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As sete dores
de N. Senhora
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COELHO NETTO
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As sete dores de N.
Senhora
Com uma carta de S. EMINÊNCIA
O Cardeal ArceBispo
D. JOAQUIM Arcoverde
COELHO NETTO
EDIÇÃO DEFINITIVA
PORTO
L I V R A R I A C H A R D R O N de ÉLO & IRMÃO, Ld.», edil.
PUA DAS CARMELITAS, 144-
Aillaud e Bertrand Lisboa Paris
1922
Obras de COELHO NETTO
Sertão.
A Bico âe Pena.
Água de Juvenia,
Romanceiro.
Teatro, vol. I, (O
Belicãrio, Os Baios X,
O Diabo no corpo).
Teatro, vol.
U,(AsEstações, Ao
Luar, Ironia, A Mulher,
Fim de Baça).
Teatro, vol. IV, (
Quebranto, comédia em
3 actos, e o sainete
Nuvem).
Teatro, vol. V, ( O
dinheiro, Bonança, e o
Intruso).
Fabulário.
Jardim das Oliveiras.
Esfinge.
Miragem
.
Apólogos, contos para
crianças.
Inverno em Flor.
Mistérios do Natal,
contos para
crianças.
O Morto.
Bei Negro.
Capital Federal.
A Conquista.
A Tormenta.
Tréva.
Banzo.
Turbilhão.
O meu dia.
As Sete Dores de
Nossa Senhora.
Baladilhas.
NO PRELO:
Patinho torto
As Sete Dores de N. Senhora
Os quadros d'As Sete Dores da Santíssima
Virgem Maria, escriptos pelo Sr. Coelho Net-
to, são um mimoso volume de interessantes
e amenas leituras religiosas, que, pela sua
elegância e belleza, prendem e recreiam o
espirito e captivam o coração.
O assumpto nada perdeu da sua natural
majestade sob a penna delicada de tão abali-
sado litterato e aprimorado estylista, que o
tratou com carinho, simplicidade e elegân-
cia de arte.
É um mimoso ramalhete colhido por mão
de mestre no precioso jardim da litteratura,
contornado de bellas imagens e ajustado cm
finíssimas gazes de aprimorado estylo.
É, pois, esse um livro ao qual não rega-
tearemos nossos francos elogios e o nosso
IMPRIMATUR, e ao seu Autor com abundância
de coração damos a nossa benção.
Rio de Janeiro, 13 de Maio de 1907.
J. CARD. ARCEBISPO.
I
A prophecia no Templo
Eram passados quarenta dias sobre o nas-
cimento de Jesus, e, seguindo o preceito do
Levitico, que prescrevia, ao fim d'esse prazo, a
purificação das mulheres que gerassem varões,
Maria e José dirigiam-se ao Templo, com o
infante, levando o casal de rôlas e os cyclos de
prata do resgate, que era quanto a Lei exigia
dos pobres.
A manhan, luminosa e serena, fizera affluir
ao Templo desusada concurrencia.
Os mercadores, sentados em tapetes e em
cócedras, á beira das tendas ou diante dos.
taboleiros, offertavam, com louvores, as suas
louçainhas : télas de finíssima trama entre-
sachada de ouro, estragulos de purpura
sanguinea, turbantes entremeiados de perolas,
10 AS SETE DORES DE . SENHORA
saios de linho, abas de lan ; joias de ouro
lavrado, pedras raras, armas de gume tão fino
que cortavam no ar um fio de seda, lanças de
pontas rendilhadas; talismans contra molestias,
hervas dos montes que, maceradas em oleo,
davam um balsamo efficaz na cura de toda a
ulcera, philtros de virtude erotica ; bolos de
farinha e mel, frutos acamados em folhas
frescas; cordeiros alvos e pombos sem mancha
para as offertas da Lei.
Ainda os havia paupérrimos: idumêus bron-
zeados, que levavam na ponta das tunicas
feixes de raizes, seixos das correntes, ramos de
flores murchas que reviviam a um fresco rorejo.
Um velho psyllo, de longas barbas alvas,
tamborilando com duas varas no bojo de um
odre, fazia dançar aos torcicollos uma negra
serpente ou, espalhando no manto estendido
fina arêa dourada, soltava por ella um
escaravelho, e, attentamente, ia lendo o destino
dos consultantes nos arabescos deixados pelas
patas do insecto.
Muitos casaes entravam e pobres, enfermos,
alrotando, descobrindo chagas que sangravam,
cegos com os dedos nas orbitas vazias
apiedavam narrando misérias.
A PROPHECIA NO TEMPLO
11
Moedas tiniam, rolavam nas lages, e era um
precipitar tumultuoso de maltrapilhos, de
aleijados; barbarisando protestos, por vezes
pugilatos entre os infelizes que se engalfinha-
vam com furor disputando um óbulo.
Maria, entrando no Templo, lembrou-se da
sua adolescencia, dos annos felizes passados no
claustro.
Ali haviam decorrido os dias melhores da sua
vida sem dôres, sem pensares, só com o
cuidado cm Deus. Ali chegara-lhe a noticia da
morte dos seu velhos pais. Chorara longamente
a sua orphandade, mas na companhia das
donzellas consagradas ao devoto serviço, a que
também fora dedicada, o consolo seccou-lhe as
lagrimas sem, comtudo, apagar-lhe a saudade
no coração. Todavia a certeza de que os dois
velhinhos, tão meigos, tão justos, sempre fieis á
Lei, teriam recebido o premio eterno do Senhor,
abrandara-lhe o soffrimento d'alma.
D'ali, sem conhecimento da vida, ignorante
de tudo, sahira para os esponsaes, começando a
soffrer desde a hora vesperal em
12 AS SETE DORES DE N, SEXHORA
que, num afogueado morrer do sol por traz das
collmas de Nazareth, estando a orar junto á
janella, que um sycomoro empanava de fo-
lhagem, vira, subitamente, a casa illuminar-se,
encher-se de perfume, e deram seus olhos
deslumbrados com a belleza mystica de um
anjo, alvo, fúlgido como de neve, louro como
coberto de sol, tendo á mão uma vara florida,
que lhe falara em nome de Deus, annunciando o
mysterio da grande Genese.
A Virgem deteve os passos, cançada, sor-
rindo ao Filho que dormia á sombra do véu fino
que lhe descia da cabeça envolvendo-lhe o
busto.
José acercou-se do grupo e ficaram, um
momento, contemplativos.
Quem os visse diria que estavam, como
estrangeiros, admirando a construcção ma-
gnífica do grande rei, na qual trabalharam, até a
morte, trezentos mil operários, uns de Israel,
outros de Zidon, fiscalisados por hábeis
mesteiraes de Byblos, peritos em brocar as
pedreiras e em polir os blocos ; sem contar os
que abateram os cedros, exploraram as minas,
teceram os pannos, esculpiram os lenhos, ou,
sob as ordens de Hiram, o artista de sangue
tyrio, floriram os
A PROPHECIA NO TEMPLO 13
capiteis, entorsalaram as columnas em fes-
tões de flores entremeiadas de romans e ainda
fundiram, a grande piscina chamada o Mar
de hvnze, cercando-se de copas, entre açu-
cenas e coloquintidas, e montando-a sobre
doze touros, voltados, três a três, para os
pontos cardeaes, em cujo bojo, dia e noite,
sem descontinuar, golfava, a jorros, a agua
das cisternas para as abluções dos sacerdo-
tes.
De tal altura dominava-se toda a cidade
com as suas muralhas irregulares, a rotunda
torre Antonia, scintillante d'armas, o casario
branco, em cubos, alvejando no verdor dos
eidos ; muros eriçados de hervas crespas,
espinhosos cardos esgalhados, altos, frondo-
sos sycomoros, á cuja sombra dormiam re-
banhos, os olivaes das colunas, as frescas
cisternas entre figueiras e, longe, a torrente
espumosa, os montes, os campos, as estra-
das que seguiam para as terras ferteis ou
enviezavam para os desertos estéreis.
O sol começava a aquecer, os pombos
desertavam o pateo e, no interior augusto do
Templo, um cântico reboou.
Entraram.
De todos os angulos do immenso recinto
14 AS SETE DORES DE N. SENHORA
subiam finos novellos de fumo adensando-se
em nuvem cerulea que se estendia, alastrava,
ondulando, de leve, na altura, como um velario
fluidico.
Maria descobriu o rosto lindo do Infante, que
ainda dormia.
Justamente passava por cila, a passos va-
garosos, um velho sacerdote chamado Simeão.
Subito tremor agitou-o. Deteve-se e, com o
venerando rosto illuminado por um sorriso
beato, os olhos arrasados de pranto, tremulo,
voltou-se para a Senhora, estendeu os braços
que a idade enfraquecera e, tomando o Menino,
mirou-o com religiosa ternura, sem dizer
palavra, tão grande era a emoção de sua alma.
Encarou de fito a Virgem e, tornando com o
olhar ao Infante, que lhe sorria, bradou
arrebatado :
— Agora, Senhor, despedes em paz o teu
servo, segundo a tua palavra, porque os meus
olhos viram a salvação, que és Tu, que vens
apparelhado e surges ante a face dos povos,
como Luz para alumiar as nações e engrandecer
e giorificar Israel!
Os pais, recolhidos em timidez, não sa-
A PROPHEC1A NO TEMPLO
15
biam que pensar d'aquelles dizeres vagos e
pasmaram do jubilo e das lagrimas do santo
homem que inclinava a cabeça branca sobre
Jesus, sem animo, todavia, de impor-lhe os la-
bios ao corpo, como em receio de profanação.
De novo, porém, e em mais vivo brilho,
accendeu-se-lhe o olhar mortiço o, passando o
Pequeno aos ansiosos braços maternaes, disse
em tom prophetico, abençoando o casal
submisso :
— Eis aqui está o Menino que será ruina e
salvação de muitos em Israel, e será o alvo a
que mire a contradição. E dirigindo-se a Maria,
suspensa das suas palavras, ajuntou: E. será
também uma espada que trespassará tua alma
para que se manifestem os pensamentos de
muitos corações.
A taes palavras a Virgem estremeceu aper-
tando, com ansia, ao collo o Filho pequenino e,
envolvendo-o em um olhar que o pranto
conturbava, ficou petrificada, sem energia para
tirar-se do lugar em que fora ferida pela
prophecia dolorosa.
Simeão demorava ainda junto á Familia
humilde, contemplando o Menino, quando uma
turba, de mendigos avançou seguindo os passos
lerdos de uma velha.
16
AS SETE DORES DK N. SENHORA
Anna era o seu nome, filha de Fanuel, da
tribu de Aser, quasi octogenaria. Sentira, em
inspiração, a presença de Deus e, na sua
velhice, visinha da morte, tivera a ventura de
vêr de face o Salvador,
Era prophetisa e passava os dias no Templo
occupando-se em misteres piedosos.
Em Jerusalem e nas cercanias o seu nome era
pronunciado com veneração e as suas palavras
valiam promessas se eram de bom agouro, ou
faziam tremer, como sentenças, se annunciavam
desgraças. Se, á beira de um leito, onde jazesse
enfermo abandonado da propria esperança,
dissesse que elle havia de sarar, era certo vê-lo,
dias depois, ao soalheiro, reentrado na vida,
narrando o milagre da sua resurreição.
Nunca a sua boca presagiara catastrophes
quee se não vissem as torrentes incharem,
transbordarem dos leitos pedregosos trans-
formando os campos em alagadeiros ou pro-
longar-se o estio em seccura, esturrando os
pastos, queimando o trigo o a vinha, entre-
zinhando os rebanhos.
Ás vezes, levantando-se d
!
impeto, mostrava,
com tremulo e consternado gesto, o deserto
amarello, falando em sombras vivas,
A PROPHECIA XO TEMPLO
17
em nuvens assoladoras e, dias depois, como
uma tormenta que viesse crescendo do lado das
arêas quentes, o céu escurecia com estranho
soído--eram os gafanhotos que chegavam.
Nunca se lhe fizera consulta a que não res-
pondesse com a verdade, abrindo o sorriso ou
desatando lagrimas.
E assim a sua voz era escutada com fé.
E Anna adiantou-se em passo vagaroso e
tremulo, arrimada ao bordão e, ante o Menino,
vergaram-se-lhe os joelhos e todos os mendigos
prostraram-se com ella.
E a velha disse, de mãos postas, com ar-
doroso accento e as lagrimas a quatro e quatro
pelas faces encarquilhadas:
— Senhor, sois Vós o Messias annunciado
desde os dias mais antigos de Israel. Ainda o
homem dormia debaixo de ramos, perto das
dunas, nos desertos, pascendo rebanhos,
armado contra as algaras dos nomades e já os
anjos, descendo do céu pelo cimo dos montes,
falavam de Vós aos pastores, no campo ou
sentados com intimidade á mesa dos pa-
triarchas. Os prophetas apregoaram o vosso
advento.
Ventura grande é a de meus olhos que
conservaram luz até Vêr-vos.
2
18
AS SETE DORES DE N.
. SENHORA
Delicia immensa foi reservada aos meus la-
bios que ainda lograram beijar-vos, Senhor.
Bemdito seja o ventre em que esperastes a
voz que Vos chamou á vida.
Não foste gerado, apenas entrastes no seio
humano, embebendo-vos no soffrimento como
a esponja encharca-se d'agua em que mergulha.
Vindes enxugar a lagrima da angustia e
estancar o sangue dos flagicios. Sois a benção
divina, redemptora das almas, purificadora da
terra.
Vivereis como o sol e morrereis em sangue,
na cumiada, para, á voz dos anjos, reappa-
recerdes, depois da noite triste, mais fulgurante
e mais vivo, na insurreição que será a aurora do
dia. eterno.
Sois o levêdo que fará crescer o pão da
misericordia.
Bem haja o tempo em que Vos revelastes.
Ai! de ti, mulher! Os maus o levarão do teu
amor sem piedade de tuas lagrimas, sem pena
dos teus gritos e farão delle a victima
propiciatoria, sacrificando-o no altar do monte.
Os mendigos ouviram, pasmados, sem en-
tenderem as palavras mysteriosas da pro-
phetisa.
A PRQPHECIA NO TEMPLO
19
Mas o coração de Maria transbordava de
angustia e a desventurada não se arredaria do
ponto do soffrimento se José a não tirasse pelo
braço, levando-a ao Tabernaculo onde deviam
cumprir o preceito da Lei.
Ó a triste volta a Nazareth !
Caminhos por onde descera contente, sor-
rindo á felicidade, ia-os, então, trilhando a
soluçar.
Pobre coração alvoroçado! Sentir agarrada a
si vida tão nova e tão linda e já cuidar no
doloroso fim que lhe reservava o destino !
As palavras de Simeão que a velha con-
firmara. . .!
Que lucra uma alma em conhecer o futuro ?
Deus, quando fez os horizontes, foi para
encobrir o fim das jornadas.
A vida é um livro que deve ser folheado
pagina a pagina, sem que se consulte o indice.
Conhecer o futuro é soffrer a dôr antes que
se abra a chaga, é cintillar a lagrima antes que
abrolhe a angustia, é vêr a noite em
20
AS SETE DORES DE N. SENHORA.
pleno dia, é gemer com o pungir da frecha
antes que a despida o arco.
Porque a não deixaram mãi, com a espe-
rança das mãis, que é sempre venturosa,
expondo-lhe logo aos olhos o transito afflic-
tissimo da vida do seu filho ! ?
Havia de passar o tempo dos beijos e dos
sorrisos em conjecturas de tristeza, soluçando
debruçada sobre um berço que já lhe parecia
esquife ?
Ó precursores nefastos da agonia!
Caminhos floridos, como depressa vos mu-
dastes em carrascaes espinhosos! Pobre mãi!
d'olhos abertos sobre a genitura triste do
seu amado, lá ia, sem vêr as bellezas, sem
ouvir as vozes encantadoras das aves, das
aguas e das folhagens, harpas dos ventos,
só escutando o coração, que gemia sobre o
futuro tão mal fadado do pequenino, inno-
cente e formoso Jesus.
II
A fuga para o Egypto
Hora alta.
Pelos campos tudo era névoa. Não se ouvia,
voz humana nem queixa de ovelha e, a não ser
o brilho de algum fogo de aprisco, nos cerros, a
noite tinha vida apenas no céu alto onde as
estrellas scintillavam limpidas.
No casebre, alumiado por uma lampada de
barro, o silencio era, de vez em vez, aflorado
por um leve suspiro de Maria.
Ainda dormindo os cuidados não a deixa-
vam: seus sonhos eram tristes.
Não raro despertava em sobresalto. Afflicta,
chorando, estendia os braços para o berço de
vime onde Jesus dormia e, extatica, d'ollios
nelle cravados, ali se ficava em adoração,
vendo-o tão lindo, adormecido sobre
24
AS SETE DORES DE N. SENHORA
os linhos alvos, com os bracinhos abertos
como um pequenino crucifixo de marfim.
Pobre coração sem socego ! Todos os ru-
mores alvoroçavam-no.
Se uma rola perdida no colmo turturinava, a
pobre mãi erguia-se de vagarinho, punha-se de
joelhos, attenta, á escuta ; se o vento lavava nos
campos logo, sollícita, apanhando todos os
trapos que encontrava, punha-se a calafetar as
frinchas para que os avisos do inverno, trazidos
na respiração da noite, não, chegassem ao
pequenito.
José procurava tranquillizá-la :
Não te fies no coração, é vigia que não
discerne e alarma-se com o menor ruido. Que
podes temer na terra amiga em que vivemos ?
Tudo, senhor. As mais não vivem tran-
quillas porque são avaras. Não ha guarda que
lhes baste : a torre mais forte parece-lhes
sempre fragil. Meu coração bate agora com
mais força do que dantes batia para manter-me
acordada e, se adormeço, logo minha alma
debate-se em pesadellos. Fico como uma casa.
deserta em que esvoaçam estryges. Que posso
eu temer ? tudo.
E, toda a noite, de instante a instante, erguia-
se a criatura amorosa, d'olhos muito
A FUGA PARA O EGYPTO
25
abertos sobre o filho e adormecia inclinada
ao berço e, ainda dormindo, machinalmente
o balançava.
José deitara-se na arca e adormecera, com
uma ponta do manto sobre o rosto e viu, em
sonho, um anjo — o mesmo que lhe ap-
parecera para confortar-lhe o coração enve-
nenado pela suspeita — que lhe disse :
— Ergue-te, leva o Menino e sua Mãi e
foge para o Egypto. Lá ficarás até que eu te
avise, por que Herodes ha de buscar a Jesus
para o matar.
Levantou-se de prompto o patriarcha —
extinguira-se a chamma da candeia, mas o
luar, infiltrando-se por uma aberta do col-
mo, fizera sobre o berço do Infante um cor-
tinado de luz — despertou Maria e, dizendo-
lhe o que sonhara, ajoelharam-se ambos
dando graças a Deus pelo aviso e, á pressa,
reunindo o que puderam, tomou a Virgem o
Menino, agasalhou-o ao collo e, trancando a
porta do casebre, puzeram-se a caminho.
Abandonando as estradas procurou José
os trilhos mais agrestes, veredas pedrentas,
carreiros beirados de espinhaes, por mon-
tes, porque assim evitavam encontros.
Occultando-se durante o dia, só á noite
26 AS SETE DORES DE N. SENHORA
caminhavam protegidos pela treva; ainda assim
mal presentiam rumores, logo precipitadamente
refugiam escondendo-se em bosques,
enlapando-se em furnas ou cosendo-se com os
penhascos até que passassem os caminheiros.
Então deixavam os esconderijos e, de novo,
cautelosamente, retomavam o passo.
Ao romper d'alva José, agasalhando a
Virgem e o Menino em lugar seguro, aventu
rava-se em busca de alimentos.
De uma feita, pousando em deserta, char-
neca, Maria, que sempre se mostrara resignada
não articulando queixa, não poude conter as
lagrimas. É que a sêde, longamente supportada,
ia-se tornando em fogo que a consumia. Os
lábios fendiam-se-lhe, vertigens abalavam-na
obscurecendo-lhe a vista e, ávida, em delirio,
febricitada, ouvia o fresco murmurio de fontes
em torno, mas andando com o olhar em volta,
via apenas arêas e raizes retorcidas.
Queixou-se, então, mas a sua queixa foi
ainda um cântico de amor :
-- Não é pelo meu soffrimento que choro,
disse, mas pelo receio que tenho de que o leite
estanque em meus peitos. Estas mesmas la-
A FUGA PAUA O EGYPTO 27
grimas são desperdicios da minha fraqueza,
pudesse eu absorvê-las para que se trans-
formassem em leite e assim o meu soffrimento
serviria para nutrir o meu amor e, emquanto
durasse a minha angustia, elle teria garantido o
alimento. Mas as lagrimas perdem-se. Ai! de
mim.
José procurava por toda a parte uma fonte,
um resto d'água em concavo de rocha, mas
tudo era aridez.
Uma lagrima, porém, rolando dos olhos de
Maria, cahiu na dura encosta de um penedo e
logo a pedra reluziu como se a alagasse um
suor. Um fio d'água brotou, desceu pelas
arestas enchendo-se, engrossando, alastrando
em lençol alvo e frio e ajuntou-se na terra entre
o pedregullio adusto.
José deteve-se pasmado, mas a sede tirou-o
do espanto. Então, reunindo-se á Virgem, que
se ajoelhara e orava, louvaram ambos o Senhor,
o mesmo Deus de bondade que respondera aos
clamores de Agar, no deserto, e que ali, de
novo, revelava-se. Depois, inclinando-se,
beberam a goles fartos d'a-quella água
misericordiosa que nascera da baga de pranto
como de uma semente.
E disse Maria:
28 AS SETE DORES DE N. SENHORA
Senhor, se as proprias pedras do deserto
commovem-se com as supplicas do meu co
ração, porque não ha de o homem ouvi-las ?
Que mal pôde trazer ao mundo uma criança
que nem ainda se firmou na terra, porque não
anda ? que ainda não poude soltar o pensa-
mento por falta da aza, que é a palavra ?
Que ma pôde fazer um innocento para que
assim o persigam ?
E José respondeu :
Sigamos. O coração do máu é pedra que
se não converte. O rochedo gera a fonte, se o
ferires responderá com a centelha; o coração
dá a lagrima e flammeja em ódio. Ha corações,
porém, que são feitos de neve : nelles a lagri-
ma está petrificada : brilham, mas não têm
lume. Para esses não ha piedade nem colera,
são os impassiveis, os indifferentes: cora-
ções brancos, corações diaphanos, corações
vazios.
Outros ha que fervem em ódio perenne, são
corações de bitume abrasados em ira.
Não compares os corações dos maus ás
pedras misericordiosas.
A FUGA PARA O EGYPTO
29
Emquanto foram pela Galiléa sempre se
lhes depararam pousios: cavernas escusas,
que eram asylos de algáras, aduares de no-
mades. Entravam por ellas e, sem receio,
agasalhavam-se.
E nunca lhes succedeu serem incommo-
dados pelos moradores, ou fosse porque an-
dassem em razzias pelas estradas mais corri-
das, ou fosse porque os contivesse á distan-
cia a Providencia que velava sobre os pere-
grinos.
Avisinhando-se de Jerusalém, já sentindo
o poder crudelissimo de Herodes, maior se
lhes tornou o receio. Não se atreviam a cami-
nhar senão a horas altas, quando nos campos
cessava, por completo, o movimento e mor-
riam todos os lumes das choças e nos cor-
telhos e corveiros os proprios cães dormiam,
O latir longínquo de um rafeiro fazia-os
estacar; a sombra oscillante de um ramo
detinha-os: o rumor d
!
agua nos regos assus-
tava-os e, tiritando, molhados, abençoavam
o frio que os transia, o vento que lhes cor-
tava a face, porque, com tão áspera inver-
tia, mais seguramente viajariam sem vêr
30
AS DORES DE N. SEKIIORA
gente, atravessando os campos e as paupér-
rimas aldeias adormecidas.
Nas proximidades de Ramla, na Iduméa, iam
por um estreito, sinuoso caminho, apertado
entre alcantis medonhos quando, ino-
pinadamente, ouviram vozes roucas, tinir de
ferros e logo, ao fulvo clarão de archotes, um
bando de homens de má sombra, que pareciam
surgir da terra, tomou-lhes o passo.
Cercados pela horda, ficaram os esposos em
attitude humilde : a Virgem muito pallida e
tremula, chorando. Mas o chefe dos salteado-
res, adiantando-se por entre as lanças, mal
descobriu os caminhantes, como tocado de
graça, inclinou-se respeitoso e, beijando a
ponta do veu de Maria, saudou-a com palavras
de bôa avença.
Os bandidos olhavam immoveis, pasmados,
mas a um aceno do chefe afastaram-se e o
salteador, compadecido da miseria de tão jo-
vem e formosa senhora e do cançaço do ancião
e com pena do Menino, que resmungava,
encolhendo-se de frio nos braços maternaes,
offereceu-lhes hospedagem, mostrando-lhes o
seu formidável castello de pedra negra,
alcandorado no viso de um rochedo.
E como a subida fosse difficil, os homens
A FUGA PAEA O EGYPTO
31
cortaram ramos, cruzaram-nos em andilhas,
nellas sentando a Virgem, e levaram-na pela
trilha escarpada até a alcaçova onde, além
dos donos, só as águias e os gypaêtos che-
gavam.
Ali repousou a Família durante dois dias
suaves e quando, a instâncias de José, ti-
veram de partir, o chefe encheu-os de pre-
sentes e, trazendo um manso jumento, fez
nelle subir Maria. Ordenando, então, a al-
guns homens que os acompanhassem até a
vizinhança de Nazareth. despediu-se com ami-
zade.
De Nazareth seguiram até Bethleem, onde
se refugiaram em uma gruta, esperando a
passagem de alguma caravana que deman-
dasse o Egypto.
Uma tarde viram chegar numerosa turba
em que havia gente de varias castas — merca-
dores montados em camellos, sobre alman-
dras e telizes cairelados de ouro, seguindo
carros atupidos de alfaias; guerreiros d'al-
bornozes listados, turbante rubro, lanças al-
tas, luzindo ; mulheres em onagros e farta
peonagem sobrecarregada de fardos. Reba-
nhos acompanhavam a multidão que ia para
os lados de Mizraím.
32
AS SETE DORES DE N. SENHORA
Enfardelando, á pressa, o que tinham, met-
teram-se os esposos na caravana e, ao som de
cantos, ao trillo do flautas e resoar de tympanos
vibrantes, á hora afogueada do occaso,
deixaram Bethleem a caminho de Hebron e de
Gaza, á beira do mar, até chegarem ás arêas
soltas e amarellas do immenso, tristonho e
árido deserto.
O céu puro, de um azul metallico, abafava —
sentia-se a brasa do sol, o fogo intenso que, a
mais e mais, incendia-se e o bando caminhava
em silencio, lentamente, revolvendo o solo
molle, fofo. em que os pés enterravam-se
queimando-se como em rescaldo.
Ás vezes, de improviso, uma voz bradava
alegremente annunciando um oásis. Reani-
mavam-se todos precipitando os animaes es-
falfados. Os peões corriam offegando, era uma
grita festiva — lanças coriscavam no ar,
yatagans flammejavam e todos os olhares fita-
vam, com ânsia, o mesmo ponto. Lá estavam as
palmeiras verdes, as sombras das arvores
hospitaleiras annunciadoras d'agua, terra,
emfim, naquelle oceano de seccura.
Súbito, porém, o desanimo substituía o
contentamento e, ás vozes felizes, aos cantos
A FüGA PARA O EGYPTO
33
jocundos succediam guaiados, imprecações de
revolta e blasphemias.
Alguns, com os pés em sangue, deixavam-se
cahir nas dunas sem coragem para continuar a
jornada; outros bradavam ao ceu ameaçando-o
com os punhos fechados. Mais arrepelavam-se
sentindo os filhos morrerem-lhes nos braços e a
illusão dissolvia-se a pouco e pouco, a
miragem apagava-se e o deserto estendia-se
ardendo ao sol, esteril, impassivel, vazio,
movendo-se, ondulando ao vento quente.
E, seguindo d'alto a caravana, os gypaêtos
soltavam gritos antegosando a carniça humana,
o dizimo que os aventureiros pagavam á
voracidade do deserto.
O sol nascia ardentíssimo, os seus primeiros
raios brandos, acariciantes nas outras regiões,
eram ali flagellos. Os olhos ficavam encan-
deiados, doloridos á fulguração micante das
arêas e, á falta de sombra, á mingua de fonte ou
cisterna, a turba caminhava penosamente,
arfando ao ríspido calor que alquebrava os
proprios animaes.
3
:
34 A5 SETE DORES DE N. SKNHORA
Maria só achava conforto nas caricias inno-
centes do Menino, nem sentia o sol que lhe
escaldava a cabeça — ia d'olhos no Filho e,
como não lhe faltasse leite, nem pensava em
fonte o abençoava o deserto que salvava o seu
Amor.
A noite descia como um balsamo.
Toda a caravana repousava ao tempo, go-
zando a frescura, sentindo os leões e os tigres
que rondavam o acampamento com um vívido
fagulhar de pupillas.
De quando em quando os nômades levanta-
vam grita estrondosa assustando as feras e os
fogos de vigília brilhavam aqui e ali, por entre
grupos de homens e de animaes.
Uma tarde, finalmente, avistaram Heliopo-
lis, a cidade do sol, com os seus zimborios
claros, os seus altos pylonos, os seus templos
colossaes.
Era a hora religiosa em que os sacerdotes
entoavam, ao som dos kimores, cânticos a
Atumú e os barqueiros do Nilo, colhendo as
velas, abicavam á margem florida de lotos.
A Virgem sentia-se fatigada, e como pa-
rassem junto das ruinas de um tumulo, dei-
xaram seguir a amotinada caravana e reco-
lheram-se á funebre guarida.
A FL'GA PARA O EGYPTO
35
Na manhan seguinte, cedo, antes da oração á
aurora, levantaram-se os esposos dirigindo-se
para a cidade resplandecente.
Junto á porta principal avultava uma arvore
magestosa, cuja virtude era proclamada por
quantos a conheciam.
Muitos adoravam-na como divindade. Tanto
que Maria se lhe chegou á sombra, logo a
arvore curvou-se dobrando-se no tronco, var-
rendo o solo com a folhagem basta. Tres vezes
repetiu o respeitoso movimento, depois,
sacudindo os ramos, espalhou todas as suas
flores em volta, alcatifando a terra que os
peregrinos deviam pisar.
E foi assim que a flora sagrada do Egypto
recebeu a Familia de Jesus.
Atravessando a cidade em direcção á villa de
Matarieh, entro sycomoros, regada pela única
fonte que em taes terras deriva, todos os
animaes sagrados dos templos que ficavam á
beira do caminho que os esposos percorriam,
rolaram dos altares partindo-se nas lages —
assim a Phenix immortal, o touro Mnévis, o
pássaro Bonu e o grande disco de ouro de
Aton, o sol, que se desfez em estiIhas com
grande espanto dos sacerdotes.
36 AS SETE DORES DE N. SENHORA
A população da villa de Matarieh, onde se
fixou a Sagrada Família, era humilima ; pobre
gente que labutava em pesados trabalhos
soffrendo, sem revolta, a oppressão dos nobres,
a affronta dos ricos, o castigo dos capatazes, o
desprezo, a repulsa dos sacerdotes.
Se queria pedir aos deuses a piedade devida a
todos os seres, os neochoros ameaçavam-na,
corriam-na dos vestibulos por immunda,
indigna de apparecer ante os altares.
Vivia em cabanas de lôdo, cobertas de palmas
e tão nuas e desprovidas que os leitos eram
alastros de folhas e os lumes eram fogueiras de
versas.
Em uma d'essas cabanas installou-se José e
logo, compondo-a, calafetando as fendas,
amparando os esteios, substituindo as palmas
da cobertura palhiça, alhanando o solo, tornou-
a mais confortável. Depois, com o que dispunha
em moedas, adquiriu a ferramenta, e, á sombra
larga de um sycomoro, começou a trabalhar
contente, tranquillo, vendo o Menino crescer,
brincar entre as fi-
A FUGA PARA O EGVPTO
37
tas de madeira que a plaina tirava dos lenhos
que ia acepilhando.
Maria, ordenando a casa, asseiando-a,. fa-
zendo o lume, tomava a urna e subia a collina,
caminho da fonte. Lá ficava lavando as roupas
do casal e estendia-as na encosta do outeiro
Matagoso. Á tarde recolhia-as.
Apesar da fadiga e da pobreza em que vivia,
sentia-se feliz no socego. O' as lancinantes
angustias! o medo de vêr-se orfan, despojada
d'aquelle amor formoso! Ali, seu Filho podia
andar livre, correr nos campos, mirar-se,
risonho, nas águas da fonte, brincar com os
pobresinhos da sua idade.
E ali viveram sete annos longos, ali cresceu
o Infante, foram-se-lhe abrindo os olhos; ali
sentiu o seu pequenino coração o primeiro
pungir da piedade pela dôr humana : velhos
sem lar, cahidos nas estradas, morrendo es-
quecidos, desamparados; criancinhas chorando
sem consolo, perdidas, chamando as mais que
lhes não podiam responder do fundo abafado
dos túmulos em que jaziam ; mulheres fracas
succumbindo ao peso das tarefas; enfermos
implorando sem resposta.
Uma tarde, parando no outeiro em que
brincava —os trabalhadores cantavam ao lon-
38 AS SETE DORES DE N. SENHORA
ge enterneceu-se Jesus com os olhos arra-
sados em lagrimas.
Vendo-o chorar, Maria precipitou-se com-
movida :
Porque choras, meu Filho ?
É tão triste o canto d'essa pobre gente,
minha Mãi.
Longe, nos templos, resoavam hymnos.
A religião impassível respondia aos lamentos
dos miseráveis com as panegyrias solemnes.
E Jesus soluçava sobre a tristeza dos hu-
mildes.
Uma tarde, recolhendo do campo, viu José o
anjo annuciador. Reconhecendo-o, prostrou-se
com a face na terra.
—-Levanta-te, disse-lhe o divino enviado,
toma o Menino e sua Mãi e vai para a terra de
Israel, porque são fallecidos os que o buscavam
para o matar.
Foi com alvoroço que a Virgem recebeu a boa
nova — já lhe doía o coração com saudades da
pátria. Despedindo-se dos visinhos, da fonte,
do sycomoro á cuja sombra passava os dias
fiando, grata, bem dizendo aquella terra de
hospitalidade, preparou-se para a partida.
Deixaram Heliopolis com uma caravana,
quando, porém, avisinhavam-se dos palma-
A FUGA PARA O RGYPTO
39
res de Betlilcem, sabendo que Archeláo rei-
nava na Judéa, sempre receiosos, metteram-se
por desvios desertos e, depois de longas,
trabalhosas voltas, chegaram a Nazareth, na
Galiléa natal.
Encontrariam ainda a sua casa? Assim
pensavam quando, ás ultimas luzes da tarde
dourada, viram-na de pé, entre as figueiras.
Em commovida alegria precipitaram os
passos para a cabana, abriram-na, e, entrando,
encontraram-na tal como a haviam deixado.
Tudo em ordem : na horta os mesmos legumes,
no eido as mesmas flores, as arcas cheias de
trigo, as amphoras cheias de azeite, agua fresca
na urna, frutos maduros nos gigos, o lume
acceso e a lâmpada de barro alumiando o
inteiror.
Ficaram maravilhados. Que bom visinho
lhes teria, com tanto zelo, conservado o lar ?...
E não viram um vulto branco, silencioso,
alado, que lentamente sahia, diluindo-se como
a nevoa ao sol.
—Louvado seja o Senhor! exclamou José
ajoelhando-se no limiar da casa, d’olhos no céu
que começava a estrellar-se.
Maria, risonha, ia e vinha revendo o seu
canto doméstico e fora, isolado, o pequenino
40 AS SETE DORES DE N.
SENHORA
Jesus, de olhos baixos, escutava o coração
piedoso que lhe repetia o canto dolente dos
miseráveis de Matarieh.
E as lagrimas rolavam-lhe a quatro e
quatro dos olhos misericordiosos.
III
Jesus no Templo
Aos doze annos era Jesus de tão doce bon-
dade e tão simples, gracioso e natural de modos
que os meninos suspendiam os brinquedos para
ouvi-lo ; decoravam-lhe as palavras, repetiam-
nas aos pais que as commentavam
maravilhados.
O prazer maior do predestinado Infante era
seguir as trilhas agrestes, buscar a companhia
dos pastores pensativos, ficar com elles á
mesma sombra, ouvindo as historias que
contavam sobre as estrellas das noites calmas,
emquanto as ovelhas soltas pastavam a herva
tenra que alfombrava maciamente a encosta,
dos outeiros.
José que, a principio, tentara ensinar-lhe o
seu officio, não para aproveitar-lhe o tra-
44 AS SETE DORES DE N. SENHORA.
balho, que a força ainda era pouca para
carpintejar, mas com o fim de proprocionar-lhe
distracção que o tirasse do sonho triste em que
vivia, reconhecendo a inutilidade do seu
desejo, porque o Menino ainda se entristecia
mais na officina, deixou-o solto,
Como o sabia estimado de todos não se
preoccupava com as suas ausências, certo de
que o veria regressar á tarde lento, d'olhos
extasiados no céu, com um lyrio ou com um
ramo verde, que era quanto trazia dos seus
passeios solitarios.
As interrogações da Mãi, que o afagava ca-
rinhosamente, respondia sempre com palavras
mysteriosas ou dizendo : «Estive a pensar uma
ovelha ferida, a ligar um ramo d'arvore, a juntar
achegas para auxiliar um passaro que andava a
tecer o ninho».
Ninguem, jamais, o surprendeu em exercicio
que não fôsse de caridade meiga -— nem a
correr pelas veredas, nem a trepar em troncos,
nem a perseguir animaes; sempre o viam
praticando acçoes piedosas, quando o não
encontravam isolado em recantos desertos, a
cabeça inclinada, pensando.
Na fonte, aonde costumava acompanhar
Maria, á tarde, as moças, descançando as
JEEUS NO TEMPLO
45
urnas, chamavam-no provocando-o a falar e
elle, sisudo, respondia-lhes com tão seguro
criterio que todas pasmavam e emmudeciam. A
propria Virgem, com os olhos marejados de
lagrimas, embevecida, não disfarçava o seu
espanto ao ouvir as sentenças de tão profundo
alcance que discorriam da linda boca do seu
filho.
É estranho, disse certa mulher, ouvindo-o.
É estranho que de tão tenra criatura saiam
conceitos taes. Nunca se viu rebento apenas
abrolhado dar sombra a uma caravana e nos,
em torno d'esta creança, attentas ás suas
palavras, estamos como abrigadas por um
renovo ainda, sem folha aberta.
A caridade, disse Jesus, pode vir do mais
humilde : não é preciso possuir minas na terra
para matar a fome de um pobre : basta um
pedaço de pão. A lan de uma ovelha combate o
frio do mais rigoroso inverno; uma gotta de
balsamo allivia a dôr mais forte. Parece-te
muito que uma criança attraia adultos á sua
paalavra : quando os corações são bem
formados, para chama-los á pie-dade não é
preciso mais que um ai!
Nada sei do que dizem os livros, mas muito
tenho aprendido com o soffrimento dos ho-
46 AS SETE DORE? DE IN. RENÜORA
mens. O que saborêa o vinho nem sempre
conhece o gosto natural da uva. Uma coisa é
comer o pão, outra é vê-lo fazer.
Eu sou como aquelle que apanha o fruto da
vinha ou como o segador que faz o molho de
trigo : sei como soffre a uva no lagar e quanto
padece o grão no moinho : vejo correr o sangue
da vida e ouço a trituração dolorosa da pedra
que móe o grão.
Os livros são recadeiros indifferentes: con-
tam, não fazem ver. Não é o mesmo saber da
morte e vê-la. Quem lê presume, quem vê
participa do bem ou do mal — goza ou padece.
Eu vejo.
Não admiras as palavras pelo seu valor
senão por virem de mim, que ainda hontem
balbuciava, e parece-te estranho que ' tão
grande mó de gente se reuna para ouvir-me e
louve o que digo. É que todos que aqui se
ajuntam trazem a alma preparada para a
doutrina.
Um leão manso pôde ser conduzido por um
menino e para domesticar um onagro trazido do
deserto não hasta a força de dois homens. A
ovelha trasmalhada na selva embravece, o tigre
tratado com humanidade roja-se submisso e
come á mão do domador.
JESU"S NO TEMPLO
47
Assim uma criança póde falar a adultos
desde que os encontre aderençados.
E, assim dizendo, Jesus brincava com o
ramo verde que espalhava em volta aroma
delicioso.
Foi nesse tempo que Elle fez a viagem a
Jerusalém, para a festa da Paschoa, acompa-
nhando Maria.
Nessa jornada, que a Lei prescrevia, os ho-
mens caminhavam apartados das mulheres. A
Virgem porém, tomando a seu cuidado o In-
fante, levou-o na caravana feminina.
Ainda que as moças e as proprias matronas,
ao longo do caminho, durante os quatro dias —
que a tanto montava o tempo da viagem de
Nazaréth a Jerusalém — fossem cantando, por
vezes bailando ao som de instrumentos, o
Menino não parecia alegrar-se com a
jocundidade festiva da companhia e, se a Mãi o
interrogava ou o incitava a brincar com os da
sua idade, retrahia-se dizendo :
— De que serve mentir com o sorriso á tris-
teza que lavra em meu coração ? O mercador
honesto só expõe amostras do que tem, como
48 A3 SETE DORES DE N. SENHORA
queres tu que eu sorria se em minh’alma só lia
tristeza ? Porque não se ha de permitir que eu
seja corno sou ? Não se exige da arvore esteril
que dê frutos nem se pede ao areal arvoredo de
sombra e lia de o melancolico sorrir por
comprazer dos que o cercam ?
Deixa-me ser como sou. Que culpa tenho eu
de haver nascido de um tronco cuja seiva e a
lagrima? Nâo peças mais do que tenho.
E Maria, sem palavras a oppôr ao que lhe
dizia o Filho, suspirava sofredoramente.
Quando chegaram a Jerusalém — a cidade
regorgitava de forasteiros — depois de ligeiro
descanço, logo subiram ao Templo a cumprir o
preceito da Lei.
Immolado o cordeiro pascal pelos sacri-
ficadores no patco do Templo, reuniu-se a
Familia em torno da mesa em que também
appareciam os pães azymos.
Não correu, com a alegria do costume, o
banquete tradicional. Maria mal tocou na sua
parte e, tanto que viu o Filho distraihdo,
dirigiu-se a José falando commovida:
— Senhor, bom seria entender-vos com um
dos sabios doutores da cidade afim de que nos
valesse com uma receita que curasse
JESUS NO TEMPLO
49
o Menino do mal que o vai lentamente con-
sumindo. Fez toda a viagem tão acabrunhado
que nem as minhas caricias conseguiram des-
anoja-lo. Tudo lhe augmentava a melancolia. 0
sol, os risos, a belleza da terra, a alegria das
moças, o luar das noites eram outros tantos
motivos para que seus olhos se turbassem. Ha
nelle um mal mysterioso que só a sciencia
descobrirá. Porque não procurais um d’esses
homens habeis, que fazem prodígios com os
seus remedios ?
O patriarcha respondeu :
— Acreditas, Maria, que alguem possa mo-
dificar a raiz de uma planta e a sua natureza a
ponto de a fazer produzir outras flores que não
as que lhe são proprias? Quem tal fizesse seria
igual a Deus. Assim tambem não se muda a
alma que trazemos: se ella vem para sorrir, ha
de sempre dar o sorriso ; se traz por dom a
tristeza, triste ha de sempre ser. Calou-se.
O Templo atroava. As vozes echoavam e,
por entre a turba em que se cruzavam roupa-
gens de todas as cores e havia ricas scintilla-
ções de metaes e pedrarias, iam evinham, de
rojo, miseráveis gemendo, imprecando, cho-
rando — cegos aos esbarros, leprosos com as
4
50 AS SETE DORES DE N. SENHORA
chagas tresuando, paralyticos de rasto se todos
oram duramente, enojadamente repellidos
pelos proprios sacerdotes que os evitavam com
repugnância.
Jesus, encostado a uma columna, acompa-
nhava o doloroso espectaculo com os olhos
arrasados d'água e, como Maria se aproxi-
masse, chamando-o, Elle disse-lhe:
— É esta a casa de Deus ! Aqui são os ricos
os que mais valem. Para elles abrem-se todas
as portas, descerram-se todos os véus. São elles
que se avisinham dos altares, como os levitas.
As ondas de incenso envolvem-nos antes de
subirem a Deos. Aos pobres nem consentem
que cruzem o limiar do santuário.
O minha mãi, como minh'alma mentia ao
meu coração quando lhe falava da Casa do
Senhor. O que eu imaginava era o contrario do
que vejo — os pobres em torno de Deus, como
a sua aureola, a Piedade recebendo á porta os
humildes —e encontro a ambição vendendo os
lugares sagrados e os sacerdotes zumbridos
diante dos cofres de ouro como se nelles vissem
imagens da arca santíssima. Ó minha Mãi... E
rompeu a chorar agarrado á columna.
JESUS NO TEMPLO
51
Ao fim do terceiro dia, terminadas as festas,
regressaram os peregrinos guardando a mesma
ordem em que haviam chegado. Em caminho
notou Maria a ausência de Jesus, mas
suppondo-o na companhia de José, não se
inquietou.
À noite, porém, acampando as duas ca-
ravanas no mesmo sitio, não poude a Mãi
supportar as saudades do Filho.
Deixando a tenda e guiando-se pelos lu-
mareus qne flammejavam no campo, foi em
demanda do agasalho do esposo.
José estava sentado á beira do lume, a olhar
o céu estreitado, quando Maria, rompendo das
trevas, appareceu-lhe perguntando pelo
Menino. Sobresaltou-se o ancião ;
-- Não o tens comtigo ?
Eu! Não vem comvosco ? Não o trou-
xestes vós ?
Não. Bem o procurei, suppondo que o
havias chamado.
—Ai! de mim... Em pranto afflicto, des-
grenhada, lançou-se a Virgem pelo acampa-
mento alarmando os que repousavam. Aos seus
clamores acudiam as companheiras pe-
nalisadas, homens iam-lhe ao encontro con-
doídos — a todos fazia a misera a mesma
52 AS SETE DORES DE N. SENHORA
pergunta : « Meu filho ! Não o vistes ? » De
todos ouvia a mesma desoladora resposta :
«Não !»
Perdido !
Sahiram a percorrer os arredores com ar-
chotes de palmas, bradando pelo Menino.
Ninguém. Os cães ladravam nas herdades
longínquas.
Á pressa, sem lembrar-se dos perigos a que
se ia expor, poz-se a Virgem a caminho
seguida ,de José.
Não andava, corria pela noite negra, tro-
peçando em toros e em pedrouços, resvalando
em barrancos, ferindo-se em espinhaes. De
quando em quando parava sem fôlego, com o
coração em ânsia e ficava a escutar no silencio.
Procurava José tranquillisá-la com palavras
de esperança, a desventura da rompia em
pranto e bradava desesperada o nome do Filho
que os echos repetiam, espalhando-o no
escampo como se quizessem auxiliar a infeliz.
Alvorecia e a pobre Mãi, sem sentir fadiga,
com os pés em sangue, os cabellos molhados de
orvalho, correndo, precipitando-se, avistou no
cariz do horizonte as terras brancas de
Jerusalém.
JESUS NO TEMPLO
53
Quiz José que tomassem algum descanço cm
uma pousada, mas a Virgem negou-se e,
caminhando, entrou na cidade quando come-
çavam a troar os pregões dos mercadores.
Foi a todas as casas conhecidas, penetrou,
arrebatadamente em todos os khans, percorreu
todos os bazares perguntando a quantos
encontrava, dando os signaes do Filho e
ninguém que a tranquillisasse.
Perdido !
Viam-na passar e olhavam-na: uns com pena
ou espanto, outros sorrindo. Um legionario
tentou detê-la, ella nem deu pelo gesto do
soldado e proseguiu.
Desanimada e exhausta, deixou-se cahir
sobre um escombro de pedras soluçando per-
didamente. Foi quando José, erguendo os olhos
para o céu, deu com o edificio colossal do
Templo maravilhosamente illuminado pelo sol
e disse, talvez para minorar os soffrimentos da
infeliz com um resto de esperança :
E no Templo, Maria? Quem sabe!?
Talvez tenha lá ficado a distrahir-se com os
bufarinheiros.
Sim! Sim! No Templo. Ó a esperança,
lume que renasce ao sopro mais leve.
E a Virgem precipitou-se, subiu alada-
54
AS SETE DORES DE N. SENHORA
mente a longa escadaria, atravessou o pateo
rompendo a multidão.
De repente estacou, tremula e pallida, as
mãos ambas no peito, as lagrimas a saltarem-
lhe dos olhos molhando-lhe copiosamente o
rosto, que sorria. É que descobrira o Menino.
Era elle ! sim, era! lá estava, debaixo do
pórtico, entre doutores que o ouviam em ma-
ravilhado silencio, uns sentados, descahidos
sobre os braços fincados nos joelhos, com os
rostos esmagados nas mãos, os olhos fitos ;
outros de pé, immoveis. braços cruzados,
attentos.
E Jesus, no meio d'elles, lindo, transfigurado,
discorria com suavidade, respondendo a.
objecções que lhe faziam, resolvendo difi-
culdades ou expondo, em palavras claras, Uma
doutrina de amor. De instante a instante corria
um rumor de applauso na assembléa, os anciãos
acenavam approvando, entreolhavam-se
deslumbrados, sorriam por verem tanta
sabedoria exposta, por uma boca em flor, tanto
pensamento sublime nascido entre os cachos
mimosos de uma cabeça, infantil.
A Virgem, que ficara á distancia, exta
JKSUS NO TEMPLO
55
síada, adiantou-se então e, dirigindo-se a Jesus,
falou-lhe :
— Filho, porque usaste assim comnosco ?
Sabe que teu pai e eu andávamos buscando-te,
cheios de afflicção.
Serenamente, avançando em passo grave,
Jesus respondeu :
— Para que me buscaveis ? Não sabeis que
importa occupar-me das coisas que são do
serviço de meu Pai ?
Não comprehenderam os esposos as palavras
do Infante, nem procuraram entendê-las, tão
grande era nelles a alegria por o haverem
encontrado.
E Jesus retirou-se.
Voltaram-se os doutores para segui-lo com o
olhar e, durante muitos dias, o assumpto das
conversas, no Templo foi o prodigioso Menino,
tão novo e já iniciado nos mais profundos
segredos da sciencía d'alma o nos mysterios
mais subtis da religião de Israel.
IV
Maria encontra Jesus no caminho
do supplicio
Foi um amotinado alvoroço no Pretorio
quando, depois da fraqueza de Pilatos, ao som
das buzinas roucas, os soldados da guarda
romperam vagarosamente a marcha.
O povo, atropellando-se, refluiu aos brados.
Mercadores retiravam açodadamente os ta-
boleiros, corriam com os gigos, puxavam ou
continham os animaes espantados. Mulheres
debandavam como perseguidas, levantando nos
braços os filhos que choravam, esperneando
com medo.
A tarde abrasava. Uma nuvem de pó on-
dulava nos ares como immenso véu doirado.
Apezar da brutalidade com que os legionarios
repelliam, a conto de lança, os curiosos que se
apinhavam fechando a passagem,
60 AS SETE DORES DE N. SENHORA
a turba adensava-se a mais e mais, engrossan-
do-se com os que chegavam de longe, attra-
hidos pela noticia da sentença e pelo gozo
do promettido espectaculo de morte.
Quando Jesus appareceu, derreado ao peso
da cruz, a fronte livida, laivada de sangue,
as faces denegridas das punhadas com que o
haviam maltratado, foi um delirio na mul-
tidão. Homens acenavam com as abas das
túnicas, com os turbantes; cajados entre-
chocavam-se alegremente. Mulheres agitavam
os mantos, rapazes bailavam aos saltos, ati-
rando ao ar as fótas, soltando gritos selva-
gens. E as injurias cruzavam-se : affrontas,
obscenidades, doestos calumniosos.
Vozes pediam com sarcasmo um milagre.
Um velho maltrapilho, os pés envoltos em
sujo esparto, avançou frenetico, com os olhos
cheios de cólera, a longa barba, amarella e
eriçada, ainda hummida de vinho e,
levantando os braços, magros e guedelhudos,
poz-se a rouquejar contra a victima.
— Eh ! lá, homem de Nazareth, mais de-
pressa, que os corvos começam a estalar os
bicos de impaciência. Chama os anjos para que
te ajudem. Chama-os, seductor de mulheres!
intrigante ! feiticeiro ! Mostra o teu poder.
MARIA ENCONTRA JESUS
61
E outras vozes romperam em grita :
Foi elle que fez murchar a vinha do meu
horto.
O meu campo era fértil, elle passou junto
á cerca e logo a terra, seccou e toda a planta
morreu.
Impostor ! Feiticeiro !
Uma pedra zuniu, bateu no madeiro esfa-
relando-se.
Jesus não levantava os olhos, seguia lento,
obedecendo a uma corda que lhe haviam atado
ao pescoço e que o centurião, de instante a
instante, em empuxo, atesava. Acompanhavam-
no dois criminosos, levando cruzes mais leves.
Eram ladrões, Mas o povo não parecia dar por
elles, só em Jesus reparava tornando-o alvo de
todas as chufas e brutalidades.
Às portas das casas sairiam os moradores:
operarios com as suas ferramentas, mãis
amamentando os filhos, mulheres coitadas de
mitras, em tunicas tão leves que o ar enfunava-
as ou lh'as apegava ás fôrmas com a facilidade
com que desfaz o fumo, os braços nus,
enrodilhados em braceletes de ouro, os peitos
brancos desnudos, acenando aos mancebos,
chamando-os para pedir informações.
62
AS SETE DORES DK N. SENHORA
Algumas apoiavam-se, com languidez, em
escravas que traziam flabelos de longas plu-
mas ou lyras.
Nos eirados agitavam-se chusmas de cu-
riosos, os braços erguidos, sustendo túnicas
abertas ao sol á maneira de velarios. Os
pombos voavam assustadamcnte com um forte
estalar d'azas.
Á medida que a marcha se alongava mais,
crescia a multidão vociferadora.
O martyr arfava, alagado em suor e em
sangue; as pernas tremiam-lhe, por vezes
dobravam-se. De instante a instante as buzinas
roucas estrugiam.
Passava Jesus diante do um casebre, cujos
muros, .tendidos e hirsutos d'hervas, ameaça-
vam ruir, quando lhe sahiu ao passo uma
mulher piedosa e, com um panno de linho
novo, enxugou-lhe o rosto, levando estampada
na lençaria as divinas feições do paciente.
O povo rompeu em assuada, aos ganidos.
Um homem avançou de repellão, tentando
arrancar das mãos da mulher o panno en-
sangüentado, mas estacou levando as mãos
ambas ao peito: o rosto ennegreceu-lhe,
turgido, saltaram-lhe os olhos,vermelhos
MARIA. ENCONTRA JESUS
63
como postas de sangue, ferveu-lhe á boca uma
espuma rubra e, com um rugido de dôr, rolou
por terra, morto. E logo tresandou tão
insupportavelmente que o povo fez um claro
em volta do cadáver ainda quente e já
desfazendo-se como velha carniça.
A boca aberta e secca, respirando aos ar-
quejos, e tão alto que se lhe ouvia o stertor
oppresso, ia indo Jesus aos arrancos. Vergava o
dorso e, a mais e mais, falhavam-lhe os passos
tropegos. De repente, num estremeção,
dobraram-se-lhe mollemente as pernas e teria
tombado ao peso do madeiro se mãos prestes o
não houvessem amparado, não por piedade,
mas por interesse cruel, por que seria uma
decepção para o povo se o nazareno
succumbisse á fadiga, quando todos contavam
com o espectaculo mais interessante da
crucificação.
Ia o cortejo cruzando a Porta Judiciaria
quando um grito lancinante atravessou, o resôo
da marcha e o estuar rumoroso das falas,
fazendo a multidão estacar de improviso.
Uma mulher estava de pé, entre as silvas do
caminho, livida, os olhos muito abertos, os
magros e enfraquecidos braços alongados
64
AS SETE DORES DE N. SKNHORA
em desespero para o Martyr, balbuciando
palavras que lhe morriam nos labios, afogadas
no pranto que os olhos despejavam.
Não se tirava do lugar. As hervas, que se lhe
agarravam ás vestes, pareciam retê-la e o seu
corpo esguio, macilento, tremia todo com
violência tamanha que os cabellos, já grisalhos,
despenharam-se-lhe pelos hombros agudos.
Era Maria.
Como o centurião tirasse pelo baraço fa-
zendo caminhar o condemnado, a misera lan-
çou-se allucinadamente por entre os homens,
passou por elles sem notar nos soldados que
cruzavam as lanças para contê-la, deixando no
ferro de uma farrapos da túnica. E entrou no
cerco doloroso.
Chegou a Jesus e, inclinando-se, tomou-lhe o
rosto nas mãos, poz-se a beijá-lo com ânsia,
lavando-o em lagrimas. E chamava-o em voz
surda e meiga :
Ó Filho meu! Meu Filho !
Mas a turba rosnava, vozes protestaram:
Afastai-a d'ahi! Faz-se tarde. Cumpra-se
a ordem de Pilatos. Morra o sedicioso !
E o centurião poz-se a caminho, levando a
victima quasi de rastos.
MARIA KENCONTRA JESUS
65
As buzinas troavam tirando echos melan-
cólicos dos valles e o som ia tão longe que se
via, nos resequidos barrancos, por entre as ro-
chas áridas, fugirem corpos brancos, corno pe-
dras que rolassem, que eram ovelhas que o
susto dispersava.
O caminho pedrento, recavado em sulcos,
queimava como rescaldo.
Junto a uma velha, desmantelada cisterna
repousavam recoveiros, com as lanças altas
fincadas na terra secca e os jumentos presos a
toros de figueiras mortas e, mais apartado, num
inatto de tojo, negro e pútrido, um leproso
acocorava-se arrepanhando os andrajos, não
por vexame da sua quasi nudez, mas para
occultar as chagas que lhe apodreciam o corpo.
Satisfeitos do que haviam visto, muitos
curiosos regressavam lentamente conversando
sobre o supplicio ou sobre a festa da Paschoa ;
voltavam-se, por vezes, acenando para o Gol-
gotha escalvado, onde o sol ardia em fogo vivo
reluzindo nas pedras, avermelhando os cardos.
Os legionarios abochornados seguiam a
passo, alguns levando os capacetes espetados
nas lanças. A marcha remorava á medida
5
66 AS SETE DORES DE N. SENHORA
que o caminho tortuoso ia alcançando o monte.
Um dos ladrões parou, pediu agua. A sua voz
era rouca e áspera. Riram-lhe em rosto. O
condemnado irritou-se e respondeu com uma
affronta, ameaçando ferozmente o grupo de
onde partira a gargalhada. Foi. então, uma
rinchavelhada de troça, vaiaram-no, atiraram-
lhe pedras e estéreo.
Maria não parava, caminhando ás tontas,
com uma ansia que lhe tomava todo o ar,
suffocando-a em soffrimento. Ia para o cen-
turião de mãos postas, pedia-lhe : falava aos
legionarios, voltava-se angustiosamente para a
turba e, como reconhecesse algumas das
mulheres, chamava-as pelos nomes.
Retrocedia a correr, pisando na fimbria dos
vestidos rotos, ás topadas nas pedras que
resaltavam e tomava; a mãos ambas, a cauda da
cruz esforçando-se para que todo o peso do
madeiro lhe coubesse; mas os soldados
repelliam-na brutalmente, ameaçando-a.
— Vós não sabeis, de certo, que elle é meu
Filho ... Meu Filho ! Deixai que o ajude a levar
a cruz, tenho força para carregá-la e ainda que
os braços m'a negassem, pedi-la-ia ao coração,
O seu peso é mais suave do que
MARIA EXCONTRA JESUS
67
}
a minha agonia e eu caminho, bem vedes. Não
é possível que vossos olhos não vejam o meu
soffrimento. Eu devo estar transfigurada.
Que fez elle ? Porque assim o maltratam ?
Porque o levam á morte ? Quando me foram
dizer que o haviam condemnado eu, que ardia
em febre; eu que, ha mais de quinze dias, não
me podia arrastar até á porta da minha casa,
senti-me outra e tive forças para correr a vós o
para clamar tão alto que os proprios abutres
que passam nas nuvens ouviram os meus gritos
e apressaram o vôo. Aqui estou, sou mãi, sua
mãi. Elle é meu Filho. Trouxe-o pequenino ao
collo, deixai que agora o ajude a carregar o seu
patibulo. Elle é tão fraco, tão doente... Se
soubesseis!... Foi sempre assim fraco. Por
César! Por vossa mãi! Por vossos filhos!
Ajoelhou-se de mãos postas, pedindo com os
olhos amarados, mas o povo não se com-
moveu com as suas palavras, com as suas
lagrimas e te-la-ia pisado se um homem mais
caridoso não a houvesse levantado fazendo-a
sahir.
— Corações frios! Ainda que elle fosse um
assassino, vós devieis ter pena. Que fez elle ?
Jesus não levantava os olhos, receioso de
68
AS SETIE DOIRES DE N. SENHORA
encontrar os de Maria, e caminhava extenua-
do, esforçando-se; sentia-se-lhe o desejo de
apressar a marcha para acabar aquella ago-
nia, chegar á morte mas depressa.
A cruz, de rasto, a deixando pela terra um
sulco sinuoso e o povo para abreviar o especta-
culo, empurrava-a a rir, ajudando o Martyr.
Mas as forças abandonaram-no. Parou, er-
gueu os olhos ao céu ; os braços cahiram-mo
flaccidos ao longo do corpo e, oscíllando, tom-
bou de joelhos sobre as pedras agudas, sem
um gemido, e ficou immovel, com o rosto na
terra, a coroa de junco a arranhar-lhe a fronte.
Foi nesse momento que o centurião, impa-
ciente, vendo na turba um homem robusto,
conhecido pelo nome do Simão de Cyrene,
chamou-o intimando-o a levantar a cruz e
auxiliar o condemnado. O homem adiantou-
se e, com facilidade, executou a ordem.
Ergueu-se Jesus e, como o centurião tirasse
pela corda com violência, Maria, que se de-
batia na multidão, desmaiou e deixaram-na
sobre hervas, como morta.
Mulheres cercaram-na e lenta, silenciosa,
começou a subida do Golgotha por sobre
ossos brancos dispersos e cardos que reponta-
vam por entre as pedras.
V
A morte de Jesus
Despojado violentamente dos trajos irrisórios
com que o haviam vestido, ficou Jesus desnudo
e, immovel, cheio de serenidade, o olhar
parado, perdido no céu largo e abrasado.
Exposto ás vistas ultrajantes da soldadesca
desabrida, que o cercava, e do povo amotinado
e ansioso pelo espectaculo da morte, ali esteve
soffrendo todas as affrontas todos os
vilipendios, sugeito aos commentarios mais
soezes da gentalha que ria da extrema magreza
do seu corpo maculado de ecchymoses e
seviciado pelos flagellos.
Moços languidos, alongando os braços nus
nos quaes tiniam luzentes armillas de ouro e de
marfim, caminhavam vagarosos, soerguendo as
tunicas para evitar a urze ou para
72 AS SETE DORES DE N. SENHORA
que lhes vissem os cothurnos os recamados de
perolas.
Mulheres cochichavam. Ao aroma do nardo
misturavam-se o fortum de suor e o cheiro
agreste e do suarda que tresandavam os gros-
seiros pastores e os tintureiros cujas mãos pa-
reciam erduvadas em purpura ou em azul.
Crianças immundas jogaram pedrinhas, ama-
tilhadas nos vãos das rochas e velhos mal-
trapilhos, arrepanhando os sórdidos farrapos,
ganiam estendendo as mãos engelhadas ou
mostrando chagas em sangue em torno das
quaes as moscas assanhavam-se.
Era como uma feira alegre e rumorosa o
lugubre planalto. Luziam ao sol os capacetes
dos legionarios; as lanças, encostadas nas
rochas, em feixes, faiscavam como se um lume
lhes ardesse no ferro, e, de quando em quando,
roufenha, a buzina resoava.
Já os dois ladrões estorciam-se nos seus
cruzeiros. Um d'elles, enfurecido, com a es-
puma a ferver-lhe aos cantos da boca, contra-
hida em rictus, injuriava o povo, bradava
insultos em voz rouca e arquejada ; o outro,
resignado, meneava a cabeça e via-se-lhe
crescer o peito, encher-se-lhe o ventre na ansia
da respiração angustiada. Lagrimas
A MORTE DE JESUS
73
lentas desciam-lhe ao longo da face, abrindo
dois laivos na poeira que a avermelhava. Em
volta, a turba, contida pelos legionarios,
resmungava, protestando contra a, aspereza do
centurião inflexivel que não permittia a
passagem além do limite traçado por uma corda
de linho. Alguns, mais atrevidos, investiam,
agarravam a corda sacudindo-a, mas legionarios
corriam apontando as lanças ou brandindo
gladios e era uma debandada confusa, um
atropello de recúo e atroavam gritos. Alguns
rolavam espesinhados e ficavam escabujando,
guaiando na poeira.
Jesus não fazia o mais leve movimento. Do
instante a instante um frêmito crispava-lhe a
face livida, as palpebras batiam em pa]pitações
repetidas e a boca descerrava-se-lhe. Mas a sua.
attitude mantinha-se como a de uma estatua,
impassivel no meio d'aquella. turba
borborinhante, que grasnava, vociferava e ria
fervilhando no monte como abutres em carniça.
Nuvens negras subiam pesadamente, acas-
tellavam-se no ceu, como outeiros que se
houvessem levantado nos ares e lá fossem, com
as suas corcovas escuras, construindo
74 AS SETE DORE.S DE N. SENHORA
cordilheiras no espaço. O ar era denso, em-
poeirado.
Corvos passavam em vôo rapido ou bai-
xavam cangados e, d'azas abertas, ficavam
pousados nas arestas das penhas, olhando as
cruzes, com curiosidade humana.
Um homem escuro, quasi negro, de grenha
crespa, com um saião remendado, as pernas
escalavradas, passou por baixo da corda que
limitava o âmbito da justiça e, silenciosamente,
desenrolando um avental de couro, despejou
sobre o pedregullio uma grossa ferragem.
Àgachando-se, então, poz-se a escolher cravos,
experimentando-lhes a ponta na palma da mão
callosa e, tomando três dos mais agudos,
adiantou-se de vagar, d'olhos fitos no rabbino.
Então um legionario moço desligou os pulsos
vincados do martyr e, impondo-lhe as mãos
brutas ao peito macilento, ripado pela ossatura
saliente, levou-o, aos safanões, até o cruzeiro
que jazia, em terra, com a base chegada a uma
cova, e, com um empurrão, derrubou-o nas
pedras, porque era todo um rebo áspero de
cascallio o ponto da montanha, onde se
realisavam os supplicios.
Dois legionarios, alagados em suor, com
A MORTE DE JESUS
75
>
os capacetes atirados para as costas, arrastaram
o nazareno, deitaram-no a fio sobre a cruz e o
homem escuro, cavalgando-o, tomou-lhe um
dos braços, esticou-o, espalmou-lhe a mão e,
impondo um cravo, bateu-o. O sangue espirrou
em esguicho, correu em jorro, empastou-se
em coagulo.
Saltando ágil sobre o tronco do condemnado
impassível estivou-lhe o outro braço e, de novo,
o martello troou em pancadas que os echos
redobravam. Repuxou os braços pregados,
mirou-os e, d’um salto, passou á base do cru-
zeiro, juntou os pés de Jesus e, fincando o
cravo, martellou com furor, a mãos ambas,
arfando.
Um tremor percorreu todo o corpo do pa-
ciente, a boca abriu-se-lhe lentamente, como
em bocejo, cerraram-se-lhe os olhos e mais li-
vido se lhe tornou o rosto marejado de suor.
Já dois soldados passavam uma corda no alto
da cruz. Houve um brado e os legionarios,
curvando-se, com as pontas da corda pelos
hombros, avançaram tirando esforçadamente o
madeiro que outros empurravam e lá se foi
erguendo o poste, escarvando a borda da cova;
súbito, um resvallo, afundou na terra e ficou de
pé, oscillando.
76 AS SETE DORES DE N.. SENHORA
Logo o homem que pregara os cravos metteu
as cunhas, accumulou pedrouços reforçando o
amparo e o sangue da victima pingava em
gottas lentas. Dois mastros, rubros como arre-
cadas de coral, penderam dos braços, um fio
sinuoso escorreu dos pés e a multidão irrompeu
em grita vendo o rabbino sacrificado, com uma
tanga de Unho grosso em torno dos rins, os
cabellos escorridos, empastando-se-lhe na
fronte laivada pelos espinhos da coroa de
junco.
Então os soldados, dando por concluido o
fúnebre serviço, lentamente afastaram-se bus-
cando sombras. Uns, despindo a couraça,
pendurando os capacetes, estenderam-se sobre
os mantos; outros, em circulo, puzeram-se a
jogar, chalrando. Acharam a túnica de Jesus.
Um delles abriu-a, examinou-a e mostrando-a,
a rir, propoz um preço. «Será de quem a ganhar
ao jogo !» bradaram. E foi um tumulto, uma
alegre algazarra.
Entre o povo vozes apregoavam refrescos e
bolos. Uma mulher ia e vinha offerecendo figos
em voz larmirienta.
Nesse momento o ladrão, que não cessava de
.resmungar, voltando a cabeça, disse em tom
atrevido :
A MORTE DE JESUS
77
«Se és o Christo, livra-te e a nós...» O outro,
porém, reprehendeu-o :
—Nem te commoves do soffrimento, cuja dôr
conheces. Tu e eu fizemos por elle, mas que
fez este justo por merecê-lo ? E, docemente,
inclinando-se para Jesus, implorou :
Senhor, lembrai-vos de mim quando vos
virdes no céu.
E o martyr respondeu docemente :
Em verdade te affirmo que hoje serás
commigo no paraiso.
Duas mulheres sahiram da multidão e
;
se-
guidas por um mancebo louro, chegaram-se
vagarosamente á cruz.
A mais moça era linda, alta e branca, loura,
d'olhos muito azues e amparava a mais idosa,
que era Maria.
Ao verem-nas, os da turba logo sussurraram:
É a de Magdala. A que vivia perto da
fortaleza e tinha escravas negras e auletridas
vindas das ilhas gregas. E citavam-se nomes de
sadduceus abastados, de romanos perdulários
que a procuravam e que, por ella, se haviam
perdido.
Dizem que se desfez de tudo, até do seu
patrimônio, cedendo aos pobres o ultimo obulo.
78
AS SETE DORKS DE N. SjENHORA
Enamorou-se do nazareno. Ouvia-o cho-
rando, seguia-o descalça e, quando elle pa-
rava, estendia-se-lhe aos pés, e sorrindo, com
toda alma nos olhos, ficava-se a contemplá-lo.
Lavou-lhe, certa vez, os pés com essência de
nardo,, enxugou-os com os próprios cabellos.
Riram.
E as duas mulheres pararam defronte do
cruzeiro. A de Magdala chorava. Maria mal se
sustinha ; vergava, cambaleava nos braços do
louro inancebo, que era João, o apóstolo mais
moço. Olhava, estendia os braços e dos lábios
seccos não lhe sahia palavra. Então, o meigo
discipulo sentou-a aos pés da cruz e ali ficou a
Dolorosa immovel, de olhos muito abertos,
estremecendo, sem um gemido, sem uma
lagrima.
Da turba partiam chufas — eram phariseus
que intimavam o Christo a realisar um milagre.
Martyrisavam-no com os próprios beneficios
que elle fizera, atiravam-lho em rosto, á
maneira de injurias, as suas proprias
misericórdias.
Não deste vista aos cegos ? Não fizeste
andar os paralyticos ? Não resuscitaste os
mortos ? Tira-te d'ahi. Chama os teus anjos.
Outros protestavam furiosos contra a le-
A MORTE DE JESUS
79
genda que encimava o cruzeiro, na qual Jesus
era inculcado como Rei dos Judeus.
Servos do Templo faziam pelotas de barro e
atiravam-nas á cruz. De repente, com um
rangido, o corpo do martyr estorceu-se e
palavras sahiram-lhe da boca :
— Mulher, eis ahi o teu filho. ..
Falava de João á Maria e, como o discipulo o
encarasse, disse-lhe :
— Eis ahi a tua mãi.
E calou-se.
Não teve Maria coragem de levantar os olhos
— quedou encolhida, tremendo como em frio
intenso. A grita do povo não a tirava da
immohilidade trágica, toda ella entregara-se ao
soffrimento, só attendendo ás oscillações do
cruzeiro no qual se encostara.
As nuvens cresciam no céu tenebrosas,
encobrindo o sol; rolavam trovões á distancia,
azas estalavam no ar pesado e o calor tornava-
se insupportavel. Foi então que, enfra-
quecidamente, o Christo murmurou com um
estremeção violento :
Meu Deus! Meu Deus ! porque me des-
amparais ! ?
Andavam os soldados em volta da cruz can-
tarolando, e como outras mulheres se apro-
80 AS SETE DORES DE N. SENHORA
ximassem, entraram a chasqueá-las. Offere-
ciam-lhes posca, acenavam-lhes com punhados
de tamaras ou pediam-lhes noticia do famoso
propheta que reviçava os campos seccos e
restituia a vista aos cegos, sarava os leprosos
das ruinas, defendia os pequeninos.
Pouca gente estava nas immediaçõcs. Te-
mendo a tempestade, que se armava, a maioria
descera em alegre arranchada cantando, bai-
lando por entre a urze e os cardos dos caminhos
pedrentos.
Foi em meio do silencio que a voz de Jesus
soou quasi extincta :
— Tenho sede.
Maria ergueu-se d'impeto, mas faltaram-lhe
as forças; oscillou, foi d’encontro ao cruzeiro.
Ampararam-na. Estendeu os braços ao Filho e
ficou como de pedra, a olhá-lo.
Um homem acudiu com um canna em cuja
ponta havia uma esponja encharcada em vinho.
Provou-a o nazareno, mas repellindo-a, disse,
inclinando a cabeça :
Tudo está consummado !
Um estremecimento sacudiu-o todo, fazendo
com que se lhe abrissem mais as feridas e o
sangue corresse copioso. Subia-lhe o peito em
haustos, a cabeça debatia-se e,
A .MORTE DE JESUS
81
rolando os olhos, escancarando a boca em
desmedido hiato, sorveu com ânsia o ar e
depois exclamou :
— Pai, em vossas mãos encommendo o meu
espirito !
Ainda um instante moveu-se. Mas amolle-
ceram-se-lhe flaccidamente os braços e a ca-
beça, como abandonada, tombou-lhe pesada ao
peito.
Com estrepito convulso a terra em torno
abalou-se, o monte fendeu-se em brecha pro-
fundissima, coriscos zebraram o fundo cali-
ginoso do céu e uma noite subita baixou.
Os soldados recuaram cheios de assombro.
Alguns, atirados longe, não tiveram animo de
erguer-se e ficaram a murmurar estarrecidos.
O próprio centurião, immobilisado, não teve
palavra para animar a sua gente.
Só Maria, petrificada no soffrimento, não
sentira a terra tremer, não dera pela treva
súbita, não vira faiscarem os raios : inerte,
olhos immensos, não se tirava, da attitude de
êxtase doloroso.
A Magdalena lançou-lhe os braços ao pes-
coço, attrahiu-a a seu collo, beijando-a, cha-
mando-a. A triste Mãi não despertava, ainda
6
82
AS SETE DORES DE N. SENHORA
que os labios lhe tremessem e os olhos, cada
vez mais brilhantes, accusasse, o ardor in-
tensissimo da febre que a consumia.
Quiz o discipulo chamá-la á vida com o
martyrio como quem procura despertar um
epyleptico torturando-o, e annunciou-lhe a
morte de Jesus.
A misera não deu mostras de ouvi-lo: Ali
estava, era a Dôr calada, a Dôr suprema, a Dôr
emparedada no coração, que se não expande e
concentra-se a mais e mais. Era a paralysia
d'alma, o arroubo doloroso, o surto d'agonia.
Não tinha lagrimas: era como uma fonte
estancada cujo leito estala e brilha ao sol.
Immovel, toda ella era tortura — como uma
casa fechada dentro da qual se commettessem
atrocidades. No exterior era a gelida
indifferença, quem se inclinasse ao seu peito
ouviria, o desconcertado pulsar do coração
lutando com a agonia.
E os olhos parados, tão abertos, que viam em
fito ? viam o Passado, todo o suave tempo, os
lugares em que Elle vivera.
Via-o pequenino nas palhas de Bethleem;
via-o em Matarieh, a sombra dos sycomoros;
via-o em Nazareth entre as figueiras; via-o
A MORTE DE JESUS
83
em Jerusalem, no Templo. Depois... Oh! as
saudades, as longas esperas, as apprehensoes,
o medo ...
Elle. perdido e só d'Elle a fama dos mi-
lagres, das misericordias, das bençãos.
Onde ella passava e via um vinhal viçoso,
logo lhe diziam : « Era uma velha cepa. Jesus
tocou-a e logo empampanou-se e encheu-se de
racimos». Homens que encontrava pelos ca-
minhos, lavando as chagas na agua escassa
dos corregos, pediam-lhe noticias de Jesus ; ce-
gos "bradavam o seu nome; paralyticos arras-
tavam-se ao seu encontro; criancinhas recla-
mavam-no e a sua bondade infinita era accla-
mada por todos, gentes de todas as terras
procuravam o seu rastro "bradando o sou nome
e elle parava, attendia a todos, sorrindo. E ali
estava...
Quiz levantar-se, vê-lo ... e tombou nos
braços das mulheres como ferida de morte.
>
VI
Jesus golpeado pela lança e descido
da Cruz
Toda a cidade alvoroçou-se com os pheno-
menos que se deram no instante em que ex-
pirou Jesus e mais com as noticias que che-
gavam de varios pontos, principalmente das
immediações do Golgotha, trazidas por zagaes
e lavradores.
Nas ruas, nas praças, refervia o povo, que
abandonara as casas, em açodado tumulto, com
receio de ficar sob as minas se a terra outra vez
tremesse.
E formavam-se grupos em torno dos que
chegavam espantados, narrando prodígios.
Aqui, era um servo do Templo e referia que,
estando a lavar as lages, sentira-se, de súbito,
envolto em trevas; tora depois um clarão como
de muitos soes e estrondo de
88 AS SETE DORES DE N. SENHORA
sem que alguém nelle estivesse, rasgar-se, d'alto
a baixo, o véu do santuário.
Ficara um momento sem poder tirar-se da
posição em que cahira, logo, porém, que
conseguira levantar-se, com todo o sangue
gelado, deitara a correr annunciando o que vira.
Os sacerdotes lá foram o todos pasmaram em
silencio sem achar explicação para o caso
estranho.
Um pegureiro, ainda tremulo, voltando-se,
attonito, para o lado do monte, dizia :
— Ali em baixo, entre penhas, andavam sol-
tas as minhas cabras. Tenho ali o corveiro e o
colmado cm que durmo. Nunca houve em tal
sitio caso algum que m'o fizesse temer. Cantava
cosendo as hervas do meu jantar quando,
subitamente, densas trevas cercaram-me : senti-
me como em sepulcro e logo, accendendo-se
uma claridade, todos os rochedos estalaram com
estampido, abriu-se a terra em brechas e as
minhas cabras, ai! de mim, abysmaram-se em
precipicios profundos.
Entre todos, porém, o caso que mais aturdiu
e espantou foi o de uma mulher, que tão
depressa abalara do campo que lá deixara toda
a sua fortuna, que eram alguns meaks
JESUS GOLPEADO PKLA LANÇA 89
e o seu gigo de uvas colhidas com desvello na
sua vinha, que seccara.
E disse a misera:
— Vinha eu de vagar, cantando, quando o
céu escureceu e lampejaram relâmpagos e
rebentaram trovões. Achei-me entre brancos
sepulcros. Atordoada, encosto-me a um d'elles e
eis que a pedra por si mesma se afasta
docemente, e silenciosa como as nevoas passam
á flor dos outeiros nas manhans de inverno, e
um morto, que ali jazia, sobe do fundo da terra,
envolve-se na mortalha e, sem que os pés
toquem o solo, parte, desapparece entre as
arvores. Outros tumulos lançam de si os seus
hospedes e eu os vejo a todos, a alguns
reconheço. Vão-se, somem-se; e o ar
embaisama-se com o cheiro das essências e eu
fico tombada, transida de medo, entre os se-
pulcros vazios, sentindo a terra tremer e as
lages arrastarem-se surdamente, de vagar.
Todas as vinhas ficaram esturricadas e as
figueiras morreram. Fontes que nunca negaram
agua estão seccas. Que terá havido ? Ai! de
nós, pobresinhos...! e, como as nuvens se
acastellassem em rolos negros, crescia o pavor
do povo. Aves cruzavam-se nos ares, .com
gritos trágicos e
90
AS SETE DORES DE N. SENHORA
A gente dos campos entrava, a cidade espa-
vorida referindo o que vira e, como do uma casa
sahisse um velho, que todos sabiam entrevado,
e corresse, com as grandes barbas ao vento,
parando, de instante a instante, para apalpar as
pernas que se lhe haviam destravado,
conduzindo-o com ligeireza fácil, o povo
precipitou-se empós elle, chamando-o,
bradando-lec o nome. E o velho lançava os
magros braços acenando para o céu turvo e
corria, sem mostrar fadiga, gosando a delicia
d'aquella liberdade.
No próprio palacio do governador era des-
usado o movimento — roldas de legionarios
passavam em marcha accelerada, soavam bu-
zinas. A cidade estava toda em alvoroço.
Os mercadores, abandonando as lojas, sa-
ldam a noticias mettendo-se nos grupos, con-
fundindo as suas tunicas com as pelles sordidas
dos pastores airados, que não se atreviam a
voltar ao campo e acolhiam-se, com medo, aos
pateos, mettiam-se nas alfurjas, murmurando
preces, beijando devotamente os seus amuletos.
Dois homens, com ordens de Pilatos, levando
aos hombros pesadas barras de ferro, chegando
ao Golgotha, procuraram o centu-
JESUS GOLPEADO PELA LANÇA
91
rião e, depois de ligeiras palavras, trocadas em
voz baixa, encaminharam-se para. o lugar em
que avultavam as cruzes e, descançando as
barras, ficaram, um momento, a olhar os
pacientes.
Os ladrões ainda viviam. Um d'elles, o que
desafiara Jesus a fazer um milagre, debatia-se
contorcendo-sc em grande desespero, como
procurando arrancar-se do poste. A barba,
negra e dura, crescia-lhe no rosto como um
sarçal em barranca, os cabellos empastavam-se-
lhe na fronte, os olhos chispavam, queimavam.
O outro, a boca aberta, os olhos languidos,
amortecidos sob as pendidas palpebras, ar-
quejava com ânsia e, de instante a instante, um
gemido escapava-se-lhe do peito vincado pelas
costelas. Um dos homens adiantou-se e,
sorrindo sinistramente, falou ao ladrão mais
robusto :
— Éh ! lá, amigo. Sempre é melhor a vida
livre na estrada que os mercadores freqüentam.
Tinhas o teu fojo e afiavas a faca no lombo das
pedras. A noite, mal ouvias vozes ou tropel
d'animaes, sabias com os do teu bando e, d
r
um
salto, estavas sobre a victima que marcáras.
Que te importava o san-
92 AS SKTE DORES DE X. SENHORA
gue ? O golpe era certeiro e o saque pagava o
trabalho e a vigilia. Eras homem de acção e
deves sentir essa immobilidade. Para um rapaz
como tu, convenho que a posição não é lá das
mais commodas. Vamos acabar com isto.
O ladrão lançou-lhe um olhar faiscante de
odio e, vendo-lhe a barra em punho, teve um
arripio, tentando instinctivamente encolher as
pernas.
Já resoavam pancadas surdas cortadas por
gemidos — era na cruz de Dímas, o bom la-
drão, primeira victima do crurifragium.
O carrasco que falara, como para alongar a
agonia do criminoso que lhe coubera e que
continuava a ameaçar, a injuriar, sentou-se
numa pedra, com a barra deitada sobre os
joelhos. E zombava com um risinho cruel:
— Encolhes as pernas ? Se é para as fazer
menores não te dê isso cuidado, deixa por
minha conta. Em tal serviço não ha, mesmo em
Roma, quem se possa medir commigo.. Garanto-
te que has de ficar satisfeito.
Os assistentes, que se ajuntavam além do
limite traçado pelo centurião, riam das zom-
barias do carrasco. E elle levantou-se, tomou a
barra a mãos ambas, meneou-a.
JESUS GOLPEADO PELA LANÇA 93
O ladrão soltou um urro feroz e sacudiu-se
com tal violencia que a cruz ficou longo tempo
oscillando.
Outro golpe e as pernas dobraram-se, o
corpo escorregou sem apoio, ficando apenas
mantido pêlos braços retesos.
O sangue escorria grosso, denegrido, empo-
çando-se na terra e os ossos appareciam em
estilhas atravez da carne triturada.
Soldados, curiosos do espectaculo, agrupa-
ram-se diante da Cruz. Como o ladrão con-
tinuasse a rugir, debatendo-se nos estrebucbos
da agonia, o carrasco amiudou os golpes,
macerando-lhe as pernas retalhadas, e a barra,
de espaço a espaço, batia surdamente nas
carnes esmagadas fazendo saltar esquirolas.
Por fim, cerrando os olhos, conservando a
boca escancellada e retorcida, o desgraçado
expirou.
Dimas pouco havia resistido.
Os dois carrascos, limpando o suor da fronte,
já se dirigiam para a cruz de Christo quando
viram, immovel. os olhos estanques, as mãos
abandonadas ao collo, Maria sentada junto ao
madeiro.
— Quem é ? perguntou um d'elles.
94 AS SETE DORES DE N. SE.NHORA
É a mãi do rabbi, disse o centurião, de
nome Longuinhos.
É preciso arredá-la.
Que ides fazer ? Não vedes que está
morto? E, para provar o que affirmava,
levantando a lança abriu urna ferida no flanco
de Jesus. D'ella escorrendo sangue e agua., uma
gotta foi, maravilhosamente, aos olhos
do
soldado que logo se rojou em terra cheio de
arrependimento, chorando, convertido pelo
remorso, adorando aquelle cadaver em que
residira o espirito divino.
Maria estava insensível—nem as suas roxas
palpebras batiam. Julgando-a morta, Magda-
lena ajoelhou-se-lhe aos pés, chamou-a. A Vir-
gem não fez o mais leve movimento — mas o
coração batia.
Ó miscro coração ! Todas as forças da infeliz
estavam nelle concentradas, em torno da
magua. Toda a vida refugiara-se naquelle
santuario do soffrimento : os soluços, as la-
grimas, as deprecações, tudo lá estava, não
havia passagem para o menor allivio.
Os que choram dispersam tormentos, os
soluços arejam o coração. Maria tinha a Dôr
trancada e ali estava apparentemente insensivel.
JESUS GOLPEADO PEI.A LANÇA
95
Era a superfície enganadora, a parede de um
carcere dentro do qual o carrasco, lentamente,
abafando todos os gritos, suppliciasse a
victima.
Nem quando José e Nicodemos retiraram o
cadaver da cruz a inieliz ponde soltar as
lagrimas : olhava immovel e muda. E vagarosa,
amparada por Magdalena e João, desceu a
montanha seguindo o corpo amado, tão
impassivel, d
olhos tão enxutos que só os que a
levavam sabiam que ia ali a Dôr, a immensa, a
inenarravel Dôr, tão grande que não cabia em
queixas, em lagrimas, em soluços.
VII
Jesus encerrado no sepulcro
Era num horto, entre rosaes.
O silencio e a amenidade tornavam-no o
ponto favorito dos passaros que por elle an-
davam esvoaçando de ramo em ramo ou pelo
saibro, nos relvedos, á beira do rego por onde
sempre discorria um fio d'agua.
Sycomoros robustos alargavam sombras re-
pousadas e, contrastando com a belleza e com a
fartura do sitio, uma rocha, escalvada e negra,
toda cercada de cardos, avultava monstruosa e
melancolica. No flanco fora cavado um jazigo,
que pertencia a José de Arimathéa. Alli fôra
deposto o cadáver do Martyr.
O perfume das essências funeraes embalsa-
mava o ambiente : aroma triste, de morte, que
commovia.
100 AS SETE DORES DE N. SENHORA
Caiados, os discipulos, que haviam acompa-
nhado o corpo áquelle repouso, rodeavam a
rocha, encostados aos troncos ou diante do
sepulcro, ajoelhados, chorando.
A noite descia calmae estrelada. Cantavam
cigarras e longe, como a Paschoa estava pro-
xima, estrugiam vozes festivas, resoavam cym-
balos.
Maria, sempre amparada pela Magdalena,
quedara contemplativa ante o bruto rochedo.
As lagrimas rebentavam-lhe dos olhos, os
labios entreabriam-se-lhe deixando passar sus-
piros.
De repente, tocando a pedra, apalpando-a,
murmurou :
Tão fria!
Que sentis, Senhora? perguntou João
adiantando-se sollicito.
E ella, de novo, murmurou :
Tão fria! E dizer que é tudo quanto
me resta ! Toda a minha fortuna aqui jaz.
Eu era tão venturosa que meus passos felizes
abençoavam a terra; a minha alegria era uma
claridade que alumiava. Nunca invejei! Que
podia eu desejar mais neste mundo se o
tinha, a Elle, meu Filho ? Contemplando-o,
recordava todo o passado e era sobre a sua
JESUS ENCERRADO NO SEPULCRO
101
cabeça que meus olhos viam o futuro. Meu
horisonte !
Quando o via vir pelos caminhos claros,
dobrado de fadiga, o meu coração ficava tão
contente como ficam as flores, depois de um
dia de sol, quando o ar refresca annunciando o
orvalho.
A sua. voz era a musica que embalava mi-
nh'alma e chamar-lhe Filho era para mim
felicidade tamanha que, ainda na sua ausência,
esse nome era o brinquedo dos meus labios. Ai!
de mim... A minha vida encravou-se na pedra!
E eu hei de andar sósinha, e hei de ouvir a
outras rnãis aquillo que me não é dado dizer.
Filho ! Filho ! Filho !
Este nome devia desapparccer da terra; para
mim não existe, é uma palavra que findou, uma
alegria que se extinguiu. Não sahirei, ninguem
mais me verá.
Aqui fico, eu e a Morte, minha companheira.
E que fez Elle ? Foi bom, amou, quiz ser
generoso e aqui está para o sempre.
A Magdalena inclinou-se-lhe ao hombro se-
gredando-lhe uma consolação :
— Resurgir, dizes. Ha de resurgir... E eu ?
Cuidas que terei tanta força que espere tres
102
AS SETE DORES DE N. SFNHORA
dias, que passe todo esse tempo sem vê-lo, sem
ouvi-lo ? Ainda que elle volte, ai ! de mim, não
mais encontrará vivo o coração que o amou.
Sinto que me desfaço em lagrimas. E tudo, em
volta de mim, rejubila : osssaros cantam, os
ramos agitam-se e brilham estrellas no céu. Pois
é possível que não saibam que morreu meu
Filho ? É possível ? Nos dias tristes toda a terra
entristece e porque ha de a natureza ser
indifferente á tristeza de uma alma ?
Rocha, agora és tu que o trazes, Elle jaz no
teu seio, é teu Filho. Ai! de mim.
A Magdalena, posto que se conservasse ao
lado da Dolorosa, mal ouvia as palavras que
lhe sahiam dos labios. Não eram vozes, senão
um sussurro tirado pela dôr como o murmulho
das folhas á passagem do vento.
João, lembrando-se das ultimas recommon-
dações do Mestre, tentou serenar o coração de
Maria:
— Aquietai-vos, Senhora. Sois Mãi, é certo,
e, por isso mesmo, mais do que todos deveis
confiar na sua palavra. Elle veiu á terra
conhecer a agonia humana, despiu-se da gran-
deza, divina e vestiu-se de soffrimentos.
JESUS ENCERRADO NO SEPÚLCRO
103
De vós nasceu e chorou ao entrar na vida,
sendo recebido pelo frio.
Crescera na pobreza, fez-se homem entre os
simples.
Trilhou as estradas mais ásperas ao sol e á
chuva ; visitou enfermos, ouviu opprimidos,
verificou injustiças, conheceu a fome e a sede,
a dôr das enfermidades e o peso das
ingratidões.
Fez o milagre o foi apapado ; distribuiu o
pão e deram-lhe o fel; resuscitou os mortos e
acabou em uma cruz. Sorve, até a ultima gotta,
o calice amargo e, a esta hora, já está no céu
pedindo a seu Pai a misericordia para os
homens.
O que agora lamentais não é o soffrimento,
porque esse findou para Jesus ; lamentais a
vossa solidão.
Mas os justos não morrem, porque deixam
na terra o beneficio que os eteruisa.
É noite, não ha signal de sol no céu, mas
escutai o crepitar do alfôbre : são as sementes
que rebentam, porque o sol aqueceu-as e
fecnndou-as. Virão arvores de sombra e fruto.
Elle aqui jaz sepultado no seio da pedra. Ide,
porém, por todas as estradas e vê-lo-eis
104
AS SETE DORKS DE N. SENHORA
vivo o eterno. Elle é a esmola, Elle é a cura,
Elle é a consolação, Elle é a prece.
A malga que o lavrador entrega ao mendigo
faminto, foi Jesus que a encheu. O homem que
espreme o balsamo na chaga do ferido foi
guiado por vosso Filho. A mulher que se
precipita para serenar o coração da viuva, ouve-
lhe a voz celestial e cumpre a sua ordem e a
criança que se ajoelha, junta as mãos e ora,
eternisa na prece a grande Fé que ha de consolar
as almas.
O que ahi jaz pertence á terra, é o corpo. Não
o choreis — levantai os olhos para o céu,
lançai-o sobre o inundo afflicto e vereis que o
vosso Filho vive.
— Oh! palavras que soam. Fazes commigo o
que fazem as mais com os pequeninos: queres
que eu adormeça e cantas, Deus! E tinha eu
força para trazer um Deus... ? Sim, dizes bem...
Deus! Só um Deus podia soffrer tanto e sem
queixa, como Elle soffreu. Mas, ai! de mim, sou
mulher, sou humana e as dores são muitas para
a minha fragilidade.
Sabes que é um coração de mãi ? Eu mesma
não sei como resisto a tamanha agonia.
A dor sustenta. Olho para todos os lados e
JESUS ENCERRADO NO SEPÚLCRO 105
vejo tudo deserto. O rumor que ouço é como o
atrôo d'uma caverna. Estou no vazio, na
solidão.
Antigamente — ainda hontem ! — mal anoi-
tecia, eu ficava a esperá-lo. Se o vento sacudia
a porta, logo me precipitava. Quantas noites
passei em vigilia vendo, em vez d'Elle, entrar o
sol da manhan.
Sabia-o longe e, quando me vinham referir
os seus milagres, eu. chorava, invejando o
enfermo que fora tocado pelas suas mãos, o
morto que se levantara ao som da sua voz, o
rochedo esteril que rebentara em fonte a seu
mandado.
Elle andava a maravilhar as gentes e eu, ai!
de mim, tão só, tão triste, sem, ao menos, poder
vê-lo, ouvi-lo, porque Elle trocava o meu amor
pela Humanidade e deixava os meus beijos sem
pouso como avesitas perdidas nos mares Iargos
que, exhaustas de voar, cahem e perecem na
vaga. E agora...! É Deus, dizeis vós... E eu sou
mãi. Ai! de mim.
Disse e, enlanguecendo, tombou como morta
nos braços de Magdalena.
A noite scintillava estrellada e aves canta-
vam, ao luar, no horto que recendia.
INDICE
I — A prophiecia no Templo ............................................ 7
II —A fuga para o Egypto.................................................. 21
III — Jesus no Templo........................................................ 41
IV — Maria encontra Jesus no caminho do supplicio 57
V — A morte de Jesus..-..................................................... 69
VI —Jesus golpeado pela lança e descido da Cruz. 85
VII — Jesus encerrado no sepulcro.................................... 97
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