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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Marguerite Duras: do romance autobiográfico à autoficção
ANDREA DE CASTRO MARTINS BAHIENSE
NITERÓI – 2010
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ANDREA DE CASTRO MARTINS BAHIENSE
Marguerite Duras: do romance autobiográfico à autoficção
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
em Letras, Área de concentração Estudos de
Literatura, Subárea de Literaturas Francófonas, da
Universidade Federal Fluminense, como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre.
Orientadora: Professora Doutora Eurídice
Figueiredo.
NITERÓI – 2010
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BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Professora Doutora Eurídice Figueiredo (orientadora)
Universidade Federal Fluminense
_______________________________________________________________
Professora Doutora Paula Glenadel
Universidade Federal Fluminense
_______________________________________________________________
Professor Doutor André Soares Vieira
Universidade Federal de Santa Maria
_______________________________________________________________
Professora Doutora Susana Kampff Lages
Universidade Federal Fluminense
_______________________________________________________________
Professora Doutora Jovita Maria Gerheim Noronha
Universidade Federal de Juiz de Fora
Aprovada em
4
Agradecimentos
À Professora Eurídice Figueiredo, por tudo que tem me ensinado, pela paciência e
generosidade com que me orientou antes e durante o mestrado.
À Professora Maria Bernadette Porto por ter me incentivado como ninguém a
fazer o mestrado.
Às Professoras Susana Lages e Vera Soares cujos cursos, dicas e comentários
foram primordiais para este trabalho.
Ao Daniel, por ter me apoiado sempre.
A Marília, grande companheira.
5
“Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem
que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo
como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois “fatos” nada são além
de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a
escavação. Ou seja, as imagens que, desprendidas de todas as conexões mais primitivas,
ficam como preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio, igual a
torsos na galeria do colecionador” (Walter Benjamin)
6
Resumo
O objetivo deste trabalho é estudar a autobiografia em suas nuanças e
ambiguidades na obra da escritora Marguerite Duras, em especial os livros Barragem
contra o Pacífico (1950) e O amante (1984). Escritos e publicados em momentos
bastante diferentes de sua carreira, eles relatam histórias que se passam no mesmo
período, o de sua adolescência na Indochina. Para analisar os textos de uma perspectiva
da autobiografia, fazemos uma discussão sobre as diferenças existentes entre romance
autobiográfico e autoficção. Exploramos também os conceitos de identidade e de
alteridade já que, além de serem primordiais para o tema, não podem ser dissociados um
do outro. A busca por um contato com o outro é relacionada ao erotismo na obra de
Duras pois, de acordo com as ideias de Georges Bataille, o jogo erótico é uma forma de
ultrapassar o abismo que existe entre os seres humanos. Duras escava suas memórias
em uma obra essencialmente literária, mas extremamente influenciada pelo cinema, o
que contribui para a fragmentação da linguagem e remete à instabilidade e à fragilidade
de toda identidade em processo de construção.
7
Résumé
L’objectif de ce travail est d’étudier l’autobiographie avec ses nuances et ses
ambiguités dans l’oeuvre de Marguerite Duras, notamment les livres Un barrage contre
le Pacifique (1950) et L’amant (1984). Écrits et publiés dans des moments assez
différents de sa carrière, ils racontent des histoires qui se passent durant la même
période de son adolescence en Indochine. Pour analyser les textes par le biais de
l’autobiographie, on essaie d’établir les différences entre roman autobiographique et
autofiction. On explore aussi les concepts d’identité et d’altérité, puisqu’ils sont autant
indissociables l’un de l’autre qu’essentiels pour la compréhension du sujet en question.
La quête d’un contact avec l’autre est associée à l’érotisme dans l’oeuvre de Duras, dans
la mesure où le jeu érotique est une forme de dépasser l’abîme qui existe entre les êtres
humains, comme le considère Georges Bataille. Duras fouille dans sa mémoire afin de
réaliser une oeuvre essentiellement litéraire, mais extrêmement influencée par le
cinéma, ce qui contribue pour la fragmentation du langage et renvoie à l’instabilité et à
la fragilité de toute identité en processus de construction.
8
Sumário
Introdução....................................................................................................9
1 – A escrita de si.......................................................................................14
1.1 As formas da escrita de si................................................................................... 14
1.2 Romance autobiográfico.................................................................................... 24
1.3 O grito.................................................................................................................. 28
1.4 Autoficção............................................................................................................ 30
2 – A construção da identidade................................................................37
2.1 Identidade e alteridade....................................................................................... 37
2.2 O erotismo........................................................................................................... 41
2.3 O lugar do Outro................................................................................................ 43
2.3 A escrita como lugar da transgressão............................................................... 50
3 – Imagem e memória..............................................................................57
3.1 A origem dessa relação....................................................................................... 57
3.2 Literatura e cinema............................................................................................ 59
3.3 Lembrança e esquecimento ............................................................................... 62
3.4 A escrita imagética ............................................................................................. 66
3.5 A anti-representação .......................................................................................... 74
Conclusão...................................................................................................78
Referências.................................................................................................81
9
Introdução
A biografia e a autobiografia têm estimulado cada vez mais o interesse de críticos
literários, estudiosos em geral e até mesmo (ou principalmente) leitores “comuns”. A
prática expandiu-se de tal maneira que, hoje, não é preciso ser uma personalidade para
que a história de sua vida desperte o interesse do público. Autobiografias de escritores
já consagrados sempre foram, porém, prática comum. A novidade, desde as últimas
décadas do século passado, é uma maior valorização destas obras e a proliferação de
estudos a respeito. Além disso, percebeu-se que as biografias e as autobiografias são
uma fonte rica para o entendimento da sociedade de uma época, seus pensamentos e
seus comportamentos.
Na sua obra, Marguerite Duras sempre representou fatos que marcaram sua vida,
repetindo alguns de forma obsessiva, em diferentes versões e de diferentes formas.
Refletindo não só um mundo interior, mas também o que estava à sua volta, Duras usou
a escrita como uma forma de entendimento de si mesma e contato com o outro, como
lugar de transgressão das regras vigentes e de contestação de temas tabus para sua
época.
10
Nascida em abril de 1914 na Indochina francesa
1
com o nome de Marguerite
Donnadieu, fruto do casamento dos franceses Henri Donnadieu, professor de
matemática, e Marie Legrand, professora primária, a escritora só vai para França aos
dezoito anos de idade. Sua mãe tem ainda dois filhos mais velhos do que ela, Paulo e
Pierre, mas seu pai já tinha dois meninos, Jean e Jacques, do seu primeiro casamento,
que sempre moraram na França. Marguerite mal conheceu o pai, que faleceu enquanto
ela era criança, e nunca conheceu os meio-irmãos. A paisagem da Indochina, as
histórias de sua mãe e de seus irmãos, sua relação com a família, sua paixão pela escrita,
além de outras experiências como sua ida à Índia são uma constante em sua obra. Seu
maior reconhecimento de público e crítica veio em 1984 com a publicação de L’amant
(O amante), fenômeno de edição e ganhador do prêmio Goncourt de literatura francesa.
Marguerite Duras ainda escreve uma dezena de livros, que vêm completar sua já extensa
obra, antes de morrer no dia 3 de março de 1996, em Paris.
Neste trabalho, citamos diversos livros, filmes, peças de teatro e cine-romances da
autora, mas analisamos principalmente L’amant (O amante), de 1984, e Un barage
contre le Pacifique (Barragem contra o Pacífico)
2
, de 1950. A escolha de Barragem
deve-se por este ser um livro considerado embrionário de grande parte da obra de

1
A Indochina francesa resulta de uma reorganização das colônias do extremo-oriente ocorrida por causa
do enfraquecimento do Império chinês a partir da primeira guerra do Ópio (1839-1841). A conquista da
região levou quase meio século (1858-1897), culminando com o domínio de cinco países: Camboja, Laos,
Annam, Cochinchina e Tonkin. Hoje Annam, Cochinchina e Tonkin formam a República socialista do
Vietnã.
Zona de grande apelo migratório, além de uma das grandes fronteiras históricas do mundo ao longo da
qual se estabeleceram muitos contatos e trocas culturais, inclusive de indianos e chineses, a Indochina
chegou a ser nomeada por alguns geógrafos como Índia-exterior, por causa da sua localização, mas
acabou sendo chamada pelos franceses de Indochina, por ter estado algumas vezes submetida ao império
Chinês e por ter a maior parte de seus povos semelhança com os chineses, seja pela fisionomia, o
tamanho e a pele, seja pelo comportamento, a religião e a língua.
Embora tenha sido vista por alguns, a exemplo do político Jean Léon Jaurès, como uma forma de
promover o progresso em áreas menos favorecidas, de acordo com o espírito francês de humanidade e de
democracia, a colonização na Indochina foi antes de tudo uma empresa de dominação política e a origem
de um fluxo constante de lucros, rendas e benefícios para o povo francês. A estrutura colonial funcionou
plenamente de 1897 até 9 de março de 1945, quando o exército japonês provocou a derrota da França na
região e outorgou a independência aos reinos de Annam, Tonkin, Camboja e Laos. No mesmo ano, depois
da capitulação do Japão na segunda guerra mundial, o Vietminh (partido comunista), liderado por Ho Chi
Minh, intitula-se República democrática do Vietnã e promete não mais se submeter aos franceses. A
guerra estende-se, porém, até 1954 (batalha de Dien Bien Phu), quando, com a ajuda dos chineses, os
vietnamitas derrotam os franceses, que, apoiados pelos Estados Unidos, estavam também preocupados
com a expansão do comunismo na região.
Com a assinatura da paz de Genebra, em 21 de julho de 1954, o Vietnã é dividido em duas zonas: Vietnã
do Norte, comunista, e Vietnã do Sul, capitalista. Camboja e Laos já eram independentes, mas Laos
também foi dividido politicamente. A unificação do Vietnã em República Socialista do Vietnã só
acontece em 1976.
Para maiores detalhes, ver BROCHEUX e HÉMERY (2001).
2
Para facilitar a leitura, os textos de Marguerite Duras são citados a partir de então somente em
Português, apesar de termos trabalhado com as versões originais em francês.
11
Duras
3
. Já O amante mostra todo o amadurecimento literário da autora depois de mais
de trinta anos de experiência escrevendo romances, peças de teatro, roteiros
cinematográficos e dirigindo filmes e peças. É interessante perceber que indícios da
estrutura narrativa que encontramos em O amante já estão presentes em Barragem.
Além disso, são obras que misturam autobiografia e ficção. Aliás, em ambos os textos é
contada a história do romance de uma menina francesa pobre com um homem rico, mas
dotado de alguma “estranheza” que impossibilita a relação dos dois.
4
Este estudo está dividido em três capítulos. No capítulo 1, estudamos as nuanças
da autobiografia ao fazer uma introdução à teoria das formas de escrita de si. Esta
apresentação nos auxilia no entendimento e na identificação dos textos de Marguerite
Duras ora classificados por nós como romance autobiográfico, ora como autoficção.
O avanço deste estudo nos conduz à percepção de que toda escrita de si deflagra
(ou é deflagrada por) um exame de autoconhecimento e de que a busca por uma
identidade rígida e acabada é infrutífera, já que a identidade está sempre “em
construção”. O que Duras mostra ao longo de sua obra é uma consciência deste
inacabamento e da incompatibilidade entre o sujeito real e o sujeito narrado. Em Duras,
essa fragilidade do indivíduo se manifesta não só na composição de suas histórias e de
seus personagens, mas também na sua escrita cada vez mais “livre”, desprendida das
normas de sintaxe e de pontuação tradicionais, seguindo um movimento e um ritmo que
lhe são bem particulares.
Um exemplo dessa escrita “corrente” de Duras é o texto de O amante.
Privilegiando nitidamente o movimento e o ritmo em detrimento da sintaxe e da
pontuação, Duras escreve esta autoficção que combina sinais de escrita imaginária com
os de escrita referencial, mistura tempos e pronomes em uma narrativa fragmentada que
representa a instabilidade do sujeito.
No capítulo 2, seguimos com a discussão sobre identidade, já que se trata, a nosso
ver, da principal questão no estudo de autobiografias. Os conceitos de identidade e
alteridade impõem-se, então, ao se colocar o dilema do homem atual segundo Édouard
Glissant (1996): Como abrir-se ao outro sem perder a si mesmo?
Estreitamente relacionado como o par identidade/alteridade está o par
continuidade/descontinuidade, pois o ser descontínuo está sempre buscando a

3
Ver Borgamano (1985a e 1985b).
4
Esta história é repetida também nos “Cadernos” encontrados nos arquivos de Duras, textos considerados
autobiográficos. (DURAS, 2006). A “estranheza” deste homem será tratada no capítulo 2 deste trabalho.
12
continuidade, isto é, o contato com o outro, a quebra do abismo que separa as
individualidades tornando o homem um ser só.
É neste sentido, na tentativa de compreensão de si e do outro, na compreensão de
si através do outro e do outro a partir da inspeção de si mesma, que Duras transgride
muitas vezes a ordem regular das formas de vida social, explorando o erotismo em seus
textos. Seguindo as ideias de Bataille (2004), relacionamos o erotismo em Duras com
sua vontade de romper “a ordem descontínua das individualidades definidas que
somos”, isto é, buscar a continuidade ou a abertura ao outro.
No capítulo 3, a ênfase é dada na forma de representação usada por Duras na
escrita de suas memórias. Pretendemos mostrar como em sua obra a imagem é quase tão
importante quanto a palavra. É neste esforço que buscamos, antes de tudo, a origem da
relação entre imagem e memória e seguimos as pistas de Seligmann-Silva (2006), que
encontrou em Aristóteles e na “arte da memória”
5
, utilizada na Antiguidade para
memorização de discursos, as origens desta relação. O princípio fundamental da arte da
memória baseava-se na associação de fatos a imagens que eram guardadas em lugares
imaginários na memória. Narrativas eram, então, transformadas em imagens e depois
transformadas de novo em narrativas, num processo de escrita e leitura imaginárias.
Hoje, a definição de memória não é mais associada à ideia de imagem, mas para
Aristóteles a memória era um conjunto de imagens e a imaginação responsável por
traduzir os dados captados pelos nossos sentidos em imagens e também por criar novas
imagens. Partindo de Aristóteles, Manguel (2009) conclui que somos feitos de palavras
e imagens, pois esta é a matéria do nosso pensamento.
Entendemos que esta máxima rege a obra de Marguerite Duras. Através de filmes
impregnados de linguagem literária e livros impregnados de imagens cinematográficas,
Duras coloca em diálogo essas duas artes a ponto de seus papéis serem quase invertidos.
Na literatura, um dos efeitos da utilização de imagens em seus textos é a sua
fragmentação, tornando-os frágeis e inacabados como o sujeito representado por Duras.
A falha e a incompletude são, aliás, parte integrante de sua obra, pois, para a
autora, é preciso que o texto “respire”, que o leitor/expectador tenha espaço para pensar,
participar. O espaço pode aparecer às vezes fisicamente, como o branco do papel entre
trechos de escrita negra. Ele pode significar pausa, momentos de silêncio, ritmo ou a
falha da memória, sempre marcada por traumas e cicatrizes. O espaço pode estar na

5
Essa origem também é comentada por Ricoeur (2008) e Dubois (2009).
13
fragilidade de seus personagens, que apresentam sempre uma abertura, uma
disponibilidade, para que o desejo circule, atravesse-os.
Em O amante podemos observar o efeito dos espaços em brancos deixados como
momentos de pausa, que ajudam a dar ritmo ao texto. Neste livro, Duras escolheu
principalmente a fotografia para ajudá-la a contar suas memórias. Trata-se de um texto
imagético em que o leitor é convidado a “ver”, “olhar”, acompanhar de perto as cenas
descritas pela narradora. A tradução de imagens em narrativas e a criação de “novas”
imagens nos remete à “arte da memória” e às ideias de Aristóteles.
A sensação de falha e incompletude é exacerbada com a introdução de traços
auto-reflexivos em seus textos. Deixando transparecer o processo de criação, expondo
não só a escrita mas a si mesma, Duras adverte o leitor que se trata de literatura e coloca
em questão a própria capacidade de representação da obra de arte.
14
1 – A escrita de si
1.1 As formas da escrita de si
Autobiografia, memórias, romance pessoal, romance autobiográfico, autoficção:
várias são as denominações para o tipo de escrita em que o autor projeta (de diferentes
formas e com diferentes doses de imaginação), sua própria memória, sua própria
história. As nuanças entre uma denominação e outra e suas definições vêm sendo
tratadas por diversos estudiosos, como Philippe Lejeune (1971, 1975, 2006), Philippe
Gasparini (2004, 2008), Philippe Vilain (2005) e Vincent Colonna (2004). O ensaio de
Lejeune chamado O pacto autobiográfico, lançado em 1975, é usado até hoje como
referência básica nas discussões sobre autobiografia e outros tipos de escrita de si, por
ter sido o primeiro a definir o termo:
(...) a definição de autobiografia seria:
DEFINIÇÃO: narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua
própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história
de sua personalidade (LEJEUNE, 2008, p. 14).
Neste trabalho de Lejeune são diferenciados da “autobiografia clássica”, por sua
não adequação à definição acima, os seguintes gêneros: as memórias, a biografia, o
romance pessoal, o poema autobiográfico, o diário, o auto-retrato e o ensaio. As
memórias, por não darem ênfase à vida individual do narrador, à história de sua
personalidade; a biografia, por não haver nela identidade entre narrador e personagem
principal; no romance pessoal, o que falta é a identidade entre autor e narrador; já o
poema autobiográfico peca por sua forma; o diário, por não apresentar uma visão
retrospectiva da história; finalmente, o auto-retrato e o ensaio não oferecem nem a
forma narrativa nem a perspectiva retrospectiva.
Mais tarde, em O pacto autobiográfico (bis), o próprio Lejeune admite que esta
forma de apresentação da autobiografia é limitadora e exclusiva:
Para mim, a definição seria um ponto de partida para fazer uma desconstrução
analítica dos fatores que entram na percepção do gênero. Mas, isolada de seu
contexto, citada como uma “autoridade”, ela poderia parecer sectária e dogmática,
leito de Procusto derrisório, fórmula falsamente mágica que bloqueava a reflexão ao
invés de estimulá-la. (...) Meu ponto de partida tinha-se transformado em ponto de
chegada (LEJEUNE, 2008, p. 50).
15
De qualquer forma, o fato é que esta fórmula é utilizada por muitos teóricos, ao
lado da definição do pacto autobiográfico, como ponto de partida para reflexões sobre a
escrita de si. O pacto autobiográfico seria um “contrato” entre o autobiógrafo e o leitor,
que concordam em tratar o texto em questão como uma autobiografia, isto é, como uma
história real. É como um “pacto de verdade” em que o autor declara sua intenção de
dizer a verdade sobre ele mesmo e o leitor dispõe-se a ler o texto como tal. Na
realidade, o pacto não passa de uma proposta feita pelo autor que pode ser aceita ou não
pelo leitor. Cito Lejeune:
O pacto autobiográfico é o engajamento do autor em contar diretamente sua vida
(uma parte, ou um aspecto de sua vida) em um espírito de verdade. (...) / O
autobiógrafo promete que o que ele vai contar é verdadeiro, ou pelo menos é o que
ele acredita. Ele se comporta como um historiador ou um jornalista, com a diferença
que o sujeito sobre quem ele promete dar uma informação verdadeira é ele mesmo.
6
7
(LEJEUNE, 2005, p. 31)
Percebemos que o mais importante para Lejeune é o compromisso do autor com a
verdade, sem o qual a autobiografia não existiria. As regras do pacto devem ser
explicitadas na parte inicial do texto lido, como capa, prefácio ou início da narrativa.
Assim, o pacto pode ser fundado na etiquetagem do livro como autobiografia (com a
indicação na capa) e, principalmente, na identidade onomástica do autor, narrador e
personagem principal.
Porém, se não houver indicação clara na capa ou se o personagem de uma
narrativa autodiegética em que o autor, declarado explicitamente idêntico ao narrador,
não tem nome, o pacto pode estar presente no título ou no subtítulo, na simples ausência
da menção de romance, assim como numa declaração do autor no preâmbulo ou na
quarta capa. O exemplo é do próprio Lejeune:
Exemplo: Histoire de mes idées [História de minhas ideias], de Edgar Quinet; o
pacto, incluído no título, é explicitado em um longo prefácio, assinado por Edgar
Quinet. Ao longo da narrativa, o nome não aparecerá nem uma só vez, mas, pelo
pacto, “eu” remeterá a Quinet. (LEJEUNE, 2008, p. 30/31)

6
As citações de textos em francês são traduzidas por mim, sendo o texto original colocado em nota, a
exemplo deste caso.
7
Le pacte autobiographique est l’engagement que prend un auteur de raconter directement sa vie (ou une
partie, ou un aspect de sa vie) dans un esprit de vérité. (...) / L’autobiographe, lui, vous promet que ce
qu’il va vous dire est vrai, ou du moins est ce qu’il croit vrai. Il se comporte comme un historien ou un
journaliste, avec la différence que le sujet sur lequel il promet de donner une information vraie, c’est lui-
même.
16
Neste caso, mesmo sem haver a identificação onomástica entre autor e herói da
narrativa, o pacto é firmado através do título e do prefácio. A consequência deste
contrato é um comportamento diferente do leitor, já que, segundo Lejeune, não se lê
uma autobiografia da mesma maneira que um romance. Na autobiografia, o autor deseja
que o leitor acredite nele, ele quer obter a sua estima (a sua admiração ou até mesmo o
seu amor), enquanto que no romance o leitor pode reagir livremente ao texto, à história
8
(LEJEUNE, 2005, p. 32).
Mas que autor não quer a estima de seus leitores? E que leitor não pode “reagir
livremente” ao texto que lhe é apresentado? Entendemos que a decisão de ler o texto
como uma história real ou não, isto é, de aceitar o pacto de verdade, foge do controle do
autor que, mesmo impregnando o livro com indícios de referencialidade, pode deparar-
se com um leitor incrédulo ou simplesmente mais interessado em ler o texto como uma
ficção.
Partindo da definição de Lejeune para autobiografia, Philippe Gasparini
(GASPARINI, 2004, p. 17-45), preocupou-se em distinguir e definir denominações
mais próximas, e que portanto causam mais confusão, de tipos de textos que misturam
sinais de escrita imaginária com os de escrita referencial. São eles: a autobiografia
fictícia, o romance autobiográfico e a autoficção.
A autobiografia fictícia simula uma enunciação autobiográfica ao apresentar a
narrativa em primeira pessoa. Há, porém, disjunção clara da identidade do autor e do
personagem-narrador, além de quebra de regras de verossimilhança. Um exemplo é O
asno de ouro de Lucius Apuleio
9
. Esta narrativa da literatura latina do século II é
apresentada por um contador de histórias, que se propõe em um prólogo “costurar
diversas narrativas do gênero das fábulas milesianas”:
Quero aqui costurar diversas narrativas do gênero fábulas milesianas. É uma música
bastante doce, e que vai fazer cócegas agradáveis em seus ouvidos, por menos que
eles sejam benévolos, e que seu gosto não repugne as gentilezas da literatura
egípcia, das bordas do Nilo. Vocês verão meus personagens, ô maravilha ! um de

8
Dans l’autobiographie, la relation avec l’auteur est embrayée (il vous demande de le croire, il voudrait
obtenir votre estime, peut-être votre admiration ou même votre amour, votre réaction à sa personne est
sollicitée, comme par une personne réelle dans la vie courante), tandis que dans le roman elle est débrayée
(vous réagissez librement au texte, à l’histoire, vous n’êtes plus une personne que l’auteur sollicite).
9
Tradução em francês disponível em http://bcs.fltr.ucl.ac.be/Apul/meta0.html, em 31/07/2009.
A edição em português – Apuleio. O Asno de Ouro. Introdução, notas e tradução Ruth Guimarães. Rio de
Janeiro: Ediouro, 1969 – está esgotada.
17
cada vez perder e ganhar, pelo efeito de encantos opostos, a forma e a figura
humana.
10
Neste prólogo, ao dizer que se trata de “fábulas milesianas”, o autor deixa claro
que as histórias que irá contar não são nem reais nem autobiográficas, mas sim uma
mistura de narrativas imaginárias criadas por outro povo. Além disso, a
inverossimilhança é confirmada quando comenta que “encantos” vão fazer com que os
personagens percam sua forma humana. A narrativa, porém, começa e se desenvolve em
primeira pessoa, como uma autobiografia clássica: “Alguns negócios me chamavam em
Thessalie (...)”
11
.
Já no romance autobiográfico, apesar de estar na primeira pessoa, o herói pode ter
ou não o mesmo nome que o autor. Como mostra o sintagma, caracteriza-se em
primeiro lugar como romance, mas deve ser totalmente verossímil, já que qualquer traço
de inverossimilhança o levaria a ser classificado como autoficção. Enfim, apresenta
tanto sinais referenciais quanto sinais de ficcionalidade, distinguindo e aproximando ao
mesmo tempo herói e autor. Um exemplo seria o livro René, do autor cujo nome
completo é François-Auguste René de Chateaubriand. A narrativa retrospectiva em
primeira pessoa imita a forma autobiográfica. Entretanto, na época do lançamento, o
escritor assinava suas obras como “François-Auguste Chateaubriand”, omitindo o nome
René só declarado nas suas Mémoires d’Outre-Tombe (Memórias de Além-Túmulo),
que assinou como François-René Chateaubriand, mas que queria póstumas. Da mesma
forma, Marcel Proust não reconheceu À la recherche du temps perdu (Em busca do
tempo perdido) como suas memórias, mas deixou que o herói, narrador de suas próprias
experiências e da descoberta da sua vocação de escritor, fosse chamado duas vezes de
Marcel.
Gasparini explica assim:
O romance autobiográfico vai se definir por sua política ambígua de identificação
do herói com o autor: o texto sugere que os dois se confundem, sustenta a
verossimilhança deste paralelo, mas distribui igualmente indícios de ficcionalidade.
A atribuição a um romance de uma dimensão autobiográfica é então fruto de uma
hipótese hermenêutica, o resultado de um ato de leitura. Os elementos de que dispõe
o leitor para avançar esta hipótese não se situa somente no texto, mas também no

10
Je veux ici coudre ensemble divers récits du genre des fables milésiennes. C'est une assez douce
musique, et qui va chatouiller agréablement vos oreilles, pour peu qu'elles soient bénévoles, et que votre
goût ne répugne pas aux gentillesses de la littérature égyptienne, à l'esprit des bords du Nil. Vous verrez
mes personnages, ô merveille ! tour à tour perdre et reprendre, par l'effet de charmes opposés, la forme et
la figure humaine.
11
Certaines affaires m'appelaient en Thessalie (...)
18
peritexto, que cerca o texto, e no epitexto, isto é, as informações colhidas fora dele
12
(GASPARINI, 2004, p.32).
A coincidência onomástica autor-narrador-herói sendo opcional, e às vezes
camuflada, a identificação de um romance como autobiográfico vai depender de pistas
de referencialidade deixadas ao longo do texto e informações paratextuais
13
, muito
variáveis e nem sempre comprováveis, tornando-se, portanto, um processo pessoal.
Enfim, a autoficção, muito parecida com o romance autobiográfico, se diferencia
deste por seu caráter estritamente fictício, não havendo nela nenhuma ambiguidade em
relação a isto (já que autoficção significaria ficcionalização de si mesmo). Podemos
entender ainda uma autoficção como um romance, declarado como tal, em que o herói,
identificado com o autor (pelo nome ou outra forma de identificação como idade, meio
sócio-cultural, profissão, aspirações, etc.) atribui situações imaginárias a si mesmo.
Gasparini resume assim: “A autoficção (autofiction) é para o eu criador (auto) o que a
ficção-científica
(science-fiction) é para a ciência e a técnica: uma projeção de situações
imaginárias” (GASPARINI, 2004, p. 25/26). A identificação onomástica entre autor-
narrador-herói, assim como no romance autobiográfico, também seria facultativa. A
única diferença, então, entre o romance autobiográfico e a autoficção seria a sustentação
da verossimilhança
14
na primeira e a falta dela no segundo, processo também de caráter
subjetivo.

12
Le roman autobiographique va se définir par sa politique ambigüe d’identification du héros avec
l’auteur : le texte suggère de les confondre, soutient la vraissemblance de ce parallèle, mais il distribue
également des indices de fictionnalité. L’attribution à un roman d’une dimension autobiographique est
donc le fruit d’une hypothèse herméneutique, le résultat d’un acte de lecture. Les éléments dont dispose le
lecteur pour avancer cette hypothèse ne se situent pas seulement dans le texte, et dans l’épitexte, c’est-à-
dire les informations glanées par ailleurs.
13
“Em Seuils, Gérard Genette designa pelo termo “paratexto” o que está em torno do texto e o prolonga.
G. Genette distingue dois tipos de paratexto agrupando discursos e práticas heteróclitas que podem partir
do autor (paratexto autoral) ou do editor (paratexto editorial). Trata-se do paratexto situado no interior do
livro – o peritexto – (o título, os subtítulos, o índice, o posfácio, a quarta capa...) e aquele situado no
exterior do livro – o epitexto – (entrevistas dadas pelo autor antes, depois ou durante a publicação da
obra, sua correspondência, seus diários...). O peritexto não está jamais separado do texto, enquanto que o
epitexto junta-se a ele frequentemente a posteriori.”
Fabula : la recherche en littérature. Disponível em http://www.fabula.org/atelier.php?Paratexte
, acesso
em 29/12/2009.
Dans Seuils, Gérard Genette désigne par le terme "paratexte" ce qui entoure et prolonge le texte.
G. Genette distingue deux sortes de paratexte regroupant des discours et des pratiques hétéroclites
émanant de l'auteur (paratexte auctorial) ou de l'éditeur (paratexte éditorial). Il s'agit du paratexte situé à
l'intérieur du livre – le péritexte – (le titre, les sous-titres, les intertitres, les nom de l'auteur et de l'éditeur,
la date d'édition, la préface, les notes, les illustrations, la table des matières, la postface, la quatrième de
couverture...) et celui situé à l'extérieur du livre – l'épitexte – (entretiens et interviews donnés par l'auteur
avant, après ou pendant la publication de l'œuvre, sa correspondance, ses journaux intimes...). Le
péritexte n'est jamais séparé du texte alors que l'épitexte le rejoint souvent a posteriori.
14
Gasparini entende aqui verossimilhança no sentido da verossimilhança natural, isto é, do possível. É
preciso convencer o leitor de que tudo pode ter se passado logicamente da maneira como foi apresentado.
19
Gasparini entende que, com a decadência do dogmatismo estruturalista nos anos
1970-80, a reavaliação do papel do leitor na obra literária a partir de estudos como a
teoria da recepção e a publicação do trabalho de Philippe Lejeune sobre a autobiografia,
criou-se um terreno fértil para o aparecimento de obras híbridas como Fils, do ensaísta
e romancista Serge Doubrovsky. É neste livro (na quarta capa) que o termo autoficção é
definido pela primeira vez:
Autobiografia? Não. (...) Ficção de acontecimentos e de fatos estritamente reais; se
quisermos, autoficção, de ter confiado a linguagem de uma aventura à aventura da
linguagem, fora do bom comportamento e fora da sintaxe do romance, tradicional
ou novo (GASPARINI, 2004, p. 22)
15
.
Doubrovsky teria se sentido instigado por Lejeune quando este afirmou, em O
Pacto Autobiográfico, que não existia um romance declarado como tal em que o herói
tivesse o mesmo nome que o autor:
O herói de um romance declarado como tal poderia ter o mesmo nome que o autor?
Nada impediria que a coisa existisse e seria talvez uma contradição interna da qual
se poderia obter efeitos interessantes. (LEJEUNE, 2008, p. 31)
Este tipo de escrita era uma das “casas vazias” de um quadro de Lejeune em que o
romance é diferenciado da autobiografia em função do pacto (romanesco ou
autobiográfico) e da relação entre o nome do autor e do personagem principal:
Nome do personagem
Pacto
nome do autor = 0 = nome do autor
Romanesco Romance romance
= 0 Romance indeterminado autobiografia
Autobiográfico autobiografia autobiografia
Para preencher uma das casas vazias do quadro de Lejeune, Doubrovsky escreve,
então, Fils, livro que se apresenta como romance mas no qual o nome do personagem
principal é igual ao nome do autor. Como, segundo o quadro de Lejeune, seu livro não

15
Autobiographie? Non. (...) Fiction d’événements et de faits strictement réels; si l’on veut, autofiction,
d’avoir confié le langage d’une aventure à l’aventure du langage, hors sagesse et hors syntaxe du roman,
traditionnel ou nouveau.
20
estaria na categoria nem de romance nem de autobiografia, Doubrovsky denominou-o
autoficção. Lejeune comenta este episódio em seu O Pacto Autobiográfico (bis):
Esse quadro teve a sorte de cair nas mãos e inspirar um romancista (que também é
professor universitário), Serge Doubrovsky, que decidiu preencher uma das casas
vazias, combinando o pacto romanesco e o emprego do próprio nome. Seu romance
Fils (1977) se apresenta como uma “autoficção” (...) (LEJEUNE, 2008, p. 59).
Mais tarde, Doubrovsky aprofunda e delimita o conceito, afirmando que o que
conta numa autoficção é a forma de contar a história de uma vida, com suas técnicas
romanescas e efeitos de escrita, muito mais do que a narrativa histórica em si. Trata-se
de uma maneira nova de apreender os fatos e as experiências vividas, na medida em que
não se acredita mais em uma verdade única e um discurso coerente, mas em “uma
reconstrução arbitrária e literária dos fragmentos esparsos de memória” (VILAIN, 2005,
p. 212). Em uma entrevista para Philippe Vilain, ele declara: “A sintaxe tradicional não
é mais possível. Tenho muitos brancos que “esburacam” a continuidade discursiva.
passagens sem pontuação, passagens com uma pontuação falsa, deliberada ou
exagerada, que corresponde aos ritmos diferentes do pensamento”
16
(VILAIN, 2005, p.
215). Para tanto, os métodos autoficcionais podem ser os mais variados, já que os
aspectos formais passam a ser a principal ferramenta de atração do leitor.
Para Doubrovsky, é essencial a coincidência de nomes do narrador e do
personagem principal com o do autor, para que a obra seja chamada de autoficção.
Outra característica importante seria a escrita no tempo presente, tempo que tornaria o
texto muito mais envolvente; ao contrário da autobiografia tradicional, que seria narrada
no passado por alguém que já no fim da vida pretende compreendê-la, retomá-la como
um todo. O presente, segundo Vilain, é também o “tempo do obsessional”
17
ou “tempo
traumático”, isto é, aquele que se manifesta por um retorno obsessivo ao passado, pela
repetição obsessiva de alguns pontos que foram centrais para uma identidade.
Ora, Doubrovsky termina por admitir que não existe uma separação hermética
entre autoficção e autobiografia: “toda autobiografia é uma forma de autoficção e toda
autoficção uma variante da autobiografia”
18
. Afinal, autoficção seria a forma romanesca

16
La syntaxe traditionnelle n’est plus possible. J’ai beaucoup de blancs qui trouent la continuité
discursive. Il y a des passages sans ponctuation, des passages avec une ponctuation fausse, délibérée ou
exagérée, qui correspond aux rythme différents de la pensée.
17
temps de l’obsessionnel
18
(...) toute autobiographie est une forme d’autofiction et toute autofiction une variante de
l’autobiographie.
21
usada pelos escritores do meio do século XX ao início do século XXI para contar suas
memórias, ou seja, uma variante pós-moderna da autobiografia (VILAIN, 2005, p.
211/212).
Desta última afirmação discorda o romancista e crítico, Vincent Colonna
(COLONNA, 2004), um dos pioneiros no estudo da autoficção. O autor acredita que o
termo autoficção só foi criado para tomar o lugar da tão rejeitada denominação
“romance autobiográfico”, sem no entanto trazer nenhuma inovação em relação a este
“gênero”. Para ele, sendo La Nouvelle Héloïse, de Rousseau, a precursora do romance
autobiográfico, é nesta obra que se encontra também a origem da autoficção, mostrando
assim que se trata de uma tradição literária bem francesa. Colonna afirma que foi
somente depois de 1945, sob a influência da estética impessoal de Flaubert, que a noção
de “romance autobiográfico” caiu em desgraça. Nesta época, grandes nomes como
Bakhtin e Blanchot tentaram mostrar como a “boa ficção” não podia combinar com a
projeção de um “eu”. Evitava-se a todo custo o termo em críticas e monografias da
época. Criaram-se expressões exageradas como “ficção pseudo-autobiográfica”
(Magny, em 1950) para substituí-lo. Foi neste contexto hostil que surgiu o conceito de
“autoficção”, universo em que os autores misturam o vasto espaço da ficção com um
material pessoal ainda mais variado, gerando obras que diferem tanto pelos recursos
quanto pela forma e pela amplitude de sua hibridação. Colonna prefere não engessar
essa “literatura híbrida” como gênero (assim como fizeram com a autobiografia), mas
tratá-la simplesmente como uma “nebulosa de práticas aparentadas” (COLONNA,
2004, p.11).
Autoficção ou romance autobiográfico estariam, então, num nebuloso “entre-
dois”: entre a autobiografia e o romance, entre o real e o irreal, entre a memória e a
imaginação. O leitor, de qualquer forma, tem a “ilusão biográfica” (termo de Vincent
Colonna), ou seja, acredita que aqueles fatos ou a maioria deles aconteceram ou podem
vir a acontecer. Segundo Philippe Vilain, a autobiografia pode ser uma narrativa tanto
retrospectiva quanto prospectiva, ocorrendo nesta última uma antecipação de um
desfecho previsível, o que não seria uma mentira ou uma invenção descabida, mas
simplesmente uma forma de projetar prospectivamente suas lembranças, ou seja,
projetá-las no futuro: “Para completar audaciosamente a definição de Philippe Lejeune,
22
a autobiografia poderia assim, em certos casos, definir-se ao mesmo tempo como uma
narrativa retrospectiva e prospectiva em prosa”
19
(VILAIN, 2005, p. 124).
A visão de Vilain sobre autobiografia é muito interessante, no momento em que
ele associa os conceitos de memória, imaginação e ficção. É no processo de escrita que
o autor estetiza a memória, o que significa também a ficcionalização do que foi vivido.
Pois, ao falhar a lembrança, o autor recorre à imaginação, utilizando para isso as
estratégias da ficção; é então que inventa e constrói um passado, se afastando do que foi
vivido, mesmo quando sua intenção é escrever uma autobiografia no seu sentido estrito
(VILAIN, 2005, p. 122). Para Vilain, toda autobiografia é uma autoficção, em que o
sujeito se inventa um duplo, num processo que ele chama de “desdobramento narcísico”
(VILAIN, 2005, p. 119).
O autobiógrafo, contudo, diferencia-se do Narciso mitológico, ao não se satisfazer
com a simples contemplação de uma imagem e sim buscar o que ele é interiormente.
Esta tentativa se revela, porém, infrutífera, já que a literatura lhe devolve sempre uma
imagem imperfeita, uma sombra de si mesmo. Mesmo sabendo que não encontrará o
poder mágico do autoconhecimento, o desejo de se conhecer é o que mais
frequentemente motiva a escrita autobiográfica
20
(VILAIN, 2005, p. 16/18).
Como Vilain, Régine Robin aproveita-se da imagem mítica de Narciso para
explicar a autoficção. Para esta socióloga, romancista e crítica literária, o escritor de
“ficções de si” ou “poéticas pessoais” é, ao mesmo tempo, Narciso e Vampiro. Narciso,
porque busca incessantemente a sua imagem como em um espelho d’água; Vampiro
pela impossibilidade de contemplá-la. Esta contradição está, para ela, no cerne da
autoficção: “dizer ‘eu’ sem poder dizê-lo”, “dizer ‘eu’ sem saber a que esta instância
enunciativa se refere exatamente” (ROBIN, 1997, p. 26), pois estes narcisos-vampiros,
em suas “mitologias de si”, constroem seus duplos, imagens que não passam de
sombras, ilusões, ausências, lugares vazios. “A imagem tornada rainha é então uma
imagem em trânsito, efêmera, precária
21
” (ROBIN, 1997, p. 33). Robin afirma que o
fenômeno faz parte do momento literário, que nos remete à dissociação e cisão do

19
Pour compléter audacieusement la définition de Philippe Lejeune, l’autobiographie pourrait ainsi, dans
certains cas, se définir à la fois comme un récit rétrospectif et prospectif en prose.
20
Serge Tisseron, no seu livro L’intimité surexposée (TISSERON, 2001), também entende que o desejo
de se “exprimir” está relacionado com o anseio de melhor apropriar-se de certos elementos de sua vida,
ou seja, “o desejo da ‘extimidade’ está na verdade a serviço da criação de uma intimidade mais rica”
20
(TISSERON, p. 53, 2001), ou seja, de um autoconhecimento. Colonna também usa o termo extimité (ex-
timidade em oposição à intimidade) para designar essa tendência da sociedade atual à superexposição de
sua vida privada em domínio público, seja na televisão, na Internet ou na literatura. (COLONNA, 2004)
21
L’image devenue reine est ainsi une image en transit, éphémère, précaire.
23
sujeito, cuja imagem tem sido mostrada cada vez mais fragilizada, fragmentada e até
esvaziada. Condenado a contemplar uma imagem sempre inacabada, estilhaçada, o
autor contemporâneo da escrita de si mira-se num espelho sem conseguir captar seu
reflexo, busca na escrita um “eu” que ele sabe inatingível.
Sendo o sujeito narrado fictício, Robin acredita que justamente porque é narrado,
nunca haverá adequação entre o autor, o narrador e o personagem, entre o sujeito do
enunciado e o da enunciação. Além disso, o texto contemporâneo (seja autoficção ou
não) explora a polifonia do sujeito, misturando as pistas e as referências de identidades
desconstruídas, explodidas, disseminadas. O escritor pós-moderno tem se rendido à
tentação de transformar-se em outro(s), de ocupar todos os lugares, de experimentar
todos os papéis: ser pai e filho ao mesmo tempo, se auto-engendrar, experimentar
identidades fictícias, ser escritor, narrador, personagem, ser real e representação,
fronteiras tênues, descontínuas e perigosas (ROBIN, 1997, p. 16).
Fronteiras tênues e descontínuas, vemos também entre os pensamentos dos
estudiosos da escrita de si. Alguns, como Régine Robin, Serge Doubrovsky e Philippe
Vilain, se aproximam formando um grupo que, por duvidar da existência de uma
“verdade”, relaciona a autoficção à escrita pós-moderna, isto é, uma escrita que
apresenta uma marcante intertextualidade, uma linguagem fragmentada com ênfase na
metalinguagem e na auto-reflexão, confusão de vozes, mistura de pronomes, fluidez do
tempo e do espaço, enfim, um estilo que revela “a fragmentação do sujeito na
contemporaneidade” (FERNANDES, 2005, p. 381). Esta fragmentação do sujeito e do
texto literário da pós-modernidade vai ao encontro da ideia destes autores de que há
uma impossibilidade de coincidência entre o sujeito narrado e o sujeito real.
Já Vincent Colonna e Philippe Gasparini formam outro grupo com Philippe
Lejeune, que acredita no “pacto de verdade” e separa de forma estrita a autoficção da
autobiografia.
Considerando que na obra de Marguerite Duras não existe nenhum compromisso
com uma verdade única, posto que as histórias que conta são sempre “corrigidas”,
reformuladas em textos posteriores, não a trataremos como autobiografia, mas sim
como romance autobiográfico e autoficção, termos mais flexíveis e “aplicáveis” aos
textos de Marguerite Duras.
24
1.2 Romance autobiográfico
Por ter toda a obra durassiana um caráter fortemente autobiográfico, trata-se de
material muito rico para o estudo das nuanças da escrita de si. Percebemos que, em seus
livros e filmes, Marguerite Duras está sempre em busca da construção de uma imagem
de si mesma, não só quando coloca em cena a menina francesa que nasceu na
Indochina, mas também na construção de outros personagens que de alguma forma têm
uma relação com a sua realidade. Como escreveu Jorge Luis Borges em seu Ensaio
Autobiográfico:
Na última página do livro [O fazedor] contei a história de um homem que se propôs
a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, vai cobrindo um espaço com
imagens de navios, de torres, de cavalos, de exércitos e de pessoas. Pouco antes de
morrer, descobre que traçara a imagem de seu próprio rosto. Talvez esse seja o caso
de todos os livros; é, sem dúvida, o caso desse livro em particular. (BORGES, 2009,
p.74)
Também Duras, mesmo ao contar histórias alheias, parece estar “traçando a
imagem de seu próprio rosto”, numa tentativa de compreensão de si mesma e de sua
realidade. Consciente, porém, da sua incapacidade de reconstrução do “eu” real através
da escrita, Duras deixa refletir em sua narrativa a fragmentação do sujeito, que se
intensifica à medida que sua escrita progride, às custas de muitas experimentações
literárias e cinematográficas.
Desde o seu segundo livro, A vida tranqüila (1944), a personagem Françou, que
narra a história em primeira pessoa, dá-se conta da incompatibilidade entre o “eu” real e
a sua imagem no espelho, deflagrando uma busca pelo autoconhecimento, com a
pergunta “Quem sou?”:
Eu não me reconheci. (...) Quem era eu, quem eu tinha tomado por mim até aquele
momento? Meu nome não me dava segurança. Eu não conseguia me alojar na
imagem que eu acabava de surpreender. Eu flutuava em volta dela, muito perto,
mas existia entre nós como uma impossibilidade de nos juntar. Eu me achava presa
a ela por uma lembrança tênue, um fio que podia se quebrar de um segundo a outro
e então eu me precipitaria na loucura.
22
(DURAS, 1944, p. 122/123)

22
Je ne me suis pas reconnue. (...) Qui était-je, qui avais-je pris pour moi jusque-là ? Mon nom même ne
me rassurait pas. Je n’arrivais pas à me loger dans l’image que je venais de surprendre. Je flottais autour
d’elle, très près, mais il existait entre nous comme une impossibilité de nous rassembler. Je me trouvais
ratachée à elle par un souvenir ténu, un fil qui pouvait se briser d’une seconde à l’autre et alors j’allais me
précipiter dans la folie.
25
Como o vampiro, na metáfora utilizada por Régine Robin, a personagem principal
de Duras não consegue reconhecer sua imagem no espelho. Sabe que entre sua imagem
e si mesma existe uma ligação, mas que as duas não se confundem. O que não a impede,
contudo, de continuar à procura de um “eu”, mesmo que inacabado.
Neste livro, assim como em Os insolentes (1943) e Barragem contra o Pacífico, a
família é o tema principal. Nestes três primeiros romances de Duras, as narrativas
acontecem praticamente fechadas no núcleo familiar que vai-se encolhendo de uma obra
para outra: mãe-pai-irmã-2irmãos (Os insolentes), mãe-pai-irmã-irmão (A vida
tranquila), mãe-irmã-irmão (Barragem). Segundo Madeleine Alleins: “Para fazer sentir
o geral sob o particular, a família foi reduzida a um trio – a mãe, o irmão, a irmã – onde
são representadas as relações essenciais”
23
(ALLEINS, 1984, p. 34). Duras mantém não
só os personagens que ainda possibilitam uma maior exploração literária, mas também
aqueles que foram mais marcantes na história da sua vida: a filha preterida, nem feia
nem bela, dividida entre seus desejos e as amarras familiares; o irmão, condensação do
mais velho e do mais novo, violento, vadio e belo, amado demais pela mãe (o mais
velho), desejado também pela irmã; e a mãe, ao mesmo tempo generosa e mesquinha,
pronta a perder tudo por um filho e a casar a outra por dinheiro. O pai tem, quando
aparece, um papel ofuscado pela mãe e pelo irmão.
Consideraremos estes textos como romances autobiográficos, pois não há
coincidência onomástica entre o personagem principal, o narrador e o autor da obra,
evidenciando-se assim de pronto o pacto romanesco
24
; a partir de informações colhidas
no epitexto (como entrevistas com a autora), porém, identificamos pontos em comum
entre a história de Maud (Os insolentes), de Françou (A vida tranquila) e de Suzanne
(Barragem contra o Pacífico) e a realidade de Marguerite Duras.
Em Barragem contra o Pacífico, várias semelhanças aproximam a autora da
personagem principal. Francesa nascida na colônia, órfã de pai, Suzanne vive as
consequências das ideias desastrosas de enriquecimento da mãe: a compra de um
terreno para plantação de arroz, a construção das barragens, a sua relação amorosa com
um homem mais velho, aqui chamado de M. Jo.

23
Pour faire sentir Le général sous le particulier, la famille a été réduite à un trio – la mère, le frère, la
soeur – où sont représentées les relations essentielles.
24
A edição traduzida em Português de Barragem contra o Pacífico (editora ARX, 2003) traz inclusive a
indicação de romance na capa (o que não acontece na edição francesa Folio).
26
Barragem contra o Pacífico não apresenta as características clássicas do pós-
modernismo
25
, pois sua narrativa obedece a regras ainda rígidas de organização. Além
de ser dividido em capítulos, seus temas são bem definidos e não se misturam. A
história possui um momento de ruptura e grande mudança, em que a família, antes tão
unida, muda-se para um hotel no bairro alto para vender o anel de brilhantes que
Suzanne ganhou de M. Jo e começa a se desmantelar, dividindo o texto em duas partes
equilibradas. A escrita é mais densa e a sintaxe mais rígida do que os seus textos
futuros, principalmente O amante, apesar de já encontrarmos aí um princípio de
fragmentação do sujeito e da escrita.
O texto começa com uma narração aparentemente impessoal, na terceira pessoa.
Desde o primeiro parágrafo, entretanto, o narrador (a narradora?) se aproxima
continuamente dos personagens, envolvendo-se cada vez mais com a história que está
contando. Assim começa Barragem:
Parecera aos três uma boa idéia comprar aquele cavalo. Mesmo que só servisse para
pagar os cigarros de Joseph. Em primeiro lugar, era uma idéia, o que provava que
ainda podiam ter idéias. Depois, sentiam-se menos sozinhos ligados por aquele
cavalo ao mundo exterior; capazes, de todo modo, de tirar dele alguma coisa que,
até então, não tinha sido deles, e de levá-la até o canto de sua planície saturada de
sal, até os três saturados de tédio e de amargura. (DURAS, 2003, p. 11)
Os “três” mencionados na primeira frase desta passagem são ainda três pessoas
quaisquer, distantes do narrador e, consequentemente, do leitor. No restante do trecho
há, porém, uma aproximação tão grande que os “três saturados de tédio e amargura” nos
parecem muito mais familiares. Temos a impressão de que o narrador experimenta ele
mesmo os sentimentos que descreve.
Mesmo sendo em torno da mãe que se desenrola a narrativa de Barragem - a
história da construção das barragens para conter o Pacífico dá título ao livro - é a
personagem Suzanne que parece estar “iluminada” ao longo da maior parte da narrativa,
a ponto do narrador e Suzanne se confundirem.
Apesar de dar voz também a outros personagens, é a menina Suzanne a maior
privilegiada. Na passagem abaixo, é ela que expõe suas esperanças e dúvidas de menina
que espera o príncipe encantado. O uso do futuro do pretérito acentua o tom de incerteza
e de sonho.

25
Ver FERNANDES, Giséle M., Pós-Moderno. In: FIGUEIREDO, Eurídice. Conceitos de Literatura e
Cultura. Juiz de Fora: Editora UFJF/EdUFF, 2005. p.367 a 391.
27
O dia em que um automóvel pararia diante do bangalô chegaria, por fim. Um
homem ou uma mulher desceria dele para pedir uma informação ou uma ajuda
qualquer, a Joseph ou a ela. Ela não via muito bem que gênero de informação
poderiam lhe pedir: só havia na planície uma única pista que ia de Ram, passando
por Kam, até a cidade. Não era possível errar o caminho. Assim mesmo, não se
podia prever tudo, e Suzanne esperava. Um dia um homem pararia, talvez, por que
não?, por tê-la visto perto da ponte. Talvez ela lhe agradasse e ele propusesse levá-
la para a cidade. (DURAS, 2003, p. 18).
A voz de Suzanne, entretanto, nem sempre está tão evidente. Muitas vezes a
ambiguidade existe, confundindo inclusive a voz do narrador ou de Suzanne com a da
própria Marguerite Duras, autora. A presença de Duras é sentida nas experiências de
Suzanne com o cinema, na indignação do narrador contra as injustiças cometidas pela
metrópole na colônia, na transformação e tentativa de libertação de Suzanne em relação
à família, na sensualidade que permeia todo o texto.
O irmão Joseph tem um capítulo inteiro dedicado a ele para contar a Suzanne seu
encontro com a mulher que vai libertá-lo da mãe, levá-lo embora. E foi no cinema que o
encontro aconteceu: “– Fui ao cinema – disse Joseph a Suzanne. – Eu disse comigo, vou
ao cinema para procurar uma mulher.” (DURAS, 2003, p.253)
Também à mãe é dedicado um capítulo, o da carta aos agentes do cadastro.
Através desta longa transcrição, o narrador dá livre voz ao desespero que tomou conta
da vida da mãe por causa das falcatruas da administração colonial na Indochina. O leitor
entende que este narrador está não só sensibilizado com os problemas desta mulher, mas
indignado contra as injustiças pelas quais ela passou, aproximando-se assim da autora
Marguerite Duras.
Enganada pela administração colonial, a mãe de Suzanne, viúva com dois filhos
pequenos, colocou as economias de dez anos de trabalho como pianista do Éden-
Cinéma na compra de terras incultiváveis, constantemente invadidas pelo mar: “[a mãe]
jogara suas economias de dez anos nas ondas do Pacífico” (DURAS, 2003, p. 22).
Talvez a sua história difícil a tenha transformado em um mártir aos olhos dos filhos, um
Cristo a ser seguido, difícil de abandonar: “Tivera tantos infortúnios que se tornara um
monstro com um encanto poderoso, e seus filhos corriam o risco, para consolá-la de
seus infortúnios, de nunca deixá-la, de se dobrar às suas vontades, de se deixar devorar
por ela.” (DURAS, 2003, p. 180)
A ligação da mãe de Suzanne com a música e o cinema dá um caráter ainda mais
relevante a este personagem. Também amante destas duas artes, Marguerite Duras as
28
mistura nesta e em outras obras. Aliás, a escritora dedicou dez anos de sua vida quase
que exclusivamente ao cinema. Uma de suas cenas prediletas era uma lenta tomada de
partituras musicais em desordem em seu filme Nathalie Granger.
1.3 O grito
Roteirista, diretora de cinema, escritora e jornalista, Duras sempre associou a
escrita à imagem e à voz. Tomando o processo de escrita ora prazeroso como a música,
ora doloroso como um grito, traçou para si um caminho que ela mesma considerava
perigoso, pois levava o escritor a uma solidão peculiar: “Estar sozinha com o livro ainda
não escrito é estar ainda no primeiro sono da humanidade. É isso. É também estar
sozinha com a escrita ainda não cultivada, abandonada. É tentar não morrer por isso”
26
(DURAS, 1993, p. 31).
Os livros se tornariam lugar privilegiado para exteriorização dos seus medos, das
suas revoltas, da sua voz. É em 1965 que conseguiu imortalizar, em seu livro O Vice-
Cônsul, o grito que é referência de toda a sua obra. Trata-se do grito em que o vice-
cônsul, personagem que dá título ao livro, coloca para fora toda sua paixão por Anne-
Marie Stretter e toda sua revolta por não poder passar a noite com ela: “Anne-Marie
Stretter passa diante do buffet sem se deter, dirige-se para o outro salão. Acaba de entrar
lá quando o vice-cônsul de Lahore dá o seu primeiro grito. Alguns compreendem: -
Deixa-me ficar com você!”
27
(DURAS, 1966, p. 145). É este mesmo homem que à
noite atirava contra os leprosos e os cachorros, às vezes contra si mesmo. Dado como
louco, criava um mal-estar geral por sua simples presença e era o principal assunto das
conversas na recepção de Anne-Marie Stretter:
Dizem, perguntam: Mas que ele fez exatamente? Eu nunca soube.
- Ele fez o pior, mas como dizê-lo?
- O pior? matar?
- Ele atirava à noite nos jardins de Shalimar onde se refugiavam os leprosos e os
cachorros.
- Mas leprosos ou cachorros, isso é matar, matar leprosos ou cachorros?
- Balas também foram achadas nos espelhos de sua residência em Lahore, sabe.
- Os leprosos, de longe, você percebeu? Distingue-se mal do resto, os leprosos...
28
(DURAS, 1966, p.94/95)

26
Être seule avec le livre non encore écrit, c’est être encore dans le premier sommeil de l’humanité. C’est
ça. C’est aussi être seule avec l’écriture encore en friche. C’est essayer de ne pas en mourir.
27
Anne-Marie Stretter passe devant le buffet sans sarrêter, elle se dirige vers l’autre salon. Elle vient d’y
entrer lorsque le vice-consul de Lahore pousse son premier cri. Quelques-uns comprennent : Gardez-moi !
28
On dit, on demande: Mais qu’a-t-il fait au juste ? Je ne suis jamais au courant.
29
Difícil não associarmos o vice-cônsul com a própria Marguerite Duras, gritando
contra o desespero, contra a loucura (“Ele era louco, louco de inteligência o vice-
cônsul”
29
(DURAS, 1993, p 21)) e até contra a morte, ou o suicídio a que parecia querer
levá-la a escrita em alguns momentos (“Há o suicídio na solidão de um escritor”
30
(DURAS, 1993, p 31)); indignando-se contra as injustiças, as desigualdades do mundo à
sua volta, como na Índia que conheceu. No trecho abaixo, Duras comenta seu livro O
Vice-Cônsul:
E neste livro o vice-cônsul atira na lepra, nos leprosos, nos miseráveis, nos
cachorros e depois ele atira sobre os Brancos, os governantes brancos. Ele matava
tudo menos ela, aquela que na manhã de um certo dia se afogou no Delta, Lola
Valérie Stein. Esta Rainha de minha infância e de S. Thala. Esta mulher do
governador de Vinh Long.
31
(DURAS, 1993, p. 32)
É como se ela própria estivesse atirando no lugar do seu personagem,
extravasando em seu lugar sua própria fúria.
Ao longo da sua carreira, a relação da autora com a escrita muda. Entre Barragem
e O amante, este processo torna-se para ela cada vez mais intenso e menos moderado,
menos comportado. A escrita torna-se desobediente e indomável como o menino de
Moderato Cantabile (1958), que se revolta contra as aulas de piano, e transgressora
como a mãe do menino, mulher de alta classe social que se apaixona por um pobre
desconhecido. É a própria Duras que admite esta mudança:
Com os primeiros livros [...], eu escrevia como quem vai ao escritório [...]. E
depois com Moderato Cantabile foi menos calmo. A escrita tornou-se muito mais
rápida, a travessia do livro começou a transtornar [...]. O verdadeiro medo começou
com a mulher Lol V. Stein. Até o grito uma vez.
32
(ROYER, 2007, p. 171)

- Il a fait le pire, mais comment le dire ?
- Le pire ? tuer ?
- Il tirait la nuit sur les jardins de Shalimar où se réfugient les lépreux et les chiens.
- Mais des lépreux ou des chiens, est-ce tuer que de tuer des lépreux ou des chiens ?
- Aussi bien des balles ont été trouvées dans les glaces de sa résidence à Lahore, vous savez.
- Les lepreux, de loin, avez-vous remarqué ? On les distingue mal du reste, alors...
29
Il est fou, fou d’intelligence le vice-consul.
30
Il y a le suicide dans la solitude d’un écrivain.
31
Et dans ce livre le vice-consul tire sur la lèpre, sur les lépreux, les misérables, sur les chiens et puis il
tire sur les Blancs, les gouverneurs blancs. Il tuait tout sauf elle, celle qui au matin d’un certain jour s’est
noyée dans le Delta, Lola Valérie Stein, cette Reine de mon enfance et de S. Thala, cette femme du
gouverneur de Vinh Long.
32
Avec les premier livres [...], j’écrivais comme on va au bureau [...]. Et puis avec Moderato Cantabile ça
a été moins calme. L’écriture est devenue beaucoup plus rapide, la traversée du livre a commencé à
déchirer [...]. La vraie peur a commencé avec la femme Lol V. Stein. Jusqu’au cri une fois.
30
A percepção de uma escrita corrente como uma força avassaladora faz com que
Duras busque uma forma mais livre, em que a escrita, como diz Doubrovsky, não se
prenda à sintaxe e à pontuação tradicionais e não obedeça a uma ordem que lhe tire o
movimento ou o ritmo. Nesta passagem a autora critica o excesso de preocupação com
as regras:
Eu acho que é isso que desaprovo nos livros, em geral, é que eles não são livres.
Isto se vê através da escrita: eles são fabricados, são organizados, regulamentados,
são conformes, eu diria. Uma função de revisão que o escritor tem frequentemente
em relação a si mesmo. O escritor se torna então sua própria polícia.
33
(DURAS,
1993, p. 34)
Duras defende um certo inacabamento da escrita, que estaria mais perto, segundo
ela, da “verdade”: “Cada livro como cada escritor tem uma passagem difícil,
incontornável. E ele deve tomar a decisão de deixar este erro no livro para que ele fique
um livro verdadeiro, não mentido
34
(DURAS, 1993, p. 34) (grifo meu).
1.4 Autoficção
Podemos ver a evolução de Duras para um tipo de escrita mais ritmada e musical,
quando comparamos seus textos Barragem contra o Pacífico e O amante. O primeiro
parece escrito em um estilo mais tradicional, em que os diálogos, a mudança de vozes
ou de gênero textual ainda não podem ser introduzidos sem uma certa quebra do ritmo
narrativo. Já no segundo, Duras consegue dar movimento e ritmo a um texto em que os
fatos não seguem uma ordem cronológica. Os mesmos acontecimentos são retomados
várias vezes e espaços em branco são deixados como que para fazer o texto (ou o leitor)
respirar. Michelle Royer traduz assim a escrita em Marguerite Duras: “A escrita [de e
para Duras] seria movimento, ritmo sonoro e incidente pulsional que se sucedem sem
ordem nem razão, mas fazem rastro, como as marcas de pneus sobre o betume úmido”
35
(ROYER, 2007, p. 168).

33
Je crois que c’est ça que je reproche aux livres, en général, c’est qu’ils ne sont pas libres. On le voit à
travers l’écriture : ils sont fabriqués, ils sont organisés, réglementés, conformes on dirait. Une fonction de
révision que l’écrivain a très souvent envers lui-même. L’écrivain, alors il devient son propre flic.
34
Chaque livre comme chaque écrivain a un passage difficile, incontournable. Et il doit prendre la
décision de laisser cette erreur dans le livre pour qu’il reste un vrai livre, pas menti.
35
L’écriture serait mouvement, rythme sonore et incidents pulsionnels qui se succèdent sans ordre ni
raison, mais font trace, comme les marques des pneus sur le bitume humide.
31
Além disso, em O amante, contribui para a desestabilização da narrativa um “eu”
autobiográfico instável, frequentemente substituído por “ela”, “aquela menina”, “essa
criança”, que desmente a própria história que está contando, ao dizer que “a história da
[sua] vida não existe”. Personagem principal de uma narrativa frágil e fragmentada, a
menina não é nomeada em nenhum momento, assim como seus irmãos e seu amante.
Neste livro, Marguerite Duras embaralha as pistas referenciais e ficcionais ao apresentar
um texto impreciso, sem datas nem nomes, onde as incertezas da narradora são
compartilhadas com o leitor. Um “eu” é posto em cena através da história fragmentária
do seu passado, apresentado num tempo presente “obsessional”, num texto em que a
sofisticação da forma e da estrutura narrativa sobressai em detrimento do conteúdo
informativo, dos fatos, da história. Entretanto, além da narrativa em primeira pessoa,
muitos elementos autobiográficos estão presentes no texto, como a infância na
Indochina, a relação com a mãe e os dois irmãos, o filho que nasceu morto, a guerra e
outros. Acrescentamos ainda que, na época do lançamento do livro, Duras anunciou-o
como uma autobiografia, estimulando o público a lê-lo como tal. Chamaremos, então,
esta autobiografia ficcionalizada, de autoficção.
Enfim, consideramos autoficção o caso em que há identificação entre o
personagem, também narrador, e o autor da obra, mas em que o pacto autobiográfico
não é confirmado, pois há mistura da escrita referencial e ficcional. No caso em que um
narrador em primeira pessoa não é nomeado na história, como em O amante, seria
necessária a distribuição de pistas de referencialidade no texto (como nomes, datas,
fotos, etc.) ou de informações paratextuais (como título, orelha, quarta capa, entrevistas
com o autor, cartas pessoais, etc.) para confirmar a identificação entre ele e o autor.
Seguindo o pensamento de Doubrovsky, o inventor do termo, admitiremos que a
autoficção deve apresentar uma escrita pós-moderna, ou seja, sua narrativa deve
representar a fragmentação do sujeito contemporâneo, refletindo a ideia de que o texto
literário não pode proporcionar um processo claro e conclusivo de autoconhecimento.
Com efeito, a autora de O amante, consciente da impossibilidade de abarcar o real,
consciente de que o sujeito do enunciado nunca será igual ao sujeito da enunciação,
recorre à imaginação e às técnicas romanescas da ficção para tentar colar as peças de
sua identidade.
A narrativa de O amante começa como uma autobiografia clássica: o narrador,
também personagem principal, se manifesta em primeira pessoa. Na verdade, uma
narradora, já em idade avançada, conta como se passou o momento desencadeador do
32
processo autobiográfico: quando um homem a encontra no saguão de um lugar público
e compara o seu rosto do presente com o da sua juventude.
Eu a conheço há muito tempo. Todos dizem que era bela quando jovem, vim dizer-
lhe que para mim é mais bela hoje do que em sua juventude, que eu gostava menos
de seu rosto de moça do que desse de hoje, devastado. (DURAS, 1985a, p. 7)
Essa curta cena sofre, porém, um corte abrupto para que, logo no parágrafo
seguinte, haja uma mudança de tempo e de narrativa. Seguimos, então, no presente da
enunciação, momento em que a narradora se lembra de uma imagem de quando tinha
quinze anos: “Penso frequentemente nessa imagem que só eu ainda vejo e sobre a qual
jamais falei a alguém” (DURAS, 1985a, p. 7).
Antes de dar qualquer descrição da imagem, porém, o leitor é mais uma vez
surpreendido com uma mudança repentina de direção e é transportado no tempo para os
seus dezoito anos, idade em que seu rosto começou a envelhecer. Percebemos, então,
que não estamos diante de um livro de memórias tradicional, em que os fatos são
revelados em ordem cronológica, normalmente associados a referências de tempo,
espaço e pessoas.
36
É a contemplação de seu rosto destruído que leva a narradora à busca de suas
origens, a origem deste envelhecimento. A descrição detalhada do rosto, com seus olhos
grandes, seu olhar entristecido, sua boca marcada e pele ressecada faz-nos pensar em
alguém defronte de um espelho, a contemplar sua própria imagem. E é justamente a
imagem de Marguerite Duras olhando-se no espelho que é escolhida para publicidade de
O amante na época do lançamento do livro. Talvez com isso a autora quisesse mostrar
que a Marguerite Duras conhecida pelo público não passava mesmo de uma ilusão, uma
criação, uma sombra dela própria. “Imagem tornada rainha”, mas ao mesmo tempo
“efêmera e precária”, como afirma Régine Robin, pois conscientes do seu
inacabamento, da sua fragilidade, os autores da autoficção constroem “mitologias de
si”
37
, duplos nos quais eles mesmos às vezes não se reconhecem:
Nos últimos vinte anos da sua vida, ela falava dela chamando-se Duras. Ela não
sabia mais muito bem quem ela era, quem era essa Duras que escrevia. Obrigada a
se reler, ela anotava, na margem de um caderno inédito, pouco tempo antes de

36
O Amante é situado geograficamente (grande parte na Indochina francesa e parte na França), mas tem
raras datas e pouquíssimos nomes. Os membros da família da protagonista são chamados normalmente
de: a mãe, o irmão mais novo e o irmão mais velho.
37
Termo de Colonna (2004).
33
morrer, com a sua grafia pequena, fina e apertada: “Isso é Duras?” “Isso não parece
Duras.”
38
(ADLER, p. 12)
Imagem narcísica, imagem duplicada, imagem real e irreal, com que Marguerite
Duras brinca, mas tendo consciência dos diferentes papéis que é obrigada a
desempenhar. Para Foucault (1992), um nome de autor não é um nome próprio como os
outros, pois está ligado a um determinado tipo de discurso que identificamos a ele e,
principalmente, à sua forma de transgressão: “o nome de autor não está situado no
estado civil dos homens nem na ficção da obra, mas sim na ruptura que instaura um
certo grupo de discursos e o seu modo de ser singular” (FOUCAULT, p.46, 1992).
Esses discursos “singulares” são dotados, então, de uma “função autor”, por trás da qual
existem sempre diversos “eus” simultâneos, como o eu que fala no prefácio, o eu que se
apresenta como narrador e alter-ego do escritor no romance, o eu do escritor real, que
para Foucault é diferente do autor:
Seria tão falso procurar o autor no escritor real como no locutor fictício, a função
autor efectua-se na própria cisão – nessa divisão e nessa distância. Dir-se-á talvez
que se trata somente de uma propriedade singular do discurso romanesco ou
poético: um jogo que respeita apenas a esses “quase discursos”. De facto, todos os
discursos que são providos da função autor comportam esta pluralidade de “eus”.
(FOUCAULT, p.55, 1992)
Ao não reconhecer seu próprio discurso, Duras parece estar reconhecendo esta
pluralidade de “eus” e, principalmente, a cisão entre autor e escritor. Sua obra, porém,
possui uma coesão singular. Histórias e personagens são insistentemente retomados,
num processo de escrita e reescrita de suas experiências. Segundo Andrea Correa
Paraiso, seus textos estão inter-relacionados e parecem fazer parte de uma só busca, o
aperfeiçoamento da escrita. Nesse “imenso caminho de reescritura, de construção e
reconstrução” (PARAÍSO, 2001, p. 18), Duras apresenta uma história de vida carregada
de ambiguidade e contradições.
Ler Marguerite Duras é penetrar em um mundo de experiências narrativas, de
múltiplas possibilidades de palavras, de motivos insistentemente repetidos, de
histórias recomeçadas e recriadas. Seus escritos são voltas de uma trajetória em
espiral. (PARAÍSO, 2001, p. 11)

38
Dans les vingt dernières années de sa vie, elle parlait d’elle en s’appelant Duras. Elle ne savait plus très
bien qui elle était, qui était cette Duras qui écrivait. Obligée de se relire, elle note, en marge d’un cahier
inédit, peu de temps avant de mourir, de sa petite écriture fine et serrée : « Ça c’est du Duras ? » « Ça ne
ressemble pas à du Duras. »
34
Na verdade, seus textos são representações não só de si, mas também do seu
universo. Suas histórias, mesmo que pessoais, não estão desvinculadas da História e da
sociedade em que viveu. A Segunda Guerra Mundial e a Shoá, por exemplo, marcaram
a escritora definitivamente, fazendo parte da sua obra de maneira oblíqua (nos seus
personagens judeus de Destruir, disse ela ou no amor de uma francesa por um soldado
alemão em Hiroxima meu amor) ou de maneira direta (no seu testemunho da Segunda
Guerra, como esposa de resistente francês deportado em A dor).
Também em O amante e Barragem contra o Pacífico a guerra deixou suas
marcas. A história da adolescente francesa de O amante é intercalada por descrições de
mulheres que parecem ter fascinado a narradora na fase adulta, durante a Segunda
Guerra Mundial:
Falava-se muito sobre a guerra, sobre Stalingrado, estávamos no fim do inverno de
42. Marie-Claude Carpenter ouvia muito, informava-se muito, falava pouco, às
vezes se admirava de tantos acontecimentos escaparem à sua atenção, e ria.
(DURAS, 1985a, p. 72)
Betty Fernandez. (...) Lembro-me da graça, é muito tarde agora para esquecer, nada
alcança a sua perfeição, nada atingirá jamais essa perfeição, nem as circunstâncias,
nem a época, nem o frio, nem a fome, nem a derrota da Alemanha, nem a revelação
total do Crime. (DURAS, 1985a, p. 74)
Em Barragem, a lembrança recente da guerra e do extermínio de milhares de
judeus repercute nas diversas mortes que rondam o texto, como notou Laure Adler
39
. Já
no primeiro capítulo o leitor depara-se com a morte do cavalo da família; passamos
depois pelas imagens funestas das caças ensanguentadas de Joseph (irmão da
personagem principal, Suzanne) penduradas sob o bangalô da família, pelas lembranças
de Suzanne de animais mortos carregados pelas águas do rio, pela descrição das
diversas causas de morte das crianças da região (cólera, vermes, insolação, fome); para

39
“A morte ronda também sem parar em Barragem contra o Pacífico. O livro abre-se com a morte do cavalo,
termina com a morte da mãe. Joseph não para de se perguntar se ele não vai se suicidar. A morte aparece
frequentemente como uma solução no romance. Morte desejada, assassinato reivindicado também como
meio legítimo de defesa: quando o agente do cadastro ousa vir mais uma vez inspecionar o desastre da
mãe, Joseph tira sua arma, uma Mauser. Coloca-a sobre o ombro, mira lentamente, ajusta. Pelas costas. O
agente cadastral está em frente. A mãe e Suzanne olham a cena e elas esperam, não fazem nada para tentar
desarmá-lo.
(ADLER, 1998, p. 280)
La mort rôde aussi sans cesse dans Un barrage contre le Pacifique. Le livre s’ouvre sur la mort du cheval,
s’achève sur la mort de la mère. Joseph ne cesse de se demander s’il ne va pas se suicider. La mort apparaît
souvent comme une solution dans le roman. Mort désirée, assassinat revendiqué aussi comme moyen
légitime de défense : quand l’agent du cadastre ose venir encore une fois inspecter le désastre de la mère,
Joseph sort son arme, un Mauser. Il épaule, il vise lentement, ajuste. Dans le dos. L’agent cadastral est
devant. La mère et Suzanne regardent la scène et elles attendent, ne font rien pour tenter de le désarmer.
35
chegarmos enfim à morte da mãe, ameaça constante na narrativa por causa de suas
crises nervosas.
Para Robbe-Grillet, Marguerite Duras importa para o domínio da autobiografia a
poética romanesca exigente, moderna, coerente e elaborada do Nouveau Roman. Longe
de se inscrever na tradição das Memórias, ela inventa um novo tipo da escrita de si
(GASPARINI, 2008, p. 135). Este escritor acredita ainda que exista uma Nouvelle
autobiographie, variante do Nouveau Roman, um tipo de autobiografia que coloca sua
atenção sobre o trabalho operado a partir de fragmentos e de faltas, em vez de se fixar
na descrição exaustiva de tal ou tal elemento do passado. É o caso de O amante de
Marguerite Duras.
Com efeito, O amante afasta-se da finalidade documentária e testemunhal, ao
introduzir voluntariamente a incerteza sobre os fatos narrados, como por exemplo, na
passagem abaixo:
Depois que entrei no colégio, naturalmente sempre andei de sapatos. Naquele dia
devia estar com aquele famoso par de saltos altos de lamé dourado. Não me lembro
de nenhum outro que pudesse estar usando naquele dia, portanto, é com eles que
estou calçada. (DURAS, 1985a, p. 16)
A narradora transmite para o leitor a dúvida sobre os sapatos que a personagem está
usando e depois a decisão deliberada de optar pelos sapatos dourados de salto alto. O
verbo
“dever” é usado para modalizar a frase e introduzir a dúvida: “Naquele dia devia estar
com aquele famoso par de saltos altos de lamé dourado”. Esta ideia é reforçada quando
a narradora admite que “não se lembra” e, em seguida, reconhece que escolheu esses
sapatos, simplesmente por não imaginar nenhum outro para a ocasião.
Este é somente um dos vários momentos em que é evidenciado para o leitor o
afastamento entre a escrita e o fato vivido. Além disso, a narrativa é tecida de maneira
que o leitor tenha a impressão de estar lendo lembranças projetadas no papel à medida
que estas surgem na mente da narradora. Como num filme, o texto é constituído do
início ao fim por cortes abruptos no tempo e na história. Em um parágrafo ela tem
dezoito anos: “Aos dezoito anos envelheci” (DURAS, 1985a, p. 7). No seguinte, ela
insiste que tem quinze: “Deixe-me contar de novo, tenho quinze anos e meio” (DURAS,
1985a, p. 8).
Histórias, como a da loucura da mãe, são reiteradamente visitadas pela narradora,
que faz da repetição outra forma de deixar desvelado para o leitor o trabalho da sua
memória ao resgatar um passado, cheio de fantasmas e obsessões.
36
Logo nas primeiras páginas a narradora faz várias revelações que serão repetidas
mais tarde, com mais detalhes, em contextos diferentes. A acusação de que o irmão
mais velho foi responsável pela morte do mais novo é repetida em vários momentos da
narrativa: “O irmão mais velho continua um assassino. O mais moço morrerá por sua
causa” (DURAS, 1985a, p. 64). Tratar o irmão mais novo como uma criança também é
uma constante no texto, a ponto de confundir a sua morte com a perda do próprio filho:
A princípio é impossível compreender, depois, bruscamente, de toda a parte, das
profundezas do mundo, chega a dor, ela me envolve, ela me domina, não reconheço
mais nada, não existo mais, só existe a dor, aquela dor que eu não sabia se era de ter
perdido um filho há alguns meses, que voltava, ou se era uma nova dor (DURAS,
1985a, p. 113).
A mistura de episódios também faz parte da falha de memória. O desvendamento
dos processos de lembrança e de escrita, a narrativa fragmentada, cheia de vaivéns entre
passado e presente, além de perguntas sem respostas deixadas para reflexão do leitor,
como na passagem abaixo, tudo isso contribui para a instabilidade da narrativa e para a
ideia de que a busca por uma imagem acabada de si mesmo revela-se sempre
inatingível.
Hoje, muitas vezes escrever pode não significar nada. Por vezes sei disso: a partir
do momento em que não for, confundidas todas as coisas, ir ao sabor da vaidade e
do vento, escrever é nada. A partir do momento em que não for, sempre, a confusão
de todas as coisas numa única por essência inqualificável, escrever é nada mais que
publicidade. Mas na maioria das vezes não tenho opinião sobre isso, vejo que todos
os campos estão abertos, que não haverá mais muros, que a palavra escrita não
saberá mais onde se esconder, se fazer, ser lida, que sua inconveniência
fundamental não será mais respeitada, mas nem penso mais nisso (DURAS, 1985a,
p. 12).
Em Barragem contra o Pacífico e O amante reconhecemos muitas semelhanças
de conteúdo. Fatos que, comentados em entrevistas e outros escritos pela autora,
aparecem nestas duas obras misturados com a ficção. No entanto, a escrita de O amante
revela-se bastante diferente da de Barragem, refletindo a relação de “descontrole” que
Duras viveu com a escrita e aproximando-se da auto-ficção definida por Doubrovsky.
37
2 – A construção da identidade
2.1 Identidade e alteridade
Identidade e alteridade são dois conceitos bastante intrincados, pois, como bem
lembra Landowsky, a identidade do sujeito só pode ser construída a partir da sua
diferença, isto é, da sua relação com o outro:
Na língua, sabe-se desde Saussure, só se podem identificar unidades, seja no plano
fonológico ou semântico, pela observação das diferenças que as interdefinem. (...)
Não é diferente com o “sujeito” – eu ou nós – quando o consideramos como uma
grandeza sui generis a constituir-se do ponto de vista de sua identidade. Também
ele condenado, aparentemente, a só poder constituir-se pela diferença, o sujeito tem
necessidade de um ele – dos “outros” (eles) – para chegar à existência semiótica (...)
Assim, quer a encaremos no plano da vivência individual ou (...) da consciência
coletiva, a emergência do sentimento de “identidade” parece passar
necessariamente pela intermediação de uma “alteridade” a ser constituída.
(LANDOWSKY, 2002, p. 3/4)
Landowsky aproveita a noção de “valor” em linguistica, conjunto das diferenças
entre um signo
40
e outro, para mostrar a relação entre identidade e alteridade. Assim
como Saussure definiu que “um signo é o que os outros não são” (FIORIN, 2004, p.
58), Landowsky afirma que um sujeito também precisa definir “quem ele não é” para
constituir-se. Porém, além das diferenças que já possam existir entre os indivíduos ou
grupos sociais (como “disfunções sociais” ou alguma “heterogeneidade natural”), cria-
se muitas vezes uma fronteira não-natural entre o grupo de referência e os grupos que
ele define como estrangeiros, através de “discursos e representações que os sustentam”
(LANDOWSKY, 2002, p. 12).
Janet M. Paterson (2007, p. 13) distingue as noções de alteridade e de diferença a
partir dos conceitos de Landowsky, concluindo que o que está em jogo nas relações
sociais não é a diferença, natural e fundamental para os nossos processos cognitivos,
mas como interpretamos e como lidamos com essas diferenças. Para a autora, é a
semantização da diferença que produz a alteridade, isto é, a semantização negativa de
um grupo minoritário em relação ao grupo de referência.
Por outro lado, a constituição de um “eu”, individual ou coletivo, não passa
somente pela construção de um “não-eu” e a nossa distinção em relação a ele, mas

40
União do conceito (significado) e da imagem acústica (significante) de alguma coisa.
38
também pelo autoquestionamento sobre o lugar, no interior de nós mesmos, que
daremos à alteridade.
Ora, com a evolução das migrações e das mídias, o contato com o outro tem sido
intensificado, fazendo com que o diferente não seja mais tão surpreendente, ainda que
exista, ao mesmo tempo, o sentimento da identidade ameaçada (LANDOWSKY, 2002,
p. 4). É neste contexto de diminuição das distâncias e proliferação de imagens que o
escritor Édouard Glissant (1996) afirma que fala e escreve em presença de todas as
línguas do mundo, mesmo que não as conheça. O escritor defende a ideia do homem
“em relação”, ou seja, opõe-se à antiga busca por uma identidade absoluta, por uma
pureza, substituindo-a pela procura da interpenetração entre culturas, da transformação e
da identidade em eterno devir. Glissant acredita que esta é a nossa realidade e que a
humanidade começa a se dar conta disso:
(...) o mundo se criouliza, isto é, as culturas do mundo postas em contato de
maneira eletrizante e absolutamente consciente hoje umas com as outras mudam e
trocam entre si através dos choques irreversíveis, das guerras impiedosas mas
também dos avanços de consciência e de esperança que permitem dizer – sem que
sejamos utópicos, ou então, aceitando sê-lo – que as humanidades de hoje
abandonam penosamente uma coisa pelo que elas se obstinavam há muito tempo, a
saber que a identidade de um ser só é válida e reconhecível se ela exclui a
identidade de todos os outros seres possíveis.
41
(GLISSANT, 1996, p. 15)
O autor define “crioulização” como um fenômeno de encontro e de choques entre
dois ou mais elementos culturais heterogêneos que, colocados em relação, podem
provocar um resultado imprevisível. Esta noção nos leva a uma fragilização da
identidade do ser humano, cuja solidez dá lugar à instabilidade e à incompletude.
Devemos, então, aceitar o fato de que o ser humano está em perpétuo processo de
construção (GLISSANT, 1996, p. 28).
Eric Landowski também acredita que a intensificação das relações interculturais
está modificando o nosso modo de pensar e agir com o outro:

41
(...) le monde se créolise, c’est-à-dire que les cultures du monde mises en contact de manière
foudroyante et absolument consciente aujourd’hui les unes avec les autres se changent en s’échangeant à
travers des heurts irrémissibles, des guerres sans pitié mais aussi des avancés de conscience et d’espoir
qui permettent de dire – sans qu’on soit utopiste, ou plutôt, en acceptant de l’être – que les humanités
d’aujourd’hui abandonnent difficilement quelque chose à quoi elles s’obstinaient depuis longtemps, à
savoir que l’identité d’un être n’est valable et reconnaissable que si elle est exclusive de l’identité de tous
les autres êtres possibles.
39
(...) tudo indica que este Outro que pressupõe a auto-identificação do Si está hoje,
socialmente falando, mudando de estatuto. Outrora ainda distante, ele se instala
atualmente entre nós. Não basta mais entender ou mitificar a cultura – o exotismo –
do outro, imaginado à distância sob os traços do “estrangeiro”; agora é preciso
viver, na imediatidade do cotidiano, a coexistência com os modos de vida vindos de
outros lugares, e cada vez mais heteróclitos. (LANDOWSKI, 2002, p. 4)
Segundo Landowski, se o homem entende o Outro como uma imagem negativa de
Si (“Eu sou o que você não é”) e se essa imagem é uma figura caricatural e sem
consistência, ele está ao mesmo tempo satisfazendo-se com uma visão simplista de sua
própria identidade. Portanto, um Nós outrora pleno e satisfeito consigo mesmo está
dando lugar a um Nós em busca de sua complexidade. Hoje entende-se que ser Si
mesmo não é apenas ser o não-Outro: “Eu sou o que você não é, sem dúvida, mas não
sou somente isso; sou também algo mais, que me é próprio – ou que talvez nos seja
comum” (LANDOWSKI, 2002, p. 27). Assim, ao buscar este “algo mais”, o Nós cheio
de certezas dá lugar ao Nós inquieto e questionador, que ingressa numa “autêntica busca
de identidade”. Como a identidade está sempre em fase de construção (expressa pelos
verbos “devir” e “tornar-se” da passagem abaixo), essa busca nunca chegará ao fim:
Em vez de se acharem determinadas por antecipação, as relações intersubjetivas
terão, a partir desse momento, de ser constantemente redefinidas na própria medida
em que o estatuto dos sujeitos estará como perpetuamente em devir.
(...)
Seja que ele tenha que reconhecer, presente no fundo de si mesmo, uma parcela de
Alteridade, seja que ele descubra que, em parte sua própria identidade lhe vem do
Outro, o sujeito, em semelhante caso, nunca é ele mesmo, mas torna-se ele – desde
que aceite mudar. (LANDOWSKI, 2002, p. 27) (grifos meus)
A psicanalista Julia Kristeva (1988) reforça esta ideia, concluindo que a chave
para aceitar a alteridade nas relações intersubjetivas é, antes, reconhecê-la na sua
própria subjetividade. A autora apoia-se no fenômeno de Unheimlich de Freud para
lembrar que o “eu-mesmo” completo e seguro de si deixou de existir a partir do
momento em que reconhecemos que o “estranho” nos habita. Em seu texto “O estranho”
(FREUD, 1996), Das Unheimlich em alemão, Freud analisa o fenômeno que se dá em
nós quando reconhecemos como estranho algo que nos foi familiar, mas que
permaneceu recalcado, dissimulado em nosso inconsciente, através do processo de
repressão. Para nomear este sentimento ambíguo, o autor usa a ambigüidade da palavra
heimlich que em alemão significa tanto o que é familiar, íntimo, amistoso, como
também o que está oculto, o que foi sonegado ou escondido de alguma forma. Este
40
segundo significado aproxima-se da definição de unheimilich, negação somente do
primeiro sentido de heimilich, fazendo com que o que é heimilich venha a ser
unheimilich. Como o ‘duplo’, que, segundo Freud, era originalmente uma segurança do
ego. A invenção de duplicar apareceu como uma defesa contra a extinção, isto é,
negação da morte. Tais ideias, que “brotaram do solo do amor-próprio ilimitado, do
narcisismo primário que domina a mente da criança e do homem primitiva”, ao serem
superadas, inverteram o aspecto mais amistoso do ‘duplo’, transformando-o em
anunciador da morte (FREUD, p. 252, 1996). O estranho, o outro, está, portanto, dentro
de nós e só é projetado para fora numa ânsia de defesa.
“Pois Eu é um outro”, já dizia Arthur Rimbaud, para quem este “outro” é o “eu”
desconhecido, o novo que deve ser buscado por todo poeta dentro de si mesmo: “O
primeiro estudo do homem que quer ser poeta é o seu próprio conhecimento, inteiro. Ele
procura sua alma, a inspeciona, a tenta, a aprende”
42
(RIMBAUD, 1871). Nessa busca,
através da qual o poeta se torna “vidente”, ele terá que passar por “um longo, imenso e
refletido desregramento de todos os sentidos”
43
. (RIMBAUD, 1871)
O que percebemos é que não só a busca de si passa por um processo de procura do
outro, mas a tentativa de conhecimento do outro e do mundo tamm deve ser precedida
por uma “inspeção” de sua própria “alma”, seu próprio ser. Para Jean Baudrillard,
estabelecemos todos uma certa “relação incestuosa com nossa própria imagem”
(BAUDRILLARD, 2008, p. 79). Na versão que nos conta de Narciso, este só se seduz
quando vê no seu reflexo a imagem perdida da irmã gêmea morta. Antes de amar a si
mesmo, seu amor era dedicado a essa irmã, sua “alma-gêmea”, seu duplo, que ele só vai
encontrar na morte, ao se afogar no rio. “Toda sedução é, então, narcísica e o seu
segredo reside nessa absorção mortal” (BAUDRILLARD, 2008, p. 78). Estamos, pois,
sempre procurando algo de nós mesmos no outro, por mais que suas diferenças também
nos atraiam. A identificação total com o objeto seduzido seria, porém, mortal.
Inspecionar sua alma e abrir-se ao outro ao mesmo tempo, foi o que Marguerite
Duras buscou em sua obra, que poderia ser lida como um único grande livro, feito de
escritos, vozes e imagens. Obra através da qual a autora parece buscar uma
compreensão de si mesma, contando e recontando suas experiências de vida, criando o
que Paul Ricoeur chamaria de “identidade narrativa”, identidade atribuída a um

42
La première étude de l'homme qui veut être poète est sa propre connaissance, entière. Il cherche son
âme, il l'inspecte, il la tente, l'apprend.
43
Je dis qu'il faut être voyant, se faire voyant. / Le poète se fait voyant par un long, immense et raisonné
dérèglement de tous les sens.
41
indivíduo ou a uma comunidade que, ao responder à pergunta “quem?”, une História e
ficção na narração de sua história de vida, a qual pode incluir mudança, mutabilidade,
desde que dentro da coesão de uma vida. (RICOEUR, 1985a, p. 442/443).
2.2 O erotismo
Neste processo de tentativa de compreensão de si e do outro, a escrita de Duras
passa por uma violação das normas existentes, o que traz para o seu texto a exploração
do erotismo. Como afirma George Bataille: “O que está em jogo no erotismo é sempre
uma dissolução das formas constituídas. Repito: dessas formas da vida social, regular,
que fundam a ordem descontínua das individualidades definidas que somos”
(BATAILLE, 2004, p. 31).
A respeito desta descontinuidade, Bataille afirma que somos todos seres
descontínuos, isto é, distintos e separados uns dos outros por um “abismo” profundo:
“Cada ser é distinto de todos os outros. (...) Ele nasce só. Ele morre só. Entre um ser e
outro há um abismo, uma descontinuidade” (BATAILLE, 2004 p. 22). Temos, porém,
uma “nostalgia da continuidade” e suportamos mal essa “individualidade perecível” que
somos, buscando no erotismo uma forma de vencê-la.
Ana Maria M. Valença observa com justeza que o erotismo defendido por
Bataille, mesmo sendo um aspecto da vida interior do homem, é, ao mesmo tempo, uma
forma de recusa de fechamento em si mesmo (VALENÇA, 1994, p. 157). Com efeito,
enquanto o desejo pertence à interioridade do ser, fazendo com que o erotismo seja
considerado por Bataille uma “experiência interior”, esse objeto do desejo é buscado
incessantemente “fora”. (BATAILLE, 2004, p. 45)
A ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, quer dizer,
ao estado de existência descontínua. É um estado de comunicação que revela a
busca de uma continuidade possível do ser além do retrair-se em si mesmo
(BATAILLE, 2004, p. 29).
A descontinuidade do ser estaria ligada, então, à nossa individualidade, ao nosso
recolhimento em nós mesmos; enquanto que a continuidade seria a abertura para o
outro, a busca das experiências com o mundo exterior. Como o par
identidade/alteridade, descontinuidade/continuidade estão sempre em relação, o ser
descontínuo está sempre em busca da continuidade.
42
É na escrita que Duras busca esta continuidade, mesmo se o ato de escrever é para
ela um processo extremamente solitário. A autora comenta em um livro chamado Écrire
(Escrever) que a escrita desencadeia um processo de transformação de si mesma. No ato
de escrever, ela sai do seu estado “normal”, do seu papel de mulher cumpridora das
regras, para tornar-se transgressora, “selvagem”:
A escrita torna selvagem. Atinge-se uma selvageria de antes da vida. E pode-se
reconhecê-la sempre, é aquela das florestas, aquela antiga como o tempo. A do
medo de tudo, distinta e inseparável da vida mesmo. Fica-se obstinado. Não se pode
escrever sem a força do corpo. É preciso ser mais forte do que si mesmo para
abordar a escrita, é preciso ser mais forte que a escrita. É uma coisa estranha, sim.
44
(DURAS, 1993, p. 24)
A escrita, “essa espécie de vulcão” (DURAS, 1993, p. 24), remete a autora à
selvageria das florestas, lugar privilegiado do proibido, da transgressão. É a floresta da
sua infância na Indochina, para onde ela ia ao desobedecer às ordens de sua mãe:
É a floresta da minha infância. Eu sei. Bem pequena, criança, eu morei em terras
perto da floresta virgem, na Indochina, e a floresta era proibida porque perigosa, por
causa das cobras, dos insetos, dos tigres, e tudo isso. E nós íamos assim mesmo, não
tínhamos medo.
45
(DURAS, 1977a, p. 26)
Lugar da desobediência, a floresta é também relacionada com a liberdade,
principalmente a liberdade da mulher: “(...) é na floresta que nós fomos as primeiras a
falar, nós as mulheres, que nós dirigimos uma palavra livre, uma palavra inventada”
46
(DURAS, 1977a, p. 27/28).
George Bataille também trata esta “selvageria”, a qual chama de “animalidade”,
em sua obra O Erotismo. Para ele, desde que a vida é regrada pelo trabalho, o homem
aprendeu a controlar o seu lado animal, que lhe é “natural”:
O aparecimento do trabalho e das interdições históricas e, sem dúvida,
subjetivamente apreensíveis, repulsões duradouras e uma náusea intransponível
marcam a tal ponto a oposição entre o homem e o animal que, a despeito da data
remota do acontecimento, a evidência é clara. Em princípio, coloco um fato pouco

44
Ça rend sauvage l’écriture. On rejoint une sauvagerie d’avant la vie. Et on la reconnaît toujours, c’est
celle des fôrets, celle ancienne comme le temps. Celle de la peur de tout, distincte et inséparable de la vie
même. On est acharné. On ne peut pas écrire sans la force du corps. Il faut être plus fort que soi pour
aborder l’écriture, il faut être plus fort que ce qu’on écrit. C’est une drôle de chose, oui.
45
La forêt, c’est la forêt de mon enfance. Je le sais. Toute petite, enfant, j’ai habité des terres près de la
forêt vierge, en Indochine, et la forêt était interdite, parce que dangereuse, à cause des serpents, des
insectes, des tigres, et tout ça. Et nous, nous allions quand même ; nous n’avions pas peur.
46
(...) c’est à la forêt que nous avons parlé, nous les femmes, les premières, que nous avons adressé une
parole libre, une parole inventée ; (...)
43
contestável: o homem é o animal que não aceita simplesmente o dado natural, ele o
nega. Assim, ele muda o mundo exterior natural, dele tira ferramentas e objetos
fabricados que compõem um mundo novo, o mundo humano. Paralelamente, o
homem nega a si próprio, ele se educa, recusa, por exemplo, a dar livre curso à suas
necessidades animais, curso ao qual o animal não impunha reservas. (BATAILLE,
2004, p. 337)
Como Bataille, Duras também remete a animalidade humana a uma “data
remota”: “Atinge-se uma selvageria de antes da vida”. Ora, Bataille entende que o
homem só se distinguiu essencialmente do animal pelo trabalho. Foi esta a época
também das interdições, das proibições que diziam respeito não só à morte (com o
sepultamento dos mortos para eliminar os vestígios da putrefação dos corpos), como
também, provavelmente ao mesmo tempo, em relação à sexualidade (BATAILLE,
2004, p. 46/47). O autor afirma que: “(...) o homem desprendeu-se da animalidade
primeira. Desprendeu-se dela ao trabalhar, ao compreender que morreria e ao passar da
sexualidade sem pudor para a sexualidade vergonhosa, da qual o erotismo resultou”
(BATAILLE, 2004, p. 48).
O erotismo é, então, consequência da interdição, da vergonha, pois só então é
possível a transgressão: “A experiência interior do erotismo solicita daquele que a prova
uma sensibilidade à angústia fundadora da interdição tão grande quanto o desejo que o
leva a enfrentá-la” (BATAILLE, 2004, p. 59) O próprio erotismo depende, pois, da
interdição que mesmo sendo enfrentada na transgressão, não é suprimida. Existe assim
“uma profunda cumplicidade entre a lei e a violação da lei”, num movimento entre
continuidade e descontinuidade, abertura e fechamento ao outro.
2.3 O lugar do outro
Nas histórias de Marguerite Duras, algumas alteridades tiveram papel
fundamental, bastante revelador de sua própria identidade. Escolhemos, porém, uma
delas, o amante chinês, por aparecer em obras de momentos bem distintos da carreira da
escritora. Este personagem é apresentado pela primeira vez como o tímido e feio M. Jo
de Barragem contra o Pacífico, em 1950. Em 1984, transforma-se num chinês elegante
que dá título ao mais conhecido livro de Duras, O Amante. Sua nacionalidade é, porém,
ainda considerada inferior à da sua amante francesa. Um pouco mais tarde, em 1991,
Duras escreve O amante da China do Norte, em que a origem do amante é finalmente
estampada sem pudor na capa do livro. Inferiorizado e rejeitado em Barragem, o chinês
tem sua imagem bastante modificada em O amante e em O amante da China do Norte,
44
quando passa a exercer uma forte atração sobre a menina francesa, que consegue
finalmente se diferenciar da sua família.
O núcleo familiar, presente nos três livros (a mãe, a filha e os irmãos), é muito
mais unido em Barragem, livro em que os irmãos reduzem-se a apenas um. A filha,
ainda menina, aparece como um duplo da própria Marguerite Duras, uma imagem sua
de quando era adolescente, apresentando-se como um “eu” em O amante, como
Suzanne, em Barragem e como “a Criança”, em O amante da China do Norte.
Em Barragem contra o Pacífico, Suzanne e sua família formam um único bloco.
Percebemos isso ao longo de todo o texto, não só através das atitudes submissas de
Suzanne em relação à família, mas também através da forte ligação que os une como se
fossem “feitos do mesmo material”. Diferentemente da maioria dos brancos da
Indochina, eles são pobres. A miséria e a vergonha frente aos outros brancos fazem
deles um grupo fechado, que só se entende dentro de si mesmo.
Suzanne não decide nada sozinha. É a sua mãe que percebe os primeiros olhares
de M. Jo e pede que ela seja mais amável. É sua mãe que decide onde e quando eles
devem se encontrar. Além disso, é o irmão Joseph que decide como e quando deve ser o
rompimento com M. Jo. Suzanne obedece.
O amor entre a mãe e os filhos é mostrado como algo exagerado, não só no
desespero da mãe que desiste de viver ao perceber que seu filho partirá, mas no perdão
dos filhos a todas as suas loucuras, como a de ter espancado a filha com ímpetos de
matá-la (“- E se eu quiser matá-la? Se me der prazer matá-la?” (DURAS, 2003, p.133)).
Um pouco adiante: “A mãe adormeceu. E, de repente, com a cabeça oscilante, a boca
entreaberta, completamente levada pelo leite do sono, ela flutuou, leve, na plena
inocência. Já não podiam querê-la mal.” (DURAS, 2003, p.137). Essas palavras doces
servem para desculpar a mãe de toda a brutalidade descrita anteriormente: a rigidez do
corpo, a vermelhidão, os olhos embaçados, os gritos, o rosto embrutecido, tudo fica para
trás e a família volta imediatamente a se entender.
M. Jo está excluído deste grupo fechado. Apresentado como um rico
desconhecido, ele não tem sua nacionalidade revelada
47
. Ao se apaixonar por Suzanne,
tenta sem sucesso ser aceito pela menina e sua família. Seu personagem é visto de forma
depreciativa pelo grupo, a que causa estranheza e repulsa. Figura franzina, de
personalidade fraca, embora não fique claro o verdadeiro problema na sua aparência,

47
Para Laure Adler, trata-se de um homem branco (ADLER, 1998, p. 84)
45
simplesmente parece que algo no seu físico impede a relação entre ele e Suzanne, como
podemos ver na fala de Joseph: “- Escute aqui, você já olhou para aquele cara? Minha
irmã nunca vai dormir com ele. Mesmo que não tenha nada, não quero que seja com ele
que ela durma” (DURAS, 2003, p. 145). M. Jo vê-se, então, obrigado a fazer favores
para toda a família, a fim de se aproximar.
M. Jo causa estranheza também ao leitor, primeiro por seu nome, que parece não
ter nacionalidade alguma. Além disso, o leitor tem acesso a poucas informações sobre o
personagem, de quem só sabemos que é um plantador do Norte e como fez fortuna. Na
verdade, quem fez fortuna foi seu pai, homem esperto e criativo, qualidades que não
foram herdadas por M. Jo. Este só herdou o dinheiro, que lhe colou à pele como uma
doença, um fardo talvez pesado demais para carregar: “Sozinho, sem pai, sem a
deficiência dessa fortuna sufocante, talvez ele tivesse remediado com mais sucesso sua
natureza” (DURAS, 2003, p. 62). Assim, não sabemos qual a natureza de M. Jo e o que
ele seria sem a fortuna do pai. Sem voz no romance, o leitor não tem acesso ao seu
ponto de vista. Diferentemente do que acontece com Suzanne, Joseph e a mãe, M. Jo é
silenciado. Sua figura caricatural e sem consistência parece a imagem simplista que
fazemos do Outro
48
quando queremos somente reforçar a diferença.
A relação de Suzanne e M. Jo limita-se a conversas na casa dela, sob a vigilância
da mãe, saídas para dançar e olhadelas de M. Jo para vê-la nua de relance pela porta do
banheiro. Aliás, o que ele mais faz é olhar embevecido e apaixonado para Suzanne:
Contentava-se em olhar para Suzanne com olhos transtornados, em olhá-la
novamente, em aumentar seu olhar com uma visão suplementar, como as pessoas
habitualmente fazem quando a paixão as sufoca. E quando acontecia de Suzanne
desfalecer de cansaço e tédio de tanto ser olhada assim, ao despertar ela o
reencontrava olhando com olhos ainda mais transbordantes. E aquilo não acabava
nunca. (DURAS, 2003, p. 67)
Suzanne deixa-se admirar pelo olhar do Outro estranho e desconjuntado. Este
Outro se contrapõe ao Nós, Suzanne e sua família. Ele é o que não se encaixa, o que
está sempre sobrando, o que não combina e não pode ser aceito por mais que seja gentil
e generoso. Aliás, a passagem em que M. Jo lhes oferece o fonógrafo e discos de Paris é
um exemplo de sua exclusão desse triângulo.

48
Os termos “Outro”, “Nós” e “Si” são usados nesta sessão com inicial em maiúscula seguindo o
princípio adotado por Landowsky.
46
- Escolhi as novidades de Paris. Disse timidamente M. Jo, um pouco desconcertado
diante do acesso de Joseph e da indiferença total à qual o relegavam. (DURAS,
2003, p. 81)
M. Jo não se aguentava mais de vontade de ver seu caso reconsiderado. Andava de
um lado para outro procurando ser, enfim, admitido como benfeitor da família. Mas
foi em vão. Para ninguém a seu redor existia a relação entre a vitrola e seu doador.
(...)
M. Jo acabou indo embora. (DURAS, 2003, p. 82)
Suzanne, sua mãe e Joseph aceitavam os presentes de M. Jo, mas não o
reconheciam como benfeitor. Sem agradecimentos, ao contrário, com total indiferença,
não só desconsideravam o fato de M. Jo poder estar fazendo algo bom para eles, como o
excluíam da festa, do momento de alegria que estavam tendo, por ser também um
momento de intimidade.
Tratado pelo irmão de Suzanne ora com desdém, “Depois, não lhe dirigiu a
palavra, a não ser bem mais tarde, e o fez com um desdém real” (DURAS, 2003, p. 89);
ora com insultos, “De vez em quando Joseph gritava injúrias manifestamente destinadas
a M. Jo” (DURAS, 2003, p. 96), M. Jo é nitidamente considerado Outro. A mãe deixava
claro que só o aceitava por causa do dinheiro: “É preciso estar em uma situação como a
nossa para que uma mãe dê sua filha a um homem como ele” (DURAS, 2003, p. 106).
Segundo Landowski, a exclusão do Outro é consequência da necessidade de se
manter um “equilíbrio interno” para aqueles que ainda acham que existe a ideia de
pureza original.
(...) todo este dispositivo é a necessidade, considerada vital, de controlar o conjunto
dos fluxos provindos do exterior que poderiam vir a perturbar um equilíbrio interno,
uma ordem, uma composição orgânica que se trata, precisamente, de manter, por
todos os meios disponíveis, num estado tão estável quanto possível.
(LANDOWSKI, 2002, p. 10)
Suzanne é sempre apontada pelo narrador como parte desta massa familiar, desta
“composição orgânica” a ser conservada apesar de todos os problemas. Normalmente
eles estão juntos, rindo juntos, sofrendo juntos, brigando juntos contra um inimigo
comum, como no dia em que Joseph defendeu a mãe dos agentes corruptos do cadastro:
Depois da primeira inspeção, houve outra, ocorrida naquele ano, na semana
seguinte do desabamento das barragens. Mas Joseph estava, afinal, em idade de se
intrometer. O manejo da espingarda tinha se tornado familiar para ele. Ele a
apontou para o nariz do agente do cadastro, que não insistiu e retornou para o seu
carrinho que servia para suas voltas. Desde então, daquele lado, a mãe estava
relativamente tranquila. (DURAS, 2003, p. 25)
47
Joseph é um elemento primordial que une este grupo. Quando Joseph parte, a
família desmorona: a mãe morre, Suzanne não tem outra saída senão partir. E sua
companhia será justamente alguém que lhe lembra o irmão (“Podia-se dizer, talvez, que
ele se parecia com Joseph” (DURAS, 2003, p. 314)). Neste momento, M. Jo já não é
mais cogitado como um parceiro para Suzanne.
Em O amante, o namorado desconjuntado vai transformar-se em um homem
elegante e desejável. A primeira diferença, porém, que separa O amante de Barragem
contra o Pacífico é a independência da personagem principal em relação a seus
familiares. Para começar, é ela que está contando sua própria história. E a sua história
não está mais confundida com a da sua família, que assume então um papel secundário.
A narradora-personagem explica que foi principalmente depois do encontro com o
chinês rico que se deu a separação entre ela e a família:
Assim que entrou no carro preto, teve certeza, está pela primeira vez e para sempre
separada de sua família. Desse momento em diante eles não devem mais saber o
que lhe acontecerá. Quer a apanhem, quer a levem, quer a maltratem, quer a
corrompam, eles não devem saber mais nada. Nem a mãe, nem os irmãos.
(DURAS, 1985a, p. 40/41)
É o fim da cumplicidade entre eles. Essa cumplicidade já parecia, aliás, ameaçada
pela presença aterradora do irmão mais velho e pela loucura da mãe. Desta vez, a filha
consegue, de certo modo, livrar-se do amor incondicional pela mãe (“ela nos
envergonha (...) dá vontade de enclausurar, espancar, matar” (DURAS, 1985a, p. 28)) e
ser mais firme diante da figura dominadora do irmão, que aqui são dois personagens
distintos: o irmão mais novo, o irmãozinho mártir, e o irmão mais velho, o assassino
caçador. A menina parece ter agora ideias e vontades próprias: “Respondi que meu
maior desejo era escrever, nada mais do que isso, nada.” (DURAS, 1985a, p. 27).
Além disso, ela não se contenta em usar as roupas herdadas da mãe e as deforma à
sua maneira. Os vestidos desfigurados por grossos cintos de couro, combinados com o
chapéu de homem e os sapatos de salto com strass tornam o seu corpo exageradamente
magro uma figura única, destoante não só na família, mas em todo lugar por onde passa.
Eles a individualizam, a tornam diferente e atraente: “Subitamente vejo-me como outra,
como outra será vista, lá fora, à disposição de todos, à disposição de todos os olhares,
lançada na circulação das cidades, das estradas, do desejo.” (DURAS, 1985a, p. 17)
48
Em O amante, apesar de ser colocado em evidência como título do livro, o
homem com quem a menina passa pela “experiência” não tem nome, mas tem a
nacionalidade revelada: ele é chinês. Também é muito mais velho e muito mais rico do
que ela. Diferenças de raça, idade e classe social criam uma barreira, assim como em
Barragem. O relacionamento é, porém, tratado de maneira diferente. Em O amante, a
relação amorosa se concretiza em um caso erótico, mostrando uma abertura muito maior
ao Outro que não é mais visto como uma ameaça. Ao contrário, a diferença se torna um
polo de atração para uma menina que reconhece a alteridade dentro de si mesma.
Ao reconhecer o Outro em Si, ela demonstra uma abertura, uma curiosidade pela
diferença, que facilita a aceitação do não-Si. A alteridade do chinês não a amedronta, a
seduz. Como diz Julia Kristeva, ao admitir que o estrangeiro está em nós, não
poderemos mais detestá-lo.
Estranhamente, o estrangeiro nos habita : ele é a face escondida de nossa
identidade, o espaço que desestrutura nossa morada, o tempo em que se deterioram
a harmonia e a simpatia. De reconhecê-lo em nós, nós nos poupamos de detestá-lo
nele mesmo.
49
(KRISTEVA, 1988, p. 9)
A percepção de sua diferença também separa a menina da sua família. Quando ela
conhece o amante, ela está sozinha. Ela aceita a primeira de várias caronas entre o liceu
e a pensão, e logo o relacionamento progride para os encontros na garçonnière dele em
Cholen: “Voltamos ao pequeno apartamento. Somos amantes. Não podemos parar de
amar” (DURAS, 1985a, p. 70).
Fica claro que há uma forte atração entre os dois. A atitude de repulsa da menina
em Barragem não acontece aqui e a estranheza física se transforma em elegância: “O
homem elegante desceu da limusine, fuma um cigarro inglês.” (DURAS, 1986, p. 42).
A família da menina, porém, não muda sua atitude. Quando a menina pede que o
amante os leve para jantares em Saigon, as cenas de Barragem se repetem:
Ninguém agradece. Nunca um muito obrigada pelo bom jantar, nem boa-noite, nem
adeus, nem como vai, nada.
Meus irmãos jamais lhe dirigiram a palavra. Era como se ele fosse invisível, sem
densidade suficiente para ser percebido, visto, ouvido por eles (...) Porque é um
chinês, não é branco. (DURAS, 1985a, p. 57)

49
Étrangement, l’étranger nous habite : il est la face cachée de notre identité, l’espace qui ruine notre
demeure, le temps où s’abîme l’entente et la sympathie. De le reconnaître en nous, nous nous épargnons
de le détester en lui-même.
49
A narradora parece querer denunciar o preconceito da família de quem ela não
quer mais ser cúmplice ao declarar: “Porque é um chinês, não é branco”. O que fica
disfarçado, ao não revelar a nacionalidade de M. Jo em Barragem, aqui é mostrado às
claras.
Durante esses jantares a menina, porém, não tem forças para enfrentar a família.
Ela ignora o amante, como se fosse obrigada a isso diante deles: “Eu também não lhe
falo na presença deles. Na presença da minha família não devo nunca lhe dirigir a
palavra” (DURAS, 1985a, p. 57/58).
Ela tem medo. Medo do irmão, medo da loucura da mãe, medo das suas
obsessões, medo da morte: “Devia acontecer durante a noite. Eu tinha medo de mim,
tinha medo de Deus. Quando chegava o dia, o medo era menor e a morte parecia menos
grave. Mas não me abandonava” (DURAS, 1985a, p. 11) A menina de O amante revela,
assim, uma certa instabilidade. Contraditória, dividida entre a família, o amante e os
seus desejos, ela busca um “algo mais”, ajudada principalmente pela sua relação com o
Outro. É depois de passar pela “experiência” que ela consegue fazer o que mais quer,
escrever.
Em Barragem a menina aparece muito mais ligada a uma ideia de pureza de um
Nós hipostasiado onde a alteridade é vista como pura exterioridade e, por isso, uma
ameaça ao equilíbrio interno. Em O amante, a menina, mais ciente da sua própria
alteridade, consegue se descolar, pelo menos parcialmente, do Nós e aceitar melhor a
diferença no exterior de Si, ou seja, no Outro.
Em nome do que, com efeito, se excluiria a priori a possibilidade de encontrar no
exterior do Si (ou do Nós), isto é, no Outro, uma parte de si mesmo, uma réplica ou
talvez uma outra face, insuspeita, de sua própria identidade? E com que base
afastar a possibilidade, inversa e complementar, de discernir algo da própria figura
do Outro no interior do Si? (LANDOWSKI, 2002, p. 11)
Descobrindo-se um pouco estrangeira a esta família, a menina parece ver no Outro
uma parte de si mesma ao descobrir-se também frágil, cheia de medos e dúvidas.
O amante separado por mais de trinta anos de Barragem contra o Pacífico,
representa, na verdade, um importante amadurecimento literário e pessoal da escritora
Marguerite Duras. Comparando as narrativas destes dois romances, percebemos que o
que muda não é apenas a relação da menina com o amante, mas também a sua forma de
representação, que em O amante se aproxima muito mais da linguagem da fotografia e
do cinema.
50
A adaptação para o cinema desta obra, em 1992 por Jean-Jacques Annaud, não
agrada a autora. Segundo o trabalho de Tamaru (2004), Annaud apresenta-nos um filme
“amplo e magestoso, não parecendo combinar com o universo de Marguerite Duras”. O
chinês torna-se personagem principal, com um corpo de “beleza cinematográfica”,
perde completamente sua fragilidade, chegando até a agressividade. Além disso, a
narrativa fragmentada e não-linear da obra literária é transformada em um filme “linear
e até óbvio para o espectador” (TAMARU, 2004, p. 13).
O amante da China do Norte aparece como uma resposta de Marguerite Duras a
Jean-Jacques Annaud. Seria a sua versão de O amante para o cinema: “Ela escreveu O
amante da China do Norte para se vingar, dando lições cinematográficas para Jean-
Jacques Annaud, querendo assim lhe fazer calar”
50
(DURAS, 1996, p. 172). Mas o
chinês aqui também não é mais o mesmo. Duras aproveita para criar um amante “mais
robusto”, com “menos medo” e “mais audácia” (“Ele é um pouco diferente daquele do
livro: ele é um pouco mais robusto que ele, tem menos medo que ele, mais audácia. Ele
tem mais beleza, mais saúde. Ele é mais “para o cinema” que aquele do livro. E também
tem menos timidez que ele frente à criança”
51
(DURAS, 1991, p. 36)), um amante
chinês finalmente capaz de enfrentar a família da menina francesa, sem nenhum
complexo de inferioridade (“O chinês não abaixa os olhos. Ele sorri para a mãe. Existe
nele este dia um tipo de insolência feliz, de segurança que lhe vem por estar lá, nesta
casa de Brancos (...)”
52
(DURAS, 1991, p. 132))
Entendemos que essa abertura ao outro, que aparece de maneira progressiva na
obra de Duras, é ao mesmo tempo a busca por uma continuidade, confirmada pela
presença cada vez mais marcante do erotismo em seus textos.
2.3 A escrita como lugar da transgressão
Não só em O amante, mas também em outros trabalhos de Marguerite Duras, a
dupla interdição/transgressão é colocada em questão, contribuindo para que seus textos
tenham a tensão dialética do jogo erótico. Mesmo que suas histórias e seus personagens

50
Elle écrit comme pour se venger L’Amant de la Chine du Nord, donnant des leçons cinématographiques
à Jean-Jacques Annaud, voulant par là le faire taire.
51
Il est un peu différent de celui du livre: il est un peu plus robuste que lui, il a moins peur que lui, plus
d’audace. Il a plus de beauté, plus de santé. Il est plus « pour le cinéma » que celui du livre. Et aussi il a
moins de timidité que lui face à l’enfant.
52
Le Chinois ne baisse pas les yeux. Il sourit à la mère. Il y a chez lui ce jour-là une sorte d’insolence
heureuse, d’assurance qui lui vient d’être là, dans cette maison de Blancs (...)
51
apenas mostrem uma maior liberdade a partir de um certo momento de sua carreira, a
interdição sempre esteve presente.
Em Barragem contra o Pacífico, por exemplo, a relação entre a menina e o
homem chinês é extremamente marcada pelo interdito, mas a transgressão também
aparece, fazendo com que se revele o erotismo.
Na passagem abaixo, Duras pinta com especial cuidado a cena de voyeurismo em
que Suzanne de Barragem permite as olhadelas voluptuosas de M. Jo durante os seus
banhos, pelos presentes que ganhará em troca, por puro prazer ou pelos dois:
Depois da conversa sobre as vitrolas e seus diferentes méritos, M. Jo pediu a
Suzanne que deixasse a porta do banheiro aberta para que ele pudesse vê-la nua, e
em troca lhe prometeu o último modelo de La Voix de Son Maître, além de discos,
as últimas novidades de Paris.
- Abre – ele pediu, bem baixinho. – Não vou te tocar, não darei nem um passo, só
vou te olhar, abre.
(...)
Suzanne se olhou bem, dos pés a cabeça, olhou demoradamente o que M. Jo, por
sua vez, lhe pedia para olhar. Surpresa, abriu um sorriso, sem responder.
(...)
- Amanhã ganhará sua vitrola – disse M. Jo – Amanhã. Uma magnífica Voix de Son
Maître. Minha querida e pequena Suzanne, abre um segundo e ganhará sua vitrola.
Foi assim que no momento em que ela ia abrir e se deixar ver pelo mundo, o mundo
a prostituiu. (DURAS, 2003, p. 71)
Depois deste episódio, Suzanne vai deixar frequentemente a porta do banheiro
aberta para M. Jo., “que não tinha o olhar que convinha” (DURAS, 2003, p. 72).
Suzanne não se deixa tocar durante essas sessões de voyeurismo, mas se expõe ao olhar
do outro apesar de achar que há nele algo que “não convém”. O jogo de interdição e
transgressão aparece aqui claramente, isto é, a “cumplicidade entre a lei e a violação da
lei” a que se refere Bataille. A lei é violada, mas continua a existir.
A mãe também representa esta ambiguidade ao incentivar e ao mesmo tempo
proibir a relação da filha com M. Jo:
M. Jo chegava depois da sesta; tirava seu chapéu, sentava-se indolentemente em
uma poltrona e, durante três horas, esperava e esperava de Suzanne um sinal
qualquer de esperança, um encorajamento, por menor que fosse, que lhe fizesse
acreditar que tinha feito algum progresso desde o dia anterior. Esse tête-à-tête
encantava a mãe. Quanto mais durava, mais ela tinha esperança. E se exigia que
deixassem a porta do bangalô aberta, era para não deixar a M. Jo outra saída que
não fosse a do casamento, a despeito da vontade fortíssima que ele tinha de dormir
com sua filha. Por isso a porta ficava escancarada. Sempre com seu chapéu de palha
e seguida por seu caseiro armado com uma enxada, ela passava muitas vezes diante
do bangalô entre as fileiras das bananeiras que margeavam a pista. Vez por outra,
52
olhava a porta da sala com um ar satisfeito: o trabalho que estava sendo feito atrás
daquela porta era de outro modo eficaz, diferente daquele que ela fingia fazer perto
das bananeiras (DURAS, 2003, p. 66/67).
A mãe encoraja o jogo de sedução e se extasia com a atração que M. Jo sente pela
filha (“Esse tête-à-tête encantava a mãe”). Seguindo as leis sociais, porém, proíbe que a
relação sexual se concretize, pois acredita que esta proibição é a garantia de que o
casamento se realizará.
Já em O amante, a menina aparece bem mais livre e a cumplicidade da mãe no
jogo da prostituição é mais claramente exposta:
Em volta dela os desertos, os filhos são o deserto, não realizarão nada, a terra
também árida, o dinheiro perdido, tudo acabado. Resta aquela menina que começa a
crescer e que talvez um dia venha a saber como trazer dinheiro para casa. Por esse
motivo, sem saber, a mãe, permite que a filha saia com aquelas roupas de prostituta
infantil. E é por esse motivo também que a menina já sabe muito bem o que fazer,
canalizar a atenção que ela desperta para o seu anseio por dinheiro. Isso faz a mãe
sorrir. (DURAS, 1985a, p. 29)
Com aproximadamente a mesma idade da menina Suzanne de Barragem
(“Suzanne, com dezesseis anos” (DURAS, 2003, p.5)), a narradora de O amante é ainda
uma adolescente quando vive a calorosa relação com um homem muito mais velho do
que ela: “Ele tem outro temor, não porque sou branca mas porque sou tão jovem, tão
jovem que podem prendê-lo se descobrirem nosso caso.” (DURAS, 1985a, p.70)
Além disso, a palavra prostituta é usada repetidas vezes. Palavra tabu, pois ligada
ao que é vil, indecente, deveria ser interditada em uma família burguesa de boa
reputação, mas é usada deliberadamente no texto de Marguerite Duras:
Ele não permitirá o casamento do filho com a pequena prostituta branca do posto de
Sadec. (DURAS, 1985a, p. 40)
Ele a chama de puta, de nojenta (...) (DURAS, 1985a, p. 48)
Durante essas crises minha mãe atira-se contra mim (...) berra, toda a cidade pode
ouvir, que a filha é uma prostituta (...) (DURAS, 1985a, p. 65) (grifos meus)
Para Bataille, todas as mulheres, como objetos privilegiados de desejo que são,
oferecem-se ao homem, assim como ocorre na prostituição. A prostituição seria, pois,
uma consequência da atitude feminina: “A menos que ela se resguarde inteiramente, por
uma decisão de castidade, a questão é, em princípio, a de saber a que preço, em que
condições ela cederá. Mas, com as condições satisfeitas, ela sempre se dá como um
objeto.” (BATAILLE, 2004, p. 204)
53
Aliás, na obra de Duras, é comum a mulher aparecer como um objeto a ser olhado
(“M. Jo a olhava da cabeça aos pés” (DURAS, 2003, p. 217)), apreciado (“Ele diz que é
extraordinário encontrá-la na balsa. De manhã tão cedo, uma moça tão bonita, de uma
beleza quase inconcebível” (DURAS, 1985a, p. 109)), possuído pelo homem (“Tudo
excitava seu desejo e fazia com que me possuísse” (DURAS, 1985a, p. 109)).
A menina em O amante, porém, difere daquela de Barragem na medida em que
não se restringe a ser olhada, mas participa da relação sexual e do gozo: “E chorando ele
realiza o ato. A princípio, a dor. E depois a dor se transforma, é arrancada lentamente,
transportada para o prazer, abraçada ao prazer” (DURAS, 1985a, p. 44). É neste
momento que a menina se separa definitivamente da imagem da mãe, aqui símbolo do
interdito, e se aproxima do outro ao realizar a transgressão.
A imagem da mãe atravessa o quarto já sem amedrontar, como uma criança que,
ao contrário da filha, “não conheceu o prazer”:
A imagem da mulher com as meias cerzidas atravessou o quarto. Aparece afinal
como criança. Os filhos já sabiam. A filha, ainda não. Nunca falaram da mãe,
daquilo que sabiam e que os separava dela, daquele conhecimento decisivo, último,
da infância da mãe.
A mãe não conheceu o prazer. (DURAS, 1985a, p. 44)
O jogo entre a transgressão e o interdito em O amante vai muito além de
Barragem contra o Pacífico. As transgressões ocorrem com mais violência, sem que as
interdições tenham sido abolidas. Luta contra a descontinuidade, busca da continuidade,
a transgressão de O amante é de fato um encontro com o outro, com a alteridade.
O simples fato da relação amorosa entre a menina francesa de quinze anos e meio
com um chinês muito mais velho que ela, numa sociedade em que ainda se espera que
as mulheres casem virgens, já é uma transgressão: “Sua filha corre o maior dos perigos,
o de jamais se casar, jamais se estabelecer na sociedade, o perigo de ficar
completamente desarmada perante a sociedade, perdida, solitária.” (DURAS, 1985a,
p.64/65) A ponto de a filha levar uma surra, a mesma surra que acontece em Barragem,
só que agora incentivada pelo irmão mais velho:
“O irmão responde à mãe, diz que ela tem razão em bater na menina, sua voz é
macia, íntima, acariciante, diz que precisam saber a verdade, custe o que custar,
precisam saber para impedir que a menina se perca, para impedir que a mãe se
desespere.” (DURAS, 1985a, p.64/65)
54
A descrição das reações do irmão à violência da mãe (que em Barragem chegou a
desejar matar!) assemelham-se a um ato de amor por causa dos adjetivos: “macia,
íntima, acariciante”. Duras erotiza assim até a violência e, no limite, a morte. Cito
Bataille:
Essencialmente, o campo do erotismo é o campo da violência, o campo da violação.
(p. 27)
O que significa o erotismo dos corpos senão a violação do ser dos parceiros? Uma
violação limítrofe ao limiar da morte? Limítrofe ao ato de matar? (BATAILLE,
2004, p. 28)
Marguerite Duras vai ainda além em O amante quando a narradora-personagem
explicita seu desejo de levar uma outra adolescente para o quarto do seu amante,
criando um ménage-à-trois:
Quero levar comigo Hélène Langonelle para lá, onde todas as noites, com os olhos
fechados, me é dado o prazer que me faz gritar. Gostaria de dar Hélène Langonelle
àquele homem que faz isso em mim, para que ele o fizesse nela. Tudo na minha
frente, fazendo o que eu mandasse, que se entregasse lá onde me entrego. Seria por
meio do corpo de Hélène Langonelle que o prazer chegaria até o meu, só assim
definitivo.
O bastante para morrer. (DURAS, 1985a, p. 81/82)
A morte representa uma desordem na organização do mundo do trabalho (que
seria o mundo profano) ao qual se opõe o mundo da violência (ou o mundo sagrado)
(BATAILLE, 2004, p. 71), levando, porém, à continuidade tão procurada. Em Bataille
(2004), a religião também faz parte do mundo da violência e do erotismo. Nesta
passagem, a narradora mistura o seu desejo de amar com seu “conhecimento de Deus”:
“Eu gostaria de comer os seios de Hélène Langonelle como são comidos os meus no
quarto da cidade chinesa aonde vou todas as noites aprofundar-me no conhecimento de
Deus.” (DURAS, 1985a, p. 81).
O homem não tendo nunca conseguido banir a sexualidade, restringiu os lugares e
as circunstâncias em que ela pode ser praticada e as pessoas com quem ela pode ser
realizada. Estas limitações são, porém, variáveis e arbitrariamente definidas. Um
exemplo é a restrição dos “contatos sexuais das pessoas que moram juntas às relações
do pai e da mãe, que usufruem uma vida conjugal inevitável”. (BATAILLE, 2004, p.
343) A violação desta interdição é o incesto.
55
O incesto é a interdição que não só perpassa as três obras aqui citadas até agora,
como também se torna tema principal de uma peça de teatro de Duras, também adaptada
para o cinema, Agatha. Somente sugerida em Barragem e O amante, a relação amorosa
entre a irmã e o irmão é discutida ao longo de todo o texto de Agatha. Neste livro, um
homem e uma mulher, dois irmãos, encontram-se para se despedir e reconhecer a
impossibilidade de se amarem: “Ela – Vou. Vou embora para fugir de você e para que
você venha ao meu encontro lá mesmo. Na fuga de você, e então sempre irei embora de
onde você estiver. (tempo) Não temos outra escolha. (DURAS, 1981a, p. 67)
O amor proibido, impedido, já presente em Barragem e O amante, recebe aqui a
maior das barreiras, o maior dos interditos. É somente em O amante da China do Norte,
um de seus últimos livros, que a relação sexual entre os irmãos finalmente concretiza-
se:
Paulo veio no banheiro pela portinha ao lado do rio. Eles se beijaram muito. E
depois ela se desnudara e depois se estendera ao lado dele e lhe mostrara que ele
tinha que vir sobre seu corpo. Ele fizera o que ela dissera. Ela o beijara de novo e o
ajudara.
Quando ele gritara, ela se voltara em direção ao seu rosto, prendera sua boca com a
dela para que a mãe não ouvisse o grito de prazer de seu filho.
53
(DURAS, 1991,
p.209)
Entendemos que o incesto é a maior das interdições da obra de Marguerite Duras.
A relação proibida entre os dois irmãos pode ter representado para Duras a dificuldade
de amar, de compreender o outro e a si própria, busca contínua em toda sua obra.
Ao longo de sua carreira, porém, muda sua concepção de identidade, que se revela
cada vez mais complexa e aberta à figura do outro. Em sua busca identitária, o erotismo
tem papel fundamental, pois coloca a escrita como lugar de libertação da mulher e
escritora Marguerite Duras.
“Poder-se-ia dizer que são parecidos” (DURAS, 1981a, p. 5), comenta a autora na
abertura de Agatha, ao apresentar o casal que se ama. Casal ao mesmo tempo diferente
(pois seres distintos) e parecido (pois irmãos). Relembramos aqui como

53
Paulo est venu dans la salle de bains par la petite porte du côté du fleuve. Ils s’étaient embrassés
beaucoup. Et puis elle s’était mise nue et puis elle s’était étendue à côté de lui et elle lui avait montré qu’il
fallait qu’il vienne sur son corps à elle. Il avait fait ce qu’elle avait dit. Elle l’avait embrassé encore et elle
l’avait aidé.
Quand il avait crié elle s’était retournée vers son visage, elle avait pris sa bouche avec la sienne pour que
la mère n’entende pas le cri de délivrance de son fils.
56
identidade/alteridade, descontinuidade/continuidade estão interligados na busca pela
compreensão de si e do outro.
57
3 – Imagem e memória
3.1 A origem dessa relação
Já comentamos a relação da escrita de Marguerite Duras com o seu passado. Suas
lembranças da infância e adolescência na Indochina francesa povoam seus livros e
filmes em histórias que se repetem como uma obsessão. Na representação desta
memória, as imagens, fixas como nas fotografias ou em movimento como no cinema,
têm papel tão fundamental quanto as palavras.
Há muito tempo, aliás, imagem e memória vêm sendo associadas. Aristóteles, em
sua “teoria da memória e da reminiscência”, definia a memória como “um conjunto de
imagens mentais das impressões sensuais mas com um adicional temporal; trata-se de
um conjunto de imagens de coisas do passado” (SELIGMANN-SILVA, p. 32, 2006).
Hoje a definição de memória mantém a noção de passado, mas não se prende mais à
ideia de imagem. No dicionário Houaiss
54
, a primeira concepção da palavra memória é
“faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados e tudo quanto se
ache associado aos mesmos”, enquanto que no Aurélio
55
temos: “faculdade de reter as
ideias, impressões e conhecimentos adquiridos anteriormente”.
O termo imagem não aparece mais nas definições de memória, mas é interessante
notar o uso por Aurélio da palavra “impressões”. Para Aristóteles, as impressões
sensuais vêm dos cinco sentidos externos, responsáveis pela captação das sensações e
pelo seu transporte para a imaginação; esta, por sua vez, é responsável por realizar a
tradução dos dados dos sentidos em imagens, além de criar imagens independentes.
Em contra-ponto aos sentidos externos, Aristóteles distingue três sentidos
internos: a memória, a imaginação e o engenho (ou a razão). A memória é vista como
um reservatório de imagens e pertence à mesma parte da alma que a imaginação. É na
memória que são guardadas as imagens mentais das impressões sensuais. Essas
imagens, que precisam ter uma espécie de semelhança com o percebido, são
“impressas” na memória como se esta fosse um bloco de cera, com a consistência
correspondente à sua capacidade de retenção de informações. A superfície mnemônica
dos jovens seria ainda muito úmida para que a imagem permaneça, enquanto que a dos

54
Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa versão 1.0
55
Novo dicionário Aurélio – dicionário eletrônico versão 5.0 – edição revista e atualizada
58
velhos já estaria muito dura para que a impressão seja deixada. Assim, associamos a
imagem não só à memória, mas também à escrita.
Aliás, ainda antes de Aristóteles, criou-se na Antiguidade uma forma de “escrita
mnemônica”, isto é, uma maneira de armazenar longos discursos, gravando-o na
memória através de imagens. A “arte da memória”, que exerceu sua influência até o
aparecimento dos livros, tem como princípio central a transformação de fatos em
imagens (imagenes), que seriam guardadas em lugares imaginários na memória (loci).
Não se trata de uma imagem qualquer, mas uma imagem com elementos bem
conhecidos e de forte poder de fixação (como elementos que chocam ou causam terror).
Deve-se, então, escolher “em pensamento” locais distintos, dentro de um espaço
inspirado na natureza ou na arquitetura de prédios antigos, que se organizem em uma
determinada ordem para que depois sejamorganizadas as imagens. “Esses locais e a
sua sucessão devem ser de tal modo incorporados na nossa mente, que se tornem tão
fixos quanto um suporte de escrita” (SELIGMANN-SILVA, 2006, p. 35/36). Do mesmo
modo, ao escrever, associamos letras (as imagenes) aos seus devidos lugares no papel
(os loci), pois só com uma determinada organização podemos restituir o sentido do
texto posteriormente. Portanto, na arte da memória, ora narrativas são traduzidas em
imagens (como uma forma de escrita), ora imagens em narrativas (como uma forma de
leitura).
O ensaísta e romancista Alberto Manguel, parte das ideias de Aristóteles para
afirmar que as imagens, assim como as palavras, são a matéria de que somos feitos, pois
são também a matéria do nosso pensamento.
Sem dúvida, para o cego, outras formas de percepção, sobretudo por meio do som e
do tato, suprem a imagem mental a ser decifrada. Mas, para aqueles que podem
ver, a existência se passa em um rolo de imagens que se desdobra continuamente,
imagens capturadas pela visão e realçadas ou moderadas pelos outros sentidos,
imagens cujo significado (ou suposição de significado) varia constantemente,
configurando uma linguagem feita de imagens traduzidas em palavras e de palavras
traduzidas em imagens, por meio das quais tentamos abarcar e compreender nossa
existência. (MANGUEL, p. 21)
Para Manguel, portanto, toda a nossa compreensão do mundo passa por essa
capacidade de tradução das palavras em imagens e vice-versa.
59
3.2 Literatura e cinema
Duras compreende todo esse processo principalmente quando se torna, além de
escritora, roteirista e diretora de cinema, atividade desenvolvida por ela essencialmente
na década de 1970. Passando seus romances para as telas de cinema, publicando seus
roteiros como livros, que André S. Vieira chama de “cine-romances”, Duras tece um
intenso diálogo entre a literatura, o cinema e, consequentemente, a fotografia. Vieira faz
o seguinte comentário sobre os cine-romances de Marguerite Duras:
Ao contrário do que ocorre no romance tradicional, em que as descrições apelam
para a imaginação do leitor e que, em um roteiro, tornam-se supérfluas, nos cine-
romances as descrições parecem resistir à visualização em função da dificuldade
em representá-las. Trata-se, antes, sobretudo em Duras, de descrições interiores,
subjetivas ou inconscientes, tornadas possíveis apenas pela palavra. (VIEIRA, p.
119)
Quando a autora escreve romances, eles estão impregnados de linguagem
cinematográfica e as imagens pululam, mas quando faz roteiros para o cinema, as
palavras impõem-se às imagens, a ponto de tornarem-se irrepresentáveis, intraduzíveis
em imagens. A solução mostra-se, às vezes, estampar na tela de cinema o próprio texto,
trecho do roteiro a ser lido pelo espectador, como em Agatha ou as leituras ilimitadas.
Em seus filmes, Duras preocupa-se principalmente em dar espaço ao silêncio e às
falhas. O excesso de informação transmitida nos filmes comerciais, com a pretensão de
tapar todos os buracos e de tudo explicitar, é para a autora a “podridão”. Segundo ela, a
riqueza de recursos, em vez de contribuir para a grandeza do filme, é responsável, ao
contrário, pela sua pobreza. Em uma entrevista à jornalista Xavière Gauthier, Duras
comenta as vozes em off que funcionam como um filme dentro do filme em seu trabalho
La femme du Gange (A mulher do Ganges):
(...) aquelas vozes não teriam chegado ao filme se o filme estivesse atulhado de
imagens, se o filme não tivesse falhas, ou... o que eu chamo de buracos, se ele não
fosse pobre – bem, o que para mim é a riqueza. Os filmes mais pobres são, para
mim os filmes com duas mil tomadas. Aqueles dos quais só se sai desolado, depois
de ver tantos esforços, tanto labor, tanto dinheiro empenhados para chegar a
tamanha asfixia – nada mais pode entrar -, tudo está explicitado, tudo isso
(GAUTHIER, 1974, p. 65).
As falhas, ou a incompletude, também aparecem na construção de seus
personagens, normalmente figuras enigmáticas que estão à procura de algo que nunca é
60
alcançado plenamente, como a inesquecível Lol V. Stein do livro Le ravissement de Lol
V. Stein (O deslumbramento). Já no título, há uma complexa ambiguidade tanto no nível
semântico, quanto no sintático. Antes de tudo, a palavra “ravissement” pode significar
ao mesmo tempo “deslumbramento”, “encantamento” e “sequestro”. Em seguida, a
dúvida se instala na posição de Lol em relação a este “ravissement”, isto é, a
personagem pode ser tanto sua agente quanto sua paciente
56
. Zlatka Timenova, tradutora
e professora na Universidade Lusófona, comenta:
O valor extraordinário do romance reside nesta hesitação fundamental, colocada já
lexicalmente e gramaticalmente pelo título, e que investe o personagem e o
romance da energia do inacabamento, do indizível e da falta. Assim, como falar do
efeito fulgurante da cena do baile em que Lol perde o seu noivo, Michael
Richardson? (...) Ora, nossa linguagem destrói a fulgurância. Era preciso então
destruir a linguagem. Duras o faz. A sintaxe isolante frisa a incorreção e dá uma
nova força às palavras. Sozinhas, livres para entrar nas combinações inesperadas e
significar outra coisa, as palavras emergem das páginas brancas em que as frases se
desvanecem. O êxtase da fulgurância e o vazio que se segue, a indiferença, a
indolência desestruturam a linguagem.
57
(TIMENOVA, 2005, p. 149).
Tanto a composição dos personagens quanto a estrutura textual contribuem, então,
para dar a ideia de que o ser pleno e acabado não existe, ao contrário, a identidade
perde-se na incapacidade da pessoa em controlar suas vontades, os seus desejos, como
afirma Gauthier ao analisar os personagens do filme La femme du Gange: “É uma
existência, ao contrário [da não existência], é a existência mais forte. Identidade, quero
dizer, alguém que pensava ser mestre de si, de seus desejos, ser uma pessoa inteira e
segura, com vontade própria e tudo o mais, isto se perdeu” (GAUTHIER, 1974, p. 42).
As duas mulheres, Gauthier e Duras, prosseguem a análise com o seguinte
diálogo:
X.G. – [Os personagens de La femme du Gange] não dão a impressão, que se tem
na maioria dos romances e também dos filmes, de serem pessoas plenas.
M.D. – Eles estão completamente desconchavados, desalojados da sociedade,
completamente.

56
Ver Lacan (1988).
57
La valeur extraordinaire du roman réside dans cette hésitation fondamentale, posée déjà lexicalement et
grammaticalement par le titre, et qui investit le personnage et le roman de l'énergie de l'inachevé, de
l'indicible et du manque. Ainsi, comment parler de l'effet fulgurant de la scène du bal où Lol perd son
fiancé, Michael Richardson? (...) Or, notre langage détruit la fulgurance. Il faudrait donc détruire le
langage. Duras le fait. La syntaxe isolante frise l'incorrection et donne une nouvelle force aux mots. Seuls,
libres pour entrer dans des combinaisons inattendues et signifier autrement, les mots émergent des pages
blanches où les phrases s'évanouissent. L'extase de la fulgurance et le vide qui s'en suit, l'indifférence,
l'indolence, mettent à mal le langage.
61
X.G. – E é por isto que é assustador, é por eles serem atravessados por completo
por alguma coisa mais forte que eles e que é o desejo. (GAUTHIER, 1974, p. 43)
(grifo meu)
A questão do desejo aparece com certa complexidade na obra de Marguerite
Duras. Não se trata simplesmente do desejo entre um homem e uma mulher, mas de
algo que perpassa o texto e os personagens, marcando-os fortemente sem todavia
deixar-se fixar, controlar. Para que haja “uma espécie de circulação do gozo”
(GAUTHIER, 1974, p.36), como explica Duras, é preciso que haja uma terceira pessoa
“que provoca e que também goza” (GAUTHIER, 1974, p.36). A pergunta de Xavière
Gauthier explicita melhor esse tema: “É verdade que, de certo modo, só se faz amor a
três. Quer dizer que o terceiro, mesmo e sobretudo não estando presente, não será
necessário que ele exista para que o desejo continue a circular?” (GAUTHIER, 1974,
p.36). É para fazer com que o desejo “circule” que existe, então, a figura do voyeur em
muitos textos de Duras. O ensaio de Michelle Royer ratifica a importância do olhar do
outro em Duras:
(...) o afrontamento do olhar do outro tornou-se ele mesmo o tema maior de sua
obra assim como uma aventura dominante de sua vida. Deste ponto de vista, o
cinema foi uma etapa decisiva de sua carreira. Lugar privilegiado dos jogos do
casal exibicionista-voyeur, o cinema fornece um terreno de experimentação, uma
ferramenta catártica idealmente adaptada.
58
(ROYER, 2007, p. 173)
Royer entende que o cinema é um terreno fértil de experimentação para os jogos
de voyeurismo/exibicionismo. No filme O homem atlântico, por exemplo, Duras coloca
em questão a solidão do ser face ao seu público. Sua própria voz em off dá instruções ao
ator para ajudá-lo a superar o medo da câmera até que ordena que olhe a câmera e
enfrente o seu público imaginário (ROYER, 2007, p. 173). Para Royer, “(...) não se trata
mais de esconder-se do olhar do público mas de confrontar-se com ele aceitando ser o
objeto do espetáculo: O homem atlântico é um filme sobre o cinema como lugar de
resolução do medo do outro” (ROYER, 2007, p. 174). A partir desse filme, a autora
teria se mostrado mais aberta ao público ao conceder entrevistas e “se engajar em uma
série de publicações de caráter jornalístico e autobiográfico, acessíveis ao grande
público.” Este período culminaria com a publicação de O amante, perseguindo o

58
(...) l’affrontement au regard de l’autre est devenu lui-même le thème majeur de son oeuvre aussi bien
qu’une aventure dominante de sa vie. De ce point de vue, le cinéma a été une étape décisive de sa
carrière. Lieu privilégié des jeux du couple exhibitioniste-voyeur, le cinéma a fourni un terrain
d’expérimentation, un outil cathartique idéalement adapté.
62
trabalho de “confrontação com seus leitores”, começado em O homem atlântico.
(ROYER, 2007, p. 174)
Com efeito, Duras dá a este “terceiro personagem o status de elemento principal
da obra, chegando a confundi-lo com a própria escrita: “E você acha que este terceiro
personagem não é a escrita? Você acha que se pode encontrá-lo... em outros lugares?”
(GAUTHIER, 1974, p.36).
Na verdade, este voyeur é também o próprio público ou o leitor. Os espaços
deixados em seus livros tem a função de dar liberdade ao leitor para participar da
narrativa, construindo o texto junto com o autor e fazendo com que a circulação do
desejo passe também por ele.
Os espaços aparecem às vezes fisicamente, através de brancos introduzidos nos
textos. O efeito do negro da escritura em contraste com o branco da página não é
desprezado por Marguerite Duras em obras como, por exemplo, O amante, em que os
brancos funcionam como momentos de silêncio, servindo também para dar ritmo ao
texto. Vieira comenta o branco narrativo no cine-romance O caminhão de Duras:
(...) o branco narrativo é um espaço precioso que, ao ser transposto para a página,
reitera a essência mesma do indizível e faz entrever o vazio, processo este em
oposição direta aos ditames da escritura clássica, na qual o espaço literário da
página deveria ser totalmente preenchido pelo escrito, saturando-o de sentido. A
descontinuidade estrutural e sintática da obra, seu caráter especular, questionam a
narração, rompendo o encadeamento lógico da história e perturbando a
manifestação imediata do sentido. (VIEIRA, p. 134)
O rompimento da continuidade narrativa e do encadeamento lógico da história,
perturbando a formação de sentido, não só contribui para a fragilidade da obra, mas
coloca em questão a sua própria capacidade de representação do real.
3.3 Lembrança e esquecimento
Os espaços vazios podem significar também a falha da memória que, tendo que
reerguer as ruínas do passado, colar os fragmentos que resistiram à ação do tempo e do
esquecimento, nunca poderá restituir exatamente o que aconteceu. Como afirma Salman
Rushdie, ao comentar a situação de escritores indianos que vivem no exílio, alguns
fragmentos da sua Índia da infância foram irremediavelmente perdidos (RUSHDIE,
1993, p. 21). Entretanto, esses detritos esparsos da memória adquirem a qualidade de
63
símbolo ou de algo sobrenatural ao se tornarem “vestígios”. O autor faz analogia com a
arqueologia. Os vasos quebrados encontrados da Antiguidade podem reconstruir um
passado apenas “provisório”, pois não podemos recompor seus fragmentos sem que
restem espaços entre eles; por outro lado, cada pedaço assume um valor infinitamente
maior ao que possuía no tempo em que foi criado.
Já Marc Augé usa a metáfora da costa e do mar para explicar a relação entre as
recordações (ou vestígios da memória) e o esquecimento: “As recordações são
moldadas pelo esquecimento como os contornos da costa o são pelo mar” (AUGÉ,
1998, p. 26). Isto porque a memória não pode ser pensada sem o esquecimento, os dois
“mantêm de algum modo a mesma relação que existe entre a vida e a morte” (AUGÉ,
1998, p. 19), termos que só se definem um em relação ao outro. A morte faz parte da
vida assim como o esquecimento faz parte da memória, principalmente se definirmos a
vida como algo entre duas mortes e o esquecimento como perda da recordação. Augé
completa:
Para que a metáfora marinha seja quase pertinente, seria preciso evocar essas
paisagens explodidas onde, como nas costas do norte da Bretanha ou no mar da
China, fragmentos terrestres – ilhotas, acumulações rochosas, quebra-mares –
parecem ter-se espalhado sobre o mar de tal maneira que o olhar do profano, nos
dias de hoje, já não pode, não só ignorar o seu ar familiar, como ainda deixar de
reconstituir a sua coerência perdida. (AUGÉ, 1998, p. 19)
O que resta da memória após o trabalho do esquecimento é, então, não só uma
massa corroída pelo tempo, mas também pedaços esparsos, que foram despregados da
“costa” de tal forma que não conseguimos mais reaproximá-los dela, nem de outros
pedaços semelhantes. Esta “paisagem” que nos resta não é mais aquela original, mas
guarda ainda características suas, a fim de que possamos ou tentemos um dia
“reconstituir a coerência perdida”, assim como reconstituímos a narrativa através das
imagens fixadas pela arte da memória.
A anedota que está na origem da tradição clássica da arte da memória, transmitida
pelo texto latino de Cícero De Oratore, nos leva a relacionar esses vestígios da memória
a ruínas. Cito a descrição de Seligmann:
Nessa anedota, Simônides é salvo do desabamento de uma sala de banquete onde
se comemorava a vitória do pugilista Skopas. O que nos importa nessa história é o
que sucedeu após a catástrofe. Os parentes das vítimas não conseguiram reconhecer
os seus familiares mortos que se encontravam totalmente desfigurados sob as
ruínas. Eles recorreram à Simônides – o único sobrevivente – que graças à sua
64
mnemotécnica conseguiu recordar-se de cada participante do banquete, na medida
em que recordou do local ocupado por eles. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.55)
Aqui Simônides consegue reconstituir o que foi transformado em ruínas,
aplicando a arte da memória, isto é, buscando em sua memória a imagem de cada
pessoa que estava “guardada” em um lugar determinado. Nesta anedota, a memória não
só é associada a ruínas como também à morte.
Seligmann considera que “A arte da memória, assim como a literatura de
testemunho, é uma arte da leitura de cicatrizes” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 56),
pois aqueles que viveram experiências como a da Shoá precisam reconstruir sua vida a
partir de ruínas, que se transformaram em traumas, cicatrizes da memória. O
pesquisador nos lembra que a origem latina da palavra “esquecer” é cadere, que
significa cair, portanto está ligada ao “desmoronamento [que] apaga a vida, as
construções” e que também é a origem das ruínas.
Duras deixa transparecer em sua obra as cicatrizes que marcaram sua existência.
Podemos dizer que, mesmo não tendo sido ela mesma testemunha ocular em um campo
de concentração, sua vida também foi marcada por traumas: a loucura de sua mãe, a
deportação de seu marido, a perda de um filho, a dependência do álcool. Como afirma
Seligmann, “(...) não só aquele que viveu um “martírio” pode testemunhar; a literatura
sempre tem um teor testemunhal. E, por outro lado, o “real” é – em certo sentido, e sem
incorrer em qualquer modalidade de relativismo – sempre traumático” (SELIGMANN-
SILVA, 2003, p.55).
Em O amante, a narradora conta a história de uma adolescente marcada por
experiências que não correspondem à sua idade: “Quando eu tinha dezoito anos já era
tarde demais. Entre dezoito e vinte e cinco anos meu rosto tomou uma direção
imprevista. Aos dezoito anos envelheci.” (DURAS, 1984, p. 7). Aos quinze anos a
personagem vive uma aventura amorosa com um homem doze anos mais velho, para
quem pedia dinheiro e jantares para sua família, uma forma de prostituição com o
consentimento da mãe:
A mãe não a impedirá quando ela procurar o dinheiro. A menina dirá: pedi
quinhentas piastras para voltar à França. A mãe dirá que está bem, que é o
necessário para se instalar em Paris, ela dirá: quinhentas piatras serão suficientes. A
menina sabe que o que faz é aquilo que a mãe desejaria que fizesse, se tivesse
coragem, se tivesse força suficiente, se o mal provocado pela idéia não estivesse
presente a cada dia, extenuante. (DURAS, 1986, p. 29)
65
Nos “Cadernos de Guerra” (DURAS, 2006), escritos deixados arquivados por
Marguerite Duras, a autora deixa claro o que sua família esperava do seu rico namorado
Léo da adolescência:
A intrusão de Léo na família mudou todos os planos. Assim que conhecemos o
montante de sua fortuna, foi decidido por unanimidade que Léo pagaria os chettys,
financiaria diversas empreitadas (uma serraria para meu irmão caçula e um ateliê
de decoração para o mais velho) cujos planos foram meticulosamente estudados
pela minha mãe, que além disso e como complemento ele muniria cada membro da
família de um carro particular. Eu estava encarregada de transmitir estes projetos a
Léo e de “sondá-lo” a respeito, sem nada lhe prometer em contrapartida.
59
(DURAS, 2006, p. 57)
Pelos escritos deixados por Duras, percebemos que sua relação com Léo está
muito mais próxima da estranha ligação entre Suzanne e M. Jo de Barragem contra o
Pacífico, do que da ardente aventura entre a menina francesa e o chinês de O amante.
Léo era feio e lhe causava repulsa. Ao mesmo tempo que parecia sua única chance de
sair da miséria, a única pessoa capaz de financiar a ida da família para a França (“Para
sair de lá, era preciso Léo”
60
(DURAS, 2006, p. 83)); o namorado era para ela um fardo:
“Pareceu-me então que Léo era um pobre coitado, e que eu passaria minha vida em sua
companhia, que era meu destino ter Léo depois de ter tido minha família e que eu nunca
me livraria dele”
61
(DURAS, 2006, p. 80).
A menina de O amante, no entanto, também sofria, seja pela agressividade do
irmão mais velho, pelo amor excessivo da mãe por esse irmão ou por não poder levar a
vida que desejava.
Eu queria matar meu irmão mais velho, queria matá-lo, derrotá-lo uma vez, uma
única vez e vê-lo morrer. Para afastar dos olhos de minha mãe o objeto do seu
amor, aquele filho, para puni-la por amar com tanto ardor, tão mal, e sobretudo
para salvar meu irmãozinho, eu pensava, meu irmãozinho, meu menino, da
opressão da vida desse irmão mais velho que pesava sobre a sua (...) (DURAS,
1984, p. 11).

59
L’intrusion de Léo dans la famille changea tous les plans. Dès qu’on connut le montant de sa fortune, il
fut décidé à l’unanimité que Léo paierait les chettys, financerait diverses entreprises (une scierie pour
mon frère cadet et un atelier de décoration pour mon frère aîné) dont les plans furent soigneusement
étudiés par ma mère, qu’en outre et accessoirement il munirait chaque membre de la famille d’une auto
particulière. J’étais chargée de transmettre ces projets à Léo et de le « sonder » à cet effet, sans rien lui
promettre en contrepartie.
60
Pour em sortir il me fallait Léo.
61
Il m’apparut alors que Léo était un très pauvre type, et que je passerais ma vie en sa compagnie, que
c’était mon lot que d’avoir Léo après avoir eu ma famille et que je n’en sortirais jamais.
66
A partir dos “Cadernos de Guerra”, entendemos que não só o irmão mais novo
mas também a irmã era vítima da violência do irmão mais velho:
Mamãe me batia frequentemente e era em geral quando ficava “atacada dos
nervos”, ela não conseguia se controlar. (...) Em virtude de uma estranha emulação,
[meu irmão mais velho] também adquiriu o hábito de me bater. (...) Quando
mamãe não me batia da maneira que lhe convinha, ele dizia: “Espere”, e eles se
revezavam. Mas ela logo se arrependia, porque cada vez ela pensava que eu não
levantaria do chão. Ela soltava berros horripilantes mas meu irmão dificilmente
parava. Um dia ele mudou de tática e me arremessou contra o piano, minha testa
bateu na quina de um móvel e me levantei com dificuldade.
62
(DURAS, 2006, p.
45/46)
Cenas como essa são difíceis de serem apagadas da memória. Em Duras, essa e
outras cicatrizes são representadas de maneira fragmentária e esparsa, de forma que as
lacunas entre os vestígios do passado fiquem expostas e o resultado seja um mundo em
ruínas. Na composição de seus filmes e livros, as falhas ficam evidentes não só no
conteúdo, mas também na forma e na construção dos personagens. Como afirma Duras:
“– Em meus filmes, o mundo está em ruínas”, e recebe como resposta de Xavière
Gauthier: “– Sim, está desmoronando” (GAUTHIER, 1974, p. 49).
3.4 A escrita imagética
Contribuindo para o caráter fragmentário de O amante, a imagem aparece como
princípio fundamental para composição de sua narrativa. Duras invoca tanto a fotografia
quanto o cinema nesta obra conhecida como sua obra mais autobiográfica.
Em princípio, a imagem serve muitas vezes como ponto de partida para contar
uma história, relembrá-la: “Não sei quem tirou a fotografia do desespero. Aquela do
pátio da casa em Hanói. Talvez meu pai pela última vez. Em alguns meses ele seria
repatriado, voltando à França por motivo de saúde” (DURAS, 1985a, p. 36). A
“fotografia do desespero”, isto é, de sua mãe prestes a perder o marido e ter que educar

62
Maman me battait souvent et c’était en général lorsque « ses nerfs la lâchaient », elle ne pouvait faire
autrement. (...) En vertu d’une étrange émulation,[mon frère aîné] lui aussi prit l’habitude de me battre.
(...) Quand maman ne me battait pas de la façon qui lui convenait, il lui disait : « Attends », et la relayait.
Mais elle le regrettait vite, parce que chaque fois elle pensait que je resterais sur le carreau. Elle poussait
des hurlements épouvantables mais mon frère s’arrêtait difficilement. Un jour il changea sa tactique et
m’envoya rouler contre le piano, ma tempe heurta un coin de meuble et je me relevai avec peine.
67
e sustentar sozinha os três filhos, faz com que a narradora volte no tempo para contar as
circunstâncias da morte do pai e histórias de sua mãe:
Antes disso mudaria de posto, designado para Pnom-Penh. Ficaria lá apenas
algumas semanas. Morreu menos de um ano depois. Minha mãe recusou-se a
acompanhá-lo à França e ficou onde estava, ali parada. Em Pnom-Penh. Naquela
residência admirável de frente para o Mekong, o antigo palácio do rei do Camboja,
no meio do parque assustador, aqueles hectares que a apavoravam. À noite ela nos
assustava. Dormíamos os quatro na mesma cama. Ela dizia que tinha medo da
noite. Foi nessa casa que minha mãe soube da morte de meu pai. Soube antes da
chegada do telegrama, na véspera, por um sinal que só ela viu e só ela podia
entender, o pássaro que no meio da noite chamou desvairado, perdido na sala de
trabalho da ala norte do palácio, a sala de meu pai. (DURAS, 1985a, p. 36/37)
A “fotografia do desespero” dá início a narrativas e descrições. A descrição da
residência de Pnom-Penh (“residência admirável de frente para o Mekong, o antigo
palácio do rei do Camboja, no meio do parque assustador”), narrativas sobre o que
acontecia nesta residência (“À noite ela nos assustava. Dormíamos os quatro na mesma
cama. Ela dizia que tinha medo da noite”) e o que aconteceu na noite em que o pai
morreu: as premonições da mãe, a chegada do telegrama. A impressão do leitor é a de
que a narradora está tendo todas essas lembranças enquanto “olha” para a fotografia.
Imagens e cenas servem como motivo para a introdução de um novo fragmento de
história, mudando muitas vezes o rumo da narrativa.
Para Manguel toda imagem dá origem a uma narrativa temporal, que lhe
atribuímos ao tentarmos fazer uma leitura dessa imagem, ultrapassando assim os limites
de sua moldura:
Quando lemos imagens – de qualquer tipo, sejam pintadas, esculpidas,
fotografadas, edificadas –, atribuímos a elas o caráter temporal da narrativa.
Ampliamos o que é limitado por uma moldura para um antes e um depois e, por
meio da arte de narrar histórias (sejam de amor ou de ódio), conferimos à imagem
imutável uma vida infinita e inesgotável. (MANGUEL, p. 27)
Não temos mais a imagem instantânea, fixa no tempo, mas algo que vai além dela,
histórias de antes e depois. A imagem lida pode suscitar a formação não só de
narrativas, mas também de outras imagens, como na faculdade de imaginação descrita
por Aristóteles. A tradução da imagem em narrativa também nos remete à arte da
memória.
68
Philippe Dubois chega a comparar a fotografia à arte da memória. Para ele, não só
a memória encontra na fotografia seu “equivalente tecnológico moderno” como a
metáfora no sentido inverso também pode ser usada, isto é, “a fotografia é tanto um
fenômeno psíquico quanto uma atividade ótico-química”.
A fotografia: uma máquina de memória, feita de loci (o receptáculo: o aparelho de
foto, sua objetiva, sua janela; caixa negra, recorte e retângulos virgens de película;
de uma bobina a outra, desfile ordenado das superfícies vazias receptoras) e de
imagines (as impressões, as inscrições, as revelações, que vão e vêm, sucedem-se
nas superfícies, desenrolam-se em “cópias de contato”), uma menemotecnia
mental. (DUBOIS, p. 316/317, 2009) (grifos do autor)
Como na “arte da memória”, o passado rememorado parece voltar à consciência
da narradora de O amante primeiramente como imagens e, posteriormente, traduzidas
em narração. O leitor não tem acesso à imagem que, frequentemente, é apenas citada, ou
seja, não é descrita em detalhes (“Aquela do pátio da casa em Hanói”). Somos levados a
imaginar, a preencher os espaços, as faltas, com nossa própria imaginação. Temos a
sensação de estar participando deste momento de recordação da narradora, do qual a
fotografia (a imagem) foi a desencadeadora.
Neste texto de Duras, as imagens têm o papel de elo entre as ruínas do passado e o
presente da enunciação. A fotografia nos remete àquilo que foi e que nunca mais será,
isto é, ela significa a morte daquele instante que é fixado pela câmera fotográfica.
(BARTHES, 1984, p. 142).
Mesmo uma foto mais recente do filho da narradora traz o tom melancólico da
lembrança de algo que já morreu, principalmente quando é relacionada com a sua
própria imagem na adolescência:
Encontrei uma fotografia de meu filho quando ele tinha vinte anos. Está na
Califórnia com suas amigas Érika e Elisabeth Lennard. É tão magro, magro
demais, parece também um ugandês branco. Acho seu sorriso arrogante, um pouco
zombeteiro. Quis parecer um jovem vagabundo. Agrada-lhe ser assim, pobre, com
jeito de pobre, a magreza desajeitada da juventude. Essa fotografia é a que mais se
parece com a que não foi tirada da moça da balsa. (DURAS, 1985a, p. 17/18)
Talvez a melancolia transmitida pela descrição venha do retrato pouco
complacente que a narradora faz de seu filho, “magro demais”, “com jeito de pobre”, de
“magreza desajeitada”. Ou talvez, ao compará-lo à “moça da balsa”, isto é, a ela mesma
muitos anos antes, a narradora lembre-se que este jovem também é passado. Ele
69
também vai morrer. Como afirma Barthes: “Que o sujeito esteja morto ou não, qualquer
fotografia é essa catástrofe” (BARTHES, 1984, p. 142).
A passagem do tempo é representada na descrição do rosto da narradora em sua
fase adulta, um rosto lacerado pelas rugas: “Tenho um rosto lacerado por rugas secas e
profundas, sulcos na pele. Não é um rosto desfeito, como acontece com pessoas de
traços delicados, o contorno é o mesmo mas a matéria foi destruída. Tenho um rosto
destruído” (DURAS, 1985a, p. 8). As marcas deste rosto em ruínas representam suas
experiências do passado e as cicatrizes deixadas por elas.
Neste momento da narrativa, a personagem adulta parece estar se olhando no
espelho à medida que escreve, observando o envelhecimento de seu rosto. A imagem do
rosto marcado é comparada a um livro a ser lido, decifrado: “Não tive medo e observei
o envelhecimento do meu rosto com o interesse que teria dedicado a uma leitura”
(DURAS, 1985a, p. 8). E é esta “leitura de cicatrizes” que dá início à narrativa. É a
partir da tentativa da narradora de explicar esse envelhecimento brutal que a
adolescência vem à tona.
Entretanto, a imagem em O amante tem um papel muito mais fundamental do que
uma simples técnica de flash-back
63
. A “fotografia absoluta”, entre todas a mais
importante, faz parte da constituição da narrativa, que é tecida a partir da sua descrição.
Esta imagem, diferentemente das outras citadas no livro, está somente na imaginação da
narradora, ela nunca existiu, nunca foi tirada:
Durante essa viagem, a imagem poderia definir-se, destacar-se do conjunto. Ela
poderia ter existido, uma fotografia poderia ter sido tirada, como outra, em outro
lugar, em outras circunstâncias. Mas não o foi. (...) Foi omitida. Foi esquecida. Não
foi destacada, não foi registrada. A esse fato de não ter existido ela deve sua
virtude, a de representar um absoluto, de ser seu próprio autor (DURAS, 1984, p.
14).
Imagem existente apenas na memória da narradora, a imagem absoluta não
funciona, então, como uma comprovação do real, do que aconteceu, não se trata aqui do
Isso-foi” de Barthes. Para este autor, a relação da fotografia com a realidade é
diferente:

63
Segundo informações de Adler (1998), a idéia inicial de O amante, proposta pelo filho de Duras, seria
“escrever as legendas de um livro de fotografias de seu álbum familiar” (ADLER, 1998, p. 515).
Remexendo antigas anotações e velhas fotos, Duras revisita o passado neste trabalho que ela intitula
inicialmente La photographie absolue (A fotografia absoluta). Em três meses, o projeto se transforma em
um texto para acompanhar um álbum de fotografia. Entretanto, amigos percebem que se trata de algo
mais e convencem Duras a publicá-lo como um romance.
70
A Fotografia não rememora o passado (não há nada de proustiano em uma foto). O
efeito que ela produz em mim não é o de restituir o que é abolido (pelo tempo, pela
distância), mas o de atestar que o que vejo de fato existiu. Ora, esse é um efeito
verdadeiramente escandaloso. (BARTHES, 1984, p. 123)
O papel mais comum da fotografia de atestar o real, o que “de fato existiu” não é
desempenhado pela imagem absoluta, mas somente pelo testemunho da narradora que
rememora o passado e o restitui, mesmo se de forma “imperfeita”. Trata-se, na verdade,
do que “poderia ter sido”, do que “poderia ter acontecido”: “Penso freqüentemente nesta
imagem que só eu ainda vejo (...) É entre todas a que me faz gostar de mim, na qual me
reconheço, a que me encanta.” (DURAS, 1985a, p.7) Percebemos, então, que esta
imagem será construída, e que sua construção depende nitidamente do desejo da
narradora, que relata o que chama de “a experiência” como um acontecimento que
marcaria não só a sua vida mas a de seu amante para sempre. Ao término do romance,
ela narra uma ligação telefônica em que ele promete-lhe “amor eterno”: “Disse que
continuava como antes, que a amava ainda, que jamais poderia deixar de amá-la, que a
amaria até a morte.” (DURAS, 1985a, p. 127)
Além disso, a imagem absoluta, cuja descrição dá o fio da narrativa, não é estática
como uma fotografia, ela ganha ao longo do texto aspectos de uma cena de filme, como
se Duras estivesse escrevendo um roteiro. Há indicações de cenário e de duração (“A
imagem permanece durante toda a travessia do rio” (DURAS, 1985a, p. 9)), de
sensações como o calor e a monotonia da estação (“estamos na longa zona tórrida da
Terra, sem primavera, sem renovação.” (DURAS, 1985a, p.9)) além de movimento e de
som (“O rio corre silencioso, sem nenhum ruído, o sangue no corpo. Nenhum murmúrio
de vento fora d’água. O motor da balsa, o único som da cena, o de um velho motor
desconjuntado, com bielas ressecadas.” (DURAS, 1985a, p. 26)). Nesta última parte,
inclusive, a palavra “cena” aparece, remetendo o leitor às telas de cinema. Da mesma
forma, todo um vocabulário do campo semântico da imagem vem sendo introduzido
desde o início da narrativa, fazendo com que o leitor participe do ir-e-vir entre texto e
imagem, para reconstrução das memórias da narradora. As palavras mais repetidas são:
imagem, fotografia, cena e o verbo ver e olhar em suas diferentes conjugações. Nesta
passagem o leitor é explicitamente convidado a olhar também, como se narradora e
leitor estivessem lado a lado na leitura das imagens: “Na balsa, olhem para mim, tenho
ainda os cabelos compridos” (DURAS, 1985a, p. 21) (grifo meu).
71
É da descrição da imagem absoluta que são introduzidos os personagens
principais do romance. A adolescente: “Estou com um vestido de seda natural, bastante
surrado, quase transparente. Foi de minha mãe, certo dia ela achou que era claro demais
e me deu. É um vestido sem mangas, muito decotado. Tem cor arroxeada da seda
natural muito usada. Acho que fica bem em mim. Uso-o com um cinto de couro, talvez
de um de meus irmãos.” (DURAS, 1985a, p.15). O homem: “Na limusine preta está um
homem muito elegante que me observa. Não é branco. Usa roupa européia, o terno de
tussor claro dos banqueiros de Saigon.” (DURAS, 1985a, p. 22). Essas duas descrições
já dizem bastante sobre cada um dos personagens. De um lado, a menina, pobre, com
seu vestido velho herdado da mãe. Sua sensualidade aparece no decote e transparência
do vestido e sua personalidade, no cinto de couro tomado de um dos irmãos. Ao
descrever o homem chinês, a narradora coloca em contraste a sua riqueza e elegância
com o fato de não ser branco. A frase curta e direta (“Não é branco”) se destaca do resto
da descrição, de forma quase agressiva.
Aos poucos, a descrição torna-se narrativa e a estagnação movimento. Os
personagens passam a se locomover, falar, perturbando a tranquilidade da paisagem
descrita anteriormente:
O homem elegante desceu da limusine, fuma um cigarro inglês. Olha para a moça
com chapéu masculino e sapatos dourados. Aproxima-se dela lentamente. Percebe-
se que está intimidado. Não sorri logo no começo. Oferece um cigarro.(...) Ela não
responde. (DURAS, 1985a, p. 37/38)
A narradora não se limita, porém, a esta cena, indo além dos seus limites,
atribuindo-lhe um antes e um depois para contar a sua história:
A imagem começa muito antes de ter ele dirigido a palavra à menina branca perto
da amurada, no momento em que desceu da limusine preta, quando começou a
aproximar-se dela, quando ela sabia, sabia que ele estava com medo./Desde o
primeiro momento ela teve certeza de uma coisa, que ele estava em suas mãos. (...)
Ela sabe também algo mais, que a partir daquele momento chegou o tempo em que
não poderá mais esquivar-se de certas obrigações para com sua própria pessoa
(DURAS, 1985a, p. 40).
A partir daí a narração da sua história com o chinês vai extrapolar a moldura da
cena, ao contar seus encontros na porta do pensionato, no carro preto, nos restaurantes e,
principalmente no “cubículo ao sul da cidade”, transformado em garçonière.
72
A imagem absoluta é então abandonada para o surgimento de outras imagens
como a imagem fantasmática de sua mãe que aparece no quarto dos amantes na primeira
vez em que o ato sexual acontece: “A imagem da mulher com meias cerzidas atravessou
o quarto” (DURAS, 1985a, p. 44)
Há também imagens da fase adulta da narradora, durante a guerra. São os
percalços de sua infância que a fazem lembrar desta época turbulenta em sua vida:
“Vejo a guerra com as mesmas cores com que vejo a minha infância” (DURAS, 1985a,
p.69). A guerra aparece, então, nas imagens das mulheres conhecidas na época pela
narradora: “A lembrança dos homens jamais se manifesta com a luminosidade das
recordações das mulheres” (DURAS, 1985a, p. 75)
O ideal de mulher aparece na figura da “Dama” capaz de levar um homem ao
suicídio por amor. Ela vinha da Índia para a Indochina quando abandonou seu amante:
“A história chegou ao novo posto de Vinhlong. No dia de sua partida de Savannakhet
para Vinhlong, uma bala no coração.” (DURAS, 1985a, p. 97)
As obsessões são representadas pela mendiga que abandona o filho: “Povoei a
cidade toda com aquela mendiga da avenida.” (DURAS, 1985a, p. 94) A imagem
apresentada como um pesadelo que se repete remete a uma história que aparece em
diversos livros de Duras, sendo inclusive parte principal do enredo de O vice-cônsul, um
dos livros de maior reconhecimento da escritora.
O texto de O amante é então tecido a partir dessas imagens de naturezas
diferentes. São sempre elas que desencadearão a escrita do passado, servindo de ponto
de base para a construção de narrativas. Em um texto fragmentado e sem ordem
cronológica, expondo histórias e personagens em ruínas, Duras deixa as falhas e os
espaços necessários para que o leitor participe da construção da narrativa.
Os cortes abruptos no tempo e na história dão um caráter fílmico ao texto,
aproximando a escrita literária do mundo imagético do cinema. Na verdade, o cinema já
aparece na obra de Duras desde Barragem contra o Pacífico. Ao longo de todo o texto
há referências a este tema e introdução de uma escrita cinematográfica. É trabalhando
num cinema, que a mãe consegue juntar durante dez anos o dinheiro necessário para
comprar as terras nas quais vai construir a famosa barragem, tragicamente destruída
pelo Pacífico. Também é o cinema o único lugar no qual a menina Suzanne sente-se
bem quando vai passear no bairro dos brancos ricos, na segunda parte do livro. Só, no
escuro do cinema, ela pode se esconder dos olhares esnobes, críticos, escandalizados da
alta burguesia branca. É no cinema que ela tornava-se invisível. Ali todos eram iguais.
73
Por fim, é no cinema que a vontade de liberdade aumenta: “O grande mérito do cinema
era de dar vontade nas meninas e nos meninos e de torná-los impacientes para fugir de
sua família” (DURAS, 2003, p. 195).
Para Madeleine Borgamano a relação estreita que os irmãos Joseph e Suzanne
tinham com o cinema fora herdada da mãe: “Barragem contra o Pacífico nos conta a
história do amor infeliz pelo cinema por que a mãe tinha passado (...). Suas relações
com o cinema foram, como todas as relações da mãe com o mundo, sob a forma de um
desejo insatisfeito.” (BORGOMANO, p. 15) O filme foi objeto de desejo da mãe
durante todos os anos em que trabalhou como pianista no cinema, chamado de Eden,
sem poder olhar para a tela durante as sessões. Além disso, ela se apaixona por um
funcionário do cinema sem também nunca concretizar este desejo.
O texto estabelece uma equivalência: ver um filme = fazer amor./ O prazer visual
encontra-se valorizado e sexualizado. Na história da mãe, os dois desejos se
chocam no mesmo interdito, encarnado pela existência dos filhos: é por causa dos
filhos que a mãe não pode ir ver filmes, e por causa deles que ela não pode amar
um homem. A frustração exaspera o desejo. O cinema encontra-se investido de
uma carga afetiva desde o seu momento mais arcaico: juventude da mãe,
contemporânea da juventude do cinema. (BORGOMANO, p. 16)
Para Borgomano, Joseph liberta-se da obsessão da mãe conseguindo abandonar
tanto o cinema quanto a mãe. Já Suzanne não consegue decidir-se como Joseph e vê no
cinema um lugar de consolo e proteção, que toma para ela o aspecto maternal.
Além da temática do cinema, existe também em Barragem uma linguagem
cinematográfica. A forma de contar e descrever do narrador faz muitas vezes com que o
leitor tenha a sensação de estar visualizando a cena de um filme. A passagem abaixo,
que se aproxima de um roteiro de cinema, é um bom exemplo:
Logo se ouviram estalidos de chicote e os gritos de Joseph, e a carroça apareceu na
pista. Joseph estava na frente. No assento traseiro, havia duas malaias. O cavalo
andava devagarinho, mais raspava a pista com suas patas do que andava. Joseph o
chicoteava, mas poderia muito bem ter chicoteado a pista, ela não teria sido mais
insensível. Joseph parou na altura do bangalô. As mulheres desceram e
continuaram a pé o caminho para Ram. Joseph saltou da carroça, pegou o cavalo
pela rédea, saiu da pista e tomou a direção que levava ao bangalô. A mãe o
esperava no aterro, na frente da varanda.
- Ele não avança mais – disse Joseph.
Suzanne estava sentada sob o bangalô, encostada em uma pilastra. Levantou-se e se
aproximou do aterro, mas sem sair da sombra. Joseph começou a desatrelar o
cavalo. Sentia muito calor e gotas de suor escorriam por baixo do seu boné sobre as
maçãs do rosto. (DURAS, 2003, p. 12/13).
74
Já na primeira frase, os verbos “ouvir” e “aparecer” nos remetem a uma cena, nos
fazendo sentir, como Suzanne e a mãe, a chegada de Joseph. Os verbos seguintes são
quase todos de ação (andar, raspar a pista, chicotear, parar, descer, continuar, saltar,
pegar, etc.). Os personagens quase não falam, mas estão sempre se movimentando.
Podemos perceber também a aproximação da câmera que começa num plano
geral, mostrando a chegada de Joseph com a carroça e o cavalo ao bangalô, de onde a
mãe e Suzanne o aguardavam, e acaba num close junto ao rosto de Joseph, para
evidenciar as gotas de suor que escorrem sob seu boné.
Logo após este episódio, há um corte abrupto no tempo, como se fosse uma
simples mudança de quadros, transportando o leitor para o momento em que Joseph
teve a idéia de comprar o cavalo: “Tivera, na semana anterior, a idéia (...)”(DURAS,
2003, p. 13).
O narrador aproveita para dar voz a Joseph, sem precisar usar o discurso direto:
“Tinha comprado tudo, cavalo, carroça e arreamento, por duzentos francos. Mas o
cavalo era bem mais velho do que se pensava” (DURAS, 2003, p. 13).
Exatamente como ocorre nos filmes: o movimento de aproximação da câmera até
o close no rosto pensativo do ator, antes do corte abrupto da mudança de cena, significa
que entramos no pensamento deste personagem.
O narrador cria certa ambiguidade, dissolvendo-se com outros personagens,
principalmente a menina Suzanne. Somando-se a isso a utilização de cenas para a
construção da narrativa, percebemos em Barragem indícios da fragmentação que será
extrapolada mais tarde em O amante, com a confusão do autor, narrador e personagem
principal, além da introdução da fotografia e de espaços em branco na composição do
texto.
3.5 A anti-representação
Para André Vieira (VIEIRA, 2007, p. 133/134) o branco da página, que encerra a
escrita em um “vazio irredutível e impenetrável”, “nega a representação e impede a
identificação pelo leitor”. Além disso, “a auto-representação é sempre uma atividade de
anti-representação” (VIEIRA, 2007, p. 123). Ambas as técnicas são largamente usadas
na obra de Marguerite Duras, principalmente a partir de O Vice-Cônsul.
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O autor nos mostra como o cine-romance O caminhão de Duras leva a ideia de
anti-representação ao limite, se auto-representando continuamente. Neste livro, há dois
personagens, que no filme são o ator Gérard Depardieu e a própria Marguerite Duras,
falando sobre o possível filme:
Ao transformar um projeto de filme que nos mostraria o diálogo de uma
caminhoneiro com uma mulher, no interior da cabine de um caminhão em
movimento, em um outro filme que se contenta em contar o filme possível, Duras
nos apresenta um filme que tem sua origem no texto que o constrói: levando o
cinema de volta à palavra. (VIEIRA, 2007, p. 122)
Michelle Royer comenta que o trajeto do caminhão azul do filme representa a
escrita de Duras em seu movimento contínuo e sem rumo certo. O veículo é como a
“massa negra” da escrita errando indefinidamente, sem razão e deixando suas marcas de
pneus sobre o asfalto úmido. (ROYER, 2007, p. 168)
Neste filme, aliás, não só o tema da escrita é levado para a tela, mas também a
imagem da própria autora, Marguerite Duras. Como já foi comentado, é no cinema,
lugar privilegiado do voyeurismo-exibicionismo, que Duras vai testar as várias
possibilidades de “contato” com seu público.
Ora, o artista auto-reflexivo, que se mostra em seus textos, colocando em questão
a própria escrita, contesta as bases da arte mimética. Ao criar um romance que deixa
transparecer o seu processo de criação, o autor lembra ao leitor que se trata de literatura,
mostrando que o que escreve não deve ser confundido com o real.
Além disso, a mistura da literatura com outras artes, como a fotografia, o cinema e
o teatro, gera uma obra “antiilusionista”. Este fenômeno é chamado por Vieira (2007)
de hibridização. Para Robert Stam, “Os grandes antiilusionistas são aqueles que
aproveitam todos os gêneros e chegam a “seduzir” gêneros menores para produzir uma
obra-prima” (STAM, 1981, p.56). Ora, tanto em O amante quanto em Barragem contra
o Pacífico, o híbrido literário torna aparente a constituição poética do texto,
contribuindo assim, como a auto-reflexão, para o seu caráter anti-representativo.
Em O amante, a auto-reflexividade e a metalinguagem são uma constante,
trazendo para o texto reflexões da narradora sobre o que está escrevendo, sobre a escrita
de uma maneira geral e sobre a sua obra literária, ao citar outros livros escritos
anteriormente num processo de intertextualidade entre seus próprios romances: “Escrevi
muito sobre essas pessoas da minha família, mas enquanto o fazia eles ainda estavam
76
vivos, a mãe e os irmãos, e escrevi em torno deles, em torno dessas coisas sem chegar
até elas” (DURAS, 1985a, p.11).
No trecho abaixo, a narradora comenta em O amante que o seu encontro com o
chinês já havia ocorrido em outro livro (no caso, Barragem contra o Pacífico). Como se
estivesse agora dizendo a “verdade”, retifica a situação contada décadas antes:
“Portanto, não foi na cantina de Ream, como escrevi, que encontrei o homem rico da
limusine preta, foi dois ou três anos depois, na balsa, naquele dia que estou
descrevendo, naquela luminosidade de bruma e de calor” (DURAS, 1985a, p. 32). Nesta
passagem fica claro o jogo de verdade/mentira do qual a narradora pretende convidar o
leitor a participar. Ao “corrigir” o que contou, o que faz é evidenciar o seu processo de
criação, deixando claro que está apenas contando uma história, construindo-a. O verbo
descrever no gerúndio em “naquele dia que estou descrevendo” nos remete ao momento
de produção do texto pela narradora, lembrando sempre que se trata de arte e não de
realidade. Como afirma Stam:
Ao ver a si próprio, não como um escravo da Natureza, e sim como um mestre da
ficção, o artista auto-reflexivo lança dúvidas sobre o pressuposto básico da arte
mimética: o de que existe uma realidade anterior sobre a qual a obra de arte deve
ser modelada. (STAM, 1981, p. 55)
O fato de a narradora estar sempre expondo suas falhas de memória também
coloca em dúvida a veracidade do que está sendo escrito, a sua relação com a realidade.
Ora modalizando a frase com o verbo dever, como na sentença: “Ela deve ter ficado em
Saigon de 1932 a 1949, aquela mulher.” (DURAS, 1985a, p. 34); ora referindo-se
abertamente ao fato de estar lembrando à medida que está escrevendo: “Lembro-me
enquanto escrevo, de que nosso irmão mais velho não estava em Vinhlong quando
lavávamos a casa com toda aquela água. Estava no casa de nosso tutor, um padre do
vilarejo, no Lot-et-Garonne.” (DURAS, 1985a, p. 69)
A narradora que confunde datas e fatos da sua adolescência parece, por outro lado,
lembrar de detalhes minuciosos da sua relação com o homem chinês. Lembra não só do
cenário em que teve sua primeira noite de amor (“Atravessando as venezianas a noite
chegou. O barulho é maior. Mais estridente, menos surdo. As lâmpadas se acendem.”
(DURAS, 1985a, p 52)), mas também dos seus sentimentos e até das conversas que
tiveram:
77
Ele diz que está sozinho, terrivelmente sozinho com esse amor. Ela responde que
também está sozinha. Não diz com o quê. Ele diz: você veio até aqui comigo como
teria vindo com qualquer outro. Ela responde que não pode saber, que nunca foi
com ninguém para nenhum quarto. Diz que não quer que ele fale, quer que faça o
que costuma fazer com as mulheres que leva ao seu apartamento de solteiro.
Suplica-lhe que aja dessa maneira. (DURAS, 1985a, p. 43)
A utilização de diálogos contribui para o caráter ficcional da narrativa, mesmo que
também estejam claros seus indícios referenciais, já comentados. Esta ambiguidade só
corrobora a intenção de Duras de nunca completar todas as lacunas, nunca explicitar
tudo, ao contrário, oferecer ao leitor essa falta, essa “pobreza” que para ela é a riqueza
da obra. O amante afasta-se assim da autobiografia clássica e aproxima-se da autoficção
proposta por Serge Doubrosvsky.
78
Conclusão
A dificuldade em definir a autobiografia e seus correlatos está principalmente no
grau de hibridização que estes textos apresentam. Se a escrita autobiográfica é
estritamente referencial, sua função seria necessariamente representar o real e a verdade.
Entretanto, esta consideração cai por terra se acreditarmos que é impossível reproduzir a
realidade e que a verdade única não existe. Por outro lado, também não podemos dizer
que tudo é ficção e desprezar os testemunhos que fazem parte da nossa história.
Autores como Régine Robin, Serge Doubrovsky e Philippe Vilain acreditam que
autobiografias de meados do século XX e início do século XXI lidam com esta
impossibilidade de representar a verdade absoluta através de uma escrita fragmentada,
de um discurso frágil e descontínuo. Na busca de um auto-entendimento, mas
conscientes de que não alcançarão mais do que uma imagem imperfeita de si mesmos,
os escritores que se lançam no desafio narcísico (por que não?) de escrever uma
autobiografia, não têm mais a pretensão de preencher todas as lacunas, de fornecer todas
as respostas. Doubrovsky chamou esta autobiografia “pós-moderna” de autoficção.
Duras parece fazer parte deste grupo de escritores, já que a autora faz questão de
deixar transparecer em sua obra a falha e a incompletude, como se um certo
desconcerto, uma certa fragilidade fizessem parte de sua própria identidade, sempre
inacabada, mas constantemente no centro dos seus questionamentos, pronta a ser
revelada, destrinchada, colocada a nu.
A fragilidade em Duras revela-se através da escrita híbrida da autoficção, em que
a realidade é confundida com o mundo ilimitado da ficção, desrespeitando a sintaxe e a
pontuação tradicionais em uma linguagem fragmentada e auto-reflexiva, misturando
pronomes, vozes e tempos narrativos. Analisando duas publicações literárias de Duras
separadas por mais de trinta anos, percebemos que seu texto caminhou para uma escrita
cada vez mais “livre”, colocando em cena um sujeito mais frágil e instável, aberto ao
conhecimento do outro, a novas descobertas, a quebra de limites e paradigmas. Em O
amante, a menina francesa perde a segurança que tinha junto à sua família em
Barragem contra o Pacífico para tornar-se mais solitária e amedrontada, porém mais
independente e disponível à descoberta do estrangeiro e do jogo erótico. Na sua relação
amorosa com esse homem mais velho, que beira a prostituição, sua vontade é incluir
uma terceira pessoa, uma menina a quem também deseja. Pois, para Duras, o amor só é
79
concebido a três, a fim de que um lugar seja sempre deixado para o outro. Talvez por
isso o cinema e o erotismo tenham sido tão caros à autora. Mesmo nunca tendo
abandonado a escrita (seus filmes estão impregnados de literatura), foi no cinema que
Duras ousou fazer todo tipo de experiência, seja misturando gêneros, seja brincando
com a dupla voyeur-exibicionista. É no cinema que a escritora pode aparecer
“realmente” em cena (O caminhão) e o público pode ser olhado de frente (O homem
atlântico).
Já o erotismo é mais uma forma de contato com o outro. Segundo Bataille, trata-se
de uma tentativa do ser descontínuo e solitário que somos de encontrar sua continuidade
e diminuir o abismo que nos separa uns dos outros. Como já mencionamos, na
experiência do erotismo, o desejo pertence à nossa interioridade, mas o objeto do desejo
está sempre fora, no outro. Além disso, o erotismo é alcançado colocando-se em tensão
a interdição e a transgressão. Ora, lugar de liberdade, de quebra de regras e tabus, a
escrita foi para Duras o lugar privilegiado da transgressão. Voyeurismo,
homossexualismo, prostituição, incesto são alguns dos temas tratados em suas obras,
numa época em que estes temas eram muito mais transgressivos do que hoje,
principalmente para uma escritora mulher.
As falhas, os espaços vazios que se multiplicam na obra de Duras têm também a
função de deixar que o desejo circule e que o leitor/espectador participe, como um
voyeur. Para isso, Duras não hesita em deixar transparecer o processo de criação e de
escrita. Na literatura, faz uso de diferentes artes, como o cinema, a fotografia e o teatro,
aumentando assim o caráter anti-ilusionista do seu trabalho e convidando o leitor a
refletir sobre “os meios pelos quais a ‘realidade’ é mediatizada através da arte” (STAM,
1981, p. 56). A anti-representação, muito evidente na sua obra cinematográfica, aparece
também em diversos livros como O amante. Nesta obra, a história contada é colocada
em dúvida em diversos momentos, não só nas passagens em que a narradora reflete
sobre a escrita ou questiona suas próprias lembranças, mas principalmente ao declarar
de forma extremamente provocativa no início da narrativa que “a história da [sua] vida
não existe”. Com efeito, fragmentos de histórias são intercalados, desordenados,
questionados, mais de uma vez retomados, de forma que a história de sua vida se
confunda com os tortuosos caminhos da sua atividade criativa.
Enfim, O amante, ao apresentar o sujeito frágil e inacabado, uma narrativa
fragmentada, com ênfase na metalinguagem e na auto-reflexão, extremamente
influenciada pela linguagem cinematográfica, além de transgressiva e autoficcional, tem
80
todos os aspectos do romance contemporâneo. Além disso, Duras deixa uma obra cheia
de relatos pessoais que, mesmo se ficcionalizados, não deixam de ser testemunhos de
seu tempo, do pensamento de uma mulher progressista e transgressora.
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Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.
CDD 843.009
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