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Thula Kawasaki Nepomuceno
A casa e a vertigem da ordem
Belo Horizonte
Escola de Belas Artes da UFMG
2007
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Thula Kawasaki Nepomuceno
A casa e a vertigem da ordem
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado em Artes da Escola de Belas
Artes da Universidade Federal de Minas
Gerais, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Artes.
Área de concentração: Arte e
Tecnologia da Imagem
Orientadora: Prof
a
. Dra. Patrícia Franca
Belo Horizonte
Escola de Belas Artes da UFMG
2007
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à minha mãe, ao meu irmão e ao Rafa, por tudo, sempre.
agradecimentos
À Patrícia Franca. À Maria Angélica Melendi e
Glória Ferreira. À Daisy Turrer e Stéphane
Huchet. À Mabe Bethônico e Maria Esther
Maciel. À Gabriela, Sissi, Juju, Rodrigo e
Magrelinha. Ao Davi, Ana Paula, Leminho e
meninos. À Carolina Junqueira, Maria Carolina
Maia, Tiago Fazito, Camila Gagliardi, Mariana
Jaquetti, Tayla Machado, Guilherme Guerra. À
Sandra Ximenes e Axial. À Tânia Araújo,
Clébio Maduro e Juju, da gravura. Ao Morgan
da Motta. Ao Ricardo Girundi. À Consuelo. À
Zina e aos funcionários da Secretaria de Pós-
graduação da EBA.
Este é meu hábitat, pensa Palomar, e
não é uma questão de aceitá-lo ou excluí-lo, pois
só neste meio posso existir.
Ítalo Calvino
Como não se submeter a Tlön, à minuciosa e
vasta evidência de um planeta ordenado? Inútil
responder que a realidade também está ordenada.
Quem sabe o esteja, mas conforme leis divinas
traduzo: leis desumanas que nunca percebemos
completamente. Tlön será um labirinto, mas um
labirinto urdido por homens, um labirinto
destinado a ser decifrado pelos homens.
Jorge Luis Borges
resumo
Esta pesquisa trata da construção e dos percursos de minha produção
artística, focalizando, assim, uma relação com a arte que se dá
através de uma vivência da casa e através do desejo humano de dar
conta do imenso volume de informações que abarrota o mundo
contemporâneo.
Aqui estão relacionadas experiências na arte às experiências banais
do dia-a-dia e às tentativas de, ao ordenar, construir um mundo
que sempre escapa, que nunca se deixa apreender, que resulta
sempre inconcluso, proliferante, caótico. Essa busca por uma ordem
inalcançável vê, expostos na arte, seus artifícios, a arbitrariedade de
seus critérios, suas falhas, sua graça, seu ridículo.
Tanto o texto quanto a produção procuram se aproximar dessa beira
do abismo ainda que dentro do contexto aparentemente restrito do
cotidiano doméstico que é a morada da ordem.
abstract
This research is about the construction and paths of my artistic
production. It attempts to capture the concept of art from
experiences in a domestic environment and the human desire to
control the great amount of information that overload the
contemporary world.
Experiences in art are related here to everyday experiences and to
attempts of construction of a world by rearranging it a world that
always escapes, that can never be captured, that ends up unfinished,
proliferous, chaotic. This search for an unachievable order shows,
exposed on art, the artifice, the arbitrariness of its rules, the failure,
the charm, the comic and the ridiculous of its being.
This text and the artistic work attempt to approach the edge of abyss
even though inside the apparent restricted context of domestic
everyday life that is where order lives.
lista de imagens
01. Thula Kawasaki. Sem título, 2002. Grafite, pastel oleoso e
guache s/ papel. 22 x 32,5 cm. Acervo pessoal da artista..............21
02. Thula Kawasaki. Desenhos/esboços, 2003. Grafite s/ papel. 15 x
10 cm. Acervo pessoal da artista. ..............................................23
03. Thula Kawasaki. O arquivo reticente, 2004. Técnica mista
(madeira, papéis, gesso, tecido, etc.). 155 x 170 x 28 cm. Acervo
pessoal da artista. ....................................................................24
04. Thula Kawasaki. O arquivo reticente (detalhes).....................25
05. Thula Kawasaki. Sem título, 2003. Litogravura s/ papel. 42 x
29,5 cm. Acervo pessoal da artista. ............................................33
06. Thula Kawasaki. Infinitivo, 2004. Madeira, potes de vidro,
sangue, pele, unhas, cerâmica. 205 x 20 x 20 cm. Acervo pessoal da
artista. ....................................................................................34
07. Thula Kawasaki. Osteologia (pars thoracica), 2004. Serigrafia s/
papel. 26 x 33 cm. Acervo pessoal da artista. ..............................36
08. Thula Kawasaki. Osteologia (pélvis), 2004. Serigrafia s/ papel.
33 x 26 cm. Acervo pessoal da artista. .......................................37
09. Thula Kawasaki. Através, 2004. Madeira, gesso, papéis,
cerâmica, ervas e grafite. Dimensões variáveis (Aproximadamente
15 x 20 x 10cm a maior caixa e 12 x 08 x 08 cm as menores).
Galeria Silvia Cintra/Acervo pessoal da artista. ..........................43
10. Thula Kawasaki. Através (detalhes).......................................43
11. Thula Kawasaki. La hora muerta, 2006. Madeira monocromada,
vidro, musgo seco. Dimensões variáveis. Coleção particular. .......48
12. Thula Kawasaki. O irreversível, 2004. Objeto de madeira
monocromada. 120 x 60 x 60 cm. Acervo pessoal da artista. .........55
13. Thula Kawasaki. Os segredos intocáveis no meio do dia.
Instalação na exposição coletiva Paradoxos Brasil 2005/2006
(Rumos Itaú Cultural). Rio de Janeiro, RJ: Paço Imperial, 15 de
junho a 06 de agosto. Acervo pessoal da artista. .........................67
14. Thula Kawasaki. Os segredos intocáveis no meio do dia.
Instalação na exposição coletiva Entre o público e o privado:
transições na arte contemporânea (Rumos Itaú Cultural). Fortaleza,
CE: MAC Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, 01 de setembro a
15 de outubro. Acervo pessoal da artista. ...................................68
15. Thula Kawasaki. Cartografia, 2003. Litogravura s/ papel e
nanquim s/ vidro. 10 x 15 cm cada moldura. Acervo pessoal da
artista. ....................................................................................74
16. Thula Kawasaki. O inesgotável, 2003. Acrílica e grafite s/ tela.
18 x 24 cm. Acervo pessoal da artista. ......................................76
17. Thula Kawasaki. O inconquistável I, 2003. Acrílica e grafite s/
tela. 9 x 12 cm. Acervo pessoal da artista. ..................................78
18. Thula Kawasaki. O inconquistável II, 2003. Acrílica e grafite s/
tela. 9 x 12 cm. Acervo pessoal da artista. ..................................79
19. Thula Kawasaki. Como construir um jardim, 2004. Madeira,
potes de vidro, gesso, ervas secas, terra, flor, folha. 120 x 108 x 35
cm. Acervo pessoal da artista. ...................................................93
20. Thula Kawasaki. Como construir um jardim (detalhes)............93
21. Simon Evans. The world, 2003. Técnica mista s/ papel. 162,5 x
221 cm. Foto: Thula Kawasaki. .................................................98
22. Simon Evans. The world (detalhes)....................................98
23. Alberto Baraya. Herbário de plantas artificiais, 2003-. Plantas
artificiais e grafite s/ papel. Dimensões variáveis. Foto: Thula
Kawasaki. ..............................................................................104
24. Alberto Baraya. Herbário de plantas artificiais (detalhes) ....105
25. Walmor Corrêa. Gaveteiro entomológico (Série Catalogações),
2002/2003. Técnica mista. 140 x 140 x 40 cm. Fonte: CORRÊA.
Natureza perversa, p. 6 e 8......................................................107
26. Walmor Corrêa. Apêndice X (Série Catalogações), 2003.
Acrílica e grafite s/ tela. 80 x 80 x 02 cm. Fonte: CORRÊA,
Natureza Perversa, p. 43..........................................................109
27. Ilya Kabakov. Projeto para Ten Characters. Nanquim s/ papel.
40 x 29,5 cm. Fonte: GROYS. Ilya Kabakov, p. 54.....................119
28. Ilya Kabakov. The man who never threw anything away (from
Ten Characters, 1985-88). Instalação, National Museum of
Contemporary Art, Oslo, 1995. Coleção do National Museum of
Contemporary Art, Oslo. Fonte: GROYS. Ilya Kabakov, p.
104........................................................................................122
29. Ilya Kabakov. The man who never threw anything away (from
Ten Characters, 1985-88). Instalação, National Museum of
Contemporary Art, Oslo, 1995. Coleção do National Museum of
Contemporary Art, Oslo. Fonte: GROYS. Ilya Kabakov, p.
105........................................................................................123
30. On Kawara. Subtítulos das Date Paitings (detalhe), 1966. Texto
digitado (máquina de escrever) s/ papel. 27,5 x 21,5 cm. Fonte:
WATKINS. On Kawara, p. 44...................................................128
31. Ilya Kabakov. The big archive, 1993. Instalação, Stede1ijk
Museum, Amsterdam. Dimensões variáveis. Fonte: GROYS. Ilya
Kabakov, p. 69........................................................................130
32. Thula Kawasaki. Coleção de folhas mortas (trabalho em
andamento). Folhas, vidro, cortiça. Dimensões variáveis (cada pote:
05 x 02 x 02 cm). Acervo pessoal da artista...............................134
33. Thula Kawasaki. A sala de espera (trabalho em andamento).
Madeira monocromada, lã, folhas secas. Dimensões variáveis (cada
cadeira: 194 x 45 x 45 cm). Acervo pessoal da artista.................137
34. Thula Kawasaki. Infinitivo (detalhe)....................................143
35. Thula Kawasaki. Diários, 2006. Madeira e três encadernações
contendo textos e desenhos feitos de grafite sobre papel. Dimensões
variáveis (cada mesa: 55 x 55 x 35 cm). Acervo pessoal da artista.
.............................................................................................145
36. Thula Kawasaki. Diários (detalhe)......................................146
sumário
1. introdução 13
2. a passagem (ou um processo de aglomeração) 17
3. o cotidiano 41
3.1. os objetos do cotidiano 52
3.2. a casa e a noção de conjunto 62
3.3. as plantas e a ordem das coisas 82
4. o trabalho fora da casa 138
5. a impossibilidade da conclusão 149
referências 152
anexo 156
13
1. introdução
Trata-se, nesta pesquisa, mais do que de uma produção artística, de
percursos que a construíram. Trata-se das escolhas, dos interesses e
dos espantos que, ao longo dos anos, moldaram minha relação com a
arte e minha relação com o mundo. Trata-se de idéias, experiências,
buscas e dos incontáveis elementos que são relevantes durante todo
esse processo que permeia aquilo que faço. Compartilho aqui uma
existência, dentro da qual meu trabalho é construído.
Por vezes tentei me afastar do texto para escrever mais
objetivamente, seja lá o que isso significa. Percebi que eu
caminhava pelas beiradas do meu trabalho sem nunca conseguir
alcançá-lo. Depois de relutâncias várias, por motivos que já ignoro,
resolvi me aproximar da escrita e assumir esse lugar que é bem no
meio, no lado de dentro. Reconheço essa mesma proximidade na
relação que tenho com a minha produção e acho coerente além de
soar muito mais natural que seja assim aqui também. Com o
caminhar do texto percebo que não poderia ter falado de outro lugar.
No início, o texto segue uma cronologia bamba, ao longo da qual
caminhei para falar de um processo determinante em minha
produção: a experiência do fazer e do pensar que se iniciou no
14
desenho, na gravura, e se prolongou até a tridimensão. Tenho essas
duas técnicas e a vivência de suas especificidades como
fundamentais para a construção de um pensamento e de uma relação
com a arte que determinam o modo como me movimento na
experiência tridimensional. Os objetos nascem híbridos,
contaminados por esse lugar de entrecruzamentos, por isso me é
fundamental falar do percurso através do qual eles se tornaram
possíveis.
Em seguida, a cronologia se dissipa dando lugar a uma ordem guiada
pelos interesses, uma ordem interna ao texto. Falo então de questões
e interesses que surgiram a partir do fazer e, também, de elementos
que moldaram esse fazer. A reciprocidade dessa relação é mantida
assim, não-linear, ambígua, por vezes confusa.
Nesse momento abordo uma vivência do cotidiano e de como
extraio, dele, a matéria com a qual trabalho. Dentro de uma idéia de
cotidiano conjugada com a idéia de casa, abordo questões referentes
aos objetos comuns, ao mobiliário, ao hábito e aos diferentes graus
de percepção das coisas. É ao mesmo tempo um fazer-artístico que
se entrelaça com um estar-no-mundo e viver os dias nesse lugar
específico que é a casa, e que se torna ainda mais complexo quando
abriga tanto as funções de habitar, quanto o espaço do atelier.
15
Dentro ainda da casa, desenvolvo uma reflexão sobre uma idéia
urbana de jardins domésticos e relaciono os elementos vegetais
dispersos, como as folhas e as flores que se desprendem das plantas,
com questões relacionadas ao ser da ordem. A partir de folhas secas,
falo de coleções, listas, classificações, pois as experiências de
ordem se deram, para mim, de maneira mais clara, através da coleta
e organização desses fragmentos da natureza restrita do contexto
doméstico. Falo da ordem por ela se fazer presente o tempo todo,
das mais variadas maneiras. Por ela ser um desejo e um desafio
constante e por constituir minha relação com a arte e minha relação
com o mundo.
Finalmente, abordo outra questão muito presente em minha
produção, que é uma discussão sobre a subjetividade, a intimidade, a
privacidade e a relação desses conceitos com o meu trabalho, e dele
com o outro, com o espectador.
Não pretendo, com a pesquisa, justificar, explicar ou interpretar meu
trabalho de modo a cerrá-lo nesse intrincado de palavras. Não
pretendo e nem poderia, porque não tenho todas as respostas.
Escrevendo, exponho também as lacunas, exponho o que não disse.
Desenhando o texto, desenho também a contra-forma da pesquisa e
16
assumo as incertezas, as contradições, as falhas, as coisas que
escapam.
Há inúmeras referências literárias permeando todo o texto que não
busquei reprimir ou escassear pois revelam a importância definitiva
que a literatura tem para o meu entendimento do mundo. Tanto a
leitura quanto a escrita assumem papéis fundamentais na formação
da minha prática artística e, se essa importância se dá a ver no texto,
é porque também é intrínseca ao meu fazer.
No texto falo sobre meu processo de criação - um dos inumeráveis
processos possíveis - e sobre os interesses que alimentam minha
produção, que alimentam os interesses, que alimentam a produção e,
assim, infinitamente. Vou também ordenando pensamentos,
descobrindo, aprendendo na medida em que escrevo. Tento delinear,
ainda que minusculamente, tendo em vista o infinito, minha relação
com as coisas e incluo em coisas o mundo, ainda que ele extravase
todos os limites. E é nessa relação que construo meu trabalho e o
texto. A partir dela. Dentro dela.
17
2. a passagem (ou um processo de aglomeração)
O desenho e a gravura desempenham um papel fundamental no
desenvolvimento da minha produção plástica, não somente enquanto
técnicas, mas, principalmente, como meio de desenvolvimento de um
certo modo de pensar as imagens. Na relação com essas técnicas,
pude, mais que produzir trabalhos, estabelecer uma postura e um
modo de agir com relação às imagens e desenvolver um olhar
pessoal para as coisas.
Por julgar o desenho e a gravura não como um início mas como uma
essência subterrânea ou não de tudo aquilo que produzo até hoje,
parece-me fundamental falar dessa experiência e de como se deu a
passagem do bidimensional para os trabalhos tridimensionais que
vieram a seguir.
Minha experiência com o desenho sempre envolveu um grande
intimismo. Ao longo do tempo fui percebendo que esse intimismo é
determinado, em grande parte, pela relação entre o meu corpo e o
ato de desenhar. O modo como me coloco diante do papel me
curvo sobre ele, com os braços à sua volta e, por vezes, a ponta do
nariz quase chega a tocá-lo sempre me sugeriu algo de uma escrita
íntima, de segredos e de coisas pequenas. Debruçada sobre o papel,
18
a boca quase toca a mão e parece sussurrar coisas através das linhas
deitadas em sua superfície branca. O papel torna-se cúmplice.
Não sou mesmo dada a gestos amplos, não abro muito os braços com
naturalidade. Essa contenção gestual intrínseca ao meu corp o, aos
meus movimentos, me sugere detalhes. Mesmo em superfícies
grandes, trabalho em partes. Coisas pequenas. Prefiro as mesas aos
cavaletes. Os cavaletes exigem uma postura mais distendida,
impõem maior distância entre o corpo e o papel. Realizei muitos
desenhos em cavaletes e noto, quando os observo agora, que algo é
essencialmente distinto no resultado final e que tem a ver com a
postura corporal frente ao trabalho. Não só o corpo fica distante:
distancio-me também daquilo que está sendo desenhado. Afasto-me
do papel e daquilo que faço; meu gesto contido não encontra apoio.
Na mesa, o papel na horizontal sempre me convida ao toque. O
rosto, os braços, o peito, tudo fica mais próximo. Distancio-me vez
ou outra, para observar, mas, no momento do traço, abraço o papel.
A maneira pela qual o contato físico com o papel se estabeleceu
determinou grande parte do percurso que fiz no desenho. O traço foi
se tornando cada vez menos quebradiço e mais fluido, embora
errante. Mesmo a predileção pelo desenho de objetos pode ter se
19
dado em parte por essa proximidade física com o papel. Cabia
melhor em mim debruçar-me horas sobre objetos que sobre pessoas.
Lembro-me de ter sempre desenhado os móveis da casa. Antes,
talvez tenha estado alguém entre as coisas. Mas o interesse pela
figura humana em si foi sendo substituído pelo interesse por seus
rastros, por sua ausência, pela medida e pela forma de seu corpo
refletidas na medida e forma dos objetos.
Desenhar figuras humanas me interessava mais por questões
técnicas. Mas aquilo que eu fazia e que sentia ser realmente algo
meu eram os desenhos das coisas da casa: objetos, mobiliário,
plantas. Às vezes fundir diferentes elementos, que ocupam
diferentes espaços na vida, em uma só imagem, editar diversas
imagens de casas em uma só, construir um espaço que abriga todos
os espaços que habito no cotidiano.
O desenho é pensamento. Da coisa à linguagem
existe uma distância irredutível, a ser inventada.
(...) O desenho é construção, organiza no espaço a
idéia sobre aquilo que é pura ausência. Ilude com
seu produto gráfico, ligado ao gesto, o que está
elidido. Inscreve, no plano, o traço matérico de
algo que carece ser escrito para existir.
1
1
LAUAR. In: LEÃO; SALUM. O desenho não é a coisa, 2001.
20
Guardo alguns poucos desenhos dessa época quando ainda não havia
um desejo claro pela tridimensão e eu apenas desenhava os
ambientes e objetos porque era o que eu sentia ser coerente comigo.
Ia, assim, construindo aos poucos um repertório particular de
escolhas e imagens. No desenho aqui apresentado (FIG. 1), algumas
características que carregaria comigo, adiante, já estão presentes.
Além da predileção anteriormente mencionada pelo universo
doméstico e o caráter intimista do desenho, a fragmentação já se
apresentava como um elemento importante. A valorização do branco
do papel e uma gama cromática restrita (quase sempre com a
presença de um vermelho mais pontuado) também foram sendo
incorporadas à minha produção desde então.
21
Figura 1 Thula Kawasaki, sem título, 2002.
Ainda que meu processo todo de desenhar possa ser lento, ou não, a
possibilidade de imediatamente deixar um traço sobre o papel é algo
que constitui minha maneira de pensar. E há também, em seu
processo, uma possibilidade de solidão e uma liberdade que criam
uma condição que propicia o escoamento de idéias. Talvez por isso
tudo se inicie no papel.
22
Pois o que faz o desenhista? Aproxima duas
matérias; empurra suavemente o lápis preto em
direção ao papel. Nada mais. A coesão do grafite é
então solicitada à adesão pelo papel imaculado. O
papel é despertado de seu sono de candura,
despertado de seu pesadelo branco.
2
É através dessa quase instantaneidade do traço que as coisas
começaram e ainda começam a existir para mim. Uma
necessidade muitas vezes urgente de intervir na realidade que só se
satisfaz com linhas frágeis e imprecisas, uma poeira fina mas densa
e escura que vai sendo integrada às fibras brancas do papel. Esse
momento de encontro e adesão de que fala Bachelard é, para mim,
um acontecimento único, e gosto sempre de desenhar com os olhos
bem perto da folha para assistir a ele.
Com o decorrer do tempo, começaram a surgir esquemas
tridimensionais nos desenhos, e o desejo de atuar na tridimensão foi
ficando cada vez mais claro. Em diversos trabalhos, comecei a traçar
o que hoje me parecem projetos de objetos ou instalações. Quando
passei a visualizar o desenho com essa noção de projeto em mente,
comecei a querer fazer as coisas saírem do papel e ganharem um
corpo fora dele.
2
BACHELARD. O direito de sonhar, p. 53. (grifo do autor).
23
A partir desse momento, minha relação com o desenho foi sendo
constantemente transformada e ele se impregnou de dimensões e
perspectivas, ainda que frágeis. Chegou um ponto em que eu pouco
me preocupava com a finalização dos desenhos porque os via, em
sua grande maioria, como esboços de algo que eu queria produzir no
espaço tridimensional (FIG. 2).
Figura 2 Thula Kawasaki, desenhos/esboços, 2003.
24
Pareceu-me um caminho sem volta, um ponto de não-retorno. Não
que eu viesse a abandonar a bidimensão mas que dali para frente,
para mim, ela sempre carregaria esse forte caráter de projeto,
sempre estaria ligada à uma idéia tridimensional, possível ou não.
A passagem foi um processo, mas foi aí, a partir desses desenhos-
esboços, que ela se deu efetivamente e culminou com a produção de
fragmentos que viriam a constituir o primeiro dos objetos: O
arquivo reticente (FIG. 3 e 4).
Figura 3 Thula Kawasaki, O arquivo reticente, 2004.
25
Figura 4 Thula Kawasaki, O arquivo reticente (montagem de fotografias
do interior das caixas).
Durante a produção desse trabalho passei por inúmeros desafios para
me ajustar e encontrar meu traço na tridimensão. A madeira me
parecia precisa demais quando comparada à minha linha, então
busquei outras alternativas, sem descartá-la, para que eu pudesse
amenizar as linhas e sentir aquilo como um prolongamento das
minhas experiências anteriores. Nesse trabalho o desenho em si
também está muito presente em acumulações de pequenos desenhos
de anotação e traduzido em materiais mais sutis como papel,
barbante, linha, caixinhas de fósforo e cartolinas cobertas por massa
corrida e tinta. Queria traços mais incertos.
Também há, quase escondida, a escrita. Fragmentos de pequenos
textos meus, de diários, foram escritos em partes não muito visíveis
ou com a caligrafia reduzida. Fica quase como um desenho que não
quisesse dizer nada para alguém que passa os olhos desatentos.
26
Sempre tenho desejos de segredos. Sei que algumas pessoas levam o
tempo necessário até conseguirem decifrá-los todos. Já vi pessoas
tirando e colocando os óculos, apertando os olhos, aproximando os
dedos. Os pequenos fragmentos de textos poéticos não revelam
nenhum grande segredo da humanidade... falam de coisas internas,
de coisas comuns. Escrevo muito sobre muitas coisas e guardo
cadernos e mais cadernos de anotações gerais. Desses cadernos,
retirei os fragmentos. Tenho uma relação com a escrita à mão muito
próxima da que tenho com o desenho e por isso ela se faz presente
em alguns trabalhos. Depois de feito, já depois de exposto, eu
pensei: agora acrescento, à urgência de escrever, o gosto de ver a
reação que uma frase pequena e parcialmente encoberta provoca nas
pessoas.
Entre a escrita e as madeiras brancas delineei pequenas coleções,
separadas em grupos, de objetos e cenas cotidianas. Alguns objetos
de apreço pessoal, outros inventados estão aí guardados em caixas
que ora se aproximam de cômodos, ora de gavetas ou de outra coisa.
Foi pensando na compartimentação e na ordem do cotidiano, aquela
que em um momento é corriqueira e intuitiva e em outro é elaborada
e atenciosa, que estabeleci os módulos.
Pois não se trata de ligar conseqüências, mas sim
de aproximar e isolar, de analisar, ajustar e
27
encaixar conteúdos concretos; nada mais tateante,
nada mais empírico (ao menos na aparência) que a
instauração de uma ordem entre as coisas; nada que
exija um olhar mais atento, uma linguagem mais
fiel e mais bem modulada; nada que requeira com
maior insistência que se deixe conduzir pela
proliferação das qualidades e das formas.
3
Um interesse pela classificação e pela ordem começa a emergir
desse deslocar físico dos objetos, de pegar as coisas com as mãos e
mudá-las de lugar e pensar nessa mudança, nas escolhas que se
fazem, nos critérios que se inventam. Penso na proliferação de
qualidades e formas de que Foucault fala e nas impossibilidades
inerentes a toda idéia de classificação. Penso através dessas
pequenas experiências de ordem, essa coisa também empírica e
tateante que o deslocar das coisas com as mãos me proporciona.
Assunto que, hoje em dia, desperta cada vez mais meu interesse e
que torna a aparecer, de maneiras diversas, em trabalhos posteriores,
dos quais falarei mais adiante.
O fato de sempre ter trabalhado sobre o branco do papel também se
redimensionou e o branco se diluiu em todas as coisas. A região
sensível em que a matéria dos objetos toca uma à outra ou toca o
ar que as rodeia substituiu agora o traço fino no papel. As sombras
também delineiam espaços e formas mais ou menos manipuláveis e
3
FOUCAULT. As palavras e as coisas, p. XV.
28
acentuam a idéia de trabalhar não só o branco, mas em branco e
preto.
Houve e, a cada experiência, percebo que sempre há uma
contaminação mútua entre meu trabalho na bidimensão e na
tridimensão. Os objetos nasceram do desenho, impregnados de sua
linguagem, mas também contaminaram sua origem, acentuando, na
bidimensão, noções de espaço, de matéria, de fisicalidade.
Para a ocasião de uma exposição, da qual esse trabalho faria parte,
pensei em uma forma de apresentá-lo. Queria algo que possibilitasse
a visão dos detalhes e que unificasse o conjunto, transformando-o
em um objeto só. Não me interessava a separação dos módulos e
nem que eles fossem apoiados em algo que não fizesse parte deles.
Não me interessava nem a idéia de que eles fossem apoiados.
Queria que eles se suportassem desde o chão, como os móveis da
casa. Foi então que desenhei e pedi ao marceneiro que executasse o
projeto de uma mesa comprida, que foi o primeiro dos móveis que
eu viria a fazer.
Sobre ela, pude dispor os cinco módulos eqüidistantes e eles se
situam a mais ou menos um metro e cinqüenta de altura do chão.
Muitas pessoas se curvam um pouco com o rosto quase dentro das
29
caixinhas, devido à altura e aos detalhes. Gosto de ver que o
trabalho instaura um certo tempo ao movimento das pessoas, que
pede a elas uma atenção lenta, uma curiosidade sem pressa. Penso
que, por um momento elas vêem coisas pequenas e brancas, sonham
com segredos, estabelecem relações entre as coisas, rememoram um
acontecimento, um lugar, se inclinam, assopram, tocam, fuçam...
para depois voltarem aos seus dias de excesso, barulho e pressa.
Já no final da habilitação em desenho, ingressei na habilitação em
gravura. O processo da gravura me interessa e é, para mim, um
pensar lento sobre a imagem que se produz. Diferente do
imediatismo do desenho falo da minha forma de desenhar, não da
de todas as pessoas a gravura impõe um outro tempo. São às vezes
meses trabalhando uma mesma imagem através de todas as suas
fases, com atenção aos detalhes, aos procedimentos.
Até mesmo a vivência do ambiente do atelier é diferente: as pessoas
com seus aventais sujos, ocupadas de suas coisas, transitando entre
os equipamentos com idéias nas mãos. Há sempre o barulho de água
correndo, cheiros diferentes, uma poeira de todo tipo de coisa,
30
papéis pendurados nos varais, imagens secando. Por se tratar nela de
muitas questões técnicas, acredito que as pessoas se aproximam
mais, dão mais opiniões, perguntam mais. Pela minha experiência,
percebi que há muito mais diálogo entre os alunos a respeit o dos
seus trabalhos no atelier de gravura. Conversas mais despretensiosas
e uma participação maior na produção um do outro. É, como dizem,
uma cozinha. Uma cozinha onde aprendi técnicas, aprendi um modo
diferente de conviver com outros artistas e onde desenvolvi um
pensamento e um olhar mais paciente e atento em relação às coisas.
Onde aprendi a entender e apreciar o tempo de espera.
Cria-se, ali, uma intimidade demorada e um conhecimento específico
das imagens, que acredito ser particularidade da gravura.
Experiências como trabalhar com matrizes e cópias, com a imagem
invertida, trabalhar as fases, os fragmentos, as camadas de cores ou
de densidades, entre muitas outras, inumeráveis, foram fundamentais
para a construção do meu modo de fazer. Uma atenção mais especial
ao processo, uma preocupação maior com os gestos, a idéia de uma
imagem manual de que fala Bachelard:
Essa consciência da mão no trabalho renasce em
nós na participação no ofício do gravador. Não se
contempla a gravura; a ela se reage, ela nos traz
imagens de despertar. Não é somente o olho que
segue os traços da imagem, pois à imagem visual é
associada uma imagem manual e é essa imagem
31
manual que verdadeiramente desperta em nós o ser
ativo. Toda mão é consciência de ação.
4
O tratamento e os cuidados dispensados aos papéis também foram
essenciais. Na gravura se aprende mais ainda a lidar com o papel e
com o branco, os encaixes e as contra-formas. Minha opção pelo
branco (e o preto das linhas que se formam e das sombras) que
nasceu no desenho certamente se densificou no atelier de gravura.
Dessa forma trabalhadora de pensar o desenho, deste trabalho de
uma mão obrante ou obreira, como diz Bachelard, durante o tempo
lento que a gravura exige, amadureceram muitos projetos que eu
levaria à tridimensão.
A gravura pôde estabelecer um equilíbrio. Lá revalorizei o trabalho
bidimensional, que vinha apenas se amontoando em pastas
destinadas a esboços e planos. A dedicação e o tempo que a gravura
exige não condizem com a idéia de esboço. Estava claro para mim
que era preciso trabalhar na gravura com o pensamento na gravura.
Queria retomar um trabalho na bidimensão, redimensionado por
novas experiências, mas que se constituísse em um trabalho por si
só.
4
BACHELARD. O direito de sonhar, p. 53.
32
Durante o processo e depois da confecção de O arquivo reticente, eu
havia sentido que estava perdendo um pouco o tato com a
bidimensão, porque tudo o que fazia tinha jeito de projeto para uma
outra coisa. Entrei na gravura em meio a esse processo indesejável
para mim, e lá pude revalorizar ou revitalizar meus conceitos tanto
de desenho quanto da gravura em si. Pude retomar uma preocupação
e dedicação maior àquilo que fazia e recolocar a atenção no
momento presente.
Uma litogravura que fiz (FIG. 5) veio a dar origem a um novo
trabalho tridimensional intitulado Infinitivo (FIG. 6).
33
Figura 5 Thula Kawasaki, sem título, 2003.
34
Figura 6 Thula Kawasaki, Infinitivo, 2004.
35
Mas, diferente do meu caderno de esboços caóticos e soltos, a
litogravura foi realizada enquanto trabalho em si. Ainda relacionada
ao pensamento tridimensional, mas com uma existência própria.
Esse retorno à bidimensão que, de certa forma, a gravura me
proporcionou foi extremamente satisfatório porque, como disse, é o
pensamento na bidimensão que constitui a origem e mesmo unifica
meus objetos. Tive receio de que essa ligação se desfizesse porque
reconheço a importância determinante que ela tem para minha
produção.
Já mais envolvida com o trabalho sobre papel realizei a série d e
serigrafias à qual denominei Osteologia (de que as FIG. 7 e 8 fazem
parte). Acredito, agora
5
, que o fato de ter realizado essa série foi
uma afirmação desse retorno ao trabalho bidimensional.
5
Digo agora pois no momento em que essas coisas aconteciam, eu não
pude percebê-las com a clareza com que as percebo agora. Naquele
momento essa idéia de retorno ainda não estava clara para mim, e o
envolvimento com as imagens que produzia decorreu naturalmente através
da vivência mesmo da gravura.
36
Figura 7 Thula Kawasaki, Osteologia (pars thoracica), 2004.
37
Figura 8 Thula Kawasaki, Osteologia (pélvis), 2004.
38
São serigrafias de lugares criados por desenhos de móveis e
elementos de plantas, ambientados sobre um fundo cor de pele, cuja
contra-forma revela fragmentos de ossos. São chapas de raios-X que
passei para a tela e imprimi no papel para, sobre eles, criar
ambientes adaptados às formas da ossatura.
A aproximação entre o interior da casa e elementos do corpo sempre
me ocorre. Como disse, a figura humana me interessa pelos seus
rastros, sua ausência, seus fragmentos. Interessa-me a relação dela
com as coisas ao redor. E a idéia teve origem também em uma
coleção. Talvez por ser filha de médica ou por me acidentar com
certa freqüência, passei a colecionar minhas diversas chapas de
raios-X. Tenho-as guardadas desde os 14 anos e sempre me fascinou
ver o lado de dentro do corpo, com a mesma curiosidade com que
vejo o lado de dentro das coisas.
Guardava-as a princípio à toa uma coleção como muitas outras ,
depois com o intuito de fazer algo a partir delas, mas o preto das
chapas, a crueza delas e o material de que são feitas as afastavam do
meu modo de trabalhar. Encontrei, na serigrafia, uma maneira mais
sutil de apresentá-las por possibilitar transpor as imagens no papel
de outra forma (principalmente de outra cor) e trabalhar por cima.
39
Essa série, além de marcar um processo importante para meu
trabalho, une interesses diversos e cria relações entre elementos aos
quais sempre retorno e dos quais falarei mais ao longo do texto: a
casa, as plantas, os rastros.
Foi nesse ambiente heterogêneo que se deu a criação dos meus
trabalhos tridimensionais. Nesse cruzamento de interesses e
dimensões, de técnicas e modos de pensar e olhar, nesse encontro de
lugares, na leitura, na escrita... Há sempre algo de contaminação, de
hibridismo, de interdisciplinaridade.
Os objetos construídos virão a conter, impregnada em sua matéria,
uma imagem manual, como menciona Bachelard. Não sei se essa
imagem é clara para as pessoas como o é para mim. Mesmo quando
não se trata de um trabalho essencialmente produzido pelas minhas
mãos ou que se encaixe na idéia de um fazer da mão obreira, vejo
essa imagem manual através de uma história do traço inerente aos
objetos. Penso mesmo que segurar e ordenar os pequenos elementos
que compõem os trabalhos é um desenhar no espaço, com as mãos.
40
Minha incursão na tridimensão não vem de um pensamento nem
mesmo de um conhecimento escultórico. Esse conhecimento
certamente enriqueceria a produção mas nunca se deu até então. Foi,
tendo como base minha dupla formação que me proporcionou a
vivência com duas diferentes formas de pensar e fazer, com dois
diferentes ateliês , que construí um trabalho que nasce desse
encontro híbrido.
O processo todo se iniciou pelo desenho, depois pela gravura e
depois se prolongou na tridimensão, mas hoje já não posso dizer o
que nasce onde e, depois, para aonde vai. Com a prática em ambos
os espaços, bidimensão e tridimensão se tocam e se sobrepõem, se
justapõem, se contaminam. Essa relação entre objeto, desenho e
gravura já não é hierárquica, mas uma relação de contaminação
mútua. Sempre há todas as coisas em cada uma delas. Desta relação,
tanto o trabalho no papel quanto os objetos são transformados e, ora
afirmam suas semelhanças, ora suas particularidades. Penso nesse
processo todo. Seria uma passagem? Vejo um caminho que leva de
um lugar a outro. Passagem talvez soe mais limpo e menos real.
Talvez seja aglomeração.
3. o cotidiano
41
Minha produção se direcionou ao contexto do cotidiano na mesma
época em que vim a morar sozinha pela primeira vez, em Belo
Horizonte. A forte relação que estava sendo criada com a vida
doméstica tudo o que se vive na casa, os objetos, o cuidado
constante com cada coisa marca o desenho, que vem a marcar toda
a produção. Uma nova idéia de tempo e de espaço cotidianos. Uma
nova idéia de lugar.
E é na casa, são as coisas da casa que estão todos os dias
disponíveis aos olhos e às idéias. São elas que, ora existem, ora se
apagam e ora acontecem ao nosso redor diariamente. Acho, portanto,
inevitável que sejam elas a me povoar. Todos sabem do grande caos
urbano... ele mais me assusta que me ocupa. Interessa-me mesmo o
pequeno caos cotidiano e os pequenos delírios das coisas, da ordem,
das palavras dentro de quatro paredes.
Não desconecto uma da outra: grande parte da minha atenção para
com o lado de dentro se deve à desordem ruidosa e hostil das ruas,
que cria pequenas ilhas de isolamento urbano. O cotidiano em
espaços privados e restritos se torna cada vez mais comum e viável
6
.
6
Embora eu pense que as infiltrações públicas nos espaços privados
cresçam, paradoxalmente, para possibilitar essa vida mais reclusa . E,
assim também, as paredes que separam o público e o privado paredes
que carregam também idéias de segurança (efetivas ou não), de
42
Foi assim, me retirando, que descobri os abismos menores e mais
silenciosos dentro desse microcosmo em que a casa se torna nos dias
atuais. Foi essa existência curiosa e contida em espaços restritos e
um questionamento sobre as condições atuais do cotidiano como a
privacidade frágil dos apartamentos e a incomunicabilidade que
geraram o trabalho Através (FIG. 9 e 10). Um sentimento de
isolamento, de pequenas unidades, cada uma voltada a si própria e
rodeada por outras unidades igualmente isoladas.
Figura 9 Thula Kawasaki, Através, 2004.
intimidade, de conforto vão aos poucos vendo seu simbolismo ser
transformado.
43
Figura 10 Thula Kawasaki, Através (visão interna das caixas).
À revelia de uma existência apática e monótona, me proponho esses
pequenos desvios. Em certos momentos vêm até a ser uma crítica às
condições de vida na cidade, mas em certos momentos são uma
aceitação desse estado de solidão urbana. Digo aceitação não sem
certo peso na consciência. Mas não pretendo disfarçar.
Dentro desse novo horizonte nasceu um comprometimento mais
atento com o dia-a-dia, com todos os dias, na tentativa de não me
deixar engolir: reavivar o olhar anestesiado pelo excesso, olhar que
já banaliza preciosidades. O hábito ofusca as coisas e a rotina se
44
achata, os dias ficam planos, as coisas se apoucam. Acredito que o
exercício de reconhecer tensões, de delinear a estranheza do que é
óbvio seja válido como potência de um fazer. Deslocamentos de
percepção. Que sejam pequenos e interruptos, que sejam
escorregadios. A idéia não é ser Funes, o memorioso
7
. Ainda que se
reconheça o grau de anestesia do olhar com relação às coisas
corriqueiras, isso jamais permitiria um existir sempre atento e que
nada deixa escapar, como o dele. Mas há sempre algo que pode ser
feito. Gosto das pequenas resoluções e da possibilidade que a arte
e a memória proporciona no agir sobre a matéria do mundo de
efetuar operações, estabelecer relações, desativar e ativar sentidos.
No desenho mirar é escrever. Uma espécie de
escrita analfabeta, onde as informações prévias,
repertório de afinidades eletivas, imagens
esquecidas, originam o ato criativo. A atenção
vagueia, percorre cenas várias, delineia campos
vastos, marca o ponto verbo, coreografa de olho
vendado o que é só tensão. Qualquer coisa,
sensações espaciais, horizontes nascentes, a junção
dos planos, o chão: sofro sôfrego, claudicante da
existência.
8
O psiquiatra e psicanalista Hélio Lauar fala aqui do desenho mas é
de um conceito amplo de desenho que ele fala: como pensamento,
7
Personagem de Jorge Luis Borges que, após um acidente, descobre ter
adquirido memória e percepção infalíveis.
8
LAUAR. In: LEÃO; SALUM. O desenho não é a coisa, 2001.
45
como construção, como olhar, como escrita. Com a experiência do
desenho, nasceu um exercício do olhar e da escrita também. Observo
todas as coisas ao redor sempre que posso, sempre que me lembro de
existir mais atenta, e preencho meus cadernos com desenhos de
anotações. No desenho mirar é escrever.
Essa atenção que vagueia por todas as coisas tem sido uma busca
constante desde que mergulhei no universo do cotidiano. Gosto da
idéia de coreografar tensões e me identifico com esse quê de editor,
de editar as imagens do mundo. As pequenas descobertas dentro dos
dias: É necessário estar presente, presente à imagem no minuto da
imagem.
9
O dia-a-dia, insípido a princípio, que vai se revelando, se
deixando entrever por frestas e vãos e transparências. Dilatar as
coisas comuns, observar atentamente cada uma delas. Extrair
elementos do cotidiano e fundi-los em objetos possíveis: citações,
cirurgias, edições.
(...) se pudéssemos restaurar na própria observação
uma ingenuidade total, isto é, reviver realmente a
observação inicial, reativaríamos esse complexo de
medo e curiosidade que acompanha toda ação
inicial sobre o mundo. Gostaríamos de ver e temos
medo de ver. Eis o limiar sensível de todo
conhecimento. Nesse limiar, o interesse ondula,
perturba-se, volta.
10
9
BACHELARD. A poética do espaço, p. 01.
10
Ibidem, p. 122.
46
Busco instantes dessa observação inicial de que fala Bachelard.
Digo instantes porque não é possível ter o olhar pleno de
curiosidade e assombro o tempo todo, mas busco, na medida do
possível, esvaziar as coisas com o olhar para poder então reescrevê-
las. Pratico o exercício de lançar um primeiro olhar sobre aquela
coisa. Como se nunca a houvesse visto, como se não soubesse o que
é, nem para que serve, nem nada. Desaprender mesmo. O olhar que
se espanta com o absurdo das coisas óbvias das coisas que se
tornaram óbvias. Lembro-me constantemente de uma curta narrativa
de Ítalo Calvino intitulada O raio, em que o narrador, por um breve
momento, deixa de entender tudo ao seu redor:
Aconteceu-me uma vez, num cruzamento, no meio
da multidão, no vaivém.
Parei, pisquei os olhos: não entendia nada. Nada,
rigorosamente nada: não entendia a razão das
coisas, dos homens, era tudo sem sentido, absurdo.
E comecei a rir.
Para mim, o estranho naquele momento foi que eu
não tivesse percebido isso antes. E tivesse até
então aceitado tudo: semáforos, veículos, cartazes,
fardas, monumentos, essas coisas tão afastadas do
significado do mundo, como se houvesse uma
necessidade, uma coerência que ligasse umas às
outras.
Então o riso morreu em minha garganta, corei de
vergonha. Gesticulei para chamar a atenção dos
passantes e Parem um momento! gritei tem
algo estranho! Está tudo errado! Fazemos coisas
absurdas! Este não pode ser o caminho certo! Onde
vamos acabar?
11
11
CALVINO. Um general na biblioteca, p. 16.
47
O narrador espanta-se com o funcionamento do mundo até que o
sentido das coisas volta, aos poucos, a lhe ser natural ainda que
tenha restado uma certa inquietude e a esperança de outros lapsos
em que ele possa novamente se apoderar dessa sabedoria diferente,
encontrada e perdida no mesmo instante
12
.
Uma busca por instantes assim é o que, talvez, me mova. Nesses
momentos, em que as coisas se descolam do seu nome, de sua
função, do seu sentido usual e tudo se revela estranho, é que se pode
vislumbrar a novidade das coisas. É o ponto da reinvenção.
Pensando nesses momentos realizei um trabalho ao qual dei o nome
La hora muerta
13
(FIG. 11).
12
Ibidem, p. 17.
13
O título em português soa muito dramático, por isso optei pelo
espanhol, onde la hora muerta é uma expressão mais corriqueira e que
denomina as horas vagas ou livres.
48
Figura 11 Thula Kawasaki, La hora muerta, 2006.
Pensei no dia-a-dia automatizado, que percorremos, como sendo uma
possibilidade única e em instantes em que algo secreto, sagrado
talvez, nos é revelado. Por um instante somente. Nas horas ociosas,
ou nas horas em que há, por algum motivo, uma pequena fratura no
dia, uma fresta estranha, por um momento tudo parece perder o
sentido, a naturalidade, a aparência óbvia e então se questionam as
coisas ao redor. Como acontece quando se olha alguma coisa por
muito tempo até ela perder o sentido, por frações de segundo, e
depois, voltar a ser óbvia. Como repetir palavras até que elas se
49
transformem numa sonoridade sem lógica. Repetir repetir até ficar
diferente
14
.
Uma verdade fundamental cintila e, com a mesma fugacidade,
escapa. Mas algo dela persiste: uma inquietude, uma esperança, uma
visão longínqua e instantânea do mundo visto de fora. Os momentos
em que nos apoderamos dessa sabedoria diferente de que fala
Calvino. E depois, seguimos nosso dia como se tudo fosse mais ou
menos a mesma coisa, com o mesmo buraco no peito. Mas algo
pequeno, essencial e irreparável foi acrescentado ao centro dos
olhos.
No labirinto de Cnosso a questão não é se perder. Seu caminho é
único e quando nele se entra, só se pode ir ao centro e, do centro, só
se pode sair por onde se entrou. A dificuldade que se apresenta no
mitológico labirinto é a presença do Minotauro, e sua lógica é que
algo dentro dele compense o esforço. O labirinto em si também é seu
próprio mecanismo de defesa, que propõe obstáculos (mentais e
físicos) aos viajantes e protege seu centro.
14
BARROS. O livro das ignorãças, p. 11.
50
Foi essa forma de labirinto que escolhi pelo seu caminho único e
pela idéia de poder revelar uma coisa que valha todo o risco. Por
não ser um atravessar para chegar a outro lugar mas um atravessar
para retornar diferente. Não inventei minotauros. O Minotauro,
nesse caso, é a própria monotonia e estreiteza dos dias, a angústia
labirintíca
15
, à qual não somos imunes. É a idéia de uma
introspecção quase perigosa, que oscila entre a conquista e a morte.
É a lentidão que parece inerente à idéia de labirinto: Não há sonho
labiríntico rápido. O labirinto é um fenômeno psíquico da
viscosidade. É a consciência de uma massa dolorosa que se estica
suspirando
16
. Para Bachelard, a lógica do labirinto sempre tem a ver
com uma certa subterraneidade, com as imagens de estreiteza e com
a solidão. A luta é não se deixar sufocar.
Nele se entra por onde se sai, mas a pessoa que sai não é mais a
mesma. O lugar ao qual se retorna não é mais o mesmo. A idéia
sempre presente de alguma descoberta, imprescindível, no centro,
carrega a idéia de uma transformação do indivíduo e, portanto, de
uma transfiguração do mundo ao seu redor. O próprio caminhar
efetua em parte essa transformação. Caminhar pressupõe que a cada
15
BACHELARD. A Terra e os devaneios do repouso, p. 162.
16
Ibidem, p. 166.
51
passo o mundo se modifique em alguns de seus aspectos e também
que algo se modifique em nós
17
.
Esse trabalho do labirinto pode ter diversas interpretações. Eu
mesma já ouvi algumas tão ou mais interessantes que as minhas e,
portanto, quando falo do que me motivou a realizá-lo, não pretendo
explicá-lo ou vinculá-lo a tais e tais idéias, apenas fornecer mais um
ponto de vista: o meu.
3.1. os objetos do cotidiano
Em instantes, não tão profundos como o de O raio, mas mais banais,
gosto de perseguir a crueza das coisas. Perceber as características,
independente das funções: qual a sua forma, qual o seu desenho, sua
textura, sua massa, suas dimensões, seu peso; qual o absurdo, a
graça e o ridículo de cada coisa. O funcionamento secreto ou a
existência subterrânea dos objetos e das palavras - que Manoel de
Barros conhece tão bem:
17
CALVINO. Colección de arena, p. 201. (tradução minha)
52
Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao
pente funções de não pentear. Até que ele fique à
disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.
18
Algo de Manoel de Barros e sua irreverência e espanto, acerca das
coisas simples e da linguagem, gostaria de alcançar em meus
trabalhos. Algo de sua agramática, de sua desaprendizagem. Uma
intimidade com as coisas desimportantes que as amplia e as
transforma. Perceber as insignificâncias. Uma simplicidade
conquistada apesar do mundo. Apesar dos excessos do mundo.
Desinventar as palavras e as coisas. Em sua didática da invenção,
desaprender oito horas por dia ensina os princípios
19
.
Os trabalhos sempre nascem através de uma busca, no cotidiano,
pelas coisas acontecíveis, tudo aquilo que se sobressai ao olhar,
dentro desse pensamento de desaprendizagem e espanto. Vejo a
possibilidade de me apropriar delas, de sua imagem, através da
seleção e da intenção. E reinventar objetos. No ponto em que
interesses subjetivos tocam a realidade do mundo, esvaziar os
sentidos ordinários para que, pela justaposição de elementos,
18
BARROS. O livro das ignorãças, p. 11.
19
BARROS. O livro das ignorãças, p. 9.
53
possam surgir continentes de outros sentidos. Buscar uma espécie de
significação secreta que é múltipla e talvez infinita por trás do
sentido claro das coisas através da intimidade com o objeto.
Ao vivenciarmos uma relação mais próxima com eles, os
distorcemos, projetando pensamentos e sentimentos. A gente
descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela
intimidade que temos com as coisas
20
. Nesses objetos ficam
condensadas as experiências de um homem com o seu mundo. Objeto
e sujeito se confundem, modificando-se mutuamente: se ele
guardara aquelas cartas durante tanto tempo, aquilo passara a ser
tão dele quanto os seus olhos, suas mãos, seu peito
21
.
No cotidiano, certos objetos compõem uma paisagem morta, que só
cintilam na necessidade de sua função. Gosto de torná-los visíveis,
efetivamente visíveis. Um pequeno inventário de formas cotidianas.
Os móveis da casa. Aquilo de mais comum e mais banal e mais útil:
um banco, armários, mesas. A proporção alterada das coisas faz com
que sejam vistas as formas das coisas com as quais convivemos, faz
com que as formas sejam subitamente, ainda que por um momento,
20
BARROS. Memórias inventadas: a infância, XIV.
21
CONY. Quase memória, quase romance, p. 125.
54
desvinculadas da noção de funcionalidade. E, se não é funcional, há
de se criar um outro contexto, um outro sentido para tudo.
Transformá-los ora alternando suas proporções, ora alternando seu
desenho ou redistribuindo funções. Os desvios de perspectiva e
proporção, incomuns aos objetos práticos, causam certo incômodo e
exigem o esforço de se fazer caber no ambiente. Cria-se então um
sentimento de familiaridade e, ao mesmo tempo, de estranhamento
com esse objeto próximo e absurdo. O cotidiano se revela impedido.
Pensando nos desvios de percepção possíveis através da
transformação de elementos formais das imagens que habitam o
cotidiano, criei O irreversível (FIG. 12), trabalho que revela a forma
de um objeto familiar, porém distorcida pela alteração de suas
dimensões.
55
Figura 12 Thula Kawasaki, O irreversível, 2004.
Trata-se da figura de uma banqueta, dessas comuns, com as
dimensões bastante ampliadas, chegando a ter um metro e vinte de
altura. Não atende mais as funções usuais de uma banqueta, no
entanto, é sempre reconhecida como uma.
56
Em seu livro Kant e o ornitorrinco, Umberto Eco discute a certa
altura sobre os elementos essenciais no reconhecimento de
determinados animais. Fala, entre outras coisas e com muito mais
profundidade, sobre as propriedades essenciais incanceláveis e
as propriedades canceláveis. Por exemplo, que é possível reconhecer
um elefante sem presas, mas não um elefante sem tromba. Que a
tromba faz parte da Gestalt característica do elefante
22
. Só a sua
presença não basta para reconhecer o animal (já que mamutes
também a possuem) mas a sua ausência basta para eliminar a
possibilidade de que seja ele. Portanto seria uma propriedade não-
cancelável, uma condição necessária para seu reconhecimento.
No caso de O irreversível, não há dificuldades em reconhecê-lo
como uma banqueta. Sua dimensão ampliada não impede o
reconhecimento, assim como o rato de oitenta metros e que pesa oito
quintais
23
, de Eco, ainda mantém as características de um rato.
Porém, essa alteração viola algo de essencial. Eis que uma
propriedade como a dimensão standard aparece, se não
22
ECO. Kant e o ornitorrinco, p. 203.
23
ECO. Kant e o ornitorrinco, p. 202.
57
incancelável, pelo menos dificilmente cancelável
24
. Ao nome
banqueta está ligada a função de sentar-se e é isso que a negação da
dimensão comum anula. Algo que mantém as características formais
mas que impede a função primordial do objeto poderia ainda
carregar seu nome? Ou seria necessária a invenção de um dicionário
paralelo para os objetos transformados?
Gosto de vislumbrar os abismos entre as coisas e seus respectivos
nomes. Tantos nomes seriam precisos quantas transformações se
efetuassem. Tantos nomes, quantos desvios de percepção. Seriam tão
arbitrários quanto o nome original. E seria um mundo impossível,
uma linguagem impossível, onde só haveria nomes próprios.
Particularidades.
Essa idéia das propriedades que são essenciais e aquelas que são
canceláveis sempre me vem à cabeça quando projeto algum objeto.
Ela é um instrumento classificatório já que visa a determinar quais
características algo precisa ter para pertencer a certo grupo. E, como
um jogo, tento colocar em prática esses sistemas de classificação
nas coisas caseiras, como nos móveis. São variações de um
mobiliário doméstico comum, que possuem certo nome e função, até
24
Ibidem, p. 203.
58
mesmo certo lugar na casa. Mas quantas e quais alterações esse
objeto suporta até que esse nome se perca? Qual a elasticidade do
seu nome?
Aqui é só um jogo, são pensamentos. Pouco importa se um sofá tem
ou não o direito de se chamar sofá. Mas se esse jogo continua a se
expandir, dá sempre um frio na barriga. Dá sempre a impressão de
pisarmos em terreno movediço quando vislumbramos a
arbitrariedade fundadora da nomenclatura e das classificações, em
todos os níveis. E ainda que a linguagem não seja transparente,
ainda que exista um abismo crescente entre as palavras e as coisas,
vejo um pouco como o senhor Palomar, personagem de Ítalo
Calvino: aprender um pouco de nomenclatura constitui sempre a
primeira medida a tomar para reter por um momento as coisas que
perpassam diante de seus olhos
25
. Por isso, quando jogo com as
palavras, com o nome das coisas, com as classificações, as coisas
sempre saem com a identidade trêmula.
Dificilmente uma pessoa no seu cotidiano se atém a pensar na
dimensão standard das coisas. As casas com seus móveis,
equipamentos e objetos são planejadas para que se encaixem às
25
CALVINO. Palomar, p. 68.
59
articulações e às dimensões do corpo humano, causando a menor
descontinuidade possível.
Ocupada nas funções de habitar, tudo ao seu redor se torna uma
extensão do próprio corpo, tudo se articula com as medidas dele. É
normal que seja assim. E estranho. Normal porque o desenho das
coisas busca facilitar as tarefas e tornar a vida mais prática. Essa é a
idéia, e é óbvia. Mas é estranho, e dá vertigem pensar que cada
centímetro do corpo está irremediavelmente refletido em cada
objeto. Cada gesto, cada modo de fazer, cada posição, tudo já foi
adivinhado e eternizado na forma das coisas que o rodeiam. Os
gestos determinam a forma dos objetos e, a partir de então, o vice-
versa também é válido: as coisas ao redor constroem o modo de
fazer do corpo.
Existem as poucas exceções mas a idéia de dimensão standard e o
hábito fazem com que os objetos se tornem invisíveis perante suas
funções e, tomando uma expressão de Baudrillard, o devolvam ao
mundo
26
. Não se demora neles, não são mais objetos mas a
possibilidade de uma função que faz a mediação prática entr e a
pessoa e o mundo. Enquanto tudo funciona como deveria, enquanto o
26
BAUDRILLARD. O sistema dos objetos, p. 94.
60
olhar está acomodado, os objetos compõem essa paisagem invisível
de possibilidade de ações. Vivemos em meio a eles como se fossem
extensões óbvias do corpo, de gestos e movimentos. Na maior parte
do tempo só se espera atuar sobre os objetos, e que os objetos
funcionem, e que devolvam a nós aquilo que esperamos deles. Mas
sempre pode haver uma falha, uma fresta que evidencia novas
possibilidades de leitura do comum.
Sim, prendemo-nos à noção de que o objeto é
apático, mas basta um nada que ele não funcione
ou que se o veja com vagar para que ele se revele
estranho, demoníaco. Colocado em outro contexto
que não o da funcionalidade, à revelia da sintaxe
habitual, o objeto já é outro: é um obstáculo, é um
corpo estranho. E, como tal, ele repõe o mundo
como território de surpresas.
27
Com O irreversível, quis empurrar alguns limites desse objeto tão
comum aos olhos. Com a utilidade suspensa, não podendo mais
participar do contexto original, esse objeto reivindica alguma coisa
anterior à função, algo mais elementar. Ele pode ser visto e é o que
se vê. Aumentá-lo para distanciar. Torná-lo externo e visível. E
assim fazer pensar naquilo que o nome estabelece em relação àquilo
que é nomeado, nessa invisibilidade das coisas do cotidiano, em
27
FARIAS. Cotidiano/Arte: objeto anos 60/90. www.itaucultural.org.br
61
todas as relações que unem nosso corpo aos objetos, nos gestos
nossos que neles ecoam.
Blanchot, estabelecendo relações entre a morte e as imagens, fala
também de uma certa morte dos objetos e sua conseqüente aparição:
Por analogia, pode-se também recordar que um
utensílio danificado torna-se a sua imagem (e, por
vezes, um objeto estético: "esses objetos obsoletos,
fragmentados, inutilizáveis, quase
incompreensíveis, perversos", que André Breton
amava). Nesse caso, o utensílio, não mais
desaparecendo no seu uso, aparece. Essa aparência
do objeto é a da semelhança e do reflexo: se se
preferir, o seu duplo. A categoria da arte está
ligada a essa possibilidade para os objetos de
"aparecer", isto é, de se abandonar à pura e simples
semelhança por trás da qual nada existe exceto o
ser. Só aparece o que se entregou à imagem, e tudo
o que aparece é, nesse sentido, imaginário.
28
Tornar as coisas a sua própria imagem é um exercício no mínimo
interessante. Proporcionar pequenas mortes, à tarde, em casa.
3.2. a casa e a noção de conjunto
28
BLANCHOT. O espaço literário, p. 260.
62
Sempre que falo em cotidiano, é na casa que penso. Como disse
anteriormente, minha relação mais profunda com a matéria do
cotidiano nasceu de um envolvimento meu com um universo
doméstico. Sei dos caminhos que percorremos, dos lugares que
freqüentamos, todos os dias. Mas minha idéia de cotidiano está
sempre vinculada à casa, a tem como essência. É nela que observo o
hábito agir de maneira mais plena. Aqui se repetem em número
indefinido em suas minuciosas variações as seqüências de gestos
indispensáveis ao ritmo do agir cotidiano
29
.
Nela se estabelecem nossas relações com os objetos, nosso modo de
movimentar entre as coisas. Ela que abriga a gama de objetos que
cada um elege para seu convívio diário. Na casa é que cada um
desenha seu perfil através da seleção dos objetos, através do cuidado
com as coisas, através dos seus critérios de ordem. Ela é um canto
do mundo que nos pertence e que abriga, reunidos, todos os objetos
de desejo. Um lugar de onde se é o centro e que também abriga o seu
centro.
29
CERTEAU et al. A invenção do cotidiano 2, p.205.
63
Bachelard fala que sem ela, o homem seria um ser disperso
30
. Essa
frase se vincula em mim à noção de coleção: o ato de colecionar é
sempre uma luta contra a dispersão de certos objetos pelo mundo.
Benjamin, ao falar da importância do lado fisiológico do ato de
colecionar, fala que esse ato adquire uma evidente função biológica
na construção dos ninhos pelos pássaros
31
. Penso que, dessa mesma
maneira, a casa é uma coleção dos fragmentos de nós mesmos. É um
não se deixar dispersar pelo mundo. Uma coleção mais complexa,
que abriga tudo o que se relaciona aos nossos desejos, nossos
medos, hábitos, manias... que abriga mesmo as próprias coleções, os
objetos de afeto, os instrumentos de uso. Baudrillard fala que
colecionamos sempre a nós mesmos
32
e, através dessa frase, vejo
também a imagem da casa: uma grande coleção de si próprio.
A relação de meu trabalho com a casa vai muito além de uma relação
temática ou de inspiração. É uma condição de possibilidade do
trabalho, além de ser seu berço.
30
BACHELARD. A poética do espaço, p. 26.
31
BENJAMIN. Passagens, p. 244.
32
BAUDRILLARD. O sistema dos objetos, p. 99.
64
Por diversos motivos, hoje em dia é muito comum que, nesse mesmo
lugar, o tempo do trabalho e o tempo de não-trabalho se
justaponham. Às vezes vai além da justaposição, e os dois tempos
realmente se fundem, confundem. Penso nessa fusão, principalmente
quando se trata de um trabalho artístico, cujos limites pouco se
impõem com relação ao resto do tempo, o resto da existência. Estar
o tempo todo atento. A casa como atelier: uma zona indeterminada,
sem limites fixos entre o privado e o público, já que é nessa
permanência de domicílio, híbrido de lar com labor, que o artista
simultaneamente vive e trabalha
33
.
Sempre lido com coisas cotidianas: os móveis, os objetos, as
coleções, as repetições, os pequenos exercícios de ordem, os
pequenos desvarios. Isso vem da casa. Mas a participação da casa na
minha produção nasce em outro nível e se prolonga de várias
maneiras. O motivo de ser considerada como uma essência é
justamente por causa dessa situação casa-atelier e as implicações
que isso gera não só em cada objeto, mas no conjunto do trabalho
como um todo.
33
LAGNADO. Ateliê, laboratório e canteiro de obras, p. 17.
65
Em um mesmo lugar eu trabalho, escrevo, leio, desenvolvo projetos,
lavo roupas, me alimento, tomo banho, descanso. Trabalho fora
também, mas é um constante estar fora do lugar, querendo voltar. A
opção é pela casa. E nela se reúne tudo o que fiz, que comprei, que
acumulei ao longo de muitos anos. Nela também está a maior parte
dos meus trabalhos. Quando não estão sendo expostos, é à minha
casa que eles pertencem, fazem parte do meu mobiliário e acredito
que isso seja um ponto crítico da minha produção. Talvez por isso
uma forte idéia de conjunto sempre me ocorra.
Convivo com essa exposição doméstica. De uma maneira ou de
outra, dentro de um outro contexto que não o das galerias e museus,
meus trabalhos em casa também constituem uma exposição. Quase
privada. Não estão embalados ou guardados fora da vista e, sim,
articulados uns com os outros e também com o mobiliário comum.
Esse diálogo constante entre os objetos todos constrói em mim uma
visão diferenciada do conjunto da minha obra.
Quando penso em um novo trabalho, penso-o sempre em relação a
todos os demais já feitos. Penso sempre em um mesmo ambiente
sendo criado, sendo ampliado, sendo modificado. Tendo essa relação
entre todos os objetos sempre em mente, tento construir não só um
66
novo trabalho, mas o espaço que ele cria ao seu redor e os possíveis
diálogos entre as coisas que já existem.
Sempre imagino tudo o que já foi feito em um só lugar e, desse
lugar, penso em algo novo. Para esse lugar.
Não seria mais possível uma exposição que contivesse
absolutamente tudo que considero como parte do conjunto já que, ao
longo dos anos, alguns trabalhos se desgarram, tomam outros rumos
e já não os possuo mais. Mas, no pensamento, está sempre esse
conjunto, como se fosse a lenta construção de uma coleção. E,
quando da ocasião de uma exposição, me estranha a casa vazia.
Percebo que, no próprio modo de compor os objetos no espaço
expositivo, estão implícitos gestos relacionados à casa, à arrumação
da casa. Tento compor um percurso que aproxime a pessoa dos
objetos e que se configure em um andar que tenha algo de conforto.
Um ambiente que passe uma idéia de abrigo também. E, a cada
trabalho que se incorpora ao conjunto, é preciso pensar em uma nova
disposição. Em cada diferente espaço expositivo procuro avaliar as
paredes, os cantos, o chão. Tudo isso determina a montagem, que
nunca é aleatória e que sempre leva em conta a noção de espaço e as
possibilidades de caminho e de diálogo.
67
Em 2006, através do projeto Rumos, do Itaú Cultural, tive a
oportunidade de levar um mesmo conjunto de objetos e gravuras
para quatro cidades diferentes. Em cada cidade, o espaço disponível
para mim determinava a montagem de maneira decisiva. O que
propiciou quatro instalações diferentes. Não é questão de afastar ou
aproximar mais as coisas para que caibam no lugar, mas de
realmente rearranjar todo o conjunto, tendo consciência do espaço
ao redor e, assim, transformar o trabalho. As figuras 13 e 14
mostram a montagem em duas dessas cidades.
Figura 13 Thula Kawasaki, Os segredos intocáveis no meio do dia.
Exposição no Paço Imperial, Rio de Janeiro, RJ, 2006.
68
Figura 14 Thula Kawasaki, Os segredos intocáveis no meio do dia.
Exposição no Dragão do Mar, Fortaleza, CE, 2006.
Com essa experiência de, com um mesmo conjunto de objetos,
montar quatro exposições em quatro lugares distintos, percebi mais
claramente o papel determinante do espaço no meu trabalho. Em
cada um dos lugares, o trabalho resultou diferente. A noção de
conjunto se fortaleceu ou se afrouxou de acordo com a fluidez da
montagem com relação ao lugar. O percurso proposto, a distância
entre as coisas e, principalmente, a interação do trabalho com o
espaço alteram inclusive o tempo do caminhar das pessoas, o tempo
da percepção, fazendo com que cada montagem configure um
trabalho distinto. Isso de perceber na prática as diferenças que
emergem da instalação como um todo em suas diferentes montagens
acentuou ainda mais minha noção de conjunto.
69
A convivência com esse conjunto de objetos desproporcionais e
brancos demais é uma particularidade do meu cotidiano. Coisa que
se incorporou aos dias da casa e de que pouco dou conta, até que
entre a opinião e espanto de uma outra pessoa. Sempre que há visitas
na casa, tenho que me explicar. Porque meu aparador é só um pouco
mais baixo que meus ombros, porque guardo sangue num potinho de
vidro em um armário comprido da sala, porque há terra e flores
mortas na gaveta da cômoda.
Lembro-me de uma ocasião, logo que mudei de apartamento, em que
viajei e o marceneiro, não me encontrando em casa, deix ou uma
encomenda de três cadeiras gigantes no hall do prédio. Foi assim
que conheci meus novos vizinhos. Quando retornei, sempre alguém
batia à minha porta para avisar que havia me chegado uma
encomenda, e aproveitava para emendar uma dúzia de perguntas ou
comentários ou para desfiar um olhar curioso para dentro da casa.
Uma senhora queria, de todo jeito, conhecer minha mesa de jantar (e
ficou decepcionadíssima com meu simplório conjunto de jantar para
quatro pessoas de estatura normal). O porteiro mesmo me
comunicou, chateado, que não queria aceitar a encomenda porque
70
sabia que as medidas estavam erradas mas que o marceneiro insistiu
que não poderia levar de volta. Nesses acontecimentos, quando um
outro entra em minha casa e diz que é estranho, é que percebo com
mais profundidade algumas distorções que essa convivência gera no
meu olhar. E então penso comigo mesma que é, é realmente um
pouco estranho, e que, se vejo como normal, é porque essas
presenças brancas e alongadas e o hábito já alteraram minha noção
de normalidade.
Nesses instantes em que acho tudo estranho penso que aqui as coisas
não têm todas a medida do meu corpo. Elas descentralizam um
pouco a casa. Nem tudo é um prolongamento das minhas dimensões
e, consequentemente, nem sempre me vejo no centro. É até mesmo
uma existência corporal diferente. Tudo é feito para não precisarmos
nos inclinar ou desviar ou nos esticar demais. Tudo está sempre
mais ou menos à mão. Pois aqui eu me desvio o tempo todo, eu me
apóio nas coisas de maneira engraçada, subo em uma cadeira para
limpar outra. A falta de praticidade acentua a atenção. Percebo a
estranheza dos meus movimentos. Alguns trabalhos que fiz pensando
em fazer vibrar alguns gestos congelados, um olhar menos atento,
realmente e efetivamente vibram os meus e renovam minha
consciência do cotidiano. E, ainda assim, a força do hábito ofusca
71
essas estranhezas durante grande parte do dia. A vida desgasta
rapidamente os primeiros espantos
34
.
Às vezes as coisas se confundem na minha casa e passo a me
espantar mais com o desenho da estante ordinária de livros ou do
criado-mudo. Como Eco diz a respeito das já citadas propriedades
essenciais e canceláveis, elas dependem e são selecionadas por um
contexto, através de uma história das nossas experiências
perceptivas. Se cavalos e asnos passarem a nascer listrados, as
listras propriedade não-cancelável das zebras passariam à
condição de cancelável e seria preciso ater-se a outras
características peculiares a elas
35
. Já acho quase normal conviver
com cadeiras gigantes.
Convivo com essas imagens brancas e elas se diluem em mim, em
um dia normal, como quaisquer outras. Apóio copos sobre labirintos
de madeira e quando essas pequenas realidades me atingem, tenho
vontade de produzir as coisas não somente pensando em expor, mas,
também, pensando no momento em que elas retornarão à casa e farão
parte do meu dia. Penso se tudo isso não me sufoca um pouco.
34
BACHELARD. A poética do espaço, p. 119.
35
ECO. Kant e o ornitorrinco, p. 204.
72
Penso, até mesmo, se essa forte comunhão entre todos os meus
trabalhos, e essa responsabilidade de sempre partir já de dentro de
um conjunto não me sufoca. Acho provável mas ainda não tenho
resposta.
A casa também impõe limites à produção. Limites físicos. Os
projetos que guardo nem sempre são viáveis. Os que realizo sempre
têm de ser. Tenho em mente o espaço em que poderei armazená-los,
o tamanho do elevador, das escadas para se chegar ao apartamento.
Tenho em mente principalmente a altura entre o chão e o teto. Essa
altura de quase três metros que nada pode ultrapassar. E das portas.
Não faço nada que não possa entrar.
Por isso, quando penso em casa, são diferentes e, por vezes,
conflitantes idéias sobre casa que vislumbro. Um privado que
permite infiltrações públicas crescentes; uma intimidade que precisa
das persianas fechadas, que vaza pelas janelas, pela espessura das
paredes; um universo restrito mas inexaurível, de liberdade e
limitações. A casa é complexa. Ela determina o que faço do nível
poético ao prático, através de idéias, teorias, sensações mas também
através das possibilidades e impossibilidades as quais tenho que
sempre considerar. Ela me compõe e também impõe limites.
Concretos. Eu a construo e ela, em retorno, me constrói. Sei que
73
parece uma frase qualquer frase feita e boba mas vejo realmente
com clareza essa relação de construção mútua. Penso que essa
relação de reciprocidade com a casa não é muito diferente da relação
que tenho com a arte. Nem totalmente apartada dela.
Quando falo de casa não é só a imagem da casa atual que evoco. A
casa natal, que está fisicamente inserida em nós na forma de um
grupo orgânico de hábitos
36
de que fala Bachelard em A Poética do
espaço , assim como todas as casas que vieram a seguir se
misturam numa edição nebulosa de cômodos, gestos, pisos,
corredores, vozes, pessoas, escadas, janelas.
Nossos habitats sucessivos jamais desaparecem
totalmente, nós os deixamos sem deixá-los, pois
eles habitam, por sua vez, invisíveis e presentes,
nas nossas memórias e nos nossos sonhos.
37
Dessa casa natal de que muito me lembro e tenho a oportunidade
de, sempre que quiser, ir até ela guardo o início de um
36
BACHELARD. A poética do espaço, p. 33.
37
CERTEAU et al. A invenção do cotidiano 2, p. 207.
74
relacionamento com o mundo. Coisas, cuja origem só o tempo
esclarece, destaca, e desvela. A ela se acumularam muitas outras
imagens, idéias e experiências domésticas, com as quais trabalhei
em uma litogravura denominada Cartografia (FIG. 15), e que se
revela pequena, expõe apenas uma ínfima parte desse turbilhão de
memória.
Figura 15 Thula Kawasaki, Cartografia, 2003.
Do lado direito, uma planta baixa, um mapa de uma casa inventada a
partir de memórias costuradas umas nas outras. Um pouco de tudo
aquilo que ficou gravado, que na mente já é gravura. Aos cômodos
75
ou aos objetos se ligam por um pontilhado de ausência na matriz,
que toma o branco do papel na impressão situações e lembranças
fracas, tortas, representadas por datas, fragmentos de cenas e de
palavras na moldura esquerda.
É um pouco assim que em mim as memórias encontram abrigo.
Aquelas que fazem parte da memória do corpo, as que se resgata m
com gestos repetidos; aquelas que se incorporam à memória só de
ouvir dizer; aquelas que o recontar fixou mas que já são só palavras,
que, há muito, as imagens abandonaram; aquelas que com o tempo se
aglutinam ao som de outra, a um cheiro mais antigo que elas, e se
transformam em outra coisa; aquelas que, tentando resgatar através
de uma carta ou fotografia velha, acabo por inventar. Um passado de
planície, onde todas elas se confundem em uma só, em um só
conjunto que sempre resulta imaginário. Essa conjunção de
memórias transformadas sempre por uma consciência do aqui e
agora. Do lugar em que estou e de onde falo.
Na maior pintura (FIG. 16), do conjunto de três pequenas pinturas
denominado Impossibilidades (FIG. 16, 17 e 18), faço gráficos
frouxos de memórias ligadas a lugares e objetos, como em
Cartografia.
76
Figura 16 Thula Kawasaki, O inesgotável (da série Impossibilidades),
2003.
A idéia de gráficos frouxos que mais ricocheteiam que ordenam,
mesmo porque, geralmente, tentam o impossível de ordenar o
inordenável me acompanha. Aqui também são memórias soltas pela
casa, dentro de um povoado de armários, nas paredes, no chão. O
gráfico nada explica e nada relaciona mas indica essa possibilidade
de conexão entre os elementos, a um lugar ou a eles mesmos. O
77
mesmo teor proliferante da memória se apresenta. E a idéia da
memória inserida ou relacionada aos objetos.
Nas outras duas pinturas do pequeno conjunto, O inconquistável I e
II (FIG. 17 e 18), também há uma dualidade entre uma certa ordem e
aquilo que não se contém. Elementos relacionados às plantas
(sementes, raízes, frutos) nascem ao redor de formas que se ligam à
imagem do mobiliário. Penso que é uma questão de espera, que o
caráter proliferante das formas orgânicas ameaça tomar o espaço, e o
quadrado forma que poderia simbolizar a ordem humana pode ser
incorporado a esse corpo proliferante.
78
Figura 17 Thula Kawasaki, O inconquistável I (da série
Impossibilidades), 2003.
79
Figura 18 Thula Kawasaki, O inconquistável II (da série
Impossibilidades), 2003.
80
Essa é a idéia que, na maior parte do tempo, faço das plantas. Das
plantas também ordinárias, domésticas: os vasos, os pequenos
jardins, os copos com água e flores. Sutis ameaças a elementos de
ordem; fissuras. E uma necessidade de constância para se equilibrar
entre a morte e o alastramento.
A idéia de jardim está presente nessa concepção da casa. Alguns que
vi, alguns que tive, alguns que li ou que inventei. Mas não é nunca
algo exuberante e, sim, contido, frágil. São os jardins que os
espaços de morada atuais permitem: não querer abrir mão dessa
imagem em miniatura, imagem metonímica de paraíso, do paraíso
terrestre, mesmo com todas as restrições.
Às vezes penso também em uma espécie de reviravolta em que as
plantas, especialmente as trepadeiras, se alastrem e tomem conta da
casa. São os dois opostos que, nesse caso, tem a ver com a idéia de
abandono: a morte ou a proliferação desordenada. Sob cuidados
constantes, isso não aconteceria. Mas o cuidado invariável às vezes
me parece inalcançável. O meu é oscilante, vai do extremo zelo à
negligência. Por isso as coisas se manifestam de maneiras diversas
durante minha ausência e me espantam quando retorno a elas.
81
Devido a essa tendência a períodos de negligência com as coisas,
talvez tenha aprendido a gostar de plantas mortas. Muitas vezes
percebo vasos secos dos quais não consigo me desfazer. Gosto de
ver como uma coisa se torna outra coisa. Outro desenho, outra cor,
outra textura; diferentes sons, diferentes movimentos. Ao invés de
se balançarem ao vento, elas se despedaçam. Admiro a beleza das
plantas vivas mas penso que algumas ficam ainda mais bonitas
mortas.
82
3.3. as plantas e a ordem das coisas
Percebi, ao longo da produção, que o interesse que tenho pelas
plantas em meu trabalho está sempre relacionado a um certo desejo
classificatório. Tentativas frouxas de conter o fluxo orgânico,
inventar ordens ineficazes para controlar uma incontrolável
desordem natural. E acabar por matar aquilo que quero apreender, ou
acabar por ver a ordem inventada se desenrolar nos mesmos moldes
do caos.
Esse interesse talvez tenha se dado porque, nas últimas casas em que
morei, o fluxo diário de folhas, flores, sementes espalhadas era
maior que qualquer outro: correspondências, panfletos, papéis. O
cuidado diário para que esses elementos desviados da natureza não
viessem a perturbar a ordem da casa me chamou a atenção. Já que
mantinha vasos mortos, por que considerar como lixo algo tão
próximo a eles? Já que construo jardins com plantas secas, porque
não dilatar essa idéia de jardim e incluir esses pequenos fragmentos
dispersos?
Desde então guardo tudo em potinhos ou em caixas e, ao invés de
deixá-los perturbar, eu os rendi à ordem da casa. Sempre que se tem
muito de alguma coisa e, a cada dia, se acrescenta um pouco mais, é
83
natural que se pense em como organizar tudo isso. Como acontece
com as contas, com as correspondências. Como ocorreu, no caso do
trabalho Infinitivo (FIG. 6), com as unhas cortadas (cujo fluxo
também é ininterrupto), os pedaços de pele. O escritor francês
George Perec escreve:
Como todo o mundo, suponho, tenho um frenesi de
ordenação; a abundância de coisas para ordenar, a
quase impossibilidade de distribuí-las segundo
critérios verdadeiramente satisfatórios, fazem com
que às vezes não termine nunca, que me conforme
com ordenações provisórias e precárias, apenas
mais eficazes que a anarquia inicial.
38
Classificar na tentativa de apreender, de reter controle, de definir
um lugar para cada coisa e tentar satisfazer esse frenesi. Que nunca
se satisfaz.
Toda classificação é arbitrária: os critérios de classificação são
inúmeros e variam de acordo com o objetivo dela. Alguns são
cientificamente mais eficientes. Outros, nem tanto. Interessam-me
os mais falhos, os absurdos e os inventados. Interessa-me a obsessão
que algumas pessoas têm em construir um sistema rígido e complexo
que mais confunde que controla. Que ilude. Que se dilui no caos.
Interessam-me os artifícios e a perturbação dos objetivos. Os
38
PEREC. Pensar/clasificar, p. 116. (tradução minha)
84
momentos em que a classificação aponta para si mesma, para seu
modo de ser, e deixa de existir como uma ordenação anterior,
transparente.
Esses exercícios de ordem, originados a partir do fluxo contínuo de
fragmentos de natureza dentro de casa, acentuaram, em minha
produção, um interesse pelas classificações
39
. Da relação com esses
elementos numerosos e soltos, algo como uma sutil doença de ordem
se infiltrou em meus pensamentos, meus gestos. Uma obsessão que
mistura prazer e pesar, satisfação e frustração, que sempre se agita,
pois, como Benjamin afirma, toda ordem é precisamente uma
situação oscilante à beira do precipício
40
.
Foi com a leitura de Borges, Foucault, Benjamin, Perec, entre
outros, ao longo desses últimos anos que pude identificar em mim
essa inquietude e obsessão de que falam, quando abordam a ordem,
as classificações. Inquietude que já me era familiar, quando tomada
pelas pequenas ordenações cotidianas, quando entretida com minhas
39
Digo acentuaram pois esse interesse pelas classificações sempre se
fez presente, de maneira mais ou menos sutil. Era alimentado pelo
contexto doméstico de se determinar também um lugar para cada coisa,
um cômodo para cada tipo de ação, um móvel para cada conjunto de
objetos. Mas foi com as experiências, a partir das plantas, que esse
interesse ficou mais evidente e que originou ações e pesquisas mais
atentas.
40
BENJAMIN. Rua de mão única, p. 228.
85
coleções, com as pastas de documentos, com coisas banais. Mas que
não identificava com clareza, ou não a atribuía à proximidade entre
o abismo e a ordem. Com a pesquisa identifiquei vertigens, delírios,
angústias presentes nessa ação tão ordinária, como a que Foucault
descreve quando fala de uma classificação de novelos de lã, que ora
se agrupam por suas cores, ora por sua textura, comprimento,
Mas, mal são esboçados, todos esses agrupamentos
se desfazem, pois a orla de identidade que os
sustenta, por mais estreita que seja, é ainda
demasiado extensa para não ser instável; e,
infinitamente, o doente reúne e separa, amontoa
similitudes diversas, destrói as mais evidentes,
dispersa as identidades, superpõe critérios
diferentes, agita-se, recomeça, inquieta-se e chega
finalmente à beira da angústia.
41
Toda classificação é empírica e arbitrária. Não há perfeição ou
estabilidade na ordem. Muitos são os critérios coerentes e,
justamente por isso, a desordem se instaura: por haver inúmeras
ordens possíveis e nenhuma total, que consiga colocar em harmonia
os diversos aspectos de cada um dos objetos. Cada elemento
adicionado ao conjunto ou cada movimento de seus indivíduos
desestabiliza toda a estrutura e, então, é preciso reconfigurá-la: a
ordem é um estado provisório que ora se instaura e ora se rompe. Ou
mesmo, que nunca se instaura e nunca se rompe por completo: está
41
FOUCAULT. As palavras e as coisas, p. XIV.
86
sempre nessa região nebulosa e incerta, entre o seu conceito ideal e
a desordem. O exercício extremo dela só pode conduzir ao caos.
A Biblioteca de Babel
42
de Jorge Luis Borges abriga uma coleção
completa e interminável. Reúne todos os livros existentes, com
todas as suas traduções e, ainda, o livro total, que é o compêndio
perfeito de todos os demais aquele que revelaria todo o
conhecimento do mundo a quem o possuísse. Abriga todas as
combinações possíveis de todas as letras do alfabeto. A idéia de
completude e ordem imposta à biblioteca são levadas a extremo tal
que se configura na mais profunda desordem. Por mais que se tenha
a certeza de que ali existe tudo, nada que se procura se encontra. E
tudo aquilo que é encontrado ao acaso alguma vez, nunca poderá ser
reencontrado.
Essa imagem da biblioteca de Babel aponta para as impossibilidades
inerentes a todo desejo totalizante de ordem. A condição para se
estabelecerem ordens é justamente driblar as perturbações, aceitar as
exceções, admitir falhas, conviver sempre com fracassos.
42
BORGES. Ficções, p. 91-100.
87
No entanto, a impossibilidade da ordem total não torna as suas
tentativas menos essenciais. Perec, que sempre jogou com as
ordenações, com regras rígidas que soam até mesmo absurdas em
seus livros
43
, se lança, de maneira irônica, a classificações
totalizantes e ri de suas impossibilidades.
Quão tentador é o afã de distribuir o mundo inteiro
segundo um código único: uma lei universal regeria
o conjunto dos fenômenos: dois hemisférios, cinco
continentes, masculino e feminino, animal e
vegetal, singular plural, direita e esquerda, quatro
estações, cinco sentidos, cinco vogais, sete dias,
doze meses, vinte e nove letras.
Lamentavelmente não funciona, nunca funcionou,
nunca funcionará.
O que não impedirá que durante muito tempo
sigamos classificando os animais por seu número
ímpar de dedos ou por seus chifres ocos.
44
Borges também fala a respeito das tentativas incansáveis de
distribuir o mundo dentro de um utópico quadriculado de ordem,
onde cada coisa possui seu lugar, e esse lugar relaciona cada
43
Georges Perec pertencia ao OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle),
grupo fundado em Paris, 1960, liderado por François Le Lionnais e
Raymond Queneau, do qual faziam parte escritores, matemáticos, artistas.
O OuLiPo buscava inventar novas formas de escrever através do encontro
e transferência entre literatura e matemática. Criavam jogos, impunham-se
regras rígidas para escrever, forçando assim a criação de estratégias
engenhosas para criar obras inteiras dentro dos obstáculos estabelecidos.
Por exemplo, Perec escreveu um romance inteiro ( e grande), em francês,
intitulado La disparition (1969), sem utilizar a vogal mais comum da
língua: a letra e. Do grupo também fizeram parte, entre outros, Marcel
Duchamp e Ítalo Calvino.
44
PEREC. Pensar/ clasificar, p. 110. (tradução minha)
88
elemento com cada outro e com o quadro em geral, e determina o
conhecimento do mundo, mesmo sabendo que essa ordem é
inalcançável. Sobre o idioma analítico criado por John Wilkins
45
,
Borges diz:
(...) não há classificação do universo que não seja
arbitrária e conjetural. A razão é muito simples:
não sabemos o que é o universo. (...) pode-se
suspeitar que não há universo no sentido orgânico,
unificador, que tenha essa ambiciosa palavra. Se
houver, falta conjeturar seu propósito; falta
conjeturar as palavras, as definições, as
etimologias, as sinonímias do secreto dicionário de
Deus.
A impossibilidade de penetrar o esquema divino do
universo não pode, contudo, dissuadir-nos de
planejar esquemas humanos, mesmo sabendo que
eles são provisórios.
46
45
John Wilkins viveu na Inglaterra, no século XVII, e foi um estudioso e
curioso de diversos assuntos, entre eles a linguagem. Idealizou um idioma
universal baseado em quarenta categorias ou gêneros nas quais se
encaixaria todo o universo. Cada categoria era subdividida em diferenças
e espécies. O nome de cada coisa seria formado por letras que
representariam esse lugar estabelecido para cada coisa: duas letras
revelam o gênero, às quais se acrescentam uma consoante para a diferença
e uma vogal para a espécie. A idéia seria que os nomes, em vez de serem
simples símbolos arbitrários, revelariam o conhecimento sobre aquilo que
é nomeado e a linguagem se revelaria uma enciclopédia para quem for
letrado nas tais categorias. O idioma toca em várias impossibilidades e
também revela uma ironia em sua essência: a idéia de uma linguagem não
arbitrária ser baseada justamente em uma arbitrariedade, pois as quarenta
categorias, suas subdivisões, assim como toda classificação, são
arbitrárias.
46
BORGES. Obras completas II, p. 95.
89
Em um livro que comprei por pura curiosidade quando vi o título na
prateleira Teorias de tudo: a busca da explicação final , o autor,
um professor de astronomia de uma universidade inglesa, ressalta
pontos interessantes a respeito dessa busca por uma explicação
definitiva, que compreenda todas as coisas inequivocamente. Fala
sobre essa expectativa de um universo coerente e uno sobre o qual
Borges também hesita. Fala, a certa altura, sobre a relação entre as
divindades e a expectativa acerca do universo. A criação de
divindades frente a fenômenos inexplicáveis o deus dos ventos, o
deus do sol , nas religiões politeístas, permitem com maior
facilidade uma noção de um mundo desconjuntado, mais aleatório,
mais irracional. Cada um dos deuses explica a origem de uma coisa
em particular, e um não precisa, necessariamente, estar em harmonia
com o outro. Já o desejo livresco de codificar e ordenar todas as
coisas do Céu e da Terra que conhecemos ou podemos vir a
conhecer
47
decorre da essência das religiões monoteístas. A
necessidade de compreender o universo como algo único, coeso,
coerente, se relaciona à convicção de que este foi feito pelas mãos
de um único deus sem falhas, um deus perfeito. E seriam uma
herança desse tipo de pensamento os desejos de completude, e o de
desvendar os esquemas divinos.
47
BARROW. Teorias de tudo, p. 22.
90
Assim como Borges insiste na arbitrariedade das classificações do
universo, porque não sabemos o que é universo, o astrônomo fala
sobre o confronto entre as nossas percepções que são limitadas e as
teorias totalizantes:
Lamentavelmente, nenhuma observação pôde nos
revelar se alguma teoria cosmológica descrita por
um conjunto de equações matemáticas descreveu de
fato o universo em sua totalidade, já pelo simples
fato de que nunca podemos ver mais que uma parte
finita dele.
48
Em A memória do mundo
49
, conto de Ítalo Calvino, o diretor de uma
organização que prepara um centro de documentação total de tudo o
que existe e que já existiu, um catálogo de tudo momento por
momento
50
, para que, após o fim do mundo, não tenha sido inútil
todo esse conhecimento, e ele possa ser transmitido adiante, para
quem quer que seja. O diretor, explicando suas responsabilidades
secretas para seu sucessor, acaba por deixar transparecer as
inevitáveis distorções nesse projeto grandioso e impossível, já que
aquele mundo ali documentado passa pelo crivo pessoal dele. Por ser
48
BARROW. Teorias de Tudo, p. 45.
49
CALVINO. A memória do mundo, p. 129-136.
50
Ibidem, p. 129.
91
ele quem seleciona o que é relevante, ou não, na representação do
universo, esse universo carrega sua marca pessoal. Mas a incerteza
se instaura nos momentos
(...) em que somos tentados a pensar que só o que
escapa ao nosso registro é importante, que só o que
passa sem deixar rastro existe realmente, enquanto
tudo o que os nossos ficheiros conservam é a parte
morta, as aparas, a escória. Chega o momento em
que um bocejo, uma mosca que voa, uma comichão,
nos parecem o único tesouro (...) e aconteceu-me
muitas vezes, confesso-o, catalogar bocejos,
furúnculos, associações de idéias inconvenientes,
assobios, e escondê-los no pacote das informações
mais qualificadas.
51
Essa abordagem consistente e bem-humorada que Calvino faz de um
projeto totalizante, que quer se equiparar com o tamanho da soma de
todas as existências, revela também problemas inerentes às
classificações. A borda do precipício onde a ordem se situa é
complexa e traz todas essas implicações. Através dos
questionamentos sobre universo, infinito, deuses, objetividade e
subjetividade, relevância, possibilidades e impossibilidades, a
arbitrariedade de cada coisa se reflete em atos pequenos, nas
pequenas classificações.
51
CALVINO. A memória do mundo, p. 132-133.
92
Para o trabalho Como construir um jardim (FIG. 19 e 20), foi
executado o móvel reproduzido na página seguinte, algo parecido
com uma cômoda, com três gavetas. Dentro de cada uma delas,
elementos possíveis para a construção de um jardim imaginário: um
comedouro de passarinho feito de gesso e ervas secas; terra, flor e
folha mortas em potinhos, um labirinto de madeira.
93
Figura 19 Thula Kawasaki, Como construir um jardim, 2004.
Figura 20 Thula Kawasaki, Como construir um jardim (detalhes)
A idéia corrente de jardim se associa sempre a certa vibração,
movimento. Em grande parte das vezes abriga imagens de
exuberância. Já esse é um feito de coisas contidas: um jardim limpo
e morto para apartamentos, para se plantar na imaginação. Um
jardim que é inerte mas que eu gostaria que provocasse jardins
94
múltiplos em cada pessoa que, ao se deparar com esses elementos,
questionasse a imagem do jardim que proponho e a prolongasse. Ou
mesmo propusesse outro. Que se questionasse: será que isso constrói
um jardim? E descobrisse que há sempre algo que poderia ser
substituído, eliminado, acrescentado. Que rememorasse os jardins da
casa da infância, de uma praça do interior, os vasos do apartamento,
as fotografias de jardim, os contos de jardim. E que, a partir daí, a
partir do questionamento da arbitrariedade ou adequação da minha
restrita seleção, enquanto representante de uma multiplicidade de
possibilidades de jardins, qualquer outro jardim pudesse ser
construído.
Na origem desse trabalho está uma obsessão: a de escrever listas.
Tenho um caderno só para listas, de tudo. E vejo em Como construir
um jardim uma proximidade grande com essa obsessão por traduzir a
desordem do mundo em itens não mais ordenados que o mundo em
si. Uma mesma arbitrariedade presente no hábito e no jogo - de
escrever listas está presente nessa lista de elementos para compor
um jardim. Poderia abrigar muitos outros elementos, em infinitas
quantidades, ordens, sucessões. Poderia ser quase qualquer coisa
além do que é.
95
A Borges se deve uma das listas mais intrigantes que conheço,
atribuída, em seu texto, a certa enciclopédia chinesa intitulada
Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos:
Em suas remotas páginas consta que os animais se
dividem em (a) pertencentes ao Imperador, (b)
embalsamados, (c) amestrados, (d) leitões, (e)
sereias, (f) fabulosos, (g) cães soltos, (h) incluídos
nesta classificação, (i) que se agitam como loucos,
(j) inumeráveis, (k) desenhados com um finíssimo
pincel de pêlo de camelo, (l) etcétera, (m) que
acabam de quebrar o vaso, (n) que de longe
parecem moscas.
52
O livro As palavras e as coisas, de Foucault, nasce dessa lista. Da
perturbação do pensamento, da enumeração engenhosa que
impossibilita um lugar onde esses termos possam se encontrar. Dela,
Foucault fala que:
(...) no seu rastro nascia a suspeita de que há
desordem pior que aquela do incongruente e da
aproximação do que não convém; seria a desordem
que faz cintilar os fragmentos de um grande
número de ordens possíveis na dimensão, sem lei
nem geometria, do heteróclito; e importa entender
esta palavra no sentido mais próximo de sua
etimologia: as coisas aí são deitadas,
colocadas, dispostas em lugares a tal ponto
diferentes, que é impossível encontrar-lhes um
espaço de acolhimento, definir por baixo de umas e
outras um lugar-comum.
53
52
BORGES. Obras completas II, p. 94.
53
FOUCAULT. As palavras e as coisas, p. XII-XIII. (grifos do autor).
96
Vislumbrar o grande número de ordens possíveis a partir de uma
seleção restrita de elementos... A lista e o livro vão muito além.
Foucault faz, instigado por ela, uma arqueologia do saber, para
analisar sob quais modalidades de ordem, em cada período de tempo,
os conhecimentos e as teorias são possíveis, e como essa ordem
determina as condições de possibilidade e o modo de ser deles.
No trabalho, é um jogo que expõe a arbitrariedade das classificações
e que inclui a idéia das plantas mortas como jardim; que lida com
esses impulsos enumerativos que, para Perec, são, antes de todo
pensamento (e de toda classificação) a marca mesma desta
necessidade de nomear e de reunir sem a qual o mundo (a vida)
careceria de referências para nós
54
.
A propósito do impulso classificatório presente nas listas e
enumerações, chamou-me a atenção, na 27ª Bienal de São Paulo, o
trabalho do artista inglês Simon Evans
55
. Em seus mapas, gráficos,
listas, diagramas, está presente uma obsessão enumerativa que oscila
entre uma visão caótica e proliferante da experiência de se viver
54
PEREC. Pensar/clasificar, p. 119. (tradução minha).
55
Também comediante e skatista, Simon Evans, nascido em 1972 em
Londres, vive e trabalha em sua cidade natal.
97
neste mundo. Tentativas bem-humoradas de organização do efêmero.
Seus trabalhos, como por exemplo The world (FIG. 21), lidam com a
matéria do cotidiano, tanto na forma dos materiais (dur ex, papel
vegetal, liquid paper, etc.) quanto naquilo que aborda (listas de
vocábulos, gestos, sorrisos, diagramas de períodos, mapas de
cidades inventadas, do céu, entre muitas outras coisas). A respeito
de seu trabalho, ele diz: é uma tentativa de satirizar sistemas
existentes, combinada com meu desejo de criar um mundo
56
. Vai
além e diz que a maneira pela qual tentamos categorizar o mundo
pode ser absurda, bem como bela e mortífera
57
.
56
27a Bienal de São Paulo: Guia, p. 224.
57
Ibidem, p. 224.
98
Figura 21 Simon Evans, The world, 2003.
Figura 22 Simon Evans, The world (detalhes).
Identifico-me com essa postura de admiração e desconfiança
simultâneas pelos sistemas que nós mesmos inventamos para fazer
caber o mundo; pelas tentativas de fazer caber o mundo onde quer
99
que seja; pela busca por ultrapassar esses sistemas para deixar falar
um certo absurdo irônico que assiste ao transbordamento do caos e
uma reverência, talvez mínima e secreta, pelo exercício da ordem. O
cineasta e artista plástico Peter Greenaway, que também lida com os
excessos de ordem e caos em seus trabalhos, fala em uma entrevista:
É disso que trata a arte, não é tentar encontrar
alguma ordem no caos? É disso que trata a
civilização, alguma forma de entender, de conter
essa vasta quantidade de informação que a nós é
empurrada o tempo todo.
(...) Eu exijo, como todos nós, algum senso de
coerência, de ordem no mundo. E nós somos
sempre derrotados. Esta é a condição humana.
58
Compartilho com Evans e Greenaway, entre outros, o desejo de, ao
ordenar os fragmentos dispersos, o excesso, o efêmero, construir um
mundo, a partir do caos, que faça sentido. E compartilho com eles
também os fracassos graciosos e inevitáveis. O que não significa que
as tentativas sejam inválidas. Elas não são. No final das contas, o
que se ergue no lugar é um mundo falível, que quer mesmo refletir a
desordem disfarçada, a iminência do colapso. Um mundo cujos
artifícios, na arte, se pode optar por não ocultar. Pode-se mesmo
engrandecê-los, ridicularizá-los ou fazer um bonito elogio às falhas,
às fraquezas, aos limites humanos e suas pretensões infinitas.
58
PALLY. Cinema as the total art form, p. 108. (tradução minha)
100
Esses pensamentos de ordem e um querer participar dessa vertigem
também me levaram a prosseguir com um pequeno arquivo de folhas
mortas. Tudo começou porque em frente à minha casa atual há uma
árvore. Sua copa ocupa toda a vista de algumas das janelas.
Bachelard diz que a acolhida da casa é tão total que o quê se vê da
janela pertence à casa
59
. Bem, às vezes tenho realmente a
impressão de que é minha a árvore, mesmo não conhecendo suas
raízes. Além do mais, varrer suas pequenas porções do chão do
quarto todos os dias é um cuidado que dedico a ela como se a
regasse. É um cuidado que me aproxima dela porque os seus restos
passam a ser minha responsabilidade diária.
Dependendo do vento, os ramos chegam a balançar dentro do quarto,
o que é bonito de se ver. Mesmo à noite, a luminária da rua projeta a
sombra detalhada da árvore nas paredes e no teto do quarto, até no
corredor e na sala. Basicamente não há hora do dia em que sua
presença não se imponha pela casa.
59
BACHELARD. A poética do espaço, p. 79.
101
Todos os dias acordo com folhas caídas sobre os lençóis. Em
algumas noites, acordo com folhas nos cabelos, sobre a pele, na
roupa. São muito pequenas demorei a fazer a conexão entre a
palavra folha e a imagem daqueles pequenos corpos disformes e
secos sobre a cama ou pelo chão da casa. Sempre gostei que elas se
espalhassem pela casa, mas varria todos os dias com pesar, por uma
espécie de obrigação social. Recolher as folhas com a pá e jogá-las
no lixo me parecia um pecado. Sempre achei um desperdício. Todos
os dias. Então comecei a separá-las pacientemente da poeira e
colocá-las em potinhos datados. Não havia uma idéia do que fazer
com elas. Mas eram muitas e estavam dispersas. Queria só guardá-
las...
Algo em mim foi despertado por aquela profusão de coisas soltas e
desordenadas, constantemente ao meu redor. Estava claro que era
minha obrigação dar conta delas. Benjamin fala que o grande
colecionador é tocado bem na origem pela confusão, pela dispersão
em que se encontram as coisas no mundo
60
. Acredito ter sido isso.
60
BENJAMIN. Passagens, p. 245.
102
Baudrillard fala que uma das coisas que diferencia a coleção da
acumulação é a noção do inacabado, pois a falta indica um projeto,
um objetivo, um desejo de completude
61
. Sua colocação faz muito
sentido para mim, mas, ao mesmo tempo, me confunde com relação
às minhas folhas. Talvez seja mesmo um acúmulo pois não tenho um
projeto e o desejo de completude é incoerente com a matéria dela,
mas acúmulo me parece desordenado demais, me parece algo que tira
a individualidade de cada coisa para transformá-las em um corpo só.
Acumulo, sim, algumas as que recolho e, com preguiça de
catalogar na hora, junto em um só pote grande de folhas bagunçadas
que não poderei catalogar mais porque todas se misturam. Mas a
parte que ordeno, ainda que possa considerá-la acabada a qualquer
momento ou não considerar nunca, chamo de coleção.
Pensei que seria uma coleção bonita de se iniciar. Uma dessas
infinitas e impossíveis de completar. Uma dessas onde uma amena,
mas constante, frustração por vislumbrar a imensidão evita a grande
frustração da completude, aquela de quando o objetivo é alcançado,
mas a satisfação do impulso não, e o colecionador se lança em novos
empreendimentos para tentar satisfazer um desejo infinito com
coisas finitas, um desejo imaterial com coisas materiais.
61
BAUDRILLARD. O sistema dos objetos, p. 112.
103
Uma coleção de areia. Aquela de que Calvino fala, e na qual as
diferenças mínimas entre areia e areia obrigam a uma atenção cada
vez mais absorta, e assim se entra pouco a pouco em outra
dimensão
62
. Pensei que poderia ver muitas folhas quase iguais juntas
em potinhos de vidro, que eu poderia vê-las mudar de cor,
minúsculas, com o passar dos dias, cada uma a seu tempo, como uma
partitura, uma música. Que eu poderia mesmo assistir à morte lenta
de cada uma delas, pois grande parte das que caem ainda está verde
e úmida arrancada pelo vento mas está no processo irreversível
de morrer já que foram apartadas de sua fonte de vida. A bem da
verdade todas estão, arrancadas ou não. Exceto as que já estão
mortas. Mas assistir à mudança de cor, de textura, de forma das
folhas é um hábito que se incorporou a tantos outros. E penso nessa
sobrevida do efêmero. Salvar as folhas de um fluxo que as
destruiria.
Identifico também um gosto por uma biologia inventada. O gosto por
ficções de contaminação entre arte e biologia presentes em diversos
trabalhos e artistas que me interessam, em maior ou menor grau.
Também na 27ª Bienal de São Paulo, outro trabalho me chamou a
62
CALVINO. Colección de arena, p. 16. (tradução minha)
104
atenção: o Herbário de plantas artificiais, de Alberto Baraya
63
(FIG.
23 e 24).
Figura 23 Alberto Baraya, Herbario de plantas artificiales, 2003-.
63
Artista nascido em Bogotá, em 1968, que vive e trabalha em sua cidade
natal.
105
Figura 24 Alberto Baraya, Herbario de plantas artificiales, 2003-.
Baraya se apropria dos procedimentos dos botânicos para, com
ironia e crítica, dissecar flores de plástico. Separa suas partes,
enumera, nomeia, relaciona tudo com o detalhismo e a precisão dos
cientistas e cria uma taxonomia de uma flora criada não pela
natureza, mas pela cultura. O artista, com um bom humor que capto
mais nos trabalhos que nas entrevistas que pude ler
64
, parodia o
método científico e faz pensar sobre a idéia de objetividade e
neutralidade geralmente ligadas a seu mecanismo. Além de envolver
um discurso sobre o componente cultural e social que as plantas
artificiais evocam, o trabalho reflete sobre a necessidade humana de
64
Refiro-me a matérias e entrevistas com Baraya publicadas no site
http://m3lab.encuentromedellin2007.com, acessado em setembro de 2007.
106
capturar, documentar e classificar todas as coisas como maneira de
apreender a inconstância do mundo e da existência.
Com questões próximas às do artista colombiano, o artista
catarinense Walmor Corrêa também lida, em seus trabalhos, com
uma biologia fictícia e minuciosa. Em seu trabalho Gaveteiro
Entomológico (FIG. 25), por exemplo, o artista dispõe, nas gavetas
do móvel que faz lembrar os museus de história natural e os
gabinetes de curiosidades desenhos de uma pequena fauna
fantástica de insetos inventados, com seus respectivos nomes
também inventados. Cada um deles é atravessado por um pequeno
alfinete que acentua a ilusão e enriquece a ficção. Como se foss em
as borboletas presas às gavetas por alfinetes, coisa que costumamos
ver em museus de história natural e em coleções. Como se desse
corpo a suas invenções.
107
Figura 25 Walmor Corrêa, Gaveteiro entomológico, 2002/2003.
É um catálogo de animais que não existem ou que passaram a
existir a partir de então feito com o mesmo cuidado dedicado aos
insetos reais pelas mãos dos cientistas. Em cima do gaveteiro, a
pintura de um besouro em ação, ou seja, voando, com suas
características descritas e a inscrição: Programado para não voar. O
besouro, através de uma análise científica de sua anatomia, é
impossibilitado de voar. Isso marca a produção do artista e sua visão
acerca da natureza e da compreensão humana. Ainda que não esteja
autorizado pelos especialistas, ainda que sua anatomia não seja
adequada, ainda que seu vôo não seja leve, é um fato: alguns
besouros efetivamente voam.
108
Em outros trabalhos de Walmor pode se perceber com mais clareza a
engenhosidade biológica fictícia com que ele não só representa seus
animais mas com que estuda, analisa, investiga a zoologia para criar
sua própria fauna. Em uma dessaspranchas de uma enciclopédia
imaginária, o artista cria um monstro sutil, que une características
de camarão e de caramujo, de nome Krebsschnecke (FIG. 26). Faz,
em outras ocasiões, o cruzamento de peixes e pássaros, aranhas e
ratos, entre muitos outros. Não só se compromete com uma
representação naturalista que acentua seu gosto por iludir, mas se
dedica às descrições detalhadas de habitats, alimentação,
funcionamento interno do organismo, modos de reprodução, etc.
Nada parece fantástico ou excepcional, tudo soa possível a tal ponto
que nos faz realmente questionar se essa não é a fauna de algum
novo continente que desconhecemos. Ou espécies extintas que
atestam certa continuidade na natureza continuidade que nos
escapa. Mas a fusão engenhosa desses elementos de origens diversas
é que cria o absurdo.
109
Figura 26 Walmor Corrêa, Apêndice X, 2003.
A percepção dessa fauna estranha do artista me faz pensar na
percepção de uma fauna não menos fantástica, mas não imaginária, e
na graça e angústia das tentativas de submetê-la aos sistemas
humanos de conhecimento.
Marco Polo deparou-se pela primeira vez com um rinoceronte.
Nunca havia visto nada igual e, para dar conta da novidade, procede
por meio de analogias para chegar a um lugar conhecido e seguro. O
animal quadrúpede e com um chifre na testa se encaixa de maneira
decepcionante na descrição já conhecida por ele de um unicórnio.
110
Não é branco, gracioso, ágil ou esbelto. Pelo contrário. Porém,
possui, essencialmente, as mesmas características.
Marco Polo parece tomar uma decisão: em vez de
segmentar novamente o conteúdo, acrescentando
um novo animal ao universo dos seres vivos,
corrige a descrição vigente dos unicórnios que, se
existem, soa por certo como ele os viu e não como
a lenda conta
65
.
Já o ornitorrinco foi descoberto no final do século XVIII. Quando
um exemplar empalhado foi examinado por especialistas ingleses em
1799, a incredulidade era tamanha que houve quem desconfiasse que
o animal não passasse de uma montagem, da criação de um
taxidermista charlatão. Depois foram obrigados a aceitar que esse
animal absurdo realmente existia, à revelia das classificações. A
história do ornitorrinco, então, serviria para demonstrar que, em
última instância, os fatos vencem as teorias
66
. E dois séculos se
passaram sem que cientistas dessem trégua à existência do
ornitorrinco. Afinal,
(...) como poderíamos colocar junto o bico e as
patas espalmadas com o pêlo e a cauda de castor,
ou a idéia de castor com aquela de um animal
ovíparo, como poderíamos ver um pássaro lá onde
65
ECO. Kant e o ornitorrinco, p. 55.
66
Ibidem, p. 211.
111
aparecia um quadrúpede, e um quadrúpede onde
aparecia um pássaro?
67
Walmor Corrêa cria ornitorrincos. Ele costura minuciosamente
partes de um animal em outro e, para habilitar sua criação, costura
também costumes, características, conceitos. A criação do nome
científico implica a existência de todo um gênero, com suas espécies
e subespécies, sua teoria evolutiva, o ambiente propício, suas
congruências e suas divergências com relação a todos os outros
animais existentes. O nome científico inclui o animal inventado,
harmônica ou desarmonicamente, no mundo. Categorizando suas
criações, ele expõe para além daquilo que vemos, para além do
particular.
O sofrimento dos cientistas que, até hoje, se dedicam ao ornitorrinco
deve-se ao fato de que, dentro do contexto científico, animais
desestabilizadores são indesejáveis. Assim são também as criações
de Walmor. Situam-se não sem dor à margem das espécies ainda
que estejam incluídas no mundo de maneira convincente. Para
entendê-las, seria preciso classificá-las. E para classificá-las, seria
preciso reavaliar toda a taxonomia animal. Conhecimentos
consolidados cairiam por terra pois o questionamento profundo de
67
ECO. Kant e o ornitorrinco, p. 80.
112
uma coisa, mesmo que esteja situada na superfície, abala e faz
tremer se não fizer cair toda a estrutura que a sustenta.
A confusão gerada acerca da possibilidade dessas existências nos
revela a face vulnerável das classificações e a impossibilidade de
produzir, e, ainda, organizar o conhecimento acerca de todas as
coisas do mundo. Os monstros sutis de Walmor podem não existir
além das telas. Mas o que mais existe além do que conhecemos?
Quanto do mundo já foi codificado? De que maneira conhecemos?
Esses animais híbridos nos espantam para além de suas aparências
porque questionam a racionalidade e a nossa própria capacidade
intelectual. Além de estremecerem e revelarem a profundidade e a
beleza da falibilidade de nossos sistemas e fundamentos.
Além de Alberto Baraya e de Walmor Corrêa, outros artistas
desenham seu percurso entremeado pelo interesse na biologia e na
ficção. Cada qual com as questões particulares que levantam: alguns
lidam mais com questões ecológicas, ambientais, outros com
arqueologia, coleção, ancestrais, etc. Mas noto sempre essa vontade
de falar, através de gestos que parodiam, do aspecto infinito,
diverso e caótico do mundo em contraponto com o desejo ordenador
e classificador do homem, com as limitações humanas, com a
condição de finito, de pequeno. Da impossibilidade da linguagem de
113
dar conta do mundo. De nós darmos conta do mundo. Claro que não
no intuito de desacreditar ou diminuir a importância do
desenvolvimento científico em nenhuma área, das pesquisas, dos
métodos. Mas de relativizar as coisas e promover uma reflexão, que
se faz presente na arte, sobre todas essas questões do conhecimento
e da capacidade humana: neutralidade, arbitrariedade, objetividade,
subjetividade...
Quando Palomar se deu conta do quão
aproximativos e votados ao erro eram os critérios
do mundo no qual acreditava encontrar precisão e
norma universal, voltou aos poucos a estabelecer
um relacionamento com o mundo limitando-o às
observações das formas visíveis; mas jamais ele era
como fora feito: sua adesão às coisas permanecia
intermitente e transitória como a das pessoas que
parecem sempre propensas a pensar uma outra
coisa mas essa outra coisa não existe.
68
O levantamento e a ordenação das coisas banais. Não só o registro,
mas a preocupação com a sobrevivência dos resíduos do dia.
Colecionar indícios de vida. Salvar objetos para salvar uma história,
68
CALVINO. Palomar, p. 50.
114
com ou sem importância. Retirar de um cotidiano onde tudo é
excessivo e descartável, pequenas preciosidades, como se fossem
segredos escondidos nos vãos das coisas.
Estou criando o meu arquivo de folhas mortas, também como
experiência de aplicação de critérios e exercício de ordem, como
incorporar essas ações e criações ao meu cotidiano. É também uma
experiência de seleção do lixo ou daquilo que deixa de ser lixo. É
separar e recolher folhinhas do monte de poeira que varro todos os
dias. Rever tudo aquilo que já nos acostumamos a considerar
importante e válido. Um pensamento sobre a própria idéia de
coleção: se colecionar folhas mortas pode parecer estranho, o que se
coleciona sem um mínimo de absurdo? Por quais coisas exercer esse
cuidado?
Em registros de uma coleção antiga, são descritas gavetas que
continham objetos "para causar vexame", como um par de luvas sem
abertura
69
. De alguma maneira, toda coleção é formada por pares de
luvas sem abertura. Tudo o que realmente se possui são os objetos
de causar vexames: um prato onde nunca se comerá, um selo que
69
BLOM. Ter e manter, p. 51.
115
nunca será colado, uma moeda que não será posta em circulação.
Não há diferença entre estes e a luva. Não há diferença entre estes e
as folhas mortas. Pois toda coleção é essencialmente uma coleção de
imagens. São objetos que deixaram de ser transparentes em relação à
sua função e se tornaram espessos, concretos. Tornam-se objetos, e
não mediações. Objetos fora de contexto. São todos folhas secas,
desgarradas, salvas e postas em potinhos de vidro. Todos vêm da
mesma necessidade de
(...) transformar o transcorrer da própria existência
em uma série de objetos salvos da dispersão ou em
uma série de linhas escritas, cristalizadas fora do
contínuo fluir dos pensamentos.
70
A ação diária de colher e acondicionar os pequenos fragmentos da
árvore me trouxe, além de uma proximidade maior com as coisas
antes desprezíveis, um gosto por sistemas e por invenções. Como um
jogo. Inventar métodos, regras, inventariar, catalogar, relacionar
umas às outras, a lugares, a situações. E me trouxe a percepção dos
artifícios da ordem e de suas impossibilidades. Acrescentou um tom
de ironia ao meu conjunto de folhas mortas, ao ato de ordená-lo.
Essa experiência tem sua origem no fazer e no pensar das
classificações, mas também se relaciona com textos literários e
70
CALVINO. Colección de arena, p. 17. (tradução minha)
116
trabalhos de artistas entre os quais escolhi dois para neles deter-me
um pouco mais: Funes, o memorioso, personagem de Borges e Ten
Characters, trabalho do artista Ilya Kabakov.
Funes, o memorioso, ao recobrar-se de um acidente percebe que sua
percepção e sua memória tornaram-se infalíveis, que o presente era
quase intolerável de tão rico e tão nítido
71
. Ao olhar para uma copa
de árvore não percebia uma massa quase uniforme de folhas:
percebia cada uma delas, e elas se incorporavam à sua lembrança e
então se recordava de cada folha e de cada vez que a tinha
percebido, imaginado, ou dela já havia se recordado anteriormente.
Mais recordações tenho eu sozinho que as que tiveram todos os
homens desde que o mundo é mundo
72
.
No entanto, essa capacidade inconcebível invalida outras, bem mais
comuns porém extremamente necessárias. Ter ficado aleijado no
mesmo acidente, imaginar-se no fundo do rio anulado pela corrente,
morrer de congestão pulmonar são conseqüências inevitáveis da
sufocação provocada pelo furor de sua memória que nada deixa
escapar.
71
BORGES. Ficções, p. 124.
72
Ibidem, p. 125.
117
A memória desmesurada de Funes não lhe permitia pensar. Pensar é
esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo
de Funes não havia senão pormenores imediatos
73
. O mundo que se
coloca à disposição de Funes não é diferente daquele que se coloca à
disposição de qualquer pessoa. A diferença é que, além de
contarmos com o esquecimento, somos também capazes de criar
categorias para organizar a vasta diversidade de todas as coisas.
Sem essa capacidade, nos tornaríamos, como Funes, escravos do
particular.
É também essa capacidade de organizar as coisas em categorias que
permite a existência das coleções. Define-se um ou mais critérios
que os objetos da coleção devem ter, e então parte-se em uma busca,
na maioria das vezes incessante, por todos os objetos que se
encaixam nesse critério e que ainda se encontram espalhados. O
colecionador luta contra a dispersão dessas coisas no mundo. Seu
devaneio é classificatório também: recolher esses fragmentos de um
conjunto ideal e dar a eles, a cada um deles, um lugar e um nome.
Estabelecer relações entre os elementos, aplicar critérios, em suma,
exercer a ordem.
73
BORGES. Ficções, p. 128.
118
O inútil catálogo mental de todas as imagens da lembrança
74
, de
Funes, me faz pensar em O homem que nunca jogou nada fora, de
Ilya Kabakov.
Esse trabalho faz parte de Ten Characters realizado entre 1985 e
1988 e exposto em Nova Iorque, em 1988 , que foi a primeira
grande instalação do artista, nascido em 1933, na extinta União
Soviética. O espaço da galeria foi dividido aos moldes de um
apartamento compartilhado tipo de habitação muito comum na
União Soviética onde, em um pequeno espaço, viviam diversas
pessoas e famílias.
Cada um dos ambientes criados abrigava uma personagem (FIG. 27):
O homem que colecionava opiniões dos outros, O homem que voou
para o espaço de seu apartamento, O homem baixo, O compositor, O
colecionador, O homem que nunca jogou nada fora, O homem que
salvou Nikolai Viktorovich, O artista sem talento, O homem que
voou para dentro de sua pintura e O homem que descrevia sua vida
através de outras pessoas.
74
BORGES. Ficções, p. 127.
119
Figura 27 projeto para a instalação Ten Characters, de Ilya Kabakov.
Esses ambientes constituíam-se em instalações dentro da instalação:
uma narrativa
75
, os objetos de cada personagem, suas obsessões, suas
paixões, seus segredos, as cadeiras vazias, os objetos recém-
tocados... a tentativa de preservar-se, dentro de um contexto onde a
idéia de privacidade é completamente outra: um apartamento que é
compartilhado por pessoas que tentam manter o direito de se isolar.
75
Muitos dos trabalhos de Kabakov possuem um laço bem estreito com a
literatura: além de criar personagens fictícios, o artista escrevia suas
biografias, histórias que os envolvia, chegava até mesmo a atribuir a seus
personagens certos trabalhos de arte, certos textos, confundindo a idéia de
autor num movimento quase vertiginoso. Talvez esse interesse tenha sido
despertado por sua profissão oficial de ilustrador de livro infantil, na
época em que os artistas que não eram ligados às instituições
governamentais da União Soviética eram considerados como artist as não-
oficiais e, se trabalhavam com arte, o faziam ilegalmente. Vejo até uma
ligação entre esse criar artistas e autores e atribuir -lhes seus trabalhos
e essa repressão, embora seu gesto não fosse com intuito de burlar leis
mas, sim, constituinte de seu processo de criação. No entanto, pode ser
que, em certo grau, essa narrativa deva algo à situação do artista na União
Soviética.
120
A falta de comunicação entre esses cômodos que se dirigem, todos,
ao mesmo corredor... Trata-se da intimidade profunda e da profunda
falta dela. Cada um em seu isolamento denso e frágil. Um mundo à
parte em cada quarto e a constante iminência da invasão: a
impertinente proximidade dos corpos, dos hábitos.
Essa não é uma realidade exclusiva do contexto soviético onde
maior parte desse trabalho foi gerada. Aqui, Kabakov ultrapassa as
fronteiras de sua própria existência, uma existência específica, para
falar de todos, de cada um. O equilíbrio entre intimidade e
comunicação ou, precisamente, a dificuldade em obtê-lo é uma
questão presente no dia-a-dia das pessoas de qualquer lugar.
O artista fala também de sua estreita relação com o cotidiano que
por vezes soa como uma oposição à pretensa grandiosidade exigida
aos artistas oficiais pelas instituições Soviéticas. Ele fala de um
confronto entre a pessoa que precisa obedecer às leis rígidas às
quais está submetida e aquela, interior a essa, que não entende o
porquê, e quer expressar o que realmente está sentindo. Que aquilo
que se podia ver eram:
(...) os aspectos tediosos, assustadores ou banais
do cotidiano. Ele via garrafas sujas, um monte de
lixo, tíquetes de metrô, propagandas. Essa pequena
pessoa sente uma unidade com o cotidiano. Não
121
havia um desejo de desaparecer, de fugir do dia-a-
dia, de fazer algo romanticamente elevado; o que
havia era um desejo de expressar essa união com a
banal vida cotidiana.
76
Esses aspectos são evidentes na instalação e em outros trabalhos
do artista especialmente no espaço do O homem que nunca jogou
nada fora (FIG. 28 e 29). Kabakov, em seus textos e narrativas
sobre sua produção, fala do apartamento de um encanador recluso.
Uma sala repleta de armários, gavetas, gabinetes, vitrines, mesas
77
.
Cada espaço abriga objetos dos mais variados, todos banais,
cuidadosamente dispostos e etiquetados. Uma cama estreita ou algo
que se assemelha a uma cama estreita e desconfortável me faz
pensar na condição de aleijado de Funes, outro homem que nunca
mais jogou nada fora. Faz pensar que esse virtuosismo da memória
em Funes ou a obsessão e dedicação extrema do "homem..." aos
fragmentos de sua existência acabam por sacrificar funções vitais.
Imaginar-se anulado pela corrente do rio.
76
GROYS. Ilya Kabakov, p. 14. (tradução minha).
77
Percebe-se aí uma aparência burocrática das coisas, uma atitude
burocrática com tudo, que algumas vezes pode ser relacionada aos
próprios moldes do comunismo soviético, à própria burocracia excessiva
vivida por ele que se reflete no seu modo de lidar com as coisas banais.
122
Figura 28 Ilya Kabakov, The man who never threw anything away (Ten
Characters, 1985-88).
123
Figura 29 Ilya Kabakov, The man who never threw anything away (Ten
Characters, 1985-88).
124
O encanador também tinha o seu despejadouro de lixos. Sua
memória não era total, como a de Funes: o próprio gesto de
preservar os objetos para preservar a lembrança das coisas
demonstra a fragilidade dela, coisa que Funes não fazia porque, uma
vez que algo entrava em sua memória, não havia necessidade de um
registro, pois de lá nunca sairia. Também o encanador dispunha,
como seu despejadouro de lixos, não o espaço incalculável do qual
Funes dispunha, mas um espaço físico limitado, restrito, concreto.
Ainda assim, certamente possuía a obsessão totalizante e as
incapacidades, talvez também as satisfações, que dela derivam.
Fica explícita a arbitrariedade dos critérios de classificação, mas é
algo que se pode comparar com o vocabulário-numeração de Funes
78
:
o encanador define o lugar de cada objeto inventando o espaço entre
as coisas. Esse espaço, que só existe quando é pensado, é de uma
natureza semelhante àquele que separa os "números" Máximo Perez
e A Ferrovia, ou mesmo os espaços entre as categorias do idioma de
John Wilkins. A possibilidade, sempre, de eleição de um critério em
78
BORGES. Obras completas I, p. 544. Refiro-me ao vocabulário infinito
que Funes projetara e que lhe valeria como sistema original de
numeração. Ao invés do sistema que utilizamos (onde, por exemplo, o
número 365 determina três centenas, seis dezenas e cinco unidades),
Funes nomeia as quantidades com nomes próprios ou palavras como o
gás ou a baleia, infinitamente. Por dispor de uma memória total, ele vê
preenchido o espaço que une seus números uns aos outros, enquanto que
para nós limitados o sistema de Funes se revela uma rapsódia de vozes
inconexas.
125
detrimento de outro é, talvez, aquilo que realmente extrai da
aparente ordem a verdadeira desordem.
Walter Benjamin, em seu texto Desempacotando minha biblioteca,
escreve, entre outras coisas, sobre suas avenças e desavenças com os
critérios de ordenação de seus livros. Ora é a história relacionada a
cada livro que se impõe à ordem, ora a cor da capa, a primeira letra
do sobrenome do autor, o tema, o formato do objeto. Satisfazendo
um critério completamente coisa já bastante complexa sempre se
burlam os outros, e esse jogo não termina nunca, há sempre de se
contentar com as ordenações provisórias. Como Foucault com seus
novelos de lã.
Expondo as falhas na ordenação de conjuntos banais, todo o
conhecimento e todos os sistemas de conhecimento nos quais nos
apoiamos, geralmente muito mais complexos que livros e novelos de
lã, tendem a se desestabilizar. A precisão e a certeza científica são
relativizadas porque surge a possibilidade de terem sido criados
sistemas absolutos de conhecimento precisamente sobre essas
mesmas falhas.
Acredito que, além da impossibilidade de se estabelecer um critério
totalizante, que trataria de aproximar toda e qualquer semelhança e
126
ressaltar cada mínima diferença, o problema da classificação reside
também na impossibilidade de se esgotar até mesmo um único
objeto.
O homem que nunca jogou nada fora trata também dessas questões.
Trata de como o cotidiano extremamente restrito e silencioso do
encanador pode se desdobrar infinitamente; como ele não pode, por
mais que tente, esgotar um único dia de sua vida estreita.
Kabakov, ou o encanador, cataloga minuciosamente todos os
objetos, tudo que a eles se relaciona, especificidades ordinárias.
Afirma sua união com a vida cotidiana. Quase um compromisso com
as trivialidades do dia. No catálogo onde, através do número da
etiqueta dos objetos, pode-se encontrar algum comentário a respeito
deles, comentários banais, coisas que dificilmente arquivaríamos,
nem mesmo na memória: uma agulha e linha, objeto número 48, está
identificado com o comentário: Encontrei isso em 17 de fevereiro
debaixo da mesa, mas eu não precisava disso mais.
79
Sob a sola de
um velho par de sapatos, Eu peguei estes de Nikolai ano passado
79
GROYS. Ilya Kabakov, p. 101. (tradução minha).
127
mas não os devolvi, esqueci por alguma razão...
80
Um enorme
catálogo de objetos e lembranças simples, com uma obsessiva
organização que constantemente afirma o seu estar aqui e agora.
Aqui se pode estabelecer uma relação entre os escritos das etiquetas
de Kabakov com os subtítulos de algumas das Date Paintings de On
Kawara (FIG. 30). Em folhas de papel, Kawara cataloga e define
subtítulos para as pinturas que fazia, onde, na superfície
extremamente cuidadosa da tela, se vê, geralmente em branco sobre
fundo escuro, apenas uma data pintada. No caderno de subtítulos,
ele confere a cada uma dessas pinturas um número de catalogação
referente ao conjunto geral delas, um número referente ao conjunto
realizado no mês, a data em que pintou (que é a mesma que está
pintada) e o subtítulo. Alguns deles são retirados de manchetes de
jornal e tratam de diversos assuntos: política, a guerra do Vietnã,
meteorologia, esporte... Outros se referem ao ato de pintar a própria
pintura das quais são subtítulos: JAN. 18, 1966 "I am painting this
painting.". E outros se referem a pensamentos e acontecimentos
corriqueiros na vida do próprio artista: JAN. 20, 1966 "I have
80
GROYS. Ilya Kabakov, p. 101. (tradução minha).
128
decided to be alone"; FEB. 1, 1966 "A fire in front of my
apartment."; MAR. 29, 1966 "I didn't sleep well last night.".
81
Figura 30 On Kawara, uma das folhas com os subtítulos das Date
Paintings, 1966.
Frente a essa diversidade de títulos, que vão da esfera mais íntima
da vida do artista a notícias sobre o homem na lua, e a não-
81
Excertos retirados da reprodução das páginas de On Kawara. In:
WATKINS. On Kawara, p. 44-47.
129
homogeneidade de temas, penso na mesma impossibilidade de se
esgotar o dia. Ainda que a existência pessoal e cotidiana possa ser
restrita, fazem parte dela todas as informações que nos chegam, tudo
o que ouvimos falar, as pessoas que encontramos, aquilo que
pensamos, o que lemos, os objetos com os quais nos relacionamos.
Como dar conta de toda essa enxurrada de informações que nos
sufocam todos os dias? Daí, ambos os trabalhos tratarem, de uma
maneira ou outra, da impossibilidade de esgotar um ponto definido a
partir de critérios totalizantes e defini-lo de maneira coerente com
relação ao conjunto porque mesmo a existência mais estreita ainda
se revela ampla demais para que seja esquadrinhada , e ambos
procurarem situar sua existência, afirmá-la, através dos dias.
As arbitrariedades de critérios também ficam evidentes em ambos os
trabalhos. Como selecionar um único critério para definir os dias?
Para definir aquilo que se vive? Ou como e por quais meios definir o
que constitui lixo e o que se constitui em algo que é importante
preservar? O limite entre o que é útil e o que é inútil, o que é
normal e o que é absurdo, o banal e o extraordinário? O que
determina a utilidade ou não dos objetos? Por que o senso comum de
normalidade deve se sobrepor à memória, por exemplo? A falta de
hierarquia, de discriminação de todos os fatos, objetos, sensações
que compõem a memória.
130
Em outra instalação de Kabakov (FIG. 31), The big archive
(Stedelijk Museum, Amsterdã, 1993), um espaço maçante e
burocrático deixa a disposição dos visitantes centenas de
formulários diferentes, com diversos tipos de questões. Boris Groys,
falando sobre esse trabalho, comenta que:
As questões nessa enorme pilha de formulários são
contraditórias, inconsistentes e inconclusivas. O
arquivo colapsa sobre si mesmo porque, querendo
registrar cada aspecto da pessoa inteira, não
permite critérios que possibilitariam que
distinguíssemos o essencial do irrelevante. O
argumento final só pode ser, portanto, aleatório e
absurdo.
82
Figura 31 Ilya Kabakov, The big archive, 1993.
82
GROYS. Ilya Kabakov, p. 68. (tradução minha)
131
E é justamente através dessa tentativa de organização
excessivamente rigorosa e abrangente que o caráter infinito e
proliferante do mundo se revela. É isso, além da natureza arbitrária
das classificações, que fica evidente perante o quarto do homem que
nunca jogou nada fora, o arquivo e outros trabalhos de Kabakov, ou
perante os diários, inventários, calendários e catálogos de On
Kawara.
(...) evidenciar a insensatez e a ineficácia de toda
tentativa de arquivamento ou classificação
exaustiva do conhecimento e das coisas do mundo,
visto que todo recenseamento tende, em seus
limites, a revelar o caráter do que é naturalmente
incontrolável e ilimitado.
83
Essa consciência do infinito em conflito com os desejos de ordem
sempre com certa ironia são importantes no andamento da minha
coleção e dos trabalhos e projetos que vieram a seguir. O desejo
totalizante, de abranger tudo, esquadrinhar o mundo, estabelecer
ordem é uma experiência que altera o ponto de vista, altera nossa
posição em relação ao conhecimento do mundo, em relação às
coisas.
83
MACIEL. A memória das coisas, p. 14.
132
A partir de uma pequena coleção de folhas já se pode vislumbrar o
infinito. Num impulso classificatório, escrevi uma lista com os
possíveis critérios de classificação. Tentei me lembrar de tudo
relacionado a cada uma delas e escrevi no papel. Terminei a lista
possuindo mais critérios que objetos. Lembrei-me de Eco falando
que os acidentes são potencialmente infinitos
84
. Como seria possível
uma ordem que se sobrepusesse aos objetos? Uma que, ao invés de
síntese, de esquema, repete as próprias coisas ou as multiplica?
Como o mapa que Borges descreve em seu texto Do rigor na
ciência:
Naquele Império, a Arte da Cartografia alcançou
tal Perfeição que o mapa de uma única Província
ocupava toda uma Cidade, e o mapa do império,
toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas
Desmesurados não foram satisfatórios e os
Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do
Império, que tinha o tamanho do Império e
coincidia pontualmente com ele.
85
A idéia de um esquema de ordem mais proliferante que as próprias
coisas me agitou justamente por essa percepção de ser impossível
84
ECO. O Antiporfírio, p. 332. Os acidentes de que fala são as
propriedades que, não sendo imprescindíveis para definir um objeto como
tal, são relegadas às propriedades acidentais.
85
BORGES. Obras completas II, p. 247.
133
esgotar um único ponto sem sobrepô-lo. Pensei em fazer um livro só
de categorias, para um conjunto curto de folhas diárias...
Claro que nas situações em que a objetividade é necessária, se
estabelecem critérios de relevância para estabelecer as
classificações. Um princípio de razoabilidade impede que faça parte
do conteúdo enciclopédico de cão tudo o que sabemos e poderemos
saber sobre cães, até a particularidade por que minha irmã possui
uma cadela chamada Best
86
. Um equilíbrio entre semelhanças e
diferenças que não permite que tudo seja agrupado em um só
conjunto ou que cada coisa requeira um conjunto inteiro para si
própria. As invariâncias (quantidades que não mudam) e as
variâncias asseguram a possibilidade da ciência, de uma taxonomia,
ou de como as forças de atração e de repulsão asseguram a forma,
não a deixando se dispersar completamente no mundo ou, então,
convergir para um ponto só. O estabelecimento de critérios define o
que se quer extrair da classificação e vice-versa , e quanto mais
ou menos critérios, menor ou maior o número de grupos. A eficácia
da classificação depende desses equilíbrios. Mas gosto de
desequilibrar as minhas.
86
ECO. Kant e o ornitorrinco, p. 192-193.
134
A forma geral do trabalho ainda não está definida. O que tenho são
os potinhos com folhas (FIG. 32), e o pensamento nas limitações do
espaço onde a exposição ocorrerá, além dos impulsos ordenativos. A
galeria do Anexo Prof. Francisco Iglesias, da Biblioteca Pública
Estadual Luiz de Bessa, apresenta desafios pois é como um corredor
de paredes de vidro, com restrições de peso e dimensão, por se tratar
de uma passarela. Não pretendo construir um móvel para abrigar
essa coleção uma vez que outros trabalhos espaçosos e pesados já
farão parte dela.
Figura 32 Thula Kawasaki, Coleção de folhas mortas (trabalho em
andamento)
135
Decidi resolver esse trabalho no próprio espaço, com as estruturas
que ele tem a oferecer, como as vitrines existentes para dispor os
livros em suas exposições literárias. Depois que me acostumei com a
idéia, passei inclusive a gostar da possibilidade de utilizar esse
aparato bibliotecário para as coleções e seus anexos, e desenvolver o
trabalho lá, durante a montagem coisa que para mim é outro
desafio já que sempre levo meus trabalhos prontos e, na montagem,
me ocupo somente da disposição espacial deles.
Pretendo separar o trabalho em partes, de acordo com o conteúdo
das coleções. Uma parte para os potinhos numerados e preenchidos
por um dia de folhas secas caídas sobre o lençol, outra para as
folhas da casa recolhidas em geral, outra para as inclassificadas, e
assim por diante. Não vou poder escrever aqui sobre os desafios da
montagem deste trabalho já que ele só se realizará após a entrega
deste texto, mas o que posso adiantar é que, certamente, esses
pensamentos de ordem, da infinidade dos acidentes, de tentativas de
apreensão do efêmero e o gosto pelo jogo e pelas impossibilidades
estarão presentes.
136
Em um conjunto de ações com esse trabalho da classificação
subjetiva das folhas mortas, haverá outro trabalho para lidar com as
exceções. A classificação aproxima e distancia as coisas. As plantas
mortas que não obedecem aos critérios que estabeleci para definir o
conjunto de folhas, com o qual realizarei o trabalho de que falo
acima, comporão um outro trabalho, só de exceções, que também
está em andamento.
Recolhi pela casa, ao longo do tempo, muitos elementos da natureza
mortos. Nem todos se harmonizam com o conjunto central que defini
e esses objetos rejeitados sempre me inquietavam. A possibilidade
de não poder incluí-los todos em um único conjunto me fez pensar
em um lugar para abrigar essas notas dissonantes. Ao olhar para a
caixa com esses objetos, via uma certa crueldade da classificação
com os fragmentos excluídos. Pensava no gorila albino que senhor
Palomar vê em seu passeio ao zoológico:
Aquele rosto de traços enormes, de gigante triste
(...); um lento olhar prenhe de desolação, de
paciência e enfado, um olhar que exprime toda a
resignação de ser o que é, único exemplar no
mundo de uma forma não escolhida, não amada,
toda a fadiga de carregar sua própria singularidade,
toda a aflição de ocupar o espaço e o tempo com a
própria presença tão embaraçante e tão vistosa.
87
87
CALVINO. Palomar, p. 75.
137
A sala de espera faz menção a uma espécie de limbo ao qual
pertencem essas coleções de um objeto só, esses elementos
segregados do conjunto, os excluídos. Farão parte do trabalho três
cadeiras grandes (FIG. 33) e nelas se enlaçarão os fragmentos de
plantas em suspensão e uma espécie de rede orgânica de crochê.
Através de um jogo de classificação, eu poderia agrupar esses
objetos de diversas maneiras, constituir diversos grupos, inúmeras
combinações de critérios. Poderia também incluir todo esse
excedente em uma coleção só, atravessada por um único princípio
que relacione cada um dos elementos. Talvez seja isso que eu faça,
uni-los todos pela idéia única da exceção.
Figura 33 Thula Kawasaki, A sala de espera (trabalho em andamento).
138
4. o trabalho fora da casa
Lisette Lagnado, em um texto intitulado Ateliê, laboratório e
canteiro de obras
88
, fala de um redimensionamento da idéia de
atelier. Como a imagem do atelier, algo como um galpão ou uma
pequena oficina, vai sendo substituída por uma sala banal, provida
de mesa, cadeira, estante, livros e discos. Ela fala também que se
gerou uma zona indeterminada, sem limites fixos entre o privado e o
público, já que é nessa permanência de domicílio, híbrido de lar
com labor, que o artista simultaneamente vive e trabalha. E que
esse trabalho exclusivamente dentro do atelier e a figura do artista
protegida de confrontos externos acentua o afastamento entre
projeto para a coletividade e experiência de singularização. Penso
sim nessa tendência ao virtuosismo de um artista enclausurado em
sua casa-atelier. Temo-a com freqüência. Mas penso também que o
trabalho criado nesse espaço privado não tem nele seu fim. Ele
sempre percorre os meios públicos e é nesse momento que ele toma
consciência de si próprio. Passa pelo crivo dos olhares, das críticas,
das aproximações e distanciamentos, de todas as vozes que a ele se
somam. Transforma um outro espaço o público e é percorrido
por outros corpos. E, se retorna à casa, retorna outro. A cada vez.
88
LAGNADO. Ateliê, laboratório e canteiro de obras, p. 17.
139
Quando vou montar uma exposição e, já no lugar onde ela ocorrerá,
começo a retirar a poeira doméstica dos objetos, passo a escova, o
pano e a poeira particular cai no chão e o objeto limpo vai então
acumular uma poeira pública, de outros lugares, de outras pessoas.
Penso que essa poeira pública o complementa e o realiza.
Quando realizo um trabalho, sempre tenho uma imagem e uma
história dessa imagem em mente. Mas opto por anular
direcionamentos, em certa medida, para que aquele objeto possa ser
construído por qualquer outra pessoa. Para que, quem entrar em
contato com ele possa projetar suas próprias imagens, fatos,
memória. O que comunicamos aos outros não passa de uma
orientação para o segredo, sem, contudo, jamais poder dizê-lo
objetivamente
89
. Procuro sempre preservar certo silêncio, certa
ausência que carece da participação do outro para que sentidos se
produzam.
Há, também, a questão de ordenação ou reordenação que precisa de
um olhar que lhe proponha sentido. Novas combinações, a fim de
reordenar os fragmentos selecionados de mundo, por meio de
89
BACHELARD. A poética do espaço, p. 32. (grifo do autor)
140
agregações, sobreposições, associações e distanciamento de
elementos muitas vezes desconexos, inventando um tempo e espaço
próprios. Evocando realidades possíveis que só se edificam nos
olhos e no pensamento de um espectador. Não gosto de utilizar a
palavra espectador, embora muitas vezes também não saiba que
palavra utilizar. Não gosto da idéia passiva contida na palavra e a
proximidade e, às vezes, confusão dela com a palavra expectador.
Não tenho a intenção de que, diante deles, as pessoas assistam a
algo ou esperem algo dos trabalhos. Espero sempre que atuem, que
ajam. Que seja um agir interno e um agir também com o próprio
corpo, rodear os objetos, percorrer o ambiente, aproximar e
distanciar-se das coisas.
Tenho consciência de que o processo todo não deixa, até certo
ponto, de ser uma escrita autobiográfica, já que se concretiza
através de um percurso subjetivo e reflete uma certa arquitetura de
acontecimentos e memória pessoais. Mas nessa autobiografia não
comprometida com a verificação dos fatos, tudo o que minhas
capacidades alcançam nela se inclui. Não aspiro escrever minha
história, e sim uma história ao mesmo tempo íntima e impessoal. Ou
melhor, multipessoal. Sempre lembro de uma pergunta formulada
pelo senhor Palomar quando me questiono acerca de um, talvez,
excesso de subjetividade em meus trabalhos: O que temos em comum
141
será justo aquilo que é dado a cada um como exclusivamente seu?
90
Porque não produzo trabalhos para que as pessoas saibam de mim, e
sim para que se identifiquem com esse ambiente de intimidade e que
lá encontrem os seus próprios desejos e anseios, que evoquem
qualquer outra subjetividade, que escrevam sua própria história. Ao
ler uma entrevista concedida por Maria Esther Maciel me
identifiquei muito com um momento em que ela fala da presença da
subjetividade em sua escrita. Ela fala de
(...) uma subjetividade povoada de vários eus: os
que me constituem, os que imagino e os que forjo a
partir da relação com o outro, os outros. (...) Dessa
constelação não excluo, é claro, o eu lúcido, o eu
que pensa sobre si mesmo e sobre os próprios
mecanismos de construção poética. Só que a
lucidez que ele traz está sempre assaltada pela
presença ora desejada, ora intrusa desses outros
eus (óbvios e/ou absurdos) que povoam minha voz.
91
Percebo também essa multiplicidade de eus nos meus trabalhos. E
é por essa multiplicidade por seus desvãos, suas contradições
que defendo um trabalho que não é fechado sobre si mesmo ou sobre
a figura particular do artista mas que se abre para encontrar, por
rememorações, outros eus.
90
CALVINO. Palomar, p.16.
91
MACIEL. A memória das coisas, p. 143-144.
142
Em Infinitivo (FIG. 6 e 34), um armário longo contém, em seus
compartimentos, alguns objetos e alguns fragmentos de corpo: vasos
vazios, escadas e três potinhos de vidro contendo sangue, unhas
cortadas e pele. São pedaços que fizeram parte de mim um dia, que
extraí do corpo, guardei, conservei. Algo que é extremamente meu,
que meu corpo produziu e alimentou, que carrega todas as minhas
informações genéticas, detalhes sobre minha origem, minha saúde,
meus costumes, que são únicos e que, no entanto, é uma realidade
comum a todos. Qualquer um pode reconhecer seus próprios dias em
unhas cortadas, mesmo que não sejam as suas. Qualquer um pode ver
refletido o lado de dentro do seu próprio corpo no vidro de sangue
alheio.
143
Figura 34 Thula Kawasaki, Infinitivo (detalhe), 2004.
Frequentemente tenho dúvidas a respeito desse excesso de
subjetividade. Quando estava realizando um trabalho intitulado
Diários (FIG. 35 e 36) era essa dúvida que vinha e voltava a cada
página escrita. Trata-se de três mesinhas com seus respectivos
assentos e, em cada uma delas, um caderno feito à mão. Nesses três
144
cadernos, uma convergência de desenhos e textos poéticos, listas,
anotações... que compõem um ambiente íntimo como o de um diário.
Essa idéia do diário me afligia. Fiquei apreensiva em apresentar esse
trabalho justamente por pensar nesse, talvez, excesso de
subjetividade (se não se transformaria em algo fechado demais e oco
em um contexto público). Pensei novamente na pergunta do senhor
Palomar. Não narro fatos ocos. Falo do mundo, das coisas do mundo,
a partir de certo ponto de vista que é íntimo, que é subjetivo, mas
que não é exclusivo. Ou que seria exclusivamente meu e de qualquer
pessoa. Então resolvi assumir o risco e assumir inclusive o título:
Diários.
145
Figura 35 Thula Kawasaki, Diários, 2007.
146
Figura 36 Thula Kawasaki, Diários (detalhe).
Através das experiências que tive com exposições e tendo tido a
oportunidade de observar ou conversar com algumas pessoas,
receber críticas, palavras penso que sim, que faz sentido tudo isso
existir fora de mim. Que faz sentido eu querer que alguém participe
dessas imagens, desses pensamentos, e que não é a minha intimidade
147
que está sendo revelada, mas uma intimidade qualquer, de qualquer
um. A maioria das pessoas que entra em contato comigo para falar
sobre um trabalho mais fala de si própria do que pergunta de mim.
Fala de histórias que relembrou, de idéias que teve. Era isso que eu
gostaria que acontecesse e tem sido esse o retorno obtido.
Um dos retornos mais inesperados e interessantes que tive e que
contribuíram para esse pensamento foi de uma música feita por uma
banda paulista chamada Axial
92
, inspirada em Diários. A
compositora me disse que foi uma reação sua (sonora e literária) ao
meu trabalho, a de querer ela também falar sobre as coisas. A
música não é a minha intimidade exposta e, de certa forma, nem a
dela. É essa intimidade subterrânea e comum a todas as pessoas. É
um estar-no-mundo e espantar-se com as coisas, com as palavras,
com as idéias. Uma música que fala com sons e letras de um outro
ponto de vista subjetivo acerca das coisas do mundo.
Inevitavelmente o mesmo mundo.
Fiquei muito satisfeita por saber que meu trabalho, ainda que íntimo
e subjetivo por vezes, mais, por vezes, menos, pode repercutir
no lado de dentro das outras pessoas em uma ligação que não
92
O nome da música é A filha da palavra, e ela faz parte do álbum
Senóide. Letra de Sandra Ximenes e música de Sandra Ximenes e Felipe
Julián.
148
envolve a minha história particular, a minha pessoa. É a relação que
se cria além de mim, que não controlo, e que pode se instaurar no
dia e na memória de qualquer um que se dedique a estar presente em
meu trabalho, a fazer parte dele ou tomá-lo como parte sua. Perec
fala que há algo de exultante e de aterrador na idéia de que nada no
mundo seja tão único que não possa entrar em uma lista
93
. Penso
que é dessa maneira que se alcança o outro, mesmo que se fale de si
(um si, como já falei, múltiplo): com a consciência de que não há
nada tão seu, com o qual ninguém possa se identificar, que a
intimidade não exclui, que a visão subjetiva do mundo encontra ecos
em todas as visões subjetivas do mundo. E como seria a visão
objetiva? Do que eu me propuser a falar não vou estar sempre, de
certa forma, falando de mim ou falando de um eu?
Um homem se propõe a tarefa de desenhar o
mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com
imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de
baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de
instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas.
Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente
labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto.
94
93
PEREC. Pensar/clasificar, p. 119. (tradução minha).
94
BORGES. Obras completas II, p. 254.
149
5. a impossibilidade da conclusão
Uma conclusão objetiva e bem atada seria o gesto de fazer caber o
inúmero no limitado. Desejaria, nos meus delírios de ordem, pontuar
aquilo que acho essencial, relacionar essas essências umas às outras
e, por fim, extrair dessas relações palavras que acalmem as dúvidas
e as inquietações que permeiam o texto. Eu queria, com minha
doença de completude, que o texto tivesse um começo, meio e fim
definidos e facilmente identificáveis. Assim como gostaria que todas
as coisas do mundo tivessem um nome e um lugar. Mas é um querer
de superfície, que vem em ondas. Logo que o manifesto na escrita ou
em voz alta, acho graça do tédio e da impossibilidade desses desejos
frouxos. Já falar das coisas que escapam soa natural. Por oposição, a
ordem valoriza o que se subtrai a ela. Vislumbrar a vertigem de
ordem através da arte delineou um mundo inapreensível.
Esta pesquisa fala sobre minha produção artística que cabe em
menos de uma década da minha existência. Mas a produção se
realiza ao longo de um percurso e esse percurso, sim, é feito por
toda uma vida de interesses, escolhas, memória. Todas as coisas a
que tive acesso durante toda a vida e que, de uma forma ou de outra,
se cristalizaram em mim fazem parte desta produção.
150
A vida de uma pessoa consiste num conjunto de
acontecimentos em que o último poderia até mesmo
mudar o sentido de todo o conjunto, não porque
conte mais que os precedentes mas porque desde
que se incluam numa vida os acontecimentos se
dispõem numa ordem que não é cronológica mas
responde a uma arquitetura interna.
95
Mesmo aos trabalhos já realizados ainda se acrescentam camadas de
existência posterior a eles. Estando vivo, tudo se modifica
continuamente: passado, presente e futuro. Não visualizo uma
conclusão possível para essa profusão de elementos e idéias, para
essa fluidez lenta e desordenada que é existir. Concluir coincidiria
com a morte.
Mais uma vez compartilho o mundo do senhor Palomar. Ele, no final
do livro, decide proceder como se estivesse morto para observar o
comportamento do mundo sem ele. Logo descobre que a maior
dificuldade em aprender a estar morto é:
(...) convencer-se de que a própria vida é um
conjunto fechado, todo no passado, ao qual já nada
mais se pode acrescentar; tampouco se podem
introduzir modificações de perspectiva nas relações
entre seus vários elementos.
96
95
CALVINO. Palomar, p. 110-111.
96
Ibidem, p. 111.
151
Pensar em uma conclusão possível me faz esbarrar nessa mesma
dificuldade de como aprender a estar morto. A vida se prolonga
muito além do que registro aqui, dentro das especificidades e do
sucessivo da linguagem. E com a existência, se prolongam para
muito além minha produção e este texto, cuja conclusão espero só
escrever daqui a muitos e muitos anos.
152
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Phaidon, 2002.
156
anexo
157
A casa e a vertigem da ordem (texto da defesa)
Para esta apresentação, pensei que seria mais interessante falar um
pouco das coisas que não foram escritas: a própria vivência da
pesquisa e a realização da exposição. Ambas se configuram,
juntamente com a dissertação, em uma única experiência, cuja
importância para mim não se concentra em uma de suas partes,
mas, sim, no conjunto delas.
Sempre me foi cara a reflexão que acompanha o fazer, que dele faz
parte, mas, ao longo desta pesquisa, o diálogo entre prática artística
e exercício da escrita se revelou definitivamente imprescindível para
o meu desenvolvimento enquanto artista e o conseqüente
desenvolvimento de minha produção.
Pude me debruçar sobre meu trabalho e, a partir dele remontando
modos de fazer, revivendo ou reinventando experiências,
catalogando interesses, imagens, palavras... extrair lentamente a
matéria que viria a compor o texto.
Uma nova relação se estabeleceu entre as práticas. Acredito ter sido
ela a maior conquista.
158
Toda vez que tento definir essa relação, a percebo óbvia por uma
fração de segundo, para que depois ela volte a se revelar orgânica,
vertiginosa, que não se deixa traduzir por completo. Não é uma
produção posta ao lado de um texto do qual é assunto: a construção
de uma lógica simples para definir o movimento entre elas se revela
insuficiente, pois ambas as práticas se constroem mutuamente
através de uma relação de prolongamentos, desvios e contaminações.
O texto partiu dos trabalhos mas, desde então, as hierarquias se
desfizeram. Não são a mesma coisa, também não são coisas
inteiramente distintas. Juntos compõem um mesmo percurso.
Essa percepção me aproximou do texto. Optei pelo envolvimento:
deixei-me envolver pela escrita, assim como faço em meus
trabalhos. A princípio, tentei outras abordagens as que me deram
impressão de ser mais apropriadas ao fato de estar escrevendo uma
dissertação. Mas no final das contas, essa, de estar em minha
própria pele, fez com que eu me sentisse mais à vontade para falar
das coisas. Dessa maneira, não me senti intimidada ao falar também
de pequenos pensamentos, de pequenos gestos, de questões do meu
cotidiano que alimentam e são alimentadas pela minha produção.
159
Ao fazer essa opção, percebi seus obstáculos alguns dos quais não
consegui superar, mas que certamente se cintilaram e que compõem,
agora, minha lista de objetivos futuros. Um maior aprofundamento
teórico, um diálogo mais demorado com a história e com outros
trabalhos de outros artistas, são algumas das questões com as quais,
pela presença muito forte de um eu no texto, tive certa dificuldade
em lidar. Porém, ainda que perceba muitas coisas que gostaria de ter
feito, penso que, neste momento, foi essa a melhor forma de
trabalhar. Foi assim que consegui fazer com que o texto e a
produção caminhassem juntos em mim, com que não houvesse entre
eles uma sobreposição, nem mesmo um abismo.
Sempre procurei escrever sobre aquilo que faço, mas escrever
pequenas notas individuais é muito diferente de procurar escrever,
em um só texto, tudo aquilo que se considera relevante e instaurar
uma ordem para todos esses pensamentos soltos. Talvez tenha sido a
instauração da ordem o momento em que se cria o espaço entre um
pensamento e outro meu maior desafio e exercício durante a
escrita.
Escrever sobre meus trabalhos, dos mais antigos aos mais recentes,
me fez visualizar um percurso que nem sempre esteve claro para
160
mim durante a produção. Na medida em que observei, do lugar de
quem escreve, cada um desses momentos, pude perceber, no decorrer
do meu trabalho, as coerências e dissonâncias, as transformações, o
ponto em que algum interesse surgiu e outro se perdeu. Pude
perceber com maior clareza os lugares onde estive, e esse
conhecimento se revelou fundamental, tanto para construir a minha
posição com relação ao meu trabalho agora, quanto para o futuro
desenvolvimento dele. Visualizar o caminho percorrido acentuou a
responsabilidade que tenho em relação à minha produção e,
certamente, contribuiu para que, daqui em diante, eu me movimente
com mais atenção às coisas. Mais consciente.
A exposição, que carrega da dissertação o nome a casa e a
vertigem da ordem, é também uma das partes da pesquisa e, por
ter sido montada após a entrega da dissertação, não há nenhuma
reflexão no texto especificamente a seu respeito. Penso então que
seria agora uma boa oportunidade.
O título remete tanto aos elementos do cotidiano doméstico quanto
às tentativas de apreender o mundo por meio de ordenações, de
classificações, de sistemas inventados. Tenho transitado há tempos
161
em meio a esses interesses; eles que povoam meus trabalhos e meu
texto.
Figura 37 vista longínqua da passarela
O lugar onde ela está sendo realizada me propôs um grande desafio:
essa passarela de vidro, comprida e trêmula, em meio à rua da Bahia
e à Praça da Liberdade, é diferente de todos os espaços nos quais já
trabalhei. Em momento algum, durante a montagem, pude concebê-la
isolada dos ruídos da cidade, porque as informações interiores e
exteriores são trocadas a todo tempo. Isso, que, a princípio, me
incomodou, aos poucos foi se tornando um estímulo, e me guiou ao
longo da concepção.
162
Procurei colocar muitos dos trabalhos dos quais trato ao longo da
dissertação, embora tenha optado por não incluir os emoldurados o
que deixou de fora algumas gravuras, desenhos e poucas pinturas
devido às características do espaço físico. Poderia ter colocado:
existem ganchos no teto para que as molduras possam ficar
penduradas rentes ao vidro-parede. Mas tive a oportunidade de ver
uma exposição de pinturas naquele mesmo espaço e, confesso, fiquei
incomodada com o fato de que, da rua, o que se vê é o avesso das
molduras. Parecia desprezo. De certa maneira, expor naquele local é
uma intervenção na cidade e no cotidiano das pessoas que transitam
por ali. Pareceu-me cruel impor tal intervenção às pessoas e, ao
mesmo tempo, negar o acesso a ela.
Figura 38 vista geral da exposição A casa e a vertigem da ordem, 2007.
163
Sendo assim, dei preferência aos objetos e optei por um
posicionamento deles que criasse um diálogo harmonioso tanto para
quem a vê de dentro, quanto de fora. Procurei não sobrepor muitas
imagens para contrabalancear o burburinho da cidade. Imagino que
se o espaço fosse branco e fechado, os objetos estariam muito
espaçados, haveria muitos vazios, mas não tive essa sensação em
meio aos carros, aos pedestres, aos semáforos, aos pedintes, ao
grupo de escritores de bronze estáticos no banquinho da calçada.
Esse espaço híbrido de rua e galeria acentuou de maneira radical
meu questionamento sobre público e privado. Como abordei na
dissertação, quando meus trabalhos saem de casa e vão para o
espaço expositivo, sempre uma poeira pública vem se juntar à poeira
doméstica e sinto que então o trabalho se completa fora de mim.
Neste caso, não foi só uma poeira pública, mas uma cidade inteira
vista entre as frestas do meu mobiliário branco, através dos vidros
dos potinhos de folhas mortas, em frente às mesas que contêm meus
diários. Foi um choque, na verdade. Um pouco assustador, mas
estimulante. Às vezes, da Praça da Liberdade conseguia avistar a
passarela com meus trabalhos pequenininhos vistos de longe, e além
de uma sensação estranha de invasão não uma sensação ruim, mas
164
estranha me vinha à mente a imagem de uma esquisita ilha
suspensa, deslocada, branca e silenciosa, lenta demais.
Compõem a exposição alguns dos meus objetos antigos, dos quais
trato na dissertação, e alguns mais recentes que, no período de
finalização do texto, ainda estavam em andamento e, por esse
motivo, não falei especificamente deles. Mas abordei, sim, seu
andamento, a coleção de folhas caídas, as classificações, o exercício
da ordem. Quatro trabalhos presentes nessa exposição são
desdobramentos dessa mesma coleção e desses interesses e
obsessões.
165
Figura 39 Thula Kawasaki, Outono, 2007.
O trabalho Outono foi colocado em uma vitrine de vidro, em frente
às portas, também de vidro, que dão vista para as estantes de livros
de uma das salas da Biblioteca Pública. Ao ordenar meus pequenos
potes contendo as folhas que recolhi no meu quarto dos lençóis, do
chão, do criado-mudo durante o outono deste ano, olhava para os
livros da sala atrás e me vinha à mente a imagem de Walter
Benjamin às voltas com a ordenação de seus livros, da qual trata em
seu texto Desempacotando minha biblioteca. Pensava em uma frase
sua toda ordem é precisamente uma situação oscilante à beira do
166
precipício
97
e tudo isso foi acrescentando ao meu gesto de ordenar
os potinhos, cada qual em seu lugar específico no quadriculado, uma
certa graça e um certo desespero.
Figura 40 Thula Kawasaki, Outono, 2007 (detalhe).
Ao posicionar esse trabalho em frente à sala da biblioteca, percebi
que algo de sua visualidade se perdeu: cada pote contém inúmeras
folhas, minúsculas, de variadas cores, algumas com galhos frágeis,
outras presas ainda a flores imagens que se perdem em meio ao
ruído das inúmeras lombadas heterogêneas dos livros. Mas o
mantive lá pois um outro sentido foi acrescentado a ela pelas
estantes de livros que lhe servem de fundo.
97
BENJAMIN. Rua de mão única, p. 228.
167
Figura 41 Thula Kawasaki, A sala de espera, 2007.
A sala de espera consiste em três grandes cadeiras. No encosto de
cada uma delas estão posicionados, como em prateleiras, diversos
vidros com exemplares de folhas mortas e suas respectivas etiquetas.
Na primeira concepção do trabalho, havia também uma rede branca
feita de crochê que envolvia fragmentos dos vidros e das cadeiras,
mas, quando o trabalho estava já posicionado na passarela, achei
excessivo e desnecessário. Em meio às paredes brancas da minha
casa, deu um sentido que, no meio da rua, se perdeu. Preferi retirar.
168
Figura 42 Thula Kawasaki, A sala de espera, 2007 (detalhes).
Nas etiquetas estão escritas frases, palavras acerca das situações,
pensamentos, circunstâncias relacionadas a cada uma daquelas
folhas, geralmente relacionadas ao processo ou momento de inclusão
delas à minha coleção. Quis colocar esse trabalho tendo a praça
como fundo porque, por contraste com minha minúscula coleção de
folhas domésticas, dá uma sensação ainda maior de infinito: joga
com a noção de arbitrariedade dos critérios de seleção, de
classificação e faz vislumbrar a incompletude e as
impossibilidades inerentes às tentativas de ordenar o inordenável.
169
Figura 43 Thula Kawasaki, 109 categorias possíveis para folhas mortas,
2007.
109 categorias possíveis para folhas mortas foi criado a partir de
um diário da coleção que eu mantinha. Cheguei a mencionar, na
dissertação, um desejo de fazer um pequeno livro com essas
categorias porque me instigava o fato de que, a partir de uma
coleção com um número restrito de objetos, eu poderia desfiar
inúmeras categorias. Poderia criar um sistema de classificação que,
em vez de ordenar, segregasse mais e mais e que então viesse a
sobrepor e, depois, a multiplicar a coleção. Nessa ocasião, me
lembrei do mapa de que Borges fala em seu texto Do rigor na
ciência:
170
Naquele Império, a Arte da Cartografia
alcançou tal Perfeição que o mapa de uma única
Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do
império, toda uma Província. Com o tempo, esses
Mapas Desmesurados não foram satisfatórios e os
Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do
Império, que tinha o tamanho do Império e
coincidia pontualmente com ele.
98
Figura 44 Thula Kawasaki, 109 categorias possíveis para folhas mortas,
2007 (detalhe).
Para a confecção do livrinho, levando em consideração que ele teria
de ser exposto em uma vitrine, resolvi realizá-lo em formato sanfona
98
BORGES. Obras completas II, p. 247.
171
e, na hora de posicioná-lo no espaço, o abri para que cada página
pudesse ser lida. O formato escolhido também acentuou uma idéia de
desdobramento que está presente na essência do trabalho: são 109
categorias que poderiam se desdobrar em mil, em inúmeras, se assim
quisesse. Gosto de imaginar que cada pessoa que lê, prolonga a lista
um pouco mais, para além do que está escrito, assim como eu, a todo
momento, tenho vontade de acrescentar outras tantas categorias.
Figura 45 Thula Kawasaki, Pequeno arquivo de imagens quase diárias,
2007.
Finalmente, o último trabalho sobre o qual não cheguei a tratar
especificamente na dissertação é o Pequeno arquivo de imagens
172
quase diárias. Ele é uma caixa-fichário, cujas divisórias são
numeradas de 1 a 31. Dentro dela fui organizando o desenho de
cenas cotidianas, do momento em que recolhi uma folha e a agreguei
à coleção. Diferente das folhas que guardei em potes de vidro, essas
eu colei com durex no desenho, como indicação das circunstâncias
em que cada uma foi encontrada. Em cada um dos desenhos,
carimbei a data. Para a exposição, espalhei alguns desses desenhos
na vitrine, juntamente com o fichário que começou com a tampa
mais aberta e, ao longo dos dias, foi se fechando lentamente devido
ao seu peso.
173
Figura 46 Thula Kawasaki, Pequeno arquivo de imagens quase diárias,
2007 (detalhe).
Esse trabalho também é uma das maneiras que encontrei para lidar
com a coleção de folhas e que expõe um sistema de ordenação com
materiais caseiros, do dia-a-dia, e se assemelha com os sistemas que
crio para ordenar minhas correspondências, contas pagas, recibos,
documentos, etc. Quis que ficasse evidente esse caráter das
pequenas ordenações domésticas, dos exercícios corriqueiros de
ordem que se fazem presentes no cotidiano e que, por conta do
automatismo ou das convenções, parecem óbvios... até que algo não
se encaixe. A partir de uma fissura, se vislumbra o absurdo inerente
174
à ação, a fragilidade e instabilidade dos sistemas criados e seu
caráter de jogo, de quebra-cabeças.
Esses trabalhos mencionados aqui, juntamente com os mais antigos
abordados na dissertação, compõem um panorama dos meus
interesses, sobre os quais procurei tratar ao longo da pesquisa. Ao
final desse processo, vejo agora o texto como intrínseco à produção:
não para justificar, servir de legenda, mas como uma produção
também. Não sei se paralela ou integrante, mas a produção do texto
com todas as etapas que ela inclui se revelou, mais que uma
possibilidade, uma responsabilidade minha para com o meu fazer e
com a construção de um percurso artístico mais consciente.
Finalizando esta apresentação, assim como quando finalizava a
dissertação, me vem a enorme sensação de incompletude, que
concorda com a noção do texto e da produção como essenciais um ao
outro. Estando ainda no início do percurso da minha produção em
arte e tendo afirmado a necessidade para mim de que pesquisa e
produção caminhem juntas, tentar finalizar esta pesquisa de maneira
conclusiva, agora, seria artificial. Talvez, me sentir completa e sem
nada mais a acrescentar seria preocupante.
175
Portanto, encerro este momento com um laço frouxo, que não
resistirá nem até o fim do dia. Com considerações nada finais, às
quais, antes mesmo de terminar de escrever, já tenho vontade de
acrescentar outras tantas.
176
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Brasiliense, 2000. (Obras escolhidas II).
BORGES, Jorge Luis. Obras completas II. São Paulo: Globo, 1999.
lista de imagens
01. Vista longínqua da passarela (Espaço Cultural da Galeria de Arte
do Anexo Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa / Anexo Prof.
Francisco Iglesias Belo Horizonte / MG) onde foi realizada a
exposição A casa e a vertigem da ordem, 13 nov. - 29 nov. 2007
...............................................................................................VI
02. Vista geral da exposição A casa e a vertigem da ordem..........VII
03. Thula Kawasaki. Outono, 2007. Acrílica e grafite s/ tela, vidro,
cortiça, folhas e flores. Dimensões variáveis (30 x 30 x 06 cm cada
módulo). Acervo pessoal da artista. ............................................X
04. Thula Kawasaki. Outono (detalhes).......................................XI
05. Thula Kawasaki. A sala de espera, 2007. Técnica mista (madeira
monocromada, vidro, grafite s/ papel, plantas secas, etc.).
Dimensões variáveis (cada cadeira: 194 x 45 x 45 cm) Acervo
pessoal da artista.....................................................................XII
06. Thula Kawasaki. A sala de espera (detalhes).......................XIII
177
07. Thula Kawasaki. 109 categorias possíveis para folhas mortas,
2007. Grafite s/ papel. Dimensões variáveis (fechado: 11,5 x 14,5 x
02 cm; aberto: 11,5 x 337 cm). Acervo pessoal da artista. .........XIV
08. Thula Kawasaki. 109 categorias possíveis para folhas mortas
(detalhe).................................................................................XV
09. Thula Kawasaki. Pequeno arquivo de imagens quase diárias,
2007. Madeira, grafite e tinta para carimbo s/ papel, durex, folhas
secas. Dimensões variáveis (caixa: 12,7 x 18 x 17,2 cm; cada
desenho: 15 x 10 cm). Acervo pessoal da artista. ......................XVI
10. Thula Kawasaki. Pequeno arquivo de imagens quase diárias
(detalhe).............................................................................XVIII
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