A institucionalização da arte e do artista, bem como a sua aplicação publicitária na
estratégia de marketing de cidades, reforçam a contradição do comprometimento do artista
com contextos comunitários: a arte frequentemente se liberta de supostas responsabilidades
ou capacidades sociais uma vez que, como escreveu Martí Peran, a arte tem o direito de poder
fracassar.
A arte, como é sabido, tem licença para fracassar, de modo que a delegação
das políticas sociais ao âmbito cultural tem um benefício duplo para a
instituição envolvida: não está submetida à pressão de obter efeitos tangíveis
e, além disso, torna publicitário o seu apoio à arte contemporânea e os seus
desejos manifestos de utilidade pública.
49
A relação entre o que Nicolas Bourriaud chamou de representação artística
50
, tranquila
e legitimamente distanciada das estatísticas e dos efeitos tangíveis, e a produção efetiva do
espaço gera graus variados de interseção da arte com o cotidiano vagueando de uma
aplicabilidade anti-commodity a uma teatralização da experiência vivida num evento onde
espectadores convertidos em atores voluntários encenam, conscientes do espetáculo, o
momento legitimado ao mesmo tempo como “cotidiano” e como “história da arte”.
Essa situação deixa evidentes as limitações da prática da arte pública que, em direção
oposta ao embelezamento esteticista das cidades, prefere inserir-se nas redes sistêmicas do
contexto – que extrapolam as dimensões físicas e fazem emergir os seus vetores sociais,
culturais, econômicos, políticos – e resolve conferir ao artista o papel de hacker urbano
51
,
invadindo e desconstruindo as suas lógicas.
Kwon classifica os modelos de interação com a comunidade praticados pela arte desde
os anos de 1960 como: unidade mítica ou a comunidade como uma categoria social
relativamente distante, teórica; apropriação de comunidades locais com organização e
identidade já existentes; e produção de comunidades inventadas, novas, que podem ser
temporárias ou contínuas e sustentáveis. Deixando de lado o conforto retórico do mítico e
tomando o desafio das incertezas das comunidades, tanto existentes como propostas, são
formulados experimentos de campo que justapõem promissoramente o processo ao resultado.
49
PERAN, 2007, p. 50. Tradução nossa.
50
A representação artística é uma operação de transferência: ela recorta, transporta ou desloca um fato escolhido e
o seu espaço-tempo correspondente para esse lugar ambíguo da arte. Nicolas Bourriaud escreveu que, embora
disfarçado na sua forma expandida, não nos iludamos quanto à superação de paradigmas: ainda que se ocupe
inteiramente do espaço praticado, a arte é uma zona offshore, agindo à distância, por diferenciação, “[…] nem
integrada totalmente na sociedade, nem limitada totalmente a um papel de observação neutra […]” (BOURRIAUD,
2008, p. 18. Tradução nossa).
51
O termo hacker urbano foi desenvolvido na minha dissertação de mestrado, elucidando a capacidade do artista
em penetrar nas redes informacionais da cidade e subverter o conteúdo publicitário da mensagem. Nos últimos anos
da década de 1990, ocasião em que escrevi o ensaio, a arte pública experimentava a desmaterialização e a
efemeridade, apresentando novas imagens e textos em projeções e impressões sobre a superfície matérica da
cidade, inflitrados em painéis informativos, mega-projeções ou outdoors. A efemeridade discutia a memória da
paisagem urbana e propunha a vivência de uma cidade crítica, à maneira dos situacionistas. Uma possibilidade de
cidade, uma experiência de outras formas de viver: cidades em instalação, em vias de nascer para cumprir funções
simbólicas obscurecidas pela vida funcionalista. Essa espécie de urbanismo temporário mostrava-se como eventual
e pedagógico, distinto daquele urbanismo autoritário e supostamente seguro de seu futuro pragmático (MARQUEZ,
2000).