua utilização
era muito limitada e os utensílios de pedra continuavam a ser os mais comuns,
tanto no grupo do norte como no do sul. Uma coisa é certa: a descoberta ou
a difusão do metal não alterou em nada a organização social, como se pode
comprovar pelas sepulturas.
O Pré -Dinástico, de aproximadamente -4000 a -3000, pode ser dividido
em quatro fases que ajudam a marcar a evolução do vale durante esse período,
infelizmente ainda bastante obscuro. Portanto distinguiremos os Pré -Dinásticos
Primitivo, Antigo, Médio e Recente.
No Pré ‑Dinástico Primitivo [= Badariense], os dois grupos, do sul e do norte,
continuam a evoluir independentemente um do outro. No sul, a maior parte
das informações referentes a essa fase provêm do sítio arqueológico de Badari,
nos arredores de Deir Tasa. Apesar do aparecimento do metal, o Badariense
27
e
24 Cf. capítulo 25. A civilização badariense foi estudada com frequência (cf. bibliograa abaixo). A obra
básica continua sendo a de G. BRUNTON e G. CATON -THOMPSON, 1928, complementada com
G. BRUNTON, 1948, cap. VI, p. 9 -12.
25 Cf. A. LUCAS, op. cit., p. 201 -06. Sobre a origem da metalurgia do cobre no Oriente Médio antigo, cf.
B. J. FORBES, 1964, p. 16 -23. O nome hieroglíco do cobre só pôde ser decifrado recentemente; cf. J.
R. HARRIS, 1961, p. 50 -62.
26 A. LUCAS, op. cit., p. 201.
27 Sobre essa civilização, as obras básicas continuam sendo as de G. BRUNTON, 1928, p. 1·42; 1937, p.
33-66 e 1948, p. 4-11.
812
Metodologia e pré -história da África
o Neolítico têm tantos pontos em comum que, por vezes, pergunta -se se essa
cultura não seria uma simples variante local do Tasiense neolítico. O estudo
dos esqueletos revela que os homens do Badariense do Pré -Dinástico Primitivo
eram fisicamente muito semelhantes aos egípcios que vivem atualmente na
mesma região. As populações continuavam a viver em choupanas de forma
oval, um pouco mais conforveis do que as da época anterior; usavam
esteiras trançadas, almofadas de couro e até camas de madeira. O culto aos
mortos desenvolve -se; o cadáver é isolado em uma câmara de madeira, dentro
da sepultura oval, e cercado de mobília funerária, alimento, vasos e objetos de
uso diário. Como os neolíticos do Tasiense, os badarienses cultivam e tecem o
linho, e além disso utilizam o couro obtido pela caça e pela criação. Praticam,
portanto, uma economia mista; criação e agricultura são ainda suplementadas
pela caça e pela pesca. Continuam a fabricar vasos vermelhos com bordos pretos
e excelente cerâmica vermelha finamente polida. A descoberta do esmalte torna
possível aos artesãos a fabricação de contas de adorno de um azul intenso. O
material para a pintura dos olhos é pulverizado sobre paletas de xisto, algumas
das quais são decoradas, assim como pentes de marfim. Dessa forma, a arte
surge gradativamente.
Pré Distico Primitivo [= Faiumiense A]. A camada mais recente de
Merinde -Beni -Salame poderia também pertencer a esse P-Dinástico Primitivo
que é conhecido no grupo do Norte graças aos sítios do Faium -A
28
. Como no
Badariense, o sílex é empregado em escala muito maior do que o metal na
fabricação de utensílios. Os cera mistas do Faium -B produzem maior variedade
de formas de vasos que os do Badariense, mas sua técnica é menos aperfeiçoada.
É certo que o artesão do norte revelou -se novamente superior, modelando
belíssimas vasilhas e vasos de pedra, principalmente de xisto preto. Mas, em
geral, os dois grupos praticamente não se distinguiam, cada qual representando
apenas a evolução normal da cultura neolítica que o precedeu na região. Nada
indica que tenha havido, em qualquer dos grupos, diferenças apreciáveis entre
os membros da comunidade. Em particular, não parece ter existido, dentro da
coletividade, elementos sensivelmente mais ricos do que outros. Tudo transcorre
como se houvesse igualdade social entre os diversos membros da comunidade,
independentemente de idade ou sexo. Essa conclusão baseia -se, naturalmente,
na suposição de que as necrópoles conhecidas e pesquisadas arqueologicamente
pertenceram à totalidade do grupo humano em questão; em outras palavras,
28 G. CATON -THOMPSON e E. W. GARDNER, 1934.
813
Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos sistemas sociais até o século V antes da Era Cristã
que nenhum membro dessa comunidade foi sepultado fora dessas necrópoles
em virtude de alguma discriminação racial, religiosa ou social.
O P‑Dinástico Antigo [= Negadiense I] infelizmente só é conhecido pelos
sítios do sul. Recebe também o nome de Amratiense, derivado do topônimo
El -Amrah
29
, perto de Abidos, portanto consideravelmente mais ao sul do que
Badari. O Amratiense corresponde também ao que por vezes se denomina
cultura de Nagada I, segundo a nomenclatura de Flinders Petrie, utilizada
principalmente nas datações com carbono 14.
A cultura amratiense é descendente, quanto à época, da badariense, não
havendo ruptura também nesse caso; em alguns sítios a camada amratiense está
em contato direto com a camada badariense. A cultura amratiense continua a
produzir a cerâmica vermelha com bordos pretos da cultura precedente, mas
introduz a cerâmica decorada com desenhos geométricos e naturalistas, pintados
de branco fosco sobre fundo vermelho ou marrom avermelhado; mais raramente,
a decoração consiste em incisões preenchidas de branco sobre fundo preto. O
ceramista amratiense, mais inventiva que seu predecessor badariense, cria formas
novas, principalmente de animais. A caça tem ainda grande destaque entre os
temas da decoração naturalista, especialmente a caça ao hipopótamo. Pode -se,
então, supor que no Pré -Dinástico Antigo ainda não estava concluída a transição
entre um sistema social formado por caçadores -pescadores relativamente
nômades e um sistema de aldeias ou grupos de agricultores -pastores sedentários.
Deve -se observar que a arma típica do Amratiense é uma clava, frequentemente
talhada numa pedra dura, em forma de tronco de cone
30
. O fato é importante,
pois essa arma desaparece completamente após o Amratiense. Um dos caracteres
do sistema hieroglífico, na época histórica, emprega -a com valor fonético
31
; isso
significa que foi na época amratiense, portanto no Pré -Dinástico Antigo, por
volta de -3800 (data fornecida pelo C14), que o sistema de escrita hieroglífica
deve ter começado a se formar.
A arte continua a se desenvolver. Nesse período, aparecem estatuetas
representando homens barbados com estojo fálico, mulheres dançando e animais
diversos, simultaneamente a grande quantidade de paletas para maquilagem com
decorações e pentes ornamentados com desenhos de animais
32
.
29 Cf. J. VANDIER, op. cit., p. 231-32. O sítio foi descoberto em 1900. Foi publicado por D. RANDALL-
MACIVER e A. C. MACE, 1902, p. 3·52.
30 Sobre essa clava, cf. W. M. F. PETRIE, il. XXVI e p. 22-24.
31 A. H. GARDINER, 1957, p. 510, quadro 1.
32 J. L. de CENIVAL, op. cit., p. 16·21.
814
Metodologia e pré -história da África
Dentre os sítios do Amratiense, agrupados entre Assiut (ao norte) e Tebas
(ao sul), destacam -se os de Nagada, Ballas, Hou e Abidos. É lamentável não se
conhecer, no grupo do norte, nenhum sítio contemporâneo do Amratiense, tanto
mais que, neste último, percebem -se nítidos vestígios de contato entre o norte e o
sul, principalmente pela existência de vasos de pedra com formas características
do Pré -Dinástico setentrional em meio ao mobiliário funerário amratiense. Nas
práticas funerárias nada indica que tenha ocorrido uma mudança de organização
social entre o Pré -Dinástico Primitivo e o Pré -Dinástico Antigo do Amratiense.
Observa -se ainda a existência de comunidades constituídas de indivíduos que
gozam de igualdade social, mesmo sob a autoridade de um único chefe ou de
um grupo de indivíduos.
Após um século de existência, talvez menos, a cultura amratiense incorpora-
-se a uma nova e complexa cultura que mistura elementos do Amratiense com
outros de origem incontestavelmente setentrional. Essa cultura mista, o Pré‑
‑Dinástico Médio [= Negadiense II e talvez Omariense A] ou Gerzeense (Nagada
II na nomenclatura de Petrie), deriva seu nome do sítio de Gerzeh
33
, no Baixo
Egito, perto do Faium, onde aparece com maior evidência. Apresenta dois
aspectos, um puramente gerzeense ao norte, outro misturando amratiense e
gerzeense ao sul
34
.
Essa nova cultura encontra -se centralizada, ao norte, na região ao redor de
Mênfis, do Faium e da extremidade sul do Delta. É sobretudo na cerâmica
que o Gerzeense setentrional manifesta sua originalidade, com vasos de cor
amarelo -clara, fabricados com material bem diferente daquele utilizado na
cerâmica produzida no sul. A decoração é naturalista, ocre avermelhada sobre
fundo claro, com novos temas: montanhas, íbis, flamingos, aloés e sobretudo
embarcações. Como os artesãos do Faium -A, dos quais são sucessores, os do
Gerzeense fabricam vasos de pedra, mas utilizam xisto e outras rochas mais
duras: brecha, basalto, diorito, serpentina. A arma típica dessa cultura é a clava
piriforme
35
que se tornará a arma real por excelência nos primórdios da História
e será, como a clava do Amratiense, um dos caracteres da escrita hieroglífica
36
.
Nota -se tamm uma evolução social e religiosa. Agora os mortos são
enterrados em túmulos retangulares, com a cabeça voltada para o norte, de
33 A aldeia de EIl-Gerzeh está situada na latitude do Faium, portanto bem ao sul do atual Cairo; o sítio pré-
-dinástico foi escavado em 1911. Cf. W. M. F. PETRIE, E. MACKAY e G. WAINWRIGHT, 1912.
34 J. VERCOUTTER, 1967, p. 245 -67, e J. VANDIER, op. cit., p. 248 -52 e 436 -96.
35 W. M. F. PETRIE, op. cit., il. XXVI e p. 22 -24.
36 A. H. GARDINER, op. cit., p. 510, quadro 3.
815
Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos sistemas sociais até o século V antes da Era Cristã
frente para leste e não mais para oeste. Quanto às embarcações, representadas
com grande frequência nos objetos de cerâmica do Gerzeense, trazem na proa
símbolos em que facilmente se reconhecem os precursores das insígnias dos
nomos ou províncias do Egito faraônico.
Ultrapassando a fase da família e da aldeia, os grupos humanos passam a
reunir -se em associações muito mais amplas. O poder que resulta dessa nova
organização social permite, sem dúvida, um maior aproveitamento do vale por
meio da irrigação e traz, por conseguinte, um enriquecimento considerável
que se reflete na produção de objetos trabalhados: vasos de pedra de melhor
qualidade e em maior quantidade; maior número de instrumentos e armas de
cobre, tais como tesouras, adagas, pontas de arpão e machados. Na verdade, não
se trata de um acaso o fato de, nessa época, os adornos funerários ostentarem
ouro e vários tipos de pedras semipreciosas: lápis -lazúli, calcedônia, turquesa,
cornalina, ágata. A estatuária desenvolve -se, e os motivos representados, falcão
e cabeça de vaca principalmente, mostram com clareza como a própria religião
faraônica também está em formação: Hórus, o Falcão, e Hátor, a Vaca, são
adorados.
No sul, as culturas posteriores ao Amratiense do P-Dinástico Antigo estão
fortemente impregnadas de influências gerzeenses. Assim, a cerâmica gerzeense
clássica, cor de camurça, com decoração naturalista vermelha, é encontrada lado
a lado com a tradicional cerâmica do sul, vermelha com bordos pretos ou com
decoração em branco fosco.
A influência é de fato recíproca entre os dois grupos e as semelhanças
são numerosas; instrumentos líticos notadamente (nessa época, a cnica de
lascamento de instrumentos cortantes de sílex atinge o auge da perfeição) e
paletas para maquilagem apresentam aspecto análogo nas duas culturas. Assim,
os dois grupos culturais encaminhavam -se, gradativamente, para uma fusão
completa.
Essa fusão entre o norte e o sul acontecerá no P‑Dinástico Recente, ou
Gerzeense Recente; às vezes também denominado Semainiense [= Omariense
B e Meadiense]
37
. Estamos agora no limiar da História; essa última fase teve
curta duração. Se mantivermos a data de -3000 para o início da História, o
que fizemos para continuarmos fiéis às datas ainda tradicionalmente aceitas, o
Pré -Dinástico Recente provavelmente não teria durado mais de duas ou três
gerações, no máximo. Uma data do C14 para o Pré -Dinástico Médio nos revela
37 A expressão é de F. PETRIE, 1939, p. 55 e segs. Semaineh é uma aldeia do Alto Egito, perto de Qena.
Cf. tb. J. VERCOUTTER, 1967, p. 247 -50.
816
Metodologia e pré -história da África
que este se prolongou até -3066, o que deixa apenas três quartos de século para
a transição do fim do Pré -Dinástico Médio ao início da História. Ao que tudo
indica, esse início deveria ser deslocado para uns duzentos anos mais tarde;
mas mesmo localizando -o por volta de -2800
38
, restam apenas pouco mais de
dois séculos para uma fase em que se completou o processo de aproveitamento
do vale inferior do Nilo e estabeleceu -se um sistema social dirigido por uma
monarquia de direito divino.
Essa fase encontra -se tão próxima daquela que testemunha o aparecimento
da escrita que tentou -se extrapolar as informações fornecidas pelos textos
escritos para o que a arqueologia nos revela
39
. Os textos deixam entrever que, no
início do Pré -Dinástico Recente e talvez desde o fim do P-Dinástico Médio, a
cidade mais poderosa do sul era Ombos (Noubet em egípcio), perto de Nagada,
portanto exatamente no centro da cultura amratiense. O deus da cidade é Seth,
deus animal sobre cuja natureza ainda se discute; tem sido identificado como um
tamanduá, uma espécie de porco, uma girafa… um animal mítico ou muito
desaparecido da fauna egípcia. Os textos nos informam que esse deus meridional
entra em luta com um deus -falcão, Hórus, adorado na cidade de Behedet, que
provavelmente estava localizada no Delta, isto é, dentro dos domínios da cultura
gerzeense. Portanto, no fim do Pré -Dinástico Médio, o Egito estaria dividido
em duas estruturas sociais, uma ao norte, dominada por Hórus de Behedet, e
outra ao sul, dirigida por Seth de Ombos. Também nesse caso, infelizmente,
as fontes de que dispomos não permitem determinar com precisão a natureza
dessas estruturas sociais. Pode -se, no máximo, ter uma ideia da importância do
chefe de grupo, importância que reside em seus poderes mágicos e religiosos, que
se traduzirá, na época histórica, no caráter divino do representante da realeza
40
.
Poder -se -ia, talvez, admitir a hipótese de o chefe dispor de poderes praticamente
ilimitados em relação aos indivíduos da coletividade, sendo que esta, por sua vez,
podia, quando a ocasião se apresentasse, matar o chefe cujos poderes mágicos
estivessem em declínio (cf. A. Moret, La mise à mort du dieu en Egypte).
Interpretando os textos, admite -se que a luta entre esses dois grupos teria
terminado, numa primeira etapa, com uma vitória do norte sobre o sul, e que após
essa vitória teria sido criado um reino unificado, tendo por núcleo Heliópolis
41
,
perto do Cairo, a uns 60 km ao norte do sítio de Gerzeh. Traduzida em termos
38 A. SCHARFF, 1950, p. 191.
39 A obra básica continua sendo o brilhante ensaio de K. SETHE, 1930.
40 Cf. G. POSENER, 1960.
41 K. SETHE, op. cit.; hipótese refutada por H. KEES, 1961, p. 43.
817
Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos sistemas sociais até o século V antes da Era Cristã
arqueológicos, essa vitória do norte sobre o sul corresponderia à penetração da
cultura gerzeense em domínio amratiense.
Durante o Pré -Dinástico Recente, sempre por extrapolação das informações
fornecidas pelos textos, teria havido uma evolução política ou social nos dois
grupos, no norte e no sul. A unidade política resultante da vitória do norte sobre
o sul, no fim do Pré -Dinástico Médio ou no início do Pré -Dinástico Recente,
teria tido curta duração e cada grupo teria retornado imediatamente à sua
existência independente. Após essa evolução, constata -se que o centro político
do norte desloca -se de Behedet, cuja posição exata é ainda desconhecida, para
Buto, a oeste do Delta, a cerca de 40 km do mar, região em que não foi possível
atingir as camadas arqueológicas contemporâneas do Pré -Dinástico. Ao mesmo
tempo, a capital política do sul passava de Ombos para El Kab (Nekkeb em
egípcio antigo), cem quilômetros mais ao sul
42
. O grupo do sul torna -se, assim,
mais meridional, e o do norte, mais setentrional.
Em Buto adorava -se uma deusa -cobra, Uadjit; em El Kab um abutre -fêmea.
Essas duas divindades, na época histórica, serão protetoras dos faraós e figurarão
regularmente no ritual da cerimônia de coroão
43
. Alguns documentos,
posteriores de cerca de um milênio, tinham conservado os nomes dos soberanos
desses agrupamentos políticos do fim do Pré -Dinástico Recente, mas poucos
chegaram até nós. A partir dessa época, parece haver uma unidade cultural entre
o norte e o sul. Assim, o deus Hórus, originário do norte, é também adorado no
sul, e os chefes políticos, no norte como no sul, consideram -se seus servidores
ou partidários, com o título de Shemsu Hórus
44
.
Do ponto de vista material, pouca diferença entre a civilização do Pré-
-Dinástico Médio e a do Pré -Dinástico Recente, mas observa -se um incontestável
progresso na arte e na técnica. A figura humana torna -se um tema abordado com
frequência pelos artistas, e a pintura mural aparece em Hieracômpolis (Nekkem,
em egípcio antigo), importante centro situado na margem ocidental do Nilo,
quase defronte a El Kab
45
. Hieracômpolis torna -se o berço da realeza do sul que,
por volta de -3000, início à luta contra o norte.
É impossível saber quanto tempo durou essa luta. Ocupa os últimos anos
do P-Dinástico Recente e termina com a vitória do sul sobre o norte e com
a criação de um estado unificado abrangendo todo o vale; desde El Kab até o
42 J. VERCOUTTER, 1967, p. 248 -49.
43 Cf. A. H. GARDINER, 1957, p. 71 -76.
44 Sobre os Shemsou ‑Hor, cf. J. VANDIER, op. cit., p. 129 -30 e 635 -36.
45 Hieracômpolis forneceu numerosos documentos pré -dinásticos, cf. PORTER e MOSS, 1937, p. 191 -99.
818
Metodologia e pré -história da África
Mediterrâneo. Esse estado será governado por reis do sul, originários da região
de This
46
, bem próximo a Abidos, que constituem as duas primeiras dinastias,
denominadas tinitas. Por essa razão o breve período do Pré -Dinástico Recente
é geralmente conhecido como P‑Tinita.
Os objetos pré -tinitas que chegaram até nós foram todos encontrados em
Hieracômpolis
47
. São, sobretudo, grandes paletas votivas
48
decoradas com cenas
históricas, e grandes clavas esculpidas em calcário. As cenas que ornamentam
esses dois tipos de documentos permitem -nos entrever o sistema político e social
dominante na época, no vale inferior do Nilo. O país está dividido em províncias
ou grupos humanos, cujas insígnias são vistas acompanhando o soberano nas
grandes ocasiões.
A comparação das insígnias representadas nas embarcações gerzeenses e nas
paletas ou clavas pré -tinitas, com os emblemas dos nomos” ou províncias, em
monumentos da época histórica, revela que desde o Gerzeense o sistema social
no vale inferior do Nilo, no norte como no sul, progride em termos geográficos
e econômicos, e não éticos. O grupo humano organiza -se em torno de um
habitat e de sua divindade. Este fato é consequência dos imperativos agrícolas
impostos ao vale pelo regime do Nilo, tanto ao norte como no sul. O grupo
pode sobreviver e desenvolver -se na medida em que se torna numeroso e
organizado o suficiente para executar os trabalhos que colocarão seu território
ao abrigo das enchentes, aumentarão as terras cultiváveis e garantirão reservas
de alimento, indispensáveis devido à irregularidade das cheias do Nilo. A dupla
organizão, agrícola e religiosa pois apenas a divindade pode garantir o
sucesso dos trabalhos empreendidos e, consequentemente, a prosperidade do
grupo –, é o fato primordial e permanente que domina o sistema social do vale
inferior do Nilo.
É possível, entretanto, que esse sistema baseado na distribuição geográfica
tenha substituído um sistema mais antigo de fundamento étnico ou social. É
o que parecem sugerir três palavras do egípcio antigo que, existentes desde os
primórdios da História, persistirão até o fim da civilização egípcia. Essas palavras,
Pât, Rekhyt e Henememet
49
, aplicam -se, ao que parece; a três agrupamentos
46 O sítio da capital não foi descoberto. A presença de uma necrópole real dessa época (cf. W. M. F.
PETRIE, 1901) na margem oeste do Nilo, em Abidos, indica que a cidade devia estar localizada nas
proximidades.
47 O sítio foi explorado em 1898; cf. J. E. QUIBELL, Hierakonpolis, Londres, 1900 -1902.
48 As mais belas foram reunidas por W. M. F. PETRIE, 1953.
49 A. H. GARDINER, 1947, v. I, p. 98 -112.
819
Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos sistemas sociais até o século V antes da Era Cristã
humanos muito grandes: os Pât seriam os habitantes do vale superior, tendo
Hórus por senhor; os Rekhyt seriam os do vale inferior, vencidos no final do
Pré -Dinástico Recente; os Henememet ou “povo do Sol”, teriam habitado a
região oriental situada entre o mar Vermelho e o Nilo. Essa última região, ainda
habitada no Neolítico e no Pré -Dinástico, é importante para a economia do
vale, visto que fornece metais, cobre e ouro. E é esse vasto sistema “socioétnico”
que se fracionaria em pequenas unidades geográficas e agrícolas. O papel da
monarquia será puramente político: numa primeira etapa, reunirá esses grupos
de províncias em duas grandes confederações, uma ao norte e outra ao sul;
numa segunda etapa, unificará à força as duas confederações em um único reino,
garantindo assim um melhor aproveitamento da totalidade do território egípcio.
Essa segunda tarefa será obra dos primeiros faraós tinitas. É nessa época que
passamos à História.
O vale superior do Nilo ( ‑5000 a ‑3000)
As diversas culturas do vale inferior do Nilo aqui abordadas não ultrapassam,
ao sul, a região de El Kab. A região de Assuã e a Primeira Catarata pertencem
a uma área cultural diferente. Do ponto de vista étnico, tudo parece indicar que
as populações do vale superior do Nilo estavam próximas das do grupo sul do
vale inferior: badarienses e amratienses. Poder -se -ia estender as comparações aos
grupos étnicos dos arredores do Saara oriental, mas os estudos antropológicos
pertinentes são ainda pouco numerosos
50
.
Neolítico e P-Dinástico são pouco conhecidos no Egito, como constatamos,
devido ao pequeno número de sítios cientificamente explorados. A situação é
ainda pior em se tratando do vale superior, onde apenas a parte setentrional,
entre a Primeira e a Segunda Catarata, está relativamente bem explorada
convém observar que os resultados das escavações feitas de 1960 a 1966 não
foram ainda publicados in extenso
51
.
Da Segunda Catarata até os Grandes Lagos da África equatorial, os raros
elementos conhecidos provêm de relatórios de prospecção em superfície, pois é
mínimo o número de sítios em que foram realizadas escavações. Por essa razão,
nossos conhecimentos, no tempo e no espaço, são muito mais limitados em
relação ao vale superior do que ao vale egípcio.
50 Cf. O. V. NIELSEN, 1970, passim e p. 22, bibliograa p. 136 -39.
51 Sobre as épocas que aqui nos interessam, destacaremos principalmente as obras de F. WENDORF, 1968
e H. NORDSTRÖM, 1972.
820
Metodologia e pré -história da África
O Neolítico (± ‑5000 a ‑3800)
As primeiras escavações em um sítio indiscutivelmente neolítico foram realizadas
na região de Cartum. A cultura aí descoberta, por vezes conhecida pelo nome de
Neolítico de Cartum, é geralmente chamada Shaheinab [= Shaheinabense]
52
.
Shaheinab é um sítio de habitat cujas sepulturaso foram encontradas;
mas o abundante material que forneceu, objetos de uso quotidiano, prova
que os sudaneses da região, sobretudo caçadores e pescadores, eram também
criadores. O estudo de sua cerâmica, decorada pela impressão de uma
roseta rotativa, indica que eram provavelmente descendentes de uma outra
cultura neotica mais antiga cujos vestígios foram encontrados em umtio
localizado na ppria região de Cartum. Esse sítio, Cartum Antigo (Early
Khartoum)
53
[= Cartumiense], contém túmulos onde negros tinham sido
inumados. Se, como tudo indica, Shaheinab provém realmente do Cartum
Antigo, teríamos de admitir que estamos em presença, também nesse caso,
de uma população negra, composta de grupos de caçadores e de pescadores
que matavam leões, búfalos, hipopótamos e igualmente antílopes, gazelas,
órix e lebres, cujas ossadas encontramos em suas habitações. Suas armas
eram machadinhas polidas e clavas semi -esféricas que, de um modo geral,
consideramos predecessores da clava troncônica amratiense. Trabalhavam
a madeira e conheciam a tecelagem, embora aparentemente preferissem o
couro na confecção das vestimentas. Sua civilização é às vezes denominada
“cultura da goiva”, dado o grande número de ferramentas desse tipo
descobertas no sítio. Graças à sua cerâmica bastante característica, foi
possível provar que a cultura de Shaheinab estendia -se, não só a oeste
(Tenere, Tibesti) e a leste, mas também ao sul de Cartum, ao longo do
Nilo Branco e do Nilo Azul. Não há indícios que permitam determinar
qual era a sua organização social.
Seria interessante saber quais eram as ligações entre o Neolítico de Shaheinab
e o do vale inferior, principalmente do Faium; infelizmente não se conhece
nenhum sítio ao norte de Cartum, entre a Sexta e a Sétima Catarata, que permita
estabelecer comparações úteis. Os trabalhos recentes na baixa Núbia, ao norte
da Segunda Catarata, parecem ter demonstrado que o Neolítico dessa região é
semelhante ao de Shaheinab, embora ainda apresente diferenças bastantes para
52 Cf. A. J. ARKELL, 1953.
53 Cf. A. J. ARKELL, 1949.
821
Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos sistemas sociais até o século V antes da Era Cristã
que os arqueólogos anglo -saxões que o estudaram tenham -no denominado
“Cartum Variante”
54
.
No vale superior, a passagem do Neolítico ao Pré -Dinástico, portanto, ao
Eneolítico, continua ainda muito obscura. Algumas sepulturas encontradas na
confluência do Nilo Branco e do Nilo Azul poderiam indicar a existência, nesse
local, de uma cultura influenciada pelo Pré -Dinástico nubiano, conhecido como
do Grupo A (cf. acima), mas ainda não pôde ser datada com precisão.
Nas proximidades da Segunda Catarata, em compensação, foi descoberta
recentemente uma instria à qual se deu o nome de Abkiense (Abkan)
55
[= Abkiense]
derivado do nome do sítio de Abka, onde se encontra melhor representada. Ela
ainda é conhecida apenas por sua produção lítica e por sua cerâmica. Nem todos
os sítios em que foi encontrada foram publicados. Pelo que se sabe, essa cultura
aparentemente pertence a uma população de caçadores -pescadores, como a de
Shaheinab, mas a caça apresenta -se menos produtiva, talvez por iniciar -se a
fase de dessecação que vem após o “período úmido”. Para a pesca, os homens
de Abka parecem utilizar imensas armadilhas permanentes, inteligentemente
instaladas nos canais da catarata durante a vazante, e onde os peixes ficavam
presos por ocasião do recuo da inundação. A coleta de frutas e plantas silvestres
completava -lhes os recursos alimentícios. A construção das armadilhas, feitas de
paredões de pedra muitas vezes de grandes dimensões, implica um agrupamento
social organizado. A cultura abkiense não tem aparentemente relação com a
de Shaheinab que, in loco, em sua forma de “Cartum Variante”, parece ser a um
tempo distinta e contemporânea dessa cultura. O Abkiense seria uma forma
particular do Neolítico que nada deveria ao sul nem ao norte. Por outro lado,
parece que foi realmente do Neolítico abkiense que proveio o Pré -Dinástico
nubiano.
P‑Dinástico ( ‑3800 a ‑2800)
Quando, em 1907, o governo egípcio decidiu elevar mais 7 m a primeira
barragem de Assuã, inundando assim toda a baixa Núbia, de Shellal a Korosko,
uma prospeão arqueogica sistetica foi empreendida na região a ser
inundada. Os arqueólogos, constatando as diferenças culturais entre o Egito,
que conheciam bem, e a Núbia, adotaram um sistema provisório de classificação
por letras para as novas culturas que descobriam, distinguindo, segundo uma
54 F. WENDORF, 1968, p. 768 -90 e H. NORDSTRÖM, 1972, p. 9 -10.
55 Descrição dessa indústria em F. WENDORF, 1968, p. 611 -29; cf. tb. H. NORDSTRÖM, 1972, p. 12 -16.
822
Metodologia e pré -história da África
datação relativa, o Grupo A, o Grupo B, o Grupo C, etc.
56
Depois tentou -se
estabelecer um sistema semelhante ao utilizado para o vale inferior, em que o
Nubiano Antigo e o Nubiano Médio, por exemplo, corresponderiam ao Antigo
Império e ao Médio Império
57
. Mas diante das dificuldades encontradas para
estender esse sistema da Núbia ao norte da Segunda Catarata até a Núbia ao
sul da Segunda Catarata, abandonou -se provisoriamente a tentativa. Portanto,
continuaremos a utilizar a denominação Grupo A, que abrange o Pré -Dinástico.
O Grupo A
58
vai do fim do Neolítico, por volta de -3800, até o fim do Antigo
Império egípcio, -2200 aproximadamente. Nesse grupo podemos distinguir
várias fases: o Grupo A antigo, de -3800 até -3200 aproximadamente; o Grupo
A clássico, de -3200 a -2800 aproximadamente; e o Grupo A recente (antigo
Grupo B), de -2800 até -2200 aproximadamente. Consideraremos apenas as
duas primeiras fases.
O Grupo A antigo é o menos conhecido
59
. Foi durante as recentes escavações na
bia sudanesa, entre 1960 e 1966, que se constatou ser a civilização eneolítica
do Grupo A sucessora direta da abkiense do Neolítico; portanto, será preciso
esperar a publicação dos relatórios das escavações in extenso para se ter uma ideia
mais precisa do que esse Grupo representa. Na baixa Núbia, o sítio de Khor Bahan,
ao sul de Shellal, pertence aparentemente a essa fase antiga e é contemporâneo do
Gerzeense, portanto, do P -Dinástico Médio egípcio. Nessa época, a agricultura e
a criação de gado, ausentes no Abkiense, o praticadas na baixa Núbia: utilizando
umacnica própria do vale superior, as comunidades de agricultores construíam,
por ocasião da vazante, barragens de pedra perpendiculares ao rio que tinham por
efeito diminuir a força da corrente, facilitando o depósito do limo nos campos
à margem do Nilo, e aumentar a extensão das terras cultiváveis. Além disso, a
descoberta de ossos de bovídeos e caprídeos nos túmulos, sem vida provenientes
de sacrifícios fúnebres, sugere que essas comunidades eram seminômades. Sendo
os campos insuficientes para alimentar um grande número de animais, somos
levados a crer que as populações deslocavam -se, durante uma parte do ano, para
os planaltos vizinhos, na época provavelmente recobertos pela estepe, como atesta
a presença de antílopes e de leões.
56 G. A. REISNER, 1910, p. 313 -32.
57 B. G. TRIGGER, 1965, p. 67 e segs. g. 1, p. 46.
58 Nem todos os relatórios das escavações feitas na Núbia por solicitação da Unesco, tanto no Egito como
no Sudão, estão publicados. Sobre o Grupo A, ver H. NORDSTRÖM, 1972. p. 17 -32.
59 H. NORDSTRÖM, 1972, p. 17 -28 e passim.
823
Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos sistemas sociais até o século V antes da Era Cristã
A descoberta de objetos de cobre nos sítios do Grupo A levanta a questão
da difusão desse metal no vale superior. Como as populações do Badariense, os
africanos do Grupo A utilizavam a malaquita como maquilagem para os olhos
e a pulverizavam sobre paletas de quartzo; conheciam também a técnica de
fabricação da massa esmaltada (“faiança egípcia”). Considerando -se a existência
de jazidas de minério de cobre na Núbia, exploradas em épocas remotas, é bem
possível que os objetos de cobre encontrados nos sítios do Grupo A antigo
(sobretudo agulhas) sejam exclusivamente de fabricação local
60
.
As importações provenientes do norte limitam -se, aparentemente, a vasos de
pedra, alabastro, xisto, brecha e a matérias -primas como o sílex, que praticamente
não existe nos arenitos da Núbia, mas é encontrado em abundância no Egito. A
cerâmica é ainda do tipo vermelho com bordos pretos e fabricada localmente
segundo excelente técnica. Na confecção de utensílios e armas, as populações
do Grupo A utilizavam mais frequentemente a pedra e o osso que o metal:
facas e clavas, exatamente como as do Amratiense, são de sílex ou de diorito e
basalto; as agulhas ou fivelas e furadores são em geral de osso ou de marfim. O
ouro aparece nas joias. As paletas para maquilagem de xisto são provavelmente
inspiradas nas egípcias, mas encontram -se também paletas de quartzo branco
que são típicas da cultura do Grupo A
61
.
Ao Grupo A antigo, ainda pouco conhecido, sucede o Grupo A clássico que, a
julgar pelo número de túmulos e necrópoles que deixou, conhece o que se poderia
chamar de explosão demográfica
62
. Muito próximo de seu predecessor do ponto
de vista material, o Grupo A clássico diferencia -se sobretudo pela importação
de um número bem maior de objetos do vale inferior. Viu -se nesse fenômeno a
prova de um comércio ativo entre os vales inferior e superior do Nilo. A cerâmica
mantém uma qualidade e uma beleza superiores, mas simultaneamente aparece
um grande número. de vasos importados do tipo gerzeense, de cor clara. Esses
vasos foram provavelmente utilizados para conservar matérias perecíveis (pensa-
-se particularmente no óleo), importadas em troca do marfim e do ébano que
vinham do sul.
A cultura do Grupo A clássico continua a prosperar até aproximadamente
-2800, quando, de maneira repentina, desaparece quase inteiramente, cedendo
60 Cabe observar que já no Antigo Império o minério de cobre parece ter sido tratado in loco, notadamente
em Buhen, cf. W. B. EMERY, 1965, p. 111 -14.
61 F. HINTZE, 1967, p. 44.
62 B. G. TRIGGER, 1965, p. 74 -75.
824
Metodologia e pré -história da África
lugar à cultura do Grupo A recente (antigo grupo B)
63
, muito pobre. Esse fato
foi visto como consequência dos ataques egípcios desfechados pelos faraós da
primeira dinastia tinita. Inscrições egípcias dessa época, descobertas ao norte da
Segunda Catarata, tornam essa explicação muito plausível. De qualquer forma,
saímos agora da época pré -histórica.
Em resumo, esse obscuro mas importante período em que o vale do Nilo
passou do Neolítico ao fim do Pré -Dinástico caracteriza -se, no vale inferior,
pela passagem de um sistema social baseado em famílias ou grupos restritos de
caçadores -pescadores que praticam pequena criação e uma agricultura limitada
às margens do rio e ao Faium, para um sistema complexo de sedenrios
organizados em aldeias ou grupos de aldeias que praticam a irrigação e uma
agricultura especializada. Essas aldeias encontram -se agrupadas, por volta de
-3000, sob a autoridade de um único líder, o faraó, que governa o vale inferior,
da Primeira Catarata ao Mediterrâneo.
No vale superior, observa -se a transição de agrupamentos de pescadores-
-caçadores, que praticam uma criação de gado bastante limitada, para um sistema
que reúne criadores -agricultores provavelmente seminômades, mas vinculados
geograficamente ao rio, onde constroem espigões com o objetivo de aumentar as
terras cultiváveis. A construção desses espigões supõe uma organização coletiva
importante, menos considerável, entretanto, que no vale inferior.
Nessa mesma época, a partir de -3300, observa -se a difusão do cobre por
todo o vale do Nilo. Embora a origem da metalurgia do cobre permaneça pouco
conhecida e constitua objeto de discussão, não é impossível que esta tenha
nascido ou que tenha sido reinventada no vale do Nilo.
A época histórica, de ‑3000 ao
século V antes da Era Cristã
Quando os primeiros textos egípcios aparecem, por volta de -3000, os
sistemas sociais estão estabelecidos, ao que parece, em todo o vale do Nilo
e praticamente não evoluem daí em diante. Ao norte, temos um sistema de
monarquia de direito divino governando um grupo de indivíduos iguais perante
o rei, pelo menos teoricamente. Ao sul, o sistema é aparentemente menos
rígido, e em virtude do nomadismo, ou seminomadismo, um sistema baseado
63 H. S. SMITH, 1966, p. 118 -124.
825
Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos sistemas sociais até o século V antes da Era Cristã
em grande parte na família, manteve -se provavelmente durante quase todo o
período que vai de -3000 ao século V antes da Era Cristã. Será apenas no final
desse período que o vale do Nilo, entre a Primeira Catarata e a confluência do
Nilo Branco e do Nilo Azul (talvez ainda mais ao sul) conhecerá um regime
social provavelmente semelhante ao do vale egípcio.
Levando -se em conta o caráter estático desses sistemas sociais ao longo
desse período, sua evolução será objeto de uma rápida exposição. Insistiremos,
sobretudo, em dois fatos culturais que caracterizam esse período: a descoberta
e a difusão do bronze e, muito mais tarde, do ferro.
Evolução dos sistemas sociais
Em virtude da falta de documentos jurídicos, a organização social no vale
inferior é conhecida apenas de modo incompleto. De acordo com os autores
cssicos, entre outros Heródoto e Estrabão, a sociedade egípcia teria sido
dividida em castas rígidas. Tal afirmação certamente é falsa, exceto, talvez,
para os militares, no final do período faraônico. Assim, nunca existiu a “classe
dos sacerdotes”, como pretende Estrabão. Nem é certo que tenha havido uma
classe de escravos, no sentido que atribuímos à palavra
64
. Na verdade, o sistema
social egípcio, na época histórica, é bastante flexível. Está baseado mais na
exploração do solo, no desenvolvimento do país do que em um direito rígido.
Como a moeda nunca foi utilizada no Egito, o indivíduo deve estar ligado a
uma organização que lhe forneça alimento, roupas e habitação, qualquer que
seja sua posição social.
A mais simples dessas organizações é a propriedade familiar. Se a terra
pertence ao faraó, o direito de cultivá -la é às vezes atribuído a um particular,
que pode transmiti -lo a seus herdeiros
65
. Sempre houve propriedades familiares
desse tipo, frequentemente exíguas, nas quais o próprio chefe de família distribui
a renda a seu gosto, e a família, lato sensu, fica na sua inteira dependência. A
única obrigação do chefe de família é cumprir os deveres para com o Estado:
impostos, corveias, prestação de serviços.
Ao lado das propriedades familiares, existem as propriedades religiosas
e reais, muito mais importantes. As propriedades religiosas, sobretudo a
partir da XVIII dinastia (após -1580), eram por vezes muito ricas. Assim, a
64 Cf. as pertinentes observações de G. POSENER em G. POSENER, S. SAUNERON e J. YOYOTTE,
1959, s. v. Esclavage, p. 107.
65 J. PIRENNE, 1932, p. 2006-11 e G. POSENER, 1959, p. 76 e 107.
826
Metodologia e pré -história da África
propriedadedo deus Amon inclui 81322 homens, 421362 cabeças de gado, 43
jardins, 2393 km
2
de campos, 83 barcos, 65 aldeias
66
. Esses bens estendem-
-se pelo Alto e Baixo Egito, pela Síria -Palestina, pela Núbia. A propriedade
real está constituída nos mesmos moldes e encontra -se espalhada pelo país,
em torno de um palácio ou do templo funerário do soberano. Cada indiduo
vive na dependência obrigatória de uma dessas propriedades, que supre suas
necessidades de maneira bastante hierarquizada. A remunerão, em espécie,
varia muito de acordo com a função exercida: um escriba recebe mais víveres
do que um agricultor ou um artesão; isso permite que os mais favorecidos pelo
sistema adquiram, por sua vez, servidores e propriedades familiares, vendendo
não a sua função, mas uma parte da renda destinada a essa função.
Querendo escapar das limitações impostas pelo sistema social egípcio, o
indivíduo só dispõe do recurso da fuga. Os “desertores” fogem para oeste, perto
do deserto, onde vivem de ataques às culturas do vale, ou então vão para o
exterior, principalmente para a Síria -Palestina
67
.
A estabilidade do sistema social depende, em grande parte, da autoridade
e da energia do poder central, o rei e a administrão. Quando eles são
fracos, observa -se uma grande desorganização no funcionamento do sistema,
até mesmo revoluções, como a que ocorreu entre -2200 e -2100, quando a
autoridade do faraó foi colocada em questão e os favoritos destituídos de seus
bens
68
. Conhecem -se também desordens locais, como a greve dos artesãos da
propriedade real de Deir el -Medineh, em 1165, que não haviam recebido sua
cota mensal de víveres nem as vestimentas que lhes eram devidas…
A situação social de um indivíduo não é fixada definitivamente; a qualquer
momento pode ser colocada em questão, por vontade do faraó ou em virtude
de erros cometidos no exercício de uma função. Fatos como o rebaixamento de
um funcionário e seu retorno à terra” são mencionados frequentemente nos
textos egípcios
69
.
A partir de -1580 aproximadamente, os militares passam a ocupar um lugar à
parte no sistema social egípcio. Para expulsar os hicsos do Egito e empreender sua
política de incursões agressivas na Núbia e na Ásia Menor, os faraós criaram um
66 J. H. BREASTED, 1906, p. 97.
67 Um exemplo signicativo é o de Sinuhe, que temendo ser implicado numa conspiração palaciana, foge
para a Palestina. Ser -lhe necessário solicitar o perdão do faraó para poder voltar ao Egito. Cf. G.
LEFEBVRE, 1949. “L’Histoire de Sinouhé”, p. 1 -25. Ver tb. W. K. SIMPSON, ed., 1972, p. 57 -74.
68 J. VANDIER, 1962, p. 213 -20 e 235 -37.
69 Notadamente no decreto de Nauri, no qual é uma das saões correntes, cf. F. L. GRIFFITH, 1927, p. 200 -08.
827
Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos sistemas sociais até o século V antes da Era Cristã
F . Túmulo de Rekh mi -re em Tebas (e Metropolitan
Museum of Art, Egyptian Expedition, vol. X).
F . Túmulo de Huy: parede leste (fachada sul).
F. Navalha, Mirgissa, Sudão (Foto Missão Arqueológica
Francesa no Sudão).
828
Metodologia e pré -história da África
verdadeiro exército profissional
70
. Os militares são recompensados com doações
de terras, de propriedades agrícolas, que podem legar a seus herdeiros contanto
que estes prossigam na carreira militar. Esse sistema foi se desenvolvendo através
dos séculos e acabou por criar, no final da história do Egito, uma verdadeira
casta” militar.
No vale superior do Nilo, a organizão social é ainda pouco conhecida.
Vimos que no fim da época pré -dinástica, estabelecera -se um sistema
social (pelo menos na baixa Núbia) que incluía sedenrios e nômades ou
seminômades, sem que se possa saber se uns e outros viviam em comunidade
ou simplesmente lado a lado. Os raros documentos egípcios que fazem alusão
à organização potica das populações ao sul da Primeira Catarata sugerem
a existência de agrupamentos humanos de baixa densidade esparsamente
distribuídos ao longo do vale, sob a autoridade de chefes locais cujo poder
era hereditário
71
.
A arqueologia praticamente não fornece outras informações. A criação
continua a ser um fator econômico importante do vale superior; provavelmente
favorece a sobrevivência das estruturas familiares. A partir de -1580, contudo,
a intervenção egípcia certamente modifica o sistema então vigente, ou melhor,
faz com que desapareça. A ocupação dos territórios ao sul de Assuan pelo Egito
leva rapidamente ao seu despovoamento
72
. Para sustentar sua política asiática,
o Egito explora ao máximo o vale superior, cujos habitantes desaparecem,
provavelmente fugindo para o sul e para o oeste, buscando refúgio em regiões
ainda hoje desconhecidas pela arqueologia.
Somente por volta de -750, sob o impulso de soberanos sudaneses
originários da região de Dongola, presenciamos a criação de um verdadeiro
reino organizado, inspirado no modelo egípcio. Estende -se, ao que parece, da
confluência dos dois Nilos, ao sul, primeiramente até a Segunda Catarata, em
seguida até o Mediterrâneo, incluindo a baixa Núbia de -750 a -650
73
. Nesse
reino, o matriarcado exerce uma função importante (pelo menos para a família
governante), mas os documentos são muito raros e pouco explícitos para nos
esclarecer sobre o sistema social então vigente.
70 R. O. FAULKNER, 1953, p. 41 -47.
71 G. POSENER, 1940, p. 35 -38 e 48 -62
72 W. Y. ADAMS, 1964, p. 104 -09.
73 H. V. ZEISSL, 1955, p. 12 -16.
829
Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos sistemas sociais até o século V antes da Era Cristã
F . Túmulo de Huy (Foto “e Egypte Exploration Society”).
Difusão dos metais
Em princípios do período histórico, os metais preciosos, ouro e prata, assim
como o cobre, são conhecidos e amplamente difundidos em todo o vale do
Nilo. A metalurgia desses três metais continua a se desenvolver após o terceiro
milênio. No segundo milênio aparecem o bronze, liga de cobre e estanho e,
esporadicamente, o ferro, a partir de -1580.
Entre a Primeira e a Terceira Catarata está localizada a maior parte das
minas de ouro exploradas pelos egípcios e pelos núbios
74
. A prospecção de
metais preciosos levou os egípcios do Médio Império a ultrapassarem a Segunda
Catarata. No Novo Império, o ouro desempenha um papel primordial na política
asiática do Egito para “comprar” as alianças locais. O ouro extraído das minas do
74 J. VERCOUTTER, 1959, p. 128 -33 e mapa p. 129.
830
Metodologia e pré -história da África
Egito e da bia contém sempre uma grande proporção de prata
75
, distinguindo-
-se o ouro branco, ou electrum (hadji em egípcio) que contém pelo menos 20% de
prata, do ouro amarelo (noub, em egípcio); a esse respeito convém observar que
não se sabe ao certo se o topônimo Núbia tem sua origem nessa palavra egípcia.
O ouro teve múltiplas aplicações no Egito; era empregado na confecção de joias,
na mobília funerária e mesmo na arquitetura, em que a ponta dos obeliscos, os
pórticos e certas dependências dos templos eram recobertos com folhas de ouro.
O vale superior do Nilo emprega o ouro com a mesma profusão, embora a
pilhagem sistemática das sepulturas nos tenha deixado relativamente poucos
objetos de ouro: amuletos, contas de adorno, ornamentos para o cabelo,
braceletes, anéis e brincos. A mobília de madeira, no século XVIII antes da Era
Cristã, era por vezes recoberta com folhas de ouro. A mobília funerária no século
VIII é também de uma grande riqueza em ouro e prata, como se em Nuri,
abaixo da Quarta Catarata, onde, apesar das antigas pilhagens, foram recolhidos
numerosos objetos
76
.
a análise em laboratório permite distinguir o cobre do bronze
77
. Este
aparece no vale do Nilo a partir de -2000 aproximadamente; ainda é preciso
esperar até -1500 para que seja difundido por vastas áreas, sem nunca chegar
a tomar o lugar do cobre. O bronze, liga de cobre e estanho, tem a vantagem
de ser mais resistente do que o cobre (se a proporção de estanho não for muito
grande), de ter um ponto de fusão mais baixo e de ser de moldagem mais fácil.
Embora o Egito possua algumas jazidas de estanho, o bronze não foi
descoberto no vale do Nilo; aparentemente vem da Síria
78
, onde é conhecido
desde o início do segundo milênio. Nas ligas egípcias, a proporção de estanho
varia de 2% a 16%. Contendo até 4% de estanho, o bronze é mais duro que o
cobre; além dessa porcentagem, torna -se quebradiço e perde muitas de suas
vantagens. Essa é provavelmente a razão pela qual nunca tomou o lugar do cobre,
que pode ser consideravelmente endurecido por simples martelagem.
Não se possuem análises dos objetos de cobre – ou bronze – encontrados no
vale superior, principalmente em Kerma; datando do segundo milênio, poderiam
nos informar se o bronze fora adotado no vale superior. De qualquer forma, os
objetos de cobre (ou bronze) são abundantes no local, mais do que no próprio
Egito: foram encontradas em Kerma 130 adagas de cobre do período de -1800
75 A. LUCAS, 1962, p. 224 -34.
76 D. DUNHAM, 1955, passim
77 A. LUCAS, op. cit., p. 199 -217 e 217 -23.
78 A. LUCAS, op. cit, p. 217 -18 e 255 -57.
831
Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos sistemas sociais até o século V antes da Era Cristã
F . Estátua de cobre de Pépi I (Antigo Império). Museu do Cairo.
832
Metodologia e pré -história da África
a -1700, aproximadamente, isto é, mais do que todo o Egito forneceu. Nessa
época o cobre é utilizado na fabricação de objetos de toucador, principalmente
espelhos, armas e ferramentas, vasos, jóias, incrustações para móveis. Geralmente
batido, é moldado em raríssimos casos.
O número e a qualidade dos objetos encontrados em Kerma
79
provam que
o vale superior teve um papel importante na difusão da metalurgia do cobre
na África, desde o segundo milênio da Era Cristã. A magnitude dessa difusão
deve -se em grande parte à presença de minas de cobre no complexo geológico
básico do Nilo.
Durante muito tempo o vale do Nilo conheceu apenas o ferro meteórico
80
.
É apenas no fim do século VIII antes da Era Cristã que o ferro começa a se
difundir pelo vale inferior; um século depois é tão utilizado quanto o bronze e
o cobre. Nessa época, é fundido e trabalhado no Egito nos centros de influência
grega.
O vale do Nilo ocupa então um lugar de destaque na difusão do ferro na
África
81
. É possível que esse metal tenha sido trabalhado mais remotamente no
vale superior do Nilo, do que no vale inferior, o que explicaria sua utilização
frequente sob a XXV dinastia, originário de Dongola (por volta de -800). Todavia,
ainda que o vale superior dispusesse ao mesmo tempo de minério de ferro e de
florestas para a fabricação do carvão vegetal necessário à metalurgia do ferro,
é somente a partir do século I antes da Era Cristã, com o desenvolvimento da
civilização meroítica entre a Terceira e a Sexta Catarata, que o ferro se difundirá
por vastas áreas
82
. Portanto, foi sobretudo como iniciadora da civilização de
Meroé que a cultura nilótica de Napata (do século VII ao século IV antes da
Era Cristã) desempenhou um papel importante na difusão do ferro na África.
79 G. A. REISNER, 1923, cap. 26, p. 176 -205.
80 P. L. SHINNIE, 1971, p. 92 -94.
81 A. LUCAS, 1962, op. cit., p. 235 -43.
82 O papel de Meroé na difusão do ferro na África não é tão evidente quanto se acreditava algum
tempo; cf. P. L. SHINNIE, 1971, p. 94 -95; que cita também B. C. TRIGGER, 1969, p. 23 -50. Na
verdade Meroé não é o único centro possível de difusão. O ferro pôde ser difundido a partir da África
do Norte através das rotas das caravanas que cruzavam o Saara, cf. P. L. SHINNIE, 1967, p. 168 com
uma referência a C. HUARD, 1960, p. 134 -78 e 1964, p. 49 -50.
833
Conclusão: Da natureza bruta à humanidade liberada
Os capítulos anteriores demonstram amplamente o importante papel
desempenhado pela África no alvorecer da humanidade. A África e a Ásia,
atualmente colocadas na periferia do mundo tecnicamente desenvolvido, estavam na
vanguarda do progresso durante os primeiros 15.000 culos da história do mundo,
desde o australopiteco e o pitecantropo. De acordo com os conhecimentos de que
dispomos atualmente, a África foi o cenário principal da emergência do homem
como espécie soberana na terra, assim como do aparecimento de uma sociedade
política. Mas esse papel eminente na Pré -História será substituído, durante o
período histórico dos dois últimos milênios, por uma “lei” de desenvolvimento
caracterizada pela exploração e pela sua redução ao papel de utensílio.
A África, pátria do homem?
Embora não haja certeza absoluta a esse respeito – pelo fato de a história da
humanidade continuar obscura desde as origens, de a história subterrânea não
ter sido inteiramente exumada, de as escavações estarem apenas no começo na
África e de a acidez do solo devorar muitos restos fósseis –, as descobertas feitas
até aqui classificam este continente como um dos grandes, senão o principal
berço do fenômeno de hominização. Isso é verdade na fase do queniapiteco
(Kenyapithecus wickeri – 14 milhões de anos), que alguns consideram o iniciador
Conclusão:
Da natureza bruta à humanidade liberada
J. Ki ‑Zerbo
834
Metodologia e pré -história da África
da dinastia humana. O ramapiteco da Ásia é apenas uma variedade que
conseguiu alcançar a Índia a partir da África. Mas isso se verifica sobretudo com
o australopiteco (Australopithecus Africanus ou afarensis) que é incontestavelmente
o primeiro hominídeo, bípede explorador das savanas da África oriental e central
e cujas moldagens endocranianas revelaram um desenvolvimento dos lobos
frontais e parietais do cérebro, testemunhando um nível elevado das faculdades
intelectuais. Em seguida, temos os zinjantropos e a variedade que tem o tão
prestigioso nome de Homo habilis. São os primeiros humanos a representarem
um novo salto na ascensão para o status de homem moderno.
Vêm depois os arcantropos (pitecantropos e atlantropos), os paleantropos ou
neandertalenses e, finalmente, o tipo Homo sapiens sapiens (homem de Elmenteita
no Quênia, de Kibish na Etiópia), cujas características, frequentemente negroides,
foram observadas por muitos autores no período Aurignaciense Superior. Quer
sejam policentristas ou monocentristas, todos os estudiosos reconhecem que é na
África que se encontram todos os elos da corrente que nos liga aos mais antigos
homideos e pré -hominídeos, incluindo as variedades que aparentemente ficaram
no estágio de esboço do homem e não puderam empreender a arrancada histórica
que permitiu chegar à estatura e ao status de Adão. Além disso, é na África que se
encontram ainda osancestrais”, ou melhor, os considerados primos do homem.
Segundo W. W. Howells,os grandes macacos da África, o gorila e o chimpanzé
eso realmente mais próximos do homem do que qualquer um dos três em relação
ao orangotango da Indonésia
1
. E não sem motivo! A Ásia em suas latitudes
inferiores e sobretudo a África, em virtude de seu notável mergulho no hemisfério
sul, escapavam das desanimadoras condições climáticas das zonas setentrionais.
Assim, durante os cerca de 200.000 anos do Kagueriano, a Europa, coberta por
camadas de gelo, o oferece nenhum vesgio de utenlios paleolíticos, enquanto a
África, no mesmo período, apresenta três variedades sucessivas de pedras, talhadas
segundo técnicas em evolução. De fato, as latitudes tropicais beneficiavam -se na
época de um clima “temperado favorável à vida animal e a seu desenvolvimento.
Se quisermos detectar as causas do aparecimento do homem, temos de levar em
conta, em primeiro lugar, o meio geográfico e ecológico. Em seguida é preciso
considerar a tecnologia e, por fim, o meio social.
A adaptação ao meio
A adaptação ao meio foi um dos mais poderosos fatores de formação do
homem, desde suas origens. As características morfossomáticas das populações
1 W. W. HOWELLS, 1972, p. 5.
835
Conclusão: Da natureza bruta à humanidade liberada
africanas até o presente foram elaboradas nesse período crucial da P-História.
Assim, o caráter glabro da pele, sua cor morena, acobreada ou negra, a abundância
de glândulas sudoríparas, as narinas e os lábios proeminentes de grande número
de africanos, os cabelos crespos, encaracolados ou encarapinhados, tudo isso
provém das condições tropicais. A melanina e o cabelos encarapinhados, por
exemplo, protegem do calor. Além disso, a postura ereta, que foi uma etapa tão
decisiva do processo de hominização e que implicou ou acarretou um novo
arranjo dos ossos da cintura lvica, es ligada, na opinião de alguns pré-
-historiadores, à adaptação ao meio geográfico das savanas de ervas altas dos
planaltos do leste africano: era preciso manter -se sempre ereto para olhar por
cima, a fim de espreitar sua presa ou fugir dos animais hostis.
Outros cientistas (Alister Hardy, por exemplo) consideram o meio aquático
responsável não pelo aparecimento de vida mas também pela hominização.
Esse é também o ponto de vista de Mrs. Elaine Morgan, para quem tal processo
se teria desenvolvido na África, às margens dos grandes lagos ou do oceano. Ela
explica a postura ereta pela necessidade de manter a cabeça fora da água, na
qual se havia mergulhado para escapar de animais muito fortes, mas que evitam
a água. Atribui ainda ao meio aquático certas características humanas, como a
existência de uma camada gordurosa subcutânea, a posição retraída dos órgãos
sexuais na mulher e o alongamento correspondente do órgão sexual masculino,
o fato de sermos os únicos primatas que choram, etc.
2
Todas essas adaptações
biológicas foram gradativamente incorporadas pela hereditariedade e passaram
a ser transmitidas como características permanentes.
A adaptação ao meio impôs também o estilo dos primeiros utenlios
humanos. Assim, C. Gabel manifesta -se a favor de uma origem autóctone dos
utensílios do tipo “capsiano”, no qual o estilo de lâminas, buris e raspadores se
adapta a um material excelente, a obsidiana.
O meio tecnológico
O meio tecnológico criado pelos hominídeos africanos foi, com efeito, o
segundo fator que lhes permitiu distinguirem -se do restante na natureza e,
posteriormente, dominá -la.
É por ter sido faber (artesão), que o homem se tornou sapiens (inteligente).
Com as mãos livres da necessidade de apoiar o corpo, o homem estava apto a
aliviar os músculos e os ossos do maxilar e do crânio de numerosos trabalhos.
2 A. HARDY, especialista em biologia marinha, citado por Elaine MORGAN, 1973, p. 33 -55.
836
Metodologia e pré -história da África
Daí a liberação e o crescimento da caixa craniana, onde os centros sensitivo-
-motores do córtex se desenvolvem. Além disso, a mão confronta o homem com
o mundo natural. É uma antena que capta um número infinito de mensagens,
as quais organizam o cérebro e o fazem chegar ao julgamento, particularmente
através do conceito de meios apropriados para alcançar um dado fim (princípio
de identidade e causalidade).
Após terem aprendido a lascar grosseiramente a pedra, quebrando -a de modo
desigual em pedaços cujo tamanho depende de mero acaso (pebble culture do
homem de Olduvai), os homens pré -históricos africanos passaram para uma
etapa mais consciente do trabalho criador. A presença de utensílios líticos em
diferentes estágios de elaboração nas grandes oficinas, como as das cercanias
de Kinshasa, permite concluir que a representação do objeto terminado era
apreendida desde a etapa inicial e se materializava lasca a lasca. Como em outros
lugares, o progresso nessa área passou do lascamento obtido através da batida de
um seixo contra outro ao lascamento com o auxílio de um percutor menos duro
e cilíndrico (martelo de madeira, de osso, etc.), depois à percussão indireta (por
intermédio de um cinzel) e finalmente à pressão para os retoques de acabamento,
especialmente nos micrólitos.
Um progresso constante caracteriza o domínio do homem pré -histórico
sobre os utensílios. Desde os primeiros passos, reconhece -se na mudança de
material, no acabamento dos instrumentos e das armas, esta busca da eficácia
sempre mais apurada e da adaptação a fins cada vez mais complexos que é o sinal
da inteligência e que liberta os homens dos estereótipos do instinto. Foi assim
que se passou do biface factotum às indústrias de lascas (Egito, Líbia, Saara),
depois às fácies mais especializadas do Ateriense
3
, do Fauresmithiense
4
, do
Sangoense
5
, do Stillbayense
6
, e finalmente às formas mais refinadas do Neolítico
(Capsiense, Wiltoniense, Magosiense, Elmenteitiense).
Na África, mais do que em qualquer outro lugar, é impossível traçar um
limiar cronológico nítido que permita demarcar em números precisos a passagem
de um estágio a outro. As diferentes fases da Pré -História aparentemente se
sobrepuseram, se interpenetraram e coexistiram durante longos períodos. Na
mesma camada estratigráfica, podemos encontrar relíquias da Idade da Pedra
primitiva, utensílios muito mais evoluídos (pedras polidas) e até objetos de
3 De Bir el -Ater, na Argélia.
4 De Fauresmith, na África do Sul.
5 De Sango Bay, na margem oeste do lago Vitória.
6 De Stillbay, na província do Cabo.
837
Conclusão: Da natureza bruta à humanidade liberada
metal. É assim que o Sangoense, que começa a partir da primeira Idade da Pedra,
se prolonga até o fim do Neolítico. O conjunto destes progressos, caracterizado
por trocas e empréstimos múltiplos, apresenta -se antes sob a forma de vagas de
invenções com amplo raio histórico, entrecruzando -se às vezes e se inscrevendo
numa curva ascendente geral, que deságua no período histórico da Antiguidade,
após o domínio das técnicas agropastoris e a invenção da cerâmica.
A cultura do trigo, da cevada e das plantas têxteis, como o linho do Faium,
expandia -se, assim como a criação de animais domésticos. Dois focos principais
de seleção e de exploração agrícolas exerceram sem vida uma influência
marcante desde o VI ou V milênio: o vale do Nilo e a curva do Níger. Foram
domesticados o sorgo, o milho miúdo, algumas variedades de arroz, o gergelim,
o fonio e, mais ao sul, o inhame, o (lbiscus esculentust) por suas folhas e fibras,
a palmeira oleaginosa, a noz de cola e provavelmente uma certa variedade de
algodão. O vale do Nilo beneficiou -se, além disso, dos produtos vindos da
Mesopomia, como o emmer (trigo), a cevada, as cebolas, as lentilhas e as
ervilhas, os melões e os figos, ao passo que da Ásia chegavam à cana -de -açúcar,
outras variedades de arroz e a banana esta, sem dúvida, através da Etiópia.
Este último país, instruído sobre os métodos de cultivo pelos camponeses do
vale do Nilo, desenvolveu também a cultura do café. Os sítios de Nakuru e do
rio Njoro, no Quênia, sugerem igualmente o impulso dado à cultura de cereais.
Grande mero de plantas domesticadas durante a Pré -História ainda
persistem sob formas às vezes melhoradas e alimentam os africanos até hoje.
Elas propiciaram a fixação e a estabilização dos homens, sem o que não
civilização progressiva. O verdadeiro Neolítico, que se desenvolveu na Europa
ocidental apenas entre -3000 e -2000, começou 3000 anos mais cedo no Egito.
A cerâmica de Elmenteita (Quênia); que remonta sem dúvida a cinco milênios,
é um dos elementos que permite inferir que o conhecimento da cerâmica chegou
ao Saara e ao Egito a partir das terras altas da África oriental. A cerâmica,
inovação revolucionária, acompanha a acumulação primitiva do capital na forma
de bens extraídos da natureza pela indústria humana. Com a cozinha, começa
um dos aspectos mais refinados da cultura, que nos permite medir o progresso
qualitativo alcançado desde o Homo habilis e sua dieta de folhas, raízes e carne
de animal recém -abatido, em suma, sua “economia de caça”.
A dinâmica social
Mas essas mudanças qualitativas, que confirmavam e consolidavam as
aptidões essenciais do homem, foram possíveis através de trocas com seus
838
Metodologia e pré -história da África
semelhantes e gras a uma dinâmica social que modelou o ser humano
pelo menos tanto quanto os impulsos provenientes das profundezas de sua
vitalidade, dos meandros de seus lobos cerebrais ou dos interstícios de sua
subconsciência. O fator social teve, aliás, um papel importante no vel da
agressividade, pela eliminação violenta dos mais fracos. Assim, o Homo sapiens
teve de expulsar os neandertalenses, após uma escie de guerra mundial
que durou muitas dezenas de milênios. Mas a dimensão social também
desempenhou um papel mais positivo: Os estudos comparativos de moldes
endocranianos dos paleantropus e do Homo sapiens revelam justamente que,
nestes últimos, as partes corticais, que estão ligadas às funções do trabalho e
da fala e à regulão do comportamento do indivíduo no seio da coletividade,
atingem um desenvolvimento considerável
7
.
Na verdade, a sociabilidade teve um papel fundamental na aquisição da
linguagem, desde os sinais sonoros herdados dos antepassados animais até os
sons mais articulados, combinados de maneiras diferentes em forma de sílabas.
A fase de lalação, caracterizada por monossílabos, visava a desencadear, como
por reflexo condicionado, um certo ato, gesto ou comportamento, ou ainda
chamar a atenção para determinado acontecimento ocorrido ou iminente. Em
resumo, no começo a fala era essencialmente relão. Ao mesmo tempo, o
alongamento da mandíbula fazia recuar os órgãos da garganta, abaixando assim
o ponto de ligação da língua. “O fluxo de ar expirado não mais se encaminhava
diretamente para os lábios, como nos macacos, mas transpunha uma série de
barreiras controladas pelos centros corticais”
8
.
Em suma, a fala é um processo dialético entre a biologia, as cnicas e o esrito,
mas depende da mediação do grupo. Sem um parceiro a lhe fazer eco, sem um
interlocutor, o homem teria permanecido mudo. Reciprocamente, porém, a fala
é uma aquisição o preciosa que, nas representações mágicas ou cosmogônicas
africanas, lhe é reconhecido um poder sobre as coisas. O verbo é criador. A palavra
é também o condutor do progresso. É a transmissão dos conhecimentos, a tradição
ou a herança dos ouvidos”. É a capitalização do saber, que eleva o homem,
definitivamente, acima da eterna mecânica fechada do instinto
9
. Enfim, a fala foi
a aurora da autoridade social, isto é, da liderança e do poder.
7 V. P. IAKIMOV, 1972, p. 2.
8 Cf. V. BOUNAK, 1972, p. 69.
9 “Não é a linguagem que permitiu ao homem conceituar, memorizar e retransmitir os conhecimentos
adquiridos diretamente na experiência da vida cotidiana – o mais extraordinário produto da capacidade
cientíca das sociedades não instruídas?” B. VERHAEGEN, 1974, p. 154.
839
Conclusão: Da natureza bruta à humanidade liberada
Emergência das sociedades políticas
Se o Homo sapiens é um animal político, ele passou a sê -lo durante esse
período pré -histórico. É muito difícil periodizar as causas e as etapas desse
processo. Mas, nesse caso também, as técnicas de produção e as relações sociais
desempenharam um papel importante.
As técnicas
Na verdade, os pré -hominídeos e os homens pré -históricos africanos viveram
em rebanhos, depois em bandos, em grupos e em equipes organizadas graças
a tarefas técnicas concretas que eles, para sobreviverem e viverem melhor,
podiam realizar em grupo.
O habitat é um aspecto comunirio que aparece desde os primeiros
albores da inteligência humana. sempre um lugar para reunião, mesmo
que transitório, um lugar adaptado ao repouso, à defesa, ao abastecimento. O
fogo reunia periodicamente os membros do grupo para resguardá -los dos
animais, do medo e da escuridão exterior. No vale do Omo (Etiópia), humildes
vestígios líticos, intencionalmente dispostos, delineiam ainda sobre o solo a
planta exumada das “cabanas” dos primeiros hominídeos. Tais abrigos irão se
aperfeiçoando até essas aldeias neolíticas localizadas em regiões altas, pontos
privilegiados protegidos das inundações e dos ataques, mas próximas de uma
fonte de água, como por exemplo na falésia de Tichitt -Walata (Mauritânia).
Mas era para a pesca e sobretudo para a caça que a identidade de objetivos se
manifestava de modo decisivo. Nossos ancestrais pré -históricos não podiam
abater animais dotados de maior força do que eles, a não ser por meio de uma
organização superior. Reuniam -se para encurralar os animais, acossando -os
em direção às falésias e ravinas, onde alguns de seus companheiros se tinham
postado para liquidá -los. Cavavam, junto às fontes de água, onde a caça graúda
chegava em grande quantidade na época da seca, armadilhas gigantescas,
dentro das quais os animais caíam. Mas era necesrio, a seguir, abater o
animal, esquartejá -lo e transportar os pedaços, tarefas que exigem uma certa
divisão do trabalho. Esta adquire toda a sua importância no Neolítico, graças
à crescente diversificação de atividades. Realmente, o jovem do Paleolítico não
tinha escolha. Sua orientação profissional era automática: coleta, caça ou pesca.
No Neolítico, porém, a margem de escolha é muito maior, o que implica uma
criteriosa repartição das tarefas, que se tornam cada vez mais especializadas:
840
Metodologia e pré -história da África
para mulheres e homens, camponeses e pastores, sapateiros, artesãos em pedra,
madeira, ou osso e, logo, ferreiros.
As relações sociais
Essa nova organização e a crescente eficácia das ferramentas permitiram
liberar pessoal excedente, oferecendo a alguns a possibilidade de abandonar a
função de produtor de bens, para se dedicarem aos serviços. As relações sociais se
diversificam ao mesmo tempo que os grupos, que se justapõem ou se sobrepõem,
num esboço de hierarquia. É também o momento em que as raças” se formam
e se fixam; as mais arcaicas são os khoisan e os pigmeus. O negro de grande
porte (sudanês ou bantu) aparecerá mais tarde, assim como o homem de Asselar
(vale do Oued Tilemsi, no Mali). O negro, que pouco havia empreendido
uma expansão pluricontinental
10
, diferenciou -se e desenvolveu -se, ao que parece
vitoriosamente, na África, sua terra de origem, a partir do Saara. No entanto,
em outras regiões era rechaçado, como no reduto dravídico do Deccan na Ásia,
ou suplantado, como na Europa, por raças mais bem adaptadas às condições
climáticas desfavoráveis. Esse fato ocorreu também nas regiões da África do
norte, em favor das “raças mediterrâneas. Segundo Furon, as estatuetas do
Aurignaciense apresentam um tipo étnico negroide. Para esse autor, de fato,
os aurignacienses negroides prolongam -se numa civilização conhecida como
capsiense”
11
. Dumoulin de Laplante, por sua vez, escreve: “Nessa época, uma
migração de negroides do tipo hotentote teria, partindo da África meridional e
central, submergido a África do norte […] e trazido para a Europa mediterrânea,
à força, uma nova civilização: o Aurignaciense”
12
. Deve -se portanto concluir que,
na orla do mundo negro, antigas mestiçagens são responsáveis por populações
com características negroides menos marcantes, prematuramente batizadas de
raça parda”: peul, etíopes, somalis, nilotas, etc. Falou -se mesmo, abusivamente,
de raça “camita”.
Um outro domínio em que a representação da vida social nos é mostrada com
insuperável vigor é o da arte pré -histórica africana, mural e plástica. Tendo sido
a África o continente mais importante na evolução pré -histórica, aquele onde as
populações de hominídeos e posteriormente de hominíeos eram as mais antigas,
10 Cf. “Há 30.000 anos a raça negra cobria o mundo”, Sciences et Avenir, outubro 1954, n. 92. Ver também
A. MORET, 1931.
11 R. FURON, 1943, p. 14 -15.
12 DUMOULIN DE LAPLANTE, 1947, p. 13.
841
Conclusão: Da natureza bruta à humanidade liberada
as mais numerosas e as mais inventivas, não é surpreendente que a arte pré-
-histórica africana seja de longe a mais rica do mundo e que tenha imposto, na
época, um dominium tão importante quanto a música negro -africana no mundo
de hoje. Esses vestígios estão concentrados sobretudo na África meridional
e oriental, no Saara, no Egito e nos altos planaltos do Atlas. Seguramente,
essa arte foi muitas vezes o reflexo do deslumbramento individual diante da
efervescente vida animal que se agitava ao redor do abrigo. Na maioria das
vezes, contudo, trata -se de uma arte social centrada nas tarefas cotidianas, “os
trabalhos e os dias” do grupo, seus confrontos com as feras ou os clãs hostis, suas
ânsias e seus terrores, seus passatempos e seus jogos, em suma, os pontos altos
da vida coletiva. Galerias ou afrescos animados e palpitantes, que refletem no
espelho das paredes rochosas a vida impetuosa ou bucólica dos primeiros clãs
humanos. Essa arte, que tem sua origem numa técnica apurada até o mais alto
grau, reflete com frequência também as preocupações e as angústias espirituais
do grupo. Representa danças de feitiçaria, grupos de caçadores mascarados,
feiticeiros em plena ação, mulheres com o rosto pintado de branco (como ainda
hoje se faz na África negra, nas cerimônias de iniciação) e que se apressam, como
que chamadas para algum misterioso encontro. Sente -se, aliás, com o correr do
tempo, uma passagem gradual da magia à religião, o que confirma a evolução do
homem para a sociedade política durante a Pré -História africana, já que grande
número de líderes são, no início, simultaneamente chefes e sacerdotes.
De fato, o crescimento das forças produtivas no Neolítico deve ter provocado
uma expansão demográfica, que por sua vez desencadeou fenômenos migratórios,
como prova a dispersão característica de certas “oficinas” p-históricas, cujo
material tico apresenta parentesco de estilo. O raio de ão dos ataques e
das mudanças definitivas estendia -se à medida que aumentava a eficácia das
ferramentas e das armas, às vezes relacionada com a redução de seu peso. A
África é um continente que os homens percorreram em todos os sentidos,
atraídos pelos imensos horizontes dessa vasta terra. A inextricável confusão das
imbricações que o mapa étnico africano apresenta hoje, num quebra -cabeça que
desencorajaria um computador, é resultado desse movimento browniano dos
povos, de envergadura plurimilenar. Tanto quanto se possa julgar, os primeiros
movimentos migratórios parecem ter começado com os “Bantu” do leste e do
nordeste para se expandirem em direção ao oeste e ao norte. Depois, a partir
do Neolítico, a tendência geral é aparentemente a descida para o sul, como
sob o efeito repulsivo do gigantesco deserto, terrível faixa ecológica instalada
soberanamente desde então de um lado a outro do continente. Esse refluxo
para o sul e para o leste (sudaneses, bantu, nilotas, etc.) prosseguirá durante o
842
Metodologia e pré -história da África
Da natureza bruta à humanidade
liberada.
F . Australopithe
cus boisei, jazidas do Omo (Col.
Museu do Homem; Foto Oster,
nº 77.1495.493).
F . Laboratório desti-
nado às pesquisas sobre o rema-
nejo do delta do Senegal, Rosso-
Bethio, Senegal (Foto B. Nantet).
843
Conclusão: Da natureza bruta à humanidade liberada
período histórico até o século XIX, quando as últimas vagas terminariam nas
costas do mar austral.
O líder de caravana que, carregado de amuletos e armas, conduziu o cao
progresso ou à aventura, é o ancestral epônimo que impulsionava seu povo para a
história e cujo nome atravessará os séculos, aureolado com um halo de veneração
quase ritual. Na verdade, as migrações eram essencialmente fenômenos de
grupos, atos de componentes eminentemente sociais.
Essas migrações, consequências de vitórias (ou derrotas) no meio original,
apresentarão finalmente um saldo com resultados ambíguos. Por um lado,
propiciam de fato o progresso, porque a ocupação de porções sucessivas e
convergentes garante pouco a pouco a posse, ou então o domínio do continente;
além disso, graças às trocas que promovem, põem em relevo as inovações, por uma
espécie de efeito cumulativo. Por outro lado, contudo, diluindo a densidade do
povoamento num espaço imenso, impedem os grupos humanos de atingirem o
limiar de concentração a partir do qual, para sobreviver, o formigueiro humano é
obrigado a se ultrapassar em invenções. A dispersão no meio geográfico aumenta
a influência deste último e tende a reconduzir os primeiros clãs africanos às
origens obscuras, em que o homem abria caminho, por meio de um parto
doloroso, através da crosta opaca do universo não inteligente.
O movimento histórico
Assim, a trama da evolução humana, da qual acabamos de traçar resumidamente
o sentido e as etapas, revela -nos o homem pré -histórico africano afastando -se
penosamente da natureza para mergulhar pouco a pouco na coletividade humana
em forma de grupos, de comunidades primitivas, agregando -se e desagregando-
-se para se recompor de outras formas, com técnicas que cada vez mais utilizam
ferramentas ou armas de ferro, em casamentos ou combates que fazem ressoar
os primeiros cantos de amor e os primeiros choques de armas da história. O que
impressiona nessa ascensão é a permanência, através do movimento histórico,
até pleno século XX, de comunidades originariamente nascidas na P-História.
Aliás, se demarcarmos como início da História a utilização de objetos de ferro,
podemos dizer que a P-História teve continuidade em várias regiões africanas
até o ano 1000, aproximadamente. Ainda no século XIX, as forças produtivas e
as relações socio econômicas de grande número de grupos africanos (não apenas
paleonegríticos) não eram substancialmente diferentes daquelas da P-História,
exceto quanto à utilização de instrumentos de metal. As técnicas de caça dos
844
Metodologia e pré -história da África
pigmeus reproduzem, em pleno século XX, as próprias técnicas dos africanos da
Pré -História, de milhares de anos atrás.
Para além do esplêndido apogeu da civilizão egípcia e das realizações
eminentes ou gloriosas de tantos reinos e impérios africanos, essa realidade
maciça perdura, dando corpo e textura à linha de desenvolvimento das sociedades
africanas, e merece ser destacada de forma conveniente.
Decerto, o “sentido da história” nunca implicou uma direção unívoca, com a
qual o espírito dos homens tenha concordado unanimemente. As concepções a
esse respeito são múltiplas.
Marx e Teilhard de Chardin têm, cada um, as suas. A própria África produziu
pensadores, alguns dos quais tinham uma visão profunda da dinâmica e do
destino do movimento histórico. Santo Agostinho (354 -430) faz a visão dos
historiadores dar um passo de gigante, ao romper com a concepção cíclica do
eterno retorno, corrente nessa época, e professar que, do pecado original ao juízo
final, existe um eixo irreversível, traçado em seu conjunto pela vontade divina,
mas ao longo do qual, por seus atos, cada homem se salva ou se perde. E a cidade
terrestre é estudada em seu passado apenas para que nela sejam detectados os
sinais anunciadores da Cidade de Deus.
Por sua vez, Ibn Khaldun (1332 -1406), embora reconhecendo a Alá um
império eminente sobre os destinos humanos, é o fundador da História como
ciência, fundamentada em provas confirmadas pela rao. Deve -se confiar
em seu próprio julgamento, que toda verdade pode ser concebida pela
inteligência.” Por outro lado, para ele, o objetivo dessa ciência não é apenas a
espuma superficial dos acontecimentos: “qual é a vantagem de relatar os nomes
das mulheres de um antigo soberano, ou a inscrição gravada em seu anel?”. Ele
estuda, sobretudo, os modos de produção e de vida, as relações sociais, em suma,
a civilização (al ‑Umrān al ‑Basharī). Finalmente, elabora, para explicar o processo
de progressão da história, uma teoria dialética que opõe o papel do espírito
solidário igualitarista (asabiya) à ditadura do rei, respectivamente nas zonas
rurais e pastoris (al ‑Umrān al ‑Badawī) e nas cidades (al ‑Umrān al ‑Hadarī).
Portanto, há uma passagem incessante e alternada do dominium de um ao da
outra forma de civilização, sem que esse ritmo seja cíclico, pois se reproduz, a
cada vez, em um nível superior, para dar origem a uma espécie de progressão em
espiral. Afirmando que as diferenças nos costumes e nas instituições dos diversos
povos dependem da maneira como cada um deles provê à sua subsistência”, Ibn
Khaldun formulava, com clareza e alguns séculos de antecedência, uma das
proposições fundamentais do materialismo histórico de Karl Marx. Este último,
após ter analisado, com o vigor e o poder de síntese que lhe são característicos,
845
Conclusão: Da natureza bruta à humanidade liberada
a lei da evolução do mundo ocidental, debruçou -se subsidiariamente sobre os
modos de produção exóticos. Em 1859, em Formen, destaca o conceito de modo
de produção asiático, uma das três formas de comunidade agrárias, naturais”,
baseadas na propriedade comum do solo. O modo de produção asiático
caracteriza -se pela existência de comunidades aldeãs de base, dominadas por
um corpo estatal beneficiário dos excedentes de produção dos camponeses,
submetidos não a uma escravidão individual, mas a uma “escravidão geral
que os subordina como grupo. Portanto, concomitantemente a um poder de
função pública, os dirigentes exercem um poder de exploração das comunidades
inferiores. Essa comunidade superior atribui a si a propriedade suprema das
terras
13
, comercializa os excedentes e empreende trabalhos de vulto, sobretudo
de irrigação, para aumentar a produção. Em resumo, exerce sobre as massas
uma autoridade qualificada de despotismo oriental”. Ora, os conhecimentos
arqueológicos e antropológicos acumulados desde Marx mostraram que o
desenvolvimento de certas sociedades não é redutível nem a todos os cinco
estágios definidos por Marx em O Capital e erigidos em dogma intangível
por Stalin, nem à variedade pré -capitalista do modo de produção asiático”,
considerado uma variante da passagem para o Estado, no caso de sociedades
não europeias. Em particular, e dependendo de estudos monográficos posteriores
invalidando essa proposição, a análise concreta das estruturas africanas não
permite isolar todas as características formuladas por Marx para descrever a
sucessão dos diferentes modos de produção.
Assim, no estágio da comunidade primitiva contrariamente às formas
europeias (antiga e germânica), que se diferenciam pelo fato de a apropriação
privada do solo se desenvolver no seio da propriedade comum a realidade
africanao revela tal apropriação
14
. Fora essa notável característica, as
comunidades originais da África apresentam os mesmos traços de outras do
resto do mundo. Da mesma forma, são muito flagrantes as diferenças que
existem entre as estruturas africanas e o modo de produção asiático. Com
efeito, nas comunidades aldeãs africanas a autoridade superior, o Estado, não
é mais proprietária da terra do que os particulares. Por outro lado, o Estado
geralmente não empreende trabalhos de vulto. Quanto à própria estrutura
13 A unidade superior é apresentada como o “proprietário superior” ou como “o único proprietário”. Com
efeito, “Marx ora insiste sobre o fato de que o próprio Estado é o verdadeiro proprietário da terra, ora faz
simultaneamente observações sobre a importância dos direitos de propriedade das comunidades aldeãs.
Sem dúvida, não existe contradição entre essas duas tendências”. J. CHESNEAUX, 1969, p. 29.
14 “Não existe propriedade privada da terra, no sentido do direito romano ou do Código Civil”. J. SURET-
-CANALE, 1964, p. 108.
846
Metodologia e pré -história da África
do poder, enquanto superestrutura, não se inclui em nenhuma definição de
modo de produção, embora seja um indício da constituição de classes. Essa
estrutura, na África, não apresenta os traços do “despotismo oriental” descrito
por Marx
15
. Sem negar que tenham existido casos de autocracia sanguinária,
a autoridade estatal na África negra quase sempre assume a forma de uma
monarquia moderada, limitada por corpos constituídos e costumes verdadeiras
constituições não escritas instituições em geral herdadas da organização ou
da estratificação social anteriores. Mesmo no caso de impérios prestigiosos e
eficientes como o Mali, descritos com admiração por Ibn Battuta no século XIV,
que se estendiam por vastos territórios, a descentralização, por escolha deliberada,
deixava as comunidades de base funcionarem dentro de um verdadeiro sistema
de autonomia. De qualquer modo, sendo a escrita em geral pouco utilizada e
tendo as técnicas e os meios de deslocamento permanecido pouco desenvolvidos,
o poder das metrópoles era sempre diminuído pela distância. Essa distância
tornava igualmente muito concreta a permanente ameaça de os subordinados
se livrarem de uma eventual autocracia por meio da fuga.
Por outro lado, na África a produção excedente das comunidades de base
parece ter sido modesta, exceto quando havia um monopólio estatal sobre
gêneros preciosos, como o ouro em Gana ou Ashanti, o marfim, o sal, etc. No
entanto, mesmo nesse caso,o devemos esquecer a contrapartida de serviços
prestados pela chefia (seguraa, justa, mercados, etc.), nem minimizar o
fato de que uma boa parte das contribuições e rendas era redistribuída, por
ocasião das festas costumeiras, conforme o digo de honra em vigor para
os que deviam viver nobremente
16
. Isso explica a suntuosa generosidade de
Kankou Mussa, o Magnífico, imperador do Mali, na época de sua faustosa
peregrinão em 1324.
Quanto ao modo de produção escravista, existia ele na África? Também nesse
caso, somos obrigados a responder negativamente. Em quase todas as sociedades
ao sul do Saara, a escravidão desempenhou um papel apenas marginal. Os
15 “Se entendemos por despotismo uma autoridade absoluta e arbitrária, não podemos rejeitar a ideia de
um despotismo africano.” J. SURET -CANALE, op. cit., p. 125. “Não acreditamos que haja razões para
encontrar, na organização dos Estados africanos, a reprodução de um modelo tomado de empréstimo à
Ásia; no máximo, podemos destacar algumas semelhanças superciais”. Op. cit., p. 122.
16 J. MAQUET, após ter observado que para G. BALANDIER anal, o preço que os detentores do
poder político deviam pagar nunca é integralmente recompensado”, acredita, por sua vez, que os serviços
públicos dos chefes “exigem um poder coercitivo apenas nas sociedades muito vastas, heterogêneas e
urbanas. Em qualquer outra parte, a estrutura de linhagens e suas sanções não impostas pela força são
sucientes…”. Portanto, conclui: “Excetuando a redistribuição, era sem contrapartida econômica que o
excedente de uma sociedade tradicional era apropriada pelos governantes”. J. MAQUET, 1970, p. 99 -101.
847
Conclusão: Da natureza bruta à humanidade liberada
escravos, ou melhor, os cativos, eram quase sempre prisioneiros de guerra. O
cativeiro não reduzia um homem ao estado de propriedade pura e simples, no
sentido definido por Catão O próprio escravo africano gozava frequentemente
de um certo direito de propriedade e geralmente não era explorado como um
instrumento ou animal. O prisioneiro de guerra, caso não fosse sacrificado
ritualmente, como acontecia às vezes, era muito rapidamente integrado à família
da qual se tornara propriedade coletiva. Era um complemento humano da
família, que se beneficiava, com o tempo, de uma libertação de direito ou de fato.
Quando empregados como soldados de infantaria, os prisioneiros gozavam de
vantagens substanciais e às vezes, como em Kayor, chegavam a ser representados
no governo, na pessoa do generalíssimo. Em Ashanti, para garantir a integração
nacional”, era estritamente proibido fazer alusão à origem servil de alguém, de
modo que um antigo prisioneiro podia tornar -se chefe de aldeia. A condição de
prisioneiro, embora comum na África […], não implicava um papel determinado
na produção, que caracteriza uma classe social”.
17
Em locais onde a escravidão adquire caráter maciço e qualitativamente
diferente, como no Daomé, em Ashanti e em Zanzibar nos séculos XVIII e
XIX, trata -se de estruturas originadas de um modo de produção dominante,
o capitalismo, e que, na realidade, são suscitadas pelo impacto econômico
exterior. E que dizer do modo de produção feudal? Comparações precipitadas
levaram alguns autores a qualificarem de feudal” uma ou outra chefia africana
18
.
Também nesse caso, contudo, falando em termos gerais, não apropriação nem
atribuição privada da terra, portanto não feudo. O solo é um bem comunitário
inalienável, a tal ponto que o grupo de conquistadores que se apropria do poder
político deixa com frequência a responsabilidade das terras da comunidade ao
dirigente autóctone, o chefe da terra” o teng ‑soba mossi, por exemplo. Na
verdade, a autoridade da aristocracia era exercida sobre os bens e os homens,
sem atingir a propriedade fundiária em si, prerrogativa dos autóctones”
19
. Aliás,
a nobreza” africana não entrou para o comércio. Continuava a ser sempre um
atributo de nascimento, do qual ninguém podia privar o titular.
17 J. SURET -CANALE, op. cit., p. 119. Ver também A. A. DIENG, C. E. R. M. n. 114, 1974: crítica
penetrante e documentadas das teses marxistas “elásticas” de M. DIOP, 1971 -1972.
18 Mesmo quando se pensa como J. MAQUET, lembrando M. BLOCH e GANSHOF, que “não é o feudo,
mas a relação entre o senhor e o vassalo que é crucial”, é claro que não saberíamos dissociar inteiramente um
do outro. As relações de feudalismo que o autor descreve parecem, aliás, um tanto peculiares às sociedades
interlacustres e estabelecem -se frequentemente, como em Ankole ou em Buha, entre os membros da casta
superior. Nessas condições, trata -se da mesma realidade institucional da Europa, por exemplo?
19 Cf. V. KABORE, 1962, p. 609 -23.
848
Metodologia e pré -história da África
Finalmente, devemos considerar as estruturas socioeconômicas como
o sistema familiar matrilinear, que caracterizou fortemente as sociedades
africanas, pelo menos em sua origem, antes que influências posteriores como
o islamismo, a civilizão ocidental, etc., impusessem pouco a pouco o sistema
patrilinear. Essa estrutura social, tão importante para definir o eminente papel
da mulher na comunidade, comportava igualmente consequências econômicas,
políticas e espirituais, uma vez que ela desempenhava um papel marcante tanto
na heraa de bens materiais como dos direitos à sucessão real, a exemplo do
que ocorria em Gana. O parentesco uterino parece ter saído das profundezas
da Pré -História africana, do momento em que a sedentarizão do Neolítico
tinha exaltado as funções domésticas da mulher, a ponto de torná -las o
elemento central do corpo social. Numerosas práticas m origem nesse fato,
tais como o “parentesco de brincadeira”, o casamento com a irmã, o dote pago
aos pais da futura esposa, etc.
Nessas condições, como se pode descrever a linha de evolução característica das
sociedades africanas moldadas pela Pré -História? Deve -se observar inicialmente
que durante esse período a África desempenhou nas relações intercontinentais o
papel de pólo e foco central de invenção e divulgação das técnicas. Mas essa alta
função bem depressa se transformou em posição subordinada e periférica, em
virtude dos fatores internos antagônicos acima mencionados, e igualmente em
consequência do usufruto de bens e serviços africanos sem compensação suficiente
em favor desse continente, por exemplo, sob a forma de uma transferência
equivalente de capitais e de técnicas. Essa exploração plurimilenar da África
teve três períodos culminantes. Primeiro a Antiguidade, quando, após o declínio
do Egito, o vale do Nilo e as províncias romanas do resto da África do norte
sofrem intensa exploração e tornam -se o celeiro de Roma. Além dos gêneros
alimentícios, o Império Romano retirou da África uma quantidade enorme de
animais selvagens, de escravos e de gladiadores para o exército, os palácios, os
latifúndios e os jogos sanguinários do circo. No século XVI, começa a sinistra
era do tráfico de negros. Finalmente, no século XIX, assistimos à consagração
da dependência pela ocupação territorial e pela colonização. A acumulação de
capital na Europa e o progresso da revolução industrial, fenômenos simultâneos
e complementares, seriam inconcebíveis sem a contribuição forçada da Ásia, das
Américas e sobretudo da África.
Paralelamente, mesmo durante os séculos de desenvolvimento interno, em
que a rapina externa não era tão acentuada (da Antiguidade ao século XVI),
numerosas contradições no interior do próprio sistema africano constituíam
obstáculos estruturais endógenos à passagem, por pressão interna, para estruturas
849
Conclusão: Da natureza bruta à humanidade liberada
mais progressivas. Como observa com perspicácia J. Suret -Canale a respeito do
modo de produção asiático (mas essa observação vale a fortiori para o caso
africano, incluindo o período colonial):
“Nesse sistema, com efeito, o recrudescimento da exploração de classe, longe de
destruir as estruturas baseadas na propriedade coletiva da terra, reforça -as: elas
constituem o quadro no qual se efetua a retirada antecipada do sobreproduto,
condição indispensável da exploração”.
Realmente,o as comunidades de base que, como tais, são responsáveis pelo
pagamento do sobreproduto. A África dos clãs e das aldeias ainda existentes,
pouco vinculada à apropriação privada da terra (um bem tão vasto e tão precioso,
mas também tão gratuito quanto o ar), ignorou durante muito tempo o problema
da aquisição de terras como fonte de conflitos entre grupos sociais. Mas essa
não foi a única causa do “arcaísmo” das formas sociais observáveis na África. O
baixo nível das técnicas e das forças produtivas, numa espécie de círculo vicioso,
era simultaneamente causa e consequência da diluição demográfica num espaço
não controlado, porque quase ilimitado.
Em virtude dos obstáculos naturais, o tráfico comercial de longa distância
quase nunca se tornou muito ponderável, apoiando -se nos produtos de luxo
frequentemente limitados aos sis econômicos dos palácios. De fato, sem
recorrer à noção plekhariovista de meio geográfico”, pois este útimo é apenas
uma das facetas do meio histórico, devemos efetivamente levar em conta as
barreiras ecológicas mencionadas na Introdução deste volume. A contraprova
dessa afirmação é que, todas as vezes em que essas barreiras foram total ou
parcialmente suprimidas, como no vale do Nilo e em menor escala no vale
do Níger, a dinâmica social ativou -se; em favor do progresso concomitante da
densidade humana e da propriedade privada.
Assim, não houve na África (negra), em seu conjunto, nem fase escravista
nem fase feudal como no Ocidente
20
. Nem se pode dizer que os modos africanos
sejam modalidades desses sistemas socioeconômicos, pois frequentemente
falta de elementos constitutivos essenciais. Isso significa que se deve subtrair a
África aos princípios gerais de evolução da espécie humana? Evidentemente não.
No entanto, mesmo que esses princípios sejam comuns a toda a humanidade,
mesmo admitindo que o essencial das categorias metodológicas gerais do
20 J. CHESNEAUX, op. cit., p. 36: “O que parece bem denido é a quase impossibilidade de considerar
que as sociedades africanas pré -coloniais, com raras exceções, dependem da escravidão ou do feudalismo
propriamente ditos”.
850
Metodologia e pré -história da África
materialismo histórico seja universalmente aplicável, haveria razões para nos
concentrarmos unicamente no essencial: as correspondências (não mecânicas)
que podem ser observadas entre as forças produtivas e as relações de produção,
assim como a passagem (não mecânica) das formas de sociedade sem classes
às formas sociais de lutas de classe. Nesse caso, conviria analisar as realidades
africanas no contexto, não de um retorno, mas de recurso a Karl Marx. Se a razão
é una, a ciência consiste em aplicá -la a cada um de seus objetos.
Em resumo, constata -se na África a permanência marcante de um modo de
produção sui generis, semelhante aos outros tipos de comunidades “primitivas”,
mas com diferenças fundamentais, especialmente uma espécie de aversão à
propriedade privada ou estatal
21
.
A seguir, uma passagem gradual e esporádica para formas estatais, elas
próprias imersas durante muito tempo na rede de relações pré -estatais subjacentes;
tais formas emergem progressivamente, por impulso interno e pressão externa,
da ganga do coletivismo primitivo desestruturado, para se reorganizarem, com
base na apropriação privada e no fortalecimento do Estado, num modo de
produção capitalista, inicialmente dominante e depois monopolizador.
O Estado colonial foi, na realidade, criado para administrar as sucursais
periféricas do capital, antes de ser substitdo por um Estado capitalista
independente, em meados do século XX. Alternativamente, ocorreu a transição
do predomínio comunitário original para o do capitalismo colonial e depois para
uma via socialista de desenvolvimento.
De qualquer forma, um fato se impõe claramente na África: por razões
estruturais que não sofreram modificações em sua essência há pelo menos meio
milênio, e levando em conta o crescimento demográfico, as forças produtivas
estagnaram -se, fato que não exclui crescimentos esporádicos e localizados, com
ou sem desenvolvimento. Essa estagnação não exclui também o extraordinário
florescimento artístico, nem o refinamento das relações interpessoais. E como se
os africanos tivessem investido nessas áreas a essência de sua energia criadora
22
.
Em resumo, a civilização material, que teve origem nas latitudes tropicais afro-
-asiáticas durante a P -História, espalhou -se em direção às latitudes setentrionais
até o istmo europeu, onde, por um processo cumulativo de conjugação de técnicas
21 Aversão que não está relacionada a um especíco estado inato, nem a uma “natureza” diferente, mas a
um meio histórico original.
22 Essa é a razão pela qual, na denição de um eventual “modo de produção africano” deveria dar -se
atenção especial às “instituições” sociológicas, políticas e “ideológicas”. com referência às análises de A.
GRAMSCI e de N. POULANTZAS.
851
Conclusão: Da natureza bruta à humanidade liberada
e de ambarcamento de capitais, por assim dizer se instalou e se cristalizou
brilhantemente. E de onde virá a transformação desse sistema, que se espalha
pelo mundo? De seu núcleo ocidental ou da periferia, reeditando assim o papel
dos bárbaros” em relação ao Império Romano? A história o dirá. Desde já,
podemos afirmar que a pré -história da África é a história da hominização de um
primata diferenciado, e posteriormente da humanização da Natureza por esse
agente vetor responsável por todo o progresso. É uma longa marcha, durante
a qual o equilíbrio entre a natureza e o homem se rompeu pouco a pouco
em favor da razão. Restava o equilíbrio ou o desequilíbrio dinâmico entre. os
grupos humanos, dentro do continente e em relação ao exterior. Ora, quanto
mais as forças produtivas aumentam, mais os antagonismos afiam o gume do
interesse e do desejo de poder. As lutas de libertação, que ainda hoje assolam
alguns territórios da África, são simultaneamente o indicador e a negação desse
empreendimento de domesticação do continente no contexto de um sistema que
poderíamos chamar de modo de subprodução africano. Mas desde os primeiros
balbucios do Homo habilis, encontramos já a mesma luta de libertação, a mesma
intenção obstinada e irreprimível de ter acesso ao ser -mais, desvencilhando -se
da alienação pela natureza e depois pelo homem.
Em suma, a criação, a autocrião do homem, iniciada há milhares de
milênios, ainda prossegue na África. Em outros termos, de certa maneira a
Pré -História da África ainda não terminou.
853
Conclusão: Da natureza bruta à humanidade liberada
Membros do Comitê Cientíco
Internacional para a Redação de uma
História Geral da África
Prof. J. F. A. Ajayi
(Nigéria) –
1971 Coordenador do volume VI
Prof. F. A. Albuquerque Mourão (Brasil)
1975
Prof. A. A. Boahen (Gana)
1971 Coordenador do volume VII
S. Ex
a
Sr. Boubou Hama (Níger)
1971-1978
(demitido em 1978; falecido em 1982)
S. Ex
a
Sra. Mutumba M. Bull, Ph. D. (Zâmbia)
1971
Prof. D. Chanaiwa (Zimbabue)
1975
Prof. P. D. Curtin (EUA)
1975
Prof.
J.
Devisse (França)
1971
Prof. M. Difuila (Angola)
1978
Prof. Cheikh Anta Diop (Senegal)
1971 Prof. H. Djait (Tunísia)
1975
Prof.
J.
D. Fage (Reino Unido)
1971-1981
(demitido)
S. Ex
a
Sr. M. El Fasi (Marrocos)
1971 Coordenador do volume III
Prof. J. L. Franco (Cuba)
1971
Sr. Musa H. I. Galaal (Somália)
1971-1981
(
f
alecido)
Prof. Dr. V. L. Grottanelli (Itália)
1971
Prof. E. Haberland (República Federal da Alemanha)
1971
Dr. Aklilu Habte (Etiópia)
1971
S. Exa. Sr. A. Hampaté (Mali)
1971-1978
(demitido)
854
Metodologia e pré -história da África
Dr. I. S. El-Hareir (Líbia)
1978
Dr. I. Hrbek (Tchecoslováquia)
1971 Codiretor do volume III
Dra. A. Jones (Libéria)
1971
Pe. Alexis Kagame (Ruanda)
1971-1981 (falecido)
Prof. I. M. Kimambo (Tanzânia)
1971
Prof.
J.
Ki-Zerbo (Alto Volta)
1971
Coordenador do volume I
Sr. D. Laya (Níger)
1979
Dr. A. Letnev (URSS)
1971
Dr. G. Mokhtar (Egito)
1971
Coordenador do volume
II
Prof. P. Mutibwa (Uganda)
1975
Prof. D. T. Niane (Senegal)
1971
Coordenador do volume
IV
Prof. L. D. Ngcongco (Botsuana)
1971
Prof. T. Obenga (República Popular do Congo)
1975
Prof. B. A. Ogot (Quênia)
1971
Coordenador do volume V
Prof. C. Ravoajanahary (Madagáscar)
1971
Sr. W. Rodney (Guiana)
1979-1980 (falecido)
Prof. M. Shibeika (Sudão)
1971-1980 (falecido)
Prof. Y. A. Talib (Cingapura)
1975
Prof. A. Teixeira da Mota (Portugal)
1978-1982 (falecido).
Mons. T. Tshibangu (Zaire)
1971
Prof.
J.
Vansina (Bélgica)
1971
Rt. Hon. Dr. E. Williams (Trinidad e Tobago)
1976-1978 (demitido em 1978; falecido
em 1980)
Prof. A. Mazrui
(Quênia)
Coordenador do volume
VIII
(não
é
membro do Comitê)
Prof. C. Wondji (Costa do Marfim)
Codiretor do volume
VIII
(não é membro do
Comitê)
Secretaria do Comi Cienfico Internacional para a Redação de Uma Hisria Geral da África:
Sr. Maurice
Glelé,
Divisão de Estudos e Difusão de Culturas, UNESCO, 1, rue Miollis,
75015 Paris.
855
Dados biográcos dos autores do volume I
Dados biográcos dos
autores do volume I
Introdução J. Ki-Zerbo (Alto Volta). Especialista em metodologia da História
da África; autor de várias obras sobre a África negra e sua história;
professor de Hisria no Centre dEnseignement Surieur de
Ougadougou; Secretário Geral do Conseil Africain et Malgache pour
l’Enseignement Supérieur.
Capítulo 1 J. D. Fage (Reino Unido). Especialista em História da África Ocidental;
autor e co-editor de publicações sobre a História da África. Pro-Vice
Chancellor da Universidade de Birmingham e ex-diretor do Centro
de Estudos Africanos da Universidade de Birmingham.
Capítulo 2 S. Ex
a
Boubou Hama (Níger). Especialista em tradições orais; autor de
várias obras sobre a História do Níger e da região do Sudão; ex-Diretor
do Centre gional de Recherche et de Documentation sur les
traditions Orales et pour le Développement des Langues Africaines.
Capítulo 3 P. D. Curtin (Estados Unidos da América). Especialista em história do
comércio de escravos; autor de várias obras sobre o assunto; professor
de História na Universidade John-Hopkins.
Capítulo 4 T. Obenga (República Popular do Congo). Especialista em línguas
africanas; autor de vários artigos sobre a História da África e de obras
sobre a África na Antiguidade; professor na Faculdade de Letras da
Universidade Marien N’Gouabi.
856
Metodologia e pré -história da África
Capítulo 5 H. Djait (Tunísia). Especialista em história medieval do Maghreb;
autor de vários artigos e obras sobre a história da Tunísia; professor
na Universidade de Túnis.
Capítulo 6 I. Hrbek (Tchecoslováquia). Especialista em história da África e da
civilização árabe; autor de várias obras sobre a História da África;
professor; chefe da seção dos países árabes e africanos do Instituto
Oriental de Praga.
Capítulo 7 J. Vansina (Bélgica). Especialista em história da África; autor de várias
obras sobre a História da África Equatorial; professor de História na
Universidade de Wisconsin (Estados Unidos da América).
Capítulo 8 S. Ex
a
A. Hampaté (Mali). Especialista em tradições orais; autor
de rias obras sobre os antigos impérios africanos e a civilizão
africana.
Capitulo 9 Z. Iskander (Egito). Especialista em História do Egito; autor de
várias obras e artigos sobre o Egito antigo; diretor geral dos Assuntos
Técnicos no Departamento de Antiguidades.
Capítulo 10 P. Diagne (Senegal). Linguista; Doutor em Ciências Políticas e
Econômicas; autor de duas obras sobre o poder político africano e a
gramática wolof; professor assistente na Universidade de Dacar.
Capítulo 11 D. A. Olderogge (URSS). Especialista em Ciências Sociais da África;
autor de várias obras sobre a África; membro da Academia de Ciências
da URSS.
Capítulo 12 J. H. Greenberg (Estados Unidos da América). Linguista; autor de
várias obras e artigos sobre Antropologia e Linguística; professor de
Antropologia na Universidade de Stanford.
Capítulo 13 S. Diarra (Mali). Especialista em Geografia Tropical; professor de
Geografia na Universidade de Abidjan.
Capítulo 14 A. Mobogunje (Nigéria). Autor de diversas obras sobre os Ioruba;
professor de Geografia na Universidade de Ibadan.
Capítulo 15 J. Ki-Zerbo (Alto Volta). Vide Introdução.
Capítulo 16 S. Rushdi (Egito). Físico; Presidente da Egyptian Geological Survey
and Mining Authority.
H. Faure (França). Doutor em Ciências; especialista em Geologia da
França do ultramar; obras sobre a Geologia da África Ocidental; Mestre
de Conferências na Universidade de Dacar e depois na Universidade
de Paris V. Presidente do Comitê Técnico de Geologia do Quaternário
do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS).
857
Dados biográcos dos autores do volume I
Capítulo 17 L. Balout (França). Especialista em Pré-História da África; autor de
várias obras e artigos sobre a África do Norte; ex-Diretor do Muséum
National d’Histoire Naturelle de Paris.
Y. Coppens (França). Especialista em Pré-História; autor de várias
obras sobre a origem da humanidade; Subdiretor do Museu Nacional
de História Natural de Paris.
Capítulo 18 R. Leakey ( Reino Unido). Especialista em Pré-História da África;
autor de obras sobre as escavações relacionadas à investigão da
origem do homem na África Oriental; Chefe do International Louis
Leakey Memorial Institute for African Prehistory.
Capitulo 19 J. E. G. Sutton (Reino Unido). Especialista em Pré-História; autor de
diversas obras e artigos sobre a Pré-História da África; ex-Presidente
do Departamento de Arqueologia da Universidade de Oxford.
Capítulo 20 J. D. Clark (Estados Unidos da América). Especialista em Pré-História
da África; autor de várias publicações sobre a Pré-História e as antigas
civilizações africanas; professor de História e de Arqueologia.
Capítulo 21 R. de Bayle des Hermens (França). Especialista em Pré-História;
autor de várias obras e artigos, notadamente sobre a Pré-História da
África; encarregado de pesquisas no Centre National de la Recherche
Scientifique de Paris.
F. Van Noten (Bélgica). Especialista em Pré-História; autor de obras
e artigos sobre a Pré-História; Conservador do Real Museu de Pré-
História e Arqueologia.
Capítulo 22 L. Balout (França). Vide capítulo 17.
Capítulo 23 H. J. Hugot (França). Especialista em Pré-História; Mestre de
Conferências; autor de diversas obras sobre História Natural da Pré-
História e do Quaternário; Subdiretor do Museu Nacional de História
Natural de Paris.
Capítulo 24 T. Shaw (Reino Unido). Professor de História Antiga; autor de vários
trabalhos sobre a Pré-História da África Ocidental; Vice-Presidente
do Congresso Panafricano de Pré-História.
Capítulo 25 F. Debono (Reino Unido). Especialista em Pré-História do Egito;
autor de várias obras e artigos sobre a pesquisa Pré-Histórica no Egito;
pesquisador.
Capítulo 26 J. Ki-Zerbo (Alto Volta).
Capítulo 27 R. Portères (França). Dedicou grande parte de sua vida à pesquisa
botânica na África; ex-professor do Museu Nacional de História
Natural de Paris; falecido.
858
Metodologia e pré -história da África
J. Barrau (França). Autor de diversos trabalhos sobre as plantas tropicais;
Subdiretor do Laboratório de Etnobotânica e de Etnozoologia (Paris).
Capitulo 28 J. Vercoutter (França). Especialista em História Antiga; professor de
História; Diretor do Institut Français d Archéologie Orientale du
Caire.
Conclusão J. Ki-Zerbo (Alto Volta). Vide Introdução.
859
Abreviações e listas de periódicos
A A American Anthropologist, Washington.
A A R S C Annales de l’Académie Royale des Sciences Coloniales, Bruxelas.
A A T A Art Archaeological and Technical Abstracts, Nova Iorque.
A C P M — Annals of the Cape Provincial Museums, Grahamstown.
Actas V Congr. P P E C Actas dei V Congresso Panafricano de Prehistoria y de
Estudio dei Cuaternario, Tenerife, 1966.
Actes I Coll. Intern. Archéol. Afr. Actes du I
er
Colloque International d’Archéologie
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Actes 46 Congr. A F AS Actes du 46
e
Congrès de l’Association Française pour
l’Avancement des Sciences, Montpellier, 1922.
Actes XV Congr. I A A P Actes du Congrès International d’Anthropologie et
d’Archéologie Préhistorique, Paris, 1931.
Actes II Congr. P P E Q — Actes de la Deuxième Session du Congrès Panafricain de
Préhistoire et de l’Étude du Quaternaire, Argel, ser-out. 1952.
Actes IV Congr. P P E Q Actes du IV
e
Congrès Panafricain de Préhistoire et de
l’Etude du Quaternaire, Léopoldville, 1959, Tervuren, 1962, AMRAC 40.
Abreviações e
listas de periódicos
860
Metodologia e pré -história da África
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e
Congrès Panafricain de Préhistoire et de
l’Étude du Quaternaire, Adis Abeba, 1971.
Actes III Congr. U I S P P Actes du Troisiême Congrès de l’Union Internationale
des Sciences Préhistoriques et Protohistoriques, Zurique, 1950.
Actes VI Congr. U I S P P Actes du VI
e
Congrès de l’Union Internationale des
Sciences Préhistoriques et Protohistoriques, Roma, 1962.
Actes IX Congr. U I S P P Actes du IX
e
Congrès de L’Union Internationale des
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861
Abreviações e listas de periódicos
B A U G S Bulletin of the All Union Geographical Society.
B C E H S Bulletin du Comité d’Études Historiques et Scientifiques de l’Afrique
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B F A Bulletin of the Faculty of Arts, Cairo.
B G H D Bulletin de Géographie Historique et Descriptive, Comité des Travaux
Historiques, Paris.
B G S A — Bulletin of the Geological Society of America, Nova Iorque.
B I E Bulletin de l’Institut d’Egypte, Cairo.
B I E G T — Bulletin dlnformation et de Liaison des Instituts d’Ethno-sociologie et
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B I F A N Bulletin de l’Institut Français (agora Fondamental) d’Afrique Noire,
Dacar.
B I F A O Bulletin de l’Institut Français d’Archéologie Orientale, Cairo.
B I R S C Bulletin de I’Institut de Recherches Scientifiques du Congo.
B J B E — Bulletin du Jardin Botanique de l’État, Bruxelas.
B M L Bowman Memorial Lectures, The American Geographical Society, Nova
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B N H S N Bulletin of News of the Historical Society of Nigeria, Ibadan.
B R AS Bulletin of the Royal Asiatic Society.
B S A Bulletin de la Société d’Anthropologie de Paris, Paris.
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Londres.
B S E R P Bulletin de la Société d’Études et de Recherches Préhistoriques, Les
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B S O A S Bulletin of the School of Oriental and African Studies, Londres.
B S G C — Bulletin de la Société de Géographie Commerciale, Bordeaux, França.
B S G F — Bulletin de la Société Géologique de France, Paris.
B S H N A N Bulletin de la Société d’Histoire Naturelle d’Afrique du Nord.
B S L Bulletin de la Société de Linguistique, Paris.
B S P F — Bulletin de la Société Préhistorique Française, Paris.
B S P M — Bulletin de la Société Préhistorique du Maroc, Rabat.
B S P P G Bulletin de la Société Préhistorique et Protohistorique Gabonaise,
Libreville.
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J E A S C Journal of the East African Swahili Committee, Kampala.
J H S Journal Historique du Sokoto.
J H S N — Journal of the Historical Society of Nigeria, Ibadan.
J M A S — Journal of Modern African Studies, CUP, Londres.
J N S Journal of Negro Studies, Washington.
J R A I — Journal of the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland,
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J R AS Journal of the Royal Asiatic Society of Great Britain and Ireland, Londres.
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Metodologia e pré -história da África
Proc. IX Congr. I N Q U A Proceedings of the IX
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International Association
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é citado.
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Índice Remissivo
Índice Remissivo
África meridional (aus-
tral) - 143, 307, 309,
315, 346, 350, 355-56,
370, 411, 423-24, 476,
551, 560, 568, 588-89,
600, 625, 644, 744,
748, 756, 767, 769,
840-41.
África central - 64, 70, 82,
254-55, 309, 330, 380,
382, 396, 406, 411,
532, 547, 549, 565,
571, 586, 591, 606,
615-36, 674, 717, 750,
757, 769, 790, 809.
África equatorial - 377,
404, 409, 414, 582,
596-97, 803, 819.
África do nordeste - 310,
350, 416, 451, 544, 707,
803-4, 808, 843. 721.
África do noroeste - 356,
413, 416, 507, 564,
694, 701.
África do norte - 1, 42,
47, 49, 50, 52-3, 90,
98, 108-13, 120, 256,
298, 301, 310, 327-
28, 335, 350-51, 376,
378-79, 444, 481, 501,
522, 583, 610, 637-
55, 676, 712, 773-75,
787, 799, 809, 832,
840, 848.
África ocidental - 2, 5,
6, 17, 47, 51, 87, 101,
120, 124, 128, 130,
131, 133, 139, 155,
170, 190, 210, 229,
280, 301, 305, 312,
320, 321, 324, 329-30,
340, 346, 350-51, 354-
56, 361, 364, 368-9,
374-5, 377-79, 382,
496, 549, 555, 579,
685, 714, 792.
África oriental - 2, 13,
19, 87, 118, 120, 131,
160, 165, 298, 301,
309-10, 312, 315, 335,
340, 346, 348, 350-51,
364, 369, 377-78, 382,
404-8, 413, 438-9, 441,
444, 452, 456, 472,
478, 482, 494, 497,
501-2, 506-7, 511-50,
551-55, 557-61, 569,
581-2, 587, 593, 625,
637-8, 542, 687-89,
758, 774, 792, 795,
800, 834, 837.
África subequatorial - 404,
612.
928
Metodologia e pré -história da África
África subsaariana - 12-4,
19, 51, 581, 693, 698-
9, 707-8, 762, 792.
África do sudeste - 114,
133, 307, 330, 354,
470, 571, 597, 774,
782, 788, 795.
África tropical - 2, 4-7, 45,
52-3, 106, 112, 120,
349, 351, 365, 376,
448, 612, 767, 776,
789, 797.
Agricultura - 26, 44, 63-
4, 123, 192, 266, 297,
349, 363, 373, 381,
383, 472, 486, 520,
528-29, 545=58, 588-
89, 634, 652, 678-79,
682, 701, 707-8, 714,
726, 768, 781-8, 783,
786-89, 792-93, 799-
802, 822-24.
Animismo - 32, 210, 398.
Antropologia - 10, 46-7,
49, 265-66, 307, 323,
391, 395.
Arqueologia - 12-3, 21, 45,
52, 55, 57, 59, 60, 63,
65-6, 70, 89, 161, 165-
66, 213-46, 389-90,
495, 528, 617, 635, 687,
780, 802, 816, 828.
Arte - 146, 150, 169, 199,
208, 218, 224, 261,
279, 390-91, 397, 473,
482, 517, 543, 588,
592, 611-12, 649, 653,
656, 668, 677, 713,
738, 743-80, 812-13,
817, 841.
Australopithecus - 298, 448,
456, 458, 460-4, 467,
469-70, 476, 483, 487,
498, 500-1, 503-6, 561,
623,834.
Brasil - 51-2, 121, 292.
Chefes, cheas - 24-6,
28-9, 30, 32, 47, 63,
68, 70, 73-4, 116, 131,
145, 150, 153, 182,
190-1, 195, 206, 304,
391, 393, 735, 804,
814, 816-17, 825, 828,
841, 846-7.
Colonial (colonialismo) -
1, 11-2, 15, 17, 20, 21,
28-9, 30, 37-8, 41-8,
51-2, 54, 56, 59, 74,
115, 130, 132-33, 135,
160, 163, 176, 183,
211, 261, 290, 361,
384, 658, 849-50.
Cronologia - 65, 123, 154,
156-7, 159-60, 165-66,
203, 231-32, 234, 239,
253, 299, 388-89, 393,
402, 417, 420-21, 424-
25, 435-37, 439, 440-
42, 444, 472, 476, 480,
514, 522, 524, 552,
555, 565, 595, 604,
617, 627, 637-38, 644,
646, 658, 660, 662-64,
694, 725, 745-6.
Escrita (fontes escritas)
- 1, 4-6, 10, 12, 15,
17, 21, 35, 41-2, 64,
66-9, 77-101, 105-37,
139-41, 146, 149, 159,
161-2, 166-8, 208, 219,
222, 252, 262, 265-70,
274, 279-81, 327-28,
335, 383, 387-88, 710,
738, 762, 780, 806,
813-14, 816, 846.
Etnias - 73, 173, 192, 203,
206-7, 252-5, 263, 265,
283-4, 392, 645, 652-3,
657, 662, 672, 674-7,
775-6, 804-6.
Etnocentrismo - 40, 57,
263, 781.
Evolução (evolucionismo)
- 283, 388.
Genética - 249, 257, 283,
285, 287-88, 290-91,
293, 303, 310, 315,
317, 319, 325, 343,
497, 553.
Geograa - 7, 60-2, 79,
86, 89, 93, 96, 100-1,
120, 122, 149, 155,
165, 184, 258, 260,
340, 345-65, 367-84.
Geologia - 60, 390, 438,
495, 520.
Griots - 29, 72, 141, 150,
169, 176, 178, 191,
193-99, 202, 204, 267.
Historiograa da África
- 1-22, 43-4, 105-7,
112, 117, 123, 127,
129.
Hominídeos - 60-1, 284,
417, 441-42, 444, 448-
49, 451, 456, 460, 462,
470, 474, 488, 491-5,
498, 500-1, 507, 511,
530, 532, 551-53, 555,
557-64, 570, 581-82,
929
Índice Remissivo
589, 637-38, 687-88,
834-35, 839-41.
Hominização - 286, 447-
70, 471-80, 715, 833,
835, 851.
Homo erectus - 287-88,
462, 466-69, 487-88,
499, 501-2, 507, 532,
534, 564, 567, 581,
624, 644, 665, 688,
694.
Homo habilis - 288, 462-
64, 467-69, 484, 499,
500, 502, 504, 532,
564, 623, 663-64, 688,
834, 837, 851.
Homo sapiens - 60, 287,
298, 470-72, 484, 496-
98, 500, 502, 507, 522,
534, 536, 538, 557,
561-62, 581, 627, 648,
774, 838-39.
Homo sapiens sapiens - 496,
552,536, 581, 583, 834.
Índico, oceano - 2, 118-19,
328, 350-51, 354-56,
408, 744, 795.
Interdisciplinaridade -
387, 390, 396.
línguas - 5-6, 11, 13-4,
16-7, 18-20, 26, 42,
46, 49-51, 53-4, 66-7,
77-8, 82-3, 99, 103,
106-8, 111-14, 116-19,
120-21, 124-57, 129-
32, 137, 142-3, 162,
164, 174, 178, 180-4,
195-7, 203-4, 206,
247-49, 250-67, 281,
291, 295-6, 300-1, 305,
307, 309-10, 312, 314-
16, 317-36, 337-44,
372, 392-93, 398, 543,
546, 549, 588-89, 634,
759, 838.
Linguística - 14-6, 21, 45,
60, 66, 69, 70, 73, 136,
162, 166, 247-81, 291,
295-316, 317-336,
337-44, 389, 392-93,
549.
Metodologia - 20, 59, 66,
75, 139-66, 262-63,
387.
Migrações - 155-56, 256,
290, 292, 295-316,
349, 374, 381, 514,
546, 579, 581, 591-2,
612, 772, 783, 786,
793, 843.
Mulheres - 15, 25, 29-30,
32, 73, 150, 191, 203,
307, 311, 393, 531,
559, 653, 694, 730,
753, 763, 768-69, 771,
776-78, 813, 840-41,
844.
Música - 193, 195, 199-
200, 207, 300, 392,
583, 841.
Níger - 15, 20, 27, 29-30,
32, 70, 78, 82, 93, 107-
8, 119, 128, 180, 192,
196, 206, 210, 250,
260, 263, 303, 306,
314, 326, 329-33, 336,
341, 350-51, 358-61,
383, 425, 430, 432,
547, 549, 661, 664,
670, 672, 681, 687,
691-2, 697, 701, 707,
712-13, 727, 734, 744,
749, 767, 790, 795,
797, 803, 837, 849.
Nilo - 53, 64-5, 67, 69,
81-2, 112, 254, 258,
280, 292, 299, 303,
310, 316, 321, 333,
358, 360, 372, 376-77,
380, 382-83, 396, 405,
407-8, 410-11, 413-15,
444, 544-45, 547-48,
672, 683, 707, 715-42,
767, 773-4, 787, 799,
803-11, 816-25, 828-
32, 837, 849..
Origem africana da huma-
nidade - 61, 286-9, 293,
296-97, 470-72, 491,
511-13, 522, 787, 833.
Paleontologia - 60-1, 473,
495, 504, 638-40, 644,
689, 780.
“Raças” (teorias raciais)
- 10, 14, 28, 41, 200,
262-63, 283-92, 296,
298, 301, 303, 307,
310, 315, 321-2, 393,
496, 525, 536, 582,
703, 706, 727, 741,
775-77, 840-41.
Racismo - 40-1.
República Centro-Africana
- 203, 255, 305, 332,
593-5, 597-8, 600-1,
603-4, 606, 609-10,
615, 620-23, 630, 633.
Tradição oral - 4, 21, 45,
60, 63, 65-6, 7-2, 75,
112, 122, 124, 126,
930
Metodologia e pré -história da África
129, 139-66, 167-9,
174, 185, 189, 205-7,
209, 211, 267-68, 389,
391-2, 513, 780.
Tráco de escravos - 7-9,
28, 40, 121, 130, 375,
384, 848.
Utensílios - 192, 297-8,
369, 371-2, 374, 398,
401, 405, 412, 414-5,
468-76, 506, 511-18,
522, 524-6, 529-44,
558-89, 593-7, 599-
609, 618, 623-27,
629-33, 642, 646, 652,
664-5, 678, 685, 689,
694, 695-99, 716-9,
723-30, 736, 739-
43, 768, 811-2, 823,
834-7.
Durante muito tempo, mitos e preconceitos de toda
espécie ocultaram ao mundo a verdadeira história da
África. As sociedades africanas eram vistas como
sociedades que não podiam ter história. Apesar dos
importantes trabalhos realizados desde as primeiras
décadas do século XX por pioneiros como Leo Frobenius,
Maurice Delafosse e Arturo Labriola, um grande
número de estudiosos não africanos, presos a certos
postulados, afirmava que essas sociedades não podiam
ser objeto de um estudo científico, devido, sobretudo,
à ausência de fontes e de documentos escritos.
De fato, havia uma recusa a considerar o povo africano
como criador de culturas originais que floresceram e se
perpetuaram ao longo dos séculos por caminhos
próprios, as quais os historiadores, a menos que
abandonem certos preconceitos e renovem seus
métodos de abordagem, não podem apreender.
A situação evoluiu muito a partir do fim da Segunda
Guerra Mundial e, em particular, desde que os países
africanos, tendo conquistado sua independência,
começaram a participar ativamente da vida da
comunidade internacional e dos intercâmbios que ela
implica. Um número crescente de historiadores tem se
empenhado em abordar o estudo da África com maior
rigor, objetividade e imparcialidade, utilizando com
as devidas precauções fontes africanas originais.
No exercício de seu direito à iniciativa histórica,
os próprios africanos sentiram profundamente a
necessidade de restabelecer em bases sólidas a
historicidade de suas sociedades.
Os especialistas de vários países que trabalharam nesta
obra tiveram o cuidado de questionar as simplificações
excessivas provenientes de uma concepção linear e
restritiva da história universal e de restabelecer a
verdade dos fatos sempre que necessário e possível.
Esforçaram-se por resgatar os dados históricos que
melhor permitissem acompanhar a evolução dos
diferentes povos africanos em seus contextos
socioculturais específicos.
Esta Coleção traz à luz tanto a unidade histórica da
África quanto suas relações com os outros continentes,
sobretudo as Américas e o Caribe. Durante muito
tempo, as manifestações de criatividade dos descendentes
de africanos nas Américas foram isoladas por certos
historiadores num agregado heteróclito de africanismos.
Desnecessário dizer que tal não é a atitude dos autores
desta obra. Aqui, a resistência dos escravos deportados
para as Américas, a “clandestinidade” política e cultural,
a participação constante e maciça dos descendentes de
africanos nas primeiras lutas pela independência, assim
como nos movimentos de libertação nacional, são
entendidas em sua real significação: foram vigorosas
afirmações de identidade que contribuíram para forjar o
conceito universal de Humanidade.
Outro aspecto ressaltado nesta obra são as relações da
África com o sul da Ásia através do oceano Índico,
assim como as contribuições africanas a outras
civilizações por um processo de trocas mútuas.
Avaliando o atual estágio de nossos conhecimentos sobre
a África, propondo diferentes pontos de vista sobre as
culturas africanas e oferecendo uma nova leitura da história,
a História Geral da África tem a indiscutível vantagem
de mostrar tanto a luz quanto a sombra, sem dissimular as
divergências de opinião que existem entre os estudiosos.
Nesse contexto, é de suma importância a publicação
dos oito volumes da História Geral da África que ora se
apresenta em sua atual versão em português como fruto
da parceria entre a Representação da UNESCO no Brasil,
a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade do Ministério da Educação do Brasil (Secad/
MEC) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
UNESCO HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA VOLUMES I-VIII
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